Autismo - Uma - Epidemia

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LATIN AMERICAN CONFERENCE 2021


CIVILIZAÇÃO EM TRANSIÇÃO

Autismo: uma “epidemia” dos tempos contemporâneos?

Autora: Ceres Alves de Araujo

Titularidade: Psicóloga. Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela


Universidade Federal de São Paulo. Analista Junguiana pela Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica. Professora do Programa de Formação de Analistas da
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Academia Paulista de
Psicologia – Cadeira 39.

Introdução

Meu trabalho tem como objetivo discutir a crescente incidência no mundo dos
quadros de autismo, hoje classificados como Transtornos do Espectro do Autismo (TEA).
Pretendo também apresentar uma compreensão do autismo sob o referencial da Psicologia
Analítica e refletir sobre o atendimento a esses pacientes.
Em 1942, Kanner descreveu, sob o nome “Distúrbios autísticos do contato afetivo”,
um quadro caracterizado por isolamento extremo, comportamentos obsessivos, estereotipias
e ecolalia. Com o passar do tempo, esse quadro foi descrito com maior precisão diagnóstica
e conceitual, sendo denominado como “psicose infantil” em meados dos anos 1960. Em
1976, uma alteração importante na nomenclatura surgiu com Ritvo e Ornitz, que propuseram
o autismo como uma patologia do sistema nervoso central relacionada a déficits cognitivos.
O autismo passou então a ser considerado não mais uma psicose, mas sim um distúrbio do
desenvolvimento.
A partir dos anos 1980, mesmo a escola francesa com sua tradição psicodinâmica,
aceitou considerar o autismo como vinculado à questão cognitiva. Não se sustentou mais, a
partir dessa época, a hipótese da etiologia psicogênica do autismo. Tustin (1994), uma das
psicanalistas mais importantes no estudo do autismo, pouco antes de sua morte, pediu
desculpas aos pais de crianças com autismo pela referência a eles como “pais-geladeira”,
ressaltando que o novo modo de se ver o autismo é biológico.
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Hoje, entende-se que o autismo faz parte de um continuum de características próprias


de um espectro com causas biológicas e congênitas. É um quadro inespecífico decorrente da
causação múltipla de fatores não lineares.
No DSM-5 (APA, 2014), os TEA são considerados transtornos do
neurodesenvolvimento, caracterizados por uma tríade de sintomas: déficits persistentes na
comunicação social e na interação social; e padrões restritos e repetitivos de
comportamentos, interesses ou atividades. O nível de gravidade pode ser enquadrado entre
1, 2 ou 3, dependendo da intensidade dos sintomas presentes e do grau de apoio
necessário. A gravidade pode variar de acordo com o contexto e oscilar com o tempo. Os
sintomas tendem a se acentuar com o tempo, mas não existe, até os dias de hoje, cura para
o autismo.
O chamado autismo de Kanner é o mais grave na classificação desses transtornos.
Já a Síndrome de Asperger e o Autismo de Alto Funcionamento pertencem às condições
menos graves e são os quadros nos quais a inteligência está preservada.
Quanto à prevalência, o autismo é diagnosticado quatro vezes mais em homens do
que em mulheres. Com frequência, está associado a outras condições clínicas, como
deficiência mental (em 50% dos casos), epilepsia (em até 42% dos casos) e outras
síndromes ou condições patológicas. A comorbidade para um transtorno mental chega a
70% nos indivíduos com autismo.
A incidência do autismo tem aumentado de forma significativa nas últimas décadas.
Os primeiros estudos relatavam 4,5 casos para 10.000 nascimentos. Em 2020, segundo o
relatório da rede dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados
Unidos, a incidência de TEA passou a ser 1 para cada 54 nascimentos. A Organização
Mundial de Saúde (OMS) refere que o autismo afeta cerca de 1% da população mundial.
Só se pode falar de “epidemia” como metáfora. O aumento real dessa incidência se
deve a mudanças nos critérios de diagnóstico, à maior conscientização da doença e à
consideração de fatores epigenéticos; entre eles, salientam-se: uso de alguns medicamentos
durante a gestação, baixo peso ao nascer e acidentes neonatais.
Problemas relativos à saúde mental costumam ter um impacto negativo na evolução
do quadro em um indivíduo, devendo-se salientar as condições determinadas por
comorbidades adicionais. É evidente que problemas emocionais e psiquiátricos podem ter
um impacto negativo importante no funcionamento geral das pessoas com autismo, sendo
que o risco crescente de suicídio nessas pessoas tem sido reportado por muitos estudos
(Howlin; Moss 2020).
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Atualmente, principalmente em função da possibilidade de diagnóstico e atendimento


