MOMBAÇA, Jota, Pode Um Cu Mestiço Falar

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26/04/2016 Pode 

um cu mestiço falar? — Medium

PODE UM CU MESTIÇO FALAR?

por Jota Mombaça*

“Eu não vou mais sentir vergonha de existir. Eu vou ter minha voz: indígena,
espanhola, branca. Eu vou ter minha língua de serpente — minha voz de
mulher, minha voz sexual, minha voz de poeta. Eu vou superar a tradição de
silêncio.” Gloria Anzaldua

Grada Kilomba (2008), em seu ensaio “The Mask — Colonialism, Memory,


Trauma and Decolonization”, procura re-contar politicamente uma memória
reiteradamente produzida durante sua infância a respeito de uma máscara
usada por ordem dos senhores escravocratas brancos pelos negros
escravizados para impedir que, nas plantações, comessem a cana-de-açúcar e
o cacau.

“Era composta por um pedaço de ferro, colocado na boca do sujeito Negro,


apertado entre a língua e a mandíbula, e preso por trás da cabeça por duas
faixas: uma em torno do queixo e a segunda envolvendo o nariz e a testa.”1

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No entanto, prossegue Kilomba, antes mesmo do controle do senhor branco


sobre a plantação de cana-de-açúcar ou cacau, essa máscara revela um efeito
ainda mais violento: o de implementar um sentido de mutismo associado à
boca dos negros escravizados, territorializando esse órgão como um lugar de
tortura. Nesse sentido, trata-se, mais bem, de uma máscara de não-fala (mask
of speechlessness) que simboliza o brutal regime de silenciamento dos sujeitos
negros no contexto da dominação colonial e, por extensão, a colonização
branca como um todo.

É por meio dessa territorialização da boca dos escravos como lugar do


interdito da fala que o colonizador branco garante o controle sobre o mundo
conceitual escravocrata. Em outras palavras, o silenciamento dos sujeitos
negros permite que a fala colonial branca se consolide como verdade sem a
interferência de discursos contrários. A inviabilidade de manifestação da fala
negra é a condição por meio da qual o sujeito branco se reproduz. Assim é
que, no marco do racismo, o sujeito branco depende da produção arbitrária
do sujeito negro como “Outro” silenciado para se constituir, atualizando, a
partir do binômio branco/negro, uma série de outras fórmulas binárias tais
como bem/mal, certo/errado, humano/inumano, racional/selvagem, nas
quais o negro não cessa de ser representado como mal, errado, inumano,
selvagem. Dessa maneira, não é jamais o sujeito negro que está em questão,
mas as imagens e narrativas dominantes produzidas desde um ponto-de-vista
colonial acerca dele.

Noutro ensaio, chamado “Who can speak — Speaking at the centre,


Decolonizing knowledge”, Kilomba associa a imposição da não-fala ao negro
escravizado aos regimes de produção de saber acadêmico que tem,
historicamente, produzido um marco epistemológico nas ciências humanas o
qual engendra um tipo de saber sobre os povos africanos sem que o saber dos
povos africanos, ele mesmo jamais seja levado em conta. Esse marco consiste
numa sorte de paradigmas e metodologias consolidadas que procuram definir
que conhecimentos são reconhecidos enquanto tal e quais não; que
conhecimentos compõe a agenda acadêmica; quem pode ser reconhecido ou
não como detentor de conhecimento; quem pode ensinar; e, no limite, quem
pode falar. Walter Mignolo (2009) afirma que “a epistemologia ocidental
escondeu sua própria geo e corpopolítica” e que é precisamente essa
dissimulação das implicações políticas do fazer-conhecimento na tradição
eurocêntrica o que torna possível a constituição de um saber colonial, que,
desde uma suposta neutralidade, “delineia mundos e seus problemas,
classifica povos e os projetos que são bons para eles”2. Consiste, portanto,
numa operação que visa forjar um sujeito do conhecimento pretensamente
não afetado pelas disposições geo-políticas de um mundo organizado por

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hierarquias coloniais, nem pelos efeitos de sociedades marcadas por uma


corpo-política que privilegia uns tipos de sujeitos em detrimento de outros.

Kilomba, a respeito dos africanos na academia, escreve que “historicamente,


este é um espaço no qual nós temos sido calados e onde acadêmicos brancos
têm podido desenvolver discursos teóricos que oficialmente constroem a nós
como o ‘Outro’ — posicionando os africanos em completa subordinação ao
sujeito branco”3. Na esteira de Kilomba, devemos procurar reconhecer
criticamente o fato de que a ciência não é neutra e universal como pretendem
os projetos eurocêntricos de modernidade, sendo que dissimula seu caráter
local e sua parcialidade, de modo a produzir um certo regime de verdade que
não cessa de des-realizar teorias e formas alternativas de fazer conhecimento,
inscrevendo sujeitos não-hegemônicos e suas formas desviantes de produzir
saber em efeitos de subalternidade.

Para uma abordagem interseccional da academia como espaço de violência,


invoco a leitura do belíssimo manifesto da antropóloga americana Esther
Newton (1987), a respeito de sua experiência, como feminista lésbica, com a
lesbofobia acadêmica ao longo de sua trajetória de estudos. A partir de um
relato das inúmeras ocasiões em que seu trabalho foi excluído de projetos
editoriais e desvalorizado no âmbito dos departamentos por onde passou, a
autora reflete sobre como a lesbohomofobia institucional se manifesta
furtivamente, por meio de uma articulação silenciosa, que mobiliza jargões do
discurso científico consolidado para concretizar uma exclusão que se expressa
mais pelo não-dito que pelo propriamente dito.

