Autismo - Uma - Epidemia
Autismo - Uma - Epidemia
Autismo - Uma - Epidemia
Introdução
Meu trabalho tem como objetivo discutir a crescente incidência no mundo dos
quadros de autismo, hoje classificados como Transtornos do Espectro do Autismo (TEA).
Pretendo também apresentar uma compreensão do autismo sob o referencial da Psicologia
Analítica e refletir sobre o atendimento a esses pacientes.
Em 1942, Kanner descreveu, sob o nome “Distúrbios autísticos do contato afetivo”,
um quadro caracterizado por isolamento extremo, comportamentos obsessivos, estereotipias
e ecolalia. Com o passar do tempo, esse quadro foi descrito com maior precisão diagnóstica
e conceitual, sendo denominado como “psicose infantil” em meados dos anos 1960. Em
1976, uma alteração importante na nomenclatura surgiu com Ritvo e Ornitz, que propuseram
o autismo como uma patologia do sistema nervoso central relacionada a déficits cognitivos.
O autismo passou então a ser considerado não mais uma psicose, mas sim um distúrbio do
desenvolvimento.
A partir dos anos 1980, mesmo a escola francesa com sua tradição psicodinâmica,
aceitou considerar o autismo como vinculado à questão cognitiva. Não se sustentou mais, a
partir dessa época, a hipótese da etiologia psicogênica do autismo. Tustin (1994), uma das
psicanalistas mais importantes no estudo do autismo, pouco antes de sua morte, pediu
desculpas aos pais de crianças com autismo pela referência a eles como “pais-geladeira”,
ressaltando que o novo modo de se ver o autismo é biológico.
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Os dinamismos matriarcais
Observa-se nas pessoas com autismo uma hipotrofia, ou até mesmo uma atrofia, do
papel “filho da mãe”, descrito por Galiás (1988), na estruturação da consciência, o que
impede a filiação plena à maternagem humana. Nesses indivíduos, os dinamismos
matriarcais de carinho, cuidado, aconchego e continência não se mostram eficazes. O amor
de mãe, primeira forma de amor a ser vivenciada, não consegue ser compreendido, nem
correspondido. As experiências emocionais de estar em ligação com o outro não são
internamente representadas e o impedimento para o funcionamento dos dinamismos
matriarcais faz com que a trajetória do desenvolvimento da criança com autismo seja muito
peculiar.
Os esquemas de imagem são subjacentes à organização dos complexos, que são os
modelos internos de trabalho. Os complexos funcionam como uma reserva de significados
acumulados pela experiência. No desenvolvimento típico, o esquema de imagem de
continente caracteriza a constelação do arquétipo materno. O componente inato pode ser
tão simples como um mecanismo para focar a atenção em específicos padrões perceptivos.
Tais padrões podem ser armazenados em uma forma esquemática simples, a qual permite
que todos os padrões semelhantes sejam reconhecidos. Assim, podem ser justificados a
atenção e o reconhecimento do bebê para o padrão básico da face humana, desde os
primeiros dias de vida (Knox 2003).
A experiência da criança de sua mãe como continente físico e psicológico é uma
extensão metafórica do arquétipo da Grande Mãe. É assim que, sob a regência desse
arquétipo, surge a primeira forma de amor vivenciada: o amor de mãe, que é um amor que
precisa ser correspondido.
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necessidades. A vivência de uma angústia, que não pode ser nomeada, gera desespero,
difícil de ser aplacado por uma mãe que se vê sem meios e que também se desespera. A
busca do isolamento, muitas vezes acompanhada da movimentação estereotipada, não
funcional, parece ser o meio que essa criança encontra, sozinha, para lidar com sua crise de
angústia. Porém, diferente das demais crianças, ela não vive ansiedade pela separação,
pela sensação do abandono. Ela vive o medo, a angústia pela incompreensão e a
insatisfação pelo não atendimento às suas necessidades básicas. É a mãe pessoal que,
muitas vezes, sente-se abandonada e, com frequência, tende a projetar sua ferida matriarcal
sobre o filho. A maioria das pessoas, aliás, repete esta atuação e, em função da projeção do
dinamismo matriarcal ferido, forma-se uma sombra que, colocada sobre a pessoa com esse
transtorno, a faz ser vista com pena, como “anormal” ou como “coitadinha”, nomeações que
sempre a desprestigiam como pessoa. Isso pode dificultar a compreensão dessa forma tão
diferente de ser e inviabilizar a possibilidade da sua individuação, ainda que peculiar.
