Terra Roxa e Outras Terras - LITERATURA MSS
Terra Roxa e Outras Terras - LITERATURA MSS
Terra Roxa e Outras Terras - LITERATURA MSS
Introdução
Para Couceiro, cultura deveria ser um termo utilizado no plural, dada a “impossibilidade
de unir de forma harmônica e generalizante as manifestações culturais das várias esferas
da sociedade” (2002: 15). A pluralidade da cultura brasileira é refletida, dentre as inúmeras
manifestações, tanto no sincretismo religioso existente no país quanto na produção artística
e, há muito, a questão da construção da identidade cultural brasileira está intimamente ligada
à produção literária. Para ficarmos apenas com dois exemplos, já no Romantismo, de acordo
com Helena, José de Alencar buscava:
Mário de Andrade, ainda na primeira metade do século XX, foi um dos grandes defensores
de que a cultura brasileira, assim como nossa população, possui traços que evidenciam a diversidade
como um aspecto relevante na construção de nossa identidade cultural, segundo Beatriz Resende
“somente o entendimento, já naquele momento, da importância do hibridismo na constituição da
cultura, permitiria criar um personagem como Macunaíma” (2001: 95).
Dessa maneira, Mário de Andrade antecipa, para a realidade local, para o Modernismo
e, da mesma forma para o coletivo, os pressupostos de Hall (2001) acerca do hibridismo no
processo de identificação cultural na pós-modernidade.
A diversidade cultural brasileira, assim como o processo de identificação nacional,
relaciona-se à construção de identidades regionais distintas, marcadamente pela evidente
preocupação dos estados que compõem a União com a consolidação de uma identidade
própria, especialmente os criados mais recentemente, com menor tradição cultural e menos
prestigiados economicamente. Assim, se por um lado temos a emergência de nações e de
indivíduos multifacetados, por outro se evidencia uma espécie de urgência na construção
de identidades regionais distintas, com marcas bem definidas. Se Bachelard (1988: 116) nos
remete à idéia de que “o mundo é um ninho”, sugerindo a ampliação do signo, a cultura sul-
mato-grossense tem como ninho o pantanal.
As tentativas de associar o Pantanal a Mato Grosso do Sul são comuns em diversos
setores e extrapolam os limites estaduais, repercutindo nacionalmente; o país como um todo,
em vários segmentos, explora a imagem da natureza brasileira, muitas vezes ainda relaciona
ao exotismo. Com a literatura, essa identificação com a natureza também ocorre dentro e
fora dos limites estaduais.
Alçado à condição de ícone da cultura sul-mato-grossense, ao poeta Manoel de
Barros quase é destinada a condição de poeta oficial. Essa ligação é perceptível, por exemplo,
nas considerações que Bosi efetiva sobre Barros e a poesia brasileira contemporânea:
a poesia deste fim de milênio parece ter cortado as amarras que a pudessem
atar a qualquer ideal de unidade, quer ético-político, quer mesmo estético,
Assim como Bosi, alguns críticos locais tendem a essa associação entre o poeta e o
pantanal. Menezes, discorrendo sobre a questão, afirma que “se o quadro da literatura em
geral ainda é um pouco comprometido com a história recente da formação do estado, o
mesmo não se pode dizer da poesia, pois esta leva o nome do estado e do Pantanal aos anais
da história, com o poeta Manoel de Barros” e considera relevante o fato de Barros “trazer
impregnado em sua re-invenção da palavra o Pantanal, os costumes, as origens e a cultura
sul-mato-grossense” (2002: 42).
A distinção efetivada entre a “literatura em geral” e a poética de Barros tende a
reiterar o desnivelamento de status entre o poeta e os demais autores locais; tais atitudes
provocam, para além de um estereótipo da produção literária de Manoel de Barros, a redução
a um segundo plano de outros autores, bem como serve de reafirmação para a própria cultura
que se tenta instituir ancorada em limites geográfico-espaciais. Para Menegazzo o estereótipo
regionalista acerca de Mato Grosso do Sul é fruto de um “certo olhar que vem de fora”,
“estrangeiro”, evocado pelos traços semânticos que o próprio nome sugere - Mato Grosso
-, entretanto, dado o processo migratório e as próprias fronteiras geográficas, o estado
“apresenta formas culturais fundamentadas na invenção, superando o estereótipo naturalista/
regionalista, construindo sua história numa perspectiva telúrica e universal” (2000: 45).
O texto de abertura do Livro de pré-coisas (1997: 9), “Anúncio”, torna-se bastante
significativo para a compreensão da poética de Manoel de Barros dissociada de uma ligação
exclusiva ao universo pantaneiro, regional:
Este não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma anunciação. Enunciados
como que constativos. Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de
linguagem.
Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De repente um homem
derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam
louros crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos primaveris...
(Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas primaveras...
Isso é fazer natureza. Transfazer.)
Essas pré-coisas de poesia.
“Transfazer” a natureza, (re)criar a partir de elementos diversos que não estão, via
de regra, ligados à concepção de um espaço geográfico específico, o pantanal, idealizado
a partir de então, Flora Thomé passou a desenvolver um trabalho aliado à Associação dos
Artistas Plásticos de Três Lagoas, com a divulgação, por meio de calendários para mesa, com
dupla face, dos haicais da autora aliados às obras dos artistas plásticos locais.
O artista Emmanuel Marinho - mix de poeta, diretor teatral, ator, músico e agitador
cultural - mantém forte relação com a cultura de MS, especialmente na região de Dourados,
cidade próxima à fronteira “onde o Brasil foi Paraguai”. O início de sua produção literária
é marcado pela publicação de Ópera (1980). Durante a primeira metade da década de 1980,
publica outras duas obras: Cantos da terra (1982), Jardim das Violetas (1983). A essas produções
seguem: Margem de Papel (1994), Satilírico (1995) e Caixa de Poemas (1997). De acordo com
Souza (2000, p.134), Opera 3 é “uma peça teatral poética”; em Cantos da Terra o autor “canta sua
gente, seus sonhos, seus amores e seus desejos de liberdade; em Jardim das Violetas, utilizando
as palavras do próprio poeta, Marinho faz um “istudo poético, um livrolúdico, pazsseio entre
palavras, acuósticos e borboletas, numa aluvisão da poesia sobre a poesia”.
Em Caixa de Poemas, por intermédio de uma obra em que o elemento tátil interfere
no material poético, Marinho produz não um livro com o formato habitual, mas uma “caixa”
em que os poemas não possuem uma ordem evidente a ser seguida, uma vez que é possível
a retirada e leitura dos poemas de maneira aleatória - evidência de que não existe uma ordem
linear para a leitura da obra: não temos um primeiro ou um último poema, possuímos uma
obra que pode ser construída/desconstruída.
As diversas formas geométricas que compõem a “capa” ou a “caixa em si”, já são
reveladoras da diversidade que será encontrada na obra: é possível perceber várias formas
geométricas oriundas do quadrado, do retângulo, do triângulo e do círculo que, em princípio,
são as formas mais evidentes e que, após um olhar mais atento, possibilitam a visão de outras
formas. Outro aspecto que, de imediato, chama a atenção do leitor é o material, o papel
utilizado: o autor lança mão do uso de papel reciclado, praticamente artesanal, o que confere
diferentes texturas ao texto e contribui para a percepção tátil de uma poesia que também
explora a disposição gráfica das palavras no papel, uma apreensão concretista; tal fato é
revelador elaboração formal e confirma o pensamento de Panofsky (2001, p.32) de que na
obra artística, em muitos casos, “o interesse na idéia é equilibrado e pode até ser eclipsado
por um interesse na forma”.
Além do lirismo e da metalinguagem (a poesia /é suja de som/ de sonhos/ de sangue/
e de signos.), cromatismo é outra peculiaridade evidente: há a apropriação das cores tanto no
colorido do papel quanto como elemento poético e a referência, explícita ou implicitamente,
a artistas plásticos e literários, o que possibilita a ampliação dos horizontes de expectativas
do leitor:
os poetas malditos
atravessam meu espelho
quando sou sobra sombra ou rio.
as cores me adoçam
e me aguçam.
A diversidade temática é outro aspecto a ser destacado: o livro não gira em torno de
um único tema e fica distante de estar circunscrito ao espaço geográfico pantaneiro; vários são
os objetos que servem de pretexto para a arte de poetar: entre outros, as notícias de televisão,
o amor (assim como a televisão/ precisa de santa chutada/ seqüestro à mão armada/ e
outros casos de polícia/ meu coração amor/ precisa de notícias/ me internet! / internet!
/internet!) o índio – recorrência para Marinho – apesar de o Estado possuir considerável
número de reservas, os indígenas socialmente não são respeitados e culturalmente pouco
representados:
O ÍNDIO E O TRATOR
O TRATO AO ÍNDIO
O TRATOR INDO
E O ÍNDIO RINDO
O ÍNDIO E O TRATOR
O TRATO AO ÍNDIO
O ÍNSIO INDO
SUMINDO
SÓ INDO
E O TRATOR
TRAAAAAAAINDO.
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Algumas considerações
OBRAS CITADAS
ABSTRACT: The cultural plurality of a country, or even of a state, can be verified in varied
manifestations of diverse kinds; the literature is one of these. What we intend with the
present article is to make evident, through some literary aspects of three poets’ production
from Mato Grosso do Sul, traces of a plural multifaceted identity.
KEYWORDS: literature, Mato Grosso do Sul culture, identity.