Artigo - Rubens Vaz - A Poesia Que Nos Frequenta.

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674

_____________________________________________________________________________________________________

NORTE DA PRODUÇÃO CULTURAL NA REGIÃO NORTE: A POESIA


QUE NOS FREQUENTA

Rubens Vaz Cavalcantei

RESUMO: O artigo discute o conceito de literatura regional e a produção


poética de Porto Velho como resultado de um projeto de recuperação do imaginário
popular por meio da cultura e da história oral, desenvolvido junto à população
rondoniense.
PALAVRAS-CHAVE: poesia regional; Rondônia; literatura regional; Porto
Velho.

Tudo indica que na cena contemporânea existe um lugar reservado ao


“regionalismo”, já distanciado do conceito modernista, que o tornou referência ao
romance social nordestino e das conotações térreas com que a literatura e a música
lhe adornaram nas últimas décadas. Sim, esse lugar existe e, aparentemente, sem
nenhum conflito. Em igual medida que existe lugar para as múltiplas tendências
estéticas que nos visitam em tempos de produções multimodais, informatizadas ou
não, e também de retorno às origens próximas e distantes das respectivas raízes. 102
Estamos num procedimento de globalização e de mundialização, só para lembrar
Walter Mignolo, que permite o local contracenar com o global de forma diferenciada.
Intuímos que neste caso estamos mais sob os efeitos da mundialização cultural, em
que “as histórias locais importam e transformam projetos globais”, que dos efeitos da
globalização, em que “as histórias locais projetam e exportam projetos globais”
(Mignolo, p. 376). Esta afirmativa não tem pretensão de simplificar a questão, mas
sim de eleger uma visada que permita localizar a produção cultural do estado, mais
especificamente da capital, Porto Velho, no cenário contemporâneo que nos cerca e
cerceia, elegendo a literatura como campo de visão para este olhar improvisado.
Reiterando a opção pelos conceitos de mundialização e de cultura, à luz de
Renato Ortiz e de Edouard Glissant, em que se elege “as histórias locais nas quais
se encenam os projetos globais, ou onde têm de ser adaptados, adotados,
transformados e rearticulados” (Mignolo, p. 376), apresento-vos a hipótese das qual
estou partindo.

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

No campo da literatura, a nossa produção importou não só os modelos


ocidentais circulantes como aderiu as novas formas de produção e veiculação
permitidas pelos avanços tecnológicos ligados à teoria da comunicação e da
informatização. Falamos de flora, de fauna e de urbanidade com a mesma opção de
suportes e interfaces tecnológicos que o resto do mundo emprega. Quando
argumentamos que a globalização, na pós-modernidade, valoriza a história local,
talvez, inadvertidamente, estejamos falando de um local nostálgico, de um
regionalismo superado, pois, segundo Stuart Hall:

Este “local” não deve, naturalmente, ser confundido com velhas identidades,
firmemente enraizadas em localidades bem delimitadas. Em vez disso ele
atua no interior da lógica da globalização. Entretanto, parece improvável
que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É
mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações
“globais” e novas identificações “1ocais”. (Hall, 2005, p. 78).

Neste sentido, pode ser que o regional (ou o “local”) esteja, por nós, sendo
“confundido com velhas identidades firmemente enraizadas em localidades bem
delimitadas” e que não estejamos preparados para assumir as “novas identificações
locais”. Produzimos arte para nossa tribo, mas almejamos a aldeia global. Somos 103
globais. Isso vale para a literatura.
O conceito de literatura regional no Brasil, como já foi dito, teve seu auge na
segunda fase do modernismo, com a geração de 30, ancorado à tendência temática
e estilística que culminou no romance regionalista, também chamado de romance
nordestino ou romance social. Essa tendência assim foi nomeada por tematizar os
sertões brasileiros, focada na truculência dos coronéis fazendeiros e na desventura
do povo sertanejo, valorizando a linguagem local, sendo seus autores, quase em
sua totalidade, nordestinos.
Entretanto, de forma pouco criteriosa, o termo continua sendo usado para
definir a produção literária periférica, distante das luzes globais, fazendo parecer que
literatura regional, assim como literatura marginal, é a marca da qual os autores
desconhecidos nacionalmente, não conseguissem se desvencilhar. Às vezes nos
perguntamos: será a literatura regional uma literatura que só é lida e linda em
determinada região? Será um traço térreo que tão somente anuncia e denuncia a
relação do homem com o seu lugar?

