Covid19 Capitalismo Crise
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A socialização da crise e a precarização do trabalho: um comentário a Stavros
Mavroudeas .................................................................................................................126
Beatriz Santos e Vinicius Lima da Silva
4. De Nikolai Bukharin para Instituto Mises – e as falsas premissas de Guedes e
Bolsonaro sobre a crise ..............................................................................................134
Guilherme Leite Gonçalves
Crise, capitalismo contemporâneo e Covid-19: Um comentário (e uma crítica) ao texto
de Guilherme Leite Gonçalves .....................................................................................142
Rafael Vieira
Parte III – Covid-19: crise do neoliberalismo? Quais são as alternativas? ................. 151
1. Esta crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa que ela irá
destruí-lo .....................................................................................................................152
Costas Lapavitsas
Coronavírus: o neoliberalismo posto à prova em tempos de pandemia? Um
comentário a Costas Lapavitsas ...................................................................................167
Beatriz Santos, Bruna da Penha de Mendonça Coelho e Natália Sales de Oliveira
2. A Teoria da Reprodução Social e porque precisamos dela para compreender a crise
do Coronavírus .............................................................................................................177
Tithi Bhattacharya
A crise da Covid-19 e o desvelamento das dinâmicas de produção da vida no
capitalismo: um comentário à Tithi Bhattacharya ......................................................180
Rhaysa Ruas
3. Não acredite no mito de que devemos sacrificar vidas para salvar a economia ....191
Jonathan Portes
Em tempos de pandemia, escolhemos a vida ou economia? Um comentário a
Jonathan Portes ...........................................................................................................194
Amélia Coelho Rodrigues Maciel , Grazielle Vasconcellos Ozorio
e Natália Sales de Oliveira
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Nota do Organizador
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Apresentação
carolina.vestena@uni-kassel.de
3 Professor adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do
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Parte I – Origens da pandemia: expansão capitalista e
mercantilização da natureza
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Rob Wallace2
Texto publicado em 29/02/2020
Similar a SARS (CDC, 2013) e a MERS (RAMADAN; SHAIB, 2019), um novo coronavírus
(CDC, 2020) mortal, Covid-19, aparentemente originário de mercados de animais vivos
em Wuhan, China, está começando a se espalhar pelo mundo.
As autoridades chinesas relataram 5974 casos em todo o país, 1000 deles graves
(THE NEW YORK TIMES, 2020a).3 Com infecções em quase todas as províncias, as
autoridades alertaram que a Covid-19 parece estar se espalhando rapidamente para
fora de seu epicentro (THE NEW YORK TIMES, 2020b).
Tal caracterização parece corresponder a estimativas iniciais baseadas em
parâmetros epidemiológicos e prognósticos epidêmicos (BRIDGEN et al.,2020).
O ritmo básico de reprodução do vírus, uma medida feita a partir do número de
novos casos por infecção gerados a partir de um caso individual em uma população não
infectada, chegou a um valor de 3.11. Isso significa que, diante dessa situação, um
programa de controle precisaria conter até 75% das novas infecções para reverter o
surto. A equipe de modelagem estima que atualmente existam mais de 21.000 casos,
relatados ou não, apenas em Wuhan.4
Entretanto, as sequências de genoma completo do vírus mostram poucas
diferenças entre as amostras isoladas em toda a China (NEXTSTRAIN, 2020). A
disseminação mais lenta para um vírus RNA de rápida evolução seria marcada por
mutações acumuladas de um lugar para o outro.
1 Texto original: WALLACE, Rob. Notes on a novel coronavirus. Monthly Review online, Janeiro de 2020.
Disponível em: https://mronline.org/2020/01/29/notes-on-a-novel-coronavirus/. Acesso em: 26 de mar. de
2020. Tradução: Vinicius Lima da Silva e Maria Carolina Sanglard.
2 Rob G. Wallace é epidemiologista evolucionista e geógrafo de saúde pública na Agroecology and Rural
Economics Research Corps e Visiting Scholar no Institute for Global Studies da Universidade de Minnesota,
EUA.
3 Dados referentes ao final de janeiro de 2020 [N.R.].
4 Dados referentes ao final de janeiro de 2020 [N.R.].
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menos virulento do que parecia à primeira vista. Mesmo assim, este vírus penetrou a
população global e, silenciosamente, matou pacientes em magnitudes muito além do
que fora imaginado. O H1N1 (2009) matou em torno de 579.000 pessoas no primeiro
ano (DAWOOD et al., 2012), produzindo uma quantidade de complicações quinze vezes
maiores do que o inicialmente projetado a partir de testes de laboratório.
O ritmo e o perigo da proliferação dos surtos relacionam-se com a conectividade
sem precedentes da humanidade. O H1N1 (2009) atravessou o Oceano Pacífico em nove
dias, superando em meses as previsões dos modelos mais sofisticados sobre as redes
globais de mobilidade. Os dados das companhias aéreas mostram que as viagens na
China aumentaram dez vezes desde a epidemia de SARS.
Com estes mecanismos amplos de filtragem, mesmo a baixa mortalidade por
uma enorme quantidade de infecções pode causar um grande número de mortes. Se
quatro bilhões de pessoas são infectadas com uma taxa de mortalidade em torno de
apenas 2%, oitenta milhões de pessoas são mortas: uma taxa de mortalidade que
corresponde quase à metade da pandemia de gripe espanhola de 1918. E mais:
diferentemente da gripe sazonal, não temos imunidade de rebanho, nem vacina para
retardá-la. Na melhor das hipóteses, com uma intensa atividade laboratorial, seriam
necessários pelo menos três meses (WASHINGTON POST, 2020) para produzir uma
vacina para a Covid-19 – e isto supondo que ela funcione. Lembre-se que os cientistas
criaram com sucesso uma vacina contra a gripe aviária H5N2 somente após o término do
surto nos EUA (CHRZASTEK et al., 2017).
Outro parâmetro epidemiológico crítico será a relação entre infecciosidade e a
manifestação dos sintomas em infectados. SARS e MERS mostraram-se infecciosas
somente quando do surgimento dos sintomas (CAI et al., 2006). Se isso acontecer para a
Covid-19, não obstante os perigos, seria uma boa notícia. De todo modo, mesmo sem
vacina ou antivirais personalizados, devemos colocar imediatamente em quarentena
aqueles subitamente doentes, de modo a quebrar as cadeias de transmissão típicas da
saúde pública do século XIX.
No domingo, porém, o ministro da saúde da China, Ma Xiaowei, surpreendeu o
mundo ao anunciar que a Covid-19 havia expressado infecciosidade antes dos sintomas
(CNN, 2020b).6 Tal reviravolta fez com que os epidemiologistas norte-americanos
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exigissem acesso aos dados que definem a nova infectividade. Surpreendidos, eles até
então esperavam que o vírus não fosse evoluir fora dos parâmetros de saúde pública
imaginados. Se esta descrição do desenvolvimento da infecção for verdadeira, as
autoridades de saúde não poderão usar os sintomas para identificar novos casos ativos.
Tais incógnitas – a fonte exata, a infectividade, a penetração e os possíveis
tratamentos – explicam porque epidemiologistas e autoridades de saúde pública estão
preocupados com a Covid-19. Diferentemente das gripes sazonais citadas pelos céticos,
a incerteza atravessa os que trabalham com epidemias.
Por óbvio que é da natureza do trabalho epidemiológico preocupar-se. A
preocupação está presente nas próprias probabilidades e erros sistêmicos incorporados
pela profissão. Ao não se preparar para um surto que se mostra mortal, o dano é muito
maior do que a vergonha de se planejar para um surto que não cumpre o prometido
pela propaganda (ASHTON, 2003). Mas em uma época que celebra a austeridade,
poucas autoridades desejam pagar por um desastre não garantido, independentemente
dos benefícios colaterais da precaução ou, na outra ponta dos resultados, das perdas
devastadoras associadas a uma aposta equivocada.
De qualquer maneira, a decisão de como proceder está totalmente fora do
controle dos epidemiologistas. As autoridades nacionais que tomarão tais decisões
fazem malabarismos com agendas múltiplas e muitas vezes contraditórias. Impedir, até
mesmo um surto mortal, nem sempre é o objetivo mais importante.
Enquanto as autoridades tropeçam em descobrir o que fazer, a escala do
impacto pode repentinamente aumentar em força e velocidade. Ao mover-se de um
único mercado de alimentos para o cenário mundial em um mês, a Covid-19
demonstrou que os números devem aumentar tão rapidamente que o melhor esforço
de um epidemiologista, sua “raison d’être”, pode sofrer um golpe fatal.
Minhas próprias reações viscerais a esta doença passaram por preocupações,
decepções e impaciência.
Sou biólogo evolucionista e trabalho com filogeografia da saúde pública.
Investigo diferentes aspectos de novas pandemias há 25 anos, grande parte da minha
vida adulta. Como já escrevi em outros lugares (WALLACE, 2016), tentei difundir, com a
ajuda de muitos outros, análises sobre estes patógenos, combinando meus estudos
iniciais sobre as sequências genéticas (FITCH et al., 2007) com geografias econômicas do
uso da terra, economia política da agricultura global e epistemologia da ciência.
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A clareza pode azedar a alma. À medida que minhas mídias sociais vibravam
com perguntas sobre a Covid-19, minha resposta imediata se limitou: o que você quer
que eu diga? O que quer que eu faça?
Ao dar conselhos pessoais e profissionais a amigos e colegas legitimamente
preocupados, tomei algumas decisões erradas. Para a pergunta de um amigo fazendeiro
sobre viajar ao exterior, aconselhei-o a usar máscaras cirúrgicas, lavando as mãos antes
de todas as refeições, e o ordenei: “pare de foder o gado, cara”. O humor sombrio e
irreverente me ajuda a enfrentar o estresse, mas sua resposta sincera “Pare de foder o
gado?” mostrou que eu tinha perdido a linha. Não pegou bem e eu me desculpei. Ele riu
disso mais tarde.
É um risco profissional. Existe o perigo de um pavor existencial, que surge da
inércia política, com a qual os epidemiologistas têm de se confrontar ao preparar o
mundo para uma pandemia persistente e irresistível, que sua clientela finge não
incomodar até que seja tarde demais.
Ainda não está claro, mas, se a Covid-19 é realmente o “Big Bug”, não há quase
nada a ser feito neste momento. Tudo o que podemos fazer é reduzir as falhas de saúde
pública e esperar que o vírus mate apenas uma pequena parte da população do mundo,
em vez de 90%.
Claramente, a humanidade não deveria começar a reagir a uma pandemia
quando essa já estiver em andamento. É a rejeição total de qualquer noção teórica ou
prática de visão de futuro. Os líderes e seus supostos apoiadores em todo o mundo não
se identificam com Prometeu?
Como escrevi sete anos atrás (WALLACE, 2013):
Espero que demore muito tempo até que eu lide novamente com um surto
de gripe humana que não seja passageiro. Embora seja uma reação visceral
compreensível, ficar preocupado nesse momento já seria um pouco tardio.
A doença, qualquer que seja seu ponto de origem, deixou o ninho,
literalmente, há muito tempo.
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Quase nada efetivo foi feito sobre nenhuma delas. Ao suspirarem aliviadas com
a reversão de cada uma, as autoridades esperam os novos dados epidemiológicos para,
em seguida, arriscar o pior resultado com máxima virulência e transmissibilidade. Este
comportamento não se resume apenas a uma falha de previsão ou coragem. Por mais
necessárias que sejam, intervenções de emergência podem piorar a situação.
Veja bem, os tipos de intervenção competem entre si. Como meus colegas e eu
argumentamos, medidas de emergência são, nos termos da hegemonia gramsciana,
imposições que nos impedem de falar sobre mudanças estruturais em torno do poder e
da produção. Como discuti-las? AGORA TEMOS UMA EMERGÊNCIA!
No ápice desta disputa, a falha em resolver problemas estruturais pode tornar
medidas de emergência ineficazes. O efeito Allee, segundo o qual as profilaxias e a
quarentena visam diminuir o tamanho das populações de patógenos – de modo que as
infecções possam acabar por si mesmas incapazes de encontrar novas pessoas
suscetíveis – é definido por causas estruturais.
Como nossa equipe escreveu sobre o surto de Ebola na África Ocidental
(BERGMANN et al., 2016a):
A mercantilização da floresta pode ter reduzido o limiar ecossistêmico da
região a tal ponto que nenhuma medida de emergência pode reduzir
suficientemente o surto de Ebola de modo que ele acabe. Novos surtos
expressam maior potencial de infecção. No outro extremo da curva, um
surto maduro continua a circular, com o potencial de se recuperar
intermitentemente.
Em resumo, as mudanças estruturais do neoliberalismo não são mero pano
de fundo da emergência do Ebola. Elas são tão emergenciais quanto o
próprio vírus ... O desmatamento e a agricultura intensiva podem eliminar o
atrito estocástico da agrossilvicultura tradicional, que normalmente impede
o vírus de conseguir condições necessárias para se transmitir.
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Por outro lado, apenas 41% destas amostras positivas foram encontradas nas
ruas do mercado onde a fauna silvestre estava alojada (BAT RESEARCHER, 2020). Um
quarto dos infectados originais nunca visitou o mercado de Wuhan ou esteve
diretamente exposto (CAO et al, 2020). O primeiro caso foi identificado antes de o
mercado ter sido atingido (SCIENCE, 2020). Outros comerciantes infectados traficaram
apenas porcos, uma espécie da pecuária doméstica que manifesta um receptor
molecular vulnerável comum. Isto levou uma equipe a defender a hipótese do porco
como suposta fonte para o novo vírus corona 7.
Se tivesse sido proposta durante a peste suína africana, que matou metade dos
porcos da China em 2019, esta última hipótese teria adquirido ainda mais força e gerado
mais confusão (THE NEW YORK TIMES, 2019). Até porque estas convergências de
doenças não são inéditas. Elas podem se desdobrar em íntima ativação recíproca
(BERGMANN et al, 2016b), onde proteínas de cada patógeno catalisam-se mutuamente,
facilitando novos rumos clínicos e dinâmicas de transmissão para ambas as doenças.
Da mesma forma que pré-concebe a origem do vírus, a sinofobia ocidental
também descarta a saúde pública chinesa (WALLACE, 2007). Certamente a irritação e a
decepção que o povo chinês tem dirigido às autoridades local e federal pela lenta reação
a Codiv-19 não pode ser instrumentalizada pela xenofobia armada (THE NEW YORK
TIMES, 2020c). Porém, em nossos sábios esforços para nos mantermos fora dessa
armadilha, não podemos apagar a existência de uma simetria agroecológica crítica.
Guerra cultural à parte, os mercados úmidos (CRUSH et al., 2018) e a comida
exótica (SUN, 2015) são básicos na China. Do mesmo modo, a produção industrial. Os
três encontram-se justapostos uns aos outros desde a liberalização económica pós-Mao
(BERGMANN, et al., 2010). Na verdade, os dois modos de alimentação estão integrados
por meio do uso da terra.
A expansão da produção industrial (SCHNEIDER, 2017) pode empurrar cada vez
mais alimentos silvestres convertidos em capital para dentro da última paisagem
primária (CAO et al., 2014), dragando uma maior variedade de patógenos
potencialmente protopandêmicos (BROGLIA, KAPEL, 2011). O perímetro urbano de
extensão crescente e a densidade populacional podem aumentar a interface (e o
7O autor faz referência a um conjunto de textos organizados sob o título ”Pork, Pigs, and the Wuhan
Coronavirus”. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/444194430/Pork-Pigs-and-the-Wuhan-
Coronavirus . Acesso em: 18 de maio de 2020 [N.T].
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pois, além de promover este mercado, ele já foi epicentro de diversas doenças, como as
recentes H5N2 e H5Nx. Inclusive, lembra que os funcionários de saúde do governo dos
EUA ajudaram a encobrir a participação do agronegócio nos surtos de H1N1 (2009) e
H5N2
Assim, dentro do grande debate sobre as causas estruturais do novo
coronavírus, os fatores econômicos e sociais precisam ser responsabilizados. Essas
causas, como pontua o próprio autor, “emergem de um contexto que se estende aos
circuitos globais do capital, muito além, portanto, do controle dos pequenos
agricultores”.
Fica claro, então, que a necessidade recorrente do mercado capitalista de
incorporar espaços externos aos seus circuitos, tais como a comercialização de
morcegos e pangolins malaios no mercado Huanan em Wuhan, cada vez mais proveem
as condições que possibilitam a emergência de surtos e pandemias na modernidade.
Deste modo, a humanidade cada vez mais fica exposta a uma maior variedade de
patógenos potencialmente protopandêmicos. Estes, por sua vez, provocam forte
impacto social, conforme poderá ser analisado nesta coletânea, que será distribuído de
forma desigual, conforme as desigualdades presentes na sociedade.
Diante disso, é importante que a epidemiologia e os governos não apenas
controlem as epidemias quando elas aparecem, mas que pesquisem e ataquem de
forma eficiente as causas do surgimento desses novos e letais patógenos. É preciso que
a biossegurança seja redefinida e que os escudos imunológicos sejam restabelecidos.
Tem-se que restaurar a fenda metabólica entre ecologia e economia, entre urbano, rural
e selvagem.
Wallace, por seu turno, defende que estas mudanças estruturais só serão
possíveis reinventando um ecossocialismo através de um comunismo superior à
experiência soviética, que adote a solidariedade internacional, a libertação indígena, a
autonomia do agricultor, a restauração e proteção dos processos naturais e as
agroecologias localmente específicas.
Referências bibliográficas
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Michael Roberts2
Texto publicado em 31/01/2020
Fonte: gráfico disponibilizado pelo autor na publicação original, sem indicação da fonte.
1 Texto original: ROBERTS, Michael. Coronavirus: Nature fights back. Monthly Review online, Janeiro de
2020. Disponível em: https://thenextrecession.wordpress.com/2020/01/31/corinavirus-nature-fights-back/.
Acesso em: 29 de jan. de 2020. Tradução: Natália Sales de Oliveira.
2 Michael Roberts é pesquisador particular que trabalha como economista na cidade de Londres há mais de
30 anos.
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3 O autor se refere ao texto Notas sobre um novo coronavírus publicado no primeiro capítulo do presente
livro [N.T].
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Todos estes animais silvestres têm sido tratados cada vez mais como
alimentos. À medida que a natureza é desfalcada lugar a lugar, espécie por espécie, o
que resta torna-se muito mais valioso. Enquanto isso, a expansão de fazendas industriais
pode forçar as empresas de alimentos de origem em animais silvestres cada vez mais
corporatizadas a adentrar mais fundo na floresta e, assim, aumentar a probabilidade de
surgimento de um novo patógeno, ao mesmo tempo que reduz o tipo de complexidade
ambiental com a qual a floresta interrompe as cadeias de transmissão.
Recentemente, tem havido muita discussão acadêmica entre marxistas e
"ecologistas verdes" sobre a relação dos seres humanos com a natureza. A principal
questão é se o capitalismo causou uma "fenda metabólica" entre o homo sapiens e o
planeta, ou seja, se foi justamente o sistema capitalista que rompeu o precioso
equilíbrio entre as espécies e a natureza, gerando, além de vírus perigosos, o
incontrolável aquecimento global e as mudanças climáticas que poderiam destruir a
Terra.
