Levando Deus A Sério - Kevin DeYoung
Levando Deus A Sério - Kevin DeYoung
Levando Deus A Sério - Kevin DeYoung
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Publicado por Crossway Books, Um ministério de publicações de Good News Publishers
1300 Crescent Street
Wheaton, Illinois 60187, USA.
PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS, SEM A PERMISSÃO ESCRITA
DOS EDITORES, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
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Diretor: James Richard Denham III
Editor: Tiago J. Santos Filho
Tradução: Ingrid Rosane de Andrade Fonseca
Revisão: Maurício Fonseca dos Santos Jr.
Diagramação: Rubner Durais
Capa: Rubner Durais
Ebook: Yuri Freire
ISBN: 978-85-8132-224-7
8 – Atenha-se às Escrituras
Apêndice
Capítulo Um
ACREDITANDO, SENTINDO,
FAZENDO
A paixão do poeta
Imagino muitos de nós imersos em poesia anos atrás. Você sabe,
anos antes de termos filhos, antes de ficarmos noivos, ou, se você for
jovem o suficiente, antes do semestre passado. Escrevi alguns poemas
na minha época, e, mesmo se fôssemos melhores amigos, ainda assim
não os mostraria a você. Não que eu esteja envergonhado pelo
conteúdo – escrever para a minha adorável noiva e sobre suas
qualidades –, mas duvido que a forma seja algo do qual me orgulhar.
Para a maioria de nós, escrever um poema de amor é como fazer
biscoitos com gérmen de trigo – deveria ser maravilhoso, mas o gosto
nunca sai muito certo.
Alguns poemas de amor são incríveis, como o soneto 116 de
Shakespeare: “De almas sinceras a união sincera nada há que impeça:
amor não é amor se quando encontra obstáculos se altera ou se vacila
ao mínimo temor”, e assim por diante. Lindo. Brilhante. De tirar o
fôlego.
Outros poemas, nem tanto. Como este que encontrei online de um
homem revivendo o seu gênio romântico adolescente:
Veja! Há uma vaca solitária
Feno! Vaca!
Se eu fosse uma vaca, essa seria eu
Se o amor é o oceano, eu sou o Titanic.
Querida, queimei a minha mão
Na frigideira do nosso amor
Mas ainda assim isso é melhor
Do que o chiclete que nos mantém juntos
No qual você pisou
Concluindo no início
Sou capaz de pensar em três reações diferentes à paixão longa e
repetitiva pela palavra de Deus no Salmo 119.
A primeira reação é “Sim, isso aí”. Esta é a atitude do cético, do
escarnecedor, e do cínico. Você pensa consigo mesmo: “É bom que o
povo antigo tivesse tal respeito às leis e às palavras de Deus, mas não
podemos levar essas coisas muito a sério. Sabemos que os seres
humanos muitas vezes colocam palavras na boca de Deus para seus
próprios propósitos. Sabemos que cada palavra ‘divina’ é misturada
com o pensamento, com a redação e a interpretação humanos. A
Bíblia, como a temos, é inspiradora em partes, mas também é
antiquada e indecifrável às vezes, e, francamente, incorreta em muitos
lugares”.
A segunda reação é “Oh, hum”. Você não tem nenhum problema
em particular com honrar a palavra de Deus ou acreditar na Bíblia.
Em teoria, você tem a Escritura em alta conta. Mas na prática, você a
considera tediosa e geralmente irrelevante. Você pensa consigo
mesmo, apesar de nunca expressar isso em voz alta: “O Salmo 119 é
muito longo. É chato. É o pior dia no meu plano de leitura da Bíblia.
Parece que nunca acaba e segue sempre dizendo a mesma coisa. Eu
gosto mais do Salmo 23”.
Se a primeira reação é “Sim, isso aí”, e a segunda é “Oh, hum”, a
terceira reação possível é: “Sim! Sim! Sim”! Isso é o que você grita
quando tudo no Salmo 119 soa verdadeiro em sua cabeça e ressoa em
seu coração, quando o salmista captura perfeitamente as suas paixões,
suas afeições, e suas ações (ou pelo menos o que você quer que eles
sejam). Isto é, quando você pensa consigo mesmo: “Eu amo este
salmo porque dá voz à canção em minha alma”.
O propósito deste livro é nos levar a abraçar plenamente,
sinceramente, e de forma consistente essa terceira resposta. Eu quero
que tudo o que está no Salmo 119 seja uma expressão de tudo o que
está em nossas mentes e em nossos corações. Na verdade, estou
começando este livro com a conclusão. O Salmo 119 é o objetivo.
Quero convencê-lo (e ter certeza de que eu mesmo estou convencido)
de que a Bíblia não comete erros, pode ser entendida, não pode ser
invalidada, é a palavra mais importante em sua vida, e é a coisa mais
importante que você pode ler todos os dias. Somente quando
estivermos convencidos de tudo isso é que poderemos dizer a plenos
pulmões “Sim! Sim! Sim!” cada vez que lemos o capítulo mais longo
da Bíblia.
Pense neste capítulo como a aplicação e os sete capítulos restantes
deste livro, como os blocos de construção necessários para que as
conclusões do Salmo 119 sejam justificadas. Ou, se eu puder usar
uma metáfora mais memorável, pense nos capítulos 2-8 como sete
pequenos frascos distintos despejados em um caldeirão borbulhante, e
neste capítulo como o resultado final. O Salmo 119 nos mostra no que
acreditar sobre a palavra de Deus, o que sentir em relação à palavra
de Deus e o que fazer com a palavra de Deus. Essa é a aplicação. Essa
é a reação química produzida no povo de Deus quando despejamos
em nossas cabeças e corações a suficiência das Escrituras, a
autoridade das Escrituras, a clareza das Escrituras e tudo o mais que
encontraremos nos sete capítulos restantes. O Salmo 119 é a explosão
de louvor possibilitada por uma doutrina ortodoxa e evangélica das
Escrituras. Quando abraçamos tudo o que a Bíblia diz sobre si
mesma, então – e só então – acreditaremos no que devemos acreditar
sobre a palavra de Deus, sentiremos o que devemos sentir e faremos
com a palavra de Deus o que deveríamos fazer.
A Palavra de Deus está firmemente fixada nos céus (v. 89); isso
não muda.
Não há limite para a sua perfeição (v. 96); ela não contém nada
corrupto.
Todas as regras justas de Deus duram para sempre (v. 160); elas
nunca envelhecem e nunca se desgastam.
1. O Salmo 119 é o maior capítulo da Bíblia por qualquer definição (se nos importarmos
considerar os capítulos, os quais, devemos nos lembrar, não são divisões inspiradas).
Determinar o maior livro da Bíblia é um pouco mais complicado. Salmos é o maior livro da
Bíblia, se você levar em conta capítulos ou versículos. Ele também ocupa o maior número de
páginas em nossas Bíblias. Mas visto que capítulos, versículos e números de páginas não
fazem parte dos manuscritos originais, os estudiosos surgiram com outras formas de
determinar o comprimento de um livro único. Dependendo dos meios de cálculo, Jeremias,
Gênesis e Ezequiel podem ser mais longos que Salmos.
2. J. I. Packer, “Fundamentalism” and the Word of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1958),
76.
Capítulo Dois
Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo
seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas
oculares da sua majestade, pois ele recebeu, da parte de Deus Pai, honra e glória,
quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado,
em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos
com ele no monte santo. Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e
fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que
o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração, sabendo, primeiramente,
isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque
nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens
[santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo. (2 Pedro 1.16-21)
Duas evidências
Tudo nessa última frase pode ser comprovado a partir da passagem
no início deste capítulo, 2 Pedro 1.16-21. Mas, para chegar a essa
conclusão, temos de entender o contexto da epístola de Pedro.
A carta de 2 Pedro é uma exortação à piedade. Nos versículos 3-11,
vemos o poder para a piedade nas grandes e preciosas promessas de
Deus (vv. 3-4), o modelo para a piedade nas virtudes que podem ser
associadas à fé (vv. 5-7), e a premissa para a piedade em nossa
vocação e eleição (vv. 8-11). Então, nos versículos 12-15, Pedro
reitera a sua intenção de lembrá-los “destas coisas” (ou seja, as
virtudes da piedade) antes de morrer. A preocupação de Pedro é que
os falsos mestres rastejem para dentro da igreja prometendo liberdade
e acabem levando as pessoas à sensualidade e escravidão espiritual
(2.2, 10, 18-19). A exortação é, portanto, para ignorar esses falsos
mestres e buscar a santidade.
