Joracy Camargo - Deus Lhe Pague
Joracy Camargo - Deus Lhe Pague
Joracy Camargo - Deus Lhe Pague
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D.-\HCY PENTEADO
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I NOTA DO EDITOH
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I A si t u açã o atuut do T eatro Btnsilctro, qlt c correspo iu lc,
I com t ôtla c vide llcia, ti última [asc c/o ciclo de cad a é poca,
I c/mula aos III C/IOS estu.íio sos elo [cnànun«: II falsa uup rcss ão
I d e d ccad éncia, leoa -n os II co nside rar nials umu tiez ,,(ilida a
ai!vc rténciu d c Síll)io BOIII ero, f o r111 "la da li á 111 a is dc cin-
I qiicnta nuos passados.
! Disse o mestre qlle "II1IW elas afirmativas mais cOIIstall-
I t es ela c rí t ic a brasíleiru é a da uiio cl"i.stcllcia, cnt re Hás, de
I tlI/ll/ oerdutleira litcruturu dmm átlco", Nessa ocasião, c de-
I pois de analisar, compuratloanicntc, °
pClllOfCllIICl lit erário 110-
I cionul, aproocltou II oportuniiltule l>llra peniten ciar-se d e Sita
própria "aleivosia critico", qllc consistira em consulcrar o
I t eatro como "a })artc niats enjczada ela nossa llt cratum", COl l -
I cluintlo qlle "o nosso roman ce não é melhor elo qllc o nosso
teatro". Por [un, - como éle me smo dis se - pam " ac ab a r
( .'0111 tantas 1J1"CIgas, com tant os cs co n i u ro s, com tanto si st cmcí
I tico dellcgrir d e tuilo o qll c é brasileiro" , acou sclli ou 11/11
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Es se conceito, /01'11I111(1(10 pela autorlilude inc(Jlltcstcívol atenção à importância do teatro, não há críticos cspeclnlf-
ele, Lobato, foi sendo, a pouco e POIICO, confirmado por outros zados em teatro, não se inclui o teatro nas cogitações dos
Crltico s d o gralldc ell verg ad ll ra , tantos, qllc ap cnas citarcmos, Intel ectuais. Entro nós literatura é somente romance e poesia,
p or ser amplalll cnt e sllfici cII/ e, li opini ão de Afnll1io COII- e os escritores votam em sua maioria um soberano clesprêzo
t iulus, qlle é, sem ilú oula, tlllI dos mais atuant es c autorl- ao teatro, considerando-o gênero inferior ou secundário.
ztulos da nuulcrnu críti ca biu stlcíra. Se atentarmos no entanto para a imensa parte que ocupa
o teatro nas p;randes Iiteraturus, veremos que de falso ou
de mesquinho há nessa atitude (conscicnte ou íncon sc ic n tc ) .
Urna Iltornturu só se complotn na forma dramática, e estu
falha vem em apoio da tese que sustento do que não existe
ainda propriamente uma literatura brnsileirn, com persona-
lidade definida e forte. O que existe são escritores isolados,
alguns grandes escritores, porém de modo nenhum, lit era -
tura brasileira.
No terr eno dramático, creio não ser exagerado, e o exilo
alcançado entre n6s o confirma, dizendo que a maior reali-
za ção b rasil eira até hoj e é o teatro de Joracy Camargo. Com
o seu conjunto de peças já se pode falar em teatro no Bra sil,
não s6 quanto no seu valor artístico mas sob retudo quanto
ao seu sentido social.
O q ue se nota de logo na arte de Joracy Camargo é a
sua seriedade. Sente-se n êle a preocupação de es tuda r, de
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. '\r conscic te a sua arte, de anna -la de um arcabouço
t~C? c de \11\1 conlcudo intelectual imprescindíveis, pois de logo essa restrição, marcando como um defeito o que é
11110 lia, ll~l(lll, como disse JOII\, it , (Juc seja mais sério do {I'IC lima qualidade sob outros pontos de vista. É quc, parece,
a comédia, c que cxijn tanto a aplicação e a consciência no nulor inter ssa menos a arte simples e banal divertimento,
profissional. Joracy tomu a sério a obra q\le empreendeu, <o ( lIC a arte quc encerre uma finalidade. Para êlc, o teatro
aprofllllda-a I~O. estudo c na meditaç ão, o (JIIC constitui já eleve scr apcllas o instrumento de um dcbate d e teses, Ulll
''!" g~·andc m cr íto ~I~ I~OSS() meio em qllc a mania da impro- isturi li, Iísscca ão social e moral, um meio ( eanúlisc, um
vlsaçao c da supcrficialidnde estraga tôdus as iniciativas mais veículo de idéias. É a reforma social que êlc visa rctrutuudo
gCllerosas c as mais graves vocações. sob o travesti ua ilusão l rumática, as misérias c is hipocrisia~
conseqüentes à má orgunlznção da nossa socíednde atual; é
Por outro lado, !Jinguém v.i procurar no teatro de Joracy
Camargo IIIU pmo divcrt i 1lI<:1I to. A ~c lúio é arte pllfll, à demolição do edifício viciado e couclcnudo da sociedade
011 arte polu arte. Ela encerra uma intenção. O seu teatro hurguesa c cupltulístu Cjuc êlo cruprestu o seu tulcuto e a
é I1I1l veiculo apenas p~\I"a lli'llCi'lSinamento, a ropagação ou suu arte.
a ddesa do lima tese social. ~ um teatro de id éias. Não Ohra de coragem em nossos dias, só o prestígio que a
Se (,sl)( ~re apenas achar graça, porém sobretudo nprender, inteligência ainda desfruta pode explicar o conceito em que
fazer exame de consciência social. é tida. É obra necessária, como prova de que hú público
A ação dramática de Jorac.;y Camargo gira tôda ela em para compreendê-lu c aplaudi -la, e quc vem ao encontro dessa
tôruo da ~· í t i ca da socicdurlc hurguesa. Faz parte dêsse cousciênciu que o povo está sentindo crescer em si a respeito
vasto c poderoso movjn~nto-jll( 'lcchíal contemporâneo de das. SUé~S ll.C-CCssid.H~cs, ~los seus direitos, das suas legítimas
crítico dos vícios da estrutura social burguesa, da moral e da asplraçoes, até então d~ atlas pcla morfinn da caridade
ccunomlu hllrgllcsa, da vldu Iutclectun] burguesa, e neste ~u rccusndus Edas ex -,]ornç,ões clus ale (l ÕCS SClH.lOI 0-
sentido nenhum instrumento mais perfurante, Uma peça de 'alizantes, nelas cavil~çoes pSCll o)'umicns de grupos que
le:ltro é de efeitos milito mais profundos e largos do que tudo controlam, até fi própria vida dos outros, a maioria .~
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IIlII tratados de moral social 011 econômica, centenas de dis- espoliada, e quc sob a capa da ordem escondem a mais essen-
cursos e conferências. A sátira imensa (JlIC é a obra de cial das desordens, a desordem da Injustiça.
Joracy Camargo tcm 11m alcance como propaganda de idéias
contra a hurgucsia e a concepção cu ritulista da viela que difl- A FIlÂNIO COUTINHO
cilmcnte sc poderá prcvcr. Nela está caricafiíí-ada essa mesma , de outubro de )941.
IlIlrgucsia <luC o aplaude e ri ruidosamente, talvez incons- i'
cicutcmcntr-, talvez inndvcrtidnmcutc, talvcz rotineiramentc
talvez l):1ra ah~rar as vozes d~ cr nsciência, o imenso rcmors~
c o IIll'do I11li "I" Iv.-l lJllC 1I1t: vuo nalma . ..
Nada mais vivo c mais atual. São os reais problemas
e as mazelas da vida moderna quc apareccm debaixo do
deito da ilus ão dramáti ca . E o seu êxito surpreendente não
tem outra cxplicnçâo senão csta aridez quc caracteriza a
inteligência coutc m por ânc a por lima compreensão dos males
qlle aflig em o hom em mod erno.
Pndc-r-sc-iu mesmo dizer c]ue, sc não é esta lima intenção
do, autor. às prças de Jora c)' (~amargo faltam em teatro pro-
Prt:tIlH'llte () ljll<: sobra ('m id éias. Um crítico cxigcntc fará
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D]~ US LHE PAGUE
COM~DIA
Divididos cC EM 3 ATOS
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23. 6 EDiÇÃO
NO llllAllll.
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humanas não é arte, é cópia fria da natureza. E: traição o ideal é o ponto divergente: - dêle partimos e a êle vol-
fotográfi ca . tamos pela fatalidade da parábola . Por isso, lamento os qu e
procuram desviar-se dessa rota traçada pela natureza onipo-
o o o t ente dos fatos. Será esmagado p elo todo. Nesta hora tre-
m enda dos destinos humanos, em que as mentiras são aban-
. Ora, a pr esent e s itua çã o do mundo, paralisando milhares donadas como jóias incômodas, em fim de orgia, insistir em
de bruços, arrastou no "chômage" im enso as forças criadoras mantê-los é dar ao mundo o mais tri st e espetáculo d e si
da art e . O artista, ont em operário ch eio dc motivos, é hoje próprio.
um moribundo a exp ira r d entro de um casarão vnzio . Não o o
exist e nrto em decadência; há sociedades mortas, nas quais
o artista não pode mais viv er. E: êste o quadro, onde os
artistas sem audácia ou sem compreensão do momento se o artista e a arte têm que ser verdadeiros para que haja
utilidade na criação. Hoje, um homem tem (lue ser u ma
debutem tràgi:amente: pr?cur~nd() e m razões~ as mai.s. div:r-
sas c absurdas, o moti vo Inf eliz da sua própria mumificação. verdade, um valor, uma afirmação clara, precisa, integral.
Ontem, o adjetivo valorizava o homem, hoje o hom em é qu cm
• o o valori za o adjetivo.
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do mais belo dia do mundo. Deus lhe pague... será p~ra
os vindouros o pergaminho precioso onde se escrevera!TI as
vcrtludes palpitantes da consciência sofredora de nossos dias.
Os louros que lhe atiraram florescerão sempre; cada geração
saberá renová -los, porque DCllS lhe pagllc... é dessa irnor-
tulidude sólida dos plunêtas que não desaparecem nunca.
Sei perfeitamente o quanto hão de parecer exageradas, aos
olhos dos falhados, dos nulos, dos imbecis e dos despeitados, DEUS LHE PAGUE
.-stns minhas palavras.
Felizmente, isso já não nos tira o bom humor, como
outrora. Sabemos o (Jue somos, onde estamos e para onde
caminhamos. j,í não nos movem a cabeça os zurros de tais
alimárias. Dentro de uma profunda solidariedade humana,
s ó nos interessa o bem que possamos fazer à coletividade.
]<i rompemos o círculo de ferro das competições pessoais.
Somos por todos c para todos. Do palco atiraremos aos nossos
a verdade com a mais pura das intenções.
Operários da arte, a nossa produção é para todos aquêles
que <jllÍscrelll c souberem aproveitar um pouco dêste tra-
balho fcito com sangue. Fraca, embora, a nossa dialética
já é razão de scr de nossa existência, uma vez que no grnn-
de ideal da felicidade humana fomos encontrar a única
fonte mitigadoril de nossa sêde de justiça.
A coragem quc nos anima não repousa numa fantasia;
antes do pensamento, falou-nos o instinto, por isso a nossa
marcha é consciente. O autor e o intérprete vivem Deus
lhe pague. .. Ambos são todos aquêles personagens da tra-
gédia colossal.
PROCÓPIO
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PHIl\,1EIHO ATO
C E NA H l ü
21
mesmo esquálido e faminto - }'fENDIGO, distraidamente, crime de apropriação indébita. Por q~Ie? Porque êles resol- T.
à passagem elo OUTRO, estende-lhe o chapéu:) Ahl (Ri. veram que as coisas perten~essem a eles ...
sonho) Desculpe... Não tinha reparado que o senhor é . OUTIlO - Mas qucm Foi que deu? .
colega ... 1\IENDlGO - Ninguém. Pergunte ao dono ~e uma faixa
OUTno - Ainda não fiz nada hoje, velhinho. Tenho de terra na Avenida Atlântica se êle sabe expli car por que
cigarros. Aceita um? razão aquela faixa é dele . . .
l\fEN[)JGO - São bons? OUTIIO - Oral É fácil. Ele dirá quc comprou ao an-
OlTIllO - Ho]e, até as pontas que consegui apanhar são tigo dono.
de cigarros ordinários! (Tira elo bolso uma latinha cheia ~IENDlGO - E o antigo dono?
ele pontas ele cigarros, abre-a e oferece). Orrrno - Comprou de outro.
MENDIGO - Muito obrigado. Não fumo cigarros ardi. l\IENDlGO - E o outro?
nários. Quer um charuto? (Tira-o do bolso). OUTRO - De outro.
OlTI1\O (Aceitando, espantado) - Olál I ~IENDIGO - E este outro?
l\fENDI(',() - E: Havanal Tenho muitosl Custam 10$000 \ OUTIlO - Do primeiro dono.
cada UTIl. I l\IENDIGO - E o primeiro dono, comprou_ de qucm?
OUTnO - Aceito, porque nunca tive jeito para roubar ... I OUTRO - D~nguém. Tomou conta.
l\IENDlGO -- Com que direito? -
l\fENOIGO - Nem cu. i OUTRO - Iss é que eu não sei. _
OUTUO - Não foram roubados? I
l\IENDlGO - Foram comprados. Ainda não sou ladrão ... I 1\fENDlGO - Sem direito nenhum. Naquele tempo nao t
··rj .
OUTIlO - Desculpe. E: que ... havia leis. DepOIS que um pequeno grupo dividiu tud? entre
I si é que se 'fizeram os Códigos. Então, passou-a -ser cnme .
l\IENDlGO - Não é preciso pedir desculpas. Não sou I
ladrão, mas podia sê-lo. E: um direito que me assiste. para os outros, o que pru a êles era uma coisa natural .
Ol1TnO (Sentanelo-se na escacla) - Acha?
