Dramaturgia e Teatro A Cena Contemporânea - PDF Do E-Book
Dramaturgia e Teatro A Cena Contemporânea - PDF Do E-Book
Dramaturgia e Teatro A Cena Contemporânea - PDF Do E-Book
Eduem
Maringá
2019
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
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Capa - criação: Kaline Cavalheiro
Capa - arte final: Marcos Kazuyoshi Sassaka
Fonte: Alegreya
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(Eduem - UEM, Maringá – PR., Brasil)
D763 Dramaturgia e teatro: a cena contemporânea / Alexandre Villibor Flory, Célia Arns de Miranda, Lourdes Kaminski Alves. –-
Maringá : Eduem, 2019.
il.
ISBN 978-85-7628-766-7
1.Dramaturgia e teatro. 2.Teatro e dramaturgia. 3. Triologia dramatúrgica. 4. Peça suassuniana. 5. Farsa do advogado pathelin. 6.
Farsa de boa preguiça. 7. Farsa de Inês Pereira. I.Flory, Alexandre Villibor. II.Miranda,Célia Arns de.III. Alves, Lourdes
Kaminski.IV.Título. V.Série.
Editora filiada à
Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá
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87020-900 - Maringá-Paraná - Fone: (44) 3011-4103
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[...] Talvez, nosso prazer no teatro tenha a ver precisamente com ver inserir um texto, por definição alheio ao tempo e
ao espaço, no momento passageiro e na era delimitada do espetáculo. Assim a representação teatral não seria um
local de uma unidade reencontrada, mas aquele de uma tensão, nunca apaziguada, entre o eterno e o passageiro,
entre o universal e o particular, entre o abstrato e o concreto, entre o texto e a cena. Ela não realiza mais ou menos
um texto: ela o critica, o força, o interroga. Ela se confronta com ele e o confronta com ela. Ela não é um acordo e,
sim um combate (DORT apud PAVIS, 2011, p. 407).
Referências
PAVIS, P. Dicionário de teatro. Tradução sob a direção de Jacó Guinsburg e Maria
Lúcia Pereira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Sumário
Capa
Folha de rosto
Expediente
Copyright
Créditos - colaboradores
Ficha catalográfica
Endereço
Prefácio
Um teatro líquido?
Walter Lima Torres Neto
Apresentação
ATO I
A CENA CONTEMPORÂNEA EM DESTAQUE
Capítulo 1
ANTROPOFAGIA EM CENA: ZÉ CELSO CANIBALIZA BRECHT NO TEATRO OFICINA1
Anna Stegh Camati
Capítulo 2
Considerações sobre o teatro épico-ritual da trupe de atuadores ‘Ói nóis aqui traveiz’
Alexandre Villibor Flory
Capítulo 3
É PÃO, É PEDRA
Priscila Matsunaga
Capítulo 4
DIANTE DA DOR ALHEIA: A IMPORTÂNCIA DO TEATRO DO OPRIMIDO NA RECONSTRUÇÃO
DO SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO
Elizabete Sanches Rocha
Capítulo 5
O NÃO-LUGAR DAS REVISTAS NA CENA CONTEMPORÂNEA
Maria Cristina de Souza
Capítulo 6
HAMLET NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO: AS VERSÕES CÊNICAS DE HIRSCH E
ABUJAMRA
Célia Arns de Miranda
ATO II
ESCRITURAS E PERFORMANCES
Capítulo 7
IMAGENS SENSÍVEIS E O CORPO DO ATOR NA CENA INTERMEDIAL22
Gabriela Lirio Gurgel Monteiro
Capítulo 8
CORPOS IMPRÓPRIOS E CORPOS REAIS: DA CRUELDADE AO DOCE EXTERMÍNIO DA CENA
DA ILUSÃO25
Martha Ribeiro
Capítulo 9
MICROUTOPIAS DO TEXTO E DA CENA: DISCURSO E PERFORMANCE RELACIONAIS
CONTEMPORÂNEOS EM PROJETO BRASIL
Cauê Krüger
Capítulo 10
OPÇÃO DECOLONIAL E ANTROPOFAGIA NO PROJETO DRAMATÚRGICO DE FRANCISCO
CARLOS
Lourdes Kaminski Alves
ATO III
TEATRO, MITO, RESSIGNIFICAÇÃO E AMBIVALÊNCIA
Capítulo 11
‘LOS MÍOS SON FALSOS’: METATEATRO E AUTOFICÇÃO EM TEBAS LAND, DE SERGIO
BLANCO49
Ricardo Augusto de Lima
Capítulo 12
RETORNOS E CONTORNOS DO MITO DE ELECTRA: LEITURAS DE UMA ‘MÍMESIS’
DRAMATÚRGICA O’NEILLIANA62
Pedro Leites Junior
Capítulo 13
O CÔMICO AMBIVALENTE E A CATARSE CÔMICA69
Maricélia Nunes dos Santos
Sobre os autores
Índice remissivo
PREFÁCIO
UM TEATRO LÍQUIDO?
Walter Lima Torres Neto
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Futuros amantes (1993).
Referências
ADORNO, T. W. O Ensaio como forma”. In: COHN, G. (org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 1986.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.
FÉRAL, J. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução J. Guinsburg et al. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2015.
FUTUROS amantes. Intérprete: Chico Buarque. In: PARATODOS. Nova Iorque: RCA Records, 1993.
HEGEL, G. W. F. “III. Poesia Dramática”. In: _____. Estética. Tradução A. Ribeiro e O. Vitorino. Lisboa:
Guimarães Editores, 1993.
LEHMAN, H.-T. Teatro pós-dramático. Tradução Pedro Süssekind. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
RAMOS, L. F. Mímesis performativa: a margem de invenção possível. São Paulo: Annablume, 2015.
APRESENTAÇÃO
O poeta [o escritor, o dramaturgo, o pensador] [...]contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo,
para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de
escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (AGAMBEN, 2009, p. 62-63).
Referências
Introdução
A dramaturgia de Bertolt Brecht (1898-1956), que entrou tardiamente no Brasil durante a década
de 1940, discute dimensões históricas, sociais, políticas e econômicas em contextos específicos para
flagrar as contradições que regem todas as esferas das relações humanas. Por acreditar que o teatro
deve cumprir seu papel social no sentido de conscientizar as pessoas de que podem e devem intervir
no rumo dos acontecimentos, mostra em cena que nada é natural ou imutável; tudo é passível de
mudança por ser historicamente determinado.
A influência de Brecht no Brasil evidenciou-se com mais força em vários momentos históricos de
tensão sociopolítica. Nas décadas de 1960 e 1970, as propostas brechtianas foram redimensionadas
por grupos de teatro brasileiros de acordo com as exigências de novos tempos e novos contextos.
Após o golpe de 1964, a ação da censura instituída pela ditadura militar inclui o teatro no rol das
atividades de alto risco. Todavia, apesar da repressão, “[...] os primeiros quatro anos da ditadura
paradoxalmente contribuíram para a história do teatro brasileiro com algumas de suas produções
mais significativas” (GARCIA, 2004, p. 119), dentre elas a montagem de O rei da vela (1973), escrita
em 1937, de Oswald de Andrade (1890-1954), com direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro
Oficina em 1967.
A partir de O rei da vela, Zé Celso concebeu “[...] a idéia de uma encenação brasileira, que se
livrasse de toda e qualquer influência estrangeira, ou melhor, que incorporasse e superasse essa
referência” (LABAKI, 2002, p. 34). O texto O rei da vela tornou-se o manifesto do Oficina por ser uma
peça “[...] surpreendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e da arte visual. A
superteatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechtiano através de uma arte teatral síntese
de todas as artes e não artes, circo, show, teatro de revista etc” (MARTINEZ CORRÊA, 1998, p. 89).
Como Oswald de Andrade, Zé Celso professou total liberdade de criação, adotando uma linha de
encenação híbrida que mistura e funde diversas estéticas, principalmente as linguagens cênicas de
Brecht e Artaud reconfiguradas à luz do manifesto antropófago do autor modernista, como ele próprio
explica em entrevista concedida a Tite Lemos em 1968, intitulada ‘O poder da subversão da forma’:
Hoje eu não acredito mais na eficiência do teatro racionalista. Muito menos no pequeno teatro da crueldade, que na
realidade não passa de um teatro de costumes: dos maus costumes, com suas prostitutas folclóricas e tudo mais. Para
um público mais ou menos heterogêneo que não reagirá como classe, mas sim como indivíduo, a única possibilidade é
o teatro da crueldade brasileiro – do absurdo brasileiro –, teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia
que vivemos (MARTINEZ CORRÊA, 1998, p. 98).
O espetáculo O rei da vela foi o ponto culminante da efervescência cultural engendrada pela
ditadura e pelos anseios do público por mudanças naquele período histórico. Foi um dos momentos
em que o teatro esteve no centro do debate nacional, empreendendo um diálogo com outras artes
como a música e o cinema. Caetano Veloso, depois de ter assistido ao espetáculo de Zé Celso, “[...]
radicalizou o processo que liderava e que ficaria conhecido por tropicalismo, nome por sua vez
derivado de um trabalho de Hélio Oiticica” (LABAKI, 2002, p. 35). Por outro lado, a recepção do
espetáculo “[...] não pode ser dissociada do impacto que filmes como O desafio, de Paulo César
Sarraceni, e Terra em transe, de Glauber Rocha, tiveram” (PATRIOTA, 2006, p. 325).
Após a projeção alcançada com O rei da vela, Zé Celso retoma o processo de radicalização da cena,
com o intuito de aprofundar o diálogo entre teatro e política. Ainda no ano de 1968, após a edição do
AI-5, quando o clima de repressão é intensificado com proibições de diversos espetáculos, cortes de
falas, suspensão de artistas, agressões, ameaças e difamação do teatro, Zé Celso montou o texto Roda
viva, escrito em 1967 por Chico Buarque, um espetáculo que afrontava a plateia e incitava o público
burguês a tomar uma posição, a sair da zona de conforto e engajar-se na luta contra as medidas
repressivas do regime militar. Yan Michalski considerou o ano de 1968,
[...] o mais trágico de toda a história do teatro brasileiro. A censura, seja oficial ou oficiosa, assume o papel de
protagonista na cena nacional, desencadeia uma guerra aberta contra a criação teatral, torna-se incomodamente
presente no cotidiano dos artistas. [...] A tensão chega ao auge em julho, quando o Comando de Caça aos Comunistas
invade em São Paulo, o teatro onde está sendo apresentada Roda-viva, de Chico Buarque, espanca e maltrata vários
membros do elenco e destrói o cenário e equipamento técnico. Em setembro, o elenco da mesma peça volta a ser
agredido, desta vez em Porto Alegre, e a censura acaba por proibir o espetáculo (MICHALSKI, 1985, p. 33-34).
Roda viva, uma produção independente fora do Oficina, foi, sem dúvida, o espetáculo mais
polêmico do ano de 1968, no qual Zé Celso introduziu estratégias cênicas criadas para O rei da vela,
em busca de um teatro violento, agressivo e provocador que assustou o público tradicional, de início,
e foi rejeitado por parte dos críticos. Esta nova maneira de fazer teatro foi legitimada pelas
considerações críticas de Anatol Rosenfeld (1976). Em seu ensaio O teatro agressivo, o crítico afirma
que José Celso se enquadra na
[...] grande tradição do antitradicionalismo e antiacademicismo, típica da arte moderna, cujos movimentos
vanguardeiros muitas vezes se distinguem pela revolta violenta. A ruptura com os padrões do bom comportamento,
do bom gosto e da ordem consagrada é o traço essencial da maioria dos movimentos artísticos do nosso século,
desde o futurismo, expressionismo e dadaísmo (ROSENFELD, 1976, p. 47, grifo do autor).
Depois de ponderar que esse tipo de teatro, concebido como foco de inquietação e perturbação, já
havia se manifestado em Alfred Jarry, Rosenfeld destaca Antonin Artaud (1896-1948) como principal
representante teórico do teatro violento, influenciando Jean Genet, Peter Brook e, no Brasil, José
Celso, cujo mérito no terreno artístico é indiscutível.
Após apontar as homologias entre as estéticas de Brecht e Artaud, como a luta contra o escapismo
do teatro burguês, a tentativa de alcançar uma nova relação entre palco e plateia, a suspensão da
quarta parede, dentre outras, Rosenfeld explicita as características que os separam radicalmente.
Ressalta que a tática de choque, utilizada por ambos os teatrólogos para deslocar os espectadores da
habitual zona de conforto ou letargia, assume contornos diferentes em Brecht e Artaud. Enquanto
Brecht objetivava despertar o senso crítico do público por meio de recursos estéticos que ativam o
intelecto, mas não se restringem à racionalidade, o teatro agressivo de Artaud “[...] tende a golpear
ou pelo menos coçar os nervos, o estômago e outros órgãos” (ROSENFELD, 1976, p. 50) de modo a
causar perturbação e desassossego no espectador.
No final de 1968, Zé Celso novamente faz uso de estratégias antropofágicas e artaudianas,
mantidas no limite do razoável, com a montagem de Galileu Galilei que suscita discussões acirradas.
As polêmicas giravam em torno da ousada cena de rua do Carnaval de Florença que foi expandida por
Zé Celso, tornando-se uma espécie peça-dentro-da-peça, utilizando novamente o violento e agressivo
coro implementado em Roda viva. A cena do Carnaval, considerada a mais inventiva, trazia “[...] a
soma das experiências anteriores do diretor, que viu a possibilidade de dar continuidade no processo
de proximidade com a platéia, do toque físico, de aguçar os sentidos” (BARBOSA; RIBEIRO, 2008, p.
265). O espetáculo estreou em 13 de dezembro de 1968, data da promulgação do AI-5, com imensas
grades colocadas na boca de cena do Oficina para mostrar o repúdio da classe artística às medidas de
repressão do regime militar.
A adaptação da peça Galileu Galilei à realidade brasileira dos anos 1960 e o processo de
dessacralização de Brecht por Zé Celso propiciou
[...] um proveitoso diálogo com segmentos sociais diversificados. [...] Nesse sentido, este é um caminho possível para
que se apreenda o diálogo de um espetáculo com seu momento histórico, a partir de atualização do texto, da temática
e das possibilidades interpretativas trazidas pelo encenador e os intérpretes. [...] No momento da encenação de
Galilei, uma parcela da sociedade procurava outras formas de intervenção no processo histórico brasileiro. Assim, sua
produção poderia ser vista como uma metáfora da situação vivida pela sociedade: ditadura militar, exílio, prisões
arbitrárias, tortura, cerceamento de liberdades artísticas e científicas (BARBOSA; RIBEIRO, 2008, p. 278-279).
Em 1969, o Oficina monta um texto da fase inicial de Brecht, intitulado Na selva das cidades (1921-
1923), o qual ainda não possui as características do dramaturgo dialético da maturidade. De acordo
com Yan Michalski, Brecht poderia ser visto à época como uma espécie de José Celso alemão que se
compraz em chocar e escandalizar o público. No Jornal do Brasil, o crítico argumentou que na
montagem, idealizada por Zé Celso, a dramaturgia do texto e as linguagens cênicas fundem-se
exemplarmente, produzindo um espetáculo de insólita e selvagem beleza:
Assistir à Selva não é divertir-se; é trabalhar, é suar a camisa, é prestar dolorosamente atenção, é sentir-se cansado, é
interrogar-se, é tentar conquistar, com o esforço ativo do intelecto e da sensibilidade, o direito de penetrar na
convenção daquele crispado e histérico universo de imagens. O direito, também, de emocionar-se diante de uma
beleza e poesia diferentes daquelas a que estamos acostumados: uma beleza e poesia cujos elementos componentes
abrangem a sujeira, o lixo, as ruínas, o suor e o mau cheiro (MICHALSKI, 1985, p. 40).
Nessa montagem, Zé Celso transpõe a situação caótica da República de Weimar, que se rende ao
apelo nazista, para a realidade brasileira vitimada pelo autoritarismo da ditadura militar. O espetáculo
foi uma verdadeira devoração antropofágica do texto do dramaturgo alemão, um espetáculo
tropicalista, carnavalizado que levou o ‘abrasileiramento’ ao extremo, gerando controvérsias sobre os
limites no processo de ‘nacionalização’ de Brecht. Michalski ressalta que nesse momento o Oficina
atinge um extremado “[...] grau de violência – os atores destroem parcialmente o cenário no fim de
cada sessão e a terminam física e psiquicamente esgotados – tão extremo que fica difícil imaginar
qual poderá ser o próximo passo do grupo na sua generosa mas auto-destruidora escalada”
(MICHALSKI, 1985, p. 40).
Em suas memórias a respeito de sua participação no Oficina, Ítala Nandi conta que em Selva,
ambientada em um ringue de box, interpretou Maria Garga, uma jovem do interior que vem, com toda
a sua família, para Chicago, uma metrópole decadente. Renato Borghi encarnou Jorge Garga, o irmão
de Maria, que conhece Schlink na livraria onde trabalha, vivido por Othon Bastos, que almeja através
de uma luta metafísica, comprar a opinião de Garga. Mas como Garga não está disposto a vender suas
ideias, Schlink passa a perseguir Garga nos doze rounds que estruturam a peça, desestruturando a
todos, pai, mãe e filhos que tentam sobreviver na selva de pedra. Maria, que se apaixona por Schlink,
acaba se prostituindo no bordel do homem que ama.
A atriz revela que “[...] a cada um dos rounds, a violência, a sujeira, o quebra-quebra” (NANDI,
1998, p. 221) eram diários. Parecia que que a brutalidade, que existia no país, havia se infiltrado no
palco do Oficina, tanto é que o cenário de Lina Bo Bardi foi concebido para ser destruído todas as
noites. Rememora que os atores muitas vezes perdiam a noção do que faziam:
Samuka e Flavio Santiago viravam bichos a cada espetáculo. Havia uma cena em que eu era currada e eles me
seguravam pelos pés, e me rodavam. Numa sessão de domingo à tarde, fui jogada na terceira fila da platéia. Os
espectadores, assustados, sem entender nada, me ajudaram a voltar para o palco, com a roupa toda rasgada, e
sangrando nas costas por causa de um arranhão enorme, que deixou cicatriz até hoje. Eu estava tão transtornada e
indefesa que não sabia o que fazer. Ao sair de cena, falo com Zé Celso – ele não me ouve. Estava cego e surdo e
achava que aquilo era natural e que eu era fresca. Eu estava diante de um estranho inimigo. Então para me defender,
armo um bafafá enorme. Exijo que o ator seja denunciado no Sindicato dos Artistas. E eu só desejava que aquela peça
acabasse. Eu queria fugir dali, do Oficina, de todos (NANDI, 1998, p. 234-235).
Esse grave incidente, que terminou com a expulsão de um dos atores exigida pela maioria do
elenco, mas contra a vontade de Zé Celso, resultou em divisão interna do Oficina. A encenação,
extremamente violenta, retratou não apenas a crise que o país atravessava naquele momento
histórico, mas também a desintegração da equipe artística do Oficina.
No artigo ‘A encenação no teatro pós-dramático in terra brasilis’, Marcio Aurélio Pires de Almeida
aponta a radicalidade da ruptura com o texto de Brecht e caráter pós-dramático na encenação de Na
selva das cidades de Zé Celso, rememorando a verdadeira revolução que ocorria naquele momento no
teatro e fora dele:
Uma análise mais apurada pode tecer várias considerações sobre o quanto o espetáculo já estava completamente
engajado com outras possibilidades expressivas. Narrava-se a luta metafísica do pequeno burguês que eram eles
atores e espectadores. O ar era o mesmo, ritualisticamente, dos atores, do público, da cidade. Apresentava-se o
esfacelamento de um movimento de nossa história. Ia além das palavras. [...] A ruptura com o texto, usado de forma
autoral, da cenografia que era violentamente destruída todos os dias, dialogava com a destruição da cidade em
processo de reurbanização. A cidade que se humaniza era o slogan da época. Esse era o texto, plenamente
colocado em cena em todas as suas contradições. [...] Não há fábula possível nesse processo demolidor. Só fatos. Só
poesia do cotidiano expressa em cada ação violentamente mostrada. Tem a indignação. [...] A cada round os odores se
misturavam criando uma pestilenta sensação de destruição e morte. Era o fim. E era só o começo. Quando a
personagem Garga encerrava o espetáculo dizendo: O caos está consumido. Foi o melhor dos tempos, explodia a
contradição histórica daquele momento (ALMEIDA, 2008, p. 76-77, grifo do autor).
Apesar de que Brecht continuou sendo a referência ideológica mais próxima da formação política
de Zé Celso que, repetidamente, faz uso da estética brechtiana em seus espetáculos, o encenador
levou mais de trinta anos para revisitar Brecht no espaço do Oficina. Em 2012, decide montar o
espetáculo musical Acordes, uma apropriação antropofágica d’A peça didática de Baden-Baden sobre
o acordo, escrita por Brecht e musicada por Paul Hindemith em 1929, ano da quebra da bolsa de
Nova York e do início da Grande Depressão dos Estados Unidos. Nesse texto, Brecht anteviu que os
avanços tecnológicos alcançados pelo homem seriam usados como ferramentas de destruição e de
controle do Estado, e não em benefício da população em geral.
Segundo o depoimento de Zé Celso, esta peça, que questiona a ação da bondade, vista como um
paliativo quando a sociedade clama por transformações, foi objeto de estudo do Oficina desde 1980,
sempre exercendo o papel de inspiração e guia. O enredo fragmentado do texto retoma um escrito
anterior de Brecht, intitulado O voo sobre o oceano (1928-1929), uma peça radiofônica, baseada no
voo de Lindbergh, um fascista que manteve relações estreitas com os nazistas. Em A peça didática de
Baden-Baden sobre o acordo, Brecht toma como ponto de partida a parte final do texto O voo sobre o
oceano, intitulada “Relatório sobre aquilo que ainda não foi alcançado” (BRECHT, 1992, p. 182-183), a
qual exalta o domínio do homem sobre a natureza, rebatizando-a com um novo subtítulo, qual seja
“Relatório de voo” (BRECHT, 1992, p. 191-192). No entanto, em sua reescritura, Brecht formula a
antítese do texto anterior e, por meio de três inquéritos inicia o processo de aprendizagem do público
que deve decidir se os aviadores, contaminados pela febre do capitalismo e interessados
principalmente no lucro financeiro, devem ser ajudados quando pedem pão, água e travesseiros à
multidão que assistiu à catastrófica queda do avião.
O texto de Brecht gira em torno da tese que negar auxílio é uma forma de violência, mas prestar
ajuda também pode ser concebido como uma forma de opressão. Nesse sentido, a peça reflete sobre o
papel da multidão, interpretada pela plateia, dentro do contexto da necessidade de mudanças sociais.
A novidade da peça didática não reside em seus temas, mas na renovação estrutural que pressupõe
a total abolição da divisão entre ator e espectador. No espetáculo Acordes (2012), Zé Celso, em
maquiagem clownesca e vestes brancas, comanda a encenação o tempo todo como corifeu e mestre
de cerimônias. Ele expande a participação do coro que, repetidamente, intervém nos diálogos,
procurando integrar o público à ação (no papel de multidão) para retirá-lo de sua costumeira
passividade. Instaura-se o ‘Te-ato’, termo cunhado por Zé Celso, o ato ou fenômeno teatral que se
desenvolve na coautoria de espectadores-atores, com o intuito de conjugar arte e vida, diminuindo a
distância entre a realidade teatral e a realidade social. A proposta do Te-ato de Zé Celso objetiva
suprimir “[...] todas as distinções e barreiras entre atores e espectadores, engendrando-se um
conjunto de atuadores que, num jogo criativo, despido de máscara, promoveriam a comunicação e a
liberação coletivas” (SILVA; GUINSBURG, 2002, p. 127) para incentivar o desenvolvimento de novos
comportamentos individuais e sociais.
Assim, os espectadores de Acordes, transformados em personagens participantes, devem decidir se
é justo dar pão, água e travesseiros para os aviadores após a queda do avião. A grande maioria, que
inicialmente manifesta uma disposição favorável para ajudar, é intimada a negar ajuda por meio dos
ensinamentos veiculados pelos três ‘Inquéritos para saber se o homem ajuda o homem’ (BRECHT,
1992) canibalizados por Zé Celso. O espetáculo joga com procedimentos brechtianos o tempo todo,
estimulando o público a fazer escolhas diante da exposição de diversas situações que remetem a
problemas da realidade brasileira.
No primeiro inquérito, o coro demonstra que as pesquisas científicas e invenções se afastaram de
seu primordial objetivo que seria a melhoria da vida do homem. O domínio da natureza não trouxe
conforto para a sociedade – nem mesmo o pão ficou mais barato.
O segundo inquérito, que na peça de Brecht, apresenta vinte fotografias que mostram como “[...] os
homens são massacrados pelo homem” (BRECHT, 1992, p. 195), em Acordes projeta, em enormes
telões, cenas da crise econômica de 1929 e material documentário sobre as consequências desse
baque para o Brasil; passeatas de desempregados pelo mundo; aviadores que vestem capas e quepes
de Nazistas e do Batalhão Operacional de Polícias Especiais (BOPE) portando caveiras; o suicídio de
Santos Dumont; a guerra em Gaza; o lançamento da bomba atômica; carnificinas, torturas e
atrocidades do mundo contemporâneo; imagens sobre a recente sucessão de incêndios em favelas
paulistanas; agressões a etnias indígenas e protestos de rua. As câmeras também captam imagens do
espetáculo e dos espectadores ao vivo.
E o terceiro inquérito, uma esquete comitrágica na qual dois palhaços dilaceram o poderoso
gigante Sr. Schmitt, o qual vai se tornando cada vez mais dependente à medida em que aceita ajuda.
A ação dos clowns na desmontagem do gigante demonstra a relação contraditória entre ajuda e poder
com crueza exemplar. Esta cena, ao mesmo tempo lúdica e grotesca, com sangue espirrando por
todos os lados no estilo Grand Guignol, quase atinge os espectadores nos momentos em que os
membros, orelhas e a cabeça do Sr. Schmitt são decepados. Diversas interpolações tópicas pontuam a
ação que começa com bajulação e termina com o gigante dominado. Segundo Ingrid Dormien
Koudela, “[...] o processo de aprendizagem mostra: a necessidade de ajuda provoca o poder; o poder
determina a situação que torna a ajuda necessária. O processo de aprendizagem é concluído pela
negação de ajuda – um comentário que tira as hilações [sic] político-sociais do princípio abstrato
desse exame” (KOUDELA, 2007, p. 52, grifo do autor).
É importante lembrar que as peças de aprendizagem de Brecht (1992) (Lehrstücke), compostas a
partir de 1928, tais como O voo sobre o oceano (1928-1929), A peça didática de Baden-Baden sobre o
acordo (1929), Aquele que diz sim (1930) e A decisão (1930), tiveram uma origem musical. Segundo
Geraldo Martins, “Embora os textos das peças didáticas conhecidos no Brasil e traduzidos da versão
da editora Suhrkamp Verlag não façam nenhuma referência à presença da música nessas peças, elas
aparecem, em sua versão original, como libretos de cantatas didáticas” (MARTINS, 2012, p. 151).
Em Acordes, as canções d’A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo, musicadas por Paul
Hindemith, são recriadas com novas letras e novos acordes (arranjos) para cumprir os objetivos
propostos por Zé Celso, quais sejam, convidar a plateia a assumir um posicionamento diante dos
graves problemas da realidade brasileira. O trocadilho com as palavras ‘acordo’ e ‘acorde’ (acordar),
do título do espetáculo, enuncia o debate presente na obra sobre a tomada de consciência das
mazelas sociais e a aceitação ou não de ajuda. O título também remete a ‘acordes’ musicais, ou seja, o
‘acorde’ é a escrita ou execução simultânea de duas ou mais notas, uma especificidade musical que
tem parentesco com a multiplicidade de pontos de vista e a dialética brechtiana.
Associando recursos épicos, como a narração, a argumentação e a participação do público como
coro ao ritual dionisíaco preconizado por Artaud e à costumeira devoração antropofágica, o
espetáculo, que propõe um novo voo – a construção do Teat(r)o Oswald de Andrade –, termina com
uma procissão ritual para fora do teatro até um monte de entulhos situado no enorme terreno
adjacente ao Oficina, no qual sobe Zé Celso para discursar, com os artistas abraçados aos
espectadores cantando a música Acordes, a qual insistentemente adverte a não manifestar-se a favor
quando não estiver de acordo. Nesse epílogo ao ar livre, o discurso de Zé Celso deixa explícito o seu
apelo à população de dizer ‘não’ ao projeto de Silvio Santos que pretende construir um espigão ao
lado do Oficina, uma questão que continua em litígio entre o encenador e o empresário – dono do
terreno – há décadas (MAIA, 2017).
Considerações finais
Referências
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diálogos sobre teatro. São Paulo: Edusp, 2002. p. 103-127.
1 O presente texto é uma versão ampliada e reconfigurada de um artigo publicado nos Anais do VII CIEL Congresso Internacional de
Estudos Literários. Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), em 2013.
Capítulo 2
Introdução
A trupe de atuadores ‘Ói Nóis Aqui Traveiz’ é um grupo fundado em 1978, em plena ditadura
militar em fase de distensão forçada pela crise econômica, atuando na contracorrente em todos os
sentidos (estético, político, de organização do trabalho, na relação com seus públicos, contra o
mercado da arte). A trupe conseguiu manter essa postura e perspectiva desde então, hoje um grupo
maduro comemorando 40 anos de estrada e muita acumulação crítica, estética e política. Um aspecto
notável é que conseguiu se manter ativo sem perder a coerência, integridade e importância crítica,
estabelecendo-se como um dos grupos mais importantes do Brasil, mesmo estando à margem do
mercado, e contra proteções institucionais estáveis. Usa tanto a rua como espaços fechados não-
convencionais para públicos reduzidos. Há uma preocupação genuína com o papel da arte em uma
sociedade cada vez menos afeita ao diálogo crítico, o que se vê materializado em sua forma de
trabalho coletivo radical, em sua atuação decidida no âmbito da formação (com cursos regulares e
oficinas teatrais), em seus métodos de pesquisa, em suas parcerias e contatos com outros grupos e
movimentos sociais, na edição de materiais audiovisuais e revistas.
Nesse sentido amplo, um decidido caráter de ‘formação’ permeia as atividades do grupo e seus
projetos, formação essa estética, política, social, intelectual, que não é uma espécie de subproduto
visando a criação de público (o que, obviamente, também é), mas item constitutivo de um projeto
absolutamente consciente da urgência e abrangência da discussão que envolve os diversos campos da
vida social – e que a lógica científica tradicional exige separar. O teatro do ‘Ói Nóis’ não começa nem
termina numa apresentação específica, mas é entendido como um processo complexo de formação
tanto para os atuadores quanto para o público que participa de suas atividades, que tem em suas
peças um de seus momentos de síntese. Essa dinâmica não cria um sistema fechado em torno de uma
arte tomada como autônoma, regida por normas e critérios de uma suposta estética pura, tendo em
vista a dialética potente entre sua arte e a vida social, questão fundamental para qualquer momento
de sua atuação.
Falar do ‘Ói Nóis Aqui Traveiz’, portanto, vai muito além de meramente escrever um ensaio sobre
determinadas peças ou sobre movimentos estéticos, ou de apenas acompanhar sua história; o objeto
pede atenção às mediações sociais e, sobretudo, ao desmascaramento das construções ideológicas
que atuam no nível das formas e determinam nossos modos de ver e de sentir, nossas estruturas de
sentimento, na acepção de Raymond Williams. A pesquisa sobre a história, sua escrita, transmissão e
recepção, por um lado, o papel social da arte, por outro, são levados para dentro das suas
experiências teatrais, que atuam como mônadas-do-conhecimento, no sentido de Benjamin. Sendo
assim, as mediações entre forma, conteúdo e os materiais de uma encenação, bem como o espaço em
que é apresentada e as relações com determinado público, engendram formas de conhecimento
próprios, que não se reduzem ao estudo da filosofia, da política, da sociologia, da história, antes
articula-os em apreciação estética, no sentido forte do termo.
Sendo assim, o objetivo desse ensaio é, partindo de alguns momentos representativos dessa
trajetória, procurar mostrar o quadro amplo em torno do qual o teatro desse grupo portoalegrense se
situa, com a pretensão de abrir espaço para novas discussões sobre teatro e sociedade, tão
necessárias hoje em dia. Não é um estudo sistemático e estruturado, mas uma tentativa de se
aproximar de um grupo entre os mais instigantes, inspiradores e importantes do cenário brasileiro
nos últimos 40 anos.
Não é o caso de se fazer uma recuperação minuciosa da história do grupo, mas de inseri-lo no
contexto do teatro de grupo de cunho dialético no Brasil e, então, apresentar sumariamente algumas
experiências teatrais fundamentais para o argumento do ensaio, que são a trilogia das tragédias
(especialmente Medeia vozes) e algumas das peças para a rua (especialmente O amargo santo da
purificação).
Podemos falar em três ciclos de politização do teatro brasileiro, quando
[...] a produção artística mais experimental assume uma orientação crítica de sentido extra-estético, em que
predomina o interesse na participação em debates públicos, em que várias experiências isoladas passam a se
conjugar em torno da tomada de posições coletivas diante de processos históricos (CARVALHO, 2011, p. 1).
Esses ciclos se referem ao teatro dos anos 1930, 1960 e 1990. Nos anos 1930 esse teatro não
conseguiu subir aos palcos, mas foi escrito por Mário e Oswald de Andrade, entre outros. Na década
de 1960 o trabalho em torno de grupos como o Arena e o CPC aparecem como interlocutores
privilegiados no sentido aqui apresentado – um trabalho de grupo seja na pesquisa, produção, criação
dramatúrgica, interesse por novos temas e formas, buscas de interlocução com outros públicos e com
o contexto histórico no qual se inseriam. Nos anos 1990 há uma retomada dessa perspectiva crítica a
partir, entre outras coisas, da crítica da submissão da vida teatral ao mercado – que a vaga neoliberal
erigiu como Deus – e, também, em oposição ao esteticismo autocentrado. Mas isso não implica dizer
que houve um vazio completo entre os períodos; grupos como o ‘União e Olho Vivo’ e o ‘Ói Nóis Aqui
Traveiz’ estabeleceram-se já nos anos 70 com uma postura e tônus que precisam ser estudados para
que conheçamos melhor essa fase do teatro brasileiro.
O ‘Ói Nóis’ inicia suas atividades em 1978, com um teatro agressivo, ritual e político sem
concessões. Nesse momento, há sinais de enfraquecimento da ditadura, logo depois haverá a volta
dos exilados e, infelizmente, a autoanistia dos militares em 1979. Olhando em retrospectiva, em 1978
há ao menos três marcos do teatro brasileiro que indicam uma inflexão no sentido da retomada de um
teatro político e dialético, mesmo que muito diverso daquele dos anos 1960: a encenação de
Macunaíma por Antunes Filho, a montagem da Ópera do malandro, de Chico Buarque, e a criação do
‘Ói Nóis’ em Porto Alegre. Para a retomada de um teatro crítico, a expressão cênica da rapsódia
narrativa andradiana e a atualização brasileira do épico brechtiano, além das incursões do ‘Ói Nóis’,
são muito significativos para a revisitação daquela agenda, ainda que em outro ritmo e atmosfera.
O ‘Ói Nóis’ surge com A divina proporção e A felicidade não esperneia, PatatiPatatá. Essas peças
foram caracterizadas por Iria Pedrazzi (1997), no título de um texto seu, como ‘uma bofetada’.
Marcadas por gritos e grunhidos, suas dramaturgias incisivas exigiam atitude visceral de defesa do
público, que não tinha a opção de se manter imune. Esse início não trai a influência do Living Theatre
e do teatro da crueldade, de Artaud. Ainda em 1978, o ‘Ói Nóis’ realiza intervenções cênicas que, de
acordo com Claudio Heemann (1989, p. 1, grifo nosso), seriam exemplos típicos de teatro guerrilha.
Cito: “Ação aplicada diretamente à realidade. [...] O aspecto da apresentação oscila entre o grotesco e
o anticonvencional. Afirmação anárquica de rejeição aos valores da sociedade estabelecida; [...]
Abandona a posição de celebrante de rituais artísticos para cair na ação política”. A prisão de
Paulo Flores, um dos fundadores do grupo, em uma manifestação pela Anistia em agosto de 1978
mostra como o grupo conseguia incomodar a ditadura.
Diferente de Heemann (em texto feito no calor da hora, diferentemente desse ensaio), e levando em
conta os desenvolvimentos posteriores do grupo, penso que o ‘Ói Nóis’ não abandona a posição de
celebrante de rituais artísticos para cair na ação política, mas antes faz com que essas duas correntes
estéticas se matizem mutuamente e criem um percurso próprio para seu fazer artístico. Há um
interesse genuíno na força universal e poética do ritual, com acentos irracionalistas e esteticistas,
mas essa dimensão nunca perde de vista o contexto histórico e o lugar de fala e de luta do grupo, o
que também é explícito, numa perspectiva épica – o que veremos mais adiante. Essa tensão ganhou
novas modulações e nuances ao longo do tempo, e hoje não mais provoca uma ‘atitude visceral de
defesa’, mas não deixou de fazer parte da estrutura básica da organização dos materiais e da atuação
do grupo. A operação dessa contradição é constitutiva para o grupo, que a materializa em muitas
matizes e relações.
Aqui estão dadas duas das linhas de força decisivas para uma poética do ‘Ói Nóis’. Essa dinâmica
se dá no interior das obras, em seus processos de criação coletiva e em sua relação com o público (e
com a cidade de Porto Alegre, deve-se dizer). Sendo assim, é falso dizer que estas duas linhas se
desdobram em duas vertentes, uma delas sendo o teatro feito para espaços cênicos fechados e outra
para a rua, o teatro fechado voltado para o ritual e a rua para o engajamento político. O ritual é
localizado historicamente nas peças na Terreira, assim como as peças de rua estão longe de se
constituírem como meros panfletos, discussão essa que pretendo desenvolver nesse ensaio. Entre o
envolvimento com o ritual e a distância criada pela imediatez da realidade está a dinâmica desse
grupo único, lúcido e consequente em seus atos. De certo modo, essa dialética questiona os limites
entre uma obra de arte engajada e a obra de arte autônoma, se tomadas como mutuamente
excludentes ou como pares antitéticos – indo contra ninguém menos que Adorno em seu ensaio sobre
o engajamento na obra de arte, que, nas palavras de Costa (1998, p. 216), acabou por “[...] dificultar a
percepção das qualidades da dramaturgia brechtiana e apresentar mais uma defesa como sempre
empenhada da arte autônoma”.
Já aqui estão dadas algumas reverberações tanto do teatro artaudiano quanto do agitprop, em
chave piscatoriana que, a seu modo, também tem fortes relações com a estética de Heiner Müller.
Com isso não se pretende encontrar filiações que expliquem e categorizem as atividades do grupo,
pois sua estética inclui uma concepção e participação na vida social brasileira e, com isso, não se
subsome a rótulos ou movimentos determinados. O interesse se dá justamente para indicar linhas de
força teóricas e críticas que ajudam a compreender os caminhos próprios do grupo. Deste modo, esse
percurso muito próprio, que toma materiais (literários e sociais) os mais distantes sem descurar de
suas mediações brasileiras, nem está alheio aos desenvolvimentos contemporâneos nem é refém
deles.
Passo agora ao estudo de alguns tópicos ligados às encenações de Antígona - ritos de paixão e
morte (1990), Aos que virão depois de nós - Kassandra in process (2002) e de Medeia vozes (2013),
três atualizações de tragédias clássicas (mesmo que o material primeiro já seja uma adaptação, como
no caso de Medeia vozes, a partir do romance de Christa Wolf). Um primeiro aspecto que chama a
atenção é que não são concomitantes as encenações, pelo contrário, da primeira à terceira temos um
hiato de 23 anos. Isso atesta que esse procedimento não foi pontual ou efêmero, mas se realiza como
estrutura profunda. Em tempos em que a arte, pela leitura dominante, é entretenimento ou a
metafísica de um autor-demiurgo, faz-se necessário frisar a capacidade de uma arte formadora.
Além da remissão às obras mesmo, o modo de sua apropriação interessa diretamente. Afinal de
contas, não se trata de montá-las com alguma fidelidade clássica, mas sim buscar, a partir de
questões do presente que apontam para o passado, os itens da conjuntura do passado que ficaram
esquecidas pela cristalização de uma interpretação a partir do pensamento dominante. Ou seja, em
cada passado há uma série de possibilidades que ficaram abertas, que não foram esgotadas, e a
salvação desse passado exige a sua retomada. Não é à toa que Antígona, de Brecht, inicia com o
massacre da segunda guerra mundial. Não é à toa que a Antígona do Alfenim (em Milagre brasileiro)
agride os espectadores que a querem mito, e não medium-de-reflexão. E, na Antígona: ritos de paixão
e morte (1990), do ‘Ói Nóis’, há cenas como a que transcorre numa choupana, em que um filho que
desertara conversa com sua mãe. Como o grupo lembra, não há essa cena em nenhuma Antígona, mas
eles queriam também expor a perspectiva do povo, ausente das tragédias gregas, que só focalizam a
realeza. Essa peça continha ainda fragmentos de textos de autores como Camus, Artaud, Brecht,
Dante, Poe, Dostoievski, Heiner Müller, Anouih, Sartre, Mallarmé, entre outros. Procedimento análogo
ocorre em Aos que virão depois de nós - Kassandra in process (2002): Müller, Beckett, Eurípides,
Orwell, Handke, Rimbaud, Neruda, Guinsberg, índios sioux e chayenne, costurados com Christa Wolf.
Nas palavras de Valmir Santos (2006, p. 32): “Essa coisa do insert, do recorte de textos, é uma
prática adotada há tempos no Grupo para reforçar uma leitura ideológica do ‘Ói Nóis’. Ao mesmo
tempo, evidencia o horror no qual nos encontramos”. Esses inserts, a meu ver, são formalmente
decisivos para o projeto do ‘Ói Nóis’, não se limitando a mero reforço de uma leitura ideológica, o que
parece tímido. O procedimento tem por base uma apropriação dos mitos consagrados com uma
liberdade e desfaçatez das mais significativas. Essa organização dos materiais também é central em
Medeia vozes (2013), no qual, de acordo com Paulina Nólibos, funciona como uma ‘desestruturação
espacial e temporal’ e, diria eu, também da fábula e da concepção de clássico. A citação é longa
porque enseja discussões que quero aprofundar:
As cenas se sucedem vertiginosamente entre Europa e Ásia, e os ambientes cambiantes deixam entrever uma
proposta de desestruturação espacial e temporal bem sucedida. Perdemo-nos para nos deixarmos levar por um fluxo
arcaico e quase religioso, no qual se fundem passado e presente, já que alguns inserts de narrativas documentais são
introduzidos, apontando histórias de vida recentes de mulheres reais dos quatro continentes: Ásia, África, Europa e
América. Cada uma delas apresenta-se em situação de violência, de exclusão social e de sofrimento político, e suas
trajetórias individuais apontaram vitórias e coragem para enfrentar seus algozes (NÓLIBOS, 2014, p. 275).
O trecho é elucidativo para a linha de argumentação aqui desenvolvida, pois fala de um ‘fluxo
arcaico e quase religioso’, que remete ao ritual. De acordo com ela, isso levaria à ‘fusão’ entre
passado e presente, ou seja, levaria a inserir o presente no fluxo arcaico do passado. Vejo as coisas em
outra chave: não há uma fusão mas, ao contrário, a justaposição como montagem que ‘impede’ o fluir
de um ritual, trazendo material social bruto para primeiro plano, ‘sujando’ qualquer conceito de ‘fluxo
arcaico’. Ou seja, a meu ver não haveria fusão, mas justaposição (que mantém distância) de materiais
alheios, o que leva à ‘interrupção’ do fluxo da peça – um dos principais itens que provocam o
distanciamento no teatro dialético brechtiano, a julgar por Benjamin (1987). Sem justificativa na
fábula, essa excelente sujeira provoca um bloqueio materialista: o mundo contemporâneo impõe sua
agenda de modo imediato à fábula, apenas pela analogia dos excluídos e explorados de agora, que
querem fazer ouvir suas vozes. A fusão levaria à indistinção, mas a dramaturgia e a cena pretendem
antes o choque. O procedimento, que é formal para as três peças, se pauta por uma aproximação
metonímica dos excluídos de sempre – não metafórica, como na alegoria, mas da parte pelo todo.
Assim se reforça que se trata de questões tão prementes e urgentes que não podem esperar e
irrompem em qualquer situação que lhes seja propícia. As Medeias de agora têm pressa, seria pedir
demais não interromper o fluxo quase mágico do clássico dito ‘atemporal’, seria errado respeitar
demais a fábula milenar – por mais que elas digam muito a nosso tempo.
O fato desse procedimento aditivo não estar restrito a uma peça, ou a um episódio, mas se espraiar
pela tessitura das três peças num intervalo geracional de 23 anos dá a dimensão de sua ascensão à
forma, não sendo mero insert ou ‘fusão’ de passado e presente. Em suma, estamos no âmbito do
teatro épico-dialético, que cria distâncias críticas, e não no campo do mergulho ritual – salvo engano.
Mais próximo da leitura que faço está Fábio Prikladnicki, que diz:
Medeia Vozes é uma releitura revolucionária da tragédia de Eurípides. A feiticeira movida pelo ciúme ou pela honra
retratada pelo grego dá lugar a uma ativista em busca de justiça social. [...] Medeia ecoa as mulheres que sofrem
mutilações genitais na África, estupros sistemáticos na Índia e violência doméstica no Brasil (PRIKLADNICKI, 2014,
p. 277).
Também ele, no entanto, parece ir com muita sede ao polo contrário, o que o faz perder a dialética
entre a força performativa do mito da tragédia clássica e o mundo social de agora. Sua Medeia é
quase somente uma ativista social, diminuindo-a a mera metáfora fácil para o engajamento direto,
sendo a tragédia apenas pretexto. Esse projeto das tragédias, a meu ver, não pode perder a tensão
dialética entre os polos, de tal maneira que se discuta uma atualização dos mitos que o tornem
produtivos hoje, questionando seu estatuto universalista e, também, sua mera tradução em forma
burguesa.
Há uma espécie de poética sobre a apropriação do mito, penso eu, no modo como o ‘Ói Nóis Aqui
Traveiz’ articula questões da história recente, da literatura e da arte atuais, de inserções dos mais
diversos materiais e fontes, resultando em uma forma de desmitologização do mito, que está
diretamente ligado à tradição dos estudos do materialismo dialético – basta lembrar a leitura da
mitologia penetrando o capitalismo pelo marketing, pela religião do dinheiro, em Benjamin (2006), a
partir da obra de Baudelaire. Voltando ao ‘Ói Nóis’: querendo ser mais específico, não há a negação
da dimensão mítica, universalista, mas a sua matização, a sua superação dialética. Na dialética em
que o mito deve ser visto pela sua apropriação materialista, social, ele é um intangível tangível; uma
contradição. E o terreno da exposição da contradição é, por excelência, o do materialismo dialético.
Ou seja, sem perder a sua força interpretativa, de alegorização (mesmo simbolização) de uma
experiência humana, uma generalização que chega ao abstrato, esse mito também é parte das
questões mais prementes de hoje: é luta contra a discriminação, contra a exploração, contra a fome.
Importante não perder o caráter anticapitalista desse projeto, que de alguma forma
sobredetermina as demais instâncias no mundo atual. A lógica da reificação e da valorização
irracional do capital operam no nível da construção dos significados e dos valores, de tal maneira que
sem essa remissão não se compreende o todo. Isso tem a ver tanto com a formação de uma
subjetividade que não seja a aparente autonomia burguesa quanto, no Brasil, com nosso modo
peculiar, pela periferia, de pertencer ao concerto das nações desde o século XVI.
Para um paralelo que pode ser esclarecedor, a questão dos mitos historicizados e perspectivados
aparece em parte da obra de Boal. Quero crer ser possível fazer uma leitura análoga à que foi feita
por Anatol Rosenfeld (1996) sobre o Arena conta Tiradentes, em suas considerações sobre o sistema
curinga. Pois, no caso dessa peça, tanto o curinga quanto os demais atores têm consciência de que
são paulistas de 1967, discutindo, entre outras coisas, o papel do intelectual e da esquerda na falta de
percepção da força da direita que levou ao golpe. Mas Boal e Guarnieri colocam Tiradentes como um
personagem realista, que está totalmente entregue ao universo ficcional da peça. Ele É Tiradentes,
com É maiúsculo; seu ator não o representa, ele o vive; não tem dimensão do que ocorre à sua volta.
Ele fica enfraquecido ante os demais, que não se identificam com seus personagens. Por esse
percurso, Tiradentes ganha dimensão mítica: ele está fora da história, um herói às antigas.
Representaria a necessidade do herói atemporal num país como o Brasil. Isso opera no plano da
dramaturgia, do texto. Porém Rosenfeld nota que o espaço do teatro de Arena, que aproxima os atores
do público, em volta dos atores, rompe com o contrato realista desse personagem. Afinal, o mito
prefere o palco italiano, distante, idealizador, que serve bem às coisas absolutas. Tiradentes, no
Arena, é visto suando, pigarreando, tomado em sua dimensão humana, efêmera, material. Com isso,
para Rosenfeld, Boal, quer intencionalmente ou não, desmitifica o mito; questiona o mito; humaniza-o;
em suma, historiciza-o. O projeto que havia em seu discurso teórico, e no seu texto, é desmentido, ou
ao menos colocado em regime de contradição, quando vai ao palco do Arena. Assim, a dialética do
personagem exige tanto o texto como a cena, tanto o que seria a sua marca universal (o texto) como o
efêmero (a cena).
