Jesus e Os Direitos Humanos

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PUBLICAÇÃO REALIZAÇÃO CO-REALIZAÇÃO

organizador
Instituto Vladimir Herzog Prefeitura de São Paulo
Ronilso Pacheco
diretor executivo prefeito
co-organizador
Rogério Sottili Bruno Covas
João Luiz Moura
diretora educacional
projeto gráfico e capa Secretaria Municipal
Ana Rosa Abreu
Eduardo Foresti de Direitos Humanos
Helena Hennemann Equipe Usina de Valores e Cidadania
diagramação coordenador geral secretária

Helena Hennemann Lucas Paolo Vilalta Berenice Maria Giannella


revisão gestor administrativo Departamento
Flávio Conrado financeiro de Educação em
Karen Ianino Dyego Pegorario Direitos Humanos
impressão assistente administrativo diretor

jesus
e financeiro
Gráfica Igil Raphael Buongermino
Francisco Monteiro Paulo
coordenador educacional
Alan Brum

e os
coordenador de comunicação
Semayat Oliveira
gestor multimeios
Vinicius Martins

catalogação na fonte:
Jônatas Souza de Abreu, Ms. CRB4-1823
direitos
J585

Jesus e os direitos humanos: porque o reino de Deus é justiça,


paz e alegria / Ronilso Pacheco, João Luiz Moura. – Rio de Janeiro:
humanos
Vlado, 2018.
144 p., 11,3x15 cm.
isbn 978-85-65059-12-1

1.Teologia Evangélica. 2. Direitos humanos.


3. Liberdades fundamentais. 4. Espiritualidade.
I. Pacheco, Ronilso (Org.). II. Moura, João Luiz (Org.). III. Título.
CDU 27-1+342.7

índice para catálogo sistemático


Teologia cristã 27-1
Direitos humanos 342.7
Evangelicalismo 279.123
Bíblia 27-23
sumário
PREFÁCIO

9 UM LIVRO PARA NOS


TRAZER À MEMÓRIA AQUILO
QUE NOS DÁ ESPERANÇA

17 JESUS E os DIREITOS
HUMANOS: POR UMA
VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO

29 MARIA MADALENA:
UMA DISCÍPULA PRESENTE
EM TODO TEMPO
45 IGREJA EVANGÉLICA, 87 JESUS É A VITÓRIA
PROJETO ALÉM DO NOSSO DO AMOR E DO PERDÃO
OLHAR: PARTILHA QUE UNE SOBRE A VIOLÊNCIA
EVANGELHO E RESPEITO
AOS DIREITOS HUMANOs
101 AMOR E RESPEITO:
BASES PARA PROMOÇÃO
DA DIVERSIDADE RELIGIOSA
59 JESUS: EXEMPLO DE
RESISTÊNCIA E ESPERANÇA
PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS 113 A IGREJA BATISTA
E VIDA DO POVO NEGRO EM COQUEIRAL E OS
DIREITOS HUMANOS

73 O REINO DE DEUS É JUSTIÇA,


PAZ E ALEGRIA: COMO 127 Todas as vidas importam?
O EVANGELHO DE JESUS Protestantismos
INSPIRA SEGURANÇA? e direitos humanos
PREFÁCIO

UM LIVRO PARA
NOS TRAZER À
MEMÓRIA AQUILO
QUE NOS DÁ
ESPERANÇA

Ronilso Pacheco é teólogo, escritor e pastor da Comunidade


Batista de São Gonçalo. Ativista de movimentos sociais ligados
a questões raciais.
Por que ter um material que se esforce em aproximar a Decla- apenas isso. O livro também é uma proposta para reafirmar
ração Universal dos Direitos Humanos da Bíblia? Mais do que que a Bíblia e, em especial, a vida de Jesus narrada nos Evan-
isso: seria possível vislumbrar em Jesus, atitudes, mensagens gelhos, inspira e reforça a Declaração como um bem comum a
e posturas que nos permitissem dizer que Ele validaria os todas e todos. A afirmação fundamental da Declaração, con-
Direitos Humanos? A violação da Declaração Universal dos tida já no primeiro artigo, norteia toda a agenda dos Direitos
Direitos Humanos deve importar à igreja? De fato, este traba- Humanos: “Todos os seres humanos são livres e iguais em
lho coletivo aqui proposto tem dois orientadores principais: a dignidade e direitos”. A afirmação fundamental de Gênesis,
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Bíblia. Algo primeiro livro da Bíblia é de que, “no princípio, Deus criou
nos indica, na construção desse processo de trabalho, que os céus e a terra” e que “Deus criou homem e mulher à sua
lembrar esta aproximação é necessária e tem se tornado imagem e semelhança”. Aqui, no início de todas as coisas – na
cada vez mais urgente. perspectiva bíblica – dois princípios se encontram: a criação
de todas e todos e sua igualdade em direitos.
Há uma sensação de que este relacionamento (Bíblia e Direi-
tos Humanos) está ameaçado, como se fosse um relaciona- Neste trabalho coletivo, cada autor e autora preocuparam-se
mento entre coisas antagônicas. Fruto de um intenso debate com o desafio de produzirem textos que não fossem apenas
sobre o seu “papel” nos últimos anos, os Direitos Humanos discursivos ou argumentos teológicos e acadêmicos sobre
vêm sendo cada vez mais questionados como se pertences- os temas propostos, mas textos que tivessem uma combina-
sem a um grupo específico que os merece (“Direitos Humanos ção generosa entre a profundidade necessária, a linguagem
apenas para humanos direitos”, dizem uns) ou fosse um mero acessível e a Bíblia como principal referencial teórico. Parece
argumento usado por quem quisesse encobrir (proteger) crimi- um desafio simples, porém não é. Uma das explicações para
nosos, ignorando o sujeito honesto e trabalhador que, muitas demonstrar que não é simples, é perceber que esta capa-
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

vezes, é uma vítima, ou como organizações que veriam nisso cidade tem, no Brasil, alguns mestres e algumas mestras,
uma forma de lucrar com a desordem social (“o pessoal dos que são até hoje quase únicos nesta arte. Aqui falamos do
Direitos Humanos só defende bandido”, dizem outros). frei católico Carlos Mesters e do luterano Milton Schwantes,
mestres pioneiros na arte de levar a complexidade das nar-
Sendo assim, este livro foi pensado para ajudar (porque não rativas bíblicas até o povo simples, tratando de temas que
é o único esforço neste sentido) a resgatar e reafirmar que a geralmente só ocorriam citando intelectuais, pesquisadores,

prefácio
Declaração Universal dos Direitos Humanos, com todos os pensadores. Falamos da pastora metodista Nancy Cardoso
seus limites, é um ganho universal e necessário – mas não e da professora católica leiga Tereza Pompéia Cavalcante,

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igualmente formadoras de uma geração que se inspirou em, fala sobre segurança, lançando mão da pergunta: “Como o
a partir da Bíblia, falar do que tocava o dia a dia das pessoas Evangelho de Jesus inspira segurança?”. Nisto, não apenas
comuns, da luta do povo. uma segurança pessoal e individual, mas como o Evangelho
nos inspira a pensar sobre políticas de segurança pública. Je-
Com este desafio assumido, nosso texto de abertura Jesus e sus é a vitória do amor e do perdão sobre a violência é o texto
os Direitos Humanos: por uma verdadeira evangelização, o do sexto capítulo, do pastor Henrique Vieira. Este é um texto
missionário Caio Marçal nos ajuda a fazer este primeiro re- que trata, sobretudo, de como a vida de Jesus dá caminhos
conhecimento, de que a vida de Jesus nos revela um cuidado para interrompermos o ciclo de violência, discursos de ódio e
e uma responsabilidade pela dignidade de quem quer que intolerâncias, de como não termos no medo um instrumento
seja. Com o segundo texto Maria Madalena: uma discípula que nos leve a sermos razoáveis com violências que são
presente em todo tempo, a pastora Andreia Fernandes nos apresentadas como medidas de segurança.
leva a discutir sobre a condição das mulheres no Brasil atual
e as questões de gênero que não podem mais ser deixadas Em Amor e respeito: bases para promoção da diversidade
de lado. Falando, no terceiro capítulo, sobre suas experiências religiosa, nosso sétimo capítulo, o pastor e compositor Kleber
práticas de luta e pastoral, a pastora Kátia Teixeira e o pastor Lucas nos apresenta, a partir de sua própria vida, uma incrí-
Jairo dos Santos nos apresentam a vivência da igreja Projeto vel contribuição sobre como, e por que, o direito humano da
Além do Nosso Olhar, uma igreja pentecostal, no contexto da liberdade religiosa deve ser respeitado, é inspirado em Jesus,
Baixada Fluminense (RJ), que inspira toda uma igreja a estar e torna o nosso convívio social mais seguro e amoroso. No
reflexiva tanto à adoração quanto à exigência de seus direitos penúltimo capítulo, o teólogo João Luiz Moura nos convida a
e do direito e dignidade de sua comunidade local. pensar: Todas as vidas importam? Protestantismos e Direitos
Humanos. Aqui, vai tratar, especialmente, do lugar da vida
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Em Jesus: exemplo de resistência e esperança para promo- considerada sagrada, mas nos provocando a pensar por que,
ção de direitos e vida do povo negro, no quarto capítulo, o se Jesus nos disse que veio para que todas e todos tenham
missionário André Guimarães nos conduz, generosamente, vida em abundância, algumas vidas parecem ser considera-
a uma profunda e dolorosa reflexão sobre a importância da das mais sagradas em detrimento de outras. E o pastor José
questão racial, o quanto ela é tratada de forma sutil e da- Marcos, da Igreja Batista em Coqueiral (Recife/PE), encerra
nosa por nossa sociedade e nossa igreja; e, também, como nosso trabalho coletivo, dividindo conosco a experiência de

prefácio
podemos combater o racismo através de um testemunho sua igreja, com seu profundo e reconhecido impacto em uma
bíblico. No quinto capítulo, o texto em que Géssica Dias nos área periférica da capital pernambucana. Com este pastor,

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aprendemos o quanto uma comunidade local ganha, tendo
uma igreja que abriu mão do necessário relacionamento entre
o reconhecimento e o respeito aos Direitos Humanos e a fé
em Jesus, inspirada em sua vida nos Evangelhos.

Sobre o que esperamos


Nosso anseio primaz é que este livro entre em nossas casas,
entre em nossas igrejas, entre em nossos círculos de oração.

Por um lado, o livro vem dizer a irmãos e irmãs que respeito


aos direitos e à dignidade, de quem quer que seja, não é uma
ameaça nem discurso “do mundo” que quer invadir a igreja,
mas, antes, é apenas seguir o caminho que Jesus tão bem
ensinou. Por outro lado, este livro vem dizer a tanta gente que
a Bíblia não pertence a um grupo específico e evangélicos não
são um grupo único. Sempre houve evangélicos que, assim
como Jesus, amaram os Direitos Humanos e a dignidade, que
souberam viver com aqueles e aquelas que eram diferentes
deles e, que viram no Evangelho, inspiração e razão suficiente
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

para entender o que é defender justiça e igualdade. No fim,


aprenderam a serem guiados pelo amor.

Que ao ler, compartilhar e anunciar as ideias contidas nesse


livro, cumpra-se as palavras do profeta Amós: “Que a justiça
corra como um rio perene” (5.24). Amém!

prefácio
14 15
JESUS E
os DIREITOS
HUMANOS: POR
UMA VERDADEIRA
EVANGELIZAÇÃO

Caio Marçal é teólogo, pedagogo e mestrando em Sociologia.


Missionário numa ocupação sem teto em Belo Horizonte e na
Rede Fale. É membro da Igreja Batista da Redenção, BH.
Poucos assuntos ganharam tanta relevância nos últimos evangelização? É possível ser cristão e ser um militante de
anos quanto os Direitos Humanos. Se tempos atrás era um Direitos Humanos? Essa é uma pergunta importante e que
tema que mal se ouvia falar, hoje não faltam opiniões quando deve nos fazer pensar, refletir e compreender esse tema a
se toca nessa questão, muitas vezes de forma acalorada. partir da ótica do evangelho, não é mesmo?
Seja em programas de rádio, em escolas, em conversas com
amigos da rua ou mesmo em almoço de família, discutir sobre Ao longo desse texto, nosso desejo é fazer com que possa-
Direitos Humanos entrou em nossas pautas de bate-papo. mos ser desafiados pela vida de Cristo a compreender quais
são os caminhos possíveis para constituir uma percepção
Os Direitos Humanos são comumente entendidos como adequada e, assim, responder tais interrogações.
direitos fundamentais aos quais uma pessoa é inerente-
mente portadora simplesmente por ser um ser humano. Um
documento basilar para sua compreensão é a Declaração
Jesus, sua missão

JESUS E DIREITOS HUMANOS: POR UMA VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO


Universal dos Direitos Humanos da Assembleia Geral das
Nações Unidas, promulgada em 1948, após o término da e os Direitos Humanos
Segunda Guerra Mundial. A declaração inclui 30 artigos e
manifesta que todos têm prerrogativa a todos os direitos e Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías. Abriu-o e encontrou
liberdades estabelecidos “sem distinção de qualquer tipo, o lugar onde está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim,
como raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me
outra, origem nacional ou social, propriedade, nascimento enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da
ou outro status”. A declaração de abertura no preâmbulo vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da
diz que “o reconhecimento da dignidade inerente e dos graça do Senhor. Então ele fechou o livro, devolveu-o ao assistente
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

direitos iguais e inalienáveis ​​de todos os membros da fa- e assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos nele;
mília humana é o fundamento da liberdade, da justiça e e ele começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu a Escritura que vocês
da paz no mundo”. acabaram de ouvir’. (Lucas 4:17-21)

Mas o que esse assunto tem a ver com a nossa fé? O que O texto acima é um relato do início do ministério de Jesus. De-
a nossa missão, enquanto seguidoras e seguidores de Je- pois de fazer um “estágio” no deserto, onde ele é tentado pelo
sus de Nazaré, tem a ver com as questões relacionadas Maligno, o Cristo volta para sua Galileia e lá inicia seu minis-
aos Direitos Humanos? Como isso se correlaciona com a tério pregando nas sinagogas. Chegando a Nazaré, Ele lê um

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pequeno trecho do livro de Isaías e diz que naquele momento espécie de teoria religiosa. Porém, nos tempos de Jesus,
aquela palavra estava se cumprindo. Mas o que isso quer dizer? o termo significa o ‘anúncio especial que proclamava o nas-
cimento ou o acesso ao poder de um novo rei ou reino’.
Ao ler essa passagem, Jesus assinala que o Espírito Santo
o ungiu para uma determinada tarefa. Naquele contexto, A mensagem de Jesus promove o início de um reinado, onde
ungir é uma destinação que alguém escolhido recebe para o Rei é Deus. Jesus e os apóstolos anunciaram o Reino
determinada vocação. Ou seja, Cristo indica basicamente de Deus. O Evangelho é a ‘boa notícia’ do Reino de Deus.
qual é o objetivo final de sua missão. Em outras palavras, é Quando alguém reina em algum lugar, sua vontade é feita
como se ele dissesse: “Foi para isso que eu vim” ou “Esse plenamente. No Reino de Deus, sua vontade é plena e os
é meu projeto de vida”. seus súditos vivem sob essa nova ordem.

Contudo, é possível dizer que nesse momento o Cristo não Nesse sentido, a proclamação do Reino de Deus indica uma

JESUS E DIREITOS HUMANOS: POR UMA VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO


está apenas definindo sua agenda missionária, mas a de nova lógica diferente dos reinos desse mundo marcado pelo
todos os seus seguidores. Nesse sentido, esse texto implica a pecado. A ruptura com Deus é marcada também pela ruptura
todos aqueles que se denominam como cristãos! Compreen- com todos os seres criados à imagem e semelhança Dele.
der essa declaração é, sobretudo, perceber qual é a tarefa Tal separação traz consequências reais como a miséria, a
de todas as discípulas e discípulos de Cristo. exclusão, a violência, a exploração, o racismo, o machismo
ou o colonialismo.
E o que há nessa agenda de missão de Jesus? Quais as
implicações desse manual que deve reger a vida de seus CONTUDO, A BOA NOTÍCIA DA CHEGADA
seguidores? Como isso pode provocar um novo olhar para
DO REINO DE DEUS ANUNCIA QUE TODOS
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

a nossa caminhada missionária, com as questões da coleti-


vidade e nossa forma de lidar com as pessoas no dia a dia? OS EXCLUÍDOS, VIOLENTADOS E ESMAGADOS
Em primeiro lugar, Jesus declara que ele fora ungido “para
PELO SISTEMA DIABÓLICO DESSE MUNDO –
pregar boas novas aos pobres”. Mas qual é o significa- QUE JAZ NO MALIGNO – SÃO ACOLHIDOS,
do disso? Para compreender essa afirmação de Jesus, é
preciso voltar um pouco atrás e entender o que significa o
AMADOS, CONSIDERADOS E INCLUSOS
termo ‘evangelho’. Muitos pensam o evangelho como uma NA FAMÍLIA DE DEUS.
20 21
Jesus participou intensamente dessa plataforma de reden- irritação, aborrecimento e até raiva. Como qualquer outra
ção dos pobres. Ele jamais se apartou das pessoas que coisa, protestar pode ser aproveitado para propósitos hor-
se esperaria que ele evitasse. Ele permaneceu amigo dos ríveis e, portanto, não deve ser motivado por ódio, violência
marginalizados da sociedade e tocou nos intocáveis e tidos ou punição.
como indesejáveis. Jesus, o verbo vivo de Deus, foi total
identificação de amor. Aleluia! Contudo, se formos honestos com nossa fé evangélica e
protestante, concluiremos que protestar pode ser um ato
Em segundo lugar, a agenda de missão de Jesus indica sagrado de justiça. Protestar é a antítese de ser apático,
que Ele veio para “proclamar liberdade aos presos e recu- cúmplice, insensível e passivo. Portanto, os cristãos devem
peração da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e se consolar com o fato de que Jesus – o filho de Deus – não
proclamar o ano da graça do Senhor”. O texto não deixa era nem apático, insensível ou passivo.
dúvidas: Jesus compreende que aqueles que estão em

JESUS E DIREITOS HUMANOS: POR UMA VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO


situação de vulnerabilidade têm primazia e são o alvo Sim, Cristo fez muita coisa em silêncio. Mas também foi um
de sua militância de fé. Gente que precisa ser curada da manifestante provocador que causou alvoroço por onde
violência, da dor de ser discriminada, de ser liberta de passava. Ele incomodou tanto que acabou sendo preso por
qualquer modelo que a oprime e a torne cativa – aqui há perturbar o sistema à sua volta. Em suma, espancado e sa-
um paradigma essencial. Jesus não apenas reconhece que crificado em uma cruz por causa de suas palavras e ações.
o modelo dos reinos desse mundo gera dominadores e
dominados, mas toma partido em favor dos oprimidos. Ele MAS COMO JESUS ERA UM MANIFESTANTE?
não faz de conta que não existe opressão. Dessa forma,
assume que sua ação evangelizadora é transformar-se
ERA SIM, POIS ELE LEVOU SUA MENSAGEM
ÀS MASSAS, FALANDO E DEFENDENDO ONDE
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

em um manifestante.

Particularmente, em alguns círculos evangélicos, protestar


QUER QUE PUDESSE. CRIOU UM MOVIMENTO
é visto como algo errado ou mesmo pecaminoso. Para tais BASEADO NO AMOR, NA SOLIDARIEDADE,
cristãos, imaginar Cristo como um manifestante é visto
como um ato de blasfêmia. O termo ‘manifestante’ evoca
NA JUSTIÇA E NA ESPERANÇA.
julgamentos fortes, dependendo com quem você fala e Como manifestante, denunciou e confrontou líderes locais,
em que contexto. A palavra pode invocar sentimentos de chegando a denominar Herodes de “raposa” (Lucas 13:32).

