Texto 1
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mesoamérica
o calendário, a cosmografia e a
cosmogonia nos códices e textos nahuas
o calendário, a cosmografia e a
cosmogonia nos códices e textos nahuas
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S235t
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7939-018-0
Apresentação 7
Prefácio Federico Navarrete Linares 9
Prólogo 13
Nota explicativa 17
Lista de figuras 19
Lista de tabelas 21
Mapas 22/23
Introdução 25
1 Cf. Molina, Alonso de. Vocabulario en lengua castellana y mexicana y mexicana y castellana. México:
Editorial Porrúa, 2001. / Rémi Siméon. Diccionario de la lengua náhuatl o mexicana. México e
Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1997. / Sullivan, Thelma D. Compendio de la gramática náhua-
tl. México: IIH – Unam, 1998. As siglas empregadas nas referências bibliográficas das notas de
rodapé encontram-se explicadas no início da Bibliografia.
18 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
uma análise isolacionista, isso é, que não leve em conta as articulações dos elementos
analisados no interior do registro.
As principais regiões e localidades citadas constam em dois mapas. O Mapa 1
apresenta a Mesoamérica de maneira mais geral e nele podem ser encontradas as
macrorregiões que fazem fronteira com a Mesoamérica ou as porções internas dessa
macrorregião – grafadas em letras maiúsculas –, além de algumas de suas principais
localidades – grafadas em letras minúsculas. O Mapa 2 apresenta em detalhe a região
privilegiada pela pesquisa, isto é, o altiplano central mexicano, e nele podem ser en-
contradas as localidades dessa região que não constam no Mapa 1. Uma vez que esses
mapas foram adaptados de um livro em espanhol, a grafia dos nomes das localidades
e regiões pode, por vezes, diferir um pouco das formas aportuguesas que foram uti-
lizadas no texto. Os dois mapas encontram-se após as Listas de Figuras e Tabelas. As
figuras, encontram-se no Caderno de Imagens, ao final do livro.
Lista de Figuras
Lista de Tabelas
A pesquisa que resultou neste livro partiu de alguns temas e conclusões de mi-
nha pesquisa de mestrado.1 Naquela ocasião, analisei as seleções temáticas e
as estruturas narrativas2 empregadas pelos missionários cristãos em seus textos ao se
referirem à cosmogonia3 e aos deuses mesoamericanos. Todos os textos analisados ha-
viam sido produzidos por missionários que estiveram no altiplano central mexicano
durante o século XVI. Mais especificamente, examinei a Historia general de las cosas de
Nueva España, do franciscano Bernardino de Sahagún, a Historia de las Indias de Nueva
España e islas de la tierra firme, do dominicano Diego Durán, e a Historia natural y moral
de las Indias, do jesuíta José de Acosta. O objetivo central das análises empreendidas
sobre essas Historias4 era explicitar e compreender seus fundamentos ou princípios teó-
ricos5 comuns, para mostrar como eles condicionavam os relatos missionários sobre a
cosmogonia e os deuses mesoamericanos.
Para atingir esse objetivo, comparei essas Historias entre si e também com um
conjunto de fontes nativas que abordava os mesmos temas, isto é, a cosmogonia e os
deuses mesoamericanos. Estava em busca de narrativas que se contrapusessem aos re-
latos dos religiosos espanhóis e que, por contraste, me ajudariam a entender melhor
as seleções temáticas e estruturas narrativas adotadas nesses últimos, bem como seus
fundamentos teóricos comuns. Nessa ocasião, ainda não me encontrava minimamen-
1 A dissertação final dessa pesquisa intitulou-se Os mitos e deuses mesoamericanos através da crônica
espanhola na época da conquista. As próximas alusões a essa obra serão feitas por meio do título
com o qual foi publicada em 2002 pela Editora Palas Athena, isto é, Deuses do México indígena.
Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas.
2 Usaremos essa expressão para nos referirmos às distintas maneiras pelas quais as partes de uma
composição textual podem estar articuladas entre si.
3 Usaremos esse termo como sinônimo de explicação ou teoria socialmente aceita sobre a ori-
gem do Universo e do homem, da natureza e da sociedade humana.
4 Passaremos a empregar o termo Historias, em espanhol e itálico, para nos referirmos aos textos
dos religiosos castelhanos que analisamos durante o mestrado.
5 A escolha dos temas que compõem um texto e a maneira de articular suas partes fundamen-
tam-se em conceitos e concepções que, em geral, não se encontram explícitos no próprio
texto. A esses conceitos e concepções estamos denominando fundamentos ou princípios teóricos.
26 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
te habilitado para utilizar os escritos pictoglíficos6 para esse fim, pois tais manuscritos
requerem alguns anos de estudo para que se possa entendê-los minimamente e obter
neles informações sobre as formas como os próprios mesoamericanos tratavam sua
cosmogonia e seus deuses. Utilizei então textos alfabéticos7 nativos que também trata-
vam desses temas. Esses textos foram produzidos com a participação de membros das
sociedades mesoamericanas durante o período Colonial e, sendo assim, supus que
apresentavam seleções temáticas e estruturas narrativas provenientes das tradições de
pensamento e escrita8 locais, apesar das influências do sistema alfabético e do pensamen-
to cristão.
Seguindo a delimitação temática, cronológica e regional da pesquisa, selecio-
nei o Popol vuh, os Anales de Cuauhtitlan, a Leyenda de los soles, a Breve relación de los
dioses y ritos de la gentilidad, os textos alfabéticos do Códice Vaticano A, a Historia de los
mexicanos por sus pinturas, a Histoire du Mechique,9 o Códice Ramirez, a Crónica mexicana
e a Crónica mexicayotl.
Esses textos são parte de um conjunto bastante amplo e heterogêneo de fontes,
que pode ser chamado, na falta de uma denominação mais adequada, de fontes co-
6 Embora seja um neologismo, preferimos o termo pictoglífico a pictográfico por acreditar que ele
evoca explicitamente a combinação entre elementos pictóricos e glíficos, a qual era uma das prin-
cipais características do sistema de escrita mixteco-nahua. Utilizaremos também, como sinôni-
mo de pictoglífico, o termo nahuatl tlacuilolli, substantivo e adjetivo que significa escrita-pintura
ou pintado-escrito e refere-se ao resultado da ação de um tlacuilo ou escriba-pintor. Os dois termos
nahuas derivam do verbo cuiloa, que significa escrever-pintar. Veremos, no Capítulo I, que a
escolha e o uso dos termos que designam o sistema de escrita mixteco-nahua não é apenas um
problema de preferência terminológica, pois envolve princípios e pressupostos teóricos que
afetam a análise das fontes em tlacuilolli.
7 Essa expressão pode parecer, à primeira vista, um pleonasmo. No entanto, seu emprego se
justifica para diferenciarmos esses manuscritos dos códices, que são textos pictoglíficos.
8 Esse conceito terá um papel importante no desenvolvimento dos argumentos deste livro e, por
isso, será explicado em detalhe no Capítulo I. Por ora, basta dizer que estamos nos referindo
aos grupos especializados em sistematizar, transformar e transmitir explicações socialmente
aceitas sobre a realidade natural e social. No caso das sociedades mesoamericanas, essas tra-
dições eram, em geral, parte integrante das elites dirigentes e, desse modo, suas produções
intelectuais e escritas estavam, quase sempre, a serviço dos interesses políticos dessas elites.
9 Utilizamos, naquela ocasião, a grafia Histoyre du Mechique por acreditar que se tratava da forma
contida no manuscrito original, pois desse modo aparecia na coletânea intitulada Teogonía e
historia de los mexicanos, preparada por Ángel María Garibay. No entanto, a recente edição desse
texto por Rafael Tena na coletânea Mitos e historias de los antiguos nahuas contém a paleografia
do texto original e nela pudemos verificar que a grafia do título original é Hystoyre du Mechique.
Adotaremos neste trabalho, seguindo a sugestão de Rafael Tena, a forma parcialmente moder-
nizada Histoire du Mechique, cujo uso parece estar se consagrando entre os estudiosos.
Eduardo Natalino dos Santos 27
10 Trataremos mais à frente de outros aspectos desse conjunto de fontes e voltaremos a abordar
o problema de sua heterogeneidade e da necessidade de critérios que pautem a formação de
subgrupos coerentes e adequados aos problemas propostos na pesquisa.
28 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
14 A palavra códice advém do latim codex e, originalmente, significava tronco ou tabuinha onde se escre-
ve, sentido que fora ampliado depois para papéis avulsos reunidos em conjuntos. Cf. León Portilla,
Miguel. Códices. México: Aguilar, 2003. O uso desse termo para designar os livros mesoamerica-
Eduardo Natalino dos Santos 29
nos – que não são papéis avulsos reunidos arbitrariamente, mas conjuntos de escritos com ló-
gica e organização interna – iniciou-se a partir do século XIX e hoje se encontra consagrado.
15 Isso porque essas concepções não podem, seguramente, ser totalmente entendidas apenas
pelo estudo do calendário, da cosmografia e da cosmogonia nos códices e escritos alfabéticos,
pois se relacionam com diversas outras práticas sociais e produções materiais, como o regime
temporal de celebrações coletivas e de trabalho e as concepções-mestras na distribuição espa-
cial das edificações e assentamentos.
16 Veremos no Capítulo I que os principais produtores e usuários dos códices pictoglíficos eram
membros das elites governantes e, sendo assim, não podemos estender automaticamente as
concepções que podem ser inferidas desses manuscritos para toda a sociedade.
30 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
17 A denominação desses dois grupos de fontes como centrais e auxiliares é totalmente circunstan-
cial, isto é, não se relaciona com qualidades das fontes em si, mas com o modo como foram
agrupadas para atender aos objetivos e propósitos da pesquisa. De maneira semelhante, esta-
mos utilizando o termo sub-regiões sem nenhum tipo de conotação valorativa, mas apenas para
nos referirmos às partes que compunham a macrorregião histórico-cultural mesoamericana
– maia, zapoteca, mixteca, nahua etc.
19 Alguns estudiosos têm até classificado esses textos alfabéticos como códices transcritos e os têm
definido como documentos em caracteres latinos com informações tomadas de pictografias
pré-hispânicas. Cf. Limón Olvera, Silvia. Los códices transcritos del altiplano central de Mé-
Eduardo Natalino dos Santos 31
Como disse antes, ampliei o grupo de fontes centrais partindo desses textos al-
fabéticos nahuas em direção ao universo dos códices pictoglíficos. Os critérios de
seleção dessa ampliação visaram, centralmente, a formação de um grupo de fontes
contemporâneas e provenientes da mesma região que os textos alfabéticos nomeados
acima. Também era necessário que os manuscritos pictoglíficos escolhidos tratassem,
de maneira relativamente abundante, dos temas eleitos como eixos da pesquisa, viabi-
lizando as análises comparativas. Além disso, procurei selecionar códices pictoglíficos
de grupos diferentes20 para, por um lado, evitar o trabalho com manuscritos muito
semelhantes e, por outro, montar uma amostragem relativamente ampla desse tipo
de documentação. Outros dois critérios de seleção, menos científicos, mas não menos
importantes, foram a existência de edições acessíveis dos manuscritos e a formação de
um conjunto cuja análise fosse factível dentro do prazo da pesquisa.
De posse desses critérios, selecionei os seguintes manuscritos pictoglíficos: o Có-
dice Vaticano A ou Rios, que teria sua parte pictoglífica analisada e que representa um
pequeno conjunto de códices, chamado de Grupo Huitzilopochtli, do qual o Telleria-
no-remense seria o outro membro; o Códice magliabechiano, representante de um grupo
mais extenso de manuscritos que leva seu nome e do qual faz parte o Códice Ixtlilxochi-
tl; e o Códice borbónico, que junto com o Tonalamatl Aubin são os únicos manuscritos tra-
dicionais nahuas que apresentam o ciclo calendário de 260 dias, sendo que o Borbónico
possui também duas outras seções cujos temas se relacionam aos da pesquisa.21
Em suma, desconsiderando-se momentaneamente a polêmica sobre a época de
produção do Códice borbónico, podemos dizer que todos os textos pictoglíficos e alfabé-
ticos que compõem o conjunto de fontes centrais foram produzidos no século XVI,
são de origem nahua e apresentam o calendário, a cosmografia e a cosmogonia de
modo relativamente abundante.
Teria sido muito interessante incluir na pesquisa os manuscritos pictoglíficos
nahuas que tratam da história grupal, como a Tira de la peregrinación e o Códice Azca-
titlan, pois assim poderíamos ter analisado as formas de presença do calendário, da
cosmografia e das ideias cosmogônicas em outro tipo de escrito, isto é, nos que tratam
centralmente do passado mais recente. No entanto, isso requer uma outra pesquisa,
pois engloba um conjunto de fontes relativamente numeroso e que se relaciona a ou-
tro conjunto de problemas historiográficos. Contudo, veremos que isso não significa
xico. In: Romero Galván, José Rubén (coord.). Historiografía novohispana de tradición indígena.
México: IIH – Unam, 2003, v. I, p. 85-114.
21 Assim como no caso dos textos alfabéticos, todos estes códices pictoglíficos serão apresentados
em detalhes no Capítulo I, onde indicaremos também as edições utilizadas.
32 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
deixar totalmente de lado a análise dos relatos sobre o passado mais recente, sobretu-
do para entender como ele se concatena ao cosmogônico.
Apesar das afinidades apontadas acima, tanto os textos alfabéticos quanto os
códices pictoglíficos nahuas são bastante heterogêneos entre si. No primeiro caso, há
desde textos em castelhano, que reproduzem informações e narrativas nahuas com o
objetivo de condenar os antigos deuses e a idolatria, até textos em línguas mesoame-
ricanas que podem ser considerados transcrições adaptadas de códices pictoglíficos
ou de cantos da tradição oral – com todos os problemas envolvidos nesses processos.
No segundo caso, o dos códices pictoglíficos, há desde manuscritos exclusivamente
pictoglíficos e que apresentam formato,22 material, temática e estruturas narrativas
tradicionais até manuscritos que empregam a escrita alfabética de modo significativo,
que foram encadernados à maneira ocidental e nos quais os elementos pictoglíficos
praticamente desempenham funções ilustrativas.23
Essa heterogeneidade deve-se, entre outras coisas, às distintas maneiras e aos
diferentes graus de participação dos escribas, sábios, alunos e informantes nahuas na
composição desses manuscritos, a qual variou desde a confecção independente de um
registro tradicional depois da chegada dos espanhóis até o mero serviço de ilustração,
efetuado, por exemplo, por jovens nahuas educados pelos religiosos em textos proje-
tados e concebidos por europeus.24
Sendo assim, será que as fontes agrupadas sob a denominação de centrais for-
mariam um conjunto coerente e capaz de nos fornecer indícios sobre como o calen-
dário, a cosmografia e a cosmogonia seriam empregados e abordados nos textos e
23 Estudiosos têm proposto a formação de subgrupos no interior do imenso conjunto das fontes
coloniais nativas com base no grau de utilização dos sistemas alfabético e pictoglífico. De acor-
do com esse critério, teríamos subgrupos formados pelos códices totalmente transcritos com
o alfabeto latino, pelos códices transcritos e com pictografias e pelos códices pictoglíficos com
glosas ou pequenas anotações. Esses três subgrupos são propostos e estudados, respectivamen-
te, em: Limón Olvera, Silvia. Los códices transcritos del altiplano central de México; Limón
Olvera, Silvia e Pastrana Flores, Miguel. Códices transcritos con pictografías; Pastrana Flores,
Miguel. Códices anotados de tradición náhuatl. In: Romero Galván, José Rubén (coord.). His-
toriografía novohispana de tradición indígena, op. cit., respectivamente, p. 85-114, p. 115-32 e p. 51-
84. Adotamos parcialmente essa proposta na apresentação inicial de nossas fontes centrais. Isso
porque, não obstante o avanço que ela representa para o trabalho com as centenas de textos
coloniais nativos, acreditamos que seria importante considerar também a presença de seleções
temáticas e estruturas narrativas que pudessem ser relacionadas ao pensamento cristão ou ao
nahua; e não exclusivamente a presença desse ou daquele sistema de escrita. Proporemos um
exercício de classificação de nossas fontes centrais baseado nesses itens no Capítulo II.
24 Como parece ser o caso do chamado Atlas Durán, composto pelas imagens que acompanham o
texto do frei Diego Durán, intitulado Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme.
Eduardo Natalino dos Santos 33
códices nahuas? Essa questão é central porque esses empregos e abordagens serão
tomados como indícios para o entendimento das concepções nahuas de tempo, espa-
ço e passado, conforme as hipóteses gerais enunciadas acima.
Para respondê-la é fundamental, por um lado, considerar que a simples partici-
pação de nahuas na produção desses textos não garantiu, por si só, a manutenção dos
usos ou abordagens tradicionais do calendário, da cosmografia e da cosmogonia. Isso
porque diversas forças sociais atuaram na determinação das formas e conteúdos des-
ses textos, tais como a direção de suas confecções por religiosos espanhóis ou a vonta-
de de um escritor nahua converso de cristianizar seu passado. Em outras palavras, isso
significa que continuidade genética não equivale a continuidade cultural, pois o fato
de textos terem sido produzidos por descendentes biológicos das antigas elites nahuas
não garante, automaticamente, que as formas de pensamento e estruturas narrativas
empregadas por seus antepassados tenham sido mantidas. Tal manutenção depende
de inúmeros outros fatores, tais como as posições hierárquicas relativas e as alianças
político-econômicas dos povos, grupos sociais ou indivíduos envolvidos na produção
dos textos.25
Por outro lado, o fato de nenhuma dessas fontes apresentar, de maneira aca-
bada ou predominante, as estruturas narrativas e as seleções temáticas tipicamen-
te cristãs abre a possibilidade para a manutenção – transformada ou não – de
formas, estruturas e temáticas tradicionalmente nahuas, nas quais, como mencio-
nei acima, o calendário, a cosmografia e a cosmogonia desempenhavam papéis
fundamentais. Essa manutenção, bem como suas formas e graus, foi confirmada
e mensurada pela comparação pontual dessas fontes com códices tradicionais ou
com textos alfabéticos reconhecidamente procedentes de transcrições, mais ou
menos diretas, desses códices.
Ademais, a utilização desse conjunto de fontes justificou-se pelo fato que o ob-
jetivo central da pesquisa era mapear os usos nahuas do calendário, da cosmografia
e da cosmogonia durante o século XVI, ou seja, em plena passagem do mundo Pré-
hispânico ao mundo colonial e, portanto, inseridos em um contexto caracterizado
por novas demandas político-culturais.26 Em uma palavra, interessava-me também a
25 Essa constatação, um tanto quanto simples e evidente, possui implicações profundas nas análi-
ses históricas dos processos de transformação cultural, sobretudo naqueles impulsionados pelo
contato ou choque entre grupos ou povos culturalmente muito distintos. Talvez a principal im-
plicação seja a quase nulidade analítica para as Ciências Humanas do conceito mestiçagem, que,
de maneira geral, tende a “naturalizar” os processos de transformação cultural gerados pelos
contatos entre povos distintos, como se esses fossem correspondentes paralelos da mistura e
continuidade genéticas. Dessa forma, tais processos e seus resultados parecem não depender
fundamentalmente de forças sociopolíticas e econômicas, como acreditamos ser o caso.
26 Desses dois conceitos, certamente o de cultura é o mais elástico e, por isso, teoricamente, o
menos operante. Acreditamos que ao longo do livro se tornará claro que estamos procurando
34 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
31 Utilizaremos também alguns outros textos alfabéticos, códices pictoglíficos e gravados sobre
pedra ou gesso, mas de modo tão pontual e circunstanciado que acreditamos não ser ne-
cessário citá-los antecipadamente. No Capítulo I, ao caracterizarmos em detalhe as tradições
de pensamento e escrita nahuas, também trataremos de alguns aspectos das outras tradições
mesoamericanas, fornecendo assim as características de produção e uso de grande parte das
fontes auxiliares.
Eduardo Natalino dos Santos 37
tradicionais por outros tipos de indícios, como é o caso do Códice borbónico. Nesse
manuscrito, as concepções cosmográficas e, sobretudo, o sistema calendário estão
presentes da primeira à última página, mas não como temas a serem explicados e de-
talhados. Diferentemente, são parte da estrutura que organiza a disposição de outros
temas – como os prognósticos, os rituais e as festas – e divide o manuscrito em três
capítulos claramente delimitados.
Em outras palavras, procurei demonstrar que o sistema calendário e as con-
cepções espaciais não eram os temas dos manuscritos pictoglíficos tradicionais ou
dos textos alfabéticos que deles derivaram de maneira relativamente direta. Eram,
predominantemente, parte dos pressupostos de leitura ou dos princípios organi-
zacionais utilizados para registrar outros temas, como as idades do Mundo ou os
destinos e prognósticos.
Sendo assim, qual seria a origem intelectual dos diversos manuscritos pictoglí-
ficos em que o calendário e as concepções cosmográficas são indubitavelmente os
temas? A implicação necessária da hipótese acima é que a presença dos pressupostos
de leitura e dos princípios organizacionais mais utilizados pelas tradições de escrita
nahuas, isto é, o calendário e as concepções cosmográficas, sob a forma de tema a ser
explicado decorreria de demandas castelhanas, sobretudo da atividade missionária.
Isso porque os religiosos espanhóis seriam os grandes interessados em entender o
calendário, relacionado às festas e celebrações, e a cosmografia nahua, relacionada ao
destino das almas após a morte, pois disso dependeria a eficácia do combate ao que
acreditavam ser idolatria.
Uma segunda hipótese específica é que, por um lado, a presença do sistema
calendário e da cosmografia em funções estruturais ou como pressuposto de leitura
não estaria garantida, automaticamente, pela utilização de elementos da escrita picto-
glífica e, por outro lado, que o emprego do sistema alfabético não impediria, necessa-
riamente, que tal forma de presença ocorresse. Veremos que em algumas das fontes
alfabéticas, sobretudo na Leyenda de los soles e nos Anales de Cuauhtitlan, o calendário
e a cosmografia são, predominantemente, pressupostos de leitura ou desempenham
funções estruturais. Opostamente, tanto o sistema calendário como as concepções es-
paciais desempenham papéis temáticos no Códice magliabechiano e em algumas seções
do Códice Vaticano A, não obstante a presença abundante de elementos pictoglíficos
nesses manuscritos.
Dito de outro modo, a utilização de elementos da escrita pictoglífica ou o em-
prego da escrita alfabética não seriam suficientes para, respectivamente, garantir ou
impedir a manutenção de estruturas narrativas e pressupostos de leitura tradicionais
nahuas. Sendo assim, a presença de elementos do sistema pictoglífico em um manus-
crito não seria um indício suficientemente seguro para atribuir, de maneira absoluta
e direta, seus conteúdos, seleção temática e estrutura narrativa às tradições de pensa-
38 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
mento nahuas. Por outro lado, a utilização da escrita alfabética não nos autorizaria a
classificar imediatamente um manuscrito como relacionado ao pensamento cristão.
Isso nos leva a uma terceira hipótese específica, extremamente operacional no
que diz respeito às possibilidades de qualificação das fontes coloniais nativas e, junta-
mente com a hipótese anterior, com graves implicações no que diz respeito à forma
como esses textos vêm sendo classificados e analisados. A hipótese é que a presença
do sistema calendário e das concepções espaciais em funções estruturais ou como
pressupostos de leitura pode contribuir para estabelecermos o grau de relação das
produções e usos das centenas de fontes coloniais nativas – pictoglíficas ou alfabéticas
– com as tradições de pensamento locais ou com seus membros durante a progressiva
desarticulação das elites e instituições nativas ao longo dos três séculos do período
Colonial. No caso específico desta pesquisa, procurei mostrar que é possível propor
uma tipificação ou classificação das fontes coloniais nahuas do século XVI em função
desses critérios, e não apenas em função do tipo de escrita adotada ou da data de
produção do manuscrito.
Afirmei que as implicações dessas duas hipóteses são graves porque, geralmente,
dois grandes preceitos têm sido empregados em conjunto para qualificar e graduar a
relação entre os textos coloniais nativos e as tradições de pensamento e escrita mesoame-
ricanas. Esses dois preceitos são o grau de utilização de imagens provenientes da escrita
pictoglífica e a proximidade temporal ao mundo pré-hispânico. De acordo com esses
preceitos, os textos relacionados mais diretamente a essas tradições – e, portanto, que
portariam mais informações sobre o pensamento dos povos mesoamericanos – seriam,
necessariamente, os produzidos ainda no século XVI e com a utilização de imagens. Por
outro lado, de acordo com esses mesmos preceitos, os textos completamente alfabéticos
produzidos, por exemplo, no século XVIII quase nada teriam que ver com as tradições
mesoamericanas de origem pré-hispânica. Com base na análise do caso nahua no século
XVI, procurei mostrar, ou ao menos sugerir, que a continuidade e a transformação das
tradições nativas de pensamento e escrita não obedeceram a um ritmo constante e geral
de mudanças em direção, necessariamente, ao abandono dos conceitos e valores de ori-
gem mesoamericana e à substituição por equivalentes de origem cristã.32
Não se trata de propor a abolição da classificação dos manuscritos pela data de pro-
dução, a qual é de inegável utilidade analítica, sobretudo no caso dos códices pictoglíficos,
pois estabelece o grupo reduzido e relativamente homogêneo dos manuscritos pré-hispâ-
nicos. Graças ao estabelecimento desse grupo, temos um pequeno conjunto de fontes
cujas características relacionam-se seguramente às tradições de pensamento e escrita me-
soamericanas. No entanto, como mencionado acima, essas mesmas utilidade e homoge-
neidade não podem ser encontradas na formação do imenso grupo das fontes coloniais
nativas. Sendo assim, procurei mostrar que é útil agregar outras subdivisões a esse imenso
grupo, cuja delimitação é de pouca utilidade analítica.33 Por exemplo, veremos que há
uma grande polêmica sobre a data de produção do Códice borbónico, se pré-hispânica ou
colonial. Por meio dos critérios de classificação que propus seria mais importante saber
se tal códice apresenta ou não temáticas, estruturas narrativas e pressupostos de leitura
tradicionais do que se foi confeccionado um pouco antes ou depois de 1521.
Esse tipo de classificação pode ser empregado tanto com os textos pictoglíficos
quanto com os alfabéticos nativos, permitindo a definição, por exemplo, de um subgru-
po que se caracterizaria pela presença de estruturas e temas de origem mesoamericana.
Tal subgrupo poderia ser utilizado, por exemplo, em estudos voltados aos sistemas de
pensamento e às instituições mesoamericanas, tais como as características da cosmogo-
nia nahua e suas relações com as formas de organização política. Da mesma maneira,
esse tipo de classificação pode delimitar o subgrupo caracterizado pela presença de
estruturas e temas de origem cristão-ocidental do século XVI, cujo uso seria mais ade-
quado aos estudos sobre as transformações impulsionadas pelo contato e conflito com
os castelhanos, como as provocadas pela influência dos missionários na organização e
nos temas dos textos nativos.
Todas as hipóteses enunciadas acima se relacionam, mais diretamente, às formas
de presença do calendário e da cosmografia nos manuscritos alfabéticos e pictoglífi-
cos nahuas do século XVI. E quanto à cosmogonia?
Diferentemente do calendário e das concepções espaciais, a cosmogonia tende
a ser tratada como um tema nos manuscritos nahuas, seja nos considerados mais tra-
balam, alguns dos quais produzidos pelos maias dos séculos XVIII e XIX, relacionem-se mais
estreitamente com as tradições e sistemas de pensamento mesoamericanos de tempos pré-
hispânicos do que o Códice magliabechiano, cujo protótipo fora produzido provavelmente no
século XVI e no qual se utilizaram imagens de matriz pictoglífica.
33 As classificações que procuram subdividir o grupo dos manuscritos pictoglíficos coloniais não
são uma novidade. Algumas tipologias são propostas, por exemplo, no volume 14 do Handbook
of Middle American Indians, uma das quais os divide em: rituais-calendários, históricos, genealó-
gicos, cartográficos, cartográfico-históricos, econômicos, etnográficos e miscelâneas. Cf. Glass,
John B. A survey of native Middle American pictorial manuscripts. In: Wauchope, Robert (edi-
tor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook of Middle American Indians. Austin
e Londres: University of Texas Press, 1975, v. 14 p. 81-252.
40 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
34 O que estamos chamando de passado recente equivaleria, aproximadamente, aos períodos Clás-
sico Tardio (600 – 900) e Pós-clássico (900 – 1521).
35 Seria anacrônico dizer mitificação, a qual se relaciona mais diretamente ao desenvolvimento das
ciências humanas ocidentais, sobretudo da História e Antropologia, durante os séculos XIX e
Eduardo Natalino dos Santos 41
XX. Não obstante, a mitificação das explicações sobre o passado dos povos não ocidentais – ou
ocidentais não modernos – possui parte de suas raízes no processo de fabulização que iremos
analisar, o qual havia se iniciado no mundo ocidental muito antes do século XVI, mas que teve
nesse século um de seus momentos mais importantes.
complexos intelectuais e constituíram-se como setores sociais que devem ser estudados
em seus próprios termos. No entanto, isso não significa que a transformação pelo con-
tato prolongado e cotidiano tenha sido equitativa e que possamos deixar de considerar
a posição de domínio político dos espanhóis ou o papel do decréscimo da população
nahua em conjunto com o crescimento da espanhola, fatos que garantiram aos espa-
nhóis a criação de uma sociedade viável, parcialmente autocontida e sem risco de ser
engolida pelas sociedades locais.37
De um lado, talvez esse tipo de abordagem contribua para percebermos que os
conceitos e pressupostos do cristianismo sobrepuseram-se, em maior ou menor grau,
às especificidades culturais e históricas nahuas nas Historias religiosas espanholas do
século XVI e que, dessa forma, talvez essas não sejam as fontes mais adequadas para
entendermos o mundo nahua e mesoamericano em geral.38 Por outro lado, talvez a
compreensão e o uso das fontes nativas contribuam para a construção de uma histo-
riografia sobre a Mesoamérica que delimite melhor as diferenças entre as culturas
locais e o mundo cristão ocidental, que detecte e mapeie suas transformações ao lon-
go do período Colonial e, consequentemente, que permita um entendimento mais
amplo de processos históricos nos quais os castelhanos e suas instituições não foram
os únicos agentes.
37 Resumido a partir da proposta enunciada e desenvolvida por James Lockhart, nas palavras
de quem as populações nahuas “...long continued to constitute an immensely complex, part-
ly autonomous sector that must be studied on its own terms, if only because its nature was
vital to questions of postconquest continuity and change affecting early Spanish America
as a whole.” Lockhart, James. The nahuas after the conquest. Palo Alto: Stanford University
Press, 1992, p. 427. Dessa forma não se trata de abrir uma espécie de concessão na tradição
historiográfica ocidental e criar um tipo especial – ou de segunda classe – de análise para
os povos antes considerados sem história, sem escrita ou sem uma centena de outras coisas
que queiramos relacionar. Trata-se simplesmente de aplicar aos grupos humanos desconsi-
derados pela tradição historiográfica ocidental durante os últimos dois séculos – por razões
políticas e não por qualidades ou carências sociais que lhes seriam intrínsecas – o mesmo
tipo de análise que temos empregado aos povos ocidentais, mediterrâneos ou às chamadas
civilizações do Oriente Médio e Extremo Oriente.
38 Não se trata de analisar as fontes para apenas eleger as que apresentam mais características do
mundo pré-hispânico, mas de entender suas produções e usos, permitindo que suas escolhas
para esta ou aquela pesquisa relacionem-se de maneira adequada com as perguntas que nos
propomos responder. Como demonstrei em minha dissertação de mestrado, as Historias reli-
giosas espanholas são fontes imprescindíveis se o objetivo da pesquisa é, por exemplo, enten-
der como o pensamento cristão tratou a cosmogonia e os deuses mesoamericanos. Cf. Santos,
Eduardo Natalino dos. Deuses do México indígena, op. cit.
Capítulo I
1 Esse conceito tem sido empregado, talvez em substituição ao de civilização, para designar as
sociedades não ocidentais que possuíam traços culturais e instituições semelhantes às dos po-
vos ocidentais. O grau de semelhança indicaria, numa relação diretamente proporcional, o
grau de avanço na linha evolutiva da História Universal. Na relação desses traços e instituições
constam, não coincidentemente, aqueles que se mostraram centrais para o funcionamento das
sociedades ocidentais, responsáveis pela elaboração dessa visão histórica. Entre eles, a escrita
alfabética e o Estado ocupam papéis de destaque. A origem da valorização da escrita alfabética
e do Estado para classificar outras sociedades remonta aos antigos gregos, mas sua história ga-
nha uma importante página no século XVI, com a entrada da América e de seus povos no ho-
rizonte do pensamento europeu. O jesuíta José de Acosta foi um expoente das reelaborações
históricas dessa época, nas quais as outras sociedades – destacadamente as americanas e as do
Extremo Oriente – foram incluídas e hierarquicamente classificadas de acordo com a presença
do catolicismo, do cristianismo em geral, de parte da revelação bíblica – o Antigo Testamento,
compartilhado por judeus e muçulmanos – e também, no caso das sociedades que não haviam
tido contato com os elementos anteriores, de acordo com a presença do que se entendia por
escrita, polícia – vida coletiva com leis e organização civil – e governo. A aplicação desses
critérios sobre os povos americanos resultou na relativa superioridade dos mesoamericanos e
andinos, pois, embora não possuíssem a escrita alfabética ou a Boa Nova, possuíam vida urbana
e sistemas de registro de informações por meio de pinturas e cordéis. Cf. Acosta, José de. His-
toria natural y moral de las Indias. México: FCE, 1985. Procurando até combater os preconceitos
e estereótipos que a citada visão evolucionista de história projetou sobre os povos indígenas,
alguns estudiosos atuais tentam mostrar que os mesoamericanos e os andinos seriam compará-
veis aos egípcios, babilônios ou antigos gregos e que, portanto, mereceriam a denominação de
altas culturas. Entre eles León Portilla, Miguel. Códices. México: Aguilar, 2003.
cunhado na Teoria da Relatividade para estabelecer o inseparável vínculo existente entre essas
duas dimensões, presente na realidade e na percepção humana do mundo. Depois, Mikhail
Bakhtin aplicou o conceito à literatura e demonstrou a necessidade da existência de uma
concepção coerente de tempo-espaço no interior das narrativas literárias, fato que seria indis-
pensável para lhes garantir inteligibilidade. Cf. Navarrete Linares, Federico. Visão comparativa
da conquista e colonização das sociedades indígenas estatais. Curso de pós-graduação no Departa-
mento de História da FFLCH da USP, primeiro semestre de 2002. / _____. ¿Donde queda
el pasado? Mimeografado, 2002. Iremos tratar em detalhe do cronotopo nahua, sobretudo
no Capítulo II e III, ao analisarmos os papéis dos sistemas calendário e cosmográfico nos
textos alfabéticos e pictoglíficos.
3 Um balanço dos problemas teóricos e da presença desse conceito nos estudos mesoame-
ricanistas pode ser obtido em Medina, Andrés. En las cuatro esquinas, en el centro. México:
Unam – IIA, 2000.
4 López Austin, Alfredo. La construcción de una visión de mundo. Curso de pós-graduação no IIA
da Unam, Cidade do México, setembro de 2002 a janeiro de 2003, sem n. de página.
5 A qual, assim como os princípios de uma cosmovisão, obedece a todos e a ninguém em especí-
fico; é produto da razão, mas não necessariamente da consciência de seus criadores. Cf. López
Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalocan. México: FCE, 1994.
48 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
grupos sociais. Geralmente existe uma relação estreita entre a posse e a transmissão
sistemática dessas explicações e o poder político das elites dirigentes. Desse modo,
tais explicações, ao menos de maneira institucional e sistematizada, tendem a estar
sob o controle de determinadas instituições, linhagens e grupos sociais – sobretudo
no caso das chamadas sociedades complexas – ou ainda sob o controle de indivíduos
especializados – principalmente no caso de sociedades menos numerosas e comple-
xas. Quando isso acontece, as elaborações procedentes do trabalho intelectual desses
indivíduos especializados ou dos membros dessas linhagens e grupos de elite juntam-
se ou sobrepõem-se às criações intelectuais gerais.
Esses grupos, linhagens ou indivíduos especializados existem em grande parte
das sociedades humanas e suas atuações articuladas e continuadas tendem a formar
o que podemos chamar de tradições de pensamento. Por tradições de pensamento es-
tamos, portanto, nos referindo a um conjunto em funcionamento de organizações,
grupos, instituições ou indivíduos que se dedicam de modo sistemático, mas não ne-
cessariamente exclusivo, à construção, manutenção, transformação, veiculação e, em
muitos casos, perpetuação de explicações socialmente aceitas acerca das origens e
funcionamento do Mundo.
No entanto, a vitalidade e eficácia política dessas explicações dependem, entre
outras coisas, de sua penetração e aceitação, explícita ou não, junto a outros grupos
e âmbitos da sociedade. Sendo assim, tais explicações tendem a estar de acordo com
os princípios lógicos e concepções mais gerais que vigoram na visão de mundo de
uma determinada sociedade, os quais geralmente sobrevivem a uma eventual desar-
ticulação ou desaparição desses especialistas ou grupos dirigentes. Voltaremos a essa
ideia no final do Capítulo IV, procurando mostrar que o desuso do calendário e da
cosmografia nas explicações cosmogônicas pode ser entendido como parte do pro-
cesso de desarticulação, conversão e eliminação das elites nahuas, que se iniciou no
século XVI.
Sendo assim, a formação e a manutenção de uma tradição de pensamento é
um processo que termina por envolver a sociedade como um todo, mesmo quando
suas formas de expressão parecem estar relacionadas apenas a grupos ou indivíduos
especializados – como acreditamos ser, predominantemente, o caso das fontes docu-
mentais desta pesquisa. Portanto, para o entendimento razoável dessas formas de ex-
pressão, por vezes registradas em escritos, é imprescindível compreender os procedi-
mentos institucionais internos dessas tradições em relação com seus objetivos sociais
mais amplos e, também, em relação à circulação e aceitação de tais expressões entre
os demais grupos sociais.
Por esse motivo, acreditamos ser impossível explicar e caracterizar todas as tra-
dições de pensamento que não fazem parte do mundo ocidental de uma única vez,
como se fossem um bloco homogêneo e caracterizável por um único conceito ou
expressão – por exemplo, pensamento mítico. Procedendo dessa forma, iríamos inevi-
Eduardo Natalino dos Santos 49
7 Isso chamou muito a atenção dos europeus do século XVI que entraram em contato com esses
relatos, tanto na Mesoamérica quanto na própria Europa. Foi o caso de Giordano Bruno. Em
sua obra Spaccio de la bestia trionfante, de 1584, afirma por meio de palavras que Júpiter dirige a
outros deuses que “...ha sido recién descubierta una parte de la tierra llamada Nuevo Mundo
y que sus habitantes tienen recuerdos de diez mil años y más (...) en cómputos completos y
circulares.” Apud León Portilla, Miguel. Códices, op. cit., p. 16.
8 O problema foi apontado anteriormente por Ross Hassig: “I assert that the traditional em-
phasis on time in Aztec culture as a cyclical phenomenon that patterns behavior is the result
of a theoretical predisposition that short-circuits empirical research rather than being solidly
grounded in the data, and that it is fundamentally miscast.” Hassig, Ross. Time, history and
belief in Aztec and Colonial Mexico. Austin: University of Texas Press, 2001, p. XIII. Veremos, no
entanto, que esse autor chega a conclusões muito diferentes das nossas, sobretudo por colocar
o problema de forma polar, ou seja, por acreditar que as concepções de tempo cíclica e linear
são excludentes e que, assim, os mexicas possuíam somente uma concepção linear. Em suas
palavras: “I consider evidence suggesting that the Aztecs, in fact, did not have a cyclical notion
50 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Os nahuas e a Mesoamérica
of time, but a linear one and that their temporal concept as embodied in the calendar were
manipulated for political purposes.” Ibidem, p. XIII.
lhidos por Bernardino de Sahagún como o local de desembarque dos antepassados toltecas e
chichimecas que chegaram do oriente em canoas. Nas palavras dos autores, “Sin embargo, no
se conoce ninguna población que se llame Chichiman, pero es interesante señalar que en la
lengua huasteca sí se tiene una población llamada ‘lugar de los perros’, y está en Tampico, pre-
cisamente cerca de Pánuco...” Reyes García, Luis e Odena Güemes, Lina. La zona del Altiplano
Central en el Posclásico. In: Manzanilla, Linda e López Luján, Leonardo (coords.). Historia
antigua de México. México: Inah, IIA – Unam e Miguel Ángel Porrúa, 2001, v. III, p. 254.
11 Isto é, Lugar das Sete Cavernas, mencionado como uma espécie de pátria original, ou de pas-
sagem obrigatória na migração para a Mesoamérica, por quase todos os textos pictoglíficos e
alfabéticos produzidos durante o período Colonial pelos povos de origem chichimeca, sobre-
tudo por aqueles que se estabeleceram no altiplano central mexicano.
12 Segundo Paso y Troncoso, nome de um cacto que em nahuatl se dizia teocomitl. Cf. Paso y Tron-
coso, Francisco del. Descripción, historia y exposición del Códice borbónico. México e Madri: Siglo
Veintiuno, sdp., p. 205. No entanto, poderia designar outra planta nesse contexto, utilizada
como alimento pelos chichimecas. Cf. Feliciano Velázquez, Primo. Introducción. In: Códice
Chimalpopoca. México: Unam – Instituto de Historia, 1945, p. 70.
14 Parece que não estamos lidando apenas com a denominação de um local específico, mas com
um epíteto que qualifica precisamente locais diferentes e relacionados a episódios similares:
o início ou a reunião pré-migração dos povos chichimecas. Por exemplo, Culhuacan-Chico-
moztoc, situado às margens da lagoa de Aztlan, teria sido o local onde os mexicas se reuniram
a mais oito povos que, muitos anos depois, se estabeleceriam próximos uns aos outros no Vale
do México. Seriam eles os huexotzincas, chalcas, xochimilcas, cuitlahuacas, malinalcas, chichi-
mecas, tepanecas e matlatzincas. Cf. Navarrete Linares, Federico. La migración de los mexicas.
México: Conaculta, 1998.
Eduardo Natalino dos Santos 53
os mexicas teriam adotado temporariamente o estilo de vida dos povos das terras
áridas da Grande Chichimeca,15 ao passar por elas em sua migração.16
Como podemos ver, há polêmicas não resolvidas sobre aspectos elementares da
história dos povos nahuas – e chichimecas em geral – no período anterior ao estabe-
lecimento no altiplano central mexicano. Grande parte delas resulta das diferentes
formas de analisar e interpretar seus escritos.
Um grande grupo de estudiosos17 acredita que os registros pictoglíficos sobre a
história chichimeca referem-se antes a um passado imaginado e utilizado cerimonial
e ideologicamente do que a um passado realmente acontecido. Isso porque tais regis-
tros – que datam de séculos depois dessas migrações, quando então os chichimecas
estavam há muito estabelecidos na Mesoamérica e controlavam política e comercial-
mente a região em aliança com antigos grupos locais – teriam sido confeccionados
a partir da coleta de relatos tradicionais mesoamericanos e de sua adaptação à cos-
movisão e projetos políticos chichimecas. Alguns desses estudiosos afirmam que é
necessário separar nesses relatos, chamados por eles de míticos, os poucos episódios
e personagens que aludem a acontecimentos pretéritos dos muitos que foram criados
pela imaginação, pois os problemas de interpretação surgem quando os estudiosos
modernos consideraram todos os episódios como históricos e tentam relacioná-los a
eventos e pessoas pertencentes ao passado dos povos chichimecas.
Outro grupo de estudiosos,18 menos numeroso do que o anterior, acredita que
talvez os episódios e personagens relatados possuam alguma relação com aconteci-
mentos e pessoas do passado chichimeca, mas que essa relação não seria seu aspecto
mais importante. Isso porque essas histórias sobre a migração não seriam apenas
relatos de fatos passados com uma cobertura religiosa e ideológica, mas registros
que pautavam um verdadeiro reviver desses eventos, oriundo da necessidade de re-
15 Expressão preferível a norte de México porque, assim como Mesoamérica, delimita uma certa
homogeneidade cultural pré-hispânica sem ter que recorrer às fronteiras dos Estados-Nações
atuais. Cf. Braniff Cornejo, Beatriz. El norte de México: la gran chichimeca. In: Arqueología
Mexicana. México: Editorial Raíces, Inah e Conaculta, v. I, p. 128-33, 1997. Essa região também
pode ser chamada de Aridoamérica e será definida com precisão mais abaixo.
16 Miguel León Portilla é um dos estudiosos que defendem a existência de uma vida agrícola
entre os mexicas em Aztlan. Cf. León Portilla, Miguel. A Mesoamérica antes de 1519. In: Be-
thell, Leslie. História da América Latina, v. I. São Paulo/Brasília: Edusp/Fundação Alexandre
Gusmão, 1998.
17 Entre esses estudiosos, podemos citar Florescano, Enrique. Mito e historia en la memoria mexica-
na. Mimeografado. México, 18 de julho de 1989.
18 Como, por exemplo, para López Austin, Alfredo. Hombre-dios. México: IIH – Unam, 1973.
54 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
19 Mircea Eliade foi um dos principais instituidores das análises que juntam, sob o conceito de
sociedade arcaica, todos os povos não ocidentais e ocidentais pré-modernos e lhes atribui uma
“...revolta contra o tempo concreto e histórico...” e uma “...nostalgia por uma volta periódica
aos tempos míticos do começo das coisas, à ‘Grande Era’.” Para ele, isso ocorre em tais socieda-
des “Porque, o Cosmos e o homem são incessantemente regenerados, e por todos os tipos de
meios, com o passado sendo destruído e os males e pecados eliminados, etc. Embora diferente
em suas fórmulas, todos esses instrumentos de regeneração [os rituais] tendem a caminhar
para um mesmo propósito: anular o tempo passado, abolir a história por meio de um contí-
nuo retorno in illo tempore, pela repetição do ato cosmogônico.” A expressão entre colchetes é
minha. Eliade, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992, p. 74. Acreditamos que
as análises que teceremos sobre o caso mesoamericano contribuirão para mostrar que a pola-
ridade excludente entre povos com história e povos sem história – vivida ou narrada – é uma
simplificação superada. Isso porque, por um lado, nenhum grupo humano registra e retém na
memória social todo o passado ou o passado em si e, por outro, nenhum é capaz de sobreviver
sem nenhum tipo de relação com os eventos passados. Sendo assim, parece-nos mais adequado
buscar o entendimento das formas particulares com que cada sociedade construiu sua relação
com o passado e suas concepções temporais.
20 Entre eles podemos citar Navarrete Linares, Federico. Las fuentes indígenas: más allá de la di-
cotomía entre historia y mito. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/
biblioteca/artigos/FN-P-A-historiaymito.html> Consultado em 9 de dezembro de 2000. Nessa
obra, Navarrete Linares propõe a superação da dicotomia entre a chamada interpretação míti-
ca – caracterizada por analisar apenas o caráter simbólico dos eventos narrados, já que eles não
possuiriam nenhuma relação significativa com eventos pretéritos – e a interpretação histórica
tradicional – marcada por tentar identificar no interior das narrativas os episódios relaciona-
dos a tais eventos e por descartar os supostamente imaginados.
Eduardo Natalino dos Santos 55
cimentos do passado.21 Além disso, esses significados e usos também podem ser tidos
como objetos de investigação do historiador, pois também são eventos históricos. Em
suma, esse terceiro grupo busca analisar os textos chichimecas como qualquer outra
narrativa histórica tomada adequadamente como fonte pelo historiador, isto é, como
um texto que traz indícios do passado ao qual remete e, simultaneamente, do passado
no qual fora produzido.
Abordando os relatos nahuas sobre o próprio passado dessa maneira, a confir-
mação ou não das informações neles contidas pelos estudos arqueológicos ganha um
novo sentido. Isso porque tais confirmações são utilizadas pelo primeiro e segundo
grupos de estudiosos apenas para supostamente separar os episódios e informações
que aludiriam a eventos pretéritos dos que teriam sido imaginados, analisando os
primeiros como “retratos” do passado e os segundos de acordo com teorias gerais
sobre as chamadas narrativas míticas. Diferentemente, a partir das mesmas confir-
mações arqueológicas, o terceiro grupo busca entender, por um lado, os critérios de
seleção de eventos, personagens e locais mencionados nas narrativas e, por outro, as
particularidades das criações e/ou inserções de outros tantos episódios, personagens
e locais. Dessa maneira, tais estudiosos procuram delimitar e caracterizar as formas
específicas de relação da sociedade chichimeca, que produziu tais relatos, com o seu
próprio passado.
Pensamos que esse grupo de estudiosos tem abordado as narrativas chichime-
cas mais adequadamente. Isso porque além das evidências arqueológicas terem con-
firmado várias informações contidas nelas, como as datas de construção de grande
parte de seus sítios de assentamento definitivos, há uma série de indícios internos às
narrativas que mostram que estamos diante de relatos que primavam por um tipo de
verossimilhança com os eventos passados. O indício mais significativo é a estrita coe-
rência cronológica, toponímica e antroponímica entre relatos produzidos em épocas
e localidades muito distintas, o que alija quase que totalmente a possibilidade de uma
invenção conjunta.
A aceitação dessa coerência interna como indício de verossimilhança deveria
levar-nos a pensar nas informações contidas nesses relatos que ainda não foram con-
firmadas arqueologicamente – e tidas atualmente apenas como fruto da imaginação
mítica – como possíveis representações de eventos e personagens do passado chichi-
meca. Entre as informações que deveriam ser encaradas dessa forma, está a que al-
guns desses grupos iniciaram sua migração por volta de 635 d.C., quando teriam saído
de um dos Chicomoztoc, provavelmente situado ao noroeste da Mesoamérica.
21 Essa constatação encontra-se reiteradamente presente nas análises que têm por objeto a pró-
pria ciência histórica ocidental e suas formas narrativas – sobretudo nas produzidas a partir
de meados do século XX. Entre essas análises estão as de Jacques Le Goff, Pierre Nora, Peter
Burke e Paul Veyne.
56 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
22 Essa visão da antiguidade dos chichimecas é atestada também por fontes coloniais produzidas
pelos religiosos espanhóis, como é o caso de Toribio de Benavente, mais conhecido como
Motolinía, um dos doze primeiros franciscanos a chegar ao altiplano central mexicano, em
1524. Na Epístola proemial à sua obra, Motolinía relacionou os tipos de livros que existiriam em
tempos pré-hispânicos – dos quais trataremos mais adiante –, entre os quais estariam os Livros
dos anos. Segundo ele, era possível saber por meio desses livros que os chichimecas habitavam
essas terras há mais de oitocentos anos. Cf. Benavente, Toribio de. Historia de los indios de la Nue-
va España. Madri: Dastin, 2001. Um dos principais estudiosos que atualmente dedica-se a rever
o papel dos chichimecas na história mesoamericana é Gordon Brotherston, por exemplo em
Spanish colonial writing and native sources. Curso de Pós-graduação no Department of Spanish
and Portuguese – Stanford University, Palo Alto, outubro a dezembro de 2004.
americanos em geral, a qual teria sido adotada pelos chichimecas somente depois de
se instalarem no centro do México.24
De qualquer forma, estamos lidando com sociedades que, contemporânea ou
retrospectivamente, possuíam mecanismos de datação dos episódios de sua própria
explicação sobre o passado. Isso não significa, a priori, que essas datações estivessem
isentas de sentidos simbólicos, sobretudo pela dimensão cíclica de parte da conta dos
anos, mas, tampouco, que não possuíssem valor diacrônico ou vínculos com eventos
passados. No Capítulo II, voltaremos ao problema do uso do calendário nas narrativas
nahuas, quando então procuraremos mostrar que uma de suas principais característi-
cas era justamente estabelecer um tipo de marcação temporal que garantia a presença
da diacronia sem, no entanto, excluir a sincronia ou os sentidos simbólicos e o reviver
cerimonial dos eventos passados.
Apesar de todas as polêmicas e incertezas que envolvem os chichimecas e
suas explicações sobre o passado, há um conjunto um pouco mais consistente de
informações e estudos sobre a origem, a migração e o estabelecimento mexica
no Vale do México.25 Sendo assim, trataremos um pouco mais em detalhe o caso
desse grupo – responsável pela produção da maioria dos documentos utilizados
na pesquisa –, procurando entender o papel de suas tradições de pensamento e
da produção dos manuscritos pictoglíficos em sua trajetória histórica e em sua
organização social.26
Além disso, o caso mexica talvez sirva-nos de modelo para entender melhor o
fenômeno geral das migrações, das alianças políticas, do estabelecimento, da fundação
24 Hipótese defendida, por exemplo, por Navarrete Linares, Federico. Mito, historia y legitimidad
política, op. cit.
25 Algumas das principais fontes sobre a migração mexica são: os códices pictoglíficos Tira de la pe-
regrinación, Azcatitlan, Mexicanus, Mapa Sigüenza, Telleriano-remense, Vaticano A e Aubin; as histórias
alfabéticas indígenas Anales de Tlatelolco (anônima), Historia de la venida de los mexicanos (Cristóbal
del Castillo), Memorial breve (Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin), Crónica mexicana e Crónica me-
xicayotl (Hernando Alvarado Tezozomoc); e as histórias redigidas por espanhóis com base em
informações indígenas Historia de la Indias de Nueva España (Diego Durán), Historia general de las
cosas de Nueva España (Bernardino de Sahagún) e Historia de los mexicanos por sus pinturas (prove-
niente dos trabalhos de Andrés de Olmos). Cf. Navarrete Linares, Federico. La migración de los
mexicas, op.cit.
26 Não é nosso objetivo traçar uma história completa e ampla das migrações que caracterizaram o
período Pós-clássico e nem tratar de modo exaustivo dos elementos que definem a região cul-
tural mesoamericana. Evocaremos apenas os processos, eventos e elementos que nos permitam
entender, minimamente, a inserção dos mexicas num todo maior e, assim, situar as tradições
de pensamento e escrita nahuas, produtoras de parte de nossas fontes centrais.
58 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
27 Forma plural de altepetl, termo que pode ser entendido como entidade politicamente autô-
noma, a qual necessitava possuir um território, cuja dimensão era extremamente variada, um
conjunto de partes constituintes, chamadas de calpulli ou casa grande, uma dinastia governante,
um deus patrono, um templo principal e um mercado. Cf. Lockhart, James. The nahuas after the
conquest. Palo Alto: Stanford University Press, 1992.
28 Houve uma aliança entre Culhuacan, Tula e Otompan ainda no século VIII e, depois da queda
de Tula, uma segunda aliança entre Culhuacan, Coatlinchan e Azcapotzalco, em 1051.
29 Talvez, na maioria dos casos, os altepeme mesoamericanos não eram formados por um único
grupo étnico ou por descendentes de uma única linhagem. Ao contrário, caracterizavam-se
pela junção sociopolítica e territorial de grupos distintos e organizados hierarquicamente.
30 Veremos que uma das principais características da sociedade mexica, e das nahuas do Vale do
México em geral, era a existência de uma hierarquia marcada entre seus diversos grupos com-
ponentes, os quais podemos reunir em duas grandes camadas: os pipiltin, ou elites dirigentes,
e os macehualtin, ou pessoas comuns. Essa divisão encontrava-se refletida, por exemplo, na ex-
clusividade dos pipiltin em usar trajes de algodão, de modo que os macehualtin trajavam-se com
roupas de fibras de maguey, iúca, pita e palma. Cf. Anawalt, Patricia Rieff. Indian Clothing before
Cortés. Norman: University of Oklahoma Press, 1981.
Eduardo Natalino dos Santos 59
31 Nascido pouco depois da conquista de México e falecido por volta de 1604. Cf. Estudio pre-
liminar. In: Castillo, Cristóbal del. Historia de la venida de los mexicanos y otros pueblos. México:
Conaculta, 2001, p. 23 e 24.
33 Cf. Castillo, Cristóbal del. Historia de la venida de los mexicanos y otros pueblos, op. cit., caps. 1-5.
34 Informações detalhadas sobre os papéis dos diversos tipos de sacerdote na sociedade mexica,
desde os tempos da migração até pouco antes da chegada dos espanhóis, podem ser obtidas
em Arcuri, Marcia Maria. Os sacerdotes e o culto oficial na organização do Estado mexica. São Paulo:
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, 2003. Nessa tese, por meio de evidências materiais
e iconográficas, procura-se comprovar a hipótese que os sacerdotes ocupavam o mais alto grau
de hierarquia na organização do Estado mexica. Para isso, a autora analisa os antecedentes
históricos da atuação desses sacerdotes, o culto oficial e sua relação com a cosmovisão mesoa-
mericana e com a política ideológica, voltada para a expansão e a manutenção dos domínios
territoriais e para o controle social interno.
60 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
conceitos é muito marcada, no entanto não podemos nos esquecer que tais fontes
foram confeccionadas a posteriori, depois de mais de dois séculos de estabelecimento
no Vale do México.
Entretanto, a possibilidade de que manejassem tais sistemas e compartilhassem
tais concepções – ou sistemas e concepções semelhantes – na fase migratória não deve
ser descartada. Isso porque sabemos que algumas das concepções mesoamericanas,
como a dos rumos do Universo e a das idades do Mundo, seguramente não eram exclu-
sivas dessa região, sendo encontradas também, com todas suas particularidades locais,
em outras regiões da América.35 Além disso, os contatos entre os mesoamericanos e os
povos da Oasisamérica e da Aridoamérica eram constantes e a “fronteira” entre eles é
antes uma ferramenta conceitual que nos ajuda a marcar alguns dos limites políticos e
das áreas de abrangência de certas redes e características sociopolíticas, econômicas e
culturais do que uma barreira intransponível entre os povos dessas macrorregiões histó-
rico-culturais.36 Sendo assim, é plausível que os grupos nahuas migrantes compartilhas-
35 Podemos citar, como exemplo, a presença entre os povos andinos e da Amazônia de narrativas
que tratam de cataclismos, especialmente de dilúvios que encerraram idades anteriores do
Mundo. Além disso, a concepção que a superfície do mundo, ou espaço horizontal, divide-se
em quatro direções – delimitadas principalmente pelas variações das posições de nascer e pôr-
do-sol no horizonte – parece ser um padrão de organização espacial mais ou menos comum
na América indígena. Uma análise comparativa entre as concepções andinas e nahuas sobre o
passado pode ser encontrada em Santos, Eduardo Natalino dos. As tradições históricas indíge-
nas diante da conquista e colonização da América. In: Revista de História. São Paulo: Humanitas
e FFLCH/USP, n. 150, p. 157-207, 1o semestre de 2004. Sobre as narrativas dos povos indígenas
amazônicos, vale conferir a introdução e o primeiro capítulo do livro de Lúcia de Sá, Rain forest
literatures. Mineápolis/Londres: University of Minnesota Press, 2004.
modo de vida que chamamos de mesoamericano. No entanto, talvez por alterações climáticas,
a agricultura tenha se tornado, lentamente, impraticável após esse período e esses assentamen-
tos tenham sido progressivamente abandonados até a época da conquista. Cf. Arqueología Mexi-
cana. México: Editorial Raíces, Inah e Conaculta, número especial 5, julho de 2000, p. 12-5.
Todo o conturbado período seguinte da história mexica – que vai desde as ten-
tativas frustradas de fixação de seu altepetl ao redor do Lago Texcoco, entre meados e
fins do século XIII, passa pela fundação de sua própria cidade, em 1325, após quase
terem sido dizimados pelos tepanecas, e vai até a formação da Tríplice Aliança e o
início de suas conquistas, em 1428 – teria sido caracterizado por sua “toltequização”,38
que ocorrera concomitantemente com a “chichimequização” do mundo mesoameri-
cano em todo o altiplano central mexicano.
Por muito tempo, a fronteira entre a Mesoamérica e a Aridoamérica foi pensada
como um limite marcado predominantemente por fatores ambientais, sobretudo pelo
alcance das chuvas que possibilitavam ou não a prática da agricultura e que assim deter-
minavam, inexoravelmente, dois modos de vida muito distintos ou até opostos. No entan-
to, como citamos anteriormente, em algumas localidades da Aridoamérica praticava-se
a agricultura e, além disso, houve, ao longo do tempo, flutuações dessa fronteira que
obedeceram não apenas a alterações climáticas, mas também a alianças e inimizades polí-
ticas. Além da revisão dos limites entre as duas macrorregiões, está sendo revista também a
oposição simplista entre mesoamericanos – qualificados como agricultores, sedentários e
civilizados – e chichimecas – qualificados como caçadores-coletores, nômades e selvagens
–, os quais teriam então “evoluído” após sua migração e “toltequização” na Mesoamérica.
Percebemos hoje que essa caracterização é fruto de uma concepção de história evolucio-
nista que vê a agricultura e o urbanismo monumental como padrões almejados por todos
os povos, mas alcançados apenas por alguns poucos.
Sendo assim, é mais razoável pensar que os nahuas passaram a fazer parte e a
transformar a região mesoamericana,39 a qual era portadora de certa unidade históri-
co-cultural, marcada por características disseminadas por territórios amplos, mas en-
tre povos relativamente distintos e que se organizavam em entidades políticas relativa-
mente autônomas – os altepeme. Com as migrações ocorridas desde o fim do período
39 Estudos atuais procuram entender quais teriam sido as principais características trazidas pelos
chichimecas à Mesoamérica do período Pós-clássico, entre as quais estariam a confecção do
chac-mool (estátua de um homem reclinado de costas, com as pernas arqueadas, com o tronco
semi-erguido, com a cabeça voltada para o lado e cujas mãos portam uma vasilha) e do tzompantli
(literalmente cerca de crânios; poderia ser uma estrutura de madeira com crânios pendurados
em varas que os atravessavam lateralmente na altura das têmporas ou um monumento em
pedra com altorrelevo retratando os tais crânios perpassados por varas), elementos presentes
nos centros urbano-cerimoniais e relacionados aos sacrifícios de cativos em guerras. Esses ele-
mentos são mais antigos na Grande Chichimeca do que na Mesoamérica. Cf. Hers, Marie-Areti.
Los toltecas en tierras chichimecas. México: Instituto de Investigaciones Estéticas – Unam, 1989.
Eduardo Natalino dos Santos 63
40 Vale lembrar que o uso do arco e flecha era uma novidade na região, pois o atlatl – propulsor
de dardos – e o maquahuitl – espada de madeira com lâminas de obsidiana ou outro mineral
cortante incrustadas em suas bordas – eram as principais armas dos guerreiros na Mesoamérica.
42 Cf. Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España. México: Conaculta,
2002, p. 972-9. Vários estudiosos não acreditam que a sequência de horizontes culturais apre-
sentada por esse texto tenha qualquer fundamento histórico, mesmo que ela coincida com a
grande maioria dos estudos arqueológicos. Por exemplo, Ross Hassig afirma que “The Aztecs
themselves were doubtless ignorant of whatever purposes and motivations initially gave rise
to the calendar – after all, they thought their major cultural traditions had been invented by
the toltecs, rather than earlier groups whose histories, traditions, and even presence had long
been forgotten.” Hassig, Ross. Time, history and belief in Aztec and Colonial Mexico, op. cit. p. 7. Isso
ocorre, sobretudo, porque tais estudiosos acreditam que os nahuas, ao mencionar os toltecas,
estivessem referindo-se exclusivamente aos fundadores e habitantes de Tula Xicocotitlan, em
Hidalgo, ou a seus contemporâneos. No entanto, se dermos ao termo uma conotação mais am-
64 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Nesse mesmo texto, o uso dos escritos pictoglíficos pelos grupos dirigentes é ex-
plicitamente mencionado como uma antiga característica da tradição política meso-
americana. Segundo o relato, depois de chegarem por mar do oriente, de desembar-
carem em Panutla e de dirigirem-se a Tamoanchan, os primeiros povoadores teriam
resolvido voltar e levar consigo os livros e pinturas. Foi então que quatro anciãos –
Oxomoco, Cipactonal, Tlaltetecui e Xuchicahuaca – resolveram ficar e perguntaram-
se: “¿Qué modo se terná (sic) para poder regirse bien la gente, etcétera? ¿Qué orden
habrá en todo? Pues los sabios llevaron sus pinturas por donde gobernaban.”43
Controlar o uso e a manutenção da escrita pictoglífica, do calendário e das
explicações sobre o passado foi uma preocupação das elites dirigentes mexicas até
a época de chegada dos espanhóis.44 Isso porque tais sistemas e explicações eram
fundamentais para a manutenção dos amplos domínios políticos e tributários me-
xicas, os quais não se constituíam como um império territorialmente ocupado ou
controlado. Suas bases de sustentação não eram o poderio militar e o estabeleci-
mento de guarnições e governadores que respondiam diretamente a um poder cen-
tral. O controle visava basicamente o estabelecimento de relações tributárias e a
submissão política das elites locais. Para isso, se poderia fazer necessário o uso da
força, da guerra e da intervenção política direta, mas esses não eram os mecanismos
comumente utilizados para perpetuar o controle. A submissão político-tributária
era mantida por meio de pactos e alianças diferenciados com cada reino ou altepetl
conquistado ou que se submetera “pacificamente”. Esses pactos e alianças garan-
tiam graus distintos de relativa autonomia para cada província ou altepetl, formando
uma complexa e variada rede de interdependências entre as elites locais e as mexi-
cas: havia mais de trinta importantes governantes locais e não mexicas nas regiões
dominadas, cujos estatutos políticos variavam desde o controle direto até a quase
que total autonomia.45
43 Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España, op. cit., p. 973.
44 Entre os conhecidos fatos que comprovam essa preocupação está a famosa queima de livros
pictoglíficos promovidas por Itzcoatl (1427-1440), provavelmente de livros provenientes de
tradições de pensamento e escrita rivais ou não pertencentes aos grupos dirigentes.
Além disso, a cabeça desses domínios não era única, pois se formava por uma
trinca de altepeme: a Tríplice Aliança. A cada um dos três altepeme eram direcionadas
cotas de tributos: dois quintos para Tenochtitlan, dois quintos para Texcoco e um
quinto para Tlacopan, também chamada de Tacuba. As conquistas eram consideradas
particulares ou das três cidades, mas sempre incluídas na esfera de uma das três ca-
pitais. Desse modo, os domínios dividiam-se em três setores, relacionados com as três
capitais e delimitados conforme os quatro rumos do Universo.46
Outro forte indício dessa relativa independência – e, portanto, da necessi-
dade dos pactos políticos sustentados em outros laços além do domínio militar
– encontra-se no fato de a presença mexica não poder ser detectada arqueologi-
camente nos altepeme dominados, o que mostraria a pequena influência no uni-
verso material e na vida cotidiana dos povos subjugados. Em suma, não havia um
império pois não existia controle territorial ou administrativo direto.47 Para com-
pletar esse mosaico, se falavam diversas línguas nas regiões tributárias da Tríplice
Aliança, entre as quais estavam o nahuatl, o otomie, o matlatzinca, o mazahua, o
zapoteco, o mixteco e o chocho.
Diante dessa relativa heterogeneidade linguístico-cultural e da tendência à auto-
nomia dos altepeme, os pactos e laços políticos ancoravam-se, entre outros elementos,
nas explicações sobre o passado e em outras concepções amplamente compartilhadas,
tais como o sistema calendário, a cosmografia e a escrita pictoglífica, as quais eram
fundamentais na produção de justificativas sobre a ordem atual e futura das coisas. As
elites mexicas, assim como outras elites nahuas antes e contemporaneamente a elas,
fizeram uso dessas explicações, sistemas e escrita para justificar tanto seus domínios
tributários sobre outros povos quanto sua posição de controle e comando dentro da
própria sociedade.
Estamos enfatizando esse ponto porque é importante perceber que a análise dos
documentos pictoglíficos ou alfabéticos nos propiciará, sobretudo, o contato com a
produção dos pipiltin, que legitimavam seu poder por meio de uma visão de mundo
substantivos xochitl, flor, e yaoyotl, guerra), cujo principal objetivo era a captura de cativos para
os sacrifícios.
46 Os domínios de Tenochtitlan iriam do oriente, passariam pelo sul e chegariam até o poente;
os de Tlacopan iriam do poente até o norte; e os de Texcoco iriam do norte até o oriente. Cf.
Carrasco, Pedro. Estructura político-territorial del imperio tenochca. México: El Colegio de México/
Fideicomiso Historia de las Américas/FCE, 1996.
47 Parece que a expansão de domínios promovida por Michoacan, altepetl rival e importante
inimigo dos mexicas, foi acompanhada pela prática da eliminação e substituição das elites
das cidades conquistadas, o que tornaria esse caso mais próximo ao que, tradicionalmente,
entende-se pelo termo império. Cf. Navarrete Linares, Federico. Visão comparativa da conquista e
colonização das sociedades indígenas estatais, op. cit.
66 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
48 A cisão entre os pipiltin e macehualtin também se marcaria por distintos modos de falar e voca-
bulários. Para designar o falar de ambos usava-se o verbo tlatoa, mas em composição com prefi-
xos que lhe dariam conotações valorativas. O falar dos pipiltin seria tecpillatoa, isto é, falar cortês
e curiosamente, enquanto o falar dos macehualtin seria macehuallatoa, ou seja, falar rusticamente.
Cf. Molina, Alonso de. Vocabulario en lengua castellana y mexicana y mexicana y castellana. México:
Editorial Porrúa, 2001, p. 50v e 93r, parte nahuatl-castelhano.
49 O que foi feito no primeiro capítulo de Santos, Eduardo Natalino dos. Deuses do México indígena.
São Paulo: Palas Athena, 2002. Não devemos entender a Mesoamérica como uma região cultu-
ral da qual participam os povos que compartilham uma lista fixa de características, mas como
um conjunto de relações históricas que geraram semelhanças e diferenças, ambas resultantes
de interdependências assimétricas. Isso nos leva a concluir que não houve, necessariamente,
uma coincidência contínua da expansão territorial e da duração dos elementos culturais co-
muns em distintas épocas e sociedades, ou mesmo entre os distintos campos e grupos sociais.
Cf. López Austin, Alfredo. Los mitos del Tlacuache. México: IIA – Unam, 1998.
Eduardo Natalino dos Santos 67
50 Veremos que há uma grande polêmica sobre a determinação dos primeiros produtores e usu-
ários do sistema calendário e da escrita pictoglífica: se olmecas ou zapotecas. Isso porque, os
glifos calendários, onomásticos e toponímicos mais antigos encontram-se em região zapoteca,
mas o texto pictoglífico mais antigo pertence à região olmeca.
51 No entanto, não devemos entender por elaboração a criação total e a partir do nada, pois
muitas dessas concepções podem ter tido origem fora da Mesoamérica. Infelizmente, ainda
há muita resistência entre os mesoamericanistas em estudar os contatos com outras macror-
regiões culturais, os quais, em muitos casos, são demasiado evidentes, sobretudo com as
regiões fronteiriças e que hoje pertencem à América Central, ao norte do México e ao sul
dos Estados Unidos.
e Monte Albán, pelas maias de Uaxactún, Tikal, Kaminaljuyú e Izapa, e pelas elites
de Teotihuacan.53 Esses são alguns dos centros responsáveis por hegemonias político-
culturais contemporâneas ou posteriores à decadência dos centros olmecas.54 Desse
período, procedem os mais antigos signos pictoglíficos conhecidos, encontrados em
San José Mogote, região zapoteca de Oaxaca, e datados aproximadamente do ano 600
a.C.55 Tais signos, talvez não coincidentemente, relacionam-se com o calendário, mais
especificamente com a conta dos dias ou tonalpohualli, ciclo de 260 dias dividido em
vinte trezenas, que era um dos fundamentos do sistema calendário mesoamericano.
Os glifos encontrados em San José Mogote, além de se relacionarem com o ca-
lendário, indicam também o nome de uma personagem, o Senhor Um Xoo. Com esse
glifo, xoo, designava-se, em zapoteco, o décimo sétimo dos vinte signos calendários –
correspondente ao glifo ollin, em nahuatl. A lápide com sua efígie encontrava-se sobre
lajes que nivelavam uma passagem em cima de uma pirâmide, sendo assim pisada por
todos os que ali pudessem circular. Essa localização levou alguns estudiosos a propo-
rem sua identificação como um governante sacrificado de um reino rival.56
Além disso, em Monte Albán – centro zapoteca que substituiu San José Mo-
gote na hegemonia regional – foram encontrados cerca de quinhentos monumen-
tos e estelas com inscrições que datam dos anos 600 a 300 a.C. e que também se
referem a datações, sobretudo a datações de conquistas.57 Nesse caso, as estelas
55 Cf. Aveni, Anthony. Observadores del cielo en el México antiguo. México: FCE, 1991.
56 Parece que além da maior rivalidade e disputa política que acompanha o período de surgi-
mento da escrita em Oaxaca, é mais ou menos consensual que as sociedades anteriores ao
aparecimento desses registros apresentavam características mais igualitárias do que as de San
José Mogote. Cf. Romero Frizzi, María de los Ángeles. Los zapotecos, la escritura y la historia.
In: _____ (coord.). Escritura zapoteca. México: Ciesas/Miguel Ángel Porrúa/Conaculta/Inah,
2003.
57 Cf. León Portilla, Miguel. Literaturas indígenas de México. México: FCE/Editorial Mapfre, 1992.
Eduardo Natalino dos Santos 69
portam registros não apenas de dias do tonalpohualli, mas também de anos do xiuh-
molpilli, ciclo de 52 anos de 365 dias que também compunha o sistema calendário,
como veremos em detalhe no Capítulo II. Esses vestígios apontam para a relação
intrínseca entre escrita pictoglífica, sistema calendário e poder político nessas
sociedades, altamente hierarquizadas. Essa relação perdurará na Mesoamérica até
os mexicas e a chegada dos espanhóis e será muito importante tê-la em mente ao
apresentarmos as análises das fontes.
Veremos nos Capítulo II e III que esses glifos calendários, além da referência
direta a concepções temporais, aludem também a concepções cosmográficas, unidas
inseparavelmente ao calendário. Tais concepções também se manifestaram nas cida-
des zapotecas por meio da existência de padrões de orientação construtiva baseados
na divisão do Universo em quatro rumos e um centro.
Nas cidades maias que surgiram entre o fim do período Pré-clássico e o início do
Clássico também podemos observar padrões construtivos baseados em princípios de
orientação espacial amplamente compartilhados, os quais, muito provavelmente, re-
fletem a utilização de concepções que estavam se generalizando pelo que hoje chama-
mos de Mesoamérica.58 As concepções espaciais que aparecem mais explicitamente na
arquitetura são a dos quatro rumos e um centro do Universo e a dos níveis celestes e
subterrâneos, que serão vistas em detalhe no Capítulo III.
Outra mostra da presença dessas concepções cosmográficas entre os maias e de
sua pertinência ao mundo mesoamericano encontra-se num famoso par de páginas
do Códice Madrid,59 o qual traz um mapa cosmográfico-calendário muito semelhan-
te ao da primeira página do Códice Fejérváry-Mayer,60 que pertence ao grupo Borgia,
oriundo possivelmente da região de Tlaxcala, Cholula e oeste de Oaxaca.61 Outra
mostra da pertinência maia ao mundo mesoamericano pode ser observada no uso
58 Cf. Aveni, Anthony e Hartung, Hamilton Horst. Archaeoastronomy and the puuc sites. In:
Broda, Johanna et alii (edit.). Arqueoastronomía y etnoastronomía en Mesoamérica. México: IIH –
Unam, 1991.
59 Códice Madrid, p. 75 e 76. Esse manuscrito foi produzido, segundo Eduard Seler, na costa oci-
dental da península de Iucatã ou, segundo John B. Glass, nas Terras Baixas maias do sudeste
do México e Guatemala, provavelmente entre os séculos XIV e XV. Cf. Lee Jr., Thomas A. Los
códices mayas. Tuxtla Gutiérrez, Chiapas: Universidad Autónoma de Chiapas, 1985, p. 81.
61 Trataremos mais adiante de introduzir e definir esse importante grupo de manuscritos pré-
hispânicos. Por ora, importa-nos apenas saber que seus componentes procedem de uma região
que se serve de um sistema de escrita distinto mas aparentado ao maia, razão pela qual os dois
manuscritos citados apresentam concepções cosmográficas e temporais muito semelhantes.
Ao longo dos capítulos seguintes, sobretudo do Capítulo III, iremos reproduzir e analisar essa
página do Códice Fejérváry-Mayer.
70 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
dos dois ciclos fundamentais do sistema calendário – o de 260 e o de 365 dias – nas
milhares de estelas auto-datadas, nas quais aparecem também outros ciclos, como o
ano tun de 360 dias e o mês lunar de 29,5 dias.
No caso de Teotihuacan, sabemos da presença das concepções cosmográficas
pelo fato de suas construções compartilharem padrões de orientação com centenas
de outros sítios da região mesoamericana, sobretudo com os do centro do México, os
quais, ao que tudo indica, tiveram nessa cidade um modelo urbanístico até a época
mexica.62 Esses padrões de orientação relacionavam-se, regularmente, com fenôme-
nos astronômicos observáveis no horizonte, entre os quais estão os pontos de saída e
entrada do Sol e de outros astros celestes.63 Esses pontos, como veremos em detalhe
no Capítulo III, serviam para definir as quatro regiões em que o mundo horizontal
dividia-se segundo a cosmografia vigente por toda a Mesoamérica.
Por outro lado, Teotihuacan apresenta poucas representações visuais de ele-
mentos calendários ou relacionadas a um sistema de escrita pictoglífica. Na verdade,
há uma grande polêmica sobre a utilização ou não de uma escrita própria em Te-
otihuacan. Trataremos dessa polêmica no próximo subitem, quando o assunto for
o uso da escrita pictoglífica pelas tradições de pensamento nahuas. Por enquanto
interessa somente destacar que, apesar da polêmica sobre a presença do sistema de
escrita, elementos glíficos relacionados ao sistema calendário foram encontrados em
Teotihuacan, indicando seu uso, sobretudo o da conta dos anos de 365 dias. Isso
porque, um dos glifos presentes nesse sítio é o chamado signo do ano – que pode
ser descrito como um “A” maiúsculo entrelaçado com um círculo paralelo à base na
altura de seu traço horizontal –, frequentemente encontrado também nos códices e
nos sítios da região mixteca.64
62 Lugar onde se transformam em deuses é uma tradução possível do nome nahuatl Teotihuacan. Ao
que parece, essa denominação foi atribuída a essa localidade posteriormente à sua decadência,
por povos nahuas, e se relacionaria ao importante episódio da criação do quinto sol, como
veremos em detalhe no Capítulo IV. Na verdade, não se sabe ao certo nem que línguas fala-
riam seus habitantes. Aventa-se a possibilidade que a principal fosse alguma língua uto-asteca.
Cf. Heyden, Doris e Gendrop, Paul. Pre-columbian architecture of Mesoamerica. Nova York: Harry
N. Abrams, 1975, p. 36. Por outro lado, as imediações do centro cerimonial de Teotihuacan
continuaram a ser ocupadas por um novo altepetl desde sua suposta queda até a época colonial,
quando este passou a ser chamado San Juan Teotihuacan. Sendo assim, não é improvável que
Teotihuacan – ou algum equivalente seu em outra língua – tenha sido o nome original do altepetl
antes da decadência.
63 Cf. Šprajc, Ivan. Orientaciones astronómicas en la arquitectura prehispánica del centro de México. Mé-
xico: Inah, 2001.
64 Cf. Heyden, Doris. El “signo del año” en Tehuacan, su supervivencia y el sentido sociopolítico
del símbolo. In: Dalhgren, Barbro (org.). Mesoamérica. México: Secretaría de Educación Públi-
ca e Inah, 1979.
Eduardo Natalino dos Santos 71
65 Esse modelo sociopolítico é chamado de zuyuano e foi proposto por Alfredo López Austin e
Leonardo López Luján. Dois caminhos teriam marcado seu fim: 1 – o mixteco-maia, com a de-
sagregação política em Oaxaca, Iucatã e Terras Altas maias da Guatemala; 2 – o tarasco-mexica,
com a superação por regimes mais centralizados e poderosos em Michoacan e no Vale do
México. Cf. López Austin, Alfredo e López Luján, Leonardo. Mito y realidad de Zuyuá. México:
El Colegio de México/Fideicomiso Historia de las Américas/FCE, 1999.
66 Talvez, no caso das narrativas nahuas do centro do México, essa denominação refira-se princi-
palmente a Teotihuacan.
72 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
após a queda da Huey Tollan, tais como Xochicalco, Cholula, Chichén Itzá, Xicocoti-
tlan e a própria México-Tenochtitlan.67
Foi se inserindo nessas redes sociopolíticas e servindo-se desses complexos con-
ceituais – bem como dos conceitos e práticas políticas chichimecas – que os povos
nahuas do Vale do México, entre os quais se destacaram os mexicas, construíram e
justificaram seus domínios tributários e políticos na Mesoamérica. Para isso, não se
apresentaram como os instituidores de uma ordem totalmente nova e estrangeira,
mas como os mantenedores de uma ordem tida por natural, a qual deveria continuar
a vigorar nas práticas sociais em geral, sobretudo naquelas em que as dimensões ce-
rimoniais e representativas eram fundamentais. A instauração e a história do funcio-
namento dessa ordem, desde a primeira idade do Mundo, encontravam-se narradas
na cosmogonia e sua organização e compreensão embasavam-se, entre outras coisas,
no sistema calendário e na cosmografia, complexos de ideias que foram rapidamente
incorporados pelos nahuas.