precoces dos últimos anos, existem pessoas com autismo que cursam universidades, que
trabalham, que se casam e que são quase independentes. Porém, essas pessoas sofrem
pelas sérias dificuldades de comunicação; pelos problemas com as condutas interativas e
sociais; e pela rigidez e estereotipia de seus comportamentos. Elas têm enorme dificuldade
para se adaptarem ao mundo, principalmente ao mundo de hoje, que é fluido, líquido e
sempre em transição. Desse modo, tais pessoas necessitam de atendimento psiquiátrico e
psicológico.
O grupo com baixa gravidade de sintomas nem sempre recebe o diagnóstico de TEA,
mas convive com as mesmas dificuldades para se desenvolver e sua evolução também
tende a ser muito pobre.
É bem possível que entre os pacientes atendidos em análise ou psicoterapia nos
consultórios estejam pessoas com autismo leve não diagnosticado, cuja psicopatologia
esteja confundida com as comorbidades que apresentam sintomas como ansiedade,
depressão, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos alimentares. Cumpre lembrar que
a incidência dessa patologia é de 1 para cada 54 indivíduos.

Um processo de individuação peculiar

Do ponto de vista da Psicologia Analítica, acredita-se que a organização do


desenvolvimento é arquetípica, isto é, o desenvolvimento se processa sob a ordenação do
Self, arquétipo central e princípio de totalidade (Jung 2008). Diferentes trajetos de
desenvolvimento podem ser traçados em função da interação dos mecanismos genéticos de
orientação específica com a circunstancialidade envolvente de cada ser humano. Os
arquétipos, que são as primeiras estruturas psíquicas emergentes, irão organizar a
experiência do ser humano no mundo.
No desenvolvimento padrão, ao longo do processo de individuação, observa-se a
regência de diferentes arquétipos: o arquétipo de Grande Mãe, o arquétipo do Pai, o
arquétipo da Anima-Animus e o arquétipo da Sabedoria. A integração de todos os arquétipos
entre si, ordenados pelo arquétipo do Self – o arquétipo da totalidade – propicia o processo
de individuação.
As pessoas com autismo não seguem os trajetos típicos da estruturação da
consciência; têm uma forma diferente de estruturação da mente; e mostram padrões atípicos
de processar informações, de sentir, de pensar e de se comportar.
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Galiás (2005) relaciona o arquétipo da Grande Mãe à primeira forma de amor


vivenciada – o amor de mãe –; o arquétipo do Pai, ao amor de pai; o arquétipo da Anima-
Animus, ao amor de alteridade; e o arquétipo da Sabedoria, ao amor espiritual.
A possibilidade de vivenciar as diferentes formas amorosas na relação consigo
mesmo, com os outros e com o mundo parece estar muito alterada nas pessoas com
autismo, o que constitui um impedimento importante ao processo de individuação.
Posso levantar a hipótese de que o autismo seja uma atipia do desenvolvimento
humano, uma agenesia da estruturação matriarcal da consciência no processo de
emergência da mente (Araujo 2000, 2017).

