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Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a obra Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, sob a perspectiva
do deslocamento físico e psicológico. Neste romance, em que a questão do exílio é mostrada de forma
extrema, todas as personagens são deslocadas e infelizes devido a condições familiares, tradicionais,
financeiras, sexuais, artísticas, profissionais, entre outras. A discussão se centrará na personagem
Raimundo, o protagonista, e na sua relação consigo mesmo e com os que o cercam. Além disso, o
enredo fornece material para se discutir a função da Arte e os tipos de narradores existentes; no caso de
Cinzas do Norte, há três narradores que relatam os acontecimentos. Outra questão importante é a
relação entre pai e filho, avassaladora neste romance. Para tais discussões, serão utilizados os
pressupostos teóricos de Edward Said, Pierre Ouellet, Julia Kristeva, Maria José de Queiroz e Denise
Rollemberg.
Palavras-chave: Exílio; Deslocamento; Arte.
Abstract: The aim of this article is to analyze the work Northern Ashes, by Milton Hatoum, from the
perspective of physical and psychological displacement. In this novel, in which the issue of exile is shown
in an extreme way, all the characters are displaced and unhappy due to familiar, traditional, financial,
sexual, artistic, professional conditions, among others. The discussion will focus on the character
Raimundo, the protagonist, and his relationship with himself and those around him. In addition, the plot
provides material for discussing the function of Art and the types of narrators that exist, which in the case
of Northern Ashes there are three narrators who report events. Another important issue is the relationship
between father and son, overwhelming in this novel. For such discussions, will be used the theoretical
assumptions of Edward Said, Pierre Ouellet, Julia Kristeva, Maria José de Queiroz e Denise Rollemberg.
Keywords: Exile; Displacement; Art.
Introdução
1
Doutoranda em Estudos Literários pela UFRGS. E-mail: ymaria1@hotmail.com.
Raimundo e os seus
Tua mãe percebeu que tua maior diversão era perambular na chuva e
teu maior prazer era desenhar. E tu querias ficar sozinho para fazer as
duas coisas. Então Jano te proibiu de sair na chuva, te trancava no
porão e às vezes demorava a ir ao trabalho, queria te vigiar e também
vigiar tua mãe, que te libertava logo que ele saía. Ela dizia a Jano que
Na voz do amigo de Mundo, podemos ver como ele se ressente pelo fato de
Jano o usar como exemplo para humilhar o filho:
O jogo com Jano não era uma brincadeira. Contou que o pai me usava
para humilhá-lo, vivia dizendo que eu era um universitário e que estava
prosperando. Que eu não tinha onde cair morto, mas ia ser um
advogado, e ele, Mundo, não era nada, ninguém... (HATOUM, 2012,
p.107).
Além disso, o pai de Mundo, por acreditar que Lavo é um estereótipo do homem
que ele acredita ser o ideal, lhe incumbe uma tarefa de pôr seu filho no “bom caminho”:
Quero que ele encontre com uma mulher e desapareça da casa daquele
artista. Uma mulher... velha ou moça, uma viúva, uma puta, uma mulher
qualquer E que nunca mais entre na casa do maldito. Pago um
dinheirão por isso. Quero salvar meu filho, antes que seja tarde. Pensa
nisso, Lavo. É um trabalho como outro qualquer [...] Senti-me diminuído,
atordoado, perante aquele pai que não era o meu [...] Nunca falei a
Mundo dessa oferta generosa e infame (HATOUM, 2012, p.33).
constante nostalgia de seu país, para o qual nunca pode retornar, mostrando mais um
exemplo do que advertiu Pierre Ouellet (2013), a saber, que o exílio é uma
peculiaridade do ser humano.
Raimundo e a Arte
Seu pai incendiou sua produção artística, ato que o levou a se afastar
fisicamente de tudo e de todos, buscando o exílio na Europa, onde acreditava que seria
mais compreendido. Porém, ao contrário do que esperava, sua mudança de país só
agravou sua solidão e sua sensação de deslocamento e incompreensão.
Conforme Denise Rollemberg (1999), o exílio é resultante da exclusão, da
negação, da dominação, da anulação e da intolerância. E são exatamente esses
fatores que levam Mundo a buscar exílio, mesmo sendo filho de um latifundiário,
herdeiro de uma grande fortuna. A intolerância da família, dos amigos e conhecidos
teve como consequência sua vontade de se exilar. Ou, nas palavras da autora
supracitada: “[...] o exílio aparece como possibilidade, quando a resistência interna é
impossível” (ROLLEMBERG, 1999, p. 24). É uma forma de Mundo afirmar sua
resistência, não desistir de sua Arte e de agir da maneira que lhe convém, muito
embora o exílio físico só tenha lhe trazido mais dissabores, até mesmo patologias.
