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Recepção Dos Mitos Na Dramaturgia Vol 2

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© © All Rights Reserved
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Comissão Editorial

Ma. Juliana Aparecida dos Santos Miranda


Ma. Marcelise Lima de Assis

Conselho Editorial
Dr. André Rezende Benatti (UEMS*)
Dra. Andréa Mascarenhas (UNEB*)
Dra. Ayanne Larissa Almeida de Souza (UEPB)
Dr. Fabiano Tadeu Grazioli (URI) (FAE*)
Fernando Miramontes Forattini (Doutorando/PUC-SP)
Dra. Yls Rabelo Câmara (USC, Espanha)
M. Marcos dos Reis Batista (UNIFESSPA*)
Dr. Raimundo Expedito dos Santos Sousa (UFMG)
Ma. Suellen Cordovil da Silva (UNIFESSPA*)
Nathália Cristina Amorim Tamaio de Souza (Doutoranda/UNICAMP)
Dr. Washington Drummond (UNEB*)
*Vínculo Institucional (docentes).
Joseane Prezotto
Orlando Luiz de Araújo
Renato Cândido da Silva
Organizadores

RECEPÇÃO DOS MITOS GREGOS NA DRAMATURGIA


BRASILEIRA

VOLUME II

Catu, Ba
2021
© 2021 by Editora Bordô-Grená
Copyright do Texto © 2021 Os autores
Copyright da Edição © 2021 Editora Bordô-Grená

Todos os direitos garantidos. É permitido o download da obra, o compartilhamento


e a reprodução desde que sejam atribuídos créditos das autoras e dos autores. Não é
permitido alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais.

Editora Bordô-Grená Projeto gráfico: Gislene Alves da Silva


https://www.editorabordogrena.com Capa: Keila Lima de Assis
bordogrena@editorabordogrena.com Fotografia - capa: Julieta do Amaral Bacchin
Editoração e revisão: Editora Bordô-Grená

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecário responsável: Roberto Gonçalves Freitas CRB-5/1549

R295
Recepção dos mitos gregos na dramaturgia brasileira:
[Recurso eletrônico]: Volume II / Organizador(s) Joseane
Mara; Orlando Luiz de Araújo; Renato Cândido da Silva. –
Catu: Bordô-Grená, 2021.

2027kb, V.2 (187fls.) il: Color

Livro eletrônico
Modo de acesso: Word Wide Web
<www.editorabordogrena.com>
Incluem referências

ISBN: 978-65-87035-33-8 (e-book)

1. Teatro – Dramaturgias. 2. Mitologia grega. Título.

CDD B869.92
CDU 087.5

Os conteúdos dos capítulos são de absoluta e exclusiva responsabilidade dos autores.


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 8
Organizadores
A ADAPTAÇÃO TEATRAL DA MATRONA DE ÉFESO EM 11
GUILHERME FIGUEIREDO
Pauliane Targino da Silva Bruno

UMA NOITE COM ZEUS: A RECEPÇÃO DO MITO DA 33


CONCEPÇÃO DE HÉRACLES NA TRAGICOMÉDIA
CONTEMPORÂNEA UM DEUS DORMIU LÁ EM CASA, DE
GUILHERME FIGUEIREDO
Stefanie Cavalcanti de Lima Silva

ENTRE REALIDADE E FICÇÃO: ANA CLITEMNESTRA, DE 49


CARLOS HENRIQUE ESCOBAR
Maria de Fátima Silva

O HERÓI, A FERIDA E A FLECHA: O RESGATE DE FILOCTETES 77


EM RAMOM, O FILOTETO AMERICANO, DE CARLOS HENRIQUE
ESCOBAR
Orlando Luiz de Araújo e Renato Cândido da Silva

UM NOVO OLHAR SOBRE A INSURGENTE CLÁSSICA: 103


REVISITANDO MEDEIA EM MATA TEU PAI, DE GRACE PASSÔ
Marco Aurélio Rodrigues

UM BRADO FEMINISTA CONTRA A “SEVÍCIA, VIOLÊNCIA, 123


ESTUPRO E MORTE”, EM MEDEIA NEGRA (2018), DE MÁRCIO
MARCIANO E DANIEL ARCADES
Denise Rocha

O MITO GREGO E O POPULAR CIRCENSE EM ELECTRA NO 139


CIRCO, DE HERMILO BORBA FILHO
Beatriz Pazini Ferreira

PROMETEU DECOLONIZADO: VIOLÊNCIA E PROJETO EM CENA 152


Willame Araújo de Lima
MULHER E MITO NA RECEPÇÃO BRASILEIRA DE LISÍSTRATA DE 172
ARISTÓFANES
Ana Maria César Pompeu

SOBRE OS ORGANIZADORES 184


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 185
NOTA SOBRE A CAPA 188
APRESENTAÇÃO

Em continuidade ao primeiro volume do livro Recepção dos mitos


gregos na dramaturgia brasileira, este Volume II traz a público nove estudos
críticos, de diversos pesquisadores, acerca da recepção da mitologia clássica
greco-romana na dramaturgia brasileira. Os estudos aqui reunidos,
construídos a partir de diferentes abordagens e concepções teóricas, visam
contribuir com os Estudos Clássicos no Brasil, em especial no campo da
Recepção.
Assim, o primeiro capítulo, A adaptação teatral da Matrona de Éfeso
em Guilherme Figueiredo, de Pauliane Targino da Silva Bruno, aborda a
dramaturgia de Guilherme Figueiredo, cuja obra retoma com notável
constância mitos greco-romanos em chave cômica. Dos dramas de
Figueiredo, destacam-se Greve geral, Um deus dormiu lá em casa, Os
fantasmas, A raposa e as uvas e A muito curiosa história da virtuosa
matrona de Éfeso. Este último é o objeto de estudo da autora, que evidencia,
em diálogo com o Satyricon, de Petrônio, o tema antigo da “viúva
desonesta” como um arquétipo.
O drama mítico de Figueiredo também é investigado por Stefanie
Cavalcanti de Lima Silva, no capítulo Uma noite com Zeus: a recepção do
mito da concepção de Héracles na tragicomédia contemporânea Um deus
dormiu lá em casa, de Guilherme Figueiredo. Ao analisar a versão do mito
de Hércules escrita por Figueiredo, a autora destaca permanências e
inovações no processo de recepção da comédia latina Anfitrião, de Plauto,
bem como a originalidade de Um deus dormiu lá em casa para a
dramaturgia brasileira.
Se Guilherme Figueiredo foi, ao que tudo indica, o dramaturgo que
mais escreveu peças míticas de temas cômicos no Brasil, Carlos Henrique
Escobar foi, certamente, um dos autores que mais escreveu peças de temas
mitológicos trágicos. Da sua produção, destacam-se as peças Antigone
América, Medeia masculina (José Medeia), Ramom, o Filoteto Americano e
Ana Clitemnestra. É em torno da produção desse autor que os dois
próximos capítulos se direcionam.
No terceiro capítulo, Entre a realidade e a ficção: Ana Clitemnestra,
de Carlos Henrique Escobar, Maria de Fátima Silva analisa o mito de
Clitemnestra a partir da peça Ana Clitemnestra. A peça de Escobar é uma
reescritura mitológica inspirada em um caso verídico envolvendo figuras de
primeiro plano da sociedade e da política brasileira do final do século XIX e
início do século XX: Euclides da Cunha, sua mulher Ana da Cunha e o
amante dela, Dilermando de Assis. Partindo desse drama familiar, que
remete, sobretudo, à tragédia Oresteia, de Ésquilo, a autora investiga
relações entre “realidade” e “ficção” na peça Ana Clitemnestra.
O quarto capítulo, O herói, a ferida e a flecha: o resgate de Filoctetes
em Ramom, o Filoteto Americano, de Carlos Henrique Escobar, de autoria
de Orlando Luiz de Araújo e Renato Cândido da Silva, analisa a peça de
Escobar, em diálogo com a tragédia Filoctetes, de Sófocles. Os autores
buscam identificar aproximações e distanciamentos entre as obras, com
destaque para a caracterização das personagens Filoctetes e Ramom Ianaiá,
bem como para a configuração das armas e das feridas de ambos os heróis.
No quinto capítulo, Um novo olhar sobre a insurgente clássica:
revisitando Medeia em Mata teu pai, de Grace Passô, Marco Aurélio
Rodrigues trata da reescritura brasileira contemporânea do mito de Medeia
referida em seu título. Ao buscar na insurgente clássica a voz oprimida de
Medeia, que precisa ser escutada, o autor discute problemáticas atuais da
sociedade brasileira, evidenciadas pela dramaturga Grace Passô ao
reescrever o mito clássico.
Medeia é também objeto de estudo para Denise Rocha no capítulo
Um brado feminista contra a “Sevícia, Violência, Estupro e Morte”, em
Medeia Negra (2018), de Márcio Marciano e Daniel Arcades. A autora
apresenta, entre outros elementos de sua análise, características da obra
Medeia negra, enfatizando a vulnerabilidade da personagem Medeia e de
suas companheiras na prisão, as quais são constantemente vítimas do
machismo. Além disso, a autora evidencia, a partir do diálogo com a obra, a
situação de mulheres, por vezes anônimas e invisíveis, nos cárceres
nacionais.
Em O mito grego e o popular circense em Electra no circo, de
Hermilo Borba Filho, Beatriz Pazini Ferreira investiga a tentativa do

|9
dramaturgo Hermilo Borba Filho de realizar uma tragédia moderna a partir
do mito de Electra. Levando em consideração o contexto das manifestações
populares brasileiras, a autora discute a atuação de Borba Filho na
valorização do teatro popular atrelada à retomada do mito de Electra no
espaço circense.
No capítulo Prometeu decolonizado: violência e projeto em cena,
Paulo Willame Araújo de Lima, ao reconhecer na figura de Prometeu o
símbolo da criatividade e da relação harmônica entre o homem e a natureza,
bem como a necessidade de reviver a força deste mito no processo de
emancipação coletiva, apresenta uma perspectiva decolonial do mito e da
tragédia Prometeu acorrentado, de Ésquilo, através de uma reflexão
filosófica e dramática.
No último capítulo, Mulher e mito na recepção brasileira de
Lisístrata de Aristófanes, Ana Maria César Pompeu tem como objeto de
estudo a peça Lisístrata, a primeira comédia feminina dentro da obra
supérstite de Aristófanes. Na peça, as mulheres agem em duas frentes para
forçar seus maridos a acabarem com a guerra: fazem uma greve de sexo e
tomam a Acrópole de Atenas. Essa comédia serviu de símbolo para a
resistência feminina em diversos movimentos no Brasil e no mundo. Além
de evidenciar que a recepção de Lisístrata no Brasil se deu através de
traduções da peça do grego para o português, e não de uma leitura da obra
original, a autora destaca que Aristófanes estabelece a força feminina por
meio de paradigmas míticos, relacionados às deusas Ártemis, Atena e
Afrodite.
A todos os colaboradores deste Volume II, deixamos aqui os nossos
agradecimentos, por compartilharem conosco seus saberes acerca da
dramaturgia mítica brasileira. Ao público, desejamos uma ótima leitura e
esperamos que possa partilhar desse entusiasmo que se revela em um
convite sempre renovado da arte brasileira à antiguidade clássica.
Os Organizadores

|10
A ADAPTAÇÃO TEATRAL DA MATRONA DE ÉFESO
EM GUILHERME FIGUEIREDO

Pauliane Targino da Silva Bruno

O dramaturgo brasileiro Guilherme Figueiredo (1915-1997),


conhecido por escrever suas peças de temas mitológicos, dá voz à história da
matrona de Éfeso em sua peça A muito curiosa história da virtuosa matrona
de Éfeso, montada por Alberto d’Aversa no Teatro Brasileiro de Comédia
(TBC), em 1958 (GUZIK, 2013, p. 136).
A peça A muito curiosa história da virtuosa matrona de Éfeso põe
em cena a história de uma viúva que jurou fidelidade eterna ao seu marido,
mas que fere esse juramento ao se consolar com um soldado, enquanto
chorava a morte recente do marido. Tal peça também retoma um tema
antigo ao tratar do arquétipo da “viúva desonesta”1, presente no Satyricon
(111-112) de Petrônio. Porém essa temática ecoa outra história romana
anterior a narrada por Petrônio, a de Dido e Eneias, presente na Eneida (I
a.C.) de Virgílio, pois Dido prometeu lealdade ao marido morto, Siqueu, e,
depois de incitada ao amor pelo Cupido, apaixona-se por Eneias e se une
amorosamente a ele.
Em complemento a essas informações, Franco (2014, p. 72-73)
informa, de modo explicativo, que há duas alusões significativas ao texto
virgiliano no trecho da história da “Matrona de Éfeso” de Petrônio:
Há ainda duas citações ipsis litteris de Virgílio – ambas do livro IV, o
mais lírico de toda a obra e dedicado totalmente à rainha, e ambas se
referindo a Dido –, nos capítulos CXI e CXII, em relação à Matrona
de Éfeso. A primeira “id cinerem aut manes credis curare sepultos?”,
“Você acredita cuidar daqueles restos mortais ou dos manes

1
O arquétipo da “viúva desonesta” está presente também em outras personagens míticas
como: em Jocasta, que se casou com Édipo, após a morte de Laio; e em Dido, que se
uniu amorosamente a Eneias, depois da morte de Siqueu.
sepultados?”, a diferença entre o verso petroniano e o virgiliano
consiste na mudança de caso na palavra “Manes, ium”, que no
primeiro está no acusativo plural “manes” e, no segundo, no ablativo
plural “manis”, mas, mesmo assim, têm o valor de aconselhamento
para que as viúvas não se aniquilem juntamente com os maridos
falecidos. A segunda mostra quando a Matrona de Éfeso, assim como
Dido, quando, apaixonada pelo herói Eneias, “placitone etiam
pugnabis amori? / nec uenit in mentem quorum consederis aruis?”,
“Acaso você ainda combaterá com um amor desagradável? / Não
vem à mente nos campos de quem você terminará?”, se divide entre
resguardar o amor nutrido pelo esposo falecido e se entregar ao novo
amor que está ao seu alcance. A mesma dicotomia é vivida pela
matrona, que, sofrendo pela perda do marido, deseja se entregar ao
soldado.

Desse modo, verifica-se que Petrônio indica textualmente a sua


inspiração para a abordagem do tema da “viúva desonesta”, usa-o e evoca
explicitamente partes do poema virgiliano (A., 1-4); essas partes serão ainda
comentadas mais adiante. Assim como fez Petrônio ao aludir a Virgílio,
Figueiredo em sua peça indica logo na epígrafe de onde retirou o assunto a
ser tratado em sua comédia: “... malo mortuum impendere, quam vivum
occidere. (PETRÔNIO, Satíricon)”. Tal trecho em latim está presente no
final do parágrafo 112.7 do Satyricon.
A peça de Figueiredo é uma comédia em três atos. Inicia-se com um
prólogo dialogado, no qual conversam Diana e Júpiter sobre o desejo do
deus de se encontrar amorosamente com Cíntia2 (a mulher mais virtuosa da
cidade de Éfeso), mas a deusa não concorda, pois essa mulher é casada, é,
também, a sua melhor sacerdotisa e isso mancharia a imagem virtuosa da

2
O nome Cíntia faz referência à deusa Diana, conforme indica Harvey (1998, p. 120):
“Cíntia e Cíntios (G. Kýnthia e Kýnthios), nomes dados a Ártemis (Diana) e Apolo,
derivados de Cintos, montanha situada em Delos, berço de ambas as divindades.
Confirmado na peça através da fala de Cíntia: “Quando eu nasci, meus pais me
dedicaram a Diana, a deusa da cidade, a deusa casta; e por isso me deram o nome de
Cíntia” (FIGUEIREDO, 1964, p. 227).

|12
cidade protegida por ela; porém Diana não consegue impedir os impulsos
amorosos do pai e a contragosto acompanha Júpiter nesse plano. Antes
disso, o deus professa que o marido de Cíntia, Endimião, será entregue à
Diana. E, enquanto quer convencer a filha de ficar com esse mortal, Júpiter
apresenta Endimião como um homem forte e corajoso:
JÚPITER: - [...] Conheces Endimião, o esposo de Cíntia? (Silêncio
obstinado de Diana) Olha-o! (Endimião aparece a E ... É belo, forte e
está vestido de pastor. Traz um cajado, uma trompa de chifre a
tiracolo) Volta de recolher as ovelhas por causa da tempestade. Olha-
o! Sôbre os seus músculos a chuva é orvalho em coluna dórica; seus
olhos são tão firmes que não se vêem as pupilas, como os olhos das
estátuas. (FIGUEIREDO, 1964, p. 188, grifos do autor)

A personagem Endimião de Figueiredo faz referência ao Endimião


mítico, conforme apresenta Grimal (2005, p. 134): “Endímion, neste caso
apresentado como um pastor jovem e de grande beleza, inspirou à Lua um
profundo amor”. Nessa parte do mito, Selene (Lua) apaixona-se pela força e
beleza do mortal; e da mesma forma que o Endimião provocou paixão na
Lua, o Júpiter de Figueiredo avisa que Diana se apaixonará por Endimião, o
marido de Cíntia. Além disso, a Lua e seu sentimento de amor profundo por
Endimião também podem ser associados à Diana, que é considerada a Lua,
como afirma Grimal (2005, p. 48) ao contar o mito de Ártemis (a referência
grega da deusa romana, Diana), irmã de Apolo (Sol): “Os antigos já
interpretavam Ártemis como a personificação da Lua, que vagueia nas
montanhas. O seu irmão Apolo era também habitualmente olhado como a
personificação do Sol”. Essa associação da Lua à Diana aparece claramente
no segundo ato da peça:
SENTINELA: - [...] Olha, lá está a lua ...
CÍNTIA: - Lá está Diana ... (FIGUEIREDO, 1964, p. 227)

E ainda, segundo Júpiter, Diana não somente se apaixonará por


Endimião, mas também terá cinquenta filhas e um filho com ele: “E, no
entanto, êle te dará cinquenta filhas e um filho” (FIGUEIREDO, 1964, p.
204). Esse número de filhos também equivale ao número de filhas tidas por

|13
Endimião, como afirma Grimal (2005, p. 134): “Endímion teria tido
cinquenta filhas da sua amante”.
Depois disso, os dois deuses transformam-se em humanos para
executar o plano de conquista amorosa da mortal Cíntia. Diana será Sofia, a
serva de Cíntia, e Júpiter será Eromante, o adivinho (FIGUEIREDO, 1964,
p. 187-190). O nome Sofia vem do grego sófos e significa “sabedoria”; e
Eromante vem da junção de dois nomes gregos éros (amor, desejo, paixão) e
mántis (adivinho, profeta), em suma, o “profeta do desejo ou adivinho do
amor”. Tais nomes são bem significativos para cada um dos papéis vivido
pelos deuses, pois, ao longo da peça, a Sofia-Diana dá bons conselhos à
Cíntia, tentando demover a ideia dela de morrer junto com o marido; e o
Eromante-Júpiter é um adivinho (como um deus, suas previsões são
seguras) e deseja ardentemente a senhora casada.
Ademais, essa transformação dos deuses em humanos faz referência
à comédia Anfitrião3 de Plauto, na qual Júpiter e Mercúrio se transformam
nos mortais Anfitrião e Sósia, respectivamente. No prólogo recitado por
Mercúrio, ele explica como acontece essa transformação:
Nunc ne hunc ornatum uos meum admiremini,
Quod ego huc processi sic cum seruili schema;
Veterem atque antiquam rem nouam ad uos proferam;
Propterea ornatus in nouum incessi modum.
Nam meus pater intus nunc est eccum Iuppiter.
In Amphitruonis uertit sese imaginem
Omnesque eum esse censent serui qui uident,
Ita uersipellem se facit, quando lubet.
Ego serui sumpsi Sosiae mihi imaginem,
Qui cum Amphitruone | abiit hinc in exercitum,
Vt praeseruire amanti meo possem patri,
Atque ut ne qui essem familiares quaererent,

3
Guilherme Figueiredo escreveu uma comédia intitulada Um deus dormiu lá em casa,
cuja peça trata-se de uma reescritura de Anfitrião, de Plauto. Cf. Figueiredo, Quatro
peças de assunto grego, 1964, p. 3-58.

|14
Versari crebro hic cum uiderent me domi.
Nunc cum esse credent seruum et conseruum suum,
Haud quisquam quaeret qui siem aut quid uenerim.4
(Am., 116-130)

Agora, não estranhem meu figurino, por eu estar aqui aparecendo


assim com este aspecto de escravo: exporei a vocês uma velha e
antiga história renovada, por conta da qual vim ornamentado de
uma nova maneira. Pois eis que meu pai, Júpiter, está lá dentro
agora. Ele próprio se transformou à feição de Anfitrião, e todos os
escravos que o veem tomam-no por ele. Assim, ele se transforma e
troca de pele quando lhe apraz. Já eu assumi para mim a feição do
escravo Sósia, que partiu daqui rumo ao exército com Anfitrião, para
que eu pudesse servir ao meu apaixonado pai, e para que os escravos
não ficassem questionando quem eu era, ao me verem
perambulando com tanta frequência aqui em casa. Agora, como eles
creem que eu sou um escravo e que sou um companheiro de
escravidão deles, pessoa alguma questiona quem eu sou, ou por que
vim.5

Em convergência, o objetivo do Júpiter de Plauto é o mesmo do de


Figueiredo, seduzir uma mortal; no primeiro caso, a mulher desejada é
Alcmena, no segundo, Cíntia. Ambos passam a noite com as mulheres
desejadas, passando-se por outro mortal. Como também a transformação
dos deuses em mortais nas duas peças é anunciada no prólogo.
Além disso, o prólogo da comédia de Figueiredo, composto pelo
diálogo entre Júpiter e Diana, é uma criação do dramaturgo, baseada na
peça Anfitrião, como já foi mencionado. E tais personagens não estão
presentes na história da “Matrona de Éfeso” de Petrônio.
No primeiro ato, inicia-se com o diálogo entre Eromante, Necros e
Arconte6, que começam questionando acerca do poder da adivinhação e das

4
Texto latino retirado da edição de Ernout de 2001.
5
Tradução do latim para o português de Lilian Nunes da Costa (2010).
6
Do grego árkhon: chefe, era aquele que tinha o poder de governar a cidade.

|15
profecias desse adivinho, dentre elas, Eromante afirma ter previsto o roubo
da estátua do templo de Diana. E Necros7, parente de um dos acusados do
roubo da estátua – Partenoclepto8, o seu cunhado –, aproveitando o assunto,
solicita ao Arconte que ele, em caso de morte, possa enterrar o seu parente,
mesmo sabendo não ser possível por causa das leis da cidade. Depois disso,
o Arconte e Eromante partem para uma discussão sobre a política, as
instituições e a moral na cidade. A partir disso, surge como assunto, na
conversa deles, o exemplo de casal virtuoso de Éfeso, Cíntia e Endimião. O
Arconte manda Eromante ir chamar Endimião pois ele vai lutar no estádio.
O adivinho o chama e logo entra em cena o casal virtuoso; o Arconte solicita
que Endimião seja candidato em seu partido. Eromante intromete-se na
conversa e pergunta como é a vida conjugal íntima do casal, causando
desconforto e discussão; depois lembram das virtudes de Cíntia. Logo após,
Necros pede à Cíntia em favor de seu cunhado e do enterro de seu corpo.
Nesse momento Eromante interfere e cita a tragédia grega, em específico, a
“confusão” causada por Antígona ao querer enterrar Polinice:
EROMANTE: - (a Necros) Se conhecesses a tragédia grega, saberias a
complicação que isto trouxe a Tebas, quando Antígona teimou em
enterrar o cadáver de Polinice contra as ordens de Creonte!
(FIGUEIREDO, 1964, p. 200, grifo do autor)

Cíntia, irritada, pede que o Arconte expulse da cidade Eromante por


ser tão grosseiro e bisbilhoteiro. E ela afirma que é capaz de morrer caso o
marido morra:

EROMANTE: - E tu, marido enfatuado, terás também o teu castigo!


(a Cíntia) Que farás se teu marido morrer? (Sofia traz-lhe a capa, as
armas, o capacete).

7
Do grego necrós: cadáver, morte, o que está morto.
8
Do grego: para (prep.) + teíno (verbo) + clepto (substantivo): aquele que amplifica o
roubo.

|16
CÍNTIA: (mãos nas mãos do marido, olhando-o nos olhos) Também
morrerei. Nem mais uma gôta d’água, nem mais uma côdea de pão.
Soluçarei tanto sôbre o teu corpo, que êle ainda estremecerá; e
quando cessar o meu pranto, então seremos dois no mesmo
sepulcro. (FIGUEIREDO, 1964, p. 202, grifos do autor)

Depois disso, o casal e o Arconte saem rumo ao estádio. Já Júpiter e


Diana voltam a ter a sua forma divina. Nesse momento, o deus anuncia para
sua filha que Cíntia vai trair o seu marido. Júpiter menciona que Endimião
dará à Diana cinquenta e um filhos, como já foi mencionado anteriormente.
Logo os deuses retornam as formas humanas de Eromante e Sofia; e a mãe
de Partenoclepto, Clepsia9, roga pela vida do filho ao adivinho e à senhora
virtuosa, mas nenhum dos dois lhe ajuda. Logo inicia-se a luta de Endimião,
Cíntia fica rezando pelo marido e, em coro, acompanham-na Clepsia,
Necros e Sofia, porém ele morre em combate:
ARCONTE: - (sôbre o pranto de Cíntia) Mal teve tempo de levantar
o escudo; o outro esquivou-se. Endimião tombou de joelhos, o outro
desferiu o golpe. Minha senhora, minhas profundas condolências!
NECROS: - [...] Está morto?
EROMANTE: - Dormindo para sempre. (FIGUEIREDO, 1964, p.
208, grifos do autor)

Toda a encenação ocorrida até aqui, assim como o prólogo, também


não está presente na história da “Matrona de Éfeso” de Petrônio, pois dessa
forma se inicia o relato:
Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut uicinarum
quoque gentium feminas ad spectaculum sui euocaret. Haec ergo
cum uirum extulisset.10 (111.1-2)

9
Do grego: clepto (mais especificamente, do aoristo desse verbo - éclepsa): aquela que
roubou.
10
Todos os trechos em latim do Satyricon de Petrônio foram retirados da edição bilíngue
em Petrônio (2004).

|17
Havia uma mulher casada em Éfeso que era de uma castidade tão
notável que levava as mulheres até mesmo dos povos vizinhos a
visitá-la. Então, quando ela perdeu o marido [...]11

Como se verifica, a ação de “Matrona de Éfeso” de Petrônio se inicia


com a morte do marido. Então, a partir desse momento a peça de
Figueiredo inicia o seu diálogo mais direto com o texto petroniano.
Com a morte do marido, Cíntia se desespera, desalinha os cabelos,
dilacera as vestes, ficando com seio a mostra e chora muito a sua perda.
CÍNTIA: - (banhada em lágrimas, afagando o corpo) Meu marido!...
Meu marido... Minha vida! (Ela desalinha os cabelos e puxa-os
desordenadamente).
[...]
CÍNTIA: - Oh, Diana... Se a ti devo oferecer êste sacrifício, tu o terás
ainda maior do que a minha dor... (dilacera a parte superior da
túnica, mostrando os seios)
[...]
CÍNTIA: - (soluçando, batendo no peito, desgrenhando os cabelos)
Não, eu só, eu só! (ao cadáver) Oh, meu espôso, oh, meu
companheiro... Seguirei contigo! Não quero mais viver
(FIGUEIREDO, 1964, p. 208, grifos do autor)

Tal imagem de lamentação e desespero de Cíntia, ao perder o marido


no combate, evoca o comportamento da matrona de Petrônio diante da
mesma dor:
Haec ergo cum uirum extulisset, non contenta uulgari more funus
passis prosequi crinibus aut nudatum pectus in conspectu
frequentiae plangere. (111.2)

Então, quando ela perdeu o marido, não se limitando a seguir o


enterro com os cabelos soltos, segundo o costume geral, ou a bater
no peito nu na presença da multidão.

11
Todas as traduções do Satyricon de Petrônio presentes nesse texto são de Sandra Braga
Bianchet (PETRÔNIO, 2004).

|18
Desse modo, verifica-se que Cíntia e a matrona petroniana
desalinham os cabelos e batem no peito nu e ambas, ainda, seguem a mesma
forma de lamentação, conforme o costume grego. E, em seguida, no final do
primeiro ato, Eromante anuncia que Paternoclepto também é morto pelo
carrasco na mesma luta.
No segundo ato, Clepsia e Necros estão no cemitério e planejam
pegar o cadáver de Partenoclepto com o intuito de lhe dar sepultura, porém
há um soldado vigiando os cadáveres (FIGUEIREDO, 1964, p. 210-213).
Depois disso, o Arconte, acompanhado de Sofia, vai falar com Cíntia para
tentar demover dela a ideia de morrer com o marido. Nesse momento, Sofia
informa ao governante que a virtuosa mulher quer morrer de inanição: “Já
fiz tudo. Disse que morrerá de fome, de sede, esvaindo-se em lágrimas...”
(FIGUEIREDO, 1964, p. 213). E desse mesmo modo, também pretende
morrer a matrona do Satyricon:
Sic adflictantem se ac mortem inedia persequentem non parentes
potuerunt abducere, non propinqui (111.3)

Nem os pais, nem os parentes puderam afastá-la daquele local, pois


ela se atormentava assim e buscava a morte através da abstinência de
alimentos

Quando eles se aproximaram do cadáver crucificado, o Sentinela


entra em cena e, conforme a rubrica, essa personagem nova é interpretada
pelo mesmo ator que representou Eromante, mas com algumas alterações.
VOZ DA SENTINELA: (o mesmo que faz o papel de Eromante) –
Alto!

[...]
VOZ DA SENTINELA: - Nem mais um passo! (Sentinela invade a
cena. É o mesmo ator que faz o papel de Eromante. Mas agora está
sem barbas. Ostenta um garboso capacete de penacho. Veste-se com
uma túnica curta; tem coturnos marciais, braceletes compridos, de
ouro, couraça sôbre o peito) Mãos ao alto! [...] Ladrões de cadáveres!
(FIGUEIREDO, 1964, p. 214, grifos do autor)

|19
E ainda, observa-se, na última fala, que o Sentinela impede alguém de
avançar, nesse caso, o Arconte; e, no mesmo instante, o soldado revela que
está naquele posto para impedir que qualquer pessoa se aproxime dos
cadáveres crucificados:
ARCONTE: - (apavorado) Um momento, um momento... (a
Sentinela interpõe-se entre a primeira cruz e o Arconte)
[...]
SENTINELA: - Está bem, Arconte, mas fica sabendo que aqui
cumpro as ordens do Arconte ninguém deve aproximar-se dêsses
defuntos, até que sejam comidos pelos urubus e caíam podres como
jacas! (FIGUEIREDO, 1964, p. 214, grifos do autor)

Essa indicação da crucificação de mortos próximo ao túmulo do


marido morto, aparece também na história de Petrônio, embora o motivo
da crucificação não seja revelado:
cum interim imperator provinciae latrones iussit crucibus affigi
secundum illam casulam, in qua recens cadauer matrona deflebat
(111.5)

o imperador daquela província ordenou que ladrões fossem pregados


em cruzes ao lado daquele túmulo, no qual a mulher velava o cadáver
fresco.

Então, o motivo da crucificação dos ladrões apresentado por


Figueiredo é uma criação dele. Além do mais, o imperador da província é,
no Satyricon, aquele que ordena crucificar os corpos dos ladrões; da mesma
forma, acontece em Figueiredo, pois é o Arconte, o dirigente da cidade,
quem faz isso, como se observa na fala dele quando o Sentinela tenta
impedi-lo de se aproximar dos cadáveres e diz que está cumprindo as
ordens do Arconte: “Fui eu quem deu essa ordem!” (FIGUEIREDO, 1964, p.
214).
Ao terminar a conversa com o Sentinela, o Arconte pede à Sofia que
traga Cíntia para eles conversarem, esta recusa de início o diálogo, mas sai
do túmulo e fala com o Arconte, que tenta dissuadi-la do desejo de morrer
com o marido. Cíntia volta para o túmulo e Sofia, instruída pelo Arconte,
segue para ficar ao lado de sua senhora; já ele é interpelado por Clepsia

|20
pedindo para que lhe entregue o cadáver de seu filho; ele negou e ela dirige-
se ao túmulo e implora à Cíntia que intervenha junto ao Arconte, mas ela
também lhe nega ajuda. Em seguida, Sofia puxa conversa com sua senhora,
quando são importunadas pelo Sentinela. Este impede a viúva de voltar para
o túmulo e começam a dialogar. Logo ele retira um pão da sua sacola e
oferece à Cíntia:
SENTINELA: - Tá na mão, velhinha. Não tiram, não. (Cíntia senta-
se desanimadamente, no degrau de um dos túmulos. A sentinela abre
um bornal que traz a tiracolo; saca de dentro um grande pão, dá uma
dentada enorme, começa a mastigar. Fala com a boca cheia) Oh,
desculpe. É servida? (Silêncio obstinado) Paciência. Para quem não
quer tem muito. (Nova dentada) A gente vê cada uma! (Cíntia
começa a chorar, baixinho) Vamos, pára com essa manhã... [...].
(FIGUEIREDO, 1964, p. 223, grifos do autor)

O soldado ainda insiste mais adiante, ao oferecer um pedaço de pão:


“Não quer um pedaço?” (FIGUEIREDO, 1964, p. 224). Do mesmo modo, o
soldado de Petrônio carrega o seu jantar e oferece comida para a matrona:
[...] attulit in monumentum cenulam suam [...] Non recessit tamen
miles, sed eadem exhortatione temptauit dare mulierculae cibum
(111.8 e 111.10)

[...] levou para aquele túmulo seu pequeno jantar [...] O soldado,
contudo, não recuou, mas com aquele mesmo estímulo, tentou dar
alimento à mulher.

No Satyricon, nesse momento em que o soldado oferece comida para


a matrona, a serva está ao lado dela e na cena de Figueiredo, Sofia também
está junto de sua senhora, porém, sob a ordem do Sentinela, essa serva vai
buscar os guardas para removê-la de lá, deixando os dois sozinhos.
Eles conversam sobre os valores morais e as virtudes de Cíntia, nesse
ínterim, ela cede à privação de alimentos e acaba comendo um primeiro
pedaço do pãozinho oferecido pelo Sentinela, com o intuito de enganá-lo
para poder entrar no mausoléu, como se pode verificar nas rubricas abaixo:
CÍNTIA: - [...] (Insensivelmente, distraidamente, arranca um pedaço
do pão, coloca-o na boca. Súbito soluço) Deixa-me matar, por favor!

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SENTINELA: - Quietinha, quietinha!
CÍNTIA: - (Chorando, a bôca cheia) Deixa-me entrar no mausoléu...
SENTINELA: - (Não compreende o que ela diz) O quê?
CÍNTIA: - (Aponta o mausoléu, chora, mastigando) No mausoléu...
(FIGUEIREDO, 1964, p. 225, grifos do autor)

Já a matrona petroniana começa a se alimentar após ouvir os


conselhos de sua escrava, esta jejuava junto com sua dona, mas recuou mais
cedo, pois aceitou a comida oferecida pelo soldado na primeira
oportunidade:
Itaque mulier aliquot dierum abstinentia sicca passa est
frangipertinaciam suam, nec minus auide repleuit se cibo quam
ancilla quae prior uicta est. (111.13)

Assim, a mulher, faminta devido ao jejum de alguns dias, admitiu


que sua perseverança fosse rompida e fartou-se de alimento não
menos avidamente do que a escrava, que foi vencida primeiro.

Depois disso, quando Cíntia diz mais uma vez que quer morrer para
ficar perto do marido, o Sentinela cita, como ele mesmo afirma, uma
tradução de um verso de Virgílio, um dos versos indicados anteriormente
na citação de Franco (2014):
SENTINELA: - (Meio declamando) Crês que podem ter cura as
cinzas e os espíritos dos sepulcros?
CINTÍA: - Que disseste?
SENTINELA: - Nada. Um troço de Virgílio. Poeta romano [...].
(FIGUEIREDO, 1964, p. 225, grifo do autor)

A alusão a Virgílio revela que Figueiredo tem consciência do


arquétipo de “viúva desonesta” e da influência de Virgílio em Petrônio; pois,
através da fala do Sentinela, profere o mesmo conselho para Cíntia,
aludindo à fala de Ana para a sua irmã Dido, quando esta confessa estar
envolvida por outro homem, o estrangeiro Eneias, no verso virgiliano.

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Id cinerem, aut manes credis curare sepultos? (A., 4.34)
Crês que as cinzas ou que o Manes no sepulcro se preocupam com
essa fidelidade?12

Já em Petrônio, a escrava é quem aconselha a matrona e quem


profere o verso de Virgílio, representando a sua referência textual para
tratar do tema da “viúva desonesta”13:
Id cinerem aut manes credis sentire sepultos? (111.12)

Acreditas que os restos mortais, ou os manes sepultados percebem


teu sacrifício?

E, enquanto conversam Cíntia e o soldado, ela consegue finalmente


aproveitar-se de um momento de distração do Sentinela para entrar no
túmulo. Ela empurra a porta do mausoléu e o soldado a arrasta. Logo ele
muda o assunto e começa a elogiar a beleza dela, tentando seduzi-la:
SENTINELA: - Pronto, pronto, já não está aqui quem falou... (Outro
tom) Mas francamente: você bonita assim, e querendo morrer! Há
pessoas que desperdiçam a vida, como você fêz com o garrafão de
vinho! Depois vem o soluço. Muita gente diz a você que você é
virtuosa, mas pouca gente há de ter tido a coragem de lhe dizer que
você é bonita. Tanta virtude é capaz de assustar as pessoas mais
sinceras. Mas eu digo: você é mais boa que todas as mulheres que eu
já conheci... (FIGUEIREDO, 1964, p. 226, grifo do autor)

E, nessa arte da conquista, o soldado, mais uma vez, declama


Virgílio, como uma forma de adverti-la sobre viver um novo amor, assim
ele diz: “Podes gostar de lutar contra um amor que te agrada? Outro troço
de Virgílio” (FIGUEIREDO, 1964, p. 227). Nesse trecho o Sentinela faz
referência novamente à fala de Ana, irmã de Dido, na qual aborda também
essa questão da privação feminina de um novo amor:

12
Todas as traduções da Eneida de Virgílio presentes nesse texto são de Tassilo Orpheu
Spalding (VERGÍLIO, 2007).
13
Para maiores informações sobre a alusão de Petrônio a Virgílio, cf. Franco, 2014.

|23
Placitone etiam pugnabis amori? (A., 4.38)

Mas vais tu combater um amor que te agrada?

Assim como na citação de Franco (2014) apresentada anteriormente,


Petrônio cita dois versos virgilianos (v. 38-39), que aparecem como uma
influência da escrava, repetida diversas vezes por ela para a matrona; mas
somente o verso 38 está presente nos três textos – Virgílio, Petrônio e
Figueiredo.
Placitone etiam pugnabis amori? (112.2)

Ainda lutarás contra este amor agradável?

Depois começa a anoitecer. Os dois observam a lua, o Sentinela


seduz ainda mais Cíntia; ele a beija; ela tenta fugir, mas acaba cedendo aos
carinhos dele.
SENTINELA: - Por amor próprio... (Inclina-se para beijá-la. Cíntia
está dominada. Debate-se.) Oh, Cíntia, oh, Diana, oh, Artêmide...
(Alcança a boca de Cíntia. Beijam-se longamente). (FIGUEIREDO,
1964, p. 230, grifos do autor)

E, no final do segundo ato, os dois se trancam no mausoléu.


No terceiro ato, Clepsia e Necros verificam que o Sentinela não está
mais no seu posto de vigilância.
CLEPSIA: - Parece que não há ninguém...
NECROS: - Olha! A Sentinela dormiu! Já não se vê a lança.
(FIGUEIREDO, 1964, p. 232)

Então decidem ir pegar o corpo de Partenoclepto, porém o Arconte


aparece e confunde Necros com o Sentinela. Logo Necros despista o
Arconte e com sua sogra retira o corpo de Partenoclepto da cruz, levando-o
embora.
NECROS: - [...] Vamos tratar de levar Partenoclepto, antes que seja
tarde! (Os dois se adiantam para a cruz, apressados e furtivos.
Chegam até a cruz. Necros fica na ponta dos pés, para alcançar os
braços da cruz) Que sorte! Está só amarrado! Se tivessem posto uns
cravos, ia ser difícil tirá-lo sem fazer barulho! Depressa, desamarra-

|24
lhe os pés, enquanto eu desamarro os braços! (Clepsia desamarra os
pés de Partenoclepto, enquanto Necros desamarra o braço que ainda
estava prêso. O cadáver cai no seu ombro.)
[...]
NECROS: - Depressa, antes que nos vejam! (Reclina o cadáver, para
carregá-lo em melhor posição)
CLEPSIA: - (Abraçando-se à cabeça do cadáver) Meu filho! Meu
filho!
NECROS: - Vamos, nada de sentimentalismo (Faz com que Clepsia o
ajude a tomar o cadáver, pelos pés e pelas mãos. Ambos começam a
transportá-lo para o lado da direita) (FIGUEIREDO, 1964, p. 235,
grifos do autor)

Assim a mãe, Clepsia, e o cunhado, Necros, carregam o corpo de


Partenocleto para ser enterrado. Já, no Satyricon, são os pais de um dos
cadáveres crucificados que vão tirar o corpo de seu filho da cruz para
receber as honras fúnebres.
Itaque unius cruciarii parentes ut uiderunt laxatam custodiam,
detraxere nocte pendentem supremoque mandauerunt officio.
(112.5)

Assim, os pais de um crucificado, quando viram a guarda baixada,


tiraram durante a noite o corpo pendurado e lhe prestaram a última
homenagem.

O dia começa a clarear, o soldado sai primeiro do mausoléu e, em


seguida, sai Cíntia toda embelezada. Ela pergunta o nome dele que
responde: “Strategos” (FIGUEIREDO, 1964, p. 237), que significa “o chefe
militar”. De repente, enquanto trocavam carinhos e carícias, o Sentinela
percebe que o cadáver do ladrão foi roubado e entra em desespero:
SENTINELA: - A cruz! Olha a cruz! Roubaram o ladrão!
CÍNTIA: - (Terror) Por todos os deuses!
SENTINELA: - (Grande gesto, como quem vai dar um sôco no ar, de
raiva e dizer a palavra de Cambronne, de que só sai a primeira
consoante) M ... Bolas! E agora? E agora? (Passeia nervosamente de
um para o outro lado)
CÍNTIA: - (Acompanhando-o) Que é que te pode acontecer?

|25
SENTINELA: - Que me pode acontecer? A côrte marcial! A morte!
(FIGUEIREDO, 1964, p. 238, grifos do autor)

Dessa mesma forma, também reage o soldado em Petrônio, quando


percebe o rapto do corpo crucificado, fica desesperado com medo da
punição:
At miles circumscriptus dum desinet, ut póstero die uidit unam sine
cadauere crucem, ueritus supplicium, muliere quid accidisset
exponet. (112.6)

E o soldado logrado, quando viu no dia seguinte uma cruz sem


cadáver, sentiu o chão sumir a seus pés e, temendo a punição, expôs
à mulher o que tinha acontecido.

Logo o Sentinela pensa em se matar para evitar a punição da morte


executada pela corte marcial por causa de seu grande descuido. Ele procura
o veneno que, segundo a fala de Sofia (FIGUEIREDO, 1964, p. 216), Cíntia
tinha guardado para acelerar a morte caso a guarda chegasse para lhe
impedir de morrer ao lado do marido.
SENTINELA: - [...] Não resistirei tampouco ao julgamento e ao
carrasco! Onde está o veneno?
CÍNTIA: - Que veneno?
SENTINELA: - Não falo do veneno com que me encantaste,
feiticeira! Não estou fazendo literatura! Falo da cicuta que tinhas
para te matares, se te viessem buscar! Vou bebê-lo, morrer aqui
mesmo, a teus pés! E para que eu não desonre a farda, tu me
colocarás naquela cruz, no lugar do ladrão! (FIGUEIREDO, 1964, p.
241)

No Satyricon, o soldado quer se matar, assim como a personagem de


Figueiredo, mas ele quer usar uma espada para executar esse feito:
nec se expectaturum iudicis sententiam, sed gladio ius dicturum
ignauiae suae. (112.6)

Ele disse que não iria esperar a sentença do juiz, mas que iria
determinar ele próprio para si a pena de morte, com a espada, por
negligência.

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E, ainda, o Sentinela, na peça, pede para que não haja desonra, que
seja colocado o seu corpo no lugar do crucificado. Ao contrário deste, o
soldado petroniano solicita que a matrona torne o túmulo do marido dela
também o dele.
Commodaret modo illa perituro locum et fatale conditorum
[commune] familiar ac uiro faceret. (112.6)

Por isso, ele queria que ela lhe concedesse um lugar para morrer e
dedicasse aquele túmulo fatal a seu amante e a seu marido.

Prontamente, Cíntia tem a ideia de colocar o corpo de seu marido na


cruz no lugar do corpo roubado, pois não quer que a sua imagem de mulher
virtuosa esteja vinculada à morte do soldado.
CÍNTIA: - (Rápida) Que idéia!
SENTINELA: - (Assustado por parecer que ela aceitou a sugestão)
Como “que idéia”!?
CÍNTIA: - Que idéia! Depressa! Endimião!
SENTINELA: - (Auge do espanto) Teu marido?!
CÍNTIA: - Achas que devo perder-te, depois de tê-lo perdido? (Um
sorriso amoroso) Pensas que quero ter na consciência o remorso da
tua morte? Como poderia eu viver, ou morrer com êsse remorso?
Sou a mulher mais virtuosa de Éfeso nunca poderia conciliar a
minha virtude com a certeza de que morreste por minha causa!
Vamos, depressa, traz Endimião! (FIGUEIREDO, 1964, p. 241-242,
grifos do autor)

Do mesmo modo, a matrona romana lança a ideia de crucificar o


corpo de seu marido, para não causar a morte do soldado:
Mulier non minus misericors quam pudica: ‘Nec istud, inquit, dii
sinat, ut eodem tempore duorum mihi carissimorum hominum duo
funera spectem. Malo mortuum impendere quam uiuum occidere’.
Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui tolli atque
illi quae uacabat cruce affigi. (112.7-8)

A mulher, não menos misericordiosa do que virtuosa, disse: ‘Que os


deuses não permitam que eu assista, ao mesmo tempo, aos dois
funerais dos dois homens mais especiais para mim. Prefiro pendurar

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o morto a matar o vivo’. Depois desse discurso, ela ordenou que o
corpo de seu próprio marido fosse retirado do sarcófago e pregado
na cruz que estava vazia.

