Eça e o Impressionismo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 17

Literatura e Artes Visuais: Permanente Intercâmbio

Carmem Teresa do Nascimento Elias1


carmemteresaelias@hotmail.com

Resumo: O objetivo dessa pesquisa é investigar características de artes visuais como, cores,
volumes, sombras, presentes em obras literárias. A interseção texto-imagem já aparece em
estudos de Goethe, Kandinsky, Rimbaud, vindo a culminar na poesia concretista, na visual,
grafitismo urbano, até o advento das redes sociais como veículo de divulgação poética. O
método hermenêutico busca correspondências de descrições e apresentações textuais
sugestivas das escolas visuais. Se antes, para uma descrição, apropriaram-se de paisagens,
agora uma imagem por si, ou um meme, pode ser o texto. Para pesquisa, diversos textos são
comparados a outras manifestações artísticas ao longo dos séculos XIX e XX em diante.
Resultados já encontrados em Eça de Queiroz e pintores impressionistas, destacando tanto
elementos do texto quanto da obra plástica que se cruzam, no tocante ao uso de cores e
demais elementos visuais, explicando minuciosamente parágrafos e telas específicas que
reproduzem os semelhantes efeitos. Com foco para autores Eça de Queirós, Leminski, e
novos autores das redes sociais, deslocamo-nos do bucolismo harmonioso impressionista,
para os assombros da revolta urbana e virtual, enfim, de ambiente de luz para sombras do
caos urbano e para a virtualidade que à realidade esmaga. Esta apresentação traz resultados
práticos, lançando luzes sobre a estrita comunicabilidade entre diversas formas do fazer
artístico.
Palavras-chave: Literatura; pintura; Arte Visual.

Abstract: The objective of this research is to investigate characteristics of visual arts, such as
colors, volumes, shadows, which may be found in literary works. The text-image intersection
already appears in studies by Goethe, Kandinsky, Rimbaud, culminating in concrete poetry, in
visual, urban graffiti, until the advent of social networks as a vehicle for poetic dissemination.
The hermeneutic method seeks correspondences of suggestive textual descriptions and
presentations of visual schools. In the XVIII Century, for the purpose of description, authors
appropriated a rural landscape. Nowadays, an image is used in itself, or even a meme, can
substitute for the text. For this reason, in this research, several texts are compared to other
artistic manifestations throughout the 19th and 20th centuries onwards. Results were already
found in Eça de Queiroz and Impressionist painters, highlighting both elements of the text
and of the plastic work that intermingle in the appeal for colors and other visual elements,
minutely explaining specific paragraphs and canvases that reproduce similar effects. With a
focus on author's Eça de Queiroz, Leminski, and new authors in social networks, we move
from the impressionist harmonious bucolicism, to the hauntings of urban and virtual revolt, in
short, from an environment of light to shadows of urban chaos and to the virtuality with
which reality crushes. This presentation brings practical results, shedding light on the strict
communicability between different forms of artistic making.

1 Pós-graduação UFF e UERJ; Docente de Língua Inglesa e Literatura Comparada Universidade Santa Úrsula e Colégio Pedro II – RJ.

2021 | Vol. 1 | Página 285


Keywords: Literature; painting; Visual art.

Objetivo

Esta pesquisa investiga traços artísticos semelhantes em obras de artes plásticas e


obras literárias, de modo que uma relação direta ou indireta entre textos e imagens possam ser
estabelecidas, entre escritores e pintores de diferentes períodos. Objetiva-se verificar a
influência entre as diferentes manifestações do fazer artístico, em especial, a partir de obras
de Eça de Queiroz e suas inter-relações com pinturas impressionistas de Monet e Renoir. A
seguir, vestígios destas mesmas características são averiguadas em Leminski e na poesia
urbana, num breve percurso de tempo que culmina nas novas tendências de poesias para
meios virtuais. Que aspectos das artes plásticas e visuais podem ser encontrados na literatura
de Língua Portuguesa? Esta é a pergunta que norteia a análise desenvolvida.