O debate gira em torno do quão útil é usar o termo ‘fenda metabólica', pois
sugere que em algum momento anterior ao capitalismo havia algum equilíbrio ou
harmonia metabólica entre os seres humanos, por um lado, e a 'natureza', por outro.
Mas a natureza nunca esteve em algum estado de equilíbrio. Ela sempre se transformou
e evoluiu, com espécies sendo extintas e emergindo muito antes do homo sapiens (a la
Darwin). Os humanos, por sua vez, nunca foram capazes de ditar, sem repercussões,
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4O autor faz referência à obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx [N.T.].
5Velocidade de estol ou perda de sustentação é um termo utilizado na aviação e indica que a aeronave está
caindo e não mais voando [N.T.].
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Referências bibliográficas
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Ao final de janeiro de 2020, quando Michael Roberts publicou seu texto Corona vírus: A
natureza contra-ataca, a nova e mortal Covid-19 ainda estava começando a se espalhar,
com cerca de 10.000 casos em todo o mundo 2, com 230 mortes – todas na China – e
com 2% de taxa de mortalidade. A taxa de disseminação, por sua vez, já girava em torno
de 1,5. Apesar de à época ser muito cedo para fazer qualquer afirmação, Roberts
mobilizou alguns comentários do epidemiologista Rob Wallace para explicitar o porquê
de as autoridades de saúde estarem preocupadas com o novo vírus. Segundo Wallace,
sempre que um surto chega ao cenário mundial, ainda que venha a ser extirpado, ele
transforma as condições existentes, invertendo as rotinas de “um mundo já em tumulto
ou em guerra”. No que se refere ao surto de gripe H1N1 (2009), o epidemiologista
sustenta que houve em torno de 579.000 mortes no primeiro ano – o que representou
uma quantidade de complicações quinze vezes maiores do que as previsões realizadas
em laboratório.
Diferentemente da gripe sazonal, Wallace nos lembra que no caso da Covid-19
não há sequer “imunidade de grupo”, tampouco vacina para retardar as infecções. No
melhor cenário hipotético, considerando uma ampla atividade laboratorial, seriam
necessários cerca de três meses para a produção de uma vacina, além da incerteza de
sua eficácia. Para exemplificar, se quatro bilhões de pessoas fossem infectadas com uma
taxa de mortalidade em torno de “apenas” 2%, oitenta milhões de pessoas seriam
mortas, isto é, uma taxa de mortalidade que corresponde quase à metade da pandemia
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de gripe espanhola de 1918. Somado a isso, Wallace acrescenta que a fonte exata, a
infectividade, a disseminação e os possíveis tratamentos do novo vírus seriam os
principais fatores que preocupam as autoridades de saúde pública em todo o mundo.
Apesar disso, independentemente da fonte originária específica da Covid-19,
para Roberts há uma questão estrutural implícita quanto ao surgimento do vírus, qual
seja, a pressão da lei do valor através da agricultura industrial e a expropriação dos
recursos naturais. Nesse sentido, devido à mercantilização da floresta, afirma ter havido
uma redução do limiar ecossistêmico que poderia bloquear o surgimento de agentes
patógenos a tal ponto que nenhuma medida de emergência seria eficaz para minimizar
o surto, tampouco eliminá-lo. Este problema pode explicar o reiterado surto de Ebola no
Congo, onde o desmatamento e a agricultura intensiva parecem estar eliminando o
atrito estocástico da agrossilvicultura tradicional – que normalmente impede o vírus de
criar uma linha de transmissão. Apesar de a causa do surto do novo coronavírus estar
sendo atribuída a particularidades culturais da China (aos mercados abertos de animais
“exóticos” em Wuhan ou à agricultura industrial de suínos), Roberts cita mais uma vez
Wallace para sustentar que, ao contrário, trata-se de um problema inerente à expansão
capitalista: há uma crescente mercantilização dos animais silvestres e da natureza,
rompendo as barreiras naturais que até então interrompiam as cadeias de transmissão
do vírus.
Do ponto de vista teórico, Roberts mobiliza as recentes discussões entre
marxistas e “ecologistas verdes” sobre a relação dos seres humanos com a natureza. A
questão principal gira em torno da “fenda metabólica”, segundo a qual o sistema
capitalista causou uma ruptura no equilíbrio entre as espécies e a natureza – resultando
no surgimento de vírus perigosos, além do aquecimento global e de mudanças
climáticas que ameaçam destruir o planeta. No entanto, Roberts levanta a questão
acerca da utilidade deste conceito. Pois tal conceito sugere que em algum momento
antes do capitalismo havia “equilíbrio ou harmonia metabólica entre os seres humanos,
por um lado, e a ‘natureza’, por outro” – aqui também parece haver uma crítica a um
possível dualismo entre humanidade e natureza. Para Roberts, a natureza nunca esteve
em estado de equilíbrio, mas sim em transformação e evolução constantes, com
espécies sendo extintas e emergindo antes e desde o surgimento do homo sapiens.
Nesse sentido, o ser humano nunca teria sido capaz de ditar, sem consequências, regras
a outras espécies e ao planeta. Buscando fundamentos em Marx, Roberts cita: “Os
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homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de livre e espontânea vontade.
Não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita; ao contrário,
estas circunstâncias lhes foram transmitidas assim como se encontram”.
A despeito dessas discussões, Roberts enfatiza que a busca interminável de
valorização pelo capital exerce poder destrutivo através da exploração do trabalho e da
degradação da natureza. Por sua vez, a natureza, para ele, reagiria periodicamente de
maneira brutal. Ainda que a Covid-19 venha a desaparecer – conforme enfermidades
motivadas por outros vírus anteriores a ela –, é muito provável que já existam novos
patógenos desconhecidos e ainda mais mortais.
Roberts finaliza seu texto ao afirmar que, para o capitalismo, o coronavírus
pode ter efeito limitado, como a queda no mercado de ações ou a desaceleração no
crescimento e nos investimentos globais. Mas também tem potencial para ser um
gatilho para uma nova crise econômica, tendo em vista a desaceleração vivida pela
economia capitalista mundial – a título de exemplo, Roberts menciona que os EUA estão
crescendo apenas 2% ao ano; a Europa e o Japão apenas 1%; e as principais economias
emergentes estão praticamente estáticas. Do mesmo modo, as enormes economias da
China e da Índia também desaceleraram significativamente no ano passado, além disso,
há a possibilidade de termos um ponto de inflexão, caso a China venha a sofrer impactos
significativos em sua economia devido às perturbações causadas pelo novo coronavírus.
II
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Roberts quando este afirma que “[o]s humanos, por sua vez, nunca foram capazes de
ditar, sem repercussões, regras ao planeta ou a outras espécies. A ‘natureza’ estabelece
o ambiente para os seres humanos e os seres humanos agem sobre a natureza”. Pois de
fato, não se deve supor que a humanidade existe e age de forma completamente
independe da natureza. Tampouco a natureza existe hoje de forma independente da (ou
não afetada pela) humanidade (FOSTER, 2013). Todavia, Roberts parece não se atentar a
este último ponto, qual seja, para as influências que a ação humana provoca nessa
“natureza”, principalmente no contexto da sociedade capitalista.
Tal síntese dialética teria sido, desde o início, um tópico fundamental da teoria
da fenda metabólica de Marx. Tendo se baseado na compreensão do processo de
trabalho como sendo a troca metabólica entre o ser humano e a natureza, a teoria da
fenda metabólica apontou para a importância da sociedade humana em relação aos
ciclos bioquímicos e às trocas de matéria e energia em geral. Segundo Foster, se
voltássemos à questão original de Marx do metabolismo humano-social e do problema
do ciclo de nutrientes do solo, o argumento ficaria assim:
Os organismos vivos, nas suas interações normais entre si e com o mundo
inorgânico, estão constantemente a ganhar nutrientes e energia através do
consumo de outros organismos ou, para as plantas verdes, através da
fotossíntese e da absorção de nutrientes do solo - que depois são passados
para outros organismos numa complexa "teia alimentar", na qual os
nutrientes são eventualmente reabsorvidos perto do local de origem. No
processo, a energia extraída é consumida no funcionamento do organismo,
embora, em última análise, reste uma porção sob a forma de matéria
orgânica do solo difícil de decompor. As plantas estão constantemente a
trocar produtos com o solo através das suas raízes, absorvendo nutrientes e
libertando compostos ricos em energia que produzem uma zona
microbiológica ativa próximo às raízes. Os animais que comem plantas ou
outros animais utilizam geralmente apenas uma pequena fração dos
nutrientes que ingerem e depositam o resto como fezes e urina nas
proximidades. Quando morrem, os organismos do solo utilizam os seus
nutrientes e a energia contida nos seus corpos. (Ibid.)
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III
Michael Roberts questiona a utilidade do conceito “fenda metabólica” por este último
supostamente sugerir que antes do capitalismo haveria “equilíbrio ou harmonia
metabólica” entre os seres humanos e a “natureza”. Ao afirmar que “[o]s humanos, por
sua vez, nunca foram capazes de ditar, sem repercussões, regras ao planeta ou a outras
espécies (...)”, o argumento de Roberts parece se sustentar tão somente no que diz
respeito à relação dialética e trans-histórica entre humanidade e natureza, já que não se
deve supor que a primeira existe e age de forma completamente independente da
segunda. Por outro lado, tal crítica demonstra-se insuficiente, pois a validade do
conceito citado não está no suposto equilibro, mas sim na intensificação da cisão
causada pela sociabilidade capitalista.
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A questão das rupturas no ciclo dos nutrientes aqui analisada é apenas uma
das muitas fissuras metabólicas que ocorrem no desenvolvimento do capitalismo. A
mudança na natureza decorrente do metabolismo entre um determinado animal-
humano e o resto do ecossistema (incluindo outras espécies) está no cerne das questões
ecológicas que enfrentamos (FOSTER, 2013). Conforme verificado por Rob Wallace
(2020), a crescente mercantilização de animais silvestres e da natureza provocada pelo
capitalismo vem rompendo com barreiras naturais que antes interrompiam as cadeias
de transmissão de diversos vírus, podendo ser um dos fatores que contribuiu para o
surgimento e propagação do SARS-CoV-2.
A despeito das interpretações divergentes acerca da teoria da fenda
metabólica de Marx, todos os autores considerados até então parecem convergir no
mesmo sentido: a sociabilidade e produção capitalistas estão intimamente ligadas às
crises ecológicas que temos vivido. Nesse sentido, a teoria de Marx é atual e nos ajuda a
compreender que o surto de Covid-19 que enfrentamos agora não se trata de um
desastre “natural”, mas sim decorrente do desenvolvimento histórico do capitalismo,
cuja solução implica crítica e ação radicais na construção de sociabilidades futuras onde
a humanidade, necessariamente, terá de estabelecer relações metabólicas com a
natureza de forma racional, isto é, respeitando seus limites naturais e materiais.
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Cálculo
1 Texto original: WALLACE, Rob; LIEBMAN, Alex; CHAVES, Luis Fernando; WALLACE, Rodrick. Covid-19 and
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https://monthlyreview.org/2020/03/27/covid-19-and-circuits-of-capital/. Acesso em: 3 de abr. de 2020.
Tradução: Beatriz Santos e Maria Carolina Sanglard. Revisão: Rhaysa Ruas.
2 Rob G. Wallace é epidemiologista evolucionista e geógrafo de saúde pública na Agroecology and Rural
Economics Research Corps e Visiting Scholar no Institute for Global Studies da Universidade de Minnesota,
EUA.
3 Alexander M. Liebman é doutorando em geografia humana no Departamento de Geografia da
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7 Em uma tradução literal, “Centros de Prevenção e Controle de Doenças”. O CDC é uma agência do
Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA [N.T.].
8 Em português "A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável - gerenciando o desconhecido"
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disse um galhofeiro há alguns dias: “Este coronavírus é muito radical. Os EUA precisam
de um vírus mais moderado ao qual possamos responder gradualmente”9 .
O grupo de Taleb critica os pesquisadores do Imperial por eles se recusarem a
investigar sob quais condições o vírus pode ser levado à extinção. Esse tipo de
extirpação não significa a eliminação da enfermidade, mas isolamento suficiente para
que casos individuais não sejam capazes de produzir novas cadeias de infecção. Apenas
5 por cento de pessoas suscetíveis ao contato com a doença na China foram
subsequentemente infectadas. Com efeito, o grupo de Taleb favorece o modelo de
supressão chinês, com o isolamento suficientemente rápido para conduzir o surto à
extinção, sem entrar numa maratona em que políticas de controle da doença e de
garantia de que não falte trabalho para a economia alternem-se. Em outras palavras, a
abordagem estrita (e com recursos intensos) da China libera a população do sequestro
de meses – ou até anos – que a proposta do Imperial recomenda aos outros países.
O epidemiologista matemático Rodrick Wallace, um dos autores do presente
artigo, subverte esses modelos completamente. Modelos de emergência, embora
necessários, falham sobre quando e onde começar. Causas estruturais são igualmente
parte da emergência. Incluí-las nos ajuda a compreender como dar respostas que vão
além de meramente retomar o regime econômico que produziu o dano. “Se bombeiros
receberem recursos suficientes”, escreve Wallace,
em circunstâncias normais, a maioria dos incêndios, os mais comuns, pode
ser contida com poucas fatalidades e mínima destruição da propriedade.
Contudo, essa contenção é criticamente dependente de um
empreendimento bem menos romântico, mas não menos heroico, que são
os persistentes e perenes esforços regulatórios que limitam a produção de
danos através do desenvolvimento de regras e de seu cumprimento, e que
também asseguram que o corpo de bombeiros, as medidas sanitárias e a
construção de recursos de preservação sejam supridos em todas as suas
necessidades...
O contexto importa para uma infecção pandêmica e as atuais estruturas
políticas, que permitem empreendimentos multinacionais de agricultura
que privatizam lucros enquanto externalizam e socializam custos, precisam
estar sujeitas ao cumprimento de normas que re-internalizem esses custos
se uma doença pandêmica, fatal em massa, tiver de ser enfrentada no
futuro próximo (WALLACE, 2020).
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que a Covid-19 saiu de Wuhan. Nos EUA, por exemplo, este erro não se iniciou quando
Donald Trump desmantelou sua equipe de segurança nacional contra pandemias ou
deixou vagos setecentos cargos nos CDC (ALLEN, 2020; RIECHMANN, 2020). Também
não começou quando funcionários federais negligenciaram os resultados de uma
simulação de pandemia de 2017, que mostravam que o país estava despreparado para
tamanha crise (SANGER et al, 2020). Da mesma forma, não se pode dizer que a falha
tenha aparecido no momento em que, como registrado em uma manchete da Reuters, o
governo “demitiu um profissional do CDC na China meses antes do surto do vírus”,
embora não contar com o contato preliminar e direto de um especialista norte-
americano em solo chinês certamente tenha enfraquecido a resposta dos EUA. Por fim,
o erro também não se iniciou com a infeliz decisão da administração Trump em não usar
os kits de testes já disponíveis, providos pela Organização Mundial da Saúde. De todo
modo, atrasos quanto à informação e falta de testagem serão, indubitavelmente,
responsáveis por muitas, provavelmente, milhares de mortes (TAYLOR, 2020).
Na verdade, as falhas e erros foram produzidos décadas atrás quando os bens
comuns de saúde pública foram simultaneamente negligenciados e monetizados
(WAITZKIN, 2018). Um país capturado por um regime individualista de epidemiologia,
just in time – uma total contradição –, que mal conta com leitos hospitalares suficientes
para operações normais, é, por definição, incapaz de arregimentar recursos necessários
para seguir o modelo chinês de supressão.
Analisando o argumento do grupo de Taleb sobre estratégias-modelo, o
ecologista especializado em doenças, Luis Fernando Chaves, também coautor deste
artigo, fez referência aos biólogos dialéticos Richard Levins e Richard Lewontin para
concordar que “deixar os números falarem” apenas mascara todas as presunções feitas
a priori (LEWONTIN; LEVINS, 2000). Modelos como o estudo do Imperial limitam o
escopo de análise para perguntas construídas dentro da moldura estrita da ordem social
dominante. Por definição, elas não conseguem apreender as forças amplas do mercado
que impulsionam os surtos e as decisões políticas por trás das intervenções.
Conscientemente ou não, as projeções resultantes colocam a segurança da
saúde de todos em segundo lugar, incluindo a dos mais vulneráveis que seriam mortos
se o país optasse por alternar medidas de controle da doença e de retomada da
economia. A definição foucaultiana de um Estado que age sobre a população em seu
próprio interesse apenas representa uma atualização, embora mais benigna, do ímpeto
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Intervenção
Mas então o que deveria ser feito? Em primeiro lugar, precisamos compreender que,
para responder corretamente à emergência, temos que lidar com necessidades e
perigos.
Precisamos nacionalizar hospitais, exatamente como na Espanha (PAYNE,
2020); reforçar a testagem em volume e em tempo de resposta, da maneira como feito
pelo Senegal (LANGE, 2020); socializar produtos farmacêuticos (STERLING; MORGAN,
2019); e reforçar ao máximo as proteções para os profissionais de saúde, de modo a
sustar as baixas nas equipes de atendimento. Devemos assegurar o direito de consertar
os ventiladores e outros equipamentos médicos (KOEBLER, 2020). Precisamos começar a
produzir em massa coquetéis antivirais como o remdesivir e a antiga cloroquina
antimalária (e quaisquer outras drogas que pareçam promissoras), enquanto
conduzimos estudos clínicos testando se funcionam fora dos laboratórios (WANG et al,
2020). Um sistema planejado deve ser implementado para (1) forçar empresas a
produzir ventiladores e equipamentos de proteção individual aos profissionais de saúde
e (2) priorizar a destinação dos recursos aos lugares com maiores necessidades.
Precisamos, ainda, criar inúmeras brigadas antipandemia capazes de prover a
força de trabalho – da pesquisa aos cuidados – das condições ideais para encarar o
tamanho da demanda que o vírus (e qualquer outro patógeno que surgir) coloca sobre
nós. É preciso que o número de casos corresponda ao de leitos e que exista a
quantidade adequada de equipamentos para os pacientes críticos, de modo que as
medidas de supressão possam recompor a defasagem existente. Em outras palavras,
não podemos aceitar a ideia de meramente sobreviver ao ataque aéreo da Covid-19 e,
logo depois, voltarmos ao rastreamento de contaminados e ao isolamento de casos,
levando o surto para debaixo da soleira. Devemos contratar um quadro compatível de
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detalhes, a comida selvagem é um setor cada vez mais formalizado em todo o mundo,
capitalizado pelas mesmas fontes que dão suporte à produção industrial (BROOKS;
ROBERTSON; BELL, 2010). Embora em nenhum lugar seja similar na magnitude da
produção, a distinção agora é mais opaca.
