André Scholl de Almeida Trabalho em Vieira Pinto
André Scholl de Almeida Trabalho em Vieira Pinto
André Scholl de Almeida Trabalho em Vieira Pinto
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Socioeconômico
da Universidade do Extremo Sul
Catarinense - UNESC, como
requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em
Desenvolvimento Socioeconômico.
CRICIÚMA
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
1. Trabalho. 2. Consciência. 3.
Sociabilidade. 4. Marx, Karl, 1818-1883 –
Crítica e interpretação. 5. Pinto, Álvaro
Vieira, 1909-1987 - Crítica e interpretação.
I. Título.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................ 23
2 - O SER HUMANO COMO UM ANIMAL QUE CARECE E
TRABALHA ........................................................................................ 47
3 O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA CONSCIÊNCIA . 67
4 O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA SOCIABILIDADE
............................................................................................................... 93
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FENÔMENO HUMANO EM
KARL MARX E ÁLVARO VIEIRA PINTO ................................. 131
23
1 INTRODUÇÃO
marca, a cada um dos fatos, a sua posição especial e a relação com uma
finalidade [...]” (HEGEL, s.d., p. 330). Para Hegel, tudo o que ocorre no
mundo ocorre por necessidade, i. é., não poderia ocorrer de forma
distinta: a história é composta por etapas que se sucedem no tempo, cada
etapa posterior é síntese da etapa anterior e a supera em via de
progresso, sempre rumo a uma finalidade. A história, que é composta
por “momentos necessários”, quando analisada através de seu método,
afirma Hegel, “[...] permite mostrar essa história como um todo
orgânico em via de progresso [...]” (HEGEL, s.d., p. 330-331). Se
fôssemos, portanto, considerar válido apenas o que diz Hegel a respeito
da sua dialética da história, toda filosofia dialética seria necessariamente
teleológica, etapista e fatalista. Seria também fatalista o pensamento de
Marx?
Para Raymond Aron, este “parece constituir, em todas as épocas,
o ponto essencial, filosófico, do pensamento de Marx” (ARON, 2005, p.
69). Para ele, “todas as discussões filosóficas sobre o marxismo giram
em torno desse ponto central”, isto é, “a relação entre a teoria e a
prática, entre a necessidade histórica e a ação humana, entre a simples
necessidade e a liberdade, entre a realidade e o pensamento” (ARON,
2005, p. 70). De nosso lado, sempre nos interessamos pela questão da
existência ou não de teleologia da história em Marx porque muitas
questões fundamentais para as pretensões revolucionárias se desdobram
a partir dessa questão. Qual a relação entre o indivíduo e a sociedade?
São os indivíduos que determinam os rumos históricos ou a história
possui intrinsecamente uma tendência necessária? O socialismo
necessariamente virá à existência ou a emancipação humana é apenas
uma possibilidade da qual dispõe os seres humanos? Quais os limites
para ação dos indivíduos, de grupos de indivíduos ou das classes
sociais? O destino social já está pré-determinado? Tais questões,
evidentemente, são fundamentais para qualquer proposta revolucionária.
Uma filosofia como a de Marx, que se pretende a filosofia e a ciência
capaz de orientar a revolução, deve se pronunciar a respeito dessas
questões.
Para resolver tal questão, parece conveniente perguntarmos como
o próprio Marx entendia o materialismo-histórico, ou qual relação o
próprio Marx via entre sua reflexão sobre a história e a filosofia da
história de Hegel. No entanto, Marx jamais publicou, e na verdade
sequer escreveu, uma obra explicativa do seu método materialista
histórico-dialético, capaz de deixar suficientemente esclarecidas certas
questões relacionadas à história e seu desenvolvimento, assim como
sobre as abordagens metodológicas utilizadas por ele. Essa dificuldade
26
a natureza. É por isso que lá no capítulo quinto d’O Capital Marx não
sente a “necessidade de apresentar o trabalhador em sua relação com
outros trabalhadores”, e pode se “limitar ao homem e seu trabalho, de
um lado, e à natureza e suas matérias, de outro.” (MARX, 2017, p. 261)
Conforme já vimos, nosso expediente, aqui, será o mesmo.
