Metaética
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É comum dividir-se a ética filosófica em duas áreas disciplinares, que lidam com
problemas distintos, ainda que relacionados: a ética normativa e a meta-ética. A ética
normativa tem por objetivo responder a questões gerais deste tipo: o que devemos
fazer?; que princípios devem regular a nossa ação?; em que consiste o bom ou o valioso,
do ponto de vista moral? Já a meta-ética pretende olhar para a natureza dessas
discussões de caráter normativo e para os pressupostos que elas encerram. Ou seja, se à
ética normativa interessa definir qual o princípio da ação correta, ou boa, conforme o
critério preferido, à meta-ética interessará perceber o que significa exatamente dizer de
alguma coisa que ela é boa, ou correta: são tais propriedades morais propriedades
naturais, ou redutíveis a estas? São elas objetivas, pertencentes ao “tecido do mundo”,
são essas atribuições construções de caráter intersubjectivo, ou são apenas o resultado
da projeção das nossas atitudes subjetivas sobre o que se passa no mundo? Há alguma
coisa a que se possa chamar de “factos morais”? E que relação terão eles com outro tipo
de factos, acerca da psicologia dos agentes, acerca do bem comum ou individual, ou
acerca do que é a “vida boa”? Como é que chegamos a ter conhecimento desses factos?
Historicamente, a meta-ética surgiu associada a uma ideia bastante radical de acordo
com a qual a discussão ética não pode ser mais do que mera análise linguística (Ayer
1936), e portanto inicialmente a meta-ética ocupou-se sobretudo com questões de tipo
semântico, que passavam por definir a natureza e o estatuto das asserções morais:
definir, por exemplo, se tais asserções podem exprimir conhecimento, se são de facto
juízos, sujeitos a condições de verdade, e que tipo de estado mental elas exprimiriam.
Ainda que a ideia radical tenha sido abandonada, esses problemas permaneceram
relevantes. Assim, se as questões normativas substantivas serão questões de primeira
ordem, os problemas meta-éticos levantam questões de segunda ordem, por meio das
quais se pretende averiguar dos comprometimentos metafísicos, epistemológicos,
semânticos e psicológicos que a discussão ética suscita.
O realista moral é aquele que acredita que existem factos e propriedades morais
objetivos (independentes das convicções morais das pessoas, de uma comunidade real
ou idealizada) e que ao emitirmos juízos morais o que fazemos é descrever esse estado
de coisas. O realista moral é, portanto, também, um cognitivista, na medida em que para
ele o propósito dos juízos morais é exprimir crenças acerca do mundo, que podem ser
avaliadas como verdadeiras ou falsas, consoante consigam ou não descrever
corretamente a realidade a que se reportam. Não se trata apenas de defender que há
soluções melhores ou piores para os problemas morais; trata-se antes de defender que
existem respostas certas e erradas para os problemas morais precisamente porque
existem factos morais.
À primeira vista, a perspetiva realista é a que mais se coaduna com o que são as
nossas práticas e discurso comuns – afinal, parece que estamos a fazer coisas muito
semelhantes quando dizemos que ‘A relva é verde”, “A mesa é quadrada” ou “O João é
cruel”; estamos, nomeadamente, a atribuir propriedades a determinados objetos ou
entidades. Neste sentido, afirmar que existem factos morais é equivalente a afirmar que
existem aquelas coisas em virtude das quais as condições de verdade dos juízos morais
são satisfeitas. A nossa linguagem moral tem não só um carácter aparentemente realista
como também objetivista. Afinal, parece-nos legítimo acreditar que há alguma coisa que
é o estar certo ou errado do ponto de vista moral, acreditamos que há posições e ações
mais acertadas do que outras, que os juízos morais podem ser verdadeiros ou falsos
objetivamente, isto é, independentemente do que possam ser as convicções dos
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indivíduos envolvidos. O realista é, pois, aquele que defende que, neste caso, as
aparências não iludem.
E de facto os argumentos apresentados pela perspetiva realista têm na sua base uma
espécie de inferência a favor da melhor explicação. O nosso envolvimento em
determinadas práticas implica determinadas condições/pressupostos, a saber: que
existam respostas corretas para as questões morais, a respeito das quais haja espaço para
o engano/erro; que certas ações sejam efectivamente moralmente melhores do que
outras, e que isso dependa apenas das próprias características das ações, e não do que as
pessoas possam pensar acerca delas. Ora, a melhor explicação para todos estes
pressupostos nos quais assentam as nossas práticas morais é apresentada pelo realismo
moral. Dados os indícios disponíveis, isto é, tendo em conta a natureza e a função das
práticas em que assenta a nossa linguagem moral, a forma mais plausível de as explicar
é apelando para a ideia de que existem factos morais objetivos. De outro modo, teríamos
de rever radicalmente o entendimento que temos e o uso que fazemos da linguagem
moral.
