Trovoada Na Gorongosa
Trovoada Na Gorongosa
MOÇAMBIQUE - GORONGOSA
TROVOADA NA SERRA
“Recordações" - Pág. nº 1
Moçambique - Gorongosa
Objectivo:
Retratar, designadamente ao José Manuel e à Sónia (a precedência é só de ordem
alfabética), uma época conturbada, transformante, qual trovoada que tivesse assolado a
milenária e imponente serra da Gorongosa.
“Recordações" - Pág. nº 2
Moçambique - Gorongosa
“Recordações" - Pág. nº 3
Moçambique - Gorongosa
Ordem de transferência
Dias depois, pela carreira normal da DETA, lá seguimos para a Beira (O Renault viajou
comodamente instalado numa plataforma de transporte de máquinas pesadas, cedida pelo
Júlio, do Azevedo Campos).
Na Beira
Como era de norma, fui recebido pelo Governador Sousa Teles, a quem bem conhecia, como
ele a mim, já que, de 1967 a finais de 1971, estivera eu colocado no Posto de Vila Machado,
Distrito da Beira, com contactos muito frequentes com o Governador Sousa Teles, de quem,
aliás, havia recebido desusadas atenções e um louvor por escrito (Entenda-se o "desusadas"
pela distância hierárquica a que se situava, na época, um administrador de posto de um
governador de distrito).
Recebeu-me o Governador com efusiva alegria, mostrando surpresa, mas satisfação, pela
transferência. Perante os meus (renovados...) protestos pela transferência e prejuízos que me
acarretava, limitou-se a dizer que concordava, mas o "interesse público" tanto impunha e que
estava ao meu dispor no que fosse necessário, na sequência do que já tinha telefonado para os
Maristas a reservar lugar para o José Manuel ( Nos Maristas já me tinham informado que, na
altura - inicio do ano lectivo - não havia vagas).
E mais disse que mandaria colocar-me na Gorongosa.
Cruzado ficou o nosso destino com a Gorongosa, sua serra e sua trovoada.
A falsidade do Governador
Intrigado com o motivo da transferência para a Beira ( o Governador, como disse, mostrara-
se surpreso...) e porque algo me dizia que o dito motivo tivera origem na Beira, contactei um
oficial administrativo, de nome Martins, que prestava serviço na zona do Gabinete, no
sentido de obter alguma informação. E qual não foi o meu espanto, quando o Martins revela,
sob meu compromisso de nada dizer, que a transferência havia sido solicitada a Lourenço
Marques pelo próprio Governador Sousa Teles, em telegrama em cifra. Tal telegrama faz
“Recordações" - Pág. nº 4
Moçambique - Gorongosa
hoje parte dos documentos que tenho em meu poder e que integravam o meu processo
individual. Para o arquivo da vida...
(Tivemos, entretanto, o prazer de ver na Beira o vosso tio Manuel que, talvez alertado pela
ida do irmão para os bichos, veio de Lourenço Marques verificar o que se passava).
NA ZONA DA TEMPESTADE
A povoação era, pois, bem modesta, e bem diferente da Mocuba que fomos forçados a deixar.
Não obstante, e como era usual, o concelho abrangia vasta área e numerosa população.
Notabilizavam o concelho:
. Posto administrativo do Maringué, lá para os confins do interior;
. Parque Nacional da Gorongosa (Reserva de caça, para fins turísticos), com sede em
Chitengo;
. Reserva de caça do Kanganhatole (Aqui havia sido morto, 2 anos antes, um célebre médico
espanhol, facto muito badalado na época. Foi atingido por um tiro vindo da floresta, ao
descer do táxi aéreo que o transportava da Beira);
“Recordações" - Pág. nº 5
Moçambique - Gorongosa
Situação política
A Frelimo cedo se tentou implantar na área, já pelas extensas florestas, já pela serra da
Gorongosa, tudo a proporcionar condições de abrigo e via de penetração para a zona
europeizada constituída pelo eixo Beira-Inchope-Vila Pery.
Parece não ter sido fácil à Frelimo a sua fixação na zona, como aliás se deduz de denúncias
feitas pelas autoridades tradicionais a respeito da permanência, ou passagem, de comissários
políticos ( vanguarda da Frelimo).
Uma das denúncias foi feita por um chefe de povoação da zona da serra. Pressionado depois
pela propaganda e gradual implantação da Frelimo, não terá visto outra solução para se
subtrair a ambos os fogos (poder constituído e Frelimo) do que pôr termo à vida. Enforcou-
se.
Os "célebres" aldeamentos
A guerra veio fazer pender o fiel da balança para o lado dos puristas. E que surgiram
dificuldades e problemas de segurança que sustentaram e apoiaram a sua tese. Como proteger
as populações, se se encontram dispersas por quilómetros e quilómetros quadrados, florestas
fora?
Além disso, o aldear cedo se mostrou o melhor meio de retirar as populações à Frelimo,
subtraindo-lhe campo de recrutamento e apoio.
“Recordações" - Pág. nº 6
Moçambique - Gorongosa
Além disso ainda, o aldear era indispensável para delimitar os campos de influência das
forças no terreno: quem está no aldeamento é de cá; quem está fora é de lá.
Foi assim que em toda a área da Gorongosa se instituíram aldeamentos ( como aliás em todas
as zona de "guerra").
Escolhido o terreno, a Administração destroncava, atalhoava e fornecia transporte para os
materiais de construção das habitações ( normalmente palhotas e de má qualidade).
Em redor do aldeamento era efectuada a destronca de árvores, o que, simultaneamente,
disponibilizava terreno para cultura e proporcionava melhores condições de segurança.
Todo o conjunto era protegido por uma força (guarda rural), composta por uma a duas
dezenas de homens, enquadrada por um graduado, em alguns casos, europeu.
Cedo se revelaram problemas graves no novo modelo social, especialmente ao nível sanitário,
alimentar e relações entre os aldeados, com hábitos ancestrais de vida em separado, embora
com elos profundos de profunda solidariedade.
Não obstante ser bem sensível o peso da atmosfera que nos envolvia, a prenunciar trovoada
de espanto, a vida decorreu sem incidentes de maior, embora me tenham ficado vincados os
realces que a seguir refiro.
Insegurança
As deslocações à Beira eram feitas por avião, e, dentro da área, por helicóptero - após a morte
de um administrador e adjunto em Chemba, por emboscada da Frelimo, os funcionários
administrativos foram aconselhados a não usar meios de transporte terrestres nas zona de
guerra. Isto, aliado a que o "inimigo" era algo invisível e presente em toda a parte e em parte
nenhuma, conduzia a uma sensação de insegurança latente e que se colava ao corpo.
Guarda rural
“Recordações" - Pág. nº 7
Moçambique - Gorongosa
abono da verdade, que tais guardas lá se mantinham, sem deserções ou alianças perceptíveis
com a Frelimo. E o dia a dia não lhes era fácil.
Vem à baila a captura de um guarda rural pela Frelimo, no sopé da serra, quando o guarda se
ausentara do aldeamento. Estou, ainda hoje, a ver o estado em que se apresentou na
Administração: golpeado, dos pés à cabeça, mas vivinho e de boa saúde.
Segundo relatou, cada golpe, feito com navalha, correspondeu a uma recomendação,
culminando com o recado final: agora vai apresentar-te na Administração e conta a toda a
gente o que te dissemos.
O médico (militar) que o examinou, ficou maravilhado com a obra e disse: até parece que os
golpes foram feitos por um cirurgião; um dos do tórax, ao nível do coração, tê-lo-ia morto se
fosse uns 2 cms. mais profundo.
O guarda regressou no mesmo dia ao aldeamento.
Como retrato desta guerra, recordo outro incidente com o chefe da guarda rural (europeu, de
nome Neves, salvo erro) de um aldeamento perto de Vila Paiva.
