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Pesquisas 2020

Linguística
em Foco

Leosmar Aparecido da Silva


Priscila Renata Gimenez
Rogério Max Canedo
Rubens Damasceno-Morais
(Organizadores)

Cegraf UFG
PPGLL FL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FACULDADE DE
LETRAS E LINGUÍSTICA LETRAS

Universidade Federal de Goiás


Reitor
Edward Madureira Brasil
Vice-Reitora
Sandramara Matias Chaves

Diretora do Cegraf UFG


Maria Lucia Kons
Conselho Editorial deste livro

Gian Luigi De Rosa (Università degli Studi Roma Tre, Itália)


Joana Plaza Pinto (UFG)
Katia de Abreu Chulata (Università degli Studi G. d’Annunzio –
Chieti/Pescara, Itália)
Laura Silveira Botelho (UFSJ)
Luciene Maimone (Missouri State University)
Lynn Mario Trindade Menezes de Souza (USP)
Márcia Teixeira Nogueira (UFC)
Maria Helena de Moura Neves (Unesp)
Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira (UFPA)
Pâmela Freitas Toassi (UFC)
Ryuko Kubota (University of British Columbia, Canadá)
Sílvia Lúcia Bigonjal Braggio (UFG)
Vânia Casseb Galvão (UFG)
Wolf Dietrich (Westfälische Wilhelms-Universität, Alemanha)
Pesquisas 2020

Linguística
em Foco

Organizadores:
Leosmar Aparecido da Silva
Priscila Renata Gimenez
Rogério Max Canedo
Rubens Damasceno-Morais

Cegraf UFG, 2020


© Cegraf UFG, 2020
© Leosmar Aparecido da Silva; Priscila
Renata Gimenez; Rogério Max Canedo;
Rubens Damasceno-Morais, 2020

Projeto Gráfico
Allyson Moreira Goes

Revisão
Os textos foram revisados pelo/a
­orientador/a da pesquisa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

P474 Pesquisas 2020 : linguística em foco [E-book] / Organizadores, Leosmar


Aparecido da Silva ... [et al.] ; projeto gráfico, Alyson Moreira Goes. –
Goiânia: Cegraf UFG, 2020.
341 p. : il.

Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-89504-20-7​

1. Linguística. 2. Língua Portuguesa – Estudo e ensino. 3. Educação


- Linguagem. I. Silva, Leosmar Aparecido da. II. Goes, Alyson Moreira.
III. Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística.
CDU: 81:37

Bibliotecária responsável: Amanda Cavalcante Perillo / CRB1: 2870


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................................9

PARTE 1
LIVRO DIDÁTICO E ENSINO............................................................. 14

A mercantilização da fluência........................................... 15
Rossini Fonseca Silveira (PPGLL/UFG)
Neuda Alves do Lago (PPGLL/UFG)

A abordagem da metáfora em livros didáticos do


ensino fundamental: um estudo cognitivo-funcional.......34
Ivani Alberto das Dores (PPGLL/UFG)
Éderson Saraiva (PPGLL/UFG)
Leosmar Aparecido da Silva (PPGLL/UFG)

Concepção de língua/linguagem, letramentos,


multiletramentos e o ensino da língua portuguesa...........56
Dinete Andrade Soares Bitencourt (SEDUCE-GO/PPGLL/UFG)
Sinval Martins de Sousa Filho (PPGLL/UFG)

A importância da variação linguística no processo de


ensino-aprendizagem de língua portuguesa..................... 74
Luana Medeiros de Moura (SEEDF/PPGLL/UFG)
Sinval Martins de Sousa Filho (PPGLL/UFG)

Passos para a implementação da Pedagogia de


projetos e o ensino de línguas na escola............................93
Maria de Fátima Furtado Baú (SEDUCE/ SME/ PPGLL-UFG)
Sinval Martins de Sousa Filho (PPGLL/UFG)
A Base Nacional Comum Curricular em diálogo com
documentos oficiais: perspectivas para o ensino de
língua portuguesa no ensino médio................................ 112
Susana dos Santos Nogueira (PPGLL/UFG)
Eliane Marquez da Fonseca Fernandes (PPGLL/UFG)

PARTE 2
ARGUMENTAÇÃO, RETÓRICA E REDES SOCIAIS..........................131

Rotulação em situações de estase argumentativa


no programa Roda Viva................................................... 132
Nádia Vieira Simão (PPGLL/UFG)
Rubens Damasceno-Morais (PPGLL/UFG)

A imperatividade a serviço da retórica no discurso


publicitário: alguns percursos argumentativos.............. 152
Izac Vieira Chaves (PPGLL/UFG)

A emergência do suplício virtual nas redes sociais:


enunciados sobre a violência e práticas de
tortura verbal.................................................................. 175
Anielle Aparecida Fernandes de Morais (PPGLL/UFG)
Alexandre Ferreira da Costa (PPGLL/UFG)

PARTE 3
IDEOLOGIA E POLÍTICAS LINGUÍSTICAS..................................... 195

O campo de estudo das ideologias linguísticas como


possibilidade de desnaturalização das categorias
coloniais de língua e raça................................................ 196
Camila Leopoldina Batista dos Santos (PPGLL/UFG)
Ideologias linguísticas em performances de gênero,
sexualidade e desejo em interações para
encontros sexuais............................................................ 217
Mário Martins Neves Júnior (PPGLL/UFG)

PARTE 4
CONCEITOS LINGUÍSTICOS EM EXPANSÃO................................. 238

Sobre coisas que podem e vão dar errado:


economias performativas numa Linguística do
Tensionamento............................................................... 239
Ana Luiza Krüger Dias (PPGLL/UFG)

Os conceitos linguísticos de Leonard Bloomfield............ 257


Helda Núbia Rosa (UFG/CAPES/SEDUC)
Sebastião Elias Milani (PPGLL/UFG)

Zilberberg e a expansão dos conceitos greimasianos


para o estudo dos textos.................................................. 276
Pedro Henrique da Silva (PPGLL/UFG/CAPES)
Sebastião Elias Milani (PPGLL/UFG)

Lentes viajantes: o olho errante ocidental na visão de


ciência única...................................................................296
Thaís Elizabeth Pereira Batista (PPGLL/UFG)

Desenvolvimento linguístico em Demência


frontotemporal: uma revisão sistemática....................... 316
Thaís Fernanda Amorim Cassiano Marafon (PPGLL/UFG)
Mariana Maia Cabral (PPGLL/UFG)
Elena Ortiz Preuss (PPGLL/UFG)
APRESENTAÇÃO

Apesar desses dias de Covid_19, conseguimos chegar ao final de


2020 com uma ótima safra de trabalhos ligados ao campo de estudos lin-
guísticos do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Universidade Federal de Goiás (PPGLL/UFG). Mesmo com toda a crise
sanitária global, as pesquisas não pararam, como prova este volume, que
ora apresentamos, com trabalhos de docentes e discentes da UFG.
Nesse sentido, ficamos muito contentes de podermos apresen-
tar os 16 trabalhos que agrupamos, a seguir, em quatro eixos temá-
ticos, todos ligados à Área de Estudos Linguísticos do PPGLL/UFG:
Eixo 1) Livro didático e ensino, Eixo 2) Argumentação, Retórica e redes
sociais, Eixo 3) Ideologia e políticas linguísticas, Eixo 4) Conceitos lin-
guísticos em expansão.
O Eixo 1, Livro Didático e Ensino, conta com 6 trabalhos, os
quais lançam um olhar cuidadoso sobretudo à questão do ensino e seus
desdobramentos. O primeiro trabalho, A mercantilização da fluência,
busca discutir as relações dos sujeitos com contextos sociológicos que
são veiculados por ambientes virtuais e mídias, bem como analisar
processos semióticos que performam língua como artefato para a pro-
moção e ascensão econômica, profissional e social de aprendizes de
inglês como língua estrangeira. O segundo trabalho, A abordagem da
metáfora em livros didáticos do ensino fundamental: um estudo cogniti-
vo-funcional, investiga como a metáfora é abordada em livros didáticos
de língua Portuguesa, a partir da análise de dois livros didáticos apro-
vados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), pertencentes
a coleções distintas. A terceira pesquisa, Concepção de língua/lingua-
gem, letramentos, multiletramentos e o ensino da língua portuguesa, ob-
jetiva refletir a respeito das perspectivas teóricas sobre as concepções
de linguagem, letramentos e multiletramentos, assim como suas con-
tribuições para o ensino da língua portuguesa, a partir de três concep-
ções distintas de linguagem. O quarto trabalho desse primeiro grupo,
A importância da variação linguística no processo de ensino-apren-
dizagem de língua portuguesa, busca refletir sobre a importância do
tema variação linguística no processo de ensino-aprendizagem, a par-
tir de uma abordagem metodológica da pesquisa bibliográfica com
documentos curriculares oficiais para descrever e analisar dados de
um livro didático. O quinto trabalho, Passos para a implementação da
Pedagogia de projetos e o ensino de línguas na escola, pauta-se nos gê-
neros discursivos, integrando linguística e literatura e articulando as
práticas de leitura, produção texto e análise linguística, com o objetivo
descrever como operacionalizar a organização do trabalho pedagógi-
co da disciplina de Língua Portuguesa no Ensino Médio (EM) por meio
da proposta de ensino Pedagogia por Projetos. O último trabalho des-
te primeiro eixo de pesquisas, A Base Nacional Comum Curricular em
diálogo com documentos oficiais: perspectivas para o ensino de língua
portuguesa no ensino médio, discute como o conceito de dialogismo
bakhtiniano está presente na Base Nacional Comum Curricular para o
Ensino Médio (BNCC/LP/EM, 2018), quanto aos conhecimentos em lín-
gua portuguesa, a partir da análise de documentos oficiais, tais como:
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e Orientações Curricula-
res Nacionais para o Ensino Médio.
O segundo eixo temático, Argumentação, Retórica e Redes So-
ciais, apresenta três pesquisas que veem na perspectiva da argumen-
tação e comportamento das redes sociais um bom caminho de pesqui-
sas a trilhar. O primeiro trabalho deste grupo, Rotulação em situações
de estase argumentativa no programa Roda Viva, parte da ideia de es-

- 10 -
tase argumentativa, ou conflito de opiniões, para discutir a rotulação
como estratégia de preservação da face. O estudo foi realizado a partir
do recorte de uma entrevista televisiva do programa Roda Viva cujo
entrevistado foi o jornalista e advogado Glenn Greenwald. O segundo
texto do grupo, A imperatividade a serviço da retórica no discurso pu-
blicitário: alguns percursos argumentativos, tem o objetivo de analisar,
num sentido amplo, como a retórica é utilizada em propagandas cons-
tantes em três revistas brasileiras com fins argumentativos e, ainda,
como o fenômeno da imperatividade é construído a partir de recursos
retóricos e pragmáticos. Já o último texto desse grupo, A emergência
do suplício virtual nas redes sociais: enunciados sobre a violência e prá-
ticas de tortura verbal, avalia enunciados que emergiram de um boa-
to que circulou na internet em 2014 e que resultaram no linchamento
popular de uma mulher na cidade de Guarujá, São Paulo. A pesquisa
apoia-se em pistas sobre a tematização da violência na mídia que re-
percute na modificação da noção de justiça e na cada vez mais pujante
assunção à pena de morte como tipo de punição exequível no Brasil,
porém, ainda não regulamentada.
O terceiro eixo temático, Ideologia e Políticas Linguísticas, com-
posto por dois trabalhos, volta-se para a discussão das diversas formas
de manifestação da ideologia na linguagem, a partir de recortes diver-
sos. No primeiro trabalho deste grupo, O campo de estudo das ideolo-
gias linguísticas como possibilidade de desnaturalização das categorias
coloniais de língua e raça, pretende-se uma discussão teórica sobre
o campo de estudo das ideologias linguísticas como possibilidade de
desnaturalização das categorias coloniais de língua e raça, visando res-
significar as formas de pensar as práticas linguísticas e os impactos
dessas naturalizações na vida social. Já a segunda pesquisa apresen-
tada, Ideologias linguísticas em performances de gênero, sexualidade e
desejo em interações para encontros sexuais, analisa como as ideologias

- 11 -
linguísticas e metapragmáticas acionam ideologias sobre gênero, se-
xualidade e o próprio desejo. O trabalho é resultado de uma entrevista
com um sujeito que mantém encontros sexuais com homens gays, ca-
sais ele-ela e homens heterossexuais.
O quarto e último eixo temático, Conceitos Linguísticos em Ex-
pansão, apresenta cinco pesquisas que circunscrevem seus trabalhos
a partir de perspectivas teóricas afins, propondo reflexões acerca de
conceitos diversos do campo da Linguística. O primeiro trabalho, So-
bre coisas que podem e vão dar errado: economias performativas numa
Linguística do Tensionamento, propõe uma reflexão sobre a produção
de economias performativas de textos e contextos, a partir do reconhe-
cimento da relação entre a falha como elemento constitutivo do ato de
fala e a circulação de efeitos pragmáticos entre/nos corpos e espaços.
O segundo trabalho deste grupo, Os conceitos linguísticos de Leonard
Bloomfield, busca mostrar como Bloomfield contribuiu com uma nova
perspectiva da linguística ao debater temas como língua, falante, fo-
nema e comunidade de fala de um ponto de vista ainda não estudado e
que atualmente serve como aporte teórico para os novos linguistas. O
terceiro trabalho, Zilberberg e a expansão dos conceitos greimasianos
para o estudo dos textos, volta-se para uma reflexão acerca do trabalho
desenvolvido pelo semioticista Claude Zilberberg, dada a sua contri-
buição para a expansão da teoria semiótica greimasiana, sobretudo a
questão do afeto, a partir da ótica da Historiografia Linguística e da
epistemologia dos Programas de Pesquisa de Imre Lakatos. O quarto
trabalho, Lentes viajantes: o olho errante ocidental na visão de ciência
única, discute a abordagem etnográfica como proposta metodológica
para estudos da linguagem, com o objetivo de discorrer sobre a etno-
grafia como perspectiva de pesquisa, que tenha compromisso com
a empiria, a partir dos problemas de pesquisa para as categorias de
análise e nunca o contrário. O último trabalho deste grupo, Desenvol-

- 12 -
vimento linguístico em Demência frontotemporal: uma revisão sistemá-
tica, realiza um levantamento nas bases de dados SciELO, P
­ ubMed,
­LILACS e BDTD, entre os anos 2000 e 2020, incluindo estudos nacio-
nais e internacionais, que analisam o desempenho da linguagem em
indivíduos com DFT, e/ou seus subtipos e variantes. Ali se discorre
sobre as consequências no processamento da linguagem em casos de
demência que afeta o lobo frontal e temporal do cérebro.
Por fim, é importante já destacar que os temas abordados neste
livro em certa medida serão contemplados nas dissertações ou teses
em andamento a partir de 2017 (trabalhos de doutorado) e a partir de
2018 (trabalhos de mestrado). E, por isso, os textos apresentam pesqui-
sas em estreita ligação com estudos ainda em fase de elaboração, o que
não significa que os textos aqui apresentados sejam versões incomple-
tas, uma vez que são o resultado de pesquisas já realizadas e concluídas
ao longo da trajetória dos(as) discentes(s) no nosso Programa.
Ainda, destacamos que esta publicação só foi possível por conta
do esforço de todos(as) os(as) discentes e docentes que, para lá da tare-
fa de elaboração de suas dissertações e teses, encontraram disposição
para compartilhar suas reflexões, ancoradas em suas pesquisas. Dese-
jamos uma ótima leitura e, ainda, que a crise sanitária que nos assola
seja, em breve, mera página virada desse loongo 2020.

Os organizadores

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PARTE 1
LIVRO DIDÁTICO E ENSINO
A mercantilização da fluência 1

Rossini Fonseca Silveira (PPGLL/UFG)


Neuda Alves do Lago (PPGLL/UFG)

RESUMO

Com a globalização e a internet, novas formas de comunicação surgi-


ram, extrapolando fronteiras geográficas e culturais. Nessa nova confi-
guração, o inglês se estabelece como língua franca e promove o aque-
cimento do mercado de idiomas. Assim, o foco deste estudo é discutir
as relações dos sujeitos com contextos sociológicos que são veiculados
por ambientes virtuais e mídias, bem como analisar processos semió-
ticos que performam língua como artefato para a promoção e ascensão
econômica, profissional e social de aprendizes de inglês como LE. Para
tanto, o presente estudo analisa duas campanhas de métodos de ensino
de inglês, veiculadas em redes sociais, que prometem aos usuários fa-
cilitar o alcance da fluência. As conclusões apontam para a promoção
de um novo senso-comum sobre o conceito de fluência, reconfigurado
a partir da mercantilização do inglês, via recursos virtuais e midiáticos.
Palavras-chave: Aprendizagem de inglês; Processos semióticos; Fluência.

1 Este texto foi devidamente revisado pelos autores, e os conceitos aqui mobilizados são
de responsabilidade dos autores, com anuência da orientadora.
ABSTRACT

With globalization and the internet, new forms of communication


have emerged, surpassing geographical and cultural boundaries.
In this new configuration, English is established as the lingua fran-
ca and promotes the warm-up of the language market. Thus, the fo-
cus of this study is to discuss the relationships of subjects with so-
ciological contexts that are conveyed by virtual environments and
media, as well as to analyze semiotic processes that perform lan-
guage as an artefact for the promotion and economic, professional
and social ascension of EFL learners. In order to do that, the pre-
sent study analyzes two campaigns of English teaching methods,
launched in social networks, which promise users to facilitate the
attainment of fluency. The conclusions point to the promotion of a
new common sense about the concept of fluency, reconfigured from
the commercialization of English by virtual and media resources.
Keywords: Learning English; Semiotic processes; Fluency.

PALAVRAS INICIAIS

A ideia de fluência e as representações que dela são derivadas


têm causado, na área de ensino de línguas, um misto de inquietude e
insegurança. Percebemos um uso referencial de língua como algo ca-
paz de intercambiar perspectivas e corpos por meio de práticas meta-
linguísticas. É como se toda as marcas culturais e diferentes perspecti-
vas dos usuários de uma determinada língua pudessem ser convertidas
em um modo único de uso. A referência clássica é o/a falante nativo/a,
como se dele/a emanasse o ‘inglês’ desejável para todos. É aquela ideia

- 16 -
do inglês padronizado a partir do norte global, que circunscreve as
crenças de muitos aprendizes sobre aprendizagem, e que tem aqueci-
do o mercado dos idiomas no Brasil.
Há que se considerar ideologias linguísticas que operam sob o
signo “fluência”, revestindo seu uso de práticas sociais e culturais, ar-
tefactualizando-o como um instrumento a serviço não só da interação
verbal, mas da ação política e da imposição, do fortalecimento e da dis-
puta das hierarquias sociais, do que é padrão e da escolarização (WOO-
LARD, 1998). Tais ideologias agem como mecanismos de distorção da
realidade, ocultando ou legitimizando as relações assimétricas de po-
der, e transformam entidades culturais em mercadorias padronizadas
comercializáveis através da mídia.
Essa versão de língua que coopera para a produção e aplicação
de normas de uso ‘oficial’ é uma forma de marginalizar a existência
de variações. Tratar o desempenho em uma língua estrangeira como
mero ato de comunicação é suprimir o caráter singular que ele exerce
na constituição subjetiva, como se fosse possível pensar em uma lín-
gua desconsiderando os seus múltiplos usuários, ou mesmo categori-
zar sujeitos sem refletir sobre suas línguas. Tal não se faz possível, uma
vez que ambos estão imbricados na constituição de sentidos tanto de
atos comunicativos quanto não-comunicativos.
Tecemos uma crítica ao estado de ilusão de que os atos de comu-
nicação devam promover sempre um perfeito entendimento entre os
interlocutores. O exercício da língua presume deslizes, falhas e desen-
tendimentos no discurso entre emissor e receptor, mesmo em língua
materna. Tal fato é ampliado significativamente em práticas linguís-
ticas em língua estrangeira, em que há uma maior experiência com o
novo, tanto no que tange a estruturas linguísticas, quanto a novos sons,
a novos modos de representar e se posicionar em atos de fala.

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O ‘falar’ uma língua estrangeira exige uma complexidade estrutu-
ral que supera o exercício de habilidades e visa à comunicação de men-
sagens ou à resolução de problemas operacionais. Como explica Revuz
(1998, p. 217), “toda tentativa de aprender uma outra língua vem pertur-
bar, questionar, modificar aquilo que está inscrito em nós com as pala-
vras da primeira língua”. Dessa forma, a aprendizagem de uma língua
estrangeira impõe um embate que desestabiliza um mundo já organiza-
do pela língua materna, e faz parte da instituição do ser sujeito.
Portanto, refletir sobre como o termo fluência tem sido trans-
formado em um produto delimitado e comercializado, enquanto pro-
cesso de reorganização para o ato de fala em inglês como LE; sobre as
relações dos sujeitos com contextos sociológicos que são veiculados
por ambientes virtuais e mídias; e sobre a análise de processos semió-
ticos que performam língua como artefato para a promoção e ascensão
econômica, profissional e social dos indivíduos, constitui a tônica de
desenvolvimento deste estudo.

A metapragmática no uso do termo fluência

O substantivo feminino fluência deriva etimologicamente do


termo Latim fluentĭa que significa algo que flui, atribuído, de forma fi-
gurada, ao que ocorre natural ou espontaneamente. Em buscas rápidas
sobre o conceito de fluência em dicionários, tais como: Michaelis, Au-
lete digital, Dicionário Online de Português e Infopédia, encontramos,
repetidamente, os termos facilidade, espontaneidade e clareza para
caracterizar a capacidade de expressão relacionada ao desempenho da
fala e da escrita. Essas descrições orientam um uso da linguagem com-
preendida como metapragmático, pois como explica Silverstein (1998),
esses termos não só explicam, mas afetam o uso da linguagem como
uma força que molda práticas verbais.

- 18 -
Tais características semânticas atribuídas à fluência influen-
ciam a formação do senso comum sobre o que ela vem a ser. Contudo,
ainda são muito genéricas e carecem de recursos técnicos capazes de
descrever, de forma detalhada, seu desenvolvimento. Afinal de contas,
em que situação de uso significa ‘dizer algo com facilidade’? Quais são
os elementos linguísticos que identificam alguém que ‘fala com espon-
taneidade’? E ainda, o que quer dizer ‘se expressar com clareza’?
Yang (2014) apresenta alguns estudos sobre fluência na área de
aprendizagem de línguas, os quais versam sobre seu desenvolvimento
longitudinal, a distinção entre aprendizes fluentes e não-fluentes, e seu
aprimoramento. A maioria desses estudos investigou o número de pala-
vras enunciadas por minuto e as pausas realizadas. Conforme pontua o
autor, não é uma tarefa fácil definir tampouco delimitar a fluência.
Faz-se mister investigar peculiaridades entre fluência e as ca-
tegorias de julgamento da proficiência em LE. De acordo com Soares
(2017, p. 464), a “falta de perspectiva técnica de como os elementos
componentes do fenômeno prosódico fluência se comportam duran-
te a produção da fala impede que professores/avaliadores justifiquem
seu julgamento”. A autora propõe uma consulta ao Quadro Europeu
Comum de Referência (QECR) para línguas, muito utilizado para o jul-
gamento dessas categorias. Nele, professores/avaliadores investigam
as práticas de produção oral, por meio da combinação de categorias,
tais como: estratégias de tomada de palavras; estratégias de coopera-
ção; pedido de clarificação; fluência; flexibilidade; coerência; desen-
volvimento temático; correção; competência sociolinguística; âmbito
geral; amplitude do vocabulário; domínio da fonologia (QECR, 2001,
p. 264-265). Vê-se que a proficiência abrange, no QECR, além da fluên-
cia, categorias relacionadas aos componentes do sistema linguístico
(léxico, gramática, semântica e discurso) que são observados a partir

- 19 -
da produção (fala e escrita) de aprendizes de L2, e determinam sua ca-
pacidade linguístico-comunicativa, com classificação em níveis.
Lacunas técnicas para a acuidade na avaliação da fluência têm
transformado aprendizes de inglês como LE em presas fáceis para o
mercado de idiomas. A observação de dados empíricos mostra que a
fluência passou a ser uma exigência das organizações, principalmen-
te em níveis hierárquicos maiores, e tem motivado a propagação de
enunciados que circulam de forma translocal, por meio de uma grande
quantidade de mídias impressas e virtuais. Essa miríade de materiais
explicita dizeres de ordem sociohistórica e ideológica, com o propósito
de iterar sentidos sobre aprender inglês em tempos fluxos.
Valores indexicais ligados ao alcance de um sotaque nativo evo-
cam a imagem de uma pessoa bem-sucedida que merece obter um
emprego melhor e ascender financeiramente. Por outro lado, Milroy
(2011) trata da contraposição entre falantes e linguistas sobre a legi-
timidade da ideologia da língua padrão e do uso dos termos padrão e
padronização, sem o reconhecimento de suas diferenças. Para o autor,
a uniformidade é uma propriedade do sistema linguístico, não dos fa-
lantes, e sua totalidade nunca é atingida na prática, sendo necessário
considerar os estados de língua que são indeterminados e indefinidos.
Portanto, é preciso pensar a língua como um processo dinâmico, instá-
vel e assíncrono, mas não como uma categoria ou atividade universal.
A partir das discussões teóricas oferecidas nesta seção, perce-
bemos que os processos descritos acima têm operado sobre o conceito
de fluência, cooperando para a estratificação dos aprendizes/profes-
sores(as), enfim, usuários(as) de LE, segundo princípios hierárquicos.
Nesse sentido, grupos são categorizados e hierarquizados por seu de-
sempenho ao falar uma LE, em nome de padrões cujas normativas téc-
nicas são importadas, e tratam a língua como algo estático, imune às
exigências evocadas pelas relações sociais dos seus novos falantes, aos

- 20 -
contextos e, sobretudo, às influências culturais, identitárias e linguís-
ticas advindas das línguas nativas de seus aprendizes.
No rumo contrário a essas questões, a procura pelo “inglês” só
aumenta, e sua hegemonia é discutida na próxima seção.

Globalização: um mundo em inglês

O advento da globalização e da internet trouxeram consigo no-


vas formas de comunicação que desafiam as referências e extrapolam
limites geográficos e culturais. Nesse cenário tecnológico, o acesso e o
trânsito iminentes de informação acirraram as disputas pela eleição
de um idioma capaz de possibilitar o fluxo comunicativo de forma glo-
bal. A suposta exigência de uma língua internacional desenraizada de
fronteiras geopolíticas, aliada às condições de produção historicamen-
te relacionadas à mídia, ao marketing, à ciência, à técnica e ao progres-
so, instanciou a materialidade ideológica de que a língua inglesa supri-
ria essa necessidade, tendo como principal alegação o fato de ser inglês
o idioma de comunicação utilizado entre muitos falantes de diferentes
línguas maternas.
Sobre essa discussão, Assis-Peterson e Cox (2007) apontam a
presença insidiosa da ideologia burguesa, como mecanismo de distor-
ção da realidade e legitimação das relações assimétricas de poder que
potencializam a dominação. De acordo com as autoras,

não são poucos os estudos que lêem a globalização do inglês como


obra diabólica dos Estados Unidos, como abuso de seu descomu-
nal poder econômico, bélico e político no conjunto das nações.
Usando menos a força bruta e mais o poder simbólico como estra-
tégia de dominação, o imperialismo entronou novos deuses, “pro-
meteus” da modernidade – a ciência, a tecnologia e o banquete do
consumo – que se expressam, sobremaneira, em inglês e fecun-
dam a imaginação de pessoas de todos os cantos da Terra com a
ambição do progresso. (ASSIS-PETERSON e COX, 2007, p. 6)

- 21 -
Nesses termos, o uso do inglês como língua franca canaliza o
objetivo ocidental ‘do ter mais’, que está agregado à felicidade. A difu-
são do inglês institui e afirma uma contínua manutenção de desigual-
dades estruturais e culturais em relação às outras línguas. Essa raiz
hegemônica do período colonial é sustida por agências britânicas e
norte-­americanas, por meio de estruturas materiais e institucionais
de argumentação ideológica, direcionadas ao ensino de inglês no mun-
do, com interesses capitalistas.
Tal propósito não só é agenciado pela promoção do inglês como
língua pura, legítima, em suas características intrínsecas, ou extrinse-
camente pela disponibilização de insumos – materiais e suporte – para
todos os navegadores da Internet, mas também por seu caráter funcio-
nal, como passaporte de acesso a um mundo global. Contudo, essa as-
cendência do inglês tem se traduzido em uma ameaça à vida das demais
línguas e ao multilinguismo, enfatizando a necessidade de políticas lin-
guísticas de enfrentamento que “promovam as línguas minoritarizadas
na conjuntura da globalização” (ASSIS-PETERSON e COX, 2007, p. 7). A
voz do inglês tem encontrado eco nos desejos de aprendizes por todo
o mundo e é cultivada por uma agenda comercial que promete rápida
aprendizagem da língua, em horários flexíveis, ambientes cada vez mais
virtuais, contato com nativos, suporte e materiais, inclusive fluência,
para aprendizes em qualquer nível de aprendizagem. Esse novo con-
texto de aprendizagem de inglês também repercutiu/repercute para a
construção do conceito de fluência, tema a ser discutido abaixo.

O mundo tecnológico e a formação do novo senso comum


sobre fluência

Se considerássemos fluência como sendo a capacidade de falar


como um “nativo”, estaríamos, consciente ou inconscientemente, con-

- 22 -
cordando que, para ser fluente, seria necessário abandonar qualquer
vestígio da língua materna ao falar a língua-alvo, o que significaria in-
corporar a identidade cultural desse idioma à identidade dos apren-
dizes. Contudo, é preciso considerar que esse caminho não só traz
consigo implicações diretas em questões afetivas, de autoestima e de
pertencimento ao grupo cultural, como também implica em questões
referenciais, tais como os objetivos pessoais relacionados ao aprendi-
zado de inglês.
Devemos considerar movimentos naturais, fatores históricos,
geográficos e socioculturais que provocam variações regionais na rea-
lização linguística dos falantes de inglês como primeira língua. Tais
diferenças decorrem da necessidade de pluralização do sistema lin-
guístico para comportar eixos de diferenciação estilísticas, regionais,
socioculturais, ocupacionais e etárias. Esse conjunto de mudanças en-
globa vários subsistemas constitutivos de qualquer língua, tais como:
fonético, morfológico, fonológico, sintático, léxico e semântico. Por-
tanto, que ‘nativo’ seria o parâmetro para fluência?
Em estudos sobre World Englishes, processos linguísticos que
resultam em múltiplas variações de inglês que surgiram no mundo sob
a influência de processos históricos, econômicos e políticos (KUBOTA,
2001). Autores como Kachru e Nelson (1996) afirmam que variedades da
língua inglesa se difundiram com a ajuda do processo de colonização
promovido por países anglofalantes. Para os autores, o início da expan-
são da língua Inglesa se dá a partir do transporte de cidadãos dos países
colonizadores para as colônias, proporcionando contato entre diferen-
tes povos e idiomas. Mais tarde, o progresso da globalização econômica
alavancou essa movimentação que, conforme Mufwene (2010), ainda
mantém uma forte conexão com o processo de colonização.

- 23 -
Para Kachru (2005), apesar da maioria dos especialistas do Cír-
culo Interno (países em que a língua inglesa é nativa), Círculo Externo
(países falantes de inglês como segunda língua) e Círculo Expandido
(países em que a língua inglesa tem importantes funções e é estudada)
ainda considerarem as variantes britânica e Americana do Inglês como
referência de ensino, muitos membros admitem as diferenças regio-
nais. Tendo em vista que o número de falantes não-nativos já superou,
em muito, o de nativos, seria um equívoco associar a fluência em inglês
diretamente ao abandono da identidade do aprendiz com sua língua
materna, ou mesmo ao domínio de apenas uma de suas variantes lin-
guísticas. Os caminhos conduzem ao mesmo ponto: a desmistificação
da fluência como realidade empírica.
Na falta de consenso, o melhor então, seria separar os achismos
e trabalhar na formação de um novo senso-comum, orientado e condi-
zente com o mundo atual? Para ilustrar esta questão, comentaremos
duas campanhas de youtubers que trabalham o termo fluência numa
perspectiva que se aproxima do desejo de muitos usuários. O princi-
pal elemento no discurso de ambos é o desenvolvimento de técnicas
e estratégias que facilitem a interação em língua inglesa e conduza os
aprendizes à sensação de fluidez e espontaneidade no uso do idioma.
Primeiro, o professor Mairo Vergara, 35 anos, formado em Le-
tras, desenvolveu um método de ensino de inglês que atendeu mais
de 40 mil alunos desde seu início, em 2014, de acordo com Colbideli
(2018). A marca tem impressionado escolas tradicionais de idioma
que já estão no mercado há mais de 10 anos. De acordo com a autora,
o sucesso desse método é atribuído a três fatores: foco no produto,
domínio completo de uma única estratégia de vendas e oferta de muito
conteúdo grátis. A técnica é inspirada em golpes de boxe para atingir
seus clientes e se chama “jab, jab, jab, right hook”, de autoria do especia-
lista em marketing Gary Vaynerchuk.

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No boxe, Jabs são soquinhos leves que distraem a atenção do ad-
versário até a execução do right hook, golpe que o leva a nocaute. Este
tipo de estratégia, no campo do marketing, significa oferecer material
grátis (vídeos, podcasts e e-books) para agregar valor à marca e, só de-
pois, realizar a venda de fato. Mairo Vergara já acumula mais de 1,5 mi-
lhão de inscritos em seu canal do Youtube, mais de um milhão de se-
guidores no Instagram e mais de dois milhões de curtidas no Facebook.
Como parte do aparato semiótico, o youtuber realiza campa-
nhas publicitárias em redes sociais que sensibilizam usuários a partir
de chamadas, tais como: “Como ser fluente sem saber nada de inglês”
(2016); “O caminho até a fluência em inglês” (2017); e “Do zero à fluên-
cia” (2019). Não há como negar o nível de apelação na escolha da pala-
vra fluência em relação a níveis iniciais de conhecimento em inglês,
algo. Contudo, o autor consegue conduzir o usuário a perceber certa
coerência, pois o conjunto semântico se estrutura na relação do ter-
mo fluência com conhecimento da língua, a partir de práticas sociais,
e não do conhecimento sobre a língua.
Para melhor entender esse processo, o primeiro autor se inscre-
veu em uma dessas campanhas e acompanhou seu desenvolvimento,
pelo YouTube. O título da campanha foi, “Rumo à fluência em inglês”:
um conjunto de vídeos gratuitos que busca angariar alunos para a se-
mana do inglês, evento online ocorrido entre 05 e 09 de agosto de 2019
(soquinhos) e, posteriormente, a cursos semestrais, pagos (nocaute).
Na campanha, Mario Vergara e sua equipe explicam expressões
idiomáticas, dão dicas e ensinam regras de uso da língua inglesa, por
meio de trechos de filmes, séries famosas e depoimentos. Os vídeos são
gravados ao vivo e são apresentados em 3 telas que aparecem no dis-
play, simultaneamente. Numa, está o/a apresentador/a, em outra são
dispostos trechos dos filmes/séries, assim como as explicações sobre o
tema da aula. Na terceira, se pode visualizar um chat com as perguntas,

- 25 -
sugestões, comentários ou críticas dos seguidores acerca do que está
sendo assistido. Este último item é o termômetro que direciona o dis-
curso do/a apresentador/a em relação a ênfases, paradas, retificações
e reorientações.
O ambiente de gravação dos vídeos se assemelha ao de um es-
critório em uma residência que, junto com discurso, itera a crença de
que é possível aprender inglês em qualquer lugar, desde que seja da
“forma certa”, comentário feito por Vergara, referindo-se ao seu mé-
todo. Em seus discursos, o youtuber desmistifica as crenças de que,
para aprender inglês, seja necessário morar no exterior, começar
quando criança, ter uma boa capacidade de memorização ou nascer
com um dom especial para o aprendizado de línguas. Porém, ao longo
dos vídeos, a ideia de facilidade em se tornar fluente vai sendo des-
construída paulatinamente.
Vergara vai mostrando gradualmente que a fluência exige treino,
repetições, persistência, e um tempo indefinido, como pode ser nota-
do no trecho abaixo:

“Você vai estudar pelo menos 15 minutos, saca só, Mairo Vergara
falando isso! Você vai estudar pelo menos 15 minutos de pronun-
ciation, pronunci [...] Ah, Mairo, mas você sempre disse que não
precisava estudar pronúncia. Sim, eu fiquei fluente em inglês
sem estudar pronúncia. Durante muito tempo eu defendi a ideia
de que não era necessário estudar pronúncia, que pronúncia era
só um complemento. Eu sou cabeça dura, mas não tão dura as-
sim. [...] E recentemente, fazendo muitas pesquisas, buscando
evoluir os meus métodos e tudo mais aí, que eu faço relacionado
a inglês. Eu cheguei à conclusão que estudar pronúncia, não vi-
sando você ter a pronúncia perfeita, não visando ficar corrigin-
do os erros dos outros, não! O cara falou aquela palavra um pou-
quinho errado, dane-se, tá! Isso não importa! Pronúncia quer
dizer o quê, você estudar os sons do idioma, o ritmo do idioma, a
entonação do idioma”. (VERGARA, 2016)

- 26 -
A metodologia certa, para Vergara, é aquela que apresenta uma
abordagem rápida e eficiente. Contudo, os vídeos gratuitos tratam
dos aspectos da língua de forma superficial. Eles vendem uma ingê-
nua ideia de eficiência por meio de práticas que sitiam a língua de
uma tímida metapragmática, criando atalhos, desprovidos de base
teórica. Não há preocupação com aspectos metalinguísticos, mas
atrai adeptos e gera lucros.
O segundo exemplo a ser considerado neste estudo é Rhavi Car-
neiro. Forte influenciador das redes sociais, este brasileiro de Curitiba
tem seu foco no Instagram e no Facebook, onde posta diariamente a
“One minute Tip”, com dicas relacionadas à pronúncia nativa, gramática,
expressões e gírias americanas. Rhavi, apesar de não revelar sua forma-
ção acadêmica, se diz um revolucionário no ensino de inglês. O profes-
sor Rhavi, como também é conhecido, já escreveu vários e-books, dentre
os quais distribui gratuitamente: English for Business, 31 erros mais co-
muns, 20 gírias em inglês e The fluency hacking method.
De acordo com o autor, que também é youtuber, o desenvolvi-
mento de seu método visa facilitar o aprendizado de línguas, trocando
o processo longo e ineficaz das escolas tradicionais por um outro mais
dinâmico e prático, que promete, dentro de alguns meses, alavancar o
inglês dos internautas de uma forma que eles nunca imaginaram que
seria possível.
Para este texto, escolhemos analisar e-book: Fluency hacking
method, que é distribuído gratuitamente, em PDF, e serve de referência
para a campanha do ano de 2019. Nele, o autor descreve sua trajetória
de aprendizagem e afirma, com base na leitura de Kató Lomb – falan-
te de 16 idiomas, que o aprendizado de uma língua requer motivação,
tempo investido e ausência de inibição. Para Rhavi, a motivação é a
única força capaz de fazer os aprendizes perseverarem em momentos
quando o aprendizado de uma LE se torna desafiador.

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Dividida em duas partes, a obra promete transitar da teoria à
prática, preparando o leitor para compreender os conceitos por trás
do método, o que resultará na confiança e objetividade necessárias
para se aprender e adquirir fluência em qualquer idioma, inclusive in-
glês. São 111 páginas que discutem o treino de habilidades linguísticas,
tendo como referência a percepção do aprendiz, ponto em que a anco-
ragem persuasiva se fundamenta. Os títulos dos capítulos e seções são
escritos em inglês coloquial, reforçando um certo grau de intimidade
com o objeto em questão, mas com explicações fluidas que alegam um
distanciamento das referências teóricas.
Contudo, numa olhada mais atenta, percebe-se a ligação do mé-
todo com pontos relevantes das teorias de aquisição e aprendizagem
de segunda língua. Só para ilustrar, apontamos a imersão na língua,
da teoria de aculturação defendida por Schumann (1978), que pode ser
observada no trecho:

“Imagine que quando aprendemos inglês aqui no Brasil esta-


mos em contato com o idioma por cerca de duas ou três horas
semanais, e só. O fato de ouvirmos e praticarmos a língua por
tão pouco tempo semanalmente, torna a missão de aprendê-la
muito mais difícil. Quando um aluno aprende algo novo em uma
aula, normalmente pratica aquele conhecimento algumas vezes
durante a aula e muitas vezes passa dias, semanas ou até meses
sem ouvir aquilo novamente. O resultado disso todos sabem, nós
acabamos esquecendo 70% daquilo que aprendemos”. (CARNEI-
RO, 2018, p. 31)

Nota-se também a menção de fatores afetivos - autoestima, ex-


troversão, introversão, e do filtro afetivo, parte da teoria de Krashen
(1985), em:

“Acontece que temos um problema enorme com o tempo de prá-


tica em sala de aula e isso torna a aquisição de confiança muito
mais difícil, e aqueles que não são naturalmente ‘descolados’
tendem a se sentir ainda mais intimidados em sala, e isso é uma

- 28 -
bola de neve. Quanto mais desconfortável você fica, mais ‘trava-
do’ você se torna para falar e interagir em sala. Em poucas pala-
vras: confiança é o resultado do tempo de prática, se você não
tiver o suficiente, simplesmente não vai se tornar capaz de falar
fluentemente”. (CARNEIRO, 2018, p. 20)

É importante enfatizar que tais estudos não são referenciados


no e-book. A estratégia do autor é estruturar um roteiro de aprendiza-
gem que conduzirá à tão desejada fluência. Para tanto, ele afirma a ne-
cessidade de interação com nativos e contextos reais de uso da língua,
tempo e esforço, até que esse processo seja consolidado. Na investida,
Rhavi usa metáforas para explicar processos, etapas e procedimentos
até a grande ‘mágica’ - fluência. Essa técnica reflete necessidades e an-
seios muito comuns aos aprendizes de LE, atraindo-os para testes de
nivelamento, workshops online e, mais tarde, para cursos pagos – obje-
tivo comercial, por trás de todo o investimento. No e-book, não há uma
definição clara do que seja fluência.
A obra é constituída de 9 capítulos. Contudo, o método sugerido
só aparece no capítulo 6, e está estruturado em quatro passos: o desafio
– etapa de criação do interesse em aprender algo que o leitor não enten-
de ainda, por meio de sites que oferecem materiais gratuitos; a ponte
– passo em que ocorre a transformação de tudo o que não se conhecia
antes, em algo compreensível, referindo-se ao entendimento por meio
de dicionários, tradutores, guias de pronúncia e gramática; o grande
salto – momento de intenso treinamento da escuta, memorização de
vocabulário e peculiaridades do inglês nativo; e a mágica – processo de
internalização do conhecimento, por meio de programas de técnicas
compassadas de memorização.
Os materiais selecionados para esta análise representam mui-
tas das opções de métodos e técnicas de aprendizagem de inglês que
são comercializadas de forma virtual, e chamam a atenção de muitos
usuários, sobretudo pela reiteração do conceito de fluência que, a par-

- 29 -
tir dessa nova visão, passa a ser fragmentada em uma quantidade de
parcelas e níveis capazes de contemplar mesmo os aprendizes menos
acreditados. Dessa forma, o mercado de idiomas segue aquecido, am-
pliando o leque das possibilidades, das ‘facilidades’, fomentando ex-
pectativas de aprendizagem, por meio da mercantilização da fluência.

Algumas das conclusões a que chegamos

Sob uma perspectiva técnica, referenciada por padrões nativos


exigidos em testes, o número de aprendizes fluentes é pequeno. Entre-
tanto, se o ponto de vista for orientado por um quadro mais realizá-
vel, aquele que considera aprendizes de outras línguas maternas e a
influência de aspectos sociais, culturais e contextuais sobre a consti-
tuição subjetiva das práticas linguísticas, o quadro se amplia.
A discussão neste texto não teve a pretensão de desencorajar
aqueles que porventura sonham em falar inglês como um nativo. Isso,
porém, não é necessário. Seja qual for o método escolhido para o alcance
da fluência, não se pode desprezar alguns aspectos: a língua-alvo tam-
bém tem variantes linguísticas; ao falar, o aprendiz deve favorecer o uso
consciente dos sistemas que caracterizam a língua-alvo em detrimento
da materna; aprender requer reflexão, observação, estudo e prática.
Mesmo sendo seduzidos, quase que diariamente, por uma en-
xurrada de discursos publicitários que agenciam um status de superio-
ridade para aqueles que demonstram a capacidade de falar outro idio-
ma como um nativo, não podemos desconsiderar a pressão demasiada
que esta tarefa pode exercer sobre o desempenho dos aprendizes su-
balternizados, pois sendo uma exigência de difícil cumprimento, pode
e tem conduzido muitos destes a estados de frustração, desmotivação
e até desistência.

- 30 -
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Rossini Fonseca Silveira


Doutorando do curso de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor efetivo da Secretaria
Estadual da Bahia. E-mail: rossinifonseca@discente.ufg.br.

Neuda Alves do Lago


Doutora em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Professora de
Literaturas de Língua Inglesa na Faculdade de Letras da UFG. Docente
regular no PPGLL- UFG e no PPGE – UFJ. E-mail: neudalago@ufg.br.

- 33 -
A abordagem da metáfora em livros didáticos
do ensino fundamental: um estudo
cognitivo-funcional 1

Ivani Alberto das Dores (PPGLL/UFG)


Éderson Saraiva (PPGLL/UFG)
Leosmar Aparecido da Silva (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este texto objetiva investigar como a metáfora é abordada em livros


didáticos de língua Portuguesa. Para isso, em termos metodológicos,
analisam-se dois livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), pertencentes a coleções distintas: o livro Te-
cendo linguagem e o livro Araribá Mais/Interdisciplinar: língua portu-
guesa e arte. O texto se baseia nos pressupostos teóricos da Linguística
Cognitiva e se apoia também em estudos sobre livro didático e ensino
de português. Os resultados mostraram que o conceito tradicional da
metáfora, como figura de linguagem, é bastante propagado nos livros
didáticos recentes de língua portuguesa. O texto aponta para a neces-
sidade de ampliação da abordagem da metáfora, já que o desenvolvi-

1 Este texto foi devidamente revisado pelo autor e seu orientador. Os conceitos aqui mobili-
zados são de responsabilidade do autor com anuência do orientador. Assim, fica a cargo
do orientador a revisão final, tanto relativa à forma quanto ao conteúdo.
mento da competência metafórica está alinhado ao desenvolvimento
da leitura e da escrita.
Palavras-chaves: Metáfora; Livros Didáticos; Língua Portuguesa; Ensino.

ABSTRACT

This text aims to investigate the approach of metaphor in Portuguese


language textbooks. Regarding the methodology, we analysed two dif-
ferent textbooks: Tecendo Linguagem and the book Araribá Mais / Inter-
disciplinar: língua portuguesa e arte. The text is based on the theoretical
assumptions of Cognitive Linguistics and it is also supported by studies
on textbooks and teaching Portuguese. The results showed that the tra-
ditional concept of metaphor, as a figure of speech, is widely propagated
in recent Portuguese Language Textbooks. The text points to the need to
expand the approach to metaphor, since the development of metaphori-
cal competence is aligned with the development of reading and writing.
Keywords: Metaphor; Didactic Books; Portuguese Language; Teaching.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A cognição humana, que envolve processos como atenção, foca-


lização, memória, estabelecimento de relações vive, segundo Mithen
(2002), uma fase de fluidez cognitiva. Isso significa que ligações per-
ceptivas entre domínios são geradas. Os pensamentos normalmente
relacionados a domínios específicos são integrados e interagem, pro-
duzindo novos tipos de pensamento.

- 35 -
O mapeamento entre domínios é, então, uma característica funda-
mental do desenvolvimento cognitivo. Nesse sentido, associações entre
menina e fera em construções do tipo essa menina é uma fera em matemá-
tica, muito comuns na linguagem cotidiana, têm natureza metafórica e
constituem uma habilidade da mente em estabelecer relações entre enti-
dades que, do ponto de vista do usuário da língua, têm alguma semelhança.
Grande parte dos manuais escolares destinados à segunda fase do
Ensino Fundamental, normalmente, faz referência a uma extensa lista
de figuras de linguagem e a metáfora é uma delas. A função que atribuem
à metáfora é a de ornamentar, embelezar a linguagem, torná-la poética.
Foi pensando na recência dos estudos sobre metáfora no âmbito
da cognição que surgiu a necessidade de produção deste texto.
Assim, o presente texto propõe analisar como a metáfora vem sen-
do conceituada e abordada em alguns livros didáticos de Língua Portu-
guesa. Mesmo que outras pesquisas já tenham abordado o assunto com
diferentes propósitos, esta pesquisa se faz necessária para que se proble-
matize a necessidade (ou não) de se ampliar o modo de ver a metáfora
e se aproveite o potencial de trabalho em sala de aula de que ela dispõe,
inclusive para o desenvolvimento da leitura e da escrita.
O capítulo está dividido em três seções. Na primeira seção, apre-
sentam-se algumas considerações teóricas sobre a metáfora, sobre a sua
abordagem na BNCC e uma breve revisão de literatura sobre a metáfora
no livro didático. Na segunda seção, apresenta-se a metodologia da pes-
quisa. Na terceira seção, enfim, analisam-se dois livros didáticos de lín-
gua portuguesa no que se refere ao tratamento dispensado à metáfora.

1 Metáfora, BNCC e livro didático

Durante muito tempo, a metáfora foi vista como elemento esté-


tico, cuja função era a de ornamentar os discursos e a ajudar na argu-
mentação. Na visão clássica, Aristóteles (1997, [séc IV a.C.] XXI) consi-

- 36 -
derava que a produção de uma metáfora era sinal de talento natural.
Nessa visão, a metáfora é vista como fuga do trivial, em que se empre-
gam termos raros, nobres e não vulgares.
Na década de 70, a tradição retórica da metáfora foi questionada,
sobretudo no que diz respeito aos seguintes pressupostos: ausência de
valor cognitivo e falta de um significado próprio.
Os críticos perceberam que, ao ir além de papel de adorno para
se destacar a ideia de que há uma operação cognitiva em sua produção,
a metáfora não deixa de ser linguística, mas também se vincula ao pen-
samento, à percepção, à ação.
Foi nesse contexto que Lakoff e Johnson, na década de 80, desen-
volveram a Teoria da Metáfora Conceptual (TMC), inserida no âmbito
mais abrangente das Ciências Cognitivas. No livro Metáforas da Vida
Cotidiana, Lakoff e Johnson ([1980] 2002, p. 45) afirmam que

a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na lin-


guagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema
conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas
também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza.

A grande contribuição de Lakoff e Johnson ([1980] 2002), en-


tão, foi considerar a metáfora um mecanismo cognitivo eminente-
mente humano e o seu uso é parte integrante da vida cotidiana. A
defesa era a de que, muitas vezes, o modo como nos comunicamos no
cotidiano só é possível por meio das metáforas, porque, ao usá-las,
percebe-se o sentido daquilo que, de fato, se deseja dizer. Por isso,
ela é um dos mecanismos simbólicos mais estudados em encontros
nacionais e internacionais em Linguística Cognitiva – investigada
em diferentes perspectivas da linguagem em uso e em suas variadas
manifestações: linguísticas, gestuais, pictóricas (GIBBS, 2006; GRADY,
1997; JOHNSON, 1987; KÖVECSES, 2000, 2005, 2010; LAKOFF, 1987;
LAKOFF; JOHNSON, [1980] 2002; ORTONY, 1993).

- 37 -
Assim, na linguística cognitiva, as metáforas são concebidas como
fenômenos cognitivos, conceptuais, que constituem modelos cognitivos.
De acordo com a teoria, a metáfora envolve um domínio fonte (o de expe-
riência) e um domínio-alvo (abstrato). Na metáfora tempo é dinheiro, por
exemplo, dinheiro constitui o domínio-fonte e tempo constitui o domínio-
-alvo. Tal metáfora se manifesta por meio de enunciados como estou gas-
tando o meu tempo conversando besteiras; meu tempo é precioso.
Além disso, não raras vezes pagamos com dinheiro o tempo de
hospedagem em um hotel, pagamos pelos serviços prestados no decorrer
de um mês, recebemos nossos salários também depois de um mês traba-
lhado. Isso prova que a metáfora tempo é dinheiro está atada à linguagem
cotidiana, porque fazemos uso dela em nossa fala e escrita; está atada ao
nosso pensamento/cognição, porque o tempo todo estabelecemos rela-
ções entre domínios semelhantes, realizando mesclagens conceptuais
(FAUCONNIER; TURNER, 2002); está atada, enfim, às nossas ações, por-
que as nossas práticas sociais são resultantes de nossas conceptualiza-
ções metafóricas ao mesmo tempo em que essas mesmas práticas pro-
movem novas conceptualizações, numa relação retroalimentada.
Considerando-se que os estudos de Lakoff e Johnson ([1980]
2020) são bastante respeitados e uma ampla gama de dados é analisa-
da com base nesses estudos, é importante pensar no ensino de metá-
fora na educação básica, a partir dessas novas considerações, porque
o aluno poderá perceber que a metáfora está em seu dia a dia, em sua
fala cotidiana e em suas ações. Há, como se sabe, uma tendência de se
pensar a língua de acordo com uma abordagem prescritiva. A metáfo-
ra, nessa abordagem, é vista como uma figura de linguagem utilizada
por poetas e prosadores e/ou um recurso retórico próprio de discursos
que, de tão elaborados, aproximam-se da linguagem literária.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), como docu-
mento que estabelece diretrizes para o ensino, assume uma perspec-

- 38 -
tiva enunciativo-discursiva para o componente curricular de língua
portuguesa. Apresenta quatro eixos relacionados às práticas de lingua-
gem: oralidade, leitura/escuta, produção e análise linguística/semió-
tica. O percurso uso-reflexão-uso adotado pelos PCNs permanece na
BNCC, visto que tal percurso contribui para que o aluno possa refletir
sobre o potencial de usos da língua para poder aplicar, de modo ade-
quado, os recursos aprendidos ao contexto em que se encontra inseri-
do. Na BNCC (BRASIL, 2017), as práticas de linguagem estão divididas
em campos de atuação, objetos de conhecimento e habilidades.
Nesse documento, a metáfora enquadra-se no campo artístico-
-literário e apresenta, para o ensino fundamental, habilidades como

(EF69LP48)2 interpretar, em poemas, efeitos produzidos pelo


uso de recursos expressivos sonoros (estrofação, rimas, alitera-
ções, etc.), semânticos (figuras de linguagem, por exemplo), grá-
fico-espacial (distribuição da mancha gráfica no papel), imagens
e sua relação com o texto verbal (BRASIL, 2017, p. 159).

Orienta-se ainda “analisar os efeitos de sentido do uso de figuras


de linguagem, como comparação, metáfora, metonímia, personificação,
hipérbole, dentre outras”, conforme se verifica na habilidade EF67LP38
(p. 171, grifo nosso). Já a habilidade EF89LP37 trata do trabalho com efei-
tos de sentido de outras figuras de linguagem: “analisar os efeitos de sen-
tido do uso de figuras de linguagem como ironia, eufemismo, antítese,
aliteração, assonância, dentre outras” ( BRASIL, 2017, p. 187).
Como se vê, mesmo na BNCC, a orientação é a de que a metáfo-
ra seja estudada como forma de ornamentação textual, dentro de uma

2 A sigla deve ser assim interpretada: EF corresponde a Ensino Fundamental; 69 corres-


ponde às séries de sexto ao nono ano; LP corresponde ao componente curricular Língua
Portuguesa; 48 é o número da habilidade descrita.

- 39 -
perspectiva das figuras de linguagem e no campo literário. Apesar de a
a BNCC propor uma nova forma de se pensar o ensino-aprendizagem
e que em seu interior destaca a importância de se acompanhar a lin-
guagem afirmando que esta acontece de forma interacional/discursiva
no meio social, percebe-se que não se reconhece que a metáfora como
mecanismo cognitivo, que está infiltrada na vida cotidiana. Os livros
didáticos parecem seguir essa tendência e orientação.
No que se refere à abordagem da metáfora em livros didáticos,
fizemos uma revisão de literatura, considerando pesquisas realizadas
desde o ano de 2009 até o ano de 2019, num intervalo de 10 anos.
O primeiro desses trabalhos é o de Carneiro (2009). Dentre
outros objetivos, analisou a abordagem da metáfora em manuais de
inglês como língua estrangeira. Constatou que não há uma seção
dedicada ao estudo da metáfora nesses manuais. Além disso, tanto
a conceituação da metáfora quanto os exercícios possuem forte in-
fluência dos padrões aristotélicos.
Já Gil (2012) propôs uma pesquisa sobre o tratamento da metá-
fora em livros didáticos, aprovados pelo Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) de 2011. Analisou livros de língua portuguesa, num
primeiro nível de análise e livros de outras disciplinas, num segun-
do nível de análise. Os resultados mostraram que, no primeiro ní-
vel, visões diferentes da metáfora conceptual embasam as reflexões
dos livros de português. No segundo nível de análise, identificaram-
-se pressupostos Pragmáticos, Cognitivos e Cognitivo-discursivos3
que justificariam a ocorrência da metáfora na apresentação de con-

3 Não aprofundaremos nessas visões, devido ao escopo deste texto. Para maiores infor-
mações, ver o capítulo 3 de Gil (2012). A dissertação está disponível em: <https://www.
lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/37832/000823604.pdf?sequence=1&isAllowe-
d=y> . Acesso: 14 out. 2020.

- 40 -
ceitos e dos exercícios. Dados os desafios encontrados, a pesquisadora
propôs, fundamentalmente, um trabalho com ensino de metáfora com
base na relação uso-reflexão-uso propostos pelos Parâmetros Curri-
culares Nacionais e pelos Referenciais Curriculares do Estado do Rio
Grande do Sul. Propôs ainda um trabalho com a metáfora em diferen-
tes tipos de textos para além do literário.
De modo semelhante aos objetivos deste texto, Silva Neto, Fos-
sile e Herênio (2015) objetivaram analisar como a metáfora é aborda-
da em livro didático de ensino médio, aprovado pelo PNLD de 2014. Os
autores chegaram à conclusão de que a metáfora é ainda tratada como
figura retórica que tem a função de ornamentar a linguagem.
Já o trabalho de Novais (2019) objetivou levantar discussões
acerca da abordagem desse mecanismo cognitivo em livros didáticos
adotados no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe.
Os resultados mostram que os livros didáticos adotados no colégio,
mesmo servindo como suporte pedagógico de qualidade, necessitam
de complementação para atender a visão atualizada da metáfora na
perspectiva da linguística cognitiva.
Como se vê nessa breve revisão de literatura, os resultados de
pesquisas recentes têm revelado que, mesmo que a teoria da metáfo-
ra conceptual tenha surgido da década de 1980 com a publicação de
Lakoff e Johnson ([1980] 2002), essa perspectiva parece ainda não ser
atual para alguns livros didáticos.
Com o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), a qualidade
dos livros didáticos no que se refere à consideração de teorias linguísti-
cas, à elaboração dos exercícios e atividades, à seleção de comentários
e de imagens teve melhora significativa. Há, contudo, ajustes a serem
feitos para melhorar ainda mais, uma vez que o livro didático é um ins-
trumento muito presente na sala de aula no dia a dia do professor, ape-
sar de que ele não deveria ser o único instrumento de ensino.

- 41 -
A análise do livro didático proposta na seção 3 deste capítulo aju-
dará o potencial leitor deste texto a verificar quais são as limitações do
material em relação ao tema das metáforas e, sendo ele professor, poderá
ampliar a abordagem em sala de aula para além de seu valor ornamental
e retórico, considerando a perspectiva que vê a metáfora como fato do co-
tidiano, como um recurso utilizado não só em poemas, contos e roman-
ces, mas também em conversas informais, em tirinhas, em anedotas,
em textos jornalísticos, em textos científicos e em vários outros gêneros.
Tendo-se essa compreensão da metáfora e analisando-se diferentes tipos
de texto em sala de aula, o aluno poderá desenvolver a sua competência
metafórica, ou seja, a competência para compreender sentidos abstratos
de palavras, expressões usadas em contextos específicos.
Diante dessas considerações, convém verificar, como já dissemos,
se os livros didáticos de português mostram-se atuais e se consideram
outros estudos, além da abordagem da gramática tradicional, tal como
questionaram Silva Neto, Fossile e Herênio (2015). Como já mencionado
anteriormente, pretende-se com este estudo analisar e descrever como a
metáfora é conceituada nos LDPs atuais, já que esses manuais são avalia-
dos por especialistas na área da linguística e da língua portuguesa.

2 Materiais e métodos

Quanto à natureza, esta pesquisa é aplicada, porque prevê o


estudo da metáfora aplicado ao ensino, por meio da análise de livros
didáticos. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória e explicati-
va, porque descreve aspectos teóricos da metáfora e porque se propôs
a identificar as causas e fatores da abordagem acerca da metáfora nos
LDPs. Quanto aos procedimentos técnicos, ela é um estudo documental,
porque a base da pesquisa foram os livros didáticos. Quanto à aborda-
gem, a pesquisa é qualitativa, uma vez que prevê a interpretação dos da-

- 42 -
dos, considerando-se a multiplicidade de enfoques que podem ser dados
para a realidade tal como ela se mostra em determinado contexto.
Em relação às fases da pesquisa, inicialmente, aliado ao estudo
teórico, fizemos uma consulta à BNCC (Base Nacional Comum Curri-
cular) sobre o modo de abordagem da metáfora. Como já visto ante-
riormente, a BNCC é um documento destinado à educação escolar. Ele
assume uma perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem e orien-
ta que, no ensino de língua, o texto tem a centralidade do processo, as-
sociado a seus contextos de produção. Propõe o desenvolvimento de
habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura,
escuta e produção de textos em várias mídias e semioses.
Num segundo momento, tendo como critério a avaliação dos
LDP, selecionamos para esta pesquisa dois livros didáticos para neles
fazer a análise da abordagem da metáfora. São eles: 1) Tecendo Lingua-
gens, de Tânia Amaral Oliveira e Lucy Aparecida Melo Araújo, 8º ano,
editora IBEP, de 2018 e; 2) Araribá Mais/Interdisciplinar: Língua Portu-
guesa e Arte, organizado por Marisa Martins Sanches, também do 8º
ano, editora Moderna, 2018.
Os critérios de análise consideraram o lugar destinado à metáfo-
ra no livro (se é um capítulo, uma seção, uma curiosidade); o conceito
de metáfora apresentado pelo material; a adequação ao nível escolar
dos alunos; o estudo ou não do tema em textos e que tipos de textos; as
atividades relativas aos textos e à metáfora.