Os dinamismos matriarcais

Observa-se nas pessoas com autismo uma hipotrofia, ou até mesmo uma atrofia, do
papel “filho da mãe”, descrito por Galiás (1988), na estruturação da consciência, o que
impede a filiação plena à maternagem humana. Nesses indivíduos, os dinamismos
matriarcais de carinho, cuidado, aconchego e continência não se mostram eficazes. O amor
de mãe, primeira forma de amor a ser vivenciada, não consegue ser compreendido, nem
correspondido. As experiências emocionais de estar em ligação com o outro não são
internamente representadas e o impedimento para o funcionamento dos dinamismos
matriarcais faz com que a trajetória do desenvolvimento da criança com autismo seja muito
peculiar.
Os esquemas de imagem são subjacentes à organização dos complexos, que são os
modelos internos de trabalho. Os complexos funcionam como uma reserva de significados
acumulados pela experiência. No desenvolvimento típico, o esquema de imagem de
continente caracteriza a constelação do arquétipo materno. O componente inato pode ser
tão simples como um mecanismo para focar a atenção em específicos padrões perceptivos.
Tais padrões podem ser armazenados em uma forma esquemática simples, a qual permite
que todos os padrões semelhantes sejam reconhecidos. Assim, podem ser justificados a
atenção e o reconhecimento do bebê para o padrão básico da face humana, desde os
primeiros dias de vida (Knox 2003).
A experiência da criança de sua mãe como continente físico e psicológico é uma
extensão metafórica do arquétipo da Grande Mãe. É assim que, sob a regência desse
arquétipo, surge a primeira forma de amor vivenciada: o amor de mãe, que é um amor que
precisa ser correspondido.
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No trajeto do desenvolvimento do bebê com autismo, não se observa a vivência e a


representação da relação com o cuidador. Os dinamismos matriarcais estão alterados e, da
mesma forma como não existe a representação da vivência da relação, não existe a
representação da separação. Parece não se criar o espaço da falta, o espaço da separação,
o espaço do desejo e, consequentemente, o espaço da fantasia. O bebê e a criança com
autismo podem aprender a necessitar do outro, mas não desenvolvem a noção de pertencer
a um outro. Não se cria, segundo as maneiras usuais, a relação eu-outro, para que, em
decorrência, possa se criar a relação eu-mundo.
Essas crianças apresentam déficit nos processos afetivos-sociais básicos desde
idade muito precoce e carecem das habilidades cognitivas sociais necessárias a uma teoria
da mente. A dificuldade para adquirir uma teoria da mente é resultante de déficit na
capacitação básica para interação.
Baron-Cohen, Leslie e Frith (1985), estudiosos da “teoria da mente”, interpretam os
déficits da capacidade para atenção conjunta como evidência da inabilidade para ler outras
mentes. Porém, ao se aceitar o problema afetivo-social como primário, poder-se-ia
interpretar a falha da criança no dividir suas experiências com o outro significativo como um
déficit motivacional. Se o déficit motivacional para a interação está presente desde o início
da vida, vai existir prejuízo importante para a aquisição da intersubjetividade, determinando
uma série de alterações ao longo do processo do desenvolvimento, incluindo prejuízos na
interação afetiva, na sociabilidade e na cognição. O bebê, nessa condição atípica, tem uma
percepção anormal e, consequentemente, uma reação anormal aos significados das
expressões emocionais das pessoas. Há alteração na comunicação não verbal; e na
coordenação interpessoal corporal e mental. Existem, em decorrência, prejuízos na noção
de crença, no estabelecimento da distinção entre aparência e realidade e na compreensão
da orientação subjetiva em relação às pessoas, objetos e situações.
O bebê no espectro do autismo pode não buscar o conforto físico de seus pais e/ou
pode apresentar reações tônicas de desprazer ao ser colocado no colo ou ao ser acariciado.
Postura rígida, alterações no tônus muscular e neutralidade das expressões faciais são
queixas frequentes dos pais. O bebê pode parecer mais calmo quando deixado sozinho.
Quando algumas crianças com autismo apresentam apego a alguns objetos, esses apegos
são na sua maioria estranhos. Os objetos de apego são duros, pontudos. Os clássicos
objetos transicionais parecem ser trocados pelos objetos autísticos.
Do mesmo modo que a face humana pode ser de pouco interesse para esse bebê,
ele também pode demonstrar pouco interesse pelos sons da voz humana, o que faz com
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que se acredite, com frequência, na possibilidade de surdez. A falta da motivação para a


