A Pintura Do Autorretrato Contemporâneo em Portugal: Breve Panorâmica

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A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO

EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA


CONTEMPORARY SELF-PORTRAIT PAINTING IN PORTUGAL:
A BRIEF OVERVIEW

Maria Emília Vaz Pacheco*


mevazpacheco@hotmail.com

Associado a histórias de fascínio, envolvendo conceitos como mitologia, lenda,


simbologia, narcisismo, afirmação, reivindicações múltiplas, semelhança, realismo,
naturalismo, introspeção… o autorretrato é repositório de uma imensa complexi-
dade, suscetível de formulações inesgotáveis, na ótica da semântica e da polissemia.
Na época medieval, a imagem que de si deixou o pintor remete para o esbatimento
da identidade individual, dada a sua inserção em contextos de representações
sagradas, ou a sua apresentação como personagem histórica ou mitológica.
A autonomia intelectual foi reconhecida durante o Renascimento, sensível à repre-
sentação do indivíduo e à valorização do retrato, com base na fidelidade ao motivo
e na singularidade do indivíduo. O autorretrato conquistou a sua independência.
Com o Romantismo afirma-se o autorretrato introspetivo, a caminho da negação
da autoimagem fundamentada na semelhança/parecença, que vai acompanhar as
tendências do não figurativismo, as quais aparecem e se desenvolvem no século
XX.
O autorretrato continua a mediar a busca identitária.

Palavras-chave: autorretrato; auto-observação; complexidade; autoconsciência;


metáfora; signo.

Self-portrait is associated with fascinating stories and involves concepts such as


mythology, legend, symbology, narcissism, affirmation, multiple claims, resem-
blance, realism, naturalism and self-examination. Self-portrait is a repository of
great complexity and is in the origin of copious definition.

* ISLA, Santarém, Portugal.


94 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

Contrary to previous sacred representations, historical images and mythological


characters, in Middle Ages the painter’s individual identity was less represented in
self-portraits. Individual valuation and appreciation of portraits raised the intel-
lectual autonomy characteristic of Renaissance. Self-portrait gained independence
then. During Romanticism, painters prefered to abandon figurative process in pic-
torial representation. Introspective self-portrait aroused and continued to grow
until the twentieth century. Currently, the self-portrait is still looking for identity.

Keywods: self-portrait; self-examination;complexity; metaphor;sign

I. Nas origens do autorretrato: lenda, mito e história

Donner aux mots la vie mystérieuse de l’art


Guy de Maupassant (1850-1893)[1]

Uma das formas primordiais do conhecimento intuitivo remonta às narra-


tivas mitológicas correspondentes aos alvores das histórias de organização
dos povos primitivos. A conceção do mundo trespassa nas descrições dos
fenómenos da natureza personificados e animados, fixadas em conformi-
dade com a imaginação desses povos da Antiguidade.
A transmissão oral de lendas[2] e mitos[3] suscitou a sua modificação e
enriquecimento no decorrer dos séculos, incorporando um património
intelectual e civilizacional específico.
Deuses, heróis e seus descendentes, enquanto corpus da herança mito-
lógica grega que integrou a cultura ocidental, são intérpretes desse sentido
anímico e antropomórfico que caracteriza o mythos dessa civilização. Por
oposição caracterizou Platão a logos, a argumentação que com base na razão
leva à reflexão filosófica.

1 Maupassant, La vie d’un paysagiste, cit. in Le Magazine Littéraire de Octobre 2011, nº. 512, p.
86
2 Narração ou tradição popular cuja temática mobiliza seres imaginários ou acontecimentos,
sendo estes dados como históricos – quer factos reais mas deformados, embelezados e por
vezes misturados com o maravilhoso. Conforme Dictionnaire Hachette de la langue française,
Hachette, Paris, 1989, p. 884.
3 Narrativa lendária transmitida pela tradição que, com recurso à exploração de seres lendários
– heróis, divindades, etc. – fornece uma tentativa de explicação dos fenómenos naturais e huma-
nos. Conforme Dictionnaire Hachette de la langue française, Hachette, Paris, 1989, p. 1036.
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A fábula de Dibutades[4] à qual tradicional-


mente é atribuída a origem mítica do retrato,
não deixa de se aproximar do mito de Platão
sobre a alegoria da caverna, sendo este último
genericamente aceite como a narrativa pio-
neira que sustenta a teoria do conhecimento
no ocidente[5].
A projeção, enquanto motivo presente
nas duas situações mitológicas, correlaciona
a representação artística e a representação
cognitiva: embora se trate de duas narrativas
diferentes, verifica-se um certo paralelismo de
estratégias equacionando a questão da visibili-
dade e da representação, destacando-se que no
mito de Platão visualidade e cognição apresen-
tam implicação recíproca.
Stoichita interpreta o mito de Platão como
Fig. 1 – Joseph -Benoît Suvée – a construção de um cenário que toca os limites
Dibutade ou l'Origine du Dessin
1799
entre os mundos da aparência e da realidade,
vendo nas sombras platónicas o antecedente
da imagem do espelho e no eco o resultado dos sons do fundo da prisão –
“Platão introduz um elemento auditivo que devolveu os sons (…) que vem
reforçar a ilusão primitiva que é de ordem visual. (…).
A sombra e o eco aparecem em Platão como as primeiras falsas aparên-
cias (uma ótica, outra auditiva) do real. Assim, a sombra precede, mesmo
nos mundos dos logros óticos, o reflexo do espelho.
Trata-se, nesse estádio do pensamento platónico, de uma intenção
clara de colocar a sombra nas origens da duplicação epifenomenal, antes

4 Conforme passagem da História Natural de Plínio-o-Velho, XXXV, 43, reproduzida por Victor
I. Stoichita in Brève Histoire de l’Ombre, Droz, Genève, 2000, p. 11 e 17, e cita-se: “A primeira
obra neste género foi feita em argila por Dibutades de Sicyone, oleiro em Coríntia, por ocasião
de uma ideia de sua ¿lha apaixonada por um jovem homem que ia deixar a cidade: esta reteve
através de linhas os contornos do per¿l do seu amante na parede à luz de uma vela. O seu pai
aplicou em seguida argila sobre o desenho, ao qual deu relevo e fez endurecer ao fogo essa
argila com peças de olaria. Esse primeiro tipo de plástica foi, diz-se, conservado em Coríntia,
no templo das Ninfas…” (tradução da responsabilidade da autora do presente texto).
Vide também Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do
Autorretrato, in Atas do II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Patri-
mónio e Teoria do Restauro, IHA da FLUL, 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).
5 Platão, República, 514-519. Vide, designadamente, Victor I. Stoichita, ob. cit,, p. 7 (tradução
da responsabilidade da autora).
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da imagem do espelho (…) para Platão, sombras e reflexos especulares são


aparências estritamente ligadas, só sendo diferenciadas pelo seu «grau de
claridade ou de obscuridade»[6].
Outra ideia relacionada com o mito de Platão implicada na abordagem
do autorretrato é a mimesis, em paralelo com o estrato social do pintor, o
lugar da arte na cidade ideal e a associação da imagem pintada à imagem
especular:

(…) se tu quiseres agarrar um espelho e expô-lo de todos os lados, em menos


de nada executarás o sol e os astros do céu, em menos de nada, a terra, em
menos de nada tu próprio e os outros animais e os móveis e as plantas e todos
os objetos de que se falava ainda agora.[7].

Explicitamente, Platão estabelece comparação entre imagem pintada e ima-


gem especular, suscitando reflexão sobre a fragilidade do mimetismo – “A
imagem pintada é, a exemplo do reflexo especular, pura aparência (phai-
nomenon), desprovida de realidade (aletheia). (…) Deste modo assiste-se,
parece-nos, à inscrição e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistema
das representações epifenomenais” – e a implicação recíproca entre o reflexo
especular e o estatuto da pintura no plano da mimética – “Se, na tradição de
Plínio, a imagem «capta» o modelo reduplicando-o (tal a função mágica da
sombra), em Platão, ela restitui a sua semelhança (tal é a função mimética
do espelho) ao representá-lo.“[8].
Dos estudos efetuados por Lacan e por
Piaget a chamada fase ou «estádio do
espelho» (Lacan), correspondente ao
período que vai entre os seis meses –
quando a criança reconhece a própria
imagem no espelho – e até cerca dos
dezoito meses, quando distingue a
projeção da sombra, sendo consensual
nos nossos dias a possibilidade de
Fig.2 – Cigoli-Narcisse. Museu do Louvre interpretação do mito de Narciso[9] e da

6 Stoichita, ob. cit., pp. 22 a 24 (tradução da responsabilidade da autora).


7 X Livro, República, passagem citada a partir de reprodução de Victor I. Stoichita, in ob. cit.,
pp. 24 e 27 (tradução da responsabilidade da autora).
8 Victor I. Stoichita, ob. cit., pp. 24 e 27 (tradução da responsabilidade da autora).
9 A versão mais conhecida é a de Ovídio, nas Metamorfoses, que refere que “NARCISO era
um jovem muito belo, que desprezava o amor. A sua lenda é transmitida de modos diferentes,
consoante os autores. A versão mais conhecida é a de Ovídio, nas Metamorfoses. Nela, Nar-
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sua paixão pelo seu próprio reflexo na água, no enquadramento da teoria de


