ARBEX Márcia - Texto e Imagem Na Arte Contempornea
ARBEX Márcia - Texto e Imagem Na Arte Contempornea
ARBEX Márcia - Texto e Imagem Na Arte Contempornea
Márcia Arbex
UFMG/CNPq
Nossa proposta se insere na área dos estudos sobre a intermidialidade e tem por
produção de sentido que daí resultam, a partir da observação de trabalhos plásticos e gráficos
de artistas americanos. Não se trata, aqui, da presença latente do discurso nas artes. Os
exemplos que propomos solicita a letra e a leitura, e se realiza plenamente e tão somente pela
a nosso ver, são exemplares e se contrapõem na utilização do discurso misto e/ou sincrético.
proposto por Leo Hoek, visando demonstrar de que maneira o emprego de materiais e
suportes diversos na arte produz um discurso híbrido que visa a constituir uma nova
linguagem plástica, baseada na ruptura das fronteiras entre as artes e seus respectivos
“meios”.
Diante da infinitude de propostas que visam entender as relações entre texto e imagem,
pragmática” (1995), no que se refere à pertinência de sua hipótese, segundo a qual os tipos de
relações entre texto e imagem dependem de sua situação de comunicação e não da natureza
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ponto de vista da produção do da recepção; deve-se ainda observar os critérios de
Para tratar do tema escolhido, optamos pela perspectiva da recepção, uma vez que é a
simultaneidade do texto e da imagem que caracteriza o nosso objeto de estudo neste trabalho.
Discurso visual e discurso verbal, neste caso, são combinados ou imediatamente justapostos.
Hoek esclarece:
certos casos de assinatura, as legendas, títulos ou dedicatórias marcadas sobre a própria tela,
como no célebre L’Œil cacodylate de Picabia (1921), também constituem casos de discurso
dizem respeito ao texto e à imagem ao mesmo tempo, ainda que em graus variados.” Os
exemplos mais conhecidos são o caligrama e a tipografia, “discursos em que, em certo grau, a
escrita é composta de imagens, da mesma forma que essa imagem é formada pela escrita.”
O autor define ainda uma escala dos signos de acordo com seu grau de simbolicidade
(texto) e de iconicidade (imagem) no discurso sincrético. Tal gradação varia do mais alto grau
de simbolicidade (signos que funcionam quase inteiramente como elementos verbais) aos
signos icônicos, na extremidade oposta da escala, “nos quais matéria simbólica foi
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Cf. HOEK, Leo. A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática. In: ARBEX, Márcia.
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Pós-Lit/Faculdade de Letras da UFMG,
2006.
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incorporada em sua origem (letras, textos), mas cuja função verbal foi quase completamente
perdida”. Os exemplos deste último caso são as colagens de textos cubistas, os textos
incorporados às telas de Paul Klee ou de Jasper Johns, como em Alphabet 1969. No ponto
mediano da escala “se encontram os signos sobre os quais há maior dificuldade em dizer se
trabalhos realizados entre 1954 e 1961, considerado essencial na obra do artista americano. O
termo combines designaria os trabalhos em que o artista reúne diversos suportes e utiliza
diversos meios: objetos encontrados ao acaso, imagens da cultura popular, pintura abstrata − o
que revela uma filiação direta com as vanguardas européias, em especial com o dadaísmo. A
processo criativo de natureza híbrida que rompe com as barreiras entre a arte e a vida, que
encontra, ali, mesmo de forma descontinua e desviada de seu uso comum, imagens e objetos
de seu cotidiano. “Não há motivo para não se pensar que o mundo inteiro é uma gigantesca
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Rauschenberg integra, entre outros materiais, fragmentos de trabalhos anteriores, em um
nítido processo de autocitação. Algumas são concebidas para serem utilizadas em cenários,
como Minutiae (1954), para a companhia do coreógrafo Merce Cunningham, e tendem para o
espaço pictural. Os textos que encontramos em Combines têm como suporte os jornais, as
revistas, os quadrinhos, papéis impressos diversos, mas podem também ter sido pintados
diretamente aos papiers collés e colagens cubistas de Picasso e Braque. Sobre a função dos
“I began using newsprint in my work to activate a ground so that even the first
strokes in a painting had its own unique position in a gray map of words. As
the paintings changed the prind material became as much of a subject as the
paint, causg changes of focus and providing multilicity and duplication of
images. A third palette with infinite possibilities of color, shape, content and
scale was then added to the palettes of objects and paint.”4
Esta “terceira paleta” à qual se refere Rauschenberg contribui de fato com efeitos de
textura e nuances de cor, podendo ainda imprimir um ritmo à composição. Entretanto, sua
função vai além da formal, pois as palavras ou letras informam e significam, mesmo que
parcialmente.