Vemos, portanto, que Marx deixa implícita a existência de dois
conjuntos de determinações distintos que coexistem no interior da
essência do trabalho, cada um deles referente a um nível histórico
distinto. Isso ocorre porque, para Marx, a essência dos fenômenos
humanos não é fixa ou imóvel, como se fosse um conceito
indeterminado (à maneira do Espítito hegeliano) ou dada à priori, mas
transmuta-se, vai “acumulando” as experiências diversas da história da
vida social. O fenômeno da alienação consiste, antes de tudo, no fato de
que o conjunto de determinações privativas de uma determinada forma
social realiza a suprassunção do conjunto de determinações universais.
Assim, no capitalismo o trabalho possui forma e essência determinadas
pela formação capitalista: suas formas são os diversos modos empíricos
do trabalho útil; sua essência é o trabalho assalariado, mercantil e
alienado. Mas há outra essência do trabalho aí presente, e que é a mesma
que foi presente no feudalismo, no escravismo e em todas as diferentes
formações sociais: o trabalho compreendido enquanto “condição
universal do metabolismo entre homem e natureza” e como “perpétua
condição natural da vida humana” (MARX, 2017, p. 261), que pode
certamente ser suprassumido pelas determinações essenciais de
determinada formação social alienada, mas que não pode jamais, por ser
insuperável e necessária, ser negada do ponto de vista lógico-formal.
Marx explica que “todas as épocas da produção tem certas
características em comum, determinações em comum. A produção em
geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que
efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da
repetição.” Sem estas determinações essenciais comuns a todas as
épocas, “nenhuma produção seria concebível”, porque algumas
determinações são “comuns à época mais moderna e à mais antiga”.
Quando são “corretamente isoladas” as “determinações que valem para
a produção em geral”, encontramos uma “unidade – decorrente do fato
de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos”.
(MARX, 2011, p. 41) Portanto,
[...] para todos os estágios da produção há
determinações comuns que são fixadas pelo
pensamento como determinações universais; mas
as assim chamadas condições universais de toda
52
realiza em verdadeiro sujeito, pois não tem ao que se opor, não há para
ele objeto que não esteja predeterminado a exercer este papel.” (PINTO,
2005, p. 60) Em segundo lugar, a natureza engendra todos estes objetos
externos dos quais o ser vivo necessita para subsistir. “O animais
inferiores não produzem, por ser a natureza que produz para eles tudo
quanto necessitam, ao produzi-los tal como devem ser para subsistir nas
condições onde têm de viver.”. (PINTO, 2005, p. 61) Se o objeto de sua
necessidade está presente, o ser vivo o consome; se não está presente,
sendo incapaz de produzir, o ser vivo permanece carente. Assim, os
seres puramente biológicos não se constituem em seres livres, já que
têm seu comportamento determinado pela natureza. Sempre que é
resolvida a contradição vital que lhe foi imposta pela natureza, “quem as
resolve não é ele e sim a mesma natureza” (PINTO, 2005, p. 60), e não é
resolvido mais do que a “contradição em que o processo evolutivo o
encerrou.” (PINTO, 2005, p. 60) O ser vivo “não produz a existência,
mas apenas a conserva, valendo-se das condições, cumpridas
cegamente, compendiadas no código genético, entregue a cada qual pela
evolução natural.” (PINTO, 2005, p. 64) Por essa razão, a simples
animalidade “permanece estacionada no nível dos seres consumidores
do que encontram ao redor”. (PINTO, 2005, p. 61)
Por ser, antes de tudo, um animal, o ser humano também
necessita resolver a contradição vital imposta pela natureza. No entanto,
a forma humana de resolver a sua contradição vital é distinta da via
puramente biológica de resolução dessa mesma contradição. A diferença
consiste, segundo Vieira Pinto, na distinção entre consumo e produção:
“enquanto o animal, ou antes a natureza nele e por ele, resolve essa
contradição pela via do consumo, o homem a resolverá pela via da
produção.” (PINTO, 2005, p. 62) Que o ser humano seja um ser
produtor significa que ele não se limita a simplesmente consumir os
objetos engendrados pela natureza que encontra ao seu redor, e que
tampouco os objetos de seu carecimento são única e exclusivamente
aqueles que a própria natureza determinou em seu código genético como
os objetos naturais adequados para a satisfação de suas necessidades
específicas. Nenhum outro ser conhecido age produtivamente na
resolução da contradição vital: “A forma de relação estabelecida pelo
homem com a natureza é única, específica, privativa desse animal, e por
isso o distingue radicalmente de todos os demais [...].” (PINTO, 1962, p.
