André Scholl de Almeida Trabalho em Vieira Pinto

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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC

UNIDADE ACADÊMICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO
MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO

ANDRÉ SCHOLL DE ALMEIDA

O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA CONSCIÊNCIA, DA


SOCIABILIDADE E DO FENÔMENO HUMANO EM GERAL
NAS OBRAS DE KARL MARX E ÁLVARO VIEIRA PINTO

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Socioeconômico
da Universidade do Extremo Sul
Catarinense - UNESC, como
requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em
Desenvolvimento Socioeconômico.

Orientador: Prof. Dr. Rafael


Rodrigo Mueller.

CRICIÚMA
2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

A447t Almeida, André Scholl de.


O trabalho como fundamento da consciência,
da sociabilidade e do fenômeno humano em
geral nas obras de Karl Marx e Álvaro Vieira
Pinto / André Scholl de Almeida. - 2018.
174 p.

Dissertação (Mestrado) - Universidade do


Extremo Sul Catarinense, Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico,
Criciúma, 2018.
Orientação: Rafael Rodrigo Mueller.

1. Trabalho. 2. Consciência. 3.
Sociabilidade. 4. Marx, Karl, 1818-1883 –
Crítica e interpretação. 5. Pinto, Álvaro
Vieira, 1909-1987 - Crítica e interpretação.
I. Título.

CDD 23. ed. 331

Bibliotecária Eliziane de Lucca Alosilla – CRB 14/1101


Biblioteca Central Prof. Eurico Back - UNESC
Aos trabalhadores de todo o
mundo, verdadeiros produtores de
toda riqueza, que haverão ainda de
se unir.
À memória de minha amada mãe,
Lourinha Regina Scholl, o ser mais
doce que conheci.
À Laís Trajano Alves, minha
companheira de pensamento,
labuta e botequim.
Ao cabo, dedicado a todos os
sujeitos de minha existência,
enfim.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos deuses do Intelligent Design, que


tornam minha existência não apenas mais confortável, mas também
possível: os proletários.
Agradeço ao meu orientador, professor doutor Rafael Rodrigo
Mueller, sempre paciente e generoso, que me deu toda a liberdade na
confecção deste escrito e dedicou seus esforços ao desenvolvimento de
minha autonomia, cumprindo da forma mais rigorosa possível o dever
docente em um programa de pós-graduação, que é o de formar
pesquisadores. Por ser assim, nos acertos deste trabalho, ele está sempre
presente; os erros são todos meus.
Agradeço à professora doutora Giovana Ilka Jacinto Salvaro,
minha co-orientadora, também sempre paciente e generosa, cuja leitura
atenta, detalhista e crítica sempre renderam sugestões enriquecedoras ao
trabalho.
Aquilo que hoje sei sobre a arte da docência aprendi ouvindo e
observando particularmente estas duas grandes personalidades. Foram
elas igualmente as responsáveis por me apresentarem às obras de Álvaro
Vieira Pinto, que eu desconhecia até então. Minha dívida intelectual
com ambas será eterna.
Agradeço à Laís Trajano Alves, que confeccionando sua própria
dissertação na mesa ao lado, sempre esteve pacientemente disposta a
pausar sua tarefa para dialogar comigo para me auxiliar nos momentos
de dificuldade.
Agradeço ao professor doutor Ronaldo Vielmi Fortes, ao
professor doutor Dr Vidalcir Ortigara e ao professor doutor Dimas de
Oliveira Estevam, tanto por terem aceitado nosso convite para compor a
banca de avaliação desta dissertação quanto pelas importantes
contribuições ao trabalho, principalmente quando de sua qualificação.
Agradeço aos membros do Núcleo Interdisciplinar de Estudos
sobre Trabalho e Educação – NIETE –, em especial à Laís Trajano
Alves, ao Rodrigo Homem e aos professores doutores André Cechinel e
Rafael Rodrigo Mueller, pela leitura e debate d’O Capital.
Agradeço ao professor doutor Alcides Goularti Filho, meu
primeiro mestre. Evidentemente, será sempre lembrado em meus
escritos, em razão da gigantesca dívida intelectual que mantenho para
com ele. Ele poderá até não concordar com minha interpretação, mas ele
próprio está presente em cada uma das linhas.
Agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Socioeconômico – PPGDS – da Universidade do
Extremo Sul Catarinense – UNESC – como um todo, e à UNESC,
universidade na qual realizei toda a minha formação até aqui, e em
especial ao curso de economia da UNESC, pelo qual obtive o meu
bacharelado. E, ao citar o curso de economia, não poderia deixar de
fazer referência e agradecer ao Programa Universidade para Todos –
PROUNI, sem o qual este filho de trabalhadores jamais haveria logrado
letrar-se.
Por fim, cabe ressaltar que o presente trabalho foi realizado com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Sem a CAPES o
raciocínio não poderia ter sido ser levado ao papel..
“Unicamente a lógica dialética
pode esclarecer a situação,
mostrando o que há de legitimidade
na conexão entre o social e o
biológico, e o que têm de
fundamentalmente distintos. Sem
dúvida, está claro, não haveria
sociedade humana sem que
previamente existissem homens
vivos que a constituam. Realmente
a vida é a condição original para o
surgimento da sociedade, pois sem
a evolução biológica que conduz a
constituição do ser humano não
apareceriam as comunidades de
indivíduos, motivadas pela
imperiosidade do trabalho em
comum para a produção econômica
dos bens úteis, e portanto as leis
específicas que regem o processo
dessa convivência. Mas se a
simples precedência do fato vital se
impõe à constituição do processo
social, como é óbvio, isto não quer
dizer que este se reduza ao
primeiro, nem tenha por leis mais
gerais e definidoras as que regem
os fenômenos de surgimento e
transmissão da vida. Do mesmo
modo a vida tem como
acontecimento mais fundamental,
geral e necessário a evolução física
da matéria, que leva a criar suas
manifestações primitivas. Se as leis
da física e da química são válidas
para os corpos vivos, se delas não
podem fugir e às quais é preciso
sempre fazer menção para
compreender grande número de
processos vitais, contudo jamais
alguém dirá que a biologia é um
ramo da física, confunde-se com
ela e se explica exclusivamente
pelas leis do mundo material inerte.
A lógica dialética está habilitada a
mostrar a igualdade e a
desigualdade, a presença dos dois
planos e a diferença entre eles
[...].”
Álvaro Vieira Pinto

“Se a história natural descreve as


formas pelas quais passa o
desenvolvimento da espécie, no
homem tal história, deixa de ser
‘natural’ para se converter
finalmente em social, não se refere
às modificações da estrutura
corpórea mas às modificações do
mundo determinadas pelas
intervenções humanas.”
Álvaro Vieira Pinto

[...] só a lógica dialética, com a


aplicação das leis gerais que
exprimem todas as formas de
movimento do mundo material em
seu curso histórico, está capacitada
para nos colocar na trilha do
adequado entendimento.
Álvaro Vieira Pinto
RESUMO

O fenômeno do desenvolvimento jamais significa a total ruptura do


presente em relação ao passado. Toda forma histórica determinada das
relações sociais certamente apresenta certas determinações que lhe são
privativas, que são propriamente as suas especificidades, mas também
sempre estão presentes nela elementos de continuidade, certas
determinações essenciais que são comuns a diferentes momentos
históricos, que ela herda do passado e incorpora. Hegel foi o primeiro
pensador a perceber que a história da humanidade é uma totalidade
cujos desenvolvimentos são causados não por determinação natural, mas
por autodeterminações humanas; mas ele ainda compreende que as
modificações da realidade externa são causadas pelos desdobramentos
da consciência. Marx, por sua vez, estabelece uma complexa relação de
síntese entre Matéria e Ideia, que segundo ele ocorre objetivamente no
interior do processo de trabalho. Marx foi o primeiro a perceber que é a
atividade produtiva humana que leva às transformações da sociedade, da
história e da consciência. Por isso, não se pode compreender
adequadamente o fenômeno do desenvolvimento se não se compreende
como se estabelecem as relações entre o trabalho e o desenvolvimento
da consciência, das relações sociais e do fenômeno da existência
humana em geral. Assim, o objetivo de nossa pesquisa bibliográfica de
natureza básica é tornar explícita a função desempenhada pelo trabalho
na constituição da consciência e da sociabilidade no pensamento Karl
Marx e de Álvaro Vieira Pinto. Através de nossa investigação,
descobrimos que para ambos os autores o trabalho é a atividade sensível
que os seres humanos realizam com a finalidade de produzir os valores
de uso de que necessitam para subsistir. Ao entrar em contato com a
realidade externa em razão do trabalho que realizam, os seres humanos
desenvolvem a sua consciência, que é o reflexo ideal da realidade. Mas
como a produção em geral só pode ser realizada cooperativamente, o
trabalho leva os indivíduos a tecer relações sociais entre si. Para que a
organização do trabalho cooperativo possa ocorrer, os indivíduos
desenvolvem também alguma linguagem, que é a consciência que existe
externamente, que existe também para os outros. Mas se o trabalho que
os indivíduos humanos realizam é o momento decisivo para a
manutenção e o desenvolvimento do ser social não é simplesmente
porque através dele são produzidos os bens de que os indivíduos
carecem. Pelo trabalho, toda a coletividade humana, a sociedade, é
alterada. Essa alteração ocorre tanto em sentido objetivo, porque a
realidade objetiva e as relações entre os indivíduos são alteradas em
alguma medida pelo trabalho, quanto também em sentido ideal, porque
essa mudança da realidade objetiva leva a alterações da consciência dos
indivíduos que vivem na mesma realidade objetiva e da linguagem que
eles utilizam para se comunicar. O trabalho é a única categoria
especificamente humana que põe o ser humano em relação com a
natureza, e a partir dessa relação se desenvolvem as outras
características especificamente humanas, como a consciência e as
relações sociais. É através do trabalho, portanto, que a essência humana
se desenvolve e humaniza progressivamente.

Palavras-chave: Trabalho. Consciência. Sociabilidade. Karl Marx.


Álvaro Vieira Pinto.
ABSTRACT

The phenomenon of development never means the total rupture of the


present with respect to the past. Every determined historical form of
social relations certainly has certain determinations that are peculiar to
it, which are properly their specificities, but there are always elements of
continuity in it, certain essential determinations that are common to
different historical moments, which she inherits from the past and
incorporates. Hegel was the first thinker to realize that the history of
mankind is a totality whose developments are caused not by natural
determination, but by human self-determination; but he still understands
that the modifications of external reality are caused by the unfolding of
consciousness. Marx, in its turn, establishes a complex synthesis
relationship between Matter and Idea, which according to him occurs
objectively within the work process. Marx was the first to realize that it
is human productive activity that leads to the transformations of society,
history and consciousness. Therefore, one can not adequately
understand the phenomenon of development if one does not understand
how the relations between work and the development of consciousness
are established, of social relations and the phenomenon of human
existence in general. So, the purpose of our basic bibliographic research
is to make explicit the role played by work in the constitution of
consciousness and sociability in thought Karl Marx and Álvaro Vieira
Pinto. Through our research, we discovered that for both authors work is
the sensitive activity that humans perform with the purpose to produce
the use values they need to subsist. When they come into contact with
external reality because of the work they perform, human beings
develop their consciousness, which is the ideal reflection of reality. But
as production in general can only be carried out cooperatively, labor
leads individuals to weave social relations among themselves. In order
for the organization of cooperative work may occur, individuals also
develop some language, which is the consciousness that exists
externally, which also exists for others. But if the work that human
individuals perform is the decisive moment for the maintenance and
development of the social being it is not simply because through it are
produced the goods that individuals lack. Through work, the entire
human collectivity, the society, is altered. This alteration occurs both in
an objective sense, because the objective reality and the relations
between individuals are altered in some measure by the work, but also in
the ideal sense, because this alteration of the objective reality leads to
alterations of the consciousness of the individuals who live in the same
reality objective and the language they use to communicate. The work is
the only specifically human category that puts the human being in
relation with the nature, and from this relationship develop other
specifically human characteristics such as consciousness and social
relations. It is through work, therefore, that the human essence develops
and humanizes progressively.

Keywords: Work. Consciousness. Sociability. Karl Marx. Álvaro Vieira


Pinto.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................ 23
2 - O SER HUMANO COMO UM ANIMAL QUE CARECE E
TRABALHA ........................................................................................ 47
3 O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA CONSCIÊNCIA . 67
4 O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA SOCIABILIDADE
............................................................................................................... 93
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FENÔMENO HUMANO EM
KARL MARX E ÁLVARO VIEIRA PINTO ................................. 131
23

1 INTRODUÇÃO

Toda forma histórica determinada das relações sociais apresenta


certas determinações que lhe são privativas, que são propriamente as
suas especificidades, que a distinguem do restante da totalidade histórica
e, portanto, a explicam. Ao mesmo tempo, sempre estão presentes nela
elementos de continuidade, certas determinações essenciais que são
comuns a diferentes momentos históricos. O ser social não se
revoluciona e rompe completamente com o passado a cada época. Só é
lícito falar de “transformações da sociedade” porque certos elementos
que a constituem permanecem existindo, de modo que sua armação,
ossatura ou estrutura ontológica permanece, embora as formas de
manifestação fenomênica dessa “armação ontológica” se transformem
incessantemente. Se estivermos corretos, este conjunto de determinações
essenciais corresponde propriamente ao conjunto das características
gerais do ser social, que são comuns a todas as suas diferentes fases de
desenvolvimento. Como neste trabalho monográfico nos ocuparemos
apenas deste conjunto de determinações gerais do ser, sem fazer
referência a determinações específicas de certos momentos da vida
social, portanto tratando-se de trabalho de alto nível de abstração, parece
apropriado iniciar este texto explicando de que forma chegamos a tal
objeto de pesquisa, de modo a fornecer ao leitor as chaves para a
compreensão de nossos esforços.
Ler Marx não é tarefa das mais simples. A obra de Marx é
daquelas que não se pode simplesmente passar rapidamente e
compreender rapidamente; sua compreensão toma do intérprete, quando
pouco, muitos anos, por vezes décadas, e em geral toda a vida. Por ser
assim, a interpretação do pensamento de Marx sempre levou à criação
das mais variadas estratégias por parte de seus leitores. Poucos são
aqueles que iniciam seus estudos a partir de obras da lavra do próprio
Marx. Muitos marxistas de grande envergadura no século XX optaram
por interpretar Marx à luz do pensamento de Hegel. Muitos outros
leitores optaram por interpretar Marx mediados pela interpretação de um
segundo autor, geralmente um marxista ou um liberal, considerados pelo
leitor como grandes pensadores e como grandes conhecedores daquilo
que para eles aparecia como um imenso emaranhado de conceitos
confusos. E muitos, especialmente dentro das universidades pelo mundo
afora, pouco ou nada leem de Marx, se limitando a sempre adicionar
mais e mais intérpretes ao seu repertório, portanto apenas lendo mais
Marx a partir de fontes secundárias. E aquilo que já era confuso no
princípio, ao invés de ir se tornando claro, tende a ir se tornando cada
24

vez mais obscuro. Ao invés de soluções, os intermináveis debates


acadêmicos em torno de certas categorias consideras centrais no
pensamento de Marx transformam-nas em objetos de disputa, alvo da
ação de todo acadêmico interessado em uma questão de pesquisa para
chamar de sua, e isso apenas amplia o desentendimento geral e o
sentimento geral de que o marxismo vem não se sabe de onde e vai para
não se sabe qual lugar. Muito por isso o marxismo entrou em crise nas
últimas décadas do século XX.
Para se verificar a que ponto o debate sobre o pensamento de
Marx se tornou um embate entre diferentes intérpretes, cada um
convencido de uma tese mais embaralhada e confusa do que a outra,
basta que se busque compreender algum de seus conceitos, como
ideologia ou alienação, a partir das fontes secundárias: a simples escolha
dos autores se torna tarefa quase impossível dada a fertilidade de
interpretações discordantes atualmente existente. Tamanha foi a
confusão interpretativa surgida no século XX que mesmo no interior do
marxismo surgiram interpretações concordantes com certas críticas ao
pensamento do filósofo alemão. É o caso, por exemplo, das velhas e
sempre reavivadas críticas ao suposto determinismo econômico de
Marx, ao suposto descuido de Marx com relação à subjetividade e à
cultura, à suposta existência de uma teleologia da história em Marx, aos
supostos traços metafísicos que a dialética de Marx herdou da dialética
hegeliana etc. Como marxistas, tais questões jamais poderiam deixar de
nos interessar, de modo que, por algum tempo, fomos fisgados por esse
infrutífero debate.
Uma das questões mais problemáticas na interpretação do
pensamento de Marx, e que sempre nos interessou, é a questão da
concepção marxiana da história e a relação dela com a concepção
hegeliana da história; portanto, a questão dos processos históricos de
transformação econômica e social, do ritmo e da direção desses
movimentos históricos. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer a
grande originalidade do pensamento de Hegel: foi ele o primeiro
filósofo a elaborar uma lei da tendência geral da história humana. Por
essa razão, toda e qualquer concepção histórica do ser, assim como a de
Marx, e também mesmo a de Nietzsche, que só não ignora Hegel
quando lhe tece críticas as mais ásperas, devem muito a Hegel. Em sua
obra Introdução à história da filosofia, realizando o inovador feito na
história da filosofia de discutir a própria história, Hegel afirma que “[...]
à primeira vista, a história parece ser uma sucessão de fenômenos
contingentes, isolados, e que só do tempo recebem o nexo que os prende
[...]”. Para ele, no entanto, existe “[...] uma conexão necessária que
25

marca, a cada um dos fatos, a sua posição especial e a relação com uma
finalidade [...]” (HEGEL, s.d., p. 330). Para Hegel, tudo o que ocorre no
mundo ocorre por necessidade, i. é., não poderia ocorrer de forma
distinta: a história é composta por etapas que se sucedem no tempo, cada
etapa posterior é síntese da etapa anterior e a supera em via de
progresso, sempre rumo a uma finalidade. A história, que é composta
por “momentos necessários”, quando analisada através de seu método,
afirma Hegel, “[...] permite mostrar essa história como um todo
orgânico em via de progresso [...]” (HEGEL, s.d., p. 330-331). Se
fôssemos, portanto, considerar válido apenas o que diz Hegel a respeito
da sua dialética da história, toda filosofia dialética seria necessariamente
teleológica, etapista e fatalista. Seria também fatalista o pensamento de
Marx?
Para Raymond Aron, este “parece constituir, em todas as épocas,
o ponto essencial, filosófico, do pensamento de Marx” (ARON, 2005, p.
69). Para ele, “todas as discussões filosóficas sobre o marxismo giram
em torno desse ponto central”, isto é, “a relação entre a teoria e a
prática, entre a necessidade histórica e a ação humana, entre a simples
necessidade e a liberdade, entre a realidade e o pensamento” (ARON,
2005, p. 70). De nosso lado, sempre nos interessamos pela questão da
existência ou não de teleologia da história em Marx porque muitas
questões fundamentais para as pretensões revolucionárias se desdobram
a partir dessa questão. Qual a relação entre o indivíduo e a sociedade?
São os indivíduos que determinam os rumos históricos ou a história
possui intrinsecamente uma tendência necessária? O socialismo
necessariamente virá à existência ou a emancipação humana é apenas
uma possibilidade da qual dispõe os seres humanos? Quais os limites
para ação dos indivíduos, de grupos de indivíduos ou das classes
sociais? O destino social já está pré-determinado? Tais questões,
evidentemente, são fundamentais para qualquer proposta revolucionária.
Uma filosofia como a de Marx, que se pretende a filosofia e a ciência
capaz de orientar a revolução, deve se pronunciar a respeito dessas
questões.
Para resolver tal questão, parece conveniente perguntarmos como
o próprio Marx entendia o materialismo-histórico, ou qual relação o
próprio Marx via entre sua reflexão sobre a história e a filosofia da
história de Hegel. No entanto, Marx jamais publicou, e na verdade
sequer escreveu, uma obra explicativa do seu método materialista
histórico-dialético, capaz de deixar suficientemente esclarecidas certas
questões relacionadas à história e seu desenvolvimento, assim como
sobre as abordagens metodológicas utilizadas por ele. Essa dificuldade
26

interpretativa diz respeito à “natureza das fontes”, como diz Croce. “A


doutrina do materialismo histórico”, escreve ele, “acha-se espalhada
através de uma série de escritos, redigidos no curso de meio século, a
longos intervalos, nos quais essa doutrina só é mencionada casualmente
ou se encontra apenas subentendida” (CROCE, 1981, p. 71).
Em um dos raros textos nos quais Marx faz menção direta à
questão do “método”, o conhecido texto O método da economia
política, que consta nos Grundrisse, ao debater e criticar o método
utilizado pelos economistas políticos, Marx acaba por delinear
brevemente uma crítica ao idealismo de Hegel. Segundo Marx, ao
iniciar o estudo da economia de um país específico, “parece mais correto
começar pelo que há de concreto e real nos dados; assim, pois, na
economia, pela população, que é a base e sujeito de todo o ato social da
produção”. No entanto, “esse método seria falso”. Marx explica que “A
população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõem”;
mas classe é “[...] uma palavra sem sentido se ignoro os elementos sobre
os quais repousam”, como “o trabalho assalariado, o capital”, entre
outros; e estas últimas são palavras vazias se ignoro a “troca, a divisão
do trabalho, os preços”, entre outros. Essa problemática epistemológica
encontra sua solução em um duplo movimento que o pensamento
teórico necessita realizar. Assim, ao iniciar o estudo da economia de um
país específico, se iniciássemos pela população, primeiramente teríamos
de criar mentalmente “uma representação caótica do todo”, e
posteriormente poderíamos analiticamente chegar “cada vez mais, a
conceitos mais simples”. O método que descrevemos até aqui “constitui
o caminho que foi historicamente seguido pela [...] Economia Política”,
que “começam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado,
vários Estados”, etc., mas “terminam sempre por descobrir por meio da
análise certo número de relações gerais abstratas que são determinantes,
tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor”, etc. Para Marx, os
economistas políticos acertadamente chegaram até este ponto, embora
não tenham concluído a tarefa científica por não realizar o segundo
movimento que o pensamento necessita realizar para reproduzir
mentalmente o real, que consiste em, ao descobrir analiticamente os
conceitos mais simples (no nosso exemplo: troca, preços, etc.) que
compõe aquela totalidade abstrata (no nosso exemplo, a população),
“voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a
população”, porque dessa forma a população não será uma
“representação caótica de um todo”, mas sim “uma rica totalidade de
determinações e relações diversas” (MARX, 2008, p. 258), de modo que
o que compreendemos por população deixa de ser o que a priori
27

compreendíamos de forma abstrata e nebulosa por população para


tornar-se “(...) uma concreção de pensamento” (MARX, 2008, p. 259),
isto é, uma complexa totalidade devidamente preenchida pelas suas
partículas concretas e pelas relações concretamente existentes entre elas.
Para Marx, este “[...] último método é manifestamente o método
cientificamente exato”, na medida em que “o concreto é concreto,
porque é a síntese de muitas determinações, [...] unidade do diverso”
(MARX, 2008, p. 258). Marx explica que “no primeiro método, a
representação plena volatiliza-se na determinação abstrata; no segundo,
as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por
meio do pensamento” (MARX, 2008, p. 259). O texto de Marx é de
difícil interpretação, mas bem compreendidas as coisas, parece bastante
simples a ideia de que se o que desejamos é compreender certa
totalidade, devemos partir da ideia vaga que possuímos a respeito dessa
totalidade, encontrar os elementos mais simples que a compõe e,
posteriormente, substituir a ideia vaga que tínhamos dessa totalidade
antes da análise por uma compreensão que articule os diversos
elementos mais simples que a compõe e que foram descobertos durante
a análise.
É importante notar que essa articulação entre os elementos mais
simples que compõe a totalidade, ou o sistema, como chama Eleutério
Prado, é uma noção fundamental na ciência contemporânea. Segundo
Prado, “A ciência moderna [...] tendeu a desprezar qualquer noção de
todo”, tendo procurado “explicar cada fenômeno por redução [...], como
resultado da ação conjunta dos elementos componentes, investigados
com independência uns dos outros, como se fossem unidades
separadas.” Já a ciência contemporânea “[...] passou a enfrentar o
desafio de compreender certos todos considerando não só os seus
elementos componentes, mas também o modo como eles estão
organizados e como interagem no interior dessa organização” (PRADO,
2009, p. 15). Por não realizar o segundo movimento necessário para que
o pensamento seja capaz de apreender a totalidade concreta — momento
no qual as relações entre os elementos mais simples da totalidade seriam
capazes de revelar as contradições internas da totalidade — os
economistas políticos, ainda que tenham sido capazes de descobrir os
elementos mais simples que compõe a economia capitalista, não foram
capazes de compreender o funcionamento complexo das totalidades das
quais eles haviam partido, o que os impediu de encontrar as
contradições fundamentais do modo de produção capitalista.
Deixemos os economistas políticos e voltemos a Hegel. Marx
afirma que a realidade é “o verdadeiro ponto de partida” do pensamento
28

— visto que ela é o “ponto de partida [...] da intuição e da


representação” (MARX, 2008, p. 259). O pensamento recebe seu
primeiro impulso da realidade exterior, produzindo a partir desse
impulso inicial uma representação abstrata do objeto/fenômeno. Apesar
disso, em razão do duplo movimento que o pensamento científico
necessita realizar para apreender o real, o concreto “aparece no
pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como
ponto de partida” (MARX, 2008, p. 258), e somente através do método
científico adequado o pensamento é capaz de substituir aquelas
representações abstratas — cópias ideais malfeitas dos
objetos/fenômenos reais — por verdadeiros conceitos científico-
filosóficos — cópias ideais que reproduzem de forma mais adequada a
realidade dos objetos/fenômenos reais. Por essa razão, “a totalidade
concreta, como totalidade de pensamento, como uma concreção de
pensamento, é, na realidade, um produto do pensar [...]”, um resultado
da ação do pensamento. Foi por essa razão, para Marx, que “Hegel
chegou à ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que
se absorve em si, procede de si, move-se por si”. Mas “o método que
consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de
proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo
mentalmente como coisa concreta”, embora este não seja, “[...] de
nenhum modo, o processo da gênese do próprio concreto” (MARX,
2008, p. 259). Para Marx está claro que “o objeto concreto permanece
em pé antes e depois, em sua independência e fora do cérebro ao mesmo
tempo, isto é, o cérebro não se comporta senão especulativamente,
teoricamente.” (MARX, 2008, p. 260)
De forma sintética, podemos dizer que esta é a base da crítica que
Marx dirige à metafísica hegeliana. Hegel compreende que o
pensamento é o criador do real, o que difere completamente da
compreensão de Marx, para o qual o real é o fundamento do
pensamento, que só pode vir a modificar o real através da mediação da
atividade sensível dos seres humanos. No prefácio da referida obra
Contribuição à crítica da economia política, Marx sintetiza os
resultados de sua cosmovisão materialista:
Na produção social da própria existência, os
homens entram em relações determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade; essas
relações de produção correspondem a um grau
determinado de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. A totalidade dessas relações
de produção constitui a estrutura econômica da
29

sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma


superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e
intelectual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência. (MARX,
2008, p. 47)

Portanto, não é o pensamento que determina o real (e o próprio


ser dos homens), mas sim o real (o ser social dos homens) que
determina o pensamento humano e, dialeticamente, se autodetermina
através da mediação do pensamento. Apesar dessa crítica demolidora,
Lukács adverte que Marx não realizou “uma refutação completa dos
resultados do método dialético”, mas sim o que ele chama de “uma
crítica autêntica”, ou seja: certamente “uma anulação crítica do que é
falso e destorcido”, mas também “uma captação do núcleo racional que
existe mesmo nos mais desenfreados processos especulativos, uma
colocação materialista sobre os pés daquelas determinações nas quais
estava presente um impulso à justa consciência de conexões reais [...]”
(LUKÁCS, 1978, p. 76). Assim, há dialética em Marx; mas se a
dialética hegeliana se trata de uma lógica segundo a qual o
automovimento do pensamento engendra o real, em Marx a dialética se
define “[...] por um diálogo entre [...] a realidade bruta e a consciência”
(ARON, 2005, p. 87), isto é, entre aquilo que poderíamos chamar de
existência objetiva/real e imediata das coisas e a consciência dos
homens, “e também um diálogo entre a consciência e a ação” (ARON,
2005, p. 87).
Assim, ao mesmo tempo em que tenha sido um dos mais severos
críticos de Hegel, Marx foi profundamente influenciado pelo
pensamento hegeliano. No prefácio da segunda edição alemã de O
Capital, Marx afirma:
Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana
a quase trinta anos, quando ela ainda estava na
moda. Mas quando eu elaborava o primeiro
volume de O capital, os enfadonhos, presunçosos
e medíocres epígonos que hoje pontificam na
Alemanha culta acharam-se no direito de tratar
Hegel como [...] “um cachorro morto”. Por essa
razão, declarei-me publicamente como discípulo
daquele grande pensador e, no capítulo sobre a
30

teoria do valor, cheguei até a coquetear aqui e ali


com seus modos peculiares de expressão. A
mistificação que a dialética sofre nas mãos de
Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido
o primeiro a expor, de modo amplo e consciente,
suas formas gerais de movimento. Nele, ela se
encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-
la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do
invólucro místico. (MARX, 2017, p. 91)

Vemos aí que Marx declarava-se discípulo de Hegel, tendo


mesmo utilizado certas expressões peculiares ao hegelianismo, e que, ao
mesmo tempo, Marx não assimilou passivamente as categorias do
pensamento hegeliano. Daí derivam todas as confusões e controvérsias a
respeito do materialismo histórico, que em Marx parece nascer do mais
absoluto idealismo hegeliano. A respeito da relação entre a filosofia da
história de Hegel com a de Marx, existem diversas questões não
resolvidas, ou talvez questões mal resolvidas. Croce indaga:
Qual era a posição intelectual de Marx com
referência à filosofia hegeliana da história? Em
que consistia a crítica que fez a ela? [...] Será que
Marx realmente pensou algum dia em substituir,
como acreditam alguns, a Ideia hegeliana pela
Materia ou pelo fato material? E que ligação
havia na sua mente entre os conceitos material e
econômico? Será também que a explicação que
ele deu de sua posição frente à Hegel (“as ideias
são determinadas pelos fatos e não os fatos pelas
ideias”) pode ser chamada de inversão da
perspectiva de Hegel, ou não será antes a inversão
das propostas dos ideólogos e doutrinários? São
estas algumas questões pertinentes à história das
ideias, que algum dia serão respondidas [...].
(CROCE, 1981, p. 73-74)

No entanto, a busca pelas respostas a tais perguntas “é realmente


difícil e oferece um sem-número de dificuldades”, afirma Aron, porque
“o estudo científico do pensamento de Marx se apresenta sob condições
singulares” e que geram duas grandes dificuldades para o intérprete do
pensamento de Marx: i) “as particularidades da própria vida de Marx”,
isto é, aquelas “ligadas à carreira e à personalidade de Marx”; e ii) “o
destino póstumo de sua obra.”
31

Tratemos primeiramente das dificuldades geradas pelas


particularidades da vida de Marx. O filósofo alemão não foi somente um
estudioso; foi também um homem de ação “e se tornou, a posteriori, e
provavelmente sem querer, fundador de um Estado e de uma ideologia”
(ARON, 2005, p. 23). Por essa razão e também por ter Marx vivido boa
parte de sua vida em profunda carência financeira, sua obra resultou
muito diversa. “Marx escreveu muito, sobretudo em jornais, e textos de
naturezas muito diversas, dentre os quais panfletos [...].” Sendo assim,
podemos e até mesmo devemos “questionar a importância a dar a essas
diversas formas de escrito”. Questiona Aron: “Devem-se emprestar os
mesmos significado e alcance a uma carta dirigida a um correspondente
ou um discípulo que a um texto figurando em uma de suas obras
maiores?”. A pergunta é extremamente importante na medida em que
Marx “se exprimiu sobre a maior parte dos assuntos políticos,
econômicos e históricos”, “como todo autor prolífero”. Esse fato gera
uma dificuldade de relativa envergadura para o seu intérprete, na medida
em que “com um pouco de assiduidade e argúcia, podem-se encontrar
sob sua pena, sobre a maior parte dos assuntos, opiniões um tanto
contraditórias.” Marx escreveu muito e por longo período de tempo, e
aqueles que assim o fazem eventualmente se contradizem ou mudam de
ideia a respeito de certos assuntos. Em razão disso, o intérprete de Marx
fica em uma situação na qual “toda proposição de ordem geral atribuída
a Marx pode ser corrigida ou refutada por alguma citação, muitas vezes
desconhecida, tirada de um artigo de jornal ou de uma carta” (ARON,
2005, p. 23). Na verdade, isso aconteceu diversas vezes, tendo alguns
marxistas buscado corrigir, por assim dizer, algum aspecto da
interpretação do pensamento de Marx, utilizando-se para tal a
apresentação de “um desses textos ainda esquecidos pela interpretação
corriqueira de Marx”. (ARON, 2005, p. 23-24)
O segundo tipo de dificuldade assinalado por Aron “vem da
diversidade dos períodos da vida de Marx.” Marx nasceu em Trier em
1818 e faleceu em Londres em 1883, onde vivia desde 1848 por ser
expulso da Bélgica após o fracasso da revolução desse mesmo ano. Sua
carreira e sua obra podem ser divididas, como fazem certos marxólogos
ou marxistas, entre dois períodos principais: o da juventude e o da
maturidade. O período de juventude encerra em 1848, quando o
pensamento filosófico da juventude de Marx entra em contato com a
economia política e é modificado profundamente. O segundo período
“constitui uma unidade porque é dominado por um único livro, O
Capital”, muito embora “de acordo com os acontecimentos e
necessidades econômicas” Marx tenha “escrito uma quantidade de
32

textos de circunstância”. Essa divisão cronológica, que pode ser


considerada por demais autoritária, é necessária aqui apenas para
analisar as particularidades das obras escritas por Marx nos dois
diferentes períodos, já que cada uma delas apresenta “singularidades
próprias” (ARON, 2005, p. 24). A respeito das obras do período de
juventude, Aron escreve o seguinte:
[...] apenas duas dentre todas foram publicadas
durante a vida de Marx: A sagrada família, em
1845, e Miséria da filosofia, em 1847 [...]. Pelo
menos dois artigos [...] foram publicados: um é
“Introdução à crítica da filosofia do direito de
Hegel” e o outro, um artigo sobre “a questão
judaica”. Mas as duas obras que talvez sejam
atualmente consideradas mais importantes desse
período da juventude, o Manuscrito econômico-
filosófico, redigida por Marx em Paris em 1844, e
A ideologia alemã, escrita em 1846-1847, obras
essenciais para a compreensão do itinerário
intelectual de Marx, só foram publicadas
integralmente em 1932. [...] o próprio Marx, na
maturidade, as considerava indignas de
publicação. O que, aliás, acrescenta uma
dimensão suplementar à incerteza das
interpretações. (ARON, 2005, p. 25)

De fato, Marx optou por não publicar algumas obras do período


da juventude, obras que na verdade se tratavam de manuscritos escritos
por um jovem Marx para esclarecer a si próprio a respeito de complexas
questões filosóficas e econômicas (ARON, 2005). A Ideologia Alemã,
por exemplo, escrita em colaboração por Marx e Engels, foi deixada “à
crítica roedora dos ratos” (MARX, 2008, p. 49), como o próprio Marx
escreve em 1859 no prefácio da obra Contribuição à crítica da
economia política. Apesar disso, essas obras contêm, primeiro, um
registro da evolução do pensamento do jovem Marx e, segundo, certos
temas que Marx não retomará (ou retomará de maneira obscura) nas
obras do período de maturidade, o que as torna relevantes para a
compreensão das transformações e constituição do pensamento de Marx.
Por sua vez, as obras que são fruto do período de maturidade de
Marx também possuem características que representam dificuldade para
o intérprete de seu pensamento. “Marx, enquanto pesquisador, trabalhou
em um único livro, desde 1849 até sua morte, em 1883. [...] diria que
[...] [foi] homem de um único livro. [...]” Marx carregou, “durante toda a
33

vida, um livro único” e, à semelhança do período de juventude, como


bem assinala o próprio Aron, um “livro inacabado” (ARON, 2005, p.
26). Em 1867, como se sabe, Marx publicou o primeiro tomo de O
Capital. No entanto, como também se sabe, foi Engels que publicou os
livros II e III, que “provém do ajustamento, ou da trituração, segundo a
preferência dos críticos, dos manuscritos de Marx por Engels” (ARON,
2005, p. 27). Disso resulta que “[...] os textos mais importantes de Marx,
tanto do primeiro período quanto do segundo, apresentam-se a nós em
estados bem diversos de acabamento” (ARON, 2005, p. 28). Vemos,
portanto, que mesmo O Capital oferece essa dificuldade ao intérprete, o
que levou as gerações que se seguiram à Marx a interpretar a “economia
de Marx” quase que exclusivamente a partir do livro I de O Capital.
Esse livro, “qualquer que seja sua importância no conjunto, está longe
de esgotar o conteúdo do que se chamaria Crítica da economia
política”, já que O Capital possui verdadeira organicidade somente na
sua totalidade. Só que, como vimos, nos livros II e III “temos
ajustamentos de manuscritos inacabados”, realizados por Engels. Aron é
categórico:
Em casos assim, o intérprete não tem como não
assumir riscos. Isso significa que, para interpretar
os livros II e III de O Capital, é preciso escolher
entre muitos textos e, com toda boa vontade
possível, tornar sua interpretação dependente do
que se considerou o centro vivo do pensamento
econômico de Marx. Em outros termos, a questão
de fundo que coloquei — o que resta de filosofia
em O Capital ou, ainda, até que ponto o Marx de
1867 era ainda o filósofo de 1844 — terá resposta
em uma interpretação, inevitavelmente meio
arbitrária, dos dois tipos de manuscritos
inacabados: os inacabados de 1844 e os
inacabados da maturidade. (ARON, 2005, p. 28-
29)

A insistência de Raymond Aron é fundamental para qualquer


intérprete do pensamento de Marx dado seu caráter elucidativo: todos os
intérpretes devem estar plenamente conscientes de que não há “uma
obra filosófica integral refletindo o pensamento do jovem Marx, como
também não há livro acabado, a Crítica da economia política, que seja o
coroamento e o testamento dos 30 anos de pesquisas econômicas”
(ARON, 2005, p. 29). Marx dedicou grande parte de sua vida à
confecção d’O Capital, mas “viveu em condições materiais muito
34

difíceis” (veio inclusive a perder alguns filhos em razão do estado de


mais absoluto pauperismo em que viveu a família Marx em certo
período) “e essas dificuldades materiais, acrescentadas às dificuldades
intrínsecas da própria natureza de suas pesquisas, explicam não termos
um texto [...] em que nos possamos fiar piamente ou do qual possamos
dizer: ‘É neste que devemos nos basear’” (ARON, 2005, p. 29).
Vemos, portanto, que podem-se encontrar afirmações
discordantes de Marx sobre certos temas. Para Croce, o filósofo alemão
era “adepto de uma espécie de lógica concreta”, e por essa razão seus
intérpretes devem problematizar a relevância a ser dada na interpretação
às expressões do autor. “Marx”, escreve ele, “tinha uma espécie de
repugnância por especulações de interesse puramente acadêmico.”
“Ansioso por conhecimento de coisas” concretas, “dava pouco valor a
discussões de conceitos e formas de conceitos”. Por essa razão, aqui e
ali o texto do autor apresenta o que Croce chamou de “exagero dos seus
próprios conceitos”; e aí reside o que representa a maior dificuldade
para qualquer intérprete de seu pensamento, já que “verificamos nele
uma curiosa oposição entre declarações que, interpretadas estritamente,
são erradas, e no entanto nos parecem, e de fato estão, plenamente
carregadas de verdade” (CROCE, 1981, p. 72). No entanto, essa
oposição entre declarações que se pode constatar no escritos de Marx e
que Croce atribui à falta de desejo de Marx pela elaboração textual
filosoficamente exata, para nós demonstra exatamente o oposto. Marx
não possuía apenas um método de pesquisa, mas também um método de
exposição. Marx sempre foi um perfeccionista, e a ânsia por dar à obra
O Capital uma exposição perfeita acompanhou Marx por muitos anos,
conforme se pode verificar na obra Gênese e estrutura de O Capital de
Karl Marx, de Roman Rosdolsky. Para nós, essa oposição entre
declarações não possui origem no desleixo de Marx, mas sim no aspecto
que mais gera dificuldades ao intérprete e que Aron e Croce não
discutem: o papel que o pensamento teórico desempenha para Marx.
Por se tratar Marx de um materialista, portanto de um filósofo
que nega qualquer hipótese ou possibilidade metafísica, para ele nada é;
todas as coisas são processos. Para Marx, todo o existente só pode ser
compreendido através da compreensão do seu devir, do seu vir-a-ser.
Assim, definir uma árvore como “um ser vivo à base de carbono que
possui raízes, caule, folhas, realiza fotossíntese, etc.”, seria uma
definição metafísica. Para falar filosoficamente de forma rigorosa a
partir da cosmovisão materialista, toda definição é sempre metafísica,
porque uma definição não faz referência à processos, mas sim somente
a formas específicas de manifestação das coisas existentes em
35

determinado momento do tempo. Para a cosmovisão materialista da


existência, uma árvore é uma árvore desde o seu nascimento, ainda em
estágio de semente ou de broto, e permanece sendo árvore durante o
período de seu crescimento e durante a fase adulta de sua vida, até o
momento de sua morte.
O pensamento de Marx, por se propor analisar coisas e
fenômenos concretos, objetivos, reais, a partir da cosmovisão
materialista da existência, não pode produzir definições: deve, isto sim,
analisar o ser em suas formas múltiplas, quer dizer, em seus diferentes
momentos, elucidando através de análise descritiva as diferentes
determinações que este ser possui em cada um de seus diferentes
momentos, encontrando assim as contradições que cada momento
estabelece com os outros momentos. É por essa razão que para Marx o
trabalho do filósofo não é o de conceituar e relacionar conceitos. Para
Marx, como vimos, o ser humano cria cópias ideias dos fenômenos em
sua mente, que podemos chamar de representações. O papel do filósofo,
do cientista e da teoria, para Marx consiste em saturar de determinações
essas representações dos fenômenos. Saturadas de determinações, as
representações — cópias ideais nebulosas e vagas de fenômenos
concretos — transformam-se em conceitos — cópias ideais mais bem
acabadas, que se assemelham muito mais ao fenômeno, embora se trate
sempre de uma aproximação. A teoria, em Marx, tem a função de
aproximar o que o homem pensa das coisas do que as coisas realmente
são, embora a “verdade absoluta” não possa jamais ser alcançada. O
pensamento dialético deve partir do abstrato pensado (representações)
para buscar nas formas fenomênicas do fenômeno concreto (fenômeno
real) o máximo possível de determinações (características fenomênicas),
saturando-se de aspectos os mais diversos da realidade objetiva do
fenômeno. Procedendo assim, o pensamento dialético poderá dar um
passo adiante, o passo definitivo, que é o de articular tudo quanto é
diverso ou, o que vem a ser o mesmo, o de encontrar as determinações
que se repetem em cada uma das diferentes formas (ou diferentes
momentos) do mesmo fenômeno. Terá, assim, encontrado a essência do
fenômeno — ou o locus da continuidade, para usar uma expressão de
Lukács —, que só pode ser encontrado na relação entre as formas
fenomênicas dos fenômenos — no locus da transformação, novamente
lembrando Lukács. É por essa razão que um mesmo fenômeno surge, no
texto de Marx, aparentemente conceituado de diversas maneiras
diferentes, muitas delas mesmo paradoxais. É assim que o capital, por
exemplo, aqui aparece como mercadoria e lá como dinheiro. Isso ocorre
porque o capital, por ser um sujeito-processo, possui formas
36

fenomênicas variadas pelas quais se manifesta no mundo concreto. O


intérprete de um pensamento que compreende, primeiro, o fenômeno
concreto como um devir, um ser em transformação, um processo, e
segundo, a teoria como a atividade mental que busca saturar as
representações mentais de determinações dos fenômenos concretos —
movimento responsável pela transformação das representações em
conceitos — não pode dar-se ao luxo de escolher uma afirmação do
texto marxiano para atribuir-lhe a importância de uma verdadeira
conceituação de determinado fenômeno. Em síntese, o que estamos
dizendo é o seguinte: um dialético competente deve saber que, apesar do
tempo do verbo “ser” (conjugado no presente), a cópula de certas frases
do texto de Marx não expressa uma definição máxima, diferentemente
do que ocorre no texto de outros autores. É verdade que o texto de Marx
se vale sim de algumas definições, mas elas são sempre antes de tudo
definições meramente provisórias, ou, ainda, descrições de um momento
específico do processo, que jamais esgota a totalidade do processo em
questão. Assim, uma única frase do texto não pode ser tomada
levianamente como a expressão de um conceito somente em razão da
presença do verbo ser no presente (“é”) entre o sujeito e o predicado.
Em razão do pressuposto ontológico, que é a fluidez dos fenômenos, a
transitoriedade dos conceitos é pressuposto epistemológico do discurso
marxiano.
Razões à parte, é fato que se podem encontrar em Marx oposições
entre afirmações. Vejamos brevemente alguns exemplos sobre a questão
da existência ou não de uma teleologia histórica em Marx. Nos
Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, Marx afirma que “Ele [o
comunismo] é o enigma da história resolvido e sabe-se como essa
solução.” (MARX, 2015, p. 345) Se fôssemos responder à questão “era
Marx um teleologista?” a partir somente desse extrato dos Manuscritos,
certamente seríamos compelidos a concluir que há teleologia da história
no pensamento de Marx. Nessa passagem, o determinismo e a
conjugação do verbo ser no tempo presente (é) não deixam margem de
dúvida: a finalidade da história é o comunismo, que é sua “solução”, isto
é, finalidade que o resolve. Em outro trecho, dessa vez do capítulo
XXIV de O Capital, Marx afirma que
Soa a hora derradeira da propriedade privada
capitalista, e os expropriadores são expropriados.
[...] a propriedade privada capitalista, é a primeira
negação da propriedade privada individual,
fundada no trabalho próprio. Todavia, a produção
capitalista produz, com a mesma necessidade de
37

um processo natural, sua própria negação. É a


negação da negação. (MARX, 2017, p. 832)
[grifo nosso]