Pois bem, quero crer que um processo análogo ocorre nas atualizações dos mitos feitas pelo ‘Ói
Nóis’ no projeto das tragédias. Esses mitos não são tomados pelo ‘Ói Nóis’ como materializações
contemporâneas, meramente transpostas para a atualidade, mantendo algo como uma essência
atemporal ganhando corpo. Não haveria, na estética do ‘Ói Nóis’, um fundo mítico inabalável e
absoluto que ganha vida e cores aqui e acolá. Em sentido inverso, o mito fundador deve ser visto em
contexto, historicizado, localizado em campos de força políticos em um dado momento, e retirado da
distância absoluta. Assim, a Medeia de Christa Wolf não é idêntica à de Eurípides, nem quis ser; ela
nem mesmo assassinou os filhos. Será que o mito grego já não parte de uma condenação a priori da
mãe, com a acusação? A resposta não está na história, evidentemente, de uma Medeia que tenha
vivido de fato, mas sabemos como a transmissão histórica redefine os sentidos e determina os
significados. Nada está imune à revisão histórica.
Mas que fique claro: no caso do ‘Ói Nóis’, essas releituras que buscam novas constelações
significativas não apoiam o vale-tudo semântico e o individualismo impressionista que vemos em
algumas correntes pós-dramáticas: o mundo social, a história a contrapelo, não aparecem apenas
como tema, ou ponto de partida, mas estão incrustadas na forma artística, lugar de sua pesquisa
estética.
Tudo rompe com o drama tradicional e indica estarmos diante de uma obra artística, sem distância
segura entre arte e vida. Há uma imbricação constitutiva, que atua em todos os níveis do fazer
poético no caso do ‘Ói Nóis’, que retira qualquer acomodação. Está nos figurinos, nos cenários, na
entonação, nos Gestus – isso mereceria um capítulo àparte – no espaço ocupado pela plateia, na
temporalidade dos espetáculos, na falta de uma fábula tradicional (conflito, curva dramática, clímax,
desfecho, pelo diálogo e ação etc), na longa e exaustiva pesquisa de fontes. Tudo isso traz para o chão
do mundo, para o materialismo, sedimentado como forma. O trabalho com os mitos segue esse
percurso. Quando estamos envolvidos e enlevados por uma atmosfera ritual que poderia ser
entorpecente, sobrevém bruscamente a interrupção do fluxo, que pode vir da súbita mudança de
registro que nos faz presentificar as vozes de oprimidos seculares, que se somam umas às outras
como um monte de escombros que faz lembrar a tese de Walter Benjamin sobre o anjo da história,
que gostaria de juntar esses cacos – fragmentos – da história e dar o sentido que eles merecem, que
os redima, que é diferente do que faz a voz dominante. Em Benjamin, vem uma tempestade que
impele esse anjo da história para o futuro, e essa tempestade é o progresso – da técnica, do
positivismo, da neutralidade da arte, de uma forma de discurso dominante que é discurso também. A
fragmentação, a falta de um sentido único, a justaposição de diversos registros cênicos, por vezes em
contraste, apontam tanto para o caráter de obra de arte desse teatro, que se quer obra de arte, que se
expõe como tal, como quer mostrar que essa arte faz parte da vida, discute, critica, apoia, entra em
contradição, em suma, faz refletir – é um médium-de-reflexão, segundo Benjamin.
Além disso, o acúmulo de materiais tem relação com um signo da destruição pós-moderna, de não
haver mais conceitos que nos ajudem a entender a crise atual, pois todos os mais importantes foram
jogados fora antes de perderem a validade; o ‘Ói Nóis’ se interessa por esses fragmentos da vida, e o
fato de fazerem uma criação coletiva e terem enorme dificuldade em deixar de fora algumas partes,
embora fiquem ainda saturados de tensões, de imagens, de textos, texturas, sons, etc, aponta para
essa necessidade pelo sentido da história, em tempos sombrios. O mito resulta historicizado e
perspectivado, questionado em qualquer pretensão ontológica – o que não o desmerece nem invalida,
antes eleva a discussão ao nível de sua complexa dialética constitutiva.
Como termo de comparação, quero falar brevemente de outro projeto, de outro grupo. No projeto
Peep Classic Ésquilo, de Roberto Alvim, são encenadas as sete peças de Ésquilo que chegaram até nós
em três noites, cada uma com duração de uma hora, reduzindo drasticamente o texto original. O
projeto objetiva ‘depurar’ Ésquilo de seus elementos conjunturais, buscando uma linguagem
essencial, assim sumarizado por Ramos (2012) em sua crítica: “Quando o mínimo é o máximo”. E
continua: “Dialogando com a arte contemporânea [...]”, a adaptação feita por Alvim do “[...] fundador
da dramaturgia ocidental [...]” subtraiu “[...] todos os elementos mitológicos [...] e minimizou o papel
do coro, diluindo sua função narrativa”. Com isso, “[...] as falas desobrigam-se de contar histórias e
tornam-se substantivas, soando como poemas inaugurais”. Mais adiante: “Os atores estão quase
estáticos ou invisíveis. Potencializados como emissores, resgatam o que há na obra de Ésquilo de
oracular sobre a condição humana” (RAMOS, 2012, p. 2). Como se percebe, Alvim retira tudo o que há
de histórico dessas tragédias, isolando o texto de qualquer traço que não remeta a algum arquétipo
universal do humano, em busca de uma linguagem e de uma prosódia absolutas. Para isso, ele elimina
completamente os conflitos, trava a movimentação sobre o palco, vira um foco de luz para o público
(dificultando a visão até da silhueta dos personagens imóveis) e abole a ação, numa espécie de
purificação ou de assepsia da dramaturgia e dos elementos cênicos. O público fica não só distante,
como em silêncio absoluto, estático: como um teatro mínimo, sem ruídos ou interferências, pois
qualquer pigarro poderia romper com o fino fio da transubstancialidade teatral intencionada. Esse
projeto faz parte da ‘dramática do transhumano’, que consiste, entre outras coisas, na
[...] invenção de outros, de infinitos modos de subjetivação, aparentemente impossíveis, imprevisíveis, significa a
criação de novos moldes arquetípicos, a serem preenchidos por pulsões que teremos que inventar, expandindo nossa
experiência em veredas insuspeitadas (ALVIM, 2012).
São enunciados projetados por corpos oraculares, míticos, a-históricos. A tensão entre a tradição e
os homens que querem assumir seu destino é abandonada em virtude de uma suposta dicção
arquetípica do humano e da linguagem, não conspurcáveis pela história. Difícil dizer o que resta da
tragédia grega nessa idealização de uma arte total minimalista. A busca das falas ‘substantivas’, ou
seja, autorreferenciais e autônomas, miram um caráter mítico e absoluto, como ‘oráculo da condição
humana’.
Esse projeto de redução arquetípica à condição humana é em tudo oposto ao projeto desenvolvido
pelo ‘Ói Nóis’. Enquanto Alvim sequestra o material, o histórico, o ‘Ói Nóis’ deposita mais material,
acumula, faz com que sua presença, do enxertado, seja formal. Se o projeto do Alvim busca o mito
plasmado em duas dimensões, sem vida, quase um monumento ritual, o ‘Ói Nóis’ busca
incansavelmente o outro, o contato, o sentido; a empatia plena tensionada pela distância crítica.
Penso ser esse contraste bastante significativo da diferença abissal entre os dois projetos artísticos.
Enquanto o ‘Ói Nóis’ parte do mundo e de suas questões, e estuda a função social do teatro para uma
crítica anticapitalista, o projeto de Alvim procura o novo com o intuito de marcar lugar na história do
teatro ocidental.
Assim sendo, o distanciamento no projeto do ‘Ói Nóis’ não é mera técnica vazia, que poderia servir
à nulidade crítica em uma produção pós-moderna que rompesse com a fábula e falasse do próprio
processo de construção, mas isolando a arte como um subsistema aparentemente autônomo. O
projeto do ‘Ói Nóis’ remete à explicitação de condições históricas, ideológicas e estéticas que operam
o processo de naturalização das instituições estabelecidas. Em outras palavras, o envolvimento ritual
é dialetizado pelos materiais e pela organização formal da própria peça, que a todo momento se
refere a si mesma como espetáculo e ao mundo social de modo imediato, o que não permite que
ocorra a fusão metafísica da subjetividade com o entorno místico; toda entrega é relativizada, embora
possa ser vislumbrada e vivenciada. Esse processo de objetificação épica não abre mão do caráter
ritual em que todos estão envolvidos, criando o que chamei, acima, de ritual épico.
O teatro de rua do ‘Ói Nóis’ se inicia com Teon - morte em tupi-guarani, de 1985, que se configura
como uma prece aos milhões de índios mortos na América, em 8 quadros nos quais a vida
comunitária, a religiosidade, o contato com o homem branco, a doença, a escravidão e o
aniquilamento da cultura eram mostrados. Os quadros, evidentemente, não compunham uma ação
dramática tradicional, mas um ritual que era realizado na rua.
A dimensão ritual é construída aqui pelo ritmo, pela música, pelo seu caráter de procissão e pelos
personagens de compleição mítica como expressões de forças da natureza, com uma carga simbólica
explícita: são ritmos humanos, cantos, quase uma coreografia, sem enredo. Ao mesmo tempo, está
posto o massacre dos índios e de suas tradições e memória, sua aniquilação física, histórica e do plano
da escrita da história, o que nos traz para o chão material de um processo sistemático de
esquecimento e apagamento. Esse choque, essa tensão entre o plano mítico e o material se configura
como uma alegoria desse processo de assimilação e naturalização da barbárie. Nunca se perde, nesse
caso, a dimensão simbólica do ritual, mas perspectivada pela carga alegórica da distância crítica.
Aqui compreendo, com Benjamin (2006), o símbolo como um processo de ligação imediata de um dado
significante com um plano transcendente e quase arquetípico, que aponta para essências atemporais,
ao passo que a alegoria exige uma remissão histórica localizada, da atribuição de sentido em base
materialista, por um processo metafórico que pede explicação; a arbitrariedade e intencionalidade de
cada significante fazem com que ele possa ser montado e arranjado para construir significados
específicos; a alegoria expõe o seu método de criação, deixando para o espectador a tarefa da
elaboração de um sentido específico.
Se nos preocupássemos apenas com a recuperação das danças e dos costumes indígenas, de seus
valores como Bens Culturais de um mundo acabado, e que tinha que acabar para dar lugar à
modernidade, estaríamos presos ao processo evolucionista e/ou fatalista que não localiza
historicamente seus materiais; mas, com a denúncia e revisitação do massacre, não apenas esse é
trazido para o primeiro plano como, também, o processo muito bem elaborado de seu esvaziamento,
cuja expressão é portanto alegoria do um projeto civilizador, expondo seus mecanismos de criação e
perpetuação. Trata-se de uma comunhão continuamente distanciada de si mesma enquanto
envolvimento completo. A forma de fazê-lo não é a da fábula, da luta de um indivíduo contra a
opressão, o que recairia na fórmula consagrada do individualismo que se quer combater, mas de um
ritual épico a partir de outra matriz.
Do ritual de Teon para a alegoria política ou para a farsa dos explorados, chegando à épica
histórica de Canudos e à revisão crítica da vida e do tempo de Marighella há muita variedade de
estilo, de abordagem, de registro cênico, que vai dos bonecos às caricaturas políticas, das máscaras à
atuação em chave de farsa, em suma, não há qualquer espécie de enrijecimento estético ou histórico,
mas uma abertura para o novo que não perde o acúmulo anterior.
Se nos espetáculos realizados na Terreira (ou nas Terreiras) houve uma tendência maior para a
linguagem simbólica, ritualística, em que se cria uma espécie de comunhão ou vivência entre
atuadores e público, a rua teria, no entanto, com o tempo, uma tendência para a alegoria, seja
política, histórica ou social. Também é possível identificar nos bonecos gigantes de Canudos, na
atualização de estéticas populares do circo e da baixa comédia, alguns elementos que apontam para
uma dimensão ritual, de festa popular. Mas isso se faz sem nunca perder de vista a dialética com os
materiais históricos que conferem às peças temática e estrutura: o massacre de Canudos, o
assassinato de Marighella, a luta incansável do MST pela reforma agrária, a atualização da opressão
capitalista em O homem que não sabia contra quem lutava (adaptação de Revolução na América do
Sul, de Boal).
Com isso nos aproximamos de outra categoria fundamental para a poética do ‘Ói Nóis’: a
apropriação e revisão da história, que passa por uma crítica de como se escreve a história e sua
transmissão. A linguagem popular e um tom ensaístico configuram a perspectiva que envolve essas
encenações, que antes questionam as leituras tradicionais dos materiais apresentados do que colocam
novas verdades inquestionáveis. Sendo assim, a fragmentação, a justaposição, a ambiguidade, a
ironia, a paródia, a sátira são estruturais para essas encenações, não a apresentação didática de uma
nova ordem. Quem quiser saber o que foi Canudos precisará buscar outros materiais, bem como a
vida de Marighella. Se na trilogia das tragédias o material a ser conspurcado pela irrupção imediata
da vida social era a fábula clássica e sua estrutura universalista, rompida por episódios dos quatro
cantos do mundo, nas peças ora apreciadas (Marighella, Canudos, Deus ajuda os bão, O homem que
não sabia contra quem lutava etc.) é a história brasileira que está em primeiro plano, distanciada
criticamente pela própria dramaturgia como, também, pela linguagem do circo, da comédia popular,
da festa, da canção, de rebaixamentos os mais variados. A estrutura formal básica é a da alegoria.
Aprofundarei essa discussão com uma remissão à peça de rua O amargo santo da purificação – uma
visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella, de 2008. O
título já mostra a que veio: santo, revolucionário, purificação, alegoria barroca – o mito da salvação
religiosa dissolvido no (e superado pelo) material histórico brasileiro, a partir de fragmentos
representativos da vida de um líder revolucionário caçado e brutalmente assassinado pela ditadura
civil-militar. Como estamos acompanhando, não se trata, evidentemente, de se canonizar Marighella,
mas de parodiar esse lugar discursivo dos heróis, mitos e santos. A estrutura da paródia sempre põe,
em chave crítica, o parodiado, e isso tem um sentido. O que está em jogo, além de falar sobre o
percurso de Marighella, é a oposição ao discurso dominante que o pintou como um anátema social,
um comunista sanguinário e inescrupuloso. Daí ser importante começar pelo título, longo e não-usual,
que não dispensa expressões caras ao campo dominante, que entram em contradição com o
revolucionário Marighella atribuído a elas.
O percurso vai de sua ascendência africana e italiana, por grupos musicais e de dança que se
aproximam aos poucos, lentamente, do espaço de representação. No vídeo isso ganha eloquência
numa sequência de vários minutos variando entre os dois grupos, sem qualquer explicação prévia,
criando um tempo dilatado e expandido de antemão. A peça, de longa duração para a rua, conta com
certa monumentalidade cinzenta a partir da chegada da máquina de destruição da ditadura, com seus
macacos e artifícios de violência e tortura. O registro lírico dos amores e da arte na vida de
Marighella, além de cômico, torna-se quase trágico quando da instauração da ditadura. Digno de nota
que, apesar de a peça girar em torno da figura de Marighella, não é o plano individual e subjetivo dele
que estrutura a peça, mas os contornos sociais, coletivos, políticos. Sua luta política, o quadro
ideológico, a tomada de poder pela ditadura ganham estatuto de instâncias agenciadoras, sem que
façam de Marighella um títere – o que ocorre é que suas ações são localizadas historicamente, ponto
de partida para qualquer projeto de teatro dialético.
Teatro épico da melhor qualidade, faz uso de uma perspectiva alegórica que, a partir dos poemas e
da vida de Marighella, faz uma revisão da nossa história recente, em tempos de crise, estendendo-se
da ditadura do Estado Novo à participação política ativa de Marighella até a clandestinidade e seu
assassinato pela ditadura; com isso, seu painel histórico na contracorrente não toca apenas a figura
desse herói nacional esquecido e tratado como bandido, pelo discurso dominante, mas de todo um
período histórico e do fato de que, enquanto o inimigo não parar de vencer, nem mesmo os mortos
estarão a salvo. Porque a transmissão histórica também precisa ser retirada da interpretação
dominante, supostamente neutra, para fazer sentido. Há, também, um interesse, penso eu, em
discutir a transmissão cultural do próprio ‘Ói Nóis’, e da tentativa de fazê-lo aceito pela crítica e pela
sociedade: um tema como Marighella coloca as coisas em perspectiva, não tem como se colocar fora
da história ou em posição neutra a respeito dessa história.
Nesta peça temos personagens na condição de indivíduos (Marighella), tipos e alegorias
convivendo para contar (às vezes, narrativamente) uma história não-oficial e até hoje distorcida que é
tanto de Marighella quanto do tempo histórico, num painel das lutas pela democracia no Brasil que
vão da época de Vargas ao assassinato de Marighella em 1969 – muito embora, como lembra Toledo
(2012), não há história apresentada de modo didático. São muitos atores, uma estrutura grande e
eloquente, mesmo opressiva, que contrasta com o tom lírico e musical que vinha dominando os anos
de formação de Mariguela. Os tons sombrios também contrastam com as cores de antes, e o discurso
limpo é substituído pelo ritmo ordenado das marchas militares e da violência desmedida. Essa
dimensão monstruosa (nos dois sentidos que o termo permite, de enorme e de terrível) aponta para
um ritual macabro, o da aniquilação não apenas de Marighella mas, sobretudo, da história, que será
contada por essa estrutura antes de tudo ideológica. A máquina da morte é de uma beleza
assustadora, com sua presença tonitruante e, numa primeira aproximação, quase inexorável. Ela vem
do nada, de fora da cena criada na praça, e toma conta de tudo, sem discussões ou argumentos. Qual
ficção científica a misturar o planeta dos macacos às formas futuristas de opressão (como a prisão em
uma espécie de ovo), funcionam como parábolas, ou metáforas, da ditadura, seus operadores e seus
porões, mas vão além disso – esse além expresso pela forma peculiar das parábolas.
Também aqui não há concessões acomodativas, ou alívio simbólico contra a história. Não há
dramatização de nada, o que se conseguiria com alguns agentes individualizados da repressão, bem
como não há propriamente uma visão romantizada de Marighella: o quadro é épico, as referências
históricas, mas também nesse plano se abre mão de uma exposição que explique item por item o que
levou à luta armada e ao massacre operado pela ditadura. Mesmo isso seria uma redução conjuntural
que apontaria para os fatos brutos da história, tentando refazer, com a forma da historiografia
dominante, as verdades como elas se deram. O projeto do ‘Ói Nóis’ vai além disso nessa peça: a
apresentação esteticamente elaborada e interessada é exposta diretamente. As passagens líricas,
como as épicas, são de uma clareza acachapante. Sua força crítica está na exposição desses farrapos
e fragmentos de história, que se insurgem contra a máquina da morte. Todas essas questões são
encaminhadas também à forma teatral, haja vista que o grupo sabe que a forma é um enunciado
poderoso, até mesmo porque opera por trás das consciências. Toledo (2012, p. 257) destaca “[...] a
fragmentação, a teatralidade popular, a musicalidade constante, a justaposição de tempos e estímulos
e a relação com o público – oposta à tendência geral do teatro de rua (brincadeiras com as pessoas,
relação direta, piadas e pegadinhas, etc.) [...]” como centrais para a construção de significados da
peça.
Considerações finais
O que se buscou foi, nos planos teórico, histórico e crítico, apresentar elementos para uma espécie
de poética do ‘Ói Nóis Aqui Traveiz’, que se chamou aqui, para explicitar a dialética em movimento,
de um ritual épico. Para isso discuti como o grupo trabalha a partir da necessidade da mediação entre
arte e sociedade em tempos sombrios, com um percurso intenso e, ao mesmo tempo, consequente no
tempo, em sua distensão, num dos casos mais importantes do teatro e da arte brasileiras no cenário
contemporâneo. A variação de perspectiva, e mesmo a multiperspectiva, como nesse desenvolvimento
de um ritual épico, tem enorme produtividade no campo dos estudos teatrais, sobretudo para a
história do teatro e da arte brasileiros.
Ao mesmo tempo que tem um trânsito fácil com os mais diversos públicos, por sua linguagem
popular e que não se apega a formalismos autocentrados, o ‘Ói Nóis’ também está à altura das
discussões de vanguarda, articulando e ativando tanto o experimentalismo como a preocupação
social. Além disso, Artaud e Brecht (por exemplo) não são visitados como referências eruditas a se
guardar distância e veneração, mas como companheiros de trabalho que são produtivos para uma
elaboração estética de alto nível e que, justamente por isso, não se afasta de suas condições de
produção (tanto da vida social quanto da organização do trabalho coletivo), de recepção e de
circulação. Assim, o que a princípio parece ser uma contradição – como conseguir ser entendido pelos
mais diversos públicos em peças que dialogam com complexas construções teóricas da modernidade
teatral – é revertido em crítica dos pressupostos dessa suposta contradição. Como resultado, o
popular não é sinônimo de simplório ou de superficialidade, bem como as teorias não pairam acima
dos objetos e materiais. A sua capacidade em articular estéticas que, também supostamente, não
seriam compatíveis, como o teatro épico de filiação brechtiana e o teatro ritual de Artaud, é muito
produtiva. Essa articulação, melhor seria dizer mediação, é realizada em chave dialética, de tal modo
que os limites e possibilidades de cada uma dessas vertentes é potencializada, pois perspectiva a
outra.
Referências
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crítica. Porto Alegre: Terreira da Tribo Produções Artísticas, 2012. p.251-258.
Capítulo 3
É PÃO, É PEDRA
Priscila Matsunaga
Se o dom tendes de ler
Nas sementes do tempo e de dizerdes
Qual há de germinar e qual não há de,
Falai-me então a mim, que nem vos rogo
Favores nem me temo do vosso ódio
(SHAKESPEARE, 2009, p. 25).
Introdução
Que é possível pensar, articular, interpretar ou explicar uma obra artística à luz das mais diferentes
abordagens é próprio do interesse analítico; contudo a relação arte e política esbarra na dificuldade
em estabelecer critérios que ultrapassem a positivação pelo mérito de sua ‘atualidade’. Uma das
possibilidades é pensar a formalização estética como um processo social, tentando refletir e iluminar
um e outro. A disposição dialética busca a circulação livre entre os campos e tenta esclarecer ambos
presumindo que a forma artística condensa em si um processo social que pode ser compreendido pela
mediação crítica. Tal perspectiva historiciza a forma2. Dizer isso também parece pouco diante de
certa ambiguidade em sua definição, uma vez que, segundo Raymond Williams (1979, p. 185),
utilizamos gênero e forma como sinônimos sem nos atentarmos em dois sentidos principais: “[...] uma
forma visível ou externa e um impulso modelador inerente”.
O terreno fica espinhoso quando se procura delimitar a ‘forma teatral’, fenômeno estético entre o
literário e o cênico, entre palavra e imagem. No meio dos ensaístas que se propuseram a
problematizar o específico teatral, Anatol Rosenfeld (2009) buscou determinar o teatro em sua
produção, na relação texto e palco: o que ‘funda’ o espetáculo é o ator e o que o constitui são os
personagens; dito de outro modo, o que funda o teatro é a presença do homem em cena pela ficção.
É curioso, portanto, que entre as resenhas e críticas sobre O pão e a pedra3, da Compahia do
Latão, uma cena que carrega um tipo de compreensão sobre o fenômeno teatral, a saber, a mimese,
tenha recebido pouca atenção. Não parece que o debate sobre as possibilidades da representação
tenha arrefecido, mas deslocado. Gisberta (2016), texto de Rafael Souza Ribeiro e atuação de Luís
Lobianco, que conta a história de uma transsexual assassinada na cidade do Porto tem gerado debates
pelo fato do ator não ser transsexual. Em tempo de alguns equívocos em torno do ‘lugar de fala’, a
trivialidade da afirmação de que a representação é a ‘procura do outro’, como em O pão e a pedra,
parece, em um primeiro momento, tensionar a certeza identitária, em uma relação direta arte e vida.
É claro que a questão não se limita ao campo artístico, pois além da visibilidade, tal demanda significa
emprego e remuneração de um grupo vilipendiado. O debate intrincado mobiliza operadores, como no
caso citado a sexualidade, que poderia ser ampliado para o racismo, não isentos das relações
econômicas e de poder, o que confere uma possibilidade de politização em um debate extra-ficcional
mas não a sua garantia em termos estéticos. Assim, um comentário sobre O pão e a pedra pode trazer
alguns elementos sobre a relação arte e política para o debate teatral.
O próximo ato
De um modo geral, os três grupos que compõe o quadro de forças da peça são identificados
prontamente: o sindicalismo, a Igreja progressista e o movimento estudantil, ‘disputando’ a
consciência dos operários; e a leitura ‘atualizada’ diante dos acontecimentos políticos no início de
2016, ano da estreia e dos ensaios do espetáculo. Como um drama histórico, a greve do ABC de 1979,
a matéria em cena, diz das dificuldades da mobilização dos trabalhadores e reverbera a consciência
da necessidade da luta em meio à manipulação midiática e os aparatos repressivos do Capital. Nessa
perspectiva podemos pensar a forma como nos dois sentidos propostos por Williams ou ainda, no
tema da peça como algo do interesse da organização coletiva e dos movimentos sociais.
No início, resumidamente, há uma cena com ‘Joana’ e o filho ‘Isaías’ no centro do palco giratório,
com outros atores ao redor. A mãe ensina o filho a rezar o pai-nosso e o corrige: não é a ofensa que
Deus deveria perdoar, mas a dívida. O ator que interpreta ‘Isaías’ também desempenha o agitador
grevista, ‘Jailton’. Ao final da oração, ‘Jailton’
JAÍLTON – Vamos preparar a luta. Se eles engrossarem o tom, mostramos que estamos prontos. Sem moleza. Essa
gente joga duro. Eles tem jornal e televisão na mão, eles compram a nossa força de trabalho, mas eles não são donos
de nós. O sentimento de injustiça tem que ser nosso, não deles. O direito à revolta é nosso, não deles. Temos que
ensaiar nosso próximo ato. Sem medo de ir preso. Cadeia foi feita pra homem.
É o primeiro indicativo de um discurso dirigido ao público. Logo em seguida, a narrativa cita Mao
Tsé Tung:
[...] os funcionários do Estado, escritores, artistas, professores e pesquisadores devem aproveitar todas as
oportunidades para se aproximarem dos operários e camponeses. Alguns podem ir a fábricas ou ao campo e dar uma
olhada na vida dos trabalhadores. Isso é chamado de ver flores de um cavalo trotando. Também é possível desmontar
do cavalo – realizar pesquisa e fazer amigos -; ou se integrar à produção (O PÃO E A PEDRA, 2016).
A atriz que mimetiza o trotar do cavalo está vestida de operária. Um convite provocador, também,
para o público, em específico, intelectuais e artistas que poderiam, no momento atual, recuperar o
fôlego mobilizador que um dia animou a arte brasileira mais produtiva e fizeram da solidariedade com
os trabalhadores – operários fabris e camponeses –, ou no mínimo o interesse pela realidade brasileira
em termos econômicos, seu combustível criativo.
Na breve sequência, sem cenário ou algum aparato que facilite a leitura da imagem, materializa-se
a unidade do assunto: a ‘prática’ (‘Jaílton’ discursa como se estivesse em uma assembleia) e a ‘teoria’
(A militante ‘encena’ o discurso de Mao enquanto veste o macacão) compõe a dificuldade própria da
provocação. Há um terceiro elemento, porém, que perturba e ao mesmo tempo enquadra a peça: o
prólogo no qual a reza de mãe e filho performatiza um ato de fé e a sua ambiguidade:
ISAÍAS - O pão nosso de cada dia nos dai hoje
JOANA - O pão nosso de cada dia dá nos hoje.
JOANA - E perdoa-nos as nossas dívidas (Pausa)como também nós perdoamos aos nossos devedores
ISAÍAS - assim como nós perdoamos
JOANA - aos nossos devedores. e não nos exponha à tentação
ISAÍAS - Mãe, é ofensa. Não é dívida. É perdoai as nossas ofensas.
JOANA - Aqui na Bíblia está escrito: perdoa-nos as nossas dívidas.
ISAÍAS - O padre aqui do orfanato só reza ofensa.
JOANA - Será que o padre está certo? (nega com a cabeça) Eu prefiro que deus perdoe minhas dívidas do que minhas
ofensas. (reza)E não nos exponha à tentação, mas livra-nos do Maligno, Amém. (MÚSICA, piano)
ISAÍAS - Mãe, meu pai está no céu?
JOANA - É o pai de todo o mundo que está no céu.
ISAÍAS - Meu pai de verdade, para onde ele foi?
JOANA - Seu pai de verdade sou eu.
No diálogo a mãe corrige o filho, enuncia o assunto e mantém o rito-oração. Quando, porém,
perguntada sobre o pai de ‘verdade’, ela desmascara a ilusão. Os deslocamentos entre verdade e
ilusão, na arte, assim como razão e fé, na vida, convivem e podem se estranhar mutuamente. Não são
apenas conceitos em disputa no terreno teórico mas operadores em funcionamento na organização
social. Na peça, a ilusão do teatro está à serviço do desmascaramento dos meandros do Capital e a fé,
ou a crença, na possibilidade de construção de uma consciência, resta saber de qual tipo. A
combinação rende como problematização para a luta. Duas camadas da peça que se fazem ver pelo
problema em cena: como se produz, se esse é o melhor termo, a consciência de pertencimento a uma
classe ‘política’? E ela se produzindo, qual o seu potencial para a ação? O prólogo, então, se desdobra
pelas personagens. A cena seguinte ao discurso de Mao é no vestiário feminino de uma montadora, a
Volkswagen, numa espécie de primeira aproximação entre a ‘Militante’ e as operárias, que já a olham
com desconfiança. Segue uma missa com O operário em construção, de Vinícius de Moraes. A poesia
cantada pelo grupo diz da recusa do operário ‘em construção’, àquele que sempre dizia ‘sim’ e passa
a dizer ‘não’ quando percebe que a sua marmita era o prato do patrão. A canção de ‘resistência’ está
acomodada à missa, como o hino que une os cristãos.
Na sequência, a cena se passa no vestiário masculino. Outro personagem se apresenta: ‘Arantes’,
um pouco ‘desacreditado’ com o ‘sindicato de conchavos’. Nessa cena, conhecemos o passado de
‘Fúria Santa’ e os motivos desse apelido. ‘Jaílton’ diz que há um movimento grevista em curso. Alguns
mecanismos de controle da produção, via indumentária, já aparecem no diálogo e ao longo de toda a
peça acompanhanos pequenos ‘nãos’, como virar a gola do macacão que continha cores diferentes
para facilitar a fiscalização. O vestiário feminino é o local da próxima cena com novas personagens:
‘Míriam’ e ‘Irene’, além de ‘Joana’ e ‘Militante/Luisa’. ‘Joana’, aflita por precisar ganhar mais para
abrigar o filho que mora em um orfanato, confronta a ‘Militante’. Aos elogios da estudante quanto a
maneira inconformada de ‘Joana’, a operária responde: “[...] é fácil ser inconformada, difícil é engolir
sapo todo dia”. Nessa cena, mais elementos de opressão são expostos, como a inspeção em
absorventes à procura de trabalhadoras grávidas. Mas ‘Irene’ confessa estar grávida há 6 meses sem
que ninguém tenha notado. Todos possuem um disfarce. Após essa fala, se dá a cena Metamorfose,
àquela que diz do fenômeno teatral:
METAMORFOSE
(Música)
NARRADOR – Metamorfose. A operária Joana Paixão decide se tornar um homem: traveste-se no operário João
Batista.
(Luz em Joana. Isaías no chão.)
ISAÍAS – Mãe, eu vi no auditório do orfanato um programa de TV. Ele tem duas pernas, um braço, um olho e um
coração biônico. Ele é Steve Austin, o homem de 6 milhões de dólares.
NARRADORA – Primeira medida da equipe de teatro
Sabendo que um ator não é um operário
Que uma mulher não é um homem
Lembrar que todo ator pode representar
Um operário
E toda mulher, um homem
JOANA-JOÃO BATISTA – Porque a representação é a procura do outro
É a alegria de viver o que não somos
Representar não é forjar estados
Mas construir mudança
(Luz em ‘João’, aparece o reflexo dele no acrílico)
Durante a cena, a atriz Helena Albergaria, diante de uma tela em acrílico, em foco iluminada por
outra atriz, se ‘traveste’ em ‘João Batista’. Coloca óculos, pinta um bigode com batom, prende os
cabelos. Bate na tela e o foco se dirige para o ator que está à sua frente de costas para o público. Sua
face iluminada vemos refletida no espelho. A cena pode ser pensada por, ao menos, duas dinâmicas
que compõem os elementos mencionados. Os personagens, também eles, se ‘disfarçam’: ‘Joana
Paixão’ em ‘João Batista’ para ter um salário melhor; a ‘Militante’ em ‘Operária’ para conhecer os
trabalhadores e incitar o pensamento revolucionário. A ilusão provocada pela máscara, fundamento
do teatro segundo Anatol Rosenfeld, lembra que é possível imitarmos e refletirmos ao mesmo tempo,
cerne da verdadeira imitação para Brecht, afinal, é preciso ter algo a dizer sobre aquilo que se imita.
A atriz Helena Albergaria reafirma a possibilidade de um ator representar um operário, e a mulher,
um homem; o que muda na primeira transformação, entretanto, permanece na segunda. O produto
não é semelhante. ‘Joana’ e ‘João Batista’ continuam como ‘operários’. O mote é contraditório e não
hierarquizado já que os motivos que levaram a personagem a se transformar em algo que ela também
era está ligado à necessidade de um salário melhor; em outros termos, o dinheiro como equivalente
universal e sua expressão como valor de troca de mercadorias.
Até esse momento, com quase 20 minutos de peça, ainda não se deu uma cena no ‘chão da fábrica’.
Somente após o disfarce de ‘Joana Paixão’ em ‘João Batista’ que se abre o mundo, reforçado pelos
sons ao vivo, do trabalho na linha de produção. A função em utilizar não um espelho real, mas uma
tela em acrílico diz também de um mundo que se abre a partir dessa ‘lente’, quando a transformação
produzida no sujeito, a identificação, se dá quando este ‘assume’ uma imagem. O uso do acrílico,
assim como o palco giratório e a disposição da plateia parecem solicitar o alinhamento do público, um
espelho vazado do real. Com certo abuso da terminologia lacaniana, a encenação habita e tematiza o
imaginário, ‘no qual sujeitos e objetos parecem trocar constantemente de lugar e viver a vida uns dos
outros’; e a dramaturgia tematiza o próprio campo simbólico, fazendo ‘Joana’ ocupar funções e
significados: operário, mãe, pai, namorada, companheira.
Ao contrário de simulações mecanizadas ou gestos automáticos, como estamos acostumados por
imagens lembrando os ‘tempos modernos’, a linha de produção não é completa desumanização. Algo
interrompe a sujeição à máquina: de um ângulo revoltado ‘Fúria Santa’ agride seu ‘superior’; sugere a
‘resistência’ virando a gola vermelha do macacão para confundir os vigias; em determinado momento,
param a linha, quando já estava em andamento a operação-tartaruga e os trabalhadores diminuem o
ritmo da produção, ironicamente nomeada por ‘Arantes’ de operação-zelo. Os mecanismos dos
operários para indicar que existe vida em suas pequenas recusas inclui espaço para a agitação,
música e fé. As letras e arranjos comentam e em alguns casos, explicam cenas, como a Canção do
subversivo anônimo
CANÇÃO DO SUBVERSIVO ANÔNIMO (Todos, exceto Jailton, cantam e estão parados. Ele se move.)
ATOR (no megafone)- Seu método é simples e eficaz.
Um subversivo deve sentir-se marcado, visado.
É necessário arrancá-lo da relativa proteção da ação coletiva,
não pode se considerar fundido na massa, anônimo.
CORO - É preciso que ouça seu nome ser pronunciado,
E destacado em vermelho, na lista negra,
E sinta toda a máquina da fábrica pesar sobre ele,
ATOR - Entre as quatro paredes metálicas desse escritório nu onde ressoa o barulho das linhas que lhe são vizinhas.
A desestruturação do corpo do ator João Filho sublinha a canção, assim como alguns outras cenas
recuperam o massacre no corpo e na mente dos trabalhadores. Chamou a atenção Patrícia Freitas às
máscaras de ‘Joana’ e ‘Luisa’ para diluí-las no espaço, com intenções distintas porém (FREITAS,
2016). ‘Joana’ expressa o processo de vir-a-ser do Capital, nesse autoflagelo da personagem que numa
perpétua desintegração e recriação evidencia o impasse da representação interessada em colocar em
cena a desumanização como princípio de sobrevivência. Poderíamos desdobrar o comentário: menos
impasse, o uso da máscara, no caso a própria cena, representa a desumanização ao mesmo tempo que
faz das figuras, homens; mostra-se a humanidade que se preserva para a sobrevivência. Como ainda
observou Patrícia Freitas, citando Brecht: de que forma encenar um tempo em que as mercadorias
desenvolveram alma? Contudo não se trata de mercadorias, no sentido de objetos comercializáveis
como os carros que são fabricados pelos operários, mas de almas que já são mercadoria. Todos mais
próximos a pedras, para falar com Raymond Williams, ou a sujeitos monetários sem dinheiro, com
Kurz.
‘Joana’ e ‘Luisa’ passam por processos distintos. ‘Joana’, que começa a peça buscando ser outro
para ganhar melhor reconhece ao final o aniquilamento da vida na forma-mercadoria. Ao final do
espetáculo ela percebe que não ‘ganhou nada sendo homem, ganhou mais dinheiro que lhe custou
mais vida’. É doído o gesto da atriz quando confrontada pela amiga que descobre seu disfarce:
BATISTA – Eu não me meto mais em encrenca, não quero mudar o que é grande demais: eu só não esqueço quem sou
(em gesto, indica: nada).
IRENE - Não esquece o que virou (grifo nosso).
A cena grotesca, que leva inicialmente alguns espectadores ao riso, ganha densidade; o tapa na
cara vem em direção ao público pela atuação solene. ‘Luisa’, então, narra Na galeria, de Kafka, em
uma cena de beleza indigesta, espremida entre a violência e a possibilidade da interrupção do
espetáculo de sujeição ao grito de ‘basta’, que como sabemos, não acontece.
No andamento da peça, a greve iniciada à meia-noite de 12 de março de 1979, mobilizou os
trabalhadores em mutirões e assembleias. A vida fora da fábrica é de fato vivida e nela ‘Batista’ ‘volta’
a ser ‘Joana’. Discutem-se novas formas de protesto, mecanismos de enfrentamento, a união entre
estudantes e trabalhadores, em momentos tensos porém relativamente livres de cerceamento.
Entretanto, após a intervenção no sindicato pelo governo militar (23 de março de 1979), os
trabalhadores não possuem espaço para realização de assembleias. A greve é violentamente
reprimida. A liderança negocia uma trégua de 45 dias. Os trabalhadores, em assembleia, acatam a
indicação do líder sindicalista, Lula, com retorno ao trabalho. O sindicato pretende manter a
mobilização mesmo com o retorno ao trabalho e tem, agora, um ‘setor cultural’. Após Na galeria,
acompanhamos, junto com os personagens, cenas do filme 1900, de Bertolucci. E como ao final da
cena kafkaniana, o ‘basta’ se traduz em ‘acordem’.
O pão e a pedra se afasta do que se convencionou para um tipo de ‘efeito’ de estranhamento – a
crítica à ideologia não se dá nos termos ‘convencionais’, desmascarando intenções obscuras e difusas
– e mais reconhecimento de uma consciência e um sentimento específicos expressando uma forma
social.
Assim, por exemplo, Natália Conti propôs a análise da obra a partir das mulheres em cena, ‘Joana’
e ‘Luisa’: “[...] é na voz da mulher que a peça ganha corpo” (CONTI, 2016). Entre gênero e classe, a
discussão sobre a opressão feminina se revela nos ambientes e situações que são selecionados pela
dramaturgia. É deliberada a escolha do protagonismo das personagens na repressão à manifestação
nas ruas, quando ‘Luisa’ é atacada pelos policiais e defendida por ‘Joana’ e ‘Irene’. Parece que essa
escolha atende a uma urgência da atualidade, quando o movimento feminista e de mulheres, com toda
a sua legitimidade, exige visibilidade. É interessante, e isso pode ser exagerado, que tal opção,
dialogue com um desejo de ‘efeito imediato’, em uma precipitação estético-política que mistura
anseios e expressões. Por outro lado, e por essa questão, que começamos a levar as coisas a sério,
afinal o que muda do duplo homem-mulher para os trabalhadores? Além de estar na própria
composição em cenas, primeiro a cena no vestiário feminino, depois no masculino, até o final, quando
se reúnem, homens e mulheres no masculino, parece que a peça indica que ainda há propriedade em
um, que é apenas fantasma para o outro. A propriedade de seu corpo é um importante dispositivo
para o movimento feminista. Ao operário, contudo, a propriedade daquilo que define a produção de
riqueza lhe escapa:
MILITANTE - Informe de uma militante integrada à linha de montagem: a volta ao trabalho, após a suspensão dos 15
dias de greve, é a volta ao tempo da fábrica. Registro aqui aos companheiros a dificuldade com a tarefa: conviver com
a realidade fundamental do trabalho proletário - o tempo roubado. (Relógio) Percebo que as palavras conhecidas,
exploração, revolta, consciência operária não dão conta dessa questão central: o ritmo imposto, a vida saqueada.
Acredito ser essa a conquista dos 15 dias, perdoem-me se pareço psicologista ou pequeno-burguesa, mas a lição
maior da greve, interrompida pela trégua dos 45 dias, é a do direito à responsabilidade sobre o tempo.
Como é possível perceber, há um fura-greve que não é convencido pelos argumentos disponíveis.
Não importa o apelo familiar, coletivo ou econômico, ‘ele já pensa como eles’. O esclarecimento, no
viés da consciência como argumento que foi durante muitos anos a linha de frente da esquerda para
desmascarar a ideologia capitalista, não é suficiente para determinar quem ‘é’ o sujeito e deve ser
encarado como uma prática, quando nos ‘integramos à produção’. Para alguns, uma pueril expressão.
O piquete, título da cena, é substituído por comissão de esclarecimento, mas é importante lembrar
sua definição: ‘uma pequena estaca, em geral de madeira, que é fincada ao solo com a finalidade de
demarcar’5.
A cena é o coração da peça pois seu tema é a própria dificuldade da formação do sujeito político. O
tom, contudo, diante da ‘vergonha’ e do ‘erro’ não é de culpabilidade. ‘Joana’ é esclarecida, ‘tem
conhecimento’, mas o que fazer quando não se pode esperar? E o que significa, em termos concretos,
‘se brigar tem que matar’? ‘Fúria Santa’, personagem com caracterização popular religiosa, é o
portador da verdade mais difícil que qualquer militante deveria encarar quando se identifica o campo
contra o qual se combate. A dificuldade de hoje não está somente nessa questão, mas na própria
composição do campo.
Considerações finais
A última cena da peça, em um parque de diversões, indica o terreno: carrinhos de bate-bate como a
difícil conciliação de trabalhadores e a roda-gigante que emperra quando ‘Fúria Santa’ e ‘Joana’ estão
no alto, podendo ver a Volkswagen de cima. Parece que o ciclo não termina, já que a primeira fala da
cena, feita pela ‘Militante’, diz que a rotação da mercadoria é sobre si mesma e ‘Fúria’ convida ‘Joana’
a ‘rodar’. O deslocamento é sutil e a dramaturgia, que procurou a positividade, sugere com força
poética a verdade crua – não é à toa que a peça esteja ancorada no passado e não no futuro –,
contrastando com a delicadeza da canção final. Essa, que afirma que o ‘hoje ainda não acabou’,
interrompendo o cotidiano do trabalho, solicita a tomada de outro tempo e lugar pelo público, como
um abrigo ingênuo, algo que ainda se espera do teatro.
Referências
ANDRADE, W. Teatro, tempo e história. Revista Cult, ano 19, n. 253, p. 57-59, jun. 2016.
EAGLETON, T. O problema dos desconhecidos: um estudo da ética. Tradução Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
______. A tarefa do crítico: diálogos com Terry Eagleton. Tradução Matheus Correa. São Paulo:
Editora Unesp, 2010.
FREITAS, P. Ecos do basta. Disponível em: teatrojornal.com.br. Acesso em: 28 jun. 2016.
CONTI, N. O palco das mulheres de O pão e a pedra. Disponível em: blogconvergência. Acesso
em: 8 jun. 2016.
ROSENFELD, A. O fenômeno teatral. In: Texto e contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 21-44.
WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.
2 No prefácio de O inconsciente político, Fredric Jameson, após lançar o imperativo absoluto – historicizar sempre – propõe que o
processo de historicização pode seguir dois caminhos: o caminho do objeto (as origens históricas das próprias coisas) e o caminho do
sujeito (a historicidade de conceitos e categorias interpretativas). Neste livro, Jameson adota a segunda vertente. Terry Eagleton,
interlocutor de Jameson, considera, entretanto, um grave equívoco imaginar que a historicização seja inevitavelmente uma ação
radical (EAGLETON, 2010).
3 Agradeço à Companhia do Latão, em especial Sérgio de Carvalho, Maria Livia Goes e Marcelo Berg pela gentileza em fornecer o texto
e gravação em vídeo da peça e aos integrantes do Laboratório de Investigação Teatro e Sociedade/USP pelos comentários sobre o
trabalho. O pão e a pedra estreou em 2016, com o elenco: Beatriz Bittencourt, Beto Matos, Érika Rocha, Helena Albergaria, João
Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello, Thiago França. Dramaturgia e direção de Sérgio de Carvalho. Direção
musical, composição e execução de Lincoln Antonio. Cenário e figurinos Cassio Brasil. Colaboraram como dramaturgos Julian Boal e
Helena Albergaria.
4 É importante registrar que a peça não foi publicada e quando a Companhia do Latão disponibilizou o texto, a montagem estava em
temporada e sofreu alterações. De todo modo, penso ser oportuno acompanhar as relações entre texto e cena e chamo atenção
especificamente a esta nomeação ‘Projeção sindicato’ como o desdobrar do princípio político-cultural que opera na sociedade
brasileira e o que se vê em cena.
5 Em manifestação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2016, a comissão responsável pela negociação da greve
universitária foi denominada ‘comissão de diálogo’. Os deslocamentos interessam para pensar o estado de coisas atual.
Capítulo 4
Introdução
Tratar da Estética do Teatro do Oprimido, concebida pelo dramaturgo brasileiro Augusto Boal, é
tocar em um novelo de linha cujos fios se soltam por várias partes, sem deixar, porém, de pertencer a
uma mesma origem. Estes fios não só deixam suas marcas no contexto brasileiro, mas também no
contexto mundial. Hoje o Teatro do Oprimido está em todos os continentes, nos mais diversos países e
culturas. O cerne desse novelo permanece sendo a preocupação com a construção de um mundo
menos injusto, mais tolerante e capaz de absorver os desafios impostos pela inaceitável exclusão
social que afeta a esmagadora maioria da população mundial, com todas as suas terríveis
consequências.
Portanto, neste artigo, pretendo abordar o Teatro do Oprimido de uma maneira ampla e ao mesmo
tempo direcionada para uma de suas características mais admiráveis: sua capacidade de unir
coletividades por meio do despertar de sentimentos de pertença.
Como se sabe, o Teatro do Oprimido foi concebido por Boal a partir da metáfora da árvore, com seu
tronco e seus galhos. Tal imagem identifica claramente o propósito de abarcar várias frentes de ação,
por meio de variadas metodologias dramatúrgicas. O tronco da árvore, contudo, permanece com a
mesma e inalienável matriz calcada na ética6 (BOAL, 2005).
Os galhos da árvore do Teatro do Oprimido se multiplicam em expressões, tais como: o Teatro
Fórum, o Teatro Legislativo, o Teatro Invisível, o Teatro Jornal, o Arco-Íris do Desejo, entre outras. É
sabido que a mais difundida prática do TO no mundo é a sua manifestação em Teatro Fórum7. Sua
capacidade dialógica de produzir situações de debate e de exposição crítica e analítica de um
problema do grupo (uma opressão) é, certamente, um dos principais eixos norteadores de sua difusão
internacional. A presença do Coringa8 (BOAL, 2005), sistema criado por Boal como uma espécie de
personagem mediador entre a ‘ficção’ teatral e a ‘vida real’, estabelece uma importante e
inquestionável ponte entre o palco e o público, proporcionando os momentos mais ricos e
politicamente tensos de toda a representação. Por isso, o Teatro Fórum também é responsável por
permitir com muita eficiência – apesar dos desafios que lhe são inerentes – a visibilidade de
problemas e de questões que causam dor. O grupo envolvido com a cena (responsável também por
definir, coletivamente, qual será o principal significado de opressão a ser encenado) inevitavelmente
se vê em uma situação de embate, de enfrentamento com seus próprios medos, com suas mais
profundas fronteiras de dor. Conforme Boal, a força estética do Teatro do Oprimido está em sua
capacidade de iluminar aspectos escamoteados por situações de opressão, ou seja, evidenciar as
dores coletivas e as dores individuais (que também pertencem ao corpo social), por meio do mundo
sensível e sensorial da estética teatral.
Assim, o grande objetivo do Teatro do Oprimido é, para além da partilha de estratégias de solução
de problemas de opressão, o compartilhamento de um determinado tipo de sensibilidade. Boal, em
seu livro, A estética do oprimido, caracteriza o que ele chama de Pensamento Sensível (as
manifestações estéticas pela imagem e pelo som) e o Pensamento Simbólico (as expressões advindas
da palavra) (BOAL, 2009).
Muitas vezes, insiste-se em estabelecer uma dicotomia entre o estético e o político-social ao se
tratar do Teatro do Oprimido. Na verdade, considero esta dicotomia falaciosa, pois a proposta de Boal
é justamente romper com a separação hierárquica e com recorte de classes entre estes dois aspectos
constitutivos das relações humanas. Portanto, ao estabelecer esse pensamento e essa política teatrais,
Boal não só revoluciona acerca da teoria do teatro, mas cria um novo paradigma a partir de sua
prática emancipatória, que é capaz de ser absorvida e reinventada nos mais diferentes contextos.