I OUTRO - Mas os que primeiro tomaram conta das terras
I eram fortes e podiam garantir a posse contra os fracos.
1\ IENDlGO - Acho, mas semr.ro preferi trabalhar. Como I
trubnlhnr nem sempre é possível, resolvi pedir esmola, antes MENDIGO - Isso era antigamente. Hoje os ch~mados
que fosse obrigado a roubar. Pedir dá menos trabalho.
I donos não são fortes e continuam na posse do que nao lhes
OUTUO (Alarmado) - E é por isso que o senhor pede? I pertence.
I OUTRO - Garantidos pela polícia, pelas classes ar-
l\IENI>IGO - Só. O senhor conhece a história do mundo? madas ...
OUTUO - Não. I
l\IENDlGO - Sim. Garantidos pelos que tam hém não
l\IENDIGO - Antigamente, tudo era de todos. Ninguém I são donos de nada, mas que foram convenci~os de que d~
era dono da terrn e a água não pertencia a ninguém. Hoje, I
vem fazer respeitar lima divisão na qual nao foram aqm-
cada pedaço de terra tem um dono e cada nascente de água I nhoados.
pert en ce a alguém. Quem foi que deu? I OUTRO - E o senhor pretende reformar o mundo?
OUTUO - Eu não fui . . . I ~fENDlGO - Tinha pensado nisso, mas depois compre·
1\1 ENDIGO - Não foi ninguém. Os espertalhões, no prln- I endl que a humanidade não precisa do meu sacrifício.
cípio do mundo, apropriaram-se das coisas e inventaram a I OUTRO - Por que?
JIIstiç'a e a Polícia ... I 1\fENDlGO - "Porque o número de infelizes avolumá-se
OUTIIO - Pra que? I assustadoramente ...
~ IENI>IGO - Para prender e processar os que vieram de. i OUTRO (Sorrindo) - E foi por isso que desistiu de re-
pois . Iloje, quem se apropriar das coisas, é processado pelo i formar o mundo?
1
22 I 23
I
II
I
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21 2.5
, ~I EN()J(;(~ - P?dindo c gl~anlan~10. Fui obrigado a guar-
OuTRO - Mas, se vivesse dos rendimentos, também não
dar, porclll~ .1 sociedade m e Impedia de gastar. Esta roupa,
precisaria trabalhar. Por que não emprega o seu dinheiro
,q u e rccchí como esmola, visto -a há 25 anos . Substituí-Ia
lia indústria, no comércio ou na lavoura?
p~r 1I11.I.a , I I O\ ' :~ ' seria de.smoralizar a minha profissão... Logo,
t-.I ENDIGO - Para quê, se não tenho necessidade de arris-
Fui ohrlg,ulo li c cononu zar, pelo menos, o valor de dois temos
por alio . .. l'ÍIICJii enta lemos . Vint e e cinco contosl car o meu capital?1
Otrrno - Em compensnçâo, gnnhnria muito mais.
OllTIIO - A 500$O()O c.ulu um?
l\IENDIGO - Puro engano. O lucro maior não é a maior
r-.IENIH(;O - t quuuto me custam agora... Obrigado a quantidade de dinheiro que sobra. No comércio ou na
cOII}(~r os restos de comida que os outros me davam, calculo indústria, quem ganha mais precisa gastar mais. No meu
a 1.1I11.Jl:l ccounmiu , por baixo, cm G$OOO diários... sem caso, dá -se o contrário: quanto mais ganhar, menos preciso
goqdas ...
e devo gastar, para ganhar mais e mais. E depois, o que
~ Ourno (Fazelldo cálculos i - Ccnto e oitenta por mês ... faço não é ganhar; é cobrar o que a sociedade me deve. E
2 vezes nada, nada; 2 vezes 8, 16; 2 vezes 1, 2 e um 3; uma cobro humildemente, suavemente, em prestações módicas. '
vez 11:1(1:1, nada; I vez 8 , 8·, 1 vez] , I." 6 11 e V"I'
li,.2 D'
OIS Otrrno - Quanto lhe deve a sociedade?
contos cento e sessenta por ano ... MENDIGO - Tanto quanto deveria caber a mim, se hou-
r-.IENDIGO - Em 25... vesse uma divisão "camarada".
OU1'IIO i Nocos c álculos balbuciando e contando pelos OUTRO - Comigo essa gente tem sido muito caloteira ...
dedus) . . . Mais de 50 contos. MENDIGO - :B que o senhor não sabe cobrar... Como
. ~IENDlCO - Acrescente agora outras despêsas, corno é que o senhor pede uma esmola?
~JJlcmas, . teatros, es!}ortes e certos luxos que me pareceram OUTRO - Como todos: "U ma esmola pelo amor de
JIlcon\'enl~ntes P:.II":\ 11m mendigo, c compreenderá corno pode Deusl ... "
11m nH'IHllgo enl'lejllCccr c um rico empobrecer. MENDIGO - Isso é passadlsmol... Ningué~ mais ouve
OIn'1I0 - Tem razão. esse pedido. Deus é urna palavra sem expressa0. Quando
~IENI>IGO - Nós vivemos acumulando as sobras da socie- se diz "Ai, meus Deusl" - é como se estivesse dizendo: "Ora
dade: ~..!1 o iedade pensa ql.1C as sobras não fazem falta ... bolas I" O senhor nunca ouviu um ateu dizer: "Graças a 0
E a ilusão do lucro, porque não há lucro. O que há é uma Deus sou ateu"?
J1ecessid~dc menor no momento em qpe o dinheiro é maior. OUTRO - Já.
Quando a n ecessidad e aumenta , o que era lucro passa a - se r MENDIGO - Pois então? Hoje, poucos compreendem o
prejuízo. Se _0 scnh?r, não tiver necessidade de cominar um valor dessa expressão, Fale em fome. Fome é mais lrnpres-
autom óvel, nao seutir á falta do dinh eiro que êle custa. Se sionante. Há mais de 30.000.000 de famintos no mundol ./
o senhor não tiv er n enhuma necessidade, o dinheiro que Mas fale em fome, sempre onde não haja pão ou comida.
tiver no bol so ser á lu cro. f: sobra . Pouco se lhe dá deitá-Ia Otrrno - Para que?
fora . E n ós, os mendigos, somos a lata do lixo da huma - t-.IENDlGO - Para que êles lhe dêem dinheiro. O senhor,
níd ad c . com certeza, t em mendigado a domicílio . . .
O UTII O - Mas o senhor é rico m esmo?1 O UTRO - Realmente, sempre v ivi percorrendo casas de
t\I ENDlGO - Sou. Mas não tenho culpa nenhuma disso ... família.
f" t-.IENDlGO - t;: um mal. Quem mendiga a domicilio não
O U TIIO - E pr et end e continuar esmolando?
faz carreira, Só dão pratos d e comida e r estos d e pão.
r-.fI~ NDlGO - Até o fim da vida. Não me dá trabalho
nenluun . o: ~ão pago imposto, não estou sujeito a incêndio
Ilem a Iul éncia .. .
J
J
Adote o meu sistema . Especializei -me em trans euntes e
portas de igrejas e m dia dc_missa de d efunto rico. L eia os
l, jamais. Pelos anúncios, calculo a féria do dia.
26
27
Ot n l:() - E hoje , p or Cp le estú aqui , a e sta hora? OUTI\O - O senhor nasceu mendigaI
l\I E ;'-;IJl CO - O se n ho r n ão sab e? ll em se vê quc o senhor l\I ENDlGO - Não. Nasci trabalhadorl Lutei muito p ela
n ão tt:11I vocação p ara m endigo. E falta -lhe prática. H oje vidal Luta desiguall Eu e ra um p o )re operário, c?m a
c o dia dI) l' 1~t:l~ rra nw ll l o do lII CS de M uriu. A igreja es tá cah{'ça ch ei a de sonhos e os braços em constante movrm en-
J'.l:I~.Ic,I : I. . , ,( Bc/,r(l/lelu /1111 /)(/J} ~l. elo bol so e lell.~lo -o) - Aqui to . Chegu ei às port as d a Iortuua o não pude e n tra r, porque
l. St.1 " " S~.I 1111 e li m eu sccn- uuí u uprc scnt ou : I .o tuçiio COIll- m e b uterum com as portas 11a cara!
pl cl u : OltoC(,lIta s e c irIC}iit' lIta p essoas".
OU Tno - IH milito tempo?
Ouu «» - O se n ho r tem sec ret:'rio? t\(ENDlCO - Há 25 anos ... Eu vou -lhe contar . . . (Apa-
• ~I E;'-;I~I C~) - .Co lltra tei 11m rapaz esper to, que percorre a gam-se tôdas as luzes elo Teatro . O MENDIGO é st~bsti
Cidade, le jorn.us c Icmhru -m c as datas . Ás v êzes estou tuulo por um figurllflte de igual tipo, que permanecera el,n
trancl'lib'n ente em casa, em minha biblioteca metido num seu '''gar. Ao mesmo tempo, sobe o tcl{ío,. clesapar?cen do
(~OS III ('IIS lindos "ro hc s-dc-c h:un h,r c", lendo Upton S incl a ir, a igre;a e deixando ver um tablado s"l~eJ'lOr, prov~clo de
KIlr/ ~r..I I'X . . •• el\llllllh~ recebo tdt:lOlwmn urgente. É o meu luzes fortes. A frente desse tablado cm uma cortina de
sc cr et.uio, uvis.uul n s ôbre lIIHa boa missa, um excelente casa- gaze. As luzes da "avant-scéJle" ficam apagaclas).
mento, nmu festa p opular, onde há maior n úmero de genc-
rasos, segllndo a sua psicologia.
OUTIlO - O senhor tem uma organização perfeital CENÁRIO DO TABLADO
_ l\IE!'I>ICO - O serviço está hem orgallizado. Aqui nesta
Una gabinete pobre. Móveis simples de sala de jantar.
igreja, p,~r cxempl?" estilo (L~) - "234 pessoas de luto, Ldmpada comum pendente de um fio. 'A o subir o Telão,
se~ldll J ~,3 senhoras", Nota: "a maioria é dc luto recente". está em cena MARIA, cantarolando, feliz, enquanto
(hi/lIIIC/u) - Luto rec ent e é um grnnc1c sinal de g enerosi- arrmm, a mesa de lantar. Veste-se com extrema simpli-
~lade. , (L el/(lo ) - "80 solteironas". - (FalalJ(/o) - A solt ei- cidade, usa coqlle e chinelos, tudo como 'Iá 25 anos . Seio
8 horas (la noite. Logo batem à porta . MARrA vai
~.cll1a e 11111 gralld ~. 1I11ligo do 1l11'lIdigo. Quando u gente di z: abrir. Entra 11m SENHOR bem l>osto, com tires impor-
l? clIs "H~ pagll e, ela " C logo um lindo mpaz caindo do tantíssimos . MARrA llrn}Jn as f1H; OS tiO (mcntal. para
CCII pllr d escuid o .. ..J Ma s é preciso que, ao pedir, a g cnte cumprimentá-lo . Ele nem se apercebe disso .
t~nha IIIll ce rto sorriso de hondade e malícia nos l ábios ...
É uma ('sp eran ça d e casam ento ... SENHOR - Boa noite.
. O lJTII O - Vamos ao restol Sinto que vou melhorar a ~IAmA - Boa noite. (Limpando uma cadeira com o
minh a vklul avental) - Faça o favor de sentar-se.
~I ENJ)rc:O - Vá por mim .. . (L ellclo) - "Comercfantes S ENJlOn (Risonho) - Obrigado. Não tem curiosidade
co m ca ra d e [al ência próxim a , 18. N oiv os e namorados co m
a s resp ec:tiva s, .D6. " O rest o é g ente "chie", al ém d e p eca-
d ores urr cpcnrl itlos". ( f alando ) - O m eu se cr etário é um
g r;llIclt' ps icúl ogll!
Est á-se ven d o I. . .
d e saber quem sou eu?
!o.IAIUA (Cont ent e) - Não perguntei ainda, porqn e o
s enhor está tão hem vestido ...
SENHOR - Só por isso? ..
'.
( ) lIT 11 0 - l\1.-\/UA - Só . O senh or d eve ser muito importante e e u
. r-. IENIlH;O - COIllU \'C, a féria vai ser grand e . C o me r- n ão sei se é falt a d e e d ucaçã o p erguntar. (SEN IlOR sorri)
('Ianll' I alirlo cLí POII CO, mas nâo d ei xa d e dar : tem m edo _ O s h ábitos d as p es soas importantes são tão difer entes d os
da IllislT ia. Na mo rado d á d ois mil réi s. N oi vo Já d ez n ossos .. •
tost õe-s. l;. tem mai s intimidade co m a p equ ena. . . P eca- SENHOR - São os m esmos, minha senh ora. A educação
d ores, em gera l, dão níqu ei s ... é uma só.
/'
28 29
, .
MAmA - Pois eu acho que não é ... SENHOR - Horrivelmente!
SENIIOII - Por que?
MARIA - E o senhor, quando tem sêde, bebe água?
t\JAIIIA - POHJlIC, pelos nossos hábitos, aperta-se a mão
das pessoas ... SENlIon - Bebo.
SENII~n - As pessoas importantes, quando são educa- t\IAJUA - Tem pesadelos de noite?
das, tnmhén, fazem isso ... SENHOR - Quase sempre]
t\fAIIIA - Mas o senhor não fez ... ~fAmA - Ora! (Rindo) - Que tola! Eu vivia sonhando
SENllon (Sorrindo e apertando -lhe a mão) - Foi distra- com um milionário e, ufiuul, um milionário não vale nadai
ção. Boa noite, SENIIOI\ (Sorrindo) - 0111 ...
t\fAlIIA - Boa noite. Posso perguntar? .. t\JAlUA - Prefiro o meu Jucal
SENHOR - Pode. i
.~
SENHOR - Por que?
t\J.~mA - Quem é o senhor?
t\IAI\lA - O meu ) uca é muito diferentel Nunca tem
SENHOR - Sou o diretor das fábricas onde seu marido
trabalha. dor de cabeça! Não tcm dores nos rlus o sonha sonhos
t\JARlA (Espantada) - Ahl (Limpando a cadeira) _ lindosl Nunca teve um pesadelo!