Metodologia

Este artigo é um recorte de uma pesquisa maior, que serve de fundamentos para um
livro da autora. A pesquisa, iniciada em 1984, tem caráter contínuo e aqui será apresentada
uma pequena abordagem histórica. Diversos autores têm sido relidos e comparados a outras
manifestações artísticas em variados períodos históricos. Não apenas na relação
texto-imagem, como também, nas relações interdisciplinares do texto com outras expressões
artísticas como a dança, a música, o cinema e outras, as pesquisas literárias recentes têm por
foco uma relação interdisciplinar com o contexto artístico. No tocante a aspectos visuais,
desde a antiguidade é possível encontrar textos elaborados com requintes de distribuição
visual a fim de criar efeitos de disposição espacial além da linearidade da expressão
linguística.
Este é o caso, por exemplo, do poema “O Ovo” de Símias de Rodes, datado de 300
A.C., escrito em forma esférica artístico-literária, podendo ser considerado o primeiro poema
visual registrado. De modo semelhante, música e poesia caminharam lado a lado desde a
cultura grega antiga, quando a expressão poética era desenvolvida com o propósito de ser
apresentada, cantada e acompanhada por instrumentos. E a musicalidade manteve-se nas
cantigas de trovadores medievais. Somente após o século XVI, o texto escrito e impresso

2021 | Vol. 1 | Página 286


afastou-se das demais expressões artísticas para cunhar a arte literária fechada em livros.
Porém o texto verbal jamais deixou de descrever também o mundo por meio de elementos
visuais. Marcadamente com a chegada da arte moderna a partir do Impressionismo, novas
formas de descrever paisagens e até pensamentos acompanham novas maneiras de pintar o
mundo. Eça de Queiroz era engajado aos pintores impressionistas, com os quais, inclusive,
correspondiam-se frequentemente. E em suas obras mais tardias, principalmente, seus textos
caminham em paralelo com as características que formaram o novo movimento na pintura.
Assim, observando composições plásticas do impressionismo de Renoir e Monet,
destacam-se em textos de Eça tanto elementos do texto quanto da obra plástica que se
cruzam com espantoso efeito descritivo. A partir do Impressionismo, obras literárias
carregam traços de descrições paisagísticas no tocante a uso de cores, sombras, brilhos e
opacidades. Esta pesquisa analisou telas de pintores impressionistas e textos de Eça de
Queirós, explicitando parágrafos e telas específicas que reproduzem os semelhantes efeitos.
A metodologia comparativa tem sido aplicada a vários autores e possíveis correlações
intencionais também são alvo de estudo. Esta apresentação com alguns resultados práticos, já
observados e submetidos a questionários de verificação comparativa de achados, exemplifica
o progresso do estudo e análise e lança luzes sobre a estrita comunicabilidade entre diversas
formas de manifestação artística.
A partir da segunda metade do século XX, a culminar no movimento da poesia
concretista até a poesia visual, o diálogo texto-imagem avançou das descrições bucólicas para
ocupar os territórios urbanos e psicológicos. Leminski, por exemplo, é um dos autores cuja
obra envereda pelos caminhos visuais. Clarice Lispector, por outro lado, tem recebido maior
atenção e leituras acerca de suas obras em pintura. Conforme CORTEZ (2005) evidencia,
poetas e pintores movimentam-se num mundo de perspectivas, ou seja, num mundo estético e
de percepções subjetivas que podem ser manifestadas, artisticamente, em variadas linguagens
visuais, escritas, auditivas. Neste sentido, Cortez admite que leitores são conduzidos a um
mundo de quadros e cenários por intermédio das palavras. Partindo desse princípio, então, a
análise busca encontrar quadros e cenários descritos por palavras que possuam equivalência
em obras literárias.