Portanto, há uma fusão entre ética, estética e política na proposta do Teatro do Oprimido. Assim, ao
se realizar o processo estético, também se efetiva a prática política, dirigida por claros e inequívocos
valores éticos. Ou seja: as verdades silenciadas dos oprimidos devem ser ouvidas e pavimentar as
possíveis soluções.
É evidente, em todo o pensamento e no conjunto da obra de uma vida inteira, que sempre se tratou,
para Boal, de abrir caminhos para uma estética (processo) e um teatro (que pode ser considerado
uma obra de arte ou não) capazes de representar e de revelar os bastidores das opressões sociais. O
apagamento e o silenciamento dessa possibilidade de estética do oprimido, historicamente, são
política e ideologicamente enviesados. O poder da estética, com sua capacidade de representação de
mundos e de saberes, de desejos e de quereres, sempre esteve, e continua a estar, no centro da
manutenção de hierarquias sociais, sejam de classe, de gênero, de culturas, etc. Quem é capaz e pode
fazer arte e quem não é capaz de criar são abstrações, para Boal, que se concretizam com finalidades
ideológicas. Por isso ele sempre afirma em seus escritos que a arte é, em última instância, um
processo de revelação de nós mesmos (BOAL, 2009).
Na arte como processo estético e na obra como produto artístico, o artista entra em contato com um certo real –
como no orgasmo ou no delírio. Mesmo nas chamadas criações coletivas, a equipe criativa deve encontrar uma
visão comum, descobrir e revelar o insólito escondido pelo dia-a-dia (BOAL, 2009, p. 111, grifo do autor).
Para Boal, coerente com seu objetivo de transformar as sociedades e de humanizar o homem, o
mais importante é o processo estético e não propriamente seu produto acabado. Ele afirma:
Faço distinção entre o fazer, isto é, o processo estético, e o que é feito, o produto artístico. Para que este exista,
aquele é necessário; mas não é necessário que o processo estético dê origem ao produto artístico, à obra de arte. O
processo pode ficar inconcluso, e nisso não há mal (BOAL, 2009, p. 162, grifo do autor).
Em qualquer parte, com qualquer tipo de coletividade com a qual se inicie uma proposta de
representação da dor, ou seja, situação em que se propõe compreender e manifestar a opressão de
modo a refletir sobre ela, a fim de buscar possíveis soluções em conjunto, o resultado é sempre uma
surpresa, uma explosão de percepções e de argumentos represados socialmente. E não é outra a
principal estratégia assumida pela Estética do Teatro do Oprimido, senão tornar visíveis as
profundezas da ideologia dominante (que é sempre a da classe dominante). Segundo o dramaturgo, “A
arte dominante [...] será sempre a da classe dominante, eis que esta é a única possuidora dos meios
de difundi-la preponderantemente” (BOAL, 2005, p. 99).
A Estética do Teatro do Oprimido traz em seu bojo um irrefutável compromisso com a luta de
classes. As bases marxistas de sua concepção norteiam a condução ética de sua proposta. Boal é
enfático ao afirmar, em diversos momentos e em diferentes ocasiões, que outro mundo é possível,
desde que estejamos comprometidos com a parte (a maioria) desprivilegiada econômica, social,
cultural, politicamente e, portanto, parcela vulnerável das sociedades. Além da base econômica da
chamada globalização, que caracteriza o capitalismo tardio (JAMESON, 2007) cada vez mais injusto e
excludente, há inúmeros outros tipos de vulnerabilidades que se somam à questão puramente de
cunho social e econômico, formando um difícil quadro com desafios aparentemente insolúveis. O
Teatro do Oprimido parte da utopia9, segundo a qual não há nada realmente impossível, desde que
haja um esforço genuíno, uma consciência crítica e um trabalho sério para as transformações de que
necessitamos. Por meio de tal visão se está sempre operando no interstício onde se fundem esperança
e ação, sonho e labor. É preciso dizer, portanto, algo sobre a prática do Teatro do Oprimido: trata-se
de uma das tarefas mais difíceis e, simultaneamente, mais auspiciosas em seus processos e
resultados. Exige a presença de pessoas não só preparadas em termos dramatúrgicos e políticos, mas
também corajosamente esperançosas.
O caráter político do Teatro do Oprimido é sua base primeira, desde o momento de sua concepção,
quando Augusto Boal ainda ensaiava as incursões iniciais rumo a um teatro de engajamento no
contexto de um Brasil sob o jugo da ditadura civil-militar dos anos de 196010. Como se sabe, os
primeiros passos foram dados ainda nos anos de 1950, no contexto das riquíssimas práticas
dramatúrgicas do Teatro de Arena, em São Paulo. Os Seminários de Dramaturgia foram um
verdadeiro celeiro, onde vários criadores geniais, como Vianinha, Guarnieri, Boal, José Renato, entre
tantos outros, puderam expressar seu potencial máximo de criação artística e de preocupação
política. Este amálgama precioso, onde se juntam o estético e o político, seria um condutor fiel da
causa do Teatro do Oprimido até a atualidade, em suas mais genuínas expressões.
Há de se observar também, a fim de não se cometer nenhuma injustiça, que muitas práticas
denominadas de Teatro do Oprimido, mundo afora, têm suas matrizes ideológicas e, por
consequência, sua prática, questionadas pelo fato de ser muito tênue a linha divisória entre o que se
entende por pluralidade de opiniões e o que se concretiza como mera adequação ao status quo
político e social dominante. Na verdade, é uma tarefa muito ingrata medir tal fronteira, mas o fato é
que ela existe. O pesquisador percebe claramente as ações em que o compromisso com os
fundamentos principais do Teatro do Oprimido são norteadores fulcrais. Quando assim o é, os
resultados são sempre bastante libertários em todos os sentidos e emancipatórios em termos
políticos. Para Boal:
Se fosse verdade que todos têm razão, e que todas as razões se equivalem, seria melhor que o mundo ficasse do jeito
que está. Nós, no TO, ao contrário, queremos transformá-lo, queremos que mude sempre em direção a uma sociedade
sem opressão. É isto que significa humanizar a Humanidade: queremos que o homem deixe de ser o lobo do
homem, como dizia um poeta (BOAL, 2005, p. 25, grifo do autor).
Deve-se tomar o Teatro do Oprimido, no contexto deste artigo, em duas faces que lhe são
igualmente constitutivas: a política e a estética. Muito se discute, principalmente a partir do século
XX, em termos de dramaturgia, sobre qual o sentido de um teatro político. O debate, de fato, vai além,
pois a própria existência de um teatro político – sobretudo depois de Bertolt Brecht – é posta em
pauta e em dúvida11. O Teatro do Oprimido, em sua proposta, não divide as fronteiras entre o que
seria o político e o que seria o estético. Para Boal, o Teatro do Oprimido é político em sua
integralidade, em sua escolha assumidamente parcial pelo ponto de vista dos vulneráveis socialmente,
daqueles cuja voz é silenciada cotidianamente. Portanto, quando se faz referência à Estética do Teatro
do Oprimido, é muito importante que se realize com clareza esse exercício de entendimento, qual
seja:
Temos que ser muito mais amigos da verdade: todas as atividades do homem, incluindo-se evidentemente todas as
artes, especialmente o teatro, são políticas. E o teatro é a forma mais perfeita de coerção (BOAL, 2005, p. 79).
Claro está, como já se afirmou anteriormente, que Boal defende um teatro essencialmente político,
porque é consciente da premência em tornar visíveis, esteticamente, todo o conjunto de valores e de
demandas que constitui o modo de vida de camadas socialmente vulneráveis e tornadas invisíveis em
processos históricos de apagamento ideológico.
Entretanto, faz-se premente esclarecer também o que, de fato, Boal entende como Estética. Afinal,
o debate sobre o papel político da arte é clássico e remonta aos primórdios aristotélicos da discussão.
Apesar disso, o tema ainda é atual e continua exigindo clareza e definição. Não para que o debate se
encerre – parece-me impossível e improdutivo que isso aconteça – mas para que se compreenda com
discernimento a proposta de cada autor acerca do assunto. Portanto, voltando à perspectiva de Boal:
A Estética não é a ciência do Belo, como se costuma dizer, mas sim a ciência da comunicação sensorial e da
sensibilidade. É a organização sensível do caos em que vivemos [...] Belo não é só o que nos alegra e agrada, mas
também o que nos assusta e consterna [...] Fotos de Sebastião Salgado mostram, em rostos e corpos, na pele e nos
olhos, na seca e ao sol, o pavor da fome e da aids: belas fotos – angústia e medo. O Belo está na coisa e no olhar
(BOAL, 2009, p. 31, grifo do autor).
Assim, entre a sutil linha que separa e aproxima o político e o estético, em Boal, encontra-se o
conceito de relativismo cultural14, como mediador e conciliador imprescindível para a concepção
dramatúrgica do Teatro do Oprimido (BOAL, 2009). O dramaturgo afirma a necessidade de se
enxergar o que se define como estética com as lentes culturais que constituem o olhar de quem a vê.
Ou seja: que sentido pode haver em se estabelecer apenas um tipo universal de estética, se muitos
são os sentidos a ela atribuídos? Portanto, ao se decidir por um modelo estético supostamente
universal está-se fazendo uma escolha política, cujos resultados excluem aqueles que não são
representados por esta mesma estética eleita e estabelecida. Basta lembrar que Boal está impregnado
de uma sensibilidade voltada para o ‘outro’ da história oficial, aquela camada cuja narrativa não é
objeto de nenhuma expressão. Está posto o amálgama antes mencionado entre o estético e o político.
Nas palavras de Boal: “Criar nossa própria cultura, sem servidão àquelas que nos são impostas, é ato
político e não apenas estético; ato estético, não apenas político!” (BOAL, 2009, p. 36, grifo do autor).
Diante disso, como estabelecer as ideias e as práticas do Teatro do Oprimido Brasil adentro e
mundo afora? A resposta é aparentemente simples: é preciso considerar os diferentes contextos
culturais. Por que a simplicidade da resposta é apenas aparente? Porque também as visões em torno
dos diversos sentidos atribuídos ao político e ao estético, por diferentes culturas, variam e causam
choques de entendimento. Em outras palavras, é claro que o propósito defendido por Boal em todos os
seus escritos e em toda sua vida foram na direção de um exercício respeitoso ao contexto cultural,
linguístico, histórico e político de cada agrupamento e coletividade. Por outro lado, porém, também é
evidente que tal absorção ou assimilação da metodologia do Teatro do Oprimido encontra barreiras e,
simultaneamente, rompe fronteiras nesse eterno dinamismo presente entre o respeitar as
peculiaridades de cada contexto e o lutar por uma consciência das injustiças sociais e políticas de
forma mais alargada e profunda. Tarefa difícil em que, em minha visão, o grupo aqui mencionado é
muito bem-sucedido.
Boal (2014) relata, com graça e bom humor, uma história curiosa, mas também bastante
sintomática no sentido de revelar a força e o inusitado sempre presentes dentro de um processo de
criação e de encenação, pelo Teatro do Oprimido. Em um documentário dirigido pelo cineasta
brasileiro, Zelito Viana (2011), Boal conta o seguinte. Estava ele no Peru, exilado do Brasil, e em
pleno exercício das práticas teatrais (já com o sistema coringa sendo usado, no contexto do que
depois viria a ser denominado de Teatro Fórum), quando em determinado momento, ao parar a cena e
pedir a interferência do público, a fim de se buscar possíveis respostas e soluções para o problema
apontado no palco, uma mulher se levantou e propôs uma solução. O problema exposto era a
exploração sofrida por uma dona de casa analfabeta, cujo marido, além de usurpar seu salário, era
infiel a ponto de lhe entregar cartas de amor escritas por sua amante, na certeza de que sua traição
jamais seria descoberta, por conta do analfabetismo da esposa. Eis que a senhora, da plateia, no
momento da intervenção aberta pelo coringa, afirma que é preciso que a mulher (personagem da
peça) ‘tenha uma conversa muito séria’ com o marido. Boal, então, conforme ele próprio narra no
documentário, pede para a atriz encenar um diálogo com o marido, no palco, procurando atender à
proposta expressa publicamente. Mas, insatisfeita com a cena realizada, a mulher da plateia insistiu
em sua resolução: ‘é preciso ter uma conversa muito séria com este homem’. Foi então que Boal, no
afã de entender do que realmente se tratava, pediu para a mulher subir no palco e, finalmente,
encenar, no lugar da atriz, a tão insistentemente referida ‘conversa muito séria’. E o inesperado
aconteceu. A mulher assumiu para si a personagem da esposa, e passou a ‘conversar muito
seriamente’ com o marido, em cena e no palco, batendo na cabeça do ator, violentamente, com uma
vassoura, para delírio e aplausos de todos. O difícil foi alguém conseguir parar a cena, sem sair com
algum arranhão.
É disso que se trata quando se fala em abrir o palco para a plateia. Para além de Brecht, de seu
teatro épico e de sua capacidade crítica de despertar consciências políticas, Boal instala a vida no
teatro e o teatro na vida. E é assim que nasce, oficialmente, o que depois se convencionou chamar de
Teatro Fórum: a mais difundida metodologia do Teatro do Oprimido, nos cinco continentes até os dias
atuais.
Destaco uma das premissas da Estética do Teatro do Oprimido que pauta as ações do Forn de
Teatre Pa’tothom: trata-se da consciência, segundo a qual não se pretende levar cultura, arte ou
teatro ao povo, aos mais vulneráveis ou a quem quer que seja. Ao contrário, o objetivo é fazer brotar e
crescer todas as possibilidades já existentes de criação em todos nós e em cada indivíduo. Assim, por
tal paradigma, o potencial artístico é uma presença – declarada ou não – em todas as coletividades
humanas e o Teatro do Oprimido opera na dinamização, na criação de espaços e de meios pelos quais
toda a potência criadora emerja, trazendo para o nível da consciência as dores reprimidas, resultado
de longos processos de opressão invisibilizados e desconhecidos, muitas vezes, pelo próprio grupo em
ação:
A Estética do Oprimido, ao propor uma nova forma de se fazer e de se entender a Arte, não pretende anular as
anteriores que ainda possam ter valor; não pretende a multiplicação de cópias nem a reprodução da obra, e
muito menos a vulgarização do produto artístico. Não queremos oferecer ao povo o acesso à cultura – como se
costuma dizer, como se o povo não tivesse sua própria cultura ou não fosse capaz de construí-la. Em diálogo com
todas as culturas, queremos estimular a cultura própria dos segmentos oprimidos de cada povo (BOAL, 2009, p. 46,
grifo do autor).
A mesma peça acima citada também foi encenada na Casa de La Solidaritat, no Raval, um espaço
social que abriga várias ações culturais e sociais, com o objetivo de fomentar o debate solidário entre
grupos em conflito – principalmente conflitos de ordem racial. Nessa experiência, o público era
formado por pessoas já familiarizadas com a forma do Teatro Fórum e eram oriundas direta ou
indiretamente de um contexto de opressão social. Havia a presença de catalães também, mas, em sua
maioria, eram imigrantes ou filhos de imigrantes. Havia jovens e pessoas mais maduras, acima de
cinquenta e sessenta anos, na plateia. Essa apresentação foi dirigida por Jordi Forcadas, que fazia as
intervenções no momento de se concretizar o Teatro Fórum e dialogar com o púbico.
Nos dois casos, o alcance em termos de criação de elos de pertencimento coletivo é
incomensurável, uma vez que é atribuída voz aos que jamais encontrariam quem os ouvisse, em outro
espaço social ou cultural. Com bases, evidentemente, freirianas a dimensão coletiva criada e
difundida pela ação teatral propicia uma gama de possibilidades na abertura de feridas sociais não
reveladas publicamente. O teor libertário é latente. Ao mesmo tempo, como todo processo
emancipatório, novos conflitos passam a existir na busca de soluções cada vez mais refinadas diante
dos problemas que emergem e que são compartilhados coletivamente: a negação de direitos básicos,
a falta de perspectivas para o país e para o mundo, entre outras questões realçadas pelo público, em
suas intervenções, demonstram a dor não de um indivíduo isoladamente, mas de todo um corpo social.
É um mundo novo e desconhecido que se abre, quando a imaginária quarta parede do teatro se
rompe, à maneira de Brecht, e se volta para dialogicamente ouvir o que a plateia tem a dizer, à
maneira de Boal.
Os desafios são grandes, mas os frutos são visíveis. O grupo abriga um espaço de formação de
atores e isso compõe uma rica e inestimável experiência coletiva, de agregação de ideias, bem como
de tentativas conjuntas de transformação de conflitos e de identificação e superação de opressões. O
próprio método de trabalho, que parte de oficinas, de exercícios e de práticas corporais e de estudo,
como um processo de reconhecimento e de consolidação do que depois virá a ser uma obra de Teatro
Fórum, por exemplo, traz, em si, o potencial de criação de sentimentos de pertença e de superação de
dores.
Ademais, o grupo também realiza inúmeras parcerias de trabalho com outros países europeus e
também da América Latina, especialmente com a Colômbia. É uma troca preciosa e que multiplica as
ações do grupo, principalmente pelos vídeos que podem ser utilizados em salas de aula, como recurso
didático para a criação de inúmeras oportunidades de debates profícuos na direção da quebra de
preconceitos e do despertar de uma consciência crítica e plena acerca das potencialidades humanas,
latentes em todos nós. Nesse contexto, vale a pena lembrar o que Boal sempre dizia em relação ao
Teatro do Oprimido: seu objetivo é humanizar o homem. Seguramente, esta busca por sociedades
mais humanas, mais respeitosas entre si, sem tanto medo uns dos outros e das diferenças que
compõem todos nós, permanece sendo o principal objetivo e o grande ideal do Forn de Teatre
Pa’tothom.
Vale também salientar o trabalho didático-pedagógico que é realizado com muito sucesso pelo
grupo com as pessoas que procuram seus cursos. São indivíduos que, muitas vezes, sentem em seu
cotidiano as pressões sociais advindas de diversas formas de violência – algumas declaradas e outras
silenciosas e veladas, mas não menos destruidoras. Essa é outra frente importante de lutas do grupo,
pois a formação oferecida aos que os procuram significa, na maioria das vezes, a porta de entrada
para uma vida totalmente diferente e melhor. Muitos se tornam atores amadores ou profissionais e
passam a viver de sua arte (evidentemente com todas as limitações financeiras que este ofício impõe,
em qualquer parte do mundo). Pelo conteúdo social e identitário que traz e pelo impacto visível que as
reflexões do TO provocam nos atores, não é demais afirmar que o grupo se multiplica em diversas
frentes de atuação, atingindo inúmeras formas de pertencimento social. Trata-se de um efeito difusor,
pedagógico e libertário, apenas possível pela entrega e pelo profissionalismo que todos do grupo
apresentam. Portanto, o próprio lutar, em si mesmo, configura a resistência político-estética e social.
Voltando à definição de utopia citada anteriormente, ainda que não se toque o horizonte, o caminhar
incansavelmente em direção a ele configura o sentido de pertencimento, reavivando e potencializando
cotidianamente a necessidade de construir novos modos do viver em sociedade. Isso não significa,
porém, uma atitude resignada em vista dos desafios impostos em um mundo tão desigual em termos
econômicos e sociais. Ao contrário, demonstra uma capacidade de perseverar, a despeito de
quaisquer circunstâncias desfavoráveis.
Considerações finais
O Forn de Teatre Pa’tothom atua na conscientização e na intervenção sobre as reais causas das
intolerâncias, da violência, do medo e das diferenças cada vez mais abissais entre o mundo de poucos
privilegiados a quem é concedido o direito de pertencer à sociedade e o universo dos que apenas se
identificam pela diferença, uma vez que lhes é negado o mero direito de pertencimento a um grupo
social. A dor do não pertencimento é, por assim dizer, uma opressão identificada naquele contexto e
trabalhada nas práticas do T.O. Conforme Forcadas:
Nesse caso nossa perspectiva segue sendo brechtiana. O ator se reconhece e assume uma atitude dentro do grupo
social que representa. Quando assume as funções de comunicador, deve saber que representa um grupo e deixar de
lado os elementos mais individuais. Isso pretende nos unir em causas comuns e deixar de lado aqueles elementos
pontuais, que costumam nos separar (2017, p. 8, tradução nossa)16.
Como afirma Boal, “A solidão mata não só os neurônios, mas também a palavra, quando não
encontra interlocutores. Como toda linguagem, existe em sua relação com o outro: pertence a
ambos” (2009, p. 65, grifo do autor). Nesse sentido, o trabalho desenvolvido pelo TO é imprescindível,
pois visibiliza, escuta e dá voz, socializa e liberta silêncios e esquecimentos. Afinal, a solidão é uma
presença incômoda em todas estas realidades de opressão e, por isso mesmo, o teatro, coletivo em
sua própria natureza discursiva e estética, tem o alcance multiplicador e libertário já mencionado
aqui. E, ao se tratar de peças que se criam a partir da Estética do Teatro do Oprimido, é evidente que
as possibilidades de permitir a fluidez e, ao mesmo tempo, a fruição do estético e do político,
simultaneamente, são infinitas.
Conforme nos esclarece Sontag (2003), muitas vezes, ao olharmos a dor dos outros, protegidos pela
distância, por meio de imagens fotográficas, ou mesmo por meio de pinturas, estamos operando de
uma maneira ambígua: a dor nos traz desconforto, indignação, e até sentimentos de impotência.
Também traz, muitas vezes, uma terrível sensação de distanciamento e de banalização em relação à
dor alheia. As fotos, segundo Sontag (2003), tanto podem sensibilizar o ‘nós’ perante os ‘outros’,
quanto podem criar muralhas de indiferença ainda maiores do que aquelas já existentes. Em um
mundo pleno de imagens e de apelos publicitários, sabemos que o espetáculo da dor alheia, de fato,
causa sentimentos díspares, como culpa, medo, indignação e, até mesmo, um estranho ‘conforto
mórbido’ de quem se sente aliviado por ‘aquilo’ não estar ocorrendo em seu país, em sua vila ou em
sua família. Por isso mesmo se faz tão relevante colocar em pauta o estatuto de consciência que
desenvolvemos, como humanidade, em relação ao que é considerado ‘alheio’, ‘estrangeiro’,
‘diferente’, ‘alteridade’. De fato, o que é importante salientar nesse artigo, partindo da experiência do
Teatro do Oprimido, é que essa divisão entre o ‘nós’ e os ‘outros’ é apropriada para a manutenção de
um status quo bélico, violento e reprodutor de injustiças sociais. Essa suposta divisão serve ao
estabelecimento e ao fortalecimento de gerações de novos pobres e de pessoas marginalizadas
econômica, social, esteticamente, por todo o planeta. É evidente que uma reflexão séria a respeito
deste estado de coisas deve anteceder qualquer prática, seja teatral ou não. Mas também é verdade
que, ao se realizar um tipo de abordagem como a que é proposta pelo Teatro do Oprimido, as
reflexões urgentes e prementes são acionadas, e todos os que se sentem alijados de um sistema
capitalista, que segrega criando a ilusão de incluir, são beneficiados de forma direta e indireta pelo
processo. Como afirma Jordi Forcadas:
Quando entramos na criação abandonamos as coordenadas mais pessoais para entrar nas do artista. Criando uma
posição estética, apresento uma maneira de ver o mundo. Isso me empodera e me leva ao outro. Talvez o mais
dignificante para o nosso trabalho sejam as experiências de grupos muito estigmatizados que em sua transformação
têm sido reconhecidos como artistas. Como dizia H: Hoje pela primeira vez em minha vida me pararam na rua,
mas não foi nem por causa de drogas nem para manter a ordem pública, e sim para me dizerem: Vi você
em uma peça de teatro, você é um artista! (2017, p. 4, tradução nossa, grifo do autor)17.
Referências
______. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. São Paulo: Cosac Y Naify, 2014.
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2005.
BOAS, F. Antropologia cultural. Organização Celso Castro. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
FORCADAS, J. Política y estética del Teatro del Oprimido. Barcelona: Forn de TeatrePa’tothom,
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GALEANO, E. Sangue latino. 1 vídeo. (23 min 31 seg). 2018. Disponível em:
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LEHMANN, H.-T. Teatro pós-dramático e teatro político. Sala Preta, São Paulo, v. 3, p. 9-19, 2003.
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PAVIS, P. Dicionário de teatro. Tradução de Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
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______. Uma redefinição do teatro político. Sala Preta, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 171-175, 2013.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/69085/71530. Acesso em: 03 jun.
2017.
SARRAZAC, J.-P. A invenção da teatralidade. Tradução Alexandra Moreira da Silva. Porto: Deriva,
2009.
SONTAG, S. Diante da dor dos outros. Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
VIANA, Z. Augusto Boal e o Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 2011. 1 DVD.
6 Para Boal, “Ética é o caminho por onde se pretende chegar ao sonho de humanizar a Humanidade. A ética repugna a persistência do
instinto predatório em sociedades humanas, cujos resíduos selvagens ainda existem em nós. Contra o aspecto predatório animal do
ser humano, a ética busca criar relações solidárias” (BOAL, 2009, p. 39).
7 O Teatro Fórum é a mais usada forma de Teatro do Oprimido em todo o mundo, pois coloca em ação o Coringa, que intervém
diretamente na peça, rompendo a quarta parede e chamando o público para o debate e atuação dentro da obra, com a finalidade de
resolução do conflito apresentado. Vale salientar que, no caso do grupo que se mencionará nesse trabalho, o Teatro Invisível – outro
galho da árvore do Teatro do Oprimido – também é praticado como experiência estética anterior à elaboração e finalização
propriamente ditas da obra teatral. Pelo Teatro Invisível, por exemplo, os atores realizam sua pesquisa de campo, criando seus
personagens e as situações que comporão a obra de teatro, a partir das experiências vividas e observadas nas ruas, no transporte
público, enfim, no cotidiano das pessoas ‘reais’ em setores os mais distintos da sociedade.
8 Coringa é o conceito desenvolvido por Augusto Boal para definir o ator que faz a interrupção da peça e, portanto, da arte, para
chamar o público a participar na resolução do conflito apresentado na obra teatral.
9 Aqui se está compreendendo o termo utopia na linha do entendimento atribuído a Eduardo Galeano, quando o escritor afirma que a
utopia é como desejar tocar um horizonte para o qual se caminha, ainda que se saiba ser impossível alcançá-lo plenamente. De fato, a
utopia se presta a impulsionar o nosso caminhar. Caminhando, sem nunca cessar, podem-se promover transformações e isso é o
bastante. Aqui, é claro, faz-se imprescindível usar as próprias palavras de Boal (2005, p. 31): “[...] a direção da caminhada é mais
importante do que o tamanho do passo”. Há uma entrevista, muito recomendada, feita com Eduardo Galeano, por um talkshow
brasileiro, em que ele aborda de maneira leve e clara a sua interpretação sobre o conceito de utopia e o contexto em que o autor
uruguaio fora levado a abordar tal assunto (GALEANO, 2018).
10 Para maiores detalhes históricos referentes ao surgimento do Teatro do Oprimido, consultar o artigo de Rocha (2007).
11 A esse respeito, ver Pavis (2013). Ver também Lehmann (2003). E ainda Sarrazac (2009).
12 Paulo Freire (1921-1997) é um dos educadores e pensadores brasileiros mais importantes e impactantes, não apenas por sua
inegável revolução nas teorias e práticas pedagógicas e educacionais, mas, sobretudo, pelo caráter humanístico de seu pensamento. É
dele, como se sabe, a Pedagogia do Oprimido, que foi fundamental para o desenvolvimento do que veio a se tornar o Teatro do
Oprimido, ao fazer emergir criticamente um profundo conhecimento das necessidades e especificidades educacionais, sociais e
políticas do Brasil e da América Latina.
13 É realmente muito delicado o limite (se se considerar que há, de fato, a necessidade de existir tal fronteira) entre a ação considerada
‘puramente’ artística e a prática compreendida como ativismo social. Na verdade, essa diferenciação não faz sentido algum para a
proposta da Estética do Teatro do Oprimido, pois o estético é, em si mesmo, uma forma de ativismo social. O que Boal pontua, em
realidade, é uma forma muito diferente de abordar o conceito de teatro, a partir de um paradigma que refuta tais divisões. Boal
afirma, por exemplo, que todos somos artistas e todos nós fazemos teatro em nosso dia-a-dia. A despeito disso, sem dúvida esta é uma
questão que gera polêmicas tanto entre estudiosos quanto entre os praticantes de Teatro do Oprimido.
14 O relativismo cultural tem suas raízes nos estudos iniciados na primeira metade do século XX, pelo antropólogo judeu teuto-
estadunidense, Franz Boas. O etnólogo concluiu, em suas várias incursões em campo, convivendo com diversos agrupamentos
humanos (como os esquimós do Canadá, por exemplo), o que nos parece óbvio atualmente (ou deveria parecer): as verdades culturais
são relativas aos acordos sociais de cada coletividade, não havendo, portanto, a possibilidade de se compreender a existência de um
saber cultural superior a outro, pois todos eles são relativos ao referencial que os concebeu e os mantém. Tal perspectiva funda a
chamada Antropologia Moderna e teve/tem um impacto político inquestionável, sobretudo no combate a formas de opressões calcadas
em argumentos etnocêntricos e racistas (BOAS, 2004).
15 “Teatro que se pretende militante e engajado na vida política ou na luta de libertação de um povo ou de um grupo” (PAVIS, 1999, p.
382).
16 “En este caso nuestra perspectiva sigue siendo brechtiana. El actor se reconoce y asume una actitud dentro del grupo social que
representa. Cuando asumelas funciones de comunicador, debe saber que representa un grupo y dejar de lado los elementos más
individuales. Eso pretende unirnos en causas comunes y dejar de lado aquellos elementos puntuales, que suelen separarnos”.
17 “Cuando entramos a lacreación abandonamos las coordenadas más personales para entrar enlasdel artista. Creando una posición
estética, planteo una manera de ver el mundo. Eso me empodera y me lleva al otro. Quizá de lo más dignificante para
nuestrotrabajosonlas experiencias de grupos muy estigmatizados que ensutransformaciónhan sido reconocidos como artistas. Como
decía H: Hoy por primera vez en mi vida me han parado enlacalle, pero no ha sido ni por drogas, ni por orden público,
sino para decirme: Te vi en una obra de teatro, ¡eres artista!”.
Capítulo 5
Introdução
Em 1920, o revistógrafo Luiz Peixoto trouxe de uma longa temporada em Paris a novidade: ao invés
de mutações em cena aberta, todas as vezes que se passasse de um quadro para o outro, descia o
telão ou fechava-se uma cortina e durante alguns minutos representava-se uma cena ligeira, um
sketch ou número de variedades até que ficasse pronto o novo quadro. O novo estilo foi inaugurado
com sua revista Meia Noite e Trinta, no Teatro São José.
A féerie estava se aclimatando e com ela a revista se enriquecia, os sucessos se multiplicavam.
Perdia-se o fio condutor e se valorava igualmente a fantasia — iluminação, figurino, música,
coreografia — e o texto cômico, crítico-satírico — sketches, monólogos, quadros de cortina. Surgia a
Cia. Tro-lo-ló, alçada a sinônimo do gênero revisteiro, instalada no Teatro Glória, na Cinelândia, novo
endereço de shows além da Praça Tiradentes, que privilegiava a alta e média burguesia.
Unindo popularidade, boas músicas, muita malícia, cenários e bailados bem cuidados, a revista
trazia para o palco as vedetes que dividiam a cena com os atores cômicos e cantores e cantoras
famosos, bem como compositores, introduzindo quadros ou cortinas apenas para que os ídolos
aparecessem dando mais um passo rumo à ‘revista a grande espetáculo’.
Assim, acabada a revista de ano de fins do século XIX e início do XX, assim como a revista
brasileira ou carnavalesca das décadas de 20 e 30, em que se viveu o apogeu da revista brasileira,
chegava-se nas décadas de 40 e 50, à convivência de dois tipos de espetáculos extremos, a féerie
monumental e a revista de bolso (PAIVA, 1991).
A primeira, a Extravaganza, ‘revista a grande espetáculo’, apresentada na Praça Tiradentes: no
Recreio, João Caetano, Carlos Gomes era a revista em que o texto perdia para o fascinante show de
luzes e cores na qual a sátira desviava-se do meio político para o sexual.
A segunda, com menos ‘efeitos especiais’, mas não livre deles, aclimatava-se aos pequenos teatros
da Zona Sul: Jardel, Follies em que, por exemplo, a partitura podia dispensar a orquestra, sendo
executada por pequenos conjuntos, mas como ‘tamanho não é documento’ nem garantia de qualidade,
pequeno não significava, necessariamente, ruim.
Em comum, essas revistas (a Extravaganza e a de bolso) possuíam a estrutura, textos ágeis, sem fio
condutor, uma sequência de quadros soltos (cortinas, sketches, fantasias). Entretanto, tais quadros
autônomos, de tão descosidos, acabariam fragmentados em definitivo, ‘matando’ a revista
(VENEZIANO, 1996).
Considerações finais
Desligada do aqui e agora, sem contar com a atualidade no comentário político, musical ou de
costumes, quando a ‘piada ficou velha’ e perdeu a graça, a revista deixou de interessar. Fragmentação
exagerada, censura, ausência de contemporaneidade, interesse dos brasileiros pelo
desenvolvimentismo industrial estrangeiro em oposição ao nacional popular, leia-se JK em lugar de
Vargas, tudo isso a levou à ruína e ao desaparecimento de cena, cabendo à revista na cena
contemporânea um não-lugar perpetuado pelo não conhecimento de sua história, autores e obras que
justifica a apresentação de uma pequena parte, devido à sua extensão, da revistografia a seguir.
Expõe-se as primeiras décadas, enquanto revista de ano, justamente por sua estreita ligação com a
contemporaneidade, remetendo à questão sobre a relatividade do termo contemporâneo —
contemporâneo a quê ou a quem? Essa revistografia a seguir tem suas bases em diversos autores
como Chiaradia (1990), Lopes (2000), Gonçalves (1982), Rocha Jr. (2000), Ruiz (1984) e Seidl (1937).
1880
Tal qual como lá – de Artur Azevedo e França Junior. Revista de ano sobre os acontecimentos de
1879, inspirada a partir da exposição portuguesa no edifício da Tipografia Nacional. Não chegou a ser
encenada, pois o empresário, assustado com os gastos necessários para a montagem, solicitou à
polícia manter o manuscrito que entregue ao Conservatório Dramático lá permaneceu até perder a
atualidade, condição sinequa non para ir à cena. Os compères eram Portugal e seu filho, Brasil.
Segundo conta Artur Azevedo no Correio do Povo de 1º de outubro de 1890, o Brasil, “[...] burguês pai
de 20 bonitas raparigas, que hoje seriam 20 rapagões, visto as províncias terem se transformado em
estados [...]”, convidara o pai para conhecer o Rio de Janeiro. O pai Portugal chegava à casa do filho
de braços abertos, trazendo suas províncias e seus produtos para expor e depois de deixarem “[...]
numa casa de roupas feitas da Rua do Hospício aquele [Brasil] o seu cocar de penas e este [Portugal]
a sua armadura de aço [...]” saíam em um passeio pela cidade. Originava-se a comicidade nas
semelhanças das desgraças públicas dos dois países, com Portugal exclamando sempre que o filho lhe
mostrava alguma coisa: “Tal qual como lá!”, justificando o título da revista.
1886
1887
1888
Fecha! Fecha! – de Soares de Sousa Junior, estreou no Teatro Variedades Dramáticas em 1888.
Focalizava a questão do horário de fechamento do comércio. No elenco estavam Machado Careca,
Ana Menarezzi, Guilherme da Silveira entre outros.
O homem – de Artur Azevedo e Moreira Sampaio, música de Costa Júnior, Simões Jr., Adolfo
Lindner, Chueca e Valverde, Furtado Coelho, Varney, Gomes Cardim, Cardoso de Menezes, música
popular do Norte, Suppé, Offenback. Revista dos acontecimentos fluminenses, estreou no Teatro
Lucinda a 3 de janeiro de 1888. Em prosa e verso, em 3 atos divididos em 10 quadros, era calcada no
romance homônimo de Aluisio Azevedo, irmão de Artur. Xisto Baía representava os tipos de capadócio
e barão. OS personagens centrais eram Magdá, a histérica, e seu pai, o Conselheiro Plínio Marques.
Reunindo o Café Oriente, a Companhia Força e Luz, a Justiça, a Colônia Portuguesa, a Academia de
Belas Artes, um Inglês, um Abolicionista, um Crítico, o Fiscal, o Logrado entre outras personagens, a
revista fazia uma avaliação pessimista do ano. Falava em suicídios, naufrágios, maldições, contudo o
Conselheiro acabava por descobrir que Fernandinho não era seu filho, o que tornava possível o
casamento deste com Magdá, proporcionando a apoteose final ao Amor, num happy end distinto do
final trágico do romance glosado.
Notas recolhidas – de Lopes Cardoso, música de Antônio Frederico Cardoso de Menezes e Souza
(Cardoso de Menezes). Revista com prólogo, 3 atos e epílogo, estreou no Teatro Sant´Anna a 7 de
abril de 1888. No elenco Vasques, Peixoto, Leonardo, Rose Villiot, Isabel Porto e outros.
O paço do constrangimento – de Augusto Fábregas e Barbado Lisboa, estreou no Teatro Variedades
Dramáticas a 15 de fevereiro de 1888.
1888 – de Oscar Pederneiras, levada à cena no Teatro Variedades Dramáticas em 27 de dezembro
de 1888. Nessa revista foi lançada a cançoneta ‘Missa Campal’, cantada pelo ator Machado,
popularizada no carnaval seguinte. Em se tratando de uma revista de ano que fora estreada antes do
final do ano, tivera coincidências com outra revista de ano, preste a estrear, o que causou uma certa
polêmica. Era Abolindenrepcotchindengó.
1889
1890
1891
Viagem ao Parnaso – de Artur Azevedo, música de Adolfo Lindner, Abdon Milanez, B. C. dos Santos,
Luis Moreira, Leocádio Raiol, Carlos Cavalier, Franz von Suppé, Richard Genée, Offenbach, Chueca e
Valverde, Paul Lacome, Charles Silver, Milocher, Robert Planquette, Artur Seymour Sullivan, Laurent
de Rillé, compilada e orquestrada por Adolfo Lindner. Revista fluminense de ano de 1890, em 3 atos e
11 quadros, estreou no Teatro Apolo a 10 de março de 1891. Publicada no jornal Correio do Povo em
março do mesmo ano. Lançou o ator João Augusto Soares Brandão (Brandão, o Popularíssimo). A
revista trazia à cena Laura e Gilberto que pretendiam se casar, mas o pai de Laura exigia que o rapaz
fizesse o pedido em versos. Com um quarto de hora para tornar-se poeta, o rapaz apelava a uma
estátua de Vênus e com a ajuda de Cupido, à presença de Apolo, bebia da fonte Castália e se
transformava em poeta. Em troca, Gilberto serviria de cicerone ao deus Apolo em sua visita ao Rio de
Janeiro, acompanhado por Vênus e Cupido. Ao final, os deuses voltavam ao Olimpo, acertava-se o
casamento de Gilberto e Laura e a apoteose era dedicada ao Reino do Amor. Esse enredo foi retomado
pelo autor em 1904 na fantasia cômica A fonte Castália, no Teatro Recreio Dramático a 7 de julho,
pela Companhia Dias Braga.
O grude – dos irmãos Valentim e Henrique Magalhães, sob os pseudônimos de Lacerda Lacre e
Gomes de Gomina, estreou no Teatro Sant´Anna a 13 de fevereiro de 1891. No elenco estavam Jeanne
Kaylus, Cândido Nazaré, José Gonçalves Leonardo entre outros.
1892 a 1964
Os dados sobre as revistas compreendidas neste período serão devidamente publicados junto a
outros artigos em novas reflexões sobre a revista no Brasil.
Referências
______. Guia de fontes para pesquisa: teatro de revista. Rio de Janeiro: Ibac/ Departamento de
Pesquisa e Documentação, 1992.
LOPES, A. H. The Jaguar’s Leap. Musical theater in Rio de Janeiro 1900-1920. 2000. Tese
(Doutorado)-Department of Performance Studies, New York University, Nova Iorque, 2000.
PAIVA, S. C. de. Viva o rebolado! Vida e morte do teatro de revista brasileiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1991.
ROCHA JR., A. F. da. Teatro de revista brasileiro: de Artur Azevedo a São João del Rei. São
Paulo: ECA, 2000. Relatório de qualificação – doutorado.
______. O teatro de revista no Brasil. Das origens à Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro:
Inacen, 1988.
SÜSSEKIND, F. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986.
VENEZIANO, N. Não adianta chorar. Teatro de revista Brasileiro... Oba! Campinas: Editora da
Unicamp, 1996.
Capítulo 6
Introdução
Dentre as numerosas encenações de Hamlet, não podemos deixar de dar um destaque especial ao
espetáculo realizado pelo Teatro do Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno que, em 1948,
estreou no Rio de Janeiro, um Hamlet brasileiro que teve o ator Sérgio Cardoso interpretando o
protagonista da tragédia. Essa produção tornou-se um dos maiores acontecimentos do teatro
brasileiro e transformou-se na revelação do desempenho excepcional de Sérgio Cardoso que, anos
mais tarde, tornou-se também diretor de uma nova produção de Hamlet (1956) e da comédia Sonhos
de uma noite de verão (1956). Dentro do universo das retomadas do Hamlet shakespeariano, o
presente artigo tem como proposta analisar duas montagens de Hamlet que foram realizadas,
respectivamente, por Antônio Abujamra em 1991 e por Felipe Hirsch em 1997. Pode-se imaginar que
as adaptações de textos shakespearianos, de uma forma geral, quase sempre são polêmicas uma vez
que o grande público espera que elas sejam bastante próximas do texto que as originou,
principalmente, por se tratar de um texto canônico. Essa postura torna-se mais irredutível quando as
propostas de encenação se distanciam do consenso estabelecido pela tradição teatral. Sob essa
perspectiva, Felipe Hirsch, diretor da Sutil Companhia de Teatro (extinta, no momento), realizou em
Curitiba no ano de 1997 uma versão contemporânea do Hamlet shakespeariano, intitulada Estou te
escrevendo de um país distante. Tendo sido descrita por Augusto Ceressa (1999) como uma ‘violenta
recriação de um clássico’, percebe-se, se colocarmos as duas peças, lado a lado, que tudo é, ao mesmo
tempo, muito semelhante e muito diferente: é uma semelhança com diferença crítica. Tem-se a
impressão de que é Shakespeare, que grande parte dos episódios está lá, que a crítica social se
repete, que os personagens revelam a mesma motivação interna. Entretanto, na versão de Hirsch, a
proposta é outra: a radicalização, o grotesco, o travestimento e a paródia evidenciam a quebra da
ilusão, a linguagem choca, a concepção cênica exige que o público participe como um observador
atento a toda evolução da ação – é como se o diretor colocasse uma lupa sobre o que é peculiar,
ampliasse e intensificasse os matizes da peça shakespeariana.
Uma das características inconfundíveis na produção teatral de Felipe Hirsch é a sua opção por
estabelecer relações intertextuais tanto de textos alheios (intertextualidade) como dos seus próprios
textos (intratextualidade). A partir da inserção de uma rede bastante densa de pré-textos, marcados e
não marcados, Hirsch elabora a sua versão contemporânea de Hamlet, Estou te escrevendo de um
país distante, dentro de uma concepção essencialmente parodística e, como ele próprio comenta,
‘com visões e adaptações contemporâneas de Hamlet’. Ele não pensava simplesmente em encenar
mais um Hamlet com outras palavras, mas ‘uma peça que analisasse e falasse sobre Hamlet’18. Hirsch
queria, a princípio, a crítica do ensaio, embora o espetáculo tenha enveredado por um outro caminho,
posteriormente. Hirsch confessa que, ao mergulhar no mundo dos ‘Hamlets’, ele ficou impressionado
pela grande quantidade de obras existentes que incorporam a tragédia shakespeariana como pré-
texto básico, sendo que algumas destas já faziam parte de sua memória literária/cultural de
referências como Hamlet de Karel Tchápek; Rosencrantz and Guildenstern are Dead e Dogg’s Hamlet,
ambas escritas por Tom Stoppard, dentre outras. Hirsch admite que ele usou como base para o novo
texto a tradução de Hamlet por Millôr Fernandes, porque ele precisava trabalhar com uma tradução
em prosa, pela velocidade que ele queria imprimir no espetáculo (HIRSCH; WEBER, 1999). Uma
outra referência intertextual bastante evidente na sua peça é o texto de Antônio Abujamra, Um Certo
Hamlet (1991) que, por sua vez, teve como pré-texto principal o Post Hamlet (1972) de Giovanni
Testori. O texto de Hirsch também estabelece uma relação intertextual com as obras Hamlet-máquina
de Heiner Müller e A canção de amor de J. Alfred Prufrock de T. S. Eliot, dentre outras. É claro que
dentro do universo de referências intertextuais, o Hamlet de Shakespeare torna-se a fonte principal
não apenas para amontagem contemporânea como para os outros três pré-textos secundários.
Felipe Hirsch, ao incorporar o texto clássico shakespeariano e as outras referências intertextuais
ao novo texto, introduz todo um universo de significados que, ao invés de se tornarem uma concha de
retalhos literários, convergem para tornarem-se parte de um todo dentro do processo da dinâmica
dialética. Shakespeare não é mais tratado como um cânone, mas como matéria que será transformada
para a formulação de um novo significado. Dentro desse prisma, Hirsch rompe com a concepção
absoluta da realidade, ao propor uma percepção fragmentária do mundo, que acentua a relatividade
das coisas e a ambivalência do homem - é o próprio retrato da condição do homem contemporâneo
que é solitário, indeciso, pensativo, pressionado por fatores externos, incapaz de agir, ou seja, muito
parecido com o Hamlet shakespeariano (MIRANDA, 2004).
Ao se examinar as relações intertextuais em Estou te escrevendo de um país distante, não restam
dúvidas de que o estudo entre o roteiro de encenação do espetáculo Um certo Hamlet, realizado por
Antônio Abujamra em 1991, e o espetáculo produzido por Felipe Hirsch em 1997, seja imprescindível.
Felipe Hirsch e Guilherme Weber consideram que Estou te escrevendo de um país distante tenha
incorporado bem menos do que 50% do texto de Abujamra: eles lembram que gostaram muito do
espetáculo que viram no Rio de Janeiro e planejaram trabalhar com a encenação daquela montagem.
Entretanto, quando receberam o texto, perceberam que ele não condizia com o espetáculo que tinham
visto, uma vez que o Abujamra foi trabalhando muitos elementos durante os próprios ensaios − este é
o problema de se tentar mexer com um roteiro de encenação. A partir desta constatação, Hirsch
decidiu escrever um novo texto: o que existe é mais a memória do espetáculo do que propriamente o
texto do Abujamra, de acordo com Hirsch e Weber (2001).
Abujamra (1932-2015), o irreverente, o inovador, muitas vezes, o debochado diretor de teatro, ator
e apresentador brasileiro, fez cinco montagens do Hamlet shakespeariano. A primeira, intitulada
Hamleto, só com homens. Em seguida, ele montou três versões de Um certo Hamlet, só com mulheres
e, em 2002, ele encenou Hamlet é negro no Teatro da Glória, com um elenco só de negros, apesar de
que, pela primeira vez, ele mistura atores e atrizes no palco. Caku Carneiro protagoniza Hamlet nessa
versão e Iléa Ferraz, a Ofélia. O cartaz do espetáculo anuncia que este Hamlet é ‘profano, perverso e
obscenamente engraçado’. Abujamra (apud OLIVEIRA, 2002, p. 15) menciona que ele próprio já tinha
visto 36 montagens de Hamlet e que as versões que ele criou são “[...] a mesma peça, sim. Mas
sempre diferentes. E sempre com humor”. Ele ainda menciona (apud OLIVEIRA, 2002, p. 15) que ele
quis fazer um Hamlet só com negros porque considera que “[...] é inacreditável que no Brasil, onde o
negro é vanguarda musical, esportiva e erótica, ele não tenha um grupo de teatro com continuidade
[...]”, observando que, nos anos 50, “Abdias do Nascimento tentou criar um, o Teatro Experimental do
Negro”.
A companhia teatral Os Fodidos Privilegiados foi fundada por Abujamra em 1991 com a peça Um
certo Hamlet que lhe rendeu o Prêmio Molière (melhor direção). Essa montagem foi apresentada no
Teatro Dulcina (Rio de Janeiro) com a Claudia Abreu no papel de Hamlet e Vera Holtz como Gertrudes
e Ofélia. Em 1995, Beth Goulart na peça Exorbitância, uma farândula teatral, também dirigida por
Abujamra, recita o monólogo da peça Um certo Hamlet. Exorbitância foi concebida como um
manifesto: o grande número de atores se movimenta no palco como uma massa unitária, formando um
cenário humano. O crítico Macksen Luiz (1995) ressalta a espontaneidade criativa da encenação que
torna o espetáculo contagiante: “O grande elenco se entrega a esta proposta de celebração teatral
com empenho e em alguns casos, com talento. São jovens que vibram na mesma sintonia do espírito
do diretor. [...] Formam um grupo [...] que demonstra plena consciência de seu papel em cena”.
Em relação ao Hamlet de Abujamra, Luciana Hidalgo em sua reportagem ‘Hamlet, uma prova de
fogo’, menciona que
[...] o diretor Antônio Abujamra também inovou ao montar Um certo Hamlet, em 1991, com a atriz Claudia Abreu no
papel de um Hamlet muito particular. Neste caso, recorreu à ironia e anunciou ser aquela a quarta vez que ele não
dirigia o Hamlet de Shakespeare, utilizando como base um texto de Giovanni Testori, de 1972, e ousando fazer uma
versão abujamriana só com mulheres, com passagens por Freud, Lacan e outros pensadores, sem ater-se à peça
original, preto no branco. No cartaz, alardeava que o espetáculo tinha até um pouco de Shakespeare e nos
bastidores, ensinava aos atores que todo diretor deve encontrar Hamlet e fazer a sua leitura, mesmo sabendo que
Shakespeare vai ser sempre melhor do que qualquer leitura que se faça dele (HIDALGO, 2001, p. 10, grifo nosso).