9)
Embora não se possa jamais perder de vista que “a significação
do trabalho conserva-se sempre a mesma e consiste na resolução de uma
contradição vital [...]” (PINTO, 2005, p. 423), em razão das
60
foi tomada pelo ser humano como objeto de sua ação; mas um valor de
uso, tomado em sua forma final, é um produto exclusivo da práxis
fabricadora humana. Por essa razão, sempre se deu na produção, a
“unidade do homem com a natureza”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 31)
Portanto, quando dizemos que o ser humano produz a natureza,
queremos dizer não que o ser humano produz toda a natureza, mas sim
que ele modifica a matéria natural, cuja existência é sua pré-condição de
vida, modificando-lhe qualitativamente o ser. “Essa atividade, esse
contínuo trabalhar e criar sensíveis, essa produção”, é “de tal modo” “a
base de todo o mundo sensível” tal como o conhecemos, afirma Marx,
“que, se ela fosse interrompida mesmo por um ano apenas, Feuerbach
não só encontraria uma enorme mudança no mundo natural, como
também sentiria falta de todo o mundo dos homens e de seu próprio dom
contemplativo, e até mesmo de sua própria existência.” (MARX e
ENGELS, 2007, p. 31) A natureza “pura”, intocada pelo ser humano,
“[...] essa natureza que precede a história humana não é a natureza na
qual vive Feuerbach; é uma natureza que hoje em dia, salvo talvez em
recentes formações de ilhas de corais australianas, não existe mais em
lugar nenhum e, portanto, também não existe para Feuerbach.” (MARX
e ENGELS, 2007, p. 32) Nada disso significa, no entanto, que o ser
humano pode prescindir da natureza, da matéria, da energia, que exista
uma identidade entre a consciência e a realidade objetiva ou que o ser
humano e sua consciência preexistam em relação à natureza. Afirmar
que o ser humano produz a natureza não significa, portanto, afirmar a
prioridade do “Espírito” em detrimento da natureza externa ou da
realidade objetiva. Antes, o oposto: se o ser humano trabalha e produz, é
porque necessita primeiramente por imposição natural, em razão de
necessidades concreta e objetivamente existentes, resolver sua
contradição dialética com a natureza. Como afirma Marx, “nisso
subsiste, sem dúvida, a prioridade da natureza exterior”. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 31) O que ocorre, apenas, é que ao produzir o ser
humano transforma os objetos externos, naturais, em objetos
antropomorfizados, em objetos que a própria natureza jamais poderia
engendrar. Neste sentido — e apenas neste sentido — para Marx, o ser
humano produz a natureza.
Deixemos o pensamento de Marx por um instante, e nos
concentremos no que pensa Vieira Pinto a respeito da consciência.