Novamente, se fôssemos responder à questão “era Marx um


teleologista?” a partir somente desse extrato do capítulo XXIV d’O
Capital, certamente seríamos compelidos a concluir que há teleologia da
história no pensamento de Marx. Nessa passagem, o determinismo, a
certeza e a força da afirmação de Marx de que o capitalismo gera a sua
própria negação (substituição por outro modo de produção) não deixam
margem de dúvida: o capitalismo certamente virá a deixar de existir. O
trecho destacado por nós, “com a mesma necessidade de um processo
natural”, explicita o caráter fatal, necessário, incontornável, da
derrocada capitalista. Além disso, a expressão hegeliana “negação da
negação” nos leva a interpretar que em Marx os diferentes modos de
produção aparecem sucessivamente na história, de maneira etapista, e
que no interior de cada um dos modos de produção são criadas as
condições para a sua derrocada e o surgimento de outro modo de
produção. Além disso tudo, cada modo de produção posterior é superior
ao modo de produção anterior, e isso ocorre por necessidade (não
poderia ocorrer de maneira diferente) e é bom que assim aconteça, já
que o fim do capitalismo levaria ao fim à exploração do homem pelo
homem (a negação da propriedade individual baseada no trabalho
próprio) própria da propriedade privada capitalista. Sendo assim, este
trecho, analisado isoladamente, só poderia nos levar à conclusão de que
há em Marx teleologia da história.
No entanto, em A Ideologia Alemã, obra fruto da colaboração
intelectual entre Marx e Engels, afirma-se:
A história nada mais é do que o suceder-se de
gerações distintas, em que cada uma delas explora
os materiais, os capitais e as forças de produção a
ela transmitidas pelas gerações anteriores;
portanto, por um lado ela continua a atividade
anterior sob condições totalmente alteradas e, por
outro, modifica com uma atividade
completamente diferente as antigas condições, o
que então pode ser especulativamente distorcido,
ao converter-se a história posterior na finalidade
da anterior, por exemplo, quando se atribui à
descoberta da América a finalidade de facilitar a
irrupção da Revolução Francesa, com o que a
história ganha finalidades à parte e torna-se uma
38

“pessoa ao lado de outras pessoas” [...] enquanto o


que se designa com as palavras “destinação”,
“finalidade”, “núcleo”, “ideia” da história anterior
não é nada além de uma abstração da história
posterior, uma abstração da influência ativa que a
história anterior exerce sobre a posterior. (MARX;
ENGELS, 2007, p. 40)

Se fôssemos responder à questão “era Marx um teleologista?” a


partir somente desse extrato de A Ideologia Alemã, certamente seríamos
compelidos a concluir que não há teleologia da história no pensamento
de Marx. Vemos aí que para Marx a história não é mais do que “o
suceder-se de gerações distintas”. O fato de que cada geração parta das
condições concretas de existência construídas pelas gerações anteriores
e às modifique, ampliando as forças produtivas da humanidade e
logrando obter melhores condições de existência do que aquelas que as
gerações anteriores puderam obter, pode levar-nos a pensar de forma
especulativa e distorcida, à maneira de Hegel, que o objetivo e a
finalidade de cada época anterior seja atingir maior maturação na sua
época posterior. Neste trecho, encontramos um Marx contrário ao
etapismo e à ideia de finalidade histórica. Aqui, exatamente ao contrário
de Hegel, a história é mero nexo temporal entre os acontecimentos.
Vejamos agora outro trecho, desta vez extraído da primeira parte
da obra A sagrada família, de 1844, também fruto da colaboração
intelectual entre Engels e Marx. Lá, escreve-se que
A história nada faz, “não possui riqueza imensa”,
“não trava combates”! Mas sim o homem, o
homem real e vivo que faz e possui tudo isso e
trava combates; não é, estejam certos, a história
que se utiliza do homem como um meio para se
realizar — como se ela fosse um personagem
particular — e as suas próprias metas; ela é
apenas a atividade do homem que prossegue com
seus objetivos. (ARON, 2005, p. 212-213, apud
MARX, 1844, p. 165)

“Era Marx um teleologista?” Vemos aí que o homem não é um


simples objeto utilizado pela história-sujeito para realizar suas próprias
“metas”, isto é, fins e fim. Na verdade, ocorre o contrário: são os
homens que, perseguindo seus próprios objetivos, criam a história. A
história é produto da ação dos homens, de sua práxis. Vemos aí um
Marx completamente contrário à ideia de uma história enquanto sujeito,
39

capaz de determinar os rumos de si própria, impor sua vontade aos seres


humanos, seguir suas próprias tendências e caminhar passo a passo para
a realização de sua própria meta. Aqui, não somente não há teleologia;
Marx é o seu mais severo crítico.
Vemos que, de fato, Marx se pronuncia a respeito da relação
entre o movimento histórico e a ação humana, mas aparentemente de
forma paradoxal e, à primeira impressão, de forma incoerente. Isso
explica porque diferentes pensadores marxistas, mesmo que nos
limitemos aos mais conhecidos entre eles, produziram interpretações
discordantes. Citemos, brevemente, três deles: Aron, Gramsci e
Thompson. E. P. Thompson, na obra A miséria da teoria, confirma a
existência de “historicismos” no interior do marxismo: “Não pretendo
negar que os séculos XIX e XX criaram autênticos e por vezes
monstruosos ‘historicismos’ (noções evolucionárias, teleológicas e
essencialistas da automotivação da ‘história’)”. Ele segue, afirmando
que também não nega “que esse mesmo historicismo impregnou certa
parte da tradição marxista, com a noção de uma sucessão programada de
‘fases’ históricas impulsionadas rumo a um fim predeterminado pela
luta de classes”. Ainda que esses historicismos tenham merecido a
“severa censura” da crítica, Thompson condena os ataques da maior
parte dos críticos porque entende que eles, ao invés de criticarem o
historicismo de determinado autor, criticaram todo o materialismo
histórico, julgando que o historicismo de um autor demonstrava o
historicismo do próprio método “sem uma investigação escrupulosa da
sua prática” (THOMPSON, 1981, p. 29). Para ele, portanto, o
historicismo não está presente no método criado por Marx, mas sim nos
escritos de certos autores da tradição marxista que se seguiram a ele. Por
outro lado, Gramsci, no décimo primeiro manuscrito dos Cadernos e
Cartas do Cárcere, afirma que a “concepção fatalista da filosofia da
práxis” teve “utilidade [...] para certo período histórico”. Por essa razão,
“pode-se fazer o seu elogio fúnebre”, portanto “sustentando a
necessidade de sepultá-la”, ainda que “com todas as honras cabíveis”
(MONASTA, 2010, p. 91). Vê-se aí que para Gramsci há teleologia em
Marx, e esse fatalismo cumpriu mesmo uma função social e histórica,
mas que já era tempo de deixa-lo de lado. Por fim, para Aron, “[Marx]
[...] nunca negou que o desenvolvimento das sociedades modernas [...]
devia e podia se diversificar de sociedade para sociedade em
consequência de múltiplos fatores.” Por essa razão, para ele, “está fora
de cogitação [...] atribuir ao modelo de desenvolvimento tirado do
exemplo inglês que se encontra em O Capital uma significação
exemplar do pensamento de Marx” (ARON, 2005, p. 557-558). Mas
40

este é o autor que, na mesma obra, afirma que a “explicação do modo de


funcionamento da economia capitalista” (ARON, 2005, p. 27) era para
Marx, ao mesmo tempo, “uma análise [...] do desenvolvimento
necessário da economia capitalista em direção à catástrofe final”
(ARON, 2005, p. 28). A questão é de tal maneira complexa que é
provável que ele não tenha conseguido esclarecer-se o suficiente sobre a
questão para tomar uma posição.
Em razão disso tudo, até pouco tempo acreditávamos, como
Aron, que “ao redor desse tema se cristalizam [...] todos os paradoxos,
[...] [e] todas as dificuldades de uma filosofia da história que, ao mesmo
tempo, anunciam um devir necessário e incita à ação revolucionária.”
No entanto, este não é o caso. De fato, hoje encontramo-nos plenamente
convencidos de que a correta compreensão da ontologia do ser social de
Marx permite não apenas resolver impasses teóricos tais como este, mas
também demonstrar que não há razão de ser neste debate. Para Marx, o
primeiro ato histórico da história humana foi a criação de um
instrumento de trabalho, que inicialmente fora apenas separado do
restante da natureza e tomado pelo ser humano com pretensões
finalísticas. A partir deste momento, o ser humano se descola da
existência puramente biológica, inaugurando uma nova esfera
ontológica da existência, a social, que possui uma história própria.
Desde o princípio, a história surge como resultado da ação dos seres
humanos, e ela não é mais do que a síntese dos diversos acontecimentos
humanos transcorridos ao longo do tempo. Ontologicamente, não faz
sentido perguntar sobre teleologia da história em Marx.
Ao mesmo tempo em que entrávamos em contato com a ideia de
uma ontologia do ser social em Marx, levados a tal interesse pela
possibilidade que vislumbrávamos de ver resolvidas de uma vez por
todas nossas dúvidas a respeito do suposto determinismo econômico de
Marx, da suposta teleologia da história em Marx, dos supostos
resquícios de metafísica hegeliana na dialética de Marx etc., entramos
em contato com o pensamento e Álvaro Vieira Pinto.
Tendo nascido em 1909, Álvaro Vieira Pinto se formou em
medicina pela Faculdade Nacional de Medicina em 1932.
Posteriormente, estudou matemática, física, e enfim filosofia,
defendendo uma tese de doutorado sobre a cosmologia em Platão em
1949. Em 1955, juntou-se ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros –
ISEB, órgão destinado a realizar pesquisas e divulgar as ciências sociais
no Brasil, assumindo o cargo de chefe do departamento de filosofia. Por
sua defesa das ideias desenvolvimentistas e pelo apoio às reformas de
base propostas por João Goulart, em 1964, após o Golpe Militar, o ISEB
41

viria a ser dissolvido. Tendo seus direitos políticos e liberdade de


cátedra cassados pelo AI-1, Vieira Pinto exilou-se na Iugoslávia entre
1964 e 1965, no Chile entre 1965 e 1968, mas voltou ao Brasil, em uma
espécie de acordo com o regime ditatorial, pouco antes da edição do
terrível AI-5. Desde então, viveu recluso, em uma espécie de prisão
domiciliar. Durante a década de 1970, trabalhou como tradutor de obras
diversas para a Editora Vozes, que assinava com diferentes
pseudônimos a fim de não chamar atenção e despertar a ira dos
militares. Após ser perseguido e ter seus direitos políticos cassados por
boa parte de sua vida pela Ditadura Militar, faleceu pouco tempo após a
redemocratização do país, em 1987. Publicou obras importantes como
Ideologia e Desenvolvimento Nacional (1956), Consciência e Realidade
Nacional (1960), Porque os ricos não fazem greve (1962), A questão da
universidade (1962) e Ciência e Existência (1969). Mas, em razão da
cassação dos direitos de Vieira Pinto pela Ditadura Militar, o filósofo
brasileiro teve sua obra esquecida. Ressurgido já muito tardiamente e de
forma ainda muito incipiente o interesse por sua obra, principalmente
em razão de sua relação com Paulo Freire, postumamente foram
publicadas outras duas de suas grandes obras: O conceito de tecnologia
(2005) e A sociologia dos países subdesenvolvidos (2008).
Tendo sido Vieira Pinto um intelectual destacadíssimo, tradutor
de diversas línguas e intelectual de ampla formação, sua obra resultou
muito complexa. Comparecem, à filosofia de Vieira Pinto, categorias
existencialistas, como a amanualidade, de Heidegger, categorias
hegelianas, como a negação da negação e a dialética senhor-escravo, e
categorias marxianas, como forças produtivas, alienação, classes sociais
antagônicas etc., entre outros autores/ideias. Sendo ainda incipientes os
estudos sobre o pensamento de Álvaro Vieira Pinto, atualmente
encontramos poucos intérpretes de seu pensamento. Os mais conhecidos
são certamente Norma Côrtes, Marcos Cezar de Freitas, Jorge Roux e
José Ernesto de Faveri, este último o responsável inclusive por descobrir
os manuscritos de A sociologia dos países subdesenvolvidos e de trazê-
los a público. Pela complexidade do pensamento e pela vasta quantidade
de referências que se podem perceber indiretamente em suas obras,
surgiu naturalmente o debate a respeito de quais seriam as maiores
influências intelectuais de Álvaro Vieira Pinto. Alguns, por exemplo, o
consideram um existencialista. Mas, ao entrar em contato com suas
obras, nos surpreendemos com a proximidade de algumas de suas ideias
com as de Marx, como aquelas que dizem respeito ao papel da atividade
sensível, em geral, e mais especificamente da práxis de trabalho, na
constituição da consciência e da sociabilidade humana em geral. São
42

muitas as críticas do filósofo brasileiro à metafísica e ao idealismo.


Vieira Pinto dá prioridade à matéria em relação à consciência, mas sem
retornar ao materialismo vulgar, oferecendo não explicações meramente
naturalistas, mas sim sempre ressaltando a historicidade da sociabilidade
humana e os aspectos que distinguem o tipo de ser humano dos tipos de
seres menos complexos, inorgânico e orgânico, com grande ênfase à
distinção da sociabilidade humana ao tipo de existência meramente
gregário de certos animais — portanto, abrindo mão de explicações
idealistas, que privilegiam a consciência e atribuem à ela a criação da
realidade objetiva, mas ao mesmo tempo indo além da proposta
naturalista de Aristóteles do homem como animal político (gregário). E,
se para Viera Pinto existem diferenças “existenciais” entre seres que
são, em última análise, distintos “existencialmente”, se Vieira Pinto
considera sempre adequado fundamentar seu pensamento nas distinções
que existem entre as características gerais do ser humano em relação às
características gerais do ser orgânico em geral, parece-nos que há em
seu pensamento, mesmo que de forma implícita, no mínimo alguns
elementos centrais de uma ontologia do ser social. Mas os intérpretes
do pensamento de Vieira Pinto, assim como os intérpretes de Marx
(feita a exceção à Lukács), não haviam até então se dado conta desta
implícita ontologia do ser social, que funda sobre uma sólida base
materialista histórica-dialética todo pensamento de Álvaro Vieira Pinto.
Ou seja: para nós, Álvaro Vieira Pinto seria, então, um marxista; ou, se
não se quiser arriscar tanto na avaliação, Vieira Pinto seria um pensador
muito original, capaz de combinar filosofias das mais diversas para
pensar o Brasil a partir de sua própria cabeça (para parafrasear a famosa
frase de Celso Furtado), mas que certamente fundava seu pensamento
sobre uma ontologia do ser social marxiana e elaborava
epistemologicamente seu pensamento através do materialismo histórico-
dialético. Se pudéssemos demonstrá-lo, daríamos uma grande
contribuição à compreensão e divulgação do pensamento de Álvaro
Vieira Pinto, e poderíamos ainda avançar em nossa aproximação ao
tema da ontologia do ser social. Assim nasceu nossa proposta de
investigação, aqui apresentada ao público como trabalho monográfico.
Em razão disso tudo que acima expusemos, o tema da presente
dissertação é o trabalho como fundamento da consciência e da
sociabilidade em Karl Marx e Álvaro Vieira Pinto. A pergunta de
pesquisa, que buscaremos aqui responder, é a seguinte: Qual a função
desempenhada pelo trabalho na constituição da consciência e da
sociabilidade no pensamento de Karl Marx e de Álvaro Vieira Pinto?
Nosso objetivo geral é investigar qual é a função desempenhada pelo
43

trabalho na constituição da consciência e da sociabilidade no


pensamento de Karl Marx e de Álvaro Vieira Pinto. E nosso objetivo
específico, único, é tornar explícita a função desempenhada pelo
trabalho na constituição da consciência e da sociabilidade no
pensamento Karl Marx e de Álvaro Vieira Pinto.
Para realizar tal tarefa, utilizaremos o método, se assim se quiser
chamar, de “eliminação parcial de algumas características das coisas e
conservação de outras” (PINTO, 2005, p. 57), para utilizar uma
expressão de Vieira Pinto, ou talvez o processo mental da abstração,
termo e método frequentemente utilizado por Marx, principalmente em
O Capital. Esse procedimento será necessário, como veremos, para,
abrindo mão das determinações formais dos fenômenos aqui analisados,
isto é, fazendo abstração das determinações formais, descobrir as
determinações que ainda permanecem, alcançando, portanto, as
determinações essenciais dos fenômenos. Cabe sempre enfatizar que se
assim se procede não é porque as determinações essenciais dos
fenômenos sejam a-históricas ou porque elas independam das formas
fenomênicas de manifestação desses fenômenos e sejam independentes
da história, mas sim porque essas determinações, por serem totalmente
dependentes de cada uma e de todas as diferentes épocas históricas, são
comuns a todas as épocas históricas. A essência, portanto, é locus de
continuidade — novamente fazendo alusão à expressão de Lukács —, é
o conjunto de determinações que permanece de uma época para outra,
embora as formas fenomênicas se revolucionem por completo. Discutir
as determinações essenciais do ser humano é necessário para responder
nossa pergunta de pesquisa porque não se está aqui pretendendo
explicar, por exemplo, o trabalho assalariado — que aparece não como
trabalho útil, mas como trabalho abstrato, produtor de valor e de
mercadorias — enquanto fundamento da consciência e da sociabilidade
burguesa. Aqui, buscamos discutir o papel do trabalho como
fundamento da consciência e da sociabilidade “independentemente” de
qualquer formação social. Este expediente não se configura em um
expediente a-histórico ou metafísico na medida em que somente se pode
falar que o trabalho enquanto fundamento da consciência e da
sociabilidade independe de determinadas formas sociais de manifestação
desse fenômeno na medida em que tal fenômeno se manifesta em todas
as diferentes formações sociais, sendo comum a todas elas.
Buscaremos tais determinações essenciais nas obras de Karl Marx
e Álvaro Vieira Pinto em que, a nosso ver, pode-se encontra-las de
forma mais evidente. Tais obras são as seguintes: de Karl Marx, O
Capital (livros 1 e 3), Cadernos de Paris, Manuscritos Econômico-
44

Filosóficos, A ideologia alemã e Grundrisse — obras que utilizamos de


forma mais ampla —, Contribuição à crítica da economia política, O 18
de brumário de Luís Bonaparte e Crítica da filosofia do direito de
Hegel — obras que utilizamos de forma bastante restrita, nos limitando
a poucas passagens; de Álvaro Vieira Pinto, Consciência e Realidade
Nacional (volumes I e II), Porque os ricos não fazem greve, O conceito
de tecnologia (volume I) e A sociologia dos países subdesenvolvidos.
Compreendemos o ser humano como um ser que, antes de tudo, é
um animal, mas que é dotado da capacidade privativa de organizar-se
em sociedade para transformar a natureza de forma consciente para
torna-la mais adequada à satisfação das suas necessidades específicas.
Desde o princípio de nosso texto, é o próprio ser humano, assim
compreendido e como um todo, que comparece. A primeira frase do
texto será “O ser humano é, antes de tudo, um animal”, porque o ser
humano é o ponto de partida da reflexão teórica. Ele é apresentado de
forma muito abstrata em princípio, mas vai recebendo determinações
essenciais adicionais ao longo de todo o trabalho monográfico, de modo
que ao final devemos retornar ao nosso ponto de partida. No entanto,
para responder nossa pergunta de pesquisa, devemos tratar
separadamente as categorias trabalho, consciência e sociabilidade, como
capítulos separados, e nesta ordem, de modo a apresentar o trabalho
como fundamento da consciência e da sociabilidade. Por essa razão, no
primeiro capítulo, ao tratar sobre o trabalho, não faremos referência à
consciência ou à sociabilidade, que serão tratadas em seus capítulos
específicos. No entanto, e isso precisa ficar claro ao leitor, não é
possível a nenhum indivíduo humano de fato trabalhar se este não
possuir consciência e não se relacionar socialmente com seus
semelhantes. Assim, embora no primeiro capítulo não se faça referência
à consciência ou à sociabilidade, elas estão desde o princípio
pressupostas, de modo que assim se pode falar de indivíduos que
transformam a natureza com pretensões finalísticas e teleológicas.
Portanto, a abstração que se realiza no primeiro capítulo é a seguinte:
para compreender a totalidade que é a essência do ser humano,
deixaremos momentaneamente de lado as considerações que poderíamos
realizar sobre a consciência e a sociabilidade para nos focarmos nas
considerações necessárias sobre o trabalho. No entanto, como já
dissemos, desde o princípio, as categorias consciência e sociabilidade e
o próprio ser humano em sua totalidade está presente de maneira
pressuposta. No segundo capítulo, através do mesmo procedimento
metodológico, ao tratar sobre a consciência, não faremos referência à
sociabilidade, mas ao tratar a respeito da consciência poderemos já
45

articulá-la à categoria trabalho. Procedendo assim, damos atenção


também às mediações existentes entre trabalho e consciência. No
terceiro e último capítulo, que trata sobre a sociabilidade, trabalho e
consciência não precisarão ser pressupostas, de modo que poderemos
expor o que Marx e Vieira Pinto pensam a respeito da sociabilidade ao
mesmo tempo em que relacionamos as três categorias entre si,
mostrando as mediações entre elas existentes para, por fim, descobrir o
trabalho como fundamento das outras duas categorias. Como, para o
materialismo histórico-dialético, uma partícula de qualquer todo só pode
ser compreendida a partir das suas determinações próprias e da sua
relação com as determinações próprias das outras partículas que compõe
o todo, em razão de nosso modus operandi, apesar de no primeiro
capítulo nos limitarmos a analisar a categoria trabalho, apenas ao final
do terceiro capítulo todo o conjunto de determinações humanas
essenciais que é necessário a explicar o trabalho estará presente, de
modo que ele se converterá em produção. Por essa razão, conforme
avançamos em nossa análise sobre a consciência e sobre a sociabilidade,
a própria análise do trabalho ganha novos elementos que o constituem.
Da mesma forma, no segundo capítulo, a própria análise da consciência
é articulada com o debate sobre o trabalho realizado no primeiro
capítulo, mas conforme avançamos, no terceiro capítulo, em nossa
análise sobre a sociabilidade, a própria análise da consciência ganha
novos elementos que a constituem, de modo que aquilo que é
apresentado como reflexo ideal da natureza externa no segundo capítulo
é apresentado como reflexo ideal da realidade social. Assim, no capítulo
sobre a sociabilidade, as determinações complementares e as mediações
existentes entre as três categorias devem vir a pleno ao texto, não mais
de forma pressuposta, mas de forma explícita. Ao final deste percurso,
ao voltarmos a nosso ponto de partida, i. é., o ser humano, chegaremos a
compreendê-lo como síntese de suas múltiplas determinações, razão
pela qual cada indivíduo humano se revelará, ao final de nossa análise,
como uma partícula genérica de um ser que se organiza de forma social
para conscientemente transformar a natureza para nela subsistir. Todo
este procedimento é completamente compatível com o materialismo
histórico dialético de Marx e, esperamos que fique claro, também com o
de Vieira Pinto, inclusive porque este se trata do único modo possível ao
ser humano de esclarecer-se sobre os fenômenos concretos, bastando
que sejamos capazes de realiza-lo de forma consciente e sem distorções
especulativas.
Apenas mais uma consideração, certamente teórica, mas também
estilística: optamos por utilizar um grande número de citações de ambos
46

os autores ao longo de todo o trabalho monográfico. Apesar de


aparentemente sobrecarregar o texto, como se trata de um tema, como
vimos, controverso, optamos por sempre citar as palavras dos próprios
autores ao invés de simplesmente correr livremente com nossa análise
de suas filosofias. Apesar de eventual débito estilístico, acreditamos que
proceder assim é fundamental para que o leitor possa confrontar, a cada
novo passo da análise, a interpretação que fazemos com os textos da
lavra dos próprios filósofos analisados. E, apesar do débito estilístico,
buscamos sempre tornar a leitura o mais fluida possível. Além disso,
esperamos que o leitor compreenda que esta se trata, antes de tudo, da
nossa própria interpretação dessas filosofias, já que todas as citações se
encontram totalmente dispersas ao longo de obras diversas dos dois
filósofos, e que todo ordenamento e análise das referidas citações na
estrutura aqui proposta por nós já é, por si só, o resultado de nossa
interpretação pessoal.
Vamos, então, à tarefa.
47

2 - O SER HUMANO COMO UM ANIMAL QUE CARECE E


TRABALHA

O ser humano é, antes de tudo, um animal. “Que a vida física [...]


do homem esteja em conexão com a natureza”, afirma Marx, “não tem
outro sentido senão que a natureza está em conexão com ela própria,
pois o homem é uma parte da natureza.” (MARX, 2015, p. 311) E, como
todo animal, o ser humano é um ser que carece. Afirmar que ele assim o
seja significa dizer que ele carece de coisas externas a ele, distintas dele,
já que obviamente seria insensato pensar que o objeto de seu
carecimento fosse ele próprio. Afirmar que ele assim o seja significa
dizer, portanto, que ele não se basta a si próprio, que a necessidade é
parte de seu próprio ser e que sua subsistência não está garantida desde
logo e para sempre.
Este traço ontológico mais geral e abstrato é compartilhado pelo
ser humano com todos os outros entes viventes, sejam eles outros
animais ou mesmo plantas. “Tanto entre os homens quanto entre os
animais”, afirma Marx, “a vida genérica” “fisicamente consiste primeiro
em que o homem (tal como o animal) vive da natureza inorgânica”
(MARX, 2015, p. 310). Todos os seres vivos necessitam retirar do
ambiente certos elementos engendrados pela natureza que são
necessários à reprodução da sua própria vida, e, por ser um animal, o ser
humano não faz exceção: “a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem
de permanecer em constante processo para não morrer.” (MARX, 2015,
p. 311)
“O primeiro pressuposto de toda a história humana”, afirma
Marx, é “a existência de indivíduos humanos vivos”. E o ser humano
não vive abstratamente, fantasmagoricamente, flutuando como uma
consciência sobre o mundo. Se o ser humano vive, “o primeiro fato a
constatar é [...] a organização corporal desses indivíduos e [...] sua
relação dada com o restante da natureza” (MARX e ENGELS, 2007, p.
87). É por essa razão que, para compreender a humanidade e sua
história, “[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de
toda existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para
poder ‘fazer história” (MARX e ENGELS, 2007, p. 32-33), e que “para
viver”, prossegue Marx, “precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida,
moradia, vestimenta e algumas coisas mais.” (MARX e ENGELS, 2007,
p. 32-33) Em uma concepção materialista da humanidade e de sua
história, não se pode começar pela negação da natureza, porque o ser
humano é, em primeiro lugar, uma parte da natureza e, em segundo
48

lugar, porque sua condição natural lhe obriga a permanecer em conexão


com a natureza para se manter vivo.
Mas Marx não trata o ser humano como se sua existência se
limitasse ao tipo biológico de existência, como se o ser humano, em sua
totalidade, fosse idêntico aos outros seres vivos. Esta não é a realidade
humana. O fato de o ser humano carecer de objetos naturais externos
significa apenas que ele está fisicamente em situação análoga ou paralela
à dos outros seres vivos, mas não que é idêntico a eles em sua
totalidade, porque a sua “natureza interna” difere da natureza dos outros
seres vivos. O tipo especificamente humano de existência se difere do
tipo de existência dos outros seres vivos em muitas características
típicas, como a consciência humana e irracionalidade animal, para citar
apenas uma delas. No entanto, para Marx, por mais que seja possível,
como se fez ao longo da história da filosofia, “distinguir os homens dos
animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira”, os seres
humanos objetivamente “começam a se distinguir dos animais tão logo
começam a produzir seus meios de vida [...].” (MARX e ENGELS,
2007, p. 87) Investigar o modo através do qual o ser humano produz
seus meios de vida, portanto, é investigar como o ser humano se
diferencia dos demais seres vivos. É por essa razão que as categorias
trabalho e produção, que dizem respeito ao modo através do qual o ser
humano realiza a sua atividade vital, possuem a mais alta relevância
filosófica.
Marx pondera que “[...] o animal também produz. Constrói para-
si um ninho, habitações, como as abelhas, castores, formigas etc.” No
entanto, as características deste “produzir” animal diferem
completamente do tipo de produção humana. Um animal “produz apenas
o que necessita imediatamente para-si ou para a sua cria; produz
unilateralmente [...]; produz apenas sob a dominação da necessidade
física imediata [...]; produz-se apenas a si próprio [...]; o seu produto
pertence imediatamente ao seu corpo físico [...].” (MARX, 2015, p. 312-
313) Nenhum animal, à exceção do ser humano, se confronta com a
natureza como uma força livre. A atividade animal é determinada pela
própria natureza interna do animal, que determina os objetos externos
engendrados pela natureza que são capazes de satisfazer as necessidades
animais. Se o animal os encontra, ele pode então satisfazer-se, embora
apenas de forma imediata. Se o encontra em demasia, não é capaz de
confrontar o objeto de sua necessidade de forma livre, e o consome
apenas na medida da sua necessidade imediata, e do restante se desfaz.
Se não o encontra, perece, porque não pode confrontar a natureza
livremente, porque o objeto de sua necessidade lhe é imposto pela sua
49

própria biologia. Essa atividade típica do animal, de busca pelo objeto


de sua necessidade e o consumo do mesmo, não modifica o animal, não
é capaz de modificar sua natureza interna, de modo que o animal
irracional permanece sempre se relacionando com a natureza como uma
“determinabilidade”. “O animal é imediatamente um com a sua
atividade vital. Não se diferencia dela. É ela.” (MARX, 2015, p. 312)
Todas essas características são distintas no ato de produzir
humano, e a diferença é de tal ordem qualitativa que provavelmente
seria muito mais sensato afirmar simplesmente que a utilização da
categoria “produção” para explicar certos comportamentos animais foi
apenas um equívoco de Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos
de 1844, cuja utilização ele abandona nas obras da fase madura. Ao
tratar sobre o trabalho no capítulo quinto d’O Capital, por exemplo,
Marx adverte que trata do “trabalho numa forma em que ele diz respeito
unicamente ao homem.” (MARX, 2017, p. 255) As características desse
produzir humano, segundo Marx, são as seguintes: “o homem produz
universalmente; [...] produz mesmo livre da necessidade física e só
produz verdadeiramente na liberdade da mesma; [...] o homem reproduz
a natureza toda; [...] confronta livremente o seu produto.” (MARX,
2015, p. 312-313) Desta forma, “o trabalho, a atividade vital, a própria
vida produtiva”, que “em primeiro lugar” “aparecem ao homem apenas
como um meio para a satisfação de uma necessidade”, a “necessidade da
manutenção da existência física” (MARX, 2015, p. 311), em razão de
suas características próprias remete o ser humano sempre para além da
sua própria constituição puramente biológica e natural: “Agindo sobre a
natureza externa [...] ele modifica [...] sua própria natureza. Ele
desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de
suas forças a seu próprio domínio.” (MARX, 2017, p. 255)
No entanto, antes de avançarmos mais no debate sobre como, no
trabalho, o ser humano transforma a si próprio, fazendo com que cesse o
poder da natureza de determinar seus atos, tornando-se um ser livre,
qualitativamente distinto dos outros seres vivos, devemos deixar claro
de qual “trabalho” e de qual “produção” falamos.
Logo no princípio do capítulo quinto de O Capital, capítulo
dedicado à análise do processo de trabalho, Marx afirma o seguinte:
A produção de valores de uso ou de bens não
sofre nenhuma alteração em sua natureza pelo fato
de ocorrer para o capitalista e sob seu controle,
razão pela qual devemos, de início, considerar o
processo de trabalho independentemente de
50

qualquer forma social determinada. (MARX,


2017, p. 255)

Vemos aí que Marx anuncia que trata de uma abstração do


trabalho, isto é, do trabalho abstraído de suas determinações mais
imediatas próprias do sistema capitalista ou de qualquer outra formação
social. Se no início do capítulo quinto d’O Capital Marx analisa o
processo de trabalho abstraído das determinações próprias de qualquer
formação social em particular, isso significa dizer que lá ele analisa a
essência do trabalho. Mas esta afirmação possui um significado muito
mais profundo do que uma simples advertência de ordem metodológica.
Certamente, captar as determinações mais abstratas do trabalho significa
alcançar sua essência; mas alcançar as determinações que sempre se
repetem, e por necessidade, no interior das diversas formações sociais
da história humana, significa captar suas características ontológicas
mais gerais, sua “natureza”, que “não sofre nenhuma alteração” por
mais que seja evidentemente atravessada pelas determinações mais
concretas próprias de cada uma das diversas formações sociais
históricas. “O processo de trabalho, [...] em seus momentos simples e
abstratos”, escreve Marx, é “condição universal do metabolismo entre
homem e natureza, perpétua condição natural da vida humana e, por
conseguinte, independente de qualquer forma particular dessa vida, ou
melhor, comum a todas as suas formas sociais” (MARX, 2017, p. 261).
Evidentemente, a forma de trabalhar muda de época para época,
tanto em razão das mudanças nas relações sociais de produção quanto
em razão das mudanças de procedimentos de trabalho (como mudanças
técnicas, utilização de matérias-primas diferentes, de utilização de mais
e melhores meios de produção, etc.). Da mesma forma, pode-se falar de
uma tal “essência do trabalho” que é determinada histórica e
socialmente, em razão das determinações essenciais privativas a cada
uma das diferentes formas particulares da vida social, que constituem
portanto a sua essência própria e que determina a essência das formas de
trabalhar existentes nessas sociedades em particular (trabalho escravo,
trabalho servil e trabalho assalariado). No entanto, quando falamos de
uma essência do trabalho que é “condição universal do metabolismo
entre homem e natureza”, que é “perpétua condição natural da vida
humana” (MARX, 2017, p. 261), falamos de uma essência que não é
privativa de alguma forma social específica, dado que se assim o fosse
desapareceria quando do desaparecimento desta forma social específica;
falamos, portanto, de uma essência ontológica do trabalho, das
determinações necessárias e insuperáveis da relação do ser humano com
51

a natureza. É por isso que lá no capítulo quinto d’O Capital Marx não
sente a “necessidade de apresentar o trabalhador em sua relação com
outros trabalhadores”, e pode se “limitar ao homem e seu trabalho, de
um lado, e à natureza e suas matérias, de outro.” (MARX, 2017, p. 261)
Conforme já vimos, nosso expediente, aqui, será o mesmo.
Vemos, portanto, que Marx deixa implícita a existência de dois
conjuntos de determinações distintos que coexistem no interior da
essência do trabalho, cada um deles referente a um nível histórico
distinto. Isso ocorre porque, para Marx, a essência dos fenômenos
humanos não é fixa ou imóvel, como se fosse um conceito
indeterminado (à maneira do Espítito hegeliano) ou dada à priori, mas
transmuta-se, vai “acumulando” as experiências diversas da história da
vida social. O fenômeno da alienação consiste, antes de tudo, no fato de
que o conjunto de determinações privativas de uma determinada forma
social realiza a suprassunção do conjunto de determinações universais.
Assim, no capitalismo o trabalho possui forma e essência determinadas
pela formação capitalista: suas formas são os diversos modos empíricos
do trabalho útil; sua essência é o trabalho assalariado, mercantil e
alienado. Mas há outra essência do trabalho aí presente, e que é a mesma
que foi presente no feudalismo, no escravismo e em todas as diferentes
formações sociais: o trabalho compreendido enquanto “condição
universal do metabolismo entre homem e natureza” e como “perpétua
condição natural da vida humana” (MARX, 2017, p. 261), que pode
certamente ser suprassumido pelas determinações essenciais de
determinada formação social alienada, mas que não pode jamais, por ser
insuperável e necessária, ser negada do ponto de vista lógico-formal.
Marx explica que “todas as épocas da produção tem certas
características em comum, determinações em comum. A produção em
geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que
efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da
repetição.” Sem estas determinações essenciais comuns a todas as
épocas, “nenhuma produção seria concebível”, porque algumas
determinações são “comuns à época mais moderna e à mais antiga”.
Quando são “corretamente isoladas” as “determinações que valem para
a produção em geral”, encontramos uma “unidade – decorrente do fato
de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos”.
(MARX, 2011, p. 41) Portanto,
[...] para todos os estágios da produção há
determinações comuns que são fixadas pelo
pensamento como determinações universais; mas
as assim chamadas condições universais de toda
52

produção nada mais são do que esses momentos


abstratos, com os quais nenhum estágio histórico
efetivo da produção pode ser compreendido.
(MARX, 2011, p. 44)

Vemos que para descobrir as determinações essenciais e


universais do trabalho, precisamos fazer abstração das suas
determinações formais e também das determinações essenciais
exclusivas de certas formas históricas da vida social. Procedendo assim,
captaremos as suas determinações universais, comuns a todas as épocas
históricas. Como já mencionamos, em O Capital Marx procede da
mesma maneira, e pela mesma razão. Apesar de proceder
metodologicamente dessa maneira, nunca podemos perder de vista o
fato de que um indivíduo humano trabalhando isoladamente, sem
estabelecer relações com outros indivíduos humanos, é uma abstração
irreal, que jamais se pode observar na história efetiva, cuja existência só
pode ocorrer na cabeça dos ideólogos do capital, em suas robinsonadas
ideais. Além disso, não podemos perder de vista que essa análise das
determinações universais da essência do trabalho não é capaz de
explicar as especificidades das suas formas concretas de manifestação,
historicamente determinadas, sendo totalmente insuficiente para
analisar, por exemplo, o capitalismo ou as transformações do mundo do
trabalho em nossos dias: “Assim como o sabor do trigo não nos diz nada
sobre quem o plantou, tampouco esse processo [analítico] nos revela sob
quais condições ele [o trabalho] se realiza, se sob o açoite brutal do
feitor de escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista [...].” (MARX,
2017, p. 261)
Mas, qual é, então, essa natureza, essa essência ontológica do
trabalho, que é comum a todas as diferentes épocas históricas? “Antes
de tudo”, escreve Marx, “o trabalho é [...] um processo entre o homem e
a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação,
medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza.” (MARX,
2017, p. 255) Nesta passagem, fica claro o caráter ativo e
autodeterminado da produção humana, que imediatamente o separa do
reino da simples animalidade, que se limita a consumir aquilo que a
natureza determina ser objeto para seu consumo. Mas Marx diz muito
mais. Para ele, o trabalho é o processo no qual, “a fim de se apropriar da
matéria natural de uma forma útil para sua própria vida”, o ser humano
“põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade:
seus braços e pernas, cabeça e mãos.” (MARX, 2017, p. 255) Mas a
matéria natural não possui, em si mesma, “utilidades”, mas sim
53

propriedades. É o ser humano que, à sua maneira, atribui para cada


propriedade de cada objeto natural alguma utilidade, que só possui
sentido para ele próprio. Isso ocorre porque, diferentemente dos demais
seres vivos, o ser humano não se limita a meramente apropriar-se da
matéria natural, separando os objetos naturais capazes de satisfazerem
suas necessidades do restante da natureza. Trabalhar significa, antes de
tudo, criar algo novo, objetivar no mundo um objeto não-natural, que a
própria natureza não possui capacidade para engendrar. “Sob esse ponto
de vista”, diz Marx, o trabalho “será sempre considerado em relação a
seu efeito útil” (MARX, 2017, p. 119), que é o de produzir coisas úteis,
isto é, valores de uso. O trabalho “é atividade orientada a um fim – a
produção de valores de uso [...].” (MARX, 2017, p. 261) Se os valores
de uso serão produzidos sob a forma de simples produtos ou bens, isto é,
simplesmente como valores de uso, ou, no interior das formações sociais
mercantis, como mercadorias, isso não altera em nada a questão
essencial. Do ponto de vista essencial, o objeto que representa um valor
de uso, independentemente de sua forma, “[...] é, antes de tudo, um
objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz
necessidades humanas de um tipo qualquer.” (MARX, 2017, p. 113) Vê-
se, portanto, que o trabalho é a atividade criadora do ser humano, e que
sua finalidade ontológica é a produção dos bens necessários para a
satisfação das necessidades humanas. “A natureza dessas necessidades –
se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não
altera em nada a questão.” (MARX, 2017, p. 113)
Na sua atividade transformadora, para se tornar capaz de produzir
algo que a própria natureza é incapaz de engendrar, os seres humanos
necessitam estabelecer mediações entre eles próprios e a natureza. O
processo de trabalho, segundo Marx, possui três momentos simples. O
primeiro deles é “o trabalho propriamente dito”, i. é., a atividade
transformadora da natureza que o ser humano executa; o segundo é o
“seu objeto” de trabalho, i. é., o elemento natural que o ser humano
toma para si como alvo da ação transformadora, com o fim de
modificar-lhe a forma para negá-lo como objeto imediatamente dado
pela natureza e afirma-lo como bem dotado das características
necessárias para satisfazer uma necessidade humana qualquer; o terceiro
são os “seus meios” (MARX, 2017, p. 256) de trabalho, i. é., as
ferramentas que o ser humano interpõe entre si mesmo e o objeto de
trabalho de modo a impor à este último a transformação desejada. Marx
explica que “jamais deixa de existir a situação em que o trabalhador,
além do trabalho para a obtenção de meios de subsistência necessários,
emprega trabalho para produzir meios de produção.” (MARX, 2017b, p.
54