Depois disso, Cíntia e o Sentinela pegam o corpo de Endimião e o


amarram na cruz, ela prende os pés, ele as mãos.

SENTINELA: - (Carregando o corpo de Endimião) Raio de homem


pesado! Vem ajudar-me! Não sei por que – estou fraco, hoje! (Cíntia
entra também no mausoléu. Os dois voltam com o cadáver de
Endimião, ela se inclina sôbre o corpo)
CÍNTIA: - (Tomando o rosto do cadáver) Perdoa, meu bem! É a
felicidade de tua mulher! Sei que farias o mesmo sacrifício por mim!
SENTINELA: - Pára de agradar o homem, e anda depressa! (Levam o
cadáver até a cruz; a Sentinela suspende-o enquanto Cíntia amarra-
lhe os pés no tronco da cruz) Pronto? Felizmente apenas amarraram
o outro! Se tivessem pregado com cravos, ia ser uma dificuldade!
(FIGUEIREDO, 1964, p. 242, grifos do autor)

Já na história de Petrônio, a matrona ordena o soldado a pegar o


corpo de seu marido e ele prega sozinho o cadáver na cruz.
Vsus est miles ingenio prudentissimae feminae. (112.8)

O soldado pôs em prática o plano genial daquela mulher


sapientíssima.

Depois do corpo de Endimião posto na cruz, Cíntia e o Sentinela


reconciliam-se e marcam um encontro noturno, pois essa noite é a primeira
noite que passam juntos (FIGUEIREDO, 1964, p. 242-243). Essa situação
acontece um pouco diferente no Satyricon, porque a matrona e o soldado já
se deitam juntos no túmulo por pelo menos uns três dias antes do roubo do
cadáver do ladrão:
Iacuerunt ergo una non tantum illa nocte qua nuptias fecerunt, sed
postero etiam ac tertio die, praeclusis uidelicet conditorii foribus.
(112.3)

|28
Eles, então, deitaram-se juntos não só naquela noite, em que
celebraram suas núpcias, mas também no dia seguinte e ainda no
terceiro dia, evidentemente com as portas do túmulo fechadas.

Em seguida, chega o Arconte que quer punir o soldado por não ter
permitido a sua entrada no túmulo, porém Cíntia pede que ele seja livrado
do castigo, pois a fez mudar de ideia. Então o Sentinela é perdoado e ganha
como prêmio a folga do trabalho durante à noite. Depois disso, Cíntia vai
embora com o Arconte.
Na cena, ficam o Sentinela e a Sofia, com um sopro ela volta a ser
Diana e percebe assustada que Júpiter era o Sentinela.
SOFIA: - (Amedrontada) Que queres, soldado?
SENTINELA: - Ah, desculpa! (Toma-a pelos ombros, sopra-a no
rosto. Ela se transforma)
DIANA: - Papai! Papai!
JÚPITER: - Aí está, Diana... Tudo aconteceu sem que eu precisasse
enfeitiçar a tua sacerdotiza... (FIGUEIREDO, 1964, p. 247, grifos do
autor)

A indicação na rubrica14, anteriormente apresentada, apenas mostra


que o mesmo ator que interpretou Eromante, vai interpretar o Sentinela, e
somente, nesse momento, diretamente Júpiter revela-se também
transformado em Sentinela; e nem Diana sabia dessa sua transformação.
Após o dois voltarem as suas formas divinas, Júpiter diz que vai para um
compromisso à noite (encontrar Cíntia, como havia combinado com ela) e
Diana pega o cadáver de Endimião e o beija. Assim termina a comédia de
Figueiredo. Já a história de Petrônio finda diferente, com a população de
Éfeso espantada com o novo corpo crucificado.
posteroque die populus miratus est qua ratione mortuus isset in
crucem. (112.8)

14
Cf. Figueiredo, 1964 p. 214.

|29
no dia seguinte, o povo, espantado, ficou a se perguntar de que modo
o morto tinha ido parar na cruz.

Como se observa, a peça de Figueiredo acrescenta muitas


características novas à história da “Matrona de Éfeso” de Petrônio, por
exemplo, ele nomeia as personagens e ainda amplia o seu número. No relato
petroniano, há as seguintes personagens: a matrona, a escrava, o marido, o
imperador da província, o soldado, os pais do cadáver de um ladrão;
nenhuma delas tem nome. Já na comédia, tem-se: Cíntia, Endimião, Júpiter,
Diana, Eromante, Sofia, Arconte, Necros e Clepsia. Percebe-se,
principalmente, a inclusão dos deuses Júpiter e Diana, do adivinho
Eromante, o adivinho, e de Necros, o cunhado do cadáver do ladrão. A
presença dos deuses enriquece a peça e inclui uma intriga baseada na
comédia Anfitrião de Plauto, como já foi mencionado anteriormente.
Júpiter remexe as cenas e funciona como força motriz para o
desenvolvimento da peça; ele provoca os acontecimentos e induz Cíntia a
relacionar-se com o Sentinela, no caso, ele mesmo. O deus preserva as
características míticas do Júpiter romano, como o galanteador das mortais e
o todo poderoso do Olimpo; porém, o Júpiter de Figueiredo é uma
personagem que conhece o “futuro” e é erudito, pois faz citações a textos
literários de diversas épocas, quer como Eromante, quer como Sentinela;
essa última característica dá dicas de que o Sentinela é o deus, antes dele se
revelar como tal. Em suma, por causa do desejo amoroso de Júpiter por
Cíntia é que ela quebra a sua promessa de lealdade ao marido morto; o deus
é o motivo que preserva o arquétipo da “viúva desonesta” presente na
história de Petrônio. Já Diana aparece como acompanhante de seu pai,
assim como foi Mercúrio na comédia de Plauto. Ela o ajuda a atingir o
objetivo de conquistar Cíntia. E ao se transformar na serva da matrona,
executa o papel já existente em Petrônio; embora a escrava petroniana seja
mais fiel e cúmplice de sua senhora. A escolha de Diana por Figueiredo
vincula-se aos laços parentais, pai e filha, como os do Mercúrio plautino, pai
e filho; também se liga ao fato de Diana ser a deusa protetora da cidade de
Éfeso.

|30
E a outra personagem excedente é Necros, cunhado do cadáver do
ladrão, que ajuda e acompanha a sogra nas peripécias para enterrar o corpo
do filho. Nesse caso, ele representa o componente familiar masculino para
ajudar a mãe do morto a roubar o cadáver e a conceder ao filho as devidas
honras funerárias; já que, em Petrônio, faz-se referências aos pais do
cadáver. Além disso, etimologicamente, o nome de Necros junto com o
nome da sogra Clepsia compõem uma indicação da ação executada por eles
na peça, a ação de “roubar o morto”.
Ademais os dois textos retratam a matrona como uma mulher
volúvel, que não corresponde ao rótulo de virtuosa atribuída a ela. No
Satyricon, Eumolpo conta a história da “Matrona de Éfeso” quando estava a
bordo do navio de Licas, assim ele informa que vai falar sobre as fraquezas
femininas em relação às paixões:
Ceterum Eumolpos, [...] multa in muliebrem leuitatem coepit
iactare: quam facile adamarent, quam cito etiam filiorum
obliuiscerentur, nullamque esse feminam tam pudicam, quae non
peregrina libidine usque ad furorem auerteretur. (110.6-7)

De resto, Eumolpo [...] resolveu falar mil coisas sobre a volubilidade


feminina. Ele zombou da facilidade com que elas se esquecem até
mesmo dos filhos e disse que não havia nenhuma mulher que fosse
tão íntegra a ponto de não se desviar para uma louca paixão, movida
por um novo desejo.

Já em Figueiredo, Júpiter quer mostrar à Diana que os mortais não


são virtuosos como ela pensa e que toda a castidade dela não se sustenta nela
e nem na sua cidade.
JÚPITER: - Tens mêdo da tua cidade casta? Vais ver a virtude dos
teus mortais!... Não é só no Olimpo que temos a carne fraca...
(FIGUEIREDO, 1964, p. 189)

No final da peça, Júpiter mostra à sua filha que a força do desejo


amoroso é mais forte que a lealdade de uma esposa viúva, pois ele não
precisa de muitos esforços para conquistar Cíntia. E ainda mais, o deus
prova à Diana que ela também não está livre desses desejos, quando a
entrega o corpo de Endimião e ela o acolhe com um beijo.

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REFERÊNCIAS

COSTA, Lilian Nunes da. Mesclas genéricas na tragicomédia Anfitrião de Plauto.


Campinas: Unicamp, 2010. Dissertação de mestrado.

FIGUEIREDO, Guilherme. “A muito curiosa história da virtuosa Matrona de Éfeso”


In: Quatro peças de assunto grego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. p.
183-248.

FRANCO, Simone Sales Marasco. Aspectos dialógicos e intertextuais no Satyricon


de Petrônio. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014. Dissertação de mestrado.
GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2005.

GUZIK, Alberto. “A dramaturgia moderna”. In: FARIA, João Roberto. História do


Teatro Brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas. Volume 2. São
Paulo: Perspectiva, Edições SESCSP, 2013, p. 117-143.

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica – Grega e Latina.


Tradução Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

PETRÔNIO. Satyricon. Tradução e Posfácio Sandra Braga Bianchet. Belo Horizonte:


Crisálida, 2004.

PLAUTE. Comédies. Texte etábli et traduit par Alfred Ernout. Tome I. Paris: Les
Belles Lettres, 2001.

VERGÍLIO. Eneida. Tradução, notas, argumento analítico e excurso biográfico de


Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, 2007.

|32
UMA NOITE COM ZEUS: A RECEPÇÃO DO MITO DA
CONCEPÇÃO DE HÉRACLES NA TRAGICOMÉDIA
CONTEMPORÂNEA UM DEUS DORMIU LÁ EM CASA ,
DE GUILHERME FIGUEIREDO 1

Stefanie Cavalcanti de Lima Silva

É este todo o problema do teatro grego, senhor.


Os deuses são irrepresentáveis.
(Guilherme Figueiredo)

INTRODUÇÃO

Os mitos sempre foram discutidos, refletidos e recontados, a priori,


na tradição oral e, posteriormente, nas artes como, a pintura, a literatura e o
teatro. As musas habitam o imaginário dos aedos e dos poetas desde os
tempos mais remotos e, através do canto dessas musas, os mitos são
transmitidos ao longo do tempo. A recepção desses mitos parece não se
esgotar, atualmente – com ferramentas de streaming como a Netflix –
muitas narrativas mitológicas estão sendo adaptadas em formato de séries
de TV, temos o exemplo da série “Troia” que ganhou uma adaptação em
2018.
Outra forma bastante popular, desde a Antiguidade Clássica greco-
latina, de recepcionar esses mitos, era por meio do teatro. Tanto na tragédia
como na comédia, os mitos serviram de mote para diversas peças de teatro
que, ao recontarem, contribuem para a constante revitalização e propagação
desses mitos que se mantém cada vez mais vivos a cada reconto, a cada

1
Este capítulo teve o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
adaptação. Autores como Eurípides, Aristófanes e Plauto, representando
respectivamente a tragédia grega, a comédia antiga e a comédia nova latina,
recepcionaram esses mitos dando a eles um alcance imensurável, haja vista a
leitura desses textos em nossos dias.
Contudo, não apenas no teatro antigo esses mitos foram
recepcionados, aqui mesmo no Brasil tivemos uma produção profícua de
peças de teatro baseadas em mitos, principalmente gregos. A partir dos anos
1940 do século XX, o dramaturgo Guilherme Figueiredo, nascido em
Campinas no ano do 1915, reescreveu alguns textos clássicos adaptando-os
para o público brasileiro e, “Pela estética que adota, por suas escolhas
temáticas, podemos reconhecer em Guilherme Figueiredo um dramaturgo
que procura enraizar seu teatro em filões clássicos” (GUZIK, 2013, p. 121).
Os temas clássicos eram, de fato, caros ao autor2. Depois de sua estreia com
Greve geral (1948 – reescritura da comédia Lisístrata, de Aristófanes) e com
Um deus dormiu lá em casa (1949), o dramaturgo brasileiro escreveu,
também, as peças Os Fantasmas (1958 – obra que apresenta diversas
personalidades gregas, por exemplo, o filósofo Sócrates), A raposa e as uvas
(1958 – baseado na vida e na obra de Esopo) e A muito curiosa história da
virtuosa Matrona de Éfeso (1958 – a partir de Satyricon, de Petrônio).
Sobre o estilo dramático de Guilherme Figueiredo, Décio de Almeida
Prado (1996, p. 56) afirma:
Guilherme Figueiredo é um escritor literário. Em teatro isso quer
dizer, em geral, um autor que prefere a palavra à ação, a poesia à
realidade. Guilherme Figueiredo é literário neste sentido: sente-se
bem na maneira como falam as suas criaturas, que a linguagem delas
é a linguagem da arte, não a da vida. Do autor, mais do que das
personagens, é o espírito, a tendência para a ênfase, a procura do
brilho verbal. [...] Ninguém é o escritor que quer (ou que os outros
querem), mas o escritor que pode ser, o escritor que traz dentro de si
mesmo.

2
Cf. FIGUEIREDO, 1957, p. 78.

|34
As adaptações de Figueiredo para o teatro demonstram todo esse
apreço e cuidado com a poesia e a linguagem3, o dramaturgo desenvolve em
seus textos uma capacidade de diálogo entre os textos clássicos e o contexto
social no qual estava inserido, a linguagem é poética sem perder a
comicidade e a acidez crítica. Sobre essa assertiva, o próprio autor afirma
que fez suas personagens falarem a linguagem carioca, na época, “dando-
lhes [...] uma pitada de paródia clássica; e isto porque o meu problema não
era o de reproduzir mais uma vez no palco a usadíssima lenda de Anfitrião,
mas o de tomá-la como um símbolo de sentimentos e conflitos atuais”
(FIGUEIREDO, 1957, p. 111).
Neste artigo, faremos uma análise da recepção do mito da concepção
do herói grego Héracles, no texto teatral Um deus dormiu lá em casa, de
Guilherme Figueiredo. Primeiramente, iremos falar a respeito do mito,
pontuando e analisando a maneira pela qual esse mito é abordado nos textos
clássicos, como na Teogonia, de Hesíodo, na tragédia Héracles, de Eurípides
e na comédia latina Anfitrião, de Plauto. Em seguida, analisaremos a
adaptação brasileira feita por Figueiredo, observando as semelhanças e as
diferenças entre o texto teatral contemporâneo e o mito; considerando o que
de original foi acrescido pelo dramaturgo brasileiro em sua reescritura4.

A NOITE MAIS LONGA: O ENCONTRO DE ZEUS E ALCMENA E O


MITO DE CONCEPÇÃO DE HÉRACLES

Todos os povos e culturas têm suas mitologias, contudo a mitologia


grega se tornou bastante popular, haja vista as diversas reescrituras desses
mitos através dos tempos. A história, a filosofia e a literatura contaram e
recontaram essas narrativas de maneira a povoar o nosso imaginário ao
ponto de uma pessoa, mesmo que nunca tenha tido contato com quaisquer

3
Cf. FIGUEIREDO, 1957, p. 89-116.
4
No Brasil, a comédia de Plauto também foi recepcionada por Daniel Ramires na peça
Anfitrião, em 1958.

|35
desses textos, conhecer alguns personagens mitológicos como a Medusa ou
o herói Héracles.
Héracles é, provavelmente, o herói grego mais popular. Sua história
já foi contada e recontada em diversos textos históricos, épicos, trágicos,
cômicos, como também no cinema, nos mangás, desenhos animados e
histórias em quadrinhos. O herói teve uma origem peculiar, apesar de ser
comum o fato de Zeus ter relacionamentos extraconjugais, a maneira com a
qual Zeus seduz Alcmena é diferente das demais. E é sobre essa relação que
iremos dialogar nesta seção de nosso trabalho.
Elencaremos alguns trechos de textos antigos, literários e não-
literários, que narrem como se deu esse encontro de Zeus e Alcmena, o qual
culminou na concepção do grande herói Héracles. Iniciando com a Ilíada,
de Homero, no Canto 12, vemos o próprio Zeus em diálogo com a deusa
Hera listando as vezes nas quais ele se apaixonou (12.312-328, grifo meu)5:
A ela deu resposta Zeus que comanda as nuvens:
“Hera, para lá também poderás ir mais tarde:
voltemo-nos agora para o prazer do amor.
Pois desta maneira nunca o desejo de deusa ou mulher
me subjugou ao derramar-se sobre o coração no meu peito,
nem quando me apaixonei pela esposa de Ixíon,
que deu à luz Pirítoo, igual dos deuses no conselho;
nem por Dânae dos belos tornozelos, filha de Acrísio,
que deu à luz Perseu, o mais valente dos homens;
nem pela filha do famigerado Fênix,
que me deu como filhos Minos e o divino Radamanto;
nem por Sêmele ou Alcmena em Tebas,
esta que deu à luz Héracles, seu filho magnânimo,
ao passo que Sêmele deu à luz Dioniso, alegria dos mortais;
nem pela soberana Deméter das belas tranças;
nem pela gloriosa Leto — e nem mesmo por ti própria
me apaixonei como agora te amo, dominado pelo doce desejo.”

5
Tradução Frederico Lourenço.

|36
Percebemos, no excerto acima, como também havíamos
comentado anteriormente, que era comum que Zeus tivesse vários
relacionamentos amorosos e que desses relacionamentos nascessem filhos
ilustres, como Perseu, Héracles e, até mesmo, o deus Dioniso.
Nos primeiros versos do poema Escudo de Héracles, Hesíodo
descreve os atributos físicos e o belo caráter de Alcmena, o que nos ajuda a
compreender por que Zeus teve que usar um novo estratagema para
conseguir deitar-se com ela. Observemos (v. 1-10)6:
Ou qual desertora do palácio e terra pátria
veio a Tebas com o beligerante Anfítrion7
Alcmena, filha do impele-tropas Eléctrion:
ela excedia a tribo das mulheres femininas
em beleza e porte, em espírito, sem rival
entre mortais mães por amor de mortais.
De sua fronte e das pálpebras sombrias
o eflúvio era tal qual da multiáurea Afrodite.
Ela ainda assim no ânimo honrava o esposo
como nenhuma outra das mulheres femininas.

Nos versos finais desse trecho de Hesíodo, é possível observar uma


característica de Alcmena que, de certa forma, justifica a estratégia a qual
Zeus lançará mão para ter seu momento íntimo com ela. O poeta afirma que
Alcmena “honrava o esposo/ como nenhuma outra das mulheres femininas”
(v. 9-10); tal atributo põe em destaque a esposa de Anfitrião que, mesmo
com uma beleza símile a da deusa Afrodite, mantém-se fiel ao marido.
A beleza de Alcmena não passou desapercebida pelos olhos do
poderoso Zeus, ele a desejou e, astucioso como é, planejou como faria com
que Alcmena fizesse o impensável, traísse Anfitrião. Vejamos como esta
narrativa é apresentada na Biblioteca de Pseudo-Apolodoro8 (II.7):

6
Tradução Jaa Torrano.
7
Alguns textos trarão Anfítrion e outros Anfitrião.
8
Tradução Luiz Alberto Machado Cabral.

|37
Antes, porém, que Anfítrion retornasse a Tebas, Zeus chegou à noite
e fez com que essa noite durasse por três, e, tendo assumido as
feições de Anfítrion, compartilhou o leito com Alcmena e narrou-lhe
o que havia acontecido a respeito dos teléboas. Mas quando
Anfítrion chegou e viu que sua mulher não o recepcionara
afetuosamente, procurou saber a causa; e quando ela disse que
ele havia chegado à noite anterior e dormido com ela, ele soube,
através de Tirésias, que Zeus havia se unido à sua mulher. E Alcmena
gerou dois filhos: Héracles, que tivera com Zeus, e que era uma noite
mais velho; e Íficles, que tivera com Anfítrion.

Percebemos que, para realizar seu desejo, Zeus teve que se


transformar fisicamente em Anfitrião para, enganando Alcmena, passar a
noite com ela. Na ocasião, Anfitrião estava combatendo em nome do rei
Creonte. A fiel esposa nem desconfia do esquema pois, além de Zeus estar
com as feições de seu marido, ele chega contando notícias das batalhas e do
que aconteceu aos teléboas.
O teatro antigo, do mesmo modo, fez uso desse mito como mote de
suas narrativas, tanto da tragédia quanto da comédia. A história de Zeus e
Alcmena foi contada, às vezes indiretamente, como observamos na peça
Héracles, de Eurípides, e às vezes como tema central, como na peça
Anfitrião, do comediógrafo romano Plauto. No texto euripidiano (Héracles,
v. 339-347)9, o próprio Anfitrião faz menção do fato de sua esposa ter se
deitado com Zeus:
ANFITRION:
Nada valeu, Cronida, partilharmos
mulher e sermos pai do mesmo filho.
Tinha a impressão de que eras um amigo,
mas eu o supero no mérito,
pois que não reneguei os heraclidas.
Sabias subir à minha cama oculto,
usurpador de um dom que ninguém deu!

9
Tradução Trajano Vieira.

|38
Ignoras o resgate de entes queridos,
um deus obtuso, injusto de natura.

No excerto acima, Anfitrião acusa Zeus de ignorar a situação a qual


os heráclidas, a esposa e os filhos de Héracles, estão sendo submetidos,
afirmando que ele soube “subir à minha cama oculto” (v. 343), porém se
omite do papel de pai no momento de ameaça fatal. Mas um Zeus pai, bem
diferente desse acusado por Anfitrião, é descrito na Teogonia (v. 526-534)10,
de Hesíodo; vejamos:
O filho de Alcmena de belos tornozelos valente
Héracles matou-a, da maligna doença defendeu
o filho de Jápeto e libertou-o dos tormentos,
não discordando Zeus Olímpio o sublime soberano
para que de Héracles Tebano fosse a glória
maior que antes sobre a terra multinutriz.
Reverente ele honrou ao insigne filho,
apesar da cólera pôs fim ao rancor que retinha
de quem desafiou os desígnios do pujante Cronida.

Nesse trecho, observamos um pai que parece estar orgulhoso de seu


filho, um pai que, acima do desejo de vingar-se do rebelde Prometeu, honra
o feito de Héracles e permite que a ele seja dada grande glória. Devemos
considerar que Eurípides e Hesíodo escrevem em diferentes épocas, por
diferentes perspectivas e com objetivos também distintos. O que queremos
estabelecer aqui é a concordância em relação à origem de Héracles.
Na comédia nova latina, o comediógrafo romano Plauto reconta esse
mito na peça Amphitruo, não trazendo-o como pano de fundo, mas
dedicando seu texto a contar esse mito explorando a questão do duplo, visto
que Júpiter e Mercúrio11 se transvestem e assumem a identidade de Anfitrião
e Sósia. Analisemos aqui o Argumento I da peça (v. 1-10)12:

10
Tradução Jaa Torrano.
11
Usaremos os termos latinos para respeitar a escolha do autor.
12
Tradução Leandro Dorval Cardoso.

|39
Vertido na aparência de Anfitrião, Júpiter,
enquanto aquele guerreava com os teléboas,
em usura tomou para si Alcmena, a esposa.
Mercúrio adota a forma de Sósia, seu servo
ausente, os dois iludem Alcmena num dolo.
Voltando os verdadeiros Sósia e Anfitrião,
um e outro eles iludem num dolo espantoso.
Disso, a briga e a discórdia surgem no casal,
até que, enviando a voz do éter num trovão,
como adúltero, Júpiter, enfim, se assume.

Percebemos que Plauto mantém a ideia central do mito, que se


estabelece em uma espécie de “triângulo amoroso”, porém adiciona ao texto
a participação do deus Mercúrio, que será uma importante chave para a
comicidade do texto. O deus mensageiro assumirá a identidade do escravo
Sósia e, sendo o escravo, é a personagem que mais garante o riso na comédia
nova – cabe a Mercúrio assumir, também, essa característica.
A versão romana de Plauto traz um final surpreendente para a
narrativa, pois no texto latino, Júpiter assume sua postura de adúltero para
Anfitrião, a fim de ajudar Alcmena que sofria acusações do marido.
Contudo, mais surpreendente é a reação de Anfitrião diante da traição (v.
1124-1125): “Pólux! Não me desagrada ter direito a dividir metade dos meus
bens com Júpiter”. Entendemos que Anfitrião se sente orgulhoso pelo fato
de o grande Júpiter ter desejado Alcmena. Ele se orgulha de ter uma mulher
que é desejada pelo poderoso deus dos deuses.
Na próxima seção analisaremos a reescrita desse mito na peça Um
deus dormiu lá em casa, do dramaturgo brasileiro Guilherme Figueiredo.

|40
REESCREVENDO O MITO: O (NÃO) TRAVESTIMENTO DE ZEUS EM
UM DEUS DORMIU LÁ EM CASA

A peça Um deus dormiu lá em casa, foi encenada pela primeira vez


em 194913, com os atores Paulo Autran e Tônia Carrero, dando vida aos
personagens de Anfitrião e Alcmena, respectivamente. Sobre esse drama
mítico, escreveu Alberto Guzik (2013, p. 136): “A versão espirituosa e ligeira
de Figueiredo foi premiada, assim como o espetáculo que a traduziu em
cena”. A escrita de Figueiredo é sagaz, trazendo traços importantes do mito,
porém, concomitantemente, criando uma narrativa original.
Figura1: Paulo Autran (Anfitrião) e Tônia Carrero (Alcmena) em Um deus dormiu lá em casa.

Fonte: Arquivo Paulo Autran/Acervo IMS

13
Ficha Técnica da primeira montagem (1949): Autoria de Guilherme Figueiredo;
Direção de Silveira Sampaio; Cenografia e Figurino de Carlos Arthur Thiré;
Sonoplastia de Jorge Coutinho; Elenco: Armando Couto (Sósia), Paulo Autran
(Anfitrião), Tônia Carrero (Alcmena) e Vera Nunes (Tessala).

|41
Figura 2: Armando Couto, Vera Nunes, Paulo Autran e Tônia Carreiro em Um deus dormiu lá
em casa.

Fonte: Arquivo Paulo Autran/Acervo IMS

A história de Anfitrião e Alcmena, como sabemos, se passa em


Tebas, e essa informação foi bastante explorada por Figueiredo, que –
fazendo uso da importância dessa cidade para as narrativas gregas,
principalmente na trilogia de Sófocles14 – acrescenta ao seu texto a
personagem do rei Creonte:
O tempo de narração dos mitos adiciona tons cômicos à sequência
de catástrofes caídas em Tebas, e o único sobrevivente dos
infortúnios narrados é justamente o ironicamente “bom” Creonte. A
figura do rei tebano é muito relevante para a peça, uma vez que,
mesmo sem aparecer, ele paira sobre os personagens como uma
ameaça, um senex amator que quer usufruir de Tessala, ainda que
Alcmena ache que é nela que ele está interessado. Esses fatos causam
temor na escrava, que é fiel e casta, inveja e ciúmes em Alcmena, que

14
Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona.

|42
não gosta de Creonte, mas que gosta de ser desejada, e ciúmes em
Sósia e Anfitrião, que movem a trama. (GONÇALVES, 2017, p. 339)

Além de Creonte, o adivinho Tirésias também é citado na peça


brasileira, confirmando, desse modo, o diálogo entre tragédia e comédia que
se estabelece no texto de Figueiredo15. No excerto acima, percebemos uma
diferença na personalidade de Alcmena, que Figueiredo vai explorar em seu
texto, o fato de ela gostar de ser paquerada e desejada; o que difere do mito,
que nos apresenta uma Alcmena extremamente fiel ao marido e casta.
Alcmena acredita que Creonte está interessado nela e que esse é o real
motivo de o rei enviar Anfitrião para a guerra:
ALCMENA: – É isto o que mais me apavora... Tu viste no banquete,
quando eu servia o vinho e a água ao nosso rei? Viste os olhos dele?
Como olharam meus braços, meu colo, meu rosto? Ouviste quando
Creonte gritou para Anfitrião: “Amigo, louvado sejas, pela tua força,
pela tua coragem, e porque tens uma mulher digna dos deuses! Tua
mulher merece uma noite com Júpiter, amigo!” Mulher alguma já
ouviu um galanteio assim, feito por um rei... Mas Anfitrião não
gostou. Falou para Creonte: “Esta mulher é minha, e quem dorme
com ela não é Júpiter, sou eu mesmo.” Saber o que disse Tirésias, o
adivinho? Que esta noite um homem dormiria nesta casa. E agora...
Creonte escolhe justamente Anfitrião para mandar para a guerra?
(FIGUEIREDO, 1964, p. 10)

Uma nova Alcmena é personificada aqui, uma que é vaidosa e de


autoestima elevada, uma mulher que se sente lisonjeada por ser alvo do
desejo de um rei:
ALCMENA: – Assim calmamente? Primeiro, porque sou mulher, e
me envaidece ver um rei que deseja a derrota de seus exércitos e a

15
Em Xântias: diálogos sobre a criação dramática, Figueiredo (1957, p. 77-78) afirma que
a ideia de escrever sua peça “Um deus dormiu lá em casa ‘nasceu’ numa aula de
História do Teatro”, enquanto “explicava a degradação dos mitos e a vinda dos deuses
da tragédia para a comédia”. Queremos dizer que a relação entre o trágico e o cômico
não passou desapercebido pelo dramaturgo brasileiro.

|43
desgraça da pátria por minha causa... E, segundo, porque sei que isso
não acontecerá. Ao contrário de Anfitrião, eu creio nos deuses, com
toda a minha fé. Sou zeladora do templo de Apolo, pertenço à
irmandade das levadoras da estátua de Júpiter, cumpro os sacrifícios.
Júpiter me entenderá. Júpiter sempre fez tudo que eu peço.
(FIGUEIREDO, 1964, p. 11)

Contudo, não é apenas Alcmena que sofre mudanças na adaptação


de Guilherme Figueiredo, há uma mudança ainda mais significativa no texto
e que transforma completamente o rumo da história, dando, bastante,
originalidade ao texto brasileiro. Em Um deus dormiu lá em casa, não é
Zeus/Júpiter que se transveste como o general Anfitrião, contrariando o
mito, é Anfitrião que, tomado de ciúmes, resolve fingir que é Júpiter
transvestido de si mesmo para testar a fidelidade de sua esposa e evitar que a
profecia de Tirésias se realize:
ANFITRIÃO: É isto! Os dois! Você de Mercúrio, eu de Júpiter. Corre
ao depósito. Há lá, entre umas coisas velhas, algumas que se
aproveitam. Traga o raio de ferro dourado que serviu para a última
dionisíaca. E o manto. Há na coxinha uns pombos que Alcmena vai
sacrificar... A carolice dessa mulher é capaz de depredar um Jardim
Zoológico! Torce o pescoço de um pombo e corta-lhe as asas, para
amarrar nos teus pés. E arranja um casco para a cabeça. Rouba o
caduceu da porta da farmácia de Esculápio. Corre! (FIGUEIREDO,
1964, p. 20)

A decisão de Anfitrião muda os rumos da história e o mito já não


acontece como o conhecemos; se Júpiter não se deita com Alcmena não há
Héracles, pelo menos não como semideus.
Quando Anfitrião está de saída para a batalha, Alcmena pede a ele
que a deixe fazer uma oração, e essas são suas palavras:
ALCMENA: – Deus dos deuses e dos mortais, vencedor dos Titãs,
pai dos deuses e dos heróis, escuta o que te pede a menos de tuas
adoradoras. Oh, Júpiter, Senhor dos relâmpagos, assim como o teu
rosto dorme no colo de Juno, faze que Anfitrião volte a dormir nos
meus braços... Deus dos trovões e dos coriscos, que castigas os
homens e os deuses, assim como amaste Europa, oh, touro divino,
traze de volta o mortal que me deu o destino, para que eu sinta o seu

|44
braço repousado em meu ventre... Senhor do olimpo, chuva de ouro
no colo de Dânae, suavidade de onda sobre o corpo de Io nas praias
do Egito, devolve-me o filho de Alceu, para que dele eu tenha um
filho, que em honra à tua esposa se chamará Hércules, glória de
Juno, e será o mais forte dos homens. (Pela janela passa um
relâmpago e ouve-se o rolar do trovão.) Oh, Júpiter, que ouves a
minha prece, se souberes como é doce a pele de Alcmena ao seu
amado Anfitrião, atenderás aos meus rogos e de volta trarás o meu
herói. (FIGUEIREDO, 1964, p. 24)

Observando a oração de Alcmena, duas coisas nos chamam a


atenção; a primeira é o fato de ela citar alguns dos relacionamentos
adúlteros de Júpiter e, a segunda, é a menção que ela faz de Hércules, porém
deixando claro que ele seria o fruto do relacionamento dela com Anfitrião.
Logo, partindo do princípio de que em nenhum momento houve uma
relação extraconjugal, não há, aqui, espaço para que o filho não seja do
general.
Anfitrião volta para casa com seu escravo e coloca em prática o seu
plano. Ele interroga Alcmena a respeito da profecia e começa a acusá-la de
que ela saberia de qual homem Tirésias havia falado. Porém, usando de
astúcia, Alcmena diz ao general (acreditando estar falando com Júpiter) que
a profecia se tratava dele mesmo, que Tirésias havia dito que “um homem”
viria e, como Júpiter estava na forma de Anfitrião, o homem seria ele.
Contudo, ele se enfurece pelo fato de a esposa tentar levá-lo para o quarto,
mesmo ele dizendo que foi para lá apenas para garantir que Alcmena não
traísse o marido, sua esposa permanece bastante lisonjeada com o fato de ter
um deus interessado nela, e, apesar das tentativas de sua escrava Tessala em
avisá-la do engano, ela insiste em aproveitar o momento e se entregar ao seu
venerado deus, o que leva o general a se arrepender do plano. Observemos o
diálogo a seguir:
ANFITRIÃO: Quer dizer que, se eu viesse metido na pele de um
outro qualquer, você poderia pensar que era Júpiter... E receberia o
simulador?
ALCMENA: Eu trataria de saber se era Júpiter ou um mortal...
ANFITRIÃO: E se não pudesses distinguir, de tão perfeita a minha
caracterização?

|45
ALCMENA: Aí, então, Senhor... Eu me entregaria a Júpiter.
ANFITRIÃO: Eu sabia! Eu sabia que você me enga... Que você
enganava seu marido! Eu sabia! (FIGUEIREDO, 1964, p. 33)

A desconfiança de Anfitrião se comprova e Alcmena acaba revelando


que se entregaria a Júpiter. Contudo, não houve traição, Alcmena continua
fiel ao marido e, mesmo que Figueiredo a tenha retratado como uma mulher
que gostava de flertar, o flerte não passa de um pensamento dela em relação
a Creonte, e a profecia de Tirésias se cumpre na pessoa do próprio Anfitrião.
Logo, a mitológica fidelidade de Alcmena continua intacta, mesmo no Brasil
do século XX.
Ao final da peça, a cidade inteira vai à porta da casa de Anfitrião e
Alcmena, porque os rumores de que a profecia havia se cumprido começam
a se espalhar e os cidadãos acreditam que Anfitrião estava em batalha, logo,
Alcmena, para eles, é uma traidora. Anfitrião precisa decidir se conta ou não
a verdade, Alcmena não quer que ele conte, pois era demasiado desonroso
fugir da batalha. E, surpreendentemente, Anfitrião escolhe contar uma
versão diferente:
ANFITRIÃO: – Enquanto eu defendia Tebas, enquanto eu defendia
vossos lares, os vossos filhos, as vossas mulheres, alguém esteve
aqui... e foi milagre... foi Júpiter, Nosso Senhor!
DEMAGOGÓS:– Anfitrião então tu és...?
ANFITRIÃO: – (interrompendo-o) Bolas, Demagogós. Sou o que tu
pensas! Sou corno. Mas sou o herói desta cidade! (FIGUEIREDO,
1964, p. 57)

Ao contar essa mentira ao povo, Anfitrião acaba por contar o mito


grego do encontro entre Zeus e Alcmena. Percebemos, também, que o autor
traz, ao final da peça, o ideal do herói grego que não pode jamais fugir da
batalha, seria mais desonroso para Anfitrião ser chamado de traidor e
covarde do que ser chamado de “corno”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fiel Alcmena mitológica chega ao Brasil da década de 1940 como


uma mulher à frente de seu tempo, uma mulher consciente de sua beleza e

|46
do efeito que isso pode causar nos homens. Uma mulher capaz de seduzir
um rei e os deuses. Já o general Anfitrião se apresenta como um homem
inseguro e ciumento que esquece até a sua honra e a da pátria, para pregar
uma peça na esposa e evitar que uma profecia se cumpra. Porém, é
interessante salientar que – a despeito de todas as mudanças que Guilherme
Figueiredo realizou em sua adaptação – ele manteve traços muito
importantes de outras versões do mito, como o fato de Anfitrião achar um
absurdo que Creonte quisesse Tessala e não Alcmena; na versão latina de
Plauto, Anfitrião se sente lisonjeado por ter uma mulher digna do desejo do
próprio Júpiter.
A recepção brasileira do mito, apesar de trazer personagens da
tragédia, como Creonte e Tirésias, é bastante cômica ao abordar assuntos
como ciúmes e infidelidade. Ao transformar a fiel Alcmena em uma mulher
que gosta de flertar com outros homens e Anfitrião em um general inseguro
e ciumento, Figueiredo “abrasileira” de maneira bastante eficaz essa
narrativa mítica grega.

REFERÊNCIAS

APOLODORO. Biblioteca. Tradução Luiz Alberto Machado Cabral. Campinas: São


Paulo, 2013.

EURÍPIDES. Héracles. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo:


Editora 34, 2014.

FIGUEIREDO, Guilherme. “Um deus dormiu lá em casa”. In: Quatro peças de


assunto grego. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1964.
FIGUEIREDO, Guilherme. Xântias: diálogos sobre a criação dramática. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1957.

GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. A comédia e seus duplos: o Anfitrião de Plauto.


Curitiba: Kotter Editorial, Cotia: Ateliê Editorial, 2017.

GUZIK, Alberto. “A dramaturgia moderna”. In: FARIA, João Roberto. História do


Teatro Brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas. São Paulo:
Perspectiva, 2013. Volume 2. pp. 117-143.

|47
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São
Paulo: Iluminuras, 2015.

HOMERO. Ilíada. Tradução e prefácio Frederico Lourenço. 1. ed. São Paulo:


Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.

PLAUTO. Anfitrião. Tradução, introdução e posfácio Leandro Dorval Cardoso. 1.


ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo:


Editora Perspectiva, 1996.

TORRANO, J. A. A. Escudo de Héracles. Poema de Hesíodo. Tradução. Hypnos, São


Paulo, v. 6, p. 185-221, 2000.

|48
ENTRE REALIDADE E FICÇÃO: ANA CLITEMNESTRA ,
DE CARLOS HENRIQUE ESCOBAR

Maria de Fátima Silva

INTRODUÇÃO

Comecemos pelo título,1 uma união sugestiva entre um presente (séc.


XIX-XX brasileiros) – o de uma Ana ainda quase anónima - e um passado
mítico, com milénios de idade – o de uma paradigmática Clitemnestra.
Para, de seguida, retirarmos da “Informação preambular” os pressupostos
subjacentes a esta legenda.
Fica então claro que o ponto de partida para a ficção é um episódio
real, o que envolveu a vida e morte de Euclides da Cunha, um “grande
escritor brasileiro”, “republicano e escritor” (ESCOBAR, 2007, p. 117),
homem de letras e político, em ambos os casos com posições sólidas e
conhecidas. Percurso de vida traçado em linhas essenciais, aquelas que
balizam os seus extremos, acentuando-lhe sobretudo o desfecho, enigmático
e envolto em tragicidade: “Euclides da Cunha (autor de Os Sertões) nasceu
em 20 de Janeiro de 1866 e morreu tragicamente em Maio de 1909 nos
jardins de uma casa no bairro da Piedade (Rio de Janeiro)” (ESCOBAR,
2007, p. 118). Anuncia-se a morte de um homem público nos limites de um

1
Carlos Henrique Escobar. Ana Clitemnestra. In : Teatro. Águeda, Moira, p. 117-73,
2007. Carlos Henrique Escobar (1933-) é um filósofo, poeta e dramaturgo brasileiro,
com uma notável carreira como ativista político e, na qualidade de académico, como
propulsor da disciplina de Análise do Discurso, na universidade brasileira. Foi o
fundador da Escola de Comunicação da UFRJ e do Instituto de Arte e Comunicação
Social da UFF. Da sua produção dramática constam outras peças de inspiração clássica:
Antígona-América, levada à cena pelo Grupo Decisão e publicada em 1962; Ramom, o
Filoteto Americano (1975); e José Medeia (Medeia Masculina). Sobre o seu
pensamento e atividade, cf. Kowaga, 2014; Rosa, 2019.
domicílio privado, não a intimidade ou reserva da sua própria casa, mas um
território hostil; continua o texto: “Nesta casa morava Dilermando e seu
irmão Dinorah (então oficial da Marinha) e lá se encontravam Ana e seus
filhos. Euclides da Cunha se armara para ir buscá-los, mas foi atingido por
disparos efetivados por Dilermando e morreu no local” (ESCOBAR, 2007, p.
118). Um crime à partida motivado por conflitos masculinos, os que
separam o marido do amante de Ana. Orientados pelo título que funde Ana
com Clitemnestra, não podemos deixar de envolver na história os seus
tradicionais parceiros, Agamémnon e Egisto, na tradição helénica também
marido e amante. No confronto – como o imagina Escobar –, o amante
domina, e, quando desafiado, elimina o rival.
Perante a evidência dos resultados, uma componente nos sucessos se
mostra estranhamente obscura, o papel que nos acontecimentos terá cabido
a Ana, em primeiro lugar simplesmente “a mulher de Euclides da Cunha”.
Para a opacidade ou silêncio com que a imprensa e a opinião pública a
trataram, o autor identifica um motivo: “o clima preconceituoso que cerca a
coragem dessa mulher” (ESCOBAR, 2007, p. 117). Mulher que, afinal,
ocupava na vida do marido o papel discreto a que a convenção social e a
carreira política de Euclides a votara: “Já Ana, sua mulher, é como se fosse
uma história paralela. Contudo também segredo e tragédia que cercou o
autor no fim de sua vida” (ESCOBAR, 2007, p. 117). Secundarizada no
episódio, Ana assegura enigma e tragicidade ao que resultou num quadro de
violência entre dois homens que disputavam a mesma mulher. É esta a
brecha que Escobar ocupa para construir a sua ficção.
Façamos, desde já, um parêntesis para recuar à velha história da
morte de Agamémnon, para que o autor brasileiro remete, apenas por
sugestão. Precisamos de regressar às fontes, para que as novas opções
resultem claras. Antes que a tragédia grega desse a este episódio uma
enorme visibilidade, já a épica e a lírica lhe tinham prestado evidente
atenção. A Odisseia, em primeiro lugar, valorizou o episódio da traição e
morte de Agamémnon, no seu regresso da guerra de Troia, a que retorna em
três momentos: durante a Telemaquia, nas cortes de Nestor (Canto III) e de
Menelau (Canto IV), o relato do homicídio do Atrida é feito ao filho de
Ulisses em versões que ou isentam Clitemnestra, ou lhe deixam um papel

|50
secundário nos acontecimentos; pelo contrário, o queixume do próprio
Agamémnon no Hades, onde Ulisses o encontra (Canto XI), acentua a
traição da rainha.
Em Odisseia 3.194, 249-50, 303-4, Nestor não hesita, no relato que
faz a Telémaco do regresso dos heróis terminada a campanha troiana, em
culpabilizar em exclusivo Egisto pelo homicídio de Agamémnon (aliás
confirmando a denúncia que o próprio Zeus tinha feito, Odisseia 1.35-41). E
se a rainha é isentada de culpa na morte do marido, a sua responsabilidade
no adultério é também minimizada (3.264-71). Egisto veste o papel do
sedutor que a princípio encontra alguma resistência da esposa fiel e mulher
de virtude. Só por um assédio persistente, a que o destino veio dar um
impulso, o traidor levou a termo os seus intentos. Em contrapartida, a deusa
Atena (3.234-5) envolve na cilada que vitimou o Atrida “Egisto e a própria
mulher”, desvendando a instabilidade das versões de que o poeta da
Odisseia dispunha. Já no Canto IV, Menelau, acrescenta pormenores à
cilada de que Egisto foi o responsável (4.52-37). A descontração e alegria do
Atrida no regresso contrasta com a maquinação surda do inimigo. Avisado
por um vigia ao seu serviço da chegada do rei, o usurpador convida o
recém-chegado para um jantar no palácio, fazendo da xenia a arma do
embuste. É num banquete que elimina Agamémnon com toda a sua
comitiva. Nesta versão, o contencioso é político, estabelecido entre homens
que se disputam o poder, sem qualquer participação de Clitemnestra.
No Hades, porém, a sombra de Agamémnon tem do golpe que o
vitimou outra visão (Odisseia 11.409-35). Confirma o convite traiçoeiro de
Egisto para um banquete – não já no palácio, mas na casa do próprio
homicida –, não poupando Clitemnestra ao papel de cúmplice (11.410,
“juntamente com a minha maldita mulher”). Portanto o homicídio torna-se
uma questão doméstica e conjugal, fruto de um ressentimento de esposa
traída. Numa palavra, a épica continha já em embrião os traços essenciais do
futuro retrato trágico que consagrou a senhora de Micenas.

|51
Dentro do ciclo épico, os Nostoi,2 segundo o sumário de Proclo na
Crestomatia, relatavam a morte de Egisto e Clitemnestra – insistindo na
ideia de partilha no crime – às mãos de Orestes auxiliado por Pílades,
introduzindo o cúmplice no ato do vingador. O sentimento que torna o
adultério de Clitemnestra indiscutivelmente voluntário e faz dele um
paradigma atroz de um comportamento feminino impõe-se em Píndaro
(Pítica 11.22-8), como uma razão verosímil para o homicídio conjugal.
Logo, os testemunhos mais antigos sobre o tratamento deste mito
introduzem discrepâncias na interpretação dos que se fixam como seus
traços fundamentais; polémico é, desde a origem mais remota do mito, o
papel efetivo que coube à mulher na divergência entre os dois homens da
sua vida. Ao declarar o seu projeto, porém, Carlos Escobar deixa claro que o
seu modelo de referência é Ésquilo e o papel que atribuiu a Clitemnestra na
sua trilogia intitulada Oresteia (458 a.C.)3. Por isso anuncia, como seu ponto
de partida: “esse drama onde o comportamento e as ações de uma mulher
(brasileira) se deixam atravessar pelos mesmos símbolos e pela mesma
grandeza do personagem grego (Clitemnestra)” (ESCOBAR, 2007, p. 117).
Não só palavras como “drama” e “personagem” denunciam o teatro como

2
Huxley (1969, p. 167) sintetiza: “Os Nostoi portanto abrangeram um período
ligeiramente mais extenso do que os sete anos durante os quais Egisto reinou em
Micenas; decorriam entre a questão entre Agamémnon e Menelau em Troia até ao
assassínio dos usurpadores em Micenas, por Orestes...”.
3
A questão da responsabilidade relativa dos dois amantes prosseguiu nas versões
trágicas do episódio. Assim Electra, em Sófocles, passa a culpar, em igual proporção, a
mãe e o amante como corresponsáveis no crime (Electra 97-9, 124-6, 193-200, 209-12,
263, 585-8). Eurípides lança dúvidas na participação efetiva de cada um dos homicidas
na morte de Agamémnon; assim, segundo o Lavrador que pronuncia o monólogo de
abertura, Clitemnestra foi o cérebro do golpe e Egisto o seu executor (Electra 9-10);
Orestes parece confirmar esta versão ao responsabilizar Egisto pelo homicídio, “com a
ajuda da mãe”, e ao propor-se tirar vingança “dos assassinos” por ordem do oráculo
(86-9); Electra, por sua vez, parece dar prioridade à intervenção de Clitemnestra (122-
4, 162-5); e o coro, solidário com Electra, não hesita em lhe avolumar as culpas (1155-
61). Esta oscilação relativiza de certa forma a responsabilidade da rainha, uma clara
preocupação de Eurípides nesta peça.

|52
referência para uma reescrita que será também dramática, como, mais
especificamente, a “grandeza” da personagem se aplica, de forma
inconfundível, à versão esquiliana.
Recriar Clitemnestra exige a determinação de um contexto
compatível com aquele que cercou a rainha de Micenas: o longo
afastamento do marido na guerra de Troia, o prestígio do seu papel de
comandante supremo das forças invasoras, a mobilização de diferentes
povos em nome de um ideal comum, o abandono a que se viu votada
perante a incompatibilidade de papéis que o contexto impunha aos homens
e mulheres. Que os acontecimentos do final do séc. XIX no Brasil poderiam
equivaler, grosso modo, a uma réplica da campanha contra Troia,4 é o que
Escobar estabelece na sua interpretação: “Os motivos da época, a República,
o ideal da unidade nacional, de raça, o papel ostensivo do exército, o
preconceito e a solidão imposta a ela (pelas viagens sucessivas de Euclides da
Cunha, esse Ulisses geógrafo da unidade territorial)” (ESCOBAR, 2007, p.
117-118). Logo o contexto, ficcional num caso e histórico no outro, tem
manifestas coincidências.
Por fim, reduzindo o ângulo de perspetiva, o autor adianta alguns
traços de personalidade na sua Clitemnestra, caraterizada, na versão
dramática, por um protagonismo que os acontecimentos reais lhe não
conferiram. Do “segredo” que a envolveu na realidade, a ficção, com maior
liberdade, vai trazê-la a primeiro plano. Na antecipação do seu projeto,
Escobar pode reconhecer o incentivo que para ele constituiu esse silêncio:
“Enfim, de Ana se sabe muito pouco, mas é ela evidentemente a nossa
Clitemnestra, a mulher que afronta a República, e define seus atos e
sentimentos” (ESCOBAR, 2007, p. 118).

