A Pintura Do Autorretrato Contemporâneo em Portugal: Breve Panorâmica
A Pintura Do Autorretrato Contemporâneo em Portugal: Breve Panorâmica
A Pintura Do Autorretrato Contemporâneo em Portugal: Breve Panorâmica
1 Maupassant, La vie d’un paysagiste, cit. in Le Magazine Littéraire de Octobre 2011, nº. 512, p.
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2 Narração ou tradição popular cuja temática mobiliza seres imaginários ou acontecimentos,
sendo estes dados como históricos – quer factos reais mas deformados, embelezados e por
vezes misturados com o maravilhoso. Conforme Dictionnaire Hachette de la langue française,
Hachette, Paris, 1989, p. 884.
3 Narrativa lendária transmitida pela tradição que, com recurso à exploração de seres lendários
– heróis, divindades, etc. – fornece uma tentativa de explicação dos fenómenos naturais e huma-
nos. Conforme Dictionnaire Hachette de la langue française, Hachette, Paris, 1989, p. 1036.
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4 Conforme passagem da História Natural de Plínio-o-Velho, XXXV, 43, reproduzida por Victor
I. Stoichita in Brève Histoire de l’Ombre, Droz, Genève, 2000, p. 11 e 17, e cita-se: “A primeira
obra neste género foi feita em argila por Dibutades de Sicyone, oleiro em Coríntia, por ocasião
de uma ideia de sua ¿lha apaixonada por um jovem homem que ia deixar a cidade: esta reteve
através de linhas os contornos do per¿l do seu amante na parede à luz de uma vela. O seu pai
aplicou em seguida argila sobre o desenho, ao qual deu relevo e fez endurecer ao fogo essa
argila com peças de olaria. Esse primeiro tipo de plástica foi, diz-se, conservado em Coríntia,
no templo das Ninfas…” (tradução da responsabilidade da autora do presente texto).
Vide também Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do
Autorretrato, in Atas do II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Patri-
mónio e Teoria do Restauro, IHA da FLUL, 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).
5 Platão, República, 514-519. Vide, designadamente, Victor I. Stoichita, ob. cit,, p. 7 (tradução
da responsabilidade da autora).
96 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO
ciso é o ¿lho do deus do Ce¿so e da ninfa Liríope. Quando nasceu, os seus pais consultaram
o adivinho Tirésias, que lhes disse que a criança «viveria até ser velho, se não olhasse para si
mesmo». Chegado à idade adulta, Narciso foi objeto da paixão de grande número de raparigas
e de ninfas. Mas ele ¿cava insensível. Finalmente, a ninfa Eco apaixonou-se por ele; mas não
conseguiu mais do que as outras. Desesperada, Eco retirou-se na sua solidão, emagreceu e de
si mesma em breve não restou mais que uma voz gemente. As jovens desprezadas por Narciso
pediram vingança aos céus. Némesis ouviu-as e fez com que, num dia de grande calor, depois de
uma caçada, Narciso se debruçasse sobre uma fonte, para se dessedentar. Nela viu o seu rosto,
tão belo, e imediatamente ¿cou apaixonado. A partir de então, torna-se insensível a tudo o que o
rodeia, debruça-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer. No Estige, procura ainda distinguir os
traços amados. No lugar onde morreu, brotou uma Àor à qual foi dado o seu nome, o narciso.”
– Pierre Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Difel, Lisboa, 1992, p. 322.
10 Victor I. Stoichita, ob. cit., pp. 30 a 34 (tradução da responsabilidade da autora).
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11 Chegou até nós uma cópia, em mosaico, dessa pintura mural do ¿nal do séc. IV a.C., prove-
niente da Casa do Fauno, em Pompeia, hoje no Museu Nacional de Nápoles, com a L de 5,82m
e Alt de 3,13m.
12 Vide Geoffroy Caillet, A la cour des arts Àorissants, in “Le Figaro hors-série” 3657, Octobre
2011, pp. 79 a 85. Conforme refere Caillet, a identi¿cação do autorretrato de Apelles coloca em
questão a atribuição tradicional do mosaico grego a Philoxénos de Eritreia.
