Um Imperio Transviado em Sodoma Uma Gene
Um Imperio Transviado em Sodoma Uma Gene
Um Imperio Transviado em Sodoma Uma Gene
BELO HORIZONTE
2021
CÁSSIO BRUNO DE ARAUJO ROCHA
Versão final
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção do
grau de Doutor em História.
Linha de pesquisa: História Social da Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta.
Belo Horizonte
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FOLHA DE APROVAÇÃO
"Um Império Transviado Em Sodoma: Uma Genealogia Queer da Sodomia e do Sodomita No Império
Português - Séculos XVI-XVIII"
Documento assinado eletronicamente por Luiz Carlos Villalta, Professor do Magistério Superior,
em 20/05/2021, às 12:30, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do
Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
Como disse, nesses muitos e curtos anos que passei como aluno no departamento
de História da UFMG, vários foram os momentos marcantes. Muitos deles foram
proporcionados pelo aprendizado que me foi ofertado junto às professoras e aos
professores. Com alguns, tive contato em apenas uma disciplina, com outros, houve a
oportunidade de estreitar laços, algumas vezes dilatados em amizade e carinho para além
dos muros da FAFICH. Assim como a pequena Dorothy amava mais o espantalho, de
alguns professores me recordo com especial afeto e gostaria de agradecê-los em nome
dos demais. Muito obrigado, professores doutores José Newton Coelho Meneses (meu
primeiro orientador de iniciação científica), Luiz Arnaut, Regina Horta Duarte, Eduardo
França Paiva, Adriana Romeiro, Mauro Lúcio Leitão Condé, Ana Paula Sampaio
Caldeira, Douglas Attila Marcelino, Júnia Ferreira Furtado (minha querida orientadora no
mestrado), Kátia Gerab Baggio, Vanicleia Silva Santos e Tarcísio Rodrigues Botelho.
Ao longo desses quatorze anos frequentando esse lugar meio hospício geral, meio
parque das maravilhas que é a (minha) História-UFMG, fui testemunha de muitas
mudanças. As quais só puderam ocorrer devido às políticas de apoio à expansão e ao
aprimoramento do ensino superior e da pós-graduação no Brasil encetadas pelos governos
federais liderados pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva e pela presidenta Dilma Vana
Rousseff. Destaco especialmente às políticas afirmativas voltadas para a construção de
universidades mais populares e racialmente igualitárias. Dessas mudanças, uma das que
mais me salta aos olhos, em retrospectiva, é a transformação do papel do corpo discente
tanto da graduação, como da pós. Quando entrei na graduação, em 2007, as iniciativas
discentes eram inexistentes, os contatos entre graduandos e pós-graduandos raros e
hierarquizados. Aos poucos, isso foi mudando. Começaram a ocorrer pequenos eventos
acadêmicos locais organizados pelo Centro Acadêmico de História (ali apresentei pela
primeira vez um trabalho de pesquisa). Em 2009, foi criada a Temporalidades, Revista
discente do Programa de Pós-graduação em História da UFMG, na qual pude publicar
meu primeiro artigo científico, em seu segundo número. Em 2012, quando eu estava no
primeiro ano do mestrado, surgiu o Encontro de Pesquisa em História da UFMG, o
insuperável EPHIS, abrindo um espaço inédito de horizontalidade entre graduandos e
pós-graduandos para compartilhar suas pesquisas. Ao mesmo tempo, foram brotando
grupos e coletivos discentes voltados para o estudo, pesquisa e extensão em diversas
subáreas da história.
Escrever, reescrever, revisar uma tese sob quarentena, em meio a uma terrível
pandemia e em um contexto histórico de avanço de forças retrógradas e obscurantistas,
só foi possível, porque, isolado, não estive sozinho. Alguns amigos extremamente
especiais estiveram comigo em todos os passos, ouviram todas as reclamações, os
lamentos, deram conselhos, compartilharam as inseguranças e festejaram os avanços.
Virgílio, Tetê, Átila, Marcella, Dani e Deborah, vocês sabem que eu as amo?
Por fim, quero agradecer as três pessoas que mais de perto me ajudaram, estiveram
comigo e suportaram todas minhas crises de ansiedade e depressão, bem como os ápices
de euforia, durante os quais eu não conseguia parar de falar da pesquisa. Agradeço ao
meu irmão Francisco, médico, psicanalista e hoje mestrando. Não bastasse dois irmãos
bixas, agora seremos dois acadêmicos! Com um carinho e amor sem limites, agradeço
por tudo minha mãe Shorahya, minha primeira e maior professora, historiadora que foi
sem nunca ter sido. E ao meu sodomita favorito, meu namorado, meu melhor amigo e
meu marido Camilo, agradeço com amor e paixão.
Se todas essas pessoas contribuíram para o que possa haver de bom nesse trabalho,
seus inúmeros defeitos só podem ser de minha inteira responsabilidade. Posso apenas
desejar que, no balanço final, o saldo seja positivo e esse texto, cultivado ao longo de uma
década, estimule mais estudos e pesquisas que estranhem e desloquem os referenciais
heterossexuais da história, reescrevendo de forma queer o passado histórico e
questionando nossas identidades do presente.
Soy ese vicio de tu piel
Que ya no puedes desprender.
Soy lo prohibido.
Soy esa fiebre de tu ser
Que te domina sin querer.
Soy lo prohibido.
Soy esa noche de placer,
La de la entrega sin papel.
Soy tu castigo.
Porque en tu falsa intimidad,
En cada abrazo que le das,
Sueñas conmigo.
Soy el pecado que te dio
Nueva ilusión en el amor.
Soy lo prohibido.
Soy la aventura que llegó
Para ayudarte a continuar
En tu camino.
Soy ese beso que se da
Sin que se pueda comentar.
Soy ese nombre que jamás
Fuera de aquí pronunciarás.
Soy ese amor que negarás
Para salvar tu dignidad.
Soy lo prohibido.
(Soy lo prohibido, composição de Francisco Dino Lopez Ramos e Roberto Cantoral
Garcia, na voz de Olga Guillot)
RESUMO
The thesis aims to produce a queer genealogy of sodomy and sodomites, exploring
them as a theological concept, a category of subjectivity or an erotic practice. The
scenario of the research is the Portuguese Overseas Empire during the Modern Age, in
the midst of the persecutory action of the Holy Office of the Inquisition. The central
problem is to discern in which discursive and extra discursive conditions the sodomite
could function as a category of subjectivity. The knowledge-power relations correspond
to, respectively, those discursive and non-discursive conditions. Its play outlined, on these
societies, a mode of experience of eroticism typically Christian. In the wake of the last
Foucault, this work denominates this Christian mode of experience of the erotic as the
dispositif (device or apparatus) of the flesh, in whose bosom, certain subjects were
interpellated (subjected and subjectified) and, thus, manufactured. Thereby, the thesis
constitutes itself by three focuses of an arqueo-genealogical analysis, originating the three
Parts of the text. One facing the knowledge relations around sodomy and the sodomite as
categories organized in certain discursive formations. Another interested in the power
relations capable of interpellate people adept of homoeroticism and/or anal eroticism as
subjects sodomites or Christians. In addition, a third one directed to the ways that the
subjects went on making themselves up in the whirlwind of the knowledge-power
relations and the wider historical processes in the Old Regimen, colonial and slavery
societies. How did the practices of subjectivation of the sodomite subjects come to be in
the midst of the experience of the Christian flesh? Sources like the inquisitorial lawsuits
(as well as the denunciations and confessions registered in the Cadernos do Nefando)
stored up narratives about the lives of people who practiced some form of sodomy. They
were the basis from which to question how both sodomy and the sodomite became
discursive and non-discursive objectives in three levels. First, the moral and spiritual
problematization by the Catholic Church. Second, the efforts of government of the souls
of the subjects of the Portuguese Empire, whose institutions sought to create a political
fantasy of a unified confessional Christian and chaste Empire. Third, the everyday
practices of subjectivation acted up by homoerotic lovers and/or connoisseurs of anal sex.
Lastly, the thesis aims to dislodge contemporary categories of sexual identity, through
focus on the historical discontinuities between homosexuality and sodomy. What was the
radical historical specificity of those subjects that were seen as such a terrible menace,
that it was capable of turning Portugal into an Empire perverted into Sodom? The
undisputable otherness of the sodomite, this juridical subject condemned to the maximum
penalties in hell for his/her desire, designated as nom-natural and irrational, heathen,
effeminate, corrupted, lustful and concupiscent, as an heretical sex, puts on display the
historical contingency of the homosexual subject typical of bourgeois capitalism since
the ending of the nineteenth century.
Figura 3 - A hierarquia sexual: a disputa por onde traçar uma linha divisória 296
SUMÁRIO
I. Arqueologia ................................................................................................................. 82
1.3.1 Interpretações sobre Gênesis 19:1-25: a destruição de Sodoma e Gomorra ....... 149
2.3 Sodomia, heresia e o arbítrio inquisitorial nos processos de dois clérigos sodomitas.
...................................................................................................................................... 246
3.1 A relação anal de Isabel Pereira e do padre Frei Felipe da Cruz: medo e culpa na
Inquisição ..................................................................................................................... 268
3.2.1 Uma nova espiritualidade da carne: ativa, penitencial e conjugal ....................... 288
4.1 Francisco Coelho e a interpelação dos sodomitas no Império português ............... 353
4.2.1 As interpelações no auto da fé: o sermão e a leitura das sentenças ..................... 387
5.1. O caso do sapateiro meio-louco de Olinda: o sodomita como sujeito jurídico ..... 444
5.3.3. Sodomia na ordem dos Agostinianos: o caso do Padre Frei Duarte Pacheco .... 539
6.1.1. A sodomia do padre José Ribeiro Dias: uma vida convertida em infâmia ........ 560
6.1.2. O “mais enorme pecado do mundo”: sodomia e violência na casa de João Carvalho
de Barros ....................................................................................................................... 574
1.2.2. Fontes de textos filosóficos, morais e/ou teológicos digitalizadas. ............... 694
1.3.2. Fontes impressas filosóficas, literárias, morais, religiosas ou teológicas. ..... 700
Em 1991, estreava o que hoje é conhecido como a Primeira Parte da peça de teatro
Angels in America: a Gay fantasia on National Themes (em tradução livre, "Anjos na
América: uma fantasia gay sobre temas nacionais"), composta pelo dramaturgo gay
estadunidense Tony Kushner. A peça abriria na Broadway em 1993, tendo recebido
aclamação de público e de crítica, inclusive na forma de premiações como o Pulitzer, o
Tony e o Drama Desk. Em 2003, as duas partes da peça, nomeadas Millennium
Approaches (em tradução livre, "O Milênio se aproxima") e Perestroika, foram adaptadas
como uma minissérie para o canal de televisão por assinatura HBO, com um estelar elenco
hollywoodiano, também recebendo elogios profusos da crítica especializada.1
A minissérie logo foi comercializada em DVD, sendo nesse formato que eu, um
adolescente de 14 para 15 anos, a assisti pela primeira vez, encantando-me, mas também
me aterrorizando, com as possibilidades de uma experiência como um homem gay entre
o final do século XX e o início do XXI.2 Certamente, naquela idade, eu não poderia
vislumbrar todas as nuances políticas e culturais tematizadas naquela deslumbrante e
aterradora obra de arte. Afinal, o que eu sabia da história do movimento homossexual
moderno nos Estados Unidos? Sobre as políticas dos governos ultraconservadores dos
republicanos Ronald Reagan e George Bush entre as décadas de 1980 e 1990? Sobre a
relação de culpa, medo e ódio entre as religiões cristãs (inclusive uma que me era então
totalmente desconhecida, como a mórmon, ou Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias) e a homossexualidade? Sobre as culturas políticas liberal e conservadora
naquele país (ou mesmo o que era uma cultura política)? Sobre a aids, a sentia mais como
uma sombra mortal que pairava sobre os prazeres que desejava e, timidamente, tentava
concretizar.3 Mais do que tudo, o que eu sabia sobre o que era ser um homem gay? Sobre
1
KUSHNER, Tony. Angels in America. A Gay Fantasia on National Themes. Part One: Millenium
Approaches. Part Two: Perestroika. New York: Theatre Communications Group, 1995, p. 290-1.
2
No início dessa Introdução, decidi conjugar a primeira pessoa no singular, devido ao conteúdo bastante
particular da reflexão que ora proponho. A partir do tópico I e no restante da tese, será utilizada a primeira
pessoa do plural, como estratégia discursiva para deslocar a naturalidade e a universalidade do sujeito
heterossexual no saber histórico, uma vez que, dessa feita, o sujeito "nós" dirá de uma subjetividade
homossexual.
3
As psicólogas Maria Lúcia Chaves Lima e Ana Cleide Guedes Moreira optam pela grafia da palavra “aids”
em caixa baixa, em que seguem as recomendações da Coordenação Nacional de DST e aids. As autoras
explicam, adicionalmente, que está em curso, no Brasil, o processo de dicionarização do vocábulo, que está
deixando de ser uma sigla (acquired immuno deficiency syndrome em inglês), e se tornando um substantivo
comum, de onde, a grafia como “aids”. LIMA, Maria Lúcia Chaves; MOREIRA, Ana Cleide Guedes. AIDS
21
ser gay? No entanto, foi a curiosidade, motivada por um desejo incontinente e uma certa
vontade de saber (que eu não sabia de onde vinha, mas que sentia, confusamente, ligada
a certa culpa cristã, advinda de uma criação e formação em família e escolas católicas
tradicionais em Minas Gerais), que me fez ver e rever inúmeras vezes, nos anos que se
seguiram, não só a minissérie como, depois, novas montagens teatrais da peça. Essa
mesma vontade de saber, hoje, ainda me impulsiona na pesquisa histórica, eu talvez
apenas não seja mais tão ingênuo em relação a ela como já fui.
aids. Diante disso, Cohn não aceitou seu diagnóstico, contestando a identidade normativa
que o dispositivo médico pretendia impor-lhe. A recusa da personagem evidencia, hoje
assim a interpreto, os laços sutis entre discursos de verdade, relações de poder e
identidades de sujeitos sexuais. A seguir, traduzimos livremente o interessante diálogo.
Essas palavras, enunciadas por uma personagem fictícia (ainda que baseada em
figura histórica) e que incorporava, no universo da peça, uma homofobia que seria
subjacente ao conservadorismo nacionalista estadunidense, voltada tanto contra as demais
personagens homossexuais da peça (as quais ele desejava e temia a um só tempo), como,
principalmente, contra si mesma, me instigaram, no contexto da minha pesquisa no
doutorado, a enfatizar como a identidade homossexual tem uma história. Isso porque é a
essa história que o Roy Cohn de Angels obliqua e depreciativamente se refere, ao associar
6
No original em inglês, o trecho é como segue. "Roy: So say it. Henry: Roy Cohn, you are… You have
had sex with men, many many times, Roy, and one of them, or any number of them, has made you very
sick. You have AIDS. Roy: AIDS. Your problem, Henry, is that you are hung up on words, on labels, that
you believe they mean what they seem to mean. AIDS. Homosexual. Gay. Lesbian. You think these are
names that tell you who someone sleeps with, but they don't tell you that. Henry: No? Roy: No. Like all
labels they tell you one thing and one thing only: where does an individual so identified fit in the food
chain, in the pecking order? Not ideology, or sexual taste, but something much simples: clout. Not who I
fuck or who fucks me, but who will pick up the phone when I call, who owes me favors. This is what a
label refers to. Now to someone who does not understand this, homosexual is what I am because I have sex
with men. But really this is wrong. Homosexuals are not men who sleep with other men. Homosexuals are
men who in fifteen years of trying cannot get a pissant antidiscrimination bill through City Council.
Homosexuals are men who know nobody and who nobody knows. Who have zero clout. Does this sound
like me, Henry?". KUSHNER. Angels in America, p. 51.
23
7
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the closet. Baltimore; London: The John Hopkins
University Press, 1986, p. 109-114.
8
Uso o conceito de heterossexualidade compulsória no sentido exposto por Adrienne Rich, como muito
mais do que uma preferência erótica, mas como uma imposição. A heterossexualidade é algo que é
compulsoriamente imposto, administrado, organizado e propagandeado, de modo a naturalizar a categoria
como a regra por excelência da natureza. A heterossexualidade é, por conseguinte, uma instituição do
regime moderno de sexualidade. RICH, Adrienne. Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In:
RICH, Adrienne. Blood, bread and poetry. Selected prose, 1979-1985. London: Virago, 1986, p. 135.
Conferir a tradução do artigo na revista Bagoas. RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e
existência lésbica. Bagoas. Estudos gays, gênero e sexualidade. Tradução Carlos Guilherme do Valle,
Natal, RN, v. 04, n. 05, p. 18-44, 2010.
9
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 82-90.
10
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 44-8.
24
teatral, essas relações têm uma história, se cruzam com outros tipos de relações e
organizam as várias categorias que historicamente existiram e foram usadas para
normatizar essa dimensão do erotismo humano. A história dessas relações e dessas
categorias é o projeto genealógico proposto por David Halperin para uma história da(s)
homossexualidade(s).11 No que toca a uma dessas categorias, a saber, a de sodomia e a
do ou da sodomita, esse é também o projeto que, nesta tese, denominei uma genealogia
queer da sodomia.
11
HALPERIN, David M. How to do the history of homosexuality. Chicago; London: The University of
Chicago Press, 2002, p. 10-2.
25
12
O conceito de performatividade de gênero, que será mais profundamente detalhado a seguir, compreende
esses atos que realizam, em seu acontecer cotidiano, os gêneros. Esses atos são performativos no sentido
de que a essência ou a identidade que pretendem expressar são construtos, feitos e embasados por signos
26
corpóreos e outros meios discursivos. Sendo um efeito de atos performativos em permanente e corriqueira
repetição, o gênero não é uma instância original ou uma categoria a ser atingida, antes é uma cópia destinada
ao fracasso. Ver BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. 4. Ed.
Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
27
nefandas, sendo o objetivo da Parte III analisar esses processos de subjetivação nas
relações de saber-poder antes descritas.
13
A historiadora Margareth de Almeida Gonçalves assim descreveu o ambiente cultural barroco do Império
português na Época Moderna, "O barroco compôs a cena na qual suas experiências ganharam existência.
A intensa religiosidade, que combinou elementos de beatice e carolice, tão característica dos tempos do
Barroco ibérico, completou a atmosfera de um Império português movido pela fé". GONÇALVES,
Margareth de Almeida. Império da fé. Andarilhas da alma na era barroca. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p.
22.
14
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009, p. 214-5.
28
nefando, derivado de ne fandus, o que não pode ser dito. Assim, o sodomita era culpado
por ter feito a sodomia, sendo assim produzido como sujeito desqualificado. Desse modo,
o eixo central da pesquisa é compreender como a sodomia era significada e experimentada
nos níveis discursivo e não-discursivo, constituindo certos tipos de sujeitos enredados e
moldados por certos enunciados e certas técnicas de poder. A análise, por conseguinte,
quer explicitar a especificidade histórica da sodomia e dos sodomitas, decalcando-os de
concepções essencialistas acerca da homossexualidade moderna.
15
Reservamos a definição e a problematização dos conceitos de dispositivo, regime e episteme para os
prolegômenos da tese, por questão de espaço.
16
HALPERIN. How to do the history of homosexuality, p. 9.
29
17
Sobre a parca presença de estudos históricos sobre as homossexualidades na academia brasileira, ver
VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade
das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 13, p. 90-109,
set./dez. 2014.
18
Entre os textos de Luiz Mott no período, ver principalmente MOTT, Luiz. O sexo proibido. Virgens,
gays e escravos nas garras da Inquisição, Campinas, Papirus, 1988; MOTT, Luiz. Pagode português. A
subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais. Ciência e Cultura, v. 40, p. 120-139, 1988; MOTT,
Luiz. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.
19
BARBO, Daniel. Cultura política homoerótica. A Grécia antiga e a (pós) modernidade. Curitiba:
Prismas, 2017.
20
“Straightforward aim of uncovering a homosexual past […] as simply a descriptive category whose
meaning is relatively fixed” (Tradução nossa). NORTON, Rictor. F*ck Foucault. How Eighteenth-Century
Homosexual History Validates the Essentialist Model, p. 1-2. Disponível em:
<http://rictornorton.co.uk/fuckfouc.pdf >. Último acesso em: set. 2020.
30
21
NORTON, Rictor. F*ck Foucault. How Eighteenth-Century Homosexual History Validates the
Essentialist Model, p. 6. Disponível em: <http://rictornorton.co.uk/fuckfouc.pdf >. Último acesso em set.
2020..
22
SÁEZ, Javier. El contexto sociopolítico de surgimento de la teoría queer. De la crisis del sida a Foucault.
In: GARCÍA, David Córdoba; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco. (Orgs.). Teoría Queer. Políticas bolleras,
maricas, trans, mestizas. 2. ed. Barcelona: Editorial Egales, 2007, p. 67-76.
23
BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas Clássica.
Rio de Janeiro: E-Papers, 2008, p. 22.
24
GARCÍA, David Córdoba. Teoría queer: reflexiones sobre sexo, sexualidad e identidad. Hacia una
politización de la sexualidad. In: GARCIA, David Córdoba; SÁEZ, Javier; VIDARTE, Paco (orgs.). Teoría
Queer. Políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona, Madrid: Editorial Egales, 2007, p. 33-34.
31
específicas dessas sociedades, nesse momento exato do tempo, e que provocaram uma
incorporação das perversões e uma especificação nova dos indivíduos.25 Segundo David
Halperin, os processos que levaram ao surgimento da sexualidade foram dois. O primeiro
foi a separação do domínio sexual, na vida dos indivíduos, dos outros domínios culturais
(como a religião, a moral e o direito) a que antes esteve ligado, e sua consequente
definição como um aspecto específico da natureza psicofísica dos indivíduos. O segundo
processo foi a construção da ideia de que há uma essência interior do sexo dos indivíduos,
a construção da ilusão da interioridade do sexo, que seria a raiz das identidades
(performativas) de todos e de todas.26
25
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 46-48.
26
HALPERIN, David. One hundred years of homosexuality and other essays on Greek love. New York:
Routledge, 1990, p. 41-53.
27
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 84-85. Ver também a tradução brasileira do primeiro capítulo
da obra: SEDGWICK, Eve K. A epistemologia do Armário. Cadernos Pagu. Tradução de Plinio Dentzien.
Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, n. 28, p. 19-54, jan.-jun. 2007, p. 48.
32
28
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 86-87. Ver também a tradução brasileira do primeiro capítulo
da obra: SEDGWICK. Epistemologia do armário. p. 48-49.
29
"While there are certainly rhetorical and political grounds on which it may make sense to choose at a
given moment between articulating, for instance, essentialist and constructivist (or minoritizing and
universalizing) accounts of gay identity, there are, with equal certainty, rhetorical and political grounds for
underwriting continuously the legitimacy of both accounts. And beyond these, there are crucial reasons of
respect. I have felt that for this study to work most incisively would require framing its questions in such a
way as to perform the least possible delegitimation of felt and reported differences and to impose the lightest
possible burden of platonic definitional stress. Repeatedly to ask how certain categorizations work, what
enactments they are performing and what relations they are creating, rather than what they essentially mean,
has been my principal strategy". Grifos da autora, tradução nossa. SEDGWICK. Epistemology of the closet,
p. 27.
33
30
Em relação a esse aspecto, a autora cita os trabalhos de Alain Bray, Jonathan Katz, David Halperin e
Jeffrey Weeks, além de Foucault. BRAY, Alan. Homosexuality in Renaissance England. Londres: Gay
Men’s Press, 1982; KATZ, Jonathan. Gay/Lesbian Almanac. A new documentary. Nova Iorque: Harper &
Row, 1983; HALPERIN, David. One hundred years of homosexuality and other essays on Greek love;
WEEKS, Jeffrey. Sex, politics and society. The regulation of sexuality since 1800. Londres: Longman,
1981.
31
Segundo a autora, reificar a categoria da homossexualidade moderna significa contribuir com e reproduzir
as relações de poder que definem o binômio heterossexualidade/homossexualidade com base em estruturas
capciosas de duplos vínculos (double binds) acerca de definições conflituosas. Trata-se de um mecanismo
homofóbico, que funciona por meio de um reforço, implícito, de um (pretenso) consenso sobre um saber
(knowingness) sobre o que é, genuinamente, desconhecido (unknown). SEDGWICK. Epistemology of the
closet, p. 45.
32
A autora comenta que essa percepção é importante para se poder combater leis modernas contra a
sodomia, como existiam em vários estados dos EUA entre as décadas de 1980 e 1990, ou em diversos países
do mundo ainda hoje. SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 47.
34
33
O que não quer dizer que toda interpretação queer, ou assim inclinada, da história do homoerotismo passe
distante da construção anacrônica do sodomita como homossexual. Ver, por exemplo, o texto, hoje
considerado clássico por alguns coletivos anarco-queer, de Arthur Evans, publicado originalmente em
1978. Ao traçar uma história alternativa do Ocidente, criticando suas bases patriarcais, capitalistas e
colonialistas, o autor acaba ligando de forma demasiado imediata o sodomita medieval e do Antigo Regime
ao homossexual burguês moderno. Porém, o texto não deixou de ser apontado como um exemplo de história
decolonial da cultura popular (da chusma, na tradução espanhola). EVANS, Arthur. Brujería y
contracultura gay. Una visión radical de la civilización occidental y de algunas de las personas que han
tratado de destruirla. Trad. Valentina Ripani. Barcelona: Distri Josep Gardenyes; Editorial Descontrol,
2015.
34
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 40; 48.
35
HALPERIN. How to do the history of homosexuality, p. 12.
35
histórica radical. Não se trata tanto ou somente de estranhar o sodomita, mas, principal,
inicial e finalmente, estranhar-nos como sujeitos homossexuais.36
36
Nas palavras de Halperin, referindo-se ao seu campo de estudo, o homoerotismo na cultura grega antiga.
"O que eu, e muitos outros, temos aprendido a partir desse trabalho é que não eram os gregos que eram
estranhos em relação ao sexo, antes sim que somos nós, hoje, particularmente homens e mulheres das
classes professionais, que temos uma organização, cultural e historicamente, única da vida sexual e social
e, portanto, temos dificuldades para entender os sistemas de sexo-gênero de outras culturas". Tradução de
nossa autoria. Na versão original: "What I, and many others, have learned from this work is that it is not
the Greeks who were weird about sex but rather that it is we today, particularly men and women of the
professional classes, who have a culturally and historically unique organization of sexual and social life
and, therefore, have difficulty understanding the sex/gender systems of other cultures". HALPERIN. How
to do the history of homosexuality, p. 3.
37
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 47-8; HALPERIN. How to do the history of homosexuality,
p. 12-3.
36
38
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 46-7.
39
Halperin alerta para a impropriedade de uma leitura de Foucault como fonte de uma distinção inflexível
entre identidades e atos sexuais, notando como o conceito de identidade sequer aparece no trecho citado
acima. O que estava em jogo, na verdade, era a descrição de dois dispositivos distintos para o controle das
experiências eróticas humanas. Encontramos essa errônea interpretação do raciocínio foucaultiano em
alguns trabalhos historiográficos brasileiros, mais recentemente no artigo de Edson Santos Silva Correio e
Wallas Jefferson Lima Correio, no qual a descontinuidade histórica abordada pelo filósofo francês é
reduzida a uma questão terminológica ou, mais grave ainda, deformada a tal ponto que se torna uma
afirmação da inexistência de "homossexuais" no passado. Como no trecho seguinte, "Nesse terreno, ou seja,
o do "correto" uso da palavra homossexual e sodomita, os estudos Foucaultianos impuseram seu domínio.
Ainda hoje há historiadores que sustentam a tese de Foucault preferindo ocultar a questão da identidade
homossexual. Ora, o que este artigo tenta mostrar é exatamente o contrário. A interpretação de Foucault é
aqui posta em questão pois, ao invés de simplesmente afirmar que "não havia homossexuais antes do século
XIX", reconhece-se que a identidade é, desde sempre algo valioso, importante e inerente a determinados
grupos sociais. Por que seria diferente com os indivíduos que amam o mesmo sexo?". Ao colocar o
problema das relações histórico-genealógicas entre a sodomia e a homossexualidade nesses termos, os
autores demonstram uma apropriação ingênua do pensamento foucaultiano (falhando em percebê-lo antes
como método do que como interpretação fechada) e, de modo mais importante, adiantam uma interpretação
histórica que não trabalha a historicidade de suas categorias, especialmente as de homossexualidade e de
heterossexualidade. HALPERIN. How to do the history of homosexuality, p. 27-32; CORREIO, Edson
Santos Silva; CORREIO, Wallas Jefferson Lima. Homo eroticos: considerações acerca do conceito de
Sodomia nos processos da Inquisição portuguesa. Revista Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p. 265-284,
set. 2016, p. 14.
37
Jordan, nessa passagem, Foucault operava um contraste entre uma operação de saber-
poder-subjetivação para a personificação da imputação de uma culpabilidade jurídica (da
sodomia) e uma outra, diferente, operação (que punha em funcionamento outros saberes,
outros poderes e outros sujeitos) para a construção científica de um novo e integral ser
(subjetividade), que ia além da culpa jurídica.40
40
JORDAN, Mark D. Convulsing bodies. Religion and resistance in Foucault. Stanford, CA: Stanford
University Press, 2015, p. 105.
41
JORDAN. Convulsing bodies, p. 106.
38
42
MOTT, Luiz. Justitia et misericordia: a Inquisição portuguesa e a perseguição ao nefando pecado de
sodomia. In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, M. Luiza Tucci. (Orgs.). Inquisição. Ensaios sobre
mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992, p. 707.
43
ARIÈS, Philippe. Reflexões sobre a história da homossexualidade. In: ARIÈS, P.; BÉJIN, André. (Orgs.).
Sexualidades ocidentais. Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. Trad. Lygia
Araújo Watanabe, Thereza Christina Ferreira Stummer. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 80.
44
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 144-147.
39
nefando com pessoas do mesmo sexo, conjunto que sequer esgota o de todos os
sodomitas. Para entender as razões pelas quais os praticantes da sodomia no Período
Moderno não podem ser vistos como homossexuais, cabe compreender com precisão
como a categoria homossexualidade surgiu e os sentidos que ela conotava em seu
surgimento.
Definir a categoria homossexualidade não é uma tarefa fácil, uma vez que ela tem
assumido vários e conflituosos sentidos desde o século XIX, quando foi pela primeira vez
cunhada. Assim, num primeiro recorte, trata-se, nesta tese, de distinguir a sodomia e seus
praticantes da homossexualidade e dos homossexuais tal qual estas últimas categorias
foram pensadas e vividas em seu momento de formação. Avançar para os sentidos
posteriores da homossexualidade, ao longo do século XX, exigiria um esforço de pesquisa
e de escrita que não pode ter espaço neste trabalho, dada a complexidade das disputas
instauradas em torno da identidade que, aos poucos, se formou em torno da categoria
homossexualidade nos últimos cem anos e, especialmente, após a eclosão do moderno
movimento identitário homossexual.45
45
Para a história do movimento gay moderno nos Estados Unidos, ver: ALTMAN, Dennis. Homosexual
Oppression and liberation. Sydney: Angus and Robertson, 1972; D’EMILIO, John. Sexual politics, sexual
communities. The making of a homosexual minority in the United States 1940-1970. Chicago: University
of Chicago Press, 1983. Para a história do movimento gay moderno no Brasil, ver: FACCHINI, Regina.
Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005; FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Abril
Cultural; Brasiliense, 1985 (Coleção Primeiros Passos); CANABARRO, Ronaldo. Breve história do
movimento LGBT. In: OLIVEIRA, Cínthia Roso; PICHLER, Nadir Antonio; CANABARRO, Ronaldo.
(Orgs.). Filosofia e homoafetividade. Passo Fundo: Méritos, 2012, p. 193-208; PÉRET, Flávia. Imprensa
gay no Brasil. Entre a militância e o consumo. São Paulo: Publifolha, 2011. Para críticas ao movimento
gay internacional, especialmente em suas vertentes estadunidense e francesa, ver: HOCQUENGHEM, Guy.
A contestação homossexual. São Paulo: Brasiliense, 1980. Para críticas ao movimento gay brasileiro, ver
MACRAE, Edward. Os respeitáveis militantes e as bichas loucas. In: COLLING, Leandro. (Org.).
Stonewall 40 + o que no Brasil?. Salvador: EDUFBA, 2011, p. 21-35.
46
GREEN, James. Além do carnaval. A homossexualidade no Brasil do século XX. São Paulo: Ed. UNESP,
2000; FRY, Peter. Para inglês ver. Identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982;
GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Editora Garamond,
40
2004; PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê. A prostituição viril em São Paulo. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
47
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 62. BARBO, Daniel. Cultura política homoerótica. A
Grécia antiga e a (pós) modernidade. Curitiba: Prismas, 2017, p. 34.
48
BARBO. Cultura política homoerótica, p. 36.
49
BARBO. Cultura política homoerótica, p. 37-38; BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade:
cultura grega, cientificismo e engajamento. In: COSTA, Adriane Vidal; BARBO, Daniel. História,
literatura e homossexualidade. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 12-14.
41
A categoria proposta por Ulrichs era fundada na biologia, uma vez que partia da
pressuposição de que o embrião humano era, a princípio, indiferenciado sexualmente,
distinguindo-se entre machos e fêmeas posteriormente, ao longo da gestação.50 O
fenômeno da pessoa urning aconteceria pelo desenvolvimento contrário do cérebro e dos
órgãos genitais, pois, para Ulrichs, o uranista era, essencialmente, alguém que tinha uma
alma feminina presa em um corpo masculino. Essa categorização do homoerotismo era
resumida na frase anima muliebris virili corpore inclusa. Percebe-se que, na
categorização de Ulrichs, os homens praticantes do homoerotismo eram projetados como
feminizados, o que, na leitura de Pedro Paulo de Oliveira, era entendido como uma
condição inevitável e insuperável dos uranistas.51
Nas décadas finais do século XIX, a categoria urning ganhou mais projeção que a
de homossexualidade, como forma de classificar e referir-se aos praticantes do
homoerotismo. Contudo, devido à sua maior circulação e progressiva maior definição
científica, a categoria homossexualidade acabou se tornando hegemônica na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos até as primeiras décadas do século XX. Entre os mais
influentes divulgadores da categoria homossexualidade, estava o sexólogo e psiquiatra
austro-alemão Richard von Krafft-Ebing que, na segunda edição de sua obra
Psychopathia Sexualis (primeira edição em 1886), incorporou os conceitos de Kertbeny
a partir do livro Die Entdeckung der Seele (título traduzido por Daniel Barbo como A
Descoberta da Alma) do naturalista e higienista alemão Gustav Jäger, de 1880. O livro
de Krafft-Ebing atingiu grande popularidade, até mesmo extrapolando o público
especializado, conseguindo várias edições e sendo traduzido para diversos idiomas –
inclusive para o inglês, o que garantiu sua difusão na Inglaterra e nos Estados Unidos.52
50
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 62-63.
51
OLIVEIRA, Pedro Paulo. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de
Janeiro: IUPERJ, 2004, p. 166.
52
BARBO. Cultura política homoerótica, p. 42-45. Jonathan Katz mostra que as categorias
heterossexualidade-homossexualidade foram introduzidas nos Estados Unidos no começo de 1893, na
primeira edição estadunidense em inglês da Psychopathia Sexualis, with especial reference to contrary
sexual instinct: a medico-legal study, de Richard von Krafft-Ebing. Segundo Katz, este livro teve muitas
edições nos EUA, tornando-se um dos mais famosos e influentes textos sobre sexualidade patológica. Seus
exemplos perturbadores de um sexo supostamente doente subrepticiamente definiram uma nova ideia de
um sexo supostamente saudável naquele país. KATZ, Jonathan. A invenção da heterossexualidade. Préfacio
de Gore Vidal. Trad. Clara Fernandes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 33.
42
53
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 64-65.
54
Daniel Barbo mostra, porém, que alguns anos depois da publicação de Psychopathia Sexualis, Krafft-
Ebing mudou de opinião a respeito da homossexualidade, deixando-a de considerá-la uma doença mental.
O novo diagnóstico de Krafft-Ebing foi publicado em 1901, em um artigo para o Jahrbuch für sexuelle
Zwischenstufen. Porém, esta mudança no posicionamento de Krafft-Ebing não alcançou a mesma
notoriedade que suas primeiras afirmações, permanecendo esquecida até a publicação do texto introdutório
de Terence Sellers a uma nova edição inglesa da Psychopathia Sexualis em 1997. BARBO, Cultura política
homoerótica, p. 46-48.
55
Entre as principais obras de Sigmund Freud que discutem a categoria homossexualidade, estão os textos:
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância
(1910), O caso Schreber (1911) e Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920).
Podem ser consultados em: FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S.
Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. VII; FREUD, S. (1910). Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua infância. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. vol. XI; FREUD,
S. (1911). O caso Schreber. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. vo. XII; FREUD,
S. (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In: FREUD, S. Obras completas.
Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. XVIII.
56
Entre vários autores que compõem a tradição que classifica como “freudismo”, Hocquenghem cita Sandor
Ferenczi, autor dos artigos El papel de la homosexualidad en la patogénesis de la paranoia, de 1911, e El
homo-erotismo: nosología de la homosexualidad masculina, de 1914; André Morali-Daninos, autor do
livro Sociología de las relaciones sexuales, de 1967, Whilhelm Stekel, autor de Onanie und Homosexualität
(die homosexuelle Parapathie), de 1917, H. Giese, autor de Der homosexuelle Mann in der Welt, de 1958.
O autor também cita um grande número de médicos, psiquiatras e sexólogos proeminentes na França após
a Segunda Guerra Mundial. HOCQUENGHEM, Guy; PRECIADO, Beatriz. El Deseo Homosexual.
Epílogo El terror anal. Barcelona: Melusina, 2009, p. 27-27. FRY, MACRAE. O que é homossexualidade.
p. 72-75.
43
Uma das primeiras e mais importantes descobertas de Freud foi o papel da libido
como fundamento da vida afetiva dos indivíduos. Porém, imediatamente, ele a agrilhoou
a um modelo específico de família, a privatização edípica familiar.57 A emergência da
libido, para Freud, deve ser acompanhada pelo funcionamento do complexo de Édipo,
que, segundo Hocquenghem, é o mais fantástico sistema de culpabilização jamais
inventado.58 Em uma época em que a individualização capitalista consome a família,
tirando-lhe suas funções sociais tradicionais, o Édipo representou a interiorização mental
da instituição familiar. De modo correlato, a edipianização da homossexualidade (sua
explicação como patologia mental a partir do desenvolvimento incorreto da Lei do Pai,
representada pelo Édipo, que foi elevado à posição de norma), promovida pelos
seguidores de Freud, corresponde à mesma crise da família como instituição social nas
sociedades capitalistas.
57
Segundo Peter Gay, com a publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em 1905, Freud
construiu um mapa para a sexualidade, articulando sua teoria geral, centrada na teoria da libido, como
pulsão sexual. A experiência do complexo de Édipo foi descrita nesse quadro, um instrumento para rastrear
os anseios e as desilusões sexuais até as fantasias infantis. De fato, a noção da sexualidade infantil se
mostrou fundamental para sua teoria da libido. GAY, Peter. Freud. Uma vida para nosso tempo. Trad.
Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-5.
58
HOCQUENGHEM. El deseo homosexual, p. 49-50.
59
DRESCHER, Jack. A história da homossexualidade e a Psicanálise organizada. In: QUINET, Antonio;
JORGE, Marco Antonio Coutinho. (Orgs.). As homossexualidades na psicanálise. Na história de sua
despatologização. São Paulo: Segmento Farma Editores, 2013, p. 48-50. Segundo Gay, "O primeiro ensaio,
notável tanto pelo alcance como pelo impassível tom clínico, apresenta, sem louvar nem deplorar, uma
coleção ricamente diversificada de dotes e inclinações eróticas: hermafroditismo, homossexualidade,
44
Se, para Freud, a categoria homossexualidade não dizia de uma doença, ela
tampouco era a normalidade esperada. Tratar-se-ia de uma forma imatura de sexualidade,
algo que impedia a pessoa de atingir o desenvolvimento normal – designado pela
categoria de heterossexualidade. Esse julgamento de Freud deu espaço para que seus
seguidores entendessem a homossexualidade como uma carência constitutiva. Já não
constituirá uma das especificações fortuitas de um desejo polivalente, ao contrário, será
apresentada como ódio à mulher, à posição desta como único objeto sexual social. A
heterossexualidade foi alçada à posição de normalidade, frente a uma homossexualidade
à que falta o objeto essencial do desejo. A homossexualidade foi, pois, caracterizada como
essencialmente neurótica, como uma neurose ligada ao ódio à mulher.61
pedofilia, sodomia, fetichismo, exibicionismo, sadismo, masoquismo, coprofilia, necrofilia. Numas poucas
passagens, Freud tem um tom crítico e convencional, mas sua intenção, visivelmente, não era crítica. Depois
de enumerar o que qualificou de "as perversões mais desagradáveis", ele as descreveu de maneira neutra,
e mesmo aprovadora; elas tinham realizado "uma parcela de trabalho mental" a que, "apesar de seu cruel
êxito", não se poderia negar o "valor de uma idealização da pulsão". De fato, "a onipotência do amor talvez
não se mostre em nenhum outro lugar com maior força do que nessas aberrações". (Grifos nossos) GAY.
Freud, p. 146.
60
FREUD, S. Carta a uma mãe americana, 1935, apud ERNEST, Jones. Vida e obra de Sigmund Freud. 3.
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 739. Comentando essa carta, Gay destaca como as ideias de Freud a
respeito da naturalidade e da neutralidade moral da homossexualidade estavam em descompasso com as de
seus colegas e mesmo de sua época. "Essa postura não haveria de satisfazer os homossexuais decididos a
considerar seus gostos sexuais como uma alternativa adulta do modo de amar. Mas, na época em que Freud
escreveu a carta, suas ideias sobre a homossexualidade ainda eram extremamente pouco convencionais e
pouco compartilhadas, pelo menos em público". GAY. Freud, p. 551.
61
HOCQUENGHEM. El deseo homosexual, p. 53-55.
45
Assim, segundo Fry e MacRae, Freud e seus seguidores (estes com mais forças
que o mestre) conceituaram a homossexualidade como uma condição incurável,
elencando quatro causas principais: a fixação (a não completude do processo de
maturação sexual), o medo da castração, o narcisismo e a identificação com um dos pais
do sexo oposto.65 Os autores chamam atenção para o fato de o conceito de
homossexualidade da psicanálise freudiana não ser apenas um mecanismo de controle
sobre os, doravante chamados, homossexuais. Era igualmente um mecanismo para
controlar suas famílias, seus pais, responsabilizados pela homossexualidade dos filhos.66
Essa extrapolação dos mecanismos de controle foi similarmente apontada por Foucault,
em sua crítica à psicanálise como discurso que ligou o antigo dispositivo da aliança ao
novo dispositivo da sexualidade:
62
HOCQUENGHEM. El deseo homosexual, p. 55.
63
Jack Drescher chama atenção para a importância de não perceber a comunidade dos psicanalistas como
monolítica. Visando evitar esse risco, ele comenta alguns autores que, até meados do século XX, agiram
como dissidentes da corrente freudiana principal da psicanálise, criticando a patologização da categoria
homossexualidade. São citados, como dissidentes, Judd Marmor, Thomas Szasz e Robert Stoller.
DRESCHER. A história da homossexualidade e a Psicanálise organizada, p. 51-52.
64
HOCQUENGHEM. El deseo homosexual, p. 56.
65
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 74.
66
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 75.
67
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 115-116.
46
ou homossexual, como dotou cada uma dessas categorias com juízos de valor que
marcavam lugares socioculturais específicos, sendo o heterossexual o normal e o
homossexual o anormal, o marginal. Com isso se coaduna a reflexão de Jeffrey Weeks
sobre o papel desempenhado pelos sexólogos na construção moderna da sexualidade, por
meio de sua qualificação variável como boa ou má, saudável, normal ou anormal, própria
ou imprópria.68 Por sua vez, Hocquenghem, inspirado pela leitura de O Anti-Édipo de
Deleuze e Guattari, assinalou que o freudismo desempenhou um papel similar de
organização e controle do desejo, àquele realizado pelas forças econômicas capitalistas
sobre o capital. Essa ação de organização e controle descobre a força geral em ação na
vida econômica ou na vida sexual, somente para, em seguida, privatizá-la em novas
relações alienantes. Assim, se, ao descobrir o trabalho como fundamento do valor, a
economia política burguesa o aprisiona imediatamente sob a forma da propriedade
privada dos meios de produção, o freudismo, como uma força da economia sexual
moderna, ao descobrir o desejo como fator de produção das subjetividades, o aprisiona
em formas de identidade privadas fechadas no complexo edipiano.69 Porém, aqui, é
importante retomar o alerta de Weeks: ainda que a história da sexualidade, e da
homossexualidade em particular, seja limitada e pressionada pelas relações sociais
capitalistas, uma não se reduz a outra, uma história do capitalismo não é uma história da
sexualidade.70
68
WEEKS, Jeffrey. Sexuality and its discontents. Meanings, myths & modern sexualities. London, UK,
New York, N.Y.: Routledge, 1999, p. 6-7.
69
HOCQUENGHEM. El deseo homosexual, p. 50-51.
70
WEEKS. Sexuality and its discontents, p. 6.
71
BARBO. Cultura política homoerótica, p. 73. OLIVEIRA. A construção social da masculinidade, p.
166-167.
47
72
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 88-90.
73
Hocquenghem criticou duramente os modelos de homossexualidade do freudismo e do terceiro sexo. Em
relação a este último, ponderou que era condenado ao fracasso, uma vez que organizava a liberação dos
homossexuais a partir de caráter supostamente inato e irreprimível de seus desejos. Se essa teoria tem a
vantagem, do ponto de vista do dispositivo da sexualidade, de permitir que o homem homossexual seja
referido a uma categoria que salvaguarda o valor discriminatório do falo, por outro lado, contém o perigo
de aceitar a coexistência de mais de dois sexos, a não ser que todos os homossexuais fossem postos em um
campo de concentração. Assim, segundo Hocquenghem, a teoria do terceiro sexo, quando não é inclinada
ao fascismo, resulta perigosa. HOCQUENGHEM. El deseo homosexual, p. 99-105.
74
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 86-87. BARBO. Cultura política homoerótica, p. 73-
78.
48
75
WEEKS. Sex, politics and society, p. 10.
76
Os antropólogos Sérgio Carrara e Júlio Simões realizaram uma leitura crítica da literatura antropológica
sobre a homossexualidade brasileira produzida entre as décadas de 1970 e 1980. Em vários aspectos, suas
observações convergem com as propostas da presente pesquisa. Criticando, principalmente, os estudos de
Peter Fry e Richard Parker, os autores mostram como suas interpretações terminam por negar à cultura
brasileira seu lugar no mundo e na história ocidentais, reificando uma dinâmica de centro-periferia em que
o Brasil só tem lugar como receptor passivo de influências e importações estrangeiras e produtor de
exotismos a serem analisados cientificamente por pesquisadores dos países centrais. Para desmontar esse
arranjo, no que diz respeito à história do homoerotismo, Carrara e Simões mostram que o modelo
hierárquico do homoerotismo, proposto por Fry como característico da cultura popular brasileira, e por
Parker, como próprio à tradição nacional do Brasil, não constitui um traço singular ou não-ocidental do
homoerotismo na sociedade brasileira. Tal modo de hierarquizar as relações eróticas e de gênero tem uma
longa história no Ocidente, segundo os autores, tendo sido presente em países europeus desde a Antiguidade
e nos Estados Unidos até o século XX. É nesse sentido que a crítica dos autores converge com nossa
pesquisa, pois, ao devassar os processos inquisitoriais de sodomitas no Período Moderno, um arranjo
similar ao do modelo hierárquico se fez notar, em alguns casos flagrantemente – embora seja também
preciso ressaltar que ele não foi universal entre as fontes que estudamos, uma vez que muitos praticantes
da sodomia pareceram orientar suas práticas eróticas de outras formas. Como detalharemos no último
capítulo da tese, as marcas da violência escravista sobre as relações sodomíticas (homoeróticas ou não), no
contexto de uma ordem de gênero antiga, cujas raízes remontam à Antiguidade, se fizeram presentes em
vários dos arranjos erótico-afetivos, mais ou menos coercitivos, articulados por amantes sodomitas no
Império português. CARRARA, Sérgio; SIMÕES, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória
da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu. Campinas. n. 28, janeiro-
junho 2007, p. 65-99.
49
77
GREEN. Para além do carnaval, p. 27-28.
78
Em seu artigo Entre discursos, jeitos e gestos: performance de gênero e sexualidade no mercado erótico
de travestis e cross-dressers, o antropólogo Leandro de Oliveira realizou uma etnografia sobre as interações
eróticas em uma boate voltada para homens não heterossexuais de camadas populares no subúrbio da cidade
do Rio de Janeiro. Em sua pesquisa, o autor identificou como as performances de gênero das personagens
eram orientadas para a produção performativa de modos de subjetividade hierarquizados em torno das
categorias de homem e de bicha, cada uma com seu jeito específico. Essa pesquisa serve como uma
evidência, entre outras possíveis, da permanência do modelo hierárquico tradicional do homoerotismo na
cultura brasileira contemporânea. OLIVEIRA, Leandro. Entre discursos, jeitos e gestos: performance de
gênero e sexualidade no mercado erótico de travestis e cross-dressers. In: LOPES, Luiz Paulo da Moite;
BASTOS, Liliana Cabral. (Orgs.). Para além da identidade. Fluxos, movimentos e trânsitos. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 235-259.
79
PERLONGHER. O negócio do michê, p. 17-39.
80
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 47.
50
estudo sobre a prostituição masculina no dito gueto gay de São Paulo, no início da década
de 1980, a partir do depoimento de um dos michês entrevistados em sua pesquisa:
A situação clássica é a seguinte: sempre o michê diz que só come. Mas muitas
vezes o diz só no pedaço, porque não pode falar de outro jeito, se ele falar que
dá, aí o cliente pode atravessar a rua e contar para os outros michês. Então ele
diz: ‘Eu só como’. Daí que às vezes chegam ao hotel e o cliente pretende comer
ou beijar, botar o dedo no cu, botar o pinto entre as pernas do rapaz (...). Ele
pode viver isso como uma ofensa, uma ferida, e reagir (...).81
Seguindo a narrativa de James Green, vê-se que esse modelo tradicional, a partir
das primeiras décadas do século XX, começou a dividir espaço com o modelo do binário
heterossexual-homossexual importado por médicos brasileiros a partir da Europa. Nesse
período, formou-se, no Brasil, uma intrincada rede de discursos religiosos, jurídicos e
médicos sobre o homoerotismo, em parte informada pelas novas teorias vindas dos
centros produtores de conhecimento do capitalismo, em parte reprodutora das noções
tradicionais e autóctones sobre a questão. Nessa rede, o amante homoerótico mais
afeminado foi construído como imoral, degenerado e, progressivamente, passou a ser
descrito como homossexual, vítima de distúrbios psicológicos. Esses profissionais
também criaram uma taxionomia própria, que dividia os homossexuais em indivíduos
“penetradores” e “penetrados”, embora os critérios para empregar tais categorias fossem,
segundo Green, variáveis e inconsistentes.82 Também no Brasil, percebe-se o processo
pelo qual o discurso médico lutava para assegurar a si uma posição de poder sobre a
verdade da questão do homoerotismo, deslocando e desvalorizando os argumentos morais
sobre a sodomia (aqui, estritamente no sentido de homoerotismo), posicionando, em seu
lugar, discussões científicas sobre a patologia da homossexualidade.83
81
PERLONGHER. O negócio do michê, p. 222.
82
GREEN. Além do carnaval, p. 77-78.
83
GREEN. Além do carnaval, p. 78.
51
84
FRY; MACRAE. O que é homossexualidade, p. 50.
85
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 159. nota 32.
86
FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas. Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de
Janeiro. Séculos XVII ao XX. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007, p. 115-119.
52
87
COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício. Estudos sobre homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1992, p. 13-40.
88
FERRARI, Anderson. Homoerotismo. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antonio.
(orgs.). Dicionário crítico de gênero. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2015, p. 351-353.
53
89
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.
33-48.
90
BATAILLE. O erotismo, p. 53-60.
91
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 15-6.
54
A sodomia, por conseguinte, será estudada nesta tese como uma categoria sexo-
política da dimensão erótica da cultura ocidental, cujo objetivo é a produção de
subjetividades nos termos do dispositivo da carne cristã. Consequentemente, o foco será,
primordialmente, sobre as experiências subjetivas, da vida interior, das pessoas
interpeladas como sodomitas. Como elas sentiram, experimentaram, se sujeitaram e se
subjetivaram suas práticas (homo)eróticas?
As práticas eróticas e de gênero dos indivíduos são modos primários pelos quais
se desenvolvem as dinâmicas das relações de poder de determinada sociedade.93 Podem
92
BATAILLE. O erotismo, p. 62.
93
A historiadora Joan W. Scott define seu uso da categoria de gênero conforme duas proposições. A
primeira delas é que o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas em certas
percepções das diferenças entre os sexos. Isso significa que as diferenças entre os sexos, aparentemente
biológicas, são construídas, historicamente, através das variações da categoria de gênero. A segunda
proposição é que o gênero é um modo primário de dar significado às relações de poder na história. Com
esta afirmativa, a historiadora pretende alargar o domínio de objetos históricos passíveis de uma análise de
gênero, não a limitando à história das mulheres, dos diversos grupos dissidentes das normas sexuais e de
gênero e da construção de suas subjetividades. Joan Scott abre a possibilidade de áreas mais tradicionais de
pesquisa histórica também serem passíveis de análises com a categoria gênero, como no trecho seguinte:
“Politics is only one of the areas in which gender can be used for historical analysis. I have chosen the
following examples relating to politics and power in their most traditionally construed sense, that is, as they
pertain to government and the nation-state, for two reasons. First, the territory is virtually uncharted, since
gender has been seen as antithetical to the real business of politics. Second, political history – still the
dominant mode of historical inquiry – has been the stronghold of resistance to the inclusion of material or
even questions about women and gender”. SCOTT. Gender: a useful category of historical analysis, p.
1070. Nesse sentido, a autora propõe que áreas como a história das guerras, da diplomacia ou do Estado
possam ser analisadas de um novo modo, através da categoria gênero. Dessa maneira, retornando ao recorte
desta pesquisa, o estudo de um objeto eminentemente político, como, por exemplo, o funcionamento
administrativo do Império português, poderia ser abordado, de uma nova maneira, através da aplicação da
categoria gênero. Assim, outras características de seu funcionamento poderiam vir à luz, a depender da
55
Como foi dito, os processos movidos pelo Tribunal do Santo Ofício contra os
homens e as mulheres que praticaram a sodomia constituem o conjunto principal das
fontes desta pesquisa. Contudo, não só processos completos serão analisados. Os
Cadernos do Nefando também apresentam narrativas prenhes de detalhes que
descortinam o dia a dia dos processos de subjetivação dessas pessoas, tidas como
abomináveis pecadores, culpados do crime de sodomia, em Portugal e alhures. Desse
criatividade dos historiadores no manuseio de fontes muitas vezes lidas ou na inclusão de novos conjuntos
documentais, até aqui pensados como inúteis ao estudo de tal objeto.
94
NOVAIS, Fernando A. Condições de privacidade na colônia. In: SOUZA, Laura de Mello e. História da
vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p.13-39. Para a discussão da problemática do público e do privado na Europa do Período Moderno,
ver ARIÈS, Philippe. História social da família e da criança. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986; ARIÈS,
Philippe. Por uma história da vida privada. In: ARIÈS, P.; DUBY, Georges. (Orgs.). História da vida
privada. Volume 3. Da Renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia de Bolso, p. 9-20; DUBY,
Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, P.; DUBY, Georges. (Orgs.). História da vida privada.
Volume 2. Da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p. 15-50; ELIAS,
Norbet. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. Vol. 1.
95
Essas questões passam pela querela referida acima entre os modos de compreender o funcionamento
político e administrativo do império português. Não sendo o caso de aprofundar-me nas razões de cada uma
das partes do debate historiográfico, para defender ideias de um império mais ou menos centralizado,
acredito que o mero elencar das características que tomei como mais significativas aponta para uma
conciliação tensa entre elas, sob o entendimento de que nenhuma interpretação histórica é definitiva, antes
elas iluminam problemas acerca do passado sob diferentes primas. Para uma visão dessa discussão e das
críticas recíprocas de cada corrente para a outra, ver: SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política
e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006;
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (orgs.). O
Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001; HESPANHA, António Manuel. Depois do Leviathan. In: HESPANHA,
António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012, p. 7-40.
56
modo, ainda que não sejam processos inteiramente formados (não dispondo de várias
informações que os processos amiúde trazem), constituem um segundo conjunto
fundamental de fontes para a pesquisa. Um terceiro conjunto diz respeito às confissões,
denúncias e processos realizados no curso das três visitações do Santo Ofício às partes do
Brasil.
organizada por Bruno Feitler, Evergton Sales Souza, Istvan Jancsó e Pedro Puntoni.
Porém, a análise de documentos jurídicos prescritivos não pode enganar o historiador,
pois havia uma enorme distância entre a norma prescrita e a prática cotidiana dos
tribunais. Tal disparidade é, no entanto, aquilo que dava ao desenrolar corriqueiro dos
processos sua originalidade frente às leis e normas, revelando-se como interessantes ao
olhar do historiador.
duradoura a cultura ocidental e o dispositivo da carne. Uma lista completa dos textos
específicos consultados de cada autor está disponível no Índice final da tese.
V. Aporte teórico-metodológico
Como dar sentido a essa multidão de fontes díspares? Mesmo tendo um problema
histórico como guia na leitura dos documentos, é indispensável o emprego de certo
método no tratamento das fontes. Nesta pesquisa, o método da genealogia foucaultiana
sobressaiu como fértil para investigação dos sentidos relacionados à prática sodomítica
no império português da Época Moderna. Todavia, diante das complexidades envolvidas
na apropriação e no uso do arsenal metodológico foucaultiano (o qual exige um debruçar-
se sobre todo o pensamento do filósofo, para evitar análises e julgamentos simplistas),
tomamos a decisão de deslocar a discussão dos nossos usos da arqueologia e da
genealogia foucaultiana para um espaço à parte, que deu forma aos prolegômenos da tese.
Assim, neste momento, detemo-nos somente na discussão sobre o lugar desta pesquisa
histórica sobre a Época Moderna dentro do referencial da Teoria Queer, detalhando
também alguns conceitos de autoras e autores queer que, de modo secundário em relação
ao aporte teórico-metodológico foucaultiano, também nos foram úteis para problematizar
alguns aspectos menos evidentes da experiência sodomítica nos termos do dispositivo da
carne cristã.
96
"Todavia, apesar da maior recepção dos temas relacionados às homossexualidades pelos programas de
história, da incorporação do gênero como categoria de análise e da aproximação de alguns/as historiadores
das reflexões pós-identitárias, como a teoria queer, os pressupostos interpretativos baseados na dicotomia
dos gêneros continuam a nortear a disciplina, repetindo "incansavelmente a existência binária de gêneros
fundados em corpos sexuados"". VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Outras histórias de Clio:
escrita da história e homossexualidades no Brasil. In: SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de; GOMES,
Aguinaldo Rodrigues (orgs.). História & teoria queer. Salvador, BA: Editora Devires, 2018, p. 134. Na
mesma perspectiva, ver NAVARRO-SWAIN, Tania. História, construção e limites da memória social. In:
RAGO, Margareth; FUNARI, Pedro Paulo (orgs.). Subjetividades antigas e modernas. São Paulo:
Annablume, 2008, p. 29-46.
59
seu ordenamento binário, como argumentaram Elias Veras e Joana Maria Pedro, sem
questionar como a organização das dicotomias homem/mulher, masculino/feminino,
heterossexual/homossexual, normal/anormal, centro/periferia, natureza/cultura,
cristão/pecador, saudável/doente atua no sentido da produção de narrativas históricas que
reproduzem a heteronorma.97
97
VERAS; PEDRO. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no
Brasil, p. 90‐109.
98
"Assim, o campo da história das mulheres e das relações [de gênero] foi pejorativamente qualificado
como ‘politizado’ ou ‘anacrônico’, devido à sua cariz profundamente feminista, muitas vezes pensado como
menos profundo, menos preocupado com a ‘história real’ e menos comprometido com a verdade dos fatos
históricos. Ao que parece, esta também está sendo a triste sina dos estudos queer dentro da historiografia
brasileira. Acusada de politizada, ela mostra a politização de todo um campo de conhecimento que seleciona
aquilo que é ou não história, objetos históricos, conceitos e fontes de pesquisa histórica". RIBEIRO
JÚNIOR, Benedito Inácio. Estudos queer na historiografia brasileira. In: SOUSA NETO, Miguel Rodrigues
de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues (orgs.). História & teoria queer. Salvador, BA: Editora Devires, 2018,
p. 160.
99
MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.
Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 150-182, jan.- jun. 2009.
60
100
O conceito de pensamento heterossexual (inspirado na ideia de pensamento selvagem de Lévi-Strauss)
foi desenvolvido pela escritora e teórica feminista francesa Monique Wittig, em seu artigo El pensamiento
heterosexual. Ele se refere a um conjunto de variadas disciplinas, teorias e ideias pré-concebidas que
conformam as ciências humanas. Assim, para a Wittig, todas as ciências humanas operavam, até a
emergência dos movimentos de liberação feminista, gay e lésbica e suas críticas teóricas, sob os auspícios
do pensamento heterossexual. Esse modo de pensar e produzir conhecimento é um discurso de dominação,
com efeitos reais na submissão de uma infinidade de grupos sociais, não apenas as mulheres, as lésbicas e
os gays, como também minorias raciais, etárias, imigrantes e outras. O pensamento heterossexual funciona
por meio do não questionamento histórico de categorias como mulher, homem, sexo, diferença. Ou ainda,
história, cultura e real. Não há um questionamento histórico radical dessas categorias, na medida em que
os pensadores das humanidades não questionam seus fundamentos heterossexuais, ou seja, não se
interrogam sobre como estão todos implicados na perpetuação de situações de dominação socioeconômica
dos grupos subalternos. Do ponto de vista de Wittig, continua existindo, no seio da cultura e da história,
um núcleo natural que resiste ao exame, que se queda excluído do social: trata-se da relação heterossexual.
