Cinema e Historia

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CINEMA E HISTÓRIA: O ENCONTRO DE DOIS MUNDOS

Eduardo Borges•

RESUMO
Este texto tem o objetivo de caracterizar o encontro entre a ciência histórica e o cinema como documento
histórico e veiculo que apresenta um discurso sobre a História. O debate em torno deste tema tem encontrado
opiniões diversas. Buscamos apresentar algumas visões a fim de criar uma referencia teórica e uma maior
aproximação do leitor com o assunto em questão.

Palavras-Chave: Cinema- História- Fontes- Historiografia.

A história no cinema, ou seja, os filmes enquanto fonte histórica e meios de


representação da história teve em Marc Ferro sua primeira e principal referência mundial.
Em sua obra “Cinema e História”, o autor formulou a definição de duas vias de leitura do
cinema acessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme ( que corresponde a uma
leitura do momento presente em que este foi produzido ) e uma leitura cinematográfica da
história que seria a utilização dos filmes para uma leitura da história.(FERRO, 1992).
Ao analisar a recusa de historiadores contemporâneos em recorrer aos filmes como
documento, Ferro diz tratar-se de uma recusa inconsciente, que procede de causas mais
complexas. Seria necessário, segundo o historiador francês, fazer o exame de quais
“monumentos do passado” o historiador transformou em documentos para, em seguida,
buscar perceber que documentos, hoje, a história transforma em monumentos.
A partir da década de 1970, sob influência da Escola dos Annales, na França, que
desencadeou um processo de reformulação do conceito e métodos da história, o filme passa
a representar um testemunho de seu tempo e ganha o status de documento histórico. Com o
filme ganhando status de documento histórico, algumas obras começam a surgir buscando
debater o modo de operar com esta nova fonte.(LE GOFF & NORA, 1979).
Siegfried Kracauer com a obra “Teoria do Filme”, publicada em 1960, é um dos
primeiros a habilitar-se a colaborar. Baseando sua construção teórica numa visão realista do
cinema, já em seu prefácio, o autor afirma que sua teoria seria uma estética material
baseada na prioridade do conteúdo.

* Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia e professor das Faculdades Jorge Amado.
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Para este autor, toda arte é uma batalha entre a forma e o conteúdo, sendo que, no
cinema, o conteúdo teria vantagem sobre a forma. Esta certeza impulsionou a Kracauer
contemplar, com um capítulo em sua obra, a análise dos conteúdos cinemáticos de vários
filmes. A obra do teórico alemão notabiliza-se por levantar uma questão crucial na análise
documental de um filme: o realismo das películas. Para Kracauer, a forma cinematográfica
ideal seria aquela que conseguisse o equilíbrio entre o documentário, que tenta seguir o
impetuoso fluxo da natureza, e o filme de enredo, que se esforça para dar à natureza uma
forma humana. A síntese dessas duas antíteses foi estabelecida por Kracauer com o que ele
chamou de “enredo encontrado”. Exemplos de “enredos encontrados” são os filmes do neo-
realismo italiano cujas histórias nascem do local e da cultura filmados; neles, nunca um
indivíduo inicia uma trama, pois a trama deve vir da própria realidade. Mesmo passível de
críticas, a obra de Kracauer fez emergir de forma vigorosa a relação cinema e história.
(BAZIN, 1991).
Caminhando na mesma linha de interpretações, encontra-se o americano Robert
Rosenstone, cuja grande preocupação é interrogar-se sobre as possibilidades do discurso
histórico escrito, transformar-se em um discurso visual. Faz uma crítica indireta a Kracauer,
quando afirma que não são o excesso de ficção ou a falta de rigor as duas maiores
transgressões do cinema à concepção tradicional de história. Para o historiador o grande
problema situa-se na tendência do cinema a comprimir o passado e convertê-lo em algo
fechado, mediante uma explicação linear, uma interpretação exclusiva de uma única
concatenação de acontecimentos.(ROSENSTONE, 1998).
O próprio Rosenstone nos apresenta a posição de dois teóricos, cujas leituras
divergem, no que concerne a este possível reducionismo do documento fílmico. O
historiador R. J. Raack defende a tese de que as imagens são mais apropriadas para explicar
a história do que as palavras. Para ele, a história escrita convencional é tão linear e limitada
que é incapaz de mostrar o complexo e multidimensional mundo dos seres humanos,
capacidade só atribuída às películas. .Posição oposta à de Raack defende o filósofo Jan
Jarvier, já que para ele as imagens só podem “transmitir muito pouca informação” e
padecem de tal “debilidade discursiva” que é impossível transpor algum tema histórico na
tela.
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Diante das controvérsias, Rosenstone centra seus argumentos conclusivos sobre a