Uma forma de expressar a ancoração de uma ordem relativamente nova no
passado era a utilização transformada de formas arquitetônicas anteriores e o uso
cerimonial de objetos procedentes dos centros urbanos hegemônicos do período
Clássico. Assim, da mesma forma que os maias do período Clássico haviam utilizado
estatuetas olmecas em enterramentos, os mexicas faziam constantes visitas e traziam
objetos de Teotihuacan, suposto local de criação do Sol e da humanidade atuais.68
Para analisarmos adequadamente esses complexos conceituais nas fontes nahuas
é importante saber que suas criações e sistematizações ocorreram simultaneamente
ao desenvolvimento dos sistemas de escrita pictoglífica. Isso porque tais sistemas não
eram mecanismos neutros de registro de palavras ou ideias e, tampouco, eram utili-
zados universalmente por toda a sociedade. Todo sistema de registro do pensamento
ou da fala é criado, funciona e está a serviço de uma determinada visão de mundo, e,
portanto, molda os conteúdos registrados, influenciando na própria construção dessa
visão de mundo. Sendo assim, para entendermos o papel que os códices pictoglíficos
e, posteriormente, os relatos alfabéticos possuíram dentro de mundo nahua, tratare-
67 Cf. Piña Chan, Román. Historia, arqueología y arte prehispánico. México: FCE, 1994. Utilizaremos
Tollan para se referir à Grande Tula e Tula para se referir ao altepetl de Xicocotitlan, atual Esta-
do de Hidalgo.
68 Cerca de quarenta objetos de estilo teotihuacano foram encontrados nas escavações no cen-
tro de México-Tenochtitlan, em contextos de grande importância político-religiosa. Cf. López
Luján, Leonardo. La recuperación mexica del pasado teotihuacano. México: Inah/Asociación de
Amigos del Templo Mayor/GV Editores, 1989.
Eduardo Natalino dos Santos 73
mos brevemente da história e dos usos sociais dos sistemas de escritas mesoamerica-
nos, sobretudo do sistema mixteco-nahua.69
69 Às vésperas da chegada dos europeus, os manuscritos que apresentavam esse sistema, com
pequenas variações locais, ocorriam nas seguintes regiões mesoamericanas: centro do México,
Oaxaca, Guerrero e Ocidente de México.
70 Utilizamos a expressão Pedra dos sóis em nossa pesquisa anterior por acreditar que ela caracte-
riza melhor o conteúdo pictoglífico deste monumento: as cinco idades ou sóis cosmogônicos.
No entanto, há outro monumento mexica com essa denominação e, para evitar confusões,
passamos a adotar a nomenclatura tradicional, isto é, Pedra do Sol. Mencionaremos o nome
desse e de outros gravados mexicas em itálico, assim como estamos fazendo com nossas fontes,
por considerá-los textos pictoglíficos equiparáveis aos códices.
74 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
71 Maricela Ayala Falcón classifica os sistemas de registro visual do pensamento como os que se
servem de pictogramas, ideogramas, determinativos semânticos e complementos fonéticos. A
autora – apesar de afirmar que a evolução das escritas não é universal – qualifica o caso olmeca
nos dois primeiros tipos, isto é, como um sistema ideográfico-pictográfico, o qual ainda não
seria uma “verdadeira escrita”, termo que ela reserva aos dois últimos tipos. Cf. Ayala Falcón,
Maricela. La escritura, el calendario y la numeración. In: Manzanilla, Linda e López Luján,
Leonardo (coords.). Historia antigua de México, v. IV, op. cit.
Eduardo Natalino dos Santos 75
72 Karl Taube acredita que “...Teotihuacan indeed possessed a complex system of hieroglyphic writ-
ing, which appears not only on small portable objects but also in elaborate murals in many re-
gions of the city.” Taube, Karl. The writing system of ancient Teotihuacan. Barnardville/Washington
D.C.: Center for Ancient American Studies, 2000, p. 2. Joyce Marcus utiliza-se de uma definição
mais estreita de escrita e não acredita que em Teotihuacan houvesse um “verdadeiro” sistema de
escrita: “...even though there is some limited use of glyphic notations as possible names, captions,
or labels at Teotihuacán, I see less evidence for true writing in Teotihuacán art...”, Marcus, Joyce.
Mesoamerican writing systems. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 17.
74 Um balanço atualizado dos estudos sobre Teotihuacan pode ser conferido em Manzanilla, Lin-
da. La zona del Altiplano central en el Clásico. In: _____ e López Luján, Leonardo (coords.).
Historia antigua de México, v. II, op. cit.
75 Essas estelas foram produzidas entre 500 e 400 a.C. e apresentam glifos de verbos entre signos
calendários e antroponímicos. Sendo assim, apesar de conterem apenas oito conjuntos glí-
ficos, são consideradas por alguns estudiosos como o texto mesoamericano mais antigo. Cf.
Marcus, Joyce. Mesoamerican writing systems. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 38-9.
76 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
76 Parte da discussão sobre a origem dos sistemas de escritura mesoamericanos relaciona-se com a
tentativa de estabelecer a região de procedência do mais antigo “texto puro”, isto é, com pou-
ca ou nenhuma presença de elementos figurativos associados aos glifos. Como discutiremos
adiante, tentar estabelecer qual teria sido o primeiro “texto puro” não nos parece um caminho
promissor para entender a constituição e as transformações dos sistemas de escrita mesoame-
ricanos, pois a associação entre os elementos figurativos e glíficos, como mencionamos, é uma
das características fundamentais e de união de todos esses sistemas. Parece que até mesmo os
chamados “textos puros” estariam em composição com representações figurativas formadas
pelos elementos arquitetônicos, como aponta Christian Duverger: “Es verdad que existen al-
gunos casos en que aparentemente los glifos se emplearon solos, sin ser asociados con escenas
figurativas; se pueden citar algunas estelas (estelas 12 y 13 de Monte Albán), algunos paneles
mayas esculpidos (‘Templo de las Inscripciones’ de Palenque, ‘Templo de las Inscripciones’
de Tikal), y sobre todo, escaleras jeroglíficas como las de Copán, Edzná, Dos Pilas o Naranjo.
Ahí, los elementos escritos ya no están asociados a elementos figurativos en dos dimensiones,
sino a un conjunto arquitectónico monumental de tres dimensiones. Pero se trata de casos
particulares. La norma mesoamericana sigue siendo la combinación de los elementos glíficos
con escenas figurativas.” Duverger, Christian. Mesoamérica. México/Paris: Conaculta/Américo
Arte/Lamducci, 2000, p. 42.
77 Além dos distintos sistemas de escrita, essa divisão entre oriente e ocidente da Mesoamé-
rica também se marcaria por diferentes sistemas numéricos, respectivamente o posicional
maia e o figurativo mixteco-nahua. Cf. López Austin, Alfredo. La construcción de una visión
de mundo. Curso de pós-graduação no IIA da Unam, Cidade do México, setembro de 2002
a janeiro de 2003.
Eduardo Natalino dos Santos 77
Por ora, interessa apenas ressaltar que esses antigos registros visuais estavam si-
tuados, preferencialmente, em áreas de circulação restrita às elites governante-sacer-
dotais. Também se encontravam em locais de circulação social mais ampla, mas quase
sempre próximos a essas áreas restritas, fato que, virtualmente, permitiria certo con-
trole desses espaços públicos pelas elites dirigentes. Essa característica da distribuição
dos registros pictoglíficos dentro dos altepeme indica-nos que suas elites tinham acesso
a todos os registros, enquanto os demais grupos sociais tinham apenas contato com
alguns deles – muito provavelmente com aqueles que haviam sido produzidos pelas
tais elites para esse uso social mais amplo.
A decifração dos glifos maias – sobretudo a partir dos anos cinquenta com os
trabalhos de Yuri Knorozov e Tatiana Proskouriakoff78 – e os consecutivos estudos de
suas estelas contribuem para embasar a estreita relação que estamos propondo existir
entre as elites dirigentes e a produção e uso dos registros pictoglíficos e dos sistemas
calendário e cosmográfico. Isso porque, em grande parte dos casos, as estelas maias
tratam do nascimento, dos feitos ou da morte de soberanos, vinculando esses acon-
tecimentos a datas especiais e relacionadas a determinadas deidades, a importantes
episódios passados ou a ciclos astronômicos79 – mesmo que para isso fosse necessário
eleger datas distintas daquelas em que tais acontecimentos teriam ocorrido.
A grande quantidade e a extrema complexidade dos registros pictoglíficos encon-
trados por toda Mesoamérica leva-nos a concluir que suas elites dirigentes contavam, pelo
menos desde o início do período Clássico, com um contingente significativo de tlacuilo-
que, plural de tlacuilo, isto é, pintores-escribas especializados na produção e na leitura dos
registros pictoglíficos. Provas disso são algumas páginas de códices e famosos vasos maias
que, numa espécie de meta-registro, tratam das próprias atividades dos tlacuiloque, repre-
sentando-os em ambientes marcados pela circulação de membros das elites dirigentes.80
78 A base inicial do processo de decifração fonética dos glifos maias foi o abecedário constante
na Relación de las cosas de Yucatán, obra composta pelo frei Diego de Landa no século XVI e que
se perdeu após sua morte, tendo sido reencontrada apenas em 1861 pelo abade Brasseur de
Bourbourg, em Madri. Cf. Longhena, María. Maya script. Nova York: Abbeville Press, 2000. Mais
detalhes sobre o processo de decifração dos glifos maias em Coe, Michael D. El desciframiento de
los glifos mayas. México: FCE, 2001.
79 Por exemplo, uma das estelas do Templo 14 de Palenque, erigida no ano 9 ik do mês 10 mol, ou
6 de novembro de 705 d.C., trata da morte e da apoteose de Chan-Bahlum, ocorrida em 702
d.C., governante da cidade que segundo o registro seria descendente do deus Ah Bolom Dza-
cab. Cf. Schele, Linda e Freidel, David. A forest of kings. Nova York: Quill Willian Morrow, 1990.
Voltaremos, no Capítulo IV, ao caso dos textos de Palenque. Procuraremos mostrar então que
as formas nahuas de concatenar episódios históricos mais recentes com o passado cosmogôni-
co possuía paralelos em outras partes da Mesoamérica.
80 Como exemplo, podemos citar os mais de trinta vasos procedentes do Petén e zonas frontei-
riças, na área iucateca, nos quais se encontram efígies de ah ts’ib e de ah miatz que manejam
78 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
81 Miguel León Portilla afirma que, em todo o chamado Novo Mundo, somente a Mesoamérica
contou com a presença de livros, fato que é utilizado por ele para classificá-la como a região de
uma “alta cultura”, equiparável à egípcia ou à chinesa. Cf. León Portilla, Miguel. Códices, op. cit.
Acreditamos que ao considerar o uso de registros visuais sobre suportes materiais semelhantes
aos empregados pelos europeus como um critério de hierarquização dos povos, não obstante
suas imensas contribuições para os estudos das sociedades indígenas, León Portilla está con-
firmando alguns dos preconceitos que, incansável e valentemente, vem combatendo desde os
anos 1950. Isso porque tal consideração termina por validar as realizações do mundo ocidental
como modelos a partir dos quais podemos julgar e classificar as outras sociedades. Acreditamos
que seria mais adequado entender as formas e as necessidades que cada sociedade depositou
em seus sistemas de comunicação e de registro visual e como tais sistemas responderam a de-
mandas historicamente delimitadas. Tratamos do problema da utilização do termo alta cultura
e de sua vinculação com a existência de um sistema de escrita em nota anterior.
Eduardo Natalino dos Santos 79
82 Molina registra cerca de quinze termos relacionados com esse verbo, dentre os quais, além
dos já citados, estão tlacuilol amapetlacaltontli, ou porta-cartas, tlacuiloltecomatl, ou tinteiro, tlacui-
loltepantli, ou parede pintada, e tlacuiloluapalli, ou tabuinha para escrever. Cf. Molina, Alonso de.
Vocabulario en lengua castellana y mexicana y mexicana y castellana, op. cit., p. 119v e 120r, parte
nahuatl-castelhano.
80 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
filósofos y sabios que tenían entre ellos, estaba a su cargo el pintar todas las ciencias
que sabían y alcanzaban, y enseñar de memoria todos los cantos que observaban sus
ciencias e historias; todo lo cual mudó el tiempo, con la caída de los reyes y señores, y
[con] los trabajos y persecuciones de sus descendientes y la calamidad de sus súbditos
y vasallos”.83
Entre os livros citados por Ixtlilxochitl, podemos reconhecer, respectivamente, o
xiuhamatl (livro da conta dos anos), o tlacamecayoamatl (livro de linhagens), o tlalamatl (li-
vro de terras ou mapa), o tonalamatl, (livro da conta dos dias e do destino) e o teoamatl (livro
divino). Essa variedade e diversidade de livros e usos pode, seguramente, ser estendida
aos outros altepeme nahuas do altiplano central mexicano. Além dos mencionados por
Ixtlilxochitl, entre os cinco tipos de livros citados pelo frei Toribio de Benavente,84 em
sua Epístola Proemial, estão também o dos ritos e agouros nos matrimônios e o dos dias
e festas de todo o ano, que parece não se referir ao tonalamatl, citado pelo frade como
livro de batismo e nome das crianças. Talvez esse tipo de livro apresentasse as vintenas
do ano sazonal como na terceira seção do Códice borbónico, cuja origem pré-hispânica
ou colonial será discutida no Capítulo III.
Embora não sejam citados pelos dois autores mencionados acima, sabemos ain-
da da existência dos tequiamatl (livro dos tributos), graças à sobrevivência de exemplares
produzidos no início do século XVI e copiados de livros mais antigos, como são os
casos, respectivamente, do Códice Mendoza e da Matrícula de tributos.85 Embora não
tenha sobrevivido nenhum exemplar, existem ainda referências ao cuicamatl (livro de
cantares) e ao temicamatl (livro de sonhos).86
Nos livros de tributos eram registrados os altepeme e províncias tributárias e os
respectivos produtos e quantias devidos, além da periodicidade de seu pagamento.
Por meio do tonalamatl, que tratava das cargas dos dias e dos destinos, os sacerdotes
especializados prognosticavam acerca das mais diversas atividades humanas, que iam
desde o empreendimento de uma viagem, passavam pelos nascimentos e chegavam
até as mais complexas decisões políticas. O xiuhamatl, que se organizava na forma
de anais, era utilizado para registrar as histórias grupais, tidas como posse de uma
determinada linhagem e que, assim, funcionavam como fundamento de sua posição
de destaque social.
84 Cf. Benavente, Toribio de. Historia de los indios de la Nueva España, op. cit.
86 Cf. León Portilla, Miguel. El destino de la palabra. México: El Colégio Nacional/FCE, 1997.
Eduardo Natalino dos Santos 81
88 Cf. Berdan, Frances F. e Smith, Michael E. The Aztec empire. In: _____ (edit.). The postclassic me-
soamerican world. Salt Lake City: University of Utah Press, 2003, p. 71.
82 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
em uma instituição contígua ao calmecac: o tecpan, ou casa dos que ordenam a gente. Mui-
tos tecpan contavam com verdadeiras bibliotecas de manuscritos pictoglíficos, como
o de Texcoco: “Porque en la ciudad de Tezcoco estaban los archivos reales de todas
las cosas referidas, por haber sido la metrópoli de todas las ciencias, usos y buenas
costumbres, porque los reyes que fueron de ella, se preciaban de esto y fueron los
legisladores de este Nuevo Mundo”.89
Por fim, em nossa tentativa de estabelecer características gerais da produção e
uso dos escritos pictoglíficos, é importante citar o fato dos tlacuiloque estarem livres
das tributações. Tratando-se de sociedades marcadamente divididas entre macehualtin
e pipiltin, esse fato é muito significativo, pois situa os especialistas na produção dos
escritos pictoglíficos como parte integrada e relacionada ao segundo grupo, o qual,
caracteristicamente, estava livre de qualquer tipo de tributação. Alguns aspectos da
produção dos escritos pictoglíficos, sobretudo sua relação de serviço ao poder políti-
co estabelecido e os privilégios sociais de seus produtores, tiveram certa continuidade
nos municípios indígenas coloniais, nos quais o cargo de escrivão era avidamente
cobiçado pelos membros das elites indígenas locais em vista dos privilégios e isenções
89 Ixtlilxochitl, Fernando de Alva. Obras históricas. Edição Alfredo Chavero. slp: scp, 1891-1892, p.
179. Apud León Portilla, Miguel. Códices, op. cit., p. 56. Apesar da contiguidade atestada por Ix-
tlilxochitl entre calmecac e tecpan, León Portilla divide os livros pictoglíficos como pertencentes
a cada um desses âmbitos, como se seus construtores e usuários não fossem as mesmas pessoas
e o calmecac fosse, assim, um local de busca e cultivo de uma sabedoria supostamente descon-
taminada dos interesses das elites dirigentes. Para esse autor, os livros de história e calendário
seriam típicos do calmecac, enquanto que os administrativos seriam característicos do tecpan.
Em sua primeira grande obra, León Portilla também procura separar, parcialmente, os sábios
dos sacerdotes e governantes nahuas. Afirma que os primeiros comporiam um gênero distinto
de saber, pois duvidariam mais do que creriam, ação, esta última, mais típica dos sacerdotes.
Segundo ele, essa dúvida filosófica teria levado alguns sábios à percepção de que além de toda
a diversidade de deuses haveria um princípio único, do qual todo o demais emanaria e seria
sua manifestação. Cf. La filosofía náhuatl estudiada en sus fuentes. México: IIH – Unam, 2001.
Acreditamos, porém, que a tentativa levada a cabo por León Portilla de delimitar a existência
no mundo nahua de um saber filosófico-científico é inadequada e deve-se a dois fatores. Pri-
meiramente, podemos falar de seu desejo de equiparar os saberes e instituições nahuas aos do
Velho Mundo, sobretudo aos da antiga Grécia, na qual teria ocorrido essa cisão entre os filó-
sofos e a religião predominante – cisão essa que parece não ter sido tão profunda, radical ou
relevante à época como se supunha há algumas décadas. Depois, podemos apontar que o autor
embasa-se principalmente nos Cantares mexicanos, tidos por ele como uma fiel transcrição da
tradição oral nahua de tempos pré-hispânicos. No entanto, parece que os Cantares são recria-
ções dos alunos indígenas dos colégios franciscanos em resposta às novas demandas coloniais,
sobretudo à exigência monoteísta do cristianismo. Desse modo, talvez essa tentativa de reduzir
a multiplicidade de deidades nahuas a um princípio único esteja mais relacionada com esse
novo cristianismo das elites nahuas do que com o pensamento nativo pré-hispânico.
Eduardo Natalino dos Santos 83
Pintura ou escrita?
90 Cf. Lockhart, James. The nahuas after the conquest, op. cit. Os castelhanos começaram a implantar
o modelo municipal no altiplano central mexicano desde 1532. Esse processo gerou a conti-
nuidade transformada de instituições nativas no interior do cabildo indígena, parte da Repúbli-
ca dos Índios que compartilhava o poder civil e criminal com o governador e os corregidores de
indios ou alcaldes mayores. Cf. Romero Galván, José Rubén. Los privilegios perdidos. México: IIH
– Unam, 2003.
91 Galarza aponta três carências nos estudos dos códices mexicas que se devem, em parte, à não
aplicação da categoria de escrita e de texto a esses manuscritos. Essas carências seriam: A – a
falta de inventários completos dos textos existentes; B – a ausência de um método de trabalho
compartilhado e baseado nos detalhes e na análise sistemática dos grupos de manuscritos; C –
a dificuldade de se estabelecer o sentido de leitura de cada página ou de cada manuscrito. Cf.
84 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
mos que o sistema mixteco-nahua era uma escrita, antes de buscar interpretações
amplas para seus signos visuais teríamos que entendê-los dentro de um conjunto de
convenções mais restritas, das quais depende o funcionamento de qualquer sistema
de escrita. Ademais, teríamos que sempre tratar seus signos visuais em meio do con-
texto semântico em que se encontram, em vez de considerá-los como entidades auto-
suficientes com sentidos alegóricos mais ou menos fixos.
Pelo que expusemos até este ponto, acreditamos que nossa posição diante da
polêmica tenha ficado clara, ou seja, que estamos tratando os registros pictoglíficos
como parte de um sistema de escrita. Vejamos então aspectos da polêmica que contri-
buirão para fundamentar essa posição.
É quase consensual que tanto o sistema maia quanto o mixteco-nahua, ape-
sar de suas diferenças, combinavam representações pictóricas ou figurativas com
glifos calendários, numéricos, toponímicos, antroponímicos, fonéticos e de deter-
minação semântica, formando registros com sua própria organização e lógica. No
entanto, os dois sistemas combinavam esses elementos de maneiras diferentes e
em graus distintos. Entre essas diferenças, destaca-se a predominância ou não dos
glifos fonéticos. Vejamos o porquê.
O sistema mixteco-nahua, no qual os glifos fonéticos eram utilizados de modo
reduzido e as pinturas e glifos ideográficos de maneira abundante, não se relaciona-
va, estrita e necessariamente, a uma língua em específico, pois os glifos não fonéticos
poderiam ter seus sentidos reabilitados por falantes de diversas línguas, desde que
partilhassem as convenções do sistema. Assim, seu funcionamento dependia funda-
mentalmente não de uma tábua de equivalências entre signos e sons – embora ela
também fosse parte de tal sistema –, mas de conjuntos de conteúdos, conceitos e
relatos que se relacionariam aos glifos e pinturas e que seriam decorados e manejados
por uma tradição de pensamento e oralidade que funcionava pari passu à produção e
uso dos escritos pictoglíficos.92
Já o sistema maia, no qual os glifos fonéticos eram utilizados de modo majoritá-
rio, relacionava-se fortemente a uma língua específica, pois tais glifos, em princípio,
só poderiam ter seus significados sonoros reabilitados por alguém que falasse a mes-
Galarza, Joaquín. The aztec system of writing. In: Browman, David L. (edit.). Cultural continuity in
Mesoamerica, op.cit.
ma língua dos produtores dos escritos – e que deveria também, é claro, compartilhar
as convenções de funcionamento do sistema. Assim, o sistema maia dependeria, pri-
meiramente, da memorização do valor fonético de seus signos e, em segundo lugar,
da memorização de conceitos, relatos ou conteúdos por uma tradição de pensamento
e oralidade conjunta.
Por esse predomínio dos glifos fonéticos, o sistema maia tem sido classificado
como uma “verdadeira escrita”, enquanto o mixteco-nahua, por não grafar prepon-
derantemente uma língua em específico e por depender mais estreitamente de uma
tradição oral e de pensamento, tem sido considerado como um recurso mnemônico,
como simples pintura, como uma proto-escrita abortada pela conquista ou como uma
espécie de rébus a ser decifrado.93
No entanto, acreditamos que essa classificação se deva à aplicação de uma con-
cepção polar e evolucionista de escrita. Polar, por articular as partes dos sistemas de
notação do pensamento e da fala como um binômio excludente, isto é, os registros
visuais e a oralidade.94 Evolucionista, por reservar o uso analítico do conceito de escri-
ta, quase que exclusivamente, aos sistemas fonéticos, vistos como o resultado de um
processo universal de desenvolvimento dos sistemas de registros visuais do pensamen-
to e da fala, o qual partiria da pictografia e chegaria até as escritas fonéticas. Dessa
forma, a criação e o desenvolvimento particulares dos distintos sistemas de escrita são
analisados como um processo universal, evolutivo e autorreferenciado, isto é, separa-
do das demandas e das prioridades que cada época e sociedade atribuíram ou reque-
reram de seus sistemas de registro do pensamento e da fala.95 Desse modo, as escritas
93 Cf. Dibble, Charles E. El antiguo sistema de escritura en México. In: Sobretiro del tomo IV, nums.
1-2 de la Revista mexicana de estudios antropológicos. México: scp, 1940. Estamos utilizando o con-
ceito de rébus como sinônimo de junção arbitrária restrita – isto é, cujos critérios e normas
não seriam compartilhados por grupos numérica ou temporalmente significativos em uma
dada sociedade – de representações visuais de objetos ou entes cujos nomes – ou suas partes
– formariam outros nomes ou frases. Tal junção teria a função de codificar mensagens verbais
em sinais visuais cuja reabilitação dos significados se tornaria uma espécie de charada, o que
se constitui, inicialmente, como o oposto do objetivo de um sistema de escrita, o qual seria,
em princípio, permitir a pronta reabilitação dos significados das mensagens grafadas em seus
registros visuais pelas pessoas versadas em seu funcionamento. Um exemplo clássico de rébus
são as brincadeiras infantis que formam nomes, conceitos ou frases por meio da junção da
representação visual de objetos muito simples, como a junção do desenho de um sol com o de
um dado para formar a palavra soldado.
95 Entre os estudiosos que constroem esse tipo de análise está Elliott, Jorge. The relationship
between painting and scripts. In: Browman, David L. (edit.). Cultural continuity in Mesoamerica,
op. cit. Por ouro lado, há estudos mostrando que nenhuma escrita seguiu totalmente o suposto
caminho evolutivo da pictografia ao alfabeto. Cf. Manrique Castañeda, Leonardo. Ubicación
86 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
não fonéticas são explicadas pelo que, supostamente, lhes falta ou pelos estágios que
deveriam ter atingido.
Acreditamos que esse tipo de postura analítica obstrui, em alto grau, o enten-
dimento dos recursos próprios a tais escritas. Por exemplo, o sistema mixteco-nahua
abarcava uma enorme gama de conceitos, compartilhados por produtores e usuários
de distintas origens linguísticas e que se encontravam distribuídos em diversas regiões
mesoamericanas. Certamente, essa característica poderia facilitar a comunicação e
o entendimento e, consequentemente, as alianças político-comerciais entre as elites
que se utilizavam de tal sistema. No entanto, essa mesma característica determinaria
certo detrimento de sua abrangência verbal e de sua precisão no momento da decodi-
ficação dos registros visuais em palavras, abrangência e precisão essas que eram muito
mais acentuadas no sistema maia.
Em outras palavras, não acreditamos que essas distintas características represen-
tem estágios de uma evolução em direção a um modelo de escrita ideal – que seria
representado pelo sistema fonético do mundo ocidental –, mas sim que reflitam pre-
ferências e escolhas adotadas por sociedades específicas e relacionadas diretamente
com seus valores políticos, suas práticas econômicas, seus critérios estéticos e, para
resumir, com suas experiências históricas concretas.96
A esse tipo de análise negativa, somam-se ainda aquelas que, a partir de uma
suposta evolução universal das expressões pictóricas, aplicam critérios estéticos e figu-
rativos da arte ocidental – fortemente marcados pelos cânones pictóricos do Renasci-
mento e pelo uso da perspectiva – para avaliar o suposto estágio de desenvolvimento
das pinturas e soluções figurativas empregadas no sistema mixteco-nahua. Nesse caso,
as imagens mixteco-nahuas são vistas apenas como o resultado de sociedades que não
desenvolveram plenamente a “arte da pintura”, pois nunca chegaram a “reproduzir
realisticamente” o mundo visível ou a servir-se plenamente dos princípios da pers-
pectiva. Em outra ocasião tivemos a oportunidade de analisar o emprego de algumas
formas e soluções figurativas nos códices nahuas e pudemos comprovar que os pro-
blemas semiológicos eram imperiosamente prioritários em relação aos de reprodução
realística da dimensão visual dos objetos e seres.97
96 Citamos acima que talvez o primeiro sistema de escrita mesoamericano tenha sido predomi-
nantemente fonético e que sistemas posteriores, como o mixteco-nahua, tenham adotado o
caráter pictoglífico.
97 Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Os códices mexicas. In: Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia – USP. São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, n. 14, p. 241-58, 2004.
Eduardo Natalino dos Santos 87
98 Jacques Derrida mostra como as relações entre o universo de signos visuais e a língua-pensa-
mento são extremamente complexas e podem ter formas muito variadas. Para ele, separar
de forma dicotômica as sociedades com escrita das sociedades orais é um reducionismo que
parte da “...definição tradicional de escritura que já em Platão e em Aristóteles se estreitava
ao redor do modelo da escritura fonética e da linguagem de palavras.” Além disso, entender
a escrita apenas como um sistema derivado e determinado a representar unicamente os sons
das palavras “...reflete a estrutura de um certo tipo de escritura: a escritura fonética, aquela
de que nos servimos e em cujo elemento a episteme em geral (ciência e filosofia), a linguística
em particular, puderam instaurar-se. Seria necessário, aliás, dizer modelo mais do que estrutura:
não se trata de um sistema construído e funcionando perfeitamente, mas sim de um ideal diri-
gindo explicitamente um funcionamento que de fato nunca é, totalmente, fonético.” Derrida,
Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1973. p. 37.
99 A situação que o texto descreve teria ocorrido em 1524, em uma reunião entre os primeiros
franciscanos enviados como evangelizadores e os líderes religiosos locais. No entanto, a reda-
ção ocorreu décadas depois e estaria relacionada com os trabalhos de Bernardino de Sahagún.
Algumas respostas dos sábios e dirigentes mexicas constantes nesse texto são analisadas em
Arcuri, Marcia Maria. Histories of the mexica. Essex: Department of Art History and Theory –
University of Essex, 1996.
100 Os sublinhados são meus. Sahagún, Bernardino de. Coloquios y doctrina cristiana... México: Fun-
dación de Investigaciones Sociales – Unam, 1986, p. 140 e 141.
88 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Podemos perceber no trecho acima que a decodificação dos signos visuais dos
códices pictoglíficos – los libros, la tinta negra, la tinta roja – pelos membros da tradição
de escrita e pensamento mexica – los que tienen a su cargo las pinturas – é caracteriza-
da por dois verbos: itz e pohua, sublinhados no trecho e cujo uso pareado era muito
comum para referir-se a tal ação.101 Esse emprego conjunto dos verbos itz ou itta,102
que significam ver, e pohua, que significa contar ou relatar, parece apontar, justamente,
para a relação de complementaridade entre a ação estrita de ler – ou decodificar os
signos visuais – e a de relatar – ou recorrer a um repertório de conceitos, conteúdos
e narrativas sabidos ou memorizados. Isso porque a ação de contar, situada tempo-
ralmente no trecho citado após a de olhar, parece manter uma certa independência,
isto é, parece estar relacionada, mas não totalmente subordinada aos conteúdos dos
registros visuais, não obstante o fato de ser realizada pelos próprios produtores dos
tais registros – los que tienen a su cargo las pinturas.
Sendo assim, a leitura desses escritos também seria distinta da que comumente
se esperaria de um registro predominantemente fonético. Considerando-se então o
texto pictoglífico como parte de uma tradição que se servia de outros mecanismos
para registrar e manter as explicações socialmente aceitas, como a ancestralidade e
a pertinência a determinadas linhagens, “La lectura, por lo tanto, no era el descifra-
miento silencioso de un texto fijado en un momento histórico determinado (es decir,
de un texto con una ‘aura’), sino una representación pública y ritual que permitía ver
y escuchar el relato de los antiguos, reuniendo los libros pictográficos y las tradicio-
nes orales en un todo más rico que cualquiera de sus partes”.103 Em outras palavras,
no caso do sistema mixteco-nahua, parece que essas partes – o registro pictoglífico e
a oralidade – seriam conjuntamente acionadas na leitura ou encenação dos relatos,
sem que um tipo de discurso – o visual ou o oral – estivesse totalmente subordinado
ao outro, como se ambos corressem “paralelamente integrados”, reforçando-se mutu-
101 Cf. Mignolo, Walter. Signs and their trasmision. In: Boone, Elizabeth Hill e _____ (edit.). Wri-
ting Without words: alternative literacies in Mesoamerica and the Andes. Durham: Duke University
Press, 1994.
102 O verbo ver possui duas formas em nahuatl: itta e itz. A primeira é usada em todos os tempos e,
geralmente, é transitiva; a segunda é usada em composição com verbos auxiliares, quando justa-
mente pode se tornar intransitiva, como é o caso acima: quitzticate ou, em português, os que estão
vendo, formado por qui, que denota 3a pessoa, itz, ver ou olhar, ti, ligadura sem valor semântico, e
cate ou cateh, do verbo ser ou estar. Conforme comunicação pessoal de Leopoldo Valiñas.
103 Navarrete Linares, Federico. Los libros quemados y los libros sustituidos. Disponível em: <http://
www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/artigos/fn-a-e-livrosquei.html> Consul-
tado em 9 de dezembro de 2000, sem n. de página. Trataremos, mais adiante, do problema da
aura de originalidade que comumente projetamos sobre os manuscritos pictoglíficos, os quais
eram, ao que tudo indica, renovados ou refeitos com certa regularidade.
Eduardo Natalino dos Santos 89
104 A expressão entre colchetes é minha. Navarrete Linares, Federico. Mito, historia y legitimidad
política, op.cit., p. 60.
105 Cf. Thompson, J. Eric S. Un comentario al Códice de Dresde. México: FCE, 1988, p. 40.
106 O simples papel de instrumento mnemônico que desencadearia um discurso oral é proposto
em Lockhart, James. The nahuas after the conquest, op. cit. Numa posição quase oposta, Elizabeth
Hill Boone acredita que os documentos pictoglíficos eram uma instituição documental na
qual a explanação oral era acessória. Cf. Boone, Elizabeth Hill. Pictorial documents and visual
thinking in Postconquest Mexico. In: _____ e Cummins, Tom (edit.). Native traditions in the
postconquest world. Washington: Dumbarton Oaks Research Library and Collection, 1998.
107 Na verdade, a separação entre glifos fonéticos e ideográficos não é absoluta e a estamos em-
pregando como uma simplificação didática. Isso porque muitos dos próprios logogramas ou
fonogramas possuíam dimensões conceituais mais gerais, tal como ocorria com os ideogramas.
Além disso, era muito comum nos registros maias que um mesmo nome ou conceito fosse gra-
fado por meio de glifos ideográficos, silábicos ou pela mistura de ambos. Um famoso exemplo
é o caso de balam, que significa jaguar ou sacerdote. Cf. Coe, Michael D. e Kerr, Justin. The art of
the maya scribe. Londres: Thames and Hudson, 1997, p. 54.
108 Cf. Brotherston, Gordon. Traduzindo a linguagem visível da escrita. In: Literatura e Sociedade.
São Paulo: Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH da USP, n. 4,
p. 78-91, 1999.
90 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
componentes. Isso talvez nos desautorize a traçar divisões muito rígidas entre tais
sistemas, como a que se propõe com a separação entre ocidente e oriente da Meso-
américa, regiões em que vigorariam sistemas escriturais de naturezas supostamente
distintas. Talvez estejamos em face de dois sistemas que se utilizam, basicamente, dos
mesmos recursos em proporções diferentes e, sendo assim, aproximar seus estudos
e comparar seus registros poderia contribuir para o esclarecimento mútuo de suas
características e conteúdos ainda não entendidos.
Além disso, a visão polar entre escrita e oralidade e o pressuposto de que uma “ver-
dadeira escrita” deve grafar uma língua em específico têm produzido posturas analíticas
radicais e, em meu entender, equivocadas diante dos escritos maias e mixteco-nahuas.109
Por um lado, talvez até com a intenção de combater a subvalorização à qual os
sistemas de escrita mesoamericanos têm sido submetidos, alguns estudiosos assumi-
ram como pressuposto que todos os elementos presentes no sistema maia ou mixteco-
nahua são estritamente fonéticos, o que termina por reforçar o juízo de que um siste-
ma visual de registro é uma “verdadeira escrita” somente quando se configura como
a grafia de uma língua. É o chamado foneticismo, que atinge, sobretudo, o estudo
dos escritos maias e manifesta-se como a tendência de tentar entender as escritas pic-
toglíficas focalizando apenas seus elementos fonéticos, buscando assim decifrar seus
códigos linguísticos sem levar em conta “...qualquer mensagem visual que pudesse
estar sendo transmitida”.110
No caso do sistema mixteco-nahua, seu entendimento equivocado como um ré-
bus que notaria apenas a língua nahuatl remonta ao último quarto do século XVI e
aos trabalhos de alguns religiosos franciscanos que, desde então, promoveram a pro-
dução dos chamados Códices Testerianos. Nesses manuscritos, orações e outros textos
cristãos em nahuatl teriam sido grafados somente por meio de representações visuais
de elementos cuja combinação dos nomes se assemelharia às palavras das tais orações
e textos. Suas confecções partiram, assim, de uma premissa equivocada, pois as tradi-
ções nativas não grafavam, predominantemente, a fala por meio de glifos com valores
exclusivamente fonéticos – o que não significa dizer que tal recurso não fora utilizado
pelas tradições de escrita locais.111 Além disso, o grosso da produção desses códices
109 Em outra ocasião, fizemos um balanço das maneiras como os manuscritos mixteco-nahuas vêm
sendo empregados pelos estudiosos nas últimas quatro ou cinco décadas. Cf. Santos, Eduardo
Natalino dos. Usos historiográficos dos códices mixteco-nahuas. In: Revista de História. Depar-
tamento de História, FFLCH-USP. São Paulo: Humanitas e FFLCH – USP, n. 153, p. 69-115,
segundo semestre de 2005.
110 Brotherston, Gordon. Traduzindo a linguagem visível da escrita. In: Literatura e Sociedade, op.
cit., p. 79.
111 No entanto, o uso de glifos fonéticos no sistema mixteco-nahua não se dava como em uma
escrita rébus, visto que os glifos silábicos eram, preponderantemente, empregados na forma
Eduardo Natalino dos Santos 91
data dos séculos XVII ao XIX, época, justamente, da decadência da produção dos
registros pictoglíficos pelas tradições de pensamento e escrita nahuas.112
Apesar disso, alguns estudiosos têm desenvolvido trabalhos nessa direção com
os códices mixteco-nahuas, ou seja, aplicando o pressuposto de que todos os ele-
mentos neles contidos são fonéticos, e que assim esse sistema de escrita serviu para
fixar e transcrever a língua nahuatl.113 Querer comprovar que o sistema pictoglífico
nahua apenas transcreve foneticamente o idioma nahuatl – e que assim é uma “ver-
dadeira escrita” – parece-nos uma tentativa de combater os preconceitos contra os
sistemas de escrita mesoamericanos reforçando parte deles, pois, como menciona-
mos acima, se corrobora o pressuposto de que a escrita fonética deva ser o modelo
a partir do qual devemos julgar e entender outros sistemas. Essa pressuposição re-
duz as chances de entendermos as enormes e pouco investigadas potencialidades
dos sistemas ideográfico-fonéticos, pois os aprisiona com a “camisa de força” do
foneticismo. Além disso, é de difícil sustentação que o sistema mixteco-nahua seja
totalmente – ou mesmo predominantemente – fonético, pois é mais ou menos con-
sensual que combinava glifos fonéticos com ideográficos e que os últimos ocorriam
em uma proporção muito maior.
Não obstante a existência dessas posturas dicotômicas, evolucionistas ou foneti-
cistas entre muitos estudiosos dos sistemas de escrita mesoamericanos, há vários ou-
tros pesquisadores que tratam tais registros como o produto de um sistema de escrita
particular, que combinava representações fonéticas, ideográficas, geográficas, calen-
dárias e matemáticas, entre outras, de acordo com uma organização e uma lógica
de prefixos ou sufixos – como o de tetl (pedra) para te (alguém ou alguns) e o de pantli (bandei-
ra) para pan (em cima) – ou para representar sons – como acatl (cana) para o som da letra “a”,
etl (feijão) para o da letra “e” e otli (caminho) para o som da letra “o”. Cf. Alcina Franch, José.
Códices mexicanos. Madri: Editorial Mapfre, 1992.
112 A adoção dessa tentativa franciscana estaria muito mais relacionada com as decisões do Con-
cílio de Trento, realizado em 1564, entre as quais estaria o decreto da legitimidade e eficácia
do uso das imagens para a evangelização. Tais resoluções são implantadas na Nova Espanha
em fins do século XVI. Além disso, a obra do frei Valdés de 1579, Rethorica christiana, testemu-
nharia a autoria franciscana do projeto que produziu esses escritos. Cf. Boone, Elizabeth Hill.
Pictorial documents and visual thinking in Postconquest Mexico. In: _____ e Cummins, Tom
(edit.). Native traditions in the postconquest world, op. cit. Apesar disso, Joaquín Galarza acredita
que esse grupo de manuscritos é parte do sistema de escrita nahua e assim deve ser lido. Esse
autor elaborou um catálogo ou dicionário de glifos a partir de um manuscrito que registra a
oração do Pai Nosso e que, supostamente, permite a leitura de outros manuscritos testerianos.
Cf. Galarza, Joaquín. Códices o manuscritos testerianos. In: Arqueología Mexicana. México: Edi-
torial Raíces/Inah/Conaculta, v. VII, n. 38, p. 34-7, 1999.
113 Essa é a proposição basilar dos trabalhos de Joaquín Galarza, entre os quais está Galarza, Joa-
quín. In amoxtli in tlacatl. México: Tava Editorial, 1992.
92 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
próprias. Ademais, alguns desses estudiosos procuram mostrar que os sistemas mesoa-
mericanos de registro do pensamento e da fala poderiam servir até para revisarmos a
citada concepção de que a escrita alfabética é o modelo ideal a partir do qual devemos
julgar e entender os outros sistemas, pois “...a escrita tlacuilolli desafia as definições
ocidentais de escrita com a engenhosidade com que funde imagem, número e nome
em uma mensagem holística”.114
Tais pesquisadores, dos quais seguiremos algumas ideias e pressupostos, recla-
mam a necessidade de uma definição mais ampla de escrita, que passaria a abranger
qualquer sistema de representação visual ou táctil do pensamento ou da fala com
convenções, usos, lógica e gramática internas bem estabelecidos – em determinada so-
ciedade ou fração social –, os quais garantiriam uma qualidade básica a qualquer siste-
ma: a permanência e a reabilitação de significados relativamente bem determinados e
socialmente compartilhados a partir da decodificação de seus registros. Alguns desses
sistemas teriam por objetivo a reabilitação da fala e outros a de discursos, complexos
ideológicos ou conceitos. Dentro desse segundo tipo estaria o sistema mixteco-nahua,
apesar de também empregar glifos fonéticos, os quais eram escolhidos de modo a per-
mitir que falantes de nahuatl, otomie, totonaco, cuicateco, chocho, mixteco, zapoteco
e tlapaneco compartilhassem o mesmo sistema, o que poderia ser uma grande vanta-
gem se o objetivo fosse uma circulação regionalmente mais ampla dos registros.115
Partindo dessa concepção mais ampla de escrita e entendendo que as diferen-
ciações entre os sistemas relacionam-se mais com preferências de ordem visual, pro-
pósitos políticos ou usos sociais do que com necessidades fonéticas ou linguísticas
intrínsecas e universais, como citamos acima, tais estudiosos procuram então compre-
ender a gramática, a semântica e a lógica internas e próprias dos registros pictoglíficos
mixteco-nahuas, interpretando suas partes dentro de um todo maior formado pelo
texto e pelo próprio sistema. Dessa forma, analisam as técnicas de transmissão oral e
de escrita indígena de modo positivo, isto é, procurando compreender suas capacida-
114 Brotherston, Gordon. Traduzindo a linguagem visível da escrita. In: Literatura e Sociedade,
op.cit., p. 84. Esse autor tem insistido na inadequação da separação entre as dimensões da
pictórico-figurativa e escriturária – característica do pensamento ocidental moderno – para o
entendimento da escrita tlacuilolli.
115 Elizabeth Hill Boone chama esse segundo tipo de escrita semasiográfica, isto é, que representa
visualmente a sistemas discursivos. Propõe que uma definição mais ampla de escrita deva en-
volver não só os manuscritos do México central e de Oaxaca, mas também os quipos andinos.
Cf. Boone, Elizabeth Hill. Stories in red and black. Austin: University of Texas Press, 2000. Outro
estudioso a defender a ampliação da abrangência do conceito de escrita, de modo a englobar
os quipos afirma que “El quipu podría ser considerado un sistema de escritura en el sentido
más amplio de esa palabra: un determinado conjunto de señales visuales (o táctiles) ordenadas
para contener significados.” Urton, Gary. Quipu. Santiago: Museo Chileno de Arte Precolombi-
no/Universidad de Harvard, 2003, p. 19.
Eduardo Natalino dos Santos 93
116 Cf. Navarrete Linares, Federico. Las fuentes indígenas. Disponível em: <http://www.fflch.usp.
br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/artigos/FN-P-A-historiaymito.html> consultado em 9
de dezembro de 2000.
117 Brotherston, Gordon. Indigenous intelligence in Spain’s American Colony. In: Forum for mo-
dern language studies. St Andrews: University of St. Andrews Press, v. XXXVI, n. 3, p. 241-53,
2000. p. 241.
94 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
de seus registros e usos sociais, levando até o problema do estatuto dos sistemas de
representação do pensamento ou da fala pré-hispânicos.
Acreditamos que esta pesquisa tangencia essa importante questão ao procurar
entender, sobretudo, as funções do calendário e da cosmografia nos manuscritos pic-
toglíficos, bem como ao tratar do momento de entrelaçamento e de passagem do sis-
tema mixteco-nahua para o alfabético. Acreditamos que nossas análises poderão con-
tribuir para o aprimoramento de uma apreciação historicamente adequada dos dois
tipos de escrito e do sentido que seus usos tiveram para as tradições de pensamento
nahuas no século XVI, isto é, na passagem do período Pré-hispânico ao Colonial.
Mas apesar desse crescente interesse historiográfico pelos textos e registros pré-
hispânicos ou coloniais pictoglíficos, ainda há muitos estudiosos que negam termi-
nantemente a possibilidade de estudo dos povos mesoamericanos por meio de seus
próprios escritos, sobretudo dos pictoglíficos: “As inscrições mesoamericanas, por
mais sofisticadas que sejam, não foram inteiramente decifradas e são de pouca va-
lia para empreender uma reconstituição histórica”.118 Em decorrência dessa postura,
previamente negativa, só nos restaria recorrer aos textos alfabéticos e, preferencial-
mente, aos produzidos pelos europeus: “Tudo o que sabemos sobre as civilizações
antigas procede, desta forma, dos conquistadores europeus”.119
Vale ressaltar que o pré-estabelecimento dessa suposta impossibilidade não pro-
vém de uma época remota, quando os estudos desses escritos estavam se iniciando,
mas sim dos anos de 1990, depois de tantos resultados consistentes e inquestionáveis
terem sido alcançados por historiadores, linguistas, antropólogos e arqueólogos de-
dicados ao estudo desses manuscritos. Sendo assim, essa postura, além de subestimar
os recursos próprios dos sistemas pictoglíficos e ideográficos, nega os resultados de
tantos estudos sem debater com eles ou apresentar contra-argumentos convincentes.
Como é possível desqualificar de uma só vez todos os estudos produzidos sobre a
história dos maias com base em suas estelas? Como não tomar em conta os estudos
sobre a migração mexica ou as linhagens governantes mixtecas que foram empre-
118 Bernand, Carmen e Gruzinski, Serge. História do Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 1997, p. 16.
119 Ibidem, p. 16. Michel Graulich parece concordar com essa posição, pois em um de seus mais
importantes estudos afirma que a obra de Sahagún é a mais completa para se estudar o mundo
mesoamericano e que outras fontes, como o Vaticano A, o Borbónico e o Magliabechiano são po-
bres: “Si cito el Códice borbónico en último lugar es porque, como todo códice prehispánico,
no es inteligible más [que] a la luz de las informaciones provenientes de las fuentes escritas.”
A expressão entre colchetes foi inserida por mim. Graulich, Michel. Mitos y rituales del México
antiguo. Madri: Ediciones Istmo/Colegio Universitario, 1990, p. 310. Procuraremos mostrar, ao
contrário do que afirma Graulich, que o Códice borbónico possui elementos que não são esclare-
cidos pela leitura das fontes alfabéticas, como sua estrutura e gramática interna, e que podem
ser estudados em comparação com outros documentos pictoglíficos.
Eduardo Natalino dos Santos 95
120 É interessante notar que Lévi-Strauss não trata dos textos cosmogônicos, dos anais ou dos livros
de linhagens mesoamericanos, mantendo assim a coerência de sua hipótese analítica, que esta-
belece uma América indígena regida pela oralidade, uma espécie de paraíso não corrompido
pela escrita. Cf. Brotherston, Gordon. La América indígena en su literatura. México: FCE, 1997.
Além disso, ao tratar das particularidades do conhecimento histórico, afirma que este se en-
contrava enraizado no chamado pensamento selvagem, mas que nele não desabrochou, pois
“O próprio do pensamento selvagem é ser intemporal; êle quer captar o mundo, ao mesmo
tempo, como totalidade sincrônica e diacrônica...” Lévi-Strauss, Claude. O pensamento selvagem.
São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1970, p. 299. Veremos que a temporalidade,
em sua dimensão sincrônica e diacrônica, ocupava um papel central na organização dos rela-
tos mesoamericanos sobre o passado distante ou recente.
121 Cf. Boone, Elizabeth Hill. Stories in red and black. Austin: University of Texas Press, 2000.
96 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
narrativa imaginada que não possui – ou para a qual não importa estabelecer – uma
relação de verossimilhança com acontecimentos pretéritos.
Em suma, penso que as possíveis relações entre os conteúdos registrados nas fon-
tes pictoglíficas mixteco-nahuas e o passado de seus produtores e usuários primários
não devam ser superestimadas ou tomadas como certas e semelhantes às da tradição
histórica ocidental contemporânea, mas tampouco negadas radicalmente e de an-
temão. Somente por meio dos resultados de estudos que apostem na possibilidade
de compreensão dessas fontes e de sua relação com os eventos passados poderemos
julgar. Mas então julgaremos a partir de resultados concretos e não de especulações
previamente negativas, que subestimam o alcance e o conteúdo dessas fontes. Afinal,
muitos resultados concretos vêm sendo obtidos com esses estudos, tais como: o co-
nhecimento detalhado da história dos reinos mixtecos, como o de Tututepec e seu
soberano-conquistador Oito Veado;122 a minuciosa compreensão da migração mexi-
ca123 e dos povos chichimecas, bem como da relevância política posterior de sua repre-
sentação pictoglífica;124 além da verdadeira revolução no entendimento dos reinos e
confederações maias graças às suas próprias estelas e outras inscrições.
No altiplano central mexicano, o século XVI foi marcado pela derrota políti-
co-militar dos mexicas e pelo progressivo crescimento da importância política dos
castelhanos – principalmente conquistadores, encomenderos, funcionários da coroa e
missionários – e de suas instituições sociopolíticas – cabildos, governadorias, vice-reino,
sistema de tributo, colégios e missões religiosas – na rede de alianças locais, as quais
incluíam as elites nativas, sobretudo as que haviam se aliado a eles para derrotar os
mexicas. No entanto, com o progressivo aumento do número de castelhanos e a ver-
tiginosa diminuição da população indígena, as alianças com as elites locais tornar-se-
iam cada vez mais dispensáveis ou favoráveis aos primeiros.
De todas as formas, esse pacto político-militar entre castelhanos e, por exemplo,
tlaxcaltecas subentendia outro tipo de pacto, pelo menos do ponto de vista dos cas-
telhanos: a aceitação da religião cristã. Soma-se a isso a possibilidade de que os povos
conquistados, seguindo a tradição política local, tenham recebido os “deuses” dos
vencedores como consequência direta da nova hierarquia política. A tendência re-
122 Por exemplo, Jansen, Maarten. Un viaje a la casa del sol. In: Arqueología Mexicana. Códices prehis-
pánicos. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. IV, n. 23, p. 44-9, 1997.
123 Por exemplo, Navarrete Linares, Federico. Mito, historia y legitimidad política, op.cit.
124 Por exemplo, Brotherston, Gordon. Grupos Chichimecas. Curso de extensão universitária no IIA
da Unam, Cidade do México, 18 a 22 de novembro de 2002.
Eduardo Natalino dos Santos 97
sultante desses fatores explicaria a relativa rapidez com que grande parte dos altepeme
adotou os santos cristãos.125
No entanto, supondo que tenha havido essa tendência de aceitação do cristianis-
mo, ela não implicava em exclusividade do ponto de vista dos povos mesoamericanos,
os quais estariam conhecendo e interpretando as novidades do pensamento cristão
de acordo com seus pressupostos de pensamento, com a situação política concreta e
com seus projetos e horizontes de possibilidades. Sendo assim, a parte do mundo me-
soamericano submetida ou em aliança com os castelhanos conheceu uma novidade
radical no século XVI: a exclusividade exigida pelos “deuses” dos conquistadores. As
populações locais adotaram posturas variadas diante dessa exigência de exclusivida-
de, entre as quais estão o abandono ou ocultação das antigas práticas rituais, a tenta-
tiva de integração das práticas católicas ao universo cerimonial nativo e o confronto e
questionamento aberto de tal exclusividade.126
Mas para os castelhanos, a implantação dessa exclusividade entre os povos con-
quistados e aliados era um passo obrigatório, cuja execução passaria pela destruição
dos objetos e construções relacionados às antigas convicções – ou mesmo pela de seus
usuários – e por sua substituição por equivalentes cristãos. Por isso, concomitante-
mente à progressiva conquista político-militar que se seguiu à queda de Tenochtitlan,
organizou-se o trabalho missionário cristão. As primeiras atividades dos missionários
consistiram em destruir todos os objetos ou construções que aos seus olhos fossem
considerados idolátricos – entre os quais estavam os escritos pictoglíficos – e promo-
ver batismos em massa.127
Além das queimas de livros promovidas pelos missionários castelhanos, parece
que em alguns casos os próprios indígenas também promoveram destruições e ocul-
tações para se livrarem das perseguições, prisões e execuções promovidas por bispos,
125 De acordo com essa hipótese, os “deuses” dos vencedores teriam sido quase automaticamente
aceitos com a vitória militar castelhana e de seus aliados. Desse modo, era necessário instruir os
vencidos na nova fé mais do que convencê-los a adotá-la. Cf. Lockhart, James. The nahuas after
the conquest, op. cit.
126 Parece que a ênfase dominicana no batismo e a franciscana na confissão foram interpretadas
como diferentes formas de cristianismo, o que teria levado, por exemplo, a Don Carlos Ometo-
chtzin e outros indígenas a questionar a razão da proibição das celebrações e crenças nos seus
próprios deuses. Cf. Rabasa, José. Franciscans and Dominicans under the gaze of a tlacuilo. Berkeley:
Doe Library – University of California, 1998.
127 Na verdade, a própria expedição de Hernán Cortés havia contado com a participação de um
religioso, o frei Bartolomé de Olmedo. Além disso, a consolidação de algumas alianças havia
sido acompanhada do batismo formal dos povos locais e de algumas destruições de templos e
de imagens considerados idolátricos, como a famosa matança no templo de Cholula. Cf. Díaz
del Castillo, Bernal. Historia verdadera de la conquista de la Nueva España. México: Editorial Por-
rúa, 1994.
98 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
128 Parece que em sua campanha de extirpação idolátrica, Diego de Landa queimou trinta manus-
critos. Cf. Longhena, María. Maya script. Nova York: Abbeville Press, 2000. Além disso, sabemos
que houve queimas de livros em tempos pré-hispânicos, como a promovida pelo tlatoani me-
xica Itzcoatl. No entanto, convém notar que as queimas castelhanas tiveram um caráter muito
distinto, pois buscavam, nesse momento, extirpar uma tradição de escrita e de pensamento; e
não garantir sua sobrevivência por meio da substituição de determinadas versões.
129 O grupo Borgia foi definido em 1887 por Eduard Seler e seu mais completo estudo foi de Karl
Antony Nowotny, na famosa obra Tlacuilolli, que permaneceu apenas em alemão até 2005,
quando foi traduzida ao inglês. Nessa época estávamos na fase final da redação da tese e,
infelizmente, não foi possível importar e consultar essa obra, a qual parece, cada vez mais,
firmar-se como um importante modelo de procedimento metodológico no campo dos estudos
dos códices pictoglíficos. De toda forma, fica a menção de sua existência e o compromisso de
incorporá-la em futuras pesquisas. Cf. Nowotny, Karl Anton. Tlacuilolli. Norman: University of
Oklahoma Press, 2005.
130 Cf. Glass, John B.. A survey of native Middle American pictorial manuscripts. In: Wauchope,
Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor do volume). Handbook of Middle American In-
dians. Austin/Londres: University of Texas Press, 1975, v. 14, p. 12.
Eduardo Natalino dos Santos 99
131 Além dos mapas, livros de história e linhagens, em escrita pictoglífica e/ou alfabética, entre
esses escritos estão as petições para a obtenção, continuidade ou melhoria dos privilégios ob-
tidos. Os principais argumentos utilizados pelas elites do centro do México são a pertinência
a linhagens governantes pré-hispânicas, a pronta aceitação do cristianismo ou a contribuição
para sua divulgação, além da aliança com os espanhóis para derrotar os mexicas. A atitude ge-
ral da coroa castelhana, por meio da Audiência, foi a de contemplar essas petições, sobretudo
até meados do século XVI. Cf. Pérez Rocha, Emma e Tena, Rafael. La nobleza indígena del centro
de México después de la conquista. México: Inah, 2000.
132 Cf. Boone, Elizabeth Hill. Pictorial documents and visual thinking in Postconquest Mexico.
In: _____ e Cummins, Tom (edit.). Native traditions in the postconquest world, op. cit.
100 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
133 Tratamos amplamente desse tema em outra ocasião. Aqui nos limitaremos a apontar como esse
tipo de trabalho missionário gerou demandas que impulsionaram e direcionaram a produção
de manuscritos pictoglíficos e de textos alfabéticos, os quais contaram com a participação de
pessoas oriundas, principalmente, das elites nahuas conquistadas ou aliadas. Cf. Santos, Edu-
ardo Natalino dos. Deuses do México indígena, op. cit.
134 Vale frisar que o objetivo desses missionários era conhecer para converter, isto é, separar os
hábitos considerados idolátricos – que deveriam ser perseguidos e eliminados – daqueles cos-
tumes que poderiam ser mantidos. Sendo assim, seus interesses pelos escritos e pelo pensa-
mento e história locais eram instrumentais, pois estavam relacionados diretamente a um pro-
jeto missionário que, sobretudo no caso dos franciscanos, buscava uma conversão profunda.
Tal conversão transformaria os povos indígenas em comunidades cristãs que restituiriam a
pureza das primeiras comunidades apostólicas e que seriam, assim, menos pecadoras do que
as comunidades do Velho Mundo naquele momento. Cf. ibidem. Apesar disso, é muito comum
que esses religiosos sejam vistos como humanistas que se interessaram pelas tradições e hábitos
mesoamericanos em si ou de modo global, para reconstruírem o que havia sido perdido com
a conquista. Segundo León Portilla, esses religiosos humanistas “...no ya sólo se dolieron de
las pérdidas sino que quisieron compensarlas rescatando cuanto pudieron del antiguo legado
indígena.” León Portilla, Miguel. Códices, op. cit, p. 18.
135 Além das alterações temáticas e estruturais apontadas, os códices coloniais também sofreram
alterações de formato, material e técnica de produção. No caso do suporte material, ocorreu
a queda na utilização da pele de veado e a continuidade no uso do papel amate e maguey e
das telas de algodão, além da introdução do papel europeu, proveniente de linho, cânhamo
ou algodão. As tintas e pigmentos indígenas continuaram a ser utilizados, mas houve a pau-
latina introdução de produtos europeus, como a tinta ferrogálica. Nas técnicas de pintura,
podemos observar a influência europeia no trato do espaço e das formas, sobretudo na perda
de importância da grossa linha de contorno das figuras, na redução no tamanho da cabeça da
figura humana e na introdução de princípios de perspectiva que alteraram a construção das
representações geográficas. Também se pode notar o uso de um leque maior de cores, o que
não aboliu seus múltiplos significados como elementos de leitura. Cf. Valle, Perla. Códices
coloniales. In: Arqueología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. IV, n. 23, p.
64-9, 1997.
Eduardo Natalino dos Santos 101
mente cristãs e que fazem uso de elementos pictóricos oriundos do sistema pictoglífi-
co quase que exclusivamente como ilustrações que acompanham textos alfabéticos.
Por esse mesmo tipo de trabalho conjunto, também foram produzidos inúme-
ros textos alfabéticos em línguas mesoamericanas e europeias. Tais textos tinham
por objetivo recolher, trasvasar e tornar inteligível, dentro do novo contexto socio-
político e cultural, os conteúdos tradicionalmente veiculados pelos códices e sua
oralidade acoplada.
Podemos dividir os textos alfabéticos que contaram com a participação de infor-
mantes nativos em dois tipos: A – os relatos provenientes da tradição oral ou da lei-
tura de manuscritos pictoglíficos, os quais raramente são distinguíveis entre si, a não
ser pela presença de conteúdos dificilmente registrados pictoglificamente ou pela
presença de temáticas típicas dos manuscritos pictoglíficos, tais como os itinerários
migratórios precisamente datados e localizados, as listas de cidades conquistadas e
as genealogias; B – as respostas de indígenas para escritores espanhóis, que podem
aparecer em formato indígena ou ocidental.136
Em ambos os casos, podemos perceber certa tensão entre, de um lado, os focos
de interesse dos missionários castelhanos e, do outro, a força dos temas e estruturas
narrativas tradicionais, que eram recolhidos a partir dos depoimentos e explicações
sobre os códices pictoglíficos fornecidos pelos sábios indígenas ligados às tradições
locais de pensamento.137 Além disso, não devemos deixar de considerar a participa-
ção ativa dos alunos indígenas bilíngues que, ao transcreveram e traduzirem tais de-
poimentos e explicações, realizavam também seleções e transformações estruturais.
Devido a essa relação com os códices e com os membros das tradições locais de pen-
samento em sua produção, esses textos alfabéticos são fontes importantes para se
entender alguns aspectos dos manuscritos pictoglíficos, o que não significa dizer que
os conteúdos e lógicas desses manuscritos se reduzam aos que estão presentes nos
textos alfabéticos.138
136 Cf. Gibson, Charles. A survey of Middle American prose manuscripts in the native historical
tradition. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Han-
dbook of Middle American Indians, op. cit., v. 15.
137 Exemplos desses textos são a Leyenda de los soles e a Historia de los mexicanos por sus pinturas, duas
de nossas fontes centrais.
138 Miguel León Portilla critica contundentemente a Ferdinand Anders e a Maarten Jansen por
não seguirem as informações desses textos alfabéticos em todos os livros explicativos que pro-
duziram sobre os códices – que em geral acompanham as edições fac-símiles dos códices publi-
cados pelas editoras Fondo de Cultura Económica e Akademische Druck-und Verlagsanstalt
– e por adotarem, segundo León Portilla, “...un camino lírico, inventando lo que se siente o
se ocurre con solemnes palabras de supuesta inspiración indígena...” León Portilla, Miguel.
Códices, op. cit., p. 140.
102 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Como citamos acima, o sistema alfabético também foi utilizado pelas elites
nahuas fora desses trabalhos conjuntos e dirigidos pelos missionários. Era neces-
sário, a tais elites, ser entendida pelos poderes e instituições dirigidos pelos caste-
lhanos para conquistar ou reivindicar posições de comandos intermediárias e para
manter a citada divisão entre pipiltin e macehualtin. Embora seja um tema cercado
por certo tabu historiográfico, é importante enfatizar que as elites nahuas, em mui-
tos casos, estavam centralmente preocupadas com a manutenção da ordem social
existente, isto é, com sua diferenciação em relação aos macehualtin. Para isso, não
era raro que adotassem elementos que as identificassem com as instituições, hábitos
e costumes castelhanos, que, desse modo, progressivamente se impuseram na região
central do México.139
Em muitos casos, como nas obras de Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin e de Fer-
nando de Alva Ixtlilxochitl, essas elites produziram textos alfabéticos que procuravam
acomodar as antigas narrativas cosmogônicas, históricas e de linhagens à cosmogonia
e história judaico-cristã.140 Na região maia parece ter havido, inclusive, o abandono
voluntário do sistema pictoglífico e a opção pelo alfabeto ocidental, que despertaria
menos suspeitas e que talvez seria mais eficiente diante dos novos desafios e deman-
das enfrentados pelos povos nativos: conseguir o reconhecimento de seu pensamento
e garantir a manutenção de terras e privilégios junto aos novos senhores políticos da
região. Assim surgiu o Popol vuh e os diversos livros de Chilam balam, que não são a
simples e automática compilação da antiga palavra; ao contrário, são obras maias no-
vas, que apresentam um novo formato, um novo sistema de notação e a aquisição de
conceitos trazidos pelos castelhanos em conjunção com os conceitos nativos.141
No caso dos nahuas do altiplano central mexicano, contando com a maior ou
menor participação de missionários ou funcionários da coroa castelhana, muitos li-
139 Uma mostra do empenho das elites nahuas na manutenção da ordem social pode ser encon-
trada nas mencionadas petições de nobres locais à Audiência castelhana, entre as quais eram
muito comuns “...aquellas que pedían se obligara a los macehuales a seguir prestando los
servicios personales a los señores...” Pérez Rocha, Emma e Tena, Rafael. La nobleza indígena del
centro de México después de la conquista. México: Inah, 2000. p. 20.
140 Cf. Kossovich, Elisa Angotti. Dois cronistas mestiços da América ou da reconstituição da glória
perdida através da História. In: Azevedo, Francisca L. Nogueira e Monteiro, John Manuel.
Confronto de culturas. Rio de Janeiro/ São Paulo: Expressão e Cultura/Edusp, 1997.
141 Para Federico Navarrete Linares, a concepção de verdade nas tradições de pensamento e escri-
ta mesoamericanas não se ancorava primordialmente nos escritos – como ocorria, por exem-
plo, com a tradição cristã e sua visceral relação com os textos bíblicos –, mas também na con-
tinuidade de funcionamento da própria tradição. Sendo assim, acredita que em alguns casos
“...los indígenas se deshicieron de sus antiguos libros para reemplazarlos por otros nuevos que
fueran más adecuados a las distintas circunstancias del régimen colonial.” Navarrete Linares,
Federico. Los libros quemados y los libros sustituidos, op.cit.
Eduardo Natalino dos Santos 103
142 Esses trabalhos deram origem a escritos que podemos agrupar sob a denominação de Títulos
Primordiais, do qual o Grupo Techialoyan é parte. Cf. Noguez, Xavier. Los códices del grupo
Techialoyan. In: Arqueología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. VII, n. 38,
p. 38-43, 1999.
104 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
que permitia produzi-lo outra vez.143 Dessa forma, a ideia de um manuscrito portador
de uma aura de autenticidade por sua primordialidade talvez não tenha existido no
mundo nahua pré-hispânico ou colonial – ou, pelo menos, não desempenhou um
papel central entre suas tradições de pensamento e escrita.
Isso é muito importante para entendermos que os manuscritos coloniais nahuas
que iremos analisar não foram, em geral, concebidos como resquícios deficitários
em relação aos “originais” pré-hispânicos, mas sim como versões renovadas ou que
os substituiriam – adotando, eventualmente, o novo sistema de escrita. Sendo assim,
em análises comparativas com os escritos pré-hispânicos ou tradicionais, como as que
pretendemos desenvolver nos próximos capítulos, os textos coloniais nativos podem
nos revelar muito acerca de como as transformações desse período foram entendidas
e processadas pelas tradições de pensamento e escrita nahuas.
Por todas as formas que enunciamos acima de participação das populações
nahuas na produção dos escritos e na transformação de suas instituições diante das
demandas coloniais, acreditamos que não faz muito sentido pensar que tais popula-
ções tenham sido objetos passivos em um suposto processo de aculturação, direciona-
do exclusivamente pelas instituições castelhanas. Talvez fosse mais adequado pensar
em tais populações como produtoras e proprietárias de tradições vivas, que mostra-
ram sua capacidade de adaptação em uma situação politicamente desfavorável, como
foi a do século XVI. Em tal situação, a continuidade do pensamento nahua e de suas
explicações sobre o tempo, o espaço e o passado – temas que nos interessam central-
mente – não residia, necessariamente, na preservação de objetos autênticos – como
suas imagens ou livros pictoglíficos –, mas na continuidade transformada dos grupos
sociais que transmitiam e davam vida a esse pensamento e explicações.
Para essa continuidade, a adoção da escrita alfabética foi, em alguns casos, fun-
damental, mas ocorreu pari passu ao desuso da escrita pictoglífica. James Lockhart
comprova isso analisando as transformações na produção nahua de escritos por todo
o período Colonial, a qual se caracterizaria por três estágios principais: 1o – até 1540,
marcado por uma continuidade geral das práticas escriturarias tradicionais, pois pou-
cos centros espanhóis, basicamente México e Tlaxcala, haviam iniciado os trabalhos
de ensino alfabético a ajudantes nahuas; 2o – de 1540 até o início do século XVII,
caracterizado pela produção de textos alfabéticos de diversos tipos e em grande es-
cala, mas que ainda não eram comuns ou majoritários entre a população ou mesmo
entre a nobreza; 3o – de meados do século XVII em diante, marcado pelo incremento
no decréscimo do uso da escrita pictoglífica como veículo primário, pelo seu desa-
143 Cf. Navarrete Linares, Federico. Los libros quemados y los libros sustituidos, op.cit. Veremos no Ca-
pítulo IV que uma das principais características da cosmogonia mesoamericana era, justamen-
te, a centralidade das ideias de movimento, transformação e renovação do Mundo, as quais são
consonantes com a citada prática de renovação periódica de objetos, construções e livros.
Eduardo Natalino dos Santos 105
144 Cf. Lockhart, James. The nahuas after the conquest, op.cit.
106 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
O Códice magliabechiano
145 Utilizamos a edição fac-símile mais recente desse manuscrito: Códice Magliabechi. Graz/México:
ADV/FCE, 1996.
146 Cf. Boone, Elizabeth Hill. The Codex Magliabechiano and the lost prototype of the Magliabechiano
group. Berkeley/Los Ángeles/Londres: University of California Press, 1983.
147 O Pintor A seria o responsável desde a seção das mantas (p. 3r-5r) até a dos dois desenhos no
lado esquerdo da página 5v e, também, desde a seção dos deuses do pulque (p. 53r, 54r e 56r)
até parte da página 57r. O Pintor B teria começado dos dois pontos onde o outro parou e feito
todo o restante. Cf. ibidem.
148 O Glosador A seria responsável pelo título e pela maior parte do escrito e o B apenas por ano-
tações curtas e pela confusão com o ano da chegada de Cortés. Cf. ibidem.
149 Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native Middle American pictorial manus-
cripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook
of Middle American Indians, op. cit., v. 14, p. 155.
Eduardo Natalino dos Santos 107
150 Bebida obtida a partir da fermentação da seiva – chamada de aguamiel – do agave (Amarillida-
ceae), chamado genericamente de metl, em nahuatl, língua na qual contava com catorze nomes
para designar seus diversos tipos. Mais informações sobre essa bebida, seus usos e sua presença
nos códices em Lima, Oswaldo Gonçalves de. El maguey y el pulque en los códices mexicanos. Méxi-
co/Buenos Aires: FCE, 1956.
152 Formado pelos códices Magliabechiano (Biblioteca Nacional Central de Florença), Tudela (Mu-
seu da América de Madri), Ixtlilxochitl (Biblioteca Nacional de Paris) e Veytia (Biblioteca do
Palácio Nacional de Madri). Também estariam relacionadas a esse grupo as vinhetas da Historia
general de los hechos de los castellanos en las islas y tierra firme del mar Océano, de Antonio de Her-
rera y Tordesillas, e mais quatro textos em espanhol: Crónica de la Nueva España, de Francisco
Cervantes de Salazar, Fiesta de los indios a el demonio en días determinados, de autor desconhecido,
Costumbres, fiestas, enterramientos y diversas formas de proceder de los indios de Nueva España, também
de autor desconhecido, e Historia antigua de México, de Mariano Fernández de Echeverría y
Veytia. Cf. Anders, Ferdinand et alii. Libro de la vida. Graz/ México: ADV/FCE, 1996.
153 Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native Middle American pictorial manus-
cripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook
of Middle American Indians, op. cit., v. 14, p. 155.
154 Cf. Boone, Elizabeth Hill. The Codex Magliabechiano and the lost prototype of the Magliabechiano
group, op. cit. Berthold Christoph Riese propõe em um artigo sobre o grupo Magliabechiano
(Etnografische dokumente aus neuspanien im umfeld der codex Magliabechi-Grupe. In: Acta
Humboldtiana 10. Stuttgart: Franz Steiner Verlag Wiesbaden GMBH, 1986.) que o manuscrito
108 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
pois esse protótipo desaparecido teria servido de base apenas para o Códice Tudela
(1553) e para o Libro de figuras (1529 – 1553), também desaparecido e que seria
uma cópia próxima e idêntica do tal protótipo. O Códice magliabechiano, por sua vez,
seria uma cópia do Libro de figuras, que apresentaria seis seções quase idênticas às do
nosso códice, mas em ordem inversa.155
Não obstante a polêmica, é mais ou menos consensual que o frei Andrés de
Olmos, autor do Tratado de hechicerías y sortilegios, ou algum auxiliar seu teriam partici-
pação na autoria do tal protótipo, e que seus trabalhos também teriam relações com a
produção da Historia de los mexicanos por sus pinturas, da Histoire du Mechique e do Códice
Tudela, todos derivados de uma obra perdida do frade, a qual fora noticiada e descrita
pelo frei Gerónimo de Mendieta.
Sendo assim, o Magliabechiano pode ser considerado um manuscrito derivado
dos primeiros trabalhos missionários franciscanos junto a grupos de sábios e alunos
nahuas, pois o protótipo desaparecido que lhe deu origem “...belonged to the first
wave of ethnographic documents created after the conquest”.156 Além dos indícios
citados, que o remetem a essa origem, procuraremos mostrar que uma série de ca-
racterísticas internas ao manuscrito confirmam essa procedência. Isso porque estão
retratados nele uma série de ciclos calendários e de rituais tradicionais cujas infor-
mações detalhadas dependeriam da participação de membros das sociedades locais,
mas, ao mesmo tempo, tais ciclos e rituais encontram-se selecionados e organizados
sem as estruturas típicas dos manuscritos pictoglíficos e de acordo com padrões da
escrita alfabética, o que tornaria tais ciclos e rituais mais inteligíveis aos cristãos, seus
principais destinatários.
desaparecido e utilizado como protótipo ao grupo seria de meados do século XVI, no que con-
corda com Boone. Mas acredita que o Códice magliabechiano seria uma cópia tardia, feita de-
pois de 1714 de outro manuscrito desaparecido, intitulado Rictos y Costumbres, feito também
com base no tal protótipo. Esse autor admite também a possibilidade de que o Magliabechiano
seja uma cópia direta do tal protótipo, que Jeffrey Wilkerson atribui aos trabalhos do frei
Andrés de Olmos. Cf. Anders, Ferdinand e outros. Libro de la vida, op. cit. No entanto, torna-
se difícil sustentar que a produção do Magliabechiano deu-se no século XVIII se levarmos em
conta que seu papel data do século XVI – embora a datação por meio das marcas d’água não
seja conclusiva.
155 Mais tarde, Francisco Cervantes de Salazar teria adquirido o protótipo e incorporado dele
informações na Crónica de Nueva España (1558 – 1566). Em seguida, já em fins do século XVI,
esse protótipo teria sido reproduzido como primeira parte na confecção do Códice Ixtlilxochitl,
após o que teria desaparecido, fazendo que todas as obras posteriores sejam tidas como deri-
vações indiretas. Cf. Boone, Elizabeth Hill. The Codex Magliabechiano and the lost prototype of the
Magliabechiano group, op. cit.
156 Ibidem, p. 4.
Eduardo Natalino dos Santos 109
157 A primeira edição do manuscrito ficou inconclusa e foi de Zelia Nuttall. Entre 1903 e 1904
publicou-se uma edição fac-similar incompleta com uma breve introdução de Zelia. No mesmo
ano, o Duque de Loubat financiou uma edição completa e sem comentários. Em 1947 publi-
cou-se a edição da Librería Anticuaria Guillermo M. Echaniz, intitulada Libro de la vida, como
na edição de Zelia Nuttall. Em 1983 veio a público a edição de Elizabeth Hill Boone, baseada
na de Nuttall, mas com um novo e amplo comentário. Em 1970 foi realizada uma edição foto
fac-similar da Akademische Druck-und Verlagsanstalt (Adeva), em Graz, organizada por Ferdi-
nand Anders e com introdução e descrição detalhadas, que foi a base da mais recente edição,
utilizada nesta pesquisa. Cf. Anders, Ferdinand et alii. Libro de la vida, op. cit.
110 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
O Códice Vaticano A
O Códice Vaticano A158 possui cento e uma folhas de papel europeu, encadernadas
à maneira europeia e que medem 460 x 290mm. Nelas, alternam-se elementos da
escrita pictoglífica com textos e glosas em italiano, o que pode ser um indício que a
confecção do manuscrito tenha sido feita com o objetivo de enviá-lo ao Vaticano.
Esse manuscrito é classificado como ritual, calendário, histórico e etnográfico,
pois seus principais temas são: A – a cosmografia, a cosmogonia e a história de Quetzal-
coatl, Tollan e Cholula (p. 1v-10v); B – o calendário adivinhatório ou tonalpohualli (p.
11r-33r); C – as tábuas calendárias dos anos sazonais ou anos xihuitl e sua correspondên-
cia com os anos cristãos (p. 34v-36r); D – as festas das dezoito vintenas do ano xihuitl (p.
42v-51r); E – o corpo humano e os tonalli, os sacrifícios e outros costumes e as idades da
vida (p. 54r-61v); F – xiuhtlapohualli ou anais da história mexica (p. 66v-94r); G – glifos
anuais (p. 95v-96v).159
Nos Capítulo II e III veremos que essa divisão interna do manuscrito é passível
de reformulação, pois de acordo com a análise da presença do calendário e da cos-
mografia poderíamos considerar as duas últimas seções do Vaticano A apenas como
uma, pois em realidade a última – a dos glifos anuais – é uma clara continuação da
penúltima – a dos anais –, mas sem eventos registrados. Alguns autores acreditam
que suas cinco primeiras seções corresponderiam a um códice pré-hispânico e que
suas duas últimas a uns anais também de origem pré-hispânica.160 Procuraremos mos-
trar que suas cinco primeiras seções dificilmente corresponderiam a um único livro
pictoglífico tradicional, pois, estruturalmente, trata-se de uma clara intercalação de
partes inspiradas em livros tradicionais nahuas, como o tonalamatl e o xiuhamatl, com
seções de origem europeia, como a dos trajes. Isso porque, até onde sabemos, não há
nenhuma referência a um exemplar sobrevivente de livro pré-hispânico que tratasse
das vestimentas. Além disso, é pouco provável que tal tipo de livro tenha existido, pois
esse assunto parece proceder claramente da curiosidade europeia sobre os habitantes
do Novo Mundo, já que diversos relatos espanhóis lhe dedicam uma seção.161
158 Neste caso, também utilizamos uma edição fac-símile do manuscrito, mas que reduz seu tama-
nho original: Códice Vaticano A. Graz/México: ADV/FCE, 1996.
159 Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native Middle American pictorial manus-
cripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook
of Middle American Indians, op. cit., v. 14, p. 186 e 187.
161 Procuraremos mostrar, nos Capítulos II e III, que o mesmo tipo de curiosidade europeia – es-
pecialmente a gerada pela atividade missionária – inspirou a confecção da seção sobre a cos-
mografia nas primeiras páginas desse manuscrito, a qual pode ser considerada como distinta
da seção que trata da cosmogonia e da história de Quetzalcoatl, Tollan e Cholula.
Eduardo Natalino dos Santos 111
Atribui-se a confecção do Códice Vaticano A ao frei Pedro de los Rios, a quem tam-
bém é atribuído o Telleriano-remense.162 As bases dessa atribuição, além das semelhan-
ças do Vaticano A com o Telleriano-remense, seriam a citação do nome do frade em um
manuscrito da Biblioteca Angélica, o de n. 1564, no qual teriam sido copiadas várias
imagens do Vaticano A. Além disso, Lorenzo Pignoria de Pádua reproduz uma gravura
de Quetzalcoatl ao fazer uma reedição da obra de iconografia de Vicenzo Cartari, em
1626, na qual consta a citação de que um jovem belga de Doornik, Philip de Winghe,
autor do citado manuscrito n. 1564, havia copiado a tal gravura de um grande livro
que se encontrava na Biblioteca Apostólica e cuja autoria seria do frei Pedro de los
Rios.163 Por meio dessa atribuição de autoria, a produção do Vaticano A é situada entre
1566 e 1589.
Essa provável autoria é reforçada pelos estudos do jesuíta exilado José Lino Fá-
brega, que na segunda metade do século XVIII também cita o frade ao estudar o Va-
ticano A e o Vaticano B para fazer comentários ao Códice Borgia, o qual pertencia então
à coleção particular do cardeal Stèfano Borgia. Além disso, o nome do frei Pedro de
los Rios é citado no texto em italiano nas páginas 4v e 23r do próprio Vaticano A. Essa
informação sozinha não seria suficiente para atribuir a autoria do manuscrito ao fra-
de, mas junto com as outras evidências reforça essa hipótese.
A glosa da página 23r do Vaticano A reproduz com exatidão quase total uma citação
da página 15 do Telleriano-remense. A única diferença é que na última não consta o nome
do frei Pedro de los Rios. Esse fato é utilizado por alguns estudiosos como indício de
que o Vaticano A é uma cópia feita pelo frade do Telleriano-remense, o qual possui traços e
características pictóricas mais próximas dos modelos pré-hispânicos e comentários mais
fragmentados, possíveis indícios da maior proximidade de sua produção com algum livro
tradicional e de sua precedência temporal sobre o Vaticano A. Tudo isso indicaria que o
Vaticano A seria um tipo de cópia passada a limpo e com reflexões teológicas cristãs.164
Outra hipótese, baseada no fato do Vaticano A conter detalhes que não constam
no Telleriano-remense, propõe que ambos poderiam ter se originado de um protótipo
comum.165 Essa hipótese ainda é reforçada pelo fato do Telleriano-remense conter glosas,
162 Veremos abaixo que essa atribuição relaciona-se mais com o processo de cópia ou de coorde-
nação de um trabalho coletivo do que com uma autoria total e individual.
