MOMBAÇA, Jota, Pode Um Cu Mestiço Falar
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um cu mestiço falar? — Medium
“Eu não vou mais sentir vergonha de existir. Eu vou ter minha voz: indígena,
espanhola, branca. Eu vou ter minha língua de serpente — minha voz de
mulher, minha voz sexual, minha voz de poeta. Eu vou superar a tradição de
silêncio.” Gloria Anzaldua
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Mensurável ou não, esta ausência de vozes trans* nas universidades não cessa
de ser reiterada e produzida ativamente por procedimentos acadêmico-
políticos. Em conversa no facebook, na qual propus a viviane v. que lesse e
comentasse os parágrafos acima (a respeito das experiências
gênerodissidentes em espaços escolares), ela me disse concordar com a
abordagem, apesar de sua relutância quanto ao uso exclusivo do prefixo
“hetero” onde, para ela, há “cisnormatividade” e “cisterrorismo”, uma vez que
o que está em jogo, no ambiente escolar, são muito mais as performances de
gênero que aquelas ligadas à sexualidade. Dessa maneira, v. registra sua
opção por uma categoria analítica marginalizada no interior dos debates
acadêmicos sobre transgeneridade — conforme ela mesma observa em seu
ensaio “De uma renúncia e de resistências trans anticoloniais” (2013):
“Há pessoas trans* fazendo teoria mundo afora, apesar de aqui no Brasil, por
todos condicionantes sociais excludentes que conhecemos, estas presenças
ainda serem muito pontuais e com pouco poder de decisão: ainda assim, onde
estão elas nos referenciais bibliográficos quando se abordam questões trans*?
Por sua vez, algumas pessoas se gabam de suas habilidades em línguas
coloniais+imperialistas, como o francês e o inglês: onde estão as traduções
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Sales Augusto dos Santos (2010), a respeito dos efeitos do Sistema de Cotas
na formação de quadros discentes nas Universidades Públicas do Brasil,
evidencia uma disputa acadêmico-política em torno do controle da produção
de conhecimento sobre a questão racial brasileira implicada na efetivação
dessa política pública. O autor procura demonstrar o modo como
“historicamente, os intelectuais brancos da área de pesquisa e estudo sobre
relações raciais brasileiras controlaram a agenda dessa área”, impondo, de
forma latente, “aos pouquíssimos intelectuais negros (dessa área) o que e
como estes deveriam pesquisar e como deveriam divulgar as suas pesquisas
nessa área de estudo”7.
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Neste ponto, parece possível traçar uma rota que conecta a abordagem de
Sales Augusto dos Santos, no que concerne as disputas entre intelectuais do
“mundo dos brancos” e negros em torno da produção de conhecimento sobre
a questão racial no Brasil, e o desabafo teórico de viviane v. a respeito dos
dispositivos de poder por meio dos quais o seu discurso tem sido, amiúde,
representado como “intelectualmente desprezível” e “politicamente míope”
nos debates acadêmicos dos quais forma parte. Em ambos os casos, trata-se de
uma disputa pelo controle de um certo regime de produção de conhecimento
que está implicado em vidas reais de pessoas reais, e em processos de
subalternização de discursos enunciados desde lugares de fala descentrados
em relação à normatividade acadêmica.
Para ilustrar sua teoria do silêncio subalterno, Spivak usa como símbolo a
autoimolação ritual de viúvas na Índia (sati/suttee), considerando os efeitos
do domínio colonial britânico nas leis hindus que regulam essa prática. A
autora, ironicamente, mobiliza o jargão “homens brancos salvando mulheres
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mais bem, aquilo que Spivak formulou: x subalternx não pode ser escutadx ou
lidx.
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que, em relação a essas frequências, somos todxs como surdos. Isso não
significa, de modo algum, que elas não existam, que não se manifestem e não
componham a paisagem sonora do mundo.11
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“Jamais serei Judith Butler, mas sendo mais próximo de Nízia Floresta me
contento com a tradução cultural que posso fazer da Butler e de suas teorias,
numa infidelidade criativa que me surpreende e cria algo novo.”18
Acontece que o conhecimento, para ser legítimo enquanto tal, precisa ceder a
uma série de investimentos normativos que procuram regular desde a
indagação que o move até as formas como organizamos nosso texto e a
entonação da voz que devemos empregar ao lê-lo. Nesse regime de produção
de conhecimento, uma voz anasalada que inclua expressões do Pajubá19 em
suas falas certamente soará dissonante; bem como uma escrita encarnada,
embalada por um ritmo próprio e assumidamente autoral, parecerá ilegível. A
despeito desse marco, a força mesma desses gestos fracassados em torno da
produção hegemônica de saberes e as aberturas a que estes se dirigem
tensionam, ora molecularmente ora como um estrondo, o regime político que
institui o que pode ser escutado e lido. As vozes anasaladas, as expressões do
Pajubá, a escrita encarnada e assumidamente autoral reivindicam seu lugar
na construção dos possíveis, e ao fazê-lo não o fazem segundo métodos
tradicionais, porque necessitam produzir um rasgo profundo, que permita aos
pensamentos degenerados (não necessariamente escritos sob a forma de um
artigo, ensaio, monografia, nem pronunciados como defesa, comunicação ou
palestra) superarem, como na atitude poética de Gloria Anzaldua em “Como
domar uma língua selvagem”, a tradição do silêncio.