E uma das principais razões para fazê-lo é por causa da futura vinda
de Cristo. Quando o dia do Senhor chegar, o mundo será destruído,
nossas obras expostas, e os ímpios julgados (3.11-12, 14). Nesta
epístola, e ao longo do Novo Testamento, a segunda vinda de Cristo
serve como uma motivação profunda para se desviar da perversidade
e se esforçar para viver uma vida correta e virtuosa. Nós não
queremos ser encontrados envolvidos em atos profanos, quando o
Santo retornar.
Esse é o argumento de Pedro. Mas os falsos mestres duvidavam que
o Senhor iria retornar em algum dia cataclísmico (3.2-4). Eles não
acreditavam em um dia de julgamento. Então, Pedro tem como
objetivo em sua epístola convencer os fiéis, contrariamente aos falsos
mestres, de que Cristo virá novamente para julgar os vivos e os
mortos e que esse retorno será um espetáculo para ser contemplado.
Para fundamentar esta afirmação, Pedro oferece duas evidências:
testemunho ocular (1.16-18) e documentos de autoridade (vv. 19-21).
Estes eram os dois tipos básicos de evidência no mundo antigo. Não
mudou muito. Mesmo hoje em dia, você encontra os advogados
montando o seu caso geralmente por meio da apresentação de
documentos ou chamando testemunhas. Se você quiser provar o seu
argumento no tribunal de justiça, precisará de uma testemunha ocular
ou de fontes confiáveis. O apóstolo Pedro tinha os dois.
Está escrito
O argumento de Pedro sobre o retorno de Cristo também depende
da confiabilidade dos documentos de autoridade (vv. 19-21). A
“palavra profética” é anterior à própria testemunha ocular de Pedro. E
o que quer que seja que Pedro, Tiago e João viram na montanha, e o
que quer que seja que isso pressagiava a respeito da segunda vinda de
Cristo e o juízo final, essas coisas só confirmaram o que a palavra
profética já havia assegurado (v. 19). Você não pode colocar mais
confiança em sua Bíblia do que Pedro colocou na dele.
Observe três verdades que esses versículos nos ensinam sobre a
natureza da Escritura.
Primeiro, a Escritura é a palavra de Deus. Isto pode soar como
uma afirmação redundante, mas a expressão “é” diz uma coisa
importante. Alguns cristãos, influenciados por teólogos neo-
ortodoxos como Karl Barth, hesitam em dizer que a Bíblia é a palavra
de Deus. Em vez disso, eles argumentam que a Bíblia contém a
palavra de Deus, ou torna-se a palavra de Deus, ou que o evento no
qual Deus fala conosco por meio da Bíblia é a palavra de Deus. O
pensamento neo-ortodoxo tenta distanciar as afirmações de inspiração
das palavras escritas nas páginas das Escrituras. Esta distinção, no
entanto, teria sido estranha ao apóstolo Pedro, pois todas as
grandiosas afirmações que ele faz sobre a “profecia” ou a “palavra
profética” são feitas com referência às palavras escritas das
Escrituras.
Pedro usa três termos diferentes para se referir à palavra de Deus
nestes versículos: a palavra profética (v. 19), profecia da Escritura (v.
20) e profecia (v. 21). Todos eles mencionam profecia de alguma
forma e são usados mais ou menos indistintamente. É importante
ressaltar que para as nossas considerações, a palavra no versículo 20
para Escritura é graphe, que se refere a algo que foi escrito. Pedro
tem em mente, no versículo 20, não apenas tradições orais ou um
evento de discurso, mas um texto escrito. A visão de Pedro de
inspiração não pode ser limitada ao discurso profético ou um evento
de pregação; ela inclui as páginas das Escrituras.
E não só as partes proféticas sobre a segunda vinda. Todo o Antigo
Testamento está em vista. Assim como a expressão a lei e os profetas
pode ser uma designação genérica para o Antigo Testamento,
igualmente a lei ou os profetas de forma separada podem ter essa
mesma conotação. Nenhum judeu faria a distinção de que algumas
partes das Escrituras eram mais verdadeiras do que outras (cf. 2
Timóteo 3.16). Tudo o que é verdadeiro para a lei vale para os
profetas e vice-versa. A “palavra profética” é simplesmente uma
maneira de se referir à revelação nas Escrituras. Como Calvino diz:
“Entendo por profecia da Escritura o que está contido nas Sagradas
Escrituras”.2
Isso importa porque significa que a autoridade da Palavra de Deus
reside no texto escrito – nas palavras, nas frases, nos parágrafos – da
Escritura, e não apenas em nossa experiência existencial da verdade
em nossos corações. Algumas pessoas não gostam de textos escritos e
proposições porque implicam em um significado fixo estável, e as
pessoas não querem que a verdade seja fixa. Elas preferem que a
inspiração seja mais subjetiva, mais interna, mais experimental. Mas
de acordo com 2 Pedro 1.19-21, a inspiração da Sagrada Escritura é
uma realidade objetiva fora de nós.
Nada disso é para sugerir que uma teoria de inspiração evangélica
nos leva para longe do subjetivo, interno ou experiencial. Muito pelo
contrário. Devemos dar atenção às Escrituras inspiradas como a uma
lâmpada brilhando em lugar escuro. A palavra de Deus nos convence
do pecado, mostra-nos o caminho e leva-nos da escuridão para a luz.
Nós mergulhamos nas Escrituras de modo que a estrela da manhã, o
próprio Cristo (cf. Números 24.17-19), cresça em nossos corações. O
objetivo da revelação não é apenas uma informação, mas afeição,
adoração e obediência. Cristo em nós somente será real enquanto
bebermos profundamente da Bíblia, a qual é a palavra de Deus fora
de nós.
Segundo, a palavra de Deus não é menos divina porque é dada por
meio da instrumentalidade de homens. Muitos alegaram e continuam
a afirmar que os cristãos conservadores sustentam uma teoria de
inspiração de ditado mecânico. Os evangélicos, diz-se por aí,
acreditam que os escritores da Bíblia eram instrumentos passivos que
apenas registravam o que eles recebiam mecanicamente do céu.
Apesar da frequência desta afirmação, nunca encontrei nenhum
teólogo evangélico que descrevesse a inspiração desta forma. É
verdade que os teólogos mais antigos, por vezes, falavam da Escritura
como sendo tão impecável que é como se ela tivesse sido entregue
por meio de ditado. A metáfora (que provavelmente mais dá a
impressão errada do que ajuda) foi feita para enfatizar a perfeição da
Bíblia, mas não para descrever o processo real pelo qual os autores da
Bíblia escreveram seus textos inspirados. Em vez disso, o versículo
21 ensina, como teólogos evangélicos têm enfatizado repetidamente,
que os homens falavam (e escreviam) à medida que eram movidos
pelo Espírito Santo.
O termo “operação concursiva” é muitas vezes usado para
descrever o processo de inspiração, ou seja, Deus usou a inteligência,
habilidades e personalidades de homens falíveis para escrever o que
era divino e infalível. A Bíblia é, em certo sentido, um livro humano
e divino. Mas isso não implica em qualquer falibilidade nas
Escrituras. A dupla autoria da Escritura não implica em imperfeição
mais do que as duas naturezas de Cristo implicam em pecado por
parte do nosso Salvador. Como Calvino diz sobre os profetas, “[eles]
não ousaram anunciar nada por conta própria, e seguiram
obedientemente o Espírito como seu guia, o qual teve o domínio de
suas bocas, como de seu próprio santuário”.3
O termo “movidos” no versículo 21 é phero, que é traduzido como
“dada” um pouco antes no mesmo versículo e como “enviada” no
versículo 17 e “vinda” no 18. Ele sugere um resultado garantido, o
qual é executado e garantido por outro. As palavras do céu (vv. 17-
18) e as palavras dos profetas (v. 21), em última análise, vieram do
mesmo lugar: Deus.
B. B. Warfield explica:
O termo aqui usado [para movidos/enviada] é muito específico. Não deve ser
confundido com guiar, ou direcionar, ou controlar, ou mesmo conduzir, no sentido
pleno da palavra. Ele vai além de tais termos, ao atribuir o efeito produzido
especificamente ao agente ativo. O que é “enviado” é tomado pelo “portador” e
transmitido pelo poder do “portador”, e não por seu próprio, para o objetivo do
“portador”, e não o seu próprio. É dito dos homens que falaram da parte de Deus,
portanto, terem sido tomados pelo Espírito Santo e trazidos pelo seu poder ao objetivo
de Sua escolha. As coisas que eles falaram debaixo desta operação do Espírito,
portanto, eram Suas coisas, não deles. E essa é a razão de por que a “palavra
profética” é tão segura. Embora falada por intermédio de homens, ela é, em virtude do
fato de que esses homens falaram “como enviada pelo Espírito Santo”, uma palavra
diretamente divina.4
1. http://www.christianitytoday.com/ct/2007/march/2.44.html
2. João Calvino, Commentaries on the Catholic Epistles, Trad. e Ed. John Owen (Grand
Rapids: Baker, 1979), 391.