Com Mundo, a patologia atinge o plano material e o metafórico, pois ele tem
uma doença física, que a narrativa dá indícios de tratar-se de AIDS, mas também é um
mal psíquico, pois “Uma febre esquisita, com manchas no corpo. Acho que é cansaço,
ou saudade do Brasil” (HATOUM, 2012, p. 219). Seu mal do exílio atinge o extremo
levando-o à morte, mas antes disso ele viveu um calvário, na medida em que estava na
extrema pobreza e degradação humana. Ainda quando não estava tão mal, ele
descreveu, em uma das cartas endereçadas a Lavo, sua situação precária: “Tão cedo
não volto ao Brasil. Faço uns trabalhos maçantes e idiotas para sobreviver, mas
consegui um teto num bairro operário, sudeste de Londres” (HATOUM, 2012, p. 203).
De filho de latifundiário, herdeiro de um enorme patrimônio, passou a ser quase um
mendigo.
Antes de seu falecimento, Mundo, em uma das últimas cartas que escreve ao
seu amigo Lavo, pede-lhe que vá para a Europa. Ele, mesmo sentindo-se sempre
deslocado por sua situação de agregado e órfão, e pela situação do pai de seu amigo
sempre o usar para humilhar o filho, não leva essa condição ao extremo de rebelar-se
e ir para o estrangeiro:
Mundo sabia que dificilmente eu sairia de Manaus; nas cartas que lhe
enviei, insisti nesse assunto, dizendo que minha cidade era minha sina,
que eu tinha medo de ir embora, e mais forte que o medo era o desejo
de ficar, ilhado, enredado na rotina de um trabalho sem ambição. Eu
declamava, quase brincando, os versos decorados no Pedro II, que uma
noite ele recitou com pompa, afogado na bebida e na esbórnia da
Castanhola: “Ingrato o filho que não ama os berços do seu primeiro sol”.
Ria e me provocava: “Acho que sou esse filho, mesmo sem querer ser...
(HATOUM, 2012, p. 229).
Após o falecimento do amigo, Lavo, a pedido de Alícia, vai ao Rio. Não a via
desde o velório de Jano. Contou-lhe que vivia na miséria e que “Quando estou muito
apertada, vendo um quadro ou um estanho. Ontem foram duas aquarelas. Naiá foi
descontar o cheque. Sei que não é sempre assim, mas só consegui vender depois que
ele morreu” (HATOUM, 2012, p. 246). Logo, Alícia mostra a Lavo a obra que Mundo a
proibiu de vender, uma que começara na Alemanha e terminara em Londres, em que é
possível apreender sua dor de nunca ter sido compreendido e se sentir exilado em sua
terra e família:
Mundo havia levado para a Europa a roupa que seu pai vestira no dia de seu
casamento, e a usou em sua obra, sendo sua maneira de expressar a mágoa que
sentia de seu pai e de expressar sua maneira de entender o contexto em que vivia, ou
seja, convergência de época antiga com modernidade, trabalho braçal e trabalho
intelectual que não encontram um paralelo de convivência pacífica.
Da visita de Lavo à Alícia, além de conhecer a obra derradeira de Mundo e toda
sua agonia, ele fica sabendo que ela, no crepúsculo da existência de seu filho, lhe
revelara que Jano não era seu pai. Assim, Mundo sofreu conflitos com um homem que
nem sequer era seu genitor. Essa revelação certamente enalteceu sua revolta e seu
sofrimento, mormente porque seu verdadeiro pai é Arana, o homem mais desprezível
que ele conhecera, o que lhe enganou e deturpou a noção de Arte. Como não
bastassem todas as formas de exílio que ele sofrera ao longo da vida, agora vê-se na
condição de filho bastardo. Ser homossexual e artista, atribuições não esperadas pela
sociedade em que nasceu, já o fizera sofrer, mas ser bastardo o coloca num patamar
ainda mais abjeto, levando em consideração o contexto histórico e social em que se
encontrava.
