A História Da Maternidade
A História Da Maternidade
A História Da Maternidade
A Maternidade na História
e a História dos Cuidados Maternos
The maternity in history and the history of the maternal care
Resumo: Neste artigo, discute-se a naturalização de conceitos e práticas relacionadas à maternidade e aos
cuidados maternos, associando-se sua construção social às modificações pelas quais a família tem passado,
na Europa e no Brasil, a partir das transformações que permitiram a organização dos Estados modernos e
acompanharam a instalação da ordem econômica burguesa. Enfoca-se a maneira como o discurso médico
colaborou na promoção de novas formas de relação familiar pelo favorecimento de características específicas
Solange Maria para o papel materno, destacando-se a participação tanto da Medicina quanto da Psicologia na instituição
Sobottka Rolim de das novas configurações que os processos de subjetivação têm assumido na atualidade.
Moura Palavras-Chave: Maternidade, família, modernidade, Psicologia.
Psicóloga, Mestre em Abstract: In this article it is discussed the naturalization of concepts and practices related to maternity and
Psicologia pela to maternal care, associating their social construction to the modifications family has gone through, in
Universidade Estadual Europe and Brazil, since the transformations that allowed the modern States arrangement and followed the
Paulista – installation of the bourgeois economical order. It is focused the way medical speech collaborated in the
UNESP – Campus de promotion of new types of familiar relationship in support of specific characteristics to the maternal
Assis
function, detaching the partnership of Medicine as well as Psychology in the institution of the new
arrangement that the subjective processes have assumed nowadays.
Maria de Key Words: Maternity, family, modernity, Psychology.
Fátima Araújo
Psicóloga. Doutora em
Psicologia pela
Universidade de São
Paulo. Docente da
Universidade
Estadual Paulista –
UNESP – Campus de
Assis
Leonardo da Vinci
A proposta deste artigo é discutir, a partir de uma Nesta análise, a maneira como o discurso médico
revisão bibliográfica, a naturalização de conceitos colaborou na promoção de uma nova forma de
e práticas relacionadas à maternidade e aos relação mãe-filhos, pelo favorecimento de
cuidados maternos, associando-se sua construção características específicas para o papel materno,
social às modificações pelas quais a família tem ocupa lugar central. Enfoca-se, assim, a
passado na Europa e no Brasil. Essas modificações participação da Medicina e também da Psicologia,
articulam-se às transformações econômicas que em sua aliança com a família, na instituição das
permitiram a organização dos Estados modernos e novas configurações que os processos de
acompanharam a instalação da ordem econômica subjetivação têm assumido na atualidade.
burguesa, a partir do século XVII, em um amplo
44 movimento de constituição das chamadas A produção da subjetividade é tomada aqui como
sociedades disciplinares (Deleuze, 1992). um processo que determina “a maneira de os
A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos
Ariés (1981) informa-nos que, já a partir do século a ordem do dia. A felicidade conjugal ganhou
XVII, algumas transformações indicam a importância para a família e, ainda que a distinção
emergência de um novo sentimento familiar entre homem e mulher permanecesse, a
associado à valorização da infância. Entre elas, consciência social modificou-se em relação ao
podemos citar a modificação dos hábitos sentido da família e da infância, alterando
educacionais, passando-se da aprendizagem profundamente as relações marido-esposa e pais-
cotidiana exercida no ambiente doméstico à filhos.
escolarização maciça da infância e a modificação
da condição de transmissão de bens, passando-se Articulando-se aos interesses econômicos do
a reconhecer a igualdade entre os filhos no direito Estado, um outro discurso proferido por médicos,
à herança. moralistas, administradores e chefes de polícia
reforçava a necessidade de a mulher ocupar-se
“Estudos atuais Essas modificações, porém, instauraram-se com os filhos. Tal discurso baseava-se,
mostram como a vida lentamente, não sem resistências, de forma que principalmente, no argumento de que essa seria a
coletiva vai dando somente no último terço do século XVIII sua forma “natural” de cuidados com a criança e, por
lugar a um espaço disseminação é mais evidente. O foco ideológico isso, a mais adequada; uma vez que só a mulher
privado de vida. As desloca-se progressivamente da autoridade paterna era capaz de gestar e parir, seriam, pois,
casas modificam sua ao amor materno, pois a nova ordem econômica concernentes apenas à “natureza feminina” a
arquitetura para que passa a vigorar com a ascensão da burguesia educação e os cuidados com a prole.