3. Ibid.
4. B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible (Phillipsburg, NJ: P & R
Publishing, 1948), 137. [Edição brasileira: A Inspiração e Autoridade da Bíblia (São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2010).] Para ser preciso, Warfield enxerga três modos de revelação na
Escritura: manifestação externa, sugestão interna e operação concursiva (83-96). Ele coloca o
ministério profético do Antigo Testamento na segunda categoria, vendo os profetas como
mais passivos do que os autores apostólicos do Novo Testamento. No entanto, ele adverte
contra forçar as distinções longe demais, observando que os profetas ainda usavam a sua
inteligência ao receber a palavra de Deus, e que toda a Escritura é descrita como “profecia”
em 2 Pedro 1.19-21. Veja também a seção de bibliologia na Teologia Sistemática de
Warfield organizada por Fred Zaspel.
5. J.I. Packer, Truth and Power: The Place of Scripture in the Christian Life (Wheaton:
Harold Shaw Publishers, 1996), 55.
Capítulo Três
A PALAVRA DE DEUS
É SUFICIENTE
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos
profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de
todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a
expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder,
depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas
alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome
do que eles. (Hebreus 1.1-4)
Eras. A era que passou foi “outrora”, mas agora estamos “nestes
últimos dias”. Isso não significa necessariamente que o fim do mundo
está chegando. Isso significa que entramos em uma nova era, a era do
Espírito, a plenitude do tempo em que os grandes atos de salvação
têm ocorrido. A morte e ressurreição de Jesus levaram o mundo para
uma diferente época. Não há ato de redenção para acontecer antes de
o último dia chegar. Isso nos coloca nos últimos dias.
Destinatários. Em um tempo anterior, outrora, Deus falou “aos
pais” – aos patriarcas, aos antepassados judeus. Mas, nestes dias,
Deus falou “a nós”. Esta é uma era diferente, e Deus está falando para
um grupo diferente de pessoas.
Agentes. Deus também falou por diferentes agentes. Nos dias
anteriores, ele falou pelos “profetas”, quer esses sejam os chamados
profetas antigos, aqueles com uma função profética como Moisés, ou
os escritos proféticos (i.e., Escrituras do Antigo Testamento). Pelos
profetas foi a forma como Deus falou. Mas, nestes últimos dias, Deus
falou “pelo Filho”. Jesus Cristo revelou como Deus é, ensinou-nos a
vontade de Deus e mostrou-nos o caminho da salvação.
Maneiras. Há muito tempo, Deus falou muitas vezes (polymeros) e
de muitas maneiras (polytropos). Deus falou por meio de visões,
sonhos, vozes, uma sarça ardente, uma coluna de fogo, uma mula e
escrevendo em uma parede. Isso aconteceu então, na antiga era. Mas
nestes últimos dias Deus falou de uma única maneira, pelo Senhor
Jesus Cristo. O contraste implícito é que, enquanto havia muitas
maneiras anteriormente pelas quais Deus falava ao seu povo, agora há
apenas um meio de revelação, através de seu Filho.
Todos os quatro contrastes são destinados a nos levar à mesma
conclusão, uma conclusão gloriosamente enunciada nos versículos 2-
4; a saber, que Cristo é o agente final e superior da redenção e
revelação de Deus. O escritor de Hebreus, retirando dos Salmos 2 e
110, faz sete afirmações com esse fim.
1. O Filho é o herdeiro de todas as coisas. Tudo culmina em Cristo. O trabalho
missionário nesta era é trazer a Cristo o que por direito lhe pertence.
2. O Filho é o criador de todas as coisas. Embora a segunda pessoa da Trindade não
seja mencionada pelo nome no relato da criação, vemos em Gênesis que Deus criou
pela ação de seu discurso divino. Esta palavra falada é para ser identificada com a
Palavra que, mais tarde, tornou-se encarnada.
3. O Filho é o sustentador de todas as coisas. Cada próton, cada elétron, cada
composto, cada partícula e planeta, cada estrela e galáxia é sustentado por sua
palavra poderosa.
4. O Filho é a revelação de Deus. Ele é a manifestação da presença de Deus, não
apenas um reflexo da glória divina, mas o esplendor dela. Ele é a impressão exata de
Deus, o mesmo em essência e natureza. Cristo nos mostra Deus como ele realmente
é.
5. O Filho realizou a purificação dos nossos pecados. Ele tirou a mancha e a culpa do
pecado, e não apenas como uma sombra de coisas maiores por vir (como os antigos
sacrifícios), mas como a substância de tudo o que havia sido prefigurado.
6. O Filho assentou-se. Assim como uma mãe assentando-se no final do dia porque os
filhos estão finalmente na cama e a cozinha está limpa, assim Cristo assentou-se à
direita de Deus, porque o seu trabalho havia sido realizado. A entronização foi
completa (Salmos 110.1) e a tarefa sacerdotal concluída uma vez por todas (Hebreus
9.25-26).
7. O Filho, portanto, tornou-se muito superior aos anjos. Ele é superior a esses
mensageiros celestiais porque a palavra final de Deus foi falada por eles. Nenhum
virá depois dele. Nossa grande salvação veio – confirmada por sinais, maravilhas,
milagres e dons do Espírito – e nunca será sobrepujada (2.1-4).
1. John M. Frame, A Doutrina da Palavra de Deus (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013)
2. Citado em Timothy Ward, Words of Life: Scripture as the Living and Active Word of God
(Downers Grove, IL: IVP Academic, 2009), 107.
3. Frame, The Doctrine of the Word of God, 227.
4. Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, Volume 1. Prolegomena, ed. John Bolt, tr. John
Vriend (Grand Rapids: Baker Academic, 2003), 491. [Edição brasileira: Dogmática
Reformada, Volume Um: Prolegômena (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012).]
5. Frame, The Doctrine of the Word of God, 227.
6. Packer, “Fundamentalism” and the Word of God, 119.
Capítulo Quatro
A PALAVRA DE DEUS
É CLARA
Porque este mandamento que, hoje, te ordeno não é demasiado difícil, nem está longe
de ti. Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga
e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Nem está além do mar, para dizeres:
Quem passará por nós além do mar que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o
cumpramos? Pois esta palavra está mui perto de ti, na tua boca e no teu coração,
para a cumprires. (Deuteronômio 30.11-14)
Base de confirmação
O que Deuteronômio ensina sobre a clareza da palavra de Deus é
confirmada por todo o restante da Bíblia. Nos Salmos, por exemplo, o
salmista compara a palavra de Deus à luz. A palavra é lâmpada para
os nossos pés e luz para o nosso caminho (Salmo 119.105). A
revelação das suas palavras esclarece e dá entendimento aos simples
(v. 130). A lei dá sabedoria aos símplices e ilumina os olhos (19.7-8).
Uma vez que Deus é luz (1 João 1.5), seria de se esperar que a sua
palavra também fosse clara e brilhante. Afinal, Deus comunica para
revelar, não para obscurecer.
Quando o livro da lei foi redescoberto nos dias de Josias, o povo
leu, entendeu e soube o que tinha de fazer em resposta (2 Reis 22-23).
O significado do texto não deixou de ser compreendido por eles,
mesmo após a passagem de muitos anos. Que sentido haveria em
proferir ameaças e promessas a um povo ferido, assustado, sem lei e
desesperado, a menos que se assumisse que todas essas ameaças e
promessas poderiam ser compreendidas, pelo menos o suficiente para
que as pessoas respondessem em fé e arrependimento? A presença
dos profetas, os advogados da aliança de Deus, só faz sentido no
pressuposto de que eles tinham o direito de esclarecer os tópicos da
lei que o povo deveria ter conhecido e seguido, mas estava ignorando.
Na verdade, a estrutura fundamental de todo o Antigo Testamento
assume que as palavras e textos sagrados são veículos adequados para
a transmissão das intenções e desejos de Deus. É por isso que
Neemias pode nos dizer que Esdras e os sacerdotes “leram no livro,
na Lei de Deus, claramente, dando explicações, de maneira que
entendessem o que se lia” (8.8). Não apenas a interpretação deles,
mas o significado da palavra de Deus.
Esta mesma abordagem da Escritura era compartilhada por Jesus e
os apóstolos. Dezenas de vezes Jesus apelou para um texto do Antigo
Testamento certo de que tal apelo resolvia a questão. Isto implica não
somente em que Jesus acreditava que o Antigo Testamento era
confiável, mas que tinha um significado fixo que os outros deveriam
ser capazes de reconhecer. Jesus muitas vezes se referiu às Escrituras
como prova da veracidade de seus ensinamentos (Mateus 21.42-44;
Marcos 10.4-9; João 10.34-35). Outras vezes, ele repreendeu a
sociedade judaica pela não conformidade com a Palavra de Deus
(Mateus 21.13, Marcos 7.6-7, 10). “Ide, porém, e aprendei o que
significa: Misericórdia quero e não holocaustos”, Jesus disse em uma
ocasião (Mateus 9.13), sugerindo que eles deveriam ter entendido
como este versículo de Oséias se aplicava ao “escândalo” de comer
com publicanos e pecadores. Seis vezes Jesus pergunta: “Não tendes
lido...”, sugerindo que, se seus oponentes conhecessem as Escrituras
melhor, eles não estariam cometendo o erro que estavam cometendo.