Ao tomar como pressuposta a existência de identidades como ser homem e ser mulher na história, a
historiografia mantém-se sob a égide do pensamento heterossexual. A partir das considerações de Wittig,
torna-se problemático presumir algo como homem ou como mulher, a não ser que sejam como conceitos
políticos de oposição. É este raciocínio que leva a autora a dizer: “¿Qué es la mujer? Pánico, zafarrancho
general de la defensa activa. Francamente es un problema que no tienen las lesbianas, por un cambio de
perspectiva, y sería impropio decir que las lesbianas viven, se asocian, hacen el amor con mujeres porque
‘la-mujer’ no tiene sentido más que en los sistemas heterosexuales de pensamiento y en los sistemas
económicos heterosexuales. Las lesbianas no son mujeres”. WITTIG, Monique. El pensamiento
heterosexual. In: WITTIG, M. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Trad. Javier Sáez y Paco
Vidarte. Barcelona: Editorial Egales, 2006, p. 45-57.
101
Para uma análise das intenções políticas subversivas da Teoria Queer, ver: ROCHA, Cássio Bruno de
Araujo. Teoria Queer entre a Pós-modernidade e o Presentismo: um caminho crítico possível?. Periódicus,
Salvador, n. 6, v. 1, p. 212-240, nov. 2016-abr. 2017.
102
"Admite-se que não se produz mais um discurso verdadeiro sobre o passado, mas que se produz discursos
que possuem uma obrigação ética com a verdade, seja ela localizada ou histórica. Também já é lugar comum
negar que seja possível recuperar fatos no passado que viriam puros ao nosso presente graças ao uso do
método correto. Não se acredita mais numa escrita da história desencarnada, despolitizada, livre das
ideologias. Então, por que as pesquisas que envolvem gênero e, nesse caso, os estudos queer, ainda são
colocados sob suspeita?". RIBEIRO JÚNIOR. Estudos queer na historiografia brasileira, p. 158.
61
Em fevereiro de 1990, o termo Queer Theory foi empregado a primeira vez por
Teresa de Lauretis, como forma de contrastar o novo campo de pesquisa em relação aos
estudos gays e lésbicos, seguindo-se a isso o reconhecimento como corrente teórica válida
a partir de conferências nas universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos.106 Os
primeiros teóricos queer saíram de departamentos de filosofia, crítica literária e estudos
culturais,107 estabelecendo diálogos profícuos com autores do pós-estruturalismo francês,
como Jacques Derrida, Jacques Lacan e Michel Foucault.
103
"Assim, necessitamos reconhecer que se a História ainda se mantém atrelada a um centro político de
produção de conhecimento e legitimação de verdades, este centro é balizado pela heteronormatividade, que
se vê indissociável da escrita histórica dos sujeitos e das sexualidades. O que pretendemos evidenciar é o
fato de que escrever uma história heteronormativa implica em inscrever na história os sujeitos desviantes
da norma como anormais". (Grifos no original) BRULON, Bruno. Normatizar para normalizar: uma análise
queer dos regimes de normalidade na historiografia contemporânea da homossexualidade. In: SOUSA
NETO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues (orgs.). História & teoria queer. Salvador,
BA: Editora Devires, 2018, p. 50.
104
Joan Scott abordou a necessidade de superar-se a dicotomia entre política e teoria em relação ao
feminismo e à escrita da história das mulheres e das relações de gênero ao final do século XX. Para essa
autora, tal dicotomia é falsa, a história das mulheres e o feminismo, funcionando na lógica do suplemento,
proposta por Jacques Derrida, significam uma indeterminação constante e uma desestabilização potencial
das normas pretensamente neutras que governam a história como disciplina – o que pode ser estendido para
as demais disciplinas das humanidades que investigam as questões de gênero e da sexualidade. Ao final,
diz a autora, “não há jeito de se evitar a política – as relações de poder, os sistemas de convicção e prática
– do conhecimento e dos processos que o produzem”. SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE,
Peter. A escrita da história. Novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.
65-98.
105
JAGOSE, Annamarie Rustom. Queer theory. An introduction. Melbourne, Austrália: Melbourne
University Press, 1996, p. 72-96
106
MISKOLCI. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização, p. 150-151.
107
Richard Miskolci explica que a área dos estudos culturais surgiu, nos sistemas universitários britânico e
estadunidense, entre as décadas de 1980 e 1990, a partir da recepção, nos departamentos das Humanidades
62
(filosofia, história e teoria literária) da obra de Marx, da Teoria Crítica e do Pós-estruturalismo francês.
Dentro dos Estudos Culturais, existem duas vertentes, a teoria Queer e os estudos Pós-coloniais, que,
reunidas, formam, o conjunto das teorias subalternas. MISKOLCI. A teoria queer e a sociologia: o desafio
de uma analítica da normalização, p. 158-159.
108
O leitor pode conferir as histórias que esses grupos fazem de si próprios e conhecer mais de suas ações
políticas nos Estados Unidos, que se mantêm até hoje, pelos seus sites. Para o grupo ACT UP:
http://www.actupny.org/, para o Queer Nation: http://queernationny.org/.
109
JAGOSE. Queer Theory, p. 93-96; MISKOLCI, Richard. Teoria queer. Um aprendizado pelas
diferenças. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 21-35.
110
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008 p. 29-38. Para as continuidades e rupturas entre a teoria queer e os movimentos sociais de
gays, lésbicas e feministas que a precederam ao longo do século XX, ver também JAGOSE. Queer Theory,
p. 22-29; 30-43; 44-57.
63
normalidade) em questão, não se conformando a apenas dar voz aos homossexuais. Desse
modo, o objeto de análise da Teoria Queer foi se contornando como as dinâmicas
históricas e culturais da sexualidade e do desejo na organização das relações sexuais. Na
passagem dos anos 80 para os 90, foram publicados outros textos que marcariam os
estudos queer nas décadas seguintes, tais como Gender Trouble: feminism and the
subversion of identity, de Judith Butler, One Hundred Years of Homossexuality and Other
Essays on Greek Love, de David Halperin, Epistemology of the Closet, de Eve K.
Sedgwick, todos no ano de 1990, e Fear of a Queer Planet, a primeira coletânea popular
sobre Teoria Queer, organizada por Michael Warner e publicada em 1993.111
111
Dos cinco livros mencionados, apenas Gender Trouble e Epistemology of the Closet têm traduções para
o português. A tradução de Gender Trouble, como Problemas de gênero, tem sido identificada como marco
na difusão da Teoria Queer no Brasil. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da
identidade. Trad. Renato Aguiar. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012; SEDGWICK, Eve K.
A epistemologia do Armário. Cadernos Pagu. Tradução de Plinio Dentzien. Campinas: Núcleo de Estudos
de Gênero Pagu, n. 28, p. 19-54, jan.-jun. 2007. Ressalta-se que a tradução de Epistemology of the closet
resume-se e uma versão condensada do capítulo um da obra.
112
Em trabalho anterior, realizamos uma discussão mais aprofundada sobre a história da categoria gênero
e de seus usos na historiografia, discutindo suas relações com a história das mulheres na literatura
internacional e brasileira. ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 55-75. Outros textos fundamentais para
conhecer a trajetória dos campos da história das mulheres e das relações de gênero são: PERROT, Michelle.
Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência, Cadernos Pagu, Campinas, n. 4, p. 9-28,
1995; RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana Maria; GROSSI,
Miriam Pillar (org.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998, p. 21-42; RILEY,
Denise. Am I that name?. Feminism and the category of “women” in history. Minneapolis/MN: University
of Minnesota Press, 1995; SCOTT, História das mulheres (1992); Smith, Bonnie G. The gender of history.
Men, women, and historical practice. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1998.
64
113
BUTLER. Problemas de gênero, p. 17-60.
65
ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos
vários atos que constituem sua realidade” [grifos da autora].114
114
BUTLER. Problemas de gênero, p. 194.
115
BUTLER. Problemas de gênero, p. 192-195.
116
BUTLER. Problemas de gênero, p. 190-191.
66
117
PRECIADO, Paul-Beatriz. Manifesto contrassexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1
edições, 2014, p. 17-35; HOCQUENGHEM, Guy; PRECIADO, Paul-Beatriz. El deseo homosexual.
Epílogo El terror anal. Barcelona: Melusina, 2009, p. 74-77.
118
PRECIADO. Manifesto contrassexual, p. 23.
119
Segundo Hocquenghem, “Si el falo es esencialmente social, el ano es esencialmente privado. Para que
haya trascendencia del falo, (organización de la sociedade en torno al gran significante), es necesario que
el ano sea privatizado en personas individualizadas y edipizadas: “El primer órgano que fue privatizado,
puesto fuera del campo social, fue el ano. Fue él quien dio su modelo a la privatización, al mismo tiempo
que el dinero expresaba el estado nuevo de abstracción de los flujos”. No hay otro lugar social para el ano
que la sublimación. Las funciones de este órgano son verdaderamente privadas, lugar de la constitución de
la persona: el ano expresa la privatización misma. La historia analítica (y no podremos evitar ver “anal” en
“analítico”) supone la superación del estado anal para llegar a la genitalidad. Pero el estado anal es necesario
para organizar la desvinculación del falo. De hecho, no hay ejercicio de la sublimación sobre el ano como
sobre otro órgano, en el sentido en el que haría pasar el ano de lo más bajo a lo más alto: la analidad es el
movimiento mismo de la sublimación”. Nossa tradução: “Se o falo é essencialmente social, o ânus é
essencialmente privado. Para que haja transcendência do falo (organização da sociedade em torno do grande
67
prazer anal pode ser entendida como uma das linhas de força a explicar a perseguição aos
praticantes da sodomia a partir do fim da Idade Média, concorrendo também para a lenta
construção de esferas pública e privada distintas, separadas e autônomas – construção que
se deu segundo os termos do processo civilizador descrito por Norbert Elias.120
As considerações de Gayle Rubin acerca de uma teoria radical do sexo, por sua
vez, nos ajudaram a pensar como poderia se organizar uma hierarquia do sexo em termos
outros que não os do dispositivo da sexualidade moderna (ou seja, como o dispositivo da
carne hierarquizava o domínio erótico e qual lugar aí ocupavam as práticas enquadradas
como sodomia).121 A teoria radical do sexo de Rubin também foi útil para interrogar, na
direção dos axiomas (ou formações ideológicas) propostos pela autora, como as relações
de sexo-gênero conformaram as vivências eróticas cotidianas dos praticantes da sodomia.
Assim, se o primeiro axioma diz do postulado do essencialismo sexual, cabe a uma teoria
radical do sexo demonstrar que o sexo não é uma essência,122 seja por ser uma construção
tecnológica do gênero (como fizeram Butler e Preciado, por exemplo), seja destacando a
variação diacrônica das práticas e identidades sexuais, conformando suas histórias em
narrativas que põem em xeque a pressuposição da heterossexualidade como uma
dimensão universal da experiência erótica humana ̶ o que é exatamente a proposta geral
desta tese.
123
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4. Les aveux de la chair. Édition établie par Frédéric Gros. Paris:
Éditions Gallimard, 2018, p. 325-361.
124
RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 81-2.
125
“Pequenas diferenças de valor ou comportamento são frequentemente encaradas como uma ameaça
cósmica. Ainda que as pessoas possam se mostrar intolerantes, bobas e intrometidas quanto ao que constitui
uma alimentação adequada diferenças de cardápio raramente provocam um grau de ódio, ansiedade e
absoluto terror equiparável ao que costuma acompanhar as diferenças de gosto erótico. Os atos sexuais
estão marcados por um excesso de significados”. RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 82. O contraexemplo
de Rubin não foi escolhido ao acaso, pois a preocupação moral com a alimentação foi um dos eixos de
problematização da ética antiga abordados por Foucault no segundo volume da História da sexualidade. A
argumentação de Foucault mostra que, para gregos e romanos antigos, a dieta era uma ocasião de
problematização moral tão intensa, em alguns casos até mais, que o erotismo, não ocorrendo de forma tão
marcada o fenômeno de mal posicionamento da escala moral identificado por Rubin para sociedades
posteriores. Talvez esse deslocamento da preocupação moral, sobrecarregando o erótico em detrimento de
outras facetas da vida humana, seja uma das características dos regimes medievais (a Carne cristã) e
modernos (a sexualidade) sobre a verdade do sexo. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2. O
Uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, p. 123-
180.
69
entendida também como a linha do pudor, da vergonha, que, desde o fim da Idade Média,
tem, segundo Elias, instaurado uma divisão progressivamente mais rígida entre o público
e o privado. Assim, o bom sexo é aquele que garante aos seus praticantes salvo-conduto
para comporem a cena pública (ainda que ele, em si mesmo, deva acontecer apenas na
esfera privada). Por outro lado, o sexo mau é aquele que garante o degredo de seus
praticantes para fora, ou para longe, do centro da cultura.126 Não é estranho, pois, que
uma das penas recorrentes para os sodomitas que escapassem à morte na fogueira fosse o
degredo para locais afastados do Reino de Portugal ou para praças distantes do Império,
tais como Angola, Goa ou o Maranhão, conforme veremos com vagar na Parte II. O
sentido da pena de degredo era afastar os sodomitas do convívio dos bons súditos cristãos
da Coroa, estes, uma vez que praticavam o sexo natural e sacramentado pela Igreja,
permaneceriam em suas posições sociais, aqueles, por se imiscuírem ao que era percebido
como sujeira sodomítica, deveriam ser excluídos, expulsos, exilados, retirados da visão
do público.
A hierarquia de valor dos atos sexuais no Período Moderno não pode ser tomada
como equivalente à escala contemporânea, conforme será detalhado no capítulo 3. Isso
porque, naquele momento, o erótico não era experimentado, organizado e representado
pelo mesmo regime de verdade e de poder que se tornaria hegemônico no Ocidente a
partir do século XIX. Nos termos do dispositivo da carne, é historicamente impróprio
falar de pessoas heterossexuais e homossexuais, ou, a rigor, genericamente sexuais. Isso
simplesmente porque o sexo não era experimentado como atributo de uma sexualidade,
como regime de saber-poder, mas como um pecado da carne, um uso mais ou menos
pecaminoso da libido fundamental da vontade humana. Em A vontade de saber, Foucault
caracterizou o regime de saber-poder do sexo que antecedeu ao da sexualidade como
centrado no dispositivo da aliança, pautado pelas relações e regras de parentesco. Por essa
razão, esse regime seria principalmente jurídico e repressivo, sua atribuição principal
seria fazer morrer ou deixar viver. Era o Poder Soberano atuando também sobre o sexo.127
126
RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 83-6.
127
Nas palavras de Foucault: “Durante muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano
foi o direito de vida e de morte. Não há dúvida de que derivava formalmente da velha pátria potestas, que
conferia ao pai de família romano o direito de “dispor” da vida dos filhos como da dos escravos; ele lha
“dera”, ele lha poderia retirar. O direito de vida e de morte, tal como se formula nos teóricos clássicos, é já
uma forma consideravelmente atenuada. Do soberano relativamente aos seus súditos já não se concebe que
esse direito se exerça em absoluto e incondicionalmente, mas exclusivamente nos casos em que o soberano
se encontra exposto na sua própria existência: uma espécie de direito de réplica. Está ameaçado por inimigos
exteriores, que querem derrubá-lo ou contestar os seus direitos? Então pode legitimamente fazer a guerra e
pedir aos seus súditos que tomem parte na defesa do Estado; sem “pretender diretamente a sua morte”, é-
70
A teoria do efeito dominó decorre da hierarquia de valor dos atos sexuais, porque
assume que um ato individual de qualquer forma desvalorizada de sexo implicaria e até
acarretaria outros atos ou mesmo todos os atos negativos na hierarquia de valores do sexo.
Essa teoria difunde uma forma de pânico sexual que generaliza todas as formas
culturalmente designadas como maléficas de sexo em cada uma delas especificamente.129
Essa divisão instável entre a ordem e o caos sexual, passível de ser não só perturbada,
como subvertida, por qualquer um ato sexual proibido, se fazia presente em alguns
enunciados constitutivos da categoria de sodomia, conforme os estudaremos no capítulo
1. O historiador Alan Bray mostrou como, na Inglaterra renascentista, a sodomia não
parecia ter um lugar definido na sociedade, uma vez que era definida como não
pertencente à ordem natural, ao mesmo tempo em que era recusada inclusive pelo
demônio, pelas forças do mal. O seu lugar era o da destruição do mundo ordenado por
Deus e pela natureza.130 A sodomia estava, portanto, desde a Época Moderna associada a
um temível efeito dominó, que poderia subverter a ordem divina e natural da sexualidade.
Em Portugal e seus domínios ultramarinos, crença semelhante afirmava que a prática
lhe lícito “expor as suas vidas”: neste sentido, ele exerce sobre eles um direito “indireto” de vida e de morte.
Mas se um deles se ergue contra ele e infringe as suas leis, então pode exercer sobre a sua vida um poder
direto: a título de castigo, matá-lo-á. Assim entendido, o direito de vida e de morte já não é um privilégio
absoluto: está condicionado pela defesa do soberano e pela sua própria sobrevivência. Haverá que concebê-
lo, como Hobbes, como a transposição para o príncipe do direito, que cada um possuiria no estado de
natureza, de defender a sua vida à custa da morte dos outros? Ou deverá ver-se nele um direito específico
que surge com a formação daquele ser jurídico novo que é o soberano? De qualquer maneira, o direito de
vida e de morte, tanto sob esta forma moderna, relativa e limitada, como sob a sua forma antiga e absoluta,
é um direito dissimétrico. O soberano exerce o seu direito sobre a vida fazendo funcionar o seu direito de
matar, ou refreando-o; ele só assinala o seu poder sobre a vida pela morte que está em condições de exigir.
O direito que se formula como “de vida e de morte” é, na realidade, o direito de fazer morrer ou de deixar
viver”. [Grifos do autor]. FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 137-8.
128
“Os tabus religiosos se baseavam primariamente em formas de parentesco da organização social. Eles
tinham a função de dissuadir uniões inapropriadas e incentivar formas adequadas de parentesco. As leis
sexuais provenientes dos pronunciamentos bíblicos se propunham a impedir a aquisição de tipos errados de
parceiros afins: consanguinidade (incesto), mesmo gênero (homossexualidade) ou espécie errada
(bestialidade)”. RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 83-4.
129
“Todos esses modelos assumem uma teoria do dominó de risco sexual. A linha parece se situar entre a
ordem e o caos sexuais. Ela expressa o medo de que a barreira contra uma forma terrível de sexo se desfaça
caso algo cruze essa zona erótica desmilitarizada, permitindo que algo indizível passe para o outro lado”.
Gayle Rubin, “Pensando o sexo (1984)”, 87.
130
BRAY. Homosexuality in Renaissance England, p. 25.
71
sodomítica era causa de desastres naturais e epidemias, que surgiriam como formas de
castigo divino, conforme será detalhado na Parte I.
O último axioma cultural que, conforme Rubin, uma teoria radical do sexo precisa
deslocar é o da ausência de um conceito de variação sexual benigna. Isso significa que os
diversos sistemas de juízo moral do sexo que se sucederam ao longo do tempo (como o
cristianismo, a ciência médica-psicológica, o feminismo e o socialismo) têm em comum
o fato de identificar como moralmente complexos apenas os atos sexuais valorizados na
hierarquia valorativa das práticas sexuais. O bom sexo é apenas um, não admite
variações.131 No contexto do Império ultramarino português na Época Moderna, dentro
dos moldes do dispositivo da carne, ele pode ser definido como o sexo que acontece entre
homem e mulher casados na Igreja e cujo fim é, sobretudo, a reprodução. Todas as formas
sexuais que variam em um aspecto ou outro desse modelo perdem em complexidade
moral, não podem lhes ser admitidas as razões nobres conferidas ao sacramento do
casamento cristão. Os praticantes da sodomia, localizados no ponto talvez mais baixo da
hierarquia valorativa do sexo nas sociedades da Época Moderna, eram, assim, por
princípio destituídos de atributos morais aos olhos das instituições e agentes de poder.
Para os inquisidores, por exemplo, os sodomitas podiam ser escandalosos, convictos,
devassos, uma vez que sua prática era nada mais que um pecado mortal. Nunca os
inquisidores gastaram uma folha dos longos processos indagando as razões morais que
levaram aquelas pessoas a semelhantes atos. Tratava-se, sempre, de um pecado que
praticavam por influência demoníaca e pela fraqueza da Carne.
131
RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 87-8.
132
"Mas, para todos aqueles que acreditam que não dou a devida importância a uma “evolução”, digo que
me parece legítimo. Mas o que mais me interessa, gostaria de dizer, é que todos os novos conceitos de
Foucault se desenvolvem segundo três eixos, é um pensamento sobre três eixos, ou seja, um pensamento
no espaço. Não é um pensamento no plano, mas no espaço. Há, digamos, um primeiro eixo – “saber” –, um
segundo – “poder” – e um terceiro – “desejo” [désir]". O tradutor do curso nota que, em outra oportunidade,
72
Deleuze denominou o terceiro eixo de subjetivação. DELEUZE, Gilles. Michel Foucault. As formações
históricas. Trad. Claudio Medeiros, Mario A. Marino. São Paulo: n-1 edições; editora filosófica politeia,
2017, p. 7 (Aula 3).
73
Nos dois capítulos que compõem a Parte III, o objetivo será analisar os processos
de normalização eróticos e de gênero que conformavam as práticas de subjetivação das
personagens em um contexto anterior ao do regime da heterossexualidade. Trata-se de
desconfiar, à maneira dos estudos queer, da estabilidade dos sujeitos eróticos, como
forma de questionar a naturalidade da dissidência dos sodomitas, conforme construída
pelas formações discursivas e não discursivas estudadas nas Partes anteriores da tese.
Desnaturalizando o sujeito sodomita, torna-se possível identificar os distintos graus e
práticas de normalização atuantes em cada caso estudado, atentando para os processos de
diferenciação e hierarquização, deslocados em sua diacronia, atuantes nas sociedades
estudadas. Destarte, no estudo de cada processo inquisitorial, empreende-se uma analítica
da normalização aplicada à micropolítica dos processos de subjetivação que enredavam,
constituindo-os, os sujeitos sodomitas no Império ultramarino português na primeira
modernidade.
ditadas pela disseminação da ética cortesã nas sociedades de Antigo Regime. Como ela
se produzia nas relações comunitárias, de vizinhança e familiares dos praticantes do
nefando e como a intromissão inquisitorial atuava para destruir a figura pública do
sujeito? A relação entre as dinâmicas do público e do privado e as práticas de subjetivação
dos sodomitas tinha também uma outra dimensão, aquela que concernia à interiorização
das distinções entre o privado (particular) e o público (aberto, de conhecimento geral) na
própria materialidade dos corpos. Assim, será importante problematizar como alguns
sodomitas podiam ou não se subjetivar e se sujeitar segundo a normativa do processo de
privatização do ânus e de foraclusão da função anal/ativa (um dos traços mais importantes
do regime de disciplina das subjetividades não-oficiais no Período Moderno, conforme
será estudado na Parte II).
Esperamos, com estes procedimentos de uma análise genealógica com viés queer,
lançar algumas luzes sobre os modos de subjetivação dos praticantes da sodomia e do
homoerotismo no passado cristão e colonial da sociedade brasileira, delineando os
contornos de uma maneira radicalmente outra de experimentar o amor entre pessoas do
mesmo sexo e outras práticas eróticas marginalizadas, como o sexo anal. Como era ser
78
sujeito e praticar o homoerotismo e/ou o sexo anal nos termos do dispositivo da carne
cristã, na Época Moderna, nas terras do Império português? Esta é a questão central que
essa tese se propõe a responder.
79
133
Na introdução do segundo volume da História da Sexualidade: O uso dos prazeres, Foucault assim
reorganizou suas pesquisas: “Após o estudo dos jogos de verdade considerados entre si – a partir do
exemplo de um certo número de ciências empíricas nos séculos XVII e XVIII – e posteriormente ao estudo
dos jogos de verdade em referência às relações de poder, a partir do exemplo das práticas punitivas, outro
trabalho parecia se impor: estudar os jogos de verdade na relação de si para si e a constituição de si mesmo
como sujeito, tomando como espaço de referência e campo de investigação aquilo que poderia chamar-se
‘história do homem de desejo’”. FOUCALT. História da sexualidade 2, p. 12-13.
134
Assim, segundo Edgardo Castro: “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ da
verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos (...)”. CASTRO, Edgardo.
Vocabulário de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Trad. Ingrid Müller Xavier;
80
Tendo uma história e sendo, por isso mesmo, embebida por relações de poder, a
verdade relaciona-se também com as várias formas de governo que os homens impõem a
si mesmos e aos outros. Historicamente, essas maneiras de governar-se a si e aos demais
se dão a acontecer, entre outros meios, pela aleturgia, isto é, pelos vários procedimentos
de revelação da verdade, sempre imbricados com o exercício do poder.135 Assim, não se
pode conceber exercícios de poder desvinculados de uma precisa economia dos discursos
de verdade, os quais funcionam nas relações de poder e através delas.136
Revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p.
423.
135
Em suas palavras, “poderíamos chamar de ‘aleturgia’ o conjunto dos procedimentos possíveis, verbais
ou não, pelos quais se revela o que é dado como verdadeiro em oposição ao falso, ao oculto, ao indizível,
ao imprevisível, ao esquecimento, e dizer que não há exercício do poder sem algo como uma aleturgia”.
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France (1979-1980). Trad. Eduardo Brandão.
São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 8 (Obras de Michel Foucault).
136
De modo que “somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita
dela para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade
ou a encontrá-la”. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976).
Trad. Maria Ermantina Galvão. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 22. (Obras de
Michel Foucault).
137
“Um certo regime de verdade e certas práticas formam assim um dispositivo de saber-poder que inscreve
no real aquilo que não existe, submetendo-o todavia à partilha entre o verdadeiro e falso”. VEYNE, Paul.
Foucault. O pensamento, a pessoa. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009, p. 99.
81
tendo sido constituído, permanece como tal, uma vez que sofre um processo de
sobredeterminação funcional, o que significa que todos os seus efeitos, positivos ou
negativos, ressoantes ou contraditórios, exigem constante reajustamento do
dispositivo.138
138
CASTRO. Vocabulário de Foucault, p. 123-124.
139
VEYNE. Foucault, p. 99-103.
140
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 108-9.
141
Sobre a concepção foucaultiana da história como um jogo, ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval
Muniz de. A História em jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da historiografia. In:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc,
2007, p. 165-182.
82
por esse jogo das relações de saber-poder-subjetivação que as relações de resistência são
possíveis, como correlatas e contrapartes às relações de dominação, sendo a valência de
umas e outras estabelecidas por seu posicionamento estratégico local na trama do
dispositivo. Os diferentes tipos de arranjos entre essas múltiplas relações dizem da
variedade dos dispositivos e da radical descontinuidade histórica existente entre eles.
Cada um conformando uma época ou uma formação histórica.142
I. Arqueologia
Assim, começamos a discussão com algumas perguntas introdutórias. De um
modo geral, o que é a arqueologia? Há uma resposta possível a essa questão? Ou ela
depende da resposta de outras perguntas subsidiárias, como qual o seu domínio? Qual seu
142
Analisando os métodos foucaultianos, Deleuze definiu o conceito de formação histórica como um certo
modo de agenciamento (historicamente possível) entre os níveis do discursivo (enunciável) e do não
discursivo (visível), uma certa maneira de combinar visibilidades (relações de poder) e enunciados (relações
de saber). A especificidade do modo como esses níveis se combinam distingue uma dada formação histórica
em sua descontinuidade histórica. De uma a outra, mudam os regimes de visibilidade e de enunciação,
tornando-se difícil ver ou falar como viam e falavam os sujeitos radicados em cada formação histórica.
DELEUZE. Michel Foucault, Aula 1, p. 37-8.
143
Deleuze diz: “Exatamente. Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o
significante.... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma”. FOUCAULT, M.;
DELEUZE, G. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e
tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 71.
83
A arqueologia pode ser definida, inicialmente, como uma forma de descrição que
interroga o enunciado, o já dito, no nível de sua existência, no nível da função enunciativa
que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de
que faz parte. A descrição arqueológica é, por conseguinte, a revelação, nunca terminada,
do arquivo. Esse horizonte reúne a descrição das formações discursivas, a análise das
positividades e a demarcação de campos enunciativos. A arqueologia, portanto, descreve
os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo. Em A arqueologia do
saber, livro publicado em 1969, Foucault elencou quatro princípios que dão a
especificidade da análise arqueológica. São eles:
144
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 157.
145
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 157.
146
É importante lembrar que Foucault inicia seu discurso de método em A arqueologia do saber
suspendendo, a princípio, temporariamente, depois, como se vê, definitivamente, as categorias que
tematizam, de vários modos, o tema da continuidade. Categorias como tradição, influência,
desenvolvimento ou evolução, mentalidade ou espírito e, sobretudo, livro e obra são desvalorizadas pelo
filósofo, uma vez que não permitem analisar o discurso em seu nível particular. Sobre a categoria obra,
Foucault argumenta que ela é definida, aparentemente, por um conjunto de textos assinados por um nome
próprio. Mas não se trata de uma função homogênea, pois a presença de um nome próprio convencionado
como autor em textos produzidos, descobertos, publicados ou reconhecidos de formas diversas tem
implicações igualmente diferentes. Assim, constituir uma obra completa implica escolhas interpretativas
complexas, uma vez que tal categoria coletiva não existe como dado. FOUCAULT. A arqueologia do saber,
p. 23-28.
84
A partir dessa descrição geral, vê-se que alguns conceitos precisam ser
esclarecidos, uma vez que são peculiares à análise arqueológica. Os conceitos chaves para
a análise arqueológica são o de discurso (ou regularidade discursiva, prática discursiva),
enunciado, função enunciativa, arquivo e a priori histórico. Comecemos pela definição
147
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 158.
85
de discurso, uma vez que toda a segunda parte deste livro é dedicada à definição do que
seria um discurso em sua regularidade.
148
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 30-31.
86
149
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 35-42.
150
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 45-55; 56-61; 62-70; 71-78.
87
Fonte: Autoria própria, com base nos capítulos 3 a 6 da parte II de A arqueologia do saber de Michel
Foucault.
151
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 43.
152
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 82.
88
153
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 82-3.
154
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 79-85.
155
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 90.
156
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 91-97.
89
O enunciado não deve, portanto, ser entendido como uma unidade, ele é, antes, a função
que possibilita (por dar as regras) a formação das unidades estruturais. Por isso, o
enunciado, agindo como função, cruza os domínios estruturais das unidades possíveis,
fazendo (permitindo) que elas apareçam, expressando conteúdos concretos, no tempo e
no espaço.157
157
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 98.
158
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 99-119.
90
conjuntos individuais de signos que, exercendo, cada um, uma função enunciativa,
compõem uma formação discursiva individualizada, é preciso que se lhes possa atribuir
modalidades particulares de existência. Assim, a lei de formação de um discurso (o que
se chama de formação discursiva, o que individualiza um discurso) é o conjunto das
quatro leis de dispersão e repartição dos enunciados, de maneira tal que os objetos do
discurso se dispersam pelos enunciados desse discurso de acordo com as regras de seu
referencial. Em um discurso, a regularidade das posições subjetivas dos seus enunciados
é dada pelas regras de exercício da posição, vazia e determinada, do sujeito; os conceitos
presentes em um discurso se dispersam no nível pré-conceitual dos enunciados de acordo
com as regras que posicionam, especificamente, cada enunciado no campo enunciativo;
as estratégias discursivas que individualizam o discurso variam com as regras
institucionais que garantem a materialidade repetível dos enunciados. Conclui-se uma
definição refinada de discurso como um conjunto de enunciados que se apoia em um
mesmo, e único, sistema de formação discursiva.159 Foucault sintetiza da forma seguinte
as correspondências entre função enunciativa e formação discursiva:
159
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 120-122.
