E Book 2 Vol.
E Book 2 Vol.
E Book 2 Vol.
1
Francisco Jeimes de Oliveira Paiva
Ana Maria Pereira Lima
(organizadores)
Volume II
2
Copyright © Autores e Autoras
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou
arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores e autoras.
ISBN 978-65-87645-20-9
CDD – 410
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
3
Os(as) organizadores(as)
4
Sumário
Prefácio..................................................................................................................................................07
Capítulo 1
A constituição responsiva do sujeito vaqueiro cantado em músicas de forró....................................09
Benedito Francisco Alves
Benedita Francisca Alves
Capítulo 2
“A cópia adaptada perfeita”: o discurso protestante pentecostal da bíblia da mulher acerca da
condição feminina.................................................................................................................................28
José Glauber Lemos Diniz
Daniele Barbosa Bezerra
Capítulo 3
Aspectos metodológicos nos estudos da análise de discurso crítica e da multimodalidade..............43
Adriana dos Santos Pereira
Suellen Fernandes dos Santos
Capítulo 4
Fita Verde no Cabelo: um estudo discursivo-semiótico sobre o conto de Guimarães Rosa..............54
Marion Lucena Cavalcante
Thaís Andrade Silva
Capítulo 5
Um estudo descritivo-comparativo em memoriais a Reitor: para onde eles (não) apontam?.........65
Arnaldo César Almeida de Oliveira
Capítulo 6
Constituição discursiva do corpo feminino: notas sobre o Movimento Marcha das Vadias?..........78
Laurianne Guimarães Mendes
Capítulo 7
“O banditismo impera nos sertões”: a construção discursiva do medo na imprensa cearense (1920-
1930).......................................................................................................................................................86
Francisco Wilton Moreira dos Santos
Capítulo 8
Mapeamento das práticas de multiletramentos em língua portuguesa no ensino médio.................97
Ana Kezia Alves Beserra
Ana Maria Pereira Lima
Capítulo 9
O gênero notícia e implicações da presença das fake news na sociedade contemporânea: uma
proposta de atividade..........................................................................................................................108
David da Silva Nunes
Maurício Lima Bastos
Capítulo 10
Memes: subsídios para práticas didático-pedagógicas voltadas à ampliação do repertório lexical e
senso crítico em língua inglesa............................................................................................................117
Ailton Pinheiro Moreira
5
Capítulo 11
A arte de encenar: representações da negra e do negro em livros didáticos (PNLD, Guia 2018)..131
Nádia Narcisa de Brito Santos
Isaíde Bandeira da Silva
José Petrúcio de Farias Júnior
Capítulo 12
Utilização das TACs: transcender da alfabetização digital para o letramento digital...................145
Emly Lima Araújo
Capítulo 13
Assimetria de poder nas aulas de matemática: onze barreiras para o desenvolvimento da
criatividade compartilhada................................................................................................................154
Alexandre Tolentino de Carvalho
Cleyton Hércules Gontijo
Mateus Gianni Fonseca
Capítulo 14
A cegueira na literatura infantojuvenil: uma análise da obra Longe dos Olhos de Ivan Jaf..........173
Ricardo Santos David
Capítulo 15
O perfil do professor de Língua Portuguesa para o ensino da Língua
Materna................................................................................................................................................184
Claudimar Paes de Almeida
Capítulo 16
“Meu filho não vai mais para a escola!”: uma análise crítica do discurso a partir dos defensores
da educação domiciliar no Brasil.......................................................................................................197
Alexandre Antonio de Amorim Filho
Capítulo 17
Compreensão do thesaurus visual de um dicionário para aprendizes de língua inglesa: uma
questão de letramento multimodal.....................................................................................................210
Aryanne Christine Oliveira Moreira
Lorena Américo Ribeiro
Maria Áurea Albuquerque Sousa
Capítulo 18
A produção de textos multimodais por meio do gênero textual anúncio publicitário em redes
sociais...................................................................................................................................................222
Fernando Fidelix Nunes
Capítulo 19
Estratégias leitoras e criticidade: apontamentos sobre o ensino de leitura a partir da linguística
aplicada................................................................................................................................................238
Antonio Nilson Alves Cavalcante
Capítulo 20
Análise do discurso e surdez: efeitos dos sentidos em “A Família Belier”.......................................249
Welington Ribeiro de Souza
David Kaique Rodrigues dos Santos
6
Prefácio
Quando recebi honrosamente o convite para prefaciar este livro, o Brasil vivia
um contexto de pandemia mundial, por conta do coronavírus SARS-COV-2, e já
ocupava a triste marca de segundo colocado na lista de países com maior número de
mortes no planeta por conta da COVID-19, doença causada pelo vírus. Paralelamente a
esse evento catastrófico, se via, sobretudo na palma da mão dos sujeitos que constituem
as sociedades, chegar textos diversos, constituído por diferentes semioses, atravessados
pelos mais variados discursos: aplicativos como WhatsApp ou sites de redes sociais,
como Instagram, Twitter ou Facebook, ajudavam a divulgar todo tipo de informação,
sendo verídicas ou não, formando um verdadeiro bombardeio informacional e
promovendo os mais diferentes comportamentos sociais. Termos como lives, memes,
fake news, criticidade, feminismo e feminicídio, gordofobia, pessoas pretas, nunca
foram tão cotidianos no boca-a-boca brasileiro de 2020.
É importante situar o contexto da escrita deste prefácio, pois foi nesse ambiente
sócio-histórico-cultural que tive a confiança dos organizadores para ler, em primeira
mão, os vinte textos que constituem este livro e que agora lhes chegam às mãos. Talvez
não haja um momento tão propício para trazer a público uma obra que é atravessada
pela interdisciplinaridade, ensaiada por documentos norteadores da educação brasileira,
como a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017).
7
Levanto aqui três grandes méritos da obra: primeiro, a clareza e objetividade das
discussões aqui estabelecidas: com texto de fácil acesso, os autores potencializam uma
leitura muito mais produtiva, facilitando a vida do leitor pouco familiarizado com
conceitos acadêmicos nem sempre simples de serem apreendidos. Segundo o potencial
pedagógico que atravessa a obra: muitos dos trabalhos aqui elencados voltam-se para o
professor, apresentando-lhe saídas interessantes para o trabalho em sala de aula,
fundamentados no que há de mais atual sobre as discussões das relações de poder pela
linguagem e na leitura de textos multissemióticos. Por fim, a emergência de discutir
cientificamente conceitos que, muitas vezes, são largamente espraiados pelo senso
comum, sem quaisquer criticidades. Em tempos de negação da ciência, esse traço
explicativo da obra é fulcral.
Vicente de Lima-Neto
Agosto de 2020.
8
Capítulo
1
A constituição responsiva do sujeito vaqueiro
cantado em músicas de forró
Introdução
A teoria bakhtiniana desenvolvida ao longo de século XX pelo diálogo entre o russo
Mikhail Bakhtin e seu grupo de amigos/as ajudou a consolidar a existência de um movimento
de discussões que a história denominou Círculo de Bakhtin. Além disso, permitiu que uma
verdadeira epistemologia do diálogo tomasse o centro da ribalta.
Entre as muitas categorias bakhtinianas, a responsividade se mostrou profícua para
questões de interesse às ciências humanas e da linguagem. A teoria bakhtiniana defende que
homens e mulheres se fazem sujeitos de sua história sem possibilidade de fuga ou de omissão
perante todos os ditos e os não-ditos. Por exemplo, interagir com as músicas de forró sobre o
vaqueiro e a vaquejada nordestinos é apreciar uma resposta enunciada.
A pesquisa de Alves (2017) analisa os textos realizados pelos catadores/as de reciclagem
de Limoeiro do Norte como atos políticos e responsivos que acontecem a cada realização de
linguagem através de gêneros específicos. Como a língua, a linguagem e a humanidade só
existem em contextos histórico-culturais, significativos e concretos, sua análise depende de uma
reflexão translinguística (BAKHTIN, 2013) dos diversos aspectos dialógicos que o eu e o outro
vão respondendo, humanizando e ressignificando em todas as manifestações de língua e
linguagem (NUNES, 2018).
Através de um metodologia bibliográfica e analítica, este trabalho exemplifica como as
músicas de forró que cantam o (mundo) vaqueiro e a vaquejada, uma de suas atividades, são
um emblemático exemplo de como a vida rural dialoga com a sociedade e influencia a vida da
população em geral do mudo urbano e do rural.
A partir das considerações bakhtinianas e de uma metodologia bibliográfica, há uma
reflexão sobre a categoria da responsividade na primeira parte deste trabalho. Em seguida, as
1
Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professor efetivo da Secretaria
de Educação Básica do estado do Ceará. Membro do Grupo de Estudos Bakhtinianos do Ceará (GEBACE). E-
mail: alfransbe@yahoo.com.br
2
Mestra em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Professora da Secretaria Municipal de Educação
da cidade de Fortaleza. Pesquisadora de práticas pedagógicas na educação infantil. E-mail: ditinharnm@gmail.com
9
atenções se voltam para o contexto transliguístico das músicas de forró sobre vaqueiro e
vaquejada para organizar o trabalho de análise de alguns dos muitos sentidos do ser vaqueiro
que acabam sendo realizados com as músicas de forró e que permitem a tessitura de
considerações finais sobre a abrangência dos sentidos típicos que a responsividade das músicas
de forró anima sobre o (mundo) vaqueiro.
10
infinidade de sertanejos é ditada por cada significação constituída nos/pelos atos discursivos
enunciados dialogicamente pelo eu e pelo outro quando estão dispostos a lutarem e se
responderem com suas palavras.
Para Bakhtin/Volochínov (2002, p. 132) “a significação [...] se realiza no processo de
compreensão ativa e responsiva” que as relações de alteridade (o eu e o outro) animam e
atualizam sem meias palavras ou álibis. Já Bakhtin (2003, p. 280) explica que “[u]ma oração
[...] não pode suscitar atitude responsiva [...]”, pois a responsividade é do plano das relações
vivas e coloridas de sujeitos e pontos de vista engajados nas mais diversas manifestações
dialógicas de resposta a enunciados (presentes ou não).
A título de exemplo, os elementos que motivam este artigo, o vaqueiro e a vaquejada –
ofício pelo qual o primeiro organizou sua sobrevivência e sua cultura – cantados pelas músicas
de forró comprovam a dinâmica da relação responsiva entre cultura, vida e linguagem
enunciada pelas vozes do eu e do outro em diálogo.
Largados na vida, os sujeitos vivem suas palavras-resposta que somente o diálogo no
tempo e no espaço possibilitam. Diálogo realizado com palavras escritas, orais ou por quaisquer
outros recursos semióticos e ideológicos enunciados em uma situação viva de comunicação
responsiva com a qual a realidade é significada e atualizada.
No mundo do curral e da vaquejada, a análise das palavras enunciadas e apreciadas pelos
sujeitos das músicas de forró comprova a força do diálogo entre o analfabeto e o doutor, o
empregado e o patrão, o homem e a mulher, o velho e o novo. Não há, portanto, exclusividade
do exercício ideológico e partilhado de constituição subjetiva e situada dos sentidos do ser
vaqueiro (do ofício ou do esporte).
Bakhtin/Volochínov (2002, p. 194) defendem que a “palavra, como fenômeno
ideológico por excelência, está em evolução constante, reflete fielmente todas as mudanças e
alterações sociais. O destino da palavra é o da sociedade que fala”. Por conseguinte, os sentidos
acionados e compartilhados durante a vivência responsiva das músicas de forró sobre o
vaqueiro, o campo e a vaquejada vão tecendo sentidos que respondem aos ditos enunciados
acerca das memórias ou atividades rurais que caracterizam, atualizam e ressignificam a
realidade (de cada palavra) sertaneja.
Ao analisar translinguisticamente as músicas de forró, uma colcha de sentidos está
marcada. Como Machado (199, p. 90) considera que o enunciado é “parte constituinte do
processo enunciativo ou da enunciação”, é possível identificar que as músicas de forró são um
enunciado comum a diversas parcelas da sociedade. Este fenômeno partilhado ocorre de modo
dinâmico e pleno das vozes de seus interlocutores.
O enunciado concreto realizado a partir do ponto de vista de seus autores é uma resposta
situada. Para o bakhtinianismo, conforme Machado (idem, ibidem) o enunciado é “a unidade
elementar de organização das formas linguísticas produtoras do discurso-língua em
circunstâncias específicas da interação verbo-social, vale dizer, cronotópicas”
Uma análise das palavras responsivas das músicas de forró expõe as características do
mundo vaqueiro – e de suas atividades econômicas e culturais, especialmente, as vaquejadas
esportivas, atividade que está gerando um ar de estrelato aos sujeitos que antes viviam
11
recobertos das marcas da pecuária por estradas, currais, feiras e matadouros ao mesmo tempo
em que atualizou as festas de pega de boi no mato.
Para Bakhtin (2003, p. 261), “[t]odos os diversos campos da atividade humana estão ligados
ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão
multiformes quanto os campos da atividade humana” como os sentidos do ser vaqueiro que só
podem ser mais radicalmente compreendidos pelo exercício da palavra.
Para o bakhtinianismo, a vida é a tensão responsiva entre pontos de vista singulares e
nenhuma análise da palavra enunciada concretamente acontece sem a consideração
translinguística dos enunciados realizados e potenciais que vão se interligando como respostas
marcadas por estilos, temas e composições dinâmicas.
A partir desta linha de raciocínio, é compreensível que as músicas de forró que cantam
as memórias e a vida do (mundo) vaqueiro possuem uma história, um cheiro e uma corporeidade
que marcam translinguisticamente o contexto de interação responsiva. Por conseguinte, as
palavras das músicas de forró estão marcadas por uma história e situacionalidade que
respondem aos antepassados que ajudaram a construir a cultura vaqueira do nordeste brasileiro
e a modificar os sentidos correspondentes.
3
Lei nº 204 de 11 de junho de 1960 do município de Morada Nova, Ceará. Disponível em
https://www.cmmoradanova.ce.gov.br/arquivos/17/_204_1960.pdf.
12
até o limite do diálogo entre o urbano e o rural. Um diálogo mediado pela vaquejada, uma
evolução lúdica das festas de apartação de gado do passado vivenciada pela ação consciente de
todos os sujeitos que apreciam os sentidos da vida vaqueira.
Numa pesquisa sobre o vaqueiro (do curral, da vaquejada e de tantos outros contextos
possíveis) e o universo da vaquejada (recreativa, esportiva, competitiva, profissional, amadora,
rústica ou reestilizada) enquanto elementos constitutivos de significados vivos e situados, não
basta uma análise gramatical e lógica dos fenômenos de linguagem materializados nas palavras
do verbo e do corpo.
Na medida em que a vivência de sua própria história e pontos de vista são respostas
totais à dinâmica da realidade e aos outros sujeitos, a análise da existência vaqueira pode ser
compreendida a partir de seus enunciados responsivos. Aqui, a contribuição de Bakhtin (2013)
favorece a compreensão dos aspectos dialógicos que orientam a ação humana para significar e
ressignificar os sujeitos e suas atividades.
As músicas que os vaqueiros apreciam são um elemento constitutivo de seu ofício e de
seu espaço-tempo. Dentro de um universo de realizações musicais, o forró é uma bússola para
análise translinguística das relações dialógicas (BAKHTIN, 2013) que os sujeitos vivificam
como respostas. A sintaxe de suas escolhas é responsiva, as escolhas de cada adjetivo e
substantivo, idem. A gramática e a lógica dos enunciados linguísticos de cada música apreciada
pelos vaqueiros respondem à criatividade e oportunidade de pontos de vista responsivos
oportunizados como respostas plenas de relações dialógicas.
A partir do momento em que os diversos aspectos da vida do vaqueiro – como sua
indumentária, culinária, músicas, hábitos, palavras e preferências, entre outros – são
compreendidos como uma realidade de lingua(gem) (NUNES, 2018), não é difícil perceber que
a existência humana elabora um texto plural cujas respostas rizomáticas animam palavras-
respostas que se tocam e se respondem a cada ato de (inter)ação.
Parelha à atividade comercial com o gado bovino ou equino, as manifestações culturais
e esportivas da cultura vaqueira interagem com as músicas que cantam a vida, as emoções,
vitórias e dificuldades do povo dos currais, hoje renovados pelo amparo de leis municipais,
estaduais e federais (NUNES, 2018) e pela diversificação de interesses sobre a realidade do
vaqueiro e da vaquejada enquanto fenômenos dinâmicos.
A ação vaqueira povoou os sertões e consolidou os sentidos de uma cultura que ajudou
a consolidar o poder de fazendeiros e velhas oligarquias ao longo dos rios por onde o gado
seguia. O vaqueiro é o mestiço que cuidava das fazendas de gado, uma área coordenada pelos
esforços de um cavaleiro trajado com uma armadura de couro.
Hoje, a moda, a culinária e a medicina veterinária exemplificam o quanto o vaqueiro e
a vaquejada estão mais comerciais e culturalmente atuais do que nunca. Prova disso é que o
estado do Ceará instituiu 22 de agosto como o dia estadual do vaqueiro4. Ademais, a pesquisa
de Nunes (2018) demonstra o potencial científico e político do universo rural do gado para a
reorganização e ressignificação da sociedade.
4
Lei estadual nº 14.625, de 26.de fevereiro de.2010 publicada no Diário Oficial do estado do Ceará em 11.03.2010.
Disponível em https://belt.al.ce.gov.br/index.php/legislacao-do-ceara/organizacao-tematica/cultura-e-
esportes/item/1233-lei-n-14-625-de-26-02-2010-d-o-11-03-10.
13
Conforme o artigo 2º da lei federal 13.364 de 29 novembro de 20165:
5
Lei disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13364.htm. – Posteriormente,
alterado pela lei 13.873 de 17 de setembro de 2019 – disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13873.htm#art2.
6
Lei federal nº 12.870, de 15 de outubro de 2013. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12870.htm.
7
Lei cearense nº 16.321 de 13 de setembro de 2017 (Diário oficial do Ceará de 14.09.2017). Disponível em
https://belt.al.ce.gov.br/index.php/legislacao-do-ceara/organizacao-tematica/cultura-e-esportes/item/5891-lei-n-
16-321-de-13-09-17-d-o-14-09-
17#:~:text=LEI%20N.%C2%BA%2016.321%2C%20DE%2013.09.17%20(D.O.,14.09.17)&text=REGULAME
NTA%20A%20VAQUEJADA%20COMO%20PR%C3%81TICA,GOVERNADOR%20DO%20ESTADO%20D
O%20CEAR%C3%81.
8
Tanto a rotina da vida rural do pastoreio e manejo bovino, o chamado ato de “vaquejar” o gado, como as atividades
que circundam o exercício da vaquejada ou o trato e o transporte dos animais são atividades duras. Tomando por
base a realidade da zona rural de Morada Nova, Ceará, pode-se afirmar que costumam ser exercidas por uma
parcela da população desprovida de suficiente escolarização, meios de subsistência e garantias trabalhistas. Assim,
os hábitos cotidianos de fruição estética da leitura e escrita perdem espaço ante as urgências do trabalho cotidiano
e a escuta das músicas de forró.
14
melodias vividas no pé do curral ou sobre a sela da montaria, na comercialização de produtos
agrícolas ou nas festas de gado.
Cada manifestação musical de forró é um enunciado responsivo que vivifica os pontos
de vista de sujeitos que vão constituindo novos sentidos em resposta ao contexto em que
efetivam seus trabalhos e divertimentos. Com a mesma intensidade com que devoram os
churrascos do presente – talvez para combater a memória das dificuldades e penúrias do passado
– e bebem com largueza, as músicas de forró sobre a vivência corporal e sinestésica das proezas
vaqueiras no trabalho, na cama e na farra intensificam uma resposta responsável num contexto
em que o sujeito vaqueiro ganha a notoriedade que a rotina no trabalho assalariado ou arrendado
das fazendas de gado não desenvolvia.
Tão viva como os sujeitos que a atualizam, a vida realizada pelas músicas de forró
cantadas sobre o mundo do vaqueiro e da vaquejada são uma manifestação responsiva ativa de
uma infinidade de aspectos que ajudaram a caracterizar uma realidade sensível às
transformações sociais e culturais que modificaram os significados das relações humanas na
esteira do desenvolvimento tecnológico – com significados e efeitos distintos para os diversos
grupos humanos como os vaqueiros.
Desde a contribuição de Luiz Gonzaga no século XX, o forró é o gênero musical que
anima profanamente as religiosas festas juninas, as exposições, feiras e competições vaqueiras
ao longo de todo o nordeste brasileiro. Enquanto suas melodias são um convite para que um
casal de dançarinos realize movimentos organizados num abraço sincronizado, suas palavras
são uma resposta responsável enunciada e ressignificada de formas particulares por seus
interlocutores no curral e na pista de vaquejada, na ordenha, na cerca, no cavalo, no salão das
festas ou na cabine do transporte dos animais.
A título de exemplo, se a vaquejada anual da associação dos vaqueiros e criadores de
Morada Nova, Ceará, tem sido um sucesso cultural e comercial de público, a mensagem
enunciada das músicas de forró tem sua parcela de contribuição. Se o sujeito vaqueiro tem
ganhado notoriedade, cada significado enunciado pelas músicas de forró tem seus méritos seja
na exaltação das atividades vaqueiras, seja na exaltação de todo um ideal de ostentação (das
façanhas vividas ou só imaginadas) da vaquejada.
Em todas as suas manifestações, as músicas de forró sobre o sujeito vaqueiro e sobre o
fenômeno vaquejada se misturam e se respondem pelos sertões e pelas cidades. Neste ponto,
cabe ressaltar que a música nordestina e a voz dos sujeitos vaqueiros ganharam força com Luiz
Gonzaga, o rei do baião9, ao popularizar e renovar os sentidos da região Nordeste e do baião
entre o público urbano do Brasil do século XX.
De acordo com Buarque (2011), o forró pode ser dividido em três fases:
9
O baião é um estilo musical e dançante apreciado pelas populações nordestinas. Disponível em
https://anacruse.com.br/2019/02/20/sobre-o-baiao/. Acesso em 10-06-2020.
15
Fontes Baião MPB, rock, reggae e axé. Sertanejo romântico,
tecnobrega, axé music.
Períodos Década de 1940 – Luiz A partir de 1975 – Alceu Valença, A partir dos anos 1990 –
Gonzaga e Carmélia Zé Ramalho, Elba Ramalho, Mastruz com Leite,
Alves, a rainha do Baião. Geraldo Azevedo. Magníficos, Aviões do
Década de 1950 – Trio A partir dos anos 1980 – Jorge de Forró, Garota Safada,
nordestino, Jackson do Altinho, Nando Cordel, Alcimar Calcinha Preta, Caviar com
Pandeiro, Pedro Monteiro e Petrúcio Amorim. Rapadura
Sertanejo, Marinez, A partir dos anos 1990 –
Dominguinhos. Falamansa, Forroçacana e Trio
Rastapé.
Metodologia
As quatro músicas deste artigo são uma amostra do potencial envolvido em torno da
investigação das respostas compartilhadas do mundo vaqueiro e uma tentativa de diálogo com
os sentidos dos sujeitos que ainda ajudam a construir a história, o imaginário e a organização
política, econômica e cultural do interior brasileiro.
Para a seleção das músicas analisadas, um critério foi a preferência por enunciados sobre
a descrição do vaqueiro em seu ofício de manejo do gado uma vez que músicas de forró
organizadas em torno do vaqueiro esportivo contemplam aspectos externos ao mundo do curral
e valorizados por todos aqueles que enfatizam as festas, a bebida e o sexo numa proporção
destoante das oportunidades do vaqueiro de ofício.
A ordem cronológica foi um fio condutor para análise das músicas de forró enquanto
respostas situadas e concretas enunciadas por sujeitos que se posicionam perante seus pares
com o máximo de si para animarem um processo de constituição viva de sentidos mais
particulares e significados mais coletivos.
Após um breve resgate do contexto histórico e translinguístico das quatro músicas, cada
uma é analisada de maneira segmentada. Os trechos de enunciados são interpretados a partir de
observações mais pontuais que ajudam a tecer um sentido mais geral que as palavras enunciadas
dinamicamente atualizam.
No tocante à seleção das quatro músicas, foram escolhidas uma música do
pernambucano Luiz Gonzaga, popularizador da vida nordestina ao longo do século XX, uma
de Ednir, uma de Rita de Cássia – compositores cearenses oriundos do Vale do Jaguaribe,
16
mesma região do município de Morada Nova – e uma música do alagoano Mano Walter, um
dos atuais sucessos do mundo do forró.
As quatro músicas selecionadas materializam respostas às rotinas de trabalho e ao
imaginário coletivo de bravuras desempenhadas por um personagem que ajudou a povoar e
representar o sertão nordestino. Apesar deste espaço já ter sido cantado pelas mensagens e
melodias de ritmos musicais como aboio, toada, baião e forró, apenas o último estilo foi
selecionado porque sua presença é marcante nas músicas comerciais vigentes há tempos em
currais, feiras e nas festas de vaquejada de Morada Nova.
Palavras textualizadas no corpo ou no título de cada música orientaram a metodologia
de análise translinguística de seus enunciados realizados. Dentre as infinitas possibilidades de
sentido que cada música pode responder para a promoção de uma imagem situada do vaqueiro,
esta pesquisa analisou o sentido “nordestino” do vaqueiro numa música de Luiz Gonzaga. Em
seguida, focalizou o sentido de “carinho, amor e muita fé” de uma música de Ednir. O terceiro
sentido é o que interpreta a vida do vaqueiro como uma “saga” na música de Rita de Cássia.
Finalmente, o sentido de uma “balada do vaqueiro” é o ideal analisado na música enunciada
por Mano Walter.
17
As confraternizações promovidas pela Associação dos Vaqueiros e Criadores de
Morada Nova, o trabalho matutino dos currais próximos ao campo de futebol da comunidade
de Setor K do Perímetro Irrigado de Morada Nova (PIMN) e a “feira do feijão” realizada aos
sábados no bairro apelidado de Parque de Exposição são contextos de espaço-tempo
ressignificados pela responsividade das músicas vaqueiras.
A música que cede seu enunciado para a primeira análise da constituição responsiva dos
sentidos do vaqueiro é materializada por Luiz Gonzaga que homenageia seu primo, assassinado
no exercício de sua lida como ao longo dos anos ainda acontece com uma multidão penalizada
por eventos de violência no sertão.
Escrita na cidade de Recife, Pernambuco pela parceria entre Gonzagão e Nelson
Barbosa, a música foi gravada em 196310 em um disco de 78 RPM. Neste ano11, seu enunciado
materializou uma resposta em forma de homenagem musical prestada por Gonzagão a seu
primo Raimundo Jacó, assassinado em 08 de julho de 195412.
A análise da música enquanto uma resposta situada, indica aspectos do contexto rural
do Brasil que continuam a acompanhar a história de muitos vaqueiros e de seu mundo do sertão
como a possibilidade de uma vida de exigências diárias e a ameaça da violência letal e da
possibilidade de crimes permanecerem impunes.
A segunda música analisada foi gravada no segundo trabalho da banda Styllus em
13
1992 , uma composição de Ednir Maia, nascido em Tabuleiro do Norte, cidade próxima à
Morada Nova, a terra do vaqueiro, possuidora do primeiro museu temático e da primeira
associação de vaqueiros e criadores do Brasil.
Uma paródia14 da música “Vida de vaqueiro” embalou os comícios eleitorais e a vitória
do então jovem Glauber Barbosa de Castro em sua primeira de três disputas para o executivo
municipal, fato que fortaleceu a influência local do grupo político dos Caborés (família Castro,
do ex-governador Manoel de Castro) sobre o grupo das Corujas (família Girão, do ex-deputado
estadual Chico do Perboyre).
Em 200115, o sétimo álbum da banda de forró Catuaba com Amendoim traz a música
“Saga de um vaqueiro”, composição de Rita de Cássia Oliveira dos Reis, de Alto Santo, distante
cerca de 90 quilômetros de Morada Nova. A forrozeira é compositora de outros sucessos sobre
a vida do vaqueiro. Suas palavras ajudaram a construir o sucesso da banda de forró Mastruz
com Leite que teve no cantor e sanfoneiro Neto Leite uma voz para interpretar os sentidos do
(mundo) vaqueiro.
10
Disponível em http://www.blogromulolima.com/2015/07/morte-do-vaqueiro-virou-letra-de-musica.html
11
Em 1963, o presidente dos EUA, John Kennedy foi assassinado (em Dealey Plaza, Dallas – Texas), o pastor
Martim Lutther King pronunciou seu discurso “I have a dream”, ocorreu a primeira transmissão de imagens
coloridas de TV no Brasil, os Beatles estrearmm seu primeiro álbum, Please Please me.
12
Disponível em https://caririrevista.com.br/o-vaqueiro-vive/
13
1992 foi marcado pela realização da ECO-92, impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, eleição de
Bill Clinton nos EUA, massacre do Carandiru e assassinato da atriz Daniela Peres pelo ator Guilherme de Pádua
e pela morte do cantor e compositor Ednir Maia, fundador da Banda Styllus.
14
“Quando Glauber vai chegando na cidade / o povo todo começa a aplaudir / dessa vez Caboré vai reagir / e as
corujas vão levar de goleada”.
15
Em 2001, George Walker Bush (filho) tome posse como presidente dos EUA, a Wikipedia é lançada, a doença
da “Vaca Louca” afeta a saúde e a economia mundiais, atentados terroristas às torres gêmeas do World Trade
Center (11 de setembro).
18
A música “Saga de um vaqueiro” é uma das mais executadas nas reuniões e festas de
vaquejada e nas programações radiofônicas locais. Enunciadas pelos vaqueiros da região, suas
palavras reelaboram significados que alcançam os lares da região. À época de lançamento do
álbum, a música se fazia ocasionalmente presente, inclusive, no ônibus que transportava os
universitários da cidade de Limoeiro que este escritor usava.
Por último, a música “Balada do vaqueiro” de Mano Walter, integra seu DVD “Ao vivo
em Maceió” de 2017, um produto que responde aos sonhos de muitos vaqueiros e de quem
circunda o ambiente da pecuária nordestina, um contexto repleto de sujeitos empobrecidos e
jornadas longas de trabalho em condições árduas.
Em 201716, ano em que a música ocupou seu espaço no mercado musical, este estudioso
acompanhava a pesquisa etnográfica de Nunes (2018) sobre a linguagem da população
vaqueira. Nas rádios, o enunciado da música chamava atenção por citar elementos caros e a
prática da balada, uma festa incomum para as rotinas da vida de um vaqueiro ocupado com o
extenuante manejo do gado ou com a vaquejada competitiva.
Tais músicas são enunciados concretos e responsivos que reelaboram narrativas acerca
da ação e da história de vida dos sujeitos bem como animam suas tarefas laborais (como o
manejo e o comércio dos animais, por exemplo), religiosas (como as missas alusivas ao
vaqueiro onde os sacerdotes e as igrejas se manifestam com adereços de couro e palha, por
exemplo) e festivas (forró, feiras, exposições, concursos e vaquejadas esportivas). As palavras
musicalizadas ajudam a interpretar a vida de seus sujeitos e ressignificam os sentidos de uma
singular atividade como a cultura vaqueira.
16
Em 2017, Donald Trump toma posse como presidente dos EUA e inaugura seu conceito de “American First”
(América primeiro). Ocorre a condenação político-jurídica do presidente Lula do Brasil.
17
Letra da música disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tGsJrAlAQDs. Vídeo:
https://www.letras.mus.br/luiz-gonzaga/82383/
19
Em suas conversas durante a festa anual promovida pela Associação dos Vaqueiros e
Criadores de Morada Nova, estado do Ceará, é comum entre os participantes a partilha de
diálogos repletos de velhas bravatas misturadas com a vivência das mais variadas dificuldades
e dissabores.
Historicamente esquecido por políticos locais, desconsiderado pelos empresários do
agronegócio e explorado pelo oportunismo de quem se aproveita de sua força de trabalho, o
vaqueiro acaba levando sua vida num ritmo cadenciado pelo mugir do gado pastando no campo
– o que na música é enunciado de forma onomatopaica com “Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo,
lengo, tengo / Ei, gado, oi”
O forró cadenciado de Gonzagão empresta sua voz para todo vaqueiro que sofre o apagar
de sonhos tal como o ocaso matizado do dia “Numa tarde bem tristonha” que fustiga os sentidos
do “Bom vaqueiro nordestino”, aquele que exerce seu trabalho com a simplicidade de quem
“Morre sem deixar tostão” uma vez que deixa esta vida sem herança além da terra e do gado
(seu ou do patrão) nutrido pelos seus esforços “Nas quebradas do sertão”, regiões disputadas
pelos agentes da agropecuária do século XXI.
A existência de vaqueiros desprovidos de educação formal e institucionalizada e/ou da
posse dos títulos de propriedade da terra atualiza o elitismo de uma nação fundada sobre as
vastas extensões das sesmarias oferecidas aos poucos donatários amigos da coroa portuguesa
no passado e aos (grupos) político-econômicos do presente.
Pelas razões já citadas, não é difícil perceber o diálogo responsivo entre a morte e a
desvalorização do vaqueiro, elementos que proporcionam um inapelável esquecimento do
sujeito em cujas mãos calejadas ainda repousam a fortuna e o desenvolvimento de patrões e
cidades ao longo do vasto Nordeste brasileiro contemporâneo.
Não por acaso, o enunciado concreto de Luiz Gonzaga utiliza o predicativo “esquecido”
para se dirigir ao vaqueiro. Ao afirmar que “O seu nome é esquecido”, o enunciador da música
reforça o processo de apagamento desempenhado por setores da sociedade aos sujeitos do
campo nominalizados das mais diversas formas depreciativas como matuto, caipira, bárbaro,
roceiro, preguiçoso, burro ou analfabeto, adjetivos que marcam rodas de conversa vivificadas
por atores sociais do campo e da cidade.
Ao materializar sua dor em relação ao parente falecido, o enunciado gonzaguiano é
universalizado ao atuar de modo profético anunciando que “Nunca mais ouvirão / Seu cantar,
meu irmão”. Ao se dirigir a um primo assassinado, o enunciado de Gonzaga pode ser
interpretado como uma mensagem a todos que agem de maneira indiferente para com a
realidade camponesa dos vaqueiros que não vivenciam a ostentação das grandes competições
esportivas e comerciais conhecidas como Circuito de Vaquejada.
O primo de Gonzagão foi literalmente “Sacudido numa cova”. Tanto no caso da morte
física quanto no da morte simbólica, qualquer vaqueiro “Desprezado do Senhor / Só lembrado
do cachorro / Que inda chora / Sua dor” acaba sofrendo de forma mais intensa sua
subalternidade quando discursos de empobrecimento se alinham em nome do fim das práticas
do amor entre os sujeitos cujos sentidos morrem em meio às lutas.
O enunciado “É demais tanta dor / A chorar com amor” é a manifestação de uma
multidão de vozes em luta pela tomada de uma outra consciência política. Quanto maior a falta
20
de amor, mais rápidas e fáceis são as estratégias de empobrecimento humano e dominação
social e econômica exercidas por patrões que oprimem a comunidade vaqueira de menor poder
aquisitivo e menor acesso à educação formal, gente que em seu trabalho vive os diversos
sentidos manifestos da morte do vaqueiro nordestino.
18
Letra da música disponível em https://www.letras.mus.br/mastruz-com-leite/47350/. Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=Ptvsr0kEZb8.
21
mas lúcida quanto à necessidade de perdão solicitado aos contrários (“Me perdoe se isso for
pecado”) do sentido festivo-espiritual do vaqueiro.
A palavra enunciada pela música da banda Mastruz com Leite ainda que valorize a
figura de um vaqueiro forte e destemido é uma oportunidade para a sociedade questionar as
características sertanejas e a ideologia de que este sujeito é um grosseiro envolvido na saga de
tarefas fisicamente extenuantes e diárias que desconsideram os sentimentos de fruição do belo
e das paixões tributadas heterossexualmente à figura feminina.
19
Letra da música disponível em: https://www.letras.mus.br/mastruz-com-leite/1158507/. Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=T89IfMLzxBU.
22
No momento em que a música aborda o conflito entre o fazendeiro, pai da morena, e o
vaqueiro desprezado em virtude de sua humilde profissão, os conflitos entre os privilegiados e
os empobrecidos – que vendem sua força de trabalho em nome da sobrevivência – são
emoldurados pelo amor romanesco materializado pela narrativa das peripécias de um “amor
proibido”, mas gostoso, vivido pelo casal em seus encontros “às escondidas” e no plano
frustrado de fugirem em nome de seu amor.
Em sua desventura, o enunciador da música utiliza a expressão “cortando o vento” para
indicar a extrema velocidade de sua corrida em procura da mulher amada com a mesma urgência
com que “se procura uma novilha no relento”, o jovem rebento de uma vaca perdido em algum
lugar desolado – atividade comum ao vaqueiro que trabalha num sistema de pecuária extensiva
em que o gado pasta livremente pelas matas.
Desterrada pelo fazendeiro – atitude típica dos sujeitos que organizavam o sistema
patriarcal-familiar – a mulher é separada de seu vaqueiro para um local tão distante que o “som
do berrante” utilizado para coordenar a movimentação de rebanhos bovinos é inaudível. Neste
ponto, o vaqueiro, narrador onisciente, afirma que a mulher estava grávida e, assim, aborda a
problemática da prática do sexo fortuito sem planejamento familiar – o que resulta na gravidez
sem as “bençãos religiosas do matrimônio” – motivo de execração pública para regimes
familiares conservadores que ajudaram a compor o cenário cultural de várias regiões brasileiras
sob a doutrina da igreja católica.
Em três estrofes consecutivas, o enunciado concreto do sujeito que narra a história da
música se esforça para nominalizar o vaqueiro. Ele é um “vaqueiro magoado” por amar uma
pessoa de classe social privilegiada e, ao mesmo tempo, é um “grande vaqueiro” um “campeão”
que compete de forma itinerante naquilo que a sociedade reconhece como “circuito de
vaquejadas”. Por suas vitórias de “vaquejada em vaquejada”, sua alegria é se reconhecer como
um “bom vaqueiro”.
Todo vaqueiro busca a promoção de suas façanhas. Segundo a narrativa vaqueira da
música, a vaquejada é uma “disputa acirrada” praticada por gente “valente”. Como labuta ou
esporte, a vaquejada exige a coordenação entre o ser humano e o cavalo no esforço para “colocar
o boi na faixa” (derrubar o boi em local apropriado e da forma adequada no momento certo).
Impor a vontade sobre o animal é uma glória vaqueira.
No caso da vaquejada esportiva, a competitividade entre os participantes envolvidos na
disputa para “pegar o primeiro lugar” (conquistar troféus e premiações diversas) não se
distancia do desejo pela vitória que marca a atividade laboral de quem adentra um matagal para
provar ser capaz de capturar uns animais “mais fortes” enquanto tarefa necessária para garantir
o provento de sua subsistência. Em ambos os casos, é vital o controle emocional e um parceiro
forte (o bate-esteira) na pista de corrida da vaquejada ou nos campos e currais.
Quem vive o mundo em torno da lida com bois e cavalos acaba desenvolvendo uma
percepção singular de sua existência. O enunciado “Um vaqueiro, como eu” é uma
manifestação enunciada na música e na vida por todos que esperam a continuação da cultura
vaqueira entre as novas gerações, especialmente numa realidade em que a zona rural continua
perdendo espaço para a urbana e suas comodidades contemporâneas.
Diante das rotinas e dificuldades que transformam o cotidiano vaqueiro numa saga, uma
outra percepção que responde ao mundo circundante diz respeito ao vaqueiro idealizado como
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“baladeiro”, sujeito de festas e divertimentos, aquele que valoriza a ostentação e o gozo
derivado de tudo que o dinheiro pode proporcionar em torno do mundo da vaquejada esportiva
alimentada por vaqueiros jovens ou veteranos.
20
Letra da música disponível em https://www.letras.mus.br/mano-walter/balada-do-vaqueiro/. Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=KV2cyCBvA58
24
O enunciador manifesto pelas palavras de Mano Walter apresenta a pompa do sujeito
vaqueiro esportista que exibe ostensivamente os sentidos da fartura de suas posses e
características da urbanização dos espaços rurais em que um vaqueiro-patrão privilegiado
afirma: “Mandei lavar meu carro, regulei meu paredão / Separei meus cavalos, quarto de milha,
alazão / Peguei a minha cela, espora, luva e chicote”.
Relatos informais de vaqueiros do município cearense de Morada Nova dão conta das
dificuldades financeiras para a aquisição de insumos para o manejo do gado. A presença de
veículos envelhecidos nas rotinas do curral revela duas situações: a impossibilidade de
renovação da frota rural e a opção por veículos dispensados do pagamento do Imposto sobre
Propriedade de Veículos Automotores (IPVA)
O vaqueiro-trabalhador, sujeito sem renda fácil e costumeiramente distante de
benefícios do mundo escolarizado abre espaço para o vaqueiro-patrão, aquele que participa ou
patrocina festas de vaquejada e se orgulha de seus bens, da possibilidade de comprar bebida e
gozar da companhia feminina em festas de final de semana, fora dos dias úteis ou comerciais.
Daí o orgulho do vaqueiro da música quando os sentidos de seu enunciado afirmam: “Coloquei
os cavalos la em cima do reboque / Já comprei a bebida, convidei a mulherada / Chegou o fim
de semana eu vou partir pra vaquejada.”
Ainda que os sentidos do forró de Mano Walter sejam restritos a pequenas porções do
universo vaqueiro e da vaquejada, a aura de encantamento com os elementos que adornam a
vida rural em torno do manejo com o gado ajuda a ressignificar um outro sentido para o
significado social de uma atividade econômica e cultural que vem redefinindo os limites e
funções do curral da fazenda e da pequena propriedade rural.
Mesmo que a vida e o ser dos vaqueiros se desenvolvam em regiões mais afastadas do
conjunto de regramentos da sociedade urbana, o público mais urbano e não afeito ao trabalho
na roça tem respondido como um interlocutor atento às palavras que recontam o ofício vaqueiro
com os sentidos mais festivos que o forró vem favorecendo.
As vozes da sociedade que falam com as palavras de Mano Walter estão marcadas pela
preponderância da ação masculina sobre a feminina, pelo consumo de bebidas alcoólicas e pelo
fortalecimento do homem como possuidor de um harém. A materialidade dos sentidos de este
ser vaqueiro são contrários aos sentidos que as dificuldades da relação patrão-empregado
acabam consolidando ou que a falta de políticas públicas de governo para os sujeitos e
economias do campo acentuam.
Considerações Finais
O mundo do curral ganhou novos sentidos pela intervenção responsiva das músicas de
forró popularizadas desde Gonzagão. Na medida em que os vaqueiros passaram a influenciar a
economia local e refletir sobre sua influência, história e cultura, as suas palavras estão mais do
que nunca sendo reconhecidas como uma resposta situada que os sujeitos vão ressignificando
como um ato concreto de vivo diálogo.
As músicas de forró sobre os vaqueiros exemplificam a força da cultura vaqueira e de
sua vaquejada para organização dos sentidos que suas relações e interações sociais vão tecendo
no chão de seu tempo e espaço. Numa cidade como Morada Nova, a “Terra do vaqueiro”, o
25
mundo do curral ajudou a formar uma sociedade e toda uma gama de singularidades das quais
as músicas de forró podem ser encaradas como uma resposta total e situada em diálogo como
uma infinidade de pontos de vista.
Através da metodologia de análise translinguística das músicas de forró foi possível
compreender o (mundo) vaqueiro e suas atividades laborais e/ou esportivas – das quais a
vaquejada é um exemplo da renovação das antigas festas de apartação e das “pegas de boi no
mato” – como uma oportunidade para atualização dos sentidos enunciados por quem alargou
os sertões desde a expansão territorial do Brasil colonial.
O vaqueiro é respondido e ressignificado como um bom sujeito nordestino que luta
muito apesar de nem sempre receber o reconhecimento de uma sociedade que insiste em negar
suficiente “tostão” para quem costuma ser lembrado apenas pelo cachorro, metáfora da
desvalorização que ainda marca os sentidos do mundo vaqueiro.
Um outro sentido respondido pelo vaqueiro que diariamente enfrenta a luta por
sobrevivência e reconhecimento desde o momento em que “o claro do sol vai despontando” é
o que coloca o vaqueiro como um sujeito dotado de “carinho, amor e muita fé”, características
típicas de quem não é apenas um bravo abrutalhado.
O penúltimo sentido analisado neste trabalho é o da música que materializa uma resposta
de coragem e habilidade para a existência do vaqueiro que ultrapassa as demandas de seus
afazeres diários para abraçar a oportunidade que a vaquejada lúdica (esportiva e recreativa) vem
possibilitando ao longo do tempo para que o vaqueiro consiga um outro patamar de
reconhecimento cultural e social.
O último sentido que as músicas de forró ajudam os vaqueiros a responder é o que
apresenta o ideal de uma “balada do vaqueiro” plena de tudo aquilo que parte da sociedade
sempre concentrou nas mãos de grandes proprietários rurais e que as longas atividades
agropastoris no curral e cercanias não costuma facultar aos vaqueiros
Em todas as épocas do forró, as músicas escritas e cantadas para os vaqueiros são como
sua resposta viva, renovada pela contribuição de seu público e de seus artistas. Suas melodias
e mensagens são uma oportunidade para a politização dos diversos segmentos da sociedade e
para a promoção de espaços de discussão mais amplos.
O (mundo) vaqueiro não é principal e/ou exclusivamente o espaço das feiras agrícolas,
tampouco posse dos veículos de comunicação e informação, muito menos propriedade dos
grandes fazendeiros. Afinal, quanto maior o número e a qualidade dos diálogos e dos espaços
institucionalizados de interação entre os sujeitos, mais sentidos podem ser revolucionados sobre
o que a cultura vaqueira responde à sociedade. A título de exemplo, a escola por suas
possibilidades e características é uma instituição capaz de ampliar o diálogo com o (mundo)
vaqueiro das respostas-músicas de forró.
Referências
26
Universidade Estadual do Ceará, Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada,
Fortaleza, 2017.
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato. Tradução para uso didático e acadêmico
de Carlos A. Faraco e Cristovão Tezza. 1993.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BRILHANTE, Aline V. M.; SILVA, Juliana G. e.; VIEIRA, Luiza J. E. de S; BARROS, Nelson
F. de; CATRIB, Ana M. F. Construção do estereótipo do “macho nordestino” nas letras de forró
no Nordeste brasileiro. Revista Interfaces. Comunicação, saúde e educação. 2018; 22 (64): p.
13-28. Dossiê Gênero, Saúde, Corporeidades. Disponível em
https://www.scielo.br/pdf/icse/v22n64/1807-5762-icse-1807-576220160286.pdf. Acesso em
07 jun. 2020.
BUARQUE, Daniel. Conheça as origens e a evolução do forró, o ritmo da festa de São João.
20/06/2011 11h30. Disponível em http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/06/conheca-
origens-e-evolucao-do-forro-o-ritmo-da-festa-de-sao-joao.html. Acesso em 08/06/2020.
27
Capítulo
2
“A cópia adaptada perfeita”: o discurso protestante
pentecostal da bíblia da mulher acerca da condição
feminina
21
Especialista em Gestão e Avaliação da Educação Pública pela UFJF e aluno do Mestrado Interdisciplinar em
História e Letras (MIHL) da Faculdade de Educação Ciências e Letras do Sertão Central – FECLESC -
Universidade Estadual do Ceará – UECE. E-mail: glauberdiniz33@gmail.com
22
Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC e professora do Mestrado
Interdisciplinar em História e Letras (MIHL) da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central –
FECLESC - Universidade Estadual do Ceará – UECE. E-mail: daniele.bezerra@uece.br
28
a espantosa cifra de 42.300.000 adeptos das diversas correntes cristãs, fora do Catolicismo
Romano e Ortodoxo.
Desta seara sociocultural marcada pela multiplicidade de visões dogmático-teológicas e
parcos consensos, a qual constitui verdadeiro mosaico religioso, emerge uma força política e
social que, a partir das igrejas e comunidades, alcança outras esferas da vida pública e privada,
tais como o aparelho de Estado, os partidos políticos, as escolas, as universidades, os
movimentos sociais diversos, as ONGs e outras instituições.
Notadamente na cena midiática, por meio da televisão, do rádio, da internet e de outros
mass media, o discurso cristão protestante tem ganhado grande visibilidade, expandido-se e
afirmando-se com vigor, enquanto lobby e também poder econômico e simbólico, de forma a
influenciar comportamentos, interferir na agendas e políticas públicas, ditar padrões de
consumo, moldar concepções de vida, além de perpassar outras dimensões da existência e da
sociabilidade humanas.
Em que pese o papel desempenhado por todas as diferentes denominações protestantes
na afirmação do estado de coisas acima aludido, as estatísticas revelam que em terras
tupiniquins, as matrizes confessionais que mais prosperam são a de linhagens pentecostal e
neopentecostal, com um total de 45.342.000 membros, consoante informações extraídas do
censo de 2014.
Outra marca significativa do “evangelicalismo” brasileiro é a produção de vasta
literatura teológica e doutrinária , a qual inclui desde diversas “versões” do texto bíblico
integral, tais como inúmeras bíblias de estudo, bíblias anotadas, na linguagem dos dias de hoje,
apologéticas, temáticas, com hinários e outros apêndices etc., até um farto acervo bibliográfico
complementar, a ser utilizado pelos fieis em combinação com a própria Bíblia Sagrada.
29
Desse modo, todas as tentativas de classificação empreendidas, não raro redundam em
falhas conceituais e teóricas. Porém, dada a necessidade didática de realizar uma tipologização
do protestantismo, ainda que inadequada, procuramos concretizar tal empreendimento sem a
mínima pretensão de tornar este trabalho classificatório uma contribuição absoluta.
Assim, para Guareschi e Jovchelovitch, os protestantes brasileiros podem ser divididos
em: a) reformados ou históricos; b) pentecostais “velhos” e c) pentecostais “novos” ou
neopentecostais. (GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 2009, p.64). Os reformados ou
históricos, seriam derivados da Reforma religiosa do século XVI, que teve em Lutero, Calvino
e Zuínglio, seus maiores expoentes. Neste grupo também estariam os Batistas, ainda que eles
mesmos não se identifiquem como “reformados”. As marcas basilares deste agrupamento
seriam o apego aos fundamentos herdados da tradição reformada, tais como os princípios da
Reforma, consubstanciados no pensamento teológico de Lutero, Calvino e outros
reformadores, além da ênfase na inerrância, suficiência e utilidade das Escrituras Sagradas,
porém, com a conservação de alguns aspectos teológico-rituais do Catolicismo romano, como,
por exemplo, o pedobatismo (batismo infantil) por aspersão, à exceção dos Batistas, os quais
somente batizam adultos e mediante imersão. São “cessacionistas”, isto é, negam a continuação
dos dons espirituais conferidos por Deus aos apóstolos e à comunidade cristã primitiva e não
dão importância acentuada a usos e costumes (vestimentas, hábitos seculares etc.).
Neste ramo estariam os luteranos, os anglicanos, os presbiterianos, os congregacionais,
os metodistas e os batistas tradicionais. Os primeiros a aportar em solo brasileiro, em 1824
foram os luteranos, inicialmente em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro e São Leopoldo, no Rio
Grande do Sul. A chegada dos luteranos inscreveu-se nos fluxos migratórios europeus
organizados pela política de D. Pedro I. Entretanto, essas primeiras congregações luteranas
eram basicamente “igrejas de imigrantes” componentes dos quistos culturais, não podendo ser
assim consideradas genuinamente comunidades religiosas nacionais. A segunda denominação
a fincar raízes em nosso país foi a Igreja Presbiteriana. Em 1862, o missionário estadunidense
Ashbel Green Simonton fundava no Rio de Janeiro, aquele que seria efetivamente o primeiro
núcleo protestante brasileiro.
No alvorecer do século XX, iniciou-se a expansão proselitista dos pentecostais velhos.
Esta, por sua vez, fez-se em duas levas: primeiro com a fundação da Congregação Cristã no
Brasil, em 1910, por meio do missionário Louis Francescon, no município de Santo Antônio da
Platina, Paraná e em São Paulo, e com a fixação da Assembleia de Deus, em 1911, no Pará,
através da pregação dos missionários suecos Gunnar Vigren e Daniel Berg. Estes, inicialmente
frequentaram a Igreja Batista, no entanto, após a manifestação da glossolalia, a qual gerou
muitas divergências na congregação da qual faziam parte, foram oficialmente desligados do
movimento Batista e fundaram uma denominação própria. A segunda onda pentecostal ocorre
com o estabelecimento da Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), em 1951, em São João da
Boa Vista, São Paulo, pelos missionários Harold Edwin Williams e Jesus Hermirio Vasquez
Ramos, o primeiro natural de Los Angeles, EUA, e o segundo natural do Peru. Finalmente, em
1962, foi fundada em São Paulo, pelo missionário David Martins Miranda, a Igreja Pentecostal
Deus é Amor. Essa corrente protestante caracteriza-se pelo avivacionismo centrado na crença
na continuidade dos dons espirituais experimentados pelos primeiros cristãos e relatados no
Livro dos Atos dos Apóstolos, (curas, sinais prodigiosos), com ênfase na doutrina que encara o
falar línguas estranhas ou espirituais (glossolalia), enquanto marca exterior do chamado
segundo batismo, batismo de fogo ou batismo com o Espírito Santo.
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Outro aspecto diferenciador dos pentecostais antigos é a rigidez que propugnam no que
diz respeito aos usos e costumes. É exigido das mulheres e homens que evitem a sensualidade
e a vaidade. Mulheres devem, portanto, usar saias longas que não realcem as formas do corpo,
sendo-lhe vedado o uso de calças compridas, de adornos em geral, maquiagem, cortes de cabelo
curtos e tingimento das madeixas. Em alguns grupos há também a condenação de práticas
seculares consideradas “mundanas” e pecaminosas, como assistir televisão, ir ao cinema e ao
teatro. Ao contrário dos reformados, praticam o batismo nas águas por imersão, por considerar
o rito nesses moldes, mais fiel aos princípios bíblicos.
Por fim, temos os neopentecostais, cujas características doutrinárias estão filiadas à
chamada Confissão Positiva, Palavra da fé, ou mais popularmente conhecida como Teologia da
prosperidade. Tal doutrina é fruto do pensamento teológico do pregador estadunidense Keneth
Hagin (1917-2003). Nascida no contexto da “grande depressão” dos Estados unidos, essa
tendência postula que a morte vicária de Cristo não apenas legou aos crentes a libertação do
pecado e a salvação eterna, mas também, toda sorte de bênçãos materiais como saúde física,
plenitude emocional e prosperidade material. Desse modo, os féis possuem efetivamente a
capacidade de, por meio da fé, alterar a vontade divina a seu próprio favor. A tônica dos
neopentecostais são as curas físicas e a prosperidade material, associada à fidelidade do crente
em relação aos dízimos e ofertas. Também é parte constitutiva da dogmática dos
neopentecostais, a doutrina da batalha espiritual, segundo a qual as forças do Bem e do Mal
estão em constante peleja no mundo invisível e esse duelo teria consequências diretas para a
vida terrena.
Conforme essa visão, doença, miséria e problemas de natureza emocional são
interpretados, assim, como produtos de fraqueza na fé ou pecado. A exemplo dos reformados,
são mais “liberais” no tocante a usos e costumes. A primeira denominação neopentecostal
fundada no Brasil foi a Igreja Universal do Reino de Deus, estabelecida por Edir Macêdo e
Romildo Ribeiro Soares, em 1979, no Rio de Janeiro. Em seguida, surgiu a Igreja Internacional
da Graça de Deus, cujas bases foram lançadas por Romildo Ribeiro Soares, em 1980, também
no Rio, após o rompimento deste com a Igreja Universal do Reino de Deus. Pertencem ainda
ao grupo dos neopentecostais, as igrejas: Comunidade Cristã Paz e Vida, fundada em 1982, em
São Paulo, por Juanribe Pagliarin; a Igreja Renascer Em Cristo, criada em São Paulo, em 1986,
pelo casal Estevam Hernandes e Sônia Hernandes; a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra,
surgida em 1992, a partir de Brasília, mediante a pregação de seus fundadores, Robson
Rodovalho e Maria Lúcia Rodovalho e, mais recentemente a Igreja Mundial do Poder de Deus,
nascida em Sorocaba, em 1998, por meio do trabalho de Valdomiro Santiago. A exemplo dos
pentecostais clássicos, praticam o batismo mediante imersão nas águas.
O constante e acentuado movimento sectário que assinala as igrejas protestantes no
Brasil contemporâneo, bem como o fenômeno que Oliveira (2010, p. 43 ) designa como “uma
acentuada disputa no mercado religioso nacional” faz surgir a cada dia, novas denominações,
de modo que torna-se inviável e desnecessário para os propósitos deste trabalho, a menção a
todos os grupos evangélicos dissidentes, sendo bastante a definição do quão imbricadas são as
relações sociais e religiosas processadas no seio destes grupos.
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O estudo dos discursos acerca da “feminilidade” protestante brasileira: um
campo em aberto
O estudo dos discursos protestantes no que tange ao feminino e à feminilidade no Brasil,
ainda possui grandes lacunas a serem colmatadas. Ao estudar os recuados tempos do Brasil
Colonial, mais especificamente os séculos XVI ao XVIII, Del Priore (2009), identifica uma
mentalidade em torno da condição feminina, ajustada aos pressupostos de uma feminilidade
“adestrada” e “normatizada” segundo os discursos religiosos hegemônicos nesse período, os
quais compreendiam a mulher enquanto sujeito inserido na exígua cartografia trifuncional do
mãe-esposa-virgem.
Na análise de Priore (2009), a pregação oral cristã efetuada pelos sacerdotes, a ascese
piedosa católica, mormente as devoções marianas, como a prática do rosário diante do altar,
contribuíram para uma identificação do papel da mulher com a Virgem Maria, o arquétipo a
ser vislumbrado e, desse modo, a delimitação de sua ação social enquanto santa mãezinha,
esposa fiel e devotada ao marido e aos filhos ou virgem celibatária. Essa mentalidade via com
profunda desconfiança e insatisfação, os demais arranjos sociais nos quais figurava a mulher
colonial, tais como as mulheres amasiadas, as solteiras de vida livre e as chamadas “cabeças de
fogo” (mulheres chefes de família).
O trabalho de Del Priore (2009), tornou-se referência para os estudos da condição
feminina no Brasil, no que diz respeito às mulheres católicas ou sob a égide e influência do
Catolicismo. Entretanto, a despeito do mérito inegável da colossal pesquisa desta autora e
mesmo diante da atual pujança protestante no cenário nacional, conforme foi antes
demonstrado, do ponto de vista da pesquisa acadêmica, é ainda incipiente, em solo pátrio, a
investigação histórico-linguística em torno das falas e representações sobre a feminilidade
protestante em todas as suas dimensões.
Talvez, essa debilidade de trabalhos versando sobre a feminilidade protestante no Brasil,
de certo modo possa ser explicada pela inexpressiva presença desses cristãos não-católicos
durante o período colonial, uma vez que o protestantismo somente chega às terras brasileiras
no século XIX. Antes disso, as incursões protestantes em nossa terra limitaram-se à fugaz
experiência dos huguenotes liderados pelo príncipe flamengo Maurício de Nassau, na Capitania
de Pernambuco. Assim, a hegemonia católica na vida social e cultural, também findou por
ensejar uma hegemonia de trabalhos sobre a fé romana no que diz respeito à produção
acadêmica.
Nesse diapasão, a condição feminina protestante constitui um objeto de pesquisa
deveras promissor, sobretudo se considerarmos o momento histórico vivido em nossa
sociedade, bem como a necessidade de preencher os “silêncios” teóricos no que diz respeito às
concepções e discursos institucionais protestantes sobre a mulher.
32
representa fonte privilegiada para o estudo em torno das elaborações discursivas sobre o
feminino e a feminilidade: trata-se da famosa Bíblia da Mulher.
Publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, SBB, entidade interdenominacional
evangélica, esta obra apresenta uma versão do texto bíblico integral, porém, acrescido de
diversos textos complementares de estudo religioso, meditação pessoal, conselhos práticos para
a vida cotidiana e palavras de orientação teológica e moral, exclusivamente direcionadas ao
público feminino cristão protestante.
Os textos de estudo contidos na Bíblia da Mulher, foram, segundo consta na
apresentação da obra feita pela editora geral Dorothy Kelley Patterson, todos produzidos por
mulheres, pois “mais de 80 mulheres de diferentes denominações, formações étnicas e de
diversas ocupações compuseram a equipe editorial [...]” com o objetivo de “suprir as
necessidades da mulher, quaisquer que sejam suas condições de vida [...]”
Trata-se, assim, de verdadeiro manual prático para a mulher evangélica, cujo objetivo
principal seria proporcionar a aplicação da mensagem contida nas páginas do Antigo e Novo
Testamentos, considerada atemporal e regra infalível de conduta para todas as distintas culturas
e povos, à vida diária das fieis; ou seja, uma verdadeira atualização dos ensinamentos
secularmente consagrados pela Igreja cristã protestante, tendo em vista os desafios interpostos
pelo contexto específico da atualidade.
Desse modo, a “Bíblia da Mulher” trata, em seus textos complementares, de questões
consideradas essenciais dentro do universo feminino cristão protestante, tais como: virgindade,
lesbianismo, aborto, casamento, divórcio, criação dos filhos, relação com o cônjuge,
menopausa, mulher na igreja, no mercado de trabalho e na política, moda e vestuário, culinária,
dentre muitos outros.
33
Na Análise de Discurso Crítica (ADC) há uma intenção deliberada em perquirir e
identificar relações de poder opressoras e assimétricas subjacentes às práticas discursivas
analisadas. Trata-se, portanto, de uma compreensão do discurso enquanto atividade humana
capaz de fundar saberes e poderes, estabelecer continuidades e rupturas, moldar permanências
e alteridades. Destarte, o discurso e a linguagem estariam, por excelência, no domínio dos
arranjos de sentido visando à manutenção/transformação de quadros sociais, na fronteira entre
o dizer e o dominar, na cartografia das elaborações identitárias e subjetivas. Fazem parte dessa
corrente as contribuições promovidas pelos trabalhos de (FAIRCLOUGH, 1989, 1992, 1995,
2003; WODAK, 1986, 1992, 1996).