“A continuidade em meu primeiro trabalho me foi negada. A demissão me fez


sentir como uma burra. O processo foi secreto, mas, privadamente e como um
favor, a diretora do departamento me disse que algumas pessoas tinham
problemas com minha ‘personalidade’. Também havia dúvidas sobre meu
‘compromisso com a antropologia’. Foi como o ameaçador encontro que havia
tido com a decana da faculdade: ‘Estás fazendo algo mal e não direi o que é,
embora nós duas saibamos’.”4

A partir de um descentramento que conduz nossa linha-de-visão àquele ponto


até então produzido como cego, a universidade se revela, mais bem, um
espaço de violência e de geração de conteúdos dominantes, que não cessa de
produzir como ausentes certas vozes para que ecoem outras, nublando formas
alternativas de conceber o saber e sua relação com o mundo, para que se
consolidem regimes de verdade dentro dos quais a subalternidade só pode ser
construída como lugar de impotência — onde não há conhecimento e nem
fala.

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Para situar essa abordagem no contexto brasileiro, devemos considerar, ainda,


o ambiente escolar como espaço de reiterações normativas violentas e, por
extensão, de silenciamento da diferença. Tomando a dissidência de gênero
como marcador de diferença, Berenice Bento (2011), em seu texto “Na escola
se aprende que a diferença faz a diferença”, cunha o termo “heteroterrorismo”
para referir-se ao modo como o regime político da heterossexualidade, ao
produzir no máximo dois gêneros inteligíveis, lança continuamente os corpos
fora desse cálculo num mundo de exclusões e violência, do qual a escola é um
dos principais espaços de reprodução.

“A escola, que se apresenta como uma instituição incapaz de lidar com a


diferença e a pluralidade, funciona como uma das principais instituições
guardiãs das normas de gênero e produtora da heterossexualidade. Para os
casos em que as crianças são levadas a deixar a escola por não suportarem o
ambiente hostil, é limitador falarmos em ‘evasão’.”5

Se consideramos o fato de que, no caso de pessoas trans*, a frequência escolar


se torna, por diversas vezes, inviável, dadas as inúmeras violências físicas e
simbólicas às quais essas pessoas estão expostas nos espaços de estudo que
frequentam, o que implica elevados indíces de evasão (melhor seria dizer
“expulsão”) escolar entre sujeitos incorfomes com o ideal binário de gênero,
como poderíamos mensurar a ausência dessas pessoas nos âmbitos
acadêmicos?

Mensurável ou não, esta ausência de vozes trans* nas universidades não cessa
de ser reiterada e produzida ativamente por procedimentos acadêmico-
políticos. Em conversa no facebook, na qual propus a viviane v. que lesse e
comentasse os parágrafos acima (a respeito das experiências
gênerodissidentes em espaços escolares), ela me disse concordar com a
abordagem, apesar de sua relutância quanto ao uso exclusivo do prefixo
“hetero” onde, para ela, há “cisnormatividade” e “cisterrorismo”, uma vez que
o que está em jogo, no ambiente escolar, são muito mais as performances de
gênero que aquelas ligadas à sexualidade. Dessa maneira, v. registra sua
opção por uma categoria analítica marginalizada no interior dos debates
acadêmicos sobre transgeneridade — conforme ela mesma observa em seu
ensaio “De uma renúncia e de resistências trans anticoloniais” (2013):

“Há pessoas trans* fazendo teoria mundo afora, apesar de aqui no Brasil, por
todos condicionantes sociais excludentes que conhecemos, estas presenças
ainda serem muito pontuais e com pouco poder de decisão: ainda assim, onde
estão elas nos referenciais bibliográficos quando se abordam questões trans*?
Por sua vez, algumas pessoas se gabam de suas habilidades em línguas
coloniais+imperialistas, como o francês e o inglês: onde estão as traduções

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das produções de pessoas trans* mundo afora? Onde estão, afinal, as


referências que menciono ao falar da transfobia na teoria em uma tradução de
Katherine Cross (http://bit.ly/1ah0k0w): Riki Wilchins, Susan Stryker, Sylvia
Rivera, Julia Serano, Vivian Namaste, Dean Spade, Paisley Currah, Pat Califa,
Stephen Whittle, Carol Riddell, Lou Sullivan, Jay Prosser, Tobi Hill Meyer, Emi
Koyama, Joelle Ruby Ryan?

E quando apontamos estas insuficiências, e quando apontamos estas falhas, e


quando apontamos as exotificações de pessoas trans* e gênero inconformes
nos mais diversos meios (especialmente o acadêmico, em meu caso), e
quando procuramos utilizar a cisgeneridade como categoria analítica para
pensar a normatividade de identidades de gênero (similarmente a como
utilizamos heterossexualidade), e quando reclamamos de pronomes mal
utilizados, nossas críticas parecem se revestir de um ‘ou tudo ou nada’, de
‘muita agressividade’, de ‘emotividade’, de ‘estarmos elegendo os inimigos
errados’.”6

Percebe-se, a partir tanto do comentário de viviane v. via facebook quanto de


seu ensaio supracitado, o modo como essa disputa em torno do uso de
conceitos é um dos muitos espaços de tensão onde, apesar dos crescentes
esforços num sentido contrário, a ausência de pessoas trans* nos espaços
acadêmicos é reiteradamente produzida: afinal, a opção conceitual da travesti
mestranda, enunciada através de um canal informal (o facebook, mas
também o academia.edu, fonte desqualificada, sem Qualis), não tem valor
científico e, portanto, é incapaz de produzir consistência por si mesma no
interior de um debate acadêmico, sendo envolvida num efeito de
subalternidade que a silencia no âmbito mesmo dos estudos acerca das
experiências trans*.