912) Isso ocorre porque a existência de instrumentos de trabalho é um


pressuposto da produção dos valores de uso destinados à satisfação das
necessidades dos indivíduos humanos: “nenhuma produção é possível
sem um instrumento de produção” ou “sem trabalho passado,
acumulado”. (MARX, 2011, p. 41)
No processo de trabalho, afirma Marx, “com ajuda dos meios de
trabalho” (MARX, 2017, p. 258) — que é “uma coisa ou um complexo
de coisas que o trabalhador interpõe entre si e o objeto do trabalho e que
lhe serve de guia de sua atividade” (MARX, 2017, p. 256) — “a
atividade do homem” “opera uma transformação do objeto do trabalho”
(MARX, 2017, p. 258), sendo que existem dois tipos de objetos de
trabalho: os preexistentes e as matérias-primas. Os objetos de trabalho
preexistentes são aqueles “que o trabalho apenas separa de sua conexão
imediata com a totalidade da terra”, que portanto são objetos naturais,
que preexistem em relação ao trabalho humano. Marx os exemplifica:
“Assim é o peixe, quando pescado e separado da água, [...] ou a madeira
que se derruba na floresta virgem, ou o minério arrancado de seus
veios.” Já a matéria-prima é um objeto de trabalho “já [...] filtrado por
um trabalho anterior”, i. é, já trabalhado anteriormente. “O objeto de
trabalho só é matéria-prima quando já sofreu uma modificação mediada
pelo trabalho.” Marx os exemplifica também: “por exemplo, o minério
já extraído da mina e que agora será lavado”. (MARX, 2017, p. 256) Por
fim, o processo de trabalho, a atividade humana transformadora da
natureza, que se utiliza de um instrumento de trabalho para transformar
o objeto de trabalho, “se extingue no produto”, que “é um valor de uso,
um material natural adaptado às necessidades humanas por meio da
modificação de sua forma.” (MARX, 2017, p. 258)
Quando um indivíduo humano conclui o processo de trabalho, o
trabalho é incorporado ao objeto; o trabalho “está objetivado, e o objeto
está trabalhado.” Aquilo que durante o processo de trabalho “aparecia
sob a forma do movimento”, na sua conclusão, “se manifesta, do lado do
produto, como qualidade imóvel, na forma do ser” (MARX, 2017, p.
258), portanto como um objeto sensível externo. Dessa forma, ao
trabalhar, o ser humano produz objetos externos previamente
inexistentes, e que a natureza é incapaz de engendrar por conta própria.
De certa forma, a própria humanidade é objetivada na forma do produto,
dado que ele é fruto de suas qualidades privativas, que o diferenciam do
restante da natureza, que dizem respeito apenas a ele próprio. Ao
objetivar no mundo um objeto dotado de qualidade nova, a humanidade
aumenta a área do mundo natural que foi antropomorfizada. Os objetos
naturais transformados qualitativamente pela ação humana se tornam
55

assim humanidades objetivadas. Por isso, com o passar das sucessivas


gerações humanas, o mundo, pouco a pouco, foi sendo transformado por
inteiro pela ação humana. A produção, a “vida genérica operativa” dos
seres humanos, que precisa ser realizada todos os dias por imposição
natural, vai progressivamente antropomorfizando toda a natureza. Em
razão da produção, “a natureza aparece como obra sua [dos seres
humanos] e sua realidade.” (MARX, 2015, p. 313)
A área do mundo natural antropomorfizada pela ação humana se
amplia constantemente porque nem todo valor de uso determinado,
resultado de um processo de produção determinado, é destinado ao
consumo individual como meio de subsistência. Se assim o fosse, nada
daquilo que foi criado pelo ser humano teria uma existência sustentada
no tempo, já que seu aparecimento seria seguido de seu imediato
consumo por parte de um indivíduo humano. Mas, para sermos precisos,
é necessário admitir que a maior parte dos produtos do trabalho
resultantes dos mais diversos ramos de produção são valores de uso
destinados a serem consumidos no interior de outros processos
produtivos. Explica Marx que “[...] grande parte do consumo não é
consumo para o uso imediato, mas consumo no processo de produção,
por exemplo, consumo em máquinas, carvão, óleo, edificações
necessárias etc.” (MARX, 2011, p. 337) “Com exceção da indústria
extrativa, [...] todos os ramos da indústria manipulam um objeto, a
matéria-prima, [...] um objeto de trabalho já filtrado pelo trabalho, ele
próprio produto de um trabalho anterior”. (MARX, 2017, p. 259) Surge,
portanto, a categoria do consumo produtivo. “O trabalho consome seus
elementos materiais, seu objeto e seu meio; ele os devora e é, assim,
processo de consumo.” À diferença do consumo individual, que
“consome os produtos como meios de subsistência do indivíduo vivo”, o
consumo produtivo “os consome como meios de subsistência do
trabalho, da força ativa de trabalho do indivíduo.” O trabalho, portanto,
“consome produtos como meios de produção de outros produtos.”
(MARX, 2017, p. 261)
Marx divide este consumo que ocorre no interior da produção, o
consumo produtivo, em dois tipos: o consumo objetivo e o consumo
subjetivo. O consumo objetivo é este acima analisado, no qual ocorre o
“consumo dos meios de produção que são usados e desgastados” e o
“consumo da matéria-prima, que não permanece com sua forma e
constituição naturais”. O consumo subjetivo, por sua vez, é o consumo
das capacidades humanas na produção: “O indivíduo que desenvolve
suas capacidades ao produzir também as despende, consome-as no ato
da produção, exatamente como a procriação natural é um consumo de
56

forças vitais”. Trata-se, portanto, do consumo das capacidades do


produtor, tanto as objetivas (de sua matéria, energia, movimento, etc.)
quanto as subjetivas (relacionadas a seu psiquismo, que analisaremos
mais a frente). Ao consumir objetos naturais, matérias-primas e mesmo
a subjetividade daquele que trabalha, “o próprio ato de produção”
demonstra ser, “em todos os seus momentos, também um ato de
consumo.” (MARX, 2011, p. 45)
Nessas afirmações já está contida, embora de forma implícita,
uma determinação fundamental daquilo que se chamam “necessidades
humanas”, que nos cabe explicitar. Aqueles que são capazes de pensar
apenas do ponto de vista lógico-formal, seja por interesse ideológico ou
por ignorância filosófica, costumam imaginar o consumo como simples
modo através do qual um “indivíduo isolado” satisfaz suas
“necessidades individuais” ao “tomar para si” determinado valor de uso
“produzido por ele próprio”. Esse é um conceito metafísico de consumo,
que deriva do conceito metafísico de indivíduo. Cabe explicitar que
como a produção dos valores de uso destinados à satisfação das
necessidades dos indivíduos humanos não pode ser realizada sem que
sejam produzidas as matérias-primas e os instrumentos de trabalho
necessários para levar a cabo tal produção, a própria produção de meios
de trabalho e de matérias-primas é também uma necessidade humana.
Aqui, vemos o que se compreende por necessidade ganhar uma nova
determinação, e se tornar um conceito mais amplo do que aquele ao qual
podemos alcançar através de um ponto de vista unicamente lógico-
formal. O ser humano “não simplesmente consome o seu produto [de
forma imediata], mas cria também meios de produção” (MARX, 2011,
p. 48). Marx é enfático: “jamais deixa de existir a situação em que o
trabalhador, além do trabalho para a obtenção de meios de subsistência
necessários, emprega trabalho para produzir meios de produção.”
(MARX, 2017b, p. 912) Voltaremos a isso mais a frente.
Vemos que o trabalho, de forma imediata, e principalmente a
produção, em sua totalidade, necessitam da existência prévia de
adequados instrumentos e meios de produção. E a capacidade de criar os
instrumentos de trabalho é outro fator que separa o tipo de existência
humana do tipo de existência puramente natural dos outros seres vivos.
Em passagem muito conhecida do capítulo quinto d’O Capital, Marx
afirma que a capacidade de criar instrumentos de trabalho “é uma
característica específica do processo de trabalho humano, razão pela
qual Franklin define o homem como ‘a toolmaking animal’, um animal
que faz ferramentas.” (MARX, 2017, p. 257) Estes objetos, que como
vimos acima vão se acumulando ao sucederem-se as gerações humanas,
57

vão povoando o mundo de objetos antropomorfizados, transformando


progressiva e amplificadamente a realidade objetiva externa. Assim, “ao
produzir seus meios de vida”, i. é., os valores de uso necessários à
reprodução da sua vida, “os homens produzem, indiretamente, sua
própria vida material” (MARX e ENGELS, 2007, p. 87), i. é., todo seu
entorno objetivo.
O ser humano é, antes de tudo, um animal, um ser objetivo que
carece. Em razão disso, “em primeiro lugar, o trabalho, a atividade vital,
a própria vida produtiva, aparecem ao homem apenas como meio para a
satisfação de uma necessidade, da necessidade da manutenção física.”
(MARX, 2015, p. 311) Mas, como “no modo de atividade vital reside
todo o caráter de uma species” (MARX, 2015, p. 311-312) e como o
modo de realização da atividade vital humana distingue-se
qualitativamente do modo de realização da atividade vital de todos os
outros seres vivos, o próprio ser humano distingue-se qualitativamente
do ser natural. Tratam-se, portanto, de tipos de seres diferentes. A
princípio, “[...] a natureza fornece [...] o meio de vida no sentido estrito;
a saber, o meio da subsistência física [...]” (MARX, 2015, p. 306), e
“fisicamente, o homem só vive desses produtos da natureza, possam eles
aparecer agora na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação,
etc.” (MARX, 2015, p. 311.). Mas tão logo começa a produzir, a
humanidade desdobra-se em si mesma, vai além da própria natureza,
transforma-se em ser de qualidade e complexidade superior. Ainda
assim, “[...] na medida em que se considerem os homens como distintos
da natureza [...]” (MARX e ENGELS, 2007, p. 32), afirma Marx, “[...]
subsiste, sem dúvida, a prioridade da natureza exterior [...]” (MARX e
ENGELS, 2007, p. 31). Assim, a natureza, que dá o primeiro impulso à
atividade humana em razão de sua imposição, forçando a humanidade a
trabalhar para subsistir, progressivamente é transformada pela atividade
humana, e vai ela própria antropomorfizando-se. É por isso que, no caso
deste animal especial, que superou a mera animalidade, “a própria vida
[biológica] aparece apenas como meio de vida [humana, social, etc.]”
(MARX, 2015, p. 311-312), i. é., a própria existência biológica aparece
não como uma determinabilidade de sua atuação, como no caso dos
outros seres vivos, mas como meio de humanização autodeterminada do
ser humano e como humanização da própria natureza.
Deixemos o pensamento de Marx por um instante, e nos
concentremos no que pensa Vieira Pinto a respeito do ser humano e do
trabalho. Para o filósofo brasileiro, antes de tudo, “[...] o homem é um
ser vivo [...].” (PINTO, 1962, p. 10) Em outro lugar, ele o chama de
“[...] animal humano [...]” (PINTO, 2005, p. 59). A princípio, portanto,
58

ele é parte da natureza, e só pode viver nela: “O homem é um ser vivo


destinado a viver necessariamente na natureza.” (PINTO, 2005, p. 37)
Por ser assim, ele é um ser que carece. Todo ser vivo, “transporta
naturalmente, por ser matéria viva, contradições com a natureza inerte”
(PINTO, 2005, p. 60), contradições que ele precisa resolver para manter-
se vivo. É a própria natureza que impõe a todos os seres vivos a
necessidade de obter os elementos imprescindíveis à manutenção da sua
existência, de modo que eles necessitam “resolver uma contradição com
o mundo físico, para conservação da vida mediante a alimentação, ou
seja, a renovação das reservas que servirão de fonte de energia, ou a
defesa do indivíduo e da espécie, pelo abrigo e a proteção da prole.”
(PINTO, 2005, p. 61-62) A necessidade de resolver essa contradição
dialética primeira e prioritária forçosamente mantém os seres vivos em
conexão com a própria natureza. “Todo ser vivo depende da natureza
exterior para obter as substâncias de que se nutre, encontrar o espaço
onde se move, as condições de ambiente onde se aclima, se protege, e se
reproduz”, afirma Vieira Pinto. E o ser humano, “por este aspecto”,
conclui, “não faz exceção” (PINTO, 1962, p. 9-10). Assim, deve-se
sempre partir da observação de que “não haveria sociedade humana sem
que previamente existissem homens vivos que a constituam. Realmente
a vida é a condição original para o surgimento da sociedade [...].”
(PINTO, 2008, p. 79)
Mas Vieira Pinto não trata o ser humano como se sua existência
se limitasse ao tipo biológico de existência, como se o ser humano, em
sua totalidade, fosse idêntico aos demais seres vivos. Também para ele a
realidade humana não é esta. Para o filósofo brasileiro, por mais que
“numerosas concepções filosóficas”, “durantes séculos”, tenham
buscado “interpretar a realidade do homem, em busca daquilo que
chamavam de ‘essência’ desse ser, que o distinguia de todos os demais
seres”, e que tenham atribuído tal essência à “razão’, ‘alma’, ‘espírito’,
‘eu’, ‘consciência” (PINTO, 1962, p. 7), etc., o que objetivamente
“delineia em caráter supremo a natureza específica do ser humano” é o
“ato produtivo”. (PINTO, 2005, p. 195). Para ele, portanto, “o trabalho
se encontra na origem da essência humana do homem.” (PINTO, 1962,
p. 10)
Os seres puramente biológicos respondem sempre da mesma
maneira irrefletida aos acontecimentos exteriores, e isto porque a
natureza lhe determina de forma dupla o comportamento normal e
instintivo. Primeiramente, a natureza interna animal, presente em seu
código genético, determina quais objetos naturais externos são objetos
de suas necessidades. “O animal constitui a natureza em si, nunca se
59

realiza em verdadeiro sujeito, pois não tem ao que se opor, não há para
ele objeto que não esteja predeterminado a exercer este papel.” (PINTO,
2005, p. 60) Em segundo lugar, a natureza engendra todos estes objetos
externos dos quais o ser vivo necessita para subsistir. “O animais
inferiores não produzem, por ser a natureza que produz para eles tudo
quanto necessitam, ao produzi-los tal como devem ser para subsistir nas
condições onde têm de viver.”. (PINTO, 2005, p. 61) Se o objeto de sua
necessidade está presente, o ser vivo o consome; se não está presente,
sendo incapaz de produzir, o ser vivo permanece carente. Assim, os
seres puramente biológicos não se constituem em seres livres, já que
têm seu comportamento determinado pela natureza. Sempre que é
resolvida a contradição vital que lhe foi imposta pela natureza, “quem as
resolve não é ele e sim a mesma natureza” (PINTO, 2005, p. 60), e não é
resolvido mais do que a “contradição em que o processo evolutivo o
encerrou.” (PINTO, 2005, p. 60) O ser vivo “não produz a existência,
mas apenas a conserva, valendo-se das condições, cumpridas
cegamente, compendiadas no código genético, entregue a cada qual pela
evolução natural.” (PINTO, 2005, p. 64) Por essa razão, a simples
animalidade “permanece estacionada no nível dos seres consumidores
do que encontram ao redor”. (PINTO, 2005, p. 61)
Por ser, antes de tudo, um animal, o ser humano também
necessita resolver a contradição vital imposta pela natureza. No entanto,
a forma humana de resolver a sua contradição vital é distinta da via
puramente biológica de resolução dessa mesma contradição. A diferença
consiste, segundo Vieira Pinto, na distinção entre consumo e produção:
“enquanto o animal, ou antes a natureza nele e por ele, resolve essa
contradição pela via do consumo, o homem a resolverá pela via da
produção.” (PINTO, 2005, p. 62) Que o ser humano seja um ser
produtor significa que ele não se limita a simplesmente consumir os
objetos engendrados pela natureza que encontra ao seu redor, e que
tampouco os objetos de seu carecimento são única e exclusivamente
aqueles que a própria natureza determinou em seu código genético como
os objetos naturais adequados para a satisfação de suas necessidades
específicas. Nenhum outro ser conhecido age produtivamente na
resolução da contradição vital: “A forma de relação estabelecida pelo
homem com a natureza é única, específica, privativa desse animal, e por
isso o distingue radicalmente de todos os demais [...].” (PINTO, 1962, p.
9)
Embora não se possa jamais perder de vista que “a significação
do trabalho conserva-se sempre a mesma e consiste na resolução de uma
contradição vital [...]” (PINTO, 2005, p. 423), em razão das
60

características próprias desse modo peculiar do ser humano de resolver


sua contradição vital com a natureza, o trabalho remete o ser humano
sempre para além da sua própria constituição puramente biológica e
natural: “O trabalho não é apenas atividade exercida exteriormente pelo
homem, mas fator constitutivo da sua natureza, no sentido de que é por
intermédio dele que se realiza a humanização progressiva do homem
[...].” (PINTO, 1960a, p. 60) “Nenhuma das manifestações específicas
da realidade humana”, explica Vieira Pinto, “teria lugar se previamente
o homem não se fizesse existir, no sentido rigoroso da palavra, ou seja,
se não organizasse a produção dos bens e das condições indispensáveis à
sua subsistência. Antes de produzir qualquer coisa no domínio da
cultura, o homem tem de se produzir a si próprio pelo trabalho.”
(PINTO, 1960a, p. 348-349) Assim, a partir “[...] da contradição original
do homem, a que o opõe à natureza [...]”, desenvolve-se “sua essência
humana.” (PINTO, 2005, p. 39) Daí a relevância filosófica em se
debater a respeito das categorias trabalho e produção: discuti-los é
compreender “[...] o fato decisivo de ser o homem o criador sua própria
existência mediante o trabalho [...].” (PINTO, 1962, p. 11)
No entanto, antes de avançarmos mais no debate sobre como, no
trabalho, o ser humano transforma a si próprio, fazendo com que cesse o
poder da natureza de determinar seus atos, tornando-se um ser livre,
qualitativamente distinto dos outros seres vivos, devemos deixar claro
de qual “trabalho” e de qual “produção” falamos.
Vieira Pinto dá ênfase à “distinção entre essência e forma do
trabalho” (PINTO, 2005, p. 420), além de fazer uma distinção entre dois
diferentes níveis históricos de determinações da essência: ele fala de
uma tal essência relativa e de uma essência absoluta do trabalho. Note-
se que não se trata de afirmar a existência de duas essências, mas
simplesmente de tornar evidente que na essência coexistem: i) um
conjunto de determinações privativas à determinadas formas da vida
social; e ii) um conjunto de determinações universais, comuns a todas as
fases da vida social. “A forma do trabalho”, afirma Álvaro, “são as
inumeráveis modalidades em que se distribui entre os membros da grei
dentro do invólucro da mesma essência social em vigor”; diz respeito
“aos materiais utilizados, aos instrumentos empregados e às técnicas
fabricadoras conhecidas”. (PINTO, 2005, p. 421) A forma do trabalho
“sofre transformações constantes, assim sempre foi e terá de ser”.
(PINTO, 2005, p. 420) A essência relativa, por sua vez, “define-se pelo
sistema de relações sociais estabelecidas entre os participantes da
comunidade para levarem a cabo a obtenção coletiva dos bens de
existência”. Assim, no capitalismo, o trabalho é assalariado; no
61

feudalismo, o trabalho é servil; no escravismo, o trabalho é escravo: a


essência relativa do trabalho possui intercorrelação dialética com as
determinações próprias do conjunto das relações sociais no interior das
quais a práxis fabricadora é realizada. Por essa razão, as “formas [...]
mudam mais rapidamente do que a essência [relativa], que,
correspondendo a um sistema de relações sociais, implica, para mudar, a
ocorrência de uma transformação revolucionária no sistema da
produção.” (PINTO, 2005, p. 422) Já “a essência em sentido absoluto”,
explica Álvaro, “será sempre a relação entre o homem e a natureza, pela
necessidade de produzir a existência”, embora evidentemente sempre
assuma, a cada época histórica, “diferentes condições relativas,
históricas, de exercício, segundo o regime de convivência entre os
indivíduos nas várias formações sociais.” Eis, portanto, “a distinção
entre essência absoluta e relativa do trabalho”: “Em razão da primeira”,
a essência absoluta, “todo homem, sem exceção, trabalha”; em razão da
segunda, “a essência relativa, [...] é possível dizer que muitos indivíduos
[...] não trabalham, porque dispõe de recursos sociais coercitivos para
obrigar outros homens a fazê-lo em lugar deles.” (PINTO, 2005, p. 421)
Em síntese: exploração e alienação do trabalho dizem respeito à essência
relativa do trabalho; mas “a significação do trabalho” tomado em sua
essência absoluta “conserva-se sempre a mesma e consiste na resolução
de uma contradição vital”. (PINTO, 2005, p. 423) Se a essência absoluta
do trabalho conserva-se sempre a mesma, de modo que é comum a todas
as diferentes formações sociais da história humana, e se essa essência
em sentido absoluto consiste na resolução de uma contradição vital,
portanto necessária, Álvaro Vieira Pinto trata a partir dessa categoria
aquilo que anteriormente denominamos essência ontológica do
trabalho.
Vemos que a essência ontológica do trabalho, tanto em Marx —
“condições universais de toda produção” (MARX, 2011, p. 44) —
quanto em Álvaro Vieira Pinto — “essência em sentido absoluto”
(PINTO, 2005, p. 421) — é comum a todas as formações sociais, i. é,
que as determinações mais abstratas e essenciais do trabalho são comuns
às diferentes formas sociais através das quais a práxis fabricadora se
efetiva a cada momento histórico. Isso significa que a essência
ontológica do trabalho não é a-histórica, como julgam muitos críticos
da ideia de uma ontologia do ser social. Como vimos, o trabalho (em
sentido ontológico) é a forma que distingue o ser humano dos seres
vivos que permanecem estacionados no nível dos seres consumidores
dos objetos naturais; mas, antes de ter-se tornado um animal de nível
superior, ontologicamente distinto dos seres vivos inferiores, o ser
62

humano foi mais um entre os hominídeos, i. é, mais um entre os seres


vivos não produtores, ser puramente biológico. Sua existência biológica
precede sua existência humana. Neste caso, só se pode evidentemente
falar do surgimento de sua qualidade nova, que o retira da simples
animalidade e o faz ingressar nessa esfera ontológica completamente
nova da humanidade, que é o trabalho (em sentido ontológico), como
um surgimento histórico, e do trabalho, portanto, como produto
histórico. O trabalho (em sentido ontológico), portanto, não é um
conceito indeterminado, independente da história, mas antes o oposto:
um produto da história humana, que sempre se manifestou efetivamente
no “mundo sensível” em todos os momentos que se seguiram à
diferenciação da esfera humana da esfera puramente biológica da
existência. Daí a relevância de perceber-se a distinção sutil, mas que
leva a conclusões completamente distintas, e mesmo opostas, de que o
trabalho (em sentido ontológico) é aquele que é “comum” a todas as
diferentes formas da vida social, e não “independente” delas.
Mas, qual é, então, essa essência absoluta do trabalho, i. é., o
trabalho em sentido absoluto, que é comum a todas as diferentes épocas
históricas? Para Vieira Pinto, o trabalho consiste na “forma de relação
estabelecida pelo homem com a natureza” (PINTO, 1962, p. 9) em razão
da “necessidade de produzir a existência” (PINTO, 2005, p. 421).
Consiste na “relação permanente do homem [...] com o mundo exterior,
que deve transformar para nele subsistir”. (PINTO, 2005, P. 414)
Consiste na “atuação com o fim de produzir” (PINTO, 2005, p. 60).
Nestas passagens, fica claro o caráter ativo e autodeterminado da
produção humana, que imediatamente o separa do reino da simples
animalidade, que se limita a consumir aquilo que a natureza determina
ser objeto para seu consumo. Mas Vieira Pinto diz muito mais. O
trabalho é a “ação modificadora direta sobre a natureza material”
(PINTO, 1960a, p. 62). Na mesma obra, pouco antes, ele escreve: “o
trabalho é sempre ação transformadora”; “o que lhe dá especificidade é
ser causa modificadora da realidade externa”. (PINTO, 1960a, p. 60) Em
outro lugar, ele afirma: “ainda o mais rotineiro dos trabalhos [...] implica
a transformação da natureza”. (PINTO, 2005, p. 414) Antes de tudo, o
que o ser humano cria através de sua ação transformadora da natureza
são os bens de que necessita para satisfazer as suas necessidades, de
modo a resolver a contradição vital imposta pela natureza: “o homem
atua sobre a natureza com o fim de produzir os elementos de que precisa
para sustentar e desenvolver a existência.” (PINTO, 1962, p. 10) É por
essa razão que “a produção adquire [...] a qualidade de feitura de
objetos” (PINTO, 2005, p. 62), que são sempre necessariamente objetos
63

destinados a satisfazer as necessidades humanas que a própria natureza é


incapaz de engendrar por conta própria. “É exatamente esta atuação
com o fim de produzir o que não está imediatamente dado, que
configura a essência do trabalho.” (PINTO, 1962, p. 10) Por isso, no
trabalho, “se representa de modo ativo o papel criador do homem”
(PINTO, 1960a, p. 59).
Vemos que a produção não é um fenômeno abstrato, realizado
por um sujeito abstrato, como a “consciência”, a “Ideia”, o “Espírito”,
etc. O verdadeiro sujeito da produção é o ser humano concreto, que
jamais deixa de ser condicionado por determinações físicas e naturais
que fazem parte de seu ser. Vemos também que a produção é uma
transformação que se opera objetivamente através da ação sensível dos
homens. No ato criador humano, o ser humano demonstra a “[...]
necessidade de utilizar sua força de trabalho em benefício da criação dos
meios materiais de sobrevivência.” (PINTO, 1962, p. 11) Conforme
aumenta o grau de complexidade das tarefas que necessita realizar, no
entanto, o ser humano se vê obrigado a utilizar as próprias forças da
natureza para agir sobre ela, e ele o faz ao criar para si instrumentos de
trabalho, sempre com a finalidade de “aliviar o trabalho humano”
(PINTO, 2005, p. 91). Muito embora primeiramente se trate de algum
instrumento hoje considerado extremamente simples, como um
machado de sílex ou um porrete de ossos, e atualmente se trate de algum
maquinismo muito complexo, ambos objetos “[...] não passam de um
instrumento [...] pelo qual o homem se relaciona com o mundo exterior
[...].” (PINTO, 2005, p. 92) que são interpostas pelo ser humano entre
ele próprio e a natureza porque eles “[...] oferecem à humanidade, em
geral, quantidades cada vez maiores de energias físicas, para dominar e
transformar a natureza.” (PINTO, 2005, p. 83) Desta forma, “tanto nas
eras mais remotas como agora”, escreve Vieira Pinto, “o papel decisivo
da máquina” “consiste em modificar o sistema de relações de produção
do homem mediante a ampliação da rede de ligações com a natureza”,
dando em resultado a “possibilidade de praticar formas de ação sobre os
corpos e as forças naturais, formas que significam o aumento da
capacidade de domínio do mundo circundante.” (PINTO, 2005, p. 80)
Em razão das suas características objetivas, por ser realizado pela
ação sensível dos homens, o trabalho modifica objetivamente o mundo.
Como a produção se realiza em razão de uma necessidade eterna, a
criação de objetos novos jamais cessa, de modo que a área do mundo
natural antropomorfizada pela ação humana se amplia constantemente:
“pela ação dos homens, a realidade se vai povoando de produtos de
fabricação intencional” (PINTO, 2005, p. 55). E como o ser humano
64

trabalha utilizando instrumentos de trabalho e meios de produção cada


vez mais complexos e poderosos, a antropomorfização da natureza vai
ocorrendo progressivamente. “Chega-se assim à época atual, quando a
existência está literalmente envolvida num ambiente maquinizado,
produto de iniciativa humana.” (PINTO, 2005, p. 84) Desse modo, a
função de criador do mundo circundante, conforme as forças produtivas
dos seres humanos se desenvolvem e progridem em potência de
transformação e criação, vai sendo progressivamente deslocada do plano
da natureza para o plano do mundo humano. Segundo Vieira Pinto, “a
função cosmogônica transfere-se da natureza para o homem”, porque “é
este que cada vez mais cria a natureza, ou antes aquilo que para ele
começa a lhe aparecer como natural.” Sem nunca deixar de lado a
consideração materialista primeira de que “o homem é um ser vivo
destinado a viver necessariamente na natureza”, Vieira Pinto afirma que
ocorre apenas que aquilo “que se entende por ‘natureza’ em cada fase
histórica corresponde a uma realidade diferente”. Assim, se nos
primórdios da humanidade a natureza objetivamente se manifestava sob
a forma do “mundo espontaneamente constituído”, atualmente, quando
“o civilizado consegue cercar-se de produtos fabricados pela arte e pela
ciência, serão estes que formarão para ele a nova ‘natureza”. (PINTO,
2005, p. 37)
Vemos, assim, que “a máquina nunca é dada, é feita” (PINTO,
2005, p. 73) pelos próprios seres humanos, e que “não se conhece uma
só invenção que não alterasse as condições da existência humana”
(PINTO, 2005, p. 91). Assim, ao agir sobre a natureza para resolver a
sua contradição vital, o ser humano acaba por transformar todo o seu
entorno, antropomorfizando-o; e, ao transformar suas condições de
existência, sua própria realidade objetiva, transforma-se a si próprio: “A
evolução dos maquinismos é na verdade a evolução do homem enquanto
ser que constrói.” (PINTO, 2005, p. 74) O trabalho que, antes de tudo, é
realizado pelo ser humano para resolver uma contradição vital com a
natureza, humaniza progressivamente a natureza externa na mesma
medida em que humaniza a natureza interna do próprio ser humano.
Assim, apesar de ser, antes de tudo, um animal, a natureza humana
específica nunca é dada, como algo de fixo que lhe foi entregue pela
natureza, mas sim feita pelo animal antropoide que da natureza se
destacou e libertou em razão da sua atividade produtiva e criadora.
É por essa razão que, ontologicamente, o ser humano “destaca-se
do reino da animalidade inferior” (PINTO, 2005, p. 61), e inaugura uma
esfera ontológica completamente nova. Segundo Álvaro Vieira Pinto, “a
fórmula que a natureza encontrou para realizar o tipo qualitativamente
65

superior de animal que será o homem foi investi-lo da função de


produtor.”1 (PINTO, 2005, p. 61) Longe de significar uma diferença de
segunda ordem, como já vimos, essa diferença significa, na verdade, a
passagem de um plano ontológico a outro, o que de alguma forma já fica
implícito quando se diz que o ser humano é um ser produtor e que os
outros seres vivos são seres consumidores: tratam-se, afinal de contas,
de “seres” de tipo diferente. “Quando se dá este salto qualitativo no
processo evolutivo, o homem passa a representar a fase de maioridade
da vida, aquela em que o ser já não depende da natureza para encontrar
defesa e conservação” (PINTO, 2005, p. 60). Assim, o ser humano,
enquanto animal produtor, se diferencia qualitativamente dos seres
vivos puramente biológicos, e se torna um ser livre, já que seu
comportamento deixa de ser determinado pela própria natureza e passa a
ser objeto de sua livre manifestação. É “a função de produtor”, diz
Vieira Pinto, que é “a superioridade distintiva que possui” (PINTO,
2005, p. 61) o ser humano. Nessa “oposição entre consumidor e
produtor está o caráter distintivo do salto qualitativo que gerou o
homem, e lhe dá o sentido pelo qual se define, tanto ele quanto seus
atos.” (PINTO, 2005, p. 61) “Deste modo, compreende-se por que
motivo o trabalho se encontra na origem da essência humana do
homem.” (PINTO, 1962, p. 10)

1 É constante o uso de metáforas, figurações e prosopopeias por parte de Vieira


Pinto. Isso ocorre porque o filósofo brasileiro buscava esclarecer complexas
ideias filosóficas para um público que não é o público acadêmico regular, mas
sim a massa dos trabalhadores espoliados nos países subdesenvolvidos, sob o
jugo imperialista. O grau de exploração que sofrem estes trabalhadores é tal que
lhe são socialmente negados o acesso à assim chamada alta cultura, à ciência e à
filosofia, de modo que o autor que desejar falar a eles deve aceitar sacrifícios na
forma de exposição do conteúdo que se pretende comunicar para se tornar mais
compreensível. Este é o expediente de Vieira Pinto, o que explica a existência
de certos exageros e expressões peculiares em suas obras. No plano do
conteúdo, no entanto, Vieira Pinto não atribui características humanas à
natureza, fazendo dela uma entidade ou verdadeiro sujeito com pretensões
finalísticas. Para aqueles que desejam se aprofundar neste debate, ver
“Apêndice A”, ao final deste trabalho monográfico.
66
67

3 O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA CONSCIÊNCIA

Vimos que o ser humano é, antes de tudo, um animal. Todos os


seres vivos necessitam, por imposição natural, resolver uma contradição
vital com a natureza para permanecerem vivos. No caso dos demais
seres vivos, no entanto, quem resolve tal contradição não são eles
próprios, mas a própria natureza que há neles e a natureza que os cerca.
Em primeiro lugar, a natureza interna, compendiada no código genético,
determina quais objetos externos são objetos das suas necessidades. Por
fim, é a natureza externa que engendra todos os objetos das suas
necessidades. Por essa razão, os seres vivos permanecem dependentes
do meio natural no qual vivem e têm seu comportamento determinado
pela natureza.
Sendo mais um entre os seres vivos, o ser humano também é um
ser que carece. Para satisfazer suas necessidades, no entanto, ele
emprega um método qualitativamente diverso daquele empregado por
todos os outros seres vivos: o trabalho. Agindo sobre a natureza para
transformá-la nos valores de uso de que sente necessidade, ele submete a
parte da natureza sobre a qual atua a um processo de antropomorfização.
Modificando seu meio, ele modifica as suas próprias condições de vida.
Modificando suas condições de vida, a forma de sua atividade sensível
precisa se transformar, o que condiciona uma modificação de seu
próprio ser. O processo de transformação que ele impõe ao seu entorno
retroage sobre ele, modificando-o. Assim, ele se converte, pelo trabalho,
em um ser que modifica a si mesmo em razão de seus atos.
Por não ser uma entidade abstrata, i. é., por se tratar de um ser de
existência objetiva, efetiva, sensível, nunca se realiza, e não poderá
jamais se realizar, uma situação na qual a natureza se torne dispensável
para o ser humano. Ele próprio é, antes de tudo, uma parte da natureza.
Se, pelo trabalho, ele se torna o ser que cria a si mesmo, é também pelo
trabalho que ele resolve a contradição vital que, ao menos inicialmente,
a natureza lhe impôs. E, como o trabalho é uma atividade objetiva,
efetiva, sensível, ele só pode ser realizado externamente, no interior da
realidade sensível. Assim o afirma Marx: “O trabalhador não pode criar
nada sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ela é o material no
qual o seu trabalho se realiza, no qual este é ativo, a partir do qual e por
meio do qual produz.” (MARX, 2015, p. 306)
Já vimos que os momentos simples do processo de trabalho são i)
o trabalho propriamente dito, ii) o objeto de trabalho, que é o elemento
natural sobre o qual atua a ação transformadora do ser humano, e iii) os
meios de trabalho, elemento interposto pelo ser humano entre ele
68

próprio e o objeto de trabalho. Primeiramente, a respeito dos objetos de


trabalho, Marx ressalta que “[...] a natureza fornece o meio de vida do
trabalho, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos
quais se exerce [...].” (MARX, 2015, p. 306) Mesmo que determinado
objeto de trabalho seja uma matéria-prima, i. é., que seja, ele próprio, o
resultado de um processo de trabalho anterior, sabe-se que em algum
momento pretérito ele foi não mais do que mero objeto natural, apenas
posteriormente transformado pelo trabalho humano. E, por mais que
uma matéria-prima seja, do ponto de vista essencial, um objeto
antropomorfizado, portanto qualitativamente distinto de um simples
objeto natural, não se pode perder de vista que toda matéria-prima é um
objeto sensível externo. Por fim, a respeito dos meios de trabalho, Marx
ressalta que “como o processo de trabalho tem lugar originalmente
apenas entre o homem e a terra que lhe é preexistente”, por mais que
hoje os instrumentos de trabalho, em sua maioria, sejam todos já o
resultado de um trabalho anterior, “continuam a servir-lhe meios de
produção fornecidos diretamente pela natureza”. (MARX, 2017, p. 261)
Novamente, mesmo os meios de trabalho que são o resultado de um
trabalho anterior foram, em algum momento pretérito, não mais do que
mero objeto natural, apenas posteriormente transformado pelo trabalho
humano. Sendo o meio de trabalho sempre um objeto sensível externo
que o ser humano separa do restante da natureza para utilizá-lo na
produção, verifica-se que “o próprio elemento natural se converte em
órgão de sua atividade, um órgão que ele acrescenta a seus próprios
órgãos corporais, prolongando sua forma natural [...].” (MARX, 2017,
P. 257) E há ainda a questão de que, pelo menos “num sentido mais
amplo, o processo de trabalho inclui entre seus meios [...] também todas
as condições objetivas que, em geral, são necessárias à realização do
processo” de trabalho, tais como a disponibilidade de oxigênio, as
condições climáticas, a temperatura do ambiente, etc. Essas condições
“não entram diretamente no processo, mas sem elas ele [o processo de
trabalho] não pode se realizar [...].” (MARX, 2017, p. 258)
A produção de valores de uso, que é a finalidade do trabalho, não
pode ocorrer idealmente, de forma abstrata, de modo que o trabalho que
o ser humano realiza por necessidade só pode ser realizado
objetivamente. É por isso que Marx afirma que “a fim de se apropriar da
matéria natural de uma forma útil para sua própria vida”, o ser humano
“põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade:
seus braços e pernas, cabeça e mãos.” (MARX, 2017, p. 255) No
entanto, ao ser objeto do trabalho, a natureza estabelece limites,
restrições, resistências à ação transformadora que o ser humano busca
69

impor a ela. Nessa relação estabelecida pelo processo de trabalho, se


colocam de um lado o ser humano e sua atividade sensível, e de outro a
natureza e suas propriedades. E, para transformá-la, dada a resistência
natural, o ser humano “se confronta com a matéria natural como com
uma potência natural”. (MARX, 2017, p. 255) Como a transformação
que o ser humano pretende realizar sobre a realidade externa é sempre
uma transformação objetiva, uma transformação da realidade externa,
para se tornar capaz de superar a resistência da natureza o ser humano
necessita, ao agir, sempre respeitar as propriedades dos materiais
externos e seguir as leis de funcionamento da própria natureza. O
processo de trabalho jamais poderia chegar a alcançar seu objetivo, a
produção de um valor de uso determinado, se assim não o fizesse.
Ao produzir, o ser humano sempre “utiliza as propriedades
mecânicas, físicas e químicas das coisas para fazê-las atuar sobre outras
coisas, de acordo com o seu propósito”. (MARX, 2017, p. 256) Por ser
assim, para que se torne possível a criação de meios de trabalho
adequados às tarefas que o trabalhador pretende levar adiante e para que
a utilização de seus meios de trabalho cause as transformações do objeto
de trabalho adequadas aos seus propósitos, ele necessita conhecer as
propriedades dos materiais externos e descobrir como ocorrem e como
funcionam os fenômenos da natureza. Chegamos, assim, às questões
relacionadas ao fenômeno do conhecimento humano e da formação da
consciência.
Quando tratamos sobre a consciência, a primeira consideração
que devemos realizar é a de que a consciência da qual falamos não é
uma “consciência pura”; não se confunde com o que se chamou, na
história da filosofia, de Ideia, espírito, razão pura, etc. Para Marx, “a
consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio
sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com [...] coisas
exteriores ao indivíduo que se torna consciente; ela é [...] consciência da
natureza [...].” (MARX e ENGELS, 2007, p. 35) Assim, vemos que a
consciência, antes de tudo, é não mais do que o conjunto de cópias
ideais dos objetos e fenômenos externos que o ser humano engendra em
sua mente.
Desde o princípio, a consciência não é dada ao ser humano por
alguma entidade transcendental ou pela natureza. “Os homens são os
produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante,
mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas [...].” (MARX e
ENGELS, 2007, p. 94) Se os seres humanos chegam a ter consciência
não é por outra razão se não a de estarem obrigados, em razão de uma
70

imposição natural, a produzir os valores de uso de que carecem para


manterem-se vivos, e de não terem outra saída, frente à resistência que
os objetos sensíveis externos impõem à sua intentada transformação,
além de descobrir as propriedades das coisas e fenômenos externos de
modo a tornar sua ação efetiva e atingir seus objetivos de forma mais
facilitada. Marx explica que “a produção de ideias, de representações, da
consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a
atividade material [...] dos homens [...]. O representar, o pensar, [...]
ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento
material.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 93) Para Marx a consciência
não é produto dos desdobramentos da própria matéria, nem tampouco a
essência indeterminada e imutável do ser humano tomado como
entidade abstrata; ela é produto da atividade sensível que o ser humano
realiza sobre e no interior da realidade objetiva em razão das
necessidades impostas por esta mesma realidade. Nas palavras de Marx:
“A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente,
e o ser dos homens é o seu processo de vida real.” (MARX e ENGELS,
2007, p. 94)
Em razão desse fundamento material da consciência é que
“somente agora”, após descobrir o trabalho como mediação entre o
homem e a natureza, “descobrimos que o homem tem também
‘consciência” (MARX e ENGELS, 2007, p. 34). Se a apresentamos
apenas agora é porque não se pode apreender concretamente o fenômeno
da consciência sem descobrir o vínculo objetivo que esta possui com a
animalidade do homem, com as necessidades humanas e com o trabalho,
portanto nos afastando aqui totalmente da ideia de uma suposta
“consciência pura”. Como afirma Marx: “O ‘espírito’ sofre, desde o
início, a maldição de estar ‘contaminado’ pela matéria”. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 34)
O trabalho, como vimos, é atividade que o ser humano realiza “a
fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria
vida [...]” (MARX, 2017, p. 255), o que não deixa de significar que a
forma imediata da natureza não lhe é útil. Como seria inútil esperar que
a natureza agisse em seu socorro, ele necessita agir por conta própria,
produzindo aquilo de que necessita. Por isso, ao produzir, o indivíduo
que trabalha necessita objetivar inexistentes. Mas, para que um
indivíduo seja capaz de produzir algo que nunca existiu, é necessário
que ele seja capaz de inventá-los — de concebê-los idealmente. No
plano ideal, o ser humano se encontra completamente livre dos limites,
das restrições e das resistências que as propriedades das coisas e dos
fenômenos do mundo objetivo lhe impõem. Em virtude das suas
71

necessidades insatisfeitas, o ser humano se põe a imaginar objetos e


situações nunca antes experimentadas e vividas, levando-o a utilizar sua
capacidade exclusiva de ser criativo. Idealmente, ele é capaz de criar
combinações novas entre objetos externos e imaginar a utilização de
fenômenos para causar transformações de maneiras até então nunca
antes observadas. A ideia daí resultante é a representação de um objeto
previamente inexistente na realidade, que então pode ser trazido à
existência a partir da mediação da atividade sensível fabricadora. Marx
explica que
Uma aranha executa operações semelhantes às do
tecelão, e uma abelha envergonha muitos
arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém,
o que desde o início distingue o pior arquiteto da
melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a
colmeia em sua mente antes de construí-la com a
cera. No final do processo de trabalho, chega-se a
um resultado que já estava presente na
representação do trabalhador no início do
processo, ou seja, um resultado que já existia
idealmente. (MARX, 2017, p. 255-256)

Portanto, a atividade produtiva que o ser humano realiza não é


meramente uma atividade corporal, mecânica, física, e possui um
momento ideal. O trabalho é atividade consciente, atividade com
pretensões finalísticas. Por isso Marx cita entre as forças pertencentes à
corporeidade humana a “cabeça”. (MARX, 2017, p. 255) Como já
vimos anteriormente, de fato o ser humano “utiliza as propriedades
mecânicas, físicas e químicas das coisas para fazê-las atuar sobre outras
coisas [...]”. Mas isso “[...] não significa que ele se limite a uma
alteração da forma do elemento natural; ele realiza neste último, ao
mesmo tempo, a finalidade pretendida”. Aquele que trabalha utiliza as
forças da natureza “de acordo com o seu propósito” (MARX, 2017, p.
256).
Esse momento ideal do processo de trabalho, a partir do qual o
ser humano confere um propósito à sua atividade, demanda que o sujeito
desse processo seja capaz de realizar escolhas. Ele deve elaborar
idealmente todo o processo produtivo que pretende levar à realização
objetiva, elencando os instrumentos de trabalho que pretende trazer em
seu auxílio para operar sobre os objetos de trabalho de sua escolha os
efeitos úteis pretendidos. Assim, o trabalho pressupõe a existência do
indivíduo humano consciente, portador de subjetividade, capaz de
imaginação e inventividade. Embora o trabalho seja “perpétua condição
72

natural da vida humana” (MARX, 2017, p. 261), ao trabalhar o ser


humano se prova um ser livre e distinto dos outros entes viventes porque
sua atividade vital é consciente, guiada por uma ideia que ele próprio
criou, sendo portanto atividade autodeterminada. Marx explica que
O animal é imediatamente um com sua atividade
vital. Não se diferencia dela. É ela. O homem faz
a sua própria atividade vital objeto da sua vontade
e da sua consciência. Tem atividade vital
consciente. Não é uma determinidade com a qual
ele se confunda imediatamente. A atividade vital
consciente diferencia imediatamente o homem da
atividade vital animal. [...] Só por isso a sua
atividade é atividade livre. (MARX, 2015, p. 312)

Assim, por um lado, o trabalho é realizado pelo ser humano em


razão de sua necessidade de resolver uma contradição vital, necessidade
que lhe é imposta pela natureza; mas, por outro lado, antes de realizar
sua atividade vital, ele faz dessa sua atividade objeto da sua consciência
e vontade. Para Marx, é precisamente por isso que o ser humano se
liberta das determinações da natureza e passa a se comportar de forma
autodeterminada, agindo sobre ela como ser livre.
No entanto, quando deixa o plano ideal para passar ao plano das
realizações objetivas, as possibilidades transformadoras deixam de ser
infinitas porque, como já vimos, a natureza estabelece limites,
restrições, resistências à ação transformadora que o ser humano busca
impor a ela, de modo que o ser humano necessita sempre respeitar as
propriedades dos materiais externos e seguir as leis de funcionamento da
própria natureza. Assim, estabelece-se o confronto entre o ser criador e
as propriedades dos corpos externos, que impõe limites à transformação
pretendida. O resultado dessa relação é que o propósito previamente
criado idealmente pelo ser humano, que é o guia da sua atividade
transformadora, “determina o modo de sua atividade com a força de uma
lei, à qual ele tem de subordinar a sua vontade.” (MARX, 2017, P. 256)
“Essa subordinação”, prossegue Marx, “não é um ato isolado. Além do
esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade
orientada a um fim, que se manifesta como atenção do trabalhador
durante a realização de sua tarefa”. (MARX, 2017, p. 256). Assim, o ser
humano age sobre a natureza para realizar no mundo uma transformação
inovadora, fruto de seu gênio inventivo abstrato, que ele próprio
determina; mas o modo de execução do trabalho necessário à
objetivação desse inexistente é algo que lhe escapa ao controle.
73

Pelo trabalho, o ser humano entra em contato com aquilo que de


fato as coisas do mundo objetivo são, e sua capacidade de objetivar na
realidade externa o inexistente que previamente ele havia concebido de
forma ideal vai depender do quanto essas ideias reproduziam idealmente
de modo adequado as propriedades dos objetos e fenômenos externos
envolvidos no processo de trabalho determinado. Neste caso, são duas
as possibilidades. Ao trabalhar, o trabalhador pode falhar em sua
tentativa, o que demonstra que suas representações são, em algum
sentido, falsas, ilegítimas, o que vai levar à transformação dessas
representações e, portanto, da própria consciência. Neste caso, sua
atividade sensível terá condicionado a transformação de sua consciência.
Mas o trabalhador pode também atingir o objetivo intentado, o que
demonstra que suas representações reproduziam adequadamente aquilo
que os objetos e fenômenos externos de fato são em termos de
propriedades e características. Neste caso, ele implementará uma
mudança na realidade externa, que se tornará uma nova realidade,
independentemente da extensão da transformação aí realizada, o que
necessariamente levará o ser humano a ter de modificar o conjunto de
suas representações dessa realidade externa, i. é., sua consciência.
Também, neste caso, sua atividade sensível terá condicionado a
transformação de sua consciência.
Vemos que para se tornar bem-sucedido ao realizar uma tarefa
produtiva, o ser humano necessita não apenas representar em sua mente
de forma fidedigna certas características dos objetos e fenômenos
externos que participarão do ato produtivo determinado, mas necessita
também atuar através de maneiras bastante específicas sobre a matéria
natural. Mas, cumpridas tais condições, através dessa atividade livre,
criativa e transformadora, o ser humano modifica qualitativamente o
meio material no qual vive, produz a natureza.
Aqui, necessitamos ser muito precisos. Que o ser humano
produza a natureza não significa que os desdobramentos da
“consciência pura” sejam a origem da realidade exterior. Isso seria,
evidentemente, metafísica, e Marx foi um de seus fervorosos críticos e
buscou tornar evidente o fundamento material da consciência. Hegel foi
o primeiro pensador na história da humanidade a dar-se conta de que a
humanidade possui uma história. Marx, que acolhera de forma muito
positiva a crítica de Feuerbach à metafísica e as descobertas de Darwin
em A origem das espécies, esteve em posição privilegiada frente à Hegel
para compreender que a vida também possui a sua própria história.
Hoje, estamos todos em posição muito mais favorável à de Marx, em
razão das descobertas da cosmologia moderna e da astrofísica, para
74

compreender que também o universo inerte, composto de matéria e


energia, tem a sua própria história. Mas, já para Marx, a existência da
matéria precede a existência da consciência, assim como a realidade
material dos seres humanos é o fundamento da sua consciência. Quando
dizemos, do ponto de vista do materialismo histórico dialético, que o ser
humano produz a natureza ao objetivar no mundo um projeto mental,
estamos dizendo que o ser humano produz a sua natureza, tanto externa
quanto interna. O ser humano não é causa do mundo; mas é causa do seu
próprio mundo: o mundo dos homens. O ser humano não produz a
matéria e a energia, mas as utiliza para criar algo que não está
imediatamente dado pela natureza. Ao criticar Feurbach, Marx adverte
que este “não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa
dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma,
mas o produto da indústria”, “e isso precisamente no sentido de que é
um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de
gerações” (MARX e ENGELS, 2007, p. 30). Os objetos da “certeza
sensível” de Feuerbach, afirma Marx, são dados a ele “apenas por meio
do desenvolvimento social, da história social, da indústria e do
intercâmbio comercial”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 30-31). Buscando
ser claro, Marx dá um exemplo de “objeto sensível” que não se poderia
encontrar no “mundo sensível” imediato na ausência da produção do ser
humano:
Como se sabe, a cerejeira, como quase todas as
árvores frutíferas, foi transplantada para nossa
região pelo comércio, há apenas alguns séculos e,
portanto, foi dada à “certeza sensível” de
Feuerbach apenas mediante essa ação de uma
sociedade determinada numa determinada época.
(MARX e ENGELS, 2007, p. 31)