163 Cf. Anders, Ferdinand e Jansen, Maarten. Religión, costumbres e historia de los antiguos mexicanos.
Graz/México: ADV/FCE, 1996.
164 Elizabeth Hill Boone propõe que as glosas do Vaticano A tenham sido copiadas do Telleriano-
remense – que para ela é o protótipo – e acrescidas de informações sobre a região de Cholula, a
qual, justamente, era conhecida pelo frei Pedro de los Rios, como sugere Quiñones Keber. Cf.
Boone, Elizabeth Hill. Stories in red and black, op.cit.
165 Cf. Manrique Castañeda, Leonardo. Los códices históricos coloniais. In: Arqueología Mexicana.
México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. VII, n. 38, p. 25-31, 1999.
112 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
em sua terceira parte, a dos anais, que não constam no Vaticano A.166 Aventa-se ainda
a possibilidade de que o Telleriano-remense seja uma cópia incompleta do Vaticano A, já
que este último conteria mais seções, sendo aparentemente mais completo. Mas isso
poderia ser explicado pelo fato de que depois de servir de modelo para a confecção
do Vaticano A, o Telleriano-remense tenha perdido muitas de suas páginas ou ainda que
o frei Pedro de los Rios tenha acrescentado outras seções ou comentários às glosas
fragmentadas e copiadas do Telleriano-remense.
De toda forma, a atribuição da autoria do Vaticano A ao frei Pedro de los Rios
deve ser entendida, em nossa opinião, como relacionada aos comentários ou à co-
ordenação dos trabalhos de confecção ou cópia do manuscrito, pois suas pinturas
foram, provavelmente, feitas por alunos indígenas de colégios missionários, ou por
alguém que conhecia o sistema pictoglífico ou, ainda, copiadas de outros manuscritos
pictoglíficos tradicionais. Isso porque, apesar da relativa distância estilística e estrutu-
ral em relação a esses manuscritos, o Vaticano A ainda traz muitas características pictó-
ricas e elementos organizacionais típicos deles. Além disso, os comentários contidos
nas glosas contêm, não obstante as condenações morais e comparações cristãs, muitas
informações específicas do mundo mesoamericano e de suas narrativas acerca, por
exemplo, das idades do Mundo. Isso certamente indica a participação de informantes
ou sábios indígenas em seu processo de composição ou na confecção dos manuscritos
que lhe serviram de base.
Desse modo, talvez o Vaticano A possa ser visto como a fase final de um processo
de cópias, junções e interpretações que formariam um todo mais ou menos coerente
e destinado a informar os cristãos sobre o mundo que pretendiam converter. Talvez,
mais especificamente, destinado a informar os cristãos do Vaticano.
Sabe-se muito pouco acerca da história do manuscrito após sua produção e
como chegou até o Vaticano. O jesuíta José de Acosta, em obra publicada em 1589,
refere-se a um livro pictórico que chama de Anales mexicanos, conservado na Biblioteca
Vaticana e que, provavelmente, seja o Códice Vaticano A.167 Na passagem do século XVI
para o XVII, o Vaticano A consta nos inventários do acervo da Biblioteca Apostólica,
o que também é confirmado por Michele Mercati em sua obra sobre os obeliscos de
Roma, de 1589, e pelo holandês Georgius Hornius em uma obra intitulada De origini-
bus gentium americanarum, de 1652. A citada reedição da obra de iconografia clássica
de Vicenzo Cartari pode servir de indício para afirmar que o Vaticano A encontrava-se
166 Cf. Anders, Ferdinand e Jansen, Maarten. Religión, costumbres e historia de los antiguos mexica-
nos, op.cit.
167 “Así está todo hoy día pintado en los Anales Mexicanos, cuyo libro tienen en Roma, y está
puesto en la Sacra Biblioteca o librería Vaticana, donde un padre de nuestra Compañía que
había venido de México, vió (sic) ésta y las demás historias, y las declaraba al bibliotecario de su
Santidad, que en extremo gustaba de entender aquel libro que jamás había podido entender.”
Acosta, José. Historia natural y moral de la Indias. México: FCE, 1985, p. 354.
Eduardo Natalino dos Santos 113
na Biblioteca Apostólica desde 1565 ou 1566, época em que o cardeal Marco Antonio
Amulio foi seu prefeito e quando teria feito cópias das pinturas do códice e dado ao
senador Ottaviano Malipiero, quem, mais tarde, as forneceu a Lorenzo Pignoria de
Pádua, responsável pela nova edição da obra de Vicenzo Cartari. Mas somente em
princípios do século XIX a existência do Códice Vaticano A veio a público, por meio de
Alexander von Humboldt.168
O Códice borbónico
168 O Códice Vaticano A possui quatro edições: 1 – a litográfica, publicada pelo Lorde Kingsbo-
rough entre 1831 e 1838 em sua monumental obra Antiquities of Mexico; 2 – a fotocromográfica,
publicada pelo Duque de Loubat em 1900; 3 – a fotográfica em tamanho reduzido, publicada
pela Secretraría de Hacienda de México em 1967; 4 – a fac-símile reduzida em 7/10, publicada
pela Akademische Druck-und Verlagsanstalt em 1979. Cf. Anders, Ferdinand e Jansen, Maar-
ten. Religión, costumbres e historia de los antiguos mexicanos, op. cit. Essa última é a base da mais
recente edição, utilizada nesta pesquisa.
169 Utilizamos na pesquisa sua mais recente edição fac-símile: Códice borbónico. Graz/México/Madri:
ADV/FCE/SEQC, 1991.
170 O papel amate era utilizado em livros e em oferendas em grande parte da Mesoamérica, onde
sua produção e comércio eram intensos. Era produzido a partir da casca da figueira (Ficus sp),
que produz um papel escuro, ou da amoreira (Morus celtidifolia), que produz um papel mais
claro. As cascas eram retiradas pelos homens e depositadas em água, de modo que sua parte
inferior se molhasse; as mulheres cozinhavam-nas em água de nixtamal por horas e depois as
lavavam com água fria. Eram então estendidas, com as fibras cruzadas, sobre uma madeira e,
com uma pedra especial, golpeadas até que as fibras se juntassem e formassem uma folha uni-
forme. Depois as folhas poderiam ser branqueadas com solução de cal, como as do Borbónico.
Como citamos antes, também se produzia papel a partir do maguey. Cf. Anders, Ferdinand et
alii. El libro del ciuacoatl. Graz/Madri/México: ADV/SEQC/FCE, 1991.
114 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
171 Cf. León Portilla, Miguel. Los antiguos mexicanos a través de sus crónicas y cantares. México:
FCE, 1968.
173 Elizabeth Hill Boone também questiona os argumentos estilísticos apresentados para a atribui-
ção da data de produção do Borbónico por meio de perguntas como: quais as características do
estilo mexica? será que os traços atribuídos ao europeu, por se diferenciarem dos constantes
nos códices mixtecos e do Grupo Borgia, não se devem às distintas origens dos manuscritos?
não seria o Borbónico parte de um subestilo mexica que tem origem no horizonte mixteco-
cholulteco? A autora acredita que o estilo pictórico mexica se diferenciaria do mixteco por,
pelo menos, três características: A – a presença de um naturalismo relativo, como nas escultu-
ras, que explicaria, por exemplo, a ausência da supraorbital nas representações das serpentes,
característica que muitos autores atribuem à influência europeia; B – o emprego de conven-
ções iconográficas específicas para confeccionar diversos glifos, como cipactli, malinalli, acatl
e quiahuitl, que aparecem da mesma forma tanto nas esculturas mexicas quanto nos códices
Borbónico e Tonalamatl Aubin; C – o emprego de certas proporções na figura humana, caracte-
Eduardo Natalino dos Santos 115
Apesar dessa polêmica, é consenso que o Códice borbónico tenha sido produzi-
do em México-Tenochtitlan ou imediações nas primeiras décadas do século XVI,174
pouco antes ou depois da chegada dos castelhanos, e que traz material, forma, es-
trutura narrativa e temática típicas dos manuscritos tradicionais mixteco-nahuas. É
classificado como ritual e calendário por apresentar seções que tratam dos seguintes
temas: A – o calendário adivinhatório ou tonalpohualli (p. [1 e 2] 3-20); B – o ciclo
de 52 anos sazonais, ou xiuhmolpilli, e os nove Senhores da Noite que no tonalpohualli
acompanham os dias que nomeiam os anos (p. 21-2); C – o calendário festivo das
dezoito vintenas para a cerimônia do Fogo Novo (p. 23-37); D – a repetição de umas
das cerimônias das vintenas e a continuação das datas para outro período de 52 anos
(p. 37-8 [38 e 39]).175
Veremos que, assim como no caso das duas últimas seções do Vaticano A, as duas
últimas do Borbónico poderiam ser entendidas como apenas uma, pois a conta dos
anos sazonais que segue a seção das festas das vintenas havia começado junto com tais
festas, o que significa uma forte continuidade calendária entre as duas partes.
É quase certo que as cerimônias tratadas pelo Borbónico e relacionadas à celebra-
ção do Fogo Novo, realizada a cada 52 anos, refiram-se ao ano de 1507, pois trata-se da
última ocasião de sua celebração entre os mexicas antes da chegada dos castelhanos.
Além disso, é mais ou menos consensual que tal celebração se relacione com algum
templo próximo da região das chinampas, fato indicado nas glosas do próprio códice e
pela proeminência das representações de Cihuacoatl, deusa patrona de Culhuacan e
Xochimilco. Tudo isso levou os autores da última edição a levantar a hipótese de que o
Borbónico tenha pertencido a um templo dedicado a essa deusa e que o templo princi-
pal retratado no Fogo Novo de sua página 34 – e identificado por sua cruz negra como
um Tlillan – não seja o de Tenochtitlan, mas sim o famoso Tlillan que se localizava na
região das chinampas, em Xochimilco, patronato da referida deusa e onde o cihuacoatl
174 As exceções são Eduard Seler, que aponta Texcoco como o local de sua confecção, e Cecilio
Robelo, que não acredita tratar-se de um manuscrito nahua. Cf. Nicholson, H. B. The prove-
nience of the Codex Borbonicus. In: Josserand, Kathryn e Dakin, Karen (edit.). Smoke and mist.
Oxford: Bar International Series, 1988.
175 Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native Middle American pictorial ma-
nuscripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes).
Handbook of Middle American Indians, op. cit., v. 14, p. 97 e 98. Outros catálogos parecem seguir
essa mesma proposta de divisão interna do manuscrito, como Alcina Franch, José. Códices
mexicanos, op. cit., p. 83.
116 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Tlacaelel possuiria muitas terras.176 Além disso, Culhuacan e Itztapalapan, onde fica o
cerro em que se acendia o Fogo Novo, estão na área lacustre de Xochimilco.
Assim como nos casos dos dois códices anteriores, sabemos muito pouco sobre
a história do Borbónico após sua produção. Sequer é conhecida a forma como chegou
à Europa e foi parar no Escorial, na Espanha, onde, no século XVIII, ainda apre-
sentaria suas duas primeiras e duas últimas folhas, caso ele seja o manuscrito citado
por Willian Robertson em The history of America, de 1777. É provável que tenha sido
enviado para lá ainda no século XVI, pois se tratava da residência de Felipe II. A ida
do códice para a França talvez tenha ocorrido devido às turbulências de 1820 e a
intervenção francesa de 1823, quando a Espanha perdeu obras históricas, literárias e
artísticas.177 Nessa mesma ocasião, o códice talvez tenha perdido suas duas primeiras e
duas últimas folhas, por terem registros dos proprietários, por terem sido danificadas
ou mesmo por já estarem rotas.178 Sabe-se que em 1826 foi adquirido pela Biblioteca
do Palácio Bourbon. Atualmente se encontra na Biblioteca da Assembleia Nacional
Francesa, em Paris.
Além desses três códices, utilizaremos como fontes centrais mais quatro textos
alfabéticos produzidos no Vale do México por grupos nahuas durante o início do
período Colonial, isto é, no século XVI. As origens e as estruturas desses textos são
variadas e talvez possam ser entendidas como diferentes etapas do complexo processo
de tradução e trasvase dos conteúdos antes registrados pelo sistema pictoglífico ou
pela oralidade em textos alfabéticos inteligíveis aos cristãos – fosse para satisfazer o
interesse dos missionários ou para garantir posições de privilégio a seus produtores
dentro da nova hierarquia político-social.
176 Aventa-se também a hipótese de que o Borbónico seja uma cópia de um manuscrito pintado
para o cihuacoatl mexica por ocasião da cerimônia do Fogo Novo de 1507. Cf. Anders, Ferdi-
nand et alii. El libro del ciuacoatl, op. cit.
178 O Códice borbónico teve três edições anteriores à que estamos utilizando: 1 – a litográfica, de
Theodore Ernest Hamy em 1899; 2 – a colorida manualmente, da Librería Anticuaria Guil-
lermo Echániz em 1938; 3 – a fotográfica parcial, de George C. Vaillant em 1940. Cf. Glass,
John B. e Robertson, Donald. A census of native Middle American pictorial manuscripts. In:
Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook of Middle
American Indians, op. cit., v. 14, p. 97 e 98.
Eduardo Natalino dos Santos 117
179 Utilizamos na pesquisa a edição que conta com a transcrição dos dois textos originais e a tradu-
ção ao espanhol de Primo Feliciano Velázquez. Cf. Leyenda de los soles / Anales de Cuauhti-
tlan. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam, 1945. De forma pontual,
também nos servimos da recente tradução desses dois textos ao inglês de John Bierhorst: Codex
Chimalpopoca. Tucson/Londres: The University of Arizona Press, 1992.
180 Esse curto texto geralmente não é publicado junto com a Leyenda de los soles e os Anales de
Cuauhtitlan, talvez devido a seu caráter superficial e condenatório, pois apenas relaciona, des-
creve brevemente e recrimina algumas práticas rituais nahuas. Foi publicado em 1892 pela Im-
prenta del Museo Nacional de México e depois como parte de uma coletânea: Ponce, Pedro.
Breve relación de los dioses y ritos de la gentilidad. In: El alma encantada. México: Instituto
Nacional Indigenista/FCE, 1987.
181 No entanto, há sinais de uma antiga paginação na frente de cada folha que indica a perda da
primeira folha. Sendo assim, a página 1 da atual numeração seria a página 3 da original. Cf.
Bierhorst, John. History and mitology of the Aztecs. Tucson/Londres: The University of Arizona
Press, 1992.
182 Além disso, cópias feitas por León y Gama, Brasseur de Bourbourg e Joseph Marius Alexis
Aubin encontram-se na Biblioteca Nacional de Paris. Cf. Feliciano Velázquez, Primo. Introduc-
ción. In: Códice Chimalpopoca. México: Unam - Instituto de Historia, 1945/ Gibson, Charles. e
Glass, John B. A census of Middle American prose manuscripts in the native historical tradi-
tion. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook
of Middle American Indians, op. cit., v. 15, p. 333.
183 Cf. ibidem, p. 333. Esse processo de derivação de um manuscrito anterior também pode ser
deduzido pelo fato de “...the old, presumably Franciscan, orthography has been converted to a
Jesuit stile, which did not take hold until the 1590s at the very earliest”. Bierhorst, John. History
and mitology of the Aztecs, op.cit., p. 12.
118 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
184 Depois, o manuscrito foi visto pelo jesuíta Francisco Javier Clavijero e publicado pelo estudioso
mexicano Antonio de León y Gama em seu trabalho de 1792. Cf. ibidem. No século XX, esses
textos foram traduzidos por Walter Lehmann ao alemão, em 1906, e ao latim, em 1938, e no-
vamente ao espanhol por Primo Feliciano Velázquez, em 1945. Recentemente, como citamos
em nota anterior, John Bierhorst os traduziu para o inglês.
185 Esse título foi dado por Paso y Troncoso em sua edição de 1903. Cf. ibidem.
186 Cf. León Portilla, Miguel. Literaturas indígenas de México. México: FCE/Editorial Mapfre, 1992.
/ _____. El destino de la palabra. México: El Colégio Nacional/FCE, 1997.
187 Seria usual esse tipo de história no mundo pré-hispânico? Ou apenas teríamos as histórias
particulares de cada altepetl? Seriam precedidas por relatos cosmogônicos? Essas histórias tem-
poralmente mais amplas e regionalmente mais abrangentes já derivariam das demandas colo-
niais? Trataremos desses temas no Capítulo IV.
Eduardo Natalino dos Santos 119
188 Note-se que dois deles procedem de Cuauhtitlan, onde foram produzidos os Anales e que foi,
depois de Texcoco, o primeiro altepetl a receber uma missão após a queda de Tenochtitlan. Era
a quarta cidade em importância dos domínios mexicas, depois apenas das próprias cidades da
Tríplice Aliança. Cf. Bierhorst, John. History and mitology of the Aztecs, op. cit.
189 Esse texto teve diversas publicações em espanhol: de Joaquín García Icazbalceta, em 1882,
1886-1892 e 1941; de Paul Radin, em 1920; e de Ángel María Garibay, em 1965. Cf. Gibson,
Charles e Glass, John B. A census of Middle American prose manuscripts in the native histo-
rical tradition. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes).
Handbook of Middle American Indians, op. cit., v. 15, p. 345. Usamos a edição de Garibay durante
quase toda a pesquisa: Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Teogonía e historia de los
mexicanos. México: Editorial Porrúa, 1996. Alguns meses antes de terminá-la, tivemos acesso à
recente edição organizada por Rafael Tena, de fins de 2002. Desde então pudemos perceber
os inúmeros problemas da edição de Garibay, sobretudo por não conter a paleografia e a pagi-
nação do manuscrito original e, tampouco, os critérios empregados na modernização do texto
castelhano. Sendo assim, optamos por citar os trechos analisados a partir da edição de Tena:
Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México:
Conaculta, 2002.
120 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
190 Cf. Limón Olvera, Silvia. Los códices transcritos del altiplano central de México. In: Rome-
ro Galván, José Rubén (coord.). Historiografía novohispana de tradición indígena. México: IIH
– Unam, 2003.
191 O conhecimento desse encargo baseia-se no texto da Historia eclesiástica indiana, do frei Geróni-
mo de Mendieta, escrito em fins do século XVI. No Prólogo ao segundo livro, Mendieta afirma
que “...por ambos á dos [Valencia e Ramírez de Fuenleal] fué encargado el padre Fr. Andrés
de Olmos de la dicha órden (por ser la mejor lengua mexicana que entonces habia en esta
tierra, y hombre docto y discreto), que sacase en un libro las antigüedades de estos naturales
indios, en especial de México, y Tezcuco, y Tlaxcala, para que de ello hubiese alguna memoria,
y lo malo y fuera de tino se pudiese mejor refutar, y si algo bueno se hallase, se pudiese notar,
como se notan y tienen en memoria muchas cosas de otros gentiles.” A adição entre colchetes
é minha e a acentuação é a original da edição consultada. Mendieta, Gerónimo de. Historia
eclesiástica indiana. México: Editorial Porrúa, 1993, p. 75.
canos por sus pinturas também é chamado de Códice Fuenleal.193 Pela data da morte de
Ramírez, acredita-se que a produção de nosso texto tenha se dado por volta de 1543
ou 1544 e se baseado apenas no Tratado de las antigüedades mexicanas; e não no resumo
levado a Valladolid pelo dominicano.194
O texto da Historia de los mexicanos por sus pinturas foi conservado, junto com
mais doze outros textos, numa coletânea de documentos intitulada Libro de oro y tesoro
índico. Essa coletânea encontra-se atualmente em Austin, Texas, na Biblioteca da Uni-
versidade do Texas, na Coleção Latino-americana. Possui 197 folhas de 310 x 213mm,
das quais 22 páginas e meia são ocupadas pela Historia de los mexicanos por sus pinturas
(p. 150r-60r, incluindo a página 151a).195
Tudo leva a crer que o Tratado de las antigüedades mexicanas continha partes pic-
toglíficas e era uma obra bem mais extensa, ordenada e complexa do que a Historia
de los mexicanos por sus pinturas, na qual predomina uma certa fragmentação.196 No
entanto, essa fragmentação pode ser uma vantagem aos nossos propósitos, pois o fato
de o texto não possuir uma estrutura tão marcadamente cristã pode contribuir para
que os depoimentos ou explicações de origem indígena tenham sido transpostos com
maior integridade.
Os temas tratados parecem, justamente, sintetizar a leitura de vários livros
pictoglíficos, pois abrangem desde as origens cósmicas até os dias de Moctezuma,
centralizando-se na história culhua-mexica de tempos toltecas, na migração mexica
e nas dinastias governantes. Do capítulo um ao oito traz narrativas cosmogônicas
e do capítulo nove ao vinte apresenta anais que abrangem desde a chegada dos
primeiros povoadores da região até a fundação de Tenochtitlan. Veremos que essa
193 Cf. Garibay K., Ángel María. Introducción. In: Teogonía e historia de los mexicanos. México: Editorial
Porrúa, 1996, p. 13./León Portilla, Miguel. Ramírez de Fuenleal y las antigüedades mexicanas.
In: Estudios de cultura náhuatl. México: IIH – Unam, v. III, p. 9-49, 1969/ _____. Humanistas de Me-
soamérica. México: FCE, 1997. De volta à Espanha, em 1543, Ramírez teve notícias de estudos le-
vados a cabo sobre alguns dos papéis e códices que havia trazido consigo antes. Alguns estudiosos
acreditam que a Historia de los mexicanos por sus pinturas seja o resultado de um desses empenhos,
pois em seu início se lê: “Esta relaçión saqué de la pintura que truxo d[on] Seb[astiá]n Ramírez
obispo de Cuenca, presidente de la Chançillería.” Historia de los mexicanos por sus pinturas. In:
Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 24.
194 Rafael Tena acredita que o texto constante no Libro de oro y tesoro índico seja de autoria do frei
Andrés de Alcobiz, de quem se conhece apenas o nome, pois algumas páginas depois do fim
do texto da Historia de los mexicanos por sus pinturas encontra-se um outro texto (p. 171r-73r)
com caligrafia idêntica e cuja autoria é requerida por esse frade. Cf. Tena, Rafael. Mitos e histo-
rias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 18.
A Histoire du Mechique
O último texto a ser apresentado é a Histoire du Mechique,198 que ocupa vinte pá-
ginas (p. 79r-88v) de um manuscrito de oitenta e oito que se encontra na Biblioteca
Nacional da França com o n. 19031.199 Segundo a glosa que acompanha o título do
manuscrito,200 trata-se de uma versão ao francês de um texto em espanhol que hoje
estaria desaparecido. A Histoire du Mechique pertenceu ao cosmógrafo do rei de Fran-
197 Vale ainda observar que o Popol vuh pertence à região maia-quiché, na qual se empregava,
primordialmente, o ano xihuitl de 365 dias, como no altiplano central mexicano, e não o
ano tun de 360 dias, predominante nos textos hieroglíficos das Terras Baixas. Outra mostra
dessa conexão entre a região quiché e o altiplano central mexicano, sobretudo no período
Pós-clássico, é a utilização de termos em nahuatl no Popol vuh, tais como Zipacná, claramente
derivado de Cipactli.
198 Traduzida ao espanhol e publicada por Edouard de Jonghe, em 1905 e 1961, e por Ángel
María Garibay K., em 1965. Cf. Gibson, Charles e Glass, John B. A census of Middle American
prose manuscripts in the native historical tradition. In: Wauchope, Robert (editor geral) e
Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook of Middle American Indians, op. cit., v. 15, p.
340. Utilizamos a coletânea de Garibay que contém a Histoire du Mechique durante quase toda
a pesquisa, assim como no caso da Historia de los mexicanos por sus pinturas, citado em nota an-
terior. Nesse caso, tal edição mostra-se ainda mais precária por tratar-se de uma tradução ao
espanhol de um texto em francês que não é reproduzido. Conforme esclarecemos em nota na
Introdução, Garibay moderniza parcialmente o título contido no manuscrito e mantém uma
letra “y” em Histoyre, além do “ch” em Mechique, que também é mantido por Tena. No caso
dessa fonte, assim como no da Historia de los mexicanos por sus pinturas, daremos preferência
por citar trechos retirados da recente edição de Rafael Tena, que apresenta sua paleografia do
texto em francês e sua tradução ao espanhol. Cf. Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de
los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002.
199 A maior parte desse manuscrito é ocupada pela tradução ao francês da Historia general y natural
de la Indias, de Gonzalo Fernández de Oviedo. Cf. Tena, Rafael. Mitos e historias de los antiguos
nahuas, op. cit., p. 115.
200 Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 124.
Eduardo Natalino dos Santos 123
ça, André Thevet, que nela acrescentou sua assinatura em uma letra muito distinta da
do texto, o que serve de indício para que a ele não se atribua a tradução ao francês.
Acredita-se, desse modo, que Thevet tenha adquirido o manuscrito,201 assim como
fizera com o Códice Mendoza.
Acredita-se que a produção do texto em espanhol que deu origem à Histoire du Me-
chique tenha se dado na região do México Central, pois a maioria de seus dados são so-
bre Texcoco e México. Mais especificamente, acredita-se que o protótipo em espanhol
seja o texto produzido pelo frei Andrés de Olmos como uma espécie de suma, realizada
a partir de suas anotações depois de enviar as cópias de seu Tratado de las antigüedades
mexicanas à Espanha, conforme citamos acima.202
O texto divide-se em onze capítulos que podem ser agrupados em três partes. A
primeira delas, que vai do capítulo um ao quatro, trata dos otomies de Texcoco e de
seus vizinhos, entre os quais estão os popolocas, os mexicas e os colhuas. A segunda
parte, que abrange os capítulos cinco ao nove, trata dos céus e sóis cosmogônicos
segundo os mexicas, da aparição do agave e de outras versões sobre a criação do ho-
mem, oriundas de Texcoco e de Chalco. Inclui também explicações sobre a conta dos
anos mexica. Essa parte intermediária parece ter sido feita com códices em vista. A
terceira e última parte, que vai do capítulo dez ao onze, aborda os episódios relacio-
nados com Quetzalcoatl.203
Procuraremos mostrar que esses dois últimos textos apresentam elementos típi-
cos das demandas geradas pelos trabalhos missionários e pela colonização castelhana,
tais como as explicações sobre o calendário, leis relacionadas e informações reunidas
em torno de uma personagem divina. A esses elementos juntam-se relatos mais tra-
201 Além de constar na primeira, a firma de Thevet também está na última página do manuscrito,
a qual se encontra truncada, o que fortalece a hipótese que ele o tenha comprado tal qual se
encontra hoje, o que teria ocorrido entre 1543 e 1546. Sendo assim, o tradutor de tal texto per-
manece anônimo. O manuscrito permaneceu sob a posse de Thevet até sua morte, em 1590, e
depois se tornou parte da coleção Séguier-Coislin e dos fundos Saint Germain des Prés, tendo
em seguida ingressado na Biblioteca Nacional da França. Cf. Tena, Rafael. Mitos e historias de los
antiguos nahuas, op. cit., p. 116.
202 No entanto, essa hipótese enfrenta algumas objeções, tais como o mau uso do nahuatl e as con-
fusões com o calendário presentes no texto, já que Olmos era um profundo conhecedor dessa
língua e, ao que parece, conhecia relativamente bem os ciclos básicos das contas temporais
nahuas. No entanto, esses erros poderiam derivar do processo de tradução. Além disso, parece
que algumas partes do texto procedem de outros escritores, como do frei Marcos de Niza –
responsável, segundo Garibay, pelas três primeiras seções – e do frei Juan de Padilla. Cf. ibidem,
p. 120 e 121/ Limón Olvera, Silvia. Los códices transcritos del altiplano central de México. In:
Romero Galván, José Rubén (coord.). Historiografía novohispana de tradición indígena, op. cit.
203 Cf. Tena, Rafael. Mitos e historias de los antiguos nahuas, op.cit.
124 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
204 Como citamos na Introdução, as fontes auxiliares serão apresentadas, de maneira mais sucinta,
por meio de informações que acompanharão suas análises nos próximos três capítulos.
Capítulo II
1 É o que ocorre, por exemplo, em Soustelle, Jacques. Pensamiento cosmológico de los antiguos mexi-
canos. São Paulo: Companhias das Letras/Círculo do Livro, 1990.
2 Empregaremos o termo metonímia e seus derivados para designar um tipo de relação entre ob-
jetos, entes, eventos ou sítios distintos caracterizada pela analogia formal, material, nominal ou
de outro tipo, pela equivalência simbólica e pela suposta existência de uma coessência entre as
partes relacionadas.
3 Há diversos estudiosos que analisam o contínuo existente nas sociedades mesoamericanas en-
tre o que chamamos de calendário, matemática, astronomia, ideologia, ciclos agrícolas e pro-
cessos socioeconômicos. Entre eles Broda, Johanna. Observación y cosmovisión en el mundo
prehispánico. In: Arqueología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. I, p. 20-5,
Eduardo Natalino dos Santos 129
I II III IV V
Cipactli Ehecatl Calli Cuetzpalin Coatl
Jacaré Vento Casa Lagarto Serpente
VI VII VIII IX X
Miquiztli Mazatl Tochtli Atl Itzcuintli
Morte Veado Coelho Água Cachorro
1997/ . Paisajes rituales del Altiplano Central. In: Arqueología Mexicana. México:
Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. IV, n. 20, p. 40-9, 1996.
130 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
4 Trataremos, logo abaixo, do significado desse termo nahuatl, cujos equivalentes eram kin, en-
tre os maias iucatecos, e piye, entre os mixtecos. Cf. Acuña, René. Calendarios antiguos del
Altiplano de México y su correlación con los calendarios mayas. In: Estudios de Cultura Náhuatl.
México: IIH – Unam, v. 12, p. 279-314, 1976.
5 No caso dos vinte tonalli podemos estabelecer uma relação direta com a base numérica vigesi-
mal empregada por toda a Mesoamérica. No entanto, a origem e a razão da escolha do número
13 são motivos de controvérsias. Veremos, mais à frente, que talvez estejam relacionadas com a
facilitação de cálculos astronômicos.
6 Cf. Marcus, Joyce. Mesoamerican writing systems. Princeton: Princeton University Press, 1992.
7 Entre os nahuas, também era comum a utilização do desenho de um dedo para representar
a unidade. Para números maiores, eram utilizados os seguintes glifos: A – pantli ou bandeira:
representava o número cempohualli, isto é, 20; o glifo poderia ser grafado pela metade ou fal-
tando um quarto para referir-se, respectivamente, aos números 10 e 15; B – centzontli ou uma
mecha de cabelo ou um punhado de ervas: representava o número 400, chamado justamente de
centzontli; poderia ser grafado como um feixe de ervas ou palha, como uma mecha de cabelo ou
como uma pluma; esses poderiam ser representados pela metade ou faltando um quarto para
referirem-se, respectivamente, aos números 200 e 300; C – cenxiquipilli ou uma bolsa: represen-
tava o número 8.000; geralmente grafado como uma bolsa de copal à qual também se poderia
aplicar o recurso descrito nos casos anteriores para representar os números 4.000 e 6.000. Cf.
Castillo Farreras, Víctor M. Nahuatl I. Curso de graduação na Facultad de Filosofía y Letras da
Unam, Cidade do México, setembro de 2002 a janeiro de 2003.
Eduardo Natalino dos Santos 131
Aqueles vinte signos combinavam-se com esses treze números até que o primeiro
signo recebesse de novo o número 1, o que ocorria depois de 260 dias. Sendo assim,
os dias eram contados e, simultaneamente, nomeados em nahuatl da seguinte forma:
ce cipactli (1 jacaré), ome ehecatl (2 vento), yei calli (3 casa), nahui cuetzpalin (4 lagarto), ma-
cuilli coatl (5 serpente), chicuace miquiztli (6 morte), chicome mazatl (7 veado), chicuei tochtli
(8 coelho), chiconahui atl (9 água), matlactli itzcuintli (10 cachorro), matlactli once ozomatli
(11 macaco), matlactli omome malinalli (12 erva), matlactli omei acatl (13 junco), ce ocelotl (1
jaguar), ome cuauhtli (2 águia), e assim sucessivamente até se operarem as 260 combina-
ções possíveis. A passagem completa de cada sequência numérica marcava a formação
de um subconjunto no interior desse ciclo de 260 dias. Esses subconjuntos totalizavam
vinte e podemos chamá-los de trezenas.
O ciclo completo de 260 dias chamava-se tonalpohualli. Essa palavra, proveniente
do nahuatl, é formada por tonalli, que significa ardor, calor do sol e tempo de estio, e era
empregada como sinônimo de dia, e por tlapohualli, que significa coisa contada, numerada
ou relatada.8 Desse modo, poderíamos traduzir tonalpohualli como conta dos dias ou relato
sobre os dias. Mas é interessante notar que tonalli também significa alma, espírito, razão,
parte, porção, o que é destinado a alguém. Assim, tonalpohualli poderia ser traduzido também
como relatar ou contar algo sobre as almas, sobre o quinhão de cada um, sobre o que é destinado
a cada ser.
Esse ciclo não corresponde, direta e precisamente, a nenhum ciclo astronômi-
co.9 No entanto, sua duração aproxima-se de nove meses lunares de 29 noites, isto é
261 noites, o que tem servido de base para propor-se que sua definição tenha se ins-
pirado no tempo de gestação humana ou no ciclo completo de plantio e colheita do
milho, ambos aproximadamente com essa duração. Isso significa que o milho, prin-
cipal produto da agricultura mesoamericana, poderia ser plantado e, depois de bem
seco, colhido em um dia de mesmo nome, assim como o ser humano começaria sua
existência e nasceria em dias do mesmo nome. Além disso, parece que as subdivisões
em trezenas e os múltiplos do tonalpohualli eram utilizados para contabilizar vários ci-
clos astronômicos, funcionando assim como uma espécie de ábaco aplicável a diversas
contas e a diferentes sequências de dias.10
Articuladamente a esse ciclo de 260 combinações, utilizado para se contar e no-
mear os dias, corria uma outra série, formada por nove signos cujo conjunto é chama-
do de Yoaltetecuhtin ou Senhores da Noite. Seus nomes e ordem elementar podem
ser vistos na Tabela 3, na qual temos também suas imagens esquemáticas, baseadas nas
do Códice borbónico.
Essa sequência servia, primordialmente, para se contar e qualificar as noites,
pois cada um dos nove Yoaltetecuhtin, na ordem estabelecida na Tabela 3, era consi-
derado o regente de uma delas.11 Sendo assim, ao completar-se um tonalpohualli, cada
qual, à exceção do último, Tlaloc, havia regido 29 noites, subdividindo assim o ciclo
de 260 dias em nove meses lunares, como citamos acima.12 Além disso, aventa-se a
9 Alguns dos ciclos astronômicos que se aproximam dessa duração ou de seus múltiplos são o in-
tervalo de aparição de Vênus como estrela matutina e vespertina, de 263 dias, e o ano sinódico
de Marte, de 3 x 260 dias. Cf. Aveni, Anthony. Observadores del cielo en el México antiguo. México:
FCE, 1991.
10 Cf. Siarkiewicz, Elzbieta. El tiempo en el tonalamatl. Varsóvia: Cátedra de Estudios Ibéricos – Uni-
versidade de Varsóvia, 1995.
11 Sobre essa função, Jacinto de la Serna (1601 – 1681), cura do Sacrário Metropolitano de Mé-
xico e reitor da universidade dessa mesma cidade, afirma em sua obra que “A cada uno de
estos días daban uno de nueve acompañados, los cuales decían que acompañaban la noche o
presidían en ella, sin tener más duración que desde que se ponía el sol hasta que volvía a salir,
y se llamaban señores o dueños de la noche”. Manual de ministros de indios para el conocimiento
de sus idolatrías y extirpación de ellas, México: Imprenta del Museo Nacional, 1892, p. 345. Apud
León Portilla, Miguel. Códices, op. cit., p. 245 e 246.
12 Tlaloc, o último Senhor da Noite, teria uma aparição a menos para se completar exatamente
260 noites. Isso porque, 29 x 9 são 261, número que sobrepassaria a duração do tonalpohualli e
Eduardo Natalino dos Santos 133
Tabela 3: Os Senhores
da Noite segundo o Códi-
ce borbónico. Anders, Fer-
dinand et alii. El libro del
ciuacoatl, p. 65.
faria com que o início da sequência dos nove Senhores da Noite saltasse um dia à frente a cada
ciclo de 260 dias, o que não é atestado pelos códices sobreviventes, nos quais o primeiro dia,
ce cipactli, coincide sempre com o primeiro Senhor da Noite, Xiuhtecuhtli. Outra possibilidade
seria que a última noite do tonalpohualli fosse regida por dois Senhores da Noite, Tepeyolotl e
Tlaloc, pois desse modo o primeiro Senhor da Noite voltaria a reger o primeiro dia do tonal-
pohualli seguinte. Isso estaria sugerido no Tonalamatl Aubin, que registra Tepeyolotl e Tlaloc
como regentes da última noite. Cf. El Tonalamatl de la Colección Aubin. Tlaxcala: Estado de
Tlaxcala e La Letra Editores, 1981, p. 20.
134 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
I – Nexhuitzilin
Colibri Cinza
II – Quetzalhuitzilin
Colibri Verde
III – Cocotzin
Tortolilla
IV – Zolin
Codorna
V – Cacalotl
Corvo
VI – Chicoatl
Mocho
VII – Papalotl
Borboleta
VIII – Tlotli
Águia Rajada Tabela 4: Os treze Voadores ou Quecholli
segundo o Códice borbónico. Anders, Ferdinand
IX – Chalchiuhtotolin et alii. El libro del ciuacoatl, p. 66 e 67.
Peru
X – Tecolotl
Coruja
XI – Alotl
Arara
XII – Quetzal
Quetzal
XIII – Toznene
Papagaio
ços e cerimoniais noturnos – e dos Primeros memoriales – que cita o ato de incensar em
meio da noite por várias vezes, talvez por nove vezes.13
Em suma, embora todas as funções dos Senhores da Noite dentro do tonalpo-
hualli ainda não tenham sido entendidas, eles estavam seguramente relacionados com
a contagem das noites e com sua qualificação e, possivelmente, com a subdivisão de
cada noite em pequenos períodos e com o agrupamento delas em nove meses lunares
– o que reforça a hipótese de que a origem do tonalpohualli estaria relacionada com
13 Cf. The essential Codex Mendoza. Berkeley/Los Ángeles/Londres: University of California Press,
1997, p. 63r./ Primeros memoriales by Fray Bernardino de Sahagún – Part I. Norman: University of
Oklahoma Press, 1993, p. 271v.
Eduardo Natalino dos Santos 135
14 Um balanço das atribuições dos Senhores da Noite nas fontes coloniais pode ser obtido em
Caso, Alfonso. Los calendarios prehispánicos. México: IIH – Unam, 1967. O Códice telleriano-remense
identifica os aspectos adivinhatórios de cada um, no entanto de uma forma muito sumária e
binária, talvez por influência do pensamento cristão. Segundo esse códice, Xiuhtecuhtli seria
bom, Itztli mau, Piltzintecuhtli bom, Centeotl indiferente, Mictlantecuhtli mau, Chalchiuhtli-
cue indiferente, Tlazolteotl mau, Tepeyollotl bom e Tlaloc indiferente. Cf. Codex telleriano-
rememsis. Austin: University of Texas Press, 1995.
15 Esse tipo de concepção mostra que a visão de mundo mexica e mesoamericana não era de-
terminista, como defenderam muitos autores: “...a visão mexicana do universo deixa pouco
espaço ao homem. Este é dominado pelos sistema dos destinos; nem sua vida, nem sua outra
vida lhe pertencem (...) O peso dos deuses e dos astros o esmaga, a onipotência dos signos
agrilhoa-o.” Soustelle, Jacques. Os astecas na véspera da conquista. São Paulo: Companhias das
Letras e Círculo do Livro, 1990, p. 136.
inspiradas nas do Códice borbónico, podem ser vistas na Tabela 4. A lista dos Tonaltete-
cuhtin será apresentada mais adiante, ao analisarmos o tonalamatl do Códice borbónico.
Juntando-se a todos os elementos mencionados acima, as vinte trezenas do to-
nalpohualli eram ainda relacionadas alternadamente aos quatro rumos do universo
horizontal (na sequência oriente, norte, poente e sul) e estavam inseridas em um
determinado xihuitl, ou ano sazonal, o qual, por sua vez, possuía seu próprio número
e carregador e também estava relacionado a uma das quatro direções do Mundo.17
Por tudo isso, o tonalpohualli era muito mais do que a simples conta dos dias e o
tonalamatl, sua expressão plástica, pode ser considerado como um “mapa” das cargas
componentes de cada dia e de cada noite, trazidas por entes e ciclos que governavam
o tempo.
A partir dessa conta e relato sobre os dias, ou tonalpohualli, os povos mesoame-
ricanos nomeavam e contavam os anos sazonais, cuja duração padrão havia sido defi-
nida em 365 dias.18 O princípio básico que regia o processo de nomeação e conta dos
anos pode ser resumido da seguinte forma: o nome do primeiro dia do ano sazonal,
17 A questão da presença implícita das concepções espaciais em toda e qualquer referência tem-
poral será tratada, em detalhe, no Capítulo III, no qual analisaremos a presença das concep-
ções cosmográficas nas fontes nahuas.
18 Há uma polêmica acerca da utilização de mecanismos de ajuste entre o ano calendário de 365
dias e a duração real do ano sazonal, aproximadamente de 365 dias e um quarto. Alguns estu-
diosos, como Víctor Castillo Farreras e Carmen Aguilera, acreditam que havia uma espécie de
ano bissexto ou de correções regulares (por exemplo, dois dias a cada oito anos ou treze dias a
cada cinquenta e dois anos), que funcionariam como um mecanismo para que o início do ano
calendário e suas subdivisões coincidissem, de maneira regular, com as estações. Cf. Castillo
Farreras, Víctor. El bisiesto náhuatl. In: Estudios de cultura náhuatl. México: IIH – Unam, v. 9,
p. 75-104, 1971/Aguilera, Carmen. Xolpan y Tonalco. In: Estudios de Cultura Náhuatl. México:
IIH – Unam, v. 15, p. 185-207, 1982. Outros estudiosos, como Michel Graulich, acreditam que
não existia tal mecanismo e que ao longo do tempo houve uma grande defasagem entre o ano
calendário com sua subdivisão em vintenas e as estações. Cf. Graulich, Michel. Mitos y rituales
del México antiguo. Madri: Ediciones Istmo/Colegio Universitario, 1990. Um terceiro grupo
de estudiosos, dentre os quais podemos citar Gordon Brotherston, propõe que um sistema
calendário com uma continuidade de uso tão ampla e com subdivisões do ano marcadas por
celebrações e festividades claramente relacionadas às estações deveria possuir, certamente, um
mecanismo de correção. No entanto, esse grupo acredita que tal mecanismo não era tão regu-
lar – como propõe o primeiro grupo – e que funcionaria a partir da conferência da posição das
Plêiades no meio da noite em que se celebrava o Fogo Novo e o Enlace dos Anos, eventos que
serão tratados mais adiante. No momento desses eventos, que ocorriam a cada 52 anos, essa
constelação deveria ocupar o zênite e a defasagem de posição poderia servir para, de tempos
em tempos, se fazer correções. Cf. Brotherston, Gordon. La América indígena en su literatura,
op.cit. Para um balanço geral da questão: Tena, Rafael. El calendario mexica y la cronografía. Méxi-
co: Inah, 1992.
Eduardo Natalino dos Santos 137
segundo o tonalpohualli, servia para nomeá-lo.19 Imaginemos que hoje é o dia ce acatl
(1 junco) e que esse é o primeiro dia do ano sazonal: esse ano também se chamará
ce acatl. Mas como o ano sazonal é maior do que o ciclo de 260 dias, o próximo ano
sazonal não começará novamente no dia ce acatl, mas no 106o dia do ciclo seguinte
do tonalpohualli. Que dia será esse? A sequência dos vinte signos do tonalpohualli cabe
dezoito vezes no ano sazonal de 365 dias com sobra de cinco signos: isso faz com que
o signo que principia e nomeia o ano, chamado de portador ou carregador do ano,
salte de 5 em 5 entre os vinte tonalli e retorne ao primeiro depois de quatro anos.
Em outras palavras, se o primeiro ano teve como signo acatl, que é o décimo
terceiro no conjunto dos vinte tonalli, o segundo ano terá o décimo oitavo signo, isto
é, tecpatl, o terceiro ano terá o terceiro, isto é, calli, o quarto ano terá o oitavo, isto
é, tochtli, e no quinto ano volta-se ao signo acatl. Portanto, dentre os vinte signos do
tonalli apenas quatro serviam para nomear os anos sazonais.
Quanto aos treze números que se combinavam aos vinte signos para nomear os
dias no tonalpohualli, será que também apenas quatro deles eram utilizados para nome-
ar os anos? Isso aconteceria se tivéssemos vinte números para acompanhar os vinte sig-
nos do tonalli, pois desse modo teríamos uma combinação fixa entre números e signos.
No entanto, como vimos acima, os números utilizados para nomear os dias eram treze e,
diferentemente dos vinte signos com os quais se combinavam, dos quais apenas quatro
nomeavam os anos, todos eles eram empregados na conta dos anos sazonais. Isso ocorre
porque os treze números do tonalpohualli cabem vinte e oito vezes no ano sazonal de 365
dias com sobra de um, fazendo que os números dos dias com os quais os anos se iniciam
avancem de um em um.
Em suma e de forma exemplar: se o primeiro ano teve como dia inicial 1 acatl,
o segundo ano terá 2 tecpatl, o terceiro terá 3 calli, o quarto 4 tochtli, o quinto 5 acatl,
o sexto 6 tecpatl, depois 7 calli, 8 tochtli, 9 acatl, 10 tecpatl, 11 calli, 12 tochtli, 13 acatl,
14 tecpatl, e assim sucessivamente até se operarem todas as combinações possíveis
entre os quatro signos e os treze números que caem como dias iniciais dos anos
sazonais, o que resulta em uma série de 52 anos, após os quais os nomes dos anos
voltam a se repetir.
19 Essa explicação geral não corresponde totalmente às distintas e específicas contas dos anos
que eram empregadas na Mesoamérica. Isso porque, havia muitas variações na utilização do
sistema, as quais, no entanto, não rompiam sua lógica interna. Isso poderia ser explicado pela
dimensão qualificadora do sistema calendário, ou seja, escolher um determinado ano para
celebrar o Fogo Novo, por exemplo, não era apenas uma questão quantitativa ou algo previa-
mente determinado pelo sistema. Segundo Alfonso Caso, o ano mexica principiava pelo dia
seguinte àquele que dava seu nome ao ano, ou seja, os anos tochtli começam por acatl, os acatl
por ocelotl, os tecpatl por quiahuitl e os calli por cuetzpalin. Cf. Caso, Alfonso. Nuevos datos para la
correlación de los años aztecas y cristiano. In: Estudios de cultura náhuatl. México: IIH – Unam,
v. 1, p. 9-25, 1959.
138 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Em nahuatl, essa série era denominada xiuhmolpilli, termo formado por xihuitl,
que significa ano, cometa, turquesa ou erva,20 por mo, pronome reflexivo traduzível por
se, e por ilpilli, que deriva do verbo ilpia, traduzível por atar alguma coisa. Desse modo
podemos traduzir xiuhmolpilli por atam-se ou enlaçam-se os anos ou ainda, simplesmente,
por enlace de anos.21 É interessante notar que esse termo refere-se tanto ao fechamento
de um ciclo de 52 anos sazonais como ao reencontro do início desse tipo de ano com
o início do ciclo de 260 dias. Isso porque o período de 52 anos totaliza 18.980 dias,
que equivalem exatamente a 73 ciclos de 260 dias.22 Em outras palavras, os anos ou
ciclos que se atavam a cada 18.980 dias eram, ao mesmo tempo, os anos sazonais entre
si – cujos nomes voltariam a se repetir – e o início do ano sazonal com o início do ciclo
do tonalpohualli.
À ocasião do xiuhmolpilli era celebrada a cerimônia do Fogo Novo, momento
muito importante para os povos mixteco-nahuas, pois se acreditava que a duração
das idades do Mundo era regida por esses ciclos de 52 anos e que, portanto, ao
final de um deles, o Mundo voltaria a sofrer cataclismos que marcariam o térmi-
no da era atual. Analisaremos em detalhe neste capítulo como o Códice borbónico
registra tal cerimônia.23
Levando tudo isso em conta, é importante ressaltar dois aspectos do sistema
calendário mesoamericano.
Primeiramente, que devido à importância do ano de 365 dias em nossa tradi-
ção de pensamento, tendemos a dar-lhe um papel central e a explicar o tonalpohualli
20 O uso do mesmo termo para designar ano e cometa pode ser explicado pela relação entre a visão
e observação de corpos celestes e a contagem do tempo. Quanto ao significado de turquesa,
sabemos que a cor azul-turquesa era utilizada nos escritos pictoglíficos nahuas para emoldurar
os glifos da conta dos anos (ce acatl, ome tecpatl, yei calli, nahui tochtli, macuilli acatl etc.), agregan-
do-lhes o adjetivo precioso (o precioso ano 1 junco etc.), qualidade comumente atribuída a essas
unidades de tempo. Quanto ao significado de erva, desconheço suas relações com o de ano.
21 Também era comum agregar-se a xiuhmolpilli o prefixo to, um adjetivo possessivo que significa
nosso, resultando em toxiuhmolpilli, que poderia ser traduzido por enlace de nossos anos ou nossos
anos se enlaçam.
22 Ross Hassig afirma que os 52 anos xihuitl ou os 73 tonalpohualli totalizariam 94.900 dias. O
autor equivocou-se ao ter, simplesmente, multiplicado as durações dos dois ciclos (365 x 260)
ao invés de ter buscado o mínimo múltiplo comum entre ambos, que é 18.980 dias. Nas suas
palavras: “The two cycles of 260 and 365 days, respectively, ran continuously, with their con-
junction of day names, months and years producing a still larger cycle of 52 solar years (260
x 365 = 94,900, which is 52 xihuitl cycles or 73 tonalpohualli cycles), known as the Calendar
Round, before beginning anew.” Hassig, Ross. Time, history and belief in Aztec and Colonial Mexico.
Austin: University of Texas Press, 2001, p. 16.
23 Uma boa discussão teórica sobre o papel social dessa cerimônia encontra-se em Clendinnen,
Inga. Aztecs. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
Eduardo Natalino dos Santos 139
24 Não estamos querendo dizer que o ciclo de 260 dias tivesse uma importância maior do que a
do ano sazonal para as sociedades mesoamericanas, pois era esse último que regia a produção
agrícola e, assim, grande parte das atividades sociais. Estamos nos referindo apenas a certa pre-
cedência matemática dentro do sistema de cálculos calendários e astronômicos. Cf. Siarkiewicz,
Elzbieta. El tiempo en el tonalamatl, op.cit. A proposta dessa autora é que o tonalpohualli era uma
ferramenta para designar qualquer ciclo de tempo, independente do número de dias.
25 Isso porque o ano solar (5 x 73 = 365 dias) e o ano de Vênus (8 x 73 = 584 dias) possuem o
número 73 como divisor comum, o qual multiplicado por 13 gera um ciclo (13 x 73 = 949 dias)
que poderia ser, por sua vez, multiplicado pela base numérica 20 para gerar o grande ciclo de
52 anos (20 x 13 x 73 = 18.980 dias ou 52 anos), cuja construção, portanto, estaria baseada nas
trezenas do tonalpohualli. Cf. Seler, Eduard. Comentarios al Códice Borgia. México: FCE, 1988.
Além disso, o emprego das trezenas e da base vigesimal para calcular as relações entre o ano
solar e o de Vênus poderia formar um outro grande ciclo, cuja importância para o sistema
calendário mesoamericano parecia ser fundamental, pois marcava justamente o reencontro
do início do ano solar com o do ciclo de Vênus. Estamos falando do grande ciclo chamado de
huehuetiliztli, ou uma velhice, formado por dois xiuhmolpilli, isto é, 104 anos sazonais ou 37.960
dias, período que corresponde exatamente a 65 anos venusianos de 584 dias.
26 Essa denominação foi muito utilizada até duas ou três décadas atrás e, por vezes, é adotada de
forma automática por importantes estudiosos, cuja qualidade das obras é inquestionável. É o
caso de Romero Galván, José Rubén. Los privilegios perdidos. México: IIH – Unam, 2003. Além
disso, esse autor equivoca-se na nota de rodapé número 18 ao traduzir xiuhpohualli por cuenta
de los días.
140 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
27 Essa diferenciação de termos para se referir à subdivisão interna do ano sazonal em vintenas
– xiuhpohualli – ou à conta dos anos e a formação de grupos de 52 anos – xiuhmolpilli – não é
adotada universalmente. Alguns autores referem-se a essa última como xiuhpohualli e reservam
o termo xiuhmolpilli exclusivamente para o advento do enlace dos anos. Outros, ainda, usam o
primeiro para se referir às duas coisas. Por exemplo, Miguel León Portilla afirma em uma oca-
sião que “A diferencia del xiuhpohualli o cuenta del año de 365 días, el tonalpohualli estaba
integrado por sólo 260”, referindo-se assim à conta interna do ano sazonal por meio do termo
xiuhpohualli, o que condiz com nossa proposta. No entanto, na mesma obra, também se refere
ao ciclo de 52 anos contidos no segundo capítulo do Códice borbónico como um “...xiuhpohualli,
cuenta de 52 años.” León Portilla, Miguel. Códices, op. cit., p. 66 e 243.
Eduardo Natalino dos Santos 141
28 Apesar de não possuirmos anais nahuas pré-hispânicos, a onipresença desse tipo de livro na
região do altiplano central mexicano durante a época Colonial e a concordância de informa-
ções e de estilos entre livros de distintas procedências distanciam qualquer possibilidade de
origem a partir dos anais europeus. Além disso, existem xiuhamatl pré-hispânicos procedentes
da região de Oaxaca, como o Códice Zouche-Nuttall e o Vindobonense, nos quais os anos não estão
registrados em sequências completas e ininterruptas, mas são marcados à medida que a narra-
tiva os exige. Elizabeth Hill Boone não considera esses livros mixtecos como anais e os agrupa
sob a categoria de res gestae por possuírem como temática central as dinastias e seus feitos. Cf.
Boone, Elizabeth Hill. Manuscript painting in service of imperial ideology. In: Berdan, Francis
et alii. Aztec imperial strategies. Washington: Dumbarton Oaks Research Library and Collection,
1996. No entanto, tal categorização pode ser uma complicação desnecessária e, além disso,
mascarar o princípio básico de leitura dessas histórias, as quais possuem claramente a conta
dos anos como coluna vertebral e que, por isso, poderiam ser incluídas na categoria já existen-
te de xiuhamatl.
29 Além dessa presença central na organização dos livros de anais, os ciclos de 52 anos também
serviam para contabilizar a duração das idades anteriores do Mundo e para estabelecer a data
inicial da idade atual nos relatos cosmogônicos. No Capítulo IV iremos analisar os relatos cos-
mogônicos nahuas e comparar alguns de seus aspectos com os relatos maias. Nessa ocasião,
trataremos a temática das datas iniciais de modo mais profundo.
142 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
30 Talvez se possa estabelecer um paralelo funcional e ideológico entre esse caso e o dos maias,
entre os quais houve uma grande difusão de uma única data inicial, a qual pautou as contas
calendárias de praticamente todos os grandes centros durante o chamado período Clássico.
Em ambos os casos, o ato de contar o tempo e determinar seus ciclos – que significava também
controlar suas qualidades – estava sendo efetuado nos grandes centros de poder, fazendo que
as entidades políticas menores estivessem, em alguma medida, sob o controle e influência das
cargas temporais determinadas por tais centros.
Eduardo Natalino dos Santos 143
32 Mais à frente, compararemos o tonalamatl do Códice borbónico com algumas seções do Códice
Borgia, quando então fundamentaremos melhor essa primazia da conta dos dias para organizar
os outros elementos e séries. Pois, até esse ponto da análise, se poderia propor o contrário, ou
seja, que, por exemplo, a série de treze Quecholli seria o princípio organizador básico segundo
o qual a conta dos dias estaria disposta.
144 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Vale notar ainda que, estabelecido esse sentido, o glifo que se encontra mais
abaixo e mais à esquerda da página é, justamente, o glifo calendário que inicia e no-
meia a trezena, isto é, ce calli. É como se sua posição extrema reforçasse o sentido de
leitura estabelecido pela sequência da conta dos dias em seu conjunto.
Nos mesmos quadrados ocupados pelos pequenos glifos da conta dos dias temos,
à direita deles, os nove Yoaltetecuhtin ou Senhores da Noite, cujos nomes, sequência
e prováveis significados gerais foram apontados anteriormente. No caso específico
do Códice borbónico, os Senhores da Noite são representados apenas por suas cabeças
ou bustos – à exceção de Tepeyolotl, Coração da Montanha, que não é representado
antropomorficamente nesse códice – e com os braços abertos em torno dos signos do
tonalli, como se os abraçassem.33
Essa postura, talvez, indicaria que os Senhores da Noite influenciavam e pro-
tegiam os dias ou, ainda, que conheciam suas cargas. Essa última interpretação tem
sido proposta com base na análise do termo nahuatl imatian, registrado durante os
trabalhos dirigidos por Sahagún para se referir à carga de um dia do tonalpohualli.
Esse termo é formado a partir do verbo mati, que significa tocar com as mãos ou conhecer
e, sendo assim, pode ser traduzido por seu lugar de conhecimento, mas também por seu
lugar de abraço.34
Ou ainda, a presença dos Senhores da Noite nas mesmas casas que os tonalli e
os números poderia indicar a conjunção de cargas que se mesclariam para compor
uma unidade calendária maior, formada por períodos que costumamos separar, isto
é, pelo dia e pela noite. Voltaremos a tratar dos Senhores da Noite do Borbónico mais
adiante, em comparação com outros manuscritos pictoglíficos, quando então estare-
mos em posse de uma gama maior de informações para uma inferência como essa.35
Na fileira de quadrados paralela à da conta dos dias e dos Senhores da Noite,
formada pela fileira inferior interna e pela lateral externa, temos os treze Voadores e
os chamados Senhores dos Dias. Essas duas séries de elementos formam uma combi-
34 Cf. Anders, Ferdinand et alii. El libro del ciuacoatl. Graz/Madri/México: ADV/SEQC/FCE, 1991,
p. 114.
35 Veremos, por exemplo, que os Senhores da Noite não aparecem nos mesmos quadrados que os
números e tonalli no Códice Vaticano A, o que poderia denotar uma tentativa de separação mais
clara entre os conceitos de dia e noite.
Eduardo Natalino dos Santos 145
nação fixa entre si e com a série dos treze números dos dias, pois todas são compostas
pela mesma quantidade de elementos, isto é, treze. Na Tabela 5 podemos ver essa
combinação fixa entre os números dos dias, os treze Voadores e os Senhores dos Dias
tal qual aparece no Códice borbónico, bem como saber os nomes desses últimos, os quais
não haviam sido apresentados anteriormente.
Tabela 5: Os números dos dias, os Senhores dos Dias e os treze Quecholli que se repetem a cada
trezena do tonalamatl do Códice borbónico.
36 Ave parecida à pomba, menor do que ela e que emite um som suave, lento e repetitivo.
37 Uma das fontes que traz esse tipo de informação é o Códice Tudela, parte do Grupo Maglia-
bechiano e no qual podemos ler acerca dos Quecholli em sua página 90: “son agüeros que si
en algún día querían hacer (...) obra o ir de camino y veía alguna de aquellas figuras o aves
lo tenían por agüero, y así mismo si el día que nacía alguno veía la madre o padre alguna de
146 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
aquellas aves lo tenían por agüero...” Apud Anders, Ferdinand et alii. El libro del ciuacoatl. Graz/
Madri/México: ADV/SEQC/FCE, 1991, p. 65.
38 Cf. Castillo, Cristóbal del. Historia de la venida de los mexicanos y otros pueblos, op.cit., cap. 72.
39 De maneira geral, os povos mesoamericanos acreditavam que cada ser possuía um tonalli, uma
espécie de alma recebida de acordo com o momento de seu nascimento. Esse tonalli era com-
partilhado ou se vinculava a outro ser, como um animal ou uma montanha, por exemplo,
nascido numa data idêntica ou equivalente. Essa espécie de alter-ego ou duplo era chamado de
nahual. A esse fenômeno geral de compartilhamento de tonalli – e, portanto, de destinos –
dava-se o nome de tonalismo. No entanto, alguns indivíduos possuíam a capacidade especial de
se transformar no ser cujo tonalli compartilhavam. A isso se tem dado o nome de nahualismo.
Cf. Navarrete Linares, Federico. Nahualismo y poder. In: _____ e Olivier, Guilhem (coords.).
El héroe entre el mito y la historia. México: IIH – Unam/Centro Francés de Estudios Mexicanos y
Centroamericanos, 2000.
veis implicações dessa quase exclusividade dos treze Voadores nesses dois códices. Por
ora, aproveitaremos a temática dos Voadores para analisar algumas características de
suas representações no Borbónico, as quais nos permitirão entender melhor o caráter
do sistema pictoglífico empregado na construção desse e de outros tonalamatl.
Como podemos observar na Figura 1, as aves e a borboleta que compõem o
conjunto dos treze Voadores são representadas, predominantemente, de lado, o que
permite a representação plástica matizada de elementos característicos de cada espé-
cie: a cor das penas, o formato da cabeça, a presença ou não de crista e o formato do
bico. A exceção é, basicamente, o caso do tecolotl, ou coruja, cujo corpo é representado
lateralmente e a cabeça frontalmente – a décima ave na Figura 1, seguindo-se o sen-
tido de leitura indicado anteriormente, isto é, da esquerda para a direita e de cima
para baixo. Essa representação frontal da cabeça realça uma notória característica
diacrítica dessa ave: os enormes olhos e as enormes orelhas emplumadas.41
Outro caso que reforça a relação entre a escolha da forma de representação e o
realce de características identificadoras é o do chicoatl, ou mocho. Essa ave é representa-
da com o corpo e a cabeça em perfil, assim como todas as outras, à exceção do tecolotl,
até a décima quarta trezena. Nessas representações destaca-se uma de suas mais notó-
rias características: seus olhos enormes com grandes penas ao redor, o que é feito por
meio do desenho de apenas um de seus olhos, devido à opção pelo perfil. No entanto,
da décima quinta trezena em diante, justamente a que se encontra reproduzida na
Figura 1, por razões desconhecidas, sua cabeça passa a ser representada de frente, o
que permite um destaque ainda maior, agora, para seus dois olhos. Só que dessa for-
ma, suas representações tornam-se muito parecidas com as do tecolotl. A solução para
evitar confusões foi diferenciar o chicoatl tirando-lhe suas orelhas por completo – as
quais, como vimos, são matizadas nas representações do tecolotl – e deixando-lhe ape-
nas as longas penas ao redor dos olhos.
Esses casos parecem confirmar que as soluções figurativas empregadas nos có-
dices pictoglíficos mixteco-nahuas pautavam-se, prioritariamente, por opções semân-
ticas, ou seja, relacionadas à identificação de elementos que eram parte do sistema
pictoglífico e que portavam sentidos mais ou menos precisos, os quais deveriam ser
reabilitados no momento da decodificação. No entanto, a prioridade concedida à
identificação e ao significado não resultava, necessariamente, no abandono do cará-
ter figurativo dos elementos que compunham tal sistema.42
41 Somente na trezena Ce Ozomatli (Um Macaco), a coruja é apresentada com o rosto em perfil,
mas, mesmo assim, destacam-se suas enormes orelhas. Cf. Códice borbónico, op. cit., p. 11.
42 Em outra ocasião, dedicamos um artigo a esse tema. Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Os
códices mexicas. In: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia – USP. São Paulo: Museu de Ar-
queologia e Etnologia da USP, n. 14, p. 241-58, 2004.
148 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
43 No Tonalamatl Aubin são representadas apenas suas cabeças. Cf. El Tonalamatl de la Colección
Aubin. Tlaxcala: Estado de Tlaxcala/La Letra Editores, 1981.
44 A existência de um glifo para palavra remonta aos tempos de Monte Albán, de Teotihuacan
e de cidades maias como Kaminaljuyú, Tikal e Bonampak. Há alguns estudos sobre seus sen-
tidos gerais nos códices pictoglíficos. Um deles propõe a existência de cinco tipos principais
de volutas, entre os quais podemos destacar as volutas para a palavra comum, para a palavra
com autoridade e para a metafórica. Cf. Sepúlveda y Herrera, María Teresa. El poder de la
palabra. In: Piña Chan, Beatriz Barba de (coord.). Iconografía mexicana IV. México: Inah/
Plaza y Valdés, 2002.
Eduardo Natalino dos Santos 149
de pintura da página, o tlacuilo aproveitou-se das cores das figuras ao lado para pintar
também a voluta.45
Apesar de não termos muitas informações sobre as funções e os sentidos dos
Tonaltetecuhtin dentro do tonalamatl, sabemos que, de forma geral, eram associados
aos treze níveis celestes, a partir dos quais presidiriam todo o correr do dia, a começar
por Xiuhtecuhtli, o Senhor do Ano, deidade estreitamente vinculada aos cômputos
temporais e que ocuparia o mais baixo nível celeste, justamente o primeiro a ser atin-
gido pelo sol no início do dia.46 Além disso, a relação existente no pensamento nahua
entre o conceito de dia e o percurso do Sol pelo céu é reforçada pela proximidade
entre os termos ilhuitl, que servia para denominar dia, e ilhuicatl, que era empregado
para céu.
Entremos na apresentação e análise dos elementos contidos no grande quadra-
do presente em todas as trezenas do tonalamatl do Códice borbónico.
Vimos que todas as séries de elementos apresentadas e analisadas acima se distri-
buem de forma regular a partir da base organizacional e do sentido de leitura forneci-
do pela conta dos dias. Essas séries ocupam um pouco mais da metade da área de cada
página do tonalamatl do Borbónico, sendo que o restante é ocupado por elementos que,
à primeira vista, parecem não possuir nenhuma ordem em sua disposição.47
Entretanto, se observarmos com atenção todas as trezenas, é possível notar que
há um padrão nos tipos, posições e dimensões dos elementos representados em cada
um dos grandes espaços quadrangulares. Esse padrão caracteriza-se pela presença de
uma ou de um par de grandes figuras antropomórficas ou zoomórficas, que ocupam
uma ou as duas laterais do espaço quadrangular e que, quando formam um par, en-
contram-se dispostas uma de frente para a outra; e também pela presença entre essas
figuras maiores de uma grande quantidade de glifos e de representações de objetos
45 Uma das propostas de leitura para o glifo palavra nesse contexto calendário é ytlatoayan ou
oncan tlatoa, que Sahagún traduz como nesta casa reinava, mas que pode ser lido como dele
se ocupava ou ali rege ou governa. Cf. Anders, Ferdinand et alii. El libro del ciuacoatl, op. cit., p.
113. Vale esclarecer que o verbo tlatoa, que significa falar e também governar, está em ambas
as expressões.
46 Os treze Quecholli também podem, de alguma forma, relacionar-se com os treze níveis celes-
tes. Ao analisarmos a cosmografia em detalhe, no próximo capítulo, veremos que, no entanto,
há uma polêmica sobre o número de níveis celestes dentro da cosmovisão mesoamericana, se
treze ou nove. Cf. Díaz Cíntora, Salvador. Meses y cielos. México: Unam, 1994. Além disso, vere-
mos que talvez seja arriscado geometrizar em excesso os níveis celestes e do inframundo, como
acabamos de fazer.
47 Para ser mais preciso, as franjas horizontais e verticais ocupam quase três quintos de cada pági-
na e o quadro maior ocupa um pouco mais de dois quintos. Cf. Batalla Rosado, Juan José. Los
tlacuiloque del Códice borbónico. In: Journal de la Société des Américanistes. Paris: Au Siège de la
Société Musée de L’Homme, tomo 80, p. 47-72, 1994.
150 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
48 Há um par de artigos que analisa os recipientes dessa seção do Borbónico. Tais artigos apontam
para um total de noventa recipientes, os quais são classificados segundo sua forma ou função
e sua relação com os conteúdos. O resultado é uma divisão entre recipientes com conteúdos
adequados, sabidos e inadequados. Depois, procura-se fazer uma interpretação dos atributos
secundários de tais recipientes com base, exclusivamente, nos textos de Sahagún – seguindo
mais ou menos o famoso método de leitura iconográfica e iconológica proposto por Panofsky
em Iconology and iconography: an introduction to the study of Renaissance art. In: Meaning
in the visual arts. Garden City: Doubleday, 1955, p. 26-54. No entanto, o resultado desses artigos
deixa muito a desejar, sobretudo por não ir muito além das descrições e classificações formais
e por não estabelecer relações com outros códices ou textos alfabéticos, cujos conteúdos regis-
trados possuem similaridades inquestionáveis com os do tonalamatl do Borbónico. Cf. Rosseau,
Françoise. Un sistema de relación en el tonalamatl del Codex Borbonicus / Durand-Forest,
Jacqueline de. Contenientes y contenidos. In: Vega Sosa, Constanza (compiladora). Códices y
documentos sobre México. México: Inah, 1994. Além disso, como afirmamos no Capítulo I, pen-
samos que tratar os glifos do sistema escritural mixteco-nahua exclusivamente como pinturas
que se prestavam a amplas interpretações não seja um bom método para seu estudo.
Eduardo Natalino dos Santos 151
Não trataremos de caracterizar cada uma dessas trezenas e suas deidades tute-
lares. Além desse não ser o objetivo da pesquisa, há diversos estudos que cumprem
essa tarefa.49 Para nosso objetivo será mais proveitoso indicar a inserção e a estreita
49 Como os livros explicativos que acompanham as edições fac-similares dos códices. Por exem-
plo, Anders, Ferdinand e outros. El libro del ciuacoatl, op. cit.
152 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
50 Parece que esse nome-data possuía um caráter especial, pois se encontra espalhado por toda a
Mesoamérica, seja sob a forma de datas propriamente ditas ou para designar personagens na
história e cosmogonia relacionadas a Quetzalcoatl. Cf. Brotherston, Gordon. Painted books from
Mexico. Londres: British Museum Press, 1995, p. 84 e 85. Na conta dos anos mexica, o signo
ehecatl não era um portador de ano e por isso não havia anos nomeados como chiconahui ehe-
catl. No entanto, nove vento era um dia do tonalpohualli e em alguns tonalamatl ele se encontra
especialmente destacado, como na página 289r dos Primeros memoriales (Norman: University
of Oklahoma Press, 1993) e na página 9r do Telleriano-remense (Codex telleriano-rememsis. Austin:
University of Texas Press, 1995.). No primeiro caso, temos a associação com uma data cristã e,
no segundo, o desenho de uma mão que aponta esse dia.
51 Cf. Gruzinski, Serge. La colonización de lo imaginario. México: FCE, 1995. Apesar de clamar pelo
entendimento conjunto da cosmogonia e do calendário, esse mesmo autor defende que a con-
ta dos anos não servia para se aludir a um lapso temporal singular, mas a um tipo de ano, a uma
gama de influências recebidas em vários anos com os mesmos nomes. Procuraremos mostrar
Eduardo Natalino dos Santos 153
talvez essa ligação, que em alguns casos chega à indistinção, seja uma das principais
especificidades das explicações sobre o passado elaboradas pelos povos e tradições
de pensamento nahuas e mesoamericanos e, consequentemente, indispensável para
caracterizar suas concepções de tempo e de passado.
Sendo assim, talvez seja fundamental ressaltar que o tonalpohualli embasava-se
em um conceito de tempo e cosmo que não se explica unicamente pela ideia de rito,
pois se estruturava sobre o pressuposto de que existiam influências das criações cos-
mogônicas no presente, influências essas que obedeciam a ciclos e lapsos temporais
complexos e de amplitudes variáveis; e não apenas à realização de um ato ritual que
as evocasse metonimicamente.
Em outras palavras, o tonalpohualli, seus prognósticos e atos rituais relaciona-
dos não eram um simples mecanismo de atualizar os eventos e momentos originais,
minimizando ou apagando, assim, a fronteira entre passado e presente. Na verdade,
constituía-se como um aparato ideológico que permitiria entender e manipular os
diversos ciclos e lapsos temporais que intermediariam as relações entre o presente e
o passado, duas dimensões temporais que, como procuraremos mostrar mais adiante,
não se distinguiam qualitativamente para o pensamento nahua, pois ambas estavam
sujeitas à mensuração por meio da mesma conta calendária, isto é, pelos anos xihuitl.
Além disso, veremos também que o Mundo atual, assim como os anteriores, estava
sujeito a sofrer cataclismos que o encerrariam e dariam lugar a outra idade: os tempos
presentes continuavam a ser tempos cosmogônicos ou de origens.
Voltaremos a essas questões ao tratarmos da continuidade da marcação temporal
entre cosmogonia e história recente – o que faremos ainda neste capítulo – e também
ao abordarmos as especificidades da cosmogonia nahua do século XVI – o que será
feito no Capítulo IV. Nessa ocasião, trataremos de mostrar indícios e argumentos que
embasem a afirmação acima, a qual vai de encontro a uma das principais ideias de-
fendidas por Alfredo López Austin e outros estudiosos: a distinção entre o outro tempo-
espaço – caracterizado pela eterna presença e atuação dos deuses na criação da ordem
cósmica – e o tempo-espaço humano – no qual essa ordem encontra-se estabelecida.52
Por enquanto, tratemos de analisar mais alguns aspectos das formas de presença
e papéis do tonalpohualli nos códices pictoglíficos, tais como o uso dos signos do tonalli
como indicadores do sentido de leitura.
que a marcação da diacronia era uma dimensão muito importante na concepção de tempo
e de passado entre os nahuas, presente na conta dos anos por meio da marcação dos Fogos
Novos e da ininterrupta continuidade dos glifos dos anos apontados nos livros de anais.
52 Para esse estudioso, os dois tempos-espaços não se constituiriam como âmbitos incomunicá-
veis, mas não se confundiriam em nenhum momento. Cf. López Austin, Alfredo. Los mitos del
Tlacuache. México: IIA – Unam, 1998.
154 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
cada, o que resulta na formação de treze colunas. Nas cinco fileiras centrais e mais
53 O sistema maia possuía uma padronização maior. Em geral, os glifos eram lidos em pares de
colunas, da esquerda para a direita e do topo para baixo.
55 Cf. The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p. 1 e 2. Optamos por apresentar no
livro as imagens do Borgia provenientes de uma edição não fac-símile devido, sobretudo, ao mau
estado de conservação de suas páginas iniciais, visível na edição fac-símile que também consul-
tamos na pesquisa: Códice Borgia. Madri/Graz/México: SEQC/ADV/FCE, 1993. Faremos essa
opção sempre que não estivermos analisando, por exemplo, as cores ou traços do manuscrito,
acreditando que dessa forma não comprometeremos a apresentação de nossas análises e infe-
Eduardo Natalino dos Santos 155
56 Voltaremos a essa seção do Códice Borgia no Capítulo III para tratar da relação entre ciclos tem-
porais e conceitos cosmográficos, já que esse tipo de disposição permitia, justamente, agrupar
as trezenas que estariam relacionadas a uma mesma direção do Mundo. No par de páginas
reproduzido na Figura 3 estão as trezenas relacionadas ao oriente.
57 Embora a delimitação das séries de treze dias pelos limites físicos dos pares de páginas não
signifique uma separação absoluta, pois o formato de biombo do Códice Borgia permite a vi-
sualização de qualquer conjunto de páginas contíguas de uma só vez – ou mesmo, quando o
biombo é estendido, de todas as suas páginas simultaneamente.
58 As vinte trezenas do tonalpohualli voltam a ser retratadas no Borgia entre as páginas 61 e 70. Nes-
se caso, apresentam outro arranjo, mas, assim como nas páginas iniciais, a única série presente
continua a ser a dos tonalli, que emolduram os patronos de cada trezena em uma disposição
semelhante à do Borbónico. Cf. The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p. 61-70.
156 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
59 Ibidem, p. 14.
60 Em inglês, meander-fashion. Cf. Glass, John B. A survey of native Middle American pictorial
manuscripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor do volume).
Handbook of Middle American Indians, op. cit., v. 14.
61 O mesmo tipo de trajeto é percorrido pelo fio na produção do tecido em um tear e, talvez, essa
seja uma comparação mais adequada ao caso da escrita mixteco-nahua. Cf. Fraser, Valerie. Tex-
Eduardo Natalino dos Santos 157
Acontece o mesmo entre as páginas 9 e 13 desse códice, nas quais são apresen-
tadas as deidades tutelares das vinte trezenas que, assim como os nove Senhores da
Noite, aparecem separadamente das tais trezenas, que se encontram nas primeiras
páginas do manuscrito.62 Cada uma dessas cinco páginas contém quatro das vinte
deidades tutelares, as quais se encontram distribuídas uniformemente pelos quatros
quadrantes em que cada uma das cinco páginas se divide. Podemos ver a primeira
dessas páginas reproduzida na Figura 5.63
Mas as quatro primeiras deidades tutelares não são as que se encontram na pri-
meira página. Nessa página, a primeira deidade tutelar, Tonacatecuhtli, ocupa o qua-
drante inferior direito, a segunda deidade, Ehecatl, ocupa o quadrante inferior à
sua esquerda. A terceira deidade, Tepeyolotl, situa-se no quadrante à esquerda dessa
última deidade, o qual já se encontra na página seguinte.
Assim, a sequência das deidades tutelares – também chamadas de patronos das
trezenas – prossegue sempre à esquerda por todos os quadrantes inferiores dessas
cinco páginas, quando então passa para os quadrantes superiores e retorna da esquer-
da para direita até chegar novamente à primeira página da seção, onde termina no
quadrante superior direito, que podemos observar na Figura 5. Sendo assim, temos
as duas primeiras e as duas últimas deidades tutelares das trezenas na primeira página
dessa seção.
Esse sentido de leitura é novamente indicado pela sequência básica dos tonalli,
que acompanham as deidades tutelares das trezenas e podem ser observados no can-
to inferior esquerdo dos quadrantes que estão abaixo e no canto inferior direito dos
quadrantes que estão acima, como se estivessem marcando a passagem de um quadrân-
gulo para o outro.64
Nessas duas seções do Códice Borgia, parece-me que a função dos tonalli é, primor-
dialmente, indicar as sequências de leitura e, assim, organizar a disposição de outras
séries calendárias. Isso porque nem os nove Senhores da Noite ou os Patronos das
vinte trezenas relacionam-se direta e paralelamente com os nove primeiros ou com os
vinte tonalli em sua sequência elementar – à exceção da primeira deidade tutelar das
62 Cf. The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p. 9-13.
63 Ibidem, p. 9.
64 Além disso, os rostos ou frentes dos tonalli que estão representados nos quadrantes inferiores
estão direcionados para a esquerda, enquanto que os dos tonalli dos quadrantes superiores es-
tão direcionados para a direita, o que reforça o sentido de leitura nos dois casos. Esse recurso
era frequentemente utilizado nos códices pictoglíficos, como na sequência de glifos anuais que
emolduram a primeira página do Códice Mendoza, na qual o rosto do glifo tochtli (coelho) está
sempre direcionado para o sentido que a leitura deve seguir.
158 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
trezenas, Tonacatecuhtli, se que relaciona com o primeiro tonalli, cipactli, que nomeia
a primeira trezena.65
Parece-me que a constante relação dessas deidades com a tutela de cada trezena,
comprovada em diversos outros tonalamatl, as ligaria mais diretamente à sequência
de tonalli que inicia as trezenas (cipactli, ocelotl, mazatl, xochitl, acatl, miquiztli, quiahuitl,
malinalli, coatl, tecpatl, ozomatli, cuetzpalin, ollin, itzcuintli, calli, cozcacuauhtli, atl, ehecatl,
cuauhtli e tochtli) do que à sua sequência elementar (cipactli, ehecatl, calli, cuetzpalin,
coatl, miquiztli, mazatl, tochtli, atl, itzcuintli, ozomatli, malinalli, acatl, ocelotl, cuauhtli, coz-
cacuauhtli, ollin, tecpatl, quiahuitl e xochitl), a qual estaria nas páginas citadas do Códice
Borgia para, prioritariamente, indicar o sentido de leitura, servindo quase como uma
espécie de numeração.66
65 Esse tipo de apresentação dos Patronos das vinte trezenas em conjunto com os vinte tonalli em
sequência elementar aparece também em duas ocasiões no Códice Vaticano B, entre as páginas
28-32 e 87-94. Cf. Códice Vaticano B. Graz/México/Madri: ADV/FCE/SEQC, 1993. Eduard Se-
ler acredita que haja relações semânticas mais importantes do que a simples ordenação entre
as duas séries, isto é, pensa que as deidades das trezenas sejam também os regentes dos tonalli
em sua ordem elementar e gasta cem páginas de sua obra de comentários para tentar estabe-
lecer tais relações. No entanto, o resultado são ligações muito gerais e vagas. Por exemplo,
afirma sobre o quinto tonalli, coatl: “Su regenta es –y es natural que lo sea– Chalchiuhtlicue, ‘la
de la enagua de piedras preciosas verdes’ chalchíhuit, Señora del agua viva. Pues el agua viva, en
constante movimiento se ha comparado en todos los tiempos con la serpiente.” A impertinên-
cia de tais tentativas levam, inevitavelmente, a contradições, notadas pelo próprio estudioso ao
tratar, por exemplo, do sexto tonalli, miquiztli – “Su regente, cosa extraña, no es el Señor del
mundo inferior, sino Metztli, la Luna.” –, ou ao se referir ao sétimo signo, mazatl – “Es raro que
el regente de este signo, que simboliza la sequía, la falta de lluvia, el hambre, el fuego, el Sol,
no sea una deidad emparentada con el dios del fuego, sino Tlaloc, dios de la lluvia, a quien
encontramos asociado con el ciervo también en otros pasajes de las pictografías.” Pensamos
que a leitura dessas páginas do Borgia, e também das mencionadas seções do Vaticano B, deva
assumir como pressuposto que a presença dos vinte tonalli é, primordialmente, um indicador
da ordem e concatenação dos demais elementos, como o faz o próprio Seler no caso dos nove
Senhores da Noite. Nessa ocasião, atribui aos tonalli o papel de numeradores: “...aparecen
junto a las figuras de los Señores, a guisa de numeración, las imágenes de los primeros nueve
signos de los días.” Seler, Eduard. Comentarios al Códice Borgia, op.cit., p. 80, 82, 85 e 163. O uso
dos tonalli como numeradores para apresentar os Nove Senhores da Noite ocorre também no
Códice Fejérváry-Mayer. Graz/México: ADV/FCE, 1994, p. 2-4.