A sobreposição da geografia econômica se estende do mercado de Wuhan até
o interior, onde a comercialização de alimentos exóticos e tradicionais confunde-se com
os limites da já retraída vida selvagem (SCHNEIDER, 2017). Como a produção industrial
usurpa até a última floresta, a mercantilização de carne silvestre deve avançar ainda
mais pelo cultivo de iguarias e, com isso, adentar nas últimas reservas. Como resultado,
o mais exótico dos patógenos – no caso em tela, o hospedeiro de morcego SARS-2 –
encontra seu destino em um caminhão, seja na carne animal ou no trabalho que a cuida,
abatido de um ponto a outro na longa linha que conecta o circuito periurbano antes de
atingir os palcos do mundo (WALLACE; BERGMANN; HOGERWERF; GILBERT, 2010;
BROGLIA; KAPEL, 2011).
Infiltração
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Expansão
Se, apenas por sua expansão global, a produção de commodities serve como nexo
através do qual patógenos de diversas origens migram dos reservatórios mais remotos
para centros populacionais internacionais, seu circuito econômico permite que novos
patógenos se infiltrem em comunidades agrícolas fechadas (DAVIS, 2005; GRAHAM et al,
2008; JONES et al, 2013; LIVERANI et al, 2013; ENGERING; HOGERWERF; SLIGENBERGH,
2013; Food and Agriculture Organization of The United Nations, 2013). Quanto maiores
as cadeias de suprimentos e a extensão do desmatamento que as acompanha, mais
diversos (e exóticos) os patógenos zoonóticos que entram na cadeia alimentar. Entre os
patógenos (re)emergentes, originários do cultivo de plantas ou animais, isto é, de todo o
domínio antropogênico, estão a peste suína africana, Campylobacter, Cryptosporidium,
Cyclospora, Ebola Reston, E. coli O157: H7, febre aftosa, hepatite E, Listeria, Vírus Nipah,
febre Q, Salmonella, Vibrio, Yersinia e uma variedade de novos tipos de gripe, incluindo
H1N1 (2009), H1N2v, H3N2v, H5N1, H5N2, H5Nx, H6N1, H7N1, H7N3, H7N7, H7N9 e
H9N2 (TAUXE, 1997; WALLACE; WALLACE, 2016; MARDER et al, 2018).
Por mais que não seja intencional, toda a linha de produção é organizada em
torno de práticas que aceleram a evolução da virulência de patógenos e sua
subsequente transmissão (WALLACE, 2009; WALLACE, Robert G. et al, no prelo). O
crescimento de monoculturas genéticas – animais e plantas com genomas quase
idênticos – remove barreiras de imunidade que em populações heterogêneas retardam
a disseminação (VANDERMEER, 2011; THRALL et al, 2011; DENISON, 2012; GILBERT;
XIAO; ROBINSON, 2017). Atualmente, os patógenos podem se desenvolver de maneira
rápida em torno dos genótipos imunológicos comuns do hospedeiro. Enquanto isso, as
condições de aglomeração diminuem a resposta imune (HOUSHMAR et al, 2012; GOMES
et al, 2014; YARAHMADI et al, 2016; LI et al, 2019). O aumento do tamanho e densidade
das populações de animais de criação facilitam o contágio e a infecção recorrente
(PITZER et al, 2016; GAST et al, 2017; DIAZ et al, 2017). A alta produtividade, que faz
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parte de qualquer atividade industrial, cria as condições necessárias para que doenças
típicas de celeiros e fazendas alastrem-se regionalmente, removendo o limite da
evolução da mortalidade dos patógenos (ATKINS et al, 2011; ALLEN; LAVAU, 2015;
PITZER et al, 2016; ROGALSKI, 2017). A criação intensiva de animais favorece um tipo de
patógeno que melhor se alastra em rebanhos agrupados e confinados. A redução da
idade de abate – seis semanas em galinhas – provavelmente selecionará patógenos
capazes de sobreviver a sistemas imunológicos mais robustos (WALLACE, 2009; ATKINS
et al, 2013; MENNERAT et al, 2017). A expansão geográfica do comércio e a exportação
de animais vivos aumentam a diversidade de segmentos genômicos, cujos patógenos
podem ser associados e intercambiados, ampliando a taxa de doenças com diferentes
possibilidades evolutivas (NELSON et al, 2011; FULLER et al, 2013; WALLACE; WALLACE,
2014; MENA et al, 2016; NELSON et al, 2019).
Embora o desenvolvimento dos patógenos avance de todas essas formas, há,
no entanto, pouco ou nenhum controle e fiscalização estatal, salvo o necessário para
tentar evitar a emergência repentina de uma epidemia (WALLACE, 2016). A tendência é
haver menos inspeções governamentais em fazendas e fábricas de processamento,
menos legislações contrárias à vigilância sanitária, mais exposições depreciativas de
ativistas e mais leis que censuram a divulgação de surtos mortais nos meios de
comunicação. Apesar das recentes vitórias nos tribunais contra a poluição por pesticidas
e suínos, a gestão privada da produção permanece inteiramente orientada ao lucro. Não
obstante, os danos causados pela aparição de uma enfermidade são pensados pela lente
das fronteiras políticas e culturais (não do capital) e atribuídos ao gado, à lavoura, à vida
selvagem, aos trabalhadores, aos governos locais e nacionais, aos sistemas de saúde
pública e a agrossistemas de revezamento no exterior. Nos EUA, no entanto, o CDC
relata que o número de estados afetados e pessoas infectadas por surtos de origem
alimentar tem se expandido para além dos limites esperados (Centers for Disease
Control and Prevention, 2015; SUN, L., 2015; STOBBE, 2015).
A alienação (exteriorização) do capital tem atuado em favor dos patógenos.
Enquanto o interesse público é barrado nos portões das fábricas de alimentos, os
patógenos escapam para além da biossegurança que a indústria está disposta a pagar. A
produção industrial representa um risco moral lucrativo que avança sobre a saúde
coletiva.
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Libertação
Há uma ironia reveladora em Nova Iorque, uma das maiores cidades do mundo em luta
contra a Covid-19, que se situa a um hemisfério de distância da origem do vírus. Milhões
de nova-iorquinos estão cobertos por ações imobiliárias supervisionadas até
recentemente por Alicia Glen, ex-secretária de habitação e desenvolvimento econômico
da prefeitura (GOLDENBERG, 2018). Glen também foi executiva da Goldman Sachs e
coordenou seu Grupo de Investimento Urbano, que financia projetos habitacionais nas
comunidades onde outras unidades da empresa ajudam a empobrecer (DYMSKI, 2009;
BARNETT, 2011).
Glen, por óbvio, não é pessoalmente responsável pelo surto, mas pode ser
considerada um dos símbolos da rede de fluxos de patógenos que chega até a soleira
das nossas casas. Três anos antes da prefeitura contratá-la, seu ex-empregador,
juntamente com o JPMorgan, Bank of America, Citigroup, Wells Fargo & Co. e Morgan
Stanley assumiram 63% do financiamento federal de empréstimos de emergência – e
isto após a crise imobiliária e a Grande Recessão que estas companhias também
provocaram (IVRY; KEOUN; KUNTZ, 2011). Livre de despesas gerais, a Goldman Sachs
passou a diversificar suas participações acionárias após 2008. Adquiriu 60% dos títulos
da Shuanghui Investment and Development, a gigante do agronegócio chinês que
comprou a Smithfield Foods, sediada nos EUA, o maior produtor de suínos do mundo
(DE LA MERCED; BARBOZA, 2013). Por US$ 300 milhões, também obteve a propriedade
de um total de dez fazendas de aves em Fujian e Hunan. Esta última província fica ao
lado de Wuhan, no coração da região produtora de alimentos silvestres (South China
Morning Post, 2008). Além disso, em associação com o Deutsche Bank, investiu US $ 300
milhões em criação de porcos nas duas regiões citadas (Pig Site, 2008).
As geografias relacionais discutidas acima são caminhos de mão dupla.
Atualmente, existe uma pandemia que afeta os distritos eleitorais de Glen. Nova Iorque
tornou-se o maior epicentro da Covid-19 nos EUA. Por outro lado, os processos que
causaram o surto também saíram de Nova Iorque através dos investimentos da
Goldman Sachs que, por menor que sejam, foram parar no sistema gigantesco de
agricultura chinesa.
O dedo em riste nacionalista – da declaração racista de Trump sobre o “vírus
chinês” ao continuum liberal – obscurece as diretivas globais que interligam Estado e
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Capital (ROGERS; JAKES; SWANSON, 2020): os “irmãos inimigos”, como descrito por Karl
Marx (1993). A morte e os danos sofridos pelos trabalhadores no campo de batalha, na
economia e, agora, em seus sofás, cuja mínima recuperação exigirá intensa labuta,
expressam tanto a competição entre as elites que se articulam por recursos naturais
escassos, quanto os meios compartilhados para dividir e conquistar a massa da
humanidade presa nestas engrenagens.
De fato, uma pandemia que surge do modo de produção capitalista e que se
espera que o Estado administre pode oferecer oportunidades para gerentes e
beneficiários do sistema prosperarem. Em meados de fevereiro, cinco senadores dos
EUA e vinte membros da Câmara despejaram pessoalmente milhões de dólares em
ações de companhias que seriam prejudicadas pelo advento da pandemia (LIPTON et al,
2020). Os políticos basearam suas informações privilegiadas em dados não públicos,
mesmo que alguns dos representantes continuassem repetindo em seus discursos a
cartilha trumpiana de que a pandemia não representava nenhuma ameaça.
Além destes atropelamentos grosseiros, a corrupção nos EUA é sistêmica, um
marcador do fim do ciclo de acumulação que tal país hegemonizou.
Desta perspectiva, mesmo que organizado em torno da reificação financeira
sobre a realidade das ecologias primárias (e epidemiologias relacionadas) nas quais se
baseia, há algo de anacrônico no esforço norte-americano de tentar manter tudo sob
controle. Para a própria Goldman Sachs, a pandemia, assim como as crises anteriores,
oferece "espaço para crescer":
Compartilhamos o otimismo de vários imunologistas e pesquisadores de
empresas de biotecnologia e confiamos no progresso indicado pelos testes
de várias terapias e vacinas até o momento. Acreditamos que o medo
diminuirá na primeira evidência significativa de que tal progresso é real.…
Tentar definir uma possível meta negativa quando o final do ano deve
apontar para algo substancialmente mais alto é apropriado apenas para
negociantes que operam a curto prazo, que são movidos pelo impulso e
para alguns gestores de fundos de cobertura, mas não para investidores de
longo prazo. Do mesmo modo, não há certeza de que os preços das ações
atinjam os níveis mais baixos justificando sua venda. Por outro lado,
estamos mais confiantes de que o mercado atingirá a meta mais alta, dada a
resiliência e a preeminência da economia norte-americana.
Além disso, pensamos que os valores atuais oferecem uma oportunidade de
elevar lentamente as taxas de risco de um portfólio. Para aqueles que
possuem excesso de caixa e têm poder de permanência com a alocação
estratégica correta de ativos, este é o momento de começar a aumentar
gradualmente as ações de S&P (MOSSAVAR-RAHMANI et al, 2020).
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olhos arregalados em cada uma dessas marcações ao ritmo dos novos e múltiplos
surtos. Para nós, no entanto, elas são diferentes partes e caminhos ao longo dos
mesmos tipos de circuitos de uso da terra e acumulação de valor.
O mesmo dever ser dito de um programa geral de intervenção. Ele precisa ser
pensado muito além das questões que envolvem um vírus em particular.
Para evitar os piores resultados do contexto pandêmico, a desalienação
oferece a próxima grande transição humana: abandonar as ideologias coloniais,
reintroduzir a humanidade nos ciclos de regeneração da Terra e redescobrir nosso senso
de individuação em multidão acima do capital e do Estado (MANDEL, 1970; VIRNO,
2004; WESTON, 2014; WARK, 2017; FOSTER, 2018; FEDERICI, 2018). No entanto, o
economicismo, a crença de que todas as causas são econômicas por si só, não será
suficiente. O capitalismo global é uma hidra de muitas cabeças, que se apropria,
internaliza e ordena numerosas camadas de relações sociais (LEE; ROVER, 1993;
FEDERICI, 2004; TSING, 2009; COULTHARD, 2014; VERGARA-CAMUS, 2014; WANG,
2018). Ele opera em terrenos complexos e interliga raça, classe e gênero em seu
processo de atualização dos regimes regionais de valor.
Correndo o risco de aceitar os preceitos de uma história da salvação –
"podemos desarmar a bomba a tempo?" – que a historiadora Donna Haraway rejeitou, a
desalienação deve desmantelar as hierarquias multifacetadas da opressão e as
localidades específicas pelas quais elas interagem com a acumulação (HARAWAY, 1991;
TAYLOR, 2017). Ao longo deste percurso, devemos nos livrar das reapropriações
expansivas do capital através de um materialismo produtivo, social e simbólico
(FRACCHIA, 2017; GIRALDO, 2019). Em outras palavras, devemos nos livrar daquilo que
corresponde ao totalitarismo. O capitalismo mercantiliza tudo – a exploração de Marte,
o sono, lagoas de lítio, reparo de ventiladores e até a própria sustentabilidade. Estas
diferentes relações de troca são encontradas muito além das fábricas e das fazendas. As
maneiras pelas quais quase todo mundo está sujeito ao mercado, que durante um
momento dramático como o atual têm sido antropomorfizadas pelos políticos, não
poderiam ser mais claras (BERARDI, 2009; LAZZARATO, 2014; WARK, 2017).
Em suma, uma intervenção bem-sucedida, que impeça qualquer um dos
muitos patógenos que estão na fila do circuito agroeconômico de matar um bilhão de
pessoas, deve confrontar globalmente o capital e seus representantes locais, mesmo
que qualquer soldado da infantaria da burguesia, incluída Alicia Glen, tente mitigar os
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(NYU). Matemático de formação, o ex-operador de derivativos ficou famoso no mercado financeiro por criar
o termo “cisne negro” como forma de identificar eventos imprevisíveis e de grande intensidade, cujas
consequências não podem ser vislumbradas.
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(DURKI, 2020). Seu modelo é a falha estrutural mais grave: seu sistema de saúde é
individualizado, ao passo que a epidemia aponta, cada vez mais, para a necessidade de
estruturas públicas coordenadas em rede, o que a torna por definição incapaz de seguir
o modelo chinês de supressão.
É também neste sentido que o surgimento da Covid-19 pode ser
contextualizado. Surgido em um dos pontos mais afastados da cadeia regional de
suprimento de comidas “exóticas”, o coronavírus foi transportado para a cidade de
Wuhan, na China, e de lá se difundiu tanto localmente quanto para todo o mundo
através de diversas conexões de viagem que cruzavam aquela cidade. Ao contrário do
que se poderia intuir, o setor de carnes exóticas desponta como um mercado cada vez
mais formalizado, baseado em fontes de produção agroindustrial.
Além disso, o comércio de comidas exóticas estava disputando espaço no
maior mercado de Wuhan. Em contexto de concorrência, tal comércio apelava para
desregulamentações e descumprimentos legais e sanitários. Evidentemente, os
microprodutores rurais eram as forças mais fracas entre os atores econômicos
concorrentes. A produção industrial de carnes exóticas avançou sobre as fronteiras das
reservas naturais para viabilizar seu cultivo e conectou diferentes patógenos, entre eles,
o da Covid-19, com circuitos urbanos de consumo. O assustador número de que 60% dos
novos patógenos humanos se desenvolvem a partir da transposição do consumo de
subsistência de animais selvagens em comunidades locais para mercados “bem-
sucedidos” de alimentos globais, que se espalham para o resto do mundo via turismo
em massa ou comércio de luxo de carnes.
Tendo em vista as geografias relacionais, uma análise orientalista4 não tem
fundamento para compreensão da doença. Apesar do senso comum preconceituoso
sobre as origens do vírus estarem ligadas ao hábito cultural de alimentação com carnes
“exóticas”, Wallace et al. demonstram que apontar o dedo para as zonas de eclosão das
doenças – como China, Índia ou Indonésia – importaria ignorar as redes da economia
4 Ao discutir o “orientalismo”, Edward Said (1996) demonstra como essa geografia imaginada do Oriente foi
construída pelo Ocidente, sobretudo pela Europa, através de estudos filológicos, das artes e literatura, e das
ciências sociais. Esse mito, criado constantemente através de imagens como “o exótico”, “o selvagem”, “o
místico”, “o incivilizado”, etc., transforma-se em discurso que alimenta decisões políticas imperialistas e
colonialistas, de modo que a imagem e o sistema de conhecimento que o Ocidente cria sobre o “Outro”
oriental é fundamental na manutenção de sua hegemonia e dominação colonial. Cabe ressaltar que, para
Said, esta geografia é também relacional: o orientalismo é parte integrante da própria civilização e cultura
material ocidental na medida em que o ocidente se constitui e se define a partir desse “Outro” que ele
mesmo cria, dinâmica que faz parte das sociedades ocidentais contemporâneas.
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global, que conectam tais zonas a grandes cidades como Nova Iorque, Londres e Hong
Kong, muito embora as zonas de eclosão suportem em maior medida os danos da
agricultura industrial, especialmente quando se trata da expansão de grandes operações
extrativistas.
Os autores narram o interessante caso de Alicia Glen, uma ex-executiva da
Goldman Sachs e hoje secretária de habitação da cidade de Nova Iorque. A Goldman
Sachs comprou 60% das ações de uma gigante do agronegócio chinês que por sua vez
comprou a Smithfield Foods, empresa americana que é o maior produtor de suínos do
mundo, fazendo investimentos milionários em fazendas de aves em províncias chinesas,
uma delas próxima de Wuhan. Hoje a pandemia afeta sobremaneira a cidade de Nova
Iorque, colocando em xeque a política de habitação pela qual Alicia Glen é responsável,
demonstrando a interpenetração dos mercados globais e a extensão da cadeia de
produção de alimentos.
O termo “mundialização do capital” designa o processo político e institucional
de um modo específico do capitalismo que, a partir dos anos 1980, se constitui a partir
de “políticas de liberalização e de desregulamentação das trocas, do trabalho e das
finanças adotadas pelos governos dos países industriais” (CHESNAIS, 1998, p. 185),
características que são trazidas por Wallace et al. como fatores relevantes para o
surgimento da doença.
Este mesmo processo pode ser entendido de forma mais profunda pelo
conceito de “acumulação entrelaçada” de Costa e Gonçalves (2020), segundo o qual a
acumulação do capital é constituída de dois momentos contraditórios e entrelaçados: a
troca de equivalentes e a expropriação. Neste sentido, é especialmente relevante a
observação de Costa e Gonçalves (2020) sobre a capacidade permanente do capitalismo
de produzir novos espaços a serem expropriados sempre que a acumulação encontrar
uma barreira à sua expansão, reconfigurando por completo suas características legais,
espaciais e sociais de acordo com variações na tecnologia, no capital e no trabalho, o
que ocorre especialmente em momentos de crise de lucratividade do capital.
A extensão das cadeias de suprimentos e o conseguinte desmatamento
aparecem como práticas patogênicas, enquanto o crescimento de monoculturas
genéticas remove barreiras de imunidade que retardariam a transmissão dos vírus.
