O Senso Comum e Ideologia Aranha, ML

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O senso comum e ideologia

Aranha, ML

Vocês já repararam que só permanecemos tranqüilos quando


habituados à rotina do já conhecido? Por isso, é com certa apreensão
que iniciamos um trabalho em outro local e com pessoas diferentes ou
quando entramos pela primeira vez em um país estrangeiro. Até
mesmo a alegria da nova amizade ou do novo amor não esconde
totalmente o desconforto das indagações que nos assaltam.
Podemos também imaginar as dificuldades do adolescente
cujas referências infantis deixam de servir para compreender a rea-
lidade a ser enfrentada daí em diante.
A humanidade passa por crises de conhecimento de si própria
toda vez em que há alteração da imagem feita do mundo. Veja-se o
exemplo do Renascimento, quando os homens buscam novos valores
para contrapor à concepção medieval.
Com exemplos aparentemente tão disparatados, queremos dizer
que a compreensão do mundo se faz à medida que lhe damos sentido
e agimos sobre ele. Precisamos de interpretações, de teorias, por
mais simples que sejam a fim de "organizar o caos". Toda vez que os
"esquemas de pensamento" nos faltam, sentimos que o chão nos foge
dos pés...

O saber de todos nós


Ao considerar o conhecimento no sentido mais amplo possível,
percebemos que ele se faz no enfrentamento contínuo das
dificuldades que desafiam o Homem. E, como tal, não é fruto exclusivo
da razão, mas também dos sentidos, da memória, do hábito, da ima-
ginação, das crenças e desejos.
Chamamos senso comum (ou conhecimento espontâneo, ou
conhecimento vulgar) a essa primeira compreensão do mundo
resultante da herança fecunda de um grupo social e das experiências
atuais que continuam sendo efetuadas. Pelo senso comum, fazemos
julgamentos, estabelecemos projetos de vida, adquirimos convicções
e confiança para agir.
O senso comum, sendo a interpretação do mundo em que
vivemos, dá-nos condições de operar sobre ele, ao mesmo tempo em
que nos orienta na busca do sentido da existência.
No entanto, o senso comum não é refletido; impõe-se sem
críticas ao grupo social. Por ser um conjunto de concepções
fragmentadas, muitas vezes incoerentes, condiciona a aceitação
mecânica e passiva de valores não-questionados. Com freqüência se
torna fonte de preconceitos, quando desconsidera opiniões
divergentes.
Por isso é preciso encontrar formas que possibilitem a
passagem do senso comum para o bom senso, este entendido como
elaboração coerente do saber e como explicitação das intenções
conscientes dos indivíduos livres. Nessa perspectiva, o homem de
bom senso é ativo, capaz de reflexão e dono de si mesmo. Recebida a
herança cultural pelo senso comum, reelabora sua concepção
considerando a realidade concreta que precisa interpretar e
transformar.
O bom senso tem sua especificidade e vale enquanto forma
vigorosa de orientação vital para todos os homens. Por isso não
podemos considerá-lo um saber menor ou sequer inferior a formas
mais rigorosas ou eficazes de conhecimento, como, por exemplo, a
ciência. Mesmo o cientista recorrerá ao bom senso nos inúmeros
campos não-abarcados pelo seu saber especializado.
Enquanto o senso comum tende à rigidez, o bom senso é
flexível, dinâmico, absorvendo com discernimento as influências mais
diversas. Por exemplo, quando foi constatado pelos teóricos do
heliocentrismo que a Terra não era o centro do universo, coube ao
bom senso repudiar as evidências dos sentidos que indicavam
justamente o contrário!
Por outro lado, o bom senso resiste sabiamente à aceitação
cega das determinações alheias, ainda que venham de especialistas
de qualquer natureza. Por exemplo, mesmo que não entendamos de
medicina, precisamos estar informados a propósito do tratamento a
ser aplicado, como também podemos discutir questões referentes à
ética médica. E, ainda que não sejamos economistas, podemos
questionar os efeitos do plano econômico que visa combater a inflação
mediante arrocho salarial.
É necessário que desmistifiquemos a tendência a cultuar as
pessoas "estudadas" em detrimento do homem "sem-letras" ou
simplesmente não-especialista. Qualquer homem, se não foi ferido em
sua liberdade e dignidade e teve ocasião de desenvolver a habilidade
crítica, será capaz de conscientizar-se e de analisar adequadamente a
situação em que vive.
No entanto, a passagem do senso comum para o bom senso
não se faz espontaneamente, e podemos constatar que nem sempre
ocorre de fato. Veremos por quê.
A ideologia
O conceito de ideologia tem inúmeros significados. Por isso é
importante verificar em que sentido é usado dentro de determinado
contexto.
A ideologia pode ser considerada o conjunto de idéias,
concepções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. Por
exemplo, a ideologia da raça pura, a ideologia da segurança nacional.
Ou, ainda, ideologia significa o conjunto de idéias sistematizadas
que justificam determinada prática. Por exemplo, a ideologia de um
partido político, a ideologia religiosa ou a ideologia de uma escola.
O filósofo italiano Gramsci dizia ser Importante não considerar
toda ideologia como sendo de antemão arbitrária e, portanto, inútil
para transformar a realidade. Pois há ideologias historicamente
necessárias que "organizam as massas humanas, formam o terreno
sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de
sua posição, lutam etc.". Pode-se dar ao conceito de ideologia "o
significado mais alto de uma concepção de mundo que se manifesta
implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas
as manifestações de vida individuais e coletivas" e que tem por função
conservar a unidade ideológica de todo o bloco social.
Aqui, vamos privilegiar a análise feita por Marx, cuja
interpretação já foi incorporada ao pensamento político e econômico
até de teóricos não-marxistas, tal sua fecundidade e aplicabilidade em
diversos campos de reflexão.
Segundo Marx, todas as formas de pensamento e de
representação dependem das relações de produção e de trabalho:
enquanto muitos pensam que "as idéias movem o mundo", Marx
considera, ao contrário, que as idéias são derivadas das condições
materiais de produção da existência.
Ora, onde existe sociedade dividida em classes, há exploração
do trabalho e separação entre trabalho intelectual e trabalho manual.
Tal situação leva à alienação, uma vez que a grande maioria dos
trabalhadores perde a autonomia.
É justamente a ideologia que não permite a percepção da
alienação e impede a revolta contra a dominação. Sem precisar
recorrer à violência física, a ideologia mantém o consenso e a coesão
da sociedade, escondendo as distorções, mascarando as
desigualdades sociais e ocultando a exploração.
A ideologia é o conjunto de representações e idéias, bem como
de normas de conduta por meio das quais o homem é levado a
pensar, sentir e agir da maneira que convém à classe dominante.
Essa consciência da realidade é uma falsa consciência, porque
camufla a divisão existente dentro da sociedade, apresentando-a co-
mo una e harmônica, como se todos partilhassem dos mesmos
objetivos e ideais.
Revendo: a ideologia, no sentido positivo, exerce a função de
cimento do grupo social, tornando a sociedade de fato unida em tomo
de crenças comuns que fazem justamente a força das tradições. No
sentido negativo, a unidade é falsa, pois esconde a divisão injusta da
sociedade para manter a dominação.
Examinemos alguns exemplos:
O trabalhador braçal geralmente é semi-analfabeto (não
freqüentou escola ou abandonou os estudos muito cedo); ganha mal;
não tem casa própria; não melhora seu padrão de vida; os filhos
reproduzem seus passos.
Uma interpretação ideológica justificaria a situação da seguinte
maneira: ele é um trabalhador braçal porque não tem competência
para outro tipo de serviço; não fez o devido esforço para estudar
(talvez por preguiça ou por deficiência intelectual); se não tem bens é
porque esbanjou o que ganha, não fez poupança; se não melhora o
padrão de vida é porque não cumpre as exigências de um bom
empregado, aplicado e perseverante. Em todo caso, convém não
perder as esperanças, um dia a sorte poderá lhe sorrir. E, quem sabe,
com esforço seu filho possa até se formar doutor!
As justificativas são todas de ordem individual, como se cada
homem fosse o único responsável pelo seu próprio destino. Embora
seja verdadeiro que as pessoas são sempre responsáveis pelas suas
escolhas, em sociedades de classes as oportunidades oferecidas não
são iguais, o que lança os desprivilegiados em um "jogo de cartas
marcadas" no qual as chances de melhorar dependem menos deles e
mais daqueles que detêm os meios de produção.
Isso significa que os bens produzidos pela sociedade serão
usufruídos por uma minoria. A exclusão e evasão escolar não ocorrem
porque as crianças pobres são pouco inteligentes ou preguiçosas,
mas porque esse bem é de fato negado a elas. O mesmo acontece
com a melhor remuneração do trabalho, o direito à produção e
consumo da cultura, o acesso ao lazer etc.
O discurso ideológico impede que o oprimido tenha uma visão
própria do mundo porque lhe impõe os valores da classe dominante,
tornados universais, Além disso, "naturaliza" as ações humanas,
explicando-as como decorrentes da "ordem natural das coisas" e não
como o resultado da injusta repartição dos bens.
Isso não significa que alguns conheçam a realidade e a maior
parte se encontre "enganada" pela ideologia. Esta permeia toda a
sociedade, o que permite que a classe privilegiada considere natural a
sua dominação.
A ideologia é veiculada das mais diversas maneiras: pela
família, escola, empresa, Igreja, quartel, meios de comunicação de
massa, enfim, pelos responsáveis pela sua disseminação e re-
produção.
Como superar a ação da ideologia?

A contra-ideología
Retomando nosso percurso: o senso comum, por ser ingênuo e
acrítico, geralmente está permeado pela ideologia. Para descobrir o
núcleo sadio do senso comum, que é o bom senso, torna-se
necessário multiplicar os espaços possíveis em que as contradições
sociais sejam mais bem compreendidas, o que pode ser feito nos
mesmos locais onde a ideologia se dissemina, ou seja, na família, na
escola, e assim por diante.
Isso pode acontecer porque nada atua mecanicamente sobre o
homem de modo a impedir qualquer reação (caso contrário, não se
poderia falar em liberdade humana!). Se a família reproduz os valores
vigentes, pais conscientes podem ajudar seus filhos a revitalizar certos
valores; da mesma forma, algumas escolas se empenham em denun-
ciar os conflitos em vez de camuflá-los; ou certos segmentos da Igreja
fazem opção pelos pobres e não mais recomendam a paciência e
resignação diante da exploração; ou o trabalhador deixa de querer ser
"operário-padrão" e se filia ao sindicato, onde tem condições de
adquirir sua consciência de classe.
Inúmeros são os espaços possíveis para o exercício da contra-
ideologia. O importante é que não seja um esforço solitário, mas que
cada vez mais se amplie como tarefa coletiva.

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