22 23
No Novo Testamento, o Jesus manifestante criticou os fari- sete anos sabáticos – 7 x 7 – deveria haver um ano sabático
seus e os chamou de hipócritas por darem o dízimo meticulo- super-super, o ano do Jubileu. Durante o ano do Jubileu,
samente, mas falharem em aplicar o princípio mais profundo
de justiça e igualdade: “Mas ai de vós, fariseus! Porque dais Se alguém do seu povo empobrecer e se vender a algum de vocês,
o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças e não o façam trabalhar como escravo. Ele deverá ser tratado como
desprezais a justiça e o amor de Deus; devíeis, porém, fazer trabalhador contratado ou como residente temporário; trabalhará
estas coisas, sem omitir aquelas” (Lucas 11: 42 – ARA). Seja para quem o comprou até o ano do jubileu. Então ele e os seus
nas estradas, nos montes ou mesmo no Templo, Sua voz filhos estarão livres, e ele poderá voltar para o seu próprio clã e
ecoou em favor dos esquecidos, das crianças, das mulheres para a propriedade dos seus antepassados. (Levítico 25:39-41)
e dos marginalizados.
No decorrer dos anos, entre cada Jubileu, várias pessoas, por
Por fim, o texto indica que Jesus veio “proclamar o ano da diversas razões, cairiam em dívidas e, como consequência,

JESUS E DIREITOS HUMANOS: POR UMA VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO


graça do Senhor”. Estudiosos da Bíblia indicam que essa elas e suas famílias seriam vendidas como escravas por
declaração de Jesus é uma alusão ao ano do Jubileu, des- dívidas. Durante o ano do Jubileu, esses escravos da dívida
crito em Levítico 25. Quando o povo de Israel chegou à terra – muitas vezes, famílias inteiras – deveriam ser libertados.
prometida, ouve partilha da terra e foi instruído o Jubileu, Porém, a terra da família deveria ser restituída a eles. Tudo
que eram leis que tinham por objetivo manter a equidade deveria ser perdoado e a sociedade restauraria fortunas.
entre toda sociedade. Tais direitos prescritos procuravam Quem estivesse ouvindo Jesus naquela época, entenderia
impedir a acumulação de terras e promover a redistribuição que isso significava criar uma sociedade justa.
dos meios de produção de tempos em tempos, bem como
medidas que bloqueavam a proliferação da indigência entre A ação redentora de Jesus veio restabelecer o Senhorio de
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

o povo de Deus e também entre os estrangeiros. Essas leis Deus e restaurar tudo aquilo que a queda ocasionou. A vida,
foram criadas como uma forma de tornar o povo de Deus morte e ressurreição de Jesus não vieram para simplesmente
um exemplo para os outros povos. salvar um “punhado” de gente, mas retomar toda a consciência
da humanidade cativa à vontade de Deus: “e por meio dele
O Jubileu deveria ser o ano sabático dos anos sabáticos. A reconciliasse consigo todas as coisas”. (Colossenses 1:20, grifo
cada sete dias, os israelitas celebravam um dia de descanso. nosso). Em um mundo dividido entre Alphaville e a favela, entre
E, a cada sete anos eles deveriam observar um ano sabático muitos que não têm nada e poucos que têm tudo, o evangelho
de descanso, uma medida de ordem ambiental. Depois de da reconciliação nos põe como agentes de transformação.

24 25
Conclusão Daí infere-se que a mensagem do evangelho é uma “espada
de dois gumes”. Para alguns, ela é a boa notícia de um Reino
de amor, reconciliação, onde todos são acolhidos e não há
A Bíblia revela um Deus que ouve os gritos dos oprimidos
mais injustiça. Para outros, os opressores ou os que dese-
e ama trazer libertação.  A missão de Deus estabelece
jam estar em situação de conforto, é uma má notícia. Esses
uma agenda para os cristãos, ela é pronunciada por Cristo
últimos, mesmo sendo religiosos, sentirão ódio de quem
Jesus. Em nossa pregação, oração e adoração, precisamos
optar por assumir a radicalidade da boa nova do evangelho.
readquirir uma visão correta do significado do que é a
evangelização – o anúncio de uma nova lógica onde Deus
Nesse sentido, o evangelho também ganha caráter de de-
reúne e reconcilia suas filhas e filhos como uma grande
núncia profética. A pergunta final é: De que lado você está?
família. Portanto, a nossa vivência do evangelho nos en-
Dos que acolhem essa mensagem como uma boa notícia ou
volve para uma vida compromissada com a libertação de
como uma má noticia? Você está ao lado dos pobres com
todo tipo de opressão.

JESUS E DIREITOS HUMANOS: POR UMA VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO


Cristo ou ao lado dos que oprimem?

A IGREJA NÃO DEVE SER UM REFÚGIO Que a agenda missionária de Jesus, nosso mestre e guia,
ACOLHEDOR DO MUNDO, UMA “BOLHA” nos inspire a proclamar que o Reino de Deus é justiça, paz
e alegria. Minha oração é que respondamos positivamente
ESPIRITUAL ISOLADA QUE CONTÉM UMA ao chamado do evangelho para amar os Direitos Humanos.
PIEDADE PRIVATIZADA E DISTANTE
Amém!
DO SOFRIMENTO HUMANO. 
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

É interessante que, ao término desse relato, Jesus chega a


sofrer sua primeira ameaça de morte. Os líderes religiosos
que ouviram essa mensagem ficaram furiosos com sua
breve exposição. Eles estavam tão zangados que expul-
saram Jesus da cidade, levaram-no até o cume do monte
para dali o precipitarem.

26 27
MARIA MADALENA:
UMA DISCÍPULA
PRESENTE EM
TODO TEMPO

Andreia Fernandes é teóloga, fonoaudióloga, mestra e doutora


em Educação, pastora da Igreja Metodista do Brasil, SP.
Maria Madalena foi citada nos quatro Evangelhos. Quando
pensamos que a Bíblia foi escrita por homens em tempos em
De onde veio essa mulher?
que as mulheres eram desvalorizadas, podemos concluir que
O que temos da origem de Maria é que ela era de Magdala,
ela foi uma mulher tão importante que preconceito algum
por isso a chamavam de Magdalena (Madalena). Geralmen-
deu conta de escondê-la nos relatos bíblicos.
te, as mulheres na Bíblia eram identificadas pelo seu grau
de parentesco em relação a um homem. Por exemplo, Maria,
Muitas mulheres foram seguidoras de Jesus e sustentaram,
mãe de Jesus; Maria, mãe de Tiago; Joana, esposa de Cuza
inclusive financeiramente, seu ministério. Maria Madalena
etc. Com Maria Madalena isso não acontece, a referência
foi uma delas e sua caminhada com o Mestre fez com que
é sua cidade de origem: ela era de Magdala. Isso pode sig-
estivesse presente em dois momentos decisivos da vida de
nificar que não tinha parentes conhecidos na comunidade
Jesus: sua morte e sua ressurreição.
cristã e seguia a Jesus de forma independente, o que era
incomum para a época1.
O que sabemos e aprendemos de Maria Madalena? Em
nossa sociedade, apelidar uma mulher de “Maria Madalena”

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


Onde ficava Magdala? A única vez que encontramos essa
não é lhe conferir uma homenagem, muito pelo contrário:
palavra na Bíblia é quando se fala de Maria Madalena, mas
tem uma conotação negativa. O senso comum, ajudado pela
a pesquisa bíblica afirma que quando a região da Dalmanuta
tradição do início da igreja, se refere a ela como uma mulher
(Marcos 8:10) e Magadã (Mateus 15:39) são citadas, elas se
pecadora, prostituta, adúltera.
referem a Magdala nos manuscritos originais. Acredita-se
que Magdala ficava próxima ao mar da Galileia, era uma
O DISTORCIDO CONHECIMENTO DA BÍBLIA cidade próspera que fazia parte da rota comercial inter-
FAZ COM QUE AS PESSOAS DESMEREÇAM nacional, recebia muitas pessoas estrangeiras e, por isso,
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

marcada pela diversidade cultural2.


O MINISTÉRIO DESSA MULHER E A TRATEM
DE FORMA INJUSTA.
Aqui vamos partilhar algumas considerações sobre sua 1 REIMER, Ivove. Vida das Mulheres na sociedade e na Igreja.
identidade, trajetória e ministério. São Paulo: Paulinas, 1995.
2 MOURA, Fátima Maria C.R. Maria Madalena, a discípula amada.
São Leopoldo, RS: CEBI, 2013, p.14.

30 31
O encontro libertador de ela estava endemoninhada, nada mais do que isso. Ainda
que a tradição diga que ela era prostituta, adúltera ou algo
Maria Madalena com Jesus do tipo, não há fundamentação bíblica que explicita isso.

O que fez com que Maria Madalena se envolvesse no movi-


A Bíblia não relata como foi o encontro dessa mulher com
mento de Jesus? Quando ela se encontrou com Jesus, teve
Jesus, mas ousamos afirmar que
a sua vida radicalmente modificada. Tornou-se discípula
porque fora liberta pelo Mestre como destaca o texto bíblico:
JESUS, EM AMOR, ENXERGOU ESSA
... Maria Madalena, da qual expelira sete demônios... (Lucas 8:2)
MULHER E NÃO APENAS OS “DEMÔNIOS”
Sobre isso, a teóloga e biblista mexicana Elza Tamez afirma:
QUE A APRISIONAVAM. POR AMOR A MARIA,
“Por causa dos demônios havia perdido sua dignidade e seu sen-
tido de pertencimento, precisava encontrar a forma de ‘retornar a
JESUS NÃO A JULGOU, MAS SE APROXIMOU
si mesma’. Conhecendo as histórias de pessoas endemoninhadas DELA E A LIBERTOU.

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


curadas por Jesus, penso que certamente sua vida havia sido muito
triste, seu corpo certamente estava marcado e é muito provável E essa experiência foi tão marcante na vida de Madalena
que vivesse extremamente marginalizada.” 3
que cobriu todas as outras marcas negativas que seu corpo
carregava. Ela, agora marcada pelo amor de Jesus, conver-
Uma pessoa endemoninhada é uma pessoa que já não
teu-se a Ele e decidiu segui-lo até o fim.
consegue pensar por si mesma, não tem autonomia de de-
cidir sobre si, está escrava de algo que intencionalmente
quer lhe separar da vida abundante4. Assim estava Maria
Maria Madalena:
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

quando encontrou Jesus: a única coisa que sabemos é que


Companheira em todo tempo
Maria Madalena é como a grande maioria de mulheres na
3 TAMEZ, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, o Cristo.
Igreja: sempre disponível a aceitar os desafios da igreja e
São Leopoldo, RS: Sinodal, 2004, p.75
ajudar até o fim. Além da ajuda cotidiana no movimento de
4 MESTERS, C.; LOPES, Mercedes. Caminhando com Jesus: círculos
bíblicos do Evangelho de Marcos. 2.ed. São Leopoldo, RS: CEBI; Jesus, ela participou de dois eventos muitos importantes
São Paulo: Paulus, 2008. para a fé cristã: a morte e a ressurreição de Jesus.

32 33
a) n
 a crucificação de Jesus. Diante da crucificação de Jesus, Arimateia só conseguiu o corpo de Jesus porque era uma
todas as pessoas que o seguiam foram inundadas de pessoa muito ilustre (v. 43). O evangelho de Marcos 15 cha-
tristeza e desesperança, afinal, quem elas criam ser o ma atenção para o fato de que Maria Madalena acompanhou
Messias, tinha acabado de morrer. Além de tristeza, Jesus em cada momento. Ela, junto a Maria, mãe de Jesus,
decepção e desesperança, outro sentimento inundou não deixou seu Mestre, esteve na crucificação, na morte e
quem seguia Jesus: o medo. Sim, foi por medo que Pedro também no seu sepultamento (v.47).
negou o Messias (Marcos 14:66-72) e que um jovem
seguidor do Mestre fugiu nu (Marcos 16:51, 52). Mas EM TODO TEMPO MARIA CORREU O PERIGO DE MORRER,
por que tanto medo? MAS O SEU AMOR POR JESUS LHE AJUDAVA A SUPERAR
AS DIFICULDADES QUE SURGIAM. ELA SEGUIA CERTA
Naquela época, a pessoa crucificada não tinha direito a
nada. Tudo era feito da maneira mais cruel possível. Não DE QUE PRECISAVA CUIDAR DO CORPO DO MESTRE,
se permitia que a família e amigos (as) acompanhassem a DÁ-LO UM ENTERRO DIGNO.
morte de quem estava na cruz. Caso alguém fosse desco-

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


berto, morreria, e isso incluía mulheres e crianças. A pessoa b) Na ressurreição de Jesus. “Jesus lhe disse: ‘Maria!’ Então,
condenada não tinha direito a um enterro, os cadáveres voltando-se para ele, Maria exclamou em aramaico: ‘Ra-
ficavam expostos até serem comidos pelos bichos e eram bôni!’ (que significa Mestre)!” (João 20:16)
vigiados pelos guardas para não serem roubados pela fa-
mília. Quem, apesar da proibição, enterrasse um cadáver, Todos os relatos dos Evangelhos sobre a ressurreição de
sofreria castigo. Com presos políticos, como foi o caso de Jesus anunciam que ele apareceu a Maria Madalena. Cada
Jesus, a vigilância era maior ainda5. evangelista conta a história de uma maneira, mas em todas
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

elas a importância de Maria Madalena está garantida. O fato


Conhecer esse contexto ajuda a perceber a coragem de do nome dela vir primeiro nos relatos (Mateus 28:1; Marcos
Maria Madalena e das outras mulheres e homens que per- 16:1; Lucas 24:10; João 20:1), significa que a sua trajetória
manecerem até a morte de Jesus (Marcos 15:40). José de junto a Jesus e à igreja primitiva foi muito importante6.

5 DOUGLAS, J.D.(org.). O novo dicionário da Bíblia. São Paulo: 6 TEPEDINO, Ana Maria. As discípulas de Jesus. Petrópolis, RJ:
Vida Nova, 3.ed. rev. Vozes, 1990, p.102-103.

34 35
JESUS NASCEU DE UMA MULHER. QUANDO ELE descrença. Muitas de nós conhecemos cada uma dessas
MORREU AS MULHERES LÁ ESTAVAM, QUANDO experiências, os homens também o sabem. Portanto, o que
é possível aprender com essa discípula amada em relação
RESSUSCITOU FORAM ELAS QUE O VIRAM PRIMEIRO.
a tudo isso? Aqui gostaria de partilhar algumas percepções.
EM UM TEMPO ONDE A MULHER ERA DESVALORIZADA,
VIOLENTADA E, POR QUALQUER MOTIVO, CASTIGADA E Opressão: diversas são as formas com que as mulheres
DIFAMADA, JESUS FEZ A OPÇÃO DE COLOCÁ-LAS COMO são oprimidas, seja dentro ou fora de casa; a opressão nos
machuca, nos sufoca, nos sentimos incapazes, impoten-
PESSOAS MUITO IMPORTANTES EM SUA TRAJETÓRIA,
tes, ela confunde nossos pensamentos, tira a nossa força
EM SEU MINISTÉRIO. ASSIM, O MESTRE COMBATIA para decidir sobre a nossa vida. A presença libertadora de
O SISTEMA OPRESSOR. Jesus Cristo foi fundamental na vida de Maria Madalena,
sua trajetória mudou. O texto diz que ela foi liberta de sete
Jesus não só amou as mulheres, mas acreditou nelas, liber- demônios. O número sete na Bíblia tem a ver com totalidade
tou-as, deu espaço para que o seguissem, o servissem e o e plenitude7. Aquela mulher que era totalmente oprimida,

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


anunciassem. Maria Madalena quando foi anunciar que tinha inclusive pela sociedade em que vivia, pôde experimentar
visto o Cristo ressurreto, os discípulos não acreditaram nela, a possibilidade de uma vida diferente, liberta, plena. Essa é
nem mesmo os dois discípulos que o encontraram ressurreto a proposta de Cristo Jesus para nós.
(Marcos 16:11-14). Jesus censurou aqueles homens por isso.
Naquela época, uma mulher não poderia falar publicamente. Difamação: Maria Madalena foi uma mulher que pode ter
Só após a constatação de um homem, é que a notícia poderia seguido o movimento de Jesus sem ninguém de sua família.
ser divulgada. Apesar de não terem acreditado nela, Maria A pesquisa bíblica afirma que ela foi uma importante líder
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Madalena seguiu firme, crendo. Ela foi a portadora da melhor da Igreja e que isso gerou muito ciúme, por isso deve ter
notícia da vida: Jesus venceu a morte, o medo, as injustas enfrentado muitas difamações. Até hoje há quem fale mal
condenações. Jesus ressuscitou e, com ele, veio salvação e dela. Muitas de nós, quando nos convertemos, passamos
nova possibilidade de vida. a seguir a Cristo de forma solitária, perdemos casamentos,

A história dessa mulher é maravilhosa e tem muito a nos


ensinar. Maria Madalena deparou-se com muitos desafios. 7 MOURA, Fátima Maria C.R. Maria Madalena, a discípula amada.
Dentre eles, destacam-se a opressão, difamação, medo e São Leopoldo, RS: CEBI, 2013, p.17.

36 37
ganhamos a inimizade dos filhos e filhas, a rejeição de pa- As crianças, desde muito cedo, aprendem que tem que obe-
rentes, etc. Chegamos até a ter a nossa honra questionada: decer e que é melhor que o façam sem questionar. Homens e
“Ela não sai da Igreja, será que está lá mesmo?”; “Deve ter mulheres que caminhavam com Jesus, o viam afirmando que
um caso com o pastor ou com um líder da igreja”; “Agora ela viera cumprir a lei, e ele só poderia fazê-lo mediante a inter-
deixa a própria casa para cuidar de outras pessoas”. Mesmo pretação correta da lei. Por isso, questionava os doutores da
a gente sabendo que isso não é verdade, fazendo de tudo lei, porque estes além de distorcer os ensinamentos, oprimiam
para “dar conta” da casa, do trabalho e da igreja, às vezes o povo com interpretações equivocadas. Assim, enquanto o
não conseguimos impedir que falem mal da nossa ética, da ensino de Jesus sobre a lei fazia com que as pessoas ficassem
nossa sexualidade, da nossa vida. admiradas (Marcos 1:27), o ensino dos escribas fazia com que
as pessoas ficassem aterrorizadas (Lucas 13:14).
Medo e descrença: seguir a Cristo sempre foi uma opção
arriscada, mas Maria Madalena sabia do amor e do poder
do seu Mestre e seguiu em frente. Caminhar com Jesus é ter
PARA OBEDECER A LEI DE DEUS É
a possibilidade de aprender sempre. A coragem que Maria PRECISO CONHECER, REFLETIR, ELIMINAR

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


Madalena teve em acompanhar o seu Mestre até o fim não
veio de uma hora para outra. Na caminhada com Jesus, ela OS DISCURSOS RELIGIOSOS OPRESSORES.
foi aprendendo, foi se transformando8.
Maria Madalena, que caminhava com Jesus, tinha a possibi-
À medida que conhecia Jesus, mudava sua forma de pensar, lidade de tirar as suas próprias conclusões e a sua decisão,
suas atitudes, sua maneira de amar. É bem possível que nós sabemos: ela ficou com Jesus até o fim, ao invés de
diante de tantas mudanças, ela se perguntasse: será que optar pelos religiosos que acabaram condenando o Cristo.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

estou indo no caminho certo? Será que realmente é melhor


amar as pessoas incondicionalmente, como faz Jesus? Será Assim deve ser a nossa caminhada com Cristo. Quanto mais
que ficar ao lado de quem é oprimido é a coisa certa a se aprendemos de Deus, mais ele deseja nos orientar e mostrar
fazer, mesmo que isso signifique desrespeitar uma ordem, para gente o que é preciso mudar, transformar. Maria teve
um governo, um homem, a religião? medo, mas Cristo lhe deu coragem. Nós temos medos, mas
Cristo prometeu estar sempre conosco (Mateus 28:20). Não
tenha medo de mudar seus pensamentos e atitudes para
8 TAMEZ, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, o Cristo. São
Leopoldo, RS: Sinodal, 2004, p. 95 viver a plenitude de Cristo.