Lacan, para quem o «estádio do espelho» “(…) pertence principalmente à
identificação do eu, enquanto que a sombra, ela, diz respeito sobretudo à
identificação do outro. Sabendo isso, compreende-se por que razão Narciso
se apaixonou pela sua imagem especular e não pela da sua sombra. E igual-
mente se compreende porque, em Plínio, a projeção amorosa da jovem
rapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante). Encontramo-
-nos sem dúvida perante dois cenários, diferentes pelas suas essência, ori-
gem e história. De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que é
possível por vezes colocar em relação) da conexão à imagem e à representa-
ção. (…)
Os artistas que, nos séculos seguintes, ilustraram o mito de Narciso
sublinharam preferencialmente o caráter efémero do reflexo especular (…)
mas evitaram a representação da «sombra», que em Ovídio não era senão
uma metáfora. (…)
A primeira parte da história de Narciso era estática, a segunda é dinâ-
mica. (…) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegado
pelo tocar, não se produz. Nesse esforço de transgressão descrito por Oví-
dio (Metamorfoses), verdadeiro bailado a dois, Narciso ainda acredita que
a imagem é um outro. A pretensão vã destinada a transformar a vista em
abraço chega ao drama, ao momento culminante em que o herói realiza,
finalmente, o «estádio do espelho». A imagem (imago) já não o engana, ela
já não é uma «sombra», ela já não é o outro, mas ele mesmo: «Isto sou eu»/
Iste ego sum.”[10].
O mito de Narciso assenta na autocentralização da imagem refletida,
suscetível de interpretações turbulentas, introduzindo a mobilização de
conceitos como falácia; ilusão; simulacro; engano, conceitos por sua vez
presentes no registo do autorretrato. Da transversalidade de leituras dos

ciso é o ¿lho do deus do Ce¿so e da ninfa Liríope. Quando nasceu, os seus pais consultaram
o adivinho Tirésias, que lhes disse que a criança «viveria até ser velho, se não olhasse para si
mesmo». Chegado à idade adulta, Narciso foi objeto da paixão de grande número de raparigas
e de ninfas. Mas ele ¿cava insensível. Finalmente, a ninfa Eco apaixonou-se por ele; mas não
conseguiu mais do que as outras. Desesperada, Eco retirou-se na sua solidão, emagreceu e de
si mesma em breve não restou mais que uma voz gemente. As jovens desprezadas por Narciso
pediram vingança aos céus. Némesis ouviu-as e fez com que, num dia de grande calor, depois de
uma caçada, Narciso se debruçasse sobre uma fonte, para se dessedentar. Nela viu o seu rosto,
tão belo, e imediatamente ¿cou apaixonado. A partir de então, torna-se insensível a tudo o que o
rodeia, debruça-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer. No Estige, procura ainda distinguir os
traços amados. No lugar onde morreu, brotou uma Àor à qual foi dado o seu nome, o narciso.”
– Pierre Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Difel, Lisboa, 1992, p. 322.
10 Victor I. Stoichita, ob. cit., pp. 30 a 34 (tradução da responsabilidade da autora).
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dois mitos, de Dibutades e de Narciso,


decorre a inscrição da origem do traço
(desenho), da pintura (sombra/mancha)
e da própria imagem (imago) na História
da Arte.
No fresco sobre “A Origem da Pin-
tura” (1569-1573) que Vasari (1511-
-1574) incorporou na sua “Casa Vasari”
em Florença, pode-se observar o recurso
a sombra plena e definida.
Momentos distintos – Dibutades e
Narciso – visões afinal muito próximas,
retomados nos séculos seguintes como
metáfora da pintura, sempre nas adja-
cências do próprio autorretrato.
“A batalha de Issos”, pintura mural
do final do século IV a.C.[11], comemo-
rando a vitória de Alexandre o Grande
sobre Dario (rei da Pérsia), para além da
Fig.3 – Vasari-Narciso1569-1573
rigorosa caracterização física e psicoló-
gica de cada uma das personagens – incluindo os dois protagonistas – ilus-
tra a reflexão de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem
reúne fortes probabilidades de
ser um autorretrato de Apelles,
retratista oficial preferido de
Alexandre.[12]
Sendo “A batalha de Issos”
uma obra-prima que celebra
os feitos e a grandeza da cul-
tura helenística, não será difícil
aceitar a tese do autorretrato
do principal pintor oficial –
Fig.4 – Batalha de Issos-auto-retrato de Apelles-Final
séc. IV a.C.
de cujo registo dão notícia as

11 Chegou até nós uma cópia, em mosaico, dessa pintura mural do ¿nal do séc. IV a.C., prove-
niente da Casa do Fauno, em Pompeia, hoje no Museu Nacional de Nápoles, com a L de 5,82m
e Alt de 3,13m.
12 Vide Geoffroy Caillet, A la cour des arts Àorissants, in “Le Figaro hors-série” 3657, Octobre
2011, pp. 79 a 85. Conforme refere Caillet, a identi¿cação do autorretrato de Apelles coloca em
questão a atribuição tradicional do mosaico grego a Philoxénos de Eritreia.
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fontes clássicas – ter funcionado como aditivo que, em jeito de assinatura,


sublinharia a importância da obra. Resta conjeturar sobre os principais e
verdadeiros motivos artísticos da autorrepresentação: autoglorificação?
Virtuosismo?

II. Autorretrato e autonomia intelectual do pintor


«OGNI DIPINTORE DIPINGE SE»[13]

Segundo alguns historiadores de arte, terá sido Martin van Heemskerck


(1498-1574) quem terá ouvido a expressão que se converteria em adágio
“todo o pintor se pinta a si mesmo”.[14].
Cabeça e mão, intelectualidade e técnica, são as duas faces da mesma
“moeda”, metáfora do autorretrato e, por extensão, da criação visual.
No diálogo central que se estabelece entre os dois agentes que são o
pintor e o modelo, há uma particularidade no caso do autorretrato: modelo
e executante são um só indivíduo, há uma unidade na dualidade do diálogo
– expressão/não expressão; consciente/inconsciente – que ocorre (supos-
tamente de modo honesto) entre si e si próprio, permeabilizado pelo sen-
tido de si. Três pontos referenciais, pois: o “eu”/sujeito, o “me”/reflexivo e o
trabalho criativo ou, por outras palavras, um dos fatores determinantes na
autorrepresentação visual será o modo como o autor concebe e constrói as
relações estabelecidas entre as três referências.
Se o desenho implica um diálogo entre o artista e a obra, enquanto que
a pintura é o resultado de uma reflexão mais aprofundada, até que ponto se
pode interpretar a autoimagem como ressonância da subjetividade do artista
criador? Quais os limites para a dinâmica da estratégia interpretativa? “«A
Pintura é uma ocupação mental» (pittura é cosa mentale), escreveu Leonardo
da Vinci, , e Miguel Ângelo permaneceu igualmente firme «nós pintamos
com o nosso cérebro, não com as nossas mãos» (si dispinge col ciervello et non
com le mani) (…) Vasari sustentou que só uma «mão treinada» podia mediar
a ideia nascida no intelecto, ou, como Miguel Ângelo colocou num famoso
soneto, «a mão que obedece ao intelecto» (la man che ubbidisce all’intelletto)
– por outras palavras, a «mão instruída» (docta manus) que Nicola Pisano

13 A¿rmação tradicionalmente atribuída a Cosme de Médicis (séc. XV), é citada por Francisco
Calvo Serraller, Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Español Contemporaneo, in
El Autorretrato en España - De Picasso a nuestros días, Fundación Cultural MAPFRE VIDA,
Madrid, 1994, p. 13.
14 Cfr. Victor I. Stoichita, ob. cit., p. 91. (tradução da responsabilidade da autora).
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tinha reivindicado possuir três séculos antes. (…) «Habbiamo da parlare con
le mani», Annibale Carracci é suposto ter dito cerca de 1590 (…)”[15].
A autorretratística autónoma desenvolve-se no século XVI parale-
lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para as
cortes principescas altamente competitivas na promoção de uma cultura
cortesã personalizada e digna. Nessa medida, as autoimagens dos pintores
– e outros artistas – podem ser interpretadas como celebrações próprias
das suas vidas pessoais, estratégia para ampliar o reconhecimento social da
posição conseguida por mérito artístico.
Da Antiguidade Clássica, prolongando-se
durante a medievalidade, chegaram até nós
obras em que a imagem do autor pode ser
interpretada como um substituto da assina-
tura daquele, prevalecendo a associação da
imagem à sua autoria, sobre a exigência de
rigor no traçado das reais linhas do rosto,
deste modo se descurando a questão teórica
da semelhança.
Rufillos (c. 1150-1200), monge do mos-
teiro de Weissenau e iluminador célebre,
Fig. 5 – Rufillus de Weissnau, Enlu- autorrepresentou-se pintando-se no inte-
minure Vitae Sanctorum. c. 1150- rior do R do “Saltério de Genebra” (Fig. 5),
1200
sentado a pintar e ilustrando a cena com os
instrumentos do ofício e recipientes de cores
necessárias à prática pictural. Todavia, apesar
do retrato em si mesmo exibir traços realis-
tas e algum esmero na execução, não se trata
ainda de uma identidade individual, espe-
cífica de um indivíduo – que é diferente do
caráter genérico, sendo este afeto ao género e
não ao indivíduo – e como tal não integra a
classificação de um verdadeiro autorretrato.
A identidade indica uma referência comum e
transversal na representação, ou seja, a rela-
Fig.6 – Peter Parler. Autorretrato. C.
ção de pertença do indivíduo a um determi-
1370-1379. Praga. Catedral S. Vito nado corpo social ou congregação.

15 Joanna Woods-Marsden, Renaissance Self-Portraiture, Yale University Press, New Haven &
London, 1998, p. 4.
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Sendo certo que existe algum consenso relativamente à emergência


do autorretrato independente no século XV, na Itália e na Flandres, e
mesmo considerando que aquela que é hoje a mais antiga e mais impor-
tante coleção de autorretratos do mundo – com cerca de 1650 exemplares
– terá sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617-
-1675)[16], há que reconhecer que, já no final da Idade Média, a afirmação
de uma identidade de partilha e de pertença a um grupo com interesses
sócio-corporativos em comum se verificara – o escultor da região alemã
de Souabe (antiga Checoslováquia) Peter Parler (1330-1399) colocou o
seu próprio busto no trifório da Catedral de Praga (c. 1370-1379), entre
os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados à construção do edi-
fício. (Fig. 6)
Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estratégia semelhante à
de Peter Parler, ao esculpir o seu busto, em bronze, na “Porta do Paraíso”
(1447-1448) do Batistério de Florença, colocando a sua assinatura/imagem
à margem das cenas historiadas, no rebordo da porta, através da estratégia
de inscrição do busto num medalhão, retomando a tradição da estatuária
antiga – que reservava este cariz de representação aos deuses e, depois, aos
imperadores romanos – em associação com a necessidade de afirmação da
sua dignidade profissional.
Nestas circunstâncias, interessará à abordagem do autorretrato inde-
pendente a identidade que referencia as qualidades características indi-
viduais, ou seja, o conjunto de indicadores de caráter particular que
remetem para a semelhança com o próprio indivíduo, assim propiciando
a identificação do modelo com o sujeito, ao qual está subjacente um ato de
intenção no registo da autoimagem, consentidamente oferecida à visua-
lidade.
Na autorretratística renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma
produção em que “Os autorretratos autónomos eram muitos deles traba-
lhos acabados, dirigidos a uma audiência que ultrapassava o círculo ime-
diato da família ou dos companheiros de ofício”[17].
Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centro
da composição de “O Cortejo dos Magos” (1459), Florença, Capela Palácio