Abujamra, da mesma forma que Hirsch, inicia a encenação de Um certo Hamlet com um prólogo: o
personagem-ator Hamlet assume o papel de um narrador e/ou comentador, antecipando, através de
vigorosas imagens visuais, a atmosfera trágica, de morte e de sangue que irá predominar no
desenrolar da ação dramática. As cores vermelha e preta predominam, a sensação de náusea
repulsiva se instala e a podridão, a decadência, a mácula, a desordem, a sujeira produzem um efeito
de caos generalizado:
HAMLET: Este espetáculo tem que ser rubro! [...] Rubro do sangue dos javalis e dos porcos quando têm seus
pescoços cortados! É o crepúsculo [...] se expandindo em púrpura, em vômito e em vinho. [...] Tudo é negro. Negro e
da cor das azaléias, da púrpura e da mortadela apodrecida. Vejo por toda parte postas de carne e sangue; [...] carne e
sangue, marmelada, coágulos violáceos, geléia e carniça que escorrem como se até as muralhas, as mangueiras, as
jaqueiras e as nuvens estivessem menstruadas. Tudo aqui deve ter um aspecto: o do inferno! (ABUJAMRA, 1991, p.
2).
O espetáculo Um certo Hamlet é dividido em 13 cenas, sendo que as duas primeiras estão
parcialmente inseridas no ‘Segmento I’19 de Estou te escrevendo de um país distante: através da
análise das páginas iniciais de ambas as peças, já é possível estabelecer alguns parâmetros de
convergência entre essas duas versões contemporâneas de Hamlet. Percebe-se, por exemplo, que o
uso de um linguajar irreverente e o travestimento do estilo shakespeariano são também traços
característicos do texto abujamriano, sendo que o perfil paródico de ambas as peças faz as
semelhanças entre elas sobressaírem. Em Abujamra, as palavras pronunciadas por Hamlet, “Por que
me fizeste vir a este mundo de merda? Quem te pediu? Não fui eu, não fui eu quem pediu para me
fazeres assim como sou! Me tornar história, comédia e tragédia” (ABUJAMRA, 1991, p. 3), que
demonstram o seu pesar ao reconhecer a sua condição existencial, são parcialmente repetidas em
Estou te escrevendo de um país distante − “[...] por que me fizeste vir a este mundo de chacina? só
prame tornar história?” (HIRSCH, 1997, p. 2). Essas palavras carregam o teor da tragédia de
nascimento em ambas as peças, com as devidas repercussões no contexto contemporâneo. De acordo
com as expectativas do fantasma do rei Hamlet, é ainda possível consertar o que está errado? A
manifestação explosiva de Hamlet expressa o seu desgosto por viver numa sociedade decadente,
corrupta, mentirosa e que não se limita nem às peças de teatro e nem à Dinamarca hamletiana − essa
é a condição humana e admitir essa realidade não é fácil. Hamlet em Estou te escrevendo de um país
distante expressa em palavras inspiradas no Hamlet abujamriano, a sua irritação perante a vida:
[...] meu pai está morto. o câncer, a arteriosclerose, o pânico, o enfartamento, tudo mentira! estão ouvindo? tudo
mentira! merda! tudo é merda! a vida que era do meu pai é merda! a vida da minha mãe é merda! vocês, pobres
coitados, são merda. esse país de merda está de merda até o pescoço. e também o nada que sou eu. merda (HIRSCH,
1997, p.4)20.
A crítica social que se descortina no Hamlet shakespeariano, assume cores locais e atuais nas duas
encenações, entretanto, com maior intensidade em Um certo Hamlet. Dentre os inúmeros exemplos, o
tom satírico transparece claramente em uma das falas do rei Cláudio, quando ele expressa com meias
palavras as suas intenções duvidosas, sentimentos falsos e despropósitos de governo: o seu raciocínio
enganoso e circular torna-se uma referência para os discursos políticos da atualidade, quase sempre,
vazios e capciosos que, através de uma argumentação ilusória, tem como único objetivo obter o apoio
dos governados em prol dos mantenedores do poder:
No momento de tomar nas minhas mãos o cetro, e de colocar sobre a minha cabeça a coroa eu sinto-me no dever de
lançar, in primis, um manto de reverência e de lágrimas sobre a santa memória de meu amantíssimo irmão.
Depois, eis-nos aqui, tomando junto a vós como primeiríssima decisão21 do meu governo, a de constituir um
mundo novo, que nasce agora e por isso devemos sofrer juntos as dores do parto. É um processo injusto e doloroso
mas precisamos refletir e admitir que é essa a única saída para o pagamento de nossas dívidas e salvaguarda de
nossas instituições. Para tanto seremos obrigados a impor certos sacrifícios para melhor equilibrar nossas trôpegas
finanças. Nossas dívidas são um fato físico e não há malabarismos ideológicos ou revoluções que possam superá-los.
Eu conto, pois, com a boa vontade de todos vós. Até a entrega total da própria pessoa e do próprio sangue. Nossa
compulsão irresistível de serem devotos às instituições do nosso reino e do vosso também, nos levam a agir de forma
cruel e muitas vezes até mesmo violenta. O mundo todo está sofrendo isso na carne, e é preciso ter todo bom senso
para não provocar mais turbulências sociais com o aumento do desemprego. Eis aqui o aspecto mais controvertido da
questão. É preciso poupar para gerar nova fonte de recursos para o bem comum. O nosso objetivo é diminuir todo e
qualquer desequilíbrio, mas também evitar toda e qualquer espécie de perturbação, a fim de que possamos recolocar
o nosso país, que é vosso também, no seu devido lugar (ABUJAMRA, 1991, p. 14-15, grifo nosso).
Apesar de não haver uma repetição exata, nem da disposição das palavras e nem da sequência das
ideias, a apresentação dos personagens por Hamlet em Estou te escrevendo de um país distante
(HIRSCH, 1997, p.2-3) é bastante semelhante ao pré-texto Um certo Hamlet (ABUJAMRA,1991),
embora Hirsch não inclua no seu texto as apresentações de Laertes e Horácio. Entretanto, ainda que
haja semelhanças visíveis, existem diferenças significativas nessa cena ao se comparar as duas
versões.
Hamlet, tanto na versão de Abujamra quanto na de Hirsch, inicia essa cena fazendo a apresentação
do pai morto, embora esta não esteja incluída na relação formal de suas apresentações. Hirsch, ao
elaborar a sua versão, acrescenta na referida apresentação uma importante e significativa referência
intertextual a Hamlet-máquina, de Heiner Müller: “[...] dei ordens para repartir tua carne e distribuí-
la aos miseráveis do teu reino. Deveria ser sempre assim. quando os corruptos morressem, suas
carnes gordas deveriam ser repartidas entre os famintos” (HIRSCH, 1997, p. 2). Não restam dúvidas,
de que a inserção de um universo literário diverso, entretanto, portador de afinidades semânticas,
enriquece o intertexto através da ampliação de significados. O mesmo ocorre com a apresentação da
Gertrudes. O texto abujamriano transcrito a seguir, “Senhores, agora chegamos de verdade ao
começo! Esta é a primíssima dona, soprano, vedete ou seja lá o que for, Gertrudes! Ela está toda
vestida de negro, sem nenhum roxo, mas caminha como uma pavoa soberba!” (ABUJAMRA, 1991, p.
4) transforma-se em Estou te escrevendo de um país distante no seguinte enunciado: “[...] vestindo
um paco rabane enferrujado, safiras e pérolas selvagens, a gasta prima donna, a vedete gertrudes!
rainha, soprano soberba! mãe que, apenas alguns dias depois da morte do meu pai, trepa no
leito ensebado com o assassino covarde e ladrão” (HIRSCH, 1997, p. 2, grifo nosso). A frase em
negrito destaca a inclusão de uma outra referência intertextual à Hamlet-máquina de Heiner Müller:
esse segmento expressa com radicalidade a pressa incomum e denunciatória dos dois possíveis
envolvidos na morte do rei ao assumirem publicamente o relacionamento entre ambos. Tudo é
flagrado instantaneamente e a olhos vistos, tanto em Müller quanto em Hirsch: sabe-se que nas duas
versões o que estava em questão era o poder (usurpado) e o casamento para legitimar o poder,
denunciado por ambos autores pelas fortes imagens sexuais.
Polonius é introduzido por Hamlet, no texto abujamriano, através de uma apresentação meramente
formal, ou seja, “Terceira e ao mesmo tempo quarta apresentação. Polonius com o seu filho Laertes”
(ABUJAMRA, 1991, p. 7). Em Estou te escrevendo de um país distante, entretanto, Hirsch reitera e
refaz o perfil característico de Polonius: ao radicalizar para pôr em evidência as características que
mais sobressaem no texto shakespeariano, ele quase escreve uma caricatura desse personagem.
Aliás, esta é uma das fortes e extremamente originais características na encenação dessa peça.
Abujamra também faz uso desse recurso, algumas falas foram, inclusive, absorvidas pelo texto de
Hirsch. Entretanto, em Estou te escrevendo de um país distante tudo é mais contundente, mais
picante, mais direto, mais denso. É curiosa a observação de que a apresentação de Polonius por
Hamlet, “[...] terceira apresentação: o pai de ofélia e de laertes. Polonius, o coça-saco do rei. Uma
foca que bate palmas em troca de sardinhas. um tamanduá que mete o focinho em qualquer buraco
com cheiro de dinheiro” (HIRSCH, 1997, p. 3), tem como complemento as próprias palavras de
Polonius sobre si mesmo: “[...] sou o conselheiro mais importante da corte. Sou ambicioso, um pouco
limitado, quase ridículo, quase o bobo” (HIRSCH, 1997, p.3). Essa breve fala final é uma interessante
e muito significativa alusão ao poema escrito por T. S. Eliot, A canção de amor de J. Alfred Prufrock
que transporta para o texto de Hirsch uma rede de significados. Em Abujamra, essas referências
intertextuais não foram ativadas, o que significa que todas essas conotações paralelas foram perdidas.
É um fato curioso que as três peças teatrais que são referidas como pré-textos de Estou te
escrevendo de um país distante exibem versões diferentes sobre a maneira como o rei Hamlet foi
assassinado por seu irmão Cláudio. No Hamlet shakespeariano o fantasma do rei narra em detalhes
para o seu filho como a sua morte ocorreu: ele dormia, de tarde, como de costume, em seu jardim
quando o seu irmão entrou furtivamente e derramou suco da ébona maldita nos seus ouvidos. Essa
essência morfética que talha e coalha o sangue em questão de segundos, transformou a sua pele em
uma repugnante crosta leprosa e fez surgir escamas purulentas pelo corpo (SHAKESPEARE, 1988).
Entretanto, em Hamlet-máquina, de acordo com as memórias do príncipe Hamlet, o seu pai foi
assassinado com uma machadinha: “Eis que vem o fantasma que me fez, a machadinha ainda no
crânio. Tu podes deixar o chapéu na cabeça, sei que tens um buraco a mais” (MÜLLER, 1987, p. 25)
Em Um certo Hamlet, o espectro não só revela para o seu filho Hamlet que ele bebeu um vinho
envenenado naquela noite, como ele incrimina Gertrudes por ter preparado a bebida junto com
Cláudio (ABUJAMRA, 1991). Em Estou te escrevendo de um país distante, a morte do rei Hamlet
ocorreu exatamente como em Shakespeare, embora a revelação do assassinato do pai ocorra através
de um pesadelo de Hamlet (HIRSCH, 1997), fato que traz conotações adicionais para o texto
contemporâneo.
Considerações finais
Apesar das semelhanças visíveis entre Um certo Hamlet e Estou te escrevendo de um país distante,
ambas as peças enveredam por caminhos diferentes, principalmente, a partir do pressuposto de que
Felipe Hirsch (1999), como ele próprio menciona, não queria ‘contar’ o Hamlet dentro do
encadeamento linear da estrutura tradicional dos cinco atos. Através da presença do narrador, Hirsch
consegue estabelecer a velocidade que ele queria imprimir no espetáculo, possibilitando-o a cortar,
voltar, pular cenas, enfim, tudo o que sugerisse o caráter de análise na peça. Além do que o
rompimento com a compreensão linear dos episódios está estruturalmente vinculado à proposta
temática que sugere a fragmentação da sociedade e, mais particularmente, do homem contemporâneo
que, por sua vez, está desestruturado, dividido e desamarrado de quaisquer vínculos e raízes. Todos
esses recursos produzem o efeito de distanciamento que começa a funcionar, de acordo com A.
Rosenfeld, “[...] a partir da própria estrutura épica das peças” (ROSENFELD, 1965, p. 170).
A versão contemporânea realizada por Hirsch introduz, logo no início da encenação (HIRSCH,
1997), uma referência ao Ato V do Hamlet shakespeariano, quando o narrador antecipa o final do
espetáculo. Além do desativamento do envolvimento emotivo dos espectadores, a estrutura
metateatral permitiu que Hirsch, ao antecipar o final da peça, encontrasse uma solução muito original
para o Ato V do Hamlet shakespeariano, que significava para ele o ato crítico dentro de sua proposta
de encenação. Ao invés de retratar ‘preto no branco’ o duelo final entre Hamlet e Laertes, Claudius-
ator apenas refere-se ao final da tragédia, com o Laertes já morto no chão e Hamlet, mortalmente
ferido (HIRSCH, 1997). O que se torna bastante peculiar em Estou te escrevendo de um país distante,
é que Hamlet, após executar Claudius e Gertrudes, começa a se afastar do seu papel ficcional e se
reconhece ator, usando o texto shakespeariano (o monólogo dos atores, Ato II, II). A partir desse
momento o ator e o narrador procedem uma reflexão sobre a existência humana (HIRSCH, 1997). O
ator-Hamlet reconhece, “[...] o resto é silêncio!” (HIRSCH, 1997, p. 43), ou seja, impossível de ser
retratado em palavras.
Em Um certo Hamlet a proximidade com o texto-fonte é subvertida, os desdobramentos
metateatrais também são evidentes, a linearidade clássica é rompida, o enfoque sócio-político mostra-
se acentuadamente contextualizado nas manifestações contemporâneas. Abujamra, tanto quanto
Shakespeare, Müller e Hirsch, condenam com veemência a corrupção e a decadência generalizada
que se alastram na sociedade tal qual uma peste perversa: ironicamente, o Hamlet abujamriano
desculpa-se porque ele “[...] não sabia que a Dinamarca era tão grande” (ABUJAMRA, 1991, p. 4).
Depois do príncipe em Um certo Hamlet exterminar Laertes, Cláudio e Gertrudes e de beber,
conscientemente, da sobra do cálice envenenado, ele conclama o povo − “[...] pastores, camponeses,
servos, escravos, artistas, operários, cortesãos e cortesãs [...]” − para se aproximarem e se tornarem
“[...] os donos definitivos e totais [...]” do poder político e material da Dinamarca. Entretanto, Hamlet
adverte que tudo tende a se repetir com os detentores do poder, sejam eles reis ou servos,
protagonistas ou personagens secundários do Renascimento shakespeariano ou do mundo
contemporâneo: o poder, os bens materiais, o status social e político, enfim, tudo o que dá evidência,
exerce uma atração tão forte sobre o homem que, muitas vezes, pode levá-lo ao nada. E, neste caso,
Hamlet, moribundo, complementa: “E o resto, o resto não pode ser o silêncio” (ABUJAMRA, 1991, p.
58-59) Seria possível ainda reagir? Reagir para quê? Que mudanças poderiam ocorrer?
Referências
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HELIODORA, B. Shakespeare no Brasil. In: LEÃO, L. de C.; SANTOS, M. S. dos (org.). Shakespeare,
sua época e sua obra. Curitiba: Beatrice, 2008. p. 321-334.
HIDALGO, L. Hamlet, uma prova de fogo. Revista Veredas, Rio de Janeiro, v. 64, p. 8-11, abr. 2001.
HIRSCH, F. Estou te escrevendo de um país distante: Hamlet com febre. Curitiba, 1997. Roteiro
de encenação.
HIRSCH, F.; WEBER, G. Entrevista concedida a Célia Arns de Miranda. Curitiba: Solar do Rosário, 04
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______. Entrevista concedida a Célia Arns de Miranda. Curitiba: Solar do Rosário, 24 jan. 2001.
LUIZ, M. Vigoroso e divertido manifesto lúdico. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 nov. 1995.
MIRANDA, C. A. de. Bardo com sotaque brasileiro. Gazeta do Povo, Curitiba, 14 maio 2014. Caderno
G.
______. Estou te escrevendo de um país distante: uma recriação cênica de Hamlet por Felipe
Hirsch. 2004. Tese (Doutorado)-USP, São Paulo, 2004.
MÜLLER, H. Quatro textos para teatro: Mauser, Hamlet-máquina, A missão, Quarteto. Tradução
Reinaldo Mestrinel, apresentação Fernando Peixoto. São Paulo: Hucitec, 1987.
OLIVEIRA, R. Abujamra monta pela quinta vez Hamlet, desta vez só com negros. Revista Época, São
Paulo, edição nº 220, 2002.
Introdução
A partir dos anos 90, vemos a emergência do uso de dispositivos nas artes da cena e o surgimento
de novos processos de criação e de recepção interativos. Com o advento do digital, o corpo do ator
adquire outras funções, tendo sua percepção radicalmente modificada pelo uso de tecnologias da
cena. Segundo Couchot, estamos diante de uma nova matriz perceptual “[...] associada a uma nova
corporeidade, um híbrido de carne e cálculo” (COUCHOT, 2007, p. 216). Em espetáculos intermediais,
a interação entre corpo virtual e corpo em carne e osso redimensiona o processo de criação do artista,
que busca novas estratégias para se relacionar com imagens projetadas em tempo real e/ou pré-
gravadas. Atravessado por imagens intermediais, o corpo do ator é expandido, não apresenta limites
delineados; reinventa-se a todo momento, porque não fixa uma única forma. Em constante
transformação, é corpo-imagem, multissensorial e fractal.
De que modo perceber/investigar o corpo em um espetáculo ou performance que utiliza imagens
digitais? – questão primordial das pesquisas intermediais – induz à reflexão sobre técnicas, tipos de
processo de criação, interfaces possíveis entre o jogo do ator e as imagens projetadas. A introdução
de dispositivos na cena – câmeras, projetores, softwares, suportes de diferentes materialidades –
interferem diretamente na percepção corporal, ao provocar a hibridização entre orgânico e
tecnológico. O uso do dispositivo é decisivo para uma mudança significativa no modo de atuação,
mesmo quando não é percebido em sua materialidade, quando não visível na cena ou parte apenas
dos ensaios e do processo criativo.
A relação entre corpo e dispositivo pode ser analisada a partir de dois axes não excludentes: o
temporal (ligado à duração da imagem em sua inter-relação com o ator) e o espacial (ligado à
materialidade da superfície na qual se dá a interação entre ator e imagem). Nessa análise, interessa-
me investigar dois tipos de dispositivos: a tela de projeção e o uso da câmera na cena intermedial.
Ambos estão conectados e sujeitos a variações decorrentes de seus usos.
As telas de projeção variam em tamanho e número. Podem ser reduzidas, como as pequenas telas
de TVs utilizadas em vários espetáculos, como os do Wooster Group a cicloramas que tomam todo o
palco (Lepage, Lemieux-Pillon, etc); variam entre uma e inúmeras dispostas pelo espaço cénico (Ivo
Van Hove, Cassiers, Pitoiset, Studio Azzurro). Apresentam também diferenças com relação às texturas
e tipos de superfícies, sendo comumente substituídas por objetos (cubos, painéis, cortinas, etc) e
materiais diversos (tecidos, vidros, madeira, plástico, etc). O corpo igualmente pode servir como
suporte de imagens, um corpo-tela. Neste caso, a imagem, geralmente, está intimamente
condicionada às ações físicas que, em muitos casos, são limitadas devido às dificuldades impostas por
uma projeção em movimento. Em Os cegos (2002), de Denis Marleau, o diretor cria o que denomina
‘fantasmagoria tecnológica’, radicalizando a pesquisa na projeção dos rostos dos atores em máscaras
cenográficas, mas sem a presença deles na cena.
Em Os cegos, da obra de Maerterlinck, Marleau utiliza a tecnologia para criar doze rostos, seis
masculinos, seis femininos, que surgem em um palco completamente às escuras. São cegos, imóveis e
conversam de modo a verificar se estão mesmo vivos. A escolha do uso de máscaras digitais
projetadas em cena propiciou desvencilhar o ator da personagem. Uma escolha que redelimitou as
pesquisas sobre o simbolismo no teatro e o interesse de Marleau pela morte, tema que atravessa todo
teatro ocidental e oriental, e que o diretor retoma por meio da análise crítica das obras de Artaud e
Kantor.
Não é o mundo paralelo que existe na tela plana do cinema onde tudo é possível, mas sim o de presenças reais e
frágeis que falam entre elas de sua própria condição ambígua e paradoxal, desta angústia de existir ou não, de não
ver, de não compreender e de ter medo de morrer (MARLEAU, 2010, p.58).
A especificidade do espetáculo refere-se à ausência dos atores, criada por meio de uma
‘fantasmagoria tecnológica’ que buscou reproduzir as personagens por meio do uso da ilusão de ótica,
dialogando diretamente com a ideia do ‘teatro de andróides’ de Maeterlink. O diretor optou por ser
fiel à máxima de Maeterlink ao substituir o ator por uma sombra ou projeção de formas simbólicas.
Para isso, criou doze máscaras em relevo sobre as quais projetou os rostos de dois atores, um homem
e uma mulher, com o objetivo de criar um efeito de presença que provocasse “[...] um tipo de dúvida
imanente sobre o palco, de fazer surgir o invisível [...]” (MARLEAU, 2010, p.59).
O efeito obtido é surpreendente porque o público demora a perceber que se trata apenas de dois
atores e não de doze, assim como a dúvida se são atores de verdade em cena ou projeção de rostos.
Marleau privilegiou as escalas um pouco maiores que a dimensão do rosto humano, com o objetivo de
tecnicamente alcançar a vida, sem, contudo, mostrá-la, como defendia Maeterlink.
A delimitação das funções desempenhas pelas telas em espetáculos intermediais não visa à criação
de regras ou metodologias específicas para seus usos, uma vez que há inúmeras possibilidades, tantas
quantos são os processos de criação implicados. É preciso atentar para um agenciamento complexo.
Isso significa que, em um mesmo espetáculo, podem-se observar usos distintos de uma mesma tela
e/ou ainda variações de diferentes tipos. O que qualifica de forma diferenciada seu uso na cena
intermedial é a “[...] ligação e corte simultâneos entre dois espaços: o virtual, o da imagem; e o atual,
o lugar de sua exposição” (BUSTROS; AURTENÈCHE, 2008, p. 77). A especificidade do uso do
dispositivo na cena intermedial contemporânea é dada por meio do corte e/ou ligação entre os dois
espaços, construídos a partir da interação entre as ações físicas do ator e as imagens digitais. Por
outro lado, não podemos deixar de notar a existência de um uso meramente decorativo, revelado
quando há a ausência da interatividade, ou seja, quando a imagem é meramente ‘pano de fundo’.
Na cena intermedial, identifico alguns elementos importantes constitutivos do jogo cênico: os
limites espaciais, definidos pelas telas com seus espaços dentro do campo e fora-campo, e sua
possível ruptura; o enquadramento das imagens (tipos de planos, profundidade de campo), a
montagem (continuidade e/ou descontinuidade) e sua relação com a dramaturgia; a pesquisa sobre a
distância tomada pelo corpo do ator em relação às imagens projetadas; e o trompe l’oeil, decorrente
da fusão entre corpo e imagem. O jogo do ator não é mais voltado apenas à plateia e a seus parceiros
de cena, mas também às imagens virtuais. Há, portanto, uma evidente modificação da percepção do
espaço, uma vez que este é ampliado e atravessado pelo espaço virtual, tornando-se híbrido. Além da
modificação do tempo de jogo (em muitos casos, bastante preciso devido à interação com as imagens)
e da percepção de si e dos demais atores, que veeme reagem aos limites das transformações de seus
corpos (reduzidos, aumentados, delimitados através de planos, cortes e enquadramentos). Isto ocorre,
por exemplo, diante de um close, em que não percebemos mais o espaço em sua totalidade,
provocando uma sensação de abolição espacial.
Com o uso da tecnologia 3D, o espaço cênico é ampliado e, em alguns casos, transforma-se em uma
grande tela para projeção de imagens, nas quais identificamos a expansão da superfície da tela, como
no caso do espetáculo Chroma, de Shiro Takatani, no qual as imagens em 3D são projetadas no fundo
da cena, no chão e no corpo do ator. Entre o sensível e o físico, perde-se, em alguns casos, a noção de
delimitação espacial. No espetáculo imersivo, A floresta que anda (2015/2016), a diretora Christiane
Jatahy cria uma cena intermedial e expandida, na fronteira entre teatro, cinema, performance e artes
visuais. Podemos analisar o espetáculo como uma instalação, em seu caráter documental, como teatro
e, também, como performance. Inspirada na personagem Macbeth, de Shakespeare, Jatahy discute o
poder político de manipulação e subjugação dos sujeitos. Para isso, coloca em cena quatro telas,
mostrando em cada uma quatro documentários diferentes. O primeiro apresenta Próspero, 28 anos,
refugiado do Congo, que mora em São Paulo. Sua família foi assassinada e ele preso e torturado em
seu país. O segundo documentário apresenta Michelle, moradora da Rocinha, a maior favela da
América do Sul, no Rio de Janeiro. Seu tio foi assassinado pela polícia militar. O terceiro revela Igor,
um estudante carioca, que foi preso por participar das manifestações de 2013. E o quarto filme
apresenta um habitante de Brasília pertencente ao movimento dos sem-teto.
Aqui me interessa analisar de que modo o ator se relaciona com o duplo de si projetado - questão
recorrente em inúmeros espetáculos contemporâneos. Parto da hipótese de que, ao criar e se
relacionar com imagens de si, do outro e/ou imagens da cena, por meio do uso da câmera, o ator se
transforma em interactor. O processo em tempo real de captação e projeção de imagens dilui as
fronteiras entre o tempo passado (o que seria da ordem de um pré-registro) e o presente,
complexificando a interação entre um corpo que se expõe para o dispositivo e um corpo-imagem
produzido por ele. Pode-se dizer que, nesse caso, o hiato, o intervalo mínimo entre um e outro, é
sustentado e tão somente pela presença do ator, bem como pelas suas ações que intermediam o ato de
exposição para o dispositivo-câmera e a imagem criada. Há, nesse sentido, ações que correspondem a
um ‘fabricar-imagens’; são elas que configuram e legitimam um estado intermediário de exposição do
dispositivo. É como se o ator dissesse: este sou eu, este é o dispositivo e esta é a imagem criada.
Entre mim, o dispositivo e a imagem existe um processo que agora revelo. Veja como fabrico um outro
de mim! Ou, ainda: veja como crio imagens de outros! A fabricação de imagens de si e do outro
pressupõe uma interação entre o ator e a imagem projetada, por meio de um ato consciente que se
inicia na captação da imagem de si e/ou do outro e se conclui no reconhecimento da imagem
produzida. É preciso, de algum modo, revelar o próprio ato de criação da imagem.
É evidente que nem sempre é possível visualizar este processo de fabricação da imagem pelo ator.
Em muitos casos, a imagem intermedial é produzida de modo indireto, como nos espetáculos Rouge
Decanté, de Cassiers, E se elas fossem para Moscou? de Christiane Jatahy, entre muitos outros. No
primeiro, as imagens, projetadas em telas diferentes, não são criadas, nem tampouco manipuladas
pelo ator. No segundo, apesar dos atores de Jatahy produzirem imagens em cena com o uso de
câmeras, a manipulação das imagens (o tempo de exposição, a montagem das sequências e a escolha
dos planos) é realizada fora da cena, pela própria diretora.
A fabricação de imagens de si e do outro pressupõe uma interação entre o ator e a imagem
projetada, por meio de um ato consciente que se inicia na captação da imagem de si e/ou do outro e
se conclui no reconhecimento da imagem produzida.
O espetáculo solo MDLSX, da companhia italiana Motus, dirigido por Enrico Casagrande e Daniela
Nicolò, apresenta a história de vida da atriz Silvia Calderoni. A atriz que durante sua infância foi
classificada como hermafrodita, questiona as fronteiras de sua sexualidade e a representação sócio-
política de seu corpo, fazendo uso de imagens de arquivo familiar. Calderoni atesta sua transformação
por meio da via de ‘transgressão’ criando ‘estratégias para agredir os hábitos perceptivos’ dela
mesma e do espectador (CALDERONI, 2016).
No palco, vemos uma grande mesa com um laptop, microfone, aparelho de som e uma tela em
formato de espelho redondo, o que provoca o reconhecimento por parte do público do caráter
autoficcional da proposta. Quem sou eu diante do espelho é questão norteadora do espetáculo. Existe
um jogo de vai e vem entre as imagens de um passado revisitado e as imagens captadas e projetadas
por meio de uma pequena câmera. Ambas configuram um movimento de desnudamento do corpo em
um fluxo intenso entre a preparação da câmera, a escolha das músicas e a realização das ações. Há a
preparação de uma ambiência, seja por meio de extratos de vídeos antigos, autobiográficos,
referentes a imagens do passado, seja a partir da captação em tempo real das ações realizadas em
cena, além da trilha musical escolhida para, o que chamarei aqui, de quadro narrativo, representativo
de um conjunto de ações referentes a sua trajetória de vida.
Calderoni escolhe 24 canções dos anos 80 e 90 que fizeram parte de sua infância e adolescência.
Em cena, ela se torna DJ e VJ manipulando as canções e as imagens de seus arquivos pessoais. Ou
seja, não há interferência externa na cena; a ‘fabricação de si’ depende da visibilidade dos
dispositivos, manipulados por ela em cena e expostos para o espectador. O encontro da atriz com seu
passado é, nesse sentido, percebido como uma escolha pessoal que privilegia momentos específicos
de sua vida em detrimento de outros. De vários momentos, três me parecem interessantes para
entendermos como ela constrói a narrativa de si. A primeira imagem do espetáculo mostra Silvia
ainda criança, com 9, 10 anos, cantando no palco. Vemos o primeiro desconforto com uma sexualidade
normativa com a qual ela não se identificava na infância. Em outro momento, um outro vídeo mostra
uma viagem de Silvia, na adolescência, na qual rompe definitivamente com a imagem cristalizada de
um corpo feminino e, pela primeira vez, experimenta vestir roupas masculinas, cortando o cabelo e
adotando um outro jeito de falar, andar, sentar, enfim, de se expressar. Um último vídeo (emocionante)
mostra o reencontro com seu pai após assumir para o mundo uma sexualidade livre e o
questionamento radical do gênero a ser adotado. No encontro, pai e filha dançam freneticamente.
Considerações finais
Escolhi esses três momentos por julgar decisivos na dramaturgia autoficcional do espetáculo,
momentos que revelam o percurso de transformação e aceitação do corpo diante de si e do outro
(espectador). É importante frisar que Calderoni não permanece inerte diante dos vídeos. Ela não
ocupa um lugar de espectadora de si, apesar de olhar para as imagens em um processo de
autorreconhecimento, fundamental (como falei anteriormente) à consciência do ato de fabricação de
si. Ao expor tais vídeos e fotos, ela narra, dança, efetua ações que transformam, no espaço da cena,
seu corpo híbrido. E filma essas mesmas ações que são igualmente projetadas na cena. Filma seu
corpo que se constrói e desconstrói, alternando a projeção de tais imagens às imagens de seu arquivo
pessoal. Imagens tradutoras de seu sentimento de não pertencimento. Movimentos angustiantes de
um corpo híbrido – nem sereia, nem medusa, nem animal, nem planta (todas imagens provenientes de
ações de Calderoni) em busca de liberdade. Corpo que questiona todo o tempo: homem ou mulher,
isso é importante? Calderoni utiliza ainda trechos do romance Middlesex, de Jeffrey Eugeneides, além
de análises teóricas sobre gênero, como o Manifesto contrassexual de Paul Preciado que investe em
uma teoria do corpo que é estratégia de resistência ao poder heteronormativo e limitador. Calliope
Stephanides, personagem de Middlesex, é considerada hermafrodita; nasceu menina e, durante sua
adolescência, torna-se menino. Sua sexualidade foi objeto de um livro de medicina sobre doenças
raras e seu sexo, classificado como indeterminado.
Ao analisar as possibilidades de narração autobiográfica, reflito sobre o fracasso do sujeito diante
de uma imagem parcialmente opaca, uma imagem que não é senão construção/criação, uma imagem
fabular de si porque, apesar de tudo desejar apreender, muito lhe escapa, já que como afirma Judith
Butler “[...] as histórias não captam o corpo a que se referem”. A história de um corpo não é
totalmente narrável. De certa forma, ser um corpo é o mesmo que ser privado de uma recordação
completa da própria vida. “Meu corpo tem uma história da qual não posso ter recordações [...]”,
afirma Butler (2015, p. 54). As imagens de MDLSX são utilizadas a fim de recuperar essa memória do
corpo, são espécies de mosaicos que apresentam peças lacunares, apontando para a falta que
constitui em si mesma a singularidade de um corpo avesso às classificações, um corpo que conta ‘uma
história que estabelece uma opacidade parcial’ consigo mesmo.
Diante da exposição de imagens de si fabricadas e projetadas em uma tela-espelho por Calderoni,
retomo a comunicação de Lacan sobre o estágio do espelho na formação do eu e, posteriormente a
discussão apreendida pela psicanalista François Dolto, que afirma que a imagem inconsciente do
corpo não se remete apenas ao estágio do espelho, mas antecede a ele, e continua a habitar o sujeito
por toda a sua vida. A imagem inconsciente do corpo vai permitir ao sujeito sua articulação às
imagens essenciais a sua construção. Tomando essa ideia por base, reflito nessa pesquisa sobre a
categoria de imagem sensível (Coccia) e sua relação com o espelho como metáfora. Um espelho que
aponta para o excesso de imagens produzidas na contemporaneidade, para a relação conturbada do
sujeito com o objeto espelho e, também, para a análise do espelho (e no caso aqui do espelho-tela)
como objeto. A imagem sensível ocupa exatamente um entre-lugar, não pertencendo nem às coisas,
nem aos sujeitos (como uma imagem de um objeto em um espelho é separada do objeto que perdura
no espelho mesmo quando ninguém a olha).
A experiência do espelho é a de um desdobramento, da constituição de duas esferas geneticamente separadas: de
uma parte, a esfera na qual o eu-sujeito e o eu-objeto existem, a carne e o espírito, a matéria e a inteligência que
coincidem perfeitamente; de outra, a esfera das imagens que é separada como se tivesse exilada do corpo e da alma
em uma mesma intensidade (COCCIA, 2013, p. 30).
Coccia retoma a concepção aristotélica de que o sensível é sempre alguma coisa exterior ao
indivíduo e às coisas. A imagem projetada em um espelho – e aqui interessa a investigação da
superfície de projeção especular em MDLSX– existe apartada do sujeito, como se ocupasse um outro
lugar. Nesse sentido, o espelho multiplica as imagens de si, uma vez que há uma separação entre
sujeito e objeto, entre o que se vê no espelho e a imagem idealizada de si. Para Coccia, a trágica
separação provoca um tornar-se imagem... “[...] um exercício de deslocamento, um exercício de
multiplicação de si” (2013, p. 54) Diante da permanência das imagens que multiplicam, deformam,
prolongam, dividem e ampliam o corpo de Calderoni (na minha retina até hoje), levanto duas
possibilidades de interação do ator com sua imagem ao refletir sobre o corpo como categoria de
análise:
• um corpo-imagem (inseparável da imagem projetada), constituindo um só corpo. Nesse sentido, o corpo é suporte e
suporta a imagem. É um corpo-tela. Transpassado pela imagem, é superfície de projeção e, ao mesmo tempo, é
transformado pela interferência direta da imagem sobre a pele. Trata-se de um corpo que perde sua estrutura, dando
lugar a uma síntese orgânico-maquínica. Para o ator, é necessário a percepção de um corpo outro; nem carne, nem
imagem, o que modifica a forma de interação com o espaço, com o tempo de exposição da imagem;
• o corpo que intervém na imagem, desconstruindo e reconstruindo o quadro apresentado anteriormente. A imagem
projetada na cena é modificada e manipulada pela intervenção direta da ação física do ator, o que incluiu o ato de
fabricar imagens de si.
Em ambos os casos, as imagens sensíveis perduram para além de uma tentativa de apreensão. Para
além do próprio corpo.
Referências
BUSTROS, J.-C.; AURTENÈCHE, A. L’écran manifeste. In: POISSANT, L.; TREMBLAY, P. Esthétique
des Arts médiatiques: prolifération des écrans/of screens. Sainte-Foy: Presses de l’Université du
Québec, 2008. p.73-86.
BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
CHATONSKY, G. La repetition des limites. Diffusion, projection et immersion. In: POISSANT, L.;
TREMBLAY, P. Esthétique des Arts médiatiques: prolifération des écrans/of screens. Sainte-Foy:
Presses de l’Université du Québec, 2008. p. 87-129.
COUCHOT, E. Des images, du temps et des machines dans les arts et la communication. Paris:
Actes Sud, 2007.
MARLEAU, D. Les nouvelles technologies. In: PROUST, S. Denis Marleau: introduction et entretiens
par Sophie Proust. Arles: Actes Sudpapiers, 2010. p. 49-61.
Introdução
Jean Baudrillard (1996b) no livro Il delitto perfetto (o crime perfeito) analisa que toda a
modernidade teve como objetivo a realização de um mundo real, e hoje, com a sofisticação da
tecnologia, o mundo se tornou tão excessivamente real que nos fez perder toda esperança. O mundo
hiper-real roubaria o sonho de uma elevação dialética do real, pois num mundo onde tudo se mostra,
onde tudo está demasiadamente visível, desvelado, não haveria espaço para a imaginação. O reverso
desta visibilidade obscena seria o próprio desaparecimento do real, nos diz o filósofo no livro As
estratégias fatais: “O real desaparece não em proveito do imaginário, ele desaparece em proveito do
mais real do que o real: o hiper-real” (BAUDRILLARD, 1996a, p. 10). Essa profusão de presença em
positivo, que desfaz a oposição entre presença e ausência, produz um real que não falta nada, mais
verdadeiro que o verdadeiro. Chegamos assim ao cúmulo do real. Assim é a simulação: a ilusão de
uma dupla positividade, sem distância, sem resistência, sem divisão. O real desaparece aí, na perda
da ilusão, nas impossibilidades do jogo, na perda da distância, no fim da cena. Nossa luta, completa
Baudrillard, não é mais contra nossa sombra, mas contra a transparência. “É preciso refazer a ilusão.
Reencontrar a ilusão [...]”, nos alerta o filósofo (BAUDRILLARD, 1996a, p. 46).
Interessante confrontar tal pensamento com as análises de Alan Badiou no livro Em busca do real
perdido, onde problematiza a questão do real como algo intimidante, que se deve obedecer. Para
Badiou nosso encontro com o real se organiza a partir de uma submissão às opiniões dominantes, que
nos impõe um real intimidador, que devemos simplesmente aceitar: “As realidades são impositivas e
formam uma espécie de lei, da qual é insensato querer escapar. Somos atacados por uma opinião
dominante segundo a qual existiriam realidades impositivas” (BADIOU, 2017, p. 07). Este real
impositivo é tão real que nos impede de imaginar outras realidades, pois em sua transparência
obscena, em sua violência extrema, rouba a cena da ilusão, instituindo-se como único possível. Contra
o terror deste excesso de real, Baudrillard nos diz que é preciso refazer a ilusão, reencontrar o poder
da cena da ilusão. Tal afirmativa se intensifica ao somarmos a ela a sentença de Badiou, quando este
diz que a principal característica do século XX foi nossa paixão pelo real, o que culminou no
desaparecimento do real, pois em sua visibilidade extrema acabou se tornando espetáculo. Não é à
toa que ambos os filósofos recorram ao teatro em suas análises sobre o real.
Badiou toma como um de seus exemplos a morte real de Molière no teatro, ocorrida durante a
apresentação do espetáculo O doente imaginário. Há neste acontecimento uma intrigante fricção
entre o real (a morte do homem Molière) e a ficção (a encenação do ator Molière que interpreta um
hipocondríaco), na qual a morte real vem a se sobrepor à ilusão de uma doença imaginária. O real
neste evento, o acontecimento fulgurante, se impõe à força e impede a cena de existir, sua violência é
tamanha que ele rouba a ilusão, pois rouba toda ambiguidade proposta pelo teatro. Este caso trazido
por Badiou é o que talvez mais se aproxima, ou que melhor explique, o que Baudrillard compreende
como hiper-real, de um real que se torna obsceno: “Obsceno é a proximidade absoluta da coisa vista
[...]” (BAUDRILLARD, 1996a, p. 53), sem distância ou ambiguidades. O singular acontecimento de
uma morte real ocorrida num palco, onde se simulava uma morte fictícia, nos mostra a força deste
real impositivo, intimidador por sua presença objetiva, sem segredos ou leveza próprias à ilusão.
Badiou se utiliza deste acontecimento irreversível – a morte real – para pensar que o real se manifesta
nas ruínas de uma aparência, concluindo que só se chegaria ao real desmascarando-o, quer dizer,
“[...] que seria sempre no ponto do semblante que haveria uma chance de encontrar o real” (BADIOU,
2017, p. 23). O que quer dizer que todo o processo de acesso ao real se passa por uma espécie de
desvelamento do real, por sua divisão.
O real se ancora naquilo que não é real, é o processo de busca que nos permite o acesso ao real. A
eliminação da cena da ilusão, seu encobrimento pelo excesso de real, povoa o mundo de realidades
tão reais que não nos deixa nenhuma alternativa, senão aceitar o real dado, imposto, impossibilitando
nosso acesso ao real.
E é neste ponto que podemos compreender melhor Baudrillard quando este diz que o real
desaparece no exato momento em que não há mais espaço para a cena da ilusão. Sem a possibilidade
da ilusão, declara o filósofo, estamos sujeitos à exacerbação de um real impositivo, que arrasta
consigo toda imaginação, que apaga toda sombra, que dissipa toda névoa, toda a aparência, e que nos
faz desaparecer também. E, como afirma Badiou, só se pode ter acesso ao real a partir de sua divisão:
o real da ilusão, mas também do real dele mesmo, pois há um real na aparência: “[...] é o ato dessa
divisão, por meio do qual o semblante é arrancado e ao mesmo tempo identificado, que podemos
descrever como sendo o processo de acesso ao real” (BADIOU, 2017, p. 24). Sem o semblante não há
cena, não há jogo, se elimina a ambiguidade dada pela ausência, restando uma hipervisibilidade que
anuncia o fim de todas as coisas: “[...] se todos os enigmas forem resolvidos, as estrelas se apagarão,
se todo o segredo for devolvido ao visível e ao mais do que visível, à evidências obscena, se toda
ilusão for devolvida à transparência, então o céu se tornará indiferente a terra [...]”, defende
Baudrillard (1996a, p. 49).
Baudrillard vai citar Antonin Artaud para incendiar ainda mais nosso mundo desiludido, hiper-real,
super-visível, transparente. Ele entende o poeta, artista e louco Artaud como o último que quis salvar
o teatro do real, que quis novamente refazer o poder do teatro por obra da crueldade, instituindo de
novo e de novo uma cena que se quer metamorfose, às avessas de uma cena naturalista. Artaud quis o
fechamento da representação, pela via da cena da ilusão. Fechamento da representação clássica, mas
reconstituição de um ‘espaço fechado da representação originaria’ - espaço produzido de dentro de si,
linguagem própria, autônoma, e não mais organizada a partir de outro lugar, sintetiza Derrida (1971).
Mas o projeto de Artaud não era somente para o teatro, mas principalmente para sua própria vida,
para seu corpo, um corpo em ato, que necessita ser refeito infinitamente para poder viver. E a via
para esse refazimento do corpo era o teatro, um teatro cruel que nos instigaria a mergulhar no não-
pensamento, na ilusão mais profunda, de libertação de toda anatomia. Artaud sonhou com um teatro
de combate ao real impositivo, a este excesso de real responsável por fazer do mundo um deserto do
real. Instituindo um mundo às avessas, Artaud buscou dar ao real do semblante mais realidade do que
o real do mundo sensível. As propostas de Artaud para o teatro questionam a negação da cena da
ilusão proposta pelas performances que se investem de paixão pelo real, cortando seus corpos como
“[...] estratégia desesperada de volta ao real do corpo [...]”; conforme observa Zizek sobre o ato de se
cortar numa performance (2011, p. 26). Para Baudrillard, e concordamos com ele, o teatro que
denega a ilusão cênica, que investe e se dissolve no real, buscando formas antiteatrais, como os
happenings ou os psicodramas, está abolindo a cena, anunciando o fim do teatro. A nossa questão
aqui é se essa meticulosa tarefa de extermínio da cena da ilusão, no imperativo de corpos reais, pode
ainda hoje ser abalada pelo pensamento de Artaud, na sua busca de um corpo-devir, pura cena da
ilusão, ao avesso de uma anatomia.
Numa carta de 24 de fevereiro de 1948, a poucos dias de sua morte (04/03/1948), Artaud escreve
para Paule Thévenin o quanto ele está triste e desesperado em relação à recepção que teve a emissão
radiofônica de ‘Para acabar com o julgamento de Deus’ (1947). Ele afirma que o dispositivo, o rádio, a
mediação técnica imposta pela máquina, foi o responsável pela deformação e anulação de sua poesia.
E completa reafirmando o espaço do teatro como lugar de reconstrução de um corpo, antítese da
máquina:
[...] não tocarei mais no Rádio, e me consagrarei a partir de agora exclusivamente ao teatro tal qual o concebo, um
teatro de sangue, um teatro que a cada representação faça ganhar corporalmente alguma coisa, tanto para aquele
que atua quanto para aquele que vem ver a atuação, aliás, não se atua, se age. O teatro é a gênese da criação
(ARTAUD, 2017, p. 173, 174, grifo do autor).
A concepção do teatro como vida, carne e sangue, já comparece no livro O teatro e seu duplo,
coletânea de textos de Artaud, publicado pela primeira vez em 193827. Obra de grande repercussão
no mundo, por seu caráter revolucionário, e que colocou em xeque os paradigmas do teatro
dramático-psicológico, influenciando de forma inconteste diferentes encenadores, teóricos de teatro,
atores, desde então, até hoje. Filósofos como Deleuze e Derrida também se sensibilizaram com a
potência de um pensamento que não se quer obra, que contesta de forma radical o sistema de
representação, apropriando-se de imagens, como por exemplo, ‘corpo sem órgãos’, para desenvolver
suas próprias concepções filosóficas. O teatro para Artaud seria o espaço para reivindicar um outro
corpo, ou melhor, para se refazer um novo corpo humano, sem órgãos, um duplo de um corpo que ‘me
foi roubado desde o nascimento’. Mas não se trata de um teatro qualquer, trata-se de um teatro cruel,
avesso aos automatismos, consequência da fatal submissão a um real imposto: “[...] eu disse
crueldade, como poderia ter dito vida” (ARTAUD, 1999, p. 134) “O teatro deve igualar-se à vida, não à
vida individual, ao aspecto individual da vida em que triunfam as PERSONALIDADES, mas uma
espécie de vida liberada, que varre a individualidade humana e em que o homem nada mais é que um
reflexo” (ARTAUD, 1999, p. 136, 137).
Já no primeiro manifesto do Teatro da Crueldade (1932) comparecem as ideias deste excepcional
pensador do teatro a respeito da necessidade de se refazer a anatomia do homem; um programa que
ultrapassa questões estéticas e que acompanha seus pensamentos até seus últimos escritos. Diz
Artaud em seu primeiro manifesto para um Teatro da Crueldade:
Nem o Humor nem a Poesia nem a Imaginação significam qualquer coisa se, por uma destruição anárquica, produtora
de uma prodigiosa profusão de formas que serão todo o espetáculo, não conseguem questionar organicamente o
homem, suas ideias sobre a realidade e seu lugar poético na realidade (1999, p. 105)
Como observado por Évelyne Grossman a escritura epistolar de Artaud (2004b) possui uma
importância singular em sua obra, constatando que alguns destes textos íntimos se traduzem como os
mais perturbadores de sua produção escrita. Para Artaud, o teatro é o espaço para se refazer um novo
corpo, um duplo que se impõe contra toda anatomia, todo julgamento, toda imposição; questão que
esta comunicação interessa desenvolver e que foi a grande obsessão de Artaud, comparecendo em
todas as formas de sua linguagem poética, por toda sua vida. Os sistemas de controle, instituições e
tecnologias, a máquina que se interpõe e penetra a vida do corpo, como o dispositivo Rádio, substitui
a vida por uma simulação de real, roubando de forma furtiva o pensamento que se constrói às
avessas.
Alguns termos e imagens fulgurantes dos escritos teóricos de Artaud nos interessa acompanhar
para pensar o que propomos aqui como hipótese, isto é, o teatro da crueldade, sempre ele, como
gesto de combate e resistência ao extermínio da cena da ilusão pelo excesso de real dos corpos
humanos na cena contemporânea, quais sejam: crueldade, carne, corpo sem órgãos, anatomia furtiva.