Assim sendo, é enfoque da Análise de Discurso Crítica (ADC), a busca pela da
investigação dos elementos ideológicos velados sob as inúmeras “camadas” discursivas
presentes nos textos, sejam eles orais ou grafados. A Análise do Discurso visaria, pois, em
última análise, à inquirição das partes constitutivas de elaborações discursivas, cujo objetivo
seria perpetuar visões de mundo naturalizantes e, assim, reproduzir significados aceitos
tacitamente pela sociedade (VAN DIJK, 1997).
No Brasil, emergem como pioneiros na investigação acerca da Análise de Discurso
Crítica, os trabalhos de Izabel Magalhães (1986), tradutora e introdutora desta teoria em solo
nacional e também orientadora de diversas pesquisas nesta seara conceitual.
A Análise de Discurso Crítica é por excelência um campo de estudo transdisciplinar, a
qual procura relacionar os universos social e da linguagem como campos que se influenciam
reciprocamente. A esse respeito, Magalhães (2000, p. 5), ao refutar as visões
representacionistas, advoga que a linguagem não poder ser concebida enquanto um mero
reflexo do social, pois devemos levar em consideração o poder construtivo e fundante da
linguagem, conforme as asseverações de Foucault (1987).
Ao assinalar o caráter crítico da Análise de Discurso, Magalhães (2000, p.5) também
ressalta, que ao contrário do que propugnava a filosofia positivista, não é possível uma ciência
neutra, posto que a distinção entre ciência e ideologia não passa ela mesma de um discurso
ideológico, o que foi estudado por Foucault em sua obra A arqueologia do saber (1987); e esta
“falácia” epistemológica já foi destronada há algum tempo no meio acadêmico. Magalhães,
frisa, portanto, a centralidade da preocupação com as relações de poder hegemonicamente
estabelecidas por meio da linguagem, no que tange aos estudos de Análise de Discurso Crítica
(ADC). Neste sentido, a Análise de Discurso Crítica seria um constructo teórico-metodológico
essencialmente político, posto que comprometido em desvelar relações assimétricas de poder,
parcialmente sustentadas pela discursividade em todas as suas formas.
Nesta direção, Resende; Ramalho (2006), postulam o reconhecimento da linguagem
como espaço de escolhas, típicas das “lutas hegemônicas”, nas quais os sujeitos historicamente
situados constroem e consolidam e mantêm relações de poder, mas também, questionam tais
relações e rompem com elas. Para as autoras:
Essa noção de várias vozes, que se articulam e debatem na interação, é crucial para a
abordagem da linguagem como espaço de luta hegemônica, uma vez que viabiliza a
análise de contradições sociais e lutas pelo poder que levam os sujeitos a selecionar
determinadas estruturas linguísticas ou determinadas vozes, por exemplo, e articulá-
las de determinadas maneiras num conjunto de outras possibilidades. (RESENDE;
RAMALHO, 2006, p. 18. Grifo das autoras).
34
No que tange à utilização da categoria gênero, a pesquisa ancora-se nas contribuições
da historiadora feminista Joan W. Scott, as quais lançaram as bases para uma compreensão da
oposição sexo/gênero. Scott (1995) também lançou mais duas importantes premissas: 1) o
caráter relacional do gênero, em oposição à ideia de que o estudo desta categoria se resumia
exclusivamente à investigação sobre as mulheres e 2) a demarcação desta categoria como forma
básica/primária de significar os diferentes arranjos e relações de poder. O trabalho também
dialoga com os pressupostos teóricos de Judith Butler (1993, 1999), estudados no Brasil por
Louro (2001). Para Butler (1993, 1999), “nada há de puramente ‘natural’ e ‘dado’, já que ser
homem e ser mulher, constituem-se em processos que acontecem no âmbito da cultura.”
Todo signo linguístico, falado ou escrito, [...] em pequena ou grande escala, pode ser
citado, posto entre aspas, por isso ele pode romper com todo contexto dado, engendrar
ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não-saturável. Isso supõe não que
a marca valha fora do contexto, mas ao contrário que só existem contextos sem
nenhum centro absoluto de ancoragem. (DERRIDA, 1991, p. 25-26).
35
Em segundo lugar, embora presas a essa dívida teológica antes citada, as autoras
também, veem-se, por imposições de natureza contextual, obrigadas a de certo modo
contemporaneizar o discurso bíblico original. Isto ocorre porque nenhuma doutrina ou
ensinamento religioso, por mais hermético e tradicional que pareça, consegue permanecer
absolutamente fechado sobre si mesmo sem receber o mínimo de influência social e cultural.
Ou seja, a proposta da Bíblia da Mulher apresenta-se como sendo transmitir o conteúdo das
Sagradas Escrituras, consoante uma concepção atual e centrada nas necessidades da própria
mulher, trazida agora para um lugar de realce na cena histórica da igreja e da sociedade. Esta
perspectiva fica bastante patente, já nas palavras de Dorothy Patterson, editora geral, na
apresentação da Bíblia, visto que para ela
36
Essa lógica dualista parece perpassar vários textos da “Bíblia da mulher”, cujo discurso
é desenvolvido a partir da contraposição da visão bíblica, considerada mais racional e, portanto,
verdadeira, às demais concepções, consideradas errôneas, por oposição. Um outro exemplo
desse dualismo dá-se, também, na apresentação do texto, no momento em que Dorothy comenta
que:
No passado as mulheres não tinham uma vida fácil e perfeita, mas as israelitas se
saíram melhor que suas contemporâneas de outros povos. A lei de Israel foi dada para
proteger a mulher, seus direitos e liberdades (Dt 21:10-14; 22:13, 28). As mulheres
israelitas tinham [...] grande liberdade, atividades variadas e posição social mais
elevada do que as mulheres das nações pagãs.” (A BÍBLIA DA MULHER:
LEITURA, DEVOCIONAL, ESTUDO, 1993, p. 2, grifo nosso).
37
A perspectiva da naturalização da tutela da mulher em relação ao homem ganha
contornos didático-pedagógicos em diversas outras passagens da Bíblia da Mulher. Como já
mencionamos anteriormente, essa Bíblia de estudo destinada ao público feminino, por meio do
recurso da ressignificação, procura atualizar os ensinamentos bíblicos referentes à mulher. Um
dos recursos discursivos mais utilizados pelas autoras é o trabalho linguístico com os casos
exemplares, ou tipos de mulheres. Por meio deste recurso, são comparadas entre si várias
personagens femininas dos textos sagrados judaico-cristãos. O parâmetro para o
estabelecimento das comparações é alicerçado basicamente no princípio da obediência. Assim,
na escala comparativa, quanto mais obediente apresente-se a mulher em relação a Deus, ao
marido, às instâncias decisórias (masculinas) da sociedade, mais próxima de enquadrar-se no
padrão ideal que teria sido divinamente planejado para ela.
Neste sentido, ao referir-se ao caso de Eva como a mãe de toda a humanidade, o texto
de estudo exegético propõe que:
É notória a ênfase discursiva dada pela autora aos termos obediência e desobediência,
como elementos constitutivos da semântica textual. Embora a autora procure desenvolver a
ideia de que homem e mulher, ambos foram feitos à imagem e semelhança do Criador e,
portanto, são iguais em dignidade, porém, diferentes em funções e atributos, mais adiante, ao
discorrer sobre os propósitos divinos na criação de Eva, a tônica da anterioridade da criação do
homem e a lógica de que Eva foi criada em função de Adão e para ser-lhe como auxiliar, vêm
à tona. Assim:
Homem e mulher foram criados à imagem de Deus; a diferença é que o homem foi
formado do pó da terra, e a mulher da costela do homem. Ela é a cópia adaptada
perfeita do homem, a mesma carne e ossos e a imagem de Deus, exatamente como o
homem, com valor igual a ele em tudo” (A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA,
DEVOCIONAL, ESTUDO, 1993, p. 9, grifo nosso).
38
do termo cópia adaptada, novamente sugere a utilização da lógica dicotômica do “verdadeiro”
e do “falso”, do “real” e do “copiado”, do “legítimo” e do “ilegítimo”. Em nossa sociedade,
marcada pela reprodutibilidade de obras sem a devida licença legal, comumente chamadas
“cópias piratas”, a utilização alegórica do termo sugere que a mulher seja uma espécie de
“quase-homem”, versão um tanto “adulterada” do projeto humano original.
Essa perspectiva é aclarada mais à frente, quando no mesmo texto, é mencionado o fato
de que Adão deu nome a Eva, assim como o fez em relação a todos os animais criados por
Deus. Segundo a exegese da autora:
Embora Adão tenha dado nome à mulher, isso não determina que tivesse uma posição
superior à dela. Na cultura oriental, o ato de dar nomes, mesmo nos dias de hoje, é
significativo e, na maioria dos casos, denota autoridade e responsabilidade. Note, por
exemplo, o ato de dar nome aos animais (Gn 2: 19:20)”. (A BÍBLIA DA MULHER:
LEITURA, DEVOCIONAL, ESTUDO, 1993, p. 9, grifo nosso.).
Ao ser nomeada por Adão, Eva é assim posta entre a criação, como parte da propriedade
concedida ao macho por Deus, o que fica bastante visível na utilização do termo autoridade,
escolhido pela autora para pautar a relação entre Adão e Eva no projeto edênico.
Outro aspecto a ser mencionado é a existência de uma “tensão” entre os pressupostos
bíblicos “tradicionais” por assim dizer, e a necessidade de criar uma Bíblia de estudo na
linguagem da “mulher moderna” e voltada para seus interesses. Esse tom perpassa diversas
passagens da Bíblia da Mulher. Trata-se de um tipo de discurso que tenta equilibrar-se entre o
que já foi dito em termos teológicos, ou seja, entre aquilo que está posto como doutrina e, ao
mesmo tempo parecer também inteligível e adequado às exigências de um mundo em
transformação. Essa busca por “adaptação” fica bastante evidente em trechos comentados do
livro do Gênesis, como por exemplo, um deles, cujo título é “culinária: o que temos para o
jantar?”.
Neste texto, a autora valendo-se de uma série de informações de natureza arqueológica
e histórica acerca dos hábitos alimentares no Antigo Testamento, cita, inclusive, receitas
encontradas em tábuas de cerâmica, datadas de 4.000 a.C. Todavia, a despeito da tentativa de
uma exegese bíblica “modernizante”, implicitamente, a presença na Bíblia de tal assunto – a
culinária – afazer ligado à lide da casa e, consequentemente associado à uma suposta vocação
e inclinação “natural” feminina para tal trabalho, reforça a clássica concepção de que o papel
feminino está naturalmente circunscrito ao âmbito do lar, das prendas domésticas e do cuidado
com o marido e com os filhos. Afinal, não há nas Bíblias especificamente voltadas para o
público masculino, textos ou sessões similares. A admissão de mulheres em posições de
comando – como uma Débora enquanto juíza de Israel, cargo militar hegemonicamente
associado à figura masculina, por exemplo (Jz 4:4-11) - é fato excepcionalíssimo nesse
contexto.
Mais adiante, em um comentário acerca do livro do Êxodo, com o título “cosméticos:
realçando a beleza física”, a comentarista bíblica enumera uma série de ervas, líquidos, incensos
e perfumes que, segundo as pesquisas arqueológicas fariam parte do cotidiano das mulheres
dos recuados tempos bíblicos. Elencando uma série de citações da própria bíblia, o texto parece
indicar uma “aceitação” ou legitimidade de que as mulheres fieis a Deus façam uso de tais
expedientes para embelezar-se, hidratar o corpo e ainda, realizar a “atração para o
39
relacionamento sexual” - Et 2,12; Pv 7,17 - (A Bíblia da Mulher, 1993, p. 137). Deve-se
observar aí um fato interessante que possivelmente assinala, em certo sentido, uma mudança
discursiva do texto comentado e da concepção bíblica mais tradicional em relação à beleza
física feminina.
Conforme mencionamos no tópico 3 deste trabalho, a marca das igrejas protestantes
pentecostais (os chamados “pentecostais velhos”) sempre foi a acentuada ênfase dada por este
grupo aos usos e costumes. Nas igrejas pentecostais, uma rígida moral costuma reger tanto o
vestuário quanto as práticas de “embelezamento” das mulheres, com uma estrita proibição de
todos os elementos que denotem “vaidade”. Neste sentido, os pentecostais tomaram em sua
teologia de usos e costumes, a ideia de vaidade como algo estritamente relacionado ao exterior:
cabelos curtos, joias, maquiagem, adereços e quaisquer formas estéticas que possam dar vazão
aos apelos do corpo, renegado como morada do pecado. Nessa direção, tomam como
pressuposto de sua concepção de usos e costumes as recomendações de Pedro em uma de suas
cartas, na qual o apóstolo assevera que:
Vós mulheres, sede sujeitas aos vossos próprios maridos, para que também, se algum
não obedece à palavra, pelo procedimento de sua mulher seja ganho sem palavra. (...)
O enfeite delas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de jóias de ouro,
na compostura de vestes, mas o homem encoberto no coração, no incorruptível traje
de um espírito manso e quieto que é precioso diante de Deus. Porque assim
antigamente adornavam-se as santas mulheres que esperavam em Deus e estavam
sujeitas aos seus próprios maridos, como Sara obedecia a Abraão chamando-lhe
senhor (...)” (1 Pe 3:1,6). (BÍBLIA JOÃO FERREIRA DE ALMEIDA REVISTA E
CORRIGIDA, 2003. grifo nosso.).
Geralmente esse e outros trechos bíblicos são evocados pelos pentecostais para apoiar
sua moral de usos e costumes. Entretanto, vê-se no comentário sobre os “cosméticos” da “Bíblia
da Mulher”, certa sinalização no sentido de que estes produtos são, desde os tempos bíblicos,
legítimos recursos para realçar a beleza física feminina, o que, em última análise, constitui uma
relativização do discurso condenatório em relação a quaisquer formas de “vaidade” e cuidados
corpóreos. Estaria a “Bíblia da Mulher” desse modo constituindo um novo ethos a esse respeito?
Como já dissemos antes, esse suposto discurso mais “emancipatório” no que tange ao papel
feminino tem seus limites frente à ortodoxia que a própria “Bíblia da Mulher” prontamente
anuncia em sua apresentação.
Primeiro, tais práticas de embelezamento visam a realçar a beleza da mulher em função
do homem (o quadro já descrito do embelezamento feminino enquanto mecanismo de agradar
o parceiro na relação sexual). Não é sequer cogitada no texto, a perspectiva da autoestima e da
beleza para si mesma. Segundo, no comentário acerca do lugar dos perfumes e unguentos no
contexto bíblico, a comentarista faz toda uma introdução no sentido de justificar a necessidade
(inclusive física) desses “produtos” para o corpo. A escritora traduz a relevância dos
“protocosméticos” bíblicos nestes termos:
No mundo antigo, com tão pouco saneamento e cheiros fortes, os perfumes eram
altamente valorizados (...) Óleos perfumados eram usados das seguintes maneiras:
para suavizar a pele e tirar odores desagradáveis; (...) como hidratante no clima seco
do deserto; (...) como atração para o relacionamento sexual (...)”. (A BÍBLIA DA
MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL, ESTUDO, 1993, p. 137).
40
Note-se a busca por parte da autora-comentarista em dar ao uso dos perfumes e
cosméticos no período bíblico uma espécie de função utilitária que a desvincule da simples
denotação estética que possa remeter à vaidade do corpo. Uma sutil maneira de modernizar
sem, contudo, fugir à ortodoxia. Busca-se, assim, por meio dessa estratégia discursiva, adaptar,
ressignificar e harmonizar o ideal da mulher singela e recatada inspirada nos pressupostos da
narrativa judaico-cristã ao contexto de uma sociedade que, embora pretenda continuar cristã,
quer ser também associada à uma certa modernidade, atualidade e “racionalidade”, ou seja, nem
todos os “crentes” desejam continuar a ser vistos como “fanáticos” e anacrônicos nos dias
atuais.
Finalmente, cumpre salientar que os exemplos analíticos citados neste artigo parecem
indicar o tipo de projeto discursivo e ideológico tecido habilmente nas páginas de “A Bíblia da
mulher”. Trata-se de uma tentativa de dar uma aparência de modernidade, razoabilidade e
equilíbrio à forma como a mulher, o feminino e a feminilidade são representados no texto
bíblico original. Um projeto que, embora revista-se com as roupagens aparentes e ilusórias de
uma nova perspectiva na qual a mulher é vista como importante, valorizada e com um lugar
todo especial no mundo discursivo judaico-cristão e no universo social arquitetado e ordenado
por Deus, continua em sua essência, fiel à milenar separação de papéis femininos e masculinos,
reprodutor de antigas hierarquias calcadas na suposta superioridade masculina e, sobretudo,
como uma forma de legitimar um discurso que se propõe moderno e todo ele voltado para a
valorização da mulher nos diversos espaços de atuação. Valendo-nos de um adágio popular
muito conhecido, o discurso sobre o feminino e sobre a feminilidade na Bíblia da Mulher seria,
assim, “moderninho por fora, mas barroquinho por dentro.”
Referências
BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex’. New York: Routledge, 1993.
41
LOURO, G. L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
RESENDE, V. M.; RAMALHO, V. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v.15,
n. 2, dez. 1990. p. 5-22.
VAN DIJK, T. Discourse as structure and process. London: Sage Publications, 1997.
42
Capítulo
3
Aspectos metodológicos nos estudos da análise de
discurso crítica e da multimodalidade
Introdução
De modo geral, as ciências têm à disposição diversas abordagens teórico-metodológicas
para operacionalizar suas pesquisas, as quais são escolhidas em virtude do objeto de estudo a
ser investigado pelo pesquisador. No âmbito da Linguística Aplicada, uma área do
conhecimento de caráter transdisciplinar, não seria diferente, pois dela emergem múltiplas
perspectivas preocupadas com os problemas de uso da linguagem em práticas sociais, dentro
e/ou fora do contexto escolar, a exemplo dos estudos críticos da linguagem, da teoria dos
multiletramentos, da relação entre tecnologia e ensino, do ensino de línguas, da formação de
professores, entre outras.
Assim, ao considerarmos a importância do conjunto de procedimentos
lógicos/operacionais que articulam conhecimentos e ações em prol de determinados propósitos
científicos, bem como o grande interesse por pesquisas sobre discurso e sobre/com textos
multimodais, neste artigo, nosso objetivo é investigar aspectos metodológicos presentes nos
estudos da Análise de Discurso Crítica e da Multimodalidade.
Para consecução do objetivo proposto, realizamos uma pesquisa descritiva e
bibliográfica pautada em duas grandes áreas: i) a Teoria Social do Discurso, desenvolvida por
Fairclough (2001, 2003), que considera a necessidade de uma análise de discurso textualmente
orientada quando se pretende investigar a relação dialética entre linguagem e sociedade e que,
segundo Magalhães (2000) e Magalhães, Martins e Resende (2017), deve apresentar caráter
etnográfico-discursivo, com imersão do pesquisador nas práticas socioculturais, para uma
efetiva validação das análises; ii) a Multimodalidade, que destaca as potencialidades das
múltiplas semioses presentes na contemporaneidade e aponta a Gramática do Design Visual, de
Kress e van Leeuwen (2006), como uma ferramenta de análise crítica para investigar
sistematicamente composições visuais.
23
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará
(UECE). E-mail: adrika.pereira13@gmail.com
24
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada Universidade Estadual do Ceará
(UECE). E-mail: suellen.sfs9@gmail.com
43
Ademais, apresentamos sucintamente elementos metodológicos de pesquisas realizadas
em diferentes universidades, nos últimos anos, que exemplificam análises engajadas e críticas
do discurso, com foco em textos e estruturas sociais, como Ramalho (2005), Resende (2008),
Nascimento (2014) e Pereira (2016), e que se apoiaram nas teorias de base deste capítulo.
25
Histórico-discursiva, de Reisigl e Wodak, Linguística de corpus, de Mautner, Atores sociais, de van Leeuwen,
Análise de dispositivo, de Jäger e Maier, Sociocognitiva, de van Dijk e Dialético-relacional, de Fairclough, são as
seis abordagens de estudos em ADC, as quais são diferenciadas “de acordo com um contínuo de indução-dedução”
(MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017, p. 28). Para saber mais, ver: WODAK, R.; MEYER, M. (Orgs.).
Methods of critical discourse analysis. 2 ed. Londres: Sage, 2009.
44
por entender que as relações de poder, no contexto da modernidade tardia, são mediadas pela
relação entre linguagem e sociedade, bem como materializadas em textos.
Com relação a isso, Fairclough (2003) propõe uma causalidade dos textos e enuncia que,
por serem elementos dos eventos sociais, os textos têm efeitos causais sobre as pessoas, as
relações sociais e o mundo. Isso ocorre tanto de forma imediata, ao provocarem mudanças no
nosso conhecimento, nas nossas crenças, nas nossas atitudes e nos nossos valores; como de
forma mais duradoura, ao contribuírem para transformações na educação ou para moldar
identidades por intermédio de textos comerciais, por exemplo. Portanto, é necessária uma
análise que entenda como os recursos linguísticos podem ser usados para estabelecer, manter,
desocultar e alterar relações de poder.
Percebe-se, então, que a ADC relaciona, interna e dialeticamente, as noções de discurso
e sociedade, de modo que o discurso, por ser uma forma de ação historicamente situada, tanto
é moldado pela estrutura social como é constitutivo dela. Para tanto, a TSD trabalha com o
modelo tridimensional do discurso, considerando suas três dimensões: i) a prática social, que
investiga as categorias hegemonia e ideologia; ii) a prática discursiva, que analisa os momentos
de produção, distribuição e consumo textual; iii) o texto, que considera os elementos
vocabulário, gramática, coesão e estrutura. Tal modelo é representado na Figura 1.
45
Desse modo, Fairclough expande a relação entre ADC e LSF e associa as macrofunções
desta com os conceitos de gênero, discurso e estilo. Desse diálogo mais aprofundado entre as
teorias, a ADC apresenta como resultado a categorização de três tipos de significado, os quais
agem concomitantemente em todo enunciado: i) o significado acional, que “focaliza o texto
como modo de (inter)ação em eventos sociais”; ii) o significado representacional, que destaca
a “representação de aspectos do mundo” nos textos; iii) o significado identificacional, que se
refere à (re)construção de identidades no discurso (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 60).
Quanto ao uso dos significados do discurso faircloughiano em pesquisas, vejamos o trabalho
de Viviane Ramalho, uma das brasileiras de destaque em ADC.
A dissertação de Ramalho (2005) investiga o discurso construído, de modo antagônico,
em reportagens de duas revistas brasileiras – Veja e Caros Amigos –, acerca da invasão ao
Iraque, em 2003, pelos Estados Unidos. A pesquisadora traz uma análise social e textualmente
orientada que ilustra como os três significados propostos por Fairclough (2003) são relevantes
para se investigar quais mecanismos linguísticos, e como eles, são responsáveis pela
manutenção de relações assimétricas de poder. Estas sustentam, por vezes, a hegemônica
legitimidade dos EUA na invasão como a única visão do fato.
Para isso, a autora analisa o gênero discursivo reportagem como modo de agir e
interagir, tanto pela sua estrutura genérica quanto pela intertextualidade das vozes que
permeiam os textos. Já a investigação dos discursos jornalísticos, como modo de representar o
mundo, é relevante na pesquisa, pois mostra, por meio da interdiscursividade e da
representação de atores sociais, como os aspectos linguísticos funcionam para retratar
visões/compreensões sobre o fato, a invasão ao Iraque. Por fim, a autora examina os modos de
identificação (estilos) presentes nas reportagens, selecionando as categorias avaliação e
metáforas.
Os resultados mostram que análises textuais minuciosas articuladas com a análise social
revelam como os textos, processos e produtos do evento social, podem contribuir para
preservação do poder. Na pesquisa, a revista Veja, pertencente à grande mídia brasileira,
aparece como disciplinadora e interessada em desenhar uma visão hegemônica da invasão; por
outro lado, Caros Amigos apresenta características transformadoras na abordagem dessa
temática.
Feitas as delimitações acerca da ADTO como um caminho metodológico necessário à
ADC, seguido de um exemplo de pesquisa, discutiremos a seguir a proposta intitulada
etnografia-discursiva.
46
é necessária uma análise que também investigue as práticas sociais das quais esses textos são
pertencentes.
A respeito dessa abordagem, Magalhães, Martins e Resende (2017) ressaltam que o
estudo do discurso, na perspectiva crítica, requer uma imersão do pesquisador nas práticas
socioculturais por meio de análise descritiva, interpretativa e explanatória. Para isso, são
necessários variados métodos de coleta/geração de dados, como as observações, as entrevistas,
os diários dos participantes, entre outros. Portanto, a investigação textual deve ser validada pelo
exame do contexto social para que a análise crítica seja adequada as suas bases teórico-
metodológicas.
A proposta de Magalhães (2000) está em consonância com a chamada etnografia crítica
porque ambas procuram fortalecer grupos em situação de desvantagem, diferente da etnografia
tradicional, que visa apenas compreender o social sem, necessariamente, intervir nele. Por
conseguinte, é necessário um caminho metodológico participativo que não apenas disponha de
variados instrumentos de pesquisa, mas que também possua um viés emancipatório para a
integração desses métodos.
Sendo assim, como a ADC se fundamenta na relação indissolúvel entre discurso e
sociedade, isso implica um método que seja capaz de analisar também a prática social e não
apenas os textos que nela estão inseridos. Esse estudo contextualizado do discurso ocorre de
forma mais adequada em um trabalho de campo, como destaca Magalhães (2006). Dessa forma,
a defesa pelo caráter etnográfico crítico em ADC não é uma escolha isolada, mas uma
necessidade epistêmica, uma vez que essa teoria se propõe à intervenção e ao engajamento
social para transformar relações desiguais de poder.
Para exemplificar como a etnografia discursiva é feita, trazemos a tese de Viviane
Resende, outra brasileira em evidência nos estudos em ADC e nas discussões desse caminho
metodológico.
O trabalho de Resende (2008) analisa o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua, do Distrito Federal, e se orienta teórico-metodologicamente pela interface entre a ADC e
o Realismo Crítico para análise do corpus e discussão dos resultados. O percurso metodológico
delineado pela autora foi o etnográfico-discursivo com uso de variados instrumentos, como
observação participante, notas de campo, entrevistas focalizadas, grupos focais e gravação
das reuniões, durante o período de abril de 2005 e março de 2007.
Nessa pesquisa, a proposta da etnografia combina a pesquisa de campo e variados
métodos de geração/coleta de dados com uma análise discursiva textualmente orientada, ao
serem usadas as categorias interdiscursividade, coesão, modalidade, metáfora e representação
de atores sociais destacando, como enfoque do trabalho, os significados: representacional e
identificacional de Fairclough (2003). Os resultados indicam as causas discursivas da crise do
movimento investigado e as consequências dela para o protagonismo juvenil.
Resende (2008) julga os caminhos etnográficos fundamentais para se entender os
demais momentos das práticas sociais e, por isso, essa escolha é também epistemológica, pois
se coaduna com a concepção de discurso, como momento da prática, de Chouliaraki e
Fairclough (1999). Nesse sentido, a etnografia discursiva continua com a orientação textual na
sua análise, focando nos mecanismos linguísticos, mas considerando que tal investigação é
indissociável de uma análise social. Ao finalizar a tese, a autora destaca “a maior vantagem de
47
pesquisas dessa natureza: na construção conjunta, dividem-se experiências, somam-se
conhecimentos e multiplicam-se objetivos” (RESENDE, 2008, p. 295).
Após as explanações e exemplificações acerca da ADC, textualmente orientada e de
caráter etnográfico-discursivo, a partir da próxima seção, lançamos um olhar panorâmico à
abordagem da multimodalidade.
26
O termo multiletramentos, mais direcionado a contextos educacionais, refere-se a práticas sociais que envolvem
48
internet, em revistas, em jornais, em enciclopédias, por exemplo, podem ser materializados em
textos e levados à escola em forma de gêneros discursivos, como: cartazes, histórias em
quadrinhos, cardápios, reportagens, resenhas de filmes, entre outros, com vistas ao letramento
visual dos estudantes.
Na próxima seção, apresentamos a Gramática do Design Visual, um aporte
metodológico textualmente orientado que, através de categorias metafuncionais, propicia uma
análise sistemática das estruturas semióticas visuais.
um conjunto de habilidades, estratégias e recursos semióticos utilizados para se produzir e interpretar textos na
sociedade contemporânea, em estreita relação com o contexto social (HEBERLE, 2019, p. 64).
49
METAFUNÇÕES
Kress e van Leeuwen
(2006)
Composicional
Interativa
Representacional Relação entre os
Relação entre os
Relação entre os componentes
participantes internos e
participantes internos. representacionais e
externos.
interativos.
50
do curta aos colaboradores sem intervenção da pesquisadora; iii) reexibição do vídeo com
interferência de Nascimento (2014) por meio de perguntas estruturadas.
Em relação à análise dos dados, esta também se resume a três momentos: i) investigação
do processo de construção dos referentes, por leitores não conhecedores da GDV, mediante as
categorias valor informativo, enquadramento e saliência; ii) identificação dos referentes
construídos e classificação destes, com base na interpretação dos sujeitos entrevistados,
seguindo os parâmetros dos processos apresentação, acréscimo, correção e confirmação; iii)
reflexão sobre como a metodologia utilizada ajuda a explicar as estratégias de compreensão
leitora, como predição, seleção, inferência.
Uma das considerações finais de Nascimento (2014, p.142) foi a constatação de que “tal
como se ensina a produzir e compreender textos, acreditamos que é possível ensinar a
compreender as semioses audiovisuais”. Essa característica ratifica a necessidade urgente de
abordagens verbo-audiovisuais de ensino, com objetivos bem delineados, serem didaticamente
transpostas e levadas às salas de aula dos mais diferentes níveis da educação, como também
observamos no exemplo seguinte.
Com abordagem qualitativa, a dissertação de Pereira (2016) realiza interface entre a
ADC e a GDV com o objetivo de letrar criticamente estudantes de 9º ano de uma escola pública
estadual de Fortaleza/CE. Para tanto, foi empregado o método pesquisa-ação e, por meio da
leitura, compreensão e reprodução de charges sobre a seca no Nordeste, realizou-se uma prática
de letramento multimodal crítico com foco na reconstrução identitária do nordestino.
Os procedimentos metodológicos desenvolvidos em duas turmas, com 37 alunos cada,
ocorreram durante oito encontros e foram organizados em cinco etapas: i) apresentação do
projeto de pesquisa e aplicação do pré-teste, ii) prática de leitura e análise de charges, iii)
apresentação do arcabouço teórico, iv) revisão teórica e aplicação do pós-teste, v) prática de
produção textual – redesenho das charges.
Diante do vasto material coletado e gerado nas etapas citadas, a autora utilizou
determinados critérios (como a participação dos discentes em todos os encontros) para a
definição do corpus da pesquisa, o qual é composto por dez questionários pré-teste, dez
questionários pós-teste, vinte atividades de leitura e seis redesenhos. Os significados da ADC e
as metafunções da GDV auxiliaram na análise dos dados mediante categorias como: gênero
discursivo, identidade do nordestino, estrutura narrativa, distância social, valor de
informação, entre outras. Como resultado da intervenção desenvolvida, a investigação obteve
produções multimodais nas quais o nordestino foi desenhado em um contexto de
empoderamento e de convivência harmônica com a seca.
Conclusão
No âmbito da Linguística Aplicada, este trabalho objetivou investigar aspectos
metodológicos presentes nos estudos da Análise de Discurso Crítica e da Multimodalidade.
Discorremos, de modo sucinto, sobre o enquadramento epistemológico dessas teorias –
característica de grande importância para o fazer científico –, e citamos exemplos de pesquisas
nessas áreas que buscaram uma análise social, crítica e (inter)transdisciplinar.
51
A síntese feita das teorias em questão e a importância de um caminho metodológico
participativo, o qual exemplificamos por meio de trabalhos que abordam temas como a invasão
ao Iraque pelos Estados Unidos, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a
reconstrução identitária do nordestino, revelam que as escolhas metodológicas são aspectos
constitutivos da pesquisa e precisam estar epistemologicamente relacionadas com as teorias que
as subjazem e com os objetivos previamente construídos.
Sendo assim, procuramos mostrar que metodologias participativas, ao serem
combinadas com análise textuais (mono e/ou multimodais), possibilitam aos pesquisadores
maior contato com os sujeitos, dentro de sua complexidade e na profundidade da teia social,
sem recortar situações e momentos isolados para uma análise pronta e acabada.
Referências
52
MAGALHÃES, I. Discurso, ética e identidades de gênero. In: MAGALHÃES, I.;
GRIGOLETTO, M.; CORACINI, M. J. (orgs.). Práticas identitárias: língua e discurso. São
Carlos: Claraluz, 2006. p. 71-96.
MAGALHÃES, I.; MARTINS, A. R.; RESENDE V. M. Análise de discurso crítica: um
método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017.
NASCIMENTO, S. S. O. A construção multimodal dos referentes em textos verbo-
audiovisuais. 150f. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal do Ceará, Ceará,
2014. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/9504/1/2014_dis_ssonascimento.pdf. Acesso
em: 11 jun. 2020.
PEREIRA, A. S. A reconstrução identitária do nordestino a partir de charges sobre a seca:
uma prática de letramento multimodal crítico na aula de língua materna. 172f. Dissertação
(Mestrado Profissional em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Rio
Grande do Norte, 2016. Disponível em: http://www.uern.br/controledepaginas/profletras-
mossoro-dissertacoes/arquivos/3621dissertaa‡aƒo_adriana_pereira_versa£o_final.pdf. Acesso
em: 02 jun. 2020.
RAMALHO, V.C.V.S. O discurso da imprensa brasileira sobre a invasão anglo-saxõnica
ao Iraque. 2005. 193f. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade de Brasília,
Distrito Federal, 2005. Disponível em:
https://repositorio.unb.br/handle/10482/8977?mode=full. Acesso em: 05 jul. 2020.
RESENDE, V. M.; RAMALHO, V. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica e etnografia: o movimento nacional de meninos
e meninas de rua, sua crise e o protagonismo juvenil. 332f. Tese (Doutorado em Linguística).
Universidade de Brasília, Distrito Federal, 2008. Disponível em:
https://repositorio.unb.br/handle/10482/3624. Acesso em: 05 jul. 2020.
WODAK, R. Do que trata a ACD - um resumo de sua história, conceitos importantes e seus
desenvolvimentos. Linguagem em (Dis)curso, LemD, Tubarão, v. 4, n. esp., p. 223-243, 2004.
Disponível em:
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/297/313
. Acesso em: 03 jul. 2020.
53
Capítulo
4
Fita Verde no Cabelo: um estudo discursivo-
semiótico sobre o conto de Guimarães Rosa
Considerações Iniciais
Este trabalho tem como escopo a análise do conto Fita Verde no Cabelo (2013) do
aclamado escritor João Guimarães Rosa. Essa análise foi feita tendo como base teórica o
percurso gerativo do sentido em suas três etapas: fundamental, narrativa e discursiva, a partir
da obra de Barros (2005). Objetivamos, aqui, compreender os sentidos que a obra traz através
do estudo semiótico. O trabalho abordou, primeiramente, a literatura fantástica subsidiado por
Camarani (2014), Calvino (1993) e Hueck (2017), depois partimos para a análise semiótica,
finalizando com uma proposta de atividade em sala de aula. Apropriamo-nos do conto,
esmiuçando-o em cada detalhe para podermos encontrar o sentido do texto em sua unicidade
e organicidade. A análise realizada apontou para temáticas relacionadas à passagem da vida e
à efemeridade do nosso tempo. Dessa forma, concluímos que a obra de Guimarães é para bem
além da literatura e deve ser trabalhada em sala de aula através dessa perspectiva.
Iniciada a partir de narrativas populares, a literatura fantástica transcorreu o tempo
transitando entre o seu papel estritamente educativo ao seu papel de proporcionar
27
Mestranda em Linguística Aplicada – POSLA/UECE. Bolsista (FUNCAP). E-mail:
marion.cavalcante@aluno.uece.br
28
Graduanda em Letras Português Licenciatura – UECE. E-mail: andrade.silva@aluno.uece.br
54
interpretações mais analíticas, considerando a simbologia da realidade e evidenciando, nos
textos, uma habilidade criativa e representativa das experiências sociais.
Dentro dessa consideração, é importante salientar a concepção proposta por Austin ao
indicar os atos em que a linguagem vai se adequar dentro do contexto produzido em
determinada obra literária, a fim de traduzir, através da argumentação, como que o dito está
em favor daquilo que se espera por meio dos efeitos persuasivos, como exemplo as inferências,
que contém argumentos plausíveis que comprovem as premissas de que a “argumentatividade
está inscrita no nível fundamental da língua” (KOCH, 2011, p. 19).
Adentrando no conto estimado para estudo, consideramos o simbolismo presente na
obra ao observar a construção da personagem de Fita-Verde em favor da representação da
contraposição entre o velho e novo e que se apresentam na narrativa. A “meninazinha, a que
por enquanto” (ROSA, 2013, p. 1) reconhece a vida e sua efemeridade quando perpassa pelo
bosque a fim de encontrar sua avó do outro lado, não encontrando nenhum percalço durante o
caminho, como exemplo do lobo, figura rudimentar no conto original em Chapeuzinho
Vermelho, o que representa o mal de modo que o lobo configura a morte através de suas ações
a partir do ato de “comer viva” a avó da menina.
Como objetivo geral deste artigo, buscamos compreender a construção de sentido na
obra Fita Verde no Cabelo de Guimarães Rosa. Nos objetivos específicos apresentamos a
literatura fantástica e propomos atividades com essa narrativa para além da literatura.
Para tal, analisaremos a obra à luz dos estudos discursivo-semióticos, pois esta teoria
nos proporciona subsídios pertinentes para o alcance de nossos objetivos. Vale ressaltar, que a
linha semiótica, a qual nos embasaremos, é a proposta pelo francês Algirdas Julien Greimas,
que através do percurso gerativo de sentido estabelece que os elementos do conteúdo adquirem
sentido por meio das relações estabelecidas entre eles.
Dessa maneira, este artigo está assim estruturado: far-se-á, inicialmente, uma
apresentação acerca da literatura fantástica, em seguida será feita uma análise interpretativa da
narrativa da obra de Guimarães, utilizando-nos de Barros (2005) para tanto. E então, por fim,
serão propostas atividades para além do texto.
As leituras da juventude [...] podem ser [...] formativas no sentido de que dão uma
forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de
comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza:
todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do
livro lido na juventude. (CALVINO, 1993, p. 8).
55
Com as mudanças sociais vivenciadas ao longo dos séculos, a forma de trabalhar as
narrativas tem se modificado, visando ampliar suas temáticas para discussões mais modernas,
visto que a mentalidade da juventude de hoje não é a mesma do século XVII. Retomando
Calvino (1993) quando ele afirma que as leituras fornecem modelos, podemos fazer uma breve
comparação entre dois contos fantásticos para que possamos compreender de que maneira os
valores sociais interferem na produção do gênero. Em Rapunzel (GRIMM, 2013), um homem
e uma mulher são ameaçados por uma bruxa, que acaba exigindo como moeda de troca
Rapunzel, a filha tão desejada pelo casal e que ainda iria nascer. A bruxa leva Rapunzel quando
ela completa 12 anos e a aprisiona em uma alta torre sem portas nem janelas, longe de todo o
contato exterior. A releitura desse clássico feita pela Disney no filme Enrolados, entretanto,
traz além da temática do aprisionamento, a questão do medo da velhice, quando a Mãe Gothel
utiliza os poderes mágicos do cabelo de Rapunzel para se manter sempre jovem. Isso coloca
em pauta temas que, muitas vezes, são sensíveis para os leitores como a proximidade com a
morte, a iminência da passagem do tempo e a crescente necessidade de se manter jovem em
uma sociedade que cada vez mais estima a juventude e a beleza.
A literatura fantástica é, pois, consequência da mente humana que é capaz de imaginar
e dar níveis de significação a uma ideia, construindo um pensamento simbólico que pode
caracterizar pensamentos universais representados em imagens. Sendo assim, “a narrativa
fantástica caracteriza-se ao mesmo tempo pela aliança e pela oposição que estabelece entre as
ordens do real e do sobrenatural” (CAMARANI, 2014, p. 7). Um claro exemplo disso são os
contos de fadas que muitas vezes utilizavam simbolismos para representar a crueldade social
da época. Hueck (2017), em texto online na Revista Superinteressante sobre o livro O lado
sombrio dos contos de fadas: A Origem Sangrenta das Histórias Infantis (2016), aborda, por
exemplo, a história de A Bela e a Fera que vai além de um conto infantil, ela retrata a realidade
europeia de séculos passados, em que as mulheres eram tratadas como mercadorias ou como
objetos de troca para evitar guerras entre reinos e “uma vez que se casavam com seus noivos
arranjados, elas se tornavam posse dos maridos. A missão das esposas era servir e obedecer
aos cônjuges. [...] Aos homens eram atribuídos os direitos de manter a mulher sob controle –
mesmo que à força [...]” (COONTZ 2005 apud HUECK 2017, online)29. Ainda na mesma
obra:
Bater nas esposas não era crime, e até os séculos 8 e 9 d.C. os maridos tinham o
direito de matar as suas esposas em casos de desavenças. Claro que nem todos os
maridos eram cruéis e violentos – mas se dar bem na roleta dos casamentos era
puramente uma questão de sorte. O medo de se casar com “feras” era presente na
vida de todas as moças – das camponesas às princesas. A Bela e a Fera é um
lembrete dessa realidade. (COONTZ, 2005 apud HUECK, 2017, online).
29
Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/. Acesso em: 20 out.
2019.
56
Portanto, o fantástico é o resultado de uma mente criativa que através do fenômeno
subjetivo retrata a história, a cultura e a vida real. As vastas semioses utilizadas causam
perturbação e fazem o ego emotivo prestar atenção naquilo que a história se propõe a contar.
Dito isso, utilizaremos o percurso gerativo do sentido para estudo da obra Fita Verde
no Cabelo dada a possibilidade de percepção dos inúmeros jogos semióticos e das nuances
que permeiam esse conto de veia quase poética.
No conto de Guimarães, Fita-Verde é uma meninazinha que inicialmente é retratada
como desajuizada. Aristóteles (2011) pontua que toda criança é inacabada e incompleta; é pura
paixão, sem espaço para razão, ou seja, a falta de juízo é característica da juventude que se
contrapõe ao final do conto quando o narrador afirma que Fita-Verde demonstrou ter juízo
pela primeira vez quando confrontada com a fraqueza da avó. Esse paralelo marca uma das
principais oposições semânticas da obra retratada a seguir:
Juventude Velhice
Ainda sobre essa oposição é válido pontuar que nos contos de fadas, o tempo e o espaço
não funcionam como no nosso mundo. As marcações para essas ideias são, na maioria das
vezes, simbólicas, de forma que um elemento sempre presente é a Floresta Encantada.
57
A floresta pode ser escura, iluminada, densa, com clareira ou sem, povoada por
seres amistosos ou não, mas invariavelmente ela estará lá. A floresta, no mundo
fantástico, constituirá passagem quase obrigatória no caminho daqueles que
precisam libertar, transformar, aprender, resgatar, e/ou superar a si mesmos ou aos
outros. (SCARDUA, 2009).
Vida Morte
Nesse quadrado, é possível notarmos que as passagens das fases da vida levam a
reflexões sobre a morte. Apesar de ser a única coisa que todos temos certeza de que iremos
passar, o conto retrata que a morte é um tabu, tanto porque temos medo de que quem amamos
perca a vida, como temos medo de nos depararmos com ela. Freud (2016) explica o tabu sendo
uma proibição antiga dos povos primitivos. A pessoa que tivesse contato com o morto, ao
participar de seu enterro, era considerado impuro, sendo assim, o sujeito deveria passar por um
período de restrição social para que pudesse se descontaminar, a fim de poder voltar a viver
em sociedade e fazer também ações básicas, como pegar na comida.
Ao amadurecer psicologicamente, Fita-Verde mostra que o aprendizado e a percepção
são responsáveis pela aquisição de uma consciência da significação; quando ela fala, portanto,
que tem medo do Lobo, mesmo que na história não exista nenhum, a personagem mostra que
indiretamente o enfrentamento com o vilão seria melhor, pois sabemos que se fosse o caso
haveria solução, o que não é possível com a morte, pois ela é irremediável.
Finalizadas nossas observações sobre o nível fundamental, passemos ao nível narrativo,
pontuando primeiramente os dois enunciados da sintaxe narrativa: o de estado, em que o sujeito
está em conjunção ou disjunção com um objeto e o de fazer, quando há uma transformação
enunciativa.
Nesse sentido, Fita-Verde estabelece, em um primeiro momento, uma relação de
conjunção com a falta de juízo, a juventude e a diversão. Esse enunciado de estado passará a
outro à medida que a Vovozinha se aproxima da morte, marcando o enunciado de fazer. No
58
segundo momento da história, a personagem principal assume um status de ajuizamento,
característico de quem tem um certo grau de maturidade, evidenciando a passagem das etapas
da vida.
É primordial, ainda nesse nível, discutirmos sobre os objetos almejados pelo sujeito,
que podem ser os objetos modais ou os objetos de valor. Os objetos modais são os componentes
utilizados para que ocorra a transformação que move a narrativa, no caso da história de
Guimarães esse objeto nos é apresentado na figurinha da Vovozinha, alguém que era muito
querida e estimada pela personagem principal e que ao morrer na frente da neta mudará a forma
como Fita-Verde lidará com a vida. Os objetos de valor nos levam a refletir sobre a finalidade
do texto. Fita Verde no Cabelo sendo uma releitura atual do antigo conto de fada Chapeuzinho
Vermelho e, portanto, “bebendo da fonte” da literatura fantástica, busca retratar temas
rotineiros como forma de representação simbólica e como processo mimético, de forma que o
objeto de valor dessa obra é justamente a efemeridade da vida.
Por fim, no nível discursivo “as estruturas discursivas devem ser examinadas do ponto
de vista das relações que se instauram entre a instância da enunciação, responsável pela
produção e pela comunicação do discurso, e o texto-enunciado.” (BARROS, 2005, p. 15). O
conto Fita Verde no Cabelo possui recursos discursivos muitos próprios do estilo de
Guimarães Rosa que costuma em suas obras construir mundos semântica e sintaticamente. No
primeiro parágrafo o narrador fala que “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem
menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e
meninas que nasciam e cresciam.” (ROSA, 2013, p. 1), apontando para as fases da vida e para
o que as pessoas fazem em cada uma delas, como fazer coisas de gente velha quando idoso,
esperar pela velhice quando adulto e amadurecer quando criança.
A seguir ele coloca que todos na aldeia tinham juízo, menos uma meninazinha “a que
por enquanto” (ROSA, 2013, p. 1); por enquanto é classificada como uma locução adverbial,
que conforme Bechara (2009, p 244) “é o grupo geralmente constituído de preposição +
substantivo [...] A preposição, funcionando como transpositor, prepara o substantivo para
exercer uma função que primariamente não lhe é própria”, dito isso a preposição por, que tem
como uma de suas funções marcar o tempo, ao unir-se ao vocábulo enquanto indica o presente
da circunstância que se fala, no caso do texto, é só questão de tempo até que a menina crie
juízo.
Ao atravessar o bosque, a personagem se depara com lenhadores que mataram o lobo,
ou seja, nessa versão Fita-Verde não terá que lidar com um ser mágico, as dificuldades que ela
enfrentará estão fora da “floresta”. O trecho “E ela mesma resolveu escolher tomar este
caminho [...] louco e longo” (ROSA, 2013, p. 1) evidencia o livre-arbítrio que geralmente não
é conferido às personagens mulheres nos contos de fadas originais, pois sempre há alguém que
decide por elas, corriqueiramente, os homens. Cria-se aqui um efeito de proximidade com o
real, visto que os recursos simbólicos nos levam à conclusão de que as dificuldades que
enfrentamos não são frutos de elementos fantasiosos, Rosa, de maneira muito sagaz, utiliza-se
de um recurso fantástico para escancarar que nós somos os autores das nossas jornadas que
nos levará a determinadas consequências.
Ao chegar à casa da Vovozinha, a protagonista percebe que a velhinha se esforça para
falar e está muito fraca e a personagem reage da seguinte forma: “Mas agora Fita-Verde se
espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no
59
cabelo atada” (ROSA, 2013, p. 2). A fita verde, assim, parece ser um simbolismo para a vida,
pois quando o texto vai se encaminhando para um desfecho mais sombrio, o elemento que
acompanha a menina alegre e feliz por todo o enredo desaparece, dando lugar a uma Fita-
Verde triste e sem a sua fita, como se houvesse uma transformação de quem ela era para quem
passaria a ser.
Na fala final da avó o narrador fala que “Fita-Verde mais se assustou, como se fosse
ter juízo pela primeira vez.” (ROSA, 2013, p. 2). Como se estabelece sintaticamente uma
comparação com outro enunciado, sabemos, no texto, que essa comparação se estabelece a
partir da condição inicial da personagem: de desajuizada “por enquanto”.
Por fim, quando Fita-Verde afirma ter medo do Lobo, há novamente a evocação do
elemento fantástico e indica que o lobo, metaforicamente, é da ordem do inevitável, visto que
ele sempre existirá, não importa o caminho que a personagem siga e não importa as ações que
ela tome.
Ademais, de acordo com Barros (2005, p. 16), “ainda no nível discursivo, as oposições
fundamentais, assumidas como valores narrativos, desenvolvem-se sob a forma de temas e, em
muitos textos, concretizam-se por meio de figuras.”.
a) tema da velhice ou do estágio final da vida;
b) tema da juventude ou da falta de juízo e maturidade;
c) tema da vida ou das passagens pelas etapas;
d) tema da morte ou da efemeridade do nosso tempo de vida.
60
Tátil Frio Quente
Fonte: BARROS, 2005 (Adaptado)
Os traços podem ser percebidos por figuratividades no texto, por exemplo, os traços
sensoriais são representados pelos braços, lábios, olhos durante o diálogo entre avó e neta.
Dessa forma, o conto nos mostra, com sensibilidade, a passagem do tempo e que as coisas
jamais retornarão, de modo que devemos aproveitar o meio tempo, aceitando que um dia tudo
acabará.
61
discutido em seus aspectos mais formais, considerando um leque de possibilidades que os
alunos podem aludir durante a leitura, deixando que essas considerações feitas pelos
estudantes partam de suas leituras prévias, sendo importante lembrar que não existem leitores
ou textos isolados, pois “leitores cujas consciências são constituídas por um conjunto de
convenções que quando postas em operação constituem, por sua vez, um objeto convencional
e convencionalmente percebido” (FISH apud COSSON, 2014, p. 137).
Dentro desse ínterim, Cosson (2014) pontua que é fundamental perceber que o leitor
não pode estar fora das convenções de uma comunidade interpretativa, todos os sujeitos estão
dentro de uma comunidade, sendo esta o que informa como a leitura é feita em diferentes
definições, sendo estas objetivas ou não, mas que, é pertencendo a esta comunidade, que os
sujeitos se tornam leitores.
Após a leitura e discussão da narrativa dentro de seu grupo, é interessante que o
mediador indique as atividades que cada grupo deve desenvolver. De acordo com Cosson
(2014), a propostas sobre as funções são
a) o conector, aquele que liga a obra à vida; b) o questionador, aquele que prepara
perguntas para os outros colegas; c) o iluminador de passagens, aquele que escolhe
alguma passagem para pontuar; d) o ilustrador, aquele que traz ou faz imagens para
ilustrar o texto; e) o dicionarista, aquele que fica responsável pelas palavras de
difícil entendimento; f) o sintetizador, aquele que sumariza o texto; g) o
pesquisador, aquele que busca informações que podem ser relevantes ao texto; h)
o cenógrafo, aquele responsável por descrever as cenas principais e i) o perfilador,
aquele que traça um perfil para as personagens. (COSSON, 2014, p. 142 -143).
Depois de sortear ou indicar a função de cada grupo, os mediadores devem deixar que
os alunos montem suas considerações em favor do texto lido e que possam adquirir
considerações pessoais como a identificação pessoal dentro da história, ou como o final dessa
narrativa poderia ter sido diferente para ter um final feliz. Conforme Cosson (2014), o
mediador ainda pode levantar os questionamentos de qual a temática do conto ou qual a parte
mais interessante dessa narrativa.
A partir dessas considerações, os alunos irão se expressar melhor o que fomenta a
autonomia de cada sujeito participante, dentro do contexto social formado pelo grupo.
Sugerimos que, para o conto aqui selecionado, as funções necessárias para o melhor
desenvolvimento literário pelos grupos sejam as que estão no ponto a) o conector; b) o
questionador e g) o pesquisador, não excluindo as outras funções, mas que estas três estejam
como prevalência, visto que adequam ao contexto aqui sugerido para estudo e análise a compor
a história percorrida pela garota.
Após as discussões, os alunos devem trocar novamente as considerações que foram
pontuadas pelo seu pequeno círculo, e discutir o que mudou e o que permaneceu após a
primeira consideração sobre a obra. Dessa forma, os alunos adquirem duas formas de analisar,
na primeira, uma leitura dinâmica e mais objetiva, na segunda, uma leitura mais embasada nos
detalhes, visto que as considerações vão para além do grupo em que este se encontra.
É importante considerar também, que a disposição dos grupos, em favor das funções,
auxilia na criação do hábito de leitura dentro do círculo, o que, com o aprofundamento dessa
prática, não será mais necessário as funções para cada grupo, já que os alunos possuirão um
62
amadurecimento literário, fugindo assim de uma dependência por seguir apenas as funções
propostas para cada grupo.
Considerações Finais
Apesar de ser uma narrativa curta, a análise mostra que a mensagem trazida pela obra
pode ser trabalhada em variados contextos, principalmente em sala de aula, visto que o conto
adquire uma roupagem de transição da jovem menina para a maturidade, por meio de um fator
singular em sua vida, a morte da avó, o que transporta o leitor para a possibilidade de
associação com um dos temas muito sensível e pessoal que é a perda de alguém querido.
A análise greimasiana permitiu que construíssemos os sentidos empregados pelo texto,
ao discorrer sobre a personagem principal, Fita-Verde, em contato com a sua avó. Sendo
assim, o sentido da narrativa se dá em concordância com os níveis do percurso gerativo do
sentido.
No primeiro nível, observamos que as oposições semânticas da narrativa são
justamente em torno da juventude e da velhice e da vida e da morte, de modo que podemos
perceber que a jovem menina vai sofrer a transição de pensamento conseguindo assim seu
amadurecimento emocional.
No segundo nível, o narrativo, chegamos à conclusão que é justamente o encontro face
a face com a morte que marcará a transição dos estados de fazer da personagem principal.
Além disso, simbolicamente, a marcação dos dois estados também pode ser observada através
da passagem pelo bosque e pela perda da fita verde, que evidenciam a proximidade de Fita-
Verde com aquilo que ela mais teme.
Por fim, no nível discursivo, a obra apresenta uma quebra de expectativa quando
relacionada ao mundo real, visto que no decorrer habitual das coisas, é na velhice em que há
um amadurecimento e não na infância, o que é atribuído à menina logo após a morte da avó.
Sendo assim, os efeitos simbólicos nos fazem perceber que as consequências são tidas
a partir de ações próprias e que as dificuldades não existem apenas na fantasia, mas que, como
o que ocorre na narrativa, os percalços podem ser finalizados.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Editora Edipro, 2011. 96 p.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 512 p.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Editora Ática, 2005.
88 p.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, Polifonia,
Intertextualidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. 81 p.
63
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova
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COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014. 192
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KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Editora Cortez, 2011.
240 p.
QUINTANA, Mário. Melhores poemas. São Paulo: Global Editora, 2006. 120 p.
ROSA, João Guimarães. Fita Verde no Cabelo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2013.
32 p.
64
Capítulo
5
Um estudo descritivo-comparativo em memoriais a
Reitor: para onde eles (não) apontam?
Introdução
Tomando o modelo de Oliveira (2005) para memoriais acadêmicos (MA), o trabalho, ao
aplicar tal modelo a três memoriais de candidatura a Reitor (MdCR) de três chapas diferentes
em eleição para Instituição de Ensino Superior Pública (Iesp), objetiva verificar, a partir de suas
unidades retóricas, para onde estes memoriais (não) apontam em termos das informações que
veiculam.
Há vários gêneros produzidos, disseminados e consumidos no contexto universitário
(resumos, resenhas, relatórios, projetos de pesquisa). Dentre estes, porém, há o gênero por
excelência deste contexto: o artigo científico (CORACINI, 1991), assim considerado por ser
um dos gêneros textuais mais recrutados para a divulgação dos resultados de pesquisas
científicas (MOTTA-ROTH et al., 2018) e por também servir como via de comunicação entre
profissionais, pesquisadores, professores e alunos de graduação e de pós-graduação (MOTTA-
ROTH e HENDGES, 2010).
Do ponto de vista linguístico, da organização retórica do gênero, o artigo “já possui um
padrão genérico reconhecido pela comunidade acadêmico-científica para os textos escritos que
relatam pesquisa” (RODRIGUES, 1998, p. 50, destaques nossos), o que a priori facilita sua
escrita. Esta autora, em sua tese de doutoramento, e após detalhada discussão, apresenta esse
‘padrão’ como sendo “amplamente apontado na literatura pela sigla IMRD [Introdução,
Metodologia, Resultados, Discussão]” (p. 53-54).
Observe-se que ao determinar que o artigo é o gênero ‘mais recrutado’ ou mais
escrito/produzido na comunidade acadêmica está se privilegiando o critério do uso reiterado e
contínuo como seu maior caracterizador, o que acaba por dar ao gênero seu status e consequente
“nobreza”. Atestado tal critério, há de se perguntar: o critério frequência de uso/de escrita do
30
Mestre em Linguística (UFC). Revisor/copidesque da Associação dos Professores das Escolas Oficiais do Ceará
(Sindicato APEOC). Professor de Língua Portuguesa (Análise e Interpretação Textual) da Academia APEOC. E-
mail: arnaldocesarce@gmail.com
65
gênero artigo seria uma espécie de (macro)critério que poderia suplantar a importância de
outro(s) gênero(s) também produzidos na esfera acadêmica? Em outras palavras, o critério
(re)escrita continuada ou uso reiterado do gênero artigo promoveria o silenciamento de outros
gêneros que circulam no ambiente acadêmico? Pensamos, ao fazer tais questionamentos, em
um gênero da ambiência universitária ainda pouco ou nada “falado” (ou “visto”): o memorial
acadêmico (OLIVEIRA, 2005).
O memorial acadêmico (MA), conforme este autor, é gênero de produção
imprescindível caso se queira entrar no magistério superior ou caso se queira ascender
profissionalmente em seus quadros. Ou seja: não se poderá entrar nem muito menos se poderá
progredir na carreira como docente do ensino superior se não se escrever um MA. Observe-se,
inclusive, que para que se produza o gênero ‘por excelência’ do contexto universitário, o artigo,
é necessário que, antes, se produza um MA. Por que, então, dada sua importância, o MA parece
continuamente estar à margem do “debate acadêmico”?
O MA, então, em um primeiro momento, o de entrada na universidade, é uma espécie
de gênero abridor, propiciador, permitidor; um gênero (auto)biográfico “abre portas” para tudo
aquilo que poderá e deverá ser produzido em uma carreira na comunidade acadêmico-científica;
sendo, em um segundo momento, o de ascensão, progressão ou reposicionamento funcional
junto a esta comunidade, um gênero assegurador, confirmador e confirmante da presença de
seu produtor junto a seus quadros – eis aí a explicação de o MA ser exigido em concursos “top”
da carreira universitária: para professores “titulares”, “efetivos” ou “livre-docentes”.
Uma boa imagem para o memorial acadêmico seria a de um trampolim: para que seja
possível entrar na piscina, outra metáfora para representar a comunidade acadêmico-científica,
é preciso, antes, se projetar a partir da escrita de um ou vários MA.
Enquanto o artigo centra-se sobre o objeto de pesquisa, o memorial centra-se sobre o
pesquisador, sem, no entanto, deixar de apresentar as variadas e diversificadas práticas das quais
pode ter participado seu produtor. Em outras palavras, a escrita de MA é uma “escrita
autobiográfica que, para além de realizar objetivos [eleger-se como Reitor, por exemplo] aponta
para brechas, falhas, hiatos: essa escrita, portanto, problematiza a identidade mais do que a dá
por garantida” (BENSTOCK, 1999, citado por MORAES, 2012, p. 23).
Nosso objetivo principal aqui, então, será o de, a partir das descobertas de Oliveira
(2005), que ao utilizar o modelo CARS de SWALES (1990) como base teórico-metodológica
conseguiu descrever uma organização retórica para memoriais acadêmicos submetidos a
processos seletivos para docência em IESP, tentar caracterizar as unidades e subunidades
retóricas desse possível “novo” memorial, que passaremos a denominar (mesmo que
provisoriamente) de memorial de candidatura a Reitor (MdCR), querendo saber se este irá se
assemelhar mais ou menos ao modelo apresentado por Oliveira (2005) para MA, visto que
ambos são “memoriais”.
Método
A ordem que se segue no trabalho inicia apresentando qual a definição de memorial pela
qual optamos, seguindo-se de informações de onde e dentro de qual situação os três memoriais
de candidatura a Reitor (MdCR) foram coletados e quais convenções foram necessárias adotar
66
para, enfim, apresentar-se os resultados e as discussões, em seção única, que tais memoriais
possibilitaram.
67
Uma IESP em foco: a Uece
Com informações de fontes internas e externas à Universidade Estadual do Ceará
(Uece), tais como as coletadas nas fontes internas
http://www.uece.br/institucional/historico/,https://www.ceara.gov.br/organograma/funece/, e
nas fontes externas do Ranking Universitário do jornal Folha de São Paulo (RUF, 2019), da
Plataforma Educa Mais Brasil (2020) e da Plataforma Sucupira, dentre outras, a seção objetiva
apresentar o contexto (a Iesp) em que os MdCR foram produzidos, disseminados e consumidos.
O RUF 2019 informa que a Uece aparece pela 9ª vez em 1º. lugar entre as melhores
universidades estaduais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste; ocupa, entre as instituições com
menos de 50 anos de fundação, o 1º. lugar no Norte e Nordeste; e está na 55ª posição das 197
instituições pesquisadas.
Dados da plataforma “Uece em Números”, de 2018, ainda nos informam que a
IESP/Uece possui 32 Convênios Internacionais ativos e outros 94 já assinados, totalizando, só
em 2018, 126 convênios internacionais com América do Norte, Europa, África e Oceania.