São obras “gêmeas” que ironizam a suposta espontaneidade expressionista, ao repetir em duas
artista utiliza a escrita para imprimir uma textura suplementar, acrescentar elementos formais
4
A citação constava em um dos painéis da exposição Combines.
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e geométricos ― como o calendário com seus números seqüenciais emoldurados, os recortes
coloridas. Através da repetição controlada dos gestos (e não mais “subjetiva” ou espontânea)
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In La peinture au défi, prefácio do catálogo da exposição de colagens realizada na galeria Goémans, em Paris,
em 1930. Reeditado em ARAGON, Louis. Ecrits sur l’art moderne. Paris: Flammarion, 1981.
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Em Black Market (1961) (Fig.2), acima citada, outras funções são atribuídas à escrita.
O trabalho é composto em duas partes ligadas por uma corda: o “quadro” pendurado na
parede e uma maleta colocada no chão, abaixo daquele. No “quadro” lemos a inscrição one
way sobre uma seta indicando a direção única a seguir, ou seja, o caminho indicado pela corda
até à maleta cuja tampa contém a inscrição open. A utilização do modo injuntivo indica o
poderá ler as instruções em uma das dez línguas diferentes escritas em um cartão que
encontrará no seu interior, segundo as quais ele deve escolher um dos objetos que lá se
encontram e substitui-lo por um outro objeto seu, pessoal.6 A obra institui, assim, uma troca
distinção entre objeto artístico e objeto não-artístico (aqueles introduzidos pelos visitantes da
trabalho poderia adquirir outras, virtuais, pois se solicita ao espectador desenhar o objeto
deixado na mala em uma das quatro cadernetas afixadas no “quadro”, assinando em seguida o
seu desenho.
6
Em sua versão original.
6
Outro exemplo de discurso misto em Rauschenberg, desta vez fora da série Combines,
é a composição intitulada Ace (1962). Dois elementos podem ser destacados neste trabalho
presente na seta on way, e a função da assinatura. A palavra do título esta visível na parte
superior, à direita, em letras de fôrma vermelha. A leitura da palavra convida para a leitura do
quadro que, em dimensões mais longas do que largas, se efetua da esquerda para a direita
como a da escrita ocidental. Na outra extremidade superior, uma letra E invertida convida
igualmente à leitura, mas em sentido contrário, perturbando assim nossos hábitos. As letras
ângulo inferior direito, nos incita à procura de um sentido e, guiados talvez pelo estilo ou pela
etiqueta da tela com o nome do artista, como sugere Michel Butor, o espectador parte em
busca da letra que falta, o R inicial, e o encontra, velado, na extremidade oposta. “Ao separar
(...) as letras de sua assinatura, o pintor, diz Butor, pode nos obrigar a percorrê-la, a perceber
sua direção da esquerda para a direita, mesmo se esta comporta apenas uma palavra. Os
fragmentos dispersos dessa unidade já conhecida vão solicitar uns aos outros.” (BUTOR,
entre as artes que tende para a reivindicação de uma arte total, sendo que a ultrapassagem
destes limites se faz através da incorporação de materiais diversos, entre eles a palavra escrita.
Cy Twombly7 tem em comum com Robert Rauschenberg, entre outros, o fato de terem
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Cy Twombly nasceu na Virginia, Estados Unidos, em 1928. Vive na Itália.
