ANAIS TRABALHOS COMPLETOS Eixo Cultura Material-V.1

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ISSN 2358-3959

ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS
EIXO 1
CULTURA MATERIAL
ESCOLAR
ANAIS
ANAIS
DE
DE
TRABALHOS
RESUMO
COMPLETOS
V. 1

ISSN 2358-3959

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)


23 a 26 de fevereiro de 2021
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

V.1

ANAIS DE RESUMOOrganizadoras
Elizabeth Figueiredo de Sá
Marijâne Silveira da Silva
Thalita Pavani de Castro
Organizadoras:

Elizabeth Figueiredo Sá
Marijâne Silveira da Silva
Thalita Pavani de Castro

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)


23 a 26 de fevereiro de 2021
ISSN 2358-3959

Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)


FICHA CATALOGRÁFICA
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)

C749a Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (12.:2021: Cuiabá-MT)


Anais de trabalhos completos do XII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação v.1 (COLUBHE)
[recurso eletrônico]. Organizadoras: Elizabeth Figueiredo de Sá, Marijâne Silveira da Silva e Thalita Pavani
de Castro. – Dados eletrônicos. Cuiabá-MT: Universidade Federal de Mato Grosso, 2021.
Modo de acesso: htpps://gem.ufmt.br/xii-colubhe/anais.html
149p.

ISSN: 2358-3959

1.História da Educação – congresso. 2.Cuiabá-congresso. 3.Anais de trabalhos completos.


I.Sá, Elizabeth Figueiredo de. II.Silva, Marijâne Silveira da. III.Castro, Thalita Pavani de. IV.Título.

CDU 37(063)

Bibliotecária: Elizabete Luciano/CRB1-2103


Promoção Comissão Científica - Brasil
Grupo de História da Educação da Universidade Alessandra Cristina Furtado (UFGD)
Federal de Mato Grosso (GEM/UFMT) Alessandra Frota Martinez de Schueler (UFF)
PROMOÇÃO COMISSÃO CIENTÍFICA BRASIL
Grupo ANPED
de História da Educação da Ana Alessandra
Maria GalvãoCristina
(UFMG) Furtado (UFGD)
HISTEDUP
Universidade Federal de Mato Grosso (GEM/UFMT) André Luiz Paulilo (UNICAMP)
Alessandra Frota Martinez de Schueler (UFF)
AnpedOrganização GiseleAnade Maria
Souza (UFPR)
Galvão (UFMG)
Histedup Irma André Luiz Paulilo (UNICAMP)
Rizzini (UFRJ)
Universidade Federal de Mato Grosso José Gisele
Edinar dedeSouza
Souza(UNISINOS/UCS)
(UFPR)
ORGANIZAÇÃO
Coordenação Portugal Irma Rizzini (UFRJ)
Maria Angela Salvadori (USP)
Universidade Federal de Mato Grosso MariaJosé Edinar
Zeneide deAlmeida
C. M. Souza (UNISINOS/UCS)
(PUC-GO)
Joaquim Pintassilgo (IEULisboa) Maria Angela Salvadori (USP)
Marcos Levy Bencostta (UFPR)
COORDENAÇÃO
CoordenaçãoPORTUGAL
Brasil Maria Zeneide C. M. Almeida (PUC-GO)
Prof. Dr. Joaquim Pintassilgo (IEULisboa) Marta de Araújo
Marcos Levy (UFRN)
Bencostta (UFPR)
César Augusto de Castro (UFMA) OliviaMarta
Moraes de Medeiros
de Araújo Neta (UFRN)
(UFRN)
COORDENAÇÃO
Coordenação BRASIL
Local Rachel Discini de Campos (UFU)
Olivia Moraes de Medeiros Neta (UFRN)
Prof. Dr. César Augusto de Castro (UFMA) ReginaRachel
HelenaDiscini de Campos
Silva Simões (UFES) (UFU)
Elizabeth Figueiredo de Sá (UFMT)
Regina Helena Silva Simões
Samuel Luis Velazquez Castellanos (UFMA) (UFES)
COORDENAÇÃO
Comissão LOCAL organizadora Portugal Samuel Luis Velazquez
Sonia Maria de Araújo (UFPA) Castellanos (UFMA)
Prof.a Dr.a Elizabeth Figueiredo de Sá (UFMT) Sonia Maria de Araújo (UFPA)
Surya Aaronovich Pombo de Barros (UFPB)
Cláudia Pinto Ribeiro (FL/UPorto/CITCEM/HISTEDUP)
Surya Aaronovich Pombo de Barros (UFPB)
José António Afonso (IE/CIEd/UMinho) Zuleide Fernandes de Queiroz (URCA)
COMISSÃO ORGANIZADORA PORTUGAL Zuleide Fernandes de Queiroz (URCA)
Raquel Pereira
Prof.a Dr.a Cláudia Pinto Henriques (FCSH/UNL/IHC)
Ribeiro (FL/UPorto/CIT- Comissão Científica - Portugal
Luís Mota (IPC/ESE)
CEM/HISTEDUP) COMISSÃO CIENTÍFICA PORTUGAL
Ana Isabel Madeira (IEULisboa)
Prof. Dr. José António
Comissão Afonso (IE/CIEd/UMinho)
organizadora Brasil Ana Isabel Madeira (IEULisboa)
José António Afonso (IE/CIEd/UMinho) Ana Ana
MariaMaria
Pessoa (ESSE/IPS)
Pessoa (ESSE/IPS)
Adriana
Prof.a Dr.a MariaPereira
Raquel Paulo da Silva (UFPE)
Henriques (FCSH/UNL/IHC) Ana Ana
Paz (IEULisboa)
Paz (IEULisboa)
Claudia
Prof. Dr. Alves(IPC/ESE)
Luís Mota (UFF) António Gomes
António FerreiraFerreira
Gomes (FPCEUC)(FPCEUC)
Maria Helena Câmara Bastos (UNISINOS) ÁureaÁurea
AdãoAdão (IEULisboa)
(IEULisboa)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Silvia Helena BRASIL
Brito (UFMS/SBHE) CarlaCarla Vilhena
Vilhena (Ualg) (Ualg)
Prof.a Dr.a Adriana Maria Paulo da Silva (UFPE) Carlos
Carlos Manique
Manique da Silvada(IEULisboa)
Silva (IEULisboa)
Comissão
Prof.a Dr.a Claudiaorganizadora
Alves (UFF) Local Ernesto Candeias Martins (ESSE/IPCB)
Ernesto Candeias Martins (ESSE/IPCB)
Prof.a Dr.a Maria
Renilson RosaHelena
RibeiroCâmara
(UFMT)Bastos (UNISINOS) José Eduardo Franco (Uab)
José Eduardo Franco (Uab)
Prof.a Dr.a SilviaSilveira
Marijâne Helena da Brito (UFMS/SBHE)
Silva (UNIR) José V. Brás (ULHT)
José Justino
V. Brás (ULHT)
Magalhães (IEULisboa)
Magda Sarat (UFGD) Justino Magalhães (IEULisboa)Alves (FLUP)
COMISSÃO ORGANIZADORA LOCAL Luís Alberto Marques
Rômulo Pinheiro de Amorim (Seduc/MT) Luís Alberto Marques Alves(FLUP)
(FLUP)
Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro (UFMT) Luís Grosso Correia
Comissão
Prof.a Dr.a Marijâne Técnica-Organizadora
Silveira da Silva (UNIR) Margarida
Luís Grosso Felgueiras
Correia (FLUP) (FPCEUP)
Prof.a Dr.a Magda Sarat (UFGD) Maria Felgueiras
Margarida João Mogarro (IEULisboa)
(FPCEUP)
Dálete Cristiane S. H. Albuquerque (PPGE/UFMT)
Prof. Dr. Rômulo Pinheiro de Amorim (Seduc/MT) MariaMaria
João Romeiras Amado (IEULisboa)
Mogarro (IEULisboa)
Francine Suelen Assis Leite (PPGE/UFMT)
JosianaTÉCNICA-ORGANIZADORA
Antônia Proença Amaral de Morais (PPGE/UFMT) MariaMaria Teresa
Romeiras Santos
Amado (Uévora)
(IEULisboa)
COMISSÃO Nuno Martins Ferreira (ESELx)
Maria Teresa Santos (Uévora)
Dálete Luis RenatoS.dos
Cristiane H. Santos Dias (PPGE/UFMT)
Albuquerque (PPGE/UFMT)
FrancineRoberto
SuelenCosta
AssisSilva (PPGE/UFMT)
Leite (PPGE/UFMT) Nuno Martins Ferreira (ESELx)
Giselle Thalita
Estevam Chiozini
Pavani VargasCorrêa (PPGE/UFMT)
de Castro (PPGE/UFMT) Editoração eletrônica
Helleny Nobre da Silva (PPGE/UFMT)
Luis Renato dos Santos Dias (PPGE/UFMT) Laércio Miranda Comunicação
Thalita Pavani Vargas de Castro (PPGE/UFMT) Projeto visual
Fernando Barros

APOIO:

REALIZAÇÃO:
ISSN 2358-3959

ANAIS DE
TRABALHOS
COMPLETOS

EIXO
CULTURA MATERIAL
ESCOLAR

V.1
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

SUMÁRIO
CULTURA MATERIAL ESCOLAR
A DIMENSÃO ESTÉTICA DAS ESCOLAS DO IMPERADOR NA POLÍTICA DE MELHORAMENTOS DA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉCULO XIX...................................... 3
LUCIANA DE ALMEIDA SILVEIRA
A DISCIPLINA DE DESENHO NO COLÉGIO ESTADUAL DO PARANÁ:
RELAÇÕES ENTRE MATERIALIDADE E CURRÍCULO (1943 A 1949)........................................ 15
CERES LUEHRING MEDEIROS
AS ESCOLAS DO QUILOMBO DE MATA CAVALO: LEGITIMAÇÃO HISTÓRICA E RESISTÊNCIA CULTURAL.32
CRISTIANE CAROLINA DE ALMEIDA SOARES – UFMT
“AOS LEITORES”: O PREFÁCIO DO LIVRO ESCOLAR DE MÚSICA DE ANTONIO RAYOL............ 43
KATHIA SALOMÃO
CÉSAR AUGUSTO CASTRO
COLEÇÃO “O MUNDO DA CRIANÇA”: MATERIALIDADE E CIRCULAÇÃO................................. 55
JULIANA CALIXTO BARTSCH
GIZELE DE SOUZA
DISCURSOS E SENTIDOS QUE CIRCULAM: DICCIONÁRIO UNIVERSAL DE EDUCAÇÃO E ENSINO
COMO SUPORTE DE IDEIAS PEDAGÓGICAS (ANOS FINAIS DO SÉCULO XIX).......................... 69
ANA PAULA DE SOUZA KINCHESCKI
LUIZA PINHEIRO FERBER
VERA LUCIA GASPAR DA SILVA
IMPRESSOS DAS ASSOCIAÇÕES DE PROFESSORES POLONESES PARA AS ESCOLAS ÉTNICAS NO BRASIL:
INVENTÁRIO E CARACTERIZAÇÃO....................................................................................................... 83
CLÁUDIA SEVERO
AMANDA BACKES KAUER
MATERIAIS DE ESCRITURAÇÃO ESCOLAR NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX:
UM MUNDO MATERIAL DO FAZER DOCENTE....................................................................... 96
FRANCIELE F. FRANÇA
GIZELE DE SOUZA
“OBJETOS INDISPENSÁVEIS PARA O ENSINO”: MOBILIÁRIO ESCOLAR CATARINENSE E A
CIRCULAÇÃO DE IDEIAS PEDAGÓGICAS (1851-1889)....................................................... 108
GUSTAVO RUGONI DE SOUSA
O LABORATÓRIO DE FÍSICA E QUÍMICA DA ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO NO FINAL DO
SÉCULO XIX................................................................................................................ 118
MATHEUS LUIZ DE SOUZA CÉFALO
PROJETO ARAUCÁRIA: PRÁTICAS E MATERIALIDADES NARRADAS NOS CADERNOS DE
PROFESSORAS DA DÉCADA DE 1980.............................................................................. 131
ALESSANDRA GIACOMITI
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

A DIMENSÃO ESTÉTICA DAS ESCOLAS


DO IMPERADOR NA POLÍTICA DE
MELHORAMENTOS DA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO NO ÚLTIMO
QUARTEL DO SÉCULO XIX
Luciana de Almeida Silveira - UFRJ

Investigar sobre as possíveis interlocuções presentes no ato de projetar o


espaço da urbe e da escola no último quartel do século XIX, por meio das Escolas
do Imperador na cidade do Rio de Janeiro, constitui o objetivo deste trabalho. Este
estudo visa sinalizar alguns papéis exercidos pelas Escolas do Imperador frente ao
processo de construção de uma tradição de urbanidade na cidade imperial. Buscando
refletir sobre as culturas urbanas em construção, as tradições escolares inventadas, a
cultura material escolar e as representações de modernidade pedagógica, as Escolas
do Imperador são compreendidas como um projeto de construção de um lugar
específico para a escolarização, dialogando aqui com Vincent, Lahire e Thin (2001).
Em termos metodológicos, buscou-se rastrear pistas sobre a cartografia de
novos cenários urbanos a partir das Escolas do Imperador, adotando uma pesquisa
bibliográfica e documental acerca do processo de implantação dos prédios escolares
na cidade, composto por fotografias, registros iconográficos da cidade, projetos
arquitetônicos, o Plano de Melhoramento da Cidade de 1874 e os Relatórios de
Instrução Pública e do Ministro dos Negócios do Império de 1870 a 1874, a partir de
consulta ao Arquivo Nacional, ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e ao
Centro de Referência da Educação Pública do Rio de Janeiro da Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro - CREP/PCRJ.
Este exercício reflexivo estabeleceu um diálogo com as teorias defendidas por
autores como Foucault (2017); Gondra e Schueler (2008); Andreatta (2006); Abreu
Junior (2005); Faria Filho, Gonçalves, Vidal e Paulilo (2004); Hernández Díaz (2002);
Viñao Frago e Escolano (2001); Vincent, Lahire e Thin (2001) e Ginzburg (1989). Defende-
se aqui a premissa de que a monumentalidade dos prédios escolares dialogava
bem com a estética urbana da cidade em construção. Recorrendo a Hernández Díaz
(2002), entende-se que a cultura material deve considerar a história das instituições
escolares a partir tanto da sua materialidade quanto da estética do lugar onde estão

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 3


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situadas, destacando-se na análise as dimensões analíticas - a materialidade, a


tecnologia e a intencionalidade na perspectiva de Abreu Júnior (2005).

O Plano de Melhoramentos de 1874 e as Escolas do


Imperador enquanto elementos projetuais da cidade
Esse processo reflexivo considerou que as Escolas do Imperador se localizavam
nas principais freguesias da cidade, onde se destacavam as propostas urbanísticas
do Plano de Melhoramento de 1874 ou obras de infraestrutura, acessibilidade e
embelezamento estético. O primeiro plano de urbanização, elaborado pela Comissão
de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, composta pelos engenheiros Jerônimo
R.M. Jardim, Marcelino Ramos da Silva e Francisco Pereira Passos, tencionava atribuir
à cidade imperial novos contornos urbanísticos, estéticos e sociais vinculados aos
novos padrões de higiene pública e de salubridade dos espaços. Segundo Andreatta
(2006), o Plano de Melhoramento de 1874 visava sanar os problemas de saúde pública
a partir de um olhar estético da engenharia voltado para uma nova materialidade da
urbe carioca.
Acredita-se que os parâmetros urbanísticos e construtivos adotados nos planos
de reordenação social da cidade influenciaram o processo de constituição da forma
escolar no século XIX, ao mesmo tempo em que o processo de expansão da rede
escolar condicionou o processo de urbanização, cenário onde os engenheiros
assumiram um protagonismo inegável. Observou-se que Francisco Pereira Passos
foi o único profissional à frente tanto do Plano de Melhoramentos de 1874 como do
projeto da Escola Primária da Freguesia de Sant’Anna em 1877, inserida na “primeira
rede de escolas” denominada Escolas do Imperador, sinalizando a sua influência
junto à municipalidade no período. Pereira Passos foi nomeado engenheiro do
Ministério do Império com a atribuição de fiscalizar as obras projetadas para a Corte
e de projetar a cidade “moderna”.
Pensar a cidade imperial nos remete à primeira metade do século XIX, quando
a chegada da Corte Imperial no Rio de Janeiro transforma aceleradamente o
cenário social, político, econômico e cultural da cidade (ABREU, 1988). Em virtude
do expressivo crescimento demográfico e da necessidade de expansão da cidade,
a busca por diferentes estéticas urbanas parece nortear uma série de obras como
canalizações, aterros, desmembramento e parcelamento de chácaras (BENCHIMOL,
1990). O crescimento das cidades é marcado no período pela espontaneidade e sem
preocupações com o ordenamento retificado da malha urbana, que transformava a
paisagem da cidade com a abertura de vias e praças públicas, a formação de áreas
residenciais e o aterro de áreas pantanosas (TELLES, 1994).
Na segunda metade do século XIX, grandes epidemias assolavam o país como a
febre amarela (1850), cólera (1855) e varíola (1878), que provocaram mais de oito mil
óbitos na capital da Corte Imperial, reforçando a urgência quanto à construção de
um sistema de saneamento e de transportes para a cidade. A cidade contava com 11
(onze) freguesias urbanas e 8 (oito) rurais, sendo que estas últimas ocupavam cerca
de 85% do território do município. Segundo Silva (2015), a maioria da população
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estava localizada nas freguesias urbanas, equivalente a 15% do município, que


concentrava grande parte das obras de melhoramentos. Na década de 1870, a cidade
possuía 235.381 habitantes, sendo 185.289 homens livres e 50.092 escravos. As
freguesias urbanas como Santa Rita, São José, Santo Antônio, Glória, Sacramento,
Espírito Santo e Engenho Velho compreendiam as mais populosas, com destaque
para Sant’Anna que passou de 38.903 mil habitantes em 1870 para cerca de 50 mil
habitantes em 1890 (ABREU, 1988).
Nesse sentido, o aterro de áreas pantanosas, a higienização dos espaços e,
paralelamente, a “domesticação da água” pareciam orientar toda a intervenção
urbanística na cidade, que, respaldada na “teoria dos miasmas”, visava propor ações
de salubridade pública, infraestrutura, serviços, acessibilidade e embelezamento
estético a partir de uma crescente absorção da mão-de-obra livre e assalariada.
Considerando o conceito de “medicina urbana” de Foucault (2017), era preciso
superar o “medo da cidade”, eliminar as epidemias e controlar a circulação do ar,
das coisas e das pessoas. Era preciso romper com o medo urbano de regiões mais
populosas, a presença de casas insalubres, as áreas pantanosas consideradas focos
miasmáticos e a proximidade de cemitérios e matadouros.
Sob a ótica do discurso higienista da cidade, a segunda metade do século XIX
é marcada então por um período de grande crescimento das ferrovias, do setor
portuário e dos serviços urbanos que contribuíam para se repensar o espaço
urbano por meio das permanências e rupturas das estruturas coloniais das cidades.
Todavia, “embora substituísse a estrutura material da cidade escravista colonial,
ela era cada vez mais transfigurada pela nova trama de relações sociais que ia se
constituindo no espaço urbano” (BENCHIMOL, 1992, p. 44). Portanto, é preciso
pensar o processo de remodelação urbana atrelado a uma remodelação social da
cidade. O que possibilitou relacionar o caráter civilizador das culturas urbanas com
as culturas escolares, resultando no indiciamento da dimensão estética das Escolas
do Imperador como instrumento de disseminar práticas educativas formadoras de
subjetividades necessárias ao projeto de construção de uma nação moderna.
A busca do “modelo ideal de cidade” impulsionou a tomada de posicionamentos
tanto de intelectuais brasileiros quanto estrangeiros. “A construção da cidade utópica
moderna movia o imaginário de intelectuais reformistas, como Joaquim Nabuco, André
Rebouças e Tavares Bastos, que impulsionavam ações educacionais, direcionadas
para as camadas populares, atividades industriais e agrícolas” (FONSECA, 2002 apud
GONDRA e SCHUELER, 2008, p. 250). O desenvolvimento das cidades sinalizava,
progressivamente, uma crescente preocupação com a formação de profissionais
ligados à medicina, educação e engenharia (CHIAVARI, 1998). Segundo Benchimol
(1992, p. 145), “há total sintonia entre as noções práticas dos engenheiros e as normas
instituídas pela medicina social para regular a desordem urbana”.
Sob a égide de um discurso renovador neutro e científico, um grupo de especialistas
formado por médicos e engenheiros começa a repensar a estrutura urbana a partir
dos preceitos higienistas do período e a projetar o novo espaço de sociabilidade
em superação dos moldes escravistas (SILVA, 2015; BENCHIMOL, 1992; MATTOS,
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1987). Libertar-se do passado enquanto sinal de atraso e iniciar a era do progresso


parecem expressar bem o sentimento daquele presente e a questão da esteticidade
da cidade parecia acompanhar os projetos urbanos. Nessa perspectiva, o Plano de
Melhoramentos da Cidade em 1874 buscava projetar uma cidade ideal, sinalizando
algumas intencionalidades estéticas vinculadas às demandas sociais e aos novos
padrões de higiene pública e de salubridade dos espaços.
Segundo Silva (2015, p. 265), “a partir de 1870 a materialidade da cidade seria o
laboratório de uma nova forma de pensar a intervenção na urbe. Os problemas que
assolavam a cidade estavam deixando de ser da esfera privada para ser da alçada do
Estado”. A equipe de engenheiros produziu dois relatórios que versavam sobre diversas
propostas de melhoramentos e expansão da cidade. O primeiro relatório de 1874
abrangia as freguesias do Engenho Velho, Andaraí, São Cristóvão, Catete e Botafogo,
com destaque para o problema do Canal do Mangue, cujas propostas compreendiam
resumidamente a abertura, o alargamento, a retificação e o alinhamento de ruas,
boulevard e praças, o aterro de áreas pantanosas, além da construção de um sistema
de água e esgoto e de um ramal da estrada de ferro de D. Pedro II.
A região foi escolhida por oferecer melhores condições para o desenvolvimento da
cidade (PASSOS et al., 1874). No Primeiro Relatório da Comissão de Melhoramentos
da Cidade, Pereira Passos já apontava a necessidade de plantio de árvores nas
praças e ao longo dos passeios nas ruas, reconhecendo sua importância como forma
de abrigo contra a ação do sol, de purificação do ar e de combater a insalubridade
do solo. Em 1876, a Comissão apresentou o segundo relatório voltado para a região
central da cidade, contendo propostas como o arrasamento dos morros do Castelo
e de Santo Antônio, o alargamento e a abertura de ruas, o Canal do Mangue e as
habitações populares (PASSOS et al., 1876).
O texto normativo prescrevia todos os melhoramentos necessários para garantir a
salubridade pública como os aterros dos pântanos, bem como as normas construtivas
para habitações. Acredita-se que a Comissão de Melhoramentos da Cidade de 1874
a 1876 direcionou seus esforços para definir parâmetros construtivos tanto para o
espaço da cidade quanto para os edifícios particulares, cujas fachadas deveriam
sinalizar a hierarquia social, a qualidade e a finalidade do prédio. Eram difundidos
novos preceitos arquitetônicos, normas higiênicas, princípios estéticos e novas
relações sociais a partir das intervenções urbanas na capital. Havia orientações
quanto, por exemplo, à elevação das construções em relação ao chão, à altura das
edificações de acordo com a largura das ruas, ao pé-direito, à dimensão dos vãos, à
disposição dos cômodos, à espessura das paredes e ao sistema de esgotamento, de
modo a garantir a segurança, o conforto e a higiene das moradias.
Observa-se que os projetos dos palacetes escolares procuravam atender a tais
prescrições técnicas, como foi possível constatar no parecer sobre o processo de
implantação da Escola de São Sebastião na Freguesia de Sant’Anna. Assinado pelos
engenheiros José Pereira Rego, Francisco Bonifácio de Abreu e Antonio Corrêa de
Souza Costa, o parecer, emitido no dia 4 de julho de 1870, foi direcionado ao Ministro
e Secretário de Estado dos Negócios do Império - Conselheiro Dr. Paulino José Soares
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de Sousa, com um alerta para alguns problemas urbanos iminentes no período.


Os engenheiros destacaram a precariedade das condições higiênicas do local em
virtude da proximidade do Canal do Mangue, sinalizando aproximações entre as
culturas urbanas, os preceitos higienistas dos médicos sanitaristas e a necessidade
de expansão da escolarização na cidade do Rio de janeiro. Os especialistas ainda
sugeriram a implantação do prédio escolar no centro do terreno, com plantio de
árvores e elevação do andar térreo em relação ao solo.
Destacava-se uma preocupação central no Plano de Melhoramentos da Cidade
em relação à salubridade pública e saúde humana e, considerando o cenário social
e urbano da cidade imperial, uma intervenção urbana que visasse facilitar o acesso
aos palacetes escolares, parecia refletir positivamente sobre o bem-estar dos sujeitos
envolvidos na escola e no entorno imediato, objeto das políticas higienistas do período.
Para Almeida (2010), as obras de melhoramento da cidade na segunda metade do
século XIX procuravam valorizar as transformações urbanas enquanto símbolo do
progresso e fonte de saúde, em detrimento à ordem tradicional advinda das relações
escravistas, atreladas à desordem e ao foco de doenças. As obras de melhoramento,
com aterro das áreas pantanosas e redes de infraestrutura de abastecimento de
água e de esgoto sanitário, indiciavam um processo de “medicalização” dos espaços
urbanos.
Era preciso esquadrinhar a cidade imperial no sentido de melhor definir uma
política urbana com pretensões regulamentadoras, sanitaristas e reordenadoras
do tecido urbano, bem como integradoras ao mesmo tempo em que segregadoras
da população. De um lado, ações no sentido de eliminar as moradias e os espaços
públicos ditos insalubres e, por outro, esforços direcionados no sentido de ampliar
as ações educativas e assistencialistas para a população pobre, a exemplo das
próprias Escolas do Imperador. Gondra (2003) indicia o projeto higienista da cidade
enquanto modelo de organização escolar, impondo dispositivos arquitetônicos e
de localização da escola; tempo escolar; e conhecimentos, valores e novos hábitos.
Diante de um processo de remodelação urbana, social, política, econômica e
cultural, a escola enquanto dispositivo parece assumir a função de remodelação
dos comportamentos, hábitos e tradições da população.
Nessa perspectiva, a escola, enquanto dispositivo de poder-saber, sinaliza
intencionalidades, possibilidades e saberes necessários ao processo de construção
da urbe moderna. A busca da modernidade estaria pautada, portanto, por uma ideia
do progresso e de ordem atrelada ao processo de higienizar a sociedade, a escola
e a infância no último quartel do século XIX (FARIA FILHO, 2003; GONDRA, 2004;
CÂMARA, 2010). Recorrendo a Foucault (2017, p.367), entende-se aqui o dispositivo
como um conjunto de “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas”. Enquanto dispositivo imerso num emaranhado
de poder-saber, é preciso, portanto, tecer as redes que interligam escola e cidade,
no sentido de perscrutar as “estratégias de relações de força sustentando tipos de
saber e sendo sustentadas por ele”.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 8

Os “Palácios Escolares” desenhando novos contornos


urbanísticos, sociais e estéticos na cidade do Rio de Janeiro
O Recenseamento de 1872 apontava que 80% da população na Corte eram
considerados analfabetos de um total de 10.100.000 almas, incluindo livres, libertos
e escravos. A promulgação da Lei do Ventre Livre, aprovada em 28 de setembro
de 1871, parece ter contribuído para incitar o problema da instrução popular na
cidade, incluindo negros livres, libertos e escravos, sendo objeto de inúmeros
projetos do Ministério do Império, como “as reformas de João Alfredo (1874), de
Leôncio de Carvalho (1879), de Rui Barbosa (1883), de Almeida de Oliveira (1884),
do Barão de Marmoré (1886) e, já na República, a de Benjamin Constant (1890)”
(GONDRA e SCHUELER, 2008, p. 251-252). A Lei do Ventre Livre de 1871 impõe
elementos importantes para se pensar a cidade, em termos sociais, políticos e
espaciais, desencadeando um processo de modernização das estruturas urbanas em
atendimento à nova configuração social.
Considerando a escola como prática social, a instrução pública sinaliza as relações
de poder-saber tensionadas pelos diferentes sujeitos, que reconfiguram o espaço
da cidade. A escolarização começa a ser vista como uma forma de acesso à cidade.
Para Gondra e Schueler (2008, p.218), “saber ler e escrever passava a significar para
homens e mulheres, o pertencimento à modernidade e ao ‘mundo das luzes’ em
contraposição à ignorância e ao atraso colonial”. Cabia à escola, portanto, ensinar
às novas gerações não apenas a instrução elementar, como também conhecimentos,
valores e normas necessárias para a construção de uma nação, marcada pela
expansão da lavoura cafeeira concomitante ao fim do regime escravocrata e à adoção
do trabalho assalariado; remodelação urbana a partir dos planos de melhoramento
da cidade imperial e proliferação de obras públicas, incluindo a construção de prédios
públicos, rede telegráfica, portos e ferrovias (TELLES, 1994).
Uma série de investimentos no setor de transportes foi observada no período,
como a expansão do sistema ferroviário com crescente processo de interiorização da
cidade, sendo criada em 1858 a primeira estação D. Pedro II (atual Central do Brasil) em
direção à Freguesia de Santa Cruz até 1880. A morfologia urbana delineada a partir da
rede ferroviária desencadeou novos caminhos percorridos pelos sujeitos na cidade.
Remetendo a Lynch (2001), os caminhos compreendem importantes elementos
estruturantes do espaço, desde o traçado urbano ou o sistema de transportes públicos
até a presença de elementos naturais. Portanto, as intervenções urbanísticas na
cidade buscavam responder às necessidades de transpor os manguezais e as áreas
pantanosas para desenhar novos caminhos na cidade imperial. Observa-se que as
freguesias, beneficiadas pela expansão dos transportes no início dos anos de 1870,
foram contempladas pelo projeto das Escolas do Imperador, o que indicia que a
expansão dos transportes ora impulsionava a implantação dos prédios escolares ora
justificava a expansão da malha rodoviária ou ferroviária.
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Perscrutando a construção das 9 (nove) Escolas do Imperador, observa-se que,


salvo a Escola Mista da Imperial Fazenda de Santa Cruz1 e a Escola da Freguesia
da Nossa Senhora da Gávea, os prédios escolares estavam localizados dentro do
perímetro urbano da cidade, em praças públicas e próximos às estações ferroviárias,
como marcos na paisagem urbana e referencial em termos de beleza, estética e
de critérios higiênico-sanitários em atendimento à legislação regulamentadora. É
preciso considerar que a inserção das Escolas do Imperador nas principais freguesias
urbanas da cidade acabou por produzir novos caminhos e pontos nodais estratégicos
no interior da cidade, concentrando atividades importantes ou reunindo um
conjunto de instituições de caráter religioso, político, educacional, assistencial ou de
segurança pública.
Conhecidas como “palácios escolares”, as Escolas do Imperador foram erguidas
por determinação do Imperador D. Pedro II a partir de 1870, no final da Guerra do
Paraguai, que doou os recursos arrecadados pelo povo para a construção de uma
estátua equestre em bronze em sua homenagem para a construção dos prédios
escolares2 (GUIA DAS ESCOLAS DO IMPERADOR, 2005). Considera-se que as Escolas
do Imperador representaram uma tentativa quanto à construção da primeira rede
pública de ensino na cidade. Ocupando prédios monumentais dotados de critérios
higiênico-sanitários e práticas disciplinadoras, debate respaldado em Foucault
(2017), as escolas pareciam apontar para uma preocupação com a arquitetura escolar
vinculada a uma educação estética necessária ao processo civilizatório em curso.
Competia à escola a função de contribuir para a construção de uma nação moderna
no sentido de “civilizar” a sociedade por meio de reformas sanitárias, pedagógicas e
arquitetônicas.
Na busca pela renovação no campo da arquitetura escolar, os prédios escolares
projetados se contrastavam aos prédios coloniais à base de cal, por sua suntuosidade;
cores fortes, a exemplo da Escola da Freguesia da Nossa Senhora da Glória; e elementos
decorativos, como a presença de vasos, quatro estátuas - a Ciência, a Agricultura, a
Arte e a Indústria de autoria de Mathurin Moreau e medalhão em metal, adquiridas
das Fonderies du Val d´Osne na França. Refletindo em termos estéticos sobre a
materialidade, inúmeros são os sinais e indícios acerca da simbologia marcada pela
presença das estátuas da Agricultura, Ciência, Indústria e Arte, que representavam a
defesa de valores em busca do progresso ligados à modernidade, ao cientificismo, ao
trabalho, ao crescimento industrial e à produção artística em escala.

1 Parte da historiografia oficial, como o Guia das Escolas do Imperador, publicado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Ja-
neiro, e autores como Costa (2012) não consideram a Escola Mista da Imperial Fazenda de Santa Cruz como parte das cha-
madas Escolas do Imperador. Localizada na freguesia rural de Santa Cruz, a escola foi fundada em 1885, sendo custeada
pelo D. Pedro II, com ensino profissionalizante destinado aos filhos dos funcionários da Casa Imperial. Inserida no projeto
civilizatório e projetada por Paula Freitas, a escola atendia aos dispositivos higienistas, visando garantir a adequação dos
espaços de aprendizagem, a salubridade e o acesso à escolarização. Dotado de uma arquitetura monumental o prédio se
destaca na região rural, onde funciona atualmente o Batalhão Escola de Engenharia.
2 São eles: Escola de São Sebastião na Freguesia de Sant›Anna; Escola da Freguesia de São José; Escola da Freguesia de São
Francisco Xavier do Engenho Velho; Escola da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Gávea; Escola da Freguesia de
Nossa Senhora da Glória; Escola de São Cristóvão; Escola da Freguesia de Santa Rita; Escola da Freguesia de Sant›Anna e
Escola Mista da Imperial Fazenda de Santa Cruz.
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Sob a perspectiva do paradigma indiciário, é possível sinalizar ainda algumas


inferências acerca da presença de um conjunto escultórico neoclássico em mármore
distribuídas no prédio escolar da Freguesia da Nossa Senhora da Glória, que nos
remetem à antiguidade. Na porta de entrada principal, encontram-se os leões,
guardiões da tradição e símbolos de proteção e no saguão de entrada uma figura
feminina, que oferece a leitura de um texto para a criança, além de livros, instrumento
de desenho e um globo terrestre; o que pode significar a importância da professora
para a educação formal e institucionalizada. Enfim, a escultura nos sugere a acolhida
do menor na escola tão necessária ao processo civilizatório.
Observa-se nas Escolas do Imperador, portanto, uma intenção plástica subordinada
a um estilo arquitetônico determinante da técnica construtiva empregada, o que nos
faz refletir acerca da primazia dos aspectos estéticos em detrimento aos técnicos.
Enquanto expressão da modernidade, Francisco Bethencourt da Silva3, encarregado
das obras do Ministério do Império e responsável pelos prédios escolares das
freguesias da Nossa Senhora da Glória, de Santa Rita e de São Francisco Xavier do
Engenho Velho, se dedicou à construção de inúmeras obras na Cidade do Rio de
Janeiro, caracterizadas pelo estilo neoclássico com incorporação progressiva do
estilo eclético na arquitetura brasileira. Para Sobral Filha (2015), os prédios escolares
de Bethencourt da Silva podem ser considerados como exemplares para a “educação
do olhar”, enfim, um olhar estético civilizatório a partir da cultura material escolar.
Os prédios escolares das freguesias de São Christovão, Sant’Anna e Glória sinalizavam
a clara preocupação com a localização de destaque na paisagem urbana, ao mesmo
tempo em que parecia reforçar as desigualdades sociais devido à distribuição desigual
das escolas (SCHUELER, 2008). Em geral, os prédios monumentais, construídos
em grandes praças públicas, se destacavam pelas características básicas do estilo
neoclássico: a divisão da edificação em três corpos marcados pela simetria, o frontão
triangular com presença de armas imperiais e relógio no tímpano, o embasamento
em cantaria, as ordens clássicas, a platibanda para encobrir o telhado e os vãos em
arco guarnecidos por esquadrias de madeira. Sua adoção era vista como sinal de
modernização, ao mesmo tempo em que se buscava atender às novas exigências das
posturas municipais que, por exemplo, proibiam o lançamento das águas pluviais
dos telhados diretamente nas ruas. Como sinal da modernidade, o relógio, elemento
incorporado nas fachadas dos prédios, parecia disciplinar comunidade e escola.

O uso generalizado de relógios nas fachadas de prédios diversos


correspondeu a uma reformulação do papel até então reservados aos
sinos. Ele pode ser entendido como um sintoma tanto de modernização
como até da progressiva dessacralização do espaço urbano iniciada em
princípios do século XIX e acompanhada pela substituição do tempo
tradicional pelo tempo cronológico, anglo-saxão e moderno. (SISSON,
1990, p. 68)

3 Bethencourt da Silva estudou na Academia Imperial de Belas Artes e foi aluno de Grandjean de Montigny, cujos referen-
ciais arquitetônicos europeus influenciaram diretamente a sua obra. Assumiu o cargo de arquiteto da Câmara Municipal
de 1851 a 1859, sendo responsável por inúmeras obras na cidade, fundou a Sociedade Propagadora das Belas Artes em
1856 e o Liceu de Artes e Ofícios em 1858 (SOBRAL FILHA, 2015).
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Havia uma preocupação em dotar o espaço público de qualidades espaciais como


estética, visibilidade, acessibilidade e salubridade. Observa-se, portanto, a presença
de elementos decorativos nas fachadas, vegetação e equipamentos urbanos
(iluminação, transportes públicos, praças) junto aos prédios escolares. Uma das
Escolas do Imperador que apresentava um diferencial em termos arquitetônicos foi o
prédio escolar da Escola da Freguesia de São José, inaugurada no dia 7 de setembro
de 1874, que contava com 665 alunos. Em sua fachada, religião e ciência estavam
representadas pela presença das estátuas de São João, São Lucas, São Marcos e São
Mateus, além dos nichos com três mostradores indicando horas, dias da semana
e fases lunares. Fortemente marcado pela presença da Igreja na configuração do
espaço escolar e da cidade, o prédio foi concebido em estilo neogótico manuelino,
composto por três corpos: um corpo central destinado à missa e dois laterais com
salas de aula separadas por sexo.
Em linhas gerais, as freguesias urbanas mais populosas e de fácil acessibilidade,
possibilitada pelos ramais ferroviários e de bondes pela cidade, foram contempladas
pela implantação das Escolas do Imperador, mas cabe destacar o fato de que as
freguesias de menor densidade populacional como Gávea e Santa Cruz também
integravam essa primeira tentativa de uma rede de escolas públicas na Corte Imperial.
Interessante notar que diferentes vertentes explicativas parecem ter norteado o
processo de implantação das Escolas do Imperador. Em relação à Escola da Freguesia
da Nossa Senhora da Gávea, um ex-escravo, criado por uma família abastada da
região, foi responsável pela implantação da escola em 1861. Provavelmente, no bojo
da reforma educacional de João Alfredo (1874) e da Lei do Ventre Livre (1871), D.
Pedro II entendeu a necessidade de ampliar os limites da primeira rede de escolas
públicas, construindo o novo prédio em 1874 voltado, especialmente, para negros
livres, libertos e escravos. A edificação não se destaca pela monumentalidade, porém
apresenta elementos neoclássicos. (GUIA DAS ESCOLAS DO IMPERADOR, 2015)
Remetendo a Ginzburg (1989), no exercício indiciário sobre a institucionalização
das Escolas do Imperador na década de 1870, acredita-se que a cultura material
marcada pela monumentalidade da arquitetura escolar parece fazer emergir
diferentes estéticas do olhar a cidade, que contribuíam para reordenar o espaço
social com base nos preceitos da harmonia, da ordem, da beleza, do equilíbrio e da
política higienista (VEIGA, 2003). Enfim, novas relações pedagógicas a partir do papel
do professor enquanto agente responsável pela instrução, novos espaços escolares e
ritmos de aprendizagem dos alunos são introduzidos no cotidiano das escolas.
Em outras palavras, as Escolas do Imperador parecem contribuir para a
institucionalização da “forma escolar moderna” que, sob a perspectiva de Vincent,
Lahire e Thin (2001), é entendida como lugar institucionalizado e legítimo de
educação na sociedade, voltada para a difusão dos saberes em um espaço e tempo
normatizados bem como as relações pedagógicas entre mestre e aluno, não podendo
ser entendida dentro dos limites da instituição escolar. Adotam-se como premissa
as potencialidades de uma pedagogização da cidade a partir do extravasamento da
forma escolar (VIDAL, 2005; FARIA FILHO, GONÇALVES, VIDAL e PAULILO, 2004; JULIA,
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 12

2001). Como Schueler, Rizzini e Marques (2015, p. 151) afirmam: “a proposta é inserir
a escola e o processo de escolarização na dimensão da cidade como espaço social
e histórico, por meio da ocupação dos espaços pelas escolas e das escolas pelos
sujeitos: meninos, meninas, homens e mulheres, alunos, professores e professoras”.