A Uece possui 12 campi presenciais, sendo três na capital do estado do Ceará, Fortaleza,
os campi Itaperi, Fátima e 25 de março; e nove em cidades do interior do estado: Crateús e
Guaiúba; Iguatu e Itapipoca; Limoeiro do Norte e Mombaça; Pacoti, Quixadá e Tauá.
Também conta com 24 pólos de apoio ao aluno de ensino a distância (Sate/Uab)
distribuídos por todas as regiões do estado do Ceará: Camocim e Itarema; Meruoca, Itapipoca
e São Gonçalo; Caucaia (com três pólos), Fortaleza e Maracanaú; Maranguape, Beberibe,
Aracoiaba e Russas, Limoeiro do Norte, Quixeramobim, dentre outros.
A IESP aqui em foco destacou-se recentemente (abril de 2020) entre as melhores
universidades do mundo por meio do ranking Times Higher Education (THE) aparecendo em
2º lugar do Brasil em “Redução da Desigualdade” (RD) e “Educação de Qualidade” (EQ). Para
RD foram consideradas informações como a existência de política de admissão não-
discriminatória, assim como de programas de aconselhamento/apoio a alunos, servidores e
professores de grupos subrepresentados e contra assédio e discriminação. A Uece ocupa o 2º
lugar em RD ao lado de outras cinco Instituições de Ensino Superior Públicas (IESP) de todo o
Brasil. Entre as estaduais do país, está em 1º lugar, ao lado da Universidade de São Paulo (USP).
A Uece é a única estadual representante do Norte, Nordeste e Centro-Oeste nos quesitos EQ e
RD. (Fonte: http://www.uece.br/noticias/uece-ocupa-2o-lugar-do-brasil-em-reducao-da-
desigualdade-e-em-educacao-de-qualidade/).
Além desses componentes, a IESP/Uece tem mais de 23.000 alunos matriculados (dados
de 2016), podendo chegar a 30.000 em 2020, e não menos que 1.113 docentes, conforme nos
informa o documento Uece em Números 2018, publicizado em 29 de maio de 2019, e disponível
em http://www.uece.br/institucional/uece-em-numeros/.
68
Lançando nosso olhar especificamente para a audiência especializada, representada
pelos professores, membros/leitores experientes (SWALES, 1990; BHATIA, 1993) dessa Iesp,
o trabalho de escrita dos memoriais torna-se algo a priori bastante “delicado”. Veja-se, logo
abaixo, a quantidade de mestrados e doutorados que essa Iesp/Uece oferece, observando-se que
tais docentes/leitores experientes podem ser considerados ainda mais especializados visto o
quantitativo de cursos altamente especializados que tal Iesp só oferece por que conta, em seus
quadros, com esses docentes/leitores experientes.
Segundo a Plataforma Sucupira (2020), a Iesp/Uece, em “Cursos Avaliados e
Reconhecidos”, possui 65 mestrados acadêmicos. Dentre estes, três são de Ciências Físicas
Aplicadas (área do MdCR3, da Física), outros três pertencem à Nutrição (área do MdCR1) e
quatro em Geografia (área do MdCR2); sendo 53 doutorados, quatro pertencendo apenas à área
de Geografia (MdCR2).
Todos os docente-candidatos/MdCR, portanto, e com esse público leitor participando da
vida acadêmica, tiveram de elaborar/apresentar seus memoriais para participarem da eleição;
estes, lembremo-nos, sendo disponibilizados publicamente através do sítio oficial da
instituição, de onde foram coletados para este trabalho.
Ora, se os cursos estão no status ativo de oferta da Iesp em questão significa dizer que
eles têm “vida acadêmica”: têm alunos, logo, têm professores, ambos sendo possíveis ou reais
leitores dos memoriais colocados à disposição para leitura durante o processo eleitoral.
31
Tai eleições envolviam, evidente, o cargo de Vice-Reitor, porém, neste trabalho, serão analisados tão somente
os memoriais a Reitor (MdCR).
69
Algumas convenções
Para apoiar a análise e favorecer um melhor entendimento (leitura) do trabalho, optamos
por aplicar ao corpus algumas convenções para identificar cada memorial. Assim, os memoriais
serão identificados da seguinte maneira: MdCR1: devendo-se entender como Memorial de
Candidatura a Reitor da Chapa 1; MdCR2: “Memorial de Candidatura a Reitor da Chapa 2; e
MdCR3 devendo-se entender como “Memorial de Candidatura a Reitor da Chapa 3. Vejamos,
a seguir, a aplicação de tais convenções nas análises realizadas.
Resultados e discussão
Dois pequenos esclarecimentos sobre esta seção. O primeiro diz respeito ao “modelo
MA”, como reproduzido abaixo (conf. OLIVEIRA, 2005, p. 141). Como ele foi o modelo
tomado como base para, comparativamente, poder-se identificar a organização retórica dos três
memoriais de candidatura a Reitor (MdcR), nada como tê-lo próximo para que tal exercício
comparativo seja acompanhado e verificado também por nosso leitor. O outro esclarecimento
diz respeito à nomeação desta seção, que coloca, em uma mesma unidade retórica, “resultados”
e “discussão”, aparentemente indo de encontro à organização retórica consagrada para o artigo,
que é usualmente identificada pela sigla “IMRD”, por nele ocorrerem, cada uma a seu tempo,
quatro unidades: Introdução, Método, Resultados, Discussão (conf. O. M. GARCIA,
[1967]1992; e M. G. PEREIRA, 2011). Ao ser ‘consagrada’, tal estruturação, concebida em
quatro unidades (IMRD), cada uma ocorrendo a seu respectivo momento, não se torna
monolítica ou “inviolável”, não deixando espaço para ser passível de adaptação; adaptação esta
que objetive uma melhor fluidez na compreensão das análises a seguir apresentadas.
70
CHAPA 1
Organização retórica (OR) do MdCR1
__________________________________________________________________________________________
Unidade 1 Detalhando naturalidade e filiação
71
da cronologia para, a partir deste, distribuir as informações que achou merecedoras de
efetivamente passarem a constar em seu texto. Assim, inicia, cronologicamente, indo ou vindo
desde antes (nascimento, pais, família; que representam uma espécie de marco de formação
para tal docente-candidato) até chegar à formação “acadêmica” propriamente dita (esta unidade
6), aquela que, por questões óbvias, possui(ria) maior interesse da comunidade em questão,
justamente por ser o processo (s)eletivo a Reitor um processo eminentemente relacionado a
cargo de gestão;
Note-se que só após a 6ª. unidade de informação, em que ocorrem unidades que a
sucedem ocupando a 7ª., a 8ª., e a 9ª. posição (unidades 7, 8 e 9), são apresentadas as
informações que a priori são as consideradas mais importantes para uma eleição a Reitor, visto
ser este um cargo eminentemente de gestão. E tais unidades se constituem de maneira pendular,
ou seja, oscilam entre subunidades que ora apresentam informações relativas a atividades
técnico-administrativas e atividades didáticas, apresentando, também, como pode ser visto,
importantes retomadas (sub10 e sub11, da unidade 9; e sub5 e sub9, da Unidade 8) para a sua
constituição. Tomando cada uma dessas três unidades, podemos observar que a unidade 7 deste
MdCR1 possui as mesmas denominações da unidade retórica 4 e da sua respectiva sub9 de
Oliveira (2005), porém em outra posição, o que indica um reposicionamento retórico alto;
A unidade 8 (“Explanando sobre atividades didáticas acadêmicas”) possui a mesma
denominação da unidade retórica 3 de Oliveira (2005), porém em outra posição, o que indica
um reposicionamento retórico alto. A sub6 possui a mesma denominação, e a mesma posição,
da sub6 do modelo de Oliveira (2005). Tal simultaneidade no posicionamento em memoriais
participantes de dois processos seletivos tão distintos (um para cargo de docência, outro para
cargo eminentemente de gestão, Reitor), pode ser considerada uma ocorrência estritamente
coincidente, visto que tal realização não ocorre em nenhum outro memorial do corpus aqui
analisado. A sub7 deste MdCR1 é subunidade nova comparativamente às subunidades que
compõem a unidade retórica que ‘explana sobre atividades didáticas acadêmicas’ em Oliveira
(2005). A sub8 sofre, em relação ao modelo proposto por esse autor, pequena adaptação em
dois trechos: coloca-se, aqui, o prefixo “pós-”, para indicar o nível de ensino, e apaga-se a
partícula de opcionalidade “ou” proposta por esse autor;
A unidade 9 deste MdCR1 é uma unidade eminentemente de retomada de informações,
e também uma unidade nova comparativamente ao modelo proposto por Oliveira (2005), o que
indica a importância enfática que seu produtor, agora, passa a dar às informações
especificamente relacionadas às atividades (de docência e, depois, de gestão) realizadas pelo
docente-candidato no contexto acadêmico. Observe-se que as sub5 e sub9 deste MdCR1, da
unidade retórica 8, e as sub10 e sub11, da unidade retórica 9, todas destacadas em itálico, são
retomadas, que reaparecem no decorrer de três unidades retóricas, tendo seu início ou
introdução na unidade 7. É possível depreender, então, que, das nove unidades que compõem
este MdCR1, somente após seis unidades (un1 a un6), o docente-candidato deste memorial, e
nas suas três unidades finais (un7, un8 e un9), passa a informar, e destacar, através dessas
retomadas, as atividades acadêmicas por ele exercidas, tanto as relativas à gestão (atividades
técnico-administrativas; objeto prioritário deste memorial), como aquelas relativas à
docência/magistério (atividades didáticas).
CHAPA 2
Organização retórica (OR) do MdCR2
_________________________________________________________________________________
Unidade 1 Detalhando naturalidade e filiação
72
Unidade 4 Apresentando estado civil e relações materno-filiais
73
CHAPA 3
Organização retórica (OR) do MdCR3
____________________________________________________________________________________
Unidade 1 Apresentando reflexão a partir da elaboração do memorial
74
(“descrevendo atividades como discente de curso de doutorado”) apresenta-se como a que está
em Oliveira (2005) em sua sub3. As demais subunidades (sub2, sub3 e sub4) apontam para
diversos outros temas, tais como ‘programas de apoio à discência’, habilidades relativas ao
‘convívio com a diversidade’ presente na ambiência universitária (subunidade exclusiva a este
memorial) e fazendo ‘referência’ a mestrado cursado sem ‘descrever’ nada do que por ventura
nele ocorrera;
As unidades 6, 8 e 9 deste MdCR3, situando-se já na ambiência acadêmica, informam
sobre as diversas experiências relativas a atividades ‘didáticas’ (de docência/magistério),
observando-se que, enquanto a unidade 8 retoma tais experiências acadêmicas, a unidade 9
complementa as informações anteriormente veiculadas mostrando que tal docente-candidato
não se restringe a atividades de docência e gestão, mas também à ‘participação em eventos’ que
possibilitaram seu ‘aprimoramento intelectual’ e pessoal;
Já as unidades 7 e 10 são as únicas duas dentre as onze unidades que compõem este
memorial que informam especificamente sobre questões relativas à gestão: a atividades e
funções técnico-administrativas acadêmicas exercidas pelo docente-candidato, foco do
processo seletivo em questão (eleição para Reitor);
O MdCR3 conclui com a unidade 11 (“[Apresentando] peroração”), unidade retórica
que ocorre tão somente neste memorial: é o único memorial a Reitor que a apresenta.
Considerações finais
Note-se que os memoriais deste corpus foram escritos para responder a um processo
seletivo que claramente aponta para a área de gestão (Reitor/Reitoria), e que a ideia fundamental
ao se falar em gestão é a relacionada a se ter um propósito, um “centro” bem definido para o
qual devam convergir esforços para a boa consecução do Plano de Trabalho apresentado.
Nesta perspectiva, e a partir do que é observado nos memoriais, é possível afirmar que,
apesar de submetidos a tal situação (eleição a cargo de gestão: Reitor), não há uma regularidade
ampla e significativa nos memoriais analisados a ponto de se poder propor uma organização
retórica para os mesmos, mas várias, daí propormos a ideia da descentração retórica para tais
memoriais.
E tal descentração se dá através de vários movimentos realizados nos memoriais: há
inúmeras unidades, e subunidades, que podem ser consideradas inéditas, unidades e
subunidades retóricas completamente novas, tanto comparativamente à Oliveira (2005) como
comparativamente aos próprios memoriais entre si, mesmo eles estando submetidos à mesma
situação de escrita, ou seja, ao mesmo cargo de gestão, Reitor; ocorrem inúmeras retomadas,
em diferentes posições, o que denuncia as diversas prioridades informacionais de cada docente-
candidato a Reitor; há diversos reposicionamentos retóricos (unidades que transformam-se em
subunidades, e vice-versa), o que corrobora, a nosso entendimento atual, tal descentração, visto
que cada um desses reposicionamentos apontam para diversas temáticas e preferências; há
memoriais extremamente curtos ou objetivos e memoriais repletos de informações. A esse
conjunto, a descentração é marca característica, muito possivelmente orquestrada pela
inexistência de orientação clara e precisa (Normas para Publicação) a ter sido disponibilizada
no edital que abre e possibilita a realização desse processo (s)eletivo, a eleição a Reitor da
Iesp/Uece.
75
Para concluir, aos leitores desses memoriais, representados sobretudo pelos três
segmentos identificáveis que diretamente constituem esta Iesp, e que votam, docentes, técnico-
administrativos e alunos (não esqueçamos a sociedade, visto que todos os memoriais foram
disponibilizados para leitura no sítio oficial da instituição, e que esta é pública), que não deixam
de ser, tais leitores, o objetivo primeiro e último de tal eleição, e da produção e escrita de tais
memoriais, fica a possível obrigatoriedade ou o desafio de encontrar, no meio do que aponta
para tantos lugares (descentração), aquele que represente o “melhor” para sua comunidade nos
próximos quatro (ou mais) anos.
Referências
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Longman, 1993.
CORACINI, Maria José Rodrigues Faria. Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência
São Paulo: Educ, Campinas, SP. ed.: Pontes, 1991. (Linguagem - ensino).
76
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Janeiro: Guanabara Koogan, 2011.
SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge:
Cambridge University Press, 1990.
77
Capítulo
6
Constituição discursiva do corpo feminino: notas
sobre o Movimento Marcha das Vadias
Introdução
O Movimento Marcha das Vadias eclode em um dado momento no fio descontinuo da
história tendo como principal objetivo ressignificar práticas e discursos que permeiam o corpo
feminino. Neste trabalho, objetivamos analisar a constituição da materialidade do corpo da
mulher no movimento Marcha das Vadias, corpo que se configura seja como uma superfície
(sob a qual deslizam dizeres) seja como um ato de linguagem (delineado por determinadas
práticas instituídas como “normais”). Para tanto, ancorar-nos-emos, sobretudo, nas noções de
“sujeito”, “discurso”, “história” e “corpo anormal” de Michel Foucault (1996, 2012) em diálogo
com as noções de “monstro” de Courtine (2008), “corpo tatuado” de Milanez e Fonseca- Silva
(2007).
Nesse sentido, nosso trabalho se inscreve no campo da Análise do Discurso francesa,
buscando descrever uma constituição outra para o sujeito-mulher nas práticas sociais.
Considera-se que o poder é construído historicamente e, assim sendo, sofre evoluções no fio da
história. Para além disso, o corpo feminino negro sempre esteve no entremeio de uma cadeia
de poderes, assumindo uma posição de submissão em relação a discursos dominantes, e, assim
sendo, deve seguir regras postuladas para o controle do próprio corpo. O corpo feminino é
moldado de acordo com uma biopolítica, e, por conseguinte, acaba sendo submetido a um
biopoder que controla questões inerentes à higiene, alimentação, sexualidade, saúde, natalidade
e outras práticas que se tornam preocupações políticas da e para a mulher na história.
A “Marcha das Vadias” é um movimento que emergiu na cidade de Toronto, no Canadá,
como uma forma de resposta ao comentário de um policial que afirmou que, para evitar estupros
na universidade, as mulheres deveriam parar de se vestir como vadias. É interessante pensar em
como o discurso do “policial” pertence a uma cadeia de enunciados, que por sua vez, faz parte
de campos diferentes, mas que possuem uma verossimilhança no que diz respeito a regras de
funcionamentos comuns. Além disso, entende-se que, a fala do policial está imersa em discursos
patriarcais, religiosos e políticos.
32
Graduada em Letras da Universidade Estadual de Goiás (UEG) - câmpus Iporá. Mestranda da no programa de
Pós-graduação em Estudos Linguísticos, da Universidade Federal de Uberlândia. Trabalha com os temas: Análise
do Discurso, Corpo, Regimes de Verdade e Discurso Midiático. E-mail: laurianneguime@gmail.com
78
No acontecimento do movimento “Marcha das Vadias” as mulheres utilizam seus
corpos, que durante séculos foram alvos de violência verbal e física, enquanto superfície de
escrita, sendo que, corpo e escrita se tornam um só no processo discursivo. Essa simbiose torna-
se um meio pelo qual o sujeito expressa seu discurso e apreende o controle do seu corpo. O
ponto crucial da Marcha das Vadias é a nudez parcial do corpo feminino, pois, em consequência
dessa exposição a mulher, transforma seu corpo em uma “arma” contra os discursos que
imperam na sociedade patriarcal. A Análise do Discurso trabalha com os discursos, conjuntos
de enunciados construídos pelo social, histórico e ideológico que constitui o sujeito da mulher,
assim como, mais especificamente, o corpo feminino. Logo, percebe-se que na Marcha das
Vadias, existe uma tentativa de desconstrução acerca dos discursos que durante séculos
permeiam o corpo feminino e, além disso, uma resistência que se dá através da escrita, visto
que, pode se entender que esta é compreendida como um método de se manter relações sociais
e também do sujeito manter e construir sua identidade através das memórias e das relações de
identificação com o outro.
Através de uma perspectiva foucaultiana, buscar-se-á uma análise sobre o corpo
feminino, os discursos que emergem deste e sobre este, a escrita presente no corpo das
manifestantes da Marcha das Vadias e, principalmente, a existência da nudez parcial do colo.
As análises, no campo da Análise do Discurso (AD), consistem em analisar discursos e, em
seguida, compreender as composições ideológicas presentes no discurso do sujeito, assim
sendo, leituras teóricas foram realizadas e serviram de embasamento para a pesquisa no campo
da AD de linha francesa e outras leituras complementares que auxiliaram na compreensão do
discurso que emerge no meio social em que o corpo feminino assume um papel “anormal”.
O corpo anormal
A concepção de normalidade é construída ao longo do fio descontinuo da história.
Afinal, em cada momento dessa descontinuidade é observável a construção de normas que
instauram o que é ou não é normal. Por conseguinte, intrínseco a isso, se tem a noção de
anormalidade, uma vez que, percebe-se que o normal só surge a partir do momento em que
corpos “fogem” da normatividade imposta pelo discurso dominante. Ao se lançar um olhar para
o corpo feminino negro inserido na Marcha das Vadias é relevante se perceber que este é tido
como “anormal” levando em consideração as noções de normalidade postuladas na sociedade
em que eles estão inseridos, como exemplo, ter o cabelo liso. Além disso, de certo modo, esses
corpos sofrem certas punições e disciplinarizações para se adequarem a padronização recorrente
na sociedade.
Não obstante, levando em consideração as noções referentes ao discurso que transitava
entre o olhar do “normal” sobre o “mostro” postuladas por Courtine (2008), é pertinente se
pensar na apresentação dos corpos anormais. Uma das constatações feitas pelo autor é que todo
corpo anormal necessita de um espaço próprio com características singulares, para que seja
apresentado e, assim, dê sentido ao “freakshow”. Assim, entende-se que existem espaços pré-
definidos para que o corpo anormal se apresente aos corpos normais para que assim essa
“monstruosidade” seja provida de sentido. Dessa forma, pode-se concluir que ao corpo
feminino negro foi condicionado um espaço para que ele se apresente ao(s) outro(s).
79
[o] teatro da monstruosidade humana: os monstros sem dúvida aparecem, em carne e
osso, nos espetáculos do entra-e-sai, mas já se adivinha, no cenário que os cerca, nas
roupas que são confeccionadas para eles e nos papéis que devem representar, que se
está ampliando cada vez mais a distância e que se vão interpondo signos sempre mais
numerosos entre os corpos e os olhares. (COURTINE, 2008, p. 275).
Ressignificações de identidades
O corpo, segundo uma análise discursiva, é “objeto e alvo do poder” (FOUCAULT,
2012, p. 117), e não há exercício de poder sem resistência. Nesse sentido, pode-se dizer que
sobre o corpo da mulher, durante séculos, houve um exercício de poder que abriu a
possibilidade, no fio da história, de emergência do movimento “Marcha das Vadias” enquanto
prática de resistência. A resistência, ao fazer parte das relações de poder e verdades, acaba por
tencionar que o sujeito se desprenda de certos discursos para ser interpelados por outros, ou
seja, ao invés de ser norteados por certas práticas discursivas ele cai em novas. Durante a
“Marcha das Vadias” o corpo feminino negro busca se desprender do discurso que domina as
relações que os sujeitos instauram com seu próprio corpo e sua materialidade e com a
“normalização”, o processo de resistência se dá por meio do acontecimento que eclode no
80
momento histórico, onde os corpos dos sujeitos, a escrita, a pintura corporal e o espaço, afinal, é
por meio desse acontecimento que são (re)construídas a identidade do sujeito.
Desse modo, ao se considerar a noção de identidade proposta por Hall (2011) é possível
conceber que as mudanças emergentes graças as transformações das sociedades modernas
reestruturam as relações sociais no que concerne a questões de gênero, sexualidade, raça, etnia
e até mesmo classes e, assim, a noção a respeito de identidade é ressignificada. Apesar da
identidade ter se constituído durante muito tempo como algo imutável a partir das mudanças
sociais que aconteceram no pós-estruturalismo o sujeito passa a delimitar sua identidade
levando em consideração a multiplicidade de representações culturais, ou seja, pelo reflexo das
sociedades modernas de mudanças constantes a identidade do sujeito pós-moderna não é fixa.
Segundo Hall (2011), um exemplo da liquefação de identidades seriam os grupos que
surgiram nos anos 60 que buscavam evidenciar as diferentes identidades sociais que se
manifestavam em cada coletivo, principalmente as feministas que emergiram nessa época,
afinal, esse grupo além de ressignificar as práticas sociais nas quais o corpo feminino estava
inserido buscava um novo olhar no que se refere as identidades sexuais e de gênero. Assim, no
movimento “Marcha das Vadias”, percebe-se o “jogo de identidades” que desabrocham em
relação a qual identidade prevalece: sua identidade como mulher ou sua identidade como negra,
pois, é perceptível que a disciplinarização que baliza a noção de gênero não é a mesma para a de
raça.
Ao se buscar compreender o funcionamento do corpo é relevante perceber que além de
uma superfície física ele deve ser encarado como moldável e transformável pelas relações de
poder que são construídas ao longo do fim descontinuo da história, uma vez que
[o] corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de
poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o
supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.
(FOUCAULT, 2012, p. 25).
Dessa forma, pode se considerar que o corpo feminino negro sofre sanções que partem
das noções postuladas pelo poder disciplinar que visam, de forma geral, ser um método do
Estado de controlar os sujeitos no que refere aos seus modos de agir e de se constituírem
socialmente, ou seja, busca-se um controle sobre a vida. Desse modo, é relevante se pensar em
como a Biopolítica, que pode ser entendida como reflexos das instituições discursivas
controlarem os sujeitos, suas materialidades e suas formas de ser e de agir, se encarrega, através
do poder, de dominar sujeitos e, por conseguinte, seus corpos.
Ao se pensar nas relações de poder que acabam por atingir os sujeitos é interessante se
notar que, o corpo é “objeto e alvo do poder” (FOUCAULT, 2012, p. 117). O poder é
construído historicamente e, assim, sofre movimentações e deslocamentos no fio da história.
O corpo feminino negro sempre esteve no entremeio de uma cadeia de poderes, assumindo uma
posição de submissão em relação a discursos dominantes, e, assim sendo, deve seguir regras
postuladas para o controle do próprio corpo.
Corpo e discurso
81
Entende-se que no movimento intitulado “Marcha das Vadias” o corpo feminino negro,
sob uma ótica discursiva, constitui-se na anormalidade por resistir a determinados padrões
sócio-histórico-ideológicos. Desse modo, é importante se compreender a noção de resistência
e, assim, é importante salientar que não há poder sem resistência, afinal, ao se pensar que o
poder pode ser compreendido como uma relação de poderes em que geralmente se busca
disciplinar um sujeito a ordem de um discurso para que se consiga extrair dos corpos práticas
úteis aos discursos dominantes é interessante observar que resistir se configura como um modo
do sujeito ressignificar os poderes que buscam balizar sua materialidade. Assim, pode ser
considerar a resistência como mutável, afinal, em cada momento do fio descontínuo da história
os corpos resistirão a um tipo de discurso dominante. Ao se pensar nos discursos que emanam
durante a Marcha das Vadias é interessante se pensar que
[o] novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. O autor, não é
entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto,
mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de
suas significações como foco de sua coerência. (FOUCAULT, 1996, p. 26).
À vista disso é pertinente que se perceba que na base dos processos discursivos existe a
materialidade histórica que é fundamentada pelas relações sociais pertencentes a uma formação
social em os sujeitos moldam a produção dos “seus” dizeres, provocando, dessa forma, uma
movimentação nas fundamentações dos sentidos. Torna-se pertinente nesse momento
compreender que os dizeres enunciados pelo sujeito são discursos de outrem, uma vez que, os
discursos concretos não se constituem como “novos”, afinal, neles estão interpelados vestígios
de outros discursos, afinal, os sujeitos se situam historicamente, socialmente e ideologicamente
em contextos sociais onde permeiam discursos e enunciações completas, é significativo que se
perceba que nesse trabalho discurso é encarado como uma prática histórica e que o enunciado
é o funcionamento do discurso na materialidade.
Assim, ao construir a rua como espaço de manifestação e de resistência a “Marcha das
Vadias” ressignifica ditos que já se apresentaram em outros espaços e os apresentam enquanto
não-ditos, pois, nesse espaço ele adquire outra representação cedida pelo acontecimento na
história. Desse modo, percebe-se que o movimento “Marcha das Vadias” abre espaços que
fundamentam a ressignificação do Corpo Feminino Negro no fio descontínuo da história. Essa
ressignificação permite a reestruturações de efeitos de sentidos balizados por discursos
inerentes a sexualidade, gênero e raça.
82
O corpo feminino foi moldado de acordo com uma normalização e uma normatização
concebida pelos detentores do poder: patriarcado, religião, machismo etc. Esse molde é
concebido a partir de um Biopoder que tem como principal função postular nos corpos regras
que devem ser seguidas pelos sujeitos em diversas áreas, tais como, higiene, alimentação,
sexualidade, saúde, natalidade e outros assuntos que se tornam preocupações políticas ao longo
do tempo.
É notável o modo como poder disciplinar e o biopoder estão entrelaçados, pois ambos,
evidentemente, são métodos do Estado para controlar os corpos dos sujeitos visando a
sistematização e a dominação dos sujeitos para impor normas que são defendidas
pelabiopolítica. A biopolítica se encarrega, através do poder, de dominar sujeitos e, assim, seus
corpos. Dentro de uma perspectiva foucaultiana (2012), há relações de poder que incidem sobre
o corpo, evidenciando que ele é “objeto e alvo do poder” (FOUCAULT, 2012, p. 117). O poder
é construído historicamente e, assim sendo, sofre evoluções no fio da história. O corpo feminino
negro sempre esteve no entremeio de uma cadeia de poderes, assumindo uma posição de
submissão em relação a discursos tidos como dominantes, e, assim, deve seguir regras
postuladas para o controle do próprio corpo.
O corpo feminino negro é moldado a partir de uma biopolítica e, por conseguinte, acaba
sendo submetido a um biopoder que controla as práticas corporais cotidianas. É importante
ressaltar que a ideia da biopolítica é desenvolvida durante um período em que se desenrolam
revoluções políticas que se dão através da transição da idade moderna para a idade
contemporânea, assim, o liberalismo atua de forma constante. O liberalismo se torna crucial na
história da mulher, uma vez que, essa onda política foi fortemente influenciada pela ânsia em
se conseguir uma expansão dos direitos civis, dessa forma, os liberais defendiam a igualdade
de gênero.
O mais importante é perceber como o poder disciplinar é ligado ao biopoder a partir do
momento em que se nota que a disciplina “são métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma
relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2012, p. 161), ou seja, para os corpos que não
seguem o padrão imposto resta uma punição que pode ser descrita como “a expiação que
tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o
intelecto, a vontade, as disposições” (FOUCAULT, 2012 p. 20), no caso do corpo feminino
negro o castigo mais recorrente é o estupro que, no fio descontinuo da história, tem assumido
uma naturalização em relação aos corpos tidos como anormais.
Considerações Finais
Dentro de uma perspectiva foucaultiana entende-se que o poder não existe, o que existe
são relações de poder, ao mesmo tempo tem-se a noção de que todo sujeito pertence a uma
dessas relações. O poder é construído historicamente e, assim sendo, sofre evoluções no fio da
história. O corpo feminino sempre esteve no entremeio de uma cadeia de poderes, assumindo
uma posição de submissão em relação a discursos dominantes, e, assim sendo, deve seguir
regras postuladas para o controle do próprio corpo. O corpo feminino é moldado de acordo com
a biopolítica, e, por conseguinte, acaba sendo submetido a um biopoder que controla questões
83
inerentes à higiene, alimentação, sexualidade, saúde, natalidade e outros assuntos que se tornam
preocupações políticas ao longo do tempo.
O discurso religioso juntamente com o patriarcal molda as práticas acerca do corpo
feminino e, assim, definem o que é tido como “normal” e o que é “anormal”. A mulher é
moldada para obedecer a certos ritos e agir de acordo com o papel que lhe é imposto, porém, a
“Marcha das Vadias” é um movimento de resistência que busca através da nudez parcial e da
simbiose de corpo e escrita lutar contra a normatização e a normalização do corpo. Nenhum
corpo é totalmente livre de discursos unificados, seja dominando ou sendo dominado o sujeito
sempre está em contato com o biopoder, ao aderir ou não certo tipo de comportamento o corpo
adota um discurso.
Pensando no movimento em análise é perceptível que a principal força do “Marcha das
Vadias” está concentrado dentro da simbiose corpo e escrita, visto que é através dela que o
sujeito consegue implantar uma resistência, afinal, o corpo, segundo uma análise discursiva, é
“objeto e alvo do poder” (FOUCAULT, 2012, p. 117) e não há exercício de poder sem
resistência. Nesse sentido, pode-se dizer que sobre o corpo da mulher, durante séculos, houve
um exercício de poder que abriu a possibilidade, no fio da história, de emergência do
movimento “Marcha das Vadias” enquanto uma manifestação de resistência. Essa manifestação
de resistência é expressa por Foucault como uma maneira do sujeito se desprender do discurso
que domina e “normaliza” seu corpo através de um processo que, na maioria das vezes, é
composta pela escrita.
Assim sendo, ao usar o corpo enquanto uma superfície de escrita o sujeito consegue a
ressignificação do corpo no fio da história, uma vez que, o principal objetivo da simbiose corpo-
escrita é evidenciar os elementos que influenciam no acontecimento discursivo do qual o corpo
se constitui a partir do momento que ele se transforma em um reprodutor de discurso e há uma
ressignificação do que é corpo e do que é escrita, pois “o corpo carrega as marcas da ontologia
do seu presente. O rosto deflagra o olhar da história do cotidiano. A boca silencia as palavras e
o sujeito engole o vazio da sua história” (MILANEZ e FONSECA-SILVA, 2007). Desta forma,
tem-se a noção de que o corpo enquanto parte de um cotidiano se converge em um estresir de
outros sujeitos, assim sendo, ele apenas é um emaranhado de dogmas presentes em seu meio
histórico-social, religioso e cultural. Porém, quando o corpo passa a ser superfície de uma
escrita, escrita, seja essa passageira ou permanente, ocorre um distanciamento do todo citado e
um almejo de ser dono do eu.
Referências
BORGES, G. F. “Re(com)posições discursivas de um corpo-vadio”. In: PAULA, L. G. de;
PAULA, M. H. de. Confluências da Linguagem: Língua, discurso e Ensino. Goiânia: Gráfica
e Editora América, 2013, p. 87-101.
84
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
85
Capítulo
7
“O banditismo impera nos sertões”: a construção
discursiva do medo na imprensa cearense (1920-
1930)
Considerações iniciais
O que se tem visto aqui é um simulacro de governo (...). O Estado, sem
administração, foi arrastado a anarchia34: o banditismo impera nos sertões,
onde apenas o soar do trabuco, de hora em hora annuncia o baque de um
cearense, a quem faltou a proteção legal (...). Repetem-se, diuturnamente,
no Ceará, attentados inomináveis (...). No interior, municipios investem
contra municipios, chefes de cangaço investem contra chefes de bandidos.
(A ESQUERDA, 20/03/1928, p. 01).
33
Mestre Interdisciplinar em História e Letras pelo MIHL da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão
Central – FECLESC/UECE. Bolsista (FUNCAP). E-mail: wilton.moreira.santos@gmail.com
34
Usaremos aqui a grafia original dos jornais citados.
35
O ano de 1928 tinha o Desembargador José Moreira da Rocha (1869-1934) na administração do Estado do Ceará
(1924-1928) e como presidente da República Washington Luís (1926-1930).
86
desses trechos nos causou algumas inquietações: quais são os significados de violência,
banditismo e cangaço que aparecem nos discursos elaborados pela imprensa cearense nas
décadas de 1920 e 1930? Quais os seus interesses diante dessas denúncias? Como notícias de
violência e medo podem ser utilizadas para atingir fins civilizacionais, moralizantes e políticos?
A forma como o tema era noticiado pelo jornal A Esquerda, nos motivou a verificar como outros
jornais do período retrataram a violência e o banditismo no Ceará. Assim, este trabalho
objetivou compreender a construção discursiva do medo ao banditismo pela imprensa do Ceará.
Pensando a imprensa e sua articulação com as estruturas de poder, buscamos aqui
perceber como os jornais vão disseminar, através de narrativas de violência e medo, o temor aos
cangaceiros e o estímulo às forças do Estado pregando o seu extermínio. Cabe-nos questionar
como esse medo é produzido e mobilizado.
Tratando-se de uma pesquisa documental alicerçada na análise de discurso, mapeamos
e organizamos as notícias sobre o cangaço presentes nos jornais do Ceará, selecionando aquelas
dedicadas à construção de uma imagem com marcas discursivas negativas ao cangaço, o que
nos permitiu fazer uma análise quantitativa e qualitativa dessas matérias. Pensamos essa
articulação entre política e medo em diálogo com Vladmir Safatle (2015), Jean Delumeau (2007),
dentre outros. Além deles, Michel Foucault (1999) e Eni Orlandi (2001) também nos ajudaram
a pensar a Análise de Discurso.
A construção do medo
As menções feitas ao cangaço na imprensa cearense não possuem um corpo homogêneo,
elas diferem no sentido que buscam atingir e também em tamanho e número. Essas notícias ainda
podem aparecer em diversos momentos e em lugares distintos nas folhas: artigos, editais,
telegramas e mesmo em anúncios. Com exceção dos telegramas, que normalmente são mais
curtos, havia nos periódicos várias matérias sobre a temática, boa parte estampando as primeiras
páginas dos jornais, estendendo a discussão para duas ou mais páginas. Chamadas com letras
garrafais somadas aos recursos linguísticos e apelos emocionais para atrair a atenção do leitor
que, em um misto de curiosidade e medo, buscava saber como se deu a última investida de
Lampião e seu grupo, eleitos no último quinquênio da década de 1920 como alvo da ênfase
noticiosa da imprensa.
Ao debruçar-se sobre o discurso dos jornais com ênfase no cangaço é preciso lembrar
que o jornal como uma prática da linguagem, como narrativa, tem sua construção alicerçadas em
condições históricas e sociais particulares, dependendo do imaginário e da memória coletiva
para, assim, consolidar uma ideologia a partir da fala/escrita (SILVA, 2014). Portanto, os
periódicos surgem do mundo e voltam para ele, ou seja, seus redatores e colaboradores veem um
fenômeno (no caso o cangaço) e criam uma imagem sobre ele: ao noticiar sobre os cangaceiros
a imprensa estará contribuindo para uma determinada maneira de ver esses grupos. Diante disso,
nosso primeiro passo é investigar os significados de violência, banditismo e cangaço
formulados pela imprensa cearense no período estudado.
Os jornais são coletâneas de relatos, ou seja, como salienta Robert Darnton (1990): “a
notícia não é o que aconteceu no passado imediato, e sim o relato de alguém sobre o que
aconteceu” (DARNTON, 1995, p. 17), de modo que elas estão sujeitas ao crivo de interesses
87
do jornalista e do jornal ao qual está vinculado. Nesse sentido, se faz importante o diálogo com
Raymond Williams (2011), que alerta para não tomarmos os meios de comunicação apenas
como dispositivos de informação, erro frequente quando estes são associados apenas à mídia,
concebidos como “transmissores” ou “receptores” de mensagens. Ao contrário, as notícias não
são narrativas neutras, os jornais estão frequentemente ligados às forças de resistência e de
dominação, onde os “homens da imprensa” aparecem como sujeitos conscientes de
determinadas práticas sociais.
Lembrando sempre que a história se apresenta como processo e movimento
(THOMPSON, 2001) e que é dentro das sociedades que as experiências e mudanças culturais
se manifestam. É aqui que se desenha o importante papel dos jornais na construção do medo
aos cangaceiros, pois é a imprensa que vai chamar atenção para as ações dos bandoleiros: seus
feitos são alardeados por uma imprensa que se transforma, que traz novos recursos estéticos e
estilísticos, novas forma de prender a atenção do seu leitor. A imprensa será um importante
veículo difusor de uma política do medo, com chamadas alarmantes, “notícias de sensação”,
alertando para a possibilidade de ataque dos bandos às terras cearenses. Os discursos em defesa
da propriedade privada e da segurança individual, do medo da morte, serão constantemente
mobilizados.
Uma articulação entre medo e política na sociedade cearense dos anos de 1920 e 1930 é
possível para pensarmos as relações que se estabeleciam entre o cangaceiro e os outros atores
sociais do mencionado período. Vemos mudanças significativas quando pensamos essa relação,
haja vista que o cangaço vai passar de “tolerado” para “repelido” a partir das duas primeiras
décadas do século XX. Vale lembrar que o surgimento dos bandos independentes vai causar o
primeiro estranhamento e assustar as elites locais, antes senhores do mando, agora, em certa
medida, reféns de algumas das ações dos grupos de cangaceiros que se alastravam pelo sertão.
O medo de que as elites locais gestavam dessa nova forma “profissional” de banditismo pode
ser captado principalmente a partir do fim da Sedição de Juazeiro, em 1914, e com os problemas
causados pela terrível seca do ano seguinte.
Nas mensagens dos Presidentes de estados enviadas ao Presidente da República
Venceslau Braz (1914-1918) – governo que coincidiu com o a Primeira Guerra Mundial36, os
pedidos de socorro sistemáticos informam que “Nenhuma esperança resta mais de inverno este
anno”, uma vez que, sem área para a pastagem, o gado morre de fome e a “população
empobrecida se desloca em todos os sentidos a procura de abrigo”. Além disso, alerta para a
“profissionalização” do banditismo, que se estabelece maior e mais forte. Seu entrelaçamento
com os chefes políticos permanece principalmente “Nessas condições actualmente”, é que
melhor se observa “homens de certas responsabilidades, de famílias importantes mesmo,
fazendeiros, lavradores, creadores e doutores, por qualquer rixa de famílias ou de visinhos, têm
a preoccupação de organizar cangaço” (MENSAGEM DO GOVERNADOR DO CEARÁ,
01/07/1915, p. 03-10) e os mantêm sob sua proteção até que o grupo se vire contra ele.
Pode-se ler ainda que o grupo é colocado como o responsável pela derrocada do patrão.
A mensagem deixa evidente que ele é quem coloca o patrão em apuros, por criarem situações
36
Venceslau Braz enfrentou uma série de problemas em seu mandato, pois além de ter decidido colocar o Brasil
na Primeira Guerra Mundial (envio de grupos médicos e expedicionários para patrulhar na parte da costa africana
e de Atlântico Norte), após o naufrágio de navios brasileiros pela marinha alemã, ele também teve que lidar com a
Guerra do Contestado e as greves operárias que alcançaram seu ápice em 1917.
88
para justificar a perpetuação às sombras do fazendeiro, pois são vistos como um “grupo de
indolentes” e “malfeitores”, que preferem viver “um longo tempo sem trabalhar”. O
proprietário acaba por cair nas mãos dos bandoleiros e quando não são arruinados,
empobrecidos, acabam por virar “bandido como elles”. É o cangaceiro que responde pela ruína
do patrão, nesse caso. Dele é retirada parte da responsabilidade, associando-se aos bandidos
para protegerem suas propriedades, mas não conseguem, quando tentam desvencilhar-se deles,
pois acabam influenciados e dominados pela “psychologia” dos malfeitores, quando não são
traídos por eles.
A ação dos bandos independentes põe em risco, nesse caso, a propriedade privada e a
vida dos fazendeiros, gerando uma atmosfera de insegurança nos locais onde eles atuam. Aliás,
o clima de insegurança será um caminho trilhado pelas elites para justificar o expurgo da vida
cangaceira dos sertões. Todavia, ele será usado apenas quando é mais conveniente para esses
grupos, pois na maioria das vezes “Ambos se fortaleciam coma celebração de alianças de apoio
mútuos, surgidas de formas espontânea por não representarem requisitos de sobrevivência nem
para uma nem para outra das partes, e sim, condição de maior poder” (MELLO, 2011, p. 87).
Assim, perpetua-se a simbiose que mantém as garantias de sobrevivência de ambos os grupos,
eclipsada a partir da década de 1920.
Diante disso, parece-nos oportuno um diálogo com o filósofo Vladimir Safatle (2015),
pois ele constrói, em seu livro, uma articulação entre afetos e corpo político, partindo da
filosofia política hobbesiana, na qual o medo é a paixão, que dadas algumas ressalvas, faz o
homem respeitar as leis.37 Desse modo, “compreender sociedades como circuitos de afetos
implicaria partir dos modos de gestão social do medo, partir de sua produção e circulação
enquanto estratégia fundamental de aquiescência à norma” (SAFATLE, 2015, p. 16).
O medo da morte, da invasão dos lares, da desonra, transforma-se em motor da coesão
social (SAFATLE, 2015). Todavia, o medo apenas voltado para a manutenção da força jurídica,
para a asseguração das leis, não basta. Pensar a produção do medo na sociedade cearense dos
anos vinte e trinta nos levará a pensar também as relações de poder. Poder este, segundo
Foucault, exercido em rede, jamais cristalizado, estudando-o “(...) fora do campo delimitado
pela soberania jurídica e pela instituição do Estado; trata- se de analisá-lo a partir das técnicas e
táticas de dominação” (FOUCAULT, 1999, p. 33). A noção Foucaultiana permite perceber o
medo não mais como um fundador do poder, mais como um efeito das relações de poder.
Pensar o medo a partir dessa perspectiva requer reconhecê-lo heterogêneo, como
estratégias de sujeição e resistência, conforme Daniel Thomaz (2009)
Os medos sociais são sintomas das desigualdades, são efeitos colaterais das formas de
sujeição dos corpos, práticas e saberes de determinados grupos sociais. Podem
aparecer nas elites também como um sintoma de que a excessiva hierarquização das
relações de poder produziu resistência e enfrentamento desse sistema. A diferença não
deve gerar medo, a desigualdade sim. Quando a “ordem” reguladora de um
determinado sistema de relações de força parece ameaçada por tentativas de rearranjo
desse estado de coisas, os medos sociais afloram. Quando o equilíbrio das relações de
poder entre os grupos sociais é desestabilizado pelo afloramento de saberes e práticas
de resistência que contestam as hierarquias e privilégios constituídos historicamente,
o alarme do medo é disparado entre as elites. Esse sentimento aparece então como
capaz de catalisar contra-medidas de força, que visam restabelecer, renovar ou
37
Thomas Hobbes, Leviatã.
89
reforçar as relações de poder existentes antes da percepção da ameaça. Não há medo
sem poder justamente porque sem relações de força não há ameaça (THOMAZ, 2009,
p. 19).
Gestado dentro dessa relação, o medo será aqui encarado como um afeto capaz de unir
numerosa quantidade de indivíduos diante de um mesmo objetivo. Para tal, é preciso
transformar o outro em um inimigo, uma ameaça: de um lado, um predador feroz, assustador
pronto para destruir tudo aquilo que foi construído a duras penas; do outro, uma presa frágil,
encolhida, mas com a missão de não deixar seu mundo ser destroçado. É preciso expurgar o
inimigo, desse modo, “o indivíduo necessita recorrer a autênticas estratégias de criatividade
cognitiva, inventando formas socialmente aceitáveis de defesa e autoproteção” (EZEQUIEL,
2016, p. 56).
A imprensa, todavia, será o veículo que, por meio de suas narrativas, acaba por melhor
fomentar o medo ao cangaço. Tema constantemente mencionado pelas folhas cearenses –
narrativas de crimes horríveis, enfatizando o lado sádico dos grupos, seu desdém para com a
honra das famílias sertanejas mais humildes –, os jornais vão disseminar essa imagem que, em
grande medida, foi a que ficou cristalizada em nossas mentes: a do cangaço da década de vinte,
alcançando seu auge em 1926, a do “(...) cangaço do mosquetão, do ‘parabellum’, da bala de
aço furando pé-de-pau (...) do bando de cento e cinquenta homens, do ataque a cidade de luz
elétrica, das primeiras páginas quase diárias dos jornais, da orgia – até financeira – dos
trovadores populares.” (MELLO, 2011, pp. 96-97).
Os jornais cearenses vão mobilizar em suas narrativas o que Jean Delumeau (2007) vai
chamar de “medo fundamental”, o medo morte. “Todos os medos contêm, em graus diferentes,
essa apreensão fundamental; e, portanto, o medo não desaparecerá da condição humana ao
longo de nossa peregrinação terrestre (DELUMEAU, 2007, p. 41). Esse medo nos acompanha
a todo o instante e é pelo temor à finitude que medimos certas ações ao longo dos dias. Esse
medo será fomentado através das narrativas de violências e mortes protagonizadas pelos
bandoleiros.
É diante do medo de sucumbir ante a ação dos bandos de cangaceiros que veremos as
cidades sempre em alerta máximo, armando-se diante da possibilidade de estes adentrarem ao
território cearense. A cidade de Mauriti, por exemplo, estava alarmada com a passagem de
Lampião “e mais 34 homens a cavalo” pelas redondezas, pois na cidade encontravam-se
“apenas dois sargentos e um praça da Força Publica” (A IMPRENSA, 28/10/1925). Ainda em
1922, para citar apenas um exemplo, telegramas informam que Milagres e Mauriti estavam “em
armas” aguardando “ataque de bandoleiros” que seriam chefiados por Luiz Padre (A LUCTA,
27/09/1922). Constantemente as folhas cearenses vão mobilizar narrativas de violência e medo,
ajudando a construir perante o público uma imagem sobre o cangaço calcada no medo e na
insegurança.
90
os seus interesses diante dessas denúncias? O jornal como empreendimento grupal que é movido
por interesses – entre outros – ideológicos e financeiros daqueles que estão envolvidos em seu
processo de criação, está longe de ser um veículo que busca tão somente “informar” seus
leitores. Conforme Tania de Luca, “Entende-se a imprensa fundamentalmente como
instrumentos de manipulação de interesse e de intervenção na vida social” (LUCA, 2011, p.
118). Posto assim, as notícias não são narrativas neutras: dentro das estruturas de poder o jornal
é um produto que nasce em torno de crenças, valores e ideias.
A farra com que os jornais vão narrar as ações dos “bandoleiros” assinala para a
importância que o tema vai ganhar nos anos seguintes, além de indicar o que essas notícias
significavam para uma atividade que marchava para os rumos de empresa capitalista
consolidada no momento demarcado. Portanto, a década de 1920 marca o momento em que
essas notícias aparecem com maior efervescência. Não por acaso, pois, o jornalismo dos anos
1920, foi marcado pelo avançar tecnológico que lhe possibilitou maior tiragem em tempo
menor, encurtando, com isso, também o tempo entre a notícia, a publicação e o público, como
afirma Marialva Barbosa (2007). O telefone e o telégrafo foram essenciais nessa mudança,
fazendo com que a troca de informações se desse de forma mais rápida: instrumentos
“agilizadores da transmissão dos dados que convergiam para a redação” (ELEUTÉRIO, 2018,
p. 84). Além de baratear o jornal, popularizando-o e deixando-o mais acessível, possibilitando
a transformação do cotidiano e de suas sensações, mobilizando o que seria a sua primordial
missão: ser os olhos e os ouvidos das sociedades (BARBOSA, 2007) e porta-voz daqueles que
não têm quem fale por eles.
Essa rapidez contribuía para conseguir fidelidade do público, ansioso por saber o que
estava acontecendo pelo mundo e na sua região, claro. A exemplo, no início do segundo decênio
destacamos alguns telegramas que circularam no já mencionado A Lucta, trazendo em sua seção
“Últimas Notícias do Mundo Inteiro” os informes sobre os feitos de “um enorme grupo de
celerados” atacando e matando um missionário e outro padre da colônia salesiana de Mato
Grosso (A LUCTA, 04/09/1920, p. 03). No Cariri, comerciantes são atacados por cangaceiros
visando roubá-los. Ernesto Gomes morreu e Raimundo Alves Pereira ficou gravemente ferido.
O governo determina “enérgicas providencias” (A LUCTA, 24/09/1920, p. 03). Ainda em
novembro publica-se a notícia da chegada em Fortaleza de Felipe Galvão, comandante do 23°
BP e inspetor da polícia militar. O mesmo seguirá para Guaramiranga “onde encontrará Serpa 38
para conversar sobre a repressão do banditismo no Cariry” (A LUCTA, 27/09/1920, p. 03).
Em um único mês são vários os telegramas publicados dando notícias sobre as ações
desses indivíduos. Além da urgência que o tema recebe, podemos destacar a forma como a
notícia é construída: um enorme grupo de celerados foi o responsável pela morte de um
missionário e que cangaceiros deixaram uma pessoa gravemente ferida, nos informa A Lucta.
O discurso jornalístico tende a nomear e caracterizar os indivíduos e as ações que eles
vivenciam. Nomeiam, atribuem sentidos e significados de acordo com as suas experiências,
crenças e valores, conforme dissemos. Celerados, conforme colocado acima, diz-se de um
indivíduo que cometeu ou que é capaz de cometer um crime, um facínora, um vilão, um
matador, um criminoso.
38
Justiniano de Serpa nasceu em Aquiraz no ano de 1852. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito de Recife em
1888 e assumiu a presidência do Estado do Ceará em 1920. Doente, precisou se afastar e foi sucedido por Ildefonso
Albano em 1923. No ano seguinte, seria Moreira da Rocha o novo presidente do Ceará.
91
De modo algum as palavras utilizadas na composição da notícia são neutras. Cada
palavra escolhida e a forma como estas aparecem no texto nos oferecem pistas para pensarmos
a construção da imagem dos indivíduos ali narrados. Atentar para a construção do texto ajuda-
nos a perceber também as tensões e os projetos de poder de grupos que se queriam hegemônicos.
O discurso contribui para a manutenção de uma determinada estrutura de poder. Conforme
Orlandi (2001), “O sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras
mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam” (ORLANDI, 2001, p. 42-
43).
Desse modo, a linguagem pode ser apreendida como propósito de dominação por parte
de alguns grupos. Ora, cada palavra empregada é também uma estratégia de poder,
principalmente se pensarmos a quem eram destinadas essas folhas. Era a elite citadina que
adquiria o jornal, que fazia as assinaturas, sejam semestrais ou anuais, e era ela quem
compravam colunas para publicação de textos e anúncios. Apesar da população menos assistida
travar seu contato com o mundo das letras, ela o fazia na contramão do poder estabelecido, pois
até mesmo os termos utilizados podem oferecer uma leitura que distancia as classes. As palavras
também podem apontar para um gesto simbólico de dominação.
Quando lemos notícias relacionadas aos grupos de cangaceiros nos deparamos nos
periódicos com as palavras facínoras, bandidos, gagsters, associados a esses indivíduos:
“Iguatú Sanguifero” é o título da matéria que estampa a primeira página do jornal O Imparcial,
da capital cearense, informando que a população daquele lugar “(...) há dias vive sob a maior
aprehensão, devido a permanencia do famigerado grupo dos Paulinos, de Aurora (...) (O
IMPARCIAL, 27/04/1927, p. 01. Grifo nosso). “Crime da fazenda Jurema”, escreve A
Esquerda da edição de maio de 1928, onde podemos ler que “o assumpto de todas as palestras
continua a ser o caso do assassinato dos fazendeiros bahianos, por um grupo de cangaceiros do
cel. Pedro Silvino, chefiado pelo terrível bandido Antônio de Souza Lima (A ESQUERDA,
18/05/1928, p. 01, grifo nosso).
Na década de 1930, a tônica continua: “Barbaro assassinato em Senador Pompeu”,
publica A Ordem. O subtítulo enfatiza o apelo dramático: “Os bandidos do antro de Miguel
Calmon massacraram o cel. Pedro Coelho” (A ORDEM, 29/03/1930, p. 02. Grifo nosso). A
Razão em tom ainda mais fatalista revela toda a arte jornalística do apelo a o s sentimentos do
público que as “notícias de sensação” podem causar: «Lampeão!», aparece em letras enormes
o título da matéria. O subtítulo, com fonte um pouco menor, mas ainda assim com destaque,
informa que “O facínora e a sua horda continuam a encher de sangue e de luto as regiões do
nordéste”. Certos de terem atingido em cheio o público, como quem é golpeado no estomago, o
leitor, atônito, ainda lê abaixo o que há mais de se esperar naquele texto: “Scenas emocionantes
de dor, vergonha e desespero!” (A RAZÃO, 16/05/1931, p. 03. Grifo nosso).
É interessante perceber como essas folhas vão se fazer soar uníssono quando o assunto
era o cangaço. Havia o interesse em classificar esses indivíduos, aprisioná-los e engavetá-los
sob um mesmo discurso: o cangaço é um mal que precisa ser combatido urgentemente. Nesse
sentido, informa Sandra Dias de Melo, “nomear é uma atividade social” (MELO, 2006, p. 300).
Segundo a autora, nomeamos e classificamos, isto é, “orientamos seu sentido de modo a
designá-las como x e não y, em um processo que envolve valores, crenças e certezas sobre a
coisa designada” (MELO, 2006, p. 301. Grifo nosso). Além disso, notemos as palavras
92
utilizadas na composição da notícia quando se trata de qualificar esses indivíduos: o terrível
bandido, o facínora e a sua horda, indicam, além do posicionamento do periódico, o possível
caminho traçado para a interpretação dessas notícias, uma vez que apontam para a construção
de indivíduos cujas ações são descritas como abomináveis, afinal elas enchem de sangue e de
luto e não poupam os lares aflitos.
Entretanto, só em 1930 veremos de fato as cenas mudando, mesmo que lentamente. O
governo revolucionário só trataria a sério o cangaço após o presidente Getúlio Vargas ficar
sabendo dos detalhes e circunstâncias da morte do delegado Herculano Borges, em setembro
de 1931. Corisco, seu carrasco, o pendurou pelos pés numa vara e, com o homem ainda vivo,
retirou a sua pele. Além disso, “cortou-lhe as mãos, os pés e as orelhas, o esquartejou e enfiou
as várias partes do seu corpo em estacas (LUSTOZA, 2011, p. 90). Foi através do relato desse
crime em suas mensagens como interventor da Bahia que Juraci Magalhães conseguiu apoio do
governo para exterminar o cangaço. Tarefa difícil, pois a Revolução de 1930 e, posteriormente,
a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, terminaram por reduzir ainda mais a
parcas forças empregadas no combate ao banditismo. Além disso, no ano de 1932 outra grande
seca assolou o Nordeste, causando mais problemas para a população. Os jornais chamavam a
atenção para o caos que se instalava e os representantes dos estados pediam ajuda financeira
para tentar solucionar a crise que enfrentavam.
A brutalidade com que agora agia o bando chama a atenção. Os jornais continuam a
narrar em suas páginas os desmandos e a audácia dos subgrupos de Lampião. As mudanças que
vieram como o novo governo operaram em apenas uma parte dos problemas. Aquele que era o
maior mal das populações sertanejas ainda permanecia vivo e, aparentemente, mais forte do que
nunca. A esperança no “Brasil Novo”39 definhava outra vez: “O povo confiou e depois de tanto
tempo inda se vê agindo abertamente nos sertões o Grupo de Lampeão. Sem solução, como na
Patria Velha, estão os problemas estaduais” (O DEBATE, 16/01/1932, p. 04).
Problemas esses que a imprensa não cessava de publicar em suas folhas. No mês de
fevereiro de 1932, as narrativas de violência se aviltavam no jornal A Nação, de Fortaleza. Nela
podemos ler que ao passarem pela fazenda Olho D’Água, Corisco e seu bando cometeram várias
atrocidades, deixando a fazenda pela manhã, no caminho deteve José Tibúrcio e Bartholomeu
Regis, de quem espoliou mais de 300$000.
Como não tivesse dinheiro José Tiburcio foi conduzido preso até Bom Jardim, nas
proximidades do rio Salitre. Aí, o pobre homem teve a infelicidade de ser denunciado
por um morador da localidade, como tendo feito parte de uma expedição policial
contra Lampeão. Essa informação custou a vida do infeliz Tiburcio, que foi
imediatamente “sangrado”. Corisco e seus comparsas, fria e perversamente,
assassinaram-no a punhaladas, lentamente, gozando as contorções de dor que a vitima
fazia (A NAÇÃO, 16/02/1932, p. 01).
Notícias como essas apontam para a perpetuação do cangaceirismo no sertão, bem como
fomentam o medo diante de tais indivíduos. Somente em 1937, com a instauração da ditadura
do Estado Novo, o reinado de Lampião acenou para o seu final. Sob a pretensão de unificação
do país e para barrar as desordens em território nacional, Vargas começa a perseguir ferozmente
todos os que são considerados “extremistas” – comunistas e integralistas. O cangaço,
39
Expressão que foi utilizada por muitos jornais da época para se referir ao regime instaurado pela “Revolução”
de 1930. Outra expressão que aprece nas folhas cearense para designar o novo regime é “Pátria Nova”.
93
obviamente, não fazia parte de nenhum dos grupos, mas era considerado um “extremista” por
conta de todas as desordens e atrocidades que cometiam, manchando, assim, a imagem do Brasil
como um país civilizado.
O tom das notícias vai mudar em 1938, depois da morte de Lampião. Maria Bonita e
alguns integrantes de seu bando na grota dos Angicos, Sergipe, em julho do referido ano
estampam as folhas, jornais de todo o Nordeste vão noticiar o fim do “capitão do sertão”.
Telegramas são enviados noticiando o grande feito das forças volantes alagoanas lideradas pelo
Tenente João Bezerra: “Decapitados Lampeão, sua mulher nove comparsas” (O POVO,
29/07/1938, p. 01), publica o jornal em letras garrafais. Há uma espécie de celebração macabra
onde se mistura a euforia da notícia da morte do célebre bandido, com uma legitimação da
violência: “as cabeças dos bandidos esperadas em Maceió” (O POVO, 29/07/1938, p. 01). Ora,
sob os auspícios do Estado Novo, reforçava-se o poder da imprensa em “disciplinar” a todos
para não seguirem os caminhos do cangaço, ao mesmo tempo que ajudava a legitimar o governo
varguista, pois agora “os sertões nordestinos estavam livres de uma praga infernal” (O POVO,
29/07/1938, p. 01) que tanto aterrorizou as famílias sertanejas.
Erick Araújo (2007) nos fala de como ficou a cidade de Fortaleza no final de 1930,
quando em novembro do ano de 1939 é realizada uma avaliação dos últimos cinco anos de
administração cearense. Essa estimativa feita pelo DCDP (Departamento de Cultura,
Divulgação e Propaganda) mostra-se otimista com os resultados e “realizações do Governo do
Estado”, entre elas “(...) destacava-se o saneamento dos sertões, com o fim do ‘banditismo
sistemático’ (o cangaço), salvo alguns casos esporádicos tidos como inevitáveis até em meios
cultos e mais policiados do mundo” (ARAÚJO, 2007, p. 76). O fim do cangaço em meio às
construções de prédios públicos, os avanços na agricultura e no ensino público coadunam com
a ideia de progresso e modernidade que se pensava para o país. Fortaleza, nesse sentido,
“civilizou-se e aformoseou-se à altura das cidades modernas”, dizem as palavras da avaliação.
Considerações finais
Os jornais eram verdadeiras armas municiadas de notícias contendo narrativas de
violência e medo. Ora, além de aproveitar o gosto da população por essas “notícias de sensação”
e, portanto, explorar o caráter vendável destas, o medo era incutido como estratégia política no
intuito de acabar com a possibilidade de qualquer simpatia que as classes pobres poderiam nutrir
pelos cangaceiros.
Os significados elaborados pela imprensa cearense visavam atender ao projeto de poder
que os homens dos jornais pensavam para o país. Esses significados, todavia, não podem ser
engavetados e/ou isolados, isto é, eles estão emaranhados, ligados, amarrados e é assim que
fazem sentido dentro da conjuntura política da Primeira República. Dentro da arena política,
essas notícias tornavam-se uma arma poderosa usada para desqualificar os adversários, por
exemplo.
Não é à toa o recorrente uso de denúncias de candidato “A” ou “B” envolvido com
cangaceiros nos momentos de pleito. A crítica se estende aos governantes que estão no poder,
acusados de negligência e tolerância com o banditismo, simbolizando o fracasso diante das
instituições de repressão (polícia), por não conseguirem dar fim aos grupos de “facínoras” que
94
grassavam pelo sertão atormentando as famílias: um verdadeiro atentando à moral, à honra
familiar e ao Estado como um todo, portanto, um entrave à civilização. Aliás, caro bordão
republicano.
A falência ficava ainda mais evidente no início dos anos 1930, quando se acreditava que
a “Revolução” iria pôr fim às velhas estruturas, marcadas pela força desmedida das oligarquias.
Posto assim, essa crítica estende-se a todo o sistema republicano cujos sonhos teimavam em
não se realizar. Além disso, havia o medo de que a ação dos bandoleiros seduzisse e levasse as
classes menos favorecidas a engrossarem as fileiras do cangaço. Medo da revolta, medo de
perder o controle do julgo e do mando.