38 39
Jesus: Companheiro MINISTÉRIO, O ACOMPANHANDO E, DEPOIS
em todo tempo DE SUA ASCENSÃO, SENDO DETERMINANTES
Se Maria Madalena tem tanto a nos ensinar, quer sejamos NA EXPANSÃO DA SUA MENSAGEM E NO
mulheres ou homens, Jesus em sua relação com essa dis- FORTALECIMENTO DA IGREJA QUE NASCIA.
cípula também pode nos ajudar a pensar como as pessoas
se relacionam entre si. Há quem afirme, para além do que Dorcas, a discípula (Atos 9:36-43), Lídia (Atos 16:11-15,40),
acredita a fé cristã, que a relação do Mestre com Madalena Febe, Priscila, Trifena, Trifosa, Julia e Pérside (Romanos 16)
não ficou restrita à amizade. Há quem diga que Jesus e são algumas delas.
Maria Madalena relacionavam-se sexualmente. A Bíblia não
insinua nem confirma isso, tampouco a fé cristã. É interes- Jesus, a despeito do que o preconceito e a cultura vigente
sante pensar nas dificuldades da sociedade, especialmente apregoavam em relação às mulheres, fez a opção de se
machista como a nossa, em reconhecer que um homem e deixar guiar pela vontade de Deus. Assim, enquanto havia

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


uma mulher podem ser amigos sem interesse sexual. Isso um dito popular que dizia que era melhor jogar pérola aos
é algo que se perpetua até os dias de hoje. porcos do que ensinar a Torá às mulheres9, Ele fez questão
de permitir que Maria se quedasse aos seus pés, posição
Se Maria Madalena foi companheira em todo tempo é porque queque à época só um homem, um discípulo, tinha o direito
encontrou em Jesus alguém que a valorizava. Aliás, de ocupar em relação a um mestre. Jesus fez questão de
ter mulheres ao seu lado, de levar em conta suas petições,
A VALORIZAÇÃO DAS MULHERES POR de contar com elas na sua Missão e de ensiná-las a per-
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

manecerem junto a Ele quando os dias maus viessem. Elas


JESUS É ALGO PRESENTE NOS QUATRO ficaram com Jesus e Jesus ficou com elas.
EVANGELHOS E NÃO SE RESTRINGE
Essa relação de Jesus com as mulheres e das mulheres
A MADALENA. AS MULHERES FORAM
AJUDADAS POR ELE E TAMBÉM O 9 JEREMIAS, J. Jerusalém nos tempos de Jesus: Pesquisa de história
econômico-social no período neotestamentário. 3.ed. São Paulo:
AJUDARAM MUITO, SUSTENTANDO SEU Paulinas, 1993, p. 490, nota 128.

40 41
com Jesus pode e deve iluminar a maneira como mulheres
e homens se relacionam nas igrejas, no trabalho, em casa,
INGREDIENTES SÃO PLANTADOS, COLHIDOS
enfim, na sociedade. Se na relação de Maria Madalena com E SOVADOS POR TODAS AS PESSOAS E NÃO
Jesus aprendemos formas de lutar contra a opressão, a
difamação o medo e a descrença; na relação de Jesus com
POR AQUELAS QUE HISTORICAMENTE TÊM
Maria Madalena aprendemos a não difamar, a não oprimir, O PAPEL DE PREPARÁ-LO E QUASE NUNCA
a não amedrontar quem está em uma situação política de
minoria, de vulnerabilidade. Seja essa pessoa quem for.
DESFRUTÁ-LO EM CONDIÇÃO DE IGUALDADE
COM QUEM COME.
Hoje, os noticiários e as estatísticas sobre racismo, homofo-
bia, feminicídios, violências, diferenças salariais, ocupação de
cargos nas igrejas, mostram o quão desigual são as relações Por fim
humanas. O lado que ocupamos nessas relações, a maneira
como nos relacionamos com quem é diferente de nós, pode Maria Madalena não estava sozinha em sua trajetória. Ao

MARIA MADALENA: UMA DISCÍPULA PRESENTE EM TODO TEMPo


interferir para que o companheirismo tão presente na vida que tudo indica, ela era uma forte liderança, mas outras
de Jesus e de Maria Madalena seja uma realidade na nossa mulheres caminhavam com ela. Provavelmente fortaleciam
vida comunitária, na nossa sociedade. umas às outras, animavam-se, choravam juntas, oravam.
Jesus não estava sozinho em sua trajetória, ele tinha mu-
Na etimologia da palavra companheiro está a ideia da ‘par- lheres e homens, ele uniu pessoas para caminhar com
tilha, de comer do mesmo pão’. Ele. Seguir os passos de Jesus é enxergar quem com Ele
convivia, comia, se divertia e lutava para a proclamação
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

e construção do Reino de Deus: espaço onde cabe todas


ESSA DEVE SER A IDEIA DE UMA as pessoas e, mais especialmente, as pequeninas. Assim
SOCIEDADE, DE UMA FAMÍLIA, DE UMA devemos ser como igreja. Isso não é fácil, mas em Cristo
tudo é possível. Nós devemos cuidar umas das outras,
IGREJA, COMPANHEIRA, QUE COME O uns dos outros, nos fortalecer, nos proteger, nos ajudar.
MESMO PÃO. NÃO PÃO QUE A INJUSTIÇA E Isso é agradável ao Senhor e, é em meio à comunhão, ao
companheirismo e a união que Deus ordena a bênção para
A VIOLÊNCIA AMASSAM, MAS O PÃO CUJOS sempre (Salmo 133:3).

42 43
IGREJA EVANGÉLICA,
PROJETO ALÉM
DO NOSSO OLHAR:
PARTILHA QUE
UNE EVANGELHO
E RESPEITO AOS
DIREITOS HUMANOS

Pra. Kátia Ezoite é teóloga e pastora da Igreja Evangélica


Projeto Além do Nosso Olhar, Duque de Caxias/RJ.

Pr. Jairo dos Santos é teólogo, pastor da Igreja Evangélica


Projeto Além do Nosso Olhar, Duque de Caxias/RJ.
Para falarmos da Instituição é preciso falar um pouco de nós, momento. Meu filho junto a um amigo (morador de uma
seus pastores fundadores. Somos nascidos e criados nesta residência que se situava em frente ao templo), entraram
comunidade, porém, ao casarmos, fomos morar em outra no guarda-roupa da casa dele.
localidade, mas nunca esquecemos nossas raízes nem do
pessoal daqui e de todas as dificuldades enfrentadas, pois ACONTECERAM VÁRIAS MORTES E MUITAS
as conquistas que hoje temos aqui, como energia elétrica,
água e asfalto, mesmo com toda precariedade, não tínha-
FAMÍLIAS SOFRERAM COM ISSO. TUDO
mos em nossa infância. Esses foram avanços, porém, hoje, QUE TEM ACONTECIDO AQUI TEM DEIXADO
os índices de violência nos assustam. Não queremos dizer
que em nossa infância não tinha, contudo, não existia da
MARCAS FÍSICAS E PSICOLÓGICAS NAS
forma que vemos atualmente: pessoas armadas trafegando PESSOAS E ATÉ MESMO EM NÓS.
livremente e a venda de drogas indiscriminada. Sem men-
cionar os frequentes tiroteios, ocorrendo praticamente todos Certo domingo estava no culto, nosso terreno não era cer-
os dias – famílias vivem em constante medo. cado e estacionou um carro no quintal, algo me impulsionou
a ir lá fora. Ao me aproximar do carro, ouvi uma voz que
Retornamos a este lugar juntamente com nossos filhos, clamava por socorro, identifiquei-me e a pessoa implorou

IGREJA EVANGÉLICA, PROJETO ALÉM DO NOSSO OLHAR


Kesley e Wesley Teixeira. A princípio, cumprindo o Ide, as- que eu fizesse algo, pois seria executado. Nessa hora, fui
sumindo a igreja e, depois, como moradores da comunidade. tomado de uma coragem dada pelo salvador Jesus Cristo
para resolver a situação e aquele jovem foi liberto da morte.
Nosso primeiro desafio foi melhorar o lugar onde nos reu- Tantos outros desafios temos enfrentado, algumas vezes
níamos, pois o telhado estava prestes a desabar em nossas não conseguimos evitar, embora esse seja o desejo do nosso
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

cabeças. Quando conseguimos o necessário e fomos rea- coração, que as pessoas tenham uma vida diferente – incutir
lizar a obra foi um dia de terror vivido por nós, pois houve em suas mentes a necessidade de mudança é uma batalha
uma operação policial como nunca tínhamos visto antes, travada contra a força do mal.
com helicóptero águia e caveirão. O diácono Claudio e eu
(Jairo) estávamos na escada, colocando o telhado e não QUANDO COMEÇAM OS TIROTEIOS, EU (KÁTIA)
tínhamos como descer, Deus nos livrou de sermos atingi-
dos – foi terrível! O sentimento de medo e, ambiguamente,
ORO E CHORO COPIOSAMENTE. UNO-ME,
de fé tomou conta de nós e das irmãs que auxiliavam no EMPATICAMENTE, ÀS OUTRAS MULHERES
46 47
QUE SOFREM COM A INTEGRIDADE DE SEUS ENTENDEMOS QUE DEUS AMA A TODOS
FILHOS VIOLADA, COM OS TRABALHADORES E NÃO FAZ ACEPÇÃO DE PESSOAS, SEJA
NO SEU DIREITO DE IR E VIR, COM QUAL FOR A SUA RAÇA OU CLASSE SOCIAL.
AS CRIANÇAS QUE TÊM SUA INOCÊNCIA O REINO DE DEUS É DE AMOR,
MACULADA E ATÉ MESMO OS ÓBITOS MISERICÓRDIA, PERDÃO, JUSTIÇA,
QUE ADVÉM DESTA “GUERRA”. HUMILDADE, VERDADE, PAZ E INCLUSÃO,
Não tem sido fácil estar aqui nesta missão, porque não temos
O QUE TRAZ AO HOMEM ALEGRIA E BÊNÇÃO
muitos recursos, mas tudo que tem vindo às nossas mãos INCONTÁVEL. ISSO É SER PRÓSPERO.
temos feito com muito prazer. Jesus Cristo tem renovado
nossas forças, como vemos em Apocalipse 2:8, o exemplo Não é pelo que oferecemos a Ele e, sim, pelo que Ele nos
da igreja de Filadélfia. Não queremos ser hipócritas e dizer proporcionou: seu único filho, Jesus Cristo – aquele que crer
que não precisamos de recursos financeiros para realizar os Nele recebe vida. Presente maravilhoso de Deus para hu-

IGREJA EVANGÉLICA, PROJETO ALÉM DO NOSSO OLHAR


projetos. Porém, cremos que necessitamos acima de tudo manidade, através da sua graça temos livre acesso ao seu
da capacidade e da sabedoria concedida pelo Pai, Filho e Reino, que se inicia aqui na Terra e vai à eternidade. Não
Espírito Santo a sua igreja como corpo de Cristo (1 Coríntios é pelo que possuímos ou iremos possuir, Jesus deixou bem
12:27). A instituição, como pessoa jurídica com CNPJ, é vista claro o que devemos buscar – não devemos andar ansiosos
junto aos órgãos públicos como empresa, porém sem fins (Mateus 6:19-34).
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

lucrativos; a mesma é mantida pela contribuição voluntária


de seus membros (2 Coríntios 9:7). Não estamos aqui para Por isso, entendemos que, como representantes deste Reino,
sermos manipulados pelo dinheiro e nem para manipular o devemos lutar por igualdade: direitos e deveres que todas as
povo, como é costume de alguns. pessoas têm. Não tem sido fácil trilhar este caminho, pois a
maioria acha que Deus está presente em templos luxuosos e
Nosso projeto como igreja local é um pouco diferente do que em pregações que induzem o uso da fé para adquirir riquezas
muitos veem e creem. Porque rompemos com a Teologia materiais, nutrindo um pensamento egocêntrico e esque-
da Prosperidade. cendo-se do próximo. Entendemos que o Reino de Deus é:

48 49
Reino de amor: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu incompassivo também aprendemos este ensinamento (Ma-
o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não teus 18:26-35). Para trazer essas pessoas que se encontram
pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16). Jesus pregou à margem da sociedade a reconhecer e ter uma mudança,
o amor (Mateus 22:37-40) a Deus e ao próximo e não só também é necessário a realização de trabalhos sociais que
aos nossos amigos, devemos amar também aos que nos promovam sua inclusão (Romanos 4:4-8).
aborrecem, isto é, aos inimigos (Mateus 5:43-48).
Reino de justiça: “Bem-aventurados os que têm fome e sede
Reino de misericórdia: “Desejo misericórdia, não sacrifícios. de justiça, pois serão satisfeitos.” (Mateus 5:6). “Assim, em
Pois eu não vim chamar justos, mas pecadores.” (Mateus tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes
9:13). “Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão façam; pois esta é a Lei e os Profetas.” (Mateus 7:12). “Pois
misericórdia.” (Mateus 5:7). todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente por sua graça, por meio da reden-
Reino de perdão: Enquanto os homens querem condenar, ção que há em Cristo Jesus.” (Romanos 3:23-24).
dispor de julgamentos inquisitórios, Ele quer perdoar e salvar
(Mateus 18:21-22). Assim como fez com a mulher adúltera Reino de humildade: “Tomem sobre vocês o meu jugo
(João 8:1-11), a Zaqueu (Lucas 19:1-10), ao ladrão que es- e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de cora-

IGREJA EVANGÉLICA, PROJETO ALÉM DO NOSSO OLHAR


tava ao seu lado na cruz (Lucas 23:39-43). Ele tem poder ção, e vocês encontrarão descanso para as suas almas.
para restaurar. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mateus11:29-30).
Ao ensinar a seus discípulos que deveriam ser como crianças,
CREMOS QUE UM DEPENDENTE QUÍMICO, UMA Jesus ratifica a importância da humildade em seu Reino – é
PROSTITUTA, UM FRAUDADOR, LADRÃO OU ASSASSINO o maior no Reino dos céus (Mateus 18:4). Ele deu o exemplo
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

quando lavou os pés dos discípulos (João 13:4-17). O discípulo


PODE SER TRANSFORMADO (A), ARREPENDER-SE E TER
amado, João, deu testemunho Dele dizendo que: “é necessário
UMA VIDA DIGNA E JUSTA. INDEPENDENTE DO DELITO que Ele cresça e que eu diminua” (João 3:30).
PRATICADO, HAVENDO ARREPENDIMENTO, ALCANÇA
PERDÃO E MISERICÓRDIA. Reino de verdade: “E conhecerão a verdade, e a verdade os
libertará.” (João 8:32). “Respondeu Jesus: ‘Eu sou o caminho
O perdão que queremos em nossas vidas deve ser partilhado a verdade e a vida’.” (João 14.6). O homem só pode ser livre
na vida de outrem (Mateus 6:12) – na parábola do credor mediante o conhecimento da verdade. O mundo anda em

50 51
trevas e só a luz pode fazer a diferença. Essa luz é o conhe- Temos realizado aqui, na família IPANO (Igreja Projeto Além
cimento, porque sem o mesmo, o povo perece (Oseias 4:6). do Nosso Olhar), trabalhos com as mulheres abordando
Ser sábio é melhor do que ser forte, o conhecimento é mais assuntos de violência contra a mulher, sobre as mulheres ne-
importante que a força (Provérbios 24:5). Conhecer Jesus, gras e todo o preconceito enfrentado pelas mesmas, saúde
andar por Seus caminhos, é ter a luz e a verdade. Por isso, da mulher, abusos sexuais etc. Temos ouvido depoimentos,
o nosso lema é: crescendo na graça e no conhecimento de conversado e debatido à luz da Bíblia, mostrando que o plano
Cristo Jesus (2 Pedro 3:18). de Deus para elas não é de exclusão, mas, sim, de inclusão.
Os exemplos de Raabe, a prostituta cujo relato está no livro
Reino de paz: “Bem-aventurados os pacificadores, pois de Josué (6:25); Rute, a moabita – povo que tinha sua parti-
serão chamados filhos de Deus.” (Mateus 5:9). Como sabe- cipação na assembleias dos santos vetada (Deuteronômio
mos, nossa sociedade vive em meio à violência, guerras e 23:3). Sua história está pormenorizada no livro que leva
ódio. Infelizmente, nossa comunidade de fé não está isenta seu nome, onde contemplamos a bela história do “resgate”
da influência dessa atmosfera belicosa. Acreditamos que, de Rute (Rute 4:9-14). As personagens supracitadas são
mesmo em meio ao caos, Deus nos quer como pacificado- incluídas na genealogia de Jesus Cristo (Mateus 1:5) – uma
res, trazendo ao conhecimento que Cristo é a nossa paz. clara demonstração que Deus não faz acepção de pessoas.
(Efésios 2:14-22).

IGREJA EVANGÉLICA, PROJETO ALÉM DO NOSSO OLHAR


Outro exemplo que utilizamos em nossos estudos é o da
A PAZ TEM SIDO A NOSSA BUSCA CONSTANTE, Mulher Samaritana (João 4:7-10,39). Cristo, ao se comunicar
PORQUE ENTENDEMOS QUE CRISTO DERRIBOU A PAREDE com esta mulher, quebra paradigmas e mostra que o ser
humano deve prevalecer sobre toda e qualquer institui-
DE SEPARAÇÃO QUE EXISTE ENTRE OS HOMENS –
ção legalista – os judeus não falavam com os samaritanos.
PARA ELE E PARA OS QUE O SEGUEM NÃO PODE HAVER
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

A perspectiva de Jesus é o acolhimento.


DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITOS E INIMIZADE.
Estamos plantando a semente da paz, do amor e da união no
Ele é Deus “de longe e de perto”, de todas as classes sociais, coração de nossas crianças através da ministração de temas
de todas as raças, tribos e nações. Pela cruz, Ele nos recon- concernentes à sua realidade e faixa etária – enfatizando
ciliou, constituindo-nos família de Deus. Como Ele mesmo a importância da semeadura, aquilo que plantamos hoje,
declarou: todos aqueles que fazem a vontade do Pai são colheremos amanhã (Mateus 7:17-18; Gálatas 5:19-22).
membros de sua família (Mateus 12:47-50). Após as aulas, fomos entrevistá-las para saber se tinham

52 53
compreendido o ensinamento – fruto bom e fruto ruim. Uma repreendiam. Então disse Jesus: ‘Deixem vir a mim as crian-
criança de cinco anos respondeu que o fruto ruim para ela era ças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos
Polícia e ladrão. Perguntamos o porquê da sua resposta, ela que são semelhantes a elas’.” (Mateus 19:13-14). O ensino
disse: “porque matam”. Realmente o mandamento do nosso pode mudar o presente e o futuro dos pequeninos.
Deus é não matarás. Outro tema que passamos a nossas
crianças, adolescentes e jovens foi sobre a redução da idade Contudo, percebemos que não é somente a alegação de
penal. Entendemos que para haver mudança que adolescentes cometem delitos o “combustível” para esta
causa. Desde outrora o Estado quer por em prática essa
É PRECISO INVESTIR EM EDUCAÇÃO, ESPORTE, cultura de extermínio: Faraó teve esta prática no Egito (Êxodo
PROJETOS SOCIAIS PARA QUE OS MESMOS TENHAM 1:15-22) e também Herodes em Belém (Mateus 2:13-18).