Considerações Finais
Pensar nas culturas urbanas e escolares requer considerar novas estéticas do
olhar a cidade em construção a partir da tríade medicina, educação e engenharia.
A organização de um plano geral de melhoramentos da cidade em 1874, para
alargamento e retificação das ruas, visava facilitar o acesso e a circulação na cidade,
aproximando e disciplinando pessoas, informações e lugares, cujos recursos de
análise incluíram a implementação dos sistemas de transporte, a eliminação de
barreiras sociais e físicas e os sistemas de comunicação. Refletindo sobre os projetos
das Escolas do Imperador, localizadas em áreas de fácil acessibilidade em virtude
da disponibilidade de transportes públicos, vias pavimentadas de acesso e espaços
públicos ajardinados, pode-se pensar em um sentido de complementaridade entre
os dois projetos e de estreitamento entre as culturas urbanas e escolares no período.
Recorrendo a Viñao Frago e Escolano (2001), afirma-se que os “palácios escolares”
se destacam pela arquitetura monumental, entendida aqui como um canal de
mediação pedagógica, identidade, expressividade, representatividade, enfim, um
programa de alto potencial educador. Acredita-se que a dimensão estética do prédio
escolar dialogava bem com a arquitetura institucional que o governo imperial atribuía
às instituições públicas, contribuindo para fortalecer as redes de sociabilidade
diante de um possível projeto de escolarização do social, cujas intencionalidades
são sinalizadas a partir dos esforços direcionados para a implantação das Escolas do
Imperador.
Nessa perspectiva, o projeto de expansão da escolarização, com destaque para as
Escolas do Imperador, estaria diretamente relacionado ao projeto de urbanização da
cidade imperial, com destaque para o Plano de Melhoramento da Cidade em 1874.
Perscrutando o processo de escolarização do social, por meio de um conjunto de
dispositivos de poder-saber de natureza educacional, científica e assistencialista,
sob a perspectiva de Foucault (2017), foi possível indiciar a articulação entre as
pretensas melhorias na qualidade do espaço urbano e as necessidades de organizar,
harmonizar e disciplinar os espaços e tempos citadinos no último quartel do século
XIX. Enfim, entrelaçando as culturas escolares e urbanas no período, foi lançado um
convite ao leitor para reflexão acerca da emergência de um olhar estético civilizatório
a partir das Escolas do Imperador no último quartel do século XIX.
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ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

A DISCIPLINA DE DESENHO NO
COLÉGIO ESTADUAL DO PARANÁ:
RELAÇÕES ENTRE MATERIALIDADE
E CURRÍCULO (1943 A 1949)
Ceres Luehring Medeiros – UFPR

Este artigo propõe a análise do ensino de Desenho1 no Colégio Estadual do Paraná2


(CEP), entre 1943 e 1949, partindo do pressuposto de que esta disciplina traz consigo
toda uma cultura escolar.
O Colégio Estadual do Paraná é uma instituição de ensino criada em 1846 com o
nome de Liceu de Curitiba, tendo em 1892 passando a se chamar Ginásio Paranaense.
Durante muitos anos, e pode-se dizer de certa forma que ainda hoje, foi a instituição
representativa do ensino secundário3 público no Paraná. Localizado, desde 1950,
em importante edifício na região do Alto da Glória em Curitiba, na Avenida João
Gualberto, ocupou durante 45 anos outro prédio imponente na região central da
capital paranaense.
Este trabalho se insere na linha de pesquisa de História e Historiografia da Educação
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
O marco temporal inicial foi estabelecido pela alteração do nome deste Colégio na
conjuntura da Reforma Capanema, ocasionando também mudanças no currículo e
nos programas educacionais do Desenho do ensino secundário e o final pelo último
ano em que o colégio esteve no prédio situado à rua Ébano Pereira. O trabalho trata
das Reformas educacionais e de suas implicações no ensino de Desenho.
O ensino do Desenho foi prescrito em programas bem definidos por Leis e Portarias,
transposto para o meio escolar, no caso o CEP, por meio de programas e projetos

1 A disciplina de Desenho será grafada com letra maiúscula e o desenho como expressão, ou melhor, manifestação de pen-
samento ou sentimento por meio gráfico, com letra minúscula.
2 Para esclarecimento, a instituição teve cinco denominações: Liceu de Curitiba (1846-1875); Instituto Para-
naense (1876-1891); Ginásio Paranaense (1892-1941); Colégio Paranaense (1942) e Colégio Estadual do Paraná
(1943-atual).
3 Termo que atualmente não é mais utilizado. O ensino secundário de maneira geral é o período da vida escolar
que está entre o ensino primário e o superior. “Considerando o percurso legal do ensino secundário no Brasil,
destaca-se como um de seus primeiros marcos a transformação do Seminário de São Joaquim, antigo Semi-
nário dos Órfãos de São Pedro, em um “[...] collegio de instrucção secundária, com a denominação de Collegio
de Pedro II [...]” (BRASIL, 1837), fato ocorrido em 2 de dezembro de 1837. ” (PESSANHA; BRITO, 2014, p. 238).

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fiscalizados e inspecionados e pelos materiais e livros didáticos, que constituem uma


certa materialidade e uma forma de seleção de conteúdos a serem socializados.
A análise e o diálogo estabelecidos neste trabalho foram realizados com base em
fontes de diversas tipologias. Provenientes de arquivos da capital paranaense, são
documentos originários do poder público, documentos administrativos e pedagógicos
escolares, jornais e fotografias. No que se refere ao ensino do Desenho, foi necessário
pesquisar os programas federais, a estrutura da disciplina, os conteúdos, o sistema
de avaliação, os manuais didáticos utilizados, os pontos de provas, os professores, as
salas de Desenho, os objetos escolares.
Na análise da disciplina de Desenho no Colégio Estadual do Paraná percebe-se o
quanto era importante documentar o patrimônio material desta instituição de ensino,
como espaços arquitetônicos, mobiliário, laboratórios, equipamentos e objetos.
Era por meio do patrimônio material que o Colégio demonstrava sua qualidade
de ensino, sua adequação ao currículo e aos programas educacionais federais, em
específico da disciplina de Desenho. Assim, os espaços e os artefatos materiais da
disciplina de Desenho no Colégio Estadual do Paraná estão vinculados a concepções
pedagógicas, à saberes e práticas, ao ofício docente e a toda uma relação simbólica
com estes objetos no contexto de uma organização escolar.
Como é o caso de uma série de medidas e modificações na estrutura do CEP que
ocorreram com a Reforma Capanema. Gustavo Capanema que substituiu Francisco
Campos no Ministério da Educação, tomando posse em julho de 19344, decretou
Leis Orgânicas de Ensino, entre 1942 e 1946, estas ficaram conhecidas por Reforma
Capanema, concretizadas em decretos-leis e tinham por intenção organizar os ensinos
primário, secundário, e os ensinos industrial, comercial, normal e agrícola. (ZUIN,
2001, p. 78). Assim, o ensino secundário ficou dividido em dois ciclos, o ginasial, com
duração de quatro anos, e o colegial, dividido entre clássico e científico, com duração
de três anos. O curso clássico tinha uma maior ênfase no conhecimento da filosofia e
no estudo das letras. Já o curso científico visava um estudo das ciências.
Com a Reforma de Capanema, o objetivo era favorecer o comércio e as atividades
urbanas, principalmente da classe média, pois acreditava-se serem essas atividades
propulsoras da modernização. O projeto de educação criava duas redes de escolarização:
a rede primária profissional (ensino primário, ensino técnico e formação de professores
para o ensino básico), e a rede secundária superior, que preparava, nas palavras de
Capanema, as individualidades condutoras. Ainda dentro da formação secundária, o
curso ginasial era suficiente para a classe média. Já para as elites, preconizava-se o
colegial. (NUNES, 2001, p. 103); (BITTENCOURT, 2004, p. 82).
Com a Reforma Capanema, o Ginásio Paranaense passou a se chamar Colégio
Estadual do Paraná, em 1943, pelo Decreto n. 12.056 de 23 de março de 1943. Neste
contexto cresceu a procura pelo ensino secundário no CEP, e em consequência,
houve a necessidade da construção de um novo prédio para a Instituição, que era

4 Capanema foi designado pelo presidente Getúlio Vargas para dirigir o Ministério da Educação e Saúde. Nomeado em julho
de 1934, permaneceria no cargo até o fim do Estado Novo, em outubro de 1945.
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referência da educação secundária no Paraná, até porque a educação era vista como
um dos alicerces do desenvolvimento.
Manoel Ribas5, queria fazer da construção de um novo prédio para o CEP uma das
obras mais notáveis de sua administração. Não foram poucas as notícias de jornais
e artigos no próprio Jornal dos estudantes do CEP louvando esta construção, que era
uma reinvindicação antiga.

Tem sido desvelado o carinho com que o Sr. Manoel Ribas procura
satisfazer as necessidades do velho Colégio Paranaense. Na sua política
de disseminação intensiva do ensino em nosso Estado são sem conta os
atos em favor do Colégio Estadual do Paraná e o maior de todos os seus
atos neste sentido é indiscutivelmente aquela que vem de se efetivar
com a construção de uma nova sede para o colégio. [...]. Realização que
é, por assim dizer, um prêmio as gloriosas conquistas e ao passado de
glórias de uma casa de ensino que está visceralmente ligada à evolução
social; cultural e política do Paraná. (Jornal. Colégio Estadual do Paraná,
out. 1943).

Straube destaca em que a pedra fundamental foi lançada “no dia 19 de abril
de 1943, data natalícia do presidente Getúlio Vargas”. (STRAUBE, 1993, p. 97). Data
simbólica, que exaltava a relação do Colégio e do próprio Governo Estadual com o
Estado Novo.
O terreno de 43.137,63m2, situado à Av. João Gualberto, abrigaria um prédio
realmente grandioso com salas de 54 m2 e uma estrutura esportiva com ginásio de
esportes, piscina e arquibancadas, “a mais perfeita instalação no gênero, não só
do Paraná, como de todo o sul do país” (O NOVO..., Jornal do Colégio Estadual do
Paraná, junho 1945). A construção demorou seis anos para ser concluída, pois havia
dificuldades financeiras, falta de mão de obra especializada e escassez de materiais
de construção (CASTRO, 2010, p. 249).
A construção de uma nova sede para o Colégio era fundamental para manter a
imagem de ensino de qualidade desta tradicional instituição de ensino secundário.
A Reforma Capanema foi propulsora de importantes mudanças na estrutura do
CEP. No que se refere ao ensino de Desenho, este foi dividido em modalidades. No
ano de 1945, foi publicada a Portaria Ministerial n.º 555, que expediu os programas
de Desenho dando as respectivas instruções. Na referida Portaria Ministerial estavam
indicadas as modalidades de Desenho nas séries do curso ginasial (BRASIL, 1945):

5 Manuel Ribas foi interventor de 1932 a 1935 e de 1937 a 1945 e governador do Estado do Paraná de 1935 a
1937.
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QUADRO I – MODALIDADES DO PROGRAMA DE DESENHO, CURSO GINASIAL

CURSO GINASIAL
Modalidades 1.a série 2.a série 3.a série 4.a série
Desenho do Natural X X X X
Desenho Decorativo X X X X
Desenho Geométrico X X
Desenho Geométrico e Projetivo X

Noções sobre perspectiva linear e traçado das sombras X

FONTE: Zuin (2001, p. 78).

Nesta Portaria defendia-se o valor educativo do Desenho no curso Ginasial,


possibilitando, assim, uma formação geral do educando. Percebe-se nas entrelinhas
as indicações de Lúcio Costa6. Com relação ao Desenho, as relações de Capanema
com Lúcio Costa, para além das atividades projetivas da arquitetura, estenderam-se
para a educação. Antes da Reforma de 1942, Capanema solicitou a Lúcio Costa, em
1940, a reformulação do programa do ensino de Desenho para o curso secundário.
Lúcio Costa via no ensino do Desenho a possibilidade de o aluno conhecer e dar o
devido valor à “obra de arte plástica”, não como cópia da natureza, mas como criação
autônoma e livre. Reconhecia que era importante desenvolver no curso secundário
o “hábito da observação, o espírito de análise, o gosto pela precisão” predispondo
o aluno para as tarefas da vida prática e para uma melhor compreensão visual
do mundo. (COSTA, 1940, p. 2). Mas ressaltava que o ensino do desenho deveria,
também, “reavivar a pureza de imaginação, o dom de criar”. (COSTA, 1940, p. 2). Costa
acreditava que devia-se aperfeiçoar nos adolescentes estas qualidades para que se
estimulem “vocações”. E assim, cultivar, no seu entendimento, artistas que tenham
autonomia na composição plástica. A proposta de Costa para o ensino de Desenho
era bem diferente do que pensado até então. Apesar de manter como pressuposto
o gosto pela precisão e o hábito da observação, muito defendido como premissas
para o Desenho no secundário, trazia a Arte e o processo criativo como propostas
inovadoras para esta disciplina.
Na opinião de Vaz (2018, p. 6), a proposta de Costa para o ensino do Desenho no
curso secundário “valoriza o desenho de criação e vê o artista como um trabalhador
autônomo”. Assim sendo, para Costa, o Desenho não é mais um meio que auxilia nas
disciplinas das ciências ou uma aplicação prática da Geometria.
Lúcio Costa defendia que o desenho de observação deveria ser com base em
modelos de peças produzidos pela “indústria regional popular, materiais etnográficos
e folclóricos. Também recomenda o desenho da flora, [...] e de materiais variados
(pedra, madeira, etc.), e caso o desenho não seja realizado direto do natural, o aluno
6 Lúcio Costa (Toulon, França 1902 - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998) foi um arquiteto, urbanista, estudioso e
teórico da arquitetura e dedicado à conservação do patrimônio. Entre 1935 e 1936, é convidado pelo ministro
Gustavo Capanema a conceber o projeto da nova sede do Ministério da Educação e Saúde - MES, edifício
considerado como um dos marcos da arquitetura moderna brasileira.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 19

poderá desenhar observando fotografias e estampas” dos livros de História Natural


(VAZ, 2018, p. 8). Vemos ainda o desenho de observação como cópia, mas agora não
mais a cópia de modelos clássicos e sim, de objetos voltados ao Design industrial e à
Arquitetura.
O trecho da Portaria, a seguir, destaca o valor artístico e educativo do Desenho.
Também é perceptível a preocupação com a psicologia e com a expressão gráfica do
adolescente:

O Desenho é linguagem gráfica e, assim, disciplina da expressão. Tanto


quanto as demais modalidades de expressão, apresentada pelo seu
exercício, ordenado ou desordenado, profundas repercussões
psicológicas. E, daí, justamente, o grande papel educativo que pode e
deve ter na adolescência. [...] se o ensino for bem dirigido, apurará a
capacidade interpretativa e de expressão, com maior compreensão dos
valores artísticos. (BRASIL, 1945).

O desenho como expressão gráfica, pela portaria governamental, trabalha o


intelecto, a disciplina, e a capacidade de interpretação pretendidas para o ensino
secundário. Reflete-se que este ensino se propõe ser desenvolvedor do intelecto e
tinha como base o conhecimento das linguagens e das ciências, estando distante das
práticas e das profissões técnicas.
A Portaria n.º 10, de 4/01/1946, do Ministério da Educação e da Saúde, tratava do
programa de Desenho e as respectivas instruções metodológicas no curso científico
do ensino secundário. Para o curso Clássico não havia a disciplina de Desenho. Por
essa Portaria, o ensino das modalidades de Desenho, para o curso científico, ficava
da seguinte forma:

QUADRO II – MODALIDADES DO PROGRAMA DE DESENHO, CURSO CIENTÍFICO

CURSO CIENTÍFICO

Modalidades 1.a série 2.a série 3.a série

Desenho do Natural X X X
Desenho Geométrico e Projetivo X X X
Desenho Decorativo X X
Desenho Convencional X X
Desenho Técnico X

FONTE: Zuin (2001, p. 80).

O programa era extenso e pesado, direcionado a cumprir alguns dos pré-


requisitos para os cursos superiores de Engenharia e Arquitetura (ZUIN, 2001, p. 80).
As publicações dos programas oficiais, de uma forma geral, traziam definições bem
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 20

específicas das finalidades do ensino de cada disciplina, propostas metodológicas, e


conteúdos a serem trabalhados.
Não é possível ter como base unicamente os programas oficiais, estes devem
ser conduzidos “simultaneamente sobre os dois planos e utilizar uma dupla
documentação, a dos objetivos fixados e a da realidade pedagógica” (CHERVEL,
1990, p. 190-191).
Nas fotografias que representam as salas de Desenho do CEP, percebe-se materiais
e modelos relacionados a cada modalidade do Desenho. Ressalta-se que tudo deveria
ser realizado nas pranchetas. Para o Desenho do Natural eram disponibilizados uma
escultura clássica, os bustos, os objetos, os animais, os sólidos geométricos.

FIGURA 1 – SALA DE DESENHO. ÁLBUM FOTOGRÁFICO INTITULADO “ANTIGO GINÁSIO


PARANAENSE 1941”

FONTE: Acervo CM-CEP.

Alguns bustos, sólidos geométricos e vasos são brancos, possibilitando uma


melhor visualização para o trabalho com luz e sombra. Ressalta-se na fotografia a
seguir que muitos objetos estão em uma altura adequada ao desenho de observação
e estão dispostos para o instante fotográfico. Supõem-se que no cotidiano havia
modificações quanto à quantidade e variedade de objetos expostos para o desenho.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 21

FIGURA 2 – SALA DE DESENHO. ÁLBUM FOTOGRÁFICO INTITULADO “ANTIGO GINÁSIO


PARANAENSE 1941”

FONTE: Acervo CM-CEP.

Para que o programa fosse executado era necessário haver equipamentos,


materiais e objetos nas salas de Desenho. No CEP a preocupação com o patrimônio
material das salas já existia desde pelo menos os anos 1920, quando houve um
significativo aumento do patrimônio total da instituição, em termos de quantidade de
material pedagógico. Pode-se perceber esse aumento nos pareceres das comissões de
docência, finanças e ensino, realizados em 1919, 1928 e 1942 (GINÁSIO PARANAENSE.
Relatório da Comissão de Finanças, Docência e Ensino, 1919; 1928; 1942). Os principais
objetos pertencentes à cadeira de Desenho eram: bustos, cabeças, máscaras,
estatuetas, animais, entre outros modelos em gesso; baixos e altos-relevos e ornatos
em gesso; vasos e objetos utilitários cerâmicos; objetos utilitários em metal; colunas
e suportes de madeira; animais empalhados; sólidos geométricos em madeira; partes
de corpo humano em gesso; compasso e esquadros de madeira; e régua T.
No Desenho do Natural desenhava-se de observação os objetos propostos,
tentando representar com o máximo de realidade as formas e volumes, dados pelo
efeito luz e sombra. Zacharias (2013, p.131) com base em entrevista realiza com o
professor Ernani Straube sobre as suas memórias, quando foi aluno do CEP, tece
algumas considerações sobre as aulas de Desenho.

Ernani Straube afirma que as aulas de Desenho ocorriam em uma sala


que possuía pranchetas. Afirma ainda que o professor colocava sólidos
grandes de madeira pintados de branco para que os alunos observassem
e desenhassem. Não comenta sobre a existência de outros materiais ou
outros tipos de atividade. (ZACHARIAS, 2013, p. 131).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 22

Para o Desenho Decorativo, eram utilizados: o quadro negro para o desenho de


faixas gregas, baixos-relevos com motivos florais e altos-relevos com cabeças, todas
com acabamento branco.
Para o Desenho Convencional e o Projetivo, além dos sólidos geométricos,
utilizava-se o quadro negro e os instrumentos de desenho, como esquadros e
transferidor em madeira para lousa. No desenho Convencional e Projetivo eram
estudadas as projeções no plano, as perspectivas, e toda a geometria descritiva.
Quanto à avaliação, havia duas provas parciais no decorrer do ano letivo, em junho
e outubro, e uma prova final, na qual deveria ser cobrada toda a matéria ensinada
na série. A prova final era prática e deveria ser prestada perante banca examinadora
(BRASIL. Decreto-Lei n.º 4.244, 1942, Art. 48, 49 e 50).
As provas de Desenho tinham pontos bem definidos, que englobavam as
modalidades do ensino de Desenho e apresentavam um bom grau de aprofundamento.
Souza (2008, p. 194-195) reflete que a disciplina e os exames eram tidos como
importantes pilares de sustentação da cultura escolar secundária, pois acreditava-se
que os exames validavam os conhecimentos transmitidos, reforçavam a autoridade
docente e o prestígio do curso secundário. Tive acesso a todos os pontos de prova
por série e turma do ano de 1947. Ao analisar os conteúdos dos pontos das provas
gráficas, é possível ter uma ideia do programa executado na disciplina de desenho
(OSINSKI, 2006, p. 78). A observação, o desenho de motivos decorativos, aliado à
geometria e o desenho projetivo, tinham como objetivo, além do conhecimento, o
treinamento da mão e do olho, assim como toda uma postura gestual e corporal.
Examinando os pontos de prova do CEP, em 1947, pode-se perceber diferenças
entre o programa oficial e a aplicação no CEP. Cada lista de pontos de prova era
assinada por um professor examinador, que era um professor de Desenho. No final era
assinado pelo Inspetor Federal e registrado o ponto sorteado (COLÉGIO ESTADUAL DO
PARANA. Relatório. Abr./mai./jun. 1947; out./nov./dez. 1947). Foi realizada a análise
de todos os pontos que tive acesso e pode-se perceber diferenças entre pontos da
mesma série, por vezes, com professores diferentes ou com o mesmo professor,
apesar de versarem sobre assuntos semelhantes.
A Portaria n.º 555 expediu os programas e as respectivas instruções metodológicas
para o ensino do Desenho. Para fins de análise dividi os pontos de prova pelas
modalidades do Desenho.
Como comparação a seguir o conteúdo do programa federal da primeira série
ginasial referente ao 1.º bimestre, Unidade 1, sobre Desenho do Natural.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 23

QUADRO III – PROGRAMA DA PRIMEIRA SÉRIE GINASIAL, 1945

A) Desenho do natural
Unidade I
Desenho do natural pela perspectiva de observação.
O mecanismo do globo ocular e o fenômeno da visão.
As deformações aparentes produzidas pelo fenômeno da visão.
A perspectiva como resultante do mecanismo da visão.
Ponto de vista, campo de visão distinta e quadro.
Exercícios de observação e medidas de planos de frente situados a distâncias variáveis para exemplificar o que se con-
sidera distância principal, isto é, a distância do espectador ao quadro e, como consequência, o que se deve considerar
ponto de vista.

FONTE: (BRASIL,1945).

O programa de Desenho do Natural traz muitos conteúdos do Desenho Geométrico


e do estudo da perspectiva. No CEP, pelos pontos de prova da 1.ª prova da 1.ª série gi-
nasial, estes trazem conteúdos mais básicos, até porque era a primeira prova do ano,
tendo pouco tempo de trabalho com o conteúdo. A ênfase recorrente é no desenho
de sólidos, como mostra o quadro a seguir.

QUADRO IV – CURSOS GINASIAL E COLEGIAL. RELATÓRIO DOS MESES DE ABRIL, MAIO E


JUNHO DE 1947. LISTA DE PONTOS PARA A 1ª PROVA GRÁFICA DE DESENHO DA 1ª SÉRIE,
DO CURSO GINASIAL

1. Traçado da elipse à mão livre; Desenho de um objeto de formas cilíndricas.

2. Construção de redes de malhas; Construção de desenho decorativo sobre as mesmas redes.

3. Construções de gregas clássicas de 3, 4 e 5 tempos.

4. Traçado de quadriláteros; Desenho decorativo tendo por base a figura de quadriláteros.

5. Traçado do círculo e seus elementos; Desenho de sólidos.

6. Faixa decorativa com elementos mixtilíneos; Desenho de sólidos.

7. Entrelaçado mixtilíneo; Desenho de sólidos.

8. Ornato simples à mão livre; Desenho de sólidos.

9. Friso decorativo, estilo simples; Desenho de sólidos.

10. Construção de um entrelaçado a compasso; Desenho de sólidos.

11. Traçado dos triângulos quanto aos ângulos e à natureza dos lados; Linhas de circunferência e circunferência –
circunferências secantes.

12. Traçado dos ângulos quanto à abertura e sentido das aberturas dos lados; Quadriláteros ângulos.

13. Traçado das circunferências e suas linhas; Os três grupos das linhas; Circunferências tangentes.

14. Traçado do quadrado, retângulo, paralelogramo e losango.

15. Construção de um estrelado a compasso; Desenho de sólidos.

FONTE: Arquivo Geral-CEP.


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 24

Quando se trata do desenho geométrico a situação era diferente. A seguir o


conteúdo de Desenho Geométrico da primeira série ginasial, referente ao ano todo,
está dividido em 4 Unidades.

QUADRO V – PROGRAMA DA PRIMEIRA SÉRIE GINASIAL, 1945

B) Desenho geométrico
Unidade I
· Traçado das linhas retas, segmentos retilíneos e semi-retas.
· Posições das retas: absolutas e relativas.
· Uso da régua T e traçado das paralelas.
· Uso dos esquadros e traçado das paralelas.
· Uso dos esquadros e traçado das perpendiculares.
· Uso do duplo ou triplo decímetro.
Unidade II
· Traçado das linhas curvas: círculo e arcos de círculo.
· Diâmetro, raio e semi-círculo.
· Uso do transferidor.
· Medidas dos arcos de círculo. Grau e grado.
Unidade III
· Ângulos, leitura, medida a traçados.
· Vértice e lados do ângulo.
· Medida dos ângulos.
· Grandeza dos ângulos agudo, obtuso e reto.
· Traçado do ângulo com o transferidor e com o compasso.
· Traçado dos ângulos adjacentes, complementares e suplementares.
· Soma e subtração de ângulos.
· Divisão de ângulos em partes iguais. Traçado da bissetriz dos ângulos de vértice accessível ou não.
Unidade IV
· Traçado das perpendiculares e paralelas e suas aplicações: o) com o transferidor; b) com os esquadros de 45.°;
c) com os esquadros de 60.°; d) com compasso e esquadros; e) pela translação.
· Aplicações: ordenadas e abcissas. Redes ortogonais para ampliações e reduções.
Unidade V
· Polígonos. Linha poligonal, lados, classificação.
· Triângulo: construção e caracterização dos triângulos equilátero, isósceles e escaleno.
· Traçado de triângulos.
· Quadriláteros: construção e caracterização.
· Traçado do quadrado, do retângulo, do losango, do paralelogramo e do trapézio.
· Traçado das diagonais, mediatrizes e bissetrizes dos ângulos. Polígono de mais de quatro lados.
· Traçado dos polígonos pela inscrição no círculo.
· Ângulos centrais. Construção e caracterização.
· Traçado dos polígonos regulares conhecendo-se o lado.
· Aplicações: figuras semelhantes: Divisões de segmentos retilíneos em partes iguais e proporcionais.

FONTE: (BRASIL,1945).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 25

Apesar de na 1.ª prova da 1.ª série ginasial haverem muitos conteúdos, segundo
o Programa federal, percebe-se que há uma organização dos conteúdos de Desenho
Geométrico no CEP diferente do referido programa, conforme tabela a seguir. Tem-se
a impressão que os conteúdos de Desenho Geométrico no CEP são mais complexos
dos que os exigidos no programa federal.

QUADRO VI – CURSOS GINASIAL E COLEGIAL. RELATÓRIO DOS MESES DE ABRIL, MAIO E


JUNHO DE 1947. LISTA DE PONTOS PARA A 1ª PROVA GRÁFICA DE DESENHO DA 1ª SÉRIE,
DO CURSO GINASIAL

1. Traçado da elipse à mão livre; Desenho de um objeto de formas cilíndricas.

2. Traçado do círculo e seus elementos; Desenho de sólidos.

3. Desenho de sólidos.

4. Traçado dos triângulos quanto aos ângulos e à natureza dos lados; Linhas de circunferência e circunferência –
circunferências secantes.

5. Traçado dos ângulos quanto à abertura e sentido das aberturas dos lados; Quadriláteros ângulos.

6. Traçado das circunferências e suas linhas; os três grupos das linhas; Circunferências tangentes.

7. Traçado do quadrado, retângulo, paralelogramo e losango.

8. Construção de um estrelado a compasso.

FONTE: Arquivo Geral-CEP.

No programa federal referente ao desenho decorativo, percebe-se 3 Unidades


de conteúdos. Com motivos, padrão ornamentos, gregas, rosáceas e polígonos
estrelados e o conhecimento sobre cores.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 26

QUADRO VII – PROGRAMA DA PRIMEIRA SÉRIE GINASIAL, 1945

C) Desenho decorativo
Unidade I
· Motivo padrão e orientação. Composição decorativa e sua finalidade.

· Os elementos.

· Aproveitamento das formas geométricas como base.

· Motivo simples e composto. Posição do motivo padrão.

Unidade II
· Sistemas ornamentais.

· Leis de repetição e alternação.

· Friso, painel e motivo isolado.

· Diagrama.

· Sistemas ornamentais com meandros e gregas.

· Sistemas ornamentais em redes.

· Polígonos estrelados e rosáceas.

Unidade III
· Emprego das cores em contraste e em harmonia, sob a orientação do professor.

· Emprego do lápis de cor, de preferência.

FONTE: (BRASIL,1945).

Ressalta-se que o que é solicitado para a 1.ª prova da 1.ª série do Ginasial no CEP
é bem mais aprofundado que o programa federal estabelece. Na verdade, nesta
primeira prova, está todo o conteúdo do ano, de forma geral, conforme tabela.

QUADRO VIII – CURSOS GINASIAL E COLEGIAL. RELATÓRIO DOS MESES DE ABRIL, MAIO E
JUNHO DE 1947. LISTA DE PONTOS PARA A 1ª PROVA GRÁFICA DE DESENHO DA 1ª SÉRIE,
DO CURSO GINASIAL

1. Construção de redes de malhas; Construção de desenho decorativo sobre as mesmas redes.

2. Construções de gregas clássicas de 3, 4 e 5 tempos.

3. Traçado de quadriláteros; Desenho decorativo tendo por base a figura de quadriláteros.

4. Faixa decorativa com elementos mixtilíneos.

5. Entrelaçado mixtilíneo.

6. Ornato simples à mão livre.

7. Friso decorativo, estilo simples.

8. Construção de um entrelaçado a compasso.

FONTE: Arquivo Geral-CEP.


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 27

Na primeira série ginasial, o Desenho do Natural tinha como objetivo estimular a


capacidade de observação, da atenção, do aprender a ver. No desenho geométrico,
o objetivo principal é a discriminação das figuras planas, seus traçados e aplicações.
No desenho decorativo, o intuito pedagógico era despertar a capacidade inventiva,
incentivando criações próprias. Recomendava-se para isso a imitação, pois
acreditava-se ser preciso primeiramente imitar para depois interpretar. As criações
decorativas deveriam ser feitas por meio de combinações de elementos geométricos.
E também pelos conhecimentos dos motivos da arte grega, egípcia, mesopotâmica
e marajoara, em frisos decorativos e painéis. A técnica para a primeira série, nas
aulas de desenho do natural, bem como nas aulas de desenho decorativo, deveria
ser a do lápis de cores. Nas aulas de desenho geométrico o lápis deveria ser rígido,
para que criar o hábito da precisão e rigor nos traçados. O desenho decorativo deve
aproveitar todos os elementos do desenho geométrico, para desenvolver a prática
da composição, acreditando-se assim, que desenvolveria sua capacidade inventiva.
O desenho decorativo deveria ter um programa de utilidade prática, trazendo a
oportunidade de compreender a função das artes decorativas e sua expressão social
(BRASIL, 1945).
No programa federal, percebe-se na 1ª série do Científico a ênfase no Desenho
Geométrico e no desenho Convencional, e muito superficialmente o desenho
decorativo.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 28

QUADRO IX – PROGRAMA DA PRIMEIRA SÉRIE CURSO CIENTÍFICO, 1945

1.ª Série
Revisão das principais construções geométricas. Origem e traçado comparativo das cônicas; tangentes. Traçado
das espirais; tangentes. Teoria elementar das projeções. Artifício fundamental das projeções ortogonais. Épura. Re-
presentação projetiva do ponto nos quatro diedros. Classificação das retas do ponto de vista projetivo. Represen-
tação projetiva das retas no primeiro diedro. Traços de retas. Classificação dos planos do ponto de vista projetivo.
Representação projetiva dos planos no primeiro diedro. Verdadeira grandeza de um segmento de reta. Mudança de
planos, rebatimentos e rotações. Cópia de vasos de cerâmica, com representação sucinta das sombras.

FONTE: (BRASIL,1945).

Isso se reflete na lista de pontos 1.ª prova gráfica da 1.ª série do Científico em que
são propostos para prova conteúdos de Desenho Geométrico e Convencional.

QUADRO X – CURSOS GINASIAL E COLEGIAL. RELATÓRIO DOS MESES DE ABRIL, MAIO E


JUNHO DE 1947. LISTA DE PONTOS PARA A 1ª PROVA GRÁFICA DE DESENHO DA 1ª SÉRIE,
DO CURSO CIENTÍFICO.

1. Traçado gráfico das espirais. Espiral de Arquimedes.

2. Traçado gráfico de arcos abatidos de 3 e de 5 centros.

3. Traçado gráfico da cicloide; traçado gráfico do arco abatido de 3 centros.

4. Traçado gráfico da parábola e seus elementos.

5. Traçado gráfico da hipérbole e seus elementos.

6. Traçado gráfico das ovais regular e irregular.

7. Traçado gráfico da envolvente do círculo (voluta) e traçado da cicloide.

8. Elementos de projeções – planos principais e posição do ponto.

9. Traçado gráfico da elipse e seus elementos; traçado da parábola e seus elementos.

10. Traçados dos planos auxiliares de projeções e suas respectivas épuras; traçado gráfico do arco abatido
de 3 centros.

11. Achar a meia proporcional a duas retas dadas; construção de parábola.

12. Divisão de uma reta em partes iguais.

13. Divisão da circunferência em partes iguais.

FONTE: Arquivo Geral-CEP.

O curso científico era uma continuidade do ginasial com um aprofundamento


dos conteúdos de desenho geométrico e introdução da geometria descritiva. Com
relação ao desenho de observação, a ênfase era dada a trabalhos de luz e sombra
mais complexos, a desenhos de anatomia humana e da fauna e da flora (COLÉGIO
ESTADUAL DO PARANÁ. Cursos Ginasial e Colegial. Relatório dos meses de abr., maio
e jun. de 1947; Relatório dos meses de out., nov. e dez. de 1947).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 29

Como nota-se, persistia, no contexto do programa federal de 1945 e 1946, a defesa


da prática de repetição, do desenho de observação de sólidos geométricos e do
traçado geométrico com fins de aplicação prática no Desenho. Educar o olho, a mão,
a mente, ter rigor e limpeza e precisão seriam os pressupostos maiores de uma boa
expressão gráfica.
Ao refletir sobre a forma como eram aplicados os programas federais tomou-se
as palavras de Julia ao estabelecer que o professor é um agente ativo das práticas
escolares. “Mesmo se a corporação à qual pertence exerce uma pressão – quer se
trate de visitantes de uma congregação, ou de inspetores de diversas ordens de
ensino –, ele sempre tem a possibilidade de questionar a natureza de seu ensino”
(JULIA, 2001, p. 16). É o que se percebe nos pontos de prova do CEP. Apesar de
coadunados com os programas estabelecidos nacionalmente, ao verificar os pontos
de prova vê-se que, por vezes, o professor se aprofunda mais no geométrico do que
no desenho decorativo, mostrando que havia uma certa tomada de decisão por parte
dos professores.
O ensino de Desenho no currículo da escola secundária como o CEP atendia
a organização educacional no âmbito estadual e federal. Esta organização era
composta de programas, materiais didáticos, estrutura, avaliação, objetos, espaços,
e professores, adequados ao que se preconizava (as prescrições legais) em termos de
Desenho na escola secundária. Então, a disciplina de Desenho no CEP contribuiu para
a afirmação de ideias de como aprender a desenhar (metodologias e ciência) e para
sedimentar uma estrutura escolar imposta a nível de governo federal. Acreditava-se
que estes materiais, programas e métodos eram os mais adequados para aprender
desenho, como conhecimento geral da linguagem. Sendo assim, o Colégio Estadual
do Paraná pretendeu formar um aluno que tivesse apropriação da linguagem de
expressão gráfica em termos de conhecimentos gerais. Porém, esta linguagem não
fugiu dos preceitos de como deveria ser o ensino de Desenho e do que era importante
ser ensinado naquele contexto.

Referências
BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.244, de 9 de abril de 1942. Lei Orgânica do Ensino Secundário.
Diário Oficial da União - Seção 1 - 10/4/1942, Página 5798 (Publicação Original).
_____. Decreto-Lei n. 4.245, de 9 de abril de 1942. Disposições transitórias para a execução
da lei orgânica do ensino secundário. Diário Oficial da União - Seção 1 - 10/4/1942, Página
5798 (Publicação Original).
_____. Portaria n. 170 de 11 de julho de 1942. Expede os programas das disciplinas do Curso
Ginasial do Ensino Secundário. Diário Oficial de 11 de julho de 1942.
_____. Ministério da Educação e Saúde Pública. Portaria Ministerial n.º 555 de 14 de no-
vembro de 1945. Expede programas de Desenho e respectivas instruções metodológicas e
determina sua execução no curso ginasial do ensino secundário. Diário Oficial da União. Rio
de Janeiro, ano LXXXIV, n.º 263, 22.11.1945, p.17.766-69.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 30

_____. Ministério da Educação e Saúde Pública. Portaria Ministerial n. 555 de 14 de novem-


bro de 1945. Expede programas de desenho e respectivas instruções metodológicas, e de-
termina sua execução no curso ginasial do ensino secundário. Diário Oficial da União. Rio de
Janeiro, seção 1, p. 17766. 1945.
_____. Ministério da Educação e Saúde Pública. Portaria Ministerial n.º 10 de 04 de janeiro
de 1946. Expede programas de Desenho e respectivas instruções metodológicas e deter-
mina sua execução nos cursos colegial e científico do ensino secundário. Diário Oficial da
União. Rio de Janeiro, ano LXXXV, n.11, 14.01.1946, p.609-11.
CASTRO, Elizabeth Amorim de. Arquitetura das escolas públicas do Paraná (1853-1955).
2010. 355 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teo-
ria e Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.
COLÉGIO ESTADUAL DO PARANÁ. Livro de registro de material da cadeira de Desenho, 1943.
_____. Relatório dos meses de abril, maio e junho dos Cursos Ginasial e Colegial. Curitiba,
1947. 2.º volume, Livro 217. Arquivo Geral.
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nasial. Relatório dos meses de abril, maio e junho dos Cursos Ginasial e Colegial. Curitiba,
1947. 2º volume, Livro 217. Arquivo Geral.
_____. Lista de pontos para a 1ª prova parcial de desenho da 1ª série, 1ª turma, do curso
científico. In: Relatório dos meses de abril dos Cursos Ginasial e Colegial. Curitiba, 1947. 3º
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_____. Relatório dos meses de outubro, novembro e dezembro dos Cursos Ginasial e Co-
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ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

AS ESCOLAS DO QUILOMBO DE MATA CAVALO:


LEGITIMAÇÃO HISTÓRICA E
RESISTÊNCIA CULTURAL
Cristiane Carolina de Almeida Soares – UFMT

Objetivos
Compreender as escolas enquanto espaços de legitimação histórica e resistência
cultural da comunidade quilombola de Mata Cavalo.

Periodização
O presente trabalho trata-se de algumas das dimensões retiradas de pesquisas
que possibilitaram a escrita da dissertação de mestrado, intitulada de “Educação
ambiental na comunidade quilombola de Mata Cavalo: diálogos da arte, cultura e
natureza”, onde o processo investigativo iniciou-se no ano de 2016, concluindo esses
estudos na defesa, que aconteceu em março de 2018, junto ao GPEA-UFMT (Grupo
pesquisador em Educação ambiental, comunicação e arte). Este grupo pesquisador,
há mais de 16 anos, realiza diálogos fecundos junto a essa comunidade, por meio de
pesquisa, extensão e articulação de projetos em educação ambiental.
Ainda que essa pesquisa tenha constituído um retrato temporário desta
comunidade, foi possível dialogar e pesquisar acerca dos mais evidentes aspectos
que envolvem as manifestações culturais, sob o lume da educação ambiental popular.
Sendo assim, os mapeamentos realizados, possivelmente não conseguiram abranger
a totalidade desse quilombo, contudo, permitiram o debate acerca da necessidade de
preservar os hábitos de um povo ancestral, que anseia por visibilidade e legitimação
de seus direitos, bem como a importância da escola enquanto espaço de transmissão
de saberes e articulação política.
Naquela ocasião, a comunidade quilombola de Mata Cavalo foi pesquisada,
desenhada, mapeada (SILVA, 2011) e interpretada por meio da arte-educação-
ambiental (QUADROS, 2011), em busca de fortalecer a relação entre a cultura e a
natureza, de um povo que produz suas táticas de resistência frente a um processo
historicamente excludente, e permanece resistindo, desde os tempos da escravidão,
até os dias atuais. As políticas públicas e os interesses individualistas dos fazendeiros

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 32


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da região, acabam por sobrepor e cercear os direitos dos moradores originais desse
território (SOARES, 2018).
Foram mapeadas quatro dimensões que estabelecem fecundos diálogos entre
a cultura e a natureza quilombola: os marcos históricos, as expressões artísticas, as
comidas típicas e as festas, como uma das formas de evidenciar as particularidades
desse povo, e suas multiplicidades culturais. Desta forma, buscamos enfatizar os
aspectos que se relacionam com o levantamento epistemológico que constituiu a
referida pesquisa de mestrado, bem como o mapeamento dos marcos históricos,
os quais evidenciaram as formas de resistência desta comunidade, legitimadas em
todos os cantos do quilombo pelos vestígios do tempo da escravidão, e sobretudo
sob a forma de manifestações artísticas e culturais (SOARES, 2018).
Nos espaços escolarizados, finalmente surgiram oportunidades de estudo aos
negros quilombolas, os quais foram historicamente discriminados e marginalizados.
Esses locais tornam-se, sobretudo, terrenos férteis para florescerem as articulações
políticas em defesa dos direitos a esse território ancestral, sob a forma de escolas.
As manifestações da educação popular ainda permanecem por todos os espaços.
Conforme Brandão (1984; 2002) a transmissão de conhecimentos entre as gerações
possibilita a preservação cultural.

Fontes
Para consubstanciar a presente pesquisa, utilizamos livros, dissertações de
mestrado, teses de doutorado, artigos científicos e cartilhas. Foi também estudado
um laudo antropológico da Comunidade Quilombola de Mata Cavalo (BARROS,
2007), onde consta o processo histórico de constituição desse território, o qual está
inserido nas proximidades do município de Nossa Senhora do Livramento, no estado
de Mato Grosso. Atualmente, a referida comunidade encontra-se dividida em seis
associações (figura 01):
Mata Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo, Ponte da Estiva, Capim Verde, Mutuca
e Aguassú.
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Figura 01 – Mapa de Mata Cavalo – Áreas do quilombo. Mato Grosso, 2017

Fonte: Acervo da autora.


Nota: Arte de Cristiane C. A. Soares (2017).