interação e a falta de atratividade ao estímulo social, presentes desde o nascimento, podem
resultar em uma falha para iniciar e integrar os padrões básicos interpessoais, que se
acredita serem as fundações para o desenvolvimento da comunicação.(Shore, 2019).
A grande maioria dessas crianças não tem troca pelo olhar, não fixa, não mantém o
olhar no outro. Diferentemente das crianças ditas normais ou mesmo das crianças que
nascem com outras deficiências, a criança no espectro do autismo parece viver em um
mundo diferente. Mãe e criança estão em mundos separados, sem a possibilidade da
comunicação desejável, pois, por mais que tente, por mais capaz de continência que seja, a
mãe não consegue entender e atender adequadamente às necessidades do filho.
Os comportamentos de ausência ou desvio do olhar, associados a outras alterações
das trocas não verbais precoces, prejudicam a emergência da intersubjetividade, isto é, da
construção de uma experiência emocional compartilhada entre a criança e quem cumpre
maternagem.
Os distúrbios da comunicação, as reações sensoriais atípicas e as estereotipias
comportamentais mantêm a criança isolada do mundo dos outros. No ser humano típico,
emoções e estados fisiológicos levam a desejos. Crenças e desejos estão intrinsecamente
relacionados no padrão da ação humana. A percepção e a integração dos estímulos levam a
crenças sobre o outro e sobre as situações.
No bebê com autismo, já se observa a falta do desejo pelo outro, a falta do desejo do
desejo do outro, o que acarreta o impedimento para a aquisição da percepção de si e do
outro. O desejo pelo outro não ocorre pela ausência do espaço da falta. Não se cria o
espaço da falta entre um eu e um outro para que se sinta a falta do outro, para que se
entristeça pela falta do outro e, em função da falta, deseje-se o outro.
A ausência do desejo pelo outro impossibilita a emergência da fantasia em relação a
esse outro, que conduziria à capacidade cognitiva de atribuir sentimentos e intenções ao
outro para atribuir significado às interações humanas. O Eu se estrutura em termos de
outras codificações, isolado e privado das vivências relacionais primordiais.
Esse bebê vive o processo de maturação biológica, relativo a suas necessidades de
sobrevivência, e mostra comportamentos de apego, mas o apego parece ser apenas por
segurança, e não por filiação. Diferentemente dos demais bebês, para ele, o apego não
conduz às vivências afetivas e não leva ao fortalecimento da capacidade de amar.
Não é possível para este bebê a continência, a proteção e o apaziguamento
matriarcal. Ele não consegue ser atendido por não poder ser compreendido nas suas
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necessidades. A vivência de uma angústia, que não pode ser nomeada, gera desespero,
difícil de ser aplacado por uma mãe que se vê sem meios e que também se desespera. A
busca do isolamento, muitas vezes acompanhada da movimentação estereotipada, não
funcional, parece ser o meio que essa criança encontra, sozinha, para lidar com sua crise de
angústia. Porém, diferente das demais crianças, ela não vive ansiedade pela separação,
pela sensação do abandono. Ela vive o medo, a angústia pela incompreensão e a
insatisfação pelo não atendimento às suas necessidades básicas. É a mãe pessoal que,
muitas vezes, sente-se abandonada e, com frequência, tende a projetar sua ferida matriarcal
sobre o filho. A maioria das pessoas, aliás, repete esta atuação e, em função da projeção do
dinamismo matriarcal ferido, forma-se uma sombra que, colocada sobre a pessoa com esse
transtorno, a faz ser vista com pena, como “anormal” ou como “coitadinha”, nomeações que
sempre a desprestigiam como pessoa. Isso pode dificultar a compreensão dessa forma tão
diferente de ser e inviabilizar a possibilidade da sua individuação, ainda que peculiar.