Se por um lado o teatro impulsionou a investigação de corpos que recusam toda anatomia, que se
colocam ao reverso de toda interioridade, de toda pretensa profundidade do real, de todo poder e de
toda forma fixa, o que denominamos aqui como ‘corpos impróprios’, por outro lado observa-se a
radicalização de uma não-cena, ou melhor, a imposição de um enquadramento, que na contestação da
cena da ilusão, quis os corpos novamente reais. Com o adensamento dos experimentos reais da
performance na linguagem teatral28, se observa uma cena que não se quer mais ilusória, velada, mas
infinitamente real, de extermínio da própria cena e, consequentemente do próprio real. A reviravolta
irônica do hiper-real é tornar-se aquilo que ele mesmo combate: o espetáculo; o que em nossa
hipótese estaria na contramão do programa de Artaud de eliminação do espetáculo e de refazimento
de um novo corpo, corpo sem órgãos: carne, sangue, nervos e ossos pela via do teatro (sempre e de
novo e mais uma vez metamorfose de uma carne fugidia, furtiva). Não se encerra o espetáculo com o
excesso de real dos corpos, ao contrário, é com o real do semblante que se o espetáculo chega ao fim,
permitindo o surgimento da cena cruel e de um teatro da carne. Carne que o ator cruel modelaria
sobre a cena, como uma espécie de um ‘eu por vir’, conforme diz Artaud em o O umbigo dos limbos
(1925) e em tantos outros escritos teóricos, mesmo anteriores ao Teatro e seu duplo, como por
exemplo Position de la chair (Posição da carne), também de 1925:
Penso na vida. Todos os sistemas que possa construir jamais se igualarão as minhas crises de homem ocupado em
refazer sua vida. [...]. Existem gritos intelectuais, gritos que provem da sutileza das medulas. É isso que eu chamo
carne. [...]. Para mim quem diz carne, diz, antes de tudo, apreensão, cabelo arrepiado, carne nua com todo o
aprofundamento intelectual deste espetáculo da carne pura e de todas as suas consequências nos sentidos, vale dizer,
no sentimento. [...] quem diz carne diz também sensibilidade. Sensibilidade, vale dizer, apropriação, mas apropriação
íntima, secreta, profunda, absoluta da minha dor de mim mesmo (ARTAUD, 2004b, p. 146, 147, tradução nossa)29.
Este artigo, Position de la chair, do qual extraímos um pequeno fragmento, Évelyne Grossman,
estudiosa e organizadora das obras de Artaud para a nova edição da Gallimard, Quarto (2004), extrai
o tema decisivo de Artaud, que fundamenta sua concepção de arte, de poesia e de teatro: o
pensamento sobre a carne. Em O teatro e a ciência, texto de Artaud de 1947, novamente a carne:
O teatro verdadeiro sempre me pareceu como o exercício de uma ação perigosa e terrível. Onde, além disso, se
elimina tanto a ideia de teatro e de espetáculo, como de toda ciência, de toda religião, de toda arte. A ação que eu
falo visa à uma verdadeira transformação orgânica e física dos corpos humanos. Por que? Porque o teatro não é este
desfile cênico onde se desenvolve virtualmente e simbolicamente um mito. Mas sim este cadinho de fogo e de carne
real onde anatomicamente, pisoteando ossos, membros e sílabas, se refazem os corpos e se apresenta fisicamente e
naturalmente o ato mítico de fazer um corpo (ARTAUD, 2004b, p. 1544)30.
Formulação lapidária, pois reafirmada até o fim, observa Évelyne Grossman (2003, p. 29).
Pensamentos como esse abundam nos primeiros manifestos do Teatro e seu duplo: “Portanto eu disse
crueldade como poderia ter dito vida ou como teria dito necessidade, porque quero indicar
sobretudo que para mim o teatro é ato e emanação perpétua, que nele nada existe de imóvel, que o
identifico com um ato verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico” (ARTAUD, 1999, p. 134, grifo do
autor); “O longo hábito dos espetáculos de distração nos fez esquecer a ideia de um teatro grave que,
abalando todas as nossas representações, insufle-nos o magnetismo ardente das imagens [...] Tudo o
que age é uma crueldade” (ARTAUD, 1999, p. 96). O corpo sem órgão, livre da camisa de força do
corpo anatômico, é corpo ‘suspenso entre todas as formas’. Imagem que aparece desde os primeiros
textos, bem antes de sua internação em Rodez, como por exemplo no texto L’Automate personnel,
escrito em 1927. Neste texto Artaud descreve corpos que flutuam entre o céu e a terra, como se
estivessem atados por fios invisíveis na abóbada celeste. Mesmo antes, em 1925 Artaud evoca o
balanço de corpos suspensos no espaço, livre dos constrangimentos da gravidade e das contrações
musculares. O corpo infinito, plástico e deformável atravessa toda obra de Artaud. O homem ator
encarna esta sede de um inacabamento do corpo – tornar infinitas as fronteiras do que chamamos
realidade. A alienação é essa força desfigurante do outro em mim, este movimento que me agita e que
me impede de estabilizar em ‘SER’, sujeito de uma identidade. Ela é a abertura ao não figurável. O
corpo alienado do ator é esta plasticidade em ato: corpo suspenso entre todas as formas.
O projeto de Artaud foi encerrar a representação teatral entendida como processo que submete a
cena a uma ideia que lhe é exterior. A grande utopia do Teatro da Crueldade foi representar ‘de
dentro’, romper com a ideia de que representar é mostrar uma coisa no lugar de outra e fazer da
representação o espaço originário de toda criação, refratando as fronteiras do real. Criar novas
realidades, de combate ao deserto de um real imposto, a teatralidade como restauradora da ‘carne’.
No texto Aliéner l’acteur (1947), Artaud utilizou a expressão ‘anatomia furtiva’ para evocar mais uma
vez um ‘novo corpo humano’, desprovido de órgãos e livre de toda camisa de força, de toda imposição
ou organização. Um corpo que o teatro da crueldade faria (re) nascer: um corpo inadequado, pois
avesso à toda representação. Um corpo eternamente vivo, em eterno movimento, corpo-devir. A
questão que se impõe aqui é se esse ‘corpo impróprio’, conforme denominamos, não sujeito às
representações do real, sonhado por Artaud, em sua plasticidade infinitamente deformável, poderia
desafiar o imperativo dos ‘corpos reais’ presentes na cena contemporânea, e frear essa meticulosa
tarefa de extermínio da cena da ilusão. Dois exemplos contemporâneos são sintomáticos para essa
análise: os experimentos do encenador italiano Romeo Castellucci, que nos oferece o extremo do real
em muitos de seus espetáculos. E o teatro de narrativa íntima do diretor italiano Pippo Delbono, que
nos propõe corpos reversos ao sistema de representação, corpos impróprios ao que se estabeleceu
enquanto um corpo de ator/performer.
Em relação a Romeo Castellucci, talvez o caso mais extremo seja a montagem de Giulio Cesare,
produção da companhia italiana Socìetas Raffaello Sanzio, que assisti em março de 2016 durante a
Triennale di Milano, na qual uma sonda ótica é introduzida na cavidade nasal de um dos atores
(Sergio Scarlatella) até sua glote, projetando numa tela todo o percurso do endoscópio para nos
mostrar a vibração das cordas vocais na produção da voz. Nossos órgãos, por meio de dispositivos
midiáticos, tornam-se matéria espetacular na cena proposta pelo diretor. O que estava dentro, passa a
ser visível, eliminando qualquer vestígio de ‘magia’ que poderia reverberar da voz, do corpo,
impossibilitando o ‘ato mítico de fazer um corpo’, conforme quis Artaud, encerrando, por fim, a carne
em sua anatomia. Este é um claro exemplo de paixão pelo real, conforme já nos apontou Badiou, uma
tentativa do teatro em negar o teatro, mostrando nada além do real do corpo. Eliminar o teatro e
fazer visível aquilo que está invisível é o oposto de um teatro que se preocupa em dar a ver o invisível,
conforme sonhado por Artaud. Uma hipervisibilidade que em sua busca pelo real do corpo, termina
por impedir nosso acesso ao real, pois o real sempre transborda aquilo que tornamos visível, aquilo
que é representável ou aquilo que a ciência é capaz de nos dar a ver com seus instrumentos
tecnológicos. Como vai dizer Baudrillard, o real desaparece no momento em que tudo se torna real,
no momento em que nada mais existe como ideia, sonho ou fantasia. É neste momento que tudo se
torna um simulacro de si mesmo, sem distância, sem encanto, sem canibalismo.
Considerações finais
O sintoma da arte à crise da representação está nessa rejeição do artifício, substituindo a cena da
ilusão por uma busca desenfreada pelo real. Todo espetáculo tornou-se um escândalo para certas
experiências contemporâneas, mas sabemos também que todo escândalo é útil para dissimular a
lógica do simulacro que rege uma sociedade. E mais uma vez Badiou: “O escândalo sempre se
apresenta como a revelação de um pedacinho de real” (2017, p. 15), e completa mais à frente que o
escândalo só é aceito como um pedacinho de real se for visto como exceção, logo não há liberdade no
escândalo, pois este se submete a um real impositivo e, como escândalo, deve ser punido, expurgado
do comumente aceito como real (não havendo revelação nenhuma do real no escândalo). Acontece
que o teatral, a representação, é constitutiva do real, logo tratar o espetáculo como exceção é
continuar na encenação, simulando o real. O escândalo é a própria “[...] encenação de um pedacinho
do próprio real no papel de uma exceção do real” (BADIOU, 2017, p. 17, grifo do autor). Essa
teatralização do real pelo escândalo, se torna ainda mais interessante quando se pensa no espaço da
arte, espaço de criação do real do semblante. Uma cena que rejeita o universo fictício, se vê a si
mesma como um escândalo, como saída busca uma experiência mais do que real, hiper-real. No
experimento performativo de Castellucci, e em outras experiências que desejam o retorno ao real do
corpo, observa-se a passagem do ato teatral para um ato apenas. Se o artificio na arte virou um
escândalo, a extrema exposição do real foi a maneira que a arte encontrou para sair de si mesma,
negar a si mesma, mas quanto mais ela investe nesta direção, “[...] mais ela se hiper-realiza, mas ela
se transcende em sua essência vazia” (BAUDRILLARD, 1996a, p.09).
O teatro festa de Pipo Delbono, em movimento oposto ao antiteatro, alimenta a cena da ilusão, o
imaginário, por sua extravagância na realização de uma montagem que se quer eficaz. A montagem
eficaz é também a forma radical do artifício do mundo, ela não partilha com qualquer regulamentação
da arte, de gosto ou de obediência a um modelo, ela seduz por ser desregrada. Tal é a condição da
montagem eficaz: apresentar, a partir de combinações inusitadas, o que se pode conceber, mas que
nenhuma imagem é capaz de sozinha representar. Sua condição de existência é a rebeldia ao gosto,
ao comum, a montagem eficaz namora com o extraordinário. Povoado por corpos marcados por
contrastes, corpos inadequados, irreconciliáveis com o sistema de regulagem, o teatro de Pippo exalta
o movimento, a variedade, reunindo teatro, dança, música, canto, vídeo, etc., que deliberadamente
estão lá para afetar o espectador, propondo uma ideia de sonho em contraste com uma realidade nada
satisfatória.
Se a montagem engendrada pelo encenador alimenta a cena da ilusão, lugar do engodo, onde a
realidade dos corpos singulares e o sonho de uma realidade outra, para além da objetivação dos
corpos, se atravessam, ela mantém a honestidade de se confessar teatro. Esse é o motor de criação de
Pippo e de seus atores ditos inábeis: se o mundo real é um deserto para eles, o teatro será o lugar
onde todos podem se repovoar, ou criar para si um novo corpo, deixar de ser invisível antes de
desaparecer. E no teatro de Pippo, a exposição são dos corpos singulares que o habitam: Bobò, um
ator microcéfalo e surdo-mudo, resgatado do manicômio de Aversa, adotado pela companhia, depois
de passar confinado por quarenta e cinco anos; Gianluca Ballarè, ex-pupilo da mãe de Pippo, afetado
pela síndrome de Down; o próprio Pippo, declaradamente soro positivo; Nelson Lariccia, um homem
extremamente magro e ex-morador de rua. Corpos singulares que facilmente poderiam ser
menosprezados como freaks, aceitos na medida de exibição de seus corpos excessivos. Mas existe
muito mais nestes corpos expostos que mais do que habitam, constituem o teatro de Delbono, que não
se encerra em um show de variedades, algo em sua comunicação que desmorona toda classificação de
ordem médica, psiquiátrica ou mesmo de um teatro autoproclamado social.
A imagem desses corpos anômalos causa fascínio, na exata medida do estranhamento que
proporcionam. Uma experiência de prazer e desprazer que desafia a representação do real, pois
excede no real sua própria representação. Oferecendo ao olhar o íntimo de seus corpos, uma espécie
de espetáculo da carne, esses atores, com seus corpos impróprios, desterritorializam a representação,
expondo, escancarando, afirmando sua singularidade contra o que comumente se espera de corpos de
atores. Uma das maiores críticas ao encenador italiano, diria mesmo ataque, é apontar uma espécie
de agenciamento por parte de Pippo. Há uma rejeição à ideia de ver Bobò, Gianluca, Lariccia,
vestindo outros corpos, se apresentando como diabos, Budas, crianças, etc. justificando tal rejeição na
contundente acusação de tais vestimentas serem uma imposição do diretor, que os usaria em causa
própria. No entanto, se esses atores tivessem corpos ‘adequados’, haveria tal questionamento?
Acreditamos que não. O olhar crítico aqui é revelador da submissão a um real dominante, que
responde sem nenhuma dúvida como deve ser o corpo de um ator. O corpo anômalo, que como muito
bem esclarece Deleuze (1997) não se trata do anormal, mas do desigual, um outsider, desafia as
regras da representação, pois mostra, revela, o irreal verdadeiro. Escapando ao controle do sistema
de representação esses ‘corpos impróprios’ se mostram e desafiam, com a indiscrição de sua carne,
nossa imaginação, desvelando diante de nós, através de seus corpos extravagantes, um caminho de
acesso ao real.
Referências
ARTAUD, A. Linguagem e vida. Organização J. Guinsburg et al. São Paulo: Perspectiva, 2004a.
______. O teatro e seu duplo. Tradução Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BADIOU, A. Em busca do real perdido. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica
editora, 2017.
BAUDRILLARD, J. As estratégias fatais. Tradução Ana M. Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1996a.
DELEUZE, G. et al. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Aurélio Guerra Neto et al. Rio
de Janeiro: Editora 34, (1980) 1997. v. 4.
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo:
Perspectiva, 1971.
ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Bomtempo,
2011.
25 O artigo foi apresentado em formato de comunicação durante o III Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro, promovido pelo GT
Dramaturgia e Teatro da Anpoll, ocorrido em setembro de 2017 no PPGL/Unioeste, Campus de Cascavel e durante o VII Congresso
Mediterrânico de Estética, ocorrido na Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, em outubro de 2017. O artigo é resultado de
pesquisa de pós-doutorado (Bolsa Capes - Bologna, 2015-2016).
26 “Viviamo nell’illusione che sia il reale a mancare maggiormente, mentre invece la realtá è al suo culmine. A furia di performance
tecniche siamo arrivati a un tale grado di realtà e di oggettività da poter addirittura parlare di un eccesso di realtà che ci lascia molto
più ansiosi o sconcertati della mancanza di realtà, laquale poteva per lo meno essere compensata con l’utopia e con l’immaginario.
Invece, non vi è più né compensazione né alternativa all’eccesso di realtà”.
27 Os textos reunidos no livro O teatro e seu duplo se compõe de conferências, notas, cartas, manifestos, artigos, escritos entre 1931 a
1935. Artaud em outubro de 1937, após seu retorno de uma viagem à Irlanda, é internado no hospital psiquiátrico de Quatre-Mares
de Sotteville-lès-Rouen, permanecendo durante nove anos internado, de asilo em asilo.
28 Experimentos reais são entendidos como aquelas ações que não permitem o retorno do artista ao ponto inicial, anterior à ação, pois
algo na ação modificou de forma indelével o corpo do artista, impedindo seu reconhecimento e retorno ao tempo anterior da ação. Um
tipo de ação que não pertence ao regime teatral, pois na linguagem teatral toda ação deve retornar ao seu ponto zero, pois é de sua
natureza a repetição. Outro tipo de experimento real é o que busca exceder o próprio real dos corpos. São ações que a partir da
tecnologia mostram o interior dos corpos, revelando aquilo que o olho não pode ver, transformando o real em um hiper-real. Os
experimentos hiper-reais, avessos a qualquer velo ou cortina, fazem do real da carne uma imagem, fazem do interior dos corpos
espetáculo, deixando escapar de forma fatal o real que tanto buscou.
29 “Je pense à la vie. Tous les systèmes que je pourrai édifier n’égaleront jamais mes cris d’homme occupé à refaire sa vie. [...] Il y a des
cris intellectuels, des cris qui proviennent de la finesse des moelles. C’est cela, moi, que j’appelle la Chair. [...] qui dit Chair dit avant
tout appréhension, poil hérissé, chair à nu Avec tout l’approfondissement intellectuel de ce spectacle de la chair pure et toutes ses
conséquences dans les sens, c’est-à-dire dans le sentiment. [...] qui dit chair dit aussi sensibilité. Sensibilité, c’est-à-dire
appropriation, mais appropriation intime, secrète, profonde, absolue de madouleur à moi-même”.
30 “Le théâtre vrai m’est toujours apparu comme l’exercice d’un acte dangereux et terrible, où d’ailleurs aussi bien l’idée de théâtre et
de spectacle s’élimine que celle de toute science, de toute religion et de tout art. L’acte dont je parle vise à la transformation
organique et physique vraie du corps humain. Pourquoi ? Parce que le théâtre n’est pas cette parade scénique où l’on développe
virtuellement et symboliquement un mythe mais ce creuset de feu et de viande vraie où anatomiquement, par piétinement d’os, de
membres et de syllabes, se refont les corps et se présente physiquement et au naturel l’acte mythique de faire un corps”.
Capítulo 9
Introdução
Fundada por Márcio Abreu, em Curitiba, no ano de 2000, a companhia brasileira de teatro31
desponta como o mais importante coletivo teatral paranaense em atividade na atualidade. O prestígio
galgado pela equipe ao longo de seus 17 anos de existência, a contundência de suas criações (cujos
espetáculos contam, até a presente data, com 32 premiações), as recorrentes temporadas nas
principais metrópoles culturais do país e as experiências internacionais acumuladas diminuíram, ao
longo do tempo, o peso do adjetivo nacional presente no nome próprio da companhia curitibana.
Os membros da companhia são artistas cosmopolitas (HANNERZ, 1999) em constante
deslocamento pelo país32 e exterior, que revelam capital linguístico, abertura à alteridade e mantêm
vastos laços pessoais e profissionais com integrantes da vanguarda teatral nacional, e também
vínculos com grupos de outros países, (especialmente da França e Alemanha). Além de ampla, a rede
de relações da equipe extrapola o ambiente artístico mais estrito, revelando pontos de contato com a
academia (principalmente através de intelectuais, críticos e professores universitários), e outros
circuitos culturais, por meio de instituições diversas como consulados, editoras, festivais (destaque
para a Aliança Francesa), possibilitando traduções e publicação de textos teatrais; oferta de cursos e
workshops; a participação em debates e eventos variados.
Tais singularidades compõem parte significativa do ethos do grupo, marcado também por um
trabalho de criação que envolve sempre intensa atividade intelectual de pesquisa, em formato muito
semelhante ao procedimento acadêmico formal. A criação de um espetáculo da ‘Companhia’ conta,
geralmente, com atividades de investigação e leituras bibliográficas, escrita de textos, discussões,
organização de seminários, consultorias com especialistas, realização de workshops ou oficinas, entre
outras atividades. Pode-se perceber, como consequência, forte intelectualização em todos os
integrantes da companhia brasileira de teatro, mas ainda mais pronunciada (e centralizada) em
Márcio Abreu.
Mesmo sem deter títulos acadêmicos, em sua atuação junto à equipe, Abreu confere um sentido de
unidade, coerência e assinatura teórica e discursiva ao trabalho do grupo que dirige, o que Gilberto
Velho (2013) concebe como ‘projeto’, mas também desenvolve estratégias diversas para influenciar a
percepção do público e justificar a especificidade e singularidade de sua prática artística, centrada
nas noções de ‘encontro’, do ‘momento presente’, da ‘relação palco-plateia’, da importância
diferencial de ‘textos singulares’, ‘autorais’ e formas narrativas como valores fundamentais da
companhia brasileira de teatro (COMPANHIA BRASILEIRA DE TEATRO, 2017).
Entre os elementos de destaque da atuação da equipe está a seleção de peças de dramaturgos
franceses (ou que tenham adquirido reconhecimento na França) em sua maioria inéditos no país,
traduzidas, encenadas e em grande parte publicadas pelo grupo, com destaque para Philippe
Minyana, Jean-Luc Lagarce, Ivan Viripaev, Noëlle Renaude, Joel Pommerat e Hanoch Levin. Esse
protagonismo na dramaturgia contemporânea consistirá, como veremos, um dos elementos diacríticos
da equipe no que se refere ao cenário nacional.
Parte significativa do prestígio e sucesso da companhia brasileira de teatro pode ser atribuída ao
fato do grupo constituir um dos principais exemplos nacionais do que se convencionou chamar de
‘dramaturgia contemporânea’ e que compreendemos aqui, como importante estrutura de sentimento
(WILLIAMS, 2002) atual. Esse conceito foi cunhado por Raymond Williams “[...] para descrever como
nossas práticas sociais e hábitos mentais se coordenam com as formas de produção e organização
socioeconômica que as estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido”
(CEVASCO, 2001, p. 97). O termo tem por objetivo salientar a indissociabilidade entre conteúdo e
forma, além de chamar a atenção à “[...] relação dinâmica da experiência, consciência e linguagem
como formalizada e formante na arte, nas instituições e tradições” (CEVASCO, 2001, p. 151).
A dramaturgia contemporânea vem sendo responsável por um retorno à importância do texto na
criação teatral em conjunto com diversos procedimentos de afastamento dos cânones do drama
burguês (cf. RYNGAERT, 2013; SARRAZAC, 2012; PAIS, 2016; DANAN, 2010; FERNANDES, 2013; DA
COSTA, 2009; NETO, 2016; BAUMGARTEL, 2012) conhecidamente sintetizados por Szondi (2001).
Embora ainda emergente e diversificada pode-se assinalar entre suas características recorrentes: (i)
deslocamentos nas noções de tempo e espaço; (ii) a tendência de fragmentação dos textos e da
narrativa; (iii) manipulação não convencional das formas de organização do diálogo e (iv) emprego de
personagens desconstruídos ou enfraquecidos (RYNGAERT, 2008, 2013; SARRAZAC, 2006, 2012).
Por mais que os marcos iniciais dessa estrutura de sentimentos possam remontar à segunda
metade do século XX, foi apenas a partir da década de 1970 que uma progressiva modificação da
concepção tradicional de ‘dramaturgia’ veio ganhando força. Mais do que ‘texto’ ou ‘peça’ de teatro,
mero elemento material fixado pela escrita e codificado segundo critérios do gênero dramático, os
sentidos atualmente valorizados da noção (polissêmica) de dramaturgia, este enclave ambíguo entre a
encenação e o texto (PAIS, 2016) tem salientado sua dimensão imaterial, invisível (DANAN, 2010):
“[...] o modo de estruturação e relações de sentidos no espetáculo” (PAIS, 2016, p. 25).
Se a concepção ampla das noções de dramaturgia (interagindo com a cenografia, iluminação e
sonoplastia e os demais elementos cênicos), a opção pela narrativa e pela não-representação, e a
deliberada utilização de ambiguidades na relação entre atores e personagens, resultando na
exploração de formas de convívio e presença cênicas (ROMAGNOLLI, 2013) são características da
companhia brasileira de teatro que revelam interessante paralelo com as propostas da ‘arte
relacional’ sistematizadas por Nicolas Bourriaud. O breve exercício analítico, de caráter etnográfico,
do mais recente espetáculo da equipe, PROJETO bRASIL que apresentaremos a seguir, permite uma
avaliação ainda mais contundente no que tange aos processos teatrais contemporâneos e seus
aspectos procedimentais e reflexivos.
O final de 2013 marca um turning point na trajetória da companhia brasileira de teatro. Pela
primeira vez em sua trajetória a equipe tomou a atualidade nacional como tema de uma de suas
montagens. De 2013 a 2016, um projeto de manutenção da equipe, patrocinado pela Petrobrás,
envolveu circulação de espetáculos, pesquisa de campo, bibliográfica e acadêmica e resultou em
montagem inédita: PROJETO bRASIL. Objetivava a concepção de “[...] uma peça que habite o campo
da invenção e que, uma vez mais, crie pontes em direção ao outro” (COMPANHIA BRASILEIRA DE
TEATRO, 2013).
A pesquisa aprofundada sobre o Brasil, desenvolvida pelo grupo, deveria dar lugar, portanto, à
construção de uma ‘dramaturgia original’ que não colocasse ‘o país no palco’ diretamente, mas que
traduzisse, em cena, as diversas referências pesquisadas. Em entrevistas ao autor durante o trabalho
de pesquisa etnográfica, os integrantes foram unânimes em frisar os elementos diacríticos do trabalho
da equipe: a importância da narrativa, do encontro e da alteridade (KRÜGER, 2017). Segundo
Giovana Soar, tanto no PROJETO bRASIL como nos demais espetáculos realizados, o foco do trabalho
se dá na relação com o espectador no ‘aqui e agora’ da representação:
Acho que a melhor exemplificação disso é que o teatro não se dá naquilo que eu faço no palco; ele se dá na cabeça do
outro. Ele está sendo na cabeça de quem me vê. O teatro independe de mim. Eu tenho que saber o que eu faço e
como eu acesso. Nossa pesquisa é em relação a isso; é o acesso ao outro (SOAR apud KRÜGER, 2017, p. 316).
Sempre tido como altamente desafiador, dada a complexidade nacional e também considerando os
diversos marcos históricos do teatro nacional tematizando o país, o PROJETO bRASIL revelou-se, para
a equipe, um dos trabalhos de maior dificuldade de construção. Ao tratar do momento de
desenvolvimento do espetáculo, Nadja Naira salientou a amplitude temática e gigantesca
complexidade da proposta; a diversidade de caminhos possíveis, a consequente maior dificuldade de
escolhas estéticas, de encaminhamentos, de definições teóricas das pesquisas e, também, maior
responsabilidade sobre os posicionamentos adotados.
As decisões principais que constituiriam os direcionamentos centrais do espetáculo tardaram em
ser sustentadas: PROJETO bRASIL se constituiu, inicialmente, antes pela negação do que por efetivas
proposições. A equipe tinha ciência, desde a aprovação da proposta, de que não faria um ‘grande
retrato nacional’ e que tampouco falaria expressamente sobre o país. O objetivo era, portanto,
encontrar determinadas balizas, capazes de repercutir questões nacionais candentes sem enunciá-las
diretamente. A fuga da representação e da mimèse em direção à ‘presentação’ e à pura partilha do
momento presente (DANAN, 2010) se evidenciou claramente neste e em outros espetáculos da
‘Companhia’.
Durante o processo criativo a equipe trabalhou a partir de memórias, impressões e vivências
coletadas durante a etapa da pesquisa de campo, que foram naturalmente se fundindo aos elementos
retirados das diversas leituras e referências teóricas mobilizadas, de autores do pensamento social
brasileiro e, especialmente, de contribuições de Eduardo Viveiros de Castro e Jacques Rancière.
O interesse, notavelmente sustentado por Márcio Abreu, em construir a dramaturgia da peça com
base na escrita de uma ‘fábula’ ou ‘ficção’ original tematizando o país – em afinidade com a estrutura
de sentimentos contemporânea que apontamos anteriormente, materializada na proposta original do
projeto – passou a ser visto no como um obstáculo para a concretização do espetáculo, conflitando
com outro elemento balizador de importância: a noção de ‘discurso’, que gradualmente se
transformou de categoria filosófica e analítica em tema central do espetáculo.
Narrativas, visões e concepções sobre o país, de diversas óticas, constituíram, por fim, material
criativo da concepção dramatúrgica feita pela equipe. Por longo tempo, discursos dos mais variados
matizes foram pesquisados para os ensaios, com preferência para os de caráter político, sem
efetivamente ganhar os palcos na montagem. Após pesquisas de discursos de Nicolau Maquiavel,
Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Luís Inácio Lula da Silva, entre outras célebres figuras políticas,
a equipe incorporou no texto do espetáculo um pronunciamento de Christiane Taubirá no parlamento
francês em defesa da adoção de crianças por casais homossexuais, e outro, de Jose Mujica, uma
crítica de fundo ambiental e político ao capitalismo global, na ONU. Os dois discursos, de políticos
estrangeiros, representam a parte mais substancial da “[...] composição dramatúrgica articulada em
dezesseis discursos verbais e não-verbais, de natureza performativa” (ABREU, 2016, p. 51), que
resultou na peça PROJETO bRASIL (2016). O uso desses discursos, tornados eles mesmos o material
central do espetáculo foi, também, uma forma de contornar a crise da autoria, a dificuldade de ‘falar
do país atual’ e esquivar-se da expectativa, por parte do público e crítica (sempre refutada pela
equipe), de ‘representar o Brasil no palco’.
Além das referidas falas não-ficcionais dos políticos, a peça conta com dois ‘textos originais’ de
Márcio Abreu; um discurso criado por Rodrigo Bolzan; duas composições coletivas de inspiração
dadaísta efetivadas por meio de combinações de palavras no espaço, musicadas por Felipe Storino;
um quadro formado por citações de frases de autoria de Eduardo Viveiros de Castro e diversas cenas,
chamadas de discursos verbais e não-verbais, construídas com base nas performances corporais e
vocais dos atores, e acompanhadas das músicas: Um índio de Caetano Veloso, Aquarela brasileira de
Ary Barroso e Bacchianas nº 5 de Villa Lobos.
Evidente escolha dramatúrgica (no sentido amplo) efetuada pela equipe foi a intercalação de
estruturas cênicas capazes de propor a identificação, o acolhimento e formas de interação com a
plateia com outras de caráter contrário, que expunham ou mencionavam: violência sexual, homicídios,
desigualdade socioeconômica, a pérfida manutenção das formas de dominação política, a crise
ambiental promovida pelo capitalismo, a apatia e impotência dos cidadãos. Vários ‘discursos verbais e
não verbais’ tematizavam ‘flagrantes da alteridade nacional’, como subjetividades e sexualidades não
normativas, deficientes auditivos (por meio de uma cena baseada na Língua Brasileira de Sinais -
LIBRAS), a identidade étnica indígena, subjetividades populares e provincianas, promovendo, por
meio de interessantes efeitos dramatúrgicos, reflexões sobre a diversidade sociocultural.
Elemento unívoco nas reflexões de Márcio Abreu, Nadja Naira e Giovana Soar acerca do espetáculo
foi a decisão no processo criativo estabelecida com base na construção de uma estrutura dramática
capaz de promover mudanças de “[...] lugares sociais, em propor, em sugerir em promover que você
olhe de outro ângulo, que você dê um passo daquilo que é o seu lugar social confortável e se desloque
um pouco. Há uma tentativa de chamar ao deslocamento do público” (ABREU apud KRUGER, 2017, p.
322). Deve-se ressaltar que, em nenhuma ocasião do espetáculo, a equipe deixava clara a autoria dos
textos, ou a situação real em que ocorreram. Houve, também, deliberada intenção em utilizar longos
trechos dos discursos ou cenas de longa duração, gerando desconforto e incômodo na plateia. Essa
definição logo se vinculou à associação entre discurso e ponto de vista, elemento evidenciado nas
falas do elenco, que revela também grande consciência dos procedimentos suscitados pelas cenas e
performances que se aproximam da proposta da arte relacional, apontada por Bourriaud e no
antagonismo relacional de Bishop.
‘Regime de encontro casual intensivo’, ‘produção de uma socialidade específica’, ‘modos de
convívio’, ‘estreitamento do espaço das relações’ são algumas expressões utilizadas por Nicolas
Bourriaud, em seu livro Estética relacional, para propor uma caracterização geral das produções
artísticas da última década do século XX. Em um mundo globalmente urbano, tecnológico, científico,
impessoal e capitalista, cuja noção de modernidade se esgotou enquanto projeto idealista e
teleológico, as artes não mais anunciariam um mundo futuro, mas “[...] apresenta[m] modelos de
universos possíveis” (BOURRIAUD, 2009, p. 18), não mais formariam realidades imaginárias ou
utópicas “[...] mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade
existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista” (BOURRIAUD, 2009, p. 18).
Inspirando-se no termo ‘interstício social’ de Marx, Bourriaud sugere qualificar a arte
contemporânea como um espaço de relações humanas inserido no sistema global que permitiria
outras possibilidades de troca além das comerciais, capazes de criar relações e intercâmbios livres,
com durações e qualidades não-cotidianas. Para ele, o contexto social restringe as possibilidades de
relações humanas, mas também gera espaços para este fim, de forma que “[...] a arte contemporânea
realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera
das relações” (BOURRIAUD, 2009, p. 22-23).
Diferentemente das propostas dos happenings e performances dos anos 1960, o retorno destas
relações de convívio nos anos 1990 desloca a questão da definição de arte da busca de ampliação de
limites para o teste da “[...] capacidade de resistência [artística] dentro do campo social global”
(BOURRIAUD, 2009, p. 43). O autor sustenta que a performance dos anos 1960 e 1970 articulava “[...]
relações internas do mundo artístico, numa cultura modernista que privilegiava o novo e convidava à
subversão pela linguagem [...]”, enquanto a ênfase artística relacional dos anos 1990 recai “[...] sobre
as relações externas numa cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao rolo compressor da
sociedade do espetáculo” (BOURRIAUD, 2009, p. 43, grifo do autor). Portanto: “As utopias sociais e
a esperança revolucionária deram lugar a microutopias cotidianas e a estratégias miméticas: qualquer
posição crítica direta contra a sociedade é inútil, se baseada na ilusão de uma marginalidade hoje
impossível, até mesmo reacionária” (BOURRIAUD, 2009, p. 43, grifo do autor).
Uma importante crítica de ‘Estética relacional’ foi realizada por Claire Bishop (2009). A autora
reconhece a importância do livro de Bourriaud na identificação de tendências da arte contemporânea
capazes de impactar a crítica e oferecer critérios específicos, diferentes dos valores e motivações
artísticos das décadas anteriores. Entretanto, Bishop questiona a leitura politizada que Bourriaud faz
das obras da estética relacional como reações à globalização, à internet e aos constrangimentos
sociais e econômicos atuais, à medida que os artistas gerariam encontros físicos e de face a face entre
as pessoas. Em sua análise a mera formação de comunidades, sejam elas temporárias, pontuais ou
permanentes não são suficientes para caracterizar a conotação política que pretende o pensador
francês. Para ela:
Bourriaud interpreta equivocadamente estes argumentos ao aplicá-los a tipos específicos de obra (aquelas que
requerem interação literalmente) e desta forma redireciona o argumento novamente à intencionalidade artística ao
invés das questões de recepção [...] A interatividade da arte relacional é [para Bourriaud], portanto, superior à
contemplação ótica de um objeto, visto como passivo e desengajado, porque a obra de arte é uma forma social capaz
de produzir relações humanas positivas. Como conseqüência, o trabalho é automaticamente político e efetivamente
emancipatório (BISHOP, 2009, p. 62, tradução nossa)33.
Na ótica da autora Bourriaud equipara, implicitamente, julgamentos estéticos aos éticos e políticos,
assumindo que a estética relacional produziria necessariamente situações harmônicas, dialógicas e
democráticas entre os participantes. Em oposição a Borriaud, Bishop defende um ‘antagonismo
relacional’ perceptível na obra de dois importantes artistas (ignorados por Bourriaud), Thomas
Hirschhorn e Santiago Serra, que exploram situações capazes de gerar incômodo e desconforto do
público.
Com base no conceito de antagonismo, de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que sustentam a
importância do dissenso para uma sociedade democrática em que as relações de conflito não são
dissolvidas ou apagadas, mas efetivamente sustentadas, tais propostas estão diretamente marcadas
pela alteridade, cuja presença “[...] torna minha identidade precária e vulnerável, de forma que a
ameaça que o outro representa transforma meu próprio sentido do self em algo questionável”
(LACLAU; MOUFFE apud BISHOP, 2009, p. 66). Mais do que atribuir valor político a obras abertas,
processuais e colaborativas ‘per se’, cabe, portanto, seguir a orientação de Bishop (2009, p. 78,
tradução nossa) e indagar: “[...] as tarefas que temos de enfrentar atualmente são analisar como a
arte contemporânea interpela o espectador e avaliar a qualidade das relações produzidas na
audiência”34.
Considerações finais
PROJETO bRASIL consistiu, portanto, de interessante clivagem entre influências teóricas das
ciências sociais, especialmente de matiz antropológico, e uma exploração da concepção
contemporânea de dramaturgia como relação e construção de sentido. No desdobrar de seus
dezesseis discursos verbais e não-verbais, uma consciente oscilação entre uma ‘estética relacional’
inclusiva e um ‘antagonismo relacional’ questionador promovem a evidenciação da troca dos pontos
de vista com base em propostas dramatúrgicas contemporâneas centradas em noções de alteridade.
Demonstram, com isso, aos próprios espectadores, o impacto reflexivo e político da mutação de
perspectivas e de subjetividades. PROJETO bRASIL não é, portanto, um programa de ação político ou
um retrato artístico do Brasil, mas carrega, em sua premissa dramatúrgica fundamental, um ‘Projeto’
de Brasil naquilo que re-presenta e no que realiza.
Referências
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WILLIAMS, R. Tragédia moderna. Tradução Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
31 O grupo opta pela escrita de seu nome próprio sempre empregando letras minúsculas e itálico.
32 Não deixa de ser singular o fato de Márcio Abreu, bem como colaboradores regulares da CBT, residirem (ocasionalmente ou
permanentemente) nas principais metrópoles culturais nacionais: São Paulo e Rio de Janeiro, sem que isso seja visto como um
problema para a Companhia curitibana. Se há, por um lado, dificuldades maiores, à medida que os membros da equipe nem sempre
se encontram em um mesmo tempo-espaço, por outro lado os fluxos e o cosmopolitismo favorecem a presença constante da CBT no
cenário artístico brasileiro mainstream. Exemplos desses projetos compartilhados com outros colegas de profissão consagrados pelos
meios de comunicação de massa foram as recentes parcerias da CBT com Renata Sorrah em Essa Criança (2013) e Krum (2014), e a
peça Nômades (2015), dirigida por Abreu e contando com Andréa Beltrão no elenco.
33 “Bourriaud misinterprets these arguments by applying them to a specific type of work (those that require literal interaction) and
thereby redirects the argument back to artistic intentionality rather than issues of reception […] The interactivity of relational art is
therefore superior to optical contemplation of an object, which is assumed to be passive and disengaged, because the work of art is a
social form capable of producing positive human relationships. As a consequence, the work is automatically political in implication
and emancipatory in effect”.
34 “The tasks facing us today are to analyze how contemporary art addresses the viewer and to assess the quality of the audience
relations it produces: the subject position that any work presupposes and the democratic notions it upholds, and how these are
manifested in our experience of the work”.
Capítulo 10
Introdução
Boa parte do ensaio crítico, da literatura, da dramaturgia e de outras linguagens artísticas na cena contemporânea, apontam para a inversão
centro/periferia e convocam para a reflexão sobre interculturalidade35 e decolonialidade – periférico, identidades em trânsito, processos migratórios
diaspóricos e fronteiras – chamam a atenção para diferentes modos de subjetivação que foram silenciados por uma epistemologia territorializada, fundada
em uma língua nacional, e portanto em um Estado nação que não faz mais sentido em um mundo constituído por fronteiras porosas em que vivemos, tal
como reflete Walter Mignolo (2003).
Na contemporaneidade, encontramos diversos projetos artísticos que se realizam por meio de apropriações e releituras crítico-criativas que expõem o
potencial do conceito de antropofagia, a exemplo de suas derivações: autofagia, práticas textuais híbridas, devoração crítica entre outras, expressões
largamente empregadas pela crítica contemporânea sobre estudos de literatura e de cultura no Brasil e na América Latina.
No bojo destas reflexões, localizamos a estética teatral híbrida do diretor e dramaturgo amazonense, Francisco Carlos36, cuja obra tem forte conexão
com a proposta da devoração crítica proposta por Oswald de Andrade (1971), da decolonização epistêmica discutida por Walter Mignolo, sobretudo, as
peças do ‘Pensamento selvagem’, tal como as denomina o próprio diretor.
As peças do ‘Pensamento selvagem’ propõem uma reflexão sobre o entre-lugar do canibalismo no pensamento ocidental e sobre desdobramentos
artísticos da Antropofagia, o que remete à amplitude da proposição de Oswald de Andrade contida no ‘Manifesto antropófago’ e seu potencial de
significação na contemporaneidade. O dramaturgo vale-se de estudos de Viveiros de Castro sobre xamanismo e canibalismo e de outras diversas pesquisas
sobre estes aspectos do pensamento ameríndio.
Em entrevista, concedida aos jornalistas Valmir Santos e Pollyana Diniz para o Teatrojornal, 2011, Francisco Carlos reflete que nos anos 1980 e 1990,
construiu a fase do ‘Pensamento selvagem’, a partir de estudos em Claude Lévi-Strauss, observando o lado antropológico do Antonin Artaud (2000) em
relação às peças dos índios mexicanos [os tarahumaras].
Para o autor, “[...] a ideia de arte contemporânea fragmentária, híbrida e plural tem por base a arte primitiva africana e ameríndia” (MELLÃO, 2011). Em
sua arte o dramaturgo amazonense propõe: A) Aprofundar os debates (temas e linguagens artísticas) especificamente o ‘canibalismo tupinambá’ que
envolveram a montagem do projeto da tetralogia canibal ‘Jaguar Cibernético’37. B) Aprofundar estudos sobre canibalismo tupinambá mergulhando na obra
de Florestan Fernandes A função social na sociedade tupinambá e fontes tupis, como: crônicas do século XVI e XVII e debater os campos da história e
etnografia, sobre o papel central e fundamental – status e prestígio – da mulher tupinambá, nas sociedades tupis dos séculos XVI e XVII. C) Discutir a
proposta antropofágica de Oswald de Andrade – os modos como explorou e deixou em aberto às teorias da fonte tupi e como já indicava um dos
procedimentos mais debatidos atualmente por antropólogos, artistas e pensadores: a chamada reindigenização da cultura brasileira e do país.
A tetralogia ‘Jaguar Cibernético’38 foi encenada pela primeira vez em abril de 2011, na mostra Fringe, Festival de Teatro de Curitiba, sendo depois,
encenada diversas vezes em São Paulo, com destaque para a encenação dos dias 30 de outubro e 2 de novembro de 2015, no Sesc Ipiranga, quando
integrou a programação paralela à exposição ‘Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo’, por ocasião da mostra fotográfica do
antropólogo brasileiro.
A ‘estética teatral híbrida’ do dramaturgo amazonense, entendida dentro de suas raízes latino-americanas, remete à imagens poéticas e históricas da
própria América Latina como um ‘continente híbrido’, plural e idiossincrático.
A dramaturgia de Francisco Carlos contempla as características de uma obra híbrida no sentido posto por Néstor García Canclini.
As culturas híbridas são culturas que são e continuam sendo originárias, mas que vão se modificando no intercâmbio com a modernidade, com o turismo, com o sistema capitalista e vão
aprendendo a modificar suas próprias culturas. Os artesãos têm uma visão da cultura contemporânea e às vezes são os menos interessados em conservar intactas suas tradições, sua cultura
original, eles sabem que uma maneira de defendê-la é vincular-se, dialogar com as outras culturas contemporâneas (CANCLINI, 1989, p. 77, tradução nossa)39.
Mais que hibridar as formas artísticas, a obra dramatúrgica de Francisco Carlos desconstrói os estereótipos patriarcais estabelecidos a partir da
colonização, (des)lendo a história oficial e transformando restos desta história em processos de invenção antropofágica.
A nosso ver, o pensamento crítico que sustenta a noção de Antropofagia Cultural traz o germe da elaboração de um ‘pensamento pós-decolonial’, que
ganha força, a partir dos anos 70, na América Latina e no Brasil.
Na América Latina, os Estudos Pós-Coloniais são associados a Aníbal Quijano (2000), Walter Mignolo (1996, 1997, 2003), Néstor García Canclini (1989),
Cornejo Polar (1997), Ángel Rama (1982), Eduardo Viveiros de Castro (1986), mais especificamente, no campo dos estudos literários e culturais, no Brasil,
pós Oswald de Andrade, Haroldo de Campos (1969, 1992), Silviano Santiago (1978), José Celso Martinez Corrêa (1998), entre tantos outros, que percebem
a urgência de recuperar a consciência decolonial, desconstruindoo discurso colonizador com evidências baseadas em outros conhecimentos, dando espaço
para a aceitação da diversidade epistemológica e do pluralismo cultural.
Walter Mignolo (1996) chama a atenção para a dubiedade do termo pós-colonial quando empregado pela academia como substituto do pós-teórico:
Convertendo-se na fonte de oposição principal contra as práticas que favorecem à gente de cor, aos intelectuais do Terceiro Mundo, aos grupos étnicos na academia. É confuso em
expressões como hibridação, mestiçagem, espaços intersticiais e outras equivalentes para transformar-se em objeto de reflexão e crítica das teorias pós-coloniais, porque elas sugerem
uma descontinuidade entre a configuração colonial do objeto ou tema de estudo e a posição pós-colonial do lugar da teoria (MIGNOLO, 1996, p. 99, tradução nossa, grifo nosso)40.
Contudo, Mignolo acredita que esta classificação no contexto dos estudos sobre os povos colonizados revela uma mudança radical na compreensão e
interpretação de suas epistemologias. “Assumirei que está sendo produzida uma transformação fundamental do espaço intelectual, raiz da configuração de
uma razão pós-colonial, tanto no lugar de prática de oposição na esfera pública como no de uma luta teórica na academia” (MIGNOLO, 1996, p. 99,
tradução nossa)41.
Neste sentido, Mignolo argumenta a favor da razão pós-colonial, entendida como um conjunto diverso de práticas teóricas que manifestam a raiz da
herança colonial, na intersecção da história moderna com as histórias contramodernas coloniais.
A razão pós-colonial apresenta o contramoderno como um lugar de disputa desde o primeiro momento da expansão ocidental (por exemplo, La nuevacorónica y buengobierno, de Guamán
Poma de Ayala, terminada por volta de 1615), fazendo possível questionar o espaço Intelectual da modernidade e a inscrição da ordem mundial em que o Ocidente e o Oriente, o Eu e o
Outro, o Civilizado e o Bárbaro, foram Inscritos como entidades naturais (MIGNOLO, 1996, p. 100, tradução nossa)42.
A razão pós-colonial precede e coexiste com as situações/condições pós-coloniais. Mignolo entende que o prefixo ‘pós’ contém a ideia de precedência,
porém, este poderia ser considerado como um equivalente da razão anticolonialista ou contramoderna, antes e após a independência política dos países
colonizados no contexto da América Latina, pelo fato de que já existiam textos que começavam a questionar as injustiças e privilégios das metrópoles em
relação às colônias.
De acordo com Mignolo “A colonialidade e a lógica de domínio no mundo moderno/colonial que transcende o fato de que o país seja Espanha, Inglaterra
ou Estados Unidos” (MIGNOLO, 2003, p. 33, tradução nossa)43. Para este teórico “[...] a ocupação do Iraque e a pressão dos Estados Unidos para designar
governos favoráveis ao poder do império reflete o método atual do colonialismo. Um colonialismo sem colônias, porém atuando, dominando sobre todas as
regiões” (MIGNOLO, 2003, p. 11, tradução nossa)44. O poder colonialista afeta a existência social dos povos da América Latina após a conquista, pois
segundo Quijano (2000), o fenômeno do poder se caracteriza como um tipo de relação social constituído pela co-presença permanente de três elementos:
[...] dominação, exploração e conflito, que afeta as quatros áreas básicas da existência social e que é resultado e expressão da disputa pelo controle delas: 1) o trabalho, seus recursos e seus
produtos; 2) o sexo, seus recursos e seus produtos; 3) a autoridade coletiva (ou pública), seus recursos e seus produtos; 4) a subjetividade/intersubjetividade, seus recursos e seus produtos
(QUIJANO, 2000, p. 1, tradução nossa)45.
Esta co-presença pautada na dominação, exploração e conflito, agindo sobre áreas básicas da existência humana, como um complexo estrutural, cujo
caráter é sempre histórico e responde a um padrão de poder específico tal como expõe Quijano, explica a elaboração tardia de um pensamento crítico,
reflexivo e criativo no Brasil e América Latina, sendo, pois o ‘Manifesto antropófago’ de Oswald de Andrade um marco fundamental, sobretudo, em um
segundo momento, marcado pelo movimento de retomada pelo próprio Oswald, nos anos 40 e 50.
Nas obras pós 1930, o conceito de antropofagia é retomado sob o viés do crítico, afastado dos primeiros ideais modernistas, em seus textos são
constatados aspectos de uma crítica da escritura, ou seja, um discurso crítico que se aproxima da linguagem literária, em que o autor reflete sobre as
principais contribuições do Modernismo Brasileiro e analisa como a literatura se relaciona com a sociedade, além de discutir questões políticas e culturais
que pautavam o mundo e a literatura de sua época e que aparecem como gesto estético em sua obra, considerada por ele, mais madura por ser capaz de
apreender o atraso da cultura brasileira neutralizado pelo empenho modernista.
Da produção pós 1930 oswaldiana emerge o pensamento reflexivo sobre o movimento modernista brasileiro e para além dele reverberam ensaios críticos
e gestos criativos, aqui, em especial, localizamos o fazer teatral do diretor e ator Francisco Carlos.
Autor de mais de 40 peças, cuja obra está sendo restaurada, por meio de um trabalho organizado com amparo do Projeto RESIDÊNCIA RESTAURO DE
DRAMATURGIA – FRANCISCO CARLOS – pela Escola de Teatro – SEDE ROOSEVELT, São Paulo. O restauro tem como objetivo organizar todo um trabalho
do autor que teve início em torno da década de 1980.