Nossa principal fonte de informações foi a referida dissertação de mestrado,


da qual retiramos um recorte temático para a presente pesquisa (SOARES, 2018).
Outras fontes foram utilizadas, sendo muitas delas, resultantes de estudos nesse
e outros quilombos. Convém destacar as contribuições, sob a forma de narrativas
da comunidade, e especialmente das professoras quilombolas, que ingressaram no
mestrado em Educação no ano de 2017, por meio de ações afirmativas, superando
imensas dificuldades para a elaboração de suas dissertações, as quais se tornaram
importantes documentos históricos acerca desse quilombo.
Para complementar o levantamento acerca do surgimento das escolas
quilombolas, foi de suma importância a vivência junto à comunidade, conhecendo as
histórias de luta de importantes lideranças, como a dona Tereza Conceição de Arruda,
uma das primeiras professoras de Mata Cavalo, a qual teve seu nome eternizado na
atual escola estadual, a única que funciona atualmente, nesse quilombo.
Dentre uma infinidade de entrevistas e conversas, foi possível dialogar com o Seo
Antônio Mulato, pai de dona Tereza, que esteve presente e atuante nos constantes
embates na defesa e fundação do ensino escolarizado para as crianças quilombolas
(SOARES, 2018; ABREU, 2019) e veio a falecer em 2019, deixando uma imensa
contribuição para a conquista dos direitos quilombolas, especialmente relacionados
à educação.
Desta forma, as narrativas dos moradores da comunidade, legitimados pela
metodologia utilizada, acerca dos espaços escolarizados, são nossas maiores fontes
para a elaboração dos mapas sociais da cultura quilombola e, mais especificamente,
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a demarcação, identificação e reconhecimento das escolas quilombolas como


importantes marcos de legitimação histórica e resistência cultural. Frente ao processo
excludente sofrido pelos quilombolas de Mata Cavalo, buscamos perspectivas de
estudos que percebem os prejuízos, atingindo com maior frequência e intensidade,
pessoas em situação de vulnerabilidade socioambiental (SILVA, 2011).
A constituição desse quilombo conserva algumas características provenientes dos
primeiros quilombos brasileiros, os quais abrigaram não somente os negros fugitivos
das senzalas, mas também outras etnias oprimidas pelo sistema escravocrata, e
centravam-se, sobretudo, no intuito de resistir aos modelos ideológicos excludentes,
no período colonial (MUNANGA, 1996). “Os quilombos contemporâneos, a exemplo
de Mata-Cavalo, mesmo tendo origens diferentes das do século XVIII, e estando
economicamente empobrecidos, conservam o mesmo espírito de luta” (CASTILHO,
2008, p. 67).
Diferente dos abrigos para onde se dirigiam os negros escravizados que fugiam, o
quilombo de Mata Cavalo se constituiu por doação de sesmeiros aos seus escravos,
ou até mesmo pela compra de terras pelos próprios alforriados. Na década de 80 do
século XIX, surgiu a comunidade rural negra de Mata Cavalo, que outrora foi parte
da Sesmaria Boa Vida. Ali viviam os trinta e quatro escravos de dona Anna da Silva
Tavares, a qual ratificou o testamento de seu finado esposo Ricardo José Alves Bastos,
para doar suas terras aos seus escravos libertos. Já a área que corresponde à sesmaria
Mata Cavalos, foi comprada por Marcelino Paes de Barros, um negro forro, sendo
estes os quilombolas que foram se constituindo como os primeiros proprietários de
terras em Nossa Senhora do Livramento (BARROS, 2007; SIMIONE, 2008).
Há muito tempo, esse território é alvo de exploração econômica, os quilombolas
são constantemente ameaçados e vítimas de violência. A luta destas pessoas
perdura até os tempos atuais (MOREIRA, 2017). A marginalização e estigmatização
permanecem, a ausência de um documento que reconheça a posse definitiva dessas
terras, dificulta e até mesmo impossibilita o usufruto por seus proprietários legítimos,
além dos prejuízos socioambientais cada vez mais crescentes, e que interferem
diretamente na manutenção cultural desta população (SOARES, 2018).

Metodologia
Em conformidade com as fontes de pesquisa supracitadas, constituímo-nos de um
arcabouço metodológico que proporcionou, inicialmente, uma pesquisa bibliográfica
pertinente à temática escolhida. Para orientar os passos investigativos, privilegiamos
o Mapa Social (SILVA, 2011) sendo a metodologia que nos permitiu o mapeamento de
quatro dimensões que entrelaçam a cultura e a natureza de Mata Cavalo: os marcos
históricos, as expressões artísticas, as comidas típicas e as festas. Estes mapeamentos
nos possibilitaram o reconhecimento de uma infinidade de aspectos culturais, bem
como os prejuízos socioambientais que interferem diretamente nos modos de vida
da comunidade (SOARES, 2017), e a demarcação e identificação das escolas por áreas
quilombolas, que são o foco do presente estudo.
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Consubstanciamo-nos principalmente nas autonarrativas da comunidade, para


a elaboração deste mapeamento social, valorizando os diálogos estabelecidos nos
diversos momentos de convivência, tecendo, epistemologicamente, a valorização da
educação e da cultura popular (SILVA, 2011). Sobretudo, foi possível identificar, no
decorrer desses estudos, de que forma o ensino escolarizado passou a se estabelecer
nesse território quilombola, e mesmo em meio a tantos impedimentos e dificuldades,
os espaços escolares passaram a se constituir como territórios de articulação política
e de resistência (SENRA, 2009; MOREIRA, 2017; SOARES, 2018).
Optamos pela elaboração dos mapas pictóricos, que dispensaram o rigor
cartográfico (FIORI; ALMEIDA, 2005), para proporcionar o entendimento geral,
independente de faixa etária ou nível de escolaridade (ANDRADE; SLUTER, 2012). O
processo de criação, por meio de desenhos elaborados pela autora, utilizou imagens
pictóricas sugeridas pelos quilombolas. A oficina de mapeamento social aconteceu
no ano de 2017, no único espaço escolarizado da atualidade, em Mata Cavalo: a
Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição de Arruda. Contou com a presença
de aproximadamente 80 pessoas da comunidade, sendo conduzida por membros
do GPEA – UFMT, no qual fazem parte, dentre outros pesquisadores, a autora desta
pesquisa, as professoras Dra. Regina Aparecida da Silva, e a Dra. Michèle Tomoko
Sato, líder deste grupo pesquisador, sendo estas, respectivamente, orientadora e
coorientadora.
Foram também realizadas entrevistas na escola e nas residências dos quilombolas,
sob o lume da inspiração Sociopoética (PETIT, 2002), para que as pesquisadoras
promovessem a valorização das particularidades e saberes comunitários,
possibilitando, por meio dos diálogos e vivências, a igualdade dos conhecimentos
populares e científicos, utilizando a arte e a cultura como sensibilizadoras do processo
de aprendizagem, tanto da comunidade, quanto do grupo pesquisador.
Ao sistematizar os marcos históricos e culturais mapeados na pesquisa, pudemos
também identificar os espaços escolarizados que foram se constituindo e resistindo ao
longo do tempo, em Mata Cavalo, elaborando gráficos e ilustrações. Conforme afirma
Brandão (2002) a valorização dos aspectos culturais e ambientais da comunidade,
fomenta também a presença da cultura popular.

Resultados alcançados
Por meio dos estudos, diálogos e vivências em Mata Cavalo, foi possível perceber os
espaços de resistência da comunidade com uma grande importância na organização
e articulação política, onde outras educações também foram constituídas (SENRA,
2009). Desta forma, dirigimos um olhar diferenciado a algumas das escolas,
construídas ao longo dos mais de 140 anos de constituição dessa comunidade
quilombola, enquanto legitimadoras do direito à educação, mas que em muitos
momentos, também sofreu o racismo, de outrora até os dias atuais, cujo permanece
impregnado na região, em um processo excludente (SOARES, 2018).
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A primeira escola de Mata Cavalo, denominada de Escola Mista Rural (ABREU,


2019), foi fundada em 1944, para atender a solicitações de uma das lideranças locais,
em busca de ensino escolarizado para seus filhos. Em meio a tantos obstáculos para
a construção desse espaço, houve ainda muitos embates e impedimentos ao acesso
à educação para as crianças negras e quilombolas. A discriminação racial fazia parte
do cotidiano dos estudantes, que em muitos momentos eram impedidos de acessar
a escola, por conta de sua origem.

Esse relato demonstra como muitas crianças negras, quilombolas e


pobres sofrem nas suas trajetórias escolares. [...] A Escola Mista Rural
funcionou por pouco tempo, pois o fazendeiro Manoel Monteiro,
conhecido como Manequinho, o dono da terra onde a sala de aula
funcionava, não queria mais que os quilombolas estudassem, a fim de
enganar os mesmos e roubar as suas terras, o que acabou ocorrendo
posteriormente (ABREU, p. 53, 2019).

Com o surgimento do projeto da Escola Mobral, junto à Rádio Difusora, foi


garantido o ensino escolarizado pela professora Tereza Conceição de Arruda até a
década de 80, quando ela passou a dar aulas em Nossa Senhora do Livramento. O
ensino quilombola teve continuidade em 1981, na Escola Municipal Ponte da Estiva
(ABREU, 2019).
Já em 1983, relata-se a construção da Escola Afonso de Campos Maciel, que
recebeu o nome de um fazendeiro da região. Contava com precária infraestrutura,
e a maioria das professoras vinham de Nossa Senhora do Livramento. Na falta
de funcionários, estas acumulavam múltiplas funções, e em muitos momentos,
organizavam a limpeza, adquiriram o material e o lanche escolar para as crianças,
com seus próprios recursos financeiros. Segue o relato de uma das professoras da
comunidade, que teve sua identidade preservada (com a utilização do pseudônimo
pequi, relacionado a um dos elementos da cultura quilombola), no intuito de atender
às exigências do comitê de ética em que a referente dissertação de mestrado esteve
inserida: a Plataforma Brasil. “Mas eu sofri, menina, vou falar procê. Eu dava aula
debaixo do barraco de palha, eu que era merendeira, eu que era limpadeira, tudo. Aí
com o passar do tempo, cresceu o movimento, entendeu?” (SOARES, p. 127, 2018).
No ano de 1996, foi fundada a Escola Estadual São Benedito, no mesmo período
em que ocorreu a diáspora de muitos quilombolas que haviam sido expulsos, de seu
território de origem, por fazendeiros, sendo forçados a abandonar suas casas, roças
e propriedades. Naquele espaço de estrutura simples, com telhado coberto de palha,
foi também o local de articulações políticas (SENRA, 2009), se constituído como um
dos mais importantes espaços de resistência de Mata Cavalo, fortalecendo também
o ensino escolarizado (SILVA, 2011).
Já em 2002, a Escola Rosa Domingas deu continuidade à permanência do ensino
escolarizado: também foi denominada em homenagem a uma importante liderança
quilombola, que, junto a seus familiares e comunidade, resistiu a violentos e
inúmeros ataques e ameaças de fazendeiros, os quais queriam tomar suas terras
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 38

(SENRA, 2009). Nesse espaço, apesar da mudança da escola para outro endereço,
ainda prevaleceu a resistência cultural, por meio das reuniões da associação dos
moradores e dos artesãos, para a troca de conhecimentos, resistindo com essas
práticas até os dias atuais. Esse espaço foi desativado para o ensino escolarizado,
contudo, permanece sediando as reuniões da associação Mutuca, uma das seis que
formam esta comunidade, sendo ainda o local de produção de atividades culturais
(festas, feiras, reuniões) e da economia solidária (artesanatos, doces e outros).
Atualmente, a Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda é o único espaço de
ensino escolarizado, onde os mais importantes eventos políticos e sociais acontecem.
É local de festas, reuniões da associação de moradores, feiras culturais e eventos
escolares e acadêmicos. Fundada no ano de 2012, recebeu esse nome em homenagem
a uma das mais importantes lideranças no contexto escolar da comunidade. Tereza
foi uma das primeiras professoras quilombolas a atuarem nas escolas locais, tendo
iniciado suas atividades ainda muito jovem, dando aulas no quintal de sua casa, em
princípio, sem nenhuma remuneração (ABREU, 2019). Conforme afirma Manfrinate
(2001), ela foi fundamental na luta pela afirmação de gênero, identidade, conquista
da territorialidade e valorização da cultura quilombola. Infelizmente, faleceu antes
da inauguração da escola, mas deixou seu legado, onde seus familiares estudaram e
trabalharam no passado, e permanecem resistindo (SOARES, 2018).
Nos diálogos estabelecidos acerca da construção coletiva e partilhada dentro
e fora dos espaços escolares, possibilitados nos encontros, por meio da educação
popular (BRANDÃO 1984), consideramos de valor inestimável a manutenção dos
saberes e fazeres desta comunidade. Nesse sentido, sopesamos importante relatar
alguns dos aspectos da cultura popular, os quais foram identificados e mapeados,
conforme as autonarrativas originadas durante os muitos momentos, em especial na
oficina de mapeamento social da cultura quilombola de Mata Cavalo.
Os mapas sociais da cultura quilombola, elaborados e inspirados nas narrativas
da comunidade, enfatizam a importância da conservação e da manutenção cultural.
No mapa dos marcos históricos (figura 2), há que se observar uma infinidade de
vestígios materiais dos tempos árduos da escravidão, sendo um dos aspectos
mais lembrados e considerados por seu imenso valor histórico, pois evidenciam as
dolorosas recordações do sofrimento nos locais de tortura, trabalho forçado, e as
piores condições de sobrevivência.
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Figura 02 – Mapa Social da Cultura Quilombola de Mata Cavalo – Mato Grosso, 2017.

Fonte: Acervo da autora.


Nota: Arte de Cristiane C. A. Soares (2017).

Foram mapeados o pelourinho (onde ainda se encontram alguns instrumentos de


tortura) e o curral de pedras (local de tortura dos escravos), o quarto de cangas (onde
os escravos permaneciam após o trabalho, com camas feitas de pedra canga), a casa
branca (esconderijo de quilombolas fugidos), a fornalha (local insalubre de trabalho
escravo), e os antigos cemitérios da comunidade, sendo que um deles não oferece
mais acesso livre, pois se encontra em área tomada por fazendeiros que invadiram a
região (SOARES, 2018).
Outros locais foram sinalizados, em que a comunidade relata o aparecimento das
assombrações, que são as aparições dos espíritos dos que ali morreram, representando
o intenso sofrimento vivido: o tanquinho assombrado e o morro do Tirso. Nesse
último, além da presença dos artefatos de tortura da escravidão, há relatos que, nos
períodos da seca dessa região, podem ser vistas as ossadas dos que foram mortos
no local. Conforme as autonarrativas quilombolas, ali acontecem aparições de
entidades misteriosas e aterrorizantes, que reforçam o temor à crueldade presente
durante o regime escravocrata (SOARES, 2018).
No que tange ao trabalho no quilombo, sinalizou-se a casa da farinha, a casa da
rapadura, escassos locais de hortas (SOARES, 2018), e dentre outros aspectos, foi
percebida a ausência da pesca, pois a grande parte dos rios e córregos foi contaminado
pelo mercúrio proveniente dos garimpos (AMORIM, 2017). Na demarcação de locais
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ligados à natureza, pudemos observar, neste mapeamento, a escassez de água


potável e a ausência de espécies naturais da fauna e flora, estando algumas já em
extinção (SOARES, 2018).
Dentre os espaços destinados à prática da religiosidade, foram demarcadas as
igrejas católicas, os templos evangélicos e, com algum receio de falar sobre o assunto,
foram citadas pela comunidade, as localizações de alguns dos terreiros de umbanda e
candomblé, notando-se o preconceito relacionados às religiões de matrizes africanas,
por parte dos próprios moradores do quilombo (SOARES, 2018).
O Mapa Social, enquanto metodologia privilegiada para dar visibilidade às
narrativas da comunidade (SILVA, 2011), como os principais documentos que
validaram a presente pesquisa, demarcou os pontos onde se constituíram o ensino
escolarizado. Com efeito, foram elencados os locais onde acontecem as reuniões
de cada uma das associações que formam o complexo de Mata Cavalo, as quais
fortaleceram as táticas de resistência do quilombo. Foram também sinalizadas as
casas de lideranças e pessoas de referência nas lutas da comunidade. No que se refere
às conquistas históricas, a população optou pela sinalização de locais relacionados
ao transporte e comunicação, como o primeiro ponto de ônibus, o primeiro telefone
público e o primeiro poste de luz (SOARES, 2018).
Dentre os locais considerados neste mapeamento, destacou-se a Casa da
Cultura Quilombola de Mata Cavalo, um espaço cultural construído em 2015, que se
constituiu como uma espécie de casa-museu, ao lado da Escola Estadual Quilombola
Tereza Conceição de Arruda, onde o conhecimento ancestral foi colocado em prática.
Construído em parceria entre o GPEA-UFMT e a comunidade, com o financiamento do
WWF (World Fund for Nature), tornou-se a edificação de um desejo dos quilombolas,
em valorizar a forma como os escravos construíam suas casas no passado: sobre o
chão batido de cupim, foram erguidas paredes de adobe. Sob o aspecto sustentável,
foi acrescentada uma inovação: um telhado de grama alimentado pela água das
chuvas, movimentada por meio de uma cisterna, garantindo o conforto térmico de um
local que abriga artefatos antigos (utensílios domésticos e de trabalho, instrumentos
de tortura) e artesanatos quilombolas (SILVA, 2015).
Em meio às dimensões da educação ambiental, temos percebido como
inevitáveis as perdas culturais, intrinsecamente ligadas à degradação local. Dentre
outros prejuízos socioambientais, Mata Cavalo ainda enfrenta o processo excludente
das políticas públicas, que tenta negar direitos para evitar a permanência dos
quilombolas em seu território (MOREIRA, 2017). Relatos da comunidade evidenciam
que, na região, ainda falta coleta de lixo, água potável, saneamento básico, postos
e agentes de saúde, o que reforça os debates acerca do processo de exclusão dessa
população (SIMIONE, 2008; SOARES, 2018).
O GPEA tem constituído laços fecundos junto a esse povo que luta constantemente
pela legitimação de seu território, presenciando momentos de grandes embates
políticos, que também referem-se à conservação ambiental, fortemente degradada
por um processo destrutivo, orientado pela exploração desenfreada dos garimpos,
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 41

causadores de danos irreparáveis à natureza, e que ainda interferem na região, de


forma clandestina.
Ademais, o crescimento do agronegócio na região, ocasionou a extinção de
diversas espécies animais e vegetais, ocasionando o desequilíbrio ecossistêmico,
extremamente prejudicial à manutenção do modo de vida dos quilombolas. A
invasão das terras por parte dos fazendeiros da região, acabam por restringir o
acesso e dificultar a sustentabilidade dos quilombolas, que, por não estar em posse
definitiva de suas terras, enfrentam dificuldades em retirar seu próprio sustento, do
local onde vivem (SOARES, 2018).
Entretanto, por onde as escolas de Mata Cavalo se constituíram, pudemos
perceber a resistência da comunidade em legitimar seus aspectos culturais por
meio da utilização de elementos da natureza, na constituição material das imagens
tradicionais quilombolas pintadas nos pátios e nas salas de aula, na presença
do artesanato, nas feiras, festas, danças, rezas, reuniões e sobretudo, nos hábitos
desse povo, que insiste em lutar pela permanência em seu território ancestral, se
articulando para resistir com reivindicações sociais, políticas, legitimada por saberes
populares e hábitos singulares.
Ainda que o foco investigativo da presente pesquisa busque a ênfase nos espaços
escolarizados enquanto locais de resistência, a forte presença da educação popular,
nos hábitos da comunidade, legitima os fundamentais aspectos da cultura e da
natureza que fortalecem a visibilidade do quilombo de Mata Cavalo.

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ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

“AOS LEITORES”: O PREFÁCIO DO LIVRO


ESCOLAR DE MÚSICA DE ANTONIO RAYOL
Kathia Salomão - UFPA
César Augusto Castro - UFMA

Introdução
Os livros escolares de música são amplamente divulgados e utilizados no
ensino dessa arte no Brasil, tendo predominado, do período colonial até o início
da República, e principalmente no Império, a literatura europeia, em especial a
portuguesa e a francesa. No entanto, os músicos brasileiros já divulgavam seus
trabalhos, e juntamente com as publicações dos estrangeiros compunham o cenário
do ensino musical no país. Nesse contexto, foi produzido em 1902 um compendio
intitulado Noções de musica: extrahidas dos melhores auctores, por Antonio dos Reis
Rayol, renomado músico do Maranhão que exercia atividades educacionais tanto
em aulas particulares quanto em escolas de São Luís. Seu livro foi elaborado com o
objetivo de atender às necessidades dos seus alunos da Escola Normal e da Escola
de Música no Maranhão, abordando em seus conteúdos temas teóricos, como a
grafia tradicional, que auxiliavam na execução e interpretação musical. Exemplares
desse livro encontram-se no Acervo de Obras Raras da Biblioteca Pública Benedito
Leite e no Acervo da Academia Maranhense de Letras.
Bittencourt (2008, p. 190) afirma que as mudanças ocorridas durante o século
XIX transformaram o livro escolar em uma ferramenta que não poderia faltar nas
aulas, e as melhoras alcançadas na sua fabricação, o aumento do consumo pelos
alunos e uma formação dos professores, ainda precária, “fizeram do livro didático
um dos símbolos da cultura escolar, um depositário do saber a ser ensinado”.
Esses impressos da cultura material escolar são formados, em geral, de texto –
que contém os conteúdos específicos da disciplina em questão, e de paratexto -
composto por vários elementos, como a capa, o prefácio, as notas de rodapé, o
apêndice, trazendo diversas informações a respeito da obra e do contexto em que
ela se insere. Nos livros escolares esses elementos podem informar a maneira como
os mesmos deveriam ser utilizados em sala de aula, os conteúdos, as concepções
filosóficas e pedagógicas do autor e do contexto ao qual faz parte. Quando constrói
os paratextos, em especial o prefácio, o escritor tem a oportunidade de ter um

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espaço só seu, defendendo suas ideias que foram desenvolvidas dentro de um


processo histórico.
Assim, aprofundar os estudos a respeito dos elementos paratextuais em busca
de entender esse “mundo periférico”, e ao mesmo tempo imerso no texto tornou-
se relevante. Dessa forma, esta pesquisa visa analisar o prefácio de Noções de
musica compreendendo-o como um espaço em que a imagem de Rayol e as suas
concepções a respeito da música e seu ensino são evidenciadas. Utilizamos neste
trabalho a pesquisa bibliográfica, com embasamento teórico em autores, como
Genette (2018) para entender a análise de paratextos, Fonterrada (2005) e Andrade
(2013) para discorrer sobre o contexto musical e social do período, e Chartier
(1990, 2014) para o estudo da história do objeto na sua materialidade, das práticas
dos sujeitos e das múltiplas relações existentes, e a pesquisa documental, cujas
fontes são os relatórios das Mensagens dos Governadores e a imprensa periódica.
A escolha desse livro em especial como fonte e objeto de estudo, delimitando
ele próprio o tempo (décadas iniciais da Primeira República) e o espaço dessa
pesquisa, e de seu autor como sujeito da investigação, deve-se a relevância de
Rayol na história musical maranhense. Essa obra situa-se como rara no contexto
histórico educacional do Maranhão, com ainda poucos estudos a seu respeito.
Apesar de não detalharmos aqui todos os títulos do levantamento realizado, é
possível encontrarmos um número significativo de pesquisas no Brasil a respeito
de paratextos, principalmente no campo da literatura, catalogados no portal da
Capes em dissertações, teses e periódicos. Entretanto, encontramos trabalhos em
número bem menor quanto ao prefácio, esse elemento paratextual que possibilita
uma análise mais rica devido ao seu conteúdo mais denso. Dentre esses estudos
na área de educação temos: Vieira (2008), Entre coisas do mundo e o mundo dos
livros: prefácios cívicos e impressos escolares no Brasil republicano; Oliveira (2015),
Lourenço Filho e a Coleção Biblioteca de Educação: uma análise dos prefácios
escritos por esse educador e Ribeiro (2015); “Prezado professor”: prefácios, notas,
advertências e Manual do professor. Podemos citar ainda dois trabalhos em
educação, encontrados nos periódicos Anuario de historia de la educación e a
Historia y memoria de la educación, que trazem análise paratextual. No primeiro,
Baretta (2018) estuda Ideologías lectoras del normalismo: um análisis paratextual de
El libro del escolar de Pablo Pizzurno, e no segundo, Muñoz-Escolano e Oller-Marcén
(2020) elaboram Análisis de los prólogos de los textos algebraicos publicados em
España durante el siglo XVI. Em relação à pesquisa desse tema em livros escolares
de música, o número é praticamente inexistente, considerando o material a que se
teve acesso. Portanto, há um vasto campo ainda para ser explorado nesse sentido,
e é o que propomos neste trabalho.
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Delineando os paratextos
Paratexto, termo originário dos estudos de Genette (2018, p. 9), crítico e teórico
da literatura, é composto de diversos elementos que, segundo esse autor, servem de
reforço e acompanhamento ao texto de uma obra, tendo a função de apresenta-lo
“no sentido habitual do verbo, mas também em seu sentido mais forte: [...] torná-
lo presente, [...] garantir sua presença no mundo, sua “recepção” e seu consumo,
sob a forma, pelo menos hoje, de um livro”. Os elementos paratextuais são divididos
por Genette (2018) em peritextos, aqueles internos ao impresso circundando o
texto, como a folha de rosto, a instância prefacial, a dedicatória, e em epitextos, os
que são externos como as conversas e as entrevistas sobre a obra. O autor utiliza
o termo instância prefacial em vez de prefácio, pois esse tem uma lista longa “[...]
de parassinônimos [...]: introdução, prefácio, nota, notícia, aviso, apresentação,
exame, preâmbulo, advertência, prelúdio, discurso preliminar, exórdio, proêmio [...]”
(GENETTE, 2018, p. 145).
Antes de analisarmos a instancia prefacial de Noções de musica faremos uma
breve apresentação dos outros paratextos que compõe essa obra. A capa do livro,
que seria o primeiro na lista desses elementos, nesse caso específico não existe,
pois os exemplares encontrados não possuem a capa original que possivelmente
foi extraviada. Em seguida aparecem as folhas de guarda, sendo uma em branco e
a outra com uma vinheta, um desenho em forma estilizada semelhante a uma hera
ou uma videira que pode ter ligação com o assunto tratado no texto. Na folha de
rosto temos o título e o subtítulo do livro, além do nome do autor e sua identificação
profissional, e no final da página as informações tipográficas com o local e a data
da impressão. Intitulando sua obra de Noções de musica, o autor traz ao leitor de
forma curta e concisa qual a proposta do seu livro, dando a entender que pretende
abordar conhecimentos de música de maneira básica, pois “há títulos literais,
que designam, sem rodeio e sem alusão, o tema ou o objeto central da obra [...]”
(GENETTE, 2018, p. 78).
O subtítulo Extrahidas dos melhores auctores esclarece que Rayol se baseou
em outros autores da área para elaborar seu material, e ao incluir que seu
embasamento teórico foi com “os melhores auctores”, conforme seu juízo de
valor, provavelmente queria que se aumentasse a credibilidade quanto à sua obra.
Chegando ao lugar do nome do autor na folha de rosto, encontramos a abreviação
de Antonio dos Reis Rayol para Antonio Rayol. Maranhense, nascido na década de
1860, era tenor lírico, compositor, regente e violinista, e uma figura influente no
meio artístico, cultural e educacional do Maranhão. Rayol atuou como docente nas
instituições maranhenses, Casa dos Educandos e Artífices, Liceu e Escola Normal,
e ocupou o cargo de diretor da Aula Noturna de Música e da Escola de Música. Em
outros estados foi professor da Escola de Música da Bahia e da Academia Livre de
Música no Rio de Janeiro. Ganhou uma bolsa de estudos para a Itália, e em sua
estada na Europa, compôs e regeu, dentre outras obras musicais, a Missa Solene,
que se tornou a mais famosa de sua carreira. Portanto, seu nome era reconhecido,
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era uma referência no contexto musical em que circulava e também um fator de


credibilidade para o seu livro.
Ainda é acrescentada abaixo de seu nome a função profissional que o autor
exercia, “Professor Catedrático da Escola Normal, Diretor e Professor da Escola de
Música do Maranhão”. Essa informação, de certa forma, reforçava a sua autoridade,
pois ambas instituições eram públicas e profissionalizantes. No final da folha de
rosto, nota-se a indicação do Maranhão como estado da impressão e a tipografia
que o imprimiu – a Typographia do Frias, uma das mais atuantes em São Luís da
segunda metade do século XIX ao início do XX. Rayol faleceu na data de 21 de
novembro de 1904, dois anos depois do lançamento de seu livro. A notícia de sua
morte teve uma grande repercussão e no seu enterro muitas pessoas prestaram
suas últimas homenagens ao tenor maranhense, conforme jornais locais da época.
Em relação à Dedicatória, o autor oferece sua obra para seus alunos da Escola
de Música7 e da Escola Normal8. A Escola de Música foi fundada em 1901, a partir de
um apelo de Rayol ao Governador do Maranhão, João Gualberto Torreão da Costa,
para a criação de uma instituição maranhense nos moldes dos conservatórios
encontrados no país. Quanto a Epígrafe, a citação utilizada por Rayol foi: “Propagar
a arte que cultivo – eis a minha vocação e não lhe posso resistir – tudo o que
se dirige a este fin é essencialmente bom” (FÉTIS apud RAYOL, 1902, p. 4). Para
Genette (2018, p. 135) o lugar da epígrafe pode determinar sua função. Ao vir antes
do texto, em geral depois da dedicatória, “está no aguardo de sua relação com o
texto”, esclarecendo-se com a completa leitura do texto, e ao vir no final do livro
“tem em princípio uma significação evidente e mais autoritariamente conclusiva”.
No elemento paratextual denominado Advertência, Rayol explicou ao leitor que
seu livro seria utilizado na aula de música juntamente com trabalhos de três outros
autores, Leopoldo Miguez, Ignacio Porto Alegre e Claude Auge. Os autores citados
por Rayol, assim como seus impressos eram representativos no período em questão.
Miguez foi contratado pelo Governo Republicano para fazer reformas no ensino
musical da capital e seu livro foi adotado no Instituto Nacional de Música do Rio de
Janeiro. Pelo fato de Noções de Musica não apresentar notações musicais, o estudo
de solfejo9 deveria ser realizado com o auxílio dos Compendios de Ignacio Porto
Alegre e do músico francês Claude Auge. Outro peritexto são as Notas de rodapé em
que são apresentadas explicações complementares de conteúdos tratados no texto
esclarecendo alguns termos musicais. Os Epitextos são os elementos encontrados
externamente a obra física, mas que se referem à mesma, como as propagandas,
os anúncios, entrevistas, cartazes, etc. Encontramos diversas menções a Noções
de musica em jornais de São Luís, no caso Diário do Maranhão, Pacotilha e O
Federalista, em forma de anúncios, propagandas e agradecimentos.

7 Rayol foi diretor da Aula Noturna de Música em São Luís no ano de 1900, uma instituição pública com poucos recursos
frente ao que ele almejava por isso fez esse pedido ao governador. A Aula Noturna foi precursora da Escola de Música. Para
mais esclarecimentos a respeito da história dessas duas instituições ver Salomão (2016).
8 Maiores informações sobre a Escola Normal encontram-se em Castellanos (2010) e Motta e Nunes (2008).
9 Prática de entoar as notas na altura e na duração escritas na grafia musical.
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Análise de “Aos Leitores”


Genette (2018, p. 147) aponta que “a maioria dos temas e dos procedimentos do
prefácio existem desde meados do século XVI”. Conforme esse autor, a forma mais
comum desse texto é de um discurso em prosa, elaborado em geral após o término
da escrita de todo conteúdo do livro. A Instancia prefacial pode ter lugar no início da
obra, denominado de preliminar, ou ao final após o texto completo, passando a se
chamar de pós-liminar. Além disso, pode ser autoral, quando escrita pelo próprio
autor, ou alógrafo, quando feito por outra pessoa ou pela editora. No caso de Noções
de musica, o prefácio é autoral, intitulado de “Aos Leitores”, e preliminar. Genette
(2018, p. 176, 177) trata da função principal de um texto prefacial que é “garantir ao
texto uma boa leitura”, ou seja, “eis por que e eis como você deve ler este livro”. Ele
explica que, principalmente em obras históricas e teóricas, os prefácios devem atrair
os leitores valorizando o assunto da obra, de preferência sem chamar a atenção para
o seu autor exibindo seu talento: “se não estou (e quem estaria) à altura de meu
assunto, você deve mesmo assim ler meu livro, por sua ‘matéria’”.
Rayol (1902), fazendo uso de uma linguagem erudita com discurso romântico e
ao mesmo tempo civilizatório, elaborou um texto prefacial em dez parágrafos onde
dividiu com o leitor algumas de suas convicções a respeito da música e da relevância
do seu ensino para a sociedade. Na parte introdutória desse paratexto, Rayol
(1902, p.8) explanou os motivos que o levaram a escrever a obra, as dificuldades
encontradas e as aspirações quanto ao aproveitamento de seus alunos, explicando
ser sua obra uma “ligeira compilação” do que ele achou “bastante esthetico e
indispensável” para o objetivo ao qual se propôs. Genette (2018) comenta que ao
autor explicar que seu livro é uma compilação, está evidenciando uma valorização
da diversidade em oposição a uma valorização da unidade. Rayol admitiu ser incapaz
de produzir “uma obra original” por não achar nele “recursos melhores que os dos
genios transcendentes que têm expendidos os seus sentimentos sobre o alcance e
verdadeiro fin desta arte” (RAYOL, 1902, p.8).
Para Rayol (1902, p. 8), os efeitos enérgicos da música podem encontrar “[...] mais
sensíveis as fibras do selvagem e mesmo de alguns irracionais, que as do homem
civilizado”. Ao acreditar que os seres mais civilizados podem se encontrar menos
sensíveis a essa arte, complementa ser essa realidade o que tornava tão penosa
a aprendizagem da música e o trabalho do docente, chegando muitas vezes ser
impossível de realizá-la. Nesse comentário, pode-se visualizar um momento em que,
apesar da sua paixão pela música e devoção ao seu ensino, o professor depara-se com
um entrave que pode desanimá-lo, expressando assim certas contradições inerentes
ao ser humano, mas muitas vezes invisíveis nos relatos da carreira de um artista.
Em seguida, ocupando o espaço central do texto, tratou da relevância da música,
dos efeitos que ela exerce sobre o homem, ressaltando seu poder incondicional de
elevação do espírito, despertando a sensibilidade e a fantasia. Rayol (1902, p. 11)
defende claramente a música como “uma arte mágica, a qual excita todas as paixões
e inspira os mais nobres sentimentos”, assim inferimos que defendia uma dentre as
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duas tendências que existiram de forma mais acirrada no final do romantismo10, ou


seja, mais a favor da “[...] que v[ia] a música como linguagem expressiva [do que] a
que a compreend[ia] como forma pura” (FONTERRADA, 2005, p. 61). O compositor
maranhense era um romântico adepto incondicional da música italiana, e essa sua
preferência gerou muitos posicionamentos contrários a sua pessoa no meio musical,
como por exemplo, o de Guerra-Peixe (2007, p.219), compositor brasileiro do século
XX que fez várias críticas ao estilo composicional de Rayol evidenciando de forma
jocosa em seu livro a descrição do tenor: “um tipo másculo, usando enorme bigodeira
e o célebre laço no pescoço, à moda dos artistas românticos europeus” (ver Figura 1).

Figura 1 – Gravura de Antonio Rayol.

Fonte: Salomão (2016)

Rayol também utilizou nessa parte do seu texto prefacial figuras mitológicas
ligadas à música, como Orfeu, cuja voz e lira encantavam rochedos, árvores e
animais, e Anphion, que ao edificar a muralha de Thebas movia com o som de sua
lira as pedras até o seu lugar na construção (PHILIP, 2008; BULFINCH, 2001), porque
acreditava que o homem civilizado, acostumado a ouvir música, corria o risco de
tornar-se indiferente aos efeitos da melodia e da harmonia, surgindo então, como
artifício indutivo, alegorias mitológicas engrandecendo o poder dessa arte, bem
como sua capacidade divinal de despertar sensibilidade até mesmo no “selvagem”.
Visualiza-se novamente um Rayol de postura romântica ao acreditar na música
como uma oportunidade de elevação dos sentimentos nos seres humanos. Conforme
Gomes (2004), não se deve buscar esse fato, nesse caso do poder da música, como
uma verdade a ser comprovada, mas como algo que o autor vê, sente e defende.
“Um exercício de liberdade”, como cita Henrique (2009, p. 59), ou um discurso da
sociedade? No primeiro capítulo de Noções de musica, o autor emite mais uma
opinião sobre o efeito da música junto às pessoas, seu efeito civilizatório:
10 Essas duas tendências tinham com seus principais representantes Hanslick, denominado de formalista e defensor da
música absoluta, e Wagner na estética do sentimento (FONTERRADA, 2005).
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Não é só o homem civilisado que ella domina por seus efeitos admiráveis;
ate o proprio selvagem para quem a sciência e as outras artes não teem
encantos, sente-se animado por ella – a musica adoça-lhe os costumes
e modifica os seus mais bárbaros instinctos. [...] hoje é [...] empregada
como um poderoso meio de moralidade na educação da mocidade
(RAYOL, 1902, p. 11, 14).

O discurso civilizatório presente no período tinha a música e o ensino dessa arte


como seu grande aliado. Para os músicos republicanos autores da Gazeta Musical -
um periódico publicado no Rio de Janeiro no início da década de 1890 e estudado por
Andrade (2013, p. 110), “[...] a educação musical era vista [...] como uma engrenagem
essencial ao processo de civilização do país, auxiliando na consolidação do sistema
político republicano e de enaltecimento do mesmo, na afirmação de um patriotismo
exacerbado e no desenvolvimento da educação moral e cívica”. Assim, acreditamos
que Rayol partilhava do ideal republicano da música enquanto elemento civilizador.
Um desses músicos republicanos era Leopoldo Miguez, que defendia a unificação do
ensino musical, almejando dessa maneira o desenvolvimento e progresso do país.
Augusto (2010) explica a proposta de Miguez ao novo Governo: unificar no Brasil,
senão pelo menos no Rio de Janeiro, o ensino teórico elementar da música. Ele
acreditava que todas as escolas deveriam seguir o programa e o método adotado
no Instituto Nacional de Música, uma vez que essa instituição era para ele o modelo
de ensino musical, impondo, dessa forma, novos padrões tanto à prática musical
quanto ao ensino, além de impedir opiniões contrárias ao seu projeto cientificista.
Nesse período ele publicou um livro que Rayol indicou para ser adotado na Escola
de Música e na Escola Normal do Maranhão juntamente com Noções de musica,
de certa forma, colaborando para objetivo de Miguez de unificação do ensino em
território nacional. Outra informação que corrobora o pensamento de Rayol de que a
música seria um elemento civilizador e de que seu ensino seria um direito de todos,
é a sua declaração ao Governador João Gualberto Torreão da Costa no Relatório de
1901, quando diretor da Aula Noturna: “[...] urge, portanto que o actual Governo, tão
solicito em elevar a Instrucção Publica, augmente o professorado da aula de musica,
que o Congresso creou para beneficio d’aquelles que, sem recursos pecuniários, não
podem instruir-se na Arte Divina” (MARANHÃO, 1901, p. 5). Portanto, lutou como
professor para que o ensino da música alcançasse as diferentes classes sociais.
Na conclusão de “Aos leitores”, ele admitiu haver limitações na obra, como a
ausência do uso de notações musicais para exemplificar os conteúdos tratados
devido à falta de tipografia musical em São Luís, apesar de que em anos anteriores
outros livros impressos pela mesma Tipografia, a do Frias, possuíam exemplos
ilustrados. Provavelmente, no período de Rayol, a tipografia não apresentava mais
as mesmas condições favoráveis que possuía anteriormente. Ele declara saber que
seu trabalho estava incompleto, tendo que supri-lo com a sua prática, mas esperava
que os leitores entendessem as falhas e lembrassem que o livro era exclusivamente
para seus alunos. No entanto, ele julgava que essa falta não o impediria de alcançar
o objetivo que esperava, pois acreditava nos autores que tinha consultado, e cita
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alguns deles11, grandes ícones da literatura musical da época: Savard, Choron,


Fayolle, Artusi, Rousseau, Cattaneo e Raphael Machado. Do último autor, Machado,
Rayol copiou muitas definições informando isso claramente em seu livro, daí ter
afirmado que sua obra era uma “ligeira compilação”, mesmo porque também não
era muito aprofundada e extensa possuindo 56 páginas no total.
Apesar de Rayol se basear em outros autores, ele selecionou dentre os conteúdos
dessas obras o que achava mais “esthetico e indispensavel” para seu objetivo.
Assim, nesse momento se posicionou como conhecedor do assunto e certo de suas
escolhas, priorizando determinados temas em detrimento de outros e deixando
claro com quais autores ele mais se identificava em meio a uma diversidade existente
no meio musical. Dessa maneira, percebe-se que “[...] o que se guardou para a
posteridade é resultado de acasos, seleções e disputas que devem ser considerados”
(CASTRO, 2004, p. 237). Rayol (1902, p.7) se posicionou com modéstia ao afirmar que
precisava do apoio de autores renomados para lhe darem suporte teórico e que se
conseguisse atingir seus objetivos no ensino da música seria mais pela “aptidão,
talento e penetração dos [seus] discípulos, do que a habilidade de quem só concorre
com a sua boa vontade, achando-se possuído dos mais ardentes desejos do seu
aproveitamento”. Seria realmente sua intenção assumir ser um autor de pouca
habilidade, uma vez que sua vida profissional era reconhecida nacionalmente, ou
buscava por meio dessa modéstia o reconhecimento de seu livro? Genette (2018, p.
185) ressalta a possibilidade do autor, em face de um tema relevante, se posicionar
incapaz de tratar todo o assunto da forma como deveria, deixando a cargo do leitor
“estabelecer uma justa medida”, e usando as palavras de Lichtenberg (1947), expõe
que o prefácio poderia ser denominado de “para-raios”, tentando assim prevenir,
neutralizar ou impedir as críticas.
Santos (2012, p. 35) ao analisar os prefácios de Álvares de Azevedo comenta que “[...]
ele designa-se como um ‘pobre poeta’, que se desculpa por ser um principiante e que
possivelmente espera, por meio da constituição de uma postura de falsa modéstia,
alcançar o favor dos leitores [...]”. Teria sido essa também a justificativa da postura
do tenor maranhense? Rayol (1902, p. 9), assumiu uma postura humilde frente aos
mestres que pesquisou, mas de certa forma também se posicionou, pois deixou claro
que reproduziu essas ideias externas “associando-as como parte mais importante,
às noções que [no livro] se acham ordenadas”, ou seja, às suas ideias desenvolvidas.
Escreveu uma compilação exclusivamente para seus “discípulos”, para que a música
produzisse neles as mesmas sensações por ele sentidas, mas ao mesmo tempo sua
obra ocupou um lugar na página de anúncios de venda nos exemplares do Diário do
Maranhão de fevereiro até maio de 1903, possibilitando assim um alcance maior do
público alvo. Rayol aceitou o desafio de elaborar um livro escolar, pois ao fazer suas
escolhas de conteúdo e seu discurso na instancia prefacial, já estava propondo algo
singular no rol desse tipo de literatura. Contradições ou “múltiplas possibilidades da
trajetória de um indivíduo” (HENRIQUE, 2009, p. 95)?

