Jesus e Os Direitos Humanos
Jesus e Os Direitos Humanos
Jesus e Os Direitos Humanos
organizador
Instituto Vladimir Herzog Prefeitura de São Paulo
Ronilso Pacheco
diretor executivo prefeito
co-organizador
Rogério Sottili Bruno Covas
João Luiz Moura
diretora educacional
projeto gráfico e capa Secretaria Municipal
Ana Rosa Abreu
Eduardo Foresti de Direitos Humanos
Helena Hennemann Equipe Usina de Valores e Cidadania
diagramação coordenador geral secretária
jesus
e financeiro
Gráfica Igil Raphael Buongermino
Francisco Monteiro Paulo
coordenador educacional
Alan Brum
e os
coordenador de comunicação
Semayat Oliveira
gestor multimeios
Vinicius Martins
catalogação na fonte:
Jônatas Souza de Abreu, Ms. CRB4-1823
direitos
J585
17 JESUS E os DIREITOS
HUMANOS: POR UMA
VERDADEIRA EVANGELIZAÇÃO
29 MARIA MADALENA:
UMA DISCÍPULA PRESENTE
EM TODO TEMPO
45 IGREJA EVANGÉLICA, 87 JESUS É A VITÓRIA
PROJETO ALÉM DO NOSSO DO AMOR E DO PERDÃO
OLHAR: PARTILHA QUE UNE SOBRE A VIOLÊNCIA
EVANGELHO E RESPEITO
AOS DIREITOS HUMANOs
101 AMOR E RESPEITO:
BASES PARA PROMOÇÃO
DA DIVERSIDADE RELIGIOSA
59 JESUS: EXEMPLO DE
RESISTÊNCIA E ESPERANÇA
PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS 113 A IGREJA BATISTA
E VIDA DO POVO NEGRO EM COQUEIRAL E OS
DIREITOS HUMANOS
UM LIVRO PARA
NOS TRAZER À
MEMÓRIA AQUILO
QUE NOS DÁ
ESPERANÇA
vezes, é uma vítima, ou como organizações que veriam nisso cidade tem, no Brasil, alguns mestres e algumas mestras,
uma forma de lucrar com a desordem social (“o pessoal dos que são até hoje quase únicos nesta arte. Aqui falamos do
Direitos Humanos só defende bandido”, dizem outros). frei católico Carlos Mesters e do luterano Milton Schwantes,
mestres pioneiros na arte de levar a complexidade das nar-
Sendo assim, este livro foi pensado para ajudar (porque não rativas bíblicas até o povo simples, tratando de temas que
é o único esforço neste sentido) a resgatar e reafirmar que a geralmente só ocorriam citando intelectuais, pesquisadores,
prefácio
Declaração Universal dos Direitos Humanos, com todos os pensadores. Falamos da pastora metodista Nancy Cardoso
seus limites, é um ganho universal e necessário – mas não e da professora católica leiga Tereza Pompéia Cavalcante,
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igualmente formadoras de uma geração que se inspirou em, fala sobre segurança, lançando mão da pergunta: “Como o
a partir da Bíblia, falar do que tocava o dia a dia das pessoas Evangelho de Jesus inspira segurança?”. Nisto, não apenas
comuns, da luta do povo. uma segurança pessoal e individual, mas como o Evangelho
nos inspira a pensar sobre políticas de segurança pública. Je-
Com este desafio assumido, nosso texto de abertura Jesus e sus é a vitória do amor e do perdão sobre a violência é o texto
os Direitos Humanos: por uma verdadeira evangelização, o do sexto capítulo, do pastor Henrique Vieira. Este é um texto
missionário Caio Marçal nos ajuda a fazer este primeiro re- que trata, sobretudo, de como a vida de Jesus dá caminhos
conhecimento, de que a vida de Jesus nos revela um cuidado para interrompermos o ciclo de violência, discursos de ódio e
e uma responsabilidade pela dignidade de quem quer que intolerâncias, de como não termos no medo um instrumento
seja. Com o segundo texto Maria Madalena: uma discípula que nos leve a sermos razoáveis com violências que são
presente em todo tempo, a pastora Andreia Fernandes nos apresentadas como medidas de segurança.
leva a discutir sobre a condição das mulheres no Brasil atual
e as questões de gênero que não podem mais ser deixadas Em Amor e respeito: bases para promoção da diversidade
de lado. Falando, no terceiro capítulo, sobre suas experiências religiosa, nosso sétimo capítulo, o pastor e compositor Kleber
práticas de luta e pastoral, a pastora Kátia Teixeira e o pastor Lucas nos apresenta, a partir de sua própria vida, uma incrí-
Jairo dos Santos nos apresentam a vivência da igreja Projeto vel contribuição sobre como, e por que, o direito humano da
Além do Nosso Olhar, uma igreja pentecostal, no contexto da liberdade religiosa deve ser respeitado, é inspirado em Jesus,
Baixada Fluminense (RJ), que inspira toda uma igreja a estar e torna o nosso convívio social mais seguro e amoroso. No
reflexiva tanto à adoração quanto à exigência de seus direitos penúltimo capítulo, o teólogo João Luiz Moura nos convida a
e do direito e dignidade de sua comunidade local. pensar: Todas as vidas importam? Protestantismos e Direitos
Humanos. Aqui, vai tratar, especialmente, do lugar da vida
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
Em Jesus: exemplo de resistência e esperança para promo- considerada sagrada, mas nos provocando a pensar por que,
ção de direitos e vida do povo negro, no quarto capítulo, o se Jesus nos disse que veio para que todas e todos tenham
missionário André Guimarães nos conduz, generosamente, vida em abundância, algumas vidas parecem ser considera-
a uma profunda e dolorosa reflexão sobre a importância da das mais sagradas em detrimento de outras. E o pastor José
questão racial, o quanto ela é tratada de forma sutil e da- Marcos, da Igreja Batista em Coqueiral (Recife/PE), encerra
nosa por nossa sociedade e nossa igreja; e, também, como nosso trabalho coletivo, dividindo conosco a experiência de
prefácio
podemos combater o racismo através de um testemunho sua igreja, com seu profundo e reconhecido impacto em uma
bíblico. No quinto capítulo, o texto em que Géssica Dias nos área periférica da capital pernambucana. Com este pastor,
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aprendemos o quanto uma comunidade local ganha, tendo
uma igreja que abriu mão do necessário relacionamento entre
o reconhecimento e o respeito aos Direitos Humanos e a fé
em Jesus, inspirada em sua vida nos Evangelhos.
prefácio
14 15
JESUS E
os DIREITOS
HUMANOS: POR
UMA VERDADEIRA
EVANGELIZAÇÃO
direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da fa- e assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos nele;
mília humana é o fundamento da liberdade, da justiça e e ele começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu a Escritura que vocês
da paz no mundo”. acabaram de ouvir’. (Lucas 4:17-21)
Mas o que esse assunto tem a ver com a nossa fé? O que O texto acima é um relato do início do ministério de Jesus. De-
a nossa missão, enquanto seguidoras e seguidores de Je- pois de fazer um “estágio” no deserto, onde ele é tentado pelo
sus de Nazaré, tem a ver com as questões relacionadas Maligno, o Cristo volta para sua Galileia e lá inicia seu minis-
aos Direitos Humanos? Como isso se correlaciona com a tério pregando nas sinagogas. Chegando a Nazaré, Ele lê um
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pequeno trecho do livro de Isaías e diz que naquele momento espécie de teoria religiosa. Porém, nos tempos de Jesus,
aquela palavra estava se cumprindo. Mas o que isso quer dizer? o termo significa o ‘anúncio especial que proclamava o nas-
cimento ou o acesso ao poder de um novo rei ou reino’.
Ao ler essa passagem, Jesus assinala que o Espírito Santo
o ungiu para uma determinada tarefa. Naquele contexto, A mensagem de Jesus promove o início de um reinado, onde
ungir é uma destinação que alguém escolhido recebe para o Rei é Deus. Jesus e os apóstolos anunciaram o Reino
determinada vocação. Ou seja, Cristo indica basicamente de Deus. O Evangelho é a ‘boa notícia’ do Reino de Deus.
qual é o objetivo final de sua missão. Em outras palavras, é Quando alguém reina em algum lugar, sua vontade é feita
como se ele dissesse: “Foi para isso que eu vim” ou “Esse plenamente. No Reino de Deus, sua vontade é plena e os
é meu projeto de vida”. seus súditos vivem sob essa nova ordem.
Contudo, é possível dizer que nesse momento o Cristo não Nesse sentido, a proclamação do Reino de Deus indica uma
em um manifestante.
22 23
No Novo Testamento, o Jesus manifestante criticou os fari- sete anos sabáticos – 7 x 7 – deveria haver um ano sabático
seus e os chamou de hipócritas por darem o dízimo meticulo- super-super, o ano do Jubileu. Durante o ano do Jubileu,
samente, mas falharem em aplicar o princípio mais profundo
de justiça e igualdade: “Mas ai de vós, fariseus! Porque dais Se alguém do seu povo empobrecer e se vender a algum de vocês,
o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças e não o façam trabalhar como escravo. Ele deverá ser tratado como
desprezais a justiça e o amor de Deus; devíeis, porém, fazer trabalhador contratado ou como residente temporário; trabalhará
estas coisas, sem omitir aquelas” (Lucas 11: 42 – ARA). Seja para quem o comprou até o ano do jubileu. Então ele e os seus
nas estradas, nos montes ou mesmo no Templo, Sua voz filhos estarão livres, e ele poderá voltar para o seu próprio clã e
ecoou em favor dos esquecidos, das crianças, das mulheres para a propriedade dos seus antepassados. (Levítico 25:39-41)
e dos marginalizados.
No decorrer dos anos, entre cada Jubileu, várias pessoas, por
Por fim, o texto indica que Jesus veio “proclamar o ano da diversas razões, cairiam em dívidas e, como consequência,
o povo de Deus e também entre os estrangeiros. Essas leis Deus e restaurar tudo aquilo que a queda ocasionou. A vida,
foram criadas como uma forma de tornar o povo de Deus morte e ressurreição de Jesus não vieram para simplesmente
um exemplo para os outros povos. salvar um “punhado” de gente, mas retomar toda a consciência
da humanidade cativa à vontade de Deus: “e por meio dele
O Jubileu deveria ser o ano sabático dos anos sabáticos. A reconciliasse consigo todas as coisas”. (Colossenses 1:20, grifo
cada sete dias, os israelitas celebravam um dia de descanso. nosso). Em um mundo dividido entre Alphaville e a favela, entre
E, a cada sete anos eles deveriam observar um ano sabático muitos que não têm nada e poucos que têm tudo, o evangelho
de descanso, uma medida de ordem ambiental. Depois de da reconciliação nos põe como agentes de transformação.