Ao falar sobre sua produção, o dramaturgo faz referência a um marco entre as peças consideradas ‘urbanas’ e aquelas do ‘pensamento selvagem’. “As
urbanas são aquelas focadas em situações que vem do que Walter Benjamim refletiu sobre Baudelaire [...]. E essas montagens são as que tratam dos
fenômenos urbanos extremos [...]”, diz Francisco Carlos (SANTOS; DINIZ, 2011, p. 1), citando, como exemplo, as montagens das peças Namorados da
catedral bêbada e Românticos da idade mídia. As peças construídas nesta vertente, ou a partir desde olhar são instigantes pela atualidade das temáticas
abordadas, contudo, as peças cujas temáticas e montagens remetem a elementos das culturas ameríndias chamam atenção pela opção decolonial presente
no processo criativo.
As peças do ‘pensamento selvagem’ compõem a denominada tetralogia ‘Jaguar Cibernético’, cuja primeira versão escrita é de 1993. Trata-se de um
projeto artístico composto por quatro peças autônomas, são trabalhos que versam sobre temas indígenas e abordam as relações de alteridade entre
culturas. A tríade animais-homens-deuses é a matriz das peças que compõem o espetáculo, intituladas Banquete tupinambá, Aborígene em Metrópolis,
Xamanismo the connection e Floresta de carbono – de volta ao paraíso perdido.
O conteúdo das peças remete, de modo intertextual, aos relatos46 dos séculos XVI a XIX feitos por cronistas e viajantes sobre o Brasil, mais
precisamente, Duas viagens ao Brasil, Viagem à terra do Brasil e Tratados da terra e gente do Brasil - mas, para além destes relatos, as peças expõem um
projeto de leitura de historiadores, antropólogos, filósofos e dramaturgos, de forma poético-crítica, sem deixar que seu teatro deslize para um teatro-tese.
Em entrevista, concedida aos jornalistas Valmir Santos e Pollyana Diniz para o Teatrojornal, 2011, Francisco Carlos relata:
Nas peças do Pensamento Selvagem eu trabalho com uma temática que é a mesma da antropologia etnográfica, principalmente por uma corrente muito avançada da antropologia brasileira
capitaneada pelo Eduardo Viveiro de Castro, em algum momento, e que foi definitiva, solidarizada pelo Lévi-Strauss. O meu foco, o meu objeto, o meu interesse é o mesmo deles, mas eles
são antropólogos e eu sou um dramaturgo e encenador. Nesse sentido, não faço um teatro antropológico, não quero realizar um método antropológico dentro do teatro. Meu trabalho é,
talvez, se se quer aproximar de um método, maisparecido com Brecht e Heiner Müller [dramaturgos e teatrólogos alemães], sendo este mais encenador que aquele. São caras que estão
querendo atingir invenções no teatro a partir de invenções na dramaturgia. Claramente, o meu trabalho é isso. Tenho uma tendência, [...], a imprimir em tudo que faço uma proposta teatral
para as pessoas que vêm receber aquilo, os artistas, o público. O meu trabalho é a tentativa de uma pesquisa teatral na qual tento atingir, a partir de uma reescrita do texto, não só de uma
reescrita do texto, já que minha invenção não tem a ver só com a escrita, mas com os jogos de palavras, as conexões todas que realizo na escrita [...] (SANTOS; DINIZ, 2011).
Este relato apresenta o cerne da consciência decolonizadora e, também, uma das características mais fortes dos artistas da Arte Contemporânea,
desconstruir toda a fixidez do sistema colonialista que estabelece normas, não somente, para a denominada arte culta, mas também, define normas para a
arte popular. Francisco Carlos entende que arte é um processo de criação constante, livre de normas, mas deve servir-se destas para poder destruí-las. Seu
relato remete a Huidobro, quando este trata do pensamento de criação a partir da destruição do estabelecido pelo sistema anterior:
[...] E se não serviam ficou gravado em uma manhã da história do mundo. Não era um grito caprichoso, não era um ato de rebeldia superficial. Era o resultado de toda uma evolução, a soma
de múltiplas experiências. O poeta em plena consciência de seu passado e de seu futuro, lança ao mundo a declaração de sua independência frente à natureza. Já não quer servir-lhe mais na
qualidade de escravo. [...] Te servirás de mim; está bem. Não quero nem posso evitá-lo; porém eu também me servirei de ti (HUIDOBRO, 2003, p. 1295, tradução nossa)47.
Deste modo, a dramaturgia de Francisco Carlos, baseada na criação artística como expressão de liberdade, a serviço de uma estética fronteiriça, provoca
deslocamentos em direção ao que os poetas e artistas plásticos contemporâneos entendem como expressão da arte pós-moderna ou pós-colonial, em que os
artistas e sua forma de fazer arte se distanciam dos enquadramentos. Dedicam-se a serem artistas de uma forma plena; buscando revelar as fraturas da
sociedade de seu tempo e suas próprias fraturas, eles mesmos são arte, seus gestos, sua vida. Sintetizam as contradições sociais do seu país, os sistemas
políticos, econômicos e artísticos em luta. Devolvem o lugar à poesia popular, soterrada pela cultura estrangeira.
Francisco Carlos reflete sobre a composição da matéria das peças e sobre as pesquisas realizadas, na tentativa de encontrar um projeto próprio de
dramaturgia.
Precisava ter um projeto de dramaturgia claro, pelo menos para mim, para meu entendimento. Nesses cinco anos de Belém eu encenei muito. Foi naquele período, entre os anos 1980 e
1990, que construí a fase do Pensamento Selvagem, estudos profundíssimos em Claude Lévi-Strauss, Gilles Deleuze, todo esse lado antropológico do Antonin Artaud em relação às peças dos
índios mexicanos [os tarahumaras], de uma escrita xamanista, fui fazer conexão com os beatnik, a escrita automática proposta pelo André Breton, fui entender toda essa conexão do Lévi-
Strauss com surrealismo, principalmente com Max Ernst [pintor alemão] e sua união com os estruturalistas clássicos, da qual Lévi-Strauss construiu um sistema que depois desencadeou
mais mitológico no que se tornou hoje o sistema de antropologia estruturalista. Tudo isso, fui pensando esse tempo. Não podia construir uma dramaturgia etnográfica sem pensar
profundamente tudo isso. E aí tinham duas tarefas: uma, entender profundamente isso, um assunto que me interessava profundamente, e a outra era que eu tinha que pensar como isso
poderia conversar com a minha dramaturgia, com a minha escrita dramática. Isso não podia ser uma tese, precisava ser um texto teatral (SANTOS; DINIZ, 2011).
No conjunto, a dramaturgia do diretor amazonense consiste na criação contemporânea que considera as experimentações cênicas do teatro moderno e da
cena atual híbrida, intertextual, fragmentária e ideogramática.
Eu entendo a ideia do Teatro da Crueldade como uma estética da periferia. Até porque eu leio muito a ideia do Artaud, tematicamente, como lá nos escritos sobre os índios do México,
apesar de outros elementos artaudianos me interessarem. Em relação ao Jaguar, o que me interessa profundamente são os textos relativos aos índios mexicanos, a iniciação xamanista, a
maneira como ele anota aquela experiência. Eu me interesso muito por aquela escrita xamã, pode estar relacionada à escrita automática de Walt Whitman, que o André Breton também
propõe, mais a geração beatnik, porque esses escritores também se interessavam pela fala xamanista dos índios americanos, e aquilo tem um fluxo, tem um jazz. Nesse sentido, os escritos
sobre os tarahumaras me interessam profundamente. Eu consigo, ali, me sintonizar (SANTOS; DINIZ, 2011, grifo nosso).
Em seu teatro está a consciência do mundo no deslocamento por diferentes tempos e lugares. A encenação envolve linguagens cênicas contemporâneas
pesquisadas pelo autor e tratadas ao modo do bricoleur, são resíduos ou traços de memória cultural que não estão nem em seu lugar de origem, nem em
seu lugar de destino, traços que vão do teatro oriental a linguagens de rituais indígenas, arte indígena, danças antigas e pós-modernas.
O bricoleur interroga o subconjunto da cultura, resíduos de obras humanas, e opera através de signos, no nível da técnica. Produz significação através da reorganização do conjunto com o
qual trabalha. O pensamento mítico é um bricolage intelectual em função de seu repertório extenso, porém limitado (pois limitadas são suas unidades constitutivas, emprestadas da língua).
Seus elementos estão sempre situados a meio caminho entre perceptos e conceitos (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 27).
Em ‘Jaguar Cibernético’, Francisco Carlos serve-se do jaguar, um dos símbolos de práticas ritualísticas entre povos ameríndios, para falar sobre
alteridade. Segundo ele, incorporar a visão do outro é algo intrínseco às culturas indígenas. A visão múltipla destes povos se contrapõe ao ponto de vista
uno da cultura ocidental. Nesta perspectiva, não só o conteúdo de suas obras busca a multiplicidade, a estética também é inspirada por essa visão, por meio
de uma síntese metafórica, aproximando-se ao pensamento antropofágico, cujo pensamento ameríndio está contido no ‘Manifesto antropófago’: “Tupi, or
not tupi, that is the question” (ANDRADE, 1978, p. 75).
As montagens das peças do ‘pensamento selvagem’ apresentam elementos da cultura Tupinambá e Kamayurá, como o conflito das tribos com os brancos,
os ritos expiatórios, os rituais de purificação e as religiões, carregam, portanto, uma heterogeneidade artística e cultural.
O crítico Antonio Cornejo Polar ao refletir sobre unidade e diversidade na América Latina observa que, “[...] por meio do conceito de heterogeneidade, é
possível reconhecer que os textos nascidos em uma situação de conflito cultural não são produtos de fusão, mas espaços onde eles continuam a enfrentar as
culturas opostas” (1997, p. 23, tradução nossa)48.
Neste sentido, os textos dramatúrgicos de Francisco Carlos propõem o deslocamento, a desautomatização do olhar do público, sendo sua produção,
melhor compreendida no contexto das práticas reflexivas e criativas que remetam a uma consciência decolonizadora, na medida em que se reconhece nesta
produção, o movimento ético e estético de decolonização do pensamento crítico e criativo, lido por nós como um teatro antropofágico, lembrando que na
produção ensaística pós-1930, oswaldiana, mais especificamente, em Ponta de lança (1945) e Estética e política (1954) observa-se como é gestado o
pensamento crítico de Oswald e em que medida seus pressupostos básicos se renovam antropofagicamente.
Refletimos que a filosofia antropofágica, neste sentido, antecipou o pensamento pós-colonial, preocupado antes de tudo com a contextualização das
epistemes pela natureza geo-histórica de sua produção. O ‘Manifesto antropófago’ contém o germe de uma poética decolonial, na medida em que não
apenas sugere, mas põe efetivamente em prática a ‘devoração crítica’, convocando-nos a refletir sobre etnias e línguas em contato, identidades em trânsito
- por meio de um projeto estético e ideológico, que propõe a superação dos binarismos, o descentramento e a inversão centro/periferia. A sedução exercida
pela cultura do Outro leva o poeta da Poesia Pau-Brasil, a celebrar os ‘casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela’ como ‘fatos estéticos’ e a clamar
pela ‘contribuição milionária de todos os erros’, que, aliada à ‘originalidade nativa’, serviria de contrapeso às ‘indigestões de sabedoria’ e à ‘adesão
acadêmica’ da cultura brasileira.
Tal como Oswald, em seu ‘Manifesto antropófago’, que “[...] deu sentido teórico à irônica proposta de uma poesia de exportação na forma de uma
experiência de pensamento cada dia mais atual nas circunstâncias do mundo globalizado” (ROCHA, 2011, p. 13, grifo nosso), a dramaturgia de Francisco
Carlos é construída na e pela releitura antropológica da antropofagia, cuja elaboração polifônica e poética
[...] busca o reconhecimento do outro, quebra o ego e transforma a percepção da arte primitiva e ameríndia. A ideia inserida em suas obras muda a origem ocidental de interpretação, troca
sentidos e se identifica com os indígenas. Suas produções destacam uma percepção diferencial da nossa atualidade, se amplia junto à visão pertencente a esse povo que modifica a presença
humana em manifestações ritualísticas, compartilhando grandes referências do mundo (FREIRE, 2017, grifo nosso).
As marcas da linguagem polifônica, híbrida e antropofágica encontradas na teatralogia ‘Jaguar Cibernético’ encontram-se, também, em outros trabalhos
do dramaturgo, a exemplo de São Paulo Chicago, de 2013, peça oriunda de um projeto de Residência Teatral desenvolvido por Francisco Carlos, a convite
de Ivam Cabral, diretor da SP Escola de Teatro e da peça Sonata Fantasma Bandeirante de 2016, trabalhos críticos sobre a história dos barões do café e dos
bandeirantes em São Paulo.
Por uma mirada de desconstrução crítica da história oficial, acentuada pela pesquisa de traços poéticos, míticos e espirituais das culturas ameríndias e
afrodescendentes, o teatro de Francisco Carlos aproxima elementos de culturas ancestrais em diálogo com a arte contemporânea, na perspectiva de uma
poética decolonial.
Considerações finais
A opção por uma atitude antropofágica contempla uma visão crítica da história vista como função negativa que é capaz tanto de “[...] apropriação como
de expropriação, desierarquização, desconstrução” (CAMPOS, 1992, p. 234), que se dão a partir da negação de “[...] todo passado que nos é ‘outro”
(CAMPOS, 1992, p. 235). O passado é o ‘inimigo bravo’ que deve ser devorado, na acepção de Haroldo de Campos, de modo que a desconstrução se
constitui no duplo gesto que configura o descentramento: ‘renversemente’, transgressão. Silviano Santiago esclarece que o movimento de renversement
“[...] consiste em desrecalcar o dissimulado e inverter a hierarquia de oposições [...] não se trata de opor um grafocentrismo a um logocentrismo, nem, em
geral, nenhum centro a outro. Daí a necessidade de um outro gesto para se completar a desconstrução e o descentramento” (SANTIAGO, 1976, p. 76).
Nesta perspectiva, o dramaturgo Francisco Carlos integra o movimento antropofágico dentro de um fluxo constante na literatura e na dramaturgia
brasileira constituído pela reflexão sobre o choque de culturas. Entendemos que a proposta teatral de Francisco Carlos demanda ser estudada em
consonância com a linhagem dos artistas, escritores e ensaístas brasileiros e latinos americanos contemporâneos, que por meio de uma estética
antropofágica, realizam um fazer poético crítico reelaborado, a partir de signos culturais que remetem à pesquisa sobre memória, história e resistência.
Escritores, ensaísta, poetas e dramaturgos como Francisco Carlos descobrem intensidades poéticas nos signos ressemantizados em suas produções
artísticas, cujo processo criativo se dá na escavação dos discursos da história do passado, em um movimento de captura na intempestividade do presente,
em que a palavra poética é também política.
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35 “O conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um pensamento crítico-outro - um pensamento crítico de/desde outro modo -, precisamente por três razões principais: primeiro porque está
vivido e pensado desde a experiência vivida da colonialidade [...]; segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem
no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte global” (WALSH, 2005, p. 25).
36 Há um rico material produzido sobre a obra do dramaturgo amazonense publicada em jornais e editoriais, por ocasião das apresentações das peças, contudo, não encontrei, ainda, estudos mais
sistematizados sobre a produção dramatúrgica do autor, mais especificamente sobre a escritura de seus textos, o que me interessa mais de perto, devido aos processos de (des)leitura poética dos relatos
sobre o Brasil, por cronistas e viajantes dos século XVI a XIX, no cruzamento de leituras contemporâneas, realizadas pelo dramaturgo. Julgo importante contextualizar, brevemente, autor e obra. Tomo como
base para a apresentação do autor, a entrevista concedida por ele aos jornalistas Valmir Santos e Pollyana Diniz para o Teatrojornal, 2011. “Formado em Filosofia, recém-atravessado meio século de vida,
nascido em Itaquatiara em 10 de dezembro de 1960, Francisco Carlos correlaciona fenômenos extremos dos habitantes da metrópole e da floresta num torvelinho verborrágico e imagético. Ergue uma
cachoeira de palavras, subordinações e neologismos compostos, a lembrar José Celso Martinez Corrêa em sua transposição versificada de Os sertões. Jaguar cibernético não perde a prosa de vista mesmo
em desvios narrativos, dialógicos, digressivos, rimados até. Sua poética cênica é cosmogonia” (SANTOS; DINIZ, 2011).
“Em 2007, ao convidar Francisco Carlos para ser um dos integrantes do seminário Nova dramaturgia brasileira em perspectiva, no âmbito do Festival Recife do Teatro Nacional, o crítico e curador paraense
Kil Abreu, que hoje vive na capital paulista e o conheceu em Belém, na juventude, assim o percorreu nas memórias: ‘ […] fundou em Belém o grupo Trompas de Phalópio, que agitou a cena teatral na década
de 80 com peças como O estranho caso da pantera da serra com o bandoleiro durango Brasil e Os caçadores da vaca fosforescente, entre outras. Seu teatro tem grande interesse na antropologia,
especialmente a partir da obra de Lévi-Strauss, e procede na bricolage que assimila referências que vão do surrealismo ao cinema de Hitchcock. Trata em seus textos das diversas etnias amazônicas
(yanomami, mundurucu, kamayurá, mura, ashaninka), explorando por meio da escritura experimental elementos como ritos, crenças e xamanismo” (SANTOS; DINIZ, 2011).
37 “Autoria, encenação e direção geral: Francisco Carlos. Cenografia: Miguel Aflalo. Orientação de língua tupi: Eduardo Navarro” (DRAMATURGO AMAZONENSE..., 2016).
38 “Em março passado, na semana seguinte ao ensaio de Jaguar cibernético para os programadores do Sesc, sem saber se a temporada vingaria, Francisco Carlos e equipe caíram de pára-quedas na última
edição do Fringe, do Festival de Curitiba, com sete peças na bagagem: três do repertório urbano mais a tetralogia canibal inédita. A iniciativa fez parte da mostra Conexão Roosevelt, a convite do curador
Ivam Cabral. O ator d’Os Satyros o convenceu da pré-estreia nacional. Sem cachê, mas com direito a caminhão para o cenário viajar de São Paulo, mais transporte, hospedagem e alimentação para 33
pessoas, o núcleo de atores de Francisco Carlos, como chegou a ser anunciado, desdobrou-se diuturnamente no Teatro HSBC, em pleno calçadão central da cidade, a chamada Rua das Flores, a XV de
Novembro. O palco italiano, nada a ver com a perspectiva circular da obra em questão, era atravanco de menos. Aos atores, aos técnicos, o importante era ver, enfim, o Jaguar cibernético levado à cena após
um semestre de ensaios. Afinal, pela primeira vez Francisco Carlos dispunha de uma equipe continuada com a qual pôde mergulhar de fato em processo criativo, arriscar-se tanto na condição de encenador
como o faz costumeiramente na construção do texto”. Introdução à entrevista concedida pelo dramaturgo ao Teatro jornal, matéria escrita por Santos e Diniz (2011).
39 “Las culturas híbridas, son culturas que son y continúan siendo originarias, pero que se van modificando en el intercambio con la modernidad con el turismo con el sistema capitalista y van aprendiendo a
modificar sus propias culturas. Los artesanos tienen una visión de la cultura contemporánea y a veces son los menos interesados en conservar intacta sus tradiciones, su cultura original, ellos saben que una
manera de defenderla es vincularse, dialogar con las otras culturas contemporáneas”.
40 “Convirtiéndose en la fuente de oposición principal en contra de las prácticas que favorecen a la gente de color, a los intelectuales del Tercer Mundo, a los grupos étnicos en la academia. Es confuso
en expresiones como hibridación, mestizaje, espacios intersticiales y otras equivalentes para transformarse en objeto de reflexión y crítica de las teorías postcoloniales, porque ellas sugieren una
discontinuidad entre la configuración colonial del objeto o tema de estudio y la posición postcolonial del lugar de la teoría”.
41 “Asumiré que se está produciendo una transformación fundamental del espacio intelectual, a raíz de la configuración de una razón postcolonial, tanto en el lugar de práctica oposicional em la esfera pública
como el de una lucha teórica en la academia”.
42 “La razón postcolonial presenta lo contramoderno como un lugar de disputa desde el primer momento de la expansión occidental (por ejemplo, La nueva corónica y buen gobierno de Guamán Poma de
Ayala, terminada alrededor de 1615), haciendo posible cuestionar el espacio Intelectual de la modernidad y la inscripción del orden mundial en el que El Occidente y el Oriente, el Yo y el Otro, el Civilizado y
el Bárbaro, fueron Inscritos como entidades naturales”.
43 “La colonialidad es la lógica del dominio en el mundo moderno/colonial que trasciende el hecho de que el país sea España, Inglaterra o Estados Unidos”.
44 “[...] La ocupación de Irak y la presión de Estados Unidos para designar gobiernos favorables al poder del imperio refleja el método actual del colonialismo. Un colonialismo sin colonias, pero actuando,
dominando sobre todas las regiones”.
45 “[...] dominación, explotación y conflicto, que afecta a las cuatro áreas básicas de la existencia social y que es resultado y expresión de la disputa por el control de ellas: 1) el trabajo, sus recursos y sus
productos; 2) el sexo, sus recursos y sus productos; 3) la autoridad colectiva (o pública), sus recursos y sus productos; 4) la subjetividad/intersubjetividad, sus recursos y sus productos”.
46 Sobretudo, os relatos de Hans Staden. Viagem ao Brasil (1557), material de análise de Viveiros de Castro, 1986, cap. VII, p. 621.
47 “Ese non serviam quedó grabado en una mañana de la historia del mundo. No era un grito caprichoso, no era un acto de rebeldía superficial. Era el resultado de toda una evolución, la suma de múltiples
experiencias. El poeta en plena conciencia de su pasado y de su futuro, lanza al mundo la declaración de su independencia frente a la naturaleza. Ya no quiere servirla más en calidad de esclavo. […] Te
servirás de mí; está bien. No quiero ni puedo evitarlo; pero yo también me serviré de ti [...]”.
48 “[...] a través del concepto de heterogeneidad, insiste por su lado en el hecho de que los textos nacidos en una situación de conflicto cultural no son productos de fusión, sino espacios donde se siguen
enfrentando las culturas opuestas”.
ATO III
TEATRO, MITO, RESSIGNIFICAÇÃO ETC.
Capítulo 11
Introdução
A autoficção cênica
Cunhado em 1977 pelo francês Serge Doubrovsky, o conceito de autoficção promove uma discussão
frutífera também no campo do teatro que é, a priori, espaço primordial para sua prática, como se
percebe em espetáculos como Luís Antônio-Gabriela, de Nelson Baskerville e Verônica Gentilin, de
2011, e Conversas com meu pai, de Alexandre Dal Farra e Janaina Leite, de 2013, para ficarmos com
exemplos apenas da dramaturgia brasileira. Nesses espetáculos encontramos personagens que se
colocam abertamente ao público de forma autoficcional, porque, primeiro, se reconhecem como
‘verdadeiros’, como referencialidade, mas, por outro lado, sabem-se ficcionais no espaço e tempo do
teatro.
Assim, aproximo essa tendência contemporânea de se falar cenicamente de um eu empírico e
pessoal emprestando o termo da narratalogia que parece resolver o impasse e o paradigma sobre o
teatro autobiográfico. Uma vez colocado na cena, o discurso se torna automaticamente ficcional. Além
disso, a autoficção é uma teoria significantemente mais maleável que a que envolve o pacto
autobiográfico lejeuniano, pois mostra que (a) não é necessário que um narrador seja em 1ª pessoa
para que o eu se expresse; (b) não é necessário que um escrito seja ‘todo verdade’ ou ‘todo ficção’; (c)
a escrita autobiográfica não precisa remeter a um eu acabado, pronto, mas pode ser um desejo desse
eu, uma busca sua, um desejo de se mostrar em processo. O teatro – que desde sempre rejeitou a
totalidade da verdade, pois é ficção, ao mesmo tempo em que rejeita a total ficção, pois simula o real
por meio do próprio real, e não somente pela linguagem – seria então locus mais que adequado para a
prática autoficcional, pois potencializa seus efeitos.
Dos (ainda poucos) artigos sobre a autoficção cênica, destacam-se dois: o primeiro, um texto de
Philippe Weigel (2011), ‘Autofictions au théâtre: le demi-masque et la plume’, que defende essa
irrupção do autobiográfico como ‘sinal da renovação do teatro’ no qual
[...] podemos constatar, por um lado, a afirmação do empreendimento autobiográfico no teatro do século XX e sua
necessidade artística e, por outro lado, a utilidade – eu até arriscaria mesmo dizer: a urgência – de desembaraçar o
novelo em que se misturam autobiografia, teatro, cena, veracidade, ambiguidade, ficção, considerando o
conhecimento dos conceitos de autobiográfico e autoficção, atualmente mais refinado do que no começo dos anos 80
(p. 15 , tradução nossa)51.
O segundo, o artigo ‘La auto(r)ficción en el drama’, de Vera Toro (2010), publicado na coletânea La
obsesión del yo. La auto(r)ficción en la literatura española y latinoamericana. Nele, Toro assinala os
obstáculos para uma concepção autoficcional do drama, pois, “[...] enquanto nos textos narrativos a
chave autoficcional situa-se entre autor implícito, narrador e personagem, no drama existem – à
primeira vista – mais obstáculos para estabelecer essas relações” (TORO, 2010, p. 230, tradução
nossa)52.
Para Toro, são dois tipos de vozes na autoficção em prosa e no teatro; por isso ela chama de
hablante [falante] a instância narrativa no drama para diferenciá-la do narrador análogo dos textos
narrativos em prosa. O hablar destoa do narrar, pois possui, no próprio verbo, um caráter que envolve
uma medida maior de ação. Esse falante se manifesta em vários níveis comunicativos para tentar
conciliar essas duas realidades (textual e cênica). Podemos, assim, buscar uma voz narratológica na
construção teatral, não da mesma maneira que em textos narrativos, mas de outro nível de
enunciação. Esse mecanismo propicia a um mesmo elemento autoficcional uma multiplicação dos
níveis de enunciação dentro do sistema ficcional do personagem cênico. Um ator fazendo-se passar
pelo dramaturgo atravessa a denegação teatral e mergulha o espectador em um jogo de espelhos,
similar à ideia das bonecas russas. Caminhamos, assim, um pouco mais fundo na psicologia desse eu
que fala, mas que em nenhum momento temos plena certeza de que lugar ele fala.
A partir daí, Toro (2010, p. 237-238) classifica três possibilidades de autoficção53. O primeiro
define um texto dramático no qual o autor compartilha o nome ou um derivado com um personagem,
interpretado por outro ator. Forma frequente no teatro contemporâneo, nela temos a autoficção
dramática (enquanto literatura) em sua forma mais clara – autor que se denomina no texto ou deixa
rastros de sua personalidade ou pessoa social de forma explícita para o leitor/espectador. Temos aqui
espetáculos como Tebas land, de Sergio Blanco; Luís Antônio-Gabriela, de Nelson Baskerville e
Verônica Gentilli, e Uma igreja do medo do estranho dentro de mim (Eine Kirche der Angst vor dem
Fremden in mir, de 2008), de Christoph Schlingensief.
O segundo tipo de autoficção cênica é frequente no teatro moderno e contemporâneo, pois permite
que o pacto autoficcional seja mais sutil, cuja leitura autoficcional só se justifica mediante paratextos
ou mesmo outros textos ficcionais do autor, mais abertamente autoficcionais. O comparativismo,
nesses últimos casos, é a base para a leitura autoficcional. Aqui o dramaturgo não compartilha seu
nome com os personagens, mas outros traços de sua identidade tornam possível o reconhecimento
apenas por parte dos leitores/espectadores, isto é, a parcela de público que reconhece o traço
apontado como identitário ou que percebe a ficcionalização de determinado fato ou pessoa
referencial. Alguns exemplos são: as peças de August Strindberg (Pai e Senhorita Júlia, por exemplo),
de Eugene O’Neill (Longa Jornada Noite Adentro), de Arthur Miller (Depois da queda), de Jorge
Andrade (Rasto atrás será a mais expressiva), de Caio Fernando Abreu (Pode ser que seja só o leiteiro
lá fora, Zona contaminada e O homem e a mancha) e tantos outros que, ocultos pela ficção, criam
personagens a partir de experiências reais, protegendo sua privacidade com nomes e situações.
E por fim, a terceira classe de autoficção cênica, mais próxima de um discurso autobiográfico
porque, aqui, temos o homonimato firmado entre dramaturgo, ator e personagem. Entretanto, os
níveis de uma ‘verdade aparente’ serão relativos em cada texto, mas nunca absoluto: em todos a
certeza de que não existe uma verdade axiomática. Além disso, o dramaturgo não necessariamente
precisa estar no centro da ação. Ele pode se situar como narrador personificado, separado de um
fundo dramático cuja ilusão está mimeticamente intacta em uma mise en abyme, como acontece em
Álbum de família, de José-Luis Alonso dos Santos, e Melancolia y manifestaciones, da argentina Lola
Arias. Nesses casos, temos um distanciamento maior da cena representada, colocada no palco como
objeto analisado e representado, e não como sujeito representando. Tais mecanismos reforçam o
caráter metateatral desse recurso, pois no ‘liga-desliga’ da ilusão qualquer resistência de uma quarta
parede soa de modo crítico.
Citando um outro Édipo, o da peça OVO, do dramaturgo paranaense Renato Forin Jr. (2015, p. 7):
“Com o teatro, a gente zomba do despotismo do tempo. Eu transmuto aqui no palco o que a existência
me entrega como veredito”. Inevitável, o tempo e sua consumação se colocam como único oráculo
possível. Em resposta, a ficção pergunta ‘e se...?’ ao propor novas realidades e caminhos. A autoficção
escancara isso: diante de um texto autoficcional, não é a confissão que nos interessa, mas o jogo
ficcional no qual a possível confissão se transforma no que nos fará perguntar, mesmo que
inconscientemente: E se...?
Após todos os indícios de ser Édipo o criminoso procurado, é somente na revelação do oráculo que
ele julgava vencido que a verdade se revela: ‘Diziam que o menino mataria o pai’, diz o pastor, cerne
da peripécia trágica: é por piedade que o curso de tudo é alterado.
Édipo, então, lamenta: “Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci,
nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia!”, seguido pelo Coro, “(lento e
triste): Vossa existência, frágeis mortais, é aos meus olhos menos que nada” (SÓFOCLES, 1998, p. 82-
83).
Édipo sai e quando retorna já está cego. O decoro grego não permite que fure os olhos em cena.
Tudo é relatado pelo criado, discurso pelo qual podemos inferir que o crime de Édipo, o que torna
tudo tão singelo e tão arrebatador, sua tentativa de vencer o destino acaba resultando, de fato, em
uma duplicação do tempo, simbolizado nos filhos com Jocasta, ‘dupla geração’, pai e irmão ao mesmo
tempo, filhos e netos simultâneos.
A partir do mito, Freud (2014, p. 16) escreverá que o crime “[...] principal e primordial, tanto da
humanidade como do indivíduo, é o parricídio”. Fonte da culpa, associa-se à expiação, pois
A relação do garoto com o pai é, como podemos dizer, ambivalente. Afora o ódio, que faria eliminar o pai como rival,
existe a regularidade de uma medida de ternura a ele dirigida. Ambas as atitudes estão subsumidas à identificação
com o pai. Ele gostaria de estar no lugar do pai, porque o admira; e, uma vez que gostaria de ser como ele, quer
eliminá-lo (FREUD, 2014, p. 17).
Nebulosa, essa relação se torna, em Tebas land, elemento essencial para a concretização do
trágico, fortalecida pelo fato de não existir tal relação no mito edipiano. Como já dito, Édipo está cego
e não conhece sua origem: mata o pai sem o saber; em Tebas land, o filho conhece e se relaciona com
o pai, tornando o crime, de fato, um parricídio.
Na peça, temos S, um personagem-dramaturgo que relata/encena o processo de criação de uma
peça encomendada pelo Teatro San Martín de Buenos Aires. Trata-se, portanto, de um texto
metalinguístico que tem como mote a relação do dramaturgo com o objeto de sua ficção: o parricida
Martín Santos, condenado por assassinar seu pai com vinte e um golpes de garfo.
Colocada como inacabada, um falso work in process, a peça tem o mérito de aproximar, via
desdobramento de personagem e suposta homonimia, S ao dramaturgo Sergio, colocando sua
identidade em questão.
S. ¿Podemos empezar? Bien. Buenas noches a todos. Espero que estén bien y que se encuentren cómodos.
Bienvenidos. Voy a tratar de explicarles un poco y en pocas palabras, por qué estamos acá. Hace ya un tiempo, el
Teatro San Martín de Buenos Aires me pidió un proyecto para poner en escena. En aquel entonces les propuse un
texto que se llamaba, que se llama El salto de Darwin. Es una pieza que habla de la guerra de las Malvinas. Me
resultaba interesante abordar el tema de la guerra varios años después. El proyecto en un inicio fue aprobado y
empezamos a trabajar con el equipo de producción del teatro, pero un día me llegó un correo electrónico diciéndome
que era mejor cambiar de texto. Les pregunté si era por el tema que la obra trataba y la respuesta fue que sí, que era
mejor no tocar el tema de las Malvinas en ese momento. Decidimos entonces dejar El salto de Darwin de lado y fue
ahí que empecé a idear este proyecto que se llama Tebas Land (BLANCO, 2013, p. 53)54.
Temos aqui um ator com a palavra que se dirige ao público e se coloca na figura do
dramaturgo desta peça –, ele quebra não apenas a ilusão dramática, fragmentando-a, como
qualquer certeza em relação à própria identidade do sujeito social cuja profissão é atuar.
Repetindo as palavras da crítica Georgina Torello (apud BARRIENTOS, 2014, p. 143, tradução
nossa), “[…] o monólogo inicial coloca o espectador frente a um jogo autobiográfico que se
expande por todo o texto em diferentes modalidades”55, modalidades estas que mesclam
autoficção e metateatro em um jogo labiríntico.
Como se percebe na imagem a seguir, o dispositivo cênico colabora para a construção do sentido
buscado, isto é, o espelhamento que, a partir do cercado e da duplicação de personagens e níveis, se
torna sem limite.
S se duplica em três níveis enquanto o ator presente dentro do cercado se duplica em dois, mas,
durante o relato inicial, se aproxima da plateia, está fora do cercado. Ao entrar na quadra, ele opera
em outro nível que, já sabemos, serão dois: como pede a indicação cênica na apresentação dos
personagens, Martín e Fede devem “[...] ser representados durante toda a peça por um único e
mesmo ator” (BLANCO, 2013, p. 50). Ambígua, a representação dupla coloca em dúvida o
desdobramento da personagem S, que vez ou outra aproxima-se do dramaturgo-real Sergio Blanco,
como quando se aproxima da plateia, fora do cercado, e trata do processo de criação daquela peça.
Além da inicial, S liga-se a Sergio por traços biográficos: ambos são professores universitários,
residentes em Paris, filhos de duas línguas (espanhol materno e francês paterno) e cujo pai teria sido
jogador de basquetebol. Portanto, a autoficção surge como proposta de jogo que alimenta o jogo
principal. A partir desses desdobramentos se percebe que os níveis não são paralelos, mas, sim, que
eles se cruzam e se espelham uns nos outros de modo a tornar a representação uma apoteose
metateatral.
Outro complicador é que, na estreia do espetáculo, o personagem S foi interpretado por Gustavo
[S]affores, completando as possibilidades referenciais com o nome S: [S]ergio Blanco, [S]igmund
Freud,
[S]ófocles. Se existem, pois, níveis diferentes de metateatralidade criados a partir do deslocamento do
personagem S e da representação dupla de Martín/Fede, os mesmos apontam para outros diferentes
níveis referenciais, oferecendo a autoficção como chave de leitura. São ‘níveis’ (de metateatralidade,
de enunciação, de representação) ao mesmo tempo que são ‘cíclicos’: um tempo que aponta para
outro tempo, um espaço que aponta para outro espaço, uma ação que aponta para outra.
Para melhor ilustrar esses níveis e jogos, temos a seguinte estrutura enunciativa:
Em um PRIMEIRO NÍVEL, S, personagem-dramaturgo metateatral, explica ao público o motivo da
peça e primeiros momentos do seu processo de realização. Trata-se de um discurso que a princípio
parece fugir à ficção, principalmente em relação a espectadores que não conheçam fisicamente
Sergio Blanco e/ou o ator que representa S. Este, por sua vez, se desdobra e encarna também o
personagem-dramaturgo dentro do cercado.
Há, então, um SEGUNDO NÍVEL, no qual, por meio de uma analepse, S se distancia de seu papel
de narrador e mergulha mais fundo na ficção do personagem S, papel que vai se relacionar com
Martín Santos no pátio da prisão onde o jovem está recluso. Já aqui podemos fazer relações entre o S
inicial, que abre a cena, e o S que contracena com Martín dentro do cercado: a priori, o primeiro se
aproxima da pessoa empírica de Sergio Blanco por meio da ficção e do não dito; daquilo que foi
apenas sugerido.
Paradoxalmente, já não podemos estabelecer pré-relações quando o personagem de Martín é
desdobrado em Fede. No TERCEIRO NÍVEL, o personagem-dramaturgo dialoga com Federico, o ator
selecionado para representar Martín depois da tramitação com o Teatro San Martín e antes do
diálogo inicial com o público, isto é, ‘este’ espetáculo em si. Trata-se da escolha do elenco e dos
ensaios da peça representados com um nível mimético mais nítido, mais tradicional. Entretanto, uma
vez representados pelo mesmo ator, Martín e Fede serão ora intensificados, ora enfraquecidos pela
própria ficção e a quebra dela, simultaneamente. Dito de outra forma, Fede se aproxima, enquanto
personagem-ator, de uma ‘realidade nossa’ enquanto Martín se torna duplamente ficcional: ele é
personagem tanto de Sergio Blanco quanto do ator que ‘agora’ o representa. Duplicando o ator em
dois personagens, intensifica-se sua representação que acontece no ‘agora’ e no ‘antes’ ao mesmo
tempo.
Portanto, diferente de S que se desdobra em dois níveis diegéticos (temporais e espaciais) distintos,
isto é, um ‘antes’ e um ‘agora’ muito bem marcados pelo discurso, Federico ‘é’ ao mesmo tempo o
personagem-ator representa(n)do e o personagem-parricida representado, o que movimenta (ou
intensifica o movimento) de um esquema cíclico de representação cuja estruturação/separação é
impossível, visto que os bastidores, quer sejam as conversas na prisão, quer as conversas durante os
ensaios, formam a própria tessitura do texto e da representação.
Depois do relato inicial de S, sem aviso de mudança espaço-temporal, os dois atores representam o
primeiro dia em que S e Fede se encontraram. E ocorre pela primeira vez uma série de espelhamentos
que acontecem ao longo da peça: a relação de S e Martín se refletem nas cenas entre S e Fede, matriz
do metateatro em Tebas land que mescla o que ‘foi’ com aquilo que ‘está sendo’. Os diferentes níveis
temporais intensificam o jogo na representação e ampliando a ambiguidade da ação principal à
representação do dia do casting, à representação dos ensaios e à representação de Tebas land, além
de tempos e espaços preenchidos apenas por S em seu papel de dramaturgo-personagem.
Fora esses espelhamos, o próprio discurso, explicitamente metateatral, intensifica o jogo. A
princípio, por exemplo, S pretende colocar Martín em cena, representando a si mesmo. Uma vez que
isso lhe é negado pelo diretor da prisão, S emprega um ator, Fede. Martín, então, questiona o
processo de construção do personagem, pois não compreende como outra pessoa pode ser ele além
dele mesmo. “A mim também às vezes se mistura tudo” (BLANCO, 2013, p. 82), confessa S. Ou ainda
no seguinte diálogo:
MARTÍN. ¿Y yo aparezco así en escena?
S. Sí. Todo el tiempo. Sos el protagonista.
MARTÍN. ¿Como una especie de superhéroe?
S. Sí. Más o menos.
MARTÍN. Entonces soy bueno, ¿no? Digo… Porque el superhéroe siempre es bueno.
S. Sobre todo sos el protagonista. El personaje principal. El más importante.
MARTÍN. ¿Pero soy bueno o no?
S. Sí. Sos bueno.
MARTÍN. ¡Mirá!
S. Bueno… Sos como todas las personas. Ni bueno ni malo. O bueno y malo a la vez. Qué sé yo.
MARTÍN. Pero soy sobre todo bueno.
S. Sí. Sí.
MARTÍN. ¿Y entonces en tu obra no mato a mi padre? (BLANCO, 2013, p. 118).
Martín precisa saber se constará no texto dramático toda a conversa que tiveram, cada palavra,
como se fosse uma gravação, ao que S responde que não, que “[…]depois mudo. Mudo algumas
coisas. Modifico um pouco. Não vou fazer uma transcrição exata do que falamos. Uma cópia, um
duplo, um duplicado. O interessante é que mude um pouco. Que altere algumas” (BLANCO, 2013, p.
75, tradução nossa)56. S trata da distância que existe entre o modelo (o real) e a representação. “De
fato, para mim é essa distância a que faz justamente que a arte sempre seja melhor que a realidade”
(BLANCO, 2013, p. 82, tradução nossa)57.
A partir desse espelhamento, podemos relacionar alguns diálogos e situações entre a
representação do ensaio e a representação da ação em si. Alteram-se, portanto, nesses
espelhamentos, tanto o tempo quanto o espaço das situações, além da própria natureza da ação
assistida pelo espectador. Alguns exemplos:
Outros espelhamentos acontecem como prolongação da ação, que vai de Martín para Federico sem
aparente troca de nível na representação, como no trecho a seguir, quando S sugere a inclusão da
música de Roberto Carlos, ‘Amada amante’, na cena:
FEDERICO. ¿Podés poner de vuelta el tema?
S. ¿Otra vez?
FEDERICO. ¿Se puede?
S. Sí. Claro.
FEDERICO. No sé. Tengo ganas de oírlo de vuelta.
* * *58
S. ¿Te gusta?
MARTÍN. Lo escuchaba todo el tiempo. Cada vez que se encerraba sola en el cuarto con llave, lo ponía bien fuerte. A
todo volumen. Para que yo no me diera cuenta que estaba llorando. Yo me conozco la letra de memoria. Muy seguido
la canto. Casi todos los días. Es como una especie de Ave María. ¿Vos conocés el Ave María de memoria?
S. Sí.
MARTÍN. ¿Entero? ¿Entero?
S. Sí. Sí. Entero
(BLANCO, 2013, p. 116).
A última parte da citação apresenta dois grifos porque, quando diz ‘A ver...’ marcado em negrito no
princípio da fala, S sai do cercado e fala diretamente ao público. Ocorre uma quebra da ilusão da
representação que está em pleno curso a fim de alterar o nível da enunciação/representação. O grifo,
próprio do texto de Blanco, marca a leitura do documento judicial tido, em uma leitura tradicional,
como documental. Aqui, o documento perde sua força de real visto ser inserido após o público já ter
assistido à confabulação entre S e Federico e o intuito de incluir documentos não ‘reais’ e ‘qualquer
foto de outro crime pelas fotos do crime de Martín’. Automaticamente, a representação vai da
representação do ensaio para a representação em si, isto é, aquele ‘aqui-agora’.
Em que nível estaria, então, uma verdade mais verdade nesse labirinto?
Impossível (e desnecessário) saber. A verdade de cada nível se constrói independente e livre.
Retorna e parece se contradizer, se desdizer, mas não: reforça apenas seu caráter cíclico, o que
permite a Sergio Blanco alcançar em Tebas land certos efeitos que o homonimato surtiria na
literatura em prosa: uma vez quebrado o pacto ficcional mediante algum traço genuinamente
autobiográfico, toda a estrutura do texto passaria a pertencer a um pacto ambíguo, nebuloso. Na
cena, uma vez aplicada a fórmula autoficcional, a ambiguidade já presente na representação
intensificaria esse efeito e geraria uma estrutura cíclica, que é, por sua vez, enriquecida pelo tema
metateatral.
Um último nível é instaurado em Tebas land desde o princípio e evolui de forma independente da
ação do palco até o fim dela, ora acentuando e ora quebrando com sua representação e ilusão. O
cercado da quadra de basquetebol possui quatro câmeras de vigilância (uma em cada ângulo) e mais
uma que permanece sobre um tripé no centro da cena, como se percebe na figura anteriormente
apresentada. A todo momento são projetadas imagens no telão que vemos ao fundo do cenário:
primeiro, imagens internas de presídios reais; depois, as fotografias de Martín com o pai e do crime;
por fim, em vários momentos, projeta-se ali a representação presente, captada principalmente pela
quinta câmera. Ela registra, por exemplo, a narração do crime feita por ‘MARTÍN/FEDERICO’ (assim
mesmo, juntos) no último ato. A duplicação do nível a partir da projeção filmada do momento épico
que acontece no palco lembra que, mesmo soando como verdade, tudo pode não passar de ficção, de
manipulação de uma suposta verdade colocada em xeque a partir da representação metateatral.
Óscar Cornago (2009, p. 100, grifo do autor) mostra que essa relação entre o real e o filmado gera
um efeito interessante no teatro quando empregado diante da confissão:
Os meios de comunicação, especialmente desde os anos 60 com a difusão da televisão, o vídeo caseiro e finalmente a
tecnologia digital, converteram os palcos em espaços para a confissão, testemunhos pessoais ou testemunhos da
história coletiva. Espaços no quais uma pessoa se senta frente a uma câmera e se vê obrigada a enunciar uma
verdade pessoal, interior, uma verdade na qual se põe em jogo uma experiência que deve ser verificada. Verdade ou
mentira? A verossimilhança da atuação frente à câmera busca seu modo de legitimação na experiência à qual apela o
relato desse ato de confissão provocado pela presença da câmera. Por outro lado, os modos de reconstrução da
história e especialmente as denominadas correntes revisionistas desde os anos 80 também converteram cada vez
mais a figura da testemunha em protagonista principal da escritura do passado e da produção de uma verdade.
O recurso da captação/projeção de imagens permite uma quebra de níveis dentro dos próprios
níveis do discurso. Momentos referentes à representação e à representação do ensaio se mesclam,
além de promover a manipulação de algo próximo à verdade, me interessando aqui o efeito provocado
na recepção desse movimento, isto é, a construção de uma possível ‘verdade’ pelo espectador. Uma
verdade inexpressável, incomunicável e inapreensível. Uma experiência de Verdade. Logo, interessa-
me a verdade construída no texto, o mito criado em torno da figura empírica e social do autor,
conhecido pelo público e pelo leitor pelo nome apresentado como autor da obra. Afasta-se Édipo e
aproxima-se S por meio de Martín. E todos ecoam a mesma humanidade.
Como já afirmei, o relato do crime, com Federico e Martín unidos em uma mesma voz (o texto,
inclusive, assinala que a fala pertence a Martín e Federico), o corpo do ator não é apenas dividido
para que ambos o habitem simultaneamente, mas ampliado, tanto por excesso de personagem como
por excesso de representação: ele está também no telão agora, e “[...] a câmera converte o falante em
testemunha de sua própria vida. Ela é convidada a desenvolver um relato em primeira pessoa, que
não é somente uma primeira pessoa gramatical, mas também física” (CORNAGO, 2009, p. 101), como
se percebe na fala:
MARTÍN / FEDERICO. Fue un domingo. De madrugada. Bien temprano. Yo entro. Abro la puerta y entro. Él está en la
cocina. Ahí. Se había levantado para venir a tomar agua. De golpe me mira y me dice que soy incapaz de traer un litro
de leche. Así porque sí. Yo ahí le contesto que si quiere leche que se la vaya a buscar. Sos una puta, me dice. No le
contesto. ¿Me oíste?, me pregunta. Sigo sin contestarle. Y entonces me vuelve a decir sos una puta. ¿Ves? Te estoy
diciendo que sos una puta y ni siquiera te defendés. Puta (BLANCO, 2013, p. 125).
O mesmo Martín que outrora disse a S que “[...] existem coisas que não são fáceis de contar”
(BLANCO, 2013, p. 76), aqui relata o crime com certa frieza de detalhes. Ao encontrar o pai naquele
dia ‘bem cedo’ (seria às 5 horas?), Martín, que há tempos sofria nas mãos de um pai abusivo, se
permite, por algum motivo, afrontá-lo. O tempo verbal empregado é o presente do indicativo,
aproximando a enunciação de uma representação épica, do que ainda ‘é’. A partir disso, a voz
resultante da fusão das vozes de Martín e Federico agora assume o discurso indireto, ou seja, é
contaminada pela voz do pai. “E então me diz mais uma vez você é uma puta. Vê? Estou te dizendo
que é uma puta e nem sequer te defende. Puta” (BLANCO, 2013, p. 125).
O relato segue ele dizendo que viu, enquanto o pai falava, a figura de uma mulher. Talvez a Virgem
Maria, talvez sua mãe. E o espectro, como para Hamlet, parece pedir-lhe vingança, aponta para a
gaveta de talheres. Martín se aproxima, abre-a, escolhe um garfo, nada diz, aproxima-se do pai que
está sentado na mesa e ainda o chama de puta, ‘uma verdadeira puta’. E
Levanto el tenedor y se lo clavo. Así. De un solo golpe. En el cuello. Tac. ¿Qué hacés?, me grita. Trata de frenarme
pero entonces lo empujo. Contra la heladera. Y ahí le doy un segundo golpe. Tac. En el mismo lugar. Siempre en el
mismo lugar. En el cuello. Estás loco, me grita. Me estás lastimando. Entonces le doy un tercer golpe un poco más
abajo. Acá. Y ahí grita todavía más fuerte. Pero, ¿qué hacés? Me estás lastimando. ¿No ves?, me dice, ¿no ves que sos
una puta incapaz de traer siquiera un litro de leche? En ese momento trata de empujarme de nuevo pero lo tranco
con mi pierna derecha y ahí le doy el cuarto golpe. Tac. En la garganta. En plena garganta. Me estás matando, me
grita. Y entonces se lo entierro bien en el fondo. Se lo clavo bien profundo para que no hable más. Para que no pueda
hablar más. Estás matando a tu propio padre, fue lo último que le escuché decir. Entonces se lo vuelvo a clavar en
plena garganta varias veces más. Tac. Tac. Tac. […] Y después ahí. En la entrepierna. Varias veces. Dieciocho.