Vimos que todos os seres vivos necessitam resolver a sua contradição
vital com a natureza para nela subsistirem. No caso dos seres puramente
biológicos, no entanto, quem resolve a contradição não são eles
próprios, mas a própria natureza. Isso significa que em nenhum
76
p. 62) Por essa razão, “só lhe é possível [...] efetuar a transformação
intentada, se suas ações corresponderem concretamente ao que o real é
em si mesmo, atenderem às propriedades objetivas das coisas, e se
inserirem com adequação na trama das conexões causais entre os
fenômenos”2. (PINTO, 1960a, p. 62) E, para que se torne possível a ele
agir assim, ele necessita ser capaz de conhecer as propriedades das
coisas externas e descobrir como funcionam. Somente em posse de uma
“representação mental que contém a transcrição, em conceitos, daquilo
que, fora do pensamento, é a realidade empírica” (PINTO, 1960a, p. 62),
torna-se possível ao ser humano realizar as ações transformadoras que
necessita realizar para resolver sua contradição vital com o meio. Se
“[...] o homem descobre as propriedades dos corpos”, diz Vieira Pinto, é
“porque tem necessidade de usar os corpos e fenômenos do mundo para
concretizar e cumprir qualquer finalidade que conceba.” (PINTO, 2005,
p. 165). Chegamos, assim, às questões relacionadas ao fenômeno do
conhecimento humano e da formação da consciência.
Quando tratamos sobre a consciência, a primeira consideração
que devemos realizar é a de que a consciência da qual falamos não é
uma “consciência pura”; não se confunde com o que se chamou, na
história da filosofia, de Ideia, espírito, razão pura, etc. Para Álvaro
Vieira Pinto, “a faculdade denominada consciência” é o “reflexo
consciente” das “forças brutas do ambiente material” que o “ser
humanizado” “engendra” “no funcionamento de suas estruturas nervosas
superiores”. (PINTO, 2005, p. 189) “A consciência”, afirma Vieira
Pinto, “existe como incessante apreciação do estado de coisas.” (PINTO,
1960a, p. 44) Assim, vemos que a consciência, antes de tudo, é não mais
do que o conjunto de cópias ideais dos objetos e fenômenos externos
que o ser humano engendra em sua mente.
Desde o princípio, a consciência não é dada ao ser humano por
alguma entidade transcendental ou pela natureza, nem tampouco é
resultado da atividade filosófica especulativa. Como a sua atividade
privativa, o trabalho, “altera a realidade”, diz Vieira Pinto, ocorre de o
ser humano “necessariamente ser obrigado a constituir uma
4
Para mais informações a respeito de nossa interpretação de como Vieira
Pinto articulava, no interior de seu pensamento, as descobertas da física, da
química e da biologia com a concepção materialista histórica-dialética, ver
Apêndice A, ao final desta dissertação.
81
homem, e não o mundo” (PINTO, 2005, p. 39), mas não por ser um
filósofo idealista. Antes o oposto: é a partir da constatação de que “[...]
os objetos criados contribuem para oferecer novo panorama da natureza,
distinto daquele em que não havia essas coisas surgidas pela realização
econômica” (PINTO, 1960a, p. 348), que ele explica a inversão
filosófica da explicação idealista da relação da consciência com o
mundo. Para ele, é exatamente porque o ser humano produz seu entorno
que os filósofos puderam chegar a interpretar aquilo que consideravam a
sua essência, a consciência, o Espírito, etc., como a verdadeira criadora
de toda realidade externa: “Com isso, considera-se criador do ‘mundo’ e
perde de vista a noção biológica, e historicamente única autêntica, de ter
sido a natureza que engendrou [...] a origem de tudo quanto o homem
produz.” (PINTO, 2005, p. 39).
92
93
que não são fruto de sua vontade, mas que através de seus atos ele
próprio irá reproduzir. Como todo indivíduo encontra, como dados,
elementos objetivos e culturais que ele herda de todos os indivíduos do
passado, nunca se apresenta uma situação na qual um determinado
indivíduo humano estabelece relações apenas com os indivíduos que lhe
são contemporâneos, de modo que os indivíduos estabelecem relações
também com todos os indivíduos das gerações passadas da sua
sociedade, que engendraram tudo o que ele agora tem a sua disposição,
tanto em sentido objetivo quanto em sentido cultural.