Wallace et al. apontam, também, para uma redução nas inspeções do governo nas áreas
florestais, que ficam submetidas aos padrões do comando privado da produção. Assim,
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sinalizava a possibilidade de 100 a 200 mil mortes em solo norte-americano (BBC News,
2020).
Como em muitas ocasiões, Jair Bolsonaro mimetizou o comportamento de
Trump, negando a gravidade da doença ao dizer que seria apenas uma “gripezinha”
(BRITO, 2020) e defendendo a permanência das atividades econômicas. Enquanto isso, o
Supremo Tribunal Federal legitimou as decisões de prefeitos e governadores em favor
do isolamento social e consequente suspensão das atividades.5
O debate público brasileiro tem girado em torno de uma polarização
problemática entre economia e saúde (RONAN, 2020). Aqueles que defendem a
permanência das atividades econômicas, a despeito do avanço da pandemia, ignoram as
projeções científicas sobre o aumento exponencial de casos, provocando saturação do
sistema de saúde e, consequentemente, elevando a taxa de mortalidade da doença.
Ignoram, ainda, que os efeitos causados pelo adoecimento em massa da população, com
afastamentos do trabalho, além do potencial caos gerado por muitas mortes – inclusive
com saturação do sistema funerário – não tem como não afetar a própria economia.
Na verdade, a crise no sistema de saúde e a crise no sistema econômico,
estabilizadas pela pandemia, caminham juntas.6 É uma ilusão achar que um modelo que
permita o pleno avanço da doença causará menor dano econômico. Neste sentido,
quanto mais se demora a adotar medidas de isolamento necessárias, mais lenta será a
retomada das atividades econômicas. 7 Em algum momento, os governos se veem
forçado a parar as atividades – porém em uma situação mais dramática, com colapso no
sistema de saúde e grande perda de vidas, como o caso da Itália ensinou ao mundo
(HOROWITZ; BUBOLA; POLOVELO, 2020).
Quanto ao Brasil, ao fim e ao cabo, se o isolamento social funcionar e a curva
de propagação da Covid-19 e de mortes for achatada, Jair Bolsonaro dirá que tinha razão
difusão da Covid-19. Por vezes, tais medidas parecem excessivas e extremamente custosas. Neste artigo,
nós tentamos entender a resposta ótima a uma doença contagiosa. (...) Essas medidas extremas parecem
ótimas apesar do alto custo de investimento que possam ter no curto prazo, e por várias curvaturas de
funcionamento de bem-estar. O desejo por suavizar custos reduz a intensidade do isolamento ótimo
enquanto o prolonga por mais tempo, mas ele ainda equivale a reduzir a atividade econômica pela metade”.
(PIGUILLEM; SHI, 2020).
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de não se preocupar tanto com a pandemia, enquanto em verdade seus efeitos foram
minimizados pelos esforços dos governadores. O mesmo raciocínio funciona para os
efeitos na economia: caso a doença seja controlada – muito embora já se contabilizem
milhares de mortes – dirá o presidente que ele foi contra o fechamento dos
estabelecimentos e que os impactos econômicos causados pelo isolamento social
poderiam ter sido evitados. No entanto, a superação da crise na economia – disparada
pela pandemia –, depende do controle da crise na saúde. As soluções para ambas são
inseparáveis.8 A omissão do governo federal em prover medidas de saúde pública para o
combate ao coronavírus significará mais mortes e, ironicamente, maior retardo
econômico.
No entanto, o debate entre isolamento social ou permanência das atividades
econômicas – ou entre mitigação e supressão – parte de premissas erradas, ao não
questionar os interesses do mercado e ao colocar a saúde pública em segundo lugar. A
ocorrência de mortes evitáveis é tratada como mal necessário à sobrevivência da
economia – o que denota que esta economia não está voltada para o interesse público
ou para a saúde coletiva –, e uma economia que não serve à população é parte da
premissa equivocada que subjaz à tese de que o país não pode parar.
A economia está assentada sobre o que Chesnais denomina “regime de
acumulação financeirizada mundial”: um regime rentista do qual são expressões de seu
surgimento ritmos muito baixos de crescimento em todo o mundo, aumento do
desemprego em massa (junto da “flexibilidade” nos contratos e condições de trabalho),
ampliação das disparidades entre países e das desigualdades de renda e condições de
vida em cada país (CHESNAIS, 1998, p. 186). A acumulação financeira, a seu turno, é
compreendida como “a centralização em instituições especializadas de lucros industriais
não reinvestidos e de rendas não consumidas, que têm por encargo valorizá-los sob a
forma de aplicação em ativos financeiros, mantendo-os fora da produção de bens e
serviços” (CHESNAIS, 2005, p. 37).
A submissão do Sistema Único de Saúde (SUS) à limitação de seu orçamento
em função da Emenda Constitucional nº 95 de 2016 favorece um movimento de
privatização da saúde, através dos planos de saúde que, no entanto, não privilegiam
8 Neste estudo, os autores apontam que as medidas de contenção da doença e de apoio dadas pelos
Estados fazem a diferença quanto ao impacto econômico, diante do fato que o avanço da epidemia e os
impactos econômicos já são inevitáveis. Ver também ANDERSON et al., 2020.
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públicas capazes de enfrentá-la, têm como ponto comum estarem fundadas no regime
de acumulação neoliberal, que produz cadeias extensas de produção global e privilegia a
competição e o favorecimento privado sobre ampliação de bens coletivos e da saúde
pública.
Hoje, a doença tem suas diferentes respostas mediadas pelos mesmos fatores:
pacotes de salvamento dão maior investimento a empresas que aos milhares de
desempregados; estratégias de pirataria global mediam a obtenção de equipamentos; e
há favorecimento individual que não é voltado para o interesse público ou para a
preservação de vidas. As respostas da maioria dos Estados parecem reforçar o mesmo
regime que deu lugar à pandemia, com seus efeitos sobre os indivíduos sendo
gravemente reforçados por uma lógica que se destina a proteger “o mercado” antes dos
cidadãos. As respostas dadas a crise, portanto, não passam pela desalienação proposta
pelos autores. Ao contrário, são respostas que reforçam as causas “do surgimento de
doenças neoliberais”, qual seja, o próprio modo de produção capitalista. Até agora, nada
mudou.
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Parte II – Covid-19 como fagulha da crise mundial:
especulação financeira e precarização social
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1Texto original: VAROUFAKIS, Yanis. Coronavirus has sparked a perfect storm of nationalism and financial
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Acesso em: 8 de mar. de 2020. Tradução: Maria Carolina Sanglard.
2 Yanis Varoufakis é economista e político grego, fundador do "Movimento Democracia na Europa 2025” e
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tempos, tingida, dessa vez, com uma grande dose adicional de xenofobia, reforçada pelo
coronavírus.
Wall Street seguirá o conselho de Trump de "comprar ações na queda"? Por
enquanto, os grandes players estão pensando de duas formas. A queda no mercado de
ações não os preocupa tanto. Sua preocupação era a de que a recente alta do mercado
teria relação com o aumento progressivo das dívidas suspeitas e que a Covid-19 pode
ter furado uma bolha que estouraria de qualquer maneira. Da mesma forma, na Europa,
o pior espectro pairando sobre as cabeças dos investidores é que as grandes
corporações, que dependem há muito tempo de dinheiro do Banco Central Europeu,
podem ser rebaixadas de classificação e definidas por ações de baixo valor -
especialmente em tempos de demanda doméstica estagnada e um mercado chinês de
importação em colapso.
Inspirando-se nas consequências do crash de 2008 e da crise da zona do euro
que se seguiu, os especuladores otimistas olham para os bancos centrais,
principalmente o Fed e o BCE, para fazer, mais uma vez, "o que for preciso" para
revitalizar suas fortunas. Duas perguntas tiram seu sono: os bancos centrais irão atender
à sua demanda? E se o fizerem, será suficiente?
É fácil de responder a primeira pergunta: os governos são impotentes em
ambos os lados do Atlântico. Nos EUA, o déficit orçamentário federal já está em uma
alta histórica, especialmente no contexto de um mercado de trabalho estrangulado,
enquanto a zona do euro permanece na camisa-de-força de seu arrocho fiscal. Portanto,
os bancos centrais serão forçados, gostem ou não, a extrapolar os velhos limites. Temos
visto anúncios de taxas de juros mais baixas, mesmo de compras semidiretas, em estilo
japonês, de dívidas públicas e privadas pelas autoridades monetárias.
No entanto, será suficiente para os bancos centrais jogarem mais dinheiro nos
mercados monetários infectados com Covid-19? Será que a economia conseguirá voltar
para onde estava há um mês se liquidez suficiente for injetada no sistema? Ou será
semelhante a um vagaroso furo que exige um aumento de injeções para permanecer
inflado? Além disso, será que o novo muro de dinheiro público conseguirá conter o
aumento da xenofobia? A triste resposta para a última pergunta também é instrutiva
sobre a questão econômica.
Quando uma fronteira é fechada, ela não abre novamente com facilidade,
mesmo que as condições que causaram seu fechamento sejam amplamente revertidas.
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Esta é uma lição da experiência recente da Europa. Tomemos por exemplo a Áustria,
que fechou sua fronteira com a Itália após o aumento da chegada de refugiados no
verão de 2015. Anos após a onda de refugiados desaparecer, as fronteiras
permaneceram fechadas. Algo similar aconteceu com as fronteiras ao longo dos Balcãs
Ocidentais. E o aumento da liquidez do banco central acarretará uma melhora dos
efeitos da Covid-19 na economia? Para responder, precisamos nos lembrar do que
aconteceu após o crash de 2008.
Houve duas respostas à crise de 2008 que salvaram o capitalismo do colapso
total: a injeção gigantesca de liquidez na economia pelos bancos centrais, sobretudo
pelo Fed; e a China, cujo governo se encarregou intencionalmente de construir a maior
bolha de crédito privado da história para substituir a demanda perdida de exportação
por um aumento estupendo de investimentos. As intervenções do Fed e da China
conseguiram reaquecer as finanças globais e colocaram as bolsas de valores no caminho
de seu maior rompante de crescimento. No entanto, o mundo não voltou ao estado
anterior a 2008.
Antes de 2008, Wall Street desempenhou papel crucial na reciclagem dos
excedentes existentes fora dos EUA, funcionalizando os déficits norte-americanos para o
financiamento de investimentos globais. Depois de 2008, a reaquecida Wall Street não
pôde executar esta tarefa. Ao contrário, canalizou grande parte da liquidez não para
investimento em capital fixo, mas para a reaquisições de ações e compras de novos
ativos. Como resultado, a economia pós-2008 é caracterizada pela poupança exceder o
investimento em bens de capital. Como a poupança é a oferta do dinheiro, e o
investimento, sua demanda, o excesso da oferta de dinheiro explica as taxas de juros
permanentemente baixas ou negativas. Isto também explica a redução dos salários em
um cenário de aumento dos preços dos ativos, causando desigualdade insustentável e
produzindo os triunfos políticos do nacionalismo xenofóbico.
Exatamente da mesma maneira que o aumento da liquidez pós-2008 falhou
em reequilibrar a poupança e o investimento no âmbito global, qualquer “flexibilização”
monetária para combater os efeitos negativos da Covid-19 falhará em retornar a
economia global ao seu estado anterior a fevereiro. É claro que, como aconteceu depois
de 2008, os especuladores vão enriquecer e as forças nacionalistas se aproveitar ao
máximo do descontentamento que virá em seguida.
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incapazes de prever a crise de 2008 e mesmo assim nunca tiveram de pedir desculpas,
reescrever seus livros, nem prestar explicações sobre a falsificação de suas hipóteses. Ao
contrário, eles se mostraram sempre confiantes e reproduziram nos rádios e televisões a
mesma metodologia que não serviu para prognosticar nada (VAROUFAKIS, HALEVI,
THEOCARAKIS, 2011, p.15) Varoufakis confronta as teorias ortodoxas e explica que suas
falhas são resultado de uma compreensão equivocada do capitalismo como um sistema
inerentemente harmonioso. Ao manterem uma crença mística na existência de um
mecanismo dentro do próprio sistema que dissolve conflitos automaticamente, tais
economistas acham que as crises são meros acidentes que não precisam ser teorizados
(VAROUFAKIS, HALEVI, THEOCARAKIS, 2011, p.18).
A crise da Covid-19 explicita mais uma vez a incapacidade de previsão e
oferecimento de soluções por parte da ortodoxia. Os economistas convencionais têm
utilizado sempre as mesmas teses que falharam há dez anos. Se, de um lado, se vê um
apelo ao keynesianismo de emergência como medida anticrise; de outro, está claro que
as fragilidades especulativas do mercado financeiro não serão resolvidas com os antigos
métodos de injetar liquidez no mercado. A pandemia se revela, assim, o gatilho de uma
das mais graves crises do capitalismo e anuncia uma possível quebra de paradigma na
forma com que conduzimos as políticas econômicas e sociais num âmbito global. Tal
quebra, no entanto, só será possível se o pensamento crítico aproveitar as brechas que
foram geradas.
Referências bibliográficas
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2020. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-19/dollar-
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de chineses. Abril de 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/weintraub-usa-cebolinha-da-turma-
da-monica-para-fazer-chacota-de-chineses.shtml . Acesso em: 22 de abr. de 2020.
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2020. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-
nacional/noticia/2020/03/19/eduardo-bolsonaro-culpa-china-por-coronavirus-e-gera-
crise-diplomatica.ghtml . Acesso em: 22 de abr. de 2020.
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Kate Bradley2
Nas últimas semanas e meses, diversos países em todo o mundo se viram no meio de
uma crise tão inesperada que deixou governos e gestores sem saber como reagir.
Nestes tempos estranhos, o comportamento dos nossos governantes e da
população passa a fazer mais sentido quando enquadrado nos termos da “reprodução
social”. Reprodução social é o nome dos processos que são realizados para transformar
as pessoas em trabalhadores – para garantir que sejam saudáveis, obedientes e “aptas
para o trabalho”, como diz o Departamento do Trabalho e Pensões.3 É também um
termo que descreve os processos através dos quais as pessoas sustentam a si próprias e
as suas comunidades, mesmo fora de um contexto capitalista – cozinhando,
descansando, socializando, e educando as crianças. Muito trabalho de reprodução social
pode ser feito para si ou para outras pessoas, seja na forma de trabalho remunerado
(por exemplo, trabalho de cuidado, ensino ou enfermagem), seja como trabalho não
remunerado (no lar, como trabalho doméstico).
Normalmente, as crises começam como crises de produção: uma indústria ou
setor em colapso que leva a quebras ou perdas de lucratividade, que são depois
transferidas para a população sob a forma de cortes nos empregos, reintegrações de
posse e ataques aos serviços sociais de reprodução (por exemplo, nas áreas da saúde e
da educação). Nestas crises “normais”, como o período de austeridade que se seguiu ao
colapso de 2007-8, o sistema prossegue dando o melhor de si para restaurar os lucros,
ao mesmo tempo que dispensa funcionários, elimina serviços deficitários e forja a
narrativa pública para apresentar os danos que considera “inevitáveis”.
1 Texto original: BRADLEY, Kate. Social reproduction in crisis. Revolutionary socialism in the 21th century
(rs21), Abril de 2020. Disponível em: https://www.rs21.org.uk/2020/04/01/social-reproduction-in-crisis/ .
Acesso em: 2 de abr. de 2020. Tradução: Bruna da Penha de Mendonça Coelho, Fatima Gabriela Soares de
Azevedo e Rhaysa Ruas. Revisão: Rhaysa Ruas.
2 Kate Bradley é Integrante do Revolutionary Socialism in the 21st Century (rs21.org.uk), com sede na Grã-
Bretanha.
3 Tradução literal de Department for Work and Pensions, que é um departamento do governo britânico
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Muitas das medidas confusas que os conservadores escolheram adotar nas últimas
semanas são mais fáceis de entender ao visualizarmos suas decisões como uma
tentativa de proteger a estrutura da economia diante de um enorme colapso que se
aproxima. Embora pareça que eles tenham aceitado que o lucro não poderá ser mantido
pela maioria dos negócios, eles tentaram sustentar a recuperação econômica para o
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capital como centro de sua estratégia para enfrentar a Covid-19. Sua oferta de auxílios
de £25.000 para empresas de serviços é uma dessas medidas. Talvez seja algo que seria
visto como generoso em um momento menos crítico; agora, no entanto, é evidente que
essa pode ser a única forma de limitar as consequências a longo prazo para bares e
restaurantes que constituem grande parte da economia de consumo.
A segunda oferta monetária do governo recente, a de empréstimos para todas
as empresas começando com um “payment holiday”4, também é para proteger a
lucratividade do sistema a longo prazo. Os empréstimos, afinal, precisam ser pagos, e a
dívida tem sido há muito uma maneira de o governo garantir que a riqueza seja
transferida de forma ascendente na medida em que é criada. Os indivíduos também
estão sendo incentivados a contrair empréstimos para atender às suas necessidades
sociais reprodutivas durante períodos de salários reduzidos ou de desemprego. A dívida
pode ser vista para o mutuário como uma forma de “emprestar dinheiro do futuro” –
mas isso deixará várias pessoas em situação pior por muito mais tempo (e mesmo para o
sistema, é uma maneira inerentemente instável e abstrata de manter os padrões de vida
atuais). Isso poderia provocar outra crise, caso as dívidas contraídas durante essa
pandemia não possam ser pagas em uma lenta economia futura.
De certa maneira, nós já estamos vendo o efeito negativo que produz em
pessoas que contam com dívidas durante uma crise para a satisfação de suas
necessidades. Após a última recessão, a família média do Reino Unido já possui cerca de
£ 13.000 em dívidas não garantidas, além de dívidas hipotecárias em muitos casos. À
medida que o coronavírus se agravar, enfrentaremos os inadimplementos em grande
escala – e precisaremos seguir lutando firmemente por nossos direitos para impedir um
aumento nas reintegrações de posse, despejos e remoções após a retirada do
congelamento temporário nesses processos, adotado pelo governo.
“Congelamento” é uma boa metáfora do que o governo está tentando fazer:
manter a estrutura capitalista da economia segura durante toda a pandemia, para que
possa retornar à sua sórdida normalidade dentro de alguns meses.
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A terrível insuficiência do NHS 5 para esta crise moldou toda a resposta nacional e
governamental ao coronavírus. No primeiro mês de propagação do vírus no Reino
Unido, um grande número de pessoas foi contatado pelos médicos da família e instruído
a não usar os serviços do NHS enquanto o vírus persistisse, e os testes na comunidade
estavam praticamente indisponíveis. Se o NHS estivesse tão preparado para uma
epidemia de saúde quanto os militares estão para a guerra, talvez a situação não
estivesse tão terrível. No entanto, como as políticas de austeridade conduziram a um
NHS desmontado, sempre funcionando quase na sua capacidade máxima, foi preciso
haver uma abordagem minimalista para os cuidados com a Covid-19, levando ao
método do “achatamento da curva” (tentando manter baixo o número de casos para o
serviço de saúde), ao invés de uma tentativa mais proativa de combater o vírus.