16 “(…) que começou um esforço sistemático de adquirir e expor retratos dos artistas que criaram
as pinturas que os Medici, com a sua paixão por colecionarem, tinham acumulado nas residên-
cias dos seus familiares.” – Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf¿zi Collection,
GIUNTI, Firenzi Musei, 2011 (1ª. edição 2008), p. 5. (Tradução da responsabilidade da autora
do presente estudo).
17 J.Woods-Marsden, ob. cit., p. 2. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).
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Médici, dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome


no gorro vermelho que exibe na cabeça. Se for considerada a hipótese de
ter sido dada continuidade à herança da Antiguidade, a imagem do pintor
colocada no seio da sua própria obra poderá ser entendida como um subs-
tituto da sua assinatura.
O pintor dissimulou a própria imagem entre as múltiplas personagens,
na dupla condição de participante/figurante e de espectador da cena que
integra: trata-se de um autorretrato dissimulado, “in assistenza”.
A estratégia idêntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510), em “Ado-
ração dos Magos” (1475), Galeria Uffizi, Florença, integrando a composição
como um figurante da assistência, dissimulado em evento que mobilizava
um número considerável de participantes. O esquema da personagem, cor-
respondente ao autorretrato, dirigindo o olhar para o observador, a par do
porte majestático da figura de corpo inteiro, exibindo uma toga de tona-
lidade amarelada, indiciam a consciência da dignidade da representação
veiculada pelo pintor.
Albrecht Dürer (1471-1528) apresenta ao espectador, num dos muitos
autorretratos que registou, um enfoque nas duas vertentes que contribuí-
ram para o reconhecimento e emancipação do estatuto social do pintor e da
própria autorretratística: uma visão intelectual a par da destreza e da habi-
lidade manual. No “Autorretrato com pele” (1500), Alta Pinacoteca, Muni-
que, Dürer entrega-se a um exercício de perícia no escrutínio do rosto,
concentrando-se no olhar – dirigido para o observador – intenso, tradutor
de uma profundidade espiritual inequívoca.
Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na “Escola de Atenas” (1510-
-1511) Palácio do Vaticano, Roma,no papel de “admonitore”/narrador/
comentador (que adverte) para a cena apresentada: o olhar apela, convida
a seguir a condução proposta, dissuade pela sua intensidade a ameaça de
qualquer outra via interpretativa. Trata-se de um exercício de guia para a
leitura do quadro, surgindo o pintor/artista como testemunho irrefutável.
O espectador é interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor do
espaço pictural onde a história se processa, convidando-o a entrar nela e a
aderir ao enunciado.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 103

III. Vivências através do autorretrato:


à descoberta de si ou a mão como fala
Espelho e intimismo, autorretrato, metá-
fora e complexidade: como tal estratégia
de leitura se aplica ao autorretrato de Fran-
cesco Mazzola dito o Parmegianino (1503-
-1540), de 1524, intitulado “Autorretrato
num Espelho Convexo”!... (Fig. 7)
Subtileza técnica e efeitos bizarros
contribuem para a qualidade deste autor-
retrato, onde cada detalhe refletido, luzes e
sombras, acentuam a naturalidade da cena
(de evidente originalidade na época) indi-
Fig. 7 – Francesco Mazzola, dito O Par-
mesiano. Autorretrato. 1524. Viena ciadora de um intelecto complexo e extra-
ordinariamente criativo. Refere Joanna
Woods-Marsden a propósito desta obra: “No centro do compartimento
e da obra de arte, o autorretratista está vestido como um nobre cortesão,
em pele e cambraia, e a sua mão, transformada em qualquer coisa diluída,
branca e aristocrática, está adornada com um anel de ouro.”[18].
Seguindo o princípio de que os dois principais centros de interesse
em qualquer retrato são a sua cabeça e as mãos, não pode a interpretação
circunscrever-se à linearidade: a cabeça, qual metáfora do intelecto gerador
da conceção, e a mão que executa, que concretiza a ideia do pintor que de si
mesmo é modelo, sublinham o exercício de virtuosismo apresentado.
Sendo este considerado o primeiro autorretrato autónomo italiano pin-
tado no interior de um tondo, as conotações são ainda potenciadoras de
outros diálogos e interpretações. A lembrança da tradição dos autorretratos
contidos em medalhas, pela circularidade; as formas curvas e esféricas e o
círculo, tidos como geometricamente de grande perfeição, remetendo para
a formatação e representação das esferas terrestre e celestial – “Na verdade,
a cabeça esférica de Parmigianino dentro do trabalho «esférico», virando-
-se no interior da sua estrutura circular, evoca uma analogia entre macro-
cosmo e microcosmo: a estrutura do cosmos e a da cabeça humana, aqui
colocada como foco central da composição e do artefacto.”[19].
Denotando uma profunda autoconsciência relativamente ao estatuto
artístico e social do pintor, neste autorretrato a mão é assumida como atri-
18 Ob. cit., p. 133. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).
19 Idem, ibidem, p. 137. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).
104 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

buto do empenho da criação visual (aqui entendida como associação do


intelectual com o pleno domínio da técnica pictural), a qual se celebra de
modo fascinante nesta obra.
Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratos
cujo destino generalizado eram patronos interessados, a quem eram envia-
dos como ofertas, dada a barreira de género que a impedia de entrar em
competição de caráter profissional com pintores do sexo masculino, pagos
para executarem trabalhos acertados.
Este “Autorretrato ao Cavalete Pintando
um Painel Devocional” (1556) (Fig. 8)
pode contextualizar-se numa perspetiva
de autopromoção, em que a artista no
ato de pintar é, simultaneamente, assunto
e objeto, autora e modelo, segurando
com delicadeza os instrumentos da Pin-
tura, pincel, tento e paleta sobre a prate-
leira do cavalete. Curiosamente, é no
decurso da segunda metade deste mesmo
século XVI que os pintores reivindicam
o seu estatuto profissional com recurso
às ferramentas do seu ofício.
Clara Peeters (1594-1657) autorre-
Fig. 8 – Sofonisba Nguissola. Autorretrato tratou-se, col. privada, cerca de 1610
em vias de pintar uma Virgem com Meni-
no. 1556. sob o título sugestivo de “Vanitas”, ou
a morte como argumento no autorre-
trato. A figuração da natureza-morta segundo o princípio de oposição entre
o sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante, e o seu contrá-
rio, o sentimento do efémero e transitório. Nesse conjunto de elementos da
natureza, que progressivamente se vai degradando, se incluem a juventude
e a beleza feminina e, como tal, tais motivos incorporam também o tema
da “Vanitas”.
O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado “Auto-
Retrato como Alegoria da Pintura” (1638-1639) , Royal Collection, Lon-
dresd, filia-se na reivindicação do estatuto intelectual da artista, enquanto
pintora ou, por outras palavras, a personificação feminina da Pintura e
a identificação direta da artista com a arte a que alude. Este autorretrato
representa um ato de coragem da parte de uma mulher pintora, na medida
em que todo o esquema apresentado representa uma subversão dos valo-
res artísticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 105

para um plano de passividade o trabalho artístico feminino), reunidos na


dupla dimensão intelectual e manual: o arco descrito pela cabeça e pelas
mãos articula metaforicamente ambos os domínios subjacentes à execução
do trabalho artístico, paralelamente com a figura enérgica e vigorosa que
domina a composição, cuja construção enfatiza a afirmação da criatividade
da pintora. O acrónimo A.G.F. colocado sob a paleta sublinha a tenacidade
desafiadora e a firmeza da sua atitude num meio artístico adverso.
Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos pro-
duziu, cobrindo a sua carreira artística de mais de quarenta anos. Esta obra
sob a designação de “Autorretrato como Apóstolo Paulo”, de 1661, Amester-
dão, representa a delegação do próprio rosto do artista na personagem do
Apóstolo Paulo, podendo suscitar a interrogação sobre a eventual identifi-
cação do pintor com uma das figuras mais marcantes do primeiro cristia-
nismo. É, porém, pelo poder da expressão, surpreendente, pela sinceridade
eloquente do semblante e pela técnica que este autorretrato se distingue,
sendo notórias as carnações e os efeitos da luz e da sombra sobre fundo
neutro. O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretação de
que Rembrandt não pretendeu personificar a sua época, antes privilegiando
uma grande complexidade afetiva, espiritual e humanística e evidenciando
características de profundo intimismo e de forte penetração psicológica.
Sendo certo que esta última noção era desconhecida no século XVII, não
será de estranhar a primazia concedida à semelhança/parecença, para a
qual concorria obviamente a execução manual extremamente cuidada.
No belíssimo “Autorretrato” a ¾ que se encontra na Fundação Calouste
Gulbenkian (c. 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto através de uma ima-
gem pública, como personagem romântica e simultaneamente protagonista
da modernidade do tempo em que vivia. É uma obra emblemática, con-
cebida ainda na tradição da Renascença, mas em que o modelo exibe ves-
tes contemporâneas, assumindo postura de “dandy”, segurando o chapéu
escuro de seda e as luvas de camurça, em atitude de saudação ao espectador,
a quem a sua expressão facial se dirige, enfatizada pela técnica de domínio
do espaço pictural através do próprio corpo.
Sendo a abordagem polissémica da imagem inevitável, a teatralidade
subjacente à pose do modelo não deixará de suscitar a metáfora da possibi-
lidade de associação da representação autoconstruída a um espaço cénico
onde se desenrola o diálogo entre o protagonista e o destinatário / especta-
dor da ação apresentada.
No ano imediatamente anterior à sua morte, o mesmo ano em que
entra no sanatório de Saint-Paul-de-Mausole, Saint-Rémy-de-Provence,
106 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

1889, Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-
tos Musée d’Orsay, Paris, cerca de quarenta em menos de cinco anos e mais
de vinte nos últimos dois anos de vida.
Um olhar verdadeiro, intensamente emocional e fixo, em que se adi-
vinha uma firme determinação, e um profundo autoconhecimento, são
características evidenciadas pelo pintor, que confessa ao irmão Théo: “Eu
queria fazer retratos que um século depois surgissem às pessoas de então
como aparições. Portanto, eu não procuro fazê-lo pela semelhança fotográ-
fica mas pelas nossas expressões apaixonadas, empregando como meio de
expressão e de exaltação o caráter da nossa ciência e o gosto moderno da
cor. O meu próprio retrato é também quase assim, o azul é um azul fino do
Midi e o fato é em lilás claro.”[20].
Os olhos que refletem a transparência do sentimento do “eu” convertem-
-se no espelho de projeção do olhar do observador, espécie de simbiose que,
no ato de comoção, reconhece a comunhão na dualidade, reencontrando a
fórmula “je est un autre”…
O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo de
autorrepresentação acaba, afinal, por remeter para as inesgotáveis polémi-
cas que a produção artística de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo:
“Génio e Loucura - Ninguém sabe exatamente de que enfermidade sofria
Van Gogh… No século XIX, associava-se com frequência a loucura ao
génio criativo, e não era raro crer que a intensa sensibilidade de um artista
e o aspeto irracional da criação artística podiam derivar para alterações
mentais. Seguidamente, a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram-
-se desta maneira e deram lugar a muitas especulações sobre a loucura.”[21].
De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881-
-1973), a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V, Praga e outro
de 1972,Col. Privada Tóquio. Entre um e outro poderá situar-se a trajetória
da sua vida artística: 1907 é o ano de acabamento da pintura emblemática
“Les Demoiselles d’Avignon”, que marca o nascimento oficial do artista, o
primeiro dos dois autorretratos surge, pois, quando começou a afirmar a
sua personalidade pictural e artística; o autorretrato de 1972 terá o sido
o último autorretrato de Picasso e uma das últimas obras que executou,
20 Transcrito por Henri Soldani, in AA.VV., L’autoportrait dans l’histoire de l’art - De Rem-
brandt à Warhol, Beaux Arts Éditions/TTM Éditions, 2009, p. 141. (Tradução da responsabili-
dade da autora do presente estudo).
21 Cornelia Homburg, in Los Tesoros de Vincent Van Gogh, tradução em língua espanhola publi-
cada em Barcelona em 2008 por Editors, S.A., Iberlivro - a partir da edição inglesa de Carlton
Publishing Group do mesmo ano - p. 47. (Tradução da responsabilidade da autora do presente
estudo).
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 107

