Friesen-Música Nordestina 3 Pecas Guerra Peixe
Friesen-Música Nordestina 3 Pecas Guerra Peixe
Friesen-Música Nordestina 3 Pecas Guerra Peixe
Elementos de música nordestina nas Três peças para viola e piano de César
Guerra-Peixe
Curitiba
2011
Rafael Ricardo Friesen
Elementos de música nordestina nas Três peças para viola e piano de César
Guerra-Peixe
Curitiba
2011
Ao autor e consumador da fé.
Agradecimentos
2.2. Localização cronológica das Três peças para viola e piano ............................13
3.4. Harmonia..........................................................................................................21
4. Elementos de música nordestina nas Três peças para viola e piano ......................22
1. Introdução
Em sua tese de mestrado Margareth Milani afirma que “situar a obra de
um compositor brasileiro sob um ponto de vista científico, interpretativo e
performático, é resgatar a memória cultural deste músico e do país” (MILANI, p.
14). Executar essa tarefa com uma obra de um compositor que “renovou a
corrente nacionalista” (ibidem) é um dos passos que podem ser dados.
César Guerra-Peixe é um dos compositores que poderia receber mais
atenção dos pesquisadores, da literatura musical e de intérpretes. Pelos cargos
que ocupou, pelas obras que compôs e por ter buscado apresentar elementos
que caracterizassem o nacional – não em âmbito que englobasse o país
inteiro, mas uma porção importante dele – seu nome poderia figurar com maior
frequência nos meios de divulgação musical.
Na presente pesquisa tem-se por objetivo dar mais um passo na tarefa
de valorizar a música nacional, especialmente a de Guerra-Peixe, indicando
quais elementos são comuns entre as Três peças para viola e piano e a música
nordestina característica, especialmente aquela comum durante meados da
década de 1950, por ter sido próximo a este período que o compositor fez uma
“imersão” na cultura da região.
Uma revisão de literatura foi feita e temas como a evolução estilística de
Guerra-Peixe, sua relação com os escritos de Mário de Andrade, a estilização
do folclore em suas obras e elementos biográficos foram encontrados em
diversos autores. O envolvimento do compositor com o movimento armorial de
Ariano Suassuna foi brevemente apresentado, bem como a localização
cronológica das Três peças para viola e piano.
Após a revisão de literatura foram pesquisados modos, melodia, ritmo e
harmonia nordestinos. Em breve análise das Três peças foram pontuados
elementos comuns entre a música nordestina e as obras em questão.
9
2. Revisão de literatura
Muito embora possa receber uma maior atenção, tanto a trajetória de
César Guerra-Peixe quanto parte de suas obras foram seriamente pesquisadas
por alguns autores. Sua habilidade composicional e a busca pela arte
nacionalista renderam-lhe reconhecimento, tornando-o objeto de estudo de
diversos pesquisadores. Boa parte dos trabalhos encontrados tem seu foco na
pesquisa feita pelo compositor no Nordeste do Brasil ou na sua evolução
estilística.
Antonio Emanuel Guerreiro de Faria Jr. associa a evolução estilística de
Guerra-Peixe com o pensamento de Mário de Andrade (FARIA JR., 1997, p. 5).
Os textos deste foram citados pelo próprio compositor como sendo influência
em seu trabalho. Faria Jr. cita o curriculum vitae do compositor (ibidem, p. 69) e
as palavras de Edino Krieger (ibidem, p. 85) para embasar a afirmação de que
Guerra-Peixe compunha sem copiar os temas folclóricos, característica
também encontrada no trabalho de Mozart Camargo Guarnieri (FIALKOW,
1995, p. 14). Em Guerra-Peixe: sua evolução estilística à luz das teses
andradeanas o autor escreve que entre 2 de abril de 1949, “data de conclusão
da última peça dodecafônica, e junho deste mesmo ano, operou-se a mudança
de ordem estética que encaminharia Guerra-Peixe para a Fase Nacional, e que
foi a definitiva até o final de seus dias”. O ano considerado aquele no qual se
inicia a fase nacionalista do compositor é este.
Faria Jr. menciona, também, que mesmo na fase dodecafônica de
Guerra-Peixe o compositor já buscava uma linguagem nacional, usando do
dodecafonismo apenas como ferramenta de composição. O autor diz que
os meios dos quais Guerra-Peixe se valia para tentar assegurar
uma maior comunicabilidade, se aproximavam mais e mais da
organização de um código específico – não necessariamente
tonal, atonal, ou serial – que fundamentava sua
comunicabilidade em referenciais estranhos ao dodecafonismo,
a saber: a repetição de motivos e células; a fixação de
elementos temáticos através do ritmo; e o estabelecimento de
pontos referenciais na harmonia como orientação para o
ouvinte, sem que estes referenciais passassem por
'hierarquias' tipo Dominante-Tônica (FARIA JR., 1997, p. 21).