160
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 131.
92
161
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 141.
162
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 143.
163
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 143-145. A descrição de Paul Veyne ajuda a esclarecer o
conceito de a priori histórico. Segundo o historiador, o a priori histórico é aquilo que, em dada formação
histórica, se impõe como um certo status quo das possibilidades de discurso, de enunciação. O historiador
usa a metáfora de uma redoma para descrever a função do a priori histórico, como no trecho seguinte: “É
certo que um discurso, com o seu dispositivo institucional e social, é um status quo que só se impõe
enquanto a conjuntura histórica e a liberdade humana não o substituem por outro; saímos da nossa redoma
provisória sob a pressão dos novos acontecimentos do momento ou ainda porque um homem inventou um
93
discurso e teve sucesso. Mas estamos apenas a mudar de redoma para nos situarmos numa nova redoma.
Essa redoma em que o discurso é ‘o que poderíamos chamar de a priori histórico’. É certo que esse a priori,
longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o pensamento humano, é cambiante, e nós mesmos
acabamos por mudar com ele. Mas é inconsciente: os contemporâneos ignoraram sempre onde estão os
seus próprios limites e nós próprios não podemos vislumbrar os nossos”. VEYNE. Foucault, p. 32.
164
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 146.
165
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 147.
166
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 146-147.
94
acontecimento (as leis que necessariamente seguem para conformar uma formação
discursiva específica) e define sua atualidade discursiva, seu sistema de funcionamento,
como coisa, o arquivo, consequentemente, é o sistema (que a descrição arqueológica
trabalha para esclarecer) que forma, para cada discurso em sua existência múltipla, sua
duração própria.167 Assim, pode-se concluir que o arquivo é o sistema geral da formação
e da transformação, históricas e reguladas, dos enunciados em uma formação discursiva.
167
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 147.
168
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 149.
169
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 148-9. O arquivo pode ser entendido, por conseguinte, como
aquilo que define o limite epistêmico de uma dada cultura em dada época histórica. Ou assim pode-se
pensar a partir das considerações de Michel de Certeau, segundo as quais uma episteme enraíza a
positividade de suas formações discursivas não em uma racionalidade universal ou transcendente, mas,
preferencialmente, em suas próprias condições (imanentes) de possibilidade. É nesse sentido que o
historiador descreve a sensação da descontinuidade histórica nos termos seguintes, " O chão de nossas
seguranças movimenta-se à medida que se desvela o fato de deixar de ser possível pensar um pensamento
de outrora". Com a finitude de um arquivo, a obliteração de suas formações discursivas, as possibilidades
epistêmicas de pensar com tais enunciados findam-se. DE CERTEAU, Michel. História e psicanálise. Entre
ciência e ficção. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 140.
(Coleção História & Historiografia; 3)
95
singularidade histórica, uma diferença última, uma descontinuidade irredutível entre duas
ou mais formações históricas.170
O conceito de arquivo aponta, desde logo, para uma das noções chaves no
entendimento do método arqueológico, a de saber. Para os nossos propósitos nessa tese,
a ideia de saber é sobremaneira importante, uma vez que serve como engrenagem para
desviar a análise arqueológica do campo exclusivo da história das ciências. Devido à
sucessão de estudos levados a cabo por Michel Foucault sob a égide da arqueologia
durante a década de 1960 – enfocando a psicopatologia, a clínica médica e as ciências
humanas na transição entre o Período Moderno e o Contemporâneo –, cristalizou-se a
impressão, errônea, de que a arqueologia seria um método alternativo para pesquisar as
histórias das ciências.171 Contra isso, levantou-se o próprio Foucault no último item do
capítulo 6 (Ciência e saber) da parte IV (A descrição arqueológica) de A arqueologia do
saber. Ali, o filósofo argumenta que o direcionamento epistemológico das análises
arqueológicas até então feitas não significa mais que um exemplo de emprego da
arqueologia como método, outras formas poderiam ser criadas sem ter as figuras
epistemológicas e as ciências como horizonte. Essas outras formas de arqueologia teriam
como fim fazer aparecer a regularidade de um saber, seu domínio discursivo específico e
as relações que pode manter com outras dimensões da experiência histórica, como o poder
(política) e a subjetividade (ética).172
170
Veyne assim define o que entende por discurso, “(...) é a descrição mais precisa, a mais cerrada de uma
formação histórica na sua nudez, é o pôr em dia da sua última diferença individual. Ir assim até à differentia
ultima de uma singularidade datada exige um esforço intelectual de apercepção: há que despojar o
acontecimento da roupagem demasiado ampla que o banaliza e racionaliza”. VEYNE. Foucault, p. 12.
171
Os três livros que antecederam a publicação de A arqueologia do saber trouxeram as investigações de
Foucault sobre a emergência discursiva de várias ciências que, em uma visão de conjunto, deram azo à
elaboração da figura do homem como objeto/sujeito de conhecimento. Em História da loucura (1961), O
Nascimento da clínica (1963) e As palavras e as coisas (1966), Foucault empregou o método arqueológico,
progressivamente elaborando-o e afinando-o, mas também o transformando (principalmente afastando-se
mais e mais, até romper totalmente, com o estruturalismo), até chegar à versão publicada em A arqueologia
do saber (1969). Este livro pretendeu ser a explicitação do método que estaria subjacente a todas as obras
anteriores do autor, porém, como apontam comentaristas como Márcio Alves Fonseca e Roberto Machado,
a arqueologia, discutida na obra de 1969, estava já bastante diferente das análises anteriores, apontando
para a virada genealógica que Foucault encetaria na década de 1970. Para a posição de A arqueologia do
saber entre as obras de Foucault, ver: FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e a constituição do
sujeito. São Paulo: EDUC, 2003, p. 12-19; MACHADO, Roberto. Impressões de Michel Foucault. São
Paulo: n-1 edições, 2017, p. 39-40.
172
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 215-219. Michel de Certeau apontou, acertadamente, que a
análise arqueológica não se desconecta do problema do poder, na medida que as práticas intelectuais
inscrevem-se em uma rede cerrada de formas de exercício do poder (de relações de poder). DE CERTEAU.
História e psicanálise, p. 125.
96
II. Genealogia
Michel Foucault usou o método genealógico em muitas de suas pesquisas,
notadamente aquelas conduzidas ao longo da década de 1970 e publicadas, durante sua
vida, nos livros Vigiar e Punir: o nascimento da prisão (1975) e A História da
Sexualidade 1: a vontade de saber (1976). Como era seu costume, não foi, contudo,
nessas obras que ele explicitou o método utilizado em suas pesquisas, preferindo fazê-lo
em aulas ou artigos dispersos. Sobre a genealogia como método de pesquisa, a principal
referência é o texto Nietzsche, a genealogia e a história, publicado em 1971, na coletânea
Hommage à Jean Hyppolite. Outro texto importante para compreender o método
173
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 203-204.
174
FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 203-206.
97
Por outro lado, os começos são plurais. Para significar começo, Foucault busca
em Nietzsche duas expressões, herkunft e entestehung. A primeira é interpretada como
proveniência, a segunda como emergência. Para entender o que é a genealogia, não há
como não se deter nessas duas expressões.
175
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: MACHADO, Roberto (org.). Microfísica
do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 17-18.
176
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 18.
98
177
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 20-21.
178
Judith Butler acrescenta, à genealogia do corpo proposta por Foucault, a necessidade de se atentar para
a construção histórica dos limites corporais e para as relações de poder que vigiam o trânsito em suas zonas
de fronteira, mostrando como algumas práticas, como o sexo anal entre homens, mas também o
remembramento radical do corpo, em The lesbian body, de Monique Witting, configuram um abrir ou um
fechar de superfícies e orifícios corporais às significações eróticas, para além do contexto da
heterossexualidade compulsória, reinscrevendo as fronteiras do corpo em novas linhas corporais. Vê-se,
desde logo, que uma histórica genealógica do sexo anal é uma tarefa urgente. Ver BUTLER. Problemas de
gênero, p. 188-192.
179
Para o filósofo espanhol Paul-Beatriz Preciado, os corpos não simplesmente têm uma história que os
elabora a partir de um substrato natural, como a própria natureza é uma ordem, um contrato social que
legitima a sujeição de certos corpos a outros. Para ele, em um sentido ainda mais radical que para Foucault,
a história do sexo não é uma história natural: ele a entende como uma história das tecnologias que constroem
cada corpo como máquinas (sendo o sexo e o gênero dispositivos inscritos em um sistema tecnológico
complexo), negociando as fronteiras entre humano, animal, corpo, máquina, órgão e plástico. Nesse ponto,
o autor dialoga diretamente com a antropóloga feminista da ciência Donna Haraway, que pensou a
dissolução das fronteiras entre homem, natureza e máquina através da figura do ciborgue. As repercussões
das teorizações de ambos os autores para a genealogia do corpo, a categoria de gênero e a Teoria Queer
serão exploradas no último capítulo da tese. Ver: PRECIADO, Paul-Beatriz. Testo Junkie. Sexo, drogas e
biopolítica na era farmacopornográfica. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2018,
p. 109-139; HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue. In: TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do
ciborgue. As vertigens do pós-humano. 2. ed., 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 33-
118.
180
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 22.
181
Para Foucault, seguindo a linha da genealogia proposta por Nietzsche, o acontecimento é o estado
momentâneo da relação de forças. Uma situação singular, que pode ser de inversão da soma das forças,
uma apropriação, a decadência de uma força em relação a outra, ou lutas internas a uma mesma força contra
sua decadência. Assim, o acontecimento, na genealogia, não é uma batalha, um tratado, mas um estado do
jogo das forças. Por essa razão, não se pode dizer que o acontecimento seja algo de um instante temporal,
pode se arrastar por séculos. Por exemplo, a corporificação da identidade homossexual, a partir do final do
século XIX até hoje, é um acontecimento para a genealogia, ainda que permeado por acontecimentos
menores (lutas internas das forças em jogo). No mesmo sentido, a construção ambígua da categoria de
sodomia é outro acontecimento. Pode-se dizer, portanto, que esta pesquisa trabalha com um acontecimento
99
185
O segundo uso da história descrito por Nietzsche é o antiquário. Trata-se da história produzida pelo
homem que preserva e venera, que olha para trás com fidelidade e amor para o lugar de onde veio e onde
se criou. Esta história serve à vida quando conecta as gerações e as populações menos favorecidas à sua
terra natal e aos seus hábitos característicos, enraizando-as e impedindo-as de vaguear em busca de algo
melhor no estrangeiro. Ela pode produzir a felicidade de não se saber totalmente arbitrário e casual,
perceber-se como parte de um passado, como a sua herança, o seu florescimento e fruto, sendo por ele
desculpado e justificado. O perigo da história antiquária é o seu limitado campo de visão, ela não percebe
a maior parte do que existe e, o pouco que vê, enxerga muito próximo e isolado, não conseguindo mensurá-
lo e, por isto, toma tudo como igualmente importante. Desse modo, não há para as coisas do passado
nenhuma diferença de valor e de proporção que fizesse, verdadeiramente, justiça às mesmas. NIETZSCHE.
Segunda consideração intempestiva, p. 25-29.
186
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 34-35.
187
O terceiro uso da história é a crítica, que é realizada nos momentos em que a história sofre e carece de
libertação. Sua tarefa é explodir e dissolver o passado, a fim de poder viver. A história crítica confronta a
natureza herdada e hereditária com o seu conhecimento, combate através de uma nova disciplina rigorosa
o que foi trazido de muito longe e herdado, implantando um novo hábito, um novo instinto, uma segunda
natureza, de modo que a primeira se debilite. O juiz do seu tribunal é a vida, um poder obscuro,
impulsionador e inesgotável que deseja a si mesmo. Sua sentença é sempre impiedosa e sempre injusta. Os
perigos apresentados por essa história derivam da dificuldade de se encontrar um limite na negação e o fato
das segundas naturezas serem, em geral, mais fracas do que as primeiras. NIETZSCHE. Segunda
consideração intempestiva, p. 29-31.
188
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 35-37.
101
Esse método tem implicações diretas para a presente pesquisa. Pretender fazer a
genealogia da sodomia é, desde logo, recusar explicar esta categoria pelo uso de uma
identidade homossexual. Essa recusa é feita pela investigação das descontinuidades entre
o que era a sodomia entre os séculos XVI e XIX e o que era a homossexualidade a partir
do final dos oitocentos, enfatizando as características próprias da sodomia e de sua prática
no Período Moderno.
189
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 37.
190
Os saberes teológico e moral, no que tocam a sodomia, serão ademais abordados segundo uma análise
arqueológica, seguindo a indicação de Foucault de que a arqueologia é o método próprio à análise da
discursividade local, sendo a genealogia uma tática para fazê-la emergir do todo do discurso. O método
arqueológico será detalhado no capítulo dois. FOUCAULT, Michel. Genealogia e poder. In MACHADO,
Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 172.
102
informações sobre essas pessoas, as quais eram essenciais para a ação persecutória do
Santo Ofício.
Foucault adjetivou a genealogia como uma tática, uma estratégia que “a partir da
discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem
desta discursividade”.191 Assim, a genealogia da sodomia permite a recuperação destes
saberes locais, produzidos e arquivados pela Inquisição, e destacá-los de um
conhecimento histórico que os tem soterrado sob uma história universal da
homossexualidade. A investigação, assim conduzida, é uma paródia de tal história, uma
vez que a homossexualidade, bem como qualquer identidade, é em si uma paródia. Ao
traçar a genealogia da sodomia e de seus praticantes no Período Moderno como algo
historicamente diverso do que passou a ser a homossexualidade no final do século XIX,
tem-se o efeito de dissociação e irrealização da identidade homossexual essencial, que
subjaz aos textos da história da sodomia-como-homossexualidade escritos no presente.
191
FOUCAULT. Genealogia e poder, p. 172.
103
só pode ter lugar recuado, retirado das vistas, nas margens estigmatizadas. Assim, a
história tecida pela hipótese repressiva é de uma repressão sempre crescente de um
passado original, algo mítico, em que a sexualidade era livre. O marco da inflexão
repressiva teria sido a formação do capitalismo, especialmente com a sociedade vitoriana
inglesa do século XIX.192 Em contrapartida, a história que a hipótese repressiva compõe
prescreve a necessidade da libertação, a qual só poderia acontecer pela destruição das
interdições, das grandes estruturas de poder e pela restituição de um prazer originário ao
real.193
192
Foucault comenta: "dando origem à idade da repressão no século XVII, depois das centenas de anos de
ar livre e de livre expressão, levam-no a coincidir com o desenvolvimento do capitalismo: seria solidário
da ordem burguesa". FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 11.
193
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 7-18.
194
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 15-16.
104
da Sexualidade, Foucault dá pistas de que uma subversão efetiva está no nível da ética da
existência, não no da discursificação do sexo.
Assim, falar de poder, com Foucault, é dizer de lutas estratégicas incessantes entre
pontos de força salpicados pelo social, lutas que são dinâmicas, provocando
transformações, reforços, enfraquecimentos, inversões entre as forças que se digladiam.
As relações de poder, estrategicamente dispostas, configuram uma arquitetura de rede
(cujas formas finais são a lei e o Estado) que pode se cristalizar em projetos mais gerais,
consequências e suportes dos objetivos locais das táticas.195
Por essa razão, as relações de poder são, de modo simultâneo, intencionais e não
subjetivas. Intencionais, porque, no nível das relações de força próximas, locais, elas são
alinhadas estrategicamente para atingir objetivos determinados. Porém, no nível maior
das redes formadas pela articulação das microscópicas relações locais (os dispositivos de
conjunto), os efeitos estratégicos provocados não podem ser assumidos por nenhuma
subjetividade. Ninguém planejou os efeitos mais amplos das relações de poder
cristalizadas; eles são alcançados pelas ressonâncias consecutivamente transmitidas entre
os nós de poder e resistência. Tais efeitos são estratégias grandes, anônimas e mudas,
capazes de coordenar, implicitamente, os objetivos pequenos das relações de poder
locais.196
195
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 95-96.
196
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 98.
197
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 96.
198
HALPERIN, David. Saint Foucault. Towards a gay hagiography. New York: Oxford University Press,
1995, p. 15-18.
105
Segundo Edgardo Castro, a razão por que Foucault não usa o conceito de
revolução é o seu abandono das ideias de história e de sujeito como totalidades. Se o
poder, na história, deve ser pensado em suas formas empíricas e específicas, da mesma
forma, as resistências possíveis devem ser múltiplas e específicas, não revolucionárias.199
Indo mais além, é incorreto dizer que, no esquema de poder proposto por Foucault, não
há lugar para resistência. Há tal espaço, porém, ele não corresponde mais a uma ação
revolucionária organizada por um partido político que atua como vanguarda do
proletariado. Tal como as relações poder, as resistências são relações que acontecem na
mesma rede das primeiras, passo a passo com elas. Sendo o poder relacional, ele só pode
existir se contrapondo à multiplicidade dos pontos de resistência. Estes são seus
adversários, e seus apoios podem funcionar como pretextos para novas intervenções das
relações de poder. Assim como as relações de poder, as formas de resistência estão por
toda a parte no mundo social, podendo também se agrupar, criando nós mais densos de
resistência na rede de relações de poder/resistência.200 Ir contra as relações de poder,
então, para Foucault, não é uma questão de revolução, mas de resistência ou de práticas
de liberdade.
199
CASTRO. Vocabulário de Foucault, p. 387-391.
200
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 98-100.
201
Em Os Anormais, Foucault fala da invenção das tecnologias positivas do poder, que se torna fabricador,
observador, sabedor e multiplicador de seus próprios efeitos. FOUCAULT, Michel. Os Anormais. Curso
no Collège de France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010,
p. 41. (Coleção Obras de Michel Foucault).
202
FONSECA. Michel Foucault e a constituição do sujeito, p. 21.
106
A biopolítica, por sua vez, foca a majoração das forças vitais através de fenômenos
de grande dimensão, estudando e controlando as populações. Atua sobre o corpo-espécie,
revelando ao homem que ele pertence a um conjunto biológico, cujas propriedades (como
203
FONSECA. Michel Foucault e a constituição do sujeito, p. 21-22.
204
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. O nascimento da prisão. 39. ed. Trad. Raquel Ramalhete.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 133.
205
Se o fim do poder disciplinar é a normalização, o que é esta norma pela qual ele se guia? Segundo
Foucault, “a norma não se define absolutamente como uma lei natural, mas pelo papel de exigência e de
coerção que ela é capaz de exercer em relação aos domínios a que se aplica. A norma não é simplesmente
um princípio, não é nem mesmo um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual certo
exercício do poder se acha fundado e legitimado. [...] a norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio
de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela
está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder
normativo”. FOUCAULT. Os anormais, p. 43.
206
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 141.
107
Foucault narra que essa forma negativa de poder foi aos poucos deslocada e
subordinada aos novos mecanismos disciplinares e biopolíticos, voltados para a
207
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 141-142.
208
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 141-145.
209
Entende-se aqui a longa descrição do suplício de Damiens com que Foucault abre Vigiar e Punir. É a
atuação de um poder de morte que o suplício, como desagravo do soberano, representa. FOUCAULT.
Vigiar e punir, p. 9-33.
210
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 137-140.
108
Algumas questões, contudo, devem ser levantadas contra essa cronologia. Judith
Butler, à luz da epidemia do HIV-aids, questionou a narrativa foucaultiana, invertendo-a
contra ela mesma. Sua pergunta inicial era como foram possíveis o surgimento, a
administração e a reprodução de uma epidemia mortífera pelos próprios mecanismos de
poder que agiriam para expandir a vida? A filósofa entendeu esse acontecimento como
uma administração da morte pelas formas de controle da vida, explicando que se trata de
administrar certas mortes (como a dos homossexuais, mas também de hemofílicos,
usuários de substâncias ilegais intravenosas, trabalhadoras e trabalhadores do sexo e
imigrantes pobres, em suma, os principais grupos acometidos pela epidemia em seus
estágios iniciais) para a expansão de um tipo, normatizado, de vida (idealmente, a vida
familiar e doméstica dos casais heterossexuais e de seus filhos). Esta dinâmica se
concretizava, por exemplo, com a atuação de mecanismos desiguais de distribuição de
recursos para realização de pesquisas científicas necessárias ao estudo das diferentes
enfermidades – o que foi uma das pautas de protestos dos movimentos sociais queer entre
as décadas de 1980 e 1990. Indo mais a fundo, Judith Butler denuncia o eurocentrismo
de Foucault ao colocar a morte como uma preocupação pré-moderna, algo do passado do
Ocidente moderno (ou do presente de sociedades não ocidentais). Nas sociedades
ocidentais modernas, o sexo ocuparia o lugar da morte, e também da vida, como
preocupação maior das relações de poder. A epidemia do HIV-aids mostrou, ao contrário,
que a morte continua sendo uma preocupação atual das relações de poder no Ocidente,
invalidando a ruptura histórica adiantada por Foucault.212
211
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 144.
212
BUTLER, Judith. Sexual inversions. In: HECKMAN, Susa (Org.). Feminist Interpretations of Michel
Foucault. The Pennsylvania State University Press: University Park, PA, USA: 1996, p. 59-75.
109
Ainda mais, essa linha de interrogatório mostra que o defender-se da morte (tarefa
atribuída por Foucault ao poder jurídico) exigiu sempre a promoção de uma certa versão
da vida (tarefa supostamente do poder moderno). Nem a morte nunca saiu da história
(deixou de ser preocupação do poder), nem a vida entrou, a partir de certo ponto, na
história (tornou-se o objetivo e objeto do poder), pois uma é sempre a possibilidade
imanente à outra. Judith Butler sugere que não se trata de uma mudança histórica ou
lógica na formação do poder. Mesmo quando o poder afasta a morte, ele o faz em nome
de alguma forma específica de vida e através da insistência sobre o direito de produzir e
reproduzir este modo de vida. Neste ponto, a distinção entre poder jurídico e produtivo
colapsa.213
À luz da inversão feita por Judith Butler na narrativa de Foucault, ficam mais
claros os modos gerais pelos quais as relações de poder atuavam entre os séculos XVI e
XIX no que tocava à sodomia. Não apenas porque, como foi dito, as técnicas que
compõem a forma moderna de funcionamento do poder surgiram no contexto de
dominância do poder jurídico, mas, principalmente, porque as lógicas de funcionamento
do poder não são estanques, elas imiscuíram-se segundo fins locais (lembrando que as
relações de poder agem sempre de modo estratégico).
213
BUTLER. Sexual inversions, p. 59-75.
110
Paul Veyne pode fazer essa aproximação entre arqueologia e genealogia, porque
parte de um entendimento ampliado do conceito de discurso. Como já mencionamos
anteriormente, Veyne define discurso como a diferença última de dado fenômeno
histórico em determinada época. De modo que a análise histórica foucaultiana teria como
objetivo demarcar o que há de singular no discurso de uma época, no sentido de que “os
discursos são os óculos através dos quais, em cada época, os homens tiveram a percepção
de que todas coisas, pensaram e agiram; impõem-se aos dominantes tanto quanto aos
214
FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 15-38.
215
VEYNE. Foucault, p. 59-63.
111
Os conceitos usados por Foucault para abordar as configurações amplas dos jogos
de poder, verdade e subjetividade em dada formação histórica (episteme, regime de
verdade e dispositivo) estão mais do que imbricados, como mostram os desdobramentos
sucessivos da pesquisa histórica de Foucault. Assim, se em seus textos da década de 1960,
o que seria sua fase arqueológica, conforme proposto por Salma Tannus Muchail,218 as
noções de discurso e de episteme tratam da historicidade dos jogos discursivos da verdade
(interrogando suas implicações sobre os processos de constituição das ciências), nos
textos e cursos da década de 1970, o olhar do pesquisador já transitara para o
entrelaçamento dos jogos de poder aos de verdade, para o que ele concebe a noção de
dispositivo.
É nestes últimos termos que Márcio Alves Fonseca observa a progressiva virada
genealógica nas pesquisas históricas de Foucault. Abordando o problema da constituição
do sujeito, o autor mostra que as propostas d’A arqueologia do saber já estão direcionadas
para uma ruptura total com os universais antropológicos na escrita da história. Isso porque
o objetivo da arqueologia não é outro que libertar a história (das práticas discursivas e
216
VEYNE. Foucault, p. 33.
217
“Em cada época, os contemporâneos encontram-se assim fechados em discursos como em aquários
falsamente transparentes, ignoram quais são e até que existe um aquário. As falsas generalidades e os
discursos variam através do tempo; mas, em cada época, passam por verdadeiros. De tal modo que a verdade
é reduzida a dizer a verdade, a falar conforme o que se admite ser verdade e que fará sorrir um século mais
tarde” (grifos do autor); “O dispositivo mistura, pois, alegremente, coisas e ideias (entre as quais a de
verdade), representações, doutrinas e até filosofias, a instituições, a práticas sociais, econômicas, etc. O
discurso impregna tudo isto”. VEYNE. Foucault, p. 19; 38.
218
MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault: uma introdução. In: Trans/Form/Ação. São Paulo: 3, p. 127-140,
1980, p. 135.
112
não discursivas, embora estas tenham ficado, até aquele momento na trajetória de
Foucault, em segundo plano) do sujeito transcendental.219 Essa noção é deslocada da
posição de fundadora do discurso para a de subproduto da formação discursiva, uma vez
que a elaboração regulada (regrada, normatizada) de posições de subjetividade, vazias e
determinadas, é uma das quatro leis que distingue, dentre todas as outras, uma formação
discursiva.220 O sujeito, na descrição arqueológica, se reduz a posições descontínuas e
dispersas, cuja ocupação regular é comandada pela lógica da formação discursiva. Na
argumentação de Fonseca, a arqueologia, ao desconstruir as noções tradicionais de
sujeito, coloca, de modo pleno (e intenso), no jogo da história, a problemática da sua
constituição – o que será perseguido pelas análises genealógicas.
219
FONSECA. Michel Foucault e a constituição do sujeito, p. 18.
220
“Para Foucault, as diversas modalidades de enunciação não estariam relacionadas à unidade de um
sujeito, quer se considere o sujeito tomado como pura instância fundadora de racionalidade, quer seja
considerado como função empírica de síntese. Os diversos tipos de enunciação não remeteriam, assim, à
função unificante de um sujeito, mas, antes, manifestariam sua dispersão. Seja dispersão nos diferentes
status que recebe, seja nos lugares ou nas diversas posições que ocupa quando exerce um discurso, seja
ainda na descontinuidade dos planos de onde fala”. FONSECA. Michel Foucault e a constituição do sujeito,
p. 16.
221
Veyne privilegia o lugar da raridade no tipo de história que pode ser feito a partir das ferramentas
foucaultianas. "A intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade,
no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há
um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente;
os fatos humanos são arbitrários, no sentido de Mauss, não são óbvios, no entanto parecem tão evidentes
aos olhos dos contemporâneos e mesmo de seus historiadores que nem uns nem outros sequer os percebem".
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria
Auxiliadora Kneipp. Brasília: Universidade de Brasília, 1982, p. 151-2.
222
“Assim concebido, o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: tesouro inesgotável de onde
se podem tirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisíveis; providência que sempre falou
antecipadamente e que faz com que se ouça, quando se sabe escutar, oráculos retrospectivos; ele aparece
como um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem suas regras de aparecimento e também suas
condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não
113
Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault tornou mais explícita sua
crescente preocupação com as imbricações entre o saber e o poder. Ao apresentar a
hipótese geral de seu trabalho, tanto do que fizera até ali, quanto do que pretendia
continuar fazendo a partir de então, ele a colocou nos termos do poder e do discurso, das
formas, estratégias, técnicas de controle do discurso. Disse o filósofo:
Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou
talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda
sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade.223
Finalmente, é na lista das análises futuras que Foucault se propõe fazer como
professor do Collège de France que se pode ver, com maior clareza, como seu método
arqueológico articula-se à questão do poder, começando a dar forma à genealogia. O
simplesmente em suas “aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de
uma luta, e de uma luta política”. FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 136-137.
223
FOUCAULT. A ordem do discurso, p. 8-9.
224
FOUCAULT. A ordem do discurso, p. 16-17.
225
FOUCAULT. A ordem do discurso, p. 19.
226
FOUCAULT. A ordem do discurso, p. 33-34.
114
termo é inicialmente citado, entre aspas, para designar um novo conjunto de análises, que
teria como foco investigar como os discursos podem se formar através, apesar ou com o
apoio dos três sistemas de exclusão, entre os quais está a vontade de verdade, atuantes no
Ocidente. Nesse momento, o termo genealogia parece ser usado no lugar de arqueologia,
por isso as aspas. Na verdade, Foucault organizou dois grupos de trabalhos, um que
designa crítico, outro sendo o genealógico. Com o primeiro, trata-se de uma nova forma
de abordar algumas das pesquisas arqueológicas que até então realizara, visto que, com
esse trabalho crítico (que parece ser uma primeira formulação dos trabalhos
genealógicos), entendia-se analisar as formas de exclusão no nível do discurso, suas
funções de exclusão, como a separação entre loucura e razão, a interdição de linguagem
sobre a sexualidade e a vontade de verdade (apresentada como foco principal das novas
pesquisas críticas). Porém, e isto é o mais importante para esta tese, Foucault afirma que,
mesmo distinguindo dois conjuntos de trabalhos distintos, o crítico/genealógico (análise
das instâncias de controle discursivo, processos de rarefação, reagrupamento e unificação
dos discursos) e o genealógico/arqueológico (estudo da formação, dispersa, descontínua
e regular, dos discursos), eles não são jamais inteiramente separáveis, uma vez que:
227
FOUCAULT. A ordem do discurso, p. 62.
115
Esta modificação foi designada, por Foucault, como a exploração de um novo eixo
de trabalho em suas pesquisas históricas sobre a sexualidade. Nesse momento, o filósofo
francês entendia que a experiência do sexo, como construto histórico diversamente
constituído nas várias sociedades ao longo do tempo (por exemplo, como sexualidade na
Modernidade Ocidental), era constituída por três eixos. Um dos saberes que a ela se
referem, outro dos sistemas de poder que regulam e governam sua prática, e um terceiro
que diz das formas pelas quais os indivíduos se reconhecem como sujeitos de tal saber-
prática do sexo.228
228
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 10-11.
229
“Foucault foi um filósofo livre. Minha leitura de seus escritos de épocas diferentes – esclarecida, em
grande parte, por meus contatos com ele – mostra a necessidade de não absolutizar seu pensamento.
Primeiro, compreendendo que se trata do pensamento de Foucault, e não da resolução de uma questão, seja
ela qual for. Segundo, compreendendo que aquele é seu pensamento em determinado momento de suas
pesquisas. E isso obriga quem quiser pensar os mesmos temas não certamente a tentar esquecê-lo, mas a
116
descritos por Foucault também podem ser pensados como sugestões metodológicas do
filósofo sobre como novas pesquisas históricas sobre as experiências do sexo poderiam
proceder. Neste sentido, a inflexão para o terceiro eixo (o das subjetividades), observável
nas últimas pesquisas de Foucault, não significa que os procedimentos arqueológicos e
genealógicos foram abandonados. Ao contrário.