necessidade de aprofundar-se no entendimento da linguagem e nos códigos específicos do
cinema no intuito de desenvolver uma leitura mais adequada das capacidades do meio
audiovisual, para informar, justapor imagens e palavras e criar estruturas analíticas visuais.
À luz destas necessidades de entendimento de códigos e estruturas analíticas
visuais, Jean-Claude Bernardet aproxima o cinema da história ao contemplar, com um
capítulo de sua obra “Piranhas no Mar de Rosas” a análise de alguns filmes de temática
histórica. O autor, em texto introdutório, posiciona-se contrário a uma parte da crítica
especializada que defende, segundo ele, uma estética “naturalista” dos filmes históricos,
exigindo deles uma reconstituição de fatos e figurinos que se aproximem o máximo da
“verdade histórica”. No momento em que estes críticos exigem verossimilhança excessiva
da reconstituição histórica nos filmes, estão tomando uma atitude puramente ideológica,
pois querem ter para si o domínio da história, pois, ao dominar a história dominam o
presente, “já que a história é sempre uma interpretação do presente”.(BERNARDET,
1982).
O argumento de Bernardet perde consistência, entretanto, no momento em que, ao
defender uma liberdade estética e interpretativa dos fatos históricos no cinema este não
deixa claro o conceito de história que se passa nas telas. Ao acusar os críticos de imporem
uma visão única de história, ele próprio não caracteriza que visão histórica defende. Falta-
lhe neste momento a responsabilidade e o embasamento teórico de um historiador.
Ainda referindo-se ao cinema como documento e à constituição de uma época no
conteúdo deste documento, Jean-Louis Leutrat,(1995) admite que a discrepância temporal
entre a época representada e a que produz esta representação não proíbe que relações de
contrastes ou analogias se estabeleçam entre elas,
Para o autor, a própria reconstituição, os figurinos, por exemplo, se opera com
freqüência a partir de representações da época tomadas como imagem fiel de uma realidade
evanescente. Mesmo dentro de uma reconstituição, Leutrat reconhece a presença de
invenção. O teórico francês mostra-se categórico quanto ao seu pessimismo com o cinema
como documento ao afirmar que a imagem no cinema não exibe senão desajustes. Ao
concluir, sustenta a tese de que o filme se apresenta raramente como um discurso de
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sabedoria, mesmo se ele pode produzir efeitos de sabedoria. E, quando se torna auxiliar de
uma ciência, pede que seja acompanhado de um comentário. (JOLY, 1999).
O filme “Barravento” de Glauber Rocha é um exemplo típico de como se pode
representar leituras divergentes de um mesmo fato. Ismail Xavier, em obra escrita em 1983,
inaugura uma nova tese de análise sobre Barravento. De modo geral, antes de Xavier, o
primeiro longa metragem de Glauber Rocha representava um claro e inequívoco discurso
contra a religiosidade africana. Xavier propõe uma revisão desta tese, optando pela
renúncia do enredo como eixo do discurso fílmico e centrando sua argumentação numa
leitura específica sobre a imagem e o som da película.(XAVIER, 1993).
O livro de Xavier analisa quatro filmes: dois de Glauber e dois que ele considera
representativos do Cinema Não Novo brasileiro. O capítulo, que se refere a “Barravento”, é
construído para provar que houve por parte de Glauber uma ambigüidade de ponto de vista
que se alternou entre uma aceitação poética da cultura popular representada pelo candomblé
e uma denuncia da religiosidade como fator de alienação de um povo. Ao dar ênfase na
análise da imagem e do som, Xavier abre possibilidades especulativas e dúbias no discurso
do diretor baiano.
Renato da Silveira, em texto escrito em 1998, desconstrói a tese de Xavier,