A estilização do folclore na composição de Guerra-Peixe é o título
da dissertação de mestrado de Randolf Miguel. Ele aponta neste trabalho as
principais pesquisas realizadas por Guerra-Peixe, as principais obras com
temática folclórica e demonstra processos de estilização usados por este nas
suas composições. Além das três distintas fases composicionais de Guerra-
10
1 Faria Jr. (1997, p. 11) também corrobora as 3 fases distintas na produção de Guerra-Peixe.
2 O termo “processo de eliminação” é usado aqui pelo fato de que outros compositores já vinham
usando material do populário brasileiro para compôr obras nacionalistas, como, por exemplo, Villa-
Lobos. Guerra-Peixe buscava algo que não tivesse sido usado ainda.
11
povo. As raízes para isso, de acordo com este ensaio, estavam na música
popular. Segundo o autor “a música popular brasileira é a mais completa, mais
totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça até agora”(ANDRADE,
1972, p. s/n).
Embora defendesse a música popular e o folclore como fonte, Mário de
Andrade fazia diferenciação entre a música do povo e a música artística 3. Ele
dizia que “música artística não é fenômeno popular, porém desenvolvimento
deste”(ibidem, p. s/n), e que essa música deveria, sim, ter a harmonia baseada
nos conhecimentos históricos europeus, pois os processos harmônicos
populares brasileiros são “pobres por demais”. Andrade defendia a ideia de que
a música artística em países onde a cultura aparece “emprestada”, como nas
Américas, tanto as pessoas, como a arte nacionalista teriam 3 fases: da tese
nacional, do sentimento nacional e da inconsciência nacional. A ideia é que
apenas nesta última a arte e o indivíduo culto sentem o nacional como sendo
seu, de forma sincera e convicta.
Faria Jr. mencionou crer que o fato de Guerra-Peixe ter se envolvido
através de observação, estudo, leitura e conversas possivelmente tenha sido a
primeira fase proposta por Mário de Andrade. O próprio compositor comenta,
em carta a Mozart de Araújo, que deveria compor suítes por algum tempo, para
explorar todos os ritmos então aprendidos, para, depois de empregá-los muito
em sua forma elementar, usar de forma diluída este material. Novamente
citando Faria Jr., “o que Guerra-Peixe buscou nesta fase de 'enculturação',
parece ter sido o domínio de uma técnica própria que lhe permitisse a
manipulação do material folclórico de maneira mais livre, mas sem perda das
características que o compositor considerava principais”(FARIA JR., p. 39).
2.1. O Movimento Armorial
Ariano Suassuna foi fundador de um movimento denominado Armorial.
Este movimento teve apoio de alguns artistas e escritores do Nordeste
brasileiro e iniciou-se no meio universitário, com apoio da Universidade Federal
de Pernambuco. Logo foi apoiado também pela Prefeitura de Recife e pela
Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. Foi lançado oficialmente
em 18 de outubro de 1970, com um concerto e uma exposição de artes
plásticas. A palavra “armorial” é derivada de “armadura”, sendo esta última o
3 Em Ensaio sobre a música brasileira não é possível encontrar o termo “música erudita”. Em vez disso
o autor usa o termo “música artística”.
12
força suficiente para resistir ao tempo (FARIA JR., p. 26). Como reparou que as
obras baseadas na música nordestina eram pouco aprofundadas, e também
por insistência de Mozart de Araújo, com quem travou calorosas discussões a
respeito do problema do caráter na música nacional, Guerra-Peixe enxergou no
Recife uma boa perspectiva.
Recém-casado o compositor mudou-se para Pernambuco em dezembro
de 1949, onde deixou-se ser “enculturado”, ou seja, sofrer influência da cultura
naturalmente, através de diversos meios, como leitura, conversas e
observações. Segundo Faria Jr. (p. 39), “o que Guerra-Peixe buscou nesta fase
de 'enculturação', parece ter sido o domínio de uma técnica própria que lhe
permitisse a manipulação do material folclórico de maneira mais livre, mas sem
perda das características que o compositor considerava principais”. Seu
período de pesquisa no Nordeste, resultou no livro Maracatus do Recife,
editado em 1955.
