Tomas de Aquino - Comentario Ao Hebdomadius de Boécio
Tomas de Aquino - Comentario Ao Hebdomadius de Boécio
Tomas de Aquino - Comentario Ao Hebdomadius de Boécio
http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2020.2.37017
SEÇÃO: TRADUÇÃO
1
Título original: TOMÁS DE AQUINO. Expositio libri Boetii De Ebdomadibus. In: FRATRUM PRAEDICATORUM (Cura et studio). Sancti
Thomae de Aquino Opera Omnia: Iussu Leonis XIII P. M. Edita. Roma: Les éditions du Cerf, 1992, v. 50, p. 234-282. Remetemos igualmente
ao exaustivo estudo crítico da mesma edição para uma mais ampla contextualização histórica da obra. Desta maneira, concentraremos
nossos esforços no texto tomasiano enquanto tal, oferecendo uma tradução que seja o mais fiel possível ao texto latino evitando fazer
uma espécie de tradução-comentário. Nas passagens em que as peculiaridades do latim assim como as do estilo próprio de Boécio e
de São Tomás não permitirem uma tradução literal, inserimos alguns termos entre colchetes [] para garantir a coesão e coerência, evi-
denciando para o leitor as adaptações do texto original que se julgaram necessárias na versão portuguesa.
1
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil
3
Este título não consta na edição Leonina. Para uma referência crítica aos textos latinos de Boécio ver: BOETHIUS. Quomodo Substan-
tiae in eo quod sint bonae sint cum non sint substantialia bona. In: RAND, E.K.; STEWARD, H.F.; TESTER, S.J. (ed.). Boethius: Tractates | The
consolation of philosophy. London: Loeb Classical Library, 1990.
4
“De Hebdomadibus” é a denominação com a qual a obra de Boécio ficou conhecida no período medieval, porém nos manuscritos o
texto se intitula: “Quomodo substantiae in eo quod sint bonae sint cum non sint substantialia bona, liber. Ad Ioannem Diaconum Ecclesiae
Romanae”. A pesar disto, a palavra “hebdomas”, de origem grega, é mencionada já na primeira frase da obra. Parece que, com o passar do
tempo, os autores medievais em seu afã de brevidade usaram este termo chave em lugar do título original. Todavia, um problema maior
é a compreensão do significado pretendido pelo autor ao usar este termo. A tendência interpretativa tem sido a de perscrutar intratex-
tualmente o sentido de “hebdomas” ligando de algum modo a etimológica da palavra com o método axiomático usado para resolver a
questão sobre a bondade do ente. Assim “hebdomades” significaria “concepções”, ou seja, as proposições evidentes a partir das quais se
argumenta a questão. Porém no texto são apresentados ao menos nove axiomas, o que entra em conflito com o significado próprio de
“hebdomas” que quer dizer conjunto de sete dias ou semana. Por isso, foram surgindo outras variantes da expressão num esforço de ate-
nuar seu significado etimológico e aproximá-la da ideia de concepção autoevidente ou axioma. Nesse sentido, o autor do “Fragmentum
Admuntense” afirma que “hebdomas” significa “reflexão”, pois procede de “ἑπτά” que significa sete e os antigos quando queriam resolver
alguma questão difícil costumavam pedir sete dias para refletir sobre o tema (HÄRING, 1971, p. 119). No entanto, isto assume que “hebdo-
mas” tem um significado simbólico. Outros autores, buscando uma significação literal, procuram substituir “hebdomas” por outras formas
próximas. Assim, Remigio d’Auxere faz derivar o título de um suposto verbo grego “ἔβδω” que significaria conceber (RAND, 1906, p. 50). O
problema desta explicação é que tal verbo não existe em grego. Por outro lado, Teodorico de Chartes y Clarembaldo de Arras afirmam
que “ebdomadibus” seria uma palavra composta “ἐβ” e “δόμας” em que, por uma mutação consonântica, a “ἐν” se converteu em “ἐβ”. No
entanto, isto não se justifica em grego, visto que a preposição “ἐν”, terminada em uma consoante líquida, nunca se transmutaria em “ἐβ”
que termina em uma labial. Já a palavra “δόμας” estaria emparentada com “domus”. Assim “ebdomadibus” significaria algo como dentro
de casa, no interior ou alma. Mas neste caso, novamente estaríamos jogando como uma interpretação simbólica. São Tomás parece, em
parte, aceitar esta leitura, mas não a atribui diretamente ao título, mas ao sentido da obra citando em seu proemio o livro do Eclesiástico.
Por outro lado, seguindo a tendência de adaptação etimológica, ele sugere que “hebdomas” significaria “declarar”, talvez pela proximida-
de fonética com o verbo “ἐκδίδωμι” como o dão a entender os críticos da Edição Leonina das Obras Completas do Santo (AQUINO, 1996,
p. 260-263). Outra forma de entender “hebdomas”, seria encontrar-lhe um sentido extratextual, apostando na literalidade de seu signifi-
cado. Desta forma, por “hebdomas” Boécio poderia estar se referindo a certas “Jornadas” ou “Semanas” de reflexão, isto é, determinados
momentos em que ele e seus achegados se reuniriam secretamente para a ponderação de princípios metafísicos (HUNDRY, 1997, p.
319-337) de difícil compreensão por parte da maioria das pessoas que só valorizariam temas superficiais. Esta interpretação poderia estar
respaldada pela própria acusação que Boécio recebeu de apoiar o senador Albino pelo suposto envio de cartas secretas ao Imperador
do Oriente conspirando contra o reino Ostrogodo. No entanto, fora este indício, tal interpretação não apresenta outras evidências. Diante
desta problemática brevemente exposta, optamos por não traduzir o termo “hebdomadibus” e seus derivados.
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E dizes que isso deve ser feito assim porque o outras por cuja atenção seja distraído, conforme
estilo destes escritos não é conhecido por todos. se afirma em Sabedoria 8,16: “entrando em minha
Inclusive eu mesmo sou testemunha do modo tão casa, repousarei com ela”, ou seja, com a sabedoria.
vivaz que tens abraçado estes [temas] anteriormente. Assim como a contemplação da sabedoria requer
De fato, eu mesmo pondero as Hebdômadas e que alguém se apodere de sua mente para que
conservo essas considerações na minha memória em preencha toda sua casa com sua contemplação,
vez de compartilhá-las com qualquer um daqueles assim também se exige que todo ele esteja
que o desenfreio e a insolência não permitem que interiormente presente pela atenção de maneira
nada seja enlaçado sem jogo e risadas. que sua atenção não seja de fato atraída para
Portanto, não sejas desfavorável às outras coisas. Por isso, adiciona: “Lá invoca-as”,
obscuridades da brevidade. Pois sendo isto é, concentra lá toda tua atenção. Assim, tendo
misteriosas, têm a vantagem de serem fiéis esvaziado totalmente a casa interior e o homem
guardiãs [de um segredo], já que elas dialogam nela existindo numa total dedicação, expõe o que
somente com aqueles que são dignos. se deve fazer agregando “e diverte-te”. Agora é
Assim, como se costuma fazer na matemática necessário considerar que a contemplação da
e demais disciplinas, propus termos e regras dos sabedoria se relaciona convenientemente com
quais demonstrarei todas as coisas que se derivam. o jogo por duas coisas que nele se encontram:
Uma concepção comum da mente é uma em primeiro lugar porque o jogo é agradável e
enunciação que, tendo ouvido, qualquer um aprova. a contemplação da sabedoria comporta o maior
Dessas existem dois tipos: de fato, uma delas é deleite, conforme se afirma em Eclesiástico 24, 27
tão comum que é própria de todos os homens como, por boca da sabedoria: “meu espírito é mais doce
por exemplo, quando propões isto: “se de duas que o mel”. Em segundo lugar porque as operações
coisas iguais diminuis porções iguais, o que sobrará do jogo não estão ordenadas a outras coisas, mas se
serão coisas iguais”. Ninguém que entenda o negará. buscam por si mesmas. E isto mesmo corresponde
Porém há outras que pertencem somente aos aos deleites da sabedoria. Porém, ocasionalmente
instruídos, ainda que procedam de tais concepções sucede que alguém se deleita consigo mesmo
comuns da mente como é esta: “aquelas coisas que na consideração de outras coisas que deseja ou
são incorpóreas, não estão em um lugar” e outras que se propõe fazer. Mas este deleite se ordena a
que os instruídos comprovam, mas não a plebe. algo externo que se esforça por alcançar. Porém
se acabar ou tardar, se adiciona a este tipo de
[Comentário de São Tomás de Aquino] deleite uma não menor aflição como se afirma
“Sê o primeiro a correr para tua casa e em Provérbios 14, 13: “o riso de misturará com a
ali ocupa-te de tuas concepções. dor”. Mas o deleite da contemplação da sabedoria
Lá invoca-as e diverte-te”. tem em si mesma a causa da satisfação motivo
(Eclesiástico 32, 15-16) pelo qual não se sofre nenhuma ansiedade como
quando se espera algo que falta. Por isso se diz
O estudo da sabedoria tem este privilégio, que em Sabedoria 8, 16: “a sua convivência não tem
ela mesma lhe é mais que suficiente para expor sabor amargo, nem o tédio a sua intimidade”, a
a sua atividade. De fato, nas obras exteriores o saber, a da sabedoria. E assim o deleite da divina
homem necessita do auxílio de muitíssimas coisas. sabedoria está relacionado com o jogo, por isso em
Porém na contemplação da sabedoria, quanto mais Provérbios 8, 30 afirma: “por dias e dias me deleitava
solitário consigo permaneça, mais eficazmente jogando com ele”. De modo que por diversos dias se
alguém se ocupa dela. E por isso, nas palavras apreciam as considerações de diversas verdades.