Diecinueve. Veinte. Veintiuno. Recién ahí me di cuenta que estaba muerto. Tenía los ojos abiertos pero en realidad ya
no respiraba más. Parecía que me seguía mirando, que aunque estuviera muerto me siguiera mirando igual. Papá, le
dije. Papá. Papá. Pero no me contestó. Estaba muerto. Estaba muerto del todo (BLANCO, 2013, p. 125-126).
A cena ganha sentido de castigo de Sísifo: a narração acontece representada ali seguidamente de
forma dupla: no aqui-agora da representação e no aqui-agora da projeção. Além da própria
experiência do assassinato, Martín revive (ou representa) a sua ação uma vez para a polícia, outra vez
no tribunal, e assim várias e várias vezes, castigo imortalizado pela sua teatralização. Os detalhes, os
locais de perfuração, a exatidão da narração contrasta com a ambiguidade até então plantada. Eles
dividem, inclusive, a dor: no começo da conversa entre dramaturgo e parricida, Martín conta que
sente uma dor terrível no pescoço, uma dor “[...] que vai te deixando rígido e te mata” (BLANCO,
2013, p. 57), local no qual inferiu o primeiro golpe contra o pai. Freud (2014), ao explorar o nosso
desejo natural de matarmos o pai e a esquizofrenia em Dostoievski, escreve que esses espelhamentos
ocorrem porque
Eles significam uma identificação com um morto, com uma pessoa que realmente está morta, ou que está viva e a ela
se deseja a morte. O último caso é o mais significativo: o ataque tem o valor de uma punição. Desejou-se a morte de
outro e agora se é esse outro e se está morto. Aqui a teoria psicanalítica introduz a asserção de que esse outro, para o
garoto, via de regra é o pai, e o ataque – denominado histérico – é uma autopunição para o desejo da morte contra o
odiado pai (FREUD, 2014, p. 16).
E continua: “Quiseste matar o pai, para seres tu mesmo o pai. Agora és o pai, mas o pai morto
[...]” (FREUD, 2014, p. 20, grifo do autor). A culpa e o espelhamento serão sentidos, fisicamente, por
Martín, cuja dor no pescoço pode ser entendida tanto como a culpa pelo primeiro golpe como pelo
deslocamento efetuado. No próprio fim da narração de Martín/Federico a culpa surge diante do corpo
morto: os olhos, elementos tão caros ao mito edipiano, parecem ainda seguir Martín, que já declarara
que gosta de ser observado. Ele sabe que é vigiado o tempo todo na prisão, gosta que S o observe,
projeta uma possível atração sexual entre os dois, constrói, sob o olhar, todo um jogo entre
observador e coisa observada. Ao contrário de Martín, S não gosta de ser olhado, não fica à vontade
em abrir sua intimidade, não permite brechas, o que, também, soa metateatral e irônico, elemento do
jogo.
A partir desse relato, dialogando com Dostoievski ao analisar o parricídio de Martín com o de Édipo
e dos irmãos Karamázov, S questiona a natureza do crime: “Acaso meu pai me queria quando me
gerou? Se nesse instante de paixão nem sequer me conhecia e até talvez estava enaltecido pelo
álcool, por que, então, tenho que amá-lo? Só porque me gerou?” (BLANCO, 2013, p. 133). Logo, todo
o discurso que até então questionava a natureza das coisas, questiona a natureza do mito fundador.
Seria o parricídio apenas uma verdade construída em determinada época, mas igualmente presa a
oposição entre falso e verdadeiro que tanto nos é cara? Ora, a verdade é justamente o que nos liga ao
agora, ao momento este, ao inapreensível da linguagem. O que foi antes já pode ser falso, já pode ser
sombra, e o que vai ser é totalmente desconhecido. S, Martín e Fede, que até então construíram
dúvidas com óculos de sol e tênis Nike, agora questionam justamente aquilo que, para Freud, seria a
base da tomada de consciência do sujeito: questionam o mito. A fábula que sempre desejou dar conta
da existência humana, sua realidade, agora é questionada justamente por uma “[...] duplicação
defeituosa da realidade” (BURGUEÑO, 2013, p. 14) construída por meio de um elemento que se
mostra, portanto, um dos principais na criação da dramaturgia contemporânea: a autoficção.
Por outro lado, o fio trágico aqui ainda existe, e pergunta: questionar o mito não seria ainda
questionar a natureza do tempo? Depois de Édipo, “[...] nenhum homem deixa de inquietar-se com a
instabilidade do destino, ciente de que a satisfação de hoje se transmudará sem esforço no infortúnio
de amanhã” (MAGALDI, 2008, p. 8). Ficcionalizar-se é, assim, uma forma de ficar, de tentar passar
uma rasteira no tempo e ficar.
Portanto, questionando a natureza do parricídio de Édipo, questiona-se a natureza do crime de
Martín, questiona-se a natureza da figura paterna. A origem, como quando S se pergunta: ‘Quando se
começa a escrever realmente um texto?’. Onde está o começo?
Considerações finais
O interesse de Sergio Blanco no olhar de Narciso e de Medusa é que eles, justamente, produzem
uma transformação: o olhar do artista é um olhar que transforma o real. “Esta capacidade que ambos
os olhares têm de transformar, transmutar, converter, transfigurar uma coisa em outra, é o que chamo
de capacidade poética com a qual o artista conta, que também é aquela que vai transformar uma
coisa em outra” (BLANCO, 2015, p.16)60.
O dramaturgo se refere ao mecanismo que permite ver outra realidade onde já existe uma, “[...]
onde só o exercício do olhar opera uma troca no real que dali em diante passa a ser outra coisa: de
moinho passa a ser gigante” (BLANCO, 2015, p. 16).
E então, com nossos olhares, como Narciso faz, tentamos imortalizar, fazer os objetos que criamos resistentes à
morte. E não só os poetas têm medo da morte, mas também aqueles que enfrentam a criação. Estou convencido de
que uma das funções da arte é, justamente, suspender ao menos por alguns instantes esse medo de morrer que todos
nós temos e isso é o que finalmente nos torna maravilhosamente humanos (BLANCO, 2015, p. 50-51, tradução
nossa)61.
Uma vez imortalizado o ‘real transformado’ na obra artística, seu criador igualmente se imortaliza,
enquadrando esse movimento no que Deleuze vai chamar de ato de resistência metafísica inerente a
toda obra artística contra uma ideia de mortalidade, de finitude. Em outras palavras, a arte como um
ato de resistência contra a morte.
Um ato de resistência contra o tempo.
A escrita é sempre edípica.
Referências
BARTHES, R. A morte do autor. In: BARTHES, R. Rumor da língua. Tradução Mário Laranjeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.
BLANCO, S. Las miradas poéticas de Narciso y Medusa: la transformacion de lo real. Ars &
Humanitas, Liubliana, p. 14-19, 2015. Disponível em: https://revije.ff.uni-
lj.si/arshumanitas/article/view/3414/3118. Acesso em: 10 jan. 2018.
BURGUEÑO, M. E. Un territorio más allá de la ley. In: BLANCO, S. Tebas land. Montevideo: Skéne,
2013. p. 3-16.
CORNAGO, Ó. Atuar “de Verdade”: a confissão como estratégia cênica. Urdimento, Florianópolis, v.
12, n. 13, p. 99-111, 2009.
DE MAN, P. Autobiography as de-facement. In: The rhetoric of romanticism. Nova York: Columbia
University Press, 1984. p. 67-81.
FREUD, S. Escritos sobre literatura. Tradução Saulo Krieger. São Paulo: Hedra, 2014.
LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução, Jovita Maria Gerheim
Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Tradução Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
TORO, V. La auto(r)ficción en el drama. In: TORO, V.; SCHLICKERS, S.; LUENGO, A. (ed.). La
obsesión del yo: la auto(r)ficción en la literatura española y latinoamericana. Madri: Iberoamericana,
2010. p. 229-250.
Introdução
No presente texto, convidamos o leitor à apreciação de uma proposta de leitura de Electra enlutada
(1931), de Eugene O’Neill, com um olhar especial a alguns aspectos concernentes aos processos
miméticos centrados na (re)leitura do mito grego de Electra. O tema nos é bastante caro porque, mais
do que um olhar restrito à obra do dramaturgo estadunidense, o vemos como parte significativa de
uma caminhada de estudos que viemos desenvolvendo nos últimos anos.
Partamos, pois, daquilo que nos parece mais elementar quanto ao plano de ressignificação do mito
proposto por O’Neill na trilogia, ratificando, de saída, que há um processo de desconstrução e
reconstrução constante da Electra grega ao longo do ‘mímema’ o’neilliano, tal qual há um trabalho
permanente de subversão do modelo tomado da trilogia esquiliana. A ideia de uma Electra enlutada,
assim como o jogo de sentidos que o título original em língua inglesa possibilita, alude a essa
premissa. Rabelo resume bem esse item da matéria:
O título original da peça possui uma importante ambiguidade centrada no verbo to become que se perde numa
tradução para o português. O próprio dramaturgo – que tinha grande preocupação e talento para intitular suas peças
de modo simbólico e irônico, geralmente mudando o título várias vezes durante a escritura de suas obras – observa
que Mourning becomes Electra, coerentemente com os significados da vida trágica de Lavínia, quer dizer que o luto
assenta, cai bem ou convém a Electra como o luto (preto) torna-se, transforma-se ou converte-se em
Electra, sendo a cor por excelência de seu destino (RABELO, 2004, p. 99, grifo do autor).
Ampliando as proposições de Rabelo, poderíamos propor que o luto, ou o preto, seria o estado de
espírito e cor por excelência tanto de Lavínia, como da Electra grega do mito de tradição oral, como
daquelas refacetadas ainda no contexto grego antigo pelas tragédias, como aquela tomada como
arquétipo pela tradição literária ocidental, pelo ‘cânone’, e replicada com múltiplas nuances nos mais
diversos ‘mímemas’; por exemplo, mesmo em uma obra em que o mito, linearmente, nem ou pouco
apareça, como é o caso da Electra (1901) do escritor espanhol Benito Pérez de Galdós, peça de
grande repercussão publicada exatas três décadas antes de vir a público a trilogia de O’Neill.
Dado patamar da comparação entre os dois ‘mímemas’ inseridos no contexto da modernidade nos
remete aos modos distintos de trabalho com o resgate e abandono parcial das personagens/heroínas
míticas. Sobre a obra de Galdós, mantendo o liame dos argumentos que elegemos para iniciar nossa
reflexão, consideramos como a menção, no título, do nome da protagonista estabelece contraste com
a linearidade da fábula: o material encenado dialoga com o mito grego atualizando-o a partir de
arquétipos ao passo que se deixa a linha narrativa da história grega de lado (GALDÓS, 2002). No caso
de O’Neill, a dissonância com o mito estende-se ao nome da personagem protagonista, ainda que o
conteúdo mitológico seja reapresentado em vários patamares e em um de seus motivos primordiais: o
da maldição familiar (O’NEILL, 1970, 1989).
Nesse sentido, poder-se-ia ponderar que o luto, que tem como um de seus modos de expressão a
cor preta, se conjectura como espécie de vetor de entrada no e mecanismo de leitura do mito, que se
dá pelo viés da atualização do sentido de destino operado pela representação de uma maldição
familiar. O luto seria condensador dos sentidos arraigados ao mito. Em boa medida, isso se dá por
relação metonímica em que ações, símbolos e sentimentos – sobretudo referentes a Electra – que
formam o conteúdo mítico são sumarizados em um conceito chave.
Ocorre que essa leitura/interpretação não é mais, somente, uma revisitação do mito grego, como
tampouco o converte, ao modo galdosiano, em conteúdo da tradição literária. Torna-se uma leitura
também das leituras operadas ao longo do tempo e da série de ‘mímemas’ que dialogam,
transformam, ressignificam, também eles, o mito. É dessa matriz de entendimento que se
desdobrarão nossas ponderações ao longo deste texto.
Do mito à metáfora
Interpretamos que possa ser percebido na trilogia o’neilliana um ponto de ruptura com a série
literária que se debruça sobre o conteúdo mítico. O mito é resgatado intertextualmente para ser
desconstruído, fragmentado e reconstruído segundo novas significações. Se conforme a perspectiva
grega politeísta, consoante a tradição oral, o mito se engendra como denotação do real, no contexto
moderno, conforme suas releituras e sua permanência na memória coletiva, fabuloso, é tomado como
ficção, como metáfora da realidade. Na obra de O’Neill, todavia, assumindo um caráter metafórico e
sendo erigido de acordo com novas molduras narrativas, o mito fabuloso é tomado como metáfora,
metáfora do modo como a sociedade ocidental se relacionou com as questões que formam o conteúdo
narrativo do mito, tais como a traição, a violência, as manifestações do caráter feminino, a luta do
homem contra seus próprios instintos, vontades, verdades.
Há, dessa forma, a convocação ao autoquestionamento. Mais além de uma poética da citação, entra
em jogo um estudo mesmo dos processos de captação do conteúdo citado. Metáfora da metáfora,
representação da representação, o ‘mímema’, a partir da indicação do mito como referente a ser
desconstruído, dirige o público/leitor a questões essenciais que se referem não só à narrativa, mas ao
modo como essa narrativa foi assimilada, à(s) resposta(s) que foi(foram) dada(s) a ele. Essa(s)
resposta(s), pois, também passa(m) pelo processo da desconstrução, que é, em última análise, a
desconstrução – reflexiva – do próprio sujeito (coletivo) que a(s) operou.
Em estudo anterior (LEITES JR., 2012), chegamos a resoluções análogas quando tratávamos, lá, da
releitura do mito grego de Medeia operado pelo texto dramático Des-medeia (1993), da dramaturga
paranaense Denise Stoklos. Na oportunidade, articulamos tal constatação à condição discursiva do
sujeito latino-americano e segundo procedimentos estéticos por nós tomados como próprios do pós-
modernismo. Na mirada da obra do autor estadunidense, ainda que não queiramos propor uma
generalização do que percebemos em ‘corpora’ tão reduzido, acreditamos que tal aproximação nos
leva a considerá-la com maior fôlego como uma das tendências da ‘mímesis’ pós-moderna e que,
ademais, pode ser verificada em ‘mímemas’ inseridos em contexto anterior, tal qual é o caso de
Electra enlutada. Mesmo em Galdós, considerando a forma de expressão do discurso dentro do
discurso, há um olhar que se aproxima a essa metáfora da metáfora, mas que não a desenvolve como
força motriz da ‘mímesis’, não se consolida com núcleo da forma de representação da realidade. Por
um lado, isso pode evidenciar, como defendemos, uma dimensão pós-moderna da obra de O’Neill já
em 1931; por outro, e em consequência, um movimento em crescente no sentido da exploração da
metáfora da metáfora; ou dizendo de outro modo, um fortalecimento de tal processo mimético como
mecanismo possível de dar vazão à perspectiva também moderna mas preponderantemente pós-
moderna de desconstrução – e potencial reconstrução – de paradigmas. Em outros termos,
poderíamos propor a questão vendo a metáfora da metáfora como um dos vetores da ‘mímesis’
moderna e um dos fundamentos da ‘mímesis’ pós-moderna.
Com efeito, se recordarmos a obra de Eurípides, podemos perceber como ali o mito já se desloca de
seu sentido denotativo para uma significação simbólica, fabulosa. A tradição literária ocidental o que
fez foi consolidar, vez a vez, tal movimento, aprofundando-o e chegando, na ‘mímesis’ moderna, a ver
a verdade do mito a partir da ideia de arquétipo, tal qual se pode apreender da obra de Galdós.
Nesses termos, o mito é materialização de determinados motivos primordiais humanos. Resgatá-lo
nada mais é que buscar um referente de aporte para a abordagem de questões tomadas como
essenciais ou universais. O mito, assim, é o veículo do arquétipo, é a forma como a literatura e o
entendimento humano costuraram questões que dizem respeito ao inconsciente coletivo.
O passo dado por O’Neill, que o converge para algo mais próximo de uma ‘mímesis’ pós-moderna
que moderna, segundo nosso entendimento, é promover um deslocamento de olhar que não vê mais o
mito como modo próprio para tratar das ditas questões essenciais; não renega tal força, inerente à
narrativa mítica, porém interpreta-a segundo outra base epistemológica, segundo a qual é o processo
de classificação da realidade operado pelo humano o que atribui a tais questões suposto caráter
universalizante. Não obstante, se amplia para os processos de ressignificação a preocupação de olhar
no que diz respeito à percepção de como se dá a construção de realidade operada pelo mito.
Assim, a releitura do mito é mote para uma releitura das formas como a criação/escritura – e por
que não as maneiras de entendimento humano? – se debruçaram sobre as questões existenciais
fundamentais do humano no intento de dar sentido às coisas do mundo.
Considerando o direcionamento do ‘mímema’ o’neilliano a uma reelaboração da série de
representações que se volta ao mito de Electra, parece-nos cabível, para avançar nessa linha de
argumentação, pontuar como tal particularidade pode ser entendida a partir das proposições de
Auerbach (2009) sobre os dois tipos miméticos que se constituem como matrizes formadoras da
‘mímesis’ ocidental, o grego e o judaico-cristão.
Perscrutando a linearidade da trilogia norte-americana é premente a intercalação do modo grego-
homérico de que trata Auerbach, guiado pela verossimilhança e baseado em uma concepção de
univocidade do discurso, com o modo judaico-cristão, costurado entre os espaços vazios e
fundamentado na necessidade de interpretação/preenchimento por parte do leitor/público. Na
primeira instância estariam, por exemplo, perquirições pelo sentido da verdade por parte dos
personagens da trilogia e as implicações da memória, tomada como forma de reconstrução do
passado. Efetivamente, o falimento de tais estratégias demonstra já a contraposição entre o apego a
elas por parte dos sujeitos postos em cena e o direcionamento argumentativo da obra – ou do ‘autor-
modelo’ de que trata Eco (1994). As verdades são sempre parciais e a memória constructo humano
sujeito ao subjetivo – às vontades e capacidades humanas – no que diz respeito às formas de
construção da realidade. Quebra-se, assim, a legitimidade tanto da verdade quanto da memória como
mecanismos de entendimento da realidade.
Nessa mesma direção, a exploração do psicológico humano ao modo freudiano, o movimento de
idas e vindas fragmentárias das ações e dos personagens, os desdobramentos e circularidades nos
apontam a aproximação ao modo mimético judaico-cristão, que se vale do não declarado para
construir parte significativa do discurso. O obscuro, o tangencialmente revelado, o apenas aludido,
com efeito, é o que dá profundidade à obra e amplia seu universo de significação para o plano
simbólico, mais além do caráter exemplar e de base realista do micro pelo macro – que também está
presente na obra. No entanto, consoante a dimensão epistemológica que ambos os tipos miméticos
carregam por detrás das estratégias composicionais, faz-se mister ponderar sobre um afastamento
ostensivo com relação ao princípio mimético judaico-cristão. As lacunas, conforme argumenta
Auerbach (2009), exigem do receptor o ato interpretativo, seu papel na construção da realidade, já
que a fé, segundo tal concepção, é o que suplanta a existência, e não a verificabilidade ou percepção.
Destarte, em contraste com o modo homérico, assume-se aquilo que Eco (1994) propõe como próprio
do discurso ficcional: o espaço do leitor na construção do sentido. Em linhas gerais, se no modo
homérico temos o leitor como decodificador do significado, no modo judaico-cristão vemos nele o
interpretador do símbolo.
Contudo, segundo o motivo religioso do discurso bíblico, tal prerrogativa adquire função específica
que é contrariada e revertida na obra de O’Neill. O espaço vazio não mais pressupõe um
preenchimento que demonstre a existência quando a crença não está no pressuposto. No lugar dela, o
dramaturgo coloca a disposição ao questionamento, o qual, nada obstante, busca alimentar ao longo
do ‘mímema’.
Nesse sentido, usa do tipo mimético homérico como condutor do discurso superficial, sobretudo no
interior das partes constituintes da obra – interior dos Atos e dos quadros –, o que nos afiançaria uma
aproximação entre a obra e a estética realista/naturalista.
Diante disso, ambos os tipos miméticos agem em contrário à orientação presente nos textos
exemplares trazidos por Auerbach (2009). O jogo entre iluminação e obscurecimento que intentamos
demonstrar estar presente na trilogia evidencia como os padrões percebidos nas narrativas épicas
gregas – a exemplo das narrativas atribuídas a Homero – e nas narrativas judaico-cristãs – a exemplo
dos textos bíblicos – se intercalam, porém em certa medida se anulam. Se ao final da trilogia
o’neilliana o que resta é a escuridão, fechando o ciclo trágico crepuscular, essa obscuridade não é
aquela da ‘mímesis’ judaico-cristã que deixa um espaço vacante para o ‘leitor-modelo’ (ECO, 1994),
que assume papel ‘decididor’. No revés, é a falta de sentido possível. O espaço vazio pode ser
ocupado, contudo, tal qual é insuficiente qualquer verdade, a ocupação nunca será preenchimento; de
espaço interstício, o vazio converte-se em abismo; sempre haverá um espaço aberto ao lado, quiçá
cavado pelo próprio leitor/público/sujeito que ‘decidiu’, induzido pelo texto, revolver a terra em busca
de ‘algo’.
Nesse pormenor, vale-se de um princípio marcadamente referente da ‘mímesis’ homérica: o ponto
de chegada é imposto pelo discurso. Contudo, esse ponto de chegada, em Electra enlutada, tampouco
propõe um sentido unívoco; indica, por outro lado, como argumentávamos, a ausência de sentido, da
qual a falta de luz é símbolo.
Explora, pois, a tendência – e/ou necessidade – humana de tentar dar explicação às coisas do
mundo mesmo quando as condições são impeditivas. Isso segue a linha de proposição exposta por
Foucault (2007) no prefácio de As palavras e as coisas em diálogo com Borges em El idioma analítico
de John Wilkins (BORGES, 1996, p. 84-87). No texto do escritor argentino, comenta-se
especificamente que
[em] certa enciclopédia chinesa que se chama Empório celestial de conhecimentos benévolos [...] está escrito
que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) adestrados, (d) leitões, (e)
sereias, (f) fabulosos, (g) cachorros soltos, (h) incluídos nessa classificação, (i) que se agitam como loucos, (j)
inumeráveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar o
vaso, (n) que de longe parecem moscas. [...] Notoriamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e
conjectural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo. O mundo – escreve David Hume – é talvez o
esboço rudimentar de algum deus infantil. [...] Cabe ir mais longe; cabe suspeitar que não há universo no sentido
orgânico unificador, que tem essa ambiciosa palavra (BORGES, 1996, p. 85-86, tradução nossa, grifo do autor)63.
Ao que acrescenta o teórico francês:
No deslumbramento dessa taxinomia [da enciclopédia chinesa], o que de súbito atingimos, o que graças ao apólogo,
nos é indicado como encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de
pensar isso.
Que coisa, pois, é impossível pensar, e de que impossibilidade se trata? A cada uma destas singulares rubricas
podemos dar um sentido preciso e um conteúdo determinável [...]. Não são os animais fabulosos que são impossíveis,
pois que são designados como tais, mas a estreita distância segundo a qual são justapostos aos cães em liberdade ou
àqueles que de longe parecem moscas. O que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente
a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas categorias [...].
A monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste [...] em que o próprio espaço comum dos
encontros se acha arruinado. O impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam
avizinhar-se. Os animais i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito
fino de pêlo de camelo – onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz imaterial que pronuncia sua
enumeração, a não ser na página que a transcreve? Onde poderiam eles se justapor senão no não-lugar da
linguagem? [...] Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível; [...] esquiva apenas a mais discreta,
mas a mais insistente das necessidades; subtrai o chão, o solo mudo onde os seres podem justapor-se (FOUCAULT,
2007, p. IX-XII, grifo do autor).
O que a perspectiva borgiana traz ao primeiro plano discursivo em O’Neill se dilui no conflito entre
as verdades e na intensa mobilidade dos sujeitos que se contorcem no intento de atribuir sentido(s). O
público/leitor, assim, sem aperceber-se, é colocado no mesmo lugar dos personagens e começa, ele
também, a conjecturar suas verdades, a traçar seu ‘bosquejo rudimentario’. Qualquer que seja a
realidade concebida, no final da experimentação estética, é produto da série alfabética de que fala
Foucault (2007), que no ‘mímema’ o’neilliano converge no jogo das razões e motivações dos sujeitos e
consequências das ações. A única coisa que dá explicação aos fatos é, tautologicamente, o fato de
terem acontecido, de estarem dispostos em tal ordem. Qualquer razão transcendente que se busque é
arbitrária.
Assim, o dramaturgo pensador, pela discursividade, age imperativamente, como a criança de
Compagnon (2007) em O trabalho da citação, e justapõe esquemas, estratégias, processos que, no
final das contas, somente levam a alguma conclusão porque há um sujeito que luta, passo a passo,
para construí-la. Com efeito, o autor a todo momento parece brincar em ironia profunda com o jogo
de repetições em que de pleonasmos se disfarçam as contradições, de acordo com o sistema espiral
que se passa por circularidade.
Reformulando as palavras de Foucault (2007), na obra de O’Neill, não é o fato de o mito ser
‘fabuloso’, assim como tampouco o fato de os Mannon o serem, que torna a proposição impossível,
pois que estão designados como tais, mas a estreita distância segundo a qual são justapostos, em
desdobramento uns dos outros e em paralelo dos seres do ‘mundo real’: todos habitam a mesma
dimensão, a construção discursiva. O espaço comum que justapõe o exposto como fabuloso e o
suposto como real, logo, é ‘arruinado’, como diria Foucault (2007).
O objeto intertextual que é conteúdo do ‘mímema’ não é mais o sentido do mito, mas as formas de
construção do sentido operadas a partir do mito. Do mesmo modo, o ‘sentido da vida’ que se tira da
experiência dos Mannon forma parte do conteúdo dramático, porém o efetivo conteúdo discursivo é o
modo como o sujeito ‘decididor’ necessita dar ordem à enciclopédia confusa, ao absurdo destino
trágico dos Mannon. Metáfora da metáfora, a própria obra se desdobra sobre si mesma, em dois
planos complementares e autoanuladores: de um lado a univocidade do desfecho trágico cerrado
descoberto de uma conversão do sentido grego de destino em uma perspectiva freudiana de
entendimento do humano; de outro, a incoerência desse sentido unívoco em um universo discursivo
em que a própria obra só faz sentido no bojo da verossimilhança interna, no pacto com o
leitor/público, que concorda que, se ‘b’ vem seguido de ‘a’ e precede ‘c’, é porque entre eles há uma
relação; do esquema deve-se retirar um sentido.
Quando a busca de sentido, explorada nos espaços vazios, se transforma em queda no abismo, a
fissura aberta possibilita uma fratura do sujeito que age em movimento contrário àquele apontado por
Lima (2000), já que não há a produção ‘produtiva’ – valorativa – de um novo mundo, de uma nova
realidade; carrega consigo a máxima da insuficiência. A realidade produzida é uma realidade relativa,
falível, transitória, tão disposta ao colapso quanto a realidade anterior sobre a qual se erige a
‘produção’.
Portanto, não podemos afirmar que haja em Electra enlutada uma ‘mímesis da representação’,
segundo os termos propostos por Lima (2000), já que o trabalho de reversão da série descortina a
realidade e dá novas possibilidades estéticas e semânticas para o modelo, subvertido. Todavia,
também a ‘mímesis da produção’ apontada por Lima é já redimensionada segundo outros princípios
miméticos. Há um empenho de ‘produção’ de uma nova realidade, já que o vazio completo é
inconcebível ao humano – mesmo o Teatro do Absurdo, por exemplo, parte de uma ‘mímesis’ da
realidade. Sem embargo, essa ‘edificação’ tem por princípio o evidenciar das rachaduras presentes
nas bases que a sustentam.
No desvelar dos processos que segue, pensando em uma leitura profunda do ‘mímema’, O’Neill age
como um arquiteto que a cada linha traçada vai demonstrando ao cliente, cada vez com maior
intensidade, as medidas distorcidas, os ângulos imprecisos, as proporções contraditórias. Como uma
torre de Babel, quanto mais se adiantam os esforços por levar a cabo a elevação da estrutura, mais
próximo está o desmoronamento.
Trata-se de uma ‘mímesis’ da ‘mímesis’, porém não no sentido platônico do simulacro (PLATÃO,
2007), que pressupõe um ponto de origem para a primeira representação, sendo ela a ponte entre a
cópia segunda e o objeto da representação. Aqui, o objeto da ‘mímesis’ é antes o modus operandi da
primeira representação, ou melhor, da série de representações. Quanto ao ‘fundo de semelhanças’ de
que trata Lima (2000), o ‘mímema’ o’neilliano não se reporta ao mundo, per si, mas ao discurso, à
própria ‘mímesis’, que se torna, pois, objeto de si mesma.
A reversão da trilogia esquiliana, assim, pode ser tomada ainda como o descortinar do processo de
representação que ali se opera com relação às variantes do mito de tradição oral. Notemos, por
exemplo, como o conceito de feminino advindo do ‘mímema’ esquiliano aponta para a máxima de que
a mulher, por natureza, está propensa ao erro e ao enganar – e que, conseguintemente, nela não se
pode confiar. Ora, por mais distanciadas que estejam as trilogias de O’Neill e de Ésquilo nos vários
pontos por nós levantados, e não obstante haver uma ruptura com uma perspectiva absolutamente
patriarcal da realidade, Electra enlutada está conduzida sobre essas mesmas premissas e,
efetivamente, Lavínia e Christine, dentre todos os personagens, são aquelas que mais manifestam
mobilidade de posicionamento, que são caracterizadas por escolhas deliberadas que se voltam contra
elas mesmas e que se distinguem por sua capacidade de ludibriar os demais em favor de suas
vontades individuais. Sem obstar, tanto na Oréstia quanto na obra norte-americana foi tal constituição
do feminino que afiançara o destino trágico. Nesse patamar da relação intertextual, o que distancia
fundamentalmente as obras é o plano de entendimento das motivações humanas, que no ‘mímema’
o’neilliano advém da psique humana e, nesse sentido, de aspectos que suplantam a distinção de
gênero entre masculino e feminino.
Reparemos como a própria premissa da tragédia grega de trazer à temporalidade presente (sua
temporalidade) os fatos passados possibilita a relativização da objetividade do mito. Isso significa uma
abertura ao questionamento sobre a verdade a partir da percepção da perspectiva subjetiva, inerente
à concepção de que haja um autor, uma figura criativa por detrás do discurso, o ‘autor-modelo’ de que
fala Eco (1994). É própria da ‘mímesis’ da tragédia a abertura à ambiguidade e ao paradoxo, tão
coerente com o conceito de trágico exposto por Szondi (2004): há sempre forças que se direcionam
em dois sentidos que se equiparam, andam lado a lado, ao passo que se contradizem. Isso, por si só, já
indica o caminho da superação do discurso unívoco, pressuposto do dogma e da religião. Ésquilo não
explora tal questão a fundo. Sófocles e Eurípides, cada qual a seu modo, dão um passo adiante ao
investigar no mito suas implicações para o humano e para o social, abrindo-se assim uma
compreensão do mundo incorporador da multiplicidade e do relativismo.
A ‘mímesis’ esquiliana, pois, luta no sentido de manter a força reveladora da realidade do mito ao
passo que instaura um modo de contestação dessa mesma realidade, o que quiçá o mito de tradição
oral, a exemplo do tipo mimético bíblico exposto por Auerbach (2009), menos possibilitava. O mito
presente na narrativa homérica, por caminho diverso, tenta conservar a verdade da narrativa pelo
sentido da verossimilhança, ainda que, pela criação de uma unidade discursiva fixada, abra a
possibilidade de negação da verdade ali contida, como diria Auerbach (2009). O mito resgatado da
tradição oral, na tragédia, passa de revelação da verdade a revelação da percepção humana da
verdade. O fato de sua representação cênica estar contextualizada em forma de concurso demonstra
como há, implicitamente, a necessidade de endossamento do público, leitor ‘decididor’, quanto à
legitimidade da subjetividade do tragediógrafo. Consideremos aqui o que Paul Ricoeur comenta sobre
inevitabilidade do conotativo com relação ao literário: “[...] a produção do discurso como literatura
significa precisamente que a relação do sentido à referência é suspensa. A literatura seria o tipo de
discurso que já não tem denotação, mas somente conotação” (RICOEUR, 2005, p. 337, grifo do autor).
Ocorre que entra em questão nesse ponto a problemática da abrangência do estatuto do ‘literário’. A
afirmação de Ricoeur somente transita com segurança em dada esfera de acepção da discursividade,
isto é, se levamos em conta o olhar moderno sobre a obra antiga, já que é ‘nosso’ entendimento de
‘literário’ o que a subsidia.
De dentro do contexto grego antigo, quiçá poder-se-ia perceber com algum fundamento em
Eurípides esse mesmo olhar ‘moderno’ com relação à tragédia esquiliana e, em alguma escala, com
relação ao mito. Se o ‘mímema’ se comporta como mundo/realidade reconstruída, as regras
(parâmetros) de construção – supostamente ficcional – são análogas às formas de
apreensão/organização da realidade tomada como ‘verdadeira’. Em Ésquilo e Sófocles, as duas
‘realidades’ se fundem, em Eurípides, se relacionam, mas se distanciam: refratam-se, uma vez que o
mito é – tomado como – fábula. A partir desse ponto de vista, pois, a incorporação do discurso ao
patamar do literário é o que justifica a passagem do mito à metáfora, já que “[...] na obra literária, o
discurso desvela sua denotação como uma denotação de segunda ordem, graças à suspensão da
denotação de primeira ordem do discurso” (RICOEUR, 2005, p. 338). Ricoeur, a esse fenômeno,
próprio do que define como linguagem poética, chama de ‘referência duplicada’, considerando a
primeira instância da referenciação o interior do discurso tomado como ficcional e o segundo patamar
o atribuído pelos sujeitos autor e receptor como a ‘realidade’.
O que é interessante considerar, sobre tais postulados, é que, no seio do contexto grego, a tragédia
– sobretudo a esquiliana – se conjectura como lugar de representação em que essa referência
duplicada se materializa, se não pela primeira vez, pela primeira vez evidenciando o processo, ou
então promovendo a possibilidade de percepção de tal processo como legítimo/específico daquele tipo
de formação discursiva. Sem obstar, com relação ao mito de Electra, é trazido, pois, por vezes, ao
primeiro plano do conteúdo do mito, desvelando um tema subjacente à narrativa oral.
Não é nosso intento avançar nesse aspecto para conceituar um tipo mimético próprio da tragédia
como gênero literário/artístico, o que, se é que válido, demandaria um esforço analítico mais amplo –
supostamente totalizante – sobre o conjunto de obras inseridas em determinados parâmetros de
composição e contexto. Propomos, no entanto, um olhar sobre a especificidade da ‘mímesis’ da
tragédia como articuladora da justaposição aparentemente absurda entre o real e o ficcional, sendo
que tal aspecto já fora percebido, ao menos em parte, no próprio contexto grego e transmutado à
estrutura superficial e ao próprio conteúdo temático de algumas tragédias, como a Oréstia e as
Electras sofocliana e euripidiana.
Segundo as condições de surgimento da tragédia e os símbolos que carrega, no jogo das máscaras,
ao mesmo tempo Dioniso pode ser bode e homem, o ator pode ser a pessoa e a persona, o destino
trágico pode ser produto das escolhas individuais e das condições universais e a história contada pode
ser real e ficcional. As verdades se sobrepõem ainda que se contradigam, porque as instâncias de
significação são complementares, porém, potencialmente contraditórias, e esta parece ser uma
premissa inerente ao processo de composição da tragédia e dialoga com o sentido de tragicidade. Tal
relação não é levada às últimas consequências em Ésquilo. Talvez tenha sido negada efetivamente por
ele e, em certa medida, por seus sucessores. Contudo, o que O’Neill está a explorar em sua trilogia é
justamente tal paradigma da tragédia, renegado pelos primeiros tragediógrafos, emprestado ao
drama posterior e, poder-se-ia argumentar, esmiuçado e talvez estilhaçado pelo pós-drama.
Na Electra euripidiana, efetivamente, traz-se a primeiro plano o discurso metaficcional em sentido
de revisão da série, tomando os referentes anteriores, marcadamente a Oréstia, como consolidadores
de uma tradição literária, estética, artística. Contrapondo-se mesmo ao modelo do gênero, promove-se
uma revisão do mito que assume matizes de paródia em determinados aspectos. A secularização do
mito apodera a ‘mímesis’ euripidiana no sentido de ampliar os objetos de significação. De fixos –
regidos pelo materializado no mito – tornam-se potencialmente infinitos – regidos pelas possibilidades
criativas do discurso (literário ou não) que tome o mito como referente. É aqui que podemos perceber
o primeiro movimento mimético revertido à ‘produção’ de conteúdo para a série. O conteúdo inserido
não é somente o conjunto de objetos inseridos na linearidade do discurso, como personagens, ações,
sentimentos; é a premissa que possibilita tal movimento de inserção sem que se deixe de falar do
mesmo mito.
Funda-se, pois, um seguimento para a série aberto a atualizações de ambientes, temporalidades,
sujeitos. Instaura-se a condição para que o mito se converta em arquétipo, para que possa se
multifacetar além da abrangência mais ou menos rígida da tradição oral. A partir de então, os
‘mímemas’ que se ajustam a dado sentido, ‘produzido’ na tragédia de Eurípides, promoverão a
‘representação da série’, como é o caso do drama moderno de Galdós. Tal condição se dá porque toda
‘nova’ criação tem a patente disposição em converter-se, de imediato, em ‘velha’, isto é, ser
assimilada pela série, como parte da série, que se redimensiona. A tradição, assim, ainda que pareça
remetente sempre à origem, é, efetivamente, o produto das modificações do(s) referente(s)
primeiro(s), pois só chega à atualidade, como diria Calvino (2002), atravessada pelas leituras feitas ao
longo do tempo.
Consoante essa forma de acepção da série, também o ‘mímema’ o’neilliano é já parte consolidada
do ‘cânone’ literário e dramatúrgico sobre o mito de Electra. Não é o caso de mapear aqui a
ressonância de Electra enlutada. É suficiente, para as discussões que propomos, mencionar que há, a
exemplo da própria obra o’neilliana e segundo ela mesma revela, um movimento cíclico, ou melhor,
espiral, da série. Pensar a série literária como uma linearidade evolutiva, pois, é esforço arbitrário e,
a nosso ver, potencialmente um exercício de distorção do fluxo. A série, ainda que o termo possa
indicar algo em contrário e tenha sido cunhado com vistas à terminologia adotada no campo dos
estudos literários, não indica movimento serial necessariamente. As reminiscências do conteúdo – no
caso, mítico – se fragmentam, diluem-se, recompõem-se, sem sujeitar-se a fronteiras do tipo literário
não-literário ou escrito não-escrito. Tampouco as inter-relações entre ‘mímemas’ podem ser pensadas
em vínculo fechado, que desconsidere o diálogo com outras ‘fontes’, outros vetores de construção
discursiva que estejam fora da série e que tratem de outros temas e motivos, evidentemente; assim
como é de se pensar no resgate atravessado/intermediado por formações discursivas fora da série e
que tratem de correlatos temas e motivos – estando elas em diálogo direto ou não com os ‘mímemas’
da série.
As transformações da série só podem ser entendidas a partir de uma relativa dicotomia entre uma
‘mímesis da representação’ e uma ‘mímesis da produção’ quando pensadas no interior de um recorte
mais ou menos definido, conforme o que buscamos promover no presente trabalho. Isso, no entanto,
não significa apreender a série como um ‘eterno contínuo’. No revés, ainda que possamos falar de
tendências estéticas baseadas em contextos e temporalidades, seguimos a premissa de Eliade (1972)
de um ‘eterno retorno’, para o mito e para a própria série, que se desdobra, vez a vez, sobre si
mesma, já que, conforme as resoluções de Foucault (2007), é somente sobre o próprio discurso que o
discurso pode voltar-se, já que matéria isenta dele não há.
O que intentamos conjecturar, nesse sentido, é uma leitura das proposições de Eliade (1972, 2008)
que congregue uma dimensão não ou menos abordada pelo autor em dadas obras – por conta do
escopo de seu estudo, evidentemente. Consoante o processo ritual do homem arcaico e religioso de
que trata o autor, sua consciência de mundo promove a coparticipação no ato da criação a partir de
uma mentalidade a-histórica, de representação cíclica do tempo, que vez a vez proporciona uma
imersão no illo tempore. Antes que uma ida ao passado, pois, trata-se de um imbricamento entre o
tempo da ação e o tempo primordial, que coexistem. O ritual, assim, não resgata o passado da
criação, refaz a criação do mundo. Podemos entender o processo intertextual segundo a mesma
dinâmica. O texto reinventa, recria a realidade e o conteúdo da série indo ao illo tempore da
representação. O ‘texto primordial’, isto é, tomado como primeiro da série pela memória coletiva ou
individual, destarte, deixa de existir como existia antes porque se ressignifica dentro/na atualização
promovida pelo texto segundo/posterior. Se o texto anterior, segundo a(s) leitura(s) que promovia até
então, não existe mais, porque a recepção agora será atravessada pela dimensão compreensiva
atualizada pelo texto outro, por outro lado somente assim sobreviverá além de sua temporalidade
histórica e alcançará potencial arquetípico, modelar, referencial.
O ‘mímema’ o’neilliano, segundo essa linha de reflexão, destaca-se por mostrar esse caráter ritual
do resgate intertextual em consonância com aquilo que Eliade (1972) define como o ‘terror histórico’.
De acordo com as proposições de Eliade, o homem profano, histórico, conquanto sua consciência
linear do tempo, “[...] que se sabe e se quer criador de história” (ELIADE, 1972, p. 129, tradução
nossa)64, instaura a legitimidade positiva da criação a partir da ideia de invenção individual, que
possibilita o novo – é a partir de tal concepção, por exemplo, que se erige o direcionamento da Electra
(1901) galdosiana em sua dimensão de esperança no progresso da ciência. Todavia, o autor comenta o
falimento de tal inclinação com o declínio de uma concepção pós-hegeliana65 de progresso e evolução
pela história. Isso se dá seja pela permanência de uma consciência arquetípica e anti-histórica mesmo
dentro de uma sociedade historicista – vide os ritos de passagem no ‘mímema’ galdosiano, por
exemplo –, seja pela própria impossibilidade de verificação, pelo homem moderno, de resultados
positivos da proposta historicista, o que determinaria uma tendência de regresso ao pensamento anti-
histórico66.
É nesse patamar que percebemos o ‘mímema’ o neilliano, que efetivamente converge a
mentalidade histórica e uma ‘mímesis’ de aparência naturalista e mais próxima ao tipo homérico em
uma estrutura espiral de base anti-histórica, resgatada pela memória dos personagens, pelos
desdobramentos, pelos fragmentos e fraturas, por uma ‘mímesis’ de fundamento freudiano e mais
próxima ao tipo do Velho Testamento.
Considerações finais
Para além do que uma interpretação pormenorizada do mito babilônico poderia nos aportar – por
exemplo, o caráter teofágico da cosmogonia coaduna com a proposta oswaldiana de uma antropofagia
cultural relativa à criação artística –, nos interessa mormente reparar como, em Electra Enlutada,
O’Neill intenta promover o retorno ao ‘tempo’ de Tiamat, ao pré-existencial, ao anterior ao mundo das
leis, anterior ao cosmos organizado, das formas de classificação do real. Como o akidu, a trilogia
comporta-se como “[...] uma série de elementos dramáticos cuja intenção é a abolição do tempo
transcorrido, a restauração do caos primordial [...]”, porém, sem a “[...] repetição do ato
cosmogônico” (ELIADE, 1972, p. 59, tradução nossa)68. Todo o sentido é abdicado em absoluto. Resta
o nada, já que o tempo e o mundo, ao fim e ao cabo, não são restituídos.
Contudo, o retorno ao caos supõe um potencial movimento de reordenação. No caso da cerimônia
babilônica, a recriação é consequência de uma acepção de que as regras já existentes ‘devem ser
repetidas’. A direção tomada no ‘mímema’ o’neilliano, neste aspecto, é contrária: o mundo já existente
é rechaçado, suas formas de ordenação ‘não devem ser repetidas’. No caso o’neilliano, tal
reordenação, por obedecer a regras, a formas de entendimento/concepção da realidade que estão
fora, além e/ou alheias aos modos de acepção da realidade de que dispomos, não há como expressá-la;
o que se pode – e o que faz o ‘mímema’ o’neilliano – é revelar a dissolução das regras já estabelecidas,
conhecidas.
Isso acusa, por conseguinte, uma relativização de uma concepção trágica elevada ao absoluto. O
absolutismo, também ele, assim, estaria disposto somente no plano de significação do entendimento
da realidade de que dispomos e do qual lança mão o ‘mímema’. O suposto ‘conflito trágico cerrado’
que então se estabeleceria teria como forças antagônicas, como antinomias radicais, justamente
Murdok e Tiamat, ou seja, o conflito entre ‘existência e não-existência’; ou ainda, entre a forma de
existência conhecida e a possibilidade de outras formas de existência além da compreensão/dimensão
do humano e das realidades presentes e reconhecíveis.
Para admitirmos tal hipótese, todavia, teríamos de admitir igualmente uma abrangência do trágico
além das formas de classificação da realidade. Dito de outro modo, teríamos de ultrapassar a
concepção proposta por Lesky (2006) de que a abrangência maior da tragicidade se daria com relação
às formas de funcionamento do mundo; disseminar-se-ia, desta monta, para o princípio da criação.
Logo, no bojo das proposições de Lesky (2006), manter-se-ia a verificabilidade de que Electra
enlutada apresenta uma ‘visão cerradamente trágica de mundo’ porque tal visão se relacionaria ao
‘mundo’, à ‘realidade’ representada e conhecida. Em parâmetro exponencial, que leva a discussão
para um nível além da existência, ou da compreensão da existência, o ‘conflito trágico cerrado’ se
daria relativo ao mundo humano conhecido, porém, nada impediria que, em outra dimensão da
realidade, o trágico não entrasse em vigor.
É interessante reparar, não obstante, como isso implica em afirmar que a criação do mundo, tal
qual o conhecemos, adquire status de erro, de falha, mais do que de ‘bem’, ou de acerto. Se Édipo
mergulha no destino trágico fechado porque não alcança a compreensão maior de sua condição,
igualmente, o criador do mundo que conhecemos, ainda que ‘bem intencionado’, falhou
miseravelmente.
Considerando tal ‘criador’ como uma figura divina, como o deus da mitologia judaico-cristã, por
exemplo, estaríamos falando de um posicionamento com nuances de heresia ou então como algo
inconcebível que se estabeleça desde dentro, desde uma perspectiva de manutenção da fé. Todavia,
entendida a realidade e a criação como constructos humanos, no sentido de Lima (1981) e Foucault
(2007), por exemplo, seria(m) o(s) modo(s) de concepção da realidade empregado(s) pelo humano,
pois, falho(s). O homem, ele mesmo, criador e criatura, partiria de bases equivocadas para conceber a
realidade ou, então, seria incapaz de reconhecer a dimensão relativa a si da realidade que ele mesmo
cria. De qualquer forma, esse seu mundo criado seria um mundo de infortúnios, tautologicamente,
porque ele o criou e entendeu como sendo assim. Nesse patamar, não há escapatória para a condição
humana porque não há no humano capacidade de concepção de mundo que satisfaça seus próprios
anseios, e esse seria o sentido maior da tragicidade de sua condição.
Assim, também a hipótese de uma ‘mímesis da produção’ o’neilliana retornaria relativamente à
ampliação da dimensão de abrangência da ‘produção’. Não há, como dizíamos, a proposição de uma
‘nova forma de conceber a realidade’. Todavia, agencia-se a possibilidade de recriação do mundo em
absoluto desde que negadas não só as formas de criação já estabelecidas – o que faz a ‘mímesis da
produção’ no sentido proposto por Lima – como todas as formas de criação concebíveis pelo
entendimento humano. O que se busca, pois, em diálogo com a acepção de uma metáfora da metáfora,
é a criação da criação, ou então, a ‘produção da criação’.
Para isso, contudo, é necessário um retorno a Tiamat, um mergulho no caos, sem que se indique a
forma de superação desse caos, pois que não há como fazê-lo sob isenção das formas de classificação
de que dispomos, ou seja, sem contaminar o caos com a existência. Destarte, nem ‘mímesis da
representação’ do mundo nem ‘mímesis da produção’ de um mundo, estaríamos diante, em Electra
enlutada, de uma ‘mímesis da alusão da produção cosmogônica’ ou então de uma ‘mímesis da falência
da representação e da produção’.
Referências
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Madrid: Cátedra, 2002.
LEITES JR., P. Leituras de Medeia: o mito e o lastro cultural. Cascavel: Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa de Pós-Graduação– Mestrado e
Doutorado – em Letras, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2012.
LESKY, A. A tragédia grega. Tradução Jacob Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik.
São Paulo: Perspectiva, 2006.
O’NEILL, E. Electra enlutada. Tradução Raimundo Magalhães Junior e Miroel Silveira. Rio de
Janeiro: Bloch, 1970.
PLATÃO. A república: texto integral. Tradução Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007.
RICOEUR, P. A metáfora viva. Tradução Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2005.
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
62 Este texto é parte do resultado de uma pesquisa de Doutorado intitulada O mito de Electra: labor estético, retorno e diferença,
orientada pela Profª. Drª. Lourdes Kaminski Alves na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, com bolsa PDSE/CAPES, modalidade
doutorado sanduíche no Programa de Doutorado Interuniversitário de Estudos Literários vinculado à Escola Internacional de
Doutorado da Universidade de Vigo, UVIGO, Galicia, Espanha, defendida em 2016.