Como cada indivíduo ocupa um diferente lugar na produção e nas
correspondentes relações de produção, relações de distribuição e
relações sociais, cada indivíduo cria consciência do estado das coisas
externas à sua própria maneira. Além disso, não se pode compreender a
subjetividade sem levar em conta as escolhas pessoais de cada
indivíduo, que fazem dele, em muitos aspectos, um ser distinto de todos
os outros, e exatamente por isso um ser singular. De fato, a consciência
dos indivíduos não é mero reflexo passivo do estado de coisas real.
Cada um se torna consciente da realidade externa à sua maneira, tanto
em razão das diferentes possibilidades de interpretação das coisas
quanto em razão do limite da atuação de cada indivíduo, que os impede
de ter uma visão do todo, mantendo-se a consciência individual limitada
pelas situações singulares empiricamente vivenciadas por cada
indivíduo. No entanto, este ser singular que é o indivíduo jamais deixa
de ser um ser singular envolvido e em conexão íntima com outros seres
singulares.
Se o trabalho que os indivíduos humanos realizam é o momento
decisivo para a manutenção e o desenvolvimento do ser social, não é
simplesmente porque através dele são produzidos os bens de que os
indivíduos carecem. Pelo ato de trabalho de cada indivíduo, toda a
coletividade humana, a sociedade, é alterada. Essa alteração ocorre tanto
em sentido objetivo, porque a realidade objetiva na qual todos vivem e
as relações entre os indivíduos são alteradas em alguma medida pelo ato
de trabalho individual, quanto também em sentido ideal, porque essa
mudança da realidade objetiva leva a alterações da minha consciência,
da consciência dos outros indivíduos que vivem na mesma realidade
objetiva e da linguagem que usamos para nos comunicar — porque leva,
portanto, a alterações da cultura.
Alterações na produção geram alterações na natureza, nas
relações sociais, na consciência dos indivíduos, na linguagem: ao
trabalhar modificamos a natureza e a nós próprios. O trabalho não é
somente atividade objetiva que os seres humanos realizam por
134
REFERÊNCIAS
APÊNDICE(S)
142
143
brilhante homem de ciências da época. Marx não apenas não pôde dar
uma resposta adequada à questão do surgimento da humanidade, como a
evitou e tangenciou como pôde.
número de processos vitais”. Mas isso não significa que “alguém dirá
que a biologia é um ramo da física, confunde-se com ela e se explica
exclusivamente pelas leis do mundo material inerte.” (PINTO, 2008, p.
79) Assim, o plano de existência orgânico aparece em Vieira Pinto
como dependente e fundado sobre o plano de existência da matéria
inerte, e por essa razão as leis dessa última atuam sobre os seres vivos.
No entanto, o plano de existência orgânico possui as suas próprias leis
— leis estas que não existem no plano de existência da matéria inerte e
que só vieram à existência quando do surgimento da vida — e que
regem o seu funcionamento próprio. Assim, ninguém dirá, por exemplo,
que a Lei da Gravitação Universal não atua e não exerce nenhuma
interferência sobre os seres vivos. Mas ninguém dirá, igualmente, que se
no sistema circulatório animal o sangue alcança os membros inferiores
isso é obra da atração gravitacional. Nessa relação entre os dois planos
existenciais, o plano biológico se revela mais complexo e rico do que o
plano da matéria inerte, porque sobre o biológico atuam tanto as suas
leis próprias quanto as leis do plano físico-químico. E, ainda mais: as
próprias leis do plano mais complexo, o biológico, incluem em si
próprias a sua realidade primeira, i. é., sua dependência e fundamento
nas leis do plano menos complexo. Se no sistema circulatório animal o
coração realiza o movimento de sístole, responsável por bombear o
sangue pelo corpo, isso demonstra que a biologia não pode furtar-se a
observar as leis do plano físico-químico, de modo que o coração põe o
sangue em movimento ao aplicar nele uma força de tal grandeza que se
torna possível ao sague, mesmo permanecendo sob influência da atração
gravitacional, alcançar os membros superiores do animal.