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13 A¿rmação tradicionalmente atribuída a Cosme de Médicis (séc. XV), é citada por Francisco
Calvo Serraller, Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Español Contemporaneo, in
El Autorretrato en España - De Picasso a nuestros días, Fundación Cultural MAPFRE VIDA,
Madrid, 1994, p. 13.
14 Cfr. Victor I. Stoichita, ob. cit., p. 91. (tradução da responsabilidade da autora).
100 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO
tinha reivindicado possuir três séculos antes. (…) «Habbiamo da parlare con
le mani», Annibale Carracci é suposto ter dito cerca de 1590 (…)”[15].
A autorretratística autónoma desenvolve-se no século XVI parale-
lamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para as
cortes principescas altamente competitivas na promoção de uma cultura
cortesã personalizada e digna. Nessa medida, as autoimagens dos pintores
– e outros artistas – podem ser interpretadas como celebrações próprias
das suas vidas pessoais, estratégia para ampliar o reconhecimento social da
posição conseguida por mérito artístico.
Da Antiguidade Clássica, prolongando-se
durante a medievalidade, chegaram até nós
obras em que a imagem do autor pode ser
interpretada como um substituto da assina-
tura daquele, prevalecendo a associação da
imagem à sua autoria, sobre a exigência de
rigor no traçado das reais linhas do rosto,
deste modo se descurando a questão teórica
da semelhança.
Rufillos (c. 1150-1200), monge do mos-
teiro de Weissenau e iluminador célebre,
Fig. 5 – Rufillus de Weissnau, Enlu- autorrepresentou-se pintando-se no inte-
minure Vitae Sanctorum. c. 1150- rior do R do “Saltério de Genebra” (Fig. 5),
1200
sentado a pintar e ilustrando a cena com os
instrumentos do ofício e recipientes de cores
necessárias à prática pictural. Todavia, apesar
do retrato em si mesmo exibir traços realis-
tas e algum esmero na execução, não se trata
ainda de uma identidade individual, espe-
cífica de um indivíduo – que é diferente do
caráter genérico, sendo este afeto ao género e
não ao indivíduo – e como tal não integra a
classificação de um verdadeiro autorretrato.
A identidade indica uma referência comum e
transversal na representação, ou seja, a rela-
Fig.6 – Peter Parler. Autorretrato. C.
ção de pertença do indivíduo a um determi-
1370-1379. Praga. Catedral S. Vito nado corpo social ou congregação.
15 Joanna Woods-Marsden, Renaissance Self-Portraiture, Yale University Press, New Haven &
London, 1998, p. 4.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 101
16 “(…) que começou um esforço sistemático de adquirir e expor retratos dos artistas que criaram
as pinturas que os Medici, com a sua paixão por colecionarem, tinham acumulado nas residên-
cias dos seus familiares.” – Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uf¿zi Collection,
GIUNTI, Firenzi Musei, 2011 (1ª. edição 2008), p. 5. (Tradução da responsabilidade da autora
do presente estudo).
17 J.Woods-Marsden, ob. cit., p. 2. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).
102 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO
1889, Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretra-
tos Musée d’Orsay, Paris, cerca de quarenta em menos de cinco anos e mais
de vinte nos últimos dois anos de vida.
Um olhar verdadeiro, intensamente emocional e fixo, em que se adi-
vinha uma firme determinação, e um profundo autoconhecimento, são
características evidenciadas pelo pintor, que confessa ao irmão Théo: “Eu
queria fazer retratos que um século depois surgissem às pessoas de então
como aparições. Portanto, eu não procuro fazê-lo pela semelhança fotográ-
fica mas pelas nossas expressões apaixonadas, empregando como meio de
expressão e de exaltação o caráter da nossa ciência e o gosto moderno da
cor. O meu próprio retrato é também quase assim, o azul é um azul fino do
Midi e o fato é em lilás claro.”[20].
Os olhos que refletem a transparência do sentimento do “eu” convertem-
-se no espelho de projeção do olhar do observador, espécie de simbiose que,
no ato de comoção, reconhece a comunhão na dualidade, reencontrando a
fórmula “je est un autre”…
O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo de
autorrepresentação acaba, afinal, por remeter para as inesgotáveis polémi-
cas que a produção artística de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo:
“Génio e Loucura - Ninguém sabe exatamente de que enfermidade sofria
Van Gogh… No século XIX, associava-se com frequência a loucura ao
génio criativo, e não era raro crer que a intensa sensibilidade de um artista
e o aspeto irracional da criação artística podiam derivar para alterações
mentais. Seguidamente, a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram-
-se desta maneira e deram lugar a muitas especulações sobre a loucura.”[21].