Sales Augusto dos Santos (2010), a respeito dos efeitos do Sistema de Cotas
na formação de quadros discentes nas Universidades Públicas do Brasil,
evidencia uma disputa acadêmico-política em torno do controle da produção
de conhecimento sobre a questão racial brasileira implicada na efetivação
dessa política pública. O autor procura demonstrar o modo como
“historicamente, os intelectuais brancos da área de pesquisa e estudo sobre
relações raciais brasileiras controlaram a agenda dessa área”, impondo, de
forma latente, “aos pouquíssimos intelectuais negros (dessa área) o que e
como estes deveriam pesquisar e como deveriam divulgar as suas pesquisas
nessa área de estudo”7.

“O surgimento de uma quantidade significativa dos negros intelectuais nas


universidades nacionais, especialmente nas áreas de ciências sociais,
educação e história, proporcionou olhares diferentes sobre a questão racial

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brasileira. Propiciou, igualmente, o surgimento de novas pesquisas, com


novos assuntos, questionamentos e interesses, como, por exemplo, o racismo
no ambiente escolar (cf. Cavalleiro, 2001, 2000a e 2000; Silva, 2004 e 1999;
Gonçalves, 1985). Começou-se a questionar o monopólio branco sobre a
representação do negro no Brasil (Bairros, 1996, p. 183), o que implicou um
processo de busca de descolonização do conhecimento eurocentrado, de
autonomia intelectual, assim como a quebra do controle ou monopólio dos
estudos e pesquisas sobre os negros a partir de um ponto de vista dos
intelectuais do ‘mundo dos brancos’, conforme expressão cunhada por
Florestan Fernandes (1972). Parafraseando o grupo de rap Racionais MC’s,
isso foi e é algo ‘violentamente pacífico’ e tem ‘sabotado o raciocínio’ e
‘abalado o sistema nervoso central’ da produção do conhecimento acadêmico
brasileiro da área de estudos e pesquisas sobre relações raciais.”8

Neste ponto, parece possível traçar uma rota que conecta a abordagem de
Sales Augusto dos Santos, no que concerne as disputas entre intelectuais do
“mundo dos brancos” e negros em torno da produção de conhecimento sobre
a questão racial no Brasil, e o desabafo teórico de viviane v. a respeito dos
dispositivos de poder por meio dos quais o seu discurso tem sido, amiúde,
representado como “intelectualmente desprezível” e “politicamente míope”
nos debates acadêmicos dos quais forma parte. Em ambos os casos, trata-se de
uma disputa pelo controle de um certo regime de produção de conhecimento
que está implicado em vidas reais de pessoas reais, e em processos de
subalternização de discursos enunciados desde lugares de fala descentrados
em relação à normatividade acadêmica.

Que ocorre quando umx subalternx fala?

É consenso entre os leitores de Spivak (1988) que, quando a autora responde


negativamente à pergunta sobre se pode o subalterno falar, não se trata de
uma alusão à capacidade física da fala, tampouco à capacidade intelectual de
articular um discurso. A resposta não deve ser tomada num sentido literal.
Trata-se, mais bem, de uma alusão à impossibilidade de forjar espaços de
enunciação a partir dos quais umx subalternx possa se expressar e ser ouvidx
como sujeito. Nas palavras de Santiago Giraldo (2003): “É claro que o
subalterno ‘fala’ fisicamente; contudo, sua ‘fala’ não adquire status dialógico
— no sentido proposto por Bakhtin –, isto é, o subalterno não é um sujeito que
ocupa uma posição discursiva desde a qual pode falar ou responder.”9

Para ilustrar sua teoria do silêncio subalterno, Spivak usa como símbolo a
autoimolação ritual de viúvas na Índia (sati/suttee), considerando os efeitos
do domínio colonial britânico nas leis hindus que regulam essa prática. A
autora, ironicamente, mobiliza o jargão “homens brancos salvando mulheres

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café de homens café” para revelar a situação duplamente subalterna das


mulheres, entre patriarcado indiano e imperialismo britânico,
incessantemente investidas de uma consciência fabricada por meio de seu
silenciamento.

O texto de Spivak é de grande importância para o enriquecimento dos debates


sobre a diferença, porque afirma a necessária tarefa de des-romantizar a
resistência aos sistemas de opressão, complexificando, assim, as abordagens
que procuram trabalhar desde pontos-de-vista socialmente construídos como
subalternos. Contudo devemos tomar cuidado para, nesse movimento, não
incorrermos na reprodução de narrativas que tem na des-potencialização
desses pontos-de-vista seu principal efeito de poder.