Vê-se, assim, que o plano biológico da existência permanece
sempre em conexão necessária com o plano físico-químico da
existência, mas que jamais se reduz a ele, se iguala a ele ou se confunde
com ele. O plano biológico é um plano mais complexo, porque sobre ele
atuam as leis específicas do plano físico-químico por intermédio de
algumas de suas próprias, além de outras, especificamente suas, que
nada dizem respeito à matéria inerte. Deve-se, portanto, sempre observar
a autonomia relativa do plano biológico, que apesar de não poder furtar-
se a observar as leis de funcionamento do plano existencial inferior,
pode no entanto subordiná-las às suas leis próprias de funcionamento.
Essa subordinação das leis de um plano existencial superior às leis de
um plano existencial inferior é aquilo que o Lukács maduro, em Para
uma ontologia do ser social, chamou de “via [...] do máximo domínio
das categorias específicas de uma esfera de vida sobre aquelas que
recebem sua existência e operatividade em um modo inexorável da
155
essa razão, “as leis do mundo inerte não o dominarão mais direta e
exclusivamente, e sim pela mediação das leis sociais.” (PINTO, 2008, p.
75) Vemos, assim, que não se torna possível ao humano furtar-se a
observar as leis do plano físico-químico e do plano biológico da
existência, mas se torna possível subordinar essas leis às leis próprias do
seu próprio plano existencial, o social. Assim, cada indivíduo humano
passará a relacionar-se com essas leis através da mediação
qualitativamente superior do ponto de vista existencial que é a
sociedade.
Desenha-se um quadro histórico do desenvolvimento da matéria.
No seu princípio, há o surgimento do universo como um todo, assim
como o surgimento da matéria inerte e da energia. Hoje, sabe-se que este
surgimento se deu na forma de uma expansão hiper acelerada de uma
singularidade que deu origem ao espaço-tempo e seu conteúdo material
e energético como o conhecemos, e que permanece em expansão que
permanece acelerando progressivamente através de mecanismos ainda
hoje desconhecidos. A certo ponto de desenvolvimento deste processo
ocorre um salto qualitativo, a partir do qual emerge a vida, que
respeitando as leis de funcionamento da matéria inerte em geral,
subordina-as às suas leis próprias, derivadas das suas qualidades novas,
que fazem dela qualitativamente distinta da matéria inerte e superior à
ela do ponto de vista existencial. Surgido o plano biológico da
existência, este passará a desenvolver-se de acordo com as suas leis de
funcionamento, cuja lei máxima é a evolução das espécies a partir da
adaptação ao meio ambiente em razão das sucessivas, constantes e
acidentadas alterações genéticas aleatórias que se processam de uma
geração de ser biológico a outra. A certo ponto de desenvolvimento
deste processo ocorre um salto qualitativo, a partir do qual emerge o ser
humano, que respeitando as leis de funcionamento da matéria inerte em
geral e da esfera biológica do ser, subordina-as às suas leis próprias,
derivadas das suas qualidades novas, que fazem dele qualitativamente
distinto da matéria inerte e dos outros seres vivos do ponto de vista
existencial. Surgido o plano humano (social) da existência, este passará
a desenvolver-se de acordo com as suas leis de funcionamento. A
respeito disso tudo, Vieira Pinto escreve o seguinte:
Se esses dispersos momentos são acontecimentos
no curso de um processo só, qualitativamente
distintos, e no entanto partes integrantes do
movimento de uma única realidade, a da matéria,
isto significa que ao lado das leis que são comuns
ao processo todo, têm de existir as que são
160
A passagem acima é muito rica por nos revelar que Vieira Pinto
exagera propositalmente em suas expressões. Ele sabe que afirmar que a
natureza tenha dotado o ser humano da faculdade de agir racionalmente
é uma prosopopeia. Isso é extremamente revelador: trata-se da figura de
linguagem responsável por atribuir características humanas a coisas e
objetos inanimados. E, no plano do conteúdo da filosofia de Vieira
Pinto, a natureza é um ser inanimado, e não um verdadeiro sujeito
consciente e com capacidades e interesses criativos. Claro, existe a
questão de que nessa passagem em específico ele pede licença ao leitor
para utilizar-se da figura de linguagem da prosopopeia, ao passo que em
geral ele não declara a utilização dela, mas, bem observado o plano do
conteúdo de sua filosofia e o leitor que Vieira Pinto tem em mente,
compreende-se que afirmações como estas só podem ser, sempre,
utilizações de figuras de linguagem para tornar um complexo texto
filosófico mais palatável para o leitor comum.