O fato de que o governo do Reino Unido manteve as escolas abertas por tantas
semanas durante a crise não surpreende, já que tentativas de não parar os espaços de
trabalho demandam que as crianças tenham aulas, concebendo-se a escola como um
enaltecido lugar de acolhimento enquanto passa a pandemia. Isso colocou em risco
professores, alunos e as pessoas que convivem com as crianças e adolescentes. A
necessidade de manter as escolas em funcionamento pode ser vista como um efeito em
cadeia de duas forças: a primeira, o longo esforço do capitalismo para que aqueles que
desempenham o trabalho de cuidado no lar também sejam trabalhadores remunerados
fora de casa como meio de aumentar a lucratividade (por exemplo, mães que fazem
uma “dupla jornada” de trabalho remunerado e trabalho doméstico); a segunda, as
tentativas desesperadas da classe dominante de impedir a falência das empresas
através da manutenção dos locais de trabalho em atividade por mais tempo do que seria
seguro. Esse “movimento de pinça” capitalista leva as pessoas a serem pressionadas a
trabalhar durante essa crise e força as escolas a permanecerem abertas para possibilitar
que isso aconteça.
A centralidade das profissões dos “trabalhadores essenciais” deveria nos
mostrar quão poderosos eles podem ser. Certamente, durante crises, tais trabalhadores
se tornam ainda mais importantes para o sistema do que são normalmente. Mas as
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6 Organização fundada em Bristol em 2014, com o objetivo de unir comunidades para criar condições mais
justas de vida (cf. ACORN, 2020) [N.T.].
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Referência bibliográfica
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processos através dos quais as pessoas sustentam a si próprias e as suas comunidades: cozinhar, descansar,
socializar, gerar e educar as crianças, cuidar dos doentes e idosos, etc.
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desde a crise estrutural marcada pelo choque do petróleo em 1973, o capitalismo ainda
não superou a exaustão do modo de regulação fordista. A tentativa de tornar o modo de
regulação neoliberal uma solução para isso não foi capaz de retomar sua reprodução
crescente, mesmo lançando mão de formas predatórias de expropriação (violência
extraeconômica), ao invés das formas tradicionais de acumulação econômica
(GONÇALVES, 2017).
O neoliberalismo pressupõe um processo de financeirização da economia real
que é garantido e impulsionado pelos Estados-nação e cujo mecanismo de reprodução
depende da depreciação de todo tipo de recursos e ativos até que não reste mais nada a
se fazer, a não ser transferir sua propriedade para instituições mais ricas e maiores. Nas
palavras de Alfredo Saad Filho, a financeirização “expressa o controle do capital
portador de juros (CPJ) sobre a alocação de recursos sociais e a reprodução social de
maneira mais geral, através de distintas formas de capital fictício (Fine, 2015)”. A
consolidação do neoliberalismo através de décadas mundo afora viabilizou a
proeminência da financeirização sobre processos políticos, econômicos, ideológicos, o
que não se deve a uma superação do capital financeiro em relação ao capital produtivo
em razão de golpe ou metamorfose. “Pois as finanças não são apenas o conjunto de
capital líquido controlado pelas instituições financeiras, colocado em oposição ao capital
(produtivo) ‘real’ metaforicamente colado ao chão” (SAAD FILHO, 2015, p.65).
O modelo de regulação neoliberal carrega um grande conjunto de
contradições. Crises financeiras constituem o modus operandi do seu regime de
acumulação, que se reproduz através da extrema precarização do trabalho e das
condições de vida dos trabalhadores, tendo como mecanismos centrais, dentre outros, o
endividamento (público e privado) e os pacotes de austeridade.
Da mesma forma que a crise financeira de 2008 tem um significado específico
por sua ligação com o mercado habitacional e com a especulação fundiária, podemos
dizer que a chamada “Crise da Covid-19” também possui suas características específicas,
que podem distingui-la das suas antecessoras. Para Toussaint (2020), ao contrário das
afirmações da grande mídia e dos governos, de que a crise econômica teria sido
provocada pela pandemia do coronavírus, este foi simplesmente o detonador de um
processo que já estava em gestação tanto no mercado financeiro, quanto no setor
produtivo. Em 2018 e 2019, muito antes da circulação do vírus, ocorreram em Wall
Street fatos que evidenciavam a aproximação de um momento limite. Em 2019 houve
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vai além dos mercados e foi gestada a cada dia, a cada filho, a cada tarefa de cuidado
diário e de reposição geracional. Ela foi aprofundada e instrumentalizada pelo
neoliberalismo, que retirou paulatinamente tarefas ligadas à reprodução que estavam
sob a responsabilidade do Estado e as lançou para as famílias, em um contexto de
precarização de empregos. A invisibilização das tarefas e a hierarquização de sujeitos
propiciam aos capitalistas condições mais favoráveis de extração de lucro, posto que
impactam nos salários da força de trabalho. A conta de vidas perdidas durante a
epidemia não deve ser parecida em diferentes países: há países mais vulneráveis,
dependentes, nos quais o neoliberalismo foi mais agressivo e destruiu mais estruturas
públicas de acesso à saúde. Há sobretudo escalas diferenciadas de vulnerabilidade
considerando raça, classe, gênero, status de cidadania.
A reflexão desenvolvida neste comentário nos permite perceber que a crise atual não é
puramente sanitária, mas também econômica, política, cultural, ideológica, laboral e de
tudo mais que, compreendido em uma perspectiva total das relações sociais, componha
a formação de sociabilidade (histórica e sociologicamente situada) do modo de
produção em que vivemos. É importante destacar que a perspectiva adotada por
Bradley (2020) pressupõe uma compreensão expandida de capitalismo, que
compreende tanto sua esfera “econômica”, quanto suas condições “extraeconômicas”,
e a centralidade do trabalho. A ideia de que o capitalismo poderia se reproduzir a
despeito do trabalho humano5 revela-se inconsistente em termos teóricos e empíricos.6
Não é por outra razão que a necessidade de isolamento social e o consequente
afastamento físico dos trabalhadores de seus postos afetam a acumulação capitalista 7,
impactando o ritmo das dinâmicas aceleradas de produção e de consumo.
Tampouco é por outra razão que o discurso hegemônico dos atores de
mercado busca rebater, ao máximo possível, os protocolos de saúde que orientam o
5 Esse debate passa pelas chamadas teorias da crise da sociedade do trabalho. Cf., dentre outros:
HABERMAS, 1987; OFFE, 1986.
6 Sobre a discussão acerca da centralidade do trabalho, cf., dentre outros, ANTUNES, 2006.
7 O impacto na acumulação capitalista se dá, sobretudo, em virtude da alteração na composição do capital.
Cf. MARX, 2017, pp. 689 e ss. (“A lei geral da acumulação capitalista”).
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8A nível nacional, esse discurso se materializa na realização de carreatas (promovidas pelo empresariado)
que pugnam pelo fim do isolamento social, além de reverberar nas manifestações públicas da cúpula do
executivo federal.
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Referências bibliográficas
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Stavros D. Mavroudeas2
Texto publicado em 25/03/2020
Hoje a humanidade está em meio a uma pandemia de coronavírus, que tem resultado
em uma enorme crise na saúde. Ao mesmo tempo, a economia global está entrando em
um caminho recessivo, caracterizado agora como uma crise econômica que tem atingido
todos os cantos do mundo. Deste modo, justifica-se falar em dupla crise, da saúde e da
economia. Obviamente, a primeira tem prioridade imediata, na medida em que envolve
perda de vidas humanas. Mas, além de seu impacto direto sobre tais vidas, também tem
grandes implicações econômicas. Estas últimas têm importantes consequências para o
bem-estar social, o que, por sua vez, tem efeitos indiretos na saúde - embora não
diretamente fatais.
Um primeiro grupo de questões fundamental para entender este processo
refere-se a como as crises econômica e da saúde estão ligadas. Essas são, obviamente,
entrelaçadas; mas são idênticas ou não? E, mais especificamente, a crise da saúde é a
causa ou apenas a desculpa da crise econômica?
Um segundo problema crucial diz respeito a quem paga o custo desta dupla
crise. Também é óbvio que, porque as sociedades contemporâneas são constituídas de
classes sociais com interesses conflitantes, os custos econômicos da saúde e as escolhas
econômicas são campos de luta entre as classes. Se deixarmos de lado a hipocrisia das
análises não-sociais da economia ortodoxa, é de se esperar que a classe dominante
capitalista busque repassar o fardo desta dupla crise, ao menos sua maior parte, para as
1 Texto original: MAVROUDEAS, Stavros. The coronavirus pandemic and the health and economic crisis.
Stavros Mavroudeas Blog, Março de 2020. Disponível em:
https://stavrosmavroudeas.wordpress.com/2020/03/25/4383/ . Acesso em: 4 de abr de 2020. Tradução:
Vinicius Lima da Silva. Revisão: Beatriz Santos.
2Stavros Mavroudeas é professor de economia política no Departamento de Política Social da
Universidade Panteion, Grécia.
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costas da vasta maioria trabalhadora. Apenas deste modo sua lucratividade – a razão
essencial para o funcionamento do sistema capitalista – não será minada.
A terceira questão importante discute o tipo de orientação da esquerda e do
movimento trabalhista: qual deveria ser sua posição em relação a esta dupla crise e suas
consequências?
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4 Capital fictício é, essencialmente, uma aposta sobre lucros futuros que estão sendo deduzidos hoje (para
uma análise mais detalhada ver Mavroudeas & Papadatos 2018). Estas apostas são sujeitas à troca intra-
capitalistas e, em conjunto com dinheiro de crédito, podem engendrar períodos de exorbitantes
expectativas econômicas e crescente acumulação. Se estas apostas obtêm êxito, a acumulação de capital
continua normalmente. Mas, se a economia real não as atende, emergem, então, as crises econômicas.
5 “O quantitative easing, ou QE, é uma medida onde um Banco Central compra títulos do governo ou outros
títulos do mercado para reduzir as taxas de juros e expandir a oferta de moeda na economia”. Disponível
em: https://www.sunoresearch.com.br/artigos/quantitative-easing/ Acesso em: 2 de abr. de 2020 [N.T.].
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6 A hipótese da “imunidade de rebanho” sustenta que a disseminação mais rápida de uma epidemia conduz
à produção mais rápida de anticorpos pela população humana. Teria um grande custo humano inicial, mas
traria um fim mais rápido da epidemia.
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8 O termo Política Industrial descreve grande variedade de objetivos e ações governamentais para promover
o funcionamento e a sustentabilidade de setores específicos da economia. Sua própria natureza é
intervencionista. O Neoliberalismo argumenta que tal política é ineficaz e que, na verdade, não deveria
existir, uma vez que ‘distorce o livre funcionamento do mercador’. Existem duas grandes categorias de
Política Industrial: (a) horizontal (regulamentos e políticas gerais para toda a economia sem afetar o
equilíbrio entre sectores individuais da economia) e (b) vertical (foco em setores específicos e aplicação de
regulações e políticas discriminatórias, isto é, diferenciadas, que alteram o equilíbrio entre sectores
econômicos individuais).
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9É digno de nota que no caso da economia grega já exista uma diminuição do emprego em cerca de 40.000
postos de trabalho. Além disso, há fortes evidências de uma conversão massiva de contratos de trabalho de
tempo integral para contratos a tempo parcial.
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Referências bibliográficas
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Qual a relação entre crise econômica e coronavírus? Para onde vai a economia
capitalista no mundo pós-pandemia? Diante de um horizonte de incertezas, Stavros
Mavroudeas oferece interessantes notas para um diagnóstico. Sua hipótese é que a
pandemia do coronavírus e a presente bancarrota da economia mundial se conectam
em uma dupla crise: econômica e da saúde. Para desenvolvê-la, propõe a articulação de
três questões: (I) o modo de conexão das crises econômica e da saúde; (II) quem paga os
custos da dupla crise e, por último, (III) a posição da esquerda frente a tal crise e suas
consequências.
Quanto à primeira questão, Mavroudeas confronta o argumento da atual
ortodoxia econômica, denominada de Novo Consenso Macroeconômico, segundo o qual
o coronavírus constitui fator exógeno causador da recessão econômica de hoje. Em
contrapartida, ancorado na economia política marxista, o autor define a pandemia como
uma espécie de gatilho, que apenas acionou contradições já presentes na dinâmica da
acumulação capitalista. Isto porque as políticas adotadas contra a propagação do
coronavírus, especialmente o “distanciamento social” e a restrição da circulação, forçam
a desaceleração, ou mesmo, a paralisação da atividade econômica.
Ao provocar o adoecimento em massa e a perda de milhares de vidas
humanas, reduzindo, assim, a força de trabalho, a pandemia tem um impacto negativo
na produção e no consumo, o que cai como uma bomba em um terreno econômico já
minado. Deste modo, o coronavírus aguçou explosivamente as contradições expostas na
crise de 2008, causada, por sua vez, pela sobreacumulação de capital decorrente da
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queda na taxa de lucro. Para Mavroudeas, tal crise não fora solucionada, mas apenas
controlada pelo abandono do dogma neoliberal em nome de um maior
intervencionismo estatal no pós 2008, expresso através tanto de uma política monetária
frouxa quanto de uma política fiscal expansionista (ou seja, aumento do gasto e
investimento público). Em suma, o coronavírus teria provocado a emergência dos
problemas endógenos da acumulação capitalista, amontoados e não superados desde a
última grande crise capitalista.
Quanto ao conflito da distribuição do ônus da dupla crise, Mavroudeas chama
a atenção para o movimento contraditório das curvas da recessão econômica e da
incidência do coronavírus. Baseado nas duas propostas de enfrentamento do
coronavírus, identificadas pelo Imperial College - mitigação e supressão - o autor mostra
que quanto mais agressivas as medidas contra os vírus, maiores os impactos
econômicos.
A mitigação importa em uma abordagem mais branda, orientada ao bloqueio
de atividades e da circulação de grupos específicos, especialmente os idosos. Por sua
vez, a supressão compreende medidas mais drásticas, cujo objetivo é eliminar a
pandemia a partir de uma extensiva interrupção das mais diversas atividades
econômicas, políticas e sociais. Tais propostas possuem efeitos distintos. A primeira
tende a provocar um aumento das perdas de vidas humanas, embora seja
economicamente mais sustentável, enquanto a segunda, ao contrário, propicia maior
preservação de vidas ao custo de uma maior paralisação das atividades econômicas.
Todavia, ao supor que a manutenção das atividades econômicas amenizaria a recessão
econômica, acaba-se por desconsiderar que a infecção em massa da população - com
milhares de mortes – teria grave impacto na força de trabalho. Milhares de
trabalhadores seriam afastados de seus postos, o que representaria prejuízos para todos
os setores, e ainda maiores para o setor de saúde, retroalimentando a crise.
Além disso, Mavroudeas chama a atenção para o fato de que a correlação
entre economia e saúde depende das estruturas sociais nas quais nos inserimos, ao
ilustrar importantes contrastes entre as diferentes capacidades da economia capitalista,
do capitalismo de Estado e do socialismo em lidar com a restrição da atividade
econômica. Cada sistema possui distintos graus de planejamento estatal, capacidade de
o Estado arcar com os custos da produção e mesmo de estrutura pública de saúde e de
aplicação das políticas públicas de contenção.
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II
3 No caso brasileiro, ver, por exemplo: “Governo financiará salário de funcionário de pequenas e médias
empresas com R$ 40 bi em crédito”. O Globo, Março de 2020. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/economia/governo-financiara-salario-de-funcionario-de-pequenas-medias-
empresas-com-40-bi-em-credito-24333027 . Acesso em: 14 de abr. de 2020.
4 Se, conforme Pachukanis, no momento de agudização da luta de classes o Estado explicita-se como poder
de classe, pode-se vislumbrar o Estado de crise enquanto explícito garantidor, mediado pelos interesses (e
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conflitos daí decorrentes) da classe capitalista, das bases sociais das relações de produção capitalistas. Ver
nesse sentido: PACHUKANIS, 2017, p. 210.
5 David Harvey parece sugerir tal associação quando afirma que “Se a China não pode repetir seu papel de
2007–8, então o ônus de sair da atual crise econômica agora muda para os EUA e aqui está a ironia final: as
únicas políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politicamente, são muito mais socialistas do que
qualquer coisa que Bernie Sanders possa propor e esses programas de resgate terão que ser iniciados sob a
égide de Donald Trump, presumivelmente sob a máscara do “make America Great again” (HARVEY, 2020).
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III
6 Empresa brasileira de comunicação. Whatsapp é principal fonte de informação do brasileiro, diz pesquisa.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-12/whatsapp-e-principal-fonte-de-
informacao-do-brasileiro-diz-pesquisa . Acesso em: 13 de abr. de 2020.
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Rodrigues Maciel, Bruna da Penha de Mendonça Coelho, Maria Carolina Sanglard e Natália
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1 Este texto foi originalmente publicado na Revista Le Monde Diplomatique Brasil em 06 de abril de 2020.
Disponível em: https://diplomatique.org.br/as-falsas-premissas-de-guedes-e-bolsonaro-sobre-a-crise/
Acesso em: 07 de abr. 2020.
2 Professor de Sociologia do Direito da UERJ, pesquisador do CNPq e coordenador do LEICC-UERJ. E-mail:
guilherme.leite@uerj.br
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Bukharin mostra que este conceito contém uma noção de produção, baseada
na satisfação das necessidades dos produtores. Este postulado depende, porém, do
reconhecimento do papel do consumo. Na medida em que o consumo não consegue
exaurir os produtos excedentes, a produção se volta para a satisfação das necessidades
do mercado. Mas mercados são estruturas setorializadas com limites físicos, temporais,
jurídicos, sociais etc. Quando os excedentes já não são absorvidos por uma economia
particular, precisam da abertura de novas. Neste passo, se impõe uma produção
massiva não para os produtores, mas para os mercados, que recebem a totalidade das
mercadorias.
Segundo Bukharin, a consequência do desenvolvimento do modo de produção
moderno é a diminuição da importância das avaliações subjetivas fundadas na utilidade.
Isto é: o excedente perde seu sentido de valor de uso, pois seu valor passa a ser
mensurado em comparação com outras mercadorias. No caso da produção massiva,
emerge uma medida ainda mais abstrata: o valor é definido pela grandeza virtual do
total de mercadorias. Essa grandeza reflete a evolução do preço e se torna fator de
orientação das trocas subsequentes. Com isso, o valor de uso subjetivo não pode servir
para a análise dos preços. A utilidade de uma mercadoria é apenas premissa para que
ela seja intercambiada, não determina a magnitude de seu valor. Para tanto, é
necessário pensar com Marx em seu valor de troca.
O individualismo econômico de Böhn-Bawerk não consegue, assim, perceber
que o valor de uma mercadoria é definido por seu caráter social, incluído a divisão
desigual do trabalho que o constitui. Desta perspectiva, embora os neoclássicos neguem
o conceito marxiano de valor de troca, fica claro porque, como dito acima, eles (leia-se:
o Instituto Mises) temem que a destruição da divisão internacional do trabalho possa ser
o fim da civilização. A proteção destas condições desiguais é o objetivo de sua política
para as crises e para além delas.