Neste ponto, gostaria de retomar uma formulação de Spivak que me parece


crucial para o desenvolvimento de uma perspectiva que tome o silêncio
subalterno mais como efeito de uma não-escuta colonial do que propriamente
de uma não-fala subalterna: “O subalterno (…) não pode ser escutado ou
lido.”10

Essa formulação aparece num momento do texto em que Spivak alude ao


suicídio de Bhuvaneswari Bhaduri, uma jovem encontrada morta no
apartamento do pai em Calcutá por volta de 1926. Somente dez anos após seu
suicídio, descobriu-se que Bhuvaneswari era, na realidade, militante ativa
num dos muitos grupos da luta armada pela independência da Índia, e que
seu suicídio provavelmente resultava de um sentimento de incapacidade
frente a uma missão que lhe havia sido confiada. Mas o que mais chama
atenção é que a menina tenha sido encontrada menstruada, como se houvesse
esperado esse momento para dar cabo do ato. Para Spivak, esse fator indica
uma “inversão da proibição contra o direito das viúvas menstruadas de
imolarem a si mesmas”, no limite uma “escritura não enfática, ad hoc,
subalterna do texto social do sati”, que, com vistas ao fato da história da
participação de mulheres no movimento por Independência ter sido
documentada e contada majoritariamente por meio do discurso dos líderes
masculinos, permaneceu invisível.

Seria possível encontrar, ao redor do mundo, uma série de outras dimensões


políticas não registradas pelos discursos historiográficos hegemônicos. É fato
que este silenciamento das vozes e gestos subalternos tem sido, em grande
medida, o responsável pela construção de versões transparentes de fatos
históricos ligados aos sujeitos geográfica, racial e sexualmente não
hegemônicos. O que não significa que esses sujeitos não tenham, a seu modo,
querido marcar, nas teias da história, sua diferença. O que ocorre parece ser,

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mais bem, aquilo que Spivak formulou: x subalternx não pode ser escutadx ou
lidx.

Julia Suárez Krabbe (2013), coordenadora da rede “Decoloniality Europe”,


num ensaio ironicamente entitulado “¿Pueden ser racionales los europeos?”,
parte de algumas perguntas que teriam sido centrais em inúmeros debates
filosóficos do século XVI e que ajudaram a firmar os fundamentos do direito
internacional e do pensamento contemporâneo sobre os direitos humanos,
tais como: “são humanas as populações indígenas?” e “podem pensar os não-
europeus?”. A autora enfatiza, em seu texto, que tais perguntas não poderiam
ser formuladas fora de um sistema de pensamento que toma o sujeito europeu
como superior; e que, independente da resposta, o fato de que essa pergunta
tenha sido formulada configura, já, um ato de violência.

O jogo de inversão que dá título ao ensaio de Krabbe, conquanto possa


parecer a alguns uma atitude vingativa e não adequada ao “espírito
científico”, denota, desde uma mirada de-colonial, um ato de desobediência
epistemológica, que relocaliza o alvo da interpelação crítica. Ao invés de
responder positivamente a etnocêntrica questão sobre a capacidade de pensar
dos povos não-europeus, a autora redireciona a pergunta, tornando
perceptível, àquele sujeito do saber hegemonicamente constituído, a violência
epistemológica que sustenta seu próprio sistema de pensamento.

No que diz respeito ao silêncio subalterno, gostaria de propor um movimento


inspirado pelo de Krabbe. Em lugar da pergunta sobre se pode ou não o
subalterno falar, invoco outra: que ocorre quando umx subalternx fala? Desse
modo, procuro relocalizar uma crise que tem, por muito tempo, servido para
despotencializar a nós, sujeitxs fora das gramáticas da produção de saber. Ao
invés de pôr em dúvida nossa capacidade de forjar discursos e saberes desde
as subalternidades, escolho interrogar a capacidade dos marcos
hegemonicamente consolidados de reconhecer nossas diferenças. Assim é
que, no limite mesmo da minha pergunta, insinua-se ainda outra: pode um
saber dominante escutar uma fala subalterna quando ela se manifesta?

Descolonizar a escuta: saber e ruído

Se consideramos uma teoria básica do som, no domínio da Física, temos um


“espectro sonoro”, que compreende o conjunto de frequências que podem ser
produzidas pelas diversas fontes sonoras, em relação ao qual o ouvido
humano só consegue captar uma fração, precisamente a que vai de 20 a
20.000Hz. A essa fração a física básica dá o nome de “sons audíveis”. Abaixo
dos 20Hz há infrasons, e acima dos 20.000Hz ultrasons. Inaudíveis, os
infrasons e ultrasons não podem ser captados pela escuta humana, de modo

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que, em relação a essas frequências, somos todxs como surdos. Isso não
significa, de modo algum, que elas não existam, que não se manifestem e não
componham a paisagem sonora do mundo.11

Para traçar um paralelo metafórico com as discussões desenvolvidas ao longo


deste ensaio, é possível dizer que, as falas subalternas, para a escuta
dominante, vibram como os infra e ultrasons para a escuta humana, fora do
campo de audibilidade. Nesse sentido, interrogar o marco do que pode ser
ouvido nos termos da cultura euroamericana, colonial, heterocentrada e
cisnormativa dominante configura um gesto político-teórico no sentido de
uma descolonização, um remapeamento da escuta que leva em consideração
o ruído e as linhas-de-fuga que ele fissura na harmonia sobreposta.