Como o compositor não buscava copiar o folclore, mas escrever à moda
deste, trazendo seus elementos à música artística, é possível que ele tenha
encontrado um problema apontado por Schoenberg em Style and Idea, de
1950, que era o da dicotomia entre a elaboração dos temas populares na
música de concerto, que necessita de estruturas maiores. Talvez por conta
disso Mário de Andrade sugira o uso de suítes, que seriam obras menores,
porém que não deixam de ser artísticas. Aparentemente Guerra-Peixe se utiliza
disso para desenvolver sua técnica. Ele afirma ter precisado fazer um
“artesanato nacional”.
Entre o final de 1951 e abril de 1954 ocorre um hiato na produção de
Guerra-Peixe. Nesse período ele volta a se estabelecer em São Paulo e opta
por parar de compor por um tempo, para perder o “vício do
dodecafonismo” (FARIA JR., p 59). Quando volta a trabalhar o folclore
nordestino, já neste estado, o compositor diz fazê-lo de uma maneira “mil vezes
melhor”. É nessas circunstâncias que as Três peças para viola e piano são
escritas, em 6 de janeiro de 1957 e dedicadas a Perez Dworecki.
16
7 Para exemplificar a crítica feita por Guerra-Peixe poderíamos tomar a lei da gravidade, formulada por
Isaac Newton. A gravidade sempre atuou sobre os corpos, independente da descoberta do físico, ela
não passou a ser atuante somente após sua percepção. Da mesma forma a utilização dos diversos
modos poderia ocorrer independente da documentação destes.
8 A carta régia escrita por Dom João, em 1808, autorizava a abertura dos portos do Brasil ao comércio
com nações amigas de Portugal.
9 O autor afirma que essas escalas pentatônicas nada tem a ver com a escala chinesa.
18
b) II modo ou lídio:
Este terceiro modo nada mais é que a mescla dos dois primeiros, e,
segundo José Siqueira, deve ser considerado o modo nacional, por não ter
equivalente histórico com os modos eclesiásticos.
Siqueira apresenta a série harmônica como sendo a razão acústica pela
qual os modos tenham se fixado no populário. As duas primeiras alterações
encontradas na série, se comparadas ao modo maior tradicional, são
justamente as notas alteradas encontradas nos modos acima:
Além dos três modos acima o mesmo autor ainda cita aqueles que
seriam como “relativas”, por iniciarem no VI grau dos recém citados modos:
a) I modo alterado ou frígio:
Embora seja possível ter uma impressão de que os três primeiros modos
sejam equivalentes do modo maior e os três últimos modos, equivalentes ao
modo menor, tal comparação deve ser evitada. Em Caboclinhos do Recife, à
página 150, Guerra-Peixe afirma ter ouvido tão somente “melodias modais,
medievalmente, arcaicamente modais na concepção, ainda que
nacionalizadas”. Portanto, apesar de tentadora, a comparação com os
tradicionais modos europeus deve ser evitada, para que não se saia do âmbito
modal e acabe indo ao tonal. José Siqueira reforça esse argumento, afirmando
que o sistema modal da música folclórica brasileira acaba com princípios da
tonalidade clássica. Em O sistema modal na música folclórica do Brasil afirma
que escalas maiores e menores, diatônicas ou cromáticas são substituídas
pelos modos citados acima. Também afirma que as classificações tradicionais
dos acordes desaparecem, e que devem ser chamados como “acordes de 2
sons”, “acordes de 3 sons”, etc, sendo possível começar e terminar qualquer
música com qualquer acorde. Além disso, segundo este mesmo autor, as
cadências harmônicas são suprimidas, e qualquer acorde servirá para terminar
um membro de frase, uma frase ou um período. Por não haver mais a
tonalidade clássica também não ocorrem mais as modulações, apenas
passagens de um modo a outro, denominadas “transporte” ou “mudança”.
Em A influência africana na música do Brasil Guerra-Peixe (1985, p. s/n)
afirma que uma escala é uma sequencia de tons e semitons, mas modos são
maneiras melódicas.
Segundo Mário de Andrade a riqueza dos modos brasileiros não se
restringe aos mencionados acima. Ao citar Eduardo Prado e Manuel Quirino ele
afirma que a utilização das escalas hexacordais é bem frequente, além de
melodias que evitam sistematicamente a sensível (ANDRADE, 1972, p. s/n).