Uma vez que o primeiro eixo de pesquisa envolve a análise, arqueológica, das
práticas discursivas como forma de seguir a formação dos saberes, assim como o segundo
eixo diz da análise, genealógica, das relações de poder e de suas tecnologias, percebendo-
as como estratégias não determinadas,230 vê-se que não é possível fazer uma história das
subjetividades desligada da relação saber-poder. Desse modo, os métodos, articulados por
Foucault anos antes dele se voltar para a dimensão ética da questão do sujeito, foram
reposicionados como dois, de três, fundamentos necessários para esta nova pesquisa. Há
que se ressaltar, contudo, relembrando a advertência contra a mirada retrospectiva sobre
Foucault, que esse novo posicionamento não é necessário, ou seja, pesquisas
arqueológicas ou genealógicas podem ser conduzidas sem ter algo necessário a dizer
sobre uma história da subjetividade. Para os nossos propósitos na tese, a arqueologia serve
como método para investigar os jogos de verdade nos quais as subjetividades sodomitas
estavam inseridas, delineando, destarte, os discursos constituintes do dispositivo da
Carne, como uma experiência específica do sexo.231
tomar distância e ousar expor suas próprias reflexões”. MACHADO. Impressões de Michel Foucault, p.
52.
230
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 11.
231
A historiadora Cláudia Maia destaca como a arqueologia está imbricada, desde sempre, na questão da
subjetividade, uma vez que um dos vetores a definir, quer dizer, a especificar a função enunciativa é "o fato
de ele [o enunciado] ser produzido por um sujeito, isto é, uma posição, um lugar de fala que defina e
possibilite que ele seja enunciado". MAIA, Cláudia de Jesus. A invenção da solteirona. Conjugalidade
moderna e terror moral: Minas Gerais 1890-1948. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2011, p. 61.
232
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 16-17.
117
(no sentido proposto pelos Annales de elaboração de um problema de pesquisa para uma
história problema)233 o sexo como comportamento ou representação, mas pesquisar como
o sexo foi tomado como um problema por diferentes sociedades (problematização que se
dá nos termos de distintos dispositivos históricos).234
233
É importante aqui diferenciar a história-problema dos Annales do procedimento metodológico de
problematização desenvolvido por Foucault na década de 1980, o que não significa, saliente-se desde já,
que a concepção de história de Foucault fosse incompatível com a da escola francesa, antes pelo contrário.
A história-problema dos Annales foi criada para se opor à narratividade típica da escola metódica. A
história-problema foi pensada como uma proposta alternativa de escrita da história, uma que aproximasse
a história das ciências. Assim, a narratividade perdeu espaço em relação ao problema. Formular um
problema e hipóteses para respondê-lo tornavam-se, a partir dos Annales, os passos iniciais da pesquisa
histórica. É a partir do problema formulado (cuja formulação era explicitada no texto, com seus diálogos
com o presente e a posição subjetiva do historiador, uma diferença notável em relação à objetividade exigida
do historiador da escola metódica, uma exigência cujo nítido fracasso era dissimulado), que o historiador
constrói seu objeto de pesquisa, escolhe e distribui suas fontes, organiza e dá sentido às suas séries de dados
e articula hipóteses e respostas. A partir dos Annales, toda a pesquisa histórica é reposicionada para
principiar na elaboração de um problema, com suas respectivas hipóteses. Ora, não foi isso que Foucault
fez? Não desenvolveu ele um problema de pesquisa com algumas hipóteses e partiu em busca de respostas,
recuando, para tanto, bastante em seu recorte temporal? Sim... e não. De acordo com Margareth Rago,
Foucault filiava-se à escola dos Annales e defendeu a história-problema, descrevendo-a como um trabalho
de pesquisa histórica que permitisse ao historiador responder a uma problematização. Na execução deste
esforço de pesquisa, o historiador desenharia, em sua narrativa, como a própria resposta ao problema inicial,
o objeto de investigação. Vê-se, pois, que há algumas diferenças entre a abordagem foucaultiana da história-
problema e sua versão entre os historiadores da escola dos Annales. Para Foucault, com a história-problema,
tratar-se-ia de propor um projeto de pesquisa para abordar uma determinada problematização, isto é, o
processo de construção histórica de determinada experiência em problema para os discursos de verdade, as
relações de poder e os modos de subjetivação. O objeto histórico apareceria só no fim do processo, como o
próprio resultado do processo de problematização pesquisado nos termos de um problema inicialmente
elaborado. REIS, José Carlos. Escola dos Annales. A inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000,
p. 73-76; RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, S. Paulo, 7(1-2): 67-82, outubro de 1995. Para uma discussão sobre o parentesco intelectual entre os
Annales e Foucault, ver também o texto de André Burguiére, que destaca as similaridades entre a
abordagem foucaultiana e as de autores como Lucien Febvre e Philippe Ariès. BURGUIÉRE, André. La
escuela de los Anales. Una historia intelectual. Trad. Tayra M. C. Lanuza Navarro. Valencia: Publicacions
de la Universitat de Valencia, 2009, p. 249-275.
234
“Vimos como escrever a história de um “problema”, em vez de um “período”, livra Foucault da
obrigação de uma pesquisa exaustiva das fontes históricas. Não que ele possa ignorar os “fatos”; em vez
disso, ele é autorizado a considerar apenas aqueles eventos que são relevantes para o problema em questão,
sua transformação e deslocamento, as estratégias que o problema exibe, e os jogos de verdade que ele
envolve. Isso também livra-o da necessidade de “totalizar” ou “sintetizar”, nos sentidos sartreano e
hegeliano, respectivamente. Tal abordagem, ele insiste, seria considerada anti-histórica apenas por “aqueles
que confundem a história com os velhos esquemas de evolução, continuidade viva, desenvolvimento
orgânico, com o progresso da consciência ou com o projeto da existência”. FLYNN, Thomas. O
mapeamento da história por Foucault. In: GUTTING, Gary. (Org.). Foucault. Trad. André Oídes. São
Paulo: Ideias & Letras, 2016, p. 66-7. (Companions & Companions).
235
“Ao retomar assim, da época moderna, através do cristianismo, até a Antiguidade, pareceu-me que não
se poderia evitar colocar uma questão ao mesmo tempo muito simples e geral: por que o comportamento
sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionados, são objeto de uma preocupação moral? Por que esse
118
se interroga sobre a sexualidade (em sentido genérico) trata-se de investigar como e por
quais razões essa problematização de si passou a girar em torno do sexo e de sua
experiência.
Essa última é uma categoria central para a história das subjetividades projetada
por Foucault em seus últimos anos, pois age como ponto de aglutinação dos três eixos de
pesquisa atrás mencionados. Por experiência, entende-se, portanto, inicialmente, as
correlações, em dado dispositivo, entre os campos de saber, os tipos de normatividade e
as formas de subjetividade. Assim, analisar uma dada experiência, em um primeiro
momento, é analisar como, em dada sociedade, os indivíduos são levados a se reconhecer
como sujeitos (de si mesmos, de sua carne, de sua sexualidade, etc.),
sujeição/subjetivação tal que se conecta a diferentes saberes (nível discursivo), bem como
a relações e técnicas de poder (leis, normas, regras e coerções).236
cuidado ético que, pelo menos em certos momentos, em certas sociedades ou em certos grupos, parece mais
importante do que a atenção moral que se presta a outros campos, não obstante essenciais na vida individual
ou coletiva, como as condutas alimentares ou a realização dos deveres cívicos? Sei que uma resposta ocorre
de imediato: é que eles são objeto de interdições fundamentais cuja transgressão é considerada falta grave.
Mas isso seria dar como solução a própria questão; e, sobretudo, implicaria desconhecer que o cuidado
ético a respeito da conduta sexual não está sempre, em sua intensidade ou em suas formas, em relação direta
com o sistema de interdições; ocorre frequentemente que a preocupação moral seja forte, lá onde
precisamente não há obrigação nem proibição. Em suma, a interdição é uma coisa, a problematização moral
é outra. Portanto, pareceu-me que a questão que deveria servir de fio condutor era a seguinte: de que
maneira, por que e sob que forma a atividade sexual foi constituída como campo moral? Por que esse
cuidado ético tão insistente, apesar de variável em suas formas e em sua intensidade? Por que essa
“problematização”? E, afinal, é esta a tarefa de uma história do pensamento por oposição à história dos
comportamentos ou das representações: definir as condições nas quais o ser humano “problematiza” o que
ele é, e o mundo no qual ele vive”. FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 16-17.
236
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 10. Sobre o conceito de experiência em Foucault, ver
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Experiência: uma fissura no silêncio. In: ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007, p. 133-148.
237
“E, visto que nessa problemática dos gêneros de vida o problema não é: como ser moral, seguir a lei,
evitar cometer erros, e sim: como conduzir-se, como estabelecer de si para si uma relação que passe pela
obrigação de conhecer a verdade, compreende-se que é aí que mais podemos encontrar a matriz das
experiências da sexualidade. A hipótese de trabalho é a seguinte: é verdade que a sexualidade como
experiência evidentemente não é independente dos códigos e do sistema de proibições, mas de imediato é
preciso lembrar que esses códigos são espantosamente estáveis, contínuos, lentos em se mover. É preciso
lembrar ainda que o modo como eles são observados ou transgredidos também parece muito estável e muito
repetitivo. Em contrapartida, o ponto de mobilidade histórica, o que sem dúvida muda com mais frequência,
o que é mais frágil, são as modalidades de experiência”. FOUCAULT, Michel. Subjetividade e verdade.
Curso no Collège de France (1980-1981). Edição estabelecida por Frédéric Gros sob direção de François
Ewald e Alessandro Fontana; trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2016, p. 35. (Coleção obras de Michel Foucault)
119
238
FOUCAULT. Subjetividade e verdade, p. 70.
239
CARDOSO JR., Hélio Rebello; OLIVA, Alfredo dos Santos. Parresia, prática de si e moral de código:
mais um elo do problema do sentido histórico em Foucault. In: CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro de.
(Orgs.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 126.
240
Cardoso Jr. e Oliva investigaram como a persistência de certa forma de discurso parresiástico no seio
do cristianismo, com sua moral de código, representa uma dessas formas de justaposição imprópria e
inesperada que dá o sentido de descontinuidade à experiência cristã da carne. Outros exemplos podem ser
observados nas pesquisas de Foucault, como os autores apontam, “(...) Foucault analisou exaustivamente
que discursos híbridos (por exemplo, direito penal e psiquiatria), por força combinados devido à lógica de
imbricação de diagramas históricos vigentes (por exemplo, biopoder e disciplina), tornam a história
descontínua sensível e documentada, pois o que caracteriza o sentido histórico é sempre o ineditismo do
dado discursivo e a evidência do corpo ao qual ele se aplica, a contrapelo da platitude testemunhal do
documento”. CARDOSO JR.; OLIVA. Parresia, prática de si e moral de código: mais um elo do problema
do sentido histórico em Foucault, p. 126.
241
Segundo Damián Lopez, Joan Scott usa o conceito de discurso como significando um sistema de
significação, a partir do qual, as práticas e as representações do mundo são organizadas (incluindo a auto
percepção e o vínculo entre subjetividades). Assim, o discurso, em Scott, conforma um entremeado instável
e sulcado por disputas (ainda que mantenha, ao mesmo tempo, uma aparência de rigidez). LOPEZ, Damián.
La prueba de la experiencia. Reflexiones en torno al uso del concepto de experiencia en la historiografía
reciente. Prismas, revista de história intelectual, n. 16, 2012, p. 33-52.
120
da explicação histórica – erro que tem como corolário a naturalização das categorias
culturais de identidade, tais como ser homem ou ser mulher. A história radical proposta
por Scott é aquela que, ao contrário da história ortodoxa (o que ela entende como aquela
que não problematiza a experiência), faz um exame crítico de todas as categorias
explicativas, entre elas, a de experiência.242
242
SCOTT, Joan W. A invisibilidade da experiência. Trad. Lúcia Haddad. Revisão técnica Marina Maluf.
Projeto História. São Paulo, 16, fev. 1998, p. 304.
243
SCOTT. A invisibilidade da experiência, p. 318-319.
244
“’Experiência’ é uma palavra amplamente recorrente no discurso feminista, como em tantos outros, indo
da filosofia ao discurso de conversação comum. Minha preocupação aqui é somente com o primeiro. Ainda
que tenha bastante necessidade de clarificação e de elaboração, a noção de experiência parece, a mim, ser
crucialmente importante para a teoria feminista, em tanto que importa diretamente para as maiores questões
que emergiram do movimento das mulheres – subjetividade, sexualidade, o corpo e a prática política
feminista. Eu diria, logo de saída, que, por experiência, eu não quero dizer o mero registro de dados
sensoriais, ou uma relação puramente mental (psicológica) com objetos e eventos, ou a aquisição de
habilidades e competências pela acumulação ou por exposição repetida. Eu uso o termo não no sentido
individualista, idiossincrático, de algo pertencente a alguém e dele próprio exclusivamente, ainda que outros
possam ter experiências ‘similares’; mas antes no sentido geral de um processo pelo qual, para todos os
seres sociais, a subjetividade é construída. Através deste processo, cada um coloca-se, ou é colocado, na
realidade social, e, assim, percebe e compreende como subjetivas (referindo-se ou mesmo originando-se
em si mesmo) aquelas relações – materiais, econômicas e interpessoais – que são, de fato, sociais e, em
uma perspectiva mais ampla, históricas. O processo é contínuo, seu objetivo interminável e diariamente
renovado. Para cada pessoa, portanto, a subjetividade é uma construção em curso, não um ponto fixo de
partida ou de chegada, a partir do qual cada um interage com o mundo. Ao contrário, é o efeito desta
interação – que eu chamo de experiência, e, logo, é produzida não por causas, ideias, valores ou materiais
externos, mas pelo engajamento pessoal, subjetivo de cada um nas práticas, discursos e instituições que
emprestam significação (valor, sentido e afeto) aos eventos do mundo”. Tradução nossa. Original:
121
Tanto com Scott, que enfatiza seu teor histórico, quanto com de Lauretis, que
enfatiza sua dimensão semiótica (a experiência como hábito de significação, apropriando-
se do conceito de Pierce),245 a experiência é concebida, portanto, como um processo de
subjetivação. Problematizar a experiência, por conseguinte, é inquirir como e por que o
processo histórico e semiótico de constituição de subjetividades foi, em diferentes
sociedades, tomado como objeto de preocupação moral. Retomando o sentido
foucaultiano de experiência,246 a questão pode ser ainda mais desdobrada, como uma
inquirição sobre como e por que determinados jogos de verdade, certas relações de poder
e formas específicas de relação consigo mesmo e com os outros – elementos que, em
conjunto, compõem um modo de experiência – concorrem para a delimitação de um
processo histórico e semiótico de constituição de subjetividades.
“’Experience’ is a word widely recurrent in the feminist discourse, as in many others ranging from
philosophy to common conversational speech. My concern here is only with the former. Though very much
in need of clarification and elaboration, the notion of experience seems to me to be crucially important to
feminist theory in that it bears directly on the major issues that have emerged from the women's movement
- subjectivity, sexuality, the body, and feminist political practice. I should say from the outset that, by
experience, I do not mean the mere registering of sensory data, or a purely mental (psychological) relation
to objects and events, or the acquisition of skills and competences by accumulation or repeated exposure. I
use the term not in the individualistic, idiosyncratic sense of something belonging to one and exclusively
her own even though others might have ‘similar’ experiences; but rather in the general sense of a process
by which, for all social beings, subjectivity is constructed. Through that process one places oneself or is
placed in social reality, and so perceives and comprehends as subjective (referring to, even originating in,
oneself) those relations-material, economic, and interpersonal - which are in fact social and, in a larger
perspective, historical. The process is continuous, its achievement unending or daily renewed. For each
person, therefore, subjectivity is an ongoing construction, not a fixed point of departure or arrival from
which one then interacts with the world. On the contrary, it is the effect of that interaction - which I call
experience; and thus it is produced not by external ideas, values, or material causes, but by one's personal,
subjective, engagement in the practices, discourses, and institutions that lend significance (value, meaning,
and affect) to the events of the world”. DE LAURETIS, Teresa. Alice doesn’t. Feminism, semiotics, cinema.
London: The Macmillan Press LTD, 1984, p. 159.
245
“I have then sought to define experience more accurately as a complex of habits resulting from the
semiotic interaction of "outer world" and "inner world," the continuous engagement of a self or subject in
social reality. And since both the subject and social reality are understood as entities of a semiotic nature,
as "signs," semiosis names the process of their reciprocally constitutive effects”. Em nossa tradução, “Eu
tenho, então, buscado definir experiência, mais acuradamente, como um complexo de hábitos, resultante
da interação semiótica do “mundo exterior” e do “mundo interior”, o engajamento contínuo de um Eu ou
de um sujeito com a realidade social. E desde que o sujeito e a realidade social, ambos, são entendidos
como entidades de natureza semiótica, como “signos”, semiose nomeia o processo de seus efeitos
constitutivos recíprocos”. DE LAURETIS. Alice doesn’t, p. 182.
246
Edgardo Castro ressalta que, ao longo de sua carreira, Foucault trabalhou com três sentidos para a
categoria experiência. Em seus primeiros textos, em que ainda se sente a influência da fenomenologia
existencialista, como na introdução à tradução de Le rêve et l’existence, de Binswanger, como também no
primeiro prefácio da História da Loucura, experiência é assumida como o lugar em que é necessário
descobrir as significações originárias. O segundo sentido da categoria experiência está associado ao diálogo
de Foucault com Nietzsche, Bataille e Blanchot. Aqui, a experiência não é mais o que funda o sujeito, antes
é um meio de dessubjetivação, uma forma de arrancar o sujeito de si mesmo, quebrar sua identidade de si,
aniquilando-o, dissolvendo-o. O terceiro sentido de experiência em Foucault é o que está sendo
desenvolvido nesse capitulo, uma forma histórica de subjetivação. Castro ressalta que, a partir desta última
perspectiva, Foucault repudiou seus usos anteriores da categoria. CASTRO. Vocabulário de Foucault, p.
161-163.
122
Foi com vistas a elaborar os elos entre verdade, poder e subjetividade na história
do Ocidente, que a figura do sujeito de desejo emergiu nas obras de Foucault sobre a
sexualidade. Ou seja, a explicação histórica da construção dos distintos modos de
experiência (processo histórico e semiótico de imbricação tríplice entre verdade, poder e
subjetividade) do sexo no Ocidente teve como resultado a elaboração de uma figura que,
há vários séculos, mas com profundas descontinuidades internas, sintetiza tal experiência.
Tal figura é o sujeito de desejo. Esta contestação configurou um deslocamento
fundamental nas pesquisas de Foucault sobre a sexualidade, de modo que é necessário
deter-nos ainda um pouco sobre os termos pelos quais o filósofo o relata. Assim:
247
FOUCAULT. Subjetividade e verdade, p. 207.
248
“Já na história arqueológica que eu lhes proponho, tratar-se-ia de ir um pouco na contramão em relação
a isso e consistiria, portanto, não em admitir o verdadeiro de pleno direito e sem que nos interroguemos a
seu respeito, a um poder de obrigação e de constrangência sobre os homens, mas em deslocar a ênfase do
“é verdade” para a força que lhe prestamos. Uma história desse tipo não seria consagrada portanto ao
verdadeiro na maneira como consegue se apartar do falso e romper todos os laços que os prendem, mas
seria consagrada, resumindo, à força do verdadeiro e aos vínculos pelos quais os homens se amarram pouco
a pouco na e pela manifestação do verdadeiro. No fundo, o que eu queria fazer, e sei que não seria capaz
de fazer, é escrever uma história da força do verdadeiro, uma história do poder da verdade, uma história,
portanto – pegando a mesma ideia sob um outro aspecto –, da vontade de saber”. FOUCAULT. Do governo
dos vivos, p. 92.
123
249
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 11-12.
250
Na sociedade grega, outras modalidades de desejos também recebiam intensa problematização moral e
ocupavam posições importantes na relação que o sujeito mantinha consigo mesmo. Os prazeres da
alimentação, do casamento e da casa e do saber são problematizados por Foucault, ao lado da preocupação
com o amor por rapazes, na sociedade grega clássica. Cabe notar que, para os gregos, estas
problematizações sobre a dietética, a econômica, a erótica e sobre o verdadeiro amor (o saber) não se
desdobravam em uma hermenêutica do desejo, mas em formas de estilização da existência, cujo fim era
formar sujeitos senhores de si próprios. FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 123-180; 181-234; 235-
285; 287-310.
124
251
“Deseo homosexual: estos términos no son evidentes de por sí. No hay subdivisión del deseo entre
homosexualidad y heterosexualidad. No hay tampoco ni deseo homosexual ni deseo heterosexual en sentido
propio. El deseo emerge bajo una forma múltiple, cuyos componentes solo son separables a posteriori, en
función de las manipulaciones a las que le sometemos. El deseo homosexual, al igual que el deseo
heterosexual, es un recorte arbitrario en un flujo ininterrumpido y polívoco. En su forma actual, la
caracterización homosexual del deseo de manera exclusiva es una engañifa del imaginario. Pero como en
la homosexualidad el juego de imágenes aparece con la mayor evidencia, podemos comenzar un trabajo de
deconstrucción de estas imágenes a partir de su punto más sensible. Si hay en la imagen homosexual un
complejo nudo de deseo y de temor, si la evocación del fantasma homosexual es más obscena que cualquier
otra y al mismo tiempo excitante, si uno no puede aparecer en un sitio como homosexual sin que las familias
se alteren y mantengan a sus niños al margen, sin que una relación de horror y de deseo se instaure, es que
hay para nosotros, occidentales del siglo XX, una íntima relación entre el deseo y la homosexualidad. La
homosexualidad manifiesta algo del deseo que no aparece en otro sitio, y ese algo no es simplemente el
acto sexual realizado con una persona del mismo sexo”. Nossa tradução: “Desejo homossexual: estes
termos não são evidentes em si mesmos. Não há uma subdivisão do desejo entre homossexualidade e
heterossexualidade. Não há tampouco nem desejo homossexual, nem desejo heterossexual em sentido
próprio. O desejo emerge sob uma forma múltipla, cujos componentes somente são separáveis a posteriori,
em função das manipulações a que os submetemos. O desejo homossexual, igualmente ao desejo
heterossexual, é um recorte arbitrário de um fluxo ininterrupto e polivalente. Em sua forma atual, a
caracterização homossexual do desejo de maneira exclusiva é uma armadilha do imaginário. Porém, como
na homossexualidade o jogo de imagens aparece mais evidentemente, podemos começar um trabalho de
desconstrução destas imagens a partir do seu ponto mais sensível. Se há na imagem homossexual um nó
complexo de desejo e de temor, se a evocação do fantasma homossexual é mais obscena que qualquer outra,
e, ao mesmo tempo, excitante, se não se pode aparecer em um lugar como homossexual, sem que as famílias
se irritem e afastem suas crianças, sem que uma relação de horror e de desejo se instaure, é porque há, para
nós, ocidentais do século XX, uma relação íntima entre o desejo e a homossexualidade. A
homossexualidade manifesta algo do desejo que não aparece alhures, e este algo não é simplesmente o ato
sexual realizado com uma pessoa do mesmo sexo”. HOCQUENGHEM, Guy. PRECIADO, Beatriz. El
deseo homosexual. Epílogo El terror anal. Barcelona: Melusina, 2009, p. 22.
125
252
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L.
Orlandi. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011. (Coleção TRANS); DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. Trad. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto, Celia Pinto
Costa. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011. (Coleção TRANS).
253
“Como diz Marx, não há falta, o que há é paixão como “ser objeto natural e sensível”. Não é o desejo
que se apoia nas necessidades; ao contrário, são as necessidades que derivam do desejo: elas são
contraproduzidas no real que o desejo produz. A falta é um contraefeito do desejo, depositada, arrumada,
vacuolizada no real natural e social. O desejo está sempre próximo das condições de existência objetiva,
une-se a elas, segue-as, não lhes sobrevive, desloca-se com elas, razão pela qual ele é, tão facilmente, desejo
de morrer, ao passo que a necessidade dá a medida do distanciamento de um sujeito que perdeu o desejo ao
perder a síntese passiva dessas condições”. DELEUZE; GUATTARI. O anti-Édipo, p. 44.
254
Deleuze e Guattari recorrem ao poema de Artaud, para explicarem esse ponto. O poema é como segue,
em sua tradução contida n’O anti-Édipo: “O corpo sob a pele é uma fábrica superaquecida / e por fora / o
doente brilha / reluz / em todos os seus poros, / estourados”. ARTAUD, Antonin. Van Gogh, le suicide de
la societé. Paris: K Éditeur, 1947 apud. DELEUZE; GUATTARI. O anti-Édipo, p. 13.
255
“Em segundo lugar, há menos ainda a distinção homem-natureza: a essência humana da natureza e a
essência natural do homem se identificam na natureza como produção ou indústria, isto é, na vida genérica
do homem, igualmente. Assim, a indústria não é mais considerada numa relação extrínseca de utilidade,
mas em sua identidade fundamental com a natureza coo produção do homem e pelo homem”. DELEUZE;
GUATTARI. O anti-Édipo, p. 15.
256
O historiador argumenta que é o desejo que, de modo correlato à vontade de saber ocidental, movimenta
os processos de reificação, atualização, objetivação ou assujeitamento que atuam na normalização das
várias posições de subjetividade em dada formação histórica. VEYNE. Como se escreve a história;
Foucault revoluciona a história, p. 166.
126
257
CASSIANO, Marcela; FURLAN, Reinaldo. O processo de subjetivação segundo a esquizoanálise.
Psicologia e sociedade, v. 25, n. 2, Belo Horizonte, 2013, p. 377.
258
“Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só pode sê-lo na realidade, e de realidade.
O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os corpos, e
que funcionam como unidades de produção. O real decorre disso, é o resultado das sínteses passivas do
desejo como autoprodução do inconsciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o sujeito,
sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo pela repressão. O
desejo e o seu objeto constituem uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de máquina. O
desejo é máquina, o objeto do desejo é também máquina conectada, de modo que o produto é extraído do
produzir e algo se destaca do produzir passando ao produto e dando um resto ao sujeito nômade e
vagabundo. O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo”. DELEUZE; GUATTARI. O anti-Édipo, p.
43.
259
“É que, na superfície de inscrição, algo da ordem de um sujeito se deixa assinalar. É um estranho sujeito,
sem identidade fixa, errando sobre o corpo sem órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes, definido
pela parte que toma do produto, recolhendo em toda parte o prêmio de um devir ou de um avatar, nascendo
dos estados que ele consome e renascendo em cada estado”; “Isso equivale a dizer que o sujeito é produzido
como um resto, ao lado das máquinas desejantes, ou que ele próprio se confunde com essa terceira máquina
produtora e com a reconciliação residual que ela opera: síntese conjuntiva de consumo, sob a forma
maravilhosa de um “Então era isso!”. DELEUZE; GUATTARI. O anti-Édipo, p. 30; 31.
127
defendida tradicionalmente pela psicanálise, isto é, ao desejo como falta e como energia
reprimida pelo poder.260 Como salientou Edgardo Castro, Foucault não arquitetou nunca
uma teoria geral do desejo, tampouco pretendeu fazê-lo, ainda que o conceito permeie
todos os campos que analisou em sua carreira.261 Nesse volume inicial da História da
sexualidade, já ocorrem, contudo, sinalizações para a ideia de hermenêutica de si, através
do desejo, que caracterizará os volumes finais da série. Essas sinalizações correspondem
às noções de vontade de saber e de incitamento a colocar o sexo em discurso.
260
“Ordenei o meu propósito à colocação fora do jogo desta noção, fingindo ignorar que se fazia, por outro
lado, e sem dúvida de uma maneira muito mais radical, uma crítica: uma crítica que se efectuou ao nível da
teoria e do desejo. Que o sexo não é “reprimido”, não é efetivamente uma asserção muito nova. Houve
psicanalistas que o disseram já há bastante tempo. Esses recusaram a pequena maquinaria simples que
facilmente se imagina quando se fala de repressão; a ideia de uma energia rebelde que haveria que jugular
pareceu-lhes inadequada para decifrar o modo como poder e desejo se articulam; eles supõem-nos ligados
de uma forma mais complexa e mais originária do que este jogo entre uma energia selvagem, natural e viva,
que sobre constantemente lá debaixo, e uma ordem de cima que procura entravá-la; não se deveria imaginar
que o desejo é reprimido, pela simples razão de que é a lei, que é constitutiva do desejo e da falta, que o
instaura. A relação de poder estaria já onde está o desejo: seria portanto uma ilusão denunciá-lo numa
repressão que se exerceria posteriormente; mas seria também vaidade partir à procura de um desejo à
margem do poder”. FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 85-6.
261
CASTRO. Vocabulário de Foucault, p. 104-106.
262
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 22.
263
Cesar Candiotto observou como não há uma ruptura, para Foucault, entre o cristianismo e os Estados
modernos e outras instituições seculares, leigas, no que toca à sua analítica do poder. “Em Surveiller et
punir (1975), Foucault problematizou a constituição do indivíduo moderno em meio às práticas sociais pela
elevação das disciplinas a tecnologias políticas de fixação identitária e ortopedia moral. As práticas cristãs
de normalização do comportamento e docilização da alma, observáveis nas escolas e nos seminários,
compunham com aquelas práticas institucionais ‘seculares’ o canteiro histórico moderno da sociedade
disciplinar. Pela perspectiva das práticas sociais, portanto, Foucault jamais apresentou uma ruptura total
entre religião e cultura moderna, entre cristianismo e secularização”. CANDIOTTO, Cesar. As religiões e
o cristianismo na investigação de Foucault: elementos de contexto. In: CANDIOTTO, Cesar; SOUZA,
Pedro de. (Org.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 17. (Coleção
Estudos Foucaultianos, 10).
128
Com esta tese, objetivamos estudar como a sodomia (conceito, categoria de sujeito
e prática anal e/ou homoerótica) era experimentada nas sociedades do Império
ultramarino português da Época Moderna, com vistas a tentar entender em que medida
era o sodomita um sujeito e como ele se posicionava (sujeitava e subjetivava) em meio às
relações de saber-poder que se delineavam nessas sociedades no contexto histórico-
genealógico de uma forma cristã de experimentar o erotismo. Nesta primeira parte,
especificamente, nossa tarefa será a de construir uma arqueologia das categorias sodomia
e sodomita dentro dos discursos articulados no jogo do dispositivo da carne cristã.
Queremos realizar um ensaio genealógico da sodomia como uma categoria de
identificação, interpelação e reconhecimento manufaturada nas oficinas de saber-poder-
subjetivação de instituições como o Tribunal do Santo Ofício, com o objetivo de
disciplinar (controlar, vigiar e produzir subjetividades) os amantes homoeróticos e
cultivadores do erotismo anal nas sociedades do Império ultramarino português.
264
Sobre o que caracteriza o dispositivo cristão para a experiência do sexo, podemos reproduzir dois rápidos
comentários de Foucault. "É a nova definição das relações entre subjetividade e verdade que vai dar a esse
núcleo prescritivo antigo um significado inédito, e trazer à concepção antiga dos prazeres e de sua economia
algumas modificações importantes"; "Essas modificações tratam menos da divisão entre o permitido e o
proibido, que sobre a análise do domínio dos aphrodisia e sobre o modo de relação que o sujeito é chamado
a ter com eles. Não era, pois, tanto a lei e o seu conteúdo que tinham mudado, mas a experiência, como
condição de conhecimento". Tradução de nossa autoria. No original: "C'est la nouvelle définition des
rapports entre subjectivité et vérité qui va donner à ce noyau prescriptif ancien une signification inédite, et
apporter à la conception ancienne des plaisirs et de leur économie des modifications importantes"; "Ces
modifications portent moins sur le partage entre permis et défendu que sur l'analyse du domaine des
aphrodisia et sur le mode de rapport que le sujet est appelé à avoir avec eux. Ce n'est donc pas tellement la
loi e son contenu qui ont changé, mais l'expérience, comme condition de connaissance". FOUCAULT.