Segundo disse, uma africana com quem vivia ausentou-se da área habitada e, porque
demorasse, foi procurá-la, desarmado. Encontrou-a rodeada por 6 elementos da Frelimo que
se dispunham a matá-la. Saltou para o meio do grupo e sobre o elemento que pressupôs ser o
comandante, já que era o único que empunhava pistola metralhadora (Kalachenicov), estando
os outros armados com espingardas não automáticas. Conseguiu tirar a arma ao comandante e
apontar-lha. Pensando que ia morrer, o comandante deu um urro desumano e ficou
prostrado. Mas a arma não disparou por estar travada, não tendo tido a calma suficiente para a
destravar. Todos fugiram, inclusive o guarda.
Apresentou a arma na Administração, todo ufano da façanha e, para, além disso, receber o
prémio (o Estado premiava, salvo erro, com 700$00 cada entrega de pistola metralhadora).
Esta guerra era diferente, mais séria e mortífera, embora os casos de morte de que tenha tido
conhecimento não fossem além de meia dúzia. Mas ela passava ao lado da Administração e
os conhecimentos que tínhamos eram os decorrentes da presença no terreno, ou por conversas
com militares.
Era guerra já com aparato, isto quando intervinham forças especiais.
“Recordações" - Pág. nº 8
Moçambique - Gorongosa
Recordo, p. ex., as operações feitas pelos paraquedistas e apoiadas pelos helis. Estes
estacionavam no campo de futebol, mesmo junto à parte detrás da Administração. Era um
ruído ensurdecedor o produzido por aquelas (normalmente) 6 máquinas.
Dizia o mecânico Afonso, cuja residência também se situava perto do campo, que as galinhas
deixavam de pôr ovos até tempos depois de cada permanência dos helis.
Ao que constava, tais acções incidiam designadamente na zona da serra e muitas vezes eram
as mesmas precedidas de bombardeamentos, pouco eficazes pelas características do terreno.
Certo dia, o alferes dos GEs dizia-me cabisbaixo e pesaroso: morreram-me hoje 2 GEs nos
braços. Ao pretendermos subir a serra, fomos emboscados. Choviam tiros de todos os lados.
Quando os comandos eram destacados para zonas fora da sua base permanente, dizia-se que
vinham "fazer limpeza".
Concluídas as operações, regressavam.
Daquela vez, o objectivo da "limpeza" era a Gorongosa. Só que, como diz o ditado " o
homem põe e Deus Dispõe".
Uma das companhias foi lá para os lados do Canda e nem terá chegado a contactos com a
Frelimo. A outra (dos europeus) dirigiu-se para um qualquer objectivo além Cavalo
(povoação comercial). Um tiro, vindo do mato, acertou numa das granadas que um soldado
transportava presa ao peito. Com a explosão da granada, o corpo do comando voou em
pedaços.
Momentos após, chega o Mosca , no seu Land Rover, e pergunta o que se havia passado.Os
comandos agrediram o Mosca, estilhaçando-lhe na cabeça a coronha de uma G3, e isto a
pretexto de ele, Mosca, muito bem saber da emboscada ( Era quase público que o Mosca, em
troca de favores à Frelimo - v.g. farinha de milho - gozava de privilégios únicos, como o de
transitar sem ser incomodado. As autoridades sabiam disso, mas como garantir segurança aos
camiões que diariamente escoavam para a Beira a produção da fábrica de rações? Estranha
guerra).
Disse-me o alferes que os comandava ter tido muita dificuldade em conter os soldados e que,
em casos como aquele, a probabilidade de sucesso era de um para cem.
Sorte para o Mosca, a não ser o visível e largo adesivo em que teve a cabeça envolvida por
vários dias.
“Recordações" - Pág. nº 9
Moçambique - Gorongosa
Alguém poderá perguntar: mas, então em zona de guerra, não houve um susto nem um
perigozinho, para agora contar?
Guerras como a daquela época, e naquelas circunstâncias, têm sempre subjacente um fundo
rácico. A ideologia da Frelimo, todos o conhecíamos, não navegava nessas águas. Mas, o que
é pensado e escrito no topo é uma coisa, e outra, muito diferente, a que chega ao terreno.
Não é novidade que na génese do africano não estão inculcados conceitos como de
nacionalidade, nacionalismo, pátria ou patriotismo, conceitos que normalmente servem de
motor a promoções de autodeterminação. Os grandes espaços foram sempre o seu mundo, a
mobilidade um imperativo: era necessário fugir dos mais fortes, procurar novas terras e novos
meios. Não havendo titularidade da terra, nada havia a defender. Tudo se transpunha para o
horizonte e para a tribo.
Assim sendo, como alimentar a guerrilha, como motivar a população a aderir e a combater?
Não restavam muitas soluções. Houve que lançar mão, no terreno, de argumentos acessíveis
e de efeitos imediatos: expulsão do branco, distribuição dos seus bens, fim da exploração do
preto pelo branco, fim da obrigação de pagar imposto, etc. etc.
E na Gorongosa de então, os homens pretos em armas "limpariam" (para usar o termo dos
comandos) os brancos em meia dúzia de horas, dado o seu número muito superior.
Na própria Administração, dentre cerca de 20 pessoas que aí trabalhavam, só 3 eram
europeus.
Evidentemente que se acredita sempre na pessoa humana, no seu sentido de equilíbrio, no seu
combate e propensão para a justiça. E é por isso que lá se estava e não se fugia.
“Recordações" - Pág. nº 10
Moçambique - Gorongosa
A pista de Vila Paiva era de terra batida, de comprimento mínimo certamente, levemente
oval, na parte sul, enfim, daquelas improvisações tão caras aos portugueses, com cheiro a
bandeirantes, tanto nos de terra, como nos de cima, os pilotos dos pequenos aviões.
De regresso da Beira, chovia, a pista estava encharcada. O avião deslizou, não perdia
velocidade e todos nós notávamos a aproximação rápida do fim da pista. O piloto travou com
tal força, que se soergueu no assento para maior pressão sobre o travão. O avião saiu da
pista, em derrapagem, andou lá pelo mato, voltou à pista, fez "pião" e imobilizou-se em
sentido contrário ao que circulava. Deus é grande, meus senhores...
Aqui recordo as evacuações de feridos, alguns militares, que era necessário fazer com
urgência. Convocava-se meia dúzia de pessoas, corri os seus automóveis, distribuiam-se pelas
laterais da pista, de médios acesos, a fim de possibilitar ao piloto a localização da pista.
Recordo o velho Guerra (proprietário da empresa dos táxis) que algumas vezes aterrava
pouco depois da chamada. E dizia invariavelmente: eu sou como Deus; ando lá por cima e,
quando necessário, desço à terra (Isto acontecia quando ele regressava à Beira, vindo de outra
qualquer localidade. Avisado, via rádio, alterava o trajecto e aterrava. Disseram-me há anos
atrás que este Guerra faleceu na prisão, na Beira, após detenção, pela Frelimo. Se assim foi,
triste fado, e que morte tão rasteira, para quem, durante tantos anos, cavalgou os céus de todo
o interior-centro de Moçambique. Se os espíritos se libertam, o seu certamente que esvoaça
agora pelas serras da Gorongosa e de Morrumbala, e pelas planuras da Chemba e de
Marromeu).
Certo dia, estávamos em casa do Administrador Alvarenga Marques. Seriam umas 9 horas da
noite.
Começou a houvir-se tiroteio, sendo nítidas as rajadas de pistola metralhadora, o que
significava que os disparos se faziam de local próximo.
Logo irrompe pela sala um guarda (cipaio) que fazia a segurança, visivelmente não só
descontrolado, como completamente embriagado, exclamando: já cá estão, já chegaram.