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

As definições de literatura regional nos parecem ainda presas ao tempo


histórico-literário passado. Por isso mesmo, não acreditamos que exista mais uma
literatura regional nos termos em que é nostalgicamente personificada, mas uma
literatura brasileira feita em diferentes regiões, assinalada por tons a um só tempo
local e universal. Pensando assim, direcionamos a questão para a literatura aqui
produzida.
Em Porto Velho, a publicação, na década de 80, de vários livros de poesia e
alguns de prosa que tematizaram a paisagem natural e humana da Amazônia,
evidenciou a existência de um movimento literário de caráter regionalista. A esse
movimento, pela nossa necessidade de cunhar uma identidade literária, denominou-
se regional. Um livro despretensioso, Papo de taberna, coletânea que reunia os
loucos e malditos de então, agenciou a mudança de ventos na nossa literatura.
Outros tantos se juntaram a eles e assim começamos, ou reiniciamos nossa história
bibliográfica.
Dois livros publicados em Porto Velho abordam a história em pauta. O
primeiro deles se intitula Síntese da literatura de Rondônia, de autoria dos poetas
Matias Mendes e Eunice Bueno, publicado em 1984, pela Gênese-Top. O segundo,
104
Literatura de Rondônia, caderno cultural resultante de uma conferência proferida
pelo também poeta Edson Jorge Badra, em 1987. Os dois livros tropeçam na
mesma problemática: a escassez de estudos anteriores sobre a produção literária no
estado, terminando por enfocar a produção literária de Guajará-Mirim e Porto Velho.
Um terceiro livro, mais específico, intitulado Olhares sobre a Amazônia, organizado
por Miguel Nenevé, Martin Cooper e Marilene Proença, publicado pela Editora
Terceira Margem em 2001, no qual Carlos Moreira e Rubens Vaz Cavalcante
publicaram o ensaio “Olhar histórico-poético sobre Porto”, em que efetuam uma
relação entre produção poética e história de Porto Velho.
Independente de estudos específicos sobre a literatura rondoniense é de
conhecimento público que existe uma produção, embora dispersa, de obras poéticas
e prosísticas. Essas produções, pelo caráter individualista da literatura local, não
chegam a se configurar escola, indo da produção de literatura sobre Rondônia,
situada no meado do século passado, como é o caso de Desbravadores, de Vitor
Hugo e A ferrovia do diabo, de Manoel Rodrigues Ferreira, consideradas como

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

literatura histórica e de fundação (revista criticamente em Enganos da nossa história


(2007), do poeta e pesquisador Antônio Cândido da Silva), até a literatura
multimodal, informatizada ou não, que produzimos diariamente em blogs, sites, e-
mails, torpedos, pichações, materializando algumas formas afinadas com os tempos
de globalização e mundialização em que vivermos. Um exemplo é a revista litero-
cultural Expressões, já em seu décimo oitavo número, que circula pelas esferas do
facebook, do twitter, do Orkut, do youtube e pelas blogosferas das redes sociais
informatizadas.
Os autores que compõem o nosso corpo literário, em razão do fluxo
migratório para estas paragens, nas décadas de 70 e 80 e que continua em nossos
dias, são em maior parte originários de outros estados. Portanto, autores locais são
poucos. Somos menos autores “de” que autores “em”.
No tocante à temática regional, poucos são os autores que se voltam para os
motivos rondonienses, mesmo porque nossas tradições, usos e costumes passaram
por um processo de aculturação, reflexo dos repetidos êxodos, e de atualização,
resultante da inserção digital do presente. Em Porto Velho, particularmente,
restaram como tema a EFMM, as Três Marias, o rio Madeira e algumas poucas
105
lendas a ele ligadas. A temática indígena, que poderia dar uma cor local ao nosso
discurso, perdeu-se em meio ao burburinho urbano que trouxe novos mitos e lendas.
Temos um livro que vai a busca de nossas origens mais primitivas e por isso mesmo
não pode deixar de ser citado: é o Juru, jurupá, jurupari, do artista plástico porto-
velhense Júlio Carvalho, publicado em 2001, pela Edufro, o qual resgata mitos
indígenas e populares desta região. O livro é resultado de um projeto de
recuperação do imaginário popular por meio da cultura e da história oral,
desenvolvido junto à população rondoniense.
Muito embora produtivos, nunca tivemos autores nacionalmente reconhecido
pela crítica ou pelos leitores brasileiros. A nossa linha evolutiva literária, em que
figuram autores de diferentes tendências como Vespasiano Ramos, Bolívar
Marcelino, Matias Mendes, Ary Tupinambá, Ailton Bahia, Kléo Marion, Eunice
Bueno, Emanuel Pontes Pinto, só para citar os canônicos, não registra destaques
locais na cena literária brasileira e nem na amazônica. Quando se fala de literatura
amazônica, os nomes elencados: Inglês de Souza, Márcio Souza, Milton Hatoum,