expostas, o sábio volta a chamar o homem para si Por isso agrega também isto: “e ali ocupa-te de tuas
mesmo, dizendo: “Sê o primeiro a correr para tua concepções” pelas quais o homem evidentemente
casa”, isto é, regresse com solicitude das coisas adquire o conhecimento da verdade.
exteriores à tua mente, antes que te ocupes de Sendo, pois, partidário desta prática, Boécio
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 3/17
nos produziu um livro sobre suas concepções Depois quando diz “De fato, eu mesmo pondero
que se chama “De Hebdomadibus”, isto é, “Sobre as Hebdômadas” mostra que este modo [de falar]
as Declarações”, pois em grego “hebdómada” é o também lhe é familiar. E diz que ele mesmo
mesmo que declarar. Assim, nesse livro Boécio estava acostumado a meditar consigo, isto é,
faz duas coisas: primeiro, preanuncia um proêmio. compor e inventar certas “hebdômadas”, em
Em segundo lugar, procede à discussão da obra, outras palavras, declarações ou concepções, as
ali onde afirma “Diverso é o ser e aquilo que é”. quais preferia conservá-las considerando em sua
Sobre primeiro faz três coisas: primeiro, mostra memória que comunicá-las a alguns daqueles que
qual é sua intenção. Segundo, como deve tratá- por seu desenfreio e insolência, isto é, luxúria e
la, ali [onde afirma] “E dizes que isso deve ser superficialidade, não suportam que se juntem “nada”
feito assim porque o estilo destes escritos não além “do jogo e das risadas”, ou seja, nada ordenado
é conhecido por todos” Terceiro, apresenta a e disposto corretamente. De fato, detestam se
ordem em que se deve proceder, ali [onde diz] alguém junta e ordena um discurso não para o
“Assim, como se costuma fazer na matemática”. jogo, mas àquilo que concerne aos assuntos sérios.
De fato, escreveu este livro ao diácono João Depois quando diz “Portanto não sejas
da Igreja de Roma, que lhe havia pedido que desfavorável às obscuridades da brevidade”,
discorresse e expusesse uma difícil questão sobre conclui que a obscuridade do discurso deva
suas “Hebdômadas”, isto é, declarações por meio ser recebida de bom grado a partir do que foi
da qual se resolve uma aparente contradição. Pois exposto, tal como o próprio [João] havia solicitado.
se afirma que as substâncias criadas, enquanto são, E é por essa razão que ele diz “por isso”. Pois
são boas, não obstante se diga que as substâncias de fato fizeste isto de tal modo que o caminho
criadas não são bens substanciais, mas isto se diz das nossas descrições não fosse acessível a
unicamente do próprio ser de Deus. Pois aquilo que todos. “Não sejas avesso” ou, em outras palavras,
convém a algo enquanto é, parece que lhe convém contrário às “obscuridades da brevidade”, isto é,
substancialmente. E assim se as substâncias criadas, à obscuridade do presente livro que está unida à
enquanto são, são boas, parece consequentemente brevidade. Pois, quanto mais brevemente algumas
que elas são bens substanciais. coisas são ditas, mais costumam ser obscuras.
Depois quando diz “E dizes que isso deve ser Ademais, a obscuridade, ao guardar fielmente um
feito assim porque o estilo destes escritos não é segredo, traz isto de utilidade: “que fala somente
conhecido por todos”, mostra como quer tratar o com aqueles que são dignos”, a saber, com os
assunto, isto é, não de modo claro, mas obscuro. inteligentes e dedicados, que são dignos de serem
E referente a isso, faz três coisas: Primeiro mostra admitidos aos segredos da sabedoria.
porque pretende falar de modo obscuro. Segundo Depois quando diz “Assim, como se costuma
mostra que este modo [de falar] lhe é familiar, fazer na matemática e demais disciplinas, propus
ali [onde diz] “De fato, eu mesmo pondero as termos e regras dos quais demonstrarei todas as
Hebdômadas”. Em Terceiro lugar, mostra porque este coisas que se derivam”, mostra em qual ordem
modo lhe deve ser aceito, ali onde diz: “Portanto não é necessário proceder: evidentemente por meio
sejas desfavorável às obscuridades da brevidade”. da aquelas coisas que são conhecidas por si
Assim sendo, diz em primeiro lugar que aquele mesmas e sobre isto faz duas coisas. Em primeiro
para o qual escreve estas coisas pedia que elas lugar, estabelece a ordem do procedimento. Em
devessem ser escritas assim, pois o método segundo, dá a conhecer aquelas coisas a partir das
delas não era conhecido por todos que não eram quais tem intensão de proceder ali [onde diz] “Uma
influenciados pelo mesmo desejo que ele tinha para concepção comum da mente é uma enunciação
com elas. O próprio Boécio dá testemunho dele, já que, tendo ouvido, qualquer um aprova”.
que tais coisas foram de antemão vigorosamente Portanto, diz em primeiro lugar que ele
abraçadas, ou seja, ao compreendê-las com pretende propor primeiramente certos princípios
perspicácia ou desejá-las com fervor. autoevidentes que chama de “termos e regras”.
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“Termos” porque, efetivamente, em tais princípios da mente comuns a todos como, por exemplo:
encontra-se a resolução de todas as demonstrações. “coisas incorpóreas não podem estar em um
“Regras” porque por elas alguém é dirigido ao lugar” que não é aceita pelo vulgo, mas somente
conhecimento das conclusões subsequentes. pelos sábios. A razão desta distinção é porque
De tais princípios, pois, pretende concluir e tornar uma concepção comum da mente, ou princípio
conhecidas todas as coisas que, consequentemente, evidente, é uma proposição em que o predicado
devam ser tratadas, assim como se faz na geometria pertence à noção do sujeito. Assim, se aquilo
e em outras ciências demonstrativas que, por isto que é significado pelo sujeito e pelo predicado
mesmo, se chamam disciplinas, pois por elas se igualmente cai no entendimento de todos, se
agrega aos discípulos o conhecimento que o mestre segue que tal proposição é autoevidente para
propõe por meio da demonstração. todos. Dado que todos sabem o que é ser igual
Depois quando diz “Uma concepção comum e, de modo semelhante, o que é subtrair, assim
da mente é uma enunciação que, tendo ouvido, também dita proposição é conhecida por todos.
qualquer um aprova”, dá a conhecer os princípios E modo semelhante quando se diz que “o todo
autoevidentes: primeiro por definição e, em seguida, é maior que sua parte” e outras afirmações do
por divisão ali [onde diz] “Dessas existem dois tipos”. mesmo gênero. Mas somete o intelecto dos sábios
Sobre o primeiro, deve considerar-se que se eleva a compreensão de uma coisa incorpórea,
princípios deste gênero, que são termos, se chamam pois os intelectos dos homens ordinários não
concepções comuns da mente por serem as regras transcendem a imaginação que é própria somente
das demonstrações. Define, portanto, concepção das coisas corporais. Por tal motivo, aquelas coisas
comum da mente dizendo: “Uma concepção que são próprias dos corpos, como, a saber, estar
comum da mente é uma enunciação que, tendo em um lugar circunscrito, o intelecto dos sábios
ouvido, qualquer um aprova”, isto é, que qualquer de imediato remove das realidades incorpóreas
um está de acordo quando a ouve. De fato, outras o qual o vulgo não pode fazer.