Mandá-mo-lo sair imediatamente (era um impecilho), recolheram as mulheres e crianças a
um quarto interior, apagámos as luzes, e eu e o Alvarenga Marques, de G3 em punho e com
mil cuidados, colocá-mo-nos na varanda, aguardando e perscrutando a noite.
O tiroteio continuou, com tiros de morteiro agora pelo meio.
Minutos depois (pareceram horas), tudo serenou e fez-se um silêncio de morte.
Notámos que um jeep se aproximava e logo reconhecemos que se tratava da viatura do Ten.
Cor. Cavaco, comandante do Batalhão. Veio um alferes avisar que não havia problema algum
e que o tiroteio tinha ocorrido por engano: uns paraquedistas embriagados, num bar que havia
à entrada da povoação, dispararam para o ar; os colegas do Quartel, julgando tratar-se de
ataque da Frelimo, ripostaram ao fogo, inclusive com morteiros e só pararam quando o
"inimigo" deixou de espingardear.
Incêndio no paiol
Numa outra ocasião, a paz do povoado foi perturbada por explosões vindas do
Quartel.Inquietação geral. Mas logo se restabeleceu a paz, quando o Ten. Cor. Cavaco veio
avisar que se tratava de incêndio num paiol. Todo o dia foi um foguetório dos diabos.
“Recordações" - Pág. nº 11
Moçambique - Gorongosa
Neste período, portanto, e em termos de incidentes de guerra, directos e pessoais, nada pois
aconteceu de grave, até porque os campos estavam bem delimitados: A Administração só
controlava os " amadores" da guarda rural; a guerra era essencialmente com o exército; o
sistema informativo e de "sapa" com a DGS (Para evitar confusões dividimos o calabouço -
parte para a Administração, para recolher os detidos do foro criminal que cumpriam penas, e
parte para a DGS e à sua responsabilidade)
“Recordações" - Pág. nº 12
Moçambique - Gorongosa
25 DE ABRIL/74
Pelas 17 horas de 26 de Abril de 1974, alguém (julgo que foi o Mosca) veio à Administração
dar a notícia de que tinha havido uma revolução na "Metrópole" e que a rádio estava a
transmitir a respeito.
Fui imediatamente para casa, como se lembram, ali bem próximo, e liguei o transistor.
Jamais esquecerei a voz do jornalista Luís Pereira de Sousa, quem, na altura, de Lisboa,
noticiava tudo o relativo à revolução.
“Recordações" - Pág. nº 13
Moçambique - Gorongosa
Não havia respostas e o primeiro mês pós revolução foi de pura expectativa. O povo estava à
janela.
Havia sido solicitado à Administração, dias antes de 25 de Abril, a limpeza de uma área
contígua ao campo de aviação, para estacionamento de helicópteros que viriam apoiar acções
dos paraquedistas e comandos. A vinda dos helis foi sucessivamente adiada, por "motivos
técnicos", e cancelada depois.
As chefias militares, com quem mantínhamos contactos, estavam, ou pareciam estar, tão
baralhadas como nós.
A poeira da revolução foi, contudo, assentando, e foram ganhando contornos novas figuras e
modos de proceder. E logo sentimos o sentido prático da revolução na atitude dos soldados
desembarcados na Beira: eufóricos, de cravo no cano das G3, dando vivas à Frelimo, e
"abaixo o colonialismo" ( Um dos soldados ofereceu um cravo à Sónia)
A atitude dos militares que permaneciam em Moçambique depressa mudou, recusando-se,
por sistema, a combater.
A trovoada envolvera a serra.
Entretanto, até por acesso a documentos reservados, sabíamos que os comandos militares
tinham ordens para manter posições, ser actuantes e firmes. Aliás, e isso foi público, após o
25 de Abril, chegaram à Beira meios militares muito importantes, entre eles aviões de
combate (Fiat).
E mais uma vez, eu, e muitos outros, acreditámos que o futuro tinha lugar para nós. Pura
ilusão e ingenuidade.
Vinte anos depois, pergunto-me como foi possível eu ter acreditado nesse futuro e só
encontro uma resposta: o meu baralho estava viciado, não tinha mais do que duques. Tomei,
nitidamente, a nuvem por Juno. O Juno, que eu julgava configurado num qualquer general
“Recordações" - Pág. nº 14
Moçambique - Gorongosa
Spínola, não passava de simples nuvem. O Juno estava, sim, lá para as estepes russas, rindo
de gozo e malvadez, tamborilando noutros pontos do globo, expedindo ordens.
E logo o comando militar se confrontou com um terrível dilema: como ser actuante, se toda a
estrutura estava afectada pelos ecos de nem mais um homem para a guerra, nem mais um
tiro?
Ser actuante, firme, continuar de pé? Com que meios?
Um pelotão, de regresso da Beira, foi emboscado a uns 10 kms. de Vila Paiva. O Comandante
do Batalhão pretendeu organizar uma força para se deslocar ao local. Não o conseguiu,
porque os soldados recusaram-se a combater os irmãos da Frelimo. Um dos soldados terá
mesmo atirado a G3 ao solo (Episódio não verificado mas que me foi relatado por alguém
ligado ao Quartel).
Numa determinada 4a. feira, à noite, recebo uma comunicação do administrador Alvarenga
Marques para me deslocar à Administração. Estava ele com o Comandante do Batalhão, Ten.
Cor. Cavaco, ambos com aspecto apreensivo e de preocupação.
Vinha o Ten. Cor. dar a notícia que os seus militares ameaçavam seguir para o aeroporto da
Beira, e ali permanecerem até que os transportassem para Lisboa, e ameaçavam mais: antes
de saírem de Vila Paiva, que atacariam a casa do administrador, do adjunto (minha) e do
Mosca, na qualidade de expoentes locais do colonialismo.
Acontecia, por outro lado, que os GEs (acampados à saída da povoação), sabedores da
notícia, fizeram, por sua vez, saber que barrariam o caminho aos militares e que, por ali "a
tropa não passaria".
Perspectivava-se, assim, segundo o Ten. Cor. , uma guerra local entre unidades africanas e
metropolitanas.
O objectivo das informação, disse, era no sentido de tomarmos as providências que
entendêssemos, inclusive quanto à evacuação das nossas famílias para a Beira, uma vez que,
a concretizar-se a ameaça, não restariam forças para garantir a nossa segurança.
O Ten. Cor. transportava uma pasta, dentro da qual, disse, guardava uma pistola "para não ir
sozinho".
Nada aconteceu. Soubemos, por outras fontes, que os GEs estavam "em pé de guerra" e com
dispositivo montado para impedir o trânsito do Batalhão ( Tratava-se só de uma Companhia e
pessoal adstrito ao comando, já que as restantes companhias estavam dispersas pela região).
“Recordações" - Pág. nº 15
'Moçambique - Gorongosa
Uma meia hora depois, chega o Ten. Cor. Cavaco (sempre ele) e, no gabinete do
administrador, relata:
- Tenham calma que a situação está controlada; desde há uns dias, durante a noite (nós
tínhamos disso conhecimento), alguém afixava, na parada, cartazes, do tipo "Viva a
Frelimo", "Abaixo o colonialismo", "Não queremos combater", cartazes com que o comando
deparava pela manhã, sem lhe ter sido possível saber quem os colocara; comuniquei o facto, e
hoje, de madrugada, uma companhia de comandos "tomou" o Quartel; entraram nas casernas
e forçaram os soldados a formar na parada, com a roupa (ou sem ela) com que dormiam.
Soubemos depois que alguns elementos da companhia foram transferidos para unidades do
Norte.
As forças militares costumavam patrulhar uma zona isolada e de floresta, a sudoeste de Vila
Paiva. O Quartel começou a receber missivas da Frelimo, ou em seu nome, do tipo "Venham
cá", "Vocês são uns cobardes".
O Ten. Cor. ressentiu-se (brio nunca lhe faltou) e conseguiu uma força disposta a ir ao local.