2021 | Vol. 1 | Página 287


A Identidade espaço-tempo

José Maria Eça de Queiroz, escritor português, viveu entre 1845 e 1900, período
correspondente à Segunda Revolução Industrial e à Belle Epòque. Neste período, Paris é tida
como o glamour entre as cidades e o provincianismo é rejeitado. Por outro lado, a vida urbana
vai, cada vez mais, revelando-se conflitante entre a necessidade de uma aparência de
opulência entremeada de vícios morais, sociais, éticos e desvios velados. Estes “desvios”,
aliás, constituem o eixo central da escrita crítica e realista de Eça.
Eça de Queiroz, no contexto literário, logo emerge com sua obra de Realismo
implacável, instigante, aguçado e forte na ironia e descrição acurada que só se sacia no
universo das “verdades reveladas”. Crítico ardoroso de sua sociedade, o autor encanta e
assombra com a maestria peculiar aos poucos na precisão de seus temas e na desenvoltura
com que os desenvolve com sua linguagem. A obra dele é acima de tudo, uma denúncia.
Cabe-lhe o título de ícone mais expressivo do Realismo na Literatura Portuguesa. Eça de
Queiroz é um retratista fiel da sociedade portuguesa. Pode-se afirmar que Eça é o produto de
seu tempo. Porém suas obras de fase mais tardia passam a configurar um maior subjetivismo
e apelo a descrições de caráter sensorial.
Nas artes, dentro deste contexto histórico, em 1874, uma “Revolução” eclode no
cenário artístico, no coração de Paris, “símbolo da civilização” na época: Um grupo de jovens
pintores rompe com as regras clássicas de pintura vigentes, rompe com o realismo e a técnica
acadêmica (assim como Baudelaire também rompe na Literatura). Monet pinta “ Nascer do
Sol” e em abril de 1874, uma exposição reúne artistas “excluídos” pela elite acadêmica.
Vinte e sete artistas entre os quais Monet, Renoir, Sisley, Manet, Pissarro, Degas e Cézanne,
inauguram a primeira exposição Impressionista - deixando marcas profundas na sociedade,
que a princípio ria e ridicularizava a exposição, considerada um escândalo sem precedentes.
Surge o Impressionismo no período em que, por um lado, a vida acadêmica clássica
acusa sinais de cansaço. A pintura técnica se revela restrita e, consequentemente,
insatisfatória. Por outro lado, economicamente, o capitalismo organizado e racionalizado
dentro de um pensamento então positivista conduz ao império do desejo, à necessidade de
substituir tudo, até objetos de uso diário, por coisas novas, num crescente estímulo ao público

2021 | Vol. 1 | Página 288


consumidor a buscar novidades e dinamismo. O caráter mutável estava deflagrado na
sociedade.
E os artistas impressionistas capturam justamente essa noção de transitoriedade. Todo
fenômeno é retratado como passageiro e único. Sob essa ótica, constitui-se a premissa básica
da arte impressionista. Como a incidência do Sol em contínua mudança sobre um objeto, o
Impressionismo é focado na estética da luz e cor, seguindo modelo de acordo com o espectro
solar de Newton e o Tratado da cor de Goethe, segundo o qual nunca se vê um objeto em si,
mas, a luz refletida nele. Captura-se na imagem apenas o instante, a luz, e o movimento,
abandonando-se os contornos nítidos.
Os Impressionistas, em suma, conferem à realidade, e consequentemente ao dito
Realismo artístico, um novo caráter do inacabado. O Impressionismo almeja o ato subjetivo
da representação, ou seja, por intermédio da percepção: em outras palavras, valoriza-se o que
se vê e não que se conhece. A realidade passa a ser a realidade do que se percebe conforme a
exposição do motivo à luz. A partir da ótica impressionista, estabelece-se uma ambiguidade
na arte, pois a obra passa a revelar uma representação subjetiva e simbolista em encontro com
a objetividade realista. O impressionismo, contudo, não é um movimento de ruptura. Ele é
um diálogo entre Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, numa junção entre a
subjetividade, a percepção e a intuição com a objetividade e o empírico científico. O
Impressionismo registra as impressões que a realidade causa.
A partir de Os Maia, e com o concomitante surgimento do Movimento Impressionista
na pintura, a obra de Eça desenvolve aspectos subjetivos que se comparam a características
empregadas pelos pintores Impressionistas. “A Cidade e As Serras”, obra publicada após a
morte do autor, é um amplo exemplo de transição do Realismo para um movimento literário
moderno e subjetivo. O Impressionismo de Renoir, Monet e Manet encontra pinceladas
descritivas em textos de Eça de Queiroz, e, neste sentido, o autor pode ser considerado o
precursor na Literatura Portuguesa deste diálogo entre imagem e texto.
Na Literatura, contudo, não se consolidou oficialmente um chamado período
Impressionista como o foram o Romantismo, o Parnasianismo e tantos outros. O
Impressionismo não é tratado como um período literário. Não obstante, os traços marcantes

2021 | Vol. 1 | Página 289


da estética impressionista coabitam com vitalidade também em grandes romances e poemas
de também grandes autores da época.