4
Aliás, nem mesmo a menção explícita a Troia falta nesta Informação Preliminar, no
paralelo manifesto entre a realidade brasileira do momento e a ficção helénica:
“Canudos e todos os movimentos populares (esmagados pelo Exército) são a nossa
Tróia” (ESCOBAR, 2007, p. 118).

|53
É, portanto, uma nova “mulher de vontade máscula” (Ésquilo,
Agamémnon 10-1) que o autor brasileiro pretende recriar. Por isso, nesta
“Informação Preliminar”, o estabelecimento de alguns traços essenciais ao
retrato da Clitemnestra brasileira torna-se relevante. De um modo curioso,
que vai ter repercussão no texto dramático propriamente dito (e.g., p. 123),
o fio condutor da vida de Ana é traçado pela sequência de apelidos que
sucessivamente se colaram ao nome que em permanência a identifica, Ana:
“Ana Ribeiro, sobrenome por parte de pai, Ana da Cunha, por parte de
Euclides da Cunha, Ana de Assis, por parte do então tenente Dilermando,
ou Ana Clitemnestra, como o autor prefere chamá-la...” (ESCOBAR, 2007,
p. 118). Os sucessivos apelidos constroem as diferentes etapas da sua vida,
responsáveis por fazerem dela, em última análise, um paradigma; mulher,
na dependência constante do homem, do pai, do marido e do amante, até
impor-se pela afirmação e vontade próprias, tal como a senhora de Micenas.
Através desta sucessão de apelidos, o autor antecipa a transformação da
mulher real em símbolo de emancipação feminina.
Mas, tal como na Oresteia esquiliana, a vida de Ana, e a ficção sobre
ela criada, não ficaram por uma primeira etapa correspondente a
Agamémnon (a primeira peça da trilogia de Ésquilo): o homicídio do
marido. Uma tentativa de vingança surgiu anos mais tarde, levada a cabo
por um novo Orestes, agora Euclides da Cunha Filho, que teve como
desfecho, nos acontecimentos brasileiros, a sobrevivência da vítima e a
morte do agressor. O enredo de Coéforas impunha-se, a Escobar, como
inspirador para esse intuito de vingança, apesar do desvio que os
acontecimentos, no Rio de Janeiro, seguiram. O alvo do jovem vingador não
era, como no mito grego, a mãe, mas sim aquele que ele considerava o
verdadeiro culpado pelo homicídio do pai, o amante. Como também o
destino ditou que a vingança se frustrasse e acarretasse a morte do próprio
vingador. As Erínias, deusas da vingança e inspiradoras de uma justiça
retributiva, estiveram ausentes do drama brasileiro...

|54
COMO PANO DE FUNDO, A HISTÓRIA

O fundamento real de Ana Clitemnestra assenta em dois pilares: a


historicidade das personagens – Euclides da Cunha, sua mulher Ana da
Cunha, e o amante (mais tarde seu segundo marido), Dilermando de Assis –
e a do contexto em que se inserem, o dos movimentos republicanos no
Brasil do final do séc. XIX e inícios do XX.
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866-1909)5 mereceu um
lugar de relevo na história da literatura brasileira. Natural do Rio de Janeiro,
após uma formação técnica como engenheiro militar, enveredou por uma
carreira jornalística e daí passou à criação literária. Foi com a publicação de
Os Sertões, um título emblemático na sua produção (1902), que se
consagrou como autor. Título esse que parecia vir harmonizar as duas
perspetivas da sua atividade, por se tratar, em embrião, de reportagens feitas
ao serviço do jornal Estado de São Paulo, a propósito do movimento de
Canudos. A importância política – mas também literária – desta publicação
mereceu a Chaves de Melo (1995, p. 1415) o apodo de “uma espécie de
Bíblia da nacionalidade”. Porque foi a partir dela, e da sensibilização que
criou sobre o abandono das populações sertanejas, que um movimento de
reflexão se ergueu a propósito da questão da terra e do homem brasileiro.
Por isso acrescenta ainda o mesmo estudioso: “Euclides da Cunha era
homem de raro carácter, engenheiro competente, pesquisador infatigável,
atento colecionador de palavras: com isso, sacudiu uma época fin de siècle,
marcada pela acomodação e pela mediocridade” (MELO, 1995, p. 1416).
Desde jovem que a sua ideologia republicana se tornou manifesta e
que alguns atos de rebeldia deram conta da profundidade das suas
convicções.6 Tratava-se de pugnar pela instauração de um regime

5
Cf. Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. I. Lisboa, Verbo,
1995: s.u.
6
Celebrizou o ainda jovem Euclides da Cunha a reação de insubordinação que teve na
Escola Militar da Praia Vermelha; numa afirmação da sua ideologia republicana,
lançou a espada aos pés do Ministro da Guerra, Tomás Coelho, durante a revista à

|55
republicano no Brasil, que veio a consumar-se em 1889 com a deposição do
rei D. Pedro II. De um império, o país passava a governar-se por um modelo
republicano presidencialista, iniciando uma nova era na sua história. Uma
parte da vida de Euclides da Cunha foi então vinculada ao serviço do
exército brasileiro, sobretudo após a proclamação da República.
Se Os Sertões – um relato histórico-ficcional – constituíram um
momento determinante na sua carreira de escritor, marcante foi também a
participação que teve, como testemunha e repórter, ao serviço do jornal
Estado de São Paulo,7 na Guerra de Canudos, um conflito de sertanejos da
Bahia contra o exército brasileiro.8 Fica claro para Euclides da Cunha a
legitimidade da luta, que nada mais era do que uma reivindicação por
condições mínimas de sobrevivência e de uma maior justiça social; dessa
experiência resultou matéria para o seu relato e justificação para o grande
eco que veio a ter na opinião pública. Desse êxito fala a nomeação do seu
autor para membro da Academia Brasileira de Letras (1903). Uma atividade

parada, o que levou à sua expulsão. A este episódio, Escobar faz várias menções, num
elogio às convicções determinadas e corajosas de um cidadão promissor: “Quebrou o
espadim sobre os joelhos e na frente do ministro da guerra do império” (ESCOBAR,
2007, p. 128; cf. p. 129).
7
Esta missão foi-lhe atribuída na sequência de dois artigos antes publicados, que
intitulou “A nossa Vendeia” (cf. Ana Clitemnestra, p. 123), em que defendia ideais
republicanos contra o que se sugeria como um movimento pro-monárquico, em
Canudos.
8
Este foi um conflito (1896-1897) entre o exército brasileiro e uma comunidade sócio-
religiosa dirigida por António Conselheiro, sediada em Canudos, uma povoação do
interior do estado da Bahia. A rebelião de sertanejos foi desencadeada pelas
dificuldades de sobrevivência colocadas por uma política agrícola improdutiva,
fustigada por secas e responsável por uma pobreza permanente, a que o governo
central respondia com indiferença. Perante o movimento popular, os grandes
proprietários desencadearam, junto do recém-estabelecido governo republicano, uma
reivindicação, apoiada em boatos de que os revoltosos de Canudos se preparavam para
pôr em causa o governo republicano e para reinstaurar a monarquia. Perante estes
rumores não comprovados, desencadeou-se uma série de campanhas militares que
terminaram com a chacina de milhares de sertanejos e a destruição completa de
Canudos.

|56
jornalística e política intensa, acrescida de trabalho como engenheiro e
geógrafo – o que desenvolveu também no norte do Brasil com vista à
demarcação de fronteiras com o Perú (1904) –, obrigou-o a frequentes
ausências ou absorveu-lhe o tempo e a atenção, distanciando-o da vida
particular e familiar.
Por isso, o seu casamento com Ana Emília Ribeiro (1872-1951), filha
do então major Sólon Ribeiro – um nome preponderante na proclamação
da República –, resultou numa união fraturada e distante, que acabou com a
infidelidade da esposa, então já mãe de dois filhos de uma união
extraconjugal com o militar Dilermando de Assis, 16 anos mais jovem do
que ela.9 Perante o adultério da mulher, Euclides tentou o homicídio do
amante, mas acabou morto por ele (1909) num tiroteio que ficou
publicamente conhecido por “Tragédia da Piedade”10. Este seria, no entanto,
apenas o primeiro homicídio, a que a vingança tentada pelo filho da vítima,
Euclides Cunha também de seu nome, anos mais tarde (1916), acrescentou a
morte do próprio vingador ferido por Dilermando. Após a morte do
marido, Ana veio a casar com o amante, de quem teve ainda mais cinco
filhos. Por sua vez abandonada por Dilermando ao fim de duas décadas de
casamento, retirou-se para a ilha de Paquetá, onde veio a morrer de cancro
em 1951.

9
Com vista ao comentário sobre a ficção de Escobar, importa registar os filhos de Ana:
cinco dentro do casamento com Euclides, entre eles uma filha (Eudóxia) e um filho
com o mesmo nome do pai, Euclides; mais seis nascidos da relação e depois do
casamento de Ana com Dilermando de Assis.
10
O impacto deste episódio, envolvendo figuras públicas e escândalo social, foi tema para
ficção literária e para uma ópera – Piedade - composta por João Guilherme Ripper. Por
sua vez a Rede Globo transmitiu a minissérie Desejo (1990), com Vera Fischer no
papel de Ana, e Guilherme Fontes no de Dilermando.

|57
A FICÇÃO

À laia de prólogo

Não é uma verdadeira tragédia e menos ainda uma trilogia o que


resulta da reescrita de uma nova Clitemnestra por Escobar. Mas o modelo
da Oresteia de Ésquilo é, apesar de todas as inovações, inconfundível. Uma
estrutura em 24 Cenas, à partida obedecendo a regras distintas da
convenção trágica grega, não esconde tonalidades paralelas com as
componentes padronizadas pela tragédia. Há prólogo, há coro, há peripécia,
há desfecho; e, se quisermos, há terror e piedade, os requisitos aristotélicos
para uma criação bem sucedida. O tema inspirado nos acontecimentos que
envolveram, no Brasil do início do séc. XX, a morte de Euclides da Cunha,
marcados por duas etapas – de homicídio e vingança, dentro do círculo
familiar – supunha uma afinidade incontornável com a narrativa das duas
primeiras peças da Oresteia: Agamémnon e Coéforas. A que o autor, para
consolidar a proximidade entre modelo e recriação, não deixou de
acrescentar a citação de passos da sua fonte, fazendo ouvir palavras de
Ésquilo na boca da sua protagonista.
A opção por uma abertura em flashback, colocando o seu público
diante da morte iminente da “velha Ana”, das alucinações que a
atormentam face a temíveis inimigos ou vingadores, correspondem à
inversão da cadência esquiliana. A narrativa dramática de Escobar antecipa,
de modo particularmente original, Coéforas a Agamémnon.
Uma rubrica de cena – “são curiosos que observam ‘a velha Ana’
sendo levada nas ruas, carregada, para um hospital” (ESCOBAR, 2007, p.
120; cf. p. 121) – coloca os espectadores/leitores diante de um quadro de
falência física a que uma encenação acentua os traços: “Ana de camisola
branca e sob um forte luar é levada pelas suas filhas para o Hospital Central
do Exército” (ESCOBAR, 2007, p. 120) . O espectro da morte ergue-se
diante da nova Clitemnestra, como diante de cada um de nós, “os curiosos”
dentro e fora da cena; e, no entanto, há ainda um espaço entre morte e vida,
para que a esposa – criminosa ou vítima – se dê a conhecer.

|58
Ora são justamente “os curiosos”, chamados a comentar, dentro de
cena, o quadro a que assistem, que desempenham, em sucessivos diálogos, a
missão esperada de um prólogo: a de antecipar acontecimentos, criar
expectativas e sublinhar motivos, orientar, numa palavra, o auditório para
tópicos em geral conhecidos, mas que integram, no drama do momento,
certas inovações. Para que as diferentes perspetivas na leitura dos
acontecimentos sobressaiam, os comentadores em diálogo revestem diversas
identidades – duas mulheres primeiro, pela afinidade de género que têm
com a protagonista; um casal, homem e mulher, depois, pelo contraste que
se espera das suas interpretações; dois militares a seguir, detentores de uma
mentalidade particular e afins com a vítima e o assassino; as filhas, por fim,
ou seja, o círculo familiar, com uma visão tendencialmente mais sentimental
ou afetuosa. No seu somatório, constituem o que poderíamos chamar ‘a
opinião pública’, naturalmente heterogénea, sobre um episódio carregado
de tensões e controvérsias que parece chegar ao fim. A maleabilidade do
mito está, como sempre, subjacente à pluralidade de leituras a que o
episódio poderá ser sujeito.
Basta uma citação curta do diálogo entre as duas Mulheres, para
perceber como, num estilo minimalista, alguns alicerces convencionais são
estabelecidos para a história:
Mulher 1 – Já foi bonita.
Mulher 2 – Bonita e assassina.
Mulher 1 – Não foi ela.
Mulher 2 – Mas foi por causa dela. (ESCOBAR, 2007, p. 120)

Como Clitemnestra, Ana tem como primeira credencial a beleza (cf.


p. 121, “uma das mulheres mais bonitas do Rio de Janeiro”), a que se junta o
episódio central da sua vida, o homicídio do marido. Não se trata de tópicos
avulso, mas de um encadeamento que a convenção antiga deixava
manifesto: formosura, como símbolo de erotismo e causa de desastre ou
violência, ou não fosse Clitemnestra irmã da ‘bela Helena’, a causadora do
confronto paradigmático em Troia. Ao mesmo tempo, Escobar deixa clara
uma outra opção fundamental, a da atribuição de responsabilidades aos
amantes sobre a morte do marido: se o autor material é, no caso brasileiro,

|59
Dilermando / Egisto, Ana Clitemnestra parece assumir, na ficção, a autoria
moral, condição para a trazer a primeiro plano na ‘tragédia’.
Se não houve unanimidade na leitura das duas Mulheres, menos
ainda ela existe na interpretação de um casal. Mulher embora e idosa, é
mesmo assim a Velha quem pronuncia reprovações mais cáusticas:
Velha – (...) Elas levam uma mulher. Não é Ana de Assis, a velhinha?
Velho – Não, é Ana Ribeiro. A filha do general Sólon.
Velha – É a mesma coisa. Ana Ribeiro, Ana da Cunha e Ana de
Assis. (...) Depois do que aconteceu vive escondida. (...) A cidade
inteira a odeia. Todos sabem que ela é culpada. (...) Euclides da
Cunha e o filho morreram por culpa dela. (ESCOBAR, 2007, p. 120-
121)

A tónica volta-se agora para o trajeto de vida subjacente aos


sucessivos apelidos de Ana: antes de mais para a sua origem distinta –
aristocrata, no caso de Clitemnestra –, para a reclusão e o temor, que são
expressão da culpa e do remorso. Antes que a cidade inteira lhe aponte o
dedo, já Ana se condenou no tribunal da sua consciência. O paralelo com
Ésquilo impõe-se novamente. Em Coéforas, a regra “ao culpado o castigo”
(123, 312-3) tem de cumprir-se. E mesmo se Clitemnestra aparece investida
no poder e responsável por um regime de terror (55-7, 302-4, 973-4), a sua
segurança denuncia debilidades. À distância, sem se expor fora do palácio
nem se aproximar do túmulo do marido,11 a rainha envia oferendas
propiciatórias e tenta reparar a omissão de outrora. A mulher teme pela
vida, a rainha teme por um poder que detém contra a justiça e que as suas
vítimas reclamam (32-42). Com a perda de segurança que o crime trouxe à
sua vida, Clitemnestra passou a cultivar um pavor que a tornou vulnerável e,
por isso, mais feminina. Deuses e mortais fazem ouvir a reprovação e
exigem castigo: da mulher que ousou matar um rei que era também o seu

11
O temor da reprovação pública é um traço comum em todos os tratamentos trágicos de
Clitemnestra; cf. Sófocles, Electra 516-22, Eurípides, Electra 29-30, 643-4, 1013-5,
1036-40.

|60
marido e o deixou privado das homenagens devidas (cf. Eurípides, Electra
323-5, 510); da mãe, que priva os filhos dos seus legítimos direitos.
Aos dois militares interessa sobretudo a execução do crime - quem
disparou o tiro -, ainda que, sobre Ana, tenham também opiniões díspares:
Militar 1 – É uma mulher de fibra.
Militar 2 – É uma puta. Mulher de dois homens.
Militar 1 – Seu último marido foi general.
Militar 2 – E daí? A culpa não é dele.
Militar 1 – É de quem então? Ouça aqui. Esta mulher nunca disparou
um tiro.
Militar 2 – E precisava?
Militar 1 – Eu não disse que precisava. Eu estou dizendo que ele foi
ele que atirou. (ESCOBAR, 2007, p. 121)

Um fator relevante se junta agora aos pressupostos da ação. Mais


profunda do que a paixão e suas consequências é a personalidade de Ana
Clitemnestra, “mulher de fibra”, uma mulher fora do seu tempo,
inconformada com a etiqueta social a que está sujeita e capaz de determinar
a sua própria vida. Se não foi dela o golpe que vitimou Euclides, de que a
rainha esquiliana reivindicava na totalidade a autoria, pelo menos a sua
vontade firme transparece como a motivadora de um disparo, a que
Dilermando apenas emprestou a pontaria certeira de um militar. De
distante e silenciada, a mulher vai-se revelando na sua verdadeira
identidade.
Por fim, do comentário entre as filhas ressalta não o ódio das
vingadoras, mas a solidariedade pela mãe na hora derradeira que se vizinha.
Electra e os seus ressentimentos estão ausentes da versão brasileira. A
preocupação com a urgência de chegar ao destino, o hospital, como último
recurso de salvação, empenha todas elas, resistentes à animosidade latente
nos que as cercam, mas animadas por uma última recomendação que
recordam da mãe debilitada: “Ela detesta que chorem perto...” (ESCOBAR,
2007, p. 121).
Dentro do texto, esta cena proémica tem função equivalente à que a
“Informação Preambular” tinha adiantado: quais são, do mito, as linhas de

|61
força que a velha história dos senhores de Micenas comportava, e qual a
leitura que realidade e ficção, no caso brasileiro, sugerem.
A Cena 2, uma espécie de kommós – um diálogo entre coro e
personagem – complementa o contexto já esboçado. O cenário é o de uma
cama de hospital, em que “Ana dorme agitada e é agora uma velha, porém
vital e ágil” (ESCOBAR, 2007, p. 122). Ao seu lado, pairam como sombras
os velhos da República, que constituem o coro. Com a sua intervenção, a
tonalidade política incrementa-se na peça. As suas palavras de elogio à
República, de empenho revolucionário, têm o condão de tornar presente a
vítima, do mesmo modo que, em Coéforas, o coro de cativas, no célebre
kommós que envolve Electra e Orestes, procura despertar o espírito de
Agamémnon como cúmplice solidário na hora da desforra. Com palavras
que se adivinham como citações de Os Sertões, Euclides da Cunha faz-se
ouvir na sua dignidade de revolucionário e patriota, como um outro
vencedor de uma campanha digna de Troia. Para o correligionário vai a
adesão do coro, para Ana o dedo apontado numa condenação contra aquela
que eliminou um grande homem, não apenas um marido.
Ana, que desperta – enquanto o coro se silencia por não haver entre
eles diálogo possível –, tem por sua vez oportunidade de se expor como é,
acima de todas as que são as possíveis opiniões a seu respeito. A sua habitual
determinação, de mulher forte e sedutora – “Eu sou o que sou. Eu, Ana de
Assis, Ana Clitemnestra para os entendidos, eu sou o que escolhi viver, eu,
Ana. Minha boca tem todos os palavrões do mundo, para o poder e os
homens e minhas coxas ainda brilham” (ESCOBAR, 2007, p. 123) –
sobrevive ainda apesar do terror que lhe causam os inimigos – os cidadãos e
a morte. Sobretudo um sentimento sobrevive nela com força maior: o ódio
ao homem (“o macho é muito canalha para ser o meu cercado” (ESCOBAR,
2007, p. 124; cf. p. 132), que se foi instalando numa mulher que crescia para
além dos limites da sua condição: “Eu era uma mulher como são todas as
mulheres do mundo e talvez menos. (...) Depois cresci como uma bola de
fogo, como uma bola, como um pôr-do-sol” (ESCOBAR, 2007, p. 124).
Mas já a alucinação a domina, uma reação repetida numa paciente
que Médico e Enfermeira tentam apaziguar. De novo o modelo grego
ressalta com a referência ao sonho, também ele veículo de agitação e

|62
perceção da morte (Coéforas 22-3); Clitemnestra, debilitada pelo crime e
pelo remorso, apavorada pelo temor da vingança, reage com aparato à visão
nocturna: lança gritos de horror (Coéforas 34-35, 535), acorda e salta do
leito, procura afogar na luminosidade das tochas o efeito devastador da
visão oculta nas trevas e calar as ameaças do além com oferendas (523, 525,
535-537). Tal como o sonho, a alucinação de Ana, com sintomas
semelhantes, é reveladora; apenas o motivo do pesadelo é distinto: o da
Clitemnestra grega inspirado pela maternidade, próprio de um momento
em que o matricídio vingativo se prepara; o de Ana de sentido político,
sendo a ideologia republicana e o que ela representa sobre o primeiro
marido morto o que a tormenta como um inimigo detestado. É dessa
alucinação que sai o flashback, o regresso ao passado, a memória do
homicídio, que repõe a ação no seu ponto de partida. Um retoque na
pintura do rosto elimina a brancura da morte, antes tão sublinhada, e
devolve ao rosto de Clitemnestra o tom da vida, e sobretudo o coquetismo
muito feminino que foi sempre sua caraterística. O modelo literário deixa,
então, de ser Coéforas para se voltar para Agamémnon.

Jogo de presságios

Recuamos no tempo, com a casa do general Sólon Ribeiro como


cenário, para o primeiro encontro que uniu o par Ana/Euclides. Esse, que
foi um encontro logo seguido de casamento, cobriu-se da tragicidade dos
presságios, ao mesmo tempo que o perfil dos dois agentes de um destino
ganhava consistência. Tudo se passa na peça de Escobar, em ritmo de
verdadeira tragédia, “num só dia”, dia, no entanto, marcado por alguma
força superior a ditar a precipitação dos acontecimentos.
Ana gozava ainda, nessa manhã, do sucesso que tivera na véspera, no
teatro da Escola, com a sua representação do papel da Clitemnestra
esquiliana. Não era a primeira vez que o assumia, mas agora os seus amigos
reconheceram nele uma vibração excecional: “melhor do que no ano
passado” (ESCOBAR, 2007, p. 127), “ela era grega e fui eu quem a
representou no colégio. Não uma, nem duas, mas muitas vezes” (ESCOBAR,
2007, p. 145). Do seu papel, a tirada que reservava como preferida era

|63
climáctica: aquele momento em que os gritos de Agamémnon se faziam
ouvir de dentro do palácio, seguidos do discurso da assassina, a esposa que
debita sobre o cadáver da vítima o ódio oculto, e que lhe preparou, sob
palavras de amor e lealdade, o golpe mortal (Agamémnon 1372-94; Escobar
p. 126-127).12 E é ainda em trajos requintados e com as palavras de
Clitemnestra nos lábios que Ana desce a escada, para vir conhecer um
convidado para o almoço, Euclides da Cunha, amigo e correligionário do
seu pai.
Sobre Euclides, as palavras com que a mãe lho anuncia não são
discretas; é um “herói”, que dizem “um homem de verdade” (ESCOBAR,
2007, p. 128), já coberto de fama pelo ato de rebeldia com que assumiu os
seus ideais de republicano na Escola Militar (cf. p. 129). No seu entusiasmo
maternal, a mãe de Ana prepara uma união carregada de simbolismo: da
atriz que vibra no papel de Clitemnestra, com o herói, envolvido numa
campanha prestes a impor-se como reformadora de um país. Se a récita de
versos do Agamémnon é pressaga, do lado de Ana, não o é menos a
conversa breve que, em simultâneo, Sólon e Euclides trocam na sala, antes
que se ouçam brados anunciadores da vitória da República. A cumplicidade
ideológica que os liga permite confidências; e é assim que Euclides debita o
que são, por enquanto, as suas ambições de futuro: viajar pelo Brasil,
intervir na reunião e mobilização das suas gentes, e escrever sobre essa causa
(ESCOBAR, 2007, p. 130), numa intromissão clara na personagem da
realidade da figura.
Esta aproximação célere que forças exteriores patrocinam – não os
deuses, mas os pais de Ana, no seu propósito de encontrarem para a

12
O texto é, com pequenas alterações que poderão justificar-se pela edição usada, uma
tradução da peça esquiliana. A cena é fulcral. Abatidos, manchados de sangue, jazem
os dois cadáveres, o do conquistador de Troia e o da cativa troiana, Cassandra, a sua
favorita. Poderosa, dominando a cena, ergue-se por trás deles a fúria assassina, uma
Clitemnestra firme, brandindo na mão a arma do crime. A longa rhesis que então
pronuncia tem a mesma crueza do gesto e traz até nós a revelação total de uma alma
dominada pelo ódio.

|64
herdeira o pretendente adequado –, conhece o seu momento decisivo com o
encontro dos que são já ‘os noivos’. Ao que parece constituir uma profecia
nas palavras de Euclides, junta-se a inevitável cegueira com que o ser
humano responde ao desafio. ‘O herói’ sabe grego, conhece a cultura
helénica, identifica nas palavras que Ana repete a voz de Clitemnestra,
percebe inconscientemente qual o papel que lhe cabe no episódio – o de
“Agamémnon” (ESCOBAR, 2007, p. 131). E apesar disso não recua, é com
entusiasmo que se lança na aventura, juntando ao que seria uma imposição
do destino a sua vontade.13 A cegueira de Ana é mais profunda, porque do
papel que representa nada sabe; da guerra de Troia nunca ouviu falar, os
contornos da história que recita desconhece-os; e, no entanto, vibra e
identifica-se com a heroína dos seus sonhos de uma forma íntima e
puramente intuitiva.

A culpa de ‘Agamémnon’

A preparar a morte do vencedor de Troia – a cena central do


Agamémnon –, Ésquilo vai construindo uma sequência de delitos que de
alguma forma legitimem o homicídio para além de um vulgar crime de uma
mulher adúltera contra um marido indesejado. São, de vários tipos, essas

13
Está implícito um conceito que ecoa em célebres palavras de Ésquilo (Persas 742):
“Quando um mortal se aplica na sua perda, a divindade colabora”. Por outro lado,
Euclides parece confrontar-se com o destino e, de certa forma, experimentar o habitual
dilema trágico, o da escolha entre ficar e partir. Ao escolher entre o que lhe parecia um
dever de honra militar, que o obrigava a prosseguir a campanha, e os seus deveres de
homem e de pai, que lhe exigiam a proteção da filha, o rei de Micenas preferiu
sacrificar Ifigénia, talvez porque uma ambição maior que todas as considerações
familiares lho ditasse. À sua medida, Euclides é colocado, pelos apelos e lágrimas de
Ana, perante escolha equivalente: entre os ideais republicanos, que o obrigam a partir,
e os deveres de marido e pai, que lhe aconselhariam ficar. Alguma tragicidade
impende, portanto, sobre a sua figura. Esta é uma das discussões fundamentais na
interpretação da peça esquiliana: a da efetiva liberdade de escolha de Agamémnon e,
em consequência, a da sua responsabilidade ou culpa. Sobre o assunto, cf. Kitto, 1959,
p. 1-38; Lesky, 1991, p. 13-23; Lloyd-Jones, 1991, p. 57-72.

|65
transgressões. Ambição e impiedade, na forma genocida como o vencedor
desmantelou Troia, sujeitam o Atrida ao desagrado dos deuses, de quem
nem altares nem templos foram poupados (Agamémnon 320-50, 503-680,
810-54). O adultério patente, na presença de Cassandra como sua cativa de
guerra (783-809), desafia, no terreno doméstico, a ira da esposa legítima.
Depois a maternidade de Clitemnestra, que o marido não respeita; o
sacrifício de Ifigénia carrega, portanto, de horror e ódio a relação entre o
casal (218-27). Por fim, até a própria genética, a pertença a uma família em
que os crimes se repetem de geração em geração funciona de fatalidade
sobre o destino de Agamémnon (1090-7). Logo o que está em causa, na
primeira peça da Oresteia, é não uma, mas um cúmulo de causas, pessoais,
familiares e públicas, que de certa forma justificam a morte do vencedor de
Troia às mãos da mulher. Mas, como contexto abrangente de todas estas
circunstâncias, está a indiferença, por uma esposa que afinal Agamémnon
desconhece e menospreza, e a ausência e solidão a que a vota. Escobar reduz
todas estas motivações a duas apenas – abandono e indiferença, e omissão
no exercício da paternidade -, que ganham, esbatidas todas as demais, uma
prioridade superlativa. Também por esta forma o episódio se aproxima do
quadro real.
A simultaneidade de tempos, que associa a instauração festiva da
República com as sombras que se vão instalando na vida doméstica do casal,
repõe o paralelo também sensível na tragédia entre público e privado. No
mesmo dia em que as ruas são lavadas, as casas pintadas, as árvores
podadas, para celebrar a renovação política que se respira, Ana está grávida,
ponto de partida para uma nova etapa na sua vida. Na mesma medida em
que Euclides se envolve nos sucessos públicos e se prepara para viajar mais
uma vez, o tédio e a solidão de Ana vão-se convertendo em desespero:
“cansei-me de esperar” (ESCOBAR, 2007, p. 133). A liberdade que a regra
social concede ao homem – “Os homens sabem o que fazer. Eles têm uma
vida independente” (ESCOBAR, 2007, p. 133) – contrasta com a reclusão
inútil com que brinda a condição feminina – “Estou cansada de me mudar e
de morar sozinha”, “Euclides nunca está em casa. Nunca me viram com ele”
(ESCOBAR, 2007, p. 134). E é assim que um filho nasce na ausência do pai
que, se não é um filicida – como o Agamémnon sacrificador de Ifigénia –, é

|66
pelo menos alguém que dá azo a que os filhos se constituam como fator de
conflito na existência do casal. Se amor houve, foi fugidio e sem a solidez
suficiente para se confrontar com o atrativo da causa social que a República
representa. Sob este ponto de vista, do conflito de géneros, a realidade dos
primeiros anos do séc. XX brasileiro não se distanciava muito da retratada
pelo mito troiano, ou da que a Atenas clássica conheceu. Por isso, uma
aproximação de Euclides com Ulisses ou Agamémnon se impõe
naturalmente, sublinhando afinidades entre modelo e recriação. De ambos,
o epíteto comum é “esperados”, porque ausentes e responsáveis por longas
ruturas conjugais (ESCOBAR, 2007, p. 139). Penélope e Clitemnestra são
por eles abandonadas à proteção dos muros de palácios, do mesmo modo
que Euclides procura transformar a casa em fortaleza, com a construção de
paredes que atrofiam e sufocam o quotidiano da mulher condenada a
esperar (ESCOBAR, 2007, p. 139-140).
Os protestos contra a decadência da sua vida e a perda de ânimo que
a inércia e a solidão acarretam, reduzindo-a a uma espécie de máquina
reprodutiva – “Estou parada nesta casa e minha barriga está cheia de filhos.
Euclides, eu quero desistir de tudo” (ESCOBAR, 2007, p. 136) –, são o
estímulo para a fase seguinte: a da traição. As razões que a movem talvez se
inspirem no discurso de saudação com que Clitemnestra acolhe o marido
que regressa da guerra; protestos de amor e fidelidade, a que se associam
memórias de angústia e insegurança, durante os longos tempos de solidão
(Agamémnon 855-76). Este é o primeiro golpe apontado à honra e
dignidade máscula de Euclides.
Como um passo decisivo na ação, o adultério é cercado de
pormenores sobre que vale a pena atentar, como se sociedade e natureza se
unissem para estimular ou justificar a determinação de Ana Clitemnestra.
Por ironia, Euclides é o primeiro agente da mudança, porque tudo se passa
a partir de decisões suas: quando viaja com a mulher criando condições para
uma violação imprevista, por um desconhecido na clareira de um bosque,
que serviu não para magoar a dignidade feminina, mas para estimular
impulsos e desejos – ao despir as roupas da formalidade, a verdadeira Ana
despertou e renasceu; ou quando na sua casa recebe camaradas de armas,
colocando diante da esposa abandonada a própria sedução. O contexto é

|67
também expressivo; a relação impetuosa que une Ana ao desconhecido
mobiliza em sua volta a natureza (physis), como moldura cúmplice de um
ato de sexo que escapa às convenções impostas pelo nomos; ou a intimidade
da casa patrocina aproximações imprudentes no que parecia ser um bastião
defensivo. Por fim, outras cumplicidades se mobilizam, a das duas Tias, no
papel de verdadeiras Amas de tragédia, prontas a ceder nas regras morais da
convenção em nome da sobrevivência afetiva de uma mulher carente e
apaixonada. Mais do que patrocinarem um amor culpado, elas passam a ser,
em Escobar, o estímulo para o desencadear de uma paixão, sublinhando
todos os encantos de um galã. São, por isso, as dignas projeções das Amas
trágicas, sobretudo a da Fedra euripidiana, dispostas a abalar escrúpulos e
pruridos morais em nome da felicidade de quem amam.14 E felicitam-se pelo
que entendem como o sucesso da sua intervenção: “Ele se pôs como um
anjo-jardineiro no coração de Ana” (ESCOBAR, 2007, p. 146). Mas como na
tragédia, as boas intenções das Amas são somente contributos para a
derrocada final.
É no topo desta linha ascendente de ausências e cumplicidades que o
delito de adultério com o cadete se consuma. Na urgência do parto de mais
um filho seu com Euclides, Ana é auxiliada por uma visita de acaso, do
jovem, bonito, atraente e seduzido pelos seus encantos: Dilermando. É ele
quem, numa hora crucial, desempenha o papel de marido e pai. Sem que ao
quadro falte o patrocínio da natureza, Ana franqueia o corpo à invasão de
um estranho, que, desta vez, oferece muito mais do que uma relação de

14
A Ama é uma personagem a que a tragédia grega nos habituou, sobretudo pela mão de
Eurípides, que fez das Amas de Medeia e Fedra figuras inesquecíveis do seu teatro.
Ligadas, pela função que desempenham, à senhora da casa, conhecedoras da sua
intimidade de que são confidentes, ei-las dispostas a ultrapassar princípios e reservas
em nome da felicidade ou bem-estar das suas protegidas. É o caso muito particular – e
próximo do das Tias de Ana – da Ama de Fedra, no Hipólito de Eurípides. Consciente
da paixão, adúltera e incestuosa, que ameaça a saúde da rainha rendida aos encantos
do enteado, a Ama aconselha o adultério e adianta-se mesmo a declarar, a um jovem
inconsciente do mal que provoca, a paixão da madrasta. Cf. Silva, 2005, p. 167-193.

|68
acaso. Oferece paixão, satisfação sexual e, de algum modo, também afetiva,
mas suscita, da sociedade que os cerca, reprovação. As circunstâncias
oneram o peso do adultério, com as consequências coletivas de um ato que
extravasa o nível estrito do familiar. Este tipo de comportamento é
desmoralizante para os combatentes de excelência, e penalizante para os
interesses da cidade. A honra dos valentes, afastados no cenário de guerra, é
posta em causa por outros homens, que ousam trocar o serviço honroso em
nome da pátria pela cobardia confortável da retaguarda; neste terreno, de
um relaxamento inútil e condenável, permitem-se ainda a invasão das casas
e a corrupção das esposas dos heróis que partiram. Foi assim Egisto, como
agora Dilermando.

Triunfo e morte do vencedor

Neste que é o momento climáctico, os ecos esquilianos, voltam a


impor-se. Para os sucessos da campanha não se necessita desta vez de um
Mensageiro que os relate e se antecipe a reclamar o aplauso para o vencedor
(Agamémnon 503-37). Escobar transporta-nos para o terreno da refrega e
permite que leitores e espectadores assistam, em direto, aos sucessos em
Canudos; um Menino, empoleirado numa cadeira, faz o relato do que vê à
distância, numa espécie de desafio à tradicional teichoscopía.15 Não falta, no
recontro, a violência genocida de que a guerra sempre é cenário.16 Mas

15
Este é um recurso – “observação do cimo das muralhas” -, utilizado desde a épica e
com presença também na tragédia, para a descrição do avanço de um exército invasor.
Os dois modelos emblemáticos desta técnica são a observação de Helena e Príamo do
exército dos Aqueus, do alto das muralhas de Troia (Ilíada 3.161-244), e a de Antígona
e do Pedagogo, sobre os muros de Tebas, invadida por Polinices na reivindicação dos
seus direitos de herdeiro de Édipo (Eurípides, Fenícias 87-195).
16
“Canudos não se rendeu. Resistiu até ao esgotamento completo. Canudos caiu no dia 5,
ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores. Eram quatro apenas: um velho,
dois homens e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5000 soldados”
(168).

|69
faltam as galas do herói, porque Euclides da Cunha não combateu, esteve
ausente da luta, não por estar ferido, mas sim doente.
A proclamação de um Participante do Coro – “Ana, Euclides está
voltando. Tróia caiu” (ESCOBAR, 2007, p. 153) – anuncia o regresso do
‘herói’, colocando-o em paralelo com a entrada triunfante do Agamémnon
esquiliano. No entanto, as divergências são notórias. Na primeira tragédia
da Oresteia, Clitemnestra assume, por inteiro e com entusiasmo, os
preparativos do triunfo; que a receção seja ao nível do Atrida e de um
marido respeitado (600-1). A partir deste momento instala-se o cinismo; ‘o
marido respeitado’ cabe mal a um Agamémnon, que nem é respeitado nem
merecedor desse respeito; como a Clitemnestra cabe mal a legenda de
‘esposa fiel’ (606), que franqueia as portas da casa ao senhor que regressa.
Por seu lado, os velhos de Argos, que compõem o coro, não corporizam um
sentimento de aplauso unânime na cidade; haverá, em redor do vencedor,
sorrisos forçados, daqueles para quem o sucesso teve um preço exagerado
(790-4). Egisto, o amante, está ausente para que o palco caiba, por inteiro,
aos ardis da rainha. A púrpura é lançada aos pés do vencedor, expressão
simultânea de sucesso e de morte, como a legenda proferida por
Clitemnestra cinicamente exprime (910-1): “que sob os seus pés se estenda
um tapete de púrpura, por onde a um domicílio insuspeitado o conduza a
Justiça”.
Na versão brasileira, o momento obedece a um outro propósito. Na
iminência da chegada do marido, rodeado de sinais de sucesso – “Ele está
vindo, Ana. E traz despojos de guerra, como Agamenon. Uma fileira de
cabeças mestiças” (ESCOBAR, 2007, p. 153)17 – mulher e amante estão
presentes, para enfrentarem juntos, com reações opostas, a dificuldade da
circunstância. Ana preserva, de Clitemnestra, uma maior determinação:
“Não tenho mais nada a ver com ele” (ESCOBAR, 2007, p. 153), é o seu

17
Naturalmente a imagem de Agamémnon sobre o carro do triunfo, ladeado por
Cassandra como símbolo dos despojos de guerra, está subjacente a este testemunho
(Agamémnon 810-54, 950-7).

|70
brado de uma independência determinada; Dilermando respira a mesma
cobardia de Egisto, delegando em Ana a condução do momento; ela mesma
lhe reconhece a fragilidade: “Não pense, não fale. Eu falarei e pensarei por
você” (ESCOBAR, 2007, p. 153).
Um último encontro de amor, e Euclides aproxima-se; “Este quadro
lembra – na forma – a chegada de Agamémnon” (ESCOBAR, 2007, p. 156),
esclarece uma rubrica de cena. É de noite, uma noite estrelada e límpida,
como aquela que rodeia a abertura de Agamémnon, a anunciar boas
notícias: “É como a tragédia “Agamenon” de Sófocles (sic), mas é também
como Ana, a República e Euclides da Cunha” (ESCOBAR, 2007, p. 156-157).
Não falta a “poeira”, a sugerir o carro que se aproxima, nem o troféu, em vez
da cativa, a cabeça degolada de António Conselheiro, o chefe dos revoltosos
de Canudos. “Euclides da Cunha se aproxima numeroso e sozinho”. Soam,
ao longe, hinos e saudações aos vencedores. Mas o confronto entre marido e
mulher não existe, apaga-se por trás da ausência, porque Ana se transferiu
para a casa do amante.
O homicídio vai, portanto, decorrer noutro cenário: o da casa que
Dilermando há pouco alugou no bairro da Piedade. Sobre o modelo grego
impõe-se, neste caso, a realidade do crime ocorrido no Rio de Janeiro.
Protagonizam-no os elementos masculinos da história: Euclides, o marido
ofendido que decide eliminar o amante, e Dilermando que, apesar de ferido,
reage e mata o invasor da sua casa.