proposições que são demonstradas por estas não
se reconhecem de imediato pelo mesmo fato serem II
ouvidas, mas convém que algumas [proposições]
[Texto de Boécio]
se tornem conhecidas por outras. Contudo, isto
não pode proceder ao infinito, daí que é necessário Diverso é o ser e aquilo que é.
chegar a algumas [proposições] que sejam Pois o mesmo ser ainda não é, porém aquilo
conhecidas por si mesmas de modo imediato. Por que é, tendo recebido a forma de ser, é e consiste.
este motivo, são chamadas de concepções comuns O que é pode participar de algo, mas o
da mente e geralmente caem no entendimento mesmo ser de nenhum modo participa de algo.
de qualquer intelecto. A explicação disto é que o A participação se dá quando algo já é. Por outro
predicado está contido na razão do sujeito. E assim, lado, é algo quando tenha recebido o ser.
logo que o sujeito tenha sido nominado e entendido Aquilo que é pode ter algo além do que ele
o que ele seja, no mesmo momento fica claro o mesmo é. Mas o mesmo ser não tem nada mais
Depois quando diz “Dessas existem dois tipos”, Diverso é, no entanto, ser algo e ser algo
modo dos predicados das concepções comuns Pois aquele significa o acidente, este, a substância.
da mente é duplo. Pois certas concepções da Tudo o que é participa daquilo que é o ser para
mente são comuns a todos os homens assim que seja. Entretanto, participa de outra coisa para
como esta: “se de coisas iguais, retiram-se coisas que seja algo.
iguais o que sobram são coisas iguais”. Porém, a E, por isso, aquilo que é participa daquilo que
outra concepção da mente é comum só para os é o ser para que seja. Por outro lado, é para que
doutos, pois se deriva das primeiras concepções participe de qualquer outra coisa.
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 5/17
Em todo composto, uma coisa é o ser e outra parte do predicado, tal como afirmamos sobre
coisa é ele mesmo. o homem, ou qualquer outra coisa, que ele não
Todo aquele que é simples tem o seu ser e somente é de modo simples, mas que é algo
aquilo que é como uma só coisa. como branco ou negro. Portanto, primeiramente
Toda diversidade é discordante; a semelhança, coloca as concepções que se tomam segundo
em vez, deve ser desejada. a relação do ser com aquilo que é. Em segundo
E aquele que deseja outro mostra que ele mesmo lugar, coloca as concepções que se tomam
é por natureza tal como é aquilo mesmo que apetece. conforme a relação daquilo que é simplesmente
Em conclusão, são suficientes [os princípios] ser com aquilo que é algo ali onde diz “Diverso
que preestabelecemos, pois cada uma dessas é, no entanto, ser algo e ser algo naquilo que é”.
noções será aplicada aos argumentos pelo No que diz respeito ao primeiro, faz duas
intérprete prudente. coisas: primeiramente estabelece a diferença
daquilo que é ser em relação com aquilo que é.
[Comentário de São Tomás de Aquino] Em segundo lugar, manifesta esta diferença ali
“Diverso é o ser e aquilo que é”. [onde diz] “pois o mesmo ser ainda não é”.
Portanto, diz primeiramente que é diverso o ser
Boécio tinha dito acima que ele procederia nesta e aquilo que é. Essa diversidade aqui não se refere
ordem: antes colocaria certos termos e regras a às coisas, das quais ainda não está falando, mas
partir das quais procederia àquilo que vem depois. às próprias razões ou intenções. Pois significamos
Assim, de acordo com a ordem preestabelecida, uma coisa quando dizemos ser e outra quando
primeiro começa por exprimir certas regras ou dizemos aquilo que é. Assim como denotamos
concepções dos sábios. Segundo, a partir delas, uma coisa quando dizemos correr e outra quando
começa a argumentar ali [onde diz] “Assim sendo, se diz aquilo que corre. Pois correr e ser significam
a controvérsia se apresenta da seguinte maneira”. [algo] em abstrato assim como a brancura. Mas
Como se disse anteriormente, aquelas aquilo que é, ou seja, ente e aquilo que corre
proposições são sumamente conhecidas porque significam [algo] em concreto como branco.
se usam termos que todos entendem. Aquelas Depois quando diz “pois o mesmo ser ainda não
coisas que caem em qualquer intelecto são as mais é”, mostra a diversidade anunciada de três maneiras.
comuns, a saber: ente, uno e bem. E assim Boécio Das quais a primeira é que o mesmo ser não
põe aqui certas concepções que se referem ao significa o mesmo sujeito do ser do mesmo modo
ente. Em segundo lugar, certas que pertencem a que tampouco o correr significa o sujeito da
uno, das quais se extraem as noções de simples e corrida. Daí que não podemos dizer que o mesmo
composto ali [onde diz] “Em todo composto, uma correr corra, como também não podemos dizer
coisa é o ser e outra coisa é ele mesmo”. Em terceiro que o mesmo ser seja. Mas aquilo que é, significa
lugar, certas concepções que se referem ao bem [algo] como sujeito do ser, do mesmo modo
ali [onde diz] “Toda diversidade é discordante”. aquilo que corre significa [algo] como sujeito
No referente ao ente, se considera o mesmo do correr. Por esta razão, da mesma forma que
ser como algo comum e indeterminado, podemos afirmar em relação àquele que corre,
determinando-se de duas maneiras: uma por ou ao corredor5, que corre na medida em que
parte do sujeito que tem o ser e outro modo por se submete à corrida e participa dela, assim
5
Neste trecho do comentário, São Tomás usa uma analogia por meio de um jogo gramatical de palavras que dificilmente é tradu-
zível para o português. O texto em questão é o seguinte: “et ideo sicut possumus dicere de eo quod currit, sive de currente, quod currat,
inquantum subiicitur cursui et participat ipsum; ita possumus dicere quod ens, sive id quod est, sit, inquantum participat actum essendi”.
Neste excerto, se explica a diferença entre “ser” e ente: ainda que ambas denominações tenham a mesma extensão, o sentido delas é
diferente. Ser é uma designação abstrata que não inclui a subjetividade em sua noção. Por outro lado, ente inclui em sua noção o sujeito
que exercita o ser. A explicação se apoia no modo como o latim estrutura o particípio presente. “Ens, entis” é o particípio presente de ser
(esse) e significa “aquilo que é” (id quod est). De modo análogo o particípio de correr (currere) é “currens, currentis” que significa “aquele
que corre” (id quod currit). Agora, o termo “ens” corresponde em português a ente, porém “currens” não apresenta um equivalente preciso.
Somos forçados a colocar como tradução de “currens” a palavra “corredor”, perdendo infelizmente a força da comparação feita por São
Tomás: o “esse” está para o “ens” (id quod est), assim como o “currere” está para o “currens” (id quod currit).
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podemos dizer que o ente, ou aquilo que é, é na participa do mesmo ser, não pelo modo que o
medida em que participa do ato de ser. Por isso mais comum é participado pelo menos comum,
afirma que “o mesmo ser ainda não é”, porque não mas participa do mesmo ser pelo modo que o
se atribui a ele o ser como sujeito do ser. Porém concreto participa do abstrato. É isto, portanto, o
“aquilo que é, tendo recebido a forma de ser”, a que diz: que “aquilo que é”, ou seja, o ente pode
saber, recebendo o mesmo ato de ser “é e tem participar de algo, mas o mesmo ser de nenhuma
consistência”, em outras palavras, subsiste em si maneira participa em algo. Ele prova isto a partir
mesmo. De fato, o ser não se diz propriamente daquilo que foi dito acima, a saber, que o mesmo
e por si, senão da substância cuja característica ser ainda não é. Fica claro, pois, que aquilo que
distintiva é subsistir. Pois os acidentes não se não é não pode participar em algo. Por isso a
dizem entes como se eles mesmos fossem, mas consequência é que a participação convém a algo
na medida em que a substância é algo com eles que já é. Porém algo é porque recebe o mesmo
tal como se dirá mais adiante. ser tal como já foi dito. Disto se conclui que aquilo
A segunda diferença coloca ali [onde diz] “O que que é pode participar de algo, porém o mesmo
é pode participar de algo”. Tal diferença se toma ser não pode participar de algo.