Uma Literatura Impressionista

A linguagem Impressionista voltada para o estado de alma dos personagens,


mostrando-se a realidade por metáforas, ritmos evocatórios, por temas da vida cotidiana do
ser humano, frustrações, falta de comunicação, cansaço, erotismo, morte, lembranças,
memória, tempo perdido, e, principalmente, por uma linguagem que invoca e explora o
sensorial (visão, sons, tato, olfato, o gosto), sutilmente inseridos em descrições por meio de
uso disseminado de adjetivações.
Assim, Eça de Queiroz, em suas obras mais tardias, se liberta do modelo convencional
de Realismo e se volta para obras de cunho mais pessoal e subjetivo. Em “A Cidade e As
Serras”, romance publicado postumamente em 1901, ele, além da crítica ao capitalismo
burguês e ao Imperialismo, exalta o retorno à Natureza e a descrição de cenários com ênfase
em cores vivas, efeitos da luz solar e dos movimentos, com apoio nos adjetivos e advérbios
com uso simultaneamente sutil e crítico, comparações, metáforas e detalhes preciosos que
remetem o pesquisador também de Arte a estabelecer verdadeiros paralelos entre telas dos
consagrados pintores impressionistas e trechos da linguagem e da obra de Eça, conforme
exemplificado a seguir. Iniciamos com OS MAIA:

Afonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquela sombrinha


escarlate que agora se inclinava sobre Pedro, quase o escondia,
parecia envolvê-lo todo como uma larga mancha de sangue alastrando a
caleche sob o verde triste das ramas (QUEIROZ, 1924, p. 24).

Sob o olhar da pintura, como não associar a “sombrinha” ao famoso quadro “A


Promenade” – Mulher em Parassol, de Monet (Fig,1).

2021 | Vol. 1 | Página 290


Fig.1 Promenade, Mulher em Parassol, Claude Monet.

Além da captura de um estado de alma de reserva e tristeza no trecho de Eça, a obra,


assim como o quadro, destaca a sombrinha por meio da qual revela-se o efeito de luz e
sombra que quase se escondia, gerando uma descrição de imagem fugidia, embora
realisticamente vista. Não fosse o rosto “escondido”, destruir-se-iam todas as impressões da
cena. A sombra impressionista, aliás, é uma sombra impregnada de luz, de luz de alma: “a
ideia de sombra é simplesmente a de incluir as cores primárias, compor uma tonalidade
complementar às que estão ao redor”.
Em análise, as cores destacadas no texto são exatamente o verde e o vermelho, sendo
o verde a cor complementar do vermelho. Enquanto Monet pintou a sombrinha verde, Eça, a
descreveu escarlate, porém, em ambos, verde e vermelho estão presentes na composição das
obras, conferindo o efeito das cores complementares ao efeito da luz e sombra. Observando
ainda em detalhes minuciosos, encontra-se no canto inferior direito do quadro de Monet
flores vermelhas como “ uma larga mancha de sangue sobre o verde” .
Exemplo 2:

2021 | Vol. 1 | Página 291


O sol radiou: sob a brisa larga, que levava a névoa, toda a messe ondulou
numa lenta vaga dourada, em que se balançavam os esquifes; e, como
enorme papoula vermelha, rutilava o guarda-sol de paninho longo aberto
pelo sacristão para abrigar o abade. Jacinto tocou no meu cotovelo:
- Que lindos, vamos! Ora vê tu a Natureza...Num simples enterrar de ossos,
quanta graça e quanta beleza! (QUEIROZ, 1901, p.51).