Fontes
Mensagens do Governador do Ceará (1915)
Jornais consultados
A Esquerda (1928)
A Imprensa (1925)
A Lucta (1920-1922)
A Nação (1932)
A Ordem (1930)
A Razão (1930, 1931)
O Debate (1932)
O Imparcial (1927)
O Povo (1938)
Referências
ARAÚJO, E. A. de. Nos labirintos da cidade: Estado Novo e o cotidiano das classes populares
em Fortaleza. Fortaleza: INESP, 2007.
BARBOSA, M. História cultural da imprensa – Brasil – 1900- 2000. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2007.
DELUMEAU, J. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
95
ELEUTÉRIO, M. de L. Imprensa a serviço do progresso. In:. LUCA, T. R de; MARTINS,
A. L. História da imprensa no Brasil. 2. ed., 3° reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2018.
LUCA, T. R de. História dos, nos e por meio de periódicos. In:. PINKSY, Carla Bassanesi.
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.
LUSTOSA, I. De olho em Lampião: violência e esperteza. São Paulo: Claro Enigma, 2011.
MELLO, F. P. de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo:
A Girafa, 2011.
SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: Corpos políticos, Desamparo, Fim do Indivíduo. 2. ed.
rev.; 3. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo. Editora Unesp. 2011.
96
Capítulo
8
Mapeamento das práticas de multiletramentos em
língua portuguesa no ensino médio
Introdução
Este capítulo tem como objetivo abordar o desenvolvimento das práticas dos
multiletramentos, principalmente, aqueles que requerem letramentos digitais nas aulas de
Língua Portuguesa em escolas públicas do ensino médio do município de Limoeiro do Norte
do Estado do Ceará, observando o espaço escolar e a inclusão digital nas aulas de língua
portuguesa a partir das estratégias utilizadas pelos professores, para as quais os
multiletramentos estejam presentes e sejam acionados pelos meios digitais presentes. Para isso,
nesta etapa de iniciação científica, centramo-nos em mapear em dois movimentos: observar as
escolhas dos gêneros e na observação das formas de atuação de professores.
A pesquisa partiu de ida às escolas e vivência com os professores, por isso podemos
afirmar que desenvolvemos uma pesquisa etnográfica, no qual foram investigadas as práticas
culturais do grupo escolar, para a qual nos pautamos em pesquisas (momentos de estudos sobre
o tema e as formas de agir), além da investigação do ambiente, das observações e de outros
instrumentos, tais como questionários e interações mais espontâneas que buscavam neutralizar
os impactos do paradoxo do pesquisador42.
No decorrer dos séculos, a tecnologia tem proporcionado novas formas de interação,
incluindo a possibilidade de também ser ferramenta de ensino-aprendizagem. Inclusive, os
meios tecnológicos têm ganhado espaço no campo escolar, proporcionando um maior potencial
das aulas, de modo geral, porque podem aproximar as pessoas a bens e serviços que a distância
física tornaria impossível, tais como conhecer lugares e diferentes culturas, visualizar células
etc. Com isso, é possível perceber que os professores têm ampliado a sua forma de ensinar: “As
40
Acadêmica do Curso de Letras/Português da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafidam/UECE).
E-mail: kezia.beserra@aluno.uece.br
41
Pós-Doutora pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Doutora e Mestra em Linguística, pela
Universidade Federal do Ceará. Professora adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Professora categoria
permanente do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras - MIHL, na UECE e do PROFLETRAS/UECE. E-
mail: ana.lima@uece.br
42
Labov (2008) recomenda uma precaução para se evitar ou minimizar possíveis influências negativas decorrentes
da presença do pesquisador e de ferramentas (por exemplo, o gravador) diante do entrevistado, o que ele
denominou de paradoxo do observador. Essa recomendação para observar e registrar, sem ou com poucas
interferências, as falas dos entrevistados a fim de que o entrevistado narre algumas experiências pessoais para
atenuar o foco de sua atenção no processo de entrevista, permitindo que o processo comunicativo ocorra de maneira
natural possível.
97
tecnologias nos ajudam ou nos permitem fazer coisas que talvez fossem mais difíceis ou mesmo
impossíveis sem elas. No caso da educação, podem permitir ensinar melhor e mais eficazmente;
ou podem favorecer o aprendizado de forma mais fácil ou mais eficiente. (RIBEIRO, 2018, p.
73).
Assim, é visível perceber o quanto as tecnologias têm favorecido o cotidiano escolar,
possibilitado novas formas de aprendizagem. Com os meios tecnológicos, os alunos têm
adquirido mais informações e se utilizado de um maior número de gêneros. Diante disso, “A
proposta pedagógica adequada a esses novos tempos precisa ser não mais a de reter em si a
informação. Novos encaminhamentos e novas posturas nos orientam para a utilização de
mecanismos de filtragem, seleção crítica, reflexão coletiva e dialogada [...]” (KENSKI, 2013,
p.87). Ou seja, os novos recursos têm adentrado na esfera escolar, e têm possibilitados ganhos
na educação em um espaço mais amplo, se tronando mediadores entre pessoas por meio de
pesquisas.
Assim, é perceptível a importância que a tecnologia tem para os professores e alunos,
pois assumem papel de grande importância na utilização desses recursos. Para tal, esta
discussão traz como amparo teórico: Roxane Rojo (2015), Jacqueline P. Barbosa (2015),
Androsino (2009), Flick (2009), Kenski (2013), Vani Moreira (2013) Oliveira (2001) Maria
Rita Sales (2001), Setton (2010) e Maria da Graça (2010)
Buscamos, então, apresentar os dados das pesquisas realizadas em duas escolas públicas
do ensino médio do munícipio de Limoeiro do Norte do estado do Ceará. Na referida pesquisa,
observamos o espaço escolas, levando em consideração a utilização dos recursos tecnológicos
utilizados pelos professores de Língua Portuguesa.
Com isso, desenvolvemos uma pesquisa de traços etnográficos, porque nos exigia ida
ao campo escolar. Essa incursão permitiu o envolvimento com os professores e a observação
in loco das práticas de letramentos digitais na sala de aula e nos demais espaços escolares. Além
de conhecer o ambiente e os recursos oferecidos pela escola e/ou pertencentes aos alunos (tais
como aparelhos de telefonia móveis) que também poderiam ter fins pedagógicos. A
metodologia pautou-se, de início, à conversação com um professor de cada escola selecionada
para o projeto, pelo critério de serem as escolas públicas agregadoras do maior número de
alunos do município de Limoeiro do Norte, interior do Ceará, cidade sede do campus da
Universidade Estadual do Ceará – UECE. Em seguida, foram feitas as observações do espaço
escolar e os recursos oferecidos pela escola para partirmos para a etapa da observação das aulas,
sendo a pesquisadora a que fazia as anotações para posterior mapeamento da atuação do
professor quando este fazia uso das tecnologias (ou mesmo quando elas estavam presentes e
não eram trabalhadas). Como forma de sistematizar os dados, foi elaborado questionário, cujas
respostas seguem na seção de análise.
Foi constatado que os professores participantes fazem o uso das tecnologias em suas
aulas e que já fizeram e ainda fazem o uso do Laboratório Educativo de Informática (LEI), mas
que, no momento da pesquisa, a escola apresentava dificuldades na disponibilidade de horários
para a alocação das aulas, neste espaço. Isso não os fez deixar de utilizar outros recursos
oferecidos pela escola. Esses fatos serão apresentados nos resultados da pesquisa, bem como
alguns encaminhamentos que apoiaram a construção deste estudo, tais como a fundamentação
teórico-metodológica, a análise (preliminar) das informações coletadas com alguns resultados
e as considerações finais.
98
O percurso etnográfico como metodologia para o conhecimento do cotidiano
escolar e a relação com as tecnologias
Esse artigo apresenta parte do mapeamento das práticas desenvolvidas pelos professores
do ensino médio de uma escola pública de Limoeiro do Norte - Ceará para promover
multiletramentos apresentar as devidas medidas utilizadas para analisar as práticas de
letramentos digitais nas aulas de Língua Portuguesa, observando o papel dos professores com
as presentes tecnologias. Diante disso, foram tomados procedimentos metodológicos
articulados nessa pesquisa, tendo em consideração as medidas de organização dessa análise,
com as seguintes orientações, através de conversações, observações e questionários.
Como caracterização dessa pesquisa, trata-se de uma pesquisa de cunho etnográfico, em
que busca entender e se aprofundar nas práticas de um determinado grupo, em que há uma
interação do ambiente adentrada nas práticas de linguagem, no qual estuda o caso, através de
pesquisas, investigação do ambiente, observação e análise. Podemos dizer que “a pesquisa
etnográfica é um tipo de pesquisa que visa compreender, na sua cotidianidade, os processos do
dia a dia em suas diversas modalidades, os modos de vida do indivíduo ou do grupo social”.
(SEVERINO, 2016). Ou seja, “a pesquisa etnográfica é um tipo de pesquisa qualitativa que
estuda grupos de pessoas enfatizando “os sujeitos pesquisados independentemente das teorias
que sustentam a descoberta. (MARCONI; LAKATOS, 2017).
Além disso, como como método qualitativo, a pesquisa etnográfica “[...] é uma pesquisa
que analisa o comportamento de um grupo, sistema social ou cultural, uma vez que é
fundamentada na etnografia que implica a descrição e interpretação profundas de um grupo,
sistema social ou cultural”. (SAMPIERE; COLLADO; LUCIO, 2013). Quanto aos os
procedimentos etnográficos podem ser:
Por isso, que no contexto de sala de aula, analisamos o trabalho da tecnologia como um
recurso pedagógico. No primeiro momento da pesquisa foi descrito a conversação com os
professores, descrevendo o seu trabalho com a tecnologia em sala de aula e as experiências
vivenciadas pela escola. A professora da Escola do Ensino Médio, Lauro Rebouças, relatou
primeiramente as suas experiências passadas na escola, com a criação de um Blog, no qual
trabalhava com os gêneros textual, e que utilizava o LEI para que os alunos tivessem o acesso
à tecnologia com a utilização dos computadores, a mesma relata que teve ajuda do professor do
laboratório, afirmado pelo responsável pelo laboratório.
Além disso, conforme Magalhães (1996.p. 17): “A interação se define como um
fenômeno intersubjetivo, envolvendo a produção e a interpretação de linguagem por indivíduos
que ocupam lugares ou posições em um contexto social específico”. O que significa dizer que
o que segue, neste estudo, é atravessado pelo olhar de iniciante em pesquisa que se marca a
partir do viés acadêmico sobre a temática, mas um olhar pautado pela sensibilidade de
99
compreender o exercício reflexivo sobre as condições em que os participantes se encontram
que, embora, estejam em posição de já licenciados ante uma licencianda, sabem que estão sob
o poder imbuído da instituição universitária.
Assim, a seguir, apresentamos as bases sobre as quais essa investida possibilitou, ou
seja, os estudos acerca de uma proposta pedagógica que amplia a noção de escola, de recursos
e, principalmente, de reflexão sobre o fazer pedagógico, para afirmarmos que muitas vezes o
professor já opera, mas, como não há a discussão sobre esse fazer, perdem-se momentos de
enriquecimento dele como sujeito de suas ações e a criatividade que a proposta educacional
poderia trazer como ganho ao binômio ensino-aprendizagem.
100
A constatação de um necessário letramento multissemiótico ou multimodal 43 se impõe
como condição para a leitura e para a produção do conteúdo, mas para isso devemos saber quais
práticas de letramento selecionar para adequar as práticas sociais às práticas discursivas de
interesse escolar? Que gêneros selecionar? Como abordá-los? As respostas a essas perguntas
colocam-nos no entrecruzamento de reconhecer e avaliar como o professor executa as suas
atividades para resolver esses problemas.
As reflexões sobre as modificações que o computador como ferramenta didática esteja
produzindo ou venha a produzir na práxis docente do professor de língua materna relaciona-se
sobre quais conhecimentos de língua são necessários para se alcançar resultados significativos
na aprendizagem dos alunos, mas principalmente observar o processo de elaboração de uma
reengenharia do ensino, preconizada pelas políticas públicas educacionais e compreender como
o professor apropria-se e reelabora os saberes no contexto referido.
Por compreendermos as práticas de leitura e escrita como processos pertencentes às
práticas sociais, que resultam em produtos humanos, marcados pela história e pela cultura, é
que delineamos esta pesquisa focalizando nos multiletramentos como uma necessidade da
contemporaneidade, descrevendo as ações dos professores que desencadeiam de alguma
maneira como professor e alunos se relacionam com a cultura digital, caracterizando o acesso
e o domínio das ferramentas para investigar o impacto e a influência da interatividade das
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação (TDIC) no cotidiano e nas experiências dos envolvidos no processo de ensino
nesse contexto.
As práticas pedagógicas de leitura e escrita necessitam ser expandidas, desenvolvidas,
elucidadas e aprimoradas, mas para isso precisam também ser compreendidas linguisticamente.
É preciso saber como se aprendem essas e outras práticas, porque elas são parte de práticas
sociais mais amplas e essas, por sua vez, são os processos em que conectam as pessoas com
outras e isso inclui cognições partilhadas representadas em ideologias e identidades sociais. O
professor de língua materna se põe como o agente que ativa os contextos, mas também aquele
que precisa saber como as pessoas aprendem a ler e a escrever também em ambientes digitais.
Lankshear, Snyder e Green (2000) salientam o fato de que muito educadores estão tendo
que encontrar um modo para atender às demandas de um mundo mediado pelas novas
tecnologias de informação e comunicação (TIC). Por isso, os professores quando integram essas
tecnologias às práticas pedagógicas significativamente é porque há ou deveria haver o
compromisso com a formação de um cidadão mais participativo na sociedade em que atua e
Os estudos acerca dos letramentos, promovidos na sala de aula de português e mediados
pelas tecnologias digitais ou não, pode ampliar as pesquisas sobre a teoria de gêneros,
apresentando mais subsídios para entender essa categoria como central e visível na sociedade
contemporânea ao agregar valores presentes na execução de um gênero como realização da
entrada dos indivíduos em grupos da sociedade, como forma de inclusão, isto é, da agência
estratégica que a apropriação dos gêneros pode materializar (BAZERMAN, 2007),
ressignificando as situações e as ações nelas desempenhadas.
A sala de aula é um locus importante para essa observação e para a análise de eventos
43
Aqui tomados como sinônimos, embora reconheçamos que há diferenças sutis na escolha de um termo ou de
outro acerca de suas bases epistemológicas entre semioses e modos.
101
em que a participação da escrita é privilegiada. Acreditamos que a compreensão das tecnologias
como artefatos e meios gerados pela cultura deve contribuir para um estudo em que se possam
apontar os problemas causados por práticas de letramentos reducionistas, quando estão
baseadas em um modelo autônomo. E sugerir formas de otimizar as pesquisas que promovam
a apropriação das tecnologias como forma de transformação das práticas pedagógicas de ensino
dos sistemas de escrita em um realinhamento das demandas sociais e do conteúdo escolar.
Para alcançar essa proposta precisamos trilhar caminhos que persigam uma concepção
de linguagem em que os conceitos de letramentos, práticas e eventos em que se realizam. Para,
a partir daí, compreendermos como uma pedagogia de multiletramentos deve potencializar-se
na escola e o que isso pode significar para o rompimento do modelo autônomo de letramento
na escola. Para tanto, dedicamos o primeiro momento à discussão acerca destes conceitos que
são considerados centrais na pesquisa.
O termo multiletramentos foi cunhado por um grupo de professores e pesquisadores dos
letramentos, denominado New London Group (Grupo de Nova Londres), em meados da década
de 1990, nos Estados Unidos. Na perspectiva dos multiletramentos, o ato de ler envolve
articular diferentes modalidades de linguagem além da escrita, como a imagem (estática e em
movimento), a fala e a música. São múltiplas linguagens e múltiplas culturas que refletem as
mudanças sociais e tecnológicas atuais, ampliando e diversificando não só as maneiras de
disponibilizar e compartilhar informações e conhecimentos, mas também de lê-los e produzi-
los. O desenvolvimento de linguagens híbridas envolve, dessa forma, desafios para os leitores
e para os agentes que trabalham com a língua escrita, entre eles, a escola e os professores
(ROJO, 2013).
É preciso atentar também que há subjacente ao trabalho desenvolvido pelos professores
todo um sistema de gêneros (BAZERMAN, 2007) no qual os documentos que prescrevem e
amparam o trabalho desenvolvido pelos professores em sala se relacionam entre si. Entre eles,
a Constituição Federal; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação; o Plano Decenal de Educação;
os Parâmetros Curriculares Nacionais; as Diretrizes e Matrizes Curriculares até chegarem à
escola sob a forma de projetos pedagógicos e planejamentos de aulas. Todos os documentos
inter-relacionam-se interdiscursivamente e intertextualmente (FAIRCLOUGH, 2001) e seus
conteúdos devem ser discutidos para que possamos compreender os contextos das ações dos
professores, que resultarão em práticas de letramentos diversas. E, por essa razão, o conteúdo
desses documentos é matéria de discussão teórica em nosso trabalho, para um posterior olhar
mais crítico em nossa análise.
102
permite ao/à pesquisador/a usar técnicas especificas de coleta de dados que visem a um maior
engajamento junto à comunidade estudada, no sentido de obter a aceitação de seus membros.
No caso, seguinte foram feitas o acompanhamento do professor em sala de aula e a observação
da escola.
A professora relatou que trabalhou com a pesquisa de gêneros envolvendo histórias em
quadrinhos, mas não mais atuava com esse projeto, porque estava envolvida como conselheira
de sala. Indagada sobre o uso do laboratório na escola, relatou que estava ministrando aulas
optativas de informática e esse motivo dificultava conseguir um horário para o uso do
laboratório de informática para fins de ensino de língua portuguesa.
O responsável pelo LEI é professor de Geografia e encontra-se nesta atividade há 5 anos.
O professor reafirmou que o curso de informática, ministrado aos demais professores a
atrapalha os professores de utilizarem a sala de informática, para fins específicos. Isso por si só
já denota o desconhecimento prestado por ele aos demais acerca de uma das necessidades do
desenvolvimento do letramento digital que se centra no acesso, no domínio, uma vez que para
muitos esse é o primeiro entrave.
Ainda, com base, nessa fase de observação e sondagem, o coordenador do LEI relatou
sua colaboração em projetos, nos quais a professora de Português participa, tais como a criação
do blog, outra ferramenta digital sobre a qual não havia reflexão das práticas de letramento
digital demandadas e na mobilização de conteúdos transdisciplinares envolvidos, tais como os
vídeos, webquest, links de acesso a outros recursos digitais etc. Isso feito quando a professora
trabalhava o conteúdo “Vanguardas na Literatura, mais uma vez, demonstrando a atitude
irrefletida acerca da condição inovadora e criativa que estavam manuseando, reduzindo a frases
como: “os alunos fazem uma simples pesquisa”, denotando a pesquisa como atividade menor,
quando esta atravessa as práticas necessárias ao letramento escolar.
Embora percebamos que acreditam no uso dos recursos tecnológicos como
“experiências positivas” e “um meio mais didático” de procedimento, os meios analógicos, tais
como as atividades realizadas nos cadernos tenham supremacia e estabeleçam-se como formas
de assimetrias de poder, pois há atividades e “vistos” para assegurar isso. Embora, a atividade
em pauta se relacionasse ao filme, “Mãos Talentosas”, assistido pelos alunos na semana anterior
e sobre isso muito mais poderia advir, mesmo que se revelasse o esforço de atender ao item
curricular “formação de cidadania”, para o qual um potencial latente de reflexão se impusesse
foi transformado em cumprimento da função de atividade do conselho de sala.
Outra atividade observada referia-se ao conjunto de textos para a atribuição da nota
parcial do 4º bimestre, com o tema intertextualidade, no qual houve a leitura dos textos: citação
da Bíblia, na primeira epístola do Apóstolo Paulo aos Coríntios no capítulo 13, relacionado ao
poema de Camões. Depois, a letra da canção do hino do Brasil modificada e, por fim, um
slogan. Conforme, atestamos, a preocupação com a intertextualidade se ateve ao mecanismo de
intertextos recuperáveis, ignorando a diversidade genérica e a possibilidade múltipla que a
temática requer (mídias, linguagens e questões inferenciais a partir de conhecimentos prévios
dos alunos).
A escola apresenta em sua estrutura laboratório de informática com computadores
funcionando, cuja dificuldade não é exclusivamente técnica, mas de adequação funcional ao
propósito educacional e há aparelhos de Datashow. A sala antes reservada para o uso de
103
multimídias cedeu à demanda de transformar-se em uma sala de aula em moldes mais habituais
pelo aumento do número de alunos, denotando mais uma vez que o modelo de letramento
autônomo (STREET, 1984) predomina.
Na escola 2, a professora participante também assume o uso da tecnologia em suas aulas.
Para isso relatou que ora leva os alunos para o LEI com o intuito de resolver questões pelo
computador, ora faz uso da televisão, levando-a até a sala de aula, pois nem sempre é possível
utilizar o LEI para suas atividades. A referida professora também não demonstrou reconhecer
as inovações potenciais em sua prática, preferindo atribuir que a escola estava passando pela
formulação de Ensino Profissionalizante e as aulas extras tomavam todo o seu tempo, apartando
a relação entre conteúdo e tecnologias. Embora a professora reconheça que os recursos
tecnológicos tornam a aula mais interativa e dinâmica, realçou que o uso dos laboratórios ainda
não vista pelos gestores como prioritária, relatando a escolha sem critérios técnicos para a
coordenação desses espaços.
Ainda em relação à observação, a aula da professora da escola 2 transcorreu seguindo o
ritual de iniciar com o “visto’ nos cadernos de alunos, ao terminar esse momento conduziu os
alunos para assistirem ao filme “ O conde do Monte Cristo” de Alexandre Dumas, para que
quando terminarem, fazer uma atividade sobre o filme. Antes de iniciar o filme, a professora
explica a história de superação encontrada no filme. Durante a observação, é perceptível que a
professora sabe fazer o uso do recurso tecnológico, ligando o aparelho e conectando o pendrive.
Sem mais exploração de linguagens ou mesmo de contextualizações necessárias para o
desenvolvimento da atividade em que a diversidade de linguagens se manifestasse.
Em relação a observação da escola, apresentou uma situação mais favorável, com 2 LEI,
um para o uso exclusivo de computadores e o outro para o uso dos tabletes e Datashow. Há,
ainda, a sala de multimídia no qual o Datashow e outros equipamentos de sons adequados, no
qual o professor, em geral, apresenta filmes ou ministra conteúdos, utilizando-se de slides. As
televisões são acopladas a equipamentos de som, para vídeo ou outros fins, mas os suportes são
utilizados irrefletidamente, conforme atestamos nas avaliações que seguem ao uso dos recursos,
sempre privilegiando a modalidade escrita e as demais linguagens, quando presentes,
subsidiando atividades padronizadas de escrita escolar.
Na escola 2, a professora reconheceu que os alunos participavam mais das aulas e se
tornava mais interativo a forma com que trabalhava e informou que já haviam contado com o
projeto do blog, mas essa atividade parou e agora o uso do LEI está mais inacessível, porque a
escola está utilizando o LEI para aulas de informática para os alunos, o que demonstra a
discussão enviesada de preparação para o mercado de trabalho.
A professora da escola 2 relatou que faz o uso do LEI para a realização de atividades
com os computadores, através de resoluções de questões (mais uma vez, observamos a
subutilização do potencial das tecnologias). E outros momentos relatados foram o uso de
televisões que a escola dispõe, para assistir a filmes, com fins de extrair informações que se
apresentarão na modalidade escrita, mas, mesmo limitada, essa atividade sofria com a falta de
um melhor espaço para essa tarefa, porque nos últimos tempos as aulas extras disponibilizadas
pela escola ocupavam todos os espaços, ignorando a concepção de aulas e de recursos para sua
ministração também tecnológicos.
Duas aulas serviram de base para a observação, nas quais foram vistos acontecimentos
104
semelhantes, com abordagem do professor ao entrar em sala de aula, por iniciar com os vistos
das atividades, e que ao terminar seguia com o seu planejamento.
Na escola 1, a professora desenvolveu uma atividade sobre intertextualidade, levando
em considerações os textos imprimidos e organizados. Esta explicou o conteúdo e leu os textos
para os seus alunos, que em seguidas iniciaram a resolução desse trabalho. Ela relatou que na
semana anterior ela trabalhou em cima de um filme com a mesma turma, no qual ela é trabalha
com o conselho de sala.
Na escola 2, a professora trabalhou um filme, no qual ela tem o costume de se trabalhar.
No início da aula, relatou aos alunos sobre o filme, e que, através desse filme, os alunos
resolveriam algumas questões, trabalhando a interpretação, em seguida trouxe até a sala de aula
a televisão, que já vem inserido com o som, em demostrou ter domínio sobre o recurso
tecnológico, ligando o aparelho.
Setton (2010) afirma que as mídias se encontram presentes no cotidiano, aumentando,
assim, sua importância, e exigindo a análise de seu papel pedagógico e ideológico. Diante disso,
a observação e à conversação, proporcionaram a importância do uso da tecnologia e a sua
ampliação no espaço escolar.
Com a investigação do ambiente diante do determinado contexto, baseado nas
observações, foi elaborado um questionário, com algumas perguntas, o qual foi analisado o que
realmente os professores dizem fazer e o que fazem, na prática. Diante disso, formulado o perfil
do participante. A partir também de dados sócio demográficos e dos dados profissionais.
Esses dados, destacaram o perfil dos professore que participaram da pesquisa. No
quadro apresentado, revela a formação continuada em especialização nos dois casos, sendo uma
exigência no edital do concurso. Os professores relataram que não possuem formação
continuada em relação às tecnologias, mas que relataram que usam frequentemente a tecnologia
nas aulas.
A formação acadêmica dos professores é na área de Letras. Formados na Faculdade de
Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), unidade da UECE na região. Eles obtêm mais de
5 anos de experiência na formação e mais de 5 anos de ensino na escola-alvo da pesquisa.
Foram feitas algumas perguntas acerca da relação que professor têm com a tecnologia e
o seu uso em sala de aula, diante disso, os questionários traz um levantamento acerca da
realidade vivenciada e com aquilo que o professor disse. Foi ainda, elaborado um questionário
propicio ademais perguntas, no qual os professores descreveram os recursos disponíveis na
instituição, contendo computador, Datashow, televisão e tablete, sendo esses os mais presentes
na escola.
Outra pergunta foi baseada na experiência do professor com a tecnologia e o ensino em
sala de aula, eles relataram experiências positivas, acerca do ensino, no qual os alunos
demonstram um maior interesse nas aulas, tornando mais dinâmicas e despertando o interesse
dos alunos.
Ademais, foram descritos a frequência com que estes atores sociais se utilizam dos
meios digitais, descrevendo que sempre que possível, utilizam em sala de aula como um meio
pedagógico, auxiliando as aulas. Além disso, os participantes afirmaram que sabem fazer o uso
das tecnologias digitais. Mas, somente um, já fez o curso de informática, enquanto a outra
105
pessoa nunca fez.
A pesquisa apresentou os dados que foram recorridos na pesquisa, apresentando a
realidade da escola diante dos novos meios de ensino e tecnologia. É importante destacar que
esses meios estão inseridos na sociedade, no qual os indivíduos têm feito constantemente o uso
da tecnologia para se comunicar. Oliveira, aponta:
Esta citação trata sobre o trabalho do ser humano como a matéria principal na utilização
da tecnologia, ampliam e ajudando no trabalho dos seres humanos, fazendo com que outros
possam partilhar de seus conhecimentos e outros apreenderem dele. Diante do exposto, a
pesquisa possibilitou a caracterização das aulas de Língua Portuguesa da escola pública do
município de Limoeiro do Norte, no estado do Ceará. Além do trabalho dos professores com o
maior intuito no envolvimento dos alunos e o ensino do conteúdo através da tecnologia.
Considerações finais
Diante da atual realidade e da ascensão dos meios e dos multiletramentos, conclui-se
que a importância desses recursos para a sociedade. De acordo com a pesquisa realizada e os
dados obtidos, podemos perceber o quanto a tecnologia, pois cooperam para a integração da
turma. Logo, os meios digitais auxiliam bastante na questão da praticidade e do benefício.
Considerando o objetivo proposto, constatamos que o uso da tecnologia nas aulas de
Língua Portuguesa possibilitou mapear algumas práticas em que as tecnologias estavam
presentes e quais as dificuldades de reconhecerem e avançarem sobre o trabalho com elas, para
detectar a prisão a modelos a partir daquelas que utilizam com maior frequência.
Com a observação do espaço, a entrevista e os resultados dos questionários, percebemos
que o uso da tecnologia tem feito parte do cotidiano escolar, mas que ainda existem algumas
barreiras para as quais os professores têm que enfrentar, a fim de potencializar as suas práticas
de ensino na escola.
Por fim, o que atestamos foi que os novos meios digitais têm ampliado o conhecimento
dos alunos, favorecendo o seu conhecimento e dando maior acesso a uma variedade de gêneros,
fazendo com o professor possa utilizar outras estratégias para melhorar a qualidade de suas
aulas e incluir digitalmente os alunos construindo, assim, uma maior integração cidadã e
colaboração pedagógica na mediação de saberes.
Referências
ANGROSINO, M.; FLICK, U. (orgs.). Etnografia e observação participante. Porto Alegre:
Artmed, 2009.
106
GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo:
Parábola, 2011, p. 137-152.
OLIVEIRA, M. M. Como Fazer Pesquisa Qualitativa. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
107
Capítulo
9
O gênero notícia e implicações da presença das fake
news na sociedade contemporânea: uma proposta de
atividade
44
Mestrando do Programa de mestrado Profissional em Letras da UECE. E-mail: davidsn1@ig.com.br
45
Mestrando do Programa de mestrado Profissional em Letras da UECE. Graduado em Letras - português e Inglês
pela Universidade Federal do Ceará. É especialista em Língua Português. Professor - Secretaria da Educação Básica
do Ceará. E-mail: mauriciolb2014@gmail.com
108
um trabalho de letramento com viés ideológico porque, ao procurar despertar no educando uma
postura crítica em relação aos materiais (textos) com os quais se depara, realiza um ato
importante na formação do leitor.
Street (1995), ao discorrer sobre o processo ideológico de letramento, ressalta que os
sujeitos, possuindo diferentes concepções de conhecimento, identidade e modos de ser e estar,
nas práticas sociais ou contextos particulares, submetem-se a complexas relações de poder que
daí emergem. Nesse sentindo, respeitando a individualidade de cada estudante e promovendo
atividades colaborativas de leitura reflexão e compreensão, o docente promove práticas que
possuem um papel importante para o desenvolvimento, não só da proficiência leitora, mas
também da consciência crítica.
Ao desenvolverem a habilidade de lidar com textos publicados na Internet, que muitas
vezes têm o propósito, não só de informar, mas também de manipular e depreciar a imagem de
determinadas pessoas e grupos sociais, o indivíduo poderá agir criticamente, formando sua
opinião e produzindo seus próprios discursos, atuando no seu próprio letramento e no do outro,
colaborativamente. É aí que o professor atua como agente de letramento, importante papel
sugerido por Kleiman (2005), por meio do qual o docente poderá criar novas e relevantes
funções para a inserção plena dos alunos e seu grupo social no mundo da escrita, mobilizando-
os para se inserirem em práticas letradas, ampliando, assim, seus horizontes.
Desse modo, é interessante que o aluno aprenda a agir nas diferentes situações
sociocomunicativas, por meio de letramentos ideológicos, com valores socioculturais em que
os sujeitos interagem e dos quais devem realizar uma compreensão crítica, a fim de estarem
incluídos nos diferentes contextos sociais. A partir de um ensino guiado por essa proposta
reflexiva e voltado para eventos reais e de maneira transdisciplinar, uma vez que os letramentos
envolvem todas as disciplinas, a escola contribuirá para a formação de leitores críticos e
protagonistas de sua formação letrada.
109
Além disso, o aumento da quantidade de informações presentes nas plataformas
midiáticas aumentou, exponencialmente, nos últimos dez anos devido à explosão
informacional, ou seja: a informação surge e se prolifera de forma rápida e efetiva. Diante
disso, a urgência em noticiar algo em primeira mão tem levado a uma crise informacional,
resultando em perda de controle do que é produzido e, também, chegando a se questionar se
realmente aquilo que foi compartilhado é verídico ou não. Essa consequência acaba gerando
uma visão pessimista acerca das consequências geradas pelas fake news, por isso existe a
necessidade de levar esse assunto para o ambiente da sala da aula, inserindo o estudante em
práticas de desenvolvimento de habilidades do manejamento do próprio fenômeno das notícias
falsas.
A urgência desse assunto chegar até a sala de aula é tão presente nos dias atuais
principalmente em virtude de os alunos utilizarem rotineiramente as redes sociais, como o
Facebook e o WhatsApp, ferramentas que contribuem bastante para a rapidez com que a
informação é recebida e compartilhada, muitas vezes sem a checagem da veracidade daquilo
que está sendo veiculado, mesmo sendo espalhado por um grupo de amigos. Dessa forma, o
professor, lutando no combate à desinformação, deve ser o tutor responsável por formar o aluno
no sentido de avaliar todas as fontes de informação, de modo a evitar cair nas tentações das
falsas bolhas informacionais em que somos inseridos.
Por meio dessa proposta de atividade, queremos fazer com que a escola desenvolva nos
estudantes um viés de criticidade, uma vez que uma das principais características das fake news
são as manchetes de teor sensacionalistas e textos alarmistas, que tocam no emocional do
indivíduo. Sendo assim, diante do atual cenário de ideologias polarizadas em efervescência na
atualidade, é relevante os alunos entenderem que as suas opiniões pessoais não devem
influenciar a veracidade de uma informação. Por fim, o docente poderia mostrar que as notícias
têm um compromisso com a ética jornalística, contribuindo para a promoção e manutenção de
uma verdadeira democracia. A seguir, realizamos uma proposta didática de estudo sobre as fake
news para ser abordada em sala de aula, de maneira a auxiliar o professor a desenvolver, nos
estudantes, modos de lidar com os textos da Internet.
Proposta de atividade
OBJETIVOS
Trazer à tona uma discussão sobre notícias veiculadas em meios de comunicação,
abordando suas características, sua importância, bem como descobrindo formas de
identificação da sua veracidade e da forma de lidar com elas.
PLANEJAMENTO
- BLOCO 1 (Abordagem a respeito de uma notícia falsa)
Inicialmente, o professor poderá realizar uma checagem dos conhecimentos prévios dos
estudantes acerca do gênero “notícia” por meio de perguntas pré-elaboradas com o objetivo de
introduzir, indutivamente, a temática pretendida. Em seguida colheremos algumas informações
a respeito da familiaridade de uma fake news por parte dos alunos a fim de verificar se é uma
110
prática de fácil reconhecimento social diante do contato diário deles com a internet. Com isso,
retiramos uma notícia do site “sensacionalista.com”, cujo objetivo é satirizar alguns informes
repassados pela mídia de um modo geral.
Depois da leitura do informe acima, deverá ser feita uma reflexão partindo dos
questionamentos expostos a seguir.
Questionamentos:
1. Que tipo de sentimento essa notícia desperta em você?
2. Como essa notícia pode repercutir em meio à sociedade?
3. Ao ler esse texto, você pensa que se trata de um fato verídico ou não?
4. Que detalhes dessa notícia podem auxiliá-lo(la) a responder a questão anterior?
5. Qual o propósito da criação dessa notícia?
111
Dessa forma, queremos levar o aluno a compreender que, muitas vezes, alguns sites têm
o intuito de ironizar alguma informação ou situação que está em pauta na mídia naquele
momento específico. Além disso, é importante, também, deixar claro que os textos enganosos
tentam imitar aqueles produzidos em sites ditos “confiáveis”. Finalmente, o docente deve
apresentar as estratégias de reconhecimento de uma notícia falsa, contribuindo para que haja
uma participação mais efetiva e crítica desses discentes nas práticas contemporâneas de
linguagem.
• Abordagem teórica
112
É necessário que os alunos compreendam que a forma de lidar com as fake news é
sempre checando a veracidade daquilo que se lê, com vistas a não ser enganado por elas,
evitando seus terríveis danos. Abaixo seguem algumas estratégias de checagem:
a) Qual a URL do site? Você conhece?
Alguns sites de fake news usam endereços parecidos com o de grandes sites e jornais,
mas mudam detalhes. É necessário ficar atento à grafia e à terminação do link. Como boa parte
dos sites está registrada fora do Brasil, o endereço não termina com “.br”.
b) Qual é a data da publicação?
Informações antigas podem ser republicadas em lugar de destaque, de maneira a enganar
os leitores, passando a ideia de que o fato é recente.
c) Quem assinou?
É comum que as fake news não tenham a identificação do autor. Mas se o nome estiver
publicado, é importante verificar se é uma pessoa conhecida ou se já escreveu outros textos e
se eles são verdadeiros.
d) Saiu em outro veículo?
Se possível, é muito importante fazer uma pesquisa rápida e verificar se a notícia
também foi divulgada em um meio de comunicação conhecido e com credibilidade.
e) As legendas têm a ver com as fotos? Há algo de estranho nelas?
Se as cores ou os cortes da imagem parecem estranhos, ou a descrição não corresponde
à imagem, você pode estar diante de uma montagem.
f) O site tem formatação estranha? Muitas propagandas? Outras janelas se abrem
automaticamente durante a leitura?
É necessário desconfiar sempre, pois veículos sérios se preocupam com o aspecto visual.
113
Fonte: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/seguranca/online/empresario-canadense-e-
encontrado-morto-amordacado-e-amarrado-dentro-de-sitio-no-eusebio-1.2186759. Acesso em: 07/12/2019.
Considerações Finais
Diante do exposto, o professor pode, por intermédio das respostas das questões acima,
promover uma análise comparativa entre a primeira notícia e a última, verificando se realmente
houve um mínimo de compreensão acerca das peculiaridades entre uma notícia falsa e uma
verdadeira, desenvolvendo a habilidade de lidar com textos jornalísticos, sobretudo, os
disseminados na internet. Em seguida, serão apresentadas as características do gênero que está
sendo estudado.
• Características do gênero “Notícia”
1. Finalidade
2. Audiência
114
3. Suporte
4. Título
5. Subtítulo
6. Lead
7. Corpo da notícia
8. Linguagem
Referências
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC. 2017. Disponível em:
< http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf > Acesso 11 dezembro
2019.
DELMAZO, C. VALENTE, J.C.L. Fake News nas redes sociais online: propagação e reação à
desinformação em busca de cliques. Media & Jornalismo, vol.18 no.32, Lisboa abr. 2018.
Disponível em: <file:///C:/Users/david/Desktop/Download%20de%20materiais/5682-
Texto%20do%20Artigo-21421-1-10-20180518.pdf> Acesso em: 21/12/2019.
115
KLEIMAN, A. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? São Paulo:
Produção Editorial, 2005.
PINHEIRO, R.C. Conceitos e modelos de letramento digital: o que escolas de ensino
fundamental adotam? Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n. 3, p. 603-
622, set./dez. 2018.
RECUERO, R. GRUZD, A. Cascata de Fake News Políticas: um estudo de caso no Twitter.
Galaxia (São Paulo, online), ISSN 1982-2553, n. 41, mai-ago., 2019, p. 31-47. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/gal/n41/1519-311X-gal-41-0031.pdf> Acesso em: 28/12/2019.
ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.
SALAS, P. Cuidado com a fábrica de mentiras. Nova Escola, Edição 312, 02 de mai. 2018.
Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/11701/cuidado-com-a-fabrica-de-
mentiras> Acesso em: 29/12/2019.
STREET, B. V. Social Literacies: Critical Approaches to Literacy in Development,
Ethnography and Education. Harow: Pearson, 1995.
116
Capítulo
10
Memes: subsídios didático-pedagógicos voltados à
ampliação do repertório lexical e senso crítico em
língua inglesa
Introdução
Orientado pelas transformações por que tem passado a sociedade hodierna, o presente
artigo tem como objetivo principal revisar o arcabouço teórico acerca dos Multiletramentos, da
Multimodalidade e das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, em tempos de
hipermodernidade, para refletir sobre o potencial dos memes, gêneros discursivos multimodais
constantemente produzidos e compartilhados na Internet, como recurso didático-pedagógico
para subsidiar a prática docente no tocante ao ensino-aprendizagem de língua inglesa voltado à
ampliação do repertório lexical e ao desenvolvimento do senso crítico dos aprendizes desse
idioma.
Analisamos e refletimos essa temática amparados nas contribuições da Semiótica
Social, da Base Nacional Comum Curricular, dos estudos sobre os Letramentos, da Gramática
do Design Visual e de teorias da aquisição de linguagem. Essa pesquisa documental é de caráter
teórico-reflexivo e de natureza qualitativa não objetivando propor respostas prontas para os
dilemas suscitados, mas sim, fomentar a discussão sobre a importância da atualização da prática
docente com o intuito de atender às demandas dos aprendizes da hipermodernidade em contanto
constante com as tecnologias digitais e engajando-se em práticas discursivas mediadas por
diversos suportes tecnológicos conectados à Internet. Acreditamos que, amparados nos
conhecimentos teóricos aqui discutidos e instigados pelas inquietações propostas, docentes de
língua inglesa em muito podem se beneficiar enquanto atores condutores do ensino-
aprendizagem no que tange a ampliar o repertório lexical e aguçar o senso crítico-reflexivo dos
aprendizes.
Com os avanços tecnológicos transformando as sociedades em aldeias globais cada vez
mais próximas umas das outras, é urgente a necessidade de se promover um aprendizado que
atenda às demandas dos cidadãos para que se sintam inseridos e atuantes nessa desafiadora
realidade. Nesse contexto, conhecer uma Língua Estrangeira (LE) é uma ferramenta
46
Mestrando em História e Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Serão Central (FECLESC).
Linha de pesquisa 03 – Linguagens e Ensino: Multiletramentos, multimodalidade e análise do discurso para
descrição e desenvolvimento de práticas de letramento crítico. E-mail: ailton.pinheiro@aluno.uece.br
117
indispensável para assegurar uma atuação efetiva na sociedade contemporânea cada vez mais
marcada por uma variedade de textos multimodais que permeiam as relações nas mais diversas
nações e culturas.
Assim, o escopo principal da prática docente seria promover recursos e práticas
pedagógicas visando à capacitação dos discentes por meio de ações que os exponham às mais
variadas formas de letramentos (conceito a ser retomado mais adiante) disponíveis na
atualidade. Com isso em mente, a pergunta que norteia nossos estudos nessa pesquisa é: Como
o estudo, a análise e a produção de memes em língua inglesa podem auxiliar na ampliação do
repertório lexical e desenvolvimento do senso crítico dos aprendizes desse idioma? Entre as
demandas da sociedade atual, merece ênfase a atualização das práticas pedagógicas no que
tange ao ensino de língua inglesa (doravante, LI) como língua estrangeira 47 (LE) para que se
possa atender às expectativas de formação escolar assegurando, dessa forma, seu direito
constitucional a esse conhecimento e, com isso, ampliando suas potencialidades de inserção,
atuação e transformação do mundo contemporâneo (BRASIL, 2018).
Além disso, é importante que consideremos também o que diz a Base Nacional Comum
Curricular (doravante, BNCC) para assegurar que haja harmonia entre as diretrizes desse
documento e as práticas didático-pedagógicas que deveriam atuar visando à afirmação de
valores, ao fomento de ações que contribuam para a construção de uma sociedade mais humana
e socialmente mais justa. Há que se considerar, ainda, as competências gerais desenvolvidas
nas três etapas da educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio)
que, entre outras, destacam a valorização e a utilização de conhecimentos historicamente
construídos para que se possa entender e explicar a realidade, o exercício da curiosidade
intelectual, que estimule o estudante à constante busca de novos aprendizados, à valorização e
à fruição de manifestações culturais diversas, à utilização eficaz de diferentes linguagens
(verbal, corporal, visual, sonora, digital etc.), à compreensão, à utilização e ao uso de
tecnologias digitais de forma crítica, ética, reflexiva e significativa, ao exercício da empatia e
diálogo para resolução de conflitos, autoconhecimento e valorização de si (BRASIL, 2018, p.
9).
No cenário mundial hodierno, e mais especificamente no cenário escolar, outro fator
que merece destaque é o contato constante dos aprendizes com gêneros midiáticos seja para
entretenimento, para busca ou para partilha de informação, emoções pessoais entre outros
propósitos. O advento da hipermodernidade (retomaremos esse tópico nas próximas seções)
deixa ainda mais latente a urgência de inovação do fazer pedagógico para além da realidade
intramuros da escola, cujos limites há tempos foram rompidos pelo surgimento e fortalecimento
das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (doravante, TDIC)48 (ROJO;
BARBOSA, 2015, p. 116).
Com isso em mente, urge que a escola, locus privilegiado da formação de cidadãos
atuantes, autônomos, reflexivos e produtivos, adotando uma postura mais consciente do fato de
que as tecnologias são parte integrante da contemporaneidade, demandando para a inclusão a
47
Apesar de a Base Nacional Comum Curricular (2018, p. 241) problematizar essa complexidade conceitual
reconhecendo o termo língua franca como mais coerente com sua proposta para a educação, optamos pela escolha
desse termo Língua Estrangeira (LE) por ser mais recorrente nas fontes pesquisadas para produção desse texto. No
entanto, aqui, isso não implica a exclusão do termo língua franca como proposto pela BNCC.
48
Para maiores esclarecimentos, consultar ALMEIDA, M. E. B. de; VALENTE, J. A. Tecnologias e currículo:
trajetórias convergentes ou divergentes? São Paulo: Paulus, 2011.
118
bens e serviços a apreensão e o domínio de seus conceitos e usos (MATIAS, 2016, p. 167).
Ademais, reconhecer o lugar central ocupado pela tecnologia digital na contemporaneidade49
implica em explorar sua difusão nos diversos domínios da existência humana e refletir sua
influência, seu sentido e compreensão nas vidas das pessoas não apenas como ferramenta de
ensino-aprendizagem, mas também como ferramenta de inclusão e de empoderamento do
cidadão no século XXI (COSTA; SILVA, 2013, p. 840).
Tendo tais tecnologias como aspecto indissociável de seu cotidiano, os aprendizes da
hipermodernidade são expostos a uma vasta e intensa gama de gêneros textuais multimodais,
entre esses, o meme. Sendo assim, explorar os gêneros – e o arcabouço teórico pertinente –
como ferramentas que fomentem o processo de ensino-aprendizagem de uma LI pode atuar a
favor da formação linguística do aprendiz e no desenvolvimento de seu senso crítico. Assim,
apresentamos na próxima seção as orientações teórico-metodológicas norteadoras dos estudos
ora propostos.
Metodologia
A capacidade de agir e de refletir sobre a sociedade e sobre o mundo em que vivemos é
uma necessidade urgente frente às transformações sociais em consequência, dentre outros, dos
avanços tecnológicos exigentes de competências muitas para uma efetiva atuação social.
Ante o exposto, temos como objetivo principal refletir sobre a análise e a produção de
memes em LI como recurso para a ampliação do conhecimento lexical e para o
desenvolvimento do senso crítico dos aprendizes desse idioma. Para tanto, investigaremos o
gênero textual multimodal meme e sua atuação nas práticas de multiletramentos à luz da
Semiótica Social; faremos, ainda, uma análise da literatura concentrada na pedagogia dos
Multiletramentos, na Multimodalidade, na Gramática do Design Visual (GDV) e na aquisição
lexical em LI como tentativa de refletir acerca da contribuição dos memes enquanto recurso
potencial à formação humana (crítico-reflexiva) e intelectual (conhecimento lexical) de alunos.
Esse trabalho, orientado por seus objetivos, caracteriza-se como uma pesquisa
documental de base descritivo-analítica. De acordo com Gil (2002, p. 45), “a pesquisa
documental vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda
podem ser reelaborados de acordo com os objetos de pesquisa”. Essa pesquisa é de natureza
qualitativa que, segundo Lakatos e Marconi (2010), foca nos processos e significados, lida com
a análise e interpretação de aspectos mais profundos na tentativa de descrever a complexidade
do comportamento humano oferecendo análises mais minuciosas sobre as investigações,
atitudes e tendências do comportamento. Portanto, propomos uma discussão embasada em
estudos prévios, a partir da revisão de bibliografia pertinente, para corroborar o potencial dos
estudos e da produção de memes no intuito de alcançar os objetivos propostos por essa pesquisa.
49
É preciso, contudo, estarmos alerta para o perigo da absolutização da tecnologia, ou tecnoentrismo, a racionalizar
toda a vida do ser humano colocando-se como uma panaceia para os dilemas da humanidade. Para mais
informações, sugerimos Costa e Silva (2013) <https://www.scielo.br/pdf/rbeped/v94n238/a10v94n238.pdf>
Acesso em 05 de maio de 2020.
119
Na próxima seção, refletiremos acerca dos letramentos em época de tecnologia digital
permeando as práticas discursivas e demandando competências e habilidades essenciais à
consecução de interações.
120
desenvolvimento do senso crítico dos aprendizes por meio da Internet atuando como mediadora
da relação dialógica com esse idioma em uma imensurável multiplicidade de ferramentas e
fontes de informação impulsionando, assim, os letramentos.
Street (1984) alerta para a complexidade dessa temática acerca do conceito de
letramento, a partir de uma perspectiva pautada em novos estudos sobre o conceito, posto que,
segundo o autor, situa-se em práticas sociais amplas e que não podem ser observadas de maneira
isolada para evitar o falseamento das interpretações. Daí, a necessidade apontada por Soares
(2002) de se conceber o assunto no plural – letramentos50 – pois as práticas sociais e habilidades
só podem se efetivar por meio dos letramentos, ou seja, da capacidade de o indivíduo interagir
com o outro por meio do desenvolvimento e conhecimento das práticas, situações e letramentos
que essa interação exija (GONÇALVES, 2017, p. 16).
Gonçalves (2017, p. 16) destaca que Street (1984) apresenta os modelos autônomo e
ideológico de letramento. O modelo autônomo refere-se às práticas de leitura as quais o sujeito
é capaz de realizar individualmente, sejam elas conscientes ou inconscientes; há aqui uma
preocupação mais intensa com o ensino da decodificação de sinais escritos, correção de
problemas ortográficos, baseado no modelo de texto verbal dissertativo prevalente em círculos
ocidentais e acadêmicos produzidos em culturas especificamente situadas que se pautam na
exclusão de saberes, também relacionados à escrita, mas sem serem assimetricamente
desprestigiados.
Para o modelo ideológico, temos o voltado para a diversidade das práticas de
letramentos, considerando também o significado cultural, valorizando o processo de
socialização na construção do significado, o contexto e os papéis dos sujeitos envolvidos,
relativizando as assimetrias provocadas pelo desempenho canônico de uso da escrita. Nesse
modelo, consideram-se as instituições sociais onde ocorrem as interações, e não somente as
instituições pedagógicas, exigindo uma abordagem etnográfica da realidade (STREET, 2014,
pp. 43,44).
Entendemos, assim, que o modelo ideológico está mais adequado a nossa discussão
devido às possibilidades de aprendizagem por meio da inserção e da análise do gênero meme,
que já faz parte da rotina diária dos aprendizes nas esferas intra e extraescolar podendo,
portanto, ser mais uma alternativa para contribuir com a expansão do conhecimento lexical na
LI e, provavelmente, com o desenvolvimento do senso crítico.
Dada a complexidade dessa temática, consideramos pertinente enfatizar estes dois
aspectos terminológicos e conceituais: alfabetização e letramento tradicional. Para Rojo (2009,
p. 10), o termo alfabetização está relacionado ao ensino da escrita e da leitura, levando o
aprendiz a conhecer o alfabeto, dominar a mecânica da escrita/leitura, mais comumente, em
contexto de sala de aula. Sob outra ótica, temos a concepção do letramento tradicional advogada
por Cerutti-Rizzatti (2009 apud PINHEIRO; ARAÚJO, 2012) que defende que o conceito de
letramento deve resguardar-se essencialmente ao uso do signo verbal escrito.
50
Devido à multiplicidade de conceitos e definições propostas para letramento, e concordando com Pinheiro e
Araújo (2012), não se pode reivindicar uma definição de letramento capaz de contemplar todas as práticas, porque
os avanços tecnológicos acarretam transformações constantes e, na maioria das vezes, imprevisíveis nas práticas
sociais.
121
Os estudos sobre essa temática apontam para uma superação desse conceito, pois, com
o texto produzido e/ou presente no ambiente digital, marcado pelo potencial de recursos
multimodais, limitar-se a considerar o letramento apenas fundamentado em trabalhos com a
palavra escrita, significa fechar-se para os avanços tecnológicos – que tanto contribuíram para
transformação de como nos comunicamos atualmente – e restringir o desenvolvimento dos
aprendizes negando-lhes a possibilidade de inserção, atuação e transformação na
hipermodernidade. Entendemos, pois, que, ao pensamento postulado por Cerutti-Rizzatti,
estaria mais adequado o termo alfabetização postulado por Rojo e focado exclusivamente no
domínio do texto verbal, permitindo ao termo letramento abarcar de maneira mais ampla o vasto
universo plural da comunicação.
Na próxima seção, discutiremos as contribuições da Linguística Sistêmico Funcional
(HALLIDAY, 1994), da Memética (DAWKINS, 1976) e da Gramática do Design Visual
(KRESS e VAN LEEUWEN, 2006) para os estudos sobre os memes; compreendendo esses
pressupostos teóricos como potenciais balizadores do desenvolvimento de práticas didático-
pedagógicas voltadas ao ensino-aprendizagem de LI e desenvolvimento do senso crítico dos
aprendizes.
122
persuadir/dissuadir, influenciar, etc. por meio da interação social; a função textual é aquela por
meio da qual organizamos nossos significados ideacionais e interpessoais enquanto discurso
num todo linear e coerente (GOUVEIA, 2009, p. 15). Essa discussão se faz essencial se
quisermos compreender um gênero, seus propósitos e seu contexto de produção sem prejuízos
à interação autor-texto-leitor-contexto, pois um texto não se limita apenas a um aglomerado de
palavras, mas compõe-se de uma miríade de significados.
Na complexa e multifacetada gama de textos e discursos variados que permeiam as
relações humanas, surgem os gêneros para expandir, aprofundar e ressignificar as maneiras
como nos comunicamos, de maneira mais acentuada, na hipermodernidade imbuída na
realidade digital. É nesse contexto sócio-histórico e cultural que surgem os memes, conforme
os reconhecemos51.
O termo meme emerge de uma analogia com o gene na área das Ciências Biológicas52.
Arruda (2017) ilustra a obra “O gene egoísta” de Richard Dawkins, para salientar a perspectiva
evolucionista de Dawkins como subsídio para os estudos da memética 53. Essa obra, publicada
em 1976, tem por objetivo tornar acessíveis conceitos da biologia evolucionista para o público
não-especializado.
Para uma melhor compreensão da analogia entre o gene e o meme, é essencial que
estejamos atentos a características intrínsecas do gene como: sua renovação ou descarte ao
longo do tempo e sua qualidade de replicar-se, criando cópias de si mesmo. Dada a amplitude
do darwinismo, argumenta Dawkins, não se pode restringi-la ao contexto do gene, pois os
mesmos princípios aplicados a esse contexto restrito podem extrapolar a biologia e ser aplicados
às tentativas de se entender as complexas relações sociais que perpassam as interações humanas.
Nessa perspectiva, o gene, enquanto unidade de informação biológica, remete-nos a sua
unidade equivalente no campo cultural: o meme. Corroborando esse pensamento, Augner
(2002) reforça que todos os conhecimentos, informações, impressões, ideias transmitidas
socialmente podem ser memes que, ao serem replicados de mente em mente, asseguram sua
existência e evolução. Dessa forma, o meme deve ser entendido de maneira análoga aos genes
que são replicadores biológicos capazes de se perpetuar no tempo sendo favorecidos pela
seleção natural; nessa perspectiva, os memes devem ser considerados replicadores culturais.
Ante o exposto, podemos vislumbrar o potencial didático-pedagógico dos memes no
tocante ao aprimoramento do repertório lexical de aprendizes de LI assim como ao
desenvolvimento de sua capacidade reflexiva já que os memes trazem em si aspectos da
realidade marcados de posicionamentos não apenas cômicos, mas também críticos.
Com o intuito de aprofundar os estudos metalinguísticos para uma melhor apreensão e
compreensão dos sentidos que subjazem aos textos multimodais, Kress e Van Leeuwen (2006),
elaboraram a Gramática do Design Visual (doravante GDV). Os referidos autores advogam que
51
Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social. São
ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos
que formamos e as comunicações através das quais interagimos. Gêneros são os lugares familiares para onde nos
dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para
explorar o não-familiar. (BAZERMAN, 2006, p.23).
52
Os avanços nos estudos da biologia molecular no início do século XX instigaram as investigações acerca dos
elementos característicos mais substanciais da seleção natural em animais e plantas (ARRUDA, 2017).
53
Ciência que se ocupa do estudo dos memes situando sua gênese nos estudos da evolução genética biológica.
123
a gramática não pode se restringir ao estabelecimento de normas, mas sim, trabalhar a
linguagem tomando por base sua funcionalidade, enquanto representação da experiência de
seus usuários.
Apoiados pelo arcabouço teórico da Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday (1994)
que Kress e Van Leeuwen (2006) alicerçaram seus estudos para a elaboração da GDV
referenciando as metafunções da linguagem: ideacional, interpessoal e textual. Na GDV, essas
metafunções seriam: representacional (uma vez que se pode realizar em imagens modos de
representação do mundo), interativa (já que se estabelece de uma relação interpessoal entre
imagem e espectador) e composicional (estruturar formas de materialização da mensagem para
a construção de significados). (BIASI-RODRIGUES; NOBRE, 2010).
Com isso em mente e diante das diversas pesquisas 54 que essa temática tem suscitado,
urge que reconheçamos os memes como meios pelos quais os aprendizes possam se apropriar
da linguagem, imbuída também de recursos multimodais, ampliando sua capacidade
comunicativa, especialmente por meio da ampliação de seu repertório lexical em uma LI. A
ampliação desse conhecimento permite ao indivíduo poder expressar-se com mais precisão,
compreender e interpretar mensagens de maneira mais eficaz, refletir mais profundamente
acerca dos enunciados verbo-imagéticos em contextos sócio históricos diversos.
Na seção seguinte, focaremos na reflexão acerca do aprimoramento do repertório lexical
em LE sintetizando algumas das mais debatidas abordagens de ensino-aprendizado de LE, as
contribuições da Abordagem Comunicativa e do Conectivismo nas práticas didático-
pedagógicas atinentes ao ensino do léxico.
54
Dawkins (1976), Davidson (2012), Recuero (2006), Huntington (2013), Milner (2013), Blackmore (1999) entre
outros.
55
Apesar de algumas espécies animais apresentarem sistemas de comunicação bastante sofisticados, inclusive com
capacidades lexicais, semânticas e pragmáticas, ainda não se pôde detectar capacidades gramaticais elaboradas
(KAIL, 2013).
124
campos linguísticos é fundamental para seu desenvolvimento. Com as transformações sociais
demandando novas maneiras de se relacionar e comunicar, há, também, transformações no
léxico, que é um sistema aberto em constante expansão fazendo emergir novos itens lexicais ao
mesmo tempo que outros caem em desuso (BIDERMAN, 1996, p. 32).
A aquisição e a ampliação lexical dos aprendizes de uma L2 implicam na capacidade de
estabelecer relações de itens lexicais entre si e com a realidade externa possibilitando trazer à
tona os significados subjacentes a cada palavra (VECHETINI, 2005, p. 56). Na busca de
compreender esse processo – e propor as práticas didático-pedagógicas como alternativa para
alcançar esse objetivo – já não se advoga mais com tanta veemência a eficácia da produção de
listas de palavras a serem decoradas pelos aprendizes de maneira descontextualizada. De acordo
com Larsen-Freeman e Anderson (2011, p. 121 apud PAIVA, 2012, p. 67), a abordagem
comunicativa56 passa a enxergar a língua-alvo não apenas como um objeto de estudos, mas
também como o meio de comunicação através do qual o aprendiz é orientado à interação em
situações de uso autêntico da linguagem. Nessa perspectiva, ensina-se/aprende-se a língua e
suas variadas manifestações, dentro do escopo da linguagem, em situações contextualizadas,
considerando-se as funções da linguagem, os sujeitos envolvidos no ato comunicativo e o
contexto situacional.
Valendo-nos, ainda, das contribuições de Paiva (2012, p. 71), trazemos à baila as
contribuições de Harmer (1991, pp. 161-173), que apresentou atividades de ensino e prática de
ampliação lexical organizadas em três grupos: 1) apresentação (uso de objetos reais (realia),
imagens, mímicas etc.); 2) técnicas de descoberta (associações verbo-imagéticas, criação de
mapas semânticos, uso do contexto para inferência de significados etc.); 3) prática (ações e
gestos, práticas com vocabulários frequentemente confundidos etc.). Em consonância com
essas propostas e imbuídos em contexto de aprendizagem de LE na hipermodernidade,
destacamos as inúmeras contribuições para aquisição deste conhecimento específico, o léxico,
por meio de estudos analítico-críticos de memes.
Paiva (2012)57 se apoia no Conectivismo para reforçar o pensamento de que a
aprendizagem não está restrita aos fatores internos dos aprendizes, mas está também
relacionada a seu exterior. Nessa perspectiva, a aprendizagem é vista como um processo
evolutivo e dinâmico, e não um fim ou objetivo em si; a aprendizagem se expande de maneira
contínua por meio de nossas novas conexões com o meio (SIEMENS, 2006 apud PAIVA,
2012). Ratificamos o pensamento anterior com as palavras de Leffa (2016, p. 13) ao vislumbrar
“para o futuro um processo generalizado de convergências, fundindo tecnologias, métodos e
teorias [...] A ideia é de que vivemos em mundo interdependente onde tudo e todos se
relacionam”. Ainda nessa linha de raciocínio, como afirmam Quadros e Finger (2017, p. 136),
é por meio dos processos associativos que a aprendizagem ocorre, assim:
[...] a mente humana é predisposta a procurar por associações entre elementos e, a partir
de tais associações, cria ligações entre esses elementos. As conexões das redes neuronais
56
Nessa abordagem, as pessoas aprendem línguas fazendo uso da língua-alvo para alcançar objetivos específicos
situados em contextos de interação reais, usando a língua para além da relação expressão-conteúdo, para agir sobre
a realidade. (LEFFA, 2012, p. 397).