11 Para maiores detalhes sobre esses autores consultar Salomão (2016).


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Considerações finais
Na historiografia consultada sobre o assunto pôde-se observar que a maioria
dos prefaciadores, autorais ou alógrafos, se preocupavam mais em falar sobre o
autor, sobre a obra, sobre o diferencial do livro em meio ao seu contexto, sobre
como os professores deveriam usá-lo. Genette (2018, p. 186) ressalta que há o
interesse de informar “sobre a maneira pela qual o autor quer ser lido”. O que Rayol
priorizou para informar aos seus leitores? Em sua instancia prefacial ele escreveu
um discurso: apresentando sua motivação pessoal para publicar um livro e os
anseios quanto aos alunos de aproveitarem essa obra; defendendo a relevância
da música; discorrendo a respeito dos efeitos que essa arte exerce sobre o homem
e de como seu ensino pode colaborar para a organização moral dos homens;
ressaltando a necessidade de que os alunos não executassem a música de forma
mecânica, somente racional, mas com expressividade para que a interpretação
musical se fizesse estimar junto ao público.
Em meio a esse discurso mais intelectual também reconheceu as limitações de
sua obra, em especial por dificuldades tipográficas, e a necessidade de ter buscado
embasamento teórico em outros autores. Em meio a uma diversidade de assuntos
existentes no meio musical, Rayol expôs as suas concepções, e ao selecionar o que
lhe agradava defendendo essa escolha, acreditamos que deixou ao mesmo tempo
uma imagem de si. Uma imagem que representa um músico e professor adepto
do período romântico, com postura modesta ao expor a necessidade de apoiar-se
no trabalho de outros teóricos, mas ao mesmo tempo posicionando-se de forma
crítica ao defender suas convicções musicais e sociais.
Baseados nos estudos de Chartier (1990, p. 127), para o qual “não existe
nenhum texto fora do suporte que o dá a ler” e não há entendimento de qualquer
texto que seja “que não dependa das formas através dos quais ele chega ao seu
leitor”, analisamos neste trabalho a materialidade de “Aos Leitores”, observando
a forma e a estrutura do texto, assim como os dispositivos que o permitiram se
dar a ler. Para esse autor, existem “[...] dois tipos de dispositivo: os que decorrem
do estabelecimento do texto, das estratégias de escrita, das intenções do ‘autor’
[...]”, que nos permitiram entender as concepções salientadas por Rayol, e “os
dispositivos que resultam da passagem a livro ou impresso, produzidos pela
decisão editorial ou pelo trabalho da oficina [...]”, ou seja, no caso de Rayol as
características tipográficas do objeto, como o uso de letras grandes e de poucos
parágrafos por página facilitando assim a leitura, embora o seu livro tivesse sido
elaborado para alunos em nível profissionalizante.
Ainda nos apoiamos em Chartier (1990) ao tratarmos das práticas dos sujeitos
e das múltiplas relações existentes considerando para tanto o conceito de
apropriação, uma vez que esse realça “[...] a maneira contrastante como os grupos
ou indivíduos fazem uso dos motivos ou das formas que partilham com os outros”
(NUNES E CARVALHO, 2005, p. 49, 53). Rayol (1902, p. 8) explicitou em seu prefácio
que se sentiria feliz se os conteúdos de seu livro, produzissem em seus alunos
“as mesmas sensações” que nele haviam sido produzidas. Nessa “declaração de
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 52

intenção” do autor, termo denominado por Genette (2018) como uma função do
prefácio, Rayol deixa implícito o discurso que fez sobre a relevância da música
para os sentimentos do homem, desejando que seus discípulos disso também se
apropriassem. Como realmente efetivou-se essa apropriação em seus leitores?
Evidenciou-se aqui o que de sua imagem Rayol, por meio de suas concepções,
pode projetar para fora do seu livro e o que de fora dele, como sujeito do seu
tempo, ele pode projetar para dentro desse impresso. Chartier (2014, p. 256, 257)
chama a atenção para a necessidade de se trabalhar com os materiais paratextuais
observando as múltiplas relações que os ligam, tanto “dentro do livro” quanto
“entre livros”, colocando-se “mais ênfase nas relações do que em taxonomias, e mais
em contextualizações dinâmicas do que em tabelas de classificação”, respeitando
a “historicidade própria” de cada material. Como se deu a apropriação de Rayol
quanto aos textos prefaciais e aos conteúdos musicais presentes nas obras dos
autores em que se baseou teoricamente? Essas indagações permanecem ao final
deste trabalho, sugerindo continuação da pesquisa.
A relevância de Rayol no cenário musical, principalmente no maranhense,
percebida na memória resguardada desse músico e professor, por meio de suas
composições ainda hoje executadas, dos registros de sua vida profissional, social
e pessoal na imprensa de seu tempo, do seu livro, em especial seu prefácio,
colaboraram e colaboram até hoje para a construção de sua legitimidade, um
sujeito do seu tempo e da atualidade. Conforme Gomes (2004, p.13), na cultura
da sociedade individualista “importa aos indivíduos [modernos] sobreviver na
memória dos outros, pois a vida individual tem valor e autonomia em relação ao
todo”. Dessa forma, uma das contribuições desta pesquisa é ampliar e aprofundar
os estudos sobre a história da educação, e nesse caso, notadamente as pesquisas
sobre cultura material relacionada à música e seu ensino.

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dez 2018.
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

COLEÇÃO “O MUNDO DA CRIANÇA”:


MATERIALIDADE E CIRCULAÇÃO
Juliana Calixto Bartsch1 - UFPR
Gizele de Souza2 - UFPR

RESUMO
O presente estudo, em andamento, se propõe a examinar dimensões acerca da
materialidade e circulação da Coleção “O Mundo da Criança”, publicada em 1934
na cidade de Chicago, com o título de “Childcraft”. A partir de 1954, a coleção ganha
proporções internacionais sendo publicada além do inglês, em espanhol, italiano
e português. Traduzida e adaptada, a coleção é publicada em sua versão brasileira
pela Editora Delta em 1959, no Rio de Janeiro. A publicação brasileira tem estrutura
semelhante a original, é impressa em capa dura vermelha, com ilustrações coloridas
impressas sobre o couro vermelho na capa. O papel e tamanho dos livros também
se assemelham às edições norte-americanas, porém o conteúdo sofreu adaptações
e traduções em relação ao original. Diante do exposto, a proposta aqui firmada é
de trabalhar a Coleção “O Mundo da Criança” como fonte e objeto, realizar em um
primeiro momento uma breve análise partindo da materialidade da forma e conteúdo
dos livros, bem como acerca da perspectiva de circulação da obra. Em função
dos objetivos indicados anteriormente, este trabalho tem como fontes empíricas
os próprios volumes da Coleção “O Mundo da Criança” a fim de discutir aspectos
acerca da sua materialidade, bem como algumas matérias e anúncios de jornais,
no intuito de localizar e analisar dimensões e estratégias de publicação e circulação
da coleção. Como aporte teórico, o conceito de representação de Roger Chartier
(1988) é de extrema relevância para a análise das proposições acerca da infância e
de sua materialidade. O trabalho também se apoia nas contribuições de Michel de

1 Possui graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná e em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Paraná. Pós-graduada em Psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente é aluna
de Mestrado em História e Historiografia da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Paraná. – julianacalixtob@yahoo.com.br
2 Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre e Doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, tendo seus estudos fundados na linha de História, Política, Sociedade, com Estágio
de Doutoramento Bolsa Sanduíche/Capes em História da Infância na Università Degli Studi di Pavia. Pós-Doutora pela
Università degli Studi di Firenze, com bolsa Sênior/CAPES. Atualmente atua como professora na Universidade Federal do
Paraná no setor de educação e pós graduação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educa-
ção, História da Infância e Educação Infantil. – gizelesouza@uol.com.br

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XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 56

Certeau (1982) sobre o ofício da história e da escrita do historiador, bem como outras
referências acerca da produção sobre cultura material e sobre impressos.
Palavras-chave: Coleção “O Mundo da Criança”, materialidade, circulação

1. INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta discussões acerca da materialidade e circulação da
Coleção “O Mundo da Criança”, publicada em 1934 na cidade de Chicago, com o
título de “Childcraft”. Sendo fonte e objeto de análise deste trabalho, a Coleção,
trata-se de uma enciclopédia3 infantil de quinze volumes, publicada por diferentes
editoras, sofrendo alterações em relação à materialidade e conteúdo diante de cada
publicação. Segundo as fontes consultadas até o momento, a referida Coleção teve
suas primeiras edições internacionais nos anos de 1949 e 1954, sendo impressa, além
do inglês, em línguas como o português, espanhol e italiano.
A coleção aqui em destaque chega ao Brasil em 1959, publicada pela Editora
Delta com o título de “O Mundo da Criança”. Com estrutura semelhante a original,
o conjunto de livros é impresso em quinze volumes em capa dura vermelha, com
ilustrações coloridas impressas sobre o couro vermelho na capa, conforme Figura 1. 

FIGURA 1 – CAPAS DOS VOLUMES DA COLEÇÃO “O MUNDO DA CRIANÇA” (1959)

3 De acordo com o Dicionário Latino-Português (1953), entende-se por enciclopédia um agregado de todas as ciências.
Sendo assim, a Coleção “O Mundo da Criança” era considerada uma enciclopédia infantil, por trazer informações para
crianças, pais e professores, abordando diferentes áreas do conhecimento, tais como: literatura, ciência, história, geogra-
fia, arte e música.
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FONTE : Coleção “O Mundo da Criança” (1959) pertencentes a arquivo pessoal da autora

O papel e tamanho dos livros também se assemelham às edições norte-


americanas, porém o conteúdo sofreu adaptações e traduções em relação ao original.
Com temáticas diferentes, os três primeiros livros são compostos por poemas curtos,
contos e cantigas. Os outros volumes abordam temas e linguagens específicas, como:
História, Geografia, Ciências, Arte, Música e Literatura. Os últimos livros, destinados
aos pais e professores, trazem orientações e informações sobre o desenvolvimento
das crianças de acordo com suas faixas-etárias. Os assuntos abordados nos quinze
livros são variados, porém algumas temáticas se repetem, como brincadeiras,
natureza, fantasia, família, desenvolvimento, religião, histórias sobre o Brasil e
sociedade. “O Mundo da Criança” é uma obra ilustrada, na qual as imagens variam
entre coloridas e monocromáticas. Realizadas por mais de um artista, as imagens já
marcam presença desde a contracapa e folha de guarda.
Diante do exposto, esta pesquisa tem como proposta realizar uma análise partindo
da materialidade e conteúdo dos livros, a fim de identificar marcas referentes ao
padrão de diagramação, publicação e ilustração, bem como acerca da perspectiva
de circulação da obra no território brasileiro. Para isso, o referencial teórico utilizado
ancora-se nos estudos de Roger Chartier (1988), acerca do conceito de representação
e história dos impressos. De acordo com o autor, representações são percepções
sociais produzidas por grupos de indivíduos, com determinado posicionamento
político, social ou escolar. Roger Chartier também traz contribuições para este artigo,
na medida em que apresenta a importância de se analisar impressos partindo não
apenas de seu conteúdo, como também de sua materialidade e circulação. De acordo
com Chartier (2001),

as pesquisas a respeito da literatura com enfoque cultural com uma


perspectiva mais crítica, a partir da Nova História, passaram a considerar
as variações históricas como critério de definição da literatura, os
repertórios, efeitos e restrições, patrocínio da academia ou mercado,
análise de copista, editores, livreiros, impressores, revisores, tipógrafos
e diferentes processos e operações no processo de publicação dos
impressos (CHARTIER, 2001, p. 38).
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Chartier (2001), portanto considera que a história da literatura e crítica literária deve
ser feita não apenas por meio da leitura do texto, como também sua materialidade
e contexto. De acordo com Agustin Escolano Benito (2018, p. 109), a relação entre
materialidade e contexto faz parte da busca dos historiadores. Conforme Benito
(2018) ao utilizar fontes pertencentes à cultura material, os historiadores se atentam
às relações entre os objetos produzidos, seu contexto de produção e uso.
Este trabalho também se apoia nas contribuições de Michel de Certeau sobre o
ofício da história e da escrita do historiador. Conforme Certeau (1982) “Toda pesquisa
histórica e historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico,
político e cultural” (CERTEAU, 1982, p. 56). Neste sentido, a perspectiva teórica de
‘lugar’ também nos auxilia na compreensão do “lócus” no qual a coleção é publicada
e as condições desta publicação em termos de táticas e estratégias.
Por conseguinte, com o fim de alcançar os objetivos aqui mencionados, este artigo
está organizado de maneira em que em um primeiro momento irá discutir a origem e
circulação da coleção “O Mundo da Criança”. Posteriormente serão apresentadas as
condições estruturais, materiais e estéticas do conjunto de livros.

2. A INFÂNCIA NO MUNDO MODERNO


Com origem norte-americana, a coleção “O Mundo da Crianç”a, é marcada por
modificações e reformulações em sua trajetória. Roger Chartier (2001), afirma que as
variações sofridas nos impressos referentes à sua materialidade, grafia e conteúdos
são importantes para a compreensão de determinados períodos (CHARTIER, 2001,
p.42). Diante disso, propõe-se uma análise das variações ocorridas durante as
edições de “O Mundo da Criança”, até chegar a sua edição brasileira em 1959, a fim
de perceber o propósito destas mudanças.
A coleção aqui em destaque teve como base uma publicação de três livros
realizada para acompanhar uma mesa de estudos destinadas a crianças pequenas
(MCQUEEN, 2015). Intitulada de “The Child Tressury”, o conjunto de livros foi
publicado em 1923, pela editora Quarrie Corporation, sobre coordenação e edição
da renomada professora May Hill Arbuthnot4. Os livros eram compostos de poemas,
contos, músicas infantis, histórias bíblicas, conteúdos de arte e sugestões para pais,
conteúdos que de acordo com a editora, abordavam assuntos importantes para a
infância, antes das crianças se depararem com as realidades do mundo adulto. O
produto, não obteve o alcance de vendas esperado, porém a crítica em relação aos
livros foi positiva (MCQUEEN, 2015).

4 May Hill Arbuthnot foi uma professora, editora, crítica e consultora em educação. Tendo seus estudos voltados à educa-
ção infantil, apresentava debates a respeito do jardim de infância e ensino por meio da literatura. Arbuthnot também foi
reconhecida por seu trabalho voltado à formação educacional para pais, sendo convidada a participar de conferências na
Casa Branca a respeito da infância (MCQUEEN, 2015).
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FIGURA 1 - FOTOGRAFIA DA COLEÇÃO THE CHILD’S TRESSURY

Fonte: MC QUEEN, Sharon A Permanent and Significant contribution the life of My Hill Arbuthnot, Association for
Library Service to Children, summer 2015

A resposta do público em relação ao conteúdo dos livros da coleção “The Child’s


Tressury”, que acompanhava a mesa de estudos, acarretou na publicação de uma
nova coleção em 1934, publicada também pela editora Quarrie Corporation, com
o título de “Childcraft”. Essa nova publicação era composta de seis livros ilustrados
com imagens desde sua capa, com fundo alaranjado, como também folha de guarda,
contracapa e ilustrações ao longo dos textos. Dentre os volumes, estavam àqueles
destinados a crianças com temas como poemas, contos, lendas, entre outros, bem
como sugestões para pais e professores sobre o trabalho com crianças pequenas.
Essa mesma coleção teve outras edições, publicadas por editoras diferentes, o que
levou a mudança de quantidade de volumes a cada nova edição.
Por meio da análise das edições norte-americanas e brasileiras, bem como o
contexto em que o início do século XX encontrava-se em relação à infância, cria-
se a hipótese de que muitas das modificações ocorridas e a iniciativa de criar uma
coleção para crianças, contendo também sugestões para pais e professores, estavam
vinculadas aos debates e conferências realizadas no início do século.
De acordo com Rodrigues (2015), a infância foi objeto de debate no final do século
XIX e início do século XX em âmbito internacional, seja por meio de conferências ou
exposições. Em busca de uma identidade própria do continente americano, países
latino-americanos começaram a promover convenções para discutir aspectos ligados
à modernidade. Vista como ferramenta de mudança para o futuro da nação, a infância
torna-se objeto de discussão. Ainda conforme os estudos de Rodrigues a partir da
década de 1920, os Estados Unidos começou a participar dessas convenções.
Em 1930, foi realizada a terceira “Conferência sobre a Proteção à saúde e a
Criança”, promovida pelo presidente Herbert Hoover em Washington na Casa Branca.
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Contando com mais de três mil participantes e sendo transmitida para a população
via rádio, a conferência discutiu um projeto de modernidade, visando a infância por
meio de um olhar científico e de circulação de ideias (RODRIGUES, 2015, p.161-168).
Interessante salientar que na conferência realizada em 1930, havia sido convidada
a editora da coleção de livros “The Child’s Tressury”, que embasou a criação da
coleção de “O Mundo da Criança”. De acordo com Mc Queen (2015), o convite chegou
a May Hill como forma de reconhecimento de seu trabalho realizado a respeito da
infância, principalmente voltada à formação de pais.
Joyce de Fátima Morais (2019), afirma em seus estudos que as Conferências
realizadas na Casa Branca a respeito da infância, aconteciam de dez em dez anos,
levantando debates sobre o bem-estar e desenvolvimento infantil. Essas reuniões
contaram com a participação de representantes de diversas regiões do mundo, que
depositavam na infância a perspectiva de um futuro melhor. Ainda de acordo com
Morais (2019), a coleção de livros “Childcraft” tratava-se de uma resposta a todos
esses conceitos debatidos a respeito da infância.
Em 1950, portanto, realizou-se uma nova conferência na Casa Branca com o
propósito de se discutir a saúde e futuro da infância. Os debates estavam centralizados
na criação de uma personalidade sadia para as crianças, trazendo a família como
peça fundamental para essa construção. Essa convenção contou com integrantes de
todo o mundo e com a presença de 500 adolescentes. (O MUNDO DA CRIANÇA, vol.
15, p 159-163)
Se atentando aos objetivos estipulados pelo congresso norte-americano, após
a conferência sobre a infância em 1950, a coleção “Childcraft” é reformulada em
1954 trazendo sugestões de leitura para crianças e pais em prol da construção de
uma personalidade sadia. Tendo estrutura semelhante às primeiras edições, a
reformulação mantém o número de exemplares em capa alaranjada, com ilustrações
em branco, azul e preto. Suas principais mudanças são em relação ao conteúdo.
Os títulos são modificados e as ilustrações ganham maior intensidade nas cores. O
décimo e décimo primeiro volume, são maiores, por tratarem de assuntos destinados
à Arte.
Analisando o volume três da coleção “Chidcraft” de 1935, comparando com a
versão de 1954, percebe-se que as mudanças já iniciam na edição do livro, visto que
foram impressos por editoras diferentes. O título sofre modificações; àquele que
antes era nomeado de “Story of life and lands”, passa a ser chamado de “Folk and
Fairy Tales”.
A reformulação ocorrida acarretou na publicação em proporções internacionais,
sendo publicada além do inglês, em línguas como português, espanhol e italiano.
A versão em português chega ao Brasil em 1959, pela Editora Delta, também
responsável por publicações de outras enciclopédias. Recebendo o título de “O
Mundo da Criança”, é divulgada por meio de anúncios e propagandas de jornais e
revistas.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 61

Em 1966, a Editora Delta, publica na revista “Realidade”, de São Paulo, uma


propaganda de divulgação dos quinze volumes. O conteúdo da publicidade diz
respeito à riqueza trazida pelos livros, realizando uma breve descrição da coleção:

“O MUNDO DA CRIANÇA” é um plano de Orientação Educacional


completo, que a Editora Delta preparou para o seu filho. São 15 volumes,
fartamente ilustrados a cores. Ao abrir cada um deles, seu filho ingressa
num mundo diferente: o das Fadas, o da Natureza, o dos Grandes
Homens. “O MUNDO DA CRIANÇA” prepara o seu filho para o lar, para a
escola e para a vida. O oitavo volume ensina-o a brincar e a fazer
brinquedos. O décimo e o décimo primeiro põe Arte e Música ao seu
alcance. Os quatro últimos se destinam a orientar pais e professores.
Mas “O MUNDO DA CRIANÇA” vai além dos seus quinze volumes!... Veja
como!...

Ao adquirí-lo, você recebe um CERTIFICADO que lhe permite consultar


durante cinco anos o Departamento de Educação da Editora Delta, no
que se refere a qualquer problema do seu filho. A resposta e a solução
serão dadas gratuitamente, por pediatras, psicólogos e nutricionistas
infantis. (Realidade, São Paulo, 1966, p. 09)

Conforme indicado no anúncio pela própria editora, considerada um plano de


Orientação Educacional, a publicação em sua edição brasileira, contava com quinze
volumes que pretendiam atingir crianças, adolescentes, pais e professores. Conforme
Israel Maria de Carvalho Vieira, um dos tradutores e responsáveis por adaptações de
“O Mundo da Criança”, o livro pode ser importante ferramenta para construção da
personalidade infantil.
Além das divulgações promovidas pela própria editora, a coleção “O Mundo
da Criança”, era objeto de divulgação de eventos e sorteios. Dentre as publicações
encontradas nos jornais da década de 1960, foram os anúncios no jornal “O Dia”,
em maio de 1961, que divulgavam esses livros por meio de exposições e sorteios
realizados, no Clube Curitibano, situado na cidade de Curitiba, Paraná. De acordo
com o anúncio, os sócios e familiares do clube, estavam convidados a participar
de uma exposição de livros que aconteceria no hall de entrada, na qual seriam
disponibilizadas informações sobre o concurso “Congraçamento Inter Clubes”, cujo
prêmio para vencedores seria a Coleção “O Mundo da Criança”. O conjunto de livros,
além de divulgado era vendido por meio de anúncios de jornais, nas editoras e por
vendedores independentes, custando em média de Cr$ 18.700 a C$25.000.
Por meio de uma comparação do terceiro volume tanto da coleção norte-
americana, como da brasileira podemos observar algumas similaridades. A primeira
delas é em relação à ilustração da capa. Ambas trazem a mesma imagem, de uma
raposa em frente a um prato com um conteúdo branco. Em frente a ela está uma
cegonha. Os dois animais estão ao ar livre, sobre um chão rochoso com pedras
, arbustos e montanhas ao fundo. A imagem da capa, faz relação à um dos contos
situados no interior dos livros, “A raposa e a cegonha”. Interessante destacar, que
este mesmo conto, aparece na edição norte-americana de 1923.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 62

FIGURA 2 - FOTOGRAFIAS DA CAPA E TEXTO DAS EDIÇÕES DE 1959 E 1923.

Fonte: Imagem da versão norte-americana disponível online na Biblioteca do congresso Norte Americano e fotografias da
versão brasileira de acervo pessoal da autora

De acordo com o décimo quinto volume da coleção, a edição brasileira é composta


de seiscentos livros infantis. Alguns foram traduzidos e adaptados da versão original,
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 63

outros foram colocados por fazerem parte da cultura brasileira. Ao fazer uma análise
dos nomes dos autores que participaram de “O Mundo da Criança”, percebemos que
ela é composta por autores estrangeiros em sua maioria. Porém, também há uma
participação de escritores brasileiros, como é o caso de Olavo Bilac, Casimiro de
Abreu, Castro Alves, Euclides da Cunha, entre outros nomes.
Tratam-se de quinze livros de aproximadamente 25 cm x 18 cm, em capa dura
vermelha, em sua maioria com duzentas a trezentas páginas. Divididos em capítulos,
cada volume possui uma temática central como poemas, contos infantis, história do
Brasil e do mundo, ciência, artes visuais, música e desenvolvimento infantil. Dentro
de cada tema central, são discutidos diferentes assuntos, que vão se repetindo no
decorrer dos outros volumes.

GRÁFICO 1 – GRÁFICO COM OS TEMAS PRESENTES EM “O MUNDO DA CRIANÇA”

FONTE- Gráfico elaborado pela autora a partir da coleção “O Mundo da Criança”

Com a finalidade de responder os objetivos do Congresso Norte-americano que


salientavam a importância de formar uma personalidade infantil sadia, percebe-se
que a escolha dos temas abordados nos volumes e a predominância de cada um em
relação a coleção teve uma intencionalidade. Retomando a ideia de lugar trazida por
Certeau (1982), de que o objeto produzido esta atrelado à uma organização social
e intencionalidade e que cabe ao historiador investigar as relações entre o objeto e
as produções sócio-econômicas ligadas à ele, é possível perceber que os temas que
mais são debatidos por meio de textos e ilustrações na coleção “O Mundo da Criança”
tem relação ao desenvolvimento infantil, literatura e educação e que tais assuntos
são importantes ferramentas para a construção de um pensamento a respeito de um
modelo de personalidade infantil. Esses temas estão presentes por meio de textos
e imagens por toda a coleção. A escolha e organização destes textos, contou com
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 64

encarregados de assuntos de Educação Infantil, ciência e recreação, sendo dividida


de acordo com a faixa etária, conforme Quadro 2.

QUADRO 1 – ORGANIZAÇÃO DA COLEÇÃO “O MUNDO DA CRIANÇA”

ORGANIZAÇÃO
FAIXA-ETÁRIA TEMAS ABORDADOS ORGANIZAÇÃO TEXTUAL
ESTÉTICA

Cotidiano, histórias de bichinhos Grande número de


3 a 6 anos Textos reduzidos
ou objetos humanizados. ilustrações.

Histórias da vida real, de bichos e


Grande número de
6 a 9 anos objetos animados, contos de fa- Textos pequenos
ilustrações.
das, aventuras.

Aventura e fantasia, contos, histó-


Textos mais complexos e Número reduzido de
9 a 12 anos rias de pessoas reais, de animais,
maiores, vocabulário amplo. ilustrações.
viagens.

Histórias da vida real, origem e


evolução das coisas, novelas,
Textos grandes, com lingua- Número reduzido de
12 a 15 anos romances, aventuras, histórias de
gem rica e variada. ilustrações.
mistério e biografias de persona-
gens importantes.

FONTE- Quadro elaborado pela autora a partir do quadro explicativo do Volume 15 da coleção “O Mundo da Criança”

Diante do Quadro 2 é possível inferir que a coleção era destinada à crianças de três
a doze anos. Às mais pequenas eram sugeridas leituras com textos menores e mais
lúdicos, com um número maior de ilustrações. Já às crianças maiores eram propostas
leituras mais densas, com vocabulário amplo e variado. É possível identificar também
que o espaçamento do corpo do texto se torna mais reduzido com o avançar dos
volumes, tendo nos livros finais disposição textual em colunas. Tal estratégia pode
ter sido realizada pelos editores, a fim de dinamizar melhor o espaço da folha de
acordo com os textos que a cada livro tornavam-se maiores.
Referente às imagens, a coleção constitui-se por ilustrações coloridas e
monocromáticas, que dialogam com o texto, ocupando espaço significativo nas
páginas do livro. Em relação a estrutura da versão de 1959 e ao uso das ilustrações no
decorrer dos volumes da coleção, percebe-se que até o sexto livro, há um predomínio
das ilustrações. A partir do sétimo, no entanto, começam a serem utilizadas também
fotografias para articular com os textos. Essa escolha pode estar relacionada à divisão
etária realizada, que previa um número mais baixo de ilustrações acompanhando os
textos para crianças de idade mais elevada.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 65

QUADRO 2 – NÚMERO DE ILUSTRAÇÕES E FOTOGRAFIAS NA COLEÇÃO


“O MUNDO DA CRIANÇA”

VOLUMES ILUSTRAÇÕES FOTOGRAFIA

Volume 1 141 -

Volume 2 143 -

Volume 3 150 -

Volume 4 170 -

Volume 5 150 -

Volume 6 142 -

Volume 7 25 295

Volume 8 261 98

Volume 9 469 466

Volume 10 1 234

Volume 11 89 87

Volume 12 54 191

Volume 13 85 209

Volume 14 31 106

Volume 15 56 88

FONTE- Quadro elaborado pela autora a partir da Coleção “O Mundo da Criança”

Os artistas que participam da coleção tem origem estrangeira e brasileira. De acordo


com o volume um, foram cento e quatro artistas norte-americanos participantes.
Muitos deles, também contribuíram com ilustrações para a edição em inglês. Ainda no
primeiro volume, há uma indicação de artistas e escritores portugueses e brasileiros,
sendo um total de doze ilustradores e trinta e oito escritores.
Nota-se que as ilustrações dialogam com os textos e em muitos casos trazem
narrativas a parte das textuais. De acordo com Peter Burke (2001), as imagens e
textos tem seu espaço e importância (BURKE, 2001, p.11. apud. SIQUEIRA, 2018,
p.10). Assim como os textos escritos, as imagens possuem uma função comunicativa
e não apenas ornamental ou ilustrativa. No caso da coleção “O Mundo da Criança”, é
possível interpretar que a importância da função comunicativa das imagens encontra-
se principalmente nos primeiros volumes, visto que seriam voltadas à crianças
pequenas que poderiam ou não saber ler. Isso pode ser diagnosticado, por meio da
análise da diferença do tratamento das ilustrações e das fotografias, uma vez que
percebe-se que diferente das ilustrações, as fotografias em sua maioria não trazem
narrativas próprias, possuindo um caráter mais ilustrativo do que comunicativo.
De acordo com o décimo quinto volume da coleção, o título “O Mundo da Criança”,
está relacionado à intencionalidade e papel dos quinze livros no cotidiano da vida
familiar. De acordo com os editores, o conjunto de livros seria a chave de acesso ao
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 66

mundo da criança, a fim de proporcionar uma base completa, inculcando interesses,


lazeres, bom gosto e espírito cívico. A coleção era vista como um manual para pais
e professores, que serviria como ferramenta de abordagem com as crianças de
forma lúdica a respeito de assuntos diferentes. Mediante o exposto, retomando as
informação do Gráfico 1, a predominância de alguns temas nos volumes, se justifica
na medida em que eram abordados os mesmos assuntos para adultos e crianças,
porém com finalidades diferentes. Aos adultos estavam destinadas as explicações
voltadas à vida em família e ao desenvolvimento infantil. Já às crianças os temas
eram tratados de forma lúdica, com o propósito de ser algo agradável e significativo.

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultado é possível inferir que as novas percepções a respeito da infância
a partir do final do século XIX e início do século XX, foram propulsoras de eventos
e publicações que promovessem representações de infância e criança vistas como
futuro e progresso da nação. Uma das publicações que sofreu modificações devido
aos novos olhares e percepções a respeito da infância foi a coleção “O Mundo da
Criança”.
Ao estudar a trajetória da coleção desde sua primeira edição norte-americana
até suas publicações em âmbito internacional, percebe-se que não se trata de uma
publicação neutra. É perceptível os ideais e representações de modelos de infância e
criança ,em busca de uma construção de uma personalidade fundada na educação
pela família. A própria reformulação dos livros após a Convenção da Casa Branca a
respeito da infância em 1950, é uma afirmativa dessa intencionalidade dos criadores
e idealizadores de “O Mundo da Criança”. Nos próprios volumes é afirmado que a
escolha dos conteúdos foi um resultado dos objetivos estipulados pelo congresso
norte-americano, após a conferência à respeito da infância da Casa Branca em 1950.
Consequentemente, a organização dos textos e imagens tem a finalidade de
transmitir valores que contribuam para a formação de uma personalidade, que
de acordo com os ideais estabelecidos pelo evento de 1950, eram ideais para a
infância. Por meio da análise dessa organização são identificadas representações de
uma infância ideal, fundada por meio da construção da personalidade. É visível a
importância da materialidade para entender os processos e representações, sejam
eles de infância, educação ou família.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 67

FONTES
Coleções:
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Childcraft: Story of life and lands. Chicago: W.F. Quarrie & Company, 1935. Vol.3
OSBORN. Ernest G. Childcraft: Folk and Fairy Tales. Chicago: Field Interprises, 1949. Vol. 3.
Disponível em < https://archive.org/details/childcraftfolkfa03fiel>Acesso em 06 de janeiro
de 2020.
HILL. May The Child’s Tressury: The fundation Library. Chicago: Quarrie Corporation, 1923.
Disponível em < https://archive.org/details/childstreasury00hill/page/n185 > Acesso em 06
de janeiro de 2020
Jornais e revistas
Alterosa. O mundo da Criança. Minas Gerais, ed. 00347, novembro de 1961. p. 66.
Association for Library Service to Children, MCQUEEN, Sharon A Permanent and Significant
contribution the life of My Hill Arbuthnot, summer 2015 . Disponível em <https://www.jour-
nals.ala.org/index.php/cal/article/view/5694/7075> Acesso em 13 de janeiro de 2020.
Correio do Paraná. Mundo da criança desapareceu acusado funcionário do expresso,
ed.00386, 01 de setembro de 1960, p.12
O Dia. Clube Curitibano. Curitiba, ed.11725, 30 de abril de 961.
Realidade. O gosto pela leitura começa muito antes de a criança aprender a ler. A você, que
acha importante despertar no seu filho o gôsto pelos bons livros, vamos falar sobre “O Mun-
do da Criança”, ed. 0006, setembro de 1966, p. 9
Dicionários:
JUNIOR. José Cretella, CINTRA. Geraldo de Ulhôa Dicionário Latino-Português. 3ª edição.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953.
REFERÊNCIAS
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posições Universias. SILVA. Vera Lúcia Gaspar da, SOUZA. Gizele de, CASTRO. César Augus-
to. Cultura Material Escolar em Perspectiva Histórica: Escritas e Possibilidades. Vitória:
EDUFES, 2018. p. 93-118.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução Vera Maria Xavier dos San-
tos. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes, revisão
de Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CHARTIER. Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Trad.Maria Manue-
la Galhardo. Lisboa: Difusão Editorial, 1988.
______Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre
Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antônio Saborit. Porto Alegre: ARTMED, 2001.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 68

LUCA, Tania Regina de. Leitura, Projetos e Revistas do Brasil 1916-1944. São Paulo: Editora
UNESP, 2011.
MORAIS. Joyce de Fátima. O Mundo da Criança: prescrições para os bons modos do infante
(1954 - 1959). Dissertação (Mestrado em Educação), Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2019.
RAGAZZINI, Dario. Para quem e o que testemunham as fontes da História da Educação? Ed-
ucar em Revista. Dossiê História da Educação: instituições, intelectuais e cultura escolar.
Curitiba, Editora da UFPR, nr.18, 2001, p.13-28. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0104-40602001000200003&script=sci_abstract&tlng=pt
RODRIGUES, Ana Júlia Lucht. ”Getting te world out”: congressos internacionais e a conferên-
cia da casa branca de proteção à criança de 1930. Franciele Ferreira; SILVA, Carolina Ribeiro
Cardoso de; SACRAMENTO, Cristina Carla. História da Educação, Infância e Cultura Materi-
al: os estudos produzidos pelos grupos de pesquisa da UDESC, UFPR, Unicamp. Florianóp-
olis: UDESC, 2015, p. 161 - 170. Disponível em <https://issuu.com/coloquio2015-ufprudescu-
nicamp/docs/ebook_historia_da_educacao_infanci> Acesso em dezembro de 2019.
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

DISCURSOS E SENTIDOS QUE


CIRCULAM: DICCIONÁRIO UNIVERSAL
DE EDUCAÇÃO E ENSINO COMO
SUPORTE DE IDEIAS PEDAGÓGICAS
(ANOS FINAIS DO SÉCULO XIX)5
Ana Paula de Souza Kinchescki – PPGE/UDESC
Luiza Pinheiro Ferber – PPGE/UDESC
Vera Lucia Gaspar da Silva – PPGE/UDESC

O presente trabalho tem como objetivo principal identificar e analisar como


o cenário da educação primária é apresentado em um Dicionário de Educação e
Ensino publicado nos anos finais do século XIX, destacando argumentos de defesa
da escolarização da infância e o provimento material recomendado para a escola
ali anunciada. Para este estudo optamos por adotar como fontes duas versões
portuguesas do Diccionário Universal de Educação e Ensino: útil à mocidade de ambos
os sexos, às mães de família, aos professores, aos directores e directoras de collegios
e aos alumnos que se preparam para exame. Este impresso (por nós compreendido
como documento) teve sua primeira edição publicada no ano de 1872, na França,
sob a responsabilidade de Émile Mathieu Campagne. Nos anos seguintes, passam a
circular em Portugal duas traduções e versões estendidas feitas por Camilo Castelo
Branco e seus colaboradores, a primeira, organizada em dois volumes, foi publicada
no ano de 1873 e a segunda, dividida em três tomos, em 1886.
Intenta-se compreender de maneira mais aprofundada elementos relacionados
à instrução primária, buscando contribuir com os debates da área e ampliar as
possibilidades de se pensar diferentes discursos e sentidos sobre a escola que
circulavam em distintos países. Esse interesse está vinculado a agenda do grupo de
pesquisa Objetos da Escola, que busca analisar e explicar processos pelos quais ideias
pedagógicas se movimentam e maneiras de percebê-las a partir da materialidade
escolar e suas prescrições. A proposta deste trabalho, portanto, é a de auxiliar em uma
das tarefas do grupo, a de “compor um quadro que ajude a alargar a compreensão
sobre a constituição deste nível de escolarização e sua difusão, particularmente
5 Este trabalho está articulado ao projeto de pesquisa “Objetos para Consumo da Escola: O que dizem as Exposições Uni-
versais, os Museus Pedagógicos e as Leis da Obrigatoriedade Escolar” (UDESC/CNPq/FAPESC)”, coordenado por Vera Lucia
Gaspar da Silva.

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 69


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no que diz respeito a sua composição material e a relação desta com os processos
de inovação tecnológica” (GASPAR DA SILVA, 2017, p. 14), além de colaborar com
a construção de entendimentos sobre a história da escola primária. Para tanto, a
delimitação temporal dos estudos concentra-se entre os anos finais do século XIX e
início do século XX. 
A proposta acompanha reflexões inscritas em trabalhos de António Nóvoa e
Jürgen Schriewer, com especial destaque aqui para as registradas no livro A difusão
mundial da escola (Lisboa: Educa e Autores, 2010). Conforme advogam estes autores,
a circulação de ideias pedagógicas está relacionada à difusão mundial de um modelo
de escola, que se irradia de diferentes formas e sofre adaptações regionais e locais,
atendendo a diferentes interesses e projetos sócio-políticos. Entre as formas de
difusão está a imprensa pedagógica, com seus livros, revistas, dicionários e outros
modos de circulação impressa. Como inicialmente anunciado, neste trabalho nos
dedicamos ao estudo de conteúdos extraídos de um dicionário de educação de
grande circulação, percebendo este como um dispositivo propagador de conteúdos
e conceitos. 
Entendemos que os Dicionários de educação não podem ser estudados por si só,
é preciso levar em consideração o contexto histórico e social em que estão inseridos
e os personagens que os utilizaram, para assim, tentar entender o papel deste objeto
em determinados espaços, bem como seus usos por diferentes sujeitos. Contudo,
nem sempre é possível recompor esta “rota”, mas a presença destes em acervos e
em bibliotecas pedagógicas atestam certa participação na construção de discursos e
projetos de escolarização.
Considerando essas características, a metodologia de pesquisa utilizada consistiu,
primeiramente, na identificação de dicionários pedagógicos6 com “participação” na
composição de discursos que apoiam os projetos de escolarização nos anos finais
de século XIX e anos iniciais do século XX, bem como, a localização de diferentes
edições7. Inicialmente esse movimento foi realizado em bases de dados online de
Bibliotecas e, posteriormente, em incursões em sebos para localizar as fontes em sua
versão impressa. Deste rastreamento foram localizados em formato digital: a versão
em francês e os volumes 1 e 2 da versão do ano de 1873, de Portugal. Os três volumes
do ano de 1886 foram encontrados e adquiridos em versão impressa.
Essa etapa do trabalho, somada a leitura de bibliografias que auxiliem na
compreensão sobre esse formato de fonte, confirmaram a circulação desses
impressos pela presença em acervos de Bibliotecas de diferentes países, como França,
Canadá, Portugal e Brasil. Thabatha Aline Trevisan e Bárbara Cortella Pereira (2013),
no trabalho intitulado Leituras recomendadas para as Escolas Normais no Brasil e na

6 A localização dos Dicionários Pedagógicos foi realizada por Ana Paula de Souza Kinchescki para a elaboração da pesquisa
de doutorado em andamento, intitulada provisoriamente de Instrumentos e acessórios de escrita: registros da constru-
ção de uma ‘necessidade universal” na escolarização da infância (Segunda metade do século XIX), orientada pela Profes-
sora Dra. Vera Lucia Gaspar da Silva (PPGE/UDESC).
7 Como exemplos, pode-se citar os dois volumes do Diccionaire de Pédagogie et d’Instruction Primaire, organizados por
Ferdinand Buisson e publicados em 1887 e 1888, assim como a versão revista e ampliada, publicada em 1911. Além destes
dicionários, também destacamos o Diccionario de Educacion y métodos de enseñanza, escrito por Mariano Carderera e
publicado em quatro tomos, respectivamente nos anos 1854, 1855, 1856 e 1858.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 71

França (século XIX): transferências culturais e de modelos pedagógicos, relatam sobre


a recomendação deste Dicionário, inclusive, como leitura necessária aos professores
em formação pela Escola Normal de São Paulo no século XIX.
Após a localização dos impressos, iniciou-se um contato mais direto com o
conteúdo destas fontes com o intuito de nos familiarizarmos com os termos ali
tratados. Em seguida, ordenamos os documentos e selecionamos os verbetes que
avaliamos estarem vinculados a projetos de escolarização, destacando aqueles
que auxiliam no aprofundamento de questões como: argumentos de defesa da
escolarização da infância e de sua obrigatoriedade e o material recomendado para a
escola ali anunciada, realçando os artefatos relacionados a leitura e escrita.
Neste percurso foram analisados verbetes que tratam de escola, educação,
instrução primária, método de ensino, mobília escolar, entre outros8. Para as
investigações, foram estabelecidas categorias com o objetivo de facilitar as buscas, a
sistematização dos dados e permitir reflexões mais aprofundadas sobre os verbetes
selecionados. Dessa forma, organizamos as informações em dois grupos: definições
que envolvem educação de forma geral e acepções relacionadas à materialidade
escolar. 
Entendemos, com base em tese intitulada Representações e apropriações docentes
do método intuitivo na educação paulista da primeira república (1890-1920), escrita por
Oscar Teixeira Junior (2011), que os dicionários pedagógicos tinham como objetivo
tornar comum e possibilitar o acesso de conceitos científicos a todos os letrados.
Trata-se de obras normalmente produzidas a partir da reunião de especialistas de
diversas áreas, proporcionando assim, a construção de um caráter considerado
eclético em seus escritos. Deste modo, a reunião de sujeitos - em geral ocupantes
de lugares de poder e capacidade de difusão - atribui a este tipo de publicação uma
força modelar significativa, no sentido de se fazer presente em discursos, publicações
e projetos de escolarização.