Os dinamismos patriarcais
Se, para os indivíduos ditos normais, durante toda a vida – mas especialmente na
infância –, a aflição e a ansiedade surgem da vivência de sensações de abandono, para as
pessoas nessa condição, a aflição e a ansiedade não surgem frente a sensações de
abandono, mas sim à constatação da desordem, do imprevisível, do não computável.
A constelação do arquétipo do Pai tende a ordenar o mundo da criança com autismo.
Ela busca claramente rotinas e situações que ela possa decodificar, pois a possibilidade de
antecipar o que irá ocorrer lhe dará maior controle sobre a angústia. A literalidade tende a
dominar seu pensamento e a determinar sua ação. Muitas crianças mostram evidência de
prodigiosa memória. Com a função integradora da mente comprometida, sem a função da
coerência central, os eventos são engramados segundo padrões atípicos, desprovidos
também da qualidade emocional do momento, o que facilita a evocação praticamente ponto
por ponto, daí a memória prodigiosa em muitas das vezes.
Algumas crianças com autismo aprendem a ler sozinhas aos dois, três anos, sem
qualquer aprendizado formal, apesar do atraso e ou alteração do desenvolvimento da
linguagem e do desenvolvimento percepto-motor. A alfabetização costuma trazer
considerável alívio para os pais, pois, além de significar melhor comunicação com o mundo,
tende a abrir uma possibilidade nova para a criança, que, progressivamente, via leitura,
adquire novos interesses, ainda que, geralmente, com características obsessivas ou
estereotipadas.
Surge uma época de um pouco mais de estabilidade. Os pais, humanizadores do
arquétipo do Pai, têm a possibilidade de ajudar a ordenar e a organizar o conhecimento das
relações entre o mundo externo e o mundo interno da criança. O desenvolvimento crescente
das representações mentais auxilia a adaptação. Porém, é uma adaptação parcial. O outro,
no relacionamento, só é considerado na medida em que atende aos interesses específicos
da criança.
Quanto à conduta social, observa-se também a atipia. Inserida no grupo da escola,
podendo participar das atividades grupais, a criança com autismo inclina-se a permanecer
em uma posição marginal ao grupo de referência.
O desempenho acadêmico pode ser exitoso. O armazenamento de informações,
favorecido nas faculdades, quando dirigido aos interesses específicos pode ser muito
motivador e até atraente, ainda que sofrido sempre, dadas as dificuldades de trabalho em
equipe, as dificuldades de precisar ceder frente a atividades fora dos interesses específicos
e as dificuldades de regular as emoções nas relações com os demais. Alguns conseguem
seguir o aprendizado padrão, mas a maioria ainda necessita do auxílio das leis de inclusão e
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prossegue como alunos especiais. Não raro, os jovens cursam uma faculdade após a outra
ou se dedicam a cursos de pós-graduação, uma vez que a inserção no mercado de trabalho
é dificílima. Mesmo com as cotas de inclusão nas empresas com trabalhadores com
deficiências, previstas pela Lei, as pessoas com autismo raramente se beneficiam dessas
cotas. Elas são entrevistadas, têm suas habilidades e seus currículos reconhecidos, mas
são percebidas como seres pouco autônomos, que necessitariam serem guiadas e de
acompanhamento próximo. Porém, o mundo do trabalho dos tempos hipermodernos, mais
antropofágico que nunca, não tem espaço e tempo para o adulto pouco autônomo.
Sob a égide do arquétipo do Pai constituem-se os papéis parentais e o papel de filho
– ou seja, o papel de “filho do pai” – é adquirido. Na vida adulta, entretanto, observa-se um
uso abusivo do papel de filho, muitas vezes ao longo da vida inteira, o que retira toda a
possibilidade de autonomia da pessoa. O “filho do pai” tende a perpetuar-se,
comprometendo as relações de trabalho, sociais e amorosas.