Terá pensado, e bem, que a altura não era de heroísmo, nem de grandes sacrifícios, e tentou
obter, para a operação, o apoio de meios aéreos. Depois de muito instar, teve esses meios
(aviões Fiat sediados na Beira), mas com uma condição: os aviões só sobrevoariam o local, e
não atacariam, sob pretexto algum.
A operação fez-se, com a aviação a sobrevoar, e a tropa não viu viva alma. Foi uma vitória,
para a época... e a última operação, que me conste, do Exército Português, em terras da
Gorongosa.
Entretanto, uma companhia de comandos, aquartelada junto da pista de aviação , porque não
havia ordens de acção ("Não somos tropa para estar parada", diziam), revolucionaram Vila
Paiva ao praticarem toda a espécie de desacatos. As queixas choveram na Administração, o
que levou o administrador Alvarenga Marques a expô-las a um Ten. Cor. já de idade, com
aspecto de duro, que terá dito: " Esses gajos são todos uns filhos da ...., mas não há tropa
melhor do que eles. Eu não vou fazer nada".
E a Frelimo?
Em toda esta confusão e baixar de braços, a Frelimo pareceu-me em situação de stand by.
Diminuiu o número de intervenções, mas não deixou esquecer que estava lá.
“Recordações" - Pág. nº 16
'Moçambique - Gorongosa
Raptou, p. ex., um grupo de trabalhadores do Jaime Guedes, numa das frentes de trabalho lá
para o Canda, em que se incluía um capataz europeu. Os africanos foram sendo
libertados, mas o europeu não mais apareceu. Os comandos, nessa altura ainda em Vila Paiva,
seguiram a pista do raptado por um maço de cigarros vazio e restos de roupa, mas não o
encontraram.
Insistimos(mais tarde e após terem sido estabelecidos contactos com a Frelimo) com o
comandante Cara Alegre, pelo paradeiro do capataz. Sempre negou que o rapto tivesse sido
da autoria da Frelimo. Perante informações concretas provenientes de um empregado do
Jaime Guedes, segundo as quais o capataz havia sido morto por elementos da Frelimo, com
uma rajada de pistola metralhadora e depois, ainda, queimado ("estes brancos às vezes
tornam a viver, é melhor arranjar lenha e queimá-lo", teriam dito os intervenientes), o Cara
Alegre não negou, apenas disse e textualmente:" eu ainda não domino todos os grupos da
Frelimo".
E sempre me causou alguma estranheza a Frelimo não ter, nesta altura, intensificado as suas
acções, já que, presumo, não teria opositores.
Se a Frelimo constituísse um "bando de terroristas" teriam sangue até fartar. Não haveria
estrutura que, de imediato, lhe fizesse frente.
Ocorreu o encontro nas instalações do Mosca, em Vila Paiva, frente a umas galinhas à
cafreal.
O comandante Cara Alegre, com um grupo de homens, havia chegado numa viatura cedida
pelo Mosca. Os guerrilheiros denotavam surpresa e desconfiança. Montaram a sua segurança,
sempre atentos a tudo e a todos.
O que mais nos impressionou, neste primeiro contacto, foi a atitude da população africana
residente em Vila Paiva: curiosidade, certa alegria, mas nada de euforismos ou aclamações,
como seria de esperar.
Uma primeira, e depois confirmada, convicção se me radicou: A Frelimo não tinha a
implantação local que muitos de nós presumíamos.
Com fundamento no aspecto rácico a que atrás me referi, muitos de nós ( e eu também)
sempre acreditámos que a Frelimo estaria infiltrada nas estruturas do poder, designadamente
no sector administrativo. Puro engano.
“Recordações" - Pág. nº 17
Moçambique - Gorongosa
Encontro formal
Estabelecidos já os canais de ligação, acordou-se num encontro mais formal, porque teria a
presença do Ten. Cor. Cavaco, comandante do Batalhão.
Realizou-se por detrás da Administração, junto do campo de futebol. Sob as mangueiras, foi
colocada uma mesa e cadeiras para os vips.
Representou a Frelimo o comandante João, rapazinho de uns 18 anos, em cujo semblante
transparecia muita ingenuidade.
Deste encontro, recordo, com nitidez: o desassossego demonstrado pelo comandante João, ao
ver-se rodeado de tanta tropa portuguesa que, desarmada, tinha vindo assistir e a curiosidade
demonstrada pelos soldados portugueses. O comandante da Frelimo que, como os seus
homens (cerca de uma dezena) compareceu armado, apertava a kalach entre as pernas, onde a
colocara, olhando em redor, visivelmente amedrontado e os soldados portugueses com a
pergunta estampada no rosto: foram estes que nos venceram?
A trovoada continua...
“Recordações" - Pág. nº 18
Moçambique - Gorongosa
Ir ou ficar?
Ainda hoje tenho presente a sensação de desconforto que me assaltou no dia anterior ao de
cuja noite eu sabia que o resto da tropa portuguesa seguia para a Beira. Ia-se o último elo de
ligação ao "status" anterior; ia-se a única força (se é que o era) de uma nação que era a
minha.
Mas, no dia seguinte, o sol voltou a brilhar, a Frelimo ocupou as instalações e a vida
continuou.
Nova Frelimo
Com a implantação efectiva da Frelimo, ficou ela a constituir a única força no terreno.
Baralhada, confusa, sem preparação para tarefas de gestão, actuando sempre à base da força e
da arbitrariedade - não havia lei escrita e, mesmo que houvesse, a maioria não a saberia ler,
nem, pois, aplicar.
Grupos dinamizadores
Promovidos pela Frelimo, ficaram deslumbrados com aquilo que lhes diziam ser a sua
competência e poderes. Desdobravam-se em reuniões, sempre com elementos da Frelimo
como mentores. Infiltrados de oportunistas, julgavam-se os senhores do mundo.
“Recordações" - Pág. nº 19
Moçambique - Gorongosa
só não tinham ainda apanhado o filho do adjunto ( o José Manuel) por não quererem, já que o
viam por diversas vezes, de bicicleta, na estrada do campo de aviação; acordaram em o visitar
na sua casa ( a uns 30 metros da nossa, como se recordam), o que aconteceu por algumas
vezes, mediante o sinal prévio de atirar uma pedra para o telhado (era de zinco).
O Sebastião era um dos "relatores" das reuniões e espectáculos que a Frelimo promovia, na
qualidade de integrante de um dos grupos dinamizadores. Fui ao primeiro, espécie de teatro,
em que a tropa portuguesa era ridicularizada (alguém fazia um ruído intenso, quando os que
figuravam a tropa portuguesa fugiam e gritavam de medo). Saí e "mestre" Sebastião, que um
pouco distante tudo anotava, comenta: "isto não é para si, sr. adjunto. Faz bem em ir-se
embora".
Na altura, a Beira estava pejada de cartazes mostrando o Samora, numa trincheira, a abater
aviões portugueses, com ... uma pistola.
Cartazes e representações no género, de um dia para o outro, foram retirados de cena. Ordem
nesse sentido, sem dúvida.
Mas o Sebastião, meses depois, terá iniciado um processo de reversão política, por a Frelimo
o pressionar a deixar uma mulher (tinha duas). E, na Administração, disse bem alto: "desta
vez é que eu vou parar à cadeia, porque não vou fazer o que eles querem". Era necessário,
acreditem, alguma coragem para a ocasião...
Administração
População
Não me foi muito difícil trabalhar com a Frelimo, consequência, entre o mais, do
relacionamento anterior e desde o primeiro contacto. Recordam-se dos almoços, lá em casa,
ao comandante Cara Alegre e outros. De inicio, e mesmo à mesa, de kalache entre as pernas e
com a casa rodeada de homens armados. E bebida só água ou refrigerante. Depois, já à
vontade, sem segurança, nem kalache. Bebida whisky simples, que passou a duplo.