A cena descreve a transposição dos restos mortais de antepassados do personagem


Jacinto, de uma capela que desabara para um novo mausoléu, motivo o qual se tornou
obrigatória a viagem do protagonista até as serras portuguesas e culmina com uma exaltação
à natureza.
Ao realizar a comparação entre o início do trecho com o quadro Soleil Levant, de
Monet, 1873, como não perceber semelhanças entre o barco solitário e triste e o esquife da
obra de Eça? A luz solar a irradiar, a sombra da névoa, o vento, o movimento das águas sob
ação dos ventos e marés, o balançar do barco, o balançar dos esquifes. Lembranças; imagens
e lembranças; imagens, lembranças e descrições parecem intercaladas, deslocando-se para o
que Bachelard (1993) define como ‘lembranças da imaginação’. Observemos agora a imagem
da figura 2, a seguir.

Fig.2 Soleil Levant – Nascer do Sol, Claude Monet.

Na continuidade do texto, novamente, aparece a menção a uma sombrinha (ou


guarda-sol), o uso das cores, o foco no vermelho primário, a citação às papoulas, como no
famoso quadro Campo de papoulas em Argenteuil, de Monet ( fig.3).

2021 | Vol. 1 | Página 292


Fig.3 Campo de Papoula em Argenteuil, Claude Monet

Exemplo 3:

Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverência. Na


natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas
folhas de hera que na verdura ou recorte, assemelhassem! Na cidade, pelo
contrário, cada casa servilmente a outra casa...Mas aqui! Olha para aquele
castanheiro. Há três semanas que a cada manhã o vejo e sempre me parece
outro...A sombra, o sol, o vento, as nuvens, a chuva incessantemente lhe
compõem uma expressão diversa e nova (QUEIROZ, 1901, p.34).

Nos trechos destaca-se uma crítica à arte clássica com sua rigidez dos traços
acadêmicos, por intermédio dessa diluição de repetição atribuída à real natureza. Ao contrário
dos críticos que se opuseram ao impressionismo, julgando os quadros como feios, a natureza
não tem contornos rígidos acadêmicos, não tem feiura, não tem repetição de formas. O
parágrafo de Eça, em releitura, descreve, justamente, a avaliação impressionista sobre a arte e
a crítica: “ duas folhas de hera na verdura não se assemelham”
Conforme já destacado no início deste artigo, o abandono dos contornos rígidos e
nítidos é marca do Impressionismo, ao buscar uma ênfase no instante, no transitório, no
movimento das formas sob o efeito da luz, os artistas convertem a ótica para a liberdade
impressionista, evitando o cansaço dos artistas diante da academia clássica. A expressão

2021 | Vol. 1 | Página 293


sempre diversa do mesmo objeto observado enfatiza o aspecto do mutável, e dinâmico, o
transitório, “ o que vejo e me parece”.
A cidade e a sociedade são alvos da crítica em seu aspecto mais acadêmico: o da
“repetição servil”, enquanto a natureza permite a expressão diversa, nova e dinâmica. Em
paralelo à natureza, acompanha-se a forte exploração do sensorial, conforme observado no
emprego dos termos a seguir: agarrava- tato; contorno - visão; olha o castanheiro -visão;
verdura - cor, visão. Quanto à menção hera, que melhor herança entre as casas de campo ou
de serra? A hera está na Casa de Eça em Tormes, e está nas telas “Casa do Artista em
Argenteuil e a Bordighera de Monet''.
No tocante ao castanheiro citado no texto, observado diariamente e descrito como
diferente a cada dia por três semanas, isto é, 21 visões diferentes do mesmo objeto, que
melhor comparação pode ser feita com as obras de cenas campestres de Monet, ou ainda
melhor, com a famosa série de 31 obras sobre a catedral de Rouen pintadas por Monet
durante 1892 e 1894 (fig.4). Trinta e uma visões diferentes da catedral pelo pintor, e vinte e
uma visões diferentes do castanheiro pelo escritor.

Fig.4 Catedral de Rouen, Claude Monet. Fonte internet. Domínio público

Exemplo 4:

2021 | Vol. 1 | Página 294


Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pátio, desembocávamos da
alameda de plátanos, e diante de nós se dividiam matutinamente, mais
branco entre o verde matutino os caminhos coleantes da quinta, toda a sua
pressa findava, e penetrava na Natureza, com a reverente lentidão de quem
penetra num templo (QUEIROZ, 1901, p. 51).