OPORTUNIDADES E NÃO ENTREM PARA O CAMINHO


Temos um grupo chamado “Ato da Paz”, no qual jovens da
DA CRIMINALIDADE. REDUÇÃO NÃO É A SOLUÇÃO. nossa igreja convidam outros líderes religiosos para com-
JÁ EXISTEM MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS PARA OS partilharmos ensinamentos e atitudes que promovam a paz.
MESMOS. NÃO QUESTIONAMOS QUE MUITAS COISAS Já realizamos alguns eventos e encontros, abordando temas
como, por exemplo, intolerância religiosa.

IGREJA EVANGÉLICA, PROJETO ALÉM DO NOSSO OLHAR


PRECISAM SER REVISTAS, PORÉM, ENCARCERAR
NOSSOS JOVENS NÃO É UMA CONDIÇÃO VIÁVEL. NÃO PODEMOS FAZER CORO COM MÁS ATITUDES
QUE COOPEREM PARA AGRESSÃO, DESTRUIÇÃO OU
Os maiores de 18 anos que vão para a cadeia, muitas das
DIRECIONEM OFENSAS A OUTRO POR NÃO PROFESSAREM
veze, saem pior do que entraram. Concordaríamos em inserir
A MESMA RELIGIÃO, A MESMA DENOMINAÇÃO,
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

adolescentes nesse regime? Vamos investir, sim, em pales-


tras, vamos abordar temas para que eles se tornem cidadãos O MESMO COSTUME, A MESMA DOUTRINA;
autônomos e proativos, na família, na escola, na igreja e em É PRECISO TER RESPEITO UM PELO OUTRO.
todos os lugares em que estiverem inseridos: “Instrua a crian-
ça segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo Temos contado com alguns pastores de denominações dife-
com o passar dos anos não se desviará deles.” (Provérbios rentes, padres e diáconos católicos, o que tem abençoado in-
22:6); “Depois trouxeram crianças a Jesus, para que lhes finitamente nossa comunidade de fé. Porém algumas barrei-
impusesse as mãos e orasse por elas. Mas os discípulos os ras ainda não foram “derrubadas”. Ansiamos, ardentemente,

54 55
que outros líderes (de religiões distintas) confirmem nosso
convite e, em breve, possam atuar conosco na construção
de uma sociedade mais justa, diversa e acolhedora – cremos
que isso é seguir a doutrina de Jesus Cristo. Porque, como diz
em Tiago 1:27, “A religião que Deus, o nosso Pai aceita como
pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em
suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo.”.
Jesus, no evangelho de Mateus, também nos dá a diretriz de
como proceder aqui neste mundo: “Pois eu tive fome, e vocês
me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber;
fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas,
e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de
mim; estive preso, e vocês me visitaram.” (Mateus 25:35-36).
Quando agimos assim, acolhendo a nosso próximo em suas
necessidades, somos verdadeiros discípulos, adoradores que
o adoram em espírito e em verdade (João 4:24).

IGREJA EVANGÉLICA, PROJETO ALÉM DO NOSSO OLHAR


Findamos nosso texto, deixando um trecho da oração de São
Francisco, que temos colocado como emblema em nossos
corações: “Aonde houver guerra que levemos a paz, aonde
houver ódio que levemos o amor”.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

56 57
JESUS: EXEMPLO
DE RESISTÊNCIA E
ESPERANÇA PARA
PROMOÇÃO DE
DIREITOS E VIDA
DO POVO NEGRO

André Guimarães é educador popular, historiador


e seminarista. Ativista em movimentos da Teologia Negra
no Brasil. Membro da Igreja Metodista do Brasil, RJ.
Os evangelhos nos trazem a dimensão radical e profunda
da vontade de Deus. Os quatro evangelhos, escritos em
Temos história,
tempos diferentes para comunidades distintas, nos atingem raízes e esperança
ainda hoje por retratar os desafios de Jesus de Nazaré numa

JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
sociedade mergulhada em tensões e disputas de poder. Entendemos como um desafio para o povo preto afirmar
Uma sociedade massacrada pela ocupação romana, que sua identidade, juntamente com a tarefa de resgatar suas
teve o apoio dos religiosos para manutenção das relações raízes. O livro de Mateus 1:1-17 apresenta a genealogia de
de exclusão e violência. O que Jesus tem a nos dizer hoje? Jesus. Para nós, povo preto, isso tem uma grande potência.
O que um homem, morador do território da Palestina, pode Sabemos que não existem documentações capazes de nos
nos apresentar para superarmos as relações raciais tão responder com clareza sobre a árvore genealógica de Jesus.
adoecidas no Brasil? Diante desta indagação, tentaremos Essa ausência não pode ser recebida de forma definitiva.
com muita alegria apresentar ações de Jesus de Nazaré Podemos com isso acolher nossa história a partir de gran-
que podem nos auxiliar diante da superação do racismo e des referenciais de resistência que prestaram uma grande
na promoção da vida e da negritude. colaboração para o fortalecimento do povo preto neste país
e no mundo. Localizamos também na genealogia de Jesus
O primeiro aspecto que destacarei é a radical humanidade não um detalhamento “exato”, mas aproximações de figuras
de Jesus expressa no evangelho de João – que nos apresenta que lutaram de alguma forma e/ou marcaram fortemente
um Jesus de Nazaré totalmente humano e exposto a todos seu povo com atitudes de liberdade e ações de resistência e
os desafios de sua época, sujeito aos dramas e complexi- esperança. Quando sabemos de quem temos aproximação
dades de seu tempo. como povo, torna-se mais eficaz a luta para combater o pe-
cado do racismo em nosso meio. Porque quando trazemos
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

NÃO É POSSÍVEL MAIS SILENCIARMOS DIANTE DE para nossa árvore genealógica pessoas que resistiram com
testemunhos de luta, nós, como povo preto e cristão, temos
REPRESENTAÇÕES DE UM CRISTO DISTANTE DOS
a oportunidade de reinventar nossa trajetória e militância –
DESAFIOS DA COMUNIDADE NEGRA NO BRASIL. JESUS e, por conseguinte, rechaçar os relatos sobre nós como um
ASSUME TODAS AS LUTAS E RESISTÊNCIAS DO POVO povo fraco ou sem memória. Ao assumir homens e mulheres
de luta e ação, verbalizamos que temos aproximação e que
PRETO, UMA VEZ QUE É A EXPRESSÃO DE JUSTIÇA
nos dispomos a dar continuidade ao combate ao racismo
E DE NOVA HUMANIDADE. e às suas consequências, não apenas para o povo preto,

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mas também para toda a nação que sofre com a existência nos ajuda a entender que temos a “máquina” do Estado
e persistência desse pecado. direcionada para prejudicar os mais vulneráveis – com o
Jesus de Nazaré não foi diferente.
Um aspecto importante para nós, como povo de Deus, é

JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
o entendimento de que a vida do povo preto é marcada Nesta narrativa, fica evidente que o Estado exerce com
por múltiplos desafios que passam por todas as etapas da truculência o desejo de controle de sua população. Não
vida. Neste momento, gostaria de pensar junto com você o respeitando o direito de nascer dos empobrecidos, impondo
nascimento de Jesus relatado no livro de Mateus 2:13-23, sempre o desejo de controle sobre os corpos. A família de
com a apresentação de um governo que se sentiu amea- Jesus torna-se uma fugitiva e, com isso, todo o cotidiano
çado diante do menino nazareno. Esse governo organiza de seus pais é alterado bruscamente. Hoje, temos milhares
um elaborado plano para matar Jesus, que contará com a de famílias pretas e empobrecidas que são obrigadas a
estrutura do Estado, para eliminar uma possível ameaça. mudar suas trajetórias de vida, em virtude das guerras nas
comunidades, em que pais são obrigados a sair de suas
QUANDO OLHAMOS PARA AS casas e buscar um lugar seguro para seus filhos, uma vez
que essas localidades sofrem com a guerra do Estado con-
COMUNIDADES EMPOBRECIDAS ATUAIS, tra o mercado de varejo de drogas. A política de segurança
PODEMOS LOCALIZAR, TAMBÉM, TODA pública criminaliza pessoas e territórios, tendo a população
preta como uma das mais afetadas.
A ENGENHARIA DO ESTADO MATERIALIZADO
ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE VIOLÊNCIA – Jesus é contra o genocídio
CAMUFLADAS DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA do povo negro
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

PÚBLICA QUE TEM DIZIMADO BRUTALMENTE


Nestes últimos dias, temos visto uma perversa tentativa de
NOSSO POVO PRETO, MORADOR usar textos bíblicos para legitimar absurdos. As pessoas,
DE TERRITÓRIOS CRIMINALIZADOS. principalmente os líderes religiosos, não possuem mais pu-
dor de fazer do texto bíblico subsídio para discursos de
O texto bíblico nos apresenta um relato de migração im- ódio e violências. Querem a todo custo, tirando Jesus do seu
pulsionada pela violência. A vida de Jesus, neste cenário, eixo profético do anúncio do Reino de Deus e promoção da

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vida, justificativas para práticas cúmplices dos esquemas Rapidamente, o estudioso da Lei responde – de forma técnica
que promovem a morte. e com precisão – a Jesus com um mandamento. O Nazareno
é mais uma vez desafiado a responder quem seria o próximo
A SEDE DE PODER, DE UM SEGMENTO para o Doutor da Lei. Cristo, a partir da parábola, começa

JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
a elaborar com o Doutor da Lei outros caminhos de cone-
DAS IGREJAS EVANGÉLICAS, NÃO MEDIRÁ xão para aplicação deste mandamento ‘amar o próximo’. O
ESFORÇOS PARA CAPTURAR NARRATIVAS Mestre escandaliza com sua interpretação a realidade de
sua época, pois trouxe para o centro da ação um segmento
QUE CONTROLEM OS CORPOS DE SEUS outrora desprezado por aquela sociedade e que tinha o
FIÉIS, MANTENDO-OS DEPENDENTES DE sentimento de ódio alimentado pelos religiosos da época.

UMA FALSA ESPIRITUALIDADE QUE NÃO É A interpretação do Doutor da Lei não tinha a capacidade
CAPAZ DE DIALOGAR E INTERAGIR COM OS de compreender e abraçar os que não faziam parte de sua
“zona de conforto”. Jesus, um educador popular, que tinha
DESAFIOS CONCRETOS DA VIDA COTIDIANA. as ruas como local de aproximação e acolhida ao diferente,
Para alguns líderes religiosos, o uso das narrativas bíblicas não teve problemas para acolher o samaritano e transfor-
tem como objetivo silenciar vozes dissonantes e garantir o má-lo em elemento central da prática de sua ação. Ele, com
monopólio das interpretações que não mudam situações de sua didática, desconstrói as categorias de segurança do
alienação. Esse desejo de poder tenta circunscrever novos estudioso judeu que, desta vez, teve que ampliar seu olhar
sopros de percepção de outras interpretações capazes de e perceber que Deus tinha o interesse que as pessoas se
animar para a vida. De igual forma, lembramos que, no encontrassem e vivessem com abertura para inclusão. Hoje,
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

período de Jesus, também existiam disputas em torno da os líderes ainda possuem extrema dificuldade em acolher
interpretação dos textos sagrados e aplicação dos desafios os mais excluídos da sociedade.
apresentados pela Lei. Interessante que, no relato de Lucas
no capítulo 10 no verso 26, Jesus é questionado pelo Doutor PARA OS AFRODESCENDENTES DO BRASIL, FAZEM-SE
da Lei (estudioso judeu responsável pela leitura dos livros
NECESSÁRIAS NOVAS LEITURAS QUE SE CONECTEM AOS
de Moisés) sobre os critérios da mesma para a obtenção da
vida eterna. Jesus, imediatamente, pergunta ao Doutor da Lei DESAFIOS DOS PRETOS E DAS PRETAS. ISSO INCLUI
o que está escrito na Lei e como ele lê o que estava escrito. COMBATER PRÁTICAS RACISTAS QUE SE INSTALAM NA

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TRADIÇÃO E NO COTIDIANO DA IGREJA (E DA SOCIEDADE própria identidade das igrejas neste país. Não foi por acaso
TAMBÉM), PROBLEMATIZANDO TODA FORMA DE LEITURA que tantas literaturas teológicas, que afirmam a negritude
como elemento do Reino não chegaram até nós – citamos,
QUE LEGITIME A NATURALIDADE DE SUBALTERNIZAÇÕES
por exemplo, o desconhecimento de livros da autoria de/

JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
DOS CORPOS PRETOS E SEUS DRAMAS. sobre Martin Luther King e James Cone no Brasil. Sem men-
cionar que não temos quase nada de Teologia Africana
Cabe também lembrar que a igreja brasileira possui uma nas estantes das bibliotecas dos Centros Teológicos de
grande responsabilidade diante de tudo que acontece ao formação no Brasil. Esse quadro precisa mudar, mas, para
povo preto, pois a mesma não tem a capacidade de se po- isso, produções e cooperação com os movimentos sociais
sicionar criticamente frente ao Estado. Infelizmente, a igreja negros são imprescindíveis. Esses movimentos possuem
perde em tentar se alinhar ao Estado em busca de poder. uma liberdade crítica que consegue ultrapassar os limites
de nosso olhar religioso, muitas vezes, estagnados em um
Nossa leitura da Bíblia não poder ser neutra diante dessa olhar branco europeizado.
situação de racismo que aflige milhares de pessoas no
Brasil. A igreja e o povo de Deus precisam se envolver e se
engajar na construção e no monitoramento de ações que
O SILÊNCIO É BRUTAL AO SOBREPUJAR
superem essas relações discriminatórias. Essas atitudes UMA CULTURA EM DETRIMENTO DA OUTRA.
promovem as desigualdades sociais e econômicas no Bra-
sil e vão contra a missão de Jesus de promoção do Reino
UM EXEMPLO CLÁSSICO DISSO SÃO AS
de Deus. Seria Jesus imparcial aos desafios vividos pelas REPRESENTAÇÕES DE JESUS OU OUTRAS
pessoas empobrecidas e negras de hoje? Parafraseamos a
PERSONAGENS BÍBLICAS NAS NOVELAS.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

pergunta feita no Evangelho de João 1:46a: pode vir alguma


coisa boa do povo preto? NÃO SE ADMITE A CONDIÇÃO DE SUAS
A igreja brasileira tem em seu DNA uma forte aliança com
PELES SEREM PRETAS, O RACISMO NÃO
as mentalidades escravocratas do Sul dos Estados Unidos. CONSEGUE CONCEBER A POSSIBILIDADE
E, com isso, toda sua liturgia e memória teológica coope-
ram para a manutenção de pensamentos racistas que, ain-
DE PRETOS E PRETAS COMO PROTAGONISTAS
da hoje, ocupam espaços na hermenêutica, exegese e na DO CENÁRIO BÍBLICO.
66 67
Os cristãos no Brasil não experimentam um processo de
arrependimento e, ainda, insistem em viver a partir dos be-
OS ÍNDICES SOBRE HOMICÍDIOS DA
nefícios construídos a partir do processo escravista no Brasil. POPULAÇÃO NEGRA SÃO TÃO GRANDES QUE,
Quando fechamos os olhos e refletimos sobre as pessoas
HOJE, É POSSÍVEL FALAR EM GENOCÍDIO

JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
que estão em situação de abandono e sofrimento, não nos
faltam imagens de pessoas pretas para constatarmos que DA JUVENTUDE NEGRA, PELO ALTO
o Brasil é um país injustamente racista e que está longe da
reparação ao povo preto deste país. Jesus diz, no Evange-
GRAU DE SOFISTICAÇÃO NA ELIMINAÇÃO
lho Segundo João (10:10), que ele veio para promoção de DOS CORPOS. O SALTEADOR DESTRÓI A
vida abundante. A população negra no Brasil é a que mais
morre nos espaços de saúde pública, o chamado ‘racismo
ESPERANÇA DA POPULAÇÃO NEGRA QUANDO
institucional’ tem sido a causa das mortes. Quando olhamos AS POLÍTICAS PÚBLICAS SÃO NEGADAS
para os jovens que morrem assassinados, em maioria, por
armas de fogo, não conseguimos ver vida em abundância,
OU NEGLIGENCIADAS.
mas, sim, a vitória do salteador que veio para roubar, matar
e destruir. Infelizmente, subtraem a dignidade da juventude
negra quando, por responsabilidade do racismo, ela não
Reparação como
consegue acessar – com qualidade – a cultura, a educação tarefa teológica para
e não são alcançados por nossas comunidades de fé. Muitas
de nossas igrejas estão fechadas durante a semana e não
promoção de direitos
se colocam à disposição para fortalecer e encorajar jovens Em Lucas 19:1-10 nos deparamos com um lindo relato de
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

negros na superação do pecado do racismo. Com tristeza, conversão, um modelo muito importante, pois sinaliza a
identificamos que o salteador tem matado a nossa juven- salvação de uma forma pouco comentada na tradição de
tude negra através da violência organizada pela agenda de uma leitura evangélica por justiça. Quando nos encontramos
segurança pública que criminaliza nosso povo. com a história de Zaqueu, percebemos que era um homem
que construiu riquezas, mas seu coração queria encontrar
Jesus. Ao achar Jesus, ele teve a oportunidade de se arre-
pender e rever com beleza seu caminho. Ao aceitar o desafio
de Jesus, ele tomou consciência de que havia roubado e,

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com isso, devolveu todas as riquezas adquiridas desones-
tamente. Hoje, os cristãos do Brasil são herdeiros de uma
sociedade escravista que enriqueceu a partir do trabalho
não remunerado e acumulou valores. Os brancos no Brasil

JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
não conseguem abrir mão de seus privilégios estruturais
e não reconhecem que seus patrimônios são resultantes
de um sistema que continua usurpando e silenciando seus
irmãos e irmãs de pele preta. Eles mostram-se incapazes de
se converter, nos moldes de Zaqueu, mas permanecem com
os seus corações endurecidos semelhantes ao jovem rico que
preferiu agarrar-se à tradição religiosa a abrir mão da ilusão
da falsa caridade. Agindo assim, desprezou a oportunidade
de se aprofundar nas obras de misericórdia e fazer o bem.

É MISSÃO DE TODOS E TODAS QUE


DESEJAM UM MUNDO MELHOR LUTAR POR
REPARAÇÕES PARA OS AFRODESCENDENTES
DESTE PAÍS, PARA QUE, ASSIM COMO
ZAQUEU, NÓS TENHAMOS CONDIÇÕES
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

DE OUVIR DE JESUS: “HOUVE SALVAÇÃO


NESTE LUGAR”.

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O REINO DE DEUS
É JUSTIÇA, PAZ
E ALEGRIA: COMO
O EVANGELHO DE
JESUS INSPIRA
SEGURANÇA?

Géssica Dias é assistente social, pós-graduada em Política.