Faça o favor de sentar-sol SENlIon - É um homem feliz, o seu marido! Onde
SENlIon (Scntado) - Muito obrigado. Não é preciso está êle?
ficar afobndu ... t\fAUlA - Não deve tardar. Ele agora fica na fábrica
MAlHA i Reparando nlJle) - Juca é um mentiroso! até mais tarde.
SENHOR - Quem é Juca? SENHOR - Já sei. Fazendo a experiência de um novo
t\fARlA - Meu marido. invento ...
SENHOR - . Por que é que êle é mentiroso? MARIA - O senhor já sabíarl
M AIlIA - Ele me disse que o senhor tem cara de chim- SENHon - Já. ~ justamente para falar-lhe sôbre isso
panzé!
que estou aqui.
SENHOR - Oh! Você acha?
MARIA - O senhor acha que êle pode ficar rico?
~lAmA - Não. Não acho. Mas o senhor também não
é como cu pensava. SENHOR - Mais do que eu!
SENHon - Como é que você pensava? ~IARIA (Contente) - Que bom! O aparelho é tão boni-
t\lAmA - Pensava que o senhor fôssc "milionário"! tinho, não é?
SENHOR - Pois cu sou milionário. SENHOR - Só vendo ...
~IAl\IA - Alil Então, os milionários são assim? ~fAJ\lA (Indignada) - Pois eu vou mostrar ao senhor!
SENHOR - Assim, como? (Sai apressada - O SENHOR levanta-se, visivelmente con-
t\JAIlIA - Assim. .. Eu pensava que milionário andasse tente, e vai à porta ele entrada espreitar. 1\1 ARIA volta,
com roupas de ouro... chapéu de ouro... (O SENHOR trazendo um canudo de lata). - Está tudo aqui neste ca- ~~
sorri) - O senhor come? nudol (Entrega-o) - Faça o favor de vêrl (O SENHOR
Sexuon - Como . . . retira os desenhos e examina-os ràpulamente'; - O senhor
t\JAIlIA - Tem dores de cabeça? está muito enganado! Juca é o homem mais inteligente do
SENlIon - Tenho ... mundo!
t\JAIlIA - Tem rins? SENHOR - Realmente, os desenhos estão perfeitos. . . rf~
SENlIon - Tenho ... ~IARlA - Com essa máquina, um operário só faz o ser-
~J .\ III A - E docm? viço de ceml Está tudo escrito por êlc.
', '
30 31
S E NII OI\ - Vo cê já leu?
. num p ahício ... t erá vestidos d e seda... jóias, um lindo
~d AIIIA - N ão li , p orcl'lC não se i; mas a letra é muito "co u p é" para passear .. .
b on ita. A pap cl.ula está glla rda da com igo. J uca só tem ~I AIII A - Tud o isso, se êle brigar com igo?
co n lia n çu ('111 mim l S E NI101\ - É... E muito mai s aind a! .. .
S E :-.11101l - \'ê -se lo gol . . . ~I AI\I.\ - Quem é qll e cl á?
r-.hIl L\ - Escond i tu clo d eh ai xo do co lc hão ] S E NIIOI\ - Eu!
S E NII(l1l - Mus cu níio uc n-rlito qll e êlc tcuhu uma letra ~J AlU A - Então, não faz mal (llJe êle z l1l1 g ue co m igo ?
honit u. SENlI OIl - Nã o! Mus não é hoj e. Você (le ve fingir que
r-.JAIIIA - N ão acr edita? n ão suhe d e nadn , el eve -lhe dar muitos b eijos para (lu e ele
S E NII UII - Nãol Só vendo .. . n ão d esconfieI
t\1.-\IIIA - Poi s vai vê r! (Sai. SEN llOR dobra os ilcsc- ~IAHlA - ~ assim que as p essoas importantes fazem?
nlios, g/larclll -os /10 bolso e tanipu o canudo. Volta à porta SENIlon - E já esto u informado d e qll e e stá às portas
pllra cspreltav - !lI AR/A volta com 11111 maço ele papéis) ~l.o\HlA ( Apanhundo os papéis e o canudo) - Que boml
Olha aqlli! Ond e é qlle o senhor viu uma letra mais b onita? Estou ficando import ant e! (Sai apressada - O S EN HOR vai
no oaiu ent c à porta, lJIll111l1o entra IUeA, moço, 25 a110S, uc s-
I
SE NlllllI (-"p(/lI/wl1do os pllpéi s) - Linda! [uca é um
grand e hom em . tido C01l/0 os op er ários de 1905).
!\L\I\IA - Nã o é me smo? SENHOR - Boa noite.
SENIIOI\ (Lclldo, rll/Jid(/1I/ellt e) - E como escreve beml JUCA (Descollfilldo) - Boa noite ... O senhor em mi-
t L ciulo alto clistraic!a/ll el/t e) - " o segredo está nas lan- nha casa?
çadeiras A e D, c ujo movim ento
!\J AII1A - O senhor está lendo o segrêdo?1
S E ;-';lIl1l1 -
" t Continua a ler baixo).
Por que?
r-.1.\Il1 .\ - I'; o s ( ~ lI b (l r d:. a suu palavra de houru . . . P S ENllon -Então, trubulhando às escondidas ...
S E NIIIlI\ - D e (ln e S O Il hourud o? ]tJCA - Espero que não venha censurar-me por perIna-
necer na fábrica d epois de acabado o serviço . . .
!\J..\III.\ - K
SENHon - Ao contrário! Sempre tive grandes simpatias
S I-: :\1I 01\ - DOII (Dlllll[O -lIIC l)(/péis c cllIllulo ) - Mas por Você.
Y(>cc eleve gll ard ar isto dircitiuho e nunca mais mostrar a
nin gll élll!
J
UCA - Obrigado.
Suxnon - E já es to u informado de que estás às portas
r-.hll L\ - Ju c a, qu ando sa i d e casa, me diz sempre isso.
da fortuna, com o in vento do n o vo t ear.
SEN IIO II - Pois, é. l Iá milit a gente qu e n ão presta, es pa-
JUCA (M od esto) - Qual! Um aparelhoziuho sugerill0
lhada p or aí. E n ão diga ao se u marido (jlle m e mostrou
pela preguiça de um operário cansado . . .
esses [>a p éis.
S E NIl on - Uma pregui ça flu e faz o trabalho d e cem
t\ I.\ IIIt\ - Adia qll c fiz m al ?
operários . . .
S J-: NII OI\ - Não fez mal p o rqll e e u sou d e confiança , J lJc :\ (Alarmado) - C omo é qu e o se nh or sabe di sso?!
mas êlc ficaria f:lIlga do COIII você.
S ENII OI\ - Só a ssim o se u in vent o teri a o va lo r qu e o
r-. J .\ III:\ -- E II I;Il), p el o :lIn01" d e D eu s, n ã o c on te a nin - m eu gerent e lh e atribui.
glll- 1I 1 (1"(' c u lhe mo st rei tu rl ul . ~IAIHA iEntranúo, com v ivacidade, man eiras "im po rtun-
SEN IJ OII D esc an se . . . (Ri sO/dJO, mimun tio-lh e o t es", c b ciiando }II Cll muitas vêzes ) - Você [á vei o, Ju ca?
qu eixo ) - Se IIIll dia êle brigar com vo cê, vo cê irá morar 0111 D emorou tanto!
32 I
~ I
33
,/
.'~
JUCA (I1Itrigado) - O senhor já havia falado com mi- não me procurc, arrependido... (Vai a sair. A porta,
1111:1 JIlulher? apalpa o bolso em que guardara os desenhos) - Não se
SENIIO/l - A penas tive tempo de perguntar-lhe por cSC)lIcç'a do cll1c a sua felicidade está no meu holso ... Boa
você ...
noitel (Sai. JUCA permanece pensativo).
jlJCA (Meio atrevido) - Mas, afinal, que é que o se- ~IAHIA (Que foi até à porta e ooitou ) - Você não des-
nhor deseja de mim? confia de nada?
_SENIIOl\ (Ellérgico) - Não se esqueça de que sou seu JIlCA - Desconfio dclcl . ..
patraol (Jllca encolhe-se, lllllllilde11lellte) - Não se julgue, ~IAHIA - Que tolol Devia desconfiar de -mim . ..
por enquanto, 1I111 grande senhor! Seu invento será inútil JUCA - Por que?
sem () meu auxílio.
?\IAIUA (Depois de hesitar - num arroubo de sincerida-
- P tenho propostas de fábricas estrangeiras ...
JlJCA
SENHOR - 13: a mesma história de todos os inventos na-
de): - Oral Eu não dou para fingimentos de gente impor-
tantel
cionais . " (SClltCll/({O-SC) - Sente-se] (]uca não obedece)
- Sente-sei JUCA - Que é que você quer dizer com isso, MariaPl
JUCA - Peço-lhe que me dispense. Ficaria constrangido M ARlA - Eu mostrei tudo a êlel
diante do patrão. (O 5ENllOll sorri). JUCA (Furioso r- lIein?1 Que é que você está me
~IAl\IA - Scnte, Jucal Você vai ficar mais rico do dizendo?1
(Iue êle, ~fARIA - Não adianta ficar zangado, porque êle me
JUCA - Quem foi que disse isso?1 prometeu palácios, vestidos de seda e tudol
~rAmA - Êle mesmol JUCA - Maríal Onde estão os meus papéis?1 (Sal a
JUCA (Desconfiado) - Ahl. . . (Ao SENHOR) - Acha. correr - l\lARIA corre à porta que dá l>ara a rua e nela
então, que vou enriquecer? aparece o SENHOR).
SENHon - Se não for idiotal SENHOR - Indiscreta ...
J OCA - Como assim? ?\fARIA - O senhor ainda está ai?
SENHon - Transferindo o invento para mim, convencido SENHOR - Estou sempre onde está o meu interêsse ...
de que não o poderia explorar. JUCA (Dentro - desesperado) - Marialll
JUCA - E depois? ?\IAnIA - Fuja. pelo amor de Deus]
SENIIOR - Ser-lhe-ia garantida uma porcentagem sôbre SENHOR - Boa noite... menina... Fique pensando
o excesso da produção . . .
num lindo palácio... e nos vestidos de seda ...
JUCA - Isto quer dizer ... ?
~fAnIA (Nervosa) - Agora não tenho tempol
SENHOR - '" (IlIe em pouco tempo você seria milio- SENHOR - Boa noite... (Sai).
nário , . . à minha custa ...
JUCA (~entro) - Marial AlARIA permanece onde
JUCA - A custa do meu invento ...
estaca, opàrvalhoda. ] CA entra, trazendo os papéis e o
SENJlOl\ - Já lhe disse que o seu invento não vale na- canudo, sem a tampa) - Maria! Onde estão os meus de-
da. " scm o mcu auxiliol . senhos?
JOCA (IlIdeciso) - f: Mas ... (Senta-se, distraida- ~fAHIA (Sem se mover) No canudo ...
m ent e) - IIú três anos quc venho perdendo noites intei-
JUCA (Atirando tudo ao chão) - Foram roubados.
ras. .. O mC\I salário tem sido consumido em cxperiências ...
Marial Tôda a nossa vida! (Num ímpeto, a sair): - Ca-
. . SENllon - Pois agora terá a recompensa de todo () sacri- nalhal Miserável] (Sai a correr para a rua. l\IARIA al'(l-
fICIO! . . . ( Lecantundo-sev - Pense bem, para que amanhã Ilha o canudo, examina-o, atira-o sôbre a mesa e apanha os
3·J 35
papé!«, Cl/lIlII'/OiCl/Ielo-OS. Entra UMA M U1..11EH DO ~OVO, arrastando, como cauda, outros trapos, e um chapéu de ho-
()i;::;illlUl) . mcm, com uma pena de espanador, à cabeça. Neste mo-
~11l1.l1E1l -
(Jlle foi, Muriu? mellto, toma a escurecer e reaparece a 110rta ela igreja, onde
Foi o l"cal ... Os desenhos ... O pnlácio ..•
t\L\IIIA -
i(i estão os mcndigos JlDl)(lmelltc a cOJwCI'Saf).
Os vestidos de seda ... OUTUO - Enlouqueceu '?
Mur.uuu (Espalliadll) - Qlle é que você tcm? 11ENDlGO - Esteve no hospício durante muitos anos,
t\L\III.\. - Nu.lu ... Foi :I(l"êle homcml (COIll expres- convcncidu de que era a mulher mais rica do mundo]
seIo de luucu] , OllTIIO - E o senhor?
t\llll.lIEII - Qlle homcmr' t\IENI>IGO -Fui preso e condenado a seis anos ele prisão
o t\IAIII:\. (Idelll) - O diabol ACl'll'le homem era o diabo! celular, como assultuntcl
!\llJl.IlEIl - Oue é isso, Muriu? - ---- OUTUO - Sofreu muito?
~hlll:\. - Nã~) seil Tenho voutudc ele gritar! MENDIGO - Durante um ano. Depois cOl.!!preenclLque
f\ lu I.lIEl\ - Por CI"C'( a vida é uma sucessão de acontecimentos inevitáveis .
~ f AIII.\. - :\cl"cle homeml... O puláciol Os vestidos! como a chuva, o vento, a tempestade ... o dia e a noite .