Diante do leitor, Eça de Queiroz nos descreve as alamedas e as cenas campestres de


Monet, na grande catedral, a Natureza!
Exemplo 5:

E recordo ainda quando me reteve meio domingo, depois da Missa, no


cabeço junto a um velho curral desmantelado, sob uma grande árvore – só
porque em torno havia quietação, doce aragem, um fino piar de ave na
ramaria, um mumúrio de regato entre as canas verdes, e por sobre a sebe, ao
lado, um perfume muito fino e muito fresco, de flores (QUEIROZ, 1901, p.
57).

A linguagem sensorial é notável ao tato, ao sabor, ao perfume, ao piar de ave


(tato, paladar, olfato, audição, visão). As impressões de todos os sentidos estão descritas
numa mesma frase! E as sinestesias mesclam os sentidos: aragem doce (tato e olfato),
murmúrio entre canas verdes (audição e cor ).
Quanto ao emprego de cores, estas se dividem matutinamente em belíssimo
emprego adverbial, entre o branco e o verde. Para os pintores impressionistas, “o branco é a
fonte da aquarela para se obter pequenos pontos de cor de que, combinados, surgem formas”.
É do branco que se forma a impressão do visível, em Eça exposto pelas luzes da manhã que
trazem o mutável e a diferenciação de luzes e cores.
Outro sinal da assinatura impressionista no trecho se destaca em ‘ o velho
curral desmantelado”, sinais de envelhecimento, de decadência, de marcas do tempo
impressas em objetos, caraterística essa que é uma das preferências do Impressionismo.
As cenas de Eça encontram semelhanças com Campos de Flores de Monet,
Campo de Milho de Sisley, Paysage avec Maisons de Sisley, Les Alyscamps de Van Gogh,
Jardim de Hortas de Van Gogh.
Exemplo 6. Zé Fernandes, personagem amigo retrata a decadência do protagonista
Jacinto:

2021 | Vol. 1 | Página 295


Reparei então que meu amigo emagrecera; e reparei que o nariz se lhe
afilara
mais entre duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansado.
Os
anéis de seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a
antiga serenidade de mármore bem polido...(QUEIROZ, 1901, p 58).

Seria Jacinto inspirado em “O palhaço de Renoir” (fig.5). As semelhanças,


principalmente em relação aos cabelos, são “impressionantes”.

Fig.5. O Palhaço, Renoir.

Século XX: Outro espaço, outro tempo, ou só movimento?

Com a expansão da imagem pela fotografia, cinema, televisão, o ritmo antes bucólico
e plácido cede ante ao acelerado passar das imagens pela tela tecnológica. O movimento é
veloz, mais rápido até nas imagens do que no tempo da leitura. A linguagem não verbal
recebe grande reforço nos meios de comunicação de massa. Destaca-se o que se vê de
concreto, formas que brincam ao mesmo tempo que exploram com a imagética: a palavra
vira a forma dos objetos, letras que se movimentam. Sim, o verbal vira suporte para se

2021 | Vol. 1 | Página 296


desenhar imagens e movimentos: poesia visual, concreta e cinética - a poesia desenha
figuras. Importa mais ver o elemento verbal do que ler o texto.
O Ovo de Símias de Rodes volta na forma da poesia de efeito de um grito de
incomunicabilidade de letras soltas do poema Pierre Garnier.

O Espaço tempo das ruas: Leminski

Nesse movimento chega-se ao espaço-tempo de Leminski e sua poética urbana, de


murais, de outdoors. Poética plástica e elástica na sua inquietação de redesenhar padrões
estéticos de modo a dar suporte à rua e aos muros como grande livro a ser pintado e escrito ao
ar livre. O mesmo ar livre impressionista, porém captando agora as questões ambientais e
geopolíticas. Os significados e sensações são expressos pelo movimento das palavras, pela
liberdade de linguagem, de pensamento, de forma, que variam desde combinações semióticas
às ambiguidades e polissemias. E pelas ruas, a poética de Leminski assume consciência do
plural e do diverso, sociedade múltipla e do território abandonado às margens da ordem
social.