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Conclusão Daí infere-se que a mensagem do evangelho é uma “espada
de dois gumes”. Para alguns, ela é a boa notícia de um Reino
de amor, reconciliação, onde todos são acolhidos e não há
A Bíblia revela um Deus que ouve os gritos dos oprimidos
mais injustiça. Para outros, os opressores ou os que dese-
e ama trazer libertação. A missão de Deus estabelece
jam estar em situação de conforto, é uma má notícia. Esses
uma agenda para os cristãos, ela é pronunciada por Cristo
últimos, mesmo sendo religiosos, sentirão ódio de quem
Jesus. Em nossa pregação, oração e adoração, precisamos
optar por assumir a radicalidade da boa nova do evangelho.
readquirir uma visão correta do significado do que é a
evangelização – o anúncio de uma nova lógica onde Deus
Nesse sentido, o evangelho também ganha caráter de de-
reúne e reconcilia suas filhas e filhos como uma grande
núncia profética. A pergunta final é: De que lado você está?
família. Portanto, a nossa vivência do evangelho nos en-
Dos que acolhem essa mensagem como uma boa notícia ou
volve para uma vida compromissada com a libertação de
como uma má noticia? Você está ao lado dos pobres com
todo tipo de opressão.
A IGREJA NÃO DEVE SER UM REFÚGIO Que a agenda missionária de Jesus, nosso mestre e guia,
ACOLHEDOR DO MUNDO, UMA “BOLHA” nos inspire a proclamar que o Reino de Deus é justiça, paz
e alegria. Minha oração é que respondamos positivamente
ESPIRITUAL ISOLADA QUE CONTÉM UMA ao chamado do evangelho para amar os Direitos Humanos.
PIEDADE PRIVATIZADA E DISTANTE
Amém!
DO SOFRIMENTO HUMANO.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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MARIA MADALENA:
UMA DISCÍPULA
PRESENTE EM
TODO TEMPO
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O encontro libertador de ela estava endemoninhada, nada mais do que isso. Ainda
que a tradição diga que ela era prostituta, adúltera ou algo
Maria Madalena com Jesus do tipo, não há fundamentação bíblica que explicita isso.
32 33
a) n
a crucificação de Jesus. Diante da crucificação de Jesus, Arimateia só conseguiu o corpo de Jesus porque era uma
todas as pessoas que o seguiam foram inundadas de pessoa muito ilustre (v. 43). O evangelho de Marcos 15 cha-
tristeza e desesperança, afinal, quem elas criam ser o ma atenção para o fato de que Maria Madalena acompanhou
Messias, tinha acabado de morrer. Além de tristeza, Jesus em cada momento. Ela, junto a Maria, mãe de Jesus,
decepção e desesperança, outro sentimento inundou não deixou seu Mestre, esteve na crucificação, na morte e
quem seguia Jesus: o medo. Sim, foi por medo que Pedro também no seu sepultamento (v.47).
negou o Messias (Marcos 14:66-72) e que um jovem
seguidor do Mestre fugiu nu (Marcos 16:51, 52). Mas EM TODO TEMPO MARIA CORREU O PERIGO DE MORRER,
por que tanto medo? MAS O SEU AMOR POR JESUS LHE AJUDAVA A SUPERAR
AS DIFICULDADES QUE SURGIAM. ELA SEGUIA CERTA
Naquela época, a pessoa crucificada não tinha direito a
nada. Tudo era feito da maneira mais cruel possível. Não DE QUE PRECISAVA CUIDAR DO CORPO DO MESTRE,
se permitia que a família e amigos (as) acompanhassem a DÁ-LO UM ENTERRO DIGNO.
morte de quem estava na cruz. Caso alguém fosse desco-
5 DOUGLAS, J.D.(org.). O novo dicionário da Bíblia. São Paulo: 6 TEPEDINO, Ana Maria. As discípulas de Jesus. Petrópolis, RJ:
Vida Nova, 3.ed. rev. Vozes, 1990, p.102-103.
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JESUS NASCEU DE UMA MULHER. QUANDO ELE descrença. Muitas de nós conhecemos cada uma dessas
MORREU AS MULHERES LÁ ESTAVAM, QUANDO experiências, os homens também o sabem. Portanto, o que
é possível aprender com essa discípula amada em relação
RESSUSCITOU FORAM ELAS QUE O VIRAM PRIMEIRO.
a tudo isso? Aqui gostaria de partilhar algumas percepções.
EM UM TEMPO ONDE A MULHER ERA DESVALORIZADA,
VIOLENTADA E, POR QUALQUER MOTIVO, CASTIGADA E Opressão: diversas são as formas com que as mulheres
DIFAMADA, JESUS FEZ A OPÇÃO DE COLOCÁ-LAS COMO são oprimidas, seja dentro ou fora de casa; a opressão nos
machuca, nos sufoca, nos sentimos incapazes, impoten-
PESSOAS MUITO IMPORTANTES EM SUA TRAJETÓRIA,
tes, ela confunde nossos pensamentos, tira a nossa força
EM SEU MINISTÉRIO. ASSIM, O MESTRE COMBATIA para decidir sobre a nossa vida. A presença libertadora de
O SISTEMA OPRESSOR. Jesus Cristo foi fundamental na vida de Maria Madalena,
sua trajetória mudou. O texto diz que ela foi liberta de sete
Jesus não só amou as mulheres, mas acreditou nelas, liber- demônios. O número sete na Bíblia tem a ver com totalidade
tou-as, deu espaço para que o seguissem, o servissem e o e plenitude7. Aquela mulher que era totalmente oprimida,
Madalena seguiu firme, crendo. Ela foi a portadora da melhor da Igreja e que isso gerou muito ciúme, por isso deve ter
notícia da vida: Jesus venceu a morte, o medo, as injustas enfrentado muitas difamações. Até hoje há quem fale mal
condenações. Jesus ressuscitou e, com ele, veio salvação e dela. Muitas de nós, quando nos convertemos, passamos
nova possibilidade de vida. a seguir a Cristo de forma solitária, perdemos casamentos,
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ganhamos a inimizade dos filhos e filhas, a rejeição de pa- As crianças, desde muito cedo, aprendem que tem que obe-
rentes, etc. Chegamos até a ter a nossa honra questionada: decer e que é melhor que o façam sem questionar. Homens e
“Ela não sai da Igreja, será que está lá mesmo?”; “Deve ter mulheres que caminhavam com Jesus, o viam afirmando que
um caso com o pastor ou com um líder da igreja”; “Agora ela viera cumprir a lei, e ele só poderia fazê-lo mediante a inter-
deixa a própria casa para cuidar de outras pessoas”. Mesmo pretação correta da lei. Por isso, questionava os doutores da
a gente sabendo que isso não é verdade, fazendo de tudo lei, porque estes além de distorcer os ensinamentos, oprimiam
para “dar conta” da casa, do trabalho e da igreja, às vezes o povo com interpretações equivocadas. Assim, enquanto o
não conseguimos impedir que falem mal da nossa ética, da ensino de Jesus sobre a lei fazia com que as pessoas ficassem
nossa sexualidade, da nossa vida. admiradas (Marcos 1:27), o ensino dos escribas fazia com que
as pessoas ficassem aterrorizadas (Lucas 13:14).
Medo e descrença: seguir a Cristo sempre foi uma opção
arriscada, mas Maria Madalena sabia do amor e do poder
do seu Mestre e seguiu em frente. Caminhar com Jesus é ter
PARA OBEDECER A LEI DE DEUS É
a possibilidade de aprender sempre. A coragem que Maria PRECISO CONHECER, REFLETIR, ELIMINAR
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Jesus: Companheiro MINISTÉRIO, O ACOMPANHANDO E, DEPOIS
em todo tempo DE SUA ASCENSÃO, SENDO DETERMINANTES
Se Maria Madalena tem tanto a nos ensinar, quer sejamos NA EXPANSÃO DA SUA MENSAGEM E NO
mulheres ou homens, Jesus em sua relação com essa dis- FORTALECIMENTO DA IGREJA QUE NASCIA.
cípula também pode nos ajudar a pensar como as pessoas
se relacionam entre si. Há quem afirme, para além do que Dorcas, a discípula (Atos 9:36-43), Lídia (Atos 16:11-15,40),
acredita a fé cristã, que a relação do Mestre com Madalena Febe, Priscila, Trifena, Trifosa, Julia e Pérside (Romanos 16)
não ficou restrita à amizade. Há quem diga que Jesus e são algumas delas.
Maria Madalena relacionavam-se sexualmente. A Bíblia não
insinua nem confirma isso, tampouco a fé cristã. É interes- Jesus, a despeito do que o preconceito e a cultura vigente
sante pensar nas dificuldades da sociedade, especialmente apregoavam em relação às mulheres, fez a opção de se
machista como a nossa, em reconhecer que um homem e deixar guiar pela vontade de Deus. Assim, enquanto havia
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com Jesus pode e deve iluminar a maneira como mulheres
e homens se relacionam nas igrejas, no trabalho, em casa,
INGREDIENTES SÃO PLANTADOS, COLHIDOS
enfim, na sociedade. Se na relação de Maria Madalena com E SOVADOS POR TODAS AS PESSOAS E NÃO
Jesus aprendemos formas de lutar contra a opressão, a
difamação o medo e a descrença; na relação de Jesus com
POR AQUELAS QUE HISTORICAMENTE TÊM
Maria Madalena aprendemos a não difamar, a não oprimir, O PAPEL DE PREPARÁ-LO E QUASE NUNCA
a não amedrontar quem está em uma situação política de
minoria, de vulnerabilidade. Seja essa pessoa quem for.
DESFRUTÁ-LO EM CONDIÇÃO DE IGUALDADE
COM QUEM COME.
Hoje, os noticiários e as estatísticas sobre racismo, homofo-
bia, feminicídios, violências, diferenças salariais, ocupação de
cargos nas igrejas, mostram o quão desigual são as relações Por fim
humanas. O lado que ocupamos nessas relações, a maneira
como nos relacionamos com quem é diferente de nós, pode Maria Madalena não estava sozinha em sua trajetória. Ao
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IGREJA EVANGÉLICA,
PROJETO ALÉM
DO NOSSO OLHAR:
PARTILHA QUE
UNE EVANGELHO
E RESPEITO AOS
DIREITOS HUMANOS
cabeças. Quando conseguimos o necessário e fomos rea- coração, que as pessoas tenham uma vida diferente – incutir
lizar a obra foi um dia de terror vivido por nós, pois houve em suas mentes a necessidade de mudança é uma batalha
uma operação policial como nunca tínhamos visto antes, travada contra a força do mal.
com helicóptero águia e caveirão. O diácono Claudio e eu
(Jairo) estávamos na escada, colocando o telhado e não QUANDO COMEÇAM OS TIROTEIOS, EU (KÁTIA)
tínhamos como descer, Deus nos livrou de sermos atingi-
dos – foi terrível! O sentimento de medo e, ambiguamente,
ORO E CHORO COPIOSAMENTE. UNO-ME,
de fé tomou conta de nós e das irmãs que auxiliavam no EMPATICAMENTE, ÀS OUTRAS MULHERES
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QUE SOFREM COM A INTEGRIDADE DE SEUS ENTENDEMOS QUE DEUS AMA A TODOS
FILHOS VIOLADA, COM OS TRABALHADORES E NÃO FAZ ACEPÇÃO DE PESSOAS, SEJA
NO SEU DIREITO DE IR E VIR, COM QUAL FOR A SUA RAÇA OU CLASSE SOCIAL.