As j!',iasl ... Tudo o que acontece é a vida. O senhor pode evitar que
~llll.lIEII - Muriul c hova? Pode evitar que o vento, um dia, em furacão, arrase
~hlll.\. (ne!imlldo) - ACl'Ji é () meu puláciol Como é tudo?
hOllilol Esti') \"l'lIdo a escadaria de múrmorc? Ourno - Nãol
t\IULlIEI\ (SaclllUIlC[o-ll) - Muriul Marin l MENDIGO - Pois as desgraças sã_o também in~si!~is.
t\hlllA - Nilo me rusgue o vestido de sedal Você está (Pausa).
com iuvcjnl Oumo - E Maria? c J
t\fULlIEH -Coitada. (Entra o SENlIOU). ~IENDlGO - Minha mulher? Visitei-a muitas vêzes no
t\1 AlIIA (Apolltatlllo-o) - Olha o diubo! Foi êle que me hospício, depois que sai da prisão. Um dia a pobrezinha
deu este pulúcio] Não foi? desapareceu. Dizcm que anda pelas ruas a divertir os mo-
SENIIOl\ i Surprcso, mas Selll/H'e sorrindo) - Foi. (1'0- leques.
IIU1 -lhe os 1)(l}Jéis) - E agol'il? Vamos ao teatro? (Pilhc- OUTRO - Nunca mais a viu?
rialldo) - Vamos] Vá buscar a sua "toilctte" mais rica. 11ENDlGO - Nunca.
~ I AIlIA - Aquela de pedras preciosas? OUT1\O - Deve estar velha.
SENIIOI\ - 8... (t\IAl\I.\. sai, ele busto crguulo e ares 11ENDIGO - Como cu ...
illl/JOri(/lIics) . OUT1\O - Como é triste a sua vida, meu velhol ...
t\ IllLIlEI\ Coitada! Enlonqucccul Que foi, senhor?
- t\IENDIGO - Triste? Não\ ~ apcnas Vida. Não há vida
SENIlOIl - Vítima de um marido possesso. triste, nem alegre. Nós todos nascemos e morremos. O
!\llJLlIEII - () Juca?1 princípio e o fim ele todos são iguais.
SENIlOIl - Foi prcso agora mesmo, porque pretendeu OUTIlO - Mas, viver não é nascer, nem morrer ...
assaltar-me para roubar, quando entrava no meu carrol 11ENDlGO - Não. Viver é raciocinar. E o raciocínio é
~ lu I.IIEII - Prêso?1 o 5 lpremo bem da viela. Quem raciocina não sofre. .. Pelo
SENIIOI\ - Siml E será processado como ladrão] (Sai). raciocínio, sabemos o fim de tôdas as coisas. A sociedade
t\ft lLII EI\ - Coitado] (Olha para a porta 110r onde saiu vai sofrer, porcl'le não raciocina.
1Il AlH:\ e sai, - Em seguida, lI! :\HIA entra, atravessa lJ Oufnõ - -Como assim?
cena , elo quurto lJara a rua, ela mesma maneira por que l\fENDIGO - A sociedade admitiu os VICIOS e as virtudes,
saini , /II(/S com li 111 a
toalha ele mesa amarrada à cintura e quando os vícios e as virtudes não fazem parte da vida ...
36 37
-"
-- pensa.
()lJTIIO - r~ m esmo. Até agora não tinha pensado nisso.
t\IE;'Ijlll(;O - f: CJu e o sellhor pcnsa (1'1C p ensa mas não
t\fENf)J(~O - f: por isso que eu ~n e i a vida ... essa :\ //Iesl/la l)(1 rtll tle Igre;(; do ato ant crlor . Ali !l /lliir o
vida co m Iicada p el os outros. Vivo à margem. Sou espec- J"I/ IO , os fIl EN lJI GOS estão afa stados. /lI/I e m cada ('\ [rtJ -
midade tia esc ada, e m stlênc iu, receb endo, sem iut cr ésse
tador (O sofrimenh] llumano, e deixo que os homens lutem
e sem pcdtr, as esmo las das tíltillla s pessoas /file se
pnra livrar-se dos s IS próprios erros. Não sou conviva desse ret iralll d o tcm pl o, Apagam -se as lu zes int crn us.
/
grande banquete, obrigado a casaca e a outros suplícios.
Cont ento-me com os restos que vão caindo da mesa ... (Neste
mom ento entra uma linda e elegantíssima mulher, que se OUTHO - Quanto fez o senhor?
dirigc para a igreja, como se esticesse procurando alguém:
~I I::NDICO - U 111 pouco menos do qll c e spera va : du -
~fENDJGO esconde-se sob o chapéu) .
zentos e noventa e seis mil e quatrocentos réis . . . E o
OUTIIO (Suplicatlllo) - Favoreça a um pobre que tem senhor?
fomel (A ~f(1LJlEn ELEGANTE dá e procura outro níquel OUTJlO - Não contei ainda.
fUI bolsa, ')(1ra dar ao Mendigo, aproximando-se elele). _ ~IENI>I(;O - E nem eleve contar! Esses lIlell<ligos Clu e
Nossa Senhora lhe acompanhei
contum a féria, na ma, d esmoralizam a clusse. f: por isso
A Mur.nrn El.EGANTE - Amén. (Dá um níquel ao Men- CJuc alguns se tomam su speitos.
(ligo c entra 1Ia igreja). OlJTIIO - Mas o senhor contoul .. .
~IENJ)JGO - Sahe quem é essa mulher? ~IEND1GO - P erdão. Não contei. Fui somando, à pro-
OlJTIIO - D eve ser muito rica. Deu-me dois mil réis. por çáo qu e caía . f~ o m elhor sist ema. Os t rau scuntc s u âo
~IEN()JGO - lt fi mulher que vive comigo ... dCV CIIl ver o produto de lima colheita. Ficam com inveja,
Oll THO - E ela sabe que o senhor é mendigo? porquc Cjuase semprc têm no bolso m enos do que nós . t\fas,
- Não . Para ela eu sou um capitalistal
t\fl.:NDICO E a 110 chapéu, devem csl ar se m p re à vista alguns níqu eis . é
11m capitalistn não se p crgunta a profissãol o "ind ex" . o. J3: aqu ele ovo que sc coloca no ninho das ga-
O IlTIIO - Por qu e? linha s, para qu e e las tenham vontade de botar outros . ..
~I ENJ)IGO (Hisonho) - Porque é feio .. . O UTIIO - Eu d ei xo se m p re seiscen tos r éi s.
~I E NI)JG O - J3: pou co. D eve d ei xar duas ou três pra -
tinha s. Vendo só níqu eis o transeunte n ão d á pratas . É
F I~ f no PRIM EIHO ATO
co mo nas su bsc rições . Se qll em abre a list a ass ina 50$000,
os o u t ros ass ina m, pelo m en os, trint a . L á para o Iiu ziuh o
é qu e lIpnre ccm I\S co u t r ih u i çóc s peqll cnos, qu o v üo d oer e s -
cen do na proporção <l a qu anti a in icia l.
OUTRO - Es to u ansi oso p ara c ontar a féri a . Nunc a fiz
tanto dinh eiro]
38 39
I
'r......------..-11
- 'o
•
t\fENDlGO - Não conte. Siga os meus conselhos. De
hoje em diante ficará sob a minha proteção. inutilizam os homens. E, se um dia são dis?ensad!~s, de-
OlJTIIO (Aproximllndo-se) - Agraueço-Ihe muito! Os Sõrie n arn -s , têm pavor da vida, sem a proteça~) do Estado.
outros colegas têm sido tão maus para mim ... Às vêzes, quando vcjo passar o meu ex-pro~eg~do, acompa-
t\fENJJIl;O - f: umu desunião horrível. Nós precisamos nhnndo luunildcmentc os figurõcs da Hepúhlicn, tenho :l
fllndar () nosso sindicato. Mas o senhor será meu protegido. impre-ssão de (lue êlc está arrependido.
OlJTlIO - Obrigadol OUTRO - Por que?
~IENIlI<;O - Não a 1féu.leça. O CJlle exijo é absoluta ~fl.:NJ)IGO - Porque trocou a falsa humildade do meu-
()hedil~lIeia, para <jllC cu nao sofra a mesma desilusão <JlIC digo por outra I 11II~1J'1 l I~~~ 1e que" <lcv c. ser cada vez mais "llCr-
tiv e com o IIICU último protegido. Iciçouclu ... sc (lulser vencer ...
()I/TlIO - Foi ingrato? OUTIIO - Vencer? ..
~IC:NVlGO - Não. Foi idiota. Fiquei penalizado com MENDIGO - Vencer na vida ... Vencer na vida, na
a sua desobediência. Era um rapaz com todas as quaJida- opinião dêle, é conquistar posições, sem lutar... É um
d(~s illdispensilvcis a um mcndigo, c tôdas as condições •efcito sem causa ...
físicas: IlIagro... rosto cncovado... olheiras... cabelos OUTUO (501''';11(10) - J;: lima espécie de "Vitória" puxa-
- Io uros c Finos. Era imprcssionante! Dava a impressão de da a burros ...
filho de gente nobre arruinada. Belo exemplar de MENDIGO - Exutamcntel € como os antigos carros
IIwndigo! ... que os "t áxis" fizeram desaparecer. (Pausa).
OUTno - E afinnl? OUTRO (Boceial1clo) - Acho quc são horas de
t\IENDlGO - Abandonou a carreira, miseràvelmente! recolher ...
Ourno - Como? MENDIGO - };: cedo ainda.
~JC:NDIGO - Ofereceram-lhe um emprêgo público e o OUTRO - A esta hora não passa ninguém por aqui ...
desgraçado aceitou! l\IENDIGO - Em compensação a vida passa ...
Out no - Naturalmente! J;: como se tivesse tirado a OUTUO - A vida não dá esmolas ...
sorte grande!
t\fENDIGO - Dál Dá a grande esmola, que nem todos
t\fENJ>IGO - Quull lIoje é um infeliz: ganha um conto sahern recolher: Experiência.
c duzentos por mês!
OUTno - Lá isso é verdade. Mas não compreendo que
OlJTIIO - Belo ordenado! o senhor se demore na rua, sendo rico, tendo tanto confôrto
t\fENJ>IGO - AiI ai! O senhor começa mal. Assim, re- cm sua casa ...
tiro-Ihu li mínha proteção]
MENDIGO - O confÔrto andn sempro comigo... (Ba-
OUTUO - Perdão! Eu queria dizer que... para um tendo na testa) - Está aqui! É muito melhor pensa.r no
moço ...
que a gente tem, do que ver o qne sc vai perder um dia ...
t\JENDIGO - Pois é de moço que se deve começar a OUTIlO - Pensa em morrer?1
pedir! O senhor não vê essas crianças de 5 a 6 al\llS, pe- t\fENDIGO - Não. Mas tamhém não penso em viver.
dindo? Serão, no futuro, grandes, notávcis mendigos. Na (Sorri) - Atingi o grau dc perfeição do cavalo, que é o
nossa profissão é preciso começar cedo. li m conto e du- animal mais feliz do mundo!
zcntos é um belo ordenado para um incapaz! Um homem
OUTno - Por que?'
inteligente nunca se conformará com um ordenado, por
~IENDlGO - POr<jUC não sabe que vai morrer!
maior que êle sejul O cmprêgo, com ordenado fixo, é o
ideal do homcm vencido pela vida. Os cargos p úblicos Otrmo (Sorrindo) - Se me deixarem escolher, na
outra encarnação, serei cavalo!
40
41
•
44 45
, ' ,
.. '
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PEHICLES - E você também! NANCY - Eu serei sincera se disser a você que não
NANCY - Elo não, Não me quer para êle. Apenas quer gosto de ninguém. Amo a vida.
que cu,. scj<~ só minha. Qllando me enterneço e peço-lhe que PEnICI.ES - Já li isso nos poetas. Mas. afinal. que é
me belJc, elc m e aconselha a beijar-mo a mim mesma, nos amar a vida?
hraços . " porque, assim, tenho ° prazer de beijar lima NANCY - Não falo no sentido poético. Amar a vida
mlllher honitu , " e não há melhor prazer do qlle beijar lima é vivê-la bem. (llesolllta) - Em quatro palavras. Periclcs:
mulher bou íta . . .
Você não tcm dinheiro!
PEIIICI.ES - Velho idiota e perverso] I>ElUcLEs - Mas tenho posição social dcfinidu c um
NANC.Y - Eu nasci sózinhu, mCII bom a nl1" ... brilhante Futurol
PEIIICI.ES -
I
NANCY - Exatamente] Somos iguais, meu velhol MENDIGO - Está fazendo mau juizo de mim? . .
PEIIICI.ES ( Es tremece ndo i - Ainda não sou velhol NANCY - Não... E você, de mim? ..
~ANCY - E não ganha nada com issoI f: melhor ser ~IENl>IGO (Olhando para Pericles) - T ambém não ...
vvlho rico do qllc 1II0Ç'() pobre . NANCY (RisoTllw) - Que maldade foi essa hoje?
PEIIICI .ES - Scr 1ll0C;0 pobre é, pelo menos, romântico ... ~IEN[)IGO (GalllTlte) - Muldudci'! (SeTltll -se [unto dela,
N:\Ney - () ruuuurt ismo Ó UI1l velho ccnt cnúrio. N usceu tiO "c1iollu") .
t ~1I1 IH:10, U 1Il1l1" (·iHIlU.:o p .lus ruas , a sofrer chacotas ... NANCY - Sim.. . Obrigando-me a ter snud udes . . .
I'EIlICLES - Volt.unos a falar . .. fil ósoficamcute ... (Ge~·t() de cirmws ele r · mCLES, que continua ele pé, meio
NANCY - Não . Ainda estou falando... financei- "gauche") .
ram ente . .. MENDIGO - Teve saudades?I . ..
PEIIICLES I nsistentementel NANCY - Não sei "111 . • • Mas vou explicar. Pens ei
N.\NCY ( Di splicent e v - Perfeitamentel muito em você ... Muito, muito mesmo. .. E como nunca
I'EIIICLES i Lcvantando-sev - Nêsse caso, um dia vol- sei onde você está... quando não está aqui, pensei só em
tarei aqui com os bolsos cheios de argumentos, para você, porque não podia pensar nos lugares onde você
conveu c ê-lul (Vai a sair). passou ...
NANGY - E não sc demorei ~fENDIGO - Ora. .. quando não estou aqui, estou nas
PEIl[CLES (Da porta) - Até breve, Nancyl. .. ruas, em contato com os transeuntes ...