Os dinamismos patriarcais

As pessoas com autismo, privadas da função de relação e da função afetiva,


característica da dinâmica matriarcal, na impossibilidade da estruturação matriarcal da
consciência, podem adquirir uma estruturação da consciência via dinamismos patriarcais,
que são os dinamismos da lei, da ordem, das normas e do código. O funcionamento das
pessoas com autismo que têm a inteligência preservada é o funcionamento de uma outra
forma de mente, que se desenvolve sob um padrão diferente, o que faz com que este
indivíduo, durante sua vida inteira, também necessite de uma estimulação diferente. Ele
precisa ser entendido em sua peculiaridade para que possa ser atendido no que necessita.
As pessoas com autismo parecem ficar subordinadas às funções da informação, da
coerência e da lógica. Para elas, ser compreendido, ser aceito e ser recebido é ser gostado.
A confiabilidade no outro surge pela experiência relacional que acontece ao longo do tempo
e leva à percepção da reciprocidade. Cultiva-se a tradição, a previsibilidade, a ética e a
honestidade.
Dessa forma, pode nascer uma intersubjetividade baseada na correspondência, na
comunicabilidade inteligente, na honra, na história do relacionamento e na confiança. No
desenvolvimento padrão, as trocas afetivas favorecem as trocas cognitivas, mas, de forma
oposta, as pessoas com autismo desenvolvem as trocas afetivas a partir da possibilidade
das trocas cognitivas com os outros.
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Se, para os indivíduos ditos normais, durante toda a vida – mas especialmente na
infância –, a aflição e a ansiedade surgem da vivência de sensações de abandono, para as
pessoas nessa condição, a aflição e a ansiedade não surgem frente a sensações de
abandono, mas sim à constatação da desordem, do imprevisível, do não computável.
A constelação do arquétipo do Pai tende a ordenar o mundo da criança com autismo.
Ela busca claramente rotinas e situações que ela possa decodificar, pois a possibilidade de
antecipar o que irá ocorrer lhe dará maior controle sobre a angústia. A literalidade tende a
dominar seu pensamento e a determinar sua ação. Muitas crianças mostram evidência de
prodigiosa memória. Com a função integradora da mente comprometida, sem a função da
coerência central, os eventos são engramados segundo padrões atípicos, desprovidos
também da qualidade emocional do momento, o que facilita a evocação praticamente ponto
por ponto, daí a memória prodigiosa em muitas das vezes.
Algumas crianças com autismo aprendem a ler sozinhas aos dois, três anos, sem
qualquer aprendizado formal, apesar do atraso e ou alteração do desenvolvimento da
linguagem e do desenvolvimento percepto-motor. A alfabetização costuma trazer
considerável alívio para os pais, pois, além de significar melhor comunicação com o mundo,
tende a abrir uma possibilidade nova para a criança, que, progressivamente, via leitura,
adquire novos interesses, ainda que, geralmente, com características obsessivas ou
estereotipadas.
Surge uma época de um pouco mais de estabilidade. Os pais, humanizadores do
arquétipo do Pai, têm a possibilidade de ajudar a ordenar e a organizar o conhecimento das
relações entre o mundo externo e o mundo interno da criança. O desenvolvimento crescente
das representações mentais auxilia a adaptação. Porém, é uma adaptação parcial. O outro,
no relacionamento, só é considerado na medida em que atende aos interesses específicos
da criança.
Quanto à conduta social, observa-se também a atipia. Inserida no grupo da escola,
podendo participar das atividades grupais, a criança com autismo inclina-se a permanecer
em uma posição marginal ao grupo de referência.
O desempenho acadêmico pode ser exitoso. O armazenamento de informações,
favorecido nas faculdades, quando dirigido aos interesses específicos pode ser muito
motivador e até atraente, ainda que sofrido sempre, dadas as dificuldades de trabalho em
equipe, as dificuldades de precisar ceder frente a atividades fora dos interesses específicos
e as dificuldades de regular as emoções nas relações com os demais. Alguns conseguem
seguir o aprendizado padrão, mas a maioria ainda necessita do auxílio das leis de inclusão e
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prossegue como alunos especiais. Não raro, os jovens cursam uma faculdade após a outra
ou se dedicam a cursos de pós-graduação, uma vez que a inserção no mercado de trabalho
é dificílima. Mesmo com as cotas de inclusão nas empresas com trabalhadores com
deficiências, previstas pela Lei, as pessoas com autismo raramente se beneficiam dessas
cotas. Elas são entrevistadas, têm suas habilidades e seus currículos reconhecidos, mas
são percebidas como seres pouco autônomos, que necessitariam serem guiadas e de
acompanhamento próximo. Porém, o mundo do trabalho dos tempos hipermodernos, mais
antropofágico que nunca, não tem espaço e tempo para o adulto pouco autônomo.
Sob a égide do arquétipo do Pai constituem-se os papéis parentais e o papel de filho
– ou seja, o papel de “filho do pai” – é adquirido. Na vida adulta, entretanto, observa-se um
uso abusivo do papel de filho, muitas vezes ao longo da vida inteira, o que retira toda a
possibilidade de autonomia da pessoa. O “filho do pai” tende a perpetuar-se,
comprometendo as relações de trabalho, sociais e amorosas.
Na compreensão da pessoa com autismo como o “filho do pai”, é muito interessante a
analogia que Adrian Smith, analista junguiano, mostra entre a criança com autismo e o
personagem Pinocchio, de Carlos Collodi. Essa analogia está em um artigo, publicado no
Journal of Analytical Psychology em 2017.