Jacques Attali (1985), no capítulo sobre a escuta (listening) de seu livro


“Noise: The Political Economy of Music”, observa que a “organização do ruído
(…) constitui a faixa sonora das vibrações e signos que compõe a
sociedade”12. Assim, o autor defende que “qualquer teoria do poder hoje deve
incluir uma teoria da localização do ruído”13, que faça evidente o modo como
o controle de ruído (noise control), por meio da identificação, localização e
banimento dos ruídos subversivos (subversive noise), conecta-se à produção de
uma coesão baseada na indiferenciação dos sujeitos. Nesse sentido, Attali
escreve:

“Espionagem, censura, gravação e vigilância são armas do poder. As


tecnologias de escuta, ordenamento, transmissão, e gravação do ruído estão
no centro desse aparato. […] Quem entre nós está livre do sentimento de que
esse processo, conduzido ao extremo, está transformando o Estado moderno
num gigante monopolizador da emissão de ruído, e ao mesmo tempo, num
dispositivo de espionagem generalizada? Espionagem do quê? A fim de
silenciar quem?”14

A percepção auditiva que materializa nossa escuta é, portanto, o resultado do


investimento de uma série de constructos tonais, a partir dos quais podemos
acessar uma certa organização sonora socialmente instaurada, que, ao
projetar um certo regime de audibilidade, des-realiza uma série de ruídos,
representando-os como inaudíveis. A harmonia sobreposta silencia os sons
sem inscrição, bem como as epistemologias dominantes operam em relação
aos saberes subalternos. Em ambos os casos, trata-se de controlar o ruído e
produzir uma escuta politicamente regulada. O ruído, apesar da harmonia
arbitrária, manifesta-se, e ao fazê-lo, pode infectar o regime de audibilidade,
desorganizando o “espectro sonoro” que conforma a escuta. “O noise não é
música”, como escrevem Fabiane Borges e Hilan Bensusan (2008), mas “um
deslocamento para fora das margens da história da música canônica; uma

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requebrada, uma saída do eixo”. Quiçá os saberes-ruído, subalternizados por


regimes de verdade instaurados pelo cânone acadêmico-científico, não sejam
legíveis como saberes, contudo os deslocamentos de que resultam atravessam
infecciosamente as tonalidades do conhecimento, perturbando com
estridências sem inscrição a escuta canônica.

Em seu ensaio “O Terceiro Som e A Diáspora nos Interstícios”, Leandra


Lambert (2012) procura excitar as potencialidades de uma “escuta
imaginativa e intersensorial”, escuta expandida que se alastra para aquelas
“fronteiras não colonizadas, ‘terras de ninguém’”; espaços que o poder
procura “atingir, influenciar, controlar e conformar”, mas que, apesar desses
investimentos, permanecem “incertos, secretos e insondáveis”:

“Carl Einstein, assim como Georges Battaille, afirmou que, transformando as


formas plásticas, transforma-se a visão; e que ao se transformar a visão, todas
as coordenadas do pensamento também se transformam. Estender esse
raciocínio a outras formas, que se dirijam aos outros sentidos, pode ser um
meio de ampliar o âmbito dessa transformação nas coordenadas do
pensamento. É possível pensar em uma abordagem “alargada, multifocal,
invasiva” do fenômeno sonoro e das possibilidades de reinvenção sônica como
potencialmente transformadoras de padrões de pensamento, percepção e
sensação. Alterando as sensações, os modos e movimentos dos nossos
sentidos entrelaçados, também podemos alterar a maneira como produzimos
sentido.”15

Uma fala subalterna que se manifesta pelo cu

No sexto episódio da série de podcasts produzidos por [SSEX BBOX]16, cujo


tema se desdobra das perguntas “What does it mean to be queer? Is queer our
future?”17, ao falar a respeito de uma intelectualidade à brasileira, Pedro
Costa excita “um outro pensamento”, que mixe diferentes formas de
conhecimento sob um calor de 40º; uma intelectualidade que para
desenvolver-se “tenha de passar pelos quadris”. Esse descentramento em
relação às concepções hegemônicas do saber se manifesta tanto na obra
quanto na trajetória acadêmica dx artista, marcada por inadaptação aos
regramentos disciplinares e desvios de rota.

Vimos, a partir de Grada Kilomba, Esther Newton e viviane v., que a


academia, mais do que um espaço neutro de produção de conhecimento
científico, deve ser compreendida como espaço de violência e exclusão. Mas
não seria necessário ancorar-se no texto dessas autoras para falar a respeito
dessa violência, uma vez que minha experiência acadêmica, ela mesma está
atravessada por procedimentos excludentes, responsáveis pela representação

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de minhas idéias e articulações teóricas como necessariamente imaturas,


inconsistentes e subteóricas. De maneira empática, mas não igual, Pedro
Costa também parece habitar um lugar cuja fala se situa à margem do
discurso acadêmico-científico, o que não lhe impede de inventar formas de
expressar seu pensamento e de interterfir nesse âmbito.

“Jamais serei Judith Butler, mas sendo mais próximo de Nízia Floresta me
contento com a tradução cultural que posso fazer da Butler e de suas teorias,
numa infidelidade criativa que me surpreende e cria algo novo.”18

Acontece que o conhecimento, para ser legítimo enquanto tal, precisa ceder a
uma série de investimentos normativos que procuram regular desde a
indagação que o move até as formas como organizamos nosso texto e a
entonação da voz que devemos empregar ao lê-lo. Nesse regime de produção
de conhecimento, uma voz anasalada que inclua expressões do Pajubá19 em
suas falas certamente soará dissonante; bem como uma escrita encarnada,
embalada por um ritmo próprio e assumidamente autoral, parecerá ilegível. A
despeito desse marco, a força mesma desses gestos fracassados em torno da
produção hegemônica de saberes e as aberturas a que estes se dirigem
tensionam, ora molecularmente ora como um estrondo, o regime político que
institui o que pode ser escutado e lido. As vozes anasaladas, as expressões do
Pajubá, a escrita encarnada e assumidamente autoral reivindicam seu lugar
na construção dos possíveis, e ao fazê-lo não o fazem segundo métodos
tradicionais, porque necessitam produzir um rasgo profundo, que permita aos
pensamentos degenerados (não necessariamente escritos sob a forma de um
artigo, ensaio, monografia, nem pronunciados como defesa, comunicação ou
palestra) superarem, como na atitude poética de Gloria Anzaldua em “Como
domar uma língua selvagem”, a tradição do silêncio.