segundo a noção de participação, pois participar é A terceira diferença coloca ali onde diz “Aquilo
como tomar parte [de algo]. Portanto, quando algo que é pode ter algo além do que ele mesmo é”,
recebe de modo particular aquilo que pertence a tomando esta diferença pela mistura de algo
outro de modo universal, se diz participar dele. Da estranho. Sobre isto, se deve considerar que
mesma maneira que o homem se diz participar a verdade sobre qualquer coisa considerada
de animal, porque não possui a noção de animal abstratamente está no fato de que não há em
em toda a sua generalidade. E Pela mesma razão si algo estranho, isto é, que seja além da sua
Sócrates participa de homem. Da mesma forma o essência, como a humanidade, a brancura e
sujeito também participa dos acidentes e a matéria quaisquer coisas que se digam desse modo.
da forma, porque a forma substancial ou acidental, A razão disso é que a humanidade se denota
que por sua razão é comum, se determina para como aquilo pelo qual é homem e a brancura
este ou aquele sujeito. Igualmente o efeito se diz aquilo pelo qual é branco. Pois algo não é
participar da sua causa, principalmente quando homem, formalmente falando, senão por aquilo
não se equipara a força da sua causa como, por que pertence à razão de homem. De modo
exemplo, quando dizemos que o ar participa da luz semelhante, algo não é formalmente branco,
do sol, porque não a recebe com aquela claridade senão por aquilo que pertence à razão de branco.
que está no sol. Com exceção deste terceiro modo, E por esse motivo tais coisas abstratas não podem
é impossível que o mesmo ser participe de algo ter nada de estranho em si. De outro maneia
segundo os dois primeiros. Certamente não pode ocorre com aquelas coisas que se denotam
participar de algo à maneira que a matéria ou o em concreto. Pois homem se denota como
sujeito participa da forma ou do acidente, porque, aquele que tem a humanidade e branco como
como foi dito, o mesmo ser significa como algo aquilo que tem brancura. Disto que o homem
abstrato. Igualmente tampouco pode participar tem humanidade ou brancura não se proíbe ter
à maneira que o particular participa do universal. algo a mais que não pertença a razão dessas
Assim, pois, também aquelas coisas que se dizem coisas, senão só o que é oposto a essas. Por
em abstrato podem participar de algo como a este motivo, homem e branco podem ter algo a
brancura da cor. Mas o mesmo ser é comuníssimo, mais que a humanidade e a brancura. E esta é
por isto é participado em outras coisas, mas não a razão por que a brancura ou a humanidade se
participa de coisa alguma. Por outro lado, aquilo denotam à maneira de parte e não se predicam
que é, ou o ente, ainda que seja comuníssimo, do concreto, como tampouco alguma parte do
não obstante se diz de modo concreto e por isso todo. Portanto, como foi dito, porque o mesmo
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 7/17
ser se denota como abstrato e o que é como seja”. Afirma que participa do mesmo ser quando
concreto, se conclui que é verdade o que aqui algo for simplesmente um sujeito. Contudo,
se diz: que “Aquilo que é pode ter algo além do quando for algo, convém que participe em outra
que ele mesmo é”, a saber, além da sua própria coisa. Assim como o homem, quando for branco,
essência. Por outro lado, “o mesmo ser não pode participa não somente do ser substancial, mas
ter misturado nada além de sua essência”. também da brancura.
Depois quando diz “Diverso é, no entanto, A terceira diferença coloca ali [onde diz] “E por
ser algo e ser algo naquilo que é.” coloca isto aquilo que é participa daquilo que é o ser para
as concepções que se tomam segundo a que seja. Por outro lado, é para poder participar
comparação daquilo que é simplesmente ser de qualquer outra coisa” a qual, de fato, se toma
com aquilo que é ser algo. Primeiro estabelece segundo a ordem de ambas as duas e se conclui
a diversidade de cada uma das duas. Segundo das premissas. E a diferença é esta: primeiramente
assinala as diferenças ali [onde diz] “Pois aquele convém que se entenda que algo simplesmente
significa o acidente, este, a substância”. é; depois que é algo. E isto fica claro do que foi já
No que se refere ao primeiro ponto e tendo pré-estabelecido. De fato, algo simplesmente é
afirmado que aquilo que é pode ter algo além de por isto que participa do mesmo ser. Mas quando
sua essência, se deve considerar que é necessário já é, subentende-se, por participação do mesmo
que nele se tenha em conta um duplo ser. De fato, ser, resta que participe em qualquer outra coisa
sendo a forma princípio do ser, é necessário que para que efetivamente isso seja algo.
segundo qualquer forma possuída se diga que Depois quando diz “Em todo composto, uma
tenha em certa media o ser. Assim, pois, se aquela coisa é o ser e outra coisa é ele mesmo”, estabelece
forma não for além da essência daquele que a as concepções referentes ao composto e ao
possui, mas constitua a sua essência, se dirá, simples que concernem à noção de unidade.
daquele que tiver tal forma, que simplesmente Deve-se, pois, considerar que aquelas coisas
tem o ser, assim como homem se diz tal porque que foram ditas acima sobre a diversidade do
tem a alma racional. Porém, se tal forma for alheia mesmo ser e daquilo que é estão de acordo com
à essência daquele que a possui, segundo aquela as próprias intenções. Contudo aqui mostra como
forma não se dirá que simplesmente é, mas que é se aplicam às coisas. E primeiramente mostra isso
algo, assim como segundo a brancura o homem nas coisas compostas. Segundo, nas simples ali
se diz branco. E é isso que diz [ao afirmar] que [onde diz] “Todo aquele que é simples tem o seu
“é diverso ser algo”, porque não é simplesmente ser e aquilo que é como uma só coisa.”
ser, e que algo seja “naquilo que é”, porque é o Portanto, deve-se considerar primeiramente
próprio ser do sujeito. que assim como o ser e aquilo que é diferem nas
Depois quando diz “Pois aquele significa o coisas simples segundo as intenções, assim nas
acidente, este, a substância”, afirma três diferenças compostas diferem realmente. Isto, de fato, fica
entre as coisas já preestabelecidas. evidente a partir das premissas. Com efeito, foi
Das quais a primeira é o “aquele” que denota dito acima que o mesmo ser nem participa de
“o acidente”, ou seja, onde se refere à coisa que é algo, como se a sua razão se constitua de muitas
algo, mas não é de modo absoluto, pois a forma coisas, nem tem algo estranho misturado, como
que faz tal ser está além da essência da coisa. se existisse nele composição de acidente. Por isto
Por outro ladro, o “este”, quando se afirma que que o mesmo ser não é composto. Logo a coisa
é algo naquilo que é, “se refere à substância”, composta não é o seu ser e por esse motivo diz
porque sem dúvida a forma, produzindo o ser, que “uma coisa é o ser e outra coisa o mesmo”
constitui a essência da coisa. composto que é ao participar do mesmo ser.
A segunda diferença coloca ali onde diz “Tudo Depois quando diz “Todo aquele que é simples
o que é participa daquilo que é o ser para que tem o seu ser e aquilo que é como uma só coisa”,
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mostra de que maneira acontece nas coisas de nenhum acidente. Além disto, este sublime
simples nas quais é necessário que o mesmo e simples Um é o mesmo Deus.
ser e aquilo que é sejam uma e a mesma coisa Depois quando diz “Toda diversidade é
realmente. Se, de fato, fosse realmente outra discordante; a semelhança, em vez, deve ser
coisa aquilo que é e o mesmo ser, já não seriam desejada” coloca duas concepções pertinentes
simples, mas compostos. Contudo, deve-se ao apetite do qual se define o bem, pois se diz
considerar que quando algo se diz simples por que o bem [é] aquilo que todas as coisas desejam.