3.2. Melodia
Quando escreve sobre melodia Mário de Andrade utiliza o termo
“serelepe” como um dos adjetivos bastante comuns do caráter da nossa lírica
popular, remetendo à alegria das sonatas e tocatas do séc. XVIII italiano. Cita,
também, o apreço pela mediante como nota final das melodias, ao invés da
tônica usual da música europeia.
O autor descreve a nossa linha melódica como sendo afeiçoada às
frases descendentes, característica defendida também por Wagner Ribeiro em
20
10 Termo francês do capitalismo, que diz que o mercado deve funcionar livremente, sem interferência.
No contexto Mário de Andrade usa essa expressão como indicativo de que há liberdade rítmica.
21
(1965, p. 31), cita que na música brasileira ocorre a predominância, mas não a
exclusividade, do compasso binário, além de síncopas integradas na melodia e
no primeiro tempo dos compassos binários. O autor descreve a síncopa
brasileira como sendo muito sutil, e que ela frequentemente “desaparece em
tercinas ou em três notas iguais, acentuando ou não a segunda” (ibidem, p. 31)
nota.
No mesmo texto é possível encontrar a informação de que a ausência
de ritmo em músicas do Nordeste é característica marcante. Nestas músicas o
canto apresenta-se como uma conversa despreocupada.
As liberdades rítmicas permitem, inclusive, a oscilação do acento de tal
forma que se tenha a impressão de que duas fórmulas rítmicas diferentes
estejam sendo executadas simultaneamente. Como exemplo podemos tomar
três compassos 4/4 e quatro compassos 3/4. A acentuação oscilará, tendo o
tempo forte a cada três tempos neste e a cada quatro tempos naquele, mas ao
fim dos compassos o primeiro tempo de ambos seria simultâneo, como vemos
abaixo.
11 De acordo com o texto os gregos faziam música pela adição de pulsações, ao invés de manter um
número pré-definido de pulsações que se repetem, como no compasso europeu.
22
Esta célula rítmica do piano permanece por quase toda a peça, de forma
similar a um ostinato. Este toque 14 começa a ser dissolvido somente a partir do
compasso 14, e ainda com uma reapresentação um pouco variada nos dois
últimos compassos, como mostrado abaixo:
14 Em Maracatus do Recife temos a informação de que o termo “toque” é uma designação popular para o
acompanhamento, especialmente seu ritmo.
24
15 O termo “corda solta” indica que a corda foi tangida sem que ela tenha sido pressionada pela mão que
faz os acordes no braço do instrumento.
25
José Maria Rocha e Alceu Maynard Araújo foi possível constatar dois sistemas
de afinação que coincidiam com o ré sendo a nota mais grave da viola
nordestina e o sol a segunda nota mais grave.
O primeiro sistema de afinação é denominado “cana verde” ou “cururu”,
e de acordo com Alceu Maynard de Araújo é um sistema dos mais simples,
usado para a cantoria. Consiste nas seguintes notas:
16 As arcadas para cima costumam ser usadas em notas de menor acento, e as arcadas para baixo em
notas mais acentuadas.
27
17 A transcrição utilizada por Guerra-Peixe nessa pesquisa foi literal, tal qual a pronúncia do povo. No
caso citado as palavras “encelência”, “encelença”, “incelência”, “incelença”, “insalência” e
“insalença” significam “excelência”.
18 De acordo com o populário essa parada deve ser breve, para que o Diabo não venha tentar o “extinto”.
31
19 Gymel, ou cantus gemellus, era o nome dado à adição de um canto diferente da melodia litúrgica,
como o cantus firmus do séc.XII. Diferente do déchant francês, o cantus gemellus inglês adicionava
uma terça superior e outra inferior à melodia. Posteriormente a terça inferior foi transposta uma oitava
acima dando origem ao faux-bourdon, ou falso baixo.
32
nota do compasso 14 sendo sol natural. Isso segue até o compasso 16, onde
temos um trecho “modulatório”, que termina no centro modal, como visto
abaixo.
20 O Daomé era um reino africano situado onde agora é o Benin. Fundado no século XVII, permaneceu
até final do século XIX, quando foi conquistado pela França.
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diferença está na densidade, uma vez que nesta reapresentação as notas são
executadas forte e em oitavas e acordes numa região média e grave. Enquanto
isso a viola tem o tema melódico do compasso 4 transportado para outro centro
modal.