Jesus abordou a revelação escrita de Deus como se ela pudesse ser
conhecida e compreendida. E os apóstolos fizeram o mesmo, citando
a Escritura, debatendo a partir dela, aludindo a ela, e encontrando o
cumprimento nela, tudo com a suposição de que esses textos tinham
um significado correto, e os apóstolos tinham-no em sua posse.
O imperativo da clareza
A clareza da Escritura é uma daquelas doutrinas que você
realmente não sente falta até que ela se vá. Está constantemente sendo
atacada por cristãos bem-intencionados (e às vezes não tão bem-
intencionados!) que pensam que a melhor parte da piedade é
questionar a inteligibilidade da revelação verbal. Os desafios para a
clareza das Escrituras começam pequenos. Eles parecem humildes e
práticos em um primeiro momento. Mas, no final, se perdermos este
atributo das Escrituras – tão claramente ensinado, se não
simplesmente assumido, nas páginas da Bíblia – nós perdemos
algumas das verdades mais preciosas e disputadas que a igreja deve
ter se quiser crescer e florescer. Há muita coisa em jogo com esta
doutrina.
Em primeiro lugar, o dom da linguagem humana está em jogo.
Parece humilde dizer: “Não podemos colocar Deus em uma caixa.
Não podemos defini-lo com a linguagem humana. Se pudéssemos
defini-lo com as nossas palavras, então ele não seria mais Deus. A
Escritura simplesmente nos dá um registro inspirado de seres
humanos que tentam descrever mistérios que estão além da mera
palavra e linguagem”. Isso parece bom, até mesmo nobre. Mas há
várias suposições escondidas em um discurso como esse.
Se Deus não pode ser descrito com palavras exaustivamente, então ele não pode ser
descrito de forma verdadeira de maneira alguma.
A Escritura não é Deus revelando-se a nós, mas o registro de seres humanos
tentando entender Deus.
A linguagem humana é tão irremediavelmente falha, imprecisa e impotente a ponto
de torná-la um meio inutilizável de comunicação divina.
Cada uma dessas hipóteses é profundamente falha. Só porque Deus
não pode ser conhecido exaustivamente, não significa que ele não
possa ser conhecido de maneira alguma. Teólogos há muito
distinguem entre o conhecimento arquetípico (o que Deus tem de si
mesmo) e o conhecimento ectípico (aquilo que temos em virtude de
sua autorrevelação). E, em nenhum lugar, Jesus ou os apóstolos
tratam o Antigo Testamento como reflexões humanas sobre o divino.
Ao contrário, é a voz do Espírito Santo (Atos 4.25; Hebreus 3.7) e o
próprio sopro de Deus (2 Timóteo 3.16).
Mais diretamente ao ponto, a linguagem humana, ainda que
imperfeita e imprecisa por vezes, é mais bem vista como um dom
divino. Deus é o primeiro a falar no universo. Para ser mais preciso, o
seu discurso chama o universo à existência (Hebreus 11.3). Então ele
vem a Adão com palavras, esperando que o portador da imagem
entenda o que ele comunica e obedeça a seus estatutos. E quem é o
primeiro que contesta a clareza da revelação verbal? É a serpente,
contestando se Deus realmente falou o que Adão e Eva o ouviram
dizer (Gênesis 3.1).
Deus é o orador divino antecedente a todos os discursos humanos.
A facilidade para a linguagem é parte do dom que Deus nos dá de si
mesmo. Uma coisa é sugerir que Deus não pode ser absolutamente
conhecido ou contido em qualquer sistema verbal. É apropriado
admitir que a linguagem possa ser usada enganosamente e esteja
sujeita à ambiguidade. Mas, se somos criados à imagem de Deus,
então parece lógico que sejamos parceiros aptos a conversar com o
Deus que começou o universo ao falar. A linguagem humana é um
meio divinamente criado, pelo qual Deus, desde o início, intencionou
fazer a si mesmo e seus caminhos conhecidos.
Em segundo lugar, o dom da liberdade humana está em jogo. A
doutrina protestante da perspicuidade é uma das bases para a
liberdade religiosa no Ocidente. Implícito na afirmação da clareza da
Escritura está o reconhecimento de que os indivíduos têm a
responsabilidade e a capacidade de interpretar a Escritura por si
mesmos. Não à parte da comunidade, ou sem atenção à história,
tradição e erudição. Mas, em última análise, a doutrina da
perspicuidade significa que eu não deveria ser forçado a ir contra a
minha consciência. Só Jesus Cristo falando por meio da palavra é o
Senhor da consciência.
Claro, a mais protestante das doutrinas abriu a porta para todos os
tipos de problemas – facções, interpretações excêntricas,
individualismo desenfreado e afins. Mas, apesar desses perigos, a
liberdade que a perspicuidade protege vale o custo. Herman Bavinck
explica:
No cômputo geral, no entanto, as desvantagens não superam as vantagens. Pois a
negação da clareza das Escrituras traz consigo a sujeição do leigo ao sacerdote, ou a
consciência de uma pessoa à Igreja. A liberdade de religião e de consciência humana,
da Igreja e da teologia, permanece e cai com a perspicuidade das Escrituras. Ela
sozinha é capaz de manter a liberdade do cristão; é a origem e a garantia de liberdade
religiosa, bem como de nossas liberdades políticas. Mesmo se uma liberdade não
puder ser obtida e apreciada à parte dos perigos da licenciosidade e capricho, é ainda
assim sempre tão preferível a uma tirania que suprime a liberdade.4
1. Catecismo da Igreja Católica, 2º ed. 1997, pt. 1, sec. 1, cap. 2, art. 2, III [#85, 100].
2. Matthew Henry’s Commentary on the Whole Bible (Nova York: Fleming H. Revell
Company, 1935), 1.853.
3. João Calvino, Calvin’s Commentaries, Volume 2, Trad. Charles William Bingham (Grand
Rapids: Baker, 1993), 412.
4. Bavinck, Reformed Dogmatics, 1.479.
5. Citado em Mark D. Thompson, A Clear and Present Word: The Clarity of Scripture
(Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2006), 79.
6. David Daniell, William Tyndale: A Biography (New Haven: Yale University, 1994), 79.
7. Ibid., 383.
Capítulo Cinco
A PALAVRA DE DEUS
É FINAL
Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chegaram a Tessalônica, onde havia uma
sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três
sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras, expondo e demonstrando ter sido
necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o
Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. Alguns deles foram persuadidos e unidos a Paulo e
Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas distintas mulheres.
Os judeus, porém, movidos de inveja, trazendo consigo alguns homens maus dentre a
malandragem, ajuntando a turba, alvoroçaram a cidade e, assaltando a casa de
Jasom, procuravam trazê-los para o meio do povo. Porém, não os encontrando,
arrastaram Jasom e alguns irmãos perante as autoridades, clamando: Estes que têm
transtornado o mundo chegaram também aqui, os quais Jasom hospedou. Todos estes
procedem contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei. Tanto a
multidão como as autoridades ficaram agitadas ao ouvirem estas palavras; contudo,
soltaram Jasom e os mais, após terem recebido deles a fiança estipulada.
E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para Beréia; ali chegados,
dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes de Beréia eram mais nobres que os de
Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras
todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim. Com isso, muitos deles
creram, mulheres gregas de alta posição e não poucos homens. Mas, logo que os
judeus de Tessalônica souberam que a palavra de Deus era anunciada por Paulo
também em Beréia, foram lá excitar e perturbar o povo. Então, os irmãos
promoveram, sem detença, a partida de Paulo para os lados do mar. Porém Silas e
Timóteo continuaram ali. Os responsáveis por Paulo levaram-no até Atenas e
regressaram trazendo ordem a Silas e Timóteo para que, o mais depressa possível,
fossem ter com ele. (Atos 17.1-15)
Tessalonicenses teatrais
A atitude tessalônica em relação à verdade do evangelho é
destrutiva, beirando o delírio. Para começar, o seu julgamento é
obscurecido por preconceitos pessoais. Os judeus não gostam que
Paulo seja popular (v. 5). Na verdade, há uma grande probabilidade
de que a maioria dos convertidos de Tessalônica fosse proveniente do
paganismo, não do judaísmo (1 Tessalonicenses 1.9). O próprio povo
de Paulo desconsiderou a sua mensagem porque pensou que ele era
um mandachuva. Infelizmente, esse tipo de preconceito acontece o
tempo todo. As pessoas rejeitarão a palavra de Deus porque a música
na igreja é muito alta ou muito antiga, ou a igreja é muito pequena ou
muito grande, ou porque o pastor se veste de forma esquisita, ou
porque uma vez eles conheceram um cristão ruim, ou porque eles não
querem ser como seus pais.