reservar aos indivíduos enquanto classe social impunha como imperativo,
locais privados; os entre outros, a sobrevivência das crianças. Em estudo que denominou “história das
nomes se mentalidades”, Donzelot (1986), baseando-se nos
individualizam; Após 1760, inúmeras publicações passaram a trabalhos de Foucault, identificou nas chamadas
1
exaltar o “amor materno” como um valor ao tecnologias políticas os elementos portadores das
roupas, guardanapos
mesmo tempo natural e social, favorável à espécie transformações que se verificaram nas condições
e lençóis ganham
e à sociedade, incentivando a mulher a assumir de vida na França a partir do século XVIII e também
marcas, de modo a
diretamente os cuidados com a prole. Dessa forma, em outros países da Europa.
permitir sua
em defesa da criança dois diferentes discursos
identificação. A vida
confluíram para modificar a atitude da mulher Em seu trabalho, o autor sugere que, embora o
do trabalho sai da perante os filhos: (1) um discurso econômico, tema do cuidado com as crianças tenha se tornado
casa para a fábrica, apoiado em estudos demográficos, que recorrente na França a partir de meados do século
modificando o demonstrava a importância do numerário XVIII, nas publicações elaboradas por médicos,
caráter da vida populacional para um país e alertava quanto aos administradores e outros que questionavam os
pública. A casa torna- perigos (e prejuízos) decorrentes de um suposto hábitos educativos em vigor, essa crítica, porém,
se lugar reservado à declínio populacional em toda a Europa e (2) uma não se mostrava homogênea, mas distinta segundo
família que, em seu nova filosofia – o liberalismo – que se aliava ao a camada da população a que se dirigia.
interior, divide discurso econômico, favorecendo ideais de
espaços, de forma a liberdade, igualdade e felicidade individual (cf. De acordo com Donzelot (op. cit.), sobre a camada
permitir lugares mais Badinter, 1985). mais pobre da população incidia uma crítica pela
individuais e privados” ausência de uma “economia social”. A crítica
No campo das relações sociais, assistiu-se, a partir
dirigia-se tanto à prática da criação de filhos por
Bock de então, ao desenvolvimento da noção de vida
amas-de-leite mercenárias quanto ao abandono
privada.
de menores em hospícios. Ambas as ações tinham
“Estudos atuais mostram como a vida coletiva vai como conseqüência uma elevada mortalidade de
dando lugar a um espaço privado de vida. As casas indivíduos; a última, especialmente, exigia
modificam sua arquitetura para reservar aos investimentos do Estado dos quais a sociedade
indivíduos locais privados; os nomes se extraia mínimo benefício posterior, pois a
individualizam; roupas, guardanapos e lençóis população carente atendida nos hospícios
ganham marcas, de modo a permitir sua raramente chegava à idade adulta, quando poderia
identificação. A vida do trabalho sai da casa para a então compensar os investimentos do poder
1 As tecnologias políticas podem fábrica, modificando o caráter da vida pública. A
ser entendidas como um conjunto público através do trabalho. Em outro extremo, a
casa torna-se lugar reservado à família que, em seu
de práticas que investirão sobre crítica que incidia sobre a camada mais rica da
o corpo, a saúde, as formas de interior, divide espaços, de forma a permitir lugares
alimentar e morar, enfim, o mais individuais e privados” (Bock, 2001, p.19). população tinha um foco diferente, nesse caso
espaço completo da existência dirigido à ausência de uma “economia do corpo”.