De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881-
-1973), a escolha recaiu entre um de 1907 Narodni Galerie V, Praga e outro
de 1972,Col. Privada Tóquio. Entre um e outro poderá situar-se a trajetória
da sua vida artística: 1907 é o ano de acabamento da pintura emblemática
“Les Demoiselles d’Avignon”, que marca o nascimento oficial do artista, o
primeiro dos dois autorretratos surge, pois, quando começou a afirmar a
sua personalidade pictural e artística; o autorretrato de 1972 terá o sido
o último autorretrato de Picasso e uma das últimas obras que executou,
20 Transcrito por Henri Soldani, in AA.VV., L’autoportrait dans l’histoire de l’art - De Rem-
brandt à Warhol, Beaux Arts Éditions/TTM Éditions, 2009, p. 141. (Tradução da responsabili-
dade da autora do presente estudo).
21 Cornelia Homburg, in Los Tesoros de Vincent Van Gogh, tradução em língua espanhola publi-
cada em Barcelona em 2008 por Editors, S.A., Iberlivro - a partir da edição inglesa de Carlton
Publishing Group do mesmo ano - p. 47. (Tradução da responsabilidade da autora do presente
estudo).
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22 Adriana Veríssimo Serrão, Ideias Estéticas e doutrinas da arte nos sécs. XVI e XVII, in Histó-
ria do Pensamento Filosó¿co Português, Direção de Pedro Calafate, vol II – Renascimento e
Contra-Reforma – Caminho, 2001, p. 157.
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25 Vide Alexandre M. Flores e Paula A. Freitas Costa, “Misericórdia de Almada - Das Origens à
Restauração”, Sta. Cada da Misericórdia de Almada, 2006, p. 83.
26 Vitor Serrão, “O Maneirismo”, in História da Arte em Portugal, Vol. VII, Alfa, 1986, p. 86.
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28 A segunda representação pictural unindo outra geração de pintores, a geração naturalista, have-
ria de ser executada por Columbano, em 1885, que nela se autorretrata. O quadro foi destinado
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 113
30 Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, Silva Porto e o Naturalismo em Portugal, C.M.Santarém,
IPPAR, C.M. Porto, Santarém, 1993, pp. 88 e 89.
31 Visitou ainda a Inglaterra, a Bélgica, Holanda e Espanha e esteve em Capri, a cuja luz e regio-
nalismo foi extraordinariamente sensível. Após o regresso, em 1879, e por morte de Tomás da
Anunciação, ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa.
Foi considerado o maior pintor paisagista português de todos os tempos.
32 E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 – Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, ob. cit., pp. 89
e 136.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 115
33 Tela hoje no Museu do Chiado, sendo a seguinte a identi¿cação dos retratados: José Malhoa,
Moura Girão, Rodrigues Vieira, Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho,
Rafael Bordalo Pinheiro, Cipriano Martins, Alberto de Oliveira, Ribeiro Cristino, Manuel, o
Criado e o autor da tela, Columbano. Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, ob. cit., pp. 96/97.
116 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO
38 Cfr. José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses do Século XX, Quetzal Editores, Lisboa,
2000, p. 50.
39 Idem, ibidem.
40 Bernardo Pinto de Almeida in AA.VV. O Rosto da Máscara, Centro Cultural de Belém, Lisboa,
1994, p.. 338.
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41 Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salões dos Independentes, em 1930 e 1931, e no
breve espaço de tempo em que viveu, realizou duas exposições individuais, uma em Lisboa e
outra no Porto. Revelou forte dinamismo artístico, tendo colaborado (embora sujeito às respe-
tivas encomendas) em publicações como a Ilustração ou o Magazine Bertrand, entre outras.
Concorreu aos salões da S.N.B.A. nos anos de 1927, 1928 e 1930. O reconhecimento da sua
importância artística ¿cou patente na criação de um prémio com o seu nome, para as áreas do
desenho e da aguarela, em 1944, pelo S.N.I.