66 Os autores dos comentários às duas edições consultadas do Códice Borgia, talvez seguindo os
estudos pioneiros de Seler, também acreditam que haja uma relação semântica que vai além
da ordenação entre os vinte tonalli em sua sequência elementar e as vinte deidades tutelares
das trezenas. Sendo assim, essas deidades são apresentadas prioritariamente como Senhores
dos Vinte Dias e não como Patronos das trezenas. Cf. Anders, Ferdinand et alii. Los templos del
cielo y de la oscuridad. Madri/Graz/México: SEQC/ADV/FCE, 1993, p. 91-104. / Byland, Bruce
Eduardo Natalino dos Santos 159
Com base nos indícios levantados até aqui, é possível afirmar que talvez o siste-
ma calendário, sobretudo a conta dos dias, era um pressuposto gnosiológico para a
leitura das seções mencionadas do Borbónico e do Borgia; e não o tema abordado nelas.
Veremos, no Capítulo III, que o mesmo pode ser dito sobre as concepções espaciais
vinculadas ao sistema calendário, pois a relação entre os dias e as quatro direções do
Universo, por exemplo, não aparece de maneira explícita no tonalpohualli do Códice
borbónico – como aparece, por exemplo, no tonalpohualli do Códice Fejérváry-Mayer67
ou do próprio Borgia. No entanto, certamente, tal relação era tomada em conta por
quem manejava esses manuscritos para lançar prognósticos.
Na realidade, parece que os temas eram dispostos e organizados – e depois re-
abilitados na leitura– a partir da estrutura proporcionada pela conta dos dias. Desse
modo, como citamos acima, a presença marcadamente explícita no Borbónico dos nu-
merais, tonalli, Quecholli, Senhores da Noite e Senhores dos Dias poderia ser indício
de uma manufatura colonial, na qual se buscava explicitar elementos que seriam de-
masiadamente óbvios aos tonalpouhque nahuas, mas não tão óbvios aos castelhanos.68
Embora, também seja razoável propor que esse manuscrito fora confeccionado com
finalidades didáticas em tempos pré-hispânicos e destinava-se ao ensino de jovens que
estariam começando a se familiarizar com o tonalpohualli.69 Sendo assim, os indícios
fornecidos pela presença explícita de elementos que seriam por demais óbvios ou dis-
pensáveis nos tonalamatl pré-hispânicos talvez não sejam suficientes para resolvermos
o problema da datação do Códice borbónico.70
E. Introduction and commentary. In: The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p.
XVII–XIX.
69 A existência do calmecac e do serviço de jovens nos centros de formação das elites que utiliza-
vam esse tipo de livro torna essa hipótese plausível.
70 Um resumo da polêmica sobre a datação do Borbónico pode ser encontrado em Caso, Alfonso.
Los calendarios prehispánicos. México: IIH – Unam, 1967.
uma disposição gráfica para a sequência da conta dos dias e um sentido de leitura
distintos dos que aparecem no Borbónico.
Na Figura 6, que reproduz a trezena Ce Acatl (Um Junco), podemos observar a exis-
tência, na parte superior das duas páginas reproduzidas, de duas fileiras horizontais e
paralelas de pequenos quadrados delineados por grossas linhas vermelhas. Essas fileiras
juntam-se com duas colunas construídas com o mesmo padrão de pequenos quadrados
vermelhos, e que se encontram na lateral direita da página à direita, constituindo, assim,
uma relativa unidade geométrica em forma de “L” invertido e de cabeça para baixo.
Nos vinte e seis pequenos quadrados constantes nas duas fileiras e colunas estão
distribuídas três séries de elementos do tonalpohualli: os números, os signos do tonalli
e os Senhores da Noite. Os signos dos tonalli estão nas mesmas casas que os números,
os quais aparecem registrados com pequenos círculos vermelhos delineados em ne-
gro e que tendem a ser agrupados em conjuntos de cinco quando ultrapassam essa
quantia – o que era uma prática comum no sistema mixteco-nahua, mas não uma
norma universal.
Podemos observar que o primeiro número encontra-se no quadrado situado na
extrema esquerda da fileira horizontal inferior, o segundo no quadrado imediata-
mente à sua direita, e assim sucessivamente até chegar-se ao quadrado situado na
extrema direita dessa fileira, no qual está grafado o numeral dez. Depois, a sequência
numérica continua sua progressão no quadrado contíguo e abaixo desse último e,
desse modo, segue pela coluna da extrema direita para baixo, até o quadrado em seu
extremo inferior. Paralelamente aos números e tonalli, ou seja, na fileira horizontal
superior e na coluna interior, está disposta a série dos nove Senhores da Noite, a qual,
portanto, repete quatro de seus componentes em cada página.
Sendo assim, a série que mais facilmente permite a identificação do sentido de
leitura e que, ao mesmo tempo, delimita e organiza o conjunto de elementos repre-
sentados nessas páginas é a da conta dos dias ou tonalpohualli, em sua clássica subdivi-
são em trezenas. Seguindo a ordem-padrão dessa série, podemos dizer que o sentido
de leitura dessa seção do Vaticano A é da esquerda para a direita e de cima para baixo,
sempre em pares de quadrados das distintas fileiras ou colunas, do mesmo modo que
no Borbónico.
Desse modo, o sentido de leitura no tonalamatl do Vaticano A é, praticamente, o
mesmo dos textos alfabéticos que, aliás, ocupam a parte inferior de todas as quarenta
páginas pelas quais se estendem as vinte trezenas. Talvez a adoção de tal sentido indi-
que uma marcada influência da escrita ocidental na disposição gráfica desse tonala-
matl, pois esse mesmo sentido não é encontrado em nenhum tonalamatl pré-hispânico
ou tradicional.
Além disso, a unidade gráfica da trezena encontra-se partida na passagem en-
tre as duas páginas, pois as casas que levam o quinto dia e seu respectivo Senhor da
Noite – no extremo direito da página da esquerda – e as casas que levam o sexto dia
Eduardo Natalino dos Santos 161
72 Cf. ibidem.
73 Outros dois formatos empregados nos manuscritos pictoglíficos. A tela, ou lienzo em espanhol,
consistia em um grande pedaço quadrangular ou retangular de tecido que, geralmente, era
dobrado para ser guardado. O rolo poderia ser feito dos mesmos materiais que o biombo –
amate, agave e pele animal –, mas era enrolado ao invés de ser dobrado como sanfona. É inte-
ressante notar que poderia haver uma relação entre o formato e as temáticas dos manuscritos
mixteco-nahuas, por exemplo, entre os mapas e o formato de lienzo, os tonalamatl e o formato
de biombo e entre os manuscritos sobre a peregrinação e o formato de rolo. Cf. Brotherston,
Gordon. Painted books from Mexico, op. cit.
162 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
74 The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p. 61. Essa segunda aparição das vinte
trezenas ocupa dez páginas do Borgia (p. 61-70) e o sentido de leitura dos glifos dos dias em
cada trezena é da direita para a esquerda e de baixo para cima. O sentido de leitura da seção
como um todo é do tipo bustrofédon: inicia-se na trezena da parte inferior da página 61, repro-
duzida na Figura 7, segue pela parte inferior das dez páginas que compõem a seção, isto é, até
a página 70, passa à trezena da parte superior e retorna, da esquerda para a direita, até chegar,
novamente, à primeira página. Sendo assim, as trezenas que estão reproduzidas na Figura 7
são a primeira e a última. A edição fac-símile e que reproduz o formato original de biombo do
manuscrito é muito mais adequada para se entender ou analisar esse tipo de disposição. Cf.
Códice Borgia. Madri/Graz/México: SEQC/ADV/FCE, 1993.
Eduardo Natalino dos Santos 163
75 Ademais, esse processo teria contado também com diversas alterações estilísticas e no uso do
espaço pictórico, como é demonstrado na comparação entre os tonalamatl dos códices Borgia
e Telleriano-remense realizada em Montoro, Gláucia Cristiani. Dos livros adivinhatórios aos códices
coloniais. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2001.
76 Os dois primeiros livros da Historia de Sahagún tratam justamente dos deuses considerados prin-
cipais e do calendário. Diego Durán, em dois dos três livros que compõem sua Historia, trata, em
um deles, dos deuses e suas cerimônias e, no outro, do calendário. Cf. Sahagún, Bernardino de.
164 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
O Códice magliabechiano não conta com uma seção que possa ser chamada de
tonalamatl, propriamente falando. Nele, temos nada mais que os vinte tonalli acom-
panhados dos números de 1 a 13 e depois de 1 a 7, ou seja, temos aproximadamente
uma trezena e meia entre as quais não há uma separação gráfica perceptível e que,
além disso, principiam com o dia ce tecpatl (1 pedernal) e não com o dia ce cipactli
(1 jacaré) como era usual.77
Algo parecido ocorre nos Primeros memoriales, manuscrito produzido em Tepe-
pulco, em meados do século XVI, a partir dos depoimentos de sábios locais, os quais
foram selecionados e sistematizados por quatro jovens nahuas trilíngues e por Saha-
gún. Nesse manuscrito, encontra-se um tonalamatl que também não se inicia com o
dia ce cipactli, mas com o dia ce itzcuintli (1 cachorro).78 Assim como no caso do Maglia-
bechiano, não se sabe o motivo da escolha desse dia para iniciar o tonalamatl. Ce tecpatl
era também um dos carregadores de ano, o que poderia justificar sua escolha no caso
do Magliabechiano; mas não podemos dizer o mesmo de ce itzcuintli. Além de iniciar-se
por um dia pouco comum, os glifos do tonalamatl dos Primeros memoriales estão emol-
durados de maneira semelhante à que se aplicava aos glifos dos anos, os quais, por sua
vez, não possuem as tais molduras nesse manuscrito.79 Todas essas variações em rela-
ção aos padrões mais tradicionais podem ser fruto dos questionamentos e interesses
Historia general de las cosas de Nueva España. México: Conaculta, 2002. / Durán, Diego. Historia de
las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme. México: Editorial Porrúa, 1984.
78 Cf. Primeros memoriales by Fray Bernardino de Sahagún – Part I. Norman: University of Oklahoma
Press, 1993, p. 286v.
missionários que dirigiam tal projeto e do parco conhecimento calendário dos alunos
trilíngues que grafaram e sistematizaram os depoimentos dos sábios locais.80
Voltando ao Códice magliabechiano e às formas como apresenta a conta dos dias, é
fundamental notar que os tonalli e os números são os únicos elementos grafados nas
cinco páginas do manuscrito que tratam do tema, como podemos observar na primei-
ra delas, reproduzida na Figura 8. Ou seja, nenhuma outra série calendária, imagem
ou mesmo linha divisória em vermelho, as quais são tradicionalmente encontradas
nos tonalamatl, estão presentes nesse manuscrito. Não estão presentes, sequer, aqueles
elementos e séries que, em outros casos, como o do Vaticano A e seus deuses tutelares
e Senhores da Noite, chamaram a atenção dos missionários ou de outros envolvidos
nos processos de “tradução” e explicação do calendário nahua aos cristãos.
Além disso, como podemos perceber na Figura 8, cada um dos tonalli do Ma-
gliabechiano possui um tamanho relativamente grande, ocupando cerca de um quar-
to de cada página, e está acompanhado de uma glosa que simplesmente explica em
que consistem: “ce tecpatl, que es una piedra de pedernal a figura de hierro con
que ellos sacrificaban”.81
Essa exclusividade ampliada dos números e tonalli, somada à presença das glosas
explicativas, torna evidente que os próprios tonalli são a temática nessas páginas do
Códice magliabechiano; e não a estrutura sobre a qual outra temática se organizaria. Na
verdade, a estrutura de organização de cada conjunto pictoglífico – número e tonalli –
e o sentido de sua leitura são fornecidos pelos padrões da escrita alfabética ocidental,
que ocupa mais ou menos a metade desse manuscrito encadernado, como dissemos
de início, à maneira europeia. Dessa forma, pode-se passar da leitura do glifo nahua
da conta dos dias – por exemplo, um (o qual está acima) tecpatl (o qual está abaixo) –
para a leitura da glosa alfabética abaixo dele sem nenhuma interrupção ou inversão
do sentido de leitura.
A presença temática da conta dos dias e a organização por padrões da escrita
alfabética dessa seção do Códice magliabechiano são fortes indícios de que a simples
presença dos elementos pictoglíficos não foi suficiente para a manutenção das estru-
turas organizacionais tradicionalmente utilizadas no sistema mixteco-nahua, as quais,
como queremos demonstrar, eram fornecidas pelas unidades e ciclos calendários. Em
contraste, há textos alfabéticos nahuas nos quais o sistema calendário foi utilizado de
maneira mais estrutural do que temática, sobretudo o xiuhmolpilli, ou como pressu-
Logo de início, a Leyenda de los soles traz, sintomaticamente, uma referência tem-
poral muito precisa, a qual situa os episódios que serão narrados em relação ao mo-
mento em que o texto está sendo escrito. Essa referência aparece ao final do primeiro
parágrafo, logo depois de o autor filiar o texto às palavras sábias e de anunciar o tema
geral, isto é, a criação e o assentamento da Terra e suas criaturas. Afirma-se no texto:
“Mucho tiempo ha sucedió que formó los animales y empezó a dar de comer a cada
uno de ellos: sólo así se sabe que dió principio a tantas cosas el mismo Sol, hace dos
mil quinientos trece años, hoy día 22 de mayo de 1558”.82
Com essa localização temporal, o texto lança as bases para a expressão de
uma série de informações calendárias e para a contabilização da duração de cada
idade com o xiuhmolpilli. As durações das quatro primeiras idades teriam sido,
respectivamente, 676, 364, 312 e 676 anos xihuitl, todas elas múltiplos do ciclo de
52 anos. Como vimos no Capítulo I, a formação de conjuntos de 52 anos xihuitl,
significa, ao mesmo tempo, a formação de conjuntos de 73 tonalpohualli e, sendo
assim, as durações das idades anteriores mencionadas na Leyenda de los soles reme-
tem também a esse ciclo do calendário.
Ademais, a presença do tonalpohualli é reforçada nesse texto com outro tipo de
informação: o nome dos dias em que teriam advindo os cataclismos que encerraram
as idades anteriores ou dos dias em que teriam ocorrido importantes eventos para as
suas criações. Na Leyenda de los soles, esse tipo de informação consta no relato de todas
as idades anteriores e da atual; além disso, a importância desses dias deveria ser tão
grande que seus nomes serviam também para nomear as próprias idades. Esses dias
eram: nahui ocelotl (4 jaguar), nahui ehecatl (4 vento), nahui quiahuitl (4 chuva), nahui atl
(4 água) e nahui ollin (4 movimento).83
Além das duas formas de presença mencionadas acima, o tonalpohualli é utili-
zado também para especificar um outro tipo de informação na Leyenda de los soles:
o nome dos alimentos que sustentaram os homens em cada uma das idades. De
acordo com o texto, os alimentos das quatro idades anteriores haviam sido, res-
pectivamente, chicome malinalli (7 erva), matlactli omome coatl (12 serpente), chicome
tecpatl (7 punhal de pedernal) e nahui xochitl (4 flor). Todos esses nomes são, ao mes-
82 Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam, 1945, p. 119.
Essa quantia de anos, provavelmente, corresponde à soma das durações das quatro idades an-
teriores (2.028 anos) com a da quinta até aquele momento (485 anos).
84 Cf. ibidem.
85 O Códice vindobonense aponta ainda três outras personagens femininas relacionadas ao milho,
cujos nomes seriam Cinco Pedernal, Sete Pedernal e Sete Erva. Cf. Miller, Mary e Taube, Karl.
The gods and symbols of Ancient Mexico and the Maya. Londres/Nova York: Thames and Hudson,
1993, p. 109-10.
86 Cf. Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam,
1945, p. 5.
Como vimos acima, o ano sazonal – e ao mesmo tempo o ciclo de 260 dias – foi
utilizado como unidade básica para contabilizar a duração das idades anteriores do
Mundo na parte inicial da Leyenda de los soles. Depois disso, o texto segue com a histó-
ria de Ce Acatl – ou Quetzalcoatl88 –, de Mixcoatl e dos quatrocentos mixcoas, quando
então aparecem as primeiras citações de nomes de anos do xiuhmolpilli e de vintenas
nas quais tais anos se dividiam. É o que ocorre, por exemplo, no episódio do jogo de
pelota entre Huemac – rei de Tollan durante seu declínio – e os tlaloque – espécie de
ajudantes de Tlaloc responsáveis pelas chuvas. O texto afirma que, depois do jogo, os
89 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam, 1945.
p. 126. Apresentaremos o conjunto das dezoito vintenas em que se dividia o ano sazonal ao
analisarmos os códices pictoglíficos.
90 Ibidem, p. 127.
91 Ibidem, p. 127.
92 Ibidem, p. 127.
170 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
O uso da conta dos anos como o principal elemento organizador de uma narra-
tiva temporalmente amplíssima é patente nos Anales de Cuauhtitlan. O texto trata da
história dos grupos chichimecas, principalmente dos mexicas e dos cuauhtitlanenses,
desde princípios do século VII d.C. até princípios do século XVI, e, como vimos no
Capítulo I, apresenta claros indícios de ter tido antigos livros pictoglíficos de anais
como base de sua confecção.
Em seu primeiro parágrafo, há uma pequena introdução que não se apresen-
ta sob a forma de anais, mas na qual as referências ao calendário e à cosmografia
se fazem presentes. Nessa introdução, Itzpapalotl, ou Borboleta de Obsidiana,
instrui aos chichimecas para que atirem com o arco por diversas regiões e, assim,
flechem uma águia, um jaguar, uma cobra, um coelho e um veado vermelhos. Es-
ses animais deveriam ser levados a Xiuhtecuhtli Huehueteotl – ou o Velho Deus
Velho e Senhor dos Anos – por Tozpan, Ihuitl e Mixcoatl, o qual sobreviverá ao
ataque de Itzpapalotl sobre os quatrocentos mixcoas – ou centzon huitznahua – e
dará origem aos povos chichimecas.93
Sendo assim, antes de se começar propriamente os anais, a personagem mencio-
nada pelo texto como recebedora das oferendas do povo cuja história será narrada é,
justamente, Xiuhtecuhtli. Como mencionamos no Capítulo I, o nome dessa deidade
é formado por xihuitl, que significa ano, cometa e turquesa, e por tecuhtli, que significa
senhor. Dessa forma, o Senhor dos Anos, considerado uma espécie de patrono do calen-
dário e do tempo, parece ser evocado para estabelecer a relação entre o que vai ser
narrado – a história dos descendentes de Mixcoatl – e a forma como será realizada a
narrativa – a de anais.94 Vale notar ainda que essa relação primaz entre Xiuhtecuhtli e
o calendário encontra-se refletida na sua presença como o primeiro dos nove Senho-
res da Noite, como vimos no início deste capítulo (Tabela 3).
Os dois parágrafos seguintes marcam a transição do texto para a forma de anais,
o que é feito explicando-se a origem do próprio sistema calendário. Depois dos pri-
meiros episódios mencionados acima, afirma-se que os quatrocentos chichimecas
93 Cf. Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam,
1945, p. 3.
94 Embora falte a primeira página desse manuscrito, veremos que a forma de anais começa ape-
nas dois parágrafos abaixo do trecho a que nos referimos. Sendo assim, o conteúdo da pri-
meira página perdida, muito provavelmente, seguia o padrão dos dois primeiros parágrafos
da atual primeira página. Além disso, o parágrafo número vinte e um suprime, em parte, essa
falta, pois parece resumir o início do texto. Cf. Feliciano Velázquez, Primo. Introducción. In:
Códice Chimalpopoca. México: Unam - Instituto de Historia, 1945. Afirma-se nesse parágrafo:
“Así es la relación de los viejos chichimecas, que dejaron dicho que, cuando comenzó el seño-
río de los chichimecas, una mujer, de nombre Itzpapálotl los convocó y les dijo...”. Anales de
Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 6. Depois desse trecho, repetem-se as instruções
de Itzpapalotl.
Eduardo Natalino dos Santos 171
95 Ibidem, p. 3.
96 Ibidem, p. 3 e 4.
97 Esse mesmo casal primordial aparece, como veremos mais abaixo, em um par de páginas do
Borbónico em meio, justamente, do xiuhmolpilli.
98 O texto terá uma pequena interrupção nos anais ao chegar ao ano ce tochtli (1 coelho) do se-
gundo xiuhmolpilli, quando então são narradas as quatro idades anteriores que teriam tido seus
inícios e finais justamente em anos com esse nome.
172 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
100 O décimo oitavo ano ce acatl (1 junco) a ser registrado é o da chegada dos espanhóis e, curio-
samente, o último a ser mencionado. Haviam se passado oitocentos e oitenta e quatro anos
desde o primeiro 1 junco, o da saída dos chichimecas de Chicomoztoc. Depois desse último
1 junco, a conta dos anos não é mais utilizada e as cinco páginas finais do escrito dedicam-se a
relacionar os tributos e os senhores locais na época da chegada dos espanhóis. Cf. Anales de
Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam, 1945, p. 63-8. Qual
o sentido dessa alteração na estrutura do texto? Qual o significado de se começar e terminar
uma narrativa com dois anos de mesmo nome? Seriam formas de expressar o cumprimento
do turno de mando dos chichimecas e a perda da autonomia política para os castelhanos por
meio da perda da conta dos anos? Infelizmente, não temos condições de responder essas per-
guntas apenas a partir das análises realizadas nesta pesquisa.
Eduardo Natalino dos Santos 173
e então era 11 de dezembro de 435; completou-se nesse dia três mil e seiscentos
anos (9 baktún)”.101
As datas maias que foram citadas em equivalentes no calendário cristão rela-
cionam-se com uma data inicial a partir da qual o número de dias é contabilizado,
como veremos mais abaixo. Isso garantia uma diacronia quase que absoluta entre os
eventos registrados. No caso dos anais alfabéticos nahuas, a concatenação sequen-
ciada dos ciclos de 52 anos – em tudo semelhante à que se pode encontrar nos anais
pictoglíficos, como veremos abaixo no caso do Códice Vaticano A – também servia para
marcar a distância temporal que supostamente separaria os eventos passados entre si
e esses do momento da construção, ampliação ou renovação da narrativa.102 Citamos
no Capítulo I que pouca atenção tem sido dada ao acentuado caráter diacrônico des-
ses relatos e, portanto, do pensamento nahua. Dedicaremos alguns parágrafos a essa
problemática ao analisarmos a presença do xiuhmolpilli nos códices pictoglíficos, pois
então estaremos em posse de uma base mais ampla de evidências.
Além de utilizar a conta dos anos para garantir uma marcação cronológica ampla
e diacrônica, os produtores dos Anales de Cuauhtitlan também utilizaram marcações
temporais mais restritas, tais como as vintenas e até os dias, para situar determinados
episódios – veremos, mais abaixo, que esse mesmo recurso é utilizado nos anais do
Códice Vaticano A. Afirma-se no texto: “Al amanecer del VI mallinalli (sic), se mudaron
a Itztapallapan las vejezuelas, los vejancones, los muchachos y los mancebos; y cum-
plieron dos días en el 7 acatl”.103
A quantidade dessas marcações temporalmente mais curtas cresce à medida que
o texto progride e passa a narrar episódios que teriam ocorrido mais recentemen-
te.104 Procuraremos mostrar que, sendo assim, entre as narrativas sobre os tempos
mais remotos e sobre os mais recentes não haveria uma distinção qualitativa entre
os conceitos temporais empregados, mas apenas uma distinção quantitativa. Em ou-
101 Tradução feita por mim da versão em inglês: “On August 9, 422, ‘Casper’ was born. 13 years,
3 months, 9 days after ‘Casper’ had been born and then it was August 10, 435, 123 days after
‘Casper’ crowned himself and then December 11, 435, came to pass, on that day 3,600 years
(9 baktuns) ended.” Schele, Linda e Freidel, David. A forest of kings. Nova York: Quill Willian
Morrow, 1990, p. 247. Voltaremos aos textos de Palenque no Capítulo IV para mostrar a con-
tinuidade da marcação temporal entre os eventos mais distantes, ou cosmogônicos, e os mais
recentes, ou potencialmente históricos.
102 Veremos, mais à frente, que os anais pictoglíficos poderiam constituir-se como textos com o
final em aberto, pois a marcação calendária seguia, por vezes, para além do momento de sua
produção, como se estivesse à espera de ser completada com os episódios futuros.
104 Por exemplo, apenas a narrativa dos eventos do décimo sexto xiuhmolpilli, cujo início corres-
ponderia a 1415, ocupa vinte e duas páginas do manuscrito. Cf. ibidem, p. 36-54.
174 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
tras palavras, quanto mais recente fossem os episódios, mais menções eram feitas
aos ciclos calendários, que eram os mesmos empregados para se tratar das épocas
mais remotas.
Fernando de Alva Ixtlilxochitl, um escritor indígena descendente dos pipiltin
de Texcoco, que viveu entre 1578 e 1648, também utiliza ciclos menores e a citação
de dias em específico em seus numerosos textos, bem como precisas correlações
com a história e o calendário cristãos. Por exemplo, em sua Relación sucinta, ao se
referir à destruição dos toltecas no tempo de Topiltzin, rei de Tollan, afirma que
“...se destruyeron los tultecas con grandes guerras y persecuciones del cielo, y su
última destrucción fue en el año de ce técpatl. Y a los veinte y nueve días (sic) del
mes de Izcalli, en un día llamado ce ollin que es el primero de su semana, que con-
forme a la nuestra fue en el año de 1004 a treinta días del mes de marzo”.105 Vale
notar também que a preocupação de Ixtlilxochitl em estabelecer correlações com
outras contagens calendárias – no seu caso com a contagem cristã – parece possuir
precedentes entre as tradições de pensamento e escrita nahuas e seus anais.106 É o
que parece atestar os Anales de Cuauhtitlan, nos quais as contas dos anos de diversos
altepeme – Texcoco, Tula, Cuauhtitlan, Tenochtitlan e outros – são mencionadas e
correlacionadas ao longo do texto.107
Usos do xiuhmolpilli semelhantes aos encontrados na Leyenda de los soles e nos
Anales de Cuauhtitlan também estão presentes na Historia de los mexicanos por sus pin-
turas, se bem que, como procuraremos mostrar, de modo menos tradicional e mais
moldado pelas seleções temáticas e estruturas narrativas cristãs.
O relato contido nesse texto inicia-se com a menção dos primeiros deuses e de
suas criações, episódios sobre os quais se afirma não haver registros cronológicos. A
única referência temporal nessa parte é o período de seiscentos anos de inatividade
dos deuses depois da criação de Huitzilopochtli – quantidade divisível por vinte, que
era a base do sistema numérico mesoamericano. Nas palavras do texto: “...ny en sus
figuras tienen más del asiento de los seysçientos años, contándolos de veynte en veyn-
105 Ixtlilxochitl, Fernando de Alva. Obras históricas. México: Instituto Mexiquense de Cultura e IIH
– Unam, 1997, p. 398. Utilizaremos as obras de Ixtlilxochitl como fontes auxiliares no Capítulo
IV, principalmente suas versões da cosmogonia.
106 Esse tipo de preocupação parece ter sido muito precoce entre as tradições de pensamento
mesoamericanas. Além do caso da data inicial maia utilizada durante o período Clássico, são
muito conhecidos os relevos de Xochicalco, que atestariam reuniões inter-regionais sobre o
calendário no início do período Pós-clássico, as quais teriam contado com a participação de
membros das elites dirigentes de Teotihuacan, de Tajín e das cidades maias e zapotecas. Cf.
Graulich, Michel. Mitos y rituales del México antiguo. Madri: Ediciones Istmo/Colegio Univer-
sitario, 1990.
107 Por exemplo, ao citar que “El Ser De Estos Chichimecas Empieza En Los Anales Tetzcocanos
En El Año 13 Tochtli”. Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 4.
Eduardo Natalino dos Santos 175
te, por la señal que tienen que segnyfica veynte”.108 A afirmação sobre a falta de dados
cronológicos mais detalhados nos leva a pensar que o desejável seria tê-los, mesmo
quando se tratava do que, atualmente, classificamos como um relato cosmogônico.
Isso reforça um dos argumentos defendidos: para as tradições de pensamento nahuas,
narrar algo passado significava, necessariamente, situá-lo temporalmente.
Assim como nos Anales de Cuauhtitlan, a narrativa da criação do próprio sistema
calendário também consta na Historia de los mexicanos por sus pinturas. Nela, Oxomo-
co e Cipactonal, aqui descritos como o primeiro casal humano, não são claramente
mencionados como seus criadores ou guardiões. Sobre esse episódio, afirma o texto:
“Luego hizieron a un ombre y a una muger; al hombre dixeron Uxumuco, y a ella,
Çipastonal. Y mandáronles que labrasen la tierra, y que ella hilase y texese (...) y a ella
le dieron los dioses çiertos granos de mahíz, para que con ellos ella curase y usase de
adevinanças y hechizerías, y ansí lo usan oy día a fazer las mugeres. Luego hizieron los
días y los partieron en meses, dando a cada mes veynte días, y ansí tenían diez y ocho,
y trezientos y sesenta días en el año, como se dirá adelante”.109
Como é possível ver, não fica claro no trecho se os criadores dos dias e do sistema
calendário teriam sido Oxomoco e Cipactonal ou os deuses que haviam criado a esse
casal, ou seja, Tlatlauhqui Tezcatlipoca, Yayauhqui Tezcatlipoca, Quetzalcoatl e Huit-
zilopochtli, os quatro deuses irmãos e filhos do casal de deuses primordiais, Tonacate-
cuhtli e Tonacacihuatl. É muito mais provável que na versão apresentada pela Historia
de los mexicanos por sus pinturas os criadores dos dias e do calendário sejam os quatro
deuses, já que o trecho mencionado encontra-se inserido em meio de uma relação das
criações desses deuses. De qualquer forma, a criação e o agrupamento dos dias em
meses e anos são citados logo depois da atribuição da tarefa de realizar prognósticos
a Cipactonal. Sendo assim, não é descabido pensar que o texto sugere uma possível
relação entre lançar prognósticos e contar o tempo, a qual é confirmada em uma série
de outras fontes documentais.110
A relação narrativa que mostramos existir entre os criadores ou primeiros usuá-
rios do sistema calendário e as atividades agoureiras indica que contabilizar o tempo
e predizer suas cargas e destinos eram atividades inseparáveis para as tradições de
pensamento nahuas. Tais tradições, como mencionamos no Capítulo I, utilizavam
108 Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México:
Conaculta, 2002, p. 26. Entenda-se por asiento uma anotação em conta ou livro.
109 Ibidem, p. 28. Há, nesse trecho, o problema da suposta inversão de gêneros entre Oxomoco, que
seria feminino, e Cipactonal, que seria masculino. Trataremos desse problema no Capítulo IV.
110 Por exemplo, nas páginas 21 e 22 do Borbónico, que apresentam, como citamos acima, um
ciclo completo do xiuhmolpilli em meio do qual estão Oxomoco e Cipactonal incensando e
lançando sorte com grãos de milho. Cf. Códice borbónico, op.cit., p. 21-2.
176 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
essas contas e predições, entre outras coisas, para manter e legitimar as posições de
controle social das elites às quais pertenciam.
A posse do calendário – entenda-se do conhecimento de seu funcionamento e
registro – era tão importante para as elites mesoamericanas que sempre é menciona-
da como uma das principais heranças legada pelos antigos toltecas. É o que ocorre
no relato maia-cakchiquel conhecido como Memorial de Sololá ou Anales Cakchiqueles,
cujo texto base talvez tenha sido produzido no século XVI.111 Nesse texto, que narra a
origem do Mundo, a migração e o estabelecimento dos cakchiquéis depois da partida
de Tollan, o sistema calendário também é mencionado como uma das cargas mais
preciosas que trouxeram os “antigos padres”, cujos descendentes seriam as famílias
governantes cakchiquéis. Assim o texto define a bagagem trazida pelas treze parcia-
lidades das sete tribos que saíram de Tollan na obscuridade da noite: “Consistían
en piedras preciosas, metales preciosos, plumas verdes de quetzal elaboradas para
penachos, también pinturas y esculturas, muchas flautas para canciones, calendarios
sagrados y calendarios memorables, además cacao: eran exclusivamente riquezas las
que trajeron de Tulán [las siete tribus]”.112
Os fundamentos desses ciclos temporais e, portanto, dos prognósticos eram, em
grande parte, matemáticos. Dito de outro modo: trata-se de um sistema de prognósti-
cos que se relacionava com uma série de deidades e de rituais, mas cujos fundamen-
tos de operação eram combinações matemáticas.113 Contudo, não estamos querendo
dizer que os povos mesoamericanos possuíam uma visão mecânica do tempo ou do
cosmo pelo fato de os ciclos calendários basearem-se em complexas combinações ma-
111 Esse texto foi encontrado entre 1844 e 1845 no convento franciscano de Santiago de Guatema-
la. Trata-se da mais importante versão cakchiquel da cosmogonia e história, ocupando assim
um papel similar ao do Popol vuh, de origem quiché, e ao do Chilam balam, de origem iucateca.
O manuscrito sobrevivente é composto por noventa e seis páginas com letras do século XVII ou
princípios do XVIII, no entanto, seu conteúdo indica uma procedência mais antiga. Cf. Luján
Muñoz, Jorge. Introducción. In: Memorial de Sololá. Guatemala: Comisión Interuniversitaria
Guatemalteca de Conmemoración del Quinto Centenario del Descubrimiento de América,
1999 /Garza Camino, Mercedes de la. Los mayas. In: Monjaráz-Ruiz, Jesús (coord.). Mitos cos-
mogónicos del México indígena. México: Inah, 1989.
112 O sublinhado foi inserido por mim. Memorial de Sololá. Guatemala: Comisión Interuniversitaria
Guatemalteca de Conmemoración del Quinto Centenario del Descubrimiento de América,
1999, p. 156. Talvez, os dois tipos de registros calendários mencionados sejam, respectivamen-
te, o tonalamatl e o xiuhamatl.
113 Essa centralidade do que chamamos matemática para o pensamento mesoamericano tam-
bém se manifestaria no fato de as relações entre os ciclos calendários e os astronômicos
serem de índole primordialmente numérica e não geométrica. Cf. Aveni, Anthony F. Astro-
nomia da antiga Mesoamérica. In: Krupp, Edwin C. (org.). No rasto de... as antigas astronomias.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1978.
Eduardo Natalino dos Santos 177
114 Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México:
Conaculta, 2002, p. 27-38.
Esse amplo e crescente uso dos ciclos temporais para estruturar uma narrativa
sobre o passado demonstraria, por um lado, que tanto a Leyenda de los soles quanto
a Historia de los mexicanos por sus pinturas fariam um uso do sistema de calendário
que estamos chamando de tradicional, isto é, semelhante ao que ocorre nos códices
pré-hispânicos ou nos coloniais que mantiveram as características dos primeiros.
Por outro lado, na Historia de los mexicanos por sus pinturas, entre os capítulos men-
cionados acima, há um capítulo dedicado a explicar o funcionamento do sistema
calendário, fato que denota a influência direta das demandas coloniais castelhanas
sobre o texto.
O mesmo tipo de fenômeno ocorre na Histoire du Mechique, cujo quinto capítulo
é dedicado a explicar o funcionamento da conta dos anos e da divisão desses anos em
vintenas.116 Além disso, nesse texto, o uso de referências do sistema calendário limita-
se ao quinto capítulo, que trata da fundação de Tenochtitlan e do funcionamento
do calendário, e aos capítulos sétimo ao nono, que tratam das criações realizadas na
idade atual.117
É interessante notar desde já que a satisfação da demanda castelhana por ca-
pítulos explicativos do sistema calendário é acompanhada, em geral, pelo desuso
desse sistema como parte integrada ou estrutural da narrativa. Em outras palavras, a
circunscrição narrativa do calendário como um tema a ser explicado e o seu desuso
no momento de constituir as explicações sobre o passado tornam-se mais acentua-
dos à medida que os relatos são mais moldados e influenciados pelas demandas e
estruturas narrativas típicas do mundo cristão. Veremos, no Capítulo IV, que isso faz
parte de um processo que chamamos na Introdução de fabulização das narrativas
cosmogônicas nahuas.
Apesar do caráter mais fragmentário da Histoire du Mechique em relação aos três
textos alfabéticos analisados anteriormente – Leyenda de los soles, Anales de Cuauhti-
tlan e Historia de los mexicanos por sus pinturas –, parece que a mencionada sequência
temática típica é mantida. Isso porque depois de tratar das idades anteriores e das
criações na idade atual, o relato passa para os episódios relacionados a Quetzalcoatl e
a Tollan. Ademais, o texto mostra outros indícios de sua filiação a padrões compositi-
vos nahuas: por um lado, a preocupação com a falta de datas é mencionada em vários
116 Cf. Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002,
p. 139-43. As edições de Ángel María Garibay e de Rafael Tena possuem divisões e numerações
diferentes para os capítulos desse manuscrito. Supomos que a divisão e numeração constantes
na edição de Rafael Tena sejam as corretas por aparecerem também na sua paleografia do tex-
to original. Sendo assim, parece que Garibay juntou os capítulos VI e VII em apenas um, que
na sua edição recebeu o número VI.
trechos dos relatos cosmogônicos e, por outro, algumas das vultosas cifras calendárias
são mencionadas, como a de 10.200 anos, que aludiria ao início da idade atual.118
Considerando nossas análises, creio que podemos dizer que os dois últimos tex-
tos analisados – a Historia de los mexicanos por sus pinturas e a Histoire du Mechique – pos-
suem padrões compositivos, seqüências e seleções temáticas procedentes tanto das
tradições de pensamento e escrita nahuas como das cristãs. Vale frisar que, sendo
assim, nenhum dos dois possui uma estrutura tipicamente ocidental, como acontece
com as Historias dos missionários do século XVI. Dessa maneira, não podemos excluir,
a priori, que a aparente heterogeneidade e fragmentação desses dois textos possam
estar relacionadas com a manutenção de vestígios de estruturas narrativas ou de infor-
mações recortadas de livros pictoglíficos e da tradição oral nahuas.
Algo muito distinto ocorre no caso da Leyenda de los soles e dos Anales de Cuauhti-
tlan. Neles, a forma central e, por vezes, integral como a conta dos anos foi utilizada
é muito semelhante àquela que se encontra nos códices pictoglíficos mais tradicio-
nais – ou em algumas de suas seções, como veremos nos próximos subitens deste
capítulo. Ademais, nenhum desses dois textos preocupa-se em explicar o funcio-
namento dos ciclos calendários, tratando-os como pressupostos de leitura. Esses
seriam fortes indícios da manutenção de estruturas e pressupostos de pensamento
tradicionais nesses dois textos, apesar de empregarem o sistema alfabético.
Como característica comum aos quatro textos alfabéticos analisados, podería-
mos apontar, em primeiro lugar, a grande preocupação de seus autores em apresentar
datas que situem os eventos narrados. Depois, que a quantidade de referências tempo-
rais torna-se gradativamente maior à medida que os episódios narrados aproximam-se
dos tempos mais recentes. Por fim, que os quatro textos apresentam uma sequência
temática mais ou menos comum e que poderia indicar a existência de uma estrutura
narrativa típica das tradições de pensamentos nahua, caracterizada por concatenar a
história mais recente à sequência cosmogônica das diversas idades ou sóis anteriores
por meio dos episódios relacionados a Quetzalcoatl, Mixcoatl e Tollan. Mas esse tema
será tratado em detalhes no Capítulo IV, pois neste momento nos compete seguir
analisando a presença do xiuhmolpilli, porém agora nos códices pictoglíficos.
No Códice magliabechiano, depois da seção dos vinte tonalli analisada acima e antes
da seção das celebrações das dezoito vintenas, há uma seção de vinte e oito páginas
118 Cf. ibidem, p. 146. Na edição de Garibay consta 102.000 anos. Cf. Histoyre du Mechique. In: Teo-
gonía e historia de los mexicanos. México: Editorial Porrúa, 1996, p. 105. Voltaremos ao problema
dessas cifras discrepantes no Capítulo IV.
180 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
123 Isso é proposto, por exemplo, em Boone, Elizabeth Hill. The Codex Magliabechiano and the lost
prototype of the Magliabechiano group, op.cit..
Eduardo Natalino dos Santos 181
124 Algumas das rodas calendárias mais conhecidas são a de Boban – que, além das dezoito vinte-
nas e dos vinte tonalli, traz informações históricas – e as de Veytia – um conjunto de sete rodas
calendárias copiadas no século XVIII de manuscritos mais antigos. Cf. Glass, John B. e Robert-
son, Donald. A census of native Middle American pictorial manuscripts. In: Wauchope, Robert
(editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook of Middle American Indians, op.
cit., v. 14, p. 96 e 229.
125 Cf. Durán, Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme. México: Editorial
Porrúa, 1984, v. 1, lâmina 34.
126 Por exemplo, Glass, John B. A survey of native Middle American pictorial manuscripts. In:
Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor do volume). Handbook of Middle
American Indians, op. cit., v. 14.
outros o próprio delineamento não é realizado – e ele era uma das principais caracte-
rísticas dos glifos mixteco-nahuas.128
Muito distinta é a seção do Códice borbónico que traz o ciclo de 52 anos do
xiuhmolpilli,129 a qual, assim como no Magliabechiano, também se encontra depois da
seção dedicada ao tonalpohualli e antes da seção das celebrações das dezoito vinte-
nas.130 Trata-se do famoso par de páginas cujo centro de cada uma é ocupado por
um par de personagens cosmogônicas, como podemos observar na Figura 10. Na
página da esquerda estão Oxomoco, à esquerda, e Cipactonal, deidades primordiais
– ou o primeiro casal humano – que se encontram sentados em sitiais131 no interior
de um recinto,132 incensando e lançando a sorte com grãos de milho. Na página da
128 Como citamos em nota no capítulo anterior, a diminuição dessa grossa linha de contorno é
considerada uma influência das técnicas de pintura europeias, assim como a redução no tama-
nho da cabeça da figura humana, a introdução de princípios de perspectiva, que alterariam a
construção geográfica, e o uso de uma gama maior e menos regulamentada de cores, as quais,
contudo, não perderam totalmente seus múltiplos significados como elementos de leitura.
Cf. Valle, Perla. Códices coloniales. In: Arqueología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/
Conaculta, v. IV, n. 23, p. 64-9, 1997.
130 Luis Barjau reitera o erro contido nas glosas do códice, classificando essas duas páginas como
uma continuação da contagem dos dias, a qual, na verdade, encerrara-se na lâmina anterior.
Nas palavras do próprio autor: “La lámina 21 con la 22 del Borbónico son las últimas láminas
calendáricas do códice e están bordeadas ambas de dos trecenas de días, a diferencia de to-
das las anteriores que sólo tienen una trecena numerada con círculos rojos unidos. Las dos
láminas suman 52 días”. Barjau, Luis. El mito mexicano de las edades. México: Universidad Juárez
Autónoma de Tabasco/Grupo Editorial Miguel Ángel Porrúa, 1998, p. 105.
131 Utilizamos esse termo com o sentido de lugar de assento, expressão muito comum no mundo
nahua e que se refere, entre outras coisas, às esteiras, peles de jaguar ou pequenos assentos
utilizados pelos membros das elites e cujos distintos materiais ou formatos eram sinônimos de
diferentes posições na hierarquia social e cosmogônica. Um excelente exemplo de como essa
hierarquia é grafada nos códices pictoglíficos por meio das diferentes alturas e materiais dos
assentos dos pipiltin pode ser encontrado na página introdutória do Códice Mendoza (Figura 31)
Cf. The essential Codex Mendoza. Berkeley/Los Ángeles/Londres: University of California Press,
1997, p. 2r.
132 Paso y Troncoso, que produziu uma importante edição comentada do Códice borbónico ainda
no final do século XIX, descreve Oxomoco e Cipactonal como se estivessem em cima de uma
grande esteira vermelha. Cf. Paso y Troncoso, Francisco del. Descripción, historia y exposición
del Códice borbónico. México/Madri: Siglo Veintiuno, sdp., p. 92. Na época dessa edição ainda
não havia muitos estudos sobre as soluções pictóricas empregadas no sistema mixteco-nahua
e, desse modo, Paso y Troncoso não pôde se dar conta que o casal primordial, Oxomoco
e Cipactonal, está representado como se estivesse dentro de um recinto cortado ao meio,
Eduardo Natalino dos Santos 183
vos acompanhantes noturnos que iniciam cada ano sazonal, e que, assim, servem para
nomeá-los, conforme explicamos no Capítulo I.
No entanto, a sequência dos Senhores da Noite que acompanha os anos do xiuhmol-
pilli nessas duas páginas não segue uma ordem matemática simples, a qual seria formada
pelo salto de cinco em cinco Senhores em sua sequência elementar – apresentada na
Tabela 3 –, fazendo que aparecessem numa série do tipo 1o, 6o, 2o, 7o, 3o, 8o, 4o, 9o, 5o e 1o
Isso deveria ocorrer, teoricamente, porque a série de nove Senhores da Noite cabe qua-
renta vezes dentro do ano sazonal de 365 dias com uma sobra de 5 dias. Mas, conforme
explicamos na primeira parte deste capítulo, os nove Senhores da Noite combinavam-se
de modo fixo com os 260 dias do tonalpohualli e, para isso, era necessário que o último
deles, Tlaloc, fosse omitido ao fim desse ciclo ou que compartilhasse a última noite com
o oitavo deles, Tepeyolotl, fazendo que o primeiro dia do ciclo seguinte, ce cipactli, fosse
acompanhado novamente pelo primeiro Senhor da Noite, isto é, por Xiuhtecuhtli.133
Dessa forma, a sequência de Senhores da Noite retratada nessas duas páginas do
Borbónico não era tão óbvia ou simples para ser memorizada quanto, por exemplo, a conta
dos anos. Para obtê-la era necessário procurar cada um dos dias que iniciavam os 52 anos
em meio de um tonalamatl, como daquele que se encontra na seção anterior desse ma-
nuscrito.134 Sendo assim, talvez pudéssemos dizer que os Senhores da Noite que acompa-
nham e, graficamente, abraçam os dias iniciais dos 52 anos do xiuhmolpilli são a temática
dessas duas páginas, a qual, muito provavelmente, possuía alguma utilidade mântica.
Ao mesmo tempo, os elementos provenientes do tonalpohualli são superados em
escala e pela posição central pelos dois pares de deidades – Oxomoco e Cipactonal,
Quetzalcoatl e Tezcatlipoca. Dessa maneira, talvez não seja descabido propor que a
temática dessas duas páginas seja também a apresentação das influências que carrega-
riam os dois conjuntos de 26 anos.
Caso essas duas inferências sobre a temática dessas páginas estejam corretas,
poderíamos propor que o conjunto formado pelo número, carregador de ano e res-
pectivo Senhor da Noite em torno de cada ano o carregaria de modo particular. Si-
multaneamente, poderíamos propor também que cada um dos dois pares de deidade
influenciaria todo o conjunto de 26 anos a ele relacionado ou, ainda, que as quatro
deidades carregariam todo o conjunto de 52 anos.
Outra possibilidade – que não exclui as anteriores – seria que essas duas páginas
refiram-se aos episódios cosmogônicos das criações e destruições ou à própria inven-
ção do calendário, eventos nos quais essas quatro personagens tiveram participações
centrais, sobretudo Oxomoco e Cipactonal, conforme vimos neste capítulo ao tratar da
presença do xiuhmolpilli nos textos alfabéticos. Além disso, a relação entre os ciclos de
133 Essa sobra de um Senhor da Noite deve-se ao fato de que seriam necessários 261 dias para que
sua série, formada por nove elementos, pudesse se repetir 29 vezes por completo.
Mencionamos na primeira parte deste capítulo que, de acordo com o sistema me-
soamericano, o ano calendário de 365 dias dividia-se em 18 períodos de 20 dias, aos
quais eram somados 5 dias finais. Citamos também que há uma grande polêmica sobre
a existência ou não de um mecanismo de correção da defasagem entre o ano calendá-
rio e o ano sazonal, cuja duração aproximada é de 365,25 dias.
Essa questão possui certa relevância para a pesquisa, pois se tal mecanismo ou corre-
ção esporádica não eram aplicados ao ano calendário de 365 dias, então as vintenas e suas
celebrações não possuiriam uma relação estável com os trabalhos agrícolas e as estações
climáticas, já que em apenas oitenta anos a defasagem em relação ao ano sazonal chegaria
a uma vintena.136 Isso possui implicações diretas em nossa tentativa de caracterizar algu-
136 Para tornar a situação mais complexa, datas julianas distintas foram registradas no século XVI
como sendo o dia de início do ano entre os nahuas. As divergências de vinte dias são facilmente
explicáveis, pois se devem ao fato de que as principais celebrações das vintenas eram realizadas em
seus dias finais e não nos iniciais, como pensaram muitos religiosos espanhóis que se dedicaram
a entender o sistema calendário. Descontando-se esses casos, algumas das datas mencionadas nas
fontes como o início do ano sazonal ou da primeira vintena, Atlcahualo, são: 1 de março, (Durán,
Eduardo Natalino dos Santos 187
mas especificidades das concepções de tempo nahua, pois, caso seja assim, ao nos referir-
mos às vintenas e ao ano xihuitl estaríamos aludindo a um ciclo temporal cuja dimensão
matemática teria precedência sobre a sua relação com o ano das estações.137
No entanto, participar e contribuir com essa polêmica de modo consistente re-
quer, certamente, uma pesquisa exclusiva, com um grupo de fontes muito mais amplo
que o nosso e que, ademais, se conjugue com outros tipos de estudo, como os de
etnologia e arqueologia.138
Sendo assim, nos limitaremos a analisar como as vintenas foram utilizadas na
organização de seções dos manuscritos nahuas dedicados a apresentar suas festas e
celebrações. Mas apesar dessa limitação, tomaremos partido diante da polêmica, pois
as caracterizações mais amplas que iremos propor, com base nas análises comparativas
que estamos desenvolvendo, dependem da posição assumida. Isso porque saber se as
vintenas e suas celebrações se relacionavam ou não ao ritmo das estações e atividades
sazonais desenvolvidas pelos nahuas determina, em grande parte, qualquer tentativa
de caracterizar as concepções de tempo, espaço e passado desses povos.
Apesar das polêmicas que envolvem as dezoito vintenas, há certo consenso so-
bre quais eram seus nomes e como se organizava sua sucessão. Além disso, a lista de
deidades que seriam homenageadas em suas celebrações no centro do México tam-
bém é mais ou menos consensual. Esse consenso relativo pode ser observado nos
três códices que estamos analisando, nos quais as personagens retratadas em cada
uma das vintenas têm sido identificadas conforme a lista apresentada na Tabela 7.
Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme, op.cit., v. 1, cap. 4), 26 de fevereiro
(Acosta, José de. Historia natural y moral de las Indias, op.cit., Livro VI, cap. 2), 24 ou 25 de fevereiro
(Códice Vaticano A, op.cit., p. 12v e 42v) e 11 de fevereiro (Códice magliabechiano, op.cit., p. 30.). Para
alguns estudiosos, essa diversidade de datas deve-se a problemas e confusões de origem ocidental-
cristã: por um lado, à tentativa de encontrar um único início de ano, tal qual no calendário cristão,
sendo que o mesoamericano possuía diversos ciclos e contagens regionais, podendo então haver
diversos inícios de ciclos em uma mesma ou em distintas regiões; por outro lado, à tentativa de
sincronizar o início de uma vintena ao início do ano xihuitl, tal qual o primeiro dia do primeiro mês
no calendário cristão. Cf. Siarkiewicz, Elzbieta. El tiempo en el tonalamatl, op.cit.
137 As estações climáticas eram duas na Mesoamérica: Xolpan, ou tempo verde e das águas, e Tonal-
co, ou lugar do calor, do sol e das secas. Cf. Aguilera, Carmen. Xolpan y Tonalco. In: Estudios de
Cultura Náhuatl, op. cit., v. 15, p. 185-207, 1982.
138 Além dos estudiosos e trabalhos mencionados em nota na primeira parte deste capítulo, ou-
tros importantes partícipes dessa polêmica são: Broda, Johanna. Ciclos agrícolas en el culto.
In: Aveni, Anthony F. e Brotherston, Gordon (editores). Calendars in Mesoamerica and Peru.
Oxford: Bar, 1983 / Šprajc, Ivan. Orientaciones astronómicas en la arquitectura prehispánica del
centro de México. México: Inah, 2001 /Carrasco, Pedro. Las fiestas de los meses mexicanos. In:
Dalhgren, Barbro (org.). Mesoamérica. México: Secretaría de Educación Pública/Inah, 1979.
188 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Huey Tozoztli –
Grande Festa de Nosso Tlaloc Centeotl e Tlaloc Centeotl
Auto-sacrifício
Tezcatlipoca,
Toxcatl – Nosso Assado ou Cihuacoatl,
Tezcatlipoca Tezcatlipoca
Milho Tostado Huehueteotl e
Huitzilopochtli
Tlaxochimaco/
Miccailhuitontli – Oferenda Cihuacoatl e
mortos Tezcatlipoca
de Flores/Pequena Festa dos Huehueteotl
Mortos
139 Encontramos também a grafia Xilomanaliztli em: Castillo, Cristóbal del. Historia de la venida de
los mexicanos y otros pueblos. op.cit. / Anders, Ferdinand et alii. El libro del ciuacoatl, op. cit.
Eduardo Natalino dos Santos 189
Toci-Tlazolteotl
Ochpaniztli – Teteoinnan e Ochpaniztli ou
Toci e Tlazolteotl
Varrer Caminhos Xilonen Chico- Tlazolteotl
mecoatl
Huitzilopochtli,
Teotleco / Pachtontli –
Tezcatlipoca e Tezcatlipoca e Ome-
Advento dos Deuses /Pequena Tezcatlipoca
Xilonen-Chico- tochtli
Festa do Pachtle 141
mecoatl
Tepeilhuitl / Huey Pachtli
Tlaloc e Xilonen todos os deuses e
– Festa dos Montes/Grande Xochiquetzal
Chicomecoatl Tlaloc
Festa do Pachtle
quatro deuses
Quecholli – Flamingo ou Mixcoatl e Tezca-
caídos do céu e Mixcoatl
Flecha Arrojada tlipoca
Mixcoatl
Huitzilopochtli,
Panquetzaliztli – Hastea- Huitzilopochtli e Huitzilopochtli, Pai-
Painal e
mento de Bandeiras Painal nal e Tezcatlipoca
Tezcatlipoca
Atemoztli – Tlaloc e
Tlaloc Tlaloc
Abaixamento das Águas Chalchiuhtlicue
Xiuhtecuhtli e
Izcalli – Crescimento Xiuhtecuhtli Xiuhtecuhtli
Cihuacoatl
Tabela 7: As dezoito vintenas e suas deidades ou entes celebrados segundo os códices Borbónico,
Vaticano A e Magliabechiano.
140 Massa feita de sementes de amaranto com a qual se confeccionavam figuras utilizadas em cele-
brações e refeições cerimoniais.
141 Planta trepadeira que cresce sobre as árvores e era utilizada para a decoração de construções e
para a confecção de grinaldas.
190 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
142 Tradicionalmente, essa seção é delimitada como ocupando as páginas 23 a 37. Por exemplo,
em ibidem. Procuraremos mostrar que desde a página 23 até o fim do manuscrito temos uma
única seção.
fundamenta-se no fato de que esses mesmos temas e subtemas são muito semelhantes
aos que se encontram nos textos dos religiosos espanhóis, como vimos na sexta parte
do Capítulo I.
Outra semelhança entre as seções das vintenas no Vaticano A e no Magliabechiano
é que não há, em ambos os manuscritos, nenhum tipo de vínculo entre a exposição
das celebrações das vintenas – que estamos chamando de xiuhpohualli – e a conta dos
anos – ou xiuhmolpilli. Em outras palavras, as vintenas e celebrações apresentadas não
se referem às realizadas em um ano específico. Dessa maneira, podemos supor que a
temática das seções desses dois manuscritos seja as festas consideradas genericamente,
isto é, em sua dimensão repetitiva e sincrônica, como também acontece nas Historias
dos missionários.145
Entretanto, nos dois casos, a organização da exposição baseia-se na sequência
das vintenas dentro do ano e, sendo assim, não creio que seja aventurado afirmar que
a subdivisão do ano xihuitl e suas festas operem também como elementos organizado-
res dessas seções.146 Desse modo, teríamos nessas seções a combinação do uso estru-
tural do sistema calendário, hipoteticamente mais tradicional, com o uso temático,
típico das demandas cristãs do período Colonial.
A presença estrutural e implícita da divisão interna do ano xihuitl também pode
ser observada na mencionada seção do Códice borbónico.147 Nela, o tema central é uma
série de celebrações públicas realizadas, provavelmente, nas proximidades de Teno-
chtitlan, como vimos no Capítulo I, a partir do final do ano ce tochtli (1 coelho), passan-
do por todo o ano ome acatl (2 junco) e chegando até quase o início do ano yei tecpatl
(3 pedernal).
Essas celebrações encontram-se separadas graficamente por linhas verticais e
ocupam espaços desiguais no manuscrito: há celebrações que compartilham a mes-
ma página e outras que se estendem por mais de uma página. O sentido de leitura
predominante nessa seção é da esquerda para direita, mas, por vezes, a orientação e
a disposição das figuras obrigam-nos a girar o códice 90o no sentido anti-horário e a
leitura passa a ser de cima para baixo.
145 Como citamos antes, tratamos em detalhe de algumas dessas Historias em nossa pesquisa de
mestrado. Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Deuses do México indígena, op.cit.
146 No Magliabechiano não há referências sistemáticas às datas de início de cada vintena, como
ocorre no Vaticano A. No entanto, é citado que cada uma duraria vinte dias e as datas de cele-
bração são mencionadas em dois casos: na segunda vintena, Tlacaxipehualiztli (p. 30r), que se
celebraria em 21 de março, e na última festa (p. 45v e 46r), Izcalli, celebrada em 4 de fevereiro
e que duraria vinte e cinco dias, pois incluiria os nemontemi ou dias vazios. Com isso é possível
distribuir as outras celebrações a cada vinte dias e recompor as datas iniciais de cada uma se-
gundo esse manuscrito. Cf. Códice Magliabechi, op. cit., p. 28v-46r.
148 Cf. Códice Borgia, op. cit., p. 29-46. Esse fato, aliado à importante presença de Cihuacoatl na
condução dos rituais e no circuito de templos em que eles teriam se realizado, o que também
ocorre nas celebrações retratadas no Borbónico, levaram Karl Antony Nowotny a estabelecer, em
sua obra intitulada Tlacuilolli, um paralelo dessa seção do Borgia com a que estamos analisando
do Borbónico. Cf. Anders, Ferdinand e outros. El libro del ciuacoatl, op. cit., p. 51.
149 Um deles é Brotherston, Gordon. The year in the Mexican codices. Mimeografado, 2002. Essa
seção do Borgia retrataria a cosmogonia mesoamericana e, sendo assim, muitos de seus epi-
sódios e personagens iniciais estariam localizados nos níveis celestes. Depois, muitas dessas
personagens desceriam à Terra. A disposição gráfica dessas localizações espaciais distintas e
superpostas e o registro pictoglífico desse movimento descendente são facilitados e reforçados
pelo sentido de leitura que, como dissemos, é de cima para baixo no manuscrito disposto per-
pendicularmente à linha dos ombros do suposto observador.
Eduardo Natalino dos Santos 193
151 Cf. ibidem, p. 34. A realização dessa cerimônia durante a vintena Panquetzaliztli é confirmada
por Motolinía e Mendieta. Cf. Broda, Johanna. La fiesta azteca del fuego nuevo y el culto de las
Pléyades. In: Tichy, Franz (edit.). Lateinamerika-Studien. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1982.
153 O fato de o Fogo Novo ter sido celebrado durante a vintena Panquetzaliztli, a décima quinta,
não significa que o ano xihuitl havia se iniciado nela.
155 Nome que estava associado também a uma constelação, provavelmente formada pelas estrelas
que compõem o cinturão de Órion ou a cabeça de Touro. Esse fato reforça o argumento de
que o ano calendário mexica possuía correções e que essas eram feitas, na verdade, com base
no ano sideral (365,256 dias) e não no ano solar (365,242 dias). Sahagún afirma que a posição
das Plêiades – chamadas de tianquiztli em nahuatl – era observada no momento do acendimen-
to do Fogo Novo: deveriam estar no meio do céu à metade da noite. Cf. Sahagún, Bernardino
de. Historia general de las cosas de Nueva España, op.cit., p. 428. No entanto, Sahagún situa essa
celebração na vintena Izcalli. Outros dois indícios que as vintenas e o ano calendário estariam
relacionados com as estações do ano de modo direto seriam as celebrações de Quecholli, que
dependeriam da chegada dos pássaros vindos do norte por causa do inverno, em novembro,
e a marcação da periodicidade do recolhimento dos tributos pelos mexicas por meio das vin-
tenas, pois muitos tributos dependiam diretamente das estações do ano, como o milho ou o
Eduardo Natalino dos Santos 195
Sendo assim, poderíamos propor que desde a página 23 até o final do códice
temos uma única seção, cuja unidade seria dada pela presença estrutural da con-
ta dos anos e sobre a qual estariam dispostas e organizadas temáticas distintas: as
celebrações realizadas entre o final do ano ce tochtli e o início do ano yei tecpatl e as
cerimônias do Fogo Novo. Desse modo, essas páginas finais do Borbónico seriam uma
maneira de explicitar a continuidade da conta dos anos iniciada várias páginas atrás
e em meio da qual, ou melhor, num ponto da qual foram inseridas, especificamen-
te, as festas dos anos ce tochtli e ome acatl (aproximadamente 1506 e 1507), bem como
a cerimônia do Fogo Novo.
Isso vai de encontro à forma como esse manuscrito vem sendo dividido interna-
mente por vários estudiosos, como vimos no Capítulo I ao apresentar o Códice borbó-
nico, pois essa seção é normalmente entendida como duas: uma dedicada às festas e
outra ao ciclo vindouro do xiuhmolpilli.156
Comparando as formas como os três códices apresentam as dezoito vintenas,
pudemos ver também que as seções do Vaticano A e do Magliabechiano caracterizam-se
por uma retratação sincrônica das celebrações das vintenas e focalizada nos deuses
que seriam homenageados. Distintamente, a apresentação do Códice borbónico carac-
teriza-se por retratar as vintenas (xiuhpohualli) de maneira diacrônica, utilizando a
conta dos anos (xiuhmolpilli) como elemento organizador da narrativa. Pensamos que
a abstração total das celebrações das vintenas de um contexto temporal definido deva-
se à influência dos missionários castelhanos, pois essa forma de retratá-las está ampla-
mente presente em suas Historias.157
Como vemos, a análise do xiuhpohualli no Códice borbónico levou-nos de volta ao
xiuhmolpilli, pois ambos aparecem inseparavelmente enredados nesse manuscrito.
Esse enredamento nos revelaria uma característica central do pensamento nahua: a
complementaridade entre sincronia e diacronia. Continuemos então a analisar essas
páginas finais do Borbónico – em comparação com as páginas finais do Vaticano A – para
fundamentarmos essa afirmação e aprofundarmos a discussão sobre essa complemen-
algodão. Essa marcação em vintenas da coleta de tributos pode ser observada na Matrícula de
tributos e no Códice Mendoza. Cf. Brotherston, Gordon. The year in the Mexican codices. Mimeogra-
fado, 2002 / Berdan, Frances F. e Smith, Michael E. The Aztec empire. In: _____. (edit.). The
postclassic mesoamerican world. Salt Lake City: The University of Utah Press, 2003.
156 Um dos poucos autores a questionar essa divisão é Batalla Rosado, Juan José. Los tlacuiloque
del Códice borbónico. In: Journal de la Société des Américanistes. Paris: Au Siège de la Société
Musée de L’Homme, t. 80, p. 47-72, 1994. No entanto, esse autor não utiliza a continuidade
da conta dos anos como argumento favorável à defesa da existência de uma única seção. Cita
apenas a repetição invertida da cena da página 23 na página 37.
157 Por exemplo, em: Durán, Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme, op.
cit. /Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España, op.cit.
196 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
taridade, bem como sobre suas implicações para as concepções de tempo e de passa-
do dos nahuas e mesoamericanos em geral.
Até onde sabemos, as celebrações das vintenas repetiam-se todos os anos nos
altepeme do altiplano central mexicano e, desse modo, podemos considerá-las, te-
oricamente, como eventos nos quais o caráter sincrônico e de repetição estava
marcadamente presente. Sendo assim, por que registrar essas celebrações de for-
ma diacrônica, como faz o Códice borbónico? Por que inseri-las em meio da conta
dos anos?
Talvez isso se explique pelo fato da sincronia e da diacronia serem dimensões
complementárias e indispensáveis a qualquer marcação temporal completa no siste-
ma calendário mesoamericano. Dependendo do caso, uma ou outra dimensão po-
deria sobressair-se e apresentar-se de modo mais proeminente, mas, certamente, as
duas estavam sempre presentes em qualquer tipo de registro temporal. Por exemplo,
mesmo na contagem ampla maia, de acentuado caráter diacrônico, as datas pode-
riam repetir-se depois de centenas de milhares de anos, mais precisamente depois de
374.400 anos.158 Isso se deve, principalmente, ao fato do tonalpohualli e do xiuhmolpilli
158 Cf. Farris, Nancy. Recordando el futuro, anticipando el pasado. In: La memoria y el olvido. Mé-
xico: Inah, 1985. Além dos ciclos de 365 e de 260 dias – chamados, respectivamente, de haab
e tzolkin –, os maias utilizaram um ano padrão de 360 dias, chamado de ano tun. O ano tun
rompeu com o ano sazonal e priorizou a facilidade matemática, já que se trata de uma quantia
de dias que pode ser dividida exatamente por vinte. No entanto, manteve a sincronia com o
tonalpohualli, pois a cada 52 anos tun (360 dias) correspondem 72 tonalpohualli ou, em ambos
os casos, 18.720 dias. Com base no ano tun e em sua divisão em dezoito vintenas, os maias do
período Clássico mantinham uma contagem da quantidade de dias a partir de uma data inicial,
que seria o dia em que a idade atual se iniciou: é a chamada conta longa ou ampla. Seu funcio-
namento dava-se por meio de cinco unidades progressivamente maiores: kin (1 dia, contados
até 20), uinal (1 vintena de dias, contadas até 18), tun (360 dias, contados até 20), katún (20
anos tun ou 7.200 dias, contados até 20) e baktún (20 katún ou 400 anos tun ou 144.000 dias,
contados até 13). Os estudiosos têm anotado as datas referentes à conta longa com algarismos
arábicos separados por pontos. Assim, o primeiro dia da idade atual corresponderia a 0.0.0.0.0,
o segundo dia a 0.0.0.0.1. e assim sucessivamente conforme os limites mencionados antes para
cada unidade. A penúltima data seria 12.19.19.17.19 e a última 13.0.0.0.0 ou 0.0.0.0.0. Imagine-
mos a seguinte data grafada na conta longa maia: 9.15.5.0.0., a qual pode ser lida da seguinte
forma: estamos a 9 baktún (9 x 400 tun = 3.600 tun), 15 katún (15 x 20 tun = 300 tun), 5 tun, 0
uinal e 0 kin da origem da idade atual. Em outras palavras, estamos a 3.905 tun (3.600 tun + 300
tun + 5 tun + 0 uinal + 0 kin) ou 1.405.800 dias do início da idade atual. A data apresentada se
encontra em uma estela da cidade de Copán cuja execução foi estabelecida no calendário cris-
Eduardo Natalino dos Santos 197
serem sempre utilizados em conjunto, pois, como dissemos antes, não se trata de dois
calendários, mas de dois ciclos de um mesmo e único sistema.
Como vimos no início deste capítulo, no tonalpohualli predomina, em tese, a
dimensão sincrônica, pois os mesmos dias repetem-se a cada 260. No entanto, não
podemos nos esquecer que esses ciclos repetitivos combinavam-se com os anos do
xiuhmolpilli de modo tal que sua repetição ocorria apenas a cada 52 anos ou, dito de
outra forma, a cada 73 tonalpohualli. Mas, sendo assim, essa conta dos anos também
possuía uma dimensão sincrônica, pois a cada 52 anos teríamos, teoricamente, a repe-
tição do mesmo ciclo, ou seja, de anos com os mesmos nomes e que se combinavam
com os 73 ciclos do tonalpohualli da mesma forma. Todavia, esses anos eram diferentes
por pertencer a outro ciclo, caráter que é denotado nos registros pictoglíficos pela
disposição sucessiva dos glifos dos carregadores de anos, a qual acentuaria a dimensão
diacrônica e permitiria a diferenciação de anos com o mesmo nome.
É o que ocorre na última seção do Borbónico, na qual é impossível confundir os
dois anos ce tochtli ou os dois ome acatl que aparecem em páginas distintas ou não per-
ceber qual precede o outro em 52 anos. Nessa seção, essa estrutura de anos sucessivos
é utilizada para situar diacronicamente o registro de eventos que se repetiriam a cada
ano, isto é, as celebrações das vintenas.
Por tudo isso, pode-se perceber que a sincronia e a diacronia estavam insepa-
ravelmente sobrepostas nos diversos níveis de significação que cada data dessa seção
final do Borbónico evocava, como se o tempo fosse composto por diversas camadas que
se sobrepunham e que conformariam suas qualidades.159
Outro importante aspecto dessa seção final do Borbónico é a ausência quase total
de qualquer outro elemento pictoglífico no espaço emoldurado pela conta dos anos,
como podemos observar na Figura 17. Em outras palavras, embora hoje somente pos-
suamos as páginas que contêm os onze anos iniciais e os nove anos finais, aparente-
mente nenhum outro glifo ou pintura foram grafados nessa seção à exceção do glifo
tão como 22 de julho de 736 d.C. Feitas as devidas conversões, essa estela – e centenas de outras
que utilizavam a mesma data inicial – afirma que a idade atual começou no dia 13 de agosto
de 3114 a.C. – ou 3113 a.C. de acordo com a contagem astronômica que considera o ano zero.
Por meio dessa conta, os maias organizavam registros temporais que abrangiam milhares de
anos e cuja diacronicidade é absolutamente clara. Em nossa pesquisa de mestrado podem ser
obtidos mais detalhes sobre o funcionamento básico dessa conta. Cf. Santos, Eduardo Natalino
dos. Deuses do México indígena, op. cit.
159 Gordon Brotherston acredita que “Por su claridad, este capítulo del Borbónico es decisivo para
establecer la posible historicidad en el género teoamoxtli [livros divinos], sugiriendo que en
realidad los teoamoxtli exigen una interpretación literaria más amplia, que vaya más allá de
la insistente oposición binaria occidental entre tiempo diacrónico y el tiempo sincrónico.” A
expressão entre colchetes foi inserida por mim. Brotherston, Gordon. La América indígena en
su literatura, op.cit., p. 468.
198 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
do Fogo Novo, que pode ser mais bem observado no canto inferior-direito da Figura
16.160 Parece que a sequência de anos registrada nessas páginas finais constitui uma
espécie de estrutura previa – os anos vindouros na época em que o códice foi con-
feccionado? – à espera de temas ou acontecimentos que lhe poderiam ser agregados,
inclusive em uma nova edição ou versão.161
Talvez para a tradição de pensamento e escrita nahua que produziu esse ma-
nuscrito haveria somente duas certezas prévias sobre esses anos vindouros: como a
idade atual não havia se encerrado com o fim do ciclo anterior, outros 52 anos se
passariam e, ao final deles, os governantes-sacerdotes tentariam acender um novo
Fogo Novo. Voltaremos a tratar desse tema em detalhe no Capítulo IV, ao analisar-
mos a cosmogonia.
Vale lembrar também que nos códices Vaticano A e Magliabechiano, em contraste
com essa seção final do Borbónico, as festas são apresentadas apenas em sua dimensão
sincrônica. Somando-se a isso o caráter seguramente mais tradicional desse último
códice, poderíamos propor que as demandas coloniais – sobretudo a seleção temá-
tica e o recorte conceitual impostos pelos missionários nos trabalhos conjuntos com
nahuas – tenderam a excluir as marcações e referenciais temporais diacrônicos dos
manuscritos ou seções que tratavam de eventos considerados rituais e cosmogônicos.
Tais marcações e referenciais foram mantidos apenas nos manuscritos e registros que
tratavam de temas que os europeus consideraram históricos, como os anais (xiuhamatl)
que abordavam as migrações chichimecas.
No Códice Vaticano A existe uma grande seção dedicada a esse tipo de registro, isto
é, que pode ser classificada como um xiuhamatl ou livro de anais.162 Embora o objetivo
central da pesquisa não seja analisar os anais pictoglíficos nahuas, o que demandaria
outra investigação, examinaremos alguns aspectos dessa seção do Vaticano A para po-
der levantar mais alguns dados sobre o uso do xiuhmolpilli e, talvez, fazer mais algumas
inferências sobre a importância do caráter diacrônico para a concepção nahua de
tempo e de passado – assim como fizemos no caso dos Anales de Cuauhtitlan.
160 Cf. Códice borbónico, op. cit., p. 37-[40]. Veremos, logo abaixo, que algo semelhante ocorre no
final do Códice Vaticano A.
161 Não devemos nos esquecer que agregar elementos, copiar modificando e substituir livros
parecem ter sido atos muito comuns e nada reprováveis entre os produtores e usuários dos
manuscritos pictoglíficos mixteco-nahuas. Sendo assim, temos que tomar cuidado para não
aplicarmos, indiscriminadamente, as concepções de preciosidade e originalidade que o mun-
do ocidental criou em torno dos escritos antigos aos seus contextos originais de produção e
uso. Cf. Navarrete Linares, Federico. Los libros quemados y los libros sustituidos. Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/artigos/fn-a-e-livrosquei.html>
Consultado em 9 de dezembro de 2000.
162 Cf. Códice Vaticano A, op. cit., p. 66v-96v. Outras denominações para esse tipo de livro eram
xiuhtlacuilolli (pintura-escritura dos anos) e altepetlacuilolli (pintura-escritura do altepetl).
Eduardo Natalino dos Santos 199
164 Os glifos encontram-se emoldurados em vermelho até a página 71r e em azul da página 71v em
diante, na qual se retrata o episódio da expulsão mexica de Chapultepec. Essas cores diferen-
ciadoras possuiriam alguma função qualificadora para essas duas fases da história mexica?
200 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
165 Por exemplo, Manrique Castañeda, Leonardo. Los códices históricos coloniais. In: Arqueología
Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. VII, n. 38, p. 25-31, 1999.
167 Cf. ibidem, p. 94v-6v. Na verdade, nas páginas 94v e 95r faltam os três glifos que corresponde-
riam a cada uma delas, mas, em seguida, nas páginas 95v, 96r e 96v, a sequência de glifos anuais
é retomada.
168 Essa continuidade do registro dos anos desde a página 66v até a 96v serviria também para deli-
mitar a existência de uma única seção, estruturada pelo xiuhmolpilli e cuja temática é a historia
mexica. No caso do Vaticano A, assim como no do Borbónico, as divisões tradicionais também se
reportam aos anos sem eventos como uma outra seção em relação aos anais. Refiro-me, mais
especificamente, à divisão proposta em Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native
Middle American pictorial manuscripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F.
(editor dos volumes). Handbook of Middle American Indians, op. cit., p. 186. Essa divisão foi ado-
Eduardo Natalino dos Santos 201
assim como a última seção do Borbónico, terminam com umas quantas páginas que
possuem somente os glifos da conta dos anos. O Códice telleriano-remense, cuja produção
relaciona-se diretamente com a do Vaticano A, também possui as páginas finais de sua
seção de anais sem eventos registrados e apenas com os glifos anuais ou a marcação
dos anos em números arábicos.169 O que isso poderia indicar-nos?
Na verdade, não sabemos ao certo se as páginas ficaram sem os registros dos
eventos por acaso ou se os glifos anuais foram pintados antes dos anos que estão
sendo marcados, como uma espécie de estrutura prévia à espera do registro dos
eventos que seriam selecionados e construídos futuramente pelas tradições de pen-
samento nahuas.
Além dos três códices mencionados acima, o livro de Chilam balam de Chumayel
apresenta uma configuração que nos leva a pensar num fenômeno muito semelhante.
Na seção intitulada Libro de la serie de los katunes170 há uma relação dos katún (período
de 20 anos de 360 dias) contados desde que Chichén Itzá foi encontrada e ocupada
pelos itzaes e na qual podemos observar uma enorme semelhança formal com os
anais alfabéticos e pictoglíficos nahuas, tais como os Anales de Cuauhtitlan e os anais
do Vaticano A. Isso porque há uma unidade temporal básica – o katún – anotada de
maneira ininterrupta mesmo que não haja eventos relatados. Mas além dessa coinci-
dência organizacional, essa seção do Chilam Balam também termina com a citação de
vários katún, nomeados por meio do signo ahau, sem eventos.171
Somando-se os casos de todos esses manuscritos – Borbónico, Vaticano A, Telleriano-
remense e Chilam balam de Chumayel – torna-se menos provável que as marcações tem-
porais sem eventos em seus finais sejam fruto do acaso. Sendo assim, talvez esse fenô-
meno indique a precedência das marcações calendárias na organização das narrativas
históricas, precedência que poderia ser cronológica na confecção do manuscrito e
que talvez fosse epistemológica na concepção nahua de história e de passado em ge-
ral: narrar algo era, antes de tudo, situá-lo na conta dos anos.
Parece que a necessidade de localizar os episódios narrados pela conta dos anos
abrangia também o passado cosmogônico. Prova disso seria a contabilização das ida-
des anteriores do Mundo em anos xihuitl, como vimos ser o caso da Leyenda de los soles
tada também por Mohar Betancourt, Luz María. Tres códices nahuas del México antiguo. In:
Arqueología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. IV, n. 23, p. 56-63, 1997.
169 Cf. Codex telleriano-rememsis. Austin: University of Texas Press, 1995, p. 25r-50r.
170 Cf. Libro de Chilam balam de Chumayel. México: Conaculta, 2001, p. 141-51.
171 Cf. ibidem, p. 149. Também de maneira irônica, como no caso dos anais do Códice Vaticano A, o
último evento relacionado nessa seção do Chilam Balam é a morte do bispo Diego de Landa,
responsável pela queima de dezenas de códices na região maia. Ao final, depois dos citados
ahau sem eventos, o texto muda de estrutura e salta para o ano de 1766.
202 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
e como veremos ser o da primeira seção do Vaticano A.172 Nela, os anos xihuitl também
são utilizados para datar a duração de cada uma das quatro idades cosmogônicas, mas
em quantidades que não são divisíveis por 52 anos.
No entanto, a apresentação sequencial das idades com suas respectivas durações
não deixam a menor dúvida quanto à distância temporal entre qualquer uma delas e
também em relação à idade atual e aos episódios relacionados a Tollan e Quetzalcoatl,
narrados nas páginas que se seguem à da idade atual.173 Assim como na seção de anais,
a conta dos anos não é o tema a ser tratado nessa primeira seção do Vaticano A, mas
parte dos pressupostos de leitura, o que caracterizaria, segundo uma de nossas hipó-
teses, um uso tradicional do sistema calendário.
Nessa mesma seção também estão presentes elementos do tonalpohualli: em três
das idades cosmogônicas estão registrados os nomes de alguns dias, interpretados
como as datas em que teriam começado ou terminado. Esses elementos, como mos-
tramos antes, portariam uma carga mais acentuada de sincronia e estariam relacio-
nados, sobretudo, à preocupação de determinar as qualidades do tempo. Aliás, as
qualidades especiais dos dias cosmogônicos são citadas no próprio Códice Vaticano A.
No texto que acompanha a trezena Ce Ocelotl (Um Jaguar), por exemplo, há uma re-
ferência especial ao dia nahui ollin ou 4 movimento – data em que o Sol atual teria
começado a se mover – e ao seu patrono – que não coincidentemente é Quetzalcoatl,
deidade que com seu sacrifício de sangue teria dado movimento ao Sol atual. Afirma
o texto: “A éste [Quetzalcoatl] daban el dominio de otros trece días, como a su padre,
que son los en este lugar señalados. Hacíanle una gran fiesta cuando llegaba su día,
como veremos en el signo de los cuatro temblores [nahui ollin], que es el cuarto en
este orden, porque temen que sea destruido el mundo en ese día, como él lo había
predicho cuando desapareció en el Mar Rojo, que fue en aquel mismo día”.174
Trataremos dessa seção inicial do Vaticano A no Capítulo IV, ao analisarmos as
idades do Mundo e a concepção de passado longínquo, bem como sua concatenação
com o passado mais recente. Evocamos a presença do xiuhmolpilli e do tonalpohualli
nessa seção apenas para reforçar nosso argumento, isto é, que toda e qualquer nota-
174 As expressões entre colchetes foram inseridas por mim. Ibidem, p. 14v. Bernardino de Sahagún
confirma essa especialidade do dia nahui ollin: “...decían que era signo del sol y le tenían en
mucho los señores, porque le tenían por su signo (...) y el que nacía en este día era indiferente
su ventura, o buena o mala; si era varón sería hombre valiente, y cautivaría los enemigos o
moriría en la guerra, porque decían que en tal signo nació. Y todos hacían penitencia, chicos,
hombres y mujeres, y cortaban las orejas y sacaban la sangre a honra del sol; decían que con
esto se recreaba el sol”. Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España,
op.cit., p. 353.