humana. A necessidade de sobrevivência das crianças
A relação conjugal modificou-se, uma vez que o
antigo casamento por contrato não era requeria, também nos segmentos mais abastados
46 conveniente aos novos ideais libertários e da sociedade, a modificação de hábitos antigos,
igualitários, passando o casamento por amor para como o recurso ao aleitamento mercenário. Exigia,
A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos
além disso, a alteração da forma como as crianças Essas estratégias diferenciadas repercutiram em
ricas eram educadas, em geral afastadas da família diferentes posicionamentos assumidos pela mulher
e reclusas em internatos e conventos até seu ingresso e pela criança, conforme a classe social a que
no mundo social adulto. pertenciam, e seu sucesso permitiu a presença do
Estado diante de cada indivíduo através da família,
Em função das diversas críticas, “conservar a ou seja, a passagem de um governo das famílias
criança” significou, segundo Donzelot, (op. cit.) para um governo através da família.
intervir nas famílias e reorganizar os
comportamentos educativos em torno de dois Com relação à mulher, especificamente, nota-se
pólos, com estratégias diferentes porque dirigidas que, a partir do século XVIII e principalmente no
a classes distintas da população. Nas camadas século XIX, desenhou-se uma nova imagem de sua
abastadas, o cuidado com a criança apoiou-se na relação com a maternidade, segundo a qual o
difusão da medicina doméstica enquanto bebê e a criança transformam-se nos objetos
conjunto de técnicas que permitiram às classes privilegiados da atenção materna. A devoção e
burguesas retirar seus filhos da “influência negativa” presença vigilantes da mãe surgem como valores
dos serviçais, colocando-os sob o domínio dos essenciais, sem os quais os cuidados necessários à
pais – introduzindo, portanto, na família, uma preservação da criança não poderiam mais se dar.
“economia do corpo”, na qual a disciplina, através A ampliação das responsabilidades maternas fez-
da vigilância e minucioso controle, ter-se-ia se acompanhar, portanto, de uma crescente
mostrado essencial. Já nas camadas populares, essa valorização da mulher-mãe, a “rainha do lar”,
intervenção apoiou-se nas estratégias da filantropia dotada de poder e respeitabilidade desde que não
que, distinguindo-se das formas de caridade transcendesse o domínio doméstico.
exercidas no antigo regime, englobavam “todas as
formas de direção da vida dos pobres com o
objetivo de diminuir o custo social de sua
reprodução” (Donzelot, 1986,p.22), ou seja, pela À medida, porém,
introdução de uma “economia social” que que as
compreenderia o desenvolvimento de um extenso responsabilidades
e coeso aparato de tutela a essas famílias. aumentaram,
cresceu também a
Nos segmentos economicamente mais favorecidos valorização do
da sociedade, a ligação entre médico e família devotamento e do
teria produzido modificações profundas na sacrifício feminino em
organização familiar: o fechamento da família prol dos filhos e da
sobre si mesma, um controle maior sobre a família, que
educação e os hábitos de todos os seus membros, novamente surgiram
e a aliança entre o médico e a mãe que teria no discurso médico e
beneficiado a ambos – à mulher, promovendo-a filosófico como
socialmente em função do desempenho adequado inerentes à natureza
de seu papel materno; e ao médico, que teve seu da mulher.
poder reforçado contra as antigas estruturas de
tratamento e cuidados leigos, e também contra a
disciplina religiosa e as formas tradicionais de
educação (internato).