Não ocorreram, assim, abusos de maior, nem se verificaram retaliações, ou outros actos que
toda a gente temia.
“Recordações" - Pág. nº 20
Moçambique - Gorongosa
Creio que foi por esta altura que Moçambique foi visitado pelo major Costa Gomes, na
intenção de serenar os ânimos. Recordo-me de uma sua entrevista, em que afirmava que o
futuro de Moçambique seria aquele que os moçambicanos decidissem em eleições, sem
armas no terreno. Pergunta do jornalista: E a Frelimo vai depor as armas? Resposta do major:
a Frelimo vai guardar as armas na arrecadação. Nova pergunta: e se a Frelimo não guardar as
armas? Sentença: nesse caso, obrigá-la-emos a fazê-lo. (Foi assim mesmo, comento eu).
Por precaução, resolvi pedir licença graciosa, para "gozar fora de Moçambique e sem
dispêndio para a Fazenda Nacional". Concedida que foi, serviria para uma fuga legal.
Não obstante, é importante que se diga que, neste período, o processo moçambicano não
decorreu de forma tão gravosa como seria de esperar. A situação anterior foi profundamente
alterada, mas o que restou oferecia, ainda, algumas garantias para o futuro.
Os comandantes da Frelimo ocupavam agora as instalações ( muito boas) de que se tinham
servido os oficiais do exército português, como as suas viaturas e honras. Os cargos de realce
- governadores de distrito, comissários de polícia, presidentes de câmara, administradores, etc
- eram ocupados por pessoal da Frelimo, ou por si nomeados. Este bem estar e vida regalada
produziu um amolecimento e um aconchego de posições de que resultou certa serenidade.
Mas, atenção, isto só perdurou até à vinda do estado-maior da Frelimo (Samora e séquito),
quando a trovoada ribombou de novo, com redobrada intensidade e efeitos. Lá iremos.
Pregava um ex-agente da Polícia Judiciária da Beira: de futuro, não será necessária a polícia,
porque o povo se fiscaliza a si próprio; a polícia é um meio de que os governos capitalistas
se servem para dominar o povo e praticar a exploração e injustiça; instituído o governo do
povo, a polícia deixa de ter sentido.
Dizia, por sua vez, um outro iluminado: temos que assegurar passagem para o Maringué
durante todo o ano; o povo vencerá o rio, como venceu a tropa portuguesa.
- Como é que o povo vai fazer a ponte? - atreveu-se alguém a perguntar.
- Quando o povo quer faz tudo - respondeu o deus do seu trono.
“Recordações" - Pág. nº 21
Moçambique - Gorongosa
Abastecimento de milho
Com o auxílio e assistência da Frelimo, distribuiu-se uma lata a cada agricultor. Na região do
Cavalo, de implantação da Frelimo antes de 25 de Abril, a população lamentava-se e
exclamava para os soldados: "Então o que vocês nos prometeram é só isto?"
( Aquando das colheitas fiz ver ao administrador Cumbane que eu havia ficado responsável
pelo reembolso do milho. Resposta: não se incomode; o Grémio vai ser nacionalizado. Foi-o,
na verdade, pouco tempo depois, e o responsável fugiu para a Rodésia).
O mecânico Afonso (ex-taxista em Lisboa) tinha tudo menos medo. Caçou durante toda a
guerra, como se não existisse Frelimo na área. Se alguém o convidasse para uma qualquer
deslocação, era o primeiro a saltar para o jeep e, nesta sequência, acompanhou agentes da
DGS nas deslocações destes pela área.
A Frelimo terá averiguado as suas ligações à DGS. Conhecedor disso, o intrépido Afonso
foge para Vila Pery e dali para Untáli (Rodésia) em táxi aéreo de um seu conhecido.
Foi uma "baixa" muito importante na logística da Administração.
“Recordações" - Pág. nº 22
Moçambique - Gorongosa
Comum a todas estas visitas e algo estranho para mim: pouca assistência e pouco entusiasmo.
Sete de Setembro
Delegação da ONU
Após a visita da Delegação, contacta-me o Mosca e relata: o padre espanhol disse à Frelimo
que o sr. (eu) foi um dos responsáveis pela expulsão dele, há nos; a Frelimo vai mandar
alguém aqui à área em recolha de informações a seu respeito; vou controlar os
acontecimentos e, se a averiguação for negativa, dir-lho-ei e então será melhor fugir.
Uma semana depois, serena-me o Mosca: já concluíram a investigação; nada apuraram em
seu desfavor; esteja descansado que não há problema.
Certo dia, de madrugada, sou acordado pelo comandante João, da Frelimo, que me convoca,
como representante do Governo, a tomar parte numa rusga ao acampamento do Jaime
Guedes, onde suspeitava que havia armamento escondido. Disse já ter cercado toda a parte
residencial e que só estava à minha espera.
Foi-me muito difícil, de imediato, tomar uma resolução: indo, ser-me-ia extremamente
penoso (além de ilegal, o que, nessa altura, tinha pouco significado) entrar em casa de
“Recordações" - Pág. nº 23
Moçambique - Gorongosa
pessoas que eu conhecia desde há anos e assistir à "delicadeza" da tropa da Frelimo a fazer a
revista ,a tudo revirar, sem qualquer pejo ou decoro; recusando, sujeitar-me-ia aos
imponderáveis do comportamento da Frelimo.
Disse ao comandante: só agora me convoca? Porquê? Teve receio que eu avisasse alguém da
firma? Não teve confiança em mim? Se sabe em que sítio estão as armas, eu vou consigo,
mas só aí e só nós. Se só suspeita da existência das armas e pretende fazer uma rusga geral,
eu não o acompanho.
O comandante ficou algo surpreso, mas logo respondeu: Está bem; mas eu tenho de
comunicar a sua recusa e não sei o que lhe vai acontecer.
A Frelimo fez a rusga e só encontrou uns gramas de suruma, de posse de um empregado
ainda novo e que, com receio, logo após, fugiu para a Rodésia.
Dias depois, sou contactado por um elemento da Frelimo vindo de Lourenço Marques, pessoa
cordata e que me pareceu qualificada, a quem relatei o que acontecera.
"Não há problema, esteja descansado", disse. Respirei de alívio. Na época era tudo muito
volúvel.
Pela manhã de um dia de Março de 1975, chega o administrador João Cumbane, nomeado
pelo novo regime.
Cedo revelou aspectos e atitudes de verdadeiro administrador "colonial". À boa maneira
antiga, reequipou a residência e duplicou a verba para despesas de representação. Era
extremamente cioso dos meios da Administração e deixou de fornecer transporte até para
evacuação de doentes para a Beira, ou do interior do concelho para o hospital de Vila Paiva.
Considerava que o indivíduo não tem expressão e só a colectividade interessava. Não se
fazia deslocar uma viatura para transportar um doente, mas sim, e só, se a comunidade
estivesse doente (numa das muitas reuniões a que o administrador comparecia, pedi-lhe para
confirmar aquele critério. Disse que foi confirmado até pelo governador do distrito).
Os grupos dinamizadores começaram a olhar o Cumbane de soslaio (ele tinha tudo, desde
vencimento, a casa e viaturas, eles nada recebiam proveniente do Estado). A população,
habituada às facilidades concedidas pela Administração, foi-se afastando. Nem sequer
distribuiu um lote de leite em pó, doado, recebido pouco antes da sua chegada.
Mantivemos, contudo, uma relação aberta e nunca pressenti hostilidade da sua parte.
A Administração elaborava uns relatórios. Devolveu-me o primeiro que lhe apresentei, todo
alterado. Espanto meu, mas logo verifiquei a justificação: pretendia o emprego amiudado de
“Recordações" - Pág. nº 24
Moçambique - Gorongosa
palavras como "massas populares", " agricultores e camponeses", "poder popular", etc.