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iorquina, de terem viajado juntos pela Europa e África do Norte, além de terem exposto
destaca-se também o fato de utilizarem na arte um discurso misto e sincrético marcado pela
materiais variados, Cy Twombly incorpora uma escrita que se refere ao gesto e, alusivamente,
papel.
praticam uma escrita da de-scription ao utilizar “(…) o mesmo traço, a mesma mão, que vai
da caligrafia à figuração.” (BARTHES, 2000 :76) Sua caligrafia não é aquela, aplicada e bem
desenhada dos cadernos de escola de outrora, mas sim uma caligrafia desajeitada, como se
fosse escrita com a mão esquerda, um grafismo quase ilegível e, freqüentemente, indecifrável:
“Cy Twombly desconstrói a escrita”, diz ele. Se decifrada, sua escrita não é “interpretável”.
Sua marca seria o ductus livre e sem restrições, o desenho manual da letra, distante da
relacionam, apesar de sua obra como um todo, considerada bastante singular, desenvolver-se à
Compartilhando da leitura de Barthes sobre o artista, podemos dizer que seu trabalho
plástico se identifica com a gênese da escrita chinesa a qual teria nascido das rachaduras de
um casco de tartaruga após ter sido aquecido. A escrita de Cy Twombly nasce de seu suporte,
a própria superfície da tela, que nunca é virgem. Ela nasce ― impulsiva e premeditada, ao
mesmo tempo ― do grão do papel ou da tela, de suas imperfeições e de sua textura, dos
espaços vazios, dos intervalos, resultando, segundo Barthes, num quadro palimpsesto.
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Sua arte escritural, e seus desenhos em especial, também evocam o grafite, sob as mais
diversas formas, desde o do estudante que recobre de letras bem regulares as páginas de seu
caderno às inscrições rupestres nas cavernas pré-históricas. Jonas Storsve cita Pierre Restany
furtivo, impulso sexual, escrita automática, afirmação de si mesmo, e recusa também... não há
sintaxe, nem lógica, mas um fervilhar do ser, um murmúrio que vai até o fundo das
coisas.”(STORSVE, 2004).
alimenta seu pensamento desde a década de 1950, não através de sua iconografia, mas da
simples presença dos nomes de seus heróis ou deuses: Apolo, Marte, Vênus.
Mars and the Artist, por exemplo, segundo Barthes, é uma composição simbólica que
parte inferior (“uma flor e seu nome”). (BARTHES, 1990:166). Na tela Virgil (1973), a
palavra virgil, escrita à mão, pode remeter a Virgílio, suscitar a idéia da cultura antiga e
funcionar como a citação de uma época. (1990:147). Por outro lado, Wilder Shores of Love
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Fig.3 Cy Twombly, Wilder Shores of Love, 1985.
tornando-se escrita. Onde começa a letra e onde começa a imagem? Quem começa? A
resposta pode ser encontrada no ideograma, como sugere Barthes ao deslocar o problema da
origem e remeter ao Oriente, onde o que é traçado é o que se situa entre a escrita e a pintura
(1990:96). O que se revela nos quadros do artista é, portanto, por um lado, a iconicidade da
escrita; por outro lado, revela-se a relação da escrita e da pintura ao gesto, ao corpo.
Quadros palimpsestos
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Para Robert Rauschenberg e Cy Twombly, a palavra, materializada na escrita, faz
parte da linguagem plástica. As características básicas que a tornam legível, entretanto, são
fragmentação. Talvez possamos dizer, como sugere Claude Frontisi a respeito de Edouard
exteriores à prática da pintura, como é o caso de Rauschenberg, que utiliza a escrita, entre
Suas obras provocam uma troca constante entre o ver e o dizer, entre o visível e o
legível; elas instauram um diálogo em que o icônico e o escritural tendem a se libertar de suas
funções consagradas para convergir ou fusionar em um único discurso. Diálogo profícuo que
Referências bibliográficas :
ARAGON, Louis. La peinture au défi. Écrits sur l’art moderne. Paris: Flammarion, 1981.
BARTHES, Roland. Cy Twombly ou non multa sed multum.In: O Óbvio e o obtuso. Rio de
BARTHES, Roland. O espírito da letra. O Óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990.
BARTHES, Roland. Variations sur l’écriture, précédé de Le Plaisir du Texte. Paris : Éditions
du Seuil, 2000.
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BUTOR, Michel. Les Mots dans la peinture. Paris : Skira, 1969.
FRONTISI, Claude. L’image prise aux mots. Artstudio, n°15, hiver 1989, p.12-23.
HOEK, Leo. A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática. In: ARBEX,
Márcia. Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Pós-
2007.
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