afirmando que não há rigorosamente nada em “Barravento”, que não possa encontrar
“lógica”, “ científica”. Ainda, segundo ele, só um certo deslumbramento com o exótico
impede que isso fique claro. Ao contrário de Xavier, Silveira ocupa-se do texto escrito do
enredo como eixo do discurso fílmico. Apesar de não descartar a análise das outras
linguagens que compõem um filme como a imagem e o som, percebe que, no caso
especifico de “Barravento”, o texto é o elemento essencial na caracterização de um discurso
único e logicamente construído pelo diretor.
Para construir sua tese, e conseqüentemente mostrar o equívoco cometido por
Xavier, substancia seu trabalho com uma caracterização do contexto ideológico do início da
década de 60 e a influência deste contexto na formação intelectual do jovem Glauber
Rocha. Faz uma analogia intelectual entre teoria e prática na obra de Glauber, fazendo
emergir uma relação direta e inequívoca dos pressupostos teóricos do cineasta e o resultado
final do discurso fílmico de Barravento. O texto de Renato da Silveira conclui por uma
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afirmação do filme como um manifesto político contrário à alienação popular causada pelo
candomblé.
Ao fazer uma análise da presença da religião afro brasileira nos filmes brasileiros,
Robert Stam (1997) aproxima-se da discussão em torno de “Barravento”. A posição do
autor toma uma direção conciliatória entre a de Xavier e a de Silveira. Sua análise leva em
conta tanto a abordagem materialista quanto a poética. Mostrando-se minuncioso
pesquisador, dá a devida importância aos assuntos de bastidores que envolveram a
produção de Barravento. Embasaram seu texto, a formação religiosa dos principais
envolvidos na produção, o grau de envolvimento destes mesmos personagens com o
candomblé, a formação intelectual de Glauber Rocha, e o conflito histórico da produção
representado pela exclusão de Luis Paulino dos Santos à frente da direção do filme.
Todos esses fatos levaram Stam a concluir que o objetivo de Glauber Rocha, com
“Barravento”, foi mostrar que sob o exotismo e a beleza decorativa do misticismo afro
brasileiro existia a fome, o analfabetismo e a miséria. Entretanto, em certo momento, o
historiador americano acaba sucumbindo às suas limitações conclusivas do tema, ao afirmar
que até certo ponto o filme é uma equação irresolvível.
Antonio Costa escreveu uma espécie de manual cinematográfico cujo principal
objetivo foi facilitar a compreensão do complexo mundo que envolve o cinema. Sua obra
busca, ao mesmo tempo, teorizar e historiar os fatos ligados ao cinema desde sua criação.
(COSTA, 1987). No primeiro capítulo cujo título é “O que é cinema?” trabalha com as
diversas formas de abordar o cinema, contemplando neste conteúdo a história do cinema.
A principal dificuldade do historiador do cinema é a de unificar, em uma única perspectiva,
um fenômeno tão complexo com vários objetos de pesquisa que, embora separados devam
estar coesos. Costa atribui a uma estruturação de tipo abrangente e comparativo o método
correto para se atingir o êxito das histórias gerais do cinema.
Jean-Louis Leutrat, em obra já citada, faz uma aproximação entre história e
antropologia. Partindo da idéia de que o espaço é a matéria da antropologia e o tempo a
matéria – prima da história, é possível entrecruzar as duas ciências a fim de fazer do cinema
um domínio em que ambas ciências enriqueçam o conhecimento do objeto. Um projeto de
história do cinema poderia ser o de reconhecer a maneira pela qual os atores sociais
revestem de sentido as suas práticas e os seus discursos.
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Em contribuição a uma história do cinema de forma abrangente, Walter da Silveira