8 Apesar de a publicação indicar que os verbetes foram escritos por Émile M. Campagne, com a colaboração de outros
autores, não há no decorrer de nenhuma das versões do dicionário (tanto na francesa quanto nas duas traduções portu-
guesas) a indicação dos responsáveis pela escrita de cada uma das definições. Sendo assim, neste trabalho optamos por
referenciar o autor Émile Mathieu Campagne ao citarmos algum trecho disponível na obra.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 72

Difusor de conteúdos e conceitos:


análise de um dicionário pedagógico

Figura 1: Diccionario Universal de Educação e Ensino, Émile Mathieu Campagne

Fonte: CAMPAGNE (1886).

A imagem acima representa os tomos da versão de 1886, traduzida e ampliada


por Camilo Castelo Branco, composta por três volumes com um total de 2846 páginas
assim distribuídas: primeiro volume com 1016 páginas, traz os verbetes das letras de
A até E; segundo volume, 910 páginas, com os verbetes das letras F ao M; e terceiro
volume, 920 páginas, do N ao Z.  Além desse exemplar, há também outra versão
traduzida, publicada anteriormente, no ano de 1873, em Portugal. A referida versão,
por sua vez, passa a contar com dois volumes que somam1604 páginas: o primeiro
com 806 páginas, organizadas com os verbetes da letra A até I e o segundo, de J a Z,
com 798.
Apesar de conter grande parte dos conteúdos da edição francesa, a versão traduzida
agrega elementos relativos à realidade portuguesa. Dessa forma, estas edições - de
1873 e de 1886 - podem ser compreendidas como mais do que meras traduções, trata-
se de produções ampliadas com base na versão francesa, consideravelmente menor
e escrita por Émile Mathieu Campagne, publicada no ano de 1872, em volume único,
com os verbetes organizados de A a Z, em 1211 páginas. Nas palavras registradas
por Castelo Branco (1873a, p. VI) “Quanto fôr de mim e da melhor vontade de inserir
n’esta obra artigos que lhe não destoem, darei de lavra propria mais larga noticia, do
que ahi vem, das cousas de Portugal” 9.
Ao confrontarmos as distintas edições, foi possível observar que a primeira
tradução publicada em 1873 e a segunda em 1886 também guardam diferenças entre
si. Chamou nossa atenção a inclusão de verbetes relacionados à educação após
9 Optou-se por manter a grafia como registrada no original.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 73

a promulgação da Lei da Direcção Geral de Instrução Pública de Portugal, datada


de 2 de maio de 1878, relativa à Reforma e reorganização do ensino primário. Ao
analisarmos o documento, assinado pelo então Ministro e secretário de Estado dos
Negócios, António Rodrigues Sampaio, foi possível identificar manobras realizadas
pelo governo português para a melhoria da educação escolar.
A mencionada lei, que traz entre seus objetivos normatizar o ensino obrigatório,
as matrículas e a frequência no ensino primário, foi interpretada por Castelo Branco
como dispositivo motivador para a elaboração e lançamento de uma nova versão do
Dicionário, estendida e ilustrada, levada a efeito no ano de 1886, desta vez, organizada
em três volumes (CAMPAGNE, 1886). Uma de hipóteses é que tais mudanças
acompanhem, além das prescrições estabelecidas em Lei, discursos pedagógicos
em circulação, o que coloca dicionários deste tipo como importantes instrumentos
de circulação de princípios de renovação pedagógica. Além disso é provável que o
responsável pela edição tenha considerado pertinente atualizá-la, conectando seu
conteúdo às normativas aprovadas.
Assim como na versão de 1873, em suas primeiras páginas, o Volume 1 da edição
portuguesa de 1886, apresenta uma nota dos editores explicando o objetivo deste
dicionário, caracterizado como um livro de extrema importância, seja para a formação
de professores, seja como auxiliar na prática docente. Com elementos deste tipo,
busca-se construir uma ideia de que é um livro essencial para a melhoria do ensino e
para o estímulo da prática de pesquisa e construção de saberes, tanto por parte dos
professores quanto dos estudantes. Em suas palavras, os editores consideram que o
dicionário, 

[...] além da utilidade geral que tem para todos os que quizerem instruir-
se, por constituir uma verdadeira encyclopedia, onde são expostos, com
a maior clareza, todos os ramos do saber humano, vem sobretudo
prestar um valioso auxilio aos paes e professores, na importantissima
obra da educação das novas gerações, e tem, por isso, já o seu lugar
marcado nas bibliothecas escolares, cuja importancia deve ter sido
justamente apreciada pelas illustradas juntas de parochia (CAMPAGNE,
1886a, p. VI).

Ajustamos nossas lentes para os verbetes que entendemos que trazem elementos
que ajudam a compreender uma espécie de base estruturante do ensino primário.
Conforme já mencionado, destacamos aqueles que auxiliam no aprofundamento
de questões como argumentos de defesa da escolarização da infância e sua
obrigatoriedade, assim como o material recomendado para o tipo de escola ali
anunciada. Neste intento foi possível notar, nas versões de língua portuguesa,
mudanças significativas em dois verbetes específicos que tratam sobre a educação.
Na primeira versão, de 1873, não há desdobramentos nos termos instrucção
e escola, os quais são abordados em apenas um verbete, de forma mais geral.
Já no exemplar do ano de 1886 percebe-se que há especificações para os dois
vocábulos como, por exemplo, instrucção, que aparece de forma mais detalhada
como instrucção primária e instrucção pública. No caso da palavra escola, que antes
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 74

aparecia somente no plural, nesta outra versão é subdividida em: escóla, escólas,
escolas abecedarias, escólas primarias, entre outras. Estes termos, os conceitos que
portam e os desdobramentos apresentados na segunda versão são indicativos da
organização (ou reorganização) de um aparato de escolarização que vai se tornando
mais complexo, com desdobramentos nas tipologias que remetem a alterações no
formato das escolas e nos níveis de escolarização.

Definições que envolvem instrução e educação


Ao lermos o dicionário e tentarmos identificar como o cenário da educação
primária é apresentado no decorrer de suas páginas, nos deparamos com a afirmação
feita por Castelo Branco, quando introduz o verbete Instrucção primaria: “Este titulo é
tão geral e extenso, que comprehende por assim dizer todas as materias desta obra”
(CASTELO BRANCO, 1886, p. 468). O destaque dado pelo tradutor a esse nível de
ensino reitera a importância que a instrução primária passa a ter no período, sendo
inserida fortemente na agenda política ocidental.  
Ressaltamos que todos verbetes apresentados neste item foram retirados da versão
portuguesa de 1886. Conforme já mencionado no começo do texto, apesar de haver
definições coincidentes com a versão de 1873, alguns termos foram reorganizados e
ampliados nesta nova publicação, incluindo os que falam sobre instrução e educação.
Quanto à instrução, que pode ser considerada um termo “guarda-chuva”, observou-
se que a maneira com que o autor descreve esse verbete permite a identificação de
um debate recorrente na historiografia da educação e presente em diferentes fontes
do período estudado para este trabalho. De acordo com o autor, a palavra instrução

[...] (do latim instructio, disposição, derivado de struere, construir)


exprime a sciencia mais vulgar, o que se aprende nas escolas. Difere da
educação a instrucção, sendo que a primeira inclue a idéa do bom
emprego e uso da segunda: pôde pois haver instrucção com má
educação, se o saber não é realçado por boas maneiras e bons costumes.
O fim da educação é desenvolver as faculdades moraes, enquanto a
instrucção visa a enriquecer as faculdades intelectivas (CAMPAGNE,
1886b, p. 466).

Mais do que exaltar o papel da escola, de forma geral, este dicionário coloca em
um lugar de destaque a instrução primária, anunciada como “a pedra angular da
instruccção publica”. Uma hipótese levantada por nós diante dos dados localizados
na pesquisa é a de que a Lei de 2 de maio de 1878, tenha influenciado para o reforço
do entendimento em torno da importância da instrução primária para a sociedade
portuguesa. Segundo o autor, esse nível de ensino 

[...] hoje abrange, em quasi todos os paizes, embora sob a fórma


rudimentar, o conjunto dos conhecimentos humanos e um systema
completo de educação popular, physica, intellectual e moral. É esta que
costitue a verdadeira instrucção nacional, obrigatoria para todos os
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 75

cidadãos, e considerada pelo estado como um serviço publico e gratuito


(CAMPAGNE, 1886b, p. 471).

Conforme o Art. 5º do Capítulo II, da mencionada lei, a instrução primária elementar


seria obrigatória para crianças de seis a doze anos de idade e, para consolidação
desse nível de ensino era preciso um espaço físico que garantisse o previsto em
lei, as chamadas escolas. Ao pesquisar no dicionário, observamos que o termo
escolas foi apresentado na versão de 1873 sem distinção de artigos especiais, já na
versão de 1886 esse verbete foi desmembrado em escóla, escólas primárias, escólas
abecedarias, escólas meridianas, entre outras, com o intuito de evitar repetições. O
Dicionário de Campagne (1886a) apresenta o termo escola com a seguinte definição: 

A palavra grega scholê designou o descanso, a terminação das fadigas


physicas e por extensão o momento propício para a actividade do
espírito, para a leitura, para o estudo. D’este sentido primitivo fácil foi
passar para o do local destinado ao estudo, aos exercicios intellectuaes.
Tal foi o sentido da palavra latina schola (CAMPAGNE, 1886a, p. 866).

Diante dos sentidos atribuídos à instituição escolar, foi possível identificar


a exaltação feita pelo autor ao papel social da escola. Dentre os trechos que
evidenciam esta afirmação, destacamos os seguintes: “Tal sociedade, tal escóla; e,
reciprocamente, quanto valer a escóla, tanto valerá a sociedade” e “Para a sociedade,
a escóla representa uma medida de previdencia e d’utilidade publica, uma garantia
para o futuro, um instrumento d’assimilação intellectual e moral, sem o qual a
sociedade não estaria segura do dia d’ámanhã” (CAMPAGNE, 1886a, p 867).
Por meio dos escritos do autor conseguimos perceber a força presente em discursos
que estavam associados à necessidade de modernização e da universalização do
ensino primário, com o intuito de uma melhoria das condições da nação portuguesa.
Dessa forma, à instrução pública se creditava a responsabilidade de mudança e
formação moral e cívica da população de Portugal. Porém, para que isso acontecesse
seria preciso também suportes materiais e pedagógicos que dessem condições para
a execução dos métodos de ensino que passavam a circular e ganhar força no final do
século XIX e começo do século XX.

A dimensão material nos escritos do dicionário

Todo edificio deve ter o seu caracter proprio, fazer comprehender só


pelo seu aspecto qual o fim a que é destinado. O caracteristico d’uma
escóla é a simplicidade; o seu destino é o estudo; é isto que convém
exprimir e traduzir (CAMPAGNE, 1886a, p. 157).

Selecionamos a definição acima, retirada do verbete Architectura escolar, por ser


este um aspecto muito caro para o estudo da escolarização da infância e um elemento
material relevante. Na contramão de projetos que, muitas vezes, advogaram pela
monumentalidade destas instituições, que, cravadas em lugares estratégicos
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 76

simbolizariam a força e a presença do Estado (ou dos Estados), aqui vemos uma
espécie de culto à simplicidade. Porém, considera-se importante destacar que,
a simplicidade defendida não retira destas construções o ideal de singularidade
que os edifícios escolares precisariam ter em relação às demais construções. Em
documentos que circularam em diferentes países na época em que o dicionário foi
publicado, é recorrente encontrar prescrições que ordenariam a elaboração das
plantas, o planejamento e a ocupação dos espaços. 
Agustín Escolano Benito (2000), um dos especialistas na temática, analisa que, por
meio dos estudos sobre a cultura material escolar, passa-se a entender a arquitetura
como um elemento cultural e pedagógico, que carrega consigo um caráter simbólico,
fundamental de ser investigado para a construção de uma história da educação e das
práticas e instituições escolares. Segundo este autor (2000, p. 191) “El edificio-escuela
ha sido a estos efectos, desde que se definió como materialidad especializada, una
construcción diferenciada de los contenedores exclusivamente prácticos”. Ainda
na esteira da reflexão proposta por Escolano Benito os edifícios que abrigam as
escolas são espaços que têm a capacidade de ensinar, mesmo que de uma maneira
“silenciosa”.
A materialidade, em sua perspectiva, também carrega discursos e intenções. Dessa
forma, a estrutura de um edifício localizado nas cidades é pensada de forma diferente
daquele construído nos campos, por exemplo, mas sua fachada deve denotar tratar-
se de uma instituição de ensino. Retomando uma passagem do verbete Architectutra
escolar destacamos a “recomendação” de que, “[...] nas cidades convém evitar as
fachadas frias, monotonas e uniformes; e nos campos é bom circumdar a casa da
escola de plantas, de flôres, cujas côres se casem tambem com as das telhas e das
paredes” (CAMPAGNE, 1886a, p. 157). 
Rosa Fátima de Souza (2005) é uma autora que também ressalta a importância
de considerar os silêncios da arquitetura e do espaço escolar como elementos
que educam. A pesquisadora chama atenção para a complexidade que envolve as
pesquisas que tratam da temática e para a importância de um olhar cuidadoso para
as fontes e para aspectos que, apesar de parecerem óbvios, escondem nuances
que podem se tornar fundamentais para a construção de narrativas históricas. 
Destacamos aqui uma passagem de suas reflexões:

Portadores de significados múltiplos, a arquitetura e o espaço escolares


têm se constituído nos últimos anos em promissoras vertentes de
investigação sobre a cultura escolar. Estudos dessa natureza tendem a
surpreender até mesmo o pesquisador que almejando encontrar o
inusitado e o extraordinário, ao se voltar para o interior da escola, para
as práticas e o cotidiano, depara-se com o prosaico, os lugares-comuns,
com aqueles aspectos quase sempre negligenciados por comporem a
estrutura habitual de nossa percepção sobre a realidade (SOUZA, 2005,
p. 8).

Acompanhando os aspectos apresentados até aqui entendemos que, como


elementos característicos do espaço físico de uma escola, estão as fachadas e janelas
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 77

dos edifícios. Trata-se de materialidades que portam intencionalidades e saberes,


mostrando-nos que grande parte das construções não são projetadas de forma
aleatória (ainda que nem sempre as recomendações se efetivem na edificação), assim
como as posições das salas de aula, das janelas, da direção da escola. Continuando a
explorar o verbete architectura escolar, encontramos a indicação de que:

A fachada d’um edificio escolar não deve chamar attenção; a sua


apparencia deve pelo contrario, ser modesta; as boas proporções, isto é,
a justa relação entre as diversas partes do edificio, as grandes linhas de
construcção e a nitida apresentação das massas são os unicos recursos
de que o constructor póde lançar mão (CAMPAGNE, 1886a, p. 157). 

Para além da arquitetura, outros verbetes que tratam de aspectos que ajudam a
compor uma espécie de base material da escola foram localizados nas páginas do
Dicionário Universal de Educação e Ensino. No processo de pesquisa fizemos uma
busca a partir da leitura dos verbetes das duas versões publicadas em Portugal
(1873 e 1886) com o intuito de verificar se os termos eram os mesmos ou se
haveria algum acréscimo ou supressão. Nesse percurso nos deparamos com duas
questões: a primeira foi a que a versão de 1873 não continha tantos verbetes ligados
à materialidade escolar, apenas foram localizados quatro (mappas, estylo, imagens
nas escolas e cartas geographicas), já a segunda foi a de encontrar, na versão de
1886, uma quantidade maior do que a esperada por nós de verbetes que podem ser
traduzidos como expressão de uma materialidade escolar.
Por esta razão, optamos por elaborar uma sistematização que retratasse as
informações localizadas. A ideia inicial foi a de produzir um quadro reunindo os
dados encontrados nas duas versões, mas diante da desigualdade no número
de verbetes, definimos por não colocar aqueles disponíveis na primeira edição
(1873). Importante ressaltar que os artefatos sinalizados em negrito neste quadro
são aqueles que aparecem de forma repetida na edição de 1873. Para permitir que
o leitor consiga visualizar melhor quais verbetes foram selecionados e onde estão
localizados, chegamos no resultado do quadro abaixo:

Quadro 1: Verbetes localizados no Dicionário Universal de Educação e Ensino (1886)

Diccionario Universal de Educação e Ensino (1886)Verbetes relacionados à materialidade escolar

Tomo 1 Tomo 2 Tomo 3

Ábaco Livros Sala de aula

Abecedário Mappas Syllabador

Architectura escolar Material Tinta, Tinteiro

Ardosias Mobilia escolar Penas

Bancos das escolas ou bancos-mesas Museu escolar

Bussola
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Cadernos

Cartas geográficas

Casa escolar

Compendium

Contador

Escada métrica

Esquadro

Estylo

Fonte: CAMPAGNE (1886a, 1886b, 1886c); CAMPAGNE (1873a; 1873b).

Considerando os volumes da versão de 1886, foram encontrados vinte e três


verbetes ligados diretamente ao que nominamos como objetos escolares. Os termos
que têm relação com a escola, mas que não dizem respeito à materialidade presente
nesse espaço não foram considerados para a elaboração deste trabalho, pois um dos
nossos focos é o de destacar os elementos que integram a cultura material escolar.
Após a construção do Quadro 1, julgamos necessário separar em categorias os dados
encontrados. 
Para essa tarefa nos baseamos na metodologia adotada por um Grupo de Trabalho
dedicado a temática da cultura material escolar, que funcionou no interior de um
grupo de pesquisa10 mais amplo, dedicado a história da escolarização brasileira.
Tal GT ocupou-se da investigação e análise da materialidade da escola primária
graduada pelo estudo da cultura material escolar (SE, MA, PR, GO e SC), reunindo
dados e tecendo reflexões considerando os anos finais do século XIX e iniciais do
século XX.  Totalizando treze categorias, a sistemática de levantamento de dados11
foi organizada nos seguintes tópicos: a) mobília; b) utensílios da escrita; c) livros e
revistas escolares; d) materiais visuais, sonoros e táteis para o ensino; e) organização/
escrituração da escola; f) prédios escolares; g) material de higiene; h) material de
limpeza; i) trabalhos dos alunos; j) indumentária; k) ornamentos; l) honrarias; m)
jogos e brinquedos. 
Com base nessas categorias, foi possível classificar os artefatos mencionados no
Dicionário em: mobília; utensílios da escrita; livros e revistas escolares; materiais
visuais, sonoros e táteis para o ensino; e prédios escolares. Os dados registrados no

10 Foram dois os projetos, ambos coordenados por Rosa Fátima de Souza, desenvolvidos sequencialmente e com apoio
financeiro do CNPq. O primeiro, iniciado em 2007, recebeu como título “Por uma teoria e uma história da escola primária
no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870 – 1950). Para se ter uma ideia geral do projeto reco-
menda-se a leitura do livro “Por uma Teoria e uma História da Escola Primária no Brasil: Investigações comparadas sobre
a escola graduada (1870 - 1930)”, organizado por Rosa Fátima de Souza Chaloba, Vera Lucia Gaspar da Silva e Elizabeth
Figueiredo de Sá (Cuiabá - MT: EduFMT, 2013). O segundo intitulado “História da Escola Primária no Brasil: investigação
em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930 – 1961)” também contou com um GT dedicado à cultura material
escolar.
11 Parte dos trabalhos desse Grupo pode ser conhecida com a leitura do livro “Cultura Material Escolar: a escola e seus arte-
fatos (MA, SP, PR, SC e RS, 1870-1925)”, organizado por Cesar Augusto Castro (São Luís - Maranhão: EDFMA - Café & Lápis;
1ª edição em 2011 e 2ª edição em 2013).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 79

Quadro 2, apresentado abaixo, permitem observar que dos vinte e três verbetes,
treze foram classificados em materiais visuais, sonoros e táteis para o ensino.

Quadro 2: Categorização dos verbetes

MATERIAIS VISUAIS,
UTENSÍLIOS DA LIVROS E REVISTAS
MOBÍLIA SONOROS E TÁTEIS PARA O PRÉDIOS ESCOLARES
ESCRITA ESCOLARES
ENSINO

Mobilia escolar Tinta, tinteiro Livros Ábaco Casa escolar

Bancos das escolas ou


Ardósias Abecedário Sala de aula
bancos-mesas

Cadernos Mapas Architetura escolar

Penas Material

Estylo Syllabador

Museu escolar

Bussola

Cartas geográficas

Compendium

Contador

Escada métrica

Esquadro

Fonte: CAMPAGNE (1886a; 1886b, 1886c).

Essa prevalência é bastante significativa em um período no qual o método


intuitivo começa a ganhar uma proporção cada vez maior dentro das salas de aula
e em legislações e impressos pedagógicos como Manuais e Dicionários de Ensino.
Conforme Vera Teresa Valdemarin (2004, p. 40)

Nas últimas décadas do século XIX é que a proposta do método de


ensino intuitivo ressurge e, com tal força, que, para Buisson, escrever a
história do desenvolvimento das lições de coisas no ensino primário de
vários países é o mesmo que escrever a história da instrução primária.

Baseada no Nouveau dictionaire, organizado pelo referido autor, a pesquisadora


afirma que as lições de coisas abarcam, pelo menos, três significados: a ideia
de apresentar um objeto concreto aos alunos; educar os cinco sentidos; usar
os fenômenos da natureza e artefatos industriais no ensino. Na argumentação
desenvolvida por Valdemarin (2004) é possível observar que a segunda metade do
século XIX apresenta, por meio de documentos, uma efervescência de discursos para
a utilização de novos materiais didáticos e métodos de ensino que substituíssem o
ensino que era considerado arcaico, por meio apenas de livros e memorizações. 
Uma das maneiras encontradas para a difusão dos novos materiais didáticos são
as chamadas exposições universais, eventos nos quais distintos países apresentavam
seus inventos, expressando suas crenças na ciência e no progresso. Nesse sentido,
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 80

Kuhlmann Junior (2001) considera que esses espaços eram reconhecidos como
pertinentes para desenvolver políticas diplomáticas, para auxiliar no crescimento
do mercado e no desenvolvimento moral dos países, assim como para a formulação
de novas metodologias educacionais. Desse modo, a partir dos investimentos aqui
realizados, é possível identificar que os Dicionários Pedagógicos contribuíram para a
circulação de ideais e materialidades que também estavam presentes nesses eventos.

Considerações finais
Para a elaboração deste trabalho levamos em consideração, inicialmente, nosso
interesse em ampliar compreensões acerca da propagação de discursos pedagógicos
na segunda metade do século XIX. Este tema foi escolhido devido sua relevância, não
só para o grupo de pesquisa em que as autoras estão inseridas, mas também para
o campo da História e Historiografia da Educação. No intuito de colaborar com a
organização de um quadro que auxilie no entendimento sobre a institucionalização
da escola e seu processo de inovação pedagógica e composição material, definimos
como principal fonte de pesquisa duas traduções portuguesas do Diccionario
Universal de Educação e Ensino (1873 e 1886), publicado originalmente na França,
por Émile Mathieu Campagne (1872).
Ao realizarmos a leitura dos verbetes disponíveis na referida fonte, intentou-se
analisar como o cenário da educação primária é apresentado pelos autores nas
diferentes versões investigadas. Chegou-se à conclusão que a versão de 1886 abarca
a instrução pública e primária de uma maneira mais detalhada: com um número
consideravelmente maior de páginas, de uma versão para outra foi possível identificar
inclusive uma mudança estrutural na forma em que são apresentados os verbetes, a
versão anteriormente citada passa a ter três volumes.
Um fato que chamou muito a nossa atenção foi o aparecimento de verbetes
associados à materialidade escolar na última versão do Dicionário, pois até então
muitos eram inexistentes tanto na versão francesa quanto na primeira tradução
publicada em Portugal. Essas questões, juntamente com outras informações presentes
neste texto, são alguns dos indícios que corroboram com nossa hipótese de que a
Lei de 2 de maio de 1878 e a circulação de ideias pedagógicas tenham influenciado
nas alterações e prescrições do Dicionário. Com a produção deste trabalho foi
possível perceber, para além das questões aqui apresentadas, que impressos
como os Dicionários Pedagógicos auxiliaram na propagação de ideias pedagógicas
e colaboraram, em certa medida, para os debates em torno da necessidade de se
escolarizar a infância de forma compulsória, realçando a materialidade que deveria
fazer parte desse projeto.

Referências
CAMPAGNE, Émile Mathieu. Diccionario Universal de Educação e Ensino. Trasladado ao
Portugues por Camillo Castello Branco e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes em
assumptos relativos a Portugal. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron. Braga:
Livraria Internacional de Eugenio Chardron. Vol. 1, 1873a.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 81

CAMPAGNE, Émile Mathieu. Diccionario Universal de Educação e Ensino. Trasladado ao


Portugues por Camillo Castello Branco e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes em
assumptos relativos a Portugal. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron. Braga:
Livraria Internacional de Eugenio Chardron. Vol. 2, 1873b.
CAMPAGNE, Émile Mathieu. Diccionario Universal de Educação e Ensino. Trasladado ao
Portugues por Camillo Castello Branco e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes
em assumptos relativos a Portugal. Nova Edição portuguesa illustrada e consideravelmente
aumentada com um crescido numero de artigos coordenados dos principaes escriptores
de pedagogia por José Nicolau Raposo Botelho. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron. Vol. 1, 1886a.
CAMPAGNE, Émile Mathieu. Diccionario Universal de Educação e Ensino. Trasladado ao
Portugues por Camillo Castello Branco e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes
em assumptos relativos a Portugal. Nova Edição portuguesa illustrada e consideravelmente
aumentada com um crescido numero de artigos coordenados dos principaes escriptores
de pedagogia por José Nicolau Raposo Botelho. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron. Vol. 2, 1886b.
CAMPAGNE, Émile Mathieu. Diccionario Universal de Educação e Ensino. Trasladado ao
Portugues por Camillo Castello Branco e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes
em assumptos relativos a Portugal. Nova Edição portuguesa illustrada e consideravelmente
aumentada com um crescido numero de artigos coordenados dos principaes escriptores
de pedagogia por José Nicolau Raposo Botelho. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron. Vol. 3, 1886c.
CASTELO BRANCO, Camilo. Advertência do traductor. In: CAMPAGNE, Émile Mathieu. Dic-
cionario Universal de Educação e Ensino. Trasladado ao Portugues por Camillo Castello
Branco e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes em assumptos relativos a Portu-
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genio Chardron. Vol. 1, 1873.
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PR, SC e RS, 1870-1925). São Luis: EDUFMA, Café & Lápis, 2011.
ESCOLANO BENITO, Agustín. Tiempos y Espacios para la Escuela: Ensayos Históricos. Ma-
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KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as ex-
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SOUZA, Rosa Fátima; SILVA, Vera Lúcia Gaspar da; SÁ, Elisabeth Figueiredo. (org.). Por uma
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XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 82

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Normais no Brasil e na França (século XIX): transferências culturais e de modelos pedagógi-
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VALDEMARIN, Vera Teresa. Estudando as lições de coisas: análise dos fundamentos filosófi-
cos do Método de Ensino Intuitivo. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. (Coleção edu-
cação contemporânea).
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

IMPRESSOS DAS ASSOCIAÇÕES DE


PROFESSORES POLONESES PARA
AS ESCOLAS ÉTNICAS NO BRASIL:
INVENTÁRIO E CARACTERIZAÇÃO
Cláudia Severo – UFRGS
Amanda Backes Kauer – UFRGS

RESUMO: A Sociedade Polônia, localizada no quarto distrito do município


de Porto Alegre, no Brasil, é uma associação civil centenária que possui acervo
histórico, bibliográfico e arquivístico, contemplando aproximadamente 9000
objetos. Em decorrência das ações empreendidas por uma equipe multidisciplinar
de pesquisadores da UFRGS nesta sociedade, desde 2017, foi elaborado inventário
e caracterização de impressos de educação que integram este acervo. Localizado
expressivo número de títulos de educação, destacam-se as publicações das
associações de professores poloneses. O movimento de inventário e caracterização
destes impressos demonstram suas potencialidades para pesquisas no campo da
História da Educação e seu ineditismo enquanto empiria para estudos sobre as
escolas étnicas polonesas do Brasil.
Palavras-chaves: Escolas Étnicas Polonesas; Associações de Professores;
Inventário de Educação; Brasil.

Introdução
A Sociedade Polônia, instituição jurídica da sociedade civil, localizada no quarto
distrito do município de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, é uma associação
centenária da imigração polonesa que possui acervo histórico, bibliográfico e
arquivístico, contemplando cerca de 9000 objetos de diversas materialidades. São
vestígios e memórias de um processo migratório pouco evidenciado na historiografia
brasileira, que reitera as contribuições culturais e práticas das imigrações alemã e
italiana para a formação histórico-cultural do sul do país, em detrimento de outras
etnias que participaram deste processo – aqui, em especial, a etnia polonesa.
Objetivando a visibilidade deste grupo étnico de imigrantes e a salvaguarda de seu
patrimônio histórico-cultural, que abrange o período do século XIX ao XXI, bem como
a promoção de pesquisas científicas sobre a imigração polonesa, suas características

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 83


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 84

e especificidades, desde 2017 são empreendidas ações de identificação, arrolamento


e conservação preventiva no acervo da Sociedade Polônia, realizadas por uma
equipe multidisciplinar de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) essas ações são contempladas pelo Termo de Cooperação Científico-
Cultural firmado entre a UFRGS e Sociedade Polônia, institucionalizado em junho de
2018 e vigente desde fins de 2017.
A imigração polonesa para o Brasil iniciou em fins do século XIX, no contexto
das ondas emigratórias dentro da Europa e para o continente americano, em uma
conjuntura particular de dependência a estados estrangeiros, visto que desde o final
do século XVII a Polônia estava ocupada pela Prússia, Rússia e Áustria, inexistindo
enquanto país independente – tornou-se independente em 1918, após o término
da Primeira Guerra Mundial. Com seus territórios ocupados e divididos, apesar de
cada região apresentar características únicas e estar sob a gerência de diferentes
nações, a população polonesa vivenciou um projeto de despolonização: o uso do
idioma polonês foi proibido em espaços públicos e documentos oficiais, incluindo
escolas primárias e secundárias, poloneses foram destituídos de cargos importantes
e o funcionalismo era destinado apenas a alemães. O número de analfabetos subiu
expressivamente durante as dominações estrangeiras, os camponeses perderam
suas propriedades e não havia possibilidades de ascensão econômica e social em
território polonês. A emigração transformou-se uma alternativa para os poloneses,
visando melhores condições de sobrevivência, desenvolvimento social e liberdade
de expressão de sua cultura. O Brasil fora um dos países que recebeu grupos de
imigrantes poloneses, majoritariamente camponeses, que se assentaram em terras
devolutas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e
Espírito Santo. O primeiro grupo de imigrantes chegou a terras brasileiras em 1870,
devido à influência do agrimensor Sebastian Saporski e do Pe. Zielinski, ambos
poloneses que se encontravam em Santa Catarina para estudar a colonização.
(WACHOWICZ, 1970; 1999)
No sul do Brasil, os poloneses se organizavam em comunidades homogêneas
formando núcleos de colonização polonesa, onde o uso do idioma polonês e a prática
de sua cultura eram basilares. A identidade étnica desses sujeitos, negada em seu
país de origem, era reafirmada e reconstruída em suas novas comunidades polono-
brasileiras, as especificidades culturais de cada região da Polônia foram suprimidas
para que a união e solidariedade prevalecessem entre os imigrantes, uma vez que
o desenvolvimento de suas terras e cultura no Brasil dependia de suas iniciativas.
Nesta perspectiva, foram três os espaços de sociabilidade mais importantes,
símbolos, nos núcleos poloneses: a pequena igreja ou capela, que se vinculava
ao forte sentimento religioso católico predominante entre os poloneses; a escola,
para instruir e transmitir os valores e tradições culturais polonesas para as crianças,
fortalecendo sua identidade étnica; e a sociedade, associações de imigrantes que
objetivavam a organização do sistema de ensino étnico polonês e promover espaços
de sociabilidade entre os poloneses através de práticas culturais, intelectuais e
desportivas.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 85

Não demorou muito entre a formação dos primeiros núcleos de colonização


polonesa no Brasil e de suas sociedades, cerca de 20 anos para a fundação da
primeira sociedade de imigrantes poloneses em Curitiba, no ano de 1890, conforme
informações do primeiro cônsul polonês no Brasil, Kazimierz Gluchowski (2005).
No Rio Grande do Sul, as primeiras associações datam de 1896, fundadas em
Porto Alegre e em Jaguari. Apesar de situarem-se em localidades distintas, tais
associações possuíam objetivos e estatutos semelhantes, pois eram formadas
por iniciativas dos imigrantes que desejavam a melhoria de seu processo
escolar, difundir suas características culturais étnicas e dialogar com seus pares,
buscando soluções para os problemas que afligiam os poloneses nas colônias e
municípios brasileiros. Do final do século XIX até a primeira metade do século XX,
diversas sociedades foram fundadas nas regiões de imigração polonesa no Brasil:
sociedades juvenis, sociedades de operários, culturais, desportivas e associações
de professores das escolas polonesas. Na década de 1920, foram fundadas duas
associações de professores poloneses em Curitiba: a União das Sociedades
Polonesas Kultura; e a União das Escolas Católicas Polonesas Oswiata. Estas que
se tornaram fundamentais para o desenvolvimento e consolidação do sistema
de ensino étnico polonês no Brasil, promovendo atividades de aperfeiçoamento
dos profissionais das escolas e a importação e publicação de materiais próprios
para a educação das crianças até 1939, quando ocorre o acirramento do projeto
de Nacionalização do Ensino empreendido pelo então presidente da república,
Getúlio Vargas, através de decretos que proibiram o funcionamento de escolas que
não utilizassem o idioma vernáculo.
Em conformidade com o processo de formação das associações de imigrantes
poloneses, a Sociedade Polônia foi fundada em 1930 em Porto Alegre, a partir da
fusão da Sociedade Águia Branca12 e da Sociedade Tadeusz Kosciuszko13, unificando
e dando continuidade às ações desenvolvidas por ambas as associações, incluindo
a manutenção de uma escola étnica que funcionava em sua sede. Em seus espaços,
a Sociedade Polônia acolhia pequenas associações de imigrantes que não possuíam
sede, cedendo seu espaço para a realização de reuniões, festividades, teatros e
apresentações folclóricas. Considerando seu processo de constituição e seus objetivos
relacionados ao sistema de ensino étnico, é possível encontrar nesta instituição um
acervo histórico formado pelas doações de particulares e, principalmente, de outras
associações de poloneses ou instituições vinculadas aos imigrantes. É indubitável
a riqueza e potencialidade das materialidades que compõem este acervo, vestígios
que oportunizam pesquisas em diversas disciplinas científicas e sobre distintas
temáticas atinentes à imigração no Brasil.
Se poucos são os estudos na historiografia nacional referentes à imigração
polonesa, quanto ao sistema de ensino étnico polonês o número é ainda menor,
em decorrência da dificuldade em encontrar documentos sobre este processo
12 Esta sociedade funcionava desde 1904 em Porto Alegre e, era uma união entre a Sociedade Zgoda, fundada em 1896, e
outra associação também denominada Águia Branca. Esta associação possuía um caráter progressista e ateísta.
13 Também fundada em Porto Alegre em 1904, a Sociedade Tadeusz Kosciuszko divergia da Sociedade Águia Branca devido
seu cunho ideológico conservador e católico.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 86

histórico singular e de compreensão do idioma polonês. Entretanto, as ações


desenvolvidas pelos pesquisadores da UFRGS na Sociedade Polônia, através do
Termo de Cooperação, possibilitaram a identificação e arrolamento de diversos
documentos impressos sobre a imigração e, principalmente, documentos de
educação publicados no exterior e no Brasil pelas associações de professores
poloneses do início do século XX. Vestígios e memórias a serem questionados e
interpretados pelos pesquisadores, formulando novas narrativas sobre a formação
histórico-cultural do Brasil.
Neste estudo, nosso objetivo é inventariar e caracterizar os documentos impressos
que contemplam a temática educação, sejam as escolas étnicas polonesas no
Brasil ou, ainda, história da educação mais amplamente. Contudo, durante nossas
ações, os olhares atentos não puderam ignorar a expressividade numérica destes
impressos e, principalmente, aqueles publicados pelas associações Kultura e
Oswiata. Por essa razão, este artigo inicialmente, irá discutir sobre o ensino étnico
polonês no Brasil e suas características para, em um segundo momento, relatar
sobre o histórico das associações de professores e suas ações na primeira metade do
século XX. Compreendendo a importância destas instituições, discorreremos acerca
dos impressos de educação encontrados no acervo histórico da Sociedade Polônia,
inventariados e caracterizados. Em desenvolvimento desde 2017, é relevante
destacar que o trabalho em acervo é infindável, novos objetos são encontrados,
novas perspectivas e ações adotadas, mas todos com o objetivo de não perder
esses vestígios e memórias nem esgotar suas potencialidades de compreensão e
interpretação.