“Verarschung”20 é uma obra em vídeo enviada por Pedro Costa, desde Berlin,
para integrar a programação do evento “Que pode o korpo?”, realizado por
mim em Abril de 2013, na UFRN. Nesta obra, x artista articula uma teia de
citações aparentemente desconectadas que superpõe, por exemplo, textos da
rapper americana Azaelia Banks, com os da música “O Bandido” de Tetine,
passando por Ludditas Sexxxuais, Audre Lorde e João W. Nery, misturando
citações a reflexões próprias, construindo um discurso plural proferido em
diversas línguas como pano de fundo à imagem de seu próprio cu em
movimentos ritmados de contração-dilatação.

Na programação de “Que pode o korpo?”, um evento criado para explorar as


possibilidades de intervenção de um discurso do corpo no campo da produção
de saber e da política contemporânea, anunciamos a obra de Pedro como
“Verarschung: uma vídeo-palestra de Pedro Costa”, de modo que todos

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esperavam uma videoconferência habitual, com o rosto de Pedro em primeiro


plano e uma fala pronunciada pela boca. Mesmo se tratando de uma atividade
independente, paralela ao cânone acadêmico, e de uma plateia relativamente
habituada a esses espaços, “Verarschung” provocou espanto e animou toda
sorte de reações, desde “piadinhas descontraídas” até gestos bruscos de
reprovação.

Ao retomarmos o texto de Grada Kilomba, “The Mask”, onde a autora constrói


uma análise do interdito da boca como interdito da fala, adivinhamos aqui
uma ponte possível. Se, na perspectiva dessa autora, o regime escravocrata
produziu uma territorialização da boca como lugar de tortura e não-fala, a
norma da heterossexualidade compulsória produziu o cu como lugar de
excreção e não-prazer. Em ambos os casos, temos uma territorialização
arbitrária do corpo, que procura reduzir drasticamente as possibilidades de
experimentação com esses órgãos.

Duas extremidades de um mesmo tubo, o cu e a boca como órgãos


interditados revelam a dimensão corpo-política da construção da realidade.
Seguindo ainda as pistas de Kilomba, podemos inferir que, como a interdição
da boca dos corpos bio-designados negros estava ligada à constituição de um
discurso hegemônico não-negro no contexto da escravidão, a interdição do cu
nos corpos adequados à norma heterocissexista torna possível a manutenção
do gênero como ideal regulatório atrelado à heterossexualidade como regime
político.

Nesse campo politicamente regulado, o cu é a parte fora do cálculo: a contra-


genitália que desinforma o gênero, porque atravessa a diferença sexual
binária. É, nas palavras de Solange, tô aberta!, “um buraco que todo mundo
tem”. B. Preciado (2002), em seu “Manifesto Contra-sexual”, elabora uma
ficção política centrada na dissolução dos gêneros como correspondentes às
categorias biológicas macho/fêmea, forjando uma noção de
masculino/feminino como “registros abertos à disposição dos cuerpos
parlantes”21, que são os corpos livres da normalização heterocissexista.
Diante da vídeo-palestra anal de Pedro Costa, não é seguro afirmar que seja
um homem ou uma mulher o sujeito daquele discurso: a matriz
heterocissexual de inteligibilidade simplesmente não sabe como classificar
aquele corpo. E enquanto a matriz se torna confusa, o cuerpo parlante de
artista manifesta sua fala subalterna. Pelo cu.

Assim é que não é só com o gênero enquanto ideal regulatório que a palestra
anal de Pedro rompe, mas também com uma corpo-política do conhecimento
que procura territorializar os órgãos do corpo que servem para pensar
(cabeça), escrever (mãos) ou falar (boca), e aqueles que não são capazes de

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mobilizar pensamento algum (o próprio cu, por exemplo). E ainda mais:


territorializar, como órgãos, os corpos mesmos, conforme desígnios
biologizantes vinculados a saberes elaborados em conformidade com os
princípios constituintes das modernas ciências coloniais. Mas ao escolher falar
pelo cu, Pedro se posiciona num espaço político de enunciação contra-
hegemônico, fora do eixo dominante de produção científica, e por isso mesmo
não harmonizado a esses princípios canônicos, de maneira que, ao falar,
necessariamente redefine, local e molecularmente, as gramáticas sobre como
e o que falar.