Desculpei-o...
A única alteração política que introduziu foi uma maior participação nos comícios, de que eu
sempre me abstive.
Símbolos portugueses
Não sei se interpretei correctamente a atitude do pedreiro, mas iria jurar que, também a ele,
lhe doeu "picar" a parede, assim destruindo o escudo.
Iniciaram-se um mês antes, sob a batuta do Cumbane e grupos dinamizadores. Dada primazia
a canções, mas de tipo revolucionário - que exaspero mostrou o Cumbane a uma activista que
estava ensaiando a canção portuguesa "limão, meu limão"!
Distribuíram-se tarefas, em reuniões infindas. Atribuíram-me a "pasta" do protocolo, no
âmbito da qual nada foi necessário fazer...
Cerimónia da independência
Realizou-se a cerimónia no campo de futebol, por detrás da Administração. Numa das laterais
do campo, construíra-se uma tribuna, em que tomaram assento as autoridades e pessoas
gradas. A restante população, duas ou três centenas, foi, pela Frelimo, mandada sentar no
chão. A Frelimo rodeou o campo de tropa e revistou toda a gente que vinha assistir.
À meia noite menos uns minutos, um soldado da Frelimo arreou a bandeira portuguesa,
depressa, mas sem violência, dobrou a bandeira, colocou-a numa bandeja previamente
preparada, e veio entregar-ma. Não ocorreram manifestações de qualquer índole e a
população que estava sentada, no campo, não se levantou.
“Recordações" - Pág. nº 25
Moçambique - Gorongosa
Logo após, a população foi mandada levantar. Um soldado da Frelimo, lentamente, hasteou a
bandeira de Moçambique. A população bateu palmas, e houve vivas a Moçambique, que
acompanhei com todo o gosto e vigor.
Eis-me agora como contratado (despido da minha autoridade "colonial" de vinte anos), em
prestação de serviço, para o Governo de Moçambique.
Reflectindo...
Olhando em redor, em que a única realidade palpável era a kalache, alguma frustração e
revolta me assaltou.
Frustração por ver desmoronada uma estrutura com muito de bom e de reutilizável ( a história
o julgará e lhe fará justiça, tenho a certeza).
Revolta contra os senhores do antes, por cuja verdade se morreu; revolta, muito maior, contra
os senhores do agora, que se limitaram a importar umas tantas máximas tipo pronto a vestir.
Será que vão exigir também a vida daquela população ali há pouco sentada e que só se
lavantou porque a mandaram? Não será evidente que só se verificará uma permuta de
senhores? E como uma desvantagem: os senhores do agora serão incapazes de ter compaixão;
uns, os soldados, porque estão ainda com o dedo no gatilho e a vitória é deles; os outros,
porque estão sequiosos de tudo, com fome de séculos, dispostos a tudo devorar; atribuem o
vitória ao povo, mas as honras, essas, embolsam-nas em bornais sem fundo.
As elites ali presentes (como quase todas as pós-coloniais) são profundamente incultas.
Despiram-se dos valores tradicionais, bem demarcados e com meios de defesa e de
implantação social, substituindo-os por valores europeus. Mas esta substituição só se deu no
imediato, no visível: assumem o modo de vestir, de comer, o ter automóvel, casa e,
principalmente, bebida importada; mas ignoram o trabalho porfiado, a ética e eficiência
profissional, a estruturação de serviços de saúde, educação, assistência, etc.
Pobre Gorongosa! Os teus destinos foram sempre decididos lá fora. Pelos valores deles
recebeste impactos de G3 e de kalache, integraram-te onde tu, de tão grande, não cabias.
E, quando te encontravas em pleno, natural e irreversível processo de emancipação,
embrulharam-te agora numa doutrina que não é a tua, que nada te diz. Que endereço vão pôr
na encomenda?
Felicidades, minha jovem! Tens, a teu favor, a infinidade do tempo. Mas o horizonte das tuas
gentes, esse, tem aquela bruma que, em muitos dias, envolve a tua serra..
“Recordações" - Pág. nº 26
Moçambique - Gorongosa
A Frelimo, antes uma força de sabor local, permeável a influências de outras estruturas,
endurece progressivamente a sua actuação.
Os grupos dinamizadores são reformulados, autoridades destituídas, o medo instalou-se, até
entre muita da população africana. Na nomeação dos novos senhores, é atendível a um único
requisito: confiança política. Os poucos quadros (termo de hoje) que restavam são ignorados.
“Recordações" - Pág. nº 27
Moçambique - Gorongosa
Colectivismo e colectivização
Mas as máquinas foram avariando e sendo postas de lado: o mercado abastecedor de peças
(Beira, a importação da Africa do Sul) já não funcionava, ou funcionava a meio vapor.
Não mais ouvi falar em machambas colectivas.
Circuitos comerciais
Substituiu-se a actividade comercial privada pelas (célebres, ao tempo) lojas do povo. Uma
organização, a nível distrital, coordenava o processo - importação, armazenagem, distribuição
.Tudo decorreu razoavelmente enquanto a organização dispôs de transportes pesados
nacionalizados ou apreendidos. Com a gradual avaria e imobilização destes transportes, o
sistema gripou.
“Recordações" - Pág. nº 28
Moçambique - Gorongosa
Um dia, pela madrugada, alguém bate à porta. Pela janela, verifico que se tratava de soldados
armados, dispostos em duas filas, no corredor do jardim que dava acesso à porta de entrada.
Com algum receio, confesso, abri a porta e perguntei o que pretendiam. Um deles que se
destacou do grupo, avisou:
- O Sr. comandante da PSP manda dizer para o Sr. adjunto se apresentar na Beira, no seu
gabinete, às 8 horas da manha, de hoje. E com isto se foram.
Fiquei mais descansado. Se fosse algo de grave (nunca se sabia, naquela época, o que
aconteceria na hora seguinte) o procedimento seria outro que não o de "mandar apresentar".
Segui para a Beira, contactei os "meus" serviços e solicitei uma guia (documento normal,
nestas circunstâncias) para apresentação na PSP. Objectivo: deixar rasto e ser portador de um
documento.
O comandante só chegou pelas lOh. Conduziu-me ao gabinete, apresento-lhe a guia, que atira
pela secretária fora, dizendo que não queria papéis. E em tom rígido e contundente, enceta o
que me pareceu ser uma acusação:
- O sr. está sabotando a acção da Frelimo, porque ainda não reparou a picada, contrariamente
ao que ficou acordado.
- Não sei do que está a falar - respondi-lhe.
- Não sabe?
- Não. Ninguém me falou em reparar picada alguma, nem sei do que se trata. Não terá isso
sido tratado com o administrador Cumbane, que está numa reunião em Inhaminga?
Agarra no telefone e, em tom desabrido, pede uma ligação para o Cumbane. Minutos depois,
insiste pela chamada, ameaçando o telefonista de o mandar prender.
Estabelecida a ligação, que reprimenda passa ao administrador Cumbane! Após o que me diz:
- Siga imediatamente para a Gorongosa.
- Só tenho transporte à tarde e tenho de ser portador de certa importância para salários que
terei de levantar na Administração Civil - respondi-lhe.
Chamou então um condutor, a quem deu ordem de me transportar imediatamente para a
Gorongosa.
Insisti pela ida à Administração Civil, pelo que "concedeu" , para o efeito, cinco minutos.
Ao chegar à Administração Civil, diz o condutor: não ligue ao comandante; diga onde e a que
horas quer que eu o vá apanhar, para depois seguir-mos para a Gorongosa. Excelente...
(Eu desconhecia mesmo o assunto da reparação da picada. O Cumbane nada me tinha dito.
Tratava-se de instalar um campo de reeducação).