Colaboradora do Instituto Solidare, membro da Igreja Batista
em Coqueiral, Recife/PE.
Vive-se no Brasil atualmente um clima de múltiplas vio- E CONDENADO A UMA MORTE QUE ATENDIA AOS
lências, que nem sempre são noticiadas nos jornais ou na INTERESSES DE QUEM SE INCOMODAVA COM SEU
televisão, mas que parecem estar entranhadas nas palavras
MODO DE FALAR SOBRE O REINO DE DEUS,
diluídas no ar, impregnadas nas paredes, até mesmo dos
templos onde se prega o amor. Estas violências se traduzem o qual tem como principais marcadores a justiça, a paz e

O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
nas palavras de condenação, na intolerância com o diferente, alegria, que o apóstolo Paulo viria a enunciar na Carta aos
na quase caça aos pecados alheios, na tentativa de “santi- Romanos 14:17, anos depois.
ficar”, igualando pessoas num país tão diversificado, pondo
armas em suas mãos ao som de jargões que afirmam “O As características que seguiam a Jesus de Nazaré desde
Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”. o seu nascimento talvez sejam as que combinam com a
existência e resistência de milhões de pessoas periféricas
Esta sistemática atende a uma estrutura que de tão bem e marginalizadas pelo Brasil adentro. Estas pessoas sofrem
articulada, não parece intencional, mas busca construir uma com a implantação desta cultura do medo, que apavora até
sensação de medo instalada na população, que por sua uma simples saída da escola, na qual pode terminar com
vez caminha na direção de procurar discursos que tragam uma mancha de sangue no fardamento, originada por um
respostas imediatas às demandas construídas por esta tiro recebido de uma arma de grosso calibre por parte de
lógica. De modo que a divergência de pensamento ou ati- quem tem por finalidade proteger a nação; até as violências
tude, na maioria das vezes, se configure como ameaça ou simbólicas, físicas, patrimoniais e tantas outras sofridas por
desconstrução de uma tradição pré-estabelecida, basea- mulheres através de seus companheiros, que muitas vezes
da em valores socialmente produzidos para determinados encontram-se legitimados pela fala de um “líder” espiritual
seguimentos da população, colocando o (a) diferente na que se colocou nesse lugar de autoridade instituída por deus.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

posição de adversário (a).


Não há como encarar cada situação desta de maneira iso-
DE FATO, ESTE CENÁRIO QUE ORA SE APRESENTA, lada, como se fosse fruto de momentos ocasionais. Pois,
NÃO COMBINA COM A CAMINHADA E COM A POSTURA quando se inclina o olhar para as raízes geradoras des-
ses problemas, dá para perceber alguns indicadores que
DO DEUS QUE ENCARNOU E VIVENCIOU OS DRAMAS
impulsionam sua existência, e que fazem com que sejam
DA HUMANIDADE, AO PONTO DE TER SIDO PRESO SOB identificados, pois estão no dia a dia das pessoas, em cada
TORTURA, ACUSADO DE CRIMES SEM FUNDAMENTO pele já tão expropriada de sua dignidade. Pobreza, violência,

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abandono, dominação, concentração de riquezas são dife- vulnerabilidade de todo (a) aquele (a) que se encontrava
rentes faces de um mesmo corpo violado. na condição de desabrigado (a) ou expatriado (a), sujeito
(a) a toda sorte de rejeição por não estar no chão em que
Porém, é na contramão dessa via que Jesus de Nazaré lança foi originado (a). Ou seja, Jesus incidia em problemas que
as bases do seu Reino, sendo possível compreendermos iam para além de sua linhagem, pois seu ministério rompia

O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
como este Reino se assemelha a uma Usina de Valores, barreiras territoriais, culturais e políticas.
produzindo segurança, e tendo por principal paradigma
desta Usina, a justiça. Desta forma, quero convidar você a vir Nesta perspectiva e, já trazendo para nossa realidade há que
fazer uma leitura de textos onde Jesus abordou questões de se voltar o olhar para essa mesma condição de desproteção
segurança, a partir de demandas que incidem diretamente vivida por aqui, quando cerca de 33.865 solicitações de
na condição de vida das pessoas. pedidos de refúgio foram registradas nos postos da Polícia
Federal, no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Jus-
A Bíblia se encarregará de nos mostrar, através da fala de tiça1. Porém, mesmo sendo o Brasil um país com dimensões
Jesus, abordagens que talvez não nos tivéssemos dado conta, continentais, há pouca tolerância para os que se aventuram
mas que abarcam o tema da segurança de modo peculiar, ao buscar guarida nessas terras de povo tido como acolhedor.
mesmo tempo em que se torna contundente ao dimensionar
para onde aponta a lógica deste Reino, que também é de paz. Mas, o que fazer então com o acolhimento dito por Jesus aos
Portanto, o livro de Mateus capítulo 25, versículos de 31 a 40 que se encontram como forasteiros (as)? Sendo esta uma
será o que nos abrirá essa porta. Dele, extrairemos elementos ação direcionada também a Ele?
clássicos e desafiadores para nossos dias.
NÃO SE TRATA AQUI DE SE DEBRUÇAR SOBRE CONDIÇÕES
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

ECONÔMICAS GLOBAIS, AS QUAIS INCIDEM DIRETAMENTE


Era forasteiro e me NESSE FENÔMENO IMIGRATÓRIO. O DESTAQUE VAI
acolhestes (Mateus 25:35b) PARA CONDIÇÃO IMEDIATA DE DESPROTEÇÃO E,
CONSEQUENTEMENTE, DE INSEGURANÇA VIVIDA POR
O primeiro ponto que podemos analisar é a parte b do
versículo 35: “era forasteiro e me acolhestes...”. Nesta fala 1 https://g1.globo.com/mundo/noticia/brasil-registra-numero-recorde-de-
de Jesus, está contida a preocupação pelo alto grau de solicitacoes-de-refugio-em-2017.ghtml. Acesso em: 02 out. 2018.

76 77
ESSAS MILHARES DE PESSOAS QUE NÃO VIRAM O Para exemplificar, o Brasil conta com uma população cada
ACOLHIMENTO PREGADO POR JESUS NO PAÍS ONDE vez maior de pessoas em situação de rua, que vivem invi-
sibilizadas pela mídia e por nossos olhares de indiferença.
A POPULAÇÃO EVANGÉLICA É A QUE MAIS CRESCE.
Dados do IPEA2 apontam mais de 101 mil pessoas no ano de
2015 sobrevivendo nestas condições. Cresce assustadora-

O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
Estive nu e me vestistes mente também a densidade populacional nas comunidades
carentes, as quais são o lugar de abrigo para aqueles que
(Mateus 25:36 a) não tem o direito à cidade.

Nesta abordagem nos é apresentada mais uma face do que Quando vemos o Senhor dizer que foi vestido quando es-
podemos pontuar por insegurança. Aqui, consideremos a tava nu, podemos ler que Ele retratava, em sua fala, o que
desproteção, o abandono, o descaso com o direito básico viria posteriormente a ser vivido na igreja primitiva, quando
das pessoas, que acabam por ficar expostas a múltiplos na comunidade não haveria nada que fosse unicamente
perigos e danos. de alguém, mas tudo seria vendido e repartido entre to-
dos, de forma que ninguém tivesse nenhuma necessidade
Desse modo, quando Jesus aborda o estar nu, quase que (Atos 2:42-7).
inevitavelmente passaríamos a achar que apenas se tratas-
se da ausência de roupas, que pudesse proteger seu corpo Mas, como contextualizar isto para a realidade do Brasil?
dos efeitos temporais a que estivesse submetido. Porém, Como incidir nessa insegurança que assola o povo? Ideal
essa nudez acaba por simbolizar uma ausência que carac- seria que conseguíssemos produzir tal desapego, confiante
teriza faltas ainda mais estruturais, as quais demandavam na provisão do mestre e, desta forma, pudéssemos reunir
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

proteção e abrigo. tudo que temos em nossas pequenas e megaigrejas, em


nossos humildes e ricos irmãos, de modo que todos e todas
Diante disso, e já trazendo para nossa realidade, um olhar pudessem viver em plenitude de vida, conforme a própria
mais cuidadoso nos mostra que, para um cenário brasileiro, fala de Jesus. Certamente ninguém teria necessidades.
onde contamos com um número cada vez maior de pessoas
sem um teto, o estar nu quer dizer estar desprotegido, desam-
parado e vulnerável a toda sorte de dor. De modo que a segu- 2 http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_
rança destes sujeitos se encontra duramente desmantelada. content&view=article&id=29303. Acesso em: 30 set. 2018.

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MAS, PARA ISSO, É PRECISO ROMPER COM LÓGICAS Ela precisa alcançar até mesmo aqueles que, com o vigor da
DE ACÚMULO, QUE JÁ ESTÃO TÃO DISSEMINADAS lei, precisam ficar em estado de prisão, para que seja cumprida
a justiça em favor de todo ato que viole a vida em sociedade.
E ENCRUSTADAS, ATÉ MESMO DENTRO DAS IGREJAS,
“AZEITADAS” POR NARRATIVAS DE PROSPERIDADE Com essa compreensão, já podemos olhar de forma mais

O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
QUE INDIVIDUALIZAM A PROPOSTA DO EVANGELHO, qualificada alguns significados que essa fala de Jesus implica
para os dias atuais. Pois,
gerando insegurança na nudez dos nossos irmãos e irmãs
que não estão inclusos dentro desse projeto de fé. Ou seja,
QUANDO SE PENSA EM POPULAÇÃO CARCERÁRIA,
é preciso seguir o caminho que corra em direção ao que o
Senhor nos orienta em favor de vestir o nu. A PARTIR DA REALIDADE BRASILEIRA, UM SENTIMENTO
DE ELIMINAÇÃO AUTOMATICAMENTE É GERADO, ONDE
A DESUMANIZAÇÃO DESSAS PESSOAS ACABA SENDO
Estive Preso e Fostes
UMA DAS PRINCIPAIS JUSTIFICATIVAS PARA AS MAIS
me Visitar (Mateus 25:36 c) PERVERSAS FORMAS DE TRATAMENTO GERADAS NAS
Podemos, no momento em que nos colocamos a refletir so- MENTES DOS QUE ESTÃO FORA DOS MUROS DA PRISÃO.
bre esta fala do mestre, pensar que Deus, enquanto criador
dos céus e da Terra, tenha poder para derrubar cadeias, É como se a segurança fosse credencial exclusiva dos que
arrebentar correntes, ou mesmo fazer seus servos saírem não estão sob essa condição.
desapercebidos de uma prisão, conforme pode ser visto em
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

passagens do texto sagrado em favor de seus discípulos. Contudo, uma voz ecoa fortemente a nos lembrar “[...] es-
Como exemplo disto, temos a situação de Paulo e Silas que tive preso e fostes me visitar”. Passaria, de acordo com
cantavam louvores a Deus e a cadeia estremeceu (Atos 16). a lógica de Jesus, essas pessoas a terem algum tipo de
pertencimento à sociedade? Por que Jesus não deixaria
Mas, para além destes casos, este mesmo Deus encarnado essa população passar despercebida em suas abordagens?
em Jesus, traz outro ponto de reflexão aqui. Em suas palavras, Talvez Ele queira nos mostrar que nossa compreensão in-
pode ser sentido que a segurança não é conferida apenas a quisidora fale mais de nós mesmos, do que sobre os que se
quem esteja em pleno gozo de sua liberdade – não somente. encontram encarcerados.

80 81
Trilhando esse caminho, vale destacar que um país que DESTA FORMA, A SEGURANÇA TANTO PODE ESTAR EM
se mantém como terceiro maior do mundo em população AÇÕES PREVENTIVAS DA IGREJA, A PARTIR DE SUAS
carcerária, com cerca de 726 mil detentos e detentas até o
COMUNIDADES, OU MESMO SENDO VOZ PROFÉTICA QUE
ano de 20163, encara o estar preso/a como estatística de um
ranking nacional, ao mesmo tempo em que não distingue DENUNCIA AS ARBITRARIEDADES NAS VIOLAÇÕES AOS

O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
quem são essas pessoas e de onde elas surgem. QUE, HOJE, ESTÃO PRESOS E SÃO DESASSISTIDOS DA
SEGURANÇA COMO UM BEM INERENTE A SUA PRÓPRIA
Quando a provocação feita por Jesus nos tornou sensíveis
CONDIÇÃO DE PESSOA HUMANA.
a procurar saber até que ponto essas pessoas também
possuem a dignidade de viver em segurança? Talvez essa
pergunta nos incomode um pouco, pelo fato de já termos
nos acostumado a encarar essa realidade de outra forma.
A segurança é um bem
comum a todas e todos
A facilidade de simplesmente aniquilarmos essas pessoas
talvez não tenha gerado em nós um mínimo de empatia Nas abordagens feitas a partir das narrativas acima, pu-
que pudesse nos levar à reflexão. Porém, por entender a demos compreender a segurança como elemento comum a
segurança como um elemento presente na fala de Jesus, todas e todos, independente da condição em que a pessoa
quando afirma que esteve preso e foi visitado, há que tra- esteja submetida. Não há condicionalidades para se ter ou
zê-la também para essa realidade onde a maior parte da não segurança. Ela simplesmente está posta para todos/as.
população que vive nesta condição tem cor e classe social. A novidade está, portanto, na forma como a encaramos e a
materializamos em nosso meio, e para além dele.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Talvez as igrejas ainda não tenham se dado conta de seu


papel influenciador para a promoção da segurança nos
territórios em que estejam inseridas. Pois, em virtude de
sua intensa capilaridade, nos mais diversificados locais e
3 Dados publicados pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) em
contextos, acaba por lhe conferir poderes que até mesmo
dezembro de 2017. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/
noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para- outras instituições não teriam com a mesma facilidade.
726712-pessoas>. Acesso em: set. 2018.

82 83
CABE AQUI ENTÃO DIZER QUE JESUS
CONVIDA TODO (A) AQUELE (A) QUE
ENTENDEU A PROPOSTA DO EVANGELHO,

O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
PARA QUE ROMPA COM AS ESTRUTURAS
QUE GERAM INSEGURANÇA, SENDO ELAS
SIMBÓLICAS OU CONCRETAS, RELIGIOSAS
OU TEMPORAIS, NÃO HAVENDO DISTINÇÃO
DE SUA NATUREZA. POIS, NÃO HÁ COMO
FALAR DA PLENITUDE DE VIDA TRAZIDA
POR JESUS SE NEGLIGENCIARMOS AÇÕES
QUE REPRODUZAM INSEGURANÇA PARA O
POVO. SE ASSIM O FOSSE, O EVANGELHO
SERIA FALACIOSO.
Portanto, que a partir de agora então o que conhecemos
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

por segurança seja ressignificado, extrapolando seus limites


individuais de proteção e defesa, seguindo para dimensões
coletivas em que, estando um (a) em estado de insegurança,
todos (as) estaremos de algum modo incidindo nesta con-
dição, pois não há aquele (a) que esteja seguro (a), que não
interfira e contribua para a insegurança do outro.

84 85
JESUS É A VITÓRIA
DO AMOR E DO
PERDÃO SOBRE
A VIOLÊNCIA

Henrique Vieira é professor, cientista social, historiador, teólogo


e ator. Pastor da Igreja Batista do Caminho, Niterói/RJ.
Jesus viveu em um território que era dominado pelo Impé- IMAGINE A DOR DE NÃO TER COMO PAGAR O ALUGUEL,
rio Romano. Esta dominação significava grande violência DE NÃO TER ACESSO À ÁGUA POTÁVEL, DE NÃO TER
contra galileus e judeus, desagregando seu modo de vida,
O QUE DAR DE COMER PARA OS FILHOS. DE FICAR
desrespeitando seus costumes e crenças e retirando grande
parte do fruto do seu trabalho, através de uma pesada carga MESES NA FILA PARA CONSEGUIR UM EXAME OU
tributária. A ordem mundial imposta significava a concreti- UMA CONSULTA PARA CUIDAR DA SAÚDE. ESSE TIPO
zação de estruturas violentas sobre as áreas conquistadas. DE SITUAÇÃO – QUE ADOECE O CORPO, ABATE O
A própria lógica de funcionamento daquela sociedade era
SEMBLANTE E ANGUSTIA O CORAÇÃO – TEM GRANDE
extremamente violenta.
SEMELHANÇA COM A PRECARIEDADE DE VIDA DE
Imagine trabalhar incansavelmente e ver grande parte da- GRANDE PARTE DO POVO DE JESUS.
quilo que se produziu sendo transferido para um governo
composto por autoridades ricas e soberanas. Imagine o Essa era a ambiência em que ele viveu, em que seus discí-
significado de viver no limite da sobrevivência, buscando pulos viveram e das quais surgiram os textos que compõem

JESUS É A VITÓRIA DO AMOR E DO PERDÃO SOBRE A VIOLÊNCIA


– literalmente – o pão de cada dia. Ou até mesmo viver o Novo Testamento.
na miséria, isto é, não ter nem o suficiente para a própria
sobrevivência. Grande parte do povo do qual Jesus fazia Existiam os relativamente pobres e os relativamente abasta-
parte vivia exatamente nessa condição. Eram pessoas, em dos. Nesta categoria estão incluídas todas as pessoas que,
sua maioria, destituídas de poder político e praticamente por meio de seu trabalho, conseguem assegurar a subsis-
sem posse ou renda. Situação parecida a de muitos bra- tência da sua família, que consiste em moradia adequada
sileiros nos dias de hoje, que se encontram à margem do e alimentação suficiente.1
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

poder político, com praticamente nenhuma capacidade de


influência em legislações e políticas públicas. Pessoas que Existiam os absolutamente pobres e, neste grupo, todas as
não conseguem acessar seus direitos e que, ao mesmo pessoas que viviam no limite ou abaixo do mínimo necessário
tempo, são constantemente criminalizadas. Situação como
daqueles e daquelas que estão desempregados ou na in-
1 STEGEMANN, Ekkehard; STEGEMANN, Wolfgang. História social
formalidade, com uma renda que não possibilita viver com
do Protocristianismo: os primórdios do Judaísmo e as comunidades
tranquilidade e dignidade. de Cristo no mundo mediterrâneo. São Paulo; São Leopoldo: Paulus;
Sinodal, 2004, p. 92.

88 89
à subsistência, ou seja, apresentavam carência de alguns por uma maioria trabalhadora, é necessariamente violenta.
ou de todos os elementos fundamentais para a vida, tais Esta realidade de abundância material concentrada e po-
como moradia, alimentação e vestuário.2 breza compartilhada é violenta. Esta realidade em que uma
classe dona das terras e dos instrumentos de poder vive na
Como interpretar adequadamente os Evangelhos, descon- comodidade e no desperdício, enquanto outra luta para ter
siderando esse contexto social? Jesus não era uma “cabeça o suficiente com o suor do seu trabalho, é violenta. Quero
falante” fora da história, jogando ditos descontextualiza- que você reflita comigo sobre como a própria ordem política
dos. Sua mensagem só tem sentido dentro do contexto e econômica da sociedade em que Jesus viveu era violenta,
em que ele viveu, viu e sentiu o mundo. E fica evidente que porque necessariamente degradava a vida de grande parte
Jesus entendeu a sua vocação a partir da experiência dos da população.
pobres, dos oprimidos, daqueles que estavam distantes
das riquezas, dos privilégios, do poder político e do topo da As ideias e mensagens do Mestre tinham profunda relação
hierarquia religiosa. com o contexto de sua vida. Cremos que Deus assumiu a
condição humana em Jesus, em toda sua integralidade.