falecendo no ano seguinte. “In extremis”, que longo caminho percorrido


pelo autorretrato, entre o rosto-máscara (de influência africana) e o rosto-
-crânio, pré-figurando a morte e o medo do desconhecido!... E se em 1907,
quando Picasso tinha 26 anos de idade, se pode ainda colocar a questão da
semelhança e as influências do cubismo, em 1972 a autonomia da obra em
si sobrepõe-se a qualquer referência a uma realidade exterior, designada-
mente em termos de semelhança.
A geometrização das formas simplificadas do rosto de 1907, susten-
tando o olhar penetrante e enérgico, residente na dilatação das pupilas do
modelo, não deixa de pôr em causa a noção de semelhança e, portanto, a
prática da autorrepresentação.
No autorretrato de Picasso, pintado a 3 de junho de 1972, os olhos
começam a sair das órbitas, sentimentos de angústia, impotência e pavor
antecipam a visão da própria morte, a qual haveria de acontecer no ano
seguinte, fechando o ciclo de experiências artísticas protagonizadas pelo
pintor. Inequívoca a sua capacidade de comover o observador, testemunho
extraordinariamente humano e intimista, de quem sabe que já não se trata
apenas de apontar o próprio olhar ao espelho. O seu rosto macilento, de
lembrança marmórea e olhar petrificado, não ilude: criador e observador
unem-se, numa atitude universal e ancestral, de quem sabe que nada mais
resta senão a aceitação da miserável condição humana, com as suas fragili-
dades e limites, incontornáveis.

IV. Para a compreensão do autorretrato em Portugal:


breve contextualização da sua produção
O primeiro autorretrato (como tal identificado) de que há notícia em Por-
tugal está esculpido numa mísula – de um ângulo que, na Casa do Capítulo
do Mosteiro de Stª. Mª. da Vitória, na Batalha, serve de suporte ao arran-
que das nervuras da abóbada – representando Mestre Huguet (?-1438), que
dirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438.
A escultura, construída no século XV, filia-se na tradição de afirma-
ção de uma identidade de pertença a um grupo profissional, à semelhança
da autorrepresentação de Peter Parler, no trifório da Catedral de Praga (c.
1370-1379). Os elementos que identificam o arquiteto responsável pelas
obras da Batalha (projeto de arquitetura de alçada régia) estão bem visíveis
108 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

na figuração: a figura está de cócoras, em adaptação à superfície, usa túnica


cintada e chapéu de turbante traçado pelo pano pendente, conforme vestu-
ário do século XV, exibindo nas mãos a régua do seu ofício.
A apontada proveniência estrangeira (levantina? inglesa? irlandesa?) de
Huguet remete para a influência exterior e para a permeabilização do inter-
câmbio cultural com uma linguagem artística próxima do dinamismo de
outros centros artísticos europeus, sobretudo se for tido em conta o papel
da rainha D. Filipa de Lencastre na afirmação da dignidade da Dinastia de
Avis, bem como a importância da edificação do Mosteiro na reivindicação
da legitimidade do poder régio.
No autorretrato de Huguet está patente que na visibilidade que de si
quis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstração de auto-
consciência relativamente à sua identidade artístico-profissional. O sentido
da identidade construída situa-se nas adjacências da afirmação individual
do artista e da sua ligação a uma obra emblemática referenciada à indepen-
dência de um reino.
Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se, Biblioteca Nacional
de Madrid, na última imagem de “De aetatibus mundi imagines” (fº. 89 R),
usada como cólofon. A autorrepresentação mostra o artista rodeado pelas três
virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade, em gesto de oferta do “Livro das
Imagens das Idades do Mundo” à fera que representa a Malícia do Tempo.
Imagem emblemática cuja compreensão passa naturalmente pela mobi-
lização não só da contextualização da representação, temática, atributos e
significação da cena, como pela caracterização cultural e artística do pró-
prio autorretratado.
Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e, porque Deus
é a primeira causa de todas as formas de existência, é também a única fonte
de inspiração artística. “A criação é pintura, na idêntica medida em que
pintura é criação de mundos (…) A pintura nasce também sob o signo da
marca individual.”[22].
No espaço de representação do autorretrato as virtudes da Fé, no Cris-
tianismo, representado no atributo da cruz, a Caridade com a mensagem
da generosidade e a Esperança no triunfo dos valores do Antigo, protegem
da fúria da destruição evidenciada pela fera Malícia do Tempo a obra do
artista, que entre mãos a segura, implorando a proteção do castigo divino
contra a ameaça iminente e insensível dos vícios, simbolizados no animal,

22 Adriana Veríssimo Serrão, Ideias Estéticas e doutrinas da arte nos sécs. XVI e XVII, in Histó-
ria do Pensamento Filosó¿co Português, Direção de Pedro Calafate, vol II – Renascimento e
Contra-Reforma – Caminho, 2001, p. 157.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 109

contra o engenho e a criação do artista, que no cenário tradutor da men-


sagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorre-
trato. Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagem
ligada à obra produzida, na dupla qualidade de humanista e de artista.
O autorretrato que se segue, Museu Grão-Vasco, Viseu, insere-se no
retábulo subordinado ao tema “Cristo em Casa de Marta e Maria” (c. 1535-
-1540), hoje no Museu de Grão Vasco, mas proveniente da capela de Stª.
Marta do Paço Episcopal de Fontelo, encomendado c. de 1530 por Dom
Miguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integram
a arquitetura), bispo de Viseu – reconhecido humanista que foi embaixador
de Portugal em Roma entre 1515 e 1525, no tempo de Leão X, Adriano VI
e Clemente VII, de quem era amigo próximo – e cujo retrato nesta obra foi
identificado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a persona-
lidade sentada à mesa com Cristo.
Dalila Rodrigues nomeia a dupla Grão Vasco (c. 1475-1541-1542) e Gas-
par Vaz (séc. XV/XVI) como responsáveis pela execução do retábulo.[23].
A temática da obra, indicada no próprio título, remete para o texto evan-
gélico de S. Lucas.[24]. A ação, centralizada em Cristo, passa-se em cenário
ostensivamente doméstico, entre arquiteturas clássicas e janelas em trompe
l’oeil, abrindo significativamente a ação para o exterior do espaço pictural.
A linguagem dos gestos supre a das palavras: Marta, voltada para Cristo,
estende a mão em direção a Maria, por sua vez em atitude contemplativa.
Emblematicamente disfarçada, no ambiente religioso e simbólico, a
figura do pintor que nela se autorretrata – sendo suposto tratar-se de Gas-
par Vaz – quis deixar o seu registo/assinatura nessa obra eclética, e de enco-
menda notável, saída da oficina de Viseu, sob orientação artística de Grão
Vasco. Identificado pelo barrete do ofício de pintor, o rosto emergente e o
olhar dirigido para a parte central da cena, a mão bem visível sobre uma das
colunas, insinua-se sem se introduzir na ação, qual figura de convite que
conduz e orienta o olhar do observador, direcionando-o para a figura de
Cristo, cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristã da necessidade
da primazia da palavra de Deus sobre as preocupações terrenas. É o admo-
nitore, lembrando a condição humana.
23 Vide Dalila Rodrigues, Grão Vasco, Aletheia Editores, Lisboa, 2007, p. 31.
24 Quando caminhava, Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu-o na
sua casa. Tinha uma irmã, Maria, a qual se sentou aos pés de Cristo enquanto escutava a Sua
palavra. Atarefada com o trabalho, Marta perguntou a Jesus se não O preocupava a irmã não a
ajudar, ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas, mas que poucas
são necessárias, ou melhor, uma só e que Maria tinha escolhido a melhor parte, que não lhe
seria arrebatada.
110 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

Fernão Gomes (1548-1612) utiliza recurso idêntico, em 1590, ao pintar


o seu autorretrato na “Ascensão de Cristo”, Museu de Arte Sacra do Fun-
chal, dirigindo o olhar para o exterior do espaço de representação, em dire-
ção ao olhar do observador. A mão direita sublinha a intencionalidade de
focalização na manifestação divina, enquanto que a sua fisionomia atrai a
atenção pela singularidade e individualização dos traços, distintos da idea-
lização das outras personagens.
Giraldo de Prado, ou Giraldo Fernandes do Prado (1535?-1592), “Em
1590 (…) ao tempo pintor de óleo e de fresco, calígrafo e cavaleiro-fidalgo
de D. Teodósio II, Duque de Bragança, pintou os painéis do retábulo da
igreja da Misericórdia de Almada, por encomenda de ilustres almadenses,
o então provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinho.”[25].
No painel central do extenso retábulo, alusivo à temática bíblica de invoca-
ção mariana, pinta o seu autorretrato, auto-figurandosse como observador
que, embora dentro do espaço pictural, se posiciona exteriormente à cena
principal representada no centro do quadro.
A colocação estratégica do autorretratado, a dimensão psicológica
individualizada da sua expressão, remetem para uma postura de afirmação,
equivalendo a presença do autor à sua assinatura na obra. O discurso do
pintor, sensível à graciosidade das duas personagens femininas – Virgem
e Sta. Isabel – e ao enquadramento destas num espaço de representação
definido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compõem o cenário,
sublinha a teatralidade da construção do espaço de representação que, com
a sua presença, assina.
Pedro Nunes (1586-1637), mestre eborense de formação italiana –
esteve em Roma entre 1609 e 1614 – pertenceu à última geração de pintores
maneiristas, cuja atividade se verifica ainda durante o primeiro terço do
século XVII, quando já emergiam propostas estilísticas mais inovadoras e
consentâneas com o proto-barroco, que se expressava em abordagens natu-
ralistas.
Refere Vitor Serrão: “Estamos perante um artista plenamente integrado
– dir-se-ia que algo anacronicamente, dada a época avançada em que labora
– nos programas do maneirismo italianizante, no sentido «intelectual» da
distorção dos espaços, fidelidade à idea romanista de ambiguidade e capa-
cidade de vibrante colorista.”[26].