No que diz respeito às posições que contrariam o realismo moral, há pelo menos
duas formas de se ser anti-realista. Uma dessa formas é assumir a chamada teoria do
erro (Mackie 1977), que implica concordar com a ideia de acordo com a qual a
linguagem moral tem uma vocação cognitivista e objetivista, mas, uma vez que o
mundo não pode incluir coisas como factos ou propriedades morais objetivos, então
todos os juízos morais são falsos. Ou seja, os juízos morais de facto expressam crenças,
e portanto têm valor de verdade, mas se fizermos um ‘inventário’ do que o mundo pode
incluir, teremos que chegar à conclusão de que não há nada no mundo que possa tornar
verdadeiro qualquer juízo moral. O pressuposto de que a teoria do erro parte é o
seguinte: se queremos pensar acerca da natureza das propriedades e factos a que nos
referimos quando falamos sobre questões éticas, não podemos ficar reféns da análise
conceptual ou da forma como a linguagem parece ser utilizada, mas teremos, antes, de
pensar no estatuto ontológico das entidades para as quais ela aponta (perceber de que
forma devem ser entendidos os conceitos nada nos diz acerca de saber se esses
conceitos são satisfeitos por alguma coisa). E o ponto principal da argumentação de
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Mackie é que factos morais objetivos não são o tipo de coisa que possa fazer parte da
constituição do mundo – se descrevermos, por exemplo, um assassinato, há
determinados aspectos dessa ação que são factuais, que pertencem ao mundo: “X
perfura Y com uma faca”; “o sangue jorra”; pode ser também um facto acerca do
mundo que alguém, ou a sociedade no seu conjunto, considere que essa ação é errada,
mas o próprio ser-errado-da-ação não é um facto que faça parte do mundo. Podemos
com efeito descrever a situação em todo o seu detalhe, caracterizar exaustivamente a
ação do perpetrador, e mesmo reportar as nossas reações perante o acontecimento mas
não conseguiremos apontar para a perversidade do acto; o facto de ele ser errado não é
uma dessas características que compõem o mundo, ou se quisermos usar a imagem de
Wittgenstein, não figuraria no tal livro que pudesse conter todos os factos acerca do
mundo (Wittgenstein 1929). O ponto é óbvio: o mundo mecânico da matéria em
movimento é um mundo indiferente, onde o valor não está presente. Para ser possível
apelar a factos morais objetivos, considera Mackie, teríamos de admitir a existência de
propriedades muito bizarras do ponto de vista metafísico, diferentes de tudo o resto na
natureza, na medida em que estaríamos a referir-nos a propriedades intrinsecamente
prescritivas, propriedades que tivessem em si mesmas inscritas o caráter objetivo e
irrecusável de “dever ser seguido”. Ora, entende Mackie, as propriedades por meio das
quais podemos descrever o mundo não nos dizem o que devemos fazer – são inertes, ou
neutras, do ponto de vista da motivação para a ação; não dão qualquer indicação
normativa necessária. (É óbvio que Mackie aceita que há certas ações que “devem” ser
levadas a cabo, mas apenas num sentido puramente instrumental – se lhe juntarmos o
ingrediente motivacional, o desejo do agente. Isto é, há factos descritivos que podem ter
interesse do ponto de vista prático, mas apenas contingentemente; é importante, por
exemplo, do ponto de vista prático, ter conhecimento do facto de que beber refrigerantes
faz mal à saúde, caso eu esteja interessada em conservar a minha saúde. O que está sob
ataque é apenas a validade objetiva do imperativo categórico – pois essa seria uma outra
forma de dizer que existem factos morais objetivos.)
A outra forma de se ser anti-realista passa por negar não só a ideia de que existem
factos morais objetivos como também a ideia de que a função dos juízos morais é
expressar crenças acerca da forma como o mundo é. Esta é a opção não-cognitivista. Os
não-cognitivistas não acreditam que o mundo possa incluir coisas como factos morais,
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mas não supõem que a circunstância de não existirem aquelas coisas que fariam dos
nossos juízos morais verdadeiros constitua um problema, uma vez que na realidade a
função dos juízos morais não é descrever o mundo; eles não exprimem crenças mas sim
estados mentais não-cognitivos, como desejos, emoções, preferências, atitudes de
aprovação/desaprovação. Esta perspetiva assumiu diferentes formas e roupagens ao
longo da evolução da meta-ética, desde o emotivismo de Ayer dos inícios do século
XX, até, por exemplo, ao projetivismo de Simon Blackburn (1996), para quem a
solução projetivista é a única forma de resolver os problemas com que o realismo moral
se defronta (basicamente, a acusação de que o discurso moral nos forçaria a aceitar uma
espécie de realismo platónico), sem ser preciso assumir que todos os juízos morais são
falsos (pois qual seria a utilidade do discurso moral, nesse caso?). Se o realismo moral
convoca e inunda o mundo de propriedades estranhas para dar sentido ao discurso
moral, a solução projetivista sustenta que as propriedades que parecem pertencer
genuinamente às ações e acontecimentos seriam apenas a projeção ou o reflexo das
nossas respostas subjetivas perante um mundo que de facto não contém essas
propriedades. Blackburn assevera que uma explicação projetivista pode dar conta de
todas as propriedades aparentemente realistas e cognitivistas com que o discurso moral
parece comprometer-nos, incluindo a ideia de que podemos falar de verdade e erro a
propósito das asserções éticas (estas seriam verdadeiras não porque se reportam a uma
matéria de facto, mas porque estão sujeitas à crítica e ao exercício da racionalidade – há
sensibilidades éticas melhores do que outras). A grande crítica endereçada às propostas
não-cognitivistas, contudo, é que estas introduziriam um elemento de arbitrariedade e
discricionariedade que não permite fazer da discussão ética uma discussão assente em
bases racionais, desde logo porque o elemento essencial de uma avaliação moral seria
algo a propósito do agente (as suas atitudes subjetivas) e não a propósito da forma como
o mundo é.