JESUS É A VITÓRIA DO AMOR E DO PERDÃO SOBRE A VIOLÊNCIA


Assim, uma afirmação contundente que marca o início deste
artigo é a de que a sociedade em que Jesus viveu era estru- SENDO ASSIM, AS FALAS DO NAZARENO TINHAM
turalmente injusta e violenta. Injusta porque o poder político PROFUNDA RELAÇÃO COM O CONTEXTO CONCRETO DE
e econômico era concentrado nas elites e grande parte da
SUA VIDA. O CAMPO SIMBÓLICO E RELIGIOSO SEMPRE
população vivia na pobreza e na miséria. Esta situação, por
si só, além de díspar, é violenta, se entendermos violência SE APRESENTA VINCULADO AO CONTEXTO ECONÔMICO,
como tudo aquilo que impossibilita o ser humano de viver SOCIAL, POLÍTICO E HISTÓRICO NO QUAL AS IDEIAS
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

com dignidade e desfrutar com liberdade do tempo e das RELIGIOSAS OPERAM E DA QUAL ELAS PARTEM.
possibilidades de sua vida. A violência está na desigual-
dade, na manutenção dos privilégios, na comida jogada Repare comigo no Canto de Maria, que está registrado no
fora e nas crianças com fome. Essa realidade, em que uma Evangelho de Lucas:
minoria rica e poderosa se apropria da riqueza produzida
Então disse Maria: minha alma engrandece o Senhor e o meu
espírito se alegra em Deus, meu salvador, pois atentou para a
2 Idem. humildade de tua serva. De agora em diante, todas as gerações me

90 91
chamarão de bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas que ela aguardava. Nesse ponto, ela fala que Deus dispersa
em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-se os soberbos no seu íntimo e derruba os poderosos. Imagine
aos que o temem, de geração em geração. Ele realizou poderosos o significado desse canto e desse texto que passou a circu-
feitos com seu braço, dispersou os que são soberbos no mais íntimo lar nas primeiras comunidades cristãs! Lembre-se de que,
do coração. Derrubou governantes dos seus tronos, mas exaltou primeiro, as histórias de Jesus foram repassadas oralmente,
os humildes. Encheu de coisas boas os famintos, mas despediu a partir da curiosidade, das perguntas, das necessidades e
de mãos vazias os ricos. Ajudou a seu servo Israel, lembrando-se das demandas das pessoas e das comunidades. Significa
da sua misericórdia para com Abraão e seus descendentes para que, esta memória do Canto de Maria, alastrou-se entre as
sempre, como dissera aos seus antepassados.3 comunidades de fé em Jesus – em sua maioria de pessoas
pobres. Ali, como visto, está registrado que Deus atua no
Segundo a narrativa deste Evangelho, Maria exulta de ale- coração humano para retirar a vaidade, a ganância, a am-
gria por ter recebido a notícia de que daria luz ao Salvador. bição egoísta, a sedução pelo poder. Pobres e oprimidos
Extasiada pela visita do anjo Gabriel, mensageiro do Se- inspirados no Canto de Maria, denunciando a ferocidade dos
nhor, ela visita Isabel, que também estava grávida, daria ricos e poderosos que tanto maltratavam as suas vidas. Para

JESUS É A VITÓRIA DO AMOR E DO PERDÃO SOBRE A VIOLÊNCIA


luz a João Batista. Duas mulheres pobres, vivendo em um além dessa dimensão subjetiva dos efeitos da ganância no
território dominado pelo Império Romano, numa sociedade coração humano, ainda há uma dimensão objetiva, pois ela
patriarcal que confere poder, autoridade e privilégio ao ho- canta que Deus derruba os governantes de seus tronos! Fica
mem. Naquele momento, elas se encontram e celebram a caracterizado a dimensão política insurgente do Evangelho,
visitação de Deus em suas vidas. É neste contexto que está que denuncia os governos que oprimem o povo.
registrado este belíssimo canto.
O canto ainda continua, afirmando que “Deus enche de bens
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Maria demonstra felicidade por Deus ter se lembrado dela, os famintos e despede de mãos vazias os ricos!”. É texto
de sua condição humilde. Também expressa gratidão pela popular, que nasce da condição de vida dos oprimidos, que
fidelidade de Deus com o seu povo, que vivia sob constante expressa seus sonhos e luta por vida digna. É texto que ques-
domínio e jugo opressor de outros povos. Então, ela começa tiona o poder das elites, que anuncia uma reversão histórica
a relatar os feitos de Deus que se atualizam na vida do filho com quebra de privilégios para promoção da justiça. Eviden-
cia-se que justiça nada tem a ver com vingança, mas com a
retirada dos privilégios e dos instrumentos que os opressores
3 Bíblia Sagrada, Evangelho de Lucas capitulo 1, versículos 46 e 55. possuem para explorar e expropriar os oprimidos. Justiça é

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reconciliação que se dá por meio de reparação histórica. hegemonizada pelo Império Romano. Com o estabelecimen-
Esse canto, registrado logo no início do Evangelho de Lucas, to desta nova ordem mundial, um conflito se colocava: aquilo
no contexto de festejo e celebração pela boa notícia trazida que era considerado glória, esplendor, paz, prosperidade e
pelo anjo a respeito do nascimento de Jesus, mostra-nos que modo ideal de civilização para os privilegiados pelo sistema,
a paz deriva da justiça e que o Evangelho proclama como representava justamente uma nova ordem desorientadora,
violenta toda ordem que promove desigualdade social e fragmentadora e opressora para os povos subjugados.5
massacre aos pobres.
É nesse contexto que o seguimento de Jesus surge ques-
Mas, para manter a gestão dessa ordem desigual, o Império tionando a ordem do Reino de César e anunciando a bele-
Romano utilizou-se de mecanismos explicitamente violentos za do Reino de Deus. Jesus andou principalmente com os
para aplacar revoltas e difundir medo e obediência. Nas pobres, miseráveis e oprimidos. “Bateu de frente” com as
décadas anteriores à atividade de Jesus, os romanos inva- lideranças religiosas que tinham relação profunda com o
diram a região da Judeia e da Galileia, impondo diversas Império Romano e pesavam o povo com uma alta carga de
práticas violentas e humilhantes para o povo da terra de exigências morais.

JESUS É A VITÓRIA DO AMOR E DO PERDÃO SOBRE A VIOLÊNCIA


Israel, escravizando os sadios e eliminando os incapazes.4
Pode-se observar que, no contexto da dominação romana, JESUS QUESTIONOU OS VALORES MORAIS QUE
já havia um histórico de opressão e controle imperial des- SELECIONAVAM PESSOAS COMO MENOS IMPORTANTES,
caracterizando o modo de vida das sociedades tradicionais
DESCARTÁVEIS, CUJA VIDA NÃO TINHA VALOR
da Judeia e da Galileia. Horsley denomina este processo de
espiral de violência, caracterizando-o como fundamental E CUJA MORTE ERA NATURALIZADA OU ESPERADA.
para a existência de diversas formas de resistência, inclusive JESUS DESAUTORIZOU OS VALORES SELETIVOS
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

àquela representada pelo seguimento de Jesus. QUE IMPUNHAM EXCLUSÃO;

A conquista do Oriente Médio pelos Romanos carac- a autoridade dos líderes religiosos e até mesmo a legitimi-
terizou o estabelecimento de uma nova ordem mundial, dade do Imperador Romano. Justamente por essas razões,
Jesus foi preso, torturado e assassinado. Foi entregue por

4 HORSLEY, Richard. Jesus e o Império: O Reino de Deus e a nova


desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004, p. 21. 5 Idem, p. 27.

94 95
líderes religiosos que se sentiam ameaçados, condenado PARA JESUS A RELAÇÃO RICO/POBRE E OPRESSOR/
e executado pelo Império Romano, isto é, pela ordem legal OPRIMIDO ERA NECESSARIAMENTE INJUSTA E VIOLENTA.
da época. Ainda foi hostilizado por parte do povo, tomada
CONTUDO, O MESTRE DE NAZARÉ TAMBÉM CHAMOU A
por um sentimento de ódio e vingança induzido pelas elites
e pelas autoridades. Enfim, o sistema vigente faz uso da ATENÇÃO DOS SEUS DISCÍPULOS PARA QUE ELES NÃO
violência para sua manutenção. REPRODUZISSEM OS MECANISMOS E AS ATITUDES DE
VIOLÊNCIA. ELE NÃO QUERIA QUE O OPRIMIDO DEIXASSE
As histórias do Evangelho dão testemunho de como Jesus
DE SER OPRIMIDO PARA SE TORNAR OPRESSOR, QUERIA
denunciou o caráter violento daquela sociedade e como
percebeu na prática efetiva e emancipadora do amor o ca- DAR FIM A TODA RELAÇÃO DE OPRESSÃO.
minho para as relações humanas e sinalização do Reino de
Deus. Ele impediu que a mulher flagrada em adultério fosse É preciso, a partir da Bíblia e dos ensinamentos de Jesus,
apedrejada (João 8:1-11) questionando a autoridade moral agir no mundo de hoje. Atualizar o sentido da vida de Jesus é
daqueles homens. Ele se negou a reproduzir o ciclo de ódio desafio dos cristãos. Vivemos num dos países mais desiguais

JESUS É A VITÓRIA DO AMOR E DO PERDÃO SOBRE A VIOLÊNCIA


existente entre judeus e samaritanos e não viu na violência do mundo, com milhares de pessoas vivendo na pobreza e
uma forma de resolver conflitos (Lucas 9:51-56). Ele não na miséria, sem acesso ao mínimo para sua sobrevivência.
optou por uma resistência armada contra o Império Romano, Enquanto temos casas sem gente servindo à especulação
avaliando que tal atitude deixaria ainda mais vulneráveis os imobiliária, temos milhares sem casa, ou morando na rua ou
seus discípulos (Mateus 26:51-52). Contrapôs-se à lógica na mais absoluta precariedade. Enquanto terras ficam vazias
do “olho por olho” e do “dente por dente”, afirmando que é e improdutivas, esperando valorização sobre controle de
preciso perdoar infinitamente, isto é, como Deus nos perdoa ricos latifundiários, milhares de milhares buscam um palmo
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

(Mateus 18:21-22). Afirmou que seus discípulos seriam reco- de terra para plantar e sobreviver. Indígenas têm dificuldade
nhecidos pela prática do amor (João 13:34-35). Não desejou de verem suas terras demarcadas e sua cultura respeitada.
mal nem para os seus algozes e torturadores (Lucas 23:34). Quilombolas também tem dificuldades para manter suas
terras e heranças culturais. Milhões de trabalhadores vivem
Este é o testemunho mais profundo do Evangelho que, por na informalidade, sem nenhum direito garantido, numa luta
um lado, denuncia a violência estrutural que seleciona corpos diária pela sobrevivência. Estamos diante do genocídio da
para a morte e que reprime ostensivamente manifestações juventude negra em nosso país, com dados alarmantes que
e movimentos de resistência. apontam para um massacre sistêmico contra pobres, negros

96 97
e moradores de favelas e periferias. Somos o país que mais
mata transexuais e travestis no mundo e a violência contra
as mulheres é algo sistêmico e cotidiano. O sistema político
protege privilégios, mantem elites no poder, retira os poucos
direitos e ameaça sistematicamente a Democracia. Ao que
tudo indica a Democracia não parece um valor inegociável
para as elites, mas o lucro sim. Ainda existem os discursos
de ódio, preconceito e intolerância, estimulando comporta-
mentos violentos, especialmente contra mulheres, negros
e LGBTs. Olhando para a vida de Jesus, buscando com hu-
mildade e sempre coletivamente interpretar o nosso tempo
histórico e a situação do nosso país, acredito que os cristãos
precisam proclamar a verdadeira paz, aquela que é fruto
da justiça, do compromisso com os pobres, do acolhimento

JESUS É A VITÓRIA DO AMOR E DO PERDÃO SOBRE A VIOLÊNCIA


às diferenças, da hospitalidade para com todos, do amor
como atitude que dignifica a vida e supera os mecanismos
estruturais e cotidianos de violência.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

98 99
AMOR E RESPEITO:
BASES PARA
PROMOÇÃO DA
DIVERSIDADE
RELIGIOSA

Pr. Kleber Lucas é cantor, compositor, teólogo e mestrando


em História Comparada. Pastor da Igreja Batista Soul, RJ.
Não! Essa não é e não será uma exortação bíblica. Mas, por DA TOLERÂNCIA E DA SOLIDARIEDADE
ser o religioso que sou, não posso me furtar a fazer minhas
observações e tentar compreender minhas experiências
QUE, AO MENOS PELO EXEMPLO DE
do dia a dia sem levar em consideração, ou sem enxergá- JESUS, NÃO FAZ ACEPÇÃO DE PESSOAS.
-las, a partir de um “leve e suave” contato com as minhas
questões religiosas. Digo isso, também, olhando para o Porém, ao contrário do que esperava, a partir daí sofri vários
meu passado e ainda me vendo como um ‘menino’ que aos ataques, ofensas a mim e a minha fé. Todas elas vindas de
poucos vai tecendo as suas construções, suas vivências e cristãs e cristãos que me hostilizavam por minha ação que
experiências cotidianas dentro de uma sociedade que nos acreditava ser de solidariedade, simplesmente por ter me
desafia todos os dias. dado a oportunidade de dialogar e estar com o outro, cuja
religião é diferente da minha e não crê os mesmos princípios
Por isso, para falar sobre o tema da diversidade religiosa, religiosos que eu. Opto em falar, trazer à tona este episódio,

AMOR E RESPEITO: BASES PARA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE RELIGIOSA


quero aqui fazer uma brevíssima análise a partir das minhas pois acredito que sempre devemos transformar em palavras
experiências enquanto sujeito religioso, que está sempre em aquilo que “aperta” o nosso coração.
“construções e reconstruções”. Ressalto que não vou fazer
nenhum tipo de defesa narcisista do meu ‘eu’ na tentativa Então... Vamos lá? Meu nome é Kleber Lucas. Mais conhecido
de me expor. E muito do que vou escrever aqui está muito no meio evangélico e, principalmente no soul gospel, como
mais relacionado com a difícil experiência do fim de 2017, Pr. Kleber Lucas. Antes de ser quem hoje sou, reconhecido
quando, atendendo ao convite de irmãs e irmãos, aceitei dentro e fora do país, eu era apenas o Kleber Lucas Costa.
participar de uma cerimônia inter-religiosa que celebrava a Eu não nasci cristão. Tornei-me cristão e fui me descobrindo
contribuição de uma instituição cristã, o CONIC (Conselho enquanto um ser religioso, guiado e conduzido a partir das
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Nacional de Igrejas Cristãs) na entrega de uma quantia para minhas experiências e subjetividades. Eu nasci menino negro,
reconstrução de um terreiro que fora, todos sabiam, quei- cria de São Gonçalo, que assim como muitas outras tantas
mado e destruído por iniciativa de pessoas evangélicas, em crianças negras, vista sem muitas expectativas de vida.
Duque de Caxias, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro.
Cresci e sobrevivi no meio das adversidades sociais e polí-
ticas de um Brasil da década de 1960. Como toda criança
ACREDITAVA, EU, ESTAR AGINDO de periferia, aprendi desde cedo a transformar adversida-
EM NOME DO AMOR, DO RESPEITO, de em possibilidades: de brincar, de criar, de conhecer, de

102 103
encontrar, de ser e, principalmente, de experimentar. E, ex- de que o principal mandamento e legado de Cristo é o amor:
perimentar aqui, salienta a novidade que o encontro com o “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros.
outro proporciona. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros.”
(João 13:34). Palavras de Jesus em seu discurso de despe-
PORQUE NAS COMUNIDADES PERIFÉRICAS dida aos discípulos. E, também, não podemos jamais nos
esquecer que as primeiras comunidades cristãs eram plurais
E MARGINALIZADAS, O ENCONTRO COM e, em sua essência, o que as uniam era o amor. Não era um
O OUTRO – O CONHECER O OUTRO – É amor frívolo, que se norteava por circunstâncias ou aparên-
cia! Mas, sim, um amor puro que permitia aos discípulos da
SEMPRE UMA POSSIBILIDADE DE DERRUBAR época enxergar uns nos outros sem pretensas disposições
BARREIRAS QUE, MUITAS VEZES, FORAM religiosas à frente.

ERGUIDAS SEM NOS DARMOS CONTA DE

AMOR E RESPEITO: BASES PARA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE RELIGIOSA


Assim, crescer em comunidade significava crescer sem bar-
QUANDO OU ONDE FORAM ESTABELECIDAS. reiras para o encontro com o outro. Foi sem barreiras que
pude compreender as diversidades religiosas que ‘habitam’
Foi assim, lidando exaustivamente com o “diferente”, que as comunidades da cidade do Rio de Janeiro, bem como ou-
surgiram minhas primeiras experiências e vivências na co- tras tantas Brasil afora. Diversidade essa que foi instaurada
munidade – e, através delas, fui conduzido a uma abertura desde a gênese da formação social do nosso país, dado o
dialogal em prol da diversidade e das alteridades religiosas, “encontro” entre as culturas, tradições e religiosidades ame-
que hoje venho alimentando e alicerçando com mais vee- ríndia, cristã branca portuguesa e negra africana. Ressalto
mência. Nas comunidades, todo mundo é igual! Não nos que a palavra encontro está entre aspas, pois quero salientar
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

dividíamos sobre o eixo “cristão” ou “não cristão”, pois nós que essa experiência não simbolizou e, não simboliza, algo
sabíamos que na hora da “batida” todo mundo ali seria de positivo ao que podemos descrever como uma “beleza de
enquadrado como favelado ou marginal. encontro”, principalmente para os milhares de mulheres e ho-
mens negros que aqui aportaram na condição de escravos.
Por essa, dentre outras tantas razões, permanecíamos uni-
dos, independente de nossas crenças. Além de ser uma Como bem explicitado na História, o tráfico negreiro, que
possibilidade de construção de laços de afeto, essa prática causou um enorme dano demográfico e cultural para as
nos mantinha vivos e coesos. Não podemos nos esquecer sociedades africanas, foi fomentado pelas ideias racistas

104 105
e eugenistas construídas dentro do continente europeu. INÚMERAS VEZES – FUI AMPARADO, JUNTO
Elas ganharam força nos séculos XVIII e XIX dentro e fora COM MINHA FAMÍLIA, POR PESSOAS QUE NÃO
do Brasil, onde pessoas brancas – e tudo o que refletia
COMUNGAVAM DA MESMA FÉ QUE EU, MAS TINHAM
sua cultura – era posto e reconhecido como superior em
relação às pessoas negras e suas respectivas culturas. EM SEUS CORAÇÕES E AÇÕES UM ENTENDIMENTO
Esse aspecto de superioridade permeou, também, o cam- E COMPREENSÃO DE MUNDO QUE ULTRAPASSAM
po religioso. Por isso, os batismos e a catequização cristã AS NOSSAS CONSTRUÇÕES PESSOAIS E RELIGIOSAS.
de mulheres e homens negros, principalmente no período
colonial, eram entendidos como desvinculação a uma re- Valores construídos sobre a importância da alteridade que
ligiosidade e cultura inferiores. nos permite enxergar um no outro, tal como Cristo, que se
permitiu conversar e enxergar a samaritana (João 4); sem
As ideias eugenistas, que mais tarde foram transformadas levar em consideração as divergências que poderiam causar

AMOR E RESPEITO: BASES PARA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE RELIGIOSA


em políticas eugênicas e de higienização social, promoveram desse encontro por ser ela diferente. O que importou para Ele
e fomentaram um dos maiores e piores episódios em nossa foi vislumbrar e ser vislumbrado pela perspectiva da alterida-
história, as perseguições religiosas contra aqueles e aquelas de, rechaçando todo e qualquer “rótulo” cultural e religioso.
que criam diferente. Sim, pois a ideia de higienização social,
promovendo o branqueamento da população brasileira, tam- Porém, nos últimos anos, o que poderia ser transformado
bém foi duramente incentivada do ponto de vista religioso. em união e fortalecimento, tem se transformado em ponto
Assim, quanto menos vestígios religiosos correlacionados de cisão e conflitos. As diversidades religiosas que anima-
ao continente africano, mais “civilizada” era vista a nação. vam as comunidades marginais e periféricas vêm sendo,
Tanto que, para demarcar uma separação, por um bom paulatinamente, substituídas pelo ódio e fundamentalismo
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

tempo as religiões afro-brasileiras, ou de matrizes africanas, religioso. Elas são apresentadas à sociedade como falsa
eram chamadas e conhecidas dentro das sociais brasileiras ideia de liberdade de expressão e opinião.
como “religiões de negros”.
Segundo o Babalawô Ivanir dos Santos:
Algo bem diferente do que podemos identificar nas pro-
postas e ensinamentos de Cristo, ensinando-nos que as A intolerância religiosa não é um fenômeno social que acontece
diferenças são as bases constitutivas de uma comunidade. exclusivamente no Brasil. Um breve panorama histórico, sobre as
Eu vivenciei isto quando era menino, pois – tramas de construção do Estado, nos mostra que a intolerância