Histoire de la sexualité 4, p. 365.
265
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-361; FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 85-10103.
131
266
Para o conceito de interpelação, ver originalmente ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos
ideológicos de Estado. Trad. José de Moura Ramos. Lisboa: Presença, 1980. Na Segunda Parte,
analisaremos como o conceito de interpelação foi apropriado por autoras e autores queer, com cuja
abordagem dialogamos principalmente.
132
267
Sobre a noção de episteme ou epistema e a descontinuidade histórica que está no seu centro, é
interessante recorrer às explicações de Judith Revel: "Mais do que um modelo geral da consciência,
Foucault descreve, portanto, um feixe de relações e de decalagens: não um sistema, mas a proliferação e a
articulação de múltiplos sistema que remetem uns aos outros". REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Trad.
Anderson Alexandre da Silva; revisão técnica Michel Jean Maurice Vincent. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2011, p. 48-9. Sobre o conceito de formação histórica ver o curso de Deleuze sobre a
arqueologia do saber de Foucault. DELEUZE. Michel Foucault.
133
268
FOUCAULT. Subjetividade e verdade, p. 35.
269
FOUCAULT. Subjetividade e verdade, p. 64.
270
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 247-324.
271
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 45-122; FOUCAULT. História da sexualidade 3, p. 225-8;
FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 261-288.
272
FOUCAULT. A hermenêutica do sujeito, p. 407-440.
134
273
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 159-180; LAQUEUR, Thomas. Making sex. Body and
gender from the Greeks to Freud. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press,
1990, p. 43-52.
274
FOUCAULT. Subjetividade e verdade, p. 143.
275
FOUCAULT. Subjetividade e verdade, p. 227.
135
interioridade (alma ou subjetividade).276 Por outro lado, nas últimas décadas do século
XX, desdobrou-se, a partir das crises da Modernidade ocidental e de seus relatos
legitimadores,277 uma linha de experiência do sexo que subjetiva a autenticidade de
maneira diversa, é o que chamamos de autenticidade queer ou pós-moderna (sem
pretender que os dois termos sejam sinônimos),278 a qual explode a ideia de que haveria
uma autenticidade interior, revelando-a como discursiva, corpórea, superficial,
performativa e prostética.279 Ainda que a episteme/formação histórica/época queer não
seja o nosso objeto de estudo, ela é, como explicitamos na Introdução, o nosso lugar de
fala, a partir do qual direcionamos nosso olhar, nossas questões e nossos problemas de
pesquisa histórica sobre a sodomia.280 Daí porque articulamos a categoria ao que
descrevemos como dispositivo da carne cristã.
276
"Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender: construir uma máquina cujo efeito
será elevado ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe. A
disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles,
mas de compor forças para obter um aparelho eficiente". FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 158.
277
Estamos pensando, aqui, com o que Jean-François Lyotard denominou a condição pós-moderna,
caracterizando-a da maneira seguinte: "Na sociedade e na cultura contemporânea, sociedade pós-industrial,
cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber coloca-se em outros termos. O grande relato perdeu
sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido: relato especulativo, relato de
emancipação". LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa;
posfácio: Silviano Santiago. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 69.
278
Em outro trabalho, pesquisamos algumas relações entre o campo político-acadêmico conhecido como
estudos queer e a condição pós-moderna, especificamente com o estado das relações entre tempo e cultura
neste contexto histórico. Como os estudos queer se relacionavam com o futurismo e o presentismo,
conforme definidos por François Hartog? A questão era evidenciar as linhas de relação entre os estudos
queer e a consciência histórico-temporal pós-moderna. Para tanto, foi-nos útil usar as categorias
metahistóricas, de Reinhart Koselleck, de espaço de experiência e horizonte de expectativa, para pensar
como as relações entre passado, presente e futuro puderam e poderiam ser queerizadas, de modo a pensar
os estudos queer como uma trilha crítica a ser percorrida no labirinto pós-moderno. KOSELLECK,
Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas,
Carlos Almeida Pereira, revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio,
2006, p. 305-327; HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo.
Vários tradutores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 9-42; ROCHA, Cássio Bruno de Araujo.
Teoria queer entre a pós-modernidade e o presentismo: um caminho crítico possível? Periódicus, Salvador,
v. 1, n. 6, p. 220-240, nov.2016/abr.2017.
279
PRECIADO. Paul B. Testo Junkie. Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Trad. Maria
Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 25-38; VERAS, Elias Ferreira. Travestis. Carne,
tinta e papel. Curitiba, PR: Editora Prismas, 2017
280
Nos últimos anos, desde o golpe político-midiático contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, têm
crescido e tomando com cada vez mais a cena pública, manifestações de ódios e intolerâncias. Como
detectou a historiadora Kátia Gerab Baggio, ainda que tais ódios tenham sempre existido na sociedade
brasileira, eles estavam subterrâneos, ou jogados para o pano de fundo da cena pública, durante o período
da Nova República: "contudo, tudo isso emergiu de uma forma avassaladora e brutal: racismo, machismo,
homofobia, intolerância religiosa, extremismos políticos (de direita e de esquerda), agressões e violências
verbais (virtuais e presenciais)". Nesse contexto de avanço do extremismo, as lutas dos novos movimentos
sociais foram duramente atacadas por setores das esquerdas socialistas ortodoxas e da extrema-direita, que
procuraram, por estratégias e argumentos diversos, deslegitimá-las, atacando, principalmente, o conceito
de lugar de fala, que, assim, tornou-se polêmico. A deturpação do conceito, apresentada por esses grupos,
resultou em sua percepção como uma ferramenta de autoritarismo no campo da pesquisa acadêmica e
científica. Tal percepção está distante do significado original do conceito. Segundo Djamila Ribeiro, o
136
conceito não parte de visões essencialistas ou de experiências individuais, tampouco seria seu objetivo criar
nichos de pesquisa ou fala de acordo com identidades sociais. O lugar de fala, conforme elaborado por
autoras associadas aos estudos culturais e descoloniais, quando usado adequadamente, é uma ferramenta
para questionar a legitimidade no campo das relações de saber-poder do grupo que está no poder (homens,
brancos, heterossexuais, proprietários). Ao invés desse ponto de vista que se apresentava como universal,
o conceito de lugar de fala abre para uma multiplicidade de vozes, cujas diferentes experiências de opressão
não podem ser hierarquizadas ou priorizadas umas em relação às outras, devendo ser concebidas como
desigualdades estruturais das sociedades. Por fim, na esteira de autoras como Spivak e Kilomba, o conceito
de lugar de fala serve principalmente para questionar os silêncios do discurso, os seus não-lugares, ao
subalterno é permitido que fale? Fale como e de quê? Sofrendo quais represálias? De modo que explicitar
o lugar de fala é também gritar a partir do nosso lugar de silêncio, forçando os colonizadores reticentes a
escutar nossos discursos incômodos e sujos. Daí que, ao reclamarmos a posição subjetiva queer como lugar
de fala a partir do qual questionarmos os dispositivos hegemônicos sobre a sodomia, nosso objetivo não é
outro que desestabilizar a norma secularmente hegemônica, desnaturalizando-a. BAGGIO, Kátia Gerab.
Entre 2013 e 2016, das "jornadas de junho" ao golpe. In: MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia;
MAMIGONIAN, Beatriz G. Historiadores pela democracia. O golpe de 2016 e a força do passado. São
Paulo: Alameda, 2016, p. 257-270; RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento;
Justificando, 2017.
137
281
PRODI, Paolo. Uma história da justiça. Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência
e direito. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 111-164. (Coleção justiça e direito)
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 21-5.
282
Para as análises de Foucault sobre o batismo como um ato de verdade, que insere o sujeito no caminho
da verdade, realizando a operação de conversão, conferir as aulas de seis e treze de fevereiro de 1980, no
curso Do governo dos vivos. FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 85-99; 105-124. Conferir também o
capítulo “Le baptême laborieux” em Les aveux de la chair. FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 52-
77.
283
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro. Função da confissão em juízo. Curso em Louvain,
1981. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Hancourt; trad. Ivone Benedetti. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2018, p. 90-147. (Coleção obras de Michel Foucault)
284
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 52-145; FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 141-
172; PRODI. Uma história da justiça, p. 291-354; BRUNDAGE, James A. Law, sex, and Christian society
in Medieval Europe. Chicago; London: The University of Chicago Press, 1990, p. 124-175; 256-324; 551-
575.
285
FOUCAULT, Michel. Sexualidade e solidão. 1981. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Volume
V: ética, sexualidade, política. Organização, seleção de textos, revisão técnica Manoel Barros da Motta;
trad. Elisa Monteiro; Inês Autran Dourado Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.
95.
286
HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Estudos sobre as formas de vida e de pensamento dos
séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Ensaios Peter Burke e Anton von der Lem. Entrevista:
Jacques Le Goff. Trad. Francis Petra Janssen. Rev. Técnica: Tereza Aline Pereira de Queiroz. São Paulo:
Cosac Naify, 2010, p. 323.
138
todos os seus pecados, atribulações e sofrimentos. Por isso mesmo, a tarefa de decifração
e confissão de si mesmo, que tem a ação performativa de um exorcismo, precisa ser
infinita. É necessário que o cristão tente, lute, implore para renunciar ao seu ser, à sua
subjetividade, de modo a poder comungar do espírito divino. Daí o lugar central de
demonstrações físicas, visíveis e públicas dessa súplica, na forma de um arrependimento
verdadeiro (contrição) externalizado no dom das lágrimas. Como veremos, a exaltação
das lágrimas ocupou um lugar central no funcionamento das técnicas de interpelação das
instituições cristãs na Época Moderna, inclusive no Santo Ofício da Inquisição.287
Na obrigação de aleturgia que marca o dispositivo cristão, qual o lugar do sexo?
Por que foi o sexo aquilo que sobretudo deveria ser posto em um discurso de si? Entre os
gregos, no dispositivo da ética dos aphrodisia, o sexo não ocupava um lugar assim central
na problematização moral.288 Para entender esse fenômeno, parece-nos útil recorrer à
expressão de Peter Brown, relembrada por Foucault, qual seja, a de que o sexo foi
transformado, nas culturas cristãs, no "sismógrafo de nossa subjetividade".289 A feliz
expressão do historiador irlandês resume o elo entre o erótico e o subjetivo consolidado
pelo cristianismo através do dispositivo da carne. Trata-se da ligação que se tornou
fundamental entre a sexualidade, a subjetividade e a obrigação de verdade, efetivada por
algumas técnicas de si que desenham relações de poder. Em relação à ética antiga dos
aphrodisia, o cristianismo realizou uma virada fundamental, ao transformar o si mesmo
em um ser carnal (libidinoso ou concupiscente), cuja natureza é dita e calculada mais
claramente por sua relação de desejo-renúncia de seu sexo.290
Para melhor conceber em que medida o cristianismo construiu o sexo como
“sismógrafo da subjetividade”, é interessante um breve retorno aos problemas abordados
pelos Padres da Igreja, como S. Agostinho, e pelos primeiros monges do deserto, cujas
reflexões foram trazidas ao Ocidente, entre outros, por João Cassiano. O problema do
sexo foi abordado por eles (descontando as especificidades de cada autor), entre outras
facetas, pela questão da ereção e do seu revés, a impotência, entendida como uma
demonstração carnal do que entendiam do orgulho humano. O homem orgulhoso quis ser
287
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. As dificuldades da confissão nos séculos XII a XVIII. Trad.
Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 47-8.
288
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 123-180.
289
FOUCAULT. Sexualidade e solidão. 1981, p. 95. Sobre as análises de BROWN e a sexualidade no
cristianismo antigo durante a Antiguidade tardia, ver, especialmente o capítulo sobre S. Agostinho,
BROWN, Peter. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 318-351.
290
FOUCAULT. Sexualidade e solidão. 1981, p. 96-7.
139
ele próprio criador, ser sujeito, ser algo para além de sua origem. Para o cristianismo, esta
arrogância seria o Pecado Original, de modo que “o sexo descontrolado do homem é a
imagem daquilo que Adão havia sido em relação a Deus: um rebelde”.291 Vemos, pois,
como o sexo foi problematizado, no discurso cristão, especialmente a partir de S.
Agostinho, como um indicador do problema fundamental do ser humano, sua identidade
como tal. Deve o homem se identificar antes como sujeito ou como objeto? Como criador
ou criatura?
Encontramo-nos aqui no campo do saber teológico-moral elaborado pelo
cristianismo agostiniano como uma teoria geral da libido.292 Como um componente
indissociável da subjetividade do homem expulso do Éden, a libido, ou a concupiscência,
estabelece os movimentos involuntários do sexo como aquilo que indica o maior ou
menor afastamento da alma humana do estado de contemplação beatífica.293 Assim, a
carne é fraca, porque se move ao sabor da concupiscência, enquanto o espírito deve ser
fixo diante da imobilidade da perfeição da verdade-Deus. O sexo carnal, a
concupiscência, portanto, para o cristianismo, precisou ser interrogado e interpretado pelo
cristão – porém, nunca de modo autônomo, sempre em uma relação de direção, de
confissão e obediência ao sacerdote, ao seu mestre diretor, ao confessor, ao juiz, ao
inquisidor.
O sujeito cristão assim construído é uma tentativa, nunca completa sem a
interferência da Graça, de não ser sujeito. Uma desistência sempre protelada de si mesmo.
Um sujeito sem gozo carnal, que recusa até mesmo aquele gozo que vem para além das
forças de sua vontade racional e desperta, que vem no sono e no sonho. O único gozo
legítimo do cristão deveria ser o da vida após a vida na verdade-Deus. O sujeito da carne
mortificada do cristianismo deveria manifestar, em um discurso confessional, os menores
movimentos dos arcanos de seu coração, cujos reflexos à superfície da carne são os
movimentos visíveis do sexo.294 A dívida do mal é a vontade pervertida do ser humano,
sinal do orgulho que fez o homem ousar querer. Querer ser si mesmo. Querer ser. Querer.
291
FOUCAULT. Sexualidade e solidão. 1981, p. 99. FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-361.
292
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), volume I. Trad.
Álvaro Lorencini. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 461-535.
293
Para uma narrativa sobre como e porquê S. Agostinho compôs uma interpretação literal do mito da
Queda Original de Adão e Eva (e suas consequências para a história cultural do mito posteriormente), ver
GREENBLAT, Stephen. Ascensão e queda de Adão e Eva. Trad. Donaldson M. Garschagen. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018, p. 80-94; 95-113; 114-130.
294
FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 94.
140
O querer como desejar tem sido a questão central da subjetividade no Ocidente desde o
cristianismo. A mudança histórica da carne à sexualidade não foi o bastante para destronar
o desejo de sua posição central na subjetividade – ao contrário, como vimos, serviu para
positivar, intensificar o desejo como aquilo que dá uma identidade hetero- ou homo-
sexual ao sujeito. O sujeito que deseja tem sido um produto das relações de saber-poder
que tecem, em torno do sexo, uma rede que o comprime e o constrange a buscar aí algo
como uma verdade a ser dita.
295
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 147-245.
296
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 247-324.
297
Sobre o processo histórico da imposição do celibato ao clero secular da Igreja Católica durante a Idade
Média, ver BRUNDAGE. Law, sex and Christian society, p. 214-223; PARISH, Helen. Clerical celibacy
in the West. c. 1100-1700. Farnham, U.K.: Ashgate Publishing Limited, 2010.
298
Sobre a trajetória histórica do casamento cristão entre a Idade Média e a Época Moderna, ver DUBY,
Georges. Idade Média, idade dos homens. Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011; ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, Philippe; BÉJIN,
André. (Orgs.). Sexualidades ocidentais. Contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade.
Trad. Lygia Araújo Watanabe, Thereza Christina Ferreira Stummer. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985,
p.163-182; BOSWELL, John. Same-sex unions in premodern Europe. New York: Vintage Books, 1995, p.
162-198; FLANDRIN, Jean-Louis. La moral sexual en Occidente. Evolución de las actitudes y
comportamientos. Barcelona: Ediciones Juan Granica, 1984, p. 67-92; 93-107; 113-122. (Colección Plural
Historia); VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Editora Ática,
1986, p. 25-48.
299
DUBY, George. Heresias e sociedades na Europa pré-industrial, séculos XVI-XVIII. In: DUBY, George.
Idade Média, idade dos homens. Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 206-216; BARROS, José D'Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade
Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental.
Séculos VIII a XIII. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 91-110.
141
300
HALPERIN. One hundred years of homosexuality, p. 15-40; HALPERIN. How to do the history of
homosexuality, p. 104-137.
142
301 A historicidade da identidade é uma função do emprego do sentido histórico nietzschiano, conforme
destilado por Foucault, em seu artigo Nietzsche, a genealogia e a história. "A história, genealogicamente
dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-
la, ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria à qual os
metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos
atravessam". FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, p. 34-5.
302 Alguns historiadores têm mostrado como os tribunais do Santo Ofício, em algumas circunstâncias
históricas, puderam usar técnicas pastorais de poder para o governo das almas e das condutas no seio da
cristandade. Nesse sentido, ver: PROSPERI, Adriano. Tribunais da Consciência. Inquisidores, confessores,
missionários. Trad. Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013,
p. 415-420; MARCOCCI, Giuseppe. O arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1559-82):
um caso de inquisição pastoral? Revista de História da Sociedade e da Cultura, 9 (2009), p. 119-146.
143
303 Comentando o projeto historiográfico foucaultiano, Roger Chartier ressaltou que não se trata de pensar
em uma "independência soberana e solitária do discurso", ao contrário, é preciso deslindar as relações entre
as formações discursivas e os domínios do não-discursivo – estes podem ser exemplificados como
instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos. Não se trata, por outro lado, de
evocar continuidades culturais ou mecanismos de causalidade, mas de determinar como as regras de
formação de um discurso (um regime de enunciados) ligam-se a sistemas não-discursivos, "definir formas
específicas de relação". Não é o caso, tampouco, de reproduzir aqui uma suposta divisão entre imaginário
(supostamente, o discursivo) e o real (supostamente, o não-discursivo). Chartier afirma que: "O real não
pesa mais de um lado que do outro: todos esses elementos constituem ‘fragmentos da realidade’, cuja
ordenação é preciso compreender". CHARTIER, Roger. "A quimera da origem". Foucault, o Iluminismo e
a Revolução Francesa. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre incertezas e inquietude.
Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade; UFRGS, 2002, p. 123-150.
304 BENNASSAR. Inquisición española. Poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica,
Grupo Editorial Grijalbo, 1984, p. 295-320.
144
Disseram os inquisidores:
305 “Accordaõ os Jnquisidores, Ordinario, e Deputados / da Santa Jnquisiçaõ ettc que vistos estes Autos, /
libello e proua da Justiça Apostólica, contrariedade, / defeza de Bertholomeu de Gois xpáo velho; clerigo
de / Missa natural de Bem fica, morador desta çidade, Reo / prezo que prezente está; per que se mostra, que
sendo / xpáo bautizado, e como tal obrigado a goardar a ley / de Deus e viuer limpa e honesta mente, dando
de sua / vida e costumes bom exemplo; zello o fez pello con= / trario e de muito tempo a esta parte,
esqueçido de / sua obrigaçaõ, com muito atreuimento e pouco temor / de Deus, em grande dano e periuizo
de sua alma, per= / suadido do demonio, cometeo o horrendo e abominauel / peccado de Sodomia contra
natura, exerçitandoo, e con= / sumandoo por muitas vezes com diuersas pessoas do / sexu mascolino, sendo
huãs uezes agente, outras / paçiente. Pellas quais culpas sendo o Reo / prezo pello Santo offiçio, e por
muitas vezes // admoestado as quizesse confessar pera saluaçaõ / de sua alma Disse que nunca tal peccado
come= / tera. Pello que o Promotor fiscal do Santo offiçio / veyo com libello criminal accuzatorio contra
elle; / o qual lhe foi reçebido, e o Reo o contestou por / negaçaõ, e veyo com sua defeza, que lhe foi reçe=
/ bida; e ratificadas os testemunhos da justiça na / forma do direito lhe foi feito publicaçaõ delles, con= /
forme ao estillo do Santo offiçio, e veyo cõ suas / contraditas, que lhe foraõ reçebidas, que naõ prouou / e
seu feito se processou até final concluzaõ. E / sendo visto na meza do Santo offiçio, se assentou / que o Reo
pella proua da justiça estaua conuicto / no crime de Sodomia, e que como tal fosse en= / tregue á justiça
secular. E pera o Reo dispor / de sua alma, lhe foi notificado o dito assento, / e vendo os termos em que
estaua, pedio au= / diençia, e confessou que de algũs annos a // esta parte cometera o dito peccado com
diuersas / pessoas do sexu mascolino, e alguãs vezes em lugar / Sagrado. O que tudo visto, a soltura,
deuaçidaõ / e perseuerançia com que o Reo cometia taõ horrendo / a abominauel peccado, por respeito do
qual a ira de / Deus abrazou as çidades infames de Sodoma e Gomorra; / e vistos outro sy os breves
Apostolicos de Sua San= / tidade, e a prouizaõ del Rey Dom Henrique de boa me= / moria sendo legado á
latere Jnquisidor geral nestes / Reynos de Portugal, e a pouca esperança que ha de / sua ẽmenda, com o
mais que dos autos resulta. Christi / Jesu nomine inuocati. Declaraõ ao Reo Bertho= / lomeu de Gois por
conuicto e confesso dominuto no dito crime / de Sodomia, e por tal o condenaõ, e que encorreo / em confiscaçaõ
de todos seus bens, applicados a quem / pertençerẽ, e nas mais penas em direito e leys do / Reyno contra os
semelhantes estabeleçidas; e o ex= / cluem da Jurisdiçaõ ecclesiastica; e mandaõ que // seia deposto de suas
ordens, e actual mente degra= / dado dellas na forma dos sagrados canones. E o / relaxaõ á justiça secular,
a quem pedem com muita / instançia e efficaçia se aia com elle benigna e piedoza / mente, e naõ proçeda a
pena de morte, nem effuzaõ / de sangue”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, f. 87-
88.
306 Kamen afirmou que, em tradução livre: "De fato, estritamente falando, a Inquisição não estava ali de
forma alguma para punir; seu papel era, primariamente, o de inquirir e, somente se necessário, o de
disciplinar. A punição era geralmente feita por meio de outras autoridades, como, em seu extremo, pela
‘relaxação’ (uma palavra que, com o tempo, tomou conotações terríveis)". No original: “Indeed, strictly
speaking, the Inquisition was not there to punish at all; its role was primarily to inquire and only if necessary
to discipline. The punishing was usually done through other authorities, as its most extreme by “relaxing”
(a word that in time took on terrible overtones) persons to the secular arm of power”. KAMEN, Henry. The
Spanish Inquisition. A historical revision. 4. ed. New Haven; London: Yale University Press, 2014, p. 1966-
7.
146
dito acima, de produzir aquele ser que ela descrevia em suas palavras. Como explicou
Austin, diz-se de um ato de discurso que ele é performativo, quando o enunciar do ato de
fala é o próprio realizar (a performance) de uma ação, não sendo pensado apenas como
um enunciado, mas como uma ação que se realiza no seu falar. O enunciado performativo
é aquele em que o enunciar é produtivo.307
307 AUSTIN, J. L. How to do things with words. The William James Lectures delivered at Harvard
University in 1955. London: Oxford University Press, 1962, p. 1-12.
308 KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1927.
309 DELUMEAU. História do medo no Ocidente. 1300-1800, uma cidade sitiada. Trad. Maria Lucia
Machado. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 354-385.
147
essa razão, ele foi indexado à categoria de sodomita, sob os qualificadores de convicto e
confesso diminuto, condições agravantes de sua responsabilidade jurídica.310
310 Os capítulos LIX, “De como se há de relaxar o preso que tem contra si prova bastante que diga que foi
e é cristão”, e LX, “Da notificação que se há de fazer por auto aos que estão relaxados, assim por maus
confidentes, como por negativos convencidos”, do Regimento de 1613 mostram como a condição de
negativo, isto é, daquele que não confessou inteiramente suas culpas na mesa, impedia que os inquisidores
procedessem com misericórdia no julgamento de seus processos. REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da
Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom
Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal – 1613. Título IV, parágrafo
LIX: De como se há de relaxar o preso que tem contra si prova bastante que diga que foi e é cristão. RIHGB,
ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 651-2.
311 Uma história completa da categoria sodomia ainda está por ser feita, até mesmo pelas dificuldades de
se definir o que seria a sua completude. Resumir-se-ia a sodomia ao seu tratamento no cristianismo? Pode
a sodomia ser confundida com a homossexualidade ou o homoerotismo? São mais comuns manuais que
adotam esta perspectiva essencialista, apresentando o que se poderia chamar de “história geral da
homossexualidade”, incluindo comentários generalistas, mais ou menos aprofundados, sobre a história da
sodomia. Por outro lado, existe uma multiplicidade de estudos que, realizando recortes temporais e
espaciais mais precisos, abordam facetas da história da sodomia da Antiguidade Tardia à Época Moderna.
Na primeira abordagem historiográfica, ver: NAPHY, William. Born to be gay. História da
homossexualidade. Trad. Jaime Araújo. Lisboa: Edições 70, 2004; SPENCER, Colin. Homossexualidade.
Uma história. Trad. Rubem Mauro Machado. Rio de Janeiro: Record, 1996; ou, ainda, CROMPTOM.
Louis. Homosexuality & Civilization. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University
Press, 2006. Para a segunda abordagem, alguns exemplos são MILLS, Robert. Seeing sodomy in the middle
ages. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2015; BURGWINKLE, William E. Sodomy,
masculinity, and law in medieval literature. France and England, 1050-1230. Cambridge, U.K.: Cambridge
148
University Press, 2004; BRAY, Alan. Homosexuality in Renaissance England. New York: Columbia
University Press, 1995; BURG, B. R. Sodomy and the pirate tradition. English sea rovers in the
seventeenth-century Caribbean. New York; London: New York University Press, 1983; SIGAL, Pete.
(Org.). Infamous Desire. Male homosexuality in colonial Latin America. Chicago, Londres: The University
of Chicago Pres, 2003; BURGER, Glenn; KRUGER, Steven F. (Orgs.). Queering the Middle Ages.
Minneapolis; London: University of Minnesota Press, 2001. (Medieval Cultures, Volume 27)
312 VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 144-159; VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo
Ofício. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, p. 115-140;
MOTT, Luiz. O sexo proibido. Virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição, Campinas, SP, Papirus,
1988; MOTT, Luiz. Pagode português. A subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais. In: Ciência
e Cultura. V. 40, p. 120-139, 1988; MOTT. Justitia et Misericórdia: a Inquisição portuguesa e a repressão
ao nefando pecado da sodomia, p. 703-738. Mais recentemente, uma rápida trajetória do conceito de
sodomia na tradição cristã, enfatizando aspectos bíblicos e as elaborações da Patrística, foi realizada por
Matheus Rodrigues Pinto, em pesquisa orientada por Vainfas. PINTO, Matheus Rodrigues. Reconstruindo
as muralhas de Sodoma. Homossexualidade no mundo luso-brasileiro no século XVII. Dissertação
(Mestrado em História Moderna), Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Programa de Pós-graduação em História, 2015.
313
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 144-7.
149
Opinião contrária, todavia, foi sustentada pelo historiador John Boswell. Ele
defendeu que as passagens bíblicas propositadamente relacionadas ao homoerotismo
teriam tido pouca influência sobre as atitudes dos primeiros cristãos quanto ao assunto,
afirmando até mesmo que nada na Bíblia (qual Bíblia?) teria categoricamente proibido as
relações homoeróticas entre os primeiros cristãos.316 Boswell defende que uma
interpretação exclusivamente homoerótica dessa história seria um fenômeno recente.
Nada no texto, afirma o autor, poderia servir de justificativa para uma associação direta
entre a maldade dos cidadãos de Sodoma e o homoerotismo. Do ponto de vista do
historiador, é muito mais verossímil que a moral dessa história tenha se referido,
314 (Gn. 19: 1-29), Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002, p. 57-
8.
315 (Gn. 19: 5), Bíblia de Jerusalém, p. 57, n. e.
316 Boswell afirma o seguinte: "A Bíblia não foi a única, tampouco a principal, fonte para a ética dos
primeiros cristãos, e as passagens bíblicas supostamente relacionadas à homossexualidade tiveram pouco
que ver com as desconfianças dos cristãos primitivos sobre o assunto. Bem poucos teólogos influentes
basearam objeções à práticas homossexuais nas passagens do Novo Testamento que agora reivindicam
derrogar tal comportamento, e aqueles que de fato as invocaram o fizeram somente como apoio a
argumentos baseados primariamente em outras autoridades. Está, portanto, claro que nada na Bíblia teria
categoricamente proibido relações homossexuais entre os primeiros cristãos". Tradução nossa. No original:
“The Bible was not the only or even the principal source of early Christian ethics, and the biblical passages
purportedly relating to homosexuality had little to do with early Christian misgivings on the subject. Very
few influential theologians based objections to homosexual practices on the New Testament passages now
claimed to derogate such behavior, and those who did invoke them only as support for arguments based
primarily on other authorities. It is, moreover, quite clear that nothing in the Bible would have categorically
precluded homosexual relations among early Christians”. BOSWELL. Christianity, social tolerance and
homosexuality. Gay people in Western Europe from the beginning of the Christian era to the fourteenth
century. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1980, p. 92.
150
primordialmente, ao crime de tratamento inóspito aos visitantes ali mandados pelo Deus.
Ele faz essa afirmativa, acompanhado por uma corrente erudita, que vinha defendendo
esta hipótese desde 1955.317
O trecho que opera a mudança é a interpelação central dos sodomitas a Ló, para
que ele expusesse seus hóspedes. Na tradução da Bíblia de Jerusalém, a interpelação
condenatória é: “Traze-os para que deles abusemos”. Na versão de Boswell, a mesma
frase é traduzida como: “Para que eles pudessem conhecê-los”. Na edição claretiana da
Bíblia Sagrada, segundo a versão dos Monges de Maredsous na Bélgica, feita pelo Centro
Bíblico Católico, com revisão de fr. João José Pedreira de Castro, O.F.M., publicada pela
Editora Ave Maria em 1993, o mesmo trecho aparece como: “Conduze-os a nós para que
os conheçamos”.318 Entre “conhecer” e “abusar” existe a diferença de dois milênios de
intolerância do dispositivo da carne. Reproduzindo as considerações de Bailey, Boswell
afirma ser inadequado interpretar o verbo hebraico “conhecer” como tendo sentido
erótico, ainda mais um homoerótico.319
317 Boswell cita como fontes os trabalhos de Derrick S. Bailey, John McNeill e Marvin Pope. BAILEY,
Derrick S. Homosexuality and the Western Christian Tradition. London: Longmans; Green, 1955;
MCNEILL, John. The Church and the homosexual. Kansas City: Beacon Press, 1976; POPE, Marvin. The
Interpreter’s Dictionary of the Bible. Supplementary Volume. Nashville, Tenn: Abingdon, 1976, p. 415-7.
318 (Gn. 19: 5), Bíblia Sagrada. 88. ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1993, p. 64.
319 BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 94.
320 As passagens citadas são, no Novo Testamento, Mat. 10: 14-15, Lc. 10: 10-12. No Antigo Testamento,
Eclo. 16: 8, Sb. 19: 13-14, Ez. 16: 48-49. É preciso atentar que as referências de Boswell são todas para a
King James Version da Bíblia.