3 Resultados e discussão

O presente texto objetivou verificar como a metáfora é vista e


trabalhada nos LDPs atuais, isto é, pretendeu-se analisar se a metáfora
ainda é conceituada como um recurso ornamental da linguagem, ou
se ela é vista como um mecanismo cognitivo integrado ao cotidiano.
Salienta-se que a escolha dos Livros Didáticos de Língua Portuguesa

- 43 -
para o desenvolvimento deste estudo não se deu de forma aleatória.
Selecionaram-se, preferencialmente, compêndios que foram avaliados
no âmbito do PNLD no quadriênio de 2020.
O primeiro LDP selecionado para este estudo é o manual Tecendo
Linguagens, da editora IBEP, de 2018, 8º ano, das autoras Tânia Amaral
Oliveira e Lucy Aparecida Melo Araújo. Neste manual, a metáfora é apre-
sentada num capítulo intitulado Figuras de linguagem. Na seção prática
de leitura, o livro apresenta um poema de Cora Coralina intitulado Mas-
carados, ladeado à imagem de uma jovem de ‘cara pintada’, coberta com
a bandeira do Brasil:

Figura 1: atividade do livro Tecendo Linguagens

Fonte: Oliveira e Araújo (2018, p. 56)

- 44 -
Logo após, é apresentado o conceito de personificação/prosopo-
peia, aliteração e metáfora:

Figura 2: atividade do livro Tecendo Linguagens

Fonte: Oliveira e Araújo (2018, p. 58)

Junto dos conceitos de personificação e aliteração, a metáfora é


conceituada, neste LDP, como uma figura de linguagem e como recur-
so expressivo. Fala-se em transferência de um sentido mais básico, lite-
ral para um sentido menos básico, abstrato, conotativo. Ainda, segun-
do a definição, essa transferência é feita por meio de uma comparação
implícita, ou seja, sem que se utilizem termos próprios da comparação
como, parecido com, semelhante a. A frase final da definição (nesse caso,
a palavra é utilizada com a intenção de que um sentido implícito se ma-
nifeste e conduza à interpretação do que está sendo dito) pode confundir
o aluno de 8º ano, porque, em geral, enunciados não metafóricos tam-
bém contêm sentido implícito. Provavelmente, as autoras quiseram di-
zer que o sentido abstrato corresponde ao sentido implícito.
Não há menção de que a metáfora está no cotidiano da lingua-
gem ordinária e que constitui uma habilidade do pensamento imagi-
nativo, conforme defende a linguística cognitiva (LAKOFF; JOHNSON,
[1980] 2002; LAKOFF, 1987; ZANOTTO, 1995; TAYLOR, 2002; GIBBS,
2006), mas a consideração de que há transferência de um sentido li-
teral para um sentido conotativo aproxima-se da ideia de que o ser hu-

- 45 -
mano tem uma habilidade de verificar semelhanças entre entidades
de domínios diferentes e, criativamente, projetar um domínio no outro
(cf. FAUCONNIER; TURNER, 2002).
O livro didático não tem necessariamente a obrigatoriedade de
tratar a metáfora como uma atividade do pensamento, mas, levando
em conta os aproximados 40 anos de abordagem do tema, que resgata
a função cognitiva da metáfora, consideramos, em comum acordo com
Zanotto (1995, p. 243, citando Johnson, 1975), que parece ser razoável
dar à metáfora “um lugar proeminente em qualquer consideração so-
bre a natureza da linguagem humana”, dado o seu precoce aparecimen-
to no desenvolvimento humano. O LDP, destinado a crianças e adoles-
centes em idade escolar e em pleno desenvolvimento da linguagem,
tem compromisso com o tema, já que a metáfora contribui para o de-
senvolvimento de leitura, principalmente, de informações implícitas.
Na sequência, o livro didático ora analisado apresenta uma ques-
tão de “a” a “e”, cujo objetivo é interpretar o texto de Cora, e uma ques-
tão de caráter mais pessoal (questão 5), conforme se verifica a seguir:

Figura 3: atividades sobre figuras de linguagem do livro Tecendo Linguagens

Fonte: Oliveira e Araújo (2018, p. 58)

- 46 -
As perguntas “a” e “b” dizem respeito à presença da aliteração
no poema. Já as questões “c”, “d” e “e” tratam da metáfora. A letra “c”
requer a/s estrofe/s em que fez uso do sentido denotativo de semeador
e semear. A letra “d” requer a/s estrofe/s em que há uso metafórico des-
sas mesmas palavras. A letra “e” é uma questão de interpretação da me-
táfora, uma vez que gira em torno do sentido de semear e semeador no
contexto em que aparece no texto.
A questão 5, de tom mais pessoal e reflexivo, procura saber a opi-
nião do aluno sobre a importância de semear, ou seja, de divulgar ideias
e projetos, mesmo quando não há perspectivas de que o semeador al-
cançará os resultados (frutos) de tais ideias e projetos.
Como este é o livro do professor, na margem esquerda, há um
comentário das autoras do livro direcionado para o professor, falando
sobre o potencial de trabalho com questão 5. Segundo as autoras, é pos-
sível trabalhar com a noção de coletividade:

Figura 4: comentário sobre a atividade 5 (p. 58) do livro Tecendo Linguagens

Fonte: Oliveira e Araújo (2018, p. 58)

- 47 -
O que se percebe nas atividades sobre metáforas é uma constru-
ção de sentido assim disposta:

1 localização no texto do sentido literal de semeador/semear > 2 localização no texto do


sentido figurado de semeador/semear > 3 significado de semeador/semear no contexto
do texto > 4 opinião do aluno sobre o sentido metafórico.

Como se percebe, a abordagem da metáfora neste livro didáti-


co, mesmo que ainda presa à concepção aristotélica, há um trabalho
de interpretação textual que parte da menor unidade para se chegar
à maior unidade de significação. Não consideramos como negativa a
atividade de localização de informações textuais, porque, no livro em
questão, não há a localização de sentidos literal e metafórico pela sim-
ples localização. Parte-se dessa atividade para se chegar ao sentido glo-
bal da metáfora e à opinião do aluno sobre o tema.
O segundo livro, objeto de análise deste texto, é o Araribá Mais/
Interdisciplinar - Língua Portuguesa e Arte, organizado pela autora Ma-
risa Martins Sanches, 8º ano, editora Moderna, 2018.
Nesse livro, a metáfora, juntamente com as outras consideradas
figuras de linguagem, é trabalhada no capítulo 5, intitulado No rumo
da poesia e do humor. Os capítulos do livro possuem seis seções bem
definidas: 1) de olho na imagem; 2) estudo do texto; 3) estudo da língua;
4) produção de texto; 5) estudo das artes visuais; 6) criação em equipe.
Para os objetivos deste texto, interessa a seção 2, estudo do tex-
to. Esta seção é dividida em duas subseções: 1) compreensão do texto,
na qual se faz uma interpretação das ideias do conto No rumo da estre-
la, de Marina Colasanti; 2) de olho na construção dos sentidos, em que
se mesclam atividades sobre o texto escolhido e as figuras de lingua-

- 48 -
gem. A metáfora é abordada, então, como conteúdo e como atividade
nesta subseção.
Inicialmente, apresenta-se a atividade de número 1, que pede
que o aluno releia um dos parágrafos do texto. O parágrafo é transcri-
to e, na sequência, apresenta-se a questão “a”, de identificação da me-
táfora que faz referência ao horizonte. Na sequência, utilizando-se de
destaque gráfico, o livro define metáfora e, logo em seguida, apresenta
a pergunta “b”, que versa sobre o sentido literal ou figurado do verbo
brotar e sobre o seu significado. Mais uma vez, com destaque, explica-
-se o que é sentido denotativo e conotativo. Vejamos:

Figura 5: atividade do livro Araribá Mais/Interdisciplinar - Língua Portuguesa e Arte

Fonte: Sanches(2018, p. 160)

Utilizando-se de uma linguagem presumivelmente acessível a


um aluno de 8º ano do ensino fundamental, a autora evita termos téc-
nicos para definir a metáfora. Diz simplesmente que a metáfora é um
modo de se referir a um objeto ou a uma qualidade utilizando-se de
outro objeto ou qualidade semelhante ao primeiro. Essa conceituação,
evidentemente, precisa ser acompanhada de um exemplo, tal como
mostra o trecho do texto, em que o horizonte é visto como costura da
noite com o mar.

- 49 -
Apesar de a conceituação de metáfora aproximar-se, em parte,
da conceituação dada pela linguística cognitiva, uma função referen-
cial é atribuída à metáfora (a metáfora ocorre quando, para se referir a
um objeto ou a uma qualidade dele… grifo nosso). Para Lakoff e Johnson
([1980] 2002, p. 93), porém, a função primordial da metáfora não é a
referenciação, mas “a compreensão” de um conceito abstrato/ com-
plexo em termos de conceitos concretos/constantes da experiência
sensorial. A função referencial é atribuída pelos autores à metonímia,
e não à metáfora: “a metonímia, por outro lado, tem principalmente
uma função referencial, isto é, permite-nos usar uma entidade para re-
presentar outra” (p. 93). Assim, no texto literário de Marina Colasanti,
para que o conceito de horizonte fosse compreendido, usou-se a metá-
fora da costura.
Outro aspecto a ser observado, é o fato de fazer a necessária dis-
tinção entre literal/figurado, denotativo/conotativo, já que, fazendo-se
essa distinção, é possível que o aluno saiba diferenciar a forma fonte de
uma metáfora e a forma alvo e, assim, vá desenvolvimento sua compe-
tência metafórica e o processo de abstração. Nessa distinção, a autora
do livro didático observa que “o sentido conotativo é um recurso bas-
tante utilizado para a construção de imagens, principalmente em tex-
tos poéticos. Nessa observação, mesmo que implicitamente se tenha
dado abertura para a manifestação do sentido conotativo em outros
textos, a prevalência ainda é do texto poético.
Na sequência, o livro apresenta a atividade de número 2, seguida
de uma definição-caracterização da metáfora:

- 50 -
Figura 6: atividade do livro Araribá Mais/Interdisciplinar - Língua Portuguesa e Arte

Fonte: Sanches (2018, p. 160)

A definição-caracterização aponta para o fato de que a metáfora,


além de ser uma criação, ela é subjetiva, própria dos propósitos e da
imaginação do autor. Ainda que implicitamente, verifica-se, por meio
das palavras criação e imaginação atributos cognitivos da metáfora. O
problema está em considerar a criação de metáforas por meio da ima-
ginação como atributos quase que exclusivos de poetas.
A atividade de número 2, em si, não é tão simples de ser respon-
dida. Pensando nisso, no comentário destacado em tom de cinza, a
autora alerta para o fato de o sentido metafórico não ser tão evidente
algumas vezes. A resposta possível para a pergunta sobre a metáfora
utilizada no texto (mudança da lua cheia para a lua minguante) é a se-
guinte: roçando no céu, a lua gasta sua curva, se afina. De fato, no tre-
cho do texto, a metáfora não é tão evidente, mas os termos lua, gasta,
afina constituem indícios lexicais para se chegar à resposta. Possivel-
mente, o aluno precisará da mediação do professor nesta atividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste estudo foi analisar como a metáfora vem sen-


do abordada nos atuais livros didáticos de língua portuguesa, em diá-
logo com a BNCC.

- 51 -
Os dados mostraram que os livros didáticos de 8º ano do ensino
fundamental da educação básica apresentam ainda uma visão aristoté-
lica de metáfora, uma vez que a tratam como uma figura de linguagem
própria de poetas, analisável em poemas e contos de autores reconhe-
cidos. Ela cumpre uma função de ornamentar/embelezar a linguagem.
Esperava-se que, pelo menos a função argumentativa da metáfora, em
textos dissertativos de oradores, fosse considerada, mas há certa ex-
clusividade para a relação metáfora e texto literário.
O aspecto positivo do processo é que, conforme orientação da
BNCC e critérios de avaliação do PNLD, trabalha-se a produção de sen-
tidos da metáfora de modo situado, no corpo de um texto, e não isola-
damente em sentenças fora de contexto.
Aponta-se neste texto para a necessidade de ampliação da abor-
dagem para estudos mais recentes sobre o tema, dentre eles a proposi-
ção da linguística cognitiva de que a metáfora é cotidiana e que constitui
um mecanismo cognitivo básico da espécie humana. Sabendo o aluno
que ele não precisa ser poeta para produzir e compreender metáforas,
ele pode desenvolver cada vez mais a sua competência metafórica ao
mesmo tempo em que desenvolve as práticas de leitura e de escrita.

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- 52 -
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Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São
Paulo, v. 11, n. 2, p. 241-254, 1995.

- 54 -
Éderson Saraiva
Possui graduação em Letras, habilitação: Português/Inglês e Respecti-
vas Literaturas pela Universidade Estadual de Goiás (2001) e Pedagogia
pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2014), especialista em Méto-
dos e Técnicas de Ensino pela Universidade Salgado de Oliveira (2004),
mestrando em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás.
Atualmente sou professor de Língua Portuguesa da Secretaria Munici-
pal de Educação de Goiânia. e-mail: edersonsaraiva@discente.ufg.br

Ivani Alberto das Dores


Possui graduação em Letras: Português/Inglês pela Universidade Es-
tadual de Goiás (2003), Pedagogia (2018), especialização em Português
e Linguística Aplicada pela Universidade Salgado de Oliveira (2005),
mestranda em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás.
Atualmente, professora de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de
Educação de Goiás. e-mail: ivanialberto@discente.ufg.br

Leosmar Aparecido da Silva


É doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás
(UFG). Possui mestrado em Letras e Linguística também pela UFG. É
graduado em Letras pela Universidade Estadual de Goiás. Em 2018,
concluiu pós-doutorado na Universidade Federal do Ceará. É professor
de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Federal de Goiás e
membro do GT Descrição do Português. Desenvolve pesquisas na área
de descrição do português, Linguística Cognitiva e ensino de Língua
Portuguesa em perspectiva cognitivo-funcional. e-mail: silva515@ufg.br

- 55 -
Concepção de língua/linguagem, letramentos,
multiletramentos e o ensino da
língua portuguesa 1

Dinete Andrade Soares Bitencourt (SEDUCE-GO/PPGLL/UFG)


Sinval Martins de Sousa Filho (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este texto objetiva refletir a respeito das perspectivas teóricas sobre


as concepções de linguagem, letramentos e multiletramentos, assim
como suas contribuições para o ensino da língua portuguesa. Como
ponto de partida, analisamos três concepções de linguagem: a lingua-
gem como expressão do pensamento, e o ensino prescritivo/norma-
tivo; a linguagem como instrumento de comunicação (ferramenta de
comunicação) e a linguagem como meio de interação. Posteriormen-
te, abordamos os conceitos de letramento autônomo e ideológico, dos
multiletramentos e o ponto de junção entre estes e os multiletramen-
tos no ensino da língua portuguesa. Como aporte teórico, utilizamos
as contribuições de Franchi (1992), Soares (2004), Rojo (2009, 2012),

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e seu orientador, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade dos autores, com anuência do orientador.
Araújo, Sousa Filho e Lima (2018), Geraldi (2015), Ilari e Basso (2017),
Bevilaqua (2013), Bakhtin (1992) entre outros. Para tanto, foi realizado
um estudo qualitativo a partir do estudo bibliográfico. Sendo assim, foi
possível mostrar, a partir dos resultados, as contribuições dessas teo-
rias para o ensino de língua portuguesa, apontando como elas podem
efetivamente auxiliar no ensino da língua portuguesa, já que se contra-
põem às concepções tradicionais de ensino.
Palavras-chave: Linguagem; Letramentos; Multiletramentos; Ensino
de português.

ABSTRACT

This text aims to reflect on the theoretical perspectives on the concep-


tions of language, literacy and multiliteracies, as well as their contri-
butions to the teaching of the Portuguese language. As a starting point,
we analyzed three conceptions of language: language as an expres-
sion of thought, and prescriptive / normative teaching; language as a
communication tool (communication tool); and language as a means
of interaction. Subsequently, we approached the concepts of “auto-
nomous literacy” and “ideological literacy” and the point of junction
between these and the multi-tools in the teaching of the Portuguese
language. As a theoretical contribution, we used the contributions of
Franchi (1992), Soares (2004), Rojo (2009, 2012), Araújo, Sousa Filho
and Lima (2018), Geraldi (2015), Ilari and Basso (2017), Bevilaqua (2013),
Bakhtin (1992) among others. To this end, a qualitative study was car-
ried out based on the bibliographic study. Thus, it was possible to show,
from the results, the contributions of these theories to the teaching of
the Portuguese language, pointing out how they can effectively assist

- 57 -
in the teaching of the Portuguese language, since they are opposed to
traditional teaching concepts.
Keywords: Language; Literacy; Multi-tools; Teaching Portuguese.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Lançados em 1998 (BRASIL, 1998), os Parâmetros Curriculares


Nacionais (PCN) apresentam uma síntese do que foi possível aprender
e avançar através das discussões promovidas sob a forma de reorienta-
ção curricular nas décadas anteriores e apontaram para os novos ho-
rizontes do processo de ensino-aprendizagem, especialmente da dis-
ciplina Língua portuguesa. A mudança mais robusta decorrente dos
PCN foi a centralização do texto como unidade de trabalho da discipli-
na língua portuguesa, conforme anota Geraldi (2015). Atualmente, um
novo documento, a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (BRASIL,
2018) aponta as bases para as novas diretrizes da educação escolar. Não
tratamos desse novo documento nesse texto. Atemo-nos aos PCN e às
concepções de linguagem que dão direcionamento à prática pedagógi-
ca de professores de língua portuguesa e aos letramentos, os quais, de
certo modo, direcionam também o fazer escolar.
Ao refletir sobre linguagem, letramentos, multiletramentos e
ensino de português, pesquisamos por estudos anteriores voltados
para os referidos temas e vários trabalhos foram encontrados com vie-
ses diferentes do nosso estudo, na sequência, citamos três deles.
O artigo “Concepções de linguagem e conceitos correlatos: a in-
fluência no trato da língua e da linguagem”, de Doretto e Beloti (2011).
Os autores têm por objetivo discutir as concepções de linguagem e os
conceitos subjacentes a cada uma delas e, ainda, apresentar um qua-
dro-síntese de conceitos relacionados a essas concepções, a fim de

- 58 -
ilustrar as discussões. Já em “As concepções de linguagem e o ensino
de língua materna: um percurso”, Gomes (2010) apresenta um trajeto
sucinto sobre a origem do conceito dessas concepções e suas conse-
quências no ensino de língua portuguesa. Em “Novos estudos do le-
tramento e multiletramentos: divergências e confluências”, Bevilaqua
(2013) realiza um estudo comparativo entre esses dois campos teóricos,
os quais sugerem perspectivas diferentes para lidar com o letramento.
Este último nos foi muito útil para o estudo, pois a reflexão traz novos
conceitos em relação aos letramentos e aos multiletramentos.
Para o estudo aqui proposto, apoiados em Geraldi (2004), anali-
samos três concepções de linguagem: a linguagem como expressão do
pensamento, e o ensino prescritivo/normativo; a linguagem como ins-
trumento de comunicação (ferramenta de comunicação) e a linguagem
como meio de interação. E, para finalizar, abordamos os conceitos de
“letramento autônomo” e “letramento ideológico” e o ponto de junção
entre estes e os multiletramentos no ensino da língua portuguesa, fa-
zendo uma síntese das contribuições das teorias/aplicações na escola,
no ensino de LP.

1 Concepção de língua/linguagem

Entende-se que as concepções da língua/linguagem foram e ain-


da são utilizadas como suporte para o trabalho com a língua materna
na escola. Geraldi (2004) indica três concepções de linguagem que
orientam e direcionam a prática pedagógica de professores de língua
portuguesa: a linguagem como expressão do pensamento, como ins-
trumento de comunicação e forma de interação. De acordo com Araú-
jo, Sousa Filho e Lima (2018), a primeira concepção, a linguagem como
expressão do pensamento, considera a expressão construída na mente
dos indivíduos, por isso, o que eles dizem é reflexo do que está em suas

- 59 -
mentes. Logo, a enunciação é vista como um ato individual e monológi-
co. Conforme afirmam os autores,

o ensino de língua prioriza os aspectos normativos e a aula de


língua é confundida com aula de gramática, havendo, portanto,
a ênfase do trabalho sob a forma em detrimento do uso. Assim,
o profissional que se pauta nessa concepção focará, em sua prá-
tica, a gramática normativa/prescritiva como ponto principal
do processo ensino e aprendizagem. (ARAÚJO; SOUSA FILHO;
LIMA, 2018, p. 274).

Assim sendo, percebemos que essa concepção é pautada na es-


crita da norma culta. Além disso, o texto é utilizado como ferramenta
para ensinar o que está certo ou errado nessas regras, deixando de lado
a oralidade, um eixo importante para o desenvolvimento de habilida-
des cognitivas. Soares (1998) mostra que essa concepção caracterizou
o ensino de língua em nossas escolas durante um longo período como
um sistema fechado, deixando transparecer que a linguagem escrita
deveria ser encarada como algo intocável ou até mesmo imutável. Essa
primeira concepção da linguagem teve muita aceitabilidade nas esco-
las durante um longo período.
Na segunda concepção, a linguagem como instrumento de co-
municação e o ensino descritivo da língua, a linguagem é vista como
um código pronto (ARAÚJO; SOUSA FILHO; LIMA, 2018) à disposição
dos usuários que a utilizarão como mero instrumento de comunica-
ção. Nessa perspectiva, o professor que utiliza essa concepção de lin-
guagem no ensino e aprendizagem da língua portuguesa garante ao
aluno o acesso ao sistema alfabético e à gramática para recorrer a esse
código, às vezes, como emissor, ou seja, codificador, outras vezes como
recebedor, decodificador. Essa concepção de linguagem determina
o ensino da língua como sendo descritivo. Segundo Soares (1998), é a

- 60 -
partir da década de 1970 que se passa a tratar, no Brasil, a língua nacio-
nal nas escolas como “instrumento de comunicação”.
Conforme Soares (1998), com o desenvolvimento de novos conhe-
cimentos nos campos da sociolinguística, da análise do discurso, da se-
mântica e da linguística textual, há novas recomendações para o ensino
de LP. A linguagem, com as contribuições de Mikhail Bakhtin, por exem-
plo, passa a ser vista como social e de caráter dialógico. Essas contribui-
ções colaboraram para que os pesquisadores passassem a considerar, de
fato, que as manifestações de uma língua, escrita ou oral, estão inseridas
em um processo de construção interativa. Estes estudos estão no esteio
da concepção que vê a linguagem como processo de interação. A esse
respeito, Araújo, Sousa Filho e Lima (2018) afirmam que:

na concepção defendida por Bakhtin (2012), tem-se uma visão


enunciativa e discursiva da linguagem, visto que ela é entendida
não como uma categoria gramatical abstrata, mas sim como um
fato social, fundamentalmente saturada por posicionamentos
axiológicos. Sob essa perspectiva, o autor opõe-se à noção de
língua tal como era concebida no objetivismo abstrato, na qual
havia dissociação entre o social e o individual, e no subjetivis-
mo idealista, ao passo que desenvolve uma filosofia de lingua-
gem pautada no aspecto comunicativo e dialógico, abordando a
língua em sua prática viva na comunicação social, considerando
sua realização mediante a interação verbal e social dos locuto-
res. (ARAÚJO; SOUSA FILHO; LIMA, 2018, p. 275).

Diante do exposto, podemos dizer que, nessa concepção, a lin-


guagem não é formulada no individualismo, mas incorporada ao mun-
do social e histórico dos sujeitos, isto é, é do sujeito e dos outros e para
os outros e com os outros que ela se constitui. Assim, não há um su-
jeito pronto, acabado, na interação, mas um sujeito que se completa e
se constrói nas suas falas, conforme observamos em Bakthin (2017). A
enunciação, em si, não pode ser encarada como individual, unicamen-

- 61 -
te, deve ser considerada de natureza social. Assim, sobre a linguagem,
a ideia de Doretto e Beloti (2011) se coaduna com as ideias de Bakhtin
quando essas afirmam que

a linguagem é vista como processo de interação, a língua é usada


não apenas para a comunicação, mas, também, para estabele-
cer a interação social (agir sobre, agir entre). O indivíduo reali-
za ações, atua sobre o interlocutor. Considera-se os contextos
social, histórico e ideológico. A linguagem é, pois, um lugar de
interação humana, de interação comunicativa pela produção de
efeitos de sentidos entre interlocutores, em uma dada situação
de comunicação e em um contexto sócio histórico e ideológico.
(DORETTO; BELOTI, 2011, p. 97).

Franchi (2002), em a Linguagem – atividade constitutiva, procu-


ra compreender as várias concepções de linguagem, apesar de negar
algumas, fazendo uma seleção destas e indicando seu ponto de vista
particular, afirmando que a linguagem deve ser reconhecida como ati-
vidade constitutiva. Nesse contexto, o teórico afirma que:

Certamente a linguagem se utiliza como instrumento de comu-


nicação, certamente comunicamos por ela, aos outros, nossas
experiências, estabelecemos por ela, com os outros, laços ‘con-
tratuais’ por que interagimos e nos compreendemos, influencia-
mos os outros com nossas opções relativas ao modo peculiar de
ver e sentir o mundo, com decisões consequentes sobre o modo
de atuar nele. Mas, se queremos imaginar esse comportamento
como uma ‘ação’ livre, ativa e criadora, suscetível de pelo menos
renovar-se ultrapassando as convenções e as heranças, processo
em crise de quem é agente e não mero receptáculo da cultura,
temos então que apreendê-la nessa relação instável de interio-
ridade e exterioridade, de diálogo e solilóquio: antes de ser para
a comunicação, a linguagem é para a elaboração; e antes de ser
mensagem, a linguagem é construção do pensamento; e antes de
ser veículo de sentimentos, ideias, emoções, aspirações, a lin-
guagem é um processo criador em que organizamos e informa-
mos as nossas experiências. (FRANCHI, 2002, p. 57).

- 62 -
Para o autor, a linguagem é um processo criador no qual orga-
nizamos e informamos nossas experiências. Conforme explica, se
queremos esse comportamento como ação livre, ativa e criadora, ul-
trapassando as convenções, há que se ter a apreensão da linguagem
numa relação instável de interioridade e exterioridade, de diálogo e so-
lilóquio. Afirma, ainda, que a linguagem não é apenas instrumento de
interação entre os homens, é instrumento de intervenção e da dialética
entre cada um de nós e o(s) outro(s). É na interação de um “eu” com o
“tu” que nos organizamos e nos mantemos como seres que significam.
Dessa forma, entendemos que, por uma concepção de lingua-
gem como processo de interação, teremos que, de uma maneira ou ou-
tra, circular por todas as concepções e utilizar aquilo que é importante
e diz respeito ao objetivo de ensino. Desse modo, defendemos nesse es-
tudo, em consonância com os autores citados, um trabalho com a lín-
gua portuguesa que estabeleça relações com o linguístico, o discursivo,
que conceba a linguagem como processo de interação. Interação essa
que considera o sujeito sócio-histórico e ideologicamente constituído
na e pela linguagem, conforme também defende Rios (2005).
Segundo Rios (2005), a língua não é um sistema fechado. Ten-
do em vista essa afirmação, a forma como falamos e nos apropriamos
também das palavras dos outros é uma ação de participação no pro-
cesso de constituição do sujeito. É nessa perspectiva que afirmamos
que há a necessidade de o professor conhecer todos os aspectos e as
concepções de linguagem para, então, desempenhar com tranquilida-
de seu papel de mediador ou de um interlocutor mais experiente no
processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa.
Tendo em vista essas considerações sobre a concepção de lín-
gua/linguagem, buscamos, a seguir, concepções de letramentos.

- 63 -
2 Concepções de letramentos

Iniciamos nossa reflexão sobre letramentos retomando um de-


bate já estabelecido, o das diferenças entre alfabetização e letramen-
tos. Baseados nas ideias de Soares (1998) e Rojo (2012, 2017), podemos
dizer que a alfabetização é o processo no qual o sujeito se apropria do
sistema de escrita, seja na escola, seja por outros meios, além de codi-
ficar e decodificar o código da língua escrita e a forma como ela é es-
truturada. Já o letramento, em conformidade com as autoras citadas, é
um processo que mostra como a língua é usada no dia a dia e se refere
aos usos e sentidos que os textos adquirem na vida social dos usuários
da língua. Sendo assim, letramento e alfabetização são indispensáveis.
Para Soares (2004), é importante alfabetizar letrando, pois o ato da lei-
tura e da escrita não são realizados mecanicamente, são associados às
práticas sociais. Soares (2004) alerta ainda que o conceito de letramen-
to é amplo e consegue alcançar inclusive pessoas analfabetas, isto é,
mesmo não sabendo ler e escrever conforme as normas da escrita, o
sujeito pode ser letrado. As crianças, segundo a autora, chegam à es-
cola analfabetas porque não aprenderam a ler e nem escrever, mas já
estão fazendo parte do mundo do letrado, ou seja, já chegam à escola
com certos níveis de letramentos.
Dos vários tipos de letramentos existentes, destacamos os estudos
sobre as diferenças entre letramento autônomo e letramento ideológico.
Para Rojo (2009), a clareza sobre a diferenciação entre letramen-
to e alfabetização estabelecida com os novos estudos de letramento
está no fato deste poderem ser divididos em dois sentidos: o sentido
autônomo, que olha o letramento independente do contexto social, e o
sentido ideológico, que vê as práticas de letramento indissociáveis das
estruturas culturais e de poder. Soares (2004) chama essa divisão de

- 64 -
dimensões do letramento: a dimensão individual e a dimensão social.
Segundo a autora,

[...] quando o foco é posto na dimensão individual, o


letramento é visto como um atributo pessoal, parecen-
do referir-se à ‘simples posse individual das tecnologias
mentais complementares de ler e escrever’. Quando o
foco se desloca para a dimensão social, o letramento é
visto como fenômeno cultural, um conjunto de ativida-
des sociais que envolvem a língua escrita. Na maioria das
definições atuais de letramento, uma ou outra dessas duas
dimensões é priorizada: põe-se ênfase ou nas habilidades
individuais de ler e escrever, ou nos usos, funções e pro-
pósitos da língua escrita no contexto social. (SOARES,
2004, p. 66-67).

A definição das duas dimensões, a individual e a social, é comple-


xa. Identificar as bases que estão por trás de diferentes definições é ape-
nas o início para enfrentar um problema maior, que é o da definição ade-
quada de letramentos, uma vez que é necessário levar em consideração a
complexidade e a heterogeneidade das dimensões individual e social. Na
dimensão social, letramento é o que as pessoas produzem, fazem com
as habilidades de leitura e escrita em um contexto específico e como
essas habilidades se relacionam com os valores e práticas sociais, Soa-
res (2004). Assim, nega-se a afirmativa de que o letramento é o conjunto
de habilidades individuais, afirmando que o letramento é o conjunto de
práticas sociais que tem uma certa ligação com a leitura e a escrita. Pos-
to isto, para analisar tal proposição é necessário conhecer o conceito e
as características dos multiletramentos, tema da nossa próxima seção.

3 Concepção de multiletramentos

Bevilaqua (2013) faz uma reflexão em relação ao letramento e aos


multiletramentos. Segundo a autora, em 1994, alguns teóricos de três

- 65 -
países reuniram-se em Nova Londres para discutirem os problemas
pelos quais o sistema de ensino anglo-saxão estava passando. Desse
encontro, surgiu o “manifesto programático”, construído em conjunto,
cujas temáticas eram a crescente diversidade linguística e cultural e a
multiplicidade de canais e meios (modos semióticos) de comunicação
(resultados das novas tecnologias). Esses dois temas foram responsá-
veis pelo prefixo “multi” da denominação multiletramentos.
Ainda, a definição de letramento para o termo no plural – letra-
mentos – foi reafirmada pelo fato de serem múltiplos, determinados
pelo poder e por variarem no tempo, no espaço e de acordo com o con-
texto. Uma mudança também importante foi a que emergiu sobre as
unidades do letramento, estas vistas como práticas. Assim, o grupo
dos Novos Estudos do Letramento definiram os termos “prática de le-
tramento” e “evento de letramento”. A prática de letramento foi defi-
nida como um modo de ver a cultura mais ampla da forma de pensar
a prática da leitura e da escrita em contextos culturais. Já o evento de
letramento tem sido definido como qualquer ocasião em que o papel
da escrita é fundamental (Heath, 1982; Barton; Hamilton, 1998; Street,
2003, p. 78 apud Bevilaqua, 2013, p. 104).
O Grupo de Nova Londres apresentou o conceito de multiletra-
mentos em 1996. Eles associaram a multimodalidade e a multicultura-
lidade para criar esse termo/conceito novo que caracteriza o letramen-
to de caráter multimodal e multicultural. Assim sendo, Rojo (2012),
em relação aos multiletramentos, considera dois importantes tipos de
multiplicidade: cultural das populações e semiótica de constituição de
textos. Canclini (2008) afirma que as produções culturais letradas cir-
culam em nossa sociedade e são constituídas a partir de um conjunto
de textos heterogêneos de diferentes letramentos. Nessa perspectiva,
o autor diz que é necessário introduzir gêneros do discurso de novas
tecnologias, novas mídias, variadas linguagens, pois entende-se que os

- 66 -
textos produzidos a partir de muitas linguagens exigem capacidades,
práticas de compreensão e produção delas para determinar uma de-
finição de que são descritos como multimodais ou multissemióticos.
A partir dessas novas discussões, os estudos estão centrados no
ensino dos multiletramentos. Assim, os teóricos elaboraram concei-
tos-chave diante das novas e profundas mudanças estabelecidas pelo
“novo capitalismo” e pela ampla tecnologização que o acompanha. As-
sim, Bevilaqua (2013) nos mostra que o conceito de Design de sentidos

é o eixo estruturador de toda a teoria dos Multiletramentos, pois


é por meio desse conceito que a teoria instanciará concepções
de construção de sentido, interesse, agenciamento e multimo-
dalidade, primordiais para o ensino requerido na contempo-
raneidade e explicitadas no decorrer do texto. Segundo Cope e
Kalantzis (2009, p. 175-6), o conceito de Design fora instituído
com o propósito de contrapor-se a concepções tradicionais de
ensino pautadas em uma visão estática e monomodal da lingua-
gem (foco na escrita). Design institui uma concepção dinâmica
de representação (de linguagem, de aprendizagem, de mundo),
sendo definido como ato de construção de sentido. (BEVILA-
QUA, 2013, p. 106).

Portanto, tendo em vista essas ponderações de Bevilaqua so-


bre os multiletramentos, temos informações para a compreensão de
que, na sociedade atual, a teoria dos multiletramentos contribui efe-
tivamente para o ensino da língua portuguesa, já que se contrapõe às
concepções tradicionais de ensino. Assim sendo, para a referida teóri-
ca é excelente o conceito de “design”, que apresenta uma dupla e feliz
coincidências de sentidos: estrutura (sistemas, formas e convenções
de sentido) e ato de construção de sentido (processo criativo pelo qual
o sujeito, definido como meaning-maker, ou produtor de sentido, cons-
trói e representa sentidos, passando a agente, designer de sentido e

- 67 -
não simples receptor de habilidades e competências). Bevilaqua (2013)
afirma que Design, então,

se refere ao modo como as pessoas fazem uso de recursos de


significação disponíveis em um dado momento em um am-
biente específico de comunicação para realizar seus interesses
(COPE; KALANTZIS, 2000, p. 204). Da mesma forma como são
teorizados pelos NLS, os sentidos são constituídos por dimen-
sões socioculturais e ideológicas, que variam enormemente de
um contexto a outro. Por isso, o conceito de Design é, segundo
essa teoria, central para a constituição de um currículo esco-
lar atualizado com as novas tendências sociais. (BEVILAQUA,
2013, p. 106).

De acordo com o que foi exposto, a teoria dos multiletramentos


vem ao encontro da teoria de Bakhtin (1992; 2017), que nos remete à
compreensão de que o que importa na comunicação é a interação dos
sujeitos com suas palavras, seus conteúdos ideológicos, e as condições
de produção. Logo, não existe discurso sem sujeito, nem sujeito sem
ideologia. Há uma relação entre a linguagem e o mundo que somente é
possível porque existe a intervenção da ideologia, que constrói campos
onde os indivíduos se tornam sujeitos de seus próprios discursos. Com
isso, a linguagem, inserida em um contexto social, histórico e cultu-
ral, se realiza e faz sentido. Bakhtin (1992) afirma que a alteridade se
constitui no ser humano. Nesse processo de constituição, o “outro” é
primordial, visto que esse sujeito se constitui na e através da interação.
Nessa perspectiva, citando Cope e Kalantzis, (2009), Bevilaqua (2013,
p. 107) faz uma contribuição dizendo que
o Design é constituído por três aspectos: Available Designs (re-
cursos culturais e contextuais para a construção do sentido,
incluindo modo, gênero e D/discurso); Designing (processo de
construção e recontextualização da representação do mundo por
meio dos Available Designs) e Redesigned (o mundo transforma-
do em novos Available Designs, que instanciam novos sentidos).

- 68 -
Esses três critérios ou elementos, de acordo com Bevilaqua são
dinâmicos e assim como a linguagem representam sentidos moventes
e assim devem ser considerados nas práticas de ensino. Ainda para
o uso em aulas desses elementos, a referida autora, dizem que o
professor deve ter em mente que no design temos a criatividade como
pano de fundo. Assim sendo, “a inovação, o interesse e a motivação
do produtor de sentido” são categorias “eminentemente culturais e
ideológicas” (BEVILAQUA, 2013, p. 108). Essas categorias, definidas
como perspectivas por Bevilaqua colocam a (re)apropriação no centro
da atividade linguística e, portanto, também no cerne do processo de
ensino-aprendizagem.
Portanto, o sujeito de que fala a teoria dos multiletramentos é
um sujeito que não vive um processo de construção e reprodução, mas
de ressignificação da sua realidade, uma vez que, conforme Bevilaqua
(2013), o design representa o sentido de movimento, que não fica está-
tico. Com isso, percebemos nessa teoria um sujeito dinâmico, criativo,
que inova com interesse e motivação na produção de sentido. Dessa
forma, fica claro que a teoria dos multiletramentos comunga com a
teoria de Bakhtin (1992; 2007), no que diz respeito à aprendizagem, que
leva em consideração o contexto social, histórico e cultural do sujeito.

Considerações finais: contribuições das teorias e sua


aplicação no ensino de língua portuguesa

Esperamos ao final desse percurso de reflexão ter oferecido con-


tribuições das teorias abordadas neste capítulo para o ensino da língua
portuguesa. É necessário, para os profissionais da educação, o conhe-
cimento das concepções de linguagem e as teorias sobre letramento e
multiletramentos para, então, avaliar de forma significativa suas con-
tribuições no processo da sua prática pedagógica e no desenvolvimen-
to da aprendizagem dos estudantes.

- 69 -
Diante do exposto, esse estudo buscou proporcionar uma refle-
xão sobre a necessidade de transformação da prática pedagógica para
que o professor possa efetivamente cumprir seu papel de mediador e
desenvolver sujeitos competentes, capazes de se moverem com desen-
voltura no mundo repleto de textos que o cercam. Ter o conhecimento
das três concepções apresentadas é um conhecimento que ajuda dian-
te dos desafios propostos pela ação de ensinar a língua portuguesa,
desenvolver a concepção que significativamente proporciona um me-
lhor desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem dos estu-
dantes. Somente assim é possível compreender que os atos de leitura e
escrita não são realizados mecanicamente, mas são associados às prá-
ticas sociais e que os estudantes são sujeitos que vivem num contexto,
carregam suas histórias convivendo em uma sociedade que tem sua
própria cultura.
Acreditamos que, na sociedade contemporânea, diante da gama
de informações, o conhecimento das concepções de linguagem como
meio de interação, a teoria do letramento e a dos multiletramentos con-
tribuem de forma global e integral para o desenvolvimento de sujeitos
criativos e com habilidades para se desenvolverem cognitiva e social-
mente perante as exigências sociais. Nesse sentido, as teorias citadas
na nossa discussão contribuem efetivamente para o ensino da língua
portuguesa, já que se contrapõem às concepções tradicionais de ensino.

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Horizonte: Autêntica, 2004.

Dinete Andrade Soares Bitencourt


Professora na Rede Estadual de Educação, graduada em Licenciatura
Plena em Letras, com habilitação em Português/Inglês - UNIFAN, espe-
cialista em Psicopedagogia – Albert Einstein e Mestranda em Estudos
Linguísticos - UFG. e-mail: <dinete.777@gmail.com>.

Sinval Martins de Sousa Filho


Doutor e Mestre em Letras e Linguística (UFG). É professor na Faculda-
de de Letras – UFG. Pós-Doutorado em Psicolinguística (Universidade
de Brasília/UNB) e em Teoria Linguística (Universidade de Pisa, Itália/
Unipi). Trabalha com Formação inicial e continuada de professores,
Aquisição de Linguagem, Línguas Indígenas, Análise linguística e Estu-
dos sobre literatura indígena. e-mail: <sinvalfilho7@gmail.com>.

- 73 -
A importância da variação linguística no
processo de ensino-aprendizagem de
língua portuguesa 1

Luana Medeiros de Moura (SEEDF/PPGLL/UFG)


Sinval Martins de Sousa Filho (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este capítulo objetiva refletir sobre a importância do tema variação lin-


guística no processo de ensino-aprendizagem. Na referida reflexão, a
abordagem metodológica da pesquisa bibliográfica foi mobilizada, con-
siderando tanto estudos científicos quanto os documentos curriculares
oficiais para descrever e analisar dados de um livro didático intitulado
“Tecendo Linguagens: Língua Portuguesa: 6º ano” (Oliveira; Araújo,
2018). Particularmente no que diz respeito ao tema variação linguística
e ensino, as discussões de Bagno (2007), Neves (2004) e Faraco e Zilles

1 Este capítulo retoma o tema ensino de português e variação linguística discutido de


modo inicial no artigo “Propostas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e de
Livros Didáticos para o ensino da variação linguística no ensino fundamental anos finais”
(SOUSA FILHO e MOURA, 2020). Nessa nova proposta, avançamos no que diz respeito
às possibilidades de mobilização das variações linguísticas nas aulas de português. Este
texto foi devidamente revisado pela autora e seu orientador, e os conceitos aqui mobili-
zados são de responsabilidade dos autores, com anuência do orientador.
(2015) compõem os eixos teóricos, além das ideias sobre a temática ad-
vindas da BNCC (Brasil, 2017). Os resultados mostram que o estudo da
variação linguística ainda não é a tônica das aulas de Língua Portuguesa.
Palavras-Chave: Variação linguística; Ensino; Língua Portuguesa; BNCC.

ABSTRACT

This paper aims to reflect on the importance of the topic of linguistic


variation in the teaching-learning process. In this reflection, the method-
ological approach of bibliographic research was mobilized, considering
both scientific studies and the official curricular documents to describe
and analyze data from a textbook entitled “Tecendo Linguagens: Língua
portuguesa: 6º. ano” (Oliveira; Araújo, 2018). Particularly with regard to
the topic of linguistic variation and teaching, the discussions by Bagno
(2007), Neves (2004) and Faraco e Zilles (2015) comprise the theoretical
axes, in addition to the ideas on the theme arising from the BNCC (Brasil,
2017). The results show that the study of linguistic variation is not yet the
keynote of Portuguese language classes.
Keywords: Linguistic variation; Teaching; Portuguese language; BNCC.

INTRODUÇÃO

A língua(gem) é uma das primeiras instituições sociais com que


a criança se depara, conforme os estudos de Berger e Berger (1975). Em
conjunto e ao mesmo tempo, a língua(gem) e outras instituições atuam
como padrões de controle, programações das condutas individuais,
chamadas de papeis sociais. A linguagem traz para os indivíduos, mui-
to cedo, a noção de que existem as relações sociais e os papéis que são
desempenhados por cada ser humano nas práticas diárias. A relação

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“eu x outro” é estabelecida por meio de significados dos papéis (reco-
nhecidos como padrões que se repetem) desempenhados pelos sujei-
tos na socialização. É por meio da linguagem que existe um distancia-
mento ou uma diferenciação entre os papéis sociais de que os sujeitos
participam. Conforme Berger e Berger (1975, p. 164), é “por meio da
linguagem que a criança começa a tomar conhecimento de um vasto
mundo situado ‘lá fora’, um mundo que lhe é transmitido pelos adultos
que a cercam, mas vai muito além deles”.
A linguagem, conforme Bakhtin (1995), é uma instituição social
que se realiza num processo dialógico interior/exterior ao indivíduo
responsável pela realização das interações, mediante o encontro de
subjetividades, de sujeitos situados no espaço-tempo. Socialmente
construída, a linguagem é também objetiva, na medida em que há uma
aceitação de sua existência por todos os falantes, e coercitiva, visto que
há padrões normativos a serem seguidos para uma boa relação social
e interpessoal. Assim sendo, ela possui autoridade moral, porquanto,
além de apresentar-se coercitivamente ao falante, inflige um desgaste
moral aos que ousam falar “diferente” do padrão “correto” estipulado
socialmente por um grupo social; por fim, sendo as instituições sociais
históricas, há uma existência perene que não depende da existência de
um indivíduo específico, pois ela continuará existindo mesmo depois
de sua morte.
Nesse sentido, com referência aos autores citados anteriormen-
te, a linguagem é, para além da atividade constitutiva dos sujeitos, a
mais influente ferramenta de controle social sobre os sujeitos. Ainda,
ela exerce sobre os indivíduos modelos de socialização, tendo em vis-
ta que é por meio da linguagem que a pessoa não somente identifica
o papel do outro como também pode exercer esse papel socialmente,
refletindo valores e comportamentos apreendidos nos processos de
interação verbal.

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Esse processo de socialização ou de ideologização, conforme
Bakhtin (1995), permite que o indivíduo entenda que existem sujei-
tos sociais diferentes dele, bem como funções sociais e importâncias
diferenciadas de atividades, a depender de cada contexto ou campo
das interações. Assim, o sujeito individual nesse processo não é mero
espectador das transformações sociais e nem uma vítima passiva da
socialização, conforme os referidos autores postulam, mas um sujeito
atuante no mundo a partir do uso da língua(gem). É importante lem-
brar-se de que, nesse processo de socialização, o sujeito social integra e
participa de diferentes contextos, os quais demandam usos e recursos
linguísticos diferenciados a cada interação comunicativa.
Nessa perspectiva, entendendo que a linguagem é ferramenta
social de controle e instrumento de socialização, que demarca não so-
mente um amplo fenômeno social e histórico, mas também a identi-
dade, a classe social, a cultura de cada indivíduo, tem-se como objetivo
deste trabalho mostrar que o estudo da Língua Portuguesa, consoante
à variação linguística, é matéria que deve estar vívida nas lousas es-
colares. Essa também é a recomendação expressa pelos documentos
legais sobre a educação escolar brasileira, especialmente da Base Na-
cional Comum Curricular (BNCC).
O ensino da variação linguística foi chancelado por estudos ela-
borados ao longo do século XX pela Linguística (Bagno, 2007; Neves,
2004) e, agora, também pela BNCC e outros documentos que tratam
das competências e habilidades a serem desenvolvidas na escola. O en-
sino voltado à exploração da variação linguística enseja, entre outros
objetivos, evitar possíveis preconceitos linguísticos, além de respeitar
e emancipar os sujeitos nos usos da língua.
A seguir, apresentamos uma discussão sobre variação linguísti-
ca e ensino de língua portuguesa. Logo após essa seção, tecemos algu-
mas considerações sobre os temas propostos.

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Variação linguística para além do certo e do errado

Ensinar línguas tendo por fundamentos teorias que defen-


dem a variação linguística nem sempre é fácil. De acordo com Bagno
(2007), há uma lacuna procedimental entre a concepção variacional
da língua e sua consequente aplicabilidade em sala de aula, pois o que
se tem visto desde há muito tempo é a concepção errônea de que a
língua e suas manifestações orais e/ou escritas são uniformes e pau-
tadas quase que exclusivamente na gramática normativa. Nesse sen-
tido, Bagno (2007, p. 35) adverte:

As pessoas que vivem em sociedade com uma longa tradição es-


crita, com uma história literária de muitos séculos e um siste-
ma educacional organizado se acostumaram a ter uma ideia de
língua muito influenciada por todas essas instituições. Para elas
só merece o nome de língua um conjunto muito particular de
pronúncias, de palavras e de regras gramaticais.

Conforme observa Bagno, o tesouro nacional linguístico se res-


tringe a uma das variedades da língua, uma variedade extremamente
idealizada e, de fato, abstrata e inalcançável em sua totalidade. As agên-
cias educacionais também entram nessa lógica e centralizam forças no
ensino de uma variedade padrão do bem falar, a qual se materializa em
gramáticas particulares feitas com o objetivo de padronizar a língua.
Na prática, não há dificuldades para se observar como tem sido
a operacionalização na língua dessa vertente voltada exclusivamente
para a norma padrão. Tome-se, a título de exemplo, a análise de uma
atividade do Manual do Professor2, livro didático “Tecendo Linguagens

2 A escolha do livro do docente, que difere do livro do aluno por conter as respostas e ex-
plicações complementares, se deve ao fato de que é o educador que conduz o processo
de aprendizagem, sendo ele responsável pelo conteúdo abordado.

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de Língua Portuguesa 6º ano” (Oliveira; Araújo, 2018), eleito pelo Plano
Nacional do Livro Didático/PNLD para o triênio 2020-2023. O excerto
analisado mostra como o LD norteia o estudo da variação linguística.
Eis o recorte da atividade:

Variedade linguística
1. Observe a maneira como um personagem do texto “Na escola” expôs
sua opinião e responda às próximas questões:

A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de


qualquer jeito.

a) A construção destacada no trecho está de acordo com as regras


gramaticais? Por quê?
R: não, pois o sujeito (a gente) está no singular e o verbo (aparecemos) no
plural.
b) Construções como essa em destaque podem aparecer na fala das
pessoas quando elas se comunicam? Por que você acha que isso
acontece?
Resposta “pessoal”

(OLIVEIRA E ARAÚJO, 2018, p. 88).

No material, o tema variação linguística é incluído no terceiro


capítulo do livro, onde são tratados diversos assuntos da língua portu-
guesa. Há uma parte denominada de reflexão sobre o uso da língua, na
parte lateral da página, apresentando conceitos de variedade linguísti-
ca e de norma-padrão como se fossem notas “de orelha de livro”. Esses
conceitos estão atrelados à resposta da atividade de número 1, letra “b”
(cuja resposta deve ser dada pelo aluno), estabelecendo um diálogo do
aluno com o professor.

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Verifica-se, pois, que o tema variação linguística somente foi
tratado nesse capítulo do livro e de forma bem sucinta e segue à risca
a ideia de oposição entre língua padrão e não-padrão, tendo como
referência a gramática normativa. O exercício de fixação, que pre-
tendia explorar o assunto, limitou-se a uma questão com duas alter-
nativas de respostas.
A primeira alternativa (letra “a”) direcionou a discussão para a
norma-padrão, no caso, para a concordância verbal. A explicação ini-
cial seria mostrar que a construção contida no retângulo não estava de
acordo com as regras gramaticais, pois o sujeito estava no singular, e o
verbo, no plural. Caberia ainda ao professor, com base nos conceitos
já pré-estabelecidos no livro, explicar que há pessoas que usam a va-
riedade da norma padrão e, portanto, seguem os ditames das regras
de concordâncias e outras que seguem a norma não-padrão. E, assim,
segundo o manual, quanto menos escolarizadas fossem essas pessoas,
mais distantes estariam da norma padrão.
A segunda alternativa (letra “b”) concedeu uma abertura para
que o professor encaminhasse a matéria a partir das respostas dadas
pelos alunos (resposta pessoal), porém seguindo as instruções concei-
tuais-metodológicas que constam no livro.
Assim, após o professor receber as respostas dos alunos, deveria
dar continuidade às explicações sobre os usos da variação linguística,
mostrando que a língua, por ser dinâmica, passa por processos natu-
rais de mudanças e os usos se modificam, dependendo da situação.
No que concerne a letra “a”, houve uma abordagem tradiciona-
lista, apontando que construções como essas podem acontecer quan-
do pessoas se comunicam principalmente com aquelas que são menos
escolarizadas. Essa abordagem teve como foco a variedade da língua
em uma perspectiva normativa, incompleta e preconceituosa. Como
se trata de um manual do professor, os direcionamentos contidos no

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livro, como se pode observar, abrem precedentes para que esse profis-
sional aborde o tema dizendo que aquilo que foge dos ditames da nor-
ma padrão é variação linguística, o que, nesse caso, é, no mínimo, uma
postura reducionista.
Em relação à letra “b”, a sugestão do livro quanto à resposta a
ser dada (gabarito) para os alunos foi insatisfatória e incoerente, pois
a variação linguística não ocorre apenas entre os menos escolarizados,
mas representa um processo natural da própria língua, que dispõe de
outros elementos que a integram, como abordado anteriormente.
De modo geral e não só nesse Manual analisado, quando se passa
para a materialidade desse tema, ele é apresentado de modo enviesa-
do, causando, geralmente, a má impressão de que tudo que não esteja
de acordo com a norma padrão é variação linguística. No entanto, para
Bagno (2007), a variação acontece em todos os níveis, seja fonético-­
fonológica, morfológica, sintática, semântica, lexical, ensejando uma
heterogeneidade da língua.
Assim, é preciso compreender e trabalhar a variedade da língua
não apenas dizendo que aquilo que é contrário à norma padrão é variação
linguística e, que, por isso mesmo, é uma incorreção no uso da língua,
pois o conceito de variação é muito mais amplo e engloba diversos fatores
extralinguísticos, tais como gênero, escolaridade, faixa etária etc.
Nessa esteira, o ensino da variedade linguística precisa aconte-
cer de fato nas salas de aula e, para que isso aconteça, não há a necessi-
dade de se buscar em grandes manuais aporte prático/teórico para se
ter exemplos desse fenômeno, bastando para isso um olhar sociolin-
guístico voltado para os alunos mesmos em sala de aula, pois eles pro-
duzem um material linguístico riquíssimo. E esse olhar para o aluno
como produtor de linguagem proporciona uma maior interação com
esses sujeitos, pois essa prática gera um espelhamento deles mesmos e
de suas origens. Não se pretende, é claro, que haja um distanciamento

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dos manuais didáticos, mas que aconteça uma análise crítica por parte
dos docentes no repasse de conhecimentos e dos conteúdos, os quais
devem ser apropriados de modo a contemplar os conhecimentos dos
alunos, que merecem, a propósito, teorias de ensino que acompanhem
a evolução e a atualização linguística de cada qual.
Ainda, em relação ao tema, a BNCC (Brasil, 2017) advoga que o
ensino de língua portuguesa contemple também a variação da língua.
Nesse propósito, destacam-se abaixo excertos extraídos do referido
documento, seguidos de observações a respeito:

Em especial, as variedades linguísticas devem ser objeto de re-


flexão e o valor social atribuído às variedades de prestígio e às
variedades estigmatizadas, que está relacionado a preconceitos
sociais, deve ser tematizado. (Brasil, 2017, p. 81).

Como se vê, é proposto que o tema seja levado a análise e que as


diferenças atribuídas entre as variedades linguísticas sejam discutidas
e avaliadas a partir do contexto em que acontecem. Esse tipo de reflexão
fornecerá ao estudante ferramentas que contribuirão para o entendi-
mento da importância da língua(gem) e das suas possibilidades de uso.
Para isso, a BNCC aconselha que o ensino da variedade linguística
contemple tanto as análises linguísticas quanto as semânticas/semióti-
cas, de modo que o aluno perceba que a variação não se dá apenas pela
troca de sintagmas nominal e verbal ou até mesmo pelas ausências de
concordâncias nominais/verbais no uso da língua(gem), mas que essa
variedade acontece também no campo semântico. Veja-se:
• Conhecer algumas das variedades linguísticas do português do
Brasil e suas diferenças fonológicas, prosódicas, lexicais e sintá-
ticas, avaliando seus efeitos semânticos. (Brasil, 2017, p. 83).

Assim, pode-se perceber que reflexões acerca do tema devem


acontecer para que as competências específicas a serem desenvolvidas

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no ensino fundamental por meio da Língua Portuguesa se efetivem na
vida do aluno, a exemplo das mencionadas a seguir

4 Compreender o fenômeno da variação linguística, demonstran-


do atitude respeitosa diante de variedades linguísticas e rejei-
tando preconceitos linguísticos.

5 Empregar, nas interações sociais, a variedade e o estilo de lingua-


gem adequados à situação comunicativa, ao(s) interlocutor(es) e
ao gênero do discurso/gênero textual. (BRASIL, 2017, p. 87).

Não há no texto da BNCC – Língua portuguesa uma definição


tão acurada do que se entende por variação linguística, essa definição,
todavia, aparece mais bem delineada na BNCC – Língua Inglesa. Na se-
quência, transcrevemos o que a BNCC sistematiza acerca da variação
linguística em relação à Língua Inglesa, que, aplicamos, de modo refle-
xo, ao ensino da Língua Portuguesa

Para além da definição do que é certo e do que é errado, essas des-


cobertas devem propiciar reflexões sobre noções como “adequa-
ção”, “padrão”, “variação linguística” e “inteligibilidade”, levando o
estudante a pensar sobre os usos da língua inglesa (...). Para além
de uma comparação trivial, com vistas à mera curiosidade, o tran-
sitar por diferentes línguas pode se constituir um exercício me-
talinguístico frutífero, ao mesmo tempo em que dá visibilidade
a outras línguas, que não apenas o inglês. (BRASIL, 2017, p. 245).

No entanto, quanto ao componente curricular Língua Portugue-


sa, não estão evidenciadas as razões da omissão da BNCC para o não
estabelecimento de uma reflexão do tema variação linguística mais
aprofundada e didática, visto que se trata da língua materna e, por isso
mesmo, deveria ocupar espaço de maior importância nas discussões
didáticas pertinentes ao ensino da variação linguística, conforme a
perspectiva apresentada por Neves (2004, p. 35) em relação a esse tema:
Com todo o desenvolvimento da Linguística, era de esperar que
se reconhecesse a variação linguística como uma manifestação

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evidente da natureza e da essência da linguagem (...). A hetero-
geneidade não é adventícia à linguagem, pelo contrário, é fator
de adequação e eficiência, e afinal, é qualidade, e não defeito, é
solução, e não problema.

Diante disso, sobressai a compreensão de que o ensino da variação


linguística e a valorização desse tema nas salas de aula caminham para o
despertamento de habilidades que resultarão na formação de cidadãos
conscientes das questões sociais que os envolvem e de sujeitos críticos
em relação a sua própria linguagem. Essa noção é libertadora, pois tem a
capacidade de emancipar as vozes daqueles que se encontram estigmati-
zados pelo desconhecimento desse ou daquele registro linguístico.
Assim sendo, as práticas pedagógicas precisam ser feitas coletiva-
mente e ter o objetivo de que os participantes da aula percebam que há
variedades da língua, não somente as que trazem consigo do ambiente
familiar e/ou cultural, mas outras consagradas como cultas, que são pro-
venientes das culturas letradas e outras mais. Estas devem ser estudadas
sistematicamente no decorrer da escolaridade básica, objetivando enri-
quecer a língua(gem), sabendo que não há motivos para juízos de valor
positivo ou negativo para nenhuma delas, mas que existem adequações
linguísticas a serem respeitadas de acordo com cada ambiente de fala de
cada grupo social.
Dito isso, é pertinente reafirmar, segundo estudos de Faraco
e Zilles (2015), que toda e qualquer língua é sempre heterogênea e o
é em múltiplas dimensões. Essa heterogeneidade intrínseca de toda
sociedade se reflete por meio da língua(gem) em uma pluralidade lin-
guística, revelada, a título de exemplo, nas faixas etárias, nos gêneros
dos falantes, bem como nas atividades em que estão envolvidos e em
contextos de interação etc.
Assim, cumpre nessa incursão temática, destacar os estudos
históricos dedicados à linguagem. Durante mais de dois mil anos, a

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área de maior concentração dos estudos em linguagem defendia o uso
ideal da língua com base na língua literária, nas opções de uso feitas
pelos grandes escritores do passado. Segundo Bagno (2007, p. 15), os
estudiosos da grande literatura clássica da Grécia preocupavam-se em
preservar a pureza da língua grega. Nesse intento, os filólogos gregos
descreveram as regras gramaticais empregadas pelos escritores clás-
sicos para que fossem um modelo que servisse de base para todas as
outras pessoas que desejassem dominar a arte de bem falar e escrever
dentro dos padrões normativos. Tal modelo se intitulou de gramática,
cujo significado é a arte de falar e escrever.
No entanto, a gramática tradicional conhecida nos dias atuais,
conforme Bagno (2007, p. 15), incorreu em dois equívocos fatais: o pri-
meiro, na separação rígida entre língua falada e língua escrita; o segundo,
na forma de encarar a mudança das línguas (que é simplesmente mu-
dança, e não “corrupção”, “ruína” ou “decadência”). Segundo John Lyons
(1981, p. 171),

As línguas literárias eram mais consideradas do que as línguas


e dialetos não-literários. E quaisquer diferenças que os gramá-
ticos observam entre o literário e o coloquial, ou entre a língua-
-padrão e os dialetos não-padrão tendiam a ser condenadas e
atribuídas a desleixo ou à falta de instrução.

Esse comportamento separatista entre língua falada e língua


escrita, em que a língua escrita ocupa o lugar de maior prestígio, in-
felizmente ainda é endossado por instituições educacionais nas prá-
ticas pedagógicas de muitos professores na atualidade. O principal
problema é que, segundo Bagno (2007, p. 18), “a gramática tradicional
que foi criada para servir de régua/regra para a língua escrita literá-
ria” tem sido usada extrapoladamente pelo sistema educacional, pois
o que se tem visto hoje é o uso para medir/regular/regrar todo e qual-

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quer uso da língua, causando prejuízos linguísticos e identitários de
toda ordem na vida de muitos educandos, com a pulverização errô-
nea de que a língua é um conjunto muito particular de pronúncias,
de palavras e de regras gramaticais, compondo um modelo correto de
língua e, portanto, homogênea para todos por meio da norma-padrão.
Passando em revista a boa compreensão do termo norma-­
padrão, tem-se que, segundo os estudos de Travaglia (2005), o concei-
to de norma (culta ou padrão) é dividido em sentido amplo e sentido
restrito. Ao relacioná-lo ao sentido amplo, compreende-se que a nor-
ma funciona como fator de coesão social e em sentido restrito, cor-
responde aos usos, atitudes e aspirações da classe social de prestígio
de uma nação, em virtude de razões políticas, econômicas e culturais.
Normalmente, a classe social dominante usa a norma para regular os
usos da língua, reduzindo, assim, as possibilidades de falar em diale-
tos X e Y e forçando todos a seguirem um padrão estabelecido.
De outro modo, os estudos sobre língua e linguagem nos fazem ver
que a Língua Portuguesa, como qualquer outra língua, é heterogênea, as-
sim como os falantes, e que não cabe a nenhum deles a exigência peremp-
tória de uma língua engessada, que em contextos variados serve apenas
de pretexto para lhes tirar o bem mais precioso de cada cidadão: a fala.
Por isso, de outro modo não se pode conceber o ensino da Língua
Portuguesa, visto que é necessário abrir-se para os discursos plurais, e
uma dessas aberturas passa, inevitavelmente, pelas variedades da lín-
gua. Para Bagno (2007, p. 36), a língua na concepção sociolinguística3 é

3 A Sociolinguística, como disciplina científica, objetiva relacionar a heterogeneidade lin-


guística com a heterogeneidade social. Língua e sociedade estão indissoluvelmente en-
trelaçadas, entremeadas, uma influenciando a outra, uma constituindo a outra, conforme
Bagno (2007).