57
Em palestra apresentada no III Congresso Internacional da ABRAPUI. Disponível em
<http://www.veramenezes.com/abrapui2012.pdf>. Acesso em: 10. out. 2019.
125
tornam-se mais fortes à medida que essas associações continuam a ocorrer, e se tornam partes
de redes maiores quando as conexões entre elementos passam a ser mais numerosas.
Leffa (2016) aponta para a importância de se tomar consciência do processo de ensino
do léxico centrado no input (KRASHEN, 1985) oferecido ao aluno, ou seja, focado na
preparação do texto e no ensino orientado para próprio aluno enfatizando o desenvolvimento
de suas estratégias para se apropriar do léxico de uma língua. Segundo esse autor (2016), o
ensino desse conhecimento oscila entre o interno e o externo. Um dos lados foca no material
que deve ser preparado para o aprendiz valorizando, assim, o input (aspecto externo do ensino);
o outro, mantém seu foco sobre o que o aprendiz deve fazer para adquirir e expandir seu
repertório lexical (aspecto interno).
Nessa esteira de pensamento, antevemos os trabalhos com os memes como um recurso
bastante profícuo no que tange à ampliação do repertório lexical dos aprendizes em LI bem
como um auxílio substancial no desenvolvimento de seu senso crítico. À guisa de exemplo,
propomos instigar os aprendizes a realizar pesquisa em redes sociais, sites de notícias e/ou
variedades em que haja memes em LI abordando temáticas atuais, relevantes e instigantes para
esse público, instigando-os a, não apenas refletir criticamente a mensagem subjacente, mas
também a engajar-se na (re)produção de novos memes a partir dos pesquisados, mobilizando
seus conhecimentos prévios e experiências de mundo representadas, com base na
multimodalidade, empregando, ao mesmo tempo que ampliam, seu repertório lexical na LI.
Na próxima seção, apresentamos nossas considerações finais e as conclusões a que
chegamos a partir das discussões prévias e suas implicações para o fomento de práticas didático-
pedagógicas condutoras dos aprendizes em seu processo de ampliação lexical em LI e no
despertar de sua visão crítico-reflexiva.
Considerações Finais
A hipermodernidade emerge com um sentido um tanto paradoxal para a sociedade
hodierna: por um lado, como um desafio ao mesmo tempo em que oferece estímulo a todos os
atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem; por outro, configura-se na inclusão
excludente que aproxima indivíduos de todos os estratos sociais ao mesmo tempo que se
mantém ainda alijada de um contingente substancial desses indivíduos em estado de flagrante
marginalização.
Nessa esteira de pensamento, percebemos o potencial didático-metodológico dos
estudos e produção de memes quanto ao ensino-aprendizagem de língua inglesa (LI) já que, por
meio das TDICs e da Internet, atuam no estreitamento das distâncias, promovendo diálogos
multiculturais, especialmente mediados pela LI em seu status de língua franca. Portanto, a
atuação em consonância com os documentos oficiais reguladores da educação nacional (BNCC
etc.) permite-nos abarcar a vasta gama de textos multimodais que perpassa as instâncias
comunicativas nas quais se envolvem os indivíduos para além das escolhas modais
reconhecidas (centrais nos documentos supracitados), incluindo, também, aquelas ainda
periféricas, como os memes, que, embora já se apresentem em discussões no meio acadêmico,
ainda não configura como prática didático-pedagógica consensual entre os professores da
educação, de modo geral.
126
O meme, enquanto gênero “periférico” atuante nas estruturas sociais atuando como
mecanismo para difusão de informações e a possível participação discursiva dos indivíduos,
apresenta-se como recurso didático bastante promissor, não apenas dentro da sala de aula, mas
também fora dela. Diante da realidade de muitos dos aprendizes de LI que fazem dos memes
momentos não apenas recreativos, mas, acima de tudo, reflexivos e críticos como fomento ao
processo de ensino-aprendizagem de LI apresenta-se como proposta bastante profícua para o
desenvolvimento do senso crítico e repertório lexical dos aprendizes desse idioma.
A discussão acerca dos memes na prática de sala de aula compreende discussão muito
aquém da exaustão sendo, assim, terreno fértil a professores-pesquisadores de diversas áreas
empenhados em engendrar práticas didático-pedagógicas que atendam às demandas da
sociedade hodierna buscando respostas sobre como a teoria e a prática dos memes podem
contribuir para uma aprendizagem mais eficaz e instigante. Assim, concluímos nossas
discussões não apresentando respostas prontas sobre como proceder, quando em posse desses
conhecimentos, mas sim, propondo indagações pertinentes que possam instigar novos estudos
e lançar luz sobre a prática docente no tocante ao ensino-aprendizagem de LI na
hipermodernidade com o auxílio dos memes.
Finalmente, propomos as seguintes indagações: Com que frequência atentamos para os
recursos multimodais de que nossos alunos lançam mão para se comunicar em suas
comunidades estudantis/afetivas dentro e fora da sala de aula? Quais as escolhas mais
frequentes que eles fazem em suas práticas discursivas? Como a consciência desse processo
seletivo pode fomentar a prática docente do professor de LI como estratégia de ampliação do
repertório lexical dos aprendizes? Estamos cientes das competências e habilidades que nossos
alunos trazem para a escola e como elas podem atuar como elemento decisivo no
aprimoramento de suas potencialidades? Quais estratégias de aprendizagem nossos alunos
empreendem de maneira autônoma para desenvolver seu repertório lexical na LI? Estamos
atribuindo a devida visibilidade a essas estratégias? Estamos cientes das competências e
habilidades que nossos alunos trazem para a escola e como elas podem atuar como elemento
decisivo no aprimoramento de suas potencialidades?
As práticas didático-pedagógicas, a partir das teorias aqui discutidas, podem atuar de
maneira eficaz na transformação da realidade de nossos alunos possibilitando-lhes inserção,
atuação, protagonismo, reflexão e inclusão na hipermodernidade, se o professor redesenhar sua
atuação perceber-se como um mediador da relação ensino-aprendizagem, buscando vislumbrar
no aluno e em seus saberes possibilidades didáticas para fins específicos, tais como ampliar o
repertório lexical em LI.
Referências
127
ARRUDA, R. B. L. Gênero meme e ensino de leitura: investigando o
letramento multimodal crítico de alunos de língua
inglesa. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Centro de
Humanidades da Universidade Federal do Ceará) - Universidade Federal do Ceará, 2017.
AUNGER, R. The Electric Meme: a new theory of how we think. Nova York: The Free Press,
2002.
BAWARSHI, A. S.; REIFF, M. J. Gênero: história, teoria, pesquisa e ensino. São Paulo,
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<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>
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128
KAIL, M. Aquisição de Linguagem. São Paulo: Parábola, 2013.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London:
Routledge, 2006.
MILLER, C. R. Gênero como ação retórica. In: MILLER, C. R. Estudos sobre gênero textual,
agência e tecnologia. Recife: PPGL-UFPE, 2009, p. 21-44.
MILNER, R. M. Pop Polyvocality: Internet Memes, Public Participation, and the Occupy Wall
Street Movement. International Journal of Communication, 2013. Disponível em
<https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/1949> Acesso em 18 jun. 2020.
PAIVA, V. L. M. O. Ensino de Língua Inglesa no Ensino Médio: teoria e prática. São Paulo:
Edições Somos Mestres, 2012.
PAIVA, V. L. M. O. English Language teaching and learning in the Age of Technology. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRAPUI, 3., 2012, Santa Catarina. Resumos [...].
Santa Catarina: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012. Tema: Language and Literature
in the Age of Technology. Eixo temático: Língua inglesa, p. 1-18. Disponível em:
http://www.veramenezes.com/abrapui2012.pdf. Acesso em: 8 jul. 2020.
129
RECUERO, R. C. Memes e Dinâmicas Sociais em Weblogs: Informação, capital social e
interação em redes sociais na Internet. In.: XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação – UnB, Brasília, set. 2006. Disponível em
https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/4265 Acesso em 15 jun. 2020.
ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. 1. ed. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.
130
Capítulo
11
A arte de encenar: representações da negra e do
negro em livros didáticos (PNLD, Guia 2018)
Introdução
A arte emociona, encanta, fascina e registra a história de um povo que ultrapassa o
tempo. A arte de descendência negra entrecruza linguagens e representa um modo ímpar de
vivenciar a vida na ordem da colonialidade. A arte de encenar na televisão, cinema e teatro são
marcas narradas nos livros didáticos e apreciadas neste capítulo, cada linha aqui escrita expressa
um território onde a negra e o negro61 buscam tornarem-se os produtores da arte. Assim, nossa
finalidade é analisar a representação da pessoa negra na telenovela, cinema e teatro nos livros
didáticos aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didáticos (PNLD) 62, em seu Guia de
2018 para o Ensino Médio a partir de abordagens interdisciplinares.
A interdisciplinaridade, segundo Fazenda (1994), permite visualizar o rompimento de
fronteiras epistemológicas entre matérias que, de acordo com Lenoir (2001), podem ocorrer em
58
Mestra em História e Letras pela Universidade Estadual do Ceará. Licenciada em História pela Universidade
Federal do Piauí, Especialista em História do Brasil pela Faculdade de Ciência e Educação do Caparaó. E-mail:
nadiabrito45@hotmail.com
59
Doutora em Educação. Professora da área de Ensino do Curso de História da UECE e do Programa de Mestrado
Interdisciplinar em História e Letras da UECE. Colaboradora do Mestrado Profissional em História da URCA. E-
mail: isaide.bandeira@uece.br
60
Doutor e Mestre em História pela UNESP/Franca. Licenciado e Bacharel em História pela Universidade
Estadual Paulista, Licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal de São João del Rei e em Letras-Inglês
pela UNIUBE. E-mail: petruciojr@terra.com.br
61
Abordamos a pessoa negra especificando o gênero, por acreditarmos que proferir apenas negro conota um caráter
generalizante e de unicidade a um grupo étnico que possui um contexto histórico, cultural e social complexo, além
do termo indicar apenas a figura masculina, bem como consideramos o vocábulo negro uma designação genérica
aos sujeitos de ascendência e/ou descendência africana, tendo em vista que negro e branco são categorias que
existem uma em função da outra, a partir de uma construção eurocentrada (QUIJANO, 2005).
62
O PNLD é um programa do Governo Federal brasileiro que avalia e disponibiliza livros didáticos de maneira
sistemática, regular e gratuita às escolas públicas da Educação Básica nas etapas do Ensino Fundamental I e II e
Ensino Médio, tendo assim, como única exceção, os discentes da educação infantil. O Programa atende às
instituições das redes federais, estaduais, municipais e distrital, assim como escolas comunitárias, confessionais e
filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas ao Poder Público. O objetivo central do PNLD é oferecer a
discentes e docentes que pertencem às escolas que se encaixam no perfil descrito, livros didáticos de qualidade
para o apoio do ensino-aprendizagem nos estudos formais nas etapas mencionadas (CASSIANO, 2007).
131
três níveis: curricular, didático e pedagógico. Neste trabalho, refletiremos a respeito do primeiro
nível, o qual demanda a convergência e complementaridade entre as diferentes matérias
escolares, com a finalidade de fomentar no currículo escolar uma estrutura interdisciplinar
(FAZENDA, 1994).
O livro didático é uma das principais ferramentas utilizadas por docentes e discentes no
ensino básico, e, em algumas escolas públicas do Brasil, é o único recurso disponível
(BITTENCOURT, 2008). Em 2018, o PNLD distribuiu aos estudantes brasileiros cerca de
89.381.588 livros didáticos (FNDE, 2019); por conseguinte, este instrumento é ímpar na
construção da imagem do outro (GRUPIONI, 1995), por representar e publicizar uma versão
reconhecida social e nacionalmente acerca dos sujeitos e fatos históricos, independente da
matéria a que se refira.
Na pesquisa que realizamos analisamos três coletâneas mais adotadas, sendo uma de
História, uma de Língua Portuguesa e uma de Artes, escolha que se deu pela verificação dos
dados estatísticos disponibilizados pelo Fundo Nacional de Educação (FNDE), sendo elas:
História, Sociedade & Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior (2016); Se liga na língua:
literatura, produção de texto, linguagem, dos autores Wilton Ormundo (2016) e Cristiane
Siniscalch (2016); e, por fim, Arte de Perto, de Maurílio Andrade Rocha (2016, et. al.)63.
Doravante, iremos designar siglas para indicar cada coletânea, na qual L refere-se à livro, H à
História, P à Língua Portuguesa, A para Arte. Sendo assim, a coleção História, Sociedade &
Cidadania é renomeada de LH; Se liga na língua: literatura, produção de texto, linguagem
recebe a nomenclatura de LP; e Arte de perto de LA64. Desta forma, são 3 livros de cada
disciplina, exceto de Artes, que é volume único, perfazendo um total de 7 livros. Também foram
analisados os Manuais do Professor de cada coleção, que a partir de agora serão denominados
de MP da coleção a ser mencionada.
De acordo com o edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras
didáticas do PNLD de 2018 do Ensino Médio, dentre os princípios e critérios de avaliação,
encontra-se a promoção positiva da História e Cultura da África, Afrodescendentes e Afro-
brasileiros, em vista a considerar a participação de tais sujeitos no processo histórico da
construção do Brasil, além da exigência, no edital da abordagem interdisciplinar, dos conteúdos
nas coleções (EDITAL PNLD, 2015).
A classificação da nossa pesquisa, com base nos procedimentos metodológicos, é de
caráter documental, uma vez que corroboramos com Choppin (2004), o qual afirma que o livro
didático assume a função documental como apresentador de documentos que estimulam o
63
A coleção História, Sociedade & Cidadania teve os seguintes números de tiragens no 1°, 2° e 3° ano do Ensino
Médio, respectivamente: 657.825, 539.643 e 469.999; A coletânea Se liga na língua: literatura, produção de texto,
linguagem teve 435.794, 351.488 e 304.625 para 1°, 2° e 3° ano do Ensino Médio, respectivamente; e, por fim,
Arte de perto, com 1.827.369 (FNDE – Serviço de Informação ao Cidadão).
64
Todos os livros mencionados passaram por um processo de avaliação e seleção mediante o PNLD. A priori, após
a publicação do edital do Programa, as editoras forneceram os livros didáticos para a avaliação de uma comissão
de área. Os livros aprovados foram listados no Guia de Livros Didáticos com resenhas das coleções, as quais
passaram pela apreciação e seleção das professoras e professores das escolas públicas. O Guia foi encaminhado às
escolas e ao corpo docente, além de ficarem disponíveis no site do FNDE, para que assim, os docentes escolhessem
aqueles que melhor atendessem ao Projeto Político Pedagógico (PPP) de cada escola. Ressalta-se que os livros
distribuídos são reutilizáveis, visto que devem ser conservados e devolvidos ao final do ano letivo para uso no ano
subsequente, exceto os de Arte, que são consumíveis, ou seja, permanecem com o discente, não sendo necessária
a devolução (EDITAL PNLD, 2015).
132
confronto de ideias e o desenvolvimento crítico dos discentes. Sendo assim, para nós
historiadores, ele adquire também a função depositária, enquanto documento que comporta em
si outros documentos, dentre eles: imagens, textos, poemas, letras de música, trechos de
documentos oficiais (SILVA, 2014).
Aos documentos apresentados, aplicamos o método de análise de conteúdo65, “[...] com
a finalidade de uma leitura crítica e aprofundada levando à descrição e interpretação destes
materiais, assim como a inferências sobre suas condições de produção e recepção”. (MORAES
apud LARA; MOLINA, 2011, p. 147). Este método concatena com a análise descritiva e
explicativa, na qual empregamos a abordagem decolonial, que conduz, por sua vez, à tessitura
de compreensão da História para além da hegemonia eurocêntrica, ao romper com a visão
colonial que se projeta sobre a pessoa negra, visto que, consoante Maldonado-Torres (2018),
Mignolo (2014) e Quijano (2000), sob a ótica eurocêntrica, as relações sociais foram
historicamente constituídas nas Américas e representadas no imaginário social.
A epistemologia decolonial analisa o colonialismo compreendido como uma prática
discursiva fomentada por grupos que ocupam diferentes espaços de poder e que ainda se reflete
na modernidade contemporânea, marcas que, para o sociólogo e professor peruano Quijano
(2000), compõem-se no matiz da colonialidade do poder, colonialidade do ser e colonialidade
do saber. Nesta última, englobam-se os mais diferentes níveis de ensino, conhecimentos e
epistemologias que envolvem também a construção dos materiais didáticos “[...] reproduzidas
nos ambientes educacionais que vão da Educação Básica a Educação Superior” (PAIM;
PINHEIRO; PAULA, 2019 p. 443).
Nessa perspectiva, a negra e o negro nos livros didáticos constituem-se sob o imaginário
dos sujeitos a respeito do real imbuído em suas concepções de mundo e representadas nos
materiais didáticos. Em vista disso, empregamos a categoria conceitual de representação de
Pesavento (1995) e Chartier (2002b). Tais autores nos possibilitaram pensar as relações de
poder e intencionalidades discursivas sob a ótica do colonialismo e colonialidade dos grupos
sociais que veiculam representações tal como expostas nas coleções didáticas, visto que “[...] a
mentalidade sempre coletiva que regula, sem que eles o saibam, as representações e
julgamentos dos atores sociais” (CHARTIER, 2002b, p. 35).
As obras didáticas, segundo Johnsen (1996), são produzidas e destinadas para o ensino.
Nesse sentido, como nos lembra Choppin (2004), “[...] são destinadas a espíritos jovens, ainda
maleáveis e pouco críticos [...]. Os livros didáticos constituíram-se e continuam a se constituir
como poderosos instrumentos de unificação [...]” (CHOPPIN, 2004, p. 560). Para analisar as
representações mediante as abordagens interdisciplinares das coletâneas didáticas, empregamos
o aporte de Fazenda (2011), que afirma a interdisciplinaridade como uma nova atitude diante
do conhecimento mediante as etapas de integração e interação, ou melhor, da organização de
conteúdos e a posterior reciprocidade entre eles, “[...] de seus conceitos, diretrizes, de sua
metodologia, de seus procedimentos, de seus dados e da organização de seu ensino.”
(FAZENDA, 2011, p. 35).
A exigência das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) e do Edital PNLD/2018 é
65
A análise de conteúdo nos permite evidenciar mensagens explícitas e latentes, significantes e significados, os
quais possibilitam leituras e interpretações que, possivelmente, o próprio emissor não estava consciente ao produzir
e/ou reproduzir.
133
que ocorra um diálogo entre as matérias e que este esteja explicitado no livro didático. Por isso,
na tentativa de deixar claro e visível o cumprimento desse critério exposto no Edital do
PNLD/2018, as coleções criaram seções66 específicas com essa finalidade. Por meio das
categorias apresentadas, assim operacionalizamos e articulamos a problemática e os
documentos, a fim de costurar teoria e empiria.
A arte de encenar
O alimento da “superioridade” do branco são as representações negativas disseminadas
em todo meio (WALSH, 2013). Novelas, cinema, teatro são aportes narrativos para a
representação da população negra, alguns bem populares e de grande acessibilidade do público
como as telenovelas. O direito de nascer, em 1946, produzida para a radiotelevisão, fora a
primeira a empregar um personagem “de cor”. Mamãe Dolores fora interpretado pela atriz
Isaura Bruno, a qual representava uma negra empregada e mãe de criação do branco Albertinho,
com amor incondicional ela lutara para defender seu filho (MARTINS, 2013).
Desde então, negras e negros eram inseridos no mundo televisivo, contudo, em papeis
de subalternidade, como empregados domésticos ou meramente elenco de apoio (ARAÚJO,
2000). O LA2, ao remeter à teledramaturgia e ao preconceito racial, em seção intitulada arte
em diálogo, sugere ao docente a construção de uma situação de aprendizagem a partir da
exposição em sala de aula ou em casa do documentário A negação do Brasil: o negro na
telenovela brasileira, do diretor Joel Zito Araújo, produzido em 2000. O documentário
apresenta uma extensa pesquisa sobre as telenovelas brasileiras, desde a exibição televisiva de
O direito de nascer, em 1964, dezoito anos após ser apresentada em radionovela, até as
elaboradas no início dos anos 2000. O exemplar LA2 assim expõe a percepção do
documentarista:
Para Joel Zito, frente a uma sociedade miscigenada, a telenovela ainda apresenta um
Brasil quase inteiramente branco, reservando um espaço muito reduzido aos atores e à cultura
afro-brasileira. O diretor destaca o papel protagônico de Zezé Motta na novela Corpo a Corpo,
escrita por Gilberto Braga, em 1984, como um marco da questão racial na teledramaturgia
(ROCHA, et. al., 2016, p. 239). O espaço reduzido para negras e negros na teledramaturgia,
mencionado por Joel Zito até os anos 2000 ainda perdura na primeira década do século XXI,
conforme pesquisa realizada por Martins (2013), em sua dissertação de mestrado. A
pesquisadora aponta que, para além da pouca parcela da população negra atuar em telenovelas,
ainda permanecem preconceitos acerca desses sujeitos que “[...] oferecem subsídios teóricos e
técnicos para fortalecer o racismo, corroborando com estereótipos e ideologias de opressão à
pessoa e à população negra” (MARTINS, 2013, p. 83).
Vale frisar que o racismo, de acordo com Gomes (2005), se traduz em um
comportamento de aversão a indivíduos que tem um pertencimento étnico negro, como pele
escura, cabelo encaracolado. Por vezes, o racismo se materializa no ódio que resulta em ideias
da colonialidade, que qualificam sujeitos como superiores e inferiores, impondo uma verdade
como única (WALSH, 2013).
66
As seções são espaços que o autor destina para discutir e/ou apresentar questões sobre temas que se relacionam
com o capítulo em debate.
134
O LA destaca o preconceito racial sofrido pela atriz negra Zezé Motta ao protagonizar
um romance com o ator branco, Marcos Paulo, na telenovela Corpo a Corpo. A coletânea
concretiza a exposição com a seguinte imagem:
Figura 1 – Fotografia do casamento de Zezé Mota e Marcos Paulo, novela Corpo a Corpo, 1984
Na cena, o casamento dos personagens Sônia e Cláudio. Interpretados por Zezé Motta e
Marcos Paulo, respectivamente, o par romântico criado por Gilberto Braga causou rebuliço na
arraigada estrutura do pensamento colonialista da época por “ousar” casar uma negra –
“inferior”, “subalterna” “suja” – com um branco. O acontecimento, para o documentarista Joel
Zito, marca a questão racial do Brasil por levantar publicamente a discussão da discriminação
racial em rede televisiva nacional. No dia 6 de maio de 2018, a atriz Zezé Motta relembrou67
em sua rede social – Instagram – as discriminações sofridas:
A fala da atriz demonstra a visão colonialista impregnada no seio social que demarca,
de modo binário, o feio e o belo ao associar Zezé Motta a uma “mulher horrorosa”, o limpo
como branco e o sujo como negro, visto que se beijada por um branco, este “lavaria a [...] boca
com água sanitária”, ou mesmo precisaria ganhar muito “dinheiro para se humilhar a esse
ponto”. Estes atributos direcionados à Zezé Motta são justificativas da colonialidade para
representar uma suposta superioridade euro-branca à pessoa negra que se materializa no
imaginário social e se concretiza nas práticas sociais (SCHWARCZ, 1993).
É possível imaginar a dor sentida pela artista ao ter contato com tais posições. Ela
poderia ter baixado a cabeça, porém, reconhecida nacionalmente por atuar no teatro, cinema e
televisão, a atriz utilizou sua publicidade para, junto ao movimento negro, lutar no combate ao
racismo e na busca por mais espaço da pessoa negra ao mundo artístico (ARAÚJO, 2000).
67
Veja o comentário na íntegra na rede social da atriz:
https://www.instagram.com/p/BidcoNJhUGi/?utm_source=ig_embed.
135
A telenovela – baseados na ideia de representação de Pesavento (1985) e Chartier
(2002b) – perpetua o imaginário social no modo de apreender os sujeitos e o mundo, assim
como se torna influenciadora do pensamento e comportamento de grande parte de sua
audiência. Ao propor assistir o documentário de Joel Zito, o LA2 oportuniza a reflexão acerca
da presença negra e sua representação na teledramaturgia, além de questionar, em seu MP, “[...]
se houve uma mudança no espaço dado a atores e atrizes afro-brasileiros nas tramas
televisionadas no Brasil” (ROCHA, et. al., 2016, p. 239).
A fim de que o professor aprofunde a discussão, o LA2 cita o caso de Viola Davis, atriz
da televisão norte-americana que fora a primeira intérprete negra a ganhar o prêmio Emmy, em
2015, na categoria de melhor atriz em drama ao interpretar uma advogada na série televisiva
How to get away with murder (em livre tradução como se livrar de um assassinato). O material
sugere a busca por mais informações no portal Geledés – Instituto da Mulher Negra – que trata
de questões raciais e de gênero.
O MP do LA também menciona a mudança no panorama televisivo ao citar os exemplos
de Thaís Araújo e Lázaro Ramos na série Mister Brau (2015), a já mencionada Zezé Motta,
Thaís Araújo Em viver a vida (2009) e Cheia de charme (2012), Nelson Xavier em Tenda dos
milagres (1985), Yolanda Braga na novela A cor de sua pele (1965). O MP ainda afirma que
“Os exemplos são muitos, mas comparativamente, ainda é incomum a presença de protagonistas
interpretados por atores afrodescendentes na teledramaturgia brasileira” (ROCHA, et. al., 2016,
p. 453). Em outras palavras, embora pareçam muitos se comparados à presença do branco, a
participação da pessoa negra ainda é pequena no mundo televisivo (ARAÚJO, 2000).
Cremos que mesmo em quantidade diminuta, a inserção da população negra na
teledramaturgia e em outras áreas artísticas deriva de suas lutas ante ao Movimento Negro e das
ações cotidianas de combate às práticas colonialistas, bem como é preciso considerar que a
introdução de alguns sujeitos negros neste campo pode resultar em afirmações do tipo: Não
existe preconceito racial na TV, você não está vendo aí a atriz Thaís Araújo, o Lázaro Ramos,
a Zezé Motta? Asserções que reforçam o mito da democracia racial, ou melhor, que abrir espaço
na televisão para um ser de cor negra demonstra que o branco “não” é preconceituoso, que o
Brasil “não” é comandado pelo imaginário social de colonialidade, crença de que o país
“escapou” do racismo e da discriminação racial. O que, entretanto, não diminui a conquista
social da negra e do negro no espaço da teledramaturgia.
O LA interliga os temas da teledramaturgia e preconceito racial, com a finalidade de
dialogar sobre o racismo no Brasil, porém, ao indicar a temática em uma seção, implica uma
provável não-utilização ou subutilização das mesmas, uma vez que, conforme Bittencourt
(2008), frequentemente o professor utiliza somente o texto principal do livro. A coletânea LP,
por sua vez, dedica o texto principal para tratar do racismo na teledramaturgia, mas, desta vez,
por meio de um debate que teve como mediador o jornalista Lalo Leal e, como debatedores, o
cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo, a jornalista Tatiana Oliveira e o jornalista e pesquisador
moçambicano Rogério Ba-Senga. O comentário da jornalista Luciana Barreto abre o debate,
Hoje, quando o negro é retratado na televisão brasileira, ele é retratado em cargos
subalternos, em cargos que não exigem muito da... da educação, ainda é assim, né?”
Quando ele é retratado. Quando ele é retratado, ele é minoria, quando ele é retratado,
ele não é referência de beleza. [...] Imagina o que é ser uma criança pobre e negra no
Brasil. Imagina construção de uma identidade positiva pra essa criança pobre e negra
no Brasil. Mas o que a gente vê hoje é um Brasil, é uma televisão, é uma concessão
136
pública que exclui a maior parte das crianças brasileira. É isso que a gente vê hoje no
Brasil. E a exclusão, ela tem sérios riscos pra sociedade. Nós estamos vendo aí
(ORMUNDO; SINISCALCHI; 2016c, p. 232).
137
resquícios nos tempos hodiernos. Este MP assim refere-se à contribuição das áreas de História
e Língua Portuguesa da seguinte forma:
Sugerimos que a abordagem desse tema seja ampliada com a participação do
professor de História, que poderá orientar uma pesquisa sobre as condições de vida
dos negros no final do século XIX e décadas iniciais do século XX. [...] O professor
de Português pode contribuir para essa discussão apresentando alguns textos que
tratam do tema (ORMUNDO; SINISCALCHI; 2016c, p. 429).
138
Na capa, Aline Moraes e Lázaro Ramos representam os personagens principais Vicente
e Clara. Ele, o homem que cria passados para sujeitos frustrados; ela, uma jovem mulher que
deseja ter um passado criminoso. Lázaro Ramos, casado com a atriz Thaís Araújo é ator já
consagrado no meio artístico, o que não significa estar livre das mazelas preconceituosas e
opressoras da colonialidade. Em seu livro Na minha pele, lançado em 2017, o ator conta
episódios de sua vida na luta contra a segregação racial, além de discutir sobre empoderamento
negro, ações afirmativas, família e gênero (RAMOS, 2017).
Lázaro Ramos é exemplo de sujeito negro que enfrentou a ordem colonialista e ascendeu
em sua carreira, mesmo entre os obstáculos postos pelo “branco superior”, assim é
compreensível que a coleção recorra à sua imagem. Entretanto, é visível o círculo fechado das
coletâneas didáticas ao pontuar atrizes e atores negras e negros e repetir seus nomes.
Acreditamos que a reincidência de nomes se dá por conta da pouca quantidade de artistas negros
consagrados nacionalmente na arte de encenar e, como afirma Araújo (2000), pela pouca
inserção de pessoas negras no mundo artístico, derivada, para nós, da historicidade do
escravismo colonial e das práticas contemporâneas de opressão, preconceito, discriminação e
segregação perpetuados na colonialidade do ser.
O recurso imagético é apropriado pelo LP na resolução de duas indagações, uma sobre
a linguagem do título do filme e outra acerca do uso da palavra passado no mesmo, isto é, nada
que remeta ao tratamento dos sujeitos afrodiaspóricos no cinema. O LH também recorre a
perguntas, mas diferente do LP, indaga a respeito da censura à peça Anjo negro, da década de
1940, esperando – como disposto no MP – que o discente aponte o racismo presente na
sociedade brasileira da época e reflita sobre o assunto.
No LH, de modo específico na seção para saber mais, a censura da peça é o ponto de
partida para a obra discutir o racismo no Brasil, a qual, escrita por Nelson Rodrigues,
dramaturgo pernambucano, Anjo negro deveria ter tido como personagem principal o ator
Abdias do Nascimento, que recebeu o convite de Nelson Rodrigues. Porém, “A peça [...] foi
interditada pela Censura Federal por mais de dois anos. Para conseguir a liberação desta, Nelson
Rodrigues concordou que o personagem negro fosse interpretado por um ator branco, pintado
com graxa” (BOULOS JÚNIOR, 2016c, p. 183).
Para compreender o momento histórico em que ocorrera a censura, é preciso rememorar
alguns fatos da década de 1940. Para Eric Hobsbawm (1995), o século XX é considerado “a era
dos extremos” pelo número de acontecimentos que marcou a humanidade em seu
comportamento no âmbito político, cultural, social, filosófico, religioso, científico. Seria muita
pretensão nossa discutirmos aqui todos esses fatos, além de fugirmos do objetivo central desse
trabalho, contudo é possível mencioná-los.
Nos idos de 1939 a 1945, o mundo vivenciou a Segunda Guerra Mundial, ou Grande
Guerra. Potências do Eixo, representadas sobretudo por Alemanha, Itália e Japão,
posicionaram-se de um lado e Aliados, especialmente com França, Inglaterra, Estados Unidos
da América (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), de outro.
Adicionado à Grande Guerra estava o nazismo alemão com o holocausto. Em outras palavras,
o extermínio em massa de cerca de seis milhões de judeus nos campos de concentração do país,
assim como a segregação, muitas vezes seguida de experimentos que levavam à morte de
sujeitos negros, homossexuais e ciganos. Ademais, o mundo vivenciou os Estados autoritários,
139
o fim da Grande Guerra e o início da Guerra Fria, com as tensões diplomáticas entre Estados
Unidos e União Soviética (HOBSBAWM, 1995).
Nesse panorama, nota-se que a segregação racial não era incomum no cenário mundial.
Mesmo no Brasil, após o fim da escravidão negra e a Proclamação da República, a
discriminação racial era manifestada, tal como vimos na arte teatral da peça Anjo Negro. As
terras brasileiras, consoante Gomes (2012), Munanga (2016) e Silva (2010), ainda se encontram
incrustadas pelo preconceito e discriminação racial recaídos em todas as áreas do viver.
Concebemos que tais processos históricos não podem ser tomados como justificativas para a
perpetuação de posturas racistas, mas nos possibilita visualizar um cenário de práticas
discursivas68 eivadas por preconceitos, em sentido abrangente, os quais corroboramos com
Gomes (2012) que só podem ser combatidos em lutas cotidianas a partir da tomada de
consciência da colonialidade do poder, ser e saber pelo branco euro-ocidental.
No caso da peça Anjo Negro, as práticas racistas apartaram o sujeito negro, ou melhor,
Abdias do Nascimento, dos palcos teatrais. Dessarte, o espetáculo só pode prosseguir com a
substituição do negro pelo branco pintado de graxa, tal como demonstra a imagem a seguir:
Figura 3 – Imagem da peça Anjo Negro, Rio de Janeiro, 1948
Na foto, o ator Orlando Guy, maquiado para aparentar ser negro, representa Ismael, um
médico negro bem-sucedido. Abraçando-o está a atriz Nicette Bruno como Virgínia, esposa de
Ismael. Para nós, baseados em Chartier (2002b), maquiar o branco é cobri-lo provisoriamente
para representar um negro médico, uma vez que este cargo e a atuação, mesmo que somente de
68
À luz de Foucault, entendemos, por ‘práticas discursivas’, a veiculação de enunciados que podem estar
associados a um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que
definiram [...] as condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1969, p. 136). Tais ‘regras’
perpetuam-se no interior de uma formação discursiva que se configura a partir das relações de poder, subjacentes
aos enunciados. Isso quer dizer que os discursos que se tornam hegemônicos – o discurso dos vencidos, produtor
de visões de mundo e expectativas sobre a vida – apresentam uma estreita relação com as configurações sociais de
poder, já que tais discursos são chancelados ou fomentados pelas instâncias de poder. Referimo-nos a Foucault por
ajudar-nos a compreender os motivos pelos quais determinadas ‘vozes’ são silenciadas/negligenciadas, enquanto
outras se tornam dominantes/vencedoras e passam a ser concebidas como norma a uma época e lugar. Nesse
sentido, os estudos decoloniais contribuem para a problematização de discursos que tem a pretensão de perpetuar
perspectivas excludentes e segregacionistas, sobretudo em relação a questões étnicas.
140
modo ficcional, não poderia ser incumbido a um sujeito “inferior” na lógica de representação
colonial que hierarquiza e divide o mundo social. A análise da representação, segundo a
coletânea LH, somente efetivar-se-ia mediante a iniciativa do professor em indagá-la junto aos
discentes. Apenas deste modo, problematizar-se-ia o momento histórico da época e o racismo
vivenciado que, conforme Maldonado Torres (2007) respiramos cotidianamente na ordem da
colonialidade.
Considerações finais
O livro didático é uma ferramenta pedagógica de grande relevância no cotidiano escolar,
representando grande parte das condições de ensino-aprendizagem ao documentar como uma
sociedade concebe sujeitos, o que ensinar e como ensinar. Consideramos que as coleções
didáticas analisadas reconhecem a importância de se discutir a pessoa negra na teledramaturgia,
cinema e teatro, embora de modo ínfimo e pontual, deixando o aprofundamento reflexivo para
a prática pedagógica, a qual, sem uma criticidade do processo histórico colonialista e das
representações hodiernas derivadas deste, ao invés de combater o racismo, poderá fortalecê-lo.
Alicerçados na abordagem interdisciplinar, as coleções integraram os saberes, sobretudo
no campo conceitual e contextual, no entanto requerem do professor uma postura crítica e
combativa, o que confere a eles a responsabilidade pela condução/gestão de situações de
aprendizagem que possam inquirir as fontes escritas e imagéticas que tais coleções reúnem e
por meio das quais se efetivam a pretendida interdisciplinaridade. Nesse sentido, consideramos
que, para além das significativas contribuições dos livros didáticos na proposição de temas e
questões que perpassam nossas experiências cotidianas, cabe ao docente a ‘autoria’ de suas
aulas, ou seja, autonomia, com uma postura combativa a qualquer espécie de racismo. Em
outras palavras, as sugestões ou recomendações dos livros didáticos não se sobrepõem à atuação
docente no processo de construção e gerenciamento dos processos de ensino-aprendizagem, por
isso os investimentos em formação docente e as políticas públicas voltadas à melhoria dos
materiais didáticos, como o PNLD, devem, a nosso ver, caminharem juntos.
Referências
141
BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n°. 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9
jan. 2003. Seção 1, p. 1. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2003/lei-
10639-9-janeiro-2003-493157-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 23 jun. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei n°.
9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no. 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade a temática “História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e
Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 mar. 2008. Seção 1, p. 1. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm. Acesso em: 15
jun. 2019.
BOULOS JÚNIOR, A. História Sociedade & Cidadania: 2° Ano. 2. ed. São Paulo: FTD,
2016b.
BOULOS JÚNIOR, A. História Sociedade & Cidadania: 3° Ano. 2. ed. São Paulo: FTD,
2016c.
142
CHOPPIN, A. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004.
GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil:
uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal
nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade,
2005. Cap. 1, p. 39 – 62.
HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX - 1941-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
143
ORMUNDO, W.; SINISCALCHI, C. Se liga na língua: literatura, produção de texto,
linguagem. São Paulo: Moderna, 2016b. v. 2.
ROCHA, M. A. et.al. Arte de perto: volume único. São Paulo: Leya, 2016.
SILVA, I. B. da. O livro didático de História no cotidiano escolar. Curitiba: Appris, 2014.
144
Capítulo
12
Utilização das TACs: transcender da alfabetização
digital para o letramento digital
Introdução
Devido ao considerável crescimento do uso das Tecnologias da Informação e
Comunicação (TICs) no ambiente escolar por parte dos alunos e professores é perceptível a
mudança no comportamento dos agentes educacionais. Atualmente o processo ensino-
aprendizagem não se limita somente ao espaço tradicional da sala de aula, ele avança através
das mídias e alcança proporções inimagináveis, sendo assim o professor precisa saber motivar
seus alunos utilizando essas novas estratégias como aliadas. Porém, esse advento causou
também o surgimento das Tecnologias para a Aprendizagem e o Conhecimento (TACs) e a
consequente necessidade de transformação da utilização das TICs para as TACs, que não é um
processo fácil e exige dos professores conhecimentos que não foram aprendidos no âmbito
acadêmico.
Sendo assim, os professores precisam de apoio para que possam assimilar essas
mudanças e absorver essas tecnologias em suas aulas, podendo utilizá-las da forma correta e
adequada, com propriedade e domínio. Para isso será necessário analisar o conhecimento dos
professores acerca do processo de transformação das TICs em TACs, verificando de que
maneira a utilização das TACs diferencia a aula dos professores e a aprendizagem dos alunos e
se elas influenciam positivamente ou negativamente, além de fazer uma análise de alguns
materiais utilizados em sala sob a perspectiva de utilização das TICs, também será preciso
analisar de que forma as capacitações e formações continuadas podem auxiliar no
desenvolvimento de atividades com as TACs, com isso será possível viabilizar estratégias e
métodos que possam ser utilizados pelos professores de línguas estrangeiras com o uso das
TACs.
Esse trabalho investigou quantos professores utilizam as TICs em suas aulas e de que
forma obtiveram conhecimento acerca delas, com essa análise foi constatado o índice e a
frequência de utilização dos recursos tecnológicos. Também foram questionados os tipos de
atividades utilizadas e quais os recursos necessários para a elaboração e aplicação dessas
69
Mestra em Educação pela Universidad San Lorenzo, UNISAL. Graduada em Letras Espanhol pela Universidade
Estadual do Ceará. Professora de Espanhol do IFCE, campus Tabuleiro do Norte/CE. E-mail:
emlyuchoa@gmail.com
145
atividades que pretenderam descobrir se esses recursos foram financiados pelo próprio
professor ou pelas escolas. Assim, foi possível verificar se o professor tem intimidade com essas
metodologias e se tem o costume de usá-las, além de conferir se as aulas planejadas com o uso
de TICs utilizaram a tecnologia de forma adequada ou se a estratégia utilizada recaiu em uma
aula tradicional.
Esse capítulo apresenta tópicos que teorizam os temas necessários para a compreensão
da pesquisa. No primeiro tópico fizemos um panorama geral sobre as TICs mostrando sua
definição, como surgiram e sua aplicabilidade na educação. O segundo pretende abordar a ação-
docente e definir do que se trata esse termo tão usado no meio educacional, mas tão pouco
compreendido. O terceiro tópico foca na formação docente e na sua importância para a atuação
do professor em sala de aula, ressaltando que essa formação não se trata só da formação inicial,
mas também da formação continuada, que permite que o docente adquira novos conhecimentos
e atualizações necessárias à sua profissão.
O quarto tópico aborda a evolução das TICs às TACs tentando detalhar o passo a passo
desse processo e as expertises próprias da educação. O quinto traz o uso da tecnologia como
ferramenta, no sentido de mostrar como essa tecnologia chega à escola e o que ela origina
(ensino a distância, aulas remotas etc.).
No tópico Caminhos Metodológicos foi descrito a metodologia da pesquisa e as
estruturas técnicas e operacionais que conduziram o estudo. Nas considerações finais fecham-
se as discussões mostrando o que se pretendeu alcançar com a pesquisa em questão.
Como afirma Lévy esse contexto é real e faz parte do processo educacional, sendo assim
o uso das TICs tem sido bastante analisado, estudado e avaliado, visando sempre um
aperfeiçoamento de estratégias para que o aluno possa acompanhar o conteúdo de forma mais
satisfatória, consequentemente o professor é cada vez mais cobrado no que se refere ao uso de
ferramentas que retirem a sua prática do modo tradicional, convencional.
146
Para Lepre “[...] as TIC possibilitam a multiplicação dos métodos de ensino, agora se
tem a opção de aliar um método antigo a uma nova tecnologia criando formas diferentes de
disseminar conhecimento.” Vale ressaltar que para que essa adaptação ocorra o professor deve
estar familiarizado e preparado para utilizar as ferramentas tecnológicas (TICs) a seu favor,
facilitando assim o processo de aprendizagem dos alunos, assim como as escolas precisam
investir em metodologias e capacitações dos seus profissionais, não limitando essa
modernização a compra de equipamentos tecnológicos caros, pois a tecnologia não funciona
sozinha, ela precisa de um guia, papel que deve ser assumido pelos professores.
Ação-docente
Esse grupo de palavras, por si só, imprime o significado que pretende representar, trata-
se das atividades exercidas pelo professor na sua prática diária, sua forma de atuar. Segundo
Fujita (2004, p.17), utiliza-se este termo para “englobar a postura, a didática e a metodologia
adotada pelo professor em sala de aula”, assim o uso destes elementos em conjunto refletem a
estratégia do professor para obter sucesso no processo ensino-aprendizagem.
Vale destacar que ensino e aprendizagem são processos que se complementam e são
diferentes entre si, como afirma Kuethe (1974, p.2), ensinar é “fazer com que as pessoas
aprendam” e aprendizagem é “o processo pelo qual a conduta se modifica em resultado da
experiência”, daí vem a diferença, pois nem sempre o fato do professor ensinar significa que o
aluno aprendeu, pode existir entre esses dois processos um abismo imenso.
Para sobreviver nesse processo evolutivo que consiste em uma gama de novidades
tecnológicas voltadas para a educação é preciso que o professor desenvolva habilidades e
competências que não foram aprendidas no meio acadêmico desse profissional.
Com a mudança e a evolução nos meios de comunicação e interação é mais difícil
manter o processo de ensino da forma tradicional que era antes, cada vez mais o professor
precisa inovar e estabelecer uma nova conexão com o aluno, este que interage muito mais com
a tecnologia e possui o acesso rápido a todo e qualquer tipo de informação. Para alcançá-lo é
fundamental que o educador possa aproximar o ensino à sua realidade.
Para representar bem essa ação-docente Paulo Freire (1985, p.46) afirma que, “educação
é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro
de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”.
Cada vez mais o aluno precisa tornar-se protagonista do seu processo de aprendizagem,
já o professor será um intermediário, um interlocutor, que vai conduzindo esse aluno, indicando
os caminhos corretos para transformar a informação recebida em conhecimento.
Formação docente
A formação docente, inicial e/ou continuada, é um pilar do exercício da profissão, pois
para que o conteúdo seja repassado de forma adequada o professor precisa estar em constante
estudo para consequente atualização dos seus conhecimentos sobre determinado assunto. Esse
147
processo de atualização permite ao professor estar a par do que acontece no mundo, das novas
descobertas, das tendências atuais etc.
Segundo Mazzilli e Rosalen (2005):
[...] entre os saberes docentes, não podem constar somente novos formatos para os
velhos conteúdos, é preciso novas formalizações e apropriação crítica dos diferentes
recursos tecnológicos disponíveis, que ultrapasse o gesto mecânico de ligar o
computador na tomada (BARRETO, 2003, paginação online)70.
Identificando as necessidades dos docentes fica bem mais fácil ajudar nessa formação,
pois será possível direcionar (através de cursos ou capacitações) o seu aperfeiçoamento para
que se adapte às demandas atuais. Essa evolução não pode ser entendida somente como a
substituição do quadro branco pela multimídia, mas como uma transformação das técnicas de
ensino possibilitando uma aprendizagem mais significativa. Como afirma Barreto (2003) “entre
os saberes docentes, não podem constar somente novos formatos para os velhos conteúdos,
é preciso novas formalizações e apropriação crítica dos diferentes recursos tecnológicos
disponíveis”.
As TICs, apesar de exigirem uma nova postura dos professores mais aproximada com a
modernidade e a acessibilidade, também oferecem recursos que possibilitam essa evolução,
proporcionando um vasto campo de pesquisas e aperfeiçoamentos.
70
Ver: https://ensinodebiologia.ciar.ufg.br/conteudo/3-2.html. Acesso em: 10 jun. 2020.
71
“[…] en el contexto educativo las TAC (Tecnologías del Aprendizaje y el Conocimiento) tratan de reconducir
las TIC (Tecnologías de la Información y Comunicación) hacia un uso más formativo y pedagógico”
148
as diversas tecnologias existentes visando o aperfeiçoamento das suas aulas, além de promover
ao aluno aprendizagem e conhecimento.
Assim, o professor “deve deixar de ser um instrutor que domina os conhecimentos, para
transformar-se em assessor, orientador, facilitador e mediador do processo ensino-
aprendizagem” (SEGURA; CANDIOTI; MEDINA, 2007, p. 6) 72.
Cabe destacar que os professores não são nativos digitais, ou seja, foram inseridos no
mundo digital à medida que as tecnologias foram surgindo, diferentemente dos alunos que já
nasceram em meio à modernidade e aos mais diversos recursos tecnológicos possibilitando um
domínio muito maior, assim os docentes já partem de uma situação de desvantagem, pois
precisam se apropriar dessa nova realidade a fim de conseguir inseri-las nas suas aulas da forma
adequada. Conforme apresentado na figura a seguir o professor seria o imigrante digital, o aluno
seria o nativo digital e a tecnologia está inserida entre os dois agentes configurando uma brecha
digital, ou seja, o professor precisa recuperar-se dessa “falha” na sua formação para que o aluno
não se sinta cada vez mais distanciado do ambiente educacional dito “tradicional”.
Figura 1
A postura dos alunos também precisa de uma adaptação, agora ele deixa de ser um mero
expectador das aulas e passa a ser um sujeito responsável pelo seu próprio processo de
aprendizagem, “deve chegar a ser um usuário inteligente e crítico da informação, para isso
precisa aprender a buscar, obter, processar e comunicar informação e convertê-la em
conhecimento”. 73(SEGURA; CANDIOTI; MEDINA, 2007, p. 7).
Esse novo perfil que é exigido dos alunos também é bem pesado, já que eles precisam
mudar a forma de uso das tecnologias adaptando-as para a realidade e para o contexto da sala
de aula, utilizando a internet não somente para diversão e comunicação, mas também para o
aprendizado e a aquisição de novos conhecimentos.
Vale ressaltar que é preciso aliar a teoria à prática, ou seja, o uso da tecnologia não deve
ser feito por si só, mas sim de forma integrada para que haja uma interação e compartilhamento
de experiências. O professor precisa de conhecimentos teóricos sobre o assunto relacionados às
tecnologias que podem ser utilizadas para abordar determinado assunto/tema.
72
“debe dejar de ser un instructor que domina los conocimientos, para convertirse en asesor, orientador, facilitador
y mediador del proceso de enseñanza-aprendizaje”
73
“debe llegar a ser un usuario inteligente y crítico de la información, para lo que precisa aprender a buscar,
obtener, procesar y comunicar información y convertirla en conocimiento”.
149
Tecnologias mais recentes como podcasts, redes sociais, blogs, grupos de conversa e
interação, criação e edição de vídeos, dentre outros, podem ser adaptados e transformados em
tecnologias voltadas para a aprendizagem (TACs), essas ferramentas devem ser constantemente
utilizadas pelos professores em sala de aula, atraindo cada vez mais os alunos para fazer parte
desse processo construtivo.
Caminhos Metodológicos
Esse trabalho pretende avaliar os resultados obtidos de forma qualitativa, como afirma
Landim et al. (2006, p. 57), “em muitas circunstâncias, a utilização de única abordagem pode
ser insuficiente para abarcar toda a realidade observada. Portanto, elas podem e devem ser
utilizadas, em tais circunstâncias, como complementares [...]”.
A abordagem qualitativa será feita através da análise dos materiais disponibilizados
pelos professores, como por exemplo: planos de aula, atividades elaboradas pelo professor,
modelos de atividades interativas, provas etc. Com esses dados em mãos será possível verificar
150
o domínio dos professores com relação às novas tecnologias e se as aulas planejadas estão
utilizando metodologias apropriadas, já que na maioria das vezes as aulas tradicionais são
ministradas com o uso dos equipamentos tecnológicos, sem mudança nenhuma na abordagem.
O corpus da pesquisa será composto por professores de Língua Estrangeira (Inglês ou
Espanhol), da Rede Pública de Ensino, preferencialmente do Ensino Médio. Também será
criado um questionário para ser respondido pelos professores. Com esse instrumento pretende-
se investigar quantos professores, dentro do corpus selecionado, utilizam as TIC’s em suas aulas
e de que forma obtiveram conhecimento acerca delas. Essa análise superficial mostrará os
índices e a frequência de utilização dos recursos tecnológicos.
Foram elaboradas perguntas sobre quais os tipos de atividades são utilizados por esses
profissionais, assim como se os recursos para elaboração e aplicação das atividades são
financiados pela escola ou pelo próprio professor. A intenção é descobrir se existem
capacitações e/ou formações com esta temática, visando à utilização de metodologias
diferenciadas e mais atualizadas com as realidades dos jovens.
Como se trata de uma pesquisa sobre os usos das tecnologias na educação, o próprio
questionário será elaborado no Google Forms e disponibilizado para os professores através das
redes sociais (E-mail e grupos de WhatsApp), a quantidade de respostas obtidas será o tamanho
do corpus do trabalho.
A pesquisa está sendo submetida ao Comitê de Ética para a consequente liberação do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de acordo com a resolução CNS nº
466/2012, que será apresentado aos participantes e através do qual o sujeito da pesquisa terá a
garantia do respeito aos seus direitos.
A partir da análise dos dados obtidos é possível traçar estratégias que possibilitem o
letramento digital dos professores fazendo com que eles possam adaptar e converter seus
materiais e suas aulas reconduzindo as TICs para um uso mais formativo e pedagógico,
resultando assim no conceito principal das TAC’s.
Essa metodologia de pesquisa está possibilitando a produção de um material final que
possa ser utilizado por qualquer professor de Línguas Estrangeiras, já que as atividades
propostas podem ser adaptadas e modeladas de acordo com a língua, com a turma e com o nível
dos alunos.
O cronograma a ser seguido inicia com um levantamento bibliográfico com o intuito de
investigar os teóricos que abordam esse tema e podem trazer novas definições sobre o assunto
trabalhado, em seguida o corpus será especificado e delimitado possibilitando a limitação do
levantamento de dados necessários à pesquisa.
A coleta dos dados e a análise possibilitam a tabulação dos dados obtidos e a constatação
ou não da hipótese inicial levantada. Com esses dados em mãos será possível concluir a escrita
do trabalho final.
Considerações Finais
Apesar desta pesquisa ainda estar em andamento é visível e notório o fato de que os
professores não se sentem preparados para lidar com as tecnologias atuais e que os alunos
151
(considerados nativos digitais) têm acesso e facilidade muito grandes no trato com as mídias
digitais.
Ao longo dos últimos anos o uso das TICs vem revolucionando o ensino ao redor do
mundo, o professor deixou de ser o detentor de todo o conhecimento e o aluno passa a ter um
papel mais ativo na sua própria formação. Essa colaboração educacional reflete uma nova
realidade desafiadora, pois como afirma Santiago (2006), a tecnologia na educação exige
estratégias que superem o ensino tradicional, pois uma aula mal estruturada, mesmo com o uso
das tecnologias, pode tornar-se tradicional.
Vale ressaltar que, a tecnologia trabalhada de forma isolada não é garantia de sucesso
no que se refere ao processo ensino-aprendizagem, mas é primordial que ela esteja ligada a
metodologias inovadoras que possam dar algum significado para a aprendizagem. Segundo
Tião Rocha (s.d.) “não podem ser as TICs que determinam a aprendizagem (e o sentido da
escola, por exemplo), mas as TACs (as tecnologias de aprendizagem e convivência) que dão
sentido e significado para a vida humana e hoje, mais do que nunca, da sobrevivência humana
num planeta agonizante”. O autor citado acrescenta que, “O educador deve ser um construtor
de pedagogias próprias e não um mero repetidor de ‘pé de páginas’”, daí a importância da
correta utilização e conversão das TICs em TACs.
Assim, é necessário um estudo mais aprofundado da estrutura das TACs, além da
criação de materiais práticos que auxiliem o professor na elaboração e no desenvolvimento de
suas aulas. Essa deficiência, que possivelmente teve origem na formação inicial, não pode ser
considerada um empecilho na vida profissional dos educadores, mas um impulso, um estímulo
para aperfeiçoamento de técnicas e estratégias de aprendizagem que envolva as tecnologias
disponíveis no âmbito educacional.
Referências
152
LANDIM, F. L. P.; LOURINHO, L. A.; LIRA, R. C. M.; ARAÚJO, Z. M. S. S. Uma reflexão
sobre as abordagens em pesquisa com ênfase na integração qualitativo-quantitativa. Revista
Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 19, n. 1, pp. 53-58, 2006.
MASETTO, M.T. O professor na hora da verdade: a prática docente no ensino superior. São
Paulo: Avercamp, 2010.
RODRÍGUEZ, M. A. V. Las TAC y los recursos para generar aprendizaje. Infancia, Educación
y Aprendizaje (IEYA). Revistas UV, v. 3, 2017, p. 771-777. ISSN: 0719-6202.
SEGURA, M., CANDIOTI, C., MEDINA, C.J. Las TIC en la Educación: panorama
internacional y situación española. XXII Semana Monográfica de la Educación, Fundación
Santillana, 2007. Recuperado de http://www.oei.es/tic/DocumentoBasico.pdf
153
Capítulo
13
Assimetria de poder nas aulas de matemática: onze
barreiras para o desenvolvimento da criatividade
compartilhada
Alexandre Tolentino de Carvalho74
Cleyton Hércules Gontijo75
Mateus Gianni Fonseca76
Introdução
Ano a ano, taxas de desistência de ingressantes em cursos que formam professores de
disciplinas da área de exatas (química, física e matemática) vêm crescendo, conforme revela o
censo da educação superior (BRASIL, 2018) divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Em relação à matemática, essa taxa cresceu de
8% em 2010 para 62,2% em 2016, um aumento de cerca de 777% do percentual de desistentes
em relação ao total de ingressantes em um prazo de 6 anos. Barreiras sociais, econômicas,
pessoais têm levado um número expressivo de estudantes a desistirem de ser professores de
matemática, o que acaba contribuindo para o estigma dessa disciplina como conhecimento de
difícil acesso.
Um aspecto que chama a atenção, no que diz respeito à escolha da matemática como
carreira profissional, refere-se às questões de gênero. Apesar do percentual de ingressantes do
sexo feminino (42%) em 2015 ser ligeiramente menor que o percentual de homens e a
quantidade de mulheres concluintes do curso de graduação em matemática (48%) ser muito
próximo do total de concluintes do sexo masculino, nas etapas posteriores da vida acadêmica,
as mulheres passam a ser minoria. Elas foram 27% entre os egressos de cursos de mestrado e
24% entre os de doutorado (BRASIL, 2016). Tais números reforçam o senso comum que ventila
a ideia de que as carreiras na área de matemática são para homens.
74
Doutor em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da Educação Básica na Secretaria de Estado
de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Pesquisador do Grupo PI: Pesquisas e Investigações em Educação
Matemática - CNPq. E-mail: alexandre.tolenca@gmail.com
75
Doutor em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Departamento de Matemática da
Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador e Líder do Grupo PI: Pesquisas e Investigações em Educação
Matemática - CNPq. E-mail: cleytongontijo@gmail.com
76
Doutor em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Instituto Federal de Educação (IFB).
Pesquisador do Grupo PI: Pesquisas e Investigações em Educação Matemática - CNPq. E-mail:
mateus.fonseca@ifb.edu.br
154
Esses dados refletem como o conhecimento matemático é representado socialmente em
uma cultura que considera a matemática como algo restrito a alguns privilegiados, geralmente
homens brancos77 (SHEFFIELD, 2018). Podemos, então, compreender que a representação que
hoje temos da matemática se constituiu em um processo social e histórico que foi, com o passar
do tempo, construindo mitos sustentadores de falsas verdades que afastam esse conhecimento
dos homens e mulheres em sua totalidade e o restringe a alguns poucos grupos sociais.
O termo mito remete a narrativas dirigidas a explicar fatos sem uma sustentação
científica ou objetiva. Portanto, ao nos referirmos ao termo mitos na matemática, estamos
falando de narrativas constituídas no campo do senso comum e que, para serem contraditas,
necessitam de evidências. Os mitos em matemática referem-se a verdades que foram sendo
construídas ao longo da história e que levam as pessoas a acreditar que, para aprender e fazer
matemática, é preciso ser um gênio dotado de habilidades especiais e que a aprendizagem desse
conhecimento precisa ocorrer de forma mecanizada. No ambiente de sala de aula, esses mitos
reforçam as relações assimétricas de poder determinando quem pode e quem não pode emitir
enunciados matemáticos nos processos comunicativos e pré-estabelecendo quem irá e quem
não irá aprender matemática.
A matemática apresentada no ambiente escolar é concebida por meio de um discurso
que restringe seu alcance a um estrato reduzido de aprendizes, ao se orientar por um currículo
enraizado em uma cultura eurocêntrica que não possibilita o diálogo com conhecimentos
prévios trazidos pelos alunos e suas culturas originárias, como se outras populações ao redor
do mundo e ambientes não científicos não produzissem matemática. Portanto, a matemática
trabalhada na escola vem de uma tradição que a representa como conhecimento difícil de ser
aprendido (SILVEIRA, 2002) e não sujeita à ação criativa por aqueles que a aprendem
(CARVALHO, 2015).
Um primeiro mito presente no cotidiano escolar e extraescolar que se constituiu em
barreira que impede que todos se sintam capazes de aprender é a crença de que alguns possuem
uma mente matemática e outros não (KOGELMAN; WARREN,1979). Isso acaba diminuindo,
ou mesmo aniquilando, a autoconfiança na aprendizagem da matemática. Generaliza-se a ideia
de que existem gênios que aprendem matemática e que a maioria das pessoas não são capazes
de ter desempenhos satisfatórios nesse campo do conhecimento.
Importa citar os mitos relacionados à matemática como um conhecimento pronto e
acabado, exigindo sempre respostas únicas e exatas, onde o pensamento intuitivo e a
criatividade não têm vez. No entanto, Kogelman e Warren (1979) afirmam que os matemáticos
sempre iniciam pensando intuitivamente para poderem chegar às respostas aos problemas
matemáticos e elaborar conhecimentos. Os autores contribuem, também, ao evidenciar a
importância da criatividade para a resolução dos problemas matemáticos, o que exige
imaginação, correção, intuição, estética e soluções construídas por meio de muito trabalho no
qual o erro faz parte.
Recentemente, Linda Sheffield (2017) discutiu a respeito de mitos sobre os alunos
superdotados no campo da matemática que podem desencorajar o desenvolvimento matemático
77
Estudos mostram uma menor proporção de negros com aprendizado adequado em matemática. Disponível em:
< https://www.institutounibanco.org.br/aprendizagem-em-foco/30/> e <
https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-11/educacao-reforca-desigualdades-entre-brancos-e-
negros-diz-estudo>. Acesso em 29 jun. 2020.
155
dos alunos, superdotados ou não, e restringir a compreensão da matemática. Desses mitos,
alguns se destacam por mostrar que visões deturpadas sobre a superdotação em matemática
acabam prejudicando o desenvolvimento dos demais alunos ao convencê-los que não são
capazes de aprender. Os dois primeiros mitos que iremos destacar revelam que a habilidade de
matemática é determinada geneticamente e que estudantes superdotados são homens brancos
ou asiáticos. Tais considerações são especialmente perigosas porque limitam muito o número
de alunos que conseguirão atingir os níveis mais altos de conhecimento matemático
(SHEFFIELD, 2017). O terceiro mito, preceitua que não se pode aprender matemática
criativamente, restringindo a compreensão dos alunos sobre a matemática a uma série de fatos
e algoritmos aprendidos.
Como se pode notar, a existência de mitos que rodeiam o conhecimento matemático
constitui barreiras tanto para a aprendizagem desse conhecimento quanto para o
desenvolvimento da criatividade nesse campo do saber. Como veremos, muitas dessas barreiras
resultam das relações assimétricas de poder instituídas nas interações comunicativas existentes
nas aulas de matemática. Relações que, mesmo de forma inconsciente, estão atravessadas por
mitos que dão conta de uma matemática objetiva, não sujeita à criatividade e restrita a alguns
poucos inteligentes capazes de dominá-la, geralmente homens brancos.