Eduardo Natalino dos Santos 203
175 Sobretudo nas tradições maias das Terras Baixas, produtoras dos vários livros de Chilam balam
ou do sacerdote que é boca, ou seja, que profetiza. Cf. Garza Camino, Mercedes de la. Prólogo /
Introducción. In: Libro de Chilam balam de Chumayel. México: Conaculta, 2001. Cosmogonia, his-
tória e profecia unem-se nesses livros e a relação entre passado e futuro é tão estreita que, por
vezes, narra-se o passado com tempos verbais futuros e o futuro com tempos verbais passados.
Esses livros estariam baseados nos três tipos de predições existentes na região de Iucatã pouco
antes da conquista: as katúnicas, túnicas e diurnas. As duas primeiras baseavam nos ciclos que no
Chilam balam iniciam-se pelo 11o katún e seguem a ordem 11o, 9o, 7o, 5o, 3o, 1o, 12o, 10o, 8o, 6o, 4o,
2o e 13o As predições túnicas corresponderiam a cada uma das divisões do katún em 360 dias.
Por fim, as predições diárias seriam de dois tipos: as relacionadas ao sansamal kinxoc ou conta
diária dos dias, que só enunciariam se tal dia é bom ou não para determinada atividade, e as
relacionadas ao chuenil kin sansamal ou artifício diário dos dias, que corresponderiam às vintenas
do tonalpohualli. Cf. Barrera, Alfredo e Rendón, Silvia. Introducción general. In: El libro de los
libros de Chilam balam. México: FCE/Secretaría de Educación Pública, 1992. Entre os inúmeros
livros de Chilam balam publicados, o mais conhecido é o de Chumayel.
176 Isso tem contribuído para que apenas a dimensão sincrônica dessas datas seja ressaltada em
grande parte dos estudos.
204 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
177 Entre esses referenciais estaria, por exemplo, o conhecimento das épocas de confecção e inau-
guração pública dos monumentos. Certamente que dois anos com o mesmo nome seriam
vistos como pertencentes a ciclos distintos se aparecessem, por exemplo, em monumentos
mexicas da época de Itzcoatl ou de Moctezuma Xocoyotl.
Eduardo Natalino dos Santos 205
Vimos que os ciclos calendários estavam presentes em todas as seções do Códice bor-
bónico de maneira estrutural ou como pressuposto de leitura – assim como no Códice
Borgia, no qual os vinte tonalli chegam, inclusive, a exercer a função de numerais. No
caso do Códice Vaticano A, tal presença oscilou entre estrutural e temática, sendo que em
algumas seções imperava a ausência de elementos calendários. Essas seções não foram
objetos de análise justamente por essa ausência; no entanto, acreditamos que tal au-
sência seja significativa para o exercício de classificação dos manuscritos coloniais que
proporemos abaixo. A presença dos ciclos calendários foi quase que exclusivamente de
ordem temática no Códice magliabechiano. Ademais, assim como no caso do Vaticano A,
a ausência de elementos das contas calendárias também ocorre no Magliabechiano, mas
em um grande número de seções.
Vejamos em detalhe, na Tabela 8, as funções do calendário em todas as seções
dos três códices pictoglíficos analisados centralmente nesta pesquisa.
178 No Capítulo I vimos que as páginas 1v a 10v do Códice Vaticano A são tradicionalmente classifi-
cadas como apenas uma seção. Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native Mi-
ddle American pictorial manuscripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F.
(editor dos volumes). Handbook of Middle American Indians, op. cit., v. 14, p. 186-7. Dividimos essa
primeira seção em duas pela diferenciação que apresentam no uso do calendário. Veremos, no
Capítulo III, que tal diferenciação também se confirma no caso do uso da cosmografia, o que
pode ser um indício da origem distinta, isto é, tradicional ou não, dessas duas seções.
206 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
179 Glass, John B. A survey of native Middle American pictorial manuscripts. In: Wauchope, Robert
(editor geral) e Cline, Howard F. (editor do volume). Handbook of Middle American Indians, op.
cit., v. 14, p. 14.
208 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
C – Quetzalcoatl, Huemac e os
estrutural-implícito e saber pressuposto
toltecas – p. 7-9
D – mexicas e outros grupos –
estrutural e saber pressuposto
p. 9-10
Historia de los mexicanos por sus pinturas
A – deuses primevos, deuses constru-
estrutural-implícito, temático e saber
tores do Universo e primeira idade
pressuposto
– § 1-34
180 Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Deuses do México indígena, op. cit.
181 Os números junto a cada seção correspondem às páginas ou parágrafos dos manuscritos ori-
ginais, e não às páginas das edições que estamos utilizando. Acreditamos que isso facilita a
identificação das seções, independentemente da edição que se tenha em mãos.
Eduardo Natalino dos Santos 209
Histoire du Mechique
A – criação do homem segundo os
oscilação entre temático e ausente
texcocanos – § 1-20
182 Os textos alfabéticos serão caracterizados mais detalhadamente no Capítulo III, depois de
analisarmos neles as formas de presença dos elementos cosmográficos.
Eduardo Natalino dos Santos 211
183 Isto é, todo o Borbónico, partes do Vaticano A, os Anales de Cuauhtitlan e a Leyenda de los soles.
212 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
184 Jacques Soustelle, por exemplo, trata do calendário no último capítulo de sua obra, sem re-
lacioná-lo ou levá-lo em consideração ao abordar os temas cosmológicos nos capítulos prece-
dentes. Cf. Soustelle, Jacques. Pensamiento cosmológico de los antiguos mexicanos. Puebla: Federa-
ción Estudantil Poblana, 1959-1960. Rubén Bonifaz Nuño vai mais além nessa cisão, pois nem
sequer cita o calendário e seu funcionamento ao tratar da cosmogonia mesoamericana. Cf.
Bonifaz Nuño, Rubén. Cosmogonía antigua mexicana. México: Coordinación de Humanidades –
Unam, 1995.
Eduardo Natalino dos Santos 213
porque cinco días del año no los contaban, sino diez y ocho meses a veinte días
cada mes”.185
Esse tipo de depoimento permite-nos perceber que tais jovens estavam ofertan-
do determinadas combinações e ciclos calendários além de varas e sangue. Com a
oferenda desses ciclos – cujas quantias exatas muito provavelmente foram declaradas
ao frade –, esses jovens estariam obtendo algum tipo de controle sobre o curso do
tempo e sobre os destinos individuais e sociais.
Somando-se esse tipo de depoimento às análises que desenvolvemos acima, so-
bretudo com os tonalamatl do Borbónico e Borgia, fica evidente também que essa dimen-
são calendário-matemática estava a serviço da qualificação do tempo, expressão essa
que alude a duas importantes atividades dos sacerdotes, dos tlacuiloque e dos sábios
nahuas: de um lado, entender, determinar e registrar as qualidades inerentes a cada
ciclo temporal e a cada uma de suas combinações; de outro, intervir e tentar manter
ou alterar tais qualidades por meio de ações cerimoniais que as reforçassem, as neu-
tralizassem ou adicionassem a elas novas qualidades.
Em outras palavras, as unidades e ciclos calendários eram vistos pelas tradições
de pensamento nahuas como entidades específicas que possuíam características rela-
tivamente bem definidas, sendo que cada entidade realizaria determinadas tarefas em
seu respectivo turno.186 Cada instante seria, portanto, como um sítio para o qual con-
fluiriam forças plurais e previstas pelos ciclos calendários.187 Tais forças deveriam ter
suas unidades e combinações entendidas para, entre outras coisas, serem previsíveis e
passíveis de intervenções humanas.
Considerando-se o sistema calendário como parte basilar da visão de mundo dos
nahuas – tal qual procuramos demonstrar no início do Capítulo I –, é possível com-
preender as razões que embasaram muitas das ações e decisões que tomaram frente
aos espanhóis. É o caso, por exemplo, da decisão de Cuauhtemoc de render-se à Cor-
tés e seus aliados indígenas em determinado momento – agosto de 1521 – em função
de certos ciclos calendários.188 Ou do famoso caso em que os itzaes de Petén, em 1695,
185 Benavente, Toribio de. Historia de los indios de la Nueva España, op.cit., p. 106.
186 Parece que o tratamento gramatical e os adjetivos relacionados à unidade dia eram do mesmo
tipo que os dispensados aos seres vivos. Cf. Lima, Oswaldo Gonçalves de. El maguey y el pulque
en los códices mexicanos. México/Buenos Aires: FCE, 1956. É interessante notar que o termo
nahuatl para “tarefa” – tequitl – é o mesmo que para “tributo”, o que talvez contribua para
entendermos a interrelação entre as tarefas que os ciclos temporais realizariam e as oferendas
que os homens deveriam dar-lhes em contrapartida. Voltaremos a explorar a relação entre es-
ses termos no Capítulo III, ao tratar da rotatividade do tempo pelos quatro rumos do Mundo.
187 Cf. Segala, Amos. Literatura náhuatl. México: Editorial Grijalbo, 1990.
188 Cf. Brotherston, Gordon. The year in the Mexican codices, op.cit.
214 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
189 Os itzaes teriam mandado avisar ao governador em Mérida que se aproximava o tempo da con-
versão, a qual se iniciaria no katún 8 ahau, data de mesmo nome que a da queda e abandono
da antiga capital, Chichén Itzá. Em 1696, um franciscano, conhecedor do calendário maia, o
frei Diego de Avendaño, autor da Relación de las entradas que hice en la conversión de los gentiles
itzaes..., fez um acordo com o rei itzá, Canek, para iniciar a conversão ao fim dos próximos
quatro meses, quando se iniciaria o novo katún. Parece que os espanhóis chegaram antes e os
itzaes pegaram em armas. Cf. Farris, Nancy. Recordando el futuro, anticipando el pasado. In:
La memoria y el olvido. Segundo simposio de historia de las mentalidades, op.cit.
190 Cf. Gifford, James C. Ideas concerning maya concepts of the future. In: Browman, David L.
(edit.). Cultural continuity in Mesoamerica, op.cit.
Eduardo Natalino dos Santos 215
ocelotl), o fogo (nahui ocelotl), os cervos (chicome xochitl), os diversos tipos de agave (chi-
cuei tecpatl) e o milho (chicome coatl).191
A atribuição de datas propícias também era parte imprescindível do processo
de confecção dos objetos. Essas datas eram escolhidas de acordo com a consonância
entre suas características e as qualidades e usos que se pretendiam dar aos tais objetos.
Exemplo disso são as inúmeras lápides de inauguração dos edifícios e construções
utilizadas pelas elites nahuas, nas quais fica evidente a preferência por determinadas
datas e a repulsa por outras.192 Por exemplo, o prestígio das datas com acatl (junco)
é notório nos gravados em pedra nahuas, talvez pela relação desse signo calendário
com Quetzalcoatl, também chamado de Ce Acatl. As datas com tochtli, sobretudo o
ano ce tochtli, não eram apreciadas pelos mexicas, pois estariam associadas a períodos
de fome. Sendo assim, não é casual que a lápide dedicatória do Templo Mayor de
México-Tenochtitlan traga registrado em sua superfície os glifos do dia 7 junco e do
ano 8 junco, que corresponderiam a 28 de dezembro de 1487 no calendário gregoria-
no, data em que o Templo teria sido inaugurado por Ahuitzotl.193
Sendo assim, a constante preocupação em datar os eventos passados ao registrá-
los pictoglificamente fazia parte de um fenômeno mais amplo, relacionado a outras
esferas e atividades sociais além das que estamos chamando de tradições de pensa-
mento. Além disso, tal preocupação, como sugerimos no Capítulo I, possuía fortes
motivações e finalidades políticas, pois manejar o sistema calendário e a escrita pic-
toglífica significava possuir e manter um importantíssimo sistema de classificação e
controle da realidade natural e social.194
No caso das explicações nahuas sobre o passado – que nos interessam de manei-
ra especial –, pudemos ver que os mesmos ciclos calendários foram utilizados para
qualificar e contabilizar a duração tanto dos eventos mais distantes ou cosmogônicos
quanto dos mais recentes ou históricos. Isso talvez nos permita propor que para os
191 Cf. López Austin, Alfredo. Los mitos del Tlacuache, op.cit.
192 Também nos códices mixtecos – tais como o Vindobonense, o Zouche-Nuttall e o Selden – as fun-
dações de altepeme e as dedicações de edifícios estão sempre acompanhadas por datas que
manifestam, em seu conjunto, a preferência por alguns dias e anos em específico. Cf. Boone,
Elizabeth Hill. Bringing polity to place. In: Vega Sosa, Constanza (coord.). Códices y documentos
sobre México. México: Inah, 2000.
193 Segundo os cálculos de Alfonso Caso. Cf. Aguilera, Carmen. La fecha de inauguración del
Templo Mayor. In: Arqueología Mexicana. México: Conaculta/Inah/Editorial Raíces, v. VII,
n. 41, p. 30-1, janeiro/fevereiro de 2000. Essa lápide encontra-se na Sala Mexica do Museo
Nacional de Antropología, na cidade do México.
194 Inclusive, para alguns estudiosos, o tema geral e principal dos escritos mesoamericanos pode-
ria ser descrito como a apresentação de informações políticas em uma estrutura calendária. Cf.
Marcus, Joyce. Mesoamerican writing systems. Princeton: Princeton University Press, 1992.
216 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
nahuas não havia uma distinção qualitativa entre o passado mais remoto e o mais re-
cente, pois ambos eram passíveis de designação e caracterização pelo mesmo sistema
de contagem e classificação do tempo.
Voltaremos a esse complexo problema no Capítulo IV, ao tratarmos da concate-
nação entre cosmogonia e história. Por ora, gostaríamos apenas de indicar a porosi-
dade da fronteira e a interparticipação para os nahuas entre o que estamos chamando
de cosmogonia e história. A porosidade e a interparticipação entre cosmogonia e
história grupal recente talvez apontem para a possibilidade de que os livros de anais
fossem concebidos como uma narrativa particularizada do altepetl diretamente inseri-
da na última – no sentido de atual – das idades do Mundo.
Sobre a terceira característica da concepção de tempo nahua, isto é, a conjun-
ção entre sincronia e diacronia nas marcações calendárias, é importante ressaltar
que há, pelo menos, três posições sobre o assunto e que duas delas são distintas da
que estamos propondo.
Uma das mais difundidas apregoa que a concepção de tempo nahua era total-
mente – ou, ao menos, predominantemente – cíclica, pois os anos do xiuhmolpilli,
por exemplo, não aludiriam a um lapso temporal singular, mas apenas a um tipo de
ano, a uma gama de influências presente nos anos com os mesmos nomes.195 Sendo
assim, a concepção de tempo nahua se caracterizaria por estar voltada, principal-
mente, ao passado, pois os tempos presentes apenas trariam de volta os aconteci-
mentos pretéritos.196
No outro extremo, talvez até por reação à quase onipresença de afirmações que
ressaltam o caráter cíclico da concepção de tempo e história nahua, temos alguns
poucos estudiosos defensores do caráter primordialmente linear de tal concepção.
Para esses autores, o caráter linear da conta dos anos nahua e da conta longa maia
196 Baseando-se nessa ideia, Todorov acredita que a conquista castelhana foi incompreensível
para os mexicas devido à dificuldade de se explicar algo de radicalmente novo partindo de
uma concepção circular de tempo, na qual a repetição teria prioridade sobre a diferença. Cf.
Todorov, Tzvetan. A Conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1993. A única forma de
saber se os mexicas e outros povos nahuas compreenderam a chegada e a conquista promo-
vida pelos castelhanos é pesquisar em seus próprios escritos, alfabéticos e pictoglíficos, o que
Todorov, apesar de sua intenção louvável de valorizar as diferenças culturais, assumidamente
não fez. Citamos Gruzinski e Todorov de forma exemplar, pois a lista de estudiosos que segue
essa ideia em seus estudos sobre os povos nahuas e mesoamericanos é enorme. Nesses estudos
abundam citações do tipo “El tiempo es una serpiente que se muerde la cola” ou “...time was
cyclical rather than linear (...) and religious festivals often reenact an event that took place at
the beginning of time.” Respectivamente: Barjau, Luis. El mito mexicano de las edades, op.cit., p.
42 /Davies, Nigel. The aztec concept of history. In: Durand-Forest, Jacqueline de (edit.). The
native sources and the history of the Valley of Mexico. Oxford: Bar, 1984, p. 211.
Eduardo Natalino dos Santos 217
197 Em nota do Capítulo I, citamos que Ross Hassig chega a afirmar que os mexicas não possuí-
am uma noção cíclica do tempo. Cf. Hassig, Ross. Time, history and belief in Aztec and Colonial
Mexico, op.cit.
198 Podemos mencionar, como exemplo, a repetição das semanas, meses, festas e estações no caso
do calendário e a concepção de ciclos econômicos e revolucionários no caso da concepção de
história. Mais detalhes sobre como as concepções que vigoraram no mundo ocidental combi-
naram e utilizaram a linearidade e a ciclicidade podem ser obtidos em: Enciclopédia Einaudi.
Porto: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, v. 29.
199 É o que Nancy Farris procura fazer com o caso dos povos maias das Terras Baixas. A autora
acredita que a noção de tempo cíclico era mais antiga e difundida entre eles e que a conta
longa, manejada pelas elites do período Clássico, teria sido uma tentativa de tornar o passado
irrepetível e, desse modo, solapar o sistema de turnos de mando, baseado na noção de tempo
cíclico, para estabelecer um poder permanente. Cf. Farris, Nancy. Recordando el futuro, anti-
cipando el pasado. In: La memoria y el olvido, op. cit.
218 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
200 Veremos, no capítulo seguinte, que círculo talvez não seja uma boa imagem para indicarmos a
ideia mixteco-nahua de retorno de certas qualidades e cargas após certo lapso temporal, pois,
nos códices, as séries calendárias que sugerem esse tipo de retorno ou ciclicidade temporal
empregam, predominantemente, formas que se relacionam mais com quadrados do que com
círculos em sua disposição gráfica.
201 Como defende, por exemplo, López Austin: “¿Por qué tenía que darse esta dualidad – o plu-
ralidad – de esquemas cronológicos para enmarcar un mismo acontecimiento?” López Austin,
Alfredo. La construcción de la memoria. In: La memoria y el olvido. México: Inah, 1985, p. 77. No
entanto, convém notar que López Austin adota esses termos para, justamente, tentar mostrar
como a concepção de tempo mesoamericana conjugava características cíclicas e lineares. Isso
é feito, por exemplo, em López Austin, Alfredo. Hombre-dios, op.cit.
202 Vale notar ainda que os dias do tonalpohualli, os anos do xiuhmolpilli e as vintenas do xiuhpo-
hualli aparecem juntos em muitos relatos, como uma forma mais completa e precisa de se re-
ferir a uma data. Vimos acima que as lápides mexicas trazem, em geral, um dia do tonalpohualli
e um ano xihuitl.
203 Além dos katún, os autores desse livro manejam e explicam o calendário cristão juliano. Cf.
Libro de Chilam balam de Chumayel, op.cit., p. 61-7. As inscrições calendárias das estelas, alta-
res, escadarias e outros monumentos maias do período Clássico também eram compostas por
marcações temporais de caráter mais sincrônico em conjunção com as pertencentes à conta
longa, nas quais a dimensão diacrônica seria mais acentuada, como citamos acima no caso das
inscrições de Palenque.
Eduardo Natalino dos Santos 219
205 Centenas de exemplos poderiam ser evocadas, como as estelas zapotecas e maias e os diver-
sos monumentos da região do altiplano central mexicano, como vimos no Capítulo I. Em
praticamente nenhum deles, o sistema calendário e suas contas eram o tema registrado. Ao
contrário, são os temas registrados nas estelas maias, por exemplo, que sempre estão acom-
panhados por datas, que os situam e qualificam. Não obstante, há exceções que confirmam a
regra, como os relevos do Templo das Serpentes Emplumadas, em Xochicalco, e seus glifos
de correlações calendárias, os quais tratariam de estabelecer a correspondência entre contas
calendárias de regiões distintas. Nesse caso, parece que as próprias contas e suas correlações
são o tema do registro.
206 Como mencionamos na Introdução, iríamos comparar alguns resultados desta pesquisa
com os da dissertação de mestrado. Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Deuses do México
indígena, op. cit.
220 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
207 Alguns desses marcos seriam: a tentativa de localizar com precisão calendária todo aconteci-
mento em um amplíssimo marco temporal no qual interagiam homens, deuses e tudo o quan-
to existia; o princípio da suprema dualidade divina que atuaria em tudo; a existência de vários
sóis ou idades anteriores; e a obrigação humana de contribuir com a força vital de seu sangue
para a continuidade do Universo. Cf. León Portilla, Miguel. ¿Insertos en la “Historia Sagrada”?
In: Estudios de cultura náhuatl. México: IIH – Unam, v. 26, p. 187-209, 1996.
Eduardo Natalino dos Santos 221
208 Como citamos no Capítulo I, uma mostra desse interesse pode ser encontrada nas petições
encaminhadas pelas elites nahuas à Audiência para a obtenção de privilégios. Um importante
conjunto desse tipo de escrito encontra-se em: Pérez Rocha, Emma e Tena, Rafael. La nobleza
indígena del centro de México después de la conquista, op.cit.
209 A existência prévia de uma minuta que teria pautado as atividades de Bernardino de Sahagún
é um dos exemplos mais conhecidos.
210 Cf. Castillo, Cristóbal del. Historia de la venida de los mexicanos y otros pueblos, op.cit.
211 Cf. Navarrete Linares, Federico. Estudio preliminar. In: Castillo, Cristóbal del. Historia de la
venida de los mexicanos y otros pueblos, op. cit.
222 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
conta dos anos, mas desprovida de seu caráter qualificador e correlacionada com
o calendário cristão.212
Esse desuso progressivo corresponde diretamente à crescente desarticulação,
eliminação ou incorporação das elites nahuas do Vale do México pelas instituições
castelhanas. Tais elites, sobretudo a partir da segunda metade do século XVI, estavam
sendo efetivamente convertidas ao cristianismo e subordinadas a autoridades políti-
cas cristãs ou, até mesmo, substituídas por sacerdotes e mandatários castelhanos. Essa
situação política tornava o uso do sistema calendário nahua impossível em alguns
casos, sobretudo naqueles em que as elites nativas haviam perdido sua posição de pri-
vilégio, e menos importante que o cristão em outros, especialmente nos casos em que
tais elites tencionavam produzir relatos inteligíveis aos europeus para tentar garantir
ou conquistar uma posição de mando intermediária.213
Simultaneamente, não obstante a progressiva desarticulação das elites que ma-
nejavam o sistema calendário e os escritos pictoglíficos, parece que o pensamento
calendário continuou presente de maneira vigorosa entre as populações nahuas, so-
bretudo entre os agricultores.214 Como dissemos no Capítulo I, não devemos entender
as elites dirigentes nahuas – ou mesoamericanas – como as criadoras e detentoras
exclusivas de um sistema de cômputo calendário que não possuía bases na visão de
mundo e nas experiências concretas e compartilhadas pelos demais grupos sociais.215
212 É o que parece ocorrer nas obras de Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin. No entanto, Chimal-
pahin não explica o funcionamento da conta dos anos e estabelece múltiplas e complexas re-
lações com a cronologia histórica cristã. Sendo assim, as informações calendárias mantêm um
papel de destaque em sua obra. Tudo isso poderia indicar seu direcionamento a um público
relativamente familiarizado com os escritos tradicionais. Cf. Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin,
Domingo. Primera, segunda, cuarta, quinta y sexta relaciones de las différentes histoires originales. Mé-
xico: IIH – Unam, 2003.
213 É muito comum que os estudos sobre o calendário tendam a analisá-lo como um sistema fe-
chado em si, cujo funcionamento dependeria apenas de sua lógica interna. Sendo assim, a
proposta de trazer o debate sobre o calendário para junto dos temas políticos pode ser muito
interessante, já que “Complex calendars are a means of social coordination and control, but
because they are based on more than ecological factors, they are not fully comprehensible to
everyone and inherently lend themselves to hierarchical uses.” Hassig, Ross. Time, history and
belief in Aztec and Colonial Mexico, op. cit., p. 71.
215 Michel Graulich parece não concordar com isso, pois acredita que os agricultores nahuas de-
pendiam dos sacerdotes – supostamente os únicos conhecedores da duração do ano solar –
para saber em que época plantar. Em suas palavras “...al introducir un día cada cuatro años, el
calendario de las veintenas determinaba un año ritual, esotérico, que tenía la imagen perfecta
del año real, pero que le precedía siempre, de manera que no podía influir en los aconteci-
mientos por sus ritos. Gracias a este año ritual, los sacerdotes reforzaban su papel sobre la masa
Eduardo Natalino dos Santos 223
de agricultores. Los ritos no les proporcionaban ninguna indicación precisa para los trabajos
en los campos y los campesinos estaban obligados a dirigirse a los sacerdotes para saber en qué
momento debían proceder a la siembra o comenzar la recolección.” Graulich, Michel. Mitos y
rituales del México antiguo, op.cit., p. 348. Talvez Graulich esteja confundindo a posse da conta
calendária dos anos sazonais e dos registros e cálculos de sua duração exata, que pareciam ser
exclusividade das elites dirigentes, com a posse de saberes milenares entre os agricultores me-
soamericanos, como a chegada da época da chuva e da seca. Se os agricultores nahuas depen-
dessem dos sacerdotes ou das elites dirigentes para saber quando plantar teriam desaparecido
com a conquista e colonização dos altepeme do altiplano central mexicano e, antes desses even-
tos, muitos agricultores maias teriam tido o mesmo destino com o colapso dos centros urbanos
e cerimoniais e de suas respectivas elites dirigentes no fim do chamado período Clássico.
216 Cf. Hassig, Ross. Time, history and belief in Aztec and Colonial Mexico, op. cit.
217 Cf. Farris, Nancy. Recordando el futuro, anticipando el pasado. In: La memoria y el olvido. Segun-
do simposio de historia de las mentalidades, op. cit.
Capítulo III
O espaço:
usos e funções dos conceitos
cosmográficos nos textos nahuas
N este capítulo, analisaremos os usos e as funções de conceitos cosmográficos me-
soamericanos nos textos pictoglíficos e alfabéticos nahuas do século XVI. Esses
usos e funções serão caracterizados e interpretados de acordo com as três hipóteses
anunciadas na Introdução e empregadas no capítulo anterior ao analisarmos o caso
do sistema calendário.
Essas hipóteses sofreram pequenos ajustes para se adaptarem ao caso da cos-
mografia e podem ser enunciadas da seguinte forma: A – assim como o sistema ca-
lendário, os conceitos cosmográficos tendiam a desempenhar funções estruturais e
organizacionais ou a ser exigidos como pressupostos de leitura nos textos pictoglíficos
e alfabéticos produzidos com a participação, direta ou indireta, das tradições de pen-
samento e escrita nahuas ou de seus descendentes intelectuais; B – o emprego dos
conceitos cosmográficos como pressupostos de leitura indispensáveis à compreensão
das narrativas não estaria determinado, necessária e exclusivamente, pelo tipo de es-
crita utilizada, isto é, se alfabética ou pictoglífica; em contrapartida, diferentemente
do que ocorreu com o sistema calendário, a utilização da escrita alfabética determi-
nou, em parte, o desuso dos conceitos cosmográficos em funções estruturais ou orga-
nizacionais; C – o emprego dos conceitos cosmográficos como pressupostos de leitura
ou em funções estruturais poderia contribuir para estabelecermos e graduarmos os
vínculos entre as produções e usos das centenas de fontes coloniais pictoglíficas ou
alfabéticas e as tradições de pensamento e escrita locais; por outro lado, sua presença
temática indicaria processos de produção e usos direcionados pelas demandas caste-
lhanas, sobretudo pelos trabalhos missionários.
Somaremos as análises e conclusões pontuais deste capítulo às do anterior para
demonstrar, segundo uma das hipóteses gerais, que a articulação entre calendário,
cosmografia e cosmogonia nos textos pictoglíficos e alfabéticos nahuas fornece indí-
cios indispensáveis para caracterizar as concepções de tempo, espaço e passado das
tradições de pensamento e escrita desses povos. Isso porque o calendário e a cosmo-
grafia não formavam, sobretudo nos escritos tradicionais, um cenário neutro no qual
os temas ou episódios eram registrados de maneira independente ou desafetada. Ao
contrário, além de situar precisamente os temas e episódios no tempo-espaço e de
organizá-los textual e graficamente, a menção de elementos calendários e cosmográfi-
228 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
cos evocava qualidades cujo conhecimento era pressuposto aos usuários dos escritos e
que, desse modo, instituíam-se como parte fundamental de sua decodificação.1 Isso se
tornará ainda mais claro e evidente no Capítulo IV, no qual procuraremos explicitar
a importância dessa articulação no caso concreto dos relatos ou episódios sobre as
idades do Mundo.
Da mesma maneira que procedemos ao analisar os usos e funções do sistema
calendário, neste capítulo também procuraremos situar o caso nahua em um quadro
analítico mais amplo, constituído por comparações pontuais com fontes de outras
regiões mesoamericanas. No entanto, antes de iniciarmos as análises, apresentaremos
sumariamente os conceitos espaciais que, em conjunto, formam o que estamos deno-
minando cosmografia.
Cosmografia mesoamericana
1 Michel Graulich parece discordar dessa hipótese, pois afirma que a cosmografia não possui
importância suficiente para ser levada em conta na análise das narrativas cosmogônicas e das
celebrações das vintenas. Nas palavras do autor: “Las informaciones relativas a la disposición
de los infiernos y de los cielos es bastante confusa; y no me detengo en ella, máxime jugando
estos lugares un papel mínimo en los mitos y en los ritos.” Graulich, Michel. Mitos y rituales del
México antiguo, op.cit., p. 78.
2 Isso porque há sítios antiguíssimos – como Cuicuilco, cuja pirâmide data de 600 a.C. – nos
quais a escolha do local de ereção do centro cerimonial esteve relacionada com suas qualida-
des para a observação astronômica, sobretudo para o estabelecimento de pontos de referên-
cia que marcariam os solstícios. Cf. Broda, Johanna. Astronomía y paisaje ritual. In: Broda,
Johanna et alii (coord.). La montaña en el paisaje ritual. México: Unam/Conaculta/Inah/
Universidad Autónoma de Puebla, 2001. Veremos que esses pontos solsticiais foram impor-
tantes para estabelecer a divisão do espaço horizontal em quatro rumos e, conjuntamente, a
duração do ano solar.
Eduardo Natalino dos Santos 229
3 A vigência desse modelo espacial nas pinturas secas dos navajos até a atualidade seria uma
prova disso. Cf. Brotherston, Gordon. La América indígena en su literatura. México: FCE, 1997.
4 Veremos que não se trata exatamente de uma divisão rígida e geométrica do espaço circun-
dante, mas de âmbitos cujas fronteiras se sobrepunham ou eram gradativas e permeáveis. De
modo quase unânime, as fontes citam a existência de nove níveis subterrâneos. No entanto, o
número de pisos celestes é motivo de controvérsia entre os estudiosos, pois as próprias fontes
trazem informações díspares, sendo treze e nove os números mais frequentes.
230 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
5 No mundo mexica, algumas das representações escultóricas de Tlaltecuhtli não estavam à vista,
mas nas bases de outras representações, isto é, voltadas para baixo, para a superfície da terra.
Uma delas está na base da grande estátua de Coatlicue, que se encontra na Sala Mexica do
Museo Nacional de Antropología, na cidade do México. Além dessa, algumas outras represen-
tações foram encontradas nas partes enterradas de colunas coloniais. Cf. Matos Moctezuma,
Eduardo. Vida y muerte en el Templo Mayor. México: FCE/Asociación de Amigos del Templo
Mayor, 1998. Esse tipo de ocorrência nos indica a existência de usos das representações na
Mesoamérica que não passavam, necessariamente, por sua constante disponibilidade à vista.
6 Também, por vezes, representado como uma espécie de tubarão. Todos esses animais possuem
sangue frio, mandíbulas grandes e são dotados de garras ou presas. Cf. López Austin, Alfredo.
La construcción de una visión de mundo. Curso de pós-graduação no IIA da Unam. Cidade do
México, setembro de 2002 a janeiro de 2003.
7 Termo formado pela junção de ilhuicatl, que significa céu, e atl, que significa água.
Eduardo Natalino dos Santos 231
Na Figura 20, que reproduz a primeira página do Códice Fejérváry-Mayer, podemos ver
o glifo cipactli na base de uma das quatro árvores que aparecem sob os quatro portais
trapezoidais, mais especificamente na base da árvore que se encontra sob o portal do
lado direito.8 Na Figura 23, que reproduz uma página do Códice Vaticano A que será
analisada adiante, podemos ver o glifo tlalli em sua parte centro-superior.9
A superfície terrestre era qualitativamente heterogênea, pois cada região conta-
va com a presença e a combinação de entes e elementos distintos, os quais a dotavam
de características próprias. De modo geral, esses elementos eram agrupados segundo
a citada divisão do espaço horizontal em cinco regiões, isto é, em um centro mais qua-
tro rumos que se abririam a partir dele em direção ao horizonte. As qualidades desses
rumos e do centro eram expressas nos códices por meio da presença de diferentes
deuses, árvores, animais, cores e elementos do calendário a eles associados.
Um dos casos mais famosos de reunião pictoglífica dos entes e elementos asso-
ciados às cinco regiões é a primeira página do Códice Fejérváry-Mayer, reproduzida na
Figura 20. Nela podemos observar a existência de quatro portais trapezoidais interca-
lados por outros quatro com formato de arco. Esses portais são delimitados por uma
faixa contínua que muda de cor e sobre a qual estão grafados pequenos círculos. Nas
junções dos portais trapezoidais com os arqueados e nas quinas dos trapezoidais estão
dispostos os vinte signos do tonalli. Sob esses oito portais, estão agrupados conjuntos
simétricos de elementos que caracterizariam as quatro direções do mundo horizontal.
Abaixo dos portais trapezoidais podemos observar árvores com aves pousadas sobre
suas copas e pares de deidades sob elas. Sob os portais arqueados encontram-se plan-
tas distintas e combinadas com aves e animais também distintos. Nos cumes desses
portais encontram-se os quatro carregadores de anos: acatl, tecpatl, calli e tochtli – res-
pectivamente, iniciando-se pelo portal da esquina superior-esquerda e seguindo-se o
sentido anti-horário.
Essa página reúne uma quantidade de informações tão grande e estabelece en-
tre elas tantas relações que necessitaríamos de muitas páginas para tratar apenas das
principais.10 Por isso, voltaremos a essa imagem diversas vezes ao longo deste capítulo
para, aos poucos, apresentar tais elementos e relações sem, no entanto, pretender
esgotá-los.11
10 Todo o capítulo dez do livro explicativo que acompanha a edição que estamos utilizando desse
códice trata de examinar, unicamente, essa página. Cf. Anders, Ferdinand e outros. El libro de
Tezcatlipoca, señor del tiempo. Graz/México: ADV/FCE, 1994, p. 149-84.
Por ora, gostaríamos apenas de dizer que cada um dos portais trapezoidais, em
conjunto com o portal arqueado que está imediatamente à sua esquerda ao o olhar-
mos com sua trave para cima – e temos que girar a página ou girarmos ao redor dela
para ver todos os portais dessa forma12 –, reúne os elementos que caracterizariam cada
uma das quatro regiões do Mundo. Entre esses elementos constam algumas séries
calendárias que mencionamos e analisamos no capítulo anterior, tais como os vinte
signos do tonalli, os quatro carregadores de anos e os nove Senhores da Noite. Esses
últimos são formados pelos quatro pares de deidades sob os portais trapezoidais e pela
deidade que se encontra no centro da página,13 em meio de um quadrângulo cujos
elementos interiores caracterizariam a porção central do mundo, em conjunto com as
influências que viriam de cada uma das quatro regiões em seus devidos turnos.
Deixemos, por enquanto, a questão da espacialização dessas séries calendárias
e de suas implicações para a caracterização das concepções de tempo e espaço e
voltemos ao problema da qualificação e divisão de Tlalpan, ou seja, da superfície
da Terra.
De modo simplista, podemos dizer que a demarcação dessas regiões dava-se por
meio de faixas imaginárias que partiam do centro da superfície terrestre em direção
aos quatro pontos solsticiais, ou seja, aos pontos mais ao norte e ao sul que o Sol alcan-
çava no horizonte ao nascer e pôr-se ao longo do ano, mais especificamente, no verão
e no inverno.14 Em outras palavras, os quatro pontos máximos do deslocamento da
posição do nascer e pôr-do-sol em combinação com o centro do mundo demarcariam
os limites das duas regiões percorridas por esse astro – uma ao leste e outra ao oeste.
12 Uma das maneiras de manusear os livros pictoglíficos com o formato de tira ou biombo era
estendê-los no chão e caminhar ao seu redor.
13 A série de Senhores da Noite inicia-se com Xiuhtecuhtli, no centro, passa para o portal supe-
rior com Itztli (à direita da árvore) e Tonatiuh (à esquerda) e daí segue o sentido horário e
passa para o portal da direita (sul), para o de baixo (poente) e chega até o do lado esquer-
do (norte). Veremos que esse sentido é o contrário daquele que é seguido pelos demais
elementos da página e que estava sistematicamente presente nos manuscritos pictoglíficos
tradicionais, pois corresponderia ao sentido da própria rotatividade do tempo pelos quatro
rumos do Universo.
14 Vale lembrar que nas regiões intertropicais, como é o caso da Mesoamérica, o percurso do Sol
e os pontos de seu nascimento e ocaso passam para os dois lados (norte e sul) do eixo zenital
leste-oeste.
Eduardo Natalino dos Santos 233
Nesses pontos extremos estariam os sustentadores dos céus, relatados como grandes
deuses, homens ou árvores e chamados de bacaboob na tradição maia.15
A partir da delimitação dessas duas regiões, relacionadas ao nascer e pôr-do-sol, as
outras duas regiões seriam definidas automaticamente como laterais ou complementá-
rias às primeiras. Em conjunto, essas quatro regiões formavam os chamados quatro rumos
do Universo ou nauhcampa. Como essa divisão estaria fundamentada no percurso do Sol
entre os dois solstícios, parece que havia certa primazia gnosiológica das regiões do
nascer e pôr-do-sol e, portanto, da faixa leste-oeste sobre as regiões laterais, isto é, que
estariam na faixa norte-sul. Essas seriam consideradas como os lados do caminho do
Sol e dos outros astros na determinação dos quatro rumos e na estruturação do modelo
cosmográfico como um todo.16 A existência dessa primazia nos importa porque ela,
como veremos, estaria refletida na organização das inscrições e códices pictoglíficos do
sistema mixteco-nahua, como na primeira página do Códice Fejérváry-Mayer, reproduzida
na Figura 20, a qual está orientada, isto é, com a região do sol-nascente para cima.17
É importante lembrar também que essa concepção da superfície da Terra dividi-
da em quatro rumos ou regiões, que pelo descrito até aqui formaria uma espécie de
quadrado ou retângulo com um “X” inscrito, não era um modelo geométrico rígido
com linhas divisórias precisamente demarcadas. Sendo assim, talvez fosse mais ade-
quado imaginarmos, ao invés de linhas limitantes, divisões gradativas entre as regiões,
que se assemelhariam a amplas faixas de transição entre uma e outra região. Ademais,
a imagem de um “X” inscrito num quadrado ou a de uma cruz também não parecem
adequadas, pois, como podemos ver na primeira página do Fejérváry-Mayer (Figura
20), nenhuma das faixas que delimitam as quatro regiões se cruza ou se entrecorta
no centro. Veremos, logo abaixo, que isso talvez se relacione com a concepção de um
tempo que circula pelas quatro regiões em torno do centro.
Vale enfatizar que essas quatro regiões não se delimitavam pelos pontos cardeais,
mas, aproximadamente, pelos intercardeais. Em outras palavras, os limites entre as
quatro regiões não correspondiam aos nossos eixos cartográficos leste-oeste e norte-
15 Bacaboob é a forma plural de bacab. Esses sustentadores dos céus seriam Quetzalcoatl, Tez-
catlipoca, Tlahuizcalpantecuhtli e Mictlantecuhtli em códices da tradição mixteco-nahua,
como no Borgia. Cf. The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p. 49-52. Ve-
remos que esses sustentadores são apresentados como quatro homens na Historia de los
mexicanos por sus pinturas.
17 Os elementos que permitem definir a parte de cima dessa página são sua forma de junção no
livro e a orientação da figura central de Xiuhtecuhtli. Essa primazia relativa da faixa nascente-
poente não anularia a importância das outras duas regiões, as quais, por exemplo, ocupam o
mesmo espaço e possuem os mesmos tipos de elementos que os da faixa leste-oeste na citada
página do Códice Fejérváry-Mayer.
234 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
sul, os quais estariam mais próximos dos centros dos quatro rumos ou nauhcampa. Na
verdade, as faixas de delimitação das quatro regiões estariam mais próximas dos eixos
cartográficos noroeste-sudeste e nordeste-sudoeste.
Além da observação do Sol, a das estrelas também deve ter tido um papel funda-
mental na definição da faixa leste-oeste e em sua supremacia relativa sobre a norte-sul
como princípio organizador da realidade e dos registros pictoglíficos. Prova disso é
a presença desses corpos celestes nos códices, gravados em pedra e pinturas murais
e nas fontes coloniais.18 Entre as estrelas, parece que as Plêiades ocupavam um papel
de destaque pois, após um período de invisibilidade, reapareciam exatamente no dia
da primeira passagem anual do Sol pelo zênite. Esse fenômeno, marcado pelo dia
em que o Sol não projetava sombras ao meio-dia ao incidir em objetos longilíneos
perpendiculares ao solo e pela noite em que as estrelas cruzavam o Céu muito perto
do zênite, teria sido importante para distinguir as duas grandes estações climáticas
em que o ano dividia-se na Mesoamérica: Xolpan e Tonalco ou a estação chuvosa e a
seca, respectivamente.
A delimitação das quatro regiões do Universo a partir de fenômenos celestes
aponta para a estreita e intricada relação entre tempo e espaço existente no pensa-
mento mesoamericano. Isso porque a delimitação de unidades básicas do sistema ca-
lendário, tais como o dia, a noite e o ano sazonal, também se baseava em fenômenos
celestes observáveis somente a partir de pontos de referência situados espacialmente.
Dessa forma, a delimitação do espaço servia para mensurar e marcar as unidades ou
ciclos calendários, tais como o dia, a noite e o ano sazonal: o tempo estava espacia-
lizado. Simultaneamente, essas unidades e ciclos calendários serviam para delimitar
e caracterizar as regiões do espaço, tais como os céus, os inframundos e os quatro
rumos da superfície terrestre: o espaço estava temporalizado.
De maneira concreta, a presença das concepções espaciais no calendário pode
ser observada, por exemplo, no caso das vinte trezenas que compunham o tonalpo-
hualli, as quais se relacionavam sucessivamente com os quatro rumos do Mundo, a
começar pelo oriente, passando depois pelo norte, pelo ocidente e chegando ao sul,
girando pelo horizonte em sentido anti-horário. Essa mesma rotatividade do tempo
aplicava-se ao xiuhmolpilli, fazendo com que os anos que compunham o ciclo de 52
18 Alguns nomes nahuas de constelações ou corpos celestes foram registrados no Códice florentino,
particularmente em seu Livro VII. Cf. Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de
Nueva España. México: Conaculta, 2002. No entanto, alguns desses nomes são de difícil de-
terminação ou correspondência com as denominações astronômicas ocidentais. Vimos que
mamalhuaztli ou tianquiztli corresponderia às Plêiades, também chamadas de Sete Irmãs. Ou-
tras denominações nahuas seriam: Citlaltlachtli (talvez a constelação de Gêmeos), Citlalpol
(Vênus), citlalin popoca e citlalin tlamina (estrela fumegante e estrela fugaz, designações para os
cometas), Xonecuilli (talvez a constelação Ursa Menor) e Citlalcolotl (talvez Escorpião). Cf.
Aveni, Anthony. Observadores del cielo en el México antiguo. México: FCE, 1991.
Eduardo Natalino dos Santos 235
19 Além disso, nessa mesma cidade, no entorno do templo de Quetzalcoatl, na Ciudadela, foram
encontrados corpos de guerreiros decapitados e dispostos pelas quatro regiões em conjun-
tos de 9, 13 e 18, números de significativa importância calendária, como vimos no capítulo
anterior. Cf. Aveni, Anthony F. Tiempo, astronomía y ciudades del México antiguo. In: Ar-
queología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/Conaculta, v. VII, n. 41, p. 22-5, janeiro-
fevereiro de 2000. Além disso ser um indício importante da relação estreita entre os ciclos
calendários e os quatro rumos, atesta também sua antiguidade, pois dataria de, pelo menos,
o início da Era Cristã.
20 Cf. ibidem. Uma das maiores provas da importância que os mexicas dariam à codificação do
tempo por meio das construções seria o fato de Moctezuma Xocoyotzin ter proposto recons-
truir esse conjunto arquitetônico para corrigir um ligeiro desalinhamento em relação a esse
fenômeno. Cf. Benavente, Toribio de. Historia de los indios de la Nueva España. Madri: Dastin,
2001. A continuidade de uso dos padrões de alinhamento desde os centros cerimoniais do
período Clássico, como Teotihuacan, até os do Pós-clássico, como Tenayuca, Tepozteco, Tula
e Tenochtitlan, é demonstrada pela adoção de um mesmo eixo imaginário de orientação
das construções, o qual estaria desviado cerca de 17o para leste em relação ao nosso eixo
norte-sul. Esse padrão talvez tenha tido origem em Teotihuacan e estaria relacionado ao
nascer do Sol nos equinócios e ao ocaso das Plêiades. Cf. Aveni, Anthony F. Astronomia da
antiga Mesoamérica. In: Krupp, Edwin C. (org.). No rasto de... As antigas astronomias. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1978. Aliás, como veremos no Capítulo IV, essa continuidade
entre Teotihuacan e os povos nahuas do altiplano central mexicano do período Pós-clássico
era explicitamente reivindicada por esses últimos. Os mexicas e outros grupos do Vale do
México, por exemplo, referiam-se a Teotihuacan como o sítio de origem da idade atual.
236 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Além disso, como citamos antes, cada altepetl considerava-se a região central do
Universo e em torno da qual essas quatro direções se distribuiriam. Sendo assim,
muitas vezes, sua planta geral ou sua subdivisão em quadrantes reproduzia as par-
tes dessa macroestrutura cosmográfico-calendária. Um dos mais famosos exemplos
desse tipo de divisão é a separação de Tenochtitlan em quatro partes, as quais eram
atravessadas por quatro caminhos que partiam do conjunto arquitetônico central e
se direcionavam aos quatro rumos. Trata-se, portanto, de uma concepção segundo
a qual cada parte reproduz o todo e é, desse modo, parte e entidade relativamente
autônoma desse todo: toda a cidade de Tenochtitlan é o centro do mundo conhe-
cido e controlado pelos mexicas e, assim como ele, divide-se em quatro partes e um
centro, o qual, por sua vez, também se divide em quatro partes.21 Do mesmo modo,
o quadrângulo central da primeira página do Fejérváry-Mayer (Figura 20), no qual
se encontra Xiuhtecuhtli, também se divide, assim como o modelo geral da página,
em quadrantes, o que é feito por meio de faixas diagonais vermelhas semelhantes a
jorros de líquido.22
A cosmografia também modelava – e simultaneamente era modelada por –
construções sociais menos tangíveis do que as cidades, mas não menos importantes
do que elas, tais como as instituições político-administrativas. No caso mexica, essa
relação entre cosmografia, política e administração manifestava-se na existência de
um governo dual formado pelo tlatoani (Aquele que Fala) e pelo cihuacoatl (Mulher-
Serpente). Essa divisão complementar no interior do topo do governo se relacionaria
à concepção da divisão do espaço entre Topan e Mictlan. Hierarquicamente abaixo
desses dois governantes, havia quatro funcionários distintos que governariam os
quadrantes da cidade.23
23 Cf. López Austin, Alfredo e López Luján, Leonardo. Mito y realidad de Zuyuá. México: El Co-
legio de México/Fideicomiso Historia de las Américas/FCE, 1999. Além disso, parece que a
divisão dos domínios da Tríplice Aliança também se dava conforme a localização dos altepeme
dominados nos quatro rumos: estariam subordinados tributariamente a México-Tenochtitlan
os altepeme desde o oriente, passando pelo sul e chegando ao poente; a Tlacopan, os do poente
até o norte; e a Texcoco, os do norte até o oriente. Cf. Carrasco, Pedro. Estructura político-terri-
Eduardo Natalino dos Santos 237
torial del imperio tenochca. México: El Colegio de México/Fideicomiso Historia de las Américas/
FCE, 1996, p. 337.
24 Esse é o caso da famosa página do Códice Mendoza que traz a fundação e primeiros anos da
história de México-Tenochtitlan, reproduzida na Figura 31. Cf. The essential Codex Mendoza.
Berkeley/Los Ángeles/Londres: University of California Press, 1997, p. 2r.
25 Um exemplo desse tipo de disposição pode ser visto no Códice Borgia, na seção que apresenta
os diferentes tlaloque e seus distintos tipos de chuva e resultados para as colheitas, os quais estão
organizados de acordo com as quatro direções e o centro do Mundo. Vale notar ainda que os
tipos de chuva e colheita também estão relacionados a determinados anos xihuitl nessas pági-
nas. Uma dessas páginas está reproduzida na Figura 32 e será analisada mais adiante. Cf. The
Codex Borgia, op. cit., p. 27-8.
do Códice Fejérváry-Mayer (Figura 20), na qual podemos observar o glifo do Sol – for-
mado por círculos concêntricos e por pontas de seta centrífugas – na base da árvore
que se encontra sob o portal trapezoidal que ocupa a parte superior dessa página.
Vale notar também que o glifo do Sol encontra-se sobre uma pirâmide formada por
taludes e tabuleiros verticais27 e por uma escada, representação que era empregada
como glifo para recinto ou morada. Sendo assim, temos a formação de uma expressão
muito utilizada para se referir a essa região do Mundo: Tonatiuhichan, isto é, Casa ou
Morada do Sol.28
Para essa região oriental iriam os guerreiros e pochteca (comerciantes) mortos em
combate e viagens, inclusive os inimigos ou os sacrificados, os quais tinham por missão
transportar o Sol desde o seu nascer até o zênite. Veremos, ao longo dessa primeira
parte do capítulo, que toda a cosmografia mesoamericana também estava relacionada
com os diferentes destinos dos mortos, os quais, por sua vez, relacionavam-se com o
próprio funcionamento do cosmo.
A região do poente era chamada de Tonatiuh Icalaquian, Lugar Onde o Sol se
Mete, e Tonatiuh Iaquian, Lugar da Morte do Sol. Para essa região iriam as mulheres
mortas no primeiro parto, as quais tinham por missão transportar o Sol desde o zê-
nite até o ocaso. Por isso, essa região também era chamada de Cihuatlampa ou Lugar
das Mulheres.29 Veremos que depois disso o Sol seria levado pelos mortos comuns, que
habitavam o Mictlan, em seu percurso noturno.
Vale notar desde já que a associação entre esses dois rumos – o nascente e o
poente – e os destinos dos mortos que transitavam pelo Céu ajudando o Sol em seu
percurso diário indica-nos que esses dois âmbitos não se restringiam, estritamente, à
superfície da Terra, mas incluíam parte dos níveis celestes, os quais serão apresenta-
dos mais adiante.
red and black. Austin: University of Texas Press, 2000, p. 66. Seria muito interessante analisar
as formas de presença da cosmografia e do calendário nesse tipo de registro, no entanto isso
demandaria outra pesquisa.
27 Em castelhano, talud e tablero. O emprego alternado dessas formas nos distintos níveis das
pirâmides foi uma característica marcante da arquitetura do centro do México nos períodos
Clássico e Pós-clássico.
28 Termo formado pela aglutinação entre tonatiuh, que significa Sol, o pronome possessivo i, que
significa seu ou dele, e o substantivo chantli, que quer dizer morada ou região de procedência. Ou-
tras denominações para essa região do Mundo seriam Tlapcopa ou Tlauh Campa (Lugar da Luz),
Tonayan ou Tonayampa (Lugar do Tona) e Tonatiuh Inemayan (Lugar Próprio do Sol). Cf. González
Torres, Yolotl. Los rumbos del universo. México: Inah – Departamento de Etnología y Antropolo-
gía Social, 1974.
29 Outra denominação para essa região seria Cincalco (Casa do Milho). Cf. ibidem.
Eduardo Natalino dos Santos 239
30 Para Gordon Brotherston, essa identificação seria exclusivamente mexica. Cf. Brotherson, Gor-
don. Grupos Chichimecas. Curso de extensão universitária no IIA da Unam, Cidade do México,
18 a 22 de novembro de 2002. Em algumas fontes, o Mictlan e sua entrada aparecem também
localizados no rumo sul, o que talvez nos autorize a pensar em certa continuidade entre essas
duas regiões, a qual conformaria a faixa norte-sul. Cf. González Torres, Yolotl. Los rumbos del
universo, op. cit.
31 Outra denominação para essa região seria, justamente, Amilpampa ou Lugar de Regadio. Cf. ibidem.
32 Parece que os mexicas enterravam os afogados num recinto chamado Ayachcalco, termo que
pode ser traduzido por Casa Quádrupla, o qual seria uma evocação do Tlalocan. Cf. López
Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalocan. México: FCE, 1994.
240 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
33 O uso desses quatro carregadores de anos – correspondentes ao 3o, 8o, 13o e 18o signos do
conjunto de vinte tonalli e que podem ser chamados de Série Três – não era universal na Me-
soamérica. A Série Três é utilizada em manuscritos procedentes de Tenochtitlan, Tlaxcala, Itz-
cuintepec, Tepetlaoztoc, Coixtlahuaca e Tilantongo, além de códices do Grupo Borgia, como
o próprio Fejérváry-Mayer. Cf. Brotherston, Gordon. Painted books from Mexico. Londres: British
Museum Press, 1995. No entanto, em uma seção desse mesmo manuscrito – a qual se encontra
na parte superior das páginas 33 e 34 e trata da plantação anual de milho –, apresenta-se a
sequência ehecatl (vento), mazatl (veado), malinalli (erva) e ollin (movimento), respectivamente
o 2o, 7o, 12o e 17o signos do conjunto de vinte tonalli. Esses carregadores de anos conformam
a chamada Série Dois, a qual era utilizada entre os cuicatecos e tlapanecos. Cf. Anders, Ferdi-
nand et alii. El libro de Tezcatlipoca, señor del tiempo. Graz/México: ADV/FCE, 1994. Além disso,
os treze números que eram combinados aos quatro carregadores de anos também poderiam
Eduardo Natalino dos Santos 241
variar, como ocorre no Códice Azoyú 1, livro de anais da região tlapaneca que narra a história
do reino de Tlachinollan, atual Tlapa, e no qual se emprega a mesma série de carregadores de
anos presente no Códice Fejérváry-Mayer, mas combinada com os números que vão do 2 ao 14.
Cf. Códice Azoyú 1. México: FCE, 1993.
35 A mesma relação entre as vinte trezenas e as quatro regiões também se encontra na primeira
seção do Códice Borgia, graças à forma de dispô-las graficamente. Cf. ibidem, p. 1-8. Conforme
vimos no Capítulo II, as vinte trezenas estão dispostas ao longo de quatro pares de páginas
242 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
nessa seção, sendo que cada par reúne as cinco trezenas que se relacionam a um dos quatro
rumos. Dessa forma, os glifos iniciais das cinco trezenas relacionadas a uma das quatro regiões
encontram-se agrupados na coluna inicial de cada par de páginas, na sua extrema direita,
o que segundo Eduard Seler seria uma forma de reunir elementos que qualificariam essas
quatro regiões. Por exemplo, “...los cinco símbolos de la columna inicial del tercer cuarto del
Tonalámatl designaban los días en que las deidades femeninas llamadas cihuateteo, ‘diosas’,
o cihuapipiltin, ‘princesas’ –las moradoras del oeste, del Cihuatlampa, ‘la región de las muje-
res’– bajaban a la Tierra y tenían poder sobre los hombres”. Seler, Eduard. Comentarios al Códice
Borgia. México: FCE, 1988, p. 20.
36 Dessa forma, “El espacio es indistinguible del tiempo y adquiere sentido sólo dentro de su trans-
curso.” Navarrete Linares, Federico. La vida cotidiana en tiempo de los mayas, op.cit., p. 106.
39 Depois, entre os treze katún que se seguem à chegada dos castelhanos – e que se encontram na
seção seguinte do livro –, os cinco primeiros teriam tido seu assento em Ichcaansihó, que cor-
responde a Mérida, centro da dominação espanhola na região. Esses katún corresponderiam,
aproximadamente, aos anos de 1540 a 1640. Cf. ibidem, p. 157-77.
42 Parece que os nahuas abarcavam num mesmo conceito partes do espectro que para nós per-
tenceriam ao azul e ao verde. Por exemplo, Molina registra o termo matlalin como equivalente
de verde escuro, mas menciona texutli e também matlalin para o azul. No entanto, distingue o
azul celeste como xoxouhqui. Cf. Molina, Alonso de. Vocabulario en lengua castellana y mexicana y
mexicana y castellana. México: Editorial Porrúa, 2001, p. 18r, 117r (seção castelhano-nahuatl),
53r e 112v (seção nahuatl-castelhano).
44 Apesar disso, alguns autores insistem em estabelecer relações únicas e fixas entre os quatro
rumos e esses elementos ou características, chegando até mesmo a extrapolar o mundo ame-
ríndio e a estabelecer relações entre os rumos e as quatro substâncias aristotélicas. Esse tipo
de tentativa encontra-se, por exemplo, na obra de Michel Graulich. Segundo ele, a água se
vincularia ao oeste, o vento ao norte, o fogo ao sul e a terra ao leste. Cf. Graulich, Michel. Mitos
y rituales del México antiguo, op. cit. Esse tipo de relação não se encontra, obviamente, baseada
em nenhuma fonte pré-hispânica ou colonial tradicional.
Eduardo Natalino dos Santos 245
45 Cf. Lockhart, James. The nahuas after the conquest. Palo Alto: Stanford University Press, 1992.
46 Cf. Piña Chan, Beatriz Borba de. Las Cihuapipiltin, sublimaciones de la muerte por parto. In:
Dahlgren, Barbro (org.). Historia de la religión en Mesoamérica y áreas afines. México: Unam, 1993,
p. 31-55.
47 Cf. León Portilla, Miguel. La filosofía náhuatl estudiada en sus fuentes. México: IIH – Unam, 2001.
48 Uma das mais famosas representações de Chicomoztoc como um grande útero encontra-se na
Historia tolteca-chichimeca. México: Ciesas/Gobierno del Estado de Puebla/FCE, 1989, p. 16r.
246 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
49 Além dos mencionados acima, alguns indícios arqueológicos apontam para essa superposição
de âmbitos cósmicos e para a combinação de suas características. Por exemplo, embaixo da
Pirâmide do Sol, em Teotihuacan, foram encontradas cavernas parcialmente modeladas para
adquirir o formato da flor de quatro pétalas. Desse modo, esse local combinaria características
típicas do Inframundo e da superfície terrestre, como a divisão em quatro rumos. Cf. Heyden,
Doris. Las cuevas de Teotihuacan. In: Arqueología Mexicana. México: Editorial Raíces/Inah/
Conaculta, v. VI, n. 34, p. 18-27, 1998.
50 Mais informações sobre as concepções relacionadas ao pós-morte entre os nahuas podem ser
obtidas nos três primeiros capítulos do Apêndice do Livro III e no Livro IV do Códice florentino.
Cf. Garza Camino, Mercedes de la. El hombre en el pensamiento religioso náhuatl y maya. Instituto
de Investigaciones Filológicas – Unam, 1990. Também vale conferir Carynnyk, Deborah. An
exploration of the nahua netherworld. In: Estudios de cultura náhuatl. México: IIH – Unam,
v. 15, p. 219-36, 1982.
51 Cf. Caso, Alfonso. El pueblo del Sol. México: FCE, 1994. Apesar das fontes pré-hispânicas e colo-
niais não mencionarem a sobrevivência da alma após a passagem pelo Mictlan, Alfredo López
Austin acredita que a desaparição completa da teyolia seria um absurdo segundo a própria
lógica do pensamento mesoamericano. Isso porque, teríamos uma operação de quatro anos
Eduardo Natalino dos Santos 247
Vale citar que o destino dos mortos não estava condicionado pelo tipo de condu-
ta moral da pessoa em vida, mas pela forma de ocorrência da morte: os que morriam
na guerra, em sacrifício ou de primeiro parto estariam destinados aos céus; os que
morriam por causas ligadas a Tlaloc se dirigiriam ao Tlalocan; e os que morriam por
causas distintas das anteriores iriam para o Mictlan.52
Assim como todos os âmbitos cosmográficos, o Mictlan também seria habitado e
visitado por uma série de deidades. Há referências que o Tlalocan, ou Lugar de Tlaloc,
localizaria-se em um dos níveis do Inframundo, talvez o primeiro deles. No entanto,
as deidades mais frequentemente relacionadas com o Mictlan eram Mictlantecuhtli e
Mictecacihuatl ou, respectivamente, Senhor e Senhora da Região dos Mortos. Formavam
um casal que presidiria e habitaria o piso mais profundo e que pode ser associado ao
casal Hunahpú e Ixbalanqué da tradição maia-quiché, duas importantes personagens
da cosmogonia narrada no Popol vuh.53
É importante precisar que as relações estáveis entre determinadas deidades, en-
tes e elementos do calendário com âmbitos cosmográficos específicos não eliminavam
a existência de trânsito e circulação. Por exemplo, o fato de Mictlantecuhtli ser o
Senhor do Inframundo não o impedia de circular por outros âmbitos, tais como os
das forças cósmicas em vão. López Austin acredita ser mais coerente a existência da convicção
numa espécie de limpeza, a qual excluiria a personalidade aderida à teyolia e permitiria sua pos-
terior reutilização. Para fazer essa afirmação, o autor apoia-se no sentido do termo ximohuayan
entre os nahuas atuais, o qual significaria diminuição até chegar-se à expressão mínima de pureza da
força, e que viria de xilma, que significaria polir. Cf. López Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalo-
can, op. cit. Há relatos sobre mortos que teriam voltado do Tlalocan à vida, mas que parecem
ser, justamente, exceções que confirmariam a regra. Tais relatos se encontram no Códice floren-
tino e nos Primeros memoriales, manuscritos relacionados aos trabalhos de Sahagún e sua equipe.
Esses relatos são analisados por Arthur Anderson, para quem não haveria retorno possível de
nenhum dos locais destinados aos mortos. Cf. Anderson, Arthur J. O. A look into Tlalocan. In:
Josserand, Kathryn e Dakin, Karen (edit.). Smoke and mist. Oxford: Bar International Series,
1988, p. 151-9.
52 Apesar da relação entre o destino pós-morte e a forma de ocorrência da morte ser bem re-
latada nas fontes, alguns autores tentam aplicar a ideia cristã de Inferno ao Inframundo me-
soamericano. Jacques Soustelle, por exemplo, qualifica o Mictlan como o pior dos destinos
pós-morte, no que talvez tenha alguma razão – embora, o mais correto seria qualificá-lo como
o destino menos enobrecedor ou mais comum. No entanto, o problema está em acrescentar
que havia ressurreição para os mortos do Céu e do Tlalocan e que os soberanos e sacerdotes
mortos naturalmente não iriam para o Mictlan. Infelizmente, o autor não cita as fontes que
embasariam suas conclusões. Cf. Soustelle, Jacques. Os astecas na véspera da conquista. São Paulo:
Companhias das Letras/Círculo do Livro, 1990.
níveis celestes,54 ou de figurar como um dos nove Senhores da Noite, como vimos no
Capítulo II. Procuraremos mostrar que as fontes nahuas tradicionais apresentam as
regiões cósmicas como âmbitos carregados de qualidades específicas, pelos quais os
deuses e os homens transitavam e agiam; e não como moradas divinas ou não huma-
nas, com habitantes estáveis e limites intransponíveis.
Assim como no caso dos quatro rumos, a associação espaço-tempo também es-
tava presente na concepção de Inframundo e se dava, basicamente, de duas formas.
Primeiro, pelo fato do Inframundo ser a região pela qual o Sol empreenderia seu
transcurso noturno e, portanto, cujos limites estariam determinados pelos movi-
mentos desse astro, traduzíveis em lapsos temporais. Segundo, pela possível relação
entre seus nove níveis e os nove Yoaltetecuhtin, já que, ademais da coincidência do
número nove, tanto o Inframundo como os Yoaltetecuhtin relacionavam-se estrei-
tamente com a noite.
Deixemos o Mictlan por enquanto e tratemos de Topan. Citamos, ao tratar dos
quatro rumos, que Tlaltecuhtli estaria rodeado por águas imensas e maravilhosas por
todos os lados, chamadas de teoatl. Dissemos também que essas águas oceânicas se jun-
tariam ao Céu, que, por sua vez, estaria sustentado por quatro grandes árvores situ-
adas nas esquinas do Mundo, isto é, nos limites entre as quatro regiões. Esse mundo
celeste, assim como a superfície da Terra e a região abaixo dela, também era um
âmbito heterogêneo.
O mundo de acima estaria dividido em vários níveis ou pisos sobrepostos, cuja
quantidade varia nas diversas fontes, sendo que nove e treze seriam as mais recorren-
tes.55 A diferença qualitativa entre esses níveis seria marcada pela presença de distintas
54 Veremos esse caso em detalhe mais abaixo, ao analisarmos como os níveis do Inframundo
estão presentes no Códice Vaticano A.
55 López Austin acredita que os pisos celestes seriam nove, aos quais se acrescentavam outros qua-
tro inferiores, caracterizados por ser a região de movimento do Sol, da Lua, das estrelas e do
homem. Cf. López Austin, Alfredo. La construcción de una visión de mundo, op. cit. Díaz Cíntora
procura mostrar que nove seria a quantidade tradicional de níveis celestes para o pensamento
mesoamericano – representados, para ele, nos nove níveis da pirâmide de Chichén Itzá – e que
a teoria dos treze céus seria de origem tolteca. Além disso, afirma que seria um absurdo ter-se
um conjunto de níveis celestes maior do que o de níveis subterrâneos. Isso porque os Senhores
dos Dias e os Senhores da Noite, supõe o autor, também serviriam para marcar as horas dos
dias e das noites, os quais não poderiam ser de durações tão diferentes. Cf. Díaz Cíntora, Sal-
vador. Meses y cielos. México: Unam, 1994. Ora, partir do pressuposto que os Senhores dos Dias
e os da Noite devam representar períodos de tempos quantitativamente iguais, como as nossas
horas, é uma clara projeção de nosso modelo de mensuração do tempo sobre o pensamento
mesoamericano que não encontra fundamento em nenhuma fonte documental. O mesmo
pode ser dito a respeito da pressuposição que deva haver uma simetria geométrica ou matemá-
tica entre os níveis celestes e os do Inframundo.
Eduardo Natalino dos Santos 249
deidades – como Ometeotl, que habitaria o mais alto nível e estaria relacionada com
o início da cosmogonia – ou pela ocorrência e procedência de distintos corpos e fenô-
menos celestes – tais como o Sol, a Lua, as chuvas, os cometas e os ventos.56
Ao pensarmos em níveis celestes, inevitavelmente formamos a imagem de pisos
paralelos ou esferas sobrepostas e concêntricas, semelhantes às que estavam presen-
tes na concepção astronômica ocidental até o advento da física newtoniana – e isso
vale também para os níveis do Inframundo. No entanto, parece que o pensamento
mesoamericano, diferentemente do ocidental pré-moderno, empregaria categorias
matemáticas de modo mais central e abundante do que as geométricas. Isso estaria
indicado, entre outros indícios, pela centralidade dos cálculos calendários nas ex-
plicações sobre a origem e o funcionamento do Mundo, como veremos no Capítulo
IV, bem como pela previsão dos destinos realizada por meio do tonalpohualli. Desse
modo, talvez esses níveis não estivessem, necessária e constantemente, localizados ou
dispostos de modo a conformar figuras geométricas, tais como esferas concêntricas
ou faixas paralelas e sobrepostas. O que não significa, por outro lado, que as concep-
ções dos níveis celestes e subterrâneos nunca tenham sido codificadas ou representa-
das em formas geométricas. Exemplos inquestionáveis da materialização ou expressão
dessas concepções sob tais formas são as diversas pirâmides escalonadas que possuem
nove camadas – como a Pirâmide do Adivinho, em Chichén Itzá, e o Templo I, em
Tikal –, as quais, muito provavelmente, relacionam-se com os níveis do Inframundo
ou do Céu.
Esses níveis celestes estariam – de modo mais claro que os níveis do Inframun-
do – vinculados ou entrelaçados com os quatro rumos. Vimos acima que o rumo do
nascente, ou Tonatiuhichan, era o destino dos mortos em combate ou em sacrifício,
os quais iriam ajudar a movimentar o Sol desde seu nascer até o meio do Céu. Desse
modo, a despeito da divisão do âmbito celeste em níveis, podemos perceber que a re-
gião abrangida pelo rumo oriental não se limitava à superfície terrestre, pois abarcava
também a porção de Céu acima dela, a qual iria desde o horizonte até o nível do Sol
ao meio-dia. A partir desse ponto – ou desse momento – os guerreiros entregariam
o Sol para as mulheres que haviam morrido no primeiro parto, as quais o levariam
até o horizonte da região ocidental. Sendo assim, o rumo ocidental, ou Cihuatlampa,
também incluiria a porção celeste delimitada pelo percurso do Sol após o meio-dia,
isto é, desde o zênite até o limite entre Céu e o horizonte ocidental.
Há, portanto, evidências que parecem estabelecer uma clara relação entre a de-
limitação do âmbito chamado Topan e de seus níveis com o transcorrer do tempo
– assim como vimos ocorrer nos casos do Inframundo e dos rumos do Universo. Isso
porque os limites do Céu seriam dados pelo percurso visível do Sol, o mesmo que
definia o lapso temporal do dia. Além disso, vimos no Capítulo II que os 260 dias do
56 Veremos, mais abaixo, que o Códice Vaticano A é uma das principais fontes para nomear e qua-
lificar os níveis celestes, assim como para os níveis do Mictlan.
250 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
tonalpohualli estavam divididos em conjuntos de treze, bem como que a cada um des-
ses conjuntos corresponderiam treze Senhores dos Dias e treze Voadores. Em suma,
somando-se essa marcada presença do número treze nas séries calendárias relacio-
nadas ao dia com a concepção que o espaço percorrido pelo Sol estaria dividido em
treze níveis celestes, teríamos evidências que a relação entre tempo e espaço também
era fundamental na conceituação e definição de Topan.
De maneira geral, esses são os principais âmbitos e conceitos cosmográficos
que analisaremos nas fontes nahuas do século XVI. No entanto, ainda há outros
dois conceitos ou âmbitos a serem tratados, os quais aparecem esporadicamente
em nossas fontes centrais, mas cuja apresentação é fundamental para completar-
mos o quadro prévio de informações acerca da cosmografia. Estamos falando de
Tamoanchan e Tlalocan.
Dissemos acima que no rumo sul,57 chamado também de Huitztlampa, estaria
situado o Tlalocan, Morada de Tlaloc, sítio que seria uma espécie de paraíso da fertili-
dade e abundância e para onde iriam os mortos dessa deidade.58 Além desse tipo de
morto, o Tlalocan também receberia as crianças falecidas antes de desmamarem, pois
em seu interior estaria localizada a Árvore Nutriz, ou Chichihualquahuitl, que as ama-
mentaria até seu renascimento depois da destruição do mundo atual.59
Ademais dessa recepção a certos tipos de mortos, Tlaloc e seu paraíso também
estariam relacionados intimamente às montanhas em geral, sobretudo às possuidoras
de mananciais de água, grutas ou cavernas. Tais montanhas eram, por vezes, chamadas
de Tlalocan.60 A ligação entre o Tlalocan e esses âmbitos subterrâneos estaria expressa,
57 López Austin acredita que o Tlalocan estaria localizado arquetipicamente no rumo oriental e
não no meridional. No entanto, admite que se trate de uma ideia semelhante à da localização
do Mictlan no norte, pois o Inframundo estaria, na verdade, por baixo de toda a terra e se
manifestaria ou possuiria sua entrada principal no norte. Diz ainda que Cincalco, ou Lugar da
Casa do Milho, outro paraíso de fertilidade situado no ocidente, seria uma réplica do Tlalocan.
Cf. López Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalocan, op. cit.
58 No hino a Tlaloc, parte de um conjunto de vinte hinos aos deuses contidos nos textos de Saha-
gún, o Tlalocan é referido como casa de turquesa, elemento e cor constantemente associados à
água e à fertilidade. Cf. Primeros memoriales by fray Bernardino de Sahagún. Norman: University of
Oklahoma Press, 1993, p. 274v.
inclusive, no próprio significado do nome Tlaloc, o qual poderia ser traduzido como
Aquele Que Está Feito de Terra ou Aquele Que É Personificação da Terra.61
Por tudo isso, podemos dizer que o Tlalocan se imbricava intimamente, mas
não exclusivamente, com outro âmbito cosmográfico: o Inframundo. Essa imbricação
não seria exclusiva porque o Tlalocan também estaria intimamente relacionado aos
quatro rumos e ao Céu, sobretudo por meio dos ajudantes de Tlaloc. Esses ajudantes,
chamados de tlaloque, eram tidos como os responsáveis por enviar os diferentes tipos
de chuva a partir dos céus das quatro regiões. Algumas dessas chuvas seriam mais pro-
pícias e outras mais maléficas à agricultura, conforme veremos mais adiante.62 Além
disso, veremos também que algumas fontes, como o Códice Vaticano A e a Histoire du
Mechique, situam o próprio Tlalocan em algum dos níveis celestes, reforçando essa
ligação entre Tlaloc e o mundo de acima.
Podemos perceber que as localizações atribuídas ao Tlalocan – em Opochpa To-
natiuh ou Huitztlampa, no Inframundo e nas quatro regiões de Topan – são múltiplas
e aparentemente contraditórias. No entanto, essa aparente contradição é resolvida se
notarmos que todos esses âmbitos possuem em comum o fato de se relacionarem a
fenômenos aquáticos, os quais eram fundamentais para a agricultura mesoamericana
de temporada e de regadio, sobretudo para a do milho.63 Dessa forma, é provável que
o conceito de Tlalocan aludisse a uma série de locais em que se davam fenômenos
com características relacionadas a Tlaloc; e não apenas a um único e grande âmbito
um caso muito famoso. Os mexicas designavam com esse nome a uma montanha e à pirâmide do
Templo Mayor, sobre a qual estavam as construções dedicadas a Tlaloc e Huitzilopochtli. Parece
que tal pirâmide também poderia ser chamada de Tonacatepetl, Cerro de Nosso Sustento, nome de
outra importante montanha nos relatos cosmogônicos, como veremos no Capítulo IV.
61 Essa seria, segundo López Austin, a tradução de Thelma Sullivan. Cf. López Austin, Alfredo.
Tamoanchan y Tlalocan, op. cit. Diego Durán confirma essa relação entre Tlaloc e o mundo
subterrâneo, afirmando que seu nome significa camino debajo de la tierra ou cueva larga. Du-
rán, Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme. México: Editorial
Porrúa, 1984, v. 1, p. 81. Essas traduções baseiam-se na presença do termo tlalli, que significa
terra, em Tlaloc.
62 Segundo Johanna Broda, Napatecuhtli, ou Quatro Vezes Senhor, seria a deidade que somaria os
quatro tlaloque e seus auxiliares, entre os quais estariam os mortos de Tlaloc. Cf. Broda, Johan-
na. Las fiestas aztecas de los dioses de la lluvia. In: Tichy, Franz (edit.). Lateinamerika-Studien.
Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1982, p. 129-57.
63 Alfredo López Austin afirma que os processos agrícolas estavam relacionados com o conceito
morte-fertilidade para o pensamento mesoamericano. Sendo assim, define o Tlalocan, ao con-
trário de Tamoanchan, como o “...lugar de la muerte. Es una montaña hueca llena de frutos
porque en ella hay eterna estación productiva. A su interior van los hombres muertos bajo la
protección o por el ataque del dios de la lluvia...”. López Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalo-
can, op. cit., p. 9.
252 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
65 Cf. Broda, Johanna. El culto mexica de los cerros y del agua. In: Multidisciplina. México: Unam,
ano 3, n. 7, p. 45-56, 1982. Essa afirmação baseia-se também em Alfredo López Austin, para
quem o “Tlalocan es el cimiento de los cinco árboles. Se extiende bajo la superficie total de la
tierra”. López Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalocan, op. cit., p. 189.
67 Trata-se de uma amplíssima região, o que reflete o desconhecimento existente sobre os olme-
cas uixtotin. Sahagún afirma também que o termo Tamoanchan significaria “buscamos nossa
casa”. Cf. Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España. México: Cona-
culta, 2002, p. 64 e 973-5. Román Piña Chan acredita que o sítio de Tamoanchan, mencionado
nos textos de Sahagún, seja Xochicalco, o qual teria sido povoado entre 650 e 850 d.C. pelos
olmecas uixtotin e chicalancas provenientes da Costa do Golfo, os quais consolidaram uma
nova hegemonia regional depois da queda de Teotihuacan. Depois, esses grupos teriam se
fixado na região de Chalco Amaquemecan e, posteriormente, na área de Cholula, Tlaxcala e
Cacaxtla. Cf. Piña Chan, Román. Cacaxtla. México: FCE, 1998.
68 Para López Austin, essa relação entre Tamoanchan e Tlalocan é reforçada pela localização sub-
terrânea atribuída a ambos. Afirma que os textos em nahuatl do Códice matritense (f. 191v) e do
Códice florentino (f. 140v) trazem a frase Tamoanchan, quitoznequi temoa tocha, a qual significaria se
descende ao nosso lar. A ideia de descender para se chegar a Tamoanchan também estaria presente
no Códice telleriano-remense, onde se lê “Tamoanchan Xuchitlicacan quiere dezir, en romance,
allí es su casa donde abaxaron y donde están sus rrosas levantadas” (lâmina XXIII). Para esse
estudioso, o termo Tamoanchan deriva do verbo temo, que significa descender, abaixar e nascer,
do qual deriva a expressão onitemoc onitlacat, que significa baixei e nasci. Além disso, López Aus-
tin apresenta outras propostas de tradução – país do declinar, lugar onde se está repleto e é concluída
sua morada – e outros nomes designativos de Tamoanchan – Xochitl Icacan, Xochincuahuitl,
Tonacaxochincuahuitl, Itzehecayan, Chicnauhnepaniuhcan, Chalchimmichhuacan, Cuauhte-
mallan, Atlayahuican –, alguns dos quais situados nos céus ou inframundos e outros em regiões
mais palpáveis. Cf. López Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalocan, op. cit.
69 Cf. Primeros memoriales by fray Be rnardino de Sahagún. Norman: University of Oklahoma Press,
1993, p. 275r-281v.
254 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
O Códice Vaticano A
71 Na verdade, duas dessas faixas não possuem cores, mas apenas figuras. Cf. ibidem, p. 1v e 2r.
carne. Juntos, esses dois elementos remetem a outra forma de nomear Ometeotl: To-
nacatecuhtli, isto é, Senhor de Nossa Carne ou Senhor de Nosso Sustento.
A glosa que se encontra no canto superior-esquerdo identifica o local como
Omeyocan, Lugar Dois ou Da Dualidade, e o texto alfabético à esquerda de Ometeotl
explica o que significaria o termo: “Isso quer dizer o lugar onde está o criador de
tudo ou a primeira causa”.74 Em seguida, o texto alfabético passa a explicar o signifi-
cado de Ometeotl, nomeando-o de Senhor de Três Dignidades em vez de fazer alguma
referência à dualidade contida no conceito nahuatl ome, literalmente dois – o que
pode ser apenas um erro do glosador, mas que também pode ser indício de uma
interpretação cristã da cosmogonia nahua, como explicaremos mais adiante. O glo-
sador afirma também que o lugar ocupado por essa deidade estaria acima das nove
composturas celestes – o que condiz com as nove faixas apresentadas nessa página.
Algumas das atuações da deidade são mencionadas na sequência, como a geração,
por meio de sua palavra, de Cipactonal e de uma mulher, Oxomoco, os quais, por sua
vez, teriam gerado a Tocatiutle (sic).