Acompanhando essa valorização da maternidade, intimidade, quer pela presença de muitos escravos
o papel paterno experimentou, também, a partir nos latifúndios, quer pelo próprio caráter das
do século XVIII, alterações marcadas pelo forte relações de dominação típicas da sociedade
declínio de seu valor. Nas camadas populares da colonial” (Algranti, op. cit., p.152).
sociedade, a ausência paterna e o descumprimento
de suas funções foram progressivamente assumidos No ambiente doméstico, notava-se uma
pelo Estado através de suas instituições. Nas indefinição de espaços privados. No interior da
camadas abastadas, foi o discurso do especialista casa, trabalho e convivência familiar
que acorreu à família oferecendo novo padrão de sobrepunham-se, e pouca ou nenhuma distinção
atitudes. se fazia no uso dos cômodos. Nas atividades
cotidianas, geralmente relacionadas à subsistência,
A esse respeito, Donzelot (1986) considerou que o senhor e escravo conviviam lado a lado. Também
movimento de isolamento da família em relação à no cuidado com a criança, nenhuma indicação
comunidade concorreu para sua progressiva restou de que lhe fosse reservado um espaço ou
fragilização, especialmente agravada quando a uma forma de tratamento que a diferenciasse dos
autoridade paterna teve seu poder atenuado diante demais membros da família.
da valorização da mulher como educadora e aliada
do poder médico. Foram então os especialistas – Além da dificuldade em delimitar-se uma vida
no início os médicos higienistas, depois os privada nesse período, estudos atuais questionam
pedagogos, os psiquiatras e mais tarde os psicólogos a existência de uma forma única assumida pela
e psicanalistas – que, através de suas intervenções, família na colônia, tanto se for considerada toda a
contribuíram para a construção de normativas extensão temporal do período colonial (mais de
destinadas a regular a vida familiar e individual, as três séculos) quanto ao levar-se em conta a
quais passaram a ser seguidas não mais a partir da diversidade da ocupação do território na mesma
imposição ou do receio da punição, mas pelo época, que se desenvolvia de forma variada
desejo cultivado e orientado de uma vida normal conforme a região.
e saudável.
“Tantas foram as formas que a família colonial
A Transformação dos Cuidados assumiu, que a historiografia recente tem explorado
em detalhe suas origens e o caráter das uniões,
Maternos no Brasil: do Período enfatizando-lhe a multiplicidade e especificidade
Colonial à Constituição do Estado em função das características regionais da
Moderno colonização e da estratificação social dos
indivíduos” (Algranti, 1997, p.87).
Enquanto na Europa o processo que modificou a
intimidade e os sentimentos em relação à vida No Brasil, assim como na Europa, o
familiar acompanhou a constituição dos Estados desenvolvimento da organização e dos sentimentos
modernos, acentuando-se a partir do período das presentes na família moderna, incluindo aqueles
revoluções liberais, no Brasil o mesmo processo relacionados à maternidade e aos cuidados
seguiu a passagem do território da condição de maternos, foi marcado pelas intensas modificações
colônia a nação. Nesse sentido, compreender as ocorridas pela ascensão burguesa no final do
características da vida familiar e dos sentimentos século XVIII, embora aqui revestidas de
relativos à maternidade naquele período envolve características específicas à condição de país-
correlações entre a própria estrutura da colônia que se vê subitamente elevado à sede do
colonização moderna e as manifestações de governo português.
intimidade.
Com a transferência da família real e de toda a
De acordo com Algranti (1997), entre os séculos corte para o Rio de Janeiro no início do século XIX
XVI e XVIII, a organização familiar colonial foi em conseqüência da instabilidade política vivida
marcada pelos mesmos elementos que pelos regimes absolutistas na Europa, a
influenciaram profundamente a formação da administração portuguesa desenvolveu um novo
sociedade brasileira. tipo de interesse pelas cidades brasileiras. Nesse
movimento, promoveu-se uma “reeuropeização”
“Nos núcleos urbanos, o que se nota é uma dos costumes coloniais pela transposição, para o
sociabilidade que corre de modo Brasil, de hábitos relativos a uma cultura gestada
predominantemente fora de casa, pautada por um na Europa. Aliados à mulher e à criança,
mundo em que todos se conhecem, e em que se valorizando a “família amorosa”, durante o século
identificam socialmente pelas suas vestes, pelos XIX, os higienistas auxiliaram a família brasileira a
48 ofícios. (...) No mundo rural, as grandes distâncias assimilar novos valores, nuclearizando-se e
e o isolamento nem sempre favoreceram a urbanizando-se.