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intrinsecamente múltipla, variável, instável e está sempre em descons-
trução e em reconstrução, sendo, por isso mesmo, heterogênea.
Essa variação não é desordenada, conforme Bagno (2007), pois,
segundo ele, é impossível falar sem obedecer às regras linguísticas.
Assim, há uma heterogeneidade linguística ordenada, pois é possí-
vel, por meios das características da própria língua, expressar um
mesmo conteúdo informativo por meio de regramentos diferentes e,
claro, lógicos entre si, permitindo interações sociais e culturais. Den-
tre as variações que ocorrem no âmbito interno da língua, existem
também variações linguísticas cujos fatores são externos, isto é, são
fatores sociais que também contribuem no enriquecimento do idio-
ma, sendo os seguintes:

Origem geográfica: a língua varia de um lugar para o outro; as-


sim, podemos investigar, por exemplo, a fala característica das
diferentes regiões brasileiras, dos estados, de diferentes áreas
geográficas dentro de um mesmo estado; Status socioeconômi-
co: as pessoas que têm um nível de renda muito baixo não falam
do mesmo modo das que têm um nível de renda médio ou mui-
to alto, e vice-versa; (...). Redes sociais: cada pessoa adota com-
portamentos semelhantes aos das pessoas com quem convive
em sua rede social; entre esses comportamentos está também
o comportamento linguístico. (BAGNO, 2007, p. 43-44).

Nessa imersão variacional da língua, há também fatores esti-


lísticos que podem ocorrer e influenciar os modos de falar das dis-
tintas comunidades, bem como dos grupos sociais, além de se fazer
presente também na individualidade linguística de cada falante.
Conforme Bagno (2007), essa variedade estilística pode ser feita de
maneira mais consciente ou menos consciente, mais formal ou me-

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nos formal, ensejando por parte dos interlocutores uma postura de
monitoramento estilístico.4
Nessa mesma toada, é possível, de acordo com Bagno (2007, p. 46),
encontrar em textos de estudos especializados da sociolinguística ter-
mos como:

Variação diatópica - verificada na comparação entre modos de


falar de lugares diferentes, como as grandes regiões, os estados,
as zonas rural e urbana, as áreas demarcadas nas grandes cida-
des etc.; variação diastrática - é a que se verifica na comparação
entre os modos de falar das diferentes classes sociais; variação
diamésica - é a que se verifica na comparação entre língua fala-
da e a língua escrita. Na análise dessa variação é fundamental o
conceito de gênero textual; variação diafásica - é o uso diferen-
ciado que cada indivíduo faz da língua de acordo com o grau de
monitoramento que ele confere ao seu comportamento verbal;
variação diacrônica - é a que se verifica na comparação entre di-
ferentes etapas da história de uma língua.

A riqueza de classificações quanto aos diferentes modos de se falar


uma língua tem a ver com os muitos fatores sociais envolvidos, tais como
idade, classe social, grau de instrução etc.
As variedades da língua - termo preferencial nos estudos de Trava-
glia (2005, p. 42), pois ele coloca em um mesmo nível todos os tipos de va-
riação - pode-se dividir basicamente em dois tipos de variedades que são:
os dialetos e os registros. Os dialetos são as variedades que ocorrem em
função dos falantes, fazendo uso da língua e nesse sentido podem ocorrer
em várias dimensões: territorial, geográfica, social, idade, sexo, geração

4 O monitoramento estilístico é uma escala contínua, que vai do grau mínimo ao grau má-
ximo e opera não só na língua falada, mas também na língua escrita. Os sociolinguistas,
conforme Bagno (2007, p. 45), assinalam que não existe falante de estilo único: todo e
qualquer indivíduo varia a sua maneira de falar, monitora mais ou menos o seu compor-
tamento verbal.

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e função. Os registros são as variedades ocorridas em função do uso que
se faz da língua, que são dependentes do recebedor da mensagem ou da
circunstância, podendo ser de três tipos distintos: grau de formalismo,
modo e sintonia, havendo a possibilidade de correlações e superposições
entre eles, segundo Travaglia (2005).
Nessa esteira, é perceptível o montante da variabilidade de uma
língua, porém ao tempo que se reconhece formalmente essa variação
como um fato inafastável de toda e qualquer sociedade letrada e linguis-
ticamente ativa, não se acompanha essa percepção nas práticas em salas
de aula, visto que ainda se pode perceber um apego à tradição da varieda-
de de prestígio, à norma culta, afastando as demais variedades linguísti-
cas, tidas por pouco ou nenhum valor na vida social dos estudantes. Nes-
se sentido, vejam-se as contribuições de Travaglia (2005, p. 41):

Não cabe o argumento de trabalhar apenas com a norma culta por-


que o aluno já domina as demais: isso não é verdade, uma vez que
o aluno, quando chega à escola, pode dominar bem uma ou duas
variedades e alguns elementos de várias, mas sempre tem muito
que aprender de diversas variedades, inclusive das que domina.

Assim, a variedade linguística deve ser tratada com o mesmo


prestígio com que se trata a norma culta, visto que, em termos discur-
sivos-práticos, ela é dominante e impera em todas as áreas da vida so-
cial dos falantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A linguagem é uma ferramenta social e por meio dela há a socia-


lização e a constituição dos sujeitos. Por ser social, a linguagem espelha
diretamente toda uma sociedade, revelando-se nas práticas sociais por
meio das variedades linguísticas, as quais, pelo fato de se constituírem

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um fenômeno historicamente social, não podem ser qualificadas como
erro ou desvio linguístico.
O ensino da variação linguística, como visto, ainda sofre com al-
gumas interferências equivocadas do certo/errado, formal/informal,
urbana/rural, culta/ coloquial, padrão/não-padrão e, assim por diante,
em uma sequência desencadeadora de imprecisões conceituais e práti-
cas, cujo resultado ao final da educação escolar é a incapacitação para os
diferentes usos linguísticos e inseguranças de toda ordem, chegando ao
ponto de muitos dizerem não saber falar ou escrever a própria língua, o
que é um contrassenso em si.
O contexto social em que o sujeito está inserido, por sua vez, dita as
relações identitárias de pertencimento a uma comunidade, a uma cultu-
ra, por meio de uma linguagem. Assim, o próprio falar de cada aluno deve
ser levado em consideração nas práticas pedagógicas no ensino da língua
portuguesa. Isso porque, tem-se erroneamente o falso entendimento de
que o ensino de Língua Portuguesa deve ser pautado, em sua maioria, por
regras da gramática normativa, objetivando, por meio das normas da lín-
gua padrão, um comportamento estudantil formatado nas regras do bom
falar e do bom escrever, como se esse aluno não participasse de outras
esferas de convívio social ou somente precisasse aprender a língua de
prestígio social.
O professor de Língua Portuguesa, nesse contexto, não pode sim-
plesmente instruir o falante nativo na codificação e decodificação das re-
gras dessa língua abstrata e artificial. Porém, cabe ao docente estimular
a ampliação linguística do aluno, fornecendo instruções que o capacite
para os diferentes usos linguísticos nos diferentes contextos sociais, bem
como emancipar linguisticamente esse sujeito para que ele tenha auto-
nomia e segurança para desfrutar dos variados estilos que a linguagem
comporta, além de respeitar os variados usos sociais da língua(gem).

- 90 -
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

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Linguagens: Língua Portuguesa: 6º ano. – 5 ed. – Barueri [SP], IBEP 2018
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Nacional Comum Curricular (BNCC) e de livros didáticos para o ensino
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em: < http://revistas.faculdadefacit.edu.br/index.php/JNT/article/
view/604>. Acesso em: 7 out. 2020.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: Uma proposta para o


ensino de gramática. 10 ed. – São Paulo: Cortez, 2005.

Luana Medeiros de Moura


Professora efetiva de Língua Portuguesa na Secretaria de Estado de
Educação do DF (SEEDF), mestranda em Letras e Linguística pela Uni-
versidade Federal de Goiás (UFG).
E-mails:<luamoura@hotmail.com>.

Sinval Martins de Sousa Filho


Professor Associado da Faculdade de Letras/UFG, onde atua na gradua-
ção e na pós-graduação. É pós-doutor em Psicolinguística (UnB) e em
Teoria Linguística (Università di Pisa) e Doutor em Letras e Linguística.
E-mail: <sinvalfilho@ufg.br>.

- 92 -
Passos para a implementação da Pedagogia
de projetos e o ensino de línguas na escola 1

Maria de Fátima Furtado Baú (SEDUCE/ SME/ PPGLL-UFG)


Sinval Martins de Sousa Filho (PPGLL/UFG)

RESUMO

Pautado nos gêneros discursivos, integrando linguística e literatura,


articulando as práticas de leitura, produção texto e análise linguística,
tivemos como objetivo descrever como operacionalizar a organização
do trabalho pedagógico da disciplina de Língua Portuguesa no Ensino
Médio (EM) por meio da proposta de ensino Pedagogia Projetos. Des-
crevemos as atividades que podem ser desenvolvidas em um projeto de
ensino/estudo de língua integrado à literatura. A metodologia utilizada é
de base qualitativa. Para isso, partimos dos pressupostos teóricos e me-
todológicos da proposta de ensino Pedagogia de Projetos (HERNÁNDEZ,
1998; LEITE,1996) e do ensino da língua de forma reflexiva/criativa in-
tegrada à literatura, a partir das ideias básicas de Bakhtin ([1924] 2013),
Franchi ([1970] 2006), Britto (1997) e Geraldi ([1983] 2006), que funda-
mentam o saber sobre o ensino de línguas. A discussão teórica apresen-

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e seu orientador, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade dos autores, com anuência do orientador.
tada por esses autores aponta nova direção ao trabalho pedagógico com
línguas, as quais devem ser estudadas em situações autênticas de uso da
língua(gem), tendo o texto como ponto de partida e de chegada.
Palavras-chave: Ensino; Pedagogia de Projetos; Língua Portuguesa; Li-
teratura; Análise linguística.

ABSTRACT

Based on the discursive genres, integrating linguistics and literature,


articulating the practices of reading, text production, and linguis-
tic analysis, we aimed to define the functionality as well as the step
process for the pedagogical work organization within the Portuguese
language course in High School. Obviously, observing the proposal of
the Pedagogy Project. We explain the activities that may be developed
involving language teaching and its integration with literature. The
methodology used is on a qualitative basis. For this, we start from the
theoretical and methodological assumptions of the Pedagogy Project.
(HERNÁNDEZ, 1998; LEITE, 1996) and from the teaching of the lan-
guage in an aesthetic way integrated with literature, based on the basic
ideas of Bakhtin ([1924] 2013), Franchi ([1970] 2006,), Britto (1997) and
Geraldi ([1983] 2006), which underlie the knowledge about language
teaching overall. The theoretical discussion presented by these au-
thors points to a new direction for pedagogical work with languages,
which must be studied in authentic situations in a daily basis routine
of a language, having the text as a starting and ending point.
Keywords: Teaching; Project Pedagogy; Portuguese Language;
Literature; Linguistic Analysis.

- 94 -
INTRODUÇÃO

As atividades de ensino-aprendizagem desenvolvidas no Ensino


Básico devem dar aos alunos uma formação humana e acadêmica. Des-
sa forma, devemos partir do mesmo pressuposto quando se trata do
ensino/estudo da língua portuguesa (LP).
Estudos e pesquisas apontam que o fracasso escolar incide nos
aspectos relacionados à leitura e a escrita, ou seja, os alunos concluem
o Ensino Básico sem dominar, de fato, essas duas práticas de lingua-
gem (cf. BRASIL, 1998). Observamos que isso ocorre principalmente
em escolas públicas de periferia (FURTADO BAÚ, 2015). Dessa forma,
torna-se necessário repensar, reestruturar o ensino da LP para que
possamos garantir aos alunos o desenvolvimento esperado das compe-
tências e habilidades de língua(gem).
Acreditamos que a proposta de ensino Pedagogia de Projetos (PP)
se mostra eficiente para transformar essa realidade e fazer do ensino de
LP uma fonte de construção social e de formação crítica e reflexiva dos
alunos (cf. LEITE, 1996). De acordo com Hernández (1998), essa perspec-
tiva de trabalho pedagógico faz com que os conteúdos estudados tenham
mais sentido para os alunos, contribuindo, assim, com a capacidade de
eles vincularem as diversas áreas do conhecimento e, consequentemen-
te, desenvolver as habilidades necessárias para prosseguir seus estudos
e participar de forma ativa na sociedade. E o domínio da língua(gem) é de
suma importância nesse processo. Desse modo, o estudo desta não pode
ser fragmentado como de costume, posto que é comum “triparti-la” em
Gramática, Redação e Literatura (cf. RAZZINI, 2000). E os projetos pe-
dagógicos possibilitam a integração entre o estudo da língua e da litera-
tura, bem como a articulação entre as práticas de leitura, produção de
texto e análise linguística (cf. FURTADO BAÚ, 2015).

- 95 -
Nesse sentido, propomos demonstrar como operacionalizar o en-
sino da LP organizado por meio da PP, pautado nos gêneros discursivos
para alunos do EM. Apoiados em Furtado Baú (2015), achamos necessária
a reflexão sobre como fazer porque a maioria das publicações a respeito
desse tema tem como foco os aspectos teóricos. Na tentativa de apresen-
tar como organizar um projeto pedagógico de Língua Portuguesa aliado
ao ensino de Literatura, articulando as práticas de leitura, produção de
texto e análise linguística, queremos entrelaçar teoria e prática.

Pedagogia de projetos e o ensino da lingua portuguesa

O trabalho organizado por meio da PP traz uma nova perspectiva


para entendermos o processo ensino-aprendizagem (cf. HERNÁNDEZ,
1998). Segundo Hernández (1998), aprender deixa de ser um simples
ato de memorização e ensinar não significa mais repassar conteúdos
prontos e acabados e de forma desvinculada um do outro, já que essa
proposta evita a compartimentação do saber, o qual ainda é tão comum
em nossas escolas. Segundo Razzini (2000), com relação à disciplina
de LP, é comum em nossas escolas, principalmente nas da rede priva-
da, compartimentar o ensino desta disciplina em Gramática, Redação
e Literatura. E ainda, o estudo da literatura no EM fica muito restrito
ao ensino das teorias literárias e periodização, deixando a leitura qua-
se que excluída do processo de ensino e a aula de língua centra-se na
identificação de nomenclaturas da gramática tradicional.
Uma das vantagens da PP é a integração dos conteúdos. Esse é
um aspecto de grande importância quando se trata do estudo da lín-
gua(gem). Posto que, quando organizamos nosso trabalho por meio de
projetos, é possível realizar o ensino/estudo da língua(gem) sem com-
partimentá-la, promovendo, dessa forma, um estudo mais amplo dela,
dado que é possível articular as práticas de leitura, produção de textos
e análise linguística, e mais, integrando os estudos dos aspectos lin-

- 96 -
guísticos e literários. Ou seja, a proposta auxilia na não separação dos
conteúdos da disciplina em campos estanques, colocando em polos
distantes os estudos da Língua e da Literatura.
Acreditamos que tanto em aulas de língua quanto nas de litera-
tura estamos lidando com a lingua(gem), pois ministrar aula de LP é
mediar conteúdos, tanto linguísticos como literários, porque, ao ler-
mos um texto literário ou não, isso só pode ser feito através dos ele-
mentos linguísticos. Assim, podemos dizer que a linguagem é o fio que
une estudos da língua e da literatura.
Além disso, como insiste Geraldi (2006), a aula de LP é, primei-
ramente, aula de leitura e de produção textual e também é a partir des-
sa aula que podemos realizar essas atividades por meio da língua(gem),
materializada nos textos.
Dessa forma, os trabalhos organizados por meio de projetos pro-
movem a articulação entre esses dois campos, porque em ambos o tex-
to está no centro. Segundo Suassuna, Melo e Coelho (2009, p. 232-233):

O projeto didático/temático permite recuperar o movimento in-


trínseco à prática da linguagem: ler o que o outro disse; compa-
rar com um outro dizer de um outro sujeito; verificar as diferen-
tes formas de dizer; ter o próprio texto lido; procurar dizer de
um certo modo; buscar informações sobre como dizer; avaliar os
diferentes efeitos se sentido do dizer... são práticas de professo-
res e alunos que, juntos, atuam como produtores de significados.

Essa perspectiva, além de diminuir a compartimentação das


áreas de conhecimentos, também promove a integração entre o en-
sino/estudo de língua e literatura. E isso ocorre facilmente, pois se
estuda a Língua. Logo, estudar literatura significa também estudar a
língua(gem) e vice versa (cf. LEITE, 2006). Além de promover essa in-
tegração, essa proposta favorece o estudo/ensino da língua(gem) de
forma contextualizada, integrando leitura, produção de texto e análise
linguística concomitantemente.

- 97 -
Assim, a proposta de PP é uma forma de organização dos conhe-
cimentos escolares, podendo envolver uma ou mais disciplinas, posto
que os projetos são inter/pluridisciplinares por natureza e têm como
característica fundamental o trabalho com conhecimentos de forma
global, isto é, integrados. Por outro lado, como assevera Hernández
(1998), cada componente curricular tem suas especificidades e devem
ser abordado pelo professor da área, o que não pode ocorrer, a nosso
ver, é a desvinculação quase que total, como se “tal” conteúdo trabalha-
do por disciplina X e Y fossem estanques, propriedade apenas do com-
ponente do qual ele faz parte. Muito pelo contrário, eles estão sempre
dialogando entre si e isso tem que ser percebido pelo aluno e levado em
consideração pelo professor.
Nesse raciocínio, os projetos são uma forma de organização do
processo ensino-aprendizagem, o qual implica considerar que os co-
nhecimentos escolares não se ordenam de forma rígida, nem em fun-
ção de referências disciplinares preestabelecidas ou de uma suposta
homogeneização dos alunos, uma vez que se trata de uma proposta
acolhedora, aberta e dialógica.
Assim, a função do projeto seria favorecer a criação de estraté-
gias de organização dos conhecimentos escolares no que diz respeito
ao tratamento da informação e dos conteúdos, facilitando o estabeleci-
mento da relação entre os diferentes conteúdos engendrados em torno
de problemas ou hipóteses que facilitem aos alunos tanto a constru-
ção de novos conhecimentos quanto a transformação das informações
procedentes dos diferentes campos disciplinares. Somado a isso, os
projetos pretendem tornar a aprendizagem significativa, posto que o
aluno participa ativamente do processo educativo, que vai desde a es-
colha do tema a ser trabalhado, passando pelas estratégias e sugestões
no decorrer do desenvolvimento do projeto (LEITE, 1996). Essa propos-

- 98 -
ta defende uma educação pautada no diálogo, na reflexão, na indaga-
ção, pois o professor e o aluno constroem seus conhecimentos juntos e
por meio do diálogo.
Essa perspectiva de trabalho pautada no diálogo, na interação
entre os envolvidos, também favorece a conexão entre os conhecimen-
tos escolares com os conhecimentos dos alunos, possibilitando não só
sua formação acadêmica, mas também humana. E a língua(gem) assu-
me papel importante nesse processo, posto que, de acordo com Fran-
chi (2006), é por meio dela que ocorre a comunicação, a interação e a
prática de ações, que sem ela não seria possível.
Dessa forma, o estudo da LP assume papel central no proces-
so educativo dos indivíduos. Para Razzini (2000) e Geraldi (2006), o
problema é que ainda há muitos equívocos no ensino desta e um dos
maiores, a nosso ver, é confundir o ensino língua com o ensino de gra-
mática. Não que essa tenha que ser excluída do ensino desta disciplina,
como nos alerta Geraldi (2006), o que deve ser feito é a inserção dela
na prática de análise linguística, tendo sempre o texto como ponto de
partida e de chegada, assim, teremos condições de realizar um estudo
língua(gem) a partir de seu uso concreto.
Cremos que os PP facilitam o estudo da língua(gem) em situa-
ção autêntica de uso, porque durante sua realização estamos sempre
lidando com ela por meio das práticas de leitura e produção de textos e,
como afirma Bakhtin (2013), lemos o texto com dizeres de outros, com-
paramos esses dizeres de um sujeito e outro, verificamos as diferentes
formas de dizer. E também, nosso texto é lido por outros interlocuto-
res, procuramos avaliar nossas escolhas linguísticas de acordo com os
efeitos de sentidos que queremos provocar em nossos interlocutores,
buscamos informações sobre como dizer, avaliamos os diferentes efei-
tos de sentido do dizer, entre outros.

- 99 -
Tudo isso são práticas nossas e de nossos alunos, atuamos como
produtores de significados. Assim, o estudo da língua(gem) é feito de for-
ma reflexiva/criativa e não mais de forma mecânica, sem sentido para o
aluno. Desse modo, ele percebe o significado das práticas linguísticas e
discursivas, o que contribui para seu desenvolvimento linguístico efeti-
vo (cf. Bakhtin, [1924] 2013), Franchi ([1970] 2006), Britto (1997)). Assim,
estudar/ensinar a língua(gem) vai além do ensino da gramática, ou seja,
é mais amplo, porque envolve questões mais amplas do estudo do texto,
que seria a análise linguística (AL) (cf. GERALDI, 1997).
Mas para isso, não podemos compartimentar o estudo/ensino
da língua(gem) porque as práticas de leitura, de produção textual e de
AL precisam estar articuladas.
Dessa forma, em consonância com Bakhtin (2015), objeto de es-
tudo nas aulas de LP passa a ser língua(gem) - literária ou não - e o gê-
nero o instrumento desse estudo, porque é nele que os discursos dos
sujeitos se materializam por meio da língua(gem), a qual é concebida
enquanto interação, diálogo, e o texto não é visto mais separado de seu
contexto sócio-histórico-cultural. Isto é, ele é o próprio lugar da inte-
ração e os interlocutores, sujeitos ativos que, por meio do diálogo, nele
se constrói e por ele são construídos, já que “o locutor não é um adão
bíblico” (BAKHTIN, 2015, p. 319), porque não é mais o primeiro a falar.
Nessa perspectiva, todo texto é constituído a partir de outro(s)
texto(s). Ele é o lugar de encontro das diversas vozes, opiniões e ideolo-
gias, uma vez que a produção da enunciação está sempre voltada para
o discurso do outro (BAKHTIN, 2015), ou seja, é sempre uma resposta a
outro(s) enunciado(s). Entendido dessa forma, segundo Franchi (2006)
e Geraldi (2006), a AL deve ser feita nos momentos de leitura e pro-
dução textual, e conduzir nossa reflexão sobre os modos de funciona-
mento dos recursos estilísticos/expressivos da língua. Nesse sentido, a
AL está presente tanto nas práticas de leitura quanto nas de produção

- 100 -
textual. E a prática de leitura (textos literários ou não) deve ser enten-
dida como um trabalho de compreensão/interpretação dos sentidos
presentes nos textos, que corporifica o dizer de um sujeito por meio
da língua(gem), que é reconstruído/ressignificado pelo leitor/coautor
no momento da leitura. Já a prática de produção de texto, não deve ser
mecânica, mas sim, a expressão da subjetividade (autoria) de um autor,
no qual está presente sua visão de mundo, da vida, que é resultado de
suas vivências, leituras, diálogos, mas que agora estão representados
por sua voz, seu dizer.
Então, o estudo da AL, a qual engloba o estudo da gramática de
forma reflexiva/criativa, pautada nos gêneros discursivos, é um meio
para se ler e escrever com proficiência. E a PP viabiliza o estudo da AL
nessa perspectiva.
Além disso, os projetos pedagógicos proporcionam o letramen-
to dos alunos de forma ampla, pois possibilitam diversos tipos letra-
mentos, como letramento literário, o qual é feito via textos literários,
compreendendo não apenas uma dimensão diferenciada do uso social
da escrita, mas, também, sobretudo, uma forma de assegurar seu do-
mínio efetivo (cf. COSSON, 2018). Também, conforme Brasil (2018),
os multiletramentos que são práticas de leitura e produção de textos
que são construídos a partir de diferentes linguagens ou semioses - na
medida em que exigem letramentos em diversas linguagens, como as
visuais, as sonoras, as verbais e as corporais e os novos letramentos,
que nos remetem a um conjunto de práticas específicas da mídia digi-
tal que operam a partir de uma nova mentalidade, regida por uma éti-
ca diferente (cf. BRASIL, 2018). E essa é uma recomendação presente
na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC) quando
esta trata sobre as práticas contemporâneas de linguagens, porque,

- 101 -
Do ponto de vista das práticas contemporâneas de linguagem,
ganham mais destaque, no Ensino Médio, a cultura digital [...],
os novos letramentos e os multiletramentos, os processos cola-
borativos, as interações e atividades que têm lugar nas mídias
e redes sociais, os processos de circulação de informações e a
hibridização dos papéis nesse contexto (de leitor/autor e produ-
tor/ consumidor), já explorada no Ensino Fundamental. (BRA-
SIL, 2018, p. 498).

Isso mostra que, ainda que o documento apresente uma postu-


ra neoliberal, é possível promover uma educação humana. Assim, no
próximo item, tratamos da elaboração de um projeto pedagógico de
estudo de LP para EM.
Projeto pedagógico de língua portuguesa para o Ensino Médio:
como operacionalizar?
No item anterior, vimos que uma das características da PP é evi-
tar a compartimentação do saber, ou seja, ela promove integração en-
tre os diferentes componentes curriculares, tendo como fio condutor
uma temática comum entre eles (HERNÁNDEZ, 1998), favorecendo a
interdisciplinaridade. Nesse viés, ao organizar o processo de ensino-
-aprendizagem da LP nessa perspectiva pedagógica, temos como foco
estudo/ensino da língua(gem), a qual abraça os temas abordados no(s)
texto(s) selecionados para serem trabalhados no desenrolar do proje-
to. Dessa forma, é possível comtemplar tanto os conteúdos acadêmi-
cos como os conhecimentos pertencentes às realidades dos alunos,
promovendo, assim, uma Educação Integradora e/ou Problematiza-
dora (FREIRE, 1996; LEITE, 1996). Essa postura pedagógica possibilita
trabalhar a língua(gem) em situações autênticas de uso, desenvolvendo
nos alunos sua competência linguística, tanto no que se refere a saber
usar a língua(gem) em diferentes situações e no saber sobre ela (teoria
da linguagem). Além disso, no decorrer do projeto de LP, os conheci-
mentos dos outros componentes curriculares sempre são acionados,

- 102 -
já que eles (os projetos) são interdisciplinares por natureza, o que não
fazemos é o estudo das especificidades dessas disciplinas.
Logo, nessa perspectiva, o estudo da língua(gem) tem o texto
como ponto de partida e de chegada, e mais, os aspectos linguísticos
e literários são trabalhados simultaneamente. Nesse modelo de pro-
jeto de ensino, algumas etapas são imprescindíveis para que seu de-
senvolvimento tenha êxito, a saber: 1. Conversa inicial sobre o projeto;
2. Sistematização/escrita do projeto; 3. Apresentação/replanejamento,
desenvolvimento do projeto (ações/atividades); 4. Encerramento/pro-
duto do projeto; e 5. Avaliação e início de um outro projeto.
A primeira etapa do projeto é o momento de definir o assunto/
temática, ou seja, o que vai ser trabalhado. É um momento marcado
por discussões, sugestões, que podem estar ligadas a várias questões,
já que a temática pode surgir de diferentes formas, como de um pro-
blema que ficou pendente em outros projetos, de alguma indagação/
pergunta em torno de algum assunto, entre outros. É nessa fase que
o gênero textual é escolhido, o qual deve estar em consonância com a
Matriz Curricular ou possibilitar a abordagem de outros gêneros que
são sugeridos por esse documento e também contemplar a temática e/
ou pergunta do grupo. Nesse primeiro momento, algumas práticas de
linguagem são realizadas, como produção de textos orais e eventuais
práticas de leitura e escrita.
A segunda etapa consiste na sistematização/escrita do projeto.
Essa parte é realizada pela professora a partir da discussão realizada
com os alunos. Em posse das anotações feitas, a professora procura ali-
nhá-lo ao Projeto Político Pedagógico e também contemplar os conteú-
dos propostos para o bimestre na Matriz Curricular. Nele, deve conter
as ações e atividades a serem desenvolvidas, as estratégias, a forma de
avaliação, duração do projeto, geralmente é bimestral, quando se trata

- 103 -
de projetos de curta duração, também devem ser pensados os recursos
materiais que serão utilizados, como livros, internet, dentre outros.
A terceira etapa trata-se do replanejamento do projeto, que é de
suma importância para o seu desenvolvimento, posto que é nessa fase
que os envolvidos vislumbrarão o seu desenrolar, o caminho que será
trilhado para se chegar ao produto final. Além disso, deve ficar claro
como esse caminho será trilhado. É nesse momento que os alunos, jun-
tamente com a professora, vão rever alguns pontos, os quais podem ser
modificados, fazendo acréscimos ou retirando algumas atividades, re-
ver o formato da avaliação, das estratégias que serão utilizadas, ou seja, o
projeto passa por uma reformulação. Mas esse acabamento é provisório,
já que os projetos são sempre passíveis de alterações durante seu desen-
volvimento. Algumas práticas da linguagem são realizadas nessa etapa,
como a leitura e produção de texto, sendo que a escrita é mais coletiva.
Outra etapa também importante é a fase do desenvolvimento do
projeto, onde as atividades são colocadas em prática, tendo como foco
o estudo da língua(gem) e partindo do texto literário (nuclear), ou não,
desde que ele não seja excluído do processo, dado que, o estudo da lín-
gua ocorre integrado ao da literatura e as práticas de leitura, produção
textual e AL são realizadas simultaneamente. Nessa fase, a professo-
ra deve acompanhar/intermediar todo o processo educativo para que
este não caia no espontaneísmo e mantenha o rigor científico. Aqui,
várias práticas de linguagem são realizadas, tanto de leitura como de
produção de texto. Vários gêneros textuais são trabalhados lidos/inter-
pretados e escritos/reescritos/revisados e a AL é feita a partir desses
textos, tudo interligado sob a orientação e participação da professora.
O encerramento é o fechamento do projeto, onde os alunos junta-
mente com sua professora tornam público o resultado dos conhecimen-
tos construídos no decorrer do projeto. A divulgação pode ser feita por

- 104 -
meio da publicação de um livro em formato impresso e/ou digital, uma
mostra literária, entre outras. Assim, suas produções, seus textos, não
ficam mais restritas ao âmbito escolar, porque há outros interlocutores
e isso faz toda a diferença para o aluno, o professor e a escola. Essa etapa
é muito importante porque é com ela que fechamos as atividades desen-
volvidas, porém esse fechamento é apenas a ponta do iceberg, posto que,
para chegar até ele, houve todo um caminho percorrido.
A última etapa é avaliação do projeto e também o momento de
pensar qual(is) projeto(s) vamos abraçar novamente, uma vez que um
projeto sempre demando outro ou outros projetos, que podem ser fru-
tos das indagações do projeto anterior e assim sucessivamente. Aqui,
a avaliação não se restringe somente a atribuição de notas aos alunos,
mas, sobretudo, ao trabalho desenvolvido, aos conhecimentos adquiri-
dos ou não, para que a professora possa fazer novas intervenções.
Dessa forma, para melhor compreensão das etapas apontadas an-
teriormente, apresentamos uma sugestão de trabalho organizado nes-
sa perspectiva, pautado nos gêneros discursivos, onde a novela policial
Nós funcionará como gênero nuclear, porque a partir dele abordaremos
outros. Essa novela, a qual serve como ponto de partida do estudo da
língua(gem), foi escrita pelo escritor Salim Miguel (MIGUEL, 2018). O
texto se divide em sete capítulos e um apêndice. Os personagens apre-
sentados não são nomeados, apenas denominadas de: Eu, Tu, Ela, Um
Outro, Ele, Ninguém, Nós. Essas personagens são sujeitos destituídos de
identidade e nomeiam-se apenas como pronomes. É um texto bastante
interessante para ser trabalhado com alunos do EM, tendo em vista que
a leitura do livro pode ser realizada gradativamente, posto que os capí-
tulos são independentes, apesar de terem vínculos entre si. Outro fator
é a linguagem que pode ser explorada de forma criativa/reflexiva. Além
disso, essa obra é atravessada por outros gêneros discursivos em seu in-

- 105 -
terior (poemas, verbetes, notícias) e isso possibilita à professora um tra-
balho bastante amplo, no que se refere ao ensino da língua e literatura.
Outra questão são os espaços das ações descritas no livro porque alguns
são conhecidos pelos alunos (Brasília, Cidade de Goiás) e, por último,
a(s) temática(s) e a forma de abordá-la(s) também é inovadora, contem-
porânea e atual. Essa sugestão não é uma receita a ser seguida porque
a organização do trabalho pedagógico por meio de projetos é dinâmica,
aberta, viva, assim pode sempre ocorrer alterações.
Dessa maneira, descrevemos as possíveis atividades de um pro-
jeto de ensino/estudo de língua e literatura pautado no gênero novela
policial: 1. Conversa inicial sobre o projeto, discussão sobre o que será
trabalhado, sobre a viabilidade de se trabalhar a novela Nós, sugestões
de como trabalhar (estratégias), sobre o(s) possível(eis) produto final(is)
para exposição e/ou divulgação dos conhecimentos construídos, 2. Sis-
tematização do projeto pela professora, 3. Exposição do projeto para
os alunos e reelaboração do mesmo; 4. Leitura e discussão de textos
- novela “Nós” (um capítulo por vez); 5. Análise da novela (situação so-
cial de produção, organização do texto, linguagem/discurso literário e
não literário e AL); 6. Escrita de textos (produção de um miniconto -
continuação da história com o mesmo foco narrativo, etc.) a partir do
primeiro capítulo da novela; 7. AL e Atividade de reescrita do minicon-
to; 8. Escrita de textos (reprodução do capítulo “Ela”, mudando o foco
narrativo); 9. AL e Atividade de reescrita do capítulo; 10. Apresentação
(produção de textos orais/escrito – apresentar em formato de notícia
sobre o assassinato da personagem Ela - capítulo 04 – Rádio/TV, Pod-
casts, jornal escrito - impresso ou digital - etc.); 11. Escrita do primeiro
capítulo de uma novela; 12. Reescrita do primeiro capítulo (AL); 13. Es-
crita do segundo capítulo da novela; 14. Reescrita do segundo capítulo
(AL); 15. Escrita do terceiro capítulo da novela; 16. Reescrita do terceiro

- 106 -
capítulo (AL); 17. Escrita do quarto capítulo da novela; 19. Reescrita do
quarto capítulo (AL); 20. Organização coletiva dos capítulos da novela;
21. Revisão da novela (AL); 22. Ilustração da novela-correlação entre a
linguagem verbal e não-verbal (AL); 23. Leitura de textos publicitários
(digitais e/ou impressos), estabelecendo ligação entre esse tipo textual
e a novela (AL); 24. Produção de texto publicitário (propaganda) para
venda do livro produzido e/ou da novela Nós; 25. Reescrita do texto pu-
blicitário (AL); 26. Exposição/lançamento do livro na escola.
É importante dizer que, durante a realização das atividades
propostas no projeto, elas podem sofrer alterações devido a eventuais
problemas que são inerentes à rotina escolar e também ser acrescen-
tados outras para melhor atender o processo de ensino-aprendiza-
gem dos alunos.

CONCLUSÃO

Esperamos ter deixado claro como operacionalizar um estudo


da LP organizado por meio da PP, pautado nos gêneros discursivos
para alunos do EM.
Ao longo do texto, ressaltamos a importância de realizar o estu-
do/ensino da LP de forma ampla, isto é, sem compartimentá-la, arti-
culando as práticas de leitura, produção textual e AL e promovendo a
integração entre os estudos linguísticos e literários.
Dessa forma, o estudo do componente curricular LP deve ter
como objeto de ensino a língua(gem) e instrumento desse ensino o
gênero discursivo. Agindo assim, teremos oportunidade de realizar
um trabalho com a língua(gem) em situações autênticas de uso. O que
implica num melhor entendimento por parte dos alunos, tanto sobre
o uso da língua(agem) e também sobre ela (teoria), seja esta literária

- 107 -
ou não. Essa postura pedagógica de ensino/estudo da LP é de suma
importância para que os alunos desenvolvam habilidades linguística e
literárias e, consequentemente, seu nível de leitura e produção textual.
Esperamos também ter deixado claro como organizar os pro-
jetos pedagógicos de língua portuguesa a partir do exemplo apresen-
tado, pois foi com o objetivo de contribuir com o ensino/estudo desta
disciplina que descrevemos de forma explicativa as etapas necessárias
para organizar e desenvolver um projeto pedagógico de lingua portu-
guesa, o qual é apenas um apontamento e não um modelo a ser segui-
do, porque os projetos são abertos, vivos e sujeitos a modificações. Por
outro lado, não podemos nos esquecer das etapas de construção de um
projeto, visto que ele não parte do “nada” e requer planejamento por
parte dos envolvidos.
Temos consciência também de que o projeto sugerido pode ser
ampliado, modificado pelos professores, tendo em vista que acredita-
mos que o fazer e o pensar não podem ser desvinculados um do outro,
ou seja, é muito importante que haja um diálogo entre teoria e prática,
Academia e Ensino Básico. Dessa forma, acreditamos que nós profes-
sores do Ensino Básico somos também agentes do pensar as discipli-
nas (cf. SOUZA, 2013; SOUSA FILHO, 2015).

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Maria de Fátima Furtado Baú


Professora de Língua Portuguesa (SEDUCE/GO) e pedagoga (SME).
Doutoranda em Letras e Linguística (UFG). Mestra em Letras e Lin-
guística, Especialista em Leitura e Produção de Textos e Graduada em
Língua Portuguesa/Francesa (UFG) e Pedagogia (UVA). É integrante do
grupo (Forproll/UFVJM/CNPq). Publicou artigos e capítulos sobre o
ensino de língua portuguesa. Organizou e publicou um livro de contos.
e-mail: <fatimabau@yahoo.com.br>

Sinval Martins de Sousa Filho


Professor Associado da Faculdade de Letras/UFG, onde atua na Gra-
duação e na Pós-graduação. Graduado, Mestrado e Doutorado em Le-
tras e Linguística na UFG/Unicamp. Pós-Doutorado em Psicolinguís-
tica (UnB) e em Teoria Linguística (Unipi/It). Trabalha com Formação
de professores, Aquisição de Linguagem, Línguas Indígenas, Análise
linguística e Literatura indígena. e-mail: <sinvalfilho7@gmail.com>

- 111 -
A Base Nacional Comum Curricular em diálogo
com documentos oficiais: perspectivas para o
ensino de língua portuguesa no ensino médio 1

Susana dos Santos Nogueira (PPGLL/UFG)


Eliane Marquez da Fonseca Fernandes (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este trabalho se configura como uma pesquisa qualitativa de base


interpretativista, de análise de documento e se insere no campo de
estudos da linguagem. Este capítulo objetiva discutir como o con-
ceito de dialogismo bakhtiniano está presente na Base Nacional Co-
mum Curricular para o Ensino Médio (BNCC/LP/EM, 2018), quanto
aos conhecimentos em língua portuguesa, o documento foi construí-
do a partir da voz de outros documentos oficiais: Diretrizes Curri-
culares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM, 2013); Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM/ LP, 2000);
Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCEM/LP,
2006). Para análise do corpus, tomamos o dialogismo como constitu-

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora Susana dos Santos Nogueira e sua
orientadora, e os conceitos aqui mobilizados são de responsabilidade dos autores com
anuência da orientadora: Eliane Marquez da Fonseca Fernandes.
tivo da linguagem, conforme propõe o Círculo de Bakhtin (Bakhtin/­
Volochinov 2006 / Bakhtin 2003) e mobilizamos os conceitos de
enunciado, dialogismo e gênero do discurso. Os resultados apontam
para uma proposta dialógica na perspectiva bakhtiniana em relação
ao ensino de língua portuguesa na BNCC/ EM, em que alguns enun-
ciados dos documentos anteriores são mantidos ou reatualizados.
Palavras-chaves: Documentos oficiais; Dialogismo; Ensino de língua
portuguesa.

ABSTRACT

This study aims to discuss how the concept of Bakhtinian dialogism is


present in the National Common Curricular Base for High School (BNCC
/ LP / EM, 2018), regarding knowledge in Portuguese. The mentioned
document was elaborated from the voice of other official documents:
National Curricular Directives for Secondary Education (DCNEM, 2013);
National Curriculum Parameters for Secondary Education (PCNEM / LP,
2000); National Curricular Guidelines for Secondary Education (OCEM/
LP, 2006). For corpus analysis, we took dialogism as a constituent of
language as proposed by the Bakhtin Circle (Bakhtin / Volochinov 2006
/ Bakhtin 2003) and mobilized the concepts of utterance, dialogism and
discourse genre. The results point to a dialogical proposal in the Bakh-
tinian perspective in relation to the teaching of the Portuguese language
at BNCC / EM, in which some statements from previous documents are
maintained or updated.
Keywords: Official documents; Dialogism; Portuguese language
teaching.

- 113 -
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Bakhtin considera que todo discurso é dialógico, porque o enun-


ciado é sempre uma resposta a outro enunciado, portanto, é sempre
atravessado por várias vozes. Na teoria bakhtiniana, o dialogismo é o
princípio interno dos sentidos e os enunciados circulam socialmente,
permeados por valores. Assim os sujeitos encontram em seus caminhos
muitas vozes que o constituem, pela linguagem na interação verbal.
Na interação verbal, desta segunda década do século XXI, sur-
gem discursos sobre o ensino de Língua Portuguesa (LP) no Brasil, que
vêm sendo legitimados pelos documentos oficiais. Esses documentos
têm a função de estabelecer políticas linguísticas e nortear as práti-
cas pedagógicas dos professores. Na década de 1990, o Ministério da
Educação (MEC) publicou os Parâmetros Curriculares Nacionais para
o Ensino Fundamental (PCN/EF/1998) para orientar o ensino de LP, por
meio do estudo dos textos e dos gêneros discursivos, tendo por base
a concepção de linguagem como interação. Nos anos seguintes, já em
novo século, foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (PCNEM/LP/MEC/2000), mas esse documento
recebeu muitas críticas do meio acadêmico e escolar, pois havia uma
confusão teórica em relação às concepções de linguagem e gênero.
Consequentemente, em 2006, a partir das reformulações dos PCNEM,
o MEC publicou as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio (OCEM/LP/2006), que considera a linguagem como um espaço
dialógico em que os locutores se comunicam.
Na contemporaneidade, em 2018, foi homologada a Base Na-
cional Comum Curricular para a etapa do Ensino Médio (BNCC/EM),
o primeiro documento brasileiro, de caráter normativo, que integra a
política nacional da Educação Básica (EB) e foi concebido para ser refe-

- 114 -
rência para que escolas e sistemas de ensino elaborem seus currículos.
A construção desse documento é uma exigência para o sistema educa-
cional brasileiro pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN, BRASIL, 1996), pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (DCNEM, BRASIL, 2013) e pelo Plano Nacional de Educa-
ção (PNE, BRASIL, 2014).
Este texto visa refletir sobre as propostas da BNCC/EM para o
ensino da LP, por meio da análise discursiva dos enunciados presentes
no documento, para verificar de que maneira observamos o dialogismo
bakhtiniano. Para realizar nossa discussão, partimos do princípio de
que “[c]ada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enun-
ciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunica-
ção discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 297). Nesse sentido, consideramos
a BNCC/EM como um enunciado / gênero que põe em funcionamen-
to os discursos e se constitui com ecos de outros enunciados como os
documentos oficiais (PCNEM, OCNEM, DCNEM), as contribuições de
pesquisas acadêmicas, as vozes dos currículos estaduais e municipais
e a voz da sociedade brasileira através de contribuições pelo site do
MEC. A Base apresenta uma resposta a esses enunciados ao propor
uma referência para que os sistemas de ensino e as escolas elaborem
seus currículos. O objetivo desse diálogo conforme o documento é rea-
firmar fundamentos para contribuir com o desenvolvimento da capa-
cidade de uso da língua na EB.
Dessa forma, a discussão teórica deste estudo embasa-se no
princípio dialógico da linguagem do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN,
2003; BAKHTIN, VOLOCHINOV, 2006) e mobiliza os seguintes con-
ceitos: enunciado, dialogismo e gêneros do discurso. É justificada a
realização desta pesquisa, de caráter documental (LUDKE; ANDRÉ,
1986) com abordagem qualitativa, pois se insere no campo de estudos

- 115 -
da linguagem. Esses autores (1986) caracterizam os documentos como
materiais escritos que fornecem informações sobre o comportamento
humano, sendo uma fonte preciosa para o pesquisador compreender
a realidade. Assim, os documentos considerados nesta pesquisa são
enunciados relevantes para entender as questões relacionadas ao ensi-
no de LP, por serem currículos (SILVA, 2001) construídos em um deter-
minado cenário social, que contribuem diretamente para a formação
de professores, para a elaboração de currículos estaduais e municipais
e também para a condução das aulas.
A partir da perspectiva pós-estruturalista que vê o currículo
como um discurso que constrói sujeitos e produz conhecimentos, con-
sideramos todos os documentos citados, inclusive a BNCC/EM, como
currículos, construções culturais que organizam as práticas educati-
vas, uma vez que, prescrevem, orientam e direcionam o trabalho do
professor em sala de aula, e se configuram como documentos de iden-
tidade (SILVA, 2001) do ensino de LP.
A Base sugere que o ensino da LP na escola seja pautado nos
gêneros textuais/discursivos e numa perspectiva de linguagem como
interação, discurso que não é novo, haja vista que desde a publicação
dos PCN/EF (5ª a 8ª séries), em 1998, esse trabalho já vem sendo pro-
posto, como mencionamos. Por outro lado, o documento em estudo,
traz como “novidade” a proposta de ensino da LP com base no uso dos
gêneros que se organizam em campos da atividade humana e a noção
de letramento digital, apresentada como novos letramentos que sur-
gem em torno das culturas digitais.
Carvalho e Castro (2017) analisaram a contribuição de prescri-
ções dos documentos curriculares para o enfrentamento do racismo,
por intermédio do ensino de LP no EM. Os resultados evidenciam que
existem currículos comprometidos com relações étnico-raciais, po-

- 116 -
rém ainda ocorre a manutenção das práticas tradicionais e só um novo
currículo é pouco para promover igualdade racial no Brasil. Guedes e
Oliveira (2017) realizaram uma análise entre o PCNEM e a BNCC com o
objetivo de destacar as contribuições teóricas bakhtinianas para a edu-
cação nacional e concluíram que os discursos educacionais expressos
nos referidos documentos influenciam diretamente as demandas di-
dático-pedagógicas, relativas ao ensino da LP.
Nosso estudo investiga um aspecto ainda não levantado pelos
trabalhos citados acima. Queremos ver o dialogismo presente nas pro-
postas de ensino de LP na BNCC/EM. Na verdade, esse é um estudo re-
lativamente novo, uma vez que esse documento foi pouco investigado,
por ter sido homologado, recentemente, em 2018. Esperamos que esta
discussão contribua para que estudiosos da linguagem possam observar
outros aspectos importantes acerca do ensino de LP nesse documento.
Em um primeiro momento, apresentamos a concepção de lín-
gua bakhtiniana pautada no dialogismo, bem como os conceitos de
enunciado e gênero; em seguida, analisamos a Base com base nos con-
ceitos teóricos apontados anteriormente e por último empreendemos
algumas reflexões.

Concepção dialógica de língua(gem) na perspectiva


bakhtiniana

A língua é permeada por signos ideológicos, e é um elo muito im-


portante nas sociedades, porque constitui o ser humano ao se materia-
lizar na comunicação discursiva. Assim, ela se manifesta por intermé-
dio da linguagem em uma determinada cultura e modifica-se ao longo
do tempo. São inegáveis as contribuições de Bakhtin e seu Círculo para
pensarmos a língua como atividade comunicativa social, de caráter mu-
tável, heterogêneo, polissêmico e dialógico que se realiza na interação

- 117 -
verbal e se concretiza em enunciados, vistos como a unidade da comu-
nicação discursiva. Para Bakhtin (2003) o discurso só existe na forma de
valores axiológicos inseridos nos enunciados pelo sujeito do discurso.
A compreensão sobre a natureza das unidades da língua como
sistema ocorre de maneira mais produtiva pelo estudo do enunciado,
no processo comunicativo, visto que “[a] língua vive e evolui histori-
camente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico
abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falan-
tes” (BAKTHIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 128). Segundo Bakhtin (2003)
o enunciado é sempre um evento único e irrepetível na comunicação
discursiva (um acontecimento), mas apesar disso, comportam-se sem-
pre como respostas a enunciados que foram produzidos anteriormen-
te. Portanto, o enunciado apresenta marcas dos enunciados que o an-
tecederam, pode refutá-los, complementá-los, confirmá-los ou ainda
contradizê-los, o que se configura como um verdadeiro elo na cadeia
discursiva. Para Bakthin/Volochinov (2006, p. 117) a palavra é uma es-
pécie de ponte lançada entre o locutor e o interlocutor, pois “[...] toda
palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que
procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte.
(grifo no original)”. É nesse sentido que esses autores definem a língua,
em sua totalidade concreta, em seu uso real com a natureza de ser dia-
lógica num processo interacional.
A palavra dialogia, na perspectiva bakhtiniana, abarca uma vi-
são que vai além do diálogo face a face entre pessoas, ela se fundamen-
ta na concepção de que não existe discurso puro, ou seja, tudo que se
enuncia, já foi dito por alguém em determinado momento histórico,
por isso, toda enunciação é um elo da cadeia dos atos de fala. Dessa for-
ma, “[...] todas as palavras [...] além das minhas próprias, são palavras

- 118 -
do outro. Eu vivo em um mundo de palavras do outro [...] a começar
pela assimilação delas [...] e terminando na assimilação das riquezas
da cultura humana” (BAKHTIN, 2003, p. 379). Essa citação nos remete
a uma rede de relações que o sujeito estabelece com a palavra do ou-
tro no campo cultural, no processo comunicativo, o que o torna per-
tencente a determinada cultura e o constitui como sujeito. Portanto, o
dialogismo constitui a linguagem e o diálogo ocorre, também, entre os
discursos, uma vez que todo discurso é sempre atravessado pelo dis-
curso do outro.
Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
responsiva, porque todo enunciado pressupõe uma resposta, mesmo
que ela não seja imediata, “[a] compreensão é uma forma de diálogo;
ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no
diálogo. Compreender é opor à palavra do outro uma contrapalavra.”
(grifo no original) (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p. 137). Dessa ma-
neira, o sujeito se torna enunciador e dialoga com o discurso do outro
ao estar em contato com enunciados, com os quais, ele tem liberdade
de concordar, refutar ou ainda completar os sentidos. A palavra “diálo-
go” não significa somente acordo ou conciliação em um evento de co-
municação interpessoal, isso porque as relações dialógicas podem ser
contratuais ou polêmicas, de divergência ou de convergência, de acei-
tação ou de recusa, de conciliação ou de luta. O diálogo se configura
como um espaço de luta de valores sociais em que as vozes se encon-
tram em embate na enunciação.
Os enunciados, aos quais Bakhtin (2003) denomina gêneros do dis-
curso, são muito importantes para o processo comunicativo, tendo em
vista que o uso da língua se efetua em forma de enunciados (orais ou es-
critos) concretos e únicos, proferidos por integrantes de determinados
campos da atividade humana. Por esse motivo, a comunicação humana

- 119 -
seria quase impossível se não fosse pela presença deles, “[s]e os gêneros
do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de
criá-los pela primeira vez no processo do discurso, [...], a comunicação
discursiva seria quase impossível” (BAKHTIN, 2003, p. 283).
Esse autor (2003) definiu os gêneros do discurso como tipos re-
lativamente estáveis de enunciados, esses apresentam uma estrutura
composicional, porém essa estabilidade está ligada as mudanças so-
ciais e históricas dos estilos de linguagem. Ou seja, os gêneros vão evo-
luindo, juntamente com a língua, à medida que são ressignificados na
história, de acordo com as condições sócioideológicas de uma época e
as possibilidades da atividade humana, em conformidade com as ne-
cessidades discursivas.
Os gêneros do discurso são caracterizados por três elementos
indissociáveis: estrutura composicional (uma forma, que os identifica
como pertencentes a determinados tipos de texto, como por exemplo,
os documentos oficiais que orientam o ensino de LP); tema (conteú-
do marcado pelo sentido) e estilo (marcas linguísticas específicas). Os
sentidos de um texto, seus valores discursivos, são compreendidos a
partir das escolhas linguísticas realizadas pelo falante em determina-
da forma textual.
É a vontade discursiva do falante, que ao ocupar em cada esfera
comunicativa determinados lugares sociais, os leva a adotar gêneros
específicos para se comunicar. Bakhtin subdivide os campos da
atividade humana em esferas: do cotidiano (familiares, íntimas, co-
munitárias etc.), de onde emanam os gêneros primários (aqueles ca-
racterizados por uma linguagem mais cotidiana que se formam nas
condições discursivas imediatas, e estão mais ligados a oralidade); dos
sistemas ideológicos constituídos (da moral social, da ciência, da arte,
da religião, da política, da imprensa etc.) que por sua vez dão origem

- 120 -
aos gêneros secundários (surgem em contextos culturais mais comple-
xos e geralmente são mediados pela escrita). Estas esferas /campos dia-
logam entre si e elaboram os seus gêneros, que são inúmeros, circulam
socialmente e realizam o processo comunicativo.
Para interagirem discursivamente, os estudantes precisam sa-
ber se expressar em diferentes situações e, portanto, dominar os gêne-
ros das diferentes esferas /campos da comunicação, e é por essa razão
que a Base traz como “novo” (já havia menção nos documentos anterio-
res) a proposta de um currículo que trabalhe os gêneros em LP a partir
de campos da atividade humana.
É mediante aos enunciados dialógicos, na interação verbal, que a
vida entra na língua e que o processo de ensino e aprendizagem em LP
ocorre no ambiente escolar, guiado pelos documentos oficiais e mais
recentemente pela BNCC/EM, sobre a qual realizamos uma análise, na
próxima seção, com o intuito de verificarmos o dialogismo bakhtinia-
no posto neste documento.

Reflexões sobre o dialogismo presente na BNCC/EM

A BNCC/EM é um documento, de caráter normativo, fruto de


amplo processo de debate e negociação com a sociedade brasileira.
Esse documento está organizado por uma parte introdutória e ainda
por áreas de conhecimento, cujo objetivo conforme o enunciado pre-
sente no texto é romper com as barreiras disciplianres, que geram a
fragmentação e a descontextualização do conhecimento (discurso pre-
sente em documentos anteriores). Como o foco de análise neste texto
é a presença do dialogismo bakhtiniano na BNCC/EM (MEC, 2018), no
que diz respeito aos conhecimentos linguísticos para o ensino de LP,
nos atemos, especialmente, ao capítulo sobre a área de linguagens có-
digos e suas tecnologias e ainda ao componente de LP, corresponden-
tes às páginas 481 a 525.

- 121 -
Sabemos que na esfera /campo educacional, as práticas pedagó-
gicas são norteadas por uma concepção de língua(gem) que fundamenta
o trabalho do professor de LP, por isso é muito importante observar a
proposta adotada pela Base Nacional, documento que norteia a produ-
ção dos currículos estaduais e, consequentemente, o fazer pedagógico.
Ao lançarmos nosso olhar para BNCC/EM (2018), notamos que
ela recomenda (na competência 4, na parte destinada a área de lingua-
gens e suas tecnologias) que o ao término do EM o estudante seja capaz
de compreender as línguas como fenômeno “[...] geopolítico, histórico,
social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhe-
cendo-as e vivenciando-as como formas de expressões identitárias,
pessoais e coletivas [...]” (BNCC/EM, 2018, p. 490). Essa concepção de
língua(gem) abarca a necessidade de compreensão da língua como or-
ganismo vivo, em seu funcionamento como fenômeno marcado pela
heterogeneidade e variedade de registro e dialetos, o que pressupõe o
respeito às variedades linguísticas e adequação do uso de diferentes
níveis de linguagem conforme a situação comunicativa. Com isso, ob-
servamos que ocorre uma manutenção, na Base, da concepção de lín-
gua(gem) como interação assumida pelos documentos anteriores.
Segundo a BNCC/EM, ao chegarem a essa etapa da EB, os estu-
dantes já têm condições de participar de forma significativa de diver-
sas práticas sociais que envolvem a linguagem, porque desenvolveram
habilidades relativas ao uso dela, no Ensino Fundamental (EF), ao esta-
rem em contato com gêneros textuais/discursivos que circulam em di-
ferentes campos de atuação social. Portanto, o objetivo do componente
LP no EM é

[...] aprofundar a análise sobre as linguagens e seus funciona-


mentos, intensificando a perspectiva analítica e crítica da lei-
tura, escuta e produção de textos verbais e multissemióticos,
e alargar as referências estéticas, éticas e políticas que cercam

- 122 -
a produção e recepção de discursos, ampliando as possibilida-
des de fruição, de construção e produção de conhecimentos, de
compreensão crítica e intervenção na realidade e de participa-
ção social dos jovens, nos âmbitos da cidadania, do trabalho e
dos estudos. (BNCC/EM, 2018, p. 498)

Nesse sentido, espera-se que o estudante desenvolva sua capaci-


dade de reflexão sobre a língua e refine suas habilidades de leitura e es-
crita, fala e escuta, ampliando os saberes sobre a configuração, o funcio-
namento e a circulação dos gêneros do discurso, conforme conclamam
também as OCEM/LP (2006). Assim, o discurso da BNCC/EM reforça a
perspectiva do trabalho em LP tomando por base os gêneros do discurso
como consta nos documentos anteriores (PCNEM/ LP, OCEM/LP), a fim
de garantir a participação social dos jovens de maneira crítica na reali-
dade em que vivem em diversas práticas de letramento, mediante o do-
mínio e uso dos gêneros do discurso no processo comunicativo.
Além disso, as OCEM/LP (2006) afirmam que o trabalho com os
gêneros do discurso tem por objetivo propiciar ao aluno letramentos
múltiplos, compreendidos por Rojo (2009) como as diversas formas de
utilização da leitura e da escrita, nas variadas possibilidades de realiza-
ção da cultura, nas quais os professores e alunos estão inseridos. Esse
conceito emerge no discurso da BNCC/EM, pois, de acordo com as práti-
cas contemporâneas de linguagem, ganham mais destaque no EM “[...] a
cultura digital, as culturas juvenis, os novos letramentos e os multiletra-
mentos, os processos colaborativos, as interações e atividades que têm
lugar nas mídias e redes sociais [...]” (BNCC/LP/EM, 2018, p. 498). Essa
perspectiva de trabalho com letramentos múltiplos ou multiletramen-
tos (letramento em diversas linguagens, como as visuais, as sonoras) que
considera os novos letramentos, o digital, se torna dialógica na medida
em que englobam uma diversidade de práticas culturais e sociais de lei-
tura e escrita, presentes na sociedade contemporânea.

- 123 -
Soares (2002) define letramento digital como “[...] estado ou con-
dição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital
e exercem práticas de leitura e de escrita na tela diferentes do esta-
do ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura
e de escrita no papel” (SOARES, 2002, p. 151). Baseando nessa autora,
entendemos o letramento digital como um conjunto de competên-
cias que o sujeito adquire, na interação verbal, ao utilizar a língua,
para entender as informações da internet e saber manuseá-las (junto
com equipamentos) de maneira crítica. O dialogismo e a interação se
configuram como caminhos importantes para propiciar o letramento
múltiplo aos aprendizes, pois possibilita que os estudantes se tornem
ativos no processo de ensino e aprendizagem.
Embora não seja apresentado o conceito de letramento digital no
texto da BNCC/ EM, ela não desconsidera as necessidades comunicativas
emergentes na sociedade contemporânea e inova ao trazer para cena do
trabalho com a linguagem a perspectiva do letramento digital mediante
o uso de gêneros do discurso, para atender as necessidades dos campos
de atuação social. Esse documento propõe, então, que os estudantes vi-
venciem experiências “[...]significativas com práticas de linguagem em
diferentes mídias (impressa, digital, analógica), situadas em campos de
atuação social diversos, vinculados com o enriquecimento cultural pró-
prio, as práticas cidadãs, o trabalho e a continuação dos estudos (BNCC/
EM, 2018, p. 485)”. Percebemos que o documento, em análise, dialoga com
a teoria do Círculo bakhtiniano ao considerar que o emprego da língua
ocorre através dos enunciados (ou gêneros do discurso) e o estudo da na-
tureza e da diversidade de formas de gêneros nos diversos campos da ati-
vidade humana é de enorme importância para o ensino de língua.
Gostaríamos de relembrar que os PCNEM/LP (2000) e OCEM/LP
(2006) já propunham um ensino de LP com base nos gêneros discursivos

- 124 -
que circulam nas diferentes esferas sociais (esse é o termo que aparece
nos documentos anteriores, embora não tenha sido enfatizado na época
da produção), conforme mencionamos anteriormente. Porém, na BNCC/
EM, no componente de LP, o gênero/texto continua ganhando centralida-
de, com maior destaque a sua vinculação a esferas sociais de circulação
dos gêneros, às quais, o documento, em análise, denomina de campos de
atuação social, são eles: o campo da vida pessoal; o campo das práticas de
estudo e pesquisa; o campo jornalístico-midiático; o campo de atuação na
vida pública e o campo artístico. É em função dessas esferas/campos de
atuação que os gêneros textuais/discursivos são sugeridos para a compo-
sição dos currículos estaduais. Essa proposta dialoga com o prisma ba-
khtiniano que considera o surgimento e o uso de um determinado gênero
associado a sua esfera de atividade humana, constituída historicamente
e com finalidades discursivas específicas, “[...] em cada campo existem e
são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de
dado campo [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 266). A escolha da organização das
práticas de linguagem (leitura, escrita, oralidade) por esferas/campos de
atuação reforça a ideia de que os conhecimentos ensinados na escola pre-
cisam ser situados em contextos significativos para os estudantes, o que
condiz com as situações que eles vivenciam além dos muros da escola.
Nesse contexto, a BNCC/EM enfatiza a importância do trabalho
em LP que propicie o letramento digital, tendo em vista que as práticas
de linguagem em ambiente digital têm modificado as práticas de lingua-
gem em diferentes campos de atuação social, logo, o documento mostra
que é imprescindível pensar na realização de um ensino que abarque a
compreensão da cultura digital no EM. Essa abordagem foi pouco explo-
rada pelos enunciados que encontramos nos documentos anteriores, os
PCNEM/LP (2000, p. 11 e 12) faziam referências às novas tecnologias, mas
não ao letramento digital (entendido pela Base como os novos letramen-

- 125 -
tos com um conjunto de práticas específicas da mídia digital que operam
a partir de uma nova mentalidade) por meio dos gêneros discursivos
presentes em diferentes campos da atividade humana. Esperava-se que
no EM, os estudantes entendessem os princípios e os impactos das tec-
nologias da comunicação e da informação em suas vidas nos processos
de produção e desenvolvimento do conhecimento e ainda conseguissem
aplicá-las no trabalho e contextos relevantes para sua vida. No cenário
atual, depois da publicação dos PCNEM, as práticas de linguagem ga-
nham uma nova atualização diante da revolução da internet, por esse
motivo, Freitas (2010) afirma que ser letrado digital inclui aprender um
novo tipo de discurso, pois além do conhecimento funcional sobre o uso
da tecnologia digital, o estudante precisa fazer uso crítico desse saber. A
escola vem tomando o valor de que se deve trabalhar a leitura e a escrita
nas aulas de LP, porque essas são ferramentas de empoderamento e in-
clusão social (OCEM/ LP, 2006), e não pode se esquivar dessa realidade,
considerando a inclusão do letramento digital, haja vista que os jovens
têm se engajado cada vez mais como protagonistas da cultura digital.
A BNCC/EM (2018) publicada dezoito anos após o PCNEM/LP
(2000) considera os gêneros emergentes com a cultura digital e as novas
práticas sociais de linguagem mostram a necessidade de enfatizá-la no
trabalho com a LP, “[...] nessa perspectiva, para além da cultura do im-
presso (ou da palavra escrita), que deve continuar tendo centralidade na
educação escolar, é preciso considerar a cultura digital, os multiletra-
mentos” (BNCC/ LP/EM, 2018, p. 487). O documento, em estudo, dialoga
não apenas com novos gêneros que surgem ou se transformam (meme,
vlog, post, tweet), mas novas ações (curtir, comentar, compartilhar, remi-
xar) que supõem o desenvolvimento de novas habilidades. Não se trata
apenas de conviver com as mídias, como propunham os PCNEM (2000),
mas levar em conta como elas potencializam novas possiblidades de

- 126 -
construção de sentidos pelos estudantes de LP, o que coaduna com a per-
cepção de dialogismo.
A BNCC/EM propõe, então, que a escola fomente as práticas da cul-
tura digital para que os jovens tenham uma visão crítica, ética e estética
e não somente técnica das Tecnologias Digitais de Informação e Comu-
nicação (TDIC) e de seus usos, para selecionar, compreender e produ-
zir criticamente sentidos em quaisquer campos da vida social. Assim, é
necessário que o estudante saiba, “[m]obilizar práticas de linguagem no
universo digital, considerando as dimensões técnicas, críticas, criativas,
éticas e estéticas, para expandir as formas de produzir sentidos, de en-
gajar-se em práticas autorais e coletivas, e de aprender a aprender nos
campos [...] BNCC/LP/EM, 2018, p. 497)”.
Conforme a BNCC/ EM a dialogia do letramento digital na escola
visa garantir uma aprendizagem significativa e autônoma aos estudan-
tes, já que a cultura digital faz parte de seu dia a dia nos vários campos
de atuação social. Esse é um dos grandes desafios da escola pública,
atualmente, de várias regiões do Brasil, ao se pensar na infraestrutura
precária em que muitas vezes não existem computadores, ou recursos
multimídias para se trabalharem com os estudantes. Eis uma realidade
que ainda vai levar um tempo para se concretizar de maneira profícua
nas escolas brasileiras, mesmo porque o processo de implementação da
Base será longo.