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religiosa foi durante a Idade Média um dos motivos da Caças às de intolerância, exclusão, falta de amor e alteridade contra
Bruxas, na Era Moderna e Contemporânea um dos motivos de o outro, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa
perseguições aos judeus, mulçumanos, cristãos ortodoxos, gru- (CCIR) e o Centro de Articulação de Populações Margina-
pos Ciganos e grupos religiosos afro-brasileiros etc. Entretanto, lizadas (CEAP) vêm promovendo a Caminhada em Defesa
decorre o fato que no Brasil há um íntimo namoro, regado pelas da Liberdade Religiosa. A caminhada, que no ano de 2018
pétalas do preconceito, entre intolerância religiosa e racismo.1 chegou a sua 11ª edição, surgiu em 2008, na cidade do Rio
de Janeiro, após os terríveis casos de intolerância religiosa
Assim, o fundamentalismo religioso – que tem bases na que aconteceram no Morro do Dendê, onde adeptos das
ideia de superioridade, aversão ao diferente, de mãos da- religiões de matrizes africanas foram sumariamente ex-
das às ideias de higienização social – vem alimentando pulsos da comunidade. De lá para cá, a Caminhada vem
os diversos casos de intolerância religiosa no Brasil. Ao ao longo desses dez anos promovendo cursos, debates,
nos debruçarmos sobre os muitos casos de intolerância, eventos e encontros que possam fomentar e proporcio-

AMOR E RESPEITO: BASES PARA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE RELIGIOSA


constatamos que grande parte são contra os adeptos das nar diálogos inter-religiosos, a diversidade e a pluralidade
religiões de matrizes africanas. Segundo os dados do livro alicerçadas pelo amor, pela compaixão e pela esperança.
Intolerância Religiosa no Brasil: Relatório e Balanços2, dos À frente da Caminhada encontram-se líderes de diversas
1014 casos de intolerância religiosa registrados entre os denominações religiosas, representantes que comungam o
anos de 2012 a 2015, pelo Centro de Promoção da Li- mesmo desejo de respeito pelas diferentes crenças, ideias
berdade Religiosa & Direitos Humanos (CEPLIR), 71,15% e pensamentos.
são casos de violências contra os adeptos das religiões
afro-brasileiras. A Caminhada, além de refletir o desejo de união, expressa
a possibilidade de reconstrução de um ambiente social
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Estes dados nos permitem observar que a sociedade opera religioso no Brasil que, desde o período colonial, vem sendo
e cresce junto ao preconceito, racismo, desrespeito e desu- alimento pelo ódio e aversão ao outro. Foi pensando no
manidade. Por isso, para fazer frente a todos os processos desejo que alimenta a muitas e muitos líderes que, no dia
16 de setembro de 2018, tive a oportunidade de reviver
todos os valores de comunidade aos quais fui apresentado
1 Santos, Carlos Alberto Ivanir. Intolerância Religiosa: Racismo
Religioso. In: Cadernos CONIB nº 4, Novembro de 2016, p. 51. ainda menino em São Gonçalo, quando escolhi participar
2 Santos, Carlos Alberto Ivanir. (Org.). Intolerância religiosa no Brasil: e ajudar a construir a 11ª Caminhada em Defesa da Li-
Relatório e Balanço. Rio de Janeiro: Kline, 2017. berdade Religiosa.

108 109
Valores como respeito, justiça, acolhimento e amor preci- Fluminense me fez amadurecer e compreender os limites
sam ser renovados e relembrados todos dias. Eles estão no que, muitas vezes, há no “amor” pregado por muitos cristãos
centro do entendimento sobre o que é ser cristão, o que é e cristãs. Também aprendi que há muita gente sofrendo e
ser seguidor dos princípios que Cristo nos deixou; não repre- sendo hostilizada porque escolheu apenas amar, acolher e
sentam um movimento de ódio, desrespeito e intolerância. indignar-se com a injustiça, com os limites que não podem
E, é por isso, que hoje, mais do que nunca, quero todos os ser ultrapassados. O respeito que eu quero para a minha
dias semear o diálogo inter-religioso a fim de derrubar todas igreja precisa ser o mesmo que eu desejo para o terreiro do
as barreiras que foram construídas e que nos impedem de meu vizinho. Posso desejar que ele abrace minha fé – e até
olhar o outro para além de suas escolhas religiosas, pois me dedicar a isso, talvez – contudo, enquanto a escolha
acredito que somos irmãos e irmãs; comungamos a mesma dele for outra religião, não posso negar-lhe o respeito e o
comunidade diversa e plural, tal como Cristo idealizou e nos amor. Não posso lhe negar a dignidade. Ainda há muito por
deixou para que pudéssemos moldá-la, passo a passo, como caminhar, mas é preciso, e eu aprendi que estou disposto.

AMOR E RESPEITO: BASES PARA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE RELIGIOSA


um artesão que aos poucos vai transformando o barro na
mais bela escultura.

Considerações finais
Essa brevíssima reflexão não tem em si, ainda, nenhuma
pretensão acadêmica. Ela é fruto das minhas experiências
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

enquanto sujeito religioso que está sempre em construção. E,


em especial, ela é fruto das experiências que tive nos últimos
meses, ao me abrir à novidade que é estar e construir com
o outro – que não é cristão e nem tão pouco comunga da
mesma fé e crença que escolhi. Porém, podem nos ajudar
a fazer de nossa comunidade (sociedade) um lugar possí-
vel, onde a tolerância e alteridade possam ser os nossos
maiores anseios. Ter passado pela experiência na Baixada

110 111
A IGREJA BATISTA
EM COQUEIRAL
E OS DIREITOS
HUMANOS

José Marcos é teólogo, psicólogo, articulador do Instituto


Solidare. Pastor da Igreja Batista Coqueiral, Recife/PE.
Os Direitos Humanos têm origem na própria natureza de A aplicabilidade dos direitos a cada pessoa, a partir do
Deus e na relação que Ele tem com sua obra criada, como reconhecimento da igualdade entre todos, encontra largo
vemos no texto de Romanos 1:18-20: amparo na obra de Jesus.

Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e EM FUNÇÃO DA DEFESA DOS OPRIMIDOS,
injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois

o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque


JESUS TRAVOU BATALHAS SUBSTANCIAIS
Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos ENTRE OS RELIGIOSOS E GOVERNANTES
invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido
DE SUA ÉPOCA. EM TODO O SEU ENSINO E
vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas cria-

das, de forma que tais homens são indesculpáveis. (Grifo nosso) OBRA, ELE COLOCOU O TEMA DOS DIREITOS
HUMANOS EM PRIMEIRO PLANO.
Veja que o texto começa afirmando que a ira de Deus se ma-
nifesta contra toda forma de injustiça e termina dizendo que Já na identificação de sua tarefa, posiciona-se como defen-

A IGREJA BATISTA EM COQUEIRAL E OS DIREITOS HUMANOS


ninguém terá desculpas por ser promotor de injustiça, uma sor dos oprimidos (Lucas 4:18-19); no cerne do seu ensino,
vez que a vontade de Deus tornou-se conhecida de todos tão bem sintetizado nos capítulos 5, 6 e 7 de Mateus, Jesus
a partir da naturalidade da sua criação. Essa capacidade inverte o conceito vigente em sua época de “bem-aven-
de se discernir entre o que é justo/certo e injusto/errado é o turados”, deslocando-o dos grandes para os pequenos do
que a história vai consagrar como Direito Natural. povo, a saber, “os pobres de espírito, os que choram, os
humildes, os que têm sede e fome de justiça, os miseri-
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

A partir dessa concepção de justiça, no decorrer da história cordiosos, os puros de coração, os perseguidos por causa
humana, vem sendo travada uma luta para se reconhecer da justiça e os que são injuriados por causa do seu nome”
o direito à vida. Desde o conteúdo expresso no Cilindro de (Mateus 5:1-12). Jesus faz dura crítica à maneira como a
Ciro, 539 antes de Cristo, até a Declaração dos Direitos Lei estava sendo aplicada e, a partir do mote “ouviste o que
do Homem e do Cidadão, 1789, culminando com a Carta foi dito, eu porém vos digo”, faz toda uma reinterpretação
Internacional dos Direitos do Homem, que é a consolidação da Lei submetendo-a à pessoa, sintetizando este ensi-
de documentos importantes que asseguram os Direitos Hu- no com a expressão “o sábado foi feito por causa do ho-
manos, promulgados pela Organização das Nações Unidas. mem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2:27).

114 115
O Mestre vai ao extremo do ensino, ao afirmar que a de- misericórdia e não mais sacrifícios!” (Oseias 6:6). Nos dias
fesa e a garantia dos direitos fundamentais da vida serão de Isaías, Deus chama o povo para uma troca: os eventos
o critério de aceitação ou eliminação no acesso ao Reino religiosos sofisticados que eram apresentados a Ele pelo
de Deus (Mateus 25:31-47). fim da injustiça e da opressão e a luta pelos direitos dos
menos favorecidos (Isaías 1:16-18). O profeta atacou os
Não somente em Jesus, mas, em toda a Bíblia, o tema dos poderosos legisladores que não levavam em conta o direito
Direitos Humanos ocupa a centralidade. Desde a escolha dos pequenos: “ai daqueles que fazem leis injustas, que
de Israel em Abrão, Deus tem em vista o bem para todos escrevem decretos opressores, para privar os pobres dos
os povos (Gênesis 12:1-3) e, tão logo esse povo cresceu e seus direitos e da justiça os oprimidos do meu povo, fazendo
teve os seus direitos violados, o Senhor interviu: “Disse o das viúvas sua presa e roubando dos órfãos!” (Isaías 10:1-
Senhor: ‘De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo 2). Poderíamos citar muitos outros profetas e centenas de
no Egito, e também tenho escutado o seu clamor, por causa outras profecias acerca desse tema.
dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. Por isso
desci para livrá-lo das mãos dos egípcios’.” (Êxodo 3:7-8a).
AS PRIMEIRAS IGREJAS LEVARAM
Não há nada mais explícito num Deus que se importa com

A IGREJA BATISTA EM COQUEIRAL E OS DIREITOS HUMANOS


o direito dos oprimidos do que uma ação tão pessoal em A DEFESA DOS DIREITOS DOS OPRIMIDOS
favor destes.
TÃO A SÉRIO QUE “NÃO HAVIA PESSOAS
Quando esse povo oprimido tornou-se opressor, Deus no-
NECESSITADAS ENTRE ELES” (ATOS 4:34).
vamente interviu através dos seus profetas. Foi assim com
Amós, que foi usado por Deus para denunciar a invalidez NÃO FOI À TOA QUE ESSES PRIMEIROS
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

do culto solene orquestrado pelos líderes do povo, quando


estes mesmos promoviam falcatruas e injustiças (Amós SEGUIDORES DE CRISTO FORAM DURAMENTE
5:23-24; 8:4-7). Já na profecia de Oseias, percebemos que CASTIGADOS COM DEZ GRANDES
todos pagam o preço quando o temor a Deus e a defesa da
vida são abandonados. Sofrem a terra, as pessoas, os ani- PERSEGUIÇÕES QUE O IMPÉRIO PROMOVEU.
mais do campo, as aves do céu e os peixes do mar (Oseias
4:1-3; 5:10). Naqueles tempos de Oseias, a corrupção e a Eles eram os que pervertiam a ordem social opressora com
injustiça eram tão acentuadas que Deus clama: “eu quero uma nova maneira de viver a vida comunitária (Atos 17:6).

116 117
Os Direitos Humanos na mais vulnerabilidade da Região Metropolitana do Recife. 

missão da igreja local Particularmente, um incidente pôs a igreja em cheque nos


idos dos anos de 2004. Nas proximidades das instalações
A Igreja Batista em Coqueiral (IBC) foi fundada no ano de da igreja, um pai resolveu vender a virgindade de sua filha
1925. Encontra-se no bairro de Coqueiral, na cidade do de apenas 15 anos. Este e tantos outros fenômenos desu-
Recife, no limite com a cidade de Jaboatão dos Guararapes, manos de sua região passaram a ocupar o lugar central nos
numa das periferias mais agressivas da Região Metropolita- encontros de liderança e nos sermões dominicais, que só
na. Como todas as igrejas que têm no exercício da religião o jogaram luz na verdade de que a IBC “não se parecia com
seu modo de operação da fé, tratava-se de uma igreja que Jesus de Nazaré” .
concentrava quase toda a sua energia numa prática templá-
ria e dominical. Até que um dia uma pergunta coloca a igreja Profundamente incomodada por realidades dessa natureza,
em crise: “se nossa igreja deixasse de existir, abruptamente, que nem de longe se configuravam como um fenômeno isola-
faria falta à nossa comunidade?”. do da sua comunidade, a igreja passou a desenvolver ações
concretas, inicialmente priorizando as crianças do bairro. 

A IGREJA BATISTA EM COQUEIRAL E OS DIREITOS HUMANOS


A pergunta conduziu a igreja a uma violenta crise existen-
cial, pois, sua resposta foi um unânime não. A partir desse EM 2006, CRIOU O PROJETO NOVA COQUEIRAL, QUE
momento, a IBC começou a perceber que sua agenda e, ATENDIA A 180 CRIANÇAS NO CONTRATURNO ESCOLAR.
consequentemente, a massa de suas atividades, estava
TAL PROJETO TINHA COMO OBJETIVO LIVRAR AS
relacionada a assuntos que, segundo seu entendimento,
ocupavam espaço secundário no coração de Deus: festas CRIANÇAS ATENDIDAS DE AGRESSÕES COMO A CITADA
ANTERIORMENTE E DAR A ELAS OPORTUNIDADE
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

anuais, aniversários, cultos dominicais e coisas do gênero.


DE CRESCEREM EM UM AMBIENTE SADIO E QUE AS
Ao confrontar a natureza das suas atividades com cir-
PREPARASSE PARA SEREM PROTAGONISTAS DO SEU FUTURO,
cunstâncias que trazem angústia ao coração de Deus na
Bíblia, como as vistas no primeiro tópico desse texto, a conforme os planos do Senhor para cada uma. Hoje, só
Igreja foi se dando conta de que estava desalinhada fun- nesse tipo de projeto, a igreja dá assistência a mais de mil
damentalmente com a missão que Deus tinha destinado crianças, tanto em Coqueiral quanto em outras regiões da
a ela, sobretudo porque está alocada numa das áreas de cidade, bem como no agreste do estado de Pernambuco. 

118 119
Percebendo que o Reino de Deus é uma construção a muitas Como dito, cada nova conquista alçada abre novos hori-
mãos, e que o Senhor é o construtor do Reino, a igreja passou zontes. O último horizonte aberto está alinhado com uma
a buscar novos aliados na luta pela garantia dos Direitos célebre frase do bispo católico D. Hélder Câmara, que re-
Humanos e, como ferramenta estratégica para mobilizar re- fletia: “Se dou pão ao pobre me chamam de santo, mas,
cursos diversos, criou o Instituto Solidare1, uma organização se pergunto por que o pobre não tem pão, me chamam de
não governamental laica que tem a missão de promover o comunista”. Interpelada por essa verdade, a igreja passou
desenvolvimento social, político e pedagógico de crianças a se ver como um instrumento sofisticado de “dar pão ao
e adolescentes, a partir de suas famílias, sem distinção de pobre”, mas que não sabia nada a respeito das razões
sexo, etnia e credo. A partir dessa estratégia, tanto novas pelas quais o pobre não tem pão. Foi nesse momento que
parcerias quanto novos saberes, experiências e desafios a IBC passou a desenvolver um programa com projetos
foram surgindo no espectro missionário da igreja. vinculados à área da defesa e da garantia dos direitos
(advocacy). Dentre tantas ações desta área, destacam-se
Cada experiência vivida abre novos horizontes para enxer- as escolas de fé e política, que têm como finalidade qualifi-
garmos outros campos de violações dos Direitos Humanos.  car lideranças cristãs para, a partir da sua fé em Jesus de
Um campo importante é a falta de emprego e renda que, Nazaré, incidirem no mundo politicamente organizado. Há

A IGREJA BATISTA EM COQUEIRAL E OS DIREITOS HUMANOS


além de tornar a comunidade, sobretudo a juventude, vul- escolas para as regiões metropolitanas de Recife, Natal e
nerável diante da criminalidade, faz despencar a autoestima Salvador, bem como para os sertões dos estados da Paraí-
e a resiliência, tanto dos sujeitos quanto da comunidade. A ba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Outro projeto desse
partir dessa percepção, nasceram projetos de geração de programa é o Rio Limpo Cidade Saudável, que trata do Rio
emprego e renda, autoestima e resiliência, condensados no Tejipió no enfrentamento comunitário às constantes cheias
programa chamado GERAR2. Esse programa desenvolve que assolam as comunidades ribeirinhas das periferias do
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

projetos que qualificam pessoas para o mundo formal e Recife e Jaboatão dos Guararapes.
informal do trabalho e da geração de renda. 
Hoje, a igreja opera 17 projetos – divididos em três grandes
programas – que atendem diretamente a mais de 2.000
pessoas e, indiretamente, a mais de 10.000, tanto na região
1 Veja todos os projetos da igreja no site www.institutosolidare.org.br metropolitana do Recife, quanto no Agreste pernambucano,
2 GERAR é um acróstico que significa Geração de Emprego, Renda, nos sertões de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte,
Autoestima e Resiliência. bem como outras regiões metropolitanas da região Nordeste.

120 121
Além dessas ações diretas, a igreja se articula em rede com Serva e Radicalmente Simples”. É o que apelidamos inter-
diversas outras entidades da sociedade civil organizada, namente como espiritualidade S3H2R.
entidades governamentais e empresariais. Faz isso por en-
tender que o Reino de Deus é construído a muitas mãos. Percebendo que Jesus criticou a santidade do sacerdote e
do levita que, por causa de um falso entendimento de que o
templo é o lugar de serviço a Deus, deixaram de acudir o ne-
cessitado, a Igreja Batista em Coqueiral buscou desenvolver
Os Direitos Humanos uma santidade profundamente embrenhada nos porões da

na essência da vida concreta do povo. Uma santidade que se aproxima mais


de Deus quanto mais se aproxima da dor humana. É isso
espiritualidade da igreja que chamamos de uma espiritualidade humanamente santa.

Os Direitos Humanos não podem se configurar numa opção Da mesma maneira que aqueles operadores da religião
para igreja, mas, na essência de sua espiritualidade. Não judaica deixaram de servir a Deus quando não serviram o
dá para ser seguidor do Jesus Nazareno sem se preocupar caído à beira da estrada,

A IGREJA BATISTA EM COQUEIRAL E OS DIREITOS HUMANOS


com o próximo, sobretudo, o próximo oprimido e deixado à
beira do caminho (Lucas 10:25-37). A IBC ENTENDE QUE O SERVIÇO
O texto bíblico acima pode ser considerado o grande resumo
A DEUS SÓ É POSSÍVEL NO SERVIÇO
da espiritualidade que o Senhor espera de nós e, conse- AO OUTRO, COM PRIORIDADE AO OUTRO
quentemente, da igreja. A IBC encontra-se profundamente
OPRIMIDO. TAMBÉM ENTENDE QUE O
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

transpassada por essa realidade descrita em Lucas, uma


vez que há “tantos caídos à beira da estrada” ao seu redor.  SERVIÇO É O PRINCIPAL IDENTIFICADOR
A partir de sua realidade local, animada por essa experiência
DO DISCIPULADO CRISTÃO, DE MANEIRA
que envolveu como atores principais o homem assaltado QUE OU O CRISTÃO SERVE OU NÃO
e ferido, os operadores da religião (sacerdote e levita) e o
samaritano, a igreja desenvolveu uma espiritualidade que
SE PODE SER QUALIFICADO COMO
a levou a buscar ser “Humanamente Santa, Humildemente SEGUIDOR DE JESUS.
122 123
Também incorporou à sua espiritualidade a característica
da simplicidade, por entender que não dá para ser parecido
com Jesus sem essa virtude. Não uma simplicidade forçada,
mas a que esteja na raiz de todas as suas atitudes. Por isso,
uma espiritualidade radicalmente simples.