A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos
Sob a influência das idéias de Foucault e seguindo higiênica”. Essa nova condição, contudo, só foi
o trabalho de Donzelot, Costa (1989) analisou a possível através da aliança da família com o poder
modificação de costumes e o processo de médico. Dessa forma, tanto aqui como na Europa,
higienização da família no Brasil, entre os séculos para a produção da “mãe higiênica”, foi
XVIII e XIX, que acompanharam a transformação fundamental o discurso higienista, no ataque tanto
da família colonial. No movimento de progressiva ao aleitamento mercenário (no Brasil realizado por
“estatização” dos indivíduos, produziu-se o que o
escravas) como responsável pela mortalidade
autor denominou “família colonizada”. O processo
infantil, quanto à suposta deformação moral das
ter-se-ia dirigido exclusivamente às famílias de
crianças pelo cuidado e convivência com amas e
extração elitista, não atingindo as camadas menos
favorecidas economicamente (que incluíam os lacaios negros.
escravos), embora o autor reconheça que o modelo
familiar dele resultante tenha-se mostrado O comportamento comum na sociedade da época, No curso do Segundo
fortemente hegemônico por um longo período na de recusa ao aleitamento materno. foi codificado Império, sobretudo, a
sociedade brasileira. também no Brasil pelo discurso higiênico como medicina social vai
uma infração às leis da natureza, o que permitiu dirigir-se à família
Segundo Costa, o novo Estado brasileiro não somente a culpabilização das infratoras, mas ‘burguesa’ citadina,
encontrava na família colonial um forte obstáculo a instalação de um sentimento de anomalia. Além procurando
à sua consolidação, em razão das características disso, a insistência quanto à amamentação permitiu modificar a conduta
que esta foi adquirindo durante o extenso período que se regulasse a vida da mulher, confinando-a física, intelectual,
subseqüente ao descobrimento até o século XVIII. por um longo período ao ambiente doméstico (os moral, sexual e social
Tendo-se instalado à distância do governo central, dos seus membros
períodos de aleitamento se estendiam por dois
o colono estabeleceu-se como praticamente o com vistas à sua
anos ou mais), porém voltando sua atenção ao
único responsável pela ocupação do território; a adaptação ao
cuidado, à educação e à vigilância não só da
intervenção da coroa portuguesa apenas ocorria sistema econômico e
criança como também da família. Também aqui, político”
em situações graves, de ameaça ao seu poderio.
Nessas condições, “a família ‘latifundiária’ os cuidados maternos passam a ser valorizados e
acumulou uma massa de poder que, em breve, esse novo olhar sobre a criança possibilitou a Costa
competia com o poder da metrópole” (Costa, op. manifestação do “amor materno”, que tornou-se
cit., p.36). não somente desejável como “natural”. Assim, por
todo o século XIX, deu-se a adaptação do modelo
Entre as principais características da família de família burguesa européia à sociedade colonial
colonial, encontrava-se a valorização do poder brasileira que, com o auxílio dos médicos
paterno. A mulher e os filhos, assim como os demais higienistas, adquiriu aqui um “colorido tropical”.
membros da parentela, interessavam apenas
enquanto elementos a serviço do patriarca, e viam A Família Contemporânea e a
na figura do homem não só o protetor, como o
patrão, uma vez que a casa colonial funcionava
Constituição da
como pequena unidade de produção, “Nova Maternidade”
dependendo minimamente de outras instâncias
para organizar a satisfação de suas necessidades Cabe agora refletir acerca das condições de
de consumo. maternagem e das características que o sentimento
materno vem assumindo na sociedade
“A higienização das cidades, estratégia do Estado contemporânea. O papel da mulher no cuidado
moderno, esbarrava freqüentemente nos hábitos com os filhos, segundo Chodorow (1990), tornou-
e condutas que repetiam a tradição familiar e se, no último século, tanto mais exclusivo quanto
levavam os indivíduos a não se subordinarem aos menor se tornava a determinação biológica para a
objetivos do governo. A reconversão das famílias maternidade. Enquanto as taxas de natalidade
ao Estado pela higiene tornou-se uma tarefa caíam, a escolarização das crianças tornava-se mais
urgente dos médicos. (...). No curso do Segundo precoce e as mulheres mais presentes no mercado
Império, sobretudo, a medicina social vai dirigir- de trabalho, tanto mais crescia a ideologia da “mãe
se à família ‘burguesa’ citadina, procurando moral”.