Neste capítulo analisamos as barreiras para a criatividade compartilhada de alunos do
quinto ano do ensino fundamental resultantes de interações comunicativas pautadas pela
assimetria de poder quando constroem, coletivamente, ideias matemáticas ao solucionar
problemas abertos. Para tanto, recorremos à Análise do Discurso Crítica (ADC) para
compreender como os discursos instituídos nas interações comunicativas estabelecidas nas
aulas de matemática acabam por criar e alimentar relações assimétricas de poder. A seguir,
apresentamos esclarecimentos a respeito de constructos que permitirão atingir esse objetivo.
156
hipóteses e a oportunidade de testá-las, sendo bem-vindos os erros como importantes para o
processo de construção do conhecimento.
Em nossos estudos (por exemplo, GONTIJO, 2007; GONTIJO et al., 2019;
CARVALHO, 2019; FONSECA, 2019), temos utilizado o termo criatividade em matemática
para nos referir ao processo de geração de ideias na resolução de problemas matemáticos, seja
pelos próprios matemáticos profissionais, como pelos professores ao ensinar essa disciplina e,
ainda, pelos alunos em sua atividade escolar. Assim, compreendemos que a criatividade em
matemática se refere à capacidade de:
157
• Seja incentivado o trabalho em grupo com o monitoramento da participação
democrática e ativa de todos os componentes ao mediar as relações de poder
(CARVALHO, 2019).
É evidente que essas ações não são suficientes para provocar revolução no modo de
ensinar e aprender matemática e muitos aspectos relacionados ao âmbito geral da sociedade
influenciam a constituição de aspectos subjetivos que podem interferir na aprendizagem criativa
dos alunos. Mas temos notado que ações interventivas permitem uma mudança qualitativa na
aprendizagem dos alunos quando esses aspectos enumerados são levados em consideração
(FONSECA, 2015; 2019).
Neste capítulo, queremos orientar nossas discussões para os aspectos coletivos da
criatividade em matemática, ótica de análise que permite compreender as interações
comunicativas instaladas nos momentos de trabalho em equipe. Portanto, discutiremos a seguir
os modos como pode emergir a criatividade compartilhada em matemática.
158
Em nossas investigações, temos chamado de Criatividade Compartilhada em
Matemática as diversas formas de produção de ideias ocorridas durante aulas de matemática.
Definimos Criatividade Compartilhada em Matemática como:
Um fenômeno que ocorre em coletivos nos quais as pessoas reúnem-se para realizar
algum tipo de atividade, trazendo suas marcas individuais e contribuindo com o
compartilhamento cognitivo e afetivo de suas experiências de vida. O trabalho
coletivo, decorrente de um processo social no qual o conhecimento é construído na
ação de seus membros, concretiza-se em situações de interação nas quais a realidade
é (re)elaborada. No entanto, tal interação depende do modo como serão geridas as
relações de poder entre os integrantes de tal coletivo. De tal modo, no processo de
criação compartilhada, identidades não podem ser apagadas em detrimento da
superposição de posicionamentos hegemônicos. (CARVALHO, 2019, p. 94).
159
A Análise do Discurso Crítica vai tratar, entre outras coisas, das relações de poder
problemáticas existentes nos diversos espaços sociais. Desse modo, compreende que onde há
interação entre dois ou mais sujeitos, há interações pautadas por relações de poder. Portanto,
no espaço privado da família, ou na vida pública, encontramos relações de poder determinando
os papéis de cada sujeito da interação.
Van Dijk (2015) estabelece a fronteira entre o uso e o abuso de poder em termos de
legitimidade: seu uso ilegítimo caracteriza o abuso de poder quando, por exemplo, o professor
seleciona quem é ou não inteligente, violando, sutil e inconscientemente, o direito de aprender
de alunos com certas dificuldades. Nessa situação, o desenvolvimento do pensamento crítico e
criativo docentes pode permitir que esses constituam mecanismos para analisar as realidades
em que atuam e reconhecer assimetrias de poder, criando vias alternativas que permitam aos
seus alunos avançarem na aprendizagem de competências necessárias para resistir ao sistema
de dominação.
Encontramos na ADC contribuições que nos permitem trilhar direções de modo a
analisar relações de poder instituídas nas aulas de matemática, disciplina historicamente
rodeada de mitos que a fazem um conhecimento de restrito acesso. Assim, podemos analisar as
barreiras existentes para a produção coletiva de ideias matemáticas, de alunos reunidos para
solucionar, em trios, problemas matemáticos abertos.
160
Van Dijk (2015) apresenta categorizações a respeito de como o poder é “exercido,
manifestado, descrito, disfarçado ou legitimado” (p. 39) através do discurso como forma de
interação social. São estratégias utilizadas para o controle de determinado grupo, seja em um
contexto mais amplo, seja na interação entre grupos reduzidos de pessoas, como o que ocorre
no espaço de uma sala de aula. Portanto, sua nos permite realizar uma “indispensável ponte
teórica” (p. 39) entre o que ocorre no contexto macro e o contexto micro, como é o caso de
nosso estudo. Interpretamos a seguir tais categorias dando a elas características que podem
sugerir o modo como o discurso no ambiente escolar (e os elementos contextuais que o compõe)
constrói as relações de poder assimétricas.
Força ilocutória: O dominador obtém controle direto sobre a ação por meio de
discursos que possuem funções pragmáticas diretivas. Há o controle indireto de um indivíduo
ou grupo via “controle mental” (VAN DIJK, 2015, p. 42) resultante da propagação do medo de
sanções a serem impostas. Recorre-se aos comandos, ameaças, leis, regulamentos, instruções,
recomendações e conselhos para convencer o dominado. Na escola, busca-se a ordem e
disciplina por meio de ameaças (“façam silêncio ou perderão ponto”, “façam o dever de casa
ou chamarei os pais”) e conselhos (“é melhor estudar para não reprovar”) recorrendo-se ao
poder punitivo institucional para controlar as ações dos alunos. As ameaças suplantam-se ao
desenvolvimento de consciências e, por vezes, os alunos replicam tais exercícios de força
ilocutória uns contra os outros.
Força persuasiva: a propaganda em torno do tipo de aluno desejado pela escola
(“vejam o fulano de tal, quem quiser ter futuro faça igual a ele”), funcionando como uma
verdadeira estratégia publicitária, acaba persuadindo os sujeitos a desejarem tornar-se aquele
estereótipo de aluno ideal. No entanto, o estudante desejado frequentemente é aquele que
aprende com facilidade (ou que consegue reproduzir os algoritmos com sucesso), que segue os
protocolos e que responde aos questionamentos com aquilo que o professor deseja ler ou ouvir.
É nesse ideário que os alunos se mostram receosos em proferir soluções e muitos esperam o
professor corrigir as atividades no quadro para copiarem as respostas (CARVALHO, 2014).
Não existem ameaças, mas sim o uso de mecanismos retóricos como a repetição e a
argumentação para convencer os alunos.
Acesso limitado ao discurso: decorrente das formas tradicionais de ensino
(escolástica), o acesso ao discurso no ambiente escolar é estruturado de forma que o professor
detém o poder de determinar quem, quando e como falar durante as aulas. Cria-se, nesse
contexto, a dicotômica divisão entre aqueles que emitem mensagens e aqueles que
tradicionalmente “figuram como receptores” (VAN DIJK, 2015, p. 44). Boa parte do tempo
escolar é preenchida pelo turno de fala do professor, seguido por alguns turnos de alunos
legitimados (ilocutória e persuasivamente), geralmente aqueles que preenchem os requisitos de
aluno desejado. Mecanismos de limitação do acesso ao discurso vão sendo construídos de modo
que existirá sempre boa parcela da turma que não terá o que dizer, pelo menos nos momentos
formais da aula. Outra forma de limitar o acesso ao discurso apresenta-se na consideração do
erro como algo a ser evitado no ambiente escolar. Com medo de errar, os alunos pouco falam
ou pouco escrevem, e quando o fazem, buscam seguir modelos fornecidos pelo professor.
Evitam, com isso, assumir riscos intelectuais (BEGHETTO, 2010) desviando-se de incertezas
e não correm o risco de parecer incompetentes ou inferiores. Acompanhando o acesso limitado
ao discurso, o desenvolvimento da dimensão criativa revela-se também limitado, uma vez que
161
não se produz ideias próprias, não se valoriza o pensamento divergente, não há um ambiente de
apoio, tudo motivado pelo medo de errar.
Controle da troca de turnos: o poder de decidir quem fala, quando fala e como fala
confere o controle do discurso. Quando a interação ocorre ao nível de turma, tradicionalmente
cabe ao professor exercer esse controle. E podemos testemunhar que “algumas vezes abre-se
espaço para histórias contendo experiências pessoais; no entanto, com maior frequência, elas
tendem a ser censuradas em favor de gêneros de discurso controlados” (VAN DIJK, 2015, p.
54). Pode-se, então, sinalizar para o fato de que “na interação conversacional, um dos
participantes pode controlar ou dominar a troca de turnos, as estratégias de autoapresentação e
o controle sobre quaisquer outros níveis da fala espontânea ou de diálogo formal” (VAN DIJK,
2015, p. 54), o que é feito, geralmente, pelo falante mais poderoso.
Tais categorias compreenderam o eixo teórico que guiou tanto a elaboração de
instrumentos de coleta de dados, quanto sua análise, com o intuito de compreender a influência
das relações de poder para a emersão da criatividade em matemática. Nesse sentido, as
contribuições metodológicas e teóricas da Análise do Discurso Crítica nos permitiram
vislumbrar, nos diálogos constituídos nos momentos de interação das aulas de matemática de
um quinto ano do ensino fundamental, como o exercício de poder fez emergir barreiras que se
colocaram entre grupos de alunos, seus processos de aprendizagem e a produção de ideias
matemáticas. A seguir, abordaremos tais barreiras.
162
turno. Para cada uma dessas categorias, foi elaborado um conjunto de perguntas
semiestruturadas para conduzir a realização do grupo focal. Analisando os discursos
estabelecidos nas interações comunicativas, percebemos a presença desses quatro tipos de
relações assimétricas de poder criando barreiras para o desenvolvimento da criatividade
compartilhada dos alunos, as quais ilustraremos por meio de excertos a seguir expostos. Na
identificação dos alunos, utilizaremos um código alfanumérico composto por uma letra (F para
meninas e M para meninos) e um número.
163
Excerto 3
F11: Toda vez que passava uma atividade, ele queria colocar a ideia dele e não queria colocar
a nossa e isso trouxe briga pra gente e fez a gente perder tempo.
c) a inibição dos demais participantes
Isso se deu na medida em que um dos participantes levava os demais a sentirem-se
incapazes de apresentar ideias corretas. Assim, seus colegas preferiram não contribuir por
sentirem-se inferiores, o que resultou em um estado de desmotivação. Tendo em vista que o
nível de entusiasmo pela atividade é um componente necessário da motivação intrínseca
(AMABILE, 1988; TIERNEY; FARMER; GRAEN, 1999), a quantidade e qualidade das
soluções apresentadas acabaram prejudicadas na medida em que elementos dos trios passaram
a não ver sentido em sua participação, uma vez que não se enxergavam como possuidores de
capacidades criativas. Vemos, então, uma estreita relação da inibição de participantes com o
mito que retrata a matemática como conhecimento restrito a alguns poucos considerados gênios.
Excerto 4
F11: O M15 queria fazer só, pegava a folha, deixava na mesa dele e quando eu ia fazer, ele
falava que tava errado. Me senti fora das coisas.
Excerto 5
F8: O M14 é muito inteligente, mas só quer do jeito dele. Ele quer fazer tudo. Todas ideias que
a gente dava, ele dizia que tava ruim.
d) Intolerância ao erro.
Não somente nessa categoria de relação assimétrica de poder mostrou-se frequente a
intolerância ao erro, mas vamos tratar desse tema por aqui. Para Ayele (2016), a aceitação dos
erros como bem-vindos e aproveitáveis se constitui como um fator motivador para os alunos.
Nota-se que essa barreira impedia os insights necessários para o processo criativo, levando à
desmotivação de muitos alunos que tinham suas ideias rechaçadas quando poderiam ser
aproveitadas por meio da superação dos equívocos. Já que a motivação intrínseca tem sido
apontada como uma das qualidades mais importantes para o aprimoramento da criatividade
(AMABILE, 1988), a intolerância ao erro se tornou uma barreira para a produção de ideias,
uma vez que esse feedback negativo levou integrantes dos trios ao sentimento de desmotivação.
Excerto 6
F3: Fui fazer raiz quadrada na primeira atividade e eles falaram que não estava certo. No de
pergunta, ia fazer uma pergunta bem criativa e eles não quiseram. Não me deixaram fazer
nenhuma na divisão dos quadrados. Diziam que sabiam mais que eu. Diziam que estava tudo
errado.
Força persuasiva
Ao desqualificar as soluções de seus parceiros de trios, alguns colegas passaram a
convencer os demais a abandonar suas ideias e buscar por soluções mais triviais. Assim,
emergiram barreiras que interferiram no nível de originalidade e flexibilidade das ideias.
e) Trivialidade de soluções propostas
164
Alguns relatos demonstram a tentativa de convencimento de que, para atingir os
objetivos, era preciso buscar soluções mais simples, economizando tempo e esforço. Em
algumas equipes, ficou nítida a tentativa de um dos componentes de convencer os demais a não
empreender tanto esforço na busca de soluções mais aprimoradas e que requeriam um
engajamento cognitivo maior. Considerando-se a importância do engajamento dos indivíduos
em comportamentos criativos (SAWYER, 2010), a busca de soluções triviais comprometeu a
apresentação de respostas mais criativas, originais e variadas. Pode-se vislumbrar que tal
barreira tem subtendido o mito de que alguns possuem uma mente matemática e outros não
(KOGELMAN; WARREN,1979). Ao pensarem que a matemática poderia ser algo distante de
suas realidades, alguns alunos tentavam convencer seus pares que não poderiam ser tão ousados
matematicamente, o que contribuiu com a diminuição da autoconfiança na aprendizagem da
matemática.
Excerto 7
F9: O M16, toda vez que a F2 fazia alguma coisa, ele falava: Não, não faz assim não, faz desse
jeito. E na verdade ele mostrava algo muito fácil.
Excerto 8
M1: Faz um simples, não precisa fazer uma complexa. Faz por último que a gente tá perdendo
tempo.
Acesso limitado ao discurso
Observamos muitos momentos em que o acesso ao discurso se limitava à professora e a
um grupo reduzido de alunos. Assim, tanto as opções didáticas da professora quanto as
interações comunicativas dos alunos levaram à criação de barreiras à criatividade compartilhada
relacionadas à limitação do acesso ao discurso matemático.
f) Atividades de resposta única
No discurso dos alunos, ficou nítida a preferência da professora por atividades em que
os alunos deveriam seguir os algoritmos ensinados e apresentar uma única resposta padronizada
para todos. Assim, não podiam expressar suas estratégias próprias para produzir ideias
matemáticas. Vemos aqui o mito bastante presente nas aulas de matemática que propaga a falsa
verdade que a matemática não pode ser criativa (KOGELMAN; WARREN, 1979) e que não se
pode aprender matemática criativamente (SHEFFIELD, 2017), mito que leva os alunos a
acreditar que a matemática se resume a uma série de fatos e algoritmos a serem repetidos
mecanicamente. Ao diferenciar as atividades dos problemas abertos por nós sugeridas e
atividades do cotidiano de sala de aula, ficou nítida a prevalência de atividades voltadas para
aprendizagem mecanizada.
Excerto 9
F6: São mais fáceis essas, mas tem que pensar muito. A professora passa mais continha pra
gente fazer. Passa continha que tem que dar só uma resposta.
Excerto 10
F10: Porque as atividades que ela passa geralmente, a gente tem que resolver, tem que dar os
resultados certos e quase todo mundo na sala responde igual e é certo, mas essas atividades
165
são diferentes. Cada um pode criar é... criatividades, tem que ter criatividade e tem que dar
resultados diferentes, mas também resultado certo, mas na sala da professora a gente tem que
tirar resultado certo quase iguais a todos.
g) Falta de oportunidade de internalizar/externalizar conhecimentos matemáticos
Para Vygotky (2001), o processo de aprendizagem passa por duas etapas básicas: a)
internalização, onde o sujeito reconstitui, em seus processos internos cognitivos, conceitos
existentes no nível social e b) externalização, o retorno dos produtos dessa internalização para
o mundo social, seja de forma falada, escrita ou por meio de outras formas de comunicação.
Por isso, para que a aprendizagem ocorra efetivamente, é necessário que o aprendiz tenha
oportunidade de internalizar conhecimentos socialmente construídos e compartilhados durante
as interações, partindo de seus conhecimentos prévios para reconstruí-los internamente. Há a
necessidade, também, de momentos para que o aluno possa comunicar suas aprendizagens,
socializando aquilo que produziu ao nível psicológico. Nesse processo, elementos cognitivos e
afetivos que lhe foram compartilhados durante as interações são matéria-prima para criar seus
próprios conceitos matemáticos, internalizando informações e produzindo conhecimentos que
têm como marca a intensa atividade sob o objeto de conhecimento.
Essa não era a realidade da turma estudada. As aulas, geralmente expositivas, ocorriam
de modo que a professora desenvolvia conhecimentos matemáticos por meio de demonstração.
A participação dos alunos se resumia em responder a perguntas oralmente, o que revelou uma
barreira para o desenvolvimento da criatividade. A disposição dos alunos na sala (em duplas ou
individualmente) e as perguntas orais não permitiam uma interação dos alunos para que
pudessem refletir a respeito do conhecimento trabalhado. Assim, ao fazer as perguntas
oralmente, apenas alguns alunos conseguiam responder sem deixar oportunidade para que o
restante da turma refletisse sobre a questão, buscando aplicar os conhecimentos já consolidados
na busca de uma solução. Não conseguiam internalizar, realizando o esforço cognitivo
(BOALER, 2015), e muito menos externalizar ideias matemáticas. Mostrava-se comum a
limitação de acesso ao discurso, dominado pela comunicação de ideias matemáticas pela
professora e por alguns poucos alunos considerados bons na disciplina, como se nota a seguir.
Ao ensinar percentagem, a professora fazia perguntas oralmente e crianças com
aprendizagens mais consolidadas respondiam velozmente às questões, o que impedia o restante
da turma de refletir a respeito do conteúdo ensinado. Então M15 diz o seguinte:
Excerto 11
M15: Ohhh! Não deixa eu falar não! Poxa, nem deu tempo de eu responder.
Essa barreira funcionava como forma de domínio dos alunos baseada no apagamento
das vozes de qume raciocinavam em tempos diferentes e/ou usava estratégias não
convencionadas pela professora. O processo de reflexão que poderia levar à produção de
conceitos matemáticos era interrompido porque respostas eram fornecidas no momento em que
deveria ocorrer o esforço produtivo (BOALER, 2018) de alunos mais lentos. Predominava a
reprodução da voz da professora, posto que as respostas apresentadas pelos alunos,
considerados bons em matemática, eram similares ao discurso instituído pela docente, ou seja,
os algoritmos e conceitos correspondiam aos modos de pensar a matemática apresentados pela
professora.
166
h) Medo de errar
Nessa realidade estudada, o erro era algo bastante temido por parte da turma, muito por
conta da intolerância ao erro anteriormente referida. Uma vez que nem todos eram considerados
bons alunos, aqueles que demonstravam insucessos nessa disciplina acabavam evitando
expressar-se, uma vez que temiam serem ridicularizados caso apresentassem ideias
equivocadas. A ocorrência do erro poderia, para esses alunos, resultar em retaliações como risos
ou mesmo xingamentos, o que a aluna F6 demonstrou em vários momentos de conversas. É o
que o aluno M1 chamou de “medo de errar e os outros ficarem zuando”, uma postura de cautela
diante da reação da audiência, que repudiava respostas que não podiam ser incluídas no rol de
soluções corretas. Assim, o controle do acesso ao discurso se dava de forma indireta ao ser
instalado um clima marcado pelo medo de errar.
Excerto 12
Pesquisador: Teve alguém no teu grupo que teve dificuldade em matemática e não ajudou?
F6: Eu. Ajudei um pouco. Eu pensava que tava errado. Porque eu não sou boa em matemática,
aí me sai... quase não falava.
Excerto 13
M10: A F6 nem participou. Ela tinha vergonha de errar e os outros rir dela. Ela é boa, mas
tem medo, tanto é que ela já faltou muitas provas.
i) Ideias ignoradas
Essa limitação de acesso ao discurso se deu, também, de forma mais direta ao serem
ignoradas ideias, como relata F7:
Excerto 14
F7: O M10 fingia que não escutava quando falava e tinha horas que não queria aceitar minhas
ideias.
A fala de F11 indicou, também, que M15 e M7 agiram limitando seu acesso ao discurso.
Para ela, os meninos recusavam-se a escutar suas ideias, repreendendo-a, inclusive com gritos.
Por vezes, fingiam não a ouvir, desprezando a participação da aluna. Nesse sentido, ela relatou
que, em muitos momentos, não se sentiu à vontade para expor suas ideias devido ao modo como
estava sendo tratada no grupo, por conta da diferença de gênero. Esse relato demonstra que o
mito que retrata as mulheres como incapazes de aprender matemática ainda se encontra bastante
presente na realidade atual.
Excerto 15
Pesquisador: Alguém do grupo não se sentiu à vontade, em algum momento, para expor suas
ideias?
F11: Eu. Porque o M7 ficava sendo machista e o M15 ia na onda dele. Às vezes o M7 ficava
me colocando expec...ex...expectativa que a gente não ia ser muito bom. Por causa que, acho
que ele acha que... menina não... é muito boa. Quando o senhor falou que eu ia ficar no grupo
deles, aí ele falou, aí eles falava: Ah não, preferia o M6 ou o M2, ou qualquer outro menino.
Controle da troca de turnos
167
O controle de quem e quando falava se dava, por vezes, ao serem geradas críticas
antecipadas que levavam interlocutores a deixar de opinar e participar ao terem suas ideias
rechaçadas. Outra forma de controle da troca de turnos se refere à interrupção do discurso.
j) Críticas antecipadas
Quando uma ideia é criticada, mesmo antes de ser defendida, provavelmente uma
solução com potencial valor criativo é desperdiçada. As críticas fazem parte do processo de
criação, no entanto precisam ser apropriadas e fornecidas em momentos oportunos (GUO;
DILLEY; GONZALES, 2016). Alencar e Fleith (2003) chamam atenção para o fato de que, na
escola, a existência de críticas antecipadas pode se constituir como uma barreira emocional,
uma vez que “o aluno é muitas vezes criticado por suas ideias, sem chances de aprimorá-las e
testá-las” (p. 107). Portanto, críticas que, por ventura, funcionem como uma freio brusco no
processo de elaboração de ideais parecem não ser apropriadas e oportunas, ao passo em que
impedem o elaborador de completar as conexões cognitivas e afetivas necessárias e de expressar
por completo cada elemento constituinte de sua ideia, bem como as interrelações entre eles.
Assim, o efeito das críticas antecipadas na criatividade se reflete não devido à existência da
crítica em si, mas pelo fato dessas críticas ocorrerem antecipadamente. As críticas, para que
possam valorizar e aperfeiçoar as ideias, devem ser aprofundadas, específicas e úteis (GUO;
DILLEY; GONZALES, 2016).
Excerto 16
Pesquisador: Como foi sua participação no grupo?
M7: Eu acho que foi ruim, mas também, quando eu tinha uma ideia, eles falavam não, que era
ruim, que não dava. Eu pensei assim, tão criticando minhas ideias, então não vou falar mais
nada.
K) Interrupção do discurso
Essa barreira se relaciona proximamente com aquela discutida anteriormente. Ao
interromper a fala de um interlocutor, o sujeito intenciona controlar a troca de turnos
sobrepondo sua ideia às falas dos demais. Essa tática acaba declinando dos processos
colaborativos necessários para a criatividade coletiva o que, por sua vez, interfere e prejudica o
compartilhamento de ideias na medida em que a inteligência coletiva distribuída entre os
indivíduos em interação depende da interrelação entre cognição compartilhada e colaboração
(VANSIN, 2005).
O relato de F11, por exemplo, demonstra que M15 controlava a troca de turnos ao “falar
por cima dela”. O garoto interrompia a fala de F11 fazendo com que o turno fosse tomado por
um dos meninos. Já no excerto a seguir, a interrupção se dava via desqualificação de ideias
apresentadas:
Excerto 18
Pesquisador: Alguém teve sua fala interrompida em algum momento?
F9: O M16. Eu tava na ideia de uma pergunta e ele disse: Não, essa aí tá muito frouxa, tá...
você não tem criatividade. Aí eu deixei pra lá.
168
Considerações Finais
Este capítulo possibilitou refletir a respeito da existência de formas de exercício de
poder que acabam por produzir barreiras desfavoráveis ao desenvolvimento coletivo de ideias
matemáticas. Podemos vislumbrar, na realidade analisada, a existência de um conjunto de onze
barreiras demonstradas desde a forma de condução didática das aulas de matemática até
momentos em que os alunos se encontraram, em trios, diante de problemas abertos, mais
favoráveis ao desenvolvimento da criatividade em matemática (MANN, 2009; LEIKIN, 2017).
É importante notar que, assim como se mostra comum em boa parte das escolas mundo
à fora onde poucas ações convergem para o objetivo de desenvolver a criatividade nos
estudantes (FLEITH; MORAIS, 2017), na turma estudada, os alunos não tinham muita
experiência com criatividade em matemática e com o trabalho coletivo nessa área do
conhecimento. Nessa lógica, o estudo partiu de uma realidade caracterizada por dois aspectos
bastante marcantes: pelo forte predomínio do trabalho individual em detrimento do trabalho
coletivo e pela ausência de incentivo às expressões criativas dos alunos.
Conforme sinaliza Beghetto (2010), a experiência escolar tem afastado do currículo
acadêmico a possibilidade de nutrir o potencial criativo. E quando o faz, direciona essa forma
de ensino para alguns poucos considerados talentosos ou portadores de altas habilidades. Como
observado na prática escolar estudada nesta pesquisa, não se enxerga no cotidiano de sala de
aula um espaço para desenvolvimento das habilidades criativas e, por falta de conhecimento
sobre como estimular a criatividade, não são incluídas atividades sistematicamente planejadas
para isso.
As situações analisadas acendem um estado de alerta sobre a importância do professor
para a concepção de ações voltadas para o desenvolvimento de capacidades criativas e do
trabalho coletivo na busca por produção de conhecimento matemático. Como principal
liderança presente em uma sala de aula, o professor de matemática se configura como fonte de
“conforto e confiança necessários para a criatividade” (MUMFORD; GUSTAFSON, 1988;
BOALER, 2018).
Sendo uma instituição imersa em um contexto social mais amplo marcado pela
assimetria de poder, a escola está envolta em jogos de poder que resultam em exclusão e
favorecimento de uma pequena parcela de alunos, situação reforçada pela veiculação de mitos
que povoam a matemática. Assim, podemos sintetizar o papel do professor como o de vigilante
incansável das relações que se estabelecem entre professor e alunos e entre alunos e seus pares.
Cabe ao professor de matemática, na busca desse objetivo, estar atento às formas de relações
assimétricas de poder que se instalam no cotidiano escolar e que geram barreiras impedidoras
de interações comunicativas democrática e favoráveis ao desenvolvimento de todos.
Referências
169
AMÁBILE, T. M. A model of creativity and innovation in organizations. In: STAW, B. M.;
CUMMINGS, L. L. Research in Organizational Behavior. [S.l.]: [s.n.], v. 10, 1988. p. 123-
167.
BACKES, D. S. et al. Grupo focal como técnica de coleta e análise de dados. O mundo da
saúde, São Paulo, v. 35, n. 4, p. 438-442, 2011.
BRASIL. Censo da Educação Superior 2017: divulgação dos principais resultados. Brasília:
Diretoria de Estatísticas Educacionais, Ministério da Educação, 2018.
170
<https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/20203/1/2015_MateusGianniFonseca.pdf>.
Acesso em: 26 jun. 2020.
GLĂVEANU, V. P.; LAHLOU, S. Through the creator's eyes: using the subjective camera to
study craft creativity. Creativity Research Journal, v. 24, n. 2-3, p. 152-162, 2012.
KOGELMAN, S.; WARREN, J. Mind Over Math: put yourself on the road to success by
freeing yourself from math anxiety. New York, N.Y.: McGraw-Hill, 1979.
171
MANN, E. The Search for Mathematical Creativity: Identifying Creative Potential in Middle
School Students. Creativity Research Journal, v. 21(4), p. 338–348, 2009.
SAWYER, K. Group Genious: The creative power of collaboration. New York: Basic Books,
2007.
172
Capítulo
14
A cegueira na literatura infantojuvenil: uma análise
da obra Longe dos Olhos de Ivan Jaf
Introdução
Este artigo tem como tema central a discussão sobre representações acerca da cegueira,
a partir da análise da obra infanto-juvenil brasileira “Longe dos Olhos”, escrita por Ivan Jaf.
Tratou-se de um estudo de cunho qualitativo no qual se buscou compreender como um
personagem cego é representado no livro. O estudo teve como fundamentação teórica os estudos
sobre representação literária de pessoas com deficiência e a análise de conteúdo, que
subsidiaram a interpretação crítica realizada. Os resultados obtidos revelaram que, nesta obra
de Ivan Jaf, os temas vinculados à cegueira resumem-se a assuntos como: braille, bengala
branca, orientação e mobilidade, e o uso do verbo “ver” dirigidos a uma pessoa com deficiência
visual.
Em pleno século XXI, quando as tecnologias avançam de modo acelerado, a literatura
ainda é de grande relevância, pois, através da mesma, difunde-se a arte, a comunicação, o
conhecimento, a cultura, a literatura leva o leitor a mundos imaginários, possibilita uma análise
crítica do seu meio social e político, bem como tantas outras reflexões que permeiam sobre seu
próprio eu e até mesmo de seu convívio em sociedade. Como afirma Cosson (2014, p.50),
A leitura literária conduz a indagações sobre o que somos e o que queremos viver, de
tal forma que o diálogo com a literatura traz sempre a possibilidade de avaliação dos
valores postos em uma sociedade. Tal fato acontece porque os textos literários
guardam palavras e mundos tanto mais verdadeiros quanto mais imaginados,
desafiando os discursos prontos da realidade, sobretudo quando se apresentam como
verdades únicas e imutáveis. Também porque na literatura encontramos outros
caminhos de vida a serem percorridos e possibilidades múltiplas de construir nossas
identidades. Não bastasse essa ampliação de horizontes, o exercício de imaginação
que a leitura de todo texto literário requer é uma das formas relevantes do leitor
assumir a posição de sujeito e só podemos exercer qualquer movimento crítico quando
nos reconhecemos como sujeitos.
Pode-se até afirmar que, através da literatura, é possível ter acesso a sentimentos e
situações que se distanciam de nossas realidades cotidianas, e conseguimos compreender e
78
Pós -Doutor em Educação: Formação de Professores, pela FCU - Florida Christian University - IESLA - EUA -
Doutor e Mestre em Educação: Formação de Professores e Comunicação: Audiovisual, pela Uniatlántico - América
Latina e Europa - Graduado em Pedagogia, Letras e Bacharelado em Linguística, pela UCAM - Universidade
Candido Mendes - Rio de Janeiro - E-mail: ricardosdavid@hotmail.com.br
173
“adentrar” em épocas, culturas, experiências diferentes das que vivemos.
Muitas obras contemporaneamente vêm retratando personagens com deficiência, como
por exemplo, o livro Longe dos Olhos, de Ivan Jaf, objeto de análise do presente artigo. É
necessário, porém, ressaltar que as representações de pessoas com deficiência nesse espaço
literário não é algo recente. Dentre as obras literárias escritas mais antigas, há menções
explícitas às pessoas com deficiência na Bíblia e na Mitologia Grega.
Na primeira, existem passagens em que a pessoa com deficiência é representada como
mendiga e/ou colocada como um sujeito oportuno para que o poder de Deus se revele a partir
de milagres, como Bartimeu, deficiente visual que foi curado pela sua fé. Já na Mitologia Grega,
há outras representações, como Hefesto – que, em uma de suas versões literárias, foi
arremessado por sua mãe, a deusa Hera, do alto dos céus, apenas por ele ter nascido com
deficiência física – e Tirésias – que, ao desapontar Hera, é deixado cego pela mesma, mas ele é
compensado por Zeus, que o concedeu o dom da previsão. Esse presente divino gerou até hoje
um imaginário social em volta da cegueira, pois se mistificou que o cego pode vir a ter poderes
de adivinho. Na perspectiva de Sant’anna (2006, p. 11).
Nas últimas décadas, a temática das diferenças tem se tornado cada vez mais
recorrente em livros destinados ao público infanto-juvenil, o que pode ser observado
tanto em âmbito internacional quanto em território brasileiro. No Brasil, desde
aproximadamente a década de 1990, abundam livros de literatura produzidos
especificamente para crianças, cujos enredos e ilustrações giram em torno de temas
como gênero, etnia, raça, cegos, cadeirantes, gordos, velhos, enfim, grupos
174
considerados minoritários, excluídos e/ou marginalizados. Várias dessas obras são
traduções de autores europeus e norte-americanos; muitas, por sua vez, são produzidas
por autores brasileiros. (KIRCHOF, 2013, p. 59).
175
modelos para os demais”.
Outra pesquisa ampla que analisou obras que abordam as deficiências foi o estudo de
Barros (2015), que se debruçou sobre 150 obras literárias infantojuvenis editados nos últimos
40 anos do mercado editorial brasileiro. Nessa investigação, ficou evidenciado que a deficiência
física é a majoritariamente retratada, contemplando 73 obras do seu corpus empírico; já a
cegueira e a baixa visão vêm em segundo lugar, com 40 livros. Constatou-se também que, dos
diferentes 108 autores identificados, 56 eram escritores “profissionais” e 52 eram “iniciantes”;
ao buscar o lugar de fala destes, verificou-se que a maioria eram professores, pessoas com
deficiência, ou parente destas.
A deficiência retratada no livro escolhido para a análise das representações - Longe dos
Olhos – é a cegueira. A deficiência visual é classificada em baixa visão e cegueira. De acordo
com a concepção clínica, a pessoa tem baixa visão se possuir acuidade visual entre 0,3 e 0,05
no melhor olho, com a melhor correção óptica; são consideradas cegas as pessoas que
apresentarem acuidade visual igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica. Segundo a concepção educacional, são consideradas cegas às pessoas que não tem visão
suficiente para utilizar a escrita comum ou “em tinta” e, por isso, precisarão do Sistema Braille
para ler e escrever. (BRASIL, 2002) O Sistema Braille, criado por Louis Braille, em 1825 e
oficialmente reconhecido em 1840, é considerado, até os dias atuais, o sistema universal de
leitura e escrita para cegos. A cela braille consiste em seis pontos em relevo, formando 63
combinações, que representam letras, números, sinais de pontuação, da matemática, física,
química e informática, além da musicografia.
Além do braille, os cegos podem ter acesso à leitura através do ledor, das tecnologias
digitais e do livro falado. O ledor é a pessoa que enxerga que executa a leitura em voz alta para
o cego, que é o leitor.
Muitas vezes, a pessoa cega realiza a gravação desta leitura para ter acesso
posteriormente. O livro falado consiste na gravação de livros em áudio. No Brasil, a Fundação
Dorina Nowill e o Instituto Benjamin Constant possuem estúdios para essas produções. Outra
forma de acesso à leitura é através das tecnologias digitais (computadores e smartphones). Este
acesso se dá através de programas leitores de tela, que permitem às pessoas cegas lerem
materiais que estiverem disponíveis em formato de texto, uma vez que os textos digitalizados
em formato de imagens ainda são inacessíveis aos aplicativos para leitura de tela. (MARTINEZ,
2011)
Para se deslocarem os cegos utilizam, principalmente, a bengala longa ou bengala
branca. Este recurso tem a função de auxiliar a pessoa cega a perceber as superfícies e sondar
o espaço à sua frente, com o objetivo de identificar as condições do piso, a existência de
obstáculos, aclives, declives, degraus, reconhecer pontos de referência e proteger a parte
inferior do corpo, evitando colisões. O uso da bengala muitas vezes é associado à técnica do
guia vidente, isto é, quando a pessoa com deficiência visual toca no cotovelo de uma pessoa
que enxerga para ser conduzida em locais que ainda não conhece. As técnicas para usar a
bengala são ensinadas por profissionais especializados, em Programas de Orientação e
Mobilidade, nas instituições que atendem pessoas com deficiência visual. (BRASIL, 2003).
176
A obra
O livro Longe dos Olhos, de Ivan Jaf, foi publicado pela editora Ática no Brasil, no ano
de 2004, tendo sua segunda edição saído quatro anos depois. O autor – carioca - é escritor de
mais de quarenta livros de ficção, sendo que o público mais contemplado pelas suas obras são
os leitores infanto-juvenis. Longe dos Olhos faz parte da coletânea “Descobrindo os Clássicos”,
que tem como proposta intercalar clássicos com novas histórias para aguçar o desejo do leitor
por obras de autores como Machado de Assis, Castro Alves, Eça de Queiroz e outros.
O enredo de Longe dos Olhos é uma metaleitura da obra O mulato, de Aluísio Azevedo,
e traz traços claros que este se enquadra como um paradidático, sendo acompanhado de um
suplemento de leitura com 11 questões e um anexo contendo explicações didáticas sobre O
mulato no contexto histórico e literário. O livro tem 138 páginas, sendo ilustrado por Robson
Araújo, a capa contém os dois personagens principais da obra, já na guarda do livro existe uma
ilustração que se estende pelo frontispício com os personagens da obra O mulato. O prefácio é
assinado pelos editores e o sumário apresenta os quatorzes capítulos do livro.
O mulato, de Aluísio Azevedo, é uma obra naturalista tendo a proposta de realizar uma
crítica social em oposição ao preconceito racial. O livro conta a história de Raimundo, fruto de
um relacionamento entre uma escrava e um branco. Ainda quando criança tornou-se órfão e foi
residir em Lisboa, onde cresceu e estudou. Ao retornar para o Brasil, regressou a São Luís,
Maranhão, para casa de seu tio, onde acaba se apaixonando por sua prima Ana Rosa. Uma
paixão correspondida, que sofria obstáculos devido à cor de Raimundo, que acaba o levando ao
seu assassinato.
Em Longe dos olhos, Ivan Jaf segue a linha temática do livro O mulato, trazendo em
pauta questões vinculadas ao preconceito racial. Além disso, incrementa no romance um outro
elemento, que é a presença de uma personagem cega, que se chama Sílvia. Não foi localizado
o que motivou o autor a inserir um personagem com deficiência, porém, é válido ressaltar que
entre os anos 2000 e 2008 (ano de publicação da última edição) foram anos decisivos na criação
de políticas públicas para atender essa parcela da população, como no ano de 2003 foi
implementado pelo MEC o Programa “Educação Inclusiva: direito e diversidade”; em 2004, o
Ministério Público Federal publicou o documento “O acesso de estudantes com deficiência às
escolas e classes comuns de rede regular”; em 2008, a “Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva Inclusiva” e, além disso, a Convenção sobre o Direito das Pessoas com
Deficiência, aprovada pela ONU em 2006, foi ratificada por meio do Decreto Legislativo nº
186/08 e do Decreto Executivo nº6.949/09.
A história escrita por Ivan Jaf inicia-se quando, por acaso, Oto, um estudante de letras,
negro, encontra Sílvia na mureta da Urca, no Rio de Janeiro, mas essa não repara sua presença,
mesmo ele fazendo de tudo para chamar atenção. Chateado com a situação e acreditando que
isso era devido à cor de sua pele, ele desiste de tentar se aproximar dela. Até que certo dia, ao
prestar serviço a uma ONG para pessoas com deficiência física, ele vê a garota entrar, então
descobre que a mesma é cega.
Sílvia estava à procura de alguém que pudesse ler para ela alguma obra literária que não
estivesse em braille, então, Oto sugere o livro O mulato, de Aluísio Azevedo. No decorrer da
trama, ele se apaixona por Sílvia e mente todo seu perfil físico, com medo que ela viesse a se
afastar pelo fato de ser negro. Ao terminar o romance, Oto conta toda a verdade e o enredo
finaliza com o pedido de desculpas e um beijo entre o casal.
177
Um estudo do livro Longe dos Olhos na perspectiva da análise de conteúdo
Uma das etapas da Análise de Conteúdo é realização de uma leitura flutuante da obra,
que ao ser encaminhada, pode oferecer algumas impressões e orientações sobre a narrativa. No
presente livro notamos que na narrativa não existe vínculo algum da deficiência visual como
um ato de castigo divino; a personagem, em nenhum momento, é tratada como digna de pena;
ou tem sua imagem vinculada com ato de mendicância; e em momentos bem pontuais existem
referências à compensação da deficiência.
No livro, ocorrem algumas preocupações didáticas sobre a deficiência visual, assim
como, alguns equívocos. Pela leitura flutuante realizada, é possível localizar a obra de acordo
com as tendências elaboradas por Noronha (2006), em sua dissertação “A representação da
deficiência na literatura infanto-juvenil nos tempos de inclusão”, como um livro que tem como
proposta denunciar estigmas, preconceitos e estereótipos, porém, simultaneamente é
perpetuadora desses elementos.
Em seguida, a Análise de Conteúdo propõe que sejam formulados objetivos e hipóteses
para o desenvolvimento da análise. Este estudo analítico objetivou enunciar quais temas
vinculados à deficiência visual aparece na obra. Já as hipóteses, Bardin (2010) conceitua como
uma afirmação provisória, que o pesquisador se propõe a verificar se essas se confirmam ou
não, mas não é um elemento obrigatório no desenvolvimento da análise:
De facto, as hipóteses nem sempre são estabelecidas quando da pré-análise. Por outro
lado, não é obrigatório ter-se como guia um corpus de hipóteses, para se proceder á
análise. Algumas análises efectuam-se<<às cegas>> e sem ideias pré-concebidas.
(BARDIN, 2010, p.124).
Devido a essa possibilidade de escolha em elaborar hipóteses ou não, este estudo não
adotou esse mecanismo, visto que por se tratar de um estudo qualitativo, percebemos que a
elaboração de hipóteses restringe o olhar sob os objetos de análise.
Em seguida, a análise de conteúdo propõe que sejam elaborados os indicadores, que
surgem dos índices, que são menções explícitas de um determinado tema em uma mensagem.
Esses índices foram criados a partir dos momentos que a narrativa se referia à deficiência visual
da personagem de algum modo, além disso, à luz de cada leitura realizada sobre a obra em
comunhão com os aportes teóricos localizados na revisão de literatura. A partir das menções
explícitas dos temas mais recorrentes na obra, foram elaborados os seguintes indicadores:
a) Quais palavras são utilizadas para se referir à pessoa cega?
b) A causa da deficiência visual é referida na narrativa?
c) Na narrativa a personagem cega é enganada?
d) Existem referências à orientação e mobilidade?
Em correspondência ao primeiro indicador, existiram 11 variações, entre enunciados e
termos, são eles: “cega(o)”, “cegos”, “cegueira”, “deficiência visual”, “ela não ia poder ver”,
“ela não podia ver”, “ela não via mesmo”, “eu não vejo”, “não posso te ver”, “não posso ver”.
Sendo que, a palavra mais recorrente é o termo “cega(o)”, que aparece vinte vezes, geralmente
como um adjetivo para a personagem – como, por exemplo: “– É a primeira vez na minha vida
que alguém me olha com o coração puro. – Mas ela é cega, brother. (JAF, 2008, p. 61) –, o
termo “cega (o)” aparece de modo frequente quando se refere à personagem Sílvia, tornando a
178
cegueira sua característica principal na narrativa. E das vinte vezes que o termo aparece, onze
são ditas pela própria personagem – por exemplo: “– Eu sou cega, Oto. Descrições pra mim são
uma viagem. [...]” (JAF, 2008, p. 25) –, essas afirmativas em torno da deficiência visual
demarcam algumas questões. De acordo com Silva (2013, p.82),
Com a frequente afirmação de ser uma pessoa com deficiência visual, a personagem
demarca sua identidade e suas desvantagens frente aos outros sujeitos, veja os seguintes
exemplos: “Fiquei desconfiada de você. Eu sou cega... No bar, por exemplo, quando você
começou a falar sobre a história do Brasil... você podia estar lendo...” (JAF, 2008, p. 118); “-
Tudo bem, eu fiz uma imagem mental tua. Mas ficou faltando... Eu queria sentir o teu rosto.
Posso? Com as mãos [...] – Por quê? – gaguejou. – Porque eu sou cega, Oto. É uma forma de
eu te “ver”. Tocando”.
Já a causa da deficiência na narrativa é referida em dois momentos: “- Minha mãe
morreu durante o meu parto, Oto. Complicações. Por isso nasci cega. (JAF, 2008, p. 115)”; “-
Eu sou cega de nascença (JAF, 2008, p. 26)”. Como é possível identificar, não existem muitas
explicações científicas sobre o que ocasionou a cegueira, Ivan Jaf é sucinto, não se delonga em
descrever detalhes sobre essa etapa de vida da personagem. (Dowker, 2013, p. 1055), nos diz
que:
[...] a falta de especificidade médica nesses livros tem o efeito de evitar tratamentos
altamente improváveis e estilizados da deficiência. Por outro lado, também evita que
o personagem com deficiência seja reduzido a uma condição médica específica.
– Não – ela disse. – Deixa que eu pego no teu braço. – Tudo bem. – As pessoas acham
que devem pegar no meu braço e ir empurrando. Isso dá até medo. Parece que vão me
jogar num abismo. O certo é o contrário. A gente é que deve segurar o braço de quem
tá guiando. (JAF, 2008, p. 29)
Ela o ouviu levantar para ajudá-la, mas recusou: – Não, Oto. Eu gosto de me virar
179
sozinha. Se eu me acostumar a ser ajudada, vou me acostumar também a me sentir
desamparada. – Tirou um pequeno bastão da bolsa, sacudiu e ele se transformou numa
pequena e fina bengala de metal. – Tenho um senso de direção muito bom. Basta
passar uma vez por um lugar e já sei o caminho. (JAF, 2008, p. 49).
180
Ele entendeu uma coisa ali, naquele momento, e disse a ela:
– De repente a maior parte do preconceito tá na linguagem.
– Taí. É o que acho também, Oto.
– De repente a linguagem é lenta demais para captar coisas novas.
– A linguagem é cheia de lugar-comum. A gente fala meio que ligada no automático.
– Eu sou ateu, mas vivo falando “nossa senhora”, “juro por Deus”, “se Deus quiser”
...
– Pois é. Então relaxa, tá? Você vai deixar furo comigo a toda hora. Se pedir desculpa
toda vez que usar o verbo “ver”, vai me encher o saco. (JAF, 2008, p.25)
Mesmo depois da explanação feita por Sílvia sobre o uso do “ver”, Oto ainda utiliza o
verbo em outros momentos, e mesmo assim se constrange. Existe um ideal social que é
inadequado à utilização dessa palavra com as pessoas com deficiência visual, contudo, ela e
suas derivações estão presentes na língua portuguesa de modo muito recorrente, como
explanado na citação anterior, criando alguns ideais sobre aquele que não vê, contudo, não
existe uma regra de quais palavras devem ou não ser usadas, afinal o sentido das palavras é
resinificado em nosso meio cultural.
Por fim, como foi exposto no decorrer desta análise, tão aberta e inacabada quanto
qualquer leitura ou tentativa de compreensão de uma obra, a representação da deficiência visual
ocorreu de modo verossímil, apresentando elementos que contribuem para o respeito às
diferenças e à inclusão. Porém, em alguns momentos, persistem reafirmações de alguns
“equívocos”, como a compensação e a afirmativa que a personagem Sílvia não sabia ler devido
à deficiência visual.
Todavia, mais importante do que um assinalamento do quão “certas” ou “erradas”
estejam às referências à cegueira numa determinada obra literária, há de se considerar sempre
que, em se tratando de um livro de ficção, o lugar da verdade abre concessões para a criação.
Esta, ainda que não desatrelada de algum assento na plausibilidade, permitirá espaços para
descrições que, se não de todo imaginárias, no sentido classicamente atribuído pela arte, serão
181
descrições da ordem do imaginário – neste caso de um imaginário coletivo, no sentido então
atribuído pela antropologia ou pela psicologia social.
Neste âmbito, a cegueira dos estereótipos ou dos clichês do senso comum, é aquela que
mais imediatamente alcança o leitor; o qual, desse modo, se sentirá dialogando com um
universo de referenciais que lhe é familiar. Daí, então, se novas e transformadoras maneiras de
apresentar a realidade da experiência da cegueira – ou de qualquer outra deficiência – se fizerem
ouvir a partir da narrativa do livro, as estratégias discursivas do autor, quaisquer que sejam,
terão valido a pena.
Referências
AMIRALIAN, Maria Lúcia Toledo Moraes. Compreendendo o Cego: uma visão psicanalítica
da cegueira por meio de Desenhos-Estórias. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad. Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro.
Lisboa/Portugal: Edições 70, 2010.
DOWKER. Ann. A representação da deficiência em livros infantis: séculos XIX e XX. Trad.
Edgar Roberto Kirchof. Porto Alegre: Revista Educação & Realidade. v. 38, n. 04. Out./mar.
2013. p. 1053-1068.
PORTER, Eleonor Hodgman. Poliana. 02. ed. São Paulo: Ediouro, 2005.
JAF, Ivan. Longe dos olhos. 02. ed. São Paulo: Ática, 2008.
182
MARTINEZ, Amanda Botelho Corbacho. Ensino de ortografia e Sistema Braille: um estudo
de caso. 2011. 171 f. Dissertação Mestrado. Faculdade de Educação, Universidade Federal da
Bahia, 2011.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2013.
183
Capítulo
15
O perfil do professor de Língua Portuguesa para o
ensino da Língua Materna
Claudimar Paes de Almeida79
Introdução
Renascido, porque ser professor implica um
“renascimento”, uma reflexão sobre si mesmo e sobre o
trabalho pedagógico. A pessoalidade cruza-se com a
profissionalidade. Uma é inseparável da outra.
(ANTÓNIO NÓVOA).
A educação tem valor imprescindível na vida do ser humano; além de ser ressaltada
como um direito de todos, ela é considerada requisito essencial numa sociedade tão
exigente e em contínua transformação como a dos dias atuais. Nesse contexto, as
pessoas precisam ter uma boa qualificação profissional, o que requer o
desenvolvimento de habilidades comunicativas, com destaque assim, à Língua
Portuguesa.
79
Mestre em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9014853105150028. E-mail: claudimarpaes@hotmail.com
184
pelos professores, não ocorrem mudanças. Essa situação pode demonstrar a prática de um
processo enfadonho e repetitivo de copiar e realizar exercícios de forma exacerbada, caindo
assim numa rotina constante. Acaba-se praticando o ensino que não contribui na aprendizagem
dos alunos e reproduzindo um lugar já efetivado no ensino tradicional, no qual, o professor é o
detentor do conhecimento, aquela que fala, e o aluno o receptor, que em silêncio, sem questionar
“deposita” o “conhecimento” e o reproduz.
Nesse sentido, é necessário criar espaços, nos quais os alunos possam colocar suas
percepções, opiniões e conhecimentos prévios, de forma a estabelecer o diálogo, a troca de
informações e a construção de saberes coletivamente. Dessa forma, compreende-se que “[...] o
aluno não chega à escola sem algum conhecimento da língua portuguesa, pois ele é falante
dessa língua; o que a escola faz, é conferir-lhe possibilidades de conhecer a norma-padrão, de
modo que seja considerada a realidade do aluno”. (CUNHA, 2011, p. 2).
Partindo desses pressupostos, o objetivo deste capítulo é refletir sobre o perfil do
professor de Língua Portuguesa para o ensino da Língua Materna atualmente, pontuando quais
os possíveis aspectos ele deve preservar e desenvolver em sala de aula para que a aprendizagem
seja significativa, envolvente e transformadora.
A metodologia parte incialmente de um estudo bibliográfico, tendo com aporte teórico
os seguintes autores: Antunes (2003), Brasil (1998), Cunha (2013), Demo (2012), Luft (2008),
Lopes (1999), dentre outros. Em seguida é realizada a análise das respostas do questionário
aplicado aos alunos do Ensino Médio das Escolas Públicas Estaduais do Município de Humaitá-
AM em relação à disciplina de Língua Portuguesa. Desse modo, procura-se apontar e refletir
por meio das teorias e das falas dos alunos, algumas características peculiares do perfil do
professor contemporâneo ao ensinar a Língua Materna aos alunos.
O presente capítulo é dividido em três seções: a primeira seção versa sobre o professor
de Português: o que se espera desse educador, trazendo aspectos que esse educador deve
preservar em sala de aula para a aprendizagem efetiva; a segunda seção explana o papel do
professor de Português diante das mudanças atuais: o que ensinar para essa peça condutora de
transformação que é o aluno?; e por fim, na terceira seção, são expostas as respostas dos
participantes dos questionários, apresentando o ensino da Língua Portuguesa na ótica dos
alunos.
185
em sala de aula, e isso só se dará através de uma boa relação: a mesma é uma das ferramentas
que contribui com grande relevância no comportamento, atitude e na formação integral do
indivíduo. Nessa relação está uma das peças fundamentais que é o diálogo: é por meio dele que
haverá aberturas para uma aprendizagem mais reflexiva e contínua. Segundo Freire (2011, p.
136):
Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento,
tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto da reflexão crítica deveria
fazer parte da aventura docente. A razão ética da abertura, seu fundamento político,
sua referência pedagógica; a boniteza que há nela como viabilidade do diálogo. A
experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que terminou por
se saber inacabado. Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos
outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao
mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude.
É dentro desse formato que devem ser estimuladas as práticas que conduzem à
aprendizagem; assim, libertam-se e formam-se alunos atuantes e comprometidos com a
transformação de si mesmos e do meio em que vivem. É importante frisar que em nenhum
momento coloca-se aqui o professor como modelo de perfeição, mas estas características devem
fazer parte da prática do dia a dia da sala de aula, pois o aluno valoriza também “o professor
que é exigente, que cobra a participação e tarefas”. (CUNHA, 2013, p.71). Segundo o PCN
(1998, p. 67):
A formação de professores se coloca, portanto, como necessária para que a efetiva
transformação do ensino se realize. Isso implica revisão e atualização dos currículos
oferecidos na formação inicial do professor e a implementação de programas de
formação continuada que cumpram não apenas a função de suprir as deficiências da
formação inicial, mas que se constituam espaços privilegiados de investigação
186
didática, orientada para a produção de novos materiais, para a análise e reflexão sobre
a prática docente, para a transposição didática dos resultados de pesquisas realizadas
na linguística e na educação em geral.
[...] ensinar já não significa transferir pacotes sucateados, nem mesmo significa
meramente repassar o saber. Seu conteúdo correto é motivar o processo emancipatório
com base em saber crítico, criativo, atualizado, competente. Trata-se, não de cercar,
temer, controlar a competência de quem aprende, mas de abrir-lhe a chance na
dimensão maior possível. Não interessa o discípulo, mas o novo mestre; entre o
professor e o aluno não se estabelece apenas hierarquização verticalizada, que divide
papéis pela forma do autoritarismo, mas sobretudo um confronto dialético. Este
alimenta-se da realidade histórica formada por entidades concretas que se relacionam
de modo autônomo, como sujeitos sócios plenos.
É relevante ressaltar que o método acima citado não é utilizado por todos os professores;
muitos ainda não estão abertos a receberem os acontecimentos atuais, sejam eles culturais ou
sociais e, por vez não estão qualificados ou por algum motivo não se adaptam ao processo.
Pode-se dizer ainda que os mesmos estão amarrados ao modelo de sua formação e poucos
percebem que o ensino vem sofrendo mudanças assim como a sociedade atual, e para isso é
necessário que o educador sofra e queira passar pela emancipação, livrando-se do ensino, que
por vez enxerga o aluno como mero baú em que simplesmente se deposita algo (conteúdo) e
que este não sofre nenhuma transformação.
A formação do professor nos dias atuais ainda deve estar ligada ao domínio do conteúdo,
visto que aquele deve estar capacitado para interpretar e localizar o mesmo, seja histórica e
socialmente, levando a fazer essa conectividade com o cotidiano, conforme nos alerta Cunha
(2013, p. 128):
O domínio do conteúdo é também um valor ressaltado. Para alguns, este domínio está
bastante relacionado com a prática profissional fora da escola ou da universidade, pois
é ela que define a possibilidade de relacionar a matéria de ensino com a vida prática.
Ajuda ainda a dar exemplos e favorece a maior instrumentalização do aluno para
trabalhar com a realidade.
Não obstante, este conteúdo deve estar associado à vida prática: por isso a formação do
187
professor é de fundamental importância, pois assim estará subsidiado, aplicando o seu saber de
modo concreto, relacionando ao mesmo tempo teoria e prática, visto que, “saber teorias é
importante, mas é preciso saber aplicá-las à nossa realidade e ainda criar coisas novas de acordo
com nossos interesses e recursos”. (CUNHA, 2013, p. 128).
Por conseguinte, entende-se que essas características que foram destacadas, como o bom
relacionamento entre professor-aluno (afetividade), as formas adequadas para a apresentação
do conteúdo (metodologia) e qualificação e domínio de conteúdo (formação), são ferramentas
essenciais para o professor dos dias atuais. Só nesse direcionamento atinge-se de forma eficaz
a completude do alvo principal que é o aluno.
A expressão “ensino de Língua Portuguesa” não deve ser tomada como algo
exclusivamente exterior, algo que venha de fora para dentro; ao contrário, deve ser
entendida como um processo maiêutico, dialético, onde ensinar é fazer emergir da
pessoa o conhecimento que esta já possui internalizado.
O professor de Português não deve viver na dicotomia do que realmente ensinar para os
alunos tal como amparar-se na Gramática Normativa pelo simples esmero de ditar o que fazer
e o que não fazer, como falar e como não falar, ditando formas de comportamentos linguísticos,
etc.; essa metodologia faz com que os alunos se desencontrem do verdadeiro sentido da aula de
Português. Este educador deve ter como ponto norteador as situações reais do dia a dia, e essas
devem vir abarcadas com observações de que vivemos em uma sociedade, na qual o
consumismo, o capitalismo, o individualismo, entre tantos outros contravalores estão
fortemente marcantes; por isso é relevante que se valorize o diálogo dentro das práticas
pedagógicas e, que esse deva ser tratado como essência nas aulas de Português. De acordo com
Lopes (1999, p.8):
Por isso, o professor deve estar atento à abertura desse espaço, no qual haja o
rompimento do silêncio existente entre os alunos, proporcionando-lhes momentos propícios
para o diálogo e que este esteja ligado ao processo de ação e reflexão. Se o professor não abre
188
esse espaço, ele vai acabar por tornar o ensino da Língua Portuguesa um estorvo na vida do
aluno.
Quando se trata da relação do ensino da linguagem, vivenciamos ainda um contexto, no
qual a escola e em especial o professor de Português se detêm de fórmula rotineira, se apegando
as definições e as regras existentes. Luft (2008, p. 31) ressalta:
Apegar-se a meras estruturações da língua trazendo-a para a prática como se ela não
sofresse transformações, é estar produzindo de certa forma um ensino repressivo. O ensino, no
entanto, deve ser tomado pelo panorama de que a língua passa por essas mudanças e que nada
é estável, como salienta Bagno (2007, p. 164):
E com a língua não poderia ser de outro jeito. A língua de ontem não é a de hoje, e a
de hoje não será a de amanhã: “Tudo o que se vê [e se fala e se ouve e se lê] não é
igual ao que a gente viu [e falou e ouviu e leu] há um segundo”. Por isso, como
também diz a canção, “não adianta fugir nem mentir pra si mesmo” – a mudança é
inevitável, irrefreável, e o melhor mesmo é aceitá-la, compreender seus mecanismos
e aprender a lidar serenamente com ela.
Inevitável é a mudança e com ela se torna imprescindível que o educador do século XXI
se enamore pela mesma, pois quebrar os velhos modelos é estar aberto a ensinar de forma eficaz
e produtiva aos alunos que passam por esse contexto social heterogêneo. Segundo Scherre
(2005, p. 93) “o professor de português está ensinando gramática normativa, ele NÃO está
ensinando língua materna, ele NÃO está ensinando língua portuguesa. Língua materna se
adquire; não se aprende e nem se ensina”.
Nesse caminho, deve o professor trilhar os seus passos, levando em consideração que o
aluno já traz internamente a língua antes de ir para escola, devendo criar meios para que o aluno
a liberte, sofrendo assim um processo de transformação. Destaca Luft (2008, p. 12):
Por isso o professor de Português não deve cair no erro de iniciar as práticas de ensino
por partes fragmentadas, ou seja, por aquilo que não dá sentido ao todo, como o estudo do som
linguístico ou fonema. Não se quer descartar aqui a decifração e a oralização do escrito, porém
este tem importância relativa. A aprendizagem da Língua Portuguesa deve ser considerada num
contexto mais amplo “[...] não é possível tomar como unidades básicas do processo de ensino
as que decorrem de uma análise de estratos – letras/fonemas, sílabas, palavras, sintagmas, frases
[...]” (PCN, 1998, p. 23); nessa decorrência tomaremos essa prática simplesmente pelo método
de análise gramatical, perdendo todo vínculo com a competência discursiva, não levando em
189
consideração a contextualidade.
Não obstante, é relevante citar que há várias situações para o exercício da cidadania,
principalmente fora do espaço escolar, pois os alunos terão que ter a capacidade de responder
as diversas exigências de fala e das diversas modalidades de gêneros orais presentes no contexto
público. Portanto, “[...] cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no
planejamento e realização de apresentações públicas: realização de entrevistas, debates,
seminários, apresentações teatrais etc.”. (PCN, 1998, p. 25). Nesta reflexão, é necessário que
se proponham situações didáticas nas quais tenha sentido a sua aplicabilidade, e para isso é
importante que a escola tome para si esta tarefa.
Portanto, as atividades curriculares da Língua Portuguesa devem estar atreladas,
principalmente às práticas permanentes “[...] de escuta de textos orais e leitura de textos escritos
e de produção de textos orais e escritos [...]” (PCN, 1998, p. 27), logo, partindo das análises e
reflexões dos diversos aspectos presentes nos mesmos, criam-se instrumentos favoráveis para
que o aluno consiga alargar sua competência discursiva, e isso se encadeará através da mediação
do professor, construindo assim, pontes para a autonomia do discente.