A alteridade
Sob a constelação do arquétipo da Anima-Animus, que é o arquétipo da ágape e da
comunhão, o ser humano típico no projeto do seu processo de individuação ganha a
possibilidade da relação simétrica. Adquire os papéis relacionados à amizade, à fraternidade
e à conjugalidade; e vivencia uma forma de amor que implica em amar o outro como a si
mesmo, sendo os dinamismos da alteridade a troca, a dialética, o fascínio e a paixão.
É difícil acreditar que a alteridade seja possível às pessoas com autismo. Observa-se
a grande dificuldade de se colocar no lugar do outro, para que possa sentir o outro, como se
o outro estivesse dentro de si. Na vida adulta, a teoria da mente já se mostra adquirida e
muito desenvolvida em seu componente cognitivo. Porém, falta o componente afetivo/a
capacidade natural da empatia, que é a sintonização espontânea e natural com as ideias e
sentimentos do outro, via linguagem dos olhos, entonação da voz e sutilezas de mímica
corporal. Não ocorre o sentir a atmosfera emocional que se instala no contato com o outro e
não ocorre o administrar, com sensibilidade, uma interação que não machuque, nem ofenda
os sentimentos alheios. O componente afetivo da empatia, que é a reposta apropriada ao
sentimento do outro, compreendendo as reações de compaixão e misericórdia,
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possivelmente não pode ser adquirido. Ao contrário, o que se observa é a permanência de


um abusivo papel de filho, impedindo o altruísmo, a amizade, a fraternidade e a
conjugalidade.

A espiritualidade

Sob a égide do arquétipo da sabedoria, o ser humano típico, encaminhado em seu


processo de individuação, pode viver o caritas, o amor espiritual. É uma forma de amor que
implica no amor ao todo e no amor aos outros, maiores do que o amor a si mesmo. É tal
forma de amor que pode conduzir à busca do sentido da própria existência. As questões
transcendentais do ser humano são primariamente experimentais e totalmente subjetivas.
Nas pessoas com autismo, pode-se observar o apego às instituições religiosas, mas
as relações que se estabelecem ligam-se mais às regras, muitas vezes seguidas de forma
rígida e estereotipada, do que às relações constituídas. A noção do sentido da própria
existência parece não ser formulada pela mente pragmática e pouco flexível das pessoas
com essa condição. Assim, existe a possibilidade do processo religioso, mas ele parece ser
sempre peculiar. A percepção de Deus quase sempre é pela lógica e pelo intelecto. Grandim
(1997), ao relatar sua experiência pessoal de uma pessoa com autismo, fala em Deus como
a força última, fundação e mistério, como é evidente nas teorias cosmológicas da Física
Quântica.