151
Para além de qual poderia ter sido o significado “original” do mito da destruição
de Sodoma, Boswell defende que ele teria permanecido ativo e circulante até bem
avançada a Idade Média. A interpretação sexual do crime de Sodoma teria começado a
ser formulada no contexto do judaísmo helenista e dos moralistas cristãos que
enfatizavam a pureza sexual – lembrando que a questão do ser virgem foi central para a
emergência do dispositivo da carne na Antiguidade Tardia.322 Ou seja, a conexão entre a
destruição da cidade maldita e o vício contra a natureza teria começado a ser estabelecida
no período em que a problematização da moral sexual se tornara mais severa no mundo
Mediterrâneo, tanto entre pagãos, como entre judeus e cristãos. Com as transformações
culturais da passagem do mundo antigo ao medieval, que incluíram uma condenação, no
meio intelectual (o que queria dizer, sobretudo, as catedrais, os episcopados e as escolas
a eles ligados durante a Renascença Carolíngia ou, mais tarde, as abadias e os monastérios
da Idade Média Central),323 do que seria percebido como um “hedonismo casual” do
mundo helenista, a interpretação sexual, vinculando o crime dos sodomitas ao sexo contra
a natureza, ganhou terreno. Esta seria uma linha de um processo cultural maior, no qual
“muitas questões que não tinham sido especificamente sexuais, tornaram-se tais, este fora
o caso de questões maritais como o adultério e o onanismo e da homossexualidade”.324
ocidental. Há, ainda, uma importante questão ético-política na discussão entre os dois
autores, a qual abordaremos após termos percorrido os argumentos de cada parte.326 O
autor, acompanhando a discussão erudita de Boswell, aprofunda-se na problemática das
ambiguidades das traduções dos termos hebraicos e gregos conectados ao universo
erótico-moral, presentes em passagens bíblicas do Levítico e das cartas de S. Paulo. Não
sendo o caso, aqui, de demorar-se nessas sutilezas, bastante interessantes, no entanto, de
traduções (que envolvem também a história da constituição de um texto uniforme das
Sagradas Escrituras cristãs), basta informar que o ponto fundamental da argumentação de
Wright é sobre como precisar os sentidos da expressão grega ἀρσενοκοῑται, arsenokoitai,
presentes nas cartas paulinas. Enquanto este autor defende sua tradução como sodomita
ou sodomia (arsenokoitēs), Boswell recusa uma identificação direta com o
homoerotismo, traduzindo-a como “prostituição masculina”. Para Boswell, S. Paulo não
condenaria as “pessoas homossexuais” ou a “homossexualidade”, mas sim uma prática
sexual conectada à idolatria pagã – sendo seu caráter idólatra a causa principal da
condenação.327 Wright, por seu lado, defende que Paulo usou o termo arsenokoitai para
explicitamente condenar toda e qualquer forma de relação homoerótica, sodomítica ou
contra a natureza, preservando uma indefinição ou imprecisão fundadora dos atos eróticos
subsumidos à categoria.328
326
WRIGHT, David F. Homosexuals or prostitutes? The meaning of ἀρσενοκοῑται (1 Cor. 6:9, 1 Tim. 1:10).
Vigiliae Christiane 38 (1984) 125-153, E J. Brill, Leiden; WRIGHT, David F. Homosexuality: the
relevance of the Bible. The Evangelical Quarterly, 61:4 (1989), 291-300.
327 BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 107.
328 WRIGHT. Homosexuality: the relevance of the Bible, p. 299.
329
Para essa discussão, ver HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 4. ed. São Paulo: Edições Loyola,
2010.
153
neste contexto, de que quaisquer outras formas de prática sexual são ilícitas, e isto inclui
as relações homossexuais”.330
330 RCHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média. Trad. Marco Antonio
Esteves da Rocha, Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 137.
331 FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 21-86.
154
mediterrânea, de matriz helenista e latina. Tem como fundo a rejeição radical, pela
experiência cristã, dos valores morais comuns que guiavam as sociedades ao redor do mar
Mediterrâneo, emergindo na Antiguidade Tardia, tendo sido apropriado, ao longo do
tempo, para outros objetivos políticos do dispositivo. O instrumento dessa crítica, dessa
vontade de delimitação da diferença entre o que deveria ser a experiência cristã do sexo
e o que não poderia aí ser enquadrado, foi a deposição de estigmas sobre uma instituição
social das sociedades greco-romanas antigas, a relação pederástica, a partir da sua
identificação com a corrupção da juventude.332 Trata-se da utilização de uma metonímia,
pela qual uma parte daquelas sociedades (a pederastia) foi tomada como representativa
de todas elas, espalhando sua culpa moral por todo o espectro do social. A função
discursiva central do enunciado é transmitir um sentido de perigo moral inédito às
relações homoeróticas, que passavam a se ver resumidas na pederastia antiga. O
imperativo "não corrompa os jovens", por sua associação a outros pecados, carnais ou
não, recebeu um novo subtexto erótico e moral. Corromper a juventude passaria a
significar danificar eroticamente, carnalmente, crianças e adolescentes, contribuindo para
sua degradação moral e perdição religiosa, por meio do pecado da sodomia.
332
Não se quer, com isso, afirmar que o universo do homoerotismo, fosse nas cidades gregas, fosse em
Roma, reduzia-se aos moldes da relação pederástica. Tampouco que não haveria distinções nas práticas
pederásticas da Atenas clássica à Roma imperial. Para a diversidade de práticas e identidades homoeróticas
e de gênero na cultura grega antiga, ver WINKLER, John I. The constraints of desire. The anthropology of
sex and gender in ancient Greece. New York: Routledge, 1990. Para as várias possibilidades disponíveis
ao homoerotismo em Roma na Antiguidade, como práticas e identidades em relação à certa ordem de
gênero, ver WILLIAMS, Craig A. Roman homosexuality. Ideologies of masculinity in Classical Antiquity.
New York; Oxford: Oxford University Press, 1999.
333
O conceito de citacionalidade foi elaborado por Jacques Derrida a partir das elucubrações de Austin
acerca do enunciado performativo. Derrida se questionou se aquilo que Austin considerou o risco do
fracasso da comunicação nas ações performativas não deveria ser tomado, antes, como a própria condição
de possibilidade interna e positiva da linguagem. Isso porque a citação ou a condição de citacionalidade
geral, de iterabilidade geral (a condição de repetição, citação, em contexto deslocado de todo enunciado de
lei ou norma) dos enunciados é o que permite a sua ocorrência performativa. Isto é, o efeito performativo
de um enunciado ocorre porque o enunciado possui, anteriormente, uma citacionalidade, ele é passível de
ser citado obliquamente. Assim, os fracassos performativos (ou os performativos impuros de Austin)
tornam-se ocasiões em que, por variados motivos, a citação do enunciado se deu de modo tão deslocado,
que seu significado anterior foi alterado, contradito, parodiado, posto, de alguma maneira, em causa. Judith
Butler usou o conceito de citacionalidade de Derrida para explicar o funcionamento performativo das
categorias de gênero, mostrando que é no necessário fracasso (a citação sempre está deslocada, sua falha é
sua condição de existência e sua força) da repetição, da iteração, do gênero, que podem acontecer práticas
155
de textos do cristianismo primitivo, em uma linha que vai da Primeira Epístola aos
Coríntios, de S. Paulo, (I Cor. 6:9-10), passando pela Didaqué, pela Epístola de Barnabé,
por Teophilus de Antióquia, Clemente de Alexandria até Orígenes. Após o deslocamento
citacional do conceito da pederastia, ele é reposicionado como um elemento de uma lista
tríplice de pecados carnais mais importantes, o adultério, a fornicação e a sodomia. Nesse
jogo, o enunciado vai produzindo a fusão das categorias pederastia e sodomia, atribuindo
à primeira os sentidos negativos da segunda e, a essa, o conteúdo homoerótico da
primeira.
de resistência, por meio da subversão paródica das categorias citadas. DERRIDA, Jacques. Assinatura,
acontecimento, contexto. In: DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa;
António M. Magalhães. Rev. téc. Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1991, p. 367-9;
BUTLER, Judith. Critically Queer. GLQ: A Journal Of Lesbian & Gay Studies. 1993, 1, 1, pp. 17-32.
334
É neste nível que se enxerga a conexão entre o deslizamento da problematização moral do homoerotismo
para as margens do discurso e a ascensão da nova ética sexual do helenismo. O crescimento da importância
moral, afetiva, social e sexual do elo conjugal foi inversamente proporcional à do homoerotismo. Esse
movimento de gangorra, Foucault estudou-o através dos diálogos de Plutarco e do pseudo-Luciano sobre o
amor. Esses textos construíram uma Erótica diversa daquela que vigorara no Período Clássico, agora o
problema do amor era pensado segundo a bipolaridade do amor pelos rapazes e aquele pelas esposas. O
amor pelos rapazes perde prestígio, já que o fiel da balança penderá para a sobre valorização das relações
conjugais – a dimensão ética da pederastia clássica foi como que transferida para o matrimônio.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III. O cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque; Revisão técnica José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p.
191-2. Boswell discutiu, em várias oportunidades, os poemas latinos em se debatem os méritos respectivos
de cada forma de amor. Ele destaca, em seus comentários, o texto Amores do pseudo-Luciano (traduzido
para o inglês como Affairs of the Heart), que daria a visão de uma sociedade romana em declínio, na qual
a tolerância ao homoerotismo também estaria em decadência. Ainda assim, neste poema, o amor por uma
bela mulher e aquele por um jovem homem na flor de sua virilidade são descritos como dois lados da mesma
moeda. Assim como os poemas medievais, este Amores do pseudo-Luciano é uma longa disputa acerca da
questão se é melhor para o homem amar outro homem ou uma mulher. BOSWELL. Christianity, social
tolerance and homosexuality, p. 19, 73, 86; BOSWELL. Same-sex unions in Premodern Europe, p. 55, 60-
1; CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 182.
156
335
WRIGHT. Homosexuals or prostitutes? The meaning of ἀρσενοκοῑται (1 Cor. 6:9, 1 Tim. 1:10), p. 135.
336
BROWN. Corpos e sociedade, p. 254-267.
157
337
Para uma perspectiva ampla acerca destes variados tipos de estabelecimentos para a prática homoerótica
no mundo mediterrâneo desde a Antiguidade, ver: CROMPTON. Homosexuality & civilization, p. 151-3,
161-172, 178-183, 245-290, 291-320; NAPHY. Born to be gay, p. 91-138. Para o caso inglês, ver o estudo
de Alan Bray sobre as molly houses: BRAY. Homosexuality in Renaissance England, p. 81-114. Para o
português, é útil retornar ao artigo de Luiz Mott, o Pagode português. MOTT. Pagode português. A
subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p. 120-139.
338
S. JOHN CHRYSOSTOM. Homilies of St. John Chrysostom, archbishop of Constantinople, on the
epistle of St. Paul the apostle to Titus. In: CHRYSOSTOM, St. John; SCHAFF Philip (Ed.). A select library
of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Vol. XIII. Saint Chrysostom: homilies on
Galatians, Ephesians, Philippians, Colossians, Thessalonians, Timothy, Titus, and Philemon. Grand Rapids,
Michigan: Christian Classics Ethereal Library; T&T Clark: Edinburgh, n/d, p. 931-2.
158
naturais", bem como outras similares, serve como canal para o direcionamento de uma
imensa variedade de atos eróticos proscritos, pois contrários à natureza, mas ainda
indefinidos, para a categoria de sodomia. A indefinição e o silêncio que rodeavam a
categoria de sodomia, em textos do discurso moral-religioso da carne, atuaram como as
forças motrizes dos estigmas associados ao homoerotismo e às práticas eróticas
dissidentes, preservando uma ambiguidade discursiva estratégica na categoria de
sodomia. É essa ambiguidade que permitiria o funcionamento da teoria do dominó do
risco sexual exposta por Gayle Rubin.339 O efeito dominó faz com que todo sexo para lá
da linha da Lei (no caso do dispositivo da Carne, o sexo conjugal procriador), a princípio,
possa ser estigmatizado como contrário à natureza e, portanto, tão grave quanto o pecado
de Sodoma.
339
“Todos esses modelos assumem uma teoria do dominó de risco sexual. A linha parece se situar entre a
ordem e o caos sexual. Ela expressa o medo de que a barreira contra uma forma terrível de sexo se desfaça
caso algo cruze essa zona erótica desmilitarizada, permitindo que algo indizível passe para o outro lado. A
maioria dos sistemas de juízo sexual – religioso, psicológico, feminista ou socialista – pretende determinar
a que lado da linha pertence cada ato sexual específico. Somente são reconhecidos como moralmente
complexos os atos sexuais que ficam do lado bom da linha. […] Em contrapartida, todos os atos sexuais no
lado “mau” da linha são considerados totalmente repulsivos e desprovidos de qualquer nuance emocional.
Quanto mais afastado da linha estiver um ato sexual, mais ele se mostra uma experiência consistentemente
má”. RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 87.
340
O enunciado da identificação entre sodomia e a corrupção dos menores apareceu no tratado do arcebispo
Hincmar de Reims (806-882), chamado De divortio Lotharii et Tetbergae, escrito para legitimar o divórcio
do rei Lotário II (835-869) da Lotaríngia (região entre os rios Reno e Ródano, um dos resultados da
tripartição do Império Carolíngio pelo Tratado de Verdun em 843) de sua legítima esposa Teutberga (†
875). O arcebispo expôs um conceito bastante amplo da categoria sodomia, baseado na noção de
desperdício de sêmen. Segundo Robert Mills, este tratado de Hincmar é, talvez, o mais precoce uso
preservado do vocábulo latino sodomia, que é utilizado para definir o que o arcebispo chamou de peccatum
sodomtanum. O pecado da sodomia seria toda a forma de intercurso sexual que transcorresse de modo
contrário à natureza. E ir contra a natureza significava, para Hincmar, desperdício de sêmen, a matéria
impura e fundamental para a reprodução humana. MILLS. Seeing sodomy in the Middle Ages, p. 3-4;
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 203-4; NAPHY. Born to be gay, p. 95.
Para o texto original em latim, consultar Hincmar of Reims. De divortio Lotharii et Tetbergae. In Migne
PL 125:619–772.
341
A reforma da Igreja após o Ano Mil foi um processo de clericalização das estruturas eclesiásticas.
Segundo Duby, os reformadores usaram duas frentes para expandir o poder da Igreja na sociedade profana.
159
dos padres, baseando sua postura de renovada severidade em uma aberta aversão ao
sexo.342 O seu Livro de Gomorra tinha também objetivos políticos e disciplinares,
objetivando moralizar o clero, sendo nesse âmbito que os enunciados sobre a sodomia
foram mobilizados.343
Uma foi a campanha para estabelecer e impor uma nova doutrina do casamento. Outra foi a violenta ação
contra o matrimônio dos clérigos, prática, até então comum, que passou a ser denominada nicolaísmo. A
luta para impor o celibato a todo o clérigo caminhou em uma linha tênue, pois a Igreja não poderia rejeitar
peremptoriamente o casamento e a sexualidade conjugal, aproximando-se de um ascetismo radical e
heterodoxo, ao mesmo tempo em que deveria manter sobre o matrimônio uma suspensão que o tornasse
impróprio para um modo de vida superior – o estado religioso. DUBY. Idade Média, idade dos homens, p.
24. Para rápidas introduções ao processo histórico de construção da teocracia papal na Idade Média Central,
ver: LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Trad. José Rivair de Macedo. Bauru, Sp:
Edusc, 2005, p. 57-98. (Coleção História); FRANCO JR. A Idade Média, p. 73-7; LOYN. Dicionário da
Idade Média, p. 94; 97; 209.
342
PARISH. Clerical celibacy in the West; BYNUM, Caroline Walker. Jesus as mother. Studies in the
spirituality of the High Middle Ages. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1982.
343
Em sua polêmica antissodomítica, S. Pedro Damião não encontrou apoio irrestrito na cúpula papal.
Alguns autores, como Jeffrey Richards, argumentam que ele estava isolado em sua preocupação com o
homoerotismo clerical. Com isso concordaria Boswell, que defendeu a tese de que o papa Leão IX, a quem
o Livro de Gomorra foi dedicado e um aliado tradicional de Damião, evitou se comprometer com as
sugestões mais rigorosas e radicais propostas de punição aos clérigos dito sodomitas postas à frente pelo
cardeal. Para Boswell, Damião não teve apoio algum na sua condenação da sexualidade homoerótica,
relatando uma tentativa, não de todo comprovada, do papa Alexandre II, de suprimir o Livro de Gomorra.
Outros autores são mais cautelosos. James Brundage defende que o homoerotismo foi uma preocupação
importante de muitos líderes da Reforma Gregoriana e que algo das visões de Damião foi incorporado pela
legislação eclesiástica – porém, apenas o Concílio de Westminster de 1102 teria aderido à radicalidade de
Damião, ao classificar toda forma de sexo não natural como pecados reservados à jurisdição episcopal.
Crompton interpreta a resposta do papa Leão IX ao Livro de Gomorra como moderadamente conservadora,
não sendo uma negação das teses de Damião, tampouco uma adesão total às propostas punitivas do cardeal.
O papa teria concordado com a sugestão de que os clérigos culpados da forma mais grave de sodomia
fossem depostos, mas não daqueles que tivessem cometido somente um ato das modalidades mais leves
(Damião defendia sua degradação tal como a dos primeiros). A raridade de citações medievais posteriores
ao Livro de Gomorra seria, para Crompton, uma evidência de que a Igreja hesitava, desde o medievo, em
chamar atenção para uma obra que expunha os escândalos eclesiásticos com tanta fúria. A favor da narrativa
de que as proposições rigoristas de Damião encontraram apoio eclesiástico ainda em seu tempo, Hoffman
cita o Concílio de Reims de 1049, mesmo ano em que o Livro de Gomorra teria sido publicado, presidido
pelo papa Leão IX, em que foi decretado que os sodomitas (os praticantes da sodomia) deveriam ser tratados
como heréticos e, por conseguinte, excomungados da Igreja. RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 143-
4; MANN, Horace K. The lives of the Popes in the Middle Ages. St. Louis: B. Herdey, 1910, vol. 6; TOKE,
Leslie Alexander St. Lawrence. Peter Damian. In: The Catholic Encyclopedia. New York, NY: Robert
Appleton Companis, 1911, vol. 11, p. 764-766; BAREILLE, Georges. Damien (Saint Pierre). In:
Dictionnaire de Theologie Catholique. Paris: Librairie Letouzey et Ane, 1939, vol. 4, 40-54; BAILEY,
Derrick Sherwin. Homosexuality and the Western Christian Tradition. London: Longman’s Green, 1955;
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 213 n. 17; BRUNDAGE. Law, sex and
Christian society in Medieval Europe, p. 212-4; CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 177;
HOFFMAN. Translator’s preface. In: DAMIAN, S. Peter. The Book of Gomorrah. And St. Peter Damian’s
struggle against ecclesiastical corruption. Tradução, notas e introdução biográfica Matthew Cullinan
Hoffman. New Braunfels, TX: Ite ad Thoman books and media, 2015, p. 66.
160
Seu horror ao corpo humano (o descreve como sujo, imundo, um excremento, consumido
pelo fogo da luxúria) reflete seu desespero por se sentir acorrentado à prisão da
degradação sensual, de modo que a elevação moral e ascética era, para ele, também uma
libertação, o caminho para a Verdade-Deus, o que envolvia, além do mais, um sentido
político.344 A campanha moralista antissexo e antissodomia de S. Pedro Damião foi não
só a linguagem em que essa disputa política ocorria, com os clérigos, monges e prelados
subindo ou caindo na hierarquia eclesial conforme sua ostensiva adequação aos preceitos
da carne, foi em si um discurso de verdade e uma técnica de governo pastoral das almas.
A leitura do texto parece indicar que seu autor sugeria punições mais severas para
os clérigos que corrompiam menores para o pecado nefando do que para qualquer outra
modalidade ou forma de sodomia – ou ele simplesmente escolheu detalhar mais as
punições para esta ofensa, como recurso retórico para dramatizar o horror que sentia a
344
GOODICH, Michael. Other Middle Ages. Witnesses at the margins of medieval society. Philadelphia,
PA: University of Pennsylvania Press, 1998, p. 107.
345
Tradução de minha autoria. Na versão inglesa consultada, o trecho é como segue: “A cleric or monk
who persecutes adolescents or children, or who is caught in a kiss or other occasion of indecency, should
be publicly beaten and lose his tonsure, and having been disgracefully shaved, his face is to be smeared
with spittle, and he is to be bound in iron chains, worn down with six months of imprisonment, and three
days every week to fast on barley bread until sundown. After this, spending his time separated in his room
for another six months in the custody of a spiritual senior, he should be intent upon the work of his hands
and on prayer, subject to vigils and prayers, and he should always walk under the guard of two spiritual
brothers, never again soliciting sexual intercourse from youth by perverse speech or counsel”. DAMIAN.
The Book of Gomorrah, p. 119.
161
seu respeito. Assim, o clérigo não apenas perderia suas ordens (a punição que ele
defendia, em geral, para os sodomitas ordenados), como deveria ser espancado
publicamente (uma pena infamante) e ser ritualmente humilhado (com cuspes em seu
rosto, seu cabelo raspado, acorrentado a ferros). Depois disso, ele seria aprisionado e
submetido a práticas ascéticas rigorosas, perdendo completamente sua autonomia,
estando, a partir de então, sempre sob a custódia de seus pais e irmãos espirituais (o que
era, em si, um outro exercício ascético, para o dobrar às virtudes cristãs da obediência e
da humildade). O Livro de Gomorra ensaiava o recurso à pedagogia do medo que seria,
séculos depois, utilizada diuturnamente pelos tribunais do Santo Ofício modernos para
perseguir e controlar os amantes homoeróticos, forjando, através de sua ação repressora
e pastoral, a identidade jurídica dos sodomitas.346
Isso não quer dizer que o problema disciplinar da existência de relações eróticas,
várias delas passíveis de enquadramento jurídico como sodomia, entre sacerdotes e
menores, tenha desaparecido do horizonte inquisitorial. Como mostrou Verônica de Jesus
Gomes, "um significativo número de moços e mancebos envolveu-se sexualmente ou foi
acometido pelos clérigos, cujos ofícios eram vinculados às Igrejas".347 Em seguida, a
autora lista os ofícios dos moços e mancebos amantes de clérigos que identificou em sua
pesquisa: são ocupações como as de músicos (harpistas, rabequistas, altaneiros, moços
346
DAMIAN. The Book of Gomorrah, p. 119.
347
GOMES, Verônica de Jesus. Atos nefandos. Eclesiásticos homossexuais na teia da Inquisição. Curitiba:
Editora Prismas, 2015, p. 175.
162
A associação entre a sodomia e a corrupção dos menores não deve ser lida com
um olhar contemporâneo, que atribui à infância, ao ser criança ou ao ser adolescente, uma
posição socialmente distinta e destacada, constituindo uma identidade etária particular e
privilegiada. Como ensinou Ariès, antes dos séculos XVIII e XIX, tal sentimento de
infância inexistia, sendo o infante visto, representado, sentido e experimentado, até
mesmo por si, apenas como um adulto incompleto, ainda incapaz.351 Sobre essa
incapacidade jurídica repousava o que Hespanha chamou de privilégios da inferioridade
social e jurídica desse grupo etário.352 O que foi reproduzido em alguns casos na prática
jurídica dos juízes lusitanos no que concernia à perseguição dos sodomitas menores de
idade, ao adotarem critérios como a manifestação das capacidades de discrição e de
portar-se, civil e prudentemente, de cada menor, em ordem de determinar como se
348
GOMES. Atos nefandos, p. 175.
349
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, f. 10f-19v; 76f-82v.
350
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 147, 163; MOTT. Pagode português. A subcultura gay em Portugal
nos tempos inquisitoriais, p. 120-139; FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 76-80; 80-82; 82-84; 84-86;
GOMES. Atos nefandos, p. 173-4.
351
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 29-164.
352
HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de
Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010, p. 69-70.
163
353
MONTEIRO, Alex Silva. O pecado dos anjos: a infância na Inquisição portuguesa. In: VAINFAS,
Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana (orgs.). A Inquisição em xeque. Temas, controvérsias, estudos de
caso. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006, p. 225-235.
354
Ordenações filipinas, Livro V, Título XIII, Dos que comettem peccado de sodomia, e com alimarias, p.
1162, coluna da direita, nota 1. Disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1162.htm. Acesso
em out..2020.
355
VER MOTT, Luiz. Pedofilia e pederastia no Brasil Antigo. In: PRIORE, Mary del (org.). História da
criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991, p. 44-61. (Caminhos da história). MOTT, Luiz. Desventuras
de um degredado sodomita na Bahia seiscentista. In: MOTT, Luiz. Bahia. Inquisição e sociedade. Salvador,
BA: EDUFBA, 2010, p. 121-169.
164
356
J. G. Merquior, em sua crítica à "obra foucaultiana", comenta que a noção de vontade, como traço
fundamental do sujeito autônomo, independente da razão e das emoções, foi uma inovação filosófica (e
confessional, diríamos a partir da grelha foucaultiana) de S. Agostinho, na forma do conceito de voluntas.
A vontade foi pensada pelo bispo de Hipona como o centro, a parte mais funda e importante, do sujeito
moral e desejante. De acordo, ainda com Albrecht Dihle, a vontade desempenha um papel chave nos
sistemas agostinianos de psicologia e teologia, por meio da tarefa consagrada como a principal, doravante,
para os cristãos, o exame de si/confissão de si. Esse foi um ponto de virada no campo discursivo cristão,
pois permitiu que a mesma noção de vontade fosse aplicada em contextos teológico e antropológico, uma
vez que, para S. Agostinho, há uma ligação direta entre Deus e a alma humana, que é anterior e independente
a qualquer ordem de ser objetivamente existente. Essa relação é a de imagem e semelhança entre a vontade
divina e a humana, por meio da qual o homem é capaz de responder aos enunciados inexplicáveis da vontade
divina. Ao desdobrar o conceito de vontade humana de sua atividade introspectiva, S. Agostinho separou a
vontade da cognição, tornando a primeira anterior e independente em relação à segunda, com o adicional
de que a vontade é fundamentalmente diferente da emoção sensual e irracional. As confissões são, para
Dihle, a prova da profundidade da introspecção de Agostinho. MERQUIOR, J. G. Michel Foucault ou o
niilismo de cátedra. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 214-6.
(Coleção Logos). DIHLE, Albrecht. The theory of will in classical antiquity. Berkeley and Los Angeles,
California: University of California Press, 1982, p. 123-132. (Sather classical lectures; v. 48).
357
HALPERIN, David. Why is Diotima a Woman? In: HALPERIN, David. One hundred years of
homosexuality. And other essays on Greek love. New York, NY: Routledge, 1990, p. 148-151.
166
358
Para uma história da formação, na Antiguidade tardia, do sentimento (e prática) da continência sexual,
tomando a forma ou da virgindade monástica ou restrição (regulação) do sexo conjugal, ver ROUSSELLE,
Aline. Porneia. De la maîtrise du corps à la privation sensorielle. II e-IVe siècles de l'ère chrétienne. Paris:
Presses Universitaires de France, 1983.
359
HADOT. O que é a filosofia antiga?, p. 190.
360
ASSMANN, Selvino José. Estoicismo e helenização do cristianismo. Revista de Ciências Humanas.
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, v. 11, n. 15, p. 24-38, 1994, p. 25-
6; FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 79-82.
361
HADOT. O que é a filosofia antiga?, p. 354.
167
Nos discursos e nas práticas (as técnicas de governo das almas) do cristianismo,
A passividade foi, pois, ressignificada, como consequência da reorientação radical do
conceito de natureza como logos. Pensando-se no sujeito, a passividade deixa de ser
apenas sofrer uma penetração, sendo assim subjugado pelo domínio do falo, para se tornar
o ser subjugado pela paixão, mesmo no ato de penetrar. O homem escravo de seu prazer
é moralmente passivo, fraco, molles. Esse estado de passividade moral é logo enquadrado,
pelo conceito discriminador de natureza como logos, como irracional e, por conseguinte,
contrário à natureza. Toda passividade, a princípio, pode ser interpretada como um
posicionamento contrário à natureza, que abomina os excessos do prazer e da paixão.
Portanto, viver irracionalmente é viver contrariamente à natureza, o que significa viver
passivamente sob a tirania do prazer. Seu inverso, a vida mais reta, mais racional e
conforme à natureza, é aquela em que o homem consegue transcender sua vontade
pecadora, que o guia à passividade moral.
362
Sobre o princípio da atividade, ver a reflexão de Foucault sobre o método de interpretação dos sonhos
de Artemidoro e seu lugar na história da cultura grega. FOUCAULT. História da sexualidade III, p. 9-42.
363
FOUCALT. Subjetividade e verdade, p. 93-5.
168
364
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 338.
365
HALPERIN, David. The democratic body: prostitution and citizenship in Classical Athens. In:
HALPERIN, D. One hundred years of homosexuality. And other essays on Greek love. New York, NY:
Routledge, 1990, p. 88-104.
169
de pessoa devassa, sem controle, incapaz de ter um uso temperante de seus prazeres, de
dominá-los, que não é senhor de si mesmo.
366
DOVER. Homossexualidade na Grécia Antiga, p. 140; 189-190.
367
Entre inúmeros exemplos possíveis, consultar o poema latino de Gaio Giulio Fedro (20/15 a.C. circa –
51 d.C. circa), um autor latino, trácio de nascimento, que chegou a Roma como escravo e foi libertado por
Augusto, tendo escrito seus textos durante o principado de Tibério. No poema referido, o autor narra uma
fábula, em que aparecem personagens com comportamentos de gênero desviantes, tríbades e molles mares,
expressão traduzida como "homens adamados". O poema mostra como a expressão molles continuou tendo
conotação de afeminação, dubiedade erótica, androginia e devassidão. Boswell insiste na persistência desta
cadeia de significados atrelados às palavras malakoí e molles. FEDRO, Gaio Giulio. Fabula 4.16. In:
CARVALHO, Raimundo… [et al.]. (Orgs.). Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 171-3; BOSWELL. Christianity, social tolerance and
homosexuality, p. 107.
368
CLEMENTE DE ALEXANDRIA. El Pedagogo. Introdução Ángel Castiñeira Fernández. Tradução e
notas: Joan Sariol Díaz. Revisão: Mercedes López Salvá. Madrid: Editorial Gredos, S.A., 1998, p. 221-4.
(Biblioteca Clásica Gredos, 118). BOSWELL. Christianity. social tolerance, and homosexuality, p. 137-
143; FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 29-35.
170
que se subjetivava como pecador e afeminado. Do ponto de vista da radical moral ascética
cristã, até mesmo o sexo conjugal caía na mesma suspensão, o que exigiu as elaboradas
justificações teológicas da possibilidade de um uso não concupiscente do sexo penetrante
para a reprodução entre cônjuges, assim reconhecidos pela Igreja e pela comunidade, as
quais, mais tarde, desempenhariam um papel importante na clericalização e,
posteriormente, sacramentalização, do matrimônio, já na transição entre a Idade Média e
a Época Moderna.369
369
FLANDRIN. La moral sexual en Occidente, p. 67-91; 93-107; 113-122. VAINFAS. Casamento, amor
e desejo no Ocidente cristão, p. 25-48; DUBY, Idade Média, idade dos homens, p. 10-30; FOUCAULT.
Histoire de la sexualité 4, p. 249-324.