REFLEXÕES FINAIS

Primeiramente, observamos na BNCC/EM uma proposta de diá-


logo a partir da perspectiva bakhtiniana entre outras teorias e outros
documentos que contribuíram para sua construção. Esse diálogo ocor-
re entre enunciados das DCNEM, PCNEM e OCEM. É elaborada, então,

- 127 -
uma teia discursiva em que os enunciados são chamados à cena enun-
ciativa por intermédio dos fios do discurso.
Considerando que os enunciados são um elo na cadeia discursi-
va, alguns se mantêm na teia discursiva, ou seja, são repetidos e outros
são reatualizados no contexto histórico de produção do documento
analisado. Nesse sentido, temos a manutenção do discurso, presente
nos documentos anteriores, de que o ensino de LP deve acontecer na
escola por meio dos gêneros discursivos em uma proposta dialógica da
interação da linguagem, que concebe a língua como um organismo vivo
que evolui historicamente (BAKHTIN, 2003). O que parece ser “novo”
no documento é a perspectiva de trabalho dos gêneros através de cam-
pos da atuação social, (os documentos anteriores faziam referência só
às esferas da comunicação). Mas a proposta de trabalho com letramen-
to digital perpassa os vários campos. Assim, em uma postura dialógica
bakhtiniana, o documento considera os saberes advindos de várias es-
feras sociais da atividade humana e propõe, ainda, um diálogo entre as
ações a serem desenvolvidas na escola, através dos discursos acerca de
uma renovação do ensino de língua.
Esperamos que essa discussão possa estabelecer um diálogo
com outros pesquisadores, que tomem este enunciado (capítulo) como
ponto de partida para que se estabeleçam novas reflexões em torno da
BNCC/EM, enunciado que carrega discursos muito importantes para
pensarmos sobre as perspectivas de ensino em LP na escola.

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Acesso em: 12 jul. 2019.

Susana dos Santos Nogueira


Doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Goiás. E-mail:
susgueira@hotmail.com.

Eliane Marquez da Fonseca Fernandes


Doutora em Letras e Linguística pela FL-UFG e pós-doutora em
Educação pela FE-UnB. E-mail: elianemarquez@uol.com.br.

- 130 -
PARTE 2
ARGUMENTAÇÃO, RETÓRICA E REDES
SOCIAIS
Rotulação em situações de estase
argumentativa no programa Roda Viva 1

Nádia Vieira Simão (PPGLL/UFG)


Rubens Damasceno-Morais (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este trabalho propõe o estudo da rotulação como estratégia de preserva-


ção da face em momentos de estase argumentativa. O objetivo é verificar
se a rotulação pode funcionar como estratégia da preservação da face
diante de uma estase ou um conflito de opiniões. A abordagem teórica
situa-se nos estudos da Linguística Textual sobre rotulação (FRANCIS,
2003; CONTE, 2003; CIULLA, 2008; CARVALHO, 2005; ALVES JUNIOR,
2011; KOCH, 2006, 2014); nos estudos da Argumentação Dialogal (PLAN-
TIN, 2008, 2018; GRÁCIO, 2010, 2012, 2013); e nos estudos da preservação
da face e estratégias de polidez (GOFFMAN, 2011; BROWN E LEVINSON,
1987). O corpus dessa pesquisa constituiu-se por um recorte de uma en-
trevista televisiva do programa Roda Viva cujo entrevistado foi o jorna-
lista e advogado Glenn Greenwald. Nesse recorte temos uma pergunta
direcionada ao entrevistado que o põe em uma situação de ameaça de
face, num debate conflitual. O trabalho segue análise qualitativa, em que

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e seu orientador, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade dos autores com anuência do orientador.
foram observados aspectos relacionados ao surgimento da estase e da
preservação da face e à utilização da rotulação por parte do entrevistado.
Diante da situação conflitual, constatou-se que o entrevistado se vê na
necessidade de proteger a sua face lançando mão de recursos linguísti-
cos, dentre eles a rotulação e seus desdobramentos.
Palavras-chave: Rotulação; Preservação da Face; Estase; Roda Viva;
Entrevista televisiva.

ABSTRACT

This work proposes the study of labeling as a strategy for preserving the
face in moments of argumentative stasis. The objective is to verify if the
labeling can function as a strategy for the preservation of the face in front
of stasis or a conflict of opinions. The theoretical approach is located in
the studies of Textual Linguistics on labeling (FRANCIS, 2003; CONTE,
2003; CIULLA, 2008; CARVALHO, 2005; ALVES JUNIOR, 2011; KOCH,
2006, 2014); in the studies of Dialogal Argumentation (PLANTIN, 2008,
2018; GRÁCIO, 2010, 2012, 2013); and in studies of face preservation and
politeness strategies (GOFFMAN, 2011; BROWN AND LEVINSON, 1987).
The corpus of this research consisted of an excerpt from a television in-
terview on the Roda Viva program, whose interviewee was the journalist
and lawyer Glenn Greenwald. In this cut, we have a question directed to
the interviewee that puts him in a situation of face threat, in a conflictual
debate. The work follows qualitative analysis, in which aspects related to
the emergence of stasis and the preservation of the face and to the use
of labeling by the interviewee were observed. In view of the conflictual
situation, it was found that the interviewee sees himself in the need to
protect his face by using linguistic resources, among them the labeling
and its consequences.
Keywords: Lettering; Face Preservation; Stasis; Roda Viva; Television
interview.

- 133 -
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste trabalho foi analisado como o processo de rotulação pode


contribuir para a preservação da face em momentos de estase em uma
entrevista do programa televisivo Roda Viva. Para isso, a seguinte ques-
tão/problema foi elaborada: O processo de rotulação referencial pode
contribuir para a preservação da face em uma entrevista do programa
televisivo Roda Viva em uma situação de estase?
O processo de rotulação é um recurso da referenciação empre-
gado com o intuito de dar encaminhamento ao texto e de contribuir
para a argumentação nele presente ao encapsular (FRANCIS, 2003),
introduzir e/ou retomar uma informação do texto e acrescentar uma
nova informação pautada nas escolhas subjetivas do enunciador ao es-
colher o léxico utilizado para a formação do rótulo (FRANCIS, 2003).
Assim, esse rótulo é altamente avaliativo (FRANCIS, 2003), mesmo
quando o léxico escolhido denote um teor neutro, visto que ele carrega
a subjetividade do enunciador. Em uma situação de interação, como
as entrevistas do programa televisivo Roda Viva, muitos interesses
são colocados em jogo, e um desses interesses se relaciona com o que
­Goffman (2012) denomina de preservação da face, que é uma estratégia
da polidez (CALDEIRA, 2018). A polidez relaciona-se à forma como as
distâncias entre os sujeitos são socialmente construídas por meio da
linguagem (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2006). De acordo com
Goffman (2012), ainda, a face de uma pessoa é construída a partir de
valores e atributos sociais reivindicados por ela ao construir a sua ima-
gem. A preservação da face atua ao tentar preservar essa imagem e as-
sim mantê-la no decorrer da interação, principalmente em situações
em que essa imagem é ameaçada. Para fazer essa manutenção, o enun-
ciador se utiliza de estratégias linguísticas (CALDEIRA, 2018) para res-
tabelecer sua imagem, preservando a sua face.

- 134 -
Essa situação foi observada em contexto de argumentação dia-
logal, em que, a partir de um assunto em questão, ou seja, um tema ou
problema que gere perspectivas diferentes, apareça uma situação de
estase entre os participantes da interação (PLANTIN, 2008; GRÁCIO,
2010, 2012, 2013). A rotulação será observada, dessa maneira, em uma
situação de interação na qual estejam em argumentação perspectivas
diferentes de um mesmo assunto, surgindo, assim, uma situação de es-
tase, ou seja, de choque de perspectivas. É nesse contexto em que serão
observadas as estratégias de preservação da face e se a escolha dos ró-
tulos pode contribuir para que a face de uma pessoa seja preservada.
Dessa forma, o objetivo que aqui se constrói é verificar se a rotulação
pode contribuir para a preservação da face em momento de estase.
O corpus foi constituído por um recorte de uma entrevista do
programa televisivo Roda Viva do canal TV Cultura. A entrevista em
questão foi realizada no dia 2 de setembro de 2019 tendo como entre-
vistado o jornalista e advogado norte-americano Glenn Greenwald e
como entrevistadores a apresentadora Daniela Lima e os jornalistas
André Vieira, Gabriel Mascarenhas, Lilian Tahan, Felipe Recondo e
Ana Campos. A entrevista teve duração de 1 hora e 22 minutos e teve
como tema a atuação de Greenwald na divulgação das mensagens tro-
cadas entre procuradores da Operação Lava Jato e o ex-juiz e atual mi-
nistro da Justiça, Sérgio Moro. Essa entrevista foi escolhida para essa
análise, porque foi marcada por várias situações de estase em que mui-
tas vezes o entrevistado teve sua face ameaçada, como veremos.
A pesquisa é qualitativa de base interpretativista (GIL, 2002;
GERHARDT, SILVEIRA, 2009), pois a análise dos dados foi realizada
preocupando-se mais com o processo do que com o produto, tendo em
vista que o interesse recaiu em verificar de que forma Greenwald se uti-
lizava da rotulação e se ela poderia vir a se constituir como uma estraté-
gia da preservação da face considerando-se uma situação de estase.

- 135 -
Muitos estudos foram realizados sobre o processo de referen-
ciação. Devido ao pouco espaço de que dispomos, citaremos apenas
alguns. Francis (2003) aborda em sua pesquisa os grupos nominais
utilizados para conectar e organizar as partes do discurso. Quanto ao
funcionamento textual-discursivo, para Koch (2006) ainda, os rótu-
los são multifuncionais. Entre as funções mencionadas por ela estão
a cognitiva, a de organização textual e a de orientação argumentativa.
Carvalho (2005) pesquisa a rotulação em textos opinativos. De
acordo com a autora, os rótulos se constituem como grande estratégia,
não só da referenciação, como também do encaminhamento do texto.
Ciulla (2008) faz um estudo sobre o processo de referenciação e as suas
funções no discurso. Ela acredita que os referenciadores exercem várias
funções dentro do texto. Em pesquisa realizada por Alves Junior (2011),
a partir de uma perspectiva sociointeracionista e discursiva de lingua-
gem, em que foram estudados os rótulos presentes em gêneros jorna-
lísticos, atestou-se que a rotulação é um recurso de coesão que, além de
organizar o texto, atua em seu campo semântico e na sua argumentação.
Quanto aos estudos da preservação da face, temos Wysocki
(2007) que pesquisa a preservação da face em uma entrevista televisi-
va do SBT. Lunardelli (2017) em sua pesquisa explora os mecanismos
de distanciamento linguístico, dentre eles, a preservação da face, em
sínteses documentais, nas quais procura verificar se existe um distan-
ciamento do interlocutor que as redige.
Já os estudos da estase, estão inseridos na teoria dialogal da ar-
gumentação, tendo como representantes Plantin (2008) e Grácio (2010,
2012, 2013). Nessa teoria, a estase se estabelece a partir de um discurso
e um contradiscurso sobre um mesmo assunto em questão. A argumen-
tação, dessa forma, surge quando, a partir da estase inicial, o assunto
é perspectivado (GRÁCIO, 2010), surgindo diferentes pontos de vistas.
Para Grácio, perspectivar é argumentar.

- 136 -
Dessa forma, construímos a seguinte questão/problema: Em de-
terminados contextos a rotulação, além de cumprir suas funções habi-
tuais, também pode vir a funcionar como uma estratégia de preservação
da face em momentos de estase?
Este capítulo foi dividido em quatro partes. Na primeira, foi
abordado o processo de rotulação, apresentando sua configuração ava-
liativa e não avaliativa. Na segunda parte, houve uma explanação do
que se entende por face e preservação da face. Na terceira parte, foi
apresentado o conceito de estase como visto na argumentação dialogal.
E na quarta parte foi realizada a análise do corpus, considerando o pro-
cesso de rotulação, a preservação da face e a estase.

Rotulação

A rotulação é um recurso da referenciação, que por sua vez en-


contra-se situada nos estudos da Linguística textual. A rotulação é em-
pregada, usualmente, com o intuito de dar encaminhamento ao texto
ao conectar e organizar suas partes, ao introduzir e/ou retomar uma
informação apresentada e ao acrescentar ao texto uma nova informa-
ção (FRANCIS, 2003; CONTE, 2003; CIULLA, 2008; CARVALHO, 2005;
ALVES JUNIOR, 2011; KOCH, 2006, 2014).
Francis (2003) foi uma das pioneiras ao pesquisar sobre a rotu-
lação apresentando-a com a função de organizar e conectar as partes
do discurso ao fazer um encapsulamento dessas partes em um rótulo,
funcionando como uma espécie de paráfrase resumitiva. O significado
prototípico de encapsular evoca a ação de compactar, de juntar partes
e envolvê-las por uma espécie de invólucro protetor. E é essa a ideia
geral que se pode ter de um rótulo. O rótulo é como uma cápsula que
junta partes, no caso, partes textuais, e as compacta em um invólucro.

- 137 -
Utilizando mais uma comparação, pode-se dizer que o rótulo funciona
da mesma forma que um rótulo de um produto.
Segundo essa autora, os rótulos podem vir a assumir três posi-
ções diferentes no texto: prospectiva, retrospectiva e prospectiva-re-
trospectiva. O rótulo é prospectivo quando ele precede a parte encap-
sulada, ou seja, ele funciona como uma espécie de catáfora que adianta
ao leitor/ouvinte o que ele deve esperar e como ele deve interpretar a
extensão do discurso que se segue. O rótulo é retrospectivo quando ele
aparece depois da parte do discurso que ele encapsula, funcionando
como uma anáfora que em vez de adiantar ao leitor uma informação do
texto, retoma uma informação anterior. O rótulo é prospectivo-retros-
pectivo quando ele exerce as duas funções anteriores ao mesmo tempo
(FRANCIS, 2003; CIULLA, 2008).
Como mostrado por Francis (2003) e retomado em estudos poste-
riores (CONTE, 2003; CIULLA, 2008; CARVALHO, 2005; ALVES JUNIOR,
2011; KOCH, 2006, 2014), os rótulos seguem duas configurações, avalia-
tiva e não avaliativa. Tomando por base que “um rótulo refere e nomeia
uma extensão do discurso”, um rótulo é avaliativo quando ele faz essa
referência mostrando uma grande subjetividade ao utilizar como nú-
cleo dos rótulos expressões nominais que carregam, em sua semântica
prototípica, um alto teor positivo ou negativo, revelando o posiciona-
mento do interlocutor em relação à parte do discurso que ele está ro-
tulando; um rótulo não avaliativo também mostra certa subjetividade,
mas de forma velada e pouco perceptível utilizando de termos nucleares
que não aludem a uma avaliação nem positiva e nem negativa, apresen-
tando-se sob uma fachada neutra. Pesquisadores como Conte (2003) e
Carvalho (2005) preferem adotar a terminologia: axiológicos e não axio-
lógicos, para se referirem a essas configurações respectivamente.
Independente da terminologia que se adote, é fundamental
compreender a polarização existente entre essas duas configurações

- 138 -
(avaliativo g axiológico; não avaliativo g não axiológico) para as abor-
dagens teóricas que aqui foram adotadas e para a análise a ser realiza-
da. Além disso, essa configuração está diretamente relacionada com a
forma como os sujeitos interpretam o mundo ao agir sobre ele. Isso
porque, primeiro, sabe-se que um rótulo, quando é construído, funcio-
na como um objeto do discurso e que pode ser considerado como:

uma criação que vai se reconfigurando não somente pelas pistas


que as estruturas sintático-semânticas e os conteúdos lexicais
fornecem, mas também por outros dados do entorno sociodis-
cursivo e cultural que vão sendo mobilizados pelos participantes
da enunciação. (CAVALCANTE et. al., 2010, p. 235)

E esse rótulo, como visto, encapsula uma parte do discurso e a


categoriza conforme seus conhecimentos de mundo e experiências
ao agir sobre ele. Essa ideia de categorizar uma parte do discurso re-
mete-nos ao conceito de esquematização de Grize (1997). Para ele, em
termos bem simples, a esquematização é um “ato semiótico” em que as
representações do mundo podem ser visualizadas no discurso através
de imagens fabricadas a partir de pré-construídos culturais. Essa es-
quematização teria a função de colocar em evidência uma perspectiva
e não a função de defender uma tese (GRIZE, 1997). Essa ideia de es-
quematização, por sua vez, relaciona-se com o conceito de perspectiva-
ção, fundamental na teoria dialogal da argumentação (GRÁCIO, 2010)
que veremos mais a frente.
A avaliação presente nos rótulos é subjetiva, pois ela surge da
forma como o enunciador vê o mundo e o interpreta. Essa visão decor-
re das suas experiências sociais e culturais que influenciam a forma
como ele processa cognitivamente aquilo que ele não apenas vê, mas
com que interage. Assim, os rótulos são vistos como meios “de classi-
ficar a experiência cultural de modos estereotípicos [...]. O relaciona-
mento entre um rótulo e a (s) orações (s) que ele substitui não é um

- 139 -
processo aleatório de nomeação, mas uma codificação de percepções
partilhadas, ou partilháveis, do mundo” (FRANCIS, 2003, p. 226).
Isso “permite ao ouvinte/leitor a alocação, na memória, de um
novo referente textual, que fica disponível para servir de base a novas
predicações” (KOCH, 2014, p. 69). Esse novo referente é motivado pelas
escolhas do enunciador, afinal, “a escolha de um rótulo não é uma se-
leção independente a partir de um paradigma de palavras que tenham
a mesma função: estes itens são altamente dependentes do contexto”
(FRANCIS, 2003, p. 202). E por serem dependentes do contexto, “ao
mesmo tempo em que o enunciador encapsula um trecho de informa-
ções, muitas vezes dispersas no discurso, organiza-o e, frequentemen-
te, acrescenta-lhe uma avaliação” (CIULLA, 2008, p. 80).
Dessa forma, o rótulo pode vir a se constituir, também, como
uma estratégia da argumentação na construção dos pontos de vista
apresentados durante a perspectivação.

Polidez e Preservação da Face

Antes de se compreender o que é a preservação da face, primei-


ro é necessário entender o que é face e sua relação com as interações
sociais na perspectiva da análise da conversação. Dessa forma, pode-
-se dizer que o estudo da face teve como ponto de partida, nos anos de
1970, os estudos de Goffman (2011) e Brow e Levinson (1987). Nesses es-
tudos, os pesquisadores mostraram que as interações são regidas por
regras sociais negociadas durante a conversação (GOFFMAN, 2011).
De acordo com Goffman (2011), a face de uma pessoa é construí-
da a partir de valores e atributos sociais reivindicados por ela ao cons-
truir a sua imagem durante a interação. A construção dessa imagem
cabe ao que Goffman chama de linha, que se trata de “um padrão de
atos verbais e não verbais com o qual a pessoa expressa sua opinião so-
bre uma situação e, através disso, sua avaliação sobre os participantes,

- 140 -
especialmente sobre ela própria” (GOFFMAN, 2011, p. 13). É através da
linha, que a face é definida

como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente rei-


vindica para si mesma através da linha que os outros pressu-
põem que ela assumiu durante um contato particular. A fachada
é imagem do eu delineada em termos de atributos sociais apro-
vados (GOFFMAN, 2011, p. 13-142).

A face, como aponta Goffman, é um constructo social e como


tal ela não é permanente, estando sujeita a um “jogo” em que ela pode
ser ameaçada, perdida ou reforçada. Isso pode ser feito através do que
Brow e Levinson (1987) chama de polidez.
A esse respeito e sob uma visão que retorna à retórica, Meyer
(2007) ao falar sobre como orador e auditório negociam suas diferen-
ças, ou seja, suas distâncias, aponta que

o que constitui a sua diferença, e mesmo o seu diferencial, é cer-


tamente, múltiplo, e pode ser social, político, ético, ideológico,
intelectual – e sabe-se lá o que mais –, mas uma coisa é certa: se
não houver um problema, uma pergunta que os separasse, não
haveria debate entre eles, nem mesmo discussão (p. 25).

Embora Meyer esteja se referindo às distâncias construídas


sob uma perspectiva retórica é interessante enfatizar o que ele diz em
relação ao surgimento de um problema, de uma pergunta que leve a
um debate, a uma discussão. Nesse contexto, Meyer (1994) coloca que
o problema se refere a uma questão, da qual surgem perguntas e res-
postas que abarquem o problema por ela apresentado e, nesse sentido,

2 O termo face tem sua origem no inglês. No Brasil, em alguns casos o termo é traduzido
como “fachada”. Como as duas terminologias são utilizadas no Brasil, por uma questão
de escolha decidi utilizar o termo “face”.

- 141 -
para esse autor, a retórica não se trata apenas de defender ou sustentar
teses, mas também trata-se de compreender a relação existente entre
essas perguntas e respostas (MEYER, 2007, p. 25).
A esse respeito, pode-se dizer que esse problema/pergunta pode
ser relacionado(a) com a estase da argumentação dialogal, pois se na re-
tórica de Meyer o debate surge a partir do problema, na argumentação
dialogal o debate surge através da estase. Contudo, no caso da teoria
dialogal, esse debate recebe o nome de perspectivação e refere-se aos
pontos de vista antagônicos que emergem na interação (GRÁCIO, 2010).
Nesse sentido, enquanto a polidez trata-se de uma espécie de mecanis-
mo social que busca a gestão de conflitos e a harmonia nas conversa-
ções, a estase surge como um mecanismo que quebra essa harmonia, o
que não é necessariamente ruim. O fato é que diante de uma situação
de estase acaba ocorrendo uma ameaça a face das pessoas envolvidas
na interação e a polidez entra justamente para negociar e gerenciar es-
ses conflitos. Assim, a preservação da face entraria como uma estraté-
gia da polidez (CALDEIRA, 2018).
A preservação da face atua ao tentar preservar a imagem (li-
nha) dos interactantes e assim mantê-la no decorrer da interação,
principalmente em situações em que essa imagem é ameaçada como
em situações que surjam uma estase. Para fazer essa manutenção, o
enunciador se utiliza de estratégias linguísticas (CALDEIRA, 2018)
para preservar a sua face.

Estase

O termo estase deriva da medicina e se trata de uma situação


em que os fluidos corporais são bloqueados e técnicas médicas de-
vem ser utilizadas para que esses fluidos voltem ao seu fluxo normal
(PLANTIN, 2018). Esse conceito é apropriado por Plantin e retomado

- 142 -
por Grácio na teoria dialogal da argumentação, na qual, assim como
ocorre na medicina, uma estase em contexto de argumentação dialogal
ocorre quando surgem perspectivas diferentes de um mesmo assunto
e essas perspectivas entram em choque, causando um estancamento
que poderá ser resolvido (ou não) por meio da argumentação (PLAN-
TIN, 2018). Como já dito, essa ideia da perspectivação aparece em Grize
(1997) ao problematizar sobre o conceito de esquematização. Contudo,
para Grácio, perspectivar é colocar em evidência pontos de vista anta-
gônicos sobre um assunto em questão. Assim, ao perspectivar, se está
argumentando e ao argumentar se está perspectivando.
Considerando que a teoria Dialogal da Argumentação tem
como ponto de partida a interação e o diálogo que se desenvolvem a
partir do dissenso, ou o que se chama de ‘estase’, a partir dela surge
uma ‘questão argumentativa’ pautada em uma ‘situação argumentati-
va’ (PLANTIN, 2008, p. 64).
Essa configuração proposta pela teoria dialogal da argumen-
tação só se concretiza se houver interação e, necessariamente, um
assunto em questão. Ali se entende que a interação entre os atores da
argumentação, quando gera pontos de vista antagônicos, é fator fun-
damental. Essa perspectiva é corroborada por autores como Grácio
(2012, p. 42), para quem “a noção de assunto em questão é nuclear”.
O que interessa a Grácio são as questões relativas ao dissenso,
aquelas que surgem quando as interpretações de incertezas são diferen-
tes, provocando um impasse, um ponto de conflito, uma estase, uma ten-
são entre os discursos. Nesse sentido, este autor e Plantin (2008, 2018)
partilham de uma mesma forma de compreender a argumentação.
Dessa forma, o conceito de estase que aqui nos interessa insere-
-se na perspectiva dialogal da argumentação, em que, a partir de um
assunto em questão, ou seja, um tema ou problema que gere perspec-

- 143 -
tivas diferentes, apareça uma situação de choque de perspectivas, de
estase, entre os participantes da interação (PLANTIN, 2008, 2018; GRÁ-
CIO, 2010, 2012, 2013).
A rotulação será observada, dessa maneira, em uma situação de
interação na qual esteja em argumentação perspectivas diferentes de
um mesmo assunto, surgindo, assim, uma situação de estase. É nesse
contexto em que serão observadas as estratégias de preservação da face
e se a escolha dos rótulos, tendo em vista o seu léxico e a sua configu-
ração podem contribuir para que a face de um pessoa seja preservada.

Metodologia

Nesse trabalho foi analisado o recorte da entrevista televisiva


do programa Roda Viva, cujo entrevistado foi o jornalista e advogado
Glenn Greenwald. Esse recorte se constitui por uma pergunta de um
dos entrevistadores – Lilian Tahan; e da resposta do entrevistado a
essa pergunta. Assim, para a análise foi considerado o recorte dessa
parte da entrevista em que o entrevistado esteve com a sua face amea-
çada, precisando utilizar estratégias que restabelecessem a sua face e
a mantivesse. A fim de verificar como Greenwald atua para a preser-
vação da sua face, na próxima seção foi apresentada a transcrição do
recorte que inclui a pergunta de Tahan e a resposta subsequente de
Greenwald. A pergunta de Tahan, assim como o tweet de Greenwald
que ela retoma antes de iniciar sua pergunta, foram também apresen-
tados a fim de possibilitar uma contextualização prévia da resposta do
entrevistado. Sendo a resposta dele a parte que interessa a esse estudo
a fim de verificar se a hipótese construída se realiza. A hipótese que
aqui se constrói é de que em determinados contextos a rotulação além
de cumprir suas funções habituais também pode vir a funcionar como
uma estratégia de preservação da face em momentos de estase.

- 144 -
Como a entrevista é televisiva e como tal se caracteriza pela ora-
lidade, fez-se necessária a transcrição do recorte em análise. Nessa
transcrição foram considerados apenas os elementos verbais. Dessa
forma, foram considerados apenas os elementos linguísticos, optan-
do-se por uma transcrição mais simplificada.
Como categoria de análise, selecionamos: da teoria dialogal, o
surgimento da estase; do processo de rotulação, os rótulos avaliativos;
e da teoria da polidez, a preservação da face. A partir dessas três cate-
gorias desenvolvemos nossa análise com o intuito de mostrar se a rotu-
lação contribui para a preservação da face diante de uma estase.

Análise do corpus

Durante a entrevista televisiva do programa Roda Viva com o


jornalista e advogado Glenn Greenwald, foi trazido para a discussão
um tweet de Greenwald (figura 1).

Figura 1 – Tweet de Glenn Greenwald

Fonte: <https://twitter.com/ggreenwald/status/1167242591185907718>. Acesso: 09 nov. 2020.

- 145 -
No excerto 1, a ser apresentado logo abaixo, a jornalista Lilian
Tahan lança uma proposição ao entrevistado a partir do tweet acima.
Nessa proposição ela questiona Greenwald sobre o conteúdo e a moti-
vação dele em postar esse tweet. O início da estase ocorre quando ela
questiona o entrevistado se o motivo da postagem teria sido em decor-
rência do marido3 de Greenwald estar sendo investigado pela prática
da “rachadinha”. Nesse momento ocorre a estase e a face do entrevis-
tado é ameaçada.

Excerto 1 – Proposição de Liliam Tahan

/.../
LT de que intimidações e retaliação você está 1
se referindo nessa postagem” seriam fatos novos” por exemplo (+) 2
seria o fato (+) de que seu marido (+) a gente soube agora recentemente 3
(+) o david miranda (+) hoje deputado federal (+) tá sendo investigado 4
pelo ministério público do rio de janeiro (+) referente a problemas 5
de quando ele era vereador também no rio de janeiro (+) ele tá sendo 6
investigado pela prática chamada a prática da rachadinha né (+) 7
é quando os funcionários comissionados devolvem salários ou pro 8
parlamentar ou pra estrutura de gabinete (+) se isso for confirmado (+) 9
se for verdade (+) é gravíssima a acusação (+) era sobre isso daqui 10
que você se referia quando escreveu esse tweet” 11

O excerto a ser analisado é justamente a contraproposição (ex-


certo 2) de Greenwald à pergunta de Tahan, na qual ele evidencia o seu
ponto de vista sobre a proposição da jornalista.

3 David Miranda é deputado do PSOL.

- 146 -
Excerto 2 – Contraproposição de Greenwald

GG foi um partidaço e vou falar com clareza 1

absoluta sem qualquer política (+) inclusive 2


meu próprio marido (+) fizesse esse crime (+) 3
deveria ser preso 4
/.../
isso é um vazamento (+) que tem um propósito para 5
intimidar e sujar nossa reputação (+) 6
/.../
o stf parou isso (+) impediu isso (+) porque foi 7
uma violação da liberdade de imprensa como 8
retaliação e agora estão fazendo isso contra 9
meu marido (+) é só isso (+) nunca vai ter evidência 10
/.../
porque é uma mentira (+) não tem evidência nenhuma 11
(+) e é exatamente esse jogo sujo que eles fazem 12

A contraproposição é construída a partir do uso de rótulos ava-


liativos negativos. Assim, esses rótulos (“um partidaço”, “esse crime”,
“um vazamento”, “uma violação da liberdade de imprensa”, “uma men-
tira”, “esse jogo sujo”) trabalham, ao mesmo tempo, na defesa da con-
traproposição que se está construindo e no ataque à proposição lança-
da pelo proponente.
Ao realizar esse jogo, de defesa à sua própria proposição e de ata-
que à proposição da jornalista, Greenwald trabalha preservando sua
face e mantendo, dessa forma, o equilíbrio da interação ali desenvolvi-
da. Para manter o equilíbrio ameaçado com o surgimento da estase, o
entrevistado se encontrou em uma posição cuja saída foi a mobilização
de rótulos com carga avaliativa negativa. O uso desses rótulos contri-
buiu para que a face do entrevistado fosse preservada.

- 147 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A rotulação como um processo referencial que carrega em si um


teor avaliativo e subjetivo pode contribuir para o restabelecimento e
manutenção de uma face, podendo, assim, se constituir como uma es-
tratégia de preservação da face. No contexto dessa entrevista, vimos
que a necessidade de preservação da face surgiu a partir de uma estase.
Dessa forma, a hipótese do estudo se verifica ao mostrar que a rotula-
ção pode ser utilizada como uma estratégia para preservação de face.
No contexto analisado, essa preservação ocorreu por meio da partici-
pação de rótulos avaliativos negativos.

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- 150 -
Nádia Vieira Simão
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística
pela Universidade Federal de Goiás. Graduada em Letras – Português
e Inglês e suas respectivas literaturas pela Universidade Estadual de
Goiás. E-mail: nadiavieira44@gmail.com.

Rubens Damasceno-Morais
Professor Doutor em dedicação exclusiva pela Universidade Federal
de Goiás – UFG. Integra a linha de pesquisa de pós-graduação Língua,
Texto, Discurso – PPGLL/UFG. Membro do Grupo de Pesquisa: Estudos
de Linguagem, Argumentação e Discurso ELAD e coordenador do
Grupo de Pesquisa Teorias de Argumentação e Retórica – TEAR.
E-mail: damasceno.morais@ufg.br

- 151 -
A imperatividade a serviço da retórica no
discurso publicitário: alguns percursos
argumentativos 1

Izac Vieira Chaves (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este texto tem o objetivo de analisar, num sentido amplo, como a re-
tórica é utilizada em propagandas constantes em três revistas brasi-
leiras com fins argumentativos e, ainda, como o fenômeno da impe-
ratividade é construída a partir de recursos retóricos e pragmáticos.
Nossa análise prioriza propagandas em que o modo verbal imperativo
não é utilizado (de forma explícita). O referencial teórico, apesar de
não descartar a visão clássica dos estudos sobre retórica, baseia-se em
estudos contemporâneos do que se convenciona chamar de “nova retó-
rica”, com base, especialmente, em Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005),
além de Mosca (1999). Além disso, no que concerne à argumentação,
avalia-se como ela é trabalhada nas propagandas com a finalidade de
convencimento de possíveis consumidores. Em relação à teoria argu-

1 Este texto foi devidamente revisado pelo autor e seu orientador. Os conceitos aqui mobili-
zados são de responsabilidade do autor com anuência do orientador. Assim, fica a cargo
do orientador a revisão final, tanto relativa à forma quanto ao conteúdo.
mentativa, nos apoiamos em Platin (2005), Abreu (2009), Cabral (2011),
Breton (2003), Mosca (2007), entre outros. Os resultados apontam que
a imperatividade se constrói através de imagens e processos retóricos,
combinados com estratégias pragmáticas e ilocucionárias, utilizados
na teia argumentativa do anúncio.
Palavras-chave: Retórica; imperatividade; argumentação; publicidade.

ABSTRACT

This text aims to analyze, in a broad sense, how rhetoric is used in con-
stant advertisements in three brazilian magazines for argumentative
purposes and, still, how the phenomenon of imperativity is built from
rhetorical and pragmatic resources. Our analysis prioritizes adver-
tisements in which the imperative verbal mode is not used (explicit-
ly). The theoretical framework, despite not discarding the classic view
of studies on rhetoric, is based on contemporary studies of what is
conventionally called “new rhetoric”, based, especially, on Perelman;
Olbrechts-Tyteca (2005) and Mosca (2007, 1999). In addition, with re-
gard to the argument, it is evaluated how it is worked on in the adver-
tisements in order to convince potential consumers. To this end, we
rely on Platin (2005), Abreu (2009), Cabral (2011), Breton (2003), Mosca
(2007, 1999), among others. The results show that imperativity is built
through images and rhetorical processes, combined with pragmatic
and illocutionary strategies, used in the ad’s argumentative web.
Keywords: Rhetoric; imperativity; argumentation; publicity.

- 153 -
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste texto, considera-se a perspectiva comunicativa e eficiente


da linguagem, ou seja, aquela atuante em um ambiente de interação em
que as situações de produção dos discursos é que determinam tal efi-
ciência no uso que se faz da língua. Fundamentado nesses princípios,
este capítulo apresenta uma análise do fenômeno da imperatividade
resultante da utilização de estratégias retóricas, em propagandas vei-
culadas em três revistas brasileiras.
O pressuposto é o de que a imperatividade acontece através de
recursos e estratégias retóricas e se constrói com a finalidade de con-
vencer o leitor a comprar determinado produto, mesmo sem ordená-lo
de maneira explícita. Então, a imperatividade não se esgota na marca-
ção morfológica do modo imperativo, mas se constitui a partir de um
aparato complexo que envolve aspectos semântico-pragmático-discur-
sivos e retóricos, que funcionam como elementos propulsores para a
eficiência da argumentação.
Pretende-se, então, a partir dessas observações, analisar de que
forma a imperatividade é construída nas propagandas e, também,
como a retórica contribui para a argumentação no discurso publicitá-
rio, principalmente em relação à importância do conhecimento do au-
ditório que se pretende persuadir e a manutenção da verossimilhança
no discurso.
Este capítulo está organizado em quatro seções. Na primeira,
apresentamos a definição tanto da retórica clássica e alguns de seus
postulados, quanto os novos estudos dessa teoria, o que se intitula de
“nova retórica”, tendo como representante primeira a obra de Chaïm
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005). Contribuem ainda, para a dis-
cussão nessa primeira parte, os trabalhos de Aristóteles, (2005 [1356],
Mosca (1999), Rohden (1997), Santos (2010), entre outros. Na segunda

- 154 -
seção, tratamos da argumentação, mostrando como as estratégias ar-
gumentativas se alinham às técnicas retóricas com a finalidade de con-
vencimento do consumidor. Nesta parte, as obras de Abreu (2009), Bre-
ton (2003), Cabral (2011), Mosca (2007) e Platin (2005) são importantes
para o embasamento teórico. Na terceira parte, apresentamos a meto-
dologia de pesquisa utilizada no presente trabalho. Na quarta e última
seção, apresentamos a análise e discussão dos dados.

1 Retórica, argumentação e imperatividade

A palavra retórica vem do grego rhetoriké (arte da retórica) e


vem sendo compreendida ao longo do tempo em diferentes perspec-
tivas. Para o nosso estudo, interessa-nos, sobretudo, a definição de
retórica como “a arte de produzir discursos persuasivos, ou seja, ar-
gumentações.” Em Aristóteles (2005), ela é definida como “a faculda-
de de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar
a persuasão”.
Quando se fala em retórica, o primeiro e mais representativo ex-
poente é sem dúvida Aristóteles, com sua Arte Retórica, obra em que
lança as bases da retórica ocidental. Ela trata da estrutura e exposição
de argumentos e, dessa maneira, faz uma relação com vários aspectos
da vida cotidiana.
Retórica é a arte de argumentar e persuadir e, nesses termos,
nada mais natural que o discurso publicitário se apropriar dessa arte.
Ela é chamada de arte pelo próprio Aristóteles, que intitula sua obra de
Arte Retórica. Na antiguidade, quem a dominava, falava eloquentemen-
te e “dominava” auditórios diversos. Naquela época, dominar a arte do
bem falar e do argumentar nas assembleias e nos tribunais era extre-
mamente importante, já que, nesse contexto, inaugurou-se o termo de-
mocracia, cuja essência está em reunir aqueles que possuem pontos de
vista diferentes.

- 155 -
Segundo Mosca (2007, p. 2), “a retórica mantém em nossos dias
esse caráter de luta por meio das palavras, de embate, que pode condu-
zir a tomadas de decisão, enfim, a mudanças de atitudes”. Entendemos
ser esse o motivo de, nos discursos publicitários, estarem tão presen-
tes as bases da retórica, como fonte de argumentação.
Uma área em que a retórica atua de forma significativa é a pu-
blicidade. Publicitários atentos à evolução do pensamento humano
e atentos às novas exigências do mercado veem as técnicas retóricas
como aliadas no processo argumentativo. Segundo Santos (2010, p. 8),

a retórica aristotélica possui uma função muito específica. Ela


visa a descobrir o que há de persuasivo em cada discurso, e
não em produzir textos ou alterar comportamentos de quem
os lê. Ou seja, aquele que tem por função redigir um discurso
ou qualquer construção verbal persuasiva, como a propaganda,
pouco uso fará da retórica, mas aquele que procura entender os
meios pelos quais a persuasão se dá, este sim, será beneficiado
por seu conhecimento.

Em se tratando do discurso de propaganda, acontece justamen-


te o contrário do que diz Santos (2010): publicitários utilizam em larga
escala os pressupostos da retórica como forma de aumentar o poder de
argumentação e de convencimento.
A retórica ficou durante um longo tempo reservada àqueles que
a usavam como artifícios estilísticos e, somente a partir do século XX,
com o surgimento dos estudos sobre a filosofia da linguagem, filósofos e
estudiosos começam a voltar sua atenção para o objeto da retórica, seja
em seu caráter formal seja em seu aspecto de instrumento de persuasão.
Somente a partir da década de 60 começa a renascer o interesse
pela retórica. Essa década foi, ao mesmo tempo, o momento em que se
começou a se ter consciência da importância e do poder das técnicas
de influências e de persuasão.

- 156 -
Numa época em que a publicidade invade a sociedade, as técni-
cas argumentativas surgem como um recurso para o convencimento e
adesão dos consumidores. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) defen-
dem a ideia de que existem várias formas de argumentação e raciona-
lidade. O pensamento desses filósofos recorre ao berço aristotélico e
lança, em conjunto com a retórica e a dialética, o alicerce do estudo
das técnicas argumentativas. Dessa maneira, a teoria proposta pelos
autores recupera e revigora a retórica descrita por Aristóteles, ou seja,
mescla a “arte de falar” ao modo de convencer e persuadir com base
retórica e dialética.
Os autores têm o mérito de ter fundado o estudo da argumentação
para além das “técnicas administrativas”, por isso, a obra forneceu à ar-
gumentação uma rica base empírica de esquemas e tipos de argumentos.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 5) definem argumentação
como “o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou au-
mentar a adesão dos espíritos às teses que propomos a seu assentimen-
to”. Conforme Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 59),

uma argumentação eficaz é aquela que consegue incrementar a


intensidade de adesão, de modo a desencadear entre os ouvintes
a ação visada (ação positiva ou abstenção), ou de modo a pelo me-
nos criar, entre eles, uma disposição para a ação, que se manifes-
te no momento oportuno.

Para este capítulo, as considerações dessa obra se tornam essen-


ciais, porque ajudam a explicar o processo argumentativo de propagan-
das, cuja função essencial é vender, além do produto, uma ideia, e, para
isso, os produtores da campanha publicitária recorrem às técnicas de
argumentação previstas pelos autores, ou em outros manuais, ao siste-
matizar uma complexa e, geralmente, eficiente cadeia argumentativa.

- 157 -
A adesão dos espíritos é um importante elemento na definição
da argumentação. Em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), a adesão
dos espíritos é entendida como desencadeadora da persuasão. Os au-
tores (2005, p. 36) chamam de persuasiva “uma argumentação que pre-
tende valer exclusivamente para um auditório particular e chamar de
convincente aquela que se tem por ser capaz de alcançar a adesão de
todo ser de razão”.
Ainda Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 73), no âmbito da
nova retórica, afirmam que, “para haver a adesão do interlocutor aos
propósitos do locutor, é preciso um acordo prévio, mútuo, criando-
-se, assim, um consentimento tácito do interlocutor”. É preciso usar
estratégias argumentativas adequadas para o convencimento. Argu-
mentam ainda que “os seres desejam que não lhes ordenem mais, que
lhes ponderem, que se preocupem com suas reações, que os conside-
rem como membros importantes de uma comunidade” (PERELMAN E
­OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 18).
É nesse sentido que percebemos a sutileza das construções na
linguagem de propaganda, criando ambientes próprios para que os ar-
gumentos sejam eficientes e atinjam o público.
O acordo de que falam os autores, como visto em citação ante-
rior, pode ser entendido como um acordo prévio em consonância com
os valores dos interlocutores, e, por consequência, será facilmente
aceito pelo auditório antes mesmo que se conclua a argumentação.
Auditório, termo utilizado desde Aristóteles, é definido por Pe-
relman e Olbrechts-Tyteca (2005) como o conjunto de todos aqueles
que o orador pretende convencer ou influenciar com seu discurso. Os
tipos de auditório são: o individual, constituído por uma só pessoa; o
particular, conjunto de pessoas agrupadas em função de determinados
aspectos, e o universal, a humanidade inteira, e pressupõe que a fala do

- 158 -
orador é válida para o mundo todo. Segundo os autores (2005, p. 38), “o
orador deve embasar seu discurso a partir dessas prerrogativas, a fim
de transferir a adesão do auditório para a tese que se apresenta”.
É possível reconhecer em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)
muitos pontos em comum com a retórica de Aristóteles, desde a aceita-
ção e a importância dos discursos e sua articulação para a obtenção da
aceitação pelos ouvintes até a importância da adaptação da linguagem
ao auditório destinatário. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 10) con-
sideram que “os argumentos, mesmo não sendo coercivos, conseguem
convencer, pois possuem força, que pode, aliás, variar conforme os audi-
tórios”. Dependendo para qual auditório se fala, usamos determinados
argumentos, pertencentes ao universo pragmático desse grupo.
A Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca trata de mui-
tos assuntos ligados à lógica e à filosofia do direito, sobretudo, aspec-
tos argumentativos dessas disciplinas. Para nosso trabalho, interessa,
principalmente, a terceira parte, que se mostra mais próxima do pen-
samento aristotélico, parte em que os autores classificam os discursos
argumentativos e os meios para se conseguir a adesão dos auditórios.
Argumentar com eficiência e as condições para isso dependem
do modo como o falante (orador) conduz a argumentação e dos meios
utilizados por ele. Além disso, uma argumentação será eficiente se
houver uma boa recepção do interlocutor, dentro da dependência do
auditório, em que ele se encontra inserido, pois, para que se complete
o ciclo argumentativo, deve haver uma atividade de interação entre o
locutor (aquele que fala ao auditório), o auditório e o próprio discur-
so. Nesse processo, a identidade do orador também é fundamental. No
discurso publicitário, as marcas amplamente conhecidas levam vanta-
gem nesse quesito.

- 159 -
Plantin (2008, p. 8-9) afirma que, “do ponto de vista da organi-
zação clássica das disciplinas, a argumentação não se separa da lógica,
‘a arte de pensar corretamente’, da retórica, ‘a arte de bem falar’, e da
dialética, ‘a arte de bem dialogar’”. Para esse autor, esse conjunto de
disciplinas forma a base do sistema no qual a argumentação foi pensa-
da desde Aristóteles até o fim do século XIX. Mas é, portanto, a partir
de Aristóteles, que o aparato retórico servirá como modelo para inves-
tigações posteriores sobre retórica e sua aplicação em diversas áreas.
Em relação à argumentação, cabe esclarecer que, neste capítulo,
apesar de não abandonarmos a retórica como contribuinte e formadora
de base do pensamento e da argumentação, adotaremos a noção de argu-
mentação sob o prisma da comunicação, vista como processo de intera-
ção, ou seja, aquela adotada pelas chamadas “ciências da comunicação”.
Nossa decisão se explica pelo fato de esse paradigma estar associa-
do, como diz Breton (2003, p. 13), “com a formatação e o transporte das
mensagens, bem como a significação social de tais processos”, nesse sen-
tido, o processo de interação é construído em torno das intenções comu-
nicativas do falante, com vistas a atingir de forma eficiente o destinatário.
Não é possível falar de argumentação sem falarmos de retórica,
já que são termos complementares. Através dos recursos retóricos é
que se estabelecem, na prática, os recursos argumentativos, e, por isso,
podemos dizer, então, que argumentação é uma aplicação dos princí-
pios da retórica.
Qualquer forma de comunicação linguística pode ser vista como
uma forma de argumentação, já que se pressupõem dois interlocutores
no ato comunicativo. O propósito da argumentação é o de convencer al-
guém e fazer com que esse alguém tenha a opinião ou o comportamento
alterado, por meio da persuasão. Sempre que argumentamos, a intenção
é de convencer a alguém a pensar como nós. Abreu (2009, p. 43) diz que,

- 160 -
ao iniciar um processo argumentativo visando ao convencimen-
to, não devemos propor de imediato nossa tese principal, a ideia
que queremos “vender” ao nosso auditório. Devemos antes, pre-
parar o terreno para ela, propondo alguma tese, com o qual nos-
so auditório possa antes concordar.

Essa tese preparatória é chamada de tese de adesão inicial. A argu-


mentação ganha força assim que o auditório concorda com ela. As teses
de adesão inicial fundamentam-se em fatos ou em presunções. As pre-
sunções precisam ter uma relação direta com o real, com o verossímil.
Numa propaganda, se há uma ultrapassagem do que é normal-
mente aceito por um auditório universal, se algo foge muito à normali-
dade, um estranhamento se instaura e o potencial consumidor, atento,
desconfia e rejeita o produto anunciado, apesar de que esse é um cam-
po discursivo em que, para chamar a atenção do consumidor, muitas
vezes, usa-se do humor, que é permissivo por excelência.
Persuadir, na visão de Abreu (2009, p. 75)
é conseguir que as pessoas façam alguma coisa que queremos e
que isso só se torna possível quando conseguimos gerenciar de
maneira positiva nosso relacionamento com o outro. E como se
faz isso? Procurando saber, em primeiro lugar, O QUE O OUTRO
TEM A GANHAR fazendo o que queremos.

Argumentar é sinônimo de convencer ou, nas palavras de Abreu


(2009, p. 97), “vencer junto com o outro”, ou seja, não significa que es-
tamos certos em todas as discussões e sermos imperativos em nossos
pensamentos, mas sim, levar a argumentação junto ao outro, sendo
éticos no uso e na aplicação das técnicas argumentativas, fundamen-
tos que estabelecem a ligação entre as teses de adesão inicial e a tese
principal, com a finalidade de extinguir os impedimentos do consenso.
Convencer, conforme mostra a figura 1, a seguir, pode se dar, na
prática, por meio da manipulação, da sedução, da demonstração, das
técnicas argumentativas.

- 161 -
Fig. 1: Maneiras de convencer

Convencer

Ciência

Manipulação

Propaganda Demonstração

Sedução

Retórica Argumentação

Fonte: (BRETON, 2003, p. 10).

Ao observarmos a figura 1, vemos que, entre as maneiras de


convencer, encontram-se dois campos importantes para teoria argu-
mentativa, retórica e ciência. De um lado, a retórica está mais ligada a
elementos como, manipulação, sedução, etc e do outro lado, a ciência,
ligada à razão, que ao lado do elemento demonstração, um elemento
chave para a ciência, traz o significado de que é preciso provar a vera-
cidade e eficiência do que se anuncia, nesse ponto é que entra a impor-
tância da verossimilhança nos discursos publicitários.
Essa separação dos diferentes modos utilizados para convencer é,
segundo Breton (2003), bastante teórica e não muito simples. Para esse
autor, em raras situações usamos separadamente cada uma das manei-
ras de argumentação. Do mesmo modo, afirma Breton (2003, p. 11),

a publicidade moderna, objeto complexo, deve sua temível efi-


ciência ao fato de trabalhar ao mesmo tempo com todos os regis-
tros do ato de convencer. Todos esses elementos são geralmente

- 162 -
intimamente ligados. Seria preferível então descrever estas si-
tuações, segundo os casos, como uma situação em que a sedução
é a dominante, ou a argumentação é dominante.

No discurso publicitário, o agrupamento de um ou de outro meio


de convencer normalmente acontece. Não é possível, numa propagan-
da, apenas um dos elementos estar presente no processo argumenta-
tivo. Dependendo do produto anunciado, um dos elementos descritos
pode estar mais ou menos presente. Isso acontece devido ao objetivo
que o anunciante quer alcançar, e, por isso, além do tipo de produto,
também é decisivo para a escolha de qual modo utilizar: afirmativo,
subjuntivo ou o imperativo, o público ao qual a propaganda se destina,
além da contextualização sócio-histórica e do contexto situacional. Na
verdade, quando acontece a fusão dos vários modos de convencer, há
um campo maior de abrangência e, consequentemente, uma argumen-
tação mais eficiente.
A seguir, expõe-se um esquema que representa como acontece a
comunicação argumentativa:

Fig. 2: O esquema da Comunicação Argumentativa.

Opinião
Orador

Argumento Auditório

Contexto de recepção

Fonte: (BRETON, 2003, p. 16).

- 163 -
Segundo o esquema, o objetivo da comunicação argumentativa
é a integração de uma opinião num contexto de recepção. No processo
mostrado na figura 2, o orador, o argumento e o auditório são apenas
um conjunto de intermediários. Isso significa dizer que não há opinião
sem orador e sem alguém que a adote. Na argumentação, o que interes-
sa não são as pessoas que dizem, mas sim que suas ideias sejam parti-
lhadas pelos outros, através de outras ideias.
Na verdade, o usuário da língua argumenta de diferentes ma-
neiras, porque lida com públicos diferentes, mas nem por isso há uma
contradição entre o que se defende e a forma argumentativa proposta.
No processo de autoria de uma propaganda, há a pretensão de
vender um produto e também de mudar comportamentos, ou seja,
passar valor de verdade. O objetivo é fazer que o consumidor não eleja
outra marca quando quiser comprar determinado produto.
É nesse sentido que a interação está acima de apenas informação.
Trata-se de um agir sobre o outro, num discurso que visa a uma orien-
tação argumentativa. A argumentação trabalhada na publicidade pro-
cura ser probatória, e é nesse sentido que se apoiam em discursos di-
versos como os científicos, conforme mostrado na figura 1, os de saúde,
dentre outros.
A publicidade procura trazer, se não a prova, pelo menos a me-
lhor forma de se aproximar da melhor prova, por isso, as propagandas
atuais são polifônicas, polidiscursivas e sua atuação é de intervenção.
A essência da argumentação é a interação, o diálogo eficiente. E,
para isso, é preciso que o meio de contato entre o orador e o auditório
seja eficiente. No caso das propagandas, os recursos linguísticos em-
pregados devem ser compreensíveis aos consumidores. É preciso ter
uma “linguagem comum” com o auditório. Abreu, (2009, p. 36) afirma
que “somos nós que temos de nos adaptar às condições intelectuais e

- 164 -
sociais daqueles que nos ouvem, e não o contrário”. Somente dessa for-
ma, poderá haver um agir sobre o outro.
Feitas essas considerações teóricas, passamos à apresentação
dos procedimentos metodológicos desta pesquisa.

2 Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa apresenta uma análise qualitativa de textos publi-


citários veiculados em revistas.
Foram selecionadas três revistas de circulação nacional: revista
Vip, revista Nova e revista Veja. Foram escolhidas três edições de cada
uma delas e observamos um total de sessenta e oito propagandas, den-
tre elas, levando em consideração o propósito deste capítulo, selecio-
namos três para a amostragem da análise.
A escolha dessas revistas e dos textos está relacionada ao públi-
co a que elas se destinam: a revista Nova, por exemplo, é destinada a
um público específico, o feminino; a revista Vip, ao masculino, e a re-
vista Veja é de destinação mista, sem focalização de público.
Além da análise de como a imperatividade é construída nas pro-
pagandas e sabendo que a língua se constitui socialmente, o propósito
deste texto é também o de verificar se as estratégias de argumentação
são diferentes, considerando-se o público a que a propaganda se destina.
A análise dos dados se apoiará nas considerações teóricas da retórica,
no que diz respeito a aceitação da argumentação pelos auditórios.

3 Análise e discussão dos dados

Os dados mostraram que tem sido recorrente, nas propagandas,


o uso de uma imperatividade implícita e, nesse caso, o texto da propa-
ganda é expresso como uma sugestão, uma ideia, construído a partir
de técnicas retóricas, visando à argumentação, mesmo que não apare-
ça um verbo com modo imperativo explícito.

- 165 -
Em relação às estratégias e procedimentos retóricos, no que diz
respeito aos auditórios e o direcionamento da mensagem para um pú-
blico específico, observemos a propaganda seguinte:

(1) Feliz dia dos namorados. Seja na estrada, na garagem ou no drive-in.


(“Vip”, edição 327, ano 31, n. 6 – “Blowntex”).2
0

Em (1), inicia-se o texto com uma saudação, despretensiosa, a


princípio, mas que carrega uma espécie de lembrança ao consumidor,
que, através da saudação, acessa a memória discursiva circulante de que
na data lembrada os casais de namorados fazem sexo e normalmente,
os motéis ficam lotados do dia. Na sequência usa-se as expressões “na
estrada”, “na garagem” e “no drive-in”, que sendo elementos espaciais,
se juntam ao componete temporal da data. Sabendo da importância da
data para os casais, o produtor da propaganda parte da noção temporal
e acessa a espacial, como querendo dizer que não importa o local para a
prática sexual (desde que se use o preservativo da marca). Interessante
notar que em nenhum momento a propaganda toca no tema do sexo
seguro e tampouco orienta ou declara que os casais devam fazer sexo
na referida data. A associação dos termos, “dia dos namorados”, com
“estrada”, “garagem” e “drive-in”, envolve o receptor da mensagem em
uma teia de sedução e sensualidade.
Na análise de (1) observa-se que a imperatividade é construída,
justamente com a mesclagem desses elementos figurativos que trazem
a ideia implícita e argumentativa de que “não importa o lugar, desde

2 Acompanhando o texto, há a foto de um casal encostado em um carro, ambos com os


zíperes abertos e se beijando de forma muito sensual. Apenas descrevemos a imagem,
pois não conseguimos a autorização para uso da mesma.

- 166 -
que se use camisinha”. O verbo imperativo não aparece, mas a força im-
perativa está na informação implícita.
No processo argumentativo, aspectos contextuais e semântico-
-pragmático-discursivos são extremamente importantes, já que é pre-
ciso saber o que se fala e com quem se fala, por meio de que elementos
linguísticos combinados, produzindo determinado sentido. Disso de-
pende o sucesso ou o fracasso da argumentação.
Uma propaganda orientada pelo enunciado transcrito em (1)
pode não fazer efeito e ainda causar constrangimento a um “auditó-
rio” não específico, que não possui um acordo prévio com o conteúdo
anunciado; um grupo de homens celibatários, como os religiosos ou
seminaristas, por exemplo.
A propaganda é de uma marca de preservativos e está veiculada
em uma revista destinada ao público masculino, porém, dentro desse
grupo, existe ainda outro grupo mais específico que não pode ser atin-
gido pela argumentação, pois não compartilha essas informações prag-
máticas, já que para cada auditório existe um conjunto de elementos ad-
mitidos que tem toda a possibilidade de influenciar-lhe as reações.
O “contrato dos espíritos” e o resultado desse contrato no pro-
cesso persuasivo dependem, então, que se conheça o auditório para o
qual se fala, a fim de que o propósito seja alcançado.
Vários fatores são conjugados para a obtenção do resultado na
propaganda e o texto publicitário deve estar em sintonia com seu pú-
blico e fazer que o uso da linguagem, com seus efeitos figurativos, alia-
dos às técnicas de argumentação, torne-se um pilar onde ela se susten-
tará, como mostra o texto explicitado em (1).
Outro ponto importante a ser destacado na análise, diz respeito
à verossimilhança do discurso, ou seja, o anúncio deve carregar certo

- 167 -
grau de verdade para que não desperte desconfiança do consumidor e
o faça aderir às ideias defendidas na propaganda.
Uma propaganda de um cosmético que afirma devolver em pou-
cos dias a uma mulher de setenta anos a mesma textura da pele de quan-
do ela tinha 20 anos, ou um medicamento que promete a um paciente
perder 10 kg em uma semana, no mínimo foge às estruturas do real, do
verossímil, podendo chegar às vias judiciais como propaganda engano-
sa, e é eficiente apenas àqueles clientes despercebidos ou inocentes.
Observe o texto de propaganda a seguir:

(2) Os raios UV são responsáveis por mais de 90% do envelhecimento


da pele, incluindo rugas e manchas. Experimente o novo Neutrogena®
Ultra-Light, com tecnologia Helioplex™ FPS 30. O melhor da proteção
solar em um hidratante facial, com uma textura ultraleve, que não deixa
a pele oleosa. (“Nova”, edição 454, ano 39, n.0 7 – “Neutrogena”).

Antes de apresentar o produto, o anunciante apresenta in-


formações iniciais, ou seja, uma tese de adesão inicial, com alguns
dados científicos. Por exemplo, que os raios solares ultravioleta são
prejudiciais à pele. Essa tese de adesão inicial faz com que as poten-
ciais consumidoras vejam uma utilidade no produto anunciado e ad-
quiram o produto, para que não fiquem com rugas, com a pele man-
chada, ou seja, não envelheçam.
Somente após tais informações iniciais é que o produto é apre-
sentado. A indicação dos princípios ativos e dos benefícios do produto
servem como mecanismos facilitadores para que ocorra a aceitação
do auditório, servindo também como fator de força argumentativa. É
interessante observar que os nomes dos componentes não são nomes
comuns (“tecnologia helioplex”) e outros estão escritos em língua es-

- 168 -
trangeira (ultra-light), provavelmente, para atribuir glamour, requinte,
sofisticação ao produto, além da escrita em português das informa-
ções, de fato, relevantes, como ‘hidratante facial’ e ‘textura ultraleve’.
A verossimilhança é garantida pelas informações acessíveis
e pelo nome dos princípios ativos e da tecnologia, que podem até ser
desconhecidos para alguns, porém, a propaganda não faz promessas
milagrosas como, por exemplo, eliminar manchas e rugas já existen-
tes ou devolver a juventude à pele. Há a apresentação do produto e, em
seguida, apresentam-se os seus benefícios, no entanto, a futura clien-
te tem consciência, sem exageros, do que o produto a pode oferecer.
Como reforço argumentativo, há atrelada à propaganda, a imagem3 do
rosto de uma famosa atriz, com a “pele perfeita”, “comprovando” os be-
nefícios que o produto oferece.
Em um discurso dessa natureza, a argumentação percorre vá-
rios terrenos, buscando convencer a potencial consumidora com o
que, num discurso de senso comum, mais interessa às mulheres: pare-
cer sempre mais jovem do que a idade real.
Observa-se que, apesar de ser um texto logo para uma mensa-
gem publicitária, não aparecem verbos no modo imperativo. A impe-
ratividade é construída a partir da associação de elementos dentro de
um campo semântico próprio desse tipo de produto. Quando o autor
associa proteção facial contra o sol e hidratação da pele e ainda diz que
é a“melhor proteção”, ele promete entregar o que esse auditório mais
procura. Como arremate, a imperatividade é reforçada com os termos
“textura ultraleve” e “pele não oleosa”.