É a partir dessa espiritualidade (humanamente santa, humil-


demente serva e radicalmente simples) que a Igreja Batista
em Coqueiral se recusa a fazer divisão entre fé e obras,
evangelismo e ação social, missão e Direitos Humanos, bem
como todo e qualquer outro tipo de dicotomia que desassocie
a fé da vida. Por causa disso, entende perfeitamente que a
defesa dos Direitos Humanos, e porque não dizer dos direitos
de toda a Criação, é simplesmente a missão da igreja, uma
vez que esta missão consiste na reconciliação de tudo que

A IGREJA BATISTA EM COQUEIRAL E OS DIREITOS HUMANOS


foi danificado pela estrutura pecaminosa humana, de acordo
com a mais essencial vontade de Deus (Colossenses 1:20). 
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

124 125
Todas as vidas
importam?
Protestantismos
e direitos
humanos

João Luiz Moura é teólogo, pedagogo e mestrando em


Ciências da Religião. Membro da Igreja Batista de Água
Branca, SP. Pesquisador e ativista de movimentos sociais
ligados aos Direitos Humanos.
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa seme- OU SEJA, O CARISMA INSPIRADOR DE DISPUTAS
lhança.” (Gênesis 1:26) E PRODUÇÕES POLÍTICAS SOBRE OS DIREITOS
HUMANOS FOI A NOÇÃO TEOLÓGICA DA
Ao contrário do que alguns canais midiáticos e algumas
personalidades públicas insistem em nos fazer acreditar, a “DIGNIDADE DA PESSOA”, PROVENIENTE DA
ideia de que todos os seres humanos possuem o direito de SUA CONDIÇÃO DE CRIATURA FEITA À IMAGEM
serem tratados com dignidade não veio de uma corrente E SEMELHANÇA DE DEUS.
ideológica ou de um partido político. “Dignidade humana” ou
“sacralidade da vida” são expressões teológicas e encontram A religião cristã e as teologias protestantes participaram
fundamento no que a teologia cristã chama de imagem e ativa e intensamente da construção social daquilo que hoje
semelhança (Gênesis 1:27). Em nome da “sacralidade da atende pelo nome de Direitos Humanos. O que se sabe, a
vida” ou da vida humana como critério último e o bem maior, partir das teses de diversos pesquisadores e pesquisadoras

Todas as vidas importam? Protestantismos e direitos humanos


o Ocidente criou e assumiu a noção de que todos os seres de renome nos estudos sobre religião e política, é que, no
humanos possuem certos direitos básicos. Ocidente, a produção de estruturas culturais, jurídicas e
políticas com vistas à proteção da pessoa humana frente
Remontando à história dos Direitos Humanos, veremos uma aos abusos de poder do Estado foram influenciadas por
significativa participação religiosa. Por exemplo, no século noções teológicas e afirmações religiosas provenientes das
XVII, mais especificamente em 1636, um teólogo puritano tradições judaico-cristãs. As religiosidades cristãs, suas ima-
e pregador protestante inglês chamado Roger Williams, ginações morais e visões de mundo, ofereceram referenciais
muito antes do marxismo ou de Karl Marx existir, por causa teóricos/políticos/teológicos para que a noção de dignidade
da ideia de que reside em cada ser humano a imagem e humana ganhasse formas jurídicas e políticas na instituição
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

semelhança de Deus – de que mora no interior, no fundo, dos Direitos Humanos.


na alma, nesse lugar mais sagrado do ser humano – a iden-
tificação com Deus, diziam: “Se em você mora a imagem e Caso investigássemos uma genealogia dos Direitos Huma-
semelhança de Deus, você deve ser um humano livre. Você nos, perceberíamos que: suas origens políticas estão, intrin-
deve ter a sua liberdade respeitada, a sua possibilidade de secamente, ligadas a aspectos teológico-religiosos. Obra
ir e vir respeitada”. Naquela época, a grande questão da de referência nessa análise é a do alemão Hans Joas, que
liberdade era crer e expressar a fé livremente. estruturou o que está sendo chamada de “nova genealogia
dos Direitos Humanos”. Nesta investigação, a partir de uma

128 129
análise minuciosa das teorias clássicas sobre o tema, Joas Aqui reside uma contradição. Se o carisma inspirador de
menciona o trabalho de Georg Jellinek, que diz o seguinte: todas as disputas e produções políticas sobre os Direitos
Humanos foi a noção teológica da “dignidade da pessoa”,
A ideia de fixar em lei os direitos inalienáveis, inatos, santificados proveniente da sua condição de criatura feita à “imagem e
do indivíduo não tem origem política, mas religiosa. O que até aqui semelhança de Deus”, por que parte dos evangélicos estão
foi tido como obra da Revolução, é na verdade fruto da Reforma e aderindo a um discurso anti Direitos Humanos? Evangélicos
de suas lutas. Seu primeiro apóstolo não é Lafayette, mas aquele concordam que “bandido bom é bandido morto”? Evangé-
Roger Williams, que, movido por um entusiasmo intenso, profun- licos aprovam um plano radicalmente neoliberal e, por isso,
damente religioso, emigra para um lugar ermo visando fundar um frontalmente contrário aos Direitos Humanos?
reino da liberdade de fé, cujo nome os norte-americanos ainda
hoje mencionam com profunda reverência1. Claro, não podemos cometer o equívoco de achar que o
universo evangélico é único, homogêneo. Evangélicos não

Todas as vidas importam? Protestantismos e direitos humanos


Não há como contornar/ocultar o profundo vínculo entre os são iguais, sabemos, e o direito à diversidade e à existência
protestantismos europeus e as tendências humanistas que da pluralidade deve ser nosso maior horizonte.
anteciparam as discussões sobre os Direitos Humanos. É no
contexto desta implicação mútua, ou para me referenciar por
Weber, desta afinidade eletiva, operante desde a gênese da
noção dos Direitos Humanos, que
Mercado versus
Direitos Humanos
AFIRMAMOS HAVER UMA ENERGIA TEOLÓGICA NO
ÂMAGO DESTA CATEGORIA JURÍDICA, UMA MÍSTICA Tal como Boaventura apontou certa exclusão que atravessa
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

a “universalidade” da Declaração dos Direitos Humanos da


CRISTÃ ANIMANDO E INSPIRANDO LÓGICAS JURÍDICAS
ONU, é preciso questionar os processos de exclusão que
E POLÍTICAS QUE PRETENDIAM MAIS LIBERDADE, também circulam no interior dos protestantismos brasileiros.
JUSTIÇA E FRATERNIDADE NAS RELAÇÕES SOCIAIS. Nesse sentido, cabe atualizar as hermenêuticas de suspei-
ção de Boaventura em relação aos sujeitos de direitos (ou
não), nos campos teológicos brasileiros. Se para Boaven-
1 HANS, Joas. A sacralidade da pessoa: nova genealogia dos direitos tura “a grande maioria da população mundial não é sujeito
humanos. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p.47

130 131
de Direitos Humanos2”, para o teólogo e pesquisador Jung Para Jung, o nexo de causalidade dessas exclusões está inti-
Mo Sung, nem todas as pessoas são reconhecidas como mamente ligado às dinâmicas e tecnologias das sociedades
“imagem e semelhança”. Para Jung, o reconhecimento da neoliberais. Neste sentido, “o projeto fundamental de nossa
“dignidade humana” está atrelado ao acúmulo de bens, sociedade, que é determinante na formação do horizonte
de compreensão, é acumular capital; em outras palavras,
Esse é o horizonte de compreensão da nossa sociedade capita- ganhar dinheiro.”4. Sendo assim, “se o projeto fundamental
lista. Um horizonte que a tradição bíblica chama de idolátrica. É é ganhar dinheiro, as coisas têm valor e adquirem sentido
idolátrica porque diz que a dignidade humana não vem do fato de à medida que servem para ganhar dinheiro.”5 Não basta
todas as pessoas serem filhos ou filhas de Deus, mas de possuírem considerar o neoliberalismo apenas como uma ideologia
um produto humano, o dinheiro. A fonte da dignidade humana da qual derivariam automaticamente políticas econômicas.
não é Deus, mas um ídolo: o dinheiro elevado à condição de fim É preciso pensar, como propõe a tese defendida por Pierre
último, absoluto, Mamom3. Dardot e Christian Laval no livro A nova razão do mundo:

Todas as vidas importam? Protestantismos e direitos humanos


ensaio sobre a sociedade neoliberal6, o neoliberalismo como
SE ANTES AS RELIGIÕES UNIVERSAIS CRIAM QUE TODOS, produtor de certos tipos de relações sociais, certas maneiras
INDISTINTAMENTE, SÃO IMAGEM E SEMELHANÇA DE de viver/morrer, incluir e/ou excluir. Ou seja, é preciso pensar
o neoliberalismo como um espírito biopolítico no interior dos
DEUS, EM ALGUMAS TEOLOGIAS ATUAIS, POR EXEMPLO,
protestantismos no Brasil.
O RICO É CONSIDERADO UM “ABENÇOADO POR DEUS”;
POR ISSO, DIGNO DE TER SEUS DIREITOS GARANTIDOS. Seguindo esse raciocínio de Jung, nessa nova fase do ca-
O POBRE É, PORTANTO, ALGUÉM SEM VALOR, INDIGNO. pitalismo neoliberal, só gozam do “estado de direito” os
sujeitos que possuem riqueza. Há uma espécie de eleição
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

Nessa lógica, a morte do pobre é autorizada e encontra dos “sujeitos de direitos” e autorização dos “sujeitos ma-
legitimidade, inclusive, em alguns discursos teológicos. táveis”. Existem os não humanos, aqueles que segundo

2 SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos 4 Idem.


direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2ª ed, 2014. p.42. 5 Idem.
3 SUNG, Jung Mo. Se Deus existe, por que há pobreza? São Paulo: 6 DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
Editora Reflexão, 2008, p. 65. neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016

132 133
Judith Butler, não são considerados “passíveis de luto”7; [...] seja um dizimista fiel, seja um ofertante com carinho e na
neste grupo, estão os negros, as mulheres, os índios e as necessidade: sacrifique e a prosperidade de Deus virá sobre a sua
diversas formas de sexualidade que não se “enquadram” vida. Não importa o que foi que o Diabo levou, eu sei que o meu
no binômio homem-mulher. Deus tem em dobro para te dar. Você tem que parar de aceitar
essa situação que o Inimigo soprou no seu ouvido dizendo que filho
Não somente as coisas adquirem valor à medida que se tornam um de crente tem que ser só um engraxate ou um vendedor de picolé.
meio de ganhar dinheiro, mas as pessoas também são valorizadas, Não que isso desmereça, todo trabalho dignifica o homem quando
ou não, de acordo com o dinheiro que possuem. As pessoas de ele é feito com respeito. Mas o seu filho pode ser um médico, um
muitas posses, os ricos, são consideradas ‘as pessoas de bem’; empresário. Você que está assistindo, trace suas metas e acredite
as que não têm ou não conseguem ganhar dinheiro, os pobres, que o seu Deus é dono do ouro e da prata [...]9
são consideradas ‘pessoas sem valor.8
A partir dessa lógica, o pobre é tido como alguém sem valor,

Todas as vidas importam? Protestantismos e direitos humanos


Com efeito, a ideologia neoliberal assume a prerrogativa de alguém cuja vida pouco importa. Ao passo que, se a vida
juiz e diz quem pode ou não participar dos direitos prove- do pobre não importa, não faz sentido lutar para que ele
nientes da dignidade humana. tenha seus direitos garantidos. Nesse caso, não é o humano
que tem direito, é o capital. As novas formas de coloniali-
A FONTE DA DIGNIDADE HUMANA DEIXA DE SER DEUS dade não teriam realizado seus empreendimentos políticos
E PASSA SER O DINHEIRO E A QUANTIDADE DE BENS e subjetivos se não tivessem sido envolvidas numa áurea
religiosa que as legitimassem socialmente. Máscaras jurí-
QUE UMA PESSOA POSSUI. DITO DE OUTRA MANEIRA,
dico-teológicas foram necessárias para que as violências
VOCÊ É AQUILO QUE VOCÊ POSSUI. inerentes aos processos coloniais não fossem percebidas
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

como barbárie e aniquilação. Por isso, é preciso maquiar o


Essa ideologia foi incorporada nas teologias da prosperidade.
horror com estéticas de santidade. Parte do protestantismo
Em uma de suas pregações, o pastor Marco Feliciano, um dos
no Brasil empenhou-se profundamente em transvertir as
maiores expoentes da Teologia da Prosperidade no Brasil, diz:
tecnologias de exclusão dos diferentes.

7 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível 9 FELICIANO, Marco. Prosperidade. Disponível em
de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª ed, 2017, p13. <https://www.youtube.com/watch?v=0AiwafSyNk8&t=213s>
8 SUNG, Jung Mo. 2008, Loc. Cit. acesso em 15 de junho de 2018

134 135
Deus cujo nome é Amor COMO VIMOS AO LONGO DO LIVRO,
As hermenêuticas de suspeita levantadas ao longo deste
HÁ PESSOAS, IGREJAS E INICIATIVAS QUE,
texto nos ajudam a desconstruir os consensos hegemôni- AO ENCONTRAREM O PRÍNCIPE DA PAZ
cos que de uma maneira muito sofisticada justificaram e
naturalizavam a destruição e a miséria dos colonizados, NA FACE AMOROSA DO OUTRO, RESOLVERAM
subjugados e oprimidos nas periferias do mundo. Negros, EMPENHAR SUA VIDA EM FUNÇÃO DO
mulheres, LGBTs, índios e nordestinos tiveram (foram vio-
lentados-obrigados) que conviver com piadas preconceituo- AMOR. UM AMOR QUE NÃO VIOLENTA, NÃO
sas e estigmatizantes. Todas, “naturalmente aceitáveis” e, CONTROLA, NÃO EXPLORA. AMA E PONTO.
inclusive, veiculadas aos próprios ajuntamentos religiosos.
Os mesmos defensores dos Direitos Humanos serão aqueles Não resta duvidas, nós – a Igreja Brasileira – precisamos

Todas as vidas importam? Protestantismos e direitos humanos


que vão usar suas premissas para que humanos outros, resgatar uma memória registrada no livro de Tiago. Há uma
não idênticos a eles, não tenham direito nenhum. É fato discussão muito interessante na carta do apóstolo Tiago.
que alguns segmentos religiosos cresceram com um ímpe- As pessoas estavam perguntando: Qual é o tipo de Lei que
to mais individualista, moralista e silenciaram-se frente às a gente deve seguir para viver bem com a gente mesmo,
tecnologias de morte que o neoliberalismo propõe. Igrejas, para viver bem com o próximo e para adorar a Deus? Tia-
pastores e lideranças estabeleceram conluio com políticas go responde de uma maneira absurdamente linda. E é a
de segregação aos pobres e reproduziram lógicas racistas mesma resposta que todo mundo que conviveu com Jesus
e excludentes. Contradições também nos marcam, e isto dava para esse tipo de problema. Só existe uma lei regen-
deve ser reconhecido. do o coração da igreja, e só existe uma lei impulsionando
JESUS E os DIREITOS HUMANOS

tudo que a gente sente, pensa e faz. O Novo Testamente


Contudo, há que se perguntar: quais são as inteligências pro- chama de amor. O amor é essa experiência ética que faz
duzidas pelas muitas expressões religiosas brasileiras que com que a gente deixe de ver o outro desconhecido como
podem nos ajudar a repensar a (re) construção dos Direitos “um qualquer” e passa a entender toda e qualquer relação
Humanos no Brasil? Como os afetos religiosos pluralistas e como uma proximidade. O amor é a nossa força motriz. Ele
ecumênicos, gestados no cotidiano das cidades brasileiras, é o nosso espírito, é o nosso caminho. É ele quem nos faz
podem cooperar para radicalizarmos e aprofundarmos éticas olhar para o outro e nos identificar com uma radicalidade
que lutam por dignidade e justiça? tão profunda que resista fazer mal.

136 137
Este livro se tornou possível pelo apoio, ajuda e participação
inestimável de Flávio Conrado, Clemir Fernandes, Karen
Ianino, Carlos Bezerra, Eduardo Foresti, Helena Hennemann
e dos autores Caio Marçal, pastora Andreia Fernandes, pas-
tora Kátia Ezoite, pastor Jairo dos Santos, André Guimarães,
Géssica Dias, pastor Henrique Vieira, pastor Kléber Lucas e
pastor José Marcos a todas elas e a todos eles agradecemos
de todo o coração.

Agradecemos também a cada igreja, organização, pastores


e pastoras que enviaram atividades para a nossa agenda

Agradecimentos de 40 Dias de Oração e Serviço pelos Direitos Humanos.


As iniciativas de muitas e muitos de vocês certamente
podem ser consideradas ilustrações vivas dos textos aqui
apresentados, associando o evangelho de Jesus e a prá-
tica de amor e serviço, ou simplesmente, de respeito aos
direitos humanos.

Agradecemos por fim à vereadora Patricia Bezerra por


acreditar nesse projeto e por destinar os recursos de
emenda parlamentar necessários para que fosse possível
sua realização.

Ronilso Pacheco, João Luiz Moura


e toda a equipe do Usina de Valores.
O Usina de Valores, iniciativa do Instituto Vladimir Herzog, Os cinco valores, assim, expressam a perspectiva de uma
nasceu em 2018 a partir da urgência de disseminar e dispu- sociedade mais igualitária e justa, em plena sinergia com
tar valores que promovam uma cultura de direitos humanos valores cristãos. Com estes princípios, defendemos a so-
capaz de sensibilizar e engajar pessoas na construção de lidariedade, o respeito à diversidade e à democracia, e o
uma sociedade democrática, justa e não violenta. combate a cultura de ódio e da naturalização da violência.

A proposta é fomentar a valorização e defesa da vida dig- Para encorajar e nutrir uma ampla cultura de direitos huma-
na, do diálogo e das diferenças. Para isso, definimos cinco nos no país, é urgente superar a escassez de escuta entre
valores que pautam todas as ações do projeto: Dignidade grupos com possibilidade de entendimento mútuo. Um bom
Humana, Coexistir na Diferença, Escuta Ativa, Engajamento ponto de partida é unir, em uma publicação, assuntos que
Político e Bem-viver. interessam ativistas e religiosos, que une a bíblia à fé em
uma sociedade boa para todas e todos.
O que move o Usina de Valores é a certeza de que o en-
contro e o reconhecimento dos diferentes tipos de coleti- Nesse momento de profunda tensão, não há mais tempo
vidades é essencial para nos contrapormos ao momento para individualismos. É preciso somar aliadas e aliados para
de enorme tensão, desumanização e falta de amor ao avançarmos. Para isso, precisamos reciclar e disseminar
próximo que vivemos, e também às violências que marcam nossos valores.
a história do Brasil.
Neste livro, os objetivos e a paixão que movem o Usina de
De forma prática, atuando em vários estados de diferentes Valores se encontram com os valores cristãos para promo-
regiões do país, o projeto promove ações formativas no ver uma comunhão ampla em nome dos direitos humanos.
online, com lives, site e ativação de redes, e no off-line, com
cursos, oficinas e eventos. O foco prioritário é atingir evan-
gélicos, comunicadores das periferias e movimentos sociais
– atores e parceiros estratégicos capazes de amplificar e
compartilhar saberes com uma pluralidade de pessoas.
Dezembro de 2018.
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