370
Ver, como exemplos, os trechos seguintes do texto, (L. II, cap. II, 2,27); (L. II, cap. VIII, 8,61); (L. II,
cap. VIII, 8,66: 3); (L. II, cap. X, 10,90: 3-4); (L. III, cap. II, 2,14: 1), CLEMENTE DE ALEXANDRIA.
El Pedagogo, p. 166, 199, 205, 226, 273.
171
Afeminar-se = Irracionalidade
371
Conferir as passagens seguintes d'O Pedagogo. (L. III, cap. III, 3, 21: 2-4), CLEMENTE DE
ALEXANDRIA. El Pedagogo, p. 279-280.
372
Conferir a passagem seguinte d'O Pedagogo. (L. III, cap. VIII, 8,43: 5), CLEMENTE DE
ALEXANDRIA. El Pedagogo, p. 298-9.
373
Conferir a passagem seguinte d'O Pedagogo. (L. II, cap. X 10,87: 3), CLEMENTE DE ALEXANDRIA.
El Pedagogo, p. 224.
172
Qual era, por conseguinte, a lei da natureza? Como, nos limites do discurso, se
construiu a fronteira entre o natural e o seu contrário? O que faria determinada prática ser
considerada contra ou conforme a natureza seria o quão propenso ela deixaria o homem
ao excesso de prazer, ao descontrole de si mesmo, ou seja, ao afeminar-se. Daí a
continuação da relação de identidade:
O que quereriam dizer essas três palavras? A primeira é clara, pois os sodomitas
foram insolentes ao ousar violentar (seja o quer que fora a violência) os anjos hóspedes
de Ló. A impureza aponta para a violação de alguns dos preceitos do Levítico, o que
consistia em uma abominação. Era o homoerotismo abominável? Sim, da mesma maneira
que o sexo com mulheres grávidas ou menstruadas, aparar a barba ou consumir
determinados animais. A noção de impureza era também ambígua e foi usada,
historicamente, para se referir a uma variedade de atos sexuais, os quais pode-se dizer
que tinham em comum o que se entendia como alguma ocorrência de desperdício de
sêmen. Esta era também uma das maneiras de definir o sexo contrário à natureza, que
incluía, mas não se resumia a ele, o sexo anal. Assim, havia uma ambiguidade semântica
374
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de Paulo 2, p. 128.
375
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de São Paulo 3. Homilias sobre as cartas: Primeira e
Segunda a Timóteo, a Tito, aos Filipenses, aos Colossenses, Primeira e Segunda aos Tessalonicenses, a
Filemon, aos Hebreus. Trad. Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 2013, p. 312-3. (Coleção
Patrística; 26)
376
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de São Paulo 3, p. 408.
173
entre impureza e sodomia, que só seria resolvida, parcialmente, mais tarde. 377 Por fim, a
ideia de saciedade relacionava-se diretamente ao conjunto de significados resumidos na
categoria significante “afeminado”. Saciar-se era satisfazer todas as demandas do prazer,
era ir bastante além do necessário para apenas sobreviver. A saciedade indicava uma
submissão aos desmandos dos prazeres que questionava o caráter viril do sujeito. Desse
modo, a saciedade também era uma maneira de afeminar-se.
Dessa maneira as três causas para a destruição de Sodoma podem ser relacionadas
a três dimensões separadas da problematização moral do erotismo no dispositivo da carne.
A insolência dos sodomitas dizia respeito à questão religiosa-hierárquica. A impureza
joga o episódio no terreno dos tabus étnicos do Levítico. Por fim, a saciedade funda a
destruição de Sodoma e o pecado de sodomia em uma dimensão ética, na medida em que
se refere a um certo modo de proceder do sujeito em relação às suas necessidades, aos
seus desejos e aos seus prazeres. Em suma, a atribuição da saciedade como uma das
causas da destruição de Sodoma forja a conexão entre sodomia e concupiscência,
deslocando o enunciado para o terreno da ética de si.
Abriu-se, assim, uma via para uma interpretação ética do pecado de Sodoma, por
meio da conexão entre a saciedade e a afeminação. Saciar-se, como é possível ler em
textos como a vigésima nona homilia sobre a Epístola aos Hebreus de S. João
Crisóstomo, era ir além da natureza, submetendo-se, de maneira afeminada, aos
desmandos dos prazeres.378 Os sodomitas passavam a ser, por definição, sujeitos pouco
viris. A conexão entre saciedade e afeminação desdobrava-se no vínculo teológico entre
a gula e a luxúria, um elo fundamental na tradição ascética cristã.379 A gula torna-se a
causa da destruição de Sodoma, condenada pela voracidade dos sodomitas. Gulosos, os
sodomitas afeminaram-se, entrando no espaço discursivo da inversão de gênero, erótica
e moral.
A conexão entre gula e luxúria aparece de modo explícito em vários textos que
veiculam o discurso moral e religioso da carne cristã, como, por exemplo, as várias
homilias de S. João Crisóstomo sobre as epístolas paulinas.380 Esse vínculo entre os
pecados da gula e da luxúria permitiu posicionar o pecado de Sodoma como um problema
377
DELUMEAU. O pecado e o medo 1, p. 403, 411-4. DELUMEAU. O pecado e o medo 2, p. 209-226.
378
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de São Paulo 3, p. 678.
379
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 231-2; CASSIANO. Instituições cenobíticas, p. 123-166.
380
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de Paulo 2, p. 325; S. JOÃO CRISÓSTOMO.
Comentário às Cartas de São Paulo 3, p. 312-3; 408; 678.
174
O caráter de evidente transgressão dos atos dos sodomitas foi expressado por S.
João Crisóstomo por meio de uma figura que, então, intencionava simbolizar a
381
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de Paulo 2, p. 131-2.
382
AGOSTINHO, St. Bispo de Hipona. A Cidade de Deus. Volume II (Livro IX a XV). 2ª ed. Tradução,
prefácio, nota biográfica e transcrições J. Dias Pereira. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, p.
1231-1319; FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-364; FOUCAULT. Sexualidade e solidão, p.
91-101.
383
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de Paulo 2, p. 136.
384
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de Paulo 1, p. 47-8.
175
385
S. JOÃO CRISÓSTOMO. Comentário às Cartas de Paulo 1, p. 47-8.
386
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud. Trad. Vera Whately. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 13-40; 41-88.
387
DAMIAN. The Book of Gomorrah, p. 128.
176
Por outro lado, em uma contradição que não perturba em nada o funcionamento
do enunciado, antes é uma de suas manobras estratégicas, a prática da sodomia é definida
também como algo humano, demasiado humano (definição já presente no enunciado 1).
Assim, a sodomia é apresentada como um produto da temeridade da sua depravação,
estando associada, como nos textos de S. João Crisóstomo, à incontinência da vontade
dos homens. A irracionalidade da sodomia demonstrar-se-ia pelo fato de estar em
desacordo com a lei natural (logo, era uma forma de sexo contra a natureza), artificial, no
sentido de uma produção humana, em desrespeito à lei da diferença sexual, tomada como
um dado da Criação.391
388
COLLING, Leandro. Que os outros sejam o normal. Tensões entre movimento LGBT e ativismo queer.
Salvador, Edufba, 2015, p. 231.
389
Segundo a categorização de S. Pedro Damião, eram quatro as classes de sodomia. A primeira era a
masturbação, o gozo solitário. A segunda, a masturbação mútua entre dois homens. A terceira, o sexo
interfemural entre dois homens e a quarta, mais grave de todas, o sexo anal homoerótico. A classificação
envolve também uma hierarquia da gravidade do pecado, que funciona no seguinte sentido: masturbação
solitária < masturbação mútua homoerótica < sexo interfemural homoerótico < sexo anal homoerótico.
Outros pecados parecem orbitar a zona da sodomia, como a bestialidade, mas com gravidade explicitamente
menor que a do pecado nefando. DAMIAN. The Book of Gomorrah, p. 83; 97.
390
DAMIAN. The Book of Gomorrah, p. 109.
391
DAMIAN. The Book of Gomorrah, p. 128.
177
Como visto acima, a categoria de afeminado traça suas raízes às noções de molles
em latim e de malakoí em grego, com a conotação dupla e intercruzada de masturbações
e de passividade de gênero e moral. Assim, o pecado das formas de polução fora do sexo
conjugal esteve imiscuído à dissidência da ordem de gênero, à recusa ou ao rompimento
com a virilidade, sujeitando-se a práticas eróticas tão vulgares, que diriam de um modo
escravizado de ser sujeito, um escravo das próprias paixões carnais. Ao abordar como os
discursos moral e religioso do dispositivo da carne moldaram a categoria de molície,
conectando-a a atos masturbatórios e a modos de divergir da ortodoxia de gênero, é
preciso ter em mente, em primeiro lugar, que as molícies antigas não podem ser tomadas
simplesmente como sinônimos da masturbação moderna, isto é, do onanismo, como
enfermidade ou prática sexual mais ou menos normal do sujeito, conforme descrito pelo
discurso médico-moral a partir do século XVIII. A masturbação moderna, filha do
iluminismo setecentista e do cientificismo oitocentista, tornou-se uma figura central do
dispositivo moderno da sexualidade.392 Antes dos setecentos, o vício solitário não
ocuparia a mesma posição nas problematizações morais e religiosas do cristianismo, mais
preocupado com o sexo conjugal ou com o sexo contrário à natureza. 393 O que não
significa, contudo, que as masturbações, arroladas na categoria genérica de molícies, não
fossem juridicamente tipificadas pelas instituições religiosas de controle moral e erótico
antes da época das luzes.
392
LAQUEUR, Thomas W. Sexo solitario. Una historia cultural de la masturbación. Trad. Marcos Mayer.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 15-26; FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso
no Collège de France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010,
p. 201-229. (Coleção Obras de Michel Foucault)
393
LAQUEUR. Sexo solitario, p. 21.
179
394
PAIVA, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal
(1536-1750). Coimbra, Portugal: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 15-66.
395
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado do
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos
de Portugal – 1613. Título V, parágrafo VII: De como os Inquisidores hão de proceder contra os culpados
no crime de sodomia, de qualquer qualidade que sejam, até serem entregues à Justiça Secular e de como o
Ordinário será chamado para o despacho deles. RIHGB, ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
1996, p. 659.
396
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 262-3.
180
397
VIDE, D.Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Estudo introdutório
e edição FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales; JANCSÓ, Istvan; PUNTONI, Pedro. (Orgs.). São
Paulo: EDUSP, 2010, p. 484.
398
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 274-280; BELLINI, Lígia. A coisa obscura. Mulher, sodomia e
Inquisição no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 51-70; BROWN, Judith. Atos impuros. A
vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 11-40.
399
BELLINI. A coisa obscura, p. 39-49; BROWN. Atos impuros, p. 18.
181
se havendo praticado até agora naquele crime os Breves Apostólicos, não devia o Santo
Ofício tomar conhecimento dele enquanto não houvesse nova declaração da Sé
Apostólica…".400
400
BELLINI. A coisa obscura, p. 62. Ver também VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo
Ofício. In: PRIORE, Mary del. (Org.). História das mulheres no Brasil. Coord. de textos Carla Bassanezi
Pinsky. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 121-3.
401
VAINFAS. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício, p. 121.
402
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, f. 10f-19v.
403
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, f. 17v-18f.
182
inclusive daqueles que falaram apenas de molícies, foram incluídos na Prova de Justiça,
publicada ao réu no dia 12 de janeiro de 1621.404
404
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, f. 62f-64f.
405
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da Inquisição dos Reinos de Portugal ordenado por mandado do
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo, Dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de
Estado de Sua Majestade - 1640. Livro III: Das penas, que hão de haver os culpados nos crimes, de que se
conhece no Santo Ofício, Título XXV: Dos que cometem o nefando crime de sodomia. RIHGB, ano 157,
n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 872.
183
A devassidão era significada como obras más e sem recato, jogando a noção para
a dimensão do erótico e para uma concepção tão tradicional quanto negativa da mulher e
da feminilidade. Tanto é que, à ideia de devassidão como desregramento, licenciosidade,
erótico, se articula diretamente a definição da mulher devassa (e não do homem devasso),
que é a perdida ou a prostituída. Portanto, a categoria de devassidão trazia implícito o
enunciado pelo qual a afeminação e a sodomia foram identificadas, confluídas,
assimiladas uma à outra, pelo discurso sobre o pecado de Sodoma. Funcionando
juridicamente como um agravante, a categoria de devassidão permitiu que o Santo Ofício
punisse com maior rigor os sodomitas mais incontinentes, intemperantes e moralmente
afeminados, isto é, devassos, impondo-lhes penas infamantes mais severas, fazendo valer,
assim, sua pedagogia do medo como forma de controle erótico e de produção da categoria
de sodomita como um afeminado moral, um ser corrompido e, por um outro ponto de
vista, doente.
406
BLUTEAU, Raphael. Devasso. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 3, p.
189. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/devasso. Último acesso em out. 2020.
407
TOMÁS DE AQUINO, St. Suma teológica. Trad. Alexandre Corrêa. Organização Rovílio Costa e Luís
A. de Boni. Introdução Martin Grabmann. 2. ed. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço
de Bridnes; Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980, V. IV, p. 1713.
184
A partir da noção geral de que todo pecado é uma espécie de doença da alma, o
funcionamento do enunciado pode ser explicado em dois desenvolvimentos. O primeiro,
opera a conexão entre os domínios do patológico e do contrário à natureza; o segundo,
faz a associação mais específica com o homoerotismo. Vejamos o passo a passo de cada
um deles.
408
CASSIANO, João. Instituições Cenobíticas. Tradução do latim pelo Mosteiro de Santa Cruz. Juiz de
Fora, MG: Edições Subiaco, 2015, p. 304-5.
409
GREGORY OF NISSA. THE GREAT CATHECISM. In: GREGORY, Bishop of Nyssa. Selected
Writings and Letters of Gregory, Bishop of Nyssa. Tradução, prolegômeno, notas e índices por William
Moore, M.A., Henry Austin Wilson, M.A. In: CHAFF, Philip, D.D., LL.D., WACE, Henry, D.D. (Orgs.).
A Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Volume 5. Gregory of Nyssa:
dogmatic treatises, etc. New York: Charles Scribner’s Sons, 1917, p. 498.
410
JEROME. Letter to Eustochium, p. 102; JEROME. Letter to Lucinius, p. 375; JEROME. Letter to
Eustochium, p. 489; JEROME. Letter to Rusticus, p. 544.
185
411
Segundo Reinhart Koselleck, a cristandade vivenciou o tempo, até o século XVI, como a expectativa
sempre presente e sempre adiada do Apocalipse, do fim dos tempos. Ao longo dos séculos, a ânsia pelo
Juízo Final precisou ser controlada, regulada, administrada, enfim, governada, cuidada pela Igreja, que
tratou de amalgamar a sua história àquela do Cosmos, incluindo seu fim. Isso quer dizer que, com o
cristianismo e, de modo mais preciso, com a sua organização em Igreja (ecclesia), o futuro foi incorporado
à história da Igreja, que pôde se colocar como mediadora necessária entre o presente e o futuro escatológico.
Conforme Jacques Le Goff, no cristianismo primitivo, o tempo era teológico, isto é, um tempo em que a
presença de Deus é dominante, de maneira que o tempo experimentado, o que Agostinho argumentou como
sendo a experiência temporal da alma, é a presença divina em tudo o que passa e nos vestígios que
permanecem no espírito de cada um. Para o cristianismo, pois, não há oposição entre a eternidade e o tempo,
uma vez que a primeira seria a dilatação infinita do segundo, na sucessão sem fim (ilimitada e incalculável)
de presentes. A consciência do tempo promovida pelo cristianismo o representa como uma linha, indo de
um ponto a outro, em uma sucessão irreversível. Diferenciando-o do judaísmo, um evento impôs ao
cristianismo um novo centro temporal. Trata-se da Encarnação de Cristo, cujo nascimento, morte e
ressurreição marcariam a consciência temporal cristã, não só por lhe proporcionar um centro ausente no
judaísmo, demarcando uma ruptura imprescindível entre um antes e um depois, como também por redefinir
a escatologia, a relação com o futuro, o fim dos tempos. O advento do Filho do Homem passou a funcionar,
na consciência temporal cristã, como a realização do telos, do sentido, da história, uma vez que Cristo seria
a boa nova da salvação expandida a todos que seguissem a Verdade (ele mesmo, para o cristianismo).
Conforme argumentou Le Goff, isso significa que a parúsia, iniciada no evangelho, deveria ser continuada
pela Igreja na duração, mortal, do tempo. A experiência temporal dos cristãos é caracterizada por um telos,
um direcionamento linear, pontilhado por três eventos-chaves. São eles a Criação-Queda, como espaço de
experiência inescapável, o Apocalipse-ressurreição dos mortos como horizonte de expectativa iminente e,
no meio, a Encarnação-Paixão-Ressurreição de Cristo/Messias. De acordo com Hartog, é precisamente a
descontinuidade temporal provocada pelo advento messiânico que especifica o modo cristão de
experimentar o tempo, distinguindo-se do modo judaico. Esse evento dividiu a noção de tempo cristã entre
um antes (marcado pela Antiga Aliança, pelo Antigo Testamento, pelo modo de vida Antigo, pelo
imperativo da procriação carnal) e um depois (caracterizado pela Nova Aliança, pelo Novo Testamento,
pelo modo de vida Novo da boa Nova, isto é, os evangelhos, pela possibilidade aberta para a escolha da
virgindade como modo de vida). O tempo inaugurado pela Encarnação foi interpretado pela doutrina cristã
dos primeiros séculos como um período intermediário, mais ou menos curto (até o fim da Idade Média,
acreditava-se que sob constante ameaça do Fim) e de expectativa. KOSELLECK. Futuro passado, p. 26;
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Trad.
186
Maria Helena da Costa Dias. Editorial Estampa: Lisboa, 1979, p. 45-46. (Nova História, 5). HARTOG.
Regimes de historicidade, p. 90.
412
DELUMEAU. O pecado e o medo 1, p. 364-5.
413
GREGORY. On virginity, p. 350.
414
JUAN CRISÓSTOMO. Contra los impugnadores de la vida monástica, p. 471-2.
187
podridão de uma ferida, não recusa usar do ferro e meter os dedos até o fundo mesmo da
chaga, pois, tampouco eu recusarei falar deste assunto, tanto mais quanto a podridão é
mais grave”.415
5º) Retomar o tema do castigo divino aos sodomitas, interpretando-o, agora, como
uma medida de purgação da corrupção, da putrefação, da peste de Sodoma.417 No tratado
Contra os impugnadores da vida monástica, essa última etapa aparece como uma
ponderação sobre o motivo de uma cidade como Constantinopla, onde, a julgar pelas
415
JUAN CRISÓSTOMO. Contra los impugnadores de la vida monástica, p. 470-1.
416
JUAN CRISÓSTOMO. Contra los impugnadores de la vida monástica, p. 474-5.
417
JUAN CRISÓSTOMO. Contra los impugnadores de la vida monástica, p. 473-4.
188
418
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras,
2007, p. 45-88.
419
DAMIAN. The Book of Gomorrah, p. 81, 95, 99, 117, 122-3, 127, 130, 131, 132, 137, 142.
189
420
SONTAG. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas, p. 45-65.
421
DUBY. A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal. Convívio. In: DUBY, G. (Org.).
História da vida privada 2. Da Europa feudal à Renascença. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 59, 66. O historiador António Manuel Hespanha, estudando um período
histórico bastante posterior, não obstante isso, explicou bem como, em sociedades não-modernas, como a
portuguesa de Antigo Regime, mas também, guardadas as diferenças não desprezíveis entre elas, a da
Europa medieval, as identidades dos indivíduos conformavam-se às qualidades, juridicamente
estabelecidas, dos estados sociais (ordens ou estamentos) em que nasceram, vivem e morrem. Neste
contexto, o que hoje entendemos como características individuais, matriz da identidade pessoal moderna a
partir de John Locke, até mesmo os corpos materiais, importavam menos do que a qualidade que as pessoas
tinham como partícipes de determinado estado, ordem ou estamento social. Vejamos como Hespanha
explicou a questão: “Então, se são as qualidades, e não os seus suportes corporais-biológicos, que contam
como sujeitos de direitos e obrigações, estes pode multiplicar-se, dando carne e vida jurídica autónoma a
cada situação ou veste em que os homens se relacionem uns com os outros. A sociedade, para o direito,
enche-se de uma pletora infinita de pessoas, na qual se espelha e reverbera, ao ritmo das suas multiformes
relações mútuas, o mundo, esse finito, dos homens. A mobilidade dos estados em relação aos suportes
físicos é tal que se admite a continuidade ou identidade de uma pessoa, ainda que mude a identidade do
indivíduo físico que a suporta. Tal é o caso da pessoa do defunto que, depois da morte, incarna no herdeiro;
mas é também o caso do pai, que incarna nos filhos, mantendo a sua identidade pessoal (“O pai e o filho
são uma e a mesma pessoa no que toca ao direito civil”, Valasco, 1588, cons. 126, n. 12). A relação entre
190
estado e indivíduo chega a aparecer invertida, atribuindo-se ao estado (à qualidade) o poder de mudar o
aspecto físico do indivíduo; diz-se, por exemplo, que o estado de escravidão destrói a fisionomia e
majestade do homem”. HESPANHA. Imbecillitas, p. 59.
422
SONTAG. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas, p. 67-9.
423
DUBY. A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal. Convívio, p. 64.
191
424
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 186-190.
192
se como uma categoria jurídica inserida no ponto mais baixo do ordenamento social-
moral-religioso da cristandade, dentro do regime da carne cristã. Por fim, há o efeito
discursivo da construção da sodomia como uma tragédia comunitária (o que servia de
eventual incentivo à delação dos sodomitas), como aquilo que atraia o mais severo castigo
divino.
O episódio mostra bem a articulação dos níveis discursivo e extra discursivo, entre
os discursos que modelavam uma figura terrível para o sodomita e as práticas e técnicas
de poder que costuravam essa categoria por sobre as subjetividades desejantes de amantes
homoeróticos. Mott sugere que os clérigos baianos instigaram as denúncias contra os
sodomitas, culpando-os pela calamidade pública, tomada como um castigo divino pelos
pecados dos baianos, sobretudo dos sodomitas escondidos entre eles. Nessas verossímeis
pregações, o discurso veiculado era aquele em que a sodomia estava diretamente
associada a doenças e pestes, atraindo o castigo divino. Temores similares podiam
circular entre os estratos sociais, ocasionalmente emergindo nos relatos que integravam
documentos jurídicos, como processos inquisitoriais.
425
MOTT. O sexo proibido, p. 118-121.
426
MOTT. O sexo proibido, p. 121.
193
[…] por ver continuação de gente extravagante que ali concorre, tem formado
juízo que cometem uns com os outros o pecado nefando de sodomia, e também
se confirma nisto por lhes ouvir perguntar uns aos outros se iam na frota que
agora está para partir para o Brasil. E alguns deles responderem que iam,
respondeu um moço vestido de pano alvadio, a que eles chamam Marques, não
sabe outra confrontação dele, que a frota se havia de ir a pique, porque levava
tanto somítico […].427
427
"[…] per Ver a conti / nuacaõ de gente estrauagante / que aly concorre tem formado juiSo / que cometem
huns com os outros / o pecado nefando de Sodomia, e tam / bem se confirma nisto per lhe ouuir / perguntar
huns a outros se hiaõ na / frota que agora esta para partir para / o Brasil e alguns delles respon / derem que
hiaõ, respondeo hum / Moço uestido de pano aluadio a que / elles chamaõ Marques, naõ Sabe ou / tra
confrontacaõ delle, que a frota / Se hauia de ir a pique perque leuaua // tanto Somitico […]". DGA/TT –
Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00164, fl. 9.
428
Mott cita algumas passagens de poemas de Gregório de Matos em que o poeta, ao descrever a cidade da
Bahia e os males que a acometiam ao final do século XVII, a compara às abomináveis Sodoma e Gomorra,
como nos dois versos seguintes, "Tão queimada, e destruída / te vejas, torpe cidade / como Sodoma, e
Gomorra / duas cidades infames". MOTT. O sexo proibido, p. 120. Para o poema completo, com o
194
Sobre todos os pecados, bem parece ser mais torpe, sujo e desonesto, o pecado
da Sodomia. E não é achado outro tão aborrecido ante DEUS e o mundo como
ele. Porque não tão somente por ele é feita ofensa ao Criador da natureza, que
é Deus, mais ainda se pode dizer que toda natureza criada, assim celestial como
humanal, é grandemente ofendida. E segundo disseram os naturais, somente
falando os homens nele, sem outro algum ato, tão grande é o seu
aborrecimento, que o ar o não pode sofrer, mais naturalmente é corrompido, e
perde sua natural virtude. E ainda se lê, que por este pecado lançou DEUS o
dilúvio sobre a terra, quando mandou a Noé fazer uma Arca, em que escapasse
ele e toda a sua geração, porque reformou o mundo de novo. E por este pecado,
subverteu as cidades de Sodoma e Gomorra, que foram das notáveis que,
àquela estação havia no mundo. E por este pecado foi destruída a Ordem do
Templo por toda a Cristandade em um dia. E porque, segundo a qualidade do
pecado, assim deve gravemente ser punido: porém, Mandamos, e provemos
por Lei Geral, que todo homem, que tal pecado fizer, por qualquer guisa que
possa ser, seja queimado e feito por fogo em pó, por tal que já nunca de seu
corpo e sepultura possa ser ouvida memória.429
sobrescrito Descreve com mais individuação a fiducia, com que os estranhos sobem a arruinar sua
republica", ver MATOS, Gregório. Obra poética. Edição James Amado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record,
2010, p. 334-338.
429
Ordenações afonsinas, livro V, título XVII, Dos que cometem pecado de sodomia. Disponível em
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg53.htm. Último acesso em out.2020.
430
VIDE. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, p. 482.
431
Criticando a interpretação semiótica, proposta por Kristeva, da estruturação psíquica da lésbica na
psicanálise de Lacan, Butler questionou se o medo inscrito nesta interpretação da lésbica como psicótica
195
Todo aquele que for compreendido pecar no pecado contra natura, se for
clérigo, será deposto e metido em religião, para que faça perpétua penitência.
E se for leigo, deve ser excomungado e apartado da companhia dos fieis
cristãos, até fazer condigna satisfação. Porque este pecado é mais grave que
conhecer carnalmente sua própria mãe.432
não seria, ao contrário da compreensão de Kristeva (que a vê como um resultado do recalcamento da cultura,
da lei do pai lacaniana), um medo de se perder a legitimidade cultural, o que significa ser projetada, não
para um antes ou um fora da cultura (o que ou não existe ou nos é inacessível), mas, sim, para fora da
legitimidade cultural, ainda no interior da cultura, em suas margens, culturalmente marginalizada. Essa
expulsão para as margens da cultura corresponde à construção da abjeção, segundo, ainda, a leitura feita
por Butler de Kristeva. A abjeção não é a expulsão do reino da cultura, ao revés, é a demarcação do seu
limite, a partir das linhas de fronteiras corpóreas e psíquicas do sujeito, assim, performativamente,
construído. O sujeito construído pela rejeição do abjeto articula a elaboração cultural das fronteiras do eu e
da cultura. Destarte, a filósofa queer e não binária conclui que a expulsão e a repulsa do outro é um processo
constituidor do eu. Nos domínios da experiência cristã do sexo, portanto, o sodomita revela-se
indispensável à constituição do verdadeiro fiel cristão. BUTLER. Problemas de gênero, p. 131-2; 190-1.
432
Constituicones [sic] do Arcebispado de Goa, aprouadas pello primeiro cõcilio prouincial. - Goa : per
Ioão de Endem, 8 Abril 1568. Arquivo: Biblioteca Nacional de Lisboa. Disponível em: http://purl.pt/14666.
Último acesso em out.2020.
433
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 41-2.
196
434
Robert Mills mostrou como homens sodomitas (ou sodomitas masculinos) foram repetidamente
representados recebendo punições infernais na iconografia medieval. Por exemplo, em iluminuras de
manuscritos variados ou em figuras esculpidas em capitais de colunas que adornavam as catedrais
medievais. Segundo o autor, frequentemente, as punições infernais a que os sodomitas eram submetidos
retomavam os atos eróticos pelos quais eles estavam sendo punidos. Atualizando as profundas conexões
entre a sodomia e o sexo anal, na maioria dos casos documentados pelo historiador, a sodomia aparece
punida com alguma forma, dolorosa, de penetração anal. MILLS. Seeing sodomy in the Middle Ages, p.
270-285.
435
BRAY. Homosexuality in Renaissance England, p. 21-3.
197
Tal era o espaço cultural ocupado pela sodomia na complexa matriz de culpa-
medo-ódio, que organizava e distribuía as instituições e os agentes discursivos e extra
discursivos no dispositivo da carne: um não lugar, que era o ápice da desordem, do caos.
Era a semente da transgressão, que estaria no fundo da subjetividade humana desde a
Queda de Adão. Como expressão máxima da luxúria, a sodomia como que passou a
sintetizar a concupiscência da vontade humana. Os atos venéreos ditos contra a natureza,
contra a ordem de verdade criada pelo deus dos cristãos, seriam especialmente
perturbadores, especialmente graves, muito mais sérios que meras transgressões contra o
sistema da aliança e as relações de parentesco, porque simbolizavam a possibilidade do
triunfo da concupiscência em qualquer um a qualquer momento. À sodomia, conectava-
se o temor escatológico do fim iminente do mundo.436
436
DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 302.
437
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-361.
198
438
LIMA, Marcelo Pereira. (Re) inventando o corpo do sodomita no Medievo Ibérico: algumas reflexões à
luz dos Gender Studies. In: MARTINS, Ana Cláudia Aymoré; VERAS, Elias Ferreira (org.). Corpos em
aliança. Diálogos, interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade. Curitiba: Appris, 2020, p. 175-198.
439
Trata-se de uma referência que Paulo faz ao profeta Isaías: “Se o Senhor dos Exércitos / não nos tivesse
preservado em germe / teríamos ficado como Sodoma, / teríamos ficado como Gomorra”. (Rm. 9: 29),
Bíblia de Jerusalém, p. 1983. AUGUSTIN. On the predestination of the Saints. In: SCHAFF, Philip, D.D.,
LL.D. (Org.). A select library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Series I,
Augustine volumes, Volume V, On the Holy Virginity, Doctrinal Treatises, Moral Treatises. Edinburgh:
T&T Clark, s/d., p. 1349.
440
AUGUSTIN. Treatise on the Grace of Christ and on Original Sin. In: SCHAFF, Philip, D.D., LL.D.
(Org.). A select library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Series I, Augustine
volumes, Volume V, On the Holy Virginity, Doctrinal Treatises, Moral Treatises. Edinburgh: T&T Clark,
s/d, p. 735.
199
cristãos.441 Por sua vez, no tratado Enchiridion, sobre Fé, Esperança e Amor, Agostinho
afirma que grande e alto era o grito, o gemido, o berro em Sodoma e Gomorra, pois,
nessas cidades, os crimes não só eram permitidos, como abertamente praticados, quase
como se fossem protegidos pela lei local (uma argumentação que recorre a termos
semelhantes aos presentes na radical crítica à cultura antiga feita por S. João
Crisóstomo).442
Em que tempo ou lugar será injusto que “amemos a Deus com todo o nosso
coração, com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e que amemos o
próximo como a nós mesmos?” Por isso as devassidões contrárias à natureza,
sempre e em toda a parte se devem detestar e punir, como o foram os pecados