Sociologia do Rentista
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de crédito, permitindo que a mais-valia passasse a ser apropriada por uma fração da
burguesia que não tem relação direta com a produção: os rentistas. Bukharin demonstra
que, embora essa fração se amplie com a importância da bolsa de valores, evita os riscos
das operações financeiras e, em nome de rendas seguras, também busca especular com
fundos públicos. Os rentistas tornam-se, assim, duplamente parasitários: da atividade
produtiva e do Estado. Isto também explica sua dependência quanto aos bancos centrais
nas crises ou fora delas.
A participação do rentista na vida econômica se resume à esfera do consumo.
Tende, portanto, a se satisfazer com produtos de luxo, fechando-se para a cultura e o
conhecimento. Segundo Bukharin, “o consumidor rentista só pensa em cavalos de
corrida, tapeçarias de luxo, charutos aromáticos, vinhos finos”. Neste sentido, sua
“sociedade de consumo” é o oposto do projeto moderno das ciências humanas
destinado ao desenvolvimento da personalidade por meio da formação intelectual. Mas
também é pouco afeita às ciências exatas e naturais. Sem convívio com a produção e o
trabalho, o rentista não precisa de modelos de longo prazo ou planejamentos. Busca
apenas proteção diante dos riscos nas negociações da bolsa de valores. Pode, assim, em
uma crise (como a atual), destruir as ciências sociais e descartar recomendações das
ciências naturais. Sua preocupação é com as apostas do mercado. Nada diferente do
que tem sido a campanha bolsonarista pela retomada das atividades econômicas em
meio a pandemia da Covid-19.
Este distanciamento do saber humano e da atividade produtiva torna o
rentista mais individualista do que o resto da burguesia. É um “grosseiro” diante da
questão social. Sua visão de mundo é pouco orientada ao futuro e à provisão. Ele opera
pelo desejo de satisfazer seus interesses imediatos e aproveitar o momento, possuindo
um campo visual anti-histórico e limitado ao presente. Despreocupado com a
continuidade da vida social, o rentista experimenta apenas o carpe diem.
O medo da mudança, atrelado ao temor de protestos que podem implicar
transformações no status quo e perdas de rendas, fazem do rentista um profundo
conservador. É um grupo avesso a outros valores: de classe, gênero ou raça. Por isso,
estimula práticas higienistas e segregacionistas, que, ao expurgarem grupos oprimidos
(sobretudo a população negra), tornam os ambientes mais homogêneos para seu
consumo exclusivo. O que diz Guedes? Que empregadas domésticas não devem ir à
Disneylândia. E suas propostas para a crise da Covid-19? Não pagamento de salários por
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Conclusão
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Referências bibliográficas
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Rafael Vieira1
Quais as premissas que informam as respostas imediatas para a crise, aprofundada pela
Covid-19, elaboradas pelo governo Bolsonaro? Como estabelecer as bases para as
críticas destas premissas? O texto de Guilherme Leite Gonçalves “As falsas premissas de
Guedes e Bolsonaro sobre a crise do Covid-19” procura responder a estas questões. Para
tanto, resgata um livro pouco conhecido da tradição marxista para criticar alguns dos
principais fundamentos teóricos da assim chamada Escola Austríaca de Economia, que
Gonçalves identifica como uma matriz teórica para a qual conflui tanto Guedes quanto o
think tank ultraliberal Instituto Mises2.
O livro resgatado é “A miséria da teoria subjetiva do valor (a economia política
do rentista)”3, escrito pelo jovem Nikolai Bukharin aos 26 anos, após ter frequentado os
cursos de um dos expoentes da chamada Escola Austríaca, Eugen Böhm-Bawerk. O livro
tem como objetivo atualizar as críticas de Marx e estendê-las a algumas das principais
correntes da teoria econômica surgidas nos 30 anos, posteriores à morte do pensador
alemão, dando ênfase principalmente à Escola Austríaca, esta última um dos principais
berços do chamado neoliberalismo.
1 Professor adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do
LEICC-UERJ. E-mail: r.vieira@ess.ufrj.br
2 Há diferenças entre o neoliberalismo americano (que marca a formação de Guedes) e o austríaco, que não
poderão ser tratadas nos limites do presente artigo. Para o debate, ver: (FOUCAULT, 2008, p.297-320). Para
a análise da influência da Escola Austríaca no Instituto Mises, ver (DAL PAI, 2017). Além disso, o
neoliberalismo opera com frequência no plano prático dissociado de seu modelo teórico (PORTO-
GONÇALVES, 2020; HARVEY, 2011, p. 30), embora isso não retire a importância da análise de suas
premissas.
3 Também traduzido por “A economia política do rentista: Crítica da economia marginalista” na versão em
espanhol (1974), ou “Teoria Econômica da Classe Ociosa (leisure)” na versão em inglês de 1927.
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II
4Excluídas aqui as teorias conspiratórias mais vulgares, que tratam a Covid-19 como uma criação artificial
chinesa para dominar o mercado mundial, teorias estas já afastadas por estudos mais rigorosos (ANDERSEN
et al., 2020, p. 450-452).
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que representa uma receita que se repete com regularidade (MARX, 2017, p. 524), mas
que só se constituiria se o rendimento fosse capitalizado (CARCANHOLO, 2010, p. 5). No
exemplo de Marx, é o caso de um título que remete a um rendimento regular de £100,
em uma taxa média de juros de 5%, em que seu portador aparece como tendo um
capital de £2.000, mesmo que este capital não exista previamente. Desloca-se para o
presente uma projeção de ganhos futuros, sujeitando também este título jurídico a uma
injunção especulativa própria. “Desse modo, apaga-se até o último vestígio [Spur] toda a
conexão com o processo real de valorização do capital e se reforça a concepção do
capital como um autômato que se valoriza por si mesmo” (MARX, 2017, p.524)”. O
capital fictício ganha forma a partir da dissociação entre um valor real e um valor
nominal de um capital que se autonomiza.
Marx trabalha com diferentes formas de manifestação do capital fictício em
seu tempo: as especulações em torno das letras de câmbio (p.452-453; p. 462-463) e de
papeis variados; e principalmente o mercado de ações e os títulos da dívida pública (p.
522-530). A partir da reflexão sobre estas formas variadas de títulos, Marx aproxima-se
com mais nitidez ao que é o capital fictício, quando afirma que: “[t]odos esses títulos
não representam mais do que direitos acumulados, títulos jurídicos sobre a produção
futura, cujo valor monetário ou valor-capital não representa capital nenhum, como no
caso da dívida pública, ou é regulado independentemente do valor do capital real que
representam” (MARX, 2017, p. 526). Com frequência, no sistema de crédito, que tende a
reunir estes diferentes títulos de apropriação, os mesmos podem aparecer duas, três ou
muitas vezes (p. 527 e 530). Segundo Reinaldo Carcanholo e Maurício Sabadini, “o
capital fictício dissimula ainda mais as conexões com o processo real de valorização do
capital, ao consolidar a imagem de um capital que valoriza a si mesmo, particularmente
no mercado de compra e venda especulativas” (2013, p.77). Essa relação, que se
multiplica com muita amplitude e rapidez, é responsável pela constituição de bolhas
especulativas estruturadas em torno de capitais predominantemente fictícios. E esse
fenômeno é extremamente relevante para entendermos as crises do neoliberalismo,
dentre elas a posterior à 2008.
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III
Uma das dificuldades teóricas da apreensão da noção de capital fictício é que, apesar de
seu caráter fictício ou ilusório, ele é real, e é inerente a ele uma dialética real/imaginário
(R. CARCANHOLO & SABADINI, 2013, p.73). Ele é, e, ao mesmo tempo, não é. Bukharin
parece perder-se nesta dialética, prendendo-se mais ao seu caráter ilusório, realçando
em sua descrição apenas a dissociação da produção e do consumo do capital nas mãos
de um rentista individual. Só que o capital fictício não é apenas ilusão, por mais que
também seja. Por um lado, o capital fictício se constitui a partir da complexificação da
lógica da apropriação. Por outro, esta forma de capital, apesar de ser constituída sob
bases fictícias, existe e incide sobre a realidade, de formas múltiplas.
Quando Marx descreve as formas distintas de capital existentes no processo
de apropriação, o autor procura cercar-se de alguns cuidados para afirmar que há uma
autonomização/descolamento, que são apenas relativos, das formas do movimento do
capital em sua totalidade. Por mais que, por exemplo, na forma de apropriação do
capital portador de juros, apenas apareça a relação D -D’ (dinheiro - dinheiro acrescido
de um excedente), este movimento não pode ser explicado por si só (MARX, 2017, p.
396-397). Marx procura permanentemente sublinhar o entrelaçamento entre as formas
de capital na materialização do capitalismo. O capital fictício, como uma expressão das
relações de apropriação, pressupõe para sua existência as relações de produção
capitalistas de onde é extraído o mais valor, por mais que isso possa não aparecer na
mentalidade de um rentista particular. É preciso que haja a produção de mais valor para
que a apropriação ocorra.
Se o capital fictício possibilita as formas mais insanas de especulação e rapina,
ele não se resume a isso, embora contenha estas relações. O capital fictício ao forjar
novos capitais a serem postos no mercado (ainda que sob bases aparentemente frágeis)
intensifica a rotação do capital, discutida por Marx no livro II de “O Capital”, permitindo
assim a redução do tempo dos ciclos. É justamente a aceleração da rotação que permite
a ampliação das relações de apropriação da qual o capital fictício é parte integrante
(embora não seja sua única forma).
Ainda é importante ressaltar que a dinâmica do capital fictício insere no
mercado capitais responsáveis pela formação de novos segmentos e de atividades
produtivas que de outra forma demorariam um tempo maior para se realizarem
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5 Conferir também a argumentação de Fontes, em que procura expor a relação entre as grandes massas de
capitais concentrados (muitas vezes repletas de capital fictício) e as formas contemporâneas de extração de
mais-valor do trabalho precário e por vezes informatizado. A autora mobiliza para tanto o conceito de
“recursos sociais de produção” com o objetivo de fornecer uma explicação mais próxima do concreto-real
(FONTES, 2017, p.52-55).
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concentradas à procura de realização, “cada limite aparece como uma barreira a ser
superada” (MARX, 2011, p.332). Neste processo de tentativa de supressão de cada
barreira física ou social que se interponha ao processo de valorização do valor, elas
podem ser deslocadas de formas variadas: forjando novos espaços disponíveis para o
processo de valorização; abrindo novas fronteiras para a acumulação (céu, terra,
recursos naturais, regiões isoladas); destruindo massas de capitais acumulados
considerados obsoletos; capturando relações sociais através da generalização da forma-
mercadoria e da forma-propriedade para o conjunto das relações humanas. A
especulação em torno da terra, no campo e na cidade, do espaço e das próprias formas
de vida se acentua, facilitando a realização de expropriações em escala cada vez mais
ampliada. Como ressaltado por Harvey, mesmo a destruição física dos espaços entra em
cena de forma cada vez mais frequente, uma vez que o binômio
destruição/reconstrução é uma forma específica de dar vazão a esses capitais
superacumulados à procura de valorização imediata (HARVEY, 2011, p. 145 e ss).
Esta certamente não é uma discussão meramente escolástica em torno do uso
ou não de um conceito. Se o rentismo estivesse preso ao consumo e dissociado das
relações de produção, como pensam Bukharin (1927, p. 26) e Gonçalves, não haveria
uma pressão tão grande de frações poderosas do rentismo no Brasil para o retorno às
atividades econômicas no meio da pandemia provocada pela Covid-19. Se, com o
neoliberalismo, a formação do capital fictício atinge proporções inauditas, estamos
diante de um problema real. Com o crescimento desenfreado das formas de capital
fictício, a formação de bolhas especulativas torna-se um fenômeno cada vez mais
frequente, fazendo com que as crises sejam cada vez mais recorrentes e mais intensas.
As medidas contemporâneas por meio das quais os Estados capitalistas têm se voltado a
procurar dar algum tipo de liquidez, direta ou indiretamente, a capitais forjados sob
estas bases, apenas intensificarão a propensão do sistema às crises, mesmo que isso
possa promover algum tipo de reversão momentânea nas taxas de acumulação 6. Essa
corrida do Estado para dar garantias de liquidez ao capital fictício cobra um preço alto
para a classe trabalhadora.
6 Ao mesmo tempo, apostar em uma resposta que imagina uma separação idílica entre o capitalismo
produtivo virtuoso e o rentismo parasitário é no mínimo romântica e ingênua, diante de seu
entrelaçamento atual (BADARÓ, 2015)
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Parte III – Covid-19: crise do neoliberalismo? Quais são as
alternativas?
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Costas Lapavitsas3
Texto publicado em 27/03/2020
1 Texto original: LAPAVITSAS, Costas. This Crisis Has Exposed the Absurdities of Neoliberalism. That Doesn’t
Mean It’ll Destroy It. Jacobin Magazine, Março de 2020. Disponível em:
https://www.jacobinmag.com/2020/03/coronavirus-pandemic-great-recession-neoliberalism . Acesso em:
27 de mar. de 2020. Tradução: Amélia Coelho Rodrigues Maciel, Bruna da Penha de Mendonça Coelho,
Maria Carolina Sanglard e Natália Sales de Oliveira.
2 Este artigo baseia-se em parte no trabalho da equipe de pesquisa criada pelo EReNSEP-Ekona, que se
propõe a examinar as implicações a longo prazo da atual crise. Agradeço a N. Águila e T. Moraitis pelos
cálculos a partir dos dados BEA. A Y. Shi agradeço pelos cálculos baseados nos dados do Wind, Anuário
Estatístico Nacional da China, do FRED St. Louis e do Banco Mundial. Também gostaria de agradecer A.
Medina Català, P. Cotarelo e S. Cutillas pelos cálculos conforme dados da OCDE e do BCE. Por fim, obrigado
a Shehryar Qazi pela ajuda em estabelecer alguns dos mecanismos especulativos nos mercados monetários
dos EUA. O artigo, como de praxe, é de responsabilidade exclusiva do autor.
3 Costas Lapavitsas é professor de economia da SOAS Universidade de Londres, Reino Unido, e ex-membro
do Parlamento grego.
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O primeiro passo para esta análise é fazer um resumo do curso da crise até o momento.
Crises são eventos históricos concretos e refletem o desenvolvimento institucional do
capitalismo. Os principais passos da crise do coronavírus podem ser extraídos de
publicações (algumas rapidamente desatualizadas) de organizações multilaterais,
imprensa etc. Deste modo:
1. A Covid-19 surgiu na China no final de 2019, mas a resposta inicial do
Estado chinês foi lenta, provavelmente pela falta de conhecimento sobre a gravidade do
vírus. Por outro lado, outros Estados também demoraram em reagir mesmo após a
experiência da erupção completa da pandemia na China. Até início de março de 2020,
por exemplo, o número de casos diários confirmados no Reino Unido foi abaixo de dois
dígitos. Não obstante o conhecimento da tragédia chinesa, o governo do Reino Unido
não fez quase nada.
2. O Estado chinês bloqueou grandes porções de seu território e outros
países também criaram meios de isolamento, restringindo o movimento de milhares de
pessoas. A demanda por turismo, viagens aéreas, hospedagens, restaurantes e bares
desmoronou por completo. Igualmente afetada foi a demanda por comida, roupas,
utensílios domésticos etc., embora seu impacto ainda não esteja claro. A incerteza
gerada pela retração do consumo também atingiu planos de investimentos, mas, de
novo, é difícil avaliar o impacto neste estágio inicial.
3. O bloqueio e o movimento restrito de trabalhadores interromperam a
cadeia de produção e distribuição de mercadorias inicialmente na China, que fornecia
grande volume de insumos para todo o mundo, e depois nas outras partes da Ásia,
Europa e EUA. Ao lado da queda da demanda, tal interrupção levou à redução da
produção.
4. Todos os fatores citados – redução da produção, queda da demanda e
crescente incerteza – destruíram as receitas das empresas. Os empregos de milhões
estão ameaçados, sobretudo no setor de serviços. Em março, muitos já tinham sido
demitidos. O desemprego piorou o consumo e prejudicou ainda mais a produção. Com a
diminuição das receitas, as empresas tornaram-se menos capazes de pagar suas dívidas,
o crédito comercial desapareceu e, em meados de março, a liquidez (ou seja, o dinheiro
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vivo) era escassa. A crise adquiriu uma grave dimensão creditícia, o que agravou ainda
mais seu efeito na produção e distribuição.
5. Uma prévia da devastação econômica potencial pode ser obtida a partir
do caso chinês. Segundo estatísticas oficiais, o valor agregado na produção em janeiro e
fevereiro caiu 13,5% comparado com o mesmo período em 2019 (a produção caiu em
15,7%). Além disso, investimentos, exportações e importações despencaram,
respectivamente, em 24,5%, 15,9% e 2,4%. A contração Chinesa por si só seria suficiente
para provocar um grave impacto na economia mundial. Como muitos outros países
centrais estão em lockdown, as consequências poderão ser enormes, particularmente
em setores como companhias aéreas e turismo.
6. As repercussões sobre os trabalhadores serão devastadoras.
Especialmente sensíveis são os setores enfraquecidos por anos de políticas neoliberais,
como, por exemplo, trabalhadores com contratos flexíveis, informais e autônomos.
Igualmente vulneráveis são os trabalhadores altamente endividados (ou sem poupança)
que têm acesso limitado a benefícios e serviços públicos. As mulheres provavelmente
serão mais afetadas porque estão super-representadas em tais grupos, mas também
devido ao aumento do trabalho de cuidado decorrente dos problemas de saúde na
família, permanência de crianças no lar etc.
7. As condições globais pioraram ainda mais à medida que a crise
desencadeou um colapso gigantesco dos mercados de ações. Durante anos, as principais
bolsas de valores em todo o mundo estiveram bastante inflacionadas e o risco de uma
crise grave já se fazia sentir em 2018. A erupção do coronavírus levou a uma queda
espetacular de mais de um terço, de fevereiro a março. O resultado foi o dramático
encolhimento da liquidez que provocou uma crise no mercado monetário nos EUA, o
centro das finanças mundiais, em meados de março. O choque se transformou em uma
crise capitalista completa.
8. À medida que o medo tomou conta dos mercados mundiais, o fluxo de
capital através das fronteiras, especialmente do centro para a periferia da economia
mundial, também foi afetado. As evidências existentes não permitem tirar conclusões
definitivas, mas existe a possibilidade de uma “parada súbita” que tornaria os países em
desenvolvimento incapazes de pagar as dívidas de importações e serviços, aumentando,
deste modo, a perspectiva de crises cambiais. Em meio à turbulência, uma guerra de
preços entre os produtores de petróleo fez despencar o preço do barril de petróleo
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(Brent) em 50% entre o final de fevereiro e o final de março. Esta queda gigantesca
ameaçou a viabilidade de um conjunto de produtores em todo o mundo, inclusive na
indústria de faturamento hidráulico dos EUA.
Em termos analíticos, esta sucessão de eventos, que constituem a crise atual,
só faz sentido se pensados à luz dos desdobramentos da Grande Recessão de 2007-09.
