Culler
Culler
Culler
Sergio Barcellos
(PUC-Rio)
Na introdução de seu pequeno livro Literary Theory - A very short introduction, Jonathan
Culler argumenta que lidar com a teoria da literatura atualmente em termos de abordagens
ou métodos interpretativos é um desperdício daquilo que ela teria de melhor a oferecer,
qual seja, seu “amplo desafio ao senso comum, e suas explorações sobre como o sentido é
criado e como as identidades humanas se moldam” (Culler 1997: s/p). Assim, desenvolve seu
texto sob a forma de tópicos considerados pertinentes, sendo que um deles, em particular,
interessa à presente reflexão: identidade, identificação e (o conceito de) sujeito.
Mais adiante, Culler oferece uma amostra de como a questão da identidade passa a
ser abordada pelas diversas correntes de pensamento contemporâneo que, evidentemente,
trabalham a partir dos questionamentos básicos anteriormente expostos e seus
desmembramentos combinatórios. Citando Foucault, o autor sugere como origem da ruptura
entre as abordagens identitárias como pré-determinadas e soberanas – o sujeito autônomo do
iluminismo – as pesquisas psicanalíticas, antropológicas e lingüísticas que “descentralizaram
o sujeito em relação às leis do seu desejo, às formas de sua linguagem, às regras de suas ações
ou os jogos de seu discurso mítico e imaginativo” (Culler 1997: 109). O sujeito, a partir dessa
ruptura, não mais atribui sentido ao mundo exterior, mas constitui-se em interação com
ele. Assim, a psicanálise entenderá a formação do sujeito como resultado da interseção de
mecanismos psíquicos, sexuais e lingüísticos. A teoria marxista, por outro lado, vê o sujeito
como produto de suas relações de classe. O feminismo abordará a identidade do sujeito em
relação ao gênero como papel socialmente construído e, por fim, a “queer theory” invocará o
sujeito como resultado de uma tradição de repressão da possibilidade da homossexualidade,
em oposição à heterossexualidade como valor normativo hegemônico. Tais abordagens
diversas atingirão o seu ápice e abrangência com a alteração de métodos investigativos e a
diversificação dos objetos de estudo a partir das novas demandas provenientes dos Estudos
Culturais.
Culler parece insinuar que uma das contribuições da narrativa literária teria sido a
construção da identidade de leitores, através da oferta de diferentes pontos de vistas com os
quais leitores se identificariam e se reconheceriam enquanto sujeitos. Sendo assim, seria através
do contato com alteridades que o leitor – sujeito em formação – constituiria sua identidade.
Essa relação entre texto e leitor parece mais evocar aquela a que se refere Heidrun K. Olinto,
em “Letras na Página/Palavras no Mundo. Novos acentos sobre estudos de literatura”:
Na relação tradicional, o autor projetava uma imagem de si próprio e a
duplicava no leitor, seu alter-ego, a partir de sinais retóricos que orientavam
a reconstrução. Uma leitura bem-sucedida previa consenso entre as duas
instâncias. Esse tipo de figura de leitor supunha um sentido independente,
exemplar, da obra literária e uma atitude contemplativa em relação ao sentido
formulado pelo texto. (Olinto 1993, p.15).
O caminho percorrido por Iser nos interessa na medida em que pisa em terrenos que
servirão para auxiliar a compreensão da identidade em seu valor relacional e seus reflexos
em uma prática textual considerada subjetiva e privada. Será como resultado dos diálogos
interdisciplinares com as ciências sociais e a psicologia social que se aproximam questões
tais como a identidade relacional do “eu” que se inscreve nos textos autobiográficos, seu
contexto de produção e a situação de interação (ou recepção) possível.
embora ainda circunscrita aos diários de escritores, cuja principal função tem sido a de servir
a uma corrente da crítica genética. Retrospectivamente, têm servido de terreno arqueológico
no qual descobertas importantes são e ainda serão feitas a partir de suas leituras. Em direção
ao futuro, deve-se tentar acompanhar e compreender o diálogo entre o diário e outras
linguagens, como a imagética, e outros media, como o cyberspace e a redimensionamento
da noção de intimidade da escrita diarística. Por fim, concluiu sua apresentação de forma
profética: “Talvez o diário seja uma espécie de fronteira nova”.
escritos por estudantes do sexo feminino. Além disso, a autora passeia por questões mais
abrangentes como a relação entre gênero e linguagem, gênero e formas e funções do diário
numa perspectiva histórica. Todavia, são questões de gênero e suas implicações na linguagem,
no discurso e na prática textual o ponto fulcral dos estudos de Gannett. Em sua bibliografia,
a autora oferece uma extensa lista de estudos relacionados ao diarismo e questões de gênero,
etnia, etc.
persons who are liable to exposure by someone with whom they are involved in
an intimate or trust-based relationship but are unable to represent themselves
in writing or to offer meaningful consent to their representation by someone
else. Conditions that render subjects vulnerable range from the age-related
(extreme youth or age) and the physiological (illness and impairments, physical
or mental) to membership in socially or culturally disadvantaged minorities.
(Couser 2004: xii).