A VINGANÇA

Numa peça que começara com a decadência de uma mulher culpada,


que a morte já rodeia, a construção de uma vingança, que se foca também
no cúmplice do crime, vai sendo cuidadosamente construída.18 Esta

18
No tema da vingança está pressuposta a gravidade com que o adultério era olhado na
Antiguidade, como também no Brasil dos inícios do séc. XX. Assim o comprova, na
Atenas clássica, a tolerância legalmente estabelecida para com o vingador; cf.

|71
componente segue, como vimos, a realidade do escândalo que envolveu a
morte de Euclides da Cunha, em pleno Rio de Janeiro. Um tal acto mobiliza
as atenções das diversas testemunhas e colhe um coro unânime de
reprovações; desde logo de alguns dos familiares mais próximos, mas
também de conhecidos e companheiros de armas.
Por um processo que se vai revelando com maior nitidez, Escobar
elabora também os trâmites da vingança. Atende, em primeiro lugar, à
origem da revolta que se vai desenvolvendo no âmbito familiar. “Num
canto, um menino toca um instrumento de sopro” (ESCOBAR, 2007, p. 134;
cf. p. 146), como uma testemunha viva, ainda que aparentemente
indiferente, às crises e delitos que se vão desenrolando sob os seus olhos de
criança. A sua presença vai, passo a passo, ganhando mais relevo: “O
menino toca o instrumento de sopro em plano destacado...” (ESCOBAR,
2007, p. 144; cf. p. 166). Até ao momento em que a sua identidade o traz a
um primeiro plano: “É meu filho Euclides. O mesmo nome do seu pai”
(ESCOBAR, 2007, p. 145). O novo Orestes entra, neste momento, em força
na história. Depois de declarado o parentesco que o une ao senhor da casa, o
seu papel, até aí ambíguo, ganha relevo no acolhimento do pai que regressa:
“O menino, filho de Ana, se destaca e toca seu instrumento de sopro”
(ESCOBAR, 2007, p. 155). É interessante a inovação introduzida por
Escobar: Orestes não está, como na tradição grega em geral, ausente de casa,
no exílio, por circunstâncias que variam – como refúgio contra possível
rebelião em Micenas na ausência do rei (Agamémnon 877-86), ou como
proteção contra uma mãe assassina e o seu cúmplice (Sófocles, Electra 11-4);
na versão brasileira mantém-se presente, assiste às alterações que se vão
sucedendo em casa, e vai construindo, inconscientemente – porque se trata
de uma criança em crescimento – motivações e impulsos para o ato que será

Demóstenes 23.53: “quem … encontrar alguém na cama com a mulher, a mãe, a irmã,
a filha ou uma concubina que mantenha para efeitos de procriação de descendência,
não deve sofrer pena de exílio, mesmo que tenha cometido homicídio”; cf. Lísias 1,
Aristóteles, Constituição dos Atenienses 57.3.

|72
levado a cometer. O filho volta, na versão brasileira, a ocupar o papel do
vingador, ainda que o matricídio – um crime limite e central no evoluir da
Oresteia - não seja nunca encarado como uma imposição divina e humana
em Ana Clitemnestra. O alvo da desforra é, agora, apenas o autor material
do homicídio de Euclides, Dilermando.
Além da criança, outras testemunhas se associam a uma reprovação
implícita ao adultério que se vai consolidando. “Vigiar” passa a ser uma
palavra dominante, no receio crescente em Ana pela hostilidade que a cerca:
“Eles nos vigiam. (...) Euclides os trouxe para cá, mas não é tudo. Na praça
em frente ficam alguns homens nos olhando. Eles vigiam” (ESCOBAR,
2007, p. 144). Como se de um coro de fiéis se tratasse, o cerco estende-se à
comunidade a quem é conferida procuração nos interesses de Euclides. Na
sua ausência prolongada, eles ali estão atentos aos que as paredes da casa
escondem. A insistência na ideia de ‘vigilância’ parece impor uma relação
com a figura – secundária no Agamémnon – do “Vigia” a quem está
conferido o monólogo de abertura. Mas, mesmo vestindo a pele de um
simples servo, este Vigia desempenha com muita eficácia o papel que
compete ao tipo de personagem que representa. Como Vigia que durante a
noite prossegue a sua missão, o servo mantém-se insone sobre o único leito
que lhe está acessível, o telhado do palácio real. Como um cão de guarda,
agachado no seu posto de observação, o homem é a imagem da persistência
e da lealdade. Vários fantasmas o atormentam: a ausência do senhor, a
autoridade temível de uma mulher de vontade máscula, a desordem surda
que reina na casa. As suas apreensões ou suspeitas exprimem-se em termos
que continuariam válidos para os novos vigilantes, em redor da casa de Ana
(Agamémnon 36-8): “Nada mais digo. Um boi enorme pesa-me na língua.
Esta casa, se lhe fosse dada voz, falaria com toda a clareza”.
Por fim, do círculo de amigos sai um último depoimento, igualmente
decisivo. Veio de um relacionamento social – “Ontem no chá na casa do
coronel Júlio, estava um homem. Aquele escritor” (ESCOBAR, 2007, p. 144)
– e ocorreu quando o nome de Euclides, por casualidade, caía na conversa.
Foi então que a semelhança flagrante entre Ana e Clitemnestra se repetiu,
rememorando os velhos tempos da representação no Colégio, perante o

|73
reparo desse vago conhecido (145): “Não existe um rosto para Clitemnestra,
mas é certamente com ela que você se parece” (ESCOBAR, 2007, p. 144).
Pouco a pouco preparada, latente nos gestos e reparos dos que
presenciam os acontecimentos, a vingança vai-se impor no próprio terreno
do crime. O novo Orestes, Euclides da Cunha Filho, uma criança ainda,
cumpre o seu destino perante o cadáver do pai e o homicida que ainda
sustenta nas mãos o revólver. Ele próprio armado, ameaça de morte
Dilermando e apenas uma pontaria hesitante o impede de consumar a
vingança. A retribuição, a justiça taliónica de eras pré-civilizacionais,
reproduz-se através de um menino que o destino preparou para cumprir
esse papel, como a tradição do ato de Orestes também sugeria. Dilermando,
um atirador de excelência, hesita perante a criança; e é aqui que Ana depõe
o impulso de maternidade, para estimular o amante à legítima defesa. Nas
palavras que então pronuncia está expressa a confissão da sua culpa: “Ele
não é meu filho. Meus filhos são os teus filhos. Viu? Ele disparou. Ou é ele
ou somos nós, idiota” (ESCOBAR, 2007, p. 168). Não há, para o vingador,
dilema nem julgamento: ele cai simplesmente, tal como o pai cuja honra
queria limpar.
Consumado o crime, Ana tem, como Clitemnestra, a sua rhesis de
triunfo. Não perante os cadáveres das vítimas; esses, quer afastá-los da sua
vista. Mas o júbilo com que vira a página acabada de viver ecoa o triunfo da
senhora de Micenas (Agamémnon 1372-1406). É profundo o seu
sentimento de missão cumprida. Toda a atenção se lhe concentra em si
mesma, no sentido do seu ato, “a minha pilhagem no mundo dos homens. É
a minha liberdade e o meu gozo” (ESCOBAR, 2007, p. 170). O futuro rasga-
se-lhe sem sombras, numa distribuição de papéis tão conveniente ao seu
projeto de vida: “Eu, Ana Clitemnestra, para inventar a mulher e com
Dilermando de Assis para disparar por mim. (...) Ele não é o meu senhor,
mas a minha arma...” (ESCOBAR, 2007, p. 170).

|74
CONCLUSÃO

Ana Clitemnestra é uma peça do seu tempo, construída sobre um


drama de família que encheu as páginas dos jornais e capturou a atenção
pública. Não será com certeza uma tragédia, inspirada no mito e estruturada
segundo um padrão convencional. Mas é a reescrita feliz de um modelo, o
da Oresteia esquiliana, lido com autonomia e ajustado a uma outra
realidade. Mas, ainda assim, tão sugestivo de uma história mítica, em que
impulsos humanos, tensões sociais, e a força do destino revestiram uma
expressão modelar.

REFERÊNCIAS

Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. I. Lisboa; Verbo,


1995.

CHAVES DE MELO, Gladstone. “Cunha (Euclides Rodrigues Pimenta da)”. In:


Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. I. Lisboa, Verbo, p.
1415-1417, 1995.

ESCOBAR, Carlos Henrique. “Ana Clitemnestra”. In: ESCOBAR, Carlos Henrique.


Teatro. Águeda: Moïra, pp. 115-174, 2007.
GAGARIN, Michael. Self-defense in Athenian homicide law. Greek, Roman and
Byzantine Studies, 19, p. 111-120, 1978.
HUXLEY, George L. Greek Epic Poetry. From Eumelos to Panyassis. London: Faber
and Faber, 1969.

KITTO, Humphrey Davy Findley. Form and meaning in drama. London: Methuen,
reimpr. 1959.

KOWAGA, João. Carlos Henrique de Escobar por ele mesmo: tragicidade e teoria do
discurso. Diálogos 18.2, p. 927-942, 2014.

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1991.

LLOYD-JONES, Hugh. The guilt of Agamemnon. In: SEGAL, Eric. Oxford Readings
in Greek Tragedy. Oxford, University Press, p. 57-72, reimpr. 1991.

|75
ROSA, Rodrigo Pereira. Entrevista com Carlos Henriques de Escobar Fagundes.
Policromias 4, p. 203-208, 2019.
SILVA, Maria de Fátima. A Fedra de Eurípides. Ecos de um escândalo. In: Ensaios
sobre Eurípides. Lisboa, Cotovia, p. 167-193, 2005.

|76
O HERÓI, A FERIDA E A FLECHA: O RESGATE DE
FILOCTETES EM RAMOM, O FILOTETO AMERICANO ,
DE CARLOS HENRIQUE ESCOBAR 1

Orlando Luiz de Araújo


Renato Cândido da Silva

CARLOS HENRIQUE ESCOBAR E O DRAMA MÍTICO BRASILEIRO

Publicada em 1962, Antígone América, que se trata de uma


reescritura de Antígona (c. 442 a. C.), de Sófocles, foi a primeira peça escrita
por Carlos Henrique Escobar2, aos dezessete anos. A primeira montagem
(1961), pelo Grupo Decisão, foi produzida por Ruth Escobar, sob patrocínio
do Governo do Estado de São Paulo, dirigida por Antônio Abujamra e, no
elenco, além de Ruth, estavam Dina Sfat, Sérgio Mamberti e Cláudio
Mamberti. Reportando-se à recepção dessa Antigone América na cena
paulista do início da década de 1960, Prado (apud Magaldi; Vargas, 2001)
identifica que ela não se destacou. Apesar de a crítica não ter sido favorável
ao dramaturgo, essa peça tem, no entanto, sua importância, pois no campo
da recepção do mito grego na cena nacional, Carlos Henrique Escobar dá
continuidade, após Carlos Maul, às reescrituras dramáticas de Antígona.

1
Este artigo teve o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior Brasil (CAPES).
2
Carlos Henrique Escobar nasceu em São Paulo, em 1933 e, atualmente, reside em
Portugal. Sobre sua trajetória na docência, no período em que morou no Brasil, foi
proibido de lecionar em diversas universidades e, por isso, voltou-se ao teatro. De
acordo com Escobar (2007, p. 11), diversas de suas peças foram “premiadas em
concursos, e o dinheiro dos prêmios em grande parte me permitiu sobreviver”,
sobretudo, quando proibido de lecionar. Na dramática, escreveu O engano (1978), A
caixa de cimento (1978), O acontecimento (1978), Matei minha mulher (1983), A
tragédia de Althusser (1983) e Três quarteirões daqui (1988), dentre outras.
Os mitos, elementos fundamentais que configuram os enredos das
tragédias gregas, são fontes inesgotáveis do saber e, por isso, provocam
fascínio e continuam a ser recepcionados pelos autores, em diversas
manifestações artísticas e em variados contextos. Ainda hoje, os autores
voltam-se às fontes míticas para escreverem suas obras. Em relação ao
gênero trágico, sem dúvida, foi invenção dos gregos, mas na época atual,
como lembra Romilly (2013, p. 7), também “se escrevem tragédias;
escrevem-se um pouco por todo o mundo”. Periodicamente, os autores
continuam a valerem-se dos mitos, das personagens e dos temas gregos para
escreverem seus Édipos e Filoctetes, suas Antígonas e Medeias.
Sobre a ligação do autor com o gênero trágico, Escobar (2007, p. 9)
ressalva: “não escrevo ‘tragédias gregas’, o que seria, na própria frase, um
absurdo. Por vezes tentei – mas de forma lateral e nos temas e estilo do
teatro moderno”. De fato, sua tentativa de reescrever os mitos gregos não
parou com Antigone América, pois vieram ainda as peças Ana Clitemnestra
(1986), Medeia masculina (José Medeia) (1998) e Ramom, o Filoteto
Americano (1975), sendo esta última objeto do presente estudo. Com esses
dramas, Escobar tornou-se (ao lado de Consuelo de Castro, Guilherme
Figueiredo, Ivo Bender, Pires de Almeida e Reinaldo Maia) um dos
dramaturgos que mais reescreveu mitos gregos no Brasil.
Pensar a recepção dos mitos gregos nas dramaturgias moderna e
contemporânea, deve-se considerar um fator importante: o mito passa a ter
nas novas recriações artísticas, dentre suas variáveis funções, valores
intrinsecamente ligados ao pensamento e à vivência do homem moderno.
Em concordância com Rosenfeld (2012, p. 36-37), “Boa parte da literatura e
do teatro modernos procura recuperar a visão mítica ou pelo menos se
esforça por usá-la para fins variados. No teatro abundam as tentativas de
empregar o mito grego, referindo-o analogicamente a situações atuais”. Se
os mitos revisitados, ao serem atualizados, voltam-se às questões
particulares (social, política e cultural) de cada país; por outro lado, não
deixa de apresentar também o seu caráter universalista, já que se liga às
questões existenciais que assolam o ser humano. Assim, o mito pode ser
entendido como metáfora do sentimento humano, já que, por meio do
pensamento mítico, procura explicar a realidade a qual se propõe tratar – o

|78
que justifica sua pervivência na contemporaneidade. No drama brasileiro,
vários são os mitos que foram revisitados e atualizados. Já na primeira
metade do séc. XIX – talvez aqui seja o início do drama mítico no Brasil –
houve a preocupação em atualizar os mitos, a começar por Joaquim
Norberto de Sousa Silva, em 1844, com Clytemnestra, rainha de Mycenas,
tragedia em cinco actos. Posteriormente, vieram Machado de Assis com
Deuses de casaca (1866) e Uma Ode de Anacreonte (1870); Francisco
Correa Vasques com Orfeu na roça (1868), uma paródia de Orphée aux
enfers (1858) de Offenbach; Luiz Moreira com Amores de Psyché (1894); e
Coelho Netto com Ártemis, episódio lírico (1898), dentre outros. Já no
início do séc. XX, destacam-se autores como Pires de Almeida, com
Pygmalião. Ficção mytologica em 1 acto (1903); Teixeira Leite Pires, com
Apollo. Mysterio Pagão (1919) e Carlos Maul com Antígona (1916). Este
último, em particular, escreveu sua versão da tragédia sofocleana para ser
encenada no Teatro da Natureza, espaço cênico construído ao ar livre na
Praça da República, no Rio de Janeiro, em 1916, para exibição de peças de
temas gregos. Já destacamos, em outra ocasião, que esta Antígona do início
do séc. XX, “embora seja pouco conhecida, lida pelo grande público ou
estudada por pesquisadores [...], tem, no entanto, o mérito de ter sido a
primeira em que a filha de Édipo apareceu na dramaturgia e no teatro
brasileiro” (SILVA, 2020, p. 105-106). Sobre esta reescritura, “em seu
contexto de representação, [está] intrinsecamente vinculada às origens do
teatro grego, uma vez que dentre as propostas que emergiram do Teatro da
Natureza, a que mais se destaca é [...] a encenação ao ar livre” (SILVA, 2020,
p. 120).
Por mais que os mitos gregos estejam presentes no drama e no teatro
brasileiro desde o séc. XIX, o que é extremamente significativo, sua
consolidação só ocorreu ao longo do séc. XX, a partir da década de 1940 –
com Prometeu libertado (1940), de Lúcio Cardoso; Electra no circo (1944),
de Hermilo Borba Filho; Senhora dos afogados (1947), de Nelson Rodrigues;
e Greve geral (1948) e Um deus dormiu lá em casa (1949), de Guilherme
Figueiredo. A partir daí, desfilarem nos palcos brasileiros diversos
personagens míticos. O Brasil conta com mais de uma centena de
reescrituras, entre inéditas e publicadas. As produções mais recentes, apenas

|79
para citarmos algumas, são Caras de Plauto (2019), de Atilio Bari; Antígona
& Agora (2019), de Adão Vieira de Faria; Lícidas (2019), de Leonardo
Antunes; e Sísifo (2020), de Gregório Duvivier e Vinícius Calderoni.
É necessário destacar que tal consolidação se deu por intermédio de
peças que se tornaram emblemáticas, seja na assimilação dos temas
mitológicos, seja nas inovações formais que, evidentemente, os palcos
moderno e contemporâneo exigem. Queremos dizer que na maioria dessas
novas recriações, a fim de reativar os mitos, os dramaturgos trouxeram às
obras reformulações, muitas delas até mesmo radicais, das fontes
mitológicas gregas. Assim, os mitos aparecem nas reescrituras mitológicas
objetivando a (1) nacionalização e (2) a problematização das questões
culturais, políticas e sociais da realidade brasileira; cujas obras, além de
apresentar a (3) alteração dos nomes das personagens e a (4) hibridação de
temas mitológicos, estruturam-se a partir de (5) diversos recursos estético-
formais.
Diante do que veio à baila, pode-se dizer, com base em Samoyault
(2008), que a reescritura mitológica existe porque escrever é reescrever, isto
é, os autores se valem de fundamentos existentes e contribuem à criação
continuada. Reescritura, nesse contexto, não deve ser vista como “repetição
de sua história; ela conta também a história de sua história, o que é também
uma função da intertextualidade: levar, para além da atualização da
referência, o movimento de sua continuação na memória humana”
(SAMOYAULT, 2008, p. 117). Pensando na continuidade do mito no
imaginário, que por meio da reescritura atravessa os séculos, Samoyault
(2008, p. 117) parte dos conceitos de Genette, que “distingue e precisa
numerosos procedimentos de ‘passagem ’que permite prosseguir
indefinidamente uma história”. Dentre os procedimentos que garantem a
sobrevida do mito, destaca-se a transmotivação, ou seja, o deslocamento de
motivos existentes nas versões anteriores.
Eis, portanto, um dos caminhos que explica existência da reescritura
do mito – em especial, aqui, o de Filoctetes –, e que possibilita tecer
aproximações e distanciamentos entre as obras. É nessa perspectiva, a qual
este trabalho se direciona, que optamos por analisar, neste capítulo, o drama
mítico brasileiro Ramom, o Filoteto Americano, de Carlos Henrique

|80
Escobar, em diálogo com a tragédia grega Filoctetes3, de Sófocles. Nosso
intento é tecer algumas considerações, isto é, aproximações e
distanciamentos em relação aos personagens Filoctetes e Ramom Ianaiá, às
armas e às feridas desses heróis em ambas as obras.
Escrito em 1975, Ramom, o Filoteto Americano venceu o “Concurso
de Dramaturgia” e, na ocasião, recebeu o “Prêmio de Publicação” do Serviço
Nacional de Teatro (SNT), sendo publicado em 19764. Embora publicado,
mantém-se inédito quanto à montagem – tem-se apenas o conhecimento de
que no dia 22 de novembro de 1976, no Teatro Cacilda Becker, apresentou-
se uma leitura pública da peça, sob direção de Cécil Thiré5. Por mais que
seja escrito, o texto dramático materializa-se cenicamente, isto é, diante do
espectador, no momento da encenação. Todavia, tratando-se, aqui, de uma
análise literária, além de resgatar a obra de Escobar e sua efetiva
contribuição ao teatro brasileiro, este artigo pode vir a contribuir aos
estudos da recepção do mito de Filoctetes no Brasil.

FILOCTETES: O MITO GREGO REVISITADO POR CARLOS


HENRIQUE ESCOBAR

3
Mito já reescrito por Jean-Baptiste Chateaubrun (Philoctetes - 1755); André Gide
(Philoctètes - 1898) Rudolf Pannwitz (Philoktetes - 1906); Karl von Levetsows (El arco
de Filoctetes - 1909); Bernt von Heiseler (Philoktet. Nach dem drama Sophokles -
1948); Oscar Mandel (The summoning of Philoctetes - 1961); Héctor Incháustegui
Cabral (Filoctetes - 1964); Heiner Müller (Philoktet - 1964); Walter Jean (Filoctetes -
1974); Alfonso Sastre (Demasiado tarde para Filoctetes - 1989); Derek Walcott
(Omeros - 1990); Seamus Heaney (The cure at Troy - 1991); Jan Ritsema (Philoktetes
variaties - 1994); John Jesurun (Philoktetes - 1994).
4
Alguns exemplares da edição do SNT apresentam erros de editoração: os pares de
páginas 34-35, 38-39, 42-43 e 50-51 aparecem em branco, o que pode dificultar o leitor
quanto ao seu entendimento geral da peça.
5
Cf. Revista de Teatro, 1976, n. 414.

|81
Das sete tragédias completas de Sófocles que sobreviveram ao longo
dos séculos – Ájax, Antígona, As traquínias, Édipo em Colono, Édipo
tirano, Electra e Filoctetes –, esta última não é a das mais conhecidas, se
tivermos como parâmetro, evidentemente, as peças Édipo tirano ou
Antígona. Esta, por sua vez, universalmente, é uma das mais conhecidas e
revisitadas, seja no campo da literatura, da filosofia, da psicanálise ou da
sociologia. No caso do Brasil, por exemplo, enquanto que o mito de
Antígona está presente de 1914 a 2019, em cerca de cinquenta versões e nas
mais diversas manifestações artísticas, o mito de Filoctetes está presente –
até onde se sabe – apenas na peça Ramom, o Filoteto Americano.
Na modernidade, a ausência, ou até mesmo o pouco interesse que se
tem por Filoctetes, pode ser lida à luz dos apontamentos de Wilson (2014),
que identifica, já de início, que o próprio mito grego não está entre aqueles
que excitam a imaginação do homem moderno. Para Wilson (2014), o tema
da enfermidade deste herói e seu desterro na ilha deserta de Lemnos surgem
de modo enfadonho aos jovens, pois estes tendem a identificar-se com os
homens em ação, como no caso de Héracles ou Aquiles. Em Filoctetes (v.
99)6, Odisseu diz a Neoptólemo que “a língua, não as ações, tudo conduz”, o
que corrobora à ideia de que esta tragédia se trata de “uma peça de
relacionamentos e de comunicação, e não de grandes façanhas” (TAPLIN,
1971, p. 26)7. Sobre o público adulto, Wilson (2014) afirma que a história de
Filoctetes contada por Sófocles não é capaz de provocar o mesmo efeito da
κάϑαρσις8 (purificação) suscitado pelos crimes dos Atridas ou pelas
tragédias do cerco de Tróia, como dá-se em Agamêmnon, de Ésquilo, ou
Hécuba, de Eurípedes, por exemplo.
“O que quer que pudesse haver de impactante na lenda perdeu-se
junto com as outras peças e poemas a seu respeito” (WILSON, 2014, p. 193).

6
Tradução Fernando Brandão dos Santos (SÓFOCLES, 2008).
7
No original: “a play of relationships and communication, not of great deeds”. Sobre o
assunto, cf. Easterling, 1973, p. 29.
8
Cf. Aristóteles, Poética, 1449b 27.

|82
A história mítica de Filoctetes aparece, de fato, em algumas fontes antigas,
no entanto, em muitas das vezes, de modo fragmentado e, deste
personagem, embora significativo, se diz muito pouco. A fonte mais antiga
acerca do herói privado da guerra, esquecido na ilha de Lemnos, que
mantinha consigo as armas herdadas de Héracles9 e que lutou na guerra de
Tróia somente após a morte de Aquiles, encontra-se na épica de Homero.
Na Ilíada (2.716-725), Filoctetes aparece brevemente: dele, é dito que
foi o rei de Metona, Taumácia, Melibeia e Olízon; é descrito como o
sapiente arqueiro que comandou sete naus. Mas, após ter sido picado por
uma venenosa serpente, fora abandonado na ilha de Lemnos pelos filhos dos
Aqueus. Dessa passagem, embora breve, depreende-se alguns motivos
explorados por Sófocles em Filoctetes, dentre os quais destacam-se a
habilidade e o conhecimento de Filoctetes no manuseio do arco, cuja
discussão está presente durante toda a tragédia sofocleana.
Na Odisseia (3.188-190), na fala de Nestor a Telêmaco, Filoctetes é
citado dentre os heróis que retornou feliz à casa após a guerra de Troia:
“Diz-se que chegaram bem em casa os Mirmidões de lança selvagem/ a
quem conduziu o famoso filho do magnânimo Aquiles;/ chegou bem
Filocteto, o glorioso filho de Peante”10. Nessa passagem, destaca-se, também,
a proximidade de Filoctetes com o filho de Aquiles, Neoptôlemo,
personagem importante para a construção do tema da φιλíα (amizade) em
Sófocles. Ainda na Odisseia (8.219-220), este herói é mencionado por
Odisseu, em discurso aos feácios, ao dizer que “Só Filocteto me supera com
o seu arco na terra/ dos Troianos, quando nós Aqueus disparávamos as
setas”. Na lírica grega, por sua vez, o filho de Peante e Demonassa está
presente na Primeira Pítica (vv.51-5), de Píndaro, em uma passagem na qual
o enfermiço Hierão, ao conduzir seu exército de guerreiros, é comparado a
Filoctetes. Quanto ao período helenístico, Filoctetes é mencionado em

9
Após a morte de Héracles, Filoctetes ergueu uma pira em seu tributo e foi presenteado
com o arco de Héracles.
10
Tradução Frederico Lourenço (HOMERO, 2011).

|83
Alexandra (vv. 907-929), de Lícofron. Nesse poema épico, têm-se as
descrições da morte e do culto a Filoctetes em Lucânia.
No que diz respeito às fontes trágicas, temos conhecimento de que
Ésquilo e Eurípedes compuseram um Filoctetes, e Sófocles um Filoctetes em
Troia, mas que se perderam com o tempo, restando apenas fragmentos. A
única tragédia completa que chegou até nós, versando sobre Filoctetes, é o já
mencionado Filoctetes, de Sófocles. Essa peça, que apresenta Filoctetes
como protagonista e sem personagens femininas, foi composta quando o
tragediógrafo tinha 87 anos, e apresentada no festival das Dionísias
Urbanas, em 409 a. C. Embora não se tenha conhecimento das outras
tragédias apresentadas na ocasião, sabe-se, no entanto, que Sófocles foi
laureado com o primeiro lugar no concurso dramático.
Sobre este Filoctetes, é importante dizer que “de forma alguma nos
oferece aquilo que costumamos esperar de uma tragédia grega, já que não
culmina em nenhuma catástrofe e que, na verdade, mais se assemelha à
nossa ideia moderna de comédia” (WILSON, 2014, p. 194). Como destaca
Bowra (1958), por mais que não haja um final trágico, Filoctetes desenvolve-
se a partir de perspectivas trágicas. De fato, esta tragédia não apresenta
aquela estrutura esboçada por Aristóteles (Poética, 1453a.), referente à
passagem a qual afirma que o herói trágico, de caráter elevado, passa da
felicidade à infelicidade. Antes de mais, trata-se de uma peça que mostra o
resgate do herói após a sua ruína e, em larga medida, de uma tragédia com
“final feliz”, como trazem os últimos versos (vv. 1469-1471): “partamos
então todos juntos,/ depois de rogar às ninfas marinhas/ que tenhamos um
retorno seguro”.

RAMOM, O FILOTETO AMERICANO: CONFLITO, PERSONAGENS E


ESTRUTURA

|84
As peças de Carlos Henrique Escobar, ao menos as de temas míticos,
têm como pano de fundo períodos marcados por ruptura histórica11. A
história de Ramom, o Filoteto Americano se passa na região Alto Peru12,
especificamente, nas últimas décadas de dominação espanhola, período no
qual os índios e mestiços estiveram submetidos à autoridade do vice-rei de
Lima. A última fase do Período Colonial no Alto Peru – que vai do início do
séc. XVIII até o séc. XIX, com a criação do Estado Nacional Boliviano – foi
marcada por intensos conflitos políticos e sociais, e pelo acentuado declínio
das atividades mineiras, centradas, sobretudo, em cidades como Oruro e
Potosí. “Arrancamos das pedras o ouro-luz para os espanhóis” (ESCOBAR,
1976, p. 74), afirma o Coro de mineiros (Cena XXVI), referindo-se aos
séculos de submissão e escravidão. Esse fato histórico, que perpassa Ramom,
o Filoteto Americano, foi o ponto de partida de Carlos Henrique Escobar ao
resgatar o esquecido herói Filoctetes e ao reescrever o mito de grego no
Brasil.
Sobre a configuração do conflito, enquanto em Sófocles as
personagens vivem as consequências da guerra, em Escobar, o conflito entre
colonizado e colonizador, entre soldados e mineiros mestiços e índios,
ocorre no tempo presente da encenação dramática, como se pode observar a
partir das falas dos soldados, na Cena V:
SOLDADO I:
(Ferido, nos braços de dois soldados.) Eles me feriram com uma
lança. Vou morrer! (Grita.) Não posso morrer! Por favor, por favor!
SOLDADO II:
Foi uma flecha.
SOLDADO III:

11
A peça de estreia, Antigone América, retrata o conflito de classes a partir da revolta
dos camponeses, cujo tema ainda se mantém atual no Brasil contemporâneo. Já as
peças Medeia masculina (José Medeia) e Ana Clitmenestra estão ambientadas durante
a Guerra de Canudos (final do séc. XIX – início do séc. XX).
12
Nome utilizado no Período Colonial para designar a região geográfica que antecede a
atual Bolívia.

|85
Não. Foi uma lança. Acho que ele está mal. (O segundo soldado
procura ouvir seu coração.) Ei, está ouvindo? Eles vêm vindo para cá.
SOLDADO II:
Vamos embora. Corra. (Saem em disparada.)
SOLDADO I:
[...] Não me deixem! Não quero morrer! (ESCOBAR, 1976, p. 10)

Ou, na Cena IX, no diálogo entre os mestiços:


MESTIÇO I:
(Com um grande chapéu de penas capturado de algum nobre
espanhol.) Paremos aqui. É uma clareira. (Eles olham em torno.)
Amarrem os espanhóis ali. (Três mestiços amarram os três soldados
num extremo da cena.)
MESTIÇO II:
(O que se mantém ao lado do Mestiço I.) Vamos matá-los?
MESTIÇO I:
Sim. Como eles fazem com a nossa gente. Vamos fuzilá-los?
MESTIÇO II:
Mas não temos armas de fogo.
MESTIÇO I:
E as deles? Vocês abandonaram?
MESTIÇO II:
Estavam descarregadas. Jogamos fora.
MESTIÇO I:
Não importa. Eu decidi que vamos matá-los e vamos matá-los.
Usaremos as facas. (ESCOBAR, 1976, p. 15)

Ainda sobre a configuração do conflito, Escobar (1976, p. 9) afirma,


em uma rubrica, que “a peça começa com uma projeção, na tela circular que
envolve todo o teatro, de um conflito entre grevistas e policiais”. Essas
projeções13 “cinematográficas”, que durante a peça se intercalam às cenas
dialogadas, além de provocar um distanciamento na ação, pois trata-se de

13
O que pode ser observado nas seguintes cenas: Cena I; Cena VIII; Cena XV; Cena XIX;
Cena XXI); Cena XXXII; Cena XXXIII e Cena XXXVI.

|86
um recurso típico do teatro épico brechtiano, sugerem um conflito que
remete ao contexto sócio-político da década de escrita da peça, isto é, ao
período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Como pontua o autor,
esse conflito, propositadamente, pode ser atual, num tempo diverso daquele
da ação da peça. Sobre a questão do conflito no contexto da ação dramática,
leia-se, ainda: “paralelamente se desenvolvem cenas rápidas de conflito
entre os soldados da colônia espanhola e mineiros mestiços e índios”
(ESCOBAR, 1976, p. 9). É em torno desse conflito que a história mítica
grega, reescrita por Escobar, desenvolve-se e o personagem Ramom Ianaiá,
o Filoctetes brasileiro, é solicitado a entrar em cena.
Como se sabe, a tragédia Filoctetes movimenta-se em torno de cinco
personagens, além do Coro de Marinheiros: Filoctetes, Odisseu,
Neoptólemo, Héracles (deus ex machina) e o Mercador (disfarçado de
Marujo), que caracteriza o tradicional Mensageiro da tragédia grega. Já o
drama Ramom, o Filoteto Americano, ao contrário, apresenta um número
variado de personagens: Ramom Ianaiá, Hernández, Vice-Rei, General,
Conselheiro, Médico da Corte, Dama I, Dama II, Mensageiro, Embaixador
I, Embaixador II, Menino-Irmão, Anão, Mãe, Velho Índio, Lanceiro, Noiva,
Pai da Noiva, Mãe da Noiva, Velha I, Velha II, Jovem Oficial, Músico,
Mulher Mestiça, Índio do Tambor, soldados, mestiços, índios, dois médicos,
coro de soldados, coro de mineiros (mestiços e índios). Dentre esses
personagens, vamos encontrar, por sua vez, uma aproximação com as
principais personagens de Sófocles: Filoctetes passa a ser o índio mestiço
Ramom Ianaiá; Neoptólemo o general espanhol Hernández14; e Odisseu o
Vice-Rei da Espanha. Portanto, por mais que essa reescritura brasileira seja
inovadora, sobretudo, por conter diversos personagens inexistentes no mito
grego, é em torno do trio Ramom–Vice-Rei–Hernández que a peça se

14
Faz-se necessário destacar que, nessa peça, além de aparecer por meio de Hernández,
Neoptólemo também surge, em um segundo momento, por meio da Noiva de Ramom,
sobretudo nas cenas em que a jovem é encarregada de convencer seu noivo a deixar a
mina, local em que ele se mantém recluso.

|87
desenvolve e avança, semelhante ao que ocorre com Filoctetes–Odisseu–
Neoptólemo na tragédia sofocleana.
Nessa perspectiva, a ação de Filoctetes tem como eixo central a
intrínseca relação com essas três personagens de igual importância: o
primeiro é Filoctetes, herói que sustenta sua revolta, seu sofrimento e sua
solidão após ter sido abandonado na ilha de Lemnos por Odisseu e pelos
irmãos Agammênon e Menelau; Odisseu é o segundo e, como uma figura
política, no contexto de guerra, age por meio do oportunismo, utilizando-se
de todo e qualquer recurso para realizar seus objetivos; por fim, o terceiro é
Neoptólemo, representante do guerreiro ingênuo que age a mando de
Odisseu.
Já os três personagem que formam o eixo central da ação de Ramom,
o Filoteto Americano, também de igual importância, são: o mestiço Ramom,
(ex)soldado dos espanhóis que, após muitos anos em combate, encontra-se
recluso no fundo de uma mina de ouro com suas feridas e suas lanças; o
Vice-Rei, representante do político-tirano sem escrúpulos, temeroso de que
os mestiços e índios se rebelem contra a coroa espanhola, ordena que
Hernández vá ao interior da mina para convencer Ramom a lutar e a conter
os “revoltosos”.
No que diz respeito à estrutura, essa peça mítica de Escobar
apresenta trinta e seis cenas, as quais podem ser distribuídas em três grandes
partes, embora não haja uma divisão feita pelo dramaturgo. Desse modo, a
Parte I abarca as cenas I a XII: tem-se, inicialmente, a apresentação do
conflito entre o colonizado e o colonizador; em seguida, a decisão de
resgatar Ramom Ianaiá do fundo da mina. Essa primeira parte só termina
com o general Hernández encaminhando-se rumo à mina, com a intenção
de encontrar e convencer Ramom Ianaiá a defender a coroa espanhola e a
lutar contra os “revoltosos” mestiços e índios.

|88
A Parte II inclui as Cenas XIII a XXII e, do ponto de vista estético, é
extremamente significativa, pois há o recurso do metateatro15, marcando,
assim, um questionamento não apenas no que tange ao conflito entre
colonizado e colonizador, mas também em relação à função da arte
dramática em seus contextos histórico, político e social. O personagem
identificado apenas como Anão, juntamente com os “atores” (moradores da
região), improvisa e encena a história de Ramom desde o momento em que
este lutava e matava a mando dos espanhóis, até o momento em que
abandona a guerra e passa a viver no fundo da mina:
ANÃO:
[...] Eu contarei para vocês parte de uma história. Mas vocês me
ajudarão. Eu mostrarei como tudo é verdade. Ramom, o mestiço, foi
o maior soldado destas plagas, mas a doença e a arte o roubaram dos
espanhóis. (Já distribuindo os materiais da representação.) Foi há
alguns anos, nem muitos nem poucos, quando Ramom era ainda um
soldado.
Vamos, vistam-se de acordo com a verdade. Vamos, e ouçam bem.
De acordo com a verdade. (Vaias e palmas.)
(O índio bate o seu surdo e os atores improvisados começam a cena
da destreza. Um jovem mestiço de torso nu com uma máscara e um
capacete articulados exercita-se com uma lança. Um outro faz um
soldado ao seu lado. O anão e mais dois atores, engalanados, fazem
os generais espanhóis.)
Atenção. Agora, a “cena da destreza”. Digam se não é verdade. Este é
Ramom Ianaiá. (Vaias.) Ninguém combate como ele. Nós somos os
generais espanhóis e Ramom combate por nós. Em troca de tudo que
lhe demos. Honrarias e bens. (ESCOBAR, 1976, p. 28-29)

Nessa peça, o teatro dentro do teatro, cuja problemática centra-se no


teatro que fala de si mesmo, isto é, que se auto representa, ocorre desde o

15
Esse recurso estético também é utilizado em Ana Clitemnesta . Na 3ª Cena, por
exemplo, a protagonista Ana passa a representar a personagem Clitemnestra da
tragédia grega Agamêmnon, de Ésquilo, mantendo, assim, uma relação metateatral. Cf.
Escobar, 2007, p. 125-126.

|89
momento em que Hernández se encaminha e chega na entrada da mina. A
utilização do metateatro para a construção dramática de Ramom, o Filoteto
Americano é de suma importância, pois é por meio desse recurso que o
público e o leitor têm conhecimento, em um primeiro momento, da
trajetória do protagonista e dos motivos pelos quais deixou de ser um
soldado guerreio para viver recluso e solitário – como se poderá observar
logo adiante, no próximo tópico.
Do ponto de vista dramático, não há dúvida que o metateatro
representa a crise da representação teatral do séc. XX. O aproveitamento
desse recurso, como pontua Vendramini (2013), pode ser considerado como
o indício de uma época de revisão, já que o teatro, que se encontra às voltas
com as crises estética e social, volta-se sobre si mesmo para verificar o
próprio código teatral. Enquanto recurso estético, o metateatro foi uma
opção utilizada, no Brasil, por diversos dramaturgos, mas de forma
predominante na década de 1970. Por tratar-se de um período ditatorial
assombroso, o metateatro objetivava uma crítica da realidade social
brasileira, como se pode observar em Ramom, o Filoteto Americano. Sobre
essa questão que perpassa o teatro brasileiro, Vendramini (2013) afirma que
o auge do metateatro, sobretudo na cena paulista, aconteceu durante uma
década marcada por rígida censura militar. Nesse sentido, conjectura-se
que, quando a arte teatral não pode mais expressar livre e criticamente sobre
a realidade a qual propõe tratar, por conta da censura, ela volta-se para si
mesma com o objetivo de indagar quem é e qual a sua função face à
realidade marcada pela opressão e pela repressão. “Ao fazê-lo, o teatro tem
então a oportunidade de instaurar um universo crítico, no qual o debate de
ideias ocupa um lugar tão proeminente quanto os conflitos emocionais
entre as personagens” (VENDRAMINI, 2013, p. 268).
Por fim, as cenas XXIII a XXXVI formam a Parte III. No interior da
mina, Hernández tenta convencer Ramom a lutar contra os “revoltosos” e é

|90
malsucedido, visto que, sendo mestiço16, ele escolhe por sua ancestralidade
indígena. Tem-se, posteriormente, uma segunda tentativa de descer ao
interior da mina, mas agora é a vez da espanhola Noiva de Ramom. O Vice-
Rei ordena à jovem que, caso Ramom se recusar a abandonar a mina, ela
deve, juntamente com os soldados que a acompanha, roubar as lanças. É
justamente isso que acontece. Após o roubo, Hernández começa o
treinamento, mas tem resultado negativo – o peso das armas o impossibilita
de manuseá-las: “começo a duvidar que sejam as duas lanças de Ramom.
[...] Eram bem mais leves” (ESCOBAR, 1976, p. 105). Hernández conclui,
então, que as armas não possuem validade senão nas mãos de Ramom17 e,
em seguida, mesmo sem ter conhecimento de causa, diz ao Vice-Rei que a
Noiva trocou as lanças: “Estava com eles [os soldados] uma moça. O senhor
se lembra? Aquela que foi noiva de Ramom. Fui informado de que ela os
guiou até o refúgio de Ramom” (ESCOBRAR, 1976, p. 106). Por ter “agido
contra” a coroa espanhola, a jovem é assassinada.
As últimas cenas (Cena XXXV e XXXVI), que tratam da “batalha”
final, trazem o jovem Ramom com novas lanças forjadas pelos índios e
mineiros mestiços: “Duas, em par. Para rasgar, entrar e costurar”
(ESCOBAR, 1976, p. 108). Este (anti)herói, que optou por abandonar a
guerra que dizimou muitos de seus irmãos índios, e a viver recluso e
solitário com suas feridas no fundo da mina, só retorna ao combate após as
mortes do Velho Índio, de seu Irmão e de sua Noiva. Ramom só combate

16
Ramom Ianaiá é filho de mãe branca e de chefe índio aimorá. A identidade mestiça do
personagem pode ser verificada a partir do próprio nome: Ramom trata-se de uma
variante espanhola do nome português Raimundo e Ianaiá é de origem indígena. Para
evidenciar esse caráter mestiço, Carlos Henrique Escobar traz, na Cena XXIV, a
seguinte rubrica: “Ramom é um misto de chefe índio e cavaleiro espanhol. Usa um
estranho capacete. Suas roupas são uma mistura de couro e metais” (ESCOBAR, 1975,
p. 61. grifos nosso).
17
Fato já antecipado ao público/leitor na cena anterior (Cena XXXII) pelo o Coro de
Mineiros: “roubaram as duas lanças mágicas com que o vice-rei pensa vencer-nos. Mas
de nada adiantará. As lanças de Ramom não são lanças fora de seus braços”
(ESCOBAR, 1976, p. 101).

|91
por fúria: “Do meu corpo em pedaços reencontro o humor dos combates de
outrora. A fúria inaugura outra vez em mim o soldado que faz as lanças
dançarem soltas e em minha selvagem confusão ela quer combater”
(ESCOBAR, 1976, p. 114). Se em Sófocles (Filoctetes, vv. 1469-1471) a peça
termina com o regresso de seu herói à casa; em Escobar, o herói parte para a
guerra, a fim de libertar a América, “ainda sem nome” (ESCOBAR, 1976, p.
115), dos colonizadores europeus: “Já não existem reis na América, já não
existem tiranos na América” (ESCOBAR, 1976, p. 122).

RAMOM, O FILOTETO AMERICANO: O HERÓI, A FERIDA E A


LANÇA

Como já mencionado no tópico anterior, em Ramom, o Filoteto


Americano, o conflito se dá devido à revolta dos índios e dos mineiros
mestiços contra à exploração da coroa espanhola no Alto Peru. “Os incas
nos expulsaram para as montanhas e depois vieram os espanhóis e nos
escravizaram: a nós e os incas” (ESCOBAR, 1976, p. 21). Por conta da
revolta que se instaura na região, e temendo a derrota, eis que surge o Vice-
Rei, autoridade máxima, cujo propósito é conter e punir os “revoltosos”:
VICE-REI:
(Em tom oficioso) Senhores, querem nos expulsar de toda a
América. A Espanha combate nas Antilhas e combate hoje aqui nas
regiões do vice-reinado do Alto Peru. Os mestiços e índios das minas
de ouro se revoltaram obedecendo ao apelo dos aventureiros18. Mas

18
Referência, sobretudo, à figura de Simón Bolívar (1783-1830), que lutava pela
independência do Alto Peru. Na peça de Carlos Henrique Escobar, leia-se: “Já no
começo do século, mestiços, índios e espanhóis traidores urdiram revoltas contra a
coroa da Espanha. Simón Bolívar é o maior entre eles. Recentemente o Rei da Espanha
mandou 5.000 homens sob o comando de Goynecher, que venceu e restituiu a ordem à
cidade de Caracas” (ESCOBAR, 1976, p. 18). Goynecher, figura histórica, no intuito de
pôr fim ao governo local, recém instaurado, determina a execução dos líderes da
revolta. Em relação à peça Ramom, o Filoteto Americano, a tensão e a ameaça de novas

|92
isso não ficará assim. Tomarei as providências necessárias e exigirei
que todos – todos os que algum dia serviram às tropas – se
reincorporem a elas [...]. (ESCOBAR, 1976, p. 16)

Dentre as providências do Vice-Rei, exige-se que todos os soldados


se reincorporem às tropas, o que incluí Ramom, pois ele é “um guerreiro e,
em parte, é um espanhol” (ESCOBAR, 1976, p. 14). Diante desse contexto, e
para que possamos tecer um diálogo entre Ramom, o Filoteto Americano e
Filoctetes, leia-se a seguinte passagem:
VICE-REI:
Hernández! Você conseguirá trazê-lo de volta. (Muda o tom.)
Aproxime-se, menino. Você é o mais jovem e o mais corajoso oficial
da Espanha. Estes anos todos eu o mantive ao lado de Ramom para
que você o vigiasse e aprendesse tudo. Nunca gostei que aquele
mestiço fosse o capitão de todos os nossos soldados. Agora já é tarde.
Ouça, todos sabem que vocês se tornaram muito amigos.
(Desesperado.) Ele deve gostar de você. Traga-o de volta. Convença-
o a voltar.
HERNÁNDEZ:
(Vacilante.) Mas faz tanto tempo. Não sei de ele me ouvirá. Nos
últimos combates todos nós cavalgávamos longe dele. Os soldados
reclamavam do seu cheiro e, depois, ele se ocupava mais em tecer
tapetes com as lanças do que em combater. Senhor, (No ouvido do
vice-rei.) eu sugiro que o velho chefe índio se encarregue disso. Ele
tem força sobre Ramom.
VICE-REI:

revoltas acentuam-se pelo fato de que, novamente, Simón Bolíver desce a América em
direção a estas terras [cidade de Caracas]” (ESCOBAR, 1976, p. 18). Este é, portanto, o
motivo que faz o personagem Vice-Rei reunir os soldados, sobretudo Ramom Ianaiá.
Essa premissa fica mais evidente se considerarmos um diálogo da Cena XXIV: no
intuito de convencer Ramom Ianaiá a abandonar a mina, Hernandez diz que “um tal
Bolívar vem descendo América abaixo e matando todos os nossos [os espanhóis]”
(ESCOBAR, 1976, p. 65). Ramom Ianaiá, por sua vez, afirma: “Que mate todos os
espanhóis da América como fizemos com os índios, como fizemos com todos os que se
opunham a vocês” (ESCOBAR, 1976, p. 65).

|93
Não confio nele. Você terá que ir. Não negocio com índios. Não
confio neles. É você ou mais ninguém, Hernández. (ESCOBAR,
1976, p. 19-20)

Se considerarmos este fragmento e as falas de Odisseu e Neoptólemo


(Filoctetes, vv. 101-15), não há dúvida quanto ao diálogo que se estabelece
entre Escobar e Sófocles:
ODISSEU:
Digo-te pela astúcia agarres Filoctetes.
NEOPTÓLEMO:
Por que é preferível levá-lo pela astúcia a convencê-lo?
ODISSEU:
Não será convencido. Pela força não o agarrarias;
NEOPTÓLEMO:
Que confiança tão terrível ele tem na sua força?
ODISSEU:
Flechas inevitáveis e portadoras da morte.