25 Vide Alexandre M. Flores e Paula A. Freitas Costa, “Misericórdia de Almada - Das Origens à
Restauração”, Sta. Cada da Misericórdia de Almada, 2006, p. 83.
26 Vitor Serrão, “O Maneirismo”, in História da Arte em Portugal, Vol. VII, Alfa, 1986, p. 86.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 111

Na espetacularidade cenográfica da “Descida da Cruz” Capela do Espo-


rão, Sé Catedral de Évora, marcada sobretudo pelos efeitos de desequilíbrio
na relação dos planos e das figuras, pelo cromatismo e pelo característico
modelado, sobressai uma cabeça coberta com barrete vermelho de faixa
branca, onde se impõe um olhar expressivo, direcionado para o especta-
dor, enquanto que o indicador da mão direita aponta o destinatário do per-
curso de leitura: a figura de Cristo, símbolo da esperança na vida eterna;
em contraste com essa visão, foi colocado em primeiro plano um conjunto
de elementos que remetem para a lembrança da morte física – a caveira e
os ossos, em cruz.
O autorretrato de Pedro Nunes, como “admonitore”, assim assinando
aquela que é tida como a sua obra-prima, protagonizando postura exte-
rior ao cenário religioso e ao tempo da narrativa – qual “eu fiz esta obra”
– dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retarda-
tário conforme o normativo tridentino: “Esta notável composição roma-
nista, derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondi,
mas com interpretação livre, arrojada e assaz original, marca o clímax da
nossa pintura da Contra-Maniera; integra, além disso, o autorretrato do
artista em postura de admonitore e testemunho de liberalidade.”[27].
O autorretrato de António de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-se
no óleo sobre a “Chegada de Sta. Inês de Assis ao Convento” (1696-1697),
Conv. De Sta. Clara, Évora. Tema incidente sobre a iconografia clarissa,
desenvolvido num quadro de história, narra os acontecimentos que rodea-
ram a história da irmã de Sta. Clara e apresenta uma cena de grande dina-
mismo cenográfico, na qual o artista se pintou como figura secundária,
disfarçado “in assistenza”. Todavia, a sua figura, de fisionomia extraordina-
riamente individualizada, destaca-se na cena e interpela o observador, para
quem o olhar do pintor dirige o diálogo – testemunhando com tal postura
uma notória autoconsciência relativamente à nobreza do seu ofício e à afir-
mação do novo estatuto social e profissional dos pintores de arte.
Félix Machado da Silva Castro e Vasconcelos, Marquês de Montebello
(1595-1662), produziu pelo meado de seiscentos (c. 1643) um autorretrato
que pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretrato
independente. (Fig. 9)
A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nosso
país no século XIX encontra na autoimagem do Marquês de Montebello
uma evidente antecipação que, curiosamente, parte de alguém que viveu
27 Vitor Serrão, in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camões, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1995, p. 494.
112 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

parte substancial da vida pessoal no exterior.


Tendo sido detentor de diversas comendas e
solares no território nacional, por via de
herança materna, escolheu o partido e o ser-
viço de Filipe III de Portugal, IV de Espanha,
de quem foi embaixador em Roma. Viveu tam-
bém em Madrid e em Milão e dedicou-se ao
ensino da pintura, sobretudo de retrato, em
consequência de ter visto bens confiscados no
seu país, por se ter posicionado do lado de
Espanha.
Importa sublinhar a questão da novidade
Fig. 9 – Marques de Montebello (c. de 1643) entre nós do autorretrato reivin-
c. 1643-Auto-Retrato dicativo, de afirmação profissional, quando
a coleção de autorretratos da Galeria Uffizi,
constituída pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675), continuada pelo
sobrinho Cosme III, Grão Duque da Toscana (1642-1723) anda oficial-
mente associada à data de 1681.
A iconografia escolhida pelo Marquês, de Montebello, que se autorre-
presenta como pintor independente, rodeado dos filhos, é extremamente
original, sem paralelo na pintura portuguesa do tempo. Pintado a ¾, semi-
voltado para o espectador, de pé e ao cavalete, mostrando os instrumentos
do seu ofício – pincéis e paleta – os dois filhos como modelos, as inscri-
ções identificando o filho Francisco, a filha Bernarda e ele próprio – “Felix
Machado Marques de Montebello” – todos os elementos apresentados subli-
nham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid, na espe-
cialidade da pintura de retrato. As insígnias de fidalgo que exibe no peito
acentuam a pose aristocrática. Foi feito conde de Amares depois de 1640.
Trata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemático.

V. A pintura do autorretrato contemporâneo em Portugal:


evolução e reflexão
Em contexto de retrato coletivo de colegas de profissão – é o primeiro
retrato de grupo produzido pela pintura portuguesa, enquanto testemunho
de cumplicidade de um ideário[28] – João Christino da Silva (1829-1877)

28 A segunda representação pictural unindo outra geração de pintores, a geração naturalista, have-
ria de ser executada por Columbano, em 1885, que nela se autorretrata. O quadro foi destinado
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 113

inseriu a sua figura no quadro “Cinco Artistas em Sintra” M.N.A.C., pin-


tado em plena natureza em 1855, colocando-se em posição lateral face ao
grupo central, como figura secundária[29]. Um outro pequeno grupo for-
mado por camponeses curiosos com a técnica artística pontua a dimensão
do grupo central de figurantes.
Para além de autorretrato reivindicativo de um estatuto sócio-
-profisssional a que a ainda recente criação da Academia de Belas-artes
(1836) vinha sublinhar a importância, este é também um autorretrato em
disfarce, em que o pintor afirma a pertença a um grupo de artistas estética
e ideologicamente representado e geracionalmente cúmplice. Nesse sen-
tido, o autorretrato apresentado representa também um símbolo da estética
romântica.
De Henrique Pousão (1859-1884), um
autorretrato executado em 1878, (Fig. 10)
aos 19 anos de idade, portanto obra da
juventude (embora tenha desaparecido
prematuramente, com apenas 25 anos),
do ano anterior à finalização do curso na
Academia Portuense de Belas-Artes e
também anterior à sua partida para Paris,
o que viria a suceder em novembro de
1880, onde iniciou estudos nos “ateliers”
de Cabanel e de Yvon, tendo-se seguido
Roma, em novembro de 1881.
A expressividade natural e a since-
ridade do olhar aliam-se no registo da
auto-observação, sendo percetíveis senti-
Fig. 10 – Henrique Pousão. Autorretrato mentos de subjetividade e de afirmação
pessoal, característicos de uma atitude
romântica.
à decoração da cervejaria Leão de Ouro, sendo o único retrato da geração naturalista que fre-
quentava aquele espaço, o qual, por sua vez, serviu de cenário à representação.
29 Refere José-Augusto França, Perspetiva artística da história do século XIX português, 1979,
pp. 22-23, a propósito da composição desta obra: “Lá estão todos os artistas românticos menos
um; é Anunciação quem toma o centro da composição, no ato de pintar, e por detrás está
Metrass, olhando, envolto numa capa (…) Ao fundo, enérgico e pequenino, Vítor Bastos, que
fará o monumento a Camões; sentado no chão, modestamente, José Rodrigues, que será o
modesto retratista da época e o pintor dos pobres; olhando, meio curvado e algo ansioso, o
autor do quadro, Cristino, o contestatário da sua geração. Quem falta é Meneses, visconde
recente (…) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado, como noutro quadro se
veri¿ca.”
114 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

A escolha de Pousão é um sinal inequívoco de individualismo, da “per-


sona” que olha o observador, é um exercício de puro virtuosismo; não há na
autorrepresentação indicadores que remetam para reivindicação de esta-
tuto ou de profissão, tratando-se da construção de um território especial, a
sua identidade, usado como recurso técnico, assim dando razão ao princí-
pio de que “todos os pintores se pintam”.
O paisagista Silva Porto (1850-1893)
executou raríssimos retratos de si
mesmo. Identificado[30] como um
autorretrato seu, de c. de 1879 (Fig.
11), de meio-corpo, a figura impõe-
-se desde logo pela profundidade
traduzida na expressão facial.
A observação devolvida ao espec-
tador exprime um caráter intimista
e de grande sensibilidade, privile-
giando serenidade, timidez, reflexão e
seriedade. 1879 foi o ano de regresso
do pintor do pensionato que ganhou
e lhe facultou a realização de estudos
Fig. 11 – Silva Porto. Autorretrato. C. 1879. em Paris e em Roma. Sob a orienta-
MNAC. ção de Cabanel, Yvon e Daubigny, foi
admitido nos “salons” de 1876, 1878
e 1879 e, neste último ano, terá conhecido a futura esposa, Adelaide Tava-
[31]

res Pereira, que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequência.


No busto perfilado, com a cabeça ligeiramente voltada, a nota porven-
tura mais evidente é a ausência de coincidência entre os olhares do autor e
do espectador, qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou
está contida na projeção do seu olhar concentrado num ponto indefinido,
localizado no espaço de inserção do espectador, cuja presença sugestiva-
mente se indica através da direção do olhar autoral.