Mundo deixara uma última carta a Lavo, a qual, um tempo depois, ele anexa à
narrativa que publica sobre seu amigo. Alícia, logo depois de sua visita, “Morreu seca e
sozinha, que nem o filho. Na última bebedeira, chorava de dar pena” (HATOUM, 2012,
p. 254). Fica evidente mais uma relação complicada que Mundo mantinha, a qual
ampliava seu sofrimento, pois não era somente com o pai que tinha problemas, aliás
com ambos, tanto o de criação quanto o verdadeiro, mas também com sua mãe. Ela
nunca conseguiu defender o filho da ira e dos castigos impostos pelo marido, tampouco
foi capaz de apoiar Mundo quando ele estava no exílio. Ao contrário, aumentou sua
condição de desajustado e solitário, ademais de vender suas obras de arte para manter
seu vício em bebidas alcóolicas.
Na carta, Mundo conta o segredo de sua proveniência e revela a Lavo que
nunca desejou o exílio, tampouco a sensação de não ter para onde voltar:
Pensei: todo ser humano em qualquer momento de sua vida devia ter
algum lugar aonde ir. Não queria perambular pra sempre... morrer
sufocado em terra estrangeira. A errância não era meu destino, mas a
volta ao lugar de origem era impossível (HATOUM, 2012, p. 262).
À guisa de conclusões
Cinzas do Norte é uma obra que demonstra, de maneira exímia, a famosa frase
de Julia Kristeva (1994) que dá nome ao seu livro, a saber, de que somos estrangeiros
para nós mesmos. A condição de deslocado não se resume a uma personagem central
ou àquela que foi para terras distantes porque se sentia desconfortável em sua própria,
mas permeia todos os indivíduos do enredo, todos são estrangeiros em suas próprias
peles e em sua própria cidade.
O casal Jano e Alícia não se sente bem em nenhum momento da narrativa, esta
é extremamente infeliz por ter casado sem amor e por seu marido desprezar Mundo, o
qual, no desfecho, descobrimos que nem era seu filho. Aquele, apesar de ser rico e
praticamente dono da cidade, não é amado por ninguém, seu esforço laboral não lhe
traz satisfação e nem aos seus correlatos.
Lavo, por sua vez, o melhor amigo de Mundo, é infeliz e deslocado desde a
infância de menino pobre e órfão, que via seu amigo desvalorizar a vida privilegiada
que tinha. Talvez a personagem que mais sofre, pois nunca teve abundância de nada e
a profissão de advogado, que tanto batalhou para conseguir, não lhe trouxe
satisfações, ademais de se abalar muito ao compreender a densidade da solidão de
Mundo e sua complicada relação com o homem que nem era seu genitor.
Ranulfo dedicou sua vida à Alícia, tentando obter seu amor e sua companhia,
depois transferiu essa obsessão ao filho dela, controlando seus passos e incentivando-
o na Arte e em seus ideais. Fracassou em todas suas aspirações.
Arana, a personagem mais iníqua, também é vítima da solidão e do
deslocamento, é o verdadeiro pai de Mundo, e nunca pode revelar essa condição.
Mundo, conforme supramencionado, sofre drasticamente do mal do exílio, não
apenas quando vai ao estrangeiro, porém antes mesmo, quando não era compreendido
por ninguém. A moléstia da solidão dele, de sua mãe e de seu pai de criação chegam
ao extremo, levando-os à morte. Não há final feliz para nenhuma das personagens.
Analisando essa obra de Milton Hatoum, percebemos que, pior do que a
condição de um exílio involuntário, de chegar a uma terra estrangeira sem ter optado e
sem conhecer ninguém, é a de ser estrangeiro em seu próprio país, ou, pior ainda, em
sua própria família.
O enredo de Cinzas do Norte evidencia o desamor, uma vez que todas as
personagens são movidas por sentimentos mesquinhos, como a inveja, no caso de
Lavo, o interesse financeiro, com Alícia, o machismo, a ambição desmedida e a
violência, com Jano, a desonestidade e corrupção, com Arana, o comodismo, com
Ranulfo, e a vontade da vingança, com Raimundo. Não obstante algumas diferenças
de caráter e atitudes, o sofrimento torna as personagens semelhantes na infelicidade
de nunca sentirem-se pertencentes a um lugar, ou a uma família.
Há uma famosa frase de Martin Heidegger, da obra Ser e Tempo (2002), em que
ele afirma que estamos sempre voltando para casa, atestando, dessa forma, o fato que
todo ser humano, muito embora viva em movimento e constantes adaptações, urge
pertencer a um lugar específico, ter a sensação de possuir uma casa, uma cidade, um
país e uma família para retornar quando assim o desejar ou necessitar. As
personagens de Cinzas do Norte contrariam essa lógica, pois nenhuma delas tem para
onde voltar, e mesmo que aparentemente haja um lar, não o desejam. São perpétuas
desenraizadas.
REFERÊNCIAS