Em Filoctetes, decorridos dez anos da guerra de Tróia, o adivinho


Heleno advertiu, como relata o Mercador (vv. 600-13), que a vitória só se
tornaria possível se as armas de Héracles, que estavam em posse de
Filoctetes, estivessem no campo de batalha19. Esse é o motivo primeiro que
leva Odisseu, juntamente com Neoptólemo20, à ilha de Lemnos: muito mais
que o resgate do herói abandonado e esquecido, a captura das armas aparece
em primeiro plano. Já no Prólogo (vv. 1-134), Odisseu diz a Neoptólemo
que “De Filoctetes tu precisas/ a alma roubar palavras proferido” (vv. 55-6),
pois “se o arco dele não for tomado,/ não tens como destruir a planície de
Dárdano” (vv. 68-9). Por manter uma relação segura e fiel (v. 71) com
Filoctetes, o jovem Neoptólemo é encarregado de convencê-lo, por meio da
astúcia (v. 78), a deixar a ilha; e como recompensa, Odisseu diz-lhe que

19
Sobre o vaticínio de Heleno: Cf. Baquílides, Fr. 7 (escólio a Primeira Pítica 1.110, de
Píndaro).
20
Na versão de Apolodoro, Odisseu encaminha-se à ilha de Lemnos não com
Neoptólemo, mas sim com Diomedes: cf. Epitome, 5.8

|94
receberá dois prêmios (v. 117): “Sábio e também corajoso serás aclamado ao
mesmo tempo” (v. 119). Em Ramom, o Filoteto Americano ocorre o
inverso, pois o foco não recai sobre o armamento, como em Sófocles, mas
sobre o herói. “Sem Ramom Ianaiá não há vitória” (ESCOBAR, 1976, p. 9) é
a primeira fala dita na peça (Cena II), o que apenas realça o foco sobre o
herói em detrimento das armas. Para a coroa espanhola, Ramom é o melhor
soldado, por isso o único capaz de liderar as tropas. A fim de conter os
“revoltosos”, o Vice-Rei utiliza como estratagema (Cena VIII) o fato de
Ramom apresentar uma identidade mestiça, pois se ele estiver a frente da
batalha, os mestiços e os índios ficarão indecisos quanto a que lado lutar e a
quem defender. Essa assertiva pode observada na fala do Coro de Soldados
(Cena XV), ao dizer que Ramom Ianaiá é “meio índio, meio espanhol, meio
deles e meio nosso” (ESCOBAR, 1976, p. 36).
Em relação aos versos 117 e 119 de Filoctetes, referentes à premiação
de Neoptólemo, eles aparecem de modo semelhante em Ramom, o Filoteto
Americano, quando o General diz a Hernández que ele “será promovido.
Depois que Ramom vencer os mineiros, o lugar dele será seu” (ESCOBAR,
1976, p. 20). Quanto ao roubo das armas, de fato ocorre, mas quase no fim
da peça (Cena XXXI), após as frustradas tentativas de Henández e da Noiva
que não conseguiram convencer Ramom de deixar a mina, pois era este o
objetivo principal. Aliás, antes de ser efetivado, em um primeiro momento,
o roubo só aparece como uma sugestão do Vice-Rei (Cena XXIX), caso a
Noiva não conseguir realizar a tarefa que lhe foi destinada, ou seja, o roubo
das armas fica, então, em um segundo plano: “Se Ramom não quiser subir,
ela deverá trazer as duas lanças. Roubá-las” (ESCOBAR, 1976, p. 87).
Ainda sobre a construção das personagens, é imprescindível destacar
que há um largo distanciamento entre o Filoctetes grego e o Ramom Ianaiá
brasileiro. Quanto ao Filoctetes sofocleano, trata-se de um herói que, após
ser picado por uma serpente venenosa, foi rejeitado pelos companheiros e
arremessado à solidão. Um homem, portanto, que foi vitimado por meio de
uma traição e de uma injustiça perversa (vv. 264-9):

FILOCTETES:

|95
dois generais e o rei dos Cefalênios
lançaram vergonhosamente aqui desertado, atingido
por selvagem mordida de uma serpente homicida,
morrendo com uma doença selvagem,
com a qual eles, filho, abandonaram-me neste lugar
sozinho [...].

O Filoctetes de Sófocles trata-se de um nobre, pois ele não é “[...]


inferior/ a nenhum das casas protogênitas” (vv. 180-181). Mas, de acordo
com o Coro, ele foi “de tudo privado em vida” (v. 182), sobretudo como
guerreiro, isto é, de participar da guerra. A privação na qual se encontra este
herói está relacionada, também, às convenções da πόλις (cidade), conforme
aponta Santos (2008, p. 44), ao afirmar que Filoctetes está privado do
convívio religioso, já que se encontra impossibilitado de participar e de
realizar os devidos sacrifícios; “está privado do convívio social, pois não tem
companheiros que lhe sejam solidários no sofrimento; privado do convívio
político e guerreiro, pois não participa como um membro da comunidade
das decisões e dos combates efetivamente”.
Já o personagem Ramom Ianaiá, de Escobar, semelhante ao
Filoctetes, é identificado pelos espanhóis como um nobre herói. Entretanto,
após muitos anos lutando e matando seu povo a mando da coroa espanhola,
ao contrário do herói grego, ele decide, por vontade própria, recolher-se à
solidão no fundo de uma mina de ouro. Ramom Ianaiá opõe-se ao Filoctetes
grego no instante em que decide abandonar a guerra e, tal distanciamento é,
sem dúvida, um dos mais significativos na peça21.

21
Esse distanciamento leva-nos a retomar alguns aspectos já apresentados, referentes ao
resgate do herói. Em Sófocles, o artifício utilizado para convencer Filoctetes a deixar a
ilha, e para que Neoptólemo roube as armas, ocorre por meio da astúcia, já que
Filoctetes encontra-se furioso por ter sido abandonado pelos companheiros. Em
Escobar, justamente pelo fato de Ramom Ianaía ter escolhido viver recluso, por
vontade própria, o recurso utilizado para fazer com que ele retorne ao combate é o
convencimento, mas sem o uso da astúcia.

|96
O combate de Ramom, agora, é o Combate-Arte, pois passou de um
soldado guerreiro à artista tecedor de tapete sagrado. “Um soldado que não
mata. Minhas lanças não atravessam homens, mas costuram e juntam
formas” (ESCOBAR, 1976, p. 70). Em outra passagem (Cena XXIV), em
diálogo com Hernández, Ramom Ianaiá afirma:
RAMOM:
[...] Eu não existo mais como soldado de vocês. Caí fora. Olhem lá.
(Apontando o tapete semitecido.) Combato naquele canto. Estou
colhendo tudo que posso ou lembro, estou ocupado até o
desfalecimento. Não levaria jamais as minhas duas lanças – duas
grandes agulhas cheias de linhas – sobre o meu povo [...]”.
(ESCOBAR, 1976, p. 64)

O fato desse personagem não mais existir como um soldado


espanhol, como ele mesmo afirma, pode ser verificado, também, na fala de
Ramom à sua Noiva (Cena XXXI). Mas, dessa vez, ele traz à baila o motivo
pelo qual deixou de ser um guerreiro espanhol – por ser mestiço, decide por
sua ancestralidade indígena:
RAMOM:
[...] Olhe, diga e eles que eu estou entre os meus. Escolho minha
parte índia, mestiça. Escolho a dificuldade. Todos sabem que,
quando minhas feridas pioraram, eu troquei a guerra pelos fios e só
eles me receberam. Desci da cidade para o fundo da mina.
(ESCOBAR, 1976, p. 96)

Se levarmos em consideração o que foi dito anteriormente, sobretudo


as passagens em que o personagem Ramom afirma ter trocado “a guerra
pelos fios”, e que suas armas são, na verdade, “duas grandes agulhas”, abre-
se espaço para pensar a configuração das armas, em ambas as peças. Em
relação ao armamento de Filoctetes, sabemos que ele possui armas
“invencíveis” (v. 78), “inevitáveis” (v. 105), “gloriosas” (v. 654) e “sagradas”
(v. 943). Esse arco, presente de Apolo a Héracles, simboliza a inteligência do

|97
homem em ação para garantir a dominação do homem pela terra” (HARSH,
1960, p. 412, tradução nossa)22. Mas, nessa tragédia, o uso que Filoctetes faz
do arco destina-se a sua sobrevivência – caçar e matar animais selvagens
para se alimentar –, o que se leva a conjecturar que, no contexto da
Antiguidade, Filoctetes simboliza a forma ultrapassada de um guerreiro
grego.
FILOCTETES:
Ó aladas presas e raças de feras
de olhos brilhantes, que este lugar
mantém, alimentadas nos montes,
jamais de minha caverna aproximar-vos-eis
fugindo de mim. Já não tenho nas mãos
a força das flechas como antes!
(vv. 1146-1152)

Embora haja distanciamento entre ambos os personagens, observa-


se, aqui, que as armas de Ramom, semelhante às armas de Filoctetes,
também perdem sua função fora do contexto de guerra. O personagem de
Sófocles usa as armas para a caça, ao passo que o de Escobar as utiliza para a
tecelagem. É nesse contexto, ao terem suas armas roubadas, que ambos os
personagens se lamentam. Filoctetes lamenta-se por não mais poder caçar
animais:
FILOCTETES:
Ó miserável, miserável eu sou
e pela fadiga aviltado, eu
já sem ninguém
de agora em diante, infeliz,
habitando aqui, morrerei,
aiai aiai,
por não mais buscar alimento,

22
No original: “This bow, Apollo’s gift to Heracles, symbolizes man’s intelligence
brought into action to guarantee man’s domination of the aerth” (HARSH, 1960, p.
412).

|98
com minhas aladas armas
segurando com mãos fortes.
(vv. 1102-10)

E, Ramom Ianaiá, por não mais ter seu instrumento de tecelagem:

RAMOM:
[...]
Onde amarrarei os fios para fazer a minha paz?
Não me tirem o sol desta confusão dos meus braços, desta confusão
de pedras e sons. Devolvam-me, tragam-na de volta.
[...]
Sem elas não respiro, sem elas não penso. São minhas. São meus
pulmões. [...]. (ESCOBAR, 1976, p. 99-100)

Além dos aspectos apresentados anteriormente – sobre o herói e o


armamento – é importante destacar, por fim, a caracterização da ferida de
ambos os heróis, que também é marcada por distanciamentos e
aproximações. Em Sófocles, o motivo já ficou advertido: Filoctetes foi
picado por uma venenosa serpente. Já em Ramom, o Filoteto Americano, a
primeira menção à ferida de Ramom ocorre no início da peça (Cena VI), em
uma fala da Velha I: “Aquelas feridas não saram” (ESCOBAR, 1976, p. 12).
Há também uma menção na Cena XII, quando o Mensageiro afirma que
Ramom “jamais curou-se” (ESCOBAR, 1976, p. 12); outra quando
Hernández diz que, por conta da ferida aberta, “os soldados reclamavam do
seu mau cheiro” (ESCOBAR, 1976, p. 19); e, por fim, um terceira, na Cena
XII (início da Parte II, que corresponde às cenas metateatrais), quando o
Anão, ao mostrar as roupas de Ramom Ianaiá encharcadas de sangue,
afirma: “Estas feridas são nossas, de todos os mestiços. Séculos de
colaboração” (ESCOBAR, 1976, p. 26). Essa assertiva é retomada quando o
Coro de Mineiros lavam e fazem os curativos em Ramom (Cena XXVII):
RAMOM:
[...] Lavem-me fundo. Tirem a gordura negra que cobre o formidável
metal branco em mim. Tirem-me a febre, colham desse desastre de
pus e feridas do menino ginasta que fui.

|99
CORO DE MINEIROS:
Ó Ramom! Amigo dos metais e das linhas.
Lavamos tuas sombras, teu sangue batido e Espanha. Ó Ramom!
Ferros e feridas, e nas lanças erguidas os panos e as tintas.
Lavamos com água e pedras.
Com água e chumaços de pano urdidos em preparados no claro de
suas febres acessas nos metais e na pele.
O fogo com que viajamos o teu dorso e mergulhamos fundo em tuas
chagas, pelos de escamas e coros fundidos.
Amargas as marcas de ferro junto às feridas. (ESCOBAR, 1976, p. 75-
76)

Não há dúvida que há, aqui, dentro dos propósitos de Escobar, uma
atualização da ferida de Filoctetes; trata-se, antes de mais, de uma ferida
coletiva, aberta durante o Período Colonial no Alto Peru. No caso do
personagem Ramom Ianaiá, pode-se dizer, ainda, com base na fala do
próprio personagem, que a ferida aberta e o sangue grudado à sua pele estão
relacionados ao período em que era soldado espanhol, quando matava os
mestiços a mando da coroa espanhola.
De fato, diante do que foi exposto, a peça Ramom, o Filoteto
Americano, de Carlos Henrique Escobar, surge de modo inovador na
dramaturgia mítica brasileira. Por mais que haja distanciamentos, em
relação ao Filoctetes, de Sófocles, a reescritura brasileira apresenta diversas
aproximações com a tragédia grega. Ao atualizar o mito grego na cena
nacional, e ao tecer críticas severas sobre a última fase de colonização no
Alto Peru, Escobar constrói sua obra a partir de novos motivos, seja no que
diz respeito à caracterização Ramom Ianaiá, seja em relação às armas e às
feridas do seu herói americano.

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|100
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Tradução Fernando Brandão dos Santos. São Paulo: Odysseus, 2008. p. 17-53.

SILVA, Renato Cândido da. O primeiro rastro da filha de Édipo na dramaturgia


brasileira: a Antígona (1916), de Carlos Maul. Travessias Interativas, v.10, n. 20.
2020. pp. 102-121.

SÓFOCLES. Filoctetes. Tradução Fernando Brandão dos Santos. São Paulo:


Odysseus, 2008.

TAPLIN, Oliver. Significant actions in Sophocles ’Philoctetes. Greek, Roman and


Breazantine Studies, n. 1, v. 12. 1971. pp. 25-44.

|101
VENDRAMINI, José Eduardo. “Teatro e metalinguagem”. In: FARIA, João Roberto
(org.). História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas.
São Paulo: Perspectiva; Edições SESCSP, 2013. p. 257-271.

WILSON, Edmund. “Filoctetes: a ferida e o arco”. In: SÓFOCLES. Filoctetes.


Tradução Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014. p. 193-213.

|102
UM NOVO OLHAR SOBRE A INSURGENTE CLÁSSICA:
REVISITANDO MEDEIA EM MATA TEU PAI , DE GRACE
PASSÔ

Marco Aurélio Rodrigues

INTRODUÇÃO

Quando Andreia Beltrão, renomada atriz brasileira, rompe com o


silêncio da plateia, após receber toda audiência enquanto se transforma na
personagem central do espetáculo, sua frase “Estamos na Grécia” anuncia
que ali, naquele exato momento, diante de todos, estava Antígona, filha de
Édipo, heroína encarnada pela atriz na peça homônima de Sófocles,
representada em Atenas no ano de 401 a.C. E, assim, mais uma vez, a
história da irmã devota, preocupada com os ritos fúnebres e a tradição,
contrária às leis impostas pelos homens, é revisitada e aplaudida em todo o
país, como se suas palavras evocassem a Antiguidade, mas também falassem
sobre questões próprias do atual contexto político, social e religioso das
terras tupiniquins.
É notório que, ao longo dos séculos, as performances do teatro antigo
deram espaço a novos movimentos, novas perspectivas de encenação, novos
temas e, por conseguinte, novas teorias. Todavia, vale enfatizar, também,
que o teatro grego sempre esteve presente em toda a história da literatura
teatral. Até mesmo o Brasil, cujo histórico de encenações é bem mais
recente, iniciadas na primeira metade do século XX, tenha, depois do início
da década de sessenta do século XX, experimentado, tal quais tantos outros
países, principalmente na Europa, o resgate do teatro clássico.
Não é tarefa fácil delimitar os movimentos que fazem com que a
tragédia ou a comédia sejam demandadas, mas é fato que tal experiência
está ligada a inúmeros fatores históricos que estejam acontecendo nos países
que as revisitam. Tanto a tragédia como a comédia nasceram da confluência
de elementos históricos, políticos, sociais, ético, morais e religiosos, sendo
assim, por mais que um mito, no caso da tragédia, ou uma situação
cotidiana da Atenas do século V, para a comédia, dialoguem, a princípio,
com uma população específica, os diversos elementos que constituem as
peças falam, primordialmente, sobre o ser humano, as relações sociais, os
sentimentos, entre outros aspectos que impedem os textos clássicos de
permanecerem cristalizados em um período específico da história do
Ocidente. Ao que concerne às representações clássicas, principalmente no
século XX, Hall (2004, p. 7-9) aponta o ano de 1968 como decisivo para que
o mundo voltasse seu olhar para os textos antigos. Trata-se de um período
agitado da história mundial, em que a Grécia entrava em uma cruel ditadura
militar, que só acabaria em 1974, morreria nesse mesmo ano o ativista
Martin Luther King, ocorreria a invasão da Tchecoslováquia pela União
Soviética, o famoso protesto feminista no concurso de Miss America
realizado em Atlantic City, nos Estados Unidos, e, também, a viagem da
nave Apollo 8 à lua. Assim sendo, o mundo experimentava mudanças em
todos os níveis: sociais, políticos, ético-morais, culturais e religiosos e o
texto clássico oferecia subsídios para todas essas discussões: o papel da
mulher, a homossexualidade, a liberdade sexual, a injustiça social, a tirania
etc. Aliado a esse contexto histórico fortíssimo, vale salientar o que pensa
Goldhill (2007, p. 2) sobre outros importantes elementos que devem ser
levados em consideração e passam a instigar os diretores teatrais. A partir da
década de 1970, os grupos teatrais enxergaram no drama grego uma
possibilidade de romper barreiras e desenvolver novas experimentações.
Tais questões não eram novidade, pois já haviam sido investigadas por
Beckett e Brecht anteriormente, no entanto, como sugere Foley (2014, p.
34), corroborando o entendimento de Goldhill, o teatro clássico trazido à
modernidade possibilitava uma nova forma de experiência, um diálogo
entre o antigo e o novo que propiciava a superação ou retomada das formas
de representação.
Dessa forma, é justamente no contexto das possibilidades de novas
discussões, calcadas na tradição clássica, juntamente com as proposições de
Goldhill (2007) e Foley (2014), atuais correntes de experimentação e
representação, que o teatro clássico no Brasil também ganha maior fôlego
para assuntos imprescindíveis de serem debatidos nos palcos. Assim, é no

|104
ano de 2017 que o teatro clássico, no Brasil, passa por um interessante
fenômeno: a representação maciça de tragédias cujo protagonismo está
ligado às personagens femininas.
Nesse contexto, as palavras de Del Rios1 sobre o espetáculo Trágica.3,
dirigido por Guilherme Leme, com as atrizes Letícia Sabatella, Denise Del
Vecchio, Miwa Yanagizawa nos papeis de Antígona, Medeia e Electra,
respectivamente, são assertivas em relação às questões abordadas pelas
tragédias:
Os enredos foram concentrados nos instantes de maior veemência e
desespero verbal. Poderia ser algo exasperado, mas a montagem é
minimalista nos gestos, concepção cenográfica e na sutileza musical.
[...] O enxugamento de obras já naturalmente concisas impõe mais
relevo ao instante em que os personagens dão o passo além que pode
lhes custar a vida, mas do qual não abdicam por fidelidade à voz do
sangue ou em retribuição extrema à violência do poder (o Estado e
seu líderes). A questão individual, aqui, se sobrepõe à dor das
massas, mas, mesmo assim, os gregos antigos foram os primeiros a
insinuar pela arte os massacres entre povos, alguns deles irmãos,
estimulados por interesses de impérios, ambições isoladas ou
fanatismo em nome da fé.

Fica evidente a relação que as heroínas estabelecem com a sociedade


contemporânea e esse é um importante aspecto que justifica a presença
marcante das heroínas trágicas no ano de 2017. Tal momento no panorama
teatral brasileiro, o qual ganhou fôlego no país no último ano, já havia sido
descrito por Foley e Mee (2011), em referência ao cenário em geral, como
um processo mundial. Para Foley (2001, p. 335), em um trabalho dedicado
às mulheres trágicas, a potência do discurso atingido por elas é justificada
por uma trama expressivamente social, política e emocional:

1
DEL RIOS, J. Peça ‘Trágica.3’ traz interpretações e direção inovadora. Estadão, São
Paulo, 26, junho, 2014. Cultura.
Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/teatro-danca,peca-tragica3-traz-
interpretacoes-e-direcao-inovadora,1519076. Acesso em: 25 out. 2020.

|105
Tragedy also treats the domestic as well as the public world as an
important moral realm. Some female characters take ethical
positions that bring what seem to be specifically female concerns and
approaches into play in both domestic and public debates. Age,
status, and kin position can weight even more specifically for them
than for their male counterparts.2

Assim, em um momento de profunda mudança social, econômica e,


principalmente, de discussões que colocam em xeque o campo do público e
do privado, como a questão do feminismo, do feminicídio, dos problemas
educacionais etc., a tragédia, cuja protagonista é uma personagem feminina,
torna-se o veículo perfeito para o debate e a exposição de ideias que ainda
insistem em se perpetuar na sociedade.
Dessa forma, muitas das montagens atuais de Antígona, assim como
as de Medeia e as de Electra, que passam a ser frequentes no cenário teatral,
principalmente no eixo Rio-São Paulo, releem Ésquilo, Sófocles e Eurípides,
reveem a performance e inserem novas perspectivas em cima de ideias
desenvolvidas na Antiguidade, mas que estão mais efervescentes do que
nunca. Tomando por base que a tragédia e a comédia ainda têm muito a
manifestar ao homem moderno, é preciso levar em consideração, também, o
fato de que a arte teatral grega atualmente é veículo de inúmeras
experimentações estéticas.
Nesse sentido, Andrea Beltrão e Amir Haddad, na montagem de
Antígona, desconstroem o ambiente do drama clássico, dando ao conceito
do teatro pós-dramático, por exemplo, a oportunidade de uma
experimentação inovadora, pois, levando-se em conta o fato de a tragédia e
a comédia grega serem os principais modelos do padrão teatral aristotélico

2
A tragédia também trata o mundo doméstico e público como um importante reino
moral. Algumas personagens femininas assumem posições éticas que trazem o que
parecem ser especificamente preocupações femininas e abordagens na peça em ambos
os debates domésticos e públicos. Idade, status e posição de parentesco podem pesar
ainda mais especificamente para eles do que para seus colegas do sexo masculino. As
traduções são de minha lavra.

|106
(que evocam a mimese e a catarse) e, portanto, sempre terem estado
alinhados ao chamado “drama burguês3”, o teatro antigo apresenta os
elementos necessários de desconstrução para as novas modalidades cênicas
que buscam uma encenação que dialogue com seu público, a qual proponha
práticas que despertem novamente o fascínio e o pensamento crítico do
espectador.
Denominado teatro pós-dramático, por Lehmann (2007), uma das
mais famosas estéticas teatrais adotada nos últimos anos justamente rompe
com o paradigma do drama clássico, o que torna o uso de tragédias e
comédias gregas ainda mais estimulante a uma nova safra de autores. Para o
teórico (2007, p. 33), o teatro moderno estava estagnado em sua própria
tradição, o que confere ao pós-dramático uma configuração posterior àquela
do paradigma conhecido. Assim, o teatro dito pós-dramático nasce como
uma experimentação de novas técnicas em cima das velhas estéticas, não em
uma tentativa de superá-las, negando as classificações antigas em prol de
uma nova identidade, mas como um campo que ultrapassa a barreira do
convencional.
É nesse contexto, de experimentações e renovações, que ganha
espaço a montagem da peça escrita pela atriz e diretora Grace Passô, e
dirigida por Inez Viana na Cia OmondÉ, Mata teu pai. Interpretada por
Débora Lamm, atriz reconhecida principalmente por seus papeis cômicos, o
drama expõe a situação de Medeia, uma mulher que vive com as filhas entre
expatriadas, mulheres de todas as partes do mundo. Inconformada com o
abandono do marido, Jasão, com o qual deixou sua terra natal, até mesmo

3
A expressão “drama burguês” diz respeito, essencialmente, à discussão proposta por
Szondi (2004), na qual esse modelo de encenação expressa um tipo específico de
produção teatral que tem o homem burguês (século XVIII), mesmo que ele não seja
pertencente exatamente a essa classe, mas haja como tal, como figura central. A
estética do drama burguês apresenta um indivíduo voltado às questões mais
particulares e menos públicas, tendo o diálogo como recurso essencial para o
desenvolvimento das relações e um forte apelo didático, principalmente relacionado à
moral e aos costumes.

|107
tendo participado do assassínio de seu irmão, a heroína relata a crueldade e
a dor da mulher desamparada e largada à própria sorte com os filhos.

MATA TEU PAI

Em uma montagem premiada, que percorreu principalmente o


circuito Sesc de Teatro no ano de 2017, a peça Mata teu pai, de Grace Passô,
ganhou novo fôlego no ano de 2020, durante a pandemia da Covid-19, com
uma apresentação programada pela série “Em casa com o Sesc”, que propõe
exibições de espetáculos pelas redes. Essa nova apresentação, depois de um
tempo fora de cartaz, demonstra o quanto o espetáculo se mantém vivo e
sempre requisitado, com o mesmo vigor de sua primeira apresentação.
Se por um lado a história de Medeia revisitada por Passô (2017)
discute o patriarcado, a xenofobia, o feminismo e tantas outras questões do
atual momento, seu retorno a Medeia mítica, mas também à figura
construída por Eurípides em 431 a.C., revela o quanto o teatro clássico ainda
tem a falar ao homem contemporâneo exatamente sobre as mesmas
indagações. Nesse sentido, principalmente refletindo a respeito das
considerações já feitas sobre as novas estéticas em contato com o teatro
clássico, Mata teu pai representa a assimilação do que há de mais refinado e
delicado no discurso antigo da feiticeira da Cólquida, com as novas estéticas
e as demandas do presente.
Dirigida por Inez Viana, na Cia OmondÉ, Mata teu pai faz parte do
grupo de obras cuja inspiração retoma imediatamente a temática clássica,
muito embora, no caso específico desta, há uma exigência maior da atenção
do espectador para que as referências fiquem mais claras, pois o contexto
em que ocorre a ação não pertence ao universo clássico, mas é
extremamente contemporâneo.
Medeia abre o espetáculo com um grito desesperado “Preciso que me
escutem.” (PASSÔ, 2017, p. 23), em meio a escombros e uma caracterização
que remonta imediatamente a um espaço belicoso, no qual, pouco a pouco,
entende-se que a matriarca convive com outras refugiadas de várias
nacionalidades e, num discurso muito sutil, vai inserindo os elementos para

|108
que o público tome conhecimento daquele universo. Se por um lado, a
Medeia de Eurípides começa com a presença da ama dando detalhes sobre a
atual conjuntura, por outro, em Mata teu pai é a própria heroína que traz as
informações. Nesse sentido, é explícito o conhecimento que Passô (2017)
tem da obra clássica e de referências essenciais, pois algumas delas já se
escancaram nas primeiras palavras proferidas por Medeia.
A esse respeito, de forma mais geral acerca dos elementos que estão
tanto na tragédia de Eurípides, de 431 a. C., quanto na de Sêneca (41-49 d.
C.), as palavras de Pociña et al. (2019, p. 2-3) respaldam os motivos das
constantes representações de Medeia e, por conseguinte, reforçam o
ambiente sobre o qual Mata teu pai se constrói:
It is worth tracing the reasons for the surprising persistence, up to
the present, of the tragic features of a woman that were the object of
a tragedy performed in Athens in 431 BC, […]. It seems obvious that
the story of our protagonist includes different elements which have
the ability to generate interest and to move people in so many
different times and places. The reason can be found in the two
original dramas, Euripides’ Greek play and Seneca’s Latin tragedy.
Both plays dealt in depth with multiple feelings, all fundamental to
human experience, and this gives the subject an extraordinary
modernity. Medea’s behavior is determined by strong feelings of love
and deception, jealousy, betrayal, injustice, hate, pride, anger,
revenge, and punishment.

É com esse misto de sentimentos e sensações que a audiência, pouco


a pouco, é introduzida a questões mais delicadas do universo da vida de
Medeia. Se por um lado, o amor, a vingança, a traição e a injustiça já são
apresentados em seu discurso, por outro, a própria questão de seu “não-
lugar”, ou seja, de uma mulher que não esteja na sua própria terra de origem
e, portanto, não se reconhece naquele espaço, torna-se evidente na
expressão da angústia da heroína. É nesse contexto que frases como “Terra
da gente é terra da gente.” (PASSÔ, 2017, p. 24) e “A terra é de quem não
tem a terra.” (PASSÔ, 2017, p. 25) retomam a constante presença de χθών
(terra, lugar), cujo vocábulo na tragédia de Eurípides ultrapassa 29
ocorrências.

|109
A própria alusão que a ama faz à dedicação de Medeia aos outros,
também está presente na fala da personagem principal de Mata teu pai, pois,
se a ama em Medeia faz referência à ἁνδάνουσα μὲν φυγὰς πολίταις (Med.
12-13) – exilada agradável aos cidadãos – na peça de Passô (2017), a
protagonista relata sua proximidade e compaixão com as demais mulheres
de seu convívio:
Toda imigrante que encontro pelas ruas, cumprimento.
Compro relógios de haitianas.
Tenho mil relógios parados de baterias gastas.
Uma caixa cheia de carregadores de telefone.
Anéis, anéis, anéis, pulseiras que nem são a minha
moda.
Um dia beijei minha vizinha judia na boca, depois de
ouvi-la cantar.
A paulista que mora ali ficou me olhando.
Toda imigrante que encontro pelas ruas eu cumpri-
mento, compro o que vende, pergunto se quer água.
Penso sempre nas haitianas. (PASSÔ, 2017, p. 24)

Em meio ao discurso que se constrói, no qual Medeia mostra sua


empatia e discorre sobre sua vida naquele ambiente hostil, ela também
enfatiza que está doente, febril, e precisa da ajuda das outras imigrantes.
Nesse momento, juntamente com a quantidade de repetições e uma
crescente indignação da heroína com a postura dos homens, para os quais
profere palavras de rancor, seu discurso ganha ares de alucinação, como
parte de um delírio. Assim, sua fala passa a ser entrecortada com estrondos
de bombas, explicitando que toda a conjuntura é mesmo de guerra, de
inquietação, de desesperança e de desassossego. O fato de ser a própria
Medeia, em Mata teu pai, aquela que traz esses relatos à cena, tem muito a
dizer sobre a construção de Passô (2017) para o espetáculo, pois dar voz
diretamente à protagonista contraria a presença da ama na Medeia de
Eurípides, pois deixa na mão da própria heroína o discurso sobre o οἶκος
(casa), que nas palavras da ama, na tragédia clássica, transmitia a confusão
na qual aquele ambiente se encontrava. A esse respeito, Ruffell (2014, p. 68-
69) é assertivo ao comparar o papel da ama em Medeia e a presença da

|110
mesma figura na Odisseia (por volta de 750 a. C.), de Homero, e em
Coéforas (458 a. C.), de Ésquilo:
In both cases, the nurse is loyal to the restoration and preservation of
the male oikos and thence the broader social order, which depends
on this royal household. The distinction is that Eurycleia’s interests
are aligned with those of Penelope, whereas Cilissa is antipathetic to
Clytemnestra. The nurse in Medea is operating in this tradition of
the preservation of the patriarchal oikos and its travails, and calling
attention to an even more dysfunctional household than even these
two accounts. Whereas, for these other nurses, domestic
considerations had political implications, the nurse in Medea
explicitly adopts broader political language to emphasize that the
oikos only stands where there is no dispute between husband and
wife: ‘this is the greatest security [sōtēria], when a wife does not
stand in dispute with her husband’ (14–15). The irony, of course, is
that Medea and Jason’s oikos is far from political power: indeed, it is
in order to join the royal oikos that Jason is in the process of
dissolving his own household. The nurse’s loyalties are also in
conflict. Although she speaks initially of her mistress and regards
Jason’s acts as those of betrayal (17), she nonetheless acknowledges
that he is her master (83–4), and that her loyalty is to the oikos as
well as to her mistress, a point that the paidagōgos emphasizes in
their dialogue (49).4

4
Em ambos os casos, a enfermeira é leal à restauração e preservação do óikos masculino
e, portanto, da ordem social mais ampla, que depende desta família real. A distinção é
que os interesses de Euricléia estão alinhados com os de Penélope, enquanto Cilissa é
antipática a Clitemnestra. A ama em Medeia está operando nesta tradição de
preservação do óikos patriarcal e suas angústias, e chamando a atenção para uma
família ainda mais disfuncional do que as desses dois relatos. Considerando que, para
essas outras amas, as observações domésticas tiveram implicações políticas, a ama em
Medeia adota explicitamente uma linguagem política mais ampla para enfatizar que o
óikos só fica onde não há disputa entre marido e mulher: 'esta é a maior segurança
[sōtēria], quando a esposa não briga com o marido' (14-15). 3 A ironia, claro, é que o
óikos de Medeia e Jasão está longe do poder político: na verdade, é para se juntar ao
óikos real que Jasão está em processo de dissolução de sua própria casa. A lealdade da

|111
Esse conflito da ama, ao qual Ruffell se refere, é exatamente a
construção que permite reconhecer em Medeia uma confusão de
sentimentos, emoções e desespero, que se agravam com o estágio febril. Ao
intercalar as narrativas de outras personagens e expor sua própria dor, é no
ato denominado “Sororidade” que a heroína de Passô (2017, p. 33) se
identifica em meio aos latidos estridentes de uma cadela:
Só as prostitutas que se apaixonam verdadeiramente pelos clientes
me entendem. As transexuais que se deitam um dia numa cama pra
mudarem seu corpo. As terroristas diante das Torres Gêmeas
também. [endereçando ao público] Não estou contando essas coisas
pra convencê-las de não irem a essa festa do pai de vocês, não sou
desse tipo. Vocês vão se quiserem, não são mais crianças. Estou
contando tudo isso pra vocês porque eu sou Medeia. E vocês, se
ainda não sabem, vocês são minhas filhas. Conhecem a história da
mãe de vocês?

Ao declarar seu nome, em estágio avançado da narrativa, Medeia faz


com que o espectador se questione sobre aquela mulher e sua história. Até o
momento, as falas da protagonista não definiam exatamente os
acontecimentos e os motivos pelos quais ela, de fato, estava questionando a
postura do marido, dos homens de modo geral, e enfatizando sua vivência
entre mulheres estrangeiras. Ao se revelar a suas filhas, Medeia se senta no
centro da cena e deixa um de seus seios à mostra, dando de mamar a uma
das mulheres em cena. A montagem do espetáculo, dirigido por Inez Viana,
no que diz respeito às apresentações do Sesc, ressalta, nesse momento do
espetáculo, um elemento que, diferentemente do que a didascália aponta,
torna ainda mais intrigante esse papel de Medeia e sua relação com a
maternidade.

ama também está em conflito. Embora ela fale inicialmente de sua patroa e considere
os atos de Jasão como traição (17), ela reconhece que ele é seu mestre (83-4), e que sua
lealdade é para com o óikos bem como para sua patroa, ponto que o pedagogo enfatiza
em seu diálogo (49).

|112
No texto teatral, Passô (2017, p. 34) reforça que Medeia coloca em
seu colo uma das mulheres para amamentar, entretanto, na montagem do
Sesc, o grupo de filhas de Medeia, em muitos momentos do espetáculo,
confunde-se com as próprias refugiadas, pois o elenco era formado por
atores de um projeto da terceira idade. Sendo assim, ao espectador, o fato de
Medeia estar amamentando uma das pessoas ali presente, coloca a
personagem no papel da nutriz, daquela que, independentemente de quem
esteja ali, ela apresenta seu colo, seu leite e seu afago, não é para menos que
esse ato da peça se chama “Amizade”, cuja relação com o conceito grego de
φιλία (amizade, afeto) se torna latente.
No ato denominado “A cadela” (PASSÔ, 2017, p. 35), há nitidamente
um revés na história, pois a personagem se torna mais agressiva e dá
indícios de que, embora tenha questionado de forma positiva,
anteriormente, o próprio direito de seu marido de se casar com uma nova
mulher, o discurso evidencia um conflito na aceitação, principalmente no
que diz respeito ao temor de que as filhas aceitem o novo status quo de bom
grado. Esse momento do espetáculo traz à tona a essência de toda a
necessidade de um resgate clássico do mito de Medeia, pois revela que a
insurgente clássica não pode mais ser vista da mesma forma. Ao relatar a
forma como a paulista pede que Medeia diga às filhas sobre a nova
madrasta, a heroína comenta que desferiu um soco na refugiada pelas
palavras contra outra mulher. Eis que fica claro o porquê da expressão
proferida “tá na hora de rever o ângulo da história” (PASSÔ, 2017, p. 35):
A paulista quer que eu diga a vocês, sabe o que ela
quer que eu diga? Ela quer que eu diga a vocês que
vocês têm uma madrasta e que madrastas são más,
não, da minha boca vocês não vão ouvir isso. Tá na
hora de rever o ângulo da história, o erro é dele.

A passagem em questão é significativa justamente porque,


principalmente a partir do início do século XXI, os autores passaram a rever
ideias ultrapassadas e a repensar o papel da mulher no teatro clássico. Até
meados do século XX, as análises das tragédias que têm na mulher sua
personagem principal, depositavam uma carga de responsabilidade na

|113
heroína que acabavam, na maioria das vezes, tendo como única resolução o
crime e a insanidade. Esse tipo de percepção é contrariado quando a própria
sociedade contemporânea passa a observar a mulher como parte de um
sistema opressor e analisa suas características por um viés mais complexo do
que apenas inseri-la em um discurso que, em muitas análises, beira à
misoginia. A esse respeito, Hatzichronoglou (1993, p. 186) é incisiva em
definir a dualidade do caráter de Medeia:
She is a woman, and yet she acts like a man. She is a barbarian, but
she behaves like a Greek. She is slighted and weak and yet she is able
to destroy everything. She says she loves, but the power of her hatred
comes through with equal intensity. She is human but she possesses
powers that go beyond human limits.

A dualidade da personagem é muito bem captada por Passô (2017),


pois a Medeia de Mata teu pai, justamente vai apresentando os dois lados de
uma mesma moeda, seu amor e fidelidade por Jasão, o ódio pela traição, a
busca por reparação etc. No entanto, ao enfatizar que está na hora de
observar a história de outra forma, rever o modo como as coisas são
conduzidas, a heroína fala sobre as questões que já haviam sido abordadas,
como feminismo, imigração, xenofobia, sororidade e amizade.
Na montagem de Mata teu pai, no que diz respeito à estética pós-
dramática do espetáculo, esse momento de cisão também apresenta alguns
elementos que não passam despercebidos ao espectador. Por diversos
instantes, ao longo do espetáculo, há estrondos de bombas, barulhos de
animais e a movimentação de personagens em cena, porém, durante essa
passagem em específico, os latidos estridentes da cadela se potencializam
com a crescente revolta que passa a tomar conta de Medeia ao falar da festa
de casamento do marido, o que eleva o ambiente de tensão, o qual remete
claramente ao desarranjo causado por esse homem na vida daquela mulher
e suas filhas.
Lehmann (2007, p. 143), ao falar sobre a estética pós-dramática, cita
a parataxe (a organização de forma coordenada e justaposta) do espetáculo.
Para o estudioso, a montagem pós-dramática deixa de lado uma composição
hipotática (de subordinação de signos), para dar espaço a um lugar em que

|114
as sensações ocorrem de forma simultânea, e “não mais se concatenam de
forma inequívoca”:
[...] pode-se constatar um tratamento não-hierárquico dos signos
que visa uma percepção sinestésica e rejeita uma hierarquia pré-
estabelecida, que privilegia a linguagem, o modo de falar e o gestual e
em que as qualidades visuais, como a experiência arquitetônica do
espaço, quando chegam a entrar em jogo, figuram como aspectos
subordinados. (LEHMANN, 2007, p. 144)

Dessa forma, quando a personagem expõe sua realidade em cena, em


meio a luzes ofuscantes e sons incômodos, os espectadores são
transportados para um universo em que eles devem se deixar conduzir e
receber aquelas informações, para posteriormente poderem assimilá-las,
afinal “tudo depende [...] de não compreender imediatamente.”
(LEHMANN, 2007, p. 145). Esse recurso auxilia na criação de um estado de
inquietação que extrapola o palco, pois, principalmente no caso de Mata teu
pai, o incômodo da personagem passa a ser do próprio espectador, que o
sente de forma vívida e intensa.
Nessa atmosfera, Medeia vai deixando claro, pouco a pouco, que sua
intenção é a de uma vingança diretamente relacionada à figura masculina, o
que a faz incitar a morte do marido na festa. No entanto, sua reflexão sobre
o assassinato a faz compreender que a figura desse homem, que passará ao
saudosismo, nunca as libertará, inclusive nos casamentos que as próprias
filhas arranjariam, espelhando a figura paterna:
[...] e a gente vai olhar pra
ele, vai temer a saudade, e de novo e por quanto
tempo mais a gente vai suportar esse homem que
só está entre nós na ausência? E continuar essa
história por tempos e tempos, e vocês vão cres-
crer e caçar por aí alguém que seja exatamente a
mesma coisa porque vocês não vão conseguir se
amar, olha pra mim! Tem bala aqui. E tem gatilho.
Tem eu aqui, agonizante, tem meus peitos explo-
dindo. De leite e de dor. [...] (PASSÔ, 2017, p. 42)

|115
Assim, a cena final apresenta Medeia convencida de que não é o
marido que tem de morrer, mas suas próprias filhas, ao chegar à conclusão
de que nada restaria a não ser acabar com a prole para que não se
perpetuasse a dor e o sofrimento que o marido impusera à família, porque o
patriarcado não acabaria com Jasão e o mundo continuaria a cobrar das
mulheres um preço muito alto. Ao falar que mais uma vez são as mulheres
que estão se sacrificando (PASSÔ, 2017, p. 44), Medeia reforça sua
maternidade e a necessidade de poupar suas filhas do “mundo lamacento,
vendido, injusto, capitalista, militar, patriarcal” (PASSÔ, 2017, p. 45).
A construção da personagem de Débora Lamm evoca a todo o tempo
o aspecto opressor do mito de Medeia, mulher que abandona seu lar para se
dedicar a um marido que a deixa, com filhos pequenos, para se casar com
uma princesa. Em um cenário vazio, que também denuncia a lacuna
existente na vida da própria heroína, a atriz é o chamariz, em meio a gritos
inesperados e rompantes de histeria e euforia, da decadência e carência
humana. Sobre esse aspecto, Rinne (1988, p. 120) esclarece a profundidade
do mito que lida com a questão da autonomia e fragilidade humana diante
da dedicação não correspondida. Na montagem, Medeia é o tempo todo
atraída e afugentada pelas filhas que não tomam partido da situação da mãe,
mas tampouco aceitam a atitude do pai. O impasse mostrado em cena
apresenta de forma acurada as palavras de Rinne (1988, p. 120):
Ela não consegue encontrar a si mesma, porque vive através dele
[Jasão], e também não descobre as suas próprias formas nem define
seus objetivos, tanto externamente como no relacionamento [...]
Cada um responsabiliza o outro pela falta de equilíbrio e pelo vazio
da sua existência; [...]

Diferentemente do que ocorre em Eurípides, cuja vingança também


envolve Creusa e seu pai, a nova família de Jasão, mesmo que ela
responsabilize o outro, Medeia é a mulher que não quer se calar diante dos
abusos da sociedade machista, nem se voltar para si, fechada em um mundo
que consumirá suas energias e sua própria existência. A esse respeito, Lamm
faz o seguinte comentário no prospecto do espetáculo:

|116
Medeia é uma protagonista feminina que desafia o amor romântico.
Na tragédia de Eurípides, ela ressignifica o sentimento quando foge
com o ser amado, o que fará dela uma estrangeira. Mata o irmão e
mais adiante mata seus próprios filhos que tem com Jasão ao se ver
traída por ele. A Medeia de “Mata Teu Pai” leva consigo o discurso e
angústias do mundo atual. Dar voz a uma personagem milenar será
sempre um desafio.

A fala de Lamm reforça a potência dessa protagonista que,


justamente pelo fato de carregar “o discurso e angústias do mundo atual”,
perpetua-se na condição de oprimida e precisa, imediatamente, rever sua
postura diante do mundo para que não tenha mais que implorar para que a
escutem.