modificar a conduta física, intelectual, moral,
sexual e social dos seus membros com vistas à sua “Nos Estados Unidos, o período capitalista inicial
adaptação ao sistema econômico e político” produziu uma ideologia da ‘mãe moral’: as mulheres
(Costa,1989, p.30-33). burguesas deviam agir ao mesmo tempo como
educadoras e modelos morais para seus filhos, assim
Segundo o mesmo autor, no Brasil, o processo de como alimentadoras e guias morais para seus
“estatização dos indivíduos” teve sobre a mulher maridos na sua volta do mundo de trabalho imoral 49
um efeito específico: sua redução à figura da “mãe e competitivo” (Chodorow, op.cit., p.19).
Solange Maria Sobottka Rolim de Moura & Maria de Fátima Araújo
A autora indica a psicologia e a sociologia pós- Salem (1985), entrevistando casais logo após o
freudianas como importantes fontes dos nascimento do primeiro filho, investigou as
argumentos que contribuíram para a idealização modificações na constituição desses papéis em
e o reforço do papel materno, na medida em que função da maneira como os mesmos casais
enfocaram a relação mãe-bebê como decisiva no vivenciavam a gestação, ou seja, na efetivação de
3
desenvolvimento da criança. Com relação a esse um projeto que denominou “casal grávido” .
aspecto, cabe lembrar que autores como Klein
(1986) e Winnicott (1983, 1988a, 1988b, 1993a, Segundo a autora, na década de 80, as
1993b) dedicaram-se exaustivamente ao estudo das representações de maternidade/paternidade
chamadas relações objetais primitivas. É deixam de ser percebidas como auto-evidentes e
fundamental, no trabalho de Winnicott, tanto a passam a ser vistas como situações sujeitas à
valorização do ambiente no desenvolvimento elaboração e discussão pelo casal. Esse processo
infantil, quanto o delineamento da figura da “mãe exige forte investimento emocional do homem e
dedicada comum”, definida como aquela capaz da mulher, que devem buscar uma “nova
de “promover a integração das características maternidade” e uma “nova paternidade”
próprias de cada criança, diferenciando cada bebê correspondente. Na referida construção, a
de outro, a partir do apoio encontrado no ego valorização do compromisso emocional do casal
materno que age como facilitador da organização com a criança intensifica-se, iniciando-se já na
do próprio ego do bebê” (Winnicott, 1988b, p.494). gravidez. A participação do pai no parto e nos
cuidados com o bebê surge como elemento
fundamental dessa experiência. Quanto à mulher,
valoriza-se a dedicação total à criança,
2 A cultura psicanalítica pode
ser definida como o efeito da
dispensando-se o auxílio de enfermeiras, babás
difusão da Psicologia e, ou mesmo da família. O casal, portanto, deve
especialmente, da Psicanálise assumir todos os cuidados com o bebê, desde o
na sociedade, de forma que o início.
cotidiano de um grupo passe a
ser compreendido e tematizado
por suas normas. A esse “De um ponto de vista formal, esse arranjo contém
respeito, ver: Figueira, S. A um sabor de ‘déjà vu’: de fato, suas coincidências
Cultura da Psicanálise. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
com a retórica rousseauniana sobre a ‘boa mãe’
são patentes. Contudo, há uma autoconotação
3 Comum nas camadas médias vanguardista reclamada pelos casais grávidos: ela
urbanas cariocas na década de não apenas se ancora na ênfase à participação do
80, o “casal grávido”
representava uma experiência homem desde a gravidez como também se afirma a
diferenciada de gravidez partir do diálogo que estes casais estabelecem com
compartilhada pelo casal, cujo a geração precedente” (Salem, 1985, pp.41-42).