Observou-se que a maioria dos alunos ainda tem uma visão limitada do que o ensino do
Português pode proporcionar, pois se mostra de grande relevância na aprendizagem do
Português para a aplicabilidade de concursos, vestibulares e regras gramaticais, não se atendo
às mudanças ocorridas nos mesmos. Essa visão limitada se dá pela prática de ensino
190
proporcionada em sala de aula. O professor precisa re(pensar) na sua prática para que não se
torne mero transmissor de conteúdos e que estes não sirvam para a vida dos alunos. Segundo
Antunes (2003, p. 108):
A propósito deste “que fazer”, gostaria de lembrar que o professor parece estar
acostumado a esperar que lhe digam o que ele tem que fazer. Como a tradição era
seguir à risca, lição por lição, os livros didáticos, o professor “aprendeu” a não “criar”,
a não “inventar’ seus programas de aula. O conhecimento que ele “passava” e
“repassava” era sempre produzido por outra pessoa, não por ele próprio. Nesse
contexto, de fato, o que sobressai é um professor “transmissor de conhecimento”, mais
precisamente, de “conteúdos”. [...] O professor precisa ser visto (inclusive pelas
instituições competentes) como alguém que, com os alunos (e não para os alunos),
pesquisa, observa, levanta hipóteses, analisa, reflete, descobre, aprende, reaprende.
191
uniformizar o ensino no sentido de uma aprendizagem significativa para todos,
existirá sempre a indiferença, a rejeição à prática escolar in loco da sala de aula.
Todavia, o professor não pode ser omisso diante dos grandes desafios apresentados pela
sociedade contemporânea que, consequentemente, desdobra-se no ambiente escolar. Deve este,
enquanto indivíduo capacitado transformar a realidade de sala de aula, a partir de uma
pedagogia que conduza os alunos à construção de saberes e à autonomia da aprendizagem,
descartando a construção e possibilidade de uma prática embasada no silenciamento e
fechamento.
Percebeu-se que os alunos têm diversas necessidades em relação a atividades
diferenciadas, pois como eles mesmos afirmaram a teoria é importante, mas deve sempre estar
relacionada à prática. Não funciona mais aquela prática de ensino em sala de aula na qual o
professor é simplesmente o transmissor de conteúdo, e no processo no qual o aluno apenas
ouve, mas deve criar situações para que ocorram a interatividade e a participação. Também deve
se obter de recursos que possam ser eficazes e o ajudem na mediação de conteúdos que
colaborem de forma significativa na aprendizagem.
Outro fator para colaborar nesse processo é a pesquisa, pois o professor enquanto
pesquisador, tende a contribuir na articulação e na produção de conhecimento enquanto
intervenção da realidade. O professor vai se dar conta dessas variedades de atividades citadas
pelo aluno a partir do processo de pesquisa, pois esta contribuirá na dinamização emancipatória
do ser enquanto sujeito atuante, levando em consideração que toda teoria requer uma prática
que seja útil no dia a dia. Quanto ao processo de pesquisa na vida do professor, salienta Bortoni-
Ricardo (2008, p. 32-33):
Por isso é essencial a relação das atividades com o cotidiano do aluno, porque leva o
mesmo a dar sua colaboração de forma mais significativa no processo da aprendizagem. As
aulas não podem ser meros espetáculos, e cabe aí mais uma vez a intervenção do professor, este
que é peça fundamental para a construção positiva do aprendizado. Não basta propor aulas
sucessivas de Português, não basta utilizar conteúdos quantitativos, pois, tudo vai depender da
metodologia do professor, que deve proporcionar a interatividade do conteúdo com o aluno para
que a produtividade ocorra de forma mais eficaz e positiva. Assinala Dias e Corrêa Pinto (2011,
p. 900):
Devemos atentar para o fato de que o público para quem se “ensina” português é o
ponto de partida para quem almeja trabalhar com uma metodologia que corresponda
192
à realidade dos alunos, pois é válido ressaltar que estamos lidando com indivíduos que
são efeitos e constituídos por linguagem, isto é, sujeitos de linguagem.
É a partir da relação afetiva que o professor abre perspectivas para que o aluno se
aproxime tanto de sua disciplina quanto dele para que ocorra um aprendizado mais alicerçado
e construtivo. Vale lembrar que a afetividade é um ponto fundamental para que a motivação
para o aprendizado ocorra, e que ela ajuda na aproximação professor-aluno e aluno-professor.
No que diz respeito ao perfil do professor de Português, eles responderam que:
O professor dos dias atuais deve estar aberto às grandes renovações que ocorrem no
processo de ensino, renovações estas que transcorrem em novas tomadas de posições a
metodologias a serem utilizadas. Pela grande dinamicidade de alunos em sala de aula, isto é, a
heterogeneidade presente em sala, o professor deve estar atento ao que os alunos já trazem de
seu ambiente de convívio, sejam familiares, amigos, outros. E é importante ressaltar o grande
processo tecnológico presente nos dias atuais, o qual tem grande interferência no aprendizado
dos alunos e deve ser ferramenta utilizada pelo professor, já que os alunos estão em pleno
contato com eles. Corrobora Marques (2014, 2-3):
O ensino da Língua Portuguesa sempre foi alvo de diferentes discussões sobre como
se devem comportar professores e alunos, visando o melhor rendimento em sala de
aula. Com o advento das novas tecnologias da comunicação, especialmente as que
exigem dos comunicadores maior preparo tecnológico, os usos do quadro de giz, da
apostila ou da fotocópia de material didático, tornaram-se instrumentos obsoletos
diante de tempos em transformações constantes, que obrigam a Educação e os
educadores a adotarem posturas mais adequadas para o ensino da língua materna.
Tudo isso deve ser reflexo para que o professor se coloque sempre num processo de
193
aprendiz, que esteja sempre disposto a renovar suas práticas de ensino e quebrando velhos
paradigmas. Diante das questões, ainda, percebeu-se por parte dos professores em alguns
momentos que a visão de prática de ensino está limitada na gramática, e em contrapartida na
visão dos alunos, o que se exige enquanto perfil do professor de Português nos dias atuais é que
ele realmente esteja atento às mudanças e que com essas, possa se pôr num processo de um
método de ensino diferenciado, atendendo as necessidades da realidade atual.
Essas reflexões fazem com que se pense na hipótese de para que realmente serve o
ensino do Português, quais as práticas e metodologias que são aplicadas em sala de aula, quais
os conteúdos trabalhados e de que forma são trabalhados. Por isso tem que pensar sempre no
que realmente as aulas de Português devem proporcionar, pois, “[...] é necessário aproveitá-la
melhor e de fato colocá-la em prática no cotidiano em que se vive e atua, e enfatizar que em
todos os níveis de ensino ela é determinante para a formação do cidadão”. (SILVA, 2019, p.
29).
Portanto, na busca de respostas, precisa-se pensar diante das exposições dos alunos e
professores, o perfil adequado para o professor de Língua Portuguesa, e quais os procedimentos
essenciais para que este novo professor em pleno século XXI precise “ser” e de como “ser”
para que o aprendizado, o ensino, as aulas de Português, sejam eficazes na vida dos alunos.
Considerações finais
O processo de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa não deve estar alicerçado
como prática do “eu vou falar” e “vocês vão ouvir” sem nenhum tipo de questionamento ou
intervenção; caso ocorra dentro dessa estrutura, o momento propiciado não vai acontecer de
forma interativa. É preciso que o ensino em sala de aula funcione como mecanismo de formação
crítica e participativa do aluno.
As reflexões sobre a metodologia em sala de aula também devem ser levadas em conta.
Questões podem ser levantadas, como: quais são os instrumentos pedagógicos utilizados em
sala de aula, qual a relação motivacional do professor com a disciplina. O professor tem
formação específica na área? Como está ocorrendo a relação do professor com o aluno? O
professor tem demonstrado interesse na aprendizagem dos alunos? De que forma o professor
se beneficia e utiliza os materiais tecnológicos e pedagógicos presentes na escola? Esses
questionamentos são importantes no sentido de o professor perceber a real importância que o
ensino dinâmico e motivador tem para a obtenção de uma aprendizagem significativa, pois
ainda em muitas práticas escolares são percebidas metodologias conteudistas, abarrotadas de
exercícios para simples realização e cumprimento de conteúdo.
O professor com sua prática tem que tornar as aulas atraentes de modo a conduzir os
alunos a participarem. Logo, o professor deve trabalhar o conteúdo de forma a criar um clima
participativo, indagador e favorável à contribuição dos alunos; só assim poderá esperar de forma
mais espontânea a participação dos envolvidos na aprendizagem.
194
Vale destacar que, muitas escolas disponibilizam sala de informática com computadores,
laboratórios, bibliotecas com um bom acervo, que às vezes pouco é utilizado pelos discentes e
docentes. O professor deve agregar essa disponibilidade de materiais e de espaços para
contribuir em sua prática, tornando-a dinâmica, interativa e participativa.
Os alunos, a partir da prática em sala de aula, têm que sentir a importância das
disciplinas em suas vidas e de sua utilização; para isso deve-se criar um ambiente propício para
eles compreenderem essa intenção. Vasconcellos (2001, p. 58) contribui:
Referências
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Editorial, 2003.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística.
São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
195
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02 jun. 2020.
CUNHA, Maria Isabel da. O bom professor e sua prática. Campinas, SP: Papirus, 2013.
DIAS, Eliana; CORRÊA PINTO, Danilo. Reflexões sobre a prática de ensino de Língua
Portuguesa. Anais do SIELP. Volume 1, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43ª. ed.,
São Paulo: Paz e Terra, 2011.
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de língua portuguesa no contexto atual: desafios e avanços. Revista Letras Raras, Vol 2, Nº 1
– 2013.
LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna. 8. ed. –
São Paulo: Ática, 2008.
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na construção histórica. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999.
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CONEDU – Congresso Nacional de Educação. Campina Grande (PB), 14 a 17 de outubro de
2015. Disponível em:
http://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/TRABALHO_EV045_MD1_SA1
5_ID6964_31082015233106.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020.
SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia
e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.
VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como
Sujeito de Transformação. 8. ed. São Paulo: Libertat, 2001.
196
Capítulo
15
“Meu filho não vai mais para a escola!”: uma análise
crítica do discurso a partir dos defensores da
educação domiciliar no Brasil
Introdução
Sob a luz dos Estudos Críticos do Discurso, este artigo tem como objetivo analisar as
estratégias discursivas utilizadas pelos defensores do projeto ‘Educação Domiciliar’ (ou
homeschooling), observando as propostas ideológicas e políticas que permeiam esse
movimento em processo de legalização. Como aporte teórico da pesquisa, o trabalho
fundamenta-se na Análise Crítica do Discurso (ACD), a partir do diálogo entre a Teoria Social
do Discurso, por Fairclough (2001), e da perspectiva sociocognitiva, de van Dijk (2015), através
de uma abordagem teórico-metodológica de investigação linguístico-cognitiva. Por fim,
pretende-se, assim também, contribuir para uma reflexão crítica tanto sobre as possíveis
consequências sociais da Educação Domiciliar na educação básica quanto possíveis alternativas
a serviço do desmonte da educação brasileira.
Em seu 100º dia como chefe de Estado e de governo da República Federativa do Brasil,
o presidente Jair Messias Bolsonaro – do Partido Social Liberal (PSL) –, realizou um balanço
acerca das suas políticas de governo e apresentou metas prioritárias para o futuro do país. Dentre
os principais destaques de Bolsonaro, a regulamentação da proposta da Educação Domiciliar
foi tratada como um dos principais pilares para a área da educação, resultando em um projeto
de lei que, caso aceito pelo Congresso Nacional, permitiria que pais educassem os seus filhos
no ambiente familiar sem o perigo de ser tipificado enquanto crime de “abandono intelectual”
(Art. 246, do Código Penal).
Dessa forma, além de alterar medidas que são pilares em salvaguardar crianças e
adolescentes, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), o projeto da Educação Domiciliar (também conhecido por
homeschooling) entende que já não compete mais ao Estado o papel de ofertar a educação
básica obrigatória e muito menos o dever dos pais ou responsáveis de acatarem e matricularem
os seus filhos na rede regular de ensino. A partir desse contexto e da busca em refletir sobre a
80
Mestre em Ciências da Linguagem, pela Universidade Católica de Pernambuco (PPGCL – Unicap), graduado
em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (Unicap) e graduando em Letras – Português (Licenciatura),
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: pqalexandre@hotmail.com
197
dinâmica e as implicações dessa proposta, o presente trabalho analisa de forma crítica o projeto
do homeschooling e o discurso por trás dos defensores dessa proposta, com destaque para
Ricardo Iene Dias, membro-presidente da Associação Nacional da Educação Domiciliar
(ANED).
Aproveitamos também para fazer um resgate e, consequentemente, traçar um diálogo
entre homeschooling e de outro projeto de lei que também é defendido por Bolsonaro desde que
ocupava o cargo de Deputado Federal, no Rio de Janeiro, até os dias atuais como chefe de
governo: o Movimento Escola Sem Partido81. Dessa forma, podemos questionar sobre os reais
interesses do presidente da república em regulamentar esse projeto: o que está por trás dessa
proposta de educação e quais as consequências dela, caso aprovada, para a formação intelectual
e social dos indivíduos?
Pelo fato do nosso trabalho estar inserido no campo das Ciências da Linguagem,
fundamentamos a nossa pesquisa a partir da Análise Crítica do Discurso, doravante ACD, como
principal aporte teórico da pesquisa, mas sem desconsiderar o viés o transdisciplinar em
dialogar com outras áreas do conhecimento, como as Ciências Humanas, a Sociologia e a
Política. Através de uma abordagem que se posiciona de forma investigativa e que nega a
neutralidade no meio acadêmico, os Estudos Críticos do Discurso auxiliam na reconstituição
de problemáticas sociais, entendo que elas não são endêmicas, mas sim resultantes de
construções sociais ao longo da história Humana.
Nesse entendimento, traçamos um diálogo teórico entre as duas principais vertentes da
ACD, a Teoria Social Do Discurso, que tem Fairclough (2001) como principal expoente, e a
perspectiva sociocognitiva do discurso, através de van Dijk (2015a; 2015b). Ao
fundamentarmos a pesquisa dessa forma, entendemos que a análise do discurso de viés crítica
deve considerar os fatores mais sociológicos que permeiam as produções linguísticos-
discursivas, mais sem ignorar a cognição enquanto interface entre o discurso e a sociedade.
81
Em uma mensagem publicada por Jair Bolsonaro em sua conta oficial no Twitter em 28 de abril de 2019, o
presidente compartilhou o vídeo de uma adolescente em que ela gravou o momento em que uma professora de
português se posicionava sobre a política brasileira e contra o Escola Sem Partido. Além do vídeo, Bolsonaro
completou o tweet com a seguinte legenda: “Professor tem que ensinar e não doutrinar”. Disponível em: <
https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1122466597644505089>. Acessado em 20 jun. 2019.
198
Consiste na prática pela qual os próprios pais ou responsáveis assumem a
responsabilidade direta pela Educação formal dos filhos, que é feita em casa. As aulas
podem ser ministradas por eles ou por professores particulares contratados com o
auxílio de materiais didáticos e pedagógicos (op.cit).
Contudo, engana-se quem pensa que o ‘projeto’ para regulamentar essa opção de ensino
é uma exclusividade da atual base do governo. De acordo com Andrade (2017), desde 1994
surgem a nível federal que defendem a diminuição da influência do Estado brasileiro na
educação. Apoiando-se na premissa de que a legislação não censura a prática da Educação
Domiciliar, mas também não permite que a educação doméstica seja legalizada, políticos e
grupos com ideologias geralmente afinados com o pensamento de direita, somam esforços em
reconhecer o homeschooling no território brasileiro.
Dentre as principais entidades precursoras em divulgar essa modalidade de ensino, a
Associação Nacional da Educação Domiciliar (ANED) desponta como um auxílio para as
famílias que planejam adotar o homeschooling seja com relação a decisões judiciais mais
também como assessoria na produção de materiais para as aulas dos filhos. Atualmente,
converte as ações em atividades como a promoção de cursos, workshops, simpósios, audiências
públicas e privadas, além de outros meios de comunicação.
Como a própria Associação Nacional de Educação Domiciliar apresenta em seu site
oficial (https://www.aned.org.br), poucas foram as pesquisas aplicadas para mapear o
crescimento da educação doméstica entre os anos de 2011-2018, mas que atualmente essa
‘opção’ de ensino encontra-se em crescimento ascendente no cenário brasileiro. Quando
confrontamos esse dado e o contextualizamos com o declínio do Partido dos Trabalhadores
(PT), principal partido político de esquerda, desde a partidarização que veio tomando espaço
no Brasil com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff até o cenário pós-eleitoral de
2018, em que uma onda conservadora ganha força, pode-se começar a traçar um perfil
socioeconômico sobre os membros por trás dessa associação.
Na mesma seção do site82 em que a ANED destaca o crescimento da educação
doméstica, principalmente nos últimos três anos (2017-2019), outro dado que também é
importante de se salientar refere-se a “uma pesquisa realizada pela ANED em 2017 com 285
famílias homeschooling brasileiras revelou que em mais de um terço um dos pais possui ensino
superior completo (34%); e que em 74% delas um dos pais já frequentou [...] a Universidade”.
Ou seja, são pessoas que, quando comparadas com outras que não tiveram condições de acesso
à educação, privilegiadas socialmente.
82
ED no Brasil: Resumo executivo da educação domiciliar no Brasil (ANED). Disponível em: <
https://www.aned.org.br/conheca/ed-no-brasil>. Acessado em 25 jun. 2019.
199
textual com uma teoria social do funcionamento da linguagem em processos políticos e
ideológicos (FAIRCLOUGH, 2001). Contudo, diferente da L.C. que “negligencia tanto o
discurso como domínio em que se realizam as lutas sócias, como a mudança no discurso, uma
dimensão da mudança social e cultural mais ampla” (op.cit, p. 50), a ACD proporciona um
campo de investigação mais denunciativo em que as problemáticas sociais são desnaturalizadas
e combatidas através de um olhar contra hegemônico.
Contrária aos paradigmas formais e acríticos, a Análise Crítica do Discurso desponta
como um aporte teórico que vai além da análise da linguagem enquanto estrutura, mas sim
considerando o papel crucial do contexto e das relações sociais. Por isso que essa abordagem
de estudo da linguagem é entendida através de uma perspectiva dialética, atravessada pela
reprodução da realidade social, em que o viés positivista perde espaço para o fortalecimento de
uma perspectiva que “concebe a linguagem como prática social e o contexto como elemento
crucial” (VIEIRA; MACEDO, 2018, p. 65).
Ao considerar o contexto como um dos elementos intrínsecos à análise, adota uma
abordagem transdisciplinar, possibilitando o diálogo entre os estudos das Ciências da
Linguagem com outras áreas do saber, como as ciências políticas e a educação, a linguagem
passa a ser analisada de acordo com as funções sociais e determinados contextos de usos no dia
a dia. Assim, para Fairclough (2001), ao fazer conexões com as particularidades da vida social
e do discurso, nos mais diversos contextos, a ACD desponta como uma ciência crítica, capaz
de identificar problemas e desenvolver artifícios para superá-los, através de uma proposta de
estudo alinhada com os eventos contemporâneos.
A partir de então, as questões macrossociais – que não eram contempladas anteriormente
– passaram a receber um olhar mais atendo dentro dos estudos do discurso, numa postura mais
preocupada em se aprofundar a cerca de conceitos como poder e ideologia. Isso é evidenciado
por van Dijk (2015a, p. 113) quando afirma que:
200
texto; 2. A prática discursiva e 3. A prática social. Em seu esquema, o autor exemplifica como
o texto é parte constituinte de toda e qualquer prática social, indissociável do contexto e da
cultura. Para isso, Fairclough (2001) constrói uma teoria que recorre a autores como Foucault,
Gramsci, Althusser, entre outros, para construir e formalizar uma análise que, por meio do uso
de categorias analíticas, possa explicitar no(s) discurso(s) intenções, dentre elas o vocabulário,
a intertextualidade, a interdiscursividade, a ideologia, o poder e a hegemonia.
As questões de (abuso de) poder e de hegemonia também são alguns dos pontos
estudados por van Dijk (2015b). Contudo, com a diferença de que, no lugar de conceber uma
‘prática discursiva’, ele diferencia-se de Fairclough (2001) ao reconhecer a importância dos
modelos mentais na constituição da linguagem, atrelando a Análise Crítica do Discurso com a
Psicologia Cognitiva, através de uma abordagem constitutiva entre discurso, cognição e
sociedade.
Para Falcone (2012), ao adotar a perspectiva sócio cognitivista os estudos discursivos
não se fixam apenas sob uma relação texto e prática social, mas reconhece a influência dos
fatores que envolvem memória, representações sociais, ideologias e uma série de crenças
socialmente (com)partilhadas, numa “relação dialética entre os conhecimentos individuais e
sociais (op.cit, p. 266).
A esse respeito, van Dijk (2015a) sugere que
Os usuários da língua, enquanto atores sociais, possuem cognição tanto pessoal quanto
social: memórias, conhecimentos e opiniões pessoais, bem como aqueles
compartilhados com os membros do grupo ou da cultura como um todo. Ambos os
tipos de cognição influenciam a interação e o discurso dos membros individuais,
enquanto que as “representações sociais” compartilhadas governam as ações coletivas
de um grupo (VAN DIJK, 2015a, p. 117).
201
Aspectos metodológicos
Esta seção contempla os procedimentos metodológicos utilizados durante o decorrer da
pesquisa. O corpus selecionado é composto por dois elementos. Primeiro, o projeto de lei que
visa regulamentar o ensino domiciliar no Brasil. Segundo, a transcrição da entrevista realizada
entre Raphael Lima, do site ‘Ideias Radicais’, com Ricardo Iene Dias, presidente da Associação
Nacional de Educação Domiciliar (ANED)83. A partir dos cruzamentos dos dados coletados,
realizamos a análise sob uma pesquisa de viés qualitativa, possibilitando observar criticamente
as estratégias discursivas de manipulação e estigma social.
A partir da análise comparativa entre o corpus da pesquisa, enquanto possível
contribuinte para o projeto de desmonte da educação básica no Brasil, tentamos responder as
seguintes perguntas: 1) Se existem, quais e como as estratégias persuasivas de manipulação
são utilizadas para legitimar o projeto?; 2) Os argumentos utilizados pelo presidente da ANED
condizem com os preceitos expressos no projeto de lei criado no Governo Bolsonaro ou será
que existe um desvirtuamento do discurso em prol de um posicionamento ideológico de viés
conservador?.
A importância de questionar sobre como a lógica capitalista e/ou neoliberal interfere no
pensamento humano torna-se, portanto, um dos interesses dessa pesquisa, já que, ao questionar
as relações de poder, deslocamos o nosso olhar para grupos historicamente marginalizados e
em desvantagem social.
(01) “Mas e uma família desestruturada, uma família miserável, se essa família quiser
fazer homeschooling, tem pais que são pedófilos...”. Eu sei, tem tudo isso. Mas
eu vou lhe dizer uma coisa, até hoje eu não vi do Oiapoque ao Chuí uma família
desestruturada miserável querer fazer homeschooling, essa família não se
interessa pelo homeschooling. O homeschooling dá trabalho. Você sabe o que
não dá trabalho? Você pegar um garoto e mandar para a escola, né? Dá um
achocolatado pra ele de manhã, o coloca na van e manda para escola. É por isso
que eu costumo dizer que não são as famílias que escolhem o homeschooling,
mas o homeschooling que escolhe as famílias” (Ricardo Iene).
À luz de van Dijk (2015), observamos que Ricardo Ines Dias (01) segmenta os
indivíduos entre aqueles que defendem a educação domiciliar (o Nós) e o tipo de “família
83
A transcrição da entrevista, em questão, foi realizada a partir do vídeo intitulado ‘Educação domiciliar vai ser
legalizada?’, do canal ‘Ideias Radicais’, na plataforma de vídeos YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=svY5vzShwf0>. Acessado em 15 jun. 2019.
202
desestruturada miserável” que, no discurso dele, “não se interessa pelo homeschooling” (o
Eles). Dessa forma, criando uma polarização prototípica e estereotipa das representações
sociais. Outro ponto crucial nessa análise é quando ele atrela o crime de pedofilia diretamente
àqueles pais e mães tidos como em situação de desestruturação, como se fosse uma prática
social presente exclusivamente em lares desprovidos de recursos financeiros.
É preciso analisar teoricamente o conjunto de esforços mobilizados através dessas
estratégias para entender a sua lógica enquanto dinâmica contrária aos grupos marginalizados.
A partir de van Dijk (2015b), entendemos essa prática como movimentos semânticos que
“contribuem para a estratégia global de autoapresentação positiva do grupo branco e de seus
membros, e ao mesmo tempo, preparam um movimento cuja função é a estratégia de
apresentação negativa do outro grupo” (op.cit, p. 36). Favorecendo, assim, a reprodução de
modelos mentais alinhadas com os interesses dos grupos mais poderosos.
Essa diferença de vozes dentro do discurso é um dos elementos que, através da
‘intertextualidade manifesta’, auxilia na (de)marcação de lugar de fala. Para Fairclough (2001)
a questão da intertextualidade possibilita não apenas referir-se a um tema já previamente
apresentado, mas de poder responder a partir dele, utilizando-o como um suporte para atingir
as propostas comunicativas desejadas. Dessa forma, quem produz o texto mescla o discurso do
outrem com o seu próprio discurso, (re)configurando o sentido do texto ou das intenções
trazidas por ele, ou seja, através da incorporação do discurso do Outro é possível desvelar as
intenções e os posicionamentos ideológicos.
Além de utilizar as suas próprias vivências como uma das principais referências para
justificar a legitimidade do homeschooling, o presidente da ANED – enquanto um indivíduo
homem, heterossexual e de classe média, ou seja, representante de um grupo socialmente
privilegiado – referência as mais pessoas de classe social mais baixa através de adjetivações
depreciativas que os representam como membros de famílias “desestruturada” e “miserável”.
Além de categorizados dessas formas, nesse sentido podemos fazer também uma reflexão sobre
‘que tipo de família é a que é realmente contemplada com o homeschooling?’.
Durante o decorrer da entrevista Ricardo Iene apresenta uma série de argumentos que,
na verdade, parecem estar mais alinhados em compartilhar as suas crenças e valores em torno
das afinidades daquelas famílias que, como dito por Iene em (01), foram ‘escolhidas’ pelo
homeschooling. Em um segundo momento, quando perguntado sobre o diferencial da Educação
Domiciliar, Ricardo Iene afirma:
(02) “Em casa é possível você identificar aptidões, habilidades que os seus filhos
tenham. Por exemplo, a educação domiciliar favorece o empreendedorismo, ela
amadurece mais rápido. O meu filho [...] começou a se interessar por economia...
eu achei superinteressante porque eu não sou da área de economia, nem a minha
esposa, a gente não entende de economia. Quando ele chegou em casa falando
sobre taxa Selic, de tesouro direto, falei: Meu deus, onde esse menino tá
aprendendo? Começou a ler livro de economia, se apaixonou por isso, e entrou
numa empresa, aos 15 anos.
203
O viés familiar é recorrente na Educação Domiciliar, principalmente no que tange a
responsabilidade da educação das crianças. Nesse sentido, a partir do lugar de fala do presidente
da ANED, vemos um claro direcionamento para o modelo de família patriarcal, associada a um
sentimento de segurança e conforto. Através da representação de um ambiente que, além de
proporcionar uma ampliação das aptidões da criança e do adolescente, ainda incentiva o ‘gosto’
pela economia.
É nesse cenário que grupos hegemônicos podem ter o controle sobre grupos que estão à
margem, influenciando e controlando suas opiniões, o que para nós pode ser uma justificativa
para entender como os dominados muitas vezes acatam determinadas ações ou legitimam o
poder simbólico das elites.
Com base no filho do presidente da ANED, podemos atribuir as consequências dessa
educação como reflexo de um movimento extremamente tecnicista e de concepção bancária em
que, mais do formar indivíduos sociais para a vida social, a preocupação recai sobre o sucesso
do(s) filho(s) na vida profissional. Por sinal, isso é também um dos destaques presentes no
projeto de lei criado no Governo Bolsonaro e enviado para o Congresso.
Dentre os artigos que compõem o documento que visa o exercício do direito à educação
domiciliar, examinaremos o seguinte trecho:
(03) Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar no
âmbito da educação básica.
§ 1º A educação domiciliar consiste no regime de ensino de crianças e
adolescentes, dirigido pelos próprios pais ou pelos responsáveis legais.
§ 2º A educação domiciliar visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho,
nos termos do disposto no art. 205 da Constituição.
Primeiramente destacando a 2º seção, do Art. 1º, fica clara a proposta de educação que
o projeto almeja: uma pedagogia tecnicista voltada para a produção capitalista. Denotando um
discurso marcadamente mercantilista, onde a função do ensino está atrelada diretamente ao
resultado.
Posteriormente, já no Art. 2º, encontramos resquícios de discurso que vai além das ideais
propostas pelo projeto de lei, mais em consonância com o projeto pedagógico do Movimento
Escola Sem Partido do que efetivamente sobre a educação domiciliar. Além de reforçar o direito
absoluto dos pais na tarefa de educar e na “escolha do tipo de instrução que será ministrada a
seus filhos”, esse artigo corrobora com alguns dos principais pontos elencados pelo movimento
Escola Sem Partido, como podemos observar na seguinte imagem (Imagem 1):
204
Imagem 1: Cartaz do Programa Escola Sem Partido84
Fonte: https://www.programaescolasempartido.org/>
A escola tem que ser inclusiva, não pode ser discriminatória e tem que criar
mecanismos para que todos os alunos se interessem pelo que está acontecendo no
espaço escolar. A educação para Paulo Freire significa tanto a necessidade de uma
formação técnica, científica, profissional, como o desenvolvimento de sonhos e
utopias.
84
Site do Programa Escola Sem Partido. Último acesso em 11 jan. 2020.
205
Num outro ponto, dessa vez o 3º: “O professor não fará propaganda político-partidária
em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos políticos e
passeatas”, pode-se levantar outro questionamento: a quem interessa tirar o papel da escola
como agente agregador de pensamento crítico através do debate?
Claro está que o professor não deve a princípio fazer propaganda partidária, mas como
agente educador, promover o debate afim de que a informação circule e suscite novos pontos
de vista compartilhados, visto que “os jovens buscam no sistema escolar desenvolver suas
habilidades, expandir relações sociais, realizar e construir desejos, impulsos, que colaboram na
formatação de suas respectivas identidades” (ABROMOVAY, 2002, p. 2) e a escola tem esse
papel, não podendo então deixar de fazê-lo como agente educador e socializador, como quer
fazer entender o então projeto Escola sem Partido.
Por fim, e não menos importante o ponto 5 que diz: “O professor respeitará o direito
dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções”. Nesse ponto, é importante lembrar que a Escola nem o professor têm o dever de
influir na educação moral que os pais ou mesmo subvertê-la, mas sim promover o respeito
mútuo entre os discentes como componentes da sociedade, exercendo o dever coadjuvante na
educação, como representante do Estado, o que o projeto mais uma vez parece querer deturpar,
mesmo consoante constituição de 1988 em seu artigo 205: “A educação, direito de todos e dever
do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”.
Fica claro, portanto, o enfraquecimento da figura do professor diante das escolhas dos
pais, assim como a possibilidade de dialogar e trazer pontos de vistas diferentes para os seus
alunos. Esse direcionamento contribui para a estigmatização do papel do professor enquanto
um profissional que, na visão do presidente Bolsonaro e de demais integrantes da Escola Sem
Partido, ‘doutrina’ os seus alunos a favor de um posicionamento ideológico. Posição essa que,
embora não seja referenciada diretamente pelos textos, nos dão pistas sobre o real alvo dos
membros dos grupos dominantes: os movimentos políticos de esquerda, historicamente
marcados pela opressão do modelo capitalista e neoliberal, além de reconhecidos como
defensores da igualdade social e da liberdade.
Porém, o entendimento de opressão parece não ser ‘compreendido’ tanto por Ricardo
Iene (R.I.) quanto por Raphael Lima (R.L.), o entrevistador, como veremos a seguir:
(04) (R.I) O conselho tutelar dizia que aquelas crianças sofriam uma pressão
psicológica dos pais porque, crianças abaixo de 7 anos tá, elas só ouviam as
músicas que os pais permitiam, só brincavam com as crianças que os pais
permitiam, só assistiam os programas de tv que os pais permitiam. E aí a minha
pergunta: Não é isso que a gente espera de pais cuidadosos com os seus filhos?
(R.L) Então se isso é opressão, então quando o Estado vai lá e regulariza isso.
Então tudo bem?
206
(R.L) Então eu vou processar o Estado por pressão psicológica agora.
(05) Você vai falar de História, vai falar de alguém que subjugou um povo,
tem que falar para ele que aquilo é errado, que um homem não pode
simplesmente dominar o outro pela força do capital.
Para alguém que defende que as aulas devem servir como forma de desvelar opressões
e de espaço como forma prática libertária, o presidente da ANED mostra-se contraditório nas
suas próprias palavras. Enquanto um defensor da economia, não é condizente que alguém que
prega que “um homem não pode simplesmente dominar o outro pela força do capital” seja
excludente e até desrespeitoso com os demais, independentemente da classe social.
Considerações finais
Na conjuntura atual da política e, consequentemente, da sua implicatura na educação
brasileira, em destaque para o ensino básico, esse trabalho justifica-se pela resistência contra as
diversas manobras de opressão e dominação de (membros de) grupos e (membros de)
instituições que organizam e coordenam a Educação Domiciliar. Aplicando em nosso trabalho
teórico, a ACD como uma propulsora de reflexões sobre a função da resistência e um catalisador
de mudanças sociais.
A partir da análise, entendemos que ambos os movimentos servem a projetos políticos
e econômicos que buscam desqualificar a educação básica e os seus membros, como a figura
do professor e a do Estado, favorecidos pela implementação de um cenário de extremo
conservadorismo que não concebe a educação enquanto uma prática de liberdade, mas sim
como um meio de reforçar a dominação de classe. Perpetuando, assim, o status de uma elite
simbólica que é excludente com os demais e que reforça, direta ou indiretamente, a cristalização
das disparidades econômicas.
Por falta de dados mais concretos, não podemos inferir que ambos os movimentos são
constituintes entre si. Entretanto, levando em consideração os aspectos linguísticos e
extralinguísticos extraídos através do confronto de posicionamentos, entendemos que esses
projetos estão inter-relacionados, já que possuem propostas que ora se assemelham entre si, ora
se completam enquanto possibilidades de se contrapor as decisões não favoráveis dos órgãos
207
competentes, vide o Supremo Tribunal Federal (STF), em acatar a legitimidade desses
movimentos.
Nosso papel como analistas do discurso, crítico e engajado, é trazer para o cenário
acadêmico um fenômeno contemporâneo que, por vezes, ainda não é bem explorado na esfera
da linguagem, sendo mais restritivo às ciências sociais e humanas. Levando em consideração
que esse projeto ainda encontra-se em trametes de legalização e entendendo que a temática não
se esgota, destacamos a pertinência para o engajamento e a produção de novos trabalhos que
possam vir a contribuir para um maior aprofundamento sobre os perigos do homeschooling,
caso venha a ser legalizado, para com os rumos da educação. Dessa forma, a pesquisa não
apenas desvela a prática de medidas legitimadoras de desigualdades sociais em favorecimento
de um projeto neoliberal de economia, mas também contribui para a continuidade de reflexões
e práticas de transformação social, tanto no meio acadêmico como na esfera pública.
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208
VAN DIJK, Teun A. Discurso e Poder. HOFFNAGEL, Judith; AZEVEDO, Karina (orgs.). 2.
ed. São Paulo: Contexto, 2015a.
209
Capítulo
17
Compreensão do thesaurus visual de um dicionário
para aprendizes de língua inglesa: uma questão de
letramento multimodal
Aryanne Christine Oliveira Moreira85
Lorena Américo Ribeiro86
Maria Áurea Albuquerque Sousa87
Introdução
Estudar uma língua estrangeira não é uma tarefa fácil. Com base em nossas
experiências pessoais relacionadas à língua inglesa, tanto enquanto alunas, quanto como
docentes, é possível perceber que a tendência inicial do aluno é traduzir palavra por palavra, é
anotar cada nova expressão aprendida, é perguntar ao professor quais os melhores materiais
para o aprendizado da língua, principalmente quando se trata de dicionários.
À luz do que se chama Lexicografia Pedagógica, os dicionários podem ser excelentes
aliados no processo de ensino e aprendizagem de uma língua. Dicionários elaborados para fins
pedagógicos (ou didáticos) geralmente são voltados a um público específico, qual seja, o
aprendiz de língua materna ou estrangeira, e seu conteúdo visa atender às necessidades desse
público (DURAN, 2008; WELKER, 2008; PONTES, 2009; CIALDINE ARRUDA, 2009).
Ao observarmos exemplares desses dicionários disponíveis atualmente no mercado, é
possível perceber uma gama de elementos visuais na composição de sua estrutura. Muitas
dessas obras também fornecem informações complementares aos verbetes em seu material
85
Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Especialista em Docência do
Ensino Superior pelo Centro Universitário Leão Sampaio (UniLeão). Graduada em Letras (Inglês) pela
Universidade Regional do Cariri (URCA). Membro do Grupo de Pesquisa CNPq Lexicografia, Terminologia e
Ensino (LETENS). E-mail: aryanne.moreira@aluno.uece.br
86
Doutoranda e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Especialista em
Ensino de Língua Inglesa pela Faculdade Ateneu (FATE). Graduada em Letras (Português/Inglês) pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora da Carreira do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do
Magistério Federal. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq Lexicografia, Terminologia e Ensino (LETENS). E-
mail: lorafechine@gmail.com
87
Doutoranda e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Graduada em
Letras (Português/Inglês) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professora da Rede Estadual
de Educação Básica do Pará e formadora do Núcleo de Tecnologia Educacional de Belém-PA. E-mail:
oiaurea@gmail.com
210
interposto88 e posposto89. Tais informações geralmente são representadas multimodalmente,
por meio do uso de recursos verbais e visuais.
Assim, considerando o conceito de letramento multimodal (JEWITT; KRESS, 2003;
VAN LEEUWEN, 2017) e tomando por base a interface entre Lexicografia e multimodalidade
(PONTES, 2009; NASCIMENTO, 2018), nossos objetivos neste trabalho são analisar a
orquestração dos recursos semióticos de um thesaurus visual constante do material posposto
de um dicionário para aprendizes de língua inglesa no que se refere ao valor da informação, à
saliência e à estruturação ou enquadramento de seus elementos (KRESS; VAN LEEUWEN,
2006), bem como conceber uma proposta pedagógica para abordá-lo em sala de aula.
Consideramos que os thesauri são de grande valor para o aprendizado vocabular do aluno,
contudo, é importante que esse aluno compreenda a forma como seus recursos semióticos são
organizados, de modo a utilizá-lo de maneira adequada.
Letramento multimodal
A profusão de textos multimodais com os quais lidamos nas interações cotidianas
insere-nos em novas práticas e eventos de letramento. O texto verbal vem, cada vez mais,
integrado a outros modos semióticos, tais como imagens fixas (desenhos, fotografias,
ilustrações), imagens em movimento (em vídeos, filmes) e, ainda, integrados a efeitos de som,
a gestos, ao olhar e a quaisquer outros modos. Tais recursos articulam-se de maneira a construir
sentido em um artefato multimodal.
Certamente, o impacto dessa transformação na natureza dos textos amplia o termo
‘letramento’ para ‘letramentos’. Dentre outros conceitos, como os de letramento literário, visual
e acadêmico, por exemplo, tem-se o de letramento multimodal. Jewitt e Kress (2003) afirmam
que letramento multimodal é sobre compreender as diferentes formas de representar o
conhecimento e a construção dos sentidos. Já van Leeuwen (2017, p. 5) define esse termo como
“a habilidade para usar e combinar diferentes modos semióticos de maneira apropriada para um
dado contexto, tanto no sentido das regras e convenções por ele delimitadas, quanto no sentido
das demandas únicas feitas por cada situação específica.”90. Nesses dois conceitos, percebe-se
a ênfase no conhecimento necessário para ‘ler’ a combinação dos modos de representação, o
que amplia o espectro do ‘letramento’, pois não se refere apenas às práticas realizadas no âmbito
da leitura e da escrita verbal; acoplam-se, nesse processo, a leitura e a produção de textos que
articulam modos (escrita, imagens, cores, etc.).
Em contexto escolar, ampliam-se as demandas pedagógicas, pois cabe à escola
acompanhar e dar suporte às práticas de letramento multimodal que se materializam tanto fora,
quanto dentro da sala de aula. A fim de desenvolver o letramento multimodal no aluno, este
deve ser orientado para compreender o significado potencial dos modos e as escolhas
apropriadas na produção dos textos com os quais interage, adquirindo, assim, uma habilidade
88
Elementos inseridos no corpo do dicionário.
89
Informações situadas nas páginas finais do dicionário.
90
Tradução nossa. Original: the ability to use and combine different semiotic modes in ways that are appropriate
to the given context, both in the sense of the context-bound rules and conventions that may apply, and in the sense
of the unique demands made by each specific situation.
211
aprimorada para fazer escolhas efetivas na construção e apresentação do conhecimento
(O'HALLORAN; LIM, 2011).
Deve-se destacar, ainda, que, cada vez mais, a multimodalidade se faz presente no
design dos materiais didáticos, em especial nos materiais de ensino de línguas, o que requer do
professor e dos alunos uma capacidade para lidar com textos constituídos por mais de um modo
semiótico (BEZEMER; KRESS, 2009). Para Jewitt (2008), a maneira pelas quais os professores
projetam e usam materiais pedagógicos moldam a forma como os alunos podem refazer um
texto através de suas possibilidades e resistências ou, ainda, como podem navegar na relação
projetada de imagem e escrita, a fim de identificar possíveis caminhos de leitura.
212
A Gramática do Design Visual
A Gramática do Design Visual de Kress e van Leeuwen (2006) analisa o arranjo visual
como um composto de elementos que se combinam para formar estruturas significativas. Dessa
forma, consideram-se as relações sintáticas estabelecidas entre as várias partes da organização
imagética, ao contrário de outras teorias semióticas, que concebem a imagem em seu aspecto
lexical.
Para a elaboração de sua gramática, Kress e van Leeuwen (2006) tomaram como base
a Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday, que considera a língua sob três aspectos: o
ideacional, como forma de representação das experiências internas e externas ao sujeito; o
interpessoal, como instrumento que possibilita interações sociais; e o textual, como um
composto interna e externamente coerente. Para cada uma dessas metafunções da linguagem
verbal, Kress e van Leeuwen estabelecem um equivalente para análise da estrutura visual. Dessa
forma, a metafunção ideacional passa a ser denominada representacional; a interpessoal,
interativa; e a textual, composicional. A seguir, abordaremos a metafunção composicional,
cujos sistemas servirão de base para a análise que realizaremos neste capítulo.
A METAFUNÇÃO COMPOSICIONAL
Conforme Kress e van Leeuwen (2006), a metafunção composicional é responsável
pela estrutura e formato do texto, na medida em que articula os elementos da imagem para a
elaboração de um todo coerente. Tal metafunção integra os elementos representacionais e
interativos de modo a construir o significado do texto. Kress e van Leeuwen (2006) examinam
o significado da composição da imagem através de três sistemas inter-relacionados: o valor da
informação, a saliência e a estruturação ou enquadramento.
O valor da informação diz respeito ao valor atribuído ao posicionamento dos
elementos no arranjo visual. O conjunto da imagem é então analisado em termos de
esquerda/direita, onde a informação à esquerda é considerada como dada e aquela à direita é
tomada como nova; topo/base, onde o que fica no topo é visto como ideal e o que se posiciona
na base é tido como real; e centro/margem, onde o elemento central da imagem é considerado
como o núcleo da informação e os elementos que o rodeiam estabelecem para com ele uma
relação de subordinação ou dependência. Há ainda os arranjos do tipo tríptico, que se
constituem a partir de combinações dessas três estruturas, onde o elemento central funciona
como mediador das diferentes zonas da imagem.
A saliência ocorre quando uma maior ênfase é dada a certos elementos da imagem, de
forma a torná-los evidentes com relação ao conjunto. Tal efeito é alcançado através de
mecanismos vários, como contraste de cores, aumento do tamanho do elemento, focalização e
posicionamento em primeiro plano.
A estruturação ou enquadramento considera os elementos da imagem como
desconectados (em uma estruturação forte) ou conectados (em uma estruturação fraca).
Conforme Machin (2007), as conexões e desconexões podem ser criadas utilizando-se linhas,
espaços, ícones, cores ou até mesmo imagens. Van Leeuwen (2005) discrimina as várias
possibilidades de enquadramento: segregação, quando os elementos apresentam-se separados
por bordas nítidas que indicam que eles ocupam territórios diferentes, pertencem a ordens
distintas; separação, quando os elementos são separados por um espaço vazio que sugere que
213
devem ser vistos como similares em alguns aspectos e diferentes em outros; integração,
quando os elementos ocupam o mesmo espaço, com o texto integrado ao espaço da imagem
ou a imagem integrada ao espaço do texto; sobreposição, quando o elemento flui de seu espaço
para um outro que lhe é segregado ou separado; rima, quando os elementos, apesar de
separados, conectam-se através de uma característica que compartilham, como o formato, a
cor ou a postura; e contraste, quando os elementos diferenciam-se em uma ou mais
características.
Estes três sistemas, valor da informação, saliência e enquadramento, serão tomados
como referência para nossa análise do thesaurus visual selecionado para exame. Antes disso,
contudo, convém definir em que consiste um thesaurus.
Definindo thesaurus
Hartmann e James (1998, p. 142) definem thesaurus como “um tipo de trabalho de
referência que apresenta o vocabulário de uma língua, variedade de língua ou disciplina
sistematicamente traçando redes de sinônimos entre as palavras dentro de domínios
semânticos”.91 Por muito tempo, thesaurus significou ‘armazém léxico’, referindo-se a grandes
(às vezes poliglotas) dicionários. As primeiras obras desse tipo compreendiam vocábulos da
língua latina, como o Dictionarium, seu Latinae linguae thesaurus, de Robert Estienne,
publicado em Paris, em 1531, e o Thesaurus linguae Romanae et Britannicae, que reunia
palavras em latim e seus equivalentes em inglês, de autoria de Thomas Cooper e publicado em
Londres em 1565.
O nome tesauro, na sua forma latina thesaurus, aparece na época renascentista para
denominar os dicionários monolíngues. [...] Mais tarde, a palavra se aplica a uma obra
lexicográfica muito extensa que se baseia em um grande número de citações de
autores, como o Tesoro de la lengua castellana o española de Sebastián de
Covarrubias, publicado em 1611 [...]. Mas o termo foi também empregado em obras
lexicográficas plurilíngues, como o Thesaurus polyglottus de Girolamo Megiser,
publicado Frankfurt em 1603, o Trésor de l’histoire des langues de l’univers de
Claude Duret, publicado em Colônia em 1613, ou o Trésor des deux langues française
et espagnole de César Oudin, publicado em Paris, em 1607. (MARTÍNEZ DE
SOUSA, 1995, p. 330)92
91
Tradução nossa. Original: a type of reference work which presents the vocabulary of a language, language variety
or subject discipline by systematically tracing synonym networks between words within semantic domains.
92
Tradução nossa. Original: El nombre de ‘tesauro’, en su forma latina ‘thesaurus’, aparece en la época
renacentista para denominar los diccionarios monolíngües. [...] Más adelante la palabra se aplica a una obra
lexicográfica monolíngüe muy extensa que se basa en un gran número de citas de autores, como el ‘Tesoro de la
lengua castellana o española’ de Sebastián de Covarrubias publicado en 1611 [...] Sin embargo, se aplicó
asimismo el término a obras lexicográficas plurilíngües, como el ‘Thesaurus polyglottus’ de Girolamo Megiser,
publicado en Fráncfort en 1603, el ‘Trésor de l’histoire des langues de l’univers’ de Claude Duret, publicado en
Colonia en 1613, o el ‘Trésor des deux langues française et espagnole’ de César Oudin, publicado en París en
1607.
214
discriminado por Hartmann e James (1998). De autoria de Peter Roget, essa obra consistia de
uma lista de sinônimos cuja constituição foi influenciada por um esquema para classificação do
léxico de qualquer língua, proposto pelo filósofo John Wilkins. O thesaurus de Peter Roget
configurava-se em um dicionário de ‘sinônimos cumulativos’, pois somente listava e
classificava as palavras (diferentemente de dicionários que compreendem ‘sinônimos
distintivos’, que definem e discriminam os sentidos das palavras). A obra foi concebida como
um sistema de sinônimos agrupados que auxiliaria os escritores a localizar palavras e foi a base
para a fundação da Lexicografia do Thesaurus93.
Acesso às palavras em tais compilações geralmente ocorre através de um índice. O
thesaurus também pode ser elaborado como um dicionário de sinônimos em formato de A-Z,
com cada verbete contendo um conjunto de palavras relacionadas em significado, definidas ou
não, como o The Oxford Thesaurus de Laurence Urdang, publicado em Oxford em 1991, ou o
The Synonym Finder de Jerome Irving Rodale, publicado em Nova Iorque em 1978. Há também
formas híbridas em combinação com dicionários gerais, como o The Collins Dictionary and
Thesaurus in One Volume, de William T. McLeod, publicado em Londres e Glasgow em 1987,
que dispõe em cada página uma seção de dicionário tradicional e uma seção de thesaurus.
Welker (2004) chama atenção, ainda, para o fato de o termo latino já ter sido traduzido
para línguas vernáculas (por exemplo, tesauro em espanhol, trésor em francês); porém, quando
usado em seu sentido mais moderno (como obra tematicamente organizada), geralmente é
mantida sua forma latina.
Com base nessas informações, neste estudo analisamos um verbete de um thesaurus
tomado em seu sentido moderno (conforme a definição fornecida por Hartmann e James, 1998),
como também fornecemos uma proposta pedagógica para sua abordagem em sala de aula.
Metodologia
Para este estudo, de natureza qualitativa, tomamos por objeto de análise o thesaurus do
dicionário Collins Cobuild Advanced Learner’s Dictionary (2014), dada a riqueza de recursos
semióticos por ele utilizada. Ao analisarmos cada entrada que compõe o corpus do thesaurus,
formado por 50 verbetes, consideramos três critérios para seleção do verbete a ser examinado:
1) variedade de classes gramaticais nas quais a entrada se enquadrava; 2) variedade de
sinônimos contemplados pelo verbete; 3) variedade de recursos visuais presentes no verbete.
Verbetes dotados de mais cores foram os considerados para a seleção, para que pudéssemos
verificar como os alunos faziam uso desses recursos multimodais. A partir dos critérios,
selecionamos o verbete correspondente à entrada little.
Para análise, consideramos três categorias que fazem parte da metafunção
composicional da Gramática do Design Visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006), ou seja,
analisamos o verbete conforme os critérios de saliência, valor da informação e
enquadramento.
93
A Lexicografia do Thesaurus envolve um complexo de atividades voltadas para o design, compilação, uso e
avaliação de thesauri. A intenção é de auxiliar os usuários em tarefas de codificação, na medida em que procura
agrupar palavras e expressões em conjuntos de (quase sinônimos), de forma que os itens mais apropriados possam
ser escolhidos pelos usuários para expressar um conceito particular. (HARTMANN; JAMES, 1998, p. 143)
215
Análise do verbete para a entrada little no thesaurus visual
Observando a Figura 1, percebe-se que, no que se refere ao valor da informação, o
arranjo visual do verbete é do tipo centro/margem. O elemento ao centro é a entrada 94 do
verbete (little), que se apresenta inserido em um quadro de fundo de cor laranja e de forma
saliente, em letras maiores. Tal saliência se deve ao fato de a entrada servir como “porta de
entrada”, como o elemento de onde o leitor deve partir para procurar informações no verbete.
À margem desse elemento central, e conectados a ele, estão dispostos os diferentes sentidos da
entrada. São fornecidas três acepções95 para a palavra little: uma como advérbio, significando
“não frequentemente ou não muito”, e duas como adjetivo, significando “pequeno em tamanho”
e “sem longa duração em tempo ou distância”.
94
Pontes (2009, p. 112) define entrada como "unidade léxica de qualquer extensão que, na composição do verbete
lexicográfico, é objeto de definição ou explicação e, eventualmente, de tratamento enciclopédico."
95
Quando a unidade léxica apresenta mais de um sentido, aceito e reconhecido pelo uso, cada um deles recebe a
denominação de acepção.
216
informações atinentes a uma mesma classe gramatical, o que facilita a busca do leitor pelo item
específico de que necessita.
Figura 2: Relação entre o verbete little no thesaurus e no corpo do dicionário
Fonte: Collins COBUILD Advanced Learner’s Dictionary (2014, pp. 917, 1901)
Além das cores, a classe gramatical também é identificada por escrito, de forma
abreviada, em letras maiúsculas e em um tamanho maior em comparação às letras utilizadas
para as outras informações que compõem o verbete (ADV e ADJ), porém, em tamanho menor
do que aquele utilizado para a entrada. Essa saliência também auxilia na consulta do usuário do
dicionário. Antecedendo a classe gramatical, constam números cuja função é relacionar as
informações no verbete do thesaurus a informações nos verbetes que se encontram no corpo do
dicionário. Assim, no verbete para a entrada little constante do thesaurus, o número inserido
em um círculo azul escuro faz remissão a um determinado verbete no corpo do dicionário (a
obra fornece dois verbetes para a entrada little em seu corpo) e o número que consta logo antes
da classe gramatical no verbete do thesaurus remete a uma acepção no interior de um dos
verbetes no corpo do dicionário. Tal relação pode ser melhor compreendida observando a
Figura 2.
Por fim, sinônimos são fornecidos para cada uma das três acepções da palavra little.
Cada acepção, juntamente com sua classe gramatical, apresenta-se inserida em um quadro de
217
bordas arredondadas de fundo vermelho ou lilás (dependendo da classe gramatical). Cada um
desses quadros conecta-se a um outro quadro maior, em que se encontram os sinônimos
relacionados a cada uma das acepções. Dentro desse quadro, cada sinônimo apresenta-se
inserido em um retângulo de fundo vermelho ou lilás e, logo abaixo de cada sinônimo, em um
quadro de fundo branco, é fornecido um exemplo, com o sinônimo destacado pelo negrito (uma
forma de chamar a atenção do leitor para o uso da palavra dentro do exemplo). Dessa forma,
apesar de cada sinônimo individualmente se apresentar como um elemento distinto, separado
um do outro por meio de enquadres, todos os sinônimos associados a uma mesma acepção e
classe gramatical compartilham o enquadre maior e a mesma cor.
O arranjo visual que compõe o verbete do thesaurus, pode se configurar bastante
complexo e de difícil compreensão para o usuário do dicionário. Portanto, faz-se necessário um
letramento por parte desse usuário de modo que possa tirar o máximo proveito das informações
fornecidas pelo thesaurus. Tal letramento deverá ser desenvolvido pelo professor em sala de
aula através de ações pedagógicas planejadas, como a que descrevemos a seguir.
218
Após fazer uso dos exemplos para explicar sobre a colocação correta de cada sinônimo,
o professor dividirá a turma em duplas, para promover a colaboração. Duas atividades serão
realizadas sobre o verbete em questão:
1) Os alunos deverão selecionar o sinônimo apropriado para completar lacunas em
frases. Para propósitos didáticos, essa atividade será dividida em duas partes: na
primeira, os alunos preencherão lacunas utilizando somente sinônimos referentes à
palavra em sua acepção como advérbio; na segunda, utilizarão sinônimos relativos
às suas acepções como adjetivo.
2) Por fim, será aplicado um cloze96 que deverá ser preenchido com os diversos
sinônimos da palavra little. Como exercício de fixação, os alunos poderão, ainda,
preencher outros clozes, porém, abordando sinônimos fornecidos por outras
entradas do thesaurus.
Considerações Finais
O processo de leitura e escrita no que tange a textos verbais não é algo simples, e
quando se pensa nesse mesmo processo associado a outros modos semióticos percebe-se, então,
que há uma complexidade ainda maior. Compreendemos textos multimodais aqueles
constituídos por dois ou mais modos semióticos orquestrados entre si e organizados em uma
dada estrutura. Em virtude dessa característica multissemiótica, entendemos que tanto o bom
leitor quanto o bom produtor de textos multimodais deve ser proficiente no processo de
codificação e de decodificação dos mais variados modos semióticos, bem como deve dominar
a compreensão de como esses modos atuam e interagem na sociedade de forma a construir
sentido nos mais variados contextos sociais. A somatória desses processos abrange, então, o
que se concebe por letramento multimodal.
A partir da análise do verbete little conseguimos observar, ainda que brevemente, a
importância do letramento multimodal para a compreensão não somente do thesaurus, mas
também de outros textos multimodais que venham a ser úteis em sala de aula. Verificamos, a
partir da estrutura do verbete examinado, o quanto a multimodalidade está presente nos
materiais didáticos com a finalidade de ampliar e de facilitar o acesso ao conhecimento. Ao
analisarmos a estrutura do verbete, percebemos o quanto suas características se enquadram no
que é descrito na Gramática do Design Visual, no que se refere à metafunção composicional.
A organização das informações em centro (entrada)/margem (sinônimos), as saliências dadas
ao que se pretendia chamar atenção (negritos nos exemplos de uso) e as rimas e contrastes de
cor (para distinção das classes gramaticais), por exemplo, podem ser destacados como pontos
importantes da estrutura do verbete do thesaurus, visto que consideramos ser esses elementos
facilitadores para a compreensão do verbete como um todo.
Salientamos, ainda, que essa compreensão não é tão simples ao usuário do dicionário.
Ao nosso ver, é de fundamental importância que o aluno seja orientado sobre como fazer uso
do thesaurus ou, melhor dizendo, sobre como fazer uso de quaisquer ferramentas de
96
Denomina-se cloze testes ou atividades em que palavras de um texto são suprimidas e substituídas por lacunas.
A finalidade é que os estudantes possam identificar corretamente as palavras que faltam e, assim, preenchê-las
devidamente.
219
aprendizagem. No caso do thesaurus, a própria obra apresenta um guia de uso, porém, ainda
assim, julgamos ser importante a orientação por parte do professor. Dessa forma traçamos uma
proposta pedagógica objetivando tanto o esclarecimento sobre como se dá o uso da ferramenta
abordada neste estudo, quanto traçamos atividades de modo que essas orientações possam ser
colocadas em prática, a fim de prover alguns passos para o letramento multimodal. Acreditamos
que essa proposta possa direcionar e levantar questionamentos para futuros estudos que
contemplem os elos entre letramentos, multimodalidade e Lexicografia.
Referências
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220
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Disponível em: <https://www.videnomlaesning.dk/media/2127/21_theo-van-leeuwen.pdf>.
Acesso em: 13 jul. 2020.
VAN LEEUWEN, T. Introducing Social Semiotics. Oxford; New York: Routledge, 2005.
221
Capítulo
18
A produção de textos multimodais por meio do
gênero textual anúncio publicitário em redes sociais
Introdução
A perspectiva da Linguística sobre o ensino de Português Brasileiro mudou
substancialmente nas últimas décadas. Atualmente, muitos professores-pesquisadores
defendem que o estudo da língua integrado com as práticas sociais em que os textos estão
inseridos pode ser a alternativa mais adequada para o ensino em nossas escolas. Antunes,
linguista que defende essa perspectiva, afirma que
Apesar das novas perspectivas teóricas desenvolvidas nas últimas décadas, a prática
didática envolvendo gêneros textuais e seu contexto de circulação ainda não se consolidou de
forma consistente nas nossas instituições de ensino. Um reflexo desse processo são as críticas
recorrentes de linguistas em relação ao fato de que
[...] o estudo dos gêneros constitui-se, sem dúvida, numa contribuição das mais
importantes para o ensino da leitura e redação. Para reforçar esse posicionamento,
97
Doutorando em Linguística e Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professor da
Educação Básica na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). E-mail:
fidelix1@hotmail.com
222
afirmamos que, somente quando dominarem os gêneros mais correntes na vida
cotidiana, nossos alunos serão capazes de perceber o jogo que frequentemente se faz
por meio de manobras discursivas que pressupõem esse domínio.
Nessa conjuntura atual, a interação não se dá unicamente pela modalidade escrita, isto
é, ocorre por meio da combinação de várias modalidades. Essas modalidades não são meros
adornos ilustrativos. Elas são utilizadas pelos produtores de textos para construir significados e
fortalecer a interação com os seus interlocutores.
Sobre o uso de imagens na constituição de textos multimodais, Van Leeuwen (2005, p.
120) defende que
imagens têm sido, na maioria dos casos, estudadas mais como respresentação do que
como interação. (…) Mas, claramente, imagens também são usadas para fazer coisas
para, por ou com pessoas, como: persuadir (anúncios), instruir (padrões para a
confecção de vestidos), explicar (diagramas em livros didáticos), alertar (a imagem
de uma caveira em uma porta), e assim por diante. (grifo do autor).
98
Todas as traduções foram feitas pelo autor deste capítulo.
223
conjunto com outras modalidades, especialmente com a escrita. Na próxima seção, apresentarei
exemplos claros de como esse processo acontece em anúncios publicitários feitos por editoras.
Como as demandas da sociedade pela produção e pela compreensão de textos em que
mais de uma modalidade semiótica é utilizada para constituir significados em textos
aumentaram e tendem a aumentar ainda mais, é fundamental a aplicação de práticas
pedagógicas voltadas para os multiletramentos. Os multiletramentos consistem numa
ampliação do conceito de letramento. O conceito de letramento extrapola a ideia de aquisição
do sistema convencional da escrita (alfabetização) e explora o desenvolvimento das habilidades
dos usos escritos de um determinado sistema linguístico em situações reais de comunicação
(SOARES 2004, 2010). Os multiletramentos expandem o conceito de letramento, pois
Mais do que uma nova abordagem teórica, essa perspectiva possibilita a compreensão e
o desenvolvimento de habilidades ligadas à produção de textos multimodais por parte dos
alunos. Portanto, uma abordagem do ensino que objetive abordar a língua como prática social
em contextos reais de interação na atualidade não pode ignorar a produção de textos
multimodais. Nesse processo, a aplicação da Pedagogia dos Multiletramentos no contexto
escolar é imprescindível.