Na sequência do colapso da Lehman Brothers, o dinamismo do capitalismo financeiro
esvaiu-se nos países centrais, embora persistisse de alguma maneira nos países em
desenvolvimento. Nossas estimativas, baseadas em dados do Banco Mundial, sugerem
que as taxas médias de crescimento em 2010-19 foram as mais baixas nos últimos
quarenta anos: 1,4% no Japão, 1,8% na União Europeia, 2,5% nos EUA e 8,5% na China
(com queda significativa no crescimento na segunda metade da década). Essas taxas
apontam para o esgotamento das forças motrizes da acumulação capitalista,
particularmente durante o último decênio. Para se ter uma ideia das raízes mais
profundas da crise, basta considerar aspectos-chave do desempenho da economia dos
EUA – o filão da globalização e financeirização.
Acumulação Fraca
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O Setor Financeiro
Fig. 2 Taxa de lucro dos bancos comerciais (retorno sobre o patrimônio), EUA, 1980–2018
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A dívida privada dos EUA caiu após 2007–9, ao contrário da tão anunciada
“explosão do endividamento”. A dívida hipotecária diminuiu substancialmente por
causa, sobretudo, do profundo impacto da Grande Crise nas famílias. A dívida entre as
empresas financeiras domésticas também baixou, deixando menos margem para os
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bancos lucrarem com tarifas e comissões. Por outro lado, a dívida das companhias não
financeiras começou a aumentar em 2015 e eventualmente excedeu seu pico anterior
pré-Grande Crise. O aumento do endividamento corporativo facilitou a sobrevivência de
uma multidão de firmas frágeis, que possui baixa rentabilidade e é mais vulnerável a
choques. Estima-se que essas “empresas zumbis” em 2017 representavam 12% do total
do setor corporativo nas quatorze economias mais desenvolvidas. Está em aberto,
todavia, como a crise do coronavírus afetará a capacidade de pagamento dessas firmas,
tendo em vista que taxas de juros zero reduzem os custos de serviço das dívidas.
Neste período, houve um aumento real do endividamento do Estado, o que
levou o governo dos EUA ao seu maior déficit desde a Segunda Guerra Mundial. Na
medida em que demonstrou algum dinamismo, a financeirização após a Grande Crise
tornou-se, assim, um processo de explosão da dívida pública, que, por sua vez, também
estava conectado ao endividamento das empresas em mercados financeiros abertos –
incluindo o mercado de ações.
Após a Grande Crise, o governo dos EUA aproveitou as oportunidades criadas e usou seu
poder para defender o capitalismo financeirizado e globalizado. Gerou um enorme
déficit fiscal ao longo da década – especialmente em 2009-2012 e, depois, em 2018-19 –
, que permitiu o crescimento do PIB e aumentou enormemente sua dívida. O aumento
da dívida pública tornou possível para o Fed sustentar um tremendo surto de criação de
dinheiro, mantendo as taxas de juros próximas de zero. A oferta de moeda (M3)
aumentou de 50% do PIB em 2007 para 70% em 2017-19.
Taxas de juros baixas e liquidez abundante permitiram às empresas não
financeiras tomar empréstimos baratos em mercados abertos e participar do jogo
clássico da financeirização de “recompra de ações”, garantindo altos lucros aos
acionistas e elevando os preços dos títulos. Com dinheiro facilmente disponível, outros
operadores do mercado de ações, como, por exemplo, Exchange-Traded Funds5 (ETFs) e
5Por ser um termo específico da área, escolheu-se mantê-lo em inglês. O ETF é um fundo de investimento
negociado em Bolsa de Valores como se fosse uma ação. É também conhecido como fundo de índice, pois
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objetiva obter retorno tendo como base algum índice específico do negócio de títulos e valores mobiliários
[N.T.].
6 No texto original, utiliza-se a expressão Hedge Funds. Em uma tradução literal, o termo significa Fundos de
Proteção. Entretanto, não há fundos no Brasil com esse nome em específico. Eles são, porém, conhecidos
como Fundos de Cobertura, Fundos multimercado ou Fundos de investimento livre [N.T.].
7 Trata-se de uma agência norte-americana de classificação de riscos [N.T.].
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Note-se que o Fed foi confrontado com uma situação bizarra: o crescimento
frenético da escassez de liquidez e o aumento das taxas de juros nos mercados
monetários, mesmo que a economia norte-americana tenha sido inundada com dólares
por mais de uma década. O absurdo capitalista raramente foi demonstrado de maneira
tão vívida. O Fed precisou intervir com urgência e prometeu comprar volumes ilimitados
de títulos públicos e até de títulos privados, aumentando ainda mais a oferta de
dinheiro. Sua intervenção maciça foi acompanhada pelo gigantesco pacote fiscal do
governo dos EUA. Mais uma vez, o Estado norte-americano colocou vigas sob o colapso
do capitalismo financeirizado.
Neste contexto, é importante observar a diferença entre os EUA e a União
Europeia. A Comissão Europeia permitiu tacitamente aos Estados-membros ignorar o
Pacto de Estabilidade e Crescimento, enquanto o BCE abandonou suas regras de compra
de títulos em um esforço de evitar um calote italiano, o que catalisaria imediatamente
uma nova crise do euro. Estas medidas foram importantes, pois permitiram aos países
da União Europeia operar sem obstáculos desnecessários. Mas não houve nenhuma
intervenção fiscal coordenada por instituições europeias que possa ser remotamente
comparável aos EUA ou mesmo ao Reino Unido.
De fato, a crise forçou a União Europeia a se envolver em políticas econômicas
que se desviam de sua cartilha. Até agora, os países europeus têm tomado decisões
político-econômicas com pouquíssima cooperação ou mútuo condicionamento. O velho
problema de conflitos e hierarquias entre os Estados-membros não desapareceu. Por
isso, as propostas de emissão de coronabonds da zona euro para financiar despesas
fiscais estão enfrentando forte resistência. Se o dinheiro deve ser disponibilizado aos
Estados afetados, pode ser através do Mecanismo Europeu de Estabilidade, com várias
condições associadas. Simplesmente não há comparação com a resposta do Estado
norte-americano.
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por vir. Não há dúvidas de que estamos diante do risco de uma enorme depressão em
toda a economia mundial. As falhas sistêmicas da financeirização e globalização foram
duramente reveladas pelo estado emergencial da saúde pública. Ao mesmo tempo, o
Estado tornou-se cada vez mais implicado na manutenção deste sistema falho. O caráter
das intervenções estatais não dá, no entanto, motivos para supor que haverá uma
transformação no topo da hierarquia política e social, resultando em políticas que
favoreçam os interesses dos trabalhadores.
A decisão do governo dos EUA de elevar significativamente seu déficit – e,
portanto, seus empréstimos –, cujo efeito é aumentar a oferta de moeda e levar as taxas
de juros a zero, é essencialmente a mesma de 2007 a 2009. Mesmo que uma depressão
seja evitada, os resultados de médio prazo serão provavelmente os mesmos, pois a
fraqueza estrutural da acumulação capitalista não é confrontada. Certamente haverá
contradições políticas decorrentes da defesa da ordem neoliberal, sobretudo devido à
demonstração de poder dos Estados-nação ao intervir na economia. Isso será
particularmente importante na União Europeia, onde as respostas fiscal e de
emergência em saúde à crise vêm até agora de Estados-nação individuais e não de
instituições coletivas.
Se lançarmos um olhar sobre as insuficiências do capitalismo neoliberal, fica
claro que a crise da Covid-19 levanta provocativamente a questão da reorganização
democrática tanto da economia quanto da sociedade conforme o interesse dos
trabalhadores. Há uma necessidade urgente de enfrentar o caos da globalização e da
financeirização apresentando propostas concretas radicais. Isso também requer formas
de intervenção capazes de alterar o equilíbrio social e político em favor das camadas
populares.
A pandemia trouxe à tona exigências vitais de transformação social. Explicitou
o imperativo de se ter um sistema de saúde pública racionalmente planejado e capaz de
lidar com choques epidêmicos. Também levantou a necessidade urgente de
solidariedade, ação comunitária e políticas públicas para apoiar os trabalhadores e os
mais pobres que enfrentam bloqueios, desemprego e colapso econômico.
De maneira mais ampla, a crise da Covid-19 reafirmou a necessidade histórica
de enfrentar um sistema em declínio, preso em seus próprios absurdos. Incapaz de se
transformar racionalmente, o capitalismo globalizado e financeirizado continua
recorrendo a doses cada vez maiores dos mesmos paliativos desastrosos. Por oposição,
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O título do artigo de Costas Lapavitsas já é, por si só, bastante sugestivo. Se, por um
lado, a crise da Covid-19 “expôs os absurdos do neoliberalismo”; por outro, soa
apressado afirmar “que ela irá destruí-lo” (LAPAVITSAS, 2020). A questão se insere no
seguinte debate: as medidas atuais adotadas pelos Estados denotam uma tendência de
superação do neoliberalismo enquanto regime de acumulação hegemônico? Em outras
palavras, o cenário atual indicaria uma espécie de retorno ao keynesianismo ou, mais
apropriadamente, seria uma linha de continuidade com o próprio projeto neoliberal?
Por neoliberalismo, entendemos o regime de acumulação (que se tornou
predominante, sobretudo, a partir da década de 1970) pautado na suposta estabilização
de contas públicas através de reformas de austeridade tendentes a mercantilizar todos
os aspectos da vida social. Essa mercantilização passa, notadamente, pela transferência
ao mercado das necessidades sociais que deveriam ser sanadas por políticas públicas 4.
Lapavitsas indica que as ações dos Estados em resposta à pandemia têm
surpreendido. A crise detonada pelo coronavírus expôs o vazio do argumento neoliberal:
medidas que significam forte intervenção estatal, até ontem consideradas impensáveis
ou radicais, são tomadas em sede de urgência. O Estado volta à centralidade com um
keynesianismo de emergência, que inclui governos fazendo o aporte de grandes cifras
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II – Comentários a Lapavitsas
A intervenção direta dos Estados na economia indica uma ruptura com a agenda
neoliberal ou não? Tal qual infere o autor, parece-nos também que não há qualquer
incompatibilidade entre esta agenda e as medidas adotadas pelos Estados para tentar
contornar o colapso agravado pela pandemia.
Em primeiro lugar, vale notar que a ideia de um Estado mínimo constitui muito
mais a retórica neoliberal do que uma realidade em si. O Estado não deixou de ter
atuação precípua nas últimas décadas, sobretudo com o objetivo de assegurar os
interesses corporativos, desmontar garantias trabalhistas e sociais em sentido amplo,
além de incentivar o isolamento dos indivíduos mediante práticas autoritárias. Nada
muito diferente das medidas adotadas para o enfrentamento da crise da Covid-19. Ao
invés de prescindir do aparato estatal, o neoliberalismo o põe a seu serviço (cf. HARVEY,
2007).
A aparência de retorno do estado de “bem-estar”, com gastos para dar suporte
aos cidadãos sem trabalho, em nada seria paradoxal aos interesses do próprio capital,
uma vez que o Estado burguês faz “prevalecer interesses que, em certo sentido, são
mais gerais do que os da burguesia, enquanto preserva estrategicamente, no futuro, a
primazia dos interesses de classe dos quais esse estado representa a forma geral”
(BADIOU, 2020). De certo modo, as respostas dadas pelos diferentes Estados simbolizam
uma mudança de atuação para que tudo continue como está.
No Brasil, em que as políticas de desoneração fiscal e subsídios se tornaram
lugar comum como estratégia – questionável – de retomada do crescimento econômico
a partir de 2011 (DWECK & TEIXEIRA, 2017), especialmente reforçadas a partir de 2014,
somadas a um reforço do desmonte das estruturas públicas em todas as áreas, incluindo
saúde, ciência e educação a partir da eleição de Jair Bolsonaro, a emergência trazida
pela crise do coronavírus “será o pretexto perfeito para transferir ainda mais dinheiro
público para empresas privadas, a exemplo do que está sendo feito nos países do centro
do capitalismo” (MOSCHKOVICH, 2020). A crise na produção globalizada em razão do
fechamento de cidades inteiras, além de impactos profundos em setores específicos
como turismo e aviação, somadas ao rescaldo da crise de 2007-2009, tende a encorpar o
caldo da crise detonada pelo coronavírus.
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dependem mais de transporte público, não conseguem tirar licença remunerada para se
ausentar do trabalho e, ainda, têm o agravante das dificuldades do idioma. Tudo isso
pode levar a um aumento desproporcional dos casos de doença nestes grupos, além de
obstaculizar o acesso a tratamentos adequados em tempo hábil (MAXWELL,2020).
Uma situação similar acomete a população negra brasileira. A doença tem se
mostrado mais letal para ela (MENA, 2020), ainda mais quando se adiciona a variável
classe à questão. A população negra e trabalhadora está em situação ainda mais
delicada frente à pandemia em virtude dos poucos recursos financeiros, precariedade
habitacional e pouco acesso à infraestrutura de bem-estar urbano.
A preocupação é razoável quando se pensa na alta densidade demográfica das
comunidades e na vulnerabilidade financeira em que seus moradores podem se
encontrar, tornando quase impossível o cumprimento do isolamento social nestas áreas.
Dessa forma, se as políticas de caráter neoliberal trazem consequências gravosas para
toda a população em razão da fragilidade de políticas públicas universais, tais efeitos são
ainda mais severos para algumas camadas sociais. As recentes ações estatais, como já
comentado acima, também não rompem com esse aspecto. Tais ações não trazem
intervenções específicas para tratar desses grupos sociais mais vulneráveis, dessa forma,
não demonstram avanço ou rompimento com as medidas até então tomadas.
Todas essas considerações nos levam a observar que o passar dos dias suscita novas
questões, conforme a doença avança em cada ponto do planeta. Como a China teve
resultados melhores no controle da pandemia 5 em relação aos EUA, que hoje
contabilizam o maior número de casos da doença 6, com gravíssimas consequências
infectados com mais de 24 mil mortes e 605 mil enfermos confirmados, respondendo por mais de 30% dos
casos da doença no mundo, segundo dados do Centers for Disease Control and Prevention (2020) e da
Organização Mundial da Saúde (2020). Para uma análise mais detida sobre a resposta dos EUA à pandemia:
SCIENCE MAGAZINE NEWS STAFF, 2020.
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sociais, recorde de desemprego7, sem falar nas perdas humanas, a questão geopolítica
chama a atenção. As previsões indicam que a China sairá com graves perdas econômicas
da crise, mas seu papel na contenção da pandemia, seja através do envio de equipes
médicas,8 seja por seu papel de destaque na produção de equipamentos 9 para o
combate da doença em escala global, ou mesmo por ter tomado medidas de forte
controle tão logo surgiu a doença, inclusive com acesso a dados pessoais de seus
cidadãos,10 traz consigo aspectos de potencial relevo para os contornos do capitalismo
global pós crise.
De todo modo, é importante dizer que a crise expõe os absurdos e as
contradições do modo de produção capitalista em si. Essas contradições se evidenciam,
a título de exemplo, em fatores como a disparidade nas oportunidades de acesso à
saúde e às medidas de prevenção, a exacerbação do conflito capital-trabalho, a exclusão
social geográfica observada na atuação do poder público, bem como os impactos das
desigualdades de gênero, raça e classe nas possibilidades (ou não) de enfrentamento da
pandemia. Em suma, “a crise econômica desnuda completamente o capitalismo
contemporâneo” (LAPAVITSAS, 2020).
No entanto, retomando o panorama anunciado por Lapavitsas desde o título
de seu artigo, as medidas estatais de enfrentamento à pandemia não parecem sinalizar
uma espécie de ruptura ou de destruição do regime de acumulação neoliberal. Não se
percebe qualquer desaceleração no processo de desresponsabilização do capital pela
força de trabalho (ao contrário, difundem-se formas de contratação precárias) e de
fragmentação da classe trabalhadora. Não se vislumbra, igualmente, nenhuma
tendência de mitigação estrutural da privatização dos ativos públicos. A mais disto, a
crise atual não oferece perspectivas de contenção da marcha da financeirização da
economia, já que as principais medidas institucionais adotadas mundo afora passam
pelo socorro público ao mercado financeiro e pelo incentivo ao endividamento da
população via concessão de empréstimos.
Ao contrário, o que se vislumbra é um fortalecimento da ordem econômica
vigente. A resposta dada pelos diferentes países, com reforços na intervenção estatal,
7 Para um estudo atual dos impactos da crise da Covid-19 sobre os índices de desemprego, ver COIBION et.
al., 2020.
8 Cf. ANSA, 2020.
9 Cf. ESCOBAR, 2020.
10 Cf. JAKHAR, 2020; LAI, 2020.
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LAPAVITSAS, Costas. Esta crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa
que ela irá destruí-lo. LEICC/UERJ, Abril de 2020. Disponível em:
https://leiccuerj.com/2020/04/07/esta-crise-expos-os-absurdos-do-neoliberalismo-isso-
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Tithi Bhattacharya1
Texto publicado em 02/04/2020
Quando, nos próximos anos, eu pensar nesta crise, duas imagens virão à minha cabeça.
Uma é a de italianos cantando juntos, das suas varandas, em solidariedade aos vizinhos
isolados e às trabalhadoras do setor de cuidados que estão na linha de frente. A outra é
a da polícia indiana atacando trabalhadores migrantes e seus filhos com jatos de
alvejante por "ousarem" atravessar o país a pé depois que os seus locais de trabalho
fecharam em razão do lockdown e não havia transportes públicos disponíveis para que
eles voltassem para casa.
As imagens encarnam, respectivamente, a resposta das pessoas comuns à
pandemia do coronavírus e a resposta própria do capitalismo. Uma é a da solidariedade
e dos cuidados para sustentar a vida, a outra é a da disciplina punitiva no interesse do
lucro.
Exemplos de respostas diametralmente opostas caracterizam o cenário da
crise atual. Os agricultores palestinos estão deixando produtos frescos à beira da
estrada para pessoas que não têm como pagar por alimentos, enquanto Victor Orban,
da Hungria, utilizou a crise para governar por decreto. Os trabalhadores da General
Electric nos EUA estão forçando a empresa a produzir respiradores, enquanto as
empresas prestadoras de serviços de saúde estão tentando manter os seus lucros
através da redução dos salários e de benefícios para os trabalhadores que estão
trabalhando no tratamento pacientes com coronavírus.
A pandemia está expondo tragicamente que, enquanto o necessário é focar
em salvar e sustentar a vida, o capitalismo está preocupado apenas em salvar a
1 Texto original: BHATTACHARYA, Tithi. Social Reproduction Theory and Why We Need it to Make Sense of
the Corona Virus Crisis. Tithi Bhattacharya Blog, Abril de 2020. Disponível em:
http://www.tithibhattacharya.net/new-blog/2020/4/2/social-reproduction-theory-and-why-we-need-it-to-
make-sense-of-the-corona-virus-crisis?rq=coronavirus. Acesso em: 03/04/2020. Tradução: Rhaysa Ruas.
Revisão: Fatima Gabriela Soares de Azevedo.
1 Tithi Bhattacharya é professora de História do Sul Asiático e diretora de Estudos Globais na Purdue
University, EUA.
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devemos exigir agora e para sempre, que os rendimentos da elite reflitam a sua
utilidade.