3 Apenas descrevemos a imagem, pois não conseguimos a autorização para uso da mesma.

- 169 -
Esse argumento tem como principal objetivo persuadir e utiliza
diversificadas formas (mesmo as implícitas) de atingir determinado
auditório. No caso, o auditório feminino. O objetivo é levar as mulheres
a aderir opiniões e decisões atreladas ao produto.
Como dito na introdução, priorizamos analisar textos em
que não aparecem verbos no imperativo, porém, destacamos a
análise de (3), abaixo, com a finalidade de mostrar que, mesmo
quando um verbo aparece no modo imperativo, a finalidade dele
não é ordenar a compra. Observe:

(3) Contagie o mundo com o que você tem de melhor. (“Veja”, edição
2215, ano 44, n.0 18 – “Coca-Cola”).

Em (3), temos um texto que se inicia com o verbo contagiar no im-


perativo. No entanto, o verbo serve como um conselho para que o con-
sumidor espalhe (para o mundo) o que ele tem de melhor. A empresa
poderia optar pela frase “compre coca cola, ou beba coca coca”, mas nem
ao menos menciona o nome do produto, mundialmente já conhecido.
Na propaganda apresentada para uma campanha de natal, em
nenhum momento a empresa diz ao consumidor para comprar o refri-
gerante, há uma substituição de imperativos denotativos do tipo “com-
pre”, “beba”, por verbos metaforizados como em “contagie”, “viva”, ter-
mos frequente nos momentos de confraternização das festas de fim de
ano. O produtor do texto faz uma associação entre o produto, felicida-
de e o prazer. Todo esse esquema se completa com a força do advérbio
“melhor”, e a gama de sentidos atrelados ao substantivo natal, e, ainda,

- 170 -
das imagens4 , com a presença forte e marcante de um papai Noel e do
urso símbolo da marca, e das cores fortes e brilhantes.
No texto, a imperatividade acontece com a associação do re-
frigerante com o melhor de cada ser humano, fazendo com que as
qualidades do consumidor sejam confundidas e se associem às “qua-
lidades” do produto. Nesse texto de propaganda, a empresa está ofe-
recendo mais do que refrigerante, o que se oferece é a própria felici-
dade engarrafada.
Argumentar é levar o outro a fazer nossa vontade, mas dando
a ele autonomia para decidir. O que causa mais efeito? Uma ordem
direta como “compre coca-cola”, ou toda essa interface imagético-se-
mântico-discursivo-pragmática apresentada no cartaz? O consumi-
dor é seduzido, mas não é coagido. Quem compra o refrigerante é le-
vado a crer que sua escolha é livre. Em termos retóricos, convencer,
em publicidade, é dar garantia de que o outro também ganhe com
aquilo que o anunciante oferece. Em alguns casos, como na campa-
nha de refrigerante, muito mais do que valores econômicos e mate-
riais são oferecidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O capítulo apresentou alguns aportes teóricos para a análise do


fenômeno da imperatividade em propagandas, apresentando alguns
postulados da retórica, tanto o modelo clássico, quanto o que se chama
na atualidade de “nova retórica”. Nesse sentido, a teoria retórica for-
nece subsídios que confirmam a linguagem como um processo plural

4 Apenas descrevemos a imagem, pois não conseguimos a autorização para uso da mesma.

- 171 -
e significativo, que vai além de regras e definições linguísticas e que se
vale de vários paradigmas e abrange um vasto campo de atuação.
Dessa união e a partir de seus aparatos é que surgem campanhas
publicitárias e propagandas inovadoras que deixam de lado apenas a
ordem direta esperada nesse tipo de texto.
Foram apresentadas três análises da imperatividade em pro-
pagandas veiculadas em três revistas brasileiras. Um dos achados
da pesquisa é que a imperatividade não se limita ao aparecimento de
um verbo no modo imperativo e que ela é elaborada a partir do uso de
elementos retóricos e argumentativos, com frequentes estratégias de
cunho pragmático, com variados argumentos retóricos, figuras de lin-
guagem e multiplicidade semântica. Os dados mostraram que, mesmo
quando aparece um verbo no modo imperativo, ele não funciona como
uma ordem ligada ao produto, o verbo aparece metaforizado e só faz
sentido se se considerarem os aspectos discursivos e/ou semântico-
-pragmáticos envolvidos no complexo argumentativo.
Esses recursos garantem a eficiência interacional da propagan-
da, produzindo um efeito de aproximação entre leitor e produto anun-
ciado e de distanciamento entre o locutor e o leitor.
Nesse processo, o discurso publicitário atua como um instru-
mento de controle social, e, para que a intenção seja eficiente, simu-
la, a partir da “arte de produzir discursos persuasivos” uma situação
igualitária, com finalidade de persuasão e convencimento. Além disso,
a construção desses textos publicitários procura retirar os resquícios
de autoritarismo e poder controlador da situação, a imperatividade é
elaborada, então, com o apoio da linguagem retórica e seus movimen-
tos argumentativos de sedução.
Os dados analisados e os resultados verificados nesta pesquisa indi-
cam que os objetivos do enunciador são alcançados com o auxílio da confi-
guração linguística (retórica, argumentativa e composicional) dos textos.

- 172 -
REFERÊNCIAS

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portuguesa, SP, n. 9, p. 293-310, 2007.

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argumentação: a nova retórica. 2. ed. Tradução de Maria Ermantina
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Média. Vol. 1. 9ª ed. São Paulo: Paulus, 2005.

- 173 -
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Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

SANTOS, Goiamérico Felício Carneiro dos. A linguagem retórica da


propaganda - Uma análise comparativa. Enciclopédia Biosfera. São
Paulo. ano 7, n.º 39, jun. 2010. p. 7-11.

Izac Vieira Chaves


Doutorando em Letras e Linguística pela Universidade Federal de
Goiás. Mestre em Letras e Linguística também pela UFG (2013). Espe-
cialização em Literatura Brasileira pela Universidade Salgado de Oli-
veira (2009). Possui graduação em Letras (Licenciatura dupla Portu-
guês/Francês) pela UFG (2005). É professor de Língua Portuguesa na
Rede Estadual de Educação de Goiás. e-mail: izac.chaves@gmail.com

- 174 -
A emergência do suplício virtual nas redes
sociais: enunciados sobre a violência e
práticas de tortura verbal 1

Anielle Aparecida Fernandes de Morais (PPGLL/UFG)


Alexandre Ferreira da Costa (PPGLL/UFG)

RESUMO

“Dá umas pancadas nela já”, “Vamos fazer uma magia de revolta com
ela”, “Botando fogo nela”, “Vai tomar só rajada essa cachorra” são
enunciados que emergiram de um boato que circulou na internet
em 2014 e que resultaram no linchamento popular de uma mulher
na cidade de Guarujá, São Paulo. Os mencionados enunciados nos
fornecem pistas sobre a tematização da violência na mídia que re-
percute na modificação da noção de justiça e na cada vez mais pu-
jante assunção à pena de morte como tipo de punição exequível no
Brasil, porém, ainda não regulamentada. O estudo desse objeto exige
que voltemos os nossos esforços a uma análise sob perspectiva his-

1 Este texto foi devidamente revisado por Anielle Aparecida Fernandes de Morais e seu
orientador, Alexandre Ferreira da Costa, e os conceitos aqui mobilizados são de respon-
sabilidade dos autores com anuência do orientador.
tórica, capaz de desvelar, na formação desse discurso, condições de
possibilidade, entre as quais se destaca a proliferação de enunciados
históricos apoiados na prática do suplício.
Palavras-chave: Discurso; Violência; Pena de Morte; Suplício; Redes
Sociais.

ABSTRACT

“Shoot her,” “Let’s do a black magic on her,” “Set her on fire” are state-
ments that emerged from a rumor that circulated on the internet in 2014.
A woman ended up killed by people from the city of Guarujá, São Paulo.
The statements provide us with clues about the thematization of violence
in the media, which modifies the notion of justice and incentives the
death penalty. Death penalty has been seeing as type of punishment prac-
ticable in Brazil, but not regulated yet. This object of study demands us to
analyze the problem under a historical perspective in order to set an in-
vestigation capable of revealing conditions of possibility of the discourse.
Among these conditions, we give special attention to the p
­ roliferation of
historical statements based on the practice of torture.
Keywords: Discourse; Violence; Death Penalty; Torture; Social
Networks.

O estudo aqui realizado atravessa uma discussão acerca de al-


guns enunciados constitutivos do que chamamos de discurso em defesa
da pena de morte. Localizamos nossa análise em um boato veiculado
no ano de 2014 pela página “Guarujá Alerta”, hospedada no Facebook,
e que resultou na morte de uma mulher. Dois fatos relacionados ao

- 176 -
caso chamam a atenção. A página fez circular o retrato falado de uma
suspeita de rapto de menores, entretanto, sem obter certeza de que a
informação era verídica. Ao fim do episódio, descobriu-se que mulher
morta por espancamento era inocente e não tinha qualquer relação
com o fato.
O acontecimento descortina a realidade da produção, da circu-
lação e do consumo das informações na sociedade contemporânea. A
falta de checagem e de filtro jornalístico, a pressa na divulgação e o re-
passe indiscriminado de mensagens são alguns dos problemas relacio-
nados ao status contemporâneo de produção informativa.
Partindo desse problema, encaminhamos uma análise discursi-
va sob viés social, histórico e linguístico apoiada na perspectiva teóri-
co-metodológica de Michel Foucault, cujo escopo perfaz o estudo de
enunciados e de discursos enraizados em formações discursivas. O
objetivo da pesquisa é lançar luz sobre as práticas discursivas materia-
lizadas nos comentários à postagem, as quais estabelecem adesão ao
discurso de violência, e também sobre as práticas não discursivas, que
culminaram no espancamento e morte de uma pessoa inocente após a
veiculação do boato.

A perspectiva foucaultiana de análise de discurso

A análise de discurso (AD) tem sido utilizada como aporte teó-


rico-metodológico no que diz respeito à compreensão de discursos so-
ciais institucionalizados, seja no campo da educação, da ciência, da po-
lítica ou das mídias, para citar alguns domínios de investigação. Neste
trabalho, vislumbramos, nos postulados de Michel Foucault, as bases
para a análise de discurso de um objeto discursivo midiático.
Foucault foi um filósofo e historiador dedicado aos estudos so-
bre o discurso, elemento de partida e de chegada em sua teoria. Em

- 177 -
suas investigações, o estudioso dá primazia ao que refere como uma
“ontologia do presente”: análise histórico-sincrônica, fundamentada
no estudo da história do presente, das práticas, discursivas e não dis-
cursivas que repercutem em discursos socialmente circulantes. Nos
termos de Paixão (2017), os trabalhos de pesquisa em Análise do Dis-
curso francesa não se afinam com a descrição dos mecanismos inter-
nos da língua, mas na relação entre a materialidade linguística e his-
tória, esta última marcada pelo processo ininterrupto de produção de
sentidos. Sendo assim, a teoria foucaultiana estabelece como objeto de
estudo, o discurso, dado pela conjugação entre aspectos linguísticos e
aspectos histórico-ideológicos.
Por outro lado, Prado Filho (2017) explica que Foucault estabele-
ce um método de pesquisa de perspectiva crítica e centrado na análi-
se histórica de documentos, configurado não como uma metodologia
– com descrição de procedimento –, mas como “prescrições de pru-
dência” e estratégias traçadas a partir de sua correlação com o objeto
pesquisado. Tendo dito que o discurso é ponto de partida e de chega-
da da teoria foucaultiana, o teórico nos leva a refletir, no conjunto de
suas obras, sobre a série de elementos que definem o que ele chama
de sistema de dispersão. Em A arqueologia do saber, Foucault define o
discurso da seguinte maneira:

Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na me-


dida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não
forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repe-
tível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e
explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número
limitado de enunciados para os quais podemos definir um con-
junto de condições de existência. O discurso, assim entendido,
não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma
história; o problema não consiste em saber como e por que ele
pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo;

- 178 -
é, de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e
descontinuidade na própria história, que coloca o problema de
seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações,
dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu sur-
gimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOU-
CAULT, 2008, p. 132-133).

o enunciado como elemento mínimo constitutivo do discurso,


esta é a de formação discursiva, cujo desenho completa o modelo bási-
co da abordagem foucaultiana:

[...] no caso em que se puder descrever, entre um certo núme-


ro de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso
em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as
escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma or-
dem, correlações, posições e funcionamentos, transformações),
diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursi-
va. (FOUCAULT, 2003, p. 48).

De acordo com o teórico, a análise de uma formação discursiva


(FD) pressupõe que façamos a descrição dos enunciados em disper-
são a partir de elementos que são apontados por ele, entre os quais:
objetos, modalidades enunciativas, relações, conceitos, temas. Assim,
a investigação de uma FD depende fundamentalmente da descrição
de enunciados para vislumbrar as relações que se estabelecem entre
enunciados (contexto) e entre as próprias formações discursivas, que
justificam o reconhecimento de discursos.

Quando um texto é um enunciado

Nada acontece fora da linguagem. Todas as relações de repre-


sentar, relacionar, conhecer, saber, etc. se fazem pelo estatuto da lin-
guagem. Os discursos emergem, se proliferam ou resistem por meio
da linguagem. Com base nessa premissa, questionamos: se discurso é

- 179 -
um conjunto de enunciados que nos chegam por meio da linguagem,
podemos tomá-los como texto? Ou ainda: todo signo é um enunciado?
Segundo Orlandi (1987: 13-15), Foucault nos responde tal pergun-
ta afirmando que uma série de signos (com significante e significado)
se configura como enunciado quando:
• O signo tem relação com ‘outra coisa’, ou seja, com um refe-
rencial, em uma relação não causal, mas de condição de pos-
sibilidade e emergência.

• O signo se comporta como um sujeito de enunciado, um su-


jeito posicionado. Esse sujeito não se confunde como autor
do texto, mas com o sujeito que é ‘autorizado’ pelo próprio
enunciado a falar.

• O signo tem uma materialidade repetível, a qual dependerá


de um campo de utilização para manter sua utilidade.

Em seus escritos, Foucault ressalta que o sistema linguístico é,


entre tantos, um elemento constitutivo do discurso. O teórico nos ad-
verte, porém, que em uma análise de discurso a análise linguística em
si não é suficiente. Foucault não descarta a análise da materialidade
linguística, no entanto, seu foco está na investigação dos enunciados
que se dispersam, retomam e inscrevem outros novos.

Sou pluralista: o problema que me coloquei é aquele da indivi-


dualização dos discursos. Há para a individualizar discurso, cri-
térios que são conhecidos e seguros (ou quase): o sistema linguís-
tico ao qual pertencem a identidade do sujeito que os articulou.
(FOUCAULT, 2003, p. 02, grifo nosso).

Na fase arqueológica, Foucault postula que uma análise de dis-


curso precisa averiguar como os enunciados criam condições de pos-
sibilidade para o discurso. Ou seja, como os enunciados agem exter-

- 180 -
namente sob uma cadeia de signos, em suas separações, no limite dos
signos, numa regularidade que emerge após encontradas as regras de
formação de um discurso, suas modificações, suas repetições, suas re-
lações de continuidade e de oposição. (FOUCAULT, 2008). O estudioso
aponta na direção de um trabalho que consiste no exame de regulari-
dades que permitam

[...] não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (ele-


mentos significantes que remetem a conteúdos ou a representa-
ções), mas como práticas que formam sistematicamente os obje-
tos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos;
mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar
coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da
fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso
descrever. (FOUCAULT, 2008, p. 55).

Nesse sentido, Foucault (2010: 2-4) reúne e sistematiza três gru-


pos de critérios que permitem a individualização do discurso, os quais
mencionamos a seguir:
• Critérios de formação: a existência de regras de formação
para os objetos, ou seja, formações discursivas que permitem
a emergência de objetos, de operações e de conceitos.

• Critérios de transformação: a partir desses critérios é possí-


vel perceber como objetos, operações e conceitos se transfor-
mam e repercutem em novas regras postas em jogo no siste-
ma de dispersão.

• Critérios de correlação: por estes é possível definir como dis-


cursos se relacionam uns com os outros pelas relações que os
definem e o contexto no qual funcionam.

- 181 -
A leitura arqueológica foucaultiana procede da delimitação das
regras de formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos
conceitos. Na investigação dos processos de emergência do discurso, o
pesquisador precisa se fazer perguntas aparentemente banais como:
“De que se fala?”, “Por que se fala”, “Como se fala”. É por meio delas que
se chega ao conjunto de regularidades para a verificação do enunciado
“que não está escondido, mas não é visível” (FOUCAULT, 2000, p. 67-68).
Uma análise nesse sentido se preocupa com enunciados ditos
– socialmente revelados – e enunciados ocultos – convencionalmen-
te chamados de não ditos. Orlandi (1987) esclarece, todavia, que os
enunciados não ditos são, na verdade, aqueles que se encontram pre-
tensamente escondidos, mas são identificáveis, uma vez que, para sua
própria condição de existência, eles devem ter sido ditos em algum
momento. Assim, tais enunciados são reconhecíveis no tempo e no es-
paço de uma nova enunciação.
Em fechamento da ótica de análise, diríamos, por fim, que consi-
deramos o seguinte viés no encontro das regularidades que buscamos,
mesmo em contradição da negativa explícita do autor francês (COSTA,
2011, 41):

A proposta de descrição de “sistemas de dispersão” em oposi-


ção a “quadros de diferenças” e a “cadeia de inferências” é, em
princípio, mais uma contradição. A começar pelos objetivos que
enseja: Como se pode detectar uma regularidade em uma dis-
persão? Como uma dispersão pode ter uma ordem e posições
assinaláveis em um espaço comum? Como seu funcionamento
pode ser recíproco e hierarquizado? Como, enfim, uma “disper-
são” pode ser estudada como formas de repartição? [...] Há, no
entanto, uma resposta simples para o “desprendimento semân-
tico” no uso terminológico de Foucault: o que ele pretende fazer,
na verdade, é sistematizar a dispersão por meio de “quadros de
diferenças” construídos por “cadeias de inferências”, conforme
se pode depreender de suas definições de formações discursivas
e de regras de formação [...].

- 182 -
Enunciados sobre a pena de morte na internet

Os enunciados “Dá umas pancadas nela já”, “Vamos fazer uma


magia de revolta com ela”, “Botando fogo nela”, “Vai tomar só rajada
essa cachorra” emergiram de um boato virtual em 2014 e culminaram
no linchamento popular de uma mulher. Tais enunciados nos forne-
cem pistas sobre o discurso da violência, que materializa uma modifi-
cação da noção de justiça e referenda o crescimento do interesse para
que a pena de morte se torne um tipo de sanção penal no nosso país.
O caso ocorreu em maio daquele ano, quando Fabiane Maria de
Jesus, de 33 anos, foi linchada por moradores da cidade de Garujá (SP)
motivados por falsos alertas e denúncias inverossímeis publicadas
em uma fanpage chamada “Guarujá Alerta”, hospedada no Facebook.
O perfil fez circular o retrato falado de uma mulher que teria seques-
trado crianças para participação em ritual de magia negra. A imagem
divulgada no retrato falado era, na verdade, de uma acusada de seques-
tro no Rio de Janeiro com a qual Fabiane foi confundida. Fabiane foi
espancada e faleceu dois dias depois do ocorrido.
A fanpage com mais de 55 mil seguidores era, até aquele episó-
dio, uma referência na região como prestadora de serviço informativo.
Tratava-se de uma página de avisos de interesse geral, denúncias e boa-
tos, com pretensão a jornalismo.
A divulgação do boato foi feita pela primeira vez em 25 de abril
de 2014, conforme mostra a figura 1, a seguir:

- 183 -
Figura 1: Boato divulgado pela página Guarujá Alerta

Fonte: Facebook (2014, n.p.)

O enunciado que emerge da prática dita informacional e veicu-


lado pela página online traz à tona elementos que remetem a outros,
pertencentes ao senso comum de certos discursos sistematicamente
reiterados, como por exemplo o conhecido “Bandido bom é bandido
morto”. E assim também, da mesma formação discursiva, o “direito de
fazer justiça com as próprias mãos” está relacionado ao segmento “Se é
boato ou não, devemos ficar alerta” (sic). Tais enunciados contribuem
para ampliar a sensação de medo, transformando a violência em obje-
to de responsabilidade do cidadão, a quem é transferida a gestão pela
segurança de si e do outro, em face da omissão estatal.
O chamamento da população à responsabilidade está dito e no
campo do visível, demonstrado na superfície do discurso. É uma prá-
tica discursiva eficiente, pois consegue convencer internautas partici-
pantes a se engajarem na prática não discursiva pela busca e lincha-
mento da “culpada”, o que de fato ocorreu no dia 3 de maio, oito dias
após a primeira publicação na página do Facebook.

- 184 -
A maioria dos comentários em anuência ao ‘boato-informação’
comandam discursivamente um ataque à dita raptadora de criança.
Eles replicam, sem checagem da fonte, enunciados que ordenam o ces-
sar da violência por meio da própria violência, conforme se observa em
“Dá umas pancadas nela já”, “Vamos fazer uma magia de revolta com
ela”, “Botando fogo nela”, “Vai tomar só rajada essa cachorra”, apresen-
tados nas figuras 2, 3 e 4, a seguir.

Figura 2: Comentário de internauta Figura 3: Comentário de internauta

Fonte: Facebook (2014, n.p.) Fonte: Facebook (2014, n.p.)

Figura 4: Comentário de internauta

Fonte: Facebook (2014, n.p.)

- 185 -
No curso dessas enunciações, vão sendo definidas regras de di-
zer e de agir que reverberam práticas discursivas conservadoras, res-
paldadas na tortura e na punição física do outro, tal como fora feito na
Idade Média. São práticas que pleiteiam a autonomia da segurança, a
justiça com as próprias mãos, a ordem e a ‘paz’ social sob preço do le-
viano e irresponsável julgamento e condenação alheios.
O discurso da pena de morte se apoia em uma formação discur-
siva que, sob a chancela implícita do Estado, transfere o objeto violência
da responsabilidade do governo (com suas instituições judiciárias) para
a responsabilidade do sujeito comum. Nesse discurso, os enunciados
conclamam a pena de morte como forma de punição para crimes que a
população já não tolera, sejam eles contra a vida ou contra o patrimônio
(coletivo, mas sobretudo individual). O cidadão assume a posição de um
sujeito autorizado a agir como juiz e polícia do caso, definindo a vida (ou
a morte) do contraventor não obediente às regras sociais.
O descolamento da responsabilidade em relação à violência
– saindo da esfera jurídica e pública e adentrando a esfera social –
emerge de uma rede de formações discursivas características de uma
sociedade neoliberal, cuja grande inovação é vincular diretamente a
maneira como o homem “é governado” à maneira como ele se “autogo-
verna”. O neoliberalismo torna a economia uma questão de disciplina
pessoal, conforme assinalam Dardot e Laval (2016).
Segundo os supracitados autores, o homem neoliberal é defini-
do como o homem competitivo, que vive em torno da figura da empre-
sa. Cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que
deve se fazer frutificar e produzir sujeitos eficazes em todos os domí-
nios: escolar e profissional, relacional, sexual e assim por diante. As
atividades que permeiam a vida são vistas como “investimentos” em
um interminável processo de valorização do eu, sobre o qual o indiví-
duo se torna inteiramente responsável.

- 186 -
Dardot e Laval (2016) afirmam que o homem neoliberal está
completamente imerso na competição mundial, vivendo governado
por prazeres e dores. Ele é considerado em sua liberdade, governado
e governável por suas sensações e emoções, movido antes de tudo por
seu próprio interesse:

Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se desti-


navam, pela coerção, a adestrar os corpos das antigas disciplinas
que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar
os espíritos para torna-los mais dóceis [...] Trata-se agora de go-
vernar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envol-
vida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se
reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui.
(DARDOT e LAVAL, 2016, p. 327, grifo nosso).

A lógica liberalista não é significativa apenas de uma nova forma


de ordenamento econômico, que transforma o Estado participativo em
Estado mínimo e pouco interventivo. O neoliberalismo introduz uma
nova razão para um novo sujeito, que prima pelo autogoverno, trazen-
do consigo a liberdade do homem que pode agora ser quem quiser. Ao
mesmo tempo, essa oferta não vem sem que se pague um preço por ela:
é uma nova ordem que atribui ao sujeito comum a responsabilidade
pelas próprias escolhas e o gerenciamento de suas consequências.
É justamente a condição neoliberal do sujeito que produz nele
a vontade e a responsabilidade por gerir a violência que retira a sua
paz cotidiana. Para esse sujeito, a violência, antes de ser um problema
coletivo, é um problema de si, individual; ela perturba e ressignifica
a sua individualidade, a sua liberdade de transitar e de possuir bens.
Então, o sujeito neoliberal não espera o Estado agir porque receia que
a morosidade pública seja impeditiva do seu livre viver. E com isso, o
sujeito neoliberal autogoverna os problemas que o afligem, ainda que
ele tenha consciência de que tais questões são de ordem coletiva.

- 187 -
Note-se, portanto, que o assim chamado “neoliberalismo” está
em contradição direta e feroz com os próprios fundamentos sociais e
políticos do Liberalismo, pelo menos em sua forma republicana.

Volta ao suplício?

Na obra Vigiar e punir, Michel Foucault estuda o suplício apli-


cado no século XVII como uma prática legal de punição a condenados.
Entende-se por ‘suplício’ a pena corporal dolorosa baseada na propor-
cionalidade entre a quantidade de sofrimento e a gravidade do crime
cometido (FOUCAULT, 1977). O teórico relata que, àquela época, o suplí-
cio incluía práticas de açoite, coleira de ferro e esquartejamento, todos
apresentados em público e com requintes de crueldade. Em mulheres,
era feita a reclusão em hospital, banimento precedido de exposição
e marcação com ferrete, além de multa acompanhada de açoite. Fou-
cault (1977, p. 134) explica assim do que se trata a pena/suplício:

[...] uma pena, para ser considerada um suplício, deve obede-


cer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma
certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exa-
tamente, ao menos, apreciar, comparar e hierarquizar; […] o su-
plício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva,
e que obedece a duas exigências, em relação à vítima, ele deve
ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou
pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele
que é sua a vítima. […] E pelo lado da justiça que o impõe, o suplí-
cio deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco
como seu triunfo.

O filósofo deixa claro que o suplício não deve ser equiparado aos
extremos de uma raiva sem lei e, por isso, obedece a regras. Acredita-
va-se que o suplício era um meio eficaz de expiar o crime do condenado
em uma espécie de espetáculo punitivo, em que o corpo se mostrava
como o alvo principal da repressão penal. Sofrimento e dor eram, as-
sim, elementos constitutivos da pena.

- 188 -
O suplício penal é uma produção diferenciada de sofrimento
e um ritual organizado para marcar vítimas e manifestar o poder de
quem pune, pois conforme assevera Foucault (1977, p. 32): “Nos exces-
sos dos suplícios, se investe toda a economia do poder”.
Nas cerimônias de suplício relatadas por Foucault, o personagem
principal é o povo, cuja presença real e imediata é requerida para a sua
realização. Um suplício secreto não teria sentido. “Procurava-se dar o
exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria
sério risco de punição; mas provocando o efeito de terror pelo espetácu-
lo do poder tripudiando sobre o culpado”. (FOUCAULT, 1977, p. 49).
Segundo o estudioso, no suplício, o papel do povo é ambíguo. Ele é
espectador, não podendo apenas saber; deve ver com os próprios olhos
porque precisa ser testemunha. Ele também deve tomar parte do ato,
aplicando ao supliciado toda a severidade possível e necessária do suplí-
cio e prolongando-o na memória discursiva, até mesmo depois da morte
do condenado. A finalidade do suplício era essencialmente intimidar a
sociedade para impedir a violação de leis. Portanto, o suplício repousava
na “arte quantitativa do sofrimento”. Ele deveria produzir sofrimento, ser
ostentoso, e ser guardado na memória dos homens (FOUCAULT, 1977).
A partir da segunda metade do século XVII, o suplício tornou-
-se uma prática intolerável de punição tendo em vista seus excessos,
tirania, sede de vingança e o prazer de punir. O protesto contra esta
prática esteve relacionado principalmente às formulações filosóficas
e de teóricos do direito advindos do iluminismo. Nesse contexto, pas-
sou-se a pensar que o homem deveria ter direito a “castigos humanos”.
(FOUCULT, 1977, p. 64). No mesmo período, surgiu uma corrente teóri-
ca encabeçada por Cesare Beccaria, principal representante do ilumi-
nismo penal com a obra Dos direitos e das penas. Esse autor contestou
a condição da esfera punitiva do Direito, materializada por práticas,
entre as quais, o suplício.

- 189 -
Durante o período de afrouxamento da penalidade, observou-se
uma diminuição dos crimes de sangue e das agressões físicas em geral,
o que culminou no desenvolvimento de outras frentes de punição, so-
bre as quais não adentraremos aqui, mas que podem ser compreendi-
das por meio do trabalho desenvolvido em Vigiar e punir.
Em relação ao boato que estamos analisando, a onda de ataques
proferidos contra a “mulher suspeita” exprime o desejo de punição por
parte da população e revela a fragilidade dos mecanismos de seguran-
ça, desnudando, com isso, os limites impostos pelos direitos humanos,
cujo escopo se assenta em penas proporcionais ao dano e com caráter
humanista. Os comentários dos internautas promovem adesão à pro-
posta do autor do texto que instiga uma caçada à “criminosa”, revelan-
do traços comuns à prática não discursiva do suplício, que passa antes
pela mobilização popular, seguida da instauração de julgamento e da
tortura públicos.
A omissão das instituições estatais na garantia constitucional de
um dos direitos fundamentais do ser humano, a segurança, é o gatilho
utilizado para que a população se mobilize para coibir o crime. E não
somente isso. Além do desejo de garantir a si e ao outro a paz social
não assegurada pelo Estado, a população empunha a missão de culpar,
julgar e punir o transgressor da ordem e das regras sociais. Um castigo
que, para a sociedade, é proporcional ao que ela considera como crime
gravíssimo e merecedor da punição mais severa.
Enunciados como “Vamos fazer uma magia de revolta com ela”,
“Botando fogo nela” retomam (ou atravessam) outros enunciados tidos
como verdadeiros em determinados momentos históricos e até hoje
presentes em nossa memória discursiva, em festas populares e em
outras práticas sociais de todo tipo: a queima do apóstolo Judas, tido
como o traidor de Jesus e do bem coletivo, e a execução da guerreira

- 190 -
Joana d´Arc, condenada por heresia pela igreja católica e queimada
viva em praça pública etc. etc.
O desejo de vingança expressado nos comentários à postagem
reafirma a materialidade repetível desses enunciados que conclamam
a pena de morte, contribuindo para a prática do suplício à “transgres-
sora”. São enunciados que se apoiam em regras de formação de um dis-
curso neoliberal, no qual o sujeito cidadão assume responsabilidade
pela segurança de si e do outro, revelando, então, condições de possibi-
lidade para o discurso da pena de morte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das discussões produzidas, tecemos algumas conclusões


que podem, posteriormente, receber novas contribuições a fim de que
a discussão se projete e alcance novas perspectivas.
A operação discursiva da página “Guarujá Alerta” evidencia a
disseminação de enunciados que promovem a assunção da pena de
morte e do suplício como formas de punição a condenados ou mesmo
de suspeitos de práticas de crimes. Sem utilizar critérios de noticia-
bilidade ou filtros jornalísticos, tais como a checagem e a validação da
informação, a página “Guarujá Alerta”, hospedada no Facebook, divul-
gou irresponsavelmente um retrato falado aleatório que resultou no
espancamento seguido de morte de uma mulher inocente e associada
àquela imagem.
Comentários em apoio à caçada da suspeita, de incitação à violên-
cia e pena de morte contra ela, revelam enunciados discursivos apoiados
na autonomia da segurança ocasionada pela participação mínima do
Estado no que se refere à garantia de direitos fundamentais. Essa é uma
característica do modelo socioeconômico neoliberal, cujo sujeito prima

- 191 -
pelo autogoverno de suas emoções e de seus interesses: é alguém que traz
consigo a liberdade de gerir o seu lugar no mundo, inclusive, a sua segu-
rança. Mas esse sujeito também é aquele a quem se atribui a responsabi-
lidade pelo gerenciamento dos seus próprios problemas.
Os comentários dos internautas compõem enunciados que
criam condições de possibilidade para a emergência de um discurso
favorável à pena de morte, o que se efetivou no caso estudado como
uma prática de suplício à “transgressora” da segurança coletiva. Esse
cenário pode ser parcialmente explicado pela autoidentificação de cer-
tos indivíduos com o sujeito neoliberal, o qual toma para si a responsa-
bilidade por gerir a violência que o aflige cotidianamente.
Os agressores de Fabiana Maria de Jesus não esperaram o Esta-
do agir e se engajaram autonomamente na campanha da página “Gua-
rujá Alerta”, de caçada à “raptadora de crianças”. Eles se conclamaram
aptos a prenderem, julgarem e condenarem uma pessoa considerada
criminosa e, a partir disso, aplicaram à supliciada toda a severidade
possível e necessária, de forma a deixar registrado, na memória da po-
pulação, um exemplo de punição a toda e qualquer conduta reprimível
e ameaçadora da segurança coletiva.
Trata-se, enfim, de um processo de emergência de práticas de poder
aparentemente contraditórias, que revelam, no mínimo, a descontinuida-
de e a convivência de estruturas sociais incompatíveis em princípio.

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Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Catarina, 2017.

- 193 -
Alexandre Ferreira da Costa
Doutor em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de
Campinas, Pós-Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília
e Professor Associado da Universidade Federal de Goiás. E-mail:
alexandrecosta@ufg.br

Anielle Aparecida Fernandes de Morais


Graduada em Letras e Jornalismo. Mestre em Letras. Doutoranda em
Linguística pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: aniellemorais@
gmail.com

- 194 -
PARTE 3
IDEOLOGIA E POLÍTICAS LINGUÍSTICAS
O campo de estudo das ideologias linguísticas
como possibilidade de desnaturalização das
categorias coloniais de língua e raça 1

Camila Leopoldina Batista dos Santos (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este texto pretende-se uma discussão teórica sobre o campo de estudo


das ideologias linguísticas como possibilidade de desnaturalização das
categorias coloniais de língua e raça, visando ressignificar as formas
de pensar as práticas linguísticas e os impactos dessas naturalizações
na vida social. Discuto o conceito de ideologias linguísticas, apresento
a diversidade de possibilidades de investigação desse campo de estudo
e aponto a perspectiva raciolinguística como possibilidade de análise
das implicações da naturalização de língua e de raça. Por fim, teço al-
gumas considerações finais sobre o impacto que as ideologias coloniais
de língua e de raça têm nos sujeitos étnico-racialmente marginaliza-
dos, ressaltando a necessidade de uma compreensão mais robusta dos

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e sua orientadora e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade da autora com anuência da orientadora.
processos históricos e estruturais que organizam os modos de subal-
ternização desses sujeitos.
Palavras-chave: Ideologias Linguísticas; Língua; Raça; Raciolinguísti-
ca; Desnaturalização.

ABSTRACT

This text aims at a theoretical discussion about the field of study of


linguistic ideologies as a possibility of denaturalization of the colo-
nial categories of language and race, aiming to reframe the ways of
thinking about linguistic practices and the impacts of these natura-
lizations on social life. I discuss the concept of linguistic ideologies,
present the diversity of research possibilities in this field of study and
point out the raciolinguistic perspective as a possibility of analyzing
the implications of the naturalization of language and race. Finally, I
have some final considerations on the impact that colonial ideologies
of language and race have on ethno-racially marginalized subjects,
highlighting the need for a more robust understanding of the histori-
cal and structural processes that organize the ways of subordinating
these subjects.
Keywords: Linguistic Ideologies; Language; Race; Raciolinguistics;
Denaturalization.

INTRODUÇÃO

O campo de estudo das ideologias linguísticas é um campo re-


lativamente novo que começa a se consolidar no final do século XX,
conforme discute Woolard (1998), e parte principalmente dos estudos
da Antropologia Linguística. Meu interesse por ele se dá pelo entendi-

- 197 -
mento de que as ideologias linguísticas não são somente sobre língua
em si, mas também sobre os corpos que a performam, como bem nos
alerta Cameron (2014) ao dizer que “as representações da língua rara-
mente são apenas representações da língua” (CAMERON, 2014, p. 282)
As ideologias linguísticas constroem a intersecção entre língua e
seres humanos no mundo social e, refletindo sobre o projeto de moder-
nidade colonial, que ainda tem seus efeitos até hoje, calcado na ideia de
um povo, uma língua, uma nação, compreendemos que as ideologias
linguísticas monolíngues e nacionalistas tiveram/têm grande protago-
nismo nesse projeto, juntamente com as ideologias coloniais de raça.
Nesse sentido, discutirei neste breve capítulo sobre o campo de
estudo das ideologias linguísticas como possibilidade de desnaturali-
zação das categorias coloniais de língua e raça, sem a pretensão de es-
gotar as teorizações do campo, visando ressignificar as formas de pen-
sar as práticas linguísticas e os impactos dessas naturalizações na vida
social. Num primeiro momento, abordarei o conceito de ideologias lin-
guísticas, a diversidade de possibilidades de investigação desse campo
de estudo, a relação entre as ideologias linguísticas e poder, o conceito
de língua como isolável e delimitável, os processos semióticos, as ideo-
logias nacionalistas e de língua padrão e seus efeitos na vida social. Na
sequência, abordarei a perspectiva raciolinguística como possibilida-
de de análise das implicações da naturalização de língua e de raça. Por
fim, tecerei algumas considerações finais.

As ideologias linguísticas e seu campo de investigação

Alguns estudiosos consideram que as ideologias linguísticas são


necessariamente externalizadas pelos falantes, ao passo que outros in-
dicam que elas podem ser expressas de modo inconsciente. Kroskrity
(2004) destaca que algumas ideologias linguísticas podem sim ser mais

- 198 -
conscientes e outras menos acessíveis, porém presentes nas práticas
linguísticas. O que são então ideologias linguísticas?
Antes de trazer uma definição, gostaria de explorar um pouco a
própria origem do termo. De acordo com Woolard (1998), temos na lite-
ratura Linguistic Ideology, Language Ideology e Ideologies of Language,
usados intercambiavelmente por ela. No entanto, cada termo têm uma
origem/tradição diferenciada. O primeiro termo surge da Antropolo-
gia Linguística e se concentra na relação entre ideologia linguística e
estruturas linguísticas. Um dos expoentes autores dessa tradição é Mi-
chael Silverstein (1979), segundo o qual a consciência linguística dos
sujeitos falantes os permite racionalizar sobre o uso linguístico e in-
fluenciar a estrutura da língua. O segundo termo diz respeito à relação
entre língua e variedades linguísticas, enfocando processos que defi-
nem padrões (purismo, ideologias do padrão). Aqui estão os estudiosos
sociólogos da linguagem, educadores, linguistas e também antropólo-
gos. E o terceiro termo está relacionado aos discursos públicos sobre
a língua, incluindo ideologias científicas da linguística profissional. O
que é importante salientar é que não há uma disputa conceitual entre
os termos, mas que os autores de cada tradição são de áreas de investi-
gação diferentes e cada termo se complementa.
Pensando nessa diversidade de tradição de estudos, Woolard
(1998) sinaliza variadas tendências e abordagens de pesquisa sobre as
ideologias linguísticas: ideologia na intersecção entre uso da língua e
estrutura; etnografia da fala; língua de contato e conflito; intervenção
aberta (política, purismo e padronização); letramento e ortografia;
estudos históricos e historiografia da linguística. Apesar das varia-
das possibilidades de investigação, existem alguns pontos cruciais de
convergência nos estudos. Destaco três: 1. As relações de poder estão
presentes nas ideias e representações sobre língua, pois as ideologias

- 199 -
são localizadas/situadas sócio-histórico-político e culturalmente; 2. As
ideologias linguísticas não são anteriores/prévias à materialidade lin-
guística, elas são imbricadas; 3. As ideologias linguísticas não são está-
ticas ou autônomas, são contingenciais, contraditórias, pois estão num
movimento contínuo com as relações sociais.
Em linhas gerais, a partir das discussões de Woolard (1998) e
Kroskrity (2004), ideologias linguísticas são ideias, conscientes ou
não, a respeito da língua em uso. Essas ideologias podem ser expressas
verbalmente, metapragmaticamente, e são posicionadas socio-históri-
co-político e culturalmente. Podem agir/agem diretamente na estrutu-
ra da língua, gerando impacto na vida das pessoas. Um exemplo disso
são as avaliações institucionais (como o SAEB) aplicadas pelo governo
aos/às estudantes da educação básica que regimentam o uso da língua
portuguesa por meio de uma metapragmática explícita. A ideologia
linguística geralmente presente nessas avaliações (re)produz uma
ideia de língua padrão, valorizada hegemonicamente em detrimento
de outras práticas linguísticas como o português falado por grupos das
periferias por exemplo, gerando assim uma estratificação étnico-­racial
e linguística, envolvendo interesses políticos. É nesse sentido que po-
demos dizer que as ideologias linguísticas estão ligadas às relações so-
ciais e de poder, conforme argumenta Blommaert (2014).
Blommaert (2014), a partir das teorizações de Silverstein (1979),
discute sobre ideologias linguísticas e poder, recapitulando as ideias
de Whorf de que a organização gramatical de uma língua não se dava
por acaso, mas era resultante de modelos coletivos que organizava o
comportamento social, cultural e linguístico. Silverstein (1979 apud
Blommaert, 2014, p. 69) sugere, portanto, que a forma linguística indi-
cia aspectos do contexto por meio de inferências ideológicas, ou seja,
uma forma linguística representa um significado social e cultural par-

- 200 -
ticular. Esse entendimento cria uma nova camada inseparável da es-
trutura linguística, a camada metapragmática, que significa que

sempre que nos comunicamos, não apenas nos comunicamos


em nossa comunicação, mas também sobre nossa comunica-
ção: sempre identificamos significados indexicais (ideológicos)
social e culturalmente compartilhados enquanto falamos (...).
(BLOMMAERT, 2014, p. 70)

Essa camada metapragmática também fornece um grande po-


tencial para diferenciação social e cultural. E no âmbito da variabilida-
de da língua e da diferenciação de línguas e corpos, são estabelecidas
as estratificações e hierarquizações, situando práticas linguísticas e
grupos sociais, a partir de valorações de poder que consideram lín-
gua, por exemplo, somente aquelas que têm produzidos artefatos grá-
ficos e textuais particulares como gramáticas, dicionários e manuais
(Blommaert, 2014, p. 71).
Dando continuidade à apresentação das variadas tendências e
abordagens de pesquisa sobre as ideologias linguística apresentadas
por Woolard (1998), gostaria de dar destaque àquelas que discutem lín-
gua de contato e conflito, pois envolvem

ideias do que se considera ser língua, subjacente a isso a noção


de que existem línguas distintamente identificáveis, objetos que
podem ser ‘obtidos’ – isolados, nomeados, contados e fetichiza-
dos; valores associados a variedades linguísticas particulares;
suposições de que identidade e pertencimento são indexados
pelo uso linguístico.

(WOOLARD, 1998, p. 16. tradução minha.)

Ou seja, para essa tradição de pesquisa, língua está associada a


etnicidade e nacionalismo e essa equação não é um fato natural, mas
um construto ideológico e histórico que remonta especialmente ao sé-

- 201 -
culo XVIII, ao período do romantismo alemão, ao conceito de língua
como isolável e delimitável, correspondente a um povo e a uma na-
ção, construto este derivado das ideias Herderianas e exportado por
meio do colonialismo para justificar a dominação social. Outro prin-
cípio vinculado à ideologia herderiana é o purismo linguístico como
essencial para a sobrevivência das línguas, um tipo de policiamento
das fronteiras criadas para distinguir formas linguísticas distintas.
Em contextos de multilinguismo, em que os repertórios linguísticos
são fluidos e complexos, essas ideologias linguísticas operam de forma
a gerar efeitos muito violentos aos falantes como os apagamentos de
práticas linguísticas, a estigmatização e discriminação de grupos.
Para Woolard (1998), a crença de que línguas identificáveis po-
dem e devem ser isoladas, nomeadas e contadas está presente não so-
mente nos nacionalismos minoritários e majoritários, mas também
nas várias estratégias de dominação social. Um exemplo disso são as
decisões relacionadas a civilidade e humanidade influenciadas por
ideias sobre o que é ou não uma língua real, especialmente envolvendo
sujeitos de dominação colonial nas Américas. Forma escrita, elabora-
ção lexical, regras para formação de palavras, derivação histórica são
medidas geralmente usadas para diagnosticar uma língua real e, con-
sequentemente, baseados nessa crença, surgem os movimentos de re-
gistro e salvação das línguas minoritárias como as línguas indígenas.
Para entender como essas ideologias linguísticas são desenvol-
vidas, podemos lançar mão dos processos semióticos e sociais discuti-
dos por Irvine e Gal (2000) como ferramentas analíticas. São três: ico-
nização, recursividade fractal e apagamento. O processo de iconização
envolve uma relação sígnica entre os traços linguísticos e as imagens
sociais com que eles estão ligados, indicando ou gerando uma diferen-
ciação e uma hierarquização de línguas e grupos falantes dessas lín-

- 202 -
guas. Por exemplo, a forma como o inglês afro-americano indicia um
determinado grupo social e os situa em uma posição de subalterni-
dade. Aqui está também o conceito de indexicalidade que, em linhas
muito gerais, associa categoricamente maneiras particulares de fala a
grupos de falantes. O processo de recursividade fractal envolve uma
projeção de uma oposição, saliente em um nível macro de relação, para
outro nível (micro), como por exemplo, a projeção da oposição portu-
gueses colonizadores e brasileiros colonizados nas relações de poder
entre nordestinos e sulistas no Brasil. E o processo de apagamento
envolve a invisibilização de fenômenos linguísticos (como o multilin-
guismo, sobreposições etc.), e de seus falantes consequentemente, no
processo de mapeamento das línguas no período colonial por exemplo.
Todos esses três processos nos permitem observar como as fronteiras
e oposições entre corpos são construídas.
As políticas linguísticas são uma das consequências desses
processos de diferenciação de línguas e corpos. Conforme aponta
Blommaert (2006), a visão artefatual de língua é uma das mais usadas
em ambientes institucionais. Dessa construção ideológica de língua
emerge a ideia de padrão, que é a questão chave das políticas linguís-
ticas. A ‘variedade padrão’ é percebida como neutra, ou não marcada,
qualificada como ‘sem sotaque’, enquanto, na verdade, essa variedade
certamente indicia um determinado grupo social, como resultado de
uma construção ideológica envolvendo poder, autoridade e controle.
Milroy (2011) aborda o tema da língua padrão e define padroni-
zação como invariância ou uniformidade na estrutura da língua. Essa
definição pressupõe que as línguas são, por sua própria natureza, não
uniformes, mas variáveis. Diante disso, como é então determinada a
língua padrão? É quando o autor discute que a ‘variedade padrão’ deri-
va de uma ideologia, pois associa o padrão a uma ‘variedade de maior

- 203 -
prestígio’, que, por sua vez, não significa alto grau de uniformidade. Ou
seja, a variedade padrão não é invariante e nem neutra, ela tem suas
caracterizações que indiciam um grupo social de prestígio. O dito
‘prestígio’ está relacionado ao grupo de falantes que detêm determina-
do poder simbólico na escala hierárquica social, não é um atributo da
variedade padrão em si. Por consequência, a ideologia da língua padrão
implica em mudança linguística, (re)produzindo a crença na correção,
reiterando o senso comum de que determinadas formas linguísticas
são certas ou erradas.
Por último, muito atrelada à ideologia de língua padrão está a
ideologia nacionalista de língua. Blommaert e Verschueren (1998) es-
tudam o papel da língua nas ideologias nacionalistas europeias como
parte de um projeto político duradouro e estável, principalmente a
partir do século XIX em diante. Já consideramos lá atrás que o con-
ceito de língua associada a etnicidade e nacionalismo é uma equação
que remonta ao século XVIII, ao conceito de língua como isolável e de-
limitável, correspondente a um povo e a uma nação. A partir do século
XIX, esse conceito também segue compondo as ideologias nacionalis-
tas europeias. Blommaert e Verschueren (1998) analisam então o pen-
samento europeu sobre nações e identificação nacional em jornais de
1990, período de ebulição dos conflitos étnicos/nacionalistas na Euro-
pa Oriental. As análises apresentadas não são conclusivas, devido ao
corpus ser insuficiente para tanto, mas os autores apontam algumas
questões interessantes para entendermos as ideologias nacionalistas
envolvendo linguagem. Destaco a questão de a língua ser vista como
força unificadora e assumir um caráter de marcador de identidade,
juntamente com história, cultura e religião. Essa função de identifi-
cação da língua implica a noção de separabilidade dos grupos étnicos
como algo natural.

- 204 -
E uma segunda questão envolve o dogma da homogeneidade,
coerentemente presente nos discursos sobre conflitos interétnicos da
época. Segundo Blommaert e Verschueren (1998, p. 195), esse dogma
consiste na visão de sociedade em que as diferenças são vistas como
perigosas e a ‘melhor’ sociedade é aquela em que não há diferenças in-
tergrupos. Em outras palavras,

o modelo ideal de sociedade é monolíngue, monoétnica, mono-


religiosa, monoideológica. O nacionalismo, interpretado como
uma luta para manter os grupos mais ‘puros’ e homogêneos pos-
sível, é considerado uma atitude positiva dentro do dogma da
homogeneidade. Sociedades pluriétnicas e plurilíngues são vis-
tas como propensas a problemas, porque requerem formas de
organização do estado que vão contra as características naturais
dos grupos de pessoas. (BLOMMAERT e VERSCHUEREN, 1998,
p. 195. tradução minha.)

Por detrás das ideologias de língua padrão e das ideologias na-


cionalistas, estão interesses políticos muito específicos de controle
social, muitas das vezes xenofóbicos e racistas, além de desencadear
processos de apagamento da diversidade, apagamento do multilinguis-
mo e das sobreposições, estigmatização e discriminação de grupos de
falantes que não se comunicam usando a língua padrão nacional. E nos
países de terceiro mundo, no período pós-colonial, duas suposições
guiaram o planejamento linguístico dos estados-nação, conforme sin-
tetizam Blommaert e Verschueren (1998): a primeira, a de integração,
segundo a qual o multilinguismo é um obstáculo para a integração na-
cional e societal em um estado-nação coerente; a segunda, a de eficiên-
cia, referente a ideia de que o multilinguismo pode barrar o desenvolvi-
mento e crescimento econômico de um estado-nação eficiente.
Finalizadas as considerações que julgo principais sobre as ideo-
logias linguísticas e seu campo de investigação, passemos à discussão
sobre a perspectiva raciolinguística.

- 205 -
Por uma perspectiva raciolinguística

Rosa e Flores (2017), em um texto seminal, apresentam a pers-


pectiva raciolinguística como proposta de investigação das implica-
ções analíticas e práticas da co-naturalização de língua e raça em di-
versos contextos coloniais e de estados-nação. Rechaçando as visões
de déficit de práticas linguísticas e culturais associadas a populações
étnico-racialmente marginalizadas, enquadradas pela Sociolinguísti-
ca antiga como populações sofrendo de ‘privação verbal’ (Bereiter e En-
gelmann, 1966) e uma ‘cultura de pobreza’ (Lewis, 1959), Rosa e Flores
(2017) relacionam os estudos críticos de língua e os estudos críticos de
raça a fim de desenvolver uma compreensão mais robusta dos proces-
sos históricos e estruturais que organizam os modos de estigmatização
dessas populações, as quais ainda sofrem com essas perspectivas do
déficit linguístico até hoje, mascarando o racismo estrutural na socie-
dade. Para os autores, esse foco nos processos históricos e estruturais
exige uma mudança de foco das interações individuais e práticas de
fala como os principais locais nos quais as categorias de raça e língua
são criadas e negociadas para a investigação de como as hierarquias
institucionalizadas de legitimidade racial e linguística são centrais no
processo de formação do sujeito moderno.
Estamos entendendo aqui então que o projeto de modernidade,
envolvendo ideologias nacionalistas de linguagem, calcado no tripé um
povo, uma língua, uma nação, tem como premissa a estigmatização de
sujeitos étnico-racialmente marginalizados, assim como suas respec-
tivas práticas linguísticas, como meio de controle social em todos os
contextos coloniais. Portanto, central para a perspectiva raciolinguís-
tica é uma análise da rearticulação contínua das distinções coloniais
entre a europeidade e a não europeidade (por extensão, a branquitude
e a não-branquitude), pois essas distinções ancoram a (re)produção

- 206 -
das categorias de raça e língua, naturalizando-as e perpetuando a ideia
de supremacia branca numa escala global.
A partir do que Rosa e Flores (2017, p. 3) chamam de ideolo-
gias raciolinguísticas, que explora “como as práticas linguísticas
de populações racializadas são sistematicamente estigmatizadas,
independentemente da extensão em que essas práticas possam
corresponder a normas padronizadas”, os autores vão construindo
cinco componentes chave para designar uma perspectiva raciolinguís-
tica. São eles: as co-naturalizações históricas e contemporâneas de
raça e língua como parte da formação colonial da modernidade; per-
cepções de diferença racial e linguística; regimentações de categorias
raciais e linguísticas; intersecções e conjuntos raciais e linguísticos;
contestação de formações raciais e linguísticas de poder.
Antes de tratar desses componentes, gostaria de levantar uma
questão relacionada às terminologias utilizadas pelos autores. Rosa
e Flores (2017), assim como outros autores do campo de estudo das
ideologias linguísticas, utilizam o termo populações ou grupos racia-
lizados ou comunidades de cor nos textos. Entendo que tais termos
possam ter sua razão de ser, pensando em campos semânticos de
produção de significado muito particulares, mas a meu ver, me soam
como se as pessoas brancas não tivessem cor ou não fossem também
racializadas. Nesse sentido, procurarei utilizar neste texto, ao invés
dessas terminologias utilizadas pelos autores, grupos étnico-racial-
mente marginalizados ou estigmatizados e grupos étnico-racialmen-
te privilegiados ou hegemônicos.
Voltando aos componentes da perspectiva raciolinguística, o pri-
meiro ponto a ser salientado é como a formação colonial europeia de
modernidade se consolidou por meio da construção e naturalização dos
conceitos de raça e de língua. Conforme apontam Rosa e Flores (2017),

- 207 -
A construção da raça foi um elemento integrante do projeto na-
cional e colonial europeu que produziu discursivamente Outros
em oposição ao sujeito burguês europeu superior (Stoler 1995).
Esse posicionamento da europeidade como superior à não-eu-
ropeidade fazia parte de um processo mais amplo de governabi-
lidade estado-nação/colonial (Flores, 2013), uma forma de racia-
lização governamental que impôs a autoridade epistemológica
e institucional europeia às populações colonizadas em todo o
mundo como uma justificação para a colonialismo (Hesse, 2007)
(ROSA e FLORES, 2017, p. 3)

E assim como foi com a produção do conceito de raça como


forma de dominação, a governabilidade estado-nação/colonial impôs
também a visão de língua separada, delimitada e artefatual em popula-
ções colonizadas, hierarquizando as línguas e posicionando as línguas
europeias como superiores às não-europeias.
Nesse processo de formação colonial europeia de modernidade,
as populações indígenas colonizadas, antes vistas como sub-humanas,
passam a ser consideradas seres humanos menos evoluídos do que os
europeus e, em consonância com as ideias iluministas de igualdade e
liberdade que emergiam com a ascensão dos estados-nação, eram ne-
cessários processos de intervenção junto a esses povos, seja pela ma-
nutenção ou pela eliminação das línguas indígenas nos contextos co-
loniais. Nesse sentido, Rosa e Flores (2017, p. 4-5) apresentam algumas
ideologias linguísticas racializadas dos colonizadores europeus.
Essas ideologias envolviam a representação de língua como
artefato, devendo ser as línguas indígenas delimitadas e codificadas,
além de serem criados dicionários, gramáticas e sistemas de escrita,
contrariando radicalmente as práticas linguísticas dos povos indíge-
nas. Missionários cristãos e outros agentes coloniais usavam as lín-
guas indígenas para impor uma epistemologia eurocêntrica sobre as
populações indígenas como parte do projeto de dominação colonial.
Havia também defensores coloniais desses povos, alegando que suas

- 208 -
visões ‘selvagens’ de mundo deveriam ser protegidas/preservadas das
influências europeias, porém estava presente aí uma imposição de vi-
sões coloniais de diferenças culturais em povos indígenas.
Do outro lado do debate, havia também agentes coloniais euro-
peus que não viam nenhum papel para as línguas indígenas nos proje-
tos coloniais, pois “línguas indígenas com visões de mundo primitivas
não deveriam ser preservadas, mas eliminadas através da imposição
de línguas europeias a essas populações.” (ROSA e FLORES, 2017, p. 5)
A partir dessa perspectiva, os povos indígenas só poderiam evoluir em
sua humanidade ao dominar uma língua europeia, o que não deixa de
ser uma inverdade, pois mesmo quando os sujeitos colonizados domi-
navam a língua de seu colonizador, continuavam a ser posicionados
como Outros, e vemos resquícios dessas ideologias até hoje, se pensar-
mos nos povos indígenas do contexto brasileiro atual.
Um segundo ponto importante para a perspectiva raciolinguís-
tica abordada por Rosa e Flores (2017, p. 8) diz respeito ao trabalho de
Inoue (2003) em que se baseiam o conceito de inversão indexical. Nessa
perspectiva, não se tem como foco de análise as práticas linguísticas em-
píricas dos sujeitos étnico-racialmente marginalizados, mas as práticas
interpretativas e categorizadoras dos sujeitos de percepção étnico-ra-
cialmente hegemônicos; ou seja, exige-se um olhar cuidadoso para como
os sujeitos étnico-racialmente marginalizados são percebidos como
linguisticamente deficientes, considerando como as ideologias linguís-
ticas associadas a categorias sociais produzem percepções de sinais
linguísticos. Esse é o inverso. Não se privilegia como os sinais linguísti-
cos indiciam grupos sociais, mas se caminha no sentido contrário, pois
nota-se que, mesmo quando o sujeito étnico-racialmente marginalizado
se envolve em práticas linguísticas de forma ‘satisfatória’, utilizando a
língua padrão, suas práticas não são legitimadas ou valorizadas. Não por
conta da língua, mas por conta do corpo que performa essas práticas.

- 209 -
O terceiro ponto que compõe a perspectiva raciolinguística abor-
dado por Rosa e Flores (2017) se refere às regimentações de categorias
raciais e linguísticas. Essas regimentações envolvem o processo de en-
registramento raciolinguístico em que as formas linguísticas e raciais
são construídas como conjuntos e tornados mutuamente reconhecíveis
como línguas e categorias raciais nomeadas e naturalizadas. Nesse pro-
cesso, as pessoas passam a “parecer uma língua e a soar como uma raça”
(ROSA e FLORES, 2017, p. 11. tradução minha.) Analisar esse processo
nos permite entendermos como língua e raça são percebidas e experien-
ciadas uma em relação a outra. Um exemplo emblemático trazido pelos
autores é o inglês falado por afro-americanxs que tem características
próprias desse grupo étnico-racial. E uma das consequências do pro-
cesso de enregistramento raciolinguístico é o estigmatizante rastreador
linguístico que funciona nas escolas norte-americanas de forma a iden-
tificar as práticas linguísticas consideradas aberrantes dxs estudantes
étnico-racialmente minorizados (latinxs e afro-americanxs), separá-las
e compará-las à versão padrão, com o objetivo aparentemente afirmati-
vo de desenvolvimento da língua inglesa ‘convencional’.
O quarto componente consiste no debate sobre intersecções e
conjuntos raciais e linguísticos. Para Rosa e Flores (2017), o foco que
dão à co-naturalização de língua e raça não deixa de lado a análise de
outras categorias como sexo, classe, sexualidade, etnia e religião. En-
tendem que, em acordo com os estudos interseccionais baseados em
língua, “a perspectiva raciolinguística pode contribuir para a com-
preensão das formas pelas quais as categorias são reunidas intersec-
cionalmente e comunicativamente co-constituídas.” (ROSA e FLORES,
2017, p. 15) Trazendo o exemplo de uma diretora latina bilíngue de uma
escola secundária de Chicago, doutora em Educação, que enfrentava
acusações de inferioridade linguística e intelectual, os autores argu-
mentam sobre a necessidade do olhar interseccional para a questão,

- 210 -
pois envolve, além de ideologias de língua e de raça, também ideologias
de gênero que, neste caso, tendem a posicionar mulheres latinas como
sensuais e pouco inteligentes.
E o último componente da perspectiva raciolinguística está re-
lacionado à contestação de formações raciais e linguísticas de poder.
Baseando-se nos alcances dos movimentos sociais de luta pela justiça
racial, Rosa e Flores (2017) propõem uma teoria da mudança social que
vá além de modificar os comportamentos linguísticos das populações
étnico-racialmente marginalizadas, como projetos de educação bilín-
gue, de recuperação de línguas indígenas ou de afirmação dos direi-
tos linguísticos e culturais dessas populações, mas que desmantele a
supremacia branca que permeia as instituições como um produto do
colonialismo. Propõem uma relação entre língua e economia políti-
ca, a partir de trabalhos como o de Gal (1989) e de Irvine (1989), para
entender que a língua molda e é moldada pelas condições políticas e
econômicas do capitalismo global, conforme explica a virada material
da linguística aplicada (Pennycook, 2015). Nesse sentido, é urgente des-
construir os discursos que reiteram a ideia de progresso por meio do
liberalismo econômico, a ideia do ‘falar bem’ para integrar o mercado
de trabalho e da própria dispersão do inglês ‘padrão’ como língua de
comunicação global das transações econômicas. Junto disso, está tam-
bém a noção de raça estruturando as hierarquias sociais, estigmatizan-
do as práticas linguísticas dos grupos étnico-racialmente minorizados.
Além disso, Rosa e Flores (2017) defendem uma abordagem crí-
tica de raça-classe, que desafie a constituição de hierarquias raciais e
de classe e forje uma crítica da supremacia branca e do capitalismo.
Para os autores, existe uma dita natureza muito enganosa da dinâmica
de raça e classe nos discursos contemporâneos da educação bilíngue e
da aprendizagem de línguas, por exemplo. Prega-se uma diversidade
linguística no mundo capitalista liberal atual como forma de participa-

- 211 -
ção no mercado econômico global, porém essa dinâmica circunscreve
formas de valor a determinados grupos raciais e suas práticas linguís-
ticas, de forma a consolidar uma superioridade socioeconômica bran-
ca e uma subordinação de trabalhadorxs étnico-racialmente margi-
nalizadxs. Ou seja, não são todxs que têm sua diversidade linguística
valorizada. Para pessoas pobres, não-brancas, como é o caso de latinxs
nos EUA, o bilinguismo é visto como deficiência linguística tanto em
espanhol quanto em inglês. E para pessoas ricas, brancas, o bilinguis-
mo é sinônimo de riqueza cultural e bom desempenho intelectual.
Essas ideologias de língua, raça e classe irão posicionar e hierarquizar
os sujeitos, naturalizando uma supremacia branca, resultando em um
capitalismo nada mais do que racista e escravocrata.
Rosa e Flores (2017, p. 20) apontam, por fim, para uma postura
reconfiguradora, ao invés de acomodacionista, no sentido de questio-
nar a estrutura social existente, buscando transformá-la a partir da
conexão entre as lutas da linguagem e as contestações mais amplas de
poder. Ou seja, é necessário ir além da análise das práticas linguísti-
cas individuais e da promoção da diversidade linguística, mas situá-las
dentro de uma análise sócio-histórica, política e econômica, desafian-
do as desigualdades raciais e de classe.
Findadas as discussões sobre a perspectiva raciolinguística
proposta por Rosa e Flores (2017), passemos às considerações finais
deste capítulo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste texto, apontei para o fato de que as ideologias lin-


guísticas não são somente sobre língua em si, mas também sobre os

- 212 -
corpos que a performam. E nesse sentido, trouxe algumas principais
discussões sobre esse campo de estudos de forma que fosse evidencia-
do o impacto das ideologias linguísticas na vida social das pessoas.
Os estudos da perspectiva raciolinguística me chamam especial
atenção por associar ideologias de língua e de raça, pensando no impac-
to que essas ideologias têm nos sujeitos étnico-racialmente marginali-
zados, como o racismo e a xenofobia, mas principalmente por propor
uma análise dessas implicações por meio de um enquadre mais am-
plo, que é refletir sobre o projeto de modernidade colonial, com todos
os seus efeitos nefastos até a atualidade. Ao propor uma perspectiva
que vise uma compreensão mais robusta dos processos históricos e es-
truturais que organizam os modos de subalternização das populações
étnico-racialmente marginalizadas, as quais ainda sofrem com o estig-
ma do déficit linguístico até hoje, Rosa e Flores (2017) tiram do foco de
análise as práticas individuais, locais, privilegiando uma investigação
de como as hierarquias institucionalizadas de legitimidade racial e lin-
guísticas são centrais no processo de formação do sujeito moderno, ao
(re)produzir reiteradamente as noções coloniais de língua e raça.
Por fim, acredito que, a partir dessa perspectiva, seja possível
desnaturalizar as categorias coloniais de língua e raça, assim como é ur-
gente fazê-lo, por compreender que esses termos não apenas nomeiam
ou designam, mas constituem propriamente um conhecimento tota-
lizante e eurocentrado. Como defende Mignolo (2010), descolonizar a
mente e os conhecimentos é fundamental para que se tente construir
novas bases epistemológicas, que não mais subjugue os sujeitos étnico-
-racialmente marginalizados por um ‘suposto déficit linguístico’, mas
que os ouça em suas complexidades e em que sejam ouvidas suas histó-
rias, negadas e silenciadas pela matriz de poder colonial.