E, algumas vezes, encontramos uma razão para rejeitar a palavra de
Deus porque não estamos interessados em fazer o que ela diz. Como
Aldous Huxley, o famoso autor de Admirável Mundo Novo que se
envolveu com o misticismo oriental e LSD, uma vez comentou:
Para mim, como, sem dúvida, para a maioria dos meus contemporâneos, a filosofia da
falta de sentido foi essencialmente um instrumento de libertação. A libertação que
desejávamos era simultaneamente a libertação de um determinado sistema político e
econômico, e libertação de um determinado sistema de moralidade. Nós nos
opúnhamos à moralidade porque ela interferia com a nossa liberdade sexual; nós nos
opúnhamos ao sistema político e econômico porque ele era injusto.1
Sem dúvida, algumas pessoas rejeitam o evangelho e a Bíblia por
causa de questões intelectuais genuínas, mas estou convencido de
que, com a mesma frequência, o orgulho e o preconceito pessoal são
culpados. Nós não gostamos das pessoas que ensinam a Bíblia e não
gostamos do que a Bíblia nos ensina. Então, armamos nossos
corações completamente contra a palavra de Deus, exatamente como
os tessalonicenses fizeram.
Os tessalonicenses eram cegos também às suas próprias
contradições. Você já conheceu alguém que fizesse a declaração
proposicional: “Eu não acredito em uma religião construída sobre
uma verdade proposicional” ou proferisse um sentimento intolerante:
“Eu não suporto idiotas intolerantes”? Uma inconsistência semelhante
está sendo mostrada pelos tessalonicenses. Eles se queixam dos
cristãos que causam confusão e “têm transtornado o mundo” (v. 6).
Então, o que eles fazem? Eles reúnem uma multidão, colocam a
cidade em alvoroço, e arrastam um homem chamado Jasom para fora
de sua casa (v. 5). Eles não conseguem ver a inconsistência de sua
acusação contra Paulo e Silas. Eles estão cegos para os seus próprios
pecados, tendo um peso e duas medidas. Assim como a estudante que
se recusa a ser uma “Maria vai com as outras”, então, em vez disso,
ela se veste, fala, compra, pensa e estiliza seus cabelos como milhares
de outros “rebeldes”. Ou como a pessoa crítica que censura
julgamentos severamente, ou o líder que diz: “questão de autoridade”
com base em sua própria autoridade, ou a pessoa que força sua
moralidade devassa a todos os outros porque está cansada de todo
mundo forçando sua própria moralidade. Algumas pessoas rejeitam a
palavra de Deus porque sempre enxergam nos outros aquilo que
jamais veriam em si mesmas.
E quando as pessoas estão cheias de preconceitos e cegas às suas
próprias contradições, elas acabam atacando os outros em vez de
desenvolver argumentos. Os tessalonicenses recorrem ao abuso
verbal (v. 6), à distorção da verdade (v. 7) e à agressão física (v. 5).
Essa é uma multidão muito diligente, caminhando por 72 quilômetros
até Bereia, em um esforço para fazer com que essa cidade se volte
contra os discípulos. Eles não estão interessados em uma
consideração fundamentada das reivindicações cristãs. Eles estão
interessados na destruição total de uma seita que já concluíram ser
perigosa e digna de desprezo. Alguns opositores da palavra de Deus
chegam às suas objeções honestamente, mas outros nunca pararam
para examinar as Escrituras por si mesmos. Pois já decidiram que a
Bíblia é anticiência, antimulher e antigay, sem se preocupar em
definir os termos ou investigar a Bíblia com a razão tranquila e uma
mente aberta.
Melhores bereanos
Os judeus em Bereia, pelo contrário, eram mais nobres do que os de
Tessalônica. Eles ansiavam por ouvir a palavra e eram persistentes no
estudo das Escrituras (v. 11). Diariamente eles examinavam as
Escrituras para ver se a palavra de Paulo poderia ser apoiada pela
palavra de Deus. Eles olhavam tudo, testando diligentemente o que
ouviam para discernir qual era a verdade.
Quando falo em diferentes conferências e igrejas, fico muitas vezes
surpreso com quão poucas pessoas se preocupam em olhar para suas
Bíblias enquanto estou falando. Seja por preguiça, esquecimento ou
qualquer outra coisa – esse não é um bom hábito. Eu não tenho
nenhuma autoridade em mim mesmo. Não quero que as pessoas
simplesmente aceitem o que eu digo. O povo de Deus deveria estar
testando tudo à luz da palavra de Deus. Quer estejamos ensinando ou
ouvindo, precisamos ter nossas Bíblias abertas como os bereanos.
Todos os dias eles examinavam as Escrituras para ver se o
evangelho de Paulo tinha autoridade divina. E eles confirmaram que o
que ouviram era fiel à Escritura, “com isso, muitos deles creram” (v.
12). Os bereanos eram mais nobres que os tessalonicenses, pois eram
totalmente submissos às Escrituras. Eles aceitariam algo novo – se
pudesse ser apoiado nas Escrituras. Eles creriam em algo controverso
– se fosse baseado nas Escrituras. Eles estavam dispostos a seguir a
Cristo pelo resto de suas vidas, contanto que, no processo, estivessem
seguindo as Escrituras.
Esta passagem demonstra perfeitamente o que significa afirmar a
autoridade da Bíblia. Quando se diz que os bereanos estavam
“examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram,
de fato, assim” (v. 11), a implicação é que, se a Escritura dissesse
isso, eles creriam. E, se não pudessem encontrar o ensinamento de
Paulo confirmado na Escritura e coerente com ela, eles o rejeitariam.
A palavra escrita de Deus era a sua autoridade. Ela tinha a última
palavra. Ela era a palavra final, após a qual nenhuma outra palavra
seria necessária, e contrariamente a ela, nenhuma outra palavra seria
crida.
1. Robert S. Baker e James Sexton (eds.), Aldous Huxley Complete Essays, Volume 4
(Lanham, MD: Ivan R. Dee, 2001), 369.
2. Peter Kreeft, Catholic Christianity: A Complete Catechism of Catholic Church Beliefs
Based on the Catechism of the Catholic Church (São Francisco: Ignatius Press, 2001),18.
3. Gary Dorrien, The Making of American Liberal Theology: Idealism, Realism, and
Modernity, 1900-1950 (Louisville: Westminster John Knox Press, 2003), 1.
4. Michael Horton, The Christian Faith: A Systematic Theology for Pilgrims on the Way
(Grand Rapids: Zondervan, 2011), 194.
5. Ecumenical Creeds and Reformed Confessions (Grand Rapids: Faith Alive Christian
Resources, 1987).
6. Packer, “Fundamentalism” and the Word of God, 109.
Capítulo Seis
A PALAVRA DE DEUS
É NECESSÁRIA
Um amor diferente
Pode parecer que não há nada mais para se dizer a respeito da
necessidade da Escritura, mas isso seria não ver o cerne do argumento
de Paulo. A razão da revelação é para que possamos conhecer a
misericórdia de Deus e ser salvos. A singularidade das Escrituras é
encontrada não apenas em sua sabedoria, ou mesmo em sua origem
divina. O que torna a Bíblia completamente diferente de qualquer
outro livro – seja religioso ou não – é a graça incomparável que
encontramos em suas páginas. Precisamos da Escritura porque sem
ela não podemos conhecer o amor de Deus.
Nosso Deus fala, e ele não fala simplesmente para ser ouvido ou
apenas para repassar informações. Ele fala para que possamos
começar a conhecer o desconhecido e sondar o insondável (1
Coríntios 2.9; cf. Isaías 48.8). Você pode pensar que já viu de tudo, já
ouviu de tudo, e que já experimentou tudo que se há para
experimentar. Mas você ainda não viu, ou ouviu, ou imaginou o que o
Deus de amor preparou para aqueles que o amam. Essa é a boa-nova
da cruz. Essa é a boa-nova para os perdoados e redimidos. E essa é a
boa-nova que você não encontrará em nenhum outro lugar, exceto na
palavra de Deus.