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5. Considerações finais
Embora tenha sido possível encontrar algumas características comuns à
música nordestina e à música brasileira em geral, o compositor não deixou
indicação alguma sobre o timbre na partitura das Três peças. Talvez seja
possível notar, na execução da viola, uma referência sutil do “anasalado
emoliente” e o “rachado discreto” que Mário de Andrade afirma serem
constantes na voz brasileira inclusive com algum cultivo. A percussão dos
tambores no candomblé pode ser lembrada também através do bater dos
martelos do piano nas cordas, mas também sem nenhum tipo de afirmação por
parte do compositor.
Wagner Ribeiro, citando Luís Correia de Azevedo, nos informa que não
existe uma harmonia propriamente brasileira, apenas processos que se
tornaram capazes de caracterizar a música brasileira, por serem empregados.
José Siqueira também afirma essa incapacidade de se avaliar a harmonia na
música do Brasil ao afirmar que a nomenclatura tradicional deve ser evitada e
que qualquer acorde serve para começar ou terminar uma obra. Baseado nisso
foram evitadas análises harmônicas, com poucas exceções, estas estando
presentes apenas como menção.
No que tange ao ritmo foi possível constatar a afirmação de Mário de
Andrade de que os nordestinos usam elementos essenciais da prosódia da fala
na música, e que uma certa liberdade rítmica contínua é característica comum
no canto dessa região. Wagner Ribeiro apresenta a informação de que a
ausência de ritmo é uma característica nordestina marcante, como se o canto
fosse uma conversa despreocupada.
Ao escrever sobre melodia Mário de Andrade afirma a afeição desta a
uma linha descendente, e com apreço pela mediante como nota final.
No capítulo anterior foi possível constatar a utilização de alguns destes
elementos comuns à música nordestina. Na primeira das Três peças, um
Allegretto moderato também conhecido por “baião de viola”, a parte do piano
apresenta um ritmo marcado como o utilizado por cantadores nordestinos.
Além do ritmo foi possível notar a utilização de duas notas graves e longas no
piano, ré e sol. Estas notas são comuns a dois sistemas de afinação da viola
sertaneja, uma denominada “cana verde” ou “cururu” e a outra chamada de
“oitavado” ou “de guitarra”.
Neste Allegretto moderato foi possível indicar a utilização do II modo
47
três obras, pois Guerra-Peixe usou, em sua maioria, o modo eólio, passando
apenas brevemente pelo II modo alterado, também conhecido como dórico.
Em linhas gerais foi possível constatar que o compositor em questão
utilizou-se de elementos característicos da música nordestina, em especial os
modos e o ritmo. Tais elementos foram adaptados em obras de linguagem
erudita através de: mudanças de centros modais - que podem ser interpretados
como uma espécie de modulação, variações rítmicas, utilização de uma
estrutura mais comum às salas de concerto e âmbitos de alturas similares às
dos sertanejos.
Pesquisar sobre o trabalho de músicos pátrios poderia se tornar um
dever em nossas universidades, pois isso poderia fomentar o conhecimento da
riqueza cultural dessa nação. Com maior desenvoltura poder-se-ia reduzir a
lacuna de conhecimento existente a respeito dessa cultura. Um exemplo dessa
lacuna é apontado por Milani ao citar o índice temático de Griffiths na
Enciclopédia da música do século XX (MILANI, 2008, p. 15). Neste índice o
único compositor brasileiro apresentado é Heitor Villa-Lobos.
As Três peças foram compostas em uma época em que a música
nordestina ainda não havia sido muito explorada como fonte de “brasilidade”, e
Guerra-Peixe realizou parte do trabalho de divulgação dessa riqueza. De forma
similar a presente pesquisa poderá ser útil para reduzir a lacuna de trabalhos
sobre a obra do compositor e suas fontes, bem como para propiciar uma
consequente interpretação mais apurada.
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REFERÊNCIAS
AGUIAR, Ernani. Resenha. Disponível em: <http://www.guerrapeixe.com/cd/
cd04.html>. Acesso em 14 de fevereiro de 2011.
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª ed. São Paulo:
Vila Rica; Brasília: INL, 1972.
______. Três peças para viola e piano. Rio de Janeiro: Academia Brasileira
de Música- Banco de Partituras de Música Brasileira, 2006.
IANSÃ, Angela da. Nação Jeje no Brasil. 2008. Disponível em: <http://
angeladaiansa.blogspot.com/2008/09/nao-jeje-no-brasil.html>. Acesso em 04
de janeiro de 2011.
LEITÃO, Claudia Sousa. Por uma ética da estética: uma reflexão acerca da
“Ética Armorial” Nordestina. Fortaleza: UECE, 1997.
MED, Bohumil. Teoria da música. 4ª ed. rev. e ampl. Brasília: Musimed, 1996.