Os seres humanos têm “sempre diante de si uma natureza


histórica e uma história natural”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 31) A
“história natural” é a história dos planos inorgânico e orgânico do ser; a
“natureza histórica” é a essência da realidade material do ser humano,
transformada geração após geração em razão dos desígnios humanos. Na
relação dialética estabelecida pelo ser humano com a natureza no
interior do processo de trabalho, a matéria natural é negada pelo homem
em sua forma imediata, mas reafirmada em suas propriedades químicas
e físicas, para ser transformada e reaproveitada em formas mais úteis ao
ser humano. Um valor de uso é sempre “natural” apenas no sentido de
que suas propriedades físicas e químicas derivam da própria matéria que
75

foi tomada pelo ser humano como objeto de sua ação; mas um valor de
uso, tomado em sua forma final, é um produto exclusivo da práxis
fabricadora humana. Por essa razão, sempre se deu na produção, a
“unidade do homem com a natureza”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 31)
Portanto, quando dizemos que o ser humano produz a natureza,
queremos dizer não que o ser humano produz toda a natureza, mas sim
que ele modifica a matéria natural, cuja existência é sua pré-condição de
vida, modificando-lhe qualitativamente o ser. “Essa atividade, esse
contínuo trabalhar e criar sensíveis, essa produção”, é “de tal modo” “a
base de todo o mundo sensível” tal como o conhecemos, afirma Marx,
“que, se ela fosse interrompida mesmo por um ano apenas, Feuerbach
não só encontraria uma enorme mudança no mundo natural, como
também sentiria falta de todo o mundo dos homens e de seu próprio dom
contemplativo, e até mesmo de sua própria existência.” (MARX e
ENGELS, 2007, p. 31) A natureza “pura”, intocada pelo ser humano,
“[...] essa natureza que precede a história humana não é a natureza na
qual vive Feuerbach; é uma natureza que hoje em dia, salvo talvez em
recentes formações de ilhas de corais australianas, não existe mais em
lugar nenhum e, portanto, também não existe para Feuerbach.” (MARX
e ENGELS, 2007, p. 32) Nada disso significa, no entanto, que o ser
humano pode prescindir da natureza, da matéria, da energia, que exista
uma identidade entre a consciência e a realidade objetiva ou que o ser
humano e sua consciência preexistam em relação à natureza. Afirmar
que o ser humano produz a natureza não significa, portanto, afirmar a
prioridade do “Espírito” em detrimento da natureza externa ou da
realidade objetiva. Antes, o oposto: se o ser humano trabalha e produz, é
porque necessita primeiramente por imposição natural, em razão de
necessidades concreta e objetivamente existentes, resolver sua
contradição dialética com a natureza. Como afirma Marx, “nisso
subsiste, sem dúvida, a prioridade da natureza exterior”. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 31) O que ocorre, apenas, é que ao produzir o ser
humano transforma os objetos externos, naturais, em objetos
antropomorfizados, em objetos que a própria natureza jamais poderia
engendrar. Neste sentido — e apenas neste sentido — para Marx, o ser
humano produz a natureza.
Deixemos o pensamento de Marx por um instante, e nos
concentremos no que pensa Vieira Pinto a respeito da consciência.
Vimos que todos os seres vivos necessitam resolver a sua contradição
vital com a natureza para nela subsistirem. No caso dos seres puramente
biológicos, no entanto, quem resolve a contradição não são eles
próprios, mas a própria natureza. Isso significa que em nenhum
76

momento há intencionalidade ou escolha por parte do ser vivo


puramente biológico, que não se configura em um ser livre, mas tem seu
comportamento determinado pela própria natureza com a qual entra em
relação. Vieira Pinto fala do animal predador, por exemplo, como um
“predador irresponsável”. Por essa razão, ele “nunca se realiza em
verdadeiro sujeito, pois não tem ao que se opor, não há para ele objeto
que não esteja predeterminado a exercer este papel”. (PINTO, 2005, p.
60).
Já vimos, igualmente, que o mesmo não ocorre com o ser
humano. Para o ser humano, para usar uma expressão curiosa de Vieira
Pinto, “cessou o patrocínio direto da natureza”, de modo que ele deixou
de ser simples consumidor de objetos naturais. O ser humano, assim
como os outros seres vivos, “sempre agiu no sentido uniforme de
solucionar a contradição existencial com a natureza”, mas no caso do ser
humano isto significa que ele teve de “tornar-se produtor, o sujeito da
atividade econômica, no mais lato sentido da palavra” (PINTO, 2005, p.
63), isto é, que ele teve de tornar-se um ser capaz de transformar a
natureza para criar os produtos de que necessita para reproduzir sua
existência.
Por não ser uma entidade abstrata, mas antes de tudo um animal,
um ser sensível, de existência objetiva, o ser humano não pode
prescindir da natureza. Como o trabalho é a forma da atividade vital de
um ser objetivo, ele não pode ser realizado abstrativamente, idealmente;
não pode ser realizado senão no interior da própria realidade externa, a
partir dos elementos objetivamente existentes. “Em todos [...] casos”,
afirma Vieira Pinto, “vemos sempre o homem utilizando propriedades
dos corpos [...] ou forças naturais, não criadas por ele”. (PINTO, 2005,
p. 63) Assim, o ser humano sempre “se utiliza das leis naturais para
realizar os próprios intuitos, que, nessa perspectiva, aparecem como
modos de dominação sua exercida sobre a natureza.” No entanto,
estabelece-se uma relação dialética, e “o domínio exercido pelo homem
prova, por outro lado, o domínio que sofre, visto não poder fazer coisa
alguma contra a natureza senão na medida em que se vale das forças por
ela postas ao seu alcance.” (PINTO, 2005, p. 160) Conforme progride
seu poderio em face da natureza, “se torna efetivamente mais
dependente da natureza em geral, numa salutar relação que
dialeticamente se transmuta na contrária.” (PINTO, 2005, p. 161).
“Pelo trabalho o homem encontra objetivamente a realidade”
(PINTO, 1960a, p. 59-60), afirma Vieira Pinto, e ao fazê-lo ele se
depara com “dificuldades opostas à satisfação de suas exigências”
(PINTO, 2005, p. 61), “encontra a resistência do real”. (PINTO, 1960a,
77

p. 62) Por essa razão, “só lhe é possível [...] efetuar a transformação
intentada, se suas ações corresponderem concretamente ao que o real é
em si mesmo, atenderem às propriedades objetivas das coisas, e se
inserirem com adequação na trama das conexões causais entre os
fenômenos”2. (PINTO, 1960a, p. 62) E, para que se torne possível a ele
agir assim, ele necessita ser capaz de conhecer as propriedades das
coisas externas e descobrir como funcionam. Somente em posse de uma
“representação mental que contém a transcrição, em conceitos, daquilo
que, fora do pensamento, é a realidade empírica” (PINTO, 1960a, p. 62),
torna-se possível ao ser humano realizar as ações transformadoras que
necessita realizar para resolver sua contradição vital com o meio. Se
“[...] o homem descobre as propriedades dos corpos”, diz Vieira Pinto, é
“porque tem necessidade de usar os corpos e fenômenos do mundo para
concretizar e cumprir qualquer finalidade que conceba.” (PINTO, 2005,
p. 165). Chegamos, assim, às questões relacionadas ao fenômeno do
conhecimento humano e da formação da consciência.
Quando tratamos sobre a consciência, a primeira consideração
que devemos realizar é a de que a consciência da qual falamos não é
uma “consciência pura”; não se confunde com o que se chamou, na
história da filosofia, de Ideia, espírito, razão pura, etc. Para Álvaro
Vieira Pinto, “a faculdade denominada consciência” é o “reflexo
consciente” das “forças brutas do ambiente material” que o “ser
humanizado” “engendra” “no funcionamento de suas estruturas nervosas
superiores”. (PINTO, 2005, p. 189) “A consciência”, afirma Vieira
Pinto, “existe como incessante apreciação do estado de coisas.” (PINTO,
1960a, p. 44) Assim, vemos que a consciência, antes de tudo, é não mais
do que o conjunto de cópias ideais dos objetos e fenômenos externos
que o ser humano engendra em sua mente.
Desde o princípio, a consciência não é dada ao ser humano por
alguma entidade transcendental ou pela natureza, nem tampouco é
resultado da atividade filosófica especulativa. Como a sua atividade
privativa, o trabalho, “altera a realidade”, diz Vieira Pinto, ocorre de o
ser humano “necessariamente ser obrigado a constituir uma

2 Em certos momentos, é incrível a proximidade do pensamento de Vieira Pinto


ao pensamento de Lukács. A expressão “se inserirem com adequação na trama
das conexões causais entre os fenômenos” é daquelas que, a um desavisado,
parece retirada da parte sistemática de Para uma ontologia do ser social. Mas,
na verdade, está lá, na página 62 do volume I de Consciência e Realidade
Nacional, de autoria de Álvaro Vieira Pinto, que foi publicada em 1960 pelo
ISEB.
78

representação dela, a criar a consciência do estado do real sobre o qual


incide a sua operação modificadora.” (PINTO, 1960a, p. 60) O ser
humano conhece o mundo na medida em que amplia o seu entendimento
sobre as propriedades e funcionamento das coisas externas, de modo que
“no reconhecer o ‘ser’ do mundo, é que consiste o conhecer.” (PINTO,
1960b, p. 188). E a única via de acesso à realidade objetiva que possui o
ser humano é não a consciência, mas sim a sua própria atividade
objetiva. É por isso que, para Vieira Pinto, “é o trabalho que· nos revela
o ser das coisas, e não a especulação lógica apriorística ou alguma
sutilíssima intuição metafísica.” (PINTO, 1960a, p. 62). Para ele, “a
consciência é determinada pela prática social primordialmente mediante
o trabalho [...]” (PINTO, 1960a, p. 60). Por isso, “é necessário entender
[...] a natureza da relação que prende a consciência ao real, se quisermos
interpretar [...] toda atividade da consciência, tanto na capacidade
representativa quanto no poder de fonte original de ação.” (PINTO,
1960a, p. 42).
No volume I da obra Consciência e realidade nacional, Vieira
Pinto afirma que “os filósofos idealistas” interpretaram a consciência
“como o desenrolar dos conceitos do Espírito, considerados móveis no
sentido de que geram, cada qual de si, outro conceito, a título de
consequência, segundo uma evolução contínua.” No entanto, esse tipo
de interpretação filosófica-idealista “admite que a última [a consciência]
tem caráter de pura mobilidade lógica.” (PINTO, 1960a, p. 61) O
filósofo brasileiro explica que quando este é o caso,
[...] para dar razão da coincidência entre os dois
movimentos, o do espírito e o do real, é preciso
aceitar uma destas hipóteses: uma inexplicável
harmonia preestabelecida entre o pensamento e o
mundo; ou, então, o mundo não é, em verdade,
distinto do pensamento, todo o seu ser se reduz às
ideias, a realidade material, que nos parece
independente, é apenas um modo de ser da
consciência. (PINTO, 1960a, p. 61-62)

Apesar de não nomear nenhum filósofo em específico e de estar


tratando a respeito do conceito de consciência das filosofias idealistas
em geral, a segunda hipótese descrita por Vieira Pinto, “o mundo não é
[...] distinto do pensamento, [...] a realidade material [...] é apenas um
modo de ser da consciência” (PINTO, 1960a, p. 62) parece-nos tratar
especificamente de Hegel. Hegel, como se sabe, confere prioridade do
Espírito sobre a realidade objetiva, e assume a identidade entre sujeito e
objeto, através da equação real = ideal, ou ideal = real. Por isso, em
79

Hegel, as transformações da realidade objetiva se processam em razão


dos desdobramentos dos conceitos formais do Espírito. Ao transformar-
se o Espírito, sempre em via de progresso em razão de uma finalidade
necessária, transforma-se a realidade objetiva. Vieira Pinto, que escreve
com o objetivo de ser inteligível mesmo ao trabalhador comum3,
prossegue afirmando o seguinte: “Não vamos, é claro, entrar na
discussão desses supostos, o que nos conduziria à exposição e ao debate
de concepções clássicas do pensamento europeu [...].” Desta forma, ele
não indica quais filosofias está a debater; para identifica-lo, podemos
apenas isolar as características de tais filosofias apontadas por ele e
realizar nossa própria interpretação. Como já dissemos, parece-nos de
que ele trata, aí, a respeito de Hegel.
Após furtar-se a uma longa exposição do pensamento europeu,
Vieira Pinto afirma que indicou a existência de tais interpretações
idealistas apenas “para ressaltar a proposição que defendemos: a
adequação do pensamento à realidade material se faz mediante o ato
humano de transformar esta realidade. A este ato chamamos trabalho.”
(PINTO, 1960a, p. 62) Em outro lugar, ele afirma que “[...] o homem
[...] conhece o mundo mediante a experiência e a prática, criadora das
ideias [...].” (PINTO, 2005, p. 165). Vemos, portanto, que Vieira Pinto
discorda frontalmente das concepções idealistas — uma delas que
inclusive interpretamos como sendo especificamente a de Hegel —, que
apresentam os movimentos da consciência como o fundamento das
transformações da realidade objetiva externa. No entanto, a proposição
de Vieira Pinto, de que “a adequação do pensamento à realidade
material se faz mediante o [...] trabalho”, não é nenhuma proposição
original na história da filosofia. Na verdade, esta é exatamente a
proposição teórica formulada primeiramente por Marx quando de sua
crítica do idealismo de Hegel e do naturalismo de Feuerbach. Portanto,
em Vieira Pinto, a consciência é tratada não como o conceito
indeterminado do Espírito Absoluto, que desdobra-se em si mesmo
enquanto causa as transformações da realidade externa, mas é tratada
como o conjunto das representações ideais que os seres humanos
engendram, no plano do pensamento, dos objetos externos com os quais
se relacionam através de sua atividade sensível. É por isso que, para o

3 Para mais informações a respeito de nossa interpretação das razões que


levaram Vieira Pinto a não se ocupar da análise sistemática de obras de outros
filósofos e a comunicar seu conteúdo filosófico de maneira tão pouco
convencional, ver Apêndice A, ao final desta dissertação.
80

filósofo brasileiro, a “intelecção” é “o resultado do exercício prático”.


(PINTO, 1960b, p. 188)
Existe, no entanto, uma diferença que nos parece bastante
relevante entre o pensamento de Vieira Pinto e o de Marx, embora não
se trate, segundo nossa interpretação, de nenhuma discordância teórica
ou discrepância inconciliável. Na verdade, segundo nossa interpretação,
trata-se apenas da explicitação de certos aspectos da descoberta
originalmente realizada por Marx que o próprio filósofo alemão, em
razão do nível do conhecimento científico próprio de seu tempo, não
pôde realizar. Vieira Pinto, por sua vez, viveu em condições históricas
privilegiadas em relação à Marx para abordar a questão da constituição
física originalmente encontrada pelos homens — a constituição corporal
do Homo sapiens — e do surgimento da humanidade enquanto ser
qualitativamente distinto dos seres de existência exclusivamente
biológica. Por isso, ele sempre faz referência aos processos biológicos
que levaram à constituição do corpo e do cérebro humanos, embora ele
jamais confunda categorias biológicas como o cérebro com categorias
humanas como a consciência4. Trata-se, neste caso, de acréscimo de
detalhamentos a uma mesma concepção.
Para Álvaro Vieira Pinto, a consciência só pôde surgir no caso
humano em razão do pretérito desenvolvimento do sistema nervoso,
cuja explicação se encontra no interior da história da vida, e pode ser
explicada pela biologia, pela evolução e pela genética. Em razão das
constantes descobertas das ciências da natureza, não se pode falar de
consciência a partir de um ponto de vista materialista sem falar do seu a
priori, i. é, da constituição do órgão cerebral, que para Vieira Pinto
desempenha, no caso humano, uma função qualitativamente distinta das
funções desempenhadas pelos outros órgãos do corpo. Os outros órgãos
são “adstritos às mesmas funções, as quais, possuindo caráter
vegetativo, são imutáveis”. Eles se comportam, se é que se pode falar
aqui de “comportamento”, da mesma forma que se comportam os outros
seres vivos, já que para eles tudo está pré-determinado pela própria
natureza. O cérebro humano, no entanto, é o “único órgão cuja função
geral é a de pôr o homem em contato com o mundo”. Álvaro explica que
“cada ideia que o homem cria pela primeira vez constitui uma nova
função cerebral que adquire, pois representa um diferente tipo de

4
Para mais informações a respeito de nossa interpretação de como Vieira
Pinto articulava, no interior de seu pensamento, as descobertas da física, da
química e da biologia com a concepção materialista histórica-dialética, ver
Apêndice A, ao final desta dissertação.
81

relacionamento de seu ser com o mundo” (PINTO, 2005, p. 78). Por


essa razão, ocorre a “infinita multiplicação de suas funções biológicas
manifestadas no plano de suas representações psíquicas” (PINTO, 2005,
p. 78-79), e essa constante ampliação das funções cerebrais “define e
singulariza a natureza do órgão cerebral” (PINTO, 2005, p. 79). Apenas
um cérebro com tais características é capaz de sustentar a consciência,
que permanece sempre em alteração e expansão, e por essa razão o
desenvolvimento do sistema nervoso é uma condição biológica
necessária ao advento da consciência.
Vieira Pinto explica que, do ponto de vista biológico, a “situação
vital que conduz ao desenvolvimento do sistema nervoso na série animal
até o homem”, “ao longo da linha evolutiva”, “é uma só: a necessidade
de resolver a contradição entre o ser vivo e a natureza.” (PINTO, 2005,
p. 60). Assim, em razão das leis de funcionamento da biologia, ao longo
da linha evolutiva “o animal humano foi dotado do recurso de que
necessitaria para resolver por si suas contradições com o meio”, que foi
“a posse de um sistema nervoso suficientemente desenvolvido para”, em
primeiro lugar, “elaborar, em forma de ideias abstratas e universais, o
reflexo da realidade”, e em segundo lugar, “capaz de comandar a
produção, pelo indivíduo, dos meios de vencer as dificuldades opostas à
satisfação de suas exigências.” (PINTO, 2005, p. 61). Assim, se o ser
humano “amplia o domínio sobre a realidade” é porque, ao longo da
linha evolutiva, “nele cresce o tecido nervoso, sem aumento
correspondente do tecido muscular”, de modo que a posse de um
sistema nervoso suficientemente complexo para sustentar “a capacidade
de representar o mundo circundante” (PINTO, 2005, p. 64) se torna uma
de suas características biofisiológicas.
Apesar de esse pretérito desenvolvimento cerebral ser uma
condição biológica para o surgimento e sustentação da consciência, as
ideias não são o produto das relações químicas que ocorrem no cérebro
humano, assim como não é produto de algum tipo de movimento da
matéria ou da vida. Somente ao articular a categoria da consciência à
categoria da atividade é que se pode vir a compreender como a
consciência e o conhecimento se tornam possíveis e como ocorrem entre
os seres humanos. Segundo Álvaro, “a realidade é apreendida
exatamente porque o homem atua sobre as coisas exteriores [...]”
(PINTO, 1960b, p.195). Ao atuar no mundo, ao buscar transformar
aquilo que o mundo é, ao trabalhar, o ser humano entra em contato com
o que o mundo de fato é, e esse contato do ser humano com a realidade
autêntica do mundo permite a ele conhecer essa realidade externa. É isso
que Álvaro quer dizer quando afirma que “é ao ser objeto de ação por
82

parte do sujeito que o mundo abre as virtualidades cognoscíveis que


possui.” (PINTO, 1960b, p.195-196). Em razão de sua atividade
sensível, o ser humano “começa a descobrir as propriedades das coisas,
substâncias e fenômenos”, de modo que “aquilo que no objeto constitui
uma propriedade natural da matéria de que é composto transfere-se para
a substância nervosa, entra a fazer parte de seu dinamismo fisiológico
mediante modificações que nele se processam”. Posteriormente, “por
mecanismos ligados ao processo de recebimento e memorização de
informações, adquire a qualidade de noção abstrata” e, desta forma, tem
início a sua “evolução intelectual.” (PINTO, 2005, p. 64).
Novamente, precisamos dar ênfase ao fato de que, para Vieira
Pinto, as ideias não são produto da biologia, que propiciou o
desenvolvimento do sistema nervoso no Homo sapiens, nem tampouco
da bioquímica, que propicia a possibilidade da criação ideal do reflexo
da realidade. Em muitos momentos, as expressões de Vieira Pinto
parecem indicar um pensador materialista vulgar, naturalista, mas este
não é o caso. De fato, Vieira Pinto fala do ser humano “[...] enquanto ser
biológico que desafiou a natureza sem contar com outras armas senão as
que ela própria lhe forneceu [...]”, mas ele afirma na sequência da
mesma passagem que este ser “[...] encontrou os meios de produzir um
novo tipo de força, capaz de transformar o mundo, o pensamento
racional.” (PINTO, 2005, p. 161). A primeira parte da expressão parece
indicar que consciência e trabalho possuem origem nos desdobramentos
da natureza. No entanto, a arma que a natureza lhe forneceu foi
simplesmente a posse de um sistema nervoso suficientemente
desenvolvido para sustentar a consciência, e não a própria consciência.
A partir dessa característica que lhe foi dada pela evolução biológica, i.
é., o sistema nervoso altamente desenvolvido, o próprio ser humano
encontra meios de produzir o pensamento racional, conforme se pode ler
na segunda parte da expressão acima. Como já vimos, o reflexo da
realidade exterior só é engendrado idealmente a partir do momento em
que o ser humano passa a atuar sobre a realidade externa, portanto a
partir do momento em que o ser humano passa a produzir. Nas palavras
de Vieira Pinto, “[...] é o trabalho que revela a realidade, à medida que a
vai modificando.” (PINTO, 1960a, p. 67). Se Vieira Pinto dá ênfase ao
papel que o desenvolvimento cerebral desempenha na capacidade
humana de sustentar a consciência, ele o faz para demonstrar o que há
de legítimo na conexão entre o biológico e o social, mas sem atribuir à
natureza, seja na sua forma inerte ou viva, a responsabilidade pelo
surgimento das características especificamente humanas. É o próprio
indivíduo que trabalha que, através da mediação de seus atos produtivos,
83

modifica sua consciência. “Ao defrontar-se por meio da experiência


sensível com os dados da objetividade”, afirma Vieira Pinto, “o espírito
[...] os reflete [...].” (PINTO, 1960b, p. 188).
Ao agir sobre o mundo, o ser humano se depara com a resistência
do real. No entanto, as operações de abstração, comparação e
generalização, por se realizarem idealmente, permitem que o ser
humano se veja livre dos limites, das restrições e das resistências
impostos pela natureza à sua ação objetiva. Isso ocorre, evidentemente,
porque a transformação que se opera nas representações ideias não
alteram em nada os objetos externos reais, das quais as representações
são meros reflexos abstratos que o ser que se tornou consciente
engendra no plano do pensamento. Assim, em razão de sua capacidade
abstrativa, o trabalhador descobre “não estar obrigado a aproveitar cada
imagem na totalidade maciça com que reflete um dado objetivo, mas
simplesmente conservar alguns dos aspectos deste”. “Pelo mecanismo
de eliminação parcial de algumas características das coisas e
conservação de outras”, prossegue Vieira Pinto em sua explicação,
“torna-se possível ao pensamento comparar uma imagem com outra, da
mesma espécie abstrata e também visualizada por um ângulo particular,
originando-se assim a fusão delas em uma terceira”. (PINTO, 2005, p.
57). É por isso que “das ideias oriundas imediatamente da experiência”
o trabalhador “faz surgir outras, resultantes de processos abstrativos e
comparativos” (PINTO, 1960b, p. 188). Essas ideias que são não o
reflexo imediato de um objeto externo com o qual o trabalhador entrou
em contato ao agir na realidade objetiva, mas sim o resultado da
capacidade abstrativa do pensamento humano, “já não tendo
correspondência direta e integral com algum objeto ou relação existentes
no mundo material, vem a ser o ‘projeto’ de existência de tal entidade
concebida.” (PINTO, 2005, p. 57). Assim, “na própria esfera do
pensamento, estabelecem-se relações abstratas entre as propriedades
percebidas nos corpos, conduzindo ao surgimento, em estado ideal, do
projeto de modifica-las.” (PINTO, 2005, p. 55).
“As formas de representação adquiridas por outros organismos
animais”, segundo Vieira Pinto, “referem-se diretamente à coisa, à
propriedade ou ao fenômeno presentes aos órgãos sensoriais
analisadores”. Assim, o comportamento do animal é condicionado pela
presença ou existência externa do objeto da necessidade deste animal.
“Movidos pela exigência de alimentação, ao se defrontarem com uma
substância ou um outro ser vivo adequado à satisfazê-la”, explica ele, só
cabe aos animais “refletir no psiquismo a presença da coisa a ser, ou
não, comida”, de forma portanto maciça, conforme captado pelos
84

sentidos. Se o animal encontra-se na presença de tal elemento, “a


imagem dele revela-se imediata e total, e por isso não tem sentido falar
do ‘projeto’ de devorá-lo”. Como já vimos, o próprio elemento que
representa ao animal irracional, neste caso, alimento, não é de sua
escolha, já que o animal irracional é irresponsável: “estamos neste caso
no terreno dos reflexos incondicionados.” (PINTO, 2005, p. 58). O
comportamento do ser humano, ao contrário, é condicionado pelo
projeto, conscientemente idealizado por ele próprio, ou seja, a ação
humana é condicionada pela intenção do próprio ser humano, o que
torna o ser humano um ser livre. Nas palavras de Álvaro: “no homem a
ideia a que se vai condicionar é um projeto, de origem interna, buscando
realizar-se na ação efetiva, na qual se corporifica seu significado”
(PINTO, 2005, p. 61).
Por tais razões, o “projeto” é uma categoria muito relevante no
interior do pensamento de Vieira Pinto. Assim como a consciência não
aparece em sua filosofia como “consciência pura”, tampouco o projeto
aparece como transformação do mundo operada apenas na mente, no
interior do pensamento. Certamente, antes de vir à existência empírica
por meio da ação humana, antes de existir, portanto, em ato, o projeto
precisa ser concebido idealmente pelo ser humano, vindo a existir
primeiramente, portanto, em potência. Mas o conceito de projeto possui
essas duas modalidades, uma que se refere à ação realizada pelo ser
humano no interior do seu próprio pensamento, e outra que se refere à
ação realizada pelo ser humano externamente, em contato com o mundo
objetivo.
De fato, o projeto surge primeiramente idealmente: “O projeto é
[...] a característica peculiar” “da solução humana do problema da
relação do homem com o mundo físico” porque é “engendrada no plano
do pensamento”. Em princípio, o projeto “é pura e simplesmente a
percepção mental das possibilidades de conexões entre as coisas”. Por se
tratarem de conexões inexistentes na realidade externa, sendo portanto
resultado da capacidade abstrata que permite “manejar as ideias
correspondentes às coisas”, o pensamento se põe a “configurar
idealmente um corpo, um maquinismo, uma instituição ou um artefato
ainda não existente”. O pensamento parte das representações obtidas
através do contato empírico com a realidade, mas “a imagem com elas
constituída é um inexistente”. (PINTO, 2005, p. 55). Mas toda essa
atividade do pensamento não possui capacidade, por si só, de alterar a
realidade externa. Apenas através da mediação da atividade empírica e
transformadora do ser humano, o trabalho, a representação deste
inexistente pode vir “a ser fabricado [...] de acordo com o ‘projeto’”
85

(PINTO, 2005, p. 55). Nesse sentido, o projeto aparece não apenas


como um ato de pensamento, mas “como ato intencional de uma
transformação a impor ao mundo ambiente” (PINTO, 2005, p. 56).
Vieira Pinto explica que o ser humano deseja transformar a realidade,
“mas percebe ser ilusório fazê-lo em pensamento, tendo de conquistá-lo
pela modificação impressa à realidade a que pertence.” (PINTO, 2005,
p. 58) “A característica da atividade humana superior, consciente”,
afirma ele, “é o produzir ‘com o fim de”. (PINTO, 1960b, p. 190). Por
isso, “o conceito autêntico do ‘projeto’ é o de caráter objetivo” (PINTO,
2005, p. 58).
Vê-se, pois, que o projeto só possui sentido se compreendido em
seu caráter objetivo, certamente como intenção previamente pensada e
imaginada pelo ser humano em sua mente, mas que o ser humano deseja
reproduzir objetivamente no mundo em razão da sua necessidade de
transformar a natureza para nela subsistir, e que por isso serve como
guia para a ação humana. O projeto, segundo Álvaro Vieira Pinto,
“significa o relacionamento da ação a uma finalidade, em vista da qual
são preparados e dispostos os meios necessários e convenientes”
(PINTO, 2005, p. 59). A atividade transformadora do mundo é, desde o
princípio, o objetivo da abstração: “a noção de projeto contém implícita
a ação, pois não se refere à possibilidade de transformações espontâneas
e inevitáveis, mas a um deliberado fazer-se ser.” (PINTO, 1960b, p.
186). Por esse motivo, “a razão de ser de todo projeto consiste na
produção”, e não na pura reprodução e transformação ideal dos entes
externos. Para o ser humano, tanto quanto para os animais irracionais,
sempre se trata de resolver a contradição dialética fundamental com a
natureza: “o projeto, na origem da evolução biológica, está ligado à
imperiosidade de solucionar uma situação vital por formas mais
satisfatórias e rendosas do que os comportamentos instintivos
anteriores.” Desde o princípio, “o animal humano condiciona-se à ação
que representa a melhor maneira de prover as necessidades materiais
prementes do indivíduo e da espécie”. (PINTO, 2005, p. 59). Em
síntese, Vieira Pinto afirma que
[...] o ato de adaptar a natureza [...] a si resulta de
um projeto vital, que o sistema nervoso do
indivíduo hominizado se mostra capaz de elaborar
e sustentar, ou seja, de levar à prática, pela ação
que o organismo e o pensamento executam, ação
condicionada à ideia projetada. É indispensável
compreender só existir ação prática efetivamente
humana quando movida pela imagem abstrata e
86

pré-sentida do efeito a criar, como exteriorização


e consumação do projeto. (PINTO, 2005, p. 57)

O caráter peculiar do modo através do qual o ser humano resolve


sua contradição dialética com a natureza, que é o trabalho, encontra na
ideia de projeto sua confirmação. É apenas porque o ser humano
engendra idealmente objetos previamente inexistentes que assumem
para ele o caráter de um propósito criativo que ele necessita realizar
externamente através de seu trabalho, que se torna possível a ele
transformar qualitativamente a realidade externa. É por isso que “a
produção adquire, com a marcha da evolução do sistema nervoso,
realizando-se já então em forma de trabalho [...], a qualidade de feitura
de objetos” (PINTO, 2005, p. 62). Por essa razão, “a análise filosófica
da capacidade humana da criação, na práxis em geral e particularmente
na práxis fabricadora, tem sempre de partir do conceito e do fato do
projeto, entendido nos fundamentos biológicos”. (PINTO, 2005, p. 57).
Como a imagem que se converte no projeto de alteração da
realidade externa não é o reflexo de um objeto externo, mas sim uma
representação plenamente abstrata que é fruto dos processos de
abstração próprios do pensamento humano, é importante frisar que o
projeto é sempre o resultado das escolhas que o indivíduo que trabalha
realiza. Livre das amarras da resistência externa, ao criar idealmente o
objeto inexistente que, caso viesse à existência, resolveria suas
contradições com o meio, ele pode deliberadamente escolher quais
representações de quais corpos combinar, quais propriedades de cada
coisa deseja utilizar e quais fenômenos e forças da natureza deseja trazer
em seu auxílio em sua tarefa produtiva. Assim, compreende-se porque o
trabalho só pode objetivar no mundo aquilo que é qualitativamente
distinto de tudo que até então existia. Todo ato de trabalho pressupõe
um sujeito que detém uma subjetividade, um sujeito que é capaz de
tomar decisões, de escolher entre as opções existentes, de modo que ao
trabalhar o ser humano não produz mais do mesmo, maior quantidade
daquilo que já existe, mas objetiva externamente algo que é privativo do
seu próprio ser, operando uma transformação qualitativa do real. Vieira
Pinto explica que “o homem não fabrica a máquina, mesmo a mais
primitiva, copiando o funcionamento de seus membros ou de seu
cérebro, que não conhece suficientemente. Fabrica-a porque a inventa, a
projeta [...]” (PINTO, 2005, p. 77).
A capacidade de projetar, característica constitutiva da essência
humana, o difere qualitativamente dos demais seres vivos. O papel que
no “animal irracional” é desempenhado pela “adaptação”, no ser
87

humano é desempenhado pelo “projeto consciente”. Sem a adaptação, os


seres orgânicos não teriam condições de permanecer existindo na sua
diferenciação em relação aos seres da esfera inorgânica do ser, já que as
condições do ambiente do qual dependem inteiramente os animais
irracionais se modificam constantemente. A adaptação, no entanto,
ocorre na ausência de qualquer intenção por parte dos animais
irracionais. Até mesmo por isso, a adaptação diz respeito a mudanças
muito pequenas, que apenas muito gradualmente tornam-se alterações
importantes, que inclusive não chegam a afetar imediatamente um
animal específico no curso de sua própria vida, dizendo respeito muito
mais à sua espécie. Além disso, a adaptação resulta não em uma
modificação da natureza para torna-la favorável ao animal, mas sim em
uma modificação da espécie animal para torna-la mais adaptada às
condições da natureza. “O animal se adapta a um mundo cujas
propriedades não conhece, pois não faz ideia delas, sendo assim apenas
o mecanismo biológico de aproveitamento das eventuais oportunidades
propícias, transmitido pela herança cromossômica, que nele se fixará.”
(PINTO, 2005, p. 56). O animal “não ‘projeta’ seu ser, não produz a
existência, mas apenas a conserva, valendo-se das condições, cumpridas
cegamente, compendiadas no código genético, entregue a cada qual pela
evolução natural.” (PINTO, 2005, p. 64). É por isso que os demais seres
vivos não trabalham, não produzem: o trabalho, entendido como ação
consciente e intencional de transformação da matéria natural, cujo
objetivo é produzir determinado valor de uso, só pode ser realizado por
um ser capaz de objetivar no mundo, através de sua ação, uma finalidade
previamente concebida idealmente por um sujeito capaz de criar e
escolher.
Por isso, a adaptação “toma no homem a qualidade ativa”,
“enquanto modo consciente de transformação do mundo”. (PINTO,
2005, p. 56). Mas, de forma alguma isso significa que o ser humano
conscientemente atue para adaptar-se ao mundo. O que o ser humano
faz, de forma consciente, é adaptar o mundo às suas próprias
necessidades. A diferença dos seres humanos para os outros seres vivos,
que o faz possuir uma história própria, distinta da história natural,
consiste “no poder possuído” pelos seres humanos “de adaptar a
natureza a si, enquanto as espécies inferiores sobrevivem pela adaptação
ao meio exterior.” (PINTO, 2005, p. 57). Este “poder da ação que o
homem manifesta sobre a natureza distingue-se do possuído pelos
demais seres vivos por se exercer em consequência da capacidade de
projetar.” (PINTO, 2005, p. 55). Por seu caráter passivo e não-
intencional, praticada pela própria natureza e não pelo animal irracional,
88

“a adaptação é a forma inferior do encontro da matéria viva com o


mundo”; por seu caráter ativo e intencional, praticado pelo próprio
homem, “o projeto representa a forma mais elevada.” (PINTO, 2005, p.
56). Assim, “somente o homem estende, pelo aproveitamento da energia
cerebral, as possibilidades de imposição da matéria viva ao meio.”
(PINTO, 2005, p. 64). Essa diferença existente entre o ser humano e os
outros seres vivos expressam uma distinção ontológica; ou, nas palavras
de Álvaro, consiste naquilo em “que distingue existencialmente um caso
de outro”. (PINTO, 2005, p. 56). Afirma Vieira Pinto:
A definição do homem como o ser transformador
do mundo encontra aqui confirmação, ficando ao
mesmo tempo explicada a procedência dessa
propriedade. Trata-se do resultado do novo grau
de complexidade atingido pela matéria viva no
curso da evolução, em virtude do qual mostra-se
agora habilitada a efetuar operações
qualitativamente distintas de tudo quanto antes era
capaz de fazer, representando assim um salto
qualitativo no desenvolvimento biológico.
(PINTO, 2005, p. 58)

Se no plano ideal o ser humano pode dar total vazão à sua


capacidade criadora, não se vendo limitado pelo real, ao passar do
momento ideal do projeto à realização dele por intermédio do trabalho,
as possibilidades transformadoras deixam de ser infinitas porque, como
já vimos, a natureza estabelece limites, restrições, resistências à ação
transformadora que o ser humano busca impor a ela. Mas a simples
criação ideal não soluciona a contradição vital do ser humano. Como já
vimos, o projeto “não se refere à possibilidade de transformações
espontâneas e inevitáveis, mas a um deliberado fazer-se ser” (PINTO,
1960b, p. 186), o que significa que o ser humano necessita passar da
etapa da criação ideal para a etapa da criação objetiva. Todavia, “se o
animal pensante poderá, ou não, dar realização à coisa imaginada, é um
resultado que irá depender de numerosos outros fatores” (PINTO, 2005,
p. 58) que dizem respeito ao modo através do qual o ser humano irá
intervir sobre a realidade externa.
“Qualquer dessas intervenções”, explica Vieira Pinto, “tem de
obedecer à natureza das coisas, tem de utilizar as energias próprias dos
fenômenos físicos”. Ao agir objetivamente no mundo, “o homem não
poderá deixar de operar segundo linhas de ação por assim dizer
previamente traçadas nas qualidades dos corpos e nas possibilidades
enérgicas oferecidas pelo mundo.” E é por isso que toda ação produtiva
89

“está obrigada a seguir certos caminhos, reconhecidos úteis no


correspondente momento do progresso humano”, e “tal modo de
proceder”, conclui Vieira Pinto, “é o que se chamará técnica.” (PINTO,
2005, p. 64-65) Assim, surge o conceito de técnica em Vieira Pinto:
“[...] obedecer às qualidades das coisas e agir de acordo com as leis dos
fenômenos objetivos, seguindo os processos mais hábeis possíveis em
cada fase do conhecimento da realidade, é precisamente aquilo em que a
técnica consiste.” (PINTO, 2005, p. 62).
No processo de trabalho, “[...] a escolha dos materiais e a forma a
eles dada obedecem às finalidades a que os objetos se destinam”, de
modo que as especificações do projeto que o ser humano engendrou
primeiramente em seu pensamento possibilita que sejam realizadas
escolhas práticas limitadas em razão das propriedades dos objetos dos
fenômenos externos, sob pena de falhar o processo de objetivação do
projeto, i. é., de o trabalho não alcançar a finalidade pretendida pelo
trabalhador. Por isso, as técnicas “[...] só podem ser aquelas
efetivamente proveitosas, apenas abandonadas quando se descobrem
outras de maior proveito.” (PINTO, 2005, p. 64-65). Ainda assim,
sempre existem certas possibilidades, de modo que as ações produtivas
“[...] terão a raiz no projeto interior que o anima e se caracterizarão pela
escolha dos objetos e procedimentos de ação.” (PINTO, 2005, p. 64).
Em razão do caráter objetivo do projeto, o indivíduo já escolhe as
técnicas que acredita serem adequadas a produzir este ou aquele efeito
sobre o objeto de trabalho quando da concepção ideal do projeto. Assim,
“[...] na execução da técnica está presente o sujeito que escolhe, e este
não pode ser outro senão o homem, movido naturalmente pelo projeto
de realizar mais proveitosamente e com menor esforço os fins que se
propõe.” (PINTO, 2005, p. 166).
Vieira Pinto esclarece que “o homem sempre progride na luta
contra a natureza” (PINTO, 2005, p. 161), “mas não a vence realmente
com armas da mesma espécie que as dela [...], e sim com outras,
superiores e originais: as ideias abstratas e a invenção imaginativa que
movem a ação técnica.” (PINTO, 2005, p. 162). Como o trabalho é uma
“relação permanente do homem [...] com o mundo exterior [...]”
(PINTO, 2005, P. 414), o ser humano é um ser permanentemente
técnico, essencialmente técnico. Ao falar da técnica, Vieira Pinto sempre
fala da “técnica enquanto caráter existencial da ação humana.” (PINTO,
2005, p. 68). Por isso, ela “pertence ao comportamento natural do ser
que se humanizou” (PINTO, 2005, p. 64), “[...] está presente por
definição em todo ato humano” (PINTO, 2005, p. 62) e “é coetânea com
o surgimento do homem.” (PINTO, 2005, p. 62).
90

Sendo o trabalho a atividade sensível que o trabalhador realiza


tendo como guia um projeto, que é uma ideia original criada idealmente
por ele próprio, toda atividade humana é autodeterminada, condicionada
pela consciência. Mas, como vimos, também a consciência é
condicionada pela atividade. Ao agir empiricamente no mundo, o ser
humano altera seu entorno, o que o levará a sentir novas necessidades.
Em razão dessas novas necessidades, que não podem ser atendidas por
nenhum objeto externo conhecido, o ser humano põe sua capacidade
abstrativa a criar novos objetos. Assim, a consciência é condicionada
pela ação. Assim, a relação que se estabelece entre consciência e
trabalho é uma relação de tipo dialético, de intercorrelação. Não se pode
explicar um sem fazer referência ao outro.
Apesar disso, antes de tudo, o ser humano é um ser vivo, um ser
natural. A existência da matéria inerte e da matéria viva antecede à
existência humana. Antes de efetuar-se o salto qualitativo, que lhe fez
superar a simples animalidade, o ser humano foi apenas mais um entre
os hominídeos. Por isso, o apoio na história natural e biológica permite-
nos descobrir o momento predominante, que é o da atividade sensível. É
a partir dela que todo processo dialético de condicionamento recíproco
entre atividade e consciência se inicia. Para Vieira Pinto, “o modo pelo
qual o homem vê o mundo tem como uma das suas causas
condicionadoras, a natureza do trabalho que executa [...].” (PINTO,
1960a, p. 110). O filósofo brasileiro trata da “[...] a formação da
consciência individual a partir da vivência do estado criado para cada
homem pela sua participação pessoal no processo econômico” (PINTO,
1960a, p. 19); considera que “[...] o condicionamento da consciência e
sua eventual transmutação partem, de modo imediato, da situação vivida
pelo trabalhador [...].” (PINTO, 1960a, p. 111). É por isso que o
desenvolvimento das categorias especificamente humanas, que o
diferenciam cada vez mais da simples animalidade, ocorre sempre
através da mediação do trabalho, inclusive o desenvolvimento da
consciência. Como afirma Vieira Pinto: “O trabalho [...] é [...] fator
constitutivo da sua natureza, [...] é por intermédio dele que se realiza a
humanização progressiva do homem, e que cada um constrói a sua
consciência da realidade.” (PINTO, 1960a, p. 60).
Como, pelo trabalho, o ser humano modifica a realidade externa
com a finalidade de produzir bens que a natureza é incapaz de
engendrar, o ser humano produz a natureza, no sentido de que “pela
ação dos homens, a realidade vai se povoando de produtos de fabricação
intencional, realizada pelo ser que se tornou projetante”. (PINTO, 2005,
p. 55). Vieira Pinto afirma que “o verdadeiro criador das coisas é o
91

homem, e não o mundo” (PINTO, 2005, p. 39), mas não por ser um
filósofo idealista. Antes o oposto: é a partir da constatação de que “[...]
os objetos criados contribuem para oferecer novo panorama da natureza,
distinto daquele em que não havia essas coisas surgidas pela realização
econômica” (PINTO, 1960a, p. 348), que ele explica a inversão
filosófica da explicação idealista da relação da consciência com o
mundo. Para ele, é exatamente porque o ser humano produz seu entorno
que os filósofos puderam chegar a interpretar aquilo que consideravam a
sua essência, a consciência, o Espírito, etc., como a verdadeira criadora
de toda realidade externa: “Com isso, considera-se criador do ‘mundo’ e
perde de vista a noção biológica, e historicamente única autêntica, de ter
sido a natureza que engendrou [...] a origem de tudo quanto o homem
produz.” (PINTO, 2005, p. 39).
92
93