Baseado nessa tese, a sala de aula era um espaço de leitura. Lemos juntos em alguns
momentos o livro “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida e
outros textos do livro didático, especialmente contos e textos de caráter informativo – que
permaneceram sendo utilizados até o final do ano letivo. Após o término do primeiro bimestre,
avaliei, juntamente com os estudantes, que a leitura do romance do século XIX não havia sido
um alento para a prática da leitura, já que a minoria o leu, poucos mostraram algum entusiasmo
224
e tiveram um desempenho muito ruim em questões relacionadas ao livro na prova bimestral.
Contudo, a leitura dos contos presentes nos livros didáticos teve uma maior aceitação.
A fim de mudar esse quadro para práticas mais atrativas, passei a trazer coletâneas de
textos poéticos para os estudantes, isto é, eu fazia uma seleção de 4 ou 5 poemas ou trechos de
textos poéticos e os colocava em folhas de papel A4 que eram distribuídas em sala de aula. As
leituras eram feitas semanalmente sempre em grupo e seguidas por interpretações orais feitas
por eles e por mim. Eu costumava ler o primeiro poema e os demais eram lidos pelos estudantes.
Sempre que algum estudante lia um poema em voz alta para a turma, apresentava uma opinião
ou respondia a um questionamento meu, ele tinha a sua nota de exercícios e de participação
formativa aumentada. É importante destacar que os debates se baseavam nas diferentes
interpretações que o texto poético permitia e nas principais impressões que poderiam causar
nos leitores por meio do uso conotativo da língua.
Para o terceiro bimestre, preparei uma lista de sete obras literárias que estavam
disponibilizadas na biblioteca da escola. As obras selecionadas foram: O Menino do Pijama
Listrado (de John Boyne), O Diário de Anne Frank (de Anne Frank), O Alienista (de Machado
de Assis), A Hora da Estrela (de Clarice Lispector), Menino de Engenho (de José Lins do Rego),
Alguma Poesia (de Carlos Drummond de Andrade) e Antologia Poética (de Vinícius de
Moraes). Como trabalho do terceiro bimestre, foi solicitado que os alunos escrevessem uma
resenha sobre um desses livros. A fim de despertar o interesse dos alunos, discutimos os livros
e lemos alguns trechos em sala de aula. No fim do bimestre, ajudei os alunos a escreverem e
reescreverem suas resenhas durante as aulas que sucederam a prova bimestral.
No quarto bimestre, eles puderam escolher um livro qualquer para fazer um anúncio em
redes sociais. Para termos um canal de comunicação, propus, no início do ano letivo, a criação
de um grupo na rede social Facebook. Como consequência desse grupo, acabei me tornando
“amigo” dos meus estudantes na rede social e pude ver que a maioria dominava o uso de várias
modalidades para construir textos que atendessem aos seus interesses.
Considerando o uso ativo da rede social pelos alunos, pensei em uma atividade extra
para o quarto bimestre: a produção de um anúncio de um livro na rede social. Para que eles se
sentissem mais à vontade e não fossem impelidos a publicar em seus perfis conteúdos
dissociados de suas identidades, dei a eles toda a liberdade na escolha do livro, ou seja, eles
poderiam escolher qualquer livro para anunciar (romances, contos, epopeias, diários, livros
religiosos, fábulas, etc.). Os alunos que eventualmente não tivessem acesso às redes sociais por
meio de um perfil próprio ou de uma pessoa conhecida poderiam entregar o trabalho por escrito
simulando a rede social ou fazendo um anúncio para ser pregado nos corredores do colégio 99.
Inicialmente, apresentei uma pequena parcela de formatos de anúncios publicitários a
que eles são expostos no cotidiano. Na execução da atividade, foi essencial a utilização de um
data show para apresentar as imagens dos anúncios, que foram retirados da Internet.
Primeiramente, expus um anúncio de imóveis em que predominava a modalidade escrita.
99
Nenhum estudante optou por essa opção.
225
Figura 1 – Anúncio publicitário de imóveis.
Meus alunos não tinham o hábito de ler anúncios de imóveis especificamente, mas
afirmavam que liam anúncios em que predominava a modalidade escrita em outros lugares,
como nas paradas de ônibus do Paranoá-DF. Portanto, achei que o anúncio era válido para
exemplificar os recursos utilizados em anúncios nos quais há o predomínio da modalidade
escrita.
Expliquei que esse tipo de anúncio, em que predomina a modalidade escrita, é mais
recorrente em placas, faixas e jornais. Após essa breve contextualização, discuti o papel da
tipografia e da moldura para a construção do anúncio. Mostrei que o uso de molduras é
fundamental para a organização dos enunciados, isto é, estabelecer limites entre os anúncios de
imóveis. Quanto à tipografia, destaquei que o uso de letras maiúsculas em negrito é importante
para dar maior destaque a cada um dos anúncios e que as letras minúsculas eram usadas para
apresentar informações complementares e mais específicas sobre os imóveis.
Na sequência, expus dois anúncios da Coca-Cola, produto que era consumido por eles
com bastante frequência.
Figura 2 – Anúncio da Coca-Cola para agradecer aos consumidores.
226
Figura 3 – Anúncio da Coca-Cola que utiliza a mistura de códigos.
100
O enunciado afirma: “A Coca-Cola Guararapes agradece aos consumidores Pernambucanos (sic) por mais um
ano de felicidade”. Na sequência há a menção a uma premiação: “Prêmio Recall de Marcas JC. Coca-Cola a marca
mais lembrada”.
227
que a representação do produto o associa a uma quantidade de energia que pode ser gasta, de
acordo com o anúncio, positivamente.
Após essa breve explanação sobre os textos publicitários, iniciei a explicação sobre os
anúncios de livros em rede sociais. Expus os 5 anúncios a seguir.
Figura 4 – Anúncio do livro “Mentirosos”.
228
Figura 6 – Anúncio do livro “Escritos sobre literatura”, de Sigmund Freud.
229
Figura 8 – Anúncio do livro “Os inovadores” na rede social Twitter.
Inicialmente, fiz uma breve contextualização a respeito dos anúncios de livros em redes
sociais. Falei que, como as redes sociais são utilizadas diariamente por milhões de brasileiros,
elas têm uma enorme visibilidade, o que gera o interesse de empresas que querem divulgar os
seus produtos. Dessa forma, fazer anúncios para serem divulgados em redes sociais é um bom
negócio para essas empresas difundirem melhor os livros de seus catálogos.
Para que os estudantes compreendessem melhor o funcionamento do gênero, expliquei
a importância de alguns elementos que constituem os anúncios de forma recorrente: a imagem,
um enunciado verbal que se refere à obra, o link para o livro e o uso de hashtags.
Mostrei que o uso de uma imagem era fundamental para a constituição de um anúncio
nas redes sociais, já que, além de possibilitar a utilização dos recursos visuais discutidos
anteriormente, ela dá maior saliência à postagem das publicações feitas pelos usuários, isto é,
chama mais a atenção das pessoas em suas timelines, como ocorre na figura 8101. Defendi que
as imagens costumam fazer referência a uma cena marcante da obra, principalmente se for um
texto literário, ou à figura do autor. No anúncio da figura 7, por exemplo, há uma referência a
uma cena famosa da obra Hamlet, de William Shakespeare. No anúncio da figura 6, em que se
usou a imagem do autor, destaquei a importância da combinação entre o olhar de Freud na
imagem e o enunciado para se criar o efeito de que o autor está falando diretamente com os
seus interlocutores. Ressaltei também que o uso de aspas e a presença do nome do autor
inseridos na imagem são essenciais para indicar que a frase foi dita por Freud. Terminei a
explicação ressaltando que o uso de imagens em preto e branco (escala cinza) é bastante
recorrente em textos publicitários, principalmente para dar destaque ou sugerir um tom mais
fictício à imagem (VAN LEEUWEN, 2011).
Quanto ao uso de enunciados verbais, expliquei que eles costumam ser utilizados para:
expor uma opinião sobre o livro; apresentar um trecho marcante da obra; fazer um convite para
a leitura do livro; e expressar uma hashtag. No anúncio da figura 4, há um exemplo de um
trecho da resenha em que há a apresentação de atributos da obra “Mentirosos” (“perturbador,
101
O anúncio da figura 8 foi o único retirado da rede social Twitter. Os demais anúncios foram retirados da rede
social Facebook. Como o Twitter só permite postagens com um número bastante limitado de caracteres, as
postagens com imagens tendem a se tornar mais salientes que as postagens sem imagens.
230
emocionante e completamente surpreendente”). Expliquei que os elogios feitos à obra têm o
objetivo de deixá-la mais atraente para o público, que pode ficar mais curioso e ansioso para
conhecê-la. Ademais, destaquei a importância do uso da forma verbal “Veja” para tentar induzir
as pessoas a clicarem no link que dá acesso à resenha da obra.
Nos anúncios das figuras 5, 6 e 7, há a apresentação de trechos das obras anunciadas.
No anúncio da figura 5, há a apresentação de um trecho bastante curto de um sermão do padre
Antônio Vieira. Na figura 7, o anúncio apresenta um trecho muito maior da obra Hamlet. Já o
anúncio da figura 6 faz uma breve apresentação da obra e insere uma fala de Freud na imagem,
cujo efeito já foi comentado anteriormente. Esclareci para os alunos que esses anúncios
mostravam possibilidades de apresentação da obra nas redes sociais. Perguntei a eles qual
chamaria mais a atenção deles. Eles responderam que foi o da figura 6, pois a combinação da
imagem com o enunciado tornava o texto mais chamativo que os demais.
No que diz respeito à inserção de um link, expliquei que sua motivação era muito
simples: levar os usuários a um outro ambiente que possibilite uma discussão mais ampla da
obra ou, principalmente, a um ambiente em que a venda da obra possa ser efetuada.
Por fim, expliquei que as hashtags são palavras-chave precedidas pelo símbolo #
relacionadas ao assunto da postagem, o que também possibilita os usuários da rede social
encontrar um determinado conjunto e postagens que tenham a mesma hashtag. Perguntei a eles
se eles conheciam outros usos das hashtags. Os alunos responderam, com autoridade sobre o
assunto, alguns usos recorrentes: campanhas nas redes sociais, referência a um evento em que
se tirou uma foto, apresentação de uma opinião por meio de uma piada e referência a uma
situação por que eles passaram. Expliquei que as editoras também poderiam fazer hashtags. No
anúncio da figura 7, por exemplo, foi usada a hashtag #livrododia, mas nos outros anúncios
esse recurso não apareceu.
Durante a apresentação dos exemplos de anúncios de livros em redes sociais, destaquei
a variabilidade entre os anúncios. Afinal, os gêneros são relativamente estáveis em relação a
estilo, estrutura composicional e conteúdo temático (BAKHTIN, 2011), o que torna um
equívoco pensar numa estruturação estanque dos gêneros. Dessa forma, disse aos meus alunos
que eles poderiam usar a sua criatividade e explorar os recursos disponibilizados pela rede
social para fazer o anúncio da melhor forma possível.
Como revisão do conteúdo ministrado, apresentei as seguintes conclusões:
• Nos anúncios virtuais, o uso de recursos visuais é fundamental para atrair e interagir
com o público;
• A riqueza expressiva está justamente na combinação entre a linguagem verbal e os
recursos visuais.
Para que eles pudessem publicar em uma rede social, eu caracterizei o gênero
ressaltando a importância dos seguintes aspectos no anúncio que eles iriam fazer:
• Apresentação de trecho do livro que será anunciado. O livro fica à escolha do
estudante102;
102
Ressaltei que eles poderiam escolher o livro que quisessem. Como é a página pessoal deles, é preciso que o
livro tenha a ver com os interesses do aluno. Dessa forma, eles poderiam fazer a propaganda livros de qualquer
tipo, como literários, religiosos, biográficos, filosóficos, etc.
231
• O cuidado com o uso da norma-padrão é importante para dar maior credibilidade
ao anúncio, pois certas inadequações podem tirar a credibilidade do anunciante;
• Por meio de perguntas e verbos no imperativo, pode-se dialogar com o leitor e criar
uma relação mais pessoal;
• Uma forma mais impessoal de divulgação é apresentar as informações da obra que
mais podem atrair o público, como o tema e a relevância do autor;
• Uso de uma ilustração e de um link para se ter acesso ao livro ou à loja que o vende
(ressaltei que só poderiam colocar o link para o acesso integral de uma obra se ela estivesse em
domínio público);
• Emprego de hashtags, como #livrododia;
• Para que eu pudesse ter acesso ao anúncio, pedi que eles me marcassem na
publicação, isto é, inserissem meu nome no final dos anúncios.
Para que eles vissem um exemplo prático, eu mesmo fiz um anúncio e o publiquei na
minha página do Facebook.
Figura 9 – Anúncio da obra “O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa.
232
Para que eles “entregassem” o trabalho, dei o prazo de duas semanas e destaquei que
eles deveriam me marcar na rede social e me avisar de que o tinham feito. Durante as semanas,
vi algumas publicações bastante interessantes feitas por eles. Um dos anúncios foi sobre a obra
“O Alienista”103, de Machado de Assis.
Figura 10 – parte 1 do anúncio de “O Alienista”, de Machado de Assis.
103
Inicialmente, o conto “O Alienista” foi publicado no jornal “A Estação” entre os anos de 1881 e 1882 e,
posteriormente, inserido no livro “Papéis Avulsos” (1882). A informação dada pelo meu estudante na figura 10,
contudo, está relacionada ao contexto em que a obra lhe foi apresentada. Essa obra machadiana costuma ser
publicada de forma independente por muitas editoras, e os volumes dela disponibilizados na escola estavam nesse
formato. Quando fiz a apresentação da obra no início do terceiro bimestre, fiz menções mais gerais ao contexto da
obra e apresentei um foco maior na leitura de trechos da obra e suas interpretações. Nas próximas aulas sobre
anúncios publicitários, ressaltarei que, caso os alunos queiram apresentar informações específicas sobre a obra,
façam uma pesquisa mais cuidadosa.
233
O estudante fez um bom anúncio. A imagem foi colocada como uma foto de sua linha
do tempo, o que deixa o anúncio mais perene na rede social, pois as pessoas podem vê-la
posteriormente com maior facilidade no seu álbum. Iniciou a escrita do seu texto com uma
hashtag (#dicadeleitura) que indicou o teor do anúncio. Na sequência, o aluno fez uma breve
apresentação da obra e ressaltou a temática abordada por Machado de Assis. Como trecho da
obra, selecionou um trecho de reflexão do personagem Simão Bacamarte sobre suas práticas
científicas. A imagem do álbum, retirada de uma adaptação em quadrinhos de “O Alienista”,
faz referência justamente ao trecho da obra. Por fim, apresentou hashtags (#Confereaeh e
#Excelentelivro) de caráter mais interpessoal, ou seja, tentou influenciar os leitores a lerem o
livro, que foi avaliado positivamente por ele.
Houve outros dois anúncios em vídeo muito interessantes. Em um, duas meninas
falaram, ao som de músicas cristãs, positivamente sobre a Bíblia e recomendaram a sua leitura
para as pessoas, ressaltando o livro como uma relíquia. Elas destacaram a diversidade de
assuntos e possibilidades de leitura relacionadas à Bíblia, como conselhos espirituais, histórias
de romances, histórias de guerra e até histórias de terror. No fim do anúncio, ainda citaram um
trecho da Bíblia. O sucesso do vídeo foi tão grande, que, além dos elogios feitos nos
comentários, o vídeo recebeu cerca de 150 curtidas e teve 1 compartilhamento. Dessa forma,
foi um anúncio que obteve grande repercussão para com os contatos das alunas.
Em outro, o aluno fez um vídeo de 14 segundos, ressaltando que o livro “O Menino do
Pijama Listrado” estava disponível na biblioteca da escola. O anúncio do livro ficou da seguinte
forma na rede social:
Figura 12 – anúncio da obra ‘O Menino do Pijama Listrado”.
Disponível em:
<https://www.facebook.com/maxixes2/videos/vb.100001030328312/845740962136907/?type=2&video_source
=user_video_tab> Acesso em: 28 de mai. de 2020.
234
caracteriza como “o dado”, isto é, informação conhecida. O enunciado verbal está à direita, o
que o caracteriza como “o novo”, isto é, informação ainda não conhecida. Uma síntese da
análise dessa composição seria: constrói-se um texto multimodal em que se faz uma menção a
um elemento já conhecido pelos principais destinatários do texto e é apresentada uma
informação nova que pode persuadi-los a ler a obra por saberem onde ela estava disponível.
Ademais, a cor azul ao fundo também faz referência à cor do livro. Dessa forma, foi uma
composição multimodal muito boa. O aluno também utilizou uma música de fundo para a
composição do vídeo. A música é instrumental e lembra uma vinheta de desenhos animados, o
que dá um tom de descontração para o anúncio. Assim, foram utilizadas três modalidades para
se anunciar uma obra literária: a sonora, a imagética e a escrita.
Os demais alunos também fizeram bons anúncios de livros, mas, infelizmente, o espaço
deste trabalho inviabiliza uma discussão mais ampla sobre todos os anúncios. É importante
destacar, por fim, que nem todos os estudantes fizeram um trabalho de excelência e alguns, a
minoria, não fizeram a atividade, mas, de uma forma geral, os estudantes mostraram um
envolvimento bastante positivo na atividade proposta e demonstraram ter consciência da
importância de se combinar diferentes recursos semióticos na constituição de sentidos em textos
multimodais.
Considerações Finais
Essa prática pode ser aplicada em muitas salas de aula e compartilhada em muitas redes
sociais. Para termos mudanças substanciais no ensino de Português Brasileiro, é necessária a
adoção de novas práticas didáticas. O ensino não pode ficar parado no tempo e ignorando as
mudanças sociais e tecnológicas ao seu redor. Em vez de excluí-las da sala de aula, os
professores precisam, primeiramente, se questionar sobre sua aplicabilidade no cotidiano
escolar de acordo com os interesses e potencialidades dos estudantes.
Neste relato de experiência, ficou bastante claro que os alunos construíram os seus
textos sabendo que iriam ser visualizados por pessoas reais. Afinal, eles estavam interagindo
com o mundo. Muitos deles conhecem, inclusive, melhor que a maioria dos professores os
recursos disponibilizados nas redes sociais para a construção de textos multimodais. Nessa
conjuntura, os educadores podem auxiliar os educandos a potencializar o seu conhecimento
sobre os recursos disponibilizados nas redes sociais por meio de práticas pedagógicas ligadas
aos multiletramentos, ou seja, extrapolando a perspectiva grafocêntrica e adotando a produção
e a compreensão de textos multimodais. Dessa forma, a sala de aula potencializa a capacidade
dos alunos de se expressarem em práticas sociais cotidianas.
Em vez de incentivarmos práticas em que o estudante constrói textos apenas para seus
professores, devemos elaborar mais práticas para que seus textos sejam publicados e
visualizados por mais pessoas. Interações reais podem incentivar mais os estudantes a lidarem
com manobras discursivas relacionadas diretamente a práticas cotidianas ligadas à produção de
textos multimodais.
No que diz respeito à atividade desenvolvida, acredito que alguns incrementos podem
ser feitos para torná-la mais efetiva.
235
• Assim como fizemos com a resenha no terceiro bimestre, eu poderia propor a
reelaboração do texto para ajudá-los a se adequar à prática comunicativa. Infelizmente, o
apertado calendário do quarto bimestre inviabilizou essa prática pedagógica;
• Pedir que eles façam uma pesquisa mais detalhada sobre a obra que irão anunciar,
incluindo resenhas sobre o livro;
• Pode ser feita a apresentação de vídeos em que são anunciados livros;
• A publicação de vídeos pode ser feita no YouTube e, posteriormente, ser divulgada
no Instagram, no Facebook e/ou no Twitter;
• No caso de comidas e bebidas, como a Coca-Cola, pode-se ressaltar a importância
dos efeitos visuais utilizados pelos produtores para representar os produtos, especialmente o
brilho;
• No primeiro anúncio da Coca-Cola (figura 2), seria interessante destacar que o nome
do produto aparece três vezes seguindo de cima para baixo, isto é, de forma semelhante a como
nós, ocidentais, lemos textos em que predomina a modalidade escrita.
Dessa forma, a atividade proposta aqui pode ser colocada em prática e aprimorada por
educadores que tenham como objetivo introduzir a realidade multimodal na sala de aula por
meio da aplicação da Pedagogia dos Multiletramentos no contexto da educação básica.
Referências
ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. 2. ed. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. 2.
ed. São Paulo: Contexto, 2008.
KRESS, Gunther; Van LEEUWEN, Theo. Reading images: the grammar of visual design.
2ªed. London: Routledge, 2006.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos de pedagogia da leitura. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
236
SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. 4. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010.
VAN LEEUWEN, Theo. The Language of Colour: an introduction. London: Routledge, 2011.
237
Capítulo
19
Estratégias leitoras e criticidade:
apontamentos sobre o ensino de leitura a partir da
linguística aplicada
Introdução
O capítulo apresentado propõe considerações entorno do ensino da leitura em
perspectiva com a Linguística Aplicada e, a partir desse recorte, pretendemos oferecer uma
dimensão importante do ensino de leitura pautada na criticidade. Nesse sentido, temos em vista
a apresentação de um entendimento da crítica para a Linguística Aplicada que, de grande
relevância, preocupa-se com a inserção do texto em seu contexto histórico, para as práticas de
ensino de leitura. Diante do destaque a certas estratégias leitoras no processo de leitura, temos,
como resultado de nossos apontamentos, a potencialização dessas estratégias para o ensino da
leitura, por meio da situacionalidade sócio-histórica tanto do texto quanto dos estudantes, em
referências aos lugares de fala e posição de poder que cada um ocupam.
Estabeleçamos de início que a Linguística Aplicada (doravante LA) avançou
consideravelmente enquanto campo de investigação da linguagem entendida como prática
social e, no escopo de sua abordagem, destacam-se inúmeros autores e autoras que se engajaram
na construção de um arcabouço teórico e metodológico referente as produções sociais que se
estabelecem por vias linguísticas. Dentre esses, podem ser mencionadas contribuições, entorno
do conceito de linguagem, das mais variadas perspectivas, a partir de Brandão (2012),
Fairclough (2008), Resende e Ramalho (2008), Bakhtin (2006), Mussalim (2012), Wittgenstein
(1979), Alencar (2006), Maingueneau (2015) ou Fabrício (2006).
Esses autores e autoras, através de seus trabalhos, ajudaram a estabelecer o objeto que
a LA se debruça, o qual, para Rojo (2006), é a linguagem enquanto prática social. De todo
modo, depois de conquistar seu objeto de pesquisa e de superar períodos incipientes de
desenvolvimento, como a aplicação de teoria linguística a contextos de uso da língua (MOITA
LOPES, 2011), a LA foi testando seus limites ao assumir novos temas nos quais a linguagem
deixava antever. Um desses temas está relacionado, atualmente, com relevância social que o
campo pode desenvolver diante da realidade social.
104
Mestre em Linguística Aplicada (PosLA/UECE). Fortaleza – Ceará. E-mail: nilsonalvesk8@hotmail.com
238
Nesse âmbito, a LA passou a orientar-se em direção às problemáticas sociais e políticas,
pelas quais o uso da linguagem veio a implicar em processo de sujeição social ou outras
injustiças (PENNYCOOK, 2006, 1998; VAN DIJK, 2016; MOITA LOPES, 2006, 1996). Tal
contexto de abordagem fez destacar a importância do campo, dentre as produções
epistemológicas, levando uma série de autores a enfrentar os usos autoritários de poder que,
através da linguagem e suas manifestações sociais, afetam a população e geram desrespeitos e
opressões a essa. Dessa maneira, essa perspectiva crítica que expõe as práticas arbitrarias diante
do uso de linguagem, enquanto instrumento de poder e dominação, também revisitou antigas
interpretações em antigos contextos.
Assim, fomenta-se, a partir do contexto da Educação e Ensino, novas interpretações em
LA que levantam questionamentos entorno dos usos da linguagem, por meio de práticas
educacionais e culturais tradicionais que podem reproduzir tendências restritas de poder, dando-
se favorecimento a discussões como uso de linguagem em contexto de globalização (ROJO,
2013), ensino intercultural (ROSA, 2016) e outros. Não por acaso, pretendemos assumir, nesse
capítulo, o viés anterior a fim de apontar questões referentes ao ensino da leitura, considerando
como essas questões possibilitam sua inserção dentro de uma perspectiva crítica de letramento
que ajude o estudante a se apropriar, por meio de estratégias relevantes, da leitura como
instrumento de reflexão e questionamento de sua realidade.
Para tanto, o texto está dividido em 4 partes! A primeira se refere ao caráter politizado
de algumas abordagens em LA e a segunda tece algumas considerações gerais a respeito do
conceito de letramento e criticidade, enquanto a terceira parte discorre sobre a relação das
prática de leitura e contexto e a quarta, por fim, apresenta algumas estratégias que potencializem
o estudante enquanto sujeito social.
239
evitando questionar os fundamentos que, de alguma forma, garantem certos prestígios
institucionais (RAJAGOPALAN, 2003). De todo modo, é possível perceber inúmeras
perspectivas da LA que destacam o caráter político das práticas linguísticas, através de
comprometimentos sociais que a pesquisa assume com os sujeitos envolvidos nas práticas de
linguagem.
Um primeiro exemplo de uma perspectiva politizada na LA pode ser identificado na
pragmática e, ademais, essa manifesta explicitamente suas tentativas de politização das
pesquisas diante do uso da linguagem. De acordo com Rajagopalan (2010), é preciso sair da
tendência geral, na qual, muitas vezes, o dito “pragmatismo” acaba por ser encarado como
simples extensão da semântica, quando se propõe dar conta das questões referentes aos
significados que essa não contempla ou ainda quando a pragmática é absorvida pela sintaxe,
com o esvaziamento da semântica do paradigma, como se a descrição linguística (fora a
gramática) fosse considerada como semântica ou que a pragmática pudesse ser tida como
significado menos semântica. Dessa forma, os fenômenos que escapam às comodidades dos
ramos da sintaxe ou da semântica são relegados à pragmática, como lata de lixo, diante de
circunstância que só geraria relevância à pragmática se ela se permitisse prestar serviços à
sintaxe ou à semântica (RAJAGOPALAN, 2010).
Para Rajagopalan (2010), algumas tendências atuais superam tais atitudes que
pressupõem subserviência da pragmática, dando destaque à tentativa de “repensar a própria
contribuição da pragmática para o entendimento da linguagem” (p. 39). Na linha da
compreensão pragmática da linguagem, pressupõe-se um embate de politização aberta das
pesquisas, como consequência de uma virada crítica que tem como divisor a consideração de
que os “uso[s] de linguagem cimenta[m] os interesses dominantes de nossa sociedade”
(RAJAGOPALAN, 2010, p. 40). Ou seja, não importa apenas a descrição ou explicação pela
perspectiva tradicional, mas o compromisso de transformação que eleve a pragmática ao nível
não mais de mero componente, mas como uma perspectiva metalinguística que seja produzida
sobre – e não simplesmente da – linguística. Assim, a pragmática garante a sua relevância social
(RAJAGOPALAN, 2010).
Outro exemplo da tentativa de politização do campo da LA provém do que Pennycook
(2006) chama de Linguística Aplicada transgressiva. Essa proposta sustenta-se no intento de
superar esse panorama desfavorável atual para o entendimento da linguagem como prática
social, entendendo igualmente que algumas ações já apresentam consequências avaliadas
favoravelmente nesse viés, como a compreensão da contingência das posições, a localização
das histórias, a construção do sujeito e a relação entre conhecimento e poder. A própria LA
transgressiva intenciona instaurar uma nova base epistemológica, podendo-se articular de uma
só vez a urgência e as realidades do embate político, conceituado por Frantz Fanon, e a
necessidade de questionamento das pressuposições, incitada pelo ceticismo epistemológico de
Foucault (PENNYCOOK, 2006).
Apesar de uma visão que toma a linguagem como lugar no qual as formas concretas de
organização social e suas consequências são definidas e contestadas, a linguística tradicional
ainda não conseguiu compreender essa demanda e, por isso, suas consequências não foram
sentidas plenamente por essa última. Nesse entendimento, de acordo com Pennycook (2006),
certas perspectivas da LA também têm demorado a absorver tais mudanças, principalmente por
ansiar o alcance de um status de credibilidade acadêmica, por uma suposta cientificidade
240
positivista autônoma, de modo que a própria virada discursiva também estaria longe de ser
completamente compreendida.
241
relação que ele estabelece com seu contexto sócio-histórico, sendo necessária a proposta de uso
do letramento crítico nas escolas, a partir de uma gama ampla de recursos teóricos:
Vale ressaltar que na escola o letramento crítico não deve ser realizado apenas com o
conhecimento de mundo dos estudantes. É fundamental o conhecimento linguístico,
textual e cultural, pois sem esses conhecimentos a interpretação pode destoar bastante
das ideias centrais do texto (ROSA, 2016, p. 50).
Com essa percepção, é nítida a necessidade da postura crítica em sala de aula, através
da qual a definição de crítica ou criticidade no letramento se vincula a reflexão crítica do social
e não no sentido de domínio técnico. De tal maneira, a necessidade da postura crítica é
imprescindível para a efetivação de um letramento entendido como crítico ou politizado.
242
e dominação que caracterizam a educação como prática de poder autoritário. Assim, diante dos
problemas enfrentados pelos professores na elaboração de uma avaliação que considere a leitura
como processo sociocognitivo de construção de significados de um texto, Alliende e
Condemarin (1987) sugerem que o primeiro “deverá colocar-se como função do nível de
habilidade leitora da pessoa e sua relação com o grau de complexidade do material impresso”
(p.141-142).
Conseguinte, o domínio de estratégias leitoras pode ser um foco importante das
avaliações e, para essa perspectiva, algumas estratégias poderiam ser observadas com auxílio
às avaliações propostas pelos professores. Para os dois pesquisadores anteriores, por exemplo,
a previsão ou inferência permeia incessantemente os processos desenvolvidos pelo leitor no
momento da leitura, mesmo que inconscientemente. Considera-se que essa estratégia pode
decorrer da atenção do leitor focada em pressupostos apresentados em certo texto que, como
abordados na seção seguinte, são ideias que se expressam de uma maneira que não se dá
explicitamente, pautando-se em indícios apresentados no próprio texto para se justificar. Esses
dois intelectuais ainda diferenciam pressuposto de subentendido, que é de responsabilidade
exclusiva de quem interpreta o texto, configurando assim duplamente o que poderia se entender
por informação implícita, em contraponto a explícita. Assim, para a ótica avaliativa, é notória
a manifestação desses dois tipos de informações nas salas de aula onde estamos presentes
cotidianamente... Principalmente, na resolução de alguns itens que requeriam do aluno a
habilidade de identificação desses “fenômenos”, essa trata de esclarecer profundamente ao que
cada uma poderia se referir. Essa abordagem pode ser representativa quanto ao consenso dos
estudantes na escolha da opção que mais se adequava a esses itens.
243
que esses requerem o uso de capacidades apropriadas em termos de eficácia para cada ação.
Desse modo, podemos alargar essas considerações preliminares e percebermos que as
estratégias utilizadas no processo de leitura podem ser vitais na transformação da condição de
distanciamento semântico que algumas pessoas podem ter em relação aos textos que leem,
devido, principalmente, ao desenvolvimento insuficiente dos processos iniciais de letramento a
que podem ter sido submetidos, como é reconhecido a partir da exposição, feita por Sylvia Terzi
(1995), de uma pesquisa que demonstrou os períodos específicos na ampliação da capacidade
leitora de crianças pertencentes aos níveis fundamentais de educação. A partir da discussão da
autora é possível visualizar que, se certas deficiências leitoras não forem devidamente
corrigidas no processo posterior de letramento, essas poderão perdurar e comprometer a eficácia
da leitura em fases subsequentes, como na adolescência ou, até mesmo, na juventude.
Quando a comparação entre os procedimentos e as estratégias, os primeiros chegam a
diferir dessas devido ao fato apontado por Isabel Solé (1998) de que estratégias “não detalham
nem prescrevem totalmente o curso de uma ação” (p. 69). Em outras palavras, a estratégia
estaria no limite reverso do contínuo que estabeleceria com os procedimentos, pois esses seriam
específicos para cada contexto. Há certas assertivas que esclarecem essa distinção e podem ser
encontradas em autores como Koch e Elias (2006). A força de sua afirmação centra-se em
considerar que as estratégias são orientações globais que devem ser ou não seguidos no decorrer
da leitura, ressaltando a liberdade que o leitor deve possuir em relação a que direção tomar ou
em que situação as seguir, sem ser um imperativo de conduta inflexível.
Além dessa compreensão, alguns estudiosos distinguem ainda as microestratégias
(habilidades, técnicas, destrezas etc.) das macroestratégias que são mais gerais e de ordem
elevada. Contudo, para Isabel Solé (1998a), pode haver identificações específicas a cada uma
das compreensões, vindo a surgir duas implicações dessa querela: as estratégias são vistas como
procedimentos e, enquanto conteúdo de ensino, podem ser ensinado e aprendido ou falhar
cabalmente nesse objetivo ou essas são consideradas como procedimentos de ordem elevada.
Na segunda concepção, a estratégia deve ser vista por uma perspectiva ampliada, não podendo
ser tomada como uma técnica ou habilidade invariável e infalível. Para resolver esse impasse,
Isabel Solé (1998a) opta pela segunda acepção e chega mesmo a considerar que “O que
caracteriza a mentalidade estratégica é sua capacidade de representar e analisar os problemas e
a flexibilidade para encontrar soluções” (p. 70). Em consequência, a autora conclui que, no
ensino devido de estratégias, deve-se prevalecer a elaboração e utilização de procedimentos
gerais que auxiliem o desenvolvimento global do leitor.
Essa perspectiva não provém de uma afirmação solitária, pois outros autores
compartilham dessa visão e, inclusive, reforçam sua necessidade. Assim, o desenvolvimento
integral apontado anteriormente pela autora pode ser potencializado, caso as estratégias leitoras
utilizadas sejam aplicadas concomitantemente na percepção de aspectos globais dos textos,
como é elencado por Irandé Antunes (2010), ao se referir a subsídios importantíssimos do texto,
como o universo de referência, a unidade semântica ou outros, que podem alargar a
compreensão que fazemos dos textos que nós e nossos estudantes leem. Desse modo, chegamos
a notar a inserção da leitura na perspectiva cognitiva/construtivista, na qual a compreensão
depende de três condições, como mostra a própria Isabel Solé (1998a): o que se chama de
significatividade lógica e, por fim, as estratégias utilizadas pelo leitor na investigação do texto.
244
Nessa compreensão, destaca-se ainda mais a importância do ensino de estratégias, em
seu sentido amplo. Assim, mesmo que muitas vezes essas estratégias sejam inconscientes, elas
podem ser potencializadas através do ensino, já que há um processo natural na cognição de cada
pessoa que lê, fazendo com que a sua automatização seja recusada. Em caso espontâneo, a
mecanicidade das estratégias é abandonada quando algum obstáculo compromete a
compreensão e interpretação do que se lê, instalando-se, por necessidade, o estado estratégico
mencionado por Isabel Solé (1998b) e, como a autora considera que esse estado estratégico faz
o leitor assumir uma papel ativo na apreensão de um texto, é extremamente necessário que os
professores possam auxiliar seus estudantes na tomada de consciência de todos os recursos que
possam fortalecer sua capacidade de ler e entender textos.
Conclusão
Como viemos apontando, o processo de letramento pode recorrer a entendimentos gerais
sobre o processo de ensino de leitura, a fim de inseri-los em uma perspectiva crítica de como
esses processos são realizados na sociedade, a partir de toda sua dimensão política. Nesse caso,
fizemos uso de uma gama de autores que fundamentam o trabalho de letramento a partir do
ensino de estratégias leitoras, as quais podem ser usadas em consonância com o viés crítico que
acreditamos ter apresentado, a partir da Linguística Aplicada. Dessa forma, somos levados a
perceber como as estratégias podem funcionar efetivamente como um tipo de procedimento de
ordem elevada, de modo que facilitem um desenvolvimento crítico do letramento inicial ou
tardio. Essas estratégias tornam-se algo extremamente necessário enquanto saída para os
problemas de insuficiência nos processos de ensino-aprendizagem da leitura, já que elas
“tendem à obtenção de uma meta; permitem avançar o curso da ação do leitor, embora não a
prescrevam totalmente (...), podendo adaptar-se a diferentes situações de leitura” (SOLÉ,
1998a, p. 72).
É fácil perceber outros pontos positivos de uma postura de ensino que amplie a
compreensão das estratégias leitoras e, quanto a isso, acreditamos está bem desenvolvido em
nosso texto. Para retomar um desses pontos dissolvidos nas discussões do presente capítulo,
podemos destacar que as estratégias leitoras estão evolvidas em componentes metacognitivos,
chegando, consequentemente, exercer efeitos sobre a compreensão dos textos, sem as quais o
processo de leitura poderia se comprometido. Como Ângela Kleiman (1998) aponta, quanto ao
complexo processo de leitura, esse pode acarretar diversas dificuldades para os leitores caso o
processamento cognitivo de informação não seja vivenciado de fato através de estratégias
leitoras.
Nesse sentido, vemos que, a partir do nosso estudo das estratégias que auxiliam os
leitores no processo de assimilação do sentido de um texto, articulado, pelo viés crítico, a sua
constituição social em um contexto histórico, já que essas estratégias são formadas por uma
série de habilidades desenvolvidas pelo leitor no entendimento do texto e que podem ser
fornecidas ou motivadas pelo professor. Entendemos que esse recurso é válido e relevante
principalmente a partir do entendimento do texto como prática social produzidas a partir de
contexto sócio-histórico determinados e, para um melhor desenvolvimento da compreensão
leitora dos nossos alunos, é válido desenvolvermos uma linha transversal no ensino de leitura,
a partir de seu entendimento como um processo de construção de sentido observado em
contexto.
245
A isso, opomos que, para o ensino crítico da leitura, deve-se evitar reproduzir posturas
e atitudes que se reduzam a um simples repasse de conhecimento ou mesmo informações
descontextualizadas. É a partir de nossos objetivos alcançados que ressaltamos que nosso texto
apresenta um tom otimista quanto a aplicabilidade de um ensino de leitura pelo viés crítico,
com a expressão do desejo de que, algum dia, essa forma de letramento venham a se sobrepor
práticas descontextualizadas.
Assim, podemos concluir que o ensino de leitura traz em si um caráter duplo. À medida
que avança rumo a uma prática que pode contribuir com o desenvolvimento da leitura que, de
acordo com Alliende e Condemarin (1987), funcionaria como mecanismo de aprendizagem que
favorece interesse constante na leitura enquanto recurso para informação e para recreação,
também pode contribuir para formação social dos estudantes, impedindo a reprodução de
posturas que descaracterizam um ensino crítico que vá além do simples repasse de
conhecimento ou mesmo informações descontextualizadas. É em conformidade a essa segunda
tendência que levantamos a perspectiva desse capítulo pelo qual entendemos que o ensino de
estratégias leitoras possa ser feito a partir de um viés crítico.
Referências
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RAJAGOPALAN, K.; FERREIRA, D. M. M. (orgs.). Políticas em linguagem: perspectivas
identitárias. São Paulo: Editora Mackenzie, 2006, p. 39-60.
FAIRGLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. Izabel Magalhães (org.) Brasília: Ed.
UNB, 2008.
FULGENCIO, L., LIBERATO, Y.G. Como facilitar a leitura. São Paulo: Contexto, 1992.
KLEIMAN, Â. “Como lemos: Uma concepção não escolar do processo”. In: KLEIMAN, Â.
Oficina de leitura. Campinas; Ed. Pontes, 1998, p. 31 a 49.
246
KOCH, I.; ELIAS, V. M. “Leitura, sistemas de conhecimentos e processamento texto”. In:
KOCH, I.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo; Contexto, 2006,
pp. 39 a 56.
PENNYCOOK, A. A Linguística Aplicada dos anos 90: em defesa de uma abordagem crítica.
In: SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. (orgs.). Linguística Aplicada e
Transdisciplinaridade: questões e perspectivas. São Paulo: Mercado de Letras, 1998, p. 21-
46.
RESENDE, V. M.; RAMALHO, V. Análise de Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2008.
247
SOARES, Ma. “Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura”. Educ. Soc.,
Campinas, vol. 23, n. 81, dez. 2002, p. 143-160.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. 2ª ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1979.
248
Capítulo
20
Análise do discurso e surdez: efeitos dos sentidos em
“A Família Belier”
Introdução
Cotidianamente, em convívio social, os sujeitos utilizam-se do recurso da linguagem
para se comunicar, expor suas ideologias, significam o mundo através delas. Segundo Orlandi
(2013), os sentidos não são independentes, mas são determinados pelas posições ideológicas
que ocupam os sujeitos no processo sócio-histórico em que os discursos são produzidos. Nesse
sentido, as palavras significam segundo as posições de seus locutores.
Entendendo o sentido como efeito, a AD tem o discurso como objeto de investigação.
Orlandi (2013) afirma que a AD interessa-se com a materialidade da língua, com as maneiras
de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos constituintes de suas
vidas seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade.
Nesta perspectiva, pretende-se, através da análise do filme A família Bèlier (2014),
compreender quais as ideologias contidas nos sentidos sobre surdo, língua de sinais (LS) e
intérprete são materializadas na obra. Trata-se de uma produção francesa de 2014, cujo título
original é La famille Bèlier, dirigida por Eric Lartigau. Em seu roteiro o drama abarca a
realidade de uma família camponesa que tem suas peculiaridades comunicativas, são usuários
da língua de sinais francesa (LSF), toda família é surda, exceto a personagem Paula Bélier que
é a intérprete da família. A partir da materialidade discursiva do filme que põe em questão a
relação entre surdos e ouvintes, pretende-se uma análise discursiva, desse modo, evidenciando
quais posições-sujeito são mobilizadas no enredo, revelando os sentidos neles silenciados.
Portanto, a presente investigação busca compreender como se dá a constituição dos
sentidos de surdo, língua de sinais e intérprete de língua de sinais na obra cinematográfica A
Família Bèlier (2014,) tendo como objetivo investigar a relação língua-discurso-ideologia no
processo de constituição dos sentidos, assim, dará margem à discussão sobre a cultura e
105
Graduação em Letras: Língua Portuguesa/ Libras pela UFRB. Especialização em Libras –UNIASSELVI.
Mestrando em Comunicação do Programa da UFRB. E-mail: welington0303@hotmail.com
106
Graduação/Licenciatura Plena em História (FACSA). Pós-graduação em Libras (IBEC), Pós-Graduação em
Inclusão e Diversidade na Educação pela UFRB e Mestrando em Educação. Professor da Educação Básica na
Secretaria Municipal de Educação de Santa Cruz Cabrália e Eunapolis - Bahia. E-mail: davidlibras6@gmail.com
249
identidade surda e à análise da relação de poder existente entre intérprete e surdo expressas na
obra.
Diante disso vislumbramos responder a seguinte questão-problema: Ponderando que
para a AD os sentidos são efeitos, que posições-sujeito são mobilizadas no filme A família
Bèlier (2014) com relação aos sentidos de surdo, língua de sinais e intérprete de língua de
sinais?
Com esse intuito será realizada uma investigação de caráter qualitativo, sendo uma
pesquisa exploratória. Como afirma Godoy (1995), a pesquisa qualitativa não objetiva alcançar
resultados exatos, inquestionáveis, não se atém a porcentagens, mas busca compreender o tema
investigado de modo que possibilita a abertura de novos vieses de abordagem.
Para a construção do trabalho analítico, o analista não pode pensar o corpus da pesquisa
e a teoria discursiva separadamente. Nessa perspectiva, Orlandi (2013) afirma que “[...] a
análise de discurso tem um procedimento que demanda um ir-e-vir constante entre teoria,
consulta ao corpus e análise. Esse procedimento dá-se ao longo de todo trabalho” (ORLANDI,
2013, p. 67). Propomos, então, uma investigação em um movimento contínuo de verificação
dos discursos no filme e teoria da AD. É necessário, para isso, atentar às repetições discursivas
a respeito do surdo, da língua de sinais e intérprete de língua de sinais presentes no filme, não
nos atendo apenas às frases e à estrutura, mas ponderando a não transparência da língua,
buscando, assim, compreender o funcionamento dos discursos e seus efeitos. Assim, operamos,
ao mesmo tempo, a seleção de cenas cabíveis à análise e a construção analítica discursiva
pertinente ao material.
Desse modo, serão evidenciadas as ideologias presentes nos discursos da obra
audiovisual, o que possibilitará entender o que sustenta os discursos arcaicos implícitos na
constituição de sentidos de surdo, língua de sinais e intérprete. Para isso, terei como subsídio
livros e artigos que estejam relacionados à temática proposta.
250
Segundo Orlandi (2013), a noção de discurso não deve ser associada ao sistema
elementar da comunicação, em que existe sistematicidade entre os seus elementos. Para a
autora, todo processo de significação acontece simultaneamente. Nesse sentido, não se trata
apenas da decodificação de mensagens: “as relações de linguagem são relações de sujeitos e de
sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito
de sentidos entre locutores” (ORLANDI, 2013, p. 21).
Conforme aponta Orlandi (2007), uma vez inscritos na história, os discursos (efeitos de
sentidos) não são controláveis e são suscetíveis à deslocamentos de sentidos:
Não há discurso estanque que os torne de todo “controláveis” nem discurso que garanta
uma correspondência escritas aos lugares (posições) em que são produzidos. Uma vez
postos em circulação eles podem se deslocar por qualquer ponto dos processos
discursivos (ORLANDI, 2007, p. 117).
Partindo dessa proposição posta pela estudiosa, entende-se que um único discurso pode
abrir espaço para múltiplas significações. Além disso, um mesmo discurso pode ser reproduzido
por sujeitos diferentes em épocas diferentes. Diante disso, Orlandi (2013) afirma que todo
discurso é proveniente de um discurso anterior. Daí a noção de interdiscurso: trata-se da relação
de/entre múltiplos discursos. Relação em que estão em causa efeitos de contradição e
dissimetria.
Na dinâmica da língua com todos os fatores que possibilitam os efeitos de sentidos que
irrompem o funcionamento da paráfrase e da polissemia. O primeiro está relacionado às
repetições, à reprodução de um mesmo sentido; já o segundo trata-se de deslocamentos de
sentidos que acontecem paulatinamente. Diante disso, pode-se afirmar que todo processo
discursivo é permeado de repetições e deslizamentos de sentidos. Orlandi (2013) reforça, assim,
a proposição de que não há sentido sem que haja repetições.
Orlandi assevera, “as palavras remetem a discursos que derivam seus sentidos das
formações discursivas, regiões do interdiscurso que, por sua vez, representam no discurso as
formações ideológicas” (ORLANDI, 2013, p. 80). A autora define formação discursiva como
aquilo que em uma dada formação ideológica determina o que deve ser dito. Ela ainda afirma,
assim, que os sentidos estão associados ao que o sujeito pode ou não dizer dependendo da
posição ideológica assumida, razão pela qual, conforme a autora, “uma mesma palavra, na
mesma língua, significa diferentemente dependendo da posição do sujeito e da inscrição do que
diz em uma ou outra formação discursiva” (ORLANDI, 2013, p. 60).
Orlandi (2007) afirma que a significação não se restringe às palavras, existindo,
portanto, um fluido movimento de sentidos no silêncio. Para a autora,” o silêncio não fala. O
silêncio é. Ele significa. Ou melhor no silêncio o sentido é” (ORLANDI, 2007, p.31). Diante
disso, o silêncio torna-se fator imprescindível para que exista o sentido. Segundo a autora alega,
“[...] sem silêncio não há sentido, sendo que o silêncio não é apenas um acidente que intervém
ocasionalmente: ele é necessário à significação” (ORLANDI, 2007, p. 40).
251
ideologias implícitas ou explícitas que fortalecem determinados sentidos. Desse modo, as
mídias audiovisuais constituem-se como uma ferramenta que tem o papel de (re)produzir
ideologias.
Entendendo as produções cinematográficas como materialidade discursiva, podemos
dizer que elas têm a capacidade de apresentar uma nova realidade ao público, no sentido de que
o cinema colabora para a reprodução e transformação de sentidos; é capaz de desconstruir
paradigmas ou construí-los, e perpetuá-los, através das ideologias. Assim, pode-se assegurar
que o cinema, compreendido como material discursivo-ideológico, tem o poder de persuadir
através dos discursos nele materializados.
No mundo ficcional existe uma transposição do real para o imaginário, ou seja, a trama
está circunscrita a um dado contexto histórico que é imprescindível para a produção
cinematográfica. Desde a Antiguidade, os surdos travam um grande percurso de lutas para
ocupar espaço na sociedade, empenhados a resistirem o enquadramento de significações
(deficiência, anormalidade, limitação, incapacidade) que a sociedade ouvinte lhes impôs,
inclusive, muitas das vezes no cinema. Os sujeitos surdos militam para que sua diferença seja
respeitada nas instâncias sócio-político-culturais.
Pensando a obra cinematográfica como materialidade discursiva, mais especificamente
a película A família Bèlier (2014), encontra-se materializados discursos ora de cunho
socioantropológico, ora de cunho ouvintista. Os primeiros efeitos de sentidos dizem respeito ao
entendimento de surdo como sujeito cultural e identitário, chamaremos de formação discursiva
1 (FD1); já o outro atribui-lhe significações animalizadoras, patológicas e pejorativas, formação
discursiva 2 (FD2).
Na referida obra audiovisual é perceptível que o estabelecimento da cultura surda se dá
através da utilização da LS e na interação com os “iguais”. Desse modo, é estabelecida uma
forma cultural e identitária do sujeito, como expõe Strobel (2008), para quem “para o sujeito
surdo ter acesso às informações e conhecimentos e para construir sua identidade é fundamental
criar uma ligação com o povo surdo em que se usa a sua língua em comum: a língua de sinais”
(STROBEL, 2008, p. 44).
Em quase todas as cenas exibidas no filme tem-se a presença da forma de comunicação
visuo-espacial. A língua de sinais é representada de modo normalizado, no sentido de que em
nenhum momento a forma de comunicação é questionada. O drama abarca a LS como
constituinte dos sujeitos surdos, para fazer parte do seu mundo é necessário comunicar-se com
as mãos. Para Strobel (2008) a língua de sinais é uma das principais marcas da cultura surda.
Diante da livre utilização e valorização da LS representadas no longa, analogamente,
acontece a demonstração da autossuficiência dos sujeitos surdos, uma vez que os surdos da
família Bèlier são sujeitos normais, que estuda, empreende, tem obrigações, posicionam-se
politicamente, dentre outros inúmeros aspectos mostrados na obra.
É no movimento das relações entre o sujeito, a história e a língua, como aponta Orlandi
(2013), que o sujeito é determinado e afetado pelos efeitos do simbólico. A partir dessa
afirmação é pertinente a colocação de que seria questionável existir a constituição do sujeito
sem que exista a exposição a uma forma de sociedade, esta que tem alicerces simbólicos que
afetam os sujeitos.
Embora no filme circule efeito de sentidos que estão atrelados à FD1, em que existe a
252
elevação do sujeito surdo pelo uso da LS, há normalidade em sua existência; temos efeitos de
sentidos que causam tensão entre FDs. Conforme aponta Orlandi (2013), quando se diz “x”,
deixa de dizer “y”. Nessa perspectiva, os enunciados não materializados significam no silêncio,
ou seja, há injunção à interpretação de sentidos outros que podem ser antagônicos. A autora
também enfatiza a questão da não transparência da linguagem, demonstrando que as palavras
não significam por si só, mas os sentidos são constituídos ideologicamente.
Em contraste com a FD1, identifica-se a FD2. Seguem alguns enunciados que são
congruentes à FD2:
Rodolphe, Gigi e Quentin Bèlier, pais e irmão de Paula, vão à escola buscá-la. Para
chamá-la a atenção, o pai surdo buzina várias vezes. A garota se aproxima do carro e fala:
Formulação 1: “Para de tocar buzina, pai. Vão pensar que você é louco.” (A família
Bèlier, 2014, 00:06:52 - 00:06:53).
Paula acompanha os pais até o consultório médico. Ele aconselha que o casal interrompa
as relações sexuais durante três semanas; os pais de Paula discordam, e a filha comenta:
Formulação 2: “Não podem se controlar um pouco? Não são animais!” (A família Bèlier,
2014, 00:08:40 - 00:08:44).
Paula informa aos pais que um amigo a visitará, e adverte-os:
Formulação 3: “Eu espero que não me façam passar vergonha.” (A família Bèlier, 2014,
00:30:43 - 00:30:44).
Quando o amigo de Paula chega à sua casa, fala sobre seu pai surdo:
Formulação 4: “Ele é um pouco estranho, não é? (A família Bèlier, 2014, 00:31:57 -
00:31:58).
Paula responde:
Formulação 5: “É... Um pouco selvagem.” (A família Bèlier, 2014, 00:32:00 - 00:32:01).
Os surdos eram vistos como animais, sem racionalidade, sem pudor; estranhados por
sua forma de comunicação; confundidos com loucos. Características estas, presentes nas
formulações expostas anteriormente. Nas formulações temos paráfrases de sentidos. Há
253
aproximações semânticas nos termos utilizados para comparar/referir ao sujeito surdo, a saber:
“animais”, “selvagem” e “louco” remetem à irracionalidade.
A cultura visual
Fica evidente na produção francesa aqui averiguada aspectos culturais da comunidade
surda, como já mencionado na seção anterior, a utilização da LS que é um dos principais
artefatos da cultura surda ; além disso, podemos frisar o uso da visualidade como sentido
primordial no estabelecimento da comunicação, isso acontece, por exemplo, quando Rodolphe
(surdo) está no quarto com sua esposa Gigi (surda), eles estão conversando. Em um momento
Gigi vira-se de costas para seu marido, como estão distantes um do outro, para chamá-la a
atenção, ele pisca a luz do abajur.
Quando o sujeito não ouve, ele lida, como consequência disso, com suas percepções de
mundo de um modo peculiar: usando a visão. Os ouvintes apreendem o mundo principalmente
pela audição e pela visão, no entanto com os surdos a principal via de informações é através da
visualidade. Desse modo, esse sentido torna-se potencializado. Dito isso, podemos expor que,
segundo Strobel (2008) é a experiência visual dos surdos que permite que eles compreendam
os acontecimentos em seu cotidiano. Diante disso, é constituída a cultura surda que é
representada pela língua de sinais, um dos principais artefatos culturais da cultura surda.
Retornando à questão da disputa de sentidos sobre surdos, lembremo-nos que Orlandi
(2007, p.158) afirma que a relação do sujeito com a linguagem é baseada na tensão entre
processos parafrásticos e processos polissêmicos. “A polissemia, nessa perspectiva, é função
do silêncio, pois ele permite a relação – ainda que indireta e sempre mediada – do sujeito com
o interdiscurso (a exterioridade). Relação que produz indistinção, instabilidade e dispersão”.
A contradição que alicerça o conceito de cultura visual resulta da tensão entre paráfrase
e polissemia e do confronto entre formações discursivas distintas. Referimo-nos ao fato de a
militância surda rechaçar a representação de sua identidade pela “ausência da audição” ao
mesmo tempo em que, ao definir sua identidade pela visualidade, o faz levando em
consideração justamente a ausência da audição. Uma possível justificativa que podemos
conjecturar em relação à “dependência” da falta de audição para vivenciar a visualidade é a
constituição social, ou seja, quando a sociedade é composta majoritariamente por pessoas
ouvintes, nela existem ideologias que entrelaçam os sujeitos a crerem no fato de que para ser
um “sujeito visual” precisa-se considerar a falta da audição, isso significa não ouvir para ter
percepções aguçadas estritamente pela visão. No Brasil, por exemplo, temos o contraste entre
surdo e ouvinte, normal e anormal, mesmo quando se quer justificar a visualidade pelo viés
cultural temos sentidos que recaem na FD da visão clínica da surdez, esta que está enraizada à
ideologia oralista.
Diante do exposto, seria possível ter uma formação visual sem a imprescindibilidade da
ausência da audição? Para refletirmos sobre essa questão tomamos como pressuposto que os
sentidos de surdo associados à deficiente, à anormal e de ouvinte à normal são convencionados
socialmente. Nessa perspectiva, podemos afirmar que uma forma de sociedade constituída por
surdos e ouvintes que tem a LS como naturalizada, em que todos a utilizam sem estabelecem
hierarquias entre surdos e ouvintes, tratar-se-ia de uma sociedade que tem uma formação visual
sem ter a ausência de audição como condição de sustentação da visualidade. Pizzio, Rezende e
254
Quadros (2010) comentam a singularidade da Ilha de Martha’s Vineyard, nos Estados Unidos,
da vila maia Yucatec, no México, e da vila Desa Kolok, na ilha de Bali, Indonésia. Em todos
esses lugares, a língua de sinais é adquirida naturalmente e surdos e ouvintes convivem
harmoniosamente, sobretudo linguisticamente.
Nessas sociedades, sinalizar não se confunde com anormalidade ou estranhamento, pois
todos partilham da mesma forma de comunicação. Diante disso, podemos pensar esses casos
como indícios de que nesses lugares é possível construir uma cultura visual sem
necessariamente não ouvir.
É nítido que, na concepção de Strobel (2008), a cultura surda tem seus pilares na
visualidade. Quando contrapomos essa postura com a percepção da surdez como uma patologia,
como anormalidade, percebemos que existe um movimento de contradição: para o sujeito surdo
viver pela visualidade, antes é preciso que ele seja desprovido da audição. Logo, está
implicitamente significado pela falta.
Esses discursos, ora de cunho clínico ora de cunho cultural, não são determinados pela
linguagem por si só, pois nela não há transparência. Os sentidos são determinados
ideologicamente. Segundo Orlandi (2013), os sentidos não são independentes, mas resultam de
determinações ideológicas no processo sócio-histórico em que os discursos são produzidos.
255
Contudo, mesmo diante das conquistas da comunidade surda, inclusive, a
obrigatoriedade da presença do profissional TILS, a sociedade ainda não compreende o papel
desse sujeito ouvinte sinalizante que discursa pelo/para o sujeito surdo. Diante do cenário de
desconhecimento acerca desse tipo de atuação decorre que, pela cultura ouvintista, o intérprete
é superior ao sujeito surdo, pois tem o aparelho auditivo em perfeito estado. O sujeito surdo é
visto como dependente do TILS. Até que ponto essa relação de poder entre intérprete (ouvinte)
e surdo desencadeia o fortalecimento da polarização entre a comunidade surda e a sociedade
ouvinte?
Partindo dessa proposição, verificaremos à luz dos estudos da AD quais efeitos de
sentidos materializam-se nas cenas em que Paula serve de intérprete para seus pais. Para isso
apoiamo-nos no que afirma Orlandi (2007), uma vez inscritos na história, os discursos (efeitos
de sentidos) não são controláveis e são suscetíveis a deslocamentos de sentidos. Há cenas que
é mostrada a relação harmônica entre os surdos Bèlier e sua filha CODA. Paula acompanha os
pais à consulta com o médico, interpreta tudo que é dito, translada de um idioma para o outro
possibilitando a comunicação; em casa Paula interpreta o noticiário da TV para os pais. Esses
acontecimentos citados estão em convergência com os sentidos de surdos politizados, uma vez
que tem acesso à informação de uma sociedade em geral; racional; valorizados enquanto
sujeitos diferentes, com língua e cultura. Esses efeitos de sentidos estão integrados a FD1.
Paula atua como intérprete para seu pai durante uma entrevista, ele se candidatara a
prefeito da cidade. No entanto, visivelmente, ela não está disposta a interpretar. O Sr. Bèlier
discorre acerca das suas propostas. Paula interpreta, reduz a fala do pai para uma única frase. O
surdo chega a questioná-la se realmente estão interpretando tudo que ele está falando. Ela
responde que sim. Em seguida, quando percebe que tem algo de errado, Rodolphe prefere tentar
oralizar para ser compreendido na íntegra. Paula se retira.
O acontecimento mencionado está entrelaçado aos sentidos pertencentes a FD2, pois o
surdo encontra-se na posição-sujeito de submisso, o intérprete detém o poder da fala, uma vez
que os demais não conhecem a LS. O surdo é silenciado. Identifica-se a reprodução dos
movimentos hierárquicos em que o ouvinte é intitulado como superior. Orlandi (2007) afirma
que a significação não se restringe às palavras, mas existe um fluido movimento de sentidos no
silêncio. Outro fato que demonstra a exaltação da ideologia oralista reproduzida no filme é a
necessidade de Rodolphe ter de parar de sinalizar e utilizar a oralização. Ele sai do conforto e
fluência de sua língua para tentar a comunicação oral, a língua do outro. Isso sugere sentidos
de superioridade do ouvintismo, pois, para ser compreendido, o surdo deve se padronizar aos
ouvintes.
No nosso gesto analítico contata-se que houve movimentos conflituosos entre FDs, ora
os sentidos direcionaram-se para o viés sócio-antropológico, ora para o viés oralista. Conforme
aponta Orlandi (2013), quando se diz “x”, deixa de dizer “y”. Nessa perspectiva, os enunciados
não materializados significam no silêncio, ou seja, há injunção à interpretação de sentidos
outros que podem ser antagônicos.
Considerações Finais
Ao término da análise podemos afirmar que nosso gesto analítico sobre o filme nos
permitiu melhor compreender que a formação discursiva não é homogênea, antes mantém
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relação de alianças e confrontos com outras formações discursivas, o que significa dizer que há
sempre divisão de sentidos e que o sentido está sempre “em relação à”. Os discursos são
estabelecidos pela repetição do já dito que operam na sustentação de paráfrases; e pelas
possibilidades de derivação de sentidos (o sentido pode sempre ser outro), que caracterizam a
polissemia.
Nos discursos materializados no corpus analisado categorizamos duas possíveis
matrizes de sentidos conflituosos atribuídos ao surdo: uma que evidência as paráfrases de
discursos inscritos em ideologias oralistas e outra em ideologias socioantropológicas.
A pesquisa não teve por finalidade apresentar resultados inquestionáveis, uma vez que,
através do dispositivo analítico da AD, buscamos evidenciar algumas das possibilidades de
circulação de sentidos abarcados aos discursos materializados no filme, mostrando o
funcionamento ideológico da linguagem.
Referências
GODOY, A. S. Pesquisa Qualitativa: Tipos fundamentais. Revista de Administração de
Empresas. SP, v.35, n. 3, p. 20-29, mai./jun.1995.
PIZZIO, A. L.; REZENDE, P. L. F.; QUADROS, R. M. de. Língua Brasileira de Sinais IV.
Florianópolis, UFSC, 2010.
STROBEL, K. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. (rev.) Florianópolis: Editora
da UFSC, 2008.
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