AS CRIANÇAS QUE TÊM SUA INOCÊNCIA O REINO DE DEUS É DE AMOR,
MACULADA E ATÉ MESMO OS ÓBITOS MISERICÓRDIA, PERDÃO, JUSTIÇA,
QUE ADVÉM DESTA “GUERRA”. HUMILDADE, VERDADE, PAZ E INCLUSÃO,
Não tem sido fácil estar aqui nesta missão, porque não temos
O QUE TRAZ AO HOMEM ALEGRIA E BÊNÇÃO
muitos recursos, mas tudo que tem vindo às nossas mãos INCONTÁVEL. ISSO É SER PRÓSPERO.
temos feito com muito prazer. Jesus Cristo tem renovado
nossas forças, como vemos em Apocalipse 2:8, o exemplo Não é pelo que oferecemos a Ele e, sim, pelo que Ele nos
da igreja de Filadélfia. Não queremos ser hipócritas e dizer proporcionou: seu único filho, Jesus Cristo – aquele que crer
que não precisamos de recursos financeiros para realizar os Nele recebe vida. Presente maravilhoso de Deus para hu-
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Reino de amor: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu incompassivo também aprendemos este ensinamento (Ma-
o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não teus 18:26-35). Para trazer essas pessoas que se encontram
pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16). Jesus pregou à margem da sociedade a reconhecer e ter uma mudança,
o amor (Mateus 22:37-40) a Deus e ao próximo e não só também é necessário a realização de trabalhos sociais que
aos nossos amigos, devemos amar também aos que nos promovam sua inclusão (Romanos 4:4-8).
aborrecem, isto é, aos inimigos (Mateus 5:43-48).
Reino de justiça: “Bem-aventurados os que têm fome e sede
Reino de misericórdia: “Desejo misericórdia, não sacrifícios. de justiça, pois serão satisfeitos.” (Mateus 5:6). “Assim, em
Pois eu não vim chamar justos, mas pecadores.” (Mateus tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes
9:13). “Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão façam; pois esta é a Lei e os Profetas.” (Mateus 7:12). “Pois
misericórdia.” (Mateus 5:7). todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente por sua graça, por meio da reden-
Reino de perdão: Enquanto os homens querem condenar, ção que há em Cristo Jesus.” (Romanos 3:23-24).
dispor de julgamentos inquisitórios, Ele quer perdoar e salvar
(Mateus 18:21-22). Assim como fez com a mulher adúltera Reino de humildade: “Tomem sobre vocês o meu jugo
(João 8:1-11), a Zaqueu (Lucas 19:1-10), ao ladrão que es- e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de cora-
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trevas e só a luz pode fazer a diferença. Essa luz é o conhe- Temos realizado aqui, na família IPANO (Igreja Projeto Além
cimento, porque sem o mesmo, o povo perece (Oseias 4:6). do Nosso Olhar), trabalhos com as mulheres abordando
Ser sábio é melhor do que ser forte, o conhecimento é mais assuntos de violência contra a mulher, sobre as mulheres ne-
importante que a força (Provérbios 24:5). Conhecer Jesus, gras e todo o preconceito enfrentado pelas mesmas, saúde
andar por Seus caminhos, é ter a luz e a verdade. Por isso, da mulher, abusos sexuais etc. Temos ouvido depoimentos,
o nosso lema é: crescendo na graça e no conhecimento de conversado e debatido à luz da Bíblia, mostrando que o plano
Cristo Jesus (2 Pedro 3:18). de Deus para elas não é de exclusão, mas, sim, de inclusão.
Os exemplos de Raabe, a prostituta cujo relato está no livro
Reino de paz: “Bem-aventurados os pacificadores, pois de Josué (6:25); Rute, a moabita – povo que tinha sua parti-
serão chamados filhos de Deus.” (Mateus 5:9). Como sabe- cipação na assembleias dos santos vetada (Deuteronômio
mos, nossa sociedade vive em meio à violência, guerras e 23:3). Sua história está pormenorizada no livro que leva
ódio. Infelizmente, nossa comunidade de fé não está isenta seu nome, onde contemplamos a bela história do “resgate”
da influência dessa atmosfera belicosa. Acreditamos que, de Rute (Rute 4:9-14). As personagens supracitadas são
mesmo em meio ao caos, Deus nos quer como pacificado- incluídas na genealogia de Jesus Cristo (Mateus 1:5) – uma
res, trazendo ao conhecimento que Cristo é a nossa paz. clara demonstração que Deus não faz acepção de pessoas.
(Efésios 2:14-22).
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compreendido o ensinamento – fruto bom e fruto ruim. Uma repreendiam. Então disse Jesus: ‘Deixem vir a mim as crian-
criança de cinco anos respondeu que o fruto ruim para ela era ças e não as impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos
Polícia e ladrão. Perguntamos o porquê da sua resposta, ela que são semelhantes a elas’.” (Mateus 19:13-14). O ensino
disse: “porque matam”. Realmente o mandamento do nosso pode mudar o presente e o futuro dos pequeninos.
Deus é não matarás. Outro tema que passamos a nossas
crianças, adolescentes e jovens foi sobre a redução da idade Contudo, percebemos que não é somente a alegação de
penal. Entendemos que para haver mudança que adolescentes cometem delitos o “combustível” para esta
causa. Desde outrora o Estado quer por em prática essa
É PRECISO INVESTIR EM EDUCAÇÃO, ESPORTE, cultura de extermínio: Faraó teve esta prática no Egito (Êxodo
PROJETOS SOCIAIS PARA QUE OS MESMOS TENHAM 1:15-22) e também Herodes em Belém (Mateus 2:13-18).
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que outros líderes (de religiões distintas) confirmem nosso
convite e, em breve, possam atuar conosco na construção
de uma sociedade mais justa, diversa e acolhedora – cremos
que isso é seguir a doutrina de Jesus Cristo. Porque, como diz
em Tiago 1:27, “A religião que Deus, o nosso Pai aceita como
pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em
suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo.”.
Jesus, no evangelho de Mateus, também nos dá a diretriz de
como proceder aqui neste mundo: “Pois eu tive fome, e vocês
me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber;
fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas,
e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de
mim; estive preso, e vocês me visitaram.” (Mateus 25:35-36).
Quando agimos assim, acolhendo a nosso próximo em suas
necessidades, somos verdadeiros discípulos, adoradores que
o adoram em espírito e em verdade (João 4:24).
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JESUS: EXEMPLO
DE RESISTÊNCIA E
ESPERANÇA PARA
PROMOÇÃO DE
DIREITOS E VIDA
DO POVO NEGRO
JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
sociedade mergulhada em tensões e disputas de poder. Entendemos como um desafio para o povo preto afirmar
Uma sociedade massacrada pela ocupação romana, que sua identidade, juntamente com a tarefa de resgatar suas
teve o apoio dos religiosos para manutenção das relações raízes. O livro de Mateus 1:1-17 apresenta a genealogia de
de exclusão e violência. O que Jesus tem a nos dizer hoje? Jesus. Para nós, povo preto, isso tem uma grande potência.
O que um homem, morador do território da Palestina, pode Sabemos que não existem documentações capazes de nos
nos apresentar para superarmos as relações raciais tão responder com clareza sobre a árvore genealógica de Jesus.
adoecidas no Brasil? Diante desta indagação, tentaremos Essa ausência não pode ser recebida de forma definitiva.
com muita alegria apresentar ações de Jesus de Nazaré Podemos com isso acolher nossa história a partir de gran-
que podem nos auxiliar diante da superação do racismo e des referenciais de resistência que prestaram uma grande
na promoção da vida e da negritude. colaboração para o fortalecimento do povo preto neste país
e no mundo. Localizamos também na genealogia de Jesus
O primeiro aspecto que destacarei é a radical humanidade não um detalhamento “exato”, mas aproximações de figuras
de Jesus expressa no evangelho de João – que nos apresenta que lutaram de alguma forma e/ou marcaram fortemente
um Jesus de Nazaré totalmente humano e exposto a todos seu povo com atitudes de liberdade e ações de resistência e
os desafios de sua época, sujeito aos dramas e complexi- esperança. Quando sabemos de quem temos aproximação
dades de seu tempo. como povo, torna-se mais eficaz a luta para combater o pe-
cado do racismo em nosso meio. Porque quando trazemos
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
NÃO É POSSÍVEL MAIS SILENCIARMOS DIANTE DE para nossa árvore genealógica pessoas que resistiram com
testemunhos de luta, nós, como povo preto e cristão, temos
REPRESENTAÇÕES DE UM CRISTO DISTANTE DOS
a oportunidade de reinventar nossa trajetória e militância –
DESAFIOS DA COMUNIDADE NEGRA NO BRASIL. JESUS e, por conseguinte, rechaçar os relatos sobre nós como um
ASSUME TODAS AS LUTAS E RESISTÊNCIAS DO POVO povo fraco ou sem memória. Ao assumir homens e mulheres
de luta e ação, verbalizamos que temos aproximação e que
PRETO, UMA VEZ QUE É A EXPRESSÃO DE JUSTIÇA
nos dispomos a dar continuidade ao combate ao racismo
E DE NOVA HUMANIDADE. e às suas consequências, não apenas para o povo preto,
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mas também para toda a nação que sofre com a existência nos ajuda a entender que temos a “máquina” do Estado
e persistência desse pecado. direcionada para prejudicar os mais vulneráveis – com o
Jesus de Nazaré não foi diferente.