carecer de composição, nada proíbe que algo Portanto, a primeira concepção é que “toda
seja simples segundo algum aspecto particular na diversidade é discordante e a semelhança deve
medida em que carece de alguma composição, ser desejada”. Sobre isso se deve considerar
ainda que não seja totalmente simples. Daí que que a discórdia diz respeito à contrariedade do
o fogo e a água se dizem corpos simples na apetite. Por isto se diz que algo é discordante,
medida em que carecem da composição que porque repugna ao apetite. A razão disso é que
é própria dos contrários que se encontra nas o semelhante se aumenta e se aperfeiçoa com
coisas misturadas. Porém, cada uma se compõe o seu semelhante. Porém, cada um apetece o
tanto das partes da quantidade quanto de forma seu aumento e perfeição e, assim, o semelhante
e matéria. Por tanto, se algumas formas não enquanto tal é apetecível a cada um. Por uma
se encontram na matéria, cada uma delas é equivalente razão, o diverso repugna ao apetite
simples na medida em que carece de matéria enquanto diminui e impede a perfeição. E, por
e, por consequência, de quantidade que é uma isso, disse que “toda diversidade é discordante”,
disposição da matéria. Entretanto, porque toda ou seja, que difere do apetite. “A semelhança,
forma é determinativa do mesmo ser, nenhuma em vez, deve ser desejada”. Sucede, porém, que
delas é o mesmo ser, mas tem o ser. Considere- por acidente algum apetite prove aversão ao
se que, segundo a opinião de Platão, afirmemos semelhante e apeteça o diverso ou vice-versa.
subsistir uma forma imaterial que é a ideia e a Pois como foi dito, cada um, primeiramente e
razão dos homens materiais e outra forma que por si, apetece a sua perfeição que é o bem de
é a ideia e a razão dos cavalos. Ficará claro que cada um sendo sempre proporcionado ao seu
a mesma forma imaterial subsistente, sendo perfectível. E, segundo isso, tem uma semelhança
algo determinado em uma espécie, não é o com ele. Porém, outas coisas, que são externas,
mesmo ser comum, mas participa dele. E quanto se apetecem ou se rejeitam enquanto contribuem
a isto, nada difere se considerarmos que aquelas para a própria perfeição em relação a qual,
formas imateriais sejam de um grau mais elevado certamente, às vezes falta algo por defeito, às
que as noções destas coisas sensíveis como vezes por excesso. Pois a própria perfeição de
Aristóteles queria: cada uma delas, enquanto cada coisa consiste em certa proporção assim
se distinguem da outra, é certa forma especial como a perfeição do corpo humano consiste em
que participa do mesmo ser e assim nenhuma um calor proporcionado do qual, si se afasta,
delas será verdadeiramente simples. Por outro apetece algo cálido pelo qual se aumente o calor.
lado, só isto será verdadeiramente simples: Se, pois, excede, apetece o contrário, a saber, o
aquilo que não participa do ser, não inerindo, frio pelo qual se reduz à justa medida na qual
mas subsistindo. Porém isto não pode ser senão consiste a perfeição conforme à natureza. E assim
um, pois se o mesmo ser nenhuma outra coisa também um oleiro detesta o outro enquanto lhe
tem misturado além daquilo que é o ser, como foi tira a perfeição desejada, a saber, o lucro.
dito, é impossível que aquilo que é o mesmo ser Depois coloca a segunda concepção ali [onde
se multiplique por algo diversificante. E porque diz] “E aquele que deseja outro mostra que ele
[não] tem associado nenhuma outra coisa além mesmo é por natureza tal como é aquilo mesmo
de si mesmo, se segue que não é susceptível que apetece” e que se conclui das premissas.
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 9/17
Se, de fato, a semelhança deve desejar-se por si ser bom. Portanto são bens substanciais, porque
mesma, consequentemente aquilo que apetece não participam da bondade. E por isto, se nelas o
outra coisa se mostra que é naturalmente tal mesmo ser é bom, não há dúvida que sendo bens
como é isto que apetece, porque, certamente, substanciais, são semelhantes ao primeiro bem.
tem uma natural inclinação para aquilo que Consequentemente são este mesmo bem, pois
apetece. E, sem dúvida, essa inclinação natural, às nada lhe é semelhante além de seu mesmo ser.
vezes, procede da própria essência da coisa assim Do qual se conclui que todas as coisas que são,
como o grave apetece estar embaixo segundo a são Deus, o que é um sacrilégio dizê-lo. Logo não
razão de sua natureza essencial. Às vezes, porém, são bens substanciais e por isto, nessas coisas, o
procede de alguma forma superveniente assim bem não é o ser. Assim, não são boas naquilo que
como quando alguém tem um hábito adquirido são. Mas se tampouco participam da bondade,
deseja o que lhe convém segundo aquele hábito. de nenhum modo tenderiam ao bem e, portanto,
Por último, recapitula e diz que aquelas coisas de modo algum são boas.
que foram pré-estabelecidas bastam para o
propósito. E por isto, aquele que prudentemente [Comentário de São Tomás de Aquino]
interpretar as noções das coisas ditas poderá “Assim sendo, a controvérsia se apresenta
aplicar cada uma delas aos argumentos da seguinte maneira”.
convenientes: ou seja, aplicando-as às devidas
Tendo pré-estabelecido certos princípios que são
conclusões como ficará claro a seguir.
necessários para a discussão da questão proposta,
aqui aborda tal questão e sobre isto faz três coisas:
III
Primeiro, propõe a questão. Segundo fornece a
[Texto de Boécio] solução ali [onde diz] “Pode-se oferecer a seguinte
Assim sendo, a controvérsia se apresenta da solução para esta questão”. Terceiro, exclui certas
seguinte maneira: Aquelas coisas que são, são objeções contra a solução onde [diz] “E não seria
boas. Em verdade, a opinião de todos os instruídos também conveniente que aquelas coisas que são
sustém que tudo que é tende ao bem. Por outro brancas sejam brancas naquilo que são brancas”.
lado, tudo tende a algo semelhante. Logo os que No que se refere ao primeiro, faz duas coisas:
tendem ao bem são, eles mesmos, bons. Primeiro, pré-estabelece o que a questão
Mas deve-se perguntar de que modo as coisas pressupõe. Segundo, ocupa-se de uma dúvida
são boas: se por participação ou por substância. que está na questão ali [onde diz] “Mas deve-se
Se por participação, de nenhum modo elas perguntar de que modo as coisas são boas”.
são boas por si mesmas, pois o que é branco por Diz, por tanto, que se deve abordar a
participação, não o é por si, ou seja, naquilo que questão proposta do seguinte modo: como se
ele mesmo é e o mesmo diga-se das demais supuséssemos que todas as coisas que são,
qualidades deste tipo. Assim, se são boas por são boas. E para provar isso apresenta uma
participação, de nenhuma maneira são boas por si razão conforme as coisas que foram pré-
mesmas. Consequentemente, não tendem ao bem. estabelecidas, a saber: cada um tende ao seu
Mas foi concedido que tendem ao bem. Logo, não semelhante. Por isso, tinha se expressado acima:
são boas por participação, mas substancialmente. aquele que deseja outro mostra que ele mesmo
Assim de fato, sendo a substância delas boa, é por natureza tal como é aquilo mesmo que
aquilo que elas são, é bom. No entanto, aquilo apetece. Mas tudo aquilo que é, tende ao bem.
que elas são, elas o têm daquilo que é o ser. Por E evidentemente, apresenta isso conforme a
conseguinte, o seu mesmo ser é bom e o mesmo opinião comum dos doutos. Por isso, o Filósofo
ser de todas as coisas também é bom. Mas se o ser também diz no primeiro livro da Ética que os
é bom, aquelas coisas que são, são boas naquilo sábios manifestam que o bem é aquilo que todas
que são e assim para elas, ser é a mesma coisa que as coisas apetecem. O bem é, pois, o próprio
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objeto do apetite assim como o som é o objeto segundo aquele modo de participação em que o
próprio do ouvido. Por isso, do mesmo modo sujeito participa do acidente. E, por isso, o que se
que o som é o que se percebe por todo ouvido, predica substancialmente e por participação se
assim também convém que o bem se encontre dividem por oposição, como fica evidente pelos
naquilo que todo apetite tende. E assim, posto exemplos que subsequentemente apresenta.
que a qualquer coisa lhe compete ter algum Depois quando diz “Se por participação, de
apetite seja intelectual, seja sensitivo ou natural, nenhum modo elas são boas por si mesmas” se
a consequência é que qualquer coisa apetece o opõe contra cada um dos membros da questão: e
bem. E assim se conclui que todas as coisas são em primeiro lugar contra isto de serem boas segundo
boas, o que supõe a questão traçada. sua substância ali [onde diz] “Assim de fato, sendo a
Depois quando diz “Mas deve-se perguntar de substância delas boa, aquilo que elas são, é bom”.