- 213 -
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Camila Leopoldina Batista dos Santos


Professora no Instituto Federal de Goiás – Campus Goiânia, atuando
no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico. Graduada em Letras-Por-
tuguês e Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Goiás e Mestra em Letras e Linguística pelo programa de pós-gradua-
ção da mesma instituição. Atualmente dedica-se aos estudos doutorais
no mesmo programa, com enfoque identidade racial. e-mail: camila.
leopoldina@ifg.edu.br

- 216 -
Ideologias linguísticas em performances de
gênero, sexualidade e desejo em interações
para encontros sexuais 1

Mário Martins Neves Júnior (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este texto tem o objetivo de analisar como as ideologias linguísticas e


metapragmáticas acionam ideologias sobre gênero a sexualidade e o
próprio desejo. É resultado de uma entrevista com um sujeito que man-
tém encontros sexuais com homens gays, casais ele-ela, e homens he-
terossexuais. Para encontros com homens heterossexuais, todas essas
categorias são definidas pelo sujeito, ele performa Natasha, uma cross-
-dresser que procura encontros casuais com homens. Em linhas gerais
a análise evidencia que a) a concepção ideológica de gênero está ligada a
uma ideologia e metapragmática de uma mulher submissa; b) os recur-
sos linguísticos mobilizados nas interações dependem do contexto de
ocorrência dos corpos na sociedade; e c) determinados recursos linguís-

1 Este texto foi submetido como trabalho final à disciplina do professor Dr. André Mar-
ques do Nascimento –– e devidamente revisado pelo autor e sua orientadora, profa.
Dra. Joana Plaza Pinto. Agradeço aos dois pela leitura e sugestões. Os conceitos aqui
mobilizados são, no entanto, de responsabilidade do autor com anuência da orientadora.
ticos indexicalizam gênero, sexualidade e desejo. Para isso, utilizou-se
os conceitos de indexicalidade (SILVERSTEIN, 2003), Ideologias Lin-
guísticas (CAMERON, 2014) Metapragmática (POVINELLI, 2016), Gêne-
ro (BUTLER; 2006) e Performatividade (AUSTIN, 1962; PINTO, 2007).
Palavras-chaves: Ideologia Linguística; Metapragmáticas;
Indexicalidade; Gênero; Desejo.

ABSTRACT

This text aims to analyze how language ideologies and metapragmati-


cs trigger ideologies about gender, sexuality and desire. It is the result
of an interview with a guy who has sexual encounters with gay men,
he-she couples, and heterosexual men. For encounters with heterose-
xual men, all these categories are defined by the subject, he performs
Natasha, a cross-dresser who seeks casual encounters with men. In ge-
neral, the analysis shows that a) the ideological conception of gender
is linked to an ideology and metapragmatics of a submissive woman;
b) the linguistic resources mobilized in the interactions depend on the
context in which the bodies occur in society; and c) certain linguistic
resources indexicalize gender, sexuality and desire. For that, we used
the concepts of Indexicality (SILVERSTEIN, 2003), Language Ideolo-
gies (CAMERON, 2014) Metapragmatics (POVINELLI, 2016), Gender
(BUTLER; 2006) and Performativity (AUSTIN, 1962; PINTO, 2007).
Keywords: Language Ideology; Metapragmatics; Indexicality; Gender;
Desire.

- 218 -
1 “A Natasha é assim: voz fininha, delicadinha”

Este capítulo analisa uma entrevista de um sujeito que mantém


encontros casuais com gays, héteros, casais héteros e homens em re-
lacionamento com mulheres – categorias definidas pelo participante.
Segundo sua narrativa2, os encontros com homens que o participan-
te considera gays são promovidos pelo aplicativo Grindr ao passo que
com casais heterossexuais – ou como define casal ele-ela – é realizado
através de um site de relacionamento para casais que praticam swing
denominado de D4. Homens definidos por ele de heterossexuais que
estão em relacionamentos com mulheres são encontrados através do
site Viva Local e Bate-papo UOL. Para o encontro com homens hete-
rossexuais solteiros ou em relacionamento, ele performa no que de-
nomina de uma personagem chamada de Natasha, uma cdzinha. Este
nome é o aportuguesamento do termo cross-dresser para se referir a
um homem que utiliza vestimentas, adornos e acessórios femininos e,
no entanto, não se trata de uma drag queen. Não necessariamente uma
pessoa cross-dresser se monta para ter relações sexuais com outras
pessoas. Porém, no caso específico de Natasha, montar-se significa ter
como objetivo principal o encontro.
Neste sentido, percebe-se a dificuldade de uma nomeação iden-
titária tanto para a própria Natasha – que cambia, altera, mistura ou
desestabiliza gêneros e sexualidades – quanto para os homens que ela
mesma os define como heterossexuais mesmo eles sabendo da mulher
montada, da própria paródia que uma cdzinha é. Trata-se de um con-

2 A entrevista ocorreu em minha casa e produziu um material empírico de 71 minutos. Por


princípios éticos, possuo o termo de autorização de análise dos dados assinando pelo
participante que foi embasado no modelo disponibilizado pelo Comitê de Ética da UFG.

- 219 -
tinuum de performances não fixo ou limitado como identidades podem
supor. Por isso, este sujeito participante desta pesquisa, que ora lhe in-
diciarei como Ele (não-Natasha) ora como ela (Natasha). Quem é Ele? Au-
todefinido como uma não-personagem3, isto é, “Eu mesmo, [diz o nome]
[...] um cara que ‘tá à procura de outros caras [no Grindr, no D4]. / Que
está à procura de sexo. [...] Uma pessoa masculina que sou.” Quem é Ela?
Natasha. Em sua definição como aquela que gosta de se sentir

“a fêmea da relação // Quando estou no papel


de Natasha, eu quero ser apenas passiva. [...]
Eu gosto de ser submissa. [...] E quando eu não
incorporo este personagem, eu sou tanto ativo
quanto passivo. Depende da pessoa, depende da
atração. Depende do perfil. [...] [A Natasha] é
um personagem cansativo. / [...] Você precisa
de tem:po pra se preparar / produzir-se. Eu acho
que se fosse constantemente seria muito cansa-

3 Segue-se a seguinte convenção para a transcrição.


[...] – indica elisão, turnos não transcritos ou minha intervenção;
/ – simboliza a duração de hesitação, pausa ou recomeço;
“” – Marcam o início e o fim da fala do participante no meio do meu texto;
: – representa o alongamento da última sílaba ou vocóide;
Sublinhado – representa mudança prosódica para aquilo que ele chama de feminino ou forma da
Natasha falar que, em certo sentido, destoa da forma quando Ele narra;
* – indica muxoxo;
Negrito – aponta uma hipertonificação de uma sílaba;
s – representa uma hipersibilação;
(:) – aponta uso efetivo de aposto;
’ – indica apócope;
- – interpreta-se como uma ênfase na silabação da palavra em detrimento de outras na mesma
frase.

- 220 -
tivo, exaustivo”4 [...] Naquele momento [em que
está como cdzinha] ela é uma mulher. Ela está
ali [...] se sentindo uma mulher, não um homem.
[...] Naquele momento que ela está vestida, in-
corporada ela quer ser uma mulher. [...] A Na-
tasha adoraria ser chamada de princesa, mas Ele
[a não-Natasha] não. [Durante o sexo] a Natasha
ge:me / bastante. E assim, é diferente o modo
dela gemer do modo d’Ele / É algo assim, mais
grosso. Então é diferente, a Natasha é assim /
a voz mais fininha, mais delicadinha.”

Com isso, uma observação sobre Ele e Natasha explicita o cará-


ter performativo e iterativo para construção do gênero do sujeito par-
ticipante que não é reservado ao seu sentido apriorístico, no momento
em que é performado por atos de linguagem, explícitos ou não e
continuamente são iteráveis e repetidos sem ligação explícita com sua
historicidade; apesar de sua ideologia de gênero expressar o oposto.
Por performatividade entende-se ato em que dizer é um fazer ao ponto
que com aquilo que dizemos estamos sempre fazendo, criando e alte-
rando ou reiterando (AUSTIN, 1962; DERRIDA, 1991). Dessa forma, “[o]
fato de que essa reiteração [do gênero] seja necessária é um sinal de
que a materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos
não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua
materialização é imposta.” (BUTLER, 2001, p. 154). Para Butler (et. al.
2002), não há um corpo de um lado e a linguagem de outro, Ele e Na-

4 Essas falas não são respectivamente consecutivas. Estão entextualizadas para eviden-
ciar o caráter dinâmico e não linear tanto da interação minha com o participante quanto
do texto produzido.

- 221 -
tasha, sendo um ou mais de um, trata-se de um sujeito esquisito (queer)
às teias da matriz heterossexual de inteligibilidade que opera ideolo-
gias heteronormativas e determinada estabilidade entre gênero, sexo
e desejo (BUTLER, 2006).
Dessa maneira, este texto visa discutir de que maneira ideolo-
gias sobre gênero e sexualidade são acionadas por meio de ideologias
de linguagem. Os dados desta análise foram gerados através de uma en-
trevista sem roteiro prévio feita por mim em minha casa. Num segundo
momento pedi que Ele escrevesse numa folha enunciados comuns no
momento que estava utilizando o Grindr, teclando com casais ele-ela e
quando era ou gostaria de ser Natasha e, em seguida, explicasse o uso.

2 “Faz de conta que eu sou uma mulher”

Eu: [...] O que você entende por cdzinha?


Ele: É Pra mim /// se’ cdzinha* // é:::: //*
eu me vestir to-da / de mulherzinha. Colocar
aquelas roupinhas de mulhe::r //* Calcinha,
sutiã, meia-calça:, / ves-ti-din-ho. Faze’ uma
maquiagem. Coloca’ o cabelo, a peruca. / É::::
/ colocar as bijuterias / Fazer as unhas. É me
aproximar o mais possível das características
de uma mulher. Não só na aparência mas, também
na fa::la, no modo] de sentar / *de / de falar.
/ Então*, isso pra mim é se’ cdzinha(:) aquele
momento ali onde me transformo // em uma mu-
lher, digamos assim, / *para receber um homem.
/ Então aquele momento pra mim é / Eu sou uma
mulher/ Faz de conta que eu sou uma mulher!

Em sua explicação para a pergunta que coloquei, Ele aponta os


acessórios como importante para se construir-se em Natasha. Esses
acessórios, mais do que adornos são instrumentos utilizados para in-

- 222 -
dexicalizar de maneira explícita ou não o gênero feminino reforçando
que, como dito anteriormente, a construção do gênero não está anco-
rada na realização unívoca e deliberativa de um ato singular, mas de
outras formas em que (até mesmo acessórios) funcionam por indiciá-lo
ou mesmo para foder com ele (genderfuck). É perceptível o uso de tô-
nicas ou câmbios prosódicos em sua fala ao responder a esta pergunta
em relação a outras que fez no momento em que era Não-Nastasha: “eu
me vestir to-da” e ves-ti-din-ho”. Nesses exemplos percebi uma ênfase
na silabação das palavras e também uma tônica ainda mais forte. Já per-
cebi essas modificações em determinados usos por travestis em vídeos
do Youtube. Isso nos mostra que, apesar de Ele prontamente dizer na
entrevista que ele era Ele e não Natasha, esta pergunta suscitou modi-
ficações: era como se “a personagem” Natasha houvesse sido trazida à
responder por si mesma ou não se pode dizer se ela sempre esteve ali ou
se questionar até que pontos seja possível separar de um lado Ele e ela já
que suas falam estão sendo amplamente entextualizadas na interação.
A fala é mobilizada como um dos acessórios ou recursos utiliza-
dos para o fazer da Natasha e o fazer-se como mulher: uma metaprag-
mática explícita de como a linguagem importa para a criação de gêne-
ros. Há nisso uma avaliação metapragmática, uma calibragem, uma
regulação, um ajuste sobre o uso daquilo que se fala, como fala, de que
maneira fala e por que fala por determinadas normas, convenções e
ideologias porque “[a Natasha é assim! Voz fininha, delicadinha]”. Me-
tapragmática é compreendida também como “a propriedade reflexiva
da própria língua, associada às capacidades metalinguística e metaco-
municativa dos falantes, até as dimensões sócio-histórico-cultural e
político-ideológica das práticas de uso oral e escrito [...]” (SIGNORINI,
2008, p. 119). Por isso, a sua preocupação com a fala não é desinteressa-
da. Ao contrário, ela é importante para a constituição da Natasha por-

- 223 -
que a fala também faz parte do seu corpo e, por isso, nas estilizações
do gênero e das ideologias que se tem dele. Por estilizações entendo “a
repetição de normas sociais rígidas para convencionar práticas e com-
portamentos sociais” (PINTO, 2007, p. 4).
Neste sentido, há em sua definição uma generificação das falas
ou de índices para este ou aquele gênero. E com isso a indexicalidade
para a constituição tanto dela quanto dele está na própria pressuposi-
ção e acarretamento de que os índices dispõem. Isto é, pressupõe-se
quando Natasha como o não-Ele por uma série de índices no corpo que
acarretam na sua criação e vice-versa. Para Silverstein (2003), qualquer
‘tipo’ indexical socialmente convencional está dialeticamente equili-
brado entre a pressuposição e o acarretamento indexical, uma vez que
a primeira está diretamente ligada à ‘adequação ao contexto’ e segunda
à ‘efetividade no contexto’. Com isso, a indexicalidade tem também seu
sentido não-referencial porque dialoga com visões que são racializa-
das, generificadas, sexualizadas, nacionalizadas etc. (FABRÍCIO, 2016).
A indexicalidade é importante para se pensar tanto Natasha quanto Ele
porque esta propriedade da linguagem está diretamente ligada aos sig-
nificados referenciais bem como os sociais, aqueles que não têm um
lugar direto e explícito na estrutura linguística. Por isso, as variações
no padrão da fala aqui descrito indiciam determinado referente. Isto
é, o sujeito indicia ora Ele ora Natasha por padrões indiciais na fala em
seus aspectos prosódicos e generificados. Essas variações não fizeram
alterações nos acessórios citados, mas deu um novo quadro à inter-
pretação e produziu um novo significado. Dessa maneira, “a indexica-
lidade é descrita como uma propriedade do discurso através da qual
contextos culturais como identidades sociais (por exemplo, gênero) e
atividades sociais […] são constituídos por posturas e atos específicos
(OCHS, 1992, p. 335).

- 224 -
Essa constituição de mulher, porque em dado momento afirma
“[Então aquele momento pra mim é / Eu sou uma mulher / Faz de con-
ta que eu sou uma mulher!]” e todos os índices semióticos lançados
mão para que isso aconteça, mostram a maneira como ideologias sobre
o gênero são socializadas, sustentadas e transformadas por meio da fala
(OCHS, 1992). O paradoxo temporal do “sou uma mulher” e “faz de con-
ta [que sou]” revela a instabilidade da constituição e asseguramento das
identidades e o quão frágeis são sem o seu ato iterativo. Por outro lado, há
também nesta fala a ideologia sobre o gênero da mulher em seu sentido
hiperbólico ou paródico, da imitação do “faz de conta que”. E essa paródia
de mulher não significa que exista ontologicamente a categoria gênero
em seu sentido original em que, este, somente este, a cdzinha, é o seu
derivativo. Se, assim, ser mulher é ser uma paródia de um gênero ima-
ginativo, não fixo e não originário (BUTLER, 2006), uma cdzinha trata-se
de uma paródia de uma fantasia de mulher e seu próprio mito originário.

3 “Gosto de me sentir a fêmea da relação”

#1
Ele: Eu gosto de ser passiva. Gosto de me sen-
tir como a fêmea da relação. Quando estou no
papel da Natasha eu quero ser somente passiva.

#2
Eu: Você tem 1,75 m mesmo?
Ele: Não. Eu tenho 1,81.
Eu: E por que você diz 1,75 no perfil?
Ele: Pressupõe-se, né, que a figura feminina
seja mais baixa. Seja menor do que o homem.
Então eu não falo que eu tenho a altura real.
[...] Mas, para parecer ser um pouco mais
baixa. A figura feminina pressupõe que seja del-
icadinha, / pequeninha, mãozinha pequeninha,
pezinho pequeninho, baixa.

- 225 -
Eu: E sua mão é pequeninha?
Ele: Não.
Eu: E você consegue esconder a mão na hora?
Eu: Não, mas na hora não importa muito porque
já ‘tá com tesão, vai acontecer de toda forma.
Mas, antes eu tenho demonstrar o mais próximo
possível de um figura feminina.
Eu: O que é uma figura feminina para você?
Ele: Essas características que eu disse: deli-
cadas, pequenas, sutis.

#3
Ele: É pra mim, ser cdzinha é eu me vestir toda
de mulherzinha.

#4
Eu: E / a Natasha se vê nesse papel como sub-
missa?
Ele: Sim.
Eu: E isso é um papel confortável?
Ele: Sim, não me incomoda com isso. / Eu gosto
de ser submissa.

Apresento neste quadro quatro excertos da entrevista em diferen-


tes partes. Não estão aqui dispostos de forma linear em relação às ocor-
rências. Estão inseridos a recontextualizar a ideologia sobre o gênero
que Ele aciona. Em primeiro plano destaco a performance que produz
no papel de Natasha para se construir como “fêmea”, isto é o “sujeito de
fala produz um ato corporalmente; o ato de fala exige o corpo, e definir
esse agir é justamente discutir a relação entre linguagem e corpo (PIN-
TO, 2007, p. 10 e 11). Neste sentido, esta mulher ideologicamente deve ser
“baixa”, “menor do que o homem”, “delicadinha”, “pequeninha”, com ca-
racterísticas “sutis”, uma “mulherzinha submissa”. Estas características
apresentadas e incorporadas em suas performances quando se transfor-

- 226 -
ma em Natasha revelam o aspecto sexista de como Ele visualiza a mulher.
Não se trata, porém, apenas do tipo de mulher que ele gostaria de ser ou
performar. Trata-se da fantasia de como as mulheres deveriam ser e agir.
As palavras “passiva” e “submissa” não estão somente lidando com um
fetiche, uma fantasia de uma personagem apenas, mas indexicalizam a
maneira como as mulheres devem ser. “Passiva” não somente no ato se-
xual, mas nas dinâmicas e interações com homens. Devem ser “menores”
não somente no tamanho, mas nas atitudes, nos feitos, nas realizações,
nas decisões. A forma gramatical “inha” em “Mulherzinha” não só tem
o sentido referencial de uma mulher pequena na estatura, mas também
na própria carga não referencial do ato linguístico que indexicaliza uma
mulher com menos poderes, liberdades e mais controle porque a sua fala
entextualiza outros pressupostos e ideologias correntes.
Por isso, seguindo Povinelli (2016), nestes excertos lidamos dire-
tamente com pragmáticas íntimas, porque enquanto essas palavras ou
os seus pedaços na função pragmática pressupõem um contexto inter-
no (à Natasha), na sua função metapragmática harmonizam Natasha a
um contexto externo produzindo estabilidade e coerência ao gênero
feminino como passivo, submisso e inferior. São ideologias linguísticas
que constroem determinado personagem de mulher, mas também para
reforçar a superioridade do homens sobre mulheres ocasionando que
a estrutura linguística referencialista produza inequidades sociais não
referenciais. A mulher parodiada pelo participante é uma exemplifi-
cação da mulher desejada no sistema de desigualdades pelo patriarca-
lismo uma vez que “grupos sociais organizam e conceituam homens e
mulheres de maneiras culturalmente específicas e significativas. Dado
que a linguagem é o principal sistema simbólico da espécie humana, es-
pera-se que ela seja, então, uma fonte e força motriz das ideologias de
gênero” (OCHS, 1992, p. 339). Não são metapragmáticas que indiciam a
paródia, mas reiteram um sistema de violência sobre a própria categoria
mulher que parodia.

- 227 -
4 “No Grindr é uma linguagem mais direta, mais objetiva,
sem muito rodeio”

Como informei, foi dada a Ele uma folha de papel a qual dividiu
em quatro partes para escrever exemplos de dizeres comuns em cada
conversa. Ele preencheu a tabela com itens utilizados na interação
com homens no Grindr, com casais Ele-Ela e com homens solteiros ou
casados quando Natasha. A quarta parte eu pedi que escrevesse exem-
plos de frases que ele não simpatizava na interação. Em seguida, eu
perguntei se algumas dessas frases poderiam ser utilizadas também
com as outras pessoas da interação. A tabela apresenta os dizeres que
só são utilizados com determinado grupo ou em dois. Ele não informou
nenhuma frase que poderia ser usada nos três. Ele considera os usuá-
rios do Grindr todos gays. Para este texto analisarei apenas quatro dos
dizeres apontados por Ele, como estão sinalizadas na tabela:

ALGUNS EXEMPLOS DE FRASES UTILIZADAS NA ELE


INTERAÇÃO ONLINE ANTES DO ENCONTRO Casal Casado/
Grindr Ele/Ela Solteiro
“Afim agora?” √
“Oie.” √
“Fazendo o que de bom?” √
“Olá.” √ √

#5
Eu: Você usaria “Afim agora?” Com um casal?
Ele: Não.
Eu: Por quê?
Ele: Porque com um casal nunca é um sexo rápido.
Eu: Ah...não? [...] Qual é a diferença da
dinâmica do sexo com casal e casado?
Ele: O casal você primeiro tece uma amizade

- 228 -
com eles. Depois de várias conversas você pode
ir para o primeiro encontro. E são bem reser-
vados. Então, se não sentirem confiança, eles
não marcam. Buscam sempre muito sigilo, muita
discrição. E com a cdzinha eu sempre faço no
meu local. Então eu nunca procuro se tem local
porque eu não vou sair vestido na rua de cdz-
inha. [...]

#6
Eu: Esse “Oie:::” você também usaria no Grindr?
Ele: Não. No Grindr é:: uso “Opa”, “Jóia”.
“Blz”.

#7
Eu: Você usaria “Fazendo o quê de bom?” no
Grindr?
Ele: Não.
Eu: Por que não?
Ele: No Grindr é uma linguagem mais direta,
mais objetiva, sem muito rodeio.
Eu: E “Fazendo o que é de bom é...?
Ele: É meio que puxando uma conversa, um papo,
um assunto. Tem mais interatividade!

#8
Eu: Você falaria “Olá” no Grindr?
Ele: Não, não falo.
Eu: Por que não?
Ele: Porque a linguagem no Grindr é muito ob-
jetiva.
Eu: Mas, “Olá” não é objetivo?
Ele: Não, “Olá” já é início de uma conversa, de
um papo. Talvez sem pretensão imediata.
Eu: Você falaria “Olá” com a cdzinha?
Ele: Sim!

- 229 -
Assim, como os excertos apontam, Ele avalia o Grindr como um
lugar de sexo mais rápido diferentemente da conversa com casais e
casado ou solteiro. Ele mobiliza recursos linguísticos diferentes para
marcar e separar e atender às expectativas de cada interação. Essas ava-
liações metapragmáticas, sobre qual termo deve ser utilizado em qual
circunstância e com quem, indexicalizam espaços e sujeitos diferen-
tes tanto Ele quando Natasha e seus interlocutores. “Fazendo o quê de
bom” e “Olá”, segundo Ele, indicam uma conversa menos objetiva. Dito
de outra maneira, conclui-se que é necessário mais tempo para que o
encontro sexual se concretize porque a falta de objetividade é acionada
com a cdzinha. Ainda, percebe-se a diferenciação no uso de “Oie” com
os homens do Grindr. Ao invés deste uso, Ele é categórico em afirmar
que diz “Opa”, “Blz”, “Jóia”. Há ainda indícios de que o tipo semiótico
‘e’ suaviza a forma dita por isso seria inapropriado porque no Grindr
poderia ser compreendido como uma pessoa afeminada e passiva, ao
passo que é este seu objetivo enquanto Natasha. Segundo ele, “[as pa-
lavras da Natasha têm que ser palavras mais // mais / femininas mais
delicadas. [...] ‘Oi, meu bem, tudo bem? Como você está?’ E quando [ele
está] falando com (e como) homem é ‘Opa’, ‘E aí beleza?’, ‘Como ‘cê ‘tá?’
Então é algo mais largado”]. Nessa metapragmática, há “uma camada
indexical de sistemas semióticos com a língua, não é neutra; ela é ava-
liativa, relacional, socialmente posicionada, investida com interesses,
e está sujeita à contestação e ao controle (BLOMMAERT, 2006, p. 511),
pois, “seja qual for o uso linguístico dos homens, o uso das mulheres
deve ser seu oposto” (cf. CAMERON, 2014, p. 285).
Percebemos a relação entre ideologias identitárias como de gê-
nero e sexualidades coadunadas com ideologias de linguagem. Segun-
do Woolard (1998), ideologias de linguagem podem ser compreendidas
como o elo entre as formas sociais e as formas de fala que promovem
laços entre a linguagem, sua metalinguagem, a identidade, a estética,

- 230 -
a moralidade e social porque são ideias carregadas de política e de
moralidade. Por isso, tanto Ele quanto Natasha não estão apenas fa-
zendo uma avaliação desinteressada sobre o uso, mas performando
ideologias sobre a linguagem em si em que determinado uso “Afim ago-
ra?”, por exemplo, indexicaliza não só o começo de uma conversa para
um sexo rápido, mas, ao mesmo tempo, o tipo de sexo “homem com
homem” e por isso, o gênero dos interlocutores uma vez que esta forma
linguística, segundo ele é utilizada em interações com homens no
Grindr (“gays”) para sexo rápido. Isto é, enfatiza em sua descrição uma
objetividade que nada está explicitamente expressa no uso linguístico,
mas na interação e suas avaliações ideológicas. Por isso, ideologias de
linguagem constituem um sistema cultural de crenças generificantes
que recria o que é ser homem e o que é ser mulher” (VALLADA, 2020).

5 “São palavras que provavelmente são usadas por uma


pessoa que é afeminada: ‘E ai?!’”

#9
Eu: [No Grindr] você pede áudio?
Ele: Nunca pedi áudio, mas já recebi áudio. E
às vezes quando eu ouço o áudio não desperta
interesse pela voz da pessoa.
Eu: Por quê? O quê que acontece?
Ele: Porque às vezes é uma voz muito afeminada.

#10
Ele: Eu também já ouvi esses comentários que
quando uma pessoa fala “Oiê?”, né // já é uma
palavra assim como “Inhaí” usada por pessoas
afeminadas. Por bichinhas, digamos assim.

#11
Eu: Quando você está com seus amigos no modo
Ele, posso dizer assim?

- 231 -
Ele: Uhum
Eu: Você usaria palavras que denotariam que
você seja gay?
Ele: Sim. // [exemplos:] “Mulher”, “Amiga”,
“Gata”, [...] “Bunita”, “Senhora”.
Eu: Você se sente confortável?
Ele: Sim. Não tem nenhum problema. Acho diver-
tido.
Eu: O que aconteceria se você fosse encontrar
um boy do Grindr e ele te chamasse de “Senho-
ra”?
Ele: [risos]
Eu: [risos]
Ele: Ah acho que eu brocharia!
Eu: [risos] Ou princesa?
Ele: Não! A Natasha sim. Adoraria ser chamada
de princesa.

Nos primeiro excerto acima, percebemos que o interesse é des-


pertado ou perdido por uma avaliação da fala em seus aspectos prosó-
dicos bem como terminológicos. Trejeitos são definidos por Ele como
“a fala, a postura”. Isto é, a metapragmática, nesta parte, está direta-
mente ligada com a corporificação do sujeito em que não há, como
vimos, uma linguagem de um lado e um corpo pré-fabricado de outro
(BUTLER, 2002), por isso, “fala” e “postura” são elementos acionados
durante sua interação para fazer uma avaliação da constituição do cor-
po e de suas estilizações do outro lado já que o aplicativo, ou o meio de
interação, limita a maneira de se descobrir como é o outro. Por isso, é
necessário imaginá-lo, desvendá-lo através dos recursos que são apre-
sentados: a fala, em suas multimodalidades para a realização (a vozea-

- 232 -
da, a escrita etc.). É uma busca para se descobrir de que maneira aque-
le corpo fala dentro dos limites da interação. Por isso, há nisso também
uma incitação tácita para essa descoberta diferentemente da interação
com casais, casados e solteiros. A avaliação metapragmática está, as-
sim, ligada às suas ideologias de linguagem e também ideologias sobre
o gênero, a sexualidade e o desejo: É preciso descobrir atrás da forma
linguística utilizada se há um “match” entre o desejo dele por outros
homens na interação no Grindr.
No segundo, a fala “E aí”, muitas vezes também variada por
“Inhaí”, segundo Ele, faz com que perca seu interesse por que provavel-
mente do outro lado está uma pessoa passiva e passivos não lhe expres-
sam interesse, mesmo afirmando em outros momentos sua versatili-
dade. Qual a relação entre “E aí?”, “Oiê” e a constatação de uma pessoa
passiva? A ideologia linguística, amparada pela metapragmática, de
quais palavras ativos utilizam e quais palavras passivos utilizam. Isto
é, cria-se determinada indexicalidade em que em primeira ordem esta
forma enquadra passivos. Seguindo Bauman & Briggs (2000), a meta-
pragmática, neste sentido, descreve a maneira correta do uso da lin-
guagem; leva em consideração qual tipo de comunicação é aceitável e
se liga a eventos no momento que estão do lado exterior. Qual a manei-
ra correta, apropriada e aceitável para ativos, passivos, casados, soltei-
ros e a Natasha falarem? Não obstante, podemos identificar na fala de
Ele uma iconização que enquadra e diferencia o uso e os/as usuários/
as, na definição de Irvine & Gal (2000): é a relação entre as caracterís-
ticas linguísticas e as imagens sociais com as quais estão ligadas. Es-
sas características linguísticas que indexicalizam grupos sociais (pas-
sivos) ou atividades que parecem ser icônicas da representação de si,
como se a característica linguística de alguma maneira representasse

- 233 -
ou expusesse a essência ou a natureza de um grupo social. É um pro-
cesso que busca conectar as características linguísticas com as sociais
escolhendo qualidades supostamente partilhadas pela imagem social
e a linguística, a representação ideológica que as liga como se fossem
inerente (cf. IRVINE & GAL, 2000, p. 38). No terceiro excerto, Ele expli-
cita quais interações são permitidas em quais contextos e com quais
corpos. O recurso que é mobilizado em determinado contexto, pode
ser malvisto ou menos desejado em outro. Isto é, não se pode imaginar
contexto sem pensar os corpos que nele performam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto procurou evidenciar a relação entre a pragmática das


formas linguísticas, sua avaliação metapragmática, as ideologias de
linguagem relacionadas com ideologias sobre a identidade de gênero
a sexualidade. Apresentei uma discussão sobre ideologia dos gêneros
para a constituição da Natasha no apagamento, na subtração de suas
características masculinas no modo Ele para a construção de uma pa-
ródia submissa. A análise apontou que, segundo Ele, há dizeres que
são mais objetivos e por isso devem ser utilizados no Grindr, porque
pressupõe algo mais fortuito. Ao passo que com casais, homens sol-
teiros e casados, a conversa deve demorar um pouco mais e, portanto,
determinadas formas linguísticas devem ser acomodadas, evitadas ou
ressignificadas para que o fluxo continue. Por final, vimos como recur-
sos linguísticos utilizados, as formas linguísticas, não só indexicalizam
o lugar, o interlocutor e o papel que assume na interação de maneira
não referencial, mas também indexicalizam um desejo heteronorma-
tivo que envolve determinadas formas de masculinidade hegemônicas

- 234 -
revelando a importância da constituição do significado social, não
explícito no ato de fala, porque não há em sua metalinguagem um in-
diciamento que seja próprio de determinado referente. O significado
produz outros níveis de informação.

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Mário Martins Neves Júnior


Bacharel em Linguística, licenciado em Língua Inglesa e mestre em Es-
tudos Linguísticos pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é
professor EBTT da Instituto Federal Goiano e cursa os estudos douto-
rais em Linguística pela mesma instituição.

- 237 -
PARTE 4
CONCEITOS LINGUÍSTICOS EM EXPANSÃO
Sobre coisas que podem e vão dar errado:
economias performativas numa
Linguística do Tensionamento 1

Ana Luiza Krüger Dias (PPGLL/UFG)

RESUMO

Trata-se de uma reflexão sobre a produção de economias performati-


vas de textos e contextos, a partir do reconhecimento da relação en-
tre a falha como elemento constitutivo do ato de fala e a circulação de
efeitos pragmáticos entre/nos corpos e espaços. Para tanto, faço uma
articulação teórica desde a teoria dos atos de fala de Austin (1962) e
suas apropriações por Derrida (1988), Bauman e Briggs (1990), Butler
(1997), Povinelli (2016) e Ahmed (2014), para explorar caminhos teó-
ricos acerca do potencial aberto pela impossibilidade de se atingir a
situação total do ato de fala para a circulação de textos entre contextos
e sua consequente produção de cadeias de efeitos pragmáticos e afeti-
vos. Por fim, proponho a perspectiva da Linguística do Tensionamento
enquanto perspectiva produtiva para olhar para os processos de deses-

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e sua orientadora, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade da autora com anuência da orientadora.
tabilização, ressignificação de contextos e criação de novas realidades
a partir da falha, deslocando a forma com que concebemos práticas
linguísticas e conduzimos nossas pesquisas.
Palavras-chave: Atos de fala; Performatividade; Corpo; Afeto;
­Tensionamento.

ABSTRACT

This text is a reflection on the production of performative economies


of texts and contexts, from the recognition of the relation between
failure as a constitutive element of the speech act and the circulation
of pragmatic effects between bodies and spaces. In order to do so, I
make a theoretical articulation from the theory of speech acts of Aus-
tin (1962) and its appropriations by Derrida (1988), Bauman and Briggs
(1990), Butler (1997), Povinelli (2016) and Ahmed (2014), to explore
theoretical paths about the potential opened up by the impossibility
of reaching the total situation of the speech act, and the consequent
production of chains of pragmatic and affective effects. Finally, I pro-
pose the perspective of Linguistics of Tensioning as a productive pers­
pective to look at the processes of destabilization, reframing contexts
and creating new realities from failure, shifting the way we conceive
linguistic practices and conduct our researches.
Keywords: Speech Acts; Performativity; Body; Affect; Tensioning.

INTRODUÇÃO

A partir da publicação de How to do things with words do filó-


sofo inglês John L. Austin (1962), vimos a possibilidade de se pensar a
linguagem a partir de uma lógica de abertura e de não resolução (ou ao

- 240 -
menos resolução finalística) dos problemas filosóficos apresentados.
Localizada num contexto filosófico pós-positivista calcado no raciona-
lismo crítico e na lógica da descoberta científica a partir do confronto
com fatos empíricos ordinários, essa obra se constrói essencialmente
por caminhos não lineares de investigação e explicação, em que o es-
sencial é percorrer ligações intermediárias (AZIZE, 2012):
Este texto parte da abertura austiniana como possibilidade epis-
temológica nos estudos linguísticos para explorar alguns caminhos de
reflexão sobre a produção de economias performativas de textos e con-
textos. Mais especificamente, seu objetivo é realizar uma articulação
teórica entre a noção de falha como elemento constitutivo do ato de
fala e a circulação (social e ideologicamente informada) de efeitos prag-
máticos entre/nos corpos e espaços. Essa articulação é sintetizada na
perspectiva que nomeio aqui como Linguística do Tensionamento en-
quanto proposta teórico-metodológica que procura olhar para as de-
sestabilizações geradas ao longo das cadeias de efeitos performativos
e sustentá-las enquanto importantes elementos de análise para a pes-
quisa linguística.
Para tanto, realizo algumas conexões teóricas entre a obra de
Austin (1962) e autoras/es que se valem de sua teoria dos atos de fala
para discutir sobre a (im)possibilidade de saturação do contexto (DER-
RIDA, 1988; BAUMAN; BRIGGS, 1990), a fala como ato corporal que ex-
cede a consciência linguística (BUTLER, 1997; POVINELLI, 2016) e sua
relação com os afetos e emoções como efeitos numa cadeia de circu-
lação textual e contextual (AHMED, 2014). Não se trata aqui, necessa-
riamente, de traçar uma genealogia entre tais autoras/es, mas de uma
tentativa de percorrer ligações intermediárias entre elas/es.
Trata-se ainda, de um exercício metarreflexivo sobre a minha
própria implicação enquanto pesquisadora nessa circulação de textos
e produção de efeitos em contexto de pesquisa. Isso significa reconhe-

- 241 -
cer que este texto, ao recuperar certas discussões teóricas, também
funda novas reflexões e novos contextos de discussão, fazendo-os cir-
cular justamente porque eles nunca estarão saturados. Este texto exis-
te porque muitas coisas falharam ao longo de minha própria trajetória.
E mesmo assim, reconheço, juntamente com Austin (1962): ele pode (e
vai) falhar novamente. Ainda bem.

1 Performatividade e atos que falham

Este artigo parte de uma concepção da linguagem como ação,


o que significa dizer que fazemos “coisas” no mundo quando falamos.
Trata-se de um movimento que busca deslocar, desde Austin (1962,
1998), a tradição representacional dos estudos linguísticos ancorada
num paradigma referencial (FABRÍCIO, 2016).
Na esteira dessa tradição da filosofia da linguagem, há uma di-
ferenciação, segundo Austin (1962, 1998) entre enunciados denomi-
nados constativos – que afirmam ou fazem constatações e declarações
sobre fatos do mundo – e os performativos – que realizam uma ação
por meio do próprio ato enunciativo, como acontece com enunciados
do tipo “Eu te batizo...” e “Eu prometo”. Nesse sentido, os constativos
teriam a propriedade de serem verdadeiros ou falsos, enquanto os
performativos estariam sujeitos a determinadas condições de felici-
dade ou infelicidade do ato.
Ocorre que, em sua análise da doutrina das infelicidades dos atos
de fala, Austin (1962) começa a derivar algumas conclusões interessan-
tes que “borram” as fronteiras entre o constativo e o performativo, per-
cebendo, por exemplo, que um ato infeliz não significa necessariamen-
te que ele não produz consequências ou resultados, ou que os casos de
infelicidade não são excludentes, mas sobrepostos de forma arbitrária,
já que as coisas podem (e vão) dar errado de várias formas diferentes.

- 242 -
Além disso, o filósofo nos mostra como os enunciados constativos tam-
bém estão sujeitos a condições de felicidade/infelicidade, na medida
em que contêm estruturas performativas implícitas, deslocando assim
a própria noção do que é “verdadeiro” ou “falso” no mundo.
Tais percepções implicam numa concepção de que a linguagem
não constitui meramente um instrumento para representar uma rea-
lidade externa, mas age e constrói essa própria realidade. E é interes-
sante perceber como esse aspecto emerge no próprio estilo do texto de
Austin, que combina humor e ironia e continua a “constranger a comu-
nidade acadêmica, provocando o desconforto daqueles que lamentam
esse estilo inconsistente que não cai bem a quem se diz filósofo” (VE-
RAS, 2016, p. 661). Nesse sentido, Austin (1962) mostra o performativo
da linguagem não somente a partir do conteúdo de suas proposições,
mas também a partir da forma como as apresenta, o que, para Veras
(2016, p. 662), caracteriza o texto de Austin como um happening que
propõe a criação de novos valores “não segundo a verdade da proposi-
ção, mas segundo a verdade do ‘a propósito’, do momento oportuno, da
ordenação circunstancial dos argumentos”.
O estilo “espetacular” do texto de Austin levantado por Veras
(2016) nos interessa aqui porque evidencia como a construção de cadeias
contextuais organiza aquilo que se diz, possibilitando ou restringindo o
que/como dizer, em função de uma sequencialidade textual (BAUMAN;
BRIGGS, 1990) ancorada na materialidade dos corpos que habitam tem-
pos e espaços (BUCHOLTZ, 2017). Trata-se do aspecto poético que Bau-
man e Briggs (1990) argumentam não ser exclusivo da performance oral
em situação poética, mas que constitui o elemento central das interações
linguísticas ordinárias, constituídas de processos de descentramento e
descontinuação, que fazem circular os textos entre contextos, transfor-

- 243 -
mando-os e fazendo emergir distribuições de poder e autoridade, além
de disputas sobre os sentidos daquilo que se diz.
Para Derrida (1988), a noção de contexto, ou melhor, de cadeia
contextual, tratada geralmente de forma suplementar na tradição filo-
sófica, trata-se do elemento que organiza a pragmática das interações.
Ao discutir a noção de escritura enquanto instância comunicativa que
desloca as categorias de tempo e espaço, Derrida (1988, p. 3) argumen-
ta que o contexto “nunca é absolutamente determinável, ou antes, que
sua determinação nunca pode ser inteiramente assegurada ou satura-
da”,2 haja vista que a ausência de destinatário na escritura implica, no
limite, na ausência de todo o querer-dizer:

É preciso, se vocês quiserem, que minha ‘comunicação escrita’


continue legível mesmo com o desaparecimento absoluto de
todo destinatário determinado em geral para que ela tenha sua
função de escritura, quer dizer sua legibilidade. É preciso que
ela seja repetível – iterável – na ausência absoluta do destinatá-
rio ou do conjunto empiricamente determinável de destinatá-
rios. Essa iterabilidade (iter, novamente, provavelmente vem de
itara, outro em sânscrito, e tudo que se segue pode ser lido como
a exploração dessa lógica que liga a repetição à alteridade) estru-
tura a marca da escritura ela mesma, qualquer que seja o tipo de
escritura [...] (DERRIDA, 1988, p. 7).

Neste ponto, o que confere aos performativos sua eficácia de fa-


zer emergir uma nova realidade social é, conforme Borba (2014, p. 464)
“a repetição incessante de signos e formas convencionais que extra-
polam o contexto imediato”. Nesse deslocamento entre contextos, os
textos carregam consigo traços dos contextos anteriores e os expõem

2 Todas as traduções de trechos originais em língua estrangeira foram feitas pela autora
para fins deste texto.

- 244 -
a novos contextos, “produzindo assim ruptura e continuidade simultâ-
neas” (BORBA, 2014, p. 465).
A possibilidade de mudança na repetição embutida nesse pró-
prio processo de descentramento é o que nos permite uma virada críti-
ca que vai do contexto à contextualização. Este é um ponto crucial para
a reflexão aqui empreendida, já que, conforme argumentam Bauman
e Briggs (1990), determinada performance está ligada a uma série de
eventos que a precedem e que a sucedem, e que a análise de uma per-
formance requer “um estudo etnográfico sensível de como sua forma
e significado indexicalizam uma ampla gama de tipos discursivos, al-
guns dos quais não são enquadrados como performance” (BAUMAN;
BRIGGS, 1990, p. 61).
Outro ponto crucial relativo a essa virada crítica que a visão per-
formativa da linguagem possibilita e que nos interessa neste trabalho
vem da apropriação da teoria austiniana por Judith Butler para com-
preender a construção do gênero, enfatizando que os usos linguísticos
produzem uma série de efeitos sobre os corpos e sobre as identidades.
Sendo assim, além de um deslocamento do contexto à contex-
tualização, este trabalho também está interessado no movimento do
performativo à performatividade, que, para Borba (2014), é possibilita-
do pelo encontro de Butler com a preocupação derridiana com as for-
ças de ruptura da repetição. Na seção seguinte, procuro refletir melhor
sobre essa articulação teórica a partir das reflexões que Butler (1997,
2003) realiza acerca da vulnerabilidade linguística, e sua relação com
a infelicidade dos atos de fala (AUSTIN, 1962), especialmente em suas
implicações para os corpos falantes (FELMAN, 2003) e para a circula-
ção dos afetos e emoções (AHMED, 2014). Para tanto, procuro entender
como o ato de fala, enquanto ato de um corpo falante, é sempre, em
alguma medida, inconsciente daquilo que performa, mas como essa

- 245 -
falha é aquilo que sustenta a possibilidade de se fazer (novas) coisas
com as palavras.

2 O paradoxo do corpo que fala e o afeto como efeito


pragmático

É interessante notar como Austin (1962) parte da noção da infeli-


cidade dos atos de fala para analisar a noção de performativo. Segundo
o próprio autor, as coisas não só podem, como vão dar errado na oca-
sião de sua enunciação. Essa ênfase na noção da falha como inerente e
inevitável aos enunciados (e a própria falha de Austin em esgotar uma
taxonomia dos critérios que definem um ato de fala total) é aquilo que
nos possibilita entender, no limite, que todos os enunciados são per-
formativos, derivando disso algumas reflexões interessantes a respeito
da falta, do resto, do excesso implicados nesse movimento de textos
entre contextos.
Conforme Austin (1962) argumenta, o ato ilocucionário só exer-
ce efeitos ao ser dito quando obedecidas as circunstâncias adequadas
para sua enunciação. Nesse sentido, estamos diante de uma rituali-
zação necessária para que ele ocorra. Butler (1997) observa que essa
necessidade de ritualização implica numa repetição de determinadas
circunstâncias no tempo, fazendo com que todo ato ilocucionário ex-
ceda sua temporalidade imediata e impedindo, desde seu início, que
possamos atingir a totalidade da situação desse ato de fala. Por essa
razão, todo efeito ilocucionário é atingido no seio de uma falha, deslo-
cando assim perspectivas totalizantes acerca das fronteiras espaciais e
temporais que circunscrevem uma interação, bem como perspectivas
reificadoras do contexto dessa interação.
Butler (1997, 2003) avança nessa discussão ao retomar as refle-
xões de Derrida (1988[1972]) sobre ausência, diferença e iterabilidade

- 246 -
em articulação com a noção de fala como ato corporal de Shoshana
Felman (2003[1984]). Felman (2003), em sua análise acerca da lingua-
gem sedutora de Don Juan, argumenta que o sucesso erótico (ou “feli-
cidade”) do personagem depende de sua falha (ou “infelicidade”) em
cumprir os atos de promessa que faz para as mulheres que seduz. No
afterword à edição de 2003 da obra, Butler (2003, p. 114) observa que
Felman retoma a leitura desconstrucionista de Derrida para dizer de
uma perda da soberania dos atos de fala, mas de uma maneira diferen-
te do que ocorre com a análise da escritura feita pelo autor: “o ato de
fala ‘diz’ mais do que jamais poderia intencionar ou conhecer. De fato,
sendo corporal, o ato de fala nunca teve a soberania que às vezes tenta
reivindicar para si mesmo”.
Isso ocorre porque “não há ato de fala sem o corpo, e ao mesmo
tempo, esse corpo limita o papel da intenção do ato de fala”. Trata-se de
um reconhecimento da impossibilidade de dicotomizar a linguagem e
sua materialidade corporal – afinal, falar/escrever são práticas materiais
realizadas por corpos (IRVINE, 2017) – e, ao mesmo tempo, uma eviden-
ciação da relação escandalosa entre fala e corpo: esse corpo se torna um
sinal de desconhecimento precisamente porque suas ações nunca são
totalmente conscientemente dirigidas ou volitivas. O ato de fala sempre
diz mais do que intenta ou sabe, falhando em cumprir as reivindicações
feitas em nome da consciência. O corpo se torna, assim, o “ponto cego da
fala”, gerando um resto que escapa à consciência linguística.
Não sendo reduzível nem ao corpo nem à intenção consciente, o
ato de fala se torna, para Butler (2003), o lugar que em ambos divergem
e se entrelaçam, haja vista a relação paradoxal entre a linguagem e sua
própria instrumentalidade corporal, ou seja, a linguagem possibilita
que façamos coisas no mundo, ao mesmo tempo em que, para falar so-
bre a linguagem, precisamos usar a linguagem.

- 247 -
Essa relação se torna especialmente importante para a reflexão
de Butler (1997) sobre vulnerabilidade linguística, a partir da análise da
injúria. Ao se perguntar se nossa vulnerabilidade à linguagem é conse-
quência de sermos constituídos nos seus termos, a autora argumenta
que é a partir da interpelação linguística que um corpo é trazido per-
formativamente à existência social, mesmo que de forma não solicita-
da e violenta. Ocorre que, ao mesmo tempo em que subjuga o sujeito,
ela faz com que ele “entre” no domínio da linguagem e assim possa usá-
-la para subverter sentidos e construir resistência, num excesso não
necessariamente previsto no gesto interpelativo.
Povinelli (2016) argumenta que há sempre um excesso de non-
sense pragmático contido em cada ato de fala que formula o texto inte-
racional, pois não há uma relação “natural” entre as ordens semântica
e pragmática. Por essa razão, a autora nomeia de “pragmática íntima”
o conjunto de perturbações e gramaticalizações das normas sociais da
linguagem realizadas pelo sujeito, que preenche as lacunas geradas
entre as ordens semântica e pragmática também a partir de uma in-
terioridade pré e não linguística: “os vínculos afetivos e corporais, as
necessidades, os imaginários e as superfícies que a linguagem marca/é
marcada e contraria/é contrariada” (POVINELLI, 2016, p. 228). Essa ob-
servação se torna especialmente importante para a reflexão empreen-
dida neste texto, na medida em que nos permite entender melhor
como as falhas ou lacunas da relação corpo-fala engendra uma econo-
mia performativa (e tensionada) de textos, contextos, corpos e espaços:
Os discursos e as funções pragmáticas e metapragmáticas for-
necem à linguagem meios sutis e vigorosos para assegurar a
‘fixação’ dos textos denotativos aos corpos, aos contextos, às ins-
tituições e aos psiquismos. E os corpos, os contextos e os espa-
ços concretos fornecem superfícies, densidades, plasticidades,
massas, vazios e solidez com as quais a linguagem está lutando
(POVINELLI, 2016, p. 229).

- 248 -
A falta de um referente fixo e as disputas metapragmáticas reali-
zadas nas superfícies dos corpos (PINTO, 2018) são discutidas por Sara
Ahmed (2014) a propósito da política cultural das emoções. Para ela,
a dimensão afetiva ou emocional funciona para moldar as superfícies
dos corpos individuais e coletivos a partir do contato que eles têm com
os objetos do mundo e com os outros corpos, assumindo a forma desse
próprio contato. Em sua análise sobre a organização do ódio, ela argu-
menta que as figuras “odiáveis” são destacadas de corpos particulares,
ou seja, qualquer corpo que possibilite que os signos de ódio sejam
colados ou grudados a ele se torna uma ameaça: “A impossibilidade
de reduzir o ódio a um determinado corpo permite que o ódio circule
no sentido econômico, trabalhando para diferenciar uns dos outros,
numa diferenciação que nunca ‘acaba’, pois aguarda outros que ainda
não chegaram” (AHMED, 2014, p. 47).
A discussão até aqui realizada sobre a falha constitutiva do per-
formativo (AUSTIN, 1962), a ausência do querer-dizer (DERRIDA, 1988),
o resto que funda a relação corpo-fala (BUTLER, 1997) e a subjetividade
que excede o linguístico (POVINELLI, 2016) encontra uma síntese inte-
ressante em Ahmed (2014), não apenas porque ela coloca as emoções
no centro do seu debate, deslocando a hierarquia entre razão e emoção
que historicamente constituiu os estudos linguísticos, mas principal-
mente porque trata as emoções a partir da noção de economias afeti-
vas, nas quais “os sentimentos não residem em sujeitos ou objetos, mas
são produzidos como efeitos da circulação” (AHMED, 2014, p. 8).
Para a autora, as emoções funcionam como uma forma de capi-
tal, fazendo com que o movimento entre signos ou objetos se conver-
ta em afeto como valor; e quanto mais os signos circulam, mais afeti-
vos eles se tornam. Trata-se de uma ênfase na relação entre os efeitos
do discurso e os afetos: “O fato de que alguns signos são repetidos se

- 249 -
dá precisamente porque os signos não contêm em si mesmos o ódio,
mas porque eles são efeitos de histórias que permaneceram abertas”
(­AHMED, 2014, p. 59). Isso significa que as emoções envolvem atos de
fala que pressupõem histórias passadas e acarretam efeitos futuros,
não sendo produzidas apenas no momento de sua articulação, mas in-
tegram uma cadeia de efeitos em circulação.

3 Por uma Linguística do Tensionamento

Nas seções anteriores, discuti a noção de resto/excesso que consti-


tui os atos de fala performativos e a sua possibilidade de circulação entre
corpos e espaços, especialmente a partir dos afetos como efeitos numa
cadeia. Nesta seção, procuro articular essa discussão numa perspectiva
teórico-metodológico que nomeio de Linguística do Tensionamento, en-
quanto um deslocamento do nosso olhar para as práticas linguísticas e
para as perguntas de pesquisa que fazemos acerca delas.
Ao longo de minha pesquisa de mestrado (DIAS, 2019) e no atual
contexto pandêmico que se impõe à minha pesquisa de doutorado, en-
trei em contato com diversas discrepâncias entre as categorias teóricas
e a realidade empírica, gerando impasses de diversas ordens. De algu-
ma forma, percebi as categorias de análise propostas pela literatura
não se encaixaremm propriamente ao cenário diante de mim. Cami-
nhei entre perguntas do tipo ‘será que estou procurando as respostas
nos lugares errados?’ ou ‘será que estou fazendo as perguntas erradas?’,
para então me questionar: ‘será que é preciso encontrar respostas?’.
bell hooks (2008, p. 862) diz que “mudar a maneira como nós
pensamos sobre linguagem e como nós a usamos necessariamente al-
tera a maneira como nós sabemos o que nós sabemos”, propondo que
nós possamos conhecer em fragmentos e aprender com os espaços de
falha e silêncio. Sendo assim, proponho que as dissociações e lacunas
possam se desenhar então como importantes resultados de pesquisa.

- 250 -
As diversas formas como os sujeitos de pesquisa se posicionam
diante do contexto a partir dos marcadores sociais da diferença são pro-
blematizadas, por exemplo, por Bucholtz (BUCHOLTZ & HALL, 2008),
que revisita sua análise com adolescentes euroamericanos na cidade de
San Francisco nos anos 1990 para olhar para os fenômenos linguísticos
periféricos (ou aquilo que acontece off the record), para as reconfigura-
ções dos prefácios rotineiros das entrevistas e para o papel da/o pesqui-
sadora/or na produção dos dados linguísticos. A análise da autora avança
justamente no ponto em que ocorre o desencaixe, ou quando o script é
violado. E ela decidiu trazer à superfície esse deslocamento, questionan-
do justamente a insuficiência de esquemas explicativos predefinidos.
Para hooks (2008, p. 860), “como o desejo, a linguagem rompe,
recusa-se a ser encerrada em fronteiras. Ela mesma fala contra a nos-
sa vontade em palavras e pensamentos que se intrometem, até mesmo
violam os mais secretos espaços da mente e do corpo”. No entanto, boa
parte dos estudos linguísticos parece se concentrar justamente nos
processos de estabilização, abstração e controle da língua enquanto
realidade unificada, decodificável e descritível.
Começo então a perceber que não somente as minhas questões
de pesquisa, mas também nossas concepções de linguagem, nossas
políticas educacionais e nossas construções de identidade e cultu-
ra são articuladas por meio de tais tensões e deslocamentos entre a
tendência à heterogeneidade e a persistência da uniformidade, entre
a modernidade das nossas respostas e a pós-modernidade de nossas
realidades. Inês Signorini (2002, p. 98) nos evidencia essa articulação
ao refletir sobre o papel estabilizador da Linguística frente à “potência
desagregadora da variação”:

A contribuição dos estudos linguísticos sempre foi e continua


sendo crucial para os processos de estabilização, legitimação e

- 251 -
controle das línguas nacionais, seja através do recorte e descrição
de um corpus linguístico de referência para o ‘nacional’ na língua,
seja através da elaboração de metalinguagens e teorias que des-
crevem e explicam o linguístico e seu funcionamento, seja através
da elaboração de artefatos que dão visibilidade à língua enquanto
objeto, tais como gramáticas, manuais, dicionários e atlas linguís-
ticos, por exemplo.

Nesse artigo, a autora se interessa pela “multiplicidade das prá-


ticas de uso da língua”, em que:

[...] a ‘perturbação’ trazida pela variação é o que permite ao fa-


lante/escrevente se constituir enquanto agente que tanto repro-
duz formas e sentidos, papéis e identidades, quanto os altera,
tensiona, torce, subverte e produz o novo, seja ele percebido
como criativo, revolucionário, ou apenas descabido, torto, mal
enjambrado (SIGNORINI, 2002, p. 93).

Tomo aqui emprestada a proposta de Signorini, segundo a qual


é a partir da desestabilização, da desregulamentação dos modelos lin-
guísticos que a/o falante põe a língua em movimento e a transforma,
num jogo tensionado e dinâmico, e sob uma perspectiva sempre instá-
vel, transitória, contextual. Assim, uma Linguística do Tensionamento
olha – se posiciona – para o que (e quem) é geralmente descartado nas
descrições e análises por falhar, por ser descabido ou por não se aco-
modar a determinados modelos explicativos. Ela tem a potência de nos
fazer questionar as ideologias que nos levam a determinados proble-
mas de pesquisa, podendo indicar quão modernas são as nossas per-
guntas sobre as línguas, quão naturalizadas são as práticas linguísticas
na sociedade e, fundamentalmente, quais são as implicações políticas
dessas dinâmicas.

- 252 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo procurou identificar alguns caminhos que levam


a uma economia performativa de textos e contextos, corpos e espaços
a partir da circulação de efeitos que escapam a contornos previamen-
te fixados. Para tanto, realizei uma articulação teórica relacionando
as falhas que podem e vão ocorrer nos atos de fala e sua consequente
abertura para o movimento dos textos e a produção de novos sentidos.
Procurei sintetizar essa articulação na perspectiva teórico-metodoló-
gica da Linguística do Tensionamento.
Para os fins deste texto, a noção de falha que constitui o performa-
tivo foi evidenciada na relação corpo-fala e nos restos, excessos e lacunas
que emergem do fato de que a fala sempre diz (e, portanto, faz) mais do
que intenta, justamente em virtude do fato de que se trata de um corpo
socialmente situado que realiza o ato de fala: “na fala, o ato que o corpo
está performando nunca é inteiramente entendido; o corpo é o ponto
cego do discurso, aquilo que age no excesso do que é dito, mas que tam-
bém age no e através do que é dito” (BUTLER, 1997, p. 11), num duplo mo-
vimento no qual o corpo constitui e é constituído pela linguagem.
Esta relação paradoxal foi explorada aqui a partir da produção
das emoções e afetos como efeitos de uma circulação de textos, o que
não significa que os afetos estão necessariamente “nos” textos, mas são
efeitos de uma distribuição ideologicamente orientada pelos corpos ao
longo do tempo e do espaço, já que “as palavras não são simplesmente
cortadas de corpos ou outros sinais de vida” (AHMED, 2014, p. 13).
Dessa articulação conceitual que constitui um exercício me-
tarreflexivo sobre nossas próprias concepções de língua, depreendi a
perspectiva de uma Linguística do Tensionamento enquanto defesa de
uma nova maneira de fazer pesquisa linguística, comprometida com
a realidade empírica e, portanto, com seus excessos e falhas consti-

- 253 -
tutivos. Por fim, percebo que tensionar implica também em se afetar.
Quando se tensionam os termos de uma relação, eles deixam de estar
confortáveis. De uma posição relaxada e talvez abstraída de si, eles se
contorcem, se distendem e se percebem. E também esticam, se aproxi-
mam das fronteiras, alcançam outros termos e constroem novas rela-
ções. Nesse processo, se rompem, sangram, se deslocam; mas também
resistem, criam cicatrizes e vão se reconstruindo em fragmentos. E
não é disso que são feitas as mudanças?

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Ana Luiza Krüger Dias


Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás e bolsista da
CAPES. Mestra em Linguística pela UFG e bacharel em Direito pela
mesma instituição. Atua principalmente nas temáticas de identidade,
políticas linguísticas e metapragmáticas em contextos de mobilidade.
e-mail: ana_luiza_kruger@discente.ufg.br.

- 256 -
Os conceitos linguísticos de
Leonard Bloomfield 1

Helda Núbia Rosa (UFG/CAPES/SEDUC)


Sebastião Elias Milani (PPGLL/UFG)

RESUMO

Os conceitos linguísticos apresentados por Leonard Bloomfield


(1887-1949), no início do século XX, neste século, são importantes para
que compreender a evolução da linguística e também as variantes que
surgiram dela nesse intervalo de tempo. Bloomfield contribuiu com essa
nova perspectiva da linguística ao debater temas como língua, falante,
fonema e comunidade de fala de um ponto de vista ainda não estudado
e que atualmente serve como aporte teórico para os novos linguistas. Ao
ingressar na comunidade de fala indígena e conviver como parte dela,
observando os comportamentos linguísticos dos falantes, pôde afirmar
que a língua, mais precisamente a fala, demonstra quem é a comunida-
de que apropria-se dela e preserva-a para as gerações futuras, as quais
não terão dificuldades em aprendê-la. A identidade do falante está posta

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e seu orientador, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade dos autores com anuência do orientador.
nos fonemas, únicos para uma comunidade, pois significam sua identi-
dade. Quanto ao falante, pode-se dizer que é parte da engrenagem para
conservação e transmissão da língua, sendo função dele transmiti-la
aos mais jovens e, por consequência, disseminar e garantir que as seme-
lhanças linguísticas da comunidade sejam preservadas.
Palavras-chave: Conceitos linguísticos, língua, falante, fonema,
comunidade de fala.