A prática psicoterapêutica e a orientação à família

Na criança com autismo, com inteligência preservada, o Eu pode se estruturar e se


diferenciar, mas em bases muito diferentes do padrão arquetípico humano. Pela agenesia da
estruturação matriarcal da consciência ou hipotrofia dos dinamismos matriarcais,
compensatoriamente pode ocorrer uma precoce e hipertrófica estruturação patriarcal da
consciência.
As funções estruturantes para a expansão da consciência e diferenciação do Eu vão
entrar em funcionamento via dominância patriarcal. A elaboração simbólica via eros com
características matriarcais não acontece, mas, de modo parcial, pode-se verificar a
elaboração simbólica acontecendo via logos.
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O funcionamento do portador do transtorno do espectro do autismo que tem a


inteligência preservada é também o funcionamento de uma outra forma de mente, que se
desenvolve sob um padrão diferente, o que faz com que este indivíduo necessite, desde o
início da vida, de uma estimulação também diferente.

Em função de suas condições tão peculiares e por viverem sob os determinantes de


uma cultura, que não são adequadamente compreendidos, as pessoas com autismo têm um
processo de desenvolvimento psicológico bastante difícil e penoso. É provável que apenas
uma minoria dessas pessoas possa chegar à possibilidade de descobrir a própria forma de
ser e talvez o sentido de sua existência.

Após uma primeira infância caótica, na qual a desorientação permeia os contatos da


criança com seu ambiente e vice-versa; e após uma segunda infância, na qual a aquisição
das operações lógicas do pensamento auxiliam a adaptação, o indivíduo com funcionamento
autista e inteligente chega à adolescência, período em que de fato se percebe muito
diferente dos demais e, muitas vezes, deprime-se, pois essa consciência acarreta um novo
tipo de sofrimento.

A adolescência e o início da vida adulta caracterizam-se por uma luta titânica, uma
luta pelo direito à existência. Servem muito bem à imagem dos titãs, a segunda geração
divina, seres primordiais tão intensos na sua expressividade, mas desprovidos ainda de
caracteres humanos. Alvarenga (1999) mostra que as figuras titânicas podem ser
consideradas, simbolicamente, como representantes de todas as estruturas da consciência.
A especificidade, porém, só é possível, do ponto de vista da mitologia, na terceira geração
divina, na qual Pai e Mãe estruturam o corpo e o Herói estrutura o psiquismo. Porém, a luta
dos titãs é uma luta pela sobrevivência, muito diferente e anterior à luta do herói, que é a luta
dirigida pelo direito de ser ímpar.
As pessoas com autismo e que têm a inteligência preservada, a partir da
adolescência, tendem a empreender uma luta para se tornarem iguais aos seres
considerados neurotípicos. Essa é a luta titânica. Acreditam que quanto mais semelhantes
eles se tornarem e quanto mais seguirem os moldes padronizados de conduta, mais
poderão ser aceitos ou, pelo menos, tolerados. Mas, com o passar do tempo, descobrem
que são diferentes, estranhos.
Na vida adulta das pessoas com autismo, pode surgir a percepção de uma diferença
irreversível em relação aos outros seres humanos. O espaço construído para a subjetividade
continua sendo pequeno e a intersubjetividade possível é usualmente baseada na lógica, na
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correspondência, na comunicação inteligente, na confiança, na reciprocidade e na