Um aspecto importante para nós, como povo de Deus, é
JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
o entendimento de que a vida do povo preto é marcada Nesta narrativa, fica evidente que o Estado exerce com
por múltiplos desafios que passam por todas as etapas da truculência o desejo de controle de sua população. Não
vida. Neste momento, gostaria de pensar junto com você o respeitando o direito de nascer dos empobrecidos, impondo
nascimento de Jesus relatado no livro de Mateus 2:13-23, sempre o desejo de controle sobre os corpos. A família de
com a apresentação de um governo que se sentiu amea- Jesus torna-se uma fugitiva e, com isso, todo o cotidiano
çado diante do menino nazareno. Esse governo organiza de seus pais é alterado bruscamente. Hoje, temos milhares
um elaborado plano para matar Jesus, que contará com a de famílias pretas e empobrecidas que são obrigadas a
estrutura do Estado, para eliminar uma possível ameaça. mudar suas trajetórias de vida, em virtude das guerras nas
comunidades, em que pais são obrigados a sair de suas
QUANDO OLHAMOS PARA AS casas e buscar um lugar seguro para seus filhos, uma vez
que essas localidades sofrem com a guerra do Estado con-
COMUNIDADES EMPOBRECIDAS ATUAIS, tra o mercado de varejo de drogas. A política de segurança
PODEMOS LOCALIZAR, TAMBÉM, TODA pública criminaliza pessoas e territórios, tendo a população
preta como uma das mais afetadas.
A ENGENHARIA DO ESTADO MATERIALIZADO
ATRAVÉS DE PRÁTICAS DE VIOLÊNCIA – Jesus é contra o genocídio
CAMUFLADAS DE POLÍTICAS DE SEGURANÇA do povo negro
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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vida, justificativas para práticas cúmplices dos esquemas Rapidamente, o estudioso da Lei responde – de forma técnica
que promovem a morte. e com precisão – a Jesus com um mandamento. O Nazareno
é mais uma vez desafiado a responder quem seria o próximo
A SEDE DE PODER, DE UM SEGMENTO para o Doutor da Lei. Cristo, a partir da parábola, começa
JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
a elaborar com o Doutor da Lei outros caminhos de cone-
DAS IGREJAS EVANGÉLICAS, NÃO MEDIRÁ xão para aplicação deste mandamento ‘amar o próximo’. O
ESFORÇOS PARA CAPTURAR NARRATIVAS Mestre escandaliza com sua interpretação a realidade de
sua época, pois trouxe para o centro da ação um segmento
QUE CONTROLEM OS CORPOS DE SEUS outrora desprezado por aquela sociedade e que tinha o
FIÉIS, MANTENDO-OS DEPENDENTES DE sentimento de ódio alimentado pelos religiosos da época.
UMA FALSA ESPIRITUALIDADE QUE NÃO É A interpretação do Doutor da Lei não tinha a capacidade
CAPAZ DE DIALOGAR E INTERAGIR COM OS de compreender e abraçar os que não faziam parte de sua
“zona de conforto”. Jesus, um educador popular, que tinha
DESAFIOS CONCRETOS DA VIDA COTIDIANA. as ruas como local de aproximação e acolhida ao diferente,
Para alguns líderes religiosos, o uso das narrativas bíblicas não teve problemas para acolher o samaritano e transfor-
tem como objetivo silenciar vozes dissonantes e garantir o má-lo em elemento central da prática de sua ação. Ele, com
monopólio das interpretações que não mudam situações de sua didática, desconstrói as categorias de segurança do
alienação. Esse desejo de poder tenta circunscrever novos estudioso judeu que, desta vez, teve que ampliar seu olhar
sopros de percepção de outras interpretações capazes de e perceber que Deus tinha o interesse que as pessoas se
animar para a vida. De igual forma, lembramos que, no encontrassem e vivessem com abertura para inclusão. Hoje,
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
período de Jesus, também existiam disputas em torno da os líderes ainda possuem extrema dificuldade em acolher
interpretação dos textos sagrados e aplicação dos desafios os mais excluídos da sociedade.
apresentados pela Lei. Interessante que, no relato de Lucas
no capítulo 10 no verso 26, Jesus é questionado pelo Doutor PARA OS AFRODESCENDENTES DO BRASIL, FAZEM-SE
da Lei (estudioso judeu responsável pela leitura dos livros
NECESSÁRIAS NOVAS LEITURAS QUE SE CONECTEM AOS
de Moisés) sobre os critérios da mesma para a obtenção da
vida eterna. Jesus, imediatamente, pergunta ao Doutor da Lei DESAFIOS DOS PRETOS E DAS PRETAS. ISSO INCLUI
o que está escrito na Lei e como ele lê o que estava escrito. COMBATER PRÁTICAS RACISTAS QUE SE INSTALAM NA
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TRADIÇÃO E NO COTIDIANO DA IGREJA (E DA SOCIEDADE própria identidade das igrejas neste país. Não foi por acaso
TAMBÉM), PROBLEMATIZANDO TODA FORMA DE LEITURA que tantas literaturas teológicas, que afirmam a negritude
como elemento do Reino não chegaram até nós – citamos,
QUE LEGITIME A NATURALIDADE DE SUBALTERNIZAÇÕES
por exemplo, o desconhecimento de livros da autoria de/
JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
DOS CORPOS PRETOS E SEUS DRAMAS. sobre Martin Luther King e James Cone no Brasil. Sem men-
cionar que não temos quase nada de Teologia Africana
Cabe também lembrar que a igreja brasileira possui uma nas estantes das bibliotecas dos Centros Teológicos de
grande responsabilidade diante de tudo que acontece ao formação no Brasil. Esse quadro precisa mudar, mas, para
povo preto, pois a mesma não tem a capacidade de se po- isso, produções e cooperação com os movimentos sociais
sicionar criticamente frente ao Estado. Infelizmente, a igreja negros são imprescindíveis. Esses movimentos possuem
perde em tentar se alinhar ao Estado em busca de poder. uma liberdade crítica que consegue ultrapassar os limites
de nosso olhar religioso, muitas vezes, estagnados em um
Nossa leitura da Bíblia não poder ser neutra diante dessa olhar branco europeizado.
situação de racismo que aflige milhares de pessoas no
Brasil. A igreja e o povo de Deus precisam se envolver e se
engajar na construção e no monitoramento de ações que
O SILÊNCIO É BRUTAL AO SOBREPUJAR
superem essas relações discriminatórias. Essas atitudes UMA CULTURA EM DETRIMENTO DA OUTRA.
promovem as desigualdades sociais e econômicas no Bra-
sil e vão contra a missão de Jesus de promoção do Reino
UM EXEMPLO CLÁSSICO DISSO SÃO AS
de Deus. Seria Jesus imparcial aos desafios vividos pelas REPRESENTAÇÕES DE JESUS OU OUTRAS
pessoas empobrecidas e negras de hoje? Parafraseamos a
PERSONAGENS BÍBLICAS NAS NOVELAS.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
que estão em situação de abandono e sofrimento, não nos
faltam imagens de pessoas pretas para constatarmos que DA JUVENTUDE NEGRA, PELO ALTO
o Brasil é um país injustamente racista e que está longe da
reparação ao povo preto deste país. Jesus diz, no Evange-
GRAU DE SOFISTICAÇÃO NA ELIMINAÇÃO
lho Segundo João (10:10), que ele veio para promoção de DOS CORPOS. O SALTEADOR DESTRÓI A
vida abundante. A população negra no Brasil é a que mais
morre nos espaços de saúde pública, o chamado ‘racismo
ESPERANÇA DA POPULAÇÃO NEGRA QUANDO
institucional’ tem sido a causa das mortes. Quando olhamos AS POLÍTICAS PÚBLICAS SÃO NEGADAS
para os jovens que morrem assassinados, em maioria, por
armas de fogo, não conseguimos ver vida em abundância,
OU NEGLIGENCIADAS.
mas, sim, a vitória do salteador que veio para roubar, matar
e destruir. Infelizmente, subtraem a dignidade da juventude
negra quando, por responsabilidade do racismo, ela não
Reparação como
consegue acessar – com qualidade – a cultura, a educação tarefa teológica para
e não são alcançados por nossas comunidades de fé. Muitas
de nossas igrejas estão fechadas durante a semana e não
promoção de direitos
se colocam à disposição para fortalecer e encorajar jovens Em Lucas 19:1-10 nos deparamos com um lindo relato de
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
negros na superação do pecado do racismo. Com tristeza, conversão, um modelo muito importante, pois sinaliza a
identificamos que o salteador tem matado a nossa juven- salvação de uma forma pouco comentada na tradição de
tude negra através da violência organizada pela agenda de uma leitura evangélica por justiça. Quando nos encontramos
segurança pública que criminaliza nosso povo. com a história de Zaqueu, percebemos que era um homem
que construiu riquezas, mas seu coração queria encontrar
Jesus. Ao achar Jesus, ele teve a oportunidade de se arre-
pender e rever com beleza seu caminho. Ao aceitar o desafio
de Jesus, ele tomou consciência de que havia roubado e,
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com isso, devolveu todas as riquezas adquiridas desones-
tamente. Hoje, os cristãos do Brasil são herdeiros de uma
sociedade escravista que enriqueceu a partir do trabalho
não remunerado e acumulou valores. Os brancos no Brasil
JESUS: EXEMPLO DE RESISTÊNCIA E ESPERANÇA PARA PROMOÇÃO DE DIREITOS E VIDA DO POVO NEGRO
não conseguem abrir mão de seus privilégios estruturais
e não reconhecem que seus patrimônios são resultantes
de um sistema que continua usurpando e silenciando seus
irmãos e irmãs de pele preta. Eles mostram-se incapazes de
se converter, nos moldes de Zaqueu, mas permanecem com
os seus corações endurecidos semelhantes ao jovem rico que
preferiu agarrar-se à tradição religiosa a abrir mão da ilusão
da falsa caridade. Agindo assim, desprezou a oportunidade
de se aprofundar nas obras de misericórdia e fazer o bem.
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O REINO DE DEUS
É JUSTIÇA, PAZ
E ALEGRIA: COMO
O EVANGELHO DE
JESUS INSPIRA
SEGURANÇA?