ABSTRACT

The linguistic concepts presented by Leonard Bloomfield (1887-1949),


at the beginning of the 20th century, in this century, are important
to understand the evolution of linguistics and also the variants that
emerged from it in that time interval. Bloomfield contributed to this
new perspective on linguistics by debating topics such as language,
speaker, phoneme and the speaking community from a point of view
that has not yet been studied and which currently serves as a theo-
retical input for new linguists. By joining the indigenous speech com-
munity and living as part of it, observing the linguistic behaviors of
the speakers, he was able to affirm that the language, more precise-
ly speech, demonstrates who the community is that appropriates it
and preserves it for future generations, who will have no difficulty in
learning it. The speaker’s identity is set in phonemes, unique to a com-
munity, as they signify his identity. As for the speaker, it can be said
that he is part of the gear for the conservation and transmission of the
language, his function being to transmit it to the youngest and, conse-
quently, to disseminate and ensure that the linguistic similarities of
the community are preserved.
Keywords: Linguistic concepts; Language; Speaker; Phoneme; Speech
community.

- 258 -
INTRODUÇÃO

Leonard Bloomfield nascido em primeiro de abril de 1887, em


Chicago, Estados Unidos da América, bacharelou-se pela Universida-
de de Wisconsin, onde conheceu Eduard Prokosch (1876-1938), o ins-
trutor que apresentou-lhe os grandes nomes da linguística europeia
e explicou como as pesquisas linguísticas eram desenvolvidas. Desde
então, Bloomfield teve certeza de que queria dedicar-se aos estudos
linguísticos, assim como fizeram Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e
Willian Dwight Whitney (1827-1894), dois dos principais pesquisado-
res que o inspiraram nessa área.
Bloomfield estudou na Alemanha, nas universidades de Leipzig
e Göttigen nos anos de 1913 e 1914. Nessa época, conheceu vários filólo-
gos e gramáticos europeus, os quais foram seus professores ou colegas
de aulas. Aprofundou-se mais nos estudos do Indo-Europeu, em espe-
cial o germânico, e tornou-se especialista em morfologia e fonologia.
Como produto de seu trabalho, escreveu, em 1914, An Introduction to
the Study of Language. Depois disto surgiram outros textos os quais
não tinham como temática o Indo-Europeu, mas versavam sobre as lín-
guas indígenas americanas, sobretudo, o Tagalog.
Na América do Norte, as pesquisas em linguística não eram tão
desenvolvidas como na Europa, o que se tinha de mais específico eram
os trabalhos do também estadunidense Willian Dwight Whitney que
foram apresentados a Bloomfield por seu tio e filólogo Maurice Bloom-
field (1855-1928). No entanto, Bloomfield se aliou ao grupo de antro-
pólogos americanos, liderado por Franz Boas (1858-1942), grupo do
qual também participava Edward Sapir (1884-1939) e cuja metodologia
consistia em inserir-se dentro de uma tribo indígena com a finalidade
de estudar mais de perto e com mais propriedade sua cultura, língua,
vida, entre outros.

- 259 -
Bloomfield optou por pesquisar as línguas Tagalog e Menomi-
ni. Durante os anos passados na Alemanha, conheceu o psicólogo Wi-
lhelm Wundt (1832-1920), o qual trabalhava com a psicologia compor-
tamentalista. Na Universidade de Yale, conviveu com Albert Paul Weiss
(1879-1931), psicólogo behaviorista nascido na Alemanha, mudou-se
para os Estados Unidos da América, onde exerceu sua carreira. Bloom-
field associou o estudo da língua aos conceitos do comportamentalis-
mo/behaviorismo dos dois psicólogos que contribuíram para que isto
fosse possível.
Para os comportamentalistas, o modo de agir dos falantes mais
velhos é imitado pelos mais jovens, à medida que vão interagindo den-
tro de um mesmo espaço de convivência. A essa definição, o behavio-
rismo proposto por Weiss e Bloomfield previa ainda um conjunto de
estímulos e respostas definido pelos falantes para estabelecer a co-
municação. A teoria da psicologia estava profundamente associada às
explicações linguísticas de Leonard Bloomfield a partir da observação
acurada da comunidade de fala.
Segundo o próprio Bloomfield, suas obras mais relevantes estão
intimamente associadas ao comportamentalismo/behaviorismo. Tam-
bém é verdade que anos mais tarde Bloomfield julgou desnecessária a
coordenação Linguística e Psicologia, podendo muito bem aquela con-
viver sem os conceitos dessa. Por um tempo, quando as duas ciências
ainda não eram consideradas como tal, precisaram apoiar-se para jun-
tas traçarem um estudo sobre a língua viável e crível.
Durante a imersão no contexto de um povo, do qual não se co-
nhecia os hábitos, a língua e a cultura, Bloomfield pôde verificar com
mais precisão os mecanismos linguísticos utilizados por esse povo para
a transmissão da língua a um novo membro, bem como a manutenção
desse aprendizado durante toda a vida. Bloomfield foi bastante eficien-

- 260 -
te em suas análises e muito fiel às observações, o que possibilitou-lhe
a compreensão dos quatro conceitos básicos dispostos nas obras dele
e que permeiam a comunicação entre os seres humanos: a língua, os
fonemas, o falante e a comunidade de fala.
Sobre esses quatro conceitos Bloomfield assentou-se toda a sua
produção, ao passo que, como professor e orientador, criou um mé-
todo de investigação da língua da comunidade e também os manuais
de como deveria ser aplicado o método, com a finalidade de abrir ca-
minhos para uma ciência linguística na América do Norte. Sob esse
prisma, Bloomfield foi considerado um linguista inovador para a épo-
ca e contribuiu sobremaneira para a constituição da linguística norte-­
americana. Seus ensinamentos tiveram grande repercussão até os
anos de 1950, quando novas áreas da linguística foram desenvolvidas,
contudo, ainda assim, não se pode dizer que não se encontre atualmen-
te nas obras de linguistas do século XXI menção a seu trabalho, uma
vez que Bloomfield é reconhecidamente um linguista notável por seus
feitos, principalmente, por ter escrito o manual de linguística Langua-
ge (1933), sua mais completa e elucidativa obra.
Este é um trabalho desenvolvido a partir dos conceitos da His-
toriografia Linguística, a qual tem a finalidade de reconstituir um fato
linguístico do passado ao presente para expor um pensamento linguís-
tico, uma produção, reconstituir o clima de opinião de uma época a fim
de proporcionar a compreensão e apreciação da história das ideias, de
acordo com Koener (2014). Enfim, o propósito do texto é justamente
expor os conceitos linguísticos que Leonard Bloomfield destacou so-
bre a descrição linguística e ainda fazer com que o leitor tenha uma
visão ampliada e privilegiada de como esse pensamento foi concebi-
do e desenvolvido por ele nas primeiras três décadas do século XX, na
América do Norte.

- 261 -
Os conceitos de língua e de comunidade de fala estão em
harmonia

O estudo sobre esse tema não é uma inovação de Leonard Bloom-


field, nem tão pouco é contemporâneo a ele. Na obra Language (1933),
Bloomfield retomou a história da língua desde Platão (428/427 a.C. –
348/347 a.C.) até os neogramáticos. Dos gregos aos europeus e, finalmen-
te, os estadunidenses, todos preocuparam-se em explicar como os seres
humanos comunicavam-se e como a língua era transmitida e conservada.
Os gregos descreveram sua própria língua, depois deles outros
povos fizeram o mesmo. Os indianos destacaram-se por fazerem com-
preender que a língua não era uma dádiva de Deus como acreditavam an-
tes disto, justificaram a descoberta porque entenderam que letra e som
não tinham uma correspondência, se era assim, as línguas variavam por-
que a parte física sofria mudanças.
Ainda que tivessem avançado com relação à fonética, os indianos
não conseguiram explicar a diferença entre letra e som, mas apontaram
para uma direção, ou seja, já entendiam que era preciso estabelecer essa
distinção. No século XVIII, a partir do estudo das línguas vivas provenien-
tes do Latim, houve a necessidade de se explicar o que a língua é. A gra-
mática, enquanto descrição e normatização para se falar e escrever bem,
tinha a intenção de torná-la perfeita, uma organização lógica da língua fa-
lada pelo povo e ordenada pelos gramáticos, indivíduos preparados para
retirar dos falantes a melhor performance.
Para Bloomfield (1933), à linguística, caberia a função de atuar
em dois planos: a fonética em que se estuda o evento da fala como as
ondas sonoras, as quais chegam até o ouvido do ouvinte, mas sem o
significado e a semântica consistindo na relação entre a pergunta e a
resposta dos interlocutores. Com relação à semântica, é preciso contar
com a predisposição do falante e do ouvinte para decodificar os outros
significados do discurso.

- 262 -
Na obra Language (1933), Leonard Bloomfield não se absteve de
lidar com todos esses conceitos, já que era importante observar como a
comunidade inteira se portava, a preocupação dele não era com o indi-
víduo porque a forma de fala de cada um é única. Sendo assim, o pon-
to de vista bloomfieldiano estava conectado à língua da comunidade de
fala, embora, segundo ele, o acordo estabelecido por ela estivesse longe
da perfeição. Em vista disto, a relação língua e comunidade de fala não
podem ser tratados separadamente, pois complementam-se de tal modo
que sem um, a existência do outro seria impossível, dada a complexidade
da relação entre ambos.
No que se refere à comunicação, tanto os animais quanto os seres
humanos apresentam processos mentais que correspondem a processos
físicos, mas o que os difere é o modo como cada um deles responde ao
sensível, a intensidade emocional com que lidam com as intempéries. Se-
gundo Bloomfield (1914), os seres humanos destacam-se pela inteligência
cognitiva, uma criança, ainda pequena, que não sabe articular os sons de
fala, aponta para o que quer e, assim, vai se estabelecendo o ato comuni-
cativo com a mãe num primeiro momento.
A comunicação é imprescindível para os seres em geral, contu-
do apenas os humanos aperfeiçoam-se linguisticamente, como disse
Bloomfield (1914). A criança, ao nascer, começa a inteirar-se do mundo e
estabelecer seus primeiros contatos com os indivíduos mais próximos a
ela, os pais, e depois com os demais membros da comunidade. Sendo as-
sim, desde que assume-se o controle do aparelho fonador e consegue-se
articular os sons, passa-se a imitar os adultos e só comunica-se por meio
dos sons articulados, uma vez que é uma forma mais assertiva de comu-
nicação. O indivíduo dotado de língua começa a dar testemunho de seu
progresso e do mundo a seu redor, por isso deixa de ser um mero animal,
conforme confirma Whitney (1884).

- 263 -
Bloomfield (1933, p. 3) afirmou que “a língua desempenha um gran-
de papel em nossa vida”2 e prosseguiu com uma metáfora a qual faz uma
reflexão sobre o modo como os falantes tratam a língua cotidianamente,
isto é, falar seria o mesmo que respirar ou caminhar, uma vez que não há
esforço por parte do falante, pois o desenvolvimento da fala e a manuten-
ção da língua da comunidade acontecem automaticamente sem nenhum
esforço para o falante. Por meio da língua, os indivíduos comunicam suas
ideias, expressam seus sentimentos, falam com os outros, se não fosse
por ela, tudo seria mais complicado, uma vez que os falantes deveriam
suscitar, assim como as crianças o fazem, outros meios para estabelecer
a comunicação como a pantomina, a mímica, os gestos, como afirmam
Whitney (2010) e Bloomfield (1914).
Com relação à comunidade de fala, este é o lugar em que a língua
se desenvolve. Bloomfield (1933, p. 29) define o termo comunidade de fala
como “um grupo de pessoas que usam o mesmo sistema de sinais de fala
[...]”3 , ou seja, a língua só forma uma unidade com sentido, se todos os
falantes usarem-na da mesma maneira, pronunciando os sons de forma
semelhante e atribuindo os mesmos significados às palavras.
Por conseguinte, cada comunidade de fala tem sua língua em par-
ticular. Ainda que se esteja falando de comunidades de fala no Brasil,
onde todos falam um mesmo idioma, isto é, a língua brasileira, a comu-
nidade goiana apresenta particularidades que não se pode encontrar na
comunidade baiana, por exemplo. Nesse caso, pode-se ressaltar distin-
ções quanto à fonologia, ao léxico, à semântica e também à sintaxe. Tais

2 “Language plays a great part in our life” (BLOOMFIELD, 1933, p. 3).


3 “A group of people who use the same system of speech-signals in a speech-community”
(BLOOMFIELD, 1933, p. 29).

- 264 -
dissimilitudes configuram-se como a identidade da comunidade, repre-
sentam o que há de mais específico para aqueles falantes em especial.
Por isso, Bloomfield (1933) considerava importante a interação
direta com a comunidade de fala, e, através da criação de um método
próprio de pesquisa, que consistia na observação e descrição dos fatos
observados, Bloomfield submergiu nas comunidades indígenas e des-
creveu os mecanismos criados pela comunidade para garantir a propa-
gação e subsistência da língua. Para tanto, o que se deve levar em conta é
a língua falada, a verdadeira identidade da comunidade será revelada por
meio dela, que é espontânea, a forma legítima de comunicação entre os
falantes, aquela usada no cotidiano para realizarem tarefas simples como
lavar, passar ou cozinhar.
Se, como disse Bloomfield, a criança aprende por imitação e há-
bito, a língua não pode ser uma característica herdada da raça, mas um
vínculo estabelecido entre os falantes e a comunidade de forma a con-
tinuarem e preservarem suas características linguísticas. A criança se
tornará uma continuidade conceitual para aquela comunidade. Dessa
forma, a língua falada por uma comunidade não é mutável, as alterações
são mínimas, tanto que não são perceptíveis pelos próprios falantes, é um
processo bem lento e gradual.
Em suma, o indivíduo, suas características culturais e linguísticas
são sempre revelados por meio da língua pronunciada, já que a fala é a
verdadeira forma da língua. Justifica-se dizer que a língua e a comunida-
de de fala não existiriam separadamente, a língua é o modo como a comu-
nidade de fala expressa tudo o que faz parte de sua história, economia,
educação, cultura. Apenas no contato com a comunidade de fala, a língua
é posta em evidência.

- 265 -
O fonema configura-se como a identidade do falante

A concepção de fonema, que está posta em Leonard Bloomfield,


faz crer que a individualidade da comunidade de fala seja configurada por
ele. O fonema é a parte distintiva e física da língua que, de fato, colabora
para a distinção de uma comunidade. Os falantes, de acordo com Bloom-
field (1933), reconhecem essas pequenas sutilezas de sua própria língua,
ainda que estejam em qualquer lugar fora da comunidade. Para entender
como Bloomfield chegou a tal conclusão, é preciso compreender como a
Fonética e a Fonologia se desenvolveram na história da língua.
A começar por Panini (520 a. C. – 460 a. C), na Índia, no século IV
antes de Cristo, que se dedicou a fazer uma descrição com pormenores
do sânscrito, inclusive com “[...] observação cuidadosa dos sons [...]”, se-
gundo aponta Schwindt (2017, apêndice). A descrição dos sons baseada
na articulação dos fonemas feita por Panini só se tornou conhecida pelos
europeus no século XVIII. A consciência de que os sons, parte material
da língua e, portanto, de mais fácil identificação, era proveniente de uma
extensa discussão a esse respeito.
Em uma sucessão de continuidades, os gregos também se esfor-
çaram para estudar os sons da língua grega e do acento da palavra e da
oração, não como fizeram os indianos, mas pela audição e pela associação
com a música. Contudo, não tiveram êxito, por isso a definição de som e
letra era confusa e continuou assim até que a história das grandes nave-
gações e o fato de se conhecerem línguas diferentes, fez surgir o interesse
em se estudar as línguas vivas que estavam sendo desenvolvidas a partir
do Latim. É notável um grande salto na história, momento em que estes
estudos estavam adormecidos, até que tiveram interesse pelo assunto e
se empenharam em pesquisá-lo melhor.
Sendo assim, o período do Renascimento “[...] lançou luz ao aspec-
to oral da linguagem e fomentou o desenvolvimento da Teoria Fonética”,

- 266 -
de acordo com Schwindt (2017, apêndice). A Fonética consistia basica-
mente no estudo da articulação dos fonemas, do aparelho fonador e seu
funcionamento, isto é, na investigação da realização sonora das línguas
em sua estrutura física, seus aspectos acústicos de emissão e percepção,
conforme aponta Batisti (in SCHWINDT, 2017).
A base fisiológica, os aspectos acústicos dos sons emitidos e re-
cebidos pelos falantes de uma comunidade de fala foram estudados por
Leonard Bloomfield em sua primeira obra An Introduction to the Study
of Language publicada em 1914, logo após ele ter defendido sua tese de
doutoramento. Nesta obra, assim como os outros estudiosos da fonéti-
ca, Bloomfield fez um levantamento sobre a parte física da produção dos
sons da fala humana, como se realizam esses sons e o reconhecimento
deles por parte das crianças que aprendem-nos pelo hábito e a repetição.
Nos dois primeiros capítulos, Bloomfield (1914) faz uma conjectura
a respeito da natureza e origem da língua como da base física dela que são
os movimentos expressivos, o ponto e modo de articulação dos fonemas.
Essas análises e investigações estão pautadas na pesquisa feita com as
tribos ameríndias, nunca isoladamente, uma vez que os movimentos ex-
pressivos da língua são demonstrados por meio da fala em comunidade.
Os seres humanos, de acordo com Bloomfield (1914), assim
como os animais, demonstram suas emoções por meio da expressão
facial bem antes de começarem a articular os sons. As crianças cres-
cem imitando os hábitos expressivos e perceptivos dos adultos e mais
tarde farão o mesmo com os fonemas da comunidade de fala. Como
disse Bloomfield (1914, p. 5), “a origem do uso comunicativo é psico-

- 267 -
logicamente inteligível”4 , desse modo o indivíduo aceita a emoção do
outro, mas, ao mesmo tempo, pode pensar de forma muito diferente.
Os movimentos expressivos são um conjunto que se vale de símbo-
los, inclusive abstratos, que servem para a comunicação. Por essa razão
podem substituir os movimentos orais da fala, quando as crianças ainda
não conseguem articular os sons ou se, por ventura, alguém não puder fa-
lar, no caso, uma pessoa muda. No entanto, os sons articulados, depois de
aprendidos, são insubstituíveis porque os falantes se veem representados
por suas particularidades e pela facilidade que a fala tem em detrimento
dos movimentos, mímicas, pantomina, expressão facial ou corporal.
Bloomfield (1914, p. 17) compreendeu que a comunidade de fala
e o falante são movidos pelos sons articulados, por isso, “a língua do in-
divíduo [...] não é sua criação, mas consiste em hábitos adotados em seu
relacionamento expressivo com outros membros da comunidade”5 . Os
hábitos dos indivíduos são associados aos da comunidade, de acordo com
Bloomfield (1933), assim um observador com alguma prática reconhece-
rá um fonema, ainda que estiver sendo empregado em diferentes partes
das palavras, podendo apresentar alguma dificuldade na identificação,
devido ao sistema de escrita, o qual apresenta uma letra igual, mas com
som distinto, como o /x/ em xale e táxi.
O falante foi treinado para fazer os movimentos de produção dos
sons, à vista disto o fonema caracteriza-se como a identidade do falan-
te, uma forma particular de identificação com a comunidade de fala. O

4 “The origin of the communicative use is psychologically intelligible” (BLOOMFIELD,


1914, p. 5).

5 The individual’s language, consequently, is not his creation, but consists of habits adop-
ted in his expressive intercourse with other members of the community (BLOOMFIELD,
1914, p. 17).

- 268 -
falante se reconhece como um membro da comunidade por meio dos fo-
nemas similares que produz em consonância com os outros falantes da
mesma comunidade, a qual tem uma identificação, um modo de enten-
der-se como única por tratar-se de fonemas únicos, produzidos apenas
por aquele grupo de pessoas.
Na obra An Introduction to the Study of Language (1914), há um ca-
pítulo dedicado à descrição dos sons articulados, como ocorrem no apa-
relho fonador e quais as peculiaridades de cada um. Bloomfield (1914) diz
que o falante não tem consciência do tipo de som produzido, há apenas
a compreensão de que é gerado pela boca, língua e laringe. Perceptivel-
mente, o indivíduo consegue encontrar semelhanças e diferenças entre
seus próprios fonemas e de um estrangeiro. Humboldt (1990) afirmou
que em qualquer lugar que um falante esteja, será reconhecido pelo sota-
que, individualidade na articulação dos fonemas. Bloomfield corrobora
com essa ideia e acrescenta que até o observador, o linguista, ficaria hesi-
tante se perguntassem-lhe sobre as sutilezas fonéticas.
Apesar da vasta pesquisa realizada a respeito dos sons articulados,
até o século XX, ainda eram um mistério a ser desvendado. Muita coisa
já era sabida, como, por exemplo, o ponto e o modo de articulação e com
relação aos sons produzidos pelo aparelho fonador pertencentes apenas
aos seres humanos. Pesquisas já haviam sido realizadas a respeito das
diferenças fonéticas na articulação de alguns sons, exemplo disto são os
trabalhos de Ramus Rask (1787-1832), Jacob Grimm (1785-1863) e Karl Ver-
ner (1846-1856).
A novidade foram as descobertas feitas por Leonard Bloomfield
que, estando muito perto das tribos ameríndias, pôde verificar as sutile-
zas da fala de cada indivíduo que, de algum modo, incorriam em pequenas
discrepâncias com relação aos outros indivíduos. Destarte, o ouvido bem
preparado do falante decifra os fonemas familiares, a fim de compreen-
der a mensagem. De acordo com Bloomfield (1933), o falante estrangeiro

- 269 -
é incapaz de produzir os fonemas de outra língua de modo a considerar
as características não distintivas, se o falante esforçar-se na produção de
um fonema estrangeiro, o som soará estranho aos ouvidos do nativo.
Consequentemente, era preciso explicar melhor o modo como
esse evento ocorre na comunidade de fala. Bloomfield (1933) definiu o que
deveria ser o fonema e não mais som articulado. O som pode referir-se a
qualquer barulho tal qual um assobio ou um ronco que não são fonemas
e não significam numa comunicação. Ainda como foi dito por Bloomfield
(1933), um fonema é distinto de todos os outros de uma língua porque há
características não distintivas como faca e vaca, em que os fonemas /f/ e
/v/ diferenciam-se por um ponto de articulação: a sonoridade.
Bloomfield (1933) explicou que o fonema faz parte dos eventos de
comunicação entre os falantes, uma vez que só podem comunicar-se rea-
lizando fonemas conhecidos tanto pelo falante quanto pelo ouvinte. É
uma fórmula que prevê uma situação de inquérito, uma questão e uma
resposta, se esses três itens funcionarem perfeitamente, significa dizer
que houve comunicação de fato, pois os sons da fala é o que move o falante
a responder a todas as situações de fala.
Devido a seu método experimental, Bloomfield definiu as pe-
quenas particularidades que diferem um e outro fonema. Assim, en-
controu traços mínimos, os quais certificam que “[...] há um limite
para a variabilidade das características não distintivas: o fonema é
mantido distinto de todos os outros fonemas da língua”6 , de acordo
com Bloomfield (1933, p. 81). As características distintivas do fonemas
só podem ser identificadas pelos falantes daquela variação linguísti-

6 “[...] there is a limit to the variabiluty of nondistinctive features: the fonema is kept distinct
from all olher phonemes of its Language (BLOOMFIELD, 1933, p. 81).

- 270 -
ca, não que uma língua, num país tão vasto como o Brasil, tenha dife-
renças tão profundas que não sejam reconhecidas numa outra região.
Dada a característica identitária do fonema que confere ao falan-
te um modo único de participar da língua partilhada com os demais do
grupo, é fato que para se produzir um fonema de uma língua estrangeira,
precisa de treino para o ouvido e para repetir os fonemas estrangeiros e,
nem assim, há uma garantia factual de que o fonema está sendo bem rea-
lizado, em virtude da falta de aptidão de alguns falantes em reproduzir
ou imitar sons estrangeiros, em consonância com Bloomfield (1933). Por
isso, o fonema confere à comunidade uma identidade indelével e inegá-
vel, por mais que o falante queira negar suas origens, a língua denuncia-o.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se trata de Leonard Bloomfield, percebe-se noto-


riamente sua contribuição para a linguística dos séculos XX e XXI.
Conceitos discutidos acrescentaram muito às pesquisas linguísticas
de modo a fazer com que outros linguistas definissem suas pesqui-
sas para corroborar com a dele ou para confrontá-la. De um ou outro
modo, Bloomfield esteve sob os olhares daqueles que queriam e fize-
ram da linguística uma ciência.
Bloomfield estudou na Europa, foi professor de alemão, estudou
o indo-europeu e as comunidades ameríndias bem como as de língua
inglesa. O seu grande diferencial foi ter criado um método próprio de
análise que conferiu-lhe a autoridade para descrever e explicar a língua,
o fonema, o falante e a comunidade de fala de modo a integrá-los num
viés psicológico de análise, a fim de que pudesse criar uma forma de
compreensão desses conceitos como nunca feito dantes.

- 271 -
Bloomfield escreveu textos com a intenção de ensinar os novos
linguistas e também colaborar com as ideias linguísticas nascidas na
América do Norte. Sendo assim, o objeto de estudo não poderia ser se-
melhante ao que já estava sendo investigado, textos escritos, principal-
mente. Por meio da empiria, integrou-se às comunidades indígenas nor-
te-americanas, nunca dantes estudadas e fazer a aplicação do método
e verificar sua eficácia. Dentro das comunidades, como um observador
sagaz pronto para inserir-se nos contextos e compreender desde a foné-
tica até a semântica comparticipada pela comunidade.
A mesma comunidade preocupada em manter-se una linguisti-
camente, transmite aos membros mais jovens as características sin-
gulares da língua, com a finalidade de manter a identidade do povo
que fala e vive aquela língua. Em decorrência da preservação linguís-
tica, a comunidade de fala mantêm a identidade e, para tanto, não é
permitido a nenhum membro que altere de qualquer forma a língua
sem o consentimento de todos, consequentemente a identidade do
grupo ficaria garantida.
Em virtude disto, Bloomfield pôde discutir os quatro conceitos
defendidos como legítimos na constituição da língua de um povo: a
língua, o falante, o fonema e a comunidade de fala. Tais conceitos não
podem ser vistos dissociadamente, porque convergem para um mes-
mo ponto: a comunidade, a qual reconhece-se por meio da fala produ-
zida pelo falante que, por seu turno, reproduz os mesmos fonemas de
todos os outros membros da comunidade. O falante estrangeiro pode
até imitar os fonemas legítimos de uma comunidade de fala que não
é a sua, no entanto, muito provavelmente nunca conseguirá fazê-lo
com êxito, necessita-se de ouvidos atentos e muita perspicácia para a
imitação. Os ouvidos viciados nos fonemas nativos tendem a aplicar
as mesmas regras a qualquer outra língua.

- 272 -
Devido à individualidade do falante nativo, pode haver alguma
divergência na produção de um fonema, mas os falantes esforçam-se
para entendê-los e imitá-los e é por causa da unidade linguística que
deve-se considerar apenas a comunidade e nunca o indivíduo. Esse
processo de compreensão, imitação e produção de uma resposta que
permita a comunicação perdurará por toda a vida do falante, uma vez
que só se deixa de aprender quando morre.
Em suma, o trabalho de Bloomfield conseguiu atingir os estu-
dos linguísticos e deixou um legado reconhecido tanto na América
quanto na Europa. Linguistas brasileiros, mesmo atualmente, quase
um século depois da publicação da obra Language (1933) ainda o tem
como fonte. A linguística descritiva do tipo praticado por ele, não é,
naturalmente, a mesma nos dias atuais, no entanto, não fosse a con-
tribuição dele no sentido de ter criado um método de análise e tam-
bém de ter feito um trabalho de recuperação de fontes e dados, a lin-
guística não teria sido a mesma.

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Ludgate Hill, 1884.

WHITNEY, W. D. Life and growth of language: an outline of linguistic


science. New York: D. Applenton and Company, 1908.

Helda Núbia Rosa


Doutoranda em Estudos Linguísticos do programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás, professora de Lín-
gua Inglesa e Produção de Texto, Ensino Médio do CEPI Carlos Alberto de
Deus e professora de Produção Textual do curso de Pedagogia da Facul-
dade Unidade de Campinas. e-mail: heldanrosa28@gmail.com.

Sebastião Elias Milani


Professor Titular da Universidade Federal de Goiás - UFG. Tem expe-
riência na área de Linguística, com ênfase em Historiografia-Linguís-
tica, atuando principalmente nos seguintes temas: Linguística geral,
Fonologia, Morfologia, Semântica, Linguística Diacrônica, Sociolin-
guística, Teoria Semiótica, e Historiografia-Linguística. É líder do gru-
po de pesquisa em Historiografia-Linguística – IMAGO e da Rede de
pesquisa LINGGO. e-mail: sebaselias37@gmail.com.

- 275 -
Zilberberg e a expansão dos conceitos
greimasianos para o estudo dos textos 1

Pedro Henrique da Silva (PPGLL/UFG/CAPES)


Sebastião Elias Milani (PPGLL/UFG)

RESUMO

Objetiva-se promover uma reflexão acerca do trabalho desenvolvido


pelo semioticista Claude Zilberberg, dada a sua contribuição para a
expansão da teoria semiótica greimasiana, sobretudo a questão do afe-
to. Pela conjunção entre Historiografia Linguística e a epistemologia
dos Programas de Pesquisa de Imre Lakatos (1989), nosso recurso teó-
rico-metodológico, pretendemos mostrar que Claude Zilberberg foi o
único discípulo de Alguirdas Julien Greimas que conseguiu manter o
rigor teórico que envolve a noção de afeto, levando a teoria ao extre-
mo e ampliando alguns conceitos. O instrumento metodológico utili-
zado neste trabalho é o da Historiografia Linguística, que, para Milani
(2011), tem função de examinar criticamente a historicidade dos con-
ceitos, pois toda produção científica possui um passado, e uma história
de conflitos entre paradigmas e fontes diferentes. Os principais teóri-

1 Este texto foi devidamente revisado pelo autor e seu orientador, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade dos autores com anuência do orientador.
cos utilizados foram Konrad Koerner (2014), Milani (2011), Zilberberg
(2001, 2011), Greimas (2003) e Lakatos (1989). Como resultados, pode-
-se demonstrar as relações de continuidade conceitual e progressão da
teoria semiótica clássica, especialmente quando o assunto é a questão
afeto, uma vez que Zilberberg aprofundou metodologia de Greimas no
que diz respeito ao estudo do texto.
Palavras-chave: Texto; Semiótica; Greimas; Zilberberg; Historiografia

ABSTRACT:

The objective is to promote a reflection on the work developed by se-


miotician Claude Zilberberg, given its contribution to the expansion
of Greimasian semiotic theory, especially the issue of affection. For
the conjunction between Linguistic Historiography and the epistemo­
logy of the Research Programs of Imre Lakatos (1989), our theoretical-
metho­dological resource, we intend to show that Claude Zilberberg was
the only disciple of Greimas that maintained its theoretical rigor which
involves the notion of affection. The methodological instrument used
in this work that of Linguistic Historiography, which, for Milani (2011),
has the function of critically examining the historicity of concepts, for
every scientific production has a past, and a history of conflict between
different paradigms and sources. The main theorists used were Konrad
Koerner (2014), Milani (2011), Zilberberg (2001, 2011), Greimas (2003)
and Lakatos (1989). As a result, one can demonstrate the relations of
conceptual continuity and progression of classical semiotic theory, es-
pecially when it comes to the issue affection, since Zilberberg deepened
Greimas methodology with regard to the text of the study.
Keywords: Texte. Semiotics; Greimas; Zilberberg; Historiographie

- 277 -
INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste trabalho é contribuir com uma singe-


la homenagem ao semioticista francês Claude Zilberberg, cujo faleci-
mento ocorreu recentemente, em outubro de 2018. Desde seu desen-
carne várias foram as homenagens feitas ao pesquisador francês, como
organização de eventos e de dossiês com a temática Semiótica Tensiva.
Sendo assim, não poderíamos deixar de contribuir com algum registro
que faça referência ao mestre semioticista francês.
A semiótica de Zilberberg (2001, 2011) afastou-se da proposta
greimasiana para uns para outros, trata-se de uma inovação e de um
aprofundamento dos densos conceitos dentro da teoria tida como clás-
sica, como é o pensamento do prodessor Waldir Beividas (2009). Mas
como, de fato, mensurar que uma teoria afastou-se do núcleo original,
percorrendo caminhos que lhe são mais agradáveis ou ou que mantém-
-se em progressão, promovendo a inovação dos conceitos?
Como objetivos secundários, a intenção deste texto é expressar
que embora tenhamos conhecimento de várias vertentes semióticas,
como discursiva, a plástica, a visual, a sociossemiótica e, por fim, a se-
miótica tensiva (a qual nos centraremos), todas são caras, em primeira
análise, ao linguista dinamarquês Louis Trolle Hjelmslev (1889 – 1965),
e em segunda análise à A. J. Greimas.
Fazer comparações sem um aparato teórico metodológico claro
é deveras arriscado, pois se corre o risco de fazer afirmações inconsis-
tentes. Sendo assim, em nosso trabalho usaremos duas metodologias
para trazer à baila que Zilberberg (2001, 2011) é, até o momento, o único
dos discípulos de Greimas (1993) que levou a coerência metodológica
da teoria semiótica clássica até o limite, sobretudo quando se trata da
noção de afeto. Com o desenvolvimento das noções de acontecimento,

- 278 -
gradiente e tensividade surgiu uma possibilidade teórica na linha da
semiótica greimasiana para conceitualizar de modo ainda mais objeti-
vo a questão do sensível.
Para tanto, tivemos de mobilizar duas correntes teórico meto-
dológicas, a saber: a Historiografia Linguística e a epistemologia dos
Programas de Pesquisa, do filósofo húngaro Imre Lakatos (1922 – 1974).
O uso dessas duas teorias recai sobre as seguintes justificativas a) a
Historiografia Linguística aos moldes de Koerner (2014a; 2014b) e Mi-
lani (2011) são muito estanques na questão continuidade conceitual e
ruptura metodológica; b) a espistemologia dos Programas de Pesquisa
de Lakatos (1989) não oferece uma metodologia de análise textual, re-
curso bem delineado pela Historiografia Linguística.
No primeiro caso, o historiógrafo linguista deve deixar claro se um
conceito ou um pesquisador está em continuidade conceitual em relação
a fonte ou se está em ruptura metodológica, isto é, se está afastando-se da
origem. Ter apenas dois caminhos de análise é uma opção bastante re-
ducionista, pois entendemos que um pesquisador pode desenvolver um
conceito em consonância com a sua fonte, mas sob outra metodologia.
No segundo caso, o pensamento de Lakatos (1989) sobre Progra-
mas de Pesquisa é muito válida, mas não oferece uma metodologia de
análise comparativa sólida, como ocorre com a Historiografia Linguís-
tica. Desse modo, para promovermos a reflexão que Claude Zilberberg
(2001; 2011) trabalhou arduamente para dar continuidade ao pensa-
mento de Greimas, tivemos de filtrar e conjugar duas perspectivas teó-
ricas para dar consistência ao nosso projeto.
Desde o desenvolvimento da semiótica dita clássica as questões
da ordem do sensível e do afeto se colocaram como um desafio para os
analistas. Claude Zilberberg (2001, 2011), em especial, é um dos pesqui-
sadores que muito contribuiu na proposição da primazia do sensível
em relação ao inteligível em sua semiótica tensiva.

- 279 -
No início, Greimas optou por privilegiar o inteligível com a fina-
lidade de verificar como se dava a construção de sentido nos textos,
afinal a questão da narratividade era central para o modelo semiótico
greimasiano desenvolvido a partir dos trabalhos de Vladimir Propp,
mas algumas questões não foram completamente desenvolvidas, além
de que, as pesquisas greimasianas ficaram restritas ao nível textual,
não chegaram ao nível discursivo.
Obviamente, Zilberberg (2001, 2011) não resolveu a áspera ques-
tão epistemológica da abordagem semiótica do sensível e nem livrou os
semioticistas de possíveis contradições, mas certamente garantiu um
novo ponto de vista descritivo sobre a questão do sensível.
Para que fique mais claro a relação de continuidade entre o pen-
samento de Zilberberg (2011; 2011) e o de Greimas (1993), iremos tecer
um breve resumo das metodologias da Historiografia Linguística e da
epistemologia dos Programas de Pesquisa de Lakatos (1989), afinal, são
áreas do conhecimento pouco conhecidas no Brasil.

Bases da historiografia linguística

O pesquisador da língua que recorre aos postulados da Historio-


grafia Linguística trabalha consideravelmente com os fatos históricos,
uma vez que a busca do passado serve para verificar e atestar como os
conceitos se encontram no tempo presente. Assim sendo, o modelo
teórico da Historiografia permite que o pesquisador adquira uma vi-
são ampla da cultura de determinada época, além de permitir que o
investigador faça um trabalho de cunho interdisciplinar, pois no pro-
cesso de investigação do passado conhecimentos de outras áreas são
requeridos para que haja um pleno entendimento da construção dos
conceitos pesquisados.

- 280 -
Por questões de espaço-tempo não será possível descrever todo
panorama social e cultural da época de Greimas (1993) e de Zilberberg
(2001; 2011). Optamos por centrar a discussão fora do eixo social e cul-
tural. Mas não podemos deixar de registrar que há a necessidade de
desenvolver pesquisas mais detalhadas sobre a vida de Claude Zilber-
berg (2001; 2011), pois se sabe muito pouco de seu perfil acadêmico nos
anos iniciais.
A Historiografia Linguística, para Milani (2011), tem função de
examinar criticamente a historicidade dos conceitos, pois toda pro-
dução científica possui um passado e uma história de conflitos entre
paradigmas e fontes diferentes. Cabe a ressalva de que o núcleo teó-
rico da Historiografia Linguística está assentado em parte das ideias
de Thomas Kuhn, autor da obra Estrutura das Revoluções Científicas
(2007), por isso o termo paradigma.
Para Kuhn (2007, p. 45), “a emergência de novas teorias é pre-
cedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois
exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações
nos problemas e técnicas da ciência normal”. Muito mais do que inse-
gurança profissional, a surgimento de novas teorias decorre da busca
de explicações mais contundentes para o entendimento de como as
coisas funcionam, seja em qual área do conhecimento for.
O historiógrafo-linguista trabalha com o que está materializado
na forma de texto, pois é através dele que é possível compreender mais
profundamente a realidade passada. Ao se comparar, por exemplo,
o desenvolvimento da noção de afeto na Semiótica, sobretudo entre
Greimas (1993) e Zilberberg (2001; 2011), a Historiografia Linguística
não é um suporte adequado, pois o historiógrafo linguista deverá expor
se há uma continuidade conceitual ou ruptura metodológica, e no caso
em questão a tendência é dizer que Zilberberg (2001; 2011) abandonou

- 281 -
completamente o projeto inicial desenvolvido por Greimas (1993), o
que é um erro, dado que Zilberberg (2001; 2011) fez uma sobreposição
aos fundamentos da teoria semiótica greimasiana, conforme Saraiva
(2017), ou seja, o semioticista francês deu continuidade ao modelo teó-
rico do mestre lituano, porém, com uma nova roupagem, que fica me-
lhor esclarecida pelo viés da epistemologia de Lakatos (1989).

Epistemologia de Lakatos

Nascido na Hungria, Imre Lakatos (1922-1974) foi forçado a mu-


dar de sua terra natal em 1956, ano que eclodiu a Revolução Húngara,
movimento que se colocou contra o governo local e principalmente
contra a política de influência da então União Soviética. Em Londres,
seu novo país, Lakatos atuou como professor de lógica na London
School of Economics.
Autor pouco usado nas ciências humanas, as ideias de Lakatos
têm grande relevância, sobretudo para quem atua no terreno da His-
toriografia Linguística, uma vez seus postulados ofertam mais consis-
tência quando o assunto é ruptura ou continuidade conceitual.
A maior contribuição de Lakatos (1989), e o que importa para a
finalidade deste trabalho, é a sua “Metodologia de Programas de Pes-
quisa Científica”, que é uma revisão muito radical do Critério de De-
marcação de Popper ao diferenciar ciência da não ciência, além de
discorrer que uma teoria possui status científico quando ela for empi-
ricamente falsificável, isto é, se for possível, por meio de observações,
declarar que ela estava errada.
Nos seus estudos, Lakatos (1989) esse elaborou uma metodologia
da ciência e um critério de demarcação que estão mais de acordo com a
prática científica. A questão da falsificabilidade de Popper está presen-
te na concepção de ciência de Lakatos (1989), porém de forma muito

- 282 -
reduzida. Ao invés de uma teoria falsificável ser rejeitada assim que for
refutada, Lakatos estabeleceu uma sequência de teorias falsificáveis
que compartilham um núcleo duro de teses centrais que são irrefutá-
veis ou, pelo menos, resistentes à refutação. A sequência de teorias é
denominada Programa de Pesquisa.
Sendo mais claro, uma teoria individual está inserida dentro de
um Programa de Pesquisa e geralmente consiste em dois componentes:
o núcleo duro, que pode vir a ser irrefutável, mais um conjunto de hipó-
teses auxiliares. Essas hipóteses, em conjunto com o núcleo duro, são en-
volvidas por previsões empíricas, o que configura a teoria como um todo.
A metodologia que Lakatos formulou é, em essência, um progra-
ma de investigação historiográfico, por isso que resolvemos filtrar algu-
mas partes da metodologia lakatosiana para complementar a metodolo-
gia de trabalho da Historiografia Linguística de Koerner (2014a, 2014b),
e Milani (2011). A nossa intenção não é refutar o modelo atual da Histo-
riografia, mas agregar ainda mais conhecimento e assim utilizar os dois
modelos teóricos para discorrer com mais consistência sobre o avanço
que Zilberberg (2001, 2011) ofereceu ao modelo greimasiano.
Para verificar o êxito do pensamento de Lakatos (1989) basta es-
colher uma descoberta científica e ler todos os textos que cobrirem o
período compreendido pelo programa de investigação. Durante a leitu-
ra é preciso identificar, por meio de sentenças escritas, o pensamento
dos cientistas. O resultado será a história dos programas de investiga-
ção ao modo lakatosiano.
O exercício de comparação feito no parágrafo anterior é muito
semelhante aos postulados da Historiografia Linguística desenhados
por Koerner (2014a, 2014b), pois para que se entenda o clima de opi-
nião da época da criação de um conceito visando compreender se hou-
ve uma ruptura ou continuidade conceitual, o historiógrafo linguista
deve ler um vasto material para mapear o conceito no presente.

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Para Lakatos (1989), ao contrário do que foi proposto por Kuhn
(2007), não existem crises nas ciências, o que realmente existe é uma
competição entre diferentes programas de pesquisas. As teorias não
são informações isoladas, mas pertencentes a um determinado pro-
grama de pesquisa.
Na visão do pesquisador húngaro, naturalmente ocorre uma
competição entre vários programas de pesquisa, por ser uma carac-
terística do processo de desenvolvimento científico. Os programas de
pesquisa, em linhas gerais, são diretrizes metodológicas responsáveis
pela determinação acerca da construção e modificação das teorias.
Aqui já é possível inserir brevemente a Semiótica. Tomaremos
como seu nascimento apenas os escritos de Greimas (1993). Desde a
sua fundação é possível perceber os vários seguimentos dentro da Se-
miótica. A ploriferação de outras vertentes em semiótica não significa,
à luz do pensamento de Lakatos (1989), que todos os modelos preten-
dem deixar o núcleo central, que é a busca da significação. Além do
mais todos os modelos levam em consideração a conceituação do Pla-
no de Expressão e do Plano de Conteúdo, desenvolvidos pelo linguista
dinarmaquês Louis Hjelmslev (2006) e incrementado à semiótica por
Greimas (1993). Até o que poderia ser um fator que efetivamente possa
ser considerado como o divisor de águas entre as semióticas, que é a
questão do afeto, em essência não o é, pois as correntes teóricas men-
cionadas também abordam o tema afeto.
Para finalizarmos essa parte que envolve a explicação de como
se estrutura o pensamento de Lakatos (1989), apresentamos alguns
pontos elementares que permeiam o núcleo do que vem a ser o Progra-
ma de Pesquisa.
Todo Programa de Pesquisa é composto por:

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a) Núcleo: Refere -se aos pressupostos teóricos considerados ir-
refutáveis pelos pesquisadores;

b) Cinturão Protetor: Conjunto de hipóteses auxiliares que ga-


rantem a irrefutabilidade do núcleo. Algumas das hipóteses
auxiliares eventualmente podem ser refutadas diante de uma
anomalia, isto é, de um problema não resolvido. Essas hipóteses
auxiliares fazem a junção inicial entre a teoria e os fatos obser-
vados, o que garante a integridade do núcleo; e

c) Heurística: Conjunto de regras e métodos que orientam os


cientistas, podendo ser positiva ou negativa. A heurística nega-
tiva consiste em instruir o pesquisador a não ousar em um novo
procedimento metodológico, sinalizando sobre os perigos ine-
rentes a tal ação. A heurística positiva, por sua vez, sinaliza o que
o pesquisador deve fazer para trabalhar com as anomalias que
surgirem ao longo do tempo.

Esquematicamente, temos:

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Na década de 90 vários foram os desdobramentos advindos com
a publicação do livro Semiótica das Paixões (1993), o marco mais impor-
tante para o trabalho com as paixões dentro da semiótica. Desde então
viu-se o seguinte percurso: Anne Hénault, que se voltou para a questão
das paixões do ponto de vista do “vivenciado”, das paixões “não verba-
lizadas”; Eric Landowski, com Passions sans nom, que propõe em suas
pesquisas um modelo de interação alicerçado no que ele denomina “se-
miótica experiencial”, mais “sensível”; e a própria teoria tensiva, que
ganhou espaço após publicações de Claude Zilberberg e da publicação
do livro Tensão e Significação (2001), que possui capítulos específicos,
como os intitulados “Emoção” e “Paixão”.
Todos esses trabalhos possuem a característica, e o mérito, de
se voltarem para uma dimensão passional mais geral do discurso,
para a enunciação em ato, não tendo a preocupação de abordar pai-
xões específicas, como posto em Semiótica das Paixões (1993). Acredi-
tamos que assimilar um conceito novo é, antes de tudo, entender sua
origem. Obviamente, as similaridades são superficiais. Não se pode
querer transitar pelos conceitos como se eles fossem sinônimos pró-
ximos, no entanto, é possível notar muitos pontos de contato, como
poderá ser visto na próxima seção.

Zilberberg, fiel discípulo de Greimas

O modelo semiótico denominado tenso é um dispositivo usado


na semiótica pós-greimasiana que foi trabalhado por Zilberberg (2001;
2011). Nesse modelo, qualquer valor é constituído pela combinação de
duas valências, a saber: intensidade e extensão. Ambas as valências são
de natureza quantitativa; o primeiro tem a ver com o mensurável, o se-
gundo com o contável.

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Ao longo de suas pesquisas, Claude Zilberberg (2001; 2011) bus-
cou analisar os efeitos da aplicação da modelagem tensa como uma so-
breposição aos fundamentos da teoria semiótica greimasiana. Com o
avanço da teoria, outras questões foram sendo abordadas, assim é que
surgiu a necessidade da introdução do aspecto sensível na semiótica,
de modo que se fez necessária certo arranjo teórico para dar conta dos
conteúdos passionais. Assim, a publicação de Semiótica das Paixões
(1993) mostra o trabalho dos semioticistas de lidarem com o sensível.
Para Zilberberg (2011a, p. 45), “a particularidade do ponto de
vista tensivo [reside em] discernir as condições de uma reciprocidade
ininterrupta do afeto e da forma”. Ou seja, a teoria tensiva tem como
um dos pressupostos basilares a gramaticalização do afeto. Assim,
“dizer que Zilberberg teoriza uma gramática do afeto, imanente à lin-
guagem, é simplesmente concluir: o afeto é estruturado em linguagem”
(BEIVIDAS, 2009, p. 12).
Essa questão, como se pode ver, está ligada a temas como afeto,
percepção e significação, pontos ligados intimamente a questões rela-
tivas à Semiótica das Paixões. São essas questões que expressam um
perfil das pesquisas relativas à temática das paixões na área.
Obviamente, o modelo tensivo é uma teoria ainda em desenvol-
vimento, passível de ser reformulada ou reavaliada. À luz da Semiótica
tensiva, chamada por Zilberberg (2011a, p. 12) de “gramática do afeto”,
tal teoria volta seu interesse para o aspecto sensível da significação,
para as gradações e para o acontecimento, concebidos na tensão entre
intensidade e extensidade.
Zilberberg (2001, 2011) buscou generalizar o modelo episte-
mológico de Hjelmslev (2006) a fim de que aplicações dos conceitos
abrangessem todos os domínios semióticos, e não mais se restringisse
somente ao domínio da frase. O semiótico francês buscou nos pares

- 287 -
hjelmslevianos de intenso x extenso e intensivo x extensivo a base teó-
rica e, claro, a inspiração para o par intensidade x extensidade, noções
centrais do ponto de vista tensivo.
O modelo de semiótica tensividade guarda uma relação cara à
Hjelmslev (2006) quando se compreende que a variável determina a
constante e por sua vez a constante rege a variável. Sob o ponto de vista
da tensividade é mesmo que dizer sobre as relações entre sensível e o
inteligível, em que o primeiro é a constante e, em sua posição de regen-
te, rege o inteligível, que está em posição de regido e variável.
A importância dos conceitos de Hjelmslev (2006) é de grande
valor para quem pretende compreender o desenvolvimento da semió-
tica, ainda mais para entender o desenvolvimento da noção de tensivi-
dade redimensionada por Zilberberg (2011), afinal, muitas das contri-
buições hjelmslevianas passou por Zilberberg (2001, 2011) pelo filtro
de Greimas (1993). Obviamente, Zilberberg (2001, 2011) leu Hjelmslev
(2006) e de sua obra retirou muitos outros conceitos tão caros ao mo-
delo tensivo e para a elaboração do modelo de base contínua e gradual
da construção do sentido.
Uma das grandes contribuições de Hjelmslev (2006) para a se-
miótica reside na retomada do modelo saussuriano de silabação para
estendê-lo ao plano de conteúdo. O resultado desse feito é que a sílaba
passou a ser tida como uma categoria abstrata e portadora dos planos
de conteúdo e de expressão.
Pelo fato de Hjelmslev (2006) ter inserido a sílaba em um nível
mais abstrato, possibilitou as condições necessárias para que o eixo
paradigmático recebesse a função de disjunção, enquanto o eixo para-
digmático recebesse a função de conjunção. Sobre esses dois eixos, o
linguista dinamarquês menciona que

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O próprio paradigmático determina o sintagmático, pois, de ma-
neira geral e em princípio, pode-se conceber uma coexistência
sem alternância correspondente, mas não o inverso. É por essa
função entre o paradigmático e o sintagmático que se explica o
seu condicionamento recíproco (HJELMSLEV, 2006, p. 168).

Quando ocorre a explosão silábica ela automaticamente aciona-


rá uma implosão na cadeia da fala, além do mais, a implosão é o prepa-
ro para que ocorra a próxima explosão, a menos que haja uma inter-
rupção do discurso.
Por Hjelmslev, embasado em Saussure, entendemos que a ca-
deia silábica pressupõe uma força de abertura e de fechamento, que
leva da explosão à implosão, força essa que estabelece uma direção e
um ritmo, como foi observado por Tatit (1997), em seu livro Musicando
a semiótica: ensaios.
Diante do que já foi anteriormente trabalhado, Zilberberg (2001,
2011) postula sobre a noção de foria, que pode ser entendida como uma
força que possui a capacidade de engendrar a direcionalidade da silaba-
ção. Pelo novo ponto de vista, os elementos implosivos são acentuais e os
responsáveis por gerar a surpresa, enquanto os elementos explosivos são
difusos e modulatórios. Para Zilberberg (2001, 2011), portanto, a foria é
um esquema contínuo, unido à prosódia e tido como a própria direção.
Apesar de Hjelmslev ter escrito explicitamente sobre a direção, essa no-
ção ficou limitada ao nível frasal, sendo Zilberberg (2001, 2011) o respon-
sável por expandir a direção para o nível do texto.
De forma resumida, a Semiótica tensiva concede espaço privilegia-
do ao contínuo e à afetividade no discurso. Desse modo, o ponto de vista
tensivo estabelece-se em complemento à Semiótica greimasiana, oferece
à teoria a noção de gradação, sem a qual não seria possível analisar alguns
fenômenos cuja característica principal não é a oposição, mas a diferença
em algum grau, ou, nas palavras de Zilberberg (2011a, p. 14), o “intervalo”.

- 289 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tensão e significação pode ser considerado uma das grandes vi-


radas da semiótica greimasiana. Não é de agora que a semiótica grei-
masiana vem assistindo ao desenvolvimento de um novo arranjo quan-
to à abordagem do universo de sentido. A chamada semiótica tensiva,
desenvolvida de modo mais proveitoso principalmente por Claude Zil-
berberg (2001, 2011), aborda de forma mais enfática algumas questões
pouco exploradas ou não esclarecidas no modelo do mestre Greimas
(1993) como, por exemplo, a possibilidade da análise dos conteúdos
sensíveis ao lado dos conteúdos inteligíveis, embora essas noções este-
jam contempladas pelo percurso gerativo do sentido canônico.
Se antes o entendimento era o de que os elementos inteligíveis
regiam os sensíveis, agora, perante um “corpo que sente”, os teóricos se
viram obrigados a repensar se não seriam os conteúdos sensíveis a re-
ger os inteligíveis. Apesar de essa nova abordagem aparentemente ser
um pouco distante do modelo semiótico de Greimas (1993), Zilberberg
(2001, 2011) pontua que a semiótica tensiva não se trata de uma nova
semiótica, portanto, oposta a semiótica dita narrativa, mas sim de uma
abordagem sobre os fenômenos de caráter gradual, dinâmico e contí-
nuo do discurso. Assim, a semiótica tensiva trará modelos capazes de
estudar o discurso em ato bem como as paixões.
Entendemos que a contribuição mais significativa do modelo se-
miótico tensivo reside na incorporação da dimensão afetiva (sensível
e/ou sensorial) pela grandeza denominada intensidade, em oposição
à extensidade, correspondente à dimensão inteligível. A intensidade
governa a extensidade, e a junção de ambas resulta no modelo teórico
chamado tensividade.

- 290 -
A semiótica tensiva é considerada o desdobramento da teoria
semiótica fundada por Greimas e o seu desenvolvimento tem contri-
buído para o alargamento dos estudos sobre o ritmo em diferentes se-
mióticas, por exemplo, visual e sonoro, bem como sua constituição no
conteúdo dessas semióticas.
O modelo canônico, assim como toda teoria, naturalmente foi
avançando, sendo reformulado em determinados pontos, o que gerou
aberturas para novos desdobramentos da teoria. Mas isso não significa
que os novos segmentos teóricos têm a intenção de romper com o mo-
delo original proposto por Greimas (1993).
Nem pelo fato de Zilberberg (2001, 2011) não ter explicitamente
abordado a questão da modalização, não significa que ele abandou a se-
miótica categorial, pois as questões do saber, querer, dever e poder e suas
devidas enquadraturas podem ser colocadas em prática pelo arranjo da
semiótica tensiva. Assim, teremos um poder muito forte, um poder en-
fraquecido, um saber elevado, um saber dissuadido, e assim por diante.
Sob a perspectiva do Programa de Pesquisa de Lakatos (1989), a
aplicação do modelo tensivo sobre o modelo clássico significa que há um
reforço no núcleo teórico da semiótica, e não um caráter de debandada.
O avanço da teoria deve-se aos novos objetos de estudo, pois
eles foram os responsáveis pelo desenvolvimento de semióticas
específicas como, por exemplo, a semiótica plástica (que trata dos
textos visuais), a semiótica literária, a sincrética, a sociossemiótica,
a semiótica tensiva e outras. É imperativo lembrar que todas essas
semióticas tocam sutilmente no tema das paixões, logo, são modelos
cuja base é a semiótica das paixões.
Para lidar com a questão dos afetos e seu impacto sobre o sujei-
to, principalmente com o ritmo das oscilações intensidade (estados de

- 291 -
alma) e extensidade (estados de coisa), Zilberberg (2011) desenvolveu
uma morfologia e uma sintaxe específicas com o intuito de analisar os
afetos. Assim, a semiótica tensiva é o campo teórico em que a inten-
sidade e a extensidade unem-se uma à outra. A primeira abarca a di-
mensão do andamento e tonicidade, por sua vez, a segunda abrange a
dimensão da temporalidade e da espacialidde.
Uma leitura apressada e irreflexiva dos escritos de Zilberberg
(2001, 2011) deixa o leitor confuso, pois a complexidade teórica ocupa
lugar de destaque na hipótese tensiva. Uma leitura mais concentrada,
mais refinada, permite arriscar que ele aposta numa conciliação teó-
rica a fim de tornar improdutiva a discussão acerca da autonomia do
contínuo ou do descontínuo pelo fato de tal discussão sempre levar aos
velhos dilemas filosóficos e psicológicos dos quais a semiótica sempre
tentou esquivar-se.
A Semiótica no Brasil entrou por uma porta antipática, pelo fato
de ela ter nascido sob o viés estruturalista em uma época em que se
rejeitava essa corrente, percebe-se que são poucas as instituições de
ensino que possuem grupos de estudo voltados para a recepção e com-
preensão dos modelos semióticos.
É possível perceber que há um esforço sobre humano por parte
dos semioticistas brasileiros para difundirem a semiótica no Brasil, o
que não é tarefa fácil. Hjelmslev (2006), cujo pensamento é tão caro
ao desenvolvimento da semiótica praticamente não é conhecido em
solo brasileiro. Saussure sempre foi questão de debate, por exemplo,
psicanalistas acusam que ele não trabalhou com o sujeito, outros
pesquisadores dizem que o Curso de Linguística Geral (2006) não
corresponde fielmente ao pensamento do mestre genebrino. São
pequenos, porém significativos detalhes que atravancam a difusuão
das semióticas no Brasil.

- 292 -
Em suma, tudo o que foi dito aqui não passa de uma singela refle-
xão para homenagear uma figura tão singular e um grande pensador que
por meio de um trabalho árduo foi capaz de oferecer novo ponto de vista
a essa perplexidade que é o sensível pela teia da sensibilidade científica.

REFERÊNCIAS

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historiografa linguística: estudos selecionados. Tradutores: Cristina
Altman, Sónia Coelho, Susana Fontes, Rolf Kemmler, Marlene
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__________. Questões que persistem na historiografia linguística. In:
Quatro décadas de historiografa linguística: estudos selecionados.
Tradutores: Cristina Altman, Sónia Coelho, Susana Fontes, Rolf
Kemmler, Marlene Loureiro, Felicidade Morais, Lineide Mosca, Teresa

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Silva. Portugal: Centro de Estudos em Letras Universidade de Trás-os-
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KUHN, Thomas S. A estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo:


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LAKATOS, I. La metodología de los programas de investigación


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- 294 -
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e Waldir Beividas.

ZILBERBERG, Claude. Elementos de semiótica tensiva. São Paulo: Ateliê


Editorial, [2006] 2011. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas.

Pedro Henrique da Silva


Mestre em Letras e Linguística, área de concentração: Estudos Lin-
guísticos, pela Universidade Federal de Goiás (2018). Cursa, atualmen-
te, doutorado em Letras e Linguística pela Universidade Federal de
Goiás. Desenvolve pesquisa na área da Historiografia Linguística, em
que busca evidenciar qual/quais as fontes marcadas e não marcadas do
conceito paixão obra Semiótica das Paixões, de A. J. Greimas e Fonta-
nilli. Cursou Doutorado Sanduíche no Brasil, na Universidade de São
de Paulo, sob a co-orientação do professor doutor Marcelo Módolo.
Bolsista CAPES. e-mail: pedro_silva@discente.ufg.br

Sebastião Elias Milani


Professor Titular da Universidade Federal de Goiás - UFG. Tem expe-
riência na área de Linguística, com ênfase em Historiografia-Lingüís-
tica, atuando principalmente nos seguintes temas: Linguística geral,
Fonologia, Morfologia, Semântica, Linguística Diacrônica, Sociolin-
guística, Teoria Semiótica, e Historiografia-Linguística. É líder do gru-
po de pesquisa em Historiografia-Linguística – IMAGO e da Rede de
pesquisa LINGGO. e-mail: sebaselias37@gmail.com

- 295 -
Lentes viajantes: o olho errante ocidental na
visão de ciência única 1

Thaís Elizabeth Pereira Batista (PPGLL/UFG)

RESUMO

Este texto discute a abordagem etnográfica como proposta metodoló-


gica para estudos da linguagem. O objetivo é discorrer sobre a etnogra-
fia como perspectiva de pesquisa numa proposta que parta da visão de
ciência que tenha compromisso com a empiria, partindo sempre dos
problemas de pesquisa para as categorias de análise e nunca o con-
trário (PINTO, 2015). Parte-se de uma breve discussão sobre a meto-
dologia da pesquisa etnográfica com origem na antropologia e com a
proposição de uma abordagem etnográfica multissituada, como con-
tra-hegemonia (BRIGGS, 2007). Por fim, são apontadas propostas de
metodologias colaborativas, enfatizando a importância das narrativas
e do trabalho com oficinas para a geração de material que possibilite
uma reflexão crítica sobre a linguagem.
Palavras-chave: Etnografia multissituada; Contra-hegemonia;
Metodologias; Linguística.

1 Este texto foi devidamente revisado pela autora e sua orientadora, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade da autora com anuência da orientadora.
ABSTRACT

This paper discusses the ethnographic approach as a methodological


proposal for language studies. The objective is discuss ethnography as
research perspective in a proposal that starts from the science vision
that is committed to empiricism, always starting from research pro­
blems for the analysis categories and never the opposite (PINTO, 2015).
It starts with a brief discussion about methodology of ethnographic
research with anthropological origins and it proposes a multisituated
ethnographic approach, as counter-hegemony (BRIGGS, 2007). Lastly,
proposals for collaborative methodologies are pointed out, emphasizing
the narratives and work with workshops importance for the generation
of material that enables a critical reflection on language.
Keywords: Multisituated ethnography; Counter-hegemony;
Methodologies; Linguistics.

“O olho ocidental tem sido fundamentalmente um olho errante,

uma lente viajante”. (Donna Haraway, 1995, p. 25-26)

INTRODUÇÃO

A escolha da metodologia é parte fundamental no desenvolvi-


mento da pesquisa, principalmente para quem, como eu, adota uma
visão de ciência como produção de conhecimento situado, no sentido
atribuído por Donna Haraway (1995). As formas como os dados serão
gerados e analisados são escolhas, por isso não são neutras, pois a gera-
ção e o olhar que se dá aos dados sempre partem de algum lugar.