UM NOVO OLHAR

Próximo do desfecho do espetáculo, quando a festa começa a ser


organizada no entorno de Medeia, a heroína passa a falar especificamente
sobre o ex-marido e a nova namorada, citando o fato de a conhecê-la e de
que ela era a atual prefeita da cidade, a protagonista relembra que a mulher,
anteriormente, havia trabalhado como empregada doméstica em sua casa:
Já sei que é mulher a pessoa que está com meu
marido. Já sei que é a prefeita, então cadê ela? Já
sei que é negra, que ganhou, é prefeita da cidade.
Todos votaram nela, não é? Eu não voto aqui. Ele
também não.
Sei que é conquista dela, sei que é forte, da inteligên-
cia, sei que já limpou minha casa, sei, foi empregada,
mas vim aqui reescrever a história. [desculpando-se]
Se não me lembro do rosto dela é porque no meu
sangue corre a doença do opressor. Ainda. Demora
tempo para ensinar o sangue, calma. [refere-se ao
público]

Essa passagem é extremamente significativa, pois sintetiza a grande


questão que envolve a trama pensada por Grace Passô: a relação entre
opressor e oprimido. É a própria Medeia quem se desculpa com o público,

|117
em uma tentativa de se justificar quanto ao seu momento de opressão em
relação à namorada do marido. Ao falar que a mulher é negra, era
empregada doméstica e hoje ocupa o principal cargo da cidade, Medeia
percorre o mesmo caminho falacioso de uma retórica que busca nas
características físicas ou posição social um motivo para desmerecer o outro.
Sendo assim, dizer que não se recorda do rosto da mulher tem um peso
simbólico significativo, pois reflete o desdém de um grupo que age com
superioridade em relação aos que prestam serviços ou são de uma classe
social inferior.
Nesse sentido, é interessante pensar na reflexão de Smit (2014, p.
159) acerca das representações modernas de Medeia, nas quais as
protagonistas são apresentadas como mulheres negras, pois, como reforça a
autora, o drama tem espaço para discussões como colonialismo e
imperialismo, “[...] in which colour prejudice and cultural conflict play a
considerable role”5. No caso de Mata teu pai, ao falar sobre as condições da
atual namorada do marido, mas logo se punir e se desculpar sobre tal ato,
Medeia retoma um processo de discussão sobre a opressão que vem sendo
construída ao longo de toda a trama. Assim, a Medeia de Mata teu pai ocupa
um lugar importante na gama de montagens que lidam com o tema clássico
para discussões profundas das questões da modernidade como o racismo, o
feminismo, a xenofobia etc. Para Smit (2014, p. 157), é a partir de leituras
mais feministas, já do início do século XX, que tais questões passam a ser
abordadas e discutidas pelas encenações que têm a Medeia, de Eurípides e
Sêneca ou o próprio mito, como pano de fundo.
Esse novo olhar para a insurgente clássica é assunto do trabalho de
Foley (2014, p. 191), que aponta a dualidade presente na heroína clássica tão
representada nos palcos americanos nos dias de hoje. A autora (2014, p.
191) enfatiza a importância do fato de as personagens não estarem à mercê
do destino, mas articularem suas posições, tomarem atitudes deliberadas e
sofrerem as consequências por seus atos. No caso de Mata teu pai, é

5
“[...] em que o conflito racial e cultural desempenham um papel considerável.”

|118
justamente uma posição de autonomia de Medeia que a faz percorrer um
trajeto de reflexão profundo ao longo do espetáculo que, inclusive, permite à
heroína transitar entre a oprimida e a opressora.
A mudança na forma de se pensar e analisar a figura de Medeia na
modernidade é fruto, também, dos estudos pós-colonialistas dentro dos
Estudos Clássicos. Por esse ângulo, o trabalho de Rankine traz
considerações importantes sobre a personagem feminina clássica resgatada
na modernidade, pois sua análise discute a “europeização” (2007, p. 72) de
tratamento dado a essas personagens que eram vistas sempre pelas mesmas
concepções estéticas e costumes.
Citando Medeia (431 a. C.) e Hécuba (424 a. C.), ambas de Eurípides,
Rankine (2007, p. 63) passa a elencar elementos nas tragédias que hoje
despertam novas reflexões, principalmente no que diz respeito a uma análise
simplista das protagonistas. Tanto em Hécuba quanto em Medeia, ao dar
voz a essas personagens na modernidade, principalmente repensando o
contexto eurocêntrico, os autores possibilitam a discussão, inclusive, da
potência de uma figura de oposição exercida por essas mulheres que
ganham o direto à empatia e a terem suas vozes ouvidas.
Em um trabalho dedicado a representações de Medeia, de Eurípides,
na Irlanda, Wilmer (2005, p. 136) tece considerações que salientam o papel
que as heroínas clássicas ocupam na atualidade: “The play deals with the
power of women and their status in the domestic and the public spheres,
and it has the capacity in postcolonial Ireland to subvert dominant notions
of national identity”6.
É exatamente essa mesma ideia que está presente na montagem de
Mata teu pai. Ao levar à cena uma mulher oprimida e que discute as
questões relacionadas à imigração, à sororidade, ao feminismo, ao
patriarcado etc., Passô (2017) revisita o universo clássico reconhecendo em

6
O drama lida com o poder das mulheres e seu status nas esferas doméstica e pública, e
ela tem a capacidade na Irlanda pós-colonial de subverter as noções dominantes da
identidade nacional.

|119
Medeia uma mulher oprimida por um sistema que a coloca em posição de
subserviência e não oferece escapatória. Quando Medeia desiste de incitar a
morte do marido, mas resolve pôr fim à vida de suas filhas, ela confirma a
luta ainda a ser travada para que a estrutura social vigente seja transformada
e não continue a depositar na mulher a responsabilidade da qual o homem
constantemente se isenta e, ainda, tem o amparo da sociedade.

CONCLUSÃO

Luschnig (2007, p. 201), ao relatar sobre algumas montagens de


Medeia na modernidade, discute os desfechos das peças e traz um
interessante relato sobre uma senhora que, ao fim do filme Titanic (1997),
estava chorando, pois tinha esperança de que o navio não afundasse no
final. Esse tipo de exposição reforça o quanto é possível repensar as
narrativas sem esgotar as possibilidades, pois, no caso de Medeia, tanto a
tragédia quanto o mito, discutem questões que ainda são debatidas pela
sociedade.
Ainda assim, uma montagem moderna de Medeia poderia ser apenas
uma encenação das tragédias clássicas, mas o instigante reside justamente
no diálogo que é possível travar entre as preocupações da Antiguidade e da
contemporaneidade, revendo o papel dessa mulher por tanto tempo
entendida, muitas vezes, apenas como uma mãe insensata, presa ao seu
desejo por vingança e reparação.
Ao inserir Medeia em uma paisagem bélica, conflituosa e de trânsito,
Passô (2017) retoma a insurgente clássica sob nova perspectiva, em
consonância com as recentes leituras que têm sido feitas em relação à
heroína grega. Se a personagem, por um lado, tem fôlego para ser
representada em qualquer parte do mundo, por outro, no que diz respeito
aos países colonizados, ela tem muito a falar sobre a condição da expatriada,
da estrangeira e até mesmo da relação de submissão imposta durante
séculos pelas metrópoles às colônias.
Sendo assim, Mata teu pai pertence a uma nova gama de
representações que, com a efervescência das discussões relacionadas ao

|120
feminismo e à afirmação social da mulher, principalmente no que diz
respeito ao salário igualitário, ao feminicídio e às diversas denúncias de
abuso sexuais ocorridas nos últimos tempos, principalmente no meio
televisivo e cinematográfico, as heroínas gregas são resgatadas como forma
de mostrar ao mundo contemporâneo o quanto elas ainda são atuais e as
discussões de outrora ainda fazem parte de um processo custoso que está
longe do fim. Se são heroínas solitárias, como pontua Ahrensdorf (2009, p.
85), pois para o autor elas pertencem a um universo de protagonistas que
lutam contra o restante do mundo, mesmo assim pode-se perceber que suas
vozes não passaram e continuam não passando incólumes, dando vazão a
um grito desesperador e que passou a ser escutado em uma sociedade que
insistia em não as ouvir.

REFERÊNCIAS

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religion in Sophocles’ Theban Plays. New York: Cambridge University Press, 2009.

EURIPIDES. Euripides Fabulae. Tomus I: Cyclops, Alcestis, Medea, Heraclidae,


Hippolytus, Andromacha, Hecuba. Edidit J. Diggle. New York: Oxford University
Press, 1984.

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2001.

FOLEY, H. P; MEE, E. B (org.). Antigone on the Contemporary World Stage.


Oxford: Oxford University Press, 2011. (Classical Presences).

FOLEY, H. P. Reimagining Greek Tragedy on the American stage. California:


California University Press, 2014.

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Chicago Press, 2007.

HALL, E. et al (org.). Dionysus Since 69: Greek Tragedy at the dawn of the third
millennium. Oxford: Oxford University Press, 2004.

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Joy K. King. Wauconda: Bolchazy-Carducci. p. 178-193.

|121
LEHMANN, H-T. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.

LUSCHNIG, C. A. E. Granddaughter of the Sun: A Study of Euripides’ Medea.


Leiden: Brill, 2007.

PASSÔ, G. Mata teu pai. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017. (Coleção Dramaturgia).

POCIÑA, A. et al. Portraits of Medea in Portugal During the 20th and 21st
Centuries. Leiden: Brill, 2019.
RANKINE, Patrice D. Ulysses in Black: Ralph Ellison, Classicism and African
American literature. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 2007.

RINNE, O. Medéia: o direito à ira e ao ciúme. São Paulo: Cultrix, 1988. (Coleção A
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RUFFELL, I. The nurse’s tale. In: STUTTARD, D. (org.). Looking at Medea: essays
and a translation of Euripides’ tragedy. United kingdom: Bloomsbury, 2014. p. 65-
82.

SMIT, B. V. Z. Black Medeas. In: STUTTARD, D. (org.). Looking at Medea: essays


and a translation of Euripides’ tragedy. United kingdom: Bloomsbury, 2014. p. 157-
166.

SZONDI, P. Teoria do drama burguês: [século XVIII]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São
Paulo: Cosac Naify, 2004.

Titanic. Direção: James Cameron. Roteiro: James Cameron. Manaus: S2GO, 1997. 1
DVD (194 min).

WILMER, S. E. Irish Medeas: revenge or redemption (an irish solution to an


international problem). In: DILLON, J.; WILMER, S. E. (org.). Rebel women: staging
ancient Greek drama today. United Kingdom: Bloomsbury, 2005. p. 136-148.

|122
UM BRADO FEMINISTA CONTRA A “SEVÍCIA,
VIOLÊNCIA, ESTUPRO E MORTE”, EM MEDEIA NEGRA
(2018), DE MÁRCIO MARCIANO E DANIEL ARCADES

Denise Rocha

INTRODUÇÃO

Minha voz está cansada,


mas com vocês eu me faço coro, eu me sinto coro.
(Medeia Negra)
O nome Medeia (Μήδεια) evoca a mitologia grega: a jovem, que era
filha de Fetes, rei de Cólquida, e da ninfa marinha Ideia. Descendente de
Hélio e neta de Circe, ela era uma maga com experiência em filtros.
Apaixonou-se por Jasão, o ajudou a roubar o velocino de ouro e fugiu com
ele para a Grécia. O nome dessa moça determinada deriva do verbo μήδομαι
(“meditar um projeto, preparar”) e significa “a que medita (um projeto)”
(DICIONÁRIO, s.d., p. 181).
A partir da indicação da etimologia da mitologia grega, a de que a
heroína tinha uma faceta reflexiva, a atriz, cantora e performer Márcia
Limma (Márcia Lima Gomes), construiu, em caráter coletivo, a Medeia
Negra, que teve o posterior aprofundamento literário de Marcio Marciano e
Daniel Arcades. A personagem brasileira denuncia o racismo e o machismo.
A peça musical foi encenada no dia 2 de setembro de 2018, em
Salvador, e no mesmo mês, no 3º Festival Internacional de Teatro de
Mulheres, em Frankfurt, na Alemanha. Na época da apresentação no
Festival de Arte Negra, da Funarte de Minas Gerais, em 2019, a protagonista
concedeu uma entrevista a Carlos A. Siquara, denominada Márcia Limma
estreia nesta sexta o espetáculo ‘Medeia Megra’. Ela foi publicada na edição
de 22 de novembro, do jornal O Tempo, de Belo Horizonte. A artista explica
a origem da ponderação a respeito da peça de Eurípedes, iniciada em 2016, e
o engajamento que resultou na escrita sobre a protagonista feminista
brasileira:
Depois de estudar a história de Medeia, eu fiquei interessada em
repensar a versão dessa história apresentada por Eurípedes. Eu fiquei
muito motivada em refletir sobre a perspectiva do feminino que é
colocada ali, e, claro, tendo sempre um olhar para o corpo negro,
principalmente da mulher negra, e das diversas camadas de violência
que elas são obrigadas a lidar. (LIMMA apud SIQUARA, 2019, p. 1)

Nessa época, Márcia Limma iniciou uma Oficina de Contação de


Histórias, parte do projeto de extensão universitária de oficinas de literatura
– “Projeto Corpos Indóceis e Mentes Livres” –, e coordenado por Denise
Carrascosa, no Complexo Penal Lemos Brito de Salvador. Nesse espaço
carcerário feminino, Márcia trocou ideias com as detentas sobre o mito de
Medeia: “A ideia do infanticídio para elas é horrível. É um crime
considerado gravíssimo. Mas, nesse processo, eu pedi que elas escrevessem
uma carta para Medeia e depois eu produzi outra como resposta” (LIMMA
apud SIQUARA, 2019, p. 1).
O repúdio aos assassinatos dos filhos, praticados pela Medeia, de
Eurípedes, levou a atriz a reconsiderar outro tema, o da dor, que fora
enfatizado nos relatos das aprisionadas. O sofrimento das mulheres, físico e
psicológico, que se tornou um dos leitmotive da peça Medeia Negra, foi
enfatizado com músicas-lamentos, em um estilo, oriundo da diáspora
africana e cultivado nos Estados Unidos da América: “Eu busquei no
universo do blues e do jazz, vozes que se posicionaram contra os problemas
sociais. Eu quis trazer a imagem dessa mulher que pode, assim, ter uma voz”
(LIMMA apud SIQUARA, 2019, p. 1).
Em relação às vestimentas para compor a protagonista, Márcia
explicou: “Já o figurino é muito inspirado na encenação do Nego Fugido que
dramatiza a luta dos negros contra a escravidão e acontece em Santo Amaro
da Purificação (no Recôncavo Baiano)” (LIMMA apud SIQUARA, 2019, p.
1).

|124
Figura 1: Cena de abertura com Márcia Limma.

A peça Medeia Negra, direção de Tânia Farias e direção musical e de


piano de Roberto Brito, inicia-se com a protagonista que, carrega dois nagés
com pavios acesos, e confessa seu crime diante do baobá, uma árvore
frondosa e com raízes expostas, de origem africana, que tem dimensão
mítica:
Está consumado.
Encerro aqui no mangue da ancestral anciã, o ciclo maldito do amor,
três vezes maldito. Escrevo no tempo meu nome, Medeia, com o
sangue da minha linhagem, filicida geral, assassina da própria cria.
Ato supremo da negação.
À sombra do milenar baobá, replanto a semente malsinada, enterro
aqui a carne de minha carne, face contra a face, abraçados no beijo
amargo da morte.1

1
O texto de Medeia Negra (2018) não foi ainda publicado. As citações dele foram
transcritas da apresentação do dia 2 de setembro de 2020.
Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=ZbaAHwYdY2w&has_verified=1>

|125
A mãe assassina sepulta no altar sagrado da “ancestral anciã”, a mãe
suprema, seus filhos, que seriam resultados de um amor desgraçado. E, por
isso, ela fala de “semente malsinada” e, com o sangue de seu sangue,
inscreve seu nome na história.
Medeia Negra tem duas facetas: a primeira, a visão geral da
protagonista sobre a exploração de pessoas marginalizadas no Brasil, desde
o início dos “massacres indígenas” em um doloroso processo, no qual
muitas mulheres sofrem com “sevícia, violência, estupro e morte”. E, a
outra, a visão particular dela sobre seu crime e aprisionamento, e sua
experiência com as outras detentas. No final, a Medeia brasileira, negra e
criminosa, conclama as companheiras à luta contra o patriarcado: “que o
coro de mulheres, vitimadas como eu, usem suas vozes como lanças contra
os verdadeiros bárbaros, usurpadores, estúpidos, infrenes, incapazes de
amar”.
Assassina confessa, Medeia revela ainda as criminosas engrenagens
do capitalismo: “Sob o manto da cultura, o rastro da maldita lógica
econômica, barbárie, tanto mais acumula, quanto mais extermina”, afetando
ainda mais as mulheres que os homens.
No artigo “Medeia-Negra – solo – em processo: experiências e
reflexões”, a artista Márcia Limma esclareceu sobre a paisagem social
brasileira, imersa em vários tipos de preconceitos oriundos da sociedade
machista, que marginaliza pessoas de cor da pele negra e as mulheres por
serem mulheres, consideradas frágeis:
Esta montagem é uma invenção complexa que reconstrói o mito sob
a ótica da afirmação da mulher negra, potencializando seu discurso
para desconstruir preconceitos como racismo e o sexismo por meio
do empoderamento que a energia de Medeia nos traz. [...] Estão no
palco, tanto a voz presente no mito clássico da Grécia Antiga, quanto
a voz contemporânea de mulheres encarceradas. Medeia, em grego,
significa “aquela que dá bons conselhos”. A Medeia Negra dirá para
nós, mulheres: “fala desse mundo o pretexto para o amor próprio e
resista a qualquer contradição erguida pelo patriarcado colonizador.
Levante a cabeça mulher!”. (LIMMA, 2018, p. 193-194)

|126
O objetivo do estudo “Um brado feminista contra a “sevícia,
violência, estupro e morte”, em ‘Medéia Negra’ (2018), de Márcio Marciano
e Daniel Arcades” será, de um lado, apresentar as características da desgraça
da mãe, assassina e aprisionada, em diálogo com os elementos da tragédia,
de Aristóteles. Além de enfatizar as vulnerabilidades das companheiras na
prisão, todas vítimas do machismo ou do amor masculino. A pesquisa
busca, ainda, mostrar a situação de mulheres, anônimas e invisíveis, nos
cárceres nacionais.

MÃES CRIMINOSAS NO BRASIL

O encarceramento feminino no Brasil, segundo o relatório Mães


Livres. A maternidade invisível no Sistema de Justiça, do Instituto de Defesa
de Defesa (IDDD), de 2019, cresceu 625% entre os anos 2000 e 2016. O
Estado de São Paulo concentra a maior população carcerária do Brasil
(33%), no ano de 2016.
A população prisional feminina era de 37,8 mil mulheres e 64% das
detentas eram negras. Cerca de 40% eram prisões provisórias e 75,34%
cometeram crimes sem violências. No total, havia 47, 3% de mulheres jovens
(entre 18 e 29 anos), 51,9% teriam o ensino fundamental incompleto, 60,1%
solteiras. Em relação à maternidade entre as presas verificou-se que:
Das mulheres presas, 74% são mães e 56% têm dois ou mais filhos. E
o sistema carcerário brasileiro está longe de atender as necessidades e
direitos dessas mães. Apenas 14% das unidades prisionais femininas
e mistas dispõem de cela ou dormitório adequado para gestantes. Só
12% possuem berçário ou centro de referência materno infantil.
(SANTOS, 2019, p. 1)

|127
Figura 2: Márcia Limma iniciou uma oficina de contação de histórias, a partir de Medeia, de
Eurípedes, no conjunto penal feminino, em Salvador (2016).

A protagonista da Medeia Negra humaniza essas mulheres


despersonalizadas no sistema carcerário, consideradas pessoas desalmadas e
desnaturadas, e mostra suas vulnerabilidades e sensibilidades:
Eu sonho todos os dias com o cheiro da minha mãe.
Mãe, ainda sinto o teu cheiro, nunca esqueci.
sinto a sua mão em minha testa, verificando,
a cada minuto, a temperatura da minha febre.

DE EURÍPEDES A MÁRCIO MARCIANO E DANIEL ARCADES: A


MARGINALIZAÇÃO DE MEDEIA

Medeia, de Eurípedes, ocorre em Corinto, na Idade heroica da


Grécia. Os protagonistas são: Jáson e Medeia, feiticeira, com dois filhos, o
preceptor e a aia; Creonte, rei de Corinto; Egeu, rei de Atenas; o mensageiro
e o coro de quatro mulheres. Abandonada pelo esposo, que iria se casar de
novo, a vingativa Medeia apunhalou seus meninos, negou ao pai o enterro e
fugiu, em um carro flamejante, para o santuário de Hera, deusa das colinas.

|128
Ela tinha o objetivo de sepultar, nesse local, as crianças, depois da tragédia
cometida.
A definição do gênero trágico na Antiguidade, enquanto concepção
artístico-literária, foi elaborada por Aristóteles (384-322 a. C.) na obra
Poética (1449b.).
[...] a tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de
certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado
de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação representada,
não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores e, que, suscitando
a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas
emoções.

A tragédia cometida pela Medeia grega não a afetou, juridicamente,


pois a mãe assassina fugiu, enquanto a Medeia brasileira foi presa, julgada e
condenada.
Nas cenas teatrais brasileiras moderna e contemporânea, o tema
literário Medeia tem grande ressonância; apenas para citarmos algumas,
destacam-se: Além do rio (Medeia) (1957), de Agostinho Olavo; Gota
d´àgua (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes; Medea en promenade
(2012), de Clara de Góes; Mata teu pai (2017), de Grace Passô; Curra-
Temperos sobre Medeia (2018), de Cleiton Pereira; Medea Mina Jeje (2018),
de Rudinei Borges dos Santos; e Medeia Negra (2018), de Márcio Marciano
e Daniel Arcades. A respeito deste espetáculo, a artista Márcia Limma
declara: “O corpo ancestral de Medeia, que o machismo tratou de banir e
desconstruir, retorna com toda a força, em movimento, provocando a
polifonia da voz feminina” (LIMMA, 2018, p. 193).

O processo criativo da Medeia Negra

A origem do espetáculo teatral de 2018 evoca a peça O Castelo da


Torre, de 2015, dramaturgia colaborativa do Grupo Vila Vox, com redação
final de Marcio Marciano, sobre uma mulher negra aprisionada nos porões
do Castelo Garcia D´Ávila, na época colonial. No final do espetáculo, a
protagonista, interpretada por Márcia Limma, canta um lamento africano:
“O que fiz meu Deus? Tinha dois filhos. Perdi um, mas não vejo o segundo”.

|129
A peça em questão foi reformulada por Marciano com o título de Biografia,
na qual surge a fala: “Nasci negra, morro negra todos os dias”, que reaparece
em Medeia Negra (CAZARINI, 2019, p. 1).
Figura 3 : Cartaz de Medeia Negra, com Márcia Limma, apresentação no SESC/SP, 2019.

A Medeia brasileira, apresentada no SESC de São Paulo, em 2019,


segundo Renata Cazarini, em “Medeia Negra, com Grupo Vilavox”: “se
propõe como força agregadora da resistência contra o patriarcado,
catalisadora do feminismo negro. [...] Embora uma atuação solo, a atriz
concebe a montagem como interação com o público que se assuma
identificado com o gênero feminino” (CAZARINI, 2019, p. 1).
A protagonista encarcerada, em contato com outras mulheres, entoa
sua profissão de fé: a crença no poder do corpo negro, em sua luta por
mudanças, desde os primórdios do mundo:
O que importa é que meu corpo negro, me afirma e me nega,
Como um palimpsesto, nele apago minhas dores,
para reescrever na pele, um novo canto de prazer.
Nele apago os vestígios dos homens,
Para reescrever na pele a memória ancestral.

|130
A negação ou a afirmação da pele negra reflete as dores vivenciadas
ou silenciadas, por causa da discriminação em várias esferas da vida, e a
altivez pelo reconhecimento da força da ancestralidade. A metonímia do
corpo afro, a da libertação, assemelha-se a um pergaminho reescrito com a
recuperação da identidade, livre da herança escravocrata.
Medeia reescreve no palimpsesto de sua vida pessoal e no das
mulheres oprimidas suas observações viscerais acerca da exploração
humana no Brasil que atingiu, inicialmente, os indígenas, e se perpetuou em
distintas gerações de pessoas cronicamente pobres. Na prisão, a mãe
infanticida organiza um fórum feminino com dois objetivos: primeiro, a
contação de histórias biográficas entre as companheiras de desgraça, para
falar das dores infringidas por homens e, segundo, para organização de uma
ação solidária de enfrentamento do poder masculino.

As visões sobre a condição feminina no Brasil

Em uma viagem visionária pelo Brasil, urbano e rural, pelas praias,


costas, encostas, confins, cidades e presídios, Medeia denuncia a exploração
dos pobres, entre os quais as mulheres são as mais afetadas. O lamento em
oito estações inicia-se com a expressão “O que vejo” e termina com o refrão
“sevícia, violência, estupro e morte”, enfatizando o destino social feminino
na sociedade patriarcal. Na primeira parada, Medeia narra:
O que vejo nas praias virgens da costa,
à sombra da luxuriante paisagem,
massacres de indígenas,
dentre os quais, um grande número de mulheres.
Sevícia, violência, estupro e morte.

Crítica social, Medeia denuncia na Bahia, no Valongo e no


Pelourinho: “à sombra do desenfreado comércio, multidões de bestas de
cargas”; e “na encosta suntuosa, nos veios e entranhas da terra lavrada”,
milhares de carregadores e carregadoras, em condições alvitantes de
trabalho. A viagem prossegue:
O que vejo nos vastos confins desta terra,
entre florestas, caatingas e cerrados,

|131
os mesmos sem eira, esfolados,
dentre os quais as mesmas mulheres
de corpos surrados, batidos, largados,
feito manadas de feras humanas,
sevícia, violência, estupro e morte.

Na “topografia errante das grandes cidades”, Medeia vislumbra: “sob


a vaga luz alucinada das mercadorias, hordas de espantalhos, com o seu
cortejo de mulheres”. Na urbes, ela contempla a população feminina
encarcerada:
O que vejo nos presídios desta terra,
aflorados como pústulas na carne carcomida
tropas aviltadas,
pelo domínio do crime, pelo regime do medo,
centenas de mulheres.
Sevícia, violência, estupro e morte.

Em outros espaços citadinos, “no chão das fábricas, nas praças de


comércio, nas filas dos hospitais, nos coletivos sempre lotados, o mesmo
contingente de miseráveis, com sua proporção de mulheres, duas vezes
miseráveis”, Medeia elenca as extremas dificuldades vivenciadas pelas
pessoas: as sobreviventes de trabalhos mal remunerados e dependentes das
deficientes redes de transportes públicos e do falho sistema de saúde.
Nesse panorama sociopolítico desanimador, no qual sobressai-se a
condição humana aniquilada, que resulta, principalmente, do descaso de
autoridades governamentais em coibir danos à população pobre. A situação
feminina é a mais degradante:
O que vejo nos becos e sarjetas das metrópoles atormentadas
fantasmas do vício e da fome,
entre tantas mulheres perdidas,
sevícia, violência, estupro e morte.

As confissões no cárcere

Aprisionada pelo assassinato praticado, Medeia começa a trocar ideia


com as companheiras oprimidas: uma fala do tio abusador, outra recorda-se

|132
da infância com uma mãe preocupada com sua saúde e bem-estar etc.
Medeia confessa: “É muito difícil ser julgada” e ensina, simulando um
interrogatório: “Não desafie o sistema. Você se arrependeu? Você não pode
mais que o Estado. Você se arrependeu? É apenas uma mulher”. No final de
tal inquérito representado (teatro no teatro), ela enfatiza que muitos
homens, condizentes com a opressão masculina, afirmam que uma mulher
não teria nenhum valor.
Medeia tenta explicar o infanticídio às companheiras: “A busca pelo
reconhecimento, me levou a cometer atos inexplicáveis. Eu nunca, eu nunca
sequer derramei uma lágrima”. Ela enfatiza sua falta de remorso, ao mesmo
tempo que confronta seus filhos, em memória, criando outra vez um espaço
de representação paralelo: “Não serei mais o bode expiatório de vocês. Não
carregarei nenhum de vocês, prefiro vê-los mortos a se tornarem policiais
que matam inocentes”. Com a mente imersa em um quadro de violência,
que acredita ser recorrente na sociedade, Medeia, friamente, banaliza seu ato
cruel, o de matar crianças inocentes, incapazes de se protegerem. Justifica
sua barbaridade, como se o futuro de seus filhos fosse somente o de se
tornarem agentes da lei. Ao minimizar seu crime, ela assume sua faceta
hedionda, sem culpa alguma, afirma: “Nasci negra e morro negra todos os
dias” e pede: “Mandem fotos das crianças”.
Diante de mulheres, consideradas criminosas como ela, Medeia diz
reconhecer as pessoas que compreenderiam suas faltas, iniciando com
menções às prisioneiras do sistema escravocrata: “Somente os ouvidos
cansados, entendem o meu vômito. As encarceradas de senzala, de negreiro
e de cozinha me entendem”. Na lista de oprimidas, ela destaca as ingênuas:
“As mulheres e crianças que se casaram com seus maridos sem conhecerem
o seu rosto”, bem como as marginalizadas das profissões sexuais e a das
pessoas que mudaram seus corpos: “As putas que amam sua profissão em
um homem. Os clitóris mutilados [...]. As transsexuais que veem amor nas
transformações de seus corpos e são vistas como mutiladoras”.
Medeia, que nunca se compadeceu com a inocência de seus próprios
filhos e os rejeitou, assume uma postura de solidariedade com pessoa
anônimas e massacradas, acreditando que elas compreenderiam suas
decisões: “Somente as que nunca denunciaram entendem a minha dor”.

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A solidariedade entre as prisioneiras

Ao se declarar “mãe e filha de todos nós”, Medeia admite que sua


garganta estaria lesionada por seus gritos e lamentos, e que seria uma
“lâmina que corta o destino, mas se perde no vácuo dos ouvidos”. Diante da
constatação da exploração humana de pessoas fracas e oprimidas, Medeia
conclama um último pedido: “Que o coro de mulheres, vitimadas como eu,
usem suas vozes como lanças contra os verdadeiros bárbaros, usurpadores,
estúpidos, infrenes, incapazes de amar”. Com tal declaração, de foro muito
íntimo, ela revela sua mágoa por ter sido oprimida por um homem.
Como líder feminina e organizadora das mulheres contra todo tipo
de opressão, Medeia faz uma convocação, em alto e bom som, primeiro para
as mães: “Levanta, ergue-se a prole, alimenta com leite do teu peito”. Depois
para as outras, incentivando-as à vivência do prazer físico e a de tomar
decisões transformadoras para si mesmas e para a sociedade patriarcal:
Goza quando quiseres.
Inunda o mundo, faz o teu dilúvio mulher!
Só quem pode renovar o mundo com dilúvio é você.

Na crença do poder transformador das águas simbólicas, de


dimensão de um dilúvio, diante das injustiças, Medeia convoca para o
ataque direto, com arma e dentes, com atitudes e falas:
Usa a lâmina para afiar novos humanos,
Usa os dentes para espalhar tuas histórias,
Usa as águas para purificar,
os novos corpos de vítimas e algozes.

O ventre feminino, formador da vida, como mola propulsora de


forças e de tomada de decisões, deveria ser o espaço biológico, capaz de
emanar decisões pessoais:
Cria no teu útero a coragem de poder escolher dentro de si,
o que quiseres.
Diz não a quem merece o não,
Diz sim, a quem passa por semelhante desprezo.

|134
Na árdua tarefa de unir suas forças, depois da tragédia pessoal, e
reunir as energias das outras criminosas, Medeia confessa sua fadiga, ao
mesmo tempo em que revela sua constatação das fragilidades e receios no
processo de mudanças:
Minha voz está cansada,
Mas por você eu me faço coro,
Eu me sinto coro,
Mesmo rouca, eu observo,
Vejo medo no rumo de nossas histórias,
vejo receio de como ficaremos agora.

Solidária com as companheiras de infortúnio, declarando ser parte


do coro coletivo e convicta da culpa do sistema tradicional pelo sofrimento
das mulheres, Medeia convoca suas parceiras para a grande luta contra o
patriarcado:
Levanta, levanta, mulher, levanta,
Levanta, levanta, mulher, levanta,
Com o patriarcado é assim,
Se conseguir mulher, converse,
E se não der, mate!

A proposta de Medeia ao combate contra o sufocamento feminino e


em prol de transformações sociais, abarca duas soluções: dialogar ou matar.
A cruzada sugerida leva a um radicalismo, antes combatido em relação
aquele consolidado pelo patriarcado.
Na crítica teatral, “Medeia Negra cruza a mitologia dos orixás e o
feminismo negro diante de um corpo bárbaro e atemporal”, que foi escrita
na ocasião da apresentação do espetáculo, no SESC/SP, em dezembro de
2019, foi ressaltado que ele se baseia:
[...] em referências estéticas da África e da diáspora dos povos
escravizados.
Emana, portanto, da mitologia dos orixás, do feminismo negro e da
vivência com mulheres em situação de encarceramento em Salvador.
Aproxima o discurso sobre a ética da elaboração da voz política de
mulheres negras.

|135
Narrativa, canto e musicalidade possibilitam registros cômicos,
dramáticos, imagéticos e sensoriais, segundo as criadoras, que
ressaltam ainda esse corpo bárbaro e atemporal. Medeia representa
as mães ancestrais que expressam a morte como transformação e
reconstrução, não como o fim da vida.
O pensamento patriarcal é confrontado e, por meio dele, o
condicionamento social que marginaliza, julga e condena corpos
considerados inadequados, estrangeiro, estranhos. (MEDEIA
NEGRA, 2019, p. 1)

CONCLUSÃO

A Medeia, de Eurípedes, que é branca e da nobreza, empreendeu


fuga, depois do infanticídio, e não foi julgada pela barbaridade de seu crime
de sangue. A Medeia, de Márcio Marciano e Daniel Arcades, entretanto,
negra e pobre, enfrentou o sistema jurídico, foi condenada e levada ao
cárcere.
Em Medeia Negra, os elementos da tragédia, segundo Aristóteles –
hybris, pathos, anagnórisis – não são mencionados ao longo da confissão
que a infanticida faz às companheiras de cárcere.
Em Medeia Negra, a protagonista justifica seu crime, sua catástrofe
pessoal, de forma lapidar, por dois motivos: o amor de um homem e o medo
do futuro das crianças: “prefiro vê-los mortos a se tornarem policiais que
matam inocentes”. Dessa forma, ela distancia-se, friamente, de sua
delinquência, indicando que a violência nacional latente, que demanda a
formação contínua de um quadro crescente de profissionais da ordem,
poderia afetar o futuro de seus filhos. Medeia não lamenta o infanticídio,
mas, sim, a condição de exploração de mulheres no Brasil, submetidas a
“sevícia, violência, estupro e morte”.
Na prisão, Medeia torna-se uma ativista pelos direitos humanos das
mulheres, a quem convoca por uma aguerrida luta contra o patriarcado.

|136
REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, com. e índices


analítico e onomástico de Eudoro de Souza. In: Tópicos. Dos argumentos Sofísticos.
Metafísica. Ética a Nicômaco. Poética. São Paulo: Abril Cultural. 1973. p. 443- 471.
CAZARINI, Renata. Medeia Negra, com Grupo Vilavox. Palco Clássico, 4 dez. 2019.
http://palcoclassico.blogspot.com/2019/12/medeia-negra-com-grupo-vilavox-
mito.html>. Acesso em: 13 set. 2020.

DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA MITOLOGIA GREGA. Disponível em:


<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/409973/mod_resource/content/2/demgol
_pt.pd>. Acesso em: 13 set. 2020.

EURÍPEDES. Medeia. In: Medéia. Hipólito. As troianas. Tradução, introdução e


notas Mário da Gama Kury. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 17-78.

LIMMA, Márcia. Medeia-Negra-solo-em processo: experiências e reflexões. In:


CARLOS SOBRINHO, Antônio; LUCIANY, Aparecida (Orgs.). Cadernos Araxá. v.
1. Salvador: Pantim, 2018. p. 179-195.

‘Medeia Negra’ cruza a mitologia dos orixás e o feminismo negro diante de um


corpo bárbaro e atemporal. 1. dez. 2019. Disponível em:
<https://cartacampinas.com.br/2019/12/medeia-negra-cruza-a-mitologia-dos-
orixas-e-o-feminismo-negro-diante-de-um-corpo-barbaro-e-atemporal/>. Acesso
em: 13 set. 2020.

SANTOS, Rafa. Brasil prende cada vez mais mulher jovem, negra, sem estudo e mãe.
Revista Consultor Jurídico, 14. nov. 2019. Disponível em: <
https://www.conjur.com.br/2019-nov-14/brasil-prende-cada-vez-jovem-negra-
estudo-filho?imprimir=1>. Acesso em: 13 set. 2020.

SIQUARA, Carlos A. Márcia Limma estreia nesta sexta o espetáculo ‘Medeia Negra’.
22 nov. 2019. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/diversao/marcia-limma-
estreia-nesta-sexta-o-espetaculo-medeia-negra-1.2264944>. Acesso em: 13 set. 2020.

ICONOGRAFIA

Figura 1: Cartaz de Medeia Negra, com Márcia Limma, apresentação no SESC/SP,


2019. Disponível em: <https://www.folhanoroeste.com.br/entretenimento-
esportes/sesc-pompeia-recebe-monologo-sobre-o-empoderamento-da-mulher-
negra/>. Acesso em: 13 set. 2020.

|137
Figura 2: Márcia Limma iniciou uma oficina de contação de histórias, a partir de
Medeia, de Eurípedes, no conjunto penal feminino, em Salvador (2016). Disponível
em: <https://www.facebook.com/medeianegra/photos/h%C3%A1-um-ano-a-atriz-
marcia-limma-entrava-pela-primeira-vez-no-conjunto-penal-
femin/495630597462608>. Acesso em: 13 set. 2020.

Figura 3: Cena de abertura: Medeia com dois nagés. Disponível em: <
https://www.facebook.com/medeianegra/photos/pcb.1139755316383463/113974245
9718082/>. Acesso em: 13 set. 2020.

FILMOGRAFIA

Márcia Limma em Medeia Negra, no teatro #EMCASACOMSESC. 2 set. 2020.


Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=ZbaAHwYdY2w&has_verified=1>. Acesso em:
13 set. 2020.

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O MITO GREGO E O POPULAR CIRCENSE EM
ELECTRA NO CIRCO, DE HERMILO BORBA FILHO

Beatriz Pazini Ferreira

PARA COMEÇO DE CONVERSA

O nordeste foi a grande veia cultural de interesse nacional em que se


buscou manter as raízes do popular: teatro popular, espetáculos de rua e
outras manifestações artísticas. O direito à reivindicação do popular abriu as
portas para o desenvolvimento de movimentos construídos pelas próprias
camadas populares, como sindicatos, partidos políticos, movimentos de
minorias, movimentos educativos, dentre outros. Esse processo de
valorização da permanência e da consciência popular foi intenso na década
de 1920, depois dos ideais do Manifesto Regionalista (1926), que se
estenderam por todo o país. Ademais, nessa época, no nordeste, muitos
movimentos culturais populares foram criados, como o Teatro dos
Estudantes de Pernambuco (TEP), o Teatro Popular Nordestino (TPN) e o
Movimento de Cultura Popular (MCP). Com a Ditadura Militar (1964-
1985), alguns desses movimentos e espetáculos culturais populares foram
perseguidos, por serem acusados de manipular a consciência das massas, de
serem patrulheiros ideológicos e de não estarem preocupados em construir
arte pela arte, mas em fazer propaganda e panfletagem política.
O processo de globalização produz discussões na sociedade, uma
destas é a criação do novo, porém se estabelece um paradoxo, pois, ao
mesmo tempo em que é necessário alcançar o moderno, não se pode negar a
identidade e a herança cultural. E o teatro popular contribuiu para a
modernização do teatro brasileiro, pela reivindicação da identidade cultural
nordestina. É nesse tocante que este texto contribui para conhecer, mesmo
que brevemente, a trajetória de Hermilo Borba Filho, que buscou a
modernização do teatro, o qual, para ele, seria possível se valorizasse a
cultura e o teatro popular mantendo diálogo com as raízes do erudito e do
teatro grego. Isso está presente na peça Electra no circo (1944), que retoma,
de forma intertextual, personagens da tragédia grega e, ao mesmo tempo,
insere elementos populares, vivências circenses e discursos que são
produzidos nesse espaço, como “hoje tem espetáculo”, e as ações do palhaço
e do Mestre de Cerimônias que interagem com o público, representado
pelas crianças.
Para a construção do texto, foi indispensável recorrer a autores
como: Bodnar (2017), Santos (2007) e Luyten (2006), que argumentam
sobre o teatro popular, a presença de personagens populares e os
importantes movimentos teatrais populares ocorridos no nordeste, além de
enfatizarem a presença das produções dos criadores dos espetáculos
populares; Aristóteles que expõe, na Poética (1449b), sobre o gênero
tragédia, afirmando ser a imitação de uma ação de caráter elevado, que foca
os aspectos da conduta dos heróis, permitindo uma reflexão sobre o caráter
de suas ações que suscitam o terror e a piedade; e Anatol Rosenfeld (1985),
que discute os recursos teatrais, como o anti-ilusionismo, indispensável para
compreender a relação das personagens O Palhaço, O Mestre de Cerimônias
e o coro das crianças.

O MITO ELECTRA NO UNIVERSO POPULAR HERMILIANO

Hermilo Borba Filho foi ator, autor, crítico, diretor, encenador,


ensaísta e professor. Nasceu em Engenho Verde, Palmares, Pernambuco, em
1917, e faleceu em 1976. Formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito do Recife, em 1950, mas nunca exerceu a profissão de
advogado. Foi fundador do curso de Teatro da Escola de Belas Artes de
Pernambuco e pesquisador da cultura popular nordestina. De 1930 até sua
morte, o dramaturgo foi atuante no Teatro de Amadores de Pernambuco
(TAP), diretor artístico do TEP, fundador do TPN e do Teatro de Arena de
Recife. Borba Filho escrevia, dirigia e atuava nas peças, escreveu textos
teóricos que eram colocados em prática no texto teatral e no palco para a
consolidação, a reafirmação e a modernização do teatro brasileiro.
Toda essa trajetória de criação e de participação em grupos populares
foi primordial para a construção do pensamento de Borba Filho e está na

|140
base de seus esforços em modernizar o teatro brasileiro, em levar o teatro
para o povo. Seu projeto incluía conhecer e produzir teatro em suas mais
variadas vertentes, seja pela encenação de clássicos da dramaturgia, seja pela
inserção de brincadeiras, de folguedos, de formas populares.
Borba Filho iniciou sua carreira como ator e diretor, na década de
1930, com a Sociedade de Cultura Palmarense, em Palmares, sob orientação
de Miguel Jasselli. No mesmo ano, dirigiu a Sociedade de Cultura
Palmarense e, seis anos depois, mudou-se para a capital Recife e trabalhou
no Grupo Gente Nossa (GGN), de Samuel Campêlo. Em 1940, ingressou no
TAP, traduziu peças e atuou nos espetáculos, além de participar da crítica
quando essas peças eram encenadas.
Em 1941, publicou Teatro, arte do povo e reflexões sobre a mise-en-
scène. Nesse livro, Hermilo discute a situação na qual se constrói uma cena,
criticando a mise-en-scène burguesa, porque lutava contra a
mercantilização e o aburguesamento da arte; isto é, para Borba Filho, era
necessário um teatro que fosse voltado para o povo, era preciso levar o
teatro aos subúrbios, às fábricas, às praças e, ainda, inserir no texto, na cena,
espetáculos também populares, por exemplo.
Insatisfeito com a linha de repertório do TAP, Hermilo ingressou em
outro grupo, o TEP, em 1945. No mesmo ano, para confirmar seu anseio de
recriar a linguagem teatral, Borba Filho fez uma conferência durante a II
Semana de Cultura Nacional, apresentando que o teatro deveria tratar de
temas e conteúdos nacionais, relacionados com os mitos também nacionais,
como peregrino Antônio Conselheiro, Lampião e Maria Bonita, Zumbi dos
Palmares e demais heróis que povoam o romanceiro popular. Não bastava
somente inserir essa cultura no repertório, era necessário aplicar um sentido
popular para o espetáculo, interagindo com o povo e se sobressaindo em
relação às marcas de distanciamento.
Entre as décadas de 1930 e 1950, os grupos teatrais e a dramaturgia
nordestina apresentaram uma grande contribuição para os palcos
brasileiros. Hermilo Borba Filho produziu uma escrita cênica que retomou a
herança do teatro grego e medieval, especialmente quando se voltou para os
gêneros cômicos, como o entremez, o auto e a farsa, mas com a cor local
nordestina. A aproximação com o teatro grego se deu pela inserção da

|141
dramaturgia profana e do popular, mediante a presença de personagens
populares e o uso de ditados, de provérbios, da linguagem oral.
O ano de 1953 é considerado um grande divisor de águas para a
produção e o pensamento teatral de Hermilo, visto que houve um processo
de “antropofagia artística”, quando ele se mudou para São Paulo e dialogou
com a arte paulista. Lá, ele trabalhou como jornalista e diretor de teatro.
Na década de 1960, fundou o TPN e o Teatro de Arena de Recife,
abrindo novas perspectivas artísticas no nordeste. Com o TPN, ele mesclou
membros novos e antigos integrantes do TEP e passou por duas fases:
inauguração, em 1960, e reinauguração, em 1966. A primeira fase do TPN
foi interrompida, em 1962, por razões financeiras e políticas, retomando as
atividades apenas em 1966.
O TPN tinha o objetivo de recriar um espetáculo nordestino por
meio das manifestações dramáticas espontâneas do povo do nordeste, como
o bumba meu boi e o mamulengo, que se tornaram fontes de inspirações
populares (SANTOS, 2007). Maurício (1981) entende que o posicionamento
do TPN retratava um ambiente político tenso, que antecede o golpe militar
de 1964, além disso, anunciava certa oposição ao Teatro de Amadores de
Pernambuco (TAP). Maurício (1981) destaca que o grupo acredita que a
arte deveria ser comprometida, mantendo uma ligação entre a realidade e
sendo, portanto, porta-voz da coletividade e do indivíduo. Em vista disso,
tanto o TEP como o TPN apregoavam a necessidade de levar um teatro de
qualidade às camadas socialmente menos favorecidas.
Em 1967, Hermilo participou do MCP (Movimento de Cultura
Popular, criado na primeira gestão de Miguel Arraes, em 1960), juntamente
com Paulo Freire e Ariano Suassuna. As atividades iniciais do MCP eram
orientadas para conscientizar as massas, mediante a alfabetização e a
educação de base. Por meio desse movimento, Borba Filho buscava realizar
uma ação comunitária de educação popular, a partir da pluralidade de
perspectivas, com ênfase na cultura popular, além de contribuir para a
formação de uma consciência política e social nos trabalhadores.
O grande objetivo de Borba Filho, desde o tempo do TEP e, depois,
com o TPN e o Teatro de Arena, pós-vivência em São Paulo, foi valorizar a
identidade nordestina, por meio da inserção dos espetáculos populares do

|142
nordeste, das brincadeiras, das manifestações populares, sem deixar de lado
a veia tradicionalista em sua maneira de escrever e dirigir peças. Ele o fazia
sem abrir mão de relações produtivas, com influências das mais variadas.
A contribuição de Hermilo Borba Filho para o teatro brasileiro é
incomensurável, visto que seus estudos sobre a cultura e a arte nordestina
colocam em prática a valorização da literatura popular, nunca perdendo de
vista a necessidade da luta para a transformação da sociedade por meio da
arte. Segundo Luyten (2006, p. 79),
[...] as modalidades poéticas populares do Nordeste são muito mais
conhecidas nacional e internacionalmente do que as versões
paulistas [...]. Devido à migração de nordestinos para outras regiões
do Brasil, notadamente São Paulo, verificamos, hoje em dia, que a
capital paulista se tornou um dos maiores centros produtores e
emissores de poesia popular nordestina. [...] A cultura popular
nordestina [...] expandiu-se, sobretudo no século XX, de tal modo
que hoje é possível notar sua influência em todos os meios culturais
do País, desde a literatura das classes dominantes ao teatro e cinema.