No texto alfabético à direita de Ometeotl há algumas indicações sobre as razões
do interesse dos religiosos por essa cosmografia impalpável e sobre o suposto erro
do glosador ao traduzir Ometeotl por Senhor Três. Nesse texto, o glosador afirma que
os naturais da Nova Espanha, apesar de seu baixo nível intelectual, haviam chegado
à formulação conceitual das nove esferas celestes pela luz natural da razão: “...sendo
gente tão bárbara e de intelecto tão baixo, tinham em suas pinturas que existiam nove
causas superiores que nós chamamos céus...”.75
Essa equivalência entre os níveis celestes nahuas e as esferas celestes da cosmo-
grafia cristã – a qual, talvez, seja responsável também pela expressão pictórica dos
âmbitos nahuas como faixas – é seguida por outra equiparação: a de Ometeotl com
o deus cristão, criador de todas as coisas e que segundo o dogma da trindade é uno e
triplo, conceito que transforma a deidade nahua em um Senhor Três, apesar de seu
nome se referir claramente à dualidade.76 Mais do que um erro de tradução, trata-se,
possivelmente, de uma evidência do processo de busca dos princípios supostamen-
te universais da visão de mundo e de história cristãs na cosmografia e cosmogonia
nahuas, pois em nenhum códice ou texto alfabético mais próximo às tradições indí-
74 No original em italiano: “Homeyoca. Questo vuol tanto dire come il luogo dov’ è il Creatore
del tuto, ò la prima causa”. Códice Vaticano A, op. cit., p. 1v.
75 No original, “... essendo gente tanto barbara et d’intelletto tanto basso, tenevano per le loro
depenture, esser nuove cause superiori, che noi dicemo cieli ...” Ibidem, p. 1v.
76 Cf. Anders, Ferdinand e Jansen, Maarten. Religión, costumbres e historia de los antiguos mexicanos.
Graz/México: ADV/FCE, 1996.
Eduardo Natalino dos Santos 257
genas, como veremos adiante e no Capítulo IV, essa deidade encontra-se relacionada
ao número três.77
A apresentação dos níveis celestes prossegue na página seguinte com mais duas
camadas – onde estariam as estrelas e a Lua –, que podem ser vistas no canto superior-
esquerdo da Figura 23. Logo abaixo e mais ao centro da página encontra-se o glifo
que alude à superfície terrestre. Tal glifo é formado por um retângulo, cujo interior
é preenchido pela representação da terra cultivada e acima do qual se encontram
plantas em crescimento, como citamos na primeira parte deste capítulo.78
Ao lado das faixas de ambas as páginas, há glosas que nomeiam os níveis celestes,
resumem suas características ou denominam fenômenos, astros ou corpos celestes a
eles relacionados. Essas glosas e suas traduções podem ser observadas na Tabela 10, na
qual os níveis celestes estão ordenados e enumerados a partir de Omeyocan, conside-
rado o mais alto deles. Incorporamos a Terra abaixo dos níveis celestes nessa tabela,
por razões que apresentaremos abaixo.
77 Como também pudemos demonstrar, com mais detalhes, noutra ocasião. Cf. Santos, Eduardo
Natalino dos. Deuses do México indígena. São Paulo: Palas Athena, 2002.
barreiras. Esses nove níveis celestes se relacionariam com os nove pisos do Inframun-
do, garantindo ao cosmo uma relação de simetria e polaridade entre suas partes su-
perior e inferior.80 Procurando comprovar a presença desse modelo geral e simétrico
nas duas primeiras páginas do Códice Vaticano A, López Austin afirma que os céus
inferiores estariam distribuídos na seguinte ordem e seriam ocupados pelos seguintes
elementos: 1o – Lua e Tlalocan; 2o – estrelas; 3o – Sol; 4o – Huixtocihuatl, deidade rela-
cionada às águas salgadas que se juntavam ao Céu e rodeavam os quatro níveis celestes
inferiores ou intermediários para suportar os nove superiores.81 No entanto, se nessas
duas páginas do Códice Vaticano A não considerarmos a Terra como mais um desses ní-
veis – o qual estaria abaixo dos quatro níveis relacionados pelo autor, correspondentes
ao 2o, 3o, 4o e 5o níveis em nossa Tabela 10 –, teríamos apenas mais oito níveis acima
deles; e não nove, como propõe López Austin.82
Voltaremos a esse problema depois de analisarmos as informações sobre os ní-
veis celestes contidas nas outras fontes centrais e em algumas fontes auxiliares. Por
enquanto, basta dizer que essa aparente contradição entre um modelo cosmográfico
geral – de nove ou treze pisos celestes – e suas representações específicas pode ser
resolvida se pensarmos na possível existência de variações entre tradições de pensa-
mento distintas, que teriam existido ao longo do tempo e do espaço ou dentro de
uma mesma sociedade. Além disso, os níveis celestes também poderiam ser evocados
parcialmente nos textos pictoglíficos, à medida que fossem significativos ou impor-
tantes para a apresentação de determinada temática e, desse modo, não teriam que
aparecer sempre em sua totalidade.83
Ademais, há um outro fato que reforça esse argumento e que será detalhado
mais abaixo: o problema da quantidade de níveis celestes coloca-se, sobretudo, nas
fontes coloniais menos tradicionais, nas quais a cosmografia desempenha o papel de
tema a ser explicado e detalhado e não o de lógica organizadora ou pressuposto de
leitura que fundamenta e permite a inteligibilidade de outros temas.
Retomemos, então, a análise da primeira seção do Códice Vaticano A, passando
aos níveis do Inframundo. A segunda página dessa seção, reproduzida na Figura 23,
apresenta esses níveis abaixo do glifo da Terra e por meio de pequenas faixas colori-
das ou pequenas figuras – assim como os níveis celestes. Tais faixas ou figuras estariam
80 Cf. López Austin, Alfredo. La construcción de una visión de mundo, op. cit.
81 Cf. López Austin, Alfredo. Cuerpo humano e ideología. México: IIA – Unam, 1996. p. 64.
82 Em outra obra, López Austin afirma que os quatro níveis inferiores do Céu englobam a super-
fície da Terra e, sendo assim, o nível de Huixtocihuatl seria o quinto, como na Tabela 10, e o
primeiro dos nove níveis superiores. Cf. López Austin, Alfredo. Tamoanchan y Tlalocan, op. cit.,
p. 90.
83 Veremos que a décima sexta trezena do tonalamatl do Borbónico, Ce Cozcacuauhtli, traz uma re-
presentação de apenas quatro níveis celestes. Cf. Códice borbónico, op. cit., p. 16.
260 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
forma de representar os quatro casais que habitariam o Mictlan, os quais estão traja-
dos, adornados ou cercados por elementos pertencentes à escrita tlacuilolli.
É o caso, por exemplo, de Mictlantecuhtli – parte superior esquerda da Figura
24. Entre as oito personagens, é a única que porta em sua cabeça o glifo em forma de
diadema, que era lido como tecuhtli, isto é, senhor. Esse termo aparece no texto alfa-
bético apenas na composição do seu nome, estando ausente dos nomes de todos os
outros personagens masculinos apresentados (Tabela 11). Além disso, Mictlantecuhtli
está sentado sobre cipactli, glifo tradicionalmente empregado para se referir à Terra
– considerando-se seu interior –, que se grafava por meio da representação de uma
mandíbula com presas e aberta cerca de 180o.
No que diz respeito à caracterização do Mictlan, além dos tormentos que esta-
riam relacionados aos seus distintos níveis, é mencionado também nessas páginas um
curso de água em sua entrada ou primeiro nível (Tabela 11), o qual também é citado
em outras fontes, como veremos abaixo. Ademais, os nomes de alguns desses níveis –
Lugar Onde se Come o Coração das Pessoas e Lugar sem Chaminé, por exemplo – parecem
corroborar a ideia de que não havia retorno para as almas que iriam para o Mictlan,
como mencionamos na primeira parte deste capítulo. Alguns textos do início do pe-
ríodo Colonial parecem confirmar tal destino. Motolinía, por exemplo, afirma que se
chorava e se realizavam oferendas pelos mortos no dia em que morreu, aos vinte e aos
oitenta dias de sua morte e que isso seria feito por quatro anos “...y desde allí cesaban
totalmente para nunca más se acordar del muerto”.86
Na última página dessa primeira seção do Códice Vaticano A está a representação
de Chichihualquahuitl, a Árvore Nutriz que sustentaria as crianças mortas prematura-
mente, e de Tezcatlipoca, que porta um bastão formado por flores em uma das mãos
– só parece ter uma – e o glifo do espelho fumegante em lugar de um de seus pés.87
Para o glosador, esse terceiro lugar das almas, assim ele o nomeia, seria um arremedo
demoníaco do limbo e expressaria o erro dos naturais em acreditar que as crianças
mortas antes de desmamarem renasceriam após a destruição do mundo atual.88
86 Benavente, Toribio de. Historia de los indios de la Nueva España. Madri: Dastin, 2001, p. 85.
87 Códice Vaticano A, op.cit., p. 3v. Tal glifo, nesse caso, constitui-se de três círculos concêntricos –
um incolor, um vermelho e o outro alaranjado – e rodeados por cinco círculos menores, de
onde saem uma cobra e água. Seria uma alteração fortuita do glifo que nomeava Tezcatlipoca
em códices tradicionais, no qual se observam círculos concêntricos e línguas de fumaça que
aludiriam ao termo popoca, isto é, fumegar, o qual era parte do nome da deidade? Ou a água e
a serpente formariam aqui um outro conjunto glífico? São perguntas para as quais ainda não
temos respostas bem fundamentadas.
88 Cf. ibidem, p. 3v. Esse destino para as crianças mortas prematuramente é mencionado tam-
bém nos Primeros memoriales. Segundo esse texto, as crianças iriam para o Xochatlalpan, ou
Lugar de Abundância de Água e de Flores, no qual haveria uma árvore com úberes para que ma-
262 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
massem. Cf. Primeros memoriales by fray Bernardino de Sahagún. Norman: University of Oklaho-
ma Press, 1993, p. 84v.
89 Combate que seria mais eficiente após a determinação da existência ou não de uma evangeli-
zação pré-hispânica ou do contato dos povos locais com a Antiga Lei. Por isso que o glosador
do Vaticano A utiliza a suposta existência de infernos e demônios para onde iriam as almas dos
mortos – menos as dos mortos em combate que, segundo ele, iriam para o Céu – para estabele-
cer um vínculo histórico entre o Velho e o Novo Mundo. Em suas palavras, os habitantes locais
“...têm tido notícia da sagrada escritura, ainda que mais adiante há argumentos mais claros”.
No original, “...hanno havuto notitia della sacra scrittura, ancorche inanzi sono argumenti piu
chiari.” Códice Vaticano A, op. cit., p. 3r. A esse vínculo histórico se somaria o ontológico, estabe-
lecido na seção sobre os níveis celestes, na qual, como vimos, o glosador afirma que os povos
mesoamericanos possuíam a luz natural da razão.
90 Veremos abaixo que o Rollo Selden e o Códice Gomez de Orozco – que na verdade reproduz um
fragmento do anterior – trazem os níveis celestes representados por faixas e acima do glifo de
cipactli. No entanto, não se trata de uma apresentação da cosmografia, mas da utilização de
alguns de seus âmbitos para narrar outra temática, no caso, uma espécie de prólogo celeste
antes de uma história migratória. Cf. The Selden Roll. Berlim: Verlag Gebr. Mann, 1955 /Caso,
Alfonso. Interpretación del Códice Gomez de Orozco. México: Talleres de Impresión de Estampillas
y Valores, sdp.
Eduardo Natalino dos Santos 263
supor que a estratigrafia do mundo de acima e de abaixo não era um tema caracteris-
ticamente registrado pelas tradições de pensamento e escrita nahuas nos manuscritos
pictoglíficos. Diferentemente, a cosmografia era empregada nesses manuscritos como
um conjunto de concepções articuladas e cujo entendimento era pressuposto aos
membros das tais tradições e das elites dirigentes nahuas. Essas concepções e suas re-
presentações glíficas parciais – como os níveis do Inframundo e os conceitos de tlalli
e cipactli – seriam acionadas para organizar a composição pictoglífica ou evocar deter-
minados âmbitos e suas qualidades segundo necessidades narrativas circunstanciais,
tais como tratar da atuação de Quetzalcoatl em Tollan e de sua fuga.
Por esses motivos, podemos afirmar que a cosmografia desempenha uma função
puramente temática nessa seção do Códice Vaticano A, isto é, não se constitui como
pressuposto de leitura e não funciona como parte da estrutura organizadora sobre a
qual temas tradicionais aos códices nahuas estão registrados. Por outro lado, isso não
impede que elementos pictoglíficos e informações tradicionais tenham sido empre-
gados no que podemos chamar de apresentação cristã dos locais de destino das almas
segundo os nahuas. Vimos acima que esse foi o caso dos glifos tlalli e cipactli e da men-
ção do nascimento de Oxomoco e Cipactonal a partir de Ometeotl.
A temática central da seção seguinte do Códice Vaticano A é as idades do Mundo,
destacadamente os cataclismos que teriam marcado os finais das idades anteriores e a
história de Tollan e Cholula durante a idade atual. Nessa seção há poucas referências
explícitas à cosmografia.91
Nas três primeiras das quatro idades retratadas, as cavernas aparecem como lo-
cais que serviram de abrigo contra os cataclismos e permitiram a sobrevivência de
casais humanos, os quais continuaram a viver nas idades subsequentes. A evocação
desses âmbitos é condizente com as que encontramos em outras fontes nahuas, nas
quais aparecem, por exemplo, como úteros que deram origem a grupos humanos e
outros entes – conforme mencionamos também no início deste capítulo. No entanto,
as representações das cavernas dessa seção do Códice Vaticano A não apresentam mui-
tos elementos pictóricos ou glíficos utilizados pela escrita tlacuilolli mixteco-nahua. A
exceção é a caverna retratada na segunda idade, no interior da qual um casal humano
teria sobrevivido aos ventos fortíssimos que puseram fim a essa época. Nessa represen-
tação, que pode ser vista na parte central da Figura 25, há uma mandíbula aberta e
dentada na base da caverna, motivo derivado do glifo cipactli, que, como vimos acima,
aparece também nesse códice servindo de base para a representação de Mictlante-
cuhtli no último piso do Inframundo.
Nessa seção do Vaticano A, não obstante a escassez de menções explícitas aos
rumos e níveis do Universo por meio de glifos ou da organização espacial das páginas,
referências indiretas à cosmografia podem ser inferidas a partir de alguns elementos
da composição das cenas das quatro idades. Em todas essas cenas, os deuses patronos
das idades descendem sobre os homens e os outros seres que ocupam a parte de baixo
das páginas – peixes, macacos, aves e gigantes. Isso poderia sugerir que os cataclismos
finais das idades ter-se-iam originados nos céus. A exemplificação dessa disposição
pode ser observada na Figura 25, na qual o corpo de Quetzalcoatl, rodeado pelo glifo
do Sol, volta-se para baixo e ocupa a parte centro-superior da página.
Outra referência indireta aos rumos poderia estar nas datas que fazem parte
da composição das três primeiras idades, as quais marcam os nomes dos dias em
que cada uma havia terminado: matlactli atl (10 água), ce itzcuintli (1 cão) e chico-
nahui ollin (9 movimento). Esses dias pertencem, respectivamente, à quarta trezena
(Ce Xochitl), à décima quarta trezena (Ce Itzcuintli) e à décima sétima trezena
(Ce Atl), que se relacionam, respectivamente, aos rumos sul, norte e leste. Será
que relacionar o fim das idades a dias procedentes de rumos distintos foi um mero
acaso ou poderia expressar o princípio da rotatividade do tempo pelo espaço, o
qual, como citamos acima, era um elemento central no cronotopo nahua e me-
soamericano em geral? Teremos mais condições de responder a essa pergunta no
Capítulo IV, depois de analisar a forma como outros relatos cosmogônicos associa-
ram dias e idades cosmogônicas.
À continuação da quarta idade, como uma espécie de particularização dela, o
Códice Vaticano A apresenta a famosa história de Quetzalcoatl e Xipe Totec,92 da ruína
de Tollan e da construção de Cholula.93 Nessa parte do manuscrito, as glosas trazem
referências a sítios situados na superfície da Terra: Cholula, o monte Tzatzitepetl, a
Montanha do Apregoar e Tollan seriam alguns deles.94 Os glifos toponímicos desses
dois últimos sítios podem ser vistos na Figura 26, que reproduz duas páginas do Vati-
cano A relacionadas à ruína de Tollan. Tais glifos estão posicionados, respectivamente,
abaixo de Xipe, na página da esquerda, e acima das cordas que arrastam o gigante,
na página da direita. Além disso, cita-se também a passagem dos toltecas por baixo de
montanhas perfuradas – onde os homens teriam ficado presos e se tornado pedras95
92 Veremos que na maioria das versões sobre a queda de Tollan, Huemac é o companheiro ou
sucessor de Quetzalcoatl. Xipe Totec era uma personagem cujo traço mais característico era
estar vestido com uma pele humana. Mais detalhes sobre essa deidade em Oliveira, Ana Paula
de Paula L. de. O problema da identidade de uma divindade asteca: Xipe Totec. In: Numen.
Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p. 113-52, segundo
semestre de 2001. .
95 Seria uma referência a fósseis animais petrificados por erupções vulcânicas, os quais eram
muito familiares aos povos mesoamericanos? Veremos, no Capítulo IV, que as menções a esse
tipo de evento e aos ossos de gigantes eram muito comuns nas narrativas cosmogônicas. Tais
menções podem ser indícios de que as erupções vulcânicas e as atividades geológicas eram
Eduardo Natalino dos Santos 265
vistas pelas tradições de pensamento nahuas como parte das forças que haviam provocado
transformações no mundo, das quais os grandes ossos seriam testemunhos, já que os maiores
mamíferos da região eram o veado e o jaguar há pelo menos dez milênios.
98 Cf. ibidem, p. 12r-12v. Entre esses outros códices, como vimos acima, estão o Borgia e o Fejér-
váry-Mayer.
Eduardo Natalino dos Santos 267
estrelas, Lua, céu dos mortos, Inframundo, parte do meio-dia (rumo do sul) e jardim
de contentamento (Tamoanchan), ou algumas poucas referências mais particulares e
relacionadas a altepeme, tais como Tollan e Cholula.99
A menção de conceitos espaciais sem explicações adicionais sobre suas cargas
de significados, bem como as relações implícitas entre as trezenas do tonalamatl e
tais conceitos, caracterizam o uso da cosmografia como um pressuposto de leitura e
entendimento nessa seção do códice, do mesmo modo como vimos ocorrer na seção
anterior – a das idades do Mundo e história tolteca. Embora praticamente não façam
parte da organização espacial dos elementos pictoglíficos, os conceitos cosmográficos
estão sistematicamente presentes nessas duas seções, seja de maneira implícita, como
no caso das trezenas do tonalpohualli, ou de modo explícito, ao situar e qualificar um
determinado evento cosmogônico pela citação de um âmbito ou de um altepetl.
Em suma, as concepções cosmográficas não são os temas abordados nessas duas
seções do Vaticano A, como o são, por exemplo, em sua primeira seção; ao contrário,
parecem formar parte de um conjunto de conhecimentos prévios para a leitura e in-
terpretação dos escritos, fato que talvez indique que tais seções tenham sido copiadas
de ou inspiradas em manuscritos pictoglíficos tradicionais.
Talvez não possamos dizer o mesmo da seção do Vaticano A que trata das dezoito
vintenas do ano sazonal, parcialmente analisada no capítulo anterior e exemplificada
na Figura 12. Nela, observa-se a ausência quase completa das concepções cosmográ-
ficas, seja como parte da estrutura organizacional, como saber pressuposto ou como
tema.100 A ausência das concepções cosmográficas, sobretudo como pressupostos de
leitura ou parte da estrutura organizacional, poderia ser mais um indício da origem
colonial dos registros sincrônicos e genéricos das vintenas do ano sazonal. Essa ques-
tão foi mencionada no Capítulo II e será retomada mais abaixo, ao analisarmos o
Códice borbónico.
Diferentemente, a seção de anais do Vaticano A parece ter tido origem a partir de
manuscritos tradicionais. Nessa seção, analisada parcialmente no capítulo anterior e
exemplificada na Figura 18, há aproximadamente noventa glifos toponímicos, parte
dos quais é evocada mais de uma vez ao longo dos quase quatrocentos anos de histó-
100 Cf. ibidem, p. 42v-51r. Algumas menções genéricas a âmbitos que equivaleriam aos cristãos po-
dem ser encontradas nos textos alfabéticos dessa seção do manuscrito, tais como Céu, Terra
e Inferno. A cosmografia também está praticamente ausente na seção desse manuscrito que
estabelece a correlação entre o xiuhmolpilli e os anos cristãos e na que trata dos sacrifícios e
costumes. A única exceção parece ser a imagem da página 54v, que retrata um sacrificado
segurado pelos quatro membros por quatro sacerdotes, que se posicionam nos quatro rumos.
Cf. ibidem, p. 34v-36r e 54r-61v.
268 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
ria que estão registrados em sessenta e uma páginas.101 Juntamente com os noventa
glifos onomásticos, os glifos toponímicos102 ocupam o segundo lugar em quantidade
na composição, perdendo apenas para os glifos calendários, que somam trezentos e
oitenta e seis, incluindo os da conta dos anos, os do Fogo Novo e os das vintenas.
Sendo assim, o conhecimento prévio dos significados dos glifos toponímicos
constitui-se como um pressuposto fundamental para a leitura dos anais pictoglíficos
do Vaticano A, os quais, diferentemente do que ocorre nas seções anteriores, não con-
tam com glosas. Vimos, no Capítulo II, que o mesmo tipo de uso é dado ao calendá-
rio, que, ademais, é o elemento fundamental na estruturação e organização de toda
essa seção. Esse tipo de uso da cosmografia e do calendário aponta, segundo uma de
nossas hipóteses, em direção à participação de membros das tradições nativas de pen-
samento e escrita no processo de composição do manuscrito ou de sua seção, ou, pelo
menos, indica que sua produção tenha sido baseada ou derivada de tipos de códices
de origem pré-hispânica – como acreditamos ser o caso desses anais do Vaticano A,
claramente baseados em xiuhamatl nahuas.
Em resumo, pelas análises desenvolvidas em todo esse subitem, podemos afir-
mar que as seções do Vaticano A que tratam dos âmbitos cosmográficos, da correla-
ção entre os anos mexicas e cristãos, das festas das vintenas e dos sacrifícios e cos-
tumes não apresentam usos tradicionais da cosmografia. Isso porque os conceitos
cosmográficos são o tema a ser explicado na primeira delas e estão praticamente
ausentes das outras três – mesmo se considerarmos formas de presença implícita ou
indireta. Esse uso temático ou a ausência da cosmografia poderia ser, segundo uma
de nossas hipóteses específicas, um forte indício da origem cristã da organização
e seleção temática dessas seções – o que não impede a presença de informações
oriundas do mundo nahua.
Diferentemente, a cosmografia encontra-se presente como um saber pressu-
posto e indispensável à leitura e compreensão da composição pictoglífica nas seções
desse manuscrito que tratam das idades do Mundo e história tolteca, das trezenas do
tonalpohualli e da história mexica na forma de anais. Essas mesmas seções também
apresentaram usos tradicionais do calendário, conforme podemos observar na Tabela
8, apresentada no capítulo anterior. Tais usos seriam um forte indício da participação
de informantes ou sábios indígenas em seus processos de composição ou na confec-
ção dos manuscritos que serviram de base a tais seções.
O Códice magliabechiano
103 Entre eles Alcina Franch, José. Códices mexicanos. Madri: Editorial Mapfre, 1992.
104 Cf. Códice Magliabechi. Graz/México: ADV/FCE, 1996, p. 2v-8v. O uso de alguns dos tipos de
mantas que aparecem no Magliabechiano, como as decoradas com borboletas, é mencionado
nos Primeros memoriales by fray Bernardino de Sahagún, op. cit., p. 55v e 251v.
270 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
109 Para Gordon Brotherston, esses deuses e localidades relacionadas conformam um distrito pró-
prio na serra de Tepoztlan, desde Chichinauhtzin até o Popocatepetl. Cf. Brotherston, Gor-
Eduardo Natalino dos Santos 271
para se fazer a bebida e certas localidades. Essas plantas ou técnicas são mencionadas
em diversos relatos cosmogônicos como dádivas dos deuses. Isso ocorre, por exem-
plo, no relato sobre a descoberta e o uso do maguey no preparo do pulque pela deusa
Mayauel,110 retratada nessa seção.
Esse tipo de relação e vínculo indica-nos que mencionar o nome ou registrar
os glifos toponímicos dos altepeme significava, muitas vezes, sobrepor significados que
chamaríamos de históricos – como a localização geográfica de um determinado grupo
humano especializado na produção de um tipo de bebida – e cosmogônicos – como
a caracterização de uma ação divina que alteraria a vida dos povos de uma ampla
região. Voltaremos a tratar dessa imbricação entre sentidos cosmogônicos, cosmográ-
ficos e toponímicos na parte final deste capítulo.
A quase ausência da cosmografia nesse códice, seja como tema ou parte da es-
trutura organizacional, é significativa. Como vimos no caso do sistema calendário, o
Magliabechiano é o manuscrito pictoglífico, dos três aqui analisados, que menos conta
com a presença do sistema calendário de modo estrutural ou como pressuposto de
leitura – o que pode ser conferido na Tabela 8, apresentada no Capítulo II. Em outras
palavras, vimos que o calendário ou, melhor dizendo, parte dele é apenas mais um
de seus temas. Para essa participação temática, o calendário foi enquadrado em uma
apresentação estruturada com base no sistema de escrita alfabética, na qual os glifos
e pinturas funcionam predominantemente como ilustração a um texto alfabético que
precede as imagens pictoglíficas.
Acreditamos que essa quase ausência dos conceitos cosmográficos no Maglia-
bechiano pode ser explicada por duas razões. Primeiramente, no caso da ausência te-
mática, pelo simples fato de que o autor ou organizador de seu protótipo não tenha
perguntado a seus informantes sobre esse assunto – por não o considerar importante
ou, talvez, por nem sequer pressupor sua existência. Em segundo lugar, pela decisão
de seus autores ou organizadores de abordar e apresentar o calendário como uma
simples conta de dias ou de anos, separando a dimensão temporal da espacial e privi-
legiando a primeira. Essa forma de abordagem em nada se assemelha àquelas que são
encontradas nos manuscritos pictoglíficos tradicionais do sistema mixteco-nahua, nas
quais o calendário e a cosmografia nunca aparecem como temática.
Tudo isso serve para reforçar duas conclusões sobre esse códice, obtidas no ca-
pítulo anterior a partir da análise da presença do sistema calendário. Em primeiro
lugar, mesmo que sua produção ou a de seu protótipo, tenha se dado ainda em me-
ados do século XVI, como apontamos no Capítulo I, trata-se de um manuscrito cuja
don. Las cuatro vidas de Tepoztecatl. In: Estudios de cultura náhuatl. México: IIH – Unam, v. 25,
p. 185-205, 1995.
110 Essa relação entre Mayauel e o agave é relatada, por exemplo, na Histoire du Mechique. In:
Mitos e historias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 149-51.
272 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
O Códice borbónico
vam pelas quatro direções. Essa informação não poderia ser inferida apenas a partir
do tonalamatl do Códice borbónico, mas seu conhecimento era indispensável à leitura da
seção, pois a caracterização das fortunas dos dias da trezena Ce Cipactli, por exemplo,
dependia diretamente de características atribuídas ao rumo oriental, ao qual essa tre-
zena estava associada. Sendo assim, essa concepção cosmográfica era um pressuposto
de leitura à primeira seção do Borbónico.
Embora a relação entre as trezenas e os rumos do universo não conste explici-
tamente no tonalamatl do Borbónico, parece que a concepção de rotação anti-horária
do tempo pelas quatro direções possui um papel importante na disposição gráfica
dos glifos dos dias e daqueles que estão associados a eles diretamente. Como vimos
no Capítulo II, a disposição dos treze dias e seus acompanhantes que consta em cada
página dessa seção conforma um grande “L” invertido, no interior do qual os glifos
são lidos da esquerda para a direita e de baixo para cima. A continuidade do sentido
de leitura estabelecido pela conta dos dias em dois lados das páginas quadradas pe-
los outros dois – do canto superior direito ao esquerdo e daí para baixo, até o canto
inferior esquerdo – resultaria numa volta completa e em sentido anti-horário, a qual
aludiria à circulação das trezenas pelos quatro rumos.112
Essa suposição é fortalecida pelo fato de tal recurso ser utilizado de maneira
totalmente explícita para distribuir os anos que compõem o xiuhmolpilli na segun-
da seção desse manuscrito.113 Conforme vimos no Capítulo II, os 52 anos desse
ciclo formam dois caixilhos completos, cujas bordas externas quase coincidem
com os limites das páginas quadradas do manuscrito. O par de caixilhos formado
por esses 52 anos pode ser visto na Figura 10. Nesses caixilhos, os anos se sucedem
em sentido anti-horário, em uma referência explícita ao percurso do tempo pelas
quatro direções.114
112 No Tonalamatl Aubin também temos as séries calendárias dispostas na forma de um “L” in-
vertido, no entanto, o sentido de leitura é o inverso do Borbónico e sua continuidade pelos
quatro lados das páginas resultaria no sentido horário. Cf. El tonalamatl de la Colección Aubin.
Tlaxcala: Estado de Tlaxcala/La Letra Editores, 1981, p. [1]-20. Isso seria um indício de que
a confecção desse manuscrito não tenha se pautado, estritamente, num manuscrito tradicio-
nal, no qual tal sentido não seria comum, como demonstramos no capítulo anterior? Seria
necessária uma pesquisa mais ampla sobre as origens e características desse manuscrito para
responder a essa pergunta.
114 No entanto, os anos constantes em cada um dos quatro lados de cada uma das duas páginas
não correspondem, em sua totalidade, às regiões que cada um desses lados estaria represen-
tando – supondo que as páginas estejam orientadas, suas partes superiores corresponderiam
ao rumo oriental e, por consequência, seus lados esquerdos corresponderiam ao norte e assim
sucessivamente. Por exemplo, os sete anos iniciais do xiuhmolpilli que se encontram na parte
superior da página 21, que vão de ce acatl (1 junco) a chicome calli (7 casa) e podem ser vistos na
274 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Ademais, as páginas parecem estar orientadas, isto é, com suas partes de cima re-
lacionadas à região do nascente que, como apontamos no início deste capítulo, gozava
de certa primazia gnosiológica na cosmografia nahua e mesoamericana. Essa orienta-
ção estaria grafada da seguinte maneira. A forma quadrangular que é constituída pela
disposição da conta dos anos repete-se no recinto representado no centro da página
21, cujo interior é ocupado por Oxomoco e Cipactonal, os quais podem ser vistos na
porção esquerda da Figura 10.115 Essa forma do recinto parece ser uma referência a
tlalli (terra) ou a Tlalpan (Sobre a Terra), âmbito que teria tido, conforme veremos em
detalhe no Capítulo IV, a Oxomoco e Cipactonal como seus habitantes primordiais e
que comumente era representado por formas quadrangulares, como vimos na primeira
parte deste capítulo. Ademais, essa suposição é reforçada pela existência de um grande
manancial de água abaixo do recinto, que poderia ser relacionado com as águas imensas,
sobre as quais se encontraria justamente tlalli. A entrada do recinto, que talvez represen-
te tlalli ou Tlalpan, está disposta na parte superior da página, o que pode ser um indício
de que ele esteja orientado, isto é, com sua parte superior representando o rumo de
Tonatiuhichan (Casa do Sol). Essa suposta orientação da página é reforçada, ainda, pelo
fato de que o primeiro ano do xiuhmolpilli, 1 acatl ou junco, também se encontra repre-
sentado em sua parte superior, e esse ano, assim como todos os que contavam com acatl,
sabidamente estavam relacionados ao oriente.
No próximo capítulo, ao analisarmos os relatos cosmogônicos, procuraremos
mostrar que os elementos calendários e cosmográficos contidos nesse par de pági-
nas emolduram, organizam e qualificam episódios sobre as idades do Mundo, nos
quais Oxomoco, Cipactonal, Quetzalcoatl e Tezcatlipoca são personagens funda-
mentais. Por enquanto, interessa-nos apenas assinalar que muitos elementos cosmo-
gráficos e calendários são acionados na composição dessa seção do Borbónico: seja de
modo implícito, como elementos que decorrem diretamente de ou são pressupos-
tos necessários à presença da conta dos anos; ou de modo explícito, como a forma
quadrangular da disposição da conta dos anos e do recinto e a própria orientação
das páginas. Em todos os casos, os elementos calendários e cosmográficos são pres-
supostos de leitura ou princípios organizadores da composição e, sendo assim, po-
demos dizer que os elementos registrados graficamente constituem-se apenas como
uma parte dos que deveriam ser mobilizados no momento da leitura – como, aliás,
ocorre com qualquer sistema de escrita.
Voltemos, então, ao uso da cosmografia no tonalamatl do Borbónico. Dissemos
acima que os treze Senhores dos Dias e os treze Voadores poderiam estar relacionados
parte superior-esquerda da Figura 10, não estavam todos relacionados ao oriente, pois cada um
deles, na ordem e sequência apresentadas, estaria vinculado a um dos quatro rumos de modo
alternado, começando-se pelo oriente e seguindo-se o sentido anti-horário.
aos treze níveis celestes e os nove Senhores da Noite aos nove níveis do Inframundo.
Tais relações seriam uma outra forma de imbricar o tempo e o espaço116 no tonala-
matl, por meio da evocação dos céus e inframundos, pois os quatro rumos já eram
acionados pela relação de alternância mantida com as vinte trezenas. Essas evocações
e relações não se encontram explicitamente grafadas nas páginas de nosso códice e
suas presenças na composição também se dariam como um saber prévio à leitura, um
saber de domínio comum entre as tradições de pensamento nahuas e que não neces-
sariamente deveria estar grafado para ser evocado no momento de reabilitação dos
conteúdos pictoglíficos.117
Além dessas menções implícitas aos níveis celestes e subterrâneos por meio das
séries calendárias, na parte central de cada trezena há dezenas de elementos pictoglí-
ficos que se referem às regiões do Universo, a começar pelas deidades que figuram
como patronas das trezenas, pois muitas delas associavam-se de maneira relativamen-
te estável a alguma região específica – como Mictlantecuhtli ao Inframundo. Ademais
das deidades, muitos dos glifos agrupados na porção central de cada trezena – os
quais se relacionam com as oferendas e prognósticos – possuem conotações cosmo-
gráficas marcadas e bem conhecidas.
Os glifos com esse tipo de conotação que aparecem de modo mais recorrente
nessas vinte páginas do Códice borbónico são: A – olhos estelares (3a, 4a, 5a, 6a, 10a, 11a,
12a, 13a, 14a, 15a, 16a, 17a, 18a e 20a trezenas), cometas (5a trezena) e sóis (11a e 16a
trezenas); B – pedras verdes ou azuis e espinhos de maguey dispostos na forma de
quincunce (4a, 5a, 10a, 13a, 16a e 20a trezenas); C – glifos em negro semelhantes à cruz
de Santo André e à cruz-de-malta (5a, 6a, 7a, 12a, 13a, 14a, 16a, 17a e 18a trezenas); D –
conchas, caracóis (3a, 6a, 7a, 12a, 16a e 20a trezenas) e águas marinhas (16a trezena).118
Em todos esses casos, os elementos pictoglíficos possuem significados gerais bem
estabelecidos dentro da tradição pictoglífica mixteco-nahua.
Os olhos estelares, os cometas e o Sol, por exemplo, relacionavam-se com os
níveis celestes em que ocorreriam – e no caso específico dos olhos estelares, também
117 Além disso, parece que muitos dos Quecholli estariam relacionados com suas distintas regiões
de procedência, pois entre eles há aves originárias das terras tropicais e temperadas.
118 Além desses elementos cosmográficos, também estão presentes, de modo menos recor-
rente, a árvore rachada de Tamoanchan (15a trezena), que evocaria o sítio de morada dos
antepassados, o glifo cipactli (18a trezena) e o campo de bola (19a trezena), o qual, por sua
forma quadrangular, evocaria a superfície da Terra e seus quatro rumos. Cf. Códice borbóni-
co, op. cit., p. 3-20. Para López Austin, a árvore de Tamoanchan que aparece no Borbónico
com suas quatro faixas de cores distintas (vermelho, verde, amarelo e azul) seria uma
síntese das quatro árvores das esquinas do Mundo. Cf. López Austin, Alfredo. Los mitos del
Tlacuache. México: IIA – Unam, 1998.
276 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
evocavam a noite. Três olhos estelares podem ser vistos no centro da parte superior da
moldura em azul que envolve os patronos da trezena Ce Cozcacuauhtli (Um Abutre),
reproduzida na Figura 30. Cada um deles é formado por dois círculos concêntricos
delineados em negro e com metade de suas áreas pintadas de vermelho – o que torna
essa forma semelhante a um olho semifechado.
Algumas das cruzes mencionadas estão grafadas sobre bolsas que portariam co-
pal, como a que pode ser vista na Figura 30 um pouco acima e à esquerda da mão
direita de Xolotl, Patrono da Trezena que se situa na parte direita do interior do
quadrângulo em azul. A junção desses glifos – a bolsa de copal e a cruz em negro –
aludiriam ao ato de incensar em direção aos quatro rumos.
Os quincunce relacionam-se, como indicado anteriormente, à divisão do Mundo
em quatro regiões e um centro. Um exemplo desse tipo de composição, formada por
dois espinhos cruzados quase que perpendicularmente e cujo ponto de intersecção é
marcado por um olho estelar, pode ser observado na mesma Figura 30, acima de uma
pimenta vermelha e de um feixe de flechas e entre os dois patronos da trezena, isto é,
Xolotl, à direita, e Tlachitonatiuh.119
Aliás, o conjunto pictoglífico que constitui Tlachitonatiuh é um excelente exem-
plo não apenas de como as concepções cosmográficas deveriam ser saberes pressu-
postos aos produtores e usuários primários do Borbónico, mas também do próprio
funcionamento da escrita tlacuilolli, pois nesse conjunto estão sobrepostos glifos com
sentidos mais restritos com imagens de sentidos mais amplos.
Tal conjunto é formado, basicamente, pela representação de um corpo amorta-
lhado120 sobre o qual estão os glifos do Sol e de cipactli. O glifo do Sol parece dominar
graficamente o conjunto por sua grande dimensão e posição quase central. Suas pon-
tas ou raios excêntricos dividem o círculo amarelo em quadrantes, os quais podem ser
relacionados com os quatro rumos. Na parte inferior do conjunto, encontra-se o glifo
cipactli, sobre o qual o glifo do Sol parece estar depositado para ser tragado. A junção
desses glifos parece aludir a Tonatiuh, o Sol, no momento em que iniciaria seu per-
curso pelo interior de Tlaltecuhtli, o Monstro da Terra, tornando-se ele próprio, o Sol,
um morto ao passar pelo Mictlan, âmbito evocado pelos ossos cruzados e caveiras que
se encontram na parte posterior do corpo amortalhado. Nesse momento, no limiar
entre o âmbito celeste e o Inframundo, o Sol era chamado de Tlachitonatiuh, que
podemos traduzir por Sol Crepuscular. Além disso, veremos no Capítulo IV que nessa
119 Tal forma também se assemelha à representação da divisão do espaço em quadrantes por uma
espécie de “X”. Outro quincunce pode ser visto imediatamente acima da cabeça de Xolotl nes-
sa mesma trezena. Esse quincunce é formado por um círculo azul e por outros quatro círculos
menores que se distribuem ao seu redor de modo regular e contíguo.
120 Ou vulto mortuário. Em castelhano, bulto mortuorio. As cordas que prendem a mortalha podem
ser vistas na parte da frente do corpo.
Eduardo Natalino dos Santos 277
trezena encontra-se o dia nahui quiahuitl (4 chuva), no qual a idade anterior teria se
encerrado por grandes inundações, e, sendo assim, o conjunto pictoglífico analisado
poderia também referir-se a esse episódio, pois apresenta o Sol como um corpo amor-
talhado, tragado pela Terra e cercado por água pelas quatro direções.121
Nessa mesma trezena há dois conjuntos pictoglíficos relacionados à cosmografia
que merecem destaque.
Um deles é o grande quadrângulo azul que emoldura os patronos da trezena e
demais elementos associados (Figura 30). Esse quadrângulo alude a teoatl, as águas
imensas ou oceânicas que circundariam a superfície quadrangular da Terra. O cará-
ter oceânico dessas águas é reforçado pela presença, em seu interior, de pequenas
figuras espiraladas em negro, as quais representam caracóis marinhos ou as linhas
interiores de suas voltas depois de secionados, tais como o que aparece no peitoral
de Xolotl nessa mesma trezena.
O outro se encontra no próprio quadrângulo das águas imensas, o qual, na verda-
de, possui uma pequena interrupção em sua parte centro-superior. Nessa interrupção
há uma imagem formada por quatro camadas, sendo que na superior, visivelmente
mais larga, podemos observar um fundo verde escuro sobre o qual há círculos deline-
ados em negro cujos interiores são brancos – além dos citados olhos estelares. Abaixo
da camada superior, encontram-se, respectivamente, uma camada cor-de-laranja, uma
vermelha e, por último, uma camada sem cor de fundo e na qual estão dispostos,
lado a lado, três conjuntos figurativos. Os dois conjuntos laterais são formados por
elementos semelhantes aos que se encontram no glifo cipactli e no do Sol, os quais
são parte do conjunto que denominamos de Tlachitonatiuh, analisado acima. Esses
elementos assemelham-se a pequenos bastões vermelhos cujas pontas são compostas
por uma espécie de semicírculo de linhas duplas e sem coloração e que se encontram
frequentemente associados ao Sol. Desconheço os elementos que constituem o con-
junto glífico central, à exceção do olho estelar em seu centro.
É muito provável que essas quatro camadas se relacionem com quatro dos níveis
celestes, os quais se conjugam com outros glifos nesse contexto escritural precisa-
mente delimitado – o das trezenas do tonalpohualli – para dar origem a conjuntos
pictoglíficos com sentidos muito específicos e que poderiam ser lidos e interpretados
pelos sacerdotes especializados no tonalamatl.122 Além disso, esse caso nos mostra que
121 Nessa breve descrição e análise, deixamos de fora uma série de outros elementos do con-
junto pictoglífico, alguns por não se relacionarem diretamente aos conceitos cosmográficos
e outros por desconhecermos seus nomes ou prováveis sentidos. A aparição desse conjunto
glífico no Borbónico e em outros códices é analisada por Alcina Franch, José. Tlaloc y los tlalo-
ques en los códices del México central. In: Estudios de Cultura Náhuatl. México: IIH – Unam,
v. 25, p. 29-43, 1995.
122 Segundo o Vaticano A, como podemos observar na Tabela 10, há níveis celestes que poderiam ser
identificados com os retratados nessa página do Borbónico, pois possuem a cor amarela, vermelha
278 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
123 Cf. Códice borbónico, op. cit., p. 23-[40]. Vale lembrar que estamos considerando como uma
única seção as páginas que tratam das dezoito vintenas e as que contêm o ciclo final do xiuh-
molpilli, as quais aparecem como duas seções em muitos catálogos e estudos, como vimos nos
Capítulos I e II.
desses anos indica ou faz alusão ao sentido horário, o que vai de encontro às apresen-
tações anteriores das séries calendárias nesse mesmo códice.126
Além dessas alusões implícitas, há uma série de menções explícitas à cosmogra-
fia nessa seção final do Borbónico. Os principais elementos pictoglíficos relacionados à
cosmografia e registrados nessa seção são os topônimos do cerro de Tlaloc (p. 24, 25,
32 e 35) e do monte Huizachtecatl (p. 34), a cruz de Santo André (p. 34), o campo
do jogo de bola e sua oposição entre as cores negra e vermelha (p. 27), os sacerdotes
associados aos quatro rumos por sua disposição ou pela cor dos seus trajes (p. 27, 31 e
34) e o Fogo Novo como centro das quatro direções (p. 34). Assim como no caso do
tonalamatl, todos esses elementos encontram-se, nessa seção, em um contexto textual
muito bem definido – o da celebração, provavelmente, mexica das vintenas entre os
anos 1 coelho e 2 junco – e em composição com outros glifos, formando assim conjun-
tos cujos sentidos deveriam ser precisa e facilmente reabilitados pelos membros das
tradições de escrita mixteco-nahua.
Não trataremos dos possíveis significados gerais de todos os elementos cosmo-
gráficos mencionados nessa parte do Borbónico, pois o objetivo central da pesquisa não
é fazer a exegese completa dessa seção do manuscrito. No entanto, é útil aos nossos
propósitos analisar em detalhe a cena do Fogo Novo – quase que de modo exemplar
– para entendermos como os glifos e conceitos cosmográficos proporcionam, por um
lado, informações específicas e, por outro, contribuem na organização e disposição
dos demais elementos grafados.
Mostramos, no capítulo anterior, que os dois conjuntos pictoglíficos dispostos na
parte centro-superior da página que retrata o Fogo Novo, reproduzida na Figura 15,
aludiam, da esquerda para a direita, ao ano de realização da cerimônia, isto é, ome acatl
(2 junco), e à deidade e vintena celebrada, isto é, Huitzilopochtli e Panquetzaliztli.127
Ao lado direito desses dois conjuntos pictoglíficos, encontra-se um terceiro conjunto,
o qual se constitui de três partes: um glifo em forma de montanha verde – chamado
de tepetl ou montanha –, um mamalhuaztli sobre a tal montanha – instrumento utilizado
para acender o Fogo Novo conforme vimos no capítulo anterior – e, ao lado direito
dos dois primeiros, uma árvore de raízes expostas – identificada como um huizachin.128
126 Talvez essa disposição se explique pelo fato de a conta dos anos ocupar a porção superior das
páginas que retratam a celebração das vintenas, fazendo com que a marcação dos anos poste-
riores se inicie na porção superior da página 37 – com o ano yei tecpatl ou 3 punhal de pedernal
– e siga assim até a última página do códice, seguindo depois para baixo, paralelamente ao
limite lateral-direito da última página, e retornando pela parte inferior dessas quatro páginas
finais, até a página 37, onde está o início da conta desses anos vindouros (Figura 17).
128 Árvore com espinhos e pontas agudas do grupo da mimosa. O termo nahuatl mencionado re-
sultou na forma castelhanizada huichachi.
280 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
129 Como mencionamos no Capítulo I, há uma polêmica sobre a localização geográfica desse tem-
plo. No entanto, é muito provável que seja o Tlillan que se situaria na região de Xochimilco,
nos arredores de México-Tenochtitlan.
130 Numa outra imagem dessa mesma seção do Borbónico, na página 31, temos oito sacerdotes
dispostos em torno de uma mulher que estaria sendo preparada para ser assassinada cerimo-
nialmente e que tem sido identificada como a personificação de Xilonen-Chicomecoatl. Esses
sacerdotes formam dois quadrângulos em torno da vítima. Quatro deles possuem o corpo
tingido de negro, trajam apenas toucados e maxtlatl (tipo de tapa-rabo) e seguram a mulher
pelos braços e pernas, a qual se encontra deitada sobre uma esteira gotejada de hule (látex
derretido) e estendida por cima de espigas de milho. Os outros quatro sacerdotes, ricamente
ataviados e com máscaras de Tlaloc, dispõem-se de modo a formar um quadrângulo mais ex-
terior ao formado pelos quatro primeiros. Apesar das semelhanças entre esses quatro outros
sacerdotes, é possível distingui-los pelas cores de seus trajes e toucados: azul, branco-negro,
amarelo e vermelho. Essas cores são frequentemente associadas aos quatro rumos, embora não
nessa disposição. Isso porque, se considerarmos que a composição está orientada, temos o azul
no rumo oriental, o branco e o negro no setentrional, o amarelo no ocidental e o vermelho no
meridional. Como citamos na primeira parte deste capítulo, as associações mais estáveis eram
entre o oriente e o vermelho, o norte e o branco ou amarelo, o ocidente e o negro, e entre o
sul e o verde-azulado ou amarelo.
Eduardo Natalino dos Santos 281
quatro cruzes negras nas faixas brancas que pendem dos toucados dos sacerdotes e,
ainda, por mais quatro cruzes brancas que circundam seus olhos.131
No entanto, apesar do uso das concepções cosmográficas para organizar a com-
posição pictoglífica e para evocar determinadas concepções espaciais, talvez não pos-
samos afirmar conclusivamente que essa seção do Códice borbónico tenha sido composta
em tempos pré-hispânicos ou que corresponda, estritamente, a uma seção ou livro
pictoglífico tradicional. Isso porque há uma série de elementos nessa seção que in-
dicaria a existência de influências das novas demandas coloniais ou o emprego de
alternativas e soluções pictoglíficas relativamente novas se comparadas às utilizadas
nos manuscritos pré-hispânicos – como mencionamos nos Capítulos I e II.
Por exemplo, os carregadores dos anos tochtli (coelho) e calli (casa) aparecem
na parte superior das páginas 37 e 38 (Figura 17) com suas frentes direcionadas em
sentido oposto ao da leitura. Suas posições são idênticas às dos carregadores que se
encontram na parte inferior dessas mesmas páginas, onde suas frentes concordam
com o sentido de leitura que, nesse caso, é de direita para esquerda. Essa forma de
grafar os glifos dos anos destoa das tradicionais, segundo as quais era muito comum
utilizar as frentes dos signos das séries calendárias para indicar ou reforçar o sentido
de leitura que deveria ser seguido.132
No capítulo anterior vimos que esse tipo de uso ocorre em diversas seções do Có-
dice Borgia, tais como a do tonalpohualli, a dos vinte Patronos das Trezenas e a dos nove
Senhores da Noite.133 A explicitação do sentido de leitura por meio do direcionamen-
to da frente dos glifos calendários também está presente no Códice Fejérváry-Mayer. Em
sua primeira página, reproduzida na Figura 20, podemos observar que os vinte signos
do tonalli sobre a faixa que circunda a página formando portais trapezoidais e semicir-
culares estão dispostos com a frente de seus rostos – nos casos dos signos zoo ou antro-
pomorfos – direcionados em conformidade com o sentido de leitura anti-horário.
131 Citamos acima que o termo cruz não é adequado para designar o conceito mesoamericano
das quatro regiões e um centro. Isso porque as formas gráficas tradicionalmente relacionadas
a esses âmbitos cosmográficos não se compunham por duas hastes entrecortadas perpendicu-
larmente em seus centros, mas por quadrantes em torno de um centro, demarcados, muitas
vezes, por faixas que não atravessavam o centro, como vimos ser o caso da primeira página
do Fejérváry-Mayer (Figura 20). Tal distinção é importante para enfatizar que o tempo, para os
mesoamericanos, não passaria de uma região a outra cruzando o centro, mas circularia pelas
quatro regiões em sentido anti-horário ao redor do centro.
132 A análise das duas páginas finais e perdidas do Borbónico poderia auxiliar o desenvolvimento
dessa questão. Na última delas teríamos, supostamente, os glifos anuais dispostos em uma co-
luna, a qual ligaria a fileira superior à inferior (Figura 17). O direcionamento da parte frontal
dos glifos nessas distintas situações poderia fornecer indícios mais seguros sobre a utilização ou
não dessa forma de se indicar o sentido de leitura nessa seção do códice.
O mesmo tipo de uso dos glifos calendários aparece também no Códice Mendoza,
manuscrito produzido no início do período colonial por solicitação do vice-rei de
mesmo nome e que trata, centralmente, da história mexica, das províncias tributárias
da Tríplice Aliança e dos chamados costumes.134
Na página de abertura desse manuscrito,135 que se encontra reproduzida na Fi-
gura 31, a conta dos anos está grafada em meio de pequenos quadrados delineados
em negro e coloridos de azul e cuja concatenação forma uma moldura retangular
aberta em sua parte superior. No interior dessa moldura encontra-se um outro retân-
gulo, dividido em quatro partes e formado por faixas também azuis. Seus quadrantes
são ocupados por uma série de personagens, glifos onomásticos e outros elementos.
Abaixo desse retângulo, há dois conjuntos pictoglíficos compostos, cada um, por dois
personagens armados, um topônimo e um templo em chamas.
Esse retângulo e seus quadrantes representam os canais e ilhas do lago Texcoco,
cujo centro é ocupado pela cidade de México-Tenochtitlan, evocada por meio de
seu glifo toponímico, composto por uma pedra e um cacto do tipo nopal. A região
evocada, assim como a superfície terrestre, divide-se em quatro rumos e um centro e
as personagens e elementos presentes estão relacionados à fundação e aos primeiros
anos da história de México-Tenochtitlan.
Trata-se de uma página muito complexa e cuja organização é pautada, simulta-
neamente, pela concepção cosmográfica dos quatro rumos e um centro e pela conta
dos anos, ou xiuhmolpilli. Seria muito interessante explorar como essas concepções
se articulam em tal organização. No entanto, iremos nos limitar a explorar o uso do
direcionamento da frente dos glifos calendários para indicar o sentido de leitura, ten-
tando lançar alguma luz sobre o problema de como esse recurso é ou não empregado
nas páginas finais do códice Borbónico.
Se buscarmos a ordem e sequência dos anos do xiuhmolpilli na moldura quadran-
gular em azul da página de abertura do Códice Mendoza, perceberemos que os anos
percorrem os quatro lados da página em sentido anti-horário – tal qual o movimento
do tempo pelas próprias regiões cosmográficas –, iniciando-se pelo ano ome acatl (2
junco), localizado no canto superior-esquerdo da página. Para não deixar margem a
dúvidas em relação à direção que a leitura da série deve seguir, os rostos dos dois úl-
timos carregadores de anos tochtli (coelho), que podem ser vistos na fileira superior da
página, estão dispostos em sentido contrário aos rostos dos outros onze glifos tochtli
134 Seiscentos e doze glifos toponímicos são relacionados nesse manuscrito, o que nos dá uma
ideia do grau de especialização exigido dos tlacuiloque das tradições de escrita nahua. Cf. Boo-
ne, Elizabeth Hill. Stories in red and black, op. cit.
135 Cf. The essential Codex Mendoza. Berkeley/Los Ángeles/Londres: University of California Press,
1997, p. 2r.
Eduardo Natalino dos Santos 283
que aparecem antes, mas em conformidade com o sentido que a leitura deve seguir a
partir do canto superior-direito da moldura, isto é, da direita à esquerda.136
A ocorrência em todos esses códices indica que esse recurso era amplamente
compartilhado entre os produtores e usuários da escrita tlacuilolli mixteco-nahua,
sendo empregado inclusive no próprio Códice Borbónico, em sua seção intermediária,
como vimos no capítulo anterior. Sua não utilização na disposição dos anos da seção
final do Borbónico poderia ser um indício que tal composição não tenha seguido, es-
tritamente, os padrões anteriores. Esse fato, por sua vez, pode estar relacionado à
origem colonial dessa seção.137
Outro aspecto geral na composição dessa seção que destoa de padrões observá-
veis em manuscritos tradicionais, como nos do Grupo Borgia, é a contradição entre
a orientação da face ou parte frontal das pinturas e glifos e o sentido de leitura geral
de suas páginas.138 Isso porque nas partes em que a leitura se dá da esquerda para
a direita, a grande maioria das personagens principais, isto é, cujas dimensões são
relativamente maiores, está com a frente em sentido contrário, ou seja, direcionada
para o lado esquerdo, o que se choca com a consonância que costuma existir entre o
sentido de leitura e o direcionamento das personagens nos códice tradicionais.139
Além disso, o sentido geral de leitura do Códice borbónico faz que desdobremos
suas páginas sanfonadas da direita para a esquerda, procedimento semelhante ao
adotado no manuseio dos livros encadernados à maneira ocidental e contrário ao
que se verifica em grande parte dos códices pré-hispânicos ou tradicionais, como no
Borgia, no Vindobonense, no Fejérváry-Mayer, no Zouche-Nuttall e em um dos lados do
Cospi – pois, nesse último manuscrito, assim como no Borbónico, também é necessá-
rio desdobrar as folhas da direita para a esquerda para se ler o lado que contém o
tonalpohualli.140 No entanto, talvez não seja adequado utilizar o sentido geral de des-
dobramento das folhas como indício de influência ocidental, pois poderíamos estar
simplesmente contrapondo subestilos diferentes, tais como o mexica, o cholulteca e
o mixteco, os quais poderiam apresentar variações nesse aspecto. Além disso, como
citamos em nota anterior, era comum que os manuscritos fossem estendidos no solo e
136 A mesma inversão ocorre com a frente do glifo calli (casa) nessa fileira superior.
137 Devemos considerar também que uma variação ou alteração estilística não indica, necessa-
riamente, que se trata de uma influência colonial, pois as tradições de pensamento e escrita
nahuas não eram instituições estáticas em tempos pré-hispânicos.
140 Cf. Códice Borgia. Madri/Graz/México: SEQC/ADV/FCE, 1993 /Códice vindobonensis. Graz/
México/Madri: ADV/FCE/SEQC, 1992 /Códice Fejérváry-Mayer, op. cit. /Códice Zouche-Nuttall.
Graz/México/Madri: ADV/FCE/SEQC, 1992 /Códice Cospi. Graz/México: ADV/FCE, 1994.
284 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
que seus usuários percorressem seu entorno e, sendo assim, talvez o sentido de desdo-
bramento das folhas do manuscrito não fosse tão significativo para sua leitura.
Outro indício evocado para atribuir uma origem colonial a essa seção do Códice
borbónico é o fato de, aparentemente, não existir nenhum outro manuscrito tradicio-
nal ou pré-hispânico que trate das celebrações das dezoito vintenas, tema que, em
contrapartida, é característico dos códices e textos alfabéticos coloniais – tais como o
Vaticano A, o Magliabechiano e os trabalhos dirigidos por Sahagún e Durán, menciona-
dos no capítulo anterior.141 Nesses textos e códices, as vintenas são registradas de ma-
neira genérica e sincrônica, a qual respondia à necessidade do trabalho missionário
de conhecer as celebrações locais para impedir sua infiltração nos ritos cristãos. Esse
não é o caso da terceira seção do Borbónico. Como explicamos no capítulo anterior, as
celebrações das vintenas retratadas nesse manuscrito referem-se a um ano específico,
situado em meio da conta dos anos, o que dá à seção uma apresentação semelhante
ao formato de anais. Em outras palavras, poderíamos pensar essa seção do Borbóni-
co como uma espécie de anais temporalmente muito reduzidos, o que possibilitaria
focar e esmiuçar os eventos e celebrações de apenas um ou dois anos. Essa datação
precisa e baseada no xiuhmolpilli parece-nos ser bastante típica das tradições de pen-
samento e escrita nahuas.
Em contrapartida, como mostramos no Capítulo II, o tonalamatl do Borbónico
traria algumas séries calendárias – como a dos treze Voadores e a dos treze Senho-
res dos Dias – totalmente dispensáveis aos tonalpouhque das tradições nahuas, pois se
combinam de maneira fixa com os treze dias. Essa explicitação de combinações ca-
lendárias demasiadamente óbvias daria à seção um caráter mais didático, caráter esse
que poderia ser mais um indício da influência cristã na produção do manuscrito.142
No entanto, vimos também que esse argumento não é suficiente para atribuir uma
141 Não obstante, vimos no capítulo anterior que uma seção de dezoito páginas do Borgia talvez
utilize as dezoito vintenas como padrão organizacional para narrar a criação do Mundo. Cf.
Brotherston, Gordon. The year in the Mexican codices. Mimeografado, 2002. Ademais, vimos no
Capítulo I que frei Toribio de Benavente cita a existência de um tipo de códice que trataria
das festas de todo o ano e que poderia ser similar à seção do Borbónico que estamos analisando.
Apesar disso, alguns autores acreditam que o registro das vintenas, tal qual aparece no Vaticano
A e no Magliabechiano, teria sido inspirado nos Livros de Horas cristãos, que contêm calendários
mensais ilustrados: “It is my contention that not only did the European calendar described
in Books of Hours serve as the model upon which early colonial writers structured the data
of Aztec ceremonies they received, but that Books of Hours illustration also served as models
for many Early Colonial depictions of the Aztec ‘monthly’ calendar”. Brown, Bett Ann. Early
colonial representations of the monthly calendar. In: Cordy-Collins, Alana (compiladora). Pre-
columbian art history. Palo Alto: Peek Publications, 1982, p. 175.
142 Além disso, o espaço aparentemente reservado às glosas nos pequenos quadrados do tonalpo-
hualli do Borbónico também é mencionado como indício de sua origem colonial. Cf. Couch, N.
Eduardo Natalino dos Santos 285
datação ao manuscrito, pois sua utilização nos calmecac para instruir aos jovens pipiltin
poderia explicar essa característica didática de seu tonalpohualli.143
Considerando todos os argumentos e contra-argumentos apresentados acima, é
difícil lançar uma conclusão definitiva sobre a época de confecção do Códice borbónico
ou sobre seu caráter como um todo, isto é, se tradicional nahua, se influenciado por
alguma demanda típica do mundo colonial ou se conjuga ambos os caracteres em
suas seções.
De qualquer modo, acreditamos que nossas análises sobre as formas de presença
do sistema calendário e da cosmografia – nas quais nos servimos de comparação com
manuscritos seguramente tradicionais, como o Borgia – permitem-nos afirmar, com
certa segurança, que estamos diante de um códice tradicional mixteco-nahua, confec-
cionado um pouco antes ou depois de 1521, sobretudo no caso de suas duas primei-
ras seções. No entanto, não podemos afirmar o mesmo com a mesma segurança em
relação à sua última seção, principalmente pela forma nela empregada de dispor os
glifos anuais e pela relação contraditória entre o sentido de leitura e a disposição das
personagens, as quais não encontram paralelos em códices pré-hispânicos. Em con-
trapartida, o uso estrutural da conta dos anos e da cosmografia na organização dessa
seção e a enorme gama de informações específicas carreadas pelos glifos calendários
e cosmográficos mostram que estamos diante de uma seção composta diretamente
por membros das tradições de pensamento nahua, talvez influenciados por alguma
demanda ou curiosidade missionária cristã.144
C. Christopher. Images of the common man in the Codex Borbonicus. In: Estudios de cultura
náhuatl. México: IIH – Unam, v. 17, p. 89-100, 1984.
143 Ademais, se a combinação entre os treze números, os treze Senhores dos Dias e os treze Voado-
res é fixa, o mesmo não podemos dizer da combinação desses com os nove Senhores da Noite
ou com os vinte tonalli. Sendo assim, talvez retratar todas essas séries calendárias não fosse tão
dispensável assim aos tonalpouhque nahuas, sobretudo aos iniciantes.
144 A polêmica sobre a origem do Borbónico não se restringe à sua datação, mas abrange também o
local de sua confecção, conforme apontamos no Capítulo I. Não iremos adentrar nesse aspecto
da polêmica, para a qual nossas análises não contribuiriam muito. Mais detalhes podem ser ob-
tidos em Nicholson, H. B. The provenience of the Codex Borbonicus. In: Josserand, Kathryn e
Dakin, Karen (edit.). Smoke and mist, op. cit., p. 77-97.
286 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
primeiras idades, bem como à destruição da quarta idade por água.145 A partir dos
episódios finais dessa idade, a narrativa ganha mais detalhes e as concepções cosmo-
gráficas se fazem presentes de maneira mais recorrente.146
É o que ocorre, por exemplo, na narrativa sobre a destruição da quarta idade
por um dilúvio, na qual os conceitos de Céu, Terra e águas imensas são evocados. O
texto afirma que o cataclismo foi provocado pelo afundamento do Céu que, então,
se juntou à superfície da Terra: “Hacia acá se hundió el cielo y en solo un día se
destruyeron”.147 Conhecer de antemão a carga de sentidos específicos a que tais con-
ceitos aludem seria indispensável para o entendimento pleno desse episódio, pois
essa junção entre o Céu e a superfície da Terra fundamenta-se na existência da água
nos dois âmbitos e também na ligação entre eles, feita pelas águas imensas que cir-
cundariam a Terra e se elevariam até o Céu no horizonte. Tal existência e ligação
permitiram que, por algum motivo não citado, esses âmbitos se tornassem indistintos.
Veremos que segundo outros relatos, quatro ou cinco árvores gigantescas teriam sido
dispostas para reerguer e sustentar o Céu depois desse cataclismo, impedindo que as
águas existentes nos dois âmbitos voltassem a ocupá-los integralmente.148
O entendimento de vários outros episódios à continuação também depende
desses conhecimentos prévios da cosmografia. Em um deles, afirma-se que “Miraron
hacia acá los dioses Citlallinicue y Citlallatónac...”149 e, como são os homens que estão
narrando, é possível deduzir que hacia acá signifique para a superfície da Terra. Mas
de onde os deuses olhariam? Nesse caso, do Céu. Isso é deduzido não pelo fato das
personagens serem deuses, pois vimos que esses entes habitavam todos os âmbitos do
Universo para as tradições de pensamento mesoamericanas, mas por se relacionarem
145 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia – Unam,
1945, p. 119.
147 Ibidem, p. 120. O afundamento dos céus também é mencionado nos Anales de Cuauhtitlan, mas
no fim da segunda idade, e sua consequência teria sido a imobilidade do Sol no zênite. Cf.
Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 5.
148 A relação entre as águas imensas e o Céu e a necessidade de pontos de sustentação para impedir
a junção desses dois âmbitos, que faria a superfície da Terra desaparecer, constam no Códice
vindobonense. Nesse manuscrito há um conjunto pictoglífico que retrata o senhor Nove Vento,
ou Quetzalcoatl, carregando ou suportando o Céu, o qual é formado por olhos estelares, por
duas faixas – que talvez se relacionem com dois de seus níveis – e por água, no interior da qual
podemos ver conchas e caracóis marinhos que aludem às águas oceânicas ou teoatl. Cf. Códice
vindobonensis, op. cit., p. 47.
149 Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 120.
Eduardo Natalino dos Santos 287
com um dos níveis celestes, como vimos acima ao analisar o Códice Vaticano (Ta-
bela 10).150
Após esse episódio, os deuses teriam se reunido em conselho e decidido criar
novos habitantes para a Terra. Porém, para isso, precisavam dos ossos dos mortos que
estavam no Mictlan, para onde enviaram Quetzalcoatl a resgatá-los. Desenrolam-se
então episódios que também são razoavelmente compreensíveis apenas se algumas ca-
racterísticas desse âmbito forem conhecidas de antemão. Tal é o caso do episódio em
que Mictlantecuhtli pede a Quetzalcoatl para que toque, isto é, para que assopre seu
caracol em troca dos ossos da humanidade anterior. Esse pedido explica-se pelo fato
de Quetzalcoatl ser uma deidade relacionada ao vento e ao nível celeste de onde ele
procede e por Mictlantecuhtli habitar um âmbito cosmográfico onde não havia vento
– o Lugar sem Chaminé segundo o Vaticano A (Tabela 11) – e no qual os habitantes, os
mortos, já não possuíam o alento para assoprar, fazendo com que o Inframundo fosse
um lugar desprovido de música.
Essa passagem do texto também nos mostra a possibilidade de trânsito das dei-
dades pelos âmbitos cosmográficos em função do episódio narrado: Quetzalcoatl po-
deria estar em Mictlan assim como Mictlantecuhtli em um dos níveis celestes, como
veremos no caso da Histoire du Mechique. Sendo assim, os limites entre os âmbitos
cosmográficos não se constituem como fronteiras intransponíveis segundo as concep-
ções das tradições de pensamento nahuas. Ao contrário, são separações graduais e
permeáveis aos deuses e também, como veremos mais abaixo, aos homens.
O relato prossegue com referências espaciais muito precisas e que evocam ou
acionam conhecimentos prévios sobre a cosmografia. Alguns dos âmbitos e elemen-
tos cosmográficos mais citados são: Tamoanchan, Tonacatepetl, Teotihuacan, tlaloque
azul, branco, amarelo e vermelho, milhos branco, amarelo, negro e vermelho, nove
céus, margem do Céu, Tollan e Tlapallan.151 A proeminência e importância cosmo-
gráfica do número quatro é constantemente evocada na citação recorrente de quatro
dias de jejum, no nome de Napatecuhtli, ou Quatro Vezes Senhor, e de Nahuitecpatl, ou
Quatro Punhal, e no forno divino que teria ardido em Teotihuacan por quatro anos.
Ademais, os nomes de todas as idades compõem-se a partir do número quatro: Nahui
Ocelotl (Quatro Jaguar), Nahui Ehecatl (Quatro Vento), Nahui Quiahuitl (Quatro Chu-
va), Nahui Atl (Quatro Água) e Nahui Ollin (Quatro Movimento).
Essa proeminência cosmográfica do número quatro e sua relação com os ru-
mos do mundo nos relatos sobre a criação também podem ser notadas em textos da
região maia, como o Popol vuh, de origem quiché. Nesse texto, ao narrar-se a criação
do homem atual, cita-se que quatro foram os animais que descobriram e trouxeram
150 Além disso, seus nomes relacionam-se com citlalin, que significa estrela em nahuatl.
151 Os diferentes tipos de milho e os tlaloque de cores distintas seriam uma forma de fazer alusão
aos quatro rumos.
288 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
o milho que comporia a carne dos homens: o gato montês, o coiote, o periquito e
o corvo. Quatro também teriam sido os primeiros homens criados – Balam Quitzé,
Balam Acab, Mahucutah e Iqui Balam –, os quais, por possuírem inteligência e visão
semelhantes às dos deuses, podiam ver e entender tudo “...y examinaron los cuatro
rincones y los cuatro puntos de la bóveda del cielo y de la faz de la tierra”.152
Além disso, a alusão às quatro cores como representativas dos rumos do Universo
também se encontra no Popol vuh. Menciona-se, nesse texto, que os deuses resolvem
castigar Hun-Hunahpú e Vucub-Hunahpú – pai e tio de Hunahpú e Ixbalanqué – por
produzirem muito ruído e apenas se preocuparem com o jogo de bola. Para executar
tal castigo, as corujas mensageiras do Inframundo, por ordem dos deuses, convidam
Hun-Hunahpú e Vucub-Hunahpú para um jogo no âmbito subterrâneo. Para chegar
até lá, os dois atravessaram um rio de sangue e outro de água e passaram por uma
encruzilhada que possuía um caminho vermelho, um negro, um branco e outro ama-
relo. Tomaram o caminho negro que os conduziu ao Xibalbá, onde foram enganados
por bonecos de madeira e vencidos.153
As cores dos caminhos dessa encruzilhada são exatamente as mesmas menciona-
das no episódio da Leyenda de los soles citado acima. Como dissemos de início, embora
não haja uma relação estritamente estável entre essas quatro cores e os quatro rumos,
sem dúvida se trata de uma forma de evocar essas direções e de qualificá-las. A repre-
sentação de uma encruzilhada com caminhos de cores distintas e que se abrem em
direção às esquinas do Mundo é relativamente comum nos códices pictoglíficos. Um
exemplo desse tipo de representação pode ser visto no quadrante inferior-direito da
Figura 21, que reproduz uma página do Códice Borgia.154
Voltemos ao relato da Leyenda de los soles. Ao tratar do tema da origem de Mixco-
atl e dos quatrocentos mixcoas, de quem os nahuas seriam descendentes, os âmbitos
cosmográficos continuam presentes e incluem, cada vez mais, sítios de habitação pre-
152 Popol vuh. México: FCE, 1996, p. 106. Veremos, mais abaixo, que essa divisão do Mundo em
quatro partes consta em uma das primeiras passagens desse texto. Tal divisão teria sido prece-
dida pela medição das regiões dos céus e da Terra por meio de uma corda.
153 Cf. ibidem, p. 49-54. O mesmo caminho, rios e encruzilhada serão atravessados pelos filhos de
Hun-Hunahpú com a princesa do inframundo, Ixquic. Esses filhos são os famosos Hunahpú e
Ixbalanqué, que voltam a esse âmbito para vingar a morte do pai e do tio.
154 Cf. Códice Borgia, op. cit., p. 72. Além disso, a encruzilhada de quatro cores aparece na página 42
desse manuscrito. A presença dessas encruzilhadas é bem mais abundante no Códice Fejérváry-
Mayer, onde aparece, por vezes, com pegadas humanas em negro. As pegadas eram emprega-
das no sistema mixteco-nahua como glifo que aludia a caminho ou peregrinação e, talvez, sua
presença nas encruzilhadas, que evocavam os quatro rumos de modo geral, lhes conferisse um
caráter mais particular, o de encruzilhada de caminhos propriamente dita. Cf. Códice Fejérváry-
Mayer, op. cit., p. 2, 3, 30, 37 e 43.
Eduardo Natalino dos Santos 289
155 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 122.
nahuatl Mictlan, o texto afirma que seus ossos foram queimados, moídos e lançados
ali mesmo, num rio para que os peixes os devorassem.158 Veremos que outras fontes
nahuas também citam um rio que deveria ser atravessado para se adentrar o Mictlan,
o que confirma a estreita relação existente entre esse macroâmbito e os corpos d’água
para as tradições de pensamento mesoamericanas.159
Depois de tratar da origem dos mixcoas, o texto da Leyenda de los soles apresen-
ta o estranho episódio da queda de dois veados gigantescos do Céu, cada qual com
duas cabeças. Dois outros mixcoas – Xiuhnel e Mimich – também teriam baixado do
Céu para caçar os tais veados. Em meio de tais episódios, narra-se a origem de cinco
tecpatl (pedernal ou punhal) de cores diferentes a partir da queima de Itzpapalotl pelos
Senhores do Ano (sic): primeiro teria brotado o pedernal azul, depois o branco, que
foi pego e envolvido em uma manta, depois o pedernal amarelo, depois o vermelho
e na quinta vez o negro.
A associação entre cores e rumos era uma forma, que se encontrava disseminada
por toda a Mesoamérica, de diferenciar e qualificar esses últimos. Veremos abaixo que
o Chilam balam de Chumayel relaciona pedras de cores diferentes aos quatro rumos.160
Por enquanto, gostaríamos apenas de ressaltar que a participação dos tais Senhores
do Ano – talvez Senhor do Ano, isto é, Xiuhtecuhtli – num episódio que aparentemente
estaria relacionado apenas com a diferenciação dos quatro rumos e do centro traz
consigo uma alusão ao calendário, o que reforça a indissociabilidade entre as concep-
ções de tempo e de espaço que estamos atribuindo ao pensamento nahua.
Mencionamos acima que os topônimos dos altepeme vão se tornando mais abun-
dantes à medida que os episódios narrados relacionam-se com a história mais recente,
como a de Tollan e Quetzalcoatl. É o que ocorre com a sequência de trechos que
tratam, nessa ordem, das conquistas de Mixcoatl, do nascimento de Quetzalcoatl e de
suas conquistas e dos reinados de seus sucessores, Huemac, Nequametl, Tlatlacatzin
e Huitzilpopoca.161 Na parte final da Leyenda de los soles, que passa a focalizar de modo
159 Segundo alguns relatos alfabéticos, essa travessia seria auxiliada por um cão, como nos Primeros
memoriales, texto que cita a existência de nove níveis nesse âmbito. Cf. Primeros memoriales by
fray Bernardino de Sahagún. Norman: University of Oklahoma Press, 1993, p. 84r. Não estamos
seguros se a menção a esse cão auxiliar procede da tradição nahua ou da cristã.
160 Cf. Libro de chilam balam de Chumayel. México: Conaculta, 2001, p. 41.
161 No relato das conquistas de Mixcoatl e do nascimento de Quetzalcoatl são mencionados apenas
cinco altepeme – Comallan, Teconma, Cocyama, Huehuetocan e Pochtlan – e o nome de uma
região – a de Huitznahuac. Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 124-5. No
relato sobre as conquistas de Quetzalcoatl e o reinado de seus sucessores, que ocupa mais ou
menos o mesmo número de páginas que o anterior, são mencionados vinte altepeme – Tollan,
Xihuacan, Mixcoatepetl, Ayotlan, Chalco, Xicco, Cuixcoc, Zacanco, Tzonmolco, Mazatzonco,
Eduardo Natalino dos Santos 291
quase exclusivo a história mexica, ocorre uma mudança notável no caráter do relato:
as informações centrais passam a ser os nomes dos soberanos mexicas, suas relações
familiares, o tempo de duração do governo de cada um, os locais por onde teriam pas-
sado durante a migração e as suas conquistas político-tributárias.162 Essa mudança não
altera as menções numerosas aos altepeme e quase transforma o relato numa espécie
de anais, comparável, em certa medida, aos Anales de Cuauhtitlan.
A incrível quantidade de antropônimos, topônimos e datas mencionada na Leyenda
de los soles, sobretudo em sua porção final, não deixa dúvida que sua produção baseou-se
em fontes pictoglíficas tradicionais, mais especificamente em livros de anais ou xiuha-
matl, como mencionamos no Capítulo I. Isso porque esses três tipos de informação são,
justamente, os mais abundantes nesse tipo de códice, como vimos no Capítulo II.
Essa precisão cosmográfica, toponímica, antroponímica e calendária também
está presente nos códices da região mixteca163 e chamou a atenção de religiosos espa-
nhóis. Segundo o frei Francisco de Burgoa, em princípios do século XVII, os códices
mixtecos eram livros “...donde todas sus historias escribían con unos caracteres tan
abreviados que una sola plana expresaba el lugar, sitio, provincia, año, mes y día, con
todo los demás nombres de dioses, ceremonias y sacrificios o victorias que habían
celebrado y tenido”.164
Os topônimos, os antropônimos e as datas deveriam ser referenciais tão impor-
tantes entre as tradições de pensamento nahuas que sua utilização abundante tam-
bém pode ser observada em obras nahuas bem posteriores e, além disso, bastante
influenciadas pelo pensamento cristão, tal como a de Ixtlilxochitl.165 No entanto, po-
demos observar um decréscimo nas referências espaciais e toponímicas na obra de Ix-
tlilxochitl se a compararmos, por exemplo, com os Anales de Cuauhtitlan. Talvez isso se
deva à opção de Ixtlilxochitl de produzir textos que também abarcassem informações
162 Ao tratar da migração, o texto menciona Culhuacan, Aztlan, Chapultepec, Tizaapan, Xicoc,
Acocolco e Tenochtitlan. A relação dos altepeme conquistados inicia-se com Tenayuca e Culhua-
can – retratadas na parte inferior da página de abertura do Códice Mendoza, reproduzida na
Figura 30 – e segue com mais de setenta outros nomes, agrupados de acordo com o tlatoani
responsável, desde Acamapichtli até Axayacatzin. Cf. ibidem, p. 127-8.
163 Por exemplo: Códice vindobonensis, op. cit. /Códice Zouche-Nuttall. Graz/México/Madri: ADV/
FCE/SEQC, 1992.
164 O sublinhado foi inserido por mim. Burgoa, Francisco de. Geográfica descripción de la parte septen-
trional del Polo Ártico de la América. México: Editorial Porrúa, 1987, p. 210. Apud León Portilla,
Miguel. Códices. México: Aguilar, 2003, p. 167.
165 Por exemplo, na Sumaria relación. Cf. Ixtlilxochitl, Fernando de Alva. Obras históricas. México:
Instituto Mexiquense de Cultura/IIH – Unam, 1997.
292 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
cronológicas e toponímicas da história cristã. Sendo assim, esse autor opta, por vezes,
por manter apenas os marcos espaciais mais universais da história dos chichimecas,
tais como Teotihuacan, Tollan e Cholula, e em generalizar ou omitir outros grupos
de localidades.166
Isso poderia indicar que conforme as tradições de pensamento locais foram in-
corporando a história cristã, parte dos topônimos presentes nas histórias locais foi
abandonada ou tornou-se secundária, dando lugar a outros marcos espaciais, tais
como Babilônia, Jerusalém e Roma, os quais poderiam mostrar-se mais relevantes no
contexto colonial em que os pipiltin nahuas convertidos ao cristianismo produziram
seus textos.
Em resumo, considerando o relato da Leyenda de los soles em sua totalidade, po-
demos perceber que as concepções cosmográficas tendem a estar presente de modo
mais esparso e geral quando o tema é o passado mais distante e – com o crescimento
gradativo dessa presença – de maneira mais recorrente e precisa quando se trata do
passado mais recente, exatamente como ocorre com a presença do calendário, anali-
sada no Capítulo II. Além disso, nos relatos cosmogônicos predominam âmbitos mais
amplos e menos tangíveis, tais como os níveis celestes e subterrâneos ou os quatro
rumos. Esses âmbitos vão, progressivamente, dando lugar a sítios mais circunscritos e
de habitação humana, tais como os altepeme.
Em outras palavras, na Leyenda de los soles há uma relação de proporcionalidade
direta entre a maior proximidade temporal dos episódios e a quantidade de referên-
cias a sítios de habitação predominantemente humana – exatamente como ocorre
no caso do Códice Vaticano A, visto anteriormente. No entanto, os âmbitos mais gerais
não deixam de estar presente nas narrativas sobre o passado mais recente, coexis-
tindo com a menção a sítios mais circunscritos, tais como os altepeme. Esses, por sua
vez, também poderiam ser palco de acontecimentos cosmogônicos, como é o caso
de Teotihuacan, local que fora um altepetl e que era reconhecido pelas tradições de
pensamento nahuas como o sítio onde os deuses teriam se reunido para dar princípio
à quinta idade.
Sendo assim, talvez não estejamos autorizados a atribuir às tradições de pensa-
mento nahuas – e mesoamericanas em geral – a separação entre o espaço humano e
um “outro espaço”, o qual estaria reservado exclusivamente aos deuses ou aos eventos
166 Por exemplo, ao se referir à chegada dos toltecas na região de Tollan, afirma que “Salieron de
su patria que se llamaba Huéhuec Tlapalan en el año que ellos llaman ce técpatl, que confor-
me a nuestra cuenta fue el año de 432 del nacimiento del Señor y anduvieron ciento y cuatro
años en diversas partes del mundo hasta llegar en Tulancingo donde contaron una edad que
había desde que salieron de su patria que fue en el año ce técpatl, y a nuestra cuenta en el año
de 536”. O sublinhado foi inserido por mim. Ibidem, p. 397.
Eduardo Natalino dos Santos 293
Os Anales de Cuauhtitlan
167 Da mesma forma, talvez não seja adequado atribuir-lhes a divisão entre passado cosmogô-
nico e história recente, como citamos no capítulo anterior e como veremos em detalhe no
capítulo seguinte.