- 297 -
Reconhecendo as limitações dos modelos teóricos mais tradicio-
nais na produção dos conhecimentos, defendo pesquisas em ciências
humanas, no geral, e em linguística, especificamente, que primem pelo
compromisso com a empiria, produzindo um conhecimento situado
(HARAWAY, 1995) e levando em consideração que estudos do campo apli-
cado da linguagem precisam realizar análises que partam do problema
para a escolha dos modelos de análise e não o contrário (PINTO, 2015).
Haraway (1995, p. 16), da perspectiva dos estudos feministas, há
muito aponta para a necessidade de um projeto de ciência sucessora que
possibilite a emergência de teorias críticas “sobre como significados e
corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para
viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro.”
A autora questiona o que tem contado como conhecimento
durante toda a história da ciência, na qual uma linguagem é imposta
como única tradução possível na produção do conhecimento, o que a
autora chama de reducionismo, comparando-o ao papel do dinheiro
nas trocas capitalistas (HARAWAY, 1995).
Assim, Haraway defende que o conhecimento parcial é a única
forma de conhecimento racional. Ela defende que a única objetividade
possível se relacionada com o posicionamento, pois “O único modo de
encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particu-
lar” (HARAWAY, 1995, p. 33). As produções epistemológicas em ciências
humanas “São propostas a respeito da vida das pessoas; a visão desde
um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e
estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo.
Só o truque de deus é proibido” (HARAWAY, 1995, p. 30).
Haraway (1995) utiliza a metáfora da visão para nos mostrar que
objetividade na ciência deve ser compreendida como saberes locali-
zados corporificados. Isso porque os corpos que produzem o conheci-

- 298 -
mento não são neutros e não observam de lugar nenhum como quis nos
convencer o discurso científico mainstream produzido essencialmente
por homens brancos europeus. Por isso, é preciso associar nossos ob-
jetivos e instrumentos de pesquisa nomeando onde estamos e também
onde não estamos.
A autora argumenta em favor do conhecimento situado e cor-
porificado ressaltando a importância de olhar a partir da periferia,
contudo com atenção para os perigos de se apropriar ou romantizar
essa visão de baixo. A visão dos saberes subjugados é importante na
produção de saberes “localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade
de redes de conexão, chamadas de solidariedade em política e de con-
versas compartilhadas em epistemologia”, como uma alternativa ao
relativismo (HARAWAY, 1995, p. 23).

A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete vi-


são objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a
questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas
visuais. A perspectiva parcial pode ser responsabilizada tanto
pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos. To-
das as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade
são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos
de corpo e mente, sobre distância e responsabilidade, embuti-
das na questão da ciência para o feminismo. A objetividade femi-
nista trata da localização limitada e do conhecimento localizado,
não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse
modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprende-
mos a ver (HARAWAY, 1995, p. 20-21, grifos meus).

Por isso, a investigação científica nos estudos linguísticos deve


buscar partir dos dados para a teoria, de forma que, na prática, é ne-
cessário um contato inicial com o campo para definir as melhores
estratégias de geração de dados e as teorias mais adequadas para sua
interpretação. Contudo, como pesquisadoras/es não somos tábula rasa

- 299 -
e carregamos conosco toda uma formação científica, acadêmica e pes-
soal, moldada pelos contextos nos quais nos inserimos. Logo, quando
entro em um empreendimento de pesquisa, levo comigo aspectos de
minha formação e até mesmo minhas crenças moldadas sócio-histori-
camente, além das minhas experiências como mulher branca feminis-
ta comprometida com a causa antirracista e que produz conhecimento
em ciências da linguagem a partir de um país de terceiro mundo. Tudo
isso interfere na escolha do tema e na postura teórico-metodológica.
Pensando nisso, ainda que a pesquisadora entre no campo de pes-
quisa com o objetivo de gerar dados linguísticos para uma seleção teórica
posterior, sempre trazemos conosco as orientações teóricas e metodo-
lógicas que têm feito parte de nossos estudos. Foram essas orientações
que me levaram a eleger o método e a perspectiva etnográfica como mui-
to eficientes para olhar problemas e questões de linguagem.
Além disso, considero necessário manter um posicionamento éti-
co com a pesquisa comprometido com a empiria, por isso é essencial li-
dar com um aparato metodológico dinâmico e que permita olhar a com-
plexidade dos contextos e eleger quais ferramentas teóricas ajudarão a
explicar o que acontece nos dados diante dos problemas de pesquisa.
Também, assumo que a metodologia empregada é o que modela o
trabalho de pesquisa, e é a partir dela que serão selecionados, registra-
dos e arquivados os dados empíricos. O tipo de dado que se escolhe gerar
também diz muito sobre a pesquisa, sobre a pesquisadora e sobre o tipo
de trabalho científico que se deseja empreender. Não tenho aqui a pre-
tensão da neutralidade científica, uma vez que esta não existe senão no
pensamento cartesiano positivista moldado pela ideia de mundo moder-
no colonial. Assim como Mary Louise Pratt (1991), considero que vivemos
em zonas de contato, que não podem ser representadas por modelos sim-
plificados e simétricos de linguagem que levam a definições limitadas de
comunidades imaginadas como simétricas, igualitárias e homogêneas.

- 300 -
Da mesma forma, assim como faço uma escolha ao eleger um
aparato teórico-metodológico para minha pesquisa, certamente a for-
ma de tratamento dos dados também é uma escolha que perpassa toda
a minha formação intelectual, científica e pessoal. Por isso, seleciono
dados que, acredito, possam me auxiliar a olhar para problemas de lin-
guagem que julgo serem relevantes cientifica e socialmente. E como
afirma Pratt (1991, p. 38), tudo isso “depende de quais funcionamentos
de linguagem você quer ver ou ver primeiro, do que você escolhe defi-
nir como normativo”2, ou conforme Haraway (1995), da nossa respon-
sabilidade com o que aprendemos a ver. Como apontam Blommaert
e Jie (2010), as escolhas são determinadas por quadros teóricos e in-
fluenciam na geração dos dados.
Por isso, são importantes pesquisas linguísticas que se amparam
no paradigma qualitativo interpretativista (DENZIN; LINCOLN, 2006;
MARCONI; LAKATOS, 2011) que priorizam ferramentas de geração de
dados da etnografia multissituada (BRIGGS, 2007), buscando gerar da-
dos em diferentes ambientes. Essa proposta etnográfica multissituada
é fundamental, pois “hibridizações, conflitos e qualquer tipo de con-
tinuum linguístico tão comuns no mundo contemporâneo (...) sequer
serão visibilizados pela metodologia homogeneizante e estabilizante”
(PINTO, 2013, p. 131).
Considerando essa discussão, este texto defende a etnografia
crítica como uma perspectiva teórico-metodológica importante para
abordar questões de linguagem, pois permite que a pesquisa seja guia-
da e moldada a partir de um conhecimento aprofundado do campo.

2 It depends on what workings of language you want to see or want to see first, on what
you choose to define as normative.

- 301 -
Assim, está dividido em quatro partes além desta introdução. Na
seção 2 trato sobre a tradição etnográfica com origem na antropologia
e sua introdução em outras áreas do conhecimento, como a linguística.
Na terceira seção abordo a perspectiva etnográfica crítica, como con-
tra-hegemonia, discutindo sobre a etnografia multissituada. A seção 4
aborda a importância da narrativa para os estudos linguísticos, discu-
tindo metodologias colaborativas e oficinas para geração de dados et-
nográficos. Por fim, nas conclusões, defendo a visão apresentada como
fecunda para os estudos da linguagem.

1 Tradição etnográfica e os perigos do olho errante ocidental:


as lentes viajantes

Conforme aponta Hymes (1996), que traça um histórico da etno-


grafia, a origem etnográfica está na antropologia, de forma que não é
uma maneira nova de fazer pesquisa, ainda que possa ser para algumas
áreas do conhecimento, considerando-se que as ferramentas precisam
ser ajustadas para os problemas que cada área prioriza. Para o autor, o
tema principal da etnografia são as pessoas e os seus mundos.
Reconhecida como metodologia científica de pesquisa a partir da
proposta de rigor em métodos e análise apresentada pelo antropólogo
polonês Malinowski (1976 [1922]), a etnografia possui longa tradição na
antropologia. É nessa área que o método etnográfico adquiriu o status
de ciência na visão moderna expandindo, posteriormente, para outras
áreas carregando consigo, muitas vezes, esse ideal da ciência moderna:
neutralidade, distanciamento entre pesquisador e objeto de pesquisa,
garantia de não interferência no conhecimento produzido. Apesar de
nascida na antropologia, a etnografia tem sido companheira de longa
data de outras tradições de estudos, como história, filologia, psicanálise,
arqueologia, direito, medicina e arte (BLOMMAERT; JIE, 2010).

- 302 -
Mesmo entre antropólogas/os, não há uma visão unificada so-
bre a abordagem, e nessa área há resistência para aceitar a integração
entre etnografia e outros modos de fazer pesquisa. No entanto, Hymes
(1996) considera a interação entre pesquisa etnográfica e outras, como
a educacional, uma mudança para ambas.
Ainda, essa forma de fazer pesquisa não deve ser vista como um
pacote de práticas, sob o risco de se tornar modismo. Como ela não ofe-
rece um pacote fechado, como métodos quantitativos e experimentais,
aprender a fazer etnografia é uma construção, na qual se aprende en-
quanto está fazendo. Na verdade, a prática etnográfica envolve partici-
pação e observação, ou seja, observar o que faz com que a observação e
a participação sejam sistemáticas (HYMES, 1996).
Para Hymes (1996), a etnografia pode ter características mais
gerais para conhecer uma realidade menos abordada, como um pré-
-trabalho de campo que abra para novos questionamentos e interesses
de pesquisa. Ou ainda assumir um caráter de se orientar por tópicos
ou hipóteses, quando busca compreender lacunas deixadas em co-
nhecimentos mais abrangentes. Isso porque ao conhecer muitos pa-
drões culturais e funcionamentos discursivos, questões mais precisas
podem ser formuladas, e conforme aponta o autor, há necessidade de
avanço no estágio da etnografia orientada por hipóteses.
Para o autor, a antropologia tem como missão contribuir em
partes para ajudar a superar limitações de categorias que componham
uma visão homogênea de civilização única. Por isso, é da natureza do
método ser dialético, de forma que parte de questionamentos iniciais,
mas nada impede que tais questionamentos sejam alterados durante
o processo. Por isso, a etnografia é aberta, suscetível de autocorreção.
Assim, um treinamento adequado para aprender a fazer etnografia en-
volve treinar para aprender a obter informações e progredir na pesqui-

- 303 -
sa, buscando novos questionamentos ou novas ferramentas de pesqui-
sa quando necessário (HYMES, 1996).
Dessa forma, conforme a visão de Hymes (1996), devemos des-
confiar de certas ferramentas, como questionários prontos antes do
contato inicial com o campo de pesquisa, pois essas ferramentas devem
ser planejadas após o contato e observação/participação do/no contex-
to a ser estruturado para que sejam efetivamente válidas. Evidente-
mente, podemos ter um esboço dessas ferramentas, mas elas precisam
estar abertas para adequações ao contexto no qual serão aplicadas.
Portanto, é preciso atenção ao pensar o método etnográfico para
evitar que nossa prática atual se funde na concepção de ciência moder-
na na qual foi criada. Como nos preveniu Haraway (1995, p. 25-26) “O
olho ocidental tem sido fundamentalmente um olho errante [...]” Essa
crítica já tem sido traçada na antropologia e também em outras áreas
que recorrem à etnografia como perspectiva e metodologia de pesquisa.

2 Etnografia crítica como contra-hegemonia: novas lentes


para ver problemas antigos e atuais

Blommaert e Jie (2010), em seu manual de etnografia, caracte-


rizam o campo de pesquisa como caótico e extremamente complexo.
No entanto, a palavra “caótico” não tem uma conotação negativa, mas
serve para corroborar o que postula Hymes (1996) sobre a caracterís-
tica dialética da etnografia e sobre sua capacidade de autocorreção e
mudança no decorrer do processo. Isso porque, conforme apontam
Blommaert e Jie (2010), o plano de pesquisa precisa ser adaptado à rea-
lidade encontrada, que é sempre complexa.
Pesquisas de natureza etnográfica com perspectiva contra-hege-
mônica (BLOMMAERT; JIE, 2010) buscam geração de material amplo e
que possibilite uma discussão crítica que desafie ideias estabelecidas.

- 304 -
Blommaert e Jie (2010) propõem algumas correções à visão de Hymes,
que tenta recuperar a história com o objetivo de oferecer uma base teó-
rica sólida para a etnografia. A autora e o autor consideram a etnogra-
fia como um paradigma.
Ainda, apontam a importância da etnografia numa epistemolo-
gia funcionalista que observa o funcionamento da língua e como ela
opera para as pessoas como seres sociais. Como certa tradição funcio-
nalista busca a raiz de suas questões na antropologia, diferentemente
de outros ramos da linguística, a etnografia se coloca como um para-
digma essencial. Isso porque a “língua é o contexto, é a arquitetura do
próprio comportamento social e, portanto, parte da estrutura e rela-
ções sociais” (BLOMMAERT; JIE, 2010, p. 7).
Dessa forma, Blommaert e Jie (2010) apresentam sugestões para
o trabalho de campo etnográfico. O ato de perguntar, por exemplo, é
considerado pouco profícuo para descobrir o que deseja. Ademais, o
trabalho de campo auxilia na descoberta de coisas que nem sempre são
vistas como importantes por outros modelos de pesquisa, pois traba-
lha com descrição densa do contexto pesquisado.
Segundo a autora e o autor, nada é estático na visão etnográfi-
ca. Além disso, a abordagem apresenta um potencial crítico possibi-
litando o feedback entre as ações comunicativas e relações sociais. Tal
crítica significa que possibilita a reflexão sobre os valores que são atri-
buídos a diferentes práticas comunicativas na vida social, possibilitan-
do pensar sobre de que maneira hierarquias linguísticas se mostram
como um espelho ampliado das hierarquias de poder que estruturam
as desigualdades sociais (BLOMMAERT; JIE, 2010).
Adicionalmente, Blommaert e Jie (2010) sugerem a prática da
etnografia como contra-hegemonia, apontando para mais um poten-
cial desse paradigma, que é desafiar visões estabelecidas na sociedade,

- 305 -
com possibilidade de questionar normas e expectativas, sendo capaz
de desconstruir a imaginação. É um empreendimento crítico. A etno-
grafia também é crítica por sua visão caleidoscópica da realidade (CA-
VALCANTI, 2006), que não reduz a complexidade, mas a enxerga como
uma “colcha de retalhos de atividades sobrepostas”3 (BLOMMAERT;
JIE, 2010, p. 11).
Além disso, é importante não esquecer a relação mútua entre et-
nógrafa e participantes da pesquisa, pois como apontam Blommaert e
Jie (2010), considerar essa mutualidade e que tal relação muda as duas
partes envolvidas também é contra-hegemonia. O que corrobora os
apontamentos de Hymes (1996) sobre a necessidade de considerar a
etnógrafa como um fator na investigação, pois não é possível estar em
uma pesquisa apenas como observadora. A presença da pesquisadora
é inevitavelmente um fator que afeta todo o contexto da pesquisa e que
não pode ser apagado.
Essa mutualidade não precisa ser vista como algo prejudicial,
pois é ela que permite que as trocas sejam mais produtivas tanto para
quem pesquisa como para quem participa da pesquisa, de modo que o
trabalho possa atender a interesses de ambas. O lugar de quem pesqui-
sa nunca deve ser apagado ou colocado como neutro (HARAWAY, 1995),
pois a pesquisadora sempre vai influenciar nas interações da pesquisa,
assim como todas as participantes envolvidas. E para Hymes (1996), uma
etnografia apropriada para uma sociedade contra-hegemônica com po-
tencialidade precisa ajudar a superar a dicotomia que divide nossa so-
ciedade entre quem conhece e quem é conhecida/o (HYMES, 1996).

3 Patchwork of overlapping activities.

- 306 -
Evidentemente não tenho a pretensão de afirmar que exista sime-
tria, pois sabemos que todas as interações são assimétricas e que refle-
tem hierarquias diversas. Contudo, isso pode ser atenuado adotando um
posicionamento em que as participantes também possam opinar sobre
as atividades propostas e propor atividades que sejam de seu interesse,
não sendo a pesquisadora a única a tomar tais decisões. Pois como apon-
ta Haraway (1995, p. 36), os saberes localizados precisam que as pessoas
não sejam vistas como objetos ou como uma tela ou ainda um recurso,
elas devem ser vistas como agentes, pois “a própria agência das pessoas
estudadas transforma todo o projeto de produção de teoria social.”
É comum que as pessoas que são “pesquisadas” em trabalhos
científicos sejam chamadas de participantes, mas em geral elas são
vistas mais como “objetos” da pesquisa, sem de fato poder participar.
Considero essencial que participantes possam de fato participar da
pesquisa, sugerindo atividades e participando efetivamente nas deci-
sões e conduções das atividades propostas pela pesquisadora. Isso ga-
rante um compromisso ético e responsável com a pesquisa.

Os atores existem em muitas e maravilhosas formas. Explicações


de um mundo “real”, assim, não dependem da lógica da “descober-
ta”, mas de uma relação social de “conversa” carregada de poder. O
mundo nem fala por si mesmo, nem desaparece em favor de um
senhor decodificador. Os códigos do mundo não jazem inertes,
apenas à espera de serem lidos [...] (HARAWAY, 1995, p. 37).

Penso tal colaboração como a possibilidade de produção con-


junta de material. Isso porque entendo, com base nos pressupostos da
sociolinguística da globalização (BLOMMAERT, 2010; 2012), que em
ambientes de alta complexidade e diversidade como os que temos no
mundo moderno colonial, as percepções das/os participantes da pes-
quisa são tão importantes como as percepções de pesquisadora e que,

- 307 -
se colocadas em conjunto na análise, podem permitir uma visão ampla
da situação sociolinguística pesquisada.
Assim, entrevistas e notas de campo, tradicionais ferramentas et-
nográficas, são importantes, mas não as principais ferramentas, pois em
uma abordagem multissituada, os dados são gerados em diferentes mo-
mentos de contato com as/os participantes da pesquisa e, além disso, os
dados também são gerados em atividades diversas que são decididas e di-
recionadas pelo grupo de participantes em conjunto com a pesquisadora.
A questão da representatividade de pesquisas etnográficas pode
ser questionada, pois pesquisas qualitativas às vezes são contestadas so-
bre a validade de seus achados e possibilidade de generalizações. É im-
portante ressaltar que a etnografia é indutiva, o que significa que parte
de evidências empíricas para a teoria, de forma que a análise dos casos
se aplica a categorias maiores que se aplicam aos modelos teóricos, po-
dendo até mesmo fazer generalizações em alguma medida. Isso porque
o caso estudado pertence a uma categoria maior de casos e pode revelar
muito sobre grandes coisas na sociedade (BLOMMAERT; JIE, 2010).

3 Enxergando com as novas lentes: metodologias


colaborativas que favorecem a visão

Conforme Hymes (1996), as narrativas, por serem um contínuo


com a vida comum, possuem papel importante na etnografia, pois o
conhecimento que buscamos já é conhecido por outras pessoas, e o tra-
balho etnográfico tem a ver com sistematizar esse conhecimento para
análise. Segundo Ochs (2006, p. 269), as narrativas “são centrais para
tecer a estrutura da vida social” sendo capazes de construir mundos
compartilhados, envolvendo complexos processos cognitivos “como
lembrar, situar, antecipar, representar, avaliar e, de outra forma, inter-

- 308 -
-relacionar eventos da vida”. São experiências dialógicas construídas
coletivamente nas interações sociais.
Assim, a abordagem etnográfica (BLOMMAERT; JIE, 2010), que
busca uma perspectiva multissituada (BRIGGS, 2007), prevê a geração
de materiais como narrativas biográficas promovidas em oficinas co-
laborativas (KEATING, 2015), sendo importante o uso de metodologias
emancipadoras de reflexão linguística aplicadas em contextos inter-
culturais. Tais metodologias podem ser materializadas por meio de
oficinas narrativas biográficas (LENCHER, 2015) e oficinas colaborati-
vas (KEATING, 2015) e de retrato linguístico (BUSCH, 2010, 2012, 2017)
que visam promover a reflexão sobre os usos de repertórios linguísti-
cos diversos, possibilitando fortalecimento e melhora da autoestima
das pessoas que participam. Oficinas dessa natureza têm demonstrado
um potencial analítico transformador para a pesquisa linguística nas
realidades superdiversas (VERTOVEC, 2007).

Se esta orientação para a superdiversidade é relevante para os


estudos das migrações (Vertovec, 2006), ela torna-se particular-
mente significativa nos estudos sociolinguísticos e da linguagem,
que assumem o princípio desta complexidade e desenvolvem a
perspectiva discursiva e etnográfica crítica (KEATING, 2015, p. 8).

Segundo Keating (2015), metodologias de pesquisa colaborativa


e biográfica enfocam a trajetória de pessoas migrantes, destacando os
cruzamentos das dinâmicas de mobilidade que fazem parte do fenô-
meno da migração. Tal enquadre possibilita explicitar as perspectivas
das/os participantes sobre suas experiências, impactando de alguma
forma nas experiências de todas as pessoas envolvidas no contexto
investigado, buscando ir além de um fim objetificado para a pesquisa
social, pois busca um trabalho colaborativo que permita uma relação
dialógica entre pesquisadora e participantes. Para a autora, o trabalho

- 309 -
de pesquisa é planejado e regulado, mas o enquadre biográfico e cola-
borativo permite lidar melhor com as contingências do campo.
No entanto, a autora considera que isso não é relativizar a abor-
dagem nem escapar da prática institucional, pois explora as oficinas
“como um dispositivo, ou seja, um lugar de controlo institucional que
condiciona conhecimentos, e logo, propício a resistência, colisão e co-
lusão” (KEATING, 2015, p. 12).
Tais metodologias podem ser materializadas em atividades que
adotem diferentes usos linguísticos comunicativos, orais, letrados e
multimodais. São produzidos materiais como narrativas orais, escritas
e desenhos ou cartuns, por exemplo (KEATING, 2015).

Pela sua natureza etnográfica, colaborativa, multidisciplinar e


participativa, mas também pelo olhar sustentado para o material
produzido ao longo do projeto, as oficinas biográficas providencia-
ram uma oportunidade única de recolha, registro e colaboração
sobre os processos semióticos de construção da experiência mi-
gratória, de que só riscámos a superfície (KEATING, 2015, p. 26).

Keating (2015) utiliza essas metodologias em uma pesquisa so-


bre a experiência de migrantes brasileiras em Portugal. A abordagem
mostrou a complexidade e mecanismos de poder nas negociações em
diferentes eventos interacionais em trajetórias simultaneamente lo-
cais e não-locais.
Numa perspectiva semelhante, Busch (2010; 2012) mostra como
abordagens biográficas centradas nas pessoas que participam da inte-
ração podem ser úteis para a pesquisa linguística. Para Busch (2010,
p. 283), esse tipo de metodologia permite, por exemplo, abordar como
ideologias linguísticas monolíngues alimentam “tensões e conflitos
dentro de uma comunidade escolar”.
Ao propor a elaboração de retratos linguísticos, que são com-
plementados com narrativas individuais, a autora não busca apenas

- 310 -
histórias específicas, mas ver as “dimensões sociais das práticas lin-
guísticas e as ideologias que expõem” (BUSCH, 2010, p. 284). Tal prática
multimodal permitiu no contexto de pesquisa da autora uma análise
de práticas heteroglóssicas em contexto escolar na África do Sul pós
apartheid, possibilitando valorização de tais práticas além de “a com-
preensão e a conscientização das abordagens médias que apontam
para as maneiras pelas quais os princípios da igualdade linguística na
constituição sul-africana podem ser implementados no nível da escola
e da sala de aula” (BUSCH, 2010, p. 293).
Busch (2012, p. 503) considera essa abordagem fundamental
para a investigação de repertórios linguísticos, pois envolve “leitura
atenta da representação visual e verbal da experiência linguística e
dos recursos linguísticos”, tendo sido usada em pesquisas sobre di-
versidade linguística.
A pesquisa biográfica se embasa em abordagens qualitativas
e interpretativas, que consideram que a realidade social não é um fe-
nômeno que permite observação objetiva, mas uma visão que precisa
ser mediada pela interpretação, buscando com suas ferramentas cons-
truir o conhecimento social por meio da reconstrução (BUSCH, 2017).
Um potencial dessa abordagem está no cuidado que tem com as-
simetrias nas relações pesquisadora/participantes, pois não dar atenção
a essa assimetria pode incorrer na perda da propriedade da história por
parte das participantes, algo que é desempoderador (BUSCH, 2017).
A autora tem adotado essa abordagem sob um ponto de vista
que não considera língua como categoria delimitada. Ao invés dis-
so, ela sugere a reflexão linguística sob a perspectiva do repertório
linguístico, na qual as/os participantes são convidadas/os a pensar
suas práticas como códigos, formas de comunicação e expressão que
desempenham algum papel em suas vidas. Essas práticas devem ser

- 311 -
coloridas no desenho de um corpo humano que representa o corpo de
cada participante (BUSCH, 2012).
O que será considerado língua, código ou recurso é decisão de
cada participante da oficina. A imagem colorida é um meio para pro-
mover reflexão e obter a explicação de cada pessoa sobre o que consi-
dera como suas práticas linguísticas. Além disso, as metáforas do cor-
po e das cores estruturam as narrativas que a atividade desencadeia.
Logo, não se trata de representar práticas ou repertórios linguísticos
como se houvesse uma única representação correta e objetiva, mas de
elaborar uma reconstrução desses repertórios como práticas sociais
(BUSCH, 2012).

CONCLUSÕES PARCIAIS PARA SABERES LOCALIZADOS

Como é possível depreender da minha argumentação neste tex-


to, não defendo o olhar etnográfico clássico que sugere um modelo de
ciência neutro desinteressado, como quer o olho errante ocidental
afetado pela visão de ciência moderna, mas sim a adoção da perspec-
tiva etnográfica crítica, vista como contra-hegemonia, que considera a
mutualidade entre as pessoas envolvidas em uma pesquisa, reconhe-
cendo a interferência da pesquisadora e a agência das participantes,
como uma maneira de olhar para a pesquisa científica com novas len-
tes (BLOMMAERT; JIE, 2010; HARAWAY, 1995).
Por isso, coaduno com uma prática etnográfica multissituada
(BRIGGS, 2007), o que significa dizer que considero importante gerar
dados de maneiras diversas e em vários ambientes. Por isso, apresentei
metodologias colaborativas que têm sido usadas para facilitar a visão
com essas novas lentes.
Portanto, defendo a etnografia crítica como perspectiva, um
modo de enxergar a pesquisa, e não apenas como procedimentos espe-

- 312 -
cíficos. Trata-se de uma forma de olhar a pesquisa alinhada à visão de
Haraway (1995, p. 31) sobre conhecimentos situados e corporificados,
vinda das inquietações da teoria feminista ao pensar uma “outra” ciên-
cia, “a ciência e a política da interpretação, da tradução, do gaguejar
e do parcialmente compreendido.” Uma prática científica crítica de
pessoas múltiplas que oferece uma visão de grande potencial para os
estudos contemporâneos da linguagem.

REFERÊNCIAS

BLOMMAERT, Jan. The Sociolinguistics of Globalization. Cambridge:


University Press, 2010.

BLOMMAERT, Jan. Citizenship, language & superdiversity: Towards


complexity. Working Papers in Urban Language & Literacies, n. 95.
2012. Disponível em: <http://www.kcl.ac.uk/sspp/departments/
education/research/ldc/publications/workingpapers/95.pdf>.

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Thaís Elizabeth Pereira Batista


Estudante de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística da Faculdade de Letras na Universidade Federal de Goiás
(UFG). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). Desenvolve pesquisa sob a perspectiva etnográfica
crítica com foco em sociolinguística da globalização, ideologias
linguísticas e metapragmáticas. E-mail: thaiselizpbatista@gmail.com.

- 315 -
Desenvolvimento linguístico em Demência
frontotemporal: uma revisão sistemática
Thaís Fernanda Amorim Cassiano Marafon (PPGLL/UFG)
Mariana Maia Cabral (PPGLL/UFG)
Elena Ortiz Preuss (PPGLL/UFG)

RESUMO

Sabe-se que indivíduos com Demência frontotemporal (DFT) apresen-


tam comprometimento no desempenho linguístico, em vista disso este
estudo1 tem como objetivo realizar um levantamento nas bases de dados
SciELO, PubMed, LILACS e BDTD, entre os anos 2000 e 2020, incluin-
do estudos nacionais e internacionais, que analisem o desempenho
da linguagem em indivíduos com DFT, e/ou seus subtipos e variantes.
Verificou-se que o número de trabalhos nessa área ainda é reduzido,
sendo mais frequentes os estudos internacionais do que nacionais com
amostra de população brasileira. Em termos dos principais achados, os
estudos apontam para dificuldades no acesso lexical e produção oral.
Prejuízos nas funções executivas provocam em maior ou menor grau,
consequências no processamento da linguagem já que a demência afeta

1 Este texto foi devidamente revisado pelas autoras e sua orientadora, e os conceitos aqui
mobilizados são de responsabilidade das autoras com anuência da orientadora.
o lobo frontal e temporal do cérebro, portanto, a DFT compromete o de-
sempenho tanto no aspecto cognitivo quanto no linguístico.
Palavras-chave: Linguagem; Demência frontotemporal;
Levantamento; Diagnóstico diferencial; Funções executivas.

ABSTRACT

It is known that individuals with Frontotemporal Dementia (DFT) have


impaired linguistic performance, therefore, this study aims to conduct
a survey in the databases SciELO, PubMed, LILACS and BDTD, between
the years 2000 and 2020, including national studies and international,
that analyze the language performance in individuals with DFT, and / or
its subtypes and variants. It was found that the number of studies in this
area is still low, with more frequent international studies than national
studies with a sample of the Brazilian population. In terms of the main
findings, studies point to difficulties in lexical access and oral produc-
tion. Impairments in executive functions have, to a greater or lesser ex-
tent, consequences on language processing since dementia affects the
frontal and temporal lobe of the brain. Therefore, DFT compromises
performance, both cognitive and linguistic.
Keywords: Language; Frontotemporal dementia; Survey; Differential
diagnosis; Executive functions.

INTRODUÇÃO

A demência frontotemporal (DFT) é o segundo tipo mais comum


de demência (BRANDÃO, 2010; SAMARA, 2005), sendo a Doença de Al-
zheimer (DA) a mais recorrente (RAMOS e HAMDAN, 2014). A DFT é con-
ceituada por Ramos e Hamdan (2014, p. 394) como: “[...] um conjunto de

- 317 -
síndromes neurodegenerativas associadas que comprometem progres-
sivamente o comportamento e/ou a linguagem.” Dentre os comprome-
timentos linguísticos gerados pela DFT constam a demência semântica
(DS), que afeta a compreensão de palavras, e a afasia progressiva primá-
ria (APP), que prejudica a articulação da fala (PARMERA; NITRINI, 2015).
Caixeta (2010, p. 72) argumenta que “uma característica típica da DFT é
a progressiva redução do output verbal, que passará por uma linguagem
lacônica, monossilábica, para depois culminar em mutismo total”, por
isso o diagnóstico preciso e a intervenção neurolinguística imediata são
primordiais na qualidade de vida dos pacientes.
Ademais, como a DFT é comumente confundida com a DA, pela
similaridade dos aspectos nosológicos, estudos que abordam as caracte-
rísticas da DFT e de seus subtipos e variantes (DS e APP) são necessários
para ampliar a compreensão sobre a demência e, consequentemente,
contribuir com a celeridade e acurácia do diagnóstico e da intervenção.
Nesse contexto, este estudo visa a verificar quais as evidências
das pesquisas sobre o desenvolvimento2 linguístico de indivíduos com
DFT. Para isso, propõe-se a: i) realizar um levantamento em bases de
dados on-line, de trabalhos nacionais e internacionais, que analisem o
desenvolvimento da linguagem em indivíduos com DFT, e/ou seus subti-
pos e variantes; e ii) realizar uma revisão sistemática das principais ca-
racterísticas da linguagem em pacientes com DFT.
Este capítulo está estruturado da seguinte forma: primeiro
apresentamos uma breve revisão teórica acerca da DFT e linguagem;
em seguida descrevemos a metodologia e os critérios adotados para a

2 O termo desenvolvimento, neste texto, refere-se ao estágio em que o indivíduo está e


ao uso que faz da linguagem, sem abordar aspectos relacionados com o processo de
aquisição, devido ao escopo do trabalho.

- 318 -
seleção dos trabalhos aqui expostos; posteriormente, apresentamos
a análise de cada estudo selecionado; e, por fim, pontuamos algumas
considerações gerais sobre o levantamento apresentado.

1 Demência frontotemporal e linguagem

O conceito tradicional de demência pressupõe prejuízos, princi-


palmente, na memória e declínio cognitivo, com comprometimento so-
cial e funcional. Entretanto, enquanto a doença de Alzheimer é mais co-
nhecida e tem significada incidência em idosos, a demência de tipo não
Alzheimer é relativamente nova, ganhando destaque nos anos de 1990.
Essa demência apresenta características e sintomas comportamentais e
de linguagem diferentes da DA. As alterações comportamentais podem
estar relacionadas à demência oriunda das degenerações lobares fron-
totemporais (DLFTs). Por sua vez, as alterações linguísticas podem estar
relacionadas à DFT e suas variantes, como a APP (relacionada com agra-
matismo. parafasias fonêmicas e apraxia da fala, por exemplo) 3, e a DS
(relacionada com parafasia semântica e perda do conhecimento de pala-
vras, por exemplo) (CAIXETA, 2010; PARMERA; NITRINI, 2015).
Os estudos têm mostrado que os lobos frontais e temporais são
os mais comprometidos na DFT (CAIXETA, 2010; PARMERA; NITRINI,
2015; SAMARA, 2005). Dessa forma, os pacientes com DFT apresentam
sintomas como “alteração de personalidade, comprometimento do in-
sight, perda do tato social, prejuízo das funções executivas” (CAIXETA,
2010, p. 79). Com base nos sintomas pode-se caracterizar uma DFT, po-
rém não como um grupo homogêneo.

3 Essas afasias se referem a distúrbios neurológicos que podem afetar a produção de morfe-
mas gramaticais (agramatismo), a seleção e produção de fonemas ou palavras (respectiva-
mente parafasias fonêmicas ou semânticas) ou a funcionalidade motora da fala (apraxia).

- 319 -
Conforme Gazzaniga (2006), lesões nos lobos frontais têm con-
sequências diretas no desempenho cognitivo e linguístico, pelo fato de
que as funções executivas (FE) estão localizadas nessa região cerebral.
Essas funções são responsáveis por planejar, inibir, decidir, reorgani-
zar as atitudes e ações (DIAMOND, 2014), por isso são necessárias para
que os indivíduos possam se expressar e processar a linguagem.
Devido à intrínseca relação entre DFT e linguagem, já que a neu-
rofisiologia associada à doença coincide com a neurofisiologia ligada
às habilidades linguísticas, considera-se fundamental compreender
quais os efeitos da DFT no desenvolvimento linguístico dos indivíduos.

2 Método

Neste estudo apresentamos um levantamento de trabalhos na-


cionais e internacionais realizados nos últimos 20 anos, que abordam
a linguagem em indivíduos com DFT. Este estudo foi baseado no levan-
tamento de Jerônimo e Hübner (2014), que tratou do desenvolvimento
linguístico em pessoas com DA.
A busca de estudos sobre DFT foi realizada nas bases de dados
SciELO, PubMed, LILACS e BDTD, a partir de palavras chave pré-esta-
belecidas em português e em inglês, conforme consta no Quadro 1. As
palavras-chave abrangiam termos mais gerais, numa tentativa de recu-
perar o maior número de estudos que abordassem o desenvolvimento
linguístico de indivíduos com DFT.

- 320 -
Quadro 1. Palavras-chave estabelecidas para filtrar as pesquisas nas bases de dados.

Palavras-chave em português SciELO LILACS PubMed BDTD

Linguagem e demência frontotemporal 6 4 0 1

Processamento linguístico e
1 1 0 0
demência frontotemporal

Produção oral e demência


0 0 0 0
frontotemporal

Produção escrita e demência


0 0 0 0
frontotemporal

Produção discursiva e demência


0 1 0 1
frontotemporal

Palavras-chave em inglês

Frontotemporal language and dementia 9 14 54 0

Linguistic processing and fronto-temporal


1 1 11 0
dementia

Oral production and frontotemporal


0 0 1 0
dementia

Written production and frontotemporal


0 0 0 0
dementia

Discursive production and frontotemporal


0 0 0 0
dementia

TOTAL 17 21 66 2

As buscas por palavras-chave recuperaram um total de 106 pes-


quisas. A partir disso iniciamos a segunda etapa do levantamento que
consistia em excluir, a partir da leitura dos resumos: i) pesquisas repe-
tidas, já que algumas delas estavam presentes em mais de uma base de
dados (32 estudos); e ii) trabalhos que consistiam em revisões teóricas
(3). Com isso excluímos 35 estudos por não serem pesquisas com coleta
de dados novos, portanto, permaneceram no levantamento 71 trabalhos.

- 321 -
Posteriormente, ainda, por meio da leitura dos resumos, aplica-
mos mais três critérios de exclusão, quais sejam: 1) pesquisa que abor-
da outro tipo de demência que não a DFT (1 estudo); 2) pesquisa que
não analisa o desenvolvimento da linguagem na DFT (53 estudos); e,
3) texto completo não encontrado (3 estudos). A partir disso, 57 pesqui-
sas foram excluídas do levantamento, ou seja, dos 71 estudos, apenas 14
trabalhos tratavam dos aspectos da linguagem na DFT e, portanto, fo-
ram selecionados para a leitura integral e análise sistemática. A Figura
2 apresenta as etapas de busca e seleção das pesquisas, no formato de
um fluxograma.

Figura 1. Fluxograma de identificação e seleção dos artigos para


revisão sistemática na DFT, entre os anos de 2000 e 2020.

- 322 -
A próxima seção apresenta os resultados obtidos, a partir da
análise dos 14 artigos selecionados.

3 Análise dos estudos selecionados

Foram selecionados 4 estudos brasileiros (2 artigos, 1 disserta-


ção de mestrado, e 1 tese de doutorado) e os outros 10 artigos publica-
dos no exterior. Apresentaremos inicialmente os estudos brasileiros.
A dissertação de Soares (2010), desenvolvida na UFG, propôs
uma comparação entre os perfis neurolinguísticos das demências tipo
Alzheimer (DA) e não Alzheimer, avaliando pacientes do Ambulatório
de Demências do Hospital das Clínicas da UFG. Foram aplicados cin-
co testes de linguagem aos participantes e concluiu-se que apesar da
grande similaridade entre as demências, a análise detalhada dos testes
linguísticos permitiu destacar diferenças significativas entre elas. De
modo geral, o grupo com DFT e suas variantes demonstrou mais com-
prometimento linguístico que o grupo DA.
A pesquisa que originou a tese de Samara (2005), foi desenvol-
vida em Campinas e analisou o discurso de pacientes com DA, DFT
e lesão cerebral adquirida, em comparação com sujeitos controles
sem doença neurológica ou psiquiátrica. Foram descritos os crité-
rios de microestrutura, macroestrutura e pragmática, para análise
do discurso dos grupos participantes. As diferenças entre os grupos
foram evidenciadas em todos os níveis de análise, sendo que os pa-
cientes com DFT obtiveram resultados inferiores aos demais nos tes-
tes e demonstraram mais prejuízos linguísticos que os participantes
do grupo controle.
O artigo de Carvalho, Bahia e Mansur (2008) expôs a compara-
ção de habilidades funcionais da linguagem em indivíduos com DFT
e DA, a partir de informações de familiares. O resultado mostrou que

- 323 -
não houve diferenças significativas entre os grupos, na grande maioria
das comparações, o que impossibilitou estabelecer aspectos diferen-
ciais de cada grupo.
A pesquisa de Senaha (2007) analisou pacientes com DS, com o
intuito de verificar características relevantes para o diagnóstico dife-
rencial da demência. A investigação confirmou o que outros estudos
já haviam concluído sobre a DS, que ela apresenta características bem
definidas, tanto em relação à cognição quanto à linguagem. A Tabela 1
apresenta um panorama dos quatro estudos brasileiros descritos acima.

- 324 -
Tabela 1 - Estudos nacionais que abordam a linguagem na DFT.

AUTOR OBJETIVO DO PARTICIPANTES TAREFAS DE LINGUAGEM RESULTADOS


ESTUDO
Dissertação Traçar um Perfil 30 com DA, 30 com Fluência Verbal por Categoria Semân- A APP se destacou pelo maior comprometimen-
SOARES, C. D. Diferencial Neuro- DFT, 30 controles. tica e Fluência Fonêmica e Semântica to da fluência, vocabulário, abstração de ideias,
(2010) linguístico entre as (FAS). compreensão, leitura e escrita, em relação a DA.
Demências Tipo Subteste de Semelhanças (WAIS-R (S)). O grupo DFT reforçou a presença da disfunção
Alzheimer e Fron- Teste Boston para Diagnóstico da Afa- na fluência verbal fonêmica semântica e a DS
totemporais. sia (BDAE). demonstrou significância estatística na capaci-
Teste de Nomeação de Boston (Boston dade abstrativa com relação ao grupo DA.
Naming Test) (BNT).
Token Test, Subteste de Vocabulário
(WAIS-R).

Tese Investigar a ha- 15 com DA, 4 com BNT Sugeriu-se um prejuízo narrativo maior na DFT
SAMARA, A. bilidade discur- DFT, 7 com lesão ce- Narração baseada em figuras. comparado a DA. Em relação aos sujeitos con-
B. (2005) so-narrativa e seus rebral adquirida, res- Narração livre. trole, o grupo DFT estava prejudicado nos níveis:
correlatos neu- trita aos lobos fron- Subtestes da escala de inteligência para léxico, semântico e sobretudo macroestrutural.
ropsicológicos em tais, 21 controles. adultos e da bateria de memória. Já o grupo DA as dificuldades semânticas e mac-
pacientes com DA Teste de fluência verbal roestruturais se mostraram secundárias a alter-
e DFT. Teste de lista de palavras. ações percepto-visuais e practognósticas. Os
Teste de organização visual de hooper. resultados do grupo DFT sugere uma alteração
Teste de stroop. na dimensão cognitiva da narrativa, que limitaria
Teste de vigilância. sua expressão linguística.
WAIS-R.
Wisconsin card sorting test (WCST).

- 325 -
AUTOR OBJETIVO DO PARTICIPANTES TAREFAS DE LINGUAGEM RESULTADOS
ESTUDO
CARVALHO, I. Comparar as habi- 6 familiares próximos Avaliação Funcional das Habilidades de A habilidade de comunicação funcional foi sim-
A. M. BAHIA, lidades funcionais de pacientes com DA, Comunicação Asha-facs. ilar para pacientes com DA e com DLFT. Apenas
V. S. MANS- de comunicação e 8 familiares próx- dois itens apresentaram significância estatísti-
UR, L. L. em pacientes com imos de pacientes ca: ‘compreensão de inferências’ e ‘capacidade
(2008) degeneração lobar com DLFT. para fazer transações básicas com dinheiro’.
O instrumento Asha-facs mostrou-se útil na
fronto-temporal
caracterização das habilidades funcionais e de
(DLFT) e doença de comunicação. No entanto, a análise apresen-
Alzheimer (DA) tada sugere que a Asha-facs não verifica quais
aspectos diferenciam pacientes com DLFT e DA.

SENAHA, M. Descrever uma 19 pacientes com DS. BNT. Todos os pacientes apresentaram produção es-
et al (2007) amostra brasileira, FAS. pontânea fluente, preservação dos aspectos sin-
enfatizando Repetição de frases. táticos e fonológicos da linguagem, dificuldade
as características Repetição de palavras. em encontrar palavras, parafasias semânticas,
clínicas impor- Tarefas de fluência de categorias. dificuldade de compreensão de palavras, baixo
tantes para o diag- Tarefas de memória semântica. desempenho em provas de nomeação por con-
nóstico diferencial frontação visual,
da DS. falhas em provas que avaliam a memória semân-
tica não-verbal, preservação da memória autobi-
ográfica e habilidades
visuoespaciais.

- 326 -
Com relação aos dez artigos estrangeiros selecionados, o primei-
ro deles trata de uma pesquisa de Baeza, Bustos e Ovando (2012) sobre a
Afasia Progressiva Logopênica (APL), que é definida como um subtipo
da APP. O estudo desenvolvido em uma paciente com APL evidenciou
dificuldades de compreensão e de produção oral, bem como na escrita
e repetição de palavras de baixa frequência.
O artigo de Heim (2020) apresenta uma pesquisa que analisou a
compreensão dos pacientes com a variante comportamental da DFT,
considerando os diferentes significados de quantificadores (muitos,
poucos), já que o processamento dessas informações estaria prejudi-
cado pela área do cérebro afetada pela demência. Os resultados mos-
traram que, embora houvesse aprendizado de determinado quantifi-
cador, isso não era generalizado a outros.
O estudo de Martínez, Donado e Matallana (2015) analisou as
características da narração em sujeitos esquizofrênicos e com DFT
em suas variantes. Os dados dessa pesquisa evidenciaram que os DFT
apresentaram dificuldades na fluência e na compreensão de estrutu-
ras complexas. Além disso, os resultados se mostraram importantes
para compreender e auxiliar no diagnóstico da DFT e da esquizofrenia,
através de características e elementos presentes no discurso desses
dois grupos.
O artigo de Calderón, Cruz e Ortiz (2015) apresenta um estudo com
um paciente com APP, analisando o impacto da terapia de linguagem. Os
resultados mostraram desaceleração do declínio cognitivo e melhora de
aspectos afetados pela demência, após a terapia de linguagem.
O trabalho de Giaquinto e Ranghi (2009), também com um pa-
ciente com APP, verificou, em um estudo longitudinal, a velocidade do
paciente no processamento de palavras, em comparação com um gru-
po controle, considerando a medida do componente N400. Os dados

- 327 -
mostram que após 2 anos o potencial medido pelo N400 havia desa-
parecido. Os pesquisadores ponderaram que a medida do N400 pode
servir para acompanhar a progressão dos sintomas nos sujeitos e como
auxiliar no diagnóstico e na prevenção da APP.
Rumiati (2016) propôs em seu artigo, uma investigação sobre como
coisas vivas, não vivas e comidas, são organizadas e processadas pelo cé-
rebro. O estudo contou com avaliações léxico-semânticas e os resultados
evidenciaram um padrão de processamento de itens alimentares in-
fluenciado não apenas por variáveis psicolinguísticas, mas também pe-
las propriedades intrínsecas dos alimentos. Constatou-se que, em geral,
alimentos mais calóricos e industrializados foram melhor compreendi-
dos, mostrando que esse tipo de léxico parece ser mais resistente a danos
cerebrais, que o léxico relacionado aos alimentos naturais.
A pesquisa desenvolvida por Garrard e Carroll (2005) analisou
um paciente com DS que recebeu atenção neurológica especial, devido
ao fato de que seus dois falecidos irmãos foram portadores de DS. O pa-
ciente apresentou comportamentos atípicos, mas não estava ciente das
suas dificuldades. Um fator interessante foi o de analisar os dados dessa
demência no início de sua manifestação, tendo em vista que geralmente
essa fase é citada retroativamente pelo paciente, que só é diagnosticado e
começa o tratamento após uma certa evolução da demência.
O estudo de Pulvermüller, et al. (2010) objetivou confirmar pres-
supostos sobre a DS e relatar os graus de processamento específico de
categoria de palavras. Os resultados evidenciaram, por exemplo, dife-
renças na decisão lexical entre palavras relacionadas à cores e à forma,
e entre verbos relacionados a movimentos faciais e ações com mãos e
braços. Os autores consideraram que os dados confirmam achados an-
teriores, sobre padrões de processamento de palavras.

- 328 -
O artigo publicado por Maldonado (2017) trata de uma pesquisa
comparativa entre DFT e DA, cujos resultados mostraram que ambos os
grupos apresentaram alterações de linguagem, porém os pacientes com
DFT se mostraram mais prejudicados, principalmente para se expressar.
Também na perspectiva de estudo comparativo entre DFT e DA,
o artigo de Rodríguez (2010) evidenciou deterioração da linguagem glo-
bal e progressiva para os dois grupos, mas especialmente nos indiví-
duos com DFT. A Tabela 2 apresenta um panorama mais detalhado dos
dez artigos estrangeiros expostos brevemente acima.
De modo geral, os estudos selecionados estão contemplando a
análise de várias habilidades linguísticas, como, por exemplo, o aces-
so lexical, a compreensão, a produção oral e escrita. Os resultados das
pesquisas demonstram os prejuízos em cada habilidade da linguagem
em participantes com a DFT e seus subtipos como APP, DS e APL.
Nota-se que os principais prejuízos estão nas habilidades de
acesso lexical e processamento sintático, que demonstram a dificulda-
de marcante de encontrar palavras, principalmente, de baixa frequên-
cia e as dificuldades com o comprimento e complexidade das frases.
(BAEZA; BUSTOS; OVANDO, 2012), (CALDERÓN; CRUZ; ORTIZ, 2015),
(SOARES, 2010), (GARRARD; CARROLL, 2005), (PULVERMÜLLER et
al., 2010), RODRÍGUEZ, 2010), (RUMIATI et al., 2016). A fluência verbal
fonêmica e semântica, como também as estratégias de planejamento
para acessar nomes, conforme as letras solicitadas, também estão bas-
tante reduzidas no grupo DFT. Os estudos apontam que as dificuldades
estariam interligadas ao rebaixamento nas habilidades executivas, ou
seja, o comprometimento da memória e da flexibilidade cognitiva afe-
tam o desempenho da linguagem.

- 329 -
Tabela 2- Estudos internacionais que abordam a linguagem na DFT.

AUTOR OBJETIVO DO ESTUDO PARTICIPANTES TAREFAS DE RESULTADOS


LINGUAGEM
BAEZA, S. V. Caracterizar um novo subti- Mulher de 54 anos Avaliação cognitiva de Montreal. Foi constatado comprometimento na
BUSTOS, C. R. po de DFT: Afasia Progres- Matrizes Progressivas Coloridas compreensão oral, na fala, e na escrita
OVANDO, P. B. siva Logopênica (APL) de Raven. de palavras de baixa frequência. Evi-
(2012) denciou-se dificuldade na repetição de
palavras de baixa frequência, polissíla-
bas, e pseudopalavras complexas. A
fala evidenciou prosódia e velocidade
adequadas.

CALDERÓN, P. Analisar os efeitos da Homem de 84 anos com Mini exame do estado mental. Após a terapia, o paciente apresentou
A. CRUZ, J. S. intervenção fonoaudiológi- APNF. (MEEM) uma ligeira melhora na prosódia da
ORTIZ, A. L. S. ca intensiva em um caso Teste Barcelona. linguagem, fluência e conteúdo da fala
(2015) de Afasia Progressiva Não Teste de Figuras Complexas de espontânea, e uma significativa
Fluente (APNF). Rey. melhora na repetição, leitura em voz alta
Teste de Stroop. e práxis oral-fonatória. Outros aspectos
Teste de trilhas (Trail Making Test do funcionamento cognitivo (orientação,
(TMT)). nomeação verbal, práxis e memória)
WAIS-R. permaneceram estáveis.

- 330 -
AUTOR OBJETIVO DO ESTUDO PARTICIPANTES TAREFAS DE RESULTADOS
LINGUAGEM
GARRARD, P. Descrever e analisar um pa- 1 Paciente e Controles de Correspondência de Verbo O paciente apresentou várias carac-
CARROLL. E. ciente com probabilidade idade aproximada. Associado. terísticas interessantes e atípicas que
(2005) de ser portador de DS, pelo Identificação de imagens. surgiram em testes detalhados, mas
histórico familiar. Nomeação de objeto e ação. não demonstrou entendimento sobre
Teste de classificar imagens e suas dificuldades. Ele demonstrou uma
palavras. vantagem consistente para conceituar
Teste de correspondência não-vivos, porém a progressão ao longo
associativa. de 12 meses foi lenta. Além disso, os
Teste de descrição verbal. exames patológicos post mortem com
Teste de nomear fotos. a análise dos cérebros dos irmãos que
Teste para a recepção da tiveram DS, permitiu atribuir sua doença
gramática. a um processo patológico específico
que é considerado incomum para paci-
entes com este fenótipo clínico.
GIAQUINTO, Avaliar o papel da velocid- 1 Homem de 70 anos com Avaliação de Demência Global O processador do tempo de reconhe-
S. RANGHI, F. ade do reconhecimento de APP. 15 controles de idade de Milão. cimento de palavras, ou seja, o N400,
(2009) palavras na APP. aproximada. MEEM. foi atrasado por 200 ms no início do
Reconhecimento e estudo em comparação com controles
processamento de palavras. saudáveis e deterioração progressiva.
Um ano depois, o atraso foi maior,
e dois anos depois o potencial havia
desaparecido.
A velocidade reduzida de processamen-
to é um fator patológico precoce que
afeta negativamente funções cognitivas
superiores na APP.

- 331 -
AUTOR OBJETIVO DO ESTUDO PARTICIPANTES TAREFAS DE RESULTADOS
LINGUAGEM
HEIM, S. et al. Analisar se os pacientes 11 participantes com a vari- Teste de identificação de O grupo de pacientes demonstrou um
(2020) conseguiriam realizar ante comportamental da palavras. aprendizado efetivo para o quantifi-
tarefas, mostrar apren- DFT, e sujeitos controle. Teste dos blocos. cador “muitos”, mas não conseguiu
dizagem direta dos novos Testes de memória e funções generalizar esse critério para o outro
significados do quantifica- executivas. quantificador “poucos”. No segundo
dor e exibir flexibilidade bloco de testes houve um efeito de
cognitiva em termos de aprendizagem médio para o quantifica-
reestruturação semântica. dor treinado “poucos” para todo o gru-
po, mas nenhuma generalização para
“muitos”. Uma vez que os pacientes
ainda eram capazes de realizar a tarefa,
e mostrou aprendizado de “muitos”
para direcionar o feedback, os dados
sugerem que o processo de general-
ização é mais vulnerável a degeneração
frontotemporal.

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AUTOR OBJETIVO DO ESTUDO PARTICIPANTES TAREFAS DE RESULTADOS
LINGUAGEM
MALDONADO, Observar e descrever um 3 com DA, 3 com produção BNT. O grupo DFT, demonstrou mais dificul-
S. M. (2017) grupo de pacientes com prodrômica DA, 3 com tran- Teste de denominação por dade, utilizando expressões incompletas,
demências. storno cognitivo leve, confronto visual de Boston. informação limitada, necessidade da aju-
e 3 com WAIS-R. da do interlocutor para estabelecer uma
DFT. conversação.
No teste de Boston, o tipo de demência
mais afetado foi a DA e a DFT.
No teste de TOKEN, os grupos com trans-
torno cognitivo leve e DFT, apresentaram
uma dificuldade de compressão severa,
indicando que em indivíduos com maior
comprometimento cognitivo há maior di-
ficuldade de compreensão verbal devido
ao aumento da complexidade sintática
do teste.
Concluiu-se que todos os pacientes
do estudo apresentam alteração de
linguagem com predominância expres-
siva, sendo DFT a demência mais afe-
tada.
MARTÍNEZ, A. Analisar uma série de casos (Não especificado) Narração espontânea. Todos os pacientes com DFT em suas
DONADO, C. A. e apresentar características variantes, apresentaram dificuldades
F. MATALLANA, da DFT em suas variantes para compreender estruturas complexas
D. L. E. (2015) linguísticas, e esquizofre- de linguagem e problemas importantes
nias. de fluência de discurso.

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AUTOR OBJETIVO DO ESTUDO PARTICIPANTES TAREFAS DE RESULTADOS
LINGUAGEM
P U L V E R - Confirmar pressupostos 11 sujeitos com DS. Exame Cognitivo de Addenbroke. A precisão da decisão lexical de palavras
MÜLLER, F. et sobre a DS e relatar graus MEEM. mais impactantes visualmente (ex: rela-
al. (2010) diferenciais de deficiência Subteste de correspondência cionadas a cores), mostrou-se mais prej-
no processamento de palavra-imagem. udicada do que as relacionadas à forma.
categorias de palavras Teste camelos e cactos. Ainda nessa perspectiva, no domínio de
semânticas em casos de DS. Teste de dígitos. verbos de ação, o desempenho dos paci-
Teste de nomeação de figuras. entes foi pior para palavras referindo mov-
Teste Figura de Rey. imentos faciais e ações discursivas do que
para palavras semanticamente vinculadas
a ações realizadas com a mão e o braço.
Uma explicação para os graus diferenciais
de deficiência deve, portanto, envolver
características semânticas das palavras nas
diferentes condições.
Evidências de pesquisas anteriores indicam
que as palavras relacionadas à cor e ao
rosto/fala, respectivamente, atraem mais
fortemente as áreas anterior temporal e
frontal inferior.

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AUTOR OBJETIVO DO ESTUDO PARTICIPANTES TAREFAS DE RESULTADOS
LINGUAGEM
RODRÍGUEZ, J. Descrever aspectos 3 pacientes com DA e 3 com BNT. Evidenciou-se várias limitações, incluindo
R. (2010) acerca das características DFT. compreensão, leitura, escrita, uma amostra da população estatistica-
dos domínios da linguagem nomeação e cópia. mente não significativa, o que permite de-
na DA e na DFT. FAS. screver comportamentos e desempenhos
MEEM. de testes específico para cada assunto, mas
Testes de repetição, não fornece dados significativos para com-
paração entre eles.
Em todas as disciplinas, as tarefas que ex-
igem funcionamento dos sistemas como
a memória semântica e o léxico fonológi-
co como nomear e compreender, são
significativamente alterados, pois nessas
demências, predominam déficits moder-
ados no armazenamento e acesso cogni-
tivo.
RUMIATI, R. I. Testar supostos subsiste- 9 sujeitos com APP, 14 com Teste de dígitos. O grupo APP se mostrou menos preciso
et al. (2016) mas semânticos sensoriais/ DA e 30 controles. Teste de funções executivas. na maioria dos testes de nomeação e
funcionais para explicar dis- Teste de nomeação de figuras. correspondências de palavras à imagens.
sociações Teste Figura de Rey (cópia e A nomeação itens alimentares parece ser
no desempenho entre cois- memória). contabilizado não apenas por variáveis​​
as vivas e coisas não vivas. Testes de atenção. linguísticas, mas também por calorias,
Avaliar processos semânti- conteúdo que, por sua vez, foi consider-
cos envolvidos no reconhe- ado o melhor preditor de nomenclatura.
cimento e compreensão de Os pacientes com DA foram mais preci-
alimentos. sos em nomear itens manufaturados (al-
imentos ou ferramentas) em compara-
ção com itens naturais. Esses resultados
são consistentes, pois o desempenho
reduzido dos pacientes em itens naturais
pode ser devido a um subsistema senso-
rial danificado.

- 335 -
Destaca-se que a habilidade oral é a mais afetada pela DFT (CAL-
DERÓN; CRUZ; ORTIZ, 2015), (CARVALHO; BAHIA; MANSUR, 2008),
(SOARES, 2010), (GARRARD; CARROLL, 2005), (MERCHÁN, 2017),
(MARTÍNEZ; DONADO; ESLAVA, 2015), (SAMARA, 2005). Os estudos
mostram que há alterações na prosódia, repetição e fluência. Na tare-
fa de fala espontânea há problemas importantes de fluência (pausas,
repetições e reformulações), que afetam a velocidade da fala (MARTÍ-
NEZ; DONADO; ESLAVA, 2015). Outro aspecto importante apontado
por Soares (2010) é que a deterioração em funções cognitivas prejudi-
cadas pela DFT, como memória, atenção e função executiva provocam
os prejuízos em maior ou menor grau na produção oral.
Na habilidade linguística de compreensão observou-se que os in-
divíduos com DFT apresentam um déficit na semântica lexical (dificul-
dade de processar os substantivos abstratos) (HEIM et al., 2020). Outro
aspecto é que paciente com DFT não consegue processar a velocidade de
fala usual, o que prejudica a sua compreensão (BAEZA; BUSTOS; OVAN-
DO, 2012), (GIAQUINTO; RANGHI, 2009), (SENAHA et al., 2007).
Notou-se ainda que a habilidade de produção escrita na popu-
lação de DFT quase não é contemplada nos estudos. Segundo Rodrí-
guez (2010), as habilidades de escrita estão preservadas em palavras e
frases simples espontâneas, e a cópia está, de modo geral, conservada.
Por outro lado, habilidades de escrita que requerem processamento de
informações e acesso ao léxico estão alteradas. Baeza; Bustos; Ovando
(2012), também evidenciaram que sua participante tinha a escrita ile-
gível e que a primeira letra, frequentemente era reduplicada.
Enfim, com base nos estudos e na discussão dessa seção, obser-
va-se que o desempenho das habilidades linguísticas está profunda-
mente relacionado ao processamento das funções cognitivas. Dessa
forma, nota-se que o prejuízo das funções executivas provoca em maior
ou menor grau, consequências na linguagem nos indivíduos com DFT.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da pesquisa realizada sobre a linguagem na DFT, pode-se


observar a quantidade pequena de pesquisas desenvolvidas nos últimos
vinte anos, evidenciando a necessidade de mais estudos, tanto numa
abordagem geral da linguagem, quanto de modo específico (por habilida-
des linguísticas, por exemplo). Porém, é importante salientar a possibili-
dade de haver outros estudos publicados dentro da temática e que talvez
não tenham sido recuperados nesta revisão, porque, como a seleção se
fundamentou em determinadas palavras-chave, a definição dessas pa-
lavras pode ter impacto na quantidade de trabalhos recuperados. Isto é,
se outras palavras mais específicas fossem utilizadas, até mesmo a sigla
DFT, talvez outras pesquisas pudessem ter sido relacionadas.
Considerando os resultados deste estudo, verificou-se que a
produção oral dos participantes com DFT apresenta maior compro-
metimento, devido, principalmente, ao acesso lexical prejudicado, já
que a demência afeta os lobos frontal e temporal, que são ativados para
o desempenho das funções executivas. Ressalta-se que essas funções
estão intimamente ligadas ao processamento linguístico, logo, indiví-
duos com DFT têm a produção e compreensão da linguagem afetados.
Outro aspecto importante é que esta revisão mostrou que há
poucos estudos sobre a produção escrita na DFT (somente 2 dos es-
tudos selecionados mencionam essa habilidade). Além disso, consi-
dera-se fundamental que se desenvolvam pesquisas que analisem as
produções espontâneas dos participantes, além dos testes neuropsico-
lógicos, para se possível, conseguir traçar um perfil linguístico e dife-
rencial entre a DFT e as outras demências.

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SOARES, Cândida. Perfil Neurolinguístico Comparativo das Demências


tipo Alzheimer e não Alzheimer. 2010. Dissertação (Mestrado em
Ciências da Saúde) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2010.

Thaís Fernanda Amorim Cassiano Marafon


Doutoranda do programa de pós-graduação em Letras e Linguística
da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em Linguística, pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Graduação em Letras - Língua
Portuguesa pela Universidade Federal de Mato Grosso (2016). Desen-
volve pesquisas sobre o processamento linguístico e cognitivo em par-
ticipante com linguagem atípica. e-mail: thaisf.amorim@hotmail.com

- 340 -
Mariana Maia Cabral
Mestranda do programa de pós-graduação em Letras e Linguística da
Universidade Federal de Goiás (UFG). Graduação em Letras-Inglês pela
UFG- Regional Jataí. e-mail: marianaletrasingles@gmail.com

Elena Ortiz Preuss


Doutora em Estudos da Linguagem, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Letras, pela Universidade Católica
de Pelotas (UCPEL). Realizou Estágio Pós-doutoral no Departamento
de Espanhol e Português da Georgetown University. Docente do Pro-
grama de Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFG. Desenvolve
pesquisas sobre cognição e ensino de línguas, acesso lexical e produção
de fala bilíngue. e-mail: elena@ufg.br

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