4 O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA SOCIABILIDADE

Por maiores que fossem as diferenças entre as filosofias


contratualistas, pode-se dizer, ao menos de modo bastante geral, que o
ser humano era concebido por elas como um ser atomizado, isolado dos
seus semelhantes. Esses indivíduos, cuja existência isolada precederia
sua existência em sociedade, possuíam uma essência eterna e imutável,
que era egoísta, individualista e livre. Como cada um desses indivíduos
isolados agiria sempre no sentido de defender seus próprios interesses,
de maneira egoísta, todos os indivíduos isolados encontravam-se
permanentemente em posição de vulnerabilidade uns frente aos outros,
razão pela qual os filósofos consideravam tal situação inferior do ponto
de vista civilizatório. Para eles, a organização da vida social tornou-se
possível porque, em razão dessa vulnerabilidade, cada um dos
indivíduos isolados, através de uma livre iniciativa individual,
concederam ao Estado certos poderes e direitos que eram próprios de
sua essência natural e individual, mas apenas porque a organização da
vida social havia se tornado, em algum momento indefinido da história,
uma necessidade egoísta de cada um dos indivíduos. Assim, da essência
egoísta de cada indivíduo isolado nasce o seu contrário: a cooperação
social.
Para Marx, o assim chamado indivíduo isolado é uma concepção
absurda, metafísica, irreal e que, portanto, não possui nenhuma
correspondência a nenhum caso constatável empiricamente. Para Marx,
cada indivíduo, já tomado em sua condição singular, não poderia
constituir-se enquanto indivíduo humano se não estabelecesse vínculos
com outros indivíduos humanos, de modo que a essência de cada
indivíduo, sua essência humana, é social. Por isso, quando tratamos da
análise do trabalho a partir do pensamento de Marx, tratamos sempre da
“produção dos indivíduos socialmente determinada”, de “indivíduos
produzindo em sociedade” (MARX, 2011, p. 39).
Já vimos que o ser humano trabalha porque é, antes de tudo, um
animal que carece. A forma encontrada por ele para satisfazer suas
necessidades é uma forma peculiar e privativa, através da qual ele
produz os bens de que necessita. Ao agir objetivamente sobre a
realidade externa, o indivíduo que trabalha descobre algo mais sobre as
propriedades dos corpos e fenômenos externos, de modo que modifica a
sua consciência, que é antes de tudo o conjunto das representações
ideias dos objetos e fenômenos externos. Fazendo uso de sua capacidade
abstrativa, que permite manipular as representações ideais de modo a
combiná-las de formas nunca antes observadas na realidade externa, o
94

indivíduo que trabalha cria idealmente o novo, um inexistente, que pode


ser trazido à existência objetiva posteriormente através da atividade do
indivíduo. Assim, a realidade vai sendo progressivamente modificada, e
o ser humano se descobre o ser que produz a natureza tal como ela se
apresenta — muito embora ele só possa atuar no interior da natureza, a
partir dos materiais fornecidos pela natureza e em razão das
necessidades que primeiramente lhe foram dadas pela natureza, que lhe
precede e neste sentido impõe-se como prioridade externa.
Mas a natureza não engendrou um único exemplar do Homo
sapiens, e o indivíduo que trabalha não está sozinho no mundo. O salto
qualitativo que retirou a humanidade do plano puramente biológico da
existência foi a passagem não de um único indivíduo ao plano humano
da existência, mas sim a passagem de toda a espécie. Marx explica que
desde o princípio, os indivíduos “não eram únicos [...] e como suas
necessidades [...] e o modo de satisfazer essas necessidades os
conectavam uns aos outros [...], então eles tiveram de estabelecer
relações.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 421). Já vimos anteriormente
que compete à consciência a habilidade de analisar os dados e as
propriedades dos corpos e fenômenos externos para inventar formas
mais eficientes e rendosas de agir sobre a realidade objetiva, resultando
na poupança de esforço ou no aumento da produção dos valores de uso;
e a primeira solução elaborada pelas consciências dos indivíduos quando
de seu surgimento foi a possibilidade e a necessidade da cooperação,
que Marx define como “a forma de trabalho em que muitos indivíduos
trabalham de modo planejado, uns ao lado dos outros e em conjunto, no
mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes
porém conexos”. (MARX, 2017, p. 400). A primeira solução elaborada
pela consciência, portanto, foi a percepção do fato de que os diferentes
indivíduos podem realizar a transformação da natureza de forma
conjunta, articulada e planejada, que permite a superação das limitações
individuais em razão da força do coletivo.
Marx explica que os efeitos gerados pela cooperação entre os
indivíduos são superiores aos efeitos que estes mesmos indivíduos são
capazes de gerar quando separados. “Assim como o poder ofensivo de
um esquadrão de cavalaria ou o poder defensivo de um regimento de
infantaria são essencialmente diferentes dos poderes ofensivos e
defensivos de cada um dos cavaleiros ou soldados de infantaria tomados
individualmente”, afirma Marx, “também a soma total das forças
mecânicas exercidas por trabalhadores isolados difere da força social
gerada quando muitas mãos atuam simultaneamente na mesma operação
indivisa” (MARX, 2017, p. 401), porque “o trabalhador combinado ou
95

coletivo” “ataca o objeto de trabalho por vários lados”, isto é, “tem


olhos e mãos na frente e atrás, sendo em certa medida, onipresente”
sobre o objeto de trabalho. Uma única jornada de trabalho cooperativa
realizada por 12 trabalhadores por 12 horas consecutivas “faz avançar o
produto total mais rapidamente do que 12 jornadas de trabalho de 12
horas de trabalhadores mais ou menos isolados e que tenham de realizar
sua obra de modo mais unilateral”. (MARX, 2017, p. 402). Por isso, o
número de trabalhadores necessários à realização do efeito útil
pretendido, quando combinadas as jornadas de trabalho, é “sempre
menor do que o número de trabalhadores que realizariam isoladamente a
mesma quantidade de trabalho no mesmo período de tempo”. (MARX,
2017, p. 403).
Vemos, assim, que quando “comparada com uma quantidade
igual de jornadas de trabalho isoladas e individuais, a jornada de
trabalho combinada produz uma massa maior de valor de uso,
reduzindo, assim, o tempo de trabalho necessário para a produção de
determinado efeito útil”. (MARX, 2017, p. 404). No entanto, em todo
esse debate realizado por Marx no capítulo da cooperação do livro I de
O Capital, o filósofo alemão busca demonstrar que a produtividade do
trabalho cooperativo é superior à produtividade do trabalho individual,
pressuposto lógico necessário à demonstração da existência do mais-
valor relativo, no qual o trabalhador, enquanto mercadoria individual,
isto é, força de trabalho, é comprado e pago individualmente, embora
produza não apenas mais valor individualmente, mas também produza
mais valor por trabalhar de forma cooperativa com outros indivíduos.
Portanto, este é ainda um argumento de ordem quantitativa.
Mas Marx explica também que “em muitos ramos de produção há
momentos críticos, isto é, épocas determinadas pela própria natureza do
processo de trabalho, nas quais devem se obter certos resultados do
trabalho”, sob pena de não mais se poder realizar a finalidade
pretendida, isto é, sob pena de perder parte ou mesmo toda a produção.
“Se é preciso tosquiar um rebanho de ovelhas ou ceifar e colher uma
dada plantação de trigo”, exemplifica Marx, “a quantidade e a qualidade
do produto dependem de a operação começar e terminar num
determinado momento”, razão pela qual “o período de tempo que o
processo de trabalho deve ocupar é um período prescrito”. Explica Marx
que “um indivíduo não pode recortar do seu dia uma jornada de trabalho
maior que, digamos, 12 horas, mas a cooperação de 100 indivíduos, por
exemplo, expande uma jornada de 12 horas a uma jornada de 1200
horas”. Desta forma, apesar das limitações dos indivíduos, os seres
humanos tornam-se capazes de produzir determinado efeito útil neste
96

momento crítico da produção porque “a brevidade do prazo de trabalho


é compensada pela grande massa de trabalho que, no momento decisivo,
é lançada no campo de produção”. Nestes casos, “a realização da tarefa
no tempo apropriado depende [...] da aplicação simultânea de muitas
jornadas de trabalho combinadas”, tal como “a amplitude do efeito útil
depende do número de trabalhadores”. (MARX, 2017, p. 403). Por isso,
devemos já observar que existem casos nos quais “o efeito do trabalho
combinado [...] não poderia em absoluto ser produzido pelo trabalho
isolado [...]” (MARX, 2017, p. 400-401), o que eleva a relevância da
cooperação do nível quantitativo ao qualitativo. Quando Marx fala sobre
a cooperação, ele não “trata somente do aumento da força produtiva
individual por meio da cooperação, mas da criação de uma força
produtiva que tem de ser, por si mesma, uma força de massas”. (MARX,
2017, p. 401).
Essa “força produtiva específica da jornada de trabalho
combinada é força produtiva social do trabalho ou força produtiva do
trabalho social”, que “deriva da própria cooperação” (MARX, 2017, p.
405), o que significa, filosoficamente, que a cooperação torna os seres
humanos mais potentes frente à natureza para resolver sua contradição
dialética com ela. Ocorre, com a cooperação, a negação dialética do
trabalho individual, ou o que Marx chamou, em outro contexto, de
“suplantação do trabalhador isolado pelo socializado” (MARX, 2017, p.
459). Em toda negação dialética ocorre a manutenção do elemento
negado, que neste caso é o trabalho individual, e que, portanto, não
desaparece. O que ocorre é que tão logo os indivíduos começam a
cooperar, o trabalho individual aparece como forma limitada e superada
da atuação humana, já que os atos imediatamente individuais de trabalho
possuem, quando muito, uma produtividade muito menor do que os atos
de trabalho cooperativos, e em muitos casos é totalmente incapaz de
produzir os efeitos úteis que a cooperação produz. É por isso, por
exemplo, que no período da Grande Indústria a cooperação objetivada
na forma do capital fixo aparece como o fundamento da riqueza, ao
passo que o tempo de trabalho individual aparece como “fundamento
miserável” (MARX, 2011, p. 588) da riqueza capitalista.
Vemos que quando Marx fala da “nova potência que surge da
fusão de muitas forças numa força conjunta”, (MARX, 2017, p. 401) ele
não trata apenas da cooperação no sentido econômico do termo, como
divisão do trabalho etc., mas também em sentido filosófico. Marx
explica que “o simples contato social provoca, na maior parte dos
trabalhos produtivos, emulação e excitação particular dos espíritos vitais
que elevam o rendimento dos trabalhadores individuais”. “A razão
97

disso”, afirma ele, “está em que o homem é, por natureza, [...] um


animal social.” (MARX, 2017, p. 401). Aqui fica clara a discordância de
Marx quanto ao conceito de essência humana dos filósofos
contratualistas e dos economistas políticos. Marx, contrapondo-os, parte
sempre do indivíduo objetivo, isto é, de um indivíduo que só pode
subsistir na presença, contato, cooperação e intercâmbio incessante com
seus semelhantes, e que em sua essência é, por isso mesmo, um ser
social. Para Marx, as relações entre os indivíduos resultam da luta pela
vida, mas não da luta pela vida no terreno biológico, mas da luta pela
vida no terreno social, que o ser humano realiza através da produção.
Não foi a natureza, ao engendrar o animal humano como ser
necessitante, que estabeleceu relações entre os indivíduos, mas sim eles
próprios que, em meio à luta pela vida, desde o princípio encontraram-se
uns aos outros, estabeleceram relações e passaram a agir de forma
coletiva sobre a realidade: “[...] foi justamente o comportamento pessoal
[...] dos indivíduos, seu comportamento uns em relação aos outros como
indivíduos que criou as relações existentes e que diariamente volta a
cria-las. [...]” (MARX e ENGELS, 2007, p. 421). Por serem assim, as
relações sociais são produto da ação dos indivíduos, coetâneas ao
surgimento do ser humano, necessidade humana eterna e, por isso
mesmo, fazem parte da sua essência. Por isso Marx denuncia o que
considera ser um dos grandes erros da Economia Política do século
XIX, que foi iniciar a análise do modo de produção capitalista pelo
conceito metafísico do indivíduo isolado, conceito que os economistas
políticos herdaram dos filósofos do século XVIII. “O caçador e o
pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo”,
afirma Marx, “pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das
robinsonadas do século XVIII [...].” (MARX, 2011, p. 39). Para Marx,
desde o princípio, “toda produção é apropriação da natureza pelo
indivíduo no interior e mediada por uma determinada forma de
sociedade” (MARX, 2011, p. 43).
Vemos, pois, que para Marx as conexões entre os indivíduos vão
muito além das conexões que se estabelecem entre cidadãos egoístas e
livres no interior de um Estado. Como certos efeitos úteis só podem ser
obtidos através da execução das atividades produtivas de forma
cooperativa, a realização da finalidade pretendida, que é sempre a
objetivação de certos valores de uso, leva os indivíduos humanos a
necessariamente estabelecer vínculos produtivos. Assim, “esta
verdadeira comunidade”, afirma Marx, “[...] parece ser o produto da
necessidade [...] dos indivíduos”, i. é., da necessidade “da afirmação
imediata da própria existência.” (MARX, 2015, p. 209). A cooperação
98

entre os seres humanos é tratada por Marx como resultado inevitável da


coexistência desses animais que carecem, são conscientes e necessitam
atuar sobre a realidade externa para subsistirem.
Quando o indivíduo que trabalha sou eu, através de minha
atividade devém ao mundo um objeto até então inexistente, que foi
concebido primeiramente por mim, a partir da minha própria
subjetividade singular, em minha própria idealidade. Através desse ato
eu modifico a realidade objetiva, não importando aqui se em maior ou
em menor extensão. Por isso, minha consciência se modifica por duas
razões. Primeiro, porque ao agir sobre o mundo eu aprendo algo mais
sobre os objetos e fenômenos externos, descubro algo mais sobre as
minhas habilidades técnicas e sobre as minhas capacidades criativas
ideias. Por fim, porque ao alterar a realidade objetiva, minha consciência
precisa representar idealmente as novas conexões que se estabelecerão
entre os diferentes objetos e fenômenos existentes com o novo objeto
que deveio através do meu ato produtivo. Mas eu próprio não estou
sozinho no mundo. A alteração que eu realizo na realidade objetiva é
alteração do locus no qual todos os indivíduos humanos vivem, o que os
leva a sentir ou a perceber essa alteração, seja de maneira direta, por
observar o objeto até então inexistente, seja de maneira indireta,
podendo mesmo ser muito mediada, por perceberem perturbações na
complexa teia de conexões entre os objetos e fenômenos externos que
são causadas pelo surgimento de algo até então inexistente. Por isso, a
consciência dos outros se modifica, porque dada a alteração da realidade
objetiva, a consciência do outro precisa representar idealmente as novas
conexões que se estabelecerão objetivamente entre os diferentes objetos
e fenômenos existentes com o novo objeto que deveio através do meu
ato produtivo. E a percepção desse objeto e da sua utilidade, i. é., da sua
capacidade de satisfazer uma necessidade que é necessidade objetiva, e
portanto necessidade que todos sentem, leva-os a perceber tal objeto
como algo de que eles próprios carecem, e a refleti-lo na consciência,
que posteriormente será o guia da atividade deles, levando a atos
produtivos que, tendo origem nas opções e escolhas realizadas
idealmente pelos outros, levam a objetivações que expressam a
subjetividade singular deles, que portanto me escapam e que levarão à
minha própria percepção da alteração da realidade objetiva causada
pelos outros e, assim, a uma nova alteração de mim mesmo.
Além disso, tanto a necessidade e a possibilidade de estabelecer
vínculos cooperativos entre nós quanto a percepção das alterações
causadas pelos outros à realidade objetiva na qual todos existem levam-
nos a criar a consciência também da existência uns dos outros. Assim, a
99

consciência, que é antes de tudo a percepção dos objetos e fenômenos


externos, é também percepção da existência dos outros indivíduos
humanos e da possibilidade e necessidade de conexão com eles. Assim,
a relação que se estabelece entre os indivíduos humanos não é apenas
objetiva, como cooperação produtiva, mas também subjetiva, como
percepção ideal da existência dos outros e da conexão entre nós. Assim,
descobrimos agora que a consciência é também a percepção “do vínculo
[...] com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna
consciente”. Explica Marx que “a consciência da necessidade de firmar
relações com os indivíduos que o cercam constitui o começo da
consciência de que o homem definitivamente vive numa sociedade.”
(MARX e ENGELS, 2007, p. 35). E, por isso, “desde o início [...] a
consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto
existirem homens.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 34-35).
Além da percepção consciente da existência dos outros e dos
vínculos cooperativos que estabelecemos entre nós, para que a
cooperação seja possível, é indispensável que exista alguma forma de
linguagem. Sem nenhuma linguagem, os seres humanos não teriam
como estabelecer relações cooperativas, já que estas demandam a
existência de certa organização entre os diferentes indivíduos
trabalhadores. Para Marx, “a linguagem é a consciência real, prática, que
existe para os outros homens”. Desde o princípio, toda representação de
qualquer coisa externa é ligada a uma palavra, cuja função é expressar
externamente, para mim e para os outros, a nova ideia abstrata criada na
minha consciência. É por isso que para Marx “as ideias não existem
separadas da linguagem” (MARX, 2011, p. 110), e que “a linguagem é
tão antiga quanto a consciência [...]” (MARX e ENGELS, 2007, p. 34-
35), coetânea ao surgimento do ser humano.
É a partir da linguagem que os conhecimentos individuais a
respeito da realidade externa e os projetos de modificação dessa
realidade criados idealmente pelos indivíduos podem ser compartilhados
entre eles, tornando-se causa das atividades realizadas de forma
cooperativa entre os indivíduos, obtendo assim força material. É a partir
da linguagem, igualmente, que a divisão das tarefas necessárias para a
realização dos atos produtivos de forma cooperativa, i. é., a organização
das relações produtivas, se torna possível. Por isso, também a linguagem
possui o mesmo fundamento que a consciência e que as relações sociais,
que é o trabalho. “A linguagem nasce, tal como a consciência, do
carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens.”
(MARX e ENGELS, 2007, p. 34-35).
100

Vemos que, desde o princípio, em razão das necessidades dos


indivíduos humanos, a cooperação aparece para a consciência deles
como uma possibilidade de produzir mais facilmente os valores de uso
de que carecem. Mas o estabelecimento das relações sociais conduz, ao
mesmo tempo, ao estabelecimento de mediações sociais entre eles e os
valores de uso de que necessitam. É comum ao pensamento lógico-
formal, de superfície, pensar o consumo como a utilização de
determinado bem útil por parte de um indivíduo. Esse conceito de
consumo deriva diretamente do conceito metafísico do indivíduo
isolado, e é por isso mesmo igualmente metafísico. Devemos constatar
que nenhum produtor isolado — supondo-se que eles existissem — seria
capaz de produzir todos os diferentes bens finais de que necessita para
satisfazer todas as suas diferentes necessidades. Embora,
individualmente, se possa efetivamente trabalhar, o verdadeiro sujeito da
produção global é a sociedade, e não o indivíduo. É a sociedade, ao
regular seu metabolismo com a natureza, que atribui tarefas produtivas
aos indivíduos singulares e posteriormente distribui entre eles os bens
finais de que carecem, no sentido de que entre os indivíduos produtivos
e o seu consumo são interpostas as leis sociais da distribuição dos bens
socialmente produzidos. Estando o indivíduo a viver em sociedade,
como é sempre o caso, “a relação do produtor com o produto, tão logo
este esteja acabado, é uma relação exterior, e o retorno do objeto ao
sujeito depende de suas relações com os outros indivíduos”. Entre o
indivíduo, chamado aí por Marx de produtor, e os produtos do trabalho,
são estabelecidas mediações sociais necessárias, que são as relações
sociais de forma mais geral, e as relações de distribuição, de forma mais
específica: “Entre o produtor e os produtos se interpõe a distribuição,
que determina, por meio de leis sociais, sua cota no mundo dos
produtos, interpondo-se, assim, entre a produção e o consumo”. Mesmo
produzindo o produto de que necessita, o indivíduo “não se apodera dele
imediatamente” (MARX, 2011, p. 49).
Vemos, assim, que “tampouco a imediata apropriação do produto
é a finalidade do produtor quando produz em sociedade” (MARX, 2011,
p. 49). Mas há mais: apenas a menor parte dos bens produzidos por uma
sociedade são bens finais, valores de uso cuja finalidade é o consumo
direto dos indivíduos para a produção da sua própria subsistência e
satisfação humana. Boa parte daquilo que se produz em sociedade são
bens intermediários, meios de produção ou matérias-primas, cujo
consumo ocorre no interior dos diversos processos produtivos. Se entre
o produtor singular e o consumo individual não se estabelecesse uma
mediação social, todos os “indivíduos isolados” seriam obrigados a
101

repartir sua jornada de trabalho em períodos de tempo menores, cada


período destinado à produção de valores de uso distintos, jamais
alcançando a destreza da especialização e mantendo-se em um nível
rudimentar de produtividade do trabalho. Na verdade, as “trocas” que
são realizadas entre os “produtores isolados”, dos quais tratam os
economistas políticos, não são mais do que a forma histórica e
socialmente determinada das relações de distribuição na época
capitalista.
Se os indivíduos algum dia tivessem sido de fato produtores
isolados, a humanidade como um todo jamais lograria, por exemplo, ter
sido capaz de designar produtores individuais para a produção de meios
de produção, de ter descoberto novas matérias-primas, etc. Exatamente
por sempre ter sido cooperativa, a produção humana sempre foi capaz de
sustentar duas partes com finalidades distintas. A primeira delas é
“produção orientada imediatamente para o valor de uso”, que produz o
“produto destinado ao consumo” dos indivíduos singulares, de modo a
reproduzir suas existências. Mas em toda produção social sempre existe
“a parte da produção orientada para a produção do capital fixo”, que
“não produz objetos da fruição imediata”. (MARX, 2011, p. 589).
Lembremos que uma produção que não produz um valor de uso é desde
logo um contrassenso; por isso, longe de significar uma produção inútil,
essa parte da produção prova-se tão necessária quanto a primeira,
porque “nenhuma produção é possível sem um instrumento de
produção” ou “sem trabalho passado, acumulado”. (MARX, 2011, p.
41). É por isso que conforme já vimos, “jamais deixa de existir a
situação em que o trabalhador, além do trabalho para a obtenção de
meios de subsistência necessários, emprega trabalho para produzir
meios de produção” (MARX, 2017b, p. 912).
Quanto mais desenvolvidos os instrumentos de trabalho, maior a
produtividade do trabalho, o que significa que o ser humano se torna
capaz de produzir os valores de uso de que necessita com menor esforço
e com emprego de menor quantidade de tempo. É por isso que Marx
afirma que “[...] a verdadeira riqueza é a força produtiva desenvolvida
de todos os indivíduos”. (MARX, 2011, p. 591). Isso significa que
quanto mais complexa é a cooperação entre os indivíduos e quanto mais
poderosos são os instrumentos de trabalho de que os indivíduos
dispõem, maior é a capacidade da sociedade de produzir o conteúdo
material da riqueza, i. é., o conjunto dos valores de uso que são
necessários para sustentar e reproduzir essa mesma sociedade. Por isso,
quanto mais tempo dos seus indivíduos trabalhadores uma sociedade
pode dispor para produzir mais e melhores meios de produção, maior se
102

torna o potencial de criação do conteúdo material da riqueza dessa


sociedade, de modo que a sociedade enriquece. Para que isso seja
possível, no entanto, é necessário que apenas “[...] uma parte do tempo
de produção seja suficiente para a produção imediata”, quer dizer, que
apenas uma parte da produção social total seja direcionada para a
produção de valores de uso destinados ao consumo individual imediato:
“para tanto, é preciso que a sociedade possa esperar; que uma grande
parte da riqueza já criada possa ser retirada tanto da fruição imediata
quanto da produção destinada à fruição imediata [...]”. (MARX, 2011, p.
589). Ora, nenhum indivíduo isolado seria capaz de esperar. Apenas
uma sociedade, que alcança altos níveis de produtividade em razão dos
efeitos da cooperação entre os indivíduos, é capaz de destinar parte de
seus esforços produtivos à fabricação de instrumentos de trabalho.
Vemos que a produção de meios de produção só pode ocorrer
quando o sujeito da produção é a sociedade. Vemos, também, que ao
viverem em sociedade, entre os produtores individuais e o consumo
individual se estabelece uma mediação social, que são as relações de
distribuição. Assim, as relações de distribuição aparecem como relações
tão necessárias quanto as relações de produção, de modo que devem
também elas possuir determinações essenciais que são comuns a todas
as diferentes sociedades das diferentes épocas, tal como ocorre com o
trabalho ou a produção etc. De fato, “por mais que possa ser diversa a
distribuição em diferentes graus de sociedade”, afirma Marx, “deve ser
possível também nesse caso, assim como o foi para a produção, destacar
as determinações em comum e, da mesma forma, confundir ou extinguir
todas as diferenças históricas em leis humanas gerais.” (MARX, 2011,
p. 43). Se assim não procedermos, correremos o risco de articular
determinações essenciais do trabalho ou da produção com
determinações historicamente determinadas da distribuição, fazendo
tremenda confusão analítica. Necessitamos, portanto, isolar as
determinações essenciais da distribuição, para articular a distribuição
essencialmente determinada e formalmente indeterminada com o
trabalho essencialmente determinado e formalmente indeterminado.
Como vimos, “na concepção mais superficial, a distribuição
aparece como distribuição dos produtos, e, assim, como mais afastada
[da] produção e quase autônoma em relação a ela.”. No entanto, como a
produção precede o consumo, “antes de ser distribuição de produtos, a
distribuição é: 1) distribuição dos instrumentos de produção; e 2)
distribuição dos membros da sociedade nos diferentes tipos de
produção”. (MARX, 2011, p. 51). Assim, cada sociedade, embora
sempre à sua maneira, de modo histórico e socialmente determinado,
103

necessita de uma distribuição, que distribua as quantidades adequadas


dos instrumentos de produção entre os diferentes ramos e unidades
produtivas, as quantidades adequadas das matérias-primas necessárias
em cada uma dessas produções e a quantidade adequada dos indivíduos
produtivos que compõe essa sociedade entre os diferentes ramos e
unidades produtivas. Assim compreendida, a distribuição aparece aqui
como gestão ou planejamento social da utilização dos recursos
produtivos, que é comum a todas as diferentes formações sociais dos
diferentes momentos históricos. Por essa razão, essa “distribuição dos
produtos” destinados ao consumo individual, focalizados pela
consciência ingênua, para Marx “é manifestamente apenas resultado
dessa distribuição que está incluída no próprio processo de produção e
determina a articulação da produção” (MARX, 2011, p. 51).
Neste sentido, “o consumo também é imediatamente produção”.
“Na natureza”, explica Marx, “o consumo dos elementos e das
substâncias químicas é produção da planta”. No ato de consumo para
satisfação da fome, i. é, “na nutrição, que é uma forma de consumo”,
explica Marx, “o ser humano produz seu próprio corpo” (MARX, 2011,
p. 46). No interior da produção, da mesma forma, o consumo produtivo
produz valores de uso que podem possuir diferentes destinações, sejam
aqueles destinados ao consumo individual — vindo a participar portanto
da produção do próprio corpo de determinado indivíduo humano —
sejam aqueles destinados a novamente serem consumidos no interior de
outra produção — tanto na forma de matérias-primas quanto na forma
de meios de produção.
Vê-se, portanto, que o consumo produz a produção. Marx afirma
que “isso vale para todo tipo de consumo que, de um modo ou de outro,
produz o ser humano sob qualquer aspecto”, i. é., seja um aspecto
imediatamente individual, seja um aspecto imediatamente social. “O
consumo produz a produção” de duas formas. Primeiro: “apenas no
consumo o produto devém efetivamente produto”, i. é., apenas na sua
dissolução pela via do consumo um valor de uso realiza-se enquanto
bem útil destinado a um consumo particular. “O produto, à diferença do
simples objeto natural, afirma-se como produto, devém produto somente
no consumo”. Segundo: o consumo prova a utilidade de uma produção,
demonstra a necessidade social ou individual que existe dela, “cria a
necessidade de nova produção”, “cria o estímulo da produção”. (MARX,
2011, p. 46).
Por outro lado, também “a produção produz o consumo”, e
também de duas formas. Primeiro: “fornece ao consumo o material, o
objeto”, sem o qual evidentemente nenhum consumo seria possível.
104

Segundo: ao fornecer ao consumo o seu objeto, ela cria “sua


determinabilidade, seu caráter, seu fim”. O produto “não é um objeto em
geral, mas um objeto determinado”, que, portanto, “deve ser consumido
de um modo determinado”. Assim, “é produzido pela produção [...]
também o modo do consumo, não apenas objetiva, mas também
subjetivamente”, criando assim os próprios consumidores, não apenas
objetivamente — por exemplo, produzindo o corpo do indivíduo que
consome o alimento — mas também subjetivamente — por exemplo,
criando a necessidade de um modo específico de consumo dos
nutrientes. Assim, a produção “produz não somente um objeto para o
sujeito, mas também um sujeito para o objeto”, e “não apenas fornece à
necessidade um material, mas também uma necessidade ao material”.
(MARX, 2011, p. 47). Em síntese:
[...] a produção produz o consumo, na medida em
que 1) cria o material para o consumo; 2)
determina o modo do consumo; 3) gera como
necessidade no consumidor os produtos por ela
própria postos primeiramente como objetos.
Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do
consumo e o impulso do consumo. (MARX, 2011,
p. 47)

A produção objetiva no mundo um valor de uso, um objeto


determinado capaz de satisfazer uma necessidade determinada; o
consumo, por sua vez, reproduz na consciência o valor de uso, “põe
idealmente o objeto da produção” (MARX, 2011, p. 46) “como impulso
e como finalidade” (MARX, 2011, p. 47). A produção produz
objetivamente o objeto do consumo; o consumo reproduz idealmente o
objeto da produção. “Sem produção, nenhum consumo; mas, também,
sem consumo, nenhuma produção, pois nesse caso a produção seria
inútil” (MARX, 2011, p. 46). Isso não significa, no entanto, que
produção e consumo sejam idênticos, mas sim que um medeia e regula o
outro. “A produção medeia o consumo, cujo material cria, consumo sem
qual faltaria-lhe o objeto. Mas o consumo também medeia a produção ao
criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos” (MARX,
2011, p. 46). Mas essa mediação ocorre no processo social no interior do
qual um reproduz o outro, no qual “cada qual cria o outro à medida que
se realiza”. Assim Marx sintetiza o processo:
O consumo só termina o ato da produção na
medida em que realiza o produto como produto, o
dissolve, consome a sua forma de coisa autônoma;
na medida em que eleva à destreza, pela
105

necessidade da repetição, a disposição


desenvolvida no primeiro ato de produção; o
consumo, portanto, não é apenas um ato
conclusivo pelo qual o produto devém produto,
mas também o ato mediante o qual o produtor
devém produtor. Por outro lado, a produção
produz o consumo na medida em que cria o modo
determinado do consumo e, depois, o estímulo ao
consumo, a própria capacidade de consumo como
necessidade. (MARX, 2011, p. 48)

Apesar dessa interpenetração entre os momentos da produção e


do consumo, para Marx, a produção é o momento predominante deste
processo. O consumo humano, por ser consumo daquilo que não é
imediatamente dado pela natureza, não pode existir sem a produção. A
produção fundamenta a distribuição. “Uma produção determinada”,
afirma Marx, “determina um consumo, uma troca e uma distribuição
determinados, bem como relações determinadas desses diferentes
momentos entre si.” “É a partir dela”, i. é., da produção, “que o processo
sempre recomeça”. Por sua vez, a produção “certamente é também
determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos”. “Com
mudança na distribuição, modifica-se a produção”, e “as necessidades
de consumo determinam a produção”. Há, portanto, “uma interação
entre os diferentes momentos. Esse é o caso em qualquer todo orgânico”
(MARX, 2011, p. 53).
De toda forma, o que nos é mais relevante aqui é o fato de que “a
articulação da distribuição está totalmente determinada pela articulação
da produção” (MARX, 2011, p. 50). O que se chama de relações de
distribuição “correspondem a — e derivam de — formas
especificamente sociais e historicamente determinadas do processo de
produção e das relações que os homens estabelecem entre si no processo
de produção de sua vida” (MARX, 2017b, p. 945). “O modo
determinado de participação na produção determina as formas
particulares de distribuição, a forma de participação na distribuição”
(MARX, 2011, p. 50). Portanto, tão logo os antropoides que são nossa
base natural tenham começado a agir cooperativamente, como seres
sociais, o consumo individual tornou-se apenas um dos momentos da
distribuição, regulado e mediado pela sociedade. Vemos, assim, que o
consumo individual, compreendido como simples consumo de bens
finais destinados à satisfação de necessidades individuais por parte de
indivíduos isolados, é uma derivação metafísica do conceito metafísico
do indivíduo atomizado. Como a produção só é possível através da
106

cooperação, como a distribuição é determinada pela produção social, e


como o consumo individual é apenas um dos momentos da distribuição,
o consumo individual só pode ser realizado em sociedade, e é
determinado por ela através de suas próprias leis.
Chegamos, assim, à ideia de necessidades sociais. Não apenas os
indivíduos necessitam de bens para reproduzirem a sua existência, mas
também a própria sociedade como um todo tem as suas próprias
necessidades. Vimos que a produção produz o consumo ao dar-lhe o
objeto e, assim, seu modo específico. Nenhum indivíduo é capaz de
comer, beber, vestir-se, etc., utilizando chapas de aço para tal. Ele
necessita, para cada carência determinada, de valores de uso
determinados. Mas chapas de aço são valores de uso necessários em
muitos ramos da produção. Mesmo que não sejam capazes de satisfazer
necessidades individuais imediatas, chapas de aço são necessidades
sociais da produção, sem as quais a produção de valores de uso
destinados ao consumo individual imediato não seria possível. O mesmo
ocorre no caso da produção de todos os bens intermediários, de todos os
insumos e de todos os meios de produção, que apesar de não serem
valores de uso destinados ao consumo imediato por parte dos indivíduos
para a satisfação das suas necessidades, se apresentam como
necessidades sociais da produção e, por isso, fazem parte do conjunto
dos valores de uso dos quais os seres humanos sentem necessidade.
Explica Marx que “[...] uma vez suposta uma produção social de
qualquer tipo [...], é sempre possível distinguir entre a parte do trabalho
cujo produto é consumido [...] individualmente pelos produtores [...]” e
“outra parte [...] cujo produto serve sempre para satisfazer necessidades
sociais gerais, independentemente de como esse mais-produto seja
distribuído e de quem atue como representante dessas necessidades
sociais”. (MARX, 2017b, p. 939-940).
Aqui, finalmente, alcançamos as determinações sociais das
necessidades humanas. O conjunto daquilo que Marx denomina
necessidades humanas é muitíssimo mais amplo do que aquilo que, na
concepção mais superficial, se compreende por necessidade individuais.
Já vimos que um valor de uso é “uma coisa que, por meio de suas
propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer”
(MARX, 2017, p. 113), e que “a natureza dessas necessidades — se, por
exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em
nada a questão.” (MARX, 2017, p. 113). As necessidades humanas não
se reduzem às necessidades imediatas dos indivíduos que compõe a
sociedade. Os seres humanos possuem necessidades distintas das
necessidades sentidas pelos outros seres vivos, e isso porque as suas
107

necessidades são produtos históricos e sociais, autodeterminados, que


derivam do seu modo específico de atuação sobre a natureza. Marx
explica que “comer, beber e procriar etc. são decerto também funções
genuinamente humanas. Porém, na abstração que as separa do âmbito
restante da atividade humana e delas faz finalidades últimas e
exclusivas, elas são animais” (MARX, 2015, p. 309). Vê-se, assim, que
as necessidades que são comuns entre os humanos e os outros animais
são necessidades cuja origem se encontra na história natural; no entanto,
o conjunto chamado de necessidade humanas é muito mais amplo e
também privativo do ser humano, pois produto próprio, histórico e
social. Todo consumo produtivo, do qual depende toda produção, ao se
realizar, satisfaz necessidades humanas, muito embora este tipo de
consumo não satisfaça imediatamente a necessidade de nenhum dos
indivíduos singulares que fazem parte da sociedade. No entanto, sem o
consumo produtivo, nenhuma produção é possível; e, sem produção,
nenhum indivíduo pode lograr obter os valores de uso de que necessita
para subsistir — para falar de forma mais específica e natural — e
reproduzir sua existência — para falar de forma mais geral, humana e
social. Como, portanto, o consumo individual é mediado pela produção
e pela distribuição social, as necessidades sociais da produção e da
distribuição também compõe o conjunto das necessidades humanas, das
quais o consumo individual imediato representa apenas a sua forma
fenomênica de manifestação mais óbvia e imediata.
Mesmo as necessidades oriundas da natureza, as fisiológicas, que
são as necessidades que se identificam imediatamente com o consumo
individual, são transformadas pelo ser humano em sua forma, muito
embora seu conteúdo permaneça o mesmo: “Fome é fome, mas a fome
que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome
diversa da fome que devora carne crua com mão, unha e dente”
(MARX, 2011, p. 47). A fome que se sacia com garfo e faca, i. é,
através de uma forma que é produto histórico e social, é necessidade
especificamente humana, que o ser humano não compartilha com os
outros animais. Como todo consumo “é mediado, enquanto impulso,
pelo objeto”, e como todo valor de uso produzido pela sociedade é um
objeto até então inexistente, que a natureza é incapaz de engendrar, “o
próprio consumo [...] sai de sua rudeza e imediaticidade originais”.
(MARX, 2011, p. 47), de modo que, no caso humano, a forma do
consumo é determinada não pela natureza, mas pela produção, que
produz o objeto do consumo para ser consumido de forma determinada.
“A necessidade que o consumo sente do objeto é criada pela própria
percepção do objeto. O objeto de arte – como qualquer outro produto –
108

cria um público capaz de apreciar a arte e de sentir prazer com a


beleza”. Assim, “a produção [...] produz não somente um objeto para o
sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (MARX, 2011, p. 47).
O desprezo às relações concretamente existentes entre o
indivíduo humano e a sociedade da qual ele faz parte encontra no
conceito de consumo individual, como compreendido vulgarmente, a
sua confirmação, na medida em que assim vulgarmente compreendido o
consumo esconde as mediações sociais que concreta e necessariamente
se estabelecem entre o “trabalho individual” e o “consumo individual”, a
saber: a produção social e a distribuição social. Ao perderem-se as
mediações sociais concretamente existentes entre o consumo individual
e o trabalho individual, torna-se possível o erro que faz das necessidades
humanas — necessidades que possuem necessariamente caráter social,
geral e universal — simples necessidades individuais, derivadas do puro
desejo ou necessidade individual, como se o próprio desejo individual
por determinado valor de uso não tivesse como pressuposto a própria
produção social, que ao produzir o bem destinado ao consumo
determina o modo do consumo e cria o sujeito que carece de tal valor de
uso. Do ponto de vista do materialismo histórico dialético, no entanto,
as necessidades humanas individuais podem ser imediatamente
individuais apenas em sua forma, posto que são, em sua essência, e de
forma muito mais mediada, necessidades genéricas, i. é, necessidades
que remetem o indivíduo ao gênero ao qual ele pertence — o próprio
gênero humano.
Em síntese, o que quisemos demonstrar até aqui foi o seguinte: se
os indivíduos humanos se tornaram capazes de transformar a natureza,
criar objetivamente o mundo de acordo com seus desígnios, eles o foram
apenas porque estabeleceram entre si relações de cooperação, relações
sociais. Mas para operar essa transformação universal — agindo como
uma potência superior à imensa resistência da natureza — é necessário
conhecer profundamente as propriedades das coisas externas e o
funcionamento da natureza. Nenhum “indivíduo humano isolado”,
supondo que tal entidade pudesse existir, teria capacidade de conhecer
suficientemente o mundo de modo a operar tal transformação, porque
sua atividade sensível seria sempre muito limitada, parcial, de modo que
sua consciência seria sempre a percepção de um meio muito limitado e
parcial. Da mesma forma, sua atuação seria muito pouco produtiva, e
sua força de trabalho revelaria a impotência do indivíduo isolado em
face da gigantesca resistência da natureza. Ele não seria capaz de
esperar, de poupar; toda sua produção seria de valores de uso destinados
ao consumo imediato. Suas forças produtivas não se desenvolveriam;
109

sua consciência permaneceria estacionada ao nível da mera


contemplação da natureza. De fato, nunca houve tal “indivíduo humano
isolado”, e se tivesse vindo a surgir objetivamente, certamente teria
desaparecido. A existência de um indivíduo humano isolado de todo
convívio social desde sempre é insustentável: na ausência de contato
com seus semelhantes, nenhum indivíduo é capaz de desenvolver suas
características especificamente humanas, que fazem dele o ser que se
autodetermina e determina a forma da natureza em razão de seus atos.
Se se tornou possível à filosofia do XVIII e à Economia Política
do XIX conceber o indivíduo atomizado e o Estado associativo, isso
ocorreu porque a forma de atividade do indivíduo não necessariamente
aparece imediatamente como atividade coletiva, de modo que a
atividade do indivíduo singular pode esconder as mediações sociais
existentes entre ela própria e a totalidade à qual pertence. “A atividade
social e a fruição social de modo nenhum existem unicamente na forma
de uma atividade imediatamente comunitária e de uma fruição
imediatamente comunitária”, afirma Marx. Um exemplo dado pelo
filósofo alemão de atividade que na sua forma imediata aparece como
individual é o trabalho científico. Mas “mesmo quando estou
cientificamente ativo [...], uma atividade que eu raramente posso
executar em comunidade imediata com outros” e que por isso aparece de
forma imediata como uma atividade isolada, na verdade “estou
socialmente ativo, porque [ativo] como homem”. Como vimos, para ser
ativo cientificamente é necessário, antes de tudo, estar em condições de
viver; e aquele que está cientificamente ativo não está ativamente
produzindo os meios de subsistência de que necessita, de modo que a
atividade científica, cuja forma aparece imediatamente como atividade
isolada, não pode ser realizada pelo indivíduo senão em condições
sociais de existência. Além disso, todo o “material” usado pelo cientista,
a língua, as descobertas e teorias de outros pensadores, etc., são
produtos sociais que não existiriam caso algum dia os indivíduos
tivessem sido produtores isolados. Sendo eu um cientista, “[...] o
material da minha atividade — [...] a própria língua [...] — me é dado
como produto social”, assim como “a minha existência própria é
atividade social”. (MARX, 2015, p. 347). Mesmo que a atividade
individual “não apareça na forma imediata de uma exteriorização de
vida comunitária, levada a cabo simultaneamente com outros — é [...]
uma exteriorização e confirmação da vida social”. É por isso que “a vida
individual e a vida genérica do homem não são diversas, por muito que
[...] o modo de existência da vida individual seja um modo mais
110

particular ou mais universal da vida genérica [...]” (MARX, 2015, p.