A propósito de Guy Hocquenghem, B. Preciado (2009) escreve que ele se


tornou o primeiro intelectual francês a articular publicamente uma identidade
política “marica”, diferentemente de Foucault que, à mesma época, raramente
enunciava uma homossexualidade em primeira pessoa, afirmando resistir às
“técnicas de incitação à confissão da verdade do sexo”, sem, no entanto,
jamais considerar um outro “conjunto de técnicas de produção de silêncio que
fazem impossível articular a posição de um sujeito de enunciação
homossexual produtor de saber crítico sobre si mesmo e sobre a
sociedade”22. Dessa maneira, conforme a ficção histórica de Preciado, o
aparecimento de Hocquenghem marca o momento em que “o ânus
homossexual fala e produz pela primeira vez um saber sobre si mesmo”.23

Como Guy Hocquenghem, Pedro Costa se inscreve numa tradição radical de


descentramento do sujeito da enunciação teórica. Mesmo que sua obra não
tenha como foco a “teoria propriamente dita” (o que quer que isso
signifique!), é inegável, em alguns de seus trabalhos, sobretudo em
“Verarschung”, um investimento intelectual em torno da produção de um
“saber anal” que se insinua no campo teórico como um saber em primeira
pessoa, constituído no avesso do “distanciamento científico”; um
conhecimento necessariamente implicado em rupturas políticas, e que se
movimenta em circuito expandido, atravessando a academia sem, contudo,
deixar-se encerrar por seus limites.

Da minha própria experiência acadêmica como bicha guerrilheira, posso


contar das inúmeras ocasiões em que tive meu discurso intelectualmente
desvalorizado em função do teor político de minhas colocações. A evocação
de um saber estratégico, claramente posicionado, dinâmico e desobediente,
por diversas vezes, rendeu-me conselhos sobre eleger uma atitude científica
separada da minha prática política e, no subtexto, de meus próprios
movimentos de vida. Como se este corpo gordo, mestiço, viado e revoltado,
este cu canibal e sua política monstruosa, não tivessem lugar no âmbito da
produção de conhecimento; como se este saber corpo-político não pudesse

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adquirir o status de saber, ou, quando muito, o de um saber menos verdadeiro


que o saber científico que se supõe politicamente neutro.

Nesse sentido, a vídeo-palestra de Pedro Costa contrabandeia ruídos


produzidos como ausentes pela racionalidade acadêmico-científica para o
interior da academia, contaminando o espaço hegemônico de enunciação com
seu pensamento anal. As diversas línguas intercaladas em sua fala dão conta
de um pensamento cujo movimento perfura fronteiras, sejam elas físicas ou
simbólicas. Pedro escreve: “Em nada me impeço de termos aventuras exóticas
com outros limites de pensamentos”24. E um limite de pensamento é algo
material, tem densidade, bota corpo. A gramática de uma língua é um limite
de pensamento. Por isso Pedro a excede, fazendo roçar uma gramática noutra,
transitando entre línguas com as quais está mais ou menos familiarizadx. Eu
poderia comparar isso à autorrepresentação imponente de B. Preciado
(2008), em seu Testo Yonqui, quando diz habitar “distintas megacidades
ocidentais” e transitar “entre três línguas que já não considera nem suas, nem
estrangeiras”25. Mas é diferente. Pedro não é umx cidadãx transnacional
academicamente bem-sucedidx. É, antes, umx brasileirx imigrante na
Alemanha.

No seu texto publicado no blog Cena Queer, intitulado “O Corpo Nu, Aqui, É o
Corpo Imigrante”, Pedro relata um caso em que o uso da língua alemã por
pessoas migrantes, num evento político-artístico em Linz/Áustria, foi alvo de
comentários racistas por parte da polícia austríaca. Na ocasião, um grupo de
artistas “das margens do mundo” convidadxs por Maiz Kultur, uma
organização que trabalha com mulheres migrantes contra o racismo e o
sexismo, acompanhavam a ação realizada por Maria Galindo e Danitza Luna
(Mujeres Creando, de Bolívia) na praça onde acontecia o evento a céu aberto.
A ação consistia em pixar, com tinta lavável, a frase “nuestra venganza es ser
felices”. Conforme o relato de Pedro, “um homem alto, branco, loiro iniciou
uma série de ataques verbais”, que resultaram numa confusão generalizada
envolvendo a polícia austríaca. Como o evento estava amparado
juridicamente, o homem que iniciara a confusão se viu acuado e procurou
desculpar-se. Diante do pedido de desculpa, a polícia, procurando apaziguar
os ânimos, “numa das falas, afirmou que o que causou o problema foi porque
as mulheres não sabiam falar bem alemão.”26

Lembro-me de quando, já vivendo há cerca de três anos em Berlin, numa


conversa via facebook, Pedro me contou sobre sua satisfação em ter podido,
pela primeira vez, defender-se das acusações de um alemão em alemão
fluente. Aparentemente, a boa desenvoltura com a língua é condição para que
a pessoa migrante adquira o status de sujeito. Contudo, se consideramos o
discurso da polícia austríaca diante das mulheres migrantes, podemos

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facilmente perceber de que modo se produz uma hierarquia baseada numa


representação da apropriação da língua nativa pela pessoa migrante como
necessariamente precária, subalterna. “Deslenguadas”, as falas migrantes
manifestam uma “língua huérfana”, sem país, fronteiriça. Como o espanhol
chicano e o Tex-Mex de Gloria Anzaldua (1987). Uma variação de línguas, um
patoá selvagem que burla as línguas de que se apropria, engendrando assim
novas gramáticas.