Na compreensão da pessoa com autismo como o “filho do pai”, é muito interessante a
analogia que Adrian Smith, analista junguiano, mostra entre a criança com autismo e o
personagem Pinocchio, de Carlos Collodi. Essa analogia está em um artigo, publicado no
Journal of Analytical Psychology em 2017.
A alteridade
Sob a constelação do arquétipo da Anima-Animus, que é o arquétipo da ágape e da
comunhão, o ser humano típico no projeto do seu processo de individuação ganha a
possibilidade da relação simétrica. Adquire os papéis relacionados à amizade, à fraternidade
e à conjugalidade; e vivencia uma forma de amor que implica em amar o outro como a si
mesmo, sendo os dinamismos da alteridade a troca, a dialética, o fascínio e a paixão.
É difícil acreditar que a alteridade seja possível às pessoas com autismo. Observa-se
a grande dificuldade de se colocar no lugar do outro, para que possa sentir o outro, como se
o outro estivesse dentro de si. Na vida adulta, a teoria da mente já se mostra adquirida e
muito desenvolvida em seu componente cognitivo. Porém, falta o componente afetivo/a
capacidade natural da empatia, que é a sintonização espontânea e natural com as ideias e
sentimentos do outro, via linguagem dos olhos, entonação da voz e sutilezas de mímica
corporal. Não ocorre o sentir a atmosfera emocional que se instala no contato com o outro e
não ocorre o administrar, com sensibilidade, uma interação que não machuque, nem ofenda
os sentimentos alheios. O componente afetivo da empatia, que é a reposta apropriada ao
sentimento do outro, compreendendo as reações de compaixão e misericórdia,
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A espiritualidade
A adolescência e o início da vida adulta caracterizam-se por uma luta titânica, uma
luta pelo direito à existência. Servem muito bem à imagem dos titãs, a segunda geração
divina, seres primordiais tão intensos na sua expressividade, mas desprovidos ainda de
caracteres humanos. Alvarenga (1999) mostra que as figuras titânicas podem ser
consideradas, simbolicamente, como representantes de todas as estruturas da consciência.
A especificidade, porém, só é possível, do ponto de vista da mitologia, na terceira geração
divina, na qual Pai e Mãe estruturam o corpo e o Herói estrutura o psiquismo. Porém, a luta
dos titãs é uma luta pela sobrevivência, muito diferente e anterior à luta do herói, que é a luta
dirigida pelo direito de ser ímpar.
As pessoas com autismo e que têm a inteligência preservada, a partir da
adolescência, tendem a empreender uma luta para se tornarem iguais aos seres
considerados neurotípicos. Essa é a luta titânica. Acreditam que quanto mais semelhantes
eles se tornarem e quanto mais seguirem os moldes padronizados de conduta, mais
poderão ser aceitos ou, pelo menos, tolerados. Mas, com o passar do tempo, descobrem
que são diferentes, estranhos.
Na vida adulta das pessoas com autismo, pode surgir a percepção de uma diferença
irreversível em relação aos outros seres humanos. O espaço construído para a subjetividade
continua sendo pequeno e a intersubjetividade possível é usualmente baseada na lógica, na
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Alvarenga, M.Z. (1999). Psicologia analítica e mitologia grega. São Paulo, Junguiana. p47-
56.
Baron-Cohen, S., Leslie, A.M., Frith, U. (1985). Does the autistic child have a “theory of
mind”? Cognition, 21, 37-46.
Grandin, T. (1997). ‘A personal perspective on autism’, in: Cohen, D.J.; Volkmar, F.R.
Handbook of autism and pervasive. New York, John Wiley & Sons, Inc.
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Howlin P., Moss P. (2020). Adults with Autism Spectrum Disorders. The Canadian Journal of
Psychiatry, may, 57, 5.
Jung, C.G. (2008). O desenvolvimento da personalidade. 10a. ed. Petrópolis, Vozes. Obras
Completas, vol. XVII.
Knox, J. (2003). Archetype: attachment and analysis: Jungian psychology and the
emergence of mind. London, Routledge.
Ritvo, E.R.; Ornitz, E.M. (1976). Autism: diagnosis, current research and management, New
York, Spectrum.
Shore, A. (2019) The development of the unconscious mind. New York, W.W. Norton &
Company.