Borba Filho concretizou uma estética do espetáculo, uma identidade


antropofágica, na qual articulou várias interfaces; como o teatro, o canto, a
dança, a máscara, o boneco, a brincadeira, o bicho, recriando uma atmosfera
da cultura popular nordestina. Para o autor, os caminhos para a
modernização do teatro brasileiro seriam usar máscaras como no teatro
grego, dançar como no teatro oriental, fazer acrobacias como no teatro
chinês, cantar como nas óperas, dar pancadas como nas velhas farsas
medievais (BORBA FILHO, 1964).
Ao longo das montagens de Borba Filho, o TPN elaborou uma vasta
experiência do uso de máscaras, como no teatro grego, respaldada nos
estudos das máscaras do bumba meu boi: “como no Bumba, o teatro é o
local da ação; seus atores usam máscaras; lançam mão da parábase; quebram
a atmosfera empática para se entregarem ao lúdico e se divertem enquanto
divertem os espectadores” (BORBA FILHO, 1969, p. 64-65, grifo do autor).
Conforme aponta Santos (2007, p. 125), “enquanto o espetáculo popular, o
uso da máscara parece inteiramente normal para o público, no teatro

|143
erudito, ao contrário, ainda aparece como barreira entre o ator e o
espectador, que nem sempre percebe a função que desempenha”.
O teatro popular demonstra as reflexões e os costumes de uma
região, que, regularmente, são esquecidos pela mídia e pelos críticos
literários, porque, por meio desses cenários regionais, como o sertão,
explicitam-se questões fundamentais dos contextos político e social: a
exploração das minorias, do povo e os excessos de poder da burguesia.
Considerando que o nordeste foi o grande palco cultural em que se buscou
manter as raízes do popular, Hermilo Borba Filho insere elementos da
identidade nordestina, como os espetáculos de rua, o teatro popular, as
manifestações circenses. Ele também funde o erudito, a herança do teatro
grego e o drama europeu, para construir, de fato, caminhos para a
modernização do teatro brasileiro. O texto hermiliano é vasto de elementos
figurativos do teatro grego, da brincadeira, dos espetáculos populares, dos
seres mistificados e da linguagem oralizada.
Os espetáculos populares do nordeste nascem da tradição ibérica e
recaem no termo “folclore”, além de tomar formas e contornos, no que se
refere à conscientização popular que utiliza essas tradições. O mamulengo, o
auto dos guerreiros, os pastoris, o fandango, o bumba meu boi, dentre
outras manifestações culturais populares, começaram na tradição oral,
perpassaram o mítico e o rapsódico e são carregados de sentidos e de
simbologia. O teatro popular está inserido nesse contexto, em que
inspirações vindas de tradições regionais ganham lugar de destaque nas
produções culturais nordestinas. Por exemplo, em 1944, Hermilo Borba
Filho publicou Electra no circo, que retoma o mito grego Electra, da
maldição dos Atridas, a partir da estrutura do universo circense, em que as
personagens são identificadas pelas funções artísticas. Na Grécia, os
espetáculos teatrais eram realizados ao ar livre, e a dramatização das
histórias era tematizada na vida de reis, rainhas, heróis, deuses e deusas,
além de figuras sobrenaturais que povoavam o mito grego.
De acordo com Aristóteles (Poética, 1449b.), a tragédia é um gênero
que representa a imitação das ações humanas, da vida, da felicidade, da
desventura em um caráter elevado, sendo o texto dramático construído por
uma linguagem ornamentada que suscita terror e piedade para os efeitos da

|144
purificação dessas emoções. As ações do herói trágico são reveladas pelos
deuses e oráculos como castigo. Borba Filho substituiu as penalidades dos
deuses pelas pulsões inconscientes e reflexivas do homem para compreender
o destino humano.
A retomada do mito grego tem como protagonista Electra, que, na
peça de Hermilo, é chamada de A Moça do Arame. A heroína Electra, filha
de Agamemnon e Clitemnestra, está em, pelo menos, três textos dramáticos
gregos: Coéforas, de Ésquilo, Electra, de Eurípedes, e Electra, de Sófocles. De
acordo com Bodnar (2017, p. 220):
Electra de Eurípedes difere das demais, especialmente, porque as
cenas e as personagens por ele criadas se aproximam mais da
realidade, tendo suas personagens uma conotação mais próxima do
agir e do sentir humanos. Talvez, por isso, das três versões, seja a
euripidiana a que mais inspira versões modernas.

A fábula da peça e seus personagens são localizados em um circo. A


ação dramática se baseia em torno dos filhos de O Dono do Circo
(Agamemnon), A Moça do Arame (Electra) e O Rapaz do Trapézio
(Orestes). Também aparecem Equitadora (Clitemnestra), O Domador
(Egisto) e O Homem Lagarto (Pílades). Os diálogos são intercalados por
coros, herança do teatro grego.
A peça se passa em um circo e é dividida em três atos: “Antes do
espetáculo”, “Durante o espetáculo” e “Depois do espetáculo”. O primeiro
ato dramatiza a morte do Dono do Circo, explica-a e traz a indagação “hoje
tem espetáculo?”. Entre o segundo e terceiro ato, algumas vozes, sombras e
fantasmas do passado perturbam O Rapaz do Trapézio, semelhante às
Erínias1 gregas (divindades permeadas de pavor e medo), que perseguem

1
Na mitologia grega, as Erínias (Tisífone, Megere e Alecto) são divindades encarregadas
de cobrarem vingança pelos crimes de sangue ocorridos no mesmo génos familiar.
Sobre o nascimento das Erínias, Cf. HESÍODO, Teogonia, vv. 178-185.

|145
Orestes pelo assassinato de sua mãe, Clitemnesta2. Nesse ato, as duas cenas
se fundem: circo e sanatório. Nesse momento, aparece a personagem do
teatro grego, Orestes. O Rapaz do Trapézio enlouquece e é internado em um
hospício, após o assassinato da Equitadora e do Domador. No terceiro ato,
A Moça do Arame abandona o Rapaz do Trapézio para se casar com o Dono
do Circo, que é o pai de ambos. Ao final da peça, fica evidente o incesto
entre pai e filha. O desfecho ocorre quando A Moça do Arame e O Dono do
Circo saem para as trevas, e O Rapaz do Trapézio se suicida.
Electra no circo é a peça que mais se aproxima das tragédias gregas,
ao se apropriar do mito. Hermilo faz uma releitura da origem literária e
mítica de seus personagens, o que fica mais evidente no terceiro ato, quando
as personagens surgem nos delírios do Rapaz do Trapézio trajando
vestimentas gregas: Agamêmnon, Clitemnestra, Egisto, Electra e Orestes.
Os personagens A Moça do Arame, O Dono do Circo, O Rapaz do
Trapézio, Equitadora, O Domador, O Homem Lagarto representam
personagens da tragédia grega que impelem ódio e violência. No mito grego,
Electra se vinga de Clitemnestra, sua mãe, auxiliada por seu irmão Orestes.
São personagens que revelam as fraquezas humanas. Hermilo retoma o
mito grego criando uma atmosfera de devaneios e de projeções
inconscientes e sobrenaturais, evocando o mistério no espaço popular
circense:
A voz do Palhaço vai se perdendo, ao longe, sempre repetindo “Hoje
tem espetáculo?”. Uma grande bola azul, aquela que vimos no
primeiro ato, na sala de espera à entrada do picadeiro, atravessa a
cena como se fosse impulsionada. Logo, que ela se some aparece a

2
“Olha, olha outra vez,/ perscruta por toda parte,/ não fuja oculto o matricida impune./
Ei-lo abrigado/ abraçado à imagem da Deusa imortal/ quer submeter à Justiça suas
ações./ Não pode ser. Sangue de mãe no chão/ é irreparável, ai, ai, ai./ líquido vertido
na terra some./ Mas deves devolver o rubro licor dos membros sugado de ti vivo:/ De ti
beberei não potável poção (Eumênides , Ésquilo, vv. 254-266. Tradução de Jaa
Torrano).

|146
Moça do Arame; uma veste grega, uma grinalda na cabeça ...
(BORBA FILHO, 2007, p. 72)

O texto teatral se configura como metateatro, no qual as personagens


artistas vivem a própria tragédia diante do público. Com isso, Hermilo
“brinca” com a tragédia autorreflexiva e filosófica e ironiza a
intertextualidade, disfarçando a origem literária e mítica, o intertexto, mas,
depois, retoma este em chave anti-ilusionista. A partir dos elementos do
teatro popular, como a presença de palhaços, Hermilo faz a releitura do
circo apresentando diálogos interativos para provocar o efeito do universo
circense: “homens e mulheres, respeitável público [...] um espetáculo,
respeitável público, um espetáculo!” (BORBA FILHO, 2007, p. 29). Além
disso, as personagens não se nomeiam, apenas respondem a designação de
suas funções no circo. Também há referência de personagens-tipo como os
serventes e as crianças:
Primeiro Servente: Muito tempo que não há desastre no circo...
Segundo Servente: Não me lembro de nenhum.
A Moça do Arame: Ai! Desgraçada de mim! Muitos de vocês já
estavam no circo quando meu pai morreu. Eu me lembro
perfeitamente.
Terceiro Servente: De que morreu o dono do circo?
Primeiro Servente: Não fale nessas coisas.
(BORBA FILHO, 2007, p. 30)

O coro das crianças interage com o Palhaço. Esse coro representa o


público do picadeiro se entretendo não com as jocosidades das brincadeiras,
o que é comum na arte de se comunicar no picadeiro, mas com a indagação
do porquê o espetáculo não se inicia:
Coro dos meninos- O Palhaço! Lá vem o Palhaço!
O Palhaço- Vocês ainda estão aí?
Primeiro Menino Pobre- Pois então...
Segundo Menino Pobre- A gente veio ver o espetáculo.
O Palhaço- E hoje tem o espetáculo?
Terceiro Menino- Tem, sim senhor.
O Palhaço- Não. Hoje não tem espetáculo.
Coros dos meninos- Tem, sim senhor.
(BORBA FILHO, 2007, p. 48)

|147
O coro dos serventes e das crianças acompanha as ações das
personagens principais, fazendo perguntas ou confabulando com a trama.
Dessas interações “antes do espetáculo”, o Mestre de Cerimônias justifica
para o público, no segundo ato, o comportamento dos artistas: “Respeitável
público, não é culpa nossa se os artistas do nosso circo quiseram viver uma
história própria antes do espetáculo” (BORBA FILHO, 2007, p. 47). Essas
ações do Mestre de Cerimônias e do Palhaço mantêm relações com o
público, provocando a quebra da quarta parede e estabelecendo, assim, o
efeito anti-ilusionista:
E o palhaço o que é? (Silêncio. Ninguém responde). E o palhaço o
que é? (Nada. Silêncio. E ele, já no palco, no proscênio). Já se foi o
tempo em que o palhaço era ladrão de mulher (Riso amargo). E
depois, como era mesmo o resto da canção? (Aponta um cavalheiro
na plateia). Não se lembra? Não? Faça um esforço. Vamos. Para que
esse sorriso desconfiado? (BORBA FILHO, 2007, p. 32)

O público participa para a convergência do distanciamento que


entrecorta a ação. De acordo com Rosenfeld (1985), o ator do teatro épico
tem por objetivo interromper qualquer processo de ilusão, ou seja, deve
estar preparado para desdobrar-se em sujeito (narrador) e objeto (narrado),
assim como para atuar em seu papel. O Mestre de Cerimônia também
interage com a plateia, motivando o efeito do teatro épico: “Respeitável
público. Dentro de alguns minutos apresentaremos os números sensacionais
do Grande Circo do Mundo. Não direi que haja feras. Não. Não direi isso.
Vou até decepcionar a distinta plateia dizendo que não há feras” (BORBA
FILHO, 2007, p. 29).
O Palhaço, por exemplo, configura-se como personagem que retoma
o universo circense de origem popular, expondo os avessos de si e dos que
configuram o cotidiano. O circo é um segmento artístico popular,
caracterizando-se como uma arte itinerante que funde teatro, música e
dança e oportuniza o acesso da população mais simples, ou seja, o circo é
um local de expressão de arte genuinamente popular, rotinas que o TEP
praticava, levando o teatro para fora da sala de espetáculos, com
apresentações em ruas, praças e escolas. Segundo Bolognesi (2003, p. 34),
“diferentemente dos espetáculos das feiras ambulantes, os primeiros circos

|148
eram permanentes e se instalaram apenas nas grandes cidades”. O
espetáculo circense, em seus primórdios, não se destinava ao público das
ruas e das praças, mas se dirigia aos aristocratas e à crescente burguesia.
Dessa forma, o circo, em sua manifestação popular, começou a aparecer
com
a entrada dos saltimbancos que a commedia dell' arte, manifestação
teatral própria das feiras e festas populares, mistura-se aos números
de circo, principalmente pela presença do personagem Arlequim, um
dos ancestrais mais próximos do palhaço moderno. Aos poucos,
malabaristas, equilibristas e outros artistas foram sendo
incorporados diversificando o modelo aristocrático baseado na
rigidez dos números equestres tornando, consequentemente, o
formato do espetáculo mais popular. (CASTRO, 2005, p. 55)

De acordo com Nóbrega (2015, p. 172) “o circo anuncia a


Pantomima do Nascimento na véspera do Natal e espalha alegria”.
Pantomima, expressão cênica gestual, se inicia na Grécia, com as
apresentações da comédia e da tragédia. Borba Filho concedia destaque
cênico aos personagens populares, para que não ficassem estagnados apenas
como parte do folclore, mas se tornassem protagonistas da encenação e da
invenção, como os palhaços: “chegou a hora. Precisamos agir com rapidez.
O público não demora a chegar” (BORBA FILHO, 2007, p. 35).
Hermilo move o mito grego para o universo popular nordestino,
ambientado em um circo juntamente com seus elementos, isto é,
manifestações e festas populares, e tem no palhaço o personagem popular
que interage com os outros que compõem o teatro grego. A ação é dinâmica,
ligeira, justamente para se aproximar do efeito circense, carnavalesco,
estabelecendo relação com as manifestações populares. Dessa forma,
transpõem das fontes dramáticas primárias, como os clássicos do teatro
grego, as novas feições para a construção da dramaturgia brasileira, abrindo
espaço para as danças dramáticas, o circo, o palhaço. Diante disso, observa-
se o aproveitamento do mito grego mergulhado nas manifestações
populares, na forma de um teatro popular, construindo a ação dramática a
partir do tema e das formas populares.

|149
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Borba Filho foi um pensador do teatro brasileiro e utilizou as


manifestações populares, o artista popular e a personagem popular,
elementos, muitas vezes, negados por alguns cânones. Borba Filho recria,
dramatiza, de forma cômica e satírica, de modo carnavalesco, o mito grego
de Electra. Na tragédia grega, a fatalidade do destino é profetizada pelos
deuses, a frágil condição humana nada pode fazer contra essa fatalidade.
Hermilo recria o mito ambientando os temas e os aspectos populares,
propondo uma linguagem circense e mantendo o livre-arbítrio das
personagens, ou seja, o homem é responsável por suas ações. Dessa forma,
Electra no Circo é uma representação da condição humana e do cotidiano
trágico ambientado na manifestação popular circense.
Electra no circo possui cunho trágico, sondagem da condição
humana e instinto em contraposição à norma. A peça apresenta, ainda,
recursos metateatrais, em que Hermilo escreve a tragédia moderna,
incluindo, de forma representativa, personagens da tragédia grega, mas,
agora, identificados por suas funções artísticas. Além disso, a peça se
apropria de formas populares, de aspectos lúdicos e de outras atividades
movimentadas pelo universo dos palhaços de circo. Então, a arte pode estar
nas ruas, nas praças, nas feiras e nos congressos, pauta sistematizada por
Hermilo Borba Filho, porque, para ele, o saber do povo exerce função de
referência memorialística, coletiva e testemunhal em relação à tradição
artística e cultural.

REFERÊNCIAS

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1987.

BODNAR, Roseli. Entremez: jogos de espelho em um labirinto sem fim – a


dramaturgia de Ariano Suassuna, Francisco Pereira da Silva e Hermilo Borba Filho.
2017. 367 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
Disponível em:

|150
<http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/7486/2/TES_ROSELI_BODNAR_COM
PLETO.pdf>. Acesso em: 2 out. 2020.

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.


Disponível em: <https://www.livrebooks.com.br/livros/palhacos-mario-fernando-
bolognesi-sud7v_yymtsc/baixar-ebook>. Acesso em: 15 out. 2020.

BORBA FILHO, Hermilo. Diálogo do Encenador. Recife: Imprensa Universitária,


1964.

BORBA FILHO, Hermilo. Entrevista a Sebastião Uchoa Leite. Conversa com um


dramaturgo. In: CORREYA, Juareiz; ALVES, Leda (Orgs.). A palavra de Hermilo.
Recife: Cepe, 2007.

BORBA FILHO, Hermilo. Electra no circo. In: BORBA FILHO, Hermilo. Hermilo
Borba Filho: teatro selecionando, vol. 1. Org. Leda Alves e Luís Augusto Reis. Rio de
Janeiro: Funarte, 2007a.

BORBA FILHO, Hermilo. Teatro popular em Pernambuco. Revista Dionysos, Rio de


Janeiro, a. XIV, n. 17, 1969.

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo.


Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005. Disponível em:
<https://docplayer.com.br/17704607-O-elogio-bobagem-alice-viveiros-de-
castro.html>. Acesso em: 15 out. 2020.

ÉSQUILO. Eumênides. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2013.

LUYTEN, Joseph M. Desafio e repentismo do caipira de São Paulo. In: BOSI,


Alfredo. (Org.). Cultura brasileira: temas e situações. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.

MAURÍCIO, Ivan et al. (Orgs.). Manifesto de lançamento do Teatro Popular do


Nordeste. In: CIRANO, Marcos; ALMEIDA, Ricardo; MAURÍCIO, Ivan (Orgs.).
Hermilo vivo- vida e obra de Hermilo Borba Filho. Recife: Comunicarte, 1981.

NÓBREGA, Geralda Medeiros. Hermilo Borba Filho: memórias de resistência e


resistência da história. Campina Grande: Eduepb, 2015.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985.

SANTOS, Benjamin. Conversa de camarim: o teatro no Recife na década de 1960.


Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2007.

|151
PROMETEU DECOLONIZADO: VIOLÊNCIA E PROJETO
EM CENA

Paulo Willame Araújo de Lima

O MITO

O mito de Prometeu é um símbolo! Um símbolo de negação da Lei


em nome da criação autêntica. Propomos, aqui, a apresentação de um
Prometeu que é, enquanto símbolo, uma experiência de vida decolonial.
Contudo, vale antes apresentarmos o que entendemos por mito: uma
narrativa simbólica sobre a experiência de vida, de modo geral, e sobre a
existência humana em suas relações, de modo específico. Nesse sentido, a
mitologia passa a ser uma reflexão sobre como essas narrativas se
constituem e qual sua potência de intervenção na realidade social. Portanto,
estamos de acordo com Joseph Campbell (1990, p. 17), quando em sua
entrevista a Bill Moyers, o mitólogo diz que não se trata, no estudo do mito,
da busca de “um sentido para a vida”. Entende-se, desse modo, que a
mitologia não almeja a construção de uma ideia perfeita da vida.
Não há um sentido, a priori, do que é a vida, e o mito não se coloca
como o forjador desse sentido. Pelo contrário, ele surge como imagem
coletiva de certas experiências decisivas para a vida e seus dilemas em
sociedade. Tais dilemas escancaram o fato de que a vida não obedece ao
tédio da perfeição, inclusive por sua incapacidade de ser “perfeita”. Sem
perfeição, o sofrimento é constituinte da vida, já diziam os gregos, é phatos,
paixão, padecimento.
O sentido é um artifício da razão, já a experiência é um artifício da
vida em sua inteireza sociobiológica. É por isso que Campbell (1990, p. 17)
define o mito como experiência de vida:
Experiência de vida. A mente se ocupa do sentido. Qual é o sentido
de uma flor? […] Qual é o sentido do universo? Qual é o sentido de
uma pulga? Está exatamente ali. É isso. E o seu próprio sentido é que
você está aí. Estamos tão empenhados em realizar determinados
feitos, com o propósito de atingir objetivos de um outro valor, que
nos esquecemos de que o valor genuíno, o prodígio de estar vivo, é o
que de fato conta.

A experiência de vida é diferente da vivência. Esta última é


precisamente tudo o que compõe a vida do sujeito enquanto indivíduo.
Ninguém pode compartilhar uma vivência com outra pessoa, pelo simples
fato de que tudo o que a vivência é capaz de produzir está limitado a ter sua
verdade apenas no sujeito que vivenciou, de modo que o que resta são
memórias, lembranças, cicatrizes, marcas, imagens, reflexos, ruídos e
fragmentos que, por mais que a linguagem se esforce, nunca conseguirá
expressar a vivência em sua completude.
A vivência só ganha relevância e alcance social, político e cultural
quando ela deixa de ser uma ação subjetiva para tornar-se intersubjetiva.
Para se tornar experiência, a vivência precisa fazer-se convivência. Com
isso, não queremos dizer que o problema da limitação da linguagem será
resolvido, contudo alertamos para o fato de que a linguagem se quer
também instrumento de acesso às vivências alheias, porém, quando a
vivência se faz coletivamente, o que a linguagem buscará não é a
transmissão de uma verdade factual, mas sim a partilha, que se sabe
residual, do passado, do presente e do futuro. Nesse sentido, só há
experiência quando há vivências em comum que suscitem memórias e
projetos em comum. Se falarmos de uma “experiência de vida”, é porque se
trata de uma vida que se sabe e se quer existente em comunidade. Essa
experiência comum efetiva-se como um evento compartilhado, que põe no
presente a memória de um passado comum e a projeção de um futuro idem
ou, nas palavras do filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe,
comentando a “teoria do evento” de Marcus Garvey, trata-se de um
advento:
Para Garvey, o evento por excelência era chamado a se produzir, por
definição, num futuro cuja hora exata ninguém conhecia, mas cuja
proximidade era evidente. No caso dos negros, o objeto da espera era
o advento de um “império africano”, indispensável para que a raça
negra pudesse desfrutar de uma existência política e econômica no
mundo. [...] A política de sentinela consistia em acompanhar ou

|153
mesmo em precipitar seu advento, preparando-se para ele.
(MBEMBE, 2018, p. 268-269, grifo nosso)

A certeza da vinda deste evento não é uma dedução lógica, mas sim
uma esperança que se torna verbo de ação, uma esperança que – tal como
propõe o educador brasileiro Paulo Freire – seja esperançar. Uma esperança
que seja advento – no sentido judaico-cristão do termo, ou seja, de
preparação – que possibilitará o desfrute de uma existência outra que
integre o indivíduo na sociedade em questão. Para o mito, portanto, mais
decisivo do que o sentido promovido pelo logos, são as práticas orientadas
pelo ethos.
A narrativa mítica não se preocupa com a construção racional do
sentido, mas com as verdades próprias aos prodígios de estar vivo. Essas
verdades pouco têm a ver com sentido, mas sim com a experiência. Como
dissemos no texto “Homem, arte e verdade: aproximações (des)necessárias
entre Nietzsche e Sartre”, a verdade
[...] não é uma organização lógica e universal de “verdades” abstratas.
Para ele [Sartre], verdade é a totalidade do Ser em tanto quanto ele [o
Ser] se manifeste como um “há/tem/existe” na historialização da
realidade humana. A verdade é, portanto, a objetividade do
subjetivo, sendo este último seu fundamento (ou, nas palavras da
Professora Eliana Sales Paiva, sua contextualização). (LIMA, 2019, p.
728-729)

Aqui, retomamos este ensinamento sartreano, no qual o


fundamento, ou melhor, a contextualização da verdade, é a liberdade. Não
pode haver verdade imposta, pois esta deixa de ser verdade e passa a ser
norma, Lei, a qual tem função existencial diferente da verdade. Lei é
disciplina, controle. Verdade é manifestação, reconhecimento. Ela é sempre
um reconhecimento do que há/tem/existe na historização do mundo.

UMA MITOLOGIA DECOLONIAL

O que significa, então, acessar um mito clássico, como Prometeu, por


um olhar decolonial? Para responder a essa provocação, é preciso que nos

|154
aproximemos da discussão teórico-política que perpassa o surgimento da
“decolonização” como termo de peso conceitual dentro de um movimento
político que acontece desde o sul global. Nesse sentido, retomamos, aqui, o
curso de “Produção cultural nas margens” que construímos através do
Coletivo Transpassando (gestor do Programa de Extensão Transpassando/
UECE). Nesse curso, ocorrido em aulas de modo on-line, durante a
pandemia, o professor Elizandro dos Anjos, publicitário e arte-educador
convidado, trouxe uma didática exposição diferenciando os termos
“decolonial”, “pós-colonial” e “descolonial”.
Partindo de alguns autores latino-americanos, Elizandro põe em seu
slide o seguinte:
DECOLONIAL: O decolonial encontra substância no compromisso
de adensar a compreensão de que o processo de colonização
ultrapassa os âmbitos econômico e político, penetrando
profundamente a existência dos povos colonizados mesmo após ‘o
colonialismo’ propriamente dito ter se esgotado em seus territórios.
(SANTOS, 2018)
PÓS-COLONIAL: A preocupação dos estudos pós-coloniais esteve
centrada nas décadas de 1970 e 1980 em entender como o mundo
colonizado é construído discursivamente a partir do olhar do
colonizador, e como o colonizado se constrói tendo por base o
discurso do colonizador. (ROSEVICS, 2017)
DESCOLONIAL: A descolonialidade não consiste em um novo
universal que se apresenta como o verdadeiro, superando todos os
previamente existentes; trata-se antes de outra opção. (MIGNOLO,
2017) (ELIZANDRO, 2020, não publicado)

Nessa ocasião, trabalhávamos a compreensão de decolonialidade não


como um conceito repleto de abstração especulativa. Antes de seu valor
conceitual, a decolonialidade tem um valor figurativo, que está
contextualizado na existência ancestral e criativa do Terceiro Mundo,
principalmente. Portanto, o decolonial é, antes de tudo, um movimento
coletivo de reconhecimento de uma história (passado), contada em primeira
pessoa, e de um projeto (futuro) construído coletivamente distante do
humanismo eurocêntrico e racista, posto em curso pelo sistema colonial.
Sobre este humanismo, o dramaturgo e filósofo francês, Jean-Paul Sartre,

|155
nos mostra o racismo que constitui (ontem e hoje) a civilização europeia
quando, no prefácio para o livro “Retrato do colonizado precedido pelo
retrato do colonizador”, do tunisiano Albert Memmi, o francês diz que o
racismo está
[...] engendrado a cada instante pelo aparelho colonial, apoiado por
essas relações de produção que definem duas espécies de indivíduos:
para um deles, o privilégio e a humanidade são uma coisa só – ele se
torna homem pelo livre exercício de seus direitos; para o outro, a
ausência de direitos sanciona sua miséria, sua fome crônica, sua
ignorância – em suma, sua subumanidade. (SARTRE, 2007, p. 28)

Sartre, prefaciando o livro de Memmi, faz uma forte crítica ao


processo de colonização que a Europa impôs sobre o que hoje conhecemos
como Terceiro Mundo1. Foi pela imposição colonial de um “processo
civilizatório” – que mais condizia com a implementação da barbárie contra
os não-brancos – que a mitologia greco-romana alcançou as Américas e,
assim, o Brasil. Se partimos da definição de mito como uma experiência de
vida em coletividade para desvendar o prodígio de estar vivo, é impossível
negar que, antes mesmo dos europeus invadirem outros territórios, já havia
mitos muito simbólicos e potentes nos povos originários.
Nesse sentido, cabe indagarmos: por que não temos em nossas
memórias e costumes conscientes os mitos de Tupã ou de Olorum como
temos os mitos do Zeus olímpico ou do Deus cristão? A resposta é simples,
em sua concepção, mas muito complexa em sua compreensão histórico-
ideológica: há um apagamento e um silenciamento constante, sistemático e
estrutural das mitologias contra-hegemônicas, pois como nos coloca o
crítico de cultura, Stuart Hall, a hegemonia é sempre uma relação de poder
que nunca se impõe como pureza absoluta. O jogo da hegemonia é sempre

1
Aprofundamos esse estudo sobre o racismo burguês e sobre o mito como base da
poética revolucionária no trabalho final para licenciatura em Filosofia pela UECE, no
ano de 2017, sob o título “Da possibilidade de uma poesia revolucionária em Orfeu
Negro de Jean-Paul Sartre”.

|156
um jogo de sobreposições. Contra-hegemômica é toda narrativa que se
distancia ou tensiona negações da matriz cultural do poder dominante.
No caso do Brasil, colônia de Portugal, em vasto contato
compulsório com outras culturas eurocêntricas como França, Inglaterra e
Itália, teve na mitologia judaico-cristã e na mitologia greco-romana os
marcos civilizatórios da construção de signos, sentidos, valores, memórias,
costumes e, sobretudo, experiências que destituíram as identidades coletivas
já existentes no local, e impuseram novas referências simbólicas para
auxiliar na compreensão da nova norma social exportada.
A moral, a política, a ontologia, a cosmologia, a estética e a cultura
dos povos originários foram rebaixadas ao lugar do mito como sinônimo de
mentira e falsidade. E tudo o mais que participava da matriz eurocêntrica
ganhou o valor de verdade. Foi nesse processo de valoração que certas
mitologias foram reconhecidas como religiões e outras foram condenadas
como seitas, cultos pagãos, rituais primitivos ou mesmo desumanos. Nesse
processo de colonização, paralelo à superexploração política e econômica
dos povos colonizados, impuseram-nos um ethos (práticas e costumes) e
um nomos (regras e leis) que objetivavam não só a disciplina e o controle
dos corpos, mas, também, das mentes.
O processo de descolonização é precisamente o processo de
emancipação das colônias, inicialmente pela retomada política e econômica
em favor da nação colonizada, mas, também, em nome da autenticidade
cultural dos oprimidos. Contudo, dado os silenciamentos e apagamentos
supracitados, há quem defenda que já não é possível um puro processo
descolonial, pois durante o séc. XX, no decorrer das inúmeras lutas pela
descolonização do mundo, vimos surgir a pós-colonialidade. Não obstante,
como nos mostrou Elizandro em seus recortes, o mundo pós-colonial pouco
se emancipou, de fato, da colonialidade presente antes dos processos
(armados ou não) de descolonização. O pós-colonial enquanto categoria
conceitual nos parece com o pós-moderno do qual fala Stuart Hall (2001, p.
148): “um significante tão vazio e deslizante que pode ser entendido como
qualquer coisa”. Para Hall (2001, p. 149), o pós-modernismo “não é uma
nova época cultural”, mas apenas o modernismo na rua que continua a
desenvolver-se aumentando as desigualdades.

|157
Aqui, poderiam forçar a barra e dizer que o modernismo
(movimento cultural e artístico) e, consequentemente, o pós-modernismo
não são a mesma coisa que o colonialismo (sistema político e econômico) e
o pós-colonialismo. Porém, deixando de lado a abstração conceitual
desvinculada da historicização desde os oprimidos, veremos que tanto
historicamente, ideologicamente e economicamente quanto culturalmente,
essas díades, aparentemente diferentes, comungam dos mesmos sujeitos,
objetos e lugares sociais. Ambas estão postas em relações de poder e
dominações que, como bem coloca Hall (2001, p. 150), só fazem alastrar as
injustiças sociais que a opressão perversa de civilizar os “povos primitivos”
começou a produzir no Terceiro Mundo e, inclusive, no Brasil, através da
“hegemonia cultural” do colonizador.
A decolonialidade, por sua vez, surge como expressão discursiva que
tenta dar conta de uma experiência coletiva já existente desde o começo da
resistência contra os processos de violências e opressões coloniais. Agora,
após as apostas no processo de descolonização (nem sempre bem-
sucedidos) dos territórios, buscando a retomada de soberania dos povos,
percebemos e produzimos vários processos de resistências em favor de uma
cultura, um ethos e um nomos contra-hegemônicos. Os sincretismos
religiosos forjados na América Latina nada menos são do que um processo
de decolonialidade da crença imposta. Para Paulo Freire (1996, p. 78), o
sincretismo é uma experiência anticolonial:
No fundo, as resistências – a orgânica e/ou a cultural – são manhas
necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos. O
sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a resistência ou a
manha com que a cultura africana escrava se defendia do poder
hegemônico do colonizador branco. [...] Não é na resignação, mas na
rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos.

Dessa forma, enquanto o processo de descolonização se dava através


de uma negação radical e, portanto, violenta, da colonização e de todo seu
processo civilizatório; enquanto a pós-colonização se apresentava como
uma positivação resignada das violências e opressões coloniais e, portanto,
nada mais era do que o discurso maqueado e massificante da colonialidade
ou, na esteira de Hall, era a colonização nas ruas repondo as altas cortes

|158
burguesas pelo neoliberalismo; a decolonialização, por sua vez, é negação da
negação na medida mesma em que é positividade criativa do novo, do
diverso à norma. Ela é formação na exata medida em que é deformação
autêntica.
Na verdade, a decolonização não intenta investir contra as criativas
ideias desenvolvidas durante a colonização. Ela faz coro ao martinicano
Frantz Fanon, quando orienta para deixarmos a idolatria pela Europa – e
sua colonialidade – que não para de falar do homem enquanto o massacra e
o extermina. Precisamos nos reconhecer como agentes da História – e das
mitologias que simbolizam as narrativas que nos constituem enquanto
viventes e partícipes das relações homem-homem, homem-mundo e, assim,
da relação homem-cultura (na sua acepção mais originária, de cultivo):
Trata-se, para o Terceiro Mundo, de recomendar uma história do
homem que tenha em conta ao mesmo tempo as teses às vezes
prodigiosas sustentadas pela Europa e também os crimes da Europa,
dos quais os mais odiosos terão sido, no interior do homem, o
esquartejamento patológico de suas funções e o esmigalhamento de
sua unidade, no quadro de uma coletividade a fratura, a
estratificação, as tensões sangrentas e alimentadas pelas classes,
enfim, na escala imensa da humanidade, os ódios raciais, a
escravidão, a exploração e sobretudo o genocídio exangue que
representa a segregação de um bilhão e meio de homens. (FANON,
1979, p. 274)

É sobre esse esquartejamento patológico, esse esmigalhamento da


unidade coletiva, dessa estratificação, das explorações sangrentas e racistas
que Joseph Campbell está falando quando apresenta as Américas como
modelo de uma sociedade que não reconhece mais a importância dos rituais
atrelados a uma mitologia poderosa. O mitólogo refere-se ao jornal “Times”,
de Nova Iorque. E o entrevistador Moyers complementa o raciocínio de
forma muito sensata, quando admite que a falha está na falta de
acolhimento aos habitantes subjugados, pois foi a sociedade que “não lhes
forneceu rituais por meio dos quais eles se tornariam membros da tribo, da
comunidade” (CAMPBELL, 1990, p. 20).

|159
Sendo assim, trata-se, aqui, de revisitar os rituais cênicos e a
mitologia grega recomendando tal mitologia nos prodígios simbólicos que
ela oferece, mas também mostrando as fissuras que ela deixa implícita a
respeito das atrocidades que a civilização helênica encarnou desde a
substituição simbólica que sua mitologia promoveu, ao condenar os deuses
titânicos em favor dos deuses olímpicos. O que essa mudança nos diz da
civilização europeia de modo geral e o que o as releituras do Prometeu
Acorrentado, de Ésquilo, tem a dizer por meio das experiências/fricções
decoloniais brasileiras? Façamos, agora, o movimento decolonial de olhar
para a formação helênica, que recebemos por imposição, e provoquemos
nela a deformação necessária para que ela diga precisamente de nós,
condenados da terra e manipuladores do fogo.

PROMETEU: DO ACORRENTADO AO DECOLONIZADO

Prometeu é um deus-titã, do panteão grego. Dizer isto é dizer que ele


faz parte da primeira geração das dinastias divinas da cultura grega, pois de
modo genérico, os deuses da mitologia grega clássica podem ser divididos
em geração titânica e geração olímpica. A primeira geração diz respeito aos
deuses que surgiram nos primórdios da cosmogonia helênica: os Titãs, dos
quais houve duas linhagens de poder patriarcal: a primeira de Urano/Céu
germinando Gaia/Terra e a segunda com o titã Cronos/Tempo, realizando
um “golpe de Estado” contra o pai e assumindo o poder divino-titânico,
tendo sua irmã Reia como genitora de sua descendência, a qual ele devoraria
para garantir sua permanência no trono. A segunda geração diz respeito aos
filhos de Cronos os quais foram vomitados pelo pai graças ao irmão Zeus,
que seguiu a “tradição patriarcal” de golpear o pai soberano para assumir o
poder supremo.
Quanto ao surgimento de Prometeu, nessa genealogia, há diferentes
narrativas míticas, o que Jaa Torrano bem explica em seu estudo acerca da
tragédia esquiliana:

|160
Na Teogonia, Prometeu é filho de Jápeto e Clímene, aquele é filho de
Céu e Terra, esta é filha de Oceano e Tétis, e os filhos de ambos,
entre os quais Prometeu, tem em comum o destino de terem sido
golpeados por Zeus e arremessados ao Tártaro. Nesse drama,
Prometeu se declara filho de “Têmis ou Terra, forma única de muitos
nomes”. Por que assim se declara? A palavra thémis significa “lei”,
no sentido da lei ancestral de origem divina; o filho da Deusa Têmis
tem por natureza a legitimidade e suas ações manifestam a essência
de sua mãe. Ela é filha de Céu e Terra, essa filiação, por sua vez
possibilita identificá-la com a Terra mesma (como Prometeu [de
Ésquilo] o faz). (TORRANO, 2009, p. 334, grifo nosso)

De início queremos ressaltar essa valorização ancestral de Prometeu


às divindades ligadas a concretude dinâmica da natureza. Vale lembrar que
em Ésquilo, a primeira fala da personagem Prometeu (vv. 88-91)2 é um
clamor ao Vento/Éter/Fugor, ao Mar/Rio/Águas, à grande Mãe Terra e ao
Sol/Luz/Calor que tudo ver. Esse clamor que ele faz é contra “O novo chefe
dos Venturosos” (v. 96), que lhe inventou aquela prisão, da qual ele já previa
a dor e o sofrimento pelo qual passaria. Um pouco menos de preconceito e
apagamento das culturas originárias do Terceiro Mundo e veremos que tais
divindades titânicas coincidem com aquelas que promovem o equilíbrio
cósmico em culturas diversas. Assim como Prometeu refere-se à sua mãe,
“Lei e Terra” (vv. 209-210), todas essas divindades-côsmicas são – Terra, Ar,
Água e Fogo – cada uma a seu modo, divindades “[...] de muitos nomes e
forma única” (v. 210).
Variações na acedência de Prometeu à parte, vejamos algumas
reflexões que essa exposição de Torrano no possibilita alinhando-se à
dramaturgia esquiliana. Desta feita, o tragediógrafo Ésquilo coloca o titã
Prometeu herdando da mãe (Thémis, a lei/costume ancestral) a legitimidade
como sua natureza. Aqui cabe notar: a lei titânica não é a da “ordem”, mas
sim a do “reto conselho” (v. 18). Prometeu tem, em sua identidade, a
capacidade a qual se faz presente em todo o desenvolvimento da

2
Tradução Jaa Torrano.

|161
humanidade: a previsão projetiva, o lançar-se para o futuro. Como bem
coloca o tradutor Mário da Gama Kury (1993, p. 11) em sua “Introdução”:
Provavelmente a chave para o melhor entendimento da tragédia é o
nome de seu personagem principal: o progresso da humanidade se
deveu à capacidade dos homens de “pensar antes de fazer”
(literalmente Pro-metheus significa “aquele que pensa antes”). Esta
chave torna mais compreensível o longo discurso de Prometeu sobre
o bem que ele fez à humanidade em seus primórdios.