O sistema de ensino étnico polonês


Os primeiros imigrantes poloneses chegaram ao sul do Brasil na década
de 1870, assentaram-se em terras devolutas e distantes dos centros urbanos,
com pouca assistência do governo brasileiro. Durante o processo de instalação
e deslocamentos por melhores condições de subsistência, os poloneses se
organizaram em comunidades homogêneas e realizaram diversas iniciativas visando
seu desenvolvimento econômico e social nestas terras, principalmente quanto ao
aprendizado do idioma vernáculo, pois fixados em terras longínquas e ocupadas por
diversas nacionalidades, o uso de sua língua materna era o mais comum, limitando o
diálogo com outros imigrantes, brasileiros e com os centros urbanos. A não utilização
do idioma vernáculo era problemática tanto para os imigrantes quanto para as
autoridades públicas, uma vez que era difícil a contratação de professores que
compreendessem o dialeto e linguagem utilizados nas colônias, poucos profissionais
estavam habilitados para essa função, afetando diretamente a implementação de
escolas públicas nestes espaços.
Neste sentido, uma das ações mais energéticas dos poloneses foi para a construção
e organização de escolas de ensino primário em suas colônias, conforme Gardolinski,
“[...] os imigrantes poloneses, quando se convenceram da impossibilidade de
auxílio por parte do governo, na construção de escolas ou na organização do ensino
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 87

primário, tomaram a si a solução do problema escolar.” (1977, p.17) Motivados pela


sua identidade étnica, os colonos poloneses organizavam espaços destinados à
instrução das crianças que congregava o ensino do idioma polonês, do português e
de suas práticas culturais polonesas. No final do século XIX, esses espaços poderiam
ser a casa de algum colono, a pequena capela ou uma sala anexa construída
especialmente para essa finalidade, pois a mão de obra e os recursos utilizados
para a construção do espaço escolar provinham dos próprios imigrantes poloneses
– sem subsídios do governo brasileiro ou polonês. A escolha do professor também
era decidida pelos imigrantes, “[...] eles almejavam também que o professor fosse
escolhido dentre aqueles que dominassem a língua e que fosse ao mesmo tempo do
grupo étnico.” (MALIKOSKI, 2018, p.97) Normalmente, esse professor era escolhido
dentre os próprios colonos, sendo o indivíduo com maior conhecimento na língua
polonesa e noções de matemática, uma vez que muitos desses imigrantes não
possuíam o ensino elementar completo.
Um dos primeiros espaços de ensino entre os imigrantes poloneses pode
ser caracterizado pelos momentos de leitura da Bíblia e outros textos em língua
polonesa que ocorriam nas famílias, proporcionando o aprendizado da leitura e
escrita. Posteriormente, com a construção das capelas e seus anexos, o ensino
étnico polonês passou a acontecer nestes espaços de sociabilidade, onde o professor
permaneceu utilizando textos católicos para subsidiar o ensino da língua polonesa e
o ensino religioso, devido à dificuldade em se obter materiais didáticos em idioma
polonês. Todavia, cabe destacar que em 1893 foi publicada a primeira cartilha
bilíngüe polonês-português em Poznan, na Polônia, com autoria de Jerônimo Durski,
considerado o pai das escolas étnicas no Brasil. O imigrante e professor Durski fundou
uma escola étnica na colônia de Orleans, no Paraná, em 1876, e esta permaneceu
em funcionamento até 1881. Já sua cartilha Elementarz circulou entre as colônias de
imigração polonesa e era utilizada pelos professores e alunos no sistema de ensino
étnico ainda no início do século XX. . (WACHOWICZ, 1999a) A escassez de materiais
próprios para o uso nas escolas da imigração polonesa só será solucionada a partir
da década de 1920, com a publicação de diversos títulos no Brasil pelas pequenas
tipografias e sociedades polonesas

Os materiais impressos em polonês nas pequenas tipografias da


comunidade polônica no Brasil, segundo as palavras do cônsul
Gluchowski, demonstravam «o significado da leitura na preservação do
espírito polonês» (1927, 202- 203). Seu relatório, elaborado entre 1921 e
1923 arrola para o período até 1923, a existência, no Brasil, de 145
escolas de poloneses, espalhadas pelo Paraná, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Rio de Janeiro, onde atuavam 164 professores e encontravam-
se matriculados 5988 estudantes poloneses e 242 de outras
nacionalidades. (STEPHANOU, 2018, p. 915)

Ao relatar os dados apresentados por Gluchowski, cônsul polonês no Brasil


no início do século XX, Stephanou evidencia o expressivo número de escolas,
professores e alunos que integravam o sistema de escolarização étnica polonesa
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 88

até 1923, demonstrando que apesar de sua finalidade de manter e estimular a


identidade étnica polonesa, havia também a presença de estudantes pertencentes a
outras etnias. Entretanto, se nas primeiras décadas da imigração polonesa, o ensino
étnico ocorria em casa, na pequena capela ou em salas anexas, no início do século XX
esse sistema de ensino começará a consolidar-se através da fundação de sociedades
culturais polonesas em diversas localidades.
As primeiras sociedades de imigrantes poloneses foram fundadas na década de
1890, nos municípios de Curitiba e Porto Alegre – capitais do estado do Paraná e
Rio Grande do Sul respectivamente –, e sua expansão para as colônias localizadas
no interior dos estados ocorreu rapidamente, multiplicando-se a organização e
fundação desse tipo de associação até 1930. O principal objetivo dessas organizações
era a manutenção e incentivo ao desenvolvimento da escolarização dos poloneses
no Brasil, por meio da escola-sociedade:

[...] que se constituía em uma sociedade recreativa com o objetivo de


oferecer um espaço associativo à comunidade, visando à
comemoração de datas significativas, à organização de bailes, à
recepção de autoridades quando em visita à comunidade e à reunião
da juventude local. Tal iniciativa, como sociedade recreativa,
oportunizada a reunião dos chefes de família do núcleo colonial e a
arrecadação de fundos, constituindo na entidade mantenedora
tanto da escola quanto do docente que ali desempenhasse a sua
função. (LUPORINI, 2011, p. 173)

Essas instituições foram essenciais para o aprimoramento do ensino étnico


polonês, visto que edificações foram construídas para sediarem as escolas nas
comunidades homogêneas e o professor passou a receber remuneração mais
adequada a sua função, podendo dedicar-se com maior afinco à educação das
crianças. Antes da fundação dessas sociedades culturais e recreativas, os professores
recebiam um pequeno auxílio dos imigrantes da colônia, insuficiente para sua
subsistência e por essa razão, realizavam outras atividades para complementar seus
vencimentos. Situação que irá ser alterada a partir da consolidação do sistema de
educação polonês com a organização dessas sociedades que, além de mantenedoras
das escolas, também objetivavam a constituição de bibliotecas fixas e itinerantes
para difusão de obras em língua polonesa. No decorrer de 1920, foram constituídas
as primeiras escolas étnicas religiosas no Rio Grande do Sul e Paraná, mantidas
pelas congregações religiosas e que funcionaram simultaneamente com as escolas-
sociedades. A diferença entre essas instituições estava na cobrança de mensalidade
dos estudantes, realizada nas escolas religiosas.
É possível perceber que do final do século XIX ao início do XX, haverá a formação
e consolidação do sistema de escolarização étnico polonês que, segundo palavras de
Luporini (2011), apresentou quatro tipos de instituições durante seu desenvolvimento:
as escolas comunitárias, fundadas a partir das iniciativas particulares dos colonos
logo após sua fixação em terras brasileiras; as escolas-sociedades, vinculadas às
sociedades culturais e recreativas que as mantinham e organizavam; as escolas
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 89

étnicas religiosas, mantidas pelas congregações religiosas que atuavam nos estados
do Sul do Brasil, sendo as principais a Missão de São Vicente de Paulo, Irmãs de
Caridade de São Vicente de Paula e Irmãs da Sagrada Família; e, por fim, as escolas
subvencionadas que surgem na segunda década do século XX, quando os professores
são pagos pelos governos municipais ou estaduais devido à presença do ensino de
língua portuguesa em seu currículo.
No início da formação desse sistema de ensino étnico polonês, as aulas
nas escolas comunitárias eram de noções elementares da língua polonesa,
matemática e ensino religioso, sendo subsidiadas pela utilização de textos bíblicos
e histórias de santos. Em decorrência de sua consolidação, desenvolvimento
e constituição de novas instituições escolares, as temáticas das aulas foram
ampliadas para o ensino do português como língua estrangeira, história do
Brasil, história e literatura polonesa, ciências, desenho, caligrafia e ginástica.
Relevante destacar que essas instituições escolares presentes nos estados do
sul e sudeste brasileiro, eram geralmente de ensino primário, do primeiro ao
quarto ano, e foram poucas iniciativas de escolas étnicas polonesas de ensino
secundário. Os materiais didáticos utilizados pelos professores e estudantes
destas instituições escolares eram escassos até a década de 1920, quando o
sistema de educação étnico receberá novos subsídios do governo polonês e de
associações de professores poloneses fundadas em Curitiba, fundamentais para
a qualificação dos professores e organização e publicação de obras didáticas no
Brasil. A exceção desta conjuntura estavam apenas às escolas étnicas religiosas
que, desde sua fundação, já contavam com materiais específicos para o ensino
importados de países como Estados Unidos e Polônia. Outro aspecto relevante
acerca do processo de ensino étnico polonês é que as aulas eram, em sua maioria,
ministradas por professores homens.
O número de escolas étnicas polonesas aumentará exponencialmente durante as
primeiras décadas do século XX, chegando a existir 346 escolas em funcionamento
nos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do sul em 1937, conforme
apontado por Luporini (2011, p. 187), momento em que estas instituições começam
a ser fechadas devido ao Decreto de Nacionalização de Ensino do presidente Getúlio
Vargas.

A União das Sociedades Polonesas Kultura e a


União das Escolas Católicas Polonesas Oswiata
Com o ressurgimento da Polônia independente, ocorreu a reestruturação dos
processos culturais e dentre eles o ensino étnico. A escolaridade era vista como
uma forma para a manutenção da polonidade na colônia e era necessário ajustar
problemas como a baixa remuneração dos professores e a carência de formação
docente. Uma entidade chamada União dos Democratas Poloneses, organizou em
setembro de 1920 em Curitiba o primeiro congresso no qual decidiram constituir uma
instituição educativa-cultural. Em março de 1921, oficializaram através da reunião de
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 90

delegados dos distritos e de diversas sociedades a “União das Sociedades Polonesas


Kultura”. Os objetivos da Kultura, segundo Wachowicz (2002, p. 54) eram os seguintes: 
a. Centralizar todas as Escolas-Sociedades; 
b. Fornecer às escolas manuais e material didático necessário; 
c. Legalizar perante o governo do Estado as Escolas-Sociedades existentes; 
d. Aperfeiçoamento da cultura geral e didática dos professores; 
e. Organizar bibliotecas nas escolas para os alunos e para os professores; 
f. Conseguir melhores salários para os professores; 
g. Organizar sociedades juvenis; 
h. Promover cursos pós-escolares, aulas noturnas, círculos amadores.

As ações da Kultura tiveram uma abrangência nacional, por meio da associação


de diversos professores, em abril de 1921 já haviam filiadas a instituição sessenta
e três sociedades educativas. Suas ações tinham um cunho laico e progressista,
não incluíam a obrigatoriedade do ensino religioso, o que gerou conflitos e uma
imagem ao Clero Curitibano de uma organização atea e socialista. Em decorrência
de constantes disputas ideológicas em como deveria organizado o ensino étnico,
em dezembro de 1921 ocorre a fundação da Associação das Sociedades e Escolas
Católicas Polonesas Oswiata, contando com 39 escolas filiadas. Seus objetivos eram
os mesmos da Kultura, todavia com atenção ao viés religioso. 
Ambas as associações promoviam cursos de formação de professores,
disponibilizavam livros editados em polonês em Curitiba, livros trazidos por outras
congregações e livros editados na polônia. O processo de escolarização étnica foi
muito beneficiado por ambas iniciativas das associações de professores, promoveram
um funcionamento das escolas durante todo o ano letivo, bem como uma maior
frequência dos alunos.

Os cursos realizados todos os anos, a supervisão e a inspeção, as


bibliotecas autoeducativas melhoram o nível profissional dos
professores, e finalmente certo significado e posição social dos
professores possibilita-lhes o trabalho comunitário, confere-lhes
alguma autoridade e faz deles os líderes tão necessários nas colônias
(GLUCHOWSKI, 2005, p.181)

A competitividade entre as instituições era benéfica para a condução dos


trabalhos, garantia uma boa produtividade. No entanto em 1930, sob a condução
do consulado polonês em Curitiba, foi fundado a Centrainy Zwiazek Polaków - CPZ -
ou União Central Polonesa, seu principal objetivo era eliminar as divergências entre
Kultura e Oswiata para unificar ações em prol da escolarização. Destarte, a Oswiata
permaneceu na CZP por apenas dois anos, retomando suas atividades de forma
autônoma. 
O ensino étnico dos imigrantes poloneses continuou a crescer, então organizado
pela CZP e Oswiata, até 1937, quando atingiu o seu apogeu. A atividade educativa
teve um considerável desenvolvimento, com a abertura de novas escolas primárias
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 91

e escolas para formação de professores, foram editados livros didáticos e todas


essas iniciativas refletiram em uma melhora nos processos de ensino das crianças
polonesas. No ano seguinte, sob o Decreto-lei 406, de Nacionalização do Ensino, fora
inviabilizado o ensino étnico no país, uma vez que o idioma falado e escrito deveria
ser o vernáculo, bem como o dos livros. Esse decreto foi reforçado em 1939, impondo
maiores restrições, como a proibição do uso de qualquer idioma exceto o português,
em aglomerações ou ambientes públicos. Sob protestos, as escolas e agremiações
foram compulsoriamente fechadas.

Os impressos de educação no acervo histórico da


Sociedade Polônia: inventário e caracterização
Em desenvolvimento desde 2017, uma equipe multidisciplinar de pesquisadores
da UFRGS está empreendendo ações de inventário, caracterização, elaboração de
quadros descritivos e pesquisas acerca de diferentes temáticas no acervo histórico da
Sociedade Polônia em Porto Alegre. Em acervo composto de diversas materialidades,
somam-se aproximadamente 9000 objetos entre documentos arquivísticos,
bibliográficos, históricos e tridimensionais. Atividades contempladas pelo Termo
de Cooperação Cientifico-Cultural entre UFRGS e Sociedade Polônia, que permitem
identificar indícios e vestígios de um processo histórico-cultural pouco visado pelos
pesquisadores brasileiros, o arquivo bibliográfico localizado nesta instituição é como
um mar de potencialidades para pesquisas em diversas disciplinas científicas e com
empiria inédita em estudos sobre a imigração polonesa e história da educação no
Brasil.
Instigadas pelas presenças e percursos existentes neste acervo, os primeiros
movimentos deste estudo foram de localização e identificação de impressos que
contivessem informações acerca das escolas étnicas polonesas. Entretanto, durante
esses movimentos, foi possível identificar diversas obras sobre educação de
forma mais ampla que discorrem sobre: história da educação na Polônia, história
da educação étnica polonesa na América e Brasil, manuais didáticos, cartilhas de
alfabetização, imprensa da educação, manuais de ensino para professores, literatura
infanto-juvenil, dentre outras tipologias documentais. Imersas no expressivo
número de impressos localizados, fez-se necessária uma delimitação de empiria a
ser utilizada neste estudo.
Conforme descrito por Arlette Farge, em sua obra O sabor do arquivo (2017)¸

A tensão se organiza – em geral de modo conflituoso – entre a paixão de


recolhê-lo inteiro, de oferecê-lo integralmente à leitura, de jogar com
seu lado espetacular e com seu conteúdo ilimitado, e a razão, que exige
que ele seja habilmente questionado para adquirir sentido. É entre
paixão e razão que se decide escrever a história a partir dele. (FARGE,
2017, p.21)

A história das escolas étnicas polonesas no Brasil é uma temática recente na


historiografia brasileira, devido à dificuldade de encontrar fragmentos e vestígios
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 92

destas iniciativas em acervos no Brasil e compreensão do idioma polonês, majoritário


na documentação existente. Nos estudos já empreendidos sobre imigração polonesa,
diversos documentos foram citados enquanto produtos de ações de associações ou
indivíduos referências no processo de imigração para o Brasil, mas não analisados
enquanto empiria relevante para a compreensão do processo de ensino étnico
polonês.
Stephanou (2018), ao discorrer acerca dos objetos que compõem o acervo da
Sociedade Polônia, declara que no movimento de identificação dos títulos integrantes
a ele, foram localizados impressos da tipologia almanaques que apresentam pistas
acerca do processo de escolarização dos poloneses no Brasil. No caso do Kalendarz
Ludu, periódico do gênero almanaque que foi publicado em Curitiba, entre 1916 e
1972, Stephanou demonstra que

Do conjunto de vinte e quatro edições localizadas na SocPol, que


abrangem o período 1939 a 1972, constatamos a recorrência do tema da
instrução dos poloneses e suas escolas étnicas. A partir daí, foram
listadas essas variadas referências à instrução/ educação identificadas
no Kalendarz Ludu, assim como reunidas com aquelas identificadas em
outros almanaques, como o Kalendarz Switu (Curitiba, PR, 1929), o
Kalendarz Polski (Porto Alegre, RS, 1898 e 1901), o Kalendarz Polski Ludu
i Przyjaciela Rodziny (Porto Alegre, RS, 1928), o Polski Kalendarz Rio-
Grandenski (Porto Alegre, RS, 1930), o Kalendarz Gazety Odrodzenia
(Porto Alegre, RS, 1932),[...]. (STEPHANOU, 2018, p.917)

Apesar de constatadas as pitas deste processo de ensino étnico nos almanaques


encontrados na Sociedade Polônia, operou-se um movimento de identificação de
repertório documental específico acerca da temática educação na Sociedade Polônia,
elaborando-se um inventário em quadro descritivo dos impressos de educação,
possibilitando a sua caracterização e evidenciando suas potencialidades enquanto
fragmentos de um processo histórico pouco visibilizado pela história da educação. A
importância de um inventário contendo informações sobre os objetos que compõem
um acervo é explicitada por Padilha, “O arrolamento/inventário é fundamental para
que eles [profissionais de museus] tenham conhecimento geral sobre seu acervo e
contribui para a segurança do acervo museológico.” (PADILHA, 2014, p.41) Durante
esta atividade, a expressividade de exemplares de impressos de educação localizados
surpreendeu, constatando-se a presença de diversas tipologias documentais e, em
virtude disto, optou-se por adotar a classificação por gêneros utilizada pelo LIVRES,
Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP), por ser um léxico mais usual entre os pesquisadores
do campo da história da educação no Brasil. Dentre os gêneros, comparecem: livro
do professor, manual didático, cartilha de alfabetização da língua polonesa, livros de
consulta, literatura infantil e juvenil e imprensa pedagógica.
A tabela 1 seguir explicita o número de exemplares e títulos de impressos de
educação identificados e localizados até o momento no acervo histórico da Sociedade
Polônia.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 93

Tabela 1: Quadro de gêneros, exemplares e títulos de impressos de educação da


Sociedade Polônia.

Gênero Exemplares Títulos


Literatura Infanto-Juvenil 256 210
Literatura Escolar 42 29
Cartilha de Alfabetização 49 11
Caderno de Atividades 8 6
Manuais Didáticos 110 102
Gramáticas 57 52
Fundamentos da Educação 17 16
Imprensa da Educação 42 3
Livros de Consulta- Atlas 5 5
Ensino Superior 8 3
Jogo Paradidático 8 1
TOTAL 602 438

Fonte: Tabela elaborada pelas autoras.

Face à variedade de características e conteúdos dos impressos, o quadro descritivo


elaborado pelas pesquisadoras contém informações acerca do ano de edição, país de
impressão, editora, número de páginas, dimensões, estado de conservação da obra,
presença de carimbos de bibliotecas ou acervos, marcas de uso. Conforme a tabela
anterior, há títulos que se repetem, mas cada impresso é singular devido às suas
marcas do tempo – biodeteriorização, manchas de oxidação, ferrugem, dentre outras
– e as de leitores – grifos, anotações, dedicatórias ou erratas manuscritas. Dentre os
títulos identificados, destacamos os impressos publicados em Curitiba, durante a
primeira metade do século XX, pelas Associações Kultura e Oswiata, totalizando sete
títulos e catorze exemplares até o momento.
Publicadas pela Oswiata, em Curitiba, foram localizados os seguintes títulos,
todos traduções nossas: Krótka Gramatyka Polska i Cwiczenia Jezykowe - Wedlug
Marji Dzierzanowskiej – (Gramática rápida de polonês e exercícios da língua (de
acordo com Mary Dzierzanowska), publicada em 1924, constando ser o número 29
de uma coleção, é o impresso das associações de professores mais antigo localizado
neste acervo. Foram localizados dois exemplares de 1924 e outros seis, de mesmo
título, publicados em 1936. Este impresso apresenta 66 páginas na edição de 1924
e 96, na de 1936, sendo classificado neste inventário como gramática; de mesmo
gênero, a Gramatyka Jezyka Portugalskiego – (Gramática da língua portuguesa com
exercícios para a escola e alunos autodidatas), foi publicada em 1931, sob autoria do
padre Józef Góral, contém 238 páginas e foram encontrados dois exemplares. Os dois
títulos são bilíngues, apresentando conteúdo em língua polonesa e em português.
Já o impresso Klucz do Cwiczen i Zadan - (Chave, exercícios e tarefas do português ao
polonês), publicada em 1932, apresenta 28 páginas e seu conteúdo é integralmente
em português, com exercícios para prática do idioma vernáculo.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 94

Publicados pela Kultura, foram identificados três exemplares do almanaque


Kultura, publicados em Curitiba no ano de 1933, mas por ser uma publicação mensal,
as obras localizadas na Sociedade Polônia correspondem aos meses de março,
abril e junho, apresentam 34 páginas os dois primeiros exemplares e o último, 32
páginas. Em seu subtítulo, consta ser uma publicação mensal dedicada às questões
culturais, educacionais, sócio-literárias, economia e comércio, sendo seu conteúdo
inteiramente em polonês.
 Os impressos de educação publicados pelas associações Kultura e Oswiata
supracitados não constam nos estudos empreendidos acerca das escolas étnicas
polonesas como empiria analisada, são apenas citados a título de exemplificação
da atividade tipográfica das sociedades de imigrantes poloneses. São documentos
que permitem vislumbrar temáticas recorrentes nas aulas das instituições escolares
étnicas, os processos de aprendizagem do idioma vernáculo e as marcas de leitores
existentes nestes impressos, bem como a sua circulação através dos carimbos e
números de registros de diversos acervos.

Considerações Finais
Foram expressivas as contribuições para a educação das agremiações de
professores, inicialmente a Kultura e a Oswiata e após alguns anos a CZP - União
Central dos Poloneses no Brasil. Dentre suas ações está a inauguração de escolas,
oferta de bibliotecas itinerantes, formação de professores, produção de diversos
impressos. A partir de 1938, a  expressividade dessas associações foi silenciada devido
à vigência do Decreto de Nacionalização do Ensino de Getúlio Vargas, reduzindo tais
iniciativas de forma drástica.
Até o momento foram identificadas informações sobre essas agremiações
educativas em diferentes títulos de almanaques em polonês impressos no Brasil,
nos próprios documentos impressos por essas duas instituições, em relatórios de
imigração e em documentos consulares. Muitos desses documentos não constam
como empiria das pesquisas empreendidas.
Considerando o levantamento geral da existência de mais de 9 mil exemplares
de documentos impressos no acervo da Sociedade Polônia, a pesquisa não esgotou
todos os documentos impressos por estas agremiações de professores, o que
demonstra as potencialidades do acervo. Este estudo demonstra a diversidade e
importância dos indícios nas documentações das associações de professores para
a história da educação, tais como o currículo escolar, a questão didática, o ensino
bilíngue, a seriação e sobre a necessidade de aprender o português para vida
cotidiana no Brasil.
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Referências
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: EDUSP, 2017.
GARDOLINSKI, Edmundo. Escolas da colonização polonesa no Rio Grande do Sul. Porto Ale-
gre: EST; Caxias do Sul: UCS, 1977.
GLUCHOWSKI, Kazimierzr. Os poloneses no Brasil. Porto Alegre: Rodycz & Ordakowski, 2005.
LUPORINI, Teresa Jussara. Educação Polonesa: os fundamentos da educação escolar étnica
revisitados. In: Luchese, Terciane Ângela; KREUTZ, Lúcio (Org.) . Imigração e Educação no
Brasil: histórias, práticas e processos escolares. 1ª. ed. Santa Maria, RS: Editora da UFSM,
2011.
MALIKOSKI, Adriano. Escolas étnicas polonesas no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: EDUCS,
2018.
PADILHA, Renata Cardozo. Documentação Museológica e Gestão de Acervo. Florianópolis:
Fcc, 2014. 71 p. (Coleção Estudos Museológicos v.2).
STEPHANOU, Maria. Guardados ao acaso: vestígios de escolas de imigrantes poloneses no
Acervo histórico da Sociedade Polônia (Porto Alegre, RS, Brasil, 1898-1938). In: VIII Jor-
nadas Científicas de la SEPHE; I Congresso Nazionale della SIPSE, 2018, Palma de Maiorca,
Espanha. La Práctica Educativa. Historia, Memoria y Patrimonio. Salamanca, Espanha: Fahr-
enHouse, 2018. v. 1. p. 911-920.
WACHOWICZ, Ruy Christóvam. A conjuntura emigratória polonesa no século XIX. In Anais
da comunidade brasileira - polonesa. Curitiba: julho de 1970.
______. Aspectos da imigração polonesa no Brasil. Projeções: Revista de estudos polo-
no-brasileiros, Curitiba, v. 1, n. 1, p.10-31, 1999.
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no-brasileiros, Curitiba, v. 1, n. 1, p.79-82, 1999a.
______. As escolas da colonização polonesa no Brasil. Curitiba, Champagnat, 2002.
ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

MATERIAIS DE ESCRITURAÇÃO ESCOLAR


NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX:
UM MUNDO MATERIAL DO FAZER DOCENTE
Franciele F. França - UFPR
Gizele de Souza - UFPR

“O professor cuidadoso deverá ter sempre em dia a sua escrituração.


Forma ela uma parte importante do seu emprego, pois ali se hão de
colher dados estatísticos por onde se avalie o estado de adiantamento
literário de qualquer país.”14

Após ter assumido seu lugar na escola do núcleo Zacharias em 1888, a professora
Rosa Nogueira enviou uma comunicação ao Inspetor Geral solicitando que lhe fosse
providenciado os livros de matrículas e de termos de visita, já que sua antecessora não
havia lhe entregado os antigos (NOGUEIRA, Rosa. 1888, AP. 830, p. 100).
Já em dezembro de 1879, a professora Maria Julia da Costa Gomes, da escola
feminina de Antonina, preparava seu relatório referente ao exercício do ano findo
para enviar ao Inspetor Geral, por intermédio do inspetor paroquial. No primeiro
parágrafo do relatório, Maria Julia escrevia estar cumprindo um dever estatuído pelo
Regulamento de 1876, o qual afirmava fazer sem “aquela aptidão que um tão magno
assunto requer” (GOMES, Maria Julia da Costa, 1879, AP. 578, p. 32).
Durante a segunda metade do século XIX, no Império brasileiro, exercer o magistério
primário implicava, afora ensinar, organizar e administrar o funcionamento de uma
escola. Um período demarcado, não só pelo processo de constituição da instrução
pública primária, mas também, por uma escola que se configurava no espaço de uma
sala, em que todos os alunos, distribuídos e organizados em classes, ocupavam o
mesmo ambiente e um único professor era responsável não só por dirigir e organizá-
la, como também limpar, equipar e manter. Tarefa que para ser cumprida pelo
professor, necessitava de distintos materiais.
Na busca por indícios de práticas docentes atreladas à materialidade escolar
nesse período, observa-se a existência de um mundo material da educação primária
e, ao analisar as fontes disponíveis, percebe-se que algumas especificidades
caracterizaram relações singulares entre os professores e esse universo material,
14 Manual - Elementos de Pedagogia: para servirem de guia aos candidatos ao magistério primário coordenado por José
Maria da Graça Affreixo e Henrique Freire. 4ª edição, Lisboa, Livraria Ferreira, Lisboa e Cia., 1875, p. 24.

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 96


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 97

configurando, portanto, um mundo material específico da escola (objetos associados


à prática de ensino - os materiais “essenciais ao ensino” - cadernos, livros, manuais,
lápis, penas, lousas, papel, entre outros) e um mundo material específico do fazer
docente (concernente à pratica docente que se ocupa da organização da escola e do
exercício do magistério).
Para este estudo a lente se aproxima do conjunto material relacionado à prática
docente que se ocupa da organização da escola e do ofício docente, com o intuito de
analisar e evidenciar estes “distintos materiais” - que foram solicitados, mencionados
ou especificados nas comunicações dos sujeitos da escola oitocentista denominados
como livros de matrícula, livros de termos de visita, mapas escolares e relatórios -
categorizados como materiais de escrituração. Itens inseridos no fazer diário dos
professores de primeiras letras, que podem ser considerados como instrumentos de
um ordenamento docente que integraram um conjunto de objetos que compuseram
a escola primária e que influíram em sua sistematização da administração interna,
abarcando utensílios de controle do tempo, de disciplinamento dos alunos, de
estruturação e coordenação da escola e de ordenação dos professores, além de
contribuírem na conformação de um repertório de saberes e fazeres docentes.
Diante desta perspectiva, evidencia-se que os documentos aqui em análise são
componentes de três ordens distintas, mas complementares entre si, relacionadas à
instrução: organização escolar, escrituração escolar e sujeitos da escola.
Para tanto, por meio de “histórias que contam” os professores sobre determinados
artefatos, objetiva-se destacar qual o sentido atribuído a estes na prática docente, pois
compreende-se que é (também) no manuseio dos objetos que os professores traduzem
seus saberes fazendo uso do seu acervo empírico (ESCOLANO BENITO, 2017).
Segundo a definição encontrada em dicionários consultados15, “escrituração”
significa “a ação de escriturar”16, que por sua vez significa escrever, anotar, deixar
impressos registros de uma “contabilidade” (que em nosso caso é escolar); é também
o conjunto dos livros destinados para esse “lançamento”. Portanto, a partir destes
significados, “escrituração” é tida aqui tanto como uma categoria de determinado
conjunto material, como também uma prática docente relacionada à escrita (prática
escriturística). Ou seja, é tanto o que reúne de material quanto o que é relativo a este.
Cynthia Greive Veiga (2005) e Diana Vidal (2008) tratam dessa “produção
documental”, cada uma a seu modo, como um resultado do cenário social e cultural da
época em que foi modelada: Veiga (2005, p.78) denomina como parte de um “projeto
escriturístico da nova sociedade imaginada cuja história estava em processo de
registro” no Império Brasileiro; Vidal (2008, p. 75) assinala que se trata de “uma febre
estatística” que decorre de um movimento concebido na Europa, entre os séculos
XVIII e XIX, caracterizado como uma política de controle e produção de informações
para e pelo estado.

15 - Dicionário da Língua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832. Aulete Digital: http://
www.aulete.com.br.
16 Foram consultados os verbetes “Escrituração” e “Escriturar” por serem complementares.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 98

Diana Vidal (2008) atenta para o fato de que a prática estatística é essencialmente
uma prática escriturística.

E como tal, constituem-se em atividade concreta que ‘consiste em


construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi
previamente isolado’ (Certeau, 1994, p. 225). Nesse sentido, a escrita
possui como alvo uma eficácia social. Transforma a página em branco
em um lugar de produção para o sujeito, cujas marcas podem subsistir
ao tempo. Constrói um texto, que articula simbolicamente práticas
heterogêneas de uma sociedade, exibindo-se como linearidade, sistema
e homogeneidade. E permite acumular o passado, fabricando o
presente. (VIDAL, 2008, p. 47, grifos no original).

Já Veiga (2005) demarca que houve um projeto escriturístico no Brasil no decorrer


do século XIX, do qual a instrução também fizera parte produzindo uma diversidade
de documentos para e pela escola, e é para essa diversidade documental que a autora
se volta com o intuito de identificar se nesta consta uma infância e de que forma ela
aparece. A autora trata a documentação, que se destina à instrução ou que provém
das escolas e das famílias, como “instrumentos escriturísticos” sob a perspectiva
de Michel de Certeau17. Segundo Veiga (2005, p. 92), “na perspectiva desse autor os
instrumentos são os operadores da escritura” e, no caso específico do qual trata,
como “produção de dados quantitativos e qualitativos, esses se apresentam como
a produção da realidade”. Em sua abordagem, a autora separa os documentos
em três categorias: a legislação é classificada como “normatização”; os relatórios
de delegados literários, de inspetores, de presidentes da província, os ofícios e
correspondências diversas compõem o grupo “relatos”; enquanto que os mapas da
população, mapas de frequência, listas de crianças em idades de frequentar a escola,
são do tipo “instrumentos de verificação” (VEIGA, 2005, p. 78).
Ao analisar as comunicações enviadas pelos professores e as intercambiadas entre
os inspetores e presidentes disponíveis no Arquivo Público paranaense, percebe-se
que, assim como demarca Veiga (2005), a circularidade de informações encontradas
nessa documentação tinha por objetivo central atender um cumprimento legal.
Deste modo, não se pode desconsiderar que esta materialidade está vinculada
diretamente aos deveres dos professores; foram pautados nesse “atendimento” que
tais sujeitos fizeram as suas solicitações, justificativas e exigências. Por se tratar de
um dever que se enuncia principalmente pela legislação, dirigiu-se o olhar para essa
documentação com o objetivo de identificar de que maneira esses deveres e direitos
foram delimitados.
Somente os Regulamentos de 1871 e 1874 determinavam, especificamente, que
houvesse em cada escola os livros necessários para a matrícula, frequência, inventário
de moveis, exames e termos de visita; o Regulamento de 1857 estabelecia apenas
a necessidade do livro de matrículas; já os outros Regulamentos (1876 e 1892) não
foram tão distintivos ao abordar o tema. No entanto, não ser específico não significa

17 Veiga (2005) toma por referência as obras “A escrita da História” (1982) e “A invenção do cotidiano” (1999).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 99

que os regulamentos não deliberassem sobre esses documentos; indicados de forma


indireta é possível identificá-los ao longo do texto da lei.
Neste olhar para a legislação, na busca por esse tema, destacam-se as palavras que
compõem um repertório de deveres/obrigações e/ou aludem à regulação de algo ou
alguém, e estas levam a concluir que a relação que os professores estabeleceram
com os materiais de escrituração se baseou necessariamente em uma obrigação a se
cumprir, uma vez que os mesmos tinham seu uso definido por uma imposição legal. E
não fazer uso deles implicava em consequências punitivas à permanência do professor
e à regularidade da escola, pois, como elementos de uma produção documental da
escola, eram registros que informavam, regulavam, e organizavam o cotidiano e o
“movimento” escolar - instrumentos de verificação (VEIGA, 2005). Entretanto, mais do
que discernir que relação foi essa, interessa saber como os professores interagiram
com esse material e junto deles configuraram uma identidade de trabalho, assim
como propõem Lawn e Grosvenor (2001). Nesse sentido, junto desses autores, é
possível inferir que, acercar-se à dimensão material da escola, em sua variedade,
significa aproximar-se de práticas docentes (de trabalho e culturas), e no movimento
de identificação e análise destas perceber características e particularidades do ofício
de professor primário durante a segunda metade do século XIX.
Diante disso, ao operar com os conceitos de cultura escolar18 e cultura material
escolar19, para exemplificar algumas experiências que foram vividas pelos professores
primários, entende-se que esses estabelecem uma relação dialógica com uma cultura
material escolar ao lidar com a materialidade da escola em seu exercício e que, junto
e a partir desta, produz e legitima práticas e uma cultura escolar que compõem o
ofício docente.
Com a concepção de que os professores deveriam cumprir um protocolo tanto
técnico quanto de redação na produção desses documentos, os regulamentos
repassavam aos inspetores a incumbência de preparar um modelo de escrituração
dos livros obrigatórios para que os professores seguissem. No entanto, não foi
encontrado entre as fontes consultadas indicações de execução de um padrão
desenvolvido pelos inspetores. Porém, não é possível afirmar sobre a não circulação
de um modelo entre os professores, feito ou não por inspetores, pois a estrutura dos
documentos é semelhante, diferindo apenas em algum aspecto ou outro.
Vera Lucia Gaspar da Silva (2004) ao discutir como os professores deram sentido
à profissão por meio da apropriação do discurso presente na legislação vigente no
período entre fins do século XIX e início do XX, afirma que alguns destes a assumiram
tanto como um instrumento ordenador como também protetor de suas práticas.
Além disso, a autora, aponta que neste “jogo” entre exigências (lei) e cumprimentos
(práticas) os professores não foram passivos em relação às deliberações, neste
certame houve resistências, recusas, aceitações e ressignificações, e foi junto desses
movimentos que os professores foram moldando e dando sentido a sua profissão.
Embora em um contexto diferente do tratado por Gaspar da Silva (2004), é com esta

18 ESCOLANO BENITO, 2000.


19 PERES; SOUZA, 2011.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 100

lente que olhamos para a relação dos professores com os materiais de escrituração,
na compreensão de que, mesmo configurando-se como um dever, esta é entremeada
pela apropriação que os professores fazem (fizeram) das normas.

Um mundo material do fazer docente na província paranaense


Iniciaremos pelos relatórios dos professores, documentos determinados por lei
que possuíam pelo menos três funções aparentes: prover o inspetor de informações
sobre o ensino e organização de uma determinada escola; como parte de uma “rede”
de relatos20, destinava-se a compor com informações gerais/estatísticas os relatórios
de seus superiores; registro complementar aos demais documentos da escola como
os mapas escolares, orçamentos e listagem de alunos.
Na tentativa de organizar a estrutura da instrução pública no Paraná, no decurso
de sua gestão como Inspetor Geral, Joaquim Ignácio Silveira da Mota elaborou
instruções e regulamentos, no decorrer dos anos de 1856 e 1857, que visaram ordenar
o ensino nas escolas, os espaços escolares, os materiais e móveis necessários, os
sujeitos e suas funções no cenário da instrução. Foi a partir deste conjunto legal que
os professores primários começaram a elaborar e enviar relatórios anuais sobre a
escola em que lecionavam.

Art. 55. Compete aos professores:

(...)

3º – Remeter com o orçamento ao inspetor do distrito um relatório sobre


o estado da sua escola, vantagens, ou inconvenientes, que tem
encontrado nos métodos de ensino, grau de progresso dos alunos,
causas do retardamento, se todos os meninos do lugar concorrem à
escola, ou não, se a causa provém de existirem diversas escolas, ou se
por desleixo, ou qualquer outra razão da parte das famílias. A este
relatório o professor unirá as considerações que julgar convenientes
acerca de providências a tomar e que mais compatíveis sejam com as
circunstâncias peculiares de sua localidade, e prestará todas as
informações que o Inspetor Geral julgar conveniente exigir em tais
relatórios. (PARANÁ, 1857, grifos meus).

Seu destinatário era o inspetor de distrito, porém, na falta deste, o documento


poderia ser remetido diretamente ao Inspetor Geral ao fim do ano letivo. Normalmente
eram enviados entre os meses de novembro e dezembro de cada ano21, mas é
20 Para mais informações sobre a “rede” de relatos na organização da instrução pública paranaense, conferir: BARBOSA, E.;
FRANÇA, F. Entre a determinação e a prática: a história da educação primária impressa nos relatórios de professores e
inspetores escolares paranaenses. Anais do VII CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2013, Cuiabá/MT.
21 Pela organização do acervo do Arquivo Público Paranaense, os relatórios dos professores enviados à Inspetoria compõem
os livros denominados APs (como mencionado no item Introdução deste trabalho), os quais são organizados por ano e
seguem, relativamente, uma sequência mensal. Deste modo, é possível encontrar certa concentração de relatórios de
professores entre os primeiros e últimos números dos livros que compõem um ano (entre os anos de 1854 e 1930). No
entanto, é preciso salientar que, embora a quantidade de relatórios seja numerosa, não são todos os relatórios de todos
os professores da província/estado que estão guardados no arquivo público, por variados motivos - porque foram extra-
viados, perdidos ou mesmo excluídos (naquele momento ou no decorrer do tempo).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 101

possível encontrar alguns datados do mês de janeiro ou ainda relatos trimensais


como complementos dos mapas escolares.
Até a publicação do Regulamento de 1857, no Paraná, a escrita dos relatórios
anuais por parte dos professores primários ainda não era uma obrigação a se cumprir,
outros tipos de documentos assumiam a função de informar sobre determinada
escola e/ou professor ao governo; os relatórios dos inspetores ou os mapas escolares
de frequência, por exemplo. Até então, os relatórios eram atribuições dos inspetores
escolares que munidos das informações colhidas em suas visitas às escolas
repassavam estas ao Inspetor Geral que, por sua vez, as organizava em um relatório
geral22 a ser apresentado ao Presidente da província.
Escrever o relatório era uma tarefa que levava os professores a dissertarem
sobre as condições em que realizavam seu ofício e na qual alguns se dispunham a
ponderar sobre a condição da instrução de forma mais acentuada – como viam os
encaminhamentos da instrução na província –, outros por sua vez, limitavam-se a
expor uma estatística de sua escola, a informar se havia ou não material e mobília, ou
a justificar qualquer tipo, do que consideravam como/de, falha/falta frente ao ensino.
Nestes documentos é possível vislumbrar alguns dos “fazeres” dos professores frente
à sua escola e seus alunos, que conteúdos foram ensinados e como foram ensinados a
partir da adoção do método, dos materiais disponíveis e do seu conhecimento. Estes
são registros que oferecem muitas e distintas possibilidades de pesquisa e auxiliam
no entendimento da complexa organização do ensino na província paranaense.
Todavia, leva-se em conta que os mesmos eram uma exigência legal da Inspetoria
de ensino, que todos os professores precisavam atender, e que os itens a serem
discorridos eram direcionados e visavam informar e aparelhar os inspetores de ensino
de dados sobre a instrução a serem repassados ao Presidente da província, desta
forma, em sua análise, considera-se também que são relatos passíveis de coerção.
Pelas especificações nos Regulamentos, os relatórios anuais dos professores
seguiam uma certa estrutura de escrita e de assuntos, assim não era incomum a escrita
objetiva, como respostas a um questionário: alguns antes de adentrarem nos assuntos
de sua escola e logo após iniciarem seus relatos referindo-se à determinação do
Regulamento, detinham-se ao que pensavam sobre o desenvolvimento da instrução,
fosse em sua localidade ou, de forma mais alargada, como a viam na província;
outros tratavam desse tema quando falavam da frequência dos seus alunos, por
exemplo, ou sobre o método de ensino adotado. O fato era que os professores, para
além do que era solicitado a informar, viam-se nesse lugar de críticos e propositores
da instrução pública da província, em que alguns assumiam mais enfaticamente
usando desse espaço para expor mais do que apenas opiniões e sim argumentos,
crenças e posicionamentos, enquanto outros faziam isso de forma mais contida em
frases curtas e dúbias de sentido.
Esse documento de registro de atividades e de “movimentação” escolar era o
documento que permitia ao professor expor e confrontar, porque ao relatar sobre

22 O relatório do Inspetor Geral também era acrescido das informações que obtinha das visitas que realizava pelas escolas
da província.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 102

o estado da escola ou o estado do ensino, ou ainda sobre o número de alunos


matriculados em sua aula, o mestre exibia seu ofício, declarava sua experiência e que
se conduzia por ela. O professor Honório Décio, em seu relatório do ano de 1866 (AP.
244), contava sobre os artifícios utilizados por ele para administrar as dificuldades
em relação à falta de material para ensinar a leitura às suas crianças. Ao expor o seu
modo de superar tais inconvenientes, o professor exibe sua experiência adquirida
durante os anos de exercício, demonstra que constrói seu fazer na relação com sua
prática e com seus alunos, ou melhor, no retorno que dão seus alunos ao seu modo
de ensino. Além disso, chama a atenção para uma certa omissão do Estado para com
as crianças pobres, quando ao contar do seu trabalho, indica que são principalmente
os alunos desfavorecidos que carecem desse material para o progresso nos estudos
(LOBO, 1866, AP. 244, p. 140-146).
Ao se encarregar de relatar o ensino em sua escola os professores se viam no
lugar de expositores, porém quando optavam também pela análise desse ensino,
do seu trabalho ou mesmo do trabalho do inspetor e a estendiam para a situação
da instrução na província, estes professores qualificavam esse lugar como expositor
crítico e avaliador. Ao colocar a lente sobre os relatórios dos professores podemos
nos apropriar da afirmação de Martin Lawn e Ian Grosvenor (2001), de que ao contar
sobre os objetos os professores explicam a natureza de sua cultura de trabalho, e
estendê-la para o propósito narrativo dos relatos dos professores no que tange
ao seu ofício. Já que o ato de contar implica também em uma explicação, pode-se
compreender o relatório como um dispositivo de elaboração, ordenação e nomeação
da prática docente, ou de outra forma, um dispositivo que formaliza práticas assim
como evidencia Diana Vidal a respeito dos mapas escolares (2008, p. 58).
Considerando ainda as ponderações de Maurice Tardif (2012, p. 52)23, é possível
afirmar que a escrita dos relatórios também objetiva os saberes (e fazeres) dos
professores, pois eles “são levados a tomar consciência de seus próprios saberes
experienciais, uma vez que devem transmiti-los e, portanto, objetiva-los em parte,
seja para si mesmos, seja para seus colegas” (em nosso caso, para os inspetores).
Para sistematizar seu relato, o professor se volta para a sua prática cotidiana,
transformando-a em um discurso da experiência que é capaz não só de informar,
mas de fornecer respostas aos problemas enfrentados, e assim esta ação favorece
o desenvolvimento de “certezas experienciais” e uma avaliação de outros saberes
“através da retradução em função das condições limitadoras da experiência.” (TARDIF,
2012, p. 53). Quando observados em uma série de documentos é possível perceber
que os professores retomam seus relatórios, seja para reforçar algo já declarado,
para apontar mudanças ocorridas ou mesmo para não se repetir. Além disso, sempre
que eram levados a escrever, a produzir um documento, alguns professores não se
furtaram da oportunidade de se valer desse espaço para exercer o direito de comentar,
avaliar ou refletir sobre aspectos atinentes à instrução.