120 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO
42 Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato,
in Ver a Imagem, II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Património e
Teoria do Restauro”, I.H.A. da F.L.L., 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).
43 A pintora partiu para Paris em 1928, acompanhada pela mãe (perdera o pai aos três anos), a ¿m
de completar a sua formação. Em 1932 foi aluna de Bissière, na Académie Ranson. Haveria de
realizar a sua 1ª. Exposição Individual em 1933.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 121
peito, cuja tonalidade parece já ser presságio do cadáver que haveria de ser
dentro de muito poucos anos passados. Da expressão pictórica de Álva-
rez correspondente aos anos 30 destacou também José-Augusto França o
insólito – “Nenhuma referência parisiense, nenhuma informação de Ber-
lim, nenhum acomodamento modernista, e um gosto espanhol que era ou
podia ser de mais ninguém e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal. Um
artista isolado, passando misérias no Porto, sem ares da boémia burguesa
dos de Lisboa – um vago sonho provinciano de «mais além» como divisa
de impossível grupo. A sua pintura é toda assim, arredando-se do ensino
da Escola que lhe deu diploma e desemprego, em perseguição de fantasmas
soltos pelas ruas tristes do Barredo, manchas negras e informes; ou de pai-
sagens visionárias de tenebrosos burgos de Espanha, lembrados do Greco.
É um D. Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa, pela
indecisão mítica que vivemos, entre D. Sebastião e D. António, com a des-
graça de ambos (…) A imagem de Álvarez é mais triste que qualquer outra
(…)”[45].
Álvarez morreu com 42 anos, vítima de tuberculose e certamente tam-
bém das suas opções estéticas, definidas à margem dos padrões oficiais[46].
O seu autorretrato é um paradigma da fragilidade da condição humana
e do cenário de instabilidade em que a vida humana se movimenta. Pelo
traçado das linhas oblíquas, em evidente oposição com a estabilidade ine-
rente à figura vertical, Álvarez questiona a racionalidade da sua vivência,
agoniada pela debilidade física e pela injustiça da ausência de reconheci-
mento, que só chegaria após a sua morte. Que metáfora mais adequada que
a construída pelo pintor sobre si próprio?
O autorretrato de Maria Keil (1914-2012), pintado em 1941 (simples
coincidência ou curiosidade, a inversão dos dois últimos algarismos com
o ano do seu nascimento?), com 27 anos de idade, C.M. Silves, lembra o
autorretrato de Aurélia de Sousa, anterior em cerca de quatro décadas,
sobretudo pelo colorido, modernidade e firmeza da expressão, já que a sim-
plicidade sedutora e a articulação com a prática da pintura – no recurso à
representação do reverso de um quadro – distanciam Maria Keil da solidão
de Aurélia, numa época que pouco tinha a ver com o início do século, ape-
sar de o tempo ser de guerra e de insegurança.
48 Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato, in
Ver a Imagem, “Atas do II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Patri-
mónio e Teoria do Restauro”, I.H.A. da F.L.L., 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 125
cas, numa síntese que apela à vivência corporal e à presença efémera, mas
intensa, do tempo.
A autorrepresentação de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985, inti-
tulada “Paisagens do Atelier”, col. do autor, é portadora de uma profunda
autoconsciência da representação, por sua vez geradora de uma comple-
xidade inesgotável, sustentada na reflexão em torno da existência. Autor-
representação integrada no ciclo emblemático denominado “la fenêtre de
ma tête“, cabeça/sede das ideias na confluência do ato expressivo, enquanto
utopia e erudição, é signo de criação artística, mas também poética, preo-
cupação eclética a justificar a afirmação do percurso individual de Costa
Pinheiro, reconhecidamente europeu. A cabeça/janela que abre para a
imaginação, que rasga as fronteiras impostas pelo espaço e pelo tempo,
em sugestão do diálogo interior construído na experiência da invenção de
outro dentro de si mesmo (em negação do “beco sem saída” da emigração
vivenciada?).
Exteriormente à cabeça, perfilada, vazia e colorida de azul – a cor tão
característica do pintor – o registo do cavalete e do pote com os pincéis, ins-
trumentos mediadores do ato da pintura, enquanto que dentro do quadro
mas pairando sobre a cabeça – que se sabe ser a sua pela marca do também
característico bigode que o individualiza – a informação “la fenêtre de ma
tête” precisa o poder da imaginação, não contida nos limites do corpo orgâ-
nico.