Um dia pela manhã, por Setembro de 1975, começaram a chegar a Vila Paiva automóveis de
todos os tipos - ligeiros, autocarros, camiões - a transbordar de pessoas, também de todas as
cores e raças.
O primeiro carro parou junto da casa do Matos, os outros sucessivamente atrás, e a fila
estendeu-se na direcção do campo de aviação, não se lhe vendo o fim.
“Recordações" - Pág. nº 29
Moçambique - Gorongosa
De que se tratava? Só depois o soube, embora o facto fosse do conhecimento de alguns, v.g.
Cumbane.
Na noite anterior, a Frelimo, coadjuvada pela polícia e populares, efectuara na Beira uma
grande rusga, em que capturara centenas de pessoas que depois encafuou nas caves do
Grande Hotel (este hotel nunca chegou a ser utilizado). Pela madrugada, foram os detidos
ensardinhados em tudo quanto tinha quatro rodas e seguiam agora para o tristemente célebre
campo de reeducação da Gorongosa.
Aquele campo não era mais do que uma antiga machamba abandonada desde há anos, sem
quaisquer construções ou outros meios.
Os presos foram ali despejados, construindo depois os seus abrigos.
Nunca fui a esse local, que distava uns bons quilómetros de Vila Paiva. Acompanhei muitas
vezes o Cumbane em deslocações pela área. Mas nas deslocações ao campo de reeducação,
quer dele, quer de outras entidades, sempre me foi dado a entender não ser desejável a minha
presença.
O cônsul de Portugal, na Beira, ex-administrador Serra Frazão, veio certo dia a Vila Paiva, na
intenção de visitar o campo. Não o deixaram seguir além de Vila Paiva.
Deste campo só tive, pois, reflexos e ditos, como o de mulheres com sangue a escorrer pelas
pernas, por falta de pensos higiénicos ou de outra protecção.
Li uma carta escrita por dois portugueses e dirigida ao cônsul de Portugal na Beira.
Documento humano, pedindo socorro e relatando as sevícias a que eram sujeitos, como a de
amarrar os presos a uma árvore e visá-los com rajadas de pistola metralhadora, para
amedrontar. Davam notícia de mortes, fome e doença.
(Tal carta tinha sido encontrada numa viatura da PSP, que do campo se dirigia para a Beira e
que, por alturas do Inchope, sofreu um grave acidente de viação. Algum preso terá
encontrado modo de fazer chegar a carta ao cônsul, sem resultado, por via do acidente. A
carta foi entregue, sim, mas ao administrador Cumbane).
Aquando da minha transferência para a Beira, o responsável pelo campo, um elemento da
Frelimo, estava aprendendo a fazer o nome, para assinar os relatórios...
Entregue que fora o pré-aviso de rescisão do meu contrato, começámos obviamente a pensar
em termos de cá e na imediata vinda do José Manuel, a tempo de iniciar o novo ano lectivo,
até porque o colégio dos Maristas, que frequentava na Beira, dava os últimos estertores.
Não presumi dificuldades na vinda dele, pelos conhecimentos que tinha na Beira, inclusive
no consulado, onde trabalhavam três ex-colegas meus, em funções de destaque.
Todas as portas se me fecharam, com evasivas de vária ordem. A barafunda era enorme, na
verdade.
Pela madrugada de um dia de Setembro de 1975, fui para a fila do consulado. Já fiquei fora
do edifício. Às 9 horas, a "bicha" dava a volta ao quarteirão. Às 11 horas, estava junto da
funcionária que atendia. Estava ela a ajudar a preencher um pedido de passaporte, o que me
pareceu extremamente moroso. Exasperado, digo-lhe:
- A srª já viu as pessoas que tem para atender? Estou aqui desde a madrugada. Porque não
colocam outra pessoa a ensinar a preencher os papéis?
- Um momento que já o atendo, - respondeu.
E instantes depois:
-
“Recordações" - Pág. nº 30
Moçambique - Gorongosa
- Seu refilão. O sr. não me conhece? Eu conheço-o bem. Trabalhei na Administração Civil e
recordo-me de o ver lá muitas vezes. O que é que quer?
- Estou desesperado - disse-lhe. Tenho que mandar o meu filho para Portugal, não tem
passaporte, e na TAP dizem-me que só há lugar daqui a 8 meses.
- Eu resolvo-lhe já tudo - diz a encantadora senhora (trabalha hoje no Ministério das
Finanças e muitas vezes a encontro, com prazer).
- Tome lá estes papéis, preencha-os, venha entregar-mos às 14h. e às 17 h. já lhe darei o
passaporte. Quanto ao lugar no avião, aguarde uns momentos porque vem falar comigo uma
funcionária da TAP, a quem já fizemos muitos favores. De certeza que lhe consegue um
lugar.
Momentos depois chega uma sr3. a quem ela diz:
- Olha Laura (creio que era este o nome) está aqui um colega meu que necessita, com
urgência, de um lugar para Lisboa. Tens que consegui-lo.
Responde a srª.:
- Só há lugar daqui a muitos meses. O que lhe posso garantir é um lugar por desistência de
outrem.
- Em todos os voos há desistências: uns porque se arrependem à última da hora; outros
porque são detidos aquando do embarque; outros ainda porque não conseguem passaporte,
etc, de modo a embarcar. Poderá amanhã ir para o aeroporto. O avião sai às 11 h. Esteja lá a
partir das 8h. e aguarde a chamada pelo microfone - acrescentou.
Nacionalizações
Registo e recordo o olhar de cobiça, e de satisfação, com que Cumbane e séquito (grupos
dinamizadores, Frelimo) tomavam posse dos bens.
Uma serração da área (Caetano) foi abandonada. Grande alegria, designadamente entre os
trabalhadores, a quem a exploração foi entregue. Tudo rolou até que os carros não
começaram a avariar. Dois meses depois a serração encerrou. Mesmo que a gestão tivesse
sido eficiente, o encerramento verificar-se-ia: os circuitos entupiram e nem sequer havia
compradores para a madeira, a não ser para "caufragem", isto é, da mais barata, que só servia
para encaixotar os bens de quem saía (os caixotes, no cais, eram inspeccionados. Se feitos de
madeira de qualidade, não seguiam).
“Recordações" - Pág. nº 31
Moçambique - Gorongosa
Odisseia bagagens
Num barracão em que se aceitavam as reservas, lá estava uma fila enorme para um guichet, e
3 ou 4 pessoas para o outro - o barco fantasma. Fiz a reserva e coube-me o n° 22 (o Matos,
nosso vizinho de Vila Paiva, fez, por esta altura, a reserva para o outro barco. Só teve
transporte em Novembro).
Encaixotamento
Contratámos um carpinteiro, para fazer os contentores. A dois dias do prazo fixado para o
transporte, faltou e não mais deu notícia ( Não era bem visto pela Frelimo quem trabalhasse
em serviços no género. Terá sido o caso?). Recorri a uma pequena oficina, de um tal João.
Fechou a oficina e colocou no quintal da casa todo o pessoal a trabalhar.
Outro contratempo: acordara com o Ruas, gerente do Jaime Guedes, o transporte dos
contentores para o cais da Beira, em camião provido de guincho, assim evitando
carregamento a braço. A última da hora, veio informar que o camião estava avariado.
A Administração ainda tinha um camião a funcionar, que o administrador Cumbane cedeu
sem relutância. Na falta do guincho do camião que o Ruas cederia, foi necessário deitar
abaixo parte do muro do quintal, para o camião acostar aos contentores e alguns destes
tiveram que ser desfeitos, pois não houve modo de os carregar a braço.
“Recordações" - Pág. nº 32
Moçambique - Gorongosa
Era feita por um grupo que integrava um elemento da Frelimo (quem mandava) e um
funcionário da Alfândega e um guarda da PSP ( que obedeciam).