que modo as coisas são boas”, mostra qual é a Diz, pois, em primeiro lugar, que se todas as
dúvida referente à questão e sobre isso faz três coisas são boas por participação, a consequência
coisas: em primeiro lugar propõe a questão; segundo é que de nenhum modo são boas por si mesmas.
se opõe contra cada um dos membros da questão E isto, de fato, é verdadeiro se se admite que
ali [onde diz] “Se por participação, de nenhum modo o “por si mesma” pertence ao que se põe na
elas são boas por si mesmas”; a partir disso, procede definição daquilo do qual se está dizendo, assim
adiante a fim de excluir a primeira suposição ali como o homem por si mesmo é animal. Pois, com
[onde diz] “Assim, não são boas naquilo que são”. efeito, o que se põe na definição de algo, pertence
Portanto, diz em primeiro lugar que, tendo à sua essência. E assim não se diz dele pela
suposto que todas as coisas são boas, se deve participação da qual agora estamos falando. Por
investigar sobre o modo, a saber, como são boas. outro lado, se se admite o “por si mesma” segundo
Mas algo se predica de algo de duas maneiras: o outro modo, ou seja, o sujeito posto na definição
Em um modo substancialmente e noutro por do predicado, assim seria falso o que aqui se
participação. A questão é, portanto, se os entes está dizendo, pois o próprio acidente, segundo
são bons por essência ou por participação. Para o este modo, pertence ao sujeito por si mesmo e,
entendimento desta questão se deve considerar mesmo assim, se predica dele por participação.
que nela se pressupõe que ser algo por essência Então, como Boécio aqui toma participação como
e por participação são coisas opostas. De fato, o sujeito [que] participa do acidente, o “por si
em um dos modos de participação anteriormente mesma” é aquilo que se põe na definição do
citados isto é claramente verdadeiro, a saber, sujeito. E assim necessariamente segue que se
segundo aquele modo em que o sujeito se diz as coisas são boas por participação, não são boas
participar do acidente ou a matéria da forma. De por si mesmas. E clarifica isto por meio de um
fato, o acidente está além da natureza do sujeito exemplo, “pois o que é branco por participação,
e a forma está além da própria substância da não é branco por si mesmo, ou seja, naquilo que
matéria. Mas no outro modo de participação, ele mesmo é”, que pertence ao primeiro modo
ou seja, naquele em que a espécie participa do de se dizer “por si mesmo”. E [isso se aplica] de
gênero, isso também é verdadeiro segundo a modo semelhante às outras qualidades. Então
opinião de Platão que estabeleceu ser outra a se os entes são bons por participação, segue
ideia do animal e do homem bípede. Mas, segundo que nem todos são bons por si mesmos, ou seja,
a opinião de Aristóteles, que estabeleceu que o substancialmente. Portanto, disso se infere que
homem verdadeiro é aquilo que é o animal, as substâncias dos entes não tendem ao bem
como se a essência do animal não existisse o que é contrário ao que foi concedido mais
além da diferença do homem, nada proíbe que acima, a saber, que todas as coisas tendem ao
aquilo que se diz por participação seja predicado bem. Logo, parece que os entes não são bons
substancialmente. Pois Boécio está falando aqui por participação, mas por sua substância.
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 11/17
Depois quando diz “Assim de fato, sendo a coisas seriam Deus. E, ulteriormente, se infere
substância delas boa, aquilo que elas são, é bom”, que nem todas as coisas são boas enquanto são.
objeta contra isso em sentido contrário. Aquelas Depois quando diz “Mas se tampouco participam
coisas cuja substância é boa devem ser boas da bondade”, procede ulteriormente no sentido de
segundo aquilo que elas mesmas são, pois isto remover a primeira suposição. E diz que a isto, a
pertence à substância de qualquer coisa no que saber, que os entes não são bens substanciais, se
toca ao seu ser. Contudo, o fato de serem algo adicionará outra conclusão além daquela que foi
elas o têm daquilo que é o ser. Com efeito, disse apresentada acima, ou seja, que os entes não são
acima que é algo quando recebe o ser. Segue, bons por participação, dado que por este motivo
então, que o mesmo ser daquelas coisas que são se concluiria que de nenhum modo tenderiam ao
substancialmente boas é bom. Se, portanto, todas bem tal como foi considerado antes. Finalmente
as coisas são boas segundo a sua substância, se parece que se pode concluir que de nenhum modo
concluirá que o mesmo ser de todas elas é bom. os entes são bons, o qual está contra aquilo que
E porque as premissas das quais procedeu para foi pressuposto anteriormente.
argumentar são convertíveis, procede de modo
reverso. Pois reversamente resulta que, se o ser IV
de todas as coisas é bom, aquilo que elas são é
[Texto de Boécio]
bom na medida em que são. Assim é evidente
que o ser de qualquer coisa e o ser bom são Pode-se oferecer a seguinte solução para esta
idênticos. A consequência, então, é que são questão: há muitas coisas que, apesar de não
bens substanciais pelo fato de que são boas e, poderem separar-se em ato, contudo, separam-
todavia, não o são por participação da bondade. se na alma e no pensamento. Pois ninguém separa
No entanto, mostra fazendo uma aplicação que em ato um triângulo ou outras coisas do gênero
dessa conclusão resultaria algo inapropriado. E sujeitas à matéria. Não obstante, segregando o
diz que, se o mesmo ser de todas as coisas é bom, mesmo triângulo e sua propriedade, observa
inferindo-se disso que são bens substanciais, a com a mente além da matéria.
consequência é que também são semelhantes Agora, removamos por um breve tempo de
ao primeiro bem que é um bem substancial nosso pensamento a presença do Primeiro Bem
e para o qual é o mesmo ser e ser bom. Disto o qual, sem dúvida, consta que existe e ainda
ulteriormente segue que todas as coisas são o mais pode conhecer-se pela opinião de todos
mesmo primeiro bem, porque nada, além de si os instruídos e não instruídos, assim como das
modo de bondade. Porém, nada mais além do Tendo desta maneira removido Este por um
primeiro bem é bom do mesmo modo que ele, breve tempo, sustenhamos que todas as coisas
porque só ele é o primeiro bem. Porém, algumas que são sejam boas e as consideremos de que
coisas se dizem semelhantes a ele na medida em modo possam ser boas, se não derivassem
que são bens secundários derivados do próprio de nenhuma maneira do Primeiro Bem. Desta
Primeiro e principal bem. Caso contrário, se todas perspectiva, observo que, nelas, uma coisa
as coisas fossem o Primeiro Bem, sendo que o é que são boas e outra coisa diferente o que
próprio primeiro bem nada mais é que Deus, são. Suponha-se, então, que uma e a mesma
resultaria que todos os entes são Deus o qual substância boa seja branca, pesada e redonda.
também não é justo dizer. Logo, também se Então uma coisa seria aquela mesma substância e
conclui que são falsas aquelas coisas que foram outra sua redondeza, outra a cor, outra a bondade.
pressupostas. Portanto, nem todos os entes são Pois se cada uma destas coisas fosse o mesmo
bens substanciais, nem neles o mesmo ser é bom, que a própria substância, o peso seria a mesma
porque a partir delas se concluiu que todas as coisa que a cor, que o bem, e o bem seria o mesmo
que o peso, o qual a natureza não permite que
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[isso] se faça. Então uma coisa, nelas, seria ser e suposição, mostra o que seguiria sobre a bondade
outra ser algo. E agora certamente seriam boas, das coisas ali [onde diz] “Tendo, assim, removido
mas de nenhuma maneira teriam o mesmo ser Este por um breve tempo, sustenhamos que todas
como algo bom. Logo se de algum modo fossem as coisas que são sejam boas”. Terceiro, sem fazer
sem [proceder] do Bem, certamente seriam boas, nenhuma suposição, mostra de que modo se
mas não seriam idênticas com as coisas boas, mas relaciona a bondade das coisas segundo a verdade
para elas uma coisa seria ser e outra ser boas. da realidade ali [onde diz] “Como aquelas coisas
E, por isso, se não fossem absolutamente nada não são simples, não poderiam de nenhum modo
mais que boas, não haveria nelas nem peso, nem existir, a não ser que Aquele que é simplesmente
cor, nem extensão pela dimensão do espaço, nem é bom quisesse que elas existissem”.