NANCY - Ad eus! (PERICLES sal - NANCY fica a olhar NANCY - Com os transeuntes?
fixamente para a portav, Coitadol (Acariciando os braços MENDIGO - Sim. São os meus melhores amigos ...
e como se falasse com "êles") - E você, Nancy? Você NANCY (Sorrindo) - Você não é amigo de ninguém ...
JIÜO locrá capaz de d esistir das jóias e dos automóvels, para l-.fENDIGO - Sou amigo da multidão .. . e a multidão é
d cdJ r.nr·sc fi êsse rapaz?.. Ahl Não?1 Ainda é cedo? tudol
Est:í hernl Você tem muito juizinho, Nancy... (Deita -se NANCY - 56 é amigo da multidão? ..
/lO iliu ã e, logo, entra PEIUCLES, assustado). l-.fENDlGO - E de você... No mundo, só há você ...
PEIUCLES - P estava no parque, para sair, quando o NANCY - E você . . .
velho entro u. Vem aíl MENDIGO - Nós dois. .. Ninguém mais existe . . . longe
NANCY (Calma) - Tem mêdo dêle? ou perto de nós.. . (Gesto de PElUCLES) - Rio-me de
PEIIlCLES (N ervoso) - Não .. . mas é que . . . t ôda essa gente "chie" que passa por mim. Coitados, não
NANCY (IrôlIica) - Então, tem mêdo da velhice? .. sabem que já morreram. . . E morreram em p é (Gesto mais
PEIlICl .ES - Da minha, quando chegar, não terei . . . violento de PERICLES).
NANCY - Sente-se e espere. Qu ero assistir a um encon- NANCY - Sente-se, Pericles.
tro de duas épocas na mesma época .. . PEIUCLES (Sentando-se bruscamente) - Obrigadol
PEIIICI.ES - ~ f as .. . M sxmco (Levantando -se) - Ohl ... (a PElUCLES
NANCY - Sente-sei (PEIUCLES senta-se e entra o serenament e, mas sempre ironico): O senhor é Pericl es
MENl>IC,O. V em c!egantement e vestido e é leve, como fim mesmo?1
de 30 anos; filio se
; O OC11I espanta , não se assusta e nunca PERICLES ( Levantando-se) - Sim I Periclesl
perde a linha. P EHICLES levanta -se e fica im6vel, meio ~f ENDIGO - Muito prazer e m conhecê -lol Já o conh ecia
n croMo). muito de nomel ...
~I ENDlGO (A Nancy) - Boa noite. PElUCLES ( AI ais à vontade e já risonho) - De ondel
NANCY (Brincal1IOTIll) - Bom dia . .. ~fENDICO - Da Grécial (PElUCLES desconc erta-se).
48 49
..
~
PEIIICLES - o senhor está enganadol NANCY - Você está delirandol
NA NCY (Ao !li c/ld igo ) - Qu cro apres ent á-lo a voc ê ... ~f ENDJGO - Nãol Estou revívendo a minha primeira
~I cu arnigo de inUuda ... en carna ção , no sé culo d e Periclesl Sabe qll em fui e u?
~I E NI>IGO - Olrl f~ e ntão 11m velho amigo de minha S ócrutcs ] O senhor 11<10 se lembra d e mim ?
IIlldlll 'r/ :\ illUllci a j;', está tão IOllge . .. PEIII CI.ES (H cceioso, ]JCII.WIJu!o tratar-se tlc UI1I caso ele
1\ :aUCI.ES - :\ S lI a. ,. lO/l( :/lra) - Como uíiol
t-.I E:\ IlI CO - A nossa ... Nós t ernos a mesma idudc ... ~I ENIHGO - L cmhrn -se d e Phidias, de S óph ocl os, d e
I.Clldll'O-IIIC luuto da nrinhu inhiu cia, COIllO () senhor da Eutipc clos, Ari st óph un os, H yp ócrutcs, Plutão, Xcuoph onto?
sua. , . Acho até que sou mais IIl0~'O do que o senhor .. . Pl:.IIICLES (Ic/cI/I) - Oh] Tuntol . ..
NA NCY - Por que? t\fENDICO - Quc foi feito d e Thucvdkles?
PEIIICLES - Nuncu mais o vil . . .
~I E NI>IGO - Vo c ê já sabe. Lembre-se do velho lugar
co u u u n. As vezes, quant o mais velho é o corpo, m ais t\fENDICO (A Nall cy) - Estamos diante de um grand e
nI O ~' ll é o espírito. estadista e gllerreiro d estemido!
PJo:III CI.ES - Talvez ... N.\NCY (D cscrcntc) - Peric1es?1
t\fENDIGO - Siml Peric1esl (a Periclcss - E seu pai?
~I E NI>Jr.() - Não ; com certeza . Ser moço é ser fortc , e COIllO vai o velho Xantippo, o vencedor dos pcrsas e m
r-u sou Illitis fort e do (l" e o senhor. Mycnle?
Plml Cl.ES - Velho llssim?
!)EHlCLES - Está bom, obrigado.
~f E NDlG() - A velhice só enfraquece os animais irra- t\IENDlCO - Bons tempos, aqu êles! (a Naflcy) - Era
c io na is . " porqllc lh es falta a inteligcncia para suhstituir a prodigioso o espl endor das artes nu Athcnas de Pcriclesl
fllr ~'a hru ta . . .
Através dos sé cul os, ficou deslumbrando o mundo () sol da
P EIIICI.ES - A hl . . . civilização que dali irradiou. Nomes imortais , como os de
"'ENllI (;() - O se nh or não tem m êdo d e um leão velho uenhum outro povo, atestam a preeminência da ru ça
(' desdentado .. . h el ênica em t ôdas as concepções do espírito, e d ão lustre
PEIII CI. ES - C laro qu e não. in esquec ível aos tempos que, por t ôrlu a post eridad e, Ii cur.un
consagra dos com o nome de "Sécu lo de P ericl cs"] (Voltal1-
~ IENI> I(;() - Ma s de um homem velho, cuja força moral do -se ràpldum cnte para Pericles) : Mas , o senhor é Pcri cl cs
l' ('llja ill!l'li ~(\II c.:i a a ind a es te ja m \'i gorosas . . . mesmo?
PEItI CI.ES - N âo di go qll e não .. . PEIUCLES (Idcl1l) - 5011 , sim senhor]
t-.I EN IlJ(;O - Logo , . . é po ss ível qll c c u sejn mais mo ço N ANCY - :f; PEIIICLES siml
do qlle o sc uho r . " E , d epois, o se u hor é Pericl cs] (Noutro t\fENUI GO - l Iavemos d e comem orar a noit e d e h oj e]
( 0111 ) . O se nho r é I'cri cl es mesm o? D ê-me o se u chapéu e o seu sob rc tudo l (H ctira -os elas m ãos
I'EII ICI.ES - l ,\ lhe di sse : Pcricl es. d e PER/eLES, qlle está entre aparoalluulo c med roso.
~ IEN llICO - Se n te-se, Pe ricl csl ( PEIIICLES senta-se - a Senta -ses - D epois qu e o se nh o r morreu . . . fui muito
, ~
Na lley): Es ta mos di ante d e Pe r icl esl infeli zl A d em ocraci a atc nicnse inst au rou pro cesso co ntra
mim e fui con de na do a h ch er cic uta l
N.\NCY - E qu c tem isso d e cx trao rd inário?1
P EIUCLES ( PclIlllizado) - Ohl. ..
~ IEN DICO - Ohl Voc ê não se nte qu e es tamos sonhando?1
NANey - Eu, uâo] ~f E NDlCO - Mas p osso garantir qu e morri ser en am ente,
co mo um [ustol
~ IENJ)JCO - Pcri cles em nos sa casa, é sonho! PEJIICLES - Acredito . . .
50 51
.- ........
~fENDlGO (Depois ele pequena parksa) _ . Mas o senhor NANCY - Que foi?1
é Periclcs mesmo]'] PEIlICLES - Deve ser no fígadol f: fácil de curar-se.
PElIICLES - SOIlI Pcricles da Silva, um seu criadol f: bom tomar ...
f\IENI>JGO - Da Silva? ~fENDIGO - O senhor é médico?
PEIIICI.ES - Da Silva, sim senhor! PEHlCLES - Não.
~ I ENl>IGO - Oh! Então o senhor não é o filho de 1\fENDlGO (Sorrindo) - Entretanto pensa que entende
Xuutippo , o vencedor dos persas?! de medicina e chega a querer receitar! .
1'I-:IIICI.ES - Nãol Por CjUC se ndmira? PEIIICl.ES (Sorrindo) - l!: verdade .
~IENDIGO - PorC}lIC o grandc ateniense era apenas Pe- ~fENl>IGO - São todos assim! Advirto-lhe, entretanto,
riclesl E o senhor é Perícles da Silva] (noutro tom) - de que o fígado é aqui e eu coloquei a mão aqui, sôbre o
Desculpe o engano. .. Eu devia ter notado logo que o senhor baço.
('~ C01110 esses Florianos Peixotos de Castro, Huys Barbosa NANCY - Tem graça ...
do A Imeida e [ouquins Nubucos de Souza, que andam por PERICLES - Realmente. não há quem não pretenda
a í carregando nomes ilustres, inconscientemente. .. Estamos. entender de medicina.
COIll efeito, num outro "Século de Pericles" ... o seu século ...
MENDIGO - De tudo. meu amigo, de tudo. De arte.
( ..\]l(lllttl para lHe). então, nem se falai. .. E de política ainda é pior. O senhor
NANCY - Não se esqucça de que Pericles é meu amigo conhece alguém que não tenha idéias para salvar o Brasil?
de infâncial PEIUCLES - Não. Idéias não faltam por aí ...
~fENDIGO - Conversaremos, então, como bons amigos. MENDIGO - Idéias... e nada mais. Por que?
Deixarei de ser Sócrates! ...
PERICLES - Porque o povo é incontentávell
NANey (A Pericles] - Devo prevenir a você que o MENDIGO - Na sua opinião. O que o povo quer é a
meu amigo é bonzinho... Apenas não quis interromper a coisa mais simples deste mundo.
brincndcira, para (!'Ie você pudesse observar o quanto o meu
PEIUCLES - Que é?
filósofo é alegre e chistosol
~JENDIGO - A supressão de uma palavra do dicionário.
PEHlCLES - Diga antes que não quis poupar-me o susto
PEIUCLES - Qual?
por que passei. ..
NANCY - Miséria!
NANCY - Assustou-se?1
PERICLES - Só isso?
PElIICI.ES - Não era para menos ...
~fENI>IGO - Só.
NANe\' - Pois comigo é sempre assim ... ,- :
PEIUCLES - E o senhor acha que a felicidade está na
PEIIICI.ES (lrd"ico) - O senhor ainda é filósofo?
f\IENDIGO - Não hú mais filósofos, meu caro. A sabe-
supressão dessa palavra? " ...
~fENDIGO - Não sei se acho, mas é tão fácil expe-
doria humana está muito espalhada. Hoje, todos sabem l
q.
rimentar ...
tudo. Não há mais segredos, nem mistérios. O último dos
ignorantes julga-se capaz de salvar a humanidade. Ninguém NANCY - Nêsse caso, eu proporia a supressão de mais ,;
uma palavra ... ~.~:
mais aprende. Todos ensinam. . {~
PEIIlCI.ES - f\fas eu confesso que não sei nada .. . MENDIGO - Qual é? l' ",
52 53
\'f ~ . .- .. w.. ...: 0, " 1
N ANCY - ~I as o amor tem cinco sentidos . .. PERICLES - Tem razão. Quando ouço falar nisso, penso
~lENI>I(;o(OI/IlIllC!U pam Pcriclcs) - Além dos senti- logo num velho feio, barbado, dc nariz torto, e vesgol
do s figurad os " , Pois su p r i u uu nos aqll ela palavra e v er e- !\fENDIGO - C ompreendo, Se o senhor me e ncontrasse
1I10 S co rno (('>das se r cuju sturiio , in clu sive o amor. à porta d e urna igr eja , p edindo esmolas, seria capaz d e
N.\l\;l: Y - E a felicidad e? p cn sar quc eu sou . . . quem sou?
\ I EN Il I(;() - Fclicidad e é a palavra inspiradora. Se ela PElUCLES - Não.
11;-10 ('\i sti sSI" ('0111 toda s as s uas iuoccutos se d u ções, talvez NANCY - Mas isso é um absurdo!
a 1llllllilllidadl: fos sl ~ fdi z, C O I II O SIlO feli zes nqu êlc s qu e não f..IENOIGO - Tanto quanto é ab surda a idéia do senhor
salH'lI1 di slingllir o bC1I1 do lIIal " . PEnJCI.ES. " DA SILVA. .. O maior absurdo é u próprlu reu-
NANCY - E o cgo ismo? lidadc.
t\ IEN DIGO - Egoismo é o grande obstáculo I É o castelo N ANCY - Bealida.le não é absurdo.
feud al e m cuja ar ca cs t ú gllardada essa palavra ubomín ávcl MENDIGO - Logo ... não há absurdo.. . Tudo é real.
-- ~ I isé r i; t! Até o quc imaginamos. Ninguém consegue imagin ar fora
PEIII CI.ES - Se não me cngano, pela sua maneira de da realidade. Do nada não é possívcl tirar nada >. '.
fal ar , o se nhor é co m u n is t u ] NANCY - Nêsse caso, seria possível prevcr-se o futuro .
t\IENDIGO - Psiu! Sil êncio] Comunismo é palavra qllc MENDIGO - O futuro não se prevê; vê -se-o uerendo , . .
qu er e ntra r para o dkion,irio, com escalas pela polícia,., PERICLES - "Cõ assi m?