348).
Analisemos, do ponto de vista do materialismo histórico-
dialético, o que ocorre com o indivíduo quando este trabalha de uma
forma imediatamente individual. Ao tratar a respeito das produções que
se realizam no interior das sociedades mercantis, Marx explica que
“quando produzo mais do que necessito imediatamente, o excedente do
que produzo é cuidadosamente calculado em face da tua necessidade.
Só aparentemente produzo em excesso”. Como minha ação é guiada por
uma intenção concebida idealmente, desde o início do processo de
trabalho “produzi visando a um outro objetivo, o objeto da tua produção
que eu quero trocar pelo meu excedente — troca que já realizo no meu
espírito” (MARX, 2015, p. 218). Por estar analisando, nestas passagens
dos Cadernos de Paris, a produção no interior das sociedades mercantis,
elas são especialmente esclarecedoras. Se nas sociedades mercantis “[...]
os indivíduos parecem independentes [...], livres para colidirem uns
contra os outros e, nessa liberdade, trocar [...]”, eles “assim parecem
apenas para aquele que abstrai das condições [...] de existência sob as
quais esses indivíduos entram em contato” (MARX, 2011, p. 111). Marx
chama atenção para o fato de que a competição e as trocas entre os
indivíduos livres proprietários de suas mercadorias são apenas uma
forma de manifestação alienada e reificada, invertida, da essência da
conexão humana, que sempre pressupõe a existência de relações de
distribuição. É por isso que mesmo as trocas mercantis revelam “o
vínculo social que me encontro em relação a ti — meu trabalho para
satisfazer a tua necessidade [...]” (MARX, 2015, p. 218).
Antes mesmo de iniciar-se qualquer ato de trabalho, aquele que
trabalha possui em sua consciência a cooperação que estabelece com os
outros indivíduos. Seus atos individuais de trabalho, desde o princípio,
têm como objetivo a satisfação de alguma necessidade dos outros, e
apenas por isso ele produz “em excesso”. Sendo um ser carente, ele não
age sobre a natureza no sentido de produzir todos os diferentes valores
de uso de que necessita, mas age no sentido de produzir um único valor
de uso na quantidade que os outros necessitam, de modo a realizar
objetivamente o vínculo cooperativo que desde o princípio está
idealmente dado, obtendo junto deles, assim, os outros valores de uso de
que necessita e que não produz.
Deixemos as sociedades mercantis e voltemos à essência do
trabalho. Portanto, “suponhamos que produzíssemos como seres
humanos” e não como mercadorias, produção na qual “cada um de nós
haveria se afirmado duplamente na sua produção: a si mesmo e ao
111

outro”. Primeiramente, “na minha produção, eu realizaria a minha


individualidade, a minha particularidade”. Neste caso, eu
“experimentaria, trabalhando, o gozo de uma manifestação individual da
minha vida e, contemplando o objeto, a alegria individual de reconhecer
a minha personalidade como um poder real, concretamente sensível
[...]”. Em segundo lugar, “[...] na tua utilização do meu produto, eu
desfrutaria da alegria espiritual imediata [...] de satisfazer a uma
necessidade humana, de realizar a essência humana e de oferecer à
necessidade de outro o seu objeto.” (MARX, 2015, p. 221). Em terceiro
lugar, “eu teria a consciência de servir como mediador entre ti e o
gênero humano, de ser reconhecido por ti como um complemento do teu
próprio ser e como uma parte necessária de ti mesmo, de ser aceito em
teu espírito e em teu amor” (MARX, 2015, p. 221-222). Por fim, “eu
teria, em minhas manifestações individuais, a alegria de criar a
manifestação da tua vida, ou seja, de realizar e afirmar, na minha
atividade individual, a minha verdadeira essência humana, a minha
sociabilidade humana.” (MARX, 2015, p. 222). Fecha-se um ciclo,
porque “nesta reciprocidade, o que seria realizado de minha parte sê-lo-
ia também da tua parte”, de modo que “nossas produções seriam como
que tantos espelhos que irradiariam a nossa essência entre nós”.
(MARX, 2015, p. 222). O que Marx pretende deixar explícito nestas
passagens é o fato de que em todo ato que se apresenta em sua forma
imediata como ato de trabalho isolado, na verdade “[...] o homem
produz o homem, a si próprio e ao outro homem”. Em toda produção, “o
caráter social é o caráter universal de todo o movimento [...]” (MARX,
2015, p. 346).
O termo “robinsonadas”, que Marx ironicamente utiliza para
criticar os filósofos do século XVIII que concebiam o indivíduo como
ser atomizado, deixa implícita a crítica realizada a eles pelo filósofo
alemão: Robinson Crusoe, isolado e perdido em sua ilha, só é capaz de
viver suas aventuras porque, antes de tudo, é capaz de viver, i. é., de
subsistir. Mas, se é capaz de subsistir mesmo isolado, é porque antes de
ter-se tornado náufrago já havia se tornado um indivíduo humanizado,
um indivíduo cuja essência é social. “A produção do singular isolado
fora da sociedade”, afirma Marx, “é tão absurda quanto o
desenvolvimento da linguagem sem indivíduos vivendo juntos e falando
uns com os outros”. A produção “do singular isolado fora da sociedade”,
portanto a produção de um Robinson Crusoe, “decerto pode muito bem
ocorrer a um civilizado, já potencialmente dotado das capacidades da
sociedade”, mas jamais a um indivíduo que desde sempre viveu isolado
de todo contato social. (MARX, 2011, p. 40).
112

Mesmo atuando individualmente, “isolado”, cada indivíduo se


prova, pelos atos de trabalho que realiza, como alguém que possui
conexões íntimas com os outros e que não pode escapar da necessidade
de estabelecer tais conexões. Marx observa que “o homem é um ser
genérico [...] na medida em que ele se comporta para consigo próprio
como gênero vivo, presente, na medida em que ele se comporta para
consigo próprio como um ser universal, por isso livre” (MARX, 2015, p.
310). Mas isso não significa que cada indivíduo seja meramente uma
parte da sociedade, como se a sociedade fosse meramente a soma dos
indivíduos. Como vimos, cada um dos indivíduos, tomados em sua
singularidade própria, consigo mesmo e através dos próprios atos, já
pressupõe a existência da sociedade e demonstra sua necessidade dela.
Por isso, cada indivíduo é, já em sua essência singular, um ser social. É
por isso que a sociedade não aparece em Marx como “uma potência
geral, abstrata diante do indivíduo isolado”, mas sim como “o ser de
cada indivíduo, a sua própria atividade”. (MARX, 2015, p. 209). Por
isso, para Marx, “[...] o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do
mundo. O homem é o mundo do homem, [...] a sociedade” (MARX,
2013, p. 151), e “o indivíduo determinado é apenas um ser genérico
determinado” (MARX, 2015, p. 348).
Nada disso, no entanto, significa que todos os indivíduos sejam
idênticos. Não se pode compreender a subjetividade sem levar em conta
as escolhas pessoais de cada indivíduo, que fazem dele, em muitos
aspectos, um ser distinto de todos os outros, e exatamente por isso um
ser singular. De fato, a consciência dos indivíduos não é mero reflexo
passivo do estado de coisas real. Cada um se torna consciente da
realidade externa à sua maneira, tanto em razão das diferentes
possibilidades de interpretação das coisas quanto em razão do limite da
atuação de cada indivíduo, que os impede de ter uma visão do todo,
mantendo-se a consciência individual limitada pelas situações singulares
empiricamente vivenciadas por cada indivíduo. No entanto, este ser
singular que é o indivíduo jamais deixa de ser um ser singular envolvido
e em conexão íntima com outros seres singulares, que por isso mantém
com ele muito mais identidade do que diferença. Apenas por isso se
pode falar efetivamente de seres humanos: há, enfim, um grupo de seres
com determinações idênticas, e que por isso mesmo são agrupados
idealmente e reconhecidos pela expressão de um termo linguístico. Em
razão disso tudo, os atos individuais jamais deixam de ser uma mescla
entre a manifestação singular do indivíduo — própria das escolhas
subjetivas que cada um faz na sua interpretação do mundo e das
escolhas subjetivas que cada um faz na sua criação ideal dos projetos de
113

transformação da realidade — e a manifestação da sociedade como um


todo. Para agir, o indivíduo necessita, antes de tudo, elaborar idealmente
o projeto de transformação da realidade externa, o que ele fará
utilizando-se de sua capacidade abstrativa. Como o conjunto das
representações ideais que ele possui não é mais do que o conjunto de
representações do estado de coisas real, sua consciência reproduz
idealmente o presente estado das coisas, tanto o estado
antropomorfizado da natureza, quanto do estado da produção, das
relações sociais dela decorrentes e da cultura em geral. Antes de agir, ele
se vincula, pela consciência, à sociedade da qual faz parte e às
conquistas históricas dessa sociedade em face da natureza. É por isso
que, tenha ele consciência ou não desse fato, ele não pode deixar de
acolher e incorporar os outros indivíduos e sua conexão com eles em si
mesmo. Cada indivíduo é modificado pela conexão íntima que
estabelece com os outros, de modo que é complementado, afetado,
atravessado, pelas relações sociais. Assim, todos os indivíduos
humanos, mesmo que tomados isoladamente, comprovam o quanto as
relações sociais fazem parte de sua essência através de seus atos. É isso
que Marx quer dizer quando afirma que
O homem — por muito que seja portanto um
indivíduo particular e, precisamente, a sua
particularidade faz dele um indivíduo e uma
comunidade individual real — é tanto a totalidade,
a totalidade ideal, a existência subjetiva para-si da
sociedade sentida e pensada como também existe
na realidade, quer como intuição e fruição real da
existência social, quer como uma totalidade de
expressão humana de vida. (MARX, 2015, p. 348)

Dominar a natureza, na sua relação dialética com ela, não é algo


que compete a um indivíduo isolado, mas que compete ao próprio
gênero humano, i. é., à totalidade da sociedade como um todo. De fato,
os indivíduos trabalham, mas apenas a sociedade em sua totalidade
aparece como sujeito da produção global. A estrutura morfológica de
cada indivíduo permanece estática, sem alterações, durante toda a vida;
se o poder do ser humano se manifesta cada vez mais fortemente sobre a
natureza, se as resistências da natureza podem ser cada vez mais
facilmente superadas pela produção humana, isso ocorre em razão do
desenvolvimento do poder do próprio gênero humano. Meios de
produção mais potentes, matérias-primas mais úteis, formas de
organização mais eficientes entre os indivíduos produtivos etc., são
elementos que tornam o ser humano mais potente frente à natureza.
114

Todos os indivíduos, por pertencerem ao gênero humano, se beneficiam


e são afetados por estes desenvolvimentos, mesmo que deles não tenham
participado diretamente, e isto ocorre porque cada um dos indivíduos aí
aparece como uma partícula-genérica de uma generalidade que, esta
sim, se tornou mais potente. É por isso que “ao cooperar com outros de
modo planejado, o trabalhador supera suas limitações individuais e
desenvolve sua capacidade genérica”. (MARX, 2017, p. 405). E, por
isso, “o desenvolvimento de um indivíduo é condicionado pelo
desenvolvimento de todos os outros, com os quais ele se encontra em
intercurso direto ou indireto”. (MARX e ENGELS, 2007, p. 422).
Conforme, pelo trabalho, se desenvolvem as características
especificamente humanas dos indivíduos, progride neles a sua
universalidade, i. é., seus atos imediatamente individuais passam a
pressupor conexões cada vez mais complexas e ricas entre o indivíduo e
o gênero humano. Do ponto de vista da produção global, isso significa
que objetivamente a cooperação entre os indivíduos vai se
complexificando, de modo que a sociedade vai se tornando
progressivamente uma potência cada vez maior em face da natureza.
Marx observa que “[...] quanto mais universal do que o animal o homem
é, tanto mais universal é o domínio da natureza inorgânica de que ele
vive” (MARX, 2015, p. 310). E, quanto maior seu domínio sobre a
natureza, mais ele a transforma de acordo com seus desígnios. Se o
animal se adapta à natureza ao invés de adaptá-la a si mesmo é porque
não é capaz de agir cooperativamente, universalmente. Por isso, “o gerar
prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica, é a
prova do homem como um ser genérico consciente, i. é, um ser que se
relaciona para com o gênero como sua própria essência ou para consigo
como ser genérico” (MARX, 2015, p. 312). “Precisamente por isso”,
explica Marx, “só na elaboração do mundo objetivo o homem se prova
realmente como ser genérico. Esta produção é sua vida genérica
operativa. Por ela, a natureza aparece como obra sua e sua realidade”
(MARX, 2015, p. 313).
Portanto, se os indivíduos desenvolvem as suas capacidades
genéricas, é antes de tudo porque essa é a sua essência própria,
privativa, e porque eles necessitam desenvolvê-la. Ao complexificar sua
cooperação e desenvolver sua essência genérica, o indivíduo se torna
mais universal, e a sociedade se torna uma força mais poderosa sobre a
natureza. Assim, “mostra-se também até que ponto a necessidade do
homem se tornou necessidade humana, portanto até que ponto para ele o
outro homem como homem se tornou necessidade, até que ponto ele, na
sua existência mais individual, é simultaneamente comunidade”
115

(MARX, 2015, p. 343-344). A relação de cada indivíduo humano com o


trabalho, com a produção, que como vimos é uma relação necessária e
insuperável, sempre remete o indivíduo ao gênero. Para Marx, “a vida
produtiva é a vida genérica”, porque é na vida produtiva que a
subsistência é produzida e a vida social é reproduzida. A vida produtiva
“é a vida que gera vida”. Os indivíduos humanos não pertencem ao
gênero humano porque vivem de forma gregária, mas sim em razão do
modo da atividade de cada um dos indivíduos humanos, que,
independentemente das incontáveis diferenças de cada uma das
manifestações individuais existentes no conjunto, possuem todas uma
característica em comum, a saber: a de só possuírem razão de ser em
relação ao gênero; a de só serem capazes de satisfazer as necessidades
individuais imediatas ao entrarem em relação com a mediação posta
pelo gênero; a de só encontrarem, enfim, sua possibilidade e sua
confirmação na sua relação com o gênero. É o modo de atividade
privativo do gênero humano, que se relaciona com a natureza como uma
potência transformadora consciente e organizada socialmente, que o
torna um gênero distinto, separado, do gênero da animalidade, que,
como vimos, se relaciona com a natureza como uma determinidade na
sua forma imediata. “No modo de atividade vital reside todo o caráter de
uma species, o seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o
caráter genérico do homem” (MARX, 2015, p. 311-312).
“Mostra-se [...] desde o princípio”, afirma Marx, “uma conexão
materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades
e do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens
[...]”. E essa conexão não é fixa e imutável, mas “[...] assume sempre
novas formas e [...] apresenta, assim, uma ‘história’ [...]”. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 34). Essas transformações das formas das relações
sociais ocorrem porque sempre que os indivíduos realizam alterações
dos processos de trabalho, tais como a introdução de diferentes
instrumentos de trabalho ou de novos insumos, a organização do
trabalho cooperativo precisa passar por ajustes para que possa continuar
a ser executado com sucesso. Como as relações entre os indivíduos são
estabelecidas primeiramente no interior da produção, como se tratam
antes de tudo de relações de cooperação, todo o conjunto das relações
sociais se altera em razão das transformações ocorridas no interior da
produção.
Suponhamos, a título de exemplo, que em determinada tribo
primitiva de seres humanos existe certa divisão do trabalho que distribui
os indivíduos da tribo entre as atividades produtivas necessárias, que
dizem respeito à produção de alimentos, à construção de abrigos, à
116

fabricação das roupas, ao cuidado das crianças, doentes e idosos, etc.


Imaginemos, agora, que os indivíduos responsáveis pela fabricação de
alimentos, utilizando de sua capacidade abstrativa e, através da
linguagem, de seu gênio criativo cooperativo, tenham introduzido em
sua atividade um novo instrumento de trabalho, o arado de tração
animal, que os indivíduos passam a utilizar no lugar de seus antigos
instrumentos movidos pela energia do próprio corpo humano. Ao lançar
no interior da produção uma nova fonte de energia, a produtividade
aumentará enormemente, de modo que a tribo passará a viver melhor,
satisfazendo de forma mais adequada as necessidades nutricionais de
todos. Ao mesmo tempo, a tribo rapidamente perceberá que a
quantidade necessária de indivíduos cuja ocupação produtiva é a
produção de alimentos tornou-se menor, já que a produtividade de cada
indivíduo aumentou em razão da introdução do animal como fonte
energética. Não faz sentido manter a mesma quantidade de indivíduos a
produzir alimentos, já que uma quantidade menor de indivíduos já é
capaz de produzir a quantidade de alimentos de que a tribo necessita.
Essa percepção dos indivíduos da tribo não tardará em produzir
alterações na estrutura da divisão social do trabalho, de modo que certa
quantidade de indivíduos cuja finalidade anterior era a produção de
alimentos acaba sendo deslocada para outras atividades. Essa alteração
nas relações no interior da produção condiciona, por sua vez, toda a
estrutura das relações sociais, que não tardam igualmente em se
modificar na sua totalidade.
Já vimos que “a conexão é um produto dos indivíduos”, mas isso
não significa que os indivíduos contraem entre si as relações que
consideram as mais adequadas, de forma totalmente livre, de acordo
com sua própria vontade. A conexão entre os indivíduos é produto deles
no sentido de que “é um produto histórico”, de que “faz parte de uma
determinada fase de seu desenvolvimento” (MARX, 2011, p. 110). De
fato, para Marx, “os homens fazem a sua própria história”, mas “não a
fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem
as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhe foram
transmitidas assim como se encontram”. (MARX, 2011b, p. 25). Ele
explica que “o modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida
depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já
encontrados e que eles têm de reproduzir” (MARX e ENGELS, 2007, p.
87). Como essas condições concretas criadas pelas gerações anteriores
são encontradas como dadas pelos indivíduos do presente, “apesar de
geradas pela sociedade”, elas “são independentes dos indivíduos e
aparecem [...] como condições naturais, [...] incontroláveis pelos
117

indivíduos”. (MARX, 2011, p. 111). “Daí se segue”, afirma Marx, “que


as diferentes gerações de indivíduos que entram em relações uns com os
outros possuem uma conexão entre si, que a existência física das últimas
gerações depende da existência de suas predecessoras”. As “[...] últimas
gerações, recebendo das anteriores as forças produtivas e as formas de
intercâmbio que foram acumuladas, são por elas determinadas em suas
próprias relações mútuas”. Por isso, “é evidente que um
desenvolvimento sucede e que a história de um indivíduo singular não
pode ser de modo algum apartada da história dos indivíduos precedentes
e contemporâneos, mas sim é determinada por ela”. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 422). Portanto, ao entrar na produção, o indivíduo
ocupa um lugar no interior das relações de produção que encontra como
dadas, e que independem da sua vontade; por fim, a esse lugar ocupado
por ele na produção cabe certa parte da riqueza produzida socialmente, o
que é definido através de critérios sociais, de modo que o indivíduo
ocupa um lugar no interior das relações de distribuição. Ao trabalhar, o
indivíduo “não só produz os produtos materiais, mas reproduz
constantemente as relações de produção em que aqueles são produzidos
e, com isso, também as relações de distribuição correspondentes”
(MARX, 2017b, p. 941). É por isso que o consumo que o indivíduo
realiza o reproduz “não só em sua vitalidade imediata”, mas “reproduz o
próprio indivíduo em um modo de existência determinado e em relações
sociais determinadas”. Assim, o consumo “os reproduz nas relações
originais em que eles se encontram no processo de produção e uns com
os outros [...]”. Como o consumo só pode ocorrer através das leis de
distribuição social, essa apropriação dos valores de uso por parte dos
indivíduos “os reproduz em sua existência social, reproduz então a sua
existência social — a sociedade [...].” (MARX, 2011, p. 598). Surge,
assim, um curioso fenômeno social, que Marx anuncia de forma
igualmente curiosa: “a tradição de todas as gerações passadas é como
um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” (MARX, 2011b, p.
25).
Por isso, o modo de produção “não deve ser considerado
meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos
indivíduos”, porque “ele é [...] uma forma determinada de sua atividade,
uma forma determinada de exteriorizar a sua vida, um determinado
modo de vida desses indivíduos”. Portanto, na produção são produzidos
não apenas os valores de uso de que todos necessitam, mas também a
própria forma das relações sociais, a forma da organização da vida
social, a forma da sociedade. Assim, “[...] a própria sociedade, i.e., o
próprio ser humano em suas relações sociais, sempre aparece como
118

resultado último do processo de produção social” (MARX, 2011, p.


594). O resultado da produção é sempre a reprodução da “[...] sociedade
—, que aparece tanto como o sujeito quanto como o resultado desse
grande processo global” (MARX, 2011, p. 598). Em síntese:
[...] na produção social da própria existência, os
homens entram em relações determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade; essas
relações de produção correspondem a um grau
determinado de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. A totalidade dessas relações
de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e
intelectual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência. (MARX,
2008, p. 47)

Apesar disso, os indivíduos não se limitam a reproduzir as


relações sociais tais quais elas se apresentam. Na verdade, elas são a
base a partir da qual eles atuam, e a sua atuação vai imprimindo certas
modificações nessas relações. Ao produzir, “os indivíduos em relações
recíprocas” “aparecem como sujeitos do processo”, e essas relações
recíprocas “eles tanto reproduzem quanto produzem de maneira nova”.
Eles criam “o mundo da riqueza” e “renovam a si mesmos”. (MARX,
2011, p. 594). Assim, os indivíduos tanto tem sua atividade
condicionada pelas condições concretas criadas pelas gerações
anteriores quanto, ao agirem, transformam essas mesmas relações
concretas. Se o trabalho que os indivíduos humanos realizam é o
momento decisivo para a manutenção e o desenvolvimento do ser social,
não é simplesmente porque através dele são produzidos os bens de que
os indivíduos carecem. Pelo ato de trabalho de cada indivíduo, toda a
coletividade humana, a sociedade, é alterada, não importando aqui o
grau dessa alteração. Essa alteração ocorre tanto em sentido objetivo,
porque a realidade objetiva na qual todos vivem e as relações entre os
indivíduos são alteradas em alguma medida pelo ato de trabalho
individual, quanto também em sentido ideal, porque essa mudança da
realidade objetiva leva a alterações da minha consciência, da
consciência dos outros indivíduos que vivem na mesma realidade
119

objetiva e da linguagem que usamos para nos comunicar. Essa


transformação da consciência e da linguagem de muitos indivíduos da
sociedade — poderíamos chama-la de transformação da cultura — que
se processa em razão até mesmo do ato de um único, leva à percepção
de necessidades e possibilidades novas por parte de todos os diferentes
indivíduos que compõe então a sociedade. É por isso que cada
indivíduo, através de seus atos, produz a sociedade, modifica a
sociedade, faz a história. E é por isso que em cada um de seus atos
individuais, cada ser humano singular se prova um ser que age para
consigo mesmo como pertencendo a uma totalidade, um gênero: pelo
trabalho, os indivíduos encontram uns aos outros e se modificam
reciprocamente.
Deixemos o pensamento de Marx por um instante, e nos
concentremos no que pensa Vieira Pinto a respeito da sociabilidade
humana. Já vimos que a produção, “significando primordialmente a
solução de uma contradição objetiva”, “adquire [...] a qualidade de
feitura de objetos” úteis destinados à satisfação de necessidades
humanas. O que ainda não havíamos assinalado é que, para o filósofo
brasileiro, a produção só pode ser executada “em forma de trabalho
socialmente organizado” (PINTO, 2005, p. 62). Para Vieira Pinto, “o
trabalho que o homem, por necessidade, exerce sobre o mundo exterior
não pode ser praticado de modo isolado, individual, agindo cada
trabalhador independentemente dos demais”. “Ao contrário”, afirma ele:
“a condição para que seja realizado com êxito, se encontra na associação
dos indivíduos para cumprir em operação conjunta a tarefa que devem
levar a cabo para sustentar a vida” (PINTO, 1962, p. 10).
De fato, trabalhar é uma ação que só pode ser realizada por
indivíduos humanos. No entanto, do ponto de vista totalizante, “[...] o
que produz o que atualmente se produz é a estrutura econômica e
política da sociedade” (PINTO, 2005, p. 49). Explica Vieira Pinto que
“[...] em verdade, o homem é um ser que precisa produzir a sua
existência mediante o trabalho sobre a natureza” (PINTO, 1960a, p.
348), “[...] mas o trabalho, ignorado pelas espécies de animais
irracionais, é um fato social [...]” (PINTO, 2005, p. 75), de modo que o
indivíduo só pode trabalhar “dentro de um regime de relações sociais
com os seus semelhantes.” (PINTO, 1960a, p. 348). O mesmo não
ocorre entre os outros seres vivos, mesmo entre os animais que vivem
algum tipo de vida gregária. Um boi, por exemplo, “come a quantidade
de capim de que necessita, quer seja o único animal de sua espécie aí
presente, quer esteja incluído numa boiada”, de modo que “nenhum boi
precisa de outro boi para chegar a consumir o alimento”. (PINTO, 2005,
120

p. 416). “Se os animais irracionais não trabalham não é porque não


façam esforços físicos” (PINTO, 2005, p. 416) — afinal de contas, eles
precisam agir para capturar o que é imediatamente dado pela natureza
para consumir —, “mas porque não praticam em regime de relações
sociais a finalidade de produzir o que devem consumir” (PINTO, 2005,
p. 416-417), portanto porque não realizam esforços cooperativos, não
possuem consciência e não agem intencionalmente para objetivar
criações mentais. O trabalho é uma característica privativa da existência
humana porque “[...] o modo de produção da existência para esse ser
revestiu-se do caráter de produção social” (PINTO, 2005, p. 414).
A posse de duas características ontológicas foi necessária para
que o ser humano pudesse deixar a via do consumo, própria dos
animais, e ingressar nessa “segunda via”, a via genuinamente humana, a
da produção: “adquirir a capacidade de projetar” e “se ter tornado um
ser social”. (PINTO, 2005, p. 62). Isso não significa, no entanto, que
ambas as características sejam anteriores à produção, já que elas são
criadas pelos próprios indivíduos já humanizados no interior dos
processos de trabalho que realizam. De fato, por tratar a respeito da
gênese humana, que denomina como “processo de hominização” ou
como “antropogênese” em diferentes obras e passagens, Vieira Pinto
necessita fazer incursões teóricas no terreno das ciências biológicas.
Assim, ele chega a afirmar que “o animal em via de humanização [...]”
“[...] só é capaz de trabalhar em conjunto e de estabelecer relações
sociais de produção porque dispõe dos órgãos nervosos capacitados para
tal efeito” (PINTO, 2005, p. 76). Mas isso não significa que as relações
cooperativas entre os indivíduos humanos sejam estabelecidas pela
natureza. O filósofo brasileiro é enfático ao afirmar que “não devemos
julgar que a evolução do sistema nervoso seja um processo autônomo,
incondicionado, do qual derivaria espontaneamente a capacidade
humana de produzir, em regime de convivência” (PINTO, 2005, p. 76),
porque “quer na aurora da história quer atualmente”, “o animal em via
de humanização” também “[...] desenvolve o sistema nervoso porque
trabalha em cooperação social com os semelhantes [...]”. (PINTO, 2005,
p. 76). Ele explica que esses são “dois [...] processos simultâneos, em
intercorrelação dialética” (PINTO, 2005, p. 76), e que “seria errôneo,
porque fugiria à compreensão dialética, supor que se tivesse jamais
tratado [...] de fases distintas, autônomas, sucessivas, sem ligação entre
si [...].” (PINTO, 2005, p. 189). “Na verdade, são aspectos de um único
processo, que por ser natural a princípio, e logo depois conjuntamente
natural e cultural, tem todas as suas facetas não apenas unidas e
contemporâneas, mas entrosadas por necessária atuação recíproca”
121

(PINTO, 2005, p. 189). Em razão dessa reciprocidade entre os dois


diferentes momentos do mesmo processo, “só a dialética material e
histórica permite apreender a gênese do homem, porque explica sua
condição de ser social” (PINTO, 2005, p. 189-190).
Essa “reciprocidade entre os mencionados aspectos”, explica
Vieira Pinto, “conduz-nos a compreender que as modificações
anatômicas logo que atingem certo grau de diferenciação qualitativa
possibilitam simultaneamente as primeiras realizações culturais,
concretizadas na fabricação de instrumentos produtivos” (PINTO, 2005,
p. 190). Mas também conduz-nos a compreender, do mesmo modo, que
“[...] ao longo de toda a história da espécie a expansão cultural irá influir
nas condições biológicas do homem, por intermédio da situação social,
condicionando, por exemplo, o crescente aumento da duração média da
vida, em virtude do progresso das ciências” (PINTO, 2005, p. 190), de
modo que “somos levados a falar no ‘segmento cultural’ da criação do
homem pelo trabalho social que executa” (PINTO, 2005, p. 189). Na
sequência, em uma rara menção a pensadores que o influenciaram,
Vieira Pinto faz justo elogio à bela obra Sobre o papel do trabalho na
transformação do macaco em homem, de Friedrich Engels:
A significação da ação recíproca entre evolução
anatômica e evolução cultural, por efeito das
condições sociais em início de instauração, pode
ser bem compreendida relembrando a rigorosa e
profunda frase de F. Engels, quando diz: “Assim,
a mão não é somente o órgão do trabalho, é
também o produto do trabalho”. (PINTO, 2005, p.
189)

Vemos que de forma alguma se poderia tratar Vieira Pinto como


um materialista vulgar, como se para ele os desenvolvimentos lineares
da natureza tivessem engendrado as relações sociais. Como o processo
de evolução biológica que engendrou o Homo sapiens o dotou de um
cérebro altamente desenvolvido, capaz de sustentar a consciência, do
ponto de vista bio-fisiológico, desde o princípio os indivíduos humanos
possuíam as características que faziam deles seres capazes de
desenvolver suas características especificamente humanas, mas o
desenvolvimento dessas características é obra sua e sua autêntica
realidade. Por serem, antes de tudo, animais carentes, os indivíduos
humanos encontram-se uns aos outros na realidade objetiva e passam a
estabelecer relações de cooperação entre si, de modo a se tornarem
capazes de produzir aquilo de que necessitam. Ao trabalharem
122

cooperativamente, desenvolvem sua consciência e complexificam suas


relações recíprocas, e esse desenvolvimento dessas suas características
privativas levam a alterações em sua própria estrutura biológica. Por
isso, ao invés de falar da natureza como origem da consciência, Vieira
Pinto fala da “[...] base material, física e social da consciência [...].”
(PINTO, 1960a, p. 19). Para ele, “a consciência é determinada pela
prática social primordialmente mediante o trabalho [...]” (PINTO,
1960a, p. 60), de modo que, desde o princípio, “[...] a consciência [...]
deriva da circunstância total, física e social [...]” (PINTO, 1960a, p. 26).
Mesmo que foque, em longas passagens, na constituição do órgão
cerebral que ocorreu através dos desdobramentos da evolução
puramente biológica, o filósofo brasileiro jamais se furta a “[...] mostrar
a importância que é preciso atribuir à noção da prática na gênese da
consciência da realidade”, porque a “consciência [...] está sempre
impregnada da vivência do estado social” (PINTO, 1960a, p. 59).
Já vimos, anteriormente, que a consciência se identifica à
representação ideal da realidade exterior. Mas se antes a tratamos como
conjunto de representações da realidade natural, descobrimos agora que
ela é também a representação do estado das coisas da sociedade.
“Consistindo a consciência da realidade na representação possuída pelo
indivíduo, que é sempre existente em comunidade”, afirma Vieira Pinto,
“ao considerarmos as ideias nas quais se resolve essa representação,
somos levados a distingui-las em duas classes: ideias que não têm por
objeto imediato a própria comunidade”, e que são portanto
representações da natureza, “e ideias que se referem à comunidade como
tal” (PINTO, 1960a, p. 26), que se referem, portanto, à representação
dos indivíduos humanos e das relações que objetivamente são
estabelecidas entre eles. No entanto, para estabelecer relações
cooperativas, não basta que os seres humanos tenham consciência da
existência dos outros e dos vínculos que os unem. A organização social
do trabalho exige, igualmente, que exista alguma forma de linguagem.
Vieira Pinto explica que a linguagem “permite a comunicação
dos indivíduos uns com os outros”, de modo que sem ela “seria
impossível a conjugação de esforços individuais para a construção” e “a
transmissão de instruções [...] entre os contemporâneos e os membros de
gerações sucessivas [...]” (PINTO, 2005, p. 80). Sem linguagem,
portanto, a cooperação produtiva não seria possível, e o ser humano não
poderia viver em regime de relações sociais. O filósofo brasileiro
explica que “[...] a essência da massa como categoria histórica superior
se manifesta no fenômeno existencial da comunicação das
consciências”, fenômeno que é “motivado pela participação coletiva de
123

determinado contingente humano no processo da produção econômica e


nas relações sociais que daí decorrem” (PINTO, 1960a, p. 130). Assim,
a linguagem é coetânea ao surgimento do ser humano, porque “[...] o
diálogo é condição existencial da realidade humana, que dele precisa
para se fazer a si mesma, e tem forçosamente de exercê-lo no âmbito
comunitário, com interlocutores reais e sobre temas objetivos” (PINTO,
1960a, p.189).
Os demais seres vivos, por serem meros consumidores daquilo
que encontram ao seu redor, quando encontram o objeto natural de que
sentem necessidade, não o confrontam livremente, e ou o consomem
imediatamente porque naquele momento sentem necessidade dele, ou
deixam de estabelecer qualquer relação com ele porque naquele
momento estão satisfeitos. No caso humano, deixa de ser estabelecida
qualquer relação direta do indivíduo com o objeto de seu carecimento.
Como, para produzir, os seres humanos necessitam atuar
cooperativamente, entre a satisfação das necessidades de cada indivíduo
humano e os valores de uso de que carecem se interpõe uma mediação
social. No ser humano, “o regime de relação direta do indivíduo com o
objeto de sua necessidade foi substituído pelo sistema da produção
consciente, pela interação de todos os semelhantes”, que é a “a
cooperação, que como o nome bem indica, é o trabalho em conjunto”
(PINTO, 2005, p. 417). Mas, longe de significarem desvantagens ao
indivíduo humano em face do animal, as mediações sociais que são
estabelecidas entre o indivíduo singular e os valores de uso de que
necessita permite a ele que foque seus esforços produtivos na produção
de um único valor de uso, desenvolvendo sua consciência e suas
habilidades técnicas no processo de trabalho, alcançando a maestria em
sua produção, elevando a produtividade do trabalho, posteriormente
entregando o “excesso” de sua produção aos outros indivíduos com
quem coopera e recebendo deles os outros diversos valores de uso de
que necessita para subsistir e reproduzir sua existência específica.
Chegamos, assim, às ideias das relações de produção e das
relações de distribuição, que derivam diretamente da cooperação
produtiva. Na condição de simples animal, como antropoide, o
indivíduo “podia vagar como qualquer outro, isoladamente ou em
bandos, obtendo os bens indispensáveis graças ao próprio esforço”. No
entanto, ele “só se humaniza quando se destaca dessa situação ancestral
e se põe a produzir em conjunto com os semelhantes os bens de
existência”, quando se vê “[...] obrigado a exercer as funções de dirigir e
coordenar a satisfação das exigências da vida vegetativa em um âmbito
124

de relações sociais de produção dos meios para subsistir” (PINTO,


2005, p. 74).
É exatamente porque a relação entre o produtor individual e o
objeto de seu carecimento é mediado por relações sociais que se torna
possível a produção de valores de uso que não se destinam à satisfação
de necessidades individuais imediatas. Vieira Pinto explica que apenas a
sociedade, verdadeiro sujeito da produção global, pode criar
instrumentos de trabalho e meios de produção em geral. A “necessidade
da poupança de esforço” é “a condição básica para estabelecer a
necessidade da máquina [...]” (PINTO, 2005, p. 80). Mas qualquer
produtor isolado, supondo-se que ele existisse, teria de focar seus
esforços na fabricação de bens destinados à satisfação das suas
necessidades mais imediatas, de modo que jamais poderia dedicar-se à
longa e penosa tarefa da fabricação da máquina. Apenas uma sociedade,
que é capacitada pelo acréscimo da produtividade causado pela
cooperação, é capaz de dedicar parte do tempo da produção à fabricação
de instrumentos de trabalho, e por isso apenas uma sociedade é capaz de
se beneficiar da poupança de esforço causada pela melhoria dos
instrumentos de trabalho. Assim, a necessidade da poupança de esforço
“[...] só tem sentido em dimensões sociais”, inclusive porque “supõe a
existência da transmissão de informações entre os membros da grei, para
leva-los a operar em conjunto um projeto comum” (PINTO, 2005, p.
80). É por isso que, desde o princípio, os meios de produção “[...] não se
destinam à realização de trabalho para um indivíduo isolado. O projeto
de cria-las só pode ter origem e sentido no seio de uma coletividade, de
um grupo humano onde já vigoram relações normais de produção”
(PINTO, 2005, p. 79).
Toda criação humana cuja finalidade é servir de guia para a
atividade fabricadora que se exerce sobre objetos de trabalho “[...] deve
ser interpretada como delegação do conjunto social para a realização de
um trabalho que beneficia a todo um grupo humano. Por isso, não se
compreende desligada deste fundamento” (PINTO, 2005, p. 79). Assim,
“quer no emprego de uma rudimentar alavanca, no lançamento de uma
pedra ou flecha pela funda ou pelo arco, quer na fabricação dos mais
complicados computadores”, afirma Vieira Pinto, “só a sociedade
oferece o fundamento real, a motivação para a descoberta dessas
criações humanas” (PINTO, 2005, p. 80). Por isso, o filósofo brasileiro
chama atenção para “o fato de só ter começado a haver essa invenção
quando os homens se elevaram a um regime social de produção, na
história de sua realização enquanto seres vivos” (PINTO, 2005, p. 79),
de modo que “a análise filosófica da capacidade humana da criação [...]
125

particularmente na práxis fabricadora [...] tem sempre de partir do


conceito e do fato do [...] exercício social” (PINTO, 2005, p. 57).
Vemos, assim, que muitas das características especificamente
humanas, tais como a fabricação de ferramentas, a consciência e a
linguagem, derivam do trabalho. As próprias relações entre os
indivíduos, as relações sociais, surgem e se desenvolvem em virtude da
necessidade imperiosa dos indivíduos de produzir os bens necessários à
subsistência. Por serem, antes de tudo, relações produtivas, a partir das
transformações que progressivamente vão ocorrendo no interior da
produção, as relações sociais vão sofrendo também transformações, e
experimentam por isso um desenvolvimento e apresentam uma história.
Vieira Pinto explica que “a sociabilidade dos homens surgiu e foi se
desenvolvendo em formas diversas ao longo do tempo, por efeito do
modo particular como esses seres se relacionaram com a natureza no
provimento das condições indispensáveis à sustentação da sua vida”. As
transformações da vida social dos seres humanos não ocorrem senão
“por efeito das necessidades impostas pela execução dessa relação vital
com o mundo natural, [...] como resultado do trabalho” (PINTO, 1962,
p. 9).
Mas, por serem produtos históricos, as relações sociais que os
indivíduos humanos contraem entre si não dependem da sua vontade.
Em todos os casos, “o homem concreto” é “aquele que se acha
envolvido por determinado sistema de relações produtivas” (PINTO,
1962, p. 10), mas “quando o homem desenvolve a sua prática vital,
primordialmente por meio do trabalho, a partir de determinada posição
no espaço social, esta mesma posição é resultado do trabalho das
gerações anteriores.” (PINTO, 1960a, p. 72). Vieira Pinto explica que,
de fato, “no curso das operações produtivas os homens se encontram e
são conduzidos a tecer um sistema de relação entre si, que constituem
relações de tipo especial, as relações sociais”, de modo que os
indivíduos humanos são os responsáveis pelo estabelecimento de tais
relações. Mas, ao vir à existência, cada indivíduo já encontra como dada
certa forma social e historicamente determinada de tais relações, “cuja
realidade não depende da sua vontade” (PINTO, 1962, p. 10-11), dado
que “foi forjada ao longo do processo expansivo da capacidade
produtiva comum da espécie humana, de melhor apropriação dos fatores
naturais em seu proveito” (PINTO, 1962, p. 11). Por isso, por mais que
atue através de uma forma que não aparece imediatamente como uma
atividade realizada em comunidade com outros, “a prática de cada
homem se define não só pelo seu esforço próprio, mas também pelo
esforço acumulado de todos os que o precederam, do qual resultou a
126

configuração da situação coletiva em que vai ocupar um ponto


particular, de onde opera [...]” (PINTO, 1960a, p. 72).
Vemos que para Vieira Pinto o ser humano “não é abstrato e sim
definido por suas relações sociais, origem de suas operações [...]”
(PINTO, 1960a, p. 111). É por isso que em um claro elogio indireto à
Marx e à Engels, Vieira Pinto afirma que “a descoberta fundamental,
que revolucionou o conceito do ser humano, foi a percepção do
verdadeiro significado do trabalho, e consequentemente o das relações
sociais dele decorrentes, para a qualificação da essência do homem.”
(PINTO, 1962, p. 13-14). Para o filósofo brasileiro, “[...] não se pode
definir a essência do homem sem incluir nela o fato, originário e
distintivo, de que o homem é um ser social.” (PINTO, 1962, p. 8).
Afirma ele que “são completamente idealistas e ingênuas as concepções
da ‘essência do homem’ que não se fundam sobre o reconhecimento do
caráter social desse ser, como consequência da necessidade de utilizar
sua força de trabalho em benefício da criação dos meios materiais de
sobrevivência” (PINTO, 1962, p. 11). Como a sociabilidade humana se
trata de uma característica essencial, presente portanto em cada um dos
indivíduos, desde o princípio “[...] o ato humano só se constitui como tal
em condições sociais.” (PINTO, 1960b, p.190). É por isso que Vieira
Pinto explica que sempre que fala de “homem”, ele fala “no sentido
genérico”, i. é., trata do “[...] conceito de ‘homem’, que deveria igualar-
se ao de humanidade enquanto um todo [...]” (PINTO, 2005, p. 191).
Vieira Pinto chama atenção para o fato de que “há [...] uma
relação profunda e séria entre a sociedade e a biologia [...]” (PINTO,
2008, p. 77). De fato, “nenhuma das manifestações específicas da
realidade humana teria lugar se previamente o homem não se fizesse
existir, [...] se não organizasse a produção dos bens e das condições
indispensáveis à sua subsistência”. Por isso, “antes de produzir qualquer
coisa no domínio da cultura, o homem tem de se produzir a si próprio
pelo trabalho” (PINTO, 1960a, p. 348-349). Ele explica que “a
sociologia tem de levar em conta as leis da biologia, uma vez que todo
homem, como ser vivo, está sujeito a elas”. Mas “[o homem] não se
reduz ao fenômeno biológico”. (PINTO, 2008, p. 79). Embora a
natureza seja um dos elementos que entra a participar do processo de
criação da cultura, ela não a engendra, assim como não engendra as
relações sociais e tampouco a consciência, que são produtos históricos e
sociais, resultados da ação humana. De fato, “a natureza induz o homem
a produzir a cultura desde que o levou a ter de viver em estado social, a
realizar coletivamente trabalho fabricador, como condição de
possibilidade de todas as suas realizações, inclusive a subsistência da
127

espécie” (PINTO, 2005, p. 165) e, por essa razão, “todas as


manifestações espirituais que em conjunto formam a [...] cultura
encontram motivação em condições objetivas de sua existência, quer as
do momento presente, quer as que vigoraram no passado, e continuam
[...] a produzir efeitos.” (PINTO, 1960a, p. 63). Assim, em razão desse
seu fundamento objetivo, a cultura possui relações profundas com as
técnicas: “[...] a cultura designa apenas o conjunto delas [das técnicas]
em determinado tempo e lugar, mais as crenças e valores a elas
agregados” (PINTO, 2005, p. 65).
Mas, por compreender que a essência humana é social e possui
seu fundamento na produção, Vieira Pinto não pode furtar-se ao
entendimento de que aquilo que o ser humano é depende daquilo que ele
faz e de como faz, i. é., que sua essência se desenvolve conforme ele
modifica a forma de sua atividade cooperativa, que portanto sua
essência é autogerada e autodeterminada. “De acordo com este modo de
entender, o ser do homem [...] é entendido [...] em caráter concreto,
como produto de sua própria existência em tais ou quais condições
materiais e sociais de trabalho” (PINTO, 1962, p. 12). Ele explica que
“o animal que evoluirá para o tipo zoológico de homem humaniza-se no
curso do processo durante o qual começa a produzir para si aquilo de
que necessita, mediante a cooperação social” (PINTO, 2005, p. 74).
Assim, “se a história natural descreve as formas pelas quais passa o
desenvolvimento da espécie, no homem tal história, deixando de ser
‘natural’ para se converter finalmente em social, não se refere às
modificações da estrutura corpórea mas às modificações do mundo
determinadas pelas intervenções humanas.” (PINTO, 2005, p. 64). Por
isso, “enquanto na etapa exclusivamente zoológica a evolução conserva-
se no nível de mera história natural, [...] no homem surge a verdadeira
historicidade, que só pode encontrar-se no domínio da produção
cultural.” (PINTO, 2005, p. 165). “O homem é o único animal que não
precisa mudar de espécie para evoluir, porquanto o faz pela via cultural,
pela prática da aquisição do conhecimento, cujo correlato se encontra na
ação técnica modificadora da realidade” (PINTO, 2005, p. 165-166). “O
animal evolui na natureza”, ele explica, mas “o homem evolui na
história”. “Por isso a história natural do homem apresenta-se agora sob a
forma de história natural da cultura.” (PINTO, 2005, p. 166).
Por isso, a própria história do mundo passa a ser uma história
antropomorfizada, e não simples história da natureza. Como “o mundo
moderno é cada vez mais um mundo de fabricados”, produto “dos
processos de produção e dos conhecimentos existentes numa
sociedade”, de modo que “a sociedade atual conseguiu fabricar tão
128

grande número de produtos que estes preponderam em quantidade no


contorno existencial, o mundo que através deles se revela é muito mais o
mundo da história do que o da natureza” (PINTO, 1960a, p. 72). Longe
de significar meramente o meio natural no interior do qual se encontram
os indivíduos humanos, em Vieira Pinto “[...] a realidade [é]
considerada apenas enquanto espaço social histórico de uma
comunidade” (PINTO, 1960a, p. 43), que “enquanto produto da história,
decorrente do progresso cultural, manifesta-se como o mundo que o
trabalho humano criou” (PINTO, 1960a, p. 72).
Já vimos que a essência da capacidade humana de projetar é
objetiva. Agora, descobrimos que, por ser assim, ela é social. Isso
implica no fato de que ao agir sobre a realidade, ao produzir, o ser
humano não apenas modifica qualitativamente a natureza,
antropomorfizando-a, mas que ao objetivar projetos elaborados
idealmente o ser humano “transforma o mundo à imagem do que
pretende venha a ser a realidade física e social, e com esse procedimento
modifica-se a si próprio, cria a sua existência” (PINTO, 2005, p. 165).
Ao produzir, “o homem projeta de fato o seu ser [...], tornando-se o
outro que projeta ser em virtude de haver criado para si diferentes
condições de vida e estabelecido novos vínculos produtivos com as
forças e substâncias da natureza”. Como resultado, surge “um outro
mundo, de tal forma que viver nele significa para o homem ser distante
do que era no contexto anterior” (PINTO, 2005, p. 54-55). Através do
projeto, o ser humano “propõe criar novas condições de existência para
si”, o que não implica meramente transformar a natureza e produzir o
mundo material, mas “implica estabelecer outro sistema de relações
sociais e utilizar em combinações originais as relações entre os corpos
da natureza” (PINTO, 2005, p. 54).
Por realizar alterações na realidade objetiva, única realidade no
interior da qual todos os indivíduos humanos vivem, a objetivação dos
projetos, i. é., a produção social, “afeta não apenas os corpos sobre os
quais incide, como igualmente os outros homens, direta ou
indiretamente, pelas relações que mantém com os corpos visados [...].”
(PINTO, 1960b, p. 190). Se o trabalho é a categoria fundante da
realidade humana, é porque é a categoria especificamente humana que
estabelece a “relação mais fundamental, profunda e definidora do
homem com o mundo físico” (PINTO, 2005, p. 414) e o leva a
“desenvolver, sempre em condições sociais, sua essência humana”.
(PINTO, 2005, p. 39). Vieira Pinto explica que “[...] o trabalho
transformador do mundo transforma ao mesmo tempo o trabalhador. É o
vínculo real que associa o homem à natureza física, porque supera o
129

nexo de mera contemplação” (PINTO, 1960b, p. 202). “Quando [...]