169 Cf. Feliciano Velázquez, Primo. Introducción. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 69.
294 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
170 Vimos no Capítulo II que o primeiro ano do primeiro xiuhmolpilli nos Anales de Cuauhtitlan é
um ano ce acatl (1 junco), ao qual se relaciona o episódio da partida de Chicomoztoc.
171 Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 6. Tzihuactli é uma planta comestível
que cresce em meio das pedras e nequametl é uma espécie de palmeira.
172 Ibidem, p. 6.
173 Esse significado político do ato de flechar também estaria na obra do cronista nahua Ixtlilxo-
chitl. Cf. González Torres, Yolotl. Los rumbos del universo. México: Inah – Departamento de
Etnología y Antropología Social, 1974.
mente a divisão espacial e a contagem do tempo somada ao uso central dos sistemas
calendário e cosmográfico na organização dos textos indica-nos que havia a intenção de
reproduzir nos relatos os mesmos princípios que, segundo as tradições de pensamento
nahuas, regeriam a própria história e o mundo em geral.
É o que podemos observar no Chilam balam de Chumayel, livro maia-iucateco pro-
duzido, transformado e renovado durante todo o período Colonial, mas baseado em
escritos, relatos e ciclos calendários pré-hispânicos. Em sua primeira parte, à qual foi
dada o título de Libro de los linajes ou Ritual de los cuatro cuartos del mundo, a localização e
a qualificação dos âmbitos cosmográficos são as primeiras informações mencionadas e
servirão para situar e qualificar tudo o que será narrado posteriormente. Nessa introdu-
ção cosmográfica, os senhores-tronco das linhagens maias são estabelecidos e localiza-
dos nos quatro rumos, os quais são caracterizados em seguida por meio da enunciação
de seus elementos típicos, tais como as diferentes pedras, árvores, plantas e cores. Em
resumo, os elementos associados a cada rumo são os seguintes: A – nascente: o peder-
nal, a ceiba, o zapote,175 o cipó, o pano e o milho vermelhos; B – setentrional: a ceiba, o
peru, a fava, o milho e o pedernal brancos; C – poente: o pedernal, a ceiba, o milho, o
camote de pezón,176 a fava e o feijão negros; D – meridional: o pedernal, a ceiba, a batata e
o peru amarelos, além do feijão de costa amarela.177
Mencionamos essa longa lista para mostrar o emprego da cosmografia como
um sistema de classificação da realidade circundante e também para dar uma ideia
da complexidade do conjunto de elementos associados a cada um dos quatro rumos,
elementos que, seguramente, eram acionados sempre que algum desses âmbitos fosse
evocado em uma narrativa. É certo que nem todos os elementos associados seriam
indispensáveis à compreensão do relato cada vez que um desses âmbitos fosse citado.
No entanto, é certo também que quanto mais o usuário desses relatos conhecesse os
elementos associados a cada âmbito, maior ou mais ampla seria sua capacidade de
decodificação e interpretação.
Nos três últimos episódios analisados – o da Leyenda de los soles, o dos Anales de
Cuauhtitlan e o do Chilam balam de Chumayel –, a descrição dos atos políticos caracte-
riza-se pela utilização dos mesmos conceitos cosmográficos que são empregados nas
narrativas dos episódios cosmogônicos, alguns dos quais mencionados no subitem em
que analisamos a Leyenda de los soles. Dessa forma, podemos concluir que tais conceitos
não eram utilizados para se referir a regiões de habitação ou circulação exclusiva das
175 Do nahuatl tzapotl. Árvore de madeira branca e pouco resistente que produz fruto comestível
de polpa amarela. Produz também uma resina leitosa utilizada para fabricar o chiclete. Tal-
vez seja a mesma árvore que em português recebe o nome de sapota (Lucuma mammosa) ou
ainda a que recebe a designação de sapotizeiro (Achras sapota).
recer como estrela da aurora, Quetzalcoatl teria ido morar em Mictlan por quatro dias
e por outros quatro teria se munido de flechas, reaparecendo ao final de oito dias.180
Pensamos que esse episódio pode ser considerado emblemático para mostrar
como os mesmos conceitos cosmográficos eram empregados para narrar o que cha-
maríamos de cosmogonia e história.181 Tal afirmação se justifica pelo fato de tal epi-
sódio evocar o Céu, o Inframundo e os rumos do Universo – âmbitos utilizados para
relatar os episódios que teriam ocorrido durante as idades anteriores do mundo –
para tratar do final do período de mando de um soberano tolteca do fim do século
IX, o qual, na verdade, termina por ter um destino cosmogônico: transformar-se em
uma estrela aparente.
No capítulo seguinte analisaremos em detalhes essa conjunção e concatenação
entre cosmogonia e história.182 Por enquanto, o objetivo é apenas destacar a presença
dos âmbitos cosmográficos gerais – relacionados preferencialmente aos episódios cos-
mogônicos – nos relatos sobre o passado mais recente.
Outro episódio dos Anales de Cuauhtitlan que contribui para esse objetivo encon-
tra-se em seu décimo quinto xiuhmolpilli, que teria se iniciado em 1363 d.C. Trata-se
do planejamento e da construção de um templo em Cuauhtitlan, tarefas que tiveram
a concepção dos quatro rumos por pilar central, a mesma concepção que era utiliza-
da para explicar a estrutura de toda a superfície terrestre.183 Além disso, a estrutura e
divisão do templo em quatro partes terminam por ordenar a distribuição espacial da
cidade como um todo: “Cuando empezó su templo Xaltemoctzin el viejo, simultáne-
amente, para formar en cuatro partes la ciudad de Cuauhtitlan, tomó de él ejemplo,
porque en cada esquina del cuadro de su templo puso, así como están, las cuatro
partes de la ciudad de Cuauhtitlan”.184
180 Cf. ibidem, p. 11. A passagem de Quetzalcoatl pelo Inframundo pode ser relacionada com os
períodos de invisibilidade de Vênus, os quais eram muito utilizados para a previsão da chegada
das épocas da chuva e da seca.
181 Também, como vimos no Capítulo II, empregavam-se os mesmos referenciais temporais, isto é,
a conta dos anos e a dos dias.
182 Os Anales de Cuauhtitlan, assim como a Leyenda de los soles, também apresentam o relato das qua-
tro idades anteriores do mundo antes de narrar a história de Mixcoatl, Quetzalcoatl e Tollan,
se bem que de maneira muito mais resumida. Nesse resumo das idades anteriores, a única
referência cosmográfica direta é o afundamento do Céu que provoca a imobilidade do Sol:
“El segundo sol que hubo y era signo de 4 ocelotl (tigre), se llama Ocelotonatiuh (sol del tigre).
En él sucedió que se hundió el cielo; entonces el sol no caminaba de donde es mediodía...”.
Ibidem, p. 5.
186 Popol vuh, op. cit., p. 21. Além disso, esse trecho mostra-nos que a divisão em quatro rumos não
se restringia à superfície terrestre, mas englobava também os céus, como mencionamos no
início deste capítulo.
187 Como os que constam em Broda, Johanna et alii (edit.). Arqueoastronomía y etnoastronomía en
Mesoamérica. México: IIH – Unam, 1991.
188 Esse total inclui todas as ocasiões em que um topônimo é citado, alguns dos quais são mencio-
nados dezenas de vezes, como México e Cuauhtitlan.
Eduardo Natalino dos Santos 299
Os Anales de Cuauhtitlan não são, nesse aspecto, um caso isolado, pois vimos, no
Capítulo II, que o mesmo ocorre nos anais do Códice Vaticano A.189 Nesses anais, cerca
de noventa glifos toponímicos são mencionados ao longo dos quase quatrocentos
anos de história e esses glifos ocupam, juntamente com os cerca de noventa glifos
onomásticos, o segundo lugar em quantidade na composição, perdendo apenas para
os glifos calendários, que somam trezentos e oitenta e seis.
Em diversas partes do Chilam balam de Chumayel também podemos notar a cen-
tralidade da cosmografia para a estruturação e o desenvolvimento da narrativa. Como
mencionamos acima, a seção intitulada Libro de los linajes inicia-se com uma lista dos
elementos associados aos quatro rumos e depois, ao tratar da origem dos itzaes, apre-
senta uma trajetória migratória com quase setenta localidades em apenas duas pági-
nas de relato.190
Sendo assim, é possível afirmar que os conceitos calendários e espaciais são, de
longe, os mais abundantes nos Anales de Cuauhtitlan, nos anais do Vaticano A, em par-
tes significativas do Chilam balam de Chumayel e em outros textos alfabéticos ou pic-
toglíficos mencionados, de origem nahua, maia ou mixteca.191 Quais as implicações
desse fato na caracterização desses relatos e das tradições de pensamento e escrita
que os produziram? Uma delas é que devemos elencar a preocupação em datar e
situar espacialmente os eventos narrados como uma das mais importantes para essas
tradições, as quais empregavam os referenciais cosmográficos e calendários como
verdadeiros fios condutores das narrativas, sobretudo nos livros em forma de anais.
Outra implicação é que esses fios condutores não constituíam um fundo ou cenário
neutro, mas eram elementos que participavam ativamente da qualificação de per-
sonagens e de eventos, pois datar e situar espacialmente também eram formas de
classificar e adjetivar.
No que diz respeito especificamente ao emprego da cosmografia nos Anales de
Cuauhtitlan, pudemos perceber que os conceitos espaciais não são tratados como te-
mas por seus produtores, assim como não o foram pelos autores da Leyenda de los soles.
Vimos que esse tratamento temático aparece na primeira seção do Vaticano A e vere-
mos abaixo que também ocorre na Historia de los mexicanos por sus pinturas e na Histoire
du Mechique. Ao contrário, tentamos demonstrar que o conhecimento da cosmografia
era um pressuposto indispensável para o entendimento dos episódios dos Anales de
190 Cf. Libro de chilam balam de Chumayel, op.cit., p. 43-5. As localidades e datas também são presen-
ças marcantes em outras partes dessa obra, como na intitulada Kahlay de la conquista. Cf. ibidem,
p. 53-69.
191 Como os textos de Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin e Cristóbal del Castillo, o Códice Boturini e
o Códice Mendoza, de origem nahua, o Memorial de Sololá, de origem maia-cakchiquel, e o Códice
vindobonense, de origem mixteca.
300 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Cuauhtitlan, seja dos cosmogônicos ou dos históricos, pois a narrativa de ambos se faz
por meio dos mesmos conceitos espaciais.
Vimos no Capítulo II que esse mesmo tipo de uso da cosmografia – isto é, ser
requerida como parte dos pressupostos de leitura – ocorre com o sistema calendário
nos Anales de Cuauhtitlan, sistema que, ademais, desempenha a função de estrutura
organizacional nesse texto. Essas características, segundo nossas hipóteses, conferem
a esse manuscrito um caráter relativamente tradicional: por um lado, possui uma
estrutura organizacional e requer pressupostos de leitura semelhantes aos que pode-
mos encontrar nos códices pictoglíficos pré-hispânicos e coloniais tradicionais, não
obstante se tratar de um texto alfabético; por outro lado, apresenta alterações e adap-
tações em relação a esses mesmos códices. Entre essas alterações, podemos citar o fato
de a cosmografia não desempenhar o papel de estrutura organizacional nos Anales de
Cuauhtitlan, como ocorria em parte dos códices pictoglíficos. Isso se deve, em grande
medida, à própria índole do texto alfabético, para o qual o espaço ocupado pelo regis-
tro é “cosmograficamente homogêneo”. Sendo assim, é indiferente que uma informa-
ção sobre o norte esteja grafada na parte de cima ou de baixo de tal espaço.
Na parte inicial da Historia de los mexicanos por sus pinturas há um relato sobre a
cosmogonia que se diferencia bastante dos contidos nas fontes analisadas anterior-
mente. Trata-se, como veremos em detalhe no capítulo seguinte, de uma espécie de
genealogia divina na qual as referências às regiões cosmográficas resumem-se, basica-
mente, a duas: uma sobre o décimo terceiro céu, onde teriam estado sempre Tonaca-
tecuhtli e Tonacacihuatl, e outra sobre os quatro filhos desse casal, que poderiam ser
relacionados aos quatro rumos por suas cores distintas.192
À continuação, temos um capítulo dedicado às criações realizadas por Quet-
zalcoatl e Huitzilopochtli, as quais teriam se iniciado seiscentos anos depois dos pri-
meiros episódios. Esses dois deuses teriam se tornado responsáveis por executar as
determinações dos demais e, assim, criar o Universo. Entre as obras que lhes são
atribuídas está a criação dos três grandes âmbitos que abarcam todo o Universo, isto
é, o Inframundo, o Céu e cipactli.193
Nesse mesmo trecho, os quatro rumos do Universo são evocados de maneira
implícita ao se mencionar Tlaloc, “Del qual dios del agua dize que tiene su aposento
192 Esses quatro filhos são: Tlatlauhqui Tezcatlipoca, Yayauhqui Tezcatlipoca, Quetzalcoatl e Ome-
tecuhtli. As cores associadas aos dois primeiros são, respectivamente, o vermelho e o negro. O
texto não menciona cores para os dois últimos. Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas.
In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 25.
196 Cf. The Codex Borgia. Nova York: Dover Publications, 1993, p. 27-8.
tonalpohualli, pois ocupam a 1a, a 66a, a 131a e a 196a posições nesse ciclo, que dura 260
dias, ou seja, 4 x 65 dias.198
Em cada um desses quadrantes, há variações nas representações da terra – que
pode estar alagada, seca ou ser as costas de cipactli –, nas das espigas de milho que
brotam – que podem ser graúdas ou pequenas e estar ou não comidas por gafanhotos
ou roedores – e nas das camadas celestes – que podem estar chuvosas, ensolaradas e
contar ou não com olhos estelares. Além disso, as camadas celestes são três no caso
dos quatro quadrantes que circundam o centro – duas superiores, estreitas e identi-
ficadas por cores distintas, e uma inferior e larga, na qual se grafam a chuva em dois
casos e o sol nos outros dois – e quatro no caso do quadrângulo central – três estreitas
e coloridas e uma larga, com olhos estelares e pedernais. Tudo isso sem falarmos nas
distinções entre os tlaloque.
A presença desses elementos diferenciadores serviria para qualificar as chuvas que
proviriam desses rumos nos períodos de tempo indicados pelos glifos calendários dos
dias e anos. Parece que as melhores chuvas e colheitas estariam nos quadrantes cor-
respondentes ao oriente e ao ocidente. No entanto, é importante ressaltar que tratar
esse tema desse modo, ou seja, estabelecendo uma relação fixa entre os quatro tipos de
chuva e os quatro rumos é uma grande simplificação. Para as tradições de pensamento
mesoamericanas, vários outros elementos – tais como os ciclos calendários grafados nas
páginas do Borgia e os fatores conjunturais, de ordem natural ou social – participariam
da conjunção que daria origem às situações propícias ou desfavoráveis e, sendo assim,
também deveriam ser levados em conta na elaboração de prognósticos.
Mas é justamente esse tipo de simplificação que encontramos nos dois trechos
da Historia de los mexicanos por sus pinturas mencionados acima, os quais, muito pro-
vavelmente, se basearam em explicações elaboradas a partir de páginas de códices
pictoglíficos semelhantes às do Borgia. Caso essa suposição esteja correta, poderíamos
dizer que tal simplificação se caracterizou, entre outras coisas, pela desconsideração
da relação intrínseca que existia entre cosmografia e calendário para as tradições de
pensamento nahuas, bem como pela não utilização desses sistemas como parte da
estrutura organizacional da narrativa. Segundo nossas hipóteses, isso seria um forte
indício de que a produção do escrito estaria relacionada a seleções temáticas e estru-
turas narrativas de origem cristã.199 Vale lembrar que isso condiz com a origem atribu-
ída à Historia de los mexicanos por sus pinturas, que a vincula aos trabalhos missionários
198 Cf. Anders, Ferdinand et alii. Los templos del cielo y de la oscuridad. Madri/Graz/México: SEQC/
ADV/FCE, 1993, p. 168.
199 O que é confirmado pelo tratamento temático que a conta dos anos recebe nesse texto, sendo
explicada na parte inicial de um dos capítulos sobre as idades do mundo e na qual os âmbitos
cosmográficos não são mencionados. Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos
e historias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 31.
Eduardo Natalino dos Santos 303
de Andrés de Olmos com sábios nativos no segundo quartel do século XVI, como
mencionamos no Capítulo I.
Veremos, no capítulo seguinte, que a separação entre calendário e cosmogra-
fia e a não utilização de ambos como partes da estrutura narrativa também tendem
a ocorrer quando os relatos e explicações nahuas sobre o passado distante são adap-
tados ou submetidos às seleções temáticas e estruturas narrativas de origem cristã,
resultando num processo que estamos chamando de fabulização, como indicamos
na Introdução.
Apesar da origem relacionada a seleções temáticas e estruturas narrativas cristãs,
a Historia de los mexicanos por sus pinturas apresenta alguns episódios cujo entendi-
mento requer o conhecimento prévio de alguns conceitos cosmográficos, tais como
o de ligação entre o Tlalocan e o interior das montanhas e cavernas. Isso ocorre, por
exemplo, no episódio em que o tlatoani de Chalco aprisiona um corcunda no interior
de uma caverna situada em uma montanha, oferecendo-o, desse modo, a Tlaloc. No
interior da caverna, o corcunda teria sobrevivido e visitado o Tlalocan, a Morada de
Tlaloc, retornando a Chalco com os criados enviados pelo tlatoani depois de vários dias
para verificar se ele havia morrido.200
Depois desse episódio, a Historia de los mexicanos por sus pinturas apresenta vários ca-
pítulos sobre as idades do mundo, os quais são constituídos com informações semelhan-
tes às que encontramos no Vaticano A, na Leyenda de los soles e nos Anales de Cuauhtitlan.
Nesses capítulos, a cosmografia é acionada de modo mais recorrente por meio
da citação de âmbitos ou de explicações sobre o funcionamento do Mundo.201 Um dos
primeiros episódios dessa seção explica esse funcionamento antes da criação do pri-
meiro Sol por Tezcatlipoca, época em que um meio-sol correria pelo Céu e chegaria
apenas até o zênite, de onde retornaria para o oriente e ficaria parado até a manhã
seguinte.202 Tal episódio seria uma forma de apresentar, por contraste, o movimento
solar correto, que Tezcatlipoca irá instaurar depois, tornando-se um Sol completo.
Segundo a Leyenda de los soles, no início da idade atual, como veremos em detalhe no
Capítulo IV, também houve um problema com o movimento do Sol, o qual teria pa-
rado em meio do Céu por vários dias.203 Esses dois episódios ressaltam a importância
que as tradições de pensamento nahua davam à ideia de movimento para explicar
o funcionamento do cosmo, sobretudo ao movimento aparente do Sol, pois, como
vimos no início deste capítulo, tal movimento servia para delimitar a extensão de
200 Os habitantes de Chalco foram derrotados pelos mexicas no mesmo ano em que esse episódio
ocorrera, o qual é relatado como um presságio da derrota. Cf. ibidem, p. 28.
203 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op.cit., p. 122.
304 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
204 Apesar disso, bem mais adiante, ao listar os níveis celestes, a Historia de los mexicanos por sus
pinturas menciona esse movimento incompleto do Sol como se assim ele fosse concebido pelas
tradições de pensamento nahuas para os tempos atuais. Parece-nos que o autor está tomando
o que lhe fora dito sobre um momento particular da cosmogonia como algo geral e válido para
a idade atual. Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos
nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 81.
205 O texto original traz Cotemuc, nome desconhecido em nahuatl que Rafael Tena adapta para
Tzontemoc e Ángel María Garibay para Cuauhtemoc. Respectivamente, cf. ibidem, p. 36 / His-
toria de los mexicanos por sus pinturas. In: Teogonía e historia de los mexicanos. México: Editorial
Porrúa, 1996, p. 32.
206 Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México:
Conaculta, 2002, p. 36.
207 Segundo o texto, a ceiba verde ocuparia o centro da terra. Chac Imix Che (Ceiba Vermelha),
que estaria ao leste, não é citada. Cf. Libro de chilam balam de Chumayel, op.cit., p. 88-9.
Eduardo Natalino dos Santos 305
lleguen a los çielos”.208 Ao analisarmos a primeira seção do Vaticano A, vimos que a Lua
e o Sol estariam posicionados entre os níveis mais baixos para a cosmografia nahua
(Tabela 10), isto é, até o quarto nível. Sendo assim, talvez apenas os níveis celestes
mais altos estejam sendo considerados como tais pela Historia de los mexicanos por sus
pinturas. Isso parece ser confirmado mais adiante, em um capítulo dedicado quase
que exclusivamente ao tema dos níveis celestes, pois apenas nove níveis são relacio-
nados e caracterizados, sem que nessas caracterizações constem o Sol ou a Lua.209
Analisaremos, mais abaixo, esse capítulo sobre os níveis celestes e suas características
– sintetizadas na Tabela 12.
Ainda nos relatos sobre os tempos pós-dilúvio, podemos encontrar uma referên-
cia precisa a um dos níveis celestes. Trata-se do episódio em que Camaxtle ou Mixcoatl,
no primeiro ano da terceira trezena depois do dilúvio, vai ao oitavo céu e cria quatro
homens e uma mulher para que façam guerras e haja corações e sangue para o Sol. No
entanto, ao baixarem à superfície terrestre, esses homens e mulheres teriam caído na
água e voltado diretamente ao Céu, fazendo que não houvesse guerra.210 A referência
precisa ao oitavo céu certamente teria pleno sentido apenas para um leitor que sou-
besse acerca de suas características. De acordo com o próprio texto, como veremos
logo em seguida, o oitavo céu seria o local de reunião dos deuses e de onde não pode-
riam passar para chegar ao mais alto céu, onde estaria Tonacatecuhtli e Tonacacihuatl.
Além disso, o fato de esses homens e mulheres criados por Mixcoatl terem caído na
água e voltado diretamente ao Céu também faz sentido apenas se lembrarmos da con-
tiguidade desses dois âmbitos e da permeabilidade de suas fronteiras.
Sendo assim, podemos perceber pelas análises acima que a Historia de los mexi-
canos por sus pinturas utiliza-se da cosmografia ora como tema e ora como saber cujo
entendimento prévio é indispensável para a compreensão dos episódios narrados.
Vimos no Capítulo II que essa mesma alternância ocorre com o uso do sistema ca-
lendário, indicando que o texto alterna critérios e padrões compositivos de origem
nahua e cristã.
A Historia de los mexicanos por sus pinturas apresenta um número muito maior
de referências a locais tangíveis ao tratar do passado mais recente do que ao tratar
do passado mais distante, assim como a Leyenda de los soles, o Vaticano A e os Anales de
Cuauhtitlan. Nos episódios relacionados ao passado mais recente, que ocupam cerca
de dezessete capítulos do texto e vão desde as ações de Mixcoatl e dos quatrocen-
tos chichimecas, passam pelas realizações e desventuras de Ce Acatl e pela migração
mexica e chegam até as conquistas de Cortés e grupos indígenas aliados, os altepeme
208 Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit.,
p. 38.
e algumas outras regiões cosmográficas são referências constantes, fazendo que o co-
nhecimento prévio dessa cosmografia humana e natural seja indispensável para o
entendimento do relato.211
O calendário é usado estruturalmente nesses mesmos capítulos do relato, con-
forme vimos no Capítulo II (Tabela 9), pois o texto, embora não tome a forma de
anais, situa sistematicamente os episódios de acordo com os anos decorridos depois
do dilúvio ou depois da fundação de Tenochtitlan. Sendo assim, é muito provável que
a confecção dos relatos contidos nesses capítulos tenha tido a livros de anais mexicas
por base, o que confirmaria a alternância de critérios e padrões compositivos – de
origem nahua e cristã – que estamos atribuindo a esse texto.
Depois de todos esses capítulos, a Historia de los mexicanos por sus pinturas apre-
senta o modo de contar os anos e, em seguida, como mencionamos antes, uma
geografia dos céus, o que é feito num fragmento que pertence a esse texto mas que,
aparentemente, não possui nenhuma ligação narrativa direta com as partes pre-
cedentes. Nessa descrição, oito níveis celestes, acima dos quais estariam Tonacate-
cuhtli e Tonacacihuatl, são relacionados e caracterizados sumariamente. Agrega-se
à descrição a referência de que haveria outros níveis, mas que “...no saben lo que es-
tava en los çielos que quedan”.212 Na Tabela 12 podemos ver esses níveis e elementos
resumidos e enumerados.
211 Alguns dos locais citados recorrentemente são: Cuitlahuac, Tlapallan, Cholula, Tollan, Cem-
poala, Aztlan, Culhuacan, Xochimilco, Chalco, Tacuba, Coyoacan, Azcapotzalco, Texcoco,
Tlaxcala e Huexotzinco. Cf. ibidem, p. 44-80.
A Histoire du Mechique
213 Cf. Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002,
p. 125-38.
214 Mas, distintamente do que ocorre na Historia de los mexicanos por sus pinturas, tal capítulo se
posiciona antes dos que tratam das idades do Mundo. Cf. ibidem, p. 138-43.
sequer mencionados.216 A prioridade dada aos deuses para caracterizar os âmbitos celes-
tes relaciona-se, muito provavelmente, a uma seleção temática tributária do pensamento
missionário cristão do século XVI. Para esse pensamento, tratar da cosmogonia de outros
povos significava, entre outras coisas, saber quais eram os deuses e ídolos aos quais os po-
vos pagãos atribuíam, equivocadamente, a autoria das obras do deus cristão.
O uso exclusivo dos nomes dos deuses para diferenciar os níveis celestes pode
ser observado Tabela 13, na qual estão reunidas também as traduções ou explicações
propostas na Histoire du Mechique para tais nomes.
deuses para criar a Terra, mais especificamente as de Yax Bolon Dzacab (Grande Nove
Fecundador), que “...se fue al decimotercer piso del cielo”.217
Em contrapartida a esses textos, há códices que apontariam para a existência de
uma concepção que dividiria o Céu em nove estratos. É o caso do Rollo Selden, mais es-
pecificamente de sua cena inicial, uma espécie de prólogo à história de uma dinastia
mixteca cujas origens se relacionariam com Quetzalcoatl.218 Essa cena retrata apenas
nove níveis celestes. Vejamos o porquê.
Na Figura 34, que reproduz a tal cena inicial, podemos observar Quetzalcoatl
– identificado por seu peitoral de caracol marinho, sua barba e seu bico de ave – na
parte centro-superior da cena e flanqueado pelo Senhor e Senhora Ce Mazatl (Um
Veado), respectivamente, à sua esquerda e direita. À frente de Quetzalcoatl, encon-
tram-se os glifos calendários que correspondem ao dia ome mazatl (2 veado) e ao ano
matlactli omei tochtli (13 coelho).219
Abaixo desses elementos, podemos ver oito conjuntos de faixas horizontais, cada
qual formado por três faixas menores que se agrupam, de cima para baixo, da seguin-
te forma: uma pintada de negro, outra com olhos estelares e a outra sem preenchi-
mento. Esses são os oito níveis celestes sobre os quais se situa o nono, representado
por uma faixa mais ampla e no interior da qual estão as personagens citadas acima.
Abaixo do mais baixo desses níveis, podemos ver o Sol, à direita, e a Lua, à esquerda,
tais como se estivessem dependurados. Os dois astros estão flanqueados por outros
dois glifos calendários, que correspondem ao dia ce cipactli (1 jacaré), à esquerda, e ao
ano ce acatl (1 junco), à direita.
217 Libro de chilam balam de Chumayel, op.cit., p. 88. Esse deus aparece nos gravados de Palenque e
seria também chamado de Kauil ou de GII (God II) pelos estudiosos. Caracteriza-se pela forma
de serpente com pés e por portar um objeto fumegante. Cf. Schele, Linda e Freidel, David. A
forest of kings. Nova York: Quill Willian Morrow, 1990.
218 Cf. The Selden Roll. Berlim: Verlag Gebr. Mann, 1955, p. 1-2. Manuscrito pictoglífico produzido
antes de 1659, provavelmente ainda no século XVI, que utiliza signos calendários mixtecos
combinados com representações baseadas na cultura material mexica. Cf. Burland, Cottie A.
Descriptive commentary. In: The Selden roll. Berlim: Verlag Gebr. Mann, 1955, p. 12. Trata-se,
portanto, de um manuscrito do horizonte mixteco-nahua que registra a origem e a movimen-
tação territorial de uma dinastia cuja sede política ainda não foi identificada, mas que per-
tenceria ao ocidente de Oaxaca. Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native
Middle American pictorial manuscripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard
F. (editor dos volumes). Handbook of Middle American Indians. Austin/Londres: University of
Texas Press, 1975, v. 14, p. 196.
219 Distinguíveis entre si pelo glifo designativo de ano, o qual se encontra junto a 13 coelho. Esse
glifo assemelha-se a uma letra “A” maiúscula entrelaçada por um anel paralelo à sua base e à
altura de seu traço horizontal. Esse recurso era amplamente utilizado nos códices mixtecos.
Eduardo Natalino dos Santos 311
Ainda na Figura 34, podemos ver outra cena abaixo dos níveis celestes, composta
por quatro personagens agrupados em pares e sobre um enorme glifo de cipactli, mos-
trando de maneira inequívoca que esse segundo episódio – também datado – ocorre
na superfície da Terra. Vale notar ainda que pegadas humanas nos dois sentidos ligam
os dois âmbitos cosmográficos por meio de um caminho que corta os níveis celestes
ao meio, à exceção do último.
Voltaremos a essa cena do Rollo Selden e ao significado da junção que ela apre-
senta entre datas e âmbitos cosmográficos no Capítulo IV, ao tratarmos do pro-
blema da concatenação entre cosmogonia e história e da vigência de uma mesma
concepção de tempo nos dois tipos de passado. Por ora, evocamos os casos do Rollo
Selden e do Chilam balam de Chumayel apenas para mostrar que a diversidade de nú-
meros de pisos celestes não ocorre apenas nas fontes nahuas, mas envolve também
os registros mixtecos e maias.
Como mencionamos antes, tal diversidade pode ser fruto da existência de va-
riações regionais ou de tradições de pensamento discordantes. No entanto, como
afirmamos acima ao analisar a seção inicial do Vaticano A, tais variações podem resul-
tar também do uso específico das concepções cosmográficas em cada conjunto picto-
glífico, para o qual se acionariam as camadas celestes que fossem significativas para
a mensagem particular que se buscava registrar. Como exemplo, é possível citar as
três ou quatro camadas celestes representadas na trezena Ce Cozcacuauhtli do Códice
borbónico (Figura 30) e na cena dos cinco tlaloque do Códice Borgia (Figura 32), ambos
os casos analisados acima.
Poderíamos juntar a cena inicial do Rollo Selden a esses exemplos, pois nela se
utiliza a cosmografia para estruturar e dar significados específicos a outra temática – a
história de uma dinastia mixteca – e, sendo assim, talvez o número de pisos celestes
grafados relacione-se com tais conteúdos. Desse modo, essa cena não se constituiria,
necessariamente, como um mapa do espaço celeste que pretenderia expressar sim-
plesmente sua quantidade de níveis.
Da mesma forma, a lista de deidades situadas nos níveis celestes proposta na
Histoire du Mechique também pode ter se baseado na apresentação de uma cena picto-
glífica específica, pois muitos textos alfabéticos coloniais foram compostos a partir de
informações e depoimentos de sábios e alunos indígenas sobre códices tradicionais. A
inexistência, nesses códices, de seções dedicadas a mapear a cosmografia de maneira
geral e universal reforça essa hipótese – assim como não há códices tradicionais que
312 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
220 Além disso, a disposição apresentada na Histoire du Mechique indicaria a possibilidade de trân-
sito das deidades pelos diversos âmbitos cosmográficos, pois há muitos deuses que, em prin-
cípio, não estariam preferencialmente vinculados aos níveis celestes, mas a âmbitos terrestres
e subterrâneos. Tal é o caso de Mictlantecuhtli e Tlalocantecuhtli. Vale notar também que
Ometeotl encontra-se no décimo terceiro nível enquanto que Tonacatecuhtli e Tonacacihuatl,
que em tese seriam apenas avocações suas, estão no sétimo.
221 Cf. Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op.cit., p. 144-6.
citamos na primeira parte deste capítulo.223 Também são mencionadas cavernas com
a função de úteros – no episódio em que Piltzintecuhtli e Xochipilli copulam e geram
Centeotl, o Deus Milho224 – e as cores dos quatro rumos – no episódio em que Tezca-
tlipoca envia Quetzalcoatl através do mar até a casa do Sol para buscar músicos que o
honrem, os quais estariam vestidos de branco, vermelho, amarelo e verde.225
Do mesmo modo que ocorre na Leyenda de los soles, nos Anales de Cuauhtitlan e
nos anais do Vaticano A, o número de topônimos de altepeme mencionados na Histoire
du Mechique a partir dos episódios relacionados a Quetzalcoatl sofre um grande incre-
mento.226 Vimos que os topônimos mencionados chegam a várias centenas em alguns
desses casos.
Qual seria a função dessa complexa memória toponímica entre as tradições de
pensamento nahua? Ademais de sua função na construção de hegemonias político-
tributárias e na confecção de explicações para tais hegemonias, tal memória serviria
também para conferir características históricas à paisagem – pois a menção dos topô-
nimos ocorria, geralmente, em conjunto com a de datas – e para produzir a reverên-
cia pelos locais de habitação dos antepassados. Essa afirmação baseia-se nas análises
que desenvolvemos acima e no texto maia-cakchiquel intitulado Memorial de Sololá.
Esse texto, ao traçar e nomear minuciosamente os sítios da trajetória migratória dos
antepassados, afirma que “...esos montes y esos valles donde ellos pasaron e hicieron
sus recorridos, debemos reverenciarlos sin cesar, porque guardábamos absoluta me-
moria de todos los que hemos mencionado”.227
Em resumo, por todas as análises desenvolvidas acima podemos perceber a co-
existência de distintos padrões e elementos compositivos no interior da Histoire du
Mechique, assim como no interior da Historia de los mexicanos por sus pinturas, do Códice
Vaticano A e do Códice magliabechiano. Todos esses textos apresentam, por um lado,
informações caracteristicamente nahuas, como a localização dos eventos cosmogô-
nicos e históricos por meio da cosmografia e do sistema calendário, e, por outro, a
tentativa claramente vinculada às demandas coloniais cristãs de montar relatos gerais
e didáticos sobre os pressupostos dos textos e pensamento nahuas, tais como a pró-
224 O qual teria se metido embaixo da terra, fazendo com que as diversas plantas, como o algodão,
o milho e diversos outros frutos e sementes nascessem das distintas partes de seu corpo. Cf.
ibidem, p. 155.
226 Entre os altepeme mais citados estão Michatlauhco, Tlachinoltepec, México, Tulancingo, Tula,
Tenayuca, Culhuacan, Cuauhquechollan, Cholula e Cempoala. Cf. ibidem, p. 158-61.
Cosmografia nahua
Por meio da apresentação inicial dos âmbitos do cosmo e das análises desenvolvi-
das na segunda parte deste capítulo, acreditamos que tenha sido possível demonstrar
a complexidade do sistema cosmográfico manejado pelas tradições de pensamento
nahuas, bem como sua participação fundamental na organização gráfica e na compo-
sição dos temas e episódios constantes nos manuscritos pictoglíficos pré-hispânicos e
coloniais tradicionais. A disposição dos conjuntos pictoglíficos de acordo com prin-
cípios do sistema cosmográfico e a grande variedade de glifos e termos designativos
das partes desse sistema – tais como o quincunce, o nacxitl xochitl, o glifo para tlalli, tlal-
228 No entanto, há certa predominância das seleções temáticas e estruturas narrativas de origem
cristã na Histoire du Mechique se a compararmos com as outras fontes nahuas citadas acima, à
exceção apenas do Códice magliabechiano.
Eduardo Natalino dos Santos 315
tecuhtli e Mictlan, as faixas celestes, o glifo para o Sol e os olhos estelares – são alguns
indícios dessa complexidade e importância. Também procuramos demonstrar que a
cosmografia desempenha papéis centrais na composição de episódios em alguns ma-
nuscritos alfabéticos, mas que o mesmo não acontece no caso da organização gráfica
desses textos, pautada pelo tratamento relativamente homogêneo que o sistema de
escrita alfabética tende a dispensar ao espaço escriturário.
Vimos também que a preocupação em dividir o espaço – inclusive por meio de
grandezas matemáticas ou geométricas – e nomear seus âmbitos buscava fundamen-
talmente o entendimento de suas qualidades. O conhecimento prévio de tais quali-
dades mostrou-se indispensável à compreensão de muitos episódios constantes nos
códices e textos alfabéticos, os quais, por sua vez, também contribuíam para agregar
outras características aos âmbitos evocados. É o que ocorre, por exemplo, no caso do
episódio da fuga de Quetzalcoatl para Tlapallan e sua subsequente morte e transfor-
mação em Vênus, narrado no Vaticano A. Isso porque tal fuga se dá em direção a uma
região que seria consonante com a morte de Quetzalcoatl – pois já se caracterizava
pela morte do Sol – e, ao mesmo tempo, essa morte resultou numa nova estrela, com
seus períodos de visibilidade e desaparição, que passou, então, a caracterizar essa
região do Universo.
Pudemos ver também que os âmbitos que compunham o Mundo não se de-
limitavam por fronteiras abruptas ou intransponíveis. Ao contrário, parece que as
distinções entre as regiões eram graduais e transponíveis, servindo, desse modo, mais
para marcar a circulação, o trânsito, o movimento e a alternância dos variados seres
– e podemos incluir as unidades e ciclos calendários nessa categoria – do que para
estabelecer o mapa de um universo fixo e imutável. O vínculo entre os âmbitos cosmo-
gráficos e os ciclos temporais é a melhor mostra da primazia da ideia de alternância
ou turno na configuração do cronotopo nahua. Mencionamos, por exemplo, que os
dias, as trezenas, os anos, os Senhores da Noite, os Senhores dos Dias e os Quecholli
vinculavam-se e circulavam por diversos âmbitos cosmográficos. Ademais, mostramos
também que os deuses não atuavam apenas nos âmbitos que lhes eram mais caracte-
rísticos, pois são citados como participantes em episódios cosmogônicos ou históricos
nas mais diversas regiões do cosmo, dando-lhe movimento ou, dito de outra forma, se-
guindo os movimentos determinados, sobretudo, pelos ciclos calendários. Exemplos
de transitabilidade dos entes divinos pelos âmbitos cosmográficos são a presença de
Mictlantecuhtli nos níveis celestes (Histoire du Mechique) e em um dos quatro rumos
(Códice Fejérváry-Mayer), além de no próprio Mictlan, e de Quetzalcoatl no Inframun-
do (Leyenda de los soles) e no mais alto nível celeste (Rollo Selden), além de no nível
celeste associado aos ventos.
Adicionalmente, essa aparição de deidades em âmbitos que não lhes seriam ca-
racterísticos indica-nos também que o emprego da cosmografia nos escritos tradicio-
nais adaptava-se e particularizava-se de acordo com as informações ou os episódios
316 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
que estavam sendo retratados. Desse modo, não temos nenhum códice pré-hispânico
ou colonial tradicional que apresente os âmbitos cosmográficos de maneira abstrata
e genérica, como vimos ocorrer em alguns códices ou textos alfabéticos vinculados às
demandas missionárias cristãs – retomaremos esse tema no próximo subitem.
Pudemos perceber também que para as tradições de pensamento e escrita
nahuas, de modo geral, as regiões cosmográficas menos tangíveis ao ser humano não
se localizavam em um outro espaço, fora do alcance humano e reservado a entes
sobre-humanos. Isso porque os finados e alguns homens, como os chamados homens-
deuses e alguns reis-sacerdotes, além de certos animais, habitariam ou viajariam pelos
céus, inframundos e Tlalocan, regiões caracterizadas pela presença das deidades. Ao
mesmo tempo, diversas deidades habitariam ou estariam nas montanhas, cavernas
e nos quatro rumos e centro do Universo, regiões marcadas pela presença humana.
Essa distribuição e movimentação de entes pelas regiões do Mundo atestariam a exis-
tência de uma relação bem mais complexa entre âmbitos e seres ocupantes do que
a simples impedição ou exclusividade de ocupação desse ou daquele ente nesse ou
naquele âmbito. Vale notar que com isso não estamos dizendo que o trânsito entre
essas regiões não contasse com uma série de restrições, tais como a realização de
determinados atos rituais229 e o respeito aos ciclos calendários e à vontade divina. No
entanto, não acreditamos que essas restrições sejam suficientes para caracterizar uma
oposição radical e essencial entre dois tipos de âmbitos – ecúmeno e anecúmeno –,
como propõe alguns autores.230
Ademais, embora não tenhamos analisado sistematicamente os atributos dos alte-
peme, acreditamos ter apresentado indícios suficientes para mostrar que essa entidade
político-territorial era concebida pelas tradições de pensamento nahuas como uma
espécie de microcosmo que reproduziria mimeticamente o macrocosmo; ou, dito de
outra forma, que o Mundo era entendido como um altepetl de grandes proporções.
Sendo assim, parece-nos que a relação entre o altepetl e os outros âmbitos cosmográ-
ficos não se caracterizava pela diferenciação entre dois tipos de espaço nos quais vi-
gorariam leis distintas e circulariam seres essencialmente diferentes. Ao contrário, tal
relação se caracterizaria pela contiguidade e sobreposição desses âmbitos, bem como
pelo compartilhamento desigual dos mesmos tipos de entes e qualidades.
Esses altepeme, por meio de seus nomes ou glifos toponímicos, estão presentes
de maneira maciça nos textos produzidos pelas tradições de pensamento nahuas. Os
casos dos Anales de Cuauhtitlan, da Leyenda de los soles, dos anais do Códice Vaticano A, da
Historia de los mexicanos por sus pinturas e mesmo da Histoire du Mechique permitiram-nos
229 Entre os quais estavam aqueles que provocavam alterações de consciência, visões ou sonhos,
tais como os autossacrifícios e o uso de alucinógenos.
230 Entre esses autores está: López Austin, Alfredo. Los mitos del Tlacuache. México: IIA –
Unam, 1998.
Eduardo Natalino dos Santos 317
Pudemos constatar que uma porção considerável de nossas fontes centrais apre-
sentou a cosmografia como parte da estrutura organizacional dos escritos pictoglíficos
ou como pressuposto de leitura dos episódios narrados ou dos temas registrados, pic-
toglífica ou alfabeticamente. Entre essas fontes, podemos destacar o Códice borbónico,
os Anales de Cuauhtitlan, a Leyenda de los soles e partes do Códice Vaticano A, da História de
los mexicanos por sus pinturas e da Histoire du Mechique – embora, nesses três últimos tex-
tos, os conceitos cosmográficos também tenham sido empregados tematicamente.
Comparando os resultados obtidos das análises de nossas fontes centrais, apre-
sentados neste e no capítulo anterior, foi possível perceber também que houve uma
coincidência quase total entre os manuscritos ou seções que empregaram a cosmogra-
fia e o calendário como parte de sua estrutura organizacional ou dos seus pressupos-
tos de leitura – e não como temas gerais. Sendo assim, tais resultados – sintetizados
nas Tabelas 8 e 9 no caso do Capítulo II – se reforçam mutuamente, mostrando que,
de modo geral, esses tipos de uso da cosmografia e do calendário tendem a ocorrer
conjuntamente. Segundo nossas hipóteses, a ocorrência desse tipo de uso seria um in-
dício muito forte do caráter tradicional do manuscrito ou de sua seção, isto é, de uma
produção diretamente vinculada às tradições de pensamento e escrita nahuas. A vali-
dade dessas hipóteses foi reforçada pelas análises pontuais das fontes auxiliares, pois
tais empregos apresentam-se em manuscritos seguramente produzidos por tradições
de pensamento nativas de outras regiões mesoamericanas, tais como o Rollo Selden, o
Códice Borgia e o Chilam balam de Chumayel.
Em contrapartida, vimos que uma parte menos numerosa de nossas fontes centrais
utilizou-se das concepções cosmográficas de forma temática. Entre essas fontes podemos
destacar a primeira seção do Códice Vaticano A e alguns capítulos da Historia de los mexicanos
por sus pinturas e da Histoire du Mechique – no Códice magliabechiano reinou a quase ausência
dos conceitos cosmográficos. Essas mesmas fontes também apresentaram um uso temá-
tico do calendário, como podemos observar nas Tabelas 8 e 9. Como demonstramos em
outra ocasião, esse tipo de uso do calendário e da cosmografia estaria vinculado às de-
mandas coloniais de origem cristã, mais especificamente ao interesse dos missionários em
231 Como citamos em nota anterior, esse autor afirma que “Las informaciones relativas a la dis-
posición de los infiernos y de los cielos es bastante confusa; y no me detengo en ella, máxime
jugando estos lugares un papel mínimo en los mitos y en los ritos”. Graulich, Michel. Mitos y
rituales del México antiguo, op.cit., p. 78.
Eduardo Natalino dos Santos 319
conhecer os hábitos e costumes locais para operar uma conversão profunda, impedindo
a infiltração do que consideravam idolatria nas práticas cristãs.232
Juntando esses dois conjuntos de informações, é possível concluir que uma das
principais transformações no uso escritural da cosmografia durante o século XVI foi a
seguinte passagem: de parte central da estrutura organizacional ou dos pressupostos
de leitura que embasavam a apresentação e compreensão de outros temas, a cosmo-
grafia tornou-se um tema em si, a ser explicado de forma geral e abstrata.
Essa transformação estaria relacionada, principalmente, a dois fatores. Em
primeiro lugar, à mencionada curiosidade cristã sobre esse aspecto do pensamento
nahua, para a qual a cosmografia poderia ser tratada de maneira relativamente se-
parada do calendário, como ocorre, por exemplo, no Vaticano A. Em segundo lugar,
estaria relacionada com a adoção da escrita alfabética, a qual, por tratar o espaço
escritural de modo quase homogêneo, praticamente inviabilizou a continuidade do
papel organizacional que a cosmografia desempenhava nos escritos pictoglíficos. Tais
escritos pressupunham a existência de vínculos posicionais entre os registros dos âm-
bitos e os âmbitos cosmográficos em si – nas representações cristãs do século XVI, esse
tipo de vínculo deveria existir nos mapas, planos e pinturas e não necessariamente
nos textos alfabéticos. Vimos que essa transformação não ocorreu, necessariamente,
com o sistema calendário, que continuou a desempenhar funções estruturais em tex-
tos alfabéticos, tais como os Anales de Cuauhtitlan e a Leyenda de los soles.
Outra transformação no uso escritural da cosmografia foi o abandono, em al-
guns manuscritos pictoglíficos, do sentido anti-horário como princípio fundamental
na organização de páginas que tratavam dos ciclos calendários. Entre os manuscritos
que apresentam essa transformação, estão o Códice Vaticano A e o Códice magliabechia-
no. Como vimos no início deste capítulo, esse princípio refletia e expressava a forma
como se acreditava que o tempo e o espaço se articulavam na própria realidade e, por
esse motivo, encontra-se sistematicamente presente nos manuscritos pré-hispânicos
ou tradicionais, tais como o Borgia, o Borbónico e o Fejérváry-Mayer. Sendo assim, acre-
ditamos que a presença ou ausência do sentido de leitura anti-horário nas centenas
de manuscritos pictoglíficos coloniais pode ser muito útil para estabelecermos apro-
ximações e distanciamentos entre os processos de planejamento e produção desses
manuscritos e as tradições de escrita e pensamento nativas.
Dos manuscritos que tratam da história recente, vimos que os considerados mais
tradicionais – como os Anales de Cuauhtitlan e os anais do Vaticano A – apresentaram
uma quantidade de menções toponímicas muitas vezes superior à que foi detectada
nos menos tradicionais – como a Historia de los mexicanos por sus pinturas e a Histoire
du Mechique. Essa presença numerosa de topônimos é uma característica fundamen-
tal dos livros pictoglíficos nahuas que tratam da migração e da história dos altepeme
– como a Tira de la peregrinación –, bem como dos livros mixtecos que tratam desses
232 Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Deuses do México indígena, op.cit.
320 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
mesmos temas com um certo destaque para as linhagens dirigentes – como o Códice
vindobonense.233 Sendo assim, embora não tenhamos analisado uma amostragem am-
pla desses livros de anais, talvez possamos dizer que houve certa simplificação toponí-
mica na produção da Historia de los mexicanos por sus pinturas e da Histoire du Mechique,
manuscritos que versam sobre as histórias locais, mas cujas organizações internas e
seleções temáticas vincularam-se mais diretamente aos interesses dos missionários,
como vimos no Capítulo I.
Mencionamos que um processo de simplificação semelhante ocorreu na pro-
dução colonial de relatos e textos alfabéticos que coletariam e explicariam as versões
nahuas sobre o passado cosmogônico, adaptando-as ou submetendo-as às seleções
temáticas e estruturas narrativas de origem cristã. Tal processo poderia ser sumaria-
mente caracterizado pela rejeição quase total às informações calendárias – que se en-
contravam sistematicamente presentes nas versões tradicionais desses relatos –, bem
como pelo descarte parcial das informações cosmográficas. Esses procedimentos con-
tribuíram para o que estamos chamando de fabulização do passado nahua, tema que
trataremos em detalhe no próximo capítulo.
233 Cf. Códice Boturini. México: Secretaría de Educación Pública – Dirección General de Educación
Primaria en el DF Núm. 2, 1975/Códice vindobonensis, op. cit.
Capítulo IV
O passado: os relatos
cosmogônicos tradicionais e suas
transformações no século XVI
N este capítulo, seguindo as hipóteses que propusemos na Introdução, iremos
analisar as formas como a cosmogonia nahua é representada nas fontes cen-
trais. Tais hipóteses podem ser resumidas da seguinte maneira: A – os episódios
cosmogônicos nahuas eram apresentados em articulação com marcos calendários e
cosmográficos nos manuscritos tradicionais, pois o emprego desses marcos dotaria
esses episódios de características essenciais à sua composição e compreensibilidade
e, em contrapartida, esses episódios carregariam os âmbitos cosmográficos e as uni-
dades e ciclos calendários de qualidades que passariam a caracterizá-los; B – as fon-
tes mais tradicionais apresentam indícios de que os nahuas não distinguiam o que
estamos nomeando cosmogonia e história, ao menos não como tipos de relatos que
aludiriam a tempos passados qualitativa ou essencialmente diferentes; C – a desvin-
culação dos episódios cosmogônicos de seus marcos calendários e cosmográficos,
presente em algumas de nossas fontes centrais, era parte da fabulização dos relatos
nahuas sobre o passado, processo que estava sendo levado a cabo, principalmente,
pelos missionários cristãos.
Dessa forma, não iremos tratar de todos os aspectos da cosmogonia nahua que
poderiam ser inferidos a partir da análise das fontes centrais, mas apenas demonstrar
como o emprego articulado do calendário e da cosmografia para tratar da cosmogo-
nia dotava os relatos tradicionais de características específicas e, em contrapartida,
como a desarticulação entre esses tipos de informação contribuiu para o processo de
fabulização do passado nahua durante o século XVI.
Para atingir esse objetivo, articularemos as análises e resultados que constam
nos Capítulos II e III – respectivamente, sobre o calendário e a cosmografia – com as
reflexões e análises sobre a cosmogonia. Sendo assim, este capítulo procurará conju-
gar resultados e reflexões sobre os três principais temas deste livro e desempenhará,
portanto, o papel de conclusão.
No entanto, antes de articular os resultados obtidos nos capítulos anteriores com
as novas análises, convêm apresentar as características gerais da cosmogonia nahua
que serão evocadas em tais análises.
324 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
1 As principais fontes nahuas que apresentam esses relatos cosmogônicos são o Códice Vaticano A,
a Leyenda de los soles, os Anales de Cuauhtitlan, a Historia de los mexicanos por sus pinturas e a Histoire
du Mechique.
3 Cf. Códice Vaticano A. Graz/México: ADV/FCE, 1996, p. 4v-7r. / Historia de los mexicanos por
sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 25-43.
4 Cf. ibidem, p. 4v-7r. / Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de Historia
– Unam, 1945, p. 119-20. Essas transformações e a continuidade de elementos de uma idade
na subsequente também são explícitas no Popol vuh. México: FCE, 1996, p. 23-110.
Eduardo Natalino dos Santos 325
5 O Códice Vaticano A (op. cit., p. 4v) e a Historia de los mexicanos por sus pinturas (In: Mitos e historias
de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 30-4) mencionam os gigantes na primeira
idade, enquanto que os Anales de Cuauhtitlan (In: Códice Chimalpopoca. México: Instituto de His-
toria – Unam, 1945, p. 5) os localizam na segunda e a Histoire du Mechique (In: Mitos e historias
de los antiguos nahuas. México: Conaculta, 2002, p. 144-5) na terceira idade.
6 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit. p. 119-21/Códice Vaticano A, op. cit.,
p. 4v-7r./Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas,
op.cit., p. 25-43.
7 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-21. O mesmo ocorre no Códice
Vaticano A, que cita o acecintli (milho silvestre), o acotzintli (milho silvestre das alturas) e o cincoco
(planta semelhante ao milho). No entanto, esse manuscrito não cita o milho como o alimen-
to dos homens da quarta e atual idade. Cf. Códice Vaticano A, op. cit., p. 4v-7r. Algumas dessas
plantas são consideradas possíveis antecessores silvestres do milho, cuja origem é, ainda hoje,
motivo de polêmica. Cf. Anders, Ferdinand e Jansen, Maarten. Religión, costumbres e historia de
los antiguos mexicanos. Graz/México: ADV/FCE, 1996.
Por tudo isso, podemos perceber que tanto os relatos cosmogônicos nahuas
quanto o Popol vuh não tratam da “...existencia de diversos mundos, sino de la génesis
del mundo, entendida como la progresiva aparición de sus componentes y la transfor-
mación del hombre”.9 Dessa forma, é fundamental percebermos que estamos diante
de explicações que consideram o mundo atual como o resultado dos episódios ocorri-
dos nessas idades anteriores, as quais, portanto, não teriam terminado completamente
para as tradições de pensamento nahuas. Essa concepção implica o emprego de uma
lógica explicativa do passado que conjuga a sucessão e a sobreposição de episódios ao
longo do tempo. Veremos, mais abaixo, como essa lógica ajusta-se perfeitamente com
a que rege o sistema calendário, a qual, como vimos no Capítulo II, combina a dia-
cronia e a sincronia nas unidades calendárias empregadas para, entre outras coisas,
contabilizar a duração das idades do Mundo e para situar seus episódios.
A ocorrência desses cataclismos e transformações não era aleatória, pois a du-
ração de cada idade seria regida por ciclos temporais que confeririam um ritmo à
sucessão, principalmente pelo ciclo de 52 anos sazonais, pois as quantidades de anos
mencionadas nos relatos para a duração de cada idade são, em geral, um múltiplo
desse ciclo. Na verdade, talvez seja mais correto invertermos essa relação e dizer que,
para as tradições de pensamento nahuas, os ciclos calendários de 52 anos teriam essa
duração por supostamente corresponder a esse ritmo de criações, transformações e
destruições do Mundo. De qualquer forma, cada idade ou sol e seu respectivo deus
patrono – inclusive os atuais – vigorariam apenas por um período ou, dito de outra
forma, teriam um determinado turno a cumprir.
Vimos no Capítulo III que essa ideia de turno – isto é, estar em um local específi-
co por um certo período realizando uma determinada tarefa – desempenhava um pa-
pel central na composição do cronotopo nahua, pois expressaria a articulação entre o
tempo e o espaço, já que a mensuração das unidades e ciclos calendários, bem como
do âmbitos cosmográficos, dependia diretamente dos turnos do Sol e de outros cor-
pos celestes. Devido a essa dependência, o movimento regular dos astros, sobretudo
o do Sol, era tido como garantia de continuidade da ordem da idade em curso pelas
tradições de pensamento nahuas. Contrariamente, a imobilidade ou o movimento
incorreto dos corpos celestes de turnos regulares condenariam o Mundo a mais uma
destruição, como a que teria ocorrido, por exemplo, na segunda idade, que terminara
porque o Sol não se movia do meio do Céu.10 A imobilidade do Sol em meio do Céu
também teria sido um problema no início da idade atual, o qual fora resolvido com as
guerras e sacrifícios de sangue que passaram a alimentar o movimento do astro.11
9 Garza Camino, Mercedes de la. El hombre en el pensamiento religioso náhuatl y maya. Instituto de
Investigaciones Filológicas – Unam, 1990, p. 29.
11 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 122-4.
Eduardo Natalino dos Santos 327
Uma implicação direta dessa concepção que esboçamos acima – isto é, que exis-
tiram idades anteriores encerradas por cataclismos e transformações e que suas dura-
ções eram regidas por ciclos calendários – é a ideia que o mundo atual estava sujeito a
destinos semelhantes aos das idades anteriores, pois ele era o resultado transitório da
sucessão e sobreposição dessas idades. Esse tipo de visão sobre o mundo está presente,
por exemplo, nos Anales de Cuauhtitlan. Esse texto, ao referir-se ao Quinto Sol, chama-
do de Nahui Ollin (Quatro Movimento), afirma que “Según dejaron dicho los viejos, en
éste habrá terremotos y hambre general, con que hemos de perecer”.12
Veremos mais abaixo, ao analisarmos a forma como o Códice borbónico registra a
cerimônia do Fogo Novo de 1507, que essa ideia fundamenta a articulação que esta-
mos propondo existir entre cosmogonia e história recente para as tradições de pen-
samento nahua. Isso porque os tempos presentes seriam vistos como cosmogônicos,
pois a criação do mundo não era um processo que havia se encerrado no passado: o
Mundo estaria em criação e destruição constantes.
Outra característica compartilhada pelos diversos relatos cosmogônicos nahuas
é a atuação de diferentes deuses na criação e transformação do Mundo ao longo das
idades. Em geral, tais relatos começam com as ações de deuses primordiais e incria-
dos, tais como Ometeotl, também chamado de Tonacatecuhtli e Tonacacihuatl. Tais
deuses teriam iniciado o processo de criação dando origem, em geral, a outros deu-
ses, os quais se encarregaram diretamente de criar os entes e âmbitos do Mundo.
É o que vimos ocorrer, no Capítulo II, na História de los mexicanos por sus pinturas,
segundo a qual Tonacatecuhtli e Tonacacihuatl criaram Tezcatlipoca Vermelho, Tez-
catlipoca Negro, Quetzalcoatl e Huitzilopochtli, sendo que os dois últimos teriam sido
encarregados de criar os outros deuses, as árvores, os animais, o Inframundo, os céus,
o homem, os alimentos humanos e também o calendário. A partir de então, as idades
subsequentes são regidas e têm seus inícios e fins causados pelas ações alternadas ou
conjuntas dos deuses dessa primeira geração, sobretudo por Quetzalcoatl e Tezcatli-
poca, ou dos que foram por eles criados. Tais ações, como mencionamos acima, obe-
decem aos ciclos calendários, empregados também para organizar a disposição das
partes do próprio relato desde a menção de suas criações durante a primeira idade.
Esses deuses não possuem papéis cosmogônicos fixos ou exclusivos, tais como
os de criadores ou destruidores. Os mesmos deuses poderiam acabar com uma idade
por meio de suas brigas e, logo em seguida, aliar-se para dar início à subsequente,
realizando tarefas como reerguer o Céu ou criar o homem. Tezcatlipoca e Quetzalco-
atl são um exemplo clássico de deuses que ora atuam de modo antagônico e ora de
maneira colaborativa.
As idades do Mundo poderiam ser aludidas pelos nomes dos deuses que as re-
giam ou dos dias do tonalpohualli relacionados com seus cataclismos finais ou outros
episódios importantes. Por vezes, esses nomes aparecem acompanhados pelo termo
tonatiuh, que significa sol. Sendo assim, no primeiro caso temos nomes como Sol de
Tezcatlipoca, Sol de Quetzalcoatl, Sol de Tlalocantecuhtli e Sol de Chalchiuhtlicue,13
e, no segundo, nomes como Nahui Ocelotl (Quatro Jaguar), Nahui Ehecatl (Quatro
Vento), Nahui Quiahuitl (Quatro Chuva), Nahui Atl (Quatro Água) e Nahui Ollin (Qua-
tro Movimento ou Terremoto).14
Como mencionamos de início, o número de idades apresentado nos relatos nahuas
varia entre quatro e cinco. Alguns estudiosos acreditam que os mexicas teriam sido os
responsáveis pelo acréscimo da quinta idade aos relatos tradicionais, que apresenta-
riam, portanto, apenas quatro idades. Por exemplo, Ross Hassig acredita que todos os
povos do altiplano central mexicano do século XV acreditariam que as idades anterio-
res teriam durado 2.028 anos e que os astecas subdividiram uma delas para poder acres-
centar uma quinta idade. Teriam dividido a idade de 676 anos em uma de 364 e outra
de 312 anos, como aparece na Leyenda de los soles e na Historia de los mexicanos por sus pin-
turas.15 No entanto, Hassig não explica como dar conta das durações diferentes e muito
mais amplas que aparecem no Vaticano A, de 12.822 anos apenas para as três idades
anteriores,16 e na Histoire du Mechique, de 10.200 anos apenas para a idade atual, quantia
que pode ser um erro, pois o texto agrega a informação que ela seria a somatória de “...
cem ciclos dos que temos tratado...”,17 que totalizariam, na verdade, 5.200 anos.
Tal acréscimo teria sido realizado pelos mexicas para justificar as guerras e
a hegemonia político-tributária alcançada, pois seus relatos afirmam que o movi-
mento do Quinto Sol, criado em Teotihuacan, era alimentado pelo sangue huma-
no, o que justificaria, entre outras coisas, as guerras para a obtenção de cativos que
seriam sacrificados.
13 Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit.,
p. 25-43. Esse texto não traz explicitamente o nome da idade atual, mas relaciona seus princi-
pais eventos a Quetzalcoatl e Tezcatlipoca.
14 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-21.
15 Cf. Hassig, Ross. Time, history and belief in Aztec and Colonial Mexico. Austin: University of Texas
Press, 2001. Luis Barjau acredita na existência de tradições diferentes, cujos distintos relatos
apresentariam quatro ou cinco sóis. No entanto, esse autor trata fontes que claramente apre-
sentam cinco sóis como se trouxessem apenas quatro, como a Histoire du Mechique. Cf. Barjau,
Luis. El mito mexicano de las edades. México: Universidad Juárez Autónoma de Tabasco e Grupo
Editorial Miguel Ángel Porrúa, 1998, p. 70-3.
16 A duração total das quatro idades chegaria a 18.028 anos segundo esse manuscrito. Cf. Códice
Vaticano A, op. cit., p. 4v-7r.
17 No original em francês: “...cent temps de ceux que nous avont dit...” Histoire du Mechique.
In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 146. Além disso, 5.200 anos seria a quantia
tradicionalmente mencionada pelos maias para a duração de cada uma das idades do mundo,
as quais seriam contabilizadas, no entanto, em anos tun, isso é, de 360 dias.
Eduardo Natalino dos Santos 329
Vimos no Capítulo II que a História de los mexicanos por sus pinturas menciona a
criação do sistema calendário no início da primeira idade, logo depois da criação de
Oxomoco e Cipactonal.18 Isso garantiria que “Las consecutivas etapas de creaciones y
destrucciones del mundo se realizan ya en el tiempo medido por medio del sistema
de veintenas y trecenas”.19 A relação entre a criação do calendário e sua manipulação
18 Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit.,
p. 28-9.
e guarda pelo casal primordial Oxomoco e Cipactonal também é citada na parte ini-
cial dos Anales de Cuauhtitlan.20 Por essas participações nos primeiros episódios cosmo-
gônicos, esse casal é tido, em geral, como sinônimo de ancestralidade. Essa conotação
é confirmada no Códice Vaticano A, segundo o qual esse casal teria sido criado pelo
próprio Ometeotl, o Deus Dois primordial e incriado, que habitaria por sobre os níveis
celestes e que também era chamado de Tonacatecuhtli e Tonacacihuatl.21
A criação do calendário durante os primeiros episódios cosmogônicos e sua rela-
ção com esse casal está expressa nos tonalamatl e não apenas nos relatos explicitamente
cosmogônicos. Isso porque os Patronos da primeira trezena do tonalpohualli são jus-
tamente Tonacatecuhtli e Tonacacihuatl, ou Ometeotl, conforme podemos observar,
por exemplo, no Códice Vaticano A22 e no Códice Borgia (Figura 7). Ademais, o primeiro
dia dessa trezena é cipactli, signo calendário que vimos estar associado a Tlaltecuhtli, o
Monstro da Terra, ente que também estaria entre as primeiras criações cosmogônicas.
A segunda e terceira trezenas do tonalpohualli são regidas, respectivamente, por
Quetzalcoatl e Tezcatlipoca, como podemos observar nos mesmos códices citados acima
ou na Tabela 6, que apresenta os Patronos das trezenas segundo o Códice borbónico. Essas
deidades fazem parte da primeira geração criada por Ometeotl, conforme explicamos
acima. Depois, nas demais trezenas, de modo geral, temos deuses que foram criados prin-
cipalmente por Quetzalcoatl e Tezcatlipoca, tais como Chalchiuhtlicue, Tlaloc, Mictlante-
cuhtli, Tonatiuh e Tlahuizcalpantecuhtli, como também podemos observar na Tabela 6.
A manutenção da sequência de criação das deidades na distribuição dos Patronos
das Trezenas do tonalpohualli mostra-nos que sua organização levou em conta a cosmo-
gonia. Dessa forma, o tonalpohualli embasava-se num conceito temporal que incorpo-
rava o passado distante e o utilizava para calcular e prognosticar as influências de seus
eventos nos tempos presentes e futuros. Aliás, a possibilidade de sondar as qualidades
do tempo por meio dos ciclos calendários também teria sido estabelecida nas primeiras
criações cosmogônicas, pois Oxomoco e Cipactonal são incumbidos, entre outras coi-
sas, de manejar o calendário e, com isso, eventualmente, fazer prognósticos.23
cuanto existe en éste, los dioses se dieron la tarea de crear un movimiento en el tiempo
(...) es importante notar que las creaciones anteriores se realizaron cuando aún no existía
la noción del tiempo...”. Castellón Huerta, Blas Román. Mitos cosmogónicos de los nahuas
antiguos. In: Monjaráz-Ruiz, Jesús (coord.). Mitos cosmogónicos del México indígena. México:
INAH, 1989, p. 141. Infelizmente, o autor não menciona as fontes em que se baseia para
fazer essa afirmação.
23 Vimos no Capítulo II que esse casal é mencionado nos Anales de Cuauhtitlan (In: Códice Chimal-
popoca, op. cit., p. 3-4) como responsável pela guarda do calendário e na Historia de los mexicanos
Eduardo Natalino dos Santos 331
por sus pinturas (In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 26-8) como o que prevê a
sorte. Ademais, Oxomoco e Cipactonal aparecem no Códice borbónico (Graz/México/Madri:
ADV/FCE/SEQC, 1991, p. 21-2) lançando a sorte com nove grãos de milho (Figura 10) em
uma seção que pode ser relacionada com a cosmogonia e da qual também participam Quetzal-
coatl e Tezcatlipoca.
24 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-20.
26 Cf. Códice Vaticano A, op. cit., p. 14v. Vimos em nota do capítulo anterior que Sahagún também
destaca esse dia ao comentar as trezenas do tonalpohualli. Cf. Sahagún, Bernardino de. Historia
general de las cosas de Nueva España. México: Conaculta, 2002, p. 353.
332 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
27 Ou aqueles que contam e relatam os dias e destinos, isto é, um tipo de especialista em prognóstico
por meio da leitura do tonalamatl.
28 A expressão entre colchetes foi inserida por mim. Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpo-
poca, op. cit., p. 11.
29 Acreditamos que atribuir aos povos mesoamericanos a separação entre tempos qualitativamente
distintos é inadequado, mesmo se propondo que esses tempos seriam vistos como paralelos e
relacionados, ou seja, como se o tempo da cosmogonia mantivesse a presença eterna da atuação
dos deuses na ordem cósmica, em meio da qual ocorreriam as ações humanas. Tal proposta
encontra-se em López Austin, Alfredo. Los mitos del Tlacuache. México: IIA – Unam, 1998.
Eduardo Natalino dos Santos 333
dios do passado distante quanto do recente, bem como a ocorrência de episódios que
classificaríamos como cosmogônicos na idade atual, apontam para certa homogenei-
dade entre todos os tempos passados no que diz respeito às suas características e aos
agentes de seus eventos – ou ao menos entre os tempos de todos os Sóis.
Voltaremos ao tema da articulação entre história e cosmogonia no pensamento
nahua no próximo subitem. Procuraremos mostrar que vários outros indícios apon-
tam para a existência da concepção de um passado integralmente sujeito aos mesmos
tipos de eventos, agentes e mensuração temporal.
A menção de quantias elevadas de anos xihuitl para mensurar a duração das ida-
des anteriores do Mundo indica-nos outra característica fundamental do pensamento
cosmogônico nahua: a construção de uma perspectiva temporal relativamente ampla
e usada para, entre outras coisas, mapear as cargas e influências que recaíam sobre as
unidades e ciclos calendários. O mapeamento seria mais completo quanto mais am-
plo fosse o período abarcado, pois, desse modo, abrangeria uma quantidade maior de
eventos que haviam contribuído para compor as características das unidades e ciclos
calendários.30 Como citamos no Capítulo II, os cálculos e registros calendários, inclu-
sive os relacionados à cosmogonia, estavam a serviço do controle e da qualificação do
tempo – e não da quantificação pela quantificação.
A realização de cálculos com cifras temporais amplas é muito conhecida no caso
dos maias e pouco citada no dos nahuas. Até onde sabemos com segurança, a data-
ção maia para o início da idade atual refere-se a um passado muito mais remoto do
que aquele que estaria referenciado nos registros calendários dos anais e dos monu-
mentos nahuas e, também, nos textos alfabéticos coloniais que transcreveriam par-
cialmente esses registros. No entanto, há registros calendários mixteco-nahuas que
talvez situem o início da idade atual num passado tão remoto quanto o estabelecido
pela data inicial maia. O problema é que esses registros estão grafados por meio do
xiuhmolpilli e os nomes dos anos repetem-se a cada cinquenta e duas unidades nessa
conta calendária, gerando margem a dúvidas, como vimos no Capítulo II, no momen-
to de situar precisamente um ano registrado isoladamente no interior do contínuo
e amplo registro da conta dos anos – que caracteriza os livros de anais. Sendo assim,
a antiguidade à qual alguns registros calendários mixteco-nahuas remeteriam não é
aceita universalmente entre os estudiosos.
É o caso, por exemplo, do ano matlactli omei acatl (13 junco), grafado na parte supe-
rior do anel mais externo da Pedra do Sol (Figura 38), que corresponde, provavelmente,
ao ano de 1479, data da confecção do monumento ou – e não excludentemente – de
30 No caso dos maias, há registros calendários que aludem a muitos milhões de anos no passado,
o que talvez seja um indício que seus produtores construíram um conceito de tempo, e talvez
de Mundo, sem princípio ou início. Cf. Gifford, James C. Ideas concerning maya concepts of
the future. In: Browman, David L (edit.). Cultural continuity in Mesoamerica. Paris/Chicago:
Mouton Publishers/The Hague/Aldine, 1978.
334 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
34 Cf. Anders, Ferdinand et alii. Origen e historia de los reyes mixtecos. Graz/México/Madri: ADV/
FCE/SEQC, 1992, p. 18-9.
38 Embora na Leyenda de los soles não fique claro se a cifra inicial de 2.513 anos, que mencionamos
no Capítulo II, alude ao total das cinco idades e, portanto, ao início da primeira idade, ou ape-
nas à duração da idade atual no ano de 1558, momento em que o texto foi escrito. Cf. Leyenda
de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119.
336 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Ao longo dos Capítulos II e III pudemos ver que as unidades e ciclos calendá-
rios relacionavam-se aos âmbitos cosmográficos, sobretudo com os quatro rumos e o
40 No entanto, mesmo ao estabelecer conjunções entre eventos que teriam ocorrido em anos de
mesmo nome, a diacronia não deixava de estar presente, pois outros ciclos participavam dessas
conjunções e “...los productos de las distintas conjunciones particularizaban los acontecimien-
tos...” López Austin, Alfredo. La construcción de la memoria. In: La memoria y el olvido. México:
Inah, 1985, p. 78. López Austin acredita que a história humana era concebida como irrepetí-
vel, mas dentro de ciclos cosmogônicos repetíveis em última instância, isto é, ao se considerar
um lapso temporal gigantesco. Em suas palavras: “...para la historia humana, prácticamente los
acontecimientos sociales y políticos eran irrepetibles, y de allí la utilidad de registrarlos históri-
camente como tales. Pero, en resumen, que el carácter del tiempo cósmico era cíclico: cíclico
en forma gradual y creciente.” Ibidem, p. 79.
41 Como a proposta por Carmen Bernand e Serge Gruzinski ao referirem-se à concepção de tem-
po dos povos mesoamericanos: “Assim, encontramo-nos frente a uma temporalidade cíclica
que transforma o presente em passado e que nega o acaso e o futuro”. Bernand, Carmen e
Gruzinski, Serge. História do Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 1997, p. 17.
centro, mas também com os níveis celestes e pisos do Inframundo. Sendo assim, as
citações calendárias presentes nos relatos cosmogônicos também eram uma forma de
evocar determinados âmbitos do Mundo.
No Capítulo III lançamos a seguinte pergunta: designar as várias idades com
nomes de dias seria uma forma de evocar os quatro rumos para expressar o princípio
da rotatividade do tempo pelo espaço? Naquela ocasião vimos que o Códice Vaticano A
apresenta os glifos de três dias relacionados às três primeiras idades, embora não se
mencione nas glosas que tais datas sirvam para nomeá-las. Essas datas são, respectiva-
mente, matlactli atl (10 água), ce itzcuintli (1 cão) e chiconahui ollin (9 movimento).43 Esses
dias pertencem, respectivamente, a trezenas relacionadas aos rumos sul, norte e leste.
Sendo assim, temos três dias relacionados a três regiões distintas de acordo com esse
manuscrito, fato que nos levou a formular a tal pergunta.
A Leyenda de los soles e os Anales de Cuauhtitlan citam nomes de dias diferentes
dos relacionados acima para designar as idades. Esses dois textos utilizam os mes-
mos cinco dias, em ordens diferentes, para nomear as idades do Mundo: Nahui
Ocelotl (Quatro Jaguar), Nahui Ehecatl (Quatro Vento), Nahui Quiahuitl (Quatro
Chuva), Nahui Atl (Quatro Água) e Nahui Ollin (Quatro Movimento).44 Nesse caso,
as duas primeiras datas pertencem a trezenas que se relacionam ao poente, a ter-
ceira data a uma trezena relacionada ao sul e as duas últimas ao norte. Podemos
perceber que nem todos os rumos do Universo são contemplados nessas datas –
assim como no caso do Vaticano A – e que, ademais, temos repetições de rumos em
duas ocasiões segundo a Leyenda de los soles, relato do qual tomamos a sequência
apresentada acima.45
Sendo assim, acreditamos que não é possível estabelecer uma relação entre as
idades do Mundo e as quatro regiões cosmográficas por meio do tonalpohualli, ciclo
calendário presente na cosmogonia que mais facilmente se prestaria a isso. Apesar
disso, há autores que acreditam que tal relação exista46 e, para estabelecê-la, se ba-
seiam nas cores que por vezes são associadas às idades – como no Vaticano A47 – ou em
43 Cf. Códice Vaticano A, op. cit., p. 4v-6v. No Vaticano A não se menciona um dia relacionado à
quarta idade.
44 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-21/ Cf. Anales de Cuauhtitlan.
In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 5. Há uma concordância parcial na ordenação das idades
entre esses dois manuscritos, pois em ambos as datas que nomeiam a terceira e quinta idades
são, respectivamente, Nahui Quiahuitl e Nahui Ollin.
45 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-21.
46 Por exemplo, Barjau, Luis. El mito mexicano de las edades, op. cit.
47 Esse códice menciona, respectivamente, as cores branca, amarela, vermelha e negra para as
quatro idades. Cf. Códice Vaticano A, op. cit., p. 4v-7r.
338 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
gravados em pedra que apresentam os glifos das idades dispostos pelos quatro rumos
– como a Pedra do Sol.
Vimos no Capítulo III que apenas a associação entre o leste e o vermelho é rela-
tivamente estável. Nos demais casos, há variações e, sendo assim, não poderíamos che-
gar a uma associação universal e definitiva entre as idades e os rumos segundo as cores
mencionadas no Vaticano A – o que não quer dizer que a menção dessas cores não
tivesse o propósito de estabelecer tal associação no caso específico desse manuscrito.
No caso da Pedra do Sol, vimos no Capítulo III que o centro desse imenso grava-
do é ocupado pela representação das cinco idades do mundo, sendo que as quatro
anteriores distribuem-se no interior do glifo ollin, mais especificamente em suas
quatro extremidades, como podemos observar na Figura 27. A idade atual, Nahui
Ollin (Quatro Movimento), estaria registrada justamente por meio desse glifo, que
contém as demais em seu interior. Tal arranjo alude, possivelmente, a um conceito
presente reiteradamente nos relatos cosmogônicos nahuas e que mencionamos na
primeira parte deste capítulo: as idades anteriores não terminavam totalmente e a
idade atual, portanto, traria em si parte de todas as anteriores.
Se considerarmos que esse gravado está orientado, assim como a primeira página
do Códice Fejérváry-Mayer (Figura 20), e que as quatro pontas retangulares do glifo ollin
marcam os limites entre os quatro rumos, poderíamos propor que as quatro idades
ocupariam a posição das grandes árvores que sustentariam os céus nas esquinas do
mundo. Por esse motivo, seria difícil estabelecer de maneira inequívoca a que região
o glifo de cada idade estaria relacionado. Por exemplo, o glifo nahui ocelotl, que pode
ser visto no canto superior-direito da Figura 27 e que representaria a primeira idade
segundo a Leyenda de los soles, poderia ser relacionado ao rumo oriental ou meridional,
pois se encontra no limite entre essas duas regiões.
Há outro gravado mexica em pedra que registra as idades do Mundo de modo
muito semelhante ao da Pedra do Sol, mas que não nos ajuda a resolver a ambiguidade
da relação entre rumos e idades que vimos ocorrer nesse gravado, pois as distribui
pelas “esquinas do mundo” de modo totalmente diferente. Trata-se de uma espécie
de lápide produzida provavelmente no século XV e que chamaremos de Pedra dos
cinco sóis.48
Como podemos observar na Figura 35, que reproduz a face gravada da Pedra dos
cinco sóis, o glifo Nahui Ollin encontra-se no meio dos glifos das quatro idades ante-
48 Essa lápide é denominada Placa em pedra com os cinco sóis no catálogo que estamos utilizando.
Desconhecemos se possui uma denominação consagrada entre os estudiosos e, por isso, opta-
mos por Pedra dos cinco sóis. É de tamanho bem menor que a Pedra do Sol, medindo 54 x 45 x 25
cm, mas, assim como ela, foi encontrada no centro cerimonial de México-Tenochtitlan, o que
ligaria sua produção e uso à elite dirigente mexica. Atualmente, encontra-se no Peabody Mu-
seum, em Yale, Estados Unidos. Cf. Matos Moctezuma, Eduardo et alii. Aztecs. Londres: Royal
Academy of Art/Thames and Hudson, 2002.
Eduardo Natalino dos Santos 339
riores, que se distribuem pelos quatro cantos em uma disposição que, como dissemos,
se assemelha à que se encontra na Pedra do Sol. No entanto, na Pedra dos cinco sóis, os
glifos das quatro idades anteriores ocupam esquinas distintas em relação ao outro gra-
vado. A idade Nahui Ocelotl (Quatro Jaguar), por exemplo, está localizada no canto
superior-esquerdo e não no superior-direito, como na Pedra do Sol (Figura 27 ou 38).
Ao comparar os dois gravados em pedra, percebemos que todos os glifos relacionados
às idades anteriores ocupam posições distintas.
Veremos abaixo que um outro gravado mexica, a Pedra das idades do Mundo de
Moctezuma II (Figura 39), também apresenta os glifos das quatro idades anteriores em
seus quatro cantos e em torno do glifo da idade atual, mas em uma disposição que não
coincide com as apresentadas em nenhum dos dois casos anteriores.
Dessa forma, tanto a menção de cores ligadas às idades do Mundo no Vaticano
A quanto a distribuição espacial dos glifos calendários que nomeiam essas mesmas
idades nos gravados em pedra mexicas não nos permitem relacionar univocamente as
quatro idades anteriores com os quatro rumos do Universo. Por outro lado, isso não
significa que a distribuição dos glifos que nomeavam as idades do Mundo pelos qua-
tro cantos dos gravados mexicas em pedra fosse aleatória ou não aludisse aos quatro
rumos do Universo.
Nos três gravados mencionados – a Pedra do Sol, a Pedra dos cinco sóis e a Pedra das
idades do Mundo de Moctezuma II –, a sequência entre as quatro idades anteriores é a
mesma se observarmos o princípio de que a leitura se dá em sentido anti-horário nos
textos pictoglíficos organizados pela concepção dos quatro rumos. Em todos os três
gravados, a sequência apresentada é: Nahui Ocelotl, Nahui Ehecatl, Nahui Quiahuitl
e Nahui Atl, a qual condiz com a que se encontra na Leyenda de los soles.49
Sendo assim, podemos dizer que a concepção cosmográfico-calendária da rota-
tividade anti-horária do tempo pelas quatro direções está organizando a disposição
dos glifos nesses gravados e, portanto, relacionando as idades anteriores a essa con-
cepção. No entanto, nenhuma combinação fixa entre as quatro idades e os quatro
rumos pode ser estabelecida pela análise dos três gravados. Dessa maneira, parece
que estamos diante da aplicação de um mesmo conceito calendário-cosmográfico
– o da rotatividade do tempo pelos quatro rumos em sentido anti-horário – na orga-
nização de uma mesma temática, isto é, a das idades do mundo. O resultado é rela-
tivamente variado, pois parece que se trata de “jogar” com as possíveis combinações
entre dois conjuntos complexos – os rumos e as idades – sem romper com alguns
cânones mínimos – a centralidade da idade atual e o sentido anti-horário. Vimos no
Capítulo III que algo parecido ocorre em relação aos níveis celestes, pois diversas
quantias são mencionadas de acordo com as distintas fontes ou com o tema de cada
conjunto pictoglífico.