1'L:IIICLES - Eutüo, Ó por f~s() 1)IIC tôclu gCllte tem medo l\IENDIGO - Como ensinava Anatole France. O futuro
d essa p ida\'n1? ,. , é igual no passado. Da mesma maneira por que o senhor
N .\ Ney - E huvr-rá ruzão para tanto m êdo? vê vagamente o passado, pode ver o futuro. O senhor sabe
que o sol vai nascer amanhã, como nasceu ontem. Se quiser
~II': NI>J( :() -- l I úl () com un ismo é COIIIO uqu êle boneco
raciocinar, saberá o resto.
di : palha d e fJl W il gelll t: tem m êclo quando é criança .
N:\ Ne y - Não ( ~ulclldi. PEIUCLES - Dá muito trabalho ...
MENI>JGO - Heulmcntc. O senhor, ce r ta m e n te , é dos
1\!J.;NDIl;() - l l uviu c ru miuhu casa, quuudo eu era p e - .!lue acham que ign~rar é a snprcma felicidade. O scn IOr
fJ"l'IIO, 11111 boneco d e palha , com o qual minha mãe 1IIe sabe lêr?
ohri ga va a d ormir muis cedo . Eu tinha um terror pânico PEIUCLES -l Sou Bacharel em Direitol
do bon eco . Um di a , distraidamcllte, se nte i-m e e m cima do
1I1 ;lIlÍpan ~' o , J
f..fENDIGO - Não. Estou perguntando se sabe lêr.
PERICLES - Sei.
N t\i\;(;y - Qll e horror]
MENDIGO - Para que?
PEIIICI.ES - D eu 11111 salto, assu studissimoi'l PERICLES - Para viver melhor.
~ IEN DI(;O - N ão, Qllalldo p er cebi fJII C o esmagara, re- l\fENDIGO - Pois não parece .. .
I irei-o d o sup lício, cx a ui iuc i-o b em e co m p ree nd i, por mim
P EIUCLES - Peço perdão no sábio ...
III CSIIIO, qu e () bo m-co d e p alha e ra Incap az d e fa zcr m ul ..~
M ENDIGO - Os sábios não condenam a ignorância. Res -
;IS lT i; I II~'as, A jeitei a b arrigllinha d êlc e torn ei -m e o seu
m.riur ;lIl1igo,
peita m-n a. Adão, < nt es do p ecado original , e ra o homem • ~1
N A NC\' - E suu mã e?
NANCY - Porque era o único . ..
~I E NI>I (;() - ~Iillha mã e ficou meio c ncu liulnda. M as l\f ENDlGO - Poi s foi d epois que vieram os outros qu c
CI I fui iucnpn z de cluu ná-lu d e mcutirosu O comunismo é êle se tornou infeliz. Hoje, homem feliz, é "avis rara".
() hou cco d e pallru da s c ria nç as grandes . NANCY - E mulheres feli zcs? Também não há?
54 55
l\IENI>lCO - Il á muitus ... 110 céu ... As onze mil PEIlICLES - T em .. .
virgl·IIS. .. t\IENl>ICO - E tem razõ es para isso .. .
N .\~<:y - Súrl
PI ':IIH :1.Jo:S - T cm .. .
f\11 ;:-';/lI!;O .- Só. As oulrus n ão ulcunçurum o bOIl1 tJ ENIlI(;() - Jú sei. EII' lJlle buu co l'stú " t ru b ulh uud o"?
ll'IIlJlO . . .
PEIII CI.Jo:S - No Banco de Crédito Agdrio.
JlEIIICI.ES - Hojc é o tempo do dinheiro... (Olhando t\IENJ>ICO - I~ "cai xa"?
/,arel /\ ' l/I w y. ill/cl/cioJl(IiIll ClltC) - Só é feliz (}lIcm tcm di-
nlu -iro . . . PEIIICI.ES - Sou .
~ IENJ)J(;() -
() scuhor sabe o quc está dizendo? t\IENJ>lGO - Amanllã c dia ele buluuço ... '(
PEIIICI.ES i Baixuntlo a cabeça) - Sei... E sôbre isso PEllICl.ES - K
desej:,ria falar com o senhor ell~ particular. (Pausa. MEN- t\IENJ)(GO - Balanço é o diaho... Um desfalque de
IJI(;O olha /)(11'Cl PEIIICLES e lJarcl NANCY, qlle também está cem contos ...
muit« coinprom et ída], PElUCLES - Noventa c oito ...
NANCY - Nesse caso, com licença. (Sai. Pausa). ~IENJ)JGO - Um peql1cllino cngano a meu favor. .. Pre-
~IE~I>I<;O (Ansioso, ilepo!« ele olhar para a porta por tende rcpôr o dinheiro duruute o balanço ... '?
oiulc saiu N(l1Iclj) - Vumosl Fule, rapazl l'EIIICl.ES - Pretendo.
PJ.:IIICI.ES - O senhor jura qllc gllanlar4 segrêtlo?1 t\IENIlIGO - E depois?
_ ~IaCNIJIC~O - Ninguém ó C(\P(\~ de gllllrdul' um scgrêdo Praucr.ns - Fugir ...
seuao por conveuiênc ínl ' ~fENI>IGO (ClIllllllw) - Sem dinheiro?.. (l'~I\ICLES
PEIIICI.ES - Então, serei o maior dos desgraçados I Boa baixa a cabeça e fllÍO respoudeí - Menino, a Terra é peque~
unltul (\'al li sair), na demais para conter, sequcr, a idéia de fugir .. , Sos~
l\IENl>IGO (Enérgico) - Rapazl (PERlCLES volta-se) _ segne o espüíto. Pua' NANCY, sou cnpn7. nt' ele p dir es-
Nem pensc em deixar esta casa, sem revelar êsse segrêdol molas. .. Que absurdo, hcin?.. Hcpouha os cem contos
PEIIICI.ES - Mas, senhor, seria expôr a minha vida à pior c, depois do balanço, voltc aqui ...
desgraç:a, sem ao menos, a garantia de 11m simples jura- PEIUCLES - Com o dinheiro?
nu-nt (). .. ~IENDlGO - Sem o dinheiro ...
~1.E~DlGO . (Misterioso, ansioso, segurando-o pelo braço) PEIUCLES (Beijando-lhe a mão) - Muito obrigadol
f: ridículo )llrar, mas jurol - Digal Muito obrigadoI (~IENDIGO {)ai sair) - Que vai fazer'?
PEIIICLES (Choroso) - Sou irmão de NANcyl MENDIGO - Buscar () dinheiro. T ôdu minha fortuna está
~IENDIGO (Desinteressando-se) - Ora . . . dentro de casa. Não confio nos Bancos... Não acha quc
PEIIICLES - Mas não é tudol tenho razão?
~IENDlGO - IIcin?1 PERICLES (Baixando a cabeça) - Acho. . . (~IENDlGO
PEIIICI.ES - Preciso de 100 contos de réis por vinte e vai a sair) - Um momento, senhor! (MENDIGO volta-se)
(I'Jatro horasl - Pelo amor de Deus, não conte nada a N ANCyl
~fENDlGO - Descanse. A ela só não poupo o desgosto
~I ENIlICO (Calmo) - Sente-se aí. (PEIlICLES obedece)
Gosto d e casos escabrosos . da minha velhice.,. porque nüo posso. .. (Sal, PlmlCLES
fica olhando para a porta, absorto - Passeia, ncrvoso, sorri,
PEIlICI.ES - Eu VOIl contar .
esfrega as mãos, até (file MENIllGO volta, trazendo dois pacu-
l\IENIlJGO - Não é preciso. NANCY tem vergonha de tcs de ' dinheiro, PERICLES retoma a utitutlc anterior - ~IEN
ser sua irmã . . . DIGO, entregando-lhe os pacotcs'[: - Cinq üenta ... c cem.
56 57
It;,:
.
.7.•
..~. ~
PEIIICI.ES - Obrigadol nhciro. Está no amorl No amor, que é bem comlJl~, mas
(Jue os donos <.10 mundo aç?mb.arcaram c tornaram maces-
~IENJ)IC() - Gllardc isto nos bolsos do sobretudo. (PE-
IlICLI~s guarda 11111 pacote CI1I cada bolso, elos ele fora) _ sivcl corno o custo da própria vidal ,
Í>EHlCLES - Não, NANCY! O amor é como o ar, a agua
Cheguc mais cedo ao Banco. Não fiquc nervoso.
I'EIHCI.ES - Sim. c o céu! O amor é de todosl , .
NANCY - I noccntcl . .. O amor pertence ao dinheiro e
~h:NJ)I(;() -- Até amanhã. NANCY virá dcspedir-se de
você. o di;:heiro a meia dúzia. Para uiuar é preciso ~ivcr c para
viver é preciso pagar UIl1 tributo aos donos da vidul
PEIIICU:S - Até nmnnhâ.
PlmlCI.ES - A vida é nossa, NANCyl
~IENJ)IGO (Sailldu) - juízo ... Fugir ... Não é negócio. NANCY - A vida é de todos, mas está nas mãos deles.
PEHICI.ES - Até amanhã. (MENDIGO sai. PERlCLES a;eita Se cu correspondesse ao teu amor, t \I serras
. UI n ladrão do
o sOlJrctlU/O sôbrc a cadeira e entra NANCY).
aIlHU' quc vendi a êsse velho.
NANC\' - Qlle foi (JIIC você disse? PEHlCLES - E por que vendeste o teu amor?
PEIIICl.ES - Nada... Pretendia confessar-lhe que te NANey - Paru viver!
amo. Mas seria cruel c inútil ...
PEIUCLES - Há tantos meios de viver ...
NANCY - Inútil, por que?
N ANCY - Quando os don?s da vida ~o.nsentem. Os des-
PEIlICLES - Porque tu não me amas! tinos estão nas suas mãos. I' azem a felicidade de uns, por
NANCY - Amo-te, sim, PERlCI.ES. Mas, amo-te tão cons- interêsse, e, por interêsse, fazem a infclicidude de outr?s.
cicutcmento que, para não te fazer sofrer, prefiro viver Ninguém é feliz, ladrão ou assassino por vontade própna.
IOllge de li, IIU compuuluu deste pobre velho... rtquís- PEIUCl.ES - Poís entao, NANCY, ruubemos um pouco do
simo ...
felicidade para nósl
do (llle o amor?
-
PEmCLES - O dinheiro e a vaidade serão mais fortes
~..~
NANCY - De qucm?
sem dinheiro é cretinice ... PEllJCLES - Meus]
- -PERlerES - ANCYJ------ Quanto vale a minha mocidade? NANCY - Mentira!
NANCY - Nadai Por enquanto, nadai Mocidade sem PEJUCLES - Jurol
dinheiro equivale a operário sem trabalho. .. Quando muito, NANCY - Enlouquecestei'l
a mocidade pode alimentar o valor do dinheiro que possua ... PEHlCLES - Nãol Também tenho direito de viverl
PEIHCLES - Quanto valem ccm contos, na minha mão? .. NANCY - PEIlICLESI
NANCY - Para mim? .. PEllJCLES - Amanhã?
PEIIICLES - Sim ... NANCY - Amuuhâl ...
NANCY - r..fuito... Um tostão de um moço pobre vale PEHICLES (Da porta) - Quanto valem cem contos na
mais do que 11111 conto de um velho rico. .. Já podcs saber minha mão?
quanto valem cem contos na tua mão. NANey - Tôda a nossa felicidade, 'llle não é nossa!
PEIllr:I.ES - Que bom se cu tivesse ccm contos ... PEHlCLES - Mas CJuc hnvcmos rlc rouhar]
NANCY - Fugiríamos, e seríamos as duas criaturas mais N ANCY - E o dinheiro'?
fclizes do mundo! ... PEHlCLES - Será nosso, como é 110ss.a a felicidade que
PI-:HICI.ES - FIIgiríamos? está nas mãos dos donos da vidnl ( Escurece. Voltamos ,!o-
NANe\' - Siml Fugidamosl E tôdas às vêzes que eu cl porta da 19rc;a. Qrumc10 Cl cc/1(l se ilul/lilla, ta (J
VlI1l1cllte
recebesse de tuas mãos um pouco dêsse dinheiro, pensaria MENDIGO csllí sentado cm scu lugar, ao ltulo elo OllTHO).
'llle a felicidade depende do dinheiro, mas não está no di- OLJTllü - Fugir! Que hohageml
58 .5U
~J ENI>IGO - o sellhor está fazcndo progressos ...
OUTRO - Por que?
. OUTIIO - COlnpreendi perfeitamentc cjlle fugir não
mll;lIda. MENDIGO - Porque ambos morrem . Um morre na mi-
séria Inocentemente. E o outro, que procurou a morte, c(~
:-'JENI>IGO - A Terra é uma grande pcnitcnciária, meu
amigo. Só quando somos cncerrados nos cubículos escuros
metendo UI11 crime, morre cercado de todo o ~onforto, depois
de satisfeitas tôdas as suas vontades, por mais ahsurdus que
dos cemitérios é C/"e somos postos em libcrdude. Só foge
(Jlll'llI se slIicidal sejam ...
OUTI\O - O senhor é terrível I
OUTIIO - Neste nllnHlo ningllém vive em Iiberdudu?
~JENI>IGO - Ningllélll! Quc é Jiberdade? f\fENIHGO - Eu?1 Terrível é a vida ...
O U') /lO - f: nudur Ú vontada, podendo fazer o que quiser.
OUTI\O - Para o senhor, por pior qlle a vida seja, é
~JE=--I>H;O - Os p cuitcucí..i rios também ficam em liber- sempre um prazer ...
dade, dcntro dos cubículos ... ?\IENDIGO - Por que?
OUTIIO - Mas os ellbículos são muito acanhados . . OUTRO - Porque nem a mulher o f<~z sofr~r ...
~ JDWICO - Um pouco menores do cIlle os nossos . r..fENDlGO - Porque a mulher, que é invencível, rende-se
()UT/lO (Sorrindo) - O meu é grandel ... à inteligência... .
~dE:-;f»)CO - O seu é do tamanho das filas da cidade. E OUTRO - Nem sempre... Confesso que estou ansioso
por conhecer o fim da história.
as filas da cidade, para o senhor, são muito menores do quc
os CII hículos, para os presos .. . r..IENDICO - As histórias não têm fim. As personagens é
O~TIIO -
para viver ...