agimos sobre o mundo, pelo trabalho nele exercido”, diz ele, “não só
mudamos a face das coisas como mudamos a nós próprios” (PINTO,
1960b, p. 202). Por isso, “o trabalho não é apenas atividade exercida
exteriormente pelo homem, mas fator constitutivo da sua natureza, no
sentido de que é por intermédio dele que se realiza a humanização
progressiva do homem, e que cada um constrói a sua consciência da
realidade” (PINTO, 1960, p. 60).
Vemos, assim, que nunca se apresenta uma situação na qual um
determinado indivíduo humano estabelece relações apenas com os
indivíduos que lhe são contemporâneos. Todo indivíduo encontra, como
dados, elementos objetivos e culturais que ele herda de todos os
indivíduos do passado. Ele encontra, diante de si, um meio já
antropomorfizado e instrumentos de trabalho disponíveis, de modo que
se vê cercado, desde o nascimento, de objetivações de inexistentes
realizadas pelos outros. Ele encontra toda a cultura, i. é., o conjunto dos
conhecimentos sobre a natureza e sobre a sociedade, as técnicas
consideradas adequadas para produzir certos efeitos úteis, a língua, as
crenças, os valores, os costumes, a forma das relações sociais, e se vê
compelido a criar a consciência deste estado de coisas e a participar da
conexão social. Por viver desde o princípio em sociedade, a consciência
do estado de coisas real que o indivíduo alcança não é apenas a
representação ideal das coisas da natureza, mas também a representação
ideal das coisas sociais. Desta forma, o indivíduo estabelece não apenas
relações objetivas e ideais com os indivíduos que lhe são
contemporâneos e com os quais coopera, mas também com todos os
indivíduos das gerações passadas da sua sociedade, que engendraram
tudo o que ele agora tem a sua disposição, tanto em sentido objetivo
quanto em sentido cultural. Dizem que o argônio (elemento químico de
número atômico dezoito, da família dos gases nobres), por ser um
elemento inerte, que não estabelece conexões químicas e não reage a
nenhum outro elemento, que portanto jamais modifica sua forma,
estabelece uma conexão entre todos os seres que vivem com os que já
viveram. Dentro dos pulmões de cada um de nós, neste exato momento,
existem os mesmos átomos desse gás que estiveram no peito de
Einstein, Leonardo da Vinci, Platão e todos os outros seres humanos que
já viveram ou vivem na Terra. Essa conexão química, de aparência
mística, que se pode professar poeticamente pela simples existência de
um elemento químico gasoso inerte, na verdade sempre se deu na vida
dos seres humanos, porque de tal forma são suas relações sociais que
130

todos os indivíduos sempre permanecem em conexão íntima com todos


os seus contemporâneos e com todos os seus predecessores.
131

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O FENÔMENO HUMANO EM


KARL MARX E ÁLVARO VIEIRA PINTO

O ser humano é, antes de tudo, um animal. Afirmar que ele assim


o seja significa dizer que ele carece de coisas externas a ele, distintas
dele. Este traço ontológico mais geral e abstrato é compartilhado pelo
ser humano com todos os outros entes viventes, sejam eles outros
animais ou mesmo plantas. O ser humano não vive abstratamente,
fantasmagoricamente, flutuando como uma consciência sobre o mundo,
de modo que o primeiro fato a constatar é que a existência física dos
seres humanos os leva a permanecerem em constante relação com a
natureza.
Mas o ser humano não é idêntico aos demais seres animais. A
forma encontrada por ele para satisfazer suas necessidades é uma forma
peculiar e privativa, através da qual ele produz os bens de que necessita.
Tão logo começam a trabalhar, de modo a produzir os valores de uso de
que carecem, os seres humanos distinguem-se qualitativamente dos
demais seres vivos. Ao agir objetivamente sobre a realidade externa, o
indivíduo que trabalha descobre algo mais sobre as propriedades dos
corpos e fenômenos externos, de modo que modifica a sua consciência,
que é antes de tudo o conjunto das representações ideias dos objetos e
fenômenos externos. Fazendo uso de sua capacidade abstrativa, que
permite manipular as representações ideais de modo a combiná-las de
formas nunca antes observadas na realidade externa, o indivíduo que
trabalha cria idealmente o novo, um inexistente, que pode ser trazido à
existência objetiva posteriormente através da atividade do indivíduo,
que por isso se converte em atividade livre, consciente e
autodeterminada.
Mas a natureza não engendrou um único exemplar do Homo
sapiens, e o indivíduo que trabalha não está sozinho no mundo. Em
razão de suas necessidades, os indivíduos se encontram e estabelecem
entre si relações sociais, de modo a produzirem cooperativamente os
bens de que necessitam. Tanto a necessidade e a possibilidade de
estabelecer vínculos cooperativos entre nós quanto a percepção das
alterações causadas pelos outros à realidade objetiva na qual todos
existem levam-nos a criar a consciência também da existência uns dos
outros. Assim, a consciência, que é antes de tudo a percepção dos
objetos e fenômenos externos, é também percepção da existência dos
outros indivíduos humanos e da possibilidade e necessidade de conexão
com eles. A relação que se estabelece entre os indivíduos humanos,
portanto, não é apenas objetiva, como cooperação produtiva, mas
132

também subjetiva, como percepção ideal da existência dos outros e da


conexão entre nós.
Além dessa percepção consciente dos outros e das suas relações,
a cooperação leva ao surgimento da comunicação entre os indivíduos, i.
é., da linguagem. Através dela, os conhecimentos individuais a respeito
da realidade externa e os projetos de modificação dessa realidade
criados idealmente pelos indivíduos podem ser compartilhados entre
eles, assim como pode ser realizada a divisão das tarefas e a organização
coletiva necessária à realização dos atos produtivos de forma
cooperativa.
De fato, os indivíduos trabalham, mas apenas a sociedade em sua
totalidade aparece como sujeito da produção global. A estrutura
morfológica de cada indivíduo permanece estática, sem alterações,
durante toda a vida; se o poder do ser humano se manifesta cada vez
mais fortemente sobre a natureza, se as resistências da natureza podem
ser cada vez mais facilmente superadas pela produção humana, isso
ocorre em razão do desenvolvimento do poder da sociedade em face da
natureza. Ao agir coletivamente no mundo, os seres humanos se tornam
capazes de desenvolver novos e mais potentes meios de produção, de se
organizarem coletivamente de forma mais eficiente, de conhecer a
realidade não apenas limitadamente, mas universalmente, etc., de modo
que desenvolvem suas forças produtivas. Por isso, a sociedade
progressivamente antropomorfiza a natureza, e o ser humano se
descobre o ser que produz a natureza tal como ela se apresenta — muito
embora ele só possa atuar no interior da natureza, a partir dos materiais
fornecidos pela natureza e em razão das necessidades que primeiramente
lhe foram dadas pela natureza, que lhe precede e neste sentido impõe-se
como prioridade externa.
Os indivíduos sempre encontram, diante de si, como dados, um
meio já antropomorfizado e instrumentos de trabalho disponíveis, de
modo que se vê cercado, desde o nascimento, de objetivações de
inexistentes realizadas pelos outros. Ele encontra toda a cultura, i. é., o
conjunto dos conhecimentos sobre a natureza e sobre a sociedade, as
técnicas consideradas adequadas para produzir certos efeitos úteis, a
língua, as crenças, os valores, os costumes, a forma das relações sociais,
e se vê compelido a criar a consciência deste estado de coisas e a
participar da conexão social. Por viver desde o princípio em sociedade, a
consciência do estado de coisas real que o indivíduo alcança não é
apenas a representação ideal das coisas da natureza, mas também a
representação ideal das coisas sociais. Ele se vê compelido a participar
da produção, entrando a participar das relações sociais então vigentes,
133

que não são fruto de sua vontade, mas que através de seus atos ele
próprio irá reproduzir. Como todo indivíduo encontra, como dados,
elementos objetivos e culturais que ele herda de todos os indivíduos do
passado, nunca se apresenta uma situação na qual um determinado
indivíduo humano estabelece relações apenas com os indivíduos que lhe
são contemporâneos, de modo que os indivíduos estabelecem relações
também com todos os indivíduos das gerações passadas da sua
sociedade, que engendraram tudo o que ele agora tem a sua disposição,
tanto em sentido objetivo quanto em sentido cultural.
Como cada indivíduo ocupa um diferente lugar na produção e nas
correspondentes relações de produção, relações de distribuição e
relações sociais, cada indivíduo cria consciência do estado das coisas
externas à sua própria maneira. Além disso, não se pode compreender a
subjetividade sem levar em conta as escolhas pessoais de cada
indivíduo, que fazem dele, em muitos aspectos, um ser distinto de todos
os outros, e exatamente por isso um ser singular. De fato, a consciência
dos indivíduos não é mero reflexo passivo do estado de coisas real.
Cada um se torna consciente da realidade externa à sua maneira, tanto
em razão das diferentes possibilidades de interpretação das coisas
quanto em razão do limite da atuação de cada indivíduo, que os impede
de ter uma visão do todo, mantendo-se a consciência individual limitada
pelas situações singulares empiricamente vivenciadas por cada
indivíduo. No entanto, este ser singular que é o indivíduo jamais deixa
de ser um ser singular envolvido e em conexão íntima com outros seres
singulares.
Se o trabalho que os indivíduos humanos realizam é o momento
decisivo para a manutenção e o desenvolvimento do ser social, não é
simplesmente porque através dele são produzidos os bens de que os
indivíduos carecem. Pelo ato de trabalho de cada indivíduo, toda a
coletividade humana, a sociedade, é alterada. Essa alteração ocorre tanto
em sentido objetivo, porque a realidade objetiva na qual todos vivem e
as relações entre os indivíduos são alteradas em alguma medida pelo ato
de trabalho individual, quanto também em sentido ideal, porque essa
mudança da realidade objetiva leva a alterações da minha consciência,
da consciência dos outros indivíduos que vivem na mesma realidade
objetiva e da linguagem que usamos para nos comunicar — porque leva,
portanto, a alterações da cultura.
Alterações na produção geram alterações na natureza, nas
relações sociais, na consciência dos indivíduos, na linguagem: ao
trabalhar modificamos a natureza e a nós próprios. O trabalho não é
somente atividade objetiva que os seres humanos realizam por
134

necessidade, mas também o fator constitutivo da sua essência privativa,


porque é através dele que ocorre a humanização progressiva do ser
humano. E é por isso que em cada um de seus atos individuais, cada ser
humano singular se prova um ser que age para consigo mesmo como
pertencendo a uma totalidade, um gênero, e que cada indivíduo, através
de seus atos, produz a natureza, reproduz a sociedade e faz a história.
A respeito da proximidade entre as obras de Karl Marx e de
Álvaro Vieira Pinto, devemos inicialmente considerar que, de fato, entre
elas existem incontáveis diferenças. Ambos os autores, cada um genial à
sua maneira, foram pensadores extremamente criativos e originais, e as
filosofias que foram capazes de elaborar não poderiam ser idênticas
inclusive porque os problemas a respeito dos quais buscavam refletir
não eram idênticos. O desejo de Vieira Pinto sempre foi o de elaborar
uma filosofia capaz de refletir a respeito da realidade específica das
nações subdesenvolvidas e subordinadas ao imperialismo, razão pela
qual sua filosofia já de início se põe mesmo como uma forma ideológica
de resistência nacional ao pensamento externo, inclusive daquelas
filosofias que ele chama de filosofias europeias. Mas isso não aparece
como preconceito do filósofo brasileiro por todo pensamento
estrangeiro. De fato, Vieira Pinto fez uso de todo arcabouço intelectual
que tinha à sua disposição para realizar a tarefa a que se propôs, o que
explica porque comparecem em seu pensamento influências de autores
como Aristóteles, Heidegger, Hegel e Marx e de escolas como a
existencialista. No entanto, ele nunca foi um pensador comprometido
com alguma escola de pensamento em especial: ele era comprometido
com a realidade nacional e movido pelo desejo de melhorar as condições
de vida dos indivíduos que viviam em nações subdesenvolvidas, em
especial à dos brasileiros.
No entanto, é necessário perceber que o que faz de Marx um
clássico na história do pensamento — i) as grandes descobertas a
respeito da ontologia do ser social e ii) as grandes inovações
epistemológicas delas derivadas — está presente no pensamento de
Vieira Pinto. Para o filósofo brasileiro, o fundamento da realidade
humana é a atividade sensível e produtiva do ser humano, que através
dessa forma privativa de relação com a natureza resolve sua contradição
vital que lhe é imposta por ela. Em razão do trabalho que realiza por
necessidade, o ser humano gera e desenvolve sua consciência e as suas
relações sociais, humanizando a si próprio, de forma autodeterminada. O
trabalho aparece em Vieira Pinto, portanto, como em Marx: como
fundamento da realidade especificamente humana. Essa compreensão
não teria se tornado possível à Vieira Pinto não fosse a sua cosmovisão
135

materialista histórico-dialética da existência, para a qual matéria e Ideia


são elementos objetivos, realmente existentes, aos quais é necessário
sempre fazer referência para compreender a realidade humana, embora a
prioridade seja sempre dada à matéria.
À exceção das considerações do filósofo brasileiro a respeito da
origem do ser humano e das condições naturais encontradas pelo ser
humano já em seu surgimento, questões estas que Marx evita e
tangencia como pode, não há no debate a respeito da essência humana e
da essência do trabalho nenhuma discrepância entre Vieira Pinto e
Marx, e isto não por coincidência, mas porque Vieira Pinto incorpora a
descoberta realizada primeiramente por Marx de que o ser humano
objetivamente começou a se distinguir do restante da natureza ao passar
a produzir as suas condições de vida. Considerando as especificidades
dos objetivos e das obras de Vieira Pinto, o mais correto provavelmente
é fazer justiça à sua originalidade, não atribuindo a ele o rótulo de
marxista. No entanto, seu pensamento permanecerá incompreensível
para todos àqueles que não compreenderem que as especificidades do
pensamento de Vieira Pinto dizem respeito muito mais ao seu
comprometimento com as massas trabalhadoras exploradas das nações
subordinadas ao imperialismo internacional do que a inovações
ontológicas ou epistemológicas. Vieira Pinto foi um filósofo materialista
histórico-dialético que compreendia que o trabalho é a categoria
fundante do ser social, e sua obra permanecerá incompreensível para
aqueles que resistirem a tal constatação.
136
137

REFERÊNCIAS

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THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros.


Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
140
141

APÊNDICE(S)
142
143

APÊNDICE A – Vieira Pinto como filósofo materialista histórico-


dialético

Aqueles que desejarem interpretar corretamente o pensamento de


Álvaro Vieira Pinto deverão, antes de tudo, compreender a relação
existente entre o pensamento do filósofo brasileiro com o pensamento
de Marx. Embora as influências intelectuais de Vieira Pinto não tenham
se limitado de forma alguma ao pensamento de Marx, comparecendo em
suas obras categorias próprias de pensadores como Aristóteles, Hegel e
Heidegger, e de escolas como a existencialista, para Vieira Pinto o
fundamento da realidade humana é a atividade sensível e produtiva do
ser humano, que através dessa forma privativa de relação com a natureza
resolve sua contradição vital que lhe é imposta por ela. Em razão do
trabalho que realiza por necessidade, i é., por imposição natural, o ser
humano gera e desenvolve sua consciência e as suas relações sociais,
humanizando a si próprio, de forma autodeterminada. O trabalho
aparece em Vieira Pinto, portanto, como em Marx, conforme explicitado
pelo Lukács maduro da pequena e da grande ontologia: como
fundamento da realidade especificamente humana. Além disso, tal
compreensão não teria se tornado possível à Vieira Pinto não fosse a sua
cosmovisão materialista histórico-dialética da existência, para a qual
matéria e Ideia são elementos objetivos, realmente existentes, aos quais
é necessário sempre fazer referência para compreender a realidade
humana, embora a prioridade seja sempre dada à matéria. Para Vieira
Pinto, é o conjunto das condições concretas de existência dos seres
humanos que gera a sua consciência, e não o oposto.
Ao menos, é o que buscaremos comprovar a seguir.

Materialismo vulgar e Idealismo

Durante toda a longa história da humanidade que antecede à


Primeira Revolução Industrial (1776-1830), o nível de desenvolvimento
das forças produtivas não era suficiente para garantir a abundância, i. é.,
uma situação na qual toda a humanidade fosse capaz de produzir o
suficiente para satisfazer totalmente as necessidades de todos os
indivíduos. Essa situação de baixo nível de desenvolvimento das forças
produtivas mantinha a humanidade à mercê dos acontecimentos
naturais, já que a produção era fortemente afetada por condições
naturais favoráveis ou desfavoráveis, o que criava uma situação concreta
tal que a natureza influenciava fortemente os desenvolvimentos da
realidade social. Essa situação de dependência das condições naturais
144

impediu que os filósofos compreendessem, antes da Primeira Revolução


Industrial, o papel autodeterminado da essência humana.
Foi apenas com Hegel que a humanidade, pela primeira vez,
descobriu que é a humanidade que determina a sua própria história.
Observando as transformações da realidade humana que estavam
ocorrendo em razão da Revolução Industrial, Hegel descobriu que
conforme progride o poderio das criações humanas decai o poder natural
na determinação da história humana. Além disso, observando a
Revolução Francesa, Hegel pensa ter descoberto o mecanismo através
do qual a humanidade cria a sua própria história. O motivo de os
franceses terem destruído a monarquia absolutista, segundo Hegel, foi a
mudança da ‘opinião pública’ (se o leitor nos permitir essa simplificação
do “Espírito do Tempo” de Hegel) a respeito da necessidade social de
um soberano. Para ele, portanto, a humanidade autodetermina sua
própria história através de um mecanismo da transformação da
‘consciência coletiva’. É através da mudança (em via de progresso) das
ideias que o ser humano faz a sua própria história.
Em Hegel, a história humana aparece como uma sucessão
concatenada de fases qualitativamente distintas entre si, em sucessão no
tempo de maneira etapista, na qual a era posterior aparece como superior
à era anterior, rumo ao absoluto. O capitalismo, para Hegel, seria a
última etapa da história humana, a etapa superior e máxima que a
humanidade poderia alcançar, na qual todas as deturpações e tragédias
humanas seriam superadas, de modo que se realizaria no mundo o
espírito absoluto. No entanto, as condições concretas de existência nas
primeiras décadas do século XIX, longe de demonstrarem verídica a tese
hegeliana, demonstravam antes o oposto: a vida havia piorado para a
vasta maioria da população, que vivia cada vez em piores condições.
Hegel, ainda em vida, observando seu sistema explicativo ruir diante da
denúncia da realidade objetiva da época, buscou fazer alterações em seu
sistema filosófico, mas não foi capaz de apresentar respostas teóricas
convincentes. Assim, todo o sistema hegeliano entra em crise, e os
pensadores alemães posteriores à Hegel, já no século XIX, buscaram
descobrir o que havia de errado com as teorias hegelianas,
“remendando” o sistema, mas sempre sem sucesso.
Foi apenas com Marx que a humanidade, pela primeira vez,
descobriu o verdadeiro mecanismo através do qual ela autodetermina as
transformações de sua própria história. Não são as transformações da
consciência, em via de progresso, que levam à transformação da
realidade objetiva dos seres humanos, mas o contrário: ao viverem em
determinadas condições concretas de existência, os seres humanos criam
145

a consciência correspondente ao estado de coisas real. É através da sua


atividade sensível, da sua atividade produtiva, em síntese, de seu
trabalho, que os seres humanos modificam a sua história e chegam a
elaborar idealmente o reflexo abstrato do mundo objetivo com o qual se
relacionam. Assim, Marx mantém a descoberta de Hegel de que é a
humanidade que faz a sua própria história, de maneira autodeterminada,
mas descobre o mecanismo objetivo através do qual essa história é
realizada.
Ambas as descobertas, de Hegel e Marx, como já dissemos, só se
tornaram possíveis em razão do acelerado desenvolvimento das forças
produtivas ocorrido durante a Primeira Revolução Industrial. As
filosofias elaboradas durante todo o longo período histórico que vai dos
Pré-socráticos, na Antiguidade Clássica, aos pensadores do século
XVIII que antecede à Revolução Industrial, já na Idade Moderna, por
mais que possuam grandes variações entre si, em razão das respostas
que dão para a questão da causa das transformações da história humana
e da vida social, podem ser agrupadas em dois grupos distintos: as
materialistas mecanicistas e as idealistas.
De forma geral, são denominadas como materialistas vulgares ou
mecanicistas as filosofias que partem do pressuposto de que tudo o que
existe pode ser reduzido única e exclusivamente à matéria. Dada esta
característica universal de tudo o que existe, todos os fenômenos
poderiam ser explicados utilizando-se as leis de funcionamento da
natureza e de movimento da matéria. As diferenças existentes entre os
diferentes tipos de seres são explicadas como oriundas dos diferentes
tipos de organização da própria matéria, que seria o fundamento de tudo
o que existe e causa de todo movimento e transformação. Mesmo as
ideias, a consciência, a linguagem, etc., aparecem nessas filosofias como
puro produto do movimento da matéria. As ideias, por exemplo, seriam
o resultado das reações químicas e fisiológicas ocorridas no sistema
nervoso, da mesma forma que a digestão é resultado das reações
químicas e fisiológicas ocorridas no sistema digestivo. Essas filosofias
concebem o universo como um grande e complexo mecanismo em
equilíbrio estável e perfeito, e que para funcionar bem, necessita que
cada uma das suas partes constituintes permaneça inalterada. Assim, o
próprio ser humano aparece apenas como uma parte da natureza, uma
das engrenagens do cosmos, de modo que o comportamento individual e
o movimento da história social seriam determinados pela natureza. As
leis de funcionamento da vida social seriam idênticas às leis próprias do
mundo natural, que regem o movimento da matéria, e por assim o
serem, seriam imutáveis, necessárias e universais. Por não conceber
146

nenhum papel ativo na criação da história humana às categorias


especificamente humanas, como o trabalho, a consciência, a linguagem
etc., essas filosofias jamais foram capazes de dar boas explicações a
respeito dos fenômenos e instituições sociais, como o Estado, as leis, a
desigualdade social etc.
É tarefa muito mais complicada definir o idealismo. Muitos
foram os pensadores atualmente reconhecidos como idealistas, tais
como Parmênides, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Spinoza, Kant,
Hegel, entre muitos outros, sendo muito grande a quantidade de
divergências entre eles para que se possa definir um conjunto
homogêneo de características entre tais filosofias. De toda forma, de
modo geral, são denominadas como idealistas as filosofias que partem
do pressuposto de que a realidade externa, material ou objetiva, a qual
não necessariamente se nega a existência, é entretanto apenas o
resultado externo da manifestação da verdadeira essência de todas as
coisas, que seria espiritual, mental ou subjetiva. Ao contrário do
materialismo, no qual a prioridade ontológica é dada à matéria, aqui a
prioridade ontológica é dada à consciência. Se no materialismo a
consciência é gerada pelo movimento da matéria, no idealismo a
realidade externa é gerada pelos movimentos da consciência.
O idealismo sempre foi mais rico em explicações e produziu
muito mais expoentes em razão da separação que ocorre nas sociedades
de classe entre o trabalho manual (transformação da natureza para
produção dos valores de uso) e o trabalho intelectual
(gestão/organização da produção). Como as sociedades de classe se
fundam sobre a exploração do trabalho manual, sempre coube às classes
dominantes (ou a seus representantes, os burocratas) a função social da
organização da produção e da vida social. Sendo a filosofia uma
atividade que se realiza no ócio, historicamente ela foi objeto apenas dos
membros com posição social privilegiada em cada sociedade. Por essa
razão, do ponto de vista histórico, os filósofos sempre foram produtores
e reprodutores das ideias das classes dominantes, que viam toda a
produção da riqueza e toda conquista da assim chamada civilização
como resultado da organização da produção e da vida social realizada
por ela própria. As filosofias idealistas são o resultado ideal a que
chegam os dominadores em cada época porque, a partir de sua posição
privilegiada de exploradores, eles viam a produção e a organização da
sociedade como produto da sua atividade intelectiva, gerencial,
organizativa. É por isso que os idealismos possuem em geral este elogio
à organização da vida social realizada em cada época. Aristóteles, para
citar um exemplo apenas, elogiava a civilização escravista porque via
147

nela a manifestação mais elevada da vida social, sem a qual a


humanidade toda se perderia na vida bárbara, não-civilizada, inferior e
decadente. Mas Aristóteles não faz mais elogios ao escravismo e à
aristocracia do que Hegel ou Kant ao capitalismo e aos burgueses. Por
ser realizada por membros da classe cuja função social era, em cada
época histórica, realizar o trabalho intelectual, i. é., organizar a produção
e a vida social, a concepção idealista de que a consciência produz o
movimento da realidade externa era uma explicação adequada ao modo
de vida e aos interesses da classe dirigente de cada época, e
desempenhavam o relevante papel social não apenas de propaganda
ideológica, mas também de produção e reprodução do conhecimento
necessário para realizar a tarefa da organização da vida social.

A síntese materialista histórico-dialética

Ambas as correntes filosóficas, a materialista vulgar e a idealista,


acertam em um aspecto e erram no outro aspecto da questão de que trata
seu pressuposto. A respeito do materialismo vulgar, cabe assinalar que
ele acertadamente reconhece a prioridade ontológica da matéria sobre a
consciência, mas ignora completamente o papel ativo desempenhado
pela consciência na reprodução do tipo especificamente humano de
existência. A respeito do idealismo, por sua vez, cabe assinalar que ele
acertadamente reconhece o papel ativo desempenhado pela consciência
na reprodução social, mas ignora o fato de que são as condições
concretas de existência que determinam a consciência dos indivíduos em
cada época.
Os problemas de ambas as correntes filosóficas são superadas
quando do surgimento do materialismo histórico dialético. A partir i) da
descoberta hegeliana de que a humanidade possui uma história própria e
que é relativamente independente da natureza, autodeterminada, ii) da
crítica de Feuerbach ao idealismo do pensamento hegeliano, iii) das
descobertas da economia política, em especial as de Adam Smith, o
primeiro a reconhecer no trabalho humano a categoria produtora de toda
riqueza social e iv) da observação de Marx das rápidas transformações
do capitalismo de seu tempo, Marx realizou uma síntese entre o
hegelianismo e os materialismos vulgares de sua época. Em Marx, a
humanidade descobre-se como a verdadeira produtora de sua própria
história, que é posta em movimento a partir da ação transformadora da
realidade externa que os seres humanos realizam de forma coletiva com
a finalidade de objetivar no mundo algo previamente inexistente, fruto
da capacidade abstrativa e do gênio criativo da consciência humana.
148

Sem os desenvolvimentos da matéria inerte, jamais a natureza biológica


poderia ter vindo à existência; sem os desenvolvimentos biológicos,
jamais o ser social poderia ter vindo à existência. Cronologicamente, a
matéria precede o ser humano. Se o ser humano transforma a realidade
objetiva, é antes de tudo porque, por imposição natural, ele necessita se
relacionar com a natureza para retirar dela os elementos de que precisa
para manter-se vivo. Nisso subsiste a prioridade da matéria, da natureza
exterior. No entanto, quando nos referimos especificamente à realidade
tipicamente humana, social, tratamos de um tipo de ser qualitativamente
distinto do ser da natureza, mais complexo e rico em qualidades em
relação à natureza, e é por isso que as ideias, produtos da consciência
humana, são parte do mundo real, mas não como realidade da natureza,
e sim como realidade do mundo dos homens. De fato, como as ideias
orientam a ação dos indivíduos humanos e como a ação deles transforma
a natureza, modifica a realidade exterior, as ideias possuem força
material, i. é., desempenham um importante papel social e, através da
mediação da atividade sensível produtiva que é o trabalho, são capazes
de alterar a matéria exterior que lhe é o fundamento. Portanto, nem
apenas matéria, nem apenas consciência: uma síntese complexa de
ambas, que demonstra o fundamento da consciência na matéria e a
relação dialética de transformação da matéria em razão da ação
orientada pela consciência. E é em razão dessa capacidade de
transformar a natureza externa de acordo com os seus próprios
desígnios, de acordo com o projeto de transformação inovadora da
realidade externa que o ser humano criou primeiramente em sua mente
para posteriormente realizar no mundo através da mediação do trabalho,
que o ser humano se diferencia do restante dos seres vivos e da natureza
como um todo.
Se o ser humano se diferencia de todos os outros seres vivos, se
seu desenvolvimento não está determinado pelas leis de funcionamento
da biologia, como a lentíssima transformação que se dá na evolução,
torna-se possível todo um desenvolvimento auto-determinado, i. é, um
processo no qual a humanidade determina o desenvolvimento da própria
humanidade. Surge, no entanto, a complicadíssima questão do seu
surgimento, e da confusa questão a respeito da possibilidade lógica de
um surgimento autogerado. Marx, que sobre isso escreve apenas nos
Manuscritos e na Ideologia Alemã, portanto apenas em 1844 e 1846,
não estava em boas condições históricas para dar qualquer resposta
minimamente adequada à questão. Apesar de conhecer a obra de Darwin
(ele inclusive desejava dedicar o primeiro livro de O Capital ao
naturalista britânico), o conhecimento que havia sobre a história do
149

universo como um todo naquele momento histórico era praticamente


nulo. Apenas ao longo do século XX foram se alastrar pela comunidade
científica as ideias de que i) o universo inerte como um todo possui uma
história e ii) que a origem dessa história não necessita de um ser
transcendente criador e pode ser explicada pela análise retroativa dos
desenvolvimentos da matéria. Da mesma forma, apenas a partir do final
do século XIX foram se alastrar pela comunidade científica as ideias de
Darwin, a partir das quais a humanidade descobre que a própria vida
orgânica possui uma história própria, com origem e ulterior
desenvolvimento. Portanto, com relação à questão sobre o surgimento
da humanidade, Marx não está em posição histórica muito privilegiada
em relação ao próprio Hegel, dado que o conhecimento a respeito da
história da humanidade à que Marx tinha acesso era vago e incerto, e a
questão do surgimento da humanidade é simplesmente posta de lado e
não discutida por ele. A respeito disso, já em 1846, na Ideologia Alemã,
Marx diz apenas o seguinte:
Naturalmente não podemos abordar, aqui, nem a
constituição física dos homens nem as condições
naturais, geológicas, oro-hidrográficas, climáticas
e outras condições já encontradas pelos homens.
(MARX e ENGELS, 2007, p. 87)

Aqui, no entanto, há um problema teórico dos mais complexos. A


questão é a seguinte: ao criticar o idealismo em razão de sua
insuficiência, é necessário afirmar a prioridade ontológica da matéria.
Ao mesmo tempo, ao ficar clara a discrepância ontológica entre seres
humanos e demais seres vivos, surge a questão da diferença qualitativa
entre os graus de organização da matéria. Não cabe ao materialismo
histórico a negação da natureza e a defesa do grau humano de
organização da matéria como o único objetivo, concreto e realmente
existente. É necessário, portanto, que se explique de que forma se
relacionam os diferentes graus qualitativos de desenvolvimento da
matéria, i. é., como o ser humano se relaciona com a esfera biológica e
com aquilo que há de animalidade em si mesmo, e como se relaciona
com a natureza inerte e com aquilo que há de natural e inerte em si
mesmo. Hoje, após o trabalho de divulgação científica de Carl Sagan,
mesmo adolescentes são capazes de afirmar que nosso corpo é
constituído dos átomos forjados no coração das estrelas através da fusão
nuclear do hidrogênio e espalhados pelo cosmos pela energia liberada
pelas supernovas; mas não se pode perder de vista que, na metade do
século XIX, nenhuma dessas ideias vinha à mente mesmo do mais
150

brilhante homem de ciências da época. Marx não apenas não pôde dar
uma resposta adequada à questão do surgimento da humanidade, como a
evitou e tangenciou como pôde.

Álvaro Vieira Pinto e seu estilo literário

Este não é o caso de Vieira Pinto. Escrevendo no século XX e


tendo formação superior em medicina, o filósofo brasileiro viveu em
condições históricas privilegiadas em relação à Marx para abordar a
questão da constituição física dos homens e do surgimento da
humanidade enquanto ser. É certo que o filósofo brasileiro possuía
conhecimentos a respeito do corpo físico do animal homo sapiens, e em
suas obras filosóficas trata da questão de seu desdobramento posterior
em humanidade. Essa é uma diferença importante existente entre o
pensamento de Marx e o de Vieira Pinto, porque o filósofo brasileiro foi
capaz de elucidar a questão do surgimento da humanidade de um modo
que Marx jamais sequer tentou.
No entanto, os escritos de Vieira Pinto possuem, assim como os
de Marx, as suas peculiaridades. Sempre foi um dos objetivos do
filósofo brasileiro que seus textos fossem acessíveis aos homens
comuns, aos trabalhadores comuns, aos operários fabris, que em geral
não possuem acesso à educação de boa qualidade e à alta cultura porque
o grau de exploração que sofrem é de tal ordem que esses bens não lhe
são acessíveis. Esse objetivo, de pronto, põe dificuldades relacionadas à
forma de exposição do conteúdo filosófico que ele desejava comunicar
às massas. As obras de Vieira Pinto, em geral, não possuem uma
estrutura acadêmica comum, com começo, meio e fim bem definidos. É
comum que Vieira Pinto apresente uma ideia, parta dessa ideia para
outra, dessa outra para uma terceira, e que posteriormente retome a ideia
inicial. É comum, igualmente, que ao retomar a ideia inicial, ele a
formule de outra forma, i. é., que apresente o mesmo conteúdo através
de outra forma. Por essa razão, a sucessão de ideias é acidentada, e os
assuntos teimam em retornar de novo, de novo e uma vez mais. Os
textos são geralmente muito longos, mas nem todas as páginas
apresentam novidades. Os momentos de síntese são poucos, e as obras
se arrastam com retomadas de ideias anteriormente já apresentadas.
Essa falta de objetividade do texto e de linearidade da
argumentação causa estranheza quando do primeiro contato do
pesquisador com a obra de Vieira Pinto. No entanto, e a isso cabe dar
ênfase, as obras assim se apresentam não por falta de melhor
acabamento ou por desleixo do autor com a forma de exposição do
151

conteúdo filosófico, mas antes pelo oposto: se as ideias são


apresentadas, reapresentadas e ainda assim teimam em voltar ao texto
mais uma vez e uma vez mais ainda, é porque pela repetição através de
diferentes formas Vieira Pinto pretende se tornar um autor mais
inteligível, palatável ao leitor comum, ao qual foi socialmente negado o
acesso aos bens culturais.
Além disso, Vieira Pinto exagera em suas expressões, dá
exemplos nem sempre os mais adequados, utiliza-se dos recursos da
metáfora, da figuração, da liberdade poética e da prosopopeia — note-se
que este último é inclusive bastante perigoso filosoficamente, por
modificar, via forma, o conteúdo que se pretende comunicar, como
veremos mais a frente. O objetivo de todos esses expedientes dos quais
Vieira Pinto lança mão é sempre buscar tornar-se acessível para um
público que não possui a leitura filosófica como hábito ou profissão.
Mas todo esse expediente gera dificuldades interpretativas para os
acadêmicos que, acostumados com a linearidade da estrutura das obras,
com a objetividade do texto e com a exatidão na apresentação das
categorias filosóficas, podem tomar Vieira Pinto por alguém que ele
nunca foi.
Para exemplificar a questão a respeito da qual estamos tratando,
reproduziremos duas passagens retiradas das páginas 59, 60 e 61 da obra
O conceito de tecnologia, analisando-as na sequência. Vejamos a
primeira delas:
[...] no homem, cessou o patrocínio direto da
natureza, ou melhor, o animal humano foi dotado
do recurso de que necessitaria para resolver por si
suas contradições vitais com o meio. Tal recurso
foi a posse de um sistema nervoso suficientemente
desenvolvido para elaborar, em forma de ideias
abstratas e universais, o reflexo da realidade e
capaz de comandar a produção, pelo indivíduo,
dos meios de vencer as dificuldades opostas à
satisfação de suas exigências. Por conseguinte, a
fórmula que a natureza encontrou para realizar o
tipo qualitativamente superior de animal que será
o homem foi investi-lo da função de produtor. Por
esse atributo destaca-se do reino da animalidade
inferior, que permanece estacionada no nível dos
seres consumidores do que encontram ao redor.
Na oposição entre consumidor e produtor está o
caráter distintivo do salto qualitativo que gerou o
152

homem, e lhe dá o sentido pelo qual se define,


tanto ele quanto seus atos. (PINTO, 2005, p. 61)

Analisemos alguns aspectos dessa passagem. Primeiramente, há a


expressão curiosa “cessou o patrocínio direto da natureza”, o que
significa que a natureza não mais age no sentido de engendrar para o ser
humano os objetos dos quais ele carece. A natureza aparece aí,
aparentemente, como um sujeito, uma entidade capaz de “patrocinar” ou
não determinados seres. Pretendendo explicar-se melhor, Vieira Pinto
segue com a afirmação “o animal humano foi dotado do recurso [...]”, o
que remete à questão de, aparentemente, a natureza tê-lo dotado de tal
recurso. Na sequência, a expressão “a fórmula que a natureza encontrou
para realizar o tipo qualitativamente superior de animal que será o
homem” nos deixa, aparentemente, em vias de concluir que para Vieira
Pinto a natureza é a responsável por criar o ser humano e seu tipo
específico de existência, e não podemos evitar de considerar que a
natureza aparece aí então como um verdadeiro sujeito, dotado do desejo
e da capacidade de objetivar no mundo um tipo de animal superior. Há,
aí, uma teleologia da natureza que, conforme vemos ao final da
passagem, aparentemente “gerou o homem”.
Analisemos, agora, a segunda passagem:
A princípio, o animal humano condiciona-se à
ação que representa a melhor maneira de prover as
necessidades materiais prementes do indivíduo e
da espécie. Evidencia-se assim que o projeto, na
origem da evolução biológica, está ligado à
imperiosidade de solucionar uma situação vital
por formas mais satisfatórias e rendosas do que os
comportamentos instintivos anteriores. A
passagem à fase de criação de projetos revela que
o animal humanizado começa a ver-se envolvido
em situações de conflito com o meio, já então
mais complexas e imprevisíveis, e se encontra na
necessidade de solucioná-las com o recurso
primordial a ele outorgado pela natureza e de que
decorrerão, por via de complicação progressiva,
todos os demais, a saber, a capacidade de projetar.
(PINTO, 2005, p. 59-60)

Antes de tudo, devemos começar pela consideração de que o


conceito de “projeto” em Vieira Pinto é objetivo, porque diz respeito à
dupla modalidade da ação humana: i) a ação de criar, no plano do
pensamento, um objeto que é resultado da combinação de diferentes
153

características de diferentes objetos e fenômenos externos, de modo que


o objeto engendrado no plano do pensamento configura-se em um
objeto completamente novo, que não é dado imediatamente e que a
natureza é incapaz de engendrar espontaneamente; ii) a ação de criar, no
plano objetivo, através de sua atividade sensível transformadora da
natureza, i. é., do trabalho, o objeto previamente engendrado no plano
do pensamento. Assim, projetar, para Vieira Pinto, significa produzir
objetivamente um inexistente previamente criado pelo ser humano no
plano ideal. Portanto, não diz respeito apenas à criação mental da coisa,
mas também ao ato de cria-la objetivamente no mundo, transformando o
mundo, projetando a realidade de acordo com sua intenção idealmente
concebida. Não há, aí, idealismo. No entanto, a capacidade de projetar
aparece, ao final da passagem acima, como “o recurso primordial a ele
outorgado pela natureza”. Novamente, a natureza aparece enquanto um
sujeito capaz de dar poderes ao ser humano, de conceder-lhe
características.
Citações como essas não são uma exclusividade da obra O
conceito de tecnologia. De fato, pode-se encontrar em Vieira Pinto
muitas passagens curiosas, aparentemente muito confusas, que fazem
com que AVP pareça: i) em alguns momentos um materialista vulgar,
que atribui o surgimento do ser humano à natureza de forma linear,
como se toda a realidade do homem pudesse ser explicada pelos
movimentos e transformações do universo inerte ou da esfera da vida; ii)
em alguns momentos um idealista, que atribui à natureza a criação do
ser humano, sendo considerada nesses casos uma entidade
transcendental ou como um sujeito dotado de consciência, capacidade
criativa e pretensões finalísticas. Mas, como já viemos afirmando ao
longo da análise das duas passagens, essa é apenas uma aparência.
Vieira Pinto não é um materialista vulgar, e tampouco um filósofo
idealista. Aliás: ele é um ferrenho crítico de ambos equívocos
filosóficos. Tal afirmação nos deixa, evidentemente, na obrigação de
demonstrá-la.