Entretanto, uma outra posição pode ser ocupada pelo leitor do diário íntimo: a de
partícipe, ou de presença ostensiva, subliminar, no texto, tanto como matéria quanto como
energia participativa da gênese textual.
AS ESCRITAS DO EU
Não haveria dúvidas de que essa escrita viesse a ser o tão decantado “refúgio do
eu”, espaço de exercício da intimidade, longe dos olhares públicos e, em muitos casos, sem
quaisquer intenções de se tornarem escritos publicados ou lidos por alguém além do próprio
escritor ou de pessoas por ele autorizadas. Entretanto, é exatamente sua publicação e sua
acessibilidade à leitura o que contribui para que tais escritos venham a ser considerado sob a
perspectiva literária. Além disso, é a promessa de trazer o espaço íntimo do sujeito para perto
do olhar do outro o que contaminou tão fortemente o gênero e contribuiu para criar a ficção
de um espaço íntimo onde o sujeito se desnuda. É lá, nessa arena supostamente íntima, que
o outro ou a alteridade influenciam mais fortemente a constituição do sujeito.
deveria ser capaz de operar dentro de uma moldura realmente referencial, na qual o nome,
as ações, os afetos e as expectativas viessem a corresponder a uma instância extratextual,
passível de verificação. Entretanto, já foi dito que as palavras não correspondem às coisas e
há quem não somente questione essa capacidade referencial da linguagem como ainda afirme
que a
‘referência’ não descreve a relação com objetos concretos da realidade
experimentados pelos sentidos, mas refere-se a um determinado tipo de
conduta de orientação, resultado de convenções e processos de socialização
lingüística, que serve para assegurar uma construção de informação
comparável e relativamente paralela dentro do campo cognitivo de sistemas
comunicativos. (Schmidt 1989: 58-9)
tem da visão que os outros têm dele ser uma preocupação constante, torna a visão que tem
de si uma meta-identidade.
O extenso estudo realizado por Georges Gusdorf sobre o que ele chama de
“écritures du moi” contempla com um capítulo a questão da destinação dos diários íntimos.
Nele, Gusdorf vislumbra algumas possibilidades de compreensão de um destinatário ou
interlocutor do diário íntimo. Primeiro oferece a imagem do confidente, exemplificando-a
com o diário de Maurice Guérin, que se dirige a esse interlocutor discursivo como sendo
um ser dotado de alma, de vida, de inteligência. Em seguida, sinaliza com a possibilidade
de o diário representar um interlocutor válido, como uma espécie de alter-ego do diarista, e
cita Michelet. O diálogo estabelecido entre diarista e alter-ego o leva a citar Paul Valéry: “Um
homem que escreve não está jamais só” (Gusdorf 1991: 389). A comunicação, então, passa
a ser vista com mais clareza no âmbito da escrita diarística. Ainda que se destine ao próprio
diarista, a escrita íntima mantém sua característica de ato comunicacional. Dessa forma,
Gusdorf considera como primeiro destinatário o próprio diarista, ao instituir um diálogo
entre o “eu sujeito” e o “eu objeto”.
A classificação de Gusdorf não difere daquela feita por Jean Rousset, no artigo
“Le Journal Intime: texte sans destinataire?”. Rousset oferece quatro possibilidades de
destinação do texto diarístico: autodestinação; pseudodestinação; grau de abertura de
destinação; grau de fechamento de destinação. A definição sedimentada do diário como um
texto autodestinado ou pseudodestinado pode ser entendida como mero estágio de destinação
de um texto que, em seu próprio corpo, pode estar oferecendo marcas da presença do outro
– já não apenas o próprio diarista, mas um destinatário que não se contenta em ser somente
A passagem de um leitor abstrato da teoria iseriana para aquele leitor real, empiricamente
inserido em um tempo e espaço específicos, como o de Schmidt, revela novas perspectivas
para os estudos sobre diários íntimos. Se um passo em direção à compreensão da interlocução
existente em tais textos foi dado, resta recolher os dados quantitativos e qualitativos já
existentes e inseri-los numa abordagem do objeto em questão a partir da interação entre texto
diarístico e leitor. Como resultante dessa nova aproximação, a convergência de tendências
teóricas mais recentes – que incluem discussões de tópicos temáticos em detrimento a uma
periodização e taxonomia antigas – abarcará, sem dúvida, as preocupações iniciais dos estudos
do diarismo, além de sua mera inserção no campo dos estudos de literatura como possível
instrumento de uma crítica genética. Revelar-se-á, também, como um objeto em si merecedor
de abordagens específicas, para além de sua funcionalidade enquanto fonte documental para
uma historiografia ou, ainda, como procedimento para uma práxis pedagógica, sociológica
ou psicanalítica.
ABSTRACT: The unfolding of the reader-response theory as coined by Iser towards a more
empirical understanding of the relationship between reader and text open new possibilities
for inquiry of diverse texts, beyond its predicable application to the fictional literary text.
Diaries that had only been studied as subsidiary and peripheral texts can now be dealt with as
a textual practice that overpass the intimacy and the isolation – traits historically linked to the
notion of private writings. As a result of the new approach, the convergence of more recent
theoretical tendencies will evolve the initial concerns on the studies of diaries and bring
together the role of readership and identity formation in this genre of private writing.
OBRAS CITADAS:
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