Pelo menos, HCJlIi fora, tenho de fazer fôrça, que acabam. As histórias contin~am, c?m a entrada de per-
sonagens novas. Vida, meu amigo, VIda. (Pausa).
-+-/ /
/ ./
l-.JENJ)J(;O - O senhor é 11m dos mais infelizes peniten- OU'I1\O - O senhor quer dizer que aquêle rupllz morreu?
ciários da viela. MENJ)JGO - Não, porque não morrerá. sem pagar o que
OUTIIO - . Mas vivo cm liberdade ... me deve. (PElUCLES atravessa a cena - Os MENDIGOS este'~
l\'ENIJI(;() - Liberdade é coisa que talvez o senhor nunca (Tem os chapéus. PEIUCLES deixa cair uma pratinha ele 11111
tivesse conhecido ... réis no chapéu do AI endigo ). - Deus lhe pague... ( PE-
r-
OlJTIIO - Por quc? meLES sai). - Sabe quem é?
OUTRO - Não.
ir
i\'ENDICO - Porquc libcrdade é felicidade e nada mais ... +:
NII/I(:a ouviu falar de condenados clnc, terminada a pcna, f\'ENDICO - E o rapaz. (AI ostraiulo a moeda) - Deu -me i'
pedem para ficar na prisão? dez tostões por conta . ..
Omuo - ](tI 1M
l\IENI>Il.;O - Pois então?
Ol1T/lO - Mus a todos parece qlle só é feliz quem está
fora da prisão,
;\ IENIH(;O - f; porcJlIC ningllém tem prestado atenção à
FIM DO SEGUNDO ATO
ri
vida . se n ão ;l gOI'il . QII ('/I} é mais feli z, na sua opnuuo. 11/1}
1Il1lII CIIl cOlld( 'II;lClo a gal é :.> p erpétuas 011 11m homem, ein
lihl'ldadl', cOlld c n a d o a morrer d ;] Fome?
Ouruo - Ora., . É melhor morrer do quc viver prêso
éI \'id :1 Int eira]
l\IEND)r.O - Então é mais feliz um homem condcnado à
llIorr e do (1'IC UIlI hOllle/ll coudcnudo a morrer de Iomo.
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61
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TERCEIRO ATO
CENÁRIO
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~rENJ)JCO -:- Se o senhor pensasse, chegaria às conclusões OUTRO - Isso é diferente.
1\que chegllcl. Sabe qllantos são os reinos da natureza? MENDIGO - -.;: o que lhe parece. O capitalista vive do
OUTIIO - Ahl Isso CII sei! São três: animal, vegetal e povo consumidor. Mas se êle reduz o povo à miséria. o
miucral. (Colltcllte) - ViII?
povo não poderá consumir.
~IENI>Ir.o - Muito beml... São as três vidas. E ne- OUTI\O - Explique melhor.
clclus escapolI Ú tiruniu dos homens.
11111111101 Os animais
~tENDlGO - O operário produz na Iúbricn a~l'ti~o mesmo
foralll atrelados às carroças dos homens; foram atrelados ns
que terá de comprar para viver. O dono da fabnc;a. arl1.1:\-
('ólITC!Ç'ólS qllo lhes transporlam a fortuna; os vegetuts c mi-
zelia sua produção. Os preços sobcm: O opeTano Ficu
ncnus foram trancafiados nos armazéns para forçar a alta
impossibilitado de comprar. A produç~o ~lrmazenada m.l-
dos preços. E até a áglla, coitadinha, foi engarrafadal menta. O dono é obrigado a fechar a fábrica. O operário
Otrrno - Que nos resta, então? fica privado do que produziu. mas em compens:ção o d~no
.~IENDlGO. - ?ar, meu amigo, o ar. Mas se a vida da Iábríca não tem quem lhe compre a produção. A vala
co.n~/Iluar assIm,. eles conseguirão, por intermedio da ciência pára. O operário morre às portas do arrnazern e o dono
oflc!óll, monopolIzar êsse elemento. e teremos de comprar da fábrica morre dentro do armazém, como o avarento que
hill~cs de a~ p~ra viver. como os moribundos compram morreu asfixiado dentro do próprio cofre... Entendeu?
halocs de oXlgelllo para prolongar a vidal OUTRO - Entendi. Mas continuo a dizer que não há
OUTRO - Então. a ciência é inimiga do homem? outro remédio.
. MENDIGO - Não. O homem é que é inimigo do pr6prio MENDiGO - Há. O senhor conhece a hist6ria do cavalo
homem. Inimigo de si mesmo. O inventor da guilhotina do inglês?
foi guilhotinado ...
OUTRO - Conheço. Quando o cavalo já estava quase
Orrrno - Bem fcitol
habituado a viver sem comer. morreu ...
~IENDIGO - E tudo o mais tem sido assim. Tôdas as ~fENDIGO - Exatamente. Os próprios inglêses passaram l
a.n~a.s dos hom~ns. foram_ fo~necidas pelas suas próprias vi- a dizer que os fatos são obstiuados. Ninguém pode lutar
tllll.I~. Os_ cnpltulistas nao Inventam nada. Aproveitam-se contra a fôrça lenta e sutil dos fatos.
elas mvençoes cios outros. Homens inúteis, que se utilizam OUTRO - Mas os fatos são sempre os mesmos.
ele tudo]
MENDIGO - Eis ai porque não adianta fugir à comprcs-
OUTRO - E de quem é a culpa. se todos temos o mesmo
direito à "ida? são dos fatos. A instituição da mentira, pelo primeiro mis- \
tificador da humanidade, s6 serviu para criar um regimc de
~IENDlr.o - A culpa é dos egoístas, que sabem que a
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~fl·::":IlI(;() - ~fillha mulher é quc é infcfiz. PEIUCLES - Está aqui! (lletirarulo os pacotes dos bolsos
Ou: no - O xculror (lllcr dizer (111C da não encontrou a do solll'ctrulo) - Cuardu-o contigo!
fl 'liddéld( ~ lIalfllclc rapazP
NANCY i Recebendo-ov - t meu! Que fortuna! Cem
~fE:":IlIG() - :\ felicidadc dela está comigo. Convenci-a COII los, a lI10r c mocidade!
(,Ic qlll ~ a f('licid :,de dela I'stiÍ 110 dinheiro, porquc dinheiro PEIUCI.ES - NANCY, que te falta agora?
e (I qlll~ lIão nu: falta. Os IHllncns lh ~\'I'1Il couduztr 03 dl's(~jos
NANCY - Fugirl Ilcmoçur na tua compat,lhia~
d i l 11111111('" para t rulo () (11lC "Ies poss.un dar. Um poda
PEHICI.ES - Pois então não percamos 11111 so minuto!
Lllllildo é Il.'li::- .CO I\ I a n~lIlhcr 1'.01:CI."<': a couvenceu ele CIuO
iIslIpn'lllil lellcJ(ladc esta na uusenu. A mulher só deseja NANCY - Não. Quero primeiro mostrar-me índc p e u-
{ o 11 11F o homem lhe Sll gere. dente aos olhos daquele velho, c dar às minhas. frases o
mesmo sentindo quc êle Já a tôdas as quc me diz. Ccm
OlJTIIO - E o senhor conseguiu bons resultados com contos! Meusl S6 meusl Como é boa a sensação da posse
êsse processo?
sem o horror do sacrifíciol
( ~fENDIGO - O senhor verá.
No dia seguinte, o rapaz, PEIUCLES (Amoroso) - NANCY!
(1 110 COlltOS meus, voltou... (Escurece a cena _
Ícvnrn CCIll
NANCY - PElUCLES, meu bom PERlCl.ESI\
Desaparece a igre;a e apresenta-se no tablado superior a
PERlCLES - Vamos, N ANCyl
mesma cena elo ato anteriar. li cena está deserta e logo
entra !)EIIICLES. São sete horas da noite. Ele vem com o NANCY - Não. Volta daqui a pouco. Estarei pronta
mesmo sobretudo do ato anterior. Vai à porta e chama a para a conquista da felicidade!
lIIêl!o) : PERICLES - Até jál
PEHlCLES - NANCyl NANCY! NANCY - Até já! (PERICLES sai) - Cem contos! Meus!
NANCY (Entralll/o) - Que horas são? Só meus! (Guarda os pacotes dentro de Ulll [arrão e quando
PEIIICI.ES - Sete c meia. tiai a sair, entra o MENDIGO).
NANCY - E: cedo. O velho ainda não voltou. MENDIGO - NANCY! ;1
PEIIICI.ES - Tauto melhor. NANCY - Você?
MENDIGO - Eu e você! Tôda a vida dentro desta salal
NANC)" - Não! Não fugirci sem despedir-mc dêle.
NANCY - E lá fora não há mais nada?
PEIIICLES - Qucm foge não se dcspede, NANcyl
MENDIGO - Nadai
NANC)" - Mas cu qucro ouvir-lhe ainda uma vez a voz e NANCY - Não há mais ninguém lá fora?
('lld(l'lCC::~ l'~1I1 muls IIlgu~lS cnsfunmcntos a grande bagngcm
dc expenencra que levarei comigo. MENDIGO - Ninguéml Os homens que passam pela
vida já acabaram de passar. Eu fiquei junto de você, por-
PElUCLES - Esse velho é muito perigoso, NANCY. Tenho que você é a vidal
m êclo de (Juc êle te sugestione.
NANCY - E a felicidade? Não está lá fora?
NANCY - Não há perigo. Tu és moço e a mocidade é MENDIGO - Está. Mandou lembranças para você. En-
muito mais slIgestiolladora . (Transição) - Trouxeste o di- contrei-a à porta de uma igreja, pedindo esmolas. A ilusão,
uheiro?
que passara antes de mim, dera-lhe uma fortuna . ..
PEIIICJ.ES - Cem contos, NANCY! Cem contos para com- NANCY - E a felicidade permaneceu à porta da Igrcja?
prar t ôda a felicidade do mundo!
MENDIGO - Permaneceu. A Felicidade é muito inteli-
NANCY (Abraçandu-o) - Viajaremos! Novas terras, gente e sabe que o dinheiro da ilusão ou é falso ou é
novas vidas! Quero viver muito! ( Transiç ão's - Ondc está roubado.
() dinheiro?
NANCY - Como assim?!
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•
~fEN.DlCO - Porque elas são amigas intimas e entendem- NANCY - Por quê?
se perfcltamelltc. . (Nancy fica meio preocupada) _ E MENDIGO - Porque o seu destino devia ser diferente do
ago~a, chcga de filosofia . (Beija-a) - PERlCLES J'á estev~ meu. . . Você mesma deve sentir-se Impelida para uma
HeI' li?
vida diferente da minha ...
NANCY - Não ... NANCY - Sinto-me. Mas há uma fôrça, que me parece
~(ENDICO - Ingrato .. . a fôrça do destino, que me prende a você.
NANCY - Por quê?1 MENDIGO - Não é destino. f: a fôrça da inteligência.
~fENI>ICO - Pcdi-Ihe que voltasse. Viver é desejar. Goslar da vida é ter os desejos satisfeitos.
N ANCY - Para quê?1 (Intencional) - Você gosta ela vida. .. Seria absurdo pre- )
~fENDIGO - Qucro regenerá-lo para que você não se tender que você gostasse de mim. Então, consegui que
cnvergonhe cl êle. ' você gostasse da vida, desta vida que s6 eu possa dar a você. O
NANCY - lIein?1 N ANCY - Dinheiro, tantos podem dar ...
~fENJ)~CO - NANCY, na minha vida só há lu ar ara MENDIGO - Mas nem todos sabem dar... (Pausa).
uma mentira, a grande mentira que é a verdade d~ viaa NANCY - Quem é você?
que nunc.~ te revelarci. Tua felicidade há de ser perfcita~ MENDIGO - Eu sou eu mesmo. Igual aos outros e dife-
Ontem dei cem contos ao PERICLES para que êle re rente de todos.
n te "d B
• pusesse
a carxa o anco em que trabalha a importância d N ANCY - De onde veio?
desfalque. e um
MENDlCO - De onde vieram todos.
NANCY - Reln?1 NANCY - Tem certeza?
MEND.IGO - PERICLES queria devolver-me o dinheiro hoie MENDIGO - Nunca tive a curiosidade de Nero. .. Aceito
m~s achei APrudcn.te que o Banco fosse indenizado a~~ o que se diz sôbre a minha origem, que não dependeu de
evitar CJIIC elc realizasse um plano de fuga, que traça;a. P mim, pnra que me sobre tempo de pensar no meu destino,
. N.... NCY (Desalentada, senunâo fugir-lhe a felicidade) que só depende de mim.
POlIS. bJ e~l. PERICLES está regenerado e preferiu devolver-te NANCY - Mas eu quero saber quem é você.
o (11) ieiro. MENDIGO - Eu sou êste que está aqui... Aquêle que
~fENDIGO - Então, estêve aqui? está lá fora é outro ... .....
N_...NCY - Estêve. NANCY - Aquêle que está lá fora?1
t>.fENDIC.o - E o dinheiro? 1\fENDlGO - Sim. Este mesmo que está aqui, lá fora
NANcY (Despejando o ;arro) - Está aqui. é outro.
MENDIGO (DelJOis ele apanhar os pacotes e colocá-los NANCY - ~ justamente o que quero ' saber. Quem é
s ôbrc o elivã) - Bom rapaz, o PERICLESI você, quando está lá fora? r
.~ ~.
N ANCY (Com amargura irdnica) - Então, a felicidade MENDIGO - Um elemento da multidão. Que importa I"
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6
• •
~fEND(GO - Eu sou uma espécie de pia 'd e água benta, NANCY - PERlCLES! (PERICLES volta-se e deixa cair
onde tôda gente vai benzer-se para se livrar dos males. [un- elas mãos os dois pacotes) - Como é perigosa a conquista
lo de cada pia de água benta, há uma caixinha onde se ela felicidade... (Afastanelo com os pés os 1}(lcotes de cli-
d(~posita o preço das graças divinas... __ ~~ u/leiro) - Como é inútil o dinheiro dos infelizes. Tenho a
N ANCY - Começo a ter mêdo das suas "blãgues"I .J . impressão de que sou uma lata de lixo, onde se atiram
~fENDlCO - ~fêJo? - papéis sujos. Sahes quanto valem cem contos nas tuas mãos?