Vieira Pinto e a questão do surgimento da humanidade

Vieira Pinto explica que o fenômeno biológico ou “[...] a vida


tem como acontecimento mais fundamental, geral e necessário a
evolução física da matéria, que leva a criar suas manifestações
primitivas.” (PINTO, 2008, p. 78-79) Por essa razão, “as leis da física e
da química são válidas para os corpos vivos”, que “delas não podem
fugir e às quais é preciso sempre fazer menção para compreender grande
154

número de processos vitais”. Mas isso não significa que “alguém dirá
que a biologia é um ramo da física, confunde-se com ela e se explica
exclusivamente pelas leis do mundo material inerte.” (PINTO, 2008, p.
79) Assim, o plano de existência orgânico aparece em Vieira Pinto
como dependente e fundado sobre o plano de existência da matéria
inerte, e por essa razão as leis dessa última atuam sobre os seres vivos.
No entanto, o plano de existência orgânico possui as suas próprias leis
— leis estas que não existem no plano de existência da matéria inerte e
que só vieram à existência quando do surgimento da vida — e que
regem o seu funcionamento próprio. Assim, ninguém dirá, por exemplo,
que a Lei da Gravitação Universal não atua e não exerce nenhuma
interferência sobre os seres vivos. Mas ninguém dirá, igualmente, que se
no sistema circulatório animal o sangue alcança os membros inferiores
isso é obra da atração gravitacional. Nessa relação entre os dois planos
existenciais, o plano biológico se revela mais complexo e rico do que o
plano da matéria inerte, porque sobre o biológico atuam tanto as suas
leis próprias quanto as leis do plano físico-químico. E, ainda mais: as
próprias leis do plano mais complexo, o biológico, incluem em si
próprias a sua realidade primeira, i. é., sua dependência e fundamento
nas leis do plano menos complexo. Se no sistema circulatório animal o
coração realiza o movimento de sístole, responsável por bombear o
sangue pelo corpo, isso demonstra que a biologia não pode furtar-se a
observar as leis do plano físico-químico, de modo que o coração põe o
sangue em movimento ao aplicar nele uma força de tal grandeza que se
torna possível ao sague, mesmo permanecendo sob influência da atração
gravitacional, alcançar os membros superiores do animal.
Vê-se, assim, que o plano biológico da existência permanece
sempre em conexão necessária com o plano físico-químico da
existência, mas que jamais se reduz a ele, se iguala a ele ou se confunde
com ele. O plano biológico é um plano mais complexo, porque sobre ele
atuam as leis específicas do plano físico-químico por intermédio de
algumas de suas próprias, além de outras, especificamente suas, que
nada dizem respeito à matéria inerte. Deve-se, portanto, sempre observar
a autonomia relativa do plano biológico, que apesar de não poder furtar-
se a observar as leis de funcionamento do plano existencial inferior,
pode no entanto subordiná-las às suas leis próprias de funcionamento.
Essa subordinação das leis de um plano existencial superior às leis de
um plano existencial inferior é aquilo que o Lukács maduro, em Para
uma ontologia do ser social, chamou de “via [...] do máximo domínio
das categorias específicas de uma esfera de vida sobre aquelas que
recebem sua existência e operatividade em um modo inexorável da
155

esfera ontológica inferior.” (LUKÁCS, 2018, p. 8) Esse domínio das leis


de funcionamento ou das categorias próprias de um plano ontológico
superior às leis de funcionamento ou das categorias próprias de um
plano ontológico inferior devem sempre ser observadas, sob o risco de,
em hipótese contrária, operar o incorreto reducionismo do plano
ontológico superior ao inferior, isto é, do biológico ao físico-químico ou
do social ao biológico ou natural inerte.
Voltemos a Vieira Pinto. Segundo o filósofo brasileiro, o
aparecimento e a existência sustentada das relações sociais não seriam
possíveis sem que anteriormente tivessem ocorrido os desenvolvimentos
físicos da matéria, que conduziu ao surgimento da vida, e a evolução
biológica, que conduziu à criação do ser humano enquanto antropoide
superior. Diz ele: “a convivência também não teria surgido se o processo
das transformações da matéria não tivesse conduzido à criação da vida, e
no extremo mais elevado do desenvolvimento deste, ao aparecimento do
homem [...].” (PINTO, 2008, p. 79) Sendo o ser humano, antes de tudo,
mais um dos seres vivos animais, não se pode negar que “há [...] uma
relação profunda e séria entre a sociedade e a biologia [...]” (PINTO,
2008, p. 77). De fato, “não haveria sociedade humana sem que
previamente existissem homens vivos que a constituam”, de modo que a
“vida é a condição original para o surgimento da sociedade”. Portanto,
não se pode fazer sociologia séria sem levar em conta o anterior
desenvolvimento da matéria inerte e da matéria viva, e “a sociologia tem
de levar em conta as leis da biologia, uma vez que todo homem, como
ser vivo, está sujeito a elas”. “Mas”, e aqui chegamos ao mais relevante,
“[o homem] não se reduz ao fenômeno biológico”. (PINTO, 2008, p. 79)
Vemos que para Vieira Pinto a “precedência do fato vital se
impõe à constituição do processo social”. Mas vemos também que para
ele “isto não quer dizer que este se reduza ao primeiro, nem tenha por
leis mais gerais e definidoras as que regem os fenômenos de surgimento
e transmissão da vida.” (PINTO, 2008, p. 79) O plano humano de
existência, ou melhor, o social, permanece sempre em conexão
necessária com os planos físico-químico e biológico da existência, mas
jamais se reduz a algum deles, jamais se iguala a eles ou se confunde
com eles. O plano social é um plano mais complexo, porque sobre ele
atuam as leis específicas do plano físico-químico e do plano biológico,
mas sempre através das suas leis específicas. Deve-se, portanto, sempre
observar a autonomia relativa do plano social, que apesar de não poder
furtar-se a observar as leis de funcionamento dos planos existenciais
inferiores, pode no entanto subordiná-las às suas leis próprias de
funcionamento, sob o risco de, em hipótese contrária, operar o incorreto
156

reducionismo do social ao físico-químico ou ao biológico. É por isso


que “a antropogênese não pode ser explicada exclusivamente em função
da evolução biológica, mas exige a intervenção das leis sociais.”
(PINTO, 2005, p. 75)
Apesar de já estar claro que Vieira Pinto não compreende a
realidade humana, social, à moda de Aristóteles — para o qual o ser
humano é um animal gregário tal qual as abelhas e as formigas, sendo
seu traço específico, a sociabilidade, determinada pela natureza —
poder-se-ia ainda, no entanto, interpretar que em Vieira Pinto a
sociabilidade humana vêm à existência em razão do desenvolvimento
linear da matéria, como produto das transformações da própria natureza.
Mas este não é o caso. Aliás, para Vieira Pinto, de modo geral, toda
“crença nos determinismos lineares e unilaterais” é, de alguma forma,
“ingênua” (PINTO, 2005, p. 83-84) Como já dissemos, escrevendo no
século XX, Vieira Pinto está em condições históricas privilegiadas em
relação à Marx para abordar as questões i) do surgimento da
humanidade a partir ii) da conexão do ser humano com a natureza
(atividade vital) e iii) da diferenciação do ser social em relação à
natureza (sociabilidade fundada no trabalho). Sabe-se que obras como
O conceito de tecnologia e A sociologia dos países subdesenvolvidos, as
quais recorremos aqui para tornar evidentes as considerações de Vieira
Pinto a respeito do surgimento e da diferenciação do ser social a partir
da natureza, foram escritas em algum momento entre os anos de 1965 e
1985, mas não se pode afirmar com exatidão em qual momento cada
obra foi escrita e concluída, já que tais obras vieram à público não por
ocasião de sua publicação por parte de Vieira Pinto, mas por ocasião da
descoberta dos seus manuscritos no escritório do filósofo brasileiro após
a sua morte (em 1987), que permaneceu boa parte deste período em
prisão domiciliar após ter seus direitos civis e políticos cassados pela
Ditadura Militar brasileira. De toda forma, este é praticamente o mesmo
período histórico no qual Lukács redigiu Para uma ontologia do ser
social e os Prolegômenos, obras com as quais o pensamento de Vieira
Pinto se assemelha em muitos aspectos. E, sobre as descobertas das
ciências naturais até aquele momento histórico, no início do capítulo do
trabalho do volume sistemático da grande ontologia, Lukács escreve o
seguinte:
A ciência de hoje começa, concretamente, chegar
às pistas da gênese do orgânico a partir do
inorgânico, na medida em que mostra que sob
determinadas circunstâncias (atmosfera, pressão
atmosférica etc.) podem surgir determinados
157

complexos altamente primitivos em que já estão


contidas em germe as características fundamentais
do orgânico. [...] E a teoria do desenvolvimento
dos organismos nos mostra como, gradualmente,
com muitas contradições, com muitos becos sem
saída, as categorias da reprodução
especificamente orgânicas alcançam o domínio
nos organismos. (LUKÁCS, 2018, p. 8)

No que há de mais relevante em seus pensamentos, muito do que


diferencia Lukács e Vieira Pinto de Marx é a pretensão de demonstrar
como se deu o surgimento da humanidade enquanto tal, e eles o podem
tentar observando i) as recentes descobertas das ciências naturais de sua
época a respeito do surgimento da vida a partir da matéria inerente, que
é seu fundamento e ii) as descobertas da antropologia física. Essa é uma
diferença importante existente entre os pensamentos de Vieira Pinto e do
Lukács maduro em relação ao de Marx e que explica porque os
primeiros foram capazes de elucidar a questão do surgimento da
humanidade de um modo que Marx jamais sequer tentou.
Afirmávamos, anteriormente, que em Vieira Pinto a sociabilidade
humana não vêm à existência em razão do desenvolvimento linear da
matéria, i. é., que o ser social não é produto das transformações da
própria natureza. Segundo Vieira Pinto, “o surgimento do homem deve-
se a um salto qualitativo no curso da evolução biológica.” Isso significa,
primeiro, que apenas a partir da evolução biológica se pode
compreender a origem do ser humano. Mas isso significa, e é isso que é
realmente o mais relevante nessa passagem, que não são os
desdobramentos da própria matéria, de forma linear, que fizeram surgir
o ser humano. O surgimento humano se dá na forma de um “salto
qualitativo”, de uma passagem de uma ordem qualitativa a outra, através
não de uma continuidade linear, mas sim através de uma ruptura com as
determinações essenciais anteriores. O salto qualitativo possui, portanto,
a caráter de um salto ontológico, quer dizer, de uma mudança essencial
na qualidade do ser. Por isso as leis sociais não são as mesmas das leis
de funcionamento da biologia: porque ambas possuem traços gerais
existenciais qualitativamente distintos e mesmo discrepantes. Sobre as
características do salto que deram origem ao ser humano a partir da sua
diferenciação em relação ao plano existencial puramente biológico,
Vieira Pinto escreve:
Embora seja impossível assinalar a data desse
evento [do salto], sabe-se em que ele consistiu,
sendo fácil apreendê-lo quando se comparam dois
158

momentos relativamente afastados, pertencentes


um ao período da genealogia dos primatas, outro
especificamente humano, pelas características
culturais que exibe. Realizou-se quando as
transformações anátomo-fisiológicas, que vinham
ocorrendo, compondo a série animal em seus
graus de desenvolvimento ascendente, passaram a
subordinar-se a outra sucessão de fenômenos de
caráter qualitativamente diverso, superior, os de
ordem social. A partir daí declina a importância
aparente da evolução biológica, agora substituída
pela forma dominante, a evolução social, de que a
cultura é o aspecto primordial. (PINTO, 2005, p.
74)

Sem dúvida, chegamos aqui à tese de Marx do afastamento das


barreiras naturais. Para Vieira Pinto, embora “seja impossível assinalar a
data desse evento”, até porque ele realizou-se através de um longo
processo histórico acidentado, não etapista e não linear, pode-se
descobrir no que ele consiste ao compararmos as características de dois
seres próprios de dois momentos qualitativamente distintos do
desenvolvimento da matéria, que são i) a existência animalesca dos
hominídeos em via de humanização e ii) a existência humana já em sua
forma plenamente social. A diferença essencial entre ambos os seres
consiste, segundo Vieira Pinto, no seguinte: no caso do hominídeo em
via de humanização, sua história é ainda “natural”, e portanto “descreve
as formas pelas quais passa o desenvolvimento da espécie”, i. é.,
transformações biológicas, fisiológicas etc.; No caso do animal para o
qual já se deu o salto qualitativo, em que já ocorreu a transformação
qualitativa de seu ser, “tal história, deixa de ser ‘natural’ para se
converter finalmente em social, não se refere às modificações da
estrutura corpórea mas às modificações do mundo determinadas pelas
intervenções humanas.” (PINTO, 2005, p. 64) Essa transformação
qualitativa, que ocorre não de forma linear, mas na forma de uma
ruptura essencial, de um salto qualitativo, é um “fato decisivo e inédito,
que então se impõe na história da matéria viva”. Se os demais seres
vivos, sem exceção, “se conservam em relação direta com o mundo
material, do qual cada indivíduo retira os alimentos e outros bens de que
necessita”, a partir do salto qualitativo que engendrou o seu ser, “o
homem não se relacionará mais diretamente com a natureza, não sofrerá
imediatamente a submissão a suas leis, porém entrará em ligação com
ela dialeticamente, isto é, pela interposição da organização social.” Por
159

essa razão, “as leis do mundo inerte não o dominarão mais direta e
exclusivamente, e sim pela mediação das leis sociais.” (PINTO, 2008, p.
75) Vemos, assim, que não se torna possível ao humano furtar-se a
observar as leis do plano físico-químico e do plano biológico da
existência, mas se torna possível subordinar essas leis às leis próprias do
seu próprio plano existencial, o social. Assim, cada indivíduo humano
passará a relacionar-se com essas leis através da mediação
qualitativamente superior do ponto de vista existencial que é a
sociedade.
Desenha-se um quadro histórico do desenvolvimento da matéria.
No seu princípio, há o surgimento do universo como um todo, assim
como o surgimento da matéria inerte e da energia. Hoje, sabe-se que este
surgimento se deu na forma de uma expansão hiper acelerada de uma
singularidade que deu origem ao espaço-tempo e seu conteúdo material
e energético como o conhecemos, e que permanece em expansão que
permanece acelerando progressivamente através de mecanismos ainda
hoje desconhecidos. A certo ponto de desenvolvimento deste processo
ocorre um salto qualitativo, a partir do qual emerge a vida, que
respeitando as leis de funcionamento da matéria inerte em geral,
subordina-as às suas leis próprias, derivadas das suas qualidades novas,
que fazem dela qualitativamente distinta da matéria inerte e superior à
ela do ponto de vista existencial. Surgido o plano biológico da
existência, este passará a desenvolver-se de acordo com as suas leis de
funcionamento, cuja lei máxima é a evolução das espécies a partir da
adaptação ao meio ambiente em razão das sucessivas, constantes e
acidentadas alterações genéticas aleatórias que se processam de uma
geração de ser biológico a outra. A certo ponto de desenvolvimento
deste processo ocorre um salto qualitativo, a partir do qual emerge o ser
humano, que respeitando as leis de funcionamento da matéria inerte em
geral e da esfera biológica do ser, subordina-as às suas leis próprias,
derivadas das suas qualidades novas, que fazem dele qualitativamente
distinto da matéria inerte e dos outros seres vivos do ponto de vista
existencial. Surgido o plano humano (social) da existência, este passará
a desenvolver-se de acordo com as suas leis de funcionamento. A
respeito disso tudo, Vieira Pinto escreve o seguinte:
Se esses dispersos momentos são acontecimentos
no curso de um processo só, qualitativamente
distintos, e no entanto partes integrantes do
movimento de uma única realidade, a da matéria,
isto significa que ao lado das leis que são comuns
ao processo todo, têm de existir as que são
160

específicas de cada fase, e não se reduzem as das


fases anteriores. Acrescentam-se a estas, porém
manifestam caráter próprio e inconfundível,
porque correspondem a formas originais de
movimento da matéria. (PINTO, 2008, p. 79)

Pensamos já estar evidente o fato de que para Vieira Pinto a


sociedade não pode ser reduzida à biologia, e que as leis de
funcionamento social não podem se confundir com as leis de
funcionamento da vida. Antes de prosseguirmos, no entanto, cabe-nos
assinalar a proximidade entre o pensamento de Vieira Pinto ao de
Lukács ao que diz respeito à forma de surgimento da humanidade, que é
o salto qualitativo. A respeito disso, Lukács afirma que “deve-se sempre
ter-se claro que se trata, de uma — ontologicamente necessária —
repentina transição de um nível de ser a outro, qualitativamente
diferente.” (LUKÁCS, 2018, p. 8) E, mais: como o surgimento social se
dá através de um salto, toda busca realizada pela primeira geração dos
darwinistas ao elo perdido não poderia dar fruto algum, já que tal “elo
biológico” ou hominídeo próprio da fase de transição entre ser
puramente biológico e ser humano (social) jamais existiu. Lukács afirma
o seguinte:
A esperança da primeira geração de darwinistas
de encontrar o “missing link” [elo perdido] entre o
macaco e os seres humanos deveria, já por isso,
ser vã, porque os traços biológicos podem
iluminar apenas os patamares de transição, jamais
todavia o salto enquanto tal. [...] por mais precisas
as descrições das diferenças físico-psíquicas entre
seres humanos e animais, devem passar longe do
fato ontológico do salto (e do processo real, no
qual ele se realiza) até que possa esclarecer o
surgimento dessas qualidades dos seres humanos a
partir de seu ser social. (LUKÁCS, 2018, p. 8)

Essa consideração não passou despercebida por Vieira Pinto.


Segundo o filósofo brasileiro,
O conceito do “elo perdido”, tão vulgarizado na
época do aparecimento das doutrinas
evolucionistas, não passa de uma noção ingênua,
uma ilusão, simplesmente porque jamais houve o
“elo” procurado. O aparecimento do homem, por
diferenciação a partir de um tipo antropoide
anterior, faz-se por um salto qualitativo, que o
161

animal já então dotado das condições orgânicas


exigidas foi capaz de realizar, ingressando em
novo patamar da evolução geral da matéria, o
plano social. (PINTO, 2005, p. 75)

Vemos que ambos os autores apresentam como “causa” do


surgimento da humanidade através do salto qualitativo, como o nomeia
Vieira Pinto, ou do salto ontológico, como o nomeia Lukács, algo que é
próprio do plano humano da existência. Lukács afirma que “o
surgimento dessas qualidades [privativas] dos seres humanos” só podem
ser conhecidas “a partir de seu ser social”. (LUKÁCS, 2018, p. 8) Vieira
Pinto afirma que “o aparecimento do homem [...] faz-se por um salto
qualitativo, que o animal já então dotado das condições orgânicas
exigidas foi capaz de realizar”. (PINTO, 2005, p. 75) Neste caso, não
apenas a humanidade não viria à existência de forma linear, a partir dos
desenvolvimentos próprios da matéria inerte, como também o próprio
salto qualitativo, com sua característica de ruptura do desenvolvimento
linear normal, teria como causa algo que não é próprio da natureza, mas
que pertence apenas ao próprio ser humano como tal. Há aqui, portanto,
uma questão das mais complexas do ponto de vista filosófico, que é a
questão que podemos chamar de surgimento autogerado, e que
precisamos agora explicar.
Antes de tudo “[...] o homem é um ser vivo [...].” (PINTO, 1962,
p. 10), e por isso “transporta naturalmente, por ser matéria viva,
contradições com a natureza inerte” (PINTO, 2005, p. 60). Como todos
os seres vivos, o ser humano necessita “resolver uma contradição com o
mundo físico, para conservação da vida” (PINTO, 2005, p. 61-62) No
entanto, “a forma de relação estabelecida pelo homem com a natureza é
única, específica, privativa desse animal, e por isso o distingue
radicalmente de todos os demais [...].” (PINTO, 1962, p. 9). Enquanto
toda a animalidade “permanece estacionada no nível dos seres
consumidores do que encontram ao redor” (PINTO, 2005, p. 61), “o
homem atua sobre a natureza com o fim de produzir os elementos de
que precisa para sustentar e desenvolver a existência.” (PINTO, 1962, p.
10). E, ao produzir, ele desenvolve os seus caracteres especificamente
humanos.
Primeiramente, nenhum indivíduo humano pode legitimamente
trabalhar sem criar para si uma representação da natureza circundante e
do seu vínculo que os prende aos outros indivíduos humanos. “A
consciência [...] é, na verdade, a percepção da existência do mundo
enquanto espaço para a ação, campo de projetos possíveis.” (PINTO,
162

1960a, p. 60). Mas essa percepção da realidade externa só lhe vem à


cabeça quando ele atua sobre ela para transformá-la nos bens de que
necessita para reproduzir sua vida. A única via que o ser humano possui
para conhecer a realidade do mundo é a ação: “é ao ser objeto de ação
por parte do sujeito que o mundo abre as virtualidades cognoscíveis que
possui” (PINTO, 1960b, p.195-196.), i. é., “o mundo só se desvenda,
reproduzido na representação, à medida que se oferece como âmbito de
trabalho a ser exercido sobre ele”. (PINTO, 1960a, p. 60).
Além disso, apesar de um indivíduo humano poder trabalhar, em
sentido formal, individualmente, nenhum indivíduo é capaz de produzir
todos os diferentes bens de que necessita para reproduzir a sua própria
existência. Assim, “o trabalho que o homem, por necessidade, exerce
sobre o mundo exterior não pode ser praticado de modo isolado [...]
agindo cada trabalhador independentemente dos demais”, e “a condição
para que seja realizado com êxito, se encontra na associação dos
indivíduos para cumprir em operação conjunta a tarefa que devem levar
a cabo para sustentar a vida”. Ao trabalhar, “os homens se encontram e
são conduzidos a tecer um sistema de relação entre si, que constituem
relações de tipo especial, as relações sociais” (PINTO, 1962, p. 11).
Como “a produção dos bens”, que é a finalidade do trabalho, “assume
obrigatoriamente caráter social”, pode-se afirmar que “a sociedade não
existiria sem a atividade consciente dos homens, que empreendem o
trabalho que os sustenta [...]” (PINTO, 2008, p. 79).
Assim, a partir dos atos produtivos que realiza, desenvolvem-se a
consciência (e a linguagem, que é a consciência que se externaliza para
os outros) e as relações sociais. Por essa razão, “o trabalho não é apenas
atividade exercida exteriormente pelo homem, mas fator constitutivo da
sua natureza, no sentido de que é por intermédio dele que se realiza a
humanização progressiva do homem [...]” (PINTO, 1960a, p. 60).
Vemos, assim, que a partir “[...] da contradição original do homem, a
que o opõe à natureza [...]”, desenvolve-se “sua essência humana”
(PINTO, 2005, p. 39). Desde o princípio, o que objetivamente “delineia
em caráter supremo a natureza específica do ser humano” é o “ato
produtivo”. (PINTO, 2005, p. 195). “Deste modo, compreende-se por
que motivo o trabalho se encontra na origem da essência humana do
homem” (PINTO, 1962, p. 10).
Em razão disso tudo, quando Vieira Pinto trata a respeito do ser
humano tomado já em sua configuração própria, concreta, social, ele o
trata como “o ser que se produz a si mesmo”. (PINTO, 2005, p. 62). O
salto qualitativo pelo qual o ser humano superou dialeticamente a sua
própria animalidade para se tornar um ser social, de qualidade superior,
163

foi gerado por um ato do próprio ser humano: o primeiro ato de


trabalho. Sua geração é autogeração; sua existência é autoproduzida. Por
isso, as transformações que ele próprio realiza em sua forma de se
relacionar com a natureza sempre lhe modificam a sua essência, sua
consciência, a forma das relações sociais etc. “O que efetivamente
revoluciona a vida do homem é o homem” (PINTO, 2005, p. 84).
Descobrimos, assim, “[...] o fato decisivo de ser o homem o criador sua
própria existência mediante o trabalho [...]” (PINTO, 1962, p. 11).

Vieira Pinto e a crítica ao idealismo e ao materialismo vulgar

Achamo-nos agora em condições de avaliar as afirmações de


Vieira Pinto muito mais pelo seu conteúdo ontológico e epistemológico
do que pela sua forma. Como já vimos, o filósofo brasileiro exagera em
suas expressões peculiares, utiliza-se da metáfora, da figuração e da
prosopopeia. Para explicar dois aspectos contraditórios de uma relação
dialética, ele dá muita ênfase a um dos aspectos primeiro, para na
sequência dar muita ênfase ao outro aspecto. Já vimos que ele assim
procede para se tornar inteligível para o leitor não acostumado com o
texto filosófico. Vieira Pinto sempre foi um filósofo que se pretendia
representante das massas trabalhadoras, e para elas as suas obras eram
dirigidas. Portanto, a forma de exposição textual é uma das dificuldades
que o intérprete de seu pensamento deve superar.
Em segundo lugar, necessitamos desde logo verificar que Vieira
Pinto sempre se refere ao “processo de hominização”, ou à
“antropogênese”, aspecto que Marx tangencia e evita o quanto pode,
mas que o filósofo brasileiro busca elucidar. Isso é importante para ele
porque apenas assim, fundando a realidade social sobre a realidade
biológica (e esta última sobre a realidade inerte) é que se pode de fato
fazer materialismo histórico, negando ao mesmo tempo as hipóteses
idealistas e as hipóteses materialistas vulgares, dessa forma: i) se a
realidade humana, social, se funda sobre a realidade biológica (e esta
última sobre a inerte), está dada a inversão materialista que coloca a
dialética sobre os próprios pés, porque a prioridade ontológica é da
matéria, não da consciência; ii) se a realidade humana, social, é
autodeterminada, autoproduzida através da ação sensível dos seres
humanos, as leis de funcionamento da realidade social não são as
mesmas leis que regem a realidade biológica (ou da realidade material
inerte). Assim, o ser social aparece como o resultado da interação dos
momentos materiais (ação sensível dos seres humanos) com os
momentos ideias (ação de pensamento abstrato dos seres humanos) que
164

compõe a realidade humana. E sua síntese, do ponto de vista objetivo, se


realiza no interior do processo de trabalho, razão pela qual, através do
trabalho, o ser humano produz a totalidade da sua existência, desenvolve
sua consciência e suas relações sociais.
Note-se, no entanto, que quando fala de biologia, Vieira Pinto
exagera em suas expressões, e pode parecer a um recém iniciado muitas
vezes um “biosociólogo”, i. é., alguém que reduz a sociedade à um
conjunto de animais que vive de forma gregária, e que pretende
interpretar os acontecimentos sociais a partir das leis gerais de
movimento da realidade biológica. Para que assim se interprete seu
pensamento, para citar um único exemplo, basta que se interprete
erroneamente a descrição que o filósofo brasileiro faz do processo de
transformação fisiológica pelo qual passou o órgão cerebral humano
como uma descrição filosófica do surgimento da consciência, de forma
linear, a partir dos desenvolvimentos da fisiologia e natureza humana.
Da mesma forma, quando fala de consciência, Vieira Pinto exagera em
suas expressões, e pode parecer a um recém iniciado muitas vezes um
idealista, i. é., alguém que afirma que a consciência dos seres humanos é
a característica fundante do mundo dos homens, a partir da qual toda
sociabilidade e todo trabalho se tornam possíveis. Para que assim se
interprete seu pensamento, para citar um único exemplo, basta que se
interprete erroneamente a categoria do “projeto” como uma categoria
específica do plano ideal, e não como uma característica objetiva, como
um sinônimo da categoria trabalho, cuja função no interior do texto de
Vieira Pinto é tornar clara já na sua forma de exposição o caráter
teleológico, finalístico, da atividade transformadora do ser humano.
No caso da leitura equivocada que leva a interpretar Vieira Pinto
como um “biosociólogo”, talvez bastasse demonstrar que, para o
filósofo brasileiro, “a antropogênese não pode ser explicada
exclusivamente em função da evolução biológica, mas exige a
intervenção das leis sociais.” (PINTO, 2005, p. 75). Mas nos
dediquemos um pouco mais à nossa tarefa, para esclarecer a questão de
uma vez por todas.
Analisemos a seguinte afirmação de Vieira Pinto:
O aparecimento do homem como espécie à parte
assinala-se pelo surgimento da técnica, pois tal é a
modalidade pela qual a natureza – se o leitor nos
concede esta licença prosopopéica -, [...] dota-o da
faculdade de agir racionalmente. (PINTO, 2005,
195)
165

A passagem acima é muito rica por nos revelar que Vieira Pinto
exagera propositalmente em suas expressões. Ele sabe que afirmar que a
natureza tenha dotado o ser humano da faculdade de agir racionalmente
é uma prosopopeia. Isso é extremamente revelador: trata-se da figura de
linguagem responsável por atribuir características humanas a coisas e
objetos inanimados. E, no plano do conteúdo da filosofia de Vieira
Pinto, a natureza é um ser inanimado, e não um verdadeiro sujeito
consciente e com capacidades e interesses criativos. Claro, existe a
questão de que nessa passagem em específico ele pede licença ao leitor
para utilizar-se da figura de linguagem da prosopopeia, ao passo que em
geral ele não declara a utilização dela, mas, bem observado o plano do
conteúdo de sua filosofia e o leitor que Vieira Pinto tem em mente,
compreende-se que afirmações como estas só podem ser, sempre,
utilizações de figuras de linguagem para tornar um complexo texto
filosófico mais palatável para o leitor comum.
Existem outras passagens parecidas com a exposta acima:
Mas, enquanto nas espécies inferiores essa função
é assumida pela própria natureza, no homem,
falando figuradamente, a natureza por assim dizer
delega a essa particular criatura a função de
conservar-se viva graças aos recursos que venha
descobrir. (PINTO, 2005, p. 60)

Perceba-se: no plano do conteúdo, a natureza não delega ao ser


humano a capacidade de trabalhar, enquanto continua a engendrar os
objetos do carecimento dos outros animais: o fenômeno do trabalho
surge na forma de um salto qualitativo do ser, e pertence desde o
princípio, portanto, ao conjunto das características do novo ser, assim
como a consciência e a sociabilidade. É por isso que falar de uma
natureza que aparece como sujeito consciente capaz de delegar algo a
alguém é apenas uma figuração, uma metáfora, uma imagem para
facilitar o entendimento. O único responsável pela humanização do ser
humano é o próprio ser humano. Quem põe em movimento todo
processo de humanização é ele próprio, ao agir sobre a natureza para
produzir sua realidade material. Explica Vieira Pinto:
Antes, [o ser humano] podia vagar como qualquer
outro, [...], obtendo os bens indispensáveis graças
ao próprio esforço, porém só se humaniza quando
se destaca dessa situação ancestral e se põe a
produzir [...] os bens de existência. [...]
O animal que evoluirá para o tipo zoológico de
homem humaniza-se no curso do processo durante
166

o qual começa a produzir para si aquilo de que


necessita [...]. (PINTO, 2005, p. 74)

É o próprio ser humano, portanto, que “se humaniza”, de forma


autodeterminada, e embora seu corpo e seu cérebro tenham sido
engendrados pela natureza através de suas próprias leis, ela não lhe
delega coisa alguma, é incapaz de fazê-lo. Se ainda se tiver alguma
dúvida a respeito disso ou se ainda se duvidar de nossa interpretação,
leia-se a seguinte passagem de Vieira Pinto:
Não pretendemos, evidentemente,
antropomorfizar a natureza, dando-lhe, sem usar o
nome, o mesmo papel que os idealistas atribuem à
divindade, ao espírito ou a qualquer outra entidade
metafísica. Estamos apenas tentando descrever,
reconstituindo-o nos momentos culminantes, o
curso de um processo biológico desenrolado numa
fase de duração temporal indefinida, antes de se
haver constituído a história [...]. (PINTO, 2005, p.
60)

E ainda mais:
Não receamos ser acusados de incidir nas
ingenuidades do “vitalismo” filosófico ou do
“mecanismo biológico”, porque, muito ao
contrário, de acordo com a nossa intenção
desejamos manter-nos no terreno objetivo do
processo social, da produção material da
existência pelo homem, onde, conforme cremos,
se encontram as raízes da única explicação teórica
legítima [...]. (PINTO, 2005, p. 150)

Com tão esclarecedoras passagens, esperamos que se dê por


encerrada de uma vez por todas a interpretação que faz de Vieira Pinto
um “biossociólogo”, que ele, inclusive, critica enfática e duramente na
obra A sociologia dos países subdesenvolvidos. A filosofia de Vieira
Pinto não propõe que o social possa ser explicado pelas leis naturais,
mas propõe uma tentativa de explicar como o homo sapiens pôde vir à
existência em razão da luta pela vida própria da esfera biológica, que se
explica por via biológica e evolutiva. Isso é necessário para que ele seja
capaz de articular as esferas biológica e social, fundando a segunda na
primeira, fazendo, portanto, um materialismo epistemológico, para que
posteriormente ele demonstre a distinção que há entre ser humano e ser
animal. A dialética de Vieira Pinto se manifesta com toda força e
167

grandeza na articulação entre o social e o biológico, mostrando que a


origem do social se dá à posteriori em relação à existência do biológico
e não poderia existir em sua ausência, mas sem recorrer a explicações
tanto fáceis quanto falsas como a afirmação da identidade do social ao
biológico ou da criação do social por parte do biológico. Em Vieira
Pinto, não é a natureza que cria o social: a natureza engendra as
possibilidades materiais e fisiológicas para a sustentabilidade da
consciência por parte do cérebro e da sustentabilidade da práxis criadora
por parte do corpo, mas é o próprio ser humano que produz sua própria
humanização ao agir sobre o mundo, ao transformar a natureza para nela
subsistir.
No caso da leitura equivocada que leva a interpretar Vieira Pinto
como um idealista, talvez bastasse demonstrar que, para o filósofo
brasileiro, sendo “rejeitada a concepção metafísica da ‘natureza’
humana, suposta essência supra-sensível, imutável e universal [...],
temos de admitir que o homem se faz a si mesmo ao fazer aquilo de que
necessita.” (PINTO, 2005, p. 198). Mas nos dediquemos um pouco mais
à nossa tarefa, para esclarecer a questão de uma vez por todas.
Analisemos a seguinte afirmação de Vieira Pinto (2005, p. 198):
A formação do conhecimento não precede a
técnica ou a produção, nem sucede a elas. A
dialética material da existência indica-nos
estarmos em face de um ato único, indivisível
interiormente, aquele pelo qual o homem se
realiza em seu ser pela transformação do mundo,
função criadora que está obrigado a executar para
subsistir. Seria puro idealismo supor que se
transformasse a si mesmo primeiro, para depois
modificar o mundo.

A passagem acima é muito reveladora. Vieira Pinto claramente


contrapõe sua interpretação materialista histórico-dialética (“a dialética
material da existência”) ao idealismo. O ser humano não possui uma
“consciência pura”, que se transforma a partir de seu próprio
desdobramento abstrato, sem nenhum condicionamento exterior.
Tampouco o ser humano se limita a uma existência abstrata, como se ele
fosse apenas a sua consciência. O ser humano é um ser objetivo
consciente, um ser sensível dotado de consciência. De fato, o ser
humano só pode objetivar algo novo, que modifique a realidade objetiva
na qual vive, porque idealizou a modificação que pretendia realizar; mas
só pode idealizar uma modificação porque quando ele age no mundo a
sua consciência descobre como está configurada a realidade objetiva em
168

um determinado momento e descobre a necessidade de modificar tal


configuração neste ou naquele sentido, de modo que lhe resta pôr sua
capacidade inventiva para funcionar. A formação da consciência do
estado real e a ação modificadora que se realiza sobre o real com o
intuito de lhe modificar este estado são polos complementares de uma
mesma unidade, que é a práxis humana.
Analisemos essa outra passagem:
As definições que omitem o aspecto que revela o
homem como criador de si mesmo mediante o
trabalho, a produção econômica dos recursos para
sua manutenção em vida, são definições
metafísicas, confusas, ideais; conduzem
inevitavelmente a concepções da realidade
humana [...] falsas [...]. (PINTO, 1962, p. 11)

De forma muito clara, Vieira Pinto declara que definições que


não apresentem o ser humano como o ser que se cria a si mesmo através
de sua atividade sensível são metafísicas e ideias, e por isso mesmo
“confusas” e “falsas”.
Uma mais. Note-se, nesta passagem, de que se trata de uma
crítica dirigida à Hegel:
[...] a transformação em que o desenvolvimento
consiste não se produz por efeito de forças
mágicas, extra materiais, pela evolução imanente
de uma Ideia ou de um suposto Espírito Absoluto,
mas é devida ao trabalho humano aplicado à
realidade material. (PINTO, 1960a, p. 109)

Vê-se, acima, que as transformações da história humana (o


“desenvolvimento”) não ocorrem por efeito de um processo
gnosiológico-ontológico, através do qual a verdadeira essência, o
Espírito, se manifesta objetivamente, desdobrando-se em si mesmo e
modificando a realidade objetiva, para retornar a si próprio como
absoluto. O que efetivamente faz a história humana é a ação objetiva dos
seres humanos sobre o mundo objetivo.
Com tão esclarecedoras passagens, esperamos que se dê por
encerrada de uma vez por todas a interpretação que faz de Vieira Pinto
um idealista, um hegeliano, que ele, inclusive, critica enfática e
duramente em todas as suas obras, muito embora ele não o cite
diretamente. A filosofia de Vieira Pinto não propõe que o social possa
ser explicado em razão das transformações de uma consciência abstrata,
mas apenas propõe que o que confere à essência do trabalho a
169

capacidade de desenvolver a essência humana é a capacidade desse ser


de criar idealmente um objeto para satisfazer alguma de suas
necessidades que efetivamente não existe no mundo como dado. Se o
ser humano transforma sua realidade ao trabalhar, é porque ao fazê-lo
ele objetiva no mundo algo novo, previamente inexistente, operando
assim o salto qualitativo da natureza, a antropomorfização da natureza
externa, que ele previamente havia concebido mentalmente.
Vemos, assim, que Vieira Pinto não se trata nem de um
materialista vulgar nem de um idealista. Em suas obras, ele exagera em
suas expressões e se alonga demasiadamente em torno de um mesmo
assunto. Isso cria a possibilidade de que o leitor perceba uma ênfase
exagerada em torno de um dos aspectos da questão, natureza ou
consciência, e que não perceba o fato de que o filósofo brasileiro
buscava demonstrar como, no trabalho, objetivamente ocorre a síntese
dialética entre natureza e consciência, bem à moda de Marx, para quem
“a unidade do homem com a natureza’ sempre se deu na indústria”.
(MARX e ENGELS, 2007, p. 33). Nas palavras de Vieira Pinto: “Há
com efeito uma relação profunda e séria entre a sociedade e a biologia
[...]”. (PINTO, 2008, p. 77). Cabe a nós, ao interpretá-lo, evidenciar
como ele compreendia que objetivamente se estabelece essa relação,
sem deixar de lado nenhum dos dois aspectos da questão.

Empirismo ou materialismo histórico?

Chamamos atenção, no início, que alguns dos intérpretes do


pensamento de Álvaro Vieira Pinto, buscando compreender de que
forma o filósofo brasileiro incorporou o pensamento filosófico europeu
— principalmente o de Marx, o de Hegel e o existencialista, i. é,
buscando compreender sua epistemologia, identificam em Álvaro uma
epistemologia chamada “empirismo histórico”, conforme o próprio
autor denomina alguns de seus pressupostos em diferentes obras.
Todavia, o próprio Marx denomina seus pressupostos como
“empíricos”, e isto precisamente no sentido de que tais pressupostos se
podem encontrar na realidade externa, objetiva, quando olhamos para a
história — no presente ou no passado. Sobre estes pressupostos, afirma
Marx:
Os pressupostos de que partimos não são
pressupostos arbitrários, dogmas, mas
pressupostos reais, sua ação [dos seres humanos] e
suas condições materiais de vida, tanto aquelas
por eles já encontradas como as produzidas por
170

sua própria ação. Esses pressupostos são,


portanto, constatáveis por via puramente empírica.
(MARX e ENGELS, 2007, p. 86-87)

Ninguém diria hoje, no entanto, que Marx foi um “empirista


histórico”. Tal expressão serve para explicar de onde são retirados os
pressupostos do materialismo histórico dialético. O primeiro destes
pressupostos é o seguinte:
[...] devemos começar por constatar o primeiro
pressuposto de toda a existência humana e
também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em
condições de viver para poder “fazer história”.
Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de
comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas
coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a
produção dos meios para a satisfação dessas
necessidades, a produção da própria vida material,
e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma
condição fundamental de toda a história, que
ainda hoje, assim como a milênios, tem de ser
cumprida diariamente, cada hora, simplesmente
para manter os homens vivos. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 32-33)

O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele, “sem dúvida,
está claro, não haveria sociedade humana sem que previamente
existissem homens vivos que a constituam. Realmente a vida é a
condição original para o surgimento da sociedade [...].” (PINTO, 2008,
p. 79) Mas, para viver, todo ser vivo, inclusive o ser humano, necessita
“obter as substâncias de que se nutre, encontrar o espaço onde se move,
as condições de ambiente onde se aclima, se protege, e se reproduz”
(PINTO, 1962, p. 9-10). Por isso, o primeiro ato histórico é um ato de
trabalho, que significa uma “atuação com o fim de produzir” (PINTO,
2005, p. 60) em razão da “necessidade de produzir a existência”
(PINTO, 2005, p. 421), que deve ser compreendido como “relação
permanente do homem [...] com o mundo exterior, que deve transformar
para nele subsistir” (PINTO, 2005, P. 414).
Voltemos à Marx. Qual o segundo pressuposto do materialismo
histórico?
O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira
necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento
de satisfação já adquirido conduzem a novas
171

necessidades – e essa produção de novas


necessidades constitui o primeiro ato histórico.
(MARX e ENGELS, 2007, p. 33)

O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele, o ser humano
“tem necessidade de usar os corpos e fenômenos do mundo para
concretizar e cumprir qualquer finalidade que conceba” (PINTO, 2005,
p. 165). Por essa razão, ele precisa interpor entre ele e a natureza uma
mediação, que são os instrumentos de trabalho, meios de produção,
máquinas etc. Quando o ser humano se torna capaz de objetivar no
mundo um novo maquinismo, ele se torna “dependente” dele, i. é., sente
necessidade desse maquinismo porque a essência desse maquinismo
consiste em que antes de tudo ele foi concebido para satisfazer uma
necessidade existencial. Ele diz: “As máquinas que nos cercam, e das
quais dependemos cada vez mais, não no sentido trivial da frase mas no
sentido autêntico, existencial [...]” (PINTO, 2005, p. 72). Sentimos “[...]
necessidade da máquina” porque temos “a necessidade da poupança de
esforço” (PINTO, 2005, p. 79-80). E, ao poupar esforço e produzir mais
facilmente os bens de que necessita, o ser humano abre para si novas
possibilidades, que para serem exploradas, no entanto, criam novas
necessidades. A esse processo histórico dialético se deve o
desenvolvimento dos instrumentos de trabalho.
Novamente, Marx. Qual o terceiro pressuposto do materialismo
histórico?
A terceira condição que já de início intervém no
desenvolvimento histórico é que os homens, que
renovam diariamente sua própria vida, começam a
criar outros homens, a procriar – a relação entre
homem e mulher, entre pais e filhos, a família.
Essa família, que no início constitui a única
relação social, torna-se mais tarde, quando as
necessidades aumentadas criam novas relações
sociais e o crescimento da população gera novas
necessidades, uma relação secundária. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 33)

O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele,


independentemente do momento da vida social, se mais próximo de seu
princípio, tratando-se de uma sociabilidade tribal, ou se mais próximo
da realidade atual, na qual a sociabilidade se universaliza através do
mercado mundial, “[...] não se pode definir a essência do homem sem
172

incluir nela o fato, originário e distintivo, de que o homem é um ser


social” (PINTO, 1962, p. 08).
Qual o quarto pressuposto do materialismo histórico de Marx?
[...] um determinado modo de produção ou uma
determinada fase industrial estão sempre ligados a
um determinado modo de cooperação ou a uma
determinada fase social [...], [...] a soma das
forças produtivas acessíveis ao homem condiciona
o estado social e [...] a “história da humanidade”
deve ser estudada e elaborada sempre em conexão
com a história da indústria e das trocas. (MARX e
ENGELS, 2007, p. 34)

O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele, “a


sociabilidade dos homens surgiu e foi se desenvolvendo em formas
diversas ao longo do tempo, por efeito do modo particular como esses
seres se relacionaram com a natureza no provimento das condições
indispensáveis à sustentação da sua vida”, i. é., “como resultado do
trabalho”. (PINTO, 1962, p. 9). “No curso das operações produtivas”,
ele diz, “os homens se encontram e são conduzidos a tecer um sistema
de relação entre si, que constituem relações de tipo especial, as relações
sociais” (PINTO, 1962, p. 11). “O trabalho, para ser possível”, afirma,
“impõe o surgimento de vínculos entre os homens, [...] assume
obrigatoriamente caráter social” (PINTO, 1962, p. 10).
Por fim, Marx e o quinto pressuposto do materialismo histórico:
Somente agora, depois de termos examinado
quatro momentos, quatro aspectos das relações
históricas originárias, descobrimos que o homem
tem também “consciência”. Mas esta também não
é, desde o início, consciência “pura”, O “espírito”
sofre, desde o início, a maldição de estar
“contaminado” pela matéria. [...] A consciência é,
naturalmente, antes de tudo a mera consciência do
meio sensível mais imediato e consciência do
vínculo limitado com outras pessoas e coisas
exteriores ao indivíduo que se torna consciente;
ela é, ao mesmo tempo, consciência da natureza
[...] e, por outro lado, a consciência da
necessidade de firmar relações com os indivíduos
que o cercam [...]. Essa consciência [...] obtém seu
desenvolvimento e seu aperfeiçoamento ulteriores
por meio da produtividade aumentada, do
173

incremento das necessidades e do aumento da


população [...]. (MARX e ENGELS, 2007, p. 35)

O que pensa Vieira Pinto a respeito disso? Para ele, “a faculdade


denominada consciência” é o “reflexo consciente” das “forças brutas do
ambiente material” que o “ser humanizado” “engendra” “no
funcionamento de suas estruturas nervosas superiores”. (PINTO, 2005,
p. 189). A única via possível para o desenvolvimento da consciência é a
ação prática, a atividade sensível e produtiva, o trabalho, porque o ser
humano “conhece o mundo mediante a experiência e a prática, criadora
das ideias, processo cognoscitivo peculiar à espécie” (PINTO, 2005, p.
165). Assim, “o mundo só se desvenda, reproduzido na representação, à
medida que se oferece como âmbito de trabalho a ser exercido sobre ele
[...]” (PINTO, 1960a, p. 60).
Vê-se, portanto, que os pressupostos do pensamento de Vieira
Pinto são os pressupostos do próprio materialismo histórico-dialético. É
por isso que o filósofo brasileiro fala “[...] da verdade sobre a natureza
dos fatos sociais, que só a dialética da compreensão materialista da
história poderia fornecer” (PINTO, 2008, p. 80). Ele não é um pensador
existencialista, mas sim um pensador dialético. E sua dialética não é
idealista, hegeliana, mas sim materialista histórica. Os fatores biológicos
e sociais, materiais e ideais, são por ele articulados na forma de uma
síntese dialética. Mas essa síntese só pode ser realizada através do
materialismo histórico-dialético. É por isso que ele afirma que
[...] só à luz do pensamento histórico não idealista
é possível o destrinçamento dos fatores biológicos
e sociais, indicando o que pertence a um e a outro
plano, indiscutivelmente associados e contíguos,
mas em hipótese alguma confundidos ou
equiparados [...]. (PINTO, 2008, p. 77)

De fato, os elogios ao materialismo histórico-dialético são


muitos, principalmente nas obras O conceito de tecnologia e A
sociologia dos países subdesenvolvidos. Na primeira, para citar apenas
um exemplo, ele fala do “rigoroso esteio da concepção histórico-
dialética”, em oposição ao “quadro do raciocínio formal, quase sempre
de cunho impressionista”. E ele conclui: “[...] só a lógica dialética, com
a aplicação das leis gerais que exprimem todas as formas de movimento
do mundo material em seu curso histórico, está capacitada para nos
colocar na trilha do adequado entendimento” (PINTO, 2005, p. 72).
Decerto, haveremos de admitir que existem incontáveis
diferenças entre as filosofias de Vieira Pinto e de Marx. Evidentemente,
174

se ambas fossem idênticas, não nos restaria outra opção se não


denunciar um caso de flagrante plágio. No entanto, é necessário
perceber que o que faz de Marx um clássico na história do pensamento
— i) as grandes descobertas a respeito da ontologia do ser social e ii) as
grandes inovações epistemológicas delas derivadas — está presente no
pensamento de Vieira Pinto. À exceção das considerações do filósofo
brasileiro a respeito da origem do ser humano e das condições naturais
encontradas pelo ser humano já em seu surgimento, questões estas que,
como vimos, Marx evita e tangencia como pode, não há no debate a
respeito da essência humana e da essência do trabalho nenhuma
discrepância entre Vieira Pinto e Marx, e isto não por coincidência, mas
porque Vieira Pinto incorpora a descoberta realizada primeiramente
por Marx de que o ser humano objetivamente começou a se distinguir
do restante da natureza ao passar a produzir as suas condições de vida.
Mesmo sem citar diretamente o nome de Marx, na introdução da obra
Porque os Ricos não fazem greve (obra de nome e conteúdo que tornam
claras as intenções revolucionárias do filósofo brasileiro), de 1962,
Vieira Pinto indiretamente tece elogios ao filósofo alemão pela
descoberta. Diz ele:
A descoberta fundamental, que revolucionou o
conceito do ser humano, foi a percepção do
verdadeiro significado do trabalho, e
consequentemente o das relações sociais dele
decorrentes, para a qualificação da essência do
homem. Até então vigoravam ou as absurdas e
humilhantes concepções teológicas, como a que
sentenciava: “comerás o pão com o suor do teu
rosto”, onde se reflete o conceito do trabalho
como castigo divino, como condenação infligida
ao homem pelo suposto “pecado original”; ou as
concepções sociológicas dos criadores das teorias
capitalistas e imperialistas, segundo as quais a
divisão da humanidade em trabalhadores
explorados e aproveitadores afortunados e ociosos
representa um fato material, resultante de leis
imutáveis do desenvolvimento da humanidade.
Foi preciso que a própria classe trabalhadora
encontrasse os intérpretes dos seus legítimos
interesses, para que estas aviltantes e perversas
concepções fossem denunciadas e substituídas
pela verdadeira teoria da realidade humana.
(PINTO, 1962, p. 13-14)
175

Vemos que, para Vieira Pinto, a “verdadeira teoria da realidade


humana” foi concebida primeiramente por “intérpretes dos [...] legítimos
interesses” da “classe trabalhadora”, intérpretes estes que foram capazes
de descobrir o “verdadeiro significado do trabalho, e consequentemente
o das relações sociais dele decorrentes, para a qualificação da essência
do homem”, que foi uma “descoberta fundamental”. Ele contrapõe esse
conceito de essência humana fundada no trabalho às “absurdas e
humilhantes concepções teológicas” e às “concepções sociológicas dos
criadores das teorias capitalistas e imperialistas”. Ele fala em
“trabalhadores explorados” e em “aproveitadores afortunados e
ociosos”. Convenhamos: o elogio não é direcionado a nenhum
existencialista ou a Hegel. Todo o respeito aos pesquisadores e
intérpretes do pensamento de Vieira Pinto que não concordam conosco,
mas se até hoje eles ainda não foram capazes de compreender a quem o
colossal elogio indireto se destina, não o foram ou por ignorância
filosófica, esta ainda de algum modo perdoável, ou por pura e simples
negação ideológica.
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