O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
nas palavras de condenação, na intolerância com o diferente, alegria, que o apóstolo Paulo viria a enunciar na Carta aos
na quase caça aos pecados alheios, na tentativa de “santi- Romanos 14:17, anos depois.
ficar”, igualando pessoas num país tão diversificado, pondo
armas em suas mãos ao som de jargões que afirmam “O As características que seguiam a Jesus de Nazaré desde
Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”. o seu nascimento talvez sejam as que combinam com a
existência e resistência de milhões de pessoas periféricas
Esta sistemática atende a uma estrutura que de tão bem e marginalizadas pelo Brasil adentro. Estas pessoas sofrem
articulada, não parece intencional, mas busca construir uma com a implantação desta cultura do medo, que apavora até
sensação de medo instalada na população, que por sua uma simples saída da escola, na qual pode terminar com
vez caminha na direção de procurar discursos que tragam uma mancha de sangue no fardamento, originada por um
respostas imediatas às demandas construídas por esta tiro recebido de uma arma de grosso calibre por parte de
lógica. De modo que a divergência de pensamento ou ati- quem tem por finalidade proteger a nação; até as violências
tude, na maioria das vezes, se configure como ameaça ou simbólicas, físicas, patrimoniais e tantas outras sofridas por
desconstrução de uma tradição pré-estabelecida, basea- mulheres através de seus companheiros, que muitas vezes
da em valores socialmente produzidos para determinados encontram-se legitimados pela fala de um “líder” espiritual
seguimentos da população, colocando o (a) diferente na que se colocou nesse lugar de autoridade instituída por deus.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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abandono, dominação, concentração de riquezas são dife- vulnerabilidade de todo (a) aquele (a) que se encontrava
rentes faces de um mesmo corpo violado. na condição de desabrigado (a) ou expatriado (a), sujeito
(a) a toda sorte de rejeição por não estar no chão em que
Porém, é na contramão dessa via que Jesus de Nazaré lança foi originado (a). Ou seja, Jesus incidia em problemas que
as bases do seu Reino, sendo possível compreendermos iam para além de sua linhagem, pois seu ministério rompia
O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
como este Reino se assemelha a uma Usina de Valores, barreiras territoriais, culturais e políticas.
produzindo segurança, e tendo por principal paradigma
desta Usina, a justiça. Desta forma, quero convidar você a vir Nesta perspectiva e, já trazendo para nossa realidade há que
fazer uma leitura de textos onde Jesus abordou questões de se voltar o olhar para essa mesma condição de desproteção
segurança, a partir de demandas que incidem diretamente vivida por aqui, quando cerca de 33.865 solicitações de
na condição de vida das pessoas. pedidos de refúgio foram registradas nos postos da Polícia
Federal, no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Jus-
A Bíblia se encarregará de nos mostrar, através da fala de tiça1. Porém, mesmo sendo o Brasil um país com dimensões
Jesus, abordagens que talvez não nos tivéssemos dado conta, continentais, há pouca tolerância para os que se aventuram
mas que abarcam o tema da segurança de modo peculiar, ao buscar guarida nessas terras de povo tido como acolhedor.
mesmo tempo em que se torna contundente ao dimensionar
para onde aponta a lógica deste Reino, que também é de paz. Mas, o que fazer então com o acolhimento dito por Jesus aos
Portanto, o livro de Mateus capítulo 25, versículos de 31 a 40 que se encontram como forasteiros (as)? Sendo esta uma
será o que nos abrirá essa porta. Dele, extrairemos elementos ação direcionada também a Ele?
clássicos e desafiadores para nossos dias.
NÃO SE TRATA AQUI DE SE DEBRUÇAR SOBRE CONDIÇÕES
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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ESSAS MILHARES DE PESSOAS QUE NÃO VIRAM O Para exemplificar, o Brasil conta com uma população cada
ACOLHIMENTO PREGADO POR JESUS NO PAÍS ONDE vez maior de pessoas em situação de rua, que vivem invi-
sibilizadas pela mídia e por nossos olhares de indiferença.
A POPULAÇÃO EVANGÉLICA É A QUE MAIS CRESCE.
Dados do IPEA2 apontam mais de 101 mil pessoas no ano de
2015 sobrevivendo nestas condições. Cresce assustadora-
O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
Estive nu e me vestistes mente também a densidade populacional nas comunidades
carentes, as quais são o lugar de abrigo para aqueles que
(Mateus 25:36 a) não tem o direito à cidade.
Nesta abordagem nos é apresentada mais uma face do que Quando vemos o Senhor dizer que foi vestido quando es-
podemos pontuar por insegurança. Aqui, consideremos a tava nu, podemos ler que Ele retratava, em sua fala, o que
desproteção, o abandono, o descaso com o direito básico viria posteriormente a ser vivido na igreja primitiva, quando
das pessoas, que acabam por ficar expostas a múltiplos na comunidade não haveria nada que fosse unicamente
perigos e danos. de alguém, mas tudo seria vendido e repartido entre to-
dos, de forma que ninguém tivesse nenhuma necessidade
Desse modo, quando Jesus aborda o estar nu, quase que (Atos 2:42-7).
inevitavelmente passaríamos a achar que apenas se tratas-
se da ausência de roupas, que pudesse proteger seu corpo Mas, como contextualizar isto para a realidade do Brasil?
dos efeitos temporais a que estivesse submetido. Porém, Como incidir nessa insegurança que assola o povo? Ideal
essa nudez acaba por simbolizar uma ausência que carac- seria que conseguíssemos produzir tal desapego, confiante
teriza faltas ainda mais estruturais, as quais demandavam na provisão do mestre e, desta forma, pudéssemos reunir
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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MAS, PARA ISSO, É PRECISO ROMPER COM LÓGICAS Ela precisa alcançar até mesmo aqueles que, com o vigor da
DE ACÚMULO, QUE JÁ ESTÃO TÃO DISSEMINADAS lei, precisam ficar em estado de prisão, para que seja cumprida
a justiça em favor de todo ato que viole a vida em sociedade.
E ENCRUSTADAS, ATÉ MESMO DENTRO DAS IGREJAS,
“AZEITADAS” POR NARRATIVAS DE PROSPERIDADE Com essa compreensão, já podemos olhar de forma mais
O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
QUE INDIVIDUALIZAM A PROPOSTA DO EVANGELHO, qualificada alguns significados que essa fala de Jesus implica
para os dias atuais. Pois,
gerando insegurança na nudez dos nossos irmãos e irmãs
que não estão inclusos dentro desse projeto de fé. Ou seja,
QUANDO SE PENSA EM POPULAÇÃO CARCERÁRIA,
é preciso seguir o caminho que corra em direção ao que o
Senhor nos orienta em favor de vestir o nu. A PARTIR DA REALIDADE BRASILEIRA, UM SENTIMENTO
DE ELIMINAÇÃO AUTOMATICAMENTE É GERADO, ONDE
A DESUMANIZAÇÃO DESSAS PESSOAS ACABA SENDO
Estive Preso e Fostes
UMA DAS PRINCIPAIS JUSTIFICATIVAS PARA AS MAIS
me Visitar (Mateus 25:36 c) PERVERSAS FORMAS DE TRATAMENTO GERADAS NAS
Podemos, no momento em que nos colocamos a refletir so- MENTES DOS QUE ESTÃO FORA DOS MUROS DA PRISÃO.
bre esta fala do mestre, pensar que Deus, enquanto criador
dos céus e da Terra, tenha poder para derrubar cadeias, É como se a segurança fosse credencial exclusiva dos que
arrebentar correntes, ou mesmo fazer seus servos saírem não estão sob essa condição.
desapercebidos de uma prisão, conforme pode ser visto em
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
passagens do texto sagrado em favor de seus discípulos. Contudo, uma voz ecoa fortemente a nos lembrar “[...] es-
Como exemplo disto, temos a situação de Paulo e Silas que tive preso e fostes me visitar”. Passaria, de acordo com
cantavam louvores a Deus e a cadeia estremeceu (Atos 16). a lógica de Jesus, essas pessoas a terem algum tipo de
pertencimento à sociedade? Por que Jesus não deixaria
Mas, para além destes casos, este mesmo Deus encarnado essa população passar despercebida em suas abordagens?
em Jesus, traz outro ponto de reflexão aqui. Em suas palavras, Talvez Ele queira nos mostrar que nossa compreensão in-
pode ser sentido que a segurança não é conferida apenas a quisidora fale mais de nós mesmos, do que sobre os que se
quem esteja em pleno gozo de sua liberdade – não somente. encontram encarcerados.
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Trilhando esse caminho, vale destacar que um país que DESTA FORMA, A SEGURANÇA TANTO PODE ESTAR EM
se mantém como terceiro maior do mundo em população AÇÕES PREVENTIVAS DA IGREJA, A PARTIR DE SUAS
carcerária, com cerca de 726 mil detentos e detentas até o
COMUNIDADES, OU MESMO SENDO VOZ PROFÉTICA QUE
ano de 20163, encara o estar preso/a como estatística de um
ranking nacional, ao mesmo tempo em que não distingue DENUNCIA AS ARBITRARIEDADES NAS VIOLAÇÕES AOS
O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
quem são essas pessoas e de onde elas surgem. QUE, HOJE, ESTÃO PRESOS E SÃO DESASSISTIDOS DA
SEGURANÇA COMO UM BEM INERENTE A SUA PRÓPRIA
Quando a provocação feita por Jesus nos tornou sensíveis
CONDIÇÃO DE PESSOA HUMANA.
a procurar saber até que ponto essas pessoas também
possuem a dignidade de viver em segurança? Talvez essa
pergunta nos incomode um pouco, pelo fato de já termos
nos acostumado a encarar essa realidade de outra forma.
A segurança é um bem
comum a todas e todos
A facilidade de simplesmente aniquilarmos essas pessoas
talvez não tenha gerado em nós um mínimo de empatia Nas abordagens feitas a partir das narrativas acima, pu-
que pudesse nos levar à reflexão. Porém, por entender a demos compreender a segurança como elemento comum a
segurança como um elemento presente na fala de Jesus, todas e todos, independente da condição em que a pessoa
quando afirma que esteve preso e foi visitado, há que tra- esteja submetida. Não há condicionalidades para se ter ou
zê-la também para essa realidade onde a maior parte da não segurança. Ela simplesmente está posta para todos/as.
população que vive nesta condição tem cor e classe social. A novidade está, portanto, na forma como a encaramos e a
materializamos em nosso meio, e para além dele.
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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CABE AQUI ENTÃO DIZER QUE JESUS
CONVIDA TODO (A) AQUELE (A) QUE
ENTENDEU A PROPOSTA DO EVANGELHO,
O REINO DE DEUS É JUSTIÇA, PAZ E ALEGRIA: COMO O EVANGELHO DE JESUS INSPIRA SEGURANÇA?
PARA QUE ROMPA COM AS ESTRUTURAS
QUE GERAM INSEGURANÇA, SENDO ELAS
SIMBÓLICAS OU CONCRETAS, RELIGIOSAS
OU TEMPORAIS, NÃO HAVENDO DISTINÇÃO
DE SUA NATUREZA. POIS, NÃO HÁ COMO
FALAR DA PLENITUDE DE VIDA TRAZIDA
POR JESUS SE NEGLIGENCIARMOS AÇÕES
QUE REPRODUZAM INSEGURANÇA PARA O
POVO. SE ASSIM O FOSSE, O EVANGELHO
SERIA FALACIOSO.