NANCY - Mêdo, sim. Quisera que você fosse como os PElIJCLES - Não, NANCyl Nãol
outros c que falasse como os outros, sem mistérios. NANCY - Nada. Não tens a impressão de que "isto"
MENDIGO - Se eu falasse como os outros, seria banal. que aqui está nem chega_a ser dinheiro? (A1}an/~?nclo um
E um velho banal não interessa nem a si mesmo. Hei de pacote) - Estas notas são promessas. ( Lendo) . No The-
conservar a sua felicidade enquanto gostar de você. Se eu souro Nacional se pagará em ouro ... " - Ninguém vai bus-
p<:rgul1tar o que você sento por mim, você não responderá. car o ouro. Todos trocam estas promessas por um pouco
Nao é amor. Nem m~do. E uma curiosidade inexplicável, de felicidade... E onde está a felicidade, Pericles?
que os outros chamartam de sugestão. Os ignorantes cha- PERICLES - Não sei, NANCyl Não sei! Talvez esteja nas
mariam de fôrça magnética. Uma mulher de estalagem diria mãos dêsse velho miserável, a quem pertence êste diuheírol
que tenho parte com o Diabo ...
MENDIGO (Que entrou a tempo de ouvir estas últimas
N ANCY - Eu mesma não sei o que me prende a você.
As vêzes, penso que é uma grande amizade.
palavras) - Não, PERICLES. Este dinheiro é seu. Comprei
com êle um pouquinho de felicidade para NANCY.
~h::NDICO - Não é. A amizade é inimiga dos instintos
~ocê não est~ 'prêsa a mim. Está prêsa à incerteza, à dú~ NANCY - Com êle você comprou a desgraça deste rapazl
Vida. E R dúvida sou eu. Se me revelasse, voe teria raiva MENDIGO - Por quê? (a Pericles) - O dinheiro não
de mim, sendo eu tão bom para você ... chegou a tempo?
, . NANCY (~evalltatldo-se) - Não há nada pior do que a PERICLES (Num impulso) - O senhor, que é tão bom,
dúvida. " (Sat lentamente - MENDIGO sorri, satisfeito). tão justo e tão inteligente, há de saber perdoar-me. Não
PERICLES (Entrando) - NANCY! (Vendo o ~lendigo) sou irmão de N ANCyl
Oh! MENDIGO - Hein?!
MENDIGO - Boa noite, PERICLES ... PERICLES - Concebi esta "chantage" para fugir com elal
PElUCLES (Meio confuso) - Venho agradecer o favor (Pausa) - Sou apenas um apaixonado!
de ontem. MENDIGO - Meus pêsames. .. (a Nancy) - E você? ~
~IENDIGO - Sim. Mas estou muito zangado com você ... N ANCY (Baixando a cabeça) - U ma infeliz ...
t· ti
, I
PEnICLES - Por quê? MENDIGO - E julgam que seriam felizes s6 com êste
. ~fEN()(G~ - Porque. me trouxe o dinheiro, quando lhe dinheiro? Pois bem. (Batendo 710 ombro de Pericles) -
dlss~ 9ue ~ao era precise? (PEnICLES tJt1 os pacotes sôbre O dinheiro é seu. .. E ... NANCY também é sua ... O di-
~
o dioã e [ica apavorado) - Este dinheiro é seu, PERlCLES. nheiro um dia voltará para mim. .. E N ANCY (Vai a sair)
\
i Leoantando-seí - Leve-o para o Banco. Você está rea- - Boa noite. Seja:n felizes. (NANCY intercepta-o) - Já
bilitado . . . NANCY já sabe de tudo. Até amanhã . (Sai. -:
sei ... continua a dúvida no seu espírito. \
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• •
,
rélcs mcndigo ele porta de igrcja (NANCY e PEnICLES sorriem) NANCY - Amor ...
- As grandes verdades são tão uhsurdus qllc é milito dif icil !>ElUCLES - Prestígio sociall Não te seduz o brilho dos
ucrec] it ar-sc nelas. salões? Não te empolga a gnlanteria dos homens Finos? Dc
N :\NCY - r.. las, o senhor é mesmo mcndigo? flllc serve a tua beleza, longe do convívio da sociedade?
t\ IENI>ICO - Falso mCIH.1igo. Os verdadeiros mendigos Que vale todo êste confôrto, sem a espirituulidudc do "gra1HI-
são os cple me dão esmolas. monde", quc sabe fazer justiça à vaidade?
PEIIICI.ES - Então, disfurça-se muito hem para esmolar] NANCY - ChegaI Sinto que a minha cabeça está giran-
~IENDIGO - Não. Apenas troco a roupa e ponho as do, girando... Que coisa terrível é a meutalidadel Estou
barbas. sendo vítima da mentalidade que êsse velho me impôsl
PEIIICI.ES - Só?1 PElUCLES - Mera sugestão, NANCY. Reflete bem.
f..IENDlGO - O senhor acha pouco, mas sabe que é com NANCY - Nãol Só sei refletir com a figura desse velho
ns rollpas que se conscgue iludir, À primeira vista ... a orientar-me o pensamento. Preciso esquecê-lol Quero es-
quecê-lol
PEIlICLES - E não teme ser descoberto?
PERICLES - Viajaremos.
t\IENIlICO - Não. O dinheiro encobre tôdas as misérias.
(Pausa, NANCY c PEIUCI.ES cntrcollunn-se e olham ao mesmo N ANCY - Não. Há mendigos por tôda partel Vejo uma
tempo lUlra os pacotes ele dtnhcíro], escadaria imensa, com um velho pedinte em cada c.l cgra li I
Nunca mais, PEnICLES! Nuucu mais hei de esquecer! E
NANCY - Você é mesmo mendigo?
preferível morrer! Abomino n velhice] Abomino o dinheiro!
J
t\fENDlGO - Sou, NANCY. E não pense mais em mim.
Abomino a esmolai E apesar disso, sinto uma atração ter-
Entre um velho meneligo e um moço, cheio de prestígio
rível pela vida misteriosa dêsse velho!
social, uma mulher como você não deve hesitar. Fique com
êle. f: o último conselho que lhe dou. Um dia, quando PERICLES - Estás nervosa, NANCY. Dedica-te ao meu
lhes faltar um pouquinho mais dc Iclicidade, percorram as amor e esquecerás tudo!
J
igrejas e onde eu estiver poderei vendê-la a troco de um NANCY - Amor, prestígio, tudo o que me ofereces é
tostão. Boa noite. (Sai para a ma e NANCY e PEnICLES efêmero. Só há uma coisa eterna: é a inteligência! Amor,
ficam i11l6veis). beleza, fortuna, nada resiste à força da inteligêncial
NANCY - Mendigol Falso mendigol PEnICLES - Isto qucr dizer que, fascinada pela inteli-
PEIIICLES - Acha quc devemos aceitar a esmola que gência desse velho, preferes viver na companhia de um mi-
nos elcu? serável mistificaclor, um pedinte desprezível, que alimenta li
NANCY - Não seria demais se a aceitassemos, pois tenho tua vaidade e o teu coufôrto com os restos que a humani-
vivido elela! dade despeja no seu chapéu?
PEIIIO.ES - Vê, NANCY, todo dinheiro é vil. Este, que NANCY - Um mendigo! Um homem diferente de todos
eu pretendera roubar, fôra roubado aos pouquinhos. Não os quc procuram ser bem iguais aos seus scmclhnutcsl COIlIO
deves cout inunr procurando a Fclicklude 110 dinheiro. Todo tudo isto é novo, na minha vida!
êlc é assim. Se não é roubado é ganho. E quando é ganho, PEIUCLES - Como tudo isto é asqueroso I
nem selllpre poderá dizer-se que não é roubado, O dinheiro
NANCY - Meu pobre velho! (Noutro tom) - Vai, Pe-
honesto não vai além do cstrit.uncutc necessário para viver.
riclesl Vai e leva cOlltigo os últimos pedaços de ilusão cllle
O juro, o ;'Igio, a percentagcm, toelo o dinheiro ganho com
a tua mocidade vinha deixando aqui.
o dinheiro, é vil. A felicidade está no amor, que é o que
mais tenho para te dar. PEIUCLES - Nancyl
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..... ~~ . ," ,. . " , . :;~r:t~
N ANCY - Vai! ( PERICLES vai saindo lentamente e OlTrRO - Que horas serão?
I'tÍra à lJDrta) - A felicidade mandou-me lembranças ... Vou ~IENDIGO - Meia-noite, mais ou menos.
procurá -Ia para agradecer... Vai! (PERICLES sai) :- Escu-
OUTRO - Por onde andará ela, coitadinha?
rece. EstClIIIOS, [inalincnte, na porta da igreja. MENDICO
volta ao seu lugar. MENDIGO - Fazendo a via-sacra pelas igrejas ...
Ourno - E o senhor julga-a capaz de fugir com o moço? Ourno - Acredita que continue a procurar o senhor?
~IENDIGO - Não sei. Cumpri o meu dever. MENDICO - Se não tivesse certeza "d isso, não a teria
OUTRO - Como assim? deixado a s6s com o rapaz. De longe, seria muito maior a
MENDIGO - Acho que o dever do homem, em relação à minha influência sôbre ela. Deixei-a pensando na grande
mulher, é torná-la feliz. revelação que lhe fiz. E, assim, trouxe-lhe o pensamento
OUTI\O - E ela será feliz com o rapaz? para aqui. Todos os argumentos do rapaz serão inúteis 1
~IENDlGO - Ofereci-lhe o que dependia de mim. O diante da sugestão da minha ausência. 1
resto dependerá dela. OUTRO - O senhor é mesmo terrível!
Ourno - Há quanto tempo se deu isto? :MENDICO - Pontos de vista... ~,
~IENDIGO - Hoje, às oito horas da noite. Deixei-os em OUTRO (Procurando distingu'r alguém) - Não será ela?
minha casa, fui ao quarto mudar este "fardamento" e vim
MENDIGO (Certificando-se) -:(;:. Agora, pode dizer
para aqui.
que eu sou terrível.
OUTI\O - Então, quando ela passou por aqui, ainda há
pouco, devia estar à sua procura? OUTRO - A pobrezinha já vem cansadal
MENDIGO - Certamente. MENDIGO - Silênciol (Tomam ambos atitudes de pe-
OUTI\O - E por que não se deu a conhecer? dinte. Nancy entra e pára um pouco distante do Mendigo.
MENDIGO - Para que ela tenha bastante tempo de re- Traz os dois pacotes de dinheiro embrulhados. Procura re-
fletir sôbre a sua felicidade. conhecer o Mendigo. Este tem o chapéu na cabeça. AJas
OUTllO - E por que confessou que vivia da men- passa um transeunte e o Mendigo é obrigado a descobrir-se)
dicância? - Uma esmola para um pobre velho que tem fome ...
MENDIGO - Para que fosse bem maior o contraste entre (O transeunte deixa cair uma moeda no chapéu) - Nossa
mim e o outro. Senhora que o proteja r
OUTI\O - S6 por isso? N ANCY (Que o reconheceu, aproxima-ses - Você está
~IENDlGO - E por vingança também. Para uma mulher,
com fome mesmo?
vaidosa como tôdas as mulheres, deve ser doloroso ter vivido MENDIGO - Não, Nancy. Quem tem fome é êste meu
com um mendigo. Tornei-a feliz, tanto quanto pude. E, colega. (Nancy retira uma moeda da bolsa e deixa-a cair
agora, fiz-lhe nascer um verdadeiro horror pela felicidadel no chapéu do Outro).
A figura do mendigo nunca mais lhe sairá da cabeçal Nunca OUTRO - Que Deus lhe dê a felicidade que deseja.
mais pod erá transpôr a porta de uma igrejal Nunca mais (Passa outro transeunte).
dar á esmolas I E há de ter nojo do dinheiro! Ora, mendigos, MENDIGO - Uma esmola para um desgraçado que não
igr ejas e dinheiro há por tôda partel come há três dias... ( O transeunte dâ) - Deus lhe -( "
OUTHO - Ela esquecerá. pague. . . ( Nancy passa diante do AI endigo e êste esten-
~rENDlGO - Não acredito. Para viver, há de reconci- de-lhe o chapéu) - Uma esmola, pelo 'a mor de Deus ...
liar-se com tudo isso, e essa reconciliação será impossível (Nancy atira-lhe o embrulho do dinheiro e vai sa-ir, mas
sem a minha assistência (Pequena pausa). pára adiante) . - Favoreça a um desgraçado com um pou-
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•
_ : -: ',f'" _'-0 . j- -'" .0...,. . ;1.
;r-
'Ia
-
r
quinho de fclicidadel... (Outro levanta-se e vai buscar
Nane'), puxando-a pela mão até junto elo Mcneligo. Depois '\
lcoauta-o e aproxinui os dois lJllra quc se abracem. Eles abra- 1
I
çall/ -se - 1\1 cl/cfigo, ao Outro) - Deus lhe pague ... Bu-
rala. DC\lS lhe paguc ...
FIGUEIRA DO INFERNO
COMÉDIA EM 3 ATOS
DIVIDIDOS EM 6 QU ADHOS
Antes do subir o pano, no inicio do espetáculo, até um pouco Representada pela "rlmelra vez no Teatro Dlllcina, elo Rio ele
d C\lOiS do iniciada a representação, o "metteur co scênc" fará ouvir
[anclro, 1JCJlIJ Compllrlllia Dlllcirw -Oclilou, no (1I1J 13 ele nO llcmbro
11 l;\llalar fl'sti"o de sinos, em conjunto com a Ave-Maria, de Soma,
repelindo o jôgo na cena final da peça . de 195·1.
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