Somente por meio do Espírito trabalhando pela palavra podemos
nos tornar realmente espirituais. Quando ouvimos a palavra
“espiritual”, podemos pensar em alguém tranquilo e contemplativo,
ou expansivo na adoração, ou espontâneo, ou cheio da linguagem de
Deus, ou especialmente afeiçoado à música de louvor. Esses são o
que Jonathan Edwards chamaria de “não-sinais”. Eles não provam
nada de jeito nenhum. Essas podem ser características boas, mas, por
si só, elas certamente não o tornam espiritual, não de acordo com a
definição da Bíblia. O homem espiritual entende as verdades
espirituais (v. 13), ao passo que o homem natural (não-espiritual) não
aceita as coisas do Espírito de Deus porque elas lhes são loucura. E
quais são as coisas do Espírito que o não-espiritual não consegue
entender? Dado o contexto, Paulo está claramente se referindo à
crucificação do Senhor da glória (v. 8). O homem espiritual é aquele
que aceita a mensagem da cruz (1.18-24). Não importa o quanto você
goste de anjos, ou o quanto você reze, ou quão ansioso você esteja
para servir como um médium, ou o quanto você goste de yoga, ou o
quanto você acredite em milagres, se você não entende, valoriza e
abraça a cruz, você não é uma pessoa espiritual. A pessoa espiritual
discerne as coisas espirituais, começando com o sacrifício
substitutivo de Cristo pelos pecados do mundo. Somente abraçando
esta boa-nova é que podemos ser sábios. Somente por meio desta
boa-nova podemos ser perdoados. Somente ouvindo o Espírito falar
por meio das Escrituras podemos conhecer o amor de Deus e ser
verdadeiramente espirituais.
Um quarteto fantástico
Vale a pena reservar um momento ao final deste capítulo para
considerar a diferença que esses quatro atributos da Escritura fazem
na vida cotidiana e piedade. Conselheiros podem aconselhar de forma
significativa porque a Escritura é suficiente. Líderes de estudo da
Bíblia podem liderar com confiança porque a Escritura é clara.
Pregadores podem pregar com ousadia porque seu texto bíblico é
autoritativo. E evangelistas podem evangelizar com urgência porque a
Escritura é necessária.
Essas doutrinas são eminentemente práticas. Se a Bíblia é tudo isso
que vimos, então por que não lê-la, estudá-la, memorizá-la e ensiná-la
aos outros? Por que construímos nossas igrejas no solo raso da
filosofia pragmática? Por que aconselhamos com as sobras da
sabedoria do mundo? Por que olhamos primeiro para a beleza das
montanhas ou para dentro de nós mesmos em nossos momentos de
profunda dor e crise? Por que infundimos nossos cultos de adoração
com tão pouco das Escrituras? Por que cantamos canções desprovidas
de substância bíblica? Por que prostramos a palavra de Deus mesmo
ao som das palavras mais inteligentes dos homens?
A palavra de Deus é final. A palavra de Deus é compreensível. A
palavra de Deus é necessária. A palavra de Deus é suficiente. Em
qualquer época os cristãos lutarão onde quer que esses atributos das
Escrituras sejam ameaçados e atacados. Mas, ainda mais importante,
a cada dia, teremos que lutar a batalha da fé para realmente crer em
tudo o que sabemos que a Bíblia diz sobre si mesma; e, ainda mais
desafiador, para viver em conformidade a ela.
Capítulo Sete
A BÍBLIA INFALÍVEL
DE CRISTO
Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra de Deus, e a Escritura
não pode falhar, então, daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, dizeis:
Tu blasfemas; porque declarei: sou Filho de Deus? (João 10.35-36)
Desatado e infalível
A resposta de Jesus em João 10.35-36 é uma das coisas mais
importantes que ele falou. E também uma das mais confusas.
Entender o contexto ajudará.
Os judeus queriam apedrejar Jesus (v.31), porque ele, sendo
homem, ousou fazer-se igual a Deus (v. 33). Em resposta a esta
acusação, Jesus cita o Salmo 82. Ele apela à Escritura (“lei” neste
caso é intercambiável com “Escritura”) para se defender contra a
acusação de blasfêmia. Os judeus ficaram irados porque ele se referiu
a si mesmo como o “Filho de Deus”, então Jesus lhes lembra que, em
suas Escrituras, a palavra “deuses” (elohim) foi usada em referência a
reis ímpios (ou juízes, ou magistrados, ou alguma autoridade de
governo). O uso de “deuses” no Salmo 82.6 parece preocupante para
nós, mas o salmista, que está falando em nome de Deus neste
momento, está provavelmente usando um pouco de sarcasmo: “Olha,
eu sei que vocês são tão importantes que são como deuses entre os
homens, mas vocês morrerão como todos os outros homens”. Jesus
não está tentando provar a sua divindade a partir dessa curiosa
referência no Salmo 82. Ele está tentando destruir as pretensões deles:
“Vocês estão tão presos à palavra ‘Deus’, mas aqui nas Escrituras
esses homens foram chamados de ‘deuses’. Vocês terão que fazer
melhor do que isso para me processar apenas por um título”.
A parte importante do argumento de Jesus (para nossa
consideração) é o seu comentário improvisado de que “a Escritura
não pode falhar” (João 10.35). Aqui está Jesus defendendo a si
mesmo, e ele não está fazendo o seu argumento a partir da Torá ou de
uma das passagens mais imponentes em Isaías. Ele está construindo
seu caso a partir de uma única palavra em um salmo obscuro. E, no
entanto, ele não tem que provar a ninguém que o Salmo 82 é
autoritativo. Jesus não tenta convencer seus adversários de que “a
Escritura não pode falhar”. Ele simplesmente afirma essa verdade
como um ponto pacífico com o qual todos podem concordar. Até
mesmo palavras individuais e passagens menos anunciadas, tudo nas
Escrituras possuía autoridade inquestionável para Jesus. “Segundo
seu julgamento infalível”, Robert Watts certa vez comentou a respeito
de Jesus, “era prova suficiente da infalibilidade de qualquer sentença
ou frase de uma oração, mostrar que ela se tratava de uma parte
daquilo que os judeus chamavam ‘a Escritura’”.1
A palavra para “falhar” (luo) significa afrouxar, liberar, dispersar
ou dissolver. Em João 10.35, luo carrega o sentido de quebrar, anular
ou invalidar. É a maneira de Jesus afirmar que nenhuma palavra da
Escritura pode ser falseada. Nenhuma promessa ou ameaça pode
deixar de ser cumprida. Nenhuma declaração pode ser considerada
culpada de erro. Pois Jesus – assim como seu público judeu –
acreditava que a Escritura era a palavra de Deus, e, como tal, seria
impiedade grave pensar que qualquer palavra dita por Deus, ou
consignada em escrito por Deus, possa ser uma palavra tortuosa, uma
palavra errada, ou uma palavra falível.
Nem um I ou um Til
A segunda passagem que observaremos para obter uma imagem da
doutrina da Escritura de Jesus vem de Mateus 5.17-19.
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para
cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um
til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes
mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado
mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será
considerado grande no reino dos céus.
História histórica
Nosso terceiro texto sobre a visão de Jesus da Bíblia é Mateus
12.38-42.
Então, alguns escribas e fariseus replicaram: Mestre, queremos ver de tua parte algum
sinal. Ele, porém, respondeu: Uma geração má e adúltera pede um sinal; mas nenhum
sinal lhe será dado, senão o do profeta Jonas. Porque assim como esteve Jonas três
dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e
três noites no coração da terra. Ninivitas se levantarão, no Juízo, com esta geração e a
condenarão; porque se arrependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está quem é
maior do que Jonas. A rainha do Sul se levantará, no Juízo, com esta geração e a
condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis
aqui está quem é maior do que Salomão.
Esta história é apenas um exemplo de como Jesus sempre trata a
história bíblica como um registro direto dos fatos. Se alguma
referência do Antigo Testamento pode ser contestada, é esta sobre
Jonas. E, no entanto, Jesus fala com confiança sobre Jonas tendo
estado no ventre do grande peixe, como se ele e todos os seus
ouvintes não tivessem reserva alguma sobre a exatidão histórica da
história.
Para ter certeza, alguns estudiosos, mesmo aqueles com uma visão
elevada da Escritura, questionam se devemos levar a história de Jonas
ao pé da letra. Afinal de contas, a narrativa não é de um livro
obviamente histórico como Reis, Crônicas ou Êxodo. Jesus poderia
estar se referindo a Jonas como fazemos referência a uma peça bem
conhecida da literatura. Talvez Jesus não quisesse dizer nada mais por
“assim como esteve Jonas” do que nós diríamos com “assim como
estiveram os homens de Gondor” ou “assim como estiveram Luke e
Obi-Wan”. Talvez Jonas seja uma fábula e nunca tenha sido a
intenção de que nós a lêssemos como história.