Portanto, que a partir de agora então o que conhecemos
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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JESUS É A VITÓRIA
DO AMOR E DO
PERDÃO SOBRE
A VIOLÊNCIA
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à subsistência, ou seja, apresentavam carência de alguns por uma maioria trabalhadora, é necessariamente violenta.
ou de todos os elementos fundamentais para a vida, tais Esta realidade de abundância material concentrada e po-
como moradia, alimentação e vestuário.2 breza compartilhada é violenta. Esta realidade em que uma
classe dona das terras e dos instrumentos de poder vive na
Como interpretar adequadamente os Evangelhos, descon- comodidade e no desperdício, enquanto outra luta para ter
siderando esse contexto social? Jesus não era uma “cabeça o suficiente com o suor do seu trabalho, é violenta. Quero
falante” fora da história, jogando ditos descontextualiza- que você reflita comigo sobre como a própria ordem política
dos. Sua mensagem só tem sentido dentro do contexto e econômica da sociedade em que Jesus viveu era violenta,
em que ele viveu, viu e sentiu o mundo. E fica evidente que porque necessariamente degradava a vida de grande parte
Jesus entendeu a sua vocação a partir da experiência dos da população.
pobres, dos oprimidos, daqueles que estavam distantes
das riquezas, dos privilégios, do poder político e do topo da As ideias e mensagens do Mestre tinham profunda relação
hierarquia religiosa. com o contexto de sua vida. Cremos que Deus assumiu a
condição humana em Jesus, em toda sua integralidade.
com dignidade e desfrutar com liberdade do tempo e das RELIGIOSAS OPERAM E DA QUAL ELAS PARTEM.
possibilidades de sua vida. A violência está na desigual-
dade, na manutenção dos privilégios, na comida jogada Repare comigo no Canto de Maria, que está registrado no
fora e nas crianças com fome. Essa realidade, em que uma Evangelho de Lucas:
minoria rica e poderosa se apropria da riqueza produzida
Então disse Maria: minha alma engrandece o Senhor e o meu
espírito se alegra em Deus, meu salvador, pois atentou para a
2 Idem. humildade de tua serva. De agora em diante, todas as gerações me
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chamarão de bem-aventurada, pois o Poderoso fez grandes coisas que ela aguardava. Nesse ponto, ela fala que Deus dispersa
em meu favor; santo é o seu nome. A sua misericórdia estende-se os soberbos no seu íntimo e derruba os poderosos. Imagine
aos que o temem, de geração em geração. Ele realizou poderosos o significado desse canto e desse texto que passou a circu-
feitos com seu braço, dispersou os que são soberbos no mais íntimo lar nas primeiras comunidades cristãs! Lembre-se de que,
do coração. Derrubou governantes dos seus tronos, mas exaltou primeiro, as histórias de Jesus foram repassadas oralmente,
os humildes. Encheu de coisas boas os famintos, mas despediu a partir da curiosidade, das perguntas, das necessidades e
de mãos vazias os ricos. Ajudou a seu servo Israel, lembrando-se das demandas das pessoas e das comunidades. Significa
da sua misericórdia para com Abraão e seus descendentes para que, esta memória do Canto de Maria, alastrou-se entre as
sempre, como dissera aos seus antepassados.3 comunidades de fé em Jesus – em sua maioria de pessoas
pobres. Ali, como visto, está registrado que Deus atua no
Segundo a narrativa deste Evangelho, Maria exulta de ale- coração humano para retirar a vaidade, a ganância, a am-
gria por ter recebido a notícia de que daria luz ao Salvador. bição egoísta, a sedução pelo poder. Pobres e oprimidos
Extasiada pela visita do anjo Gabriel, mensageiro do Se- inspirados no Canto de Maria, denunciando a ferocidade dos
nhor, ela visita Isabel, que também estava grávida, daria ricos e poderosos que tanto maltratavam as suas vidas. Para
Maria demonstra felicidade por Deus ter se lembrado dela, os famintos e despede de mãos vazias os ricos!”. É texto
de sua condição humilde. Também expressa gratidão pela popular, que nasce da condição de vida dos oprimidos, que
fidelidade de Deus com o seu povo, que vivia sob constante expressa seus sonhos e luta por vida digna. É texto que ques-
domínio e jugo opressor de outros povos. Então, ela começa tiona o poder das elites, que anuncia uma reversão histórica
a relatar os feitos de Deus que se atualizam na vida do filho com quebra de privilégios para promoção da justiça. Eviden-
cia-se que justiça nada tem a ver com vingança, mas com a
retirada dos privilégios e dos instrumentos que os opressores
3 Bíblia Sagrada, Evangelho de Lucas capitulo 1, versículos 46 e 55. possuem para explorar e expropriar os oprimidos. Justiça é
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reconciliação que se dá por meio de reparação histórica. hegemonizada pelo Império Romano. Com o estabelecimen-
Esse canto, registrado logo no início do Evangelho de Lucas, to desta nova ordem mundial, um conflito se colocava: aquilo
no contexto de festejo e celebração pela boa notícia trazida que era considerado glória, esplendor, paz, prosperidade e
pelo anjo a respeito do nascimento de Jesus, mostra-nos que modo ideal de civilização para os privilegiados pelo sistema,
a paz deriva da justiça e que o Evangelho proclama como representava justamente uma nova ordem desorientadora,
violenta toda ordem que promove desigualdade social e fragmentadora e opressora para os povos subjugados.5
massacre aos pobres.
É nesse contexto que o seguimento de Jesus surge ques-
Mas, para manter a gestão dessa ordem desigual, o Império tionando a ordem do Reino de César e anunciando a bele-
Romano utilizou-se de mecanismos explicitamente violentos za do Reino de Deus. Jesus andou principalmente com os
para aplacar revoltas e difundir medo e obediência. Nas pobres, miseráveis e oprimidos. “Bateu de frente” com as
décadas anteriores à atividade de Jesus, os romanos inva- lideranças religiosas que tinham relação profunda com o
diram a região da Judeia e da Galileia, impondo diversas Império Romano e pesavam o povo com uma alta carga de
práticas violentas e humilhantes para o povo da terra de exigências morais.
A conquista do Oriente Médio pelos Romanos carac- a autoridade dos líderes religiosos e até mesmo a legitimi-
terizou o estabelecimento de uma nova ordem mundial, dade do Imperador Romano. Justamente por essas razões,
Jesus foi preso, torturado e assassinado. Foi entregue por
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líderes religiosos que se sentiam ameaçados, condenado PARA JESUS A RELAÇÃO RICO/POBRE E OPRESSOR/
e executado pelo Império Romano, isto é, pela ordem legal OPRIMIDO ERA NECESSARIAMENTE INJUSTA E VIOLENTA.
da época. Ainda foi hostilizado por parte do povo, tomada
CONTUDO, O MESTRE DE NAZARÉ TAMBÉM CHAMOU A
por um sentimento de ódio e vingança induzido pelas elites
e pelas autoridades. Enfim, o sistema vigente faz uso da ATENÇÃO DOS SEUS DISCÍPULOS PARA QUE ELES NÃO
violência para sua manutenção. REPRODUZISSEM OS MECANISMOS E AS ATITUDES DE
VIOLÊNCIA. ELE NÃO QUERIA QUE O OPRIMIDO DEIXASSE
As histórias do Evangelho dão testemunho de como Jesus
DE SER OPRIMIDO PARA SE TORNAR OPRESSOR, QUERIA
denunciou o caráter violento daquela sociedade e como
percebeu na prática efetiva e emancipadora do amor o ca- DAR FIM A TODA RELAÇÃO DE OPRESSÃO.
minho para as relações humanas e sinalização do Reino de
Deus. Ele impediu que a mulher flagrada em adultério fosse É preciso, a partir da Bíblia e dos ensinamentos de Jesus,
apedrejada (João 8:1-11) questionando a autoridade moral agir no mundo de hoje. Atualizar o sentido da vida de Jesus é
daqueles homens. Ele se negou a reproduzir o ciclo de ódio desafio dos cristãos. Vivemos num dos países mais desiguais
(Mateus 18:21-22). Afirmou que seus discípulos seriam reco- de terra para plantar e sobreviver. Indígenas têm dificuldade
nhecidos pela prática do amor (João 13:34-35). Não desejou de verem suas terras demarcadas e sua cultura respeitada.
mal nem para os seus algozes e torturadores (Lucas 23:34). Quilombolas também tem dificuldades para manter suas
terras e heranças culturais. Milhões de trabalhadores vivem
Este é o testemunho mais profundo do Evangelho que, por na informalidade, sem nenhum direito garantido, numa luta
um lado, denuncia a violência estrutural que seleciona corpos diária pela sobrevivência. Estamos diante do genocídio da
para a morte e que reprime ostensivamente manifestações juventude negra em nosso país, com dados alarmantes que
e movimentos de resistência. apontam para um massacre sistêmico contra pobres, negros
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e moradores de favelas e periferias. Somos o país que mais
mata transexuais e travestis no mundo e a violência contra
as mulheres é algo sistêmico e cotidiano. O sistema político
protege privilégios, mantem elites no poder, retira os poucos
direitos e ameaça sistematicamente a Democracia. Ao que
tudo indica a Democracia não parece um valor inegociável
para as elites, mas o lucro sim. Ainda existem os discursos
de ódio, preconceito e intolerância, estimulando comporta-
mentos violentos, especialmente contra mulheres, negros
e LGBTs. Olhando para a vida de Jesus, buscando com hu-
mildade e sempre coletivamente interpretar o nosso tempo
histórico e a situação do nosso país, acredito que os cristãos
precisam proclamar a verdadeira paz, aquela que é fruto
da justiça, do compromisso com os pobres, do acolhimento
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AMOR E RESPEITO:
BASES PARA
PROMOÇÃO DA
DIVERSIDADE
RELIGIOSA
Nacional de Igrejas Cristãs) na entrega de uma quantia para minhas experiências e subjetividades. Eu nasci menino negro,
reconstrução de um terreiro que fora, todos sabiam, quei- cria de São Gonçalo, que assim como muitas outras tantas
mado e destruído por iniciativa de pessoas evangélicas, em crianças negras, vista sem muitas expectativas de vida.
Duque de Caxias, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro.
Cresci e sobrevivi no meio das adversidades sociais e polí-
ticas de um Brasil da década de 1960. Como toda criança
ACREDITAVA, EU, ESTAR AGINDO de periferia, aprendi desde cedo a transformar adversida-
EM NOME DO AMOR, DO RESPEITO, de em possibilidades: de brincar, de criar, de conhecer, de
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encontrar, de ser e, principalmente, de experimentar. E, ex- de que o principal mandamento e legado de Cristo é o amor:
perimentar aqui, salienta a novidade que o encontro com o “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros.
outro proporciona. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros.”