Mas, uma vez passada a crise da pandemia, não podemos voltar ao business as
usual (à normalidade dos negócios). Devemos exigir que, em vez do capitalismo colocar
as nossas vidas em crise, nós coloquemos em crise a sua dinâmica de subordinar a
produção da vida à produção de lucro.
Que a vida e a produção da vida se tornem a base da organização social para o
desenvolvimento de muitos, e não para a prosperidade de poucos.
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II
A Teoria da Reprodução Social (TRS) surge hoje como renovação do corpo teórico
desenvolvido durante os debates feministas-marxistas sobre o trabalho doméstico e o
caráter da opressão das mulheres, que tiveram seu ápice na década de 1970 (RUAS,
2020). Este ressurgimento tem como marca um retorno à teoria do valor e à
centralidade do trabalho como princípio ontológico, considerando as relações concretas
que o constituem: suas dimensões de raça, gênero, sexualidade e status de
cidadania/nacionalidade, a partir da noção marxiana de totalidade social
(BHATTACHARYA, 2017a).
Geralmente referenciadas como “relações de opressão”, estas têm sido
recorrentemente excluídas do que se convencionou chamar, na teoria marxista, de
“lógica do capital” e mesmo da “lógica da acumulação capitalista”. Grande parte dos
marxistas que buscaram desenvolver a teoria do valor permanecem indiferentes a tais
relações e aos impactos que considerá-las poderia causar na análise das formas sociais.
Recorrentemente, naturalizam processos de reprodução da força de trabalho como
biológicos ou espontâneos e relegam as relações de opressão que os envolvem ao plano
da esfera “política” ou “cultural”, separando-as, por sua vez, do “econômico”, seguindo
uma lógica economicista que privilegia a “classe”, recaindo no idealismo. Por outro lado,
do ponto de vista das teorias feministas e antirracistas, reina o dualismo e, por vezes, o
culturalismo. Teorias feministas críticas tradicionalmente compreendem como cerne da
opressão de gênero o trabalho reprodutivo não-remunerado realizado no interior da
família, trazendo a divisão sexual do trabalho para o cerne de suas investigações e
modelos explicativos sobre as sociedades capitalistas. Mesmo entre aquelas que buscam
uma interpretação integrada das relações sociais, conceitos transhistóricos como
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2 Aqui, “momento predominante” é tomado em seu sentido filosófico, como aquela determinação mais
essencial, que sobredetermina as demais determinações de uma totalidade histórica e dialética (cf. RUAS,
2019, p.19-29; BHATTACHARYA, 2017a, p. 10-11). De modo algum deve-se aqui entender no sentido de que
é uma relação social “hierarquicamente superior” ou de “maior importância” do que as demais.
3 Agradeço aos comentários e ao trabalho de Guilherme Leite Gonçalves e César Barreira em direcionar meu
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4 Central para a análise do sistema capitalista, as formas desiguais pelas quais ocorrem a reprodução social
determinam a posição dos indivíduos em seu interior, fornecem a base para a determinação dos padrões de
vida da classe trabalhadora (sendo o ponto de referência para a definição dos salários), estruturam as
relações inter e intraclasses e a dinâmica da distribuição.
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destrutivas, de modo que o capitalismo constrói a vida que lhe é necessária; substitui a
vida corpórea, encarnada, por vida social, através de um processo de abstração tal qual
o se apresenta na transformação do trabalho concreto em trabalho abstrato (BARREIRA,
2020; GONÇALVES, 2020). A meu ver, é neste sentido a afirmação da autora de que “o
nível de acesso a estes recursos [de reprodução da vida] determina o destino da classe
como um todo” (BHATTACHARYA, 2020), determinando também as formas específicas
de resistência das diferentes frações que a compõe (BHATTACHARYA, 2017b). Ora,
embora haja uma tendência à subsunção total do trabalho humano, contra esta
tendência contínua de compressão e destruição dos meios de produção da vida, a classe
trabalhadora, “como uma força unificada ou fragmentada em setores em competição,
empenha-se em conquistar as melhores condições possíveis para sua renovação”
(VOGEL, 1983, p. 163), de modo que a subsunção nunca se dá por completo.
Assim, podemos compreender melhor a potencialidade da reflexão central
trazida pela TRS. Segundo esta teoria, a reprodução social inclui de um lado, o acesso
aos meios de subsistência, à formação, ao desenvolvimento de competências dos
trabalhadores para o processo de trabalho e, por outro lado, o padrão geral de vida,
educação e saúde sustentado em uma dada sociedade. Porém, o capital não possui o
controle total e direto sobre ela: a separação entre produção e reprodução se
materializa também no desenvolvimento de locais especializados e unidades sociais
para a realização do trabalho de reprodução social, que, em maior ou menor grau,
fogem à lógica da produção capitalista (VOGEL, 1983, p. 159). Historicamente, estas
unidades correspondem, predominantemente5, às famílias da classe trabalhadora
organizadas em domicílios privados e sobre o trabalho feminino não pago, que, assim
como os salários, tem funcionado como um importante mecanismo de mediação da
tensão entre produção e reprodução (PICCHIO, 1992, p. 88). Mas justamente por
materializarem uma relação de expropriação e despossessão, estas unidades “não
podem ser vistas como enclaves privados se desenvolvendo em relativo isolamento dos
processos de produção capitalista. A [sua] forma, composição e estrutura interna (...)
são, de fato, diretamente afetadas pelo curso da acumulação capitalista” (VOGEL, 1983,
p. 159-160).
5 As autoras da TRS destacam ainda que o trabalho reprodutivo também pode ser organizado em campos de
trabalho forçado, quartéis, orfanatos, hospitais, prisões e outras instituições sociais. Não há nada que fixe a
reprodução da força de trabalho na forma família, ou no trabalho doméstico não pago.
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consideradas relações padrão. A intensidade pela qual modos de regulação, como, por
exemplo, o neoliberalismo, comprimem as condições de vida dos trabalhadores
dependem diretamente do grau de resistência desta classe à processos expropriatórios
e à intensidade da exploração capitalista. Se não há resistência ao processo de
subsunção e de rebaixamento diferencial das condições de vida, a tendência é que cada
vez mais a força de trabalho seja reproduzida em níveis tão baixos que podem deixar de
ser um obstáculo à acumulação capitalista, constituindo uma sociabilidade na qual
humanos individualmente considerados são tornados socialmente descartáveis
(processo que, em um plano mais concreto, pode ser observado em curso nos
diferentes, e, por vezes silenciosos, processos de genocídio em muitas partes do
mundo).
III
Como demonstra Bhattacharya (2020), em alguns lugares como na Europa e nos EUA, a
Covid-19 tem forçado os Estados a priorizar temporariamente as tarefas de reprodução
da vida, e.g. a assistência médica, assistência social, produção e distribuição de
alimentos. Este esforço temporário tem explicitado as contradições e a crueldade do
modo de regulação neoliberal, a “normalidade” vigente no período anterior à pandemia.
Para a autora, o desvelamento das desigualdades e da lógica “contrária à vida humana”
do capital exacerbada pelo neoliberalismo, tem o potencial de contribuir com uma
discussão sobre o valor direcionando-a no sentido de superar este modo de regulação e
impulsionar coalizões e redes globais de solidariedade anticapitalista entre a classe
trabalhadora6.
Apesar de não estar tão explícito no curto artigo de intervenção que aqui
comentamos, é importante termos em mente que, para Bhattacharya (2020), o
neoliberalismo apenas acirra as tendências expostas acima, na medida em que regula a
esfera de produção da vida de modo a rebaixa-la ao mínimo existencial. Eu argumento
que aqui podemos aprofundar a reflexão da TRS no sentido de considerar esse
rebaixamento como a constituição de um sentido de vida próprio, e, portanto,
necessário a sociabilidade capitalista, o que se aprofunda no capitalismo
6Desenvolvi em outro lugar (RUAS, 2020), o que considero, hoje, as principais contribuições da TRS nesse
sentido.
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Social Justice; 2005; 32, 4; ProQuest; p. 144-160, 2005.
BHATTACHARYA, Tithi. A Teoria da Reprodução Social e porque precisamos dela para
compreender a crise do Coronavírus. Tradução: Rhaysa Ruas. Revisão: Fatima Gabriela
Soares de Azevedo. In: GONÇALVES, Guilherme Leite (org.). Covid-19, Capitalismo e
Crise: bibliografia comentada. Rio de Janeiro: LEICC-UERJ/Revista Direito e Práxis, 2020.
Texto original: BHATTACHARYA, Tithi. Social Reproduction Theory and Why We Need it
to Make Sense of the Corona Virus Crisis. Tithi Bhattacharya Blog, Abril de 2020.
Disponível em: http://www.tithibhattacharya.net/new-blog/2020/4/2/social-
reproduction-theory-and-why-we-need-it-to-make-sense-of-the-corona-virus-
crisis?rq=coronavirus. Acesso em: 3 de abr. de 2020.
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Jonathan Portes2
Texto publicado em 25/03/2020
1 Texto original: PORTES, Jonathan. Don’t believe the myth that we must sacrifice lives to save the economy.
The Guardian, Março de 2020. Disponível em:
https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/25/there-is-no-trade-off-between-the-economy-
and-health . Acesso em: 25 de mar. de 2020. Tradução: Amélia Maciel.
2 Jonathan Portes é professor de economia e políticas públicas no King’s College London, Reino Unido.
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Não obstante o que tenha dito o presidente, alguém realmente acredita que
poderemos voltar ao “normal” ou próximo disto, em curto prazo e a qualquer
momento? Se nos fosse permitido retornar ao trabalho, grande parte, muito
racionalmente, escolheria permanecer em casa por medo de contágio do vírus. E se,
como os cientistas preveem, o resultado de afrouxar as restrições aumentar as
infecções, muitas firmas deverão parar de funcionar quando os trabalhadores ficarem
doentes ou precisarem cuidar de seus parentes.
De maneira mais ampla, restaurar o sistema econômico normalmente requer,
acima de tudo, confiança. Em meio à contínua incerteza sobre suas próprias finanças e a
economia em geral, famílias não gastam e empresas não investem; algo que não será
revertido até que a propagação da doença seja contida.
Portanto, não há trade-off possível aqui. Considerações econômicas e
sanitárias convergem em curto prazo. É necessário fazer o que tiver de ser feito – custe
o que custar – no interesse de nossa saúde e riqueza coletiva.
E o que vem depois? É razoável supor que, se persistirem sérios danos à
economia a longo prazo, nosso bem-estar e talvez até a expectativa de vida (como a
austeridade e seus efeitos indicam) reduzirão. Nos últimos 10 dias, pedidos de aumento
de crédito universal aumentaram mais de cinco vezes, isto é, aumentaram em torno de
meio milhão, enquanto os dados do YouGov sugerem que 2 milhões de pessoas podem
ter perdido seus empregos. A recessão já está aqui.
Mas ela não precisa e nem deve ser permanente. O temor consiste em
permitirmos que a inevitável queda do PIB, resultante da paralisação da economia, leve
as empresas a abandonarem seus negócios e gere um longo período de desemprego.
Não há, no entanto, nada de inevitável nisso.
Afinal, muitos países europeus, como França ou Itália, provavelmente veem
seu PIB cair 10%, 20% ou até mais em termos absolutos todo mês de agosto, quando os
trabalhadores tiram suas férias de verão.
Ninguém nota esta queda – os números são “ajustados sazonalmente” para
levar em consideração feriados, o que significa que não aparecem nos dados publicados
– e ela não causa qualquer dano. Os trabalhadores continuam a ser pagos e as empresas
não entram em falência só porque não estão ganhando dinheiro. Em setembro, todo
mundo volta ao trabalho normalmente.
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Jonathan Portes critica no texto “Não acredite no mito de que nós devemos sacrificar
vidas para salvar a economia”, publicado no jornal The Guardian, o argumento de que a
recessão econômica causada pela política de contenção da propagação da Covid-19
poderá gerar muito mais mortes do que o próprio coronavírus. Esse argumento é
defendido em um artigo ainda em avaliação pela revista Nanotechnology Perceptions.
Sua principal tese é: a diminuição acelerada do PIB leva diretamente à queda na
expectativa de vida. Este raciocínio, propagandeado pelo jornal Times, tem sido utilizado
pelo presidente dos EUA, Donald Trump, para chamar o fim antecipado das medidas de
restrições, sob a justificativa de que mais pessoas morrerão de suicídio em decorrência
da “terrível economia” do que do vírus. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro e o
Ministro da Economia Paulo Guedes, através das declarações públicas, afirmam que
pessoas morrerão de fome em virtude da suspensão das atividades econômicas não
essenciais para conter a propagação do vírus.
Trump, Bolsonaro e Guedes fazem parecer que estamos em um período de
crescimento econômico. Não estamos. Na verdade, já nos encontramos em crise
econômica desde 2008. Portes nota que interromper as políticas de isolamento social
para retardar a propagação da transmissão do vírus não manterá o PIB no patamar
previsto, tampouco vai elevá-lo, pois tal medida pode levar à reclusão voluntária da
população racionalmente temerosa do coronavírus. Ademais, o autor também prevê
que o aumento das infecções, em decorrência da suspensão das restrições, adoecerá
oliveira.natalia@posgraduacao.uerj.br
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muitos trabalhadores ou levará boa parte a ter que ficar em casa para cuidar dos
familiares enfermos, tendo em vista o colapso do sistema de saúde. Todos estes fatores
podem impactar a produção de forma negativa. E mais: a falta de segurança na
economia em geral diante da pandemia prejudicará o investimento.
Portes sustenta ainda que, resguardadas as diferenças com a “coronacrise”
atual em que os impactos são mais difusos e indeterminados, a pausa das atividades
produtivas durante os feriados e férias de agosto na França e Itália leva a uma queda
imediata de 20% ou mais na produção. Porém, isto não influencia o aumento do
desemprego e a falência das empresas, nem necessariamente leva à queda do PIB. A
produção continua após estas pausas, os trabalhadores recebem seus salários e os
números são "ajustados sazonalmente", levando em consideração tais interrupções,
sem que elas apareçam nos dados publicados.
II
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Social. No Brasil, tais reformas foram levadas a cabo ao longo dos anos de 1990,
redefinindo a condução das políticas macroeconômicas. A combinação formada ao fim
dos anos 90 ficou então conhecida como tripé macroeconômico: regime de câmbio
flutuante, metas de inflação para estabilizar a moeda e novo regime fiscal que buscasse
alcançar superávits primários para compensar os déficits nas contas públicas. O objetivo
era, portanto, manter uma taxa de juro nominalmente alta aliada à uma taxa de inflação
o mais baixa possível para, assim, ter-se uma taxa de juro real o mais alta possível e
conseguir remunerar rentistas e financistas (SAAD FILHO; MORAIS, 2011; BRESSER-
PEREIRA, 2013).
Dessa forma, a cartilha neoliberal se caracteriza, para além da estabilização de
inflação e redução das contas públicas, em políticas que mercantilizam ainda mais a
sociedade, ou seja, reformas estruturais que estimulam as pessoas a satisfazer suas
necessidades básicas através do mercado e não mais (ou tão somente) através de
políticas públicas desenvolvidas pelo Estado. Não à toa que os processos posteriores à
aprovação da EC 95/16 incluem flexibilização de leis trabalhistas, privatizações,
desregulamentação e abertura financeira.
Um desses aspectos pode ser evidenciado pelo grupo de trabalho criado em
2016 pelo Ministério da Saúde para elaborar o “Plano de Saúde Acessível”, juntamente
com várias instituições vinculadas à Saúde Suplementar e a Órgãos de Defesa do
Consumidor. Um dos objetivos da proposta, que fora enviada para a consideração da
Agência Nacional de Saúde Suplementar em janeiro de 2017 (AGÊNCIA SAÚDE,2017), é
ampliar a cobertura privada no financiamento à saúde, aliviando os gastos do governo
com o SUS e oferecendo a satisfação da demanda através do mercado (BENEVIDES. et
al., 2018). As consequências disso para a atual pandemia é a mesma em todo o mundo:
um sistema de saúde público que não tem condições e recursos para atender a toda a
população.
Há ainda a flexibilização de direitos trabalhistas, como se evidencia com a
Medida Provisória que institui o Contrato Verde e Amarelo (MP905/2019), aprovada por
Comissão no Senado em pleno período de pandemia. Através dessa medida, com o
objetivo de diminuir o custo da mão de obra permite-se (a) que a contribuição para o
FGTS seja diminuída, (b) que o valor da sua multa em caso de demissão do trabalhador
venha a ser reduzido, (c) que empregadores não paguem contribuição patronal ao INSS
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III
Portes defende que governos devem fazer o que for necessário e a qualquer custo para
salvar vidas. Esta linha argumentativa pode nos levar um pouco mais adiante se
refletirmos sobre as ações que de fato estão sendo tomadas e em que medida elas se
distanciam de políticas atrozes que danificam o bem-estar da sociedade. Como bem-dito
pelo autor, até aqui as políticas se restringiram a uma cartilha neoliberal, explicada
acima, para salvar o mundo da crise econômica financeira. Logo, não será a Covid-19 a
culpada por danos a nossa dinâmica econômica e social, mas sim como os governos
reagirão a ela. Mais uma vez trata-se de opção política.
Em primeiro lugar, a violência do discurso de defesa da economia pode criar
espanto, mas apenas elucida, de maneira crua e sem intermediações, o modo de
produção capitalista. O discurso neoliberal prioriza a economia, pois, para ele, ela é
responsável pelos empregos e necessidades básicas de sobrevivência da população.
Logo, nessa linha argumentativa, as ações de isolamento e de fechamento de comércios
não essenciais afetariam negativamente a produção, gerando desemprego. Ocorre que,
como expõe Portes, considerações econômicas e sanitárias convergem no curto prazo:
em virtude das incertezas do atual momento, famílias e empresas não gastam e não
investem. Além disso, defender o fim do isolamento social para que a população
mantenha seu emprego implica expor cada vez mais os trabalhadores ao risco de
contrair a Covid-19.
Em termos mais abstratos, a pandemia global tem sintetizado a erosão de
nossa estrutura moral, social e econômica incapaz de proteger quem constitui seu
próprio motor: os trabalhadores. Como notório, o modo de produção capitalista não
pode prescindir da força de trabalho. Note-se, assim, que a vida é importante desde que
útil ao capitalismo. Trata-se da vida em sua forma social que complementa a forma-
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Referências bibliográficas
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PORTES, Jonathan. Não acredite no mito de que devemos sacrificar vidas para salvar a
economia. LEICC/UERJ, Abril de 2020. Disponível em:
https://leiccuerj.com/2020/04/01/nao-acredite-no-mito-de-que-devemos-sacrificar-
vidas-para-salvar-a-economia/ . Acesso em: 16 de abr. de 2020. Tradução: Amélia
Maciel. Texto original: Don’t believe the myth that we must sacrifice lives to save the
economy. The Guardian, Março de.2020. Disponível em:
https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/25/there-is-no-trade-off-
between-the-economy-and-health . Acesso em: 25 de mar. de 2020.
SAAD FILHO, Alfredo. Crise no neoliberalismo ou crise do neoliberalismo?
Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.1, n.3, Edição Especial -
Dossiê: A crise atual do capitalismo, dez. 2011.
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