vai escrever “A História do Cinema Vista da Província”. Escrito sob o ponto de vista de
quem viveu os melhores momentos do cinema baiano, o texto está, baseado em farta
documentação, traça um panorama do cinema na Bahia e no Brasil na primeira metade do
século XX.(SILVEIRA, 1978).
Organizada em forma de tópicos curtos, a obra de Walter, apesar de ser fiel a uma
coerência cronológica, afasta-se da linearidade, demonstrando a dificuldade do historiador
do cinema em contracenar sua história no tempo e no espaço. A opção por um texto
basicamente informativo é fruto da dificuldade de unificação, levantada por Costa, dos
vários objetos que compõem a história do cinema. Mesmo distanciando-se de certos rigores
historiográficos, o livro de Walter da Silveira é essencial para o conhecimento do cinema
baiano e brasileiro.
Raimundo Nonato Fonseca (2000), em dissertação de mestrado defendida
recentemente, aborda o cinema como eixo temático na construção de uma historia social da
Bahia nas três primeiras décadas do século XX. O trabalho de Nonato insere o lazer,
representado através do cinema, como campo de estudo histórico do cotidiano baiano.
Recorrendo a jornais como principal fonte de pesquisa, a tese em questão retrata, os
costumes, hábitos e valores do baiano. Ao retratar o cotidiano do baiano, Fonseca objetiva
perceber o sistema de trocas e incorporação cultural, ocorrido na cidade, entre o cinema e o
povo da Bahia. A pesquisa de Fonseca ganha importância dentro da historiografia
específica por servir de exemplo de abordagem por parte do objeto cinema numa
perspectiva de cunho cultural.
Os textos abordados demonstram o quanto a relação cinema e história mostra-se
embrionária em termos de conceitualização metodológica. As posições persistem
contraditórias, mas convergem, de modo geral, quanto à utilização do cinema, seja como
instrumento de um discurso ou como documento histórico.
O uso do cinema como documento, entretanto, precede, por parte do historiador, um
domínio das representações que caracterizam a linguagem cinematográfica. Cabe, portanto,
ao historiador contemporâneo investir em sua capacitação interpretativa desta linguagem e
apoderar-se do cinema de forma proveitosa como mais uma ferramenta no processo de
produção historiográfica.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAZIN, André. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991.
BERNARDERT, J. C. Piranha no Mar de Rosas. São Paulo: Nobel, 1982.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: Globo, 1987.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
JARVIE, I. C. Ver através dos filmes: Filosofia das Ciências Sociais. n. 8., 1978, p.378.
JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Campinas: Papirus, 1999.

KRACAUER, Siegfried. Theory of film: The Redemption of Physical Reality. Nova


York: Oxford University Press, 1960.

LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. (Orgs). “História: Novos Problemas”. In: A Nova
História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

LEUTRAT, Jean-Louis. Uma Relação de diversos andares: Cinema e História. Revista


Imagens, n. 5, ago/dez 1995, p. 28-33.

RAACK, R, J. Historiography as cinematography: a prolegomenon to filme work for


historians. Journal of Contemporary History, n. 18, 1993, p. 416-18.

STAM, Robert. Tropical multiculturalism: A Comparative HistorY of Race in


Brazilian Cinema and cultura. London: Duke University Press, 1997.

SILVEIRA, Renato. O Jovem Glauber e a Ira do Orixá. Seção Textos, n. 39, set/nov de
1998, p. 88-115.

XAVIER, Ismail. Sertão Mar, Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo:
Brasiliense/ Embrafilme/MEC, 1993.

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