(João 13:34). Palavras de Jesus em seu discurso de despe-
PORQUE NAS COMUNIDADES PERIFÉRICAS dida aos discípulos. E, também, não podemos jamais nos
esquecer que as primeiras comunidades cristãs eram plurais
E MARGINALIZADAS, O ENCONTRO COM e, em sua essência, o que as uniam era o amor. Não era um
O OUTRO – O CONHECER O OUTRO – É amor frívolo, que se norteava por circunstâncias ou aparên-
cia! Mas, sim, um amor puro que permitia aos discípulos da
SEMPRE UMA POSSIBILIDADE DE DERRUBAR época enxergar uns nos outros sem pretensas disposições
BARREIRAS QUE, MUITAS VEZES, FORAM religiosas à frente.
dividíamos sobre o eixo “cristão” ou “não cristão”, pois nós que essa experiência não simbolizou e, não simboliza, algo
sabíamos que na hora da “batida” todo mundo ali seria de positivo ao que podemos descrever como uma “beleza de
enquadrado como favelado ou marginal. encontro”, principalmente para os milhares de mulheres e ho-
mens negros que aqui aportaram na condição de escravos.
Por essa, dentre outras tantas razões, permanecíamos uni-
dos, independente de nossas crenças. Além de ser uma Como bem explicitado na História, o tráfico negreiro, que
possibilidade de construção de laços de afeto, essa prática causou um enorme dano demográfico e cultural para as
nos mantinha vivos e coesos. Não podemos nos esquecer sociedades africanas, foi fomentado pelas ideias racistas
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e eugenistas construídas dentro do continente europeu. INÚMERAS VEZES – FUI AMPARADO, JUNTO
Elas ganharam força nos séculos XVIII e XIX dentro e fora COM MINHA FAMÍLIA, POR PESSOAS QUE NÃO
do Brasil, onde pessoas brancas – e tudo o que refletia
COMUNGAVAM DA MESMA FÉ QUE EU, MAS TINHAM
sua cultura – era posto e reconhecido como superior em
relação às pessoas negras e suas respectivas culturas. EM SEUS CORAÇÕES E AÇÕES UM ENTENDIMENTO
Esse aspecto de superioridade permeou, também, o cam- E COMPREENSÃO DE MUNDO QUE ULTRAPASSAM
po religioso. Por isso, os batismos e a catequização cristã AS NOSSAS CONSTRUÇÕES PESSOAIS E RELIGIOSAS.
de mulheres e homens negros, principalmente no período
colonial, eram entendidos como desvinculação a uma re- Valores construídos sobre a importância da alteridade que
ligiosidade e cultura inferiores. nos permite enxergar um no outro, tal como Cristo, que se
permitiu conversar e enxergar a samaritana (João 4); sem
As ideias eugenistas, que mais tarde foram transformadas levar em consideração as divergências que poderiam causar
tempo as religiões afro-brasileiras, ou de matrizes africanas, religioso. Elas são apresentadas à sociedade como falsa
eram chamadas e conhecidas dentro das sociais brasileiras ideia de liberdade de expressão e opinião.
como “religiões de negros”.
Segundo o Babalawô Ivanir dos Santos:
Algo bem diferente do que podemos identificar nas pro-
postas e ensinamentos de Cristo, ensinando-nos que as A intolerância religiosa não é um fenômeno social que acontece
diferenças são as bases constitutivas de uma comunidade. exclusivamente no Brasil. Um breve panorama histórico, sobre as
Eu vivenciei isto quando era menino, pois – tramas de construção do Estado, nos mostra que a intolerância
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religiosa foi durante a Idade Média um dos motivos da Caças às de intolerância, exclusão, falta de amor e alteridade contra
Bruxas, na Era Moderna e Contemporânea um dos motivos de o outro, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa
perseguições aos judeus, mulçumanos, cristãos ortodoxos, gru- (CCIR) e o Centro de Articulação de Populações Margina-
pos Ciganos e grupos religiosos afro-brasileiros etc. Entretanto, lizadas (CEAP) vêm promovendo a Caminhada em Defesa
decorre o fato que no Brasil há um íntimo namoro, regado pelas da Liberdade Religiosa. A caminhada, que no ano de 2018
pétalas do preconceito, entre intolerância religiosa e racismo.1 chegou a sua 11ª edição, surgiu em 2008, na cidade do Rio
de Janeiro, após os terríveis casos de intolerância religiosa
Assim, o fundamentalismo religioso – que tem bases na que aconteceram no Morro do Dendê, onde adeptos das
ideia de superioridade, aversão ao diferente, de mãos da- religiões de matrizes africanas foram sumariamente ex-
das às ideias de higienização social – vem alimentando pulsos da comunidade. De lá para cá, a Caminhada vem
os diversos casos de intolerância religiosa no Brasil. Ao ao longo desses dez anos promovendo cursos, debates,
nos debruçarmos sobre os muitos casos de intolerância, eventos e encontros que possam fomentar e proporcio-
Estes dados nos permitem observar que a sociedade opera religioso no Brasil que, desde o período colonial, vem sendo
e cresce junto ao preconceito, racismo, desrespeito e desu- alimento pelo ódio e aversão ao outro. Foi pensando no
manidade. Por isso, para fazer frente a todos os processos desejo que alimenta a muitas e muitos líderes que, no dia
16 de setembro de 2018, tive a oportunidade de reviver
todos os valores de comunidade aos quais fui apresentado
1 Santos, Carlos Alberto Ivanir. Intolerância Religiosa: Racismo
Religioso. In: Cadernos CONIB nº 4, Novembro de 2016, p. 51. ainda menino em São Gonçalo, quando escolhi participar
2 Santos, Carlos Alberto Ivanir. (Org.). Intolerância religiosa no Brasil: e ajudar a construir a 11ª Caminhada em Defesa da Li-
Relatório e Balanço. Rio de Janeiro: Kline, 2017. berdade Religiosa.
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Valores como respeito, justiça, acolhimento e amor preci- Fluminense me fez amadurecer e compreender os limites
sam ser renovados e relembrados todos dias. Eles estão no que, muitas vezes, há no “amor” pregado por muitos cristãos
centro do entendimento sobre o que é ser cristão, o que é e cristãs. Também aprendi que há muita gente sofrendo e
ser seguidor dos princípios que Cristo nos deixou; não repre- sendo hostilizada porque escolheu apenas amar, acolher e
sentam um movimento de ódio, desrespeito e intolerância. indignar-se com a injustiça, com os limites que não podem
E, é por isso, que hoje, mais do que nunca, quero todos os ser ultrapassados. O respeito que eu quero para a minha
dias semear o diálogo inter-religioso a fim de derrubar todas igreja precisa ser o mesmo que eu desejo para o terreiro do
as barreiras que foram construídas e que nos impedem de meu vizinho. Posso desejar que ele abrace minha fé – e até
olhar o outro para além de suas escolhas religiosas, pois me dedicar a isso, talvez – contudo, enquanto a escolha
acredito que somos irmãos e irmãs; comungamos a mesma dele for outra religião, não posso negar-lhe o respeito e o
comunidade diversa e plural, tal como Cristo idealizou e nos amor. Não posso lhe negar a dignidade. Ainda há muito por
deixou para que pudéssemos moldá-la, passo a passo, como caminhar, mas é preciso, e eu aprendi que estou disposto.
Considerações finais
Essa brevíssima reflexão não tem em si, ainda, nenhuma
pretensão acadêmica. Ela é fruto das minhas experiências
JESUS E os DIREITOS HUMANOS
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A IGREJA BATISTA
EM COQUEIRAL
E OS DIREITOS
HUMANOS
Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e EM FUNÇÃO DA DEFESA DOS OPRIMIDOS,
injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois
das, de forma que tais homens são indesculpáveis. (Grifo nosso) OBRA, ELE COLOCOU O TEMA DOS DIREITOS
HUMANOS EM PRIMEIRO PLANO.
Veja que o texto começa afirmando que a ira de Deus se ma-
nifesta contra toda forma de injustiça e termina dizendo que Já na identificação de sua tarefa, posiciona-se como defen-
A partir dessa concepção de justiça, no decorrer da história cordiosos, os puros de coração, os perseguidos por causa
humana, vem sendo travada uma luta para se reconhecer da justiça e os que são injuriados por causa do seu nome”
o direito à vida. Desde o conteúdo expresso no Cilindro de (Mateus 5:1-12). Jesus faz dura crítica à maneira como a
Ciro, 539 antes de Cristo, até a Declaração dos Direitos Lei estava sendo aplicada e, a partir do mote “ouviste o que
do Homem e do Cidadão, 1789, culminando com a Carta foi dito, eu porém vos digo”, faz toda uma reinterpretação
Internacional dos Direitos do Homem, que é a consolidação da Lei submetendo-a à pessoa, sintetizando este ensi-
de documentos importantes que asseguram os Direitos Hu- no com a expressão “o sábado foi feito por causa do ho-
manos, promulgados pela Organização das Nações Unidas. mem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2:27).
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O Mestre vai ao extremo do ensino, ao afirmar que a de- misericórdia e não mais sacrifícios!” (Oseias 6:6). Nos dias
fesa e a garantia dos direitos fundamentais da vida serão de Isaías, Deus chama o povo para uma troca: os eventos
o critério de aceitação ou eliminação no acesso ao Reino religiosos sofisticados que eram apresentados a Ele pelo
de Deus (Mateus 25:31-47). fim da injustiça e da opressão e a luta pelos direitos dos
menos favorecidos (Isaías 1:16-18). O profeta atacou os
Não somente em Jesus, mas, em toda a Bíblia, o tema dos poderosos legisladores que não levavam em conta o direito
Direitos Humanos ocupa a centralidade. Desde a escolha dos pequenos: “ai daqueles que fazem leis injustas, que
de Israel em Abrão, Deus tem em vista o bem para todos escrevem decretos opressores, para privar os pobres dos
os povos (Gênesis 12:1-3) e, tão logo esse povo cresceu e seus direitos e da justiça os oprimidos do meu povo, fazendo
teve os seus direitos violados, o Senhor interviu: “Disse o das viúvas sua presa e roubando dos órfãos!” (Isaías 10:1-
Senhor: ‘De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo 2). Poderíamos citar muitos outros profetas e centenas de
no Egito, e também tenho escutado o seu clamor, por causa outras profecias acerca desse tema.
dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. Por isso
desci para livrá-lo das mãos dos egípcios’.” (Êxodo 3:7-8a).
AS PRIMEIRAS IGREJAS LEVARAM
Não há nada mais explícito num Deus que se importa com
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Os Direitos Humanos na mais vulnerabilidade da Região Metropolitana do Recife.