30 Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, Silva Porto e o Naturalismo em Portugal, C.M.Santarém,
IPPAR, C.M. Porto, Santarém, 1993, pp. 88 e 89.
31 Visitou ainda a Inglaterra, a Bélgica, Holanda e Espanha e esteve em Capri, a cuja luz e regio-
nalismo foi extraordinariamente sensível. Após o regresso, em 1879, e por morte de Tomás da
Anunciação, ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa.
Foi considerado o maior pintor paisagista português de todos os tempos.
32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 – Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, ob. cit., pp. 89
e 136.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 115

Trata-se de uma obra construída na tradição do autorretrato como


exercício de auto-observação, na tradição do Romantismo e que irá encon-
trar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo.
Existem várias autorrepresentações de Columbano Bordalo Pinheiro
(1857-1929), a maioria das quais apresentadas em associação com a prática
da pintura. Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela em
que se autorrepresentou aos 28 anos, em 1885, executada em homenagem
à geração naturalista, “O Grupo do Leão”, M.N.A.C., tela destinada a figu-
rar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33]. Columbano
ocupa, de pé junto ao irmão, posição lateral relativamente à centralidade da
obra – estrategicamente definida pelo mestre do naturalismo, Silva Porto
– o caricaturista por excelência da sociedade portuguesa, Rafael Bordalo
Pinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demais
retratados), cuja obra define uma apreciação de rara exatidão relativamente
aos Portugueses. Significativamente – Columbano representa a vertente
erudita do entendimento do seu País – o autorretratado, com o seu aspeto
intelectual, acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas, coloca-se
como se estivesse de saída da cena e dos ideais do paisagismo defendidos
pelo grupo de artistas, cujos princípios estéticos epigonalmente haveriam
de continuar no tempo, nas próximas gerações. Columbano era retratista,
pintor de interiores, e a sua autorrepresentação sublinha esse distancia-
mento. É evidente a consciência do ato e do espaço da autorrepresentação,
o artista está ciente do papel central que o rosto desempenha na definição
da identidade da “persona”.
No mesmo ano de 1885, quando pintou o “Retrato de D. José Pessanha”,
M.N.A.C., – erudito e crítico de arte que escrevera um artigo sobre o artista
– Columbano inscreveu na representação a sua autoimagem num espelho,
conceptualizado como “trompe l’oeil” da composição, assim evidenciando
um notável exercício de modernidade pictural, no tempo artístico nacional
e no contexto da produção da autorretratística no País. Emblematicamente,
a encenação que integra a autoprojeção sobre um dos instrumentos da pro-
fissão do pintor, converte-se num espaço de ensaio da metáfora sustentada
entre a pintura e a crítica. A autorrepresentação ganha uma dimensão mais
aprofundada, em termos de explicitação do registo da autoanálise e da
auto-observação, sublinhando a ausência de constrangimento face à apre-

33 Tela hoje no Museu do Chiado, sendo a seguinte a identi¿cação dos retratados: José Malhoa,
Moura Girão, Rodrigues Vieira, Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho,
Rafael Bordalo Pinheiro, Cipriano Martins, Alberto de Oliveira, Ribeiro Cristino, Manuel, o
Criado e o autor da tela, Columbano. Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, ob. cit., pp. 96/97.
116 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

ciação do objeto/matéria que é a pintura relativamente ao crítico de arte,


em conformidade, afinal, com a intransigência que o caracterizou na sua
liberdade artística.
De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Con-
deixa (1857-1913). Os estudos realizados em Paris (onde permaneceu
entre dezembro de 1880 e abril de 1886, tendo sido discípulo de Alexan-
dre Cabanel) refletem-se no academismo que informa a sua paleta. A obra,
M.N.A.C., estrutura-se num jogo de sombra/luz, em tonalidades enegre-
cidas conforme o convencionalismo esquemático dos valores próprios do
Romantismo. A visão do autorretrato devolve ao espectador uma represen-
tação de meio-corpo, frontal, qual reflexão “eu olho-te a observares-me,
depois de me ter olhado no espelho a pintar-me”. Através da coincidência
de olhares, do pintor e do espectador, comunica-se o exercício da auto-
-observação, seguindo os modelos clássicos da autorretratística generica-
mente vigorante em França na primeira metade do século XIX, os quais
continuavam a informar culturalmente a formação dos nossos pensionistas
e bolseiros[34]. O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorre-
ferência de grande sinceridade na captação da individuação, com ênfase na
perseguição consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade
e honestidade.
Entre os autorretratos pintados por Aurélia de Sousa (1866-1922),
assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900, M.N.S.R.,
portanto na viragem do século, pela modernidade, unanimemente reconhe-
cida pela crítica nacional e internacional[35]. Representa uma visão emble-
mática da mulher artista, na sociedade portuguesa do seu tempo. Ainda
que as palavras que se seguem não tenham sido dirigidas especificamente
a Aurélia, como são elucidativas, designadamente na possibilidade do seu
ajuste ao autorretrato em questão: “Eu tenho uma face, mas uma face não
é o que eu sou. Por detrás existe uma mente, a qual tu não vês mas que te
observa. Esta face que tu vês mas eu não, é um ‘medium’ que eu possuo para
expressar alguma coisa do que eu sou.”[36].
Sobre esta obra disse José-Augusto França: “Fácil seria descrever esta
cabeça severa, de cabelos arruivados, cortada pelo decote subido de uma
34 O desenvolvimento da produção artística de Condeixa processou-se entre as duas primeiras
gerações naturalistas portuguesas, e embora a sua carreira como pintor de História tenha sido
considerada por alguma crítica como secundária, foi também retratista de mérito.
35 Este autorretrato ganha uma nova projeção desde a sua inclusão na obra 500 Self-Portraits,
Phaidon Press Limited, London, 2007, p. 354 (1ª. edição 2000)
36 Julian Bell, 500 Self-Portraits, ob. cit., p. 5. Tradução da responsabilidade da autora do pre-
sente texto.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 117

blusa azul (…) um grande alfinete de âmbar a fechar geometricamente este


elemento da composição, na vertical da risca do penteado, do nariz, no
meio da boca cerrada (…) o vermelho e o azul do que traz vestido (…)
Somam-se estes elementos do retrato – mas fica de fora aquele que sobre-
tudo o faz: este olhar azul-claro que fixa inteiramente a composição. Não
se diz os olhos, semicerrados por atenção, fitando o espelho invisível – mas
o olhar, ou seja, o que neles é imaterial. (…) Que mais profunda solidão
numa quinta antiga sobre o Douro, de exílio da pintora? Não há, com cer-
teza, outro autorretrato assim na pintura portuguesa (…)”[37].
O tempo de Aurélia foi também o de Sigmund Freud, de Klimt, Van
Gogh e Schielle. Esteve em Paris, entre 1898 e 1902, onde estudou com
Jean-Paul Laurens e Benjamin Constant, tendo viajado e pintado na Bre-
tanha e visitado museus em Bruxelas, Antuérpia, Berlim, Roma, Florença,
Veneza, Madrid e Sevilha, não sendo de refutar a execução do autorretrato
em Paris.
Frontalidade, expressão enigmática do rosto, intimismo, severidade e
uma enorme consciência da própria individualidade, são características
de uma modernidade irrefutável, paralelamente com a abertura para solu-
ções inovadoras que o século XX haveria de conhecer, na desconstrução do
cubismo, na angústia expressionista ou no lirismo abstracionista.
Da sua curta vida marcada pela boémia, Armando de Basto (1889-
-1923) deixou-nos um autorretrato, M.N.S.R., executado cerca de 1917. A
grande dimensão do rosto, ocupando a quase totalidade do retângulo, é o
elemento que desde logo se impõe na visão da tela. Uma observação mais
atenta permite perceber um olhar melancólico, centrado no espectador, em
cuja direção o rosto e o torso se voltam.
Emergindo dos tons enegrecidos do fundo – os quais enquadram a
figura – o rosto, em tonalidades térreas, espelha as marcas de uma vida des-
regrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista, quer em
termos académicos, quer pessoais. Armando de Basto pintou-se como um
homem e não como pintor. Tendo exercido ampla atividade nos domínios
da caricatura e do desenho humorístico, só terá começado a pintar cerca de
1913, com incidência no retrato, ainda no período em que esteve em Paris
(1910-1914), onde conviveu com Modigliani, que lhe pintou o retrato. De
qualquer modo, a singularidade do autorretrato reside, fundamentalmente,
no fascínio que se desprende do olhar, suscitando o diálogo – significati-
vamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do
37 José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses no Século XX, Quetzal Editores, Lisboa, 2000,
p. 20.
118 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

artista – na tradição da autorretratística de Rembrandt e de Henri Fantin-


-Latour, relativamente aos valores de tratamento do rosto, mas sobretudo
marcando a perseguição de ideais de liberdade e de independência, distin-
tivos da vivência modernista.
É de 1925 o quadro em que José de Almada Negreiros (1893-1970) se
autorretrata, inserido num grupo de dois pares, C.A.M. da F. C. G., em
cenário neutro, muito embora se saiba que a obra fez parte da decoração
da “Brasileira” (Chiado, Lisboa) e sejam evidentes os indícios de conotação
temática com o domínio artístico – da tela onde Almada colocou o ano de
realização do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar, ao desenho
sobre o qual José-Augusto França se interrogou poder tratar-se da carica-
tura de Gualdino Gomes – “(…) se atentarmos no chapéu que lhe caracte-
rizava a boémia verrinosa (…)”[38] – até ao suporte do registo que merece a
concentração da atenção da maioria dos elementos do grupo, mas de que
certamente não terá sido aleatória a exibição do verso, vedando o acesso à
descodificação do motivo desenvolvido. Almada vira para o campo visual
do espectador o registo que segura com a sua mão direita, assim cons-
truindo um enigma com enfoque essencial na composição da cena de inte-
rior. Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na
esfera do convívio social, e não como protagonista de um cenário artístico,
ainda que não tenha refutado visibilidade na alusão à condição artística:
é manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernista,
“na vida airada de Lisboa - 25”[39], sem constrangimentos, dela comungando
através da apresentação da frequência dos salões de chá e cafés caracterís-
ticos dos frenéticos anos 20. Almada autorrepresentou-se na celebração da
sua contemporaneidade, assumindo-se na sua individualidade, numa con-
versa suspensa entre os figurantes, em cuja representação se impõe a trans-
versalidade do olhar, como atitude de cumplicidade geracional.
Sábias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida: “Almada foi sempre
autorretrato.
De si e de Portugal, nas sucessivas modalidades que ele e o País foram
tomando, numa inesperada identidade de propósitos e acerto de tempo
(…)”[40].