23 Embora o autor não trate da escrita de relatórios, Tardif (2012) aborda a transmissão oral do saber produzido pelo profes-
sor em sua prática cotidiana aos seus colegas.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 103

Antes da deliberação de entrega de um relatório anual por parte dos professores,


já havia os mapas escolares/de frequência, documentos que por determinado
período bastaram para informar sobre as escolas e consequentemente sobre o
trabalho dos docentes. Mantidos como uma escrita obrigatória para os professores
nos regulamentos para a instrução, estes mapas, compreendidos prioritariamente
na lógica de instrumentos de verificação (VEIGA, 2005), deveriam ser remetidos
com frequência trimestral e, eventualmente, junto desses eram enviadas algumas
informações referentes à escola em um relato mais objetivo do professor24.
Além de uma obrigação sujeita à punição e condição para receber seus vencimentos,
evidencia-se que os mesmos eram considerados como um atestado de “bom
trabalho” do professor, pois serviam como um instrumento de acompanhamento do
trabalho realizado no interior das escolas, além de ter por finalidade prover inspetores
e professores de um comprovante de trabalho (do professor). A cada três meses o
professor deveria informar por meio dos mapas a quantidade de alunos frequentes
em sua escola, assim como o número de faltas e comparecimentos de cada um nas
aulas. Deveria ainda acrescentar dados sobre o desenvolvimento de cada aluno, data
em que o menino ou a menina deu início na aula, filiação e demais observações que
achasse necessário adicionar. O envio à Inspetoria a cada três meses se devia a três
razões: ademais da informação do desenvolvimento dos alunos eram inseridos, caso
houvesse, os nomes dos alunos a serem examinados para ascender à classe seguinte;
confirmar se o número de alunos na escola era suficiente para o pagamento dos
ordenados e gratificações dos professores; servia como um pedido de pagamento
dos vencimentos trimestrais por parte dos professores (FRANÇA, 2014, p. 158).
Também foi possível perceber que, embora os mapas tenham sido uma tentativa
de controle por parte dos inspetores do trabalho dos professores, principalmente
no que tange ao pagamento dos seus ordenados, esses documentos “foram uma
forma de burla por parte dos professores para que seus vencimentos fossem
pagos integralmente, por muitas vezes os números informados pelos mestres
não correspondiam ao que era encontrado nas escolas nas visitas dos inspetores”
(FRANÇA, 2014, p. 28), assim como também para manter a escola em funcionamento.
Os mapas escolares derivavam de dois livros pertencentes ao material destinado
ao professor - o livro de matrículas e o livro ponto -, era a partir do preenchimento
de suas páginas que os professores conseguiam reunir os dados para “fabricar” os
mapas. Infelizmente esses são instrumentos do fazer docente que, por ora, não foram
encontrados nos arquivos consultados e dos quais só temos notícias pela legislação,
que os define e caracteriza, e pelas solicitações dos professores.
Em uma aproximação anacrônica, o livro ponto pode ser comparado ao atual
livro de chamada, que naquele tempo, assim como hoje, teriam seu preenchimento
diário com anotações sobre a presença e ausência dos alunos, porém, diferente de
hoje, tinham horário específico para serem completados - o Regulamento de 1857

24 Ainda que sejam poucos os mapas de frequência que fazem parte do conjunto de fontes tratadas neste tra-
balho, foram encontrados muitos documentos de professores comunicando o envio do mapa em “anexo” (ao
comunicado).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 104

deliberava que os professores deveriam fazer as anotações sempre ao fim da aula/


do dia, já no Regulamento de 1892 a chamada seria feita meia hora depois do início
da aula. Quanto aos livros de matrícula, não são muitas as informações sobre eles
além da determinação de que eram usados pelos professores no momento da
matrícula dos alunos e que teriam por modelo um exemplar feito pelo Inspetor Geral.
Sobre esses só podemos fazer suposições: deveriam ter uma aparência próxima a
dos mapas escolares, com os dados semelhantes, portanto seriam livros grandes25 ;
além da necessidade de estarem sempre a mão quando um novo aluno adentrasse a
escola (fosse no início do ano, a cada dois meses ou em qualquer tempo do período
letivo) ou quando solicitados pelo inspetor sempre que este achasse necessário em
uma visita para conferência. Ambos tinham uma finalidade, ordenar e racionalizar a
organização escolar, que por sua vez ordenava e racionalizava o trabalho cotidiano
do professor.
Como parte do mundo material do fazer docente temos ainda os livros de termos
de visita, material que ficava sob a guarda do professor, mas com conteúdo de
responsabilidade do inspetor. Termo de visita, era o relato breve do inspetor após
realizar uma vistoria às escolas de sua paróquia ou distrito, no qual descrevia a
situação da escola, como encontrou o professor e os alunos, como “percebeu”
o trabalho deste professor e o desenvolvimento desses alunos e eventualmente
contava sobre os exames de classes dos quais participou, depois seu registro era
copiado pelo professor no livro que ficava guardado na escola.
A partir de um dos documentos de Francisco Ferreira Correa, inspetor de
Paranaguá, de 1861, entende-se que os professores deveriam fazer duas cópias do
termo para serem enviadas à Inspetoria, além de lavrar uma no livro que deveria
permanecer na escola. Em alguns documentos encontra-se a indicação de que
era o professor quem passava o termo para o livro, em outros há indícios de que o
inspetor poderia escrever o relato no livro ficando a cargo do professor somente as
transcrições a serem destinadas para todos os interessados.
No ano de 1861, o professor Antonio Ferreira da Costa contava em seu relatório
que o subinspetor Antonio Manoel Baptista tinha visitado sua escola, havia exigido o
“livro da inspeção”, levou-o para sua casa e o devolveu ao professor ao fim do dia com
o termo já lavrado no livro (COSTA, 1861, AP. 141, p. 03-07). Entretanto, outra situação
nos conta que o inspetor até poderia escrever o termo diretamente no livro, mas não
poderia tirar ele da escola e das vistas do professor; Francisco Ferreira Correa foi
advertido pelo Inspetor Geral, por ordem do Presidente da província, quando entrou
em divergências com o professor de Paranaguá e realizou tal feito no ano de 1862.
Segundo o Presidente os termos de visita deveriam ser lançados após cada visita,
ainda na escola, e não era permitido ao inspetor de distrito acrescentar observações
ou notas no livro, que qualquer admoestação ou advertências deveriam obedecer
aos procedimentos regulados pela legislação (NOGUEIRA, 1862, AP. 145, p. 31).
Pondo-se no lugar dos professores: talvez fosse uma tarefa ingrata ter que fazer
cópias de documentos que avaliavam seu trabalho, sua escola e seus alunos, além
25 Os mapas têm aproximadamente a dimensão de um papel em formato A3 - em torno de 420mm x 297mm.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 105

de ser uma obrigação um tanto excessiva; por outro lado, ter acesso ao conteúdo do
seu “exame” poderia propiciar momentos de autoavaliação ou ainda ser um recurso
de validação de competências. Como instrumento de autoavaliação: ter em mãos o
termo de visita poderia fazer com que o professor repensasse a sua prática naquilo
que o inspetor indicasse como um mau procedimento ou mesmo que observasse seu
modo de ensinar pelos olhos de outrem (no caso o inspetor) fazendo com que revisse,
reiterasse, repensasse e retomasse práticas com a intenção de aprimorar-se a partir
de outra perspectiva. Entretanto, cumprir essa tarefa dava a chance do professor
de contestar o que achasse ser inadequado ou qualquer inverdade nas palavras
do inspetor. Os termos de visita se tornavam nesse caso, mais do que documentos
que tinham por intuito prover os inspetores de ensino de registros de informações
sobre a instrução, um dispositivo a ser usado pelo professor a seu favor quando fosse
conveniente/necessário (FRANÇA, 2014). Nessas situações, documento de verificação
tem seu sentido ampliado para documento de comprovação que, sob posse dos
professores, servia como termo de seguro (independente do seu conteúdo).

Algumas considerações...
Ao voltar a lente para esses documentos de escrituração pelos olhos dos
professores, podemos perceber que esse conjunto materializa e instrumentaliza um
ordenamento docente a partir de uma racionalização da escola.
Além disso, torna visível um modo de administração e organização da escola
primária que parte dos deveres docentes essencialmente burocráticos e disciplinares,
mas que se mostram pedagógicos na medida em que constroem e aprimoram o
ofício e a prática docente. Portanto, é possível afirmar que este modo característico
desses professores se trata, de mesma forma, de uma organização material, pessoal
e pedagógica, e que este fazer junto desta materialidade possibilita que estes
professores revejam a sua prática, a sua escola, o seu fazer e o ensino (de uma forma
geral), dando sentido ao seu saber (e fazer) e à sua condição como professor. Demarca-
se ainda a importância dos relatórios no exercício docente; produzi-los permitia
aos professores, não só expor suas insatisfações, seus progressos, ou se mostrarem
como bons cumpridores do papel que lhes foi designado (mesmo que timidamente),
assumir um lugar institucional e mediato como “especialista” do ensino.
Ademais, ao compreender que esses objetos tão singulares e diversos podem
revelar e ajudar a entender dos dizeres e fazeres da escola (PERES; SOUZA, 2011)
modos de fazer característicos do ofício docente executados pelos professores
primários oitocentistas, pode-se afirmar que esses objetos foram ressignificados na
e por uma arte de ensinar, tornando-se artefatos, e que a partir disso construíram
sentidos de uma prática docente na legitimação de saberes e consolidação de fazeres
constituindo uma tradição do ofício (ESCOLANO BENITO, 2017). Assim, interpreta-
se que a cultura material escolar é constitutiva do ofício docente por compreender
que, neste caso, ela funciona como um veículo de análise e produção de uma cultura
escolar por parte dos professores
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 106

Diante disso, esse conjunto de documentos em específico, que compõem o mundo


material do fazer docente - os materiais de escrituração, adquire um sentido mais
expandido do que aquele dado por Veiga (2005), pois, mais do que instrumentos de
verificação, os relatórios, os livros de termos de visita, os livros de matrículas e de ponto
e os mapas escolares, no uso feito pelos professores foram de mesmo modo instrumentos
de reflexão e prospecção, validação e comprovação sobre e para o ofício docente.

Fontes:
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CORREA, Francisco Ferreira. 1861, AP. 119, p. 129. DEAP-PR
COSTA, Antonio Ferreira. 1861, AP. 141, p. 03-07. DEAP-PR
Livros APS – Correspondências de governo entre os anos de 1854 a 1892. DEAP-PR
LOBO, Honório Décio da C. 1866, AP. 244, p. 140-146. DEAP-PR
NOGUEIRA, Rosa. 1888, AP. 830, p. 100. DEAP-PR
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1890,1891 e 1892. Typografia da República: Curitiba, 1929.
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Referências
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ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

“OBJETOS INDISPENSÁVEIS PARA O ENSINO”:


MOBILIÁRIO ESCOLAR CATARINENSE
E A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS
PEDAGÓGICAS (1851-1889)
Gustavo Rugoni de Sousa - UDESC

Este trabalho possui como objetivo central refletir sobre o mobiliário escolar
idealizado e construído para ser utilizado em escolas públicas primárias na Província
de Santa Catharina (Brasil) entre as décadas de 1851 a 188926. Pautado pela noção de
cultura material escolar e a partir de uma perspectiva histórica, compreende-se os
móveis idealizados para escolas públicas primárias como mercadorias (re)inventadas
pela modernidade educativa, imbricadas em um processo de circulação de saberes
legitimados, principalmente, a partir do século XIX.
Os dados localizados no decorrer do percurso de pesquisa têm permitido identificar
relações entre móveis presentes em escolas catarinenses e objetos anunciados em
manuais pedagógicos e em Exposições Universais, referenciados nesses espaços
como ideais para a escolarização da infância. A partir da análise de solicitações de
artefatos escolares, realizadas por professores para a Diretoria de Instrucção Pública
e de escritos publicados em jornais e relatórios, vem sendo possível a localização de
indícios que permitem refletir sobre o envolvimento da Província de Santa Catharina
no processo de circulação internacional de ideias pedagógicas. Compreende-se que
o movimento realizado não era apenas o de apropriação de modelos considerados
referenciais, mas também de contribuição, com envio de exemplares de suas
produções a eventos internacionais e estabelecimento de estratégias que visavam
o provimento material de escolas da província a partir de preceitos pedagógicos e
higiênicos.
Apesar de uma realidade material considerada “precária economicamente” em
falas registradas por governantes do período, os ideais de escola de Santa Catharina
sustentavam-se em discursos que entendiam como indispensável a presença de

26 As reflexões aqui desenvolvidas resultam de pesquisas e análises realizadas para a produção de tese de Dou-
torado, intitulada “A (re)invenção do mobiliário escolar: entre saberes pedagógicos, higienistas e econômicos
(1851-1889)”, defendida no ano de 2019, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado de Santa Catarina (PPGE/UDESC). Este trabalho, por sua vez, vincula-se ao projeto de pesquisa “Ob-
jetos para Consumo da Escola: O que dizem as Exposições Universais, os Museus Pedagógicos e as Leis da
Obrigatoriedade Escolar” (UDESC/CNPq/FAPESC)”, coordenado por Vera Lúcia Gaspar da Silva.

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 108


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 109

aparatos considerados modernos e higiênicos, que poderiam contribuir na formação


dos cidadãos catarinenses. Para que a província conseguisse atingir os objetivos
proclamados em relação à instrução pública, foi necessária a adoção de um
conjunto de estratégias, as quais visavam a utilização de artefatos que conseguissem
aproximar o contexto catarinense a um cenário considerado referencial, apresentado
em manuais pedagógicos e em exposições universais.
Nessa direção, para realizar análises sobre o cenário educacional catarinense,
têm se tomado o mobiliário escolar como elemento central por entender que a
partir dos rastros dos objetos que o compõem seja possível perceber indícios de
práticas e ideias que circularam internacionalmente e que se fizeram presentes
também na escolarização da infância de Santa Catharina. Para tanto, as incursões
no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina e as buscas a partir da Hemeroteca
Digital Catarinense têm sido fundamentais, tendo em vista que os estudos de fontes
como anúncios e notas presentes em jornais publicados em diferentes cidades
catarinenses, ofícios expedidos pela Diretoria de Instrução Pública, assim como
“fallas” de Presidentes da Província permitem construir narrativas sobre tempos e
modos próprios de constituição da instrução primária em Santa Catharina, a partir da
localização de argumentos em torno da defesa da construção de uma escola pública
que deveria estar articulada aos “referenciais” e ideais modernos provenientes de
nações consideradas “mais avançadas”.

MOBILIÁRIO ESCOLAR E A CIRCULAÇÃO DE IDEIAS


As investigações realizadas sobre o mobiliário escolar no decorrer do curso de
Doutorado, permitiram identificar que os entendimentos acerca desses artefatos
nem sempre foram os mesmos e que sua importância para realização das práticas
escolares foram ressignificadas ao longo do tempo. Ao tomar como referência, por
exemplo, o Dicionário Universal de Educação e Ensino, publicado no ano de 1886
em Portugal27, pode-se identificar, no verbete mobília escolar, o entendimento de
que este compreende artefatos como “os objetos fixos, de utilidade permanente, que
tornam a sala de aula apta para o seu destino” (CAMPAGNE, 1886, p. 842). Dentre
os diferentes componentes do mobiliário escolar, em sua definição aparecem como
os artefatos de maior destaque as mesas-bancos e a “secretária para o professor”,
devido a importância que vão conquistando nas práticas pedagógicas.
Outro dicionário consultado, organizado por Ferdinand Buisson28 e publicado em
1911, também permite perceber discursos que circularam em torno do mobiliário
27 Esta edição do Dicionário é uma tradução, revista e ampliada, realizada por Camilo Castelo Branco a partir do Dictionnaire
Universel d’Éducation et d’Enseignement, escrito por Émile Mathieu Campagne, com a colaboração de outros especialis-
tas e publicado no ano de 1872, em Paris, França.
28 Fernand Buisson foi inspetor geral da Instrução Pública na França (1878), diretor do Ensino Primário (1879), redator da
Revue Pédagogique e professor da Universidade de Sorbonne (1887), trajetória que contribuiu para legitimar suas ideias
de modernidade sobre a educação escolar. Para Maria Helena Camara Bastos (2000), os trabalhos de Buisson tiveram forte
influência nos escritos e atividades de figuras da elite intelectual brasileira, devido à posição política e profissional que
ocupou na França, país considerado no Brasil como modelo a ser seguido. Maria Helena Camara Bastos indica, ainda, que
os trabalhos mais citados do francês por pesquisadores brasileiros são: Rapport sur l’instruction primaire à l’Exposition
Universelle de Vienne en 1873; o Rapport sur l’instruction primaire à l’Exposition Universelle de Philadelphie en 1876; e a
Conférence sur l’enseignement intuitif, faite aux Instituteurs délégués à L’Exposition Universelle en 1878.
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escolar. Neste documento, com exceção dos materiais de ensino, apresenta-se o


entendimento que o mobiliário escolar era constituído pelos objetos presentes em
uma sala de aula e que possuíam usos comuns, como a mesa do mestre, as mesas e
bancos para estudantes, os cabideiros, entre outros. Em uma perspectiva semelhante,
no Dicionário de Pedagogia Labor, de 1936, citado por Viñao Frago (2008, p. 30), o
mobiliário é descrito como “todos aqueles objetos, de uso corrente na escola, que
sem fazerem parte do edifício e nem terem sido atribuídos a ele no momento da sua
construção, tampouco são utilizáveis como meios de instrução e ensino” (LABOR,
1936, p. 2133).29
Além de permitir observar definições que circularam entre o final do Oitocentos
e início do Novecentos, a leitura desses documentos, aqui tomados como fontes,
possibilitou perceber uma (re)invenção de objetivos e exigências em torno do
processo de construção do mobiliário escolar idealizado para a sala de aula.
Adaptações e soluções para os objetos da escola passam a ganhar força nos discursos
e a ser consideradas temas caros à escolarização moderna que se desenhava a partir
do século XIX. Nesse sentido, reivindicações que versavam acerca da necessidade
de adaptar os móveis escolares a preceitos higiênicos passam a ser reforçadas no
período a partir de uma circulação de discursos provenientes de diferentes países
e que se assemelham ao considerar o mobiliário como peça central para uma vida
saudável, deixando de entende-lo apenas como um item de apoio às práticas
escolares, mas alvo de questionamentos e merecedor de maiores investimentos por
parte de médicos e educadores.
Para melhor compreender o modelo escolar que ganha força no decorrer do século
XIX e que passa a circular e ser apropriado, em distintos países e regiões, a leitura
do livro organizado por António Nóvoa e Jürgen Schriewer (2000) foi importante.
Nessa obra, autores como John Meyer, Martin Lawn, Denice Barbara Catani, entre
outros, procuram problematizar como uma determinada organização escolar com
profundas semelhanças no currículo, na formação docente, na pedagogia e nas
políticas prescritas foi difundida e alçada como referência educacional no período.
Os investimentos colaborativos desenvolvidos pelos pesquisadores permitiram
identificar um conjunto de evidências que indiciam sobre a difusão, em nível
internacional, de um modelo escolar diretamente articulado à pedagogia moderna,
à formação dos sistemas nacionais de ensino, à consolidação dos Estados e ao
desenvolvimento industrial.
Os estudos de Diana Gonçalves Vidal (2009) sobre o período oitocentista também
trazem indicativos em torno da reinvenção da modernidade educativa a partir
de ideias de progresso, que associavam ampliação de materiais nas escolas ao
desenvolvimento científico e pedagógico. No entanto, a pesquisadora destaca a
necessidade de não reduzir as análises aos movimentos higienistas do período. Em
sua perspectiva os artefatos comercializados e legitimados como modernos não

29 Tradução livre: “todos aquellos objetos, de uso corriente en la escuela, que sin formar parte del edificio ni haber sido
adscritos a él en el momento de la construcción, no son tampoco utilizables como medios de instrucción o de enseñanza”
(LABOR, 1936, p. 2133).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 111

estavam relacionados apenas aos ditames da higiene, mas também à racionalização


do ensino e à disseminação dos métodos simultâneos e intuitivos.

Os critérios sob os quais a concepção de eficiência escolar foi construída,


especialmente evidente nesse final do século XIX, partilhavam do
mesmo imaginário produtivo da revolução industrial, concebendo a
graduação do ensino como fluxo e o investimento em educação como
regulado pela lógica do custo-benefício. Nesse espectro, a indústria foi
(e tem sido) convidada a participar do esforço de propagação da escola,
o que nos faz indagar sobre os efeitos do desenvolvimento industrial
sobre a invenção da escola moderna (VIDAL, 2009, p. 43).

Nesse sentido, a autora chama a atenção para a existência de uma batalha nada
silenciosa durante os Oitocentos em torno da modernização escolar, a partir de
defesas da inserção de objetos que estivessem de acordo com uma modernidade
pedagógica e higiênica anunciada, a qual serviu como uma espécie de guia para a
idealização dos móveis escolares e contribuiu para o fortalecimento de ideias que
vinculavam a eficiência pedagógica à presença e utilização de uma materialidade
escolar que satisfizesse exigências anunciadas em Exposições, relatórios e catálogos
idealizados por fábricas especializadas no mercado escolar. Produções do campo da
História da Educação, como as de Martin Lawn (2005), Juri Meda (2015) e Moysés
Kuhlmann Júnior (2001), fornecem indicativos de que as novas tecnologias e
adaptações no mobiliário pensado para estar presente nas escolas passaram a
expressar, ainda que indiretamente, uma das facetas da modernidade, uma vez que
projetos de artefatos como carteiras, mesas e escrivaninhas apresentavam o que
existia de “mais moderno” e se apoiavam em ideais da ciência e da racionalidade,
indicadas como as bases dessa sociedade.
Reflexões nesta direção também dão suporte às análises realizadas por Wiara Rosa
Rios Alcântara (2014) em sua tese de doutorado, que, ao tratar especificamente do perfil
do mobiliário exposto em exposições universais, apresenta dados acerca de diversas
carteiras escolares que receberam um conjunto de investimentos de educadores,
médicos e industriais, com o intuito de adequar seu design e suas tecnologias aos
preceitos modernos de ensino. Levando essas questões em consideração, a autora
indica em seu trabalho que a carteira escolar pode ser considerada uma lente para
o campo da História Econômica, uma vez que esse mobiliário permite identificar
relações existentes entre uma indústria escolar nascente e a escola como um mercado
consumidor atraente.
Compreende-se aqui que não apenas a carteira, mas também a cadeira, a
escrivaninha, o quadro-negro e todo o mobiliário pensado para a escola moderna do
final dos anos do Oitocentos podem funcionar como lentes que auxiliem a melhor
compreender os movimentos de racionalização que os Estados tiveram que passar
para instituir as escolas de massa. Nesse contexto, destaca-se o papel das leis de
obrigatoriedade escolar, que contribuem para alçar a escola como um mercado
atraente, uma vez que ao institucionalizarem a presença obrigatória das crianças
nesse espaço, “forçam” o Estado a se adequar burocrática e economicamente,
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 112

a expandir o número de vagas e a prover materialmente as escolas com artefatos


adequados. Estes são os desafios postos a partir da segunda metade do século XIX
e que a história da (re)invenção do mobiliário escolar contribui para compreender.
Heloisa Helena Pimenta Rocha (2010) é outra pesquisadora que auxilia no
entendimento de que as adequações nos espaços escolares, seja com relação à sua
arquitetura, seja com relação ao mobiliário, tinham como base uma matriz médica,
bastante difundida por meio de congressos, impressos e organizações de inspeções
em escolas. As pesquisas da autora, assim como os dados localizados para a
elaboração deste trabalho, permitem perceber que o Brasil também esteve inserido
nesse processo e que, além de incorporar ideias, produziu discursos e elaborou
estratégias de ações articuladas com a defesa da adaptação de escolas e artefatos
aos preceitos médicos:

Os tempos e espaços da escolarização, os métodos e procedimentos de


ensino, os materiais escolares, as posições do corpo infantil durante as
práticas escolares de leitura e escrita são alguns dos aspectos que
ocuparam a atenção dos médicos-higienistas brasileiros, desde a
segunda metade do século XIX, compondo a pauta das questões que
ganharam visibilidade no processo de institucionalização da escola
primária (ROCHA, 2010, p. 159).

Para Antonio Viñao Frago (2010), é possível localizar, principalmente a partir


da segunda metade do Oitocentos, o fortalecimento do movimento higienista, da
circulação de ideias pedagógicas e de estudos que tinham por objetivo construir uma
educação das crianças que tivesse como um dos seus pilares a saúde e a higiene.
Leis, revistas, livros e congressos organizados nesse período são alguns dos indícios
localizados pelo autor que apontam para uma crescente participação do campo
acadêmico na elaboração de discursos e ações que buscavam a adequação dos
espaços escolares.
Dessa forma, reafirma-se que a obrigatoriedade escolar pode ser compreendida
como um dos elementos fundamentais no processo de expansão e institucionalização
das escolas com vistas a formar e a proteger a infância e, assim, garantir o
desenvolvimento da nação. Articuladas a essa perspectiva, Vera Lucia Gaspar da Silva
& Gizele de Souza (2018) indicam que as leis de obrigatoriedade escolar, relacionadas
ao desenvolvimento industrial, contribuem para o fortalecimento da escola como um
nicho de mercado atraente para a ampliação de relações capitalistas, uma vez que,
para a institucionalização da escola moderna, foram elaboradas normas e projetos
relativos a um conjunto de tecnologias condizentes com os preceitos higiênicos e
sanitaristas defendidos como ideais no período oitocentista.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 113

O CONTEXTO MATERIAL DE ESCOLAS PÚBLICAS


PRIMÁRIAS CATARINENSES
A leitura de “Fallas” dos Presidentes da Província de Santa Catharina, realizadas
na segunda metade dos Oitocentos, possibilitou reunir um conjunto de indícios
que contribuem para melhor compreender aspectos da constituição do estado
e da instrução púbica, tais como ideais, políticas e estratégias adotadas pelas
autoridades do governo. Nos documentos analisados, há discursos que demonstram
as dificuldades financeiras que a província enfrentava, as quais colaboravam para
a grande dificuldade em prover espaços e móveis que estivessem de acordo com
os preceitos modernos. Em diversos momentos do século XIX, autoridades fizeram
uso da palavra para defender a importância da instrução pública e a necessidade
de maiores esforços políticos na criação e aprovação de legislações, bem como na
utilização de mais recursos para compra e aluguel de espaços condizentes com os
discursos em torno da modernidade pedagógica legitimada no período.
Na “Falla” do Presidente da Província de 1882, por exemplo, é possível identificar
um relatório intitulado “Casas e material das escolas”, que apresentava o contexto
material das escolas primárias da província catarinense. No texto, destaca o não
cumprimento do artigo 77 do regulamento então em vigor, uma vez que não estavam
sendo construídas casas apropriadas para as escolas primárias. Discorre, ainda, sobre
o abandono dos professores, que não estavam recebendo, conforme combinado,
as quantias necessárias para o aluguel de suas casas. “A excepção feita de uma ou
outra, funcionavam as escolas em casas sem as accommodações apropriadas e que
não reunem as condições precisas de capacidade e hygiene” (FALLA DO PRESIDENTE
DA PROVÍNCIA, 1882, p. 12).
Os registros sobre as condições dos móveis utilizados em salas de aula catarinenses
na primeira metade do Oitocentos são escassos, e de difícil localização; no entanto,
os documentos localizados no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, assim
como produções de Vera Lucia Gaspar da Silva (2015) e Rosicler Schafaschek (2012),
fornecem elementos sobre uma composição muito precária quando comparada aos
modelos defendidos por educadores em exposições universais . Havia uma distância
muito grande entre as falas dos governantes e políticas realizadas no período.
Apesar de a instrução pública ser repetidamente reconhecida como fundamental
para o progresso, é necessário considerar que as condições políticas e econômicas
do país interferiram diretamente na cultura material escolar que se pretendia
construir. Os pedidos materiais de professores catarinenses, bem como inventários
de escolas, demonstram, muitas vezes, um contexto de precariedade, com salas de
aula compostas por mesas e bancos improvisados, que também faziam parte da
residência dos professores.
Em um dos ofícios enviados para Instrução Pública de Santa Catarina (Quadro 1),
foi possível identificar, por exemplo, a relação de objetos solicitados por professores
catarinenses para a realização de suas atividades em sala de aula. As escrivaninhas
requisitadas para a Escola Feminina de 1ª Letras da Freguesia da Santíssima Trindade,
possuíam, aproximadamente, 4 metros de cumprimento por 34 centímetros de largura.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 114

Um olhar mais atento para essas dimensões possibilita fazer reflexões acerca de
elementos que dizem respeito ao cotidiano da sala de aula. O modelo reivindicado é
uma mesa grande, rígida e considerada pesada, muito semelhante aos exemplares
encontrados na França no mesmo período e criticados por Ferdinand Buisson no
Relatório da Exposição Universal de Viena, de 1873, por não atenderem aos preceitos
médicos e pedagógicos modernos. No entanto, também foram localizados, em outros
documentos30, projetos de mesas-bancos construídas para escolas catarinenses que
guardavam uma profunda semelhança com os modelos apresentados por Jean
Baptiste Daligault em seu manual, publicado em 1851 na França, e posteriormente
traduzido para o português por Francisco de Paulo Marques de Carvalho.

Quadro 01 - Relação de objetos requisitados para escolas públicas primárias (1855-1860)

Escola feminina de 1ª Letras da Freguesia da Santís- Escola pública masculina de 1ª Letras da Freguesia
sima Trindade de Sant’Anna do Merim
Para uso da professora 1 Livro em branco de papel pautado
1 Livro de 100 folhas, pautado para matrícula 8 Iris clássicas
1 Livro de 5 folhas, pautado para termos 12 Expositores portugueses
1 Par de tinteiro de chumbo 6 Cathecismos de Montpellier
1 Campainha de metal branco 12 Traslados
1 Canivete de aparar prumas 10 Lousas e lápis
1 Régua grande 6 Escrivaninhas
Mesa de 6 palmos de comprimento e 4 de largura com
1 6 Bancos
gavetas
1 Cadeira 1 Par de tinteiros
Para uso dos alunos em geral 1 Mesa
Escrivaninhas de 18 palmos de comprimento e 1,5 de
4 1 Cadeira
largura com 6 tinteiros
4 Bancos para as mesmas Alugar-se caza
Para uso dos alumnos pobres
12 Gramáticas de Coruja 8ª Edição
12 Aritiméticas do mesmo texto Professor interino Joaquim Teixeira Couto
12 Cathecismos de Montpellier 12 de novembro de 1860
12 Cartilhas de Doutrina Christã por Pimentel
12 Lousas meas
12 Syllabarios de letra de não lithographados
12 Syllabarios de letra Italica e Romana impressas
12 Réguas Pequenas
Diretor Antonio de Souza Fagundes – diretor das escolas
de instrução primaria.
18 de janeiro de 1855

Fonte: Ofícios Expedidos da Instrução Pública de Santa Catarina (1855-1860). Elaborado pelo autor.

30 Ofícios Expedidos da Instrução Pública de Santa Catarina. Disponível em: Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (Apesc).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 115

Disponível em: Arquivo Público do Estado


de Santa Catarina (Apesc).
A definição dos materiais escolares não estava atrelada a um método de ensino
específico. No entanto, por meio dos exemplares solicitados para os docentes e
discentes, como escrivaninhas, cadeiras e bancos, percebe-se que a sala de aula
poderia ser organizada conforme prescrições do método mútuo, modelo muito
difundido durante o século XVIII e introduzido oficialmente no Brasil a partir da Lei
de 15 de outubro de 1827. A sala de aula, possivelmente, poderia ser organizada de
maneira que a mesa do professor ficasse à frente, enquanto seus alunos se sentassem
um ao lado do outro, conforme seus níveis de adiantamento. Para as práticas de
ensino, a quantidade de lousas solicitadas (12) demonstra que não se caracterizavam
como um quadro-negro, muito utilizado no ensino simultâneo, por exemplo, mas
eram suportes de escrita individuais, fundamentais no período para ensinar a ler, a
escrever e a contar.
Além dos objetos solicitados, também foram localizadas correspondências que
registram o pagamento de serviços realizados por carpinteiros para a construção e/ou
reparos de móveis, bem como orçamentos que buscavam ser aceitos pela presidência
da província. Esses documentos indiciam a formação de relações comerciais, em que
carpinteiros e trabalhadores locais eram contratados para idealizar, construir e reparar
o mobiliário escolar. Nesse sentido, essas pistas demonstram que a província, para
atender demandas materiais das escolas, colaborou ativamente para o crescimento
de uma mão-de-obra especializada, contribuindo para uma mudança no caráter
econômico de Santa Catarina: se, anteriormente, se caracterizava pelas relações de
autoabastecimento, ao longo do Oitocentos o mercado escolar em expansão permitiu
a sua diversificação, promovendo atividades artesanais e pequenos negócios em um
momento em que a província ainda recebia grandes contingentes de imigrantes.
Diante dos dados foi possível identificar não apenas utensílios e móveis que
eram solicitados para a Diretoria de Instrução Pública, mas também perceber
tensões existentes entre discursos presentes em ofícios que expressam respostas
para as solicitações de compra de artefatos para as escolas, enviadas por diretores
e professores. De acordo com o disposto nos documentos analisados, dentre as
dificuldades alegadas por parte do Estado estavam as condições financeiras, que
impediriam a aquisição de grande parte dos objetos requisitados pelos docentes.
Diante da situação, apenas os artefatos considerados indispensáveis para o serviço
público da instrução e que fossem produzidos por pequenas marcenarias e oficinas
artesanais poderiam ser adquiridos, pois assim os custos seriam reduzidos.
Com relação à materialidade, apesar da defesa de sua necessidade aparecer
em discursos, quando as fontes trazem dados sobre o provimento das instituições
descortina-se um cenário que indica uma realidade diferente ao ser comparada ao
ideal defendido. No entanto, mesmo em um contexto organizado por uma ideia de
“mínimo necessário”, chama a atenção nos discursos de presidentes da província a
preocupação em anunciar o desejo de equipar as escolas primárias com materialidades
que estivessem próximas a indicações referenciadas pela modernidade educativa
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 116

em construção no período, localizadas em documentos como catálogos de móveis


escolares, manuais pedagógicos e relatórios de Exposições Universais.
Desse modo, localizaram-se pontos em comum que corroboram com as análises
em torno da existência de uma circulação internacional de ideias pedagógicas, tais
quais a defesa do investimento em formação docente, a definição de um método de
ensino, bem como uma infraestrutura e materiais adequados ao processo de ensino
e aprendizagem, referenciados pela modernidade educativa oitocentista. Nesse
sentido, a pesquisa sobre a (re)invenção do mobiliário escolar, ao estudar o contexto
catarinense, pôde identificar que, embora as ideias em torno dos móveis tenham sido
apropriadas de diferentes formas, essas mantiveram elementos relativos a aspectos
pedagógicos, higienistas e econômicos que circularam internacionalmente.

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ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

O LABORATÓRIO DE FÍSICA E QUÍMICA


DA ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO
NO FINAL DO SÉCULO XIX
Matheus Luiz de Souza Céfalo – PUC/SP

INTRODUÇÃO
O presente texto trata da apresentação de um recorte de uma pesquisa de
mestrado que pretende uma intersecção entre a história das ciências e a história da
educação por meio da compreensão sobre a formação dos professores para o ensino
das ciências na Escola Normal de São Paulo no final do século XIX e início do século
XX, sob orientação da Profª Drª Katya Mitsuko Zuquim Braghini.
Objetiva-se nesta comunicação discutir a importância do laboratório de Física
e Química da Escola Normal de São Paulo para a constituição e funcionamento da
cátedra específica para o ensino dessas disciplinas, apresentando quais eram os
tipos de objetos científicos adquiridos para o ensino de física e química, bem como
os conteúdos que poderiam ser ensinados por meio das práticas empíricas dadas
pelo manuseio desses objetos.
No aspecto metodológico, privilegia-se o estudo da cultura material escolar
por meio da análise dos instrumentos e aparelhos científicos remanescentes do
laboratório da Escola Normal, presentes no Acervo Histórico da Caetano de Campos
(antiga Escola Normal de São Paulo), situado no Centro de Referências em Educação
Mario Covas. Além disso, considera-se as fontes documentais escritas como as
notícias do jornal A província de São Paulo (1882; 1883), o relatório do diretor da
Escola Normal de São Paulo (1885) e os relatos de viagem do historiador e geógrafo
Alfredo Moreira Pinto (1900). Ainda, recorre-se a revisão de literatura que trata sobre
cultura material escolar e história do ensino das ciências, fazendo referência às obras
de Braghini (2019), Meloni e Granato (2014), Viñao Frago (2012), Escolano Benito
(2010) e Souza (2007).

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 118


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 119

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Uma das peculiaridades do ensino de física e química, em relação as demais
disciplinas que compõem um currículo escolar, é o papel da experimentação e da
prática nas aulas, por meio do manuseio de instrumentos científicos, o que demanda
a aquisição de materiais propícios às atividades práticas.
Segundo Meloni e Granato (2014, p. 2), “o processo de aquisição de objetos
de educação em ciências pelas escolas brasileiras iniciou-se no século XIX [...]”,
sobretudo, em um período em que “a educação prática das ciências foi valorizada”,
por meio do “método intuitivo na segunda metade do século XIX”. Nesse aspecto,
“a renovação pedagógica pressuposta pelo método intuitivo na virada do Século XX
dependia de uma grande lista de materiais, apresentando as expectativas, crenças,
interesses em tais modernizações [...]” (SOUZA, 2007, p. 171 apud BRAGHINI, 2019, p.
5476).
Segundo Rozante (2013), o método intuitivo foi tornado símbolo da renovação
educacional republicana e, portanto, o principal meio de se formar o cidadão
republicano civilizado por meio da educação dos sentidos. Para Munakata (2017, p.
91), as lições de coisas “conhecidas também como ‘método intuitivo’, constituem
proposta pedagógica que preconiza o contato direto do educando com o mundo,
pela observação, experimentação e manipulação, em vez de conhecê-lo pela leitura
dos livros”.
Com efeito, considerando a obra de Meloni e Granato (2014, p. 3), o presente
trabalho trata os aparelhos e instrumentos científicos do laboratório de física e
química da Escola Normal de São Paulo como “objetos de educação em ciências”,
haja vista que “além de materiais que podem contribuir para a construção da
identidade de uma comunidade, os objetos da educação em ciências podem ser
fontes para uma aproximação com as práticas pedagógicas do passado” (MELONI E
GRANATO, 2014, p. 9). Há de se considerar, ainda, que “por si só, o objeto já contém
uma carga de representações. A concretude do objeto já apresenta os sinais do que
se pretende transmitir, seja do ponto de vista do conhecimento formal, seja relativo
a uma determinação concepção de mundo” (MELONI, 2010, p. 136).
Contudo, observa-se que “los objetos no hablan por sí solos. Además, su mera
descripción o enumeración no nos lleva más allá de las crónicas, cronologías o anales
en relación con los acontecimientos.” (VIÑAO FRAGO, 2012, p. 11), ou seja, o estudo de
objetos não diz respeito a análises superficiais e meramente descritivas dos mesmos,
mas considera que “su interés no deriva de su condición de objetos o relatos, sino de
los sentidos, significados, conexiones y relaciones que el historiador establece entre
ellos y sus contextos de producción, recepción, apropiación e interpretación” (VIÑAO
FRAGO, 2012, p. 11), o que implica em um estudo mais aprofundado sobre a cultura
material escolar.
Segundo Braghini (2019, p. 5482), “a ‘cultura material escolar’ engloba os
itens produzidos e utilizados em uma instituição escolar, em diferentes suportes
informacionais, fragmentos do passado que possibilitam a construção de uma
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 120

narrativa histórica”. Para Escolano Benito (2010, p. 14), a cultura material escolar
é um registro da cultura empírica, que “puede ser valorada como es el exponente
visible, y tras su lectura el efecto interpretado, de los signos y de los significados que
exhiben los llamados objetos-huella”, tratando os objetos como fontes intuitivas.

A ESCOLA NORMAL DE SÃO PAULO NO SÉCULO XIX


O processo de criação de Escolas Normais, no Brasil, atendia a um projeto
de “constituição do Estado-nação moderno” (DIAS, 2013, p. 47), haja vista que, já
no início do governo imperial, o Estado era responsável pela garantia do acesso à
Educação, com vistas a um interesse de “secularização e extensão do ensino primário
a todas as camadas da população” (TANURI, 2000, p. 62).
Nota-se, então, que o século XIX foi tornado palco de um momento histórico de
secularização e laicização, sobretudo da profissão docente. Há de se considerar o
século XIX como um momento de exportação de tendências europeias, não somente
ao Brasil, mas em diversas partes do mundo. Moraes (2019, p. 8) considera esse
processo como a ampliação do “espaço europeu”, resultando na “europeização do
mundo”, haja vista que, “com o século XIX, a Europa se espalha pelo mundo como
nunca antes: seus navios, emigrantes, mercadorias e armas levam junto deles valores,
ideias, instituições e práticas” (MORAES, 2019, p. 8).
Criada em 1846, pela Lei nº 34, de 16 de março, a Escola Normal de São Paulo
se destacou no plano educativo, sobretudo, pela influência que “ela exerceu durante
a passagem do Império para a República, estando inserida nas discussões sobre
instrução pública na sociedade brasileira e principalmente paulista, no processo de
formação de professores” (MARTINS, 2013, p. 11). O modelo de formação empreendido
na Escola Normal de São Paulo era amparado nos ideais de escolarização moderna
que:

Inscrita em sociedades que pretendem estabelecer agendas para a


civilização, a história da moderna escolarização corresponde a um lento
processo de organização de estilos e de rotinas que perfazem, a seu
modo, um jeito específico e característico de transmissão de saberes, de
valores e de maneiras de agir (BOTO, 2014, p. 103)

No entanto, apesar de todo o destaque entre as instituições normalistas, Dias


(2013) apresenta que a Escola Normal de São Paulo

não escapou da conturbada tendência de criações e extinções que


ocorreu no Brasil do século XIX, a qual denuncia as dificuldades que o
Estado monárquico enfrentou para disciplinar as atividades docentes e
firmar a Escola Normal como espaço privilegiado de formação dos
professores de primeiras letras (DIAS, 2013, p. 49).