Mas essa burla não é harmônica, porque “cuando vives en la frontera… eres
burra”, e fala uma “língua bastarda”. Assim é que a mestiza, seguindo com
Anzaldua, para falar, precisa passar por uma “luta na pele”, uma “guerra
interior” que faz da desvalorização de sua língua um dos principais vetores de
despotencialização. Voltamos, então, à máscara sobre a qual escreveu Grada
Kilomba, precisamente no que concerne o efeito de silenciamento
materializado por esse objeto. Sendo que a máscara de não-fala, aqui, é a
representação da língua da pessoa migrante como incompreensível, da
mestiçagem linguística como degradante e, no limite: do corpo imigrante
como um corpo incapaz de produzir uma voz audível.

Em “Verarschung”, no entanto, deparamo-nos menos com esse sujeito


despotencializado do que com uma fala ativa, que move potências de vida no
sentido de uma superação dessa guerra de fronteiras, e faz da mestiçagem
linguística uma arma contra a reapropriação de sua dissidência pela
racionalidade do estado-nação. O cu de Pedro Costa se aproxima, nesse
sentido, da new mestiza de Anzaldua. E sua fala vivifica aquilo que a autora
chamou de “la conciencia de la mestiza” na medida em que se situa entre-
mundos e mixa elementos aparentemente contraditórios, comportando as
ambiguidades de um “pensamento divergente” cuja energia criativa “segue
derrubando o aspecto unitário de cada novo paradigma”27.

Novamente, gostaria de propor um deslocamento. O mesmo proposto


anteriormente, no momento deste texto em que discuto mais diretamente o
texto “Pode o subalterno falar?” de Spivak. Se nesse ensaio, a autora responde
negativamente à pergunta sobre se pode o subalterno falar, num sentido
menos físico que político, escolho repetir o movimento de sentido, alterando,
contudo, a resposta. Pode um cu mestiço falar? Sim. Talvez não no sentido
físico (pelo menos se consideramos o corpo como está biopoliticamente
configurado), mas, sim, num sentido político, e Verarschung é, sem dúvida,
um dos pontos possíveis de emanação dessa fala mestiça enunciada pelo cu.


NOTAS

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* Jota Mombaça é escritorx, investigadorx e performer. Vive e trabalha desde


Natown/RN/Brasil. Pode também ser chamadx Monstrx e K-trina Erratik.

** A imagem da capa é um frame da vídeopalestra Verarschung (Pedro Costa,


2013), a partir da qual se desdobram as reflexões presentes neste artigo.

1 Tradução livre a partir de: “It was composed of a bit, placed inside the
mouth of the Black subject, clamped between the tongue and the jaw, and
fixed behind the head with two strings: one surrounding the chin and the
second surrounding the nose and the forehead.” Kilomba, 2008: p.16

2 Mignolo, 2009: p.9

3 Kilomba, 2013: p.27

4 Tradução livre a partir de: “Se me denegó la continuidad en mi primer


trabajo. El rechazo me hizo sentir como un asno de noria. El proceso fue
secreto, pero, privadamente y como un favor, la directora del departamento
me dijo que algunas personas tenian problemas con mi «personalidad».
También había dudas sobre mi «compromiso con la antropologia». Fue como
el amenazador encuentro que habia tenido con la decana de la facultad:
«Estas haciendo algo mal y no dire que es, pero las dos lo sabemos».”
(Newton, 1987: p. 212)

5 Bento, 2011: p.555

6 v., 2013: p.2

7 Santos, 2010: p.65.

8 Santos, 2010: p.66/67

9 Tradução livre a partir de: “Es claro que el subalterno ‘habla’ fisicamente; sin
embargo, su ‘habla’ no adquiere estatus dialógico — en el sentido en que lo
plantea Bakhtin –, esto es, el subalterno no es un sujeto que ocupa una
posición discursiva desde la que puede hablar o responder.” (Giraldo, 2003: p.
298)

10 Tradução livre a partir de: “El subalterno como femenino no puede ser
escuchado o leído.” (Spivak, 1988: p.361)

11 Informações recolhidas por meio do sítio: http://www.aulas-fisica-


quimica.com/8f_07.html Data de Acesso: 01/12/2013, às 10:06

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12 Attali, 1985: p.4

13 Ibid.: p.6

14 Tradução livre a partir de: “Eavesdropping, censorship, recording, and


surveillance are weapons of power. The technology of listening in on,
ordering, transmitting, and recording noise is at the heart of this apparatus.
[…] Who among us is free of the feeling that this process, taken to an
extreme, is turning the modern State into a gigantic, monopolizing noise
emitter, and at the same time, a generalized eavesdropping device.
Eavesdropping on what? In order to silence whom?” (Attali, 1985: p. 7)

15 Lambert, 2012: p. 190

16 Sobre [SSEX BBOX]: “The project consists in revealing some of the various
sides of sexuality in our days. In different societies and cities like SÃO PAULO,
SAN FRANCISCO, BERLIN AND BARCELONA.” Fonte:
https://www.facebook.com/SSEXBBOXDoc/info

17 Tradução livre: “Que significa ser queer? É queer nosso futuro?”

18 Costa, 2010

19 Pajubá é uma linguagem popular construída de palavras de vários dialetos


africanos misturadas com palavras em português, usada pelas travestis e povo
de santo.

20 Verarschung é uma expressão coloquial de língua alemã que equivale, mais


ou menos, à nossa “tiração de onda”, “sacanagem”.

21 Preciado, 2002: p.29

22 Preciado, 2009: p.152

23 Ibidem: p.155

24 Costa, 2010

25 Preciado, 2008: p.77

26 Costa, 2013: p. 8

27 (p. 102)

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