38 Cfr. José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses do Século XX, Quetzal Editores, Lisboa,
2000, p. 50.
39 Idem, ibidem.
40 Bernardo Pinto de Almeida in AA.VV. O Rosto da Máscara, Centro Cultural de Belém, Lisboa,
1994, p.. 338.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 119

Em 1929 José Tagarro (1902-1931) reali-


zou um duplo autorretrato (Fig. 12) que
se apresenta como um dos mais originais
(não só da sua época, mas seguramente
da produção artística contemporânea
portuguesa), produzido dois anos passa-
dos sobre a frequência da Escola de
Belas-Artes de Lisboa, também dois anos
antes da sua prematura morte e no exato
ano em que visitou a França e teve opor-
tunidade de estudar e se atualizar em
Paris, durante algum tempo.
Pertencente à 2ª. Geração Moder-
nista em Portugal[41], a obra apresenta
Fig. 12 – José Tagarro. Auto-Retra- uma síntese de grande expressividade e
to1929-MNSR Porto força – com destaque para a atenção ao
rigor no tratamento das cabeças, boca e
olhos – resultante da articulação entre o característico traço firme (dese-
nho) e a distribuição do cromatismo na mancha da pintura propriamente
dita, numa demonstração de extrema modernidade e manifestação de
grande dignidade profissional. E foi nesta condição que Tagarro quis ser
visto para a posteridade: com o entusiasmo contagiante do artista que se
autodescobre e se questiona, mirando-se no olhar/espelho do observador,
a quem atrai ainda através das tonalidades do encarnado do lápis com que
desenha, ferramenta do ofício que dá forma à ideia/criatividade. O efeito de
surpresa persiste, em grande parte, pelo contraste entre técnicas – enquanto
que a pintura modela o rosto pintado, com particular atenção na descri-
ção do pormenor, o desenho do segundo plano expõe o rosto perfilado,
numa construção simétrica de ambos os rostos, cujos olhares são dirigidos
ao espectador, assim suscitando o diálogo entre desenho e pintura. Ideia e
forma interpenetram-se na essência da imagem de inequívoco vigor narci-
sista, sem equivalente na pintura do autorretrato deste período: “É o simu-
lacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginação e fomenta

41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salões dos Independentes, em 1930 e 1931, e no
breve espaço de tempo em que viveu, realizou duas exposições individuais, uma em Lisboa e
outra no Porto. Revelou forte dinamismo artístico, tendo colaborado (embora sujeito às respe-
tivas encomendas) em publicações como a Ilustração ou o Magazine Bertrand, entre outras.
Concorreu aos salões da S.N.B.A. nos anos de 1927, 1928 e 1930. O reconhecimento da sua
importância artística ¿cou patente na criação de um prémio com o seu nome, para as áreas do
desenho e da aguarela, em 1944, pelo S.N.I.
120 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

a criatividade artística (…) no impossível jogo de espelhos em que a autoi-


magem é projetada, representação da autorrepresentação narcisicamente
refletida no olhar – espelho do espectador, paradigma do momento em que
o artista, como sujeito em representação, se dá a ver, perdido nas ruínas
da sua própria visão e mostrando-se como testemunho de uma profunda
consciência da condição humana.”[42].
O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintado
no ano do seu casamento com Arpad Szénès, em 1930, col. privada, Paris,
quando a pintora tinha 22 anos, também o ano anterior à oportunidade de
expor nos Salons d’Automme et Surindépendants, em Paris[43].
Autorretrato a meio corpo, em fundo predominantemente neutro, o
olhar límpido, frontal e interrogativo, fixo no observador, constitui desde
o primeiro momento de contemplação do espectador o principal foco de
atração. É um registo figurativo de mulher, uma construção expressionista,
reveladora de intensa sensibilidade, sem qualquer alusão do modelo à prá-
tica artística, ainda que seja possível antever, na plasticidade dos planos e
nas linhas escuras e acinzentadas, a procura de novos valores espaciais. A
figura feminina, emergindo entre os negros – do cabelo, das sobrancelhas,
olhos e vestuário – impondo-se na tez clara da pele, da qual se destaca o
rubro da boca (com correspondência na peça de mobiliário que se acha à
direita do observador), ocupa parte significativa da tela e define-se entre
a contenção do enquadramento em espaço interior fechado e a luminosi-
dade do claro-escuro envolvente, numa síntese de evidente simplicidade
e de reminiscência de um universo onde impera a solidão. Sente-se uma
estratégia de introspeção psicológica, tendência já presente em Rembrandt
e que se afirmou com o Romantismo.
É também do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de Artur
Loureiro (1853-1932), então com 77 anos, M.N.S.R., obra executada dois
anos antes da sua morte e onde as soluções estéticas apresentadas têm como
patamar de referência os valores do naturalismo oitocentista em que o pin-
tor fez a sua aprendizagem e se exercitou.
A imagem representa a figura de um velho homem, de pé, cujo corpo
semiperfilado se ampara a uma bengala – posicionada no prolongamento

42 Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato,
in Ver a Imagem, II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Património e
Teoria do Restauro”, I.H.A. da F.L.L., 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).
43 A pintora partiu para Paris em 1928, acompanhada pela mãe (perdera o pai aos três anos), a ¿m
de completar a sua formação. Em 1932 foi aluna de Bissière, na Académie Ranson. Haveria de
realizar a sua 1ª. Exposição Individual em 1933.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 121

da trajetória da diagonal definida pelo braço direito da figura – segurada


pela mesma mão que prende um chapéu negro, certamente recolhido por
respeito devido face à penetração em espaço interior. No gesto são visí-
veis os tons da carnalidade da mão, igualmente presentes no rosto virado
na direção do espectador, que enfrenta no cruzamento de olhares. Sobre
as vestes negras, um casaco castanho mel, gasto do tempo e do uso, com-
paginável com a exposição da idade, traduzida no branco do cabelo e da
barba descuidada. O artista escolheu expor-se do ponto de vista humano,
auto-descrevendosse em sintonia com a miséria afetiva e a solidão carac-
terísticas dessa fase da vida. Significativamente, e com uma enorme cora-
gem e força por detrás das lentes, os olhos do autorretratado interpelam o
observador, a quem é oferecida a autoimagem/espelho, como proposta de
reflexão intemporal.
O autorretrato pintado por Domínguez Álvarez (1906-1942) em 1934,
intitulado “D. Quixote”, constitui uma imagem que dificilmente sai do alo-
jamento da memória em que facilmente se instala, nas profundezas do
silêncio interior específico do espectador atento. É uma obra que não tem
paralelo na pintura do autorretrato contemporâneo em Portugal. A panó-
plia de sentimentos que gera no ato da sua observação corresponde sem
contraditório à definição que José-Augusto França registou para autorre-
trato: “O autorretrato fita, por natureza e fatalidade de processo, o espec-
tador que o há de olhar, tanto como a si próprio o pintor se olhou, e o que
foi monólogo desejado do artista, acaba por se realizar em diálogo. Diálogo
de três, porém, que três são os seus elementos: o pintor que se retrata, a sua
imagem retratada, e a pessoa que a olha, como se estivesse a olhar o seu
autor. Que não está: o autorretrato é apenas a sua imagem, não pintor pin-
tado mas o que ele, fora dele, pintou. Mas por isso se dirá que, mais do que
apenas a sua imagem, o autorretrato, está para além dela e de quem a pin-
tou, por a ter pintado – ou seja, criado em obra de arte… Não se deixará de
dizer que o autorretrato é a quintessência da arte, pela duplicidade mágica
da imagem fornecida.”[44].
O olhar acusatório, e completamente despido de esperança, que ende-
reça ao espectador, cumpre-se na perturbação do vazio, na tristeza, na
censura e no medo. A representação que de si deixa o pintor remete para
um universo misterioso, conturbado e inquietante, feito mensageiro da
morte a que sombras e negros aludem, povoando o cenário de onde emer-
gem o rosto – alongado na barba cujo fim não se vislumbra – e parte do
44 José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses do Século XX, Quetzal Editores, Lisboa, 2000,
p. 20.
122 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

peito, cuja tonalidade parece já ser presságio do cadáver que haveria de ser
dentro de muito poucos anos passados. Da expressão pictórica de Álva-
rez correspondente aos anos 30 destacou também José-Augusto França o
insólito – “Nenhuma referência parisiense, nenhuma informação de Ber-
lim, nenhum acomodamento modernista, e um gosto espanhol que era ou
podia ser de mais ninguém e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal. Um
artista isolado, passando misérias no Porto, sem ares da boémia burguesa
dos de Lisboa – um vago sonho provinciano de «mais além» como divisa
de impossível grupo. A sua pintura é toda assim, arredando-se do ensino
da Escola que lhe deu diploma e desemprego, em perseguição de fantasmas
soltos pelas ruas tristes do Barredo, manchas negras e informes; ou de pai-
sagens visionárias de tenebrosos burgos de Espanha, lembrados do Greco.
É um D. Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa, pela
indecisão mítica que vivemos, entre D. Sebastião e D. António, com a des-
graça de ambos (…) A imagem de Álvarez é mais triste que qualquer outra
(…)”[45].
Álvarez morreu com 42 anos, vítima de tuberculose e certamente tam-
bém das suas opções estéticas, definidas à margem dos padrões oficiais[46].
O seu autorretrato é um paradigma da fragilidade da condição humana
e do cenário de instabilidade em que a vida humana se movimenta. Pelo
traçado das linhas oblíquas, em evidente oposição com a estabilidade ine-
rente à figura vertical, Álvarez questiona a racionalidade da sua vivência,
agoniada pela debilidade física e pela injustiça da ausência de reconheci-
mento, que só chegaria após a sua morte. Que metáfora mais adequada que
a construída pelo pintor sobre si próprio?
O autorretrato de Maria Keil (1914-2012), pintado em 1941 (simples
coincidência ou curiosidade, a inversão dos dois últimos algarismos com
o ano do seu nascimento?), com 27 anos de idade, C.M. Silves, lembra o
autorretrato de Aurélia de Sousa, anterior em cerca de quatro décadas,
sobretudo pelo colorido, modernidade e firmeza da expressão, já que a sim-
plicidade sedutora e a articulação com a prática da pintura – no recurso à
representação do reverso de um quadro – distanciam Maria Keil da solidão
de Aurélia, numa época que pouco tinha a ver com o início do século, ape-
sar de o tempo ser de guerra e de insegurança.

45 José-Augusto França, ob. cit.,, p. 72.


46 Participou em 1929 nas exposições do grupo + Além (marcada pela crítica ao academismo e ao
ensino naturalista de Marques de Oliveira na E.S.B.A. do Porto), foi recusado na IV Exposição
de Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposição individual em vida, em
1936, no Salão Silva Porto.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 123