Para a autora, essa instabilidade desencadeou três fases de funcionamento da


Escola Normal de São Paulo. A partir das legislações que preconizavam a abertura e/
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 121

ou o fechamento da escola, Dias (2013) as divide em: 1) Primeira fase (1846-1867); 2)


Segunda fase (1875-1878); 3) Terceira fase (1880-1890).
Na primeira fase (1846-1867), a Escola Normal contava com um curso de dois
anos e seu currículo preconizava duas cátedras, lecionadas por um único professor.
Nesse primeiro momento, nota-se a inexistência de disciplinas ligadas às ciências
naturais no currículo desta instituição. Sob a justificativa de falta de alunos, a escola
foi suprimida por meio da Lei nº 6 de 10 de julho de 1867, responsável pelo orçamento
provincial de 1867-1868 (DIAS, 2013; PESTANA, 2011; MONARCHA, 1999).
Com a expansão da produção cafeeira testemunhada na província de São
Paulo, entre as décadas de 1870 e 1890, a cidade de São Paulo se tornou o “centro
da teia ferroviária”, bem como “os signos de uma cultura urbana, intelectual e
autoconsciente. Elabora-se, assim, a aura do papel civilizador presente na imagem
de São Paulo” (MONARCHA, 1999, p. 58-60).
Diante do evidente desenvolvimento, a Escola Normal de São Paulo foi reaberta,
por meio da Lei nº 9, de 22 de março de 1874, passando a funcionar, pela segunda vez,
entre 1875 até 1878 (DIAS, 2013). A reabertura da Escola Normal atendia às urgências
da época, especificamente, a “intenção explicita de se organizar um instituto capaz
de garantir a formação profissional e moral de professores da instrução primária”
(MONARCHA, 1999, p. 92).
Observa-se o anseio pela civilização por meio da instrução pública, haja vista que
“a época concebe a escola normal como um centro de formação profissional, difusão
do progresso intelectual e multiplicador de conhecimento” (MONARCHA, 1999, p.
93). Esse anseio é evidente no relatório apresentado à Assembleia Legislativa da
província pelo presidente João Theodoro Xavier de Mattos:

A Escola Normal criará bons mestres, e estes, elevando o nível das


habilitações de seus discípulos, derramarão pela sociedade as primeiras
riquezas do espírito, sólida, estimável e luminosa instrução elementar.

Será, pois, um centro da luz viva da ciência, irradiando-se por toda a


província e penetrando por todas as camadas populares.

A infância, bem esclarecida, levará seu saber à família, aos companheiros


futuros de profissões, de indústrias ou de serviços públicos; e esse
precioso pecúlio da inteligência se estenderá afinal pela sociedade
inteira.

Assim se transformam as gerações, afugentando-se as sombras da


ignorância, clareiam-se os espíritos, e dominam as ciências.

Todos estes grandiosos benefícios dependem do professor distinto, de


sua proficiência, da escola em que aprendeu.

Com ele, a juventude gravará em sua memória o vocabulário de maior


precisão, elegância e pompa, abandonando a vulgaridade grosseira das
expressões que, do lar doméstico, transportam às escolas.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 122

O reinado conquistado pelo erro, será substituído pelo império da


verdade. (XAVIER DE MATTOS, 1875, p. 78).

Nesta segunda fase, o currículo da Escola Normal foi ampliado para quatro
cátedras, contudo, apesar de todo o avanço testemunhado em São Paulo, disciplinas
da área de ciências da natureza ainda eram inexistentes no currículo da Escola
Normal de São Paulo. Em 1878, sem verbas previstas para o orçamento da escola, a
instituição foi novamente fechada.

A CONSTITUIÇÃO DA CÁTEDRA DE FÍSICA E QUÍMICA


Durante a década de 1880, a sociedade paulista testemunhou a ascensão de
tendências modernizadoras e republicanas. Monarcha (1999) aponta que, nessa
década, o caráter urbano-capitalista é consolidado em São Paulo. Assim, “a cidade
de São Paulo passa por metamorfoses, tornando-se conglomerada e cosmopolita,
graças à transferência de excedentes econômicos e ao alargamento do centro
urbano” (MONARCHA, 1999, p. 113).
Nesse período, diante das aspirações republicanas em busca do progresso, urge a
necessidade de investir na instrução pública e no desenvolvimento do cientificismo,
sobretudo, a valorização das ciências que eram tidas como fundamentais para
alcançar a civilização, dada pela necessidade de superar a imagem do Brasil como
um país atrasado em relação ao “mundo civilizado”, o que provocou iniciativas em
prol da valorização da ciência, como a criação de museus de História Natural, tais
como o Museu Paranaense Emílio Goeldi (1871), a reforma do Museu Nacional (1876)
e a montagem do primeiro laboratório de Physiologia Experimental brasileiro, em
1880 (MELONI, 2010, p. 40).
Para Meloni (2010, p. 41), além do desenvolvimento esperado pelo cientificismo,
havia, ainda, a crença, por parte da elite, “no poder da ciência como instrumento de
progresso”. Esse caráter redentor da ciência, vigente na década de 1870, se estendeu
até o final do século XIX e início do século XX, promovendo a criação de novas
instituições científicas, tais como “a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo
(1886), o Museu Paulista (1894), o Instituto de Manguinhos (1899), o Instituto Butantã
(1901) e a Escola Superior Agrícola Luiz e Queiroz (1901)” (MELONI, 2010, p. 41), o que
denota o apelo ao cientificismo, sobretudo em São Paulo, local onde a relação entre
ciência e modernidade foi mais difundida.
Diante desses ideais, em 1880, por meio da Lei nº 130, de 25 de abril, a Escola
Normal de São Paulo foi reaberta, se tornando o principal centro de ensino paulista,
sendo responsável pela formação dos futuros professores do estado. No intuito de
se alinhar às tendências da época, a Escola Normal foi, no plano educativo, uma
das responsáveis pela institucionalização das ciências no Brasil, sobretudo, pela
reforma do ensino prevista pela Lei nº 130, de 25 de abril de 1880, que preconizava
uma reorganização curricular, em que o curso normalista passou a ter três anos
de duração, a introdução de disciplinas de Física e Química e a adoção do método
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 123

intuitivo como método pedagógico oficial do estado e utilizado na formação


pedagógica dos professores.
O currículo da Escola Normal de São Paulo passou a ter a seguinte estrutura:

Art. 3º - O curso da escóla será de 3 annos e se comporá das seguintes


cadeiras:

1.ª Cadeira de grammatica e lingua portugueza. Estudos praticos de


estylo e de declamação; 2.ª Cadeira de arithmetica e geometria;

3.ª Cadeira de geographia geral e de historia do Brasil o especialmente


da provincia. Historia sagrada;

4.ª Cadeira de pedagogia e methodologia, comprehendendo exercicios


de intuição Doutrina christã;

5.ª Cadeira de francez e de noções de physica e chimica. (SÃO PAULO,


1880).

Nota-se que a introdução da 5ª cadeira de Francês, Física e Química se deu


somente a partir de 1880, com a nomeação do Dr. Paulo Bourroul31, na terceira fase
de funcionamento da Escola Normal de São Paulo. Contudo, com a Lei nº 59, de 25
de abril de 1884, a disciplina de francês foi desmembrada da 5ª cadeira e passou a ser
uma cátedra específica, conforme o quadro abaixo (DIAS, 2013):

Quadro 1: Distribuição das Cadeiras da 3ª fase da Escola Normal (1880-1884)

ANO CADEIRAS/PROFESSORES

1ª cadeira 2ª cadeira 3ª cadeira 4ª cadeira 5ª cadeira

Gramática e Aritmética e Geografia Pedagogia e Francês, Física


Língua Na- Geometria geral, Hist. Metodol.; Dou- e Química:
1880 cional Do Brasil e da trina Prof. Paulo
Prov., Hist. Cristã: Bourroul.
Sagrada e
Universal
1ª cadeira 2ª cadeira 3ª cadeira 4ª cadeira 5ª cadeira 6ª cadeira

Gramática e Aritmética e Cosmofr., Pedagogia, Física e Quí- Gramática e Lín-


1884 Língua Na- Geometria Geografia e Metodol. E mica gua Francesa
cional História Instrução Reli-
giosa

Fonte: Dias (2013, p. 56-57).

31 Esse professor francês nasceu em Nice, em 1855. Se diplomou em medicina pela Faculdade de Medicina de Bruxelas,
na Bélgica. Prestou exame de suficiência na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e, após sua aprovação, em 1879,
passou a clinicar em São Paulo. Em 1880, foi nomeado professor da Escola Normal de São Paulo, ocupando a cátedra
recém-criada de Francês, Física e Química. Em 1882, em substituição ao Dr. Mamede de Freitas, Paulo Bourroul assumiu a
direção da Escola Normal de São Paulo (DIAS, 2013).
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 124

Paulo Bourroul foi o lente da 5ª cadeira entre os anos de 1880 e 1884, sendo o
responsável pela constituição da cátedra na Escola Normal. Segundo Dias (2013), em
1882, o docente assumiu a direção da Escola Normal de São Paulo, acumulando o
cargo junto a regência da cadeira de Francês, Física e Química. A autora assevera que:

A atuação de Paulo Bourroul como diretor da Escola Normal Paulista foi


marcada pela instalação do Laboratório de Física e Química –
introduzindo os exercícios práticos no programa do curso – e pela
compra de livros para a organização inicial da Biblioteca da Escola.
(DIAS, 2013, p. 269-270)

De acordo com o jornal A província de São Paulo, de 07 de novembro de 1882,


esse professor foi incumbido, pelo presidente da província, de “comprar aparelhos
necessários ao ensino de chimica e physica [...]”. Rodrigues (1930, p. 120) aponta que
Paulo Bourroul “vinha insistindo sobre a necessidade dum laboratório para o ensino
experimental das respectivas disciplinas”. Nesse sentido,

Quando diretor do instituto, em viagem pela Europa, o Dr. Paulo


Bourroul, mediante verba consignada, compra um laboratório
experimental de Química e Física – semelhante aqueles utilizados nas
escolas normais francesas – cartas geográficas e cosmográficas, e
aproximadamente 120 livros para o acervo inicial da biblioteca da Escola
Normal de São Paulo. Essas aquisições objetivam ampliar os recursos
didáticos do instituto e imprimir “feição prática” ao ensino ali ministrado.
(MONARCHA, 1994, p. 147).

Observa-se que a aquisição de materiais para o ensino das disciplinas científicas


não partiu apenas do professor em questão, mas, também, do presidente da
província, conforme relatado ao jornal A província de São Paulo, em 08 de março de
1883, “[...] logo depois da minha nomeação, e na primeira entrevista que tive com
s. exc. falando-me das reformas urgentes na Escola, S. exc. Chamou minha atenção
sobre a necessidade de o mais breve, organizar o ensino prático dessas matérias”.
Desse modo, em viagem à França, o professor adquiriu um laboratório de Física e
Química, provocando euforia na sociedade paulista, o que pode ser evidenciado na
nota de 08 de junho de 1883 do jornal A Província de São Paulo: “Aula de química e
física. Hoje nas aulas de química e física, devem ser estreados na Escola Normal os
aparelhos ultimamente trazidos da Europa, para o ensino prático daquelas matérias”
(DIAS, 2013, p. 272). Segundo Martins:

A aquisição de um laboratório de Física e Química para o desempenho


de suas atividades docentes, assim como a seleção de obras32 feitas pelo
Dr. Paulo Bourroul indicam que este professor se mostrava alinhado à
tendência modernizadora dos métodos educacionais (MARTINS, 2013,
p. 37)

32 O estudo dessas obras resultou em uma comunicação intitulada “Paulo Bourroul e o ensino das ciências na Escola Normal
de São Paulo no final do século XIX”, apresentada no 30° Simpósio Nacional de História (2019), organizado pela Associação
Nacional de História, em Recife (PE, Brasil), e está disponível nos anais do evento em questão.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 125

Pode-se observar que havia, portanto, um alinhamento de interesses entre o


poder público e a Escola Normal de São Paulo, no que diz respeito à valorização das
ciências como forma de alcançar o progresso e a modernidade, pautas fundamentais
no discurso republicano paulista.

ANÁLISE DOS OBJETOS REMANESCENTES DO LABORATÓRIO


Sobre os objetos presentes no laboratório de física e química da Escola Normal
de São Paulo, o relatório de viagem do historiador e geógrafo Alfredo Moreira Pinto
(1900) aponta que:

No gabinete de física encontram-se todos os instrumentos necessários


aos estudos dessa disciplina, tais como máquinas pneumáticas,
máquinas de compressão, hemisfério de Magburgo, balança hidrostática,
lentes e espelhos, pilhas elétricas de diferentes autores, motores,
locomóvel, locomotivas, etc. No gabinete de química acham-se todos os
reativos destinados a diversas combinações e experiências. (PINTO,
1900, p. 116).

A respeito dos conteúdos ministrados por meio dos objetos adquiridos, o relatório
do então diretor da Escola Normal de São Paulo, de 20 de novembro de 1885 apresenta
que:

O gabinete de física e química está convenientemente montado e possui


instrumentos e aparelhos correspondentes às seguintes seções
científicas – Barologia, Termologia, Ótica, Acústica e Electrologia, e
também diversos utensílios e substâncias várias para experiência de
Química (SÁ E BENEVIDES, 1885, p. 1 Apud MONARCHA, 1994, p. 147).

Dada a análise feita no Acervo Histórico da Caetano de Campos, observou-se a


presença de instrumentos de física, como a máquina de Wimshurst, planetário,
barômetros, locomotivas, cordões flexíveis, condutores, agulhas magnéticas,
bússolas, imãs, manômetro, espelho plano, espelho côncavo, microfone, aparelho
de Haldat, máquina pneumática, dinamômetro de Régnier e esterilizador. Já os
instrumentos de química presentes no acervo são vidrarias, como provetas e frascos,
espátulas, serpentina de vidro, conectores de vidro, copos, alongas, campânulas,
frasco de wollf, frasco dessecador, funis, balão de ensaio, funis de decantação, tubos
de ensaio, pipetas graduadas, balão de Erlenmeyer, além de peças de cerâmica, como
almofariz, cubas de porcelana, bem como instrumentos de precisão, como balanças
e caixas de pesos.
Por meio do manuseio dos objetos presentes nos acervos, observa-se que o
currículo de física da Escola Normal de São Paulo envolvia noções de mecânica,
atração molecular, estudo dos gases, acústica, calorimetria, iluminação, magnetismo,
eletricidade, ótica, meteorologia e climatologia. Por sua vez, o currículo de química
apresentava noções de química orgânica e química inorgânica, sobretudo, teoria
atômica, gases, metais e etc, além da valorização das combinações e experimentações
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 126

químicas, convergindo com as declarações presentes no relatório do diretor da Escola


Normal (1885) e no relatório de viagem de Alfredo Moreira Pinto (1900).
Não foram encontradas fotos do laboratório original, mas fotos do laboratório da
década de 1940 (figuras 1 e 2), presentes no Acervo da Escola Normal de São Paulo,
indicam um panorama dos objetos utilizados, bem como as instalações e organização
do espaço, conforme indicado nas imagens abaixo:

Figura 1: Instalações do laboratório: gabinete de Física da Escola Normal de São Paulo (1940)

Fonte: AHECC/CRE MARIO COVAS/EFAPE/SEDUC-SP

Figura 2: Instalações do laboratório: gabinete de química da Escola Normal de São Paulo (1940)

Fonte: AHECC/CRE MARIO COVAS/EFAPE/SEDUC-SP


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 127

Na figura 1, pode-se verificar armários com tampos de vidro, contendo alguns


objetos. Em destaque, em cima da mesa à direita, há a Máquina Eletroestática de
Wimshurst (figura 3) que, de acordo com a sua descrição no inventário (número
de ordem EF 001) do Acervo da Escola Normal, “é um gerador de altas voltagens.
Instrumento mecânico que, pelo processo de indução e polarização de cargas em
condutores, separa cargas positivas de negativas, acumulando-as, respectivamente
nas garrafas de Leyden (capacitores)”, com 57,2 cm x 29,7 cm de largura e 64,5 cm de
altura.

Figura 3: Máquina Eletroestática de Wimshurst

Fonte: AHECC/CRE MARIO COVAS/EFAPE/SEDUC-SP

Já na Figura 2, verifica-se a existência de dois armários com vidrarias e


reagentes químicos. A bancada possui manchas, o que indica que esse espaço era
constantemente utilizado para experimentações químicas, além disso, observa-se
sobre ela uma balança de precisão, vidrarias, reagentes, entre outros objetos.
A instalação do laboratório destinado ao ensino de Física e Química confirma o uso
dos instrumentos científicos como objetos de educação em ciências, o que promovia
uma formação prática dos educandos por meio do manuseio desses objetos, tidos
como fontes intuitivas, característica fundamental para o ensino dessas disciplinas
pautado no método intuitivo.
Por fim, observa-se que a presença desses objetos científicos em um espaço
destinado à formação de professores permite a construção de uma narrativa histórica
da Escola Normal de São Paulo como um espaço de formação do magistério público
alinhado às tendências republicanas testemunhadas a partir da década de 1880, em
São Paulo, sendo, portanto, um espaço privilegiado de divulgação do conhecimento
científico, dado o investimento destinado à formação de um laboratório específico
para a cátedra de Física e Química.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 128

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dado o exposto, constatou-se que a Escola Normal de São Paulo recebeu um
importante destaque na instrução pública durante o século XIX, momento em que
o acesso à Educação estava atrelado ao interesse do poder público em expandir o
ensino primário e, para tanto, era necessário formar professores. No entanto, apesar
do desenvolvimento econômico, social e político que São Paulo testemunhou nesse
período, observa-se que o ensino de Física e Química era inexistente no currículo da
Escola Normal de São Paulo durante as suas duas primeiras fases de funcionamento.
Uma cátedra específica para o ensino dessas disciplinas foi constituída apenas em
1880, na dita terceira fase, diante do imaginário republicano de que a valorização das
ciências estava alinhada ao progresso e a modernidade, características fundamentais
para equivaler o Brasil ao “mundo civilizado”.
A organização inicial da cadeira de Física e Química foi resultado da atuação do
doutor Paulo Bourroul, primeiro lente dessa cátedra que, posteriormente, se tornou
diretor da Escola e Normal e foi o responsável pela aquisição de um laboratório de
física e química trazido da França, conferindo ao ensino da instituição uma feição
prática e experimental, alinhada ao método intuitivo que, de acordo com a mesma
lei que preconizava a abertura dessa cadeira, tornava a lição de coisas o método
oficial de formação de professores do estado.
Constatou-se que os aparelhos e instrumentos científicos se fizeram
imprescindíveis para o ensino de física e química na Escola Normal de São Paulo,
sobretudo, atendendo aos pressupostos do método intuitivo. Esses instrumentos
dizem respeito à cultura material escolar da Escola Normal, uma vez que tratados
como objetos de educação em ciências, denotam que a valorização do ensino das
ciências, sobretudo a constituição de uma cátedra específica para as disciplinas
de física e química e a aquisição de objetos específicos para elas, foi pertinente ao
interesse paulista de modernização presente no final do século XIX, ressaltando o
papel da instrução pública no atendimento ao espírito da época.

FONTES
A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO. Notas de 08 de março de 1883, 08 de junho de 1883 e 07 de no-
vembro de 1882.
ACERVO DA ESCOLA NORMAL. Acervo iconográfico e objetos científicos remanescentes do
laboratório de física e química da Escola Normal de São Paulo. AHECC/CRE MARIO COVAS/
EFAPE/SEDUC-SP.
LEI Nº 130, de 25 de abril de 1880. Disponível em:
<https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1880/lei-130-25.04.1880.html> Acesso em
07 de dezembro de 2019.
PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de S. Paulo em 1900: impressões de viagem. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1900.
SÁ E BENEVIDES, J. E. C. Relatório da Escola Normal de São Paulo, 1885. Arquivo do Estado de
São Paulo.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 129

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exmo. Sr. Dr. João Theodoro Xavier, presidente da província. São Paulo, Tipografia Amer-
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XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 130

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ANAIS DE
TRABALHOS COMPLETOS

ISSN 2358-3959

PROJETO ARAUCÁRIA: PRÁTICAS


E MATERIALIDADES NARRADAS
NOS CADERNOS DE PROFESSORAS
DA DÉCADA DE 1980
Alessandra Giacomiti - UFPR

Resumo
A cultura escolar como possibilidade de investigação na História da Educação,
permitiu a inserção de temas, objetos e fontes que por muito tempo foram
desconsiderados nos escritos da História. Neste cenário, a intenção deste texto é se
aproximar do cotidiano de professores e crianças, por meio de registros estampados
em dois cadernos de profissionais que atuavam na década de 1980, na pré-escola
curitibana e entrar nas instituições por caminhos antes não trilhados, descortinando
tensões, resistências e cumplicidades a partir dos fazeres e das práticas pensadas
e projetadas para as crianças pequenas no período. Utilizar estes materiais como
fonte histórica, permitiu o contato com as práticas escolares, com o currículo,
com os discursos, com a organização do trabalho pedagógico e as concepções dos
professores nos fazeres diário. São memórias de uma educação idealizada para
as crianças, escritos que longe de uma neutralidade passiva, são balizados por
desenvolvimento de táticas e as artes do fazer (Certeau 1984) do cotidiano, onde
o professor fabrica modos alternativos de exercer à docência. Inúmeros são os
registros e possibilidades de pesquisas registradas na memória dos cadernos. Abre-
se um leque de investigações, que até o momento permitiram compreender, que as
orientações do Guia Curricular do Projeto Araucária não eram as únicas propostas
descritas e projetadas nos cadernos, o que demonstrava a arte de fazer dos docentes
no período.
Palavras-chave: Projeto Araucária; cultura escolar; cadernos de planejamento.

XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 131


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 132

Introdução
O caderno de planejamento dos professores é considerado um objeto da
cultura escolar e um vestígio valioso para o historiador se aproximar do cotidiano
de professores e crianças e entrar nas instituições. Este trabalho, fruto da pesquisa
de Mestrado em Educação, da UFPR, Linha de Pesquisa História e Historiografia
da Educação, tem como objetivo principal, investigar a partir de dois cadernos de
docentes que lecionavam em turmas de pré-escola na década de 1980, na prefeitura
de Curitiba, o cotidiano de professores e crianças, por meio de seus registros.
Encontrar os escritos de um professor sobre as atividades planejadas, só não é
mais difícil do que se deparar com o relato da criança sobre o cotidiano vivido na
escola. Muitas vezes, estes documentos só são descobertos porque um dia, foram
esquecidos. De acordo com Mignot e Cunha (2003), “são vestígios recantos desativados
das escolas e gavetas esquecidas de muitos armários de professores e professoras
que guardam registros do cotidiano escolar” (MIGNOT e CUNHA, 2003, p. 9). Materiais
que nesta investigação, são destacados como reveladores de potencialidades,
dificuldades, práticas e sonhos que denunciam o “espetacular da sala de aula”. Estes
cadernos fontes desta pesquisa, organizados com capricho e zelo, foram encontrados
em meio ao Acervo de documentos do Projeto Araucária, são vestígios que revelam
atividades e observações que foram desenvolvidas no período em que este projeto,
em parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), Fundação Bernard Van
leer, da Holanda e prefeitura de Curitiba passaram a direcionar ações e propostas
para o atendimento ao pré-escolar na capital paranaense. Vale a pena salientar, que
este projeto teve duas fases de atuação em parceria ao município de Curitiba, de
1985 a 1988 (construção e implantação de uma proposta pedagógica para o trabalho
com crianças de 04 a 06 anos, em duas escolas municipais da Prefeitura de Curitiba
e de 1989 a 1992 ( quando direcionou suas ações para o trabalho junto às creches
municipais, atuando concomitantemente com o desenvolvimento de cursos de
aperfeiçoamento para as diferentes categorias profissionais que trabalhavam com a
Educação Infantil em Curitiba).  
Nesse percurso, as narrativas evidenciadas nos cadernos, permitem uma reflexão
sobre as ações que direcionavam a organização do cotidiano nas turmas de pré-
escola, atendidas pelo Projeto. Estes cadernos podem ser entendidos como objetos
culturais que contribuem para a compreensão das representações dos processos
educacionais, com os métodos e apropriações teóricas. Roger Chartier (1990, p. 230)
pontua que “os materiais que transmitem as práticas e os pensamentos das pessoas
comuns são sempre formas e temas mistos e combinatórios [...]”, em face disso, não
interessa apenas identificar o que se escreve e quem escreve, mas entender como se
diz, como se representa, e que combinações realiza em suas práticas.

O cotidiano escolar por meio dos registros dos professores


Nas capas dos cadernos, nos deparamos com desenhos das araucárias, árvore
símbolo do estado do Paraná, também conhecida como Pinheiro - do - Paraná. A
escolha por essa ilustração, que representa a nomenclatura do projeto e o símbolo
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 133

do estado onde foi implementado, é reveladora de uma representação do lugar de


onde estas professoras falam, conforme sugere Certeau (2002); esse seria um lugar
social, uma vez que,

“toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção


sócio-econômico, político e cultural [...] e é em função deste lugar que
se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses,
que os documentos e as questões, que lhe são propostas, se organizam”.
(CERTEAU, 2002, p.66-67).

CAPAS DOS PLANEJAMENTOS

Fonte: Acervo da documentação do Projeto Araucária

Por sua capa, os dois cadernos já delimitam que são do Projeto Araucária e se
referem a atividades diárias a pré-escola, deste projeto em específico.
Observam-se nestes diários, as propostas que eram pensadas para estas turmas de
pré-escola, neles vislumbra-se uma representação do que os adultos projetavam como
importante para as crianças nessa fase escolar. Estes registros não estão descolados
de um debate e discussões nacionais, que entendiam esta fase de escolarização,
como preparatória para aquisições de habilidades consideradas como fundamentais
para alfabetização e ingresso no 1º Grau. De acordo com Kramer e Abramovay (1986):
Grande parte - senão a maioria - dos professores vincula, basicamente, o início da
alfabetização ao treinamento da coordenação motora e da discriminação visual e
auditiva. (KRAMER E ABRAMOVAY, 1986, p.172).
Assim, atividades de coordenação motora, treino de habilidades, entre outras
estavam presentes nas anotações das docentes, que demonstravam articular tais
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 134

práticas com as propostas sinalizadas no Guia Curricular do Projeto Araucária. No


entanto, ao analisar o guia Curricular proposto pelo projeto, percebe-se que estas
propostas de treino, não apareciam no correr de suas linhas, a sua proposição era
fundamentada numa metodologia diferenciada, mais ativa, balizada por trabalho
com jogos livres e em grupo. Neste sentido, percebe-se que as professoras não
chegam a romper com a proposta do Projeto Araucária, mas usam de táticas para
subverter as regras e criar a sua própria rotina em sala de aula.
Entender essas relações é inserir-se nas reflexões da cultura escolar, que descrita
por Julia (2001), pode ser entendida como.

[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e


condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas
ou simplesmente de socialização). (Julia, 2001, p. 10)

Outro indício de que existe um posicionamento das professoras diante das


prescrições do Projeto pode ser evidenciado no caderno 2. Neste, há o registro apenas
da expressão “atividade estruturada”, sem descrever qual seria esta, podendo ter
sido realizado qualquer outro trabalho com os alunos neste momento. Só sabemos
que ela fez parte do grupo de professoras da pré-escola, que participou do Projeto
Araucária, pela capa do seu caderno.
No entanto, a professora do caderno 1, faz uma aproximação, em alguns momentos
em seu planejamento com a organização da proposta do Guia Curricular. Percebe-
se que com o passar do tempo ela apresenta alguns elementos condizentes com as
prescrições do Projeto Araucária. Porém, não são todas as práticas que caminham
nessa direção. Muitas atividades continuam sendo de treino de coordenação motora.
A seguir, um dia escrito no diário representando a proximidade com o Guia Curricular,
especificamente com o tema (6 ) braços e mãos.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 135

EXEMPLO DE ATIVIDADE ESTRUTURADA

Fonte: Acervo da documentação do Projeto Araucária

Percebe-se que esta professora, consegue estabelecer em alguns momentos, a


relação dos conteúdos indicados pelo Projeto Araucária em seu cotidiano.

DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES

Fonte: Acervo da documentação do Projeto Araucária.


XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 136

As prescrições dos cadernos destas professoras trazem uma representação de


criança introduzida em seus registros. Dessa forma, que representações de criança
pode-se depreender? Os vestígios encontram escopo nas atividades relatadas acima,
realizadas com uma ênfase dada aos exercícios de coordenação motora (cópia,
recorte, colagem, pintura em figuras prontas). Esta relação da infância com atividades
de prontidão e treino motor é contemplada como preparatória para aquisições de
habilidades consideradas como fundamentais para alfabetização e ingresso no 1º
Grau. Esse era o discurso que estampava as legislações pensadas para o atendimento
da criança pequena na década de 1970, seguindo pelos anos 80. De acordo com
Kramer e Abramovay (1986):

[...] diversos têm sido os critérios utilizados na identificação do


“momento adequado” para o início do aprendizado da linguagem
escrita. Podemos dizer que, tradicionalmente, esses critérios têm girado
em torno das habilidades motoras ou perceptivas consideradas
necessárias à alfabetização. Grande parte - senão a maioria - dos
professores vincula, basicamente, o início da alfabetização ao
treinamento da coordenação motora e da discriminação visual e
auditiva. (KRAMER E ABRAMOVAY, 1986, p.172).

Pode-se inferir que as atividades contempladas pelas professoras e direcionadas


para as crianças sinalizam o processo de escolarização ao qual eram submetidas as
crianças em idade pré-escolar . Tal escolarização, estava em consonância com o que se
esperava no período, uma preocupação pautada na prevenção do fracasso escolar as
quais crianças das camadas sociais mais pobres estariam fadadas. Isso fica evidente
nos documentos, legislações e pesquisas que circulavam sobre o atendimento ao
pré-escolar.
Assim, no ano de 1974, a Conselheira do Conselho Federal de Educação, Eurides
Brito da Silva, ressalta “a importância dessa educação, como pré-requisito de um
desempenho ótimo da criança na sua fase de escolarização regular”. (INDICAÇÃO,
45/1974, p.02). A proposta da Conselheira foi acatada e transformada em parecer,
em 5 de julho de 1974, com o acréscimo de que, junto com a elaboração de uma
legislação específica para a educação pré-escola que circulasse nos programas de
educação compensatória, deveriam ser previstas as fontes de recursos financeiros
para seu desenvolvimento. (Parecer 2018/74).
Em 1975, novo parecer reiterava a educação pré-escolar como solução para os
problemas de repetência no primeiro ano do 1º grau. (Parecer 2521/75). Tal parecer
dedicou-se à discussão sobre programas antecipatórios da escolaridade de 1º grau
enfatizando a importância de uma legislação que abarcasse o período anterior ao
1º grau, a fim de “diminuir sensivelmente essa grande vergonha nacional que se
traduz pela reprovação em massa de alunos que frequentam as séries iniciais desse
grau de ensino”. (PARECER 2521/75, 1975, p.58). Dois anos depois, em 1977, outro
parecer indicava a necessidade de criação de programas de educação pré-escolar que
compensassem as carências, com o intuito de sanar o vazio cultural e nutricional da
criança (Parecer 1038/77). Esta compensação de carência é, inclusive, a justificativa
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 137

dada pela indicação de 1979 para a antecipação do ensino de 1º grau - antes dos sete
anos (Indicação 8/79) e vista no ano seguinte como o elemento que promoveria a
equiparação da criança pobre com a criança de camadas privilegiadas (Parecer792/80).
Sobre estes pareceres e indicações, destinados à educação pré-escolar, é possível
identificar que se baseavam em uma literatura referente à educação compensatória.
Como Didonet (1992) descreve,

havia, entre alguns entusiastas promotores da educação pré-escolar,


uma certa euforia de que ela resolveria alguns dos problemas que as
crianças das camadas mais pobres da população enfrentavam no seu
processo de desenvolvimento e aprendizagem escolar decorrentes das
privações do meio social em que viviam. Mediante a participação em
programas de educação pré-escolar, as crianças teriam maior
possibilidade de recuperar atrasos no desenvolvimento cognitivo, social
e afetivo e acompanhar as demais crianças nas tarefas escolares.
(DIDONET, 1992, p. 20).

Esta discussão que acompanhava o pensamento é encontrada no planejamento


das professoras, não em sua essência teórica, mas nas práticas pensadas e é
considerado um vestígio sobre a escolarização da criança pequena no período.
Outro ponto interessante registrado nestes diários, refere-se às festas escolares.
As festas comemoradas e registradas nos diários possibilitam uma aproximação
com alguns momentos festivos que as professoras construíram e fizeram parte da
prática inserida no calendário escolar. A persistência de atividades pautadas nas
festas é encontrada ao longo dos registros e quase sempre vinham acompanhadas
de uma música relacionada à temática, conforme o escrito de uma das professoras
“ensaiamos a música para o Dia das mães”. Com relação a questão das festas
escolares, Bencosta e Pereira (2006, p.3857), pontuam como

(..) uma construção social que manifesta, em seu espaço, significações e


representações que favorecem a composição de uma certa cultura
inerente aos seus atores, o que nos facilita entender a identidade,
sugerida pela compreensão daqueles que as organizaram e as
celebraram, acerca dos símbolos que justificaram a sua realização, e
que registraram de modo duradouro na memória social escolar um
sentimento que se propunha ser coletivo pela união dos anseios de seus
participantes, como parte do calendário escolar que delimitava um
tempo e um espaço peculiares. (BENCOSTA e PEREIRA, 2006, p.3857)

As festas comemoradas e registradas nos diários possibilitam uma aproximação


com alguns momentos festivos que as professoras construíram e fizeram parte da
prática inserida no calendário escolar, como se visualiza abaixo.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 138

FESTAS ESCOLARES

CAD 1 CAD 2

Fonte: Acervo da documentação do Projeto Araucária

Vislumbra-se que datas de homenagem ao Dia das Mães e a Festa Junina também
foi destaque nestes cadernos. De acordo com as análises de Bencosta e Pereira
(2006) as comemorações inseridas no calendário escolar, sob a supervisão dos
professores, dispunham os alunos a teatralizarem “em diferentes momentos do ano
escolar representações festivas de cunho religioso, popular e aqueles sugeridos pela
própria escola”. (BENCOSTA, 2006, p. 3858). Nesse caso, a partir dos registros destes
cadernos em especifico, a Páscoa e o Dia do Índio, foram pano de fundo para tais
dramatizações, sendo que as crianças foram para casa, pintadas e caracterizadas de
acordo com a festividade.
Como se pode perceber através das imagens acima, a professora, para celebrar
cada data comemorativa, propôs algumas atividades pedagógicas. Assim, para
comemorar a Páscoa, a música, dramatização e o desenho para pintar fizeram parte
dos trabalhos. Vale destacar, que no primeiro exemplo, temos o Dia do Índio, que
comemorado no dia 19 de abril teve as suas atividades relatadas no diário do dia
18/04. Nesse caso, parece provável que a data de comemoração dessa festividade
cairia no sábado, sendo adiantada a sua celebração.
A persistência de atividades pautadas nas festas escolares é encontrada ao longo
dos registros nos diários, conforme imagem abaixo
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 139

FESTAS ESCOLARES

Fonte: Acervo da documentação do Projeto Araucária.

A descrição das atividades de Festa Junina aparece no dia 18/06 e vai até 27/06.
Em praticamente todos os momentos a professora foi articulando as atividades
ancoradas no tema: confecção de bandeirinhas, conversas, música típica. Enfim,
uma “concentração de afetos e emoções em torno de um assunto que é celebrado
e comemorado”, como afirma Bencosta e Pereira(2006) ao caracterizar as festas
escolares “enquanto produções do seu cotidiano, como uma ação, um tempo e um
lugar determinado” (BENCOSTA, 2006, p. 3858). Destaca-se que recorrente no diário
encontra-se a palavra “ensaio”, provavelmente para a apresentação para os pais e
comunidade.
Relacionando-se ainda às festas escolares, embora não constando nos registros
dos diários, mas por meio de fotografias deixadas dentro dos cadernos, visualizou-
se que a celebração do Dia das Crianças, também fez parte deste cotidiano. A seguir,
duas fotos que memoram esse dia.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 140

DIA DAS CRIANÇAS

Fonte: Acervo da documentação do Projeto Araucária.

Atrás das duas imagens consta a seguinte frase: “Dia da Criança 1986”. Na primeira
fotografia, percebe-se um adulto, possivelmente a professora, confeccionando
brinquedos de sucata que aparecem também na segunda imagem, agora nas mãos
das crianças que os utilizavam para brincar. O espaço escolhido, como se pode
perceber, é o da sala de aula, com carteiras e cartazes ao fundo. Na primeira fotografia,
observa-se na organização da sala a presença de cartazes do tempo, ajudante do
dia, figuras geométricas e chamadas, compondo este espaço. Com relação ao que
menciona a chamada, visualiza-se, que nos dois diários essa prática aparece de
forma recorrente, quase todos os dias.
A comemoração do Dia das Crianças no Brasil sucedeu-se “pela publicação
do decreto lei n. 4867 de 05 de novembro de 1924, que oficializou o dia de sua
comemoração para 12 de outubro de cada ano” (BENCOSTA e PEREIRA, 2006, p.
3862). Os indícios da demarcação dessa data, de acordo com Kuhlmann Jr. (1998)
podem ter sido em respeito às decisões realizadas nos trabalhos do 3º Congresso
Americano da Criança, realizado em conjunto com o 1º Congresso Brasileiro de
Proteção à Infância138, que sugeriram o dia do Descobrimento da América como
data para comemorar também o Dia da Criança.

A proposta considerava que a instituição de uma data comemorativa em


homenagem à criança, semente humana, significaria algo próprio do
mundo civilizado e permitiria fomentar a ideia da fraternidade
americana entre as crianças. A ênfase em uma data unificada e na ideia
de fraternidade americana, para o Dia da Criança, associando infância
com sociedade moderna e Novo Mundo, traz à tona a questão do pan-
americanismo. (KUHLMANN JR., 1998, p. 40).

Segundo o estudo de Bencosta, o ano de 1927 marca as comemorações em


Curitiba, registradas pela imprensa. Porém, “por ordem das autoridades de ensino,
circunstancialmente naquele ano, a festa da criança que deveria ser recordada
como de costume no dia 12 de outubro, foi transferida para o dia 15 daquele mês”.
XII COLUBHE - ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS - V. 1 • 141

(BENCOSTA, 2006) Isso indica que esse ano não teria sido o primeiro de comemorações,
conforme diz o autor.
Cotejando estes primeiros contextos de comemorações do Dia da Criança com
as imagens das fotos, verifica-se que a organização da professora foi atrativa para as
crianças, com brinquedos de sucata e bexigas, pois as crianças estão aparentemente
felizes neste espaço. Bencosta (2006) aponta para as modificações que ocorreram
na dinâmica desta festa sinalizando que “com o passar dos anos as programações
assumiram configurações mais atraentes para as próprias crianças, apesar da
insistência do formato organizacional da mente adulta para a festa“. (BENCOSTA,
2006, p. 3863).
Retornando às análises dos diários, percebe-se ainda que os dois cadernos
trazem uma rotina pautada pela demarcação do tempo, cronometrando o ritmo
de cada atividade. Com relação ao tempo e a sua representação nos espaços de
educação, ViñaoFrago (2000) esclarece que “a configuração, distribuição e usos do
espaço e do tempo são elementos não neutros nem marginais, mas, ao contrário,
substanciais e determinantes.” (VIÑAO FRAGO, 2000, p. 109). Neste sentido, observa-
se que o planejamento obedecia a uma sequência determinada de ações controladas
e obrigatórias, constituindo a forma e a metodologia de ensino destas professoras.
Nota-se ainda nos diários que as prescrições das atividades estão no passado,
descritas após as ações, como no exemplo acima “mostrei os blocos e as crianças
desenhavam de acordo com a figura e a cor”. A apresentação das ações no passado
é uma constante: “cantamos”; “conversamos”; “confeccionaram”; completaram”;
“desenharam”, “mostrei”, são exemplos de alguns dos verbos utilizados.
Na busca por indícios, percebemos que este caderno ― bastante esmerado,
ilustrado com figuras coladas ou desenhadas em cada página e uso de canetas
coloridas ― é datado da metade do ano de 1986 e foi construído após as atividades
terem sido realizadas, o que apresenta ao mesmo tempo o conteúdo e a aplicação
das propostas. Os diários revelam de forma mais contundente o que possivelmente
aconteceu nas duas turmas de pré-escola do Projeto Araucária, que analisadas
no cotejamento entre as prescrições do Guia Curricular e os registros dos diários,
demonstram um espaço entre o prescrito e o que possivelmente tenha sido realizado
no trabalho com a criança de 4 a 6 anos, desse contexto em específico.

Considerações Finais
Dessa maneira, os cadernos aqui pesquisados, foram considerados vestígios
que revelaram os fazeres e as práticas cotidianas por dentro da instituição escolar e
permitiram se aproximar de indicativos sobre as propostas pensadas para a criança
em idade pré-escolar na década de 1980, na cidade de Curitiba.
Os registros materializados nesses documentos, são valiosos para pensar as
práticas cotidianas vivenciadas nas turmas em idade pré-escolar, bem como ajudam
a perceber os modos como os professores articulavam ações prescritas pelo Projeto,
com discursos e maneiras de pensar a ação docente para a educação pré-escolar.
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Ainda, os jornais, legislações e documentos que circulavam a época, revelavam


indicativos do baixo aproveitamento dos estudantes de 1º Grau e colocavam o
ensino para os pequenos como salvador dos males da repetência. Era preciso de
treino, de cópias de atividades que desenvolvessem as habilidades para o sucesso
na escolarização posterior.
Compreendo que todo estudo apresenta limites e possibilidades, e este não
escapa a tal circunstância, assim visualizo um leque com outras tantas opções de
pesquisa, a partir destes cadernos, tão raros para a pesquisa histórica.

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ANAIS DE
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