Pelo contorno se destaca da escuridão a cabeça iluminada, na cons-
trução de uma nova imagética assumida na rutura com a segurança da
submissão da picturalidade à estética, em opção pelo desafio da linguagem
metafórica: transparência da abstração e sobreposição das ideias relativa-
mente ao sujeito do ato criativo.
A autorrepresentação de Costa Pinheiro é síntese óbvia do movimento
do espírito, desde as sensações às ideias, “(…) dialética aporética entre o
próprio e a representação.”[49].
Mais que “a janela”, a autorrepresentação de Costa Pinheiro reflete o
estado de autoconsciência face à importância dos sonhos, é afirmação da
subjetividade, é testemunho da libertação do pintor que, através da autorre-
presentação, se reencontra e supera a “persona”, no sentido da máscara.
Num compartimento de interiores – mas onde se rasga uma janela, dei-
xando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tons
de azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaçar dos pássaros – e
49 Cfr. Winfried Baier, O rosto da máscara, Fundação das Descobertas, Centro Cultural de Belém,
Lisboa, 1994, p. 352.
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50 Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts, Eight British Artists, Cross General Talk, in
Fran Lloyd, From the Interior, Female Perspetives on Figuration, Kingdston University Press,
1997, p. 85, Citada por Ana Gabriela Macedo, Paula Rego e o Poder da Visão, Edições Coto-
via, Lisboa, 2010, p. 121.
51 Germaine Geer, Paula Rego, in Modern Painters, vol. 1, nº. 3, outubro de 1988; republicado
em Karen Wright (org.), Writers on Artists, Nova Iorque, Moderna Painters, D.K. Publishers,
2001, pp. 66-71. Transcrito em Compreender Paula Rego, 25 Perspetivas, Edição de Ruth
Rosengarten, Fundação de Serralves/Jornal “Público”, Porto, 2004, p. 161.
A PINTURA DO AUTORRETRATO CONTEMPORÂNEO EM PORTUGAL: BREVE PANORÂMICA 127
Conclusão
Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na época con-
temporânea, múltiplas são as possibilidades da sua abordagem. A própria
palavra autorretrato é uma palavra de vocação polissémica. Nela cabe o
que é específico da criação humana, cultural e visual, em associação com
o cruzamento entre intelecto e técnica: a sede da ficção reside na tradução
individual – através do registo da autoimagem pictural – de uma inten-
cionalidade específica do próprio “eu”. Ainda que continuem certamente a
suscitar amplas discussões, questões como a identidade, a intelectualidade,
a cultura ou a técnica, relativamente à abordagem da autorretratística, não
será demais lembrar que não é aleatório o facto de o autorretrato introspe-
tivo por semelhança, que se desenvolve em Portugal no século XIX, ter pro-
longado a sua presença entre nós nos anos 70 do século XX, paralelamente
com algumas manifestações de abertura a outras soluções que se foram
afirmando sobretudo a partir do meado do século, assinalando a abertura
do nosso país ao exterior (em grande parte com a intervenção dos bolseiros
apoiados pelo mecenato da Fundação Calouste Gulbenkian) e na sequência
da revolução de 1974, acompanhando as transformações sócio-culturais e a
aproximação mais atualizada e próxima do cosmopolitismo.
Em termos imagéticos, os traços individualizados que no autorretrato
identificam a referência da “persona”/individualidade irão depois dar lugar
à sobreposição do ato criativo em si, e o autorretrato transforma-se então
em intencionalidade de gesto de negação, destruição, provocação, secunda-
rizando o sujeito da criatividade.
As incertezas universais – mesmo quando humildemente expostas –
esbatem a segurança no reconhecimento da visão e da perceção transmitidas
pelos sentidos humanos. A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se
e confundem-se, nos nossos tempos, a memória que assegura a identifica-
ção dos traços fisionómicos perde sentido, e a eternidade é equivalente do
“hoje” e do “agora”. O autorretrato tende a converter-se em registo do efé-
mero, do transitório e do vazio, acompanhando a eterna busca do sentido
da vida:
128 MARIA EMÍLIA VAZ PACHECO
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