Existem outras passagens parecidas com a exposta acima:
Mas, enquanto nas espécies inferiores essa função
é assumida pela própria natureza, no homem,
falando figuradamente, a natureza por assim dizer
delega a essa particular criatura a função de
conservar-se viva graças aos recursos que venha
descobrir. (PINTO, 2005, p. 60)
E ainda mais:
Não receamos ser acusados de incidir nas
ingenuidades do “vitalismo” filosófico ou do
“mecanismo biológico”, porque, muito ao
contrário, de acordo com a nossa intenção
desejamos manter-nos no terreno objetivo do
processo social, da produção material da
existência pelo homem, onde, conforme cremos,
se encontram as raízes da única explicação teórica
legítima [...]. (PINTO, 2005, p. 150)
O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele, “sem dúvida,
está claro, não haveria sociedade humana sem que previamente
existissem homens vivos que a constituam. Realmente a vida é a
condição original para o surgimento da sociedade [...].” (PINTO, 2008,
p. 79) Mas, para viver, todo ser vivo, inclusive o ser humano, necessita
“obter as substâncias de que se nutre, encontrar o espaço onde se move,
as condições de ambiente onde se aclima, se protege, e se reproduz”
(PINTO, 1962, p. 9-10). Por isso, o primeiro ato histórico é um ato de
trabalho, que significa uma “atuação com o fim de produzir” (PINTO,
2005, p. 60) em razão da “necessidade de produzir a existência”
(PINTO, 2005, p. 421), que deve ser compreendido como “relação
permanente do homem [...] com o mundo exterior, que deve transformar
para nele subsistir” (PINTO, 2005, P. 414).
Voltemos à Marx. Qual o segundo pressuposto do materialismo
histórico?
O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira
necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento
de satisfação já adquirido conduzem a novas
171
O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele, o ser humano
“tem necessidade de usar os corpos e fenômenos do mundo para
concretizar e cumprir qualquer finalidade que conceba” (PINTO, 2005,
p. 165). Por essa razão, ele precisa interpor entre ele e a natureza uma
mediação, que são os instrumentos de trabalho, meios de produção,
máquinas etc. Quando o ser humano se torna capaz de objetivar no
mundo um novo maquinismo, ele se torna “dependente” dele, i. é., sente
necessidade desse maquinismo porque a essência desse maquinismo
consiste em que antes de tudo ele foi concebido para satisfazer uma
necessidade existencial. Ele diz: “As máquinas que nos cercam, e das
quais dependemos cada vez mais, não no sentido trivial da frase mas no
sentido autêntico, existencial [...]” (PINTO, 2005, p. 72). Sentimos “[...]
necessidade da máquina” porque temos “a necessidade da poupança de
esforço” (PINTO, 2005, p. 79-80). E, ao poupar esforço e produzir mais
facilmente os bens de que necessita, o ser humano abre para si novas
possibilidades, que para serem exploradas, no entanto, criam novas
necessidades. A esse processo histórico dialético se deve o
desenvolvimento dos instrumentos de trabalho.
Novamente, Marx. Qual o terceiro pressuposto do materialismo
histórico?
A terceira condição que já de início intervém no
desenvolvimento histórico é que os homens, que
renovam diariamente sua própria vida, começam a
criar outros homens, a procriar – a relação entre
homem e mulher, entre pais e filhos, a família.
Essa família, que no início constitui a única
relação social, torna-se mais tarde, quando as
necessidades aumentadas criam novas relações
sociais e o crescimento da população gera novas
necessidades, uma relação secundária. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 33)