estabilidade das relações.
É possível que se possa observar uma fase de automatização das conquistas na
segunda metade da vida. É provável que haja a necessidade não só de uma luta titânica –
ou seja, de uma luta para a simples sobrevivência –, mas também de uma luta heroica – ou
seja, de uma luta pelo direito de ser ímpar. A ajuda para travar essas lutas deve ser o
objetivo da psicoterapia às pessoas com quadros de autismo. Porém, esse objetivo precisa
já ser colocado desde início do atendimento às crianças mais jovens e na orientação a seus
pais. A ajuda à adaptação ao mundo dos chamados neurotípicos é necessária à
sobrevivência, mas ganhar a consciência do direito de funcionar como diferente é
igualmente necessário.
Hoje, o indivíduo com autismo tem uma sobrecarga. Ele carrega as dificuldades e
limitações trazidas por suas próprias condições e ainda o estigma de uma outra
anormalidade: a do complexo materno negativo, ou seja, a da ferida matriarcal.
A cultura tende a projetar nos portadores de autismo sua infelicidade e eles passam a
serem lamentados e discriminados. A cultura tende a projetar o matriarcal ferido nessas
pessoas. Projeta ainda a ferida matriarcal em quem não tem imagens matriarcais e, por isso,
não tem a possibilidade de possuir fixações matriarcais.
Desde o início de sua vida, a pessoa com autismo deve ser entendida e atendida na
necessidade da ativação precoce dos dinamismos patriarcais e deve ter o respaldo de que
ela é diferente. Não se trata de negar a “anormalidade” dessa pessoa. Trata-se, na verdade,
de reconhecer essa “anormalidade” como agenesia da estruturação matriarcal, e não como
o matriarcal ferido.
As pessoas ditas normais, ao sentirem que o indivíduo com funcionamento autista é
desprovido do dinamismo matriarcal, esforçam-se por cuidar e melhorar tal pessoa. Esse
pode ser o erro fundamental no tratamento desse indivíduo, pois cria e reforça o sentimento
da inviabilidade. O indivíduo com autismo não quer e não precisa dos cuidados matriarcais,
porque ele simplesmente não tem o que fazer com eles. Pena, colo, aconchego, carinho,
lágrimas, mimos, superproteção emocional e dedicação afetiva esmerada, tão necessárias à
enfermagem do matriarcal ferido, aqui são dispensáveis. Além de inúteis, fazem com que
esse indivíduo experimente fracasso e culpa, pois ele é incapaz de, nesses termos,
corresponder à ajuda recebida.
O bebê, a criança, o adolescente e o adulto com autismo podem e devem receber
carinho e aconchego, desde que se tenha consciência de que não é isso que eles de fato
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mais necessitam. O que eles necessitam – e muito – é de compreensão e ajuda para


organizarem seu mundo e aprenderem a viver nele. Não possuindo a capacidade de
estruturar consciência pelo arquétipo matriarcal, apoiam-se totalmente na capacidade
estruturante e organizadora do arquétipo do Pai.

CONCLUSÃO

A partir do processo evolutivo, sob o ponto de vista conceitual, deve-se considerar a


desordem do espectro do autismo como uma entidade clínica, com características hoje
razoavelmente definidas. É um quadro de extrema complexidade, que exige abordagens
multidisciplinares visando à possibilidade de prognósticos e de abordagens terapêuticas
eficazes.
Ocorre, possivelmente, um distúrbio desde a fase intrauterina, na qual as vivências
matriarcais não se constelam. Porém, como a organização do desenvolvimento é
arquetípica, a função estruturante da organização patriarcal pode se tornar dominante. Com
um funcionamento autista, o indivíduo tem os papéis, referentes à filiação dupla, alterados:
são “filhos” ou “filhas do Pai”. Por outro lado, podem evoluir no processo do desenvolvimento
psicológico, mesmo na falha da humanização do arquétipo da Grande Mãe.

REFERÊNCIAS

Alvarenga, M.Z. (1999). Psicologia analítica e mitologia grega. São Paulo, Junguiana. p47-
56.

American Psychiatric Association – APA (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de


Transtornos Mentais – DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed.

Araujo, C.A. (2000). O processo de individuação no autismo. São Paulo: Memnon.

Araujo, C.A. (2017). ‘O autismo na visão da psicologia analítica’, in Paya, R. (org.).


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