Essa explicação parece plausível, exceto que ela não funciona, dado
o restante do discurso de Jesus. Se Jonas for apenas uma referência
literária, é curioso que, no mesmo fôlego, ele mencione a rainha de
Sabá, claramente uma figura histórica conhecida. Sendo mais crítico,
é difícil justificar a linguagem de Jesus sobre os homens de Nínive se
levantando para julgar Cafarnaum no último dia, se a maioria ou a
totalidade da história de Jonas não for para ser tomada literalmente.
Seria como fazer essa alusão literária para os homens de Gondor e,
em seguida, emitir um alerta muito sério para o seu público de que os
orcs de Mordor se levantarão para o julgamento e os condenarão. Não
faz muito sentido. Como T. T. Perowne colocou, comentando sobre o
perigo muito real que Jesus considerou em que seus ouvintes
estavam, “E ainda assim é de se supor que ele dissesse que pessoas
imaginárias que, durante a pregação imaginária de um profeta
imaginário, se arrependeram na imaginação, se levantarão naquele dia
e condenarão a impenitência real dos seus ouvintes reais?”3 Muito
pelo contrário. Nos Evangelhos, vemos Jesus fazer referência a Abel,
Noé, Abraão, Sodoma e Gomorra, Isaque e Jacó, ao maná no deserto,
à serpente no deserto, a Moisés como legislador, a Davi e seu
Salomão, à rainha de Sabá, Elias e Eliseu, à viúva de Sarepta, Naamã,
Zacarias, e até mesmo a Jonas, nunca questionando um evento único,
um único milagre, ou uma única afirmação histórica. Jesus
claramente cria na historicidade da história bíblica.
Ao invés de encontrar meios de “resgatar” Jesus de sua confiança
na história como a Escritura a apresenta, devemos estar preparados
para aceitar que, se Jesus está certo em como ele lida com a Bíblia,
então toneladas de alta crítica bíblica devem estar erradas. Nos
últimos 150 anos ou mais, muitos estudiosos modernos argumentaram
que o Antigo Testamento está longe de ser o que parece. Os cinco
primeiros livros da Bíblia não foram escritos por Moisés (e mais tarde
editados em algumas partes), mas, em vez disso, são produto de uma
combinação elaborada de diferentes fontes, algumas das quais são de
mil anos após Moisés. Isaías não foi escrito por Isaías, mas por dois
ou três “Isaías” diferentes cujas previsões proféticas notáveis
ocorreram na verdade antes mesmo de se escrever sobre elas. Mais
dramaticamente, se estudiosos liberais estão certos, a igreja
interpretou mal a história de Israel por quase dois milênios. A história
de Israel não se trata de séculos de luta para ser fiel ao único
verdadeiro Deus e obedecer à sua lei. O que realmente aconteceu foi
um desenvolvimento evolutivo pelo qual Israel passou do animismo
ao politeísmo ao henoteísmo (adorando um Deus em particular,
embora reconhecendo a existência de muitos) ao monoteísmo ao
triunfo do legalismo sacerdotal. Livros que alegam datar do êxodo
são mais tardios que Ezequiel. Primeiro Samuel, que se pensou ter
sido escrito após a promulgação da lei, na verdade descreve a vida de
Israel antes da lei. E o Pentateuco, em vez de ser a base para a vida e
religião de Israel, foi formado somente após os dias de glória de Israel
já terem há muito passado.4
Isso é uma parte essencial do que parece claro para tantos
estudiosos modernos, mas não está nem remotamente ligado a nada
que vemos de Jesus na maneira como ele lida com o Antigo
Testamento. Jesus cria que Israel estava durante a sua longa história,
sob a tutela de Jeová, que Moisés deu a eles um pacto nacional pelo
qual viver, que o Pentateuco veio no início da história de Israel, e não
no fim, e que os profetas repreenderam e corrigiram Israel por sua
incapacidade de seguir os mandamentos de Deus dados no Sinai. E,
no entanto, se a história revisionista de críticos modernos estiver
correta, Jesus estava monumentalmente errado em crer em tudo isso.
“Ele não detectou as vertentes do animismo no início da história de
Israel”, escreve Macleod. “Ele não percebeu que Levítico era uma
traição do monoteísmo ético. Ele era cego às narrativas duplas que
comprovam autoria composta. Ele estava totalmente inconsciente das
contradições que demonstravam que Moisés não escreveu
Deuteronômio”. Jesus foi, em outras palavras, “levado por um mito
nacional não mais plausível do que o de Rômulo e Remo”.5
Não é mais plausível pensar que Jesus conhecia a história judaica
melhor do que críticos alemães quase dois mil anos depois? Não é
mais seguro tomar partido de Jesus e adotar seu ponto de vista
extremamente elevado da inspiração e seu entendimento do senso
comum da história e cronologia bíblica? Algumas vezes nos é dito
que a autoridade final para nós, como cristãos, deve ser Cristo e não
as Escrituras. Sugere-se que Cristo quer nos fazer aceitar apenas as
partes das Escrituras que sejam condizentes com sua vida e
ensinamentos, que não precisamos nos preocupar com certos aspectos
da história bíblica, cronologia e cosmologia porque Cristo não quer
que nos incomodemos por eles. A ideia apresentada por muitos
cristãos liberais e não poucos autoproclamados evangélicos é que, se
quisermos adorar a Cristo e não as Escrituras, devemos permitir que
Cristo destaque-se à parte da Escritura e acima dela. “Mas quem é
este Cristo, o Juiz da Escritura?” Packer pergunta. “Não é o Cristo do
Novo Testamento e da história. Esse Cristo não julga a Escritura; ele
a obedece e a cumpre. Por palavra e ação, ele apoia a autoridade de
toda ela”.6
Aqueles com uma visão elevada das Escrituras podem ser acusados
de idolatria por reverenciar tão profundamente a palavra de Deus.
Mas a acusação é colocada sobre as cabeças erradas. “Um Cristo que
permite que seus seguidores coloquem-no como o Juiz da Escritura,
um Cristo por quem a sua autoridade precisa ser confirmada antes que
possa se tornar autoritativa e, por cuja sentença adversa, é em alguns
lugares anulada, é um Cristo da imaginação humana, feito à imagem
do próprio teólogo, Aquele cuja atitude em relação às Escrituras é o
oposto da atitude do Cristo da história. Se a construção de tal Cristo
não for uma violação do segundo mandamento, é difícil saber o que
é”.7 Jesus pode ter-se visto como o ponto focal das Escrituras, mas
nunca como um juiz. O único Jesus que está acima das Escrituras é o
Jesus de nossa própria invenção.
O Criador disse
Nossa passagem final para a compreensão da doutrina de Jesus da
Escritura é encontrada em Mateus 19. Ao dar sua resposta à pergunta
dos fariseus sobre o divórcio, Jesus remonta a Gênesis.
Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse:
Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois
uma só carne? (Mateus 19.4-5)
Estes versos são tão familiares que muitos de nós não percebemos a
declaração surpreendente que Jesus faz aqui sobre a autoria das
Escrituras. Se você for a Gênesis 2.24, encontrará o verso que Jesus
cita sobre um homem deixar seu pai e mãe, unir-se à sua mulher e
tornar-se uma só carne. O versículo em Gênesis não tem nenhum
autor em particular. É apenas uma parte da narração do texto. Mas,
agora, olhe para o que Jesus diz. Gênesis 2.24 não é apenas um verso
da Escritura, é uma declaração dita pelo “Criador, desde o princípio”.
Esta implicação não poderia ser mais clara: para Jesus, o que as
Escrituras dizem, Deus diz. Essa é a essência da doutrina de Jesus da
Escritura e a base para qualquer entendimento correto da Bíblia.
E não adianta argumentar que Jesus estivesse simplesmente
emprestando os pressupostos de seu público para ganhar a audiência.
Em muitas outras áreas – em tudo desde concepções nacionalistas
deles de um Messias às tradições dos fariseus ao tratamento deles aos
gentios e mulheres às duras palavras dele – Jesus mostrou-se
totalmente despreocupado em conformar-se à sensibilidade de seus
ouvintes. Embora ele não tenha sido tímido em corrigir suas
interpretações errôneas e abordagens hermenêuticas da Escritura, não
há indicação nenhuma de que Jesus alguma vez tenha pensado que
seus companheiros judeus tivessem uma visão muito elevada das
Escrituras. E se eles estivessem errados sobre uma questão tão
essencial, ele não teria sido uma “Maria vai com as outras”. Ele teria
corrigido as suas crenças sobre a Bíblia assim como ele os castigou
por outras “doutrinas de homens”.