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

Benedito Monteiro, Thiago de Mello, entre outros, não pertencem ao nosso universo
de autores.
A produção poética em Porto Velho, incentivada esporadicamente pelo poder
público, mas garantida pela iniciativa particular de vários autores, tomou novo
impulso. A dificuldade se encontra na distribuição nacional das obras publicadas,
que terminam circulando apenas em livrarias de Porto Velho e no corpo-a-corpo dos
próprios autores.
Para ilustrar apresentamos alguns textos dos poetas publicados na coleção
CacOS em 2003, pela Edufro, Editora da Universidade Federal de Rondônia. São
eles: Carlos Moreira, Nilza Menezes, Mado, Pilah de Zayas Bernanos e Binho,
autores dos livros Evangelho segundo ninguém, Feitura, Das tripas ao marcapasso,
A face do ocaso contínuo e Arabescos Aéreos, respectivamente. Remeto-me
também aos livros O lado aberto, de 2004, do poeta e professor Eduardo Martins, A
sobra das noites, do poeta e jornalista Adaídes Batista (Dadá) e Avenoite & outros
poemas, do poeta e professor Carlos Reis.

Os poemas:
106

(Carlos Moreira)
o rebanho enlouquecido
de palavras feito feras
arrebenta o mar do sono
apesar da tua cegueira
é azul branca vermelha
a falsa face do sol
mas perdoa tua estranha
fé no humano coração
viver é pura façanha
existir é tão estranho
quanto dizer sim ou não

(Mado)

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

ao cair da tarde soletro versos


comovido na cidade visitada
abro meu coração dedicado
às garotas passeando
passando pedalando as bundas pelas celas
escorrendo olhares vejo velhos
passando o passado
em olhares nas pedras dos dominós
urubus passam saboreando o fim da tarde
o céu encoberto
encobertas as queimadas amazônicas
destruição explícita na boca do céu

(Nilza Menezes)
quando criança ouvia
minha mãe dizendo
que o bicho homem era perigoso
107

ficava olhando as solteironas


com o corpo murcho e a pele seca
e o vestido triste
enquanto as amigas mais velhas
se casavam
e passavam a ter o direito
de conversarem com outras
mulheres cheias de segredos

as tias solteironas
ensinavam o catecismo
preferi o bicho homem
com medo de só murchar
e não poder ter segredos

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

(Pilar de Zayas Bernanos)


o vento suspira
as ramas se põem a chorar
só, a criança ri

breve crepúsculo
o fragor das andorinhas
roubam o silêncio

épico epocal (Binho)


helena
penélope
palas
atena

minerva
108
calipso
ema

quem
bate
á
porta
neste
fim
de
poema
?