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Percebendo que o Reino de Deus é uma construção a muitas Como dito, cada nova conquista alçada abre novos hori-
mãos, e que o Senhor é o construtor do Reino, a igreja passou zontes. O último horizonte aberto está alinhado com uma
a buscar novos aliados na luta pela garantia dos Direitos célebre frase do bispo católico D. Hélder Câmara, que re-
Humanos e, como ferramenta estratégica para mobilizar re- fletia: “Se dou pão ao pobre me chamam de santo, mas,
cursos diversos, criou o Instituto Solidare1, uma organização se pergunto por que o pobre não tem pão, me chamam de
não governamental laica que tem a missão de promover o comunista”. Interpelada por essa verdade, a igreja passou
desenvolvimento social, político e pedagógico de crianças a se ver como um instrumento sofisticado de “dar pão ao
e adolescentes, a partir de suas famílias, sem distinção de pobre”, mas que não sabia nada a respeito das razões
sexo, etnia e credo. A partir dessa estratégia, tanto novas pelas quais o pobre não tem pão. Foi nesse momento que
parcerias quanto novos saberes, experiências e desafios a IBC passou a desenvolver um programa com projetos
foram surgindo no espectro missionário da igreja. vinculados à área da defesa e da garantia dos direitos
(advocacy). Dentre tantas ações desta área, destacam-se
Cada experiência vivida abre novos horizontes para enxer- as escolas de fé e política, que têm como finalidade qualifi-
garmos outros campos de violações dos Direitos Humanos. car lideranças cristãs para, a partir da sua fé em Jesus de
Um campo importante é a falta de emprego e renda que, Nazaré, incidirem no mundo politicamente organizado. Há
projetos que qualificam pessoas para o mundo formal e Recife e Jaboatão dos Guararapes.
informal do trabalho e da geração de renda.
Hoje, a igreja opera 17 projetos – divididos em três grandes
programas – que atendem diretamente a mais de 2.000
pessoas e, indiretamente, a mais de 10.000, tanto na região
1 Veja todos os projetos da igreja no site www.institutosolidare.org.br metropolitana do Recife, quanto no Agreste pernambucano,
2 GERAR é um acróstico que significa Geração de Emprego, Renda, nos sertões de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte,
Autoestima e Resiliência. bem como outras regiões metropolitanas da região Nordeste.
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Além dessas ações diretas, a igreja se articula em rede com Serva e Radicalmente Simples”. É o que apelidamos inter-
diversas outras entidades da sociedade civil organizada, namente como espiritualidade S3H2R.
entidades governamentais e empresariais. Faz isso por en-
tender que o Reino de Deus é construído a muitas mãos. Percebendo que Jesus criticou a santidade do sacerdote e
do levita que, por causa de um falso entendimento de que o
templo é o lugar de serviço a Deus, deixaram de acudir o ne-
cessitado, a Igreja Batista em Coqueiral buscou desenvolver
Os Direitos Humanos uma santidade profundamente embrenhada nos porões da
Os Direitos Humanos não podem se configurar numa opção Da mesma maneira que aqueles operadores da religião
para igreja, mas, na essência de sua espiritualidade. Não judaica deixaram de servir a Deus quando não serviram o
dá para ser seguidor do Jesus Nazareno sem se preocupar caído à beira da estrada,
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Todas as vidas
importam?
Protestantismos
e direitos
humanos
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análise minuciosa das teorias clássicas sobre o tema, Joas Aqui reside uma contradição. Se o carisma inspirador de
menciona o trabalho de Georg Jellinek, que diz o seguinte: todas as disputas e produções políticas sobre os Direitos
Humanos foi a noção teológica da “dignidade da pessoa”,
A ideia de fixar em lei os direitos inalienáveis, inatos, santificados proveniente da sua condição de criatura feita à “imagem e
do indivíduo não tem origem política, mas religiosa. O que até aqui semelhança de Deus”, por que parte dos evangélicos estão
foi tido como obra da Revolução, é na verdade fruto da Reforma e aderindo a um discurso anti Direitos Humanos? Evangélicos
de suas lutas. Seu primeiro apóstolo não é Lafayette, mas aquele concordam que “bandido bom é bandido morto”? Evangé-
Roger Williams, que, movido por um entusiasmo intenso, profun- licos aprovam um plano radicalmente neoliberal e, por isso,
damente religioso, emigra para um lugar ermo visando fundar um frontalmente contrário aos Direitos Humanos?
reino da liberdade de fé, cujo nome os norte-americanos ainda
hoje mencionam com profunda reverência1. Claro, não podemos cometer o equívoco de achar que o
universo evangélico é único, homogêneo. Evangélicos não
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de Direitos Humanos2”, para o teólogo e pesquisador Jung Para Jung, o nexo de causalidade dessas exclusões está inti-
Mo Sung, nem todas as pessoas são reconhecidas como mamente ligado às dinâmicas e tecnologias das sociedades
“imagem e semelhança”. Para Jung, o reconhecimento da neoliberais. Neste sentido, “o projeto fundamental de nossa
“dignidade humana” está atrelado ao acúmulo de bens, sociedade, que é determinante na formação do horizonte
de compreensão, é acumular capital; em outras palavras,
Esse é o horizonte de compreensão da nossa sociedade capita- ganhar dinheiro.”4. Sendo assim, “se o projeto fundamental
lista. Um horizonte que a tradição bíblica chama de idolátrica. É é ganhar dinheiro, as coisas têm valor e adquirem sentido
idolátrica porque diz que a dignidade humana não vem do fato de à medida que servem para ganhar dinheiro.”5 Não basta
todas as pessoas serem filhos ou filhas de Deus, mas de possuírem considerar o neoliberalismo apenas como uma ideologia
um produto humano, o dinheiro. A fonte da dignidade humana da qual derivariam automaticamente políticas econômicas.
não é Deus, mas um ídolo: o dinheiro elevado à condição de fim É preciso pensar, como propõe a tese defendida por Pierre
último, absoluto, Mamom3. Dardot e Christian Laval no livro A nova razão do mundo:
Nessa lógica, a morte do pobre é autorizada e encontra dos “sujeitos de direitos” e autorização dos “sujeitos ma-
legitimidade, inclusive, em alguns discursos teológicos. táveis”. Existem os não humanos, aqueles que segundo
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Judith Butler, não são considerados “passíveis de luto”7; [...] seja um dizimista fiel, seja um ofertante com carinho e na
neste grupo, estão os negros, as mulheres, os índios e as necessidade: sacrifique e a prosperidade de Deus virá sobre a sua
diversas formas de sexualidade que não se “enquadram” vida. Não importa o que foi que o Diabo levou, eu sei que o meu
no binômio homem-mulher. Deus tem em dobro para te dar. Você tem que parar de aceitar
essa situação que o Inimigo soprou no seu ouvido dizendo que filho
Não somente as coisas adquirem valor à medida que se tornam um de crente tem que ser só um engraxate ou um vendedor de picolé.
meio de ganhar dinheiro, mas as pessoas também são valorizadas, Não que isso desmereça, todo trabalho dignifica o homem quando
ou não, de acordo com o dinheiro que possuem. As pessoas de ele é feito com respeito. Mas o seu filho pode ser um médico, um
muitas posses, os ricos, são consideradas ‘as pessoas de bem’; empresário. Você que está assistindo, trace suas metas e acredite
as que não têm ou não conseguem ganhar dinheiro, os pobres, que o seu Deus é dono do ouro e da prata [...]9
são consideradas ‘pessoas sem valor.8
A partir dessa lógica, o pobre é tido como alguém sem valor,
7 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível 9 FELICIANO, Marco. Prosperidade. Disponível em
de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª ed, 2017, p13. <https://www.youtube.com/watch?v=0AiwafSyNk8&t=213s>
8 SUNG, Jung Mo. 2008, Loc. Cit. acesso em 15 de junho de 2018
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Deus cujo nome é Amor COMO VIMOS AO LONGO DO LIVRO,
As hermenêuticas de suspeita levantadas ao longo deste
HÁ PESSOAS, IGREJAS E INICIATIVAS QUE,
texto nos ajudam a desconstruir os consensos hegemôni- AO ENCONTRAREM O PRÍNCIPE DA PAZ
cos que de uma maneira muito sofisticada justificaram e
naturalizavam a destruição e a miséria dos colonizados, NA FACE AMOROSA DO OUTRO, RESOLVERAM
subjugados e oprimidos nas periferias do mundo. Negros, EMPENHAR SUA VIDA EM FUNÇÃO DO
mulheres, LGBTs, índios e nordestinos tiveram (foram vio-
lentados-obrigados) que conviver com piadas preconceituo- AMOR. UM AMOR QUE NÃO VIOLENTA, NÃO
sas e estigmatizantes. Todas, “naturalmente aceitáveis” e, CONTROLA, NÃO EXPLORA. AMA E PONTO.
inclusive, veiculadas aos próprios ajuntamentos religiosos.
Os mesmos defensores dos Direitos Humanos serão aqueles Não resta duvidas, nós – a Igreja Brasileira – precisamos
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Este livro se tornou possível pelo apoio, ajuda e participação
inestimável de Flávio Conrado, Clemir Fernandes, Karen
Ianino, Carlos Bezerra, Eduardo Foresti, Helena Hennemann
e dos autores Caio Marçal, pastora Andreia Fernandes, pas-
tora Kátia Ezoite, pastor Jairo dos Santos, André Guimarães,
Géssica Dias, pastor Henrique Vieira, pastor Kléber Lucas e
pastor José Marcos a todas elas e a todos eles agradecemos
de todo o coração.
A proposta é fomentar a valorização e defesa da vida dig- Para encorajar e nutrir uma ampla cultura de direitos huma-
na, do diálogo e das diferenças. Para isso, definimos cinco nos no país, é urgente superar a escassez de escuta entre
valores que pautam todas as ações do projeto: Dignidade grupos com possibilidade de entendimento mútuo. Um bom
Humana, Coexistir na Diferença, Escuta Ativa, Engajamento ponto de partida é unir, em uma publicação, assuntos que
Político e Bem-viver. interessam ativistas e religiosos, que une a bíblia à fé em
uma sociedade boa para todas e todos.
O que move o Usina de Valores é a certeza de que o en-
contro e o reconhecimento dos diferentes tipos de coleti- Nesse momento de profunda tensão, não há mais tempo
vidades é essencial para nos contrapormos ao momento para individualismos. É preciso somar aliadas e aliados para
de enorme tensão, desumanização e falta de amor ao avançarmos. Para isso, precisamos reciclar e disseminar
próximo que vivemos, e também às violências que marcam nossos valores.
a história do Brasil.
Neste livro, os objetivos e a paixão que movem o Usina de
De forma prática, atuando em vários estados de diferentes Valores se encontram com os valores cristãos para promo-
regiões do país, o projeto promove ações formativas no ver uma comunhão ampla em nome dos direitos humanos.
online, com lives, site e ativação de redes, e no off-line, com
cursos, oficinas e eventos. O foco prioritário é atingir evan-
gélicos, comunicadores das periferias e movimentos sociais
– atores e parceiros estratégicos capazes de amplificar e
compartilhar saberes com uma pluralidade de pessoas.
Dezembro de 2018.
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