2. O realismo naturalista
Uma das formas de encontrar saída para esse problema central da meta-ética que
consiste em acomodar o valor moral no mundo passa por argumentar que não há nada
de bizarro com as propriedades morais que atribuímos a pessoas ou a ações – tais
propriedades são propriedades naturais (isto é, podem ser descobertas por meio de
Do que foi dito até agora facilmente se depreende que um dos principais nós górdios
da discussão meta-ética diz respeito à aparente impossibilidade de conjugação destas 3
teses:
Em suma, as diferentes teorias da razão prática (alguns autores, como Nagel (1986),
preferem falar de “realismo normativo”, outros, como Korsgaard (2003) ou Rawls
(1980), preferem a designação de “construtivismo”), ainda que com nuances entre si,
pretendem de uma maneira geral ancorar a objetividade da ética somente nas exigências
ou normas universais da razão. As razões morais serão, por definição, gerais, e estarão
disponíveis de igual modo para todos os seres racionais na medida em que é possível
saber, por meio de um procedimento puramente racional, o que é a coisa a fazer, de tal
forma que qualquer ser racional estaria obrigado a agir desse modo, independentemente
de quais sejam as suas motivações subjetivas. Esta proposta é atacada por duas direções
distintas: é criticada pelos partidários do realismo substantivo, por não garantir mais do
que uma forma de intersubjetividade (Shafer-Landau (2003), por exemplo, defende que
um realismo moral teria de assegurar que o facto de alguma coisa ser moralmente
correta ou errada não pode depender do que seres racionais são capazes de conceber
como errado; a realidade moral teria de ser conceptualmente anterior e existencialmente
independente de qualquer ratificação, seja ela de uma comunidade actual ou ideal de
agentes racionais); e é simultaneamente criticada pelos teóricos das razões internas, para
quem as tentativas de fundamentar a moralidade pela via da racionalidade falham
porque não é verdade que todos os agentes racionais, seguindo apenas as normas da
racionalidade, chegariam à mesma conclusão acerca do que se deve fazer.
Pensemos, por exemplo, na ideia de acordo com a qual qualquer agente – capaz de
se reconhecer como um agente entre outros – tem uma razão para respeitar os interesses
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dos outros. Grande parte do esforço teórico daqueles que pretendem fundamentar
racionalmente a ética passa por mostrar que um princípio deste tipo pode ser derivado
racionalmente (independentemente de quais sejam as motivações ou interesses do
agente): se eu acredito que X é uma pessoa como eu, e acredito que X está a sofrer, e
acredito ainda que possa aliviar o sofrimento de X fazendo Y, então isso é uma razão
para fazer Y. Haverá necessariamente um caminho deliberativo capaz de ser traçado
entre o conjunto motivacional de qualquer agente racional e o princípio de que devemos
respeitar os interesses dos outros. Um agente racional será precisamente aquele que é
capaz de ver esse princípio (cf. Korsgaard 1986).
Os que duvidam que seja possível fazer assentar o edifício ético em bases puramente
racionais duvidam que se possam fazer essas afirmações de carácter geral acerca dos
caminhos deliberativos que qualquer agente racional pode traçar. Mesmo tomando o
processo de deliberação e de reflexão racional num sentido bastante liberal e
indeterminado (não o reduzindo a um puro raciocínio meios-fins), não será possível
afirmar que está disponível para qualquer agente racional, qualquer que seja o conteúdo
do conjunto motivacional que o caracteriza, um caminho deliberativo que poderá
conduzi-lo à conclusão de acordo com a qual ele tem uma razão para respeitar os
interesses dos outros. Ou seja, não é verdade que qualquer agente racional (isto é,
alguém que seja capaz de pensar em termos de razões para agir, que seja capaz de
aplicar as regras de consistência e universalidade) terá necessariamente uma razão para
respeitar os interesses dos outros, apenas porque é racional.
Susana Cadilha
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