Por esse mesmo autorretrato – de indiscutível contributo para a afir-


mação da 2ª. geração modernista, que era a sua – recebeu Maria o prémio
Amadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41. É como pintora que se
autorretrata, representando-se junto ao reverso de um quadro, olhando
firmemente o espelho/observador. Um aparente paradoxo está, porém,
subentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar como
propósito contra a opinião comum), o qual se pode sintetizar na seguinte
interrogação: como pode um quadro ser representado no seu reverso,
entrando assim em conflito com a ideia de representação pictural?
Aparente paradoxo, visto que a imagem pictórica é uma realidade fic-
tícia, o quadro é uma representação, o seu reverso apresenta o objeto que
lhe serve de suporte, é o negativo da representação a que alude, sugerindo a
ideia de metáfora. Poder-se-á então especular que para conhecer o reverso
do quadro há que “dar-lhe a volta”? Quereria Maria Keil lembrar no seu
autorretrato a dialética da sua meditação sobre o quadro, na dupla quali-
dade de imagem/representação e objeto? Ou questionar no simulacro da
aparência a própria essência do autorretrato?
O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994), pintado em
1951 M.N.S.R., com os seus 39 anos, constitui uma obra notável e verda-
deiramente singular em termos plásticos. O efeito imediato de surpresa,
em parte causado pela dimensão da figura que ocupa a quase totalidade do
quadro, deriva também da consciência estética manifestada no tratamento
da iluminação, numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidades
negras e acinzentadas das roupagens, dominando a composição, estando
esta estruturada em planos onde o geometrismo impera.
Camarinha optou por uma representação de si como indivíduo, cons-
truindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor da
expressividade do rosto e da própria pintura: a aproximação ao especta-
dor é transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidão sentada, o
olhar baixo e fixo no espelho, em interrogação irónica, as mãos entrelaçadas
e pousadas sobre os joelhos, em atitude expectante e de intensa vitalidade
narcísica.[47].
Cruzeiro Seixas (1920-) produziu, cerca de 1958, um autorretrato tri-
dimensional que, pelo insólito e pela complementaridade, justifica a sua
47 Camarinha pintou este autorretrato no início da década que corresponde à dedicação do artista
à tapeçaria, técnica que renovou, em que se distinguiu e foi premiado em 1967. Anteriormente,
obtivera o prémio “Souza Cardoso” do SPN/SNI, em 1936, e um 2º.prémio na I Exposição
de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1957, onde o autorretrato esteve
exposto, tendo sido adquirido no ano seguinte (1958), pelo M.N.S.R., por aquisição ao artista,
com o Fundo João Chagas.
124 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

abordagem no presente contexto: óleo e gouache sobre osso, col. J. P. F.,


Lisboa. O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa é per-
turbador, em grande parte ancorado na coragem de exposição material de
uma ruína física, insinuando a metáfora de outra ruína, certa e transversal
ao comum dos mortais, e justificando a reflexão de Derrida sobre o autor-
retrato: “O aspeto central da tese de Derrida reside, pois, na inevitabili-
dade do autorretrato como ruína, presente desde o primeiro olhar sobre
o modelo (outro), condenado à condição de fragmentação da reflexão da
imagem e à dependência do envolvimento com o espectador. É o simula-
cro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginação e fomenta a
criatividade artística.”[48].
Humor provocatório, alguma crueldade, intencionalidade reflexiva,
atravessam a obra e são pretexto para o autor desmontar a polissemia do
autorretrato – é um olhar inquieto e irónico, aquele que Cruzeiro Seixas
transferiu para o objeto artístico, que alegoricamente alude às práticas artís-
ticas inerentes à humanidade pré-histórica e marca a tentativa de acerto
temporal com as vivências culturais atualizadas com o seu tempo, e as pro-
postas de criação artística vigorantes no exterior de Portugal.
O autorretrato não é reflexo do espelho mas o próprio espelho, no qual
o criador se projeta e sobre o qual o espectador reflete, ao rever-se no con-
dicionamento da sua libertação e na sua impotência face à sujeição inexo-
rável ao tempo.
Em 1972 José Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato, C.A.M.
da F.C.G., sob a temática da sua condição de artista, lembrada na represen-
tação da mão que segura o pincel, centrada na parte inferior da composi-
ção. Quadro dentro do quadro, a autoimagem por semelhança impõe-se
pela frontalidade da reflexão no espelho e pela subjetividade transmitida
no vigor do olhar fixo, numa linguagem figurativa atualizada com a recente
produção artística europeia, frequentada e desenvolvida com o apoio da
Fundação Calouste Gulbenkian: Amesterdão, Bruxelas, Madrid (ou Paris)
no contacto com o Grupo Kwy, ou no convívio com artistas inovadores
como Lourdes Castro, Costa Pinheiro, Christo, etc.
O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura, emer-
gindo do cromatismo, e da luminosidade vibrante, e sendo emoldurado nas
áreas periféricas cimeiras pelo labirinto de pequenas construções geométri-

48 Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato, in
Ver a Imagem, “Atas do II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Patri-
mónio e Teoria do Restauro”, I.H.A. da F.L.L., 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 125

cas, numa síntese que apela à vivência corporal e à presença efémera, mas
intensa, do tempo.
A autorrepresentação de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985, inti-
tulada “Paisagens do Atelier”, col. do autor, é portadora de uma profunda
autoconsciência da representação, por sua vez geradora de uma comple-
xidade inesgotável, sustentada na reflexão em torno da existência. Autor-
representação integrada no ciclo emblemático denominado “la fenêtre de
ma tête“, cabeça/sede das ideias na confluência do ato expressivo, enquanto
utopia e erudição, é signo de criação artística, mas também poética, preo-
cupação eclética a justificar a afirmação do percurso individual de Costa
Pinheiro, reconhecidamente europeu. A cabeça/janela que abre para a
imaginação, que rasga as fronteiras impostas pelo espaço e pelo tempo,
em sugestão do diálogo interior construído na experiência da invenção de
outro dentro de si mesmo (em negação do “beco sem saída” da emigração
vivenciada?).
Exteriormente à cabeça, perfilada, vazia e colorida de azul – a cor tão
característica do pintor – o registo do cavalete e do pote com os pincéis, ins-
trumentos mediadores do ato da pintura, enquanto que dentro do quadro
mas pairando sobre a cabeça – que se sabe ser a sua pela marca do também
característico bigode que o individualiza – a informação “la fenêtre de ma
tête” precisa o poder da imaginação, não contida nos limites do corpo orgâ-
nico.
Pelo contorno se destaca da escuridão a cabeça iluminada, na cons-
trução de uma nova imagética assumida na rutura com a segurança da
submissão da picturalidade à estética, em opção pelo desafio da linguagem
metafórica: transparência da abstração e sobreposição das ideias relativa-
mente ao sujeito do ato criativo.
A autorrepresentação de Costa Pinheiro é síntese óbvia do movimento
do espírito, desde as sensações às ideias, “(…) dialética aporética entre o
próprio e a representação.”[49].
Mais que “a janela”, a autorrepresentação de Costa Pinheiro reflete o
estado de autoconsciência face à importância dos sonhos, é afirmação da
subjetividade, é testemunho da libertação do pintor que, através da autorre-
presentação, se reencontra e supera a “persona”, no sentido da máscara.
Num compartimento de interiores – mas onde se rasga uma janela, dei-
xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tons
de azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaçar dos pássaros – e
49 Cfr. Winfried Baier, O rosto da máscara, Fundação das Descobertas, Centro Cultural de Belém,
Lisboa, 1994, p. 352.
126 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se, col. da autora, enfati-


zando a importância do assunto no próprio título do quadro – “Autorretrato
com Netos” – pintado em 2001-2002 e cuja integração na primeira agenda
(2010) que a “Casa das Histórias” destina ao público, após a inauguração
em 18 de setembro de 2009, adquire aqui particular significado.
Parábola em torno da família e da condição feminina, temas que
assume sem dissimulação, mas simultaneamente com referência explícita à
pintura. Estratégia desarmante, no confronto entre a seriedade do tema da
família, apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundo
da cena, e o posicionamento simbólico da artista, voltada em direção ao
espectador, afetivamente protegendo com o braço direito uma neta, mas
usando a própria corporalidade como contraponto ao “peso” do quadro
que atrai o olhar do observador. Quadro dentro do quadro, ou a linguagem
metafórica da autorreflexão, centrada entre a lembrança das exigências da
vida familiar e o universo imaginário e tenso, próprio da criatividade a que
a pintura pendurada alude.
A articulação entre as duas situações da vida da mulher, por um lado,
e a ligação entre dois períodos de vivências, maturidade e infância (veja-se
o registo de brinquedos e dos característicos cães de Paula Rego), corro-
boram o poder da narração das histórias que a artista confessa terem tido
importância decisiva na construção do seu imaginário e da sua visão.
A família contextualiza a perspetiva do feminismo, como epicentro
identitário, no confronto com a necessidade da criação artística. Refere
Paula Rego: “As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher.
As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam.”[50].
Tal visão como estratégia de sobrevivência pessoal, está generalizada
entre a crítica: “Não é comum dar às mulheres a oportunidade de se reco-
nhecerem na pintura, muito menos a de verem o seu mundo privado, os seus
sonhos, no interior das suas cabeças, projetados numa escala tão grande e
tão despudoradamente, com tanta profundidade e tanta cor.”[51].
O autorretrato de Paula Rego, retomando a figuração, é afinal pretexto
para glosar emoções e afetos, criatividade e identidade.

50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts, Eight British Artists, Cross General Talk, in
Fran Lloyd, From the Interior, Female Perspetives on Figuration, Kingdston University Press,
1997, p. 85, Citada por Ana Gabriela Macedo, Paula Rego e o Poder da Visão, Edições Coto-
via, Lisboa, 2010, p. 121.
51 Germaine Geer, Paula Rego, in Modern Painters, vol. 1, nº. 3, outubro de 1988; republicado
em Karen Wright (org.), Writers on Artists, Nova Iorque, Moderna Painters, D.K. Publishers,
2001, pp. 66-71. Transcrito em Compreender Paula Rego, 25 Perspetivas, Edição de Ruth
Rosengarten, Fundação de Serralves/Jornal “Público”, Porto, 2004, p. 161.
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Conclusão
Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na época con-
temporânea, múltiplas são as possibilidades da sua abordagem. A própria
palavra autorretrato é uma palavra de vocação polissémica. Nela cabe o
que é específico da criação humana, cultural e visual, em associação com
o cruzamento entre intelecto e técnica: a sede da ficção reside na tradução
individual – através do registo da autoimagem pictural – de uma inten-
cionalidade específica do próprio “eu”. Ainda que continuem certamente a
suscitar amplas discussões, questões como a identidade, a intelectualidade,
a cultura ou a técnica, relativamente à abordagem da autorretratística, não
será demais lembrar que não é aleatório o facto de o autorretrato introspe-
tivo por semelhança, que se desenvolve em Portugal no século XIX, ter pro-
longado a sua presença entre nós nos anos 70 do século XX, paralelamente
com algumas manifestações de abertura a outras soluções que se foram
afirmando sobretudo a partir do meado do século, assinalando a abertura
do nosso país ao exterior (em grande parte com a intervenção dos bolseiros
apoiados pelo mecenato da Fundação Calouste Gulbenkian) e na sequência
da revolução de 1974, acompanhando as transformações sócio-culturais e a
aproximação mais atualizada e próxima do cosmopolitismo.
Em termos imagéticos, os traços individualizados que no autorretrato
identificam a referência da “persona”/individualidade irão depois dar lugar
à sobreposição do ato criativo em si, e o autorretrato transforma-se então
em intencionalidade de gesto de negação, destruição, provocação, secunda-
rizando o sujeito da criatividade.
As incertezas universais – mesmo quando humildemente expostas –
esbatem a segurança no reconhecimento da visão e da perceção transmitidas
pelos sentidos humanos. A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se
e confundem-se, nos nossos tempos, a memória que assegura a identifica-
ção dos traços fisionómicos perde sentido, e a eternidade é equivalente do
“hoje” e do “agora”. O autorretrato tende a converter-se em registo do efé-
mero, do transitório e do vazio, acompanhando a eterna busca do sentido
da vida:
128 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO

Referências

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A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 129

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