63 “[en] cierta enciclopedia china que se titula Emporio celestial de conocimientos benévolos […] está escrito que los animales se
dividenen (a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros
sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo
de camelo, (l) etcétera, (m) que acaban de romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas. […] Notoriamente no hay clasificación
del universo que no sea arbitraria y conjetural. La razón es muy simple: no sabemos qué cosa es el universo. El mundo – escribe
David Hume – es tal vez el bosquejo rudimentario de algún dios infantil. […] Cabe ir más lejos; cabe sospechar que no hay
universo en el sentido orgánico unificador, que tiene esa ambiciosa palabra”.
64 “[...] que se sabe y se quiere creador de historia”.
65 Adotamos a nomenclatura usada pelo autor, que comenta “Desde Hegel, en efecto, todo esfuerzo tiende a salvar y a valorar el
acontecimiento histórico encuanto tal, el acontecimiento en sí mismo y por sí mismo” [“Desde Hegel, com efeito, todo esforço
tende a salvar e a valorizar o acontecimento histórico enquanto tal, o acontecimento em si mesmo e por si mesmo”] (ELIADE,
1972, p. 135, tradução nossa, grifo do autor). Em outro ponto explicita as bases de uma concepção historicista moderna nos seguintes
termos: “[...] la nueva concepción del progreso lineal […] profesan, por ejemplo, un Francis Bacon o un Pascal. A partir del siglo XVII
El linealismo y la concepción progresista de la historia se afirman cada vez más instaurando la fe en un progreso infinito, fe
proclamada ya por Leibniz, dominante en el siglo de las luces” [“a nova concepção do progresso linear [...] professam, por exemplo,
um Francis Bacon ou um Pascal. A partir do século XVII o linearismo e a concepção progressista da história se afirmam cada vez
mais instaurando a fé em um progresso infinito, fé proclamada já por Leibniz, dominante no século das luzes”] (ELIADE, 1972, p.
133, tradução nossa, grifo do autor).
66 “Una sola cuestión nos interesa: ¿cómo puede ser soportado el terror a la historia en la perspectiva del historicismo? La
justificación de un acontecimiento histórico por el simple hecho de ser acontecimiento histórico, dicho de otro modo, por el simple
hecho de que se produjo de ese modo, encontrará grandes dificultades para librar a la humanidad del terror que los
acontecimientos le inspiran” [“Uma só questão nos interessa: como pode ser suportado o terror da história na perspectiva do
historicismo? A justificativa de um acontecimento histórico pelo simples fato de ser acontecimento histórico, dito de outro modo, pelo
simples fato de que foi produzido desse modo, encontrará grandes dificuldades para livrar a humanidade do terror que os
acontecimentos lhe inspiram”] (ELIADE, 1972, p. 138, tradução nossa, grifo do autor).
67 “En el curso de la ceremonia akidu, que duraba doce días, se recitaba solenemente, y varias veces, el poema llamado de la creación:
Enumaelish, enel templo de Marduk. Así se reactualizaba el combate entre Marduk y el monstruo marino Tiamat, combate que se
desarrolló in illo tempore y que puso fin al caos por la victoria final del dios. […] Marduk creó el cosmos con los pedazos del cuerpo
desmembrado de Tiamat […]. Tenemos la prueba de que esta conmemoración de lacreación era efectivamente una reactualización
del acto cosmogónico en los rituales y en las fórmulas pronunciadas en el correr de la ceremonia. El combate entre Tiamat y Mardu k
era imitado en una lucha entre dos grupos de figurantes […]. La lucha entre dos grupos de comparsas no conmemora basólo el
conflicto primordial entre Marduk y Tiamat; repetía, actualizaba, la cosmogonía, el pasaje del caos al cosmos. […] Como se ve, la
fiesta del akidu comprende una serie de elementos dramáticos, cuya intención es la abolición del tiempo transcurrido, la restauración
del caos primordial y la repetición del acto cosmogónico”.
68 “[...] una serie de elementos dramáticos, cuya intención es la abolición del tiempo transcurrido, la restauración del caos primordial
[...]”, porém, sem a “[...] repetición del acto cosmogónico”.
Capítulo 13
Introdução
As reflexões que se apresentam aqui decorrem de pesquisa anterior, cuja proposta consistia no
estudo comparativo das obras A farsa do advogado Pathelin, de autoria anônima, cuja data de criação
é estimada em aproximadamente 1465, Farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente e publicada em
1523, e Farsa da boa preguiça, do brasileiro Ariano Suassuna, cuja data de publicação é 1960.
No recorte que ora compartilhamos, residem especificamente as discussões acerca da tríade do
cômico, conforme denominação adotada de Reckford (1987), e sua relação com a catarse cômica nas
peças supramencionadas. Nosso intuito é, para além de identificar se e em que proporção ocorrem
tais processos nas obras em estudo, entendê-los como o fio condutor para a catarse cômica, a qual
nos parece ocorrer por conta da ação de um cômico ambivalente.
Destacamos que o estudo comparativo se dá na pesquisa em questão a partir da constituição do
gênero, isto é, a farsa. Nesse sentido, por meio das categorias de análise propostas, temos em vista a
compreensão das estratégias de elaboração do gênero adotadas em A farsa do advogado Pathelin,
Farsa de Inês Pereira e Farsa da boa preguiça, de modo a entender os vínculos que cada uma das
peças mantém/estabelece com a cultura popular e com o cômico ambivalente, como meio para atingir
a catarse cômica.
Para Reckford (1987), a catarse cômica é atingida a partir da tríade relaxamento, resgate e
reconhecimento. Cientes, pois, de que o relaxamento consiste em um estado inicial que visa a atingir
a peça cômica para evoluir às duas outras categorias que o sucedem, podemos entendê-lo como o
desdobramento de um afastamento necessário para a análise de determinada situação. Reñones
explica sua importância nos seguintes termos: “[...] a transformação ocorre mais facilmente em campo
relaxado. O campo tenso não só dificultaria, como poderia chegar a impedi-la” (2002, p. 173).
Diferentemente de gêneros que se caracterizam pela ativação de uma relação emocional entre
personagens e espectador, os gêneros cômicos, entre os quais se situa a farsa, propõem uma relação
de caráter menos emotivo, pautada na inteligência, conforme argumenta Bergson (1980). Nesse
sentido, podemos entender que o relaxamento de que trata Reckford (1987) está justamente
associado a essa questão, visto que propõe para o público certo afastamento em relação às
personagens e à situação em que se encontram, isto é, uma mirada mais isenta de envolvimento
emocional, mais racionalizada.
Entendemos que esse olhar em relação aos elementos do gênero cômico encontra respaldo na
própria constituição da personagem cômica, que, conforme pontua Aristóteles (1984), é inferior a nós
devido aos seus defeitos. O fato de que a vejamos como inferior permite analisar a situação em que
está envolvida sem nos colocarmos em seu lugar e, portanto, com certo afastamento.
Nessa perspectiva, na farsa contribui para o relaxamento a configuração das personagens, que
amiúde representam certos tipos sociais. Nesse sentido, tem-se em A farsa do advogado Pathelin a
dupla de trapaceiros, formada por Pathelin, um advogado cujas características estão associadas à
profissão que desempenha, e Guilhermina, sua esposa e companheira de trapaças; juntos, eles são
responsáveis por desencadear o riso.
Tais personagens – se fosse outra a abordagem – poderiam causar comiseração dado o estado de
miséria em que se encontram: com roupas se desmanchando de velhas e sem nenhum dinheiro.
Ocorre que a forma como se apresentam, fazendo burla de si mesmas e da própria condição, faz com
que o público, longe de apiedar-se, se divirta com eles. Além disso, todas as artimanhas de que se
valem têm em vista uma finalidade: ganhar dinheiro. Isto é, eles não partem de uma motivação com a
qual o público se solidarize, nem se valem de meios aceitáveis para atingir seus objetivos. Tal
motivação atua no sentido de contribuir para o distanciamento necessário no processo de catarse
cômica.
Por outro lado, suas atitudes também não despertam nenhum tipo de revolta no público porque a
dupla de trapaceiros usa de sua lábia contra outras personagens semelhantes a eles, isto é, não se
trata de seres inferiores contracenando com outros de melhor ‘qualidade’, senão de trapaceiros que
se valem de suas trapaças contra outros trapaceiros e por estes também podem ser trapaceados. Esse
jogo está evidenciado, por exemplo, na postura de Guilherme, o comerciante, que após ser ludibriado
pelo advogado Pathelin, acredita tê-lo enganado. O fato de que aquele que foi trapaceado não tenha
consciência de tal e, mais do que isso, acredite estar no outro polo da trapaça, desencadeia o riso e
remete à interpretação de que ora se está em um lado, ora no outro – em consonância com a
cosmovisão carnavalesca, de acordo com a qual nada é imóvel e tudo está sujeito ao rebaixamento, à
inversão.
Ademais dos tipos sociais do advogado e do comerciante, representados pelos dois envolvidos
nessa primeira situação, também tem lugar de destaque na obra a personagem Teobaldo. Essa
personagem se constrói a partir do tipo psicológico do parvo, que remete à figura dos bufões e bobos.
Para Bakhtin (1999), o parvo é uma figura característica da cultura cômica medieval. O fato de que
seja justamente este o homem que lucrará sobre Pathelin, o trapaceiro, ao final da fábula, acentua o
caráter farsesco da situação: não só a trapaça recai ao final sobre o trapaceiro, mas tal feito se dá por
meio de uma personagem tida por todos como inferior, de capacidades limitadas.
Na peça vicentina, Farsa de Inês Pereira, entendemos que são semelhantes as vias pelas quais se
cria um distanciamento e, por extensão, o relaxamento. Também nesse caso nos deparamos com
personagens que representam certos tipos sociais e psicológicos. Nesta última categoria se encontra
Pero Marques, que assim como Teobaldo em A farsa do advogado Pathelin se caracteriza como parvo;
é com ele que Inês Pereira se nega a casar no início e com quem se casa ao final da fábula. Já à
primeira categoria, a dos tipos sociais, pertence Leanor Vaz, a alcoviteira que promove tal união, bem
como Brás da Mata, o escudeiro bom de lábia e covarde com quem Inês Pereira se casa em um
primeiro momento.
Nessa obra, as personagens imprescindíveis da farsa, o travesso e o tolo, não parecem estar tão
definidas como o estão em A farsa do advogado Pathelin. Na obra francesa, Pathelin e Guilhermina
são indubitavelmente os travessos, e o que se passa quando são ludibriados por Teobaldo é a inversão
de papéis entre tolo e travesso. No caso da peça vicentina, entendemos que Inês Pereira tende a se
aproximar daquilo que se concebe como a personagem travessa da farsa, mas seu percurso ao longo
da fábula é outro dado que, embora se veja como esperta, no início se trata de uma jovem
inexperiente que acaba por tomar uma decisão pouco acertada em relação à escolha do marido, por
não ouvir os conselhos da mãe e da alcoviteira, personagens mais experientes. Somente após a notícia
da morte do primeiro marido é que será possível a esta personagem uma tomada de decisão que a
coloque como travessa, visto que se casa com Pero Marques, o tolo, e trata de colocar em prática uma
série de atitudes, entre as quais merece destaque a traição, que delimitam o lugar de cada um, como
trapaceiro e trapaceado.
Nessa perspectiva, nos parece que se coloca uma espécie de inversão na ordem convencional da
farsa, qual seja, a de que o trapaceiro ao final é também trapaceado. Inês Pereira começa por ser
trapaceada e só ao final logra colocar em prática sua trapaça. Poderíamos afirmar que em um
primeiro momento ela é trapaceada pelo seu próprio julgamento, isto é, em vez de a trapaça dar-se
entre duas personagens, ela se dá porque a personagem toma uma atitude pouco acertada e recebe
uma espécie de revés da vida, mas não de alguém especificamente, já que não nos parece acertado
ver o escudeiro Brás da Mata como aquele que promove a trapaça, senão o meio pelo qual ela se dá.
Essa primeira situação, contudo, se coloca como imprescindível para o amadurecimento da moça e,
mais que isso, para a consolidação da personagem como travessa.
Há que se reconhecer que a alteração na ordem convencional dos acontecimentos se caracteriza
por si como uma das inversões propostas pela cosmovisão carnavalesca. Ora, o travesso não é quem
sempre se sai bem, ele também é trapaceado, porque nada é estável, porque tudo está sujeito à
inversão, como destaca Bakhtin (1999). Nesse sentido, nem mesmo a estrutura da farsa pode ser tão
estável a ponto de não estar sujeita a essa mesma inversão carnavalesca.
Na Farsa da boa preguiça, embora de uma maneira mais sutil em determinados aspectos, Ariano
Suassuna também se vale de certos tipos sociais para compor as personagens. Isso ocorre
principalmente no caso das personagens que pertencem ao plano terreno, quais sejam: Joaquim
Simão, Nevinha, Dona Clarabela e Aderaldo Catacão. No caso deste último, o tipo social que está em
cena é o avarento, figura muito recorrente na literatura cômica. Em sua companhia, figura Dona
Clarabela, que como o marido também se destaca pela infidelidade conjugal. Já Joaquim Simão
representa o artista, muitas vezes visto como preguiçoso em nossos tempos. Nevinha, sua
companheira, bastante diferente de Clarabela, segue o modelo da boa esposa, que cuida dos filhos e
se preocupa com o bem-estar da família acima de tudo.
Joaquim Simão e a esposa são muito semelhantes a Pedro Pathelin e Guilhermina no que diz
respeito à pobreza em que se encontram e também à cumplicidade com que agem em diversas
situações. Há que destacar, contudo, que não são eles personagens tão travessas quanto os outros. A
trapaça é um elemento muito presente em toda a peça, mas está disseminada nas diversas
personagens, não ficando restrita à caracterização de uma única figura; ela está inclusive nas figuras
que não pertencem ao plano terreno – Manuel Carpinteiro, Miguel Arcanjo e Simão Pedro (seres
divinos) e Andreza, a Cancachorra, Fedegoso, o Cão Coxo, e Quebrapedra, o Cão Caolho (seres
diabólicos).
O fato de que Joaquim Simão e Nevinha não sejam trapaceiros como as personagens da farsa
medieval em estudo faz com que o espectador esteja mais inclinado para se compadecer deles.
Também contribuem para o compadecimento as recorrentes queixas da esposa com relação à falta de
comida. Nesse sentido, são imprescindíveis a preguiça do poeta e sua falta de preocupação com os
problemas que o afligem para garantir certo distanciamento e o aspecto cômico da obra.
Ao estar a trapaça diluída entre todos, as personagens terrenas passam a ser menos responsáveis
por aquilo que lhes ocorre, visto que embora atuantes estão à mercê de seres divinos e diabólicos, os
quais agem no sentido de favorecê-las ou não. No primeiro caso de trapaça bem-sucedida, Clarabela e
Aderaldo são ludibriados por Fedegoso, que se faz passar por um padre franciscano para conquistar a
confiança da esposa e conseguir que esta lhe entregue um cheque assinado.
Mesmo julgando-se muito esperta, Clarabela se deixa enganar por Fedegoso, porque este se faz
passar por um homem religioso, isto é, uma figura que desperta confiança na sociedade. Não bastasse
dar-se conta de que perdeu todo o dinheiro do cheque, ela é mais uma vez ludibriada, agora por
Quebrapedra, que se faz passar por assessor do delegado (representante da Justiça e, portanto, outra
figura confiável) e leva o peru com o pretexto de tomar depoimento. Essa segunda perda não é
representativa em termos de valor financeiro, mas é de grande importância na ativação do cômico,
dado que a repetição acentua a falta de perspicácia de Clarabela e o êxito da trapaça como tal.
Nessa situação, é interessante notar que há recorrência ao disfarce como forma de engano, um dos
recursos cômicos já elencados no epítome que teria sido escrito por Aristóteles segundo os estudos de
Bender (1996). Esse é um recurso fartamente explorado em diferentes formas cômicas, inclusive
naquelas esvaziadas de sentido ambivalente, no cômico mais superficial, preocupado com o riso fácil.
Ocorre que, no caso em questão, o travestir-se é empregado como um meio para possibilitar uma
situação de sentido muito mais profundo: o casal rico, ao final do primeiro ato, se vê mais pobre. O
engano e a perda do dinheiro promovem um primeiro rebaixamento do casal. Nessa perspectiva,
destacamos a habilidade do autor ao valer-se de recursos que permitem a um só tempo a ativação do
riso como forma de divertimento e a criação de situações que permitem contestar a realidade posta,
de modo a visualizar outras ordens possíveis, isto é, um riso ambivalente.
Já no segundo ato o trapaceado em um primeiro momento é o próprio Joaquim Simão, que havendo
recebido uma cabra como doação (agenciada por Simão Pedro), realiza sucessivas trocas e acaba por
ficar com um pão francês e um conto de réis.
Todas as trocas foram negociadas com Miguel Arcanjo; um ser celestial, portanto, foi quem atuou
como travesso nesse caso específico. Mas a questão é que, como costuma ocorrer na literatura de
Suassuna, em que a religião ocupa lugar de destaque, Manuel Carpinteiro foi quem permitiu que
Simão Pedro favorecesse o poeta com o ganho da cabra e que, por outro lado, Miguel Arcanjo o
trapaceasse com as trocas, porque tinha um plano maior. Neste plano, é o rico Aderaldo que vê na
situação de Joaquim Simão uma possibilidade de lucrar e lhe propõe uma aposta: se Nevinha não ficar
brava com os maus negócios do marido, Aderaldo dá a este um valor em dinheiro; se, ao contrário, ela
se zangar, o marido deve dar-lhe o pão, o conto de réis e ir embora de casa para que Aderaldo fique
com a esposa.
A princípio, parece-nos que estão definidas as posições de cada personagem como trapaceiro
(Aderaldo) e trapaceado (Joaquim Simão). Porém, Nevinha, que escutara o acordo, faz com que o
poeta ganhe a aposta. Assim, a Aderaldo, que se julgava esperto e acreditava que tiraria proveito da
situação, cabe a posição de tolo enquanto Nevinha assume o lugar de trapaceira e garante à família o
enriquecimento, com o que se encerra o segundo ato. Está aí o segundo caso de deslocamento: o
pobre enriquece. Mas essa ascensão tem tempo limitado, pois após enriquecer o casal tem seu
comportamento alterado e começa a praticar a traição, tal qual Aderaldo e Clarabela. Então, por
interferência divina, empobrece novamente, isto é, ocorre a queda.
Como síntese dos constantes movimentos das personagens, podemos dizer que Aderaldo e
Clarabela são ricos, empobrecem e enriquecem novamente; enquanto isso, Nevinha e Joaquim Simão
fazem o processo inverso, pois são pobres, enriquecem e empobrecem novamente. Tal trajetória nos
leva a compreender que a farsa se realiza em sua plenitude, embora de modo diferenciado no que diz
respeito à função da trapaça. Conforme já dissemos, essa plenitude farsesca ocorre quando alguém
trapaceia e, a seguir, a trapaça recai sobre o trapaceado. Entendemos que o principal a se notar nesse
movimento é que ao trapacear a personagem ascende e ao ser trapaceada cai; isto é, a trapaça
garante nessa perspectiva o movimento de coroação e destronamento, imprescindível no ritual
carnavalesco. Ora, esse movimento está garantido no caso de Joaquim e Nevinha, pois eles ascendem
e caem, tendo como seus contrários nessa espécie de ‘gangorra’ Aderaldo e Clarabela. Então, ainda
que a trapaça não seja o único elemento, haja vista a importância do religioso no caso em específico,
esse processo se efetiva, de modo a evidenciar a instabilidade das posições.
Concomitantemente ao processo de resgate, cuja ocorrência nas obras em estudo foi explicitado
anteriormente, ocorre o que Reckford (1987) chama de reconhecimento. Esse último elemento da
tríade do cômico está associado ao dar-se conta da perda que se tem em dada situação e do que se
ganharia com sua alteração na direção daquilo que se deseja.
É importante destacar, quanto a esse estágio, que ele não deve ser confundido com o
reconhecimento de que trata Aristóteles (1984) ao se voltar para a estrutura do mito. Embora ambos
os conceitos estejam associados à passagem de um estado de ignorar para outro de conhecer, o
reconhecimento como parte constitutiva do mito é um processo por que passam as personagens,
enquanto o reconhecimento que compõe a tríade do cômico, assim como os dois outros estágios que o
acompanham, se dá no nível do espectador, a partir da ‘leitura’ do espetáculo/texto cômico.
Nessa perspectiva, entendemos que o reconhecimento em A farsa do advogado Pathelin decorre da
tomada de consciência de que a justiça é falha. Reconhece-se, diante das falhas de Pathelin e da
forma como se conduz a farsa, que o modelo de justiça, pautado na habilidade oratória dos
advogados, não garante a resolução dos impasses por que passam os indivíduos de então e, mais do
que isso, acaba por legitimar certas injustiças. Assim, dotado dessa consciência, o espectador poderia
se abrir para a transformação de tal quadro. Nesses termos, poder-se-ia afirmar que o tratamento
conferido pela farsa ao advogado, símbolo de determinado modelo de justiça, acaba por mortificá-lo
de modo a abrir para a possibilidade de novos modelos de justiça, o que se revela como um processo
próprio do cômico ambivalente.
Quando o vendedor de tecidos vai até a casa do casal de trapaceiros, o marido lança mão de uma
diversidade de línguas para fazer crer que estava louco. Embora inicialmente Guilherme mantenha
sua convicção de que Pathelin esteve em sua loja comprando o tecido e a cena a que assiste não passa
de uma estratégia para não pagar a conta, aos poucos é convencido de que de fato se enganara com
relação à identidade daquele que lhe comprou fiado o tecido. Tal convencimento se concretiza no
momento em que Pathelin faz uso do latim; essa seria, pois, a ferramenta que confere legitimidade à
situação. Nessa perspectiva, se evidencia certo destronamento do latim, que estava muito associado
ao culto religioso, ao trato dos temas considerados sérios, e acaba sendo empregado como
legitimaçãode uma trapaça.
Jean Batany (2002, p. 387) chama atenção ainda para o fato de que ao empregar-se o latim entre
falas regionais se aponta para certo rebaixamento de uma língua que, naquele momento, era dotada
de enorme prestígio. Esse pode ser entendido como um caso pontual de rebaixamento, de
destronamento da língua da elite, dado que esta aparece entre outras línguas consideradas muito
inferiores. Nessa perspectiva, o relaxamento consiste num estágio que se alcança a partir da
associação da diversidade de línguas faladas com a loucura – e não como indício de um sujeito
letrado, como potencialmente se veria em outros contextos. Esse estágio, por seu lado, acaba por
possibilitar que se pense sobre a superioridade de dada manifestação linguística ante outras (resgate)
e se cogite um novo contexto em que tal hierarquia não exista, tal como não existe em cena
(reconhecimento).
Outra situação reveladora da importância do uso da linguagem como elemento de trapaça é aquela
em que Pathelin instrui o jovem pastor a berrar como um animal diante do juiz para convencê-lo de
sua insanidade: “Pathelin – Ah, então sua causa é boa. É ótima mesmo... Vou lhe ensinar um excelente
meio para sua defesa. Venha cá. Você (cochichando) dzz... entendeu? Teobaldo – Não é difícil. Farei
exatamente o que o senhor está mandando” (A FARSA..., 2015, p. 19).
Nessa perspectiva, falar várias línguas, entre as quais se encontra o latim, como sinal da morte,
simboliza um estado de loucura, do mesmo modo que não apropriar-se de um código linguístico frente
ao tribunal também o é. Em ambos os casos, é a astúcia com a linguagem, proveniente do advogado,
que garante êxito nas trapaças empreendidas, o que evidencia sua validade como ferramenta de que
se vale o trapaceiro. Porém, para que a trapaça se complete em sua plenitude é preciso que o
trapaceiro também seja trapaceado, e isso ocorre quando o pastor se vale das recomendações que
recebera para não pagar os honorários do próprio advogado, com o que se encerra a farsa. Tal
questão remete para o reconhecimento de que nenhuma posição é estável e se está sempre suscetível
à inversão.
Já na farsa vicentina, o estágio de reconhecimento está associado ao dar-se conta, por parte do
espectador, de que as aparências podem conduzir a escolhas equivocadas, tal qual ocorre com Inês
Pereira ao casar-se com o escudeiro, e que a simplicidade tem seu valor. Nessa perspectiva, entende-
se que o espectador seria conduzido a acreditar que perde ao optar por uma sociedade arraigada na
aparência e teria ganhos caso optasse por um modelo mais verdadeiro, mais fundamentado na
essência, na simplicidade, tal qual é a conduta de Pero Marques.
Por outro lado, Pero Marques não é o modelo que se deseja seguir, haja vista que se caracteriza
como um parvo, isto é, dotado de características associadas ao ridículo e limitada capacidade
intelectual, e, diferentemente do pastor de A farsa do advogado Pathelin, não passe pelo ritual de
coroação. Tal quadro conduz o espectador a certo impasse: isto porque ele reconhece o que ganharia
abdicando do modelo de sociedade em que se encontra, mas também se depara com um modelo de
sociedade em que o verdadeiro segue sendo subjugado. Ao fim e ao cabo, parece não haver solução
possível, visto que o que se tem não é o que se deseja e o que se deseja não parece viável.
Nessa perspectiva, ocorrem os processos de relaxamento, resgate e reconhecimento. Porém, este
último se dá em perspectiva diversa daquela que se espera, dado que, em vez de apontar para a
possibilidade de um panorama melhor do que aquele em que se encontra o espectador, ele remete à
impossibilidade de resolução das problemáticas sociais postas em evidência. Entendemos que, desse
modo, o sentido ambivalente da obra se atenua, visto que é limitado o caminho que conduz à catarse
cômica, em decorrência das problemáticas apontadas em relação à forma como se efetivam
relaxamento, resgate e reconhecimento.
No caso da farsa suassuniana, o reconhecimento se dá por meio do resgate da capacidade de
perceber as diferenças sociais. Num primeiro momento, o fato de que Aderaldo seja rico e de que
Joaquim Simão viva na pobreza parece ser justificado porque, enquanto o primeiro trabalha
ininterruptamente, o outro é preguiçoso. Tal leitura estaria de acordo com a lógica do sistema em que
se produziu a própria obra. Porém, com o decorrer das ações, essa preguiça, que parecia causa
condenável para a miséria da família do poeta, passa a ser ressignificada, principalmente devido à
forma como os seres divinos a problematizam.
Dado que, como dissemos antes, a preguiça era o que atenuava a seriedade da miséria em que
vivem Joaquim e sua família, de modo a evitar que o espectador, em vez de rir, se compadeça frente a
tal situação, à medida que tal preguiça passa a ser ressignificada, conforme ocorre no final do
primeiro ato, com a fala de Manuel Carpinteiro, então, o espectador está direcionado a perceber as
diferenças sociais como situações injustas, isto é, a situação atual com a qual não está satisfeito. Essa
insatisfação remete para a possibilidade de uma situação diferente, a renovação.
Ocorre que, tal como Gil Vicente, Suassuna parece não estar convencido de que tal alteração pode
dar-se no mundo terreno, haja vista que, quando Joaquim e Nevinha enriquecem, também eles passam
a ter uma conduta recriminável, marcada pela traição. É por essa razão que voltam a ser pobres. E o
retorno à pobreza, com a consequente retomada dos valores cristãos, conduz ao entendimento de que,
mais do que não ser finalidade para o homem religioso, o acúmulo de bens materiais representa
significativo risco ao seu caráter e à sua relação com Deus, embora não seja ele em si o pecado.
No final das contas, Aderaldo e Clarabela seguem ricos até a hora de acertar contas com a morte,
enquanto Joaquim Simão e Nevinha retomam o antigo modo de vida.
São falhas passíveis de um tratamento cômico a avareza de Aderaldo e a prática do adultério por
parte dele e da esposa e, em determinado contexto, também de Joaquim Simão e Nevinha. A dita
preguiça de que tanto acusam o poeta não o é de acordo com a perspectiva religiosa, dado que,
quando Joaquim faz menção à retomada de seu antigo modo de vida, recebe aprovação de Manuel
Carpinteiro, o qual tampouco recrimina seu plano de enriquecer por meio da criação de folhetos. O
que há na fala da personagem de cunho divino é, mais precisamente, a recomendação do amor e da
fidelidade – qualidades que afastam do vício da avareza (amor ao próximo) e da promiscuidade ou
traição conjugal.
De modo geral, poderíamos argumentar que não se altera o cenário social que aponta para um
desequilíbrio passível de abordagem cômica. Isso porque Joaquim Simão e Nevinha, mesmo que com
perspectiva de enriquecimento, seguem sendo pobres e retornam ao antigo modo de vida, o que faz
crer que ‘tudo será igual’. Por outro lado, a obra aponta para a ideia de que, após a morte, as
condutas recrimináveis serão punidas, com o Inferno ou, de forma mais branda, o Purgatório, e
aquelas que se mantêm conforme um determinado modelo serão recompensadas com o Céu. Frente a
tal panorama, na peça suassuniana, caso a conduta considerada correta não seja recompensada com a
mudança do mundo que se tem para aquele que se deseja, ela o será no pós-morte.
Nesse viés, a obra se afasta do tom pessimista com que nos deparamos em Farsa de Inês Pereira e,
dado a via que adota para tal, assume um tom catequizador, pois o reconhecimento a que direciona
não se limita a mostrar o quanto se perde com a situação na que se encontra e se ganharia em outra.
O espectador é conduzido a reconhecer que uma situação melhor é alcançada a partir de uma
conduta consoante com os preceitos cristãos, com a prática da caridade, o respeito ao modelo
monogâmico e a valorização do ser em detrimento do ter. Essa situação pode não ser possível no
contexto terreno, mas será alcançada no pós-morte.
Considerações finais
A peça suassuniana promove uma intertextualidade com ideias e personagens bíblicas, de forma
cômica, sem, contudo, deixar de atribuir validade a tais elementos. Em outros termos, poderíamos
dizer que promove uma forma de intertextualidade que não nega o texto primeiro, mas, pelo
contrário, trata de reafirmar seu sentido. Embora as personagens de ordem divina sejam retratadas à
imagem e semelhança dos humanos, esse rebaixamento atua no sentido de evidenciar a proximidade
entre ambos os grupos e não no sentido de desvalorizar os primeiros. O fato de que também eles
estejam suscetíveis a certas falhas conduz ao reconhecimento de que embora se cometam certos
desvios, tal qual Joaquim comete ao render-se ao adultério, é possível retornar ao caminho correto
(em conformidade com a ideologia cristã) e agir no sentido de alcançar o mundo ideal, o qual se torna
possível no plano do pós-morte.
Ao propor as três etapas por que passa o espectador frente à obra para atingir a catarse cômica,
Reckford (1987) chama atenção para o entendimento de que o cômico é coisa séria, não no que se
refere ao tratamento dado, mas aos fins que se tem. Em outros termos, se reconhecemos que o texto
cômico tem potencial de propiciar um relaxamento e, a partir deste, conduzir ao resgate e ao
reconhecimento, de modo a viabilizar uma catarse cômica, estamos, em consonância com Reckford,
ratificando o seu potencial de produzir um efeito no espectador.
A catarse cômica consiste num “[...] processo transformador que permite integrar elementos
psicológicos, imaginários, sociais e mitológicos numa nova formação, mais flexível e criativa”
(REÑONES, 2002, p. 178). Ela é elemento essencial para diferenciar dois tipos de cômico já que, de
acordo com Reñones (2002, p. 186), “[...] o que diferencia o humor transformador do alienante é a
possibilidade que o primeiro tem de apontar alternativas, enquanto o segundo enfia o dedo no outro,
ridicularizando-o na comparação mesquinha de melhores e piores”.
Entendemos que o que Reñones chama de humor transformador corresponde àquilo que para
Bakhtin (1999) é o cômico ambivalente, isto é, aquele que para além de fazer rir possui potencial de
regeneração. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que a catarse cômica só se realiza de fato quando
se criam as condições para a produção de um cômico ambivalente, por meio de um processo que
começa pelo relaxamento, passa pelo resgate e se completa no reconhecimento.
Tais condições são atendidas nas peças em estudo em proporções diferenciadas e por meio de
recursos também diversos, conforme apontamos ao abordar a forma e a intensidade como se dá o
processo de distanciamento, resgate e reconhecimento em cada uma delas. Dado que, a despeito das
nuances mencionadas, tanto em A farsa do advogado Pathelin, como em Farsa de Inês Pereira e Farsa
da boa preguiça, os três estágios são alcançados, criam-se as condições necessárias para que o
espectador se depare com a catarse cômica. Portanto, em nenhuma delas se poderia falar de um
‘humor satírico negativo’ ou de simples ‘riso alegre destinado unicamente a divertir’, para usar os
termos de Bakhtin (1999). As três farsas, cada uma a seu modo, e cada qual dialogando com o
contexto social e os recursos artísticos de seu momento, conduzem a um cômico ambivalente.
Referências
ALENCAR JÚNIOR, L. de. Do cômico, grotesco, irônico, obsceno e farsesco. Revista de Letras,
Fortaleza, v. 24, n. 1-2, jan./dez. 2002.
______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6. ed. Tradução Aurora Fornoni
Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 2010.
BATANY, J. Escrito/oral. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C. (coord.). Dicionário temático do ocidente
medieval. Tradução Lênia Márcia Mongelli, coordenação de tradução de Hilário Franco Júnior.
Bauru: Edusc, 2002. p. 383-395.
BENDER, I. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1996.
BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Tradução Nathanael C. Caixeiro. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1980.
COSTA, R. da. Duas imprecações medievais contra os advogados: as diatribes de São Bernardo de
Claraval e Ramon Llull nas obras Da consideração (c. 1149-1152) e O livro das maravilhas (1288-
1289). História e Direito, Volta Redonda, v. 3, n. 3, p. 23-35, nov. 2008.
RECKFORD, K. J. Aristophanes’ Old-and new comedy. Chapel Hill: University of North Carolina
Press, 1987.
REÑONES, A. V. O riso doído: atualizando o mito, o rito e o teatro grego. São Paulo: Ágora, 2002.
SUASSUNA, A. Farsa da boa preguiça. Ilustrações de Zélia Suassuna. Rio de Janeiro: José Olympio,
2014.
TODOROV, T. Los géneros del discurso. Traducción de Jorge Romero León. Caracas: Monte Ávila
Editores Latinoamericana, 1996.
VICENTE, G. Auto da Índia. Auto da barca do inferno. Farsa de Inês Pereira. Apresentação e
notas de Benjamin Abdala Junior. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.
69 Este texto é parte do resultado de pesquisa de Doutorado intitulada Ambivalência cômica: a farsa em cena, orientada pela Profª. Drª.
Lourdes Kaminski Alves no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, defendida em 2016.
70 “[...] un gran número de juegos de palabras tiene que ver con un solo rasgo de la lengua: la posibilidad, de un solo significante o
varios significantes semejantes, de evocar significados completamente independientes”.
SOBRE OS AUTORES
Alexandre Villibor Flory é Doutor em Literatura Alemã pela FFLCH-USP (2006) e pós-doutor pela
UFRJ (2017). Atualmente é professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), onde atua na área
de Teoria Literária, Literatura Brasileira, Teoria, Crítica e História do Teatro, em nível de graduação e
de pós-graduação. É coordenador do Grupo de Pesquisa Crítica Literária Materialista (UEM) e
participa do Grupo de Pesquisa Formação do Brasil Moderno: literatura, cultura e sociedade (UFRJ). É
membro do GT da Anpoll Dramaturgia e Teatro. É editor-chefe da revista Acta Scientiarum –
Language and Culture, da área de Linguística e Literatura. Também participa da Rede Internacional
Teatro e Sociedade. É um dos organizadores do livro Teatro e intermidialidade (2015), além de autor
de artigos publicados em diversas revistas e capítulos de livros na área dos estudos teatrais.
alexandre_flory@yahoo.com.br
Cauê Krüger é Doutor em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bacharel
em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), graduado e licenciado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é coordenador da Especialização em
Antropologia Cultural e professor da Licenciatura em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. É pesquisador, com experiência docente, capítulos de livros e artigos acadêmicos
publicados na área de: Antropologia, Sociologia, Teatro e Educação, com ênfase em Antropologia e
Sociologia da Arte e Estudos da Performance. caue.kruger@pucpr.br
Elizabete Sanches Rocha é Doutora e Mestre em Estudos Literários pela FCL - Unesp - Araraquara
(2003 e 1998). Realizou Pós-doutorado em Estudos para a Paz pela Universidade Autônoma de
Barcelona, com a pesquisa ‘O papel da cultura na transformação de conflitos: um estudo sobre o
grupo de Teatro do Oprimido Forn de Teatre Pa’tothom de Barcelona’ (2014). Pós-doutorado em
História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, com a pesquisa “A
internacionalização do Teatro do Oprimido como forma de resistência social” (2009). Docente do
Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da FCL - Unesp – Araraquara. Docente da
Graduação em Relações Internacionais da FCHS, da Unesp de Franca. Líder do Grupo de Estudos e
de Pesquisa credenciado no CNPq: Núcleo de Estudos Linguísticos e Culturais (NELC). Membro do
Grupo de Pesquisa UnB/CNPq ‘Teoria, História e Historiografia’. Membro do Grupo de Pesquisa
Unila/CNPq ‘Pós-colonialidade e Integração Latino-Americana’. Membro do ‘Grupo de Pesquisa em
Dramaturgia e Cinema’, da FCL/Unesp/Araraquara. Membro do GT ‘Dramaturgia e Teatro’, da
Anpoll.elizabete.sanches@gmail.com
Lourdes Kaminski Alves é Doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), pós-doutora em Letras: Cultura e
Contemporaneidade pelo Programa de pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
do Rio (PUC-Rio), pós-doutora em Letras pelo Programa de pós-graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Associada da Unioeste, onde atua nos
cursos de graduação e da pós-graduação em Letras nas áreas de Literatura e Estudos Comparados,
Literatura e Dramaturgia, Abordagens Contemporâneas da Crítica Literária e Estudos Pós-Coloniais.
Coordenadora do GT da Anpoll - Dramaturgia e Teatro (biênio 2016-2018). Professora Associada na
Abralic, na Associação Brasileira de Hispanistas (ABH), Líder do Grupo de Pesquisa Confluências da
Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens (Unioeste/CNPq). Coordenadora
do Núcleo de Estudos Comparados e Pesquisas em Literatura, Cultura, História e Memória Latino
Americana. É editora científica da Revista Línguas & Letras. Membro do Grupo de Investigación de la
Literatura Comparada (GILC), del Instituto de Investigaciones Literarias - Gonzalo Picón Febres - de
la Facultad de Humanidades y Educación, de la Universidad de Los Andes, Mérida-Venezuela. Bolsista
produtividade em pesquisa CNPq. Consultor-ad-hoc Fundação Araucária, Capes e CNPq. Co-
organizadora dos livros: Imagens das Américas: interfaces sociais, culturais e literárias (Coleção
Confluências da Literatura e outras áreas; v. 5), (Edunioeste, 2016); Poéticas e políticas da linguagem
em vias de descolonização (Pedro & João Editores, 2017); Teatro e ensino: estratégias de leitura do
texto dramático. (Coleção Caderno Temático do GT Dramaturgia e Teatro da Anpoll), (Pedro & João
Editores, 2017); Poéticas sob suspeita - (Coleção Confluências da Literatura e outras áreas, v. 6),
(Mercado de Letras, 2018). O que contam estas mulheres? Memória e representação na Literatura
Latino-Americana (Pontes, 2019). Autora dos livros Os Narradores das vidas secas: da construção do
texto à constituição do sujeito (Scortecci, 2007). Intertexto e variável trágica no teatro de Dias Gomes
(Edunioeste, 2010). lourdeskaminski@gmail.com
Maricélia Nunes dos Santos é Doutora em Letras (2016) pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste –, onde atua como docente de Língua
Espanhola, Cultura e Literatura de Língua Espanhola do Curso de Letras e Coordenadora pedagógica
de Língua Espanhola no Programa Idioma sem Fronteiras (Nucli-IsF). Integrou o quadro de docentes
efetivos de Espanhol/Língua Adicional na Universidade Federal da Integração Latino-Americana –
Unila – de 2014 a 2016. É vinculada ao Grupo de Pesquisa Dramaturgia e Teatro da Anpoll e membro
do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas
Linguagens (Unioeste/CNPq). maricelianuness@hotmail.com
Pedro Leites Junior é Doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, área de
concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Doutorado
Sanduíche - Universidade de Vigo - Espanha), desenvolvendo pesquisa intitulada O mito de Electra:
labor estético, retorno e diferença. Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras,
área de concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
desenvolvendo pesquisa intitulada Leituras de Medeia: o mito e o lastro cultural. Mestre em Teatro e
Artes Cênicas pelo Máster de Teatro e Artes Escénicas da Universidade de Vigo - Espanha,
desenvolvendo pesquisa intitulada Substrato mítico em Electra, de Pérez Galdós: processos miméticos
e tragicidade. Graduado em Letras Português/Italiano pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná. Professor no Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus Jaguariaíva. É vinculado ao Grupo
de Pesquisa Dramaturgia e Teatro da Anpoll e membro do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção,
História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens (Unioeste/CNPq).
pedroleitesjunior@gmail.com
Ricardo Augusto de Lima é Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina, com período
sanduíche entre junho e dezembro de 2016, na Universitat de Barcelona, na Unitat de Estudios
Biográficos. Atualmente é professor colaborador no Departamento de Teoria Literária da
Universidade Estadual de Maringá, Paraná. Atua em pesquisas na área da Teoria Literária e Teatral,
nos temas que envolvem a autoficção, escritas de si e homoafetivas. É vinculado ao Grupo de Pesquisa
Dramaturgia e Teatro da Anpoll e editor-responsável da Revista Estação Literária, UEL.
ricardodalai@gmail.com
Walter Lima Torres Neto formou-se bacharel em Artes Cênicas com Habilitação em Interpretação e
Direção Teatral pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Unirio em 1989. Realizou
entre 1989/1990, Curso de Especialização na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris.
Fez estudos de pós-graduação, Mestrado (DEA), em 1992, e Doutorado, em 1996, em Théâtre Arts du
Spectacle no Institut d Études Théâtrales de lUniversité de la Sorbonne Nouvelle, Paris III. No Rio de
Janeiro, atuou como ator e diretor trabalhando com Bia Lessa, Rubens Correa, Luiz Antônio Martinez
Corrêa, Lourdes Bastos, Moacir Chaves, Wolf Maia entre outros diretores. Foi professor e
coordenador do Curso de Teatro: Habilitação em Direção Teatral da Escola de Comunicação da UFRJ
de 1997-2003. Transferido para Curitiba, foi professor do Departamento de Artes, estando na chefia
desta unidade da UFPR durante o ano de 2007. Atualmente, é professor titular de estudos teatrais no
Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, atuando na área de francês e no Programa de Pós
Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná em Curitiba. Tem interesse na área dos
Estudos Teatrais. Trabalha atualmente com pesquisas no âmbito da Cultura e da Prática Teatral:
Dramaturgias, História e Linguagens. Autor de artigos em revistas como: Repertório (PPGAC/UFBA);
Remate de Males (IEL/Unicamp); Sala Preta (PPGAC/USP); Urdimento (PPGT/Udesc); Percevejo
(PPGT/Unirio) e Folhetim (Cia Teatro do Pequeno Gesto/RJ). Em 2001, organizou e traduziu os textos
de André Antoine, editados pela Editora 7 Letras, Rio de Janeiro. Entre 2012/2013, realizou um
estágio pós-doutoral de pesquisa sobre o discurso dos programas de teatro, a convite de Marvin
Carlson, na CUNY, em Nova Iorque. É autor de Ensaios de cultura teatral, (Paco Editorial, 2016) e
organizou À sombra do vampiro: 25 anos de teatro de grupo em Curitiba, (Kotter Editorial, 2018) e
Teatro em francês: quando o meio não é a mensagem (Editora da UFPR)
Índice remissivo
A
Adensamento dos experimentos ‘reais’ 1
Antagonismo relacional 1, 2, 3, 4
Antonin Artaud 1, 2, 3, 4, 5
Antônio Abujamra 1, 2, 3, 4, 5
Antropofagia 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15
Apagamento 1, 2, 3
Apropriação 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Ariano Suassuna 1, 2, 3, 4
Augusto Boal 1, 2, 3, 4, 5, 6
Autoficção cênica 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
B
Baudrillard 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15
Benito Pérez de Galdós 1, 2
Bertolt Brecht 1, 2, 3, 4
C
Catarse cômica 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15
Cena da ilusão 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18
Cena intermedial 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Cômico ambivalente 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Companhia Brasileira de Teatro 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12
Companhia do Latão 1, 2, 3
Corpo do ator 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9
Corpos impróprios 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Corpos reais 1, 2, 3, 4, 5
D
Decolonial 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Des-medeia 1
Dramaturgia brasileira contemporânea 1
Dramaturgia contemporânea 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
E
Electra enlutada 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12
Estética do oprimido 1, 2, 3, 4, 5, 6
F
Felipe Hirsch 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Forn de Teatre Pa’tothom 1, 2, 3, 4, 5, 6
Francisco Carlos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25,
26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35
H
Hamlet 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27,
28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79,
80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100
História do teatro 1, 2, 3, 4, 5, 6
I
Imagens sensíveis 1, 2, 3, 4
Intertextualidade 1, 2, 3
M
Metateatro 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
Microutopias do texto e da cena 1, 2
Mímemas 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
Mímesis 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27,
28, 29, 30, 31, 32, 33
Mito 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28,
29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54,
55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80,
81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93
N
Não-cena 1
O
O pão e a pedra 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Ó
Ói nóis aqui traveiz 1, 2, 3, 4
P
Performance relacionais 1, 2
Problematização da autoria 1
Processos emancipatórios 1
Processos miméticos 1, 2
PROJETO Brasil 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14
R
Recriação 1, 2, 3, 4, 5
Resgate intertextual 1
Ressignificação 1, 2, 3, 4, 5
Revista brasileira 1, 2, 3, 4
S
Sentimento de pertencimento 1, 2
Sergio Blanco 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14
Sófocles 1, 2, 3, 4, 5, 6
Sutil Companhia de Teatro 1, 2, 3, 4
T
Teatro brasileiro 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11
Teatro contemporâneo 1, 2, 3, 4, 5
Teatro do Oprimido 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24,
25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50,
51, 52, 53, 54
Teatro e sociedade 1, 2, 3
Teatro épico 1, 2, 3, 4, 5, 6
Teatro épico-ritual 1
Teatro Fórum 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10
Teatro político 1, 2, 3, 4
Tebas Land 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21
Tecnologias digitais 1
Teoria do teatro 1
Trágico 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20
Z
Zé Celso 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27,
28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35
Table of Contents
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Expediente
4. Copyright
5. Créditos - colaboradores
6. Ficha catalográfica
7. Endereço
8. Prefácio
1. Um teatro líquido?
1. Walter Lima Torres Neto
9. Apresentação
10. ATO I
1. A CENA CONTEMPORÂNEA EM DESTAQUE
11. Capítulo 1
1. ANTROPOFAGIA EM CENA: ZÉ CELSO CANIBALIZA BRECHT NO TEATRO OFICINA1
1. Anna Stegh Camati
12. Capítulo 2
1. Considerações sobre o teatro épico-ritual da trupe de atuadores ‘Ói nóis aqui traveiz’
1. Alexandre Villibor Flory
13. Capítulo 3
1. É PÃO, É PEDRA
1. Priscila Matsunaga
14. Capítulo 4
1. DIANTE DA DOR ALHEIA: A IMPORTÂNCIA DO TEATRO DO OPRIMIDO NA
RECONSTRUÇÃO DO SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO
1. Elizabete Sanches Rocha
15. Capítulo 5
1. O NÃO-LUGAR DAS REVISTAS NA CENA CONTEMPORÂNEA
1. Maria Cristina de Souza
16. Capítulo 6
1. HAMLET NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO: AS VERSÕES CÊNICAS DE HIRSCH E
ABUJAMRA
1. Célia Arns de Miranda
17. ATO II
1. ESCRITURAS E PERFORMANCES
18. Capítulo 7
1. IMAGENS SENSÍVEIS E O CORPO DO ATOR NA CENA INTERMEDIAL22
1. Gabriela Lirio Gurgel Monteiro
19. Capítulo 8
1. CORPOS IMPRÓPRIOS E CORPOS REAIS: DA CRUELDADE AO DOCE EXTERMÍNIO DA
CENA DA ILUSÃO25
1. Martha Ribeiro
20. Capítulo 9
1. MICROUTOPIAS DO TEXTO E DA CENA: DISCURSO E PERFORMANCE RELACIONAIS
CONTEMPORÂNEOS EM PROJETO BRASIL
1. Cauê Krüger
21. Capítulo 10
1. OPÇÃO DECOLONIAL E ANTROPOFAGIA NO PROJETO DRAMATÚRGICO DE
FRANCISCO CARLOS
1. Lourdes Kaminski Alves
22. ATO III
1. TEATRO, MITO, RESSIGNIFICAÇÃO E AMBIVALÊNCIA
23. Capítulo 11
1. ‘LOS MÍOS SON FALSOS’: METATEATRO E AUTOFICÇÃO EM TEBAS LAND, DE SERGIO
BLANCO49
1. Ricardo Augusto de Lima
24. Capítulo 12
25. RETORNOS E CONTORNOS DO MITO DE ELECTRA: LEITURAS DE UMA ‘MÍMESIS’
DRAMATÚRGICA O’NEILLIANA62
1. Pedro Leites Junior
26. Capítulo 13
1. O CÔMICO AMBIVALENTE E A CATARSE CÔMICA69
1. Maricélia Nunes dos Santos
27. Sobre os autores
28. Índice remissivo