qualidade alguma, senão que somente seriam Sobre o primeiro, faz duas coisas: primeiro
boas. Agora elas não pareceriam que são coisas, estabelece algo que é necessário para mostrar
mas o princípio das coisas. E não só pareceriam, que se pode dar tal suposição. Segundo, apresenta
mas pareceria, pois uma coisa, e somente uma, a suposição ali [onde diz] “Agora, removamos
é assim: a que é simplesmente boa e nada mais. por um breve tempo de nosso pensamento a
Como aquelas coisas não são simples, não presença do Primeiro Bem”.
poderiam de nenhum modo existir, a não ser que Portanto, diz primeiramente que há muitas
Aquele que é simplesmente é bom quisesse que coisas que não podem separar-se em ato, mas que
elas existissem. Por esse motivo elas se dizem no espírito e no pensamento se separam. A razão
boas, já que o ser delas procede da vontade do disso é que de um modo estão as coisas na alma e
Bem. De fato, o Primeiro Bem é bom naquilo de outro modo na matéria. Pode, por conseguinte,
que é. Todavia, o segundo bem, pelo fato de dar-se que algo, por seu próprio modo no qual
fluir daquele cujo mesmo ser é bom, ele próprio está na matéria, tenha uma conjunção inseparável
também é bom. Além disso, o mesmo ser de a outra coisa e, mesmo assim, enquanto que
todas as coisas fluiu daquele que é o Primeiro está na alma não tem uma união inseparável
Bem e que é tão bom que propriamente se diz com aquilo, porque, a saber, a razão de um é
que é bom naquilo que é. Logo o mesmo ser distinta da razão do outro. E coloca o exemplo do
delas é bom. Então, neste caso, não seriam boas triângulo e de outras coisas matemáticas que não
naquilo que são, se de nenhum modo tivessem ponde separar-se da matéria sensível, ainda que
procedido do primeiro bem. o matemático abstraindo com a mente considere
o triângulo e suas propriedades além da matéria
[Comentário de São Tomás de Aquino] sensível, pois, de fato, a noção de triângulo não
“Pode-se oferecer a seguinte solução para esta questão”. depende da matéria sensível.
Depois quando diz “Agora, removamos por um
Tendo exposta a questão e depois de breve tempo de nosso pensamento a presença
apresentar os argumentos, aqui, portanto, Boécio do Primeiro Bem”, põe a suposição que tinha
dá a solução. E sobre isso faz três coisas. visado, ou seja, que com a consideração da mente
Em primeiro lugar, determina a verdade da removamos por um tempo a presença do Primeiro
questão. Segundo, resolve a objeção ali [onde Bem das demais coisas, o qual é possível segundo
diz] “Nisto resolve-se a questão”. Terceiro, traz a ordem do que é cognoscível para nós. Pois, ainda
certas objeções contra a solução e as resolve ali que Deus seja o primeiro cognoscível segundo a
[onde diz] “E não seria também conveniente que ordem natural de conhecer, no entanto, no que se
aquelas coisas que são brancas sejam brancas refere a nós, primeiro se conhecem seus efeitos
naquilo que são brancas”. sensíveis. E assim, nada proíbe que o efeito do
Sobre o primeiro faz três coisas: Primeiro, Sumo Bem caia em nossa consideração sem
apresenta certa suposição. Segundo, feita aquela levar em conta o próprio Primeiro Bem. Mesmo
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 13/17
que não removamos assim o Primeiro Bem da feito a suposição acima exposta, nelas uma coisa
consideração da mente, o qual, sem dúvida, seria o próprio ser e outra ser algo, por exemplo,
nos consta que existe. Pois o fato de que nada ou bom, ou branco, ou qualquer coisa que se
existiria se Deus não existisse “se pode conhecer diga assim. E assim, dada esta prévia condição,
pela comum opinião de todos os doutos como as coisas seriam certamente boas. Contudo, o
também dos indoutos” e, ulteriormente, também mesmo ser delas não seria bom. Assim, pois, se
“pelas próprias religiões dos povos bárbaros”. de algum modo não procedessem do primeiro
Depois quando diz “Tendo, assim, removido bem e mesmo assim fossem boas em si mesmas,
Este por um breve tempo, sustenhamos que se concluiria que não é idêntico nelas o fato de
todas as coisas que são sejam boas”, mostra o serem tais e o fato de serem boas. Mas uma coisa
que segue tendo feito essa suposição sobre a seria nelas o ser e outra coisa o ser bom.
bondade das coisas e sobre isto faz duas coisas. Depois quando diz “E por isso, se não fossem
Primeiro, manifesta o que pretende. Segundo, absolutamente nada mais que boas [...]. Agora elas
prova algo que tinha suposto ali [onde diz] “E por não pareceriam que são coisas, mas o princípio
isso, se não fossem absolutamente nada mais das coisas”, prova o que havia suposto, a saber,
que boas [...]. Agora elas não pareceriam que são que, tendo feito a conjetura anteriormente
coisas, mas o princípio das coisas.” mencionada, uma coisa seria nelas o ser bom,
Portanto, em primeiro lugar diz que, removido o outra simplesmente ser ou ser qualquer outra
Primeiro Bem por meio do intelecto, suponhamos coisa. Porque se nada mais existisse nelas, exceto
que as demais coisas sejam boas. Já que da o fato de serem boas, assim é evidente que
bondade dos efeitos chegamos ao conhecimento “não seriam nem pesadas, nem coloridas, nem
do primeiro bem, consideremos então como distintas por alguma dimensão de espaço”, como
poderiam ser boas se não procedessem do são todos os corpos, e não haveria nelas qualquer
Primeiro Bem. Feita esta suposição, se vê nelas qualidade, senão somente esta que são boas.
que uma coisas é a mesma bondade e outra Então não pareceriam ser coisas criadas, mas o
seu mesmo ser. Pois se “supomos que uma e próprio princípio das coisas. E consequentemente
a mesma substância é boa, branca, pesada e se seguiria que não seria necessário falar de
redonda”, se conclui que “uma coisa” nela seria todas elas no plural pelo fato de que pareceriam
sua “substância e outra a redondeza, outra a ser o princípio das coisas, mas no singular,
cor, outra a bondade”. De fato, se entende que a pois pareceriam ser o primeiro princípio das
bondade de algo é como uma virtude da própria coisas como se todas as coisas boas fossem
coisa pela qual realiza uma boa operação. Pois a simplesmente uma só, porque há somente uma
virtude é o que faz bom a quem a possui e torna coisa que é assim de tal modo que é somente
sua obra boa como fica evidente pela exposição bom e nada mais. Mas isto é evidentemente
do Filósofo no livro da Ética. Por outro lado, o falso. Portanto também o primeiro, a saber, que
fato de que essa seja diversa da substância da as coisas criadas, removido o Primeiro Bem, nada
coisa, se prova pelo fato de que se cada uma das mais seriam que isto que é ser bom.
premissas fossem o mesmo que a substância Depois quando diz “Como aquelas coisas não
da coisa, seguiria também que todas aquelas são simples, não poderiam de nenhum modo
coisas seriam as mesmas entre si. A saber, que existir, a não ser que Aquele que é simplesmente
a gravidade seria o mesmo que o calor, que é bom quisesse que elas existissem”, mostra
o bem, que o branco e que a redondeza, pois aquilo que se deve julgar sobre a bondade das
aquelas coisas que são para uma única e mesma coisas segundo a verdade. E afirma: porque
coisa seriam as mesmas mutuamente. Mas isto as coisas criadas não têm uma simplicidade
a natureza das coisas não admite, a saber, que absoluta, ou seja, que não há nada mais nelas
todas sejam idênticas. Resta então que, tendo que a essência da bondade, e nem podem de
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porque quis que elas fossem boas quem era bom, E isso é assim pelo fato de que não há nele
são boas também naquilo que são. perfeição sobreposta, mas contém qualquer
Logo, segundo essa razão convém que todas perfeição no seu ser simples como já foi dito. Mas
as coisas sejam justas, porque o mesmo Justo é um bem criado quiçá poderia ser bom também
quem quis que elas existissem? Nem sequer isso. considerado em si, inclusive se se concedesse,
Pois ser bom concerne à essência, enquanto ser em defesa do impossível, que não procedesse
justo concerne à ação. Porém n’Ele é a mesma do Primeiro Bem, ou seja, da bondade que lhe
coisa ser e agir. Por consequência, [é] a mesma competiria de modo absoluto. Mas assim não
coisa ser bom e justo. No entanto para nós não é seria bom naquilo que é, porque então seria
a mesma coisa ser e agir, pois não somos simples. um bem por participação de uma bondade
Portanto, para nós não é o mesmo ser bons e sobreposta e seu mesmo ser não seria bom se
ser justos, mas para todos nós é o mesmo ser não se derivasse do Bem em relação ao qual o
naquilo que somos. Assim, todas as coisas são mesmo ser das coisas criadas é bom.