projeto seria vivenciá-la
enquanto unidade nuclearizada
e individualizada, ou seja, Quanto ao último aspecto, estrutura-se uma nova
destacada das redes de ideologia educacional que aponta as famílias de
parentesco, distinguindo-se da
origem do casal como modelo negativo, ao mesmo
maneira como casais
tradicionais o fariam. Esse tempo em que se ancora em valores como o afeto,
projeto representaria, assim, a atenção à subjetividade e a um relacionamento
uma acentuação do processo de mais igualitário e livre entre pais e filhos. O projeto
fechamento da família sobre seu
próprio núcleo, característico do “casal grávido”, entretanto, só faz sentido dentro
dessa instituição no período Construído predominantemente em conformidade do ideário do grupo social a que pertencem esses
moderno. com uma perspectiva centrada no indivíduo, o indivíduos, segundo o qual a própria representação
4 A respeito das modificações discurso psicanalítico passou a ser disseminado de casal baseia-se na ética da igualdade entre
4
observadas nas famílias de amplamente na sociedade contemporânea, muitas gêneros , “mas está também comprometido com
camadas médias urbanas nas vezes de forma pouco crítica. Estudos brasileiros outras ondas ideológicas igualmente significativas,
últimas décadas do século XX
no Brasil, guiadas pelo ideal realizados na década de 80 tematizando a família como a recente valorização do subjetivo, do
igualitário, ver: Araújo, M. F. e as modificações ocorridas nos processos de emocional e dos aspectos psicológicos individuais
Família Igualitária ou subjetivação (Salem,1985; Lo Bianco,1985; “(Salem, op.cit., p.41).
Democrática? As Transformações
Atuais da Família no Brasil.
Almeida,1987), associaram tais mudanças às
Dissertação (Mestrado em alterações observadas na realidade concreta e A autora conclui pela dificuldade da efetivação
Psicologia). Pontifícia apontaram para a influência do discurso da desse projeto, embora destaque que, na tentativa
Universidade Católica, São Psicanálise nesse movimento. Essa influência, de sua implementação, sejam significativas as
Paulo,1993.
denominada por alguns autores de “cultura revisões efetivadas pelos casais com relação aos
2
psicanalítica” , teria contribuído para que aos papéis materno e paterno. Aponta também para a
50 papéis materno e paterno fosse acrescida uma importância dos médicos obstetras, psicólogos e
perspectiva cada vez mais individualizante. outros técnicos envolvidos no acompanhamento
A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos
para o discurso competente (como discurso acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos
ideológico), o “novo” só interessa quando perde como aos poderes dominantes”. Essas mesmas
seu poder instituinte, tornando-se inócuo, infértil. questões podem, no entanto, ser capturadas pelo
intenso processo de modelação, de instituição de
As novas questões trazidas à família na valores, que tem no especialista um importante
contemporaneidade, especialmente no que diz elemento para sua efetivação. O lugar do
respeito às concepções acerca da maternidade das especialista não é, porém, uma determinação:
quais trata este artigo, podem tornar-se elementos podemos posicionar-nos de outro modo, fazendo
instituintes, disparadores de novos processos de de nosso trabalho uma oportunidade de criação e
subjetivação que, nas palavras de Deleuze (1992, de ruptura com o instituído, um espaço de sua
p.217), “só valem na medida em que, quando permanente desconstrução.
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A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos
ALGRANTHI, L. M. Famílias e Vida Doméstica. In Novais, F. A. COSTA, J. F. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Graal,
(coordenador-geral); Mello e Souza, L. (org.). História da Vida Privada 1987.
no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. Vol. I. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 84-154. DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.