Tudo espalhado no pavimento do cais, o da Frelimo revistou peça por peça e apreendeu um
petromax, metade dos lençóis, 2 edredons de pele de gazela, um livro sobre etnografia e,
vejam só, todas as fotografias em que havia uma cara escura, porque "os pretos não podem ir
para a Europa". Quis apreender um pequeno tambor (batuque) e só não o fez porque a vossa
mãe começou a lacrimejar, dizendo que era uma recordação da mãe dela, já falecida.
O problema foi quando inspeccionou uma mobília de sala de jantar. Cheirava-a e dizia: esta
mobília é nova, não pode seguir.
Disse-lhe que tinha a mobília há mais de cinco anos, como era atestado nos documentos, só
que habitava em casa, com recheio, do Estado, donde que a mobília tivesse tido pouco uso.
Decisão: tem que apresentar factura; fica a vistoria para amanhã; fica tudo assim fora; não
pode tocar em nada.
Dei a mobília como perdida, o que não foi o caso, como a seguir se vê.
No dia seguinte, à tarde, reatou-se o acto. Diz o funcionário da Alfândega para o elemento da
Frelimo:
- Não sabe de quem é esta mobília? É do sr. adjunto, da Gorongosa.
O da Frelimo disse algo que já não me recordo e rematou:
- Pode embalar tudo. Não é preciso factura.
Vinda da Sónia
Resolvemos que a Sónia viesse para Portugal de modo a fazer o exame da 4a. classe na época
própria, sem o que atrasaria um ano em termos escolares.
Novamente me defronto com a falta de transporte. A TAP já não operava, no que fora
substituída pela DETA.
A indisponibilidade de lugares nos aviões resultava de muitas pessoas efectuarem reservas
por diversas vezes e para datas diferentes: se ocorresse qualquer transtorno grave, já tinham a
passagem reservada.
Recorri ao meu amigo Frangoulis (empregado do Mosca, de Vila Paiva), cuja filha trabalhava
na DETA. Simpático, como sempre, prometeu conseguir lugar, "nem que tivesse que dar uma
bofetada na filha".
No dia 18 de Maio de 1976, a Sónia, na companhia de uma família que conhecíamos de Vila
Machado (Rodrigues/Eugenia), toma o avião para Lisboa.
“Recordações" - Pág. nº 33
Moçambique - Gorongosa
Em 18 de Junho de 1976, fui transferido para a Beira. Não me distribuíram casa nem a
solicitei. Utilizei 30 dias de férias a que tinha direito, o que coincidia com o termo da minha
prestação de serviço.
Fui o penúltimo administrativo, de nacionalidade portuguesa, a deixar o interior. Ainda ficou,
no Dondo, o administrador Osório de Castro.
A Beira era, então, uma cidade já quase fantasma. As estruturas ainda se mantinham, mas
nitidamente desfalcadas umas, e no estertor final, outras. Vivia-se a medo.
Não notei animosidade da população para com os europeus que ainda restavam.
Registo dois factos bem significativos referentes a um "colonialista" como eu:
. Fui reconhecido por um "cabo de terra" de Mugeba, posto em que eu trabalhara de 1964 a
1967. Abriu-se-lhe o sorriso de alegria;
. Nos CTT, na fila do guichet dos registos de correspondência, com espanto de todos os
presentes, o funcionário que estava a atender, levanta-se, vem cá fora, abeira-se de mim, com
efusivas manifestações, pede-me a correspondência, regista-a e dá-me o talão. Tratava-se de
um ex-funcionário dos CTT de Vila Machado que , por minha interferência, não foi demitido
dos CTT, pelos anos 70 ( Tinha dirigido um ofício ao Director dos CTT, solicitando aumento
de ordenado e falsificou a minha assinatura. O ofício estava redigido de modo normal. Quem
o recebeu só duvidou da autenticidade por algumas permutas do masculino pelo feminino e
vice-versa... Mas o pedido era justo e eu tê-lo-ia subscrito).
Embarque do Renault
“Recordações" - Pág. nº 34
Moçambique - Gorongosa
Estava no cais um navio, salvo erro, o "Beira". Pela data da nossa vinda para Portugal, ou
conseguia transporte nesse navio, ou teria que abandonar o carro. Desdobrei-me em
contactos, sem êxito.
O navio saía a um sábado. Na sexta feira, anterior, de manhã, vou à ex-Companhia Nacional
de Navegação para falar com o gerente, se é que naquela barafunda de "salve-se quem puder"
ainda existiria essa figura.
Ao entrar, escuto, do meu lado direito: " O sr. administrador como está? O que faz aqui?"
Sentado a uma secretária, de gravata, todo composto, logo reconheci o dono da voz. Pelos
anos 70, várias vezes fui à Companhia visitar um amigo (Vidal Júnior), quando travei
conhecimento com um empregado (servente ou escriturário), natural de Vila Machado, em
cujo posto eu estava colocado. Era ele, e digo-lhe:
- Preciso embarcar o meu carro no "Beira" e não consigo lugar.
- Porque não veio falar comigo antes?
- Não sabia que o sr. ainda aqui estava. Já lá vão uns anos.
Depois de referir as pressões de todos para conseguir transporte e do navio estar a abarrotar,
foi-me dizendo:
- Eu ainda vou ver se lhe consigo transporte. Venha às duas da tarde falar comigo.
À hora marcada, diz-me, eufórico, que tinha lugar assegurado, e que poderia tratar do
embarque.
Tratar do embarque significava "só": despacho por despachante oficial e, meus senhores,
vistoria da Alfândega. E eu tinha 3 ou 4 horas para tudo.
A marcação dos nossos lugares para a viagem Beira-Lisboa foi feita pelo consulado.
Acompanhei o assunto e, mesmo assim, aguardámos transporte por cerca de 30 dias.
Deram-nos OK para o dia 15 de Agosto, mas o voo não se realizou. Já ficámos instalados por
conta da DETA, no hotel Moçambique, que ainda funcionava.
Nova marcação para o dia 17. Era normal os últimos passageiros não seguirem, por motivos
mesmo técnicos. Dias antes, um avião com a lotação completa, quase mergulhara na pista,
por excesso de carga - excesso para o seu estado.
Estratagema: muito antes do voo, marcar lugar com uma mala; gratificar um bagageiro para
não deixar alterar a ordem, nem roubar a mala.
“Recordações" - Pág. nº 35
Moçambique - Gorongosa
Lá dei 500$00 (boa gratificação para a época) a um bagageiro na tarde do dia 16. À meia
noite, fui verificar se tudo estava em ordem. O bagageiro lá estava, a mala também, a fila
intacta e na ordem inicial (um chefe de repartição de fazenda, meu conhecido, entendeu
desnecessária a diligência bagageiro-mala. Teve lugar 15 dias depois...)
Eis-nos, no dia 17 de Agosto de 1976, na fila de embarque, último teste à resistência daquele
conjunto de abandonados. Todos sabíamos da revista num cubículo (mandaram-me tirar o
casaco, a gravata, os sapatos e desapertar a camisa e as calças), mas o que nos assustava era,
ao entregar o passaporte ao funcionário, este olhar para um subtampo da secretária, onde
havia uma lista de nomes a quem não era permitido sair do país. Uns eram presos ali mesmo,
outros mandados apresentar na PIC, com apreensão dos documentos.
Mas tudo correu bem.
NOTA FINAL
Mas hoje, 20 anos depois, não posso deixar de reconhecer que algo de mim por lá erra.
Com efeito, revejo-me, menino e moço, hesitante, na Quissanga e Porto Amélia, onde muito
amei alguém que então tratava por "miúda"; revejo-me, brincalhão, nas praias de Uimbe e de
Mecúfi; explorador nas florestas de Nangade; profissional e eficiente em Mugeba e Vila
Machado; revejo-me, finalmente, expectante e derrotado nas serras da Gorongosa.
“Recordações" - Pág. nº 36