O bem ao qual o tradutor faz menção diz respeito ao feito ilegal,


porém legítimo, de pegar uma centelha do fogo divino do Olimpo e entregar
aos homens, garantindo, assim, que a humanidade fosse capaz de se fazer
enquanto civilização. Foi o fogo – presente de Prometeu por amor aos
homens – que possibilitou ao homem a manipulação criativa do seu entorno
e a construção de seus próprios paradigmas. O fogo tornou-se, na narrativa
prometeica, a possibilidade dos homens se emanciparem da tirania de Zeus,
que tinha os planos de destruir o gênero humano.
Todo o sofrimento de Prometeu não é outra coisa senão a ira de Zeus
pelo titã que preferiu garantir a liberdade humana a se fazer submisso aos
caprichos de um “monarca absolutista”, um “colonizador” como Zeus. Essa
ira se efetivou no mundo pela intervenção dos filhos de Estige – deusa
titânica de influência marítima que foi a primeira titânide que, junta a seus
filhos, se aliou ao projeto de tomada de poder que o “patriarcado” de Zeus
perpetrou contra o “patriarcado” de Cronos. Como prêmio, Estige tornou-
se guardiã do rio no Tártaro, que homologa o valor de verdade sobre o que
mortais e imortais dizem, de modo que, se algo é dito contra o “império
olímpico” de Zeus, o proferidor das heresias sofrerá as consequências, tais
quais Prometeu sofreu. Dessa forma, jurar pelo Rio Estige tem o valor
mítico e dramático semelhante à jura pela honra ou pela vida de um parente
existente nos costumes e nas narrativas do nordeste brasileiro, por exemplo.
Poder (Kratos) e Violência (Bia, às vezes traduzido como Força) são
os titãs filhos de Estige. Interessantemente – e não por acaso – são eles os
responsáveis por fazer cumprir a ira do “novo chefe”. Porém notemos,
enquanto Kratos faz questão de discursar exaustivamente sobre a
necessidade da obediência e a importância da punição, Bia apenas cumpre

|162
sua missão de levar Prometeu até o rochedo, no qual este herói será
acorrentado por Hefesto, que o faz a contragosto, por ver em Prometeu seu
congênere, ambos divindades forjadoras dos metais e artesãos da terra,
através do fogo.
Essa ação pura, sem justificativas prévias ou póstumas de sua prática,
diz muito sobre a natureza da Violência. A violência, tal como nos mostra
Fanon em seu livro Os condenados da terra, não pode ser julgada ou
valorada em sua natureza, pois tal natureza é instrumental. Dessa forma,
não se trata de determinar se violência é boa ou ruim, a priori. Trata-se de
descobrir a serviço de que(m) ela está promovendo fricções. Opondo-se à
violência que está a serviço do “novo chefe” colonial, Fanon fala de uma
violência emancipadora (como aquela promovida por Prometeu contra os
deuses olímpicos em nome da emancipação criativa da humanidade). Fanon
nos diz que na maturação da violência, muitas correias arrastam-na e
levam-na para a saída do colonialismo.
Apesar das metamorfoses que o regime colonial lhe impõe nas lutas
tribais ou regionalistas, a violência envereda pelo bom caminho, o
colonialismo identifica o seu inimigo, põe um nome em todas as suas
desgraças e lança nesta nova via toda a força exacerbada de seu ódio
e de sua cólera. Mas como passamos da atmosfera de violência para a
violência em ação? Que é que faz explodir a panela? Em primeiro
lugar tenha-se em conta o fato de que esse desenvolvimento não
deixa incólume a beatitude do colono. O colono que “conhece” os
indígenas percebe por vários indícios que alguma coisa está
mudando. (FANON, 1979, p. 54)

O “colono” da tragédia de Prometeu é Zeus, em toda sua supremacia


olímpica. O castigo infligido a Prometeu, encaminhado pela Violência e
julgado pelo Poder, deu-se exatamente porque tal colono, “conhecendo” os
indígenas presenteados com o fogo roubado, percebeu vários indícios de
que algo entre os mortais havia mudado. Essa mudança era a autonomia dos
homens em relação ao Direito divino. Já não era preciso esperar um raio
divino para iluminar a noite, pois a manipulação do fogo lhe permitia essa
proatividade. Já não era necessário um tirano, pois o fogo trouxe a

|163
democracia. Tais mudanças se deram por mediação de Prometeu, que nutria
um grande afeto pelos humanos. Um amor verdadeiro, generoso.
É em nome de seu afeto pela humanidade que “aquele que pensa
antes” é condenado pela Lei da Ordem, pois a concretude prática e dinâmica
do amor, das emoções abala as estruturas abstratas, coercitivas e
universalizantes da norma, do Direito. A violência física a qual a
personagem Prometeu sofre nada mais é do que a expressão singular da
violência objetiva imposta por Zeus contra toda humanidade com o advento
do Direito, por exemplo, tal como se vê na trilogia Oresteia, de Ésquilo.
Contextualizando essas reflexões sobre as violências presentes na
tragédia Prometeu Acorrentado, para uma atualização dessas nas cenas
espetaculares brasileiras (seja do palco, da TV ou do drama cotidiano),
veremos ficção e realidade se divergirem na medida em que o mito vai
perdendo sua força simbólica, e a tragédia vai se naturalizando na rotina
não como o sofrimento paralelo à esperança do advento mítico-dramático,
mas como pura faticidade resignada da tragédia como norma, da exceção
como regra.
No palco da vida brasileira, o que incomoda a plateia é ver o
protagonista passando fome, o inocente sendo preso ou morto e o “Mal”
levando todos os “filhos do Senhor” ao inferno, dizendo: “o pecado assolou
a humanidade”. Todavia, do outro lado das cortinas, um passo atrás do que
vemos – como nos sugere o filósofo e cineasta esloveno Slavoj Zizek – vê-se
as verdadeiras causas dessas violências. Se, por um lado, é dramaticamente
violento roubar um mercantil ou um jovem negro ser preso por participar
de manifestações e carregar na bolsa produtos de limpeza; por outro lado,
mais violento ainda é o sistema, a estrutura social e econômica que
fundamenta violências como as já citadas. Às violações cotidianas sentidas
de imediato na pele, Zizek chama de violência subjetiva, já a estrutura que a
fundamenta, o filósofo chama de violência sistêmica.
Contudo, a violência sistêmica é apenas um tipo do que o esloveno
chama de violência objetiva; há outra: aquela referente à violência da
linguagem, à imposição do signo e ao peso social do sentido: a violência
simbólica. É a esta violência que fazemos referência quando falamos desses
silenciamentos e apagamentos promovidos pela cultura colonizadora. Essa

|164
violência está tão incorporada em nós, que se torna invisível. Ela é o próprio
exercício da capacidade de fala, de entendimento e, exatamente por isso, o
próprio fundamento de toda expressão violenta de desrespeito, intolerância
e preconceito que vemos e vivemos no dia a dia. Como diz Zizek (2014, p.
60), ao lembrar o conceito de Significante-Mestre de Jacques Lacan, “a
comunicação humana em sua dimensão mais fundamental e constitutiva
não traz consigo um espaço de intersubjetividade igualitária. Não é uma
comunicação ‘equilibrada’”.
Outra face da violência simbólica é o Direito, aquele desde olímpicos:
a norma institui um padrão que, quando não cumprido, deve ser
recriminado. Assim é a violência: a forma mais alta, mais refinada e mais
coercitiva dela “é justamente a imposição desse critério por referência ao
qual certas situações passam a ser percebidas como ‘violentas’. É por isso
que a própria linguagem, o meio por excelência da não violência e do
reconhecimento mútuo, implica uma violência incondicional” (ZIZEK,
2014, p. 62).
A linguagem é feita por signos que não se resumem à escrita e
oralidade, pois passam também pela imagem e pelo ritmo. Esses signos
possuem sentidos, mas também se dilatam assumindo uma função
simbólica. A recente produção do teatro contemporâneo em Fortaleza,
Ceará, nos ilustra bem isso: os signos da dramaturgia esquiliana tornaram-
se símbolos decoloniais. Vejamos alguns exemplos pertinentes.
O espetáculo Prometeu, da Inquieta Cia de Teatro, nos mostra uma
releitura do mito grego do titã Prometeu, apresentando uma reflexão sobre
poder, conhecimento e decisão; e lendo o signo de uma divindade grega
como o símbolo de uma população excluída: negros, mulheres, LGBTs etc.
Essa peça foi estreada em 2014, com encenação de Gyl Giffony e elenco da
Companhia. No portfólio disponível no perfil coletivo da Cia, no Mapa
Cultural do Ceará, consta a seguinte sinopse: “No terreiro cênico, a
experiência de uma desmontada construção da mítica prisão de Prometeu,

|165
aquele que vê antes. Em repiques de tocaia, a história do titã convida-nos
dubiamente a dançar em comunidade, trazendo à baila reflexos sobre poder,
conhecimento e decisões3.”.
Nesse espetáculo, inspirado no Prometeu Acorrentado de Ésquilo, a
personagem perdeu sua corporificação clássica interpretada através de um
ator-protagonista, para tornar-se um símbolo presente em todas as personas
que atuavam na cena. Por meio do compartilhamento ou da coincidência de
algum elemento cênico – por vezes um adereço, por outras vezes um gesto,
que atuavam como significantes carregados de significados –, Prometeu
tornou-se uma entidade que, como santo em terreiro de umbanda, baixava
sobre as personas presentes no palco para dar seu recado de luta e de festa.
Todes atores e atrizes tornaram-se Prometeu em, pelo menos algum instante
da peça. Já o público, por sua vez, era levado a um processo ambíguo e
potente de estranhamento da personagem em sua forma clássica esquiliana,
mas, ao mesmo tempo, um reconhecimento instintivo de si como
protagonista da narrativa. O ritual em culto ao Prometeu do terreiro, a cada
batida do tambor, a cada ritmo vibrante promovido naquele palco-arena,
fazia com que o espectador se sentisse parte do rito por se perceber
congênere daquele Prometeu contra-hegemônico.
Pelo menos no âmbito da criatividade, a qual inventa a si mesma e a
própria realidade, pela necessidade de existir resistindo à norma coercitiva,
somos todos Prometeus Acorrentados projetando nossa libertação. Fomos
presos pela Lei que nos quer reprodutores da Ordem e obedientes a mesma
e não criadores autênticos de si. Por autêntico, podemos assimilar a
definição de Fanon (1979, p. 38), em contexto de descolonização, para quem
autêntico “é tudo aquilo que precipita o desmoronamento do regime
colonial, que favorece a emergência da nação. Autêntico é o que protege os
indígenas e arruína os estrangeiros”. Ou se preferirmos, porém sem

3
Disponível em:
<https://mapacultural.secult.ce.gov.br/files/agent/6889/portf%C3%B3lio_da_inquieta_
cia_(web).pdf>. Acesso em: 13 out. 2020.

|166
contradição alguma, podemos fazer coro à definição de autenticidade
presente na perspectiva decolonial de Mbembe (2017, p. 185), na qual é
possível compreender a autenticidade como “a capacidade de criar, para si e
para o mundo, uma imagem de si”.
Nesse sentido, a revisita à tragédia de Prometeu desde as experiências
de vida do Terceiro Mundo, nos possibilita constituir, com essa
personagem, uma identidade mitológica que, na coletividade das artes
cênicas, ganha característica de identidade política, tal como dissemos no
texto “Mito e situação-limite: reflexões sobre o teatro filosófico e a filosofia
dramática de Sartre” publicado como capítulo do livro Pilares da Filosofia:
[...] o mito - exatamente por carregar consigo um discurso baseado
em uma singularidade limitada, mas em [íntima] relação com o meio
- ganha um status de identidade protótipo do Ser-verdadeiro, ou
seja, do existente concreto em ação no mundo real. Contudo, essa
“identidade mitológica” descoberta na personagem não se propõe
como símbolo de um homem isolado, mas sim de um determinado
conjunto de homens que historicamente podem ser associados
àquela imagem dinâmica, portanto dramática, apresentada pela cena
teatral. Isso que chamamos aqui arbitrariamente de “identidade
mitológica”, quando levado para uma camada mais profunda, ampla
e plural do sentido do mito para a construção social, faz com que, na
verdade, o mito - e qualquer “identidade mitológica” e, portanto, que
apresente-se como símbolo, possa ser também tomada como uma
“identidade política”. (LIMA, 2020, p. 145)

Essa mesma simbolização produtora de identidade política podemos


encontrar em outra apresentação, agora da Cia Nóis de Teatro, com o
espetáculo Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, que vai às ruas
e praças de Fortaleza para apresentar a quem suportar a beleza, o impacto e
a força de uma verdade social. Esse espetáculo escancara o fato de a
população negra não ter conseguido a libertação pós-escravatura para sua
vida e suas crenças. Essa população ainda está presa aos grilhões que a
Ordem e o Progresso do Brasil olímpico impuseram desumanizando esses
corpos através do Kratos e da Bia do Estado de direito burguês brasileiro,
pervertendo as noções de justiça, segurança, beleza e verdade.

|167
Com direção de Murilo Ramos, e vencedor do Prêmio Funarte de
Arte Negra, esse espetáculo de/na rua também foi estreado em 2014 e é
encenado por atores negros e periféricos cearenses. Em Todo camburão tem
um pouco de navio negreiro, a divindade titânica parece ter encarnado todo
seu sofrimento em um típico mortal das periferias do Brasil. A essa criança
negra, pobre e periférica, batizaram de Natanael. Em uma reportagem
divulgando a apresentação do espetáculo pelo Dia da Consciência Negra de
2019, a Secretaria de Cultura do Ceará-SECULT/CE fala da divisão cênica
em três atos, nos quais
[...] é contada a saga de um menino negro que, inserido num
contexto de opressões e violências, é levado a tomar decisões que lhe
custarão um julgamento popular enquanto réu. Convocado à decisão
sobre o destino de Natanael, o público se vê inserido num forte
debate sobre o extermínio da juventude negra nas periferias, além da
desmilitarização da polícia e da política brasileira.4

Nesse espetáculo, o público, pelo menos quando periférico, se


reconhece em Natanael como o herói, que se torna anti-herói na medida em
que o sistema lhe coage a tanto. Natanael, no terceiro ato, vai preso e
julgado. O público assume o lugar declarado de legitimação e legalização da
sentença. Para tanto, o público passa a ocupar uma posição de “lei divina”
na dramaturgia da peça. Cabe a cada espectador, como diria o teatrólogo
brasileiro Augusto Boal (2009), decidir se quer ser a “lei do reto conselho”
ou a “lei da ordem”, se será Mãe Terra acolhedora ou se será Pai Legalista.
Essa dramaturgia parece trazer todos os dilemas que o Prometeu carrega
consigo em sua tragédia.
Natanael é a versão titânica encarnada nas periferias das grandes
cidades. E o público é convocado a se posicionar dramaticamente, na

4
Disponível em:
<https://www.secult.ce.gov.br/2019/11/19/no-dia-da-consciencia-negra-porto-
iracema-recebe-espetaculo-todo-camburao-tem-um-pouco-de-navio-negreiro-do-
grupo-nois-de-teatro/>. Acesso em: 14 out. 2020.

|168
mesma medida que politicamente. Escolherá o júri popular o mesmo
destino para Natanael que Zeus escolheu para Prometeu? Ou será o júri a
descendência de Io, que fará nascer a sensibilidade humana que libertará
Prometeu-Natanael de seu suplício instaurado pelo Estado de direito
burguês-racista? Essa resposta é imprevisível até o final de cada espetáculo.
Natanael é condenado ou absolvido a cada apresentação, cada dia de
dramatização é, para a personagem Natanael, como cada dia que Prometeu
tem seu fígado devorado pela Água (que por sinal é símbolo da deusa Atena,
esta associada ao surgimento do direito legalista, que se opõe ao direito
ancestral).
Augusto Boal, em seu livro Estética do Oprimido fala da necessidade
e da importância da descolonização dos corpos e das mentes, para alcançar
uma revolução efetiva. Este intelectual promotor do projeto político-cultural
que, junto à equipe do Teatro do Oprimido, nomeou de Projeto Prometeu,
afirma que “palavra, som e imagem são as mais poderosas formas de
comunicação do ser humano. Devem ser democratizadas como a terra, a
água e o ar” (BOAL, 2009, p. 92). Democratização, aqui, assume o mesmo
peso e valor, bem como requer o mesmo compromisso violento que a
descolonização ou decolonização.
Conhecemos o mito de Prometeu e sabemos de seu potencial
simbólico. Agora precisamos apenas desenvolver a capacidade sensível de se
perceber Prometeu em certas situações e agir pela liberdade do nosso titã,
pela liberdade daqueles, nos quais vemos espelhado em si o nosso Prometeu
ou que amamos com a mesma intensidade de Prometeu aos homens.
Sigamos o exemplo do Titã e façamos resistência à Ordem em nome dos
afetos. Se todos os titãs se juntarem, não há Lei Olímpica que obstrua a força
cósmica da natureza em harmonia com a criatividade humana.
Que a liberdade prometeica seja nosso advento de esperança e nosso
motor. Que não nos resignemos diante a faticidade trágica da vida, pois
temos uma manha ancestral. Somos tal qual deuses titânicos que “veem
antes”, que veem além e promovem a criação do novo através de fricções
inflamáveis. Asè!

|169
REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito / Joseph Campbell, com Bill Moyers; org. por
Betty Sue Flowers; tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

ÉSQUILO. Tragédias: estudos e tradução. Tradução Jaa Torrano. São Paulo:


Iluminuras, 2009.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução José Laurênio de Melo. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura popular negra? In: Revista Lugar
Comum [recurso eletrônico], n. 13-14. 2001, pp. 147-159.
KURY, Mário da Gama. “Introdução”. In: ÉSQUILO. Prometeu
Acorrentado;Ésquilo. Ajax/Sófocles. Alceste/Eurípedes. Tradução e notas de Mário
da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. pp.09-12.

LIMA, Paulo Willamne Araújo de. Da possibilidade de uma poesia revolucionária


em Orfeu Negro de Jean-Paul Sartre. Fortaleza: UECE, 2017.
LIMA, Paulo Willamne Araújo de. Homem, arte e verdade: aproximações
(des)necessárias entre Nietzsche e Sartre. Revista Lampejo [recurso eletrônico] v. 9,
n. 1, 2019, pp. 722-749.

LIMA, Paulo Willame Araújo de. “Mito e situação-limite: reflexões sobre o teatro
filosófico e a filosofia dramática de Sartre”. In: SILVA, Francisca Galiléia P. da;
ARAÚJO, Hugo Filgueiras de; SILVA, Francisco Amsterdan Duarte da; BANDEIRA,
Francisco Dário de Andrade (Orgs.). Pilares da Filosofia: estudos acerca da ética,
política, linguagem, conhecimento e ensino de filosofia [recurso eletrônico]. Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2020. pp. 138-147.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução Sebastião Nascimento. Brasil-


França: Edições N-1, 2018.

MBEMBE, Achille. Políticas de inimizade. Tradução Marta Lança. Lisboa: Antígona,


2017.

|170
SARTRE, Jean-Paul. “Prefácio de Jean-Paul Sartre”. In: MEMMI, Albert. Retrato do
colonizado precedido de Retrato do colonizador. Tradução Marcelo Jacques de
Moraes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 25-32.

TORRANO, J. A. A. “Teologia (theomythía) do cenário de das personagens”. In:


ÉSQUILO. Tragédias: estudo e tradução. Tradução Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras, 2009. pp. 329-338.

ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução Miguel Serras Pereira. 1.
ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

|171
MULHER E MITO NA RECEPÇÃO BRASILEIRA DE
LISÍSTRATA DE ARISTÓFANES

Ana Maria César Pompeu

A primeira peça feminina de Aristófanes dentre as que nos chegaram


é Lisístrata, que traz uma protagonista homônima da peça, a que libera a
tropa, Liberatropa ou Lisístrata. As mulheres se reúnem para planejar acabar
com a guerra do Peloponeso, sob a liderança da protagonista. A ideia é a
realização de uma greve de sexo pelas esposas mais jovens da Grécia e a
tomada da Acrópole ateniense pelas mulheres mais velhas. Recusando o
sexo aos maridos e o tesouro aos Atenienses, para o financiamento da
guerra, a paz voltaria à Grécia. As mulheres em Lisístrata não usam
habilidades estranhas ao sexo feminino. Utilizam seus próprios dons para
atrair os homens. Aristófanes usa paradigmas míticos para construir a força
de suas mulheres em Lisístrata.
É, no entanto, nos paradigmas míticos que Aristófanes encontra a
força da ferocidade de mulheres devotas de Ártemis, deusa da caça
selvagem - e assim ligada à guerra -, mas também deusa dos partos,
associada mais intimamente às mulheres. O caráter ambíguo dessa
deusa, enquanto virgem caçadora e deusa da fertilidade - a Ártemis
cultuada em Éfeso (local de seu maior santuário, e onde ela
substituíra uma antiga deusa asiática da fertilidade) era polimástica,
muitos seios cobriam o seu peito – serve perfeitamente à
caracterização das mulheres da peça. (POMPEU, 2011, p. 80)

Ártemis é a deusa mais atuante em Lisístrata, como podemos


verificar na iniciação religiosa das mulheres atenienses, descrita na parábase
(v.640/1-647):
Coro das Mulheres – [...] desde os sete anos de idade eu era arréfora;
depois fui moleira, aos dez anos, para nossa patrona, e deixando cair
a túnica amarela era ursa nas Braurônias; e enfim fui canéfora sendo
uma bela moça, tendo um colar de figos secos.1

Essa passagem é um importante testemunho sobre a vida religiosa


das mulheres gregas, especialmente das Atenienses:
Florenzano (1996, p. 21-40) nos informa que essa é uma passagem
considerada fundamental para o conhecimento da vida das mulheres
na cidade grega e dá relevância à arcteia, período em que as meninas
permanecem em Bráuron, a serviço de Ártemis, como um ritual de
passagem da infância para a fase adulta: corresponderia ao coureion
e à efebia dos homens em Atenas, bem como à cripteia masculina em
Esparta. (POMPEU, 2011, p. 81)

No entanto, há interpretações diversas acerca dessa passagem:


Walbank (1981, p. 276-281) afirma que há muitas dificuldades na
interpretação dessa passagem, principalmente, na intrusão em um
serviço, aparentemente, todo devotado a Atena de uma temporada
como servidora de Ártemis em Bráuron, além de haver a evidência
de que as “ursas” eram meninas e não moças na idade de casar, como
os versos de Aristófanes propõem; e a outra dificuldade que
Walbank diz encontrar está na referência ao período de serviço como
arréfora, que só esta passagem evidencia ser aos sete anos de idade e
não na adolescência. Muitas emendas a estes versos foram propostas
por muitos estudiosos. Walbank, no entanto, propõe que o serviço,
referido pela coriféia, era devotado só a Ártemis. (POMPEU, 2011, p.
81)

O mesmo trecho de Lisístrata na tradução/adaptação de Millôr


Fernandes não menciona Ártemis e a substitui por Afrodite:
CORO DE MULHERES – [...] Aos sete anos de idade, eu carregava
as ânforas sagradas, aos dez, botava incenso no altar de Atenas;
depois, vestindo a túnica amarela, fui virgem de Afrodite nas festas
de Braurônia. E enfim, feita donzela, alta e formosa, meu corpo já

1
Tradução Ana Maria César Pompeu, 1998/2010.

|173
pronto para ser mulher, pedi à Deusa que me libertasse de meus
votos de virgindade e passei a usar um colar de figos secos.2

A deusa Ártemis também se faz presente nas citações do krokôtos,


‘túnica amarela’, cor de açafrão, a que as “ursas” deixam cair nas Braurônias,
e no prólogo da peça aparece como um instrumento de sedução das
mulheres (v. 44, 47, 51, 219, 220), e que, como Dezotti (1997, p. 185-224)
propõe, as mulheres podem estar vestindo, depois da combinação do plano
de greve de sexo.
Ca. E o que de sensato mulheres fariam
ou de esplêndido, nós que enfeitadas nos sentamos
com túnicas amarelas e embelezadas
com longas vestes ciméricas e sapatos elegantes?
Li. São essas coisas mesmas que espero que nos salvem,
as túnicas amarelas, os perfumes, os finos sapatos
as pinturas e as curtas túnicas transparentes.
Ca. Mas como?
Li. De forma que agora nenhum
homem levante a lança um contra o outro...
Ca. Então, pelas duas deusas, tingirei uma túnica amarela.
(vv.42-51)
[...]
Li. Tocai todas na taça, ó Lampito;
e que uma em vosso nome repita o que eu disser.
E vós jurareis estas coisas e as sancionareis:
Não há nenhum homem, amante ou marido-
Ca. Não há nenhum homem, amante ou marido-
Li. que irá se aproximar de mim com tesão. Repete.
Ca. Que irá se aproximar de mim com tesão. Papaî!
Desatrelam-se os meus joelhos, ó Lisístrata.
Li. Em casa e casta passarei os dias-
Ca. em casa e casta passarei os dias-
Li. com uma túnica amarela e embelezada-
Ca. com uma túnica amarela e embelezada-

2
Tradução Millor Fernandes.

|174
Li. para que o esposo mais se queime se desejos por mim,
Ca. para que o esposo mais se queime de desejos por mim.
Li. E jamais de bom grado cederei ao meu esposo.
Ca. E jamais de bom grado cederei ao meu esposo.
Li. E se, eu não consentindo, ele me obrigar à força-
Ca. e se, eu não consentindo, ele me obrigar à força-
Li. de mau grado irei me entregar e não me moverei.
Ca. de mau grado irei me entregar e não me moverei.
Li. Não levantarei para o teto as sandálias pérsicas.
Ca. Não levantarei para o teto as sandálias pérsicas.
Li. Não me agacharei como a leoa na faca de queijo.
Ca. Não me agacharei como a leoa na faca de queijo.
Li. Estas coisas fixadas possamos beber desta taça.
Ca. Estas coisas fixadas possamos beber desta taça.
Li. Mas se eu as violar, a taça se encha de água.
Ca. Mas se eu as violar, a taça se encha de água.
(vv. 209-235)

Numa versão de Lisístrata para Teatro de Bonecos, o Grupo Paideia,


representado por Danielle Motta, retira a cor da túnica e a substitui por algo
mais expressivo na atualidade:
LISÍSTRATA: “Não há nenhum homem, marido ou amante
Que irá me tocar com sua glande!”
CALORENTA: “Não há nenhum homem, marido ou amante”... ai,
meu Zeus, me deu uma tremedeira nas pernas...
“Que irá me tocar com sua glande!”
LISÍSTRATA: “Permanecerei em casa, casta e pura
Com um vestido com aquela abertura
Pra ele ficar na secura”
CALORENTA: “Permanecerei em casa, casta e pura (fala chorando e
gaguejando)
Com um vestido com aquela abertura
Pra ele ficar na secura”
LISÍSTRATA: “Não cederei de forma alguma
E por mais que ele queira
Comigo não dará nem uma”
CALORENTA: “Não cederei de forma alguma
E por mais que ele queira

|175
Comigo não dará nem uma” ... nem umazinha? (Pergunta
chorando!)
LISÍSTRATA: “Nada de frango assado!”
CALORENTA: “Nada de frango assado!”
LISÍSTRATA: “Nada de carrinho de mão!”
CALORENTA: “Nada de carrinho de mão!”
LISÍSTRATA: “Nada de bola gato!”
CALORENTA: “Nada de...” mulher, nem bola gato? Isso é igual a
copo d’água, a gente num nega a ninguém!
LISÍSTRATA: “NADA DE BOLA GATO!”, repita!
CALORENTA: “Nada de bola gato!”
LISÍSTRATA: “Nada de canguru perneta!”
CALORENTA: “Nada de canguru perneta!”
LISÍSTRATA: e que eles se acabem na punhetaaaaaaa!”3

Ártemis aparece também nas invocações seguidas das mulheres, ao


ameaçarem os homens (v. 435; 439; 443; 447). Na citação dos exemplos de
ferocidade guerreira das Amazonas (v. 678-9) e da rainha cária Artemísia,
por cuja captura viva os Atenienses ofereceram a recompensa de 10.000
dracmas (HERÓDOTO VIII 93), por considerarem terrível que uma mulher
pudesse lutar contra Atenas, que tem o nome ligado ao da deusa Atena
(v.675).
Pois se algum de nós ceder e der a elas uma pequena chance,
elas nada negligenciarão dos tenazes trabalhos manuais,
mas até barcos vão construir e ainda vão tentar
combater no mar e navegar sobre nós, como Artemísia.
E se elas se voltarem para a hípica, eu risco da lista os cavaleiros;
pois a mulher é o que há de mais hípico e firme se atém,
não escorregaria mesmo a galope. Observa as Amazonas,
as que Mícon pintou combatendo a cavalo contra os homens.
(vv. 672-679)4

3
Adaptação e tradução Danielle Motta Araújo, 2017. Itálico meu.
4
Tradução de Ana Maria César Pompeu.

|176
Vejamos o mesmo trecho na tradução em pernambuquês/baianês de
Edson Meira:
Se um de nóis der corda a elas, um tantĩ que seja,
elaɦ nũ vão dexar de aprontar uma presepada das pior.
Vão construir navio e ainda por cima vão querer
travar uma batália naval contra nóis, como fez Artemísia.
E se partire pra montaria, aí é que acabou de rasgar a cober' da dôdia:
adeus cavalaria!
A mulé é o bicho que mais sabe montar e se equilibrar na sela.
Ela nũ escorrega nem se [o garanhão] disparar. Repara as Amazona
montada, lutando contr'os home noɦ desẽĩ de Mícon.

Podemos ainda encontrar menção à deusa Ártemis no canto dos


velhos do coro sobre Melânio (v. 781 ss), que se mostra como Hipólito,
caçador e misógino, fazendo referência pelo nome a Melântio, o homem
negro, que luta com Xântio, o homem louro, e o derrota através de uma
apate, ‘fraude’, que daria origem à festa das Apatúrias, que faz parte do
período de passagem da infância à fase adulta dos rapazes áticos.
Ártemis aparece ainda na atribuição de animalidade selvagem às
mulheres. No verso 682 ss.: “Coro de Mulheres: Se, pelas duas deusas, me
inflamares a ira/ eu libertarei então a javali que há mim, e eu te farei/ hoje
gritar por socorro aos do teu demo sendo tosquiado.” E no verso 1014-15:
“Coro dos Velhos: Não há fera mais indomável do que uma mulher,/ nem
fogo, nem é tão depravada nenhuma pantera5.”
Ártemis aparece no primeiro canto do Lacedemônio:
Embaixador Lacedemônio
Envia a esse jovem,
Mnêmone, a sua
Musa, a que me conhece e
aos atenienses quando em Artemísion,
impelidos pelos deuses, atacavam
os lenhos evenciam os Medos, e a nós, por nossa vez, Leônidas

5
Quando não se menciona o tradutor, a tradução é minha.

|177
conduzia como a javalis, penso,
de dentes afiados – muita
espuma florescia em volta dos maxilares
e, ao mesmo tempo, muita escorria do alto das pernas.
Os Persas não eram menos
numerosos que os grãos de areia.
Caçadora mata-feras,
venha aqui, deusa virgem,
para as tréguas,
para que nossa união dure muito.
Que nossa amizade prospere
graças aso nossos acordos, e que ponhamos
um fim às astúcias de raposas.
Venha aqui, ó virgem caçadora.
(Lisístrata, v.1247-1272).6

A deusa ainda se faz presente no canto do Ateniense, que invoca


primeiro Ártemis numa série de deuses que servirão de testemunhas, para
que eles não esqueçam a paz de que agora gozam (v. 1280 ss). Podemos
ainda ver uma alusão à deusa Ártemis no último canto, que encerra a peça.
É o canto do Espartano, ele pede à musa Lacônia que deixe o “Taígeto
amável”, local de culto da deusa e a invoca para presidir os coros de virgens.
Segundo Bowie (1993, p. 185-224), as mulheres jovens eram
consideradas selvagens e seriam domadas pelo casamento, e dessa forma os
homens sentiam ansiedade e medo em relação às mulheres. Tal afirmação
torna a presença de Ártemis ainda mais apropriada à peça, ao observamos
também o esclarecimento de Nicole Loraux (1990, p. 157-196) sobre a
apropriação das mulheres de Lisístrata de duas deusas, normalmente
antagônicas, Afrodite e Atena, uma servindo a outra.
As mulheres, recusando o sexo aos seus esposos, voltam a um
passado de parthenoi, ‘virgens’ e se apoderam do templo da virgem
Atena, para reconstituírem o seu oikos, confiando-se nos poderes de

6
Tradução Adriane da Silva Duarte.

|178
sedução de Afrodite, para inspirar desejo amoroso nos homens.
Ártemis é a deusa virgem no limiar da idade de casamento
permanentemente, como ilustra os ritos de passagens dos jovens, que
ainda não deixaram a caça selvagem e os desertos das montanhas
pelo casamento, ela é a Limenoskopos ‘guardiã dos portos’
(Calímaco 3, 259) festejada no Pireu, em 16 Mouníquion. Era ela que
se dizia ter favorecido os gregos em Salamina, a Ártemis Mouníquia7,
que explica a necessidade de sua permissão para passagens de um
mundo a outro: seja do ventre da mãe para o mundo exterior, seja do
mundo pacífico ao guerreiro, do da solidão para o do casamento, seja
então do reino de Afrodite ao de Atena. E todas essas passagens estão
presentes em Lisístrata, ao tratar de guerra e de sexo, em seus dois
planos, entrelaçados pela simbologia do jogo de palavras pylê e thyra
que significam “porta” da Acrópole e das mulheres. (LORAUX, 1990,
p. 157-196)

RECEPÇÃO DE LISÍSTRATA NA DRAMATURGIA BRASILEIRA

Adriane da Silva Duarte (2015) faz uma síntese8 das produções


brasileiras inspiradas em Lisístrata, no artigo “‘Operação Lisístrata’: do
Teatro ao Ato. A recepção da comédia de Aristófanes nos anos de Chumbo
da Ditadura Brasileira”, na revista Phaos – 2015 (15), pp. 65-79. Ela analisa a
recepção da comédia Lisístrata no Brasil durante a ditadura militar,
especificamente dos anos 1967 e 1976: primeiro a montagem de Lisístrata,
em 1967, utilizando a tradução de Millôr Fernandes, com Ruth Escobar
representando o papel da protagonista. Essa montagem pode ter inspirado
um discurso do deputado Moreira Alves (MDB/GB), usado como pretexto
para a promulgação do AI-5, que marcou a intensificação da ditadura
brasileira. A seguir, a publicação, em 1972, de Tereza Batista Cansada de
Guerra, de Jorge Amado, que é um romance no qual a Tereza Batista
apresenta semelhanças com a protagonista aristofânica. Por fim, o artigo

7
Cf. Bailly, A. Dictionnaire grec-français, 1990, “Mythologie et religion”.
8
Para detalhamento de cada uma dessas produções, ver artigo completo Duarte, 2015.

|179
trata da peça inspirada em Lisístrata: Lisa, a mulher libertadora. de 1975,
escrita por Augusto Boal, no exílio.
Apesar de tantas promessas e de, na euforia de ter conseguido a
renovação de seu passaporte, então suspenso pelo Itamaraty, Boal ter
prometido que sairia mundo afora “semeando Lisas onde a terra for
boa” (12/06/1976),22 a peça, ao que consta, nunca veio a ser
encenada e o projeto foi abandonado. Chico Buarque, por sua vez,
musicou apenas uma das letras que Boal lhe enviara, a canção
Mulheres de Atenas, gravada no disco Caros Amigos de 1976.23 A
canção, difundida fora do contexto para o qual fora pensada,
assumiu conotação inversa da projetada, tendo sido percebida como
uma ode à submissão feminina: “Mirem-se no exemplo daquelas
mulheres de Atenas;/ vivem pros seus maridos, orgulho e raça de
Atenas”. Nada mais equivocado, já que a “subversiva” Lisa ou
Lisístrata viria abalar certezas e paradigmas – ainda que em
Aristófanes ela também promovesse o regresso das mulheres ao lar
uma vez celebrada a paz pan-helênica.
A recepção de Lisístrata no Brasil durante a ditadura revela que a
heroína grega foi percebida como um símbolo de resistência e luta,
resistência que deveria começar nos lares e fomentaria a luta contra o
poder que emanava dos quartéis. (DUARTE, 2015, p. 78)

Mário da Gama Kury traduziu Assembleia de Mulheres e Lisístrata


como A Revolução das Mulheres e A Greve do Sexo, em 1964, quando se
instaurou o Regime Militar no Brasil.

LISÍSTRATA, TESMOFORIANTES E ASSEMBLEIA DE MULHERES

Lisístrata sendo a primeira peça feminina de Aristófanes anuncia os


temas das outras duas comédias femininas: Tesmoforiantes e Assembleia de
Mulheres. Como em Lisístrata, Tesmoforiantes apresenta um coro de
mulheres, mas não traz uma protagonista feminina, traz um homem que
será transformado por Eurípides, personagem da peça, em uma mulher.
Apresentará o espaço do Temofórion, templo das duas deusas Tesmóforas,
Deméter e Core ou Perséfone. Lugar interdito aos homens. Nessa peça
veremos a demonstração do que as mulheres afirmam sobre sua formação

|180
religiosa em Lisístrata. Elas se reúnem para celebrar as duas deusas
cultuadas no Festival, mas fazem uma assembleia no meio da festa e
combinam matar o poeta trágico Eurípides, que fala mal das mulheres em
suas tragédias, revelando todos os seus segredos aos homens, que, por
temor, acabam reduzindo mais ainda o espaço de circulação de suas esposas
e tornando suas vidas ainda pior. Em Assembleia de Mulheres, elas se
disfarçam de homens e participam da assembleia, interdita às mulheres. Lá,
uma delas, Praxágoras, a líder, propõe entregar o governo da cidade às
mulheres, como a única coisa que falta ser colocada em prática pela
assembleia. A proposta é aprovada, especialmente pelas mulheres
disfarçadas de homens que participam da assembleia, e as mulheres
instauram uma comunidade de tudo: bens, marido, mulheres e filhos. Como
em Lisístrata, as mulheres são boas administradoras da casa, então
administrarão bem a cidade.

CONCLUSÃO

A recepção de Lisístrata no Brasil, pela leitura das diversas traduções


que já temos (Aristófanes. Lisístrata. A Greve do Sexo. Tradução de Millôr
Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2003; Aristófanes. Duas comédias:
Lisístrata e Astesmoforiantes. Tradução de Adriane da Silva Duarte. São
Paulo: Martins Fontes, 2005; Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Ana Maria
Cesar Pompeu São Paulo: Editorial Cone Sul, 1998. /Editora Hedra, 2010;
Aristófanes. Lisístrata: no dialeto do Sul da Bahia e no dialeto de
Pernambuco. Tradução Édson Reis Meira. Ibicaraí: Via Litterarum Editora,
2017. Aristófanes. Lisístrata e Tesmoforiantes de Aristófanes. Tradução de
Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2011; A Greve do Sexo (Lisístrata).
Uma comédia grega. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro:
Zahar, 2014; além de uma adaptação para o público jovem: Lisístrata ou a
Greve do Sexo. Por Anna Flora a partir de tradução de Antonio Medina
Rodrigues. São Paulo: 34 Letras, 2010 e ARAÚJO, Danielle Motta. Lisístrata:
Estudo e Adaptatradução para o Teatro de Bonecos Dissertação de

|181
Mestrado. PPGLetras-UFC. Fortaleza, 2017)9 faz a releitura do poder
feminino herdado das deusas e heroínas da mitologia.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Danielle Motta. Lisístrata: Estudo e Adaptatradução para o Teatro de


Bonecos Dissertação de Mestrado. PPGLetras-UFC. Fortaleza, 2017.

ARISTÓFANES. A Greve do Sexo (Lisístrata) e A Revolução das Mulheres.


Tradução e adaptação Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira S.A, 1964.

ARISTÓFANES. Duas comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes. Tradução,


apresentação e notas Adriane da Silva Duarte. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ARISTÓFANES. Lisístrata/As Nuvens. Tradução e Adaptação com Nota


Introdutória Millôr Fernandes. São Paulo: Abril Cultural S.A Cultural e Industrial,
1977.

ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução Ana Maria César Pompeu . Introdução de


Isabella Tardin Cardoso. São Paulo: Hedra, 2010.

BAILLY, A. Mythologie et religion. In: BAILLY, A. Dictionnaire grec-français,


Edition revue. Paris: Hachette, 1990.

BOWIE, A M. Aristophane: mith, ritual and comedy. Cambridge University Press,


1993.

DEZOTTI, M. Celeste Consolin. Pandora Cômica: as mulheres de Aristófanes. Tese


de Doutorado em Letras Clássicas, DLCV/U.S.P., 1997.

DUARTE, Adriane da Silva. “Operação Lisístrata”: do Teatro ao Ato. A recepção da


comédia de Aristófanes nos anos de Chumbo da Ditadura Brasileira. Phaos – 2015
(15), pp. 65-79.

FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. Nascer, viver e morrer na Grécia antiga.


Coord. Maria Lígia Prado e Maria Helena Capelato. São Paulo: Atual, 1996.
(Discutindo a História).

9
Cf. DUARTE (2015), com complementos meus.

|182
HENDERSON, Jeffrey. Lysistrata. In: ARISTOPHANES. Lysistrata. Edited with
introduction and commentary. Oxford: Clarendon Press, 1987.

LORAUX, Nicole. Les enfants d’Athéna: Idées atheniennes sur la citoyenneté et la


division des sexes. Édition augmentée d’une postface. Paris: La Déouverte, 1990.

MEIRA, Édson Reis. Lisístrata: no dialeto do sul da Bahia e no dialeto de


Pernambuco. Ibicaraí: Via Litterarum, 2017.

POMPEU, A.M.C. Lisístrata e seus planos: Mulheres e Acrópole Homens não


entram. Aristófanes, Lisístrata. Estudo e tradução. Dissertação de Mestrado, São
Paulo: FFLCH/USP, 1997.

POMPEU, A.M.C. A construção do feminino em Lisístrata de Aristófanes. Revista


Letras. Curitiba, n. 83, p. 75-93, JAN./JUN. 2011. Editora UFPR.
SILVA, Maria de Fátima. A mulher, um velho motivo de cómico. In: OLIVEIRA,
Francisco de e SILVA, M. F. O teatro de Aristófanes. Coimbra: faculdade de Letras,
1991.

WALBANK, M.B. “Artemis bear-leader”. Classical Quarterly, p. 276-281, 1981.

|183
SOBRE OS ORGANIZADORES

Joseane Prezotto
Pós-doutoranda e professora colaboradora no Programa de pós-graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará, atuando na linha de pesquisa
Literatura. Mito. Outros Saberes. Membro do Núcleo de Cultura Clássica - UFC.
Doutora em Letras (2015) pela Universidade Federal do Paraná, onde atuou como
professora substituta de Língua e Literatura Grega de 2014 a 2016. Tem experiência
no ensino de Línguas Clássicas (Grego e Latim), nas áreas de Literatura Grega
Antiga e de História e Filosofia da Linguística, bem como Linguística e Língua
Portuguesa. Lattes:http://lattes.cnpq.br/281707760355955

Orlando Luiz De Araújo


Doutor (2008) e mestre (2001) em Letras Clássicas pela Universidade de São
Paulo (USP), com pós-doutorado, com bolsa CAPES – Código de Financiamento
001, pela Universidade de Lisboa (2016). É integrante do Núcleo de Cultura Clássica
da Universidade Federal do Ceará (NUCLAS) e coordenador do Grupo de Narrativa
e Teatro (G-ENTE). Atualmente é professor associado da Universidade Federal do
Ceará (UFC), atuando como professor e pesquisador do Programa de Pós-
Graduação em Letras.
E-mail: orlando.araujo@ufc.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2680403686223727.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9886-3733.

Renato Cândido Da Silva


Doutorando e mestre (2019) em Letras pela Universidade Federal do Ceará
(UFC), com bolsa CAPES – Código de Financiamento 001. Graduado em Letras
Português/Inglês pela Faculdade Dinâmica Cataratas (UDC). É integrante do Núcleo
de Cultura Clássica da Universidade Federal do Ceará (NUCLAS) e do Grupo de
Narrativa e Teatro (G-ENTE). Atualmente, desenvolve pesquisa acerca das
reescrituras dos mitos gregos na dramaturgia brasileira.
E-mail: renatoliteraturaufc@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8379309700195195.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8976-8208.
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Ana Maria César Pompeu


Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2004). Fez um
estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, em Portugal (2010). Atualmente,
é Professora Titular da Universidade Federal do Ceará. Atua nos Programas de Pós-
graduação em Letras (PPGLetras) e em Estudos da Tradução (POET). É líder do
grupo de pesquisa/CNPQ/SBEC: Núcleo de Cultura Clássica. É Presidente da
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (2020-2021). E-mail: amcpompeu@ufc.br;
http://lattes.cnpq.br/4726092826722326.

Beatriz Pazini Ferreira


Licenciada em Letras, mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá (PPGL/UEM). Faz parte
do quadro efetivo docente do Departamento de Letras do Campus Avançado de Patu
(CAP) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). É
coordenadora do Projeto de Extensão Cineatro, que busca discutir questões ligadas
ao Cinema e ao Teatro e expandir o conhecimento sobre essas intersemioses para
outros espaços, fora da universidade. Ao longo de sua trajetória acadêmica, também
pesquisou aspectos ligados ao ensino de Literatura, à psicologia, à angústia, ao
lirismo, à retórica poética, ao hibridismo dos gêneros literários. Sua dissertação
abordou os conflitos ideológicos e eróticos no romance Lavoura Arcaica, de Raduam
Nassar. Atualmente, pesquisa a literatura popular e o teatro nordestino, mais
precisamente Hermilo Borba Filho. E-mail: pazinibia2001@yahoo.com.br.

Denise Rocha
Licenciada em Letras, doutorado em Literatura e Vida Social (UNESP,
campus de Assis), e bacharelado em História pela Ruprechts-Karl-Universität, em
Heidelberg, Alemanha, onde obteve o título de Magister Artium. Tem interesses em
leituras e pesquisas nas áreas de Literatura Alemã e de Literaturas de Língua
Portuguesa: literatura regionalista e de temática indígena e negra do Brasil; literatura
de viagem, épica, realista, neorrealista e contemporânea de Portugal; literatura
colonial e pós-colonial da África (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau,
Angola e Moçambique) e literatura colonial e de pós-independência da Ásia (Timor-
Leste, Macau e Goa). E-mail: rocha.denise57@gmail.com.

Maria de Fátima Silva


Professora Catedrática do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. A sua carreira como docente e investigadora foi
principalmente focada na Língua e Literatura Grega Antiga, com particular relevo
para o teatro e a historiografia. É autora de diversos livros e artigos, bem como de
diversas traduções. Mais recentemente tem-se dedicado com particular interesse aos
Estudos de Recepção. Prof. Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra e membro do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. E.mail:
fanp13@gmail.com; Orcid: 0000-0002-8107-9165.

Marco Aurélio Rodrigues


Graduado em Letras (Português, Grego Clássico e Latim) pela
FCLAR/UNESP, campus de Araraquara, São Paulo. É Mestre e Doutor em Estudos
Literários pela mesma instituição e Doutor em Estudos Clássicos, pela FLUC,
Coimbra, Portugal. Atualmente, é Professor de Filologia Românica e Linguística do
Curso Letras-Português, da UNIFAP, no estado do Amapá, Campus Santana, e
realiza pesquisa na área de Performance e Recepção do Teatro Antigo. É membro do
Grupo de Pesquisa Visões da Antiguidade Clássica (Linceu) e Líder do Grupo de
Estudos Dramáticos na Amazônia (G.E.D.A.) E-mail: marcoaurelio@unifap.br;
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6628588590014673.

Pauliane Targino da Silva Bruno


Graduada em Letras, especialista em Estudos Clássicos, mestre e doutora em
Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É professora Assistente do Curso
de Letras da Universidade Estadual do Ceará (UECE), com experiência em Línguas
Clássicas, sobretudo, em Língua Latina e Literatura Latina, com ênfase nos estudos
da Literatura do período imperial de Nero, especificamente, em Sêneca e Lucano.

Paulo Willame Araújo de Lima


Um amante da vida em comunidade e militante pela Civilização do Amor.
Apaixonado pelas artes cênicas e pela LIBRAS por saber que o corpo fala e por

|186
querer ouvi-lo. Por acidente, é técnico em finanças, por escolha, é educador e, por
compromisso político, se assumiu produtor cultural. Sempre disposto a aprender.
E-mail: paulow.fin@gmail.com; http://lattes.cnpq.br/0724572310142273.

Stefanie Cavalcanti de Lima Silva


Graduada em Letras Português e respectivas Literaturas pela UFC (2014),
Mestre em Letras com ênfase em Estudo de Literatura de Língua Clássica pelo
PPGLetras – UFC (2018) e doutoranda em Letras na área de Mito e outros saberes
pelo PPGLetras – UFC. Bolsista Capes. Doutoranda em Letras no PPGLetras da
Universidade Federal do Ceará. Bolsista Capes.
http://lattes.cnpq.br/8634047155277137. E-mail: stefanie.silva17@gmail.com.

|187
NOTA SOBRE A CAPA

As imagens de capa e contracapa do Volume 2 foram cedidas


gentilmente pela autora e fotógrafa Julieta Bacchin, a quem agradecemos a
generosidade. As imagens captam dois momentos de atuação do talentoso
ator Kenan Bernardes (Medea) na montagem de Medea Mina Jeje, do
dramaturgo brasileiro Rudinei Borges dos Santos. A peça, um “poema-
pranto” a partir da tragédia Medeia (431 a.C.), de Eurípedes, foi publicada
em 2018, pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), integrando o livro
Dramaturgia negra, organizado por Eugênio Lima e Julio Ludemir.
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