“Verarschung”20 é uma obra em vídeo enviada por Pedro Costa, desde Berlin,
para integrar a programação do evento “Que pode o korpo?”, realizado por
mim em Abril de 2013, na UFRN. Nesta obra, x artista articula uma teia de
citações aparentemente desconectadas que superpõe, por exemplo, textos da
rapper americana Azaelia Banks, com os da música “O Bandido” de Tetine,
passando por Ludditas Sexxxuais, Audre Lorde e João W. Nery, misturando
citações a reflexões próprias, construindo um discurso plural proferido em
diversas línguas como pano de fundo à imagem de seu próprio cu em
movimentos ritmados de contração-dilatação.
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Assim é que não é só com o gênero enquanto ideal regulatório que a palestra
anal de Pedro rompe, mas também com uma corpo-política do conhecimento
que procura territorializar os órgãos do corpo que servem para pensar
(cabeça), escrever (mãos) ou falar (boca), e aqueles que não são capazes de
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No seu texto publicado no blog Cena Queer, intitulado “O Corpo Nu, Aqui, É o
Corpo Imigrante”, Pedro relata um caso em que o uso da língua alemã por
pessoas migrantes, num evento político-artístico em Linz/Áustria, foi alvo de
comentários racistas por parte da polícia austríaca. Na ocasião, um grupo de
artistas “das margens do mundo” convidadxs por Maiz Kultur, uma
organização que trabalha com mulheres migrantes contra o racismo e o
sexismo, acompanhavam a ação realizada por Maria Galindo e Danitza Luna
(Mujeres Creando, de Bolívia) na praça onde acontecia o evento a céu aberto.
A ação consistia em pixar, com tinta lavável, a frase “nuestra venganza es ser
felices”. Conforme o relato de Pedro, “um homem alto, branco, loiro iniciou
uma série de ataques verbais”, que resultaram numa confusão generalizada
envolvendo a polícia austríaca. Como o evento estava amparado
juridicamente, o homem que iniciara a confusão se viu acuado e procurou
desculpar-se. Diante do pedido de desculpa, a polícia, procurando apaziguar
os ânimos, “numa das falas, afirmou que o que causou o problema foi porque
as mulheres não sabiam falar bem alemão.”26
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Mas essa burla não é harmônica, porque “cuando vives en la frontera… eres
burra”, e fala uma “língua bastarda”. Assim é que a mestiza, seguindo com
Anzaldua, para falar, precisa passar por uma “luta na pele”, uma “guerra
interior” que faz da desvalorização de sua língua um dos principais vetores de
despotencialização. Voltamos, então, à máscara sobre a qual escreveu Grada
Kilomba, precisamente no que concerne o efeito de silenciamento
materializado por esse objeto. Sendo que a máscara de não-fala, aqui, é a
representação da língua da pessoa migrante como incompreensível, da
mestiçagem linguística como degradante e, no limite: do corpo imigrante
como um corpo incapaz de produzir uma voz audível.
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NOTAS
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1 Tradução livre a partir de: “It was composed of a bit, placed inside the
mouth of the Black subject, clamped between the tongue and the jaw, and
fixed behind the head with two strings: one surrounding the chin and the
second surrounding the nose and the forehead.” Kilomba, 2008: p.16
9 Tradução livre a partir de: “Es claro que el subalterno ‘habla’ fisicamente; sin
embargo, su ‘habla’ no adquiere estatus dialógico — en el sentido en que lo
plantea Bakhtin –, esto es, el subalterno no es un sujeto que ocupa una
posición discursiva desde la que puede hablar o responder.” (Giraldo, 2003: p.
298)
10 Tradução livre a partir de: “El subalterno como femenino no puede ser
escuchado o leído.” (Spivak, 1988: p.361)
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13 Ibid.: p.6
16 Sobre [SSEX BBOX]: “The project consists in revealing some of the various
sides of sexuality in our days. In different societies and cities like SÃO PAULO,
SAN FRANCISCO, BERLIN AND BARCELONA.” Fonte:
https://www.facebook.com/SSEXBBOXDoc/info
18 Costa, 2010
23 Ibidem: p.155
24 Costa, 2010
26 Costa, 2013: p. 8
27 (p. 102)
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LEITURAS:
COSTA, Pedro. O Corpo Nu, aqui, é o Corpo Imigrante. In: Cena Queer, 2013.
Disponível em: http://cenaqueer.blogspot.com.br/2014/01/o-corpo-nu-aqui-
e-o-corpo-imigrante.html
KRABBE, Julia Suárez. ¿Pueden ser racionales los europeos?. In: Revista
OtrAmérica, sessão El Tema — Decolonialidad, março/2013. Disponível em:
http://otramerica.com/temas/pueden-serracionales-europeos/2873
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Azougue, 2012.
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