Jesus não tem nenhum problema em fazer referência aos autores
humanos das Escrituras como Moisés, Isaías, Davi e Daniel. Mas eles
ficam no segundo plano. Eles são os sub-autores, trabalhando abaixo
do autor principal da Escritura, a saber, o próprio Deus. Assim, Jesus
pode citar a partir do Salmo 110, dizendo: “O próprio Davi falou,
pelo Espírito Santo” (Marcos 12.36), assim como Romanos 9.17 e
Gálatas 3.8 podem usar “Escritura” como o sujeito onde Deus é o
discursador do Antigo Testamento. Espírito Santo, Deus, Escritura –
eles não são três oradores diferentes em três categorias diferentes.
Eles se referem a um mesmo autor divino com a mesma autoridade
divina. É por isso que Jesus pode silenciar o diabo dizendo: “está
escrito”, e por isso ele pode dizer, sem qualquer indício de
controvérsia ou hipérbole que o Criador do universo escreveu
Gênesis. Para Jesus, a Escritura é poderosa, decisiva e autoritativa
porque não é nada menos do que a voz de Deus.
ATENHA-SE ÀS
ESCRITURAS
Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de
quem o aprendeste e que, desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem
tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada
por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação
na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado
para toda boa obra. (2 Timóteo 3.14-17)
É coisa séria
Comecei este livro com um poema longo – um poema de amor
sobre cantar, falar, estudar, guardar, obedecer, louvar e orar a palavra
de Deus. Comecei com a aplicação, na esperança de que até o final, a
alegria e confiança no coração do salmista estivessem explodindo
também do nosso coração. Com tudo o que sabemos agora sobre a
Bíblia a partir da Bíblia, deveríamos ter nossos corações sintonizados
para o louvor e nossas mentes voltadas para a ação.
E devemos estar prontos para permanecer – permanecer na verdade
da Palavra de Deus, permanecer lendo e ouvindo a palavra de Deus, e
permanecer crendo em tudo que é afirmado na palavra de Deus. Em
um mundo que valoriza o novo, o progressista e o evoluído,
precisamos ser lembrados de que Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje
e eternamente (Hebreus 13.8). E visto que ele continua o mesmo,
assim também a sua verdade. O que significa que, por vezes, a
consistência é o melhor negócio. Charles Hodge, o grande teólogo de
Princeton do século XIX, foi ridicularizado por vangloriar-se de que
uma nova ideia jamais teve origem no Seminário de Princeton. Mas
pintar esta declaração com tonalidades mais escuras é, como um dos
biógrafos recentes de Hodge aponta, desvalorizar o maior legado de
Hodge: sua absoluta convicção da consistência. “Tomado em seu
contexto original, o comentário de Hodge capta a verdadeira essência
do homem. Ele não estava interessado em inovação teológica porque
acreditava ser impossível melhorar a crença ortodoxa”.6 Hodge não
estava à procura de novas ideias a respeito de Deus porque ele cria
que a verdade já havia sido revelada, e, assim, entregou sua vida à
explicação e defesa das Escrituras porque cria, como Jesus, que acima
de tudo, a coisa mais fundamental que podemos dizer sobre a palavra
de Deus – em meio a centenas de coisas que podemos e devemos
dizer - é que a palavra de Deus é a verdade (João 17.17).
John Newton, o traficante de escravos que virou pastor e escritor de
hinos, conta a história da visita a uma mulher simples, que morreu em
tenra idade devido a “uma tuberculose prolongada”. Ela era uma
“pessoa prudente, sóbria, de senso claro, que podia ler a Bíblia, mas
havia lido pouco além dela”. Newton imaginou que ela nunca tivesse
viajado mais de vinte quilômetros de sua casa. Poucos dias antes de
sua morte, Newton orou com ela e “agradeceu a Deus que ele lhe fez
ver agora que ela não havia seguido fábulas engenhosamente
concebidas”. Nesta última observação a mulher repetiu as palavras de
Newton e disse: “Não, não fábulas engenhosamente concebidas; estas
são realidades de fato”. Então, ela fixou seus olhos em Newton,
lembrando-o de sua pesada vocação e da seriedade da verdade.
Meu senhor, você é altamente favorecido em ser chamado para pregar o evangelho.
Muitas vezes o ouvi com prazer; mas deixe-me lhe dizer que agora vejo que tudo o
que você disse, ou pode dizer, é relativamente pouco. Nem será possível a você, até
chegar à minha situação, e ter a morte e a eternidade em plena vista, conceber o
grande peso e importância das verdades que você declara.
TRINTA DOS
MELHORES LIVROS
SOBRE O BOM LIVRO
Questões apologéticas
Blomberg, Craig, The Historical Reliability of the Gospels (IVP
Academic, 2007). Abrange milagres, aparentes contradições, o
problema sinótico e outras áreas relacionadas com a confiabilidade
dos quatro Evangelhos. (Intermediário)
Bruce, F.F., The New Testament Documents: Are They Reliable
(Eerdmans, 2003). [Edição brasileira: Merece Confiança o Novo
Testamento? (São Paulo: Edições Vida Nova, 2010).] Semelhante
ao volume de Blomberg, porém mais curto, mais simples e mais
focado nos próprios documentos em si. (Iniciante)
Jones, Timothy Paul, Misquoting Truth: A Guide to the Fallacies of
Bart Ehrman’s “Misquoting Jesus” (IVP Books, 2007). Uma
excelente resposta ao livro sobre crítica textual de Ehrman que faz
“muito barulho por nada”. (Iniciante)
Kaiser, Walter, The Old Testament Documents: Are They Reliable
and Relevant (IVP Academic, 2001). [Edição brasileira:
Documentos do Antigo Testamento - Sua Relevância e
Confiabilidade (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2007).] Olha
para os mesmos tipos de problemas em suas contrapartes do Novo
Testamento: cânone, história, arqueologia, e transmissão textual.
(Intermediário)
Kruger, Michael J., Canon Revisited: Establishing the Origins and
Authority of the New Testament Books (Crossway, 2012). Uma
mistura fantástica de história e teologia bem utilizada para explicar
o desenvolvimento da nossa autoautenticação do cânon.
(Avançado)
Clássicos
Bavinck, Herman, Reformed Dogmatics, Volume One: Prolegomena,
(Baker Academic, 2003 [1906]), páginas 283-494. [Edição
brasileira: Dogmática Reformada, Volume Um: Prolegômena (São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012).] Você não encontrará
duzentas páginas melhores sobre a doutrina da Escritura a partir de
uma perspectiva reformada – brilhante, amplo e bíblico.
(Avançado)
Calvino, João, Institutes of the Christian Religion (Westminster John
Knox Press, 1960 [1559]), Livro 1, Capítulos 1-10. [Edição
brasileira: As Institutas (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1985).]
Mais devocional e de fácil compreensão do que você talvez esteja
imaginando. (Intermediário)
Machen, J. Gresham, Christianity and Liberalism (Eerdmans, 2009
[1923]). [Edição brasileira: Cristianismo e Liberalismo (São Paulo:
Edições Vida Nova, 2012).] Ainda o melhor antídoto para o
fascínio do modernismo teológico. (Iniciante)
Francis Turretin, Institutes of Elenctic Theology, Volume Um (P&R
Publishing, 1997 [1679]), páginas 55-167. Metódico em sua
apresentação e meticuloso na substância; um clássico
negligenciado. (Avançado).
Benjamin B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible
(P&R Publishing, 1948) [Edição brasileira: A Inspiração e
Autoridade da Bíblia (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010).]
Uma coleção dos artigos de Warfield a partir do final do século
dezenove e início do século vinte; talvez o livro influente mais
importante escrito sobre a doutrina da Escritura nos últimos 150
anos. (Avançado)
Inerrância
Beale, G.K., The Erosion of Inerrancy in Evangelicalism:
Responding to New Challenges to Biblical Authority (Crossway,
2008). Uma defesa necessária e vigorosa da inerrância na sequência
do livro de Peter Enns Incarnation and Inspiration. (Avançado)
Geisler, Norman L., ed., Inerrancy (Zondervan, 1980). [Edição
brasileira: A Inerrância da Bíblia (São Paulo: Editora Vida, 2003).]
Uma importante coleção de ensaios de épocas anteriores; o capítulo
de Feinberg sobre o significado da inerrância é especialmente
valioso. (Intermediário)
Poythress, Vern Sheridan, Inerrancy and the Gospels (Crossway,
2012). Nenhum livro recente fez um trabalho tão admirável
desembalando os princípios e promessa de harmonização.
(Intermediário)
Poythress, Vern Sheridan, Inerrancy and Worldview (Crossway,
2012). Demonstra, de forma convincente, que a inerrância é uma
doutrina que importa para toda a vida. (Intermediário)
1. Nota do Editor: A maioria dos livros listados e recomendados pelo autor não foi ainda
traduzida para o português. Todavia, mantivemos este apêndice porque reconhecemos a
importância dos títulos recomendados e sua utilidade ao leitor. Além disso, alguns desses
títulos já foram publicados em português e outros ainda poderão ser.
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