49 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-20.
340 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
50 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 120-1.
51 Forma empregada na glosa para designar o penúltimo nível do Inframundo. Cf. Códice Vaticano
A, op. cit., p. 2r.
sorte com os nove grãos de milho em meio dos anos do xiuhmolpilli que se dispõem
pelas quatro direções e nelas circulam em sentido anti-horário; que ambos estão no
interior de um recinto quadrangular como a superfície da Terra e cuja entrada está
voltada para Tonatiuhichan, a Casa do Sol; que esse recinto repousa sobre as águas
imensas (teoatl) ou sobre um manancial de água que se liga ao Inframundo.
É verdade, como já dissemos, que não entendemos a importância da menção
dos âmbitos cosmográficos para todos os episódios relatados nos textos pictoglífi-
cos e alfabéticos nahuas, mas isso não nos autoriza a menosprezá-la. Por exemplo,
o Chilam balam de Chumayel menciona que os quatro bacaboob (árvores ou deuses que
sustentam os céus) firmaram-se em seus lugares depois do grande dilúvio para per-
mitir a vida do homem amarelo. Depois disso, “...Uuc-Chekmal vino de la séptima
capa del cielo. Cuando bajó, pisó las espaldas de Itzám-Cab-Aim [“Brujo-del-agua-
tierra-cocodrilo”] el así llamado”.53 Vimos que as relações nahuas dos níveis celestes
apresentam quantidades variadas e diferentes atributos para esses níveis e, até onde
eu saiba, não há um texto pictoglífico ou alfabético maia-iucateco que apresente e
caracterize os níveis celestes. Sendo assim, é muito difícil saber que qualidades a sé-
tima camada do céu conferiria a Uuc-Chekmal, que no episódio mencionado baixa
sobre as costas de Tlaltecuhtli.
Outra característica da cosmografia indispensável para se entender os relatos
nahuas sobre o passado é a possibilidade de aplicar um conceito relacionado a uma
macrorregião às suas partes ou frações, dependendo da abrangência do episódio
narrado. Por exemplo, no Capítulo III vimos que o conceito dos quatro rumos era
empregado para dividir a superfície terrestre em sua totalidade, e que essa quadri-
partição era empregada para explicar determinados eventos cosmogônicos, como o
reerguimento dos céus por meio de quatro árvores ou deuses em suas esquinas.54
Em contrapartida, também vimos que esse mesmo conceito era empregado para de-
limitar e dividir espaços mais circunscritos e que se situavam num ponto específico
da superfície terrestre. Por exemplo, os Anales de Cuauhtitlan mencionam a divisão e
organização física do altepetl que dá nome aos anais de acordo com a concepção dos
quatro rumos, a qual também teria gerenciado a construção de seu templo princi-
pal.55 Sendo assim, teríamos a concepção dos quatro rumos delimitando e dividindo
três âmbitos sobrepostos: o templo de Cuauhtitlan, a própria Cuauhtitlan, sobre a
qual estava o templo, e a superfície da Terra, sobre a qual estão Cuauhtitlan e seu
templo. Essa sobreposição poderia ser uma maneira de vincular episódios e obras do
passado recente – como Cuauhtitlan e seu templo principal – a eventos cosmogônicos
54 Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit.,
p. 36.
57 Cf. The essential Codex Mendoza. Berkeley/Los Ángeles/Londres: University of California Press,
1997, p. 2r.
Eduardo Natalino dos Santos 343
Vimos nos Capítulos II e III que os relatos sobre o passado distante ou recente,
isto é, a partir da fase tolteca e migrações chichimecas, eram realizados por meio dos
mesmos marcos temporais e espaciais. Agora, procuraremos mostrar que os relatos
acerca do passado recente, sobretudo nos manuscritos mais tradicionais, eram con-
cebidos como uma espécie de particularização da história no interior da idade atual,
que passaria a focalizar determinados grupos humanos ou altepeme, mas que não dei-
xaria de se articular com os relatos sobre as idades do Mundo.
Caso isso venha a se mostrar correto, teremos dado mais um passo para com-
provar a efetividade de uma de nossas hipóteses específicas, isto é, que as tradições
de pensamento e escrita nahuas não distinguiam o que estamos chamando de cos-
mogonia e história recente como tipos de discursos ou registros que aludiriam a
episódios, tempos ou espaços essencialmente diferentes e marcados por fronteiras.
Ao contrário, procuraremos mostrar que a cosmogonia e a história recente eram
vistas como partes articuláveis do passado, o qual poderia ter essa ou aquela fase
enfatizada no relato.
Essa história particularizada poderia se associar aos relatos gerais sobre as idades
do mundo, basicamente, de duas formas: pelo encadeamento cronológico sequen-
cial ou pela inserção de alguns episódios recentes diretamente no marco temporal e
conceitual das idades do mundo. Frequentemente, essa segunda forma de associação
era realizada por meio de vínculos estabelecidos pelas concepções cosmográficas ou
unidades calendárias, como procuraremos demonstrar abaixo.
Encadeamento cronológico
Das fontes nahuas que estamos analisando, três textos alfabéticos e um pictoglí-
fico apresentam a história recente encadeada diretamente às idades do mundo por
meio da progressão temporal dos episódios: respectivamente, a Leyenda de los soles,
a Historia de los mexicanos por sus pinturas, a Histoire du Mechique e o Códice Vaticano A.
Vejamos como isso ocorre em cada um desses textos.
O texto da Leyenda de los soles inicia com a informação sobre a duração do Mundo
desde sua primeira idade e, logo em seguida, apresenta uma espécie de resumo das
quatro idades anteriores. Nessa parte, são mencionados apenas os nomes das idades
e suas durações, os cataclismos que as encerraram, os alimentos que os homens utili-
zariam em cada uma delas e as metamorfoses dos sobreviventes. A duração de todas
344 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
essas idades é contabilizada em anos xihuitl e seus nomes são dias do tonalpohualli,
como foi mencionado na parte anterior deste capítulo.58
O relato torna-se mais detalhado ao tratar do fim da quarta idade, por um dilú-
vio, e do início da idade atual, com a criação do homem em Tamoanchan depois de
vinte e seis anos em que o Céu e a Terra permaneceram estanques, isto é, por metade
de um ciclo do xiuhmolpilli. Para isso, os deuses em conselho teriam decidido enviar
Quetzalcoatl ao Mictlan com a missão de resgatar os ossos dos antigos homens. De-
pois de resgatá-los, Quetzalcoatl os levou a Tamoanchan, onde Cihuacoatl os colocou
numa vasilha preciosa e os moeu. Em seguida, Quetzalcoatl regou-os com o sangue de
seu pênis e todos os deuses fizeram penitência.59
Em seguida, o relato apresenta episódios relacionados à busca empreendida
pelos deuses por alimento para nutrir os recém-criados homens, entre os quais se
destaca o episódio em que Quetzalcoatl segue as formigas para encontrar os diversos
tipos de milho dentro do Tonacatepetl ou Montanha de Nosso Sustento. Depois desses
episódios, os deuses em conselho resolvem fazer outro Sol, o que ocorre em Teo-
tihuacan. No entanto, o novo Sol parou no meio do Céu exigindo ser alimentado
com sangue para se mover. Então, Iztacchalchiuhtlicue gerou quatrocentos mixcoas
para fazer guerras e servir de comer e beber ao Sol, mas eles não cumpriram sua
obrigação e Iztacchalchiuhtlicue gerou outros cinco mixcoas para fazer guerra aos
primeiros e servir sangue ao Sol. Nessa guerra, os quatrocentos foram derrotados
pelos cinco e os perdedores sobreviventes refugiaram-se em Chicomoztoc. Entre os
cinco mixcoas, estava Mixcoatl, que junto com Chimalman deu origem a Ce Acatl,
soberano de Tollan, cuja decadência final ocorrerá sob o governo de seus sucesso-
res, entre os quais está Huemac.
Podemos notar que a narrativa passa das idades do Mundo para o horizonte
histórico tolteca, isto é, para as conquistas de Ce Acatl ou Quetzalcoatl e a queda de
Tollan durante o governo de Huemac, sem nenhum tipo de ruptura ou descontinui-
dade, seja nas unidades calendárias utilizadas, nos âmbitos cosmográficos menciona-
dos ou nos tipos de episódio e personagem. Isso porque os episódios e personagens
desse passado mais recente continuam a combinar características que classificaríamos
como verossímeis com as que consideraríamos inverossímeis – tais como o jogo de
bola entre Huemac e os tlaloque, mencionado no Capítulo III, ou o aparecimento de
um corpo humano gigantesco e fétido, cujas tentativas de remoção causaram a morte
de centenas de toltecas.60
58 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119. No entanto, como menciona-
mos em nota anterior, não fica claro se 2.513 anos refere-se à duração do conjunto das cinco
idades ou apenas da idade atual.
61 Não iremos analisar em detalhe as seções de nossas fontes centrais que tratam das migrações
dos povos chichimecas, pois, como afirmamos da Introdução, os relatos sobre o passado re-
cente nos interessam principalmente por suas formas de encadeamento com o passado cos-
mogônico. Sendo assim, daremos maior atenção às seções que tratam da fase tolteca, as quais
aparecem imediatamente depois dos episódios que deram início à idade atual em grande parte
de nossas fontes. No entanto, vale dizer que os relatos sobre a migração chichimeca continuam
a combinar episódios e personagens que classificaríamos como inverossímeis, tais como o do
nascimento de Huitzilopochtli, que sai do ventre de Coatlicue crescido e armado e mata sua
irmã e seus quatrocentos irmãos que provinham do sul, com aqueles que julgamos verossímeis,
como a fundação de México-Tenochtitlan.
62 Na edição que estamos utilizando, o texto termina truncado e chega até as conquistas de
Axayacatzin, como mencionamos anteriormente. Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpo-
poca, op. cit., p. 128. No entanto, uma edição mais recente afirma que o texto prossegue até os
tempos de Moctezuma e da chegada de Cortés. Esse trecho teria sido preservado numa cópia
feita por León y Gama. Cf. Bierhorst, John. History and mitology of the Aztecs. Tucson/Londres:
The University of Arizona Press, 1992.
Menciona-se que devido à decadência de Tollan, ambos fugiram até a margem do mar
e chegaram a Tlillan Tlapallan, onde Quetzalcoatl transformou-se em Vênus. Essa seção
do manuscrito termina com a imagem da grande pirâmide de Cholula, que segundo o
manuscrito teria sido construída para seus habitantes escaparem do próximo dilúvio.64
Podemos perceber que a passagem entre o passado distante e o horizonte tolte-
ca também é realizada ininterruptamente e por meio da progressão temporal nessa
seção do Vaticano A.65 Tal seção constitui-se, assim como a Leyenda de los soles, em uma
explicação sobre o passado que abrange as idades do mundo e a história de Tollan,
Quetzalcoatl e Cholula sem interrupções, abarcando supostamente 18.028 anos, que
é a somatória das durações das idades segundo esse manuscrito.
A Historia de los mexicanos por sus pinturas apresenta, basicamente, o mesmo tipo
de concatenação entre cosmogonia e passado recente que os dois manuscritos an-
teriores, apesar da intercalação de explicações sobre o calendário e a cosmografia.
Entre os relatos nahuas que estamos analisando, trata-se do que aborda mais extensa-
mente as idades anteriores, sobretudo a primeira.
Em meio desse extenso relato sobre as idades anteriores, encontramos as mesmas
informações que aparecem condensadas no Vaticano A e na Leyenda de los soles, tais como a
duração de cada idade e seu nome, os alimentos utilizados pelas humanidades anteriores,
os cataclismos e as metamorfoses de parte dos homens sobreviventes em animais.66 No
entanto, a Historia de los mexicanos por sus pinturas não cita nenhum dos locais mencionados
pelas outras fontes ao tratarem das idades anteriores e do princípio da atual, embora man-
tenha praticamente as mesmas personagens cosmogônicas que a Leyenda de los soles.67
As localidades são mencionadas apenas depois da criação do Sol atual, ao se
narrar a história de Mixcoatl, dos quatrocentos mixcoas e da origem de Ce Acatl ou
Quetzalcoatl, primeiro soberano de Tollan. Ao tratar da fuga de Ce Acatl, a Historia
de los mexicanos por sus pinturas afirma que parte de seus seguidores ficou em Cholula
65 Aliás, essa seção do Vaticano A apresenta uma inversão no uso das informações calendárias em
relação à Leyenda de los soles e a outros relatos que estamos analisando. Isso porque tais infor-
mações estão presentes na parte do relato sobre as idades do mundo e ausentes na parte que
trata dos eventos relacionados a Tollan e Cholula. Veremos na próxima parte deste capítulo
que talvez a ausência de datas nesse tipo de texto relacione-se com as influências de origem
cristã, as quais contribuíram para a fabulização dos relatos nahuas sobre o passado.
66 Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit.,
p. 24-39.
67 Cf. ibidem, p. 24-39. Veremos na próxima parte deste capítulo que essa “desterritorialização”
dos episódios relacionados ao passado nahua, bem como sua “destemporalização”, são partes
do processo de fabulização das explicações históricas nahuas, levado a cabo, sobretudo, pelos
missionários cristãos.
Eduardo Natalino dos Santos 347
antes que o soberano chegasse a seu destino final, isto é, Tlapallan. Todos esses epi-
sódios ocupam oito capítulos do relato.68
Na sequência, o texto apresenta a história mexica desde o início da migração,
em Aztlan-Culhuacan, até a chegada dos espanhóis. Esses episódios ocupam cerca de
dezoito capítulos, nos quais se mencionam, secundariamente, a história de grupos
chichimecas que se tornarão vizinhos dos mexicas em Tenochtitlan, tais como os
colhuas e os xochimilcas.69
Desse modo, podemos dizer que a Historia de los mexicanos por sus pinturas é uma
explicação sobre o passado que abrange desde o início da primeira idade até o início do
período Colonial com ênfase na história mexica. A passagem entre essas fases também é
realizada por meio do encadeamento cronológico progressivo e os marcos calendários
empregados do começo ao fim do relato são, basicamente, os mesmos. Tal progressão é
interrompida apenas por algumas explicações calendárias e cosmogônicas que, no entan-
to, não chegam a comprometer o encadeamento cronológico entre as idades do Mundo
e a fase tolteca.
Considerada em sua totalidade, a Histoire du Mechique não apresenta a mesma
continuidade temporal e temática que detectamos nos três manuscritos anteriores.
Isso porque, em seus cinco primeiros capítulos e meio, reúne uma série de relatos de
procedências distintas sobre os fundadores de Texcoco, a origem do fogo, a história
dos mexicas e colhuas e sobre o calendário e a cosmografia.70 No entanto, sua segun-
da metade, isto é, do meio do sexto capítulo ao décimo primeiro, apresenta o mesmo
tipo de concatenação entre cosmogonia e passado recente e a mesma sequência temá-
tica que foi detectada nos manuscritos analisados acima.71
A segunda metade da Histoire du Mechique inicia-se, portanto, com o tema das
idades anteriores do mundo, mencionando apenas seus nomes, os alimentos utiliza-
dos pelos homens, os cataclismos finais e as metamorfoses de parte dos sobreviventes.
Na sequência, são narradas a criação do homem atual em Tamoanchan, na região de
Cuauhnahuac, e a criação do Sol em Teotihuacan. Tais episódios são seguidos pela
história de Mixcoatl, Chimalman e Quetzalcoatl, soberano de Tollan que antes de se
estabelecer nessa cidade teria passado, juntamente com seus seguidores, por México
e Tulancingo.72 O relato encerra-se com a decadência de Tollan, a fuga de seu sobera-
no – que deixa seguidores em Tenanyocan (sic, provavelmente refira-se a Tenayuca,
70 Cf. Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 124-45.
72 Cf. ibidem, p. 160. Em meio desses capítulos há inserções de, segundo o autor do texto, outras
versões da criação.
348 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
74 Nos casos da Historia de los mexicanos por sus pinturas e da Histoire du Mechique, a presença dessa
estrutura narrativa não exclui a presença de capítulos que tratam o calendário e a cosmografia
como temas, o que denotaria a influência de demandas relacionadas principalmente ao traba-
lho missionário cristão.
75 Embora não coincidam ponto a ponto, as sequências de altepeme que marcariam a história da
idade atual são consoantes nos quatro manuscritos analisados e formadas, basicamente, por
Tamoanchan, Teotihuacan, Tollan, Cholula e Aztlan-Culhuacan-Chicomoztoc. Mencionamos
no Capítulo III que essa sequência de altepeme, acrescida de Pánuco em seu início, encontra-se
também nos textos recolhidos por Sahagún. Cf. Sahagún, Bernardino de. Historia general de las
Eduardo Natalino dos Santos 349
No entanto, isso não significa que os relatos sobre o passado recente apresentem
características idênticas aos que aludem às idades cosmogônicas. A passagem da cosmogo-
nia ao passado recente é geralmente marcada por uma mudança quantitativa na presença
dos marcos calendários e cosmográficos, como vimos nos dois capítulos anteriores.
Dissemos acima que se tratava de uma conclusão provisória, pois o tipo de estru-
tura narrativa que detectamos nos quatro textos nahuas analisados – três alfabéticos
e um pictoglífico-alfabético – não está presente em nenhum códice pictoglífico tradi-
cional dessa mesma região. Em outras palavras, não se conhece nenhum manuscrito
77 A incredulidade dos cristãos diante da parte cosmogônica desses relatos teria, por sua vez,
impulsionado alguns escritores nahuas do final do século XVI e início do XVII a substituírem
a cosmogonia nativa pela versão cristã da criação. Entre esses autores estariam Tezozomoc e
Chimalpahin. Cf. Navarrete Linares, Federico. Mito, historia y legitimidad política. México: Facul-
tad de Filosofía y Letras – Unam, 2000.
Eduardo Natalino dos Santos 351
78 Numa espécie de introdução que precede a descrição da primeira criação, os autores do texto
alfabético em maia-quiché afirmam que existia “...el libro original, escrito antiguamente, pero
su vista está oculta al investigador y al pensador. Grande era la descripción y el relato de cómo
se acabó de formar todo el cielo y la tierra...”. Popol vuh. México: FCE, 1996, p. 21.
79 Embora o Popol vuh não mencione datas, a sucessão temporal de seus episódios é clara na
maior parte do texto.
352 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
homem atual por Quetzalcoatl a partir do milho, os quais indicam o amplo alcance
espacial que alguns conceitos cosmogônicos tiveram na Mesoamérica.80
Embora a origem exata do Popol vuh seja incerta,81 acreditamos que a declaração
de seus autores sobre uma procedência baseada em um livro anterior não deva ser
desconsiderada. Ademais, suas relações temáticas e estruturais com os relatos nahuas,
sobretudo com a Leyenda de los soles, fortalecem a hipótese de que ambos os textos
tenham tido origem em manuscritos tradicionais.
Apesar disso, a presença dessa estrutura narrativa no Popol vuh também não com-
prova, definitivamente, sua existência em livros pictoglíficos tradicionais. Isso porque,
apesar de ter sua produção baseada em manuscritos pictoglíficos, o Popol vuh não
é uma mera transcrição, mas sim uma obra que também responde a demandas do
mundo colonial, pois reconta a cosmogonia e a história maia-quiché incorporando
elementos dos relatos criacionais bíblicos e, desse modo, valida a cosmogonia e a
história locais aos olhos daqueles que progressivamente se impunham como novos
senhores políticos da região, isto é, os cristãos. Sendo assim, existe a possibilidade
que o Popol vuh também resulte da junção de manuscritos tradicionais que tratariam
separadamente da cosmogonia e da história quiché.
O mesmo tipo de junção poderia ter dado origem ao Memorial de Sololá, texto
maia-cakchiquel posterior ao Popol vuh.82 Esse manuscrito também apresenta uma pri-
meira parte dedicada à criação do mundo e do homem, para depois tratar da chegada
de treze grupos e de sete tribos a Tollan, entre as quais estaria a dos cakchiquéis.
No entanto, pensamos que a existência de textos alfabéticos coloniais de
procedências diversas mas que apresentam a história local concatenada imediata-
mente à cosmogonia torna improvável a origem cristã dessa estrutura narrativa e
aponta para origens entre as tradições de pensamento e escrita mesoamericanas.
Isso porque a presença de uma mesma seqüência temática, apresentada com base
em referenciais narrativos muito parecidos, mas em textos de origens temporais
80 A idade atual é a terceira ou quarta segundo o Popol vuh, dependendo da divisão que ado-
tamos. Antes da criação do homem atual, feito com a massa do milho, são mencionadas as
criações dos homens de lama e de madeira, o que nos levaria a pensar que a idade atual seria
a terceira. No entanto, há uma grande seção dedicada aos gêmeos Hunahpú e Ixbalanqué que
parece se desenrolar durante a idade dos homens de madeira, mas que pode ser entendida
como uma outra idade, fazendo que a idade dos homens de milho seja a quarta.
81 O texto alfabético em língua quiché do Popol vuh foi apresentado por indígenas ao dominicano
Francisco Jiménez na Guatemala depois de 1688. O frade o estudou e o transcreveu na própria
língua quiché, acrescentando ao lado sua versão em castelhano. O manuscrito produzido por
Jiménez está na Biblioteca Newberry, em Chicago, Estados Unidos, e o que fora apresentado ao
frade, produzido por volta de 1544, está perdido. Cf. Recinos, Adrián. Introducción. In: Popol
vuh. México: FCE, 1996.
83 Palenque situa-se na confluência da serra de Chiapas com a imensa planície costeira que se
estende até o golfo do México. Suas inscrições estão em maia-iucateco, o que as aproximaria
dos livros de Chilam balam, e geralmente pertencem a edifícios ou espaços arquitetônicos sobre
os quais as elites dirigentes possuíam o controle de ocupação e circulação.
84 Traduzido da versão em inglês: “On December 7, 3121 B.C., when the eighth Lord of the Night
ruled, five days after the moon was born and the 2nd moon had ended, X was the moon’s name
and it had 29 days. It was 20 days after God K had set the south sky place on November 16, 3121
B.C....”. Schele, Linda e Freidel, David. A forest of kings. Nova York: Quill Willian Morrow, 1990,
p. 246.
85 Cf. Bierhorst, John. History and mitology of the Aztecs, op. cit.
354 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Esse mesmo conjunto de faixas representando camadas celestes pode ser visto sob
o casal primordial com grandes cocares de penas que pendem sobre suas costas, o qual
ocupa a parte centro-esquerda da mesma página (Figura 36). Na segunda página desse
manuscrito, encontra-se o mesmo casal primordial que aparece no Rollo Selden, isto é, o
Senhor e a Senhora Um Veado.87
Embora os conjuntos pictoglíficos dessas duas primeiras páginas não sejam enten-
didos em sua totalidade, sobretudo em suas articulações, muitos de seus glifos e pinturas
aludem a episódios cosmogônicos relativamente bem conhecidos, alguns dos quais vin-
culados especificamente às primeiras criações – como a das unidades e ciclos calendários
e a do casal primordial – ou, sobretudo no caso das páginas seguintes, ao início da idade
atual – como as atuações de Quetzalcoatl, baixando do Céu ou sustentando-o.
Na terceira página do Vindobonense, reproduzida na Figura 37, aparecem os pri-
meiros glifos calendários. São eles o glifo do dia macuilli tecpatl (5 pedernal) e o do ano
de mesmo nome, que podem ser vistos na parte inferior do terceiro conjunto picto-
glífico separado por linhas verticais vermelhas, da direita para a esquerda, à frente
de um guerreiro que porta um escudo circular, uma bandeira branca e uma lança
de ponta azul.88 Desse ponto em diante, as marcações calendárias são uma constante,
pois estão presentes nas próximas cinquenta páginas desse manuscrito.89
Os temas abordados ao longo dessas cinquenta páginas vão desde episódios cos-
mogônicos que estamos relacionando ao princípio da idade atual, como a descida de
Quetzalcoatl de um nível celeste e sua participação no reerguimento dos céus após o
dilúvio que pôs fim à idade precedente, até episódios relacionados ao passado recente,
como a fundação de diversos altepeme da região mixteca, mencionados em outros ma-
nuscritos, como o Códice Nuttall.90
No Capítulo III, vimos que o Rollo Selden também apresenta, em seu início, uma
espécie de prólogo, que se passa nos níveis celestes e do qual, ademais, participam algu-
mas personagens idênticas às da parte inicial do Vindobonense, tais como o casal primor-
dial Senhor e Senhora Um Veado e Quetzalcoatl. Vimos também que os episódios desse
prólogo são datados pelo dia ome mazatl (2 veado) do ano matlactli omei tochtli (13 coelho).
Todos esses elementos podem ser vistos no interior de uma ampla faixa horizontal que
ocupa a parte superior da Figura 34.
88 Cf. ibidem, p. 50. O glifo calendário anual 5 pedernal diferencia-se do diário pela associação com
outro glifo: o do ano xihuitl, formado por um signo que se assemelha a uma letra “A” maiúscu-
la, entrelaçada por um anel paralelo à sua base. Esse primeiro ano da narrativa do Vindobonense
é qualificado como precioso pela presença de outro glifo xihuitl, composto de contas de pedras
preciosas, abaixo do conjunto que indica o ano 5 pedernal.
90 Cf. Anders, Ferdinand e outros. Origen e historia de los reyes mixtecos, op. cit.
356 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
92 Cf. Glass, John B. e Robertson, Donald. A census of native Middle American pictorial manus-
cripts. In: Wauchope, Robert (editor geral) e Cline, Howard F. (editor dos volumes). Handbook
of Middle American Indians. Austin/Londres: University of Texas Press, 1975, v. 14, p. 196.
Eduardo Natalino dos Santos 357
94 A presença de quatro deuses criadores e de quatro aposentos de Tlaloc com quatro tipos de
chuva na Historia de los mexicanos por sus pinturas, como vimos no Capítulo III, seria uma forma
de retratar a importância da quadripartição para os episódios cosmogônicos. Cf. Historia de
los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 28-9. Ade-
mais, mencionamos acima o episódio em que os céus são reerguidos a partir de deuses ou
árvores dispostos pelas quatro esquinas do mundo.
358 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
95 Cf. Anders, Ferdinand et alii. El libro del ciuacoatl. Graz/Madri/México: ADV/SEQC/FCE, 1991,
p. 223.
que estaria completo com os eventos que deram início à idade atual, momento a par-
tir do qual se desenvolveria a história humana.97 Pensamos que nossas análises estão
demonstrando a continuidade e sobreposição entre os episódios da criação e os do
passado recente. Trata-se, portanto, de uma lógica histórico-temporal mais complexa
do que a sequência linear ou a eterna repetição, pois articula ambas de modo comple-
mentar. Tal complexidade está expressa nos textos que estamos analisando e também
em gravados pictoglíficos sobre pedra, nos quais podemos ver a representação de
episódios recentes inseridos em meio de glifos que aludem às idades do Mundo.
Mencionamos na segunda parte deste capítulo que o monumento mexica conhe-
cido como Pedra do Sol98 traz o glifo do ano matlactli omei acatl (13 junco) dentro de um
caixilho gravado no extremo superior da superfície plana e circular do monumento,
como podemos observar na Figura 38. Esse glifo refere-se, muito provavelmente, à data
de confecção do monumento, isto é, ao ano de 1479.99 Por outro lado, esse também era
o nome do ano em que o Sol atual teria sido criado em Teotihuacan, pois o céu teria se
estancado em um ano ce tochtli (1 coelho), fazendo que fosse noite por vinte e seis anos e
que o novo Sol fosse criado em um ano matlactli omei acatl (13 junco).100
No Capítulo III, mencionamos também que o centro da Pedra do Sol (Figura 27
ou 38) apresenta os glifos que nomeiam as quatro idades anteriores dispostos como
um quincunce e no interior do glifo que nomeia a idade atual, isto é, Nahui Ollin
(Quatro Movimento).
Considerando que todos esses glifos – os das idades do mundo e o do ano 13
junco – fazem parte de um mesmo texto, podemos dizer que a narrativa registrada na
Pedra do Sol articula, entre outras coisas, as cinco idades do Mundo entre si e particu-
lariza dois episódios pertencentes à idade atual: a criação do Sol em Teotihuacan e a
do próprio monólito, ambas criações evocadas e vinculadas por meio do ano matlactli
omei acatl (13 junco). Sendo assim, temos o passado recente vinculado ao inicio da
primeira idade e às idades anteriores num mesmo registro pictoglífico.
99 Cf. Umberger, Emily. A reconsideration of some hieroglyphs on the Mexica calendar stone.
In: Josserand, Kathryn e Dakin, Karen (edit.). Smoke and mist. Oxford: Bar International Series,
1988, p. 345-88. Esse monumento apresenta também, ademais dos cinco nomes das idades do
Mundo, o glifo calendário ce tecpatl (1 pedernal), que talvez se refira a um dia, por não estar
emoldurado como o glifo 13 junco.
100 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 120-1/ Anales de Cuauhtitlan. In:
Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 5.
360 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
101 Isso porque não foi possível determinar definitivamente a data de produção desse gravado e,
sendo assim, não se pode dizer seguramente que o glifo 13 junco refira-se a tal data.
102 Assim como os dois gravados mexicas em pedra que analisamos antes, esse também foi en-
contrado no antigo centro político-religioso de México-Tenochtitlan. Produzido em 1503, esse
gravado mede 22 x 67 x 57 cm e encontra-se atualmente no Art Institute de Chicago, Estados
Unidos. Cf. Matos Moctezuma, Eduardo et alii. Aztecs. Londres: Royal Academy of Art e Thames
and Hudson, 2002. Assim como no caso da Pedra dos cinco sóis, desconhecemos se esse gravado
possui um nome mais consagrado entre os estudiosos e, basicamente, traduzimos a denomina-
ção encontrada no catálogo consultado.
103 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 120/ Anales de Cuauhtitlan. In: Códice
Chimalpopoca, op. cit., p. 5. A menção desse período sem sol antes da criação do Sol atual também
aparece em: Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 152.
Eduardo Natalino dos Santos 361
morrido no ano anterior, matlactli tochtli (10 coelho).104 Nesse mesmo ano, Moctezuma
Xocoyotl tornou-se o soberano mexica e, provavelmente, mandou esculpir a placa em
pedra que estamos analisando em homenagem a seu antecessor, o que teria ocorrido
no ano 11 junco.
A Pedra das idades do Mundo de Moctezuma II apresentaria então uma associação
entre as quatro idades anteriores, a idade atual e um episódio recente dessa idade: a
morte ou o governo de Ahuitzotl. Dessa forma, temos nesse monumento o registro de
um evento do passado recente sobreposto a ou inserido em meio de referenciais cos-
mogônicos. Isso nos mostraria que a feitura de registros pictoglíficos que associavam
os episódios recentes às idades cosmogônicas era realizada pelos mexicas em tempos
pré-hispânicos.
No entanto, a concatenação apresentada pela Pedra das idades do Mundo de Moc-
tezuma II não é, predominantemente, sequencial, como a que vimos ocorrer no Có-
dice vindobonense e nos textos maias de Palenque. Isso porque, o glifo da idade atual
encontra-se inserido em meio dos glifos das idades anteriores, formando juntos um
quincunce e permitindo que os glifos das idades anteriores estejam dispostos à mes-
ma distância do glifo da idade atual. Tal disposição é muito semelhante à que vimos
ocorrer no centro da Pedra do Sol (Figura 27 ou 38) e talvez se relacione ao conceito
que a idade atual englobaria parte de todas as anteriores, como mencionamos acima.
Ademais, os glifos que remeteriam ao passado recente – isto é, a Ahuitzotl e à data
de confecção do gravado – estão separados entre si e em meio dos glifos das idades
anteriores, o que não sugere uma relação temporalmente sequencial.
No entanto, a relação sugerida pela Pedra das idades do Mundo de Moctezuma II
entre as idades anteriores, a atual e os episódios recentes não é aleatória ou de sin-
cronia total.
Vimos em diversas ocasiões que o sentido anti-horário era um dos princípios
fundamentais de leitura dos registros mixteco-nahuas, sobretudo naqueles em que
a disposição dos glifos e pinturas pautava-se pela concepção dos quatro rumos e um
centro. Sendo assim, os glifos das idades anteriores da Pedra das idades do Mundo de
Moctezuma II seguiriam a ordem que apresentamos acima e, além disso, Nahui Ocelotl
(Quatro Jaguar) seria o primeiro, pois a Leyenda de los soles apresenta a mesma sequência
de idades que se encontra nesse monumento e seu relato inicia-se por tal idade.105
Em contrapartida, o glifo da idade atual, Nahui Ollin (Quatro Movimento), não
se encontra inserido nessa sequência anti-horária de glifos. Encontra-se no centro de
104 Cf. Códice Vaticano A, op. cit., p. 86r. Segundo os Anales de Cuauhtitlan, sua morte teria ocorrido
no próprio ano 11 junco. Cf. Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 59.
105 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119. Teríamos, nesse caso, um pres-
suposto de leitura que não é parte do registro, o que é muito comum em qualquer sistema de
escrita.
362 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
um “X” imaginário cujas pontas seriam os quatro cantos da face gravada da lápide,
posição que lhe garante certo destaque, que é reforçado ainda por sua maior dimen-
são. Sendo assim, de que forma se associaria às idades anteriores? Por meio de uma
relação direta com cada uma delas, o que seria indicado por sua posição central, e, ao
mesmo tempo, sucedendo a idade Nahui Atl (Quatro Água), a última idade de acordo
com o sentido anti-horário e com pressupostos de leitura externos ao gravado – por
exemplo, que a idade Nahui Ocelotl (Quatro Jaguar) teria sido a primeira.
Considerando outros pressupostos de leitura, a saber, que o ano de confecção
da lápide (11 junco) e o governo de Ahuitzotl eram parte do passado imediato dos
mexicas na época de confecção e uso desse gravado, podemos dizer que os glifos que
aludiriam a esses eventos recentes seriam “naturalmente” entendidos como perten-
centes à idade atual e, assim, lidos como posteriores ao seu início. Desse modo, seria
perfeitamente possível a um membro das elites nahuas versado no sistema pictoglífico
ordenar cronologicamente todos os episódios registrados na Pedra das idades do Mundo
de Moctezuma II. Essa ordenação resultaria na seguinte série de episódios: as idades
Nahui Ocelotl (Quatro Jaguar), Nahui Ehecatl (Quatro Vento), Nahui Quiahuitl (Qua-
tro Chuva), Nahui Atl (Quatro Água) e Nahui Ollin (Quatro Movimento), na qual, muito
recentemente, teria ocorrido o governo de Ahuitzotl, homenageado numa placa em
pedra do ano matlactli once acatl (11 junco ou 1503).106
Dessa forma, teríamos uma relação entre as idades anteriores, a atual e seus
episódios recentes que não se caracterizaria por ser primordialmente sequencial, mas
que tampouco desconsideraria a sucessão entre essas idades e episódios. Sendo assim,
podemos dizer que a relação estabelecida entre os episódios registrados nesse grava-
do caracteriza-se por conjugar a sucessão cronológica com associações conceituais de
outra natureza, tais como a rotatividade do tempo pelas quatro direções e a sincronia
evocada pelos glifos calendários, que nomeiam as idades mas também evocam todos
os dias com esses nomes, os quais se repetiam a cada 260 dias.
Esse tipo de associação calendária, pontual e sincrônica, aparece claramente
nos Anales de Cuauhtitlan, que tratam, basicamente, dos mesmos temas que os quatro
manuscritos analisados no início desta parte do capítulo. Esse texto inicia-se com a
partida dos chichimecas cuauhtitlanenses de Chicomoztoc – que equivaleria à parte
final da Leyenda de los soles – e segue tratando, centralmente, da migração e história
desse grupo até a chegada dos espanhóis. A partir da história dos cuauhtitlanenses,
menciona-se o início da história tolteca e de sua conta dos anos.
106 Não estamos afirmando que a leitura desse conjunto pictoglífico deva seguir, necessariamente,
esse sentido e estabelecer uma única ordenação cronológica; isso seria restringir as múltiplas
possibilidades do sistema de escrita pictoglífica mixteco-nahua à linearidade temporal. Esta-
mos apenas tentando demonstrar que essa sequência de leitura seria uma das possíveis dentro
de tal sistema.
Eduardo Natalino dos Santos 363
Nesse ponto, cita-se o ano ce tochtli (1 coelho), que seria o primeiro ano da
conta tolteca, mas também o nome do ano em que o Céu e a Terra pararam de
se mover, marcando o final da idade anterior. A menção desse ano serve como
elo para se realizar uma digressão sobre as quatro idades anteriores, que contém,
basicamente, as mesmas informações que são apresentadas na Leyenda de los soles –
embora não se mencionem as durações de cada idade ou os alimentos que seriam
utilizados pelo homem.107
Dessa forma, podemos perceber que os Anales de Cuauhtitlan vão da história recen-
te – o processo migratório – aos episódios que chamaríamos de cosmogônicos por meio
de uma associação calendária sincrônica, que tem por base o ano ce tochtli (1 coelho).
As formas de encadear o passado recente e as idades cosmogônicas presentes na
Pedra das idades do Mundo de Moctezuma II e nos Anales de Cuauhtitlan evocam, nova-
mente, o problema da articulação entre sincronia e diacronia na visão de tempo e his-
tória nahua. Acreditamos que tal problema tenha sido suficientemente abordado no
Capítulo II. Naquela ocasião, mostramos que tais dimensões eram complementárias
para as tradições de pensamento e escrita nahuas. Isso porque os episódios passados
carregariam as datas e as regiões do Mundo com influências que aportariam continu-
amente no presente – o que seria uma forma de presentificar o passado. Mas, em con-
trapartida, a separação temporal entre tais episódios seria claramente mantida pela
própria conta dos anos e, desse modo, o mundo presente também seria visto como o
último seguimento em uma sequência cronológica de índole mais linear.108
Em suma, acreditamos que as análises desta terceira parte do capítulo puderam
demonstrar que os relatos nahuas acerca do passado recente eram concebidos como
uma particularização da história no interior da idade atual. No caso da Leyenda de los
soles, da Historia de los mexicanos por sus pinturas, da Histoire du Mechique e da segunda
seção do Códice Vaticano A, o passado recente associava-se ao início da idade atual
e às idades anteriores por meio de um encadeamento cronológico progressivo. De-
monstramos que escritos pictoglíficos e alfabéticos de outras tradições de pensamen-
to mesoamericanas também empregaram essa forma de encadeamento cronológico
entre a cosmogonia e o passado recente. Fizemos isso para mostrar a plausibilidade da
existência desse tipo de registro entre as tradições de pensamento e escrita nahuas em
tempos pré-hispânicos, pois, sendo assim, poderíamos propor que tal tipo de registro
teria servido de base para a confecção dos textos coloniais analisados.
Por fim, procuramos mostrar que os episódios do passado recente também po-
deriam ser encadeados à cosmogonia de modo pontual, isto é, por meio da associação
direta entre apenas alguns episódios do passado recente e as idades do mundo. Com
os casos dos gravados mexicas em pedra, vimos que tal associação poderia ocorrer
108 Cf. Boone, Elizabeth Hill. Stories in red and black. Austin: University of Texas Press, 2000, p. 18.
364 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Vimos na segunda parte deste capítulo que o Códice borbónico apresenta deter-
minados episódios e personagens em seu tonalamatl na mesma sequência em que
aparecem nos relatos cosmogônicos.109 Na seção seguinte desse códice, que apresenta
o ciclo do xiuhmolpilli distribuído pelos quatro rumos, vimos que as quatro persona-
gens centrais são Oxomoco, Cipactonal, Tezcatlipoca e Quetzalcoatl, as quais se vin-
culam estreitamente com diversos episódios cosmogônicos, tais como a criação e uso
do calendário e a sucessão de sóis ou idades.110 Nesse caso, também temos a mesma
sequência de aparição das personagens que encontramos nos relatos cosmogônicos:
primeiro Oxomoco e Cipactonal – que podem ser relacionados com Tonacatecuhtli e
Tonacacihuatl – e depois Quetzalcoatl e Tezcatlipoca.
Por fim, na última seção desse manuscrito, temos as celebrações das dezoito
vintenas ocorridas entre os anos ce tochtli (1 coelho) e ome acatl (2 junco) e em meio das
quais uma cerimônia do Fogo Novo é retratada.111 Nesse caso, como vimos acima, o
que poderia ser um evento cosmogônico, isto é, o fim da idade atual, está situado pela
conta dos anos e localizado precisamente no ano 2 junco, que corresponde aproxima-
113 Essa parte do relato segue a fórmula estabelecida no parágrafo que descreve a primeira idade:
“El primer sol que al principio hubo, signo del 4 atl (agua), se llama Atonatiuh (sol de agua).
En éste sucedió que todo se lo llevó el agua; todo desapareció; y las gentes se volvieron peces.
El segundo sol que hubo...”. Ibidem, p. 5.
114 Ibidem, p. 5.
Eduardo Natalino dos Santos 367
115 Cf. Leyenda de los soles. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 119-28.
116 Cf. Historia de los mexicanos por sus pinturas. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit.,
p. 24-95.
117 Não estamos considerando nessa afirmação a parte final desse manuscrito, que, na verdade,
trata-se de um agregado sobre as leis e punições e que Rafael Tena separa em sua edição sob o tí-
tulo de Éstas son leyes que tenían los yndios de la Nueva Spaña, Anáuac o México. Cf. ibidem, p. 96-111.
118 Tais explicações encontram-se nos capítulos IV e XXI. Cf. ibidem, p. 32-5 e p. 80-3.
368 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
120 Cf. Histoire du Mechique. In: Mitos e historias de los antiguos nahuas, op. cit., p. 144-65. Veremos
que Diego Durán faz o mesmo com o passado mexica.
às cristãs na produção desses escritos. Pudemos ver que entre esses dois extremos há
uma enorme gama de possibilidades, entre as quais se encaixa boa parte de nossas
fontes centrais. Sendo assim, talvez seja mais adequado propor uma ordenação de
nossas fontes centrais de acordo com os graus de presença da articulação entre
calendário, cosmografia e cosmogonia do que simplesmente tentar separá-las em
dois grupos.
A ordenação seria a seguinte: o Códice borbónico, os Anales de Cuauhtitlan e a
Leyenda de los soles seriam as fontes mais ligadas às tradições de pensamento e escrita
nahuas; depois, a Historia de los mexicanos por sus pinturas e o Vaticano A seriam as que
apresentam influências cristãs misturadas com formas tradicionais nahuas; e, por fim,
a Histoire du Mechique e o Códice magliabechiano seriam as fontes mais influenciadas pelo
pensamento cristão.
Esses dois últimos manuscritos assemelham-se, nesse aspecto, às Historias escritas
pelos missionários, tais como a de Bernardino de Sahagún e a de Diego Durán. Isso,
certamente, relaciona-se com as origens missionárias desses dois manuscritos, os quais,
como vimos no Capítulo I, provêm dos trabalhos do frei Andrés de Olmos, apontado
como o responsável pela produção do protótipo em castelhano que deu origem ao
texto em francês da Histoire du Mechique e do protótipo do Grupo Magliabechi.
123 Cf. Santos, Eduardo Natalino dos. Deuses do México indígena. São Paulo: Palas Athena, 2002.
370 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
124 Cf. Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España, op. cit., p. 67-716.
125 Cf. Durán, Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme. México: Editorial
Porrúa, 1984, v. 1, p. 7-293.
126 Cf. ibidem, v. 1, p. 9-30. Diego Durán faz o mesmo, inclusive, com a história mexica recente,
registrada tradicionalmente na forma de anais. No seu terceiro tratado, que dá nome a toda a
obra, Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme, Durán narra a história mexica
desde a saída de Chicomoztoc até a conquista de México-Tenochtitlan pelos castelhanos e
grupos indígenas aliados e, praticamente, não menciona datas. Cf. ibidem, v. 2, p. 13-576.
Eduardo Natalino dos Santos 371
livro. No entanto, o conceito de fábula nos interessa especialmente nesta ocasião, pois
talvez contribua para entendermos porque o calendário, a cosmografia e a cosmo-
gonia aparecem relativamente desarticulados em algumas das fontes centrais desta
pesquisa. Vejamos como esses religiosos o citam em alguns trechos de suas Historias.
Sahagún o menciona, por exemplo, ao tratar da utilidade missionária de co-
nhecer as historietas dos povos gentios, pois, conhecendo-as, se poderia demonstrar,
apelando à razão natural que haveria em todo o ser humano, a falsidade de seus deu-
ses. Em suas palavras, “...conocidas las fábulas y ficciones vanas que los gentiles tenían
cerca de sus dioses fingidos, pudiesen fácilmente darles a entender que aquellos no
eran dioses ni podían dar cosa ninguna que fuese provechosa a la criatura racional. A
este propósito en este Tercero Libro se ponen las fábulas y ficciones que estos natura-
les tenían cerca de sus dioses...”.127
José de Acosta, para quem os nahuas são apenas mais um entre os inúmeros
povos tratados em sua Historia natural y moral de las Indias, cita o conceito de fábula
em diversas ocasiões, tais como ao se referir à Atlântida de Platão ou ao mencionar as
historietas morais que se estudavam nas universidades da China.128 Ademais, associa
os relatos indígenas sobre o passado a sonhos: “Saber lo que los mismos indios suelen
contar de sus principios y origen, no es cosa que importa mucho; pues más parecen
sueños lo que refieren, que historias”.129
Podemos perceber que os dois religiosos utilizam o termo, basicamente, com o
sentido de criação da imaginação que não busca explicar a realidade pretérita ou esta-
belecer com ela uma relação de verossimilhança que tome em conta a razão humana
e os desígnios divinos, pois Sahagún o associa a ficciones e Acosta a sueños. Ademais,
em ambos os casos, a criação dessas fábulas é associada aos pagãos e, sendo assim, po-
demos supor que, segundo os religiosos, elas estariam no lugar das verdadeiras expli-
cações sobre o passado, registradas principalmente nos textos bíblicos, que conteriam
as revelações divinas.
As ficções ou historietas ambientadas no passado eram admitidas entre os cris-
tãos ocidentais do século XVI, desde que possuíssem um valor moral e, ademais, não
concorressem com as explicações bíblicas. No entanto, esse não seria o caso da maio-
ria dos relatos criados pelos povos pagãos para explicar seu passado. Tais relatos pos-
suíam o status de explicação da realidade pretérita em suas sociedades de origem e,
127 Sahagún, Bernardino de. Historia general de las cosas de Nueva España, op. cit., p. 299.
128 Cf. Acosta, José de. Historia natural y moral de las Indias. México: FCE, 1985, p. 62 e 287.
129 Cf. ibidem, p. 63. Sendo assim, Acosta não levará em conta os relatos nahuas sobre a origem
do Mundo e do homem e explicará a origem dos povos americanos a partir dos filhos de Noé.
Apesar disso, considera os relatos nahuas sobre o passado recente verossímeis e, no sétimo
livro de sua Historia, os reproduz parcialmente para tratar das migrações desde Chicomoztoc.
Ibidem, p. 319-71.
372 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
desse modo, seriam versões que concorreriam com os textos bíblicos. Além disso,
como tais povos desconheciam as palavras e revelações escritas do deus cristão, esses
relatos só poderiam ter sido inspirados pelo demônio e, desse modo, estariam despro-
vidos de qualquer valor moral positivo. É por isso que Sahagún, ademais de qualificar
os relatos nahuas sobre o passado como fábulas, adiciona que elas eram vãs e as asso-
cia a deuses fingidos, desqualificando duplamente tais relatos.130
Diego Durán confirma as conotações propostas por Sahagún aos relatos nahuas
sobre o passado, qualificando-os de falsas fábulas, isto é, que não se relacionam com
a realidade pretérita e, tampouco, possuem valor moral: “Y dado el caso que algunos
cuenten algunas falsas fábulas, conviene a saber: que nacieron de unas fuentes y ma-
nantiales de agua; otros, que nacieron de una cuevas; otros, que su generación es de
los dioses, etc. Lo cual clara y abiertamente se ve ser fábula, y que ellos mismos igno-
ran su origen y principio...”.131
Em suma, os missionários partem do pressuposto que tais relatos são fábulas e,
então, os fabulizam para incorporá-los em suas Historias, desprovendo-os totalmente
de suas informações calendárias e de parte de suas informações espaciais ou, ainda,
generalizando-as com expressões do tipo “no tempo em que reinava...”, “depois de
alguns anos...” ou “em cavernas e mananciais de água”.
Ao retirarem as informações calendárias dos relatos nahuas sobre o passado,
os missionários estavam desprovendo-os de um elemento que era tido na própria
tradição cristã de pensamento como garantia de veracidade. Concomitantemente,
130 A posição desses missionários diante das explicações nahuas sobre o passado, inclusive sua clas-
sificação como fábulas, baseia-se, sobretudo, na experiência prévia de evangelização dos povos
pagãos da própria Europa, os quais os missionários reconheciam como seus antecessores. Em
outras palavras, nesse aspecto, o caso dos povos indígenas americanos não se constituía como
uma novidade radical para o pensamento missionário de princípios e meados do século XVI.
Sahagún, por exemplo, compara as explicações cosmogônicas nahuas com as romanas e gre-
gas: “Cuan desatinados habían sido en el conocimiento de las criaturas los gentiles, nuestros
antecesores, ansí griegos como latinos, está muy claro por sus mismas escripturas, de las cuales
nos consta cuán ridiculosas fábulas inventaron del Sol y de la Luna, y de algunas de las estrellas,
y del agua, tierra, fuego y aire, y de las otras criaturas”. Sahagún, Bernardino de. Historia general
de las cosas de Nueva España, op. cit., p. 689. Sahagún chega a mencionar explicitamente a pos-
tura de Santo Agostinho diante das explicações cosmogônicas romanas como um exemplo a
ser seguido pelos evangelizadores no Novo Mundo, postura essa que também teria classificado
tais explicações como fábulas: “No tuvo por cosa superflua ni vana el divino Augustino tratar
de la teología fabulosa de los gentiles en el sexto libro de La ciudad de Dios, porque, como él
dice, conocidas las fábulas y ficciones vanas que los gentiles tenían cerca de sus dioses fingidos,
pudiesen fácilmente darles a entender que aquellos no eran dioses ni podían dar cosa alguna
que fuese provechosa a la criatura racional”. Ibidem, p. 299.
131 Durán, Diego. Historia de las Indias de Nueva España e islas de la tierra firme, op. cit., v. 2, p. 13.
Eduardo Natalino dos Santos 373
132 Acosta é muito claro ao separar a escrita fonética das que se serviam de imagens ou pinturas:
“Las señales que no se ordenan de próximo a significar palabras sino cosas, no se llaman ni
son en realidad de verdad letras, aunque estén escritas (...) ninguna nación de indios que se
ha descubierto en nuestros tiempos, usa de letras ni escritura, sino de las otras dos maneras
que son imágenes o figuras...”. Acosta, José de. Historia natural y moral de las Indias, op. cit.,
p. 284. Sahagún e Durán também se referem ao sistema mixteco-nahua como pintura em
diversas ocasiões.
133 Apesar disso, muitos estudiosos continuam a considerar os trabalhos desses religiosos como
uma espécie de etnografia precoce. Entre eles está Ballesteros Gaibrois, Manuel. Vida y obra de
Fray Bernardino de Sahagún. León: Instituto Fray Bernardino de Sahagún/C.S.I.C., 1973.
374 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
lelos ou derivados desse também podem ser detectados a partir de indícios de nossas
fontes centrais e auxiliares.
Um desses processos envolve escritores nahuas de ascendência nobre que pro-
duzem histórias, relações e memoriais, cuja finalidade imediata não é informar os
missionários das supostas fábulas locais. Ao contrário, tais escritores pretendiam, cen-
tralmente, validar as histórias locais, isto é, dos altepeme e de suas elites dirigentes,
diante das instituições políticas castelhanas e das populações nativas, garantindo as-
sim antigos privilégios para suas famílias ou altepeme.
Um grande número de pipiltin nahuas dos altepeme do altiplano central mexica-
no converteu-se ao cristianismo – pelo menos formalmente – durante o processo de
conquista de Tenochtitlan e nas três décadas após sua queda. Era a única maneira de
poder pactuar politicamente com os substitutos dos mexicas no controle político e
tributário da região, os quais, ademais, seguiam ampliando seus domínios em dire-
ção a Oaxaca, à Guatemala e à região dos tarascos, a oeste e a noroeste do Vale do
México.134 Parte dos descendentes dessas nobrezas passou a ser educada em colégios
missionários fundados a partir dos anos de 1530, como o Colégio de Santa Cruz de
Tlatelolco, no qual Sahagún trabalhou por décadas, desde meados do século XVI até
sua morte, em 1590.
No entanto, a manutenção dos privilégios e dos territórios concedidos ou reco-
nhecidos pelos conquistadores e pela Coroa castelhana tornou-se cada vez mais difícil
ao longo do século XVI, sobretudo em sua segunda metade.135 Se até meados do
século XVI os conquistadores e os poucos burocratas dependiam direta e totalmente
da rede de poderes e tributos locais, a progressiva instalação das instituições castelha-
nas, tais como a encomienda, o vice-reinado, a audiência, o município e um sistema
tributário próprio, bem como o consequente crescimento do número de burocratas,
tornou as elites nativas cada vez mais dispensáveis. Ademais, concomitantemente a
esse processo, um verdadeiro colapso demográfico fazia com que a população nativa
134 Cf. Navarrete Linares, Federico. Visão comparativa da conquista e colonização das sociedades indíge-
nas estatais. Curso de pós-graduação no Departamento de História da FFLCH da USP, primeiro
semestre de 2002. Nos dias seguintes à queda de Tenochtitlan, Cortés distribuiu encomiendas,
sendo que quatro delas seriam perpétuas: a encomienda do Vale de Oaxaca, a ele próprio; a de
Tula, a Pedro Moctezuma; a de Ecatepec, a Leonor de Moctezuma; e a de Tacuba ou Tlacopan,
a Isabel de Moctezuma. Com a exceção de sua própria encomienda, todas as outras três foram
outorgadas a descendentes diretos de Moctezuma Xocoyotl, sendo que as duas mulheres, Isa-
bel e Leonor, haviam se casado com conquistadores. Cf. Romero Galván, José Rubén. Los privi-
legios perdidos. México: IIH – Unam, 2003. Isso nos mostra a dependência desses conquistadores
dos pactos com as elites locais, aliadas ou derrotadas, para legitimar-se dentro da rede política
em vigor.
135 Cf. Pérez Rocha, Emma e Tena, Rafael. La nobleza indígena del centro de México después de la con-
quista. México: Inah, 2000.
Eduardo Natalino dos Santos 375
136 Para termos a magnitude do tipo de declínio demográfico ao qual estamos nos referindo, é
importante saber que alguns estudiosos propõem as seguintes cifras populacionais para a re-
gião do México central durante o século XVI e início do século XVII: tal região contaria com
25,3 milhões de habitantes em 1519, que passaram a ser 16,8 milhões em 1523; 6,3 milhões em
1548; 2,6 milhões em 1568; 1,9 milhão em 1580; 1,3 milhão em 1595 e 1 milhão em 1605, ano
em que a população teria atingido seu nadir, isso é, sua cifra mais baixa antes de uma recupe-
ração ao longo do século XVII. Cf. Cook, Sherburne F. e Borah, Woodrow. El pasado de México.
México: FCE, 1996, p. 11.
137 Cf. Romero Galván, José Rubén. Los privilegios perdidos, op. cit.
138 Os pipiltin de Oaxaca passaram por um processo muito semelhante. Cf. Romero Frizzi, María
de los Ángeles. Los zapotecos, la escritura y la historia. In: _____ (coord.). Escritura zapoteca.
México: Ciesas/Miguel Ángel Porrúa/Conaculta/Inah, 2003.
139 Ademais, era comum reivindicar um comportamento cristão pré-conquista castelhana. Nos
Anales de Cuauhtitlan atribui-se um comportamento algo cristão a Quetzalcoatl e aos toltecas,
que se oporiam aos sacrifícios humanos: “...cuando vivía Quetzalcoatl, reiteradamente quisie-
ron engañarle los demonios, para que hiciera sacrificios humanos, matando hombres, Pero él
nunca quiso ni condescendió...” Anales de Cuauhtitlan. In: Códice Chimalpopoca, op. cit., p. 8.
140 Vários casos de petições de nobres nahuas à Coroa castelhana apresentam fundamentos his-
tóricos como argumentos para a manutenção de privilégios. Cf. Pérez Rocha, Emma e Tena,
Rafael. La nobleza indígena del centro de México después de la conquista, op. cit./ Romero Galván,
José Rubén. Los privilegios perdidos, op. cit.
376 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
usos que possuíam nos relatos tradicionais. Vejamos, a título de exemplo, como dois
deles, Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin e Fernando de Alva Ixtlilxochitl, usam o ca-
lendário ao relatar o passado cosmogônico e como articulam seus episódios com a
versão bíblica da criação e a história cristã.141
Chimalpahin142 não reproduz em seus textos os relatos nahuas sobre as idades do
mundo e opta, de maneira geral, por mencionar as explicações da origem do Mundo
e do homem contidas nos textos bíblicos. Conjuga, apenas, alguns poucos aspectos da
cosmogonia e cosmografia nahua com a cristã por suas características coincidentes,
como a existência de camadas celestes, conforme vimos no Capítulo III. O texto em
que essa substituição da cosmogonia nahua pela cristã pode ser mais bem percebida é
a Primera relación, na qual Chimalpahin narra a criação desde Adão e Eva, enfatizando
a existência de uma só humanidade, por meio da evocação dos episódios contidos no
livro do Gênese. No entanto, parece que a datação continua a ter um papel central
em seu relato. Na Octava relación afirma que “Aquí comienza la vida de nuestros pri-
meros padres Adán y Eva. En un día 23 de marzo fue hecho y creado Adán”.143
Chimalpahin conjuga essas explicações cosmogônicas com os relatos sobre a
origem dos chichimecas e toltecas, remetendo-a a tempos pré-cristãos e organizando
sua exposição por meio de anais.144 A conta dos anos desempenha em suas Relacio-
nes a função de fio condutor, pois é mantida continuamente mesmo quando não
há eventos narrados, assim como vimos ocorrer nos Anales de Cuauhtitlan. Ademais,
conjuga a conta dos anos nahua com o calendário cristão, sobretudo a partir do ano
141 Há um estudo em português sobre a obra desses dois escritores: Kossovich, Elisa Angotti. Dois
cronistas mestiços da América ou da reconstituição da glória perdida através da História. In:
Azevedo, Francisca L. Nogueira e Monteiro, John Manuel. Confronto de culturas. Rio de Janeiro/
São Paulo: Expressão e Cultura/Edusp, 1997, p. 107-28.
142 Chimalpahin nasceu em 1579 em Chalco Amaquemecan e era descendente de nobres tlailotla-
cas que governaram Tzacualtitlan Tenanco desde 1269, data de sua fundação, até 1520. Muito
jovem foi para a cidade do México, onde possivelmente foi educado pelos franciscanos. Em
1593 começa a prestar serviços na igreja e casa de San Antonio Abad, onde permaneceu até
1607 como uma espécie de irmão leigo, isto é, que usa hábito, mas não pronunciou os votos.
Seus últimos trabalhos datam de 1637 e o ano de sua morte é desconhecido. Suas fontes de
informação foram relatos de anciãos e textos recebidos como herança familiar. Suas principais
obras são oito Relaciones, o Memorial breve acerca de la fundación de la ciudad de Culhuacan e o
Diario. Cf. Castillo Farreras, Víctor M. Estudio preliminar. In: Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin,
Domingo Francisco de San Antón Muñón. Memorial breve acerca de la fundación de la ciudad de
Culhuacan. México: IIH – Unam, 1991, p. IX-XLIV.
143 Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin, Domingo. Las ocho relaciones y el memorial de Colhuacan. Méxi-
co: Conaculta, 1998, p. 39.
144 Apenas a Primera relación e o Diario não possuem o formato de anais. Cf. ibidem.
Eduardo Natalino dos Santos 377
145 Fernando de Alva Ixtlilxochitl nasceu entre 1578 e 1580 e morreu em 1650. Também foi, pro-
vavelmente, aluno do Colégio de Santa Cruz de Tlatelolco. Sua família detinha o senhorio de
San Juan Teotihuacan. Em 1608, Ixtlilxochitl apresentou um texto de sua autoria, junto com
outros documentos, ante autoridades indígenas de Otumba e San Salvador Cuatlazinco para
obter um certificado legal de veracidade histórica. Esse texto seria empregado como prova ju-
dicial para o reconhecimento legal dos privilégios aos quais sua família teria direito desde tem-
pos ancestrais. Ixtlilxochitl foi juiz-governador de Texcoco, de Tlalmanalco e da Província de
Chalco e, também, intérprete do Tribunal de Índios. Suas principais obras são: Sumaria relación
de todas las cosas que han sucedido en la Nueva España, Relación sucinta, Compendio histórico, Sumaria
relación de la historia general de esta Nueva España e Historia de la nación chichimeca. Cf. O’Gorman,
Edmundo. Estudio introductorio. In: Ixtlilxochitl, Fernando de Alva. Obras históricas. México:
Instituto Mexiquense de Cultura/IIH – Unam, 1997, p. 1-257.
146 Cf. Ixtlilxochitl, Fernando de Alva. Obras históricas. México: Instituto Mexiquense de Cultura e
IIH – Unam, 1997.
147 Ibidem, p. 163. Ixtlilxochitl atribui uma antiguidade bastante remota aos toltecas, situando o
início de sua história logo após o dilúvio bíblico, ao fim da primeira idade cosmogônica, e não
após a criação do sol atual em Teotihuacan. Cf. ibidem.
148 Por exemplo, ao afirmar que “...de esto inventaron los indios una fábula, que dicen los hom-
bres se volvieron monas”. Ibidem, p. 264. É interessante notar que Ixtlilxochitl não menciona a
378 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
si mesmo como etnicamente pertencente ao grupo de produtores das tais fábulas, chamando-
os de “índios”. Coloca-se do lado da tradição cristã, sobretudo ao mencionar o calendário
cristão como “nuestra cuenta”. Cf. ibidem.
149 A produção desses textos nahuas não pode ser adequadamente entendida se adotarmos a opo-
sição polar entre castelhanos e indígenas como modelo capaz de dar conta de todas as ques-
tões políticas do período Colonial. Isso porque tal modelo pressupõe a resistência de todos os
grupos sociais nahuas a tudo o que procederia dos castelhanos, o que parece não ter sido a re-
alidade predominante durante esse período. Afirmar isso não significa despolitizar as questões
que envolvem castelhanos e nahuas ou amenizar os conflitos existentes e acreditar que houve
um processo de mistura cultural equitativa. Ao contrário, alerta para a existência de divisões
sociais e contradições de interesses no interior das sociedades nahuas, pois os membros de
suas elites, muitas vezes, pactuavam com os conquistadores e colonizadores para manter ou
recompor seus privilégios e, para isso, adotavam hábitos e crenças que os identificariam com
os castelhanos e os diferenciariam do restante da população. Em suma, a existência desses tex-
tos nahuas indica-nos que temos que trabalhar com um modelo de análise sociopolítica mais
complexo para entendermos a realidade vigente nessa região no período Colonial.
150 Estudos sobre os textos coloniais maias têm levado ao mesmo tipo de conclusão. Nancy Farris,
por exemplo, afirma que “El contenido de estos textos y de las tradiciones orales con que
se ligaban me hicieron sospechar que las ideas o el sistema cognitivo pueden tener cierta
autonomía con relación a su medio de comunicación”. Farris, Nancy. Recordando el futuro,
anticipando el pasado. In: La memoria y el olvido. México: Inah, 1985, p. 49.
Eduardo Natalino dos Santos 379
por outro, por sua inclusão nas taxações tributárias após as reformas de 1563.151 Como
mostramos na segunda parte do Capítulo I, essas elites abrigavam em seu interior as
tradições de pensamento e escrita nahuas, as quais, por sua vez, eram as principais
detentoras do manejo sistemático e institucionalizado do calendário e das concepções
cosmográficas e cosmogônicas. Desse modo, o progressivo desaparecimento dessa no-
breza significou, em muitos casos, o desuso do sistema de calendário e das concepções
cosmográficas na construção ou reprodução de relatos explicativos sobre o passado.
Em contrapartida, os relatos cosmogônicos nahuas continuaram a ser efetiva-
mente utilizados pelos macehualtin por muito tempo e, na verdade, continuam a ser
empregados até os dias atuais, sobretudo os que tratam das idades anteriores do mun-
do.152 Entretanto, parece que a articulação entre episódios cosmogônicos e referen-
ciais calendários, sobretudo diacrônicos, não era uma característica fundamental das
versões manejadas pelos macehualtin. Nessas versões, parece que apenas os referen-
ciais cosmográficos e a dimensão cíclica do sistema calendário são relevantes. Desse
modo, a continuidade do pensamento calendário entre os macehualtin nahuas signi-
ficou a ênfase na dimensão sincrônica, o que também ocorreu com outros tipos de
relatos e saberes, tais como os relacionados aos prognósticos. As datas cosmogônicas
sobrevivem apenas nos nomes dos deuses, cujas ações já não estariam propriamente
datadas de maneira diacrônica.
No entanto, não podemos projetar essa ênfase na dimensão sincrônica ou, tam-
pouco, a desarticulação entre episódios cosmogônicos e referenciais calendários e
cosmográficos – como ocorre nas obras dos religiosos castelhanos – sobre os relatos
151 Em 1563 o visitador geral, Jerónimo de Valderrama, foi incumbido de investigar a diminuição
dos impostos recebidos pela Coroa. Sua conclusão, segundo dois estudiosos, é que os tributos
de menos “...se debían a la injerencia de los frailes y al apoyo que éstos y el virrey daban a los
señores naturales, todo lo cual era contrario a los intereses reales”. Pérez Rocha, Emma e Tena,
Rafael. La nobleza indígena del centro de México después de la conquista, op. cit., p. 22. A solução
adotada foi, entre outras medidas, taxar os senhores e principais e os índios reservados do
tributo por prestarem serviços ou serem indicados pelos frades. Esse conjunto de medidas é
conhecido como Reforma de Valderrama. Cf. ibidem. Ixtlilxochitl queixa-se das taxações aos
pipiltin: “...los hijos y hijas, nietas y parientes de Nezahualcoyotzin y Nezahualpiltzintli andan
arando y cavando para tener que comer, y para pagar cada uno de nosotros diez reales de plata
y media fanega de maíz a su majestad, porque después de habernos contado y hecho la nueva
transacción, no solamente están tasados los mazehuales que paguen el susodicho tributo, sino
también todos nosotros, descendientes de la real cepa, estamos tasados contra todo el derecho
y se nos dio una carga incomportable...”. Ixtlilxochitl, Fernando de Alva. Obras históricas. Méxi-
co: Instituto Mexiquense de Cultura e IIH – Unam, 1997, p. 393.
152 Cf. Báez-Jorge, Félix e Gómez Martínez, Arturo. Los equilibrios del cielo y de la tierra. In:
Desacatos. México: Ciesas/Secretaría de Educación Pública/Consejo Nacional de Ciencia y Tec-
nología, n. 5, p. 79-94, inverno de 2000.
380 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
Conclusões
153 Vimos que Ross Hassig aponta de modo pertinente essa subvalorização. No entanto, acredita
que a concepção de tempo e de passado das elites nahuas seria quase que exclusivamente line-
ar, ponto sobre o qual discordamos. Cf. Hassig, Ross. Time, history and belief in Aztec and Colonial
Mexico. Austin: University of Texas Press, 2001.
154 Essa subvalorização, como procuramos mostrar ao longo do livro, caracteriza diversos estudos,
entre os quais estão: Bonifaz Nuño, Rubén. Cosmogonía antigua mexicana. México: Coordinaci-
ón de Humanidades – Unam, 1995/ Graulich, Michel. Mitos y rituales del México antiguo. Madri:
Ediciones Istmo/Colegio Universitario, 1990/ Soustelle, Jacques. Pensamiento cosmológico de los
antiguos mexicanos. Puebla: Federación Estudantil Poblana, 1959-1960.
Eduardo Natalino dos Santos 381
episódios relacionados ao passado mais distante ou ao mais recente. Isso não significa
que essa seria a única forma de articular tais episódios ou mesmo que não houvesse
distinções entre os relatos sobre o passado cosmogônico e o mais recente, como os re-
lacionados à história de Tollan e Topiltzin Quetzalcoatl, nos quais, como vimos acima,
a quantidade de referências temporais e espaciais, bem como a de detalhes descritivos
dos episódios, é muito maior do que nos relatos que tratam do passado distante.
Sendo assim, além da junção sincrônica por meio dos dias do tonalpohualli, essa
ordenação cronológica por meio da conta dos anos seria outra forma de estabelecer
vínculos entre o passado cosmogônico e o recente e, por consequência, de ambos
com o presente. Nesse caso, os vínculos baseavam-se no encadeamento cronológico
entre episódios que aludiriam ao início da primeira idade, às idades anteriores, ao
início da idade atual e, como parte dessa idade, à história tolteca e chichimeca.
Por fazer parte da idade atual, a história particular dos toltecas e dos chichime-
cas não estava livre dos destinos e desdobramentos cosmogônicos, tal como o fim
dessa idade por fomes, terremotos ou pela imobilidade do Sol. Vimos, ao analisar a
cerimônia do Fogo Novo do Códice borbónico, que esse final cosmogônico era esperado
a cada 52 anos entre os mexicas e, provavelmente, entre os demais grupos e altepeme
do altiplano central mexicano em princípios do século XVI.
Todos esses indícios levaram-nos a propor que as tradições de pensamento
nahuas entendiam a cosmogonia e a história recente como fases do passado que se
articulariam tanto pela sucessão cronológica quanto pela inserção dessa última fase
no interior da idade cosmogônica atual. Isso significaria, entre outras coisas, que a
cosmogonia era vista como um processo em curso para os nahuas do século XVI e
que, em consequência, a história recente não estaria simplesmente posposta à cosmo-
gonia, como afirmam alguns estudiosos apontados acima.
Ademais, vimos que o emprego das mesmas concepções cosmográficas para re-
gistrar eventos cosmogônicos ou da história recente reforçaria a continuidade e so-
breposição que estamos propondo existir entre essas fases do passado, pois mostraria
que os locais de ocorrência dos eventos cosmogônicos eram os mesmos que faziam
parte do universo circundante dos altepeme nahuas – alguns locais seriam, inclusive,
outros altepeme, como Teotihuacan.
Na terceira parte do capítulo, arrolamos outros indícios que reforçam essa
ideia, ou seja, que a cosmogonia e o passado recente não eram vistos como tempos
passados essencialmente distintos e separados por uma fronteira situada na criação
do Sol e do homem atuais, a qual marcaria o fim da cosmogonia e o começo da
história humana.155
155 Ademais, vimos que a presença humana é reiteradamente citada nos relatos sobre as idades
anteriores. Sendo assim, tais idades também poderiam ser entendidas como o resumo de his-
tórias humanas anteriores.
382 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
156 Cf. Obregón Rodríguez, María Concepción. La zona del Altiplano Central en el Posclásico. In:
Manzanilla, Linda e López Luján, Leonardo (coord.). Historia antigua de México. México: Inah/
IIA – Unam/Miguel Ángel Porrúa, 2001, p. 277–318.
384 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
análises e indícios arrolados neste capítulo e nos anteriores tenham sido suficientes
para demonstrar, entre outras coisas, que a concepção de tempo empregada pelas
elites nahuas pré-hispânicas e coloniais em seus escritos tradicionais sobre o passado –
pictoglíficos ou alfabéticos – não pode ser caracterizada dessa forma, pois tais escritos
apresentam a sincronia e a diacronia articuladas por meio do uso de variados ciclos e
unidades calendárias, os quais, por sua vez, aparecem conjugados com ou dependem
de precisos e complexos conceitos acerca do espaço.
Considerações finais
No Capítulo IV, reunimos uma série de análises e reflexões sobre os três princi-
pais temas da pesquisa, demonstrando como o emprego articulado do calendário e
da cosmografia para tratar da cosmogonia dotava os episódios registrados de carac-
terísticas fundamentais, as quais, por sua vez, seriam parte das concepções nahuas
de tempo e de passado. Sendo assim, esse capítulo procurou articular informações e
resultados parciais relacionados às hipóteses específicas e que se encontravam disper-
sos pelos capítulos anteriores. Por esse motivo, não iremos retomar essas articulações
ou os resultados dessas hipóteses específicas de forma detalhada nestas considerações
finais. Iremos, apenas, reunir e articular alguns resultados relacionados às duas hipó-
teses gerais da pesquisa, isto é, que dizem respeito à caracterização das concepções de
tempo, espaço e passado manejadas pelas elites dirigentes nahuas ou que se relacio-
nam às transformações dos empregos escriturais do calendário, da cosmografia e da
cosmogonia durante o século XVI.
Tratemos primeiro das características das concepções de tempo, espaço e passa-
do e, depois, das transformações e continuidades dos usos escriturais do calendário,
da cosmografia e da cosmogonia nahua.
A análise das fontes centrais que se mostraram mais tradicionais, isto é, o Códice
borbónico, a Leyenda de los soles, os Anales de Cuauhtitlan e partes do Códice Vaticano A e da
Historia de los mexicanos por sus pinturas, permitiu-nos inferir as seguintes características
das concepções de tempo, espaço e passado das elites nahuas:
A – Contar o tempo era simultaneamente qualificá-lo, pois as unidades e ciclos
calendários que eram associados aos episódios do passado distante ou recente, além
de informarem a quantificação temporal, também participavam ativamente na com-
posição dos episódios, aportando neles determinadas características. Em contrapar-
tida, algumas características desses episódios se transformavam em qualidades per-
manentes das unidades e ciclos calendários, passando a fazer parte de suas cargas, as
quais se manifestariam em ocasiões regidas por tais unidades e ciclos. Em suma, os
episódios relacionados ao passado distante ou recente e as unidades e ciclos calendá-
rios se retroalimentavam de características e qualidades.
B – A ubiquidade e o uso estrutural do sistema calendário nos manuscritos
nahuas – seja num tonalamatl, num teoamoxtli ou num xiuhamatl – apontam para a
importância gnosiológica central que esse sistema desempenharia entre as tradições
nativas de pensamento e escrita nos processos de classificação e compreensão da re-
alidade. Sendo assim, podemos dizer que o tonalpohualli e o xiuhmolpilli eram ampla-
mente empregados como uma espécie de “ferramenta” para classificar e interpretar
as relações entre presente, passado e futuro, pois separavam ou articulavam diferentes
eventos em suas unidades e ciclos.
C – A sincronia e a diacronia eram características complementares e indispensá-
veis a qualquer marcação temporal nahua. A ênfase no caráter sincrônico ou diacrô-
Eduardo Natalino dos Santos 389
nico dependia, em parte, dos episódios ou temas registrados, bem como da intenção
dos produtores do registro, pois em função dessas variáveis se daria mais destaque ao
tonalpohualli, o que enfatizaria a sincronia, ou ao xiuhmolpilli, o que enfatizaria a dia-
cronia, especialmente se ele estivesse disposto de forma contínua, como nos livros de
anais ou xiuhamatl. Essa conjunção entre sincronia e diacronia dotava as datas nahuas
de diversas camadas de significação.
D – As tradições de pensamento nahuas manejavam uma dimensão temporal
ampla, de pelo menos dezenas de milhares de anos. Isso significa, entre outras coisas,
que a concepção de passado manejada por tais tradições estava permeada por núme-
ros vultosos e por complexos cálculos e combinações calendárias, os quais estavam a
serviço da quantificação e, simultaneamente, da qualificação do tempo, pois nenhum
dos elementos que compunham as unidades e ciclos calendários – números ou signos
– estava desprovido de uma carga de qualidades próprias.
E – A divisão do espaço em âmbitos inter-relacionados era, fundamentalmente,
uma forma de qualificá-lo. Essa divisão baseava-se principalmente nos movimentos do
Sol e, dessa forma, articulava-se estreitamente com os ciclos calendários, empregados
para mensurar tais movimentos, bem como com grandezas matemático-geométricas.
Da utilização central dos movimentos do Sol para delimitar os âmbitos cosmográficos
resultava certa prioridade gnosiológica da faixa leste-oeste sobre a norte-sul.
F – A articulação dessa divisão espacial com os ciclos calendários resultava num
complexo conjunto de concepções espaço-temporais, empregadas, entre outras coi-
sas, para organizar a disposição dos registros pictoglíficos nahuas e, simultaneamen-
te, para qualificar seus conteúdos. Esse conjunto era sempre acionado parcialmente
nesses registros tradicionais nahuas, dependendo da relevância de cada um dos seus
componentes para os episódios e informações que se queriam registrar.
G – Os âmbitos cosmográficos nahuas eram delimitados por fronteiras gradu-
ais e transponíveis, que serviam antes para marcar a circulação e o movimento dos
entes e do tempo pelas diversas partes do espaço do que para estabelecer divisões
estanques e intransponíveis entre regiões ocupadas constantemente pelos mesmos
seres. As macrorregiões cosmográficas – Céu, Inframundo e quatro rumos – não se
localizavam em um “outro espaço”, fora do alcance humano e reservado à presença
e circulação dos deuses e entes sobre-humanos. A presença dos deuses entre os ho-
mens e dos homens em todos esses âmbitos atesta a existência de uma relação bem
mais complexa entre âmbitos e seres ocupantes do que o simples impedimento de
trânsito ou a exclusividade de ocupação. Do mesmo modo, a relação entre os altepeme
e as macrorregiões cosmográficas não se caracterizava pela separação entre dois tipos
de espaço, ocupados por entes distintos e nos quais vigorariam leis também distintas.
Ao contrário, cada altepetl era concebido como uma espécie de microcosmo que re-
produziria mimeticamente todo o Mundo e que se encontraria em seu centro, onde,
portanto, todas as macrorregiões se reuniriam ou sobreporiam.
390 Tempo, espaço e passado na mesoamérica
desses manuscritos com códices tradicionais e, também, com as obras dos missioná-
rios castelhanos possibilitou o entendimento de transformações nos usos escriturais
do calendário, da cosmografia e da cosmogonia durante o século XVI. Algumas dessas
transformações foram:
A – As concepções calendárias e cosmográficas deixaram de ocupar o papel de
lógica organizadora ou de pressupostos de leitura dos escritos e passaram a ser tra-
tadas como temas em textos explicativos. Esse processo foi marcado pela simplifica-
ção dessas concepções – por exemplo, ao se reduzir alguns ciclos calendários à sua
dimensão quantitativa –, bem como por sua adaptação ao pensamento cristão – por
exemplo, ao se retratar os âmbitos cosmográficos como locais de destino dos mortos
ou de moradia fixa de determinados deuses.
B – As concepções calendárias mantiveram o papel de lógica organizadora ou fio
condutor da narrativa em alguns textos alfabéticos nahuas, mas o mesmo não ocorreu
com as concepções cosmográficas, pois o sistema de escrita alfabética tende a dispen-
sar um tratamento relativamente homogêneo ao espaço escriturário, inviabilizando a
continuidade do papel organizacional que a cosmografia desempenhava nos escritos
pictoglíficos. Além disso, o sentido anti-horário deixou de ser empregado como prin-
cípio de organização e de leitura em alguns manuscritos pictoglíficos que tratavam
dos ciclos calendários, o que não ocorria nos registros tradicionais nahuas.
C – As numerosas menções calendárias e toponímicas que apareciam nos relatos
nahuas mais tradicionais sobre o passado, especialmente sobre o passado recente,
diminuíram significativamente nos manuscritos nativos coloniais influenciados pelos
modelos narrativos e seleções temáticas de origem cristã e praticamente desaparece-
ram nas Historias dos religiosos castelhanos.
D – A desarticulação entre episódios cosmogônicos e marcos calendários e cos-
mográficos detectada em parte de nossas fontes centrais relaciona-se com a fabuli-
zação do passado nahua, processo que estava sendo realizado principalmente pelos
missionários cristãos. Por julgar que os relatos nahuas sobre o passado eram fruto de
inspirações demoníacas ou concorrentes das explicações bíblicas, os missionários os
destituíram das informações que poderiam dotá-los de verossimilhança, tais como as
informações calendárias, cosmográficas e toponímicas, bem como de sua amplitude
temporal, superior à que se encontra presente nos textos bíblicos.
E – Textos que utilizavam o calendário e a cosmografia de forma estrutural ou
como pressupostos de leitura para tratar do passado foram produzidos pelas elites
nahuas até, pelo menos, meados do século XVII, tanto em meio dos trabalhos mis-
sionários – como os escritos confeccionados pelos membros da equipe de Sahagún
– como de modo relativamente independente – como os textos de Chimalpahin e
Ixtlilxochitl. No entanto, a desarticulação e o desaparecimento das elites nahuas oca-
sionaram, muitas vezes, o desuso dos marcos calendários na produção de explicações
sobre o passado, especialmente dos marcos diacrônicos. Isso porque para a organi-
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Anotações pessoais
Anotações pessoais
Caderno de imagens
Eduardo Natalino dos Santos 417
Figura 2: Trezena
Ce Quiahuitl no
Códice borbónico, p. 7.