O lado aberto (Eduardo Martins)


O lado aberto te esconde

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

Em tua parte palavra


Neste lado quase ponte
Que se estende para o nada

Que quase mundo some


Do outro lado da fala
Para espelhar o indizível
Em outro espelho-muralha

Em teu silêncio-livro
O lado aberto se espalha
Em lados de mil ladrilhos
De sítios de mudas caras

Do seu espaço infinito


Em desenho que se cala
O lado aberto te esconde
109
Em lado que nunca fala.

pontes (Carlos Reis)


por trás do muro
uma ave frágil em minhas mãos pousou

diariamente
aprendo com a ave
sobre existência de pontes
além muros

O poema e a reprodução técnica (Dada)


o poema imaginado é escrito
primeiro a lápis no caderno
depois de mostrado é revisto

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

sonha (ele próprio) com o eterno


visando seu sonho, sai buscando
alternando entre a ética e a estética
seu mundo é único? benjaminiano:
obra de arte e sua reprodução técnica

sim, é sempre com uma ajuda:


prato posto é levado à gráfica
nem sempre lapidado na luta
às vezes impressos sem a ordem plástica

prato reposto, está agora no livro


será comida, não posta em tigela
não terá morte, nem de faca, nem de tiro
estará nas mansões e também nas favelas

Como é possível verificar mediante a leitura efetuada, nossos escritores, em


110
grande parte, estão filiados à metapoesia, realizando poemas auto reflexivos e
intertextuais, tanto quanto à poesia urbana, focando questões existenciais
cotidianas, ficando o regionalismo num plano secundário, evocado apenas quando a
paisagem natural e memorialista se faz necessária. Portanto, não se pode afirmar
que exista produção literária de cunho essencialmente regionalista, pelo menos não
na poesia. Autores novos e antigos estão produzindo uma literatura que aponta
muito mais para o texto universalizante, no qual é possível observar traços
tradicionais e de vanguardas, do que para uma temática local. É possível assegurar
que uma literatura mais madura e consistente começa a dar sinais de vida. E que
uma literatura despretensiosa, jovem e criativa, que nos certifica de uma
continuidade evolutiva, bate à porta. Nesta perspectiva, cabe ao leitor e ao
estudioso da produção local aprimorarem o contato com essas obras e a abordá-las
de modo prazeroso e crítico, lendo-as como literatura brasileira ou simplesmente
como literatura. “O regionalismo está morto; viva o regionalismo!”.

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”
Revista Labirinto – Ano XIII, nº 19 – dezembro de 2013 ISSN: 1519-6674
_____________________________________________________________________________________________________

REFERÊNCIAS

BADRA, Edson Jorge. Literatura de Rondônia, Porto Velho: Caderno cultural,


1987.
BATISTA, Adaídes (Dadá) A sobra das noites. Porto Velho, 2004
BINHO. Arabescos Aéreos. Porto Velho: Edufro, 2003.
BUENO, Eunice e MENDES, Matias. Síntese da literatura de Rondônia. Porto
Velho: Gênese-Top, 1984.
CÂNDIDO, Antonio. Enganos da nossa história. Porto Velho: EDUFRO, 2007.
FERREIRA, Manuel Rodrigues. A ferrovia do diabo: história de uma estrada de
ferro na Amazônia. São Paulo. Melhoramentos, 1959.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª Ed. Rio de Janeiro,
2005.
HUGO, Vitor. Desbravadores. 2a. ed., 2 vols. Cia. Brasileira de Artes Gráficas. Rio
de Janeiro, 1991.
MARTINS, Eduardo. O lado aberto. Porto Velho: EDUFRO, 2004
MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2003. 111

MOREIRA, Carlos. Evangelho segundo ninguém, Porto Velho: Edufro, 2003


MENEZES, Nilza. Feitura. Porto Velho: Edufro, 2003.
MADO. Das tripas ao marcapasso. Porto Velho: Edufro, 2003.
REIS, Carlos. Avenoite e Outros Poemas. Rio de Janeiro: Blocos Editora, 2000.

NOTAS

i
Doutorando na área de Teoria da Literatura (IBILCE-UNESP), possui mestrado na mesma área pela
Universidade Estadual Paulista, de São José do Rio Preto (2002). É professor da UNIR -
Universidade Federal de Rondônia, no curso de letras, Línguas Vernáculas.

_____________________________________________________________________________________________________
Dossiê “História e Literatura: olhares interdisciplinares”

Você também pode gostar