boas; porém nem todas são justas. Depois quando diz “Portanto, tendo suprimido
Mais ainda, o bem é algo geral. A justiça, porém, o Primeiro Bem destes se com a mente e com
especial e a espécie não descende a todas as o pensamento”, recolhe as coisas que foram
coisas. Por isso, sem dúvida, algumas coisas [são] mencionadas e diz que se se removesse com o
justas, outras algo mais. Porém todas são boas. intelecto o Primeiro Bem das coisas, todas elas,
ainda concedendo que são boas, não poderiam,
[Comentário de São Tomás de Aquino] apesar disto, serem boas naquilo que são. Mas
“Nisto resolve-se a questão”. porque não foram capazes de existir em ato,
senão na medida em que foram produzidas pelo
Depois de determinar a verdade da questão Primeiro Bem, que é verdadeiramente bem, por
que havia sido colocada, resolve aqui a objeção isso o ser delas é também bom. E mesmo assim,
da qual se concluía que os bens criados são bons o ser que flui do Primeiro Bem não é semelhante
naquilo que são pelo fato de serem semelhantes ao Primeiro que é bem substancial, do qual, se
ao Primeiro Bem e sobre isto faz duas coisas. não fluíssem todas as coisas, mesmo concedendo
Primeiro resolve a objeção. Em segundo lugar que fossem boas, não seriam, entretanto, boas
junta as coisas que foram ditas ali [onde diz] naquilo que são, ou seja, na medida em que não
“Portanto, tendo suprimido o Primeiro Bem destes procedessem do Primeiro Bem. Todavia como
se com a mente e com o pensamento”. o próprio Primeiro Bem é também seu mesmo
Portanto, diz em primeiro lugar que do pré- ser, porque seu ser é sua substância, do mesmo
estabelecido fica evidente que essa questão modo é o mesmo bem, pois é a própria essência
está resolvida. Pois não são semelhantes ao da bondade, e o mesmo ser bom, já que nele não
Primeiro Bem, por serem boas naquilo que são, difere o ser e aquilo que é.
pois o mesmo ser das coisas criadas não é bom Depois quando diz “E não seria também
de modo absoluto, qualquer que seja o modo conveniente que aquelas coisas que são brancas
que o consideremos, mas somente segundo uma sejam brancas naquilo que são brancas”, levanta duas
relação com o Primeiro Bem. Mas como o mesmo objeções contra o que foi dito, das quais a segunda
ser das coisas criadas não pode ser, ao menos está posta ali [onde diz] “Logo, segundo essa razão
que elas sejam derivadas do Primeiro Bem, por convém que todas as coisas sejam justas, porque
isso o mesmo ser delas é bom e, contudo, não o mesmo Justo é quem quis que elas existissem?”
é semelhante ao Primeiro Bem na bondade. Sobre a primeira põe esta objeção: foi dito
Porque esse é bom de modo absoluto, qualquer que todas as coisas são boas naquilo que são
que seja o modo que se considere, pois nada porque procederam da vontade do Primeiro Bem
há nele senão a própria essência da bondade. para serem boas. Acaso, então, todas as coisas
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brancas, são brancas naquilo que são porque ato, assim como também qualquer outra virtude.
procederam da vontade de Deus para que fossem Porém em Deus é a mesma coisa ser e agir. De
brancas? Mas ele mesmo responde que isso não onde se conclui que n’Ele é a mesma coisa ser
convém de modo algum, pois para essas coisas bom e ser justo. Mas para nós não é o mesmo ser
que são brancas uma coisa é simplesmente e agir, pois carecemos da simplicidade de Deus.
ser, o qual lhes compete segundo os princípios De onde se conclui que para nós não é o mesmo
essenciais e outra coisa é aquilo pelo qual são ser bons e justos, mas o ser convém a todos nós
brancas. E a razão para tal diferença entre branco enquanto somos, e por isto também a bondade
e bom é que Deus que fez as coisas criadas boas convém a todos nós. Mas a justiça que recebe o ato
e brancas é em efeito bom, mas não é branco. não convém a todos, nem para estes aos quais ela
Assim resultou então da vontade de Deus que as convém é o mesmo que seu ser. Assim resta que
coisas criadas fossem boas enquanto quis que nem todas as coisas são justas naquilo que são.
elas fossem boas e que fossem boas naquilo que A segunda razão coloca ali [onde diz] “Mais
são enquanto foram produzidas pelo Bem. Pois, ainda, o bem é algo geral. A justiça, porém,
como foi dito, o ser das coisas criadas tem razão especial”. De fato, o bem é algo geral do qual
de bem pelo próprio fato de procederem do Bem. a justiça é certa espécie assim como as demais
Mas não resulta da vontade de Deus esta [outra] virtudes. Porém em Deus se encontra toda a
propriedade de tal modo que aquilo que é criado, razão da bondade e assim não somente é bom
seja branco naquilo que é pelo fato de não fluir como também justo. No entanto, não todas as
da vontade do branco assim como as coisas boas espécies de bondade são encontradas em todas
fluíram da vontade do Bem de tal modo que se as coisas, mas diversas em diferentes coisas. E,
pudesse dizer que o ser delas é branco enquanto portanto, não convém que uma espécie que é
são a partir de primeiro branco. Assim, fica claro a justiça se derive para todas as coisas como se
que pelo fato de Deus, que não é branco, querer deriva a bondade. Por isto, certos entes são justos
que algumas coisas fossem brancas, somente se enquanto outros têm outra espécie de bondade.
pode dizer isto delas: que são brancas, mas não Todavia, todas as coisas são boas enquanto são
que são brancas naquilo que são. Mas porque derivadas do Primeiro Bem.
Deus que é bom, quis que todas as coisas fossem E com isso se termina o comentário deste livro.
boas, assim são boas naquilo que são, enquanto, Bendito seja Deus por todas as coisas. Amém.
a saber, o ser delas tem razão de bem pelo fato
de procederem do Bem. Referências
Depois quando diz “Logo, segundo essa razão
BOETHIUS. Quomodo Substantiae in eo quod sint bonae
convém que todas as coisas sejam justas, porque sint cum non sint substantialia bona. In: RAND, E. K.;
o mesmo Justo é quem quis que elas existissem?”, STEWARD, H. F.; TESTER, S. J. (ed.). Boethius: Tractates
| The consolation of philosophy. London: Loeb Classical
coloca a segunda objeção. Com efeito, alguém Library, 1990.
poderia dizer: todas as coisas são boas naquilo
HÄRING, V. N. Commentaries on Boethius by Thierry of
que são, porque Aquele que é Bom, quis que Chartes and His Schooll. Toronto: Pontifical Institute of
elas fossem boas. Com igual razão convém que Mediaeval Studies, 1971.
todas as coisas sejam justas, porque Aquele que HUDRY, Françoise. L’hebdomade et les règles. Survi-
vances du débat scolaire alexandrin. In: Documenti e
é justo quis que elas existissem. Mas ele mesmo
Studi Sulla Tradizione Filosofica Medievale. Turnhoult:
responde que isto não procede por duas razões. Brepols, 1997. v. 8.
Primeiro, sem dúvida, porque isto que é bom RAND, Edward Kennard. Iohannes Scottus: Der Komman-
significa certa natureza ou essência. Mas foi dito tar des Remigius von Auxerre zu den Opuscula Sacra
des Boetius. München: Beck, 1906. v. 2.
que Deus é a própria essência da bondade e que
qualquer coisa se diz boa segundo a perfeição da TOMÁS DE AQUINO. Expositio libri Boetii De Ebdoma-
dibus. In: Fratrum Praedicatorum (Cura et studio). Sancti
própria natureza. Mas justo se diz por referência ao Thomae de Aquino Opera Omnia: Iussu Leonis XIII P. M.
Edita. Roma: Les éditions du Cerf, 1992. v. 50.
São Tomás de Aquino • Ivo Fernando da Costa
Comentário ao livro “De Hebdomadibus” de Boécio 17/17