2021 | Vol. 1 | Página 297


No meio do caminho depara-se com um mural, onde permanecem o apelo aos sentidos
da visão e luminosidade do ‘brilhante’, o apelo ao instantâneo, o apelo às cores de uma tela
de Raiar de sol impressionista, do mesmo céu vermelho e amarelo contra um chão escuro.

Na plasticidade, os reflexos da água e da palavra convergem na estética da tinta que


escorre líquida nas hélices do moinho ou que repousa na poça de água. Pode-se alegar que na
alusão ao Moulin Rouge e a Quixote adentramos na era de uma poesia líquida?
Da liquidez ao virtual... chegamos ao espaço tempo das redes sociais, da imagem do
eu lírico que grita por liberdade... liberdade, velho sonho que nos foge como vento, moinhos
ao vento dos tempos como nos inovadores “poememes” retirados do facebook de Marcelo
Mourão. Onde a poesia levará o homem, ao bucólico, ao urbano, a si mesmo, ou à eterna
busca pela libertação?

2021 | Vol. 1 | Página 298


Conclusão

Embora não se estabeleça canonicamente o Impressionismo como Movimento


Literário, Eça de Queiroz evidenciou com os contornos de uma escrita acadêmica toda a
liberdade da estética impressionista em suas paisagens e personagens de seus romances,
classificados resumidamente pela academia como apenas Realistas.
Seja esta influência intencional ou apenas inconsciente, não se pode negar que a obra
de Eça de Queiroz, principalmente em sua fase tardia, mantém elos explícitos de comparação

2021 | Vol. 1 | Página 299


com elementos que permeiam o movimento impressionista. Além de Eça de Queiroz, outros
exemplos de uma literatura impressionista podem ser reforçados nas obras Num bairro
moderno de Cesário Verde (poeta realista português); O Muro, soneto de Alberto de Oliveira
(poeta parnasiano brasileiro); Rústica soneto de Francisca Júlia ( poeta simbolista brasileira).
Resta a indagação: segundo alguns críticos, o Impressionismo não é um Movimento
de confronto com os demais modelos artísticos. De fato, traz uma nova impressão que se
aplica sobre o realismo, o simbolismo, o parnasianismo. Porém o Impressionismo também
trouxe inovações para a escrita, revolucionando o estilo dos escritores. Portanto, o
impressionismo deve ser classificado como um diálogo literário acadêmico? Como uma
grande revolução moderna?
Pode-se dizer que o Impressionismo resiste até hoje impulsionando os momentos, o
instantâneo eêmero de um mural visto sob um viaduto ao passar de um ônibus, ou mais ainda,
ao efêmero deslizar de likes entre centenas de postagens no feed de rede social?
Até onde chega o espaço tempo que tanto impressiona a condição humana?
As pesquisas que realizo no tema de inserção imagem-texto acompanham outros
autores e pintores e o presente artigo é fruto de resultados já encontrados apesar da ausência
de literatura específica sobre o tema. Neste aspecto, reside o caráter inovador deste trabalho,
já submetido à Sociedade Eça de Queiroz, Grupo de pesquisa de Pós-graduação da UFRJ e à
Academia Luso-Brasileira.

Referências

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1993.


CORTEZ, Clarice Zamonaro. Literatura e Pintura. In: Teoria Literária: Abordagens
históricas e tendências Contemporâenas. Maringá, EDUEM, 2005.
FERRAZ, Maria de Lourdes A. Visibilidade e Arte em Eça de Queiroz. Valinhos, Scripta,
2001.
QUEIROZ, Eça. A Cidade e as Serras. Porto, Livraria Chardros, Lelio e Irmãos Editora,
1901.
_______. Os Maia. Porto, Livraria Chardros, Lelio e Irmãos editora, 1924.

2021 | Vol. 1 | Página 300


SHAPIRO, Meyer. Impressionismo: Reflexões e Percepções. São Paulo: Cosac e Naify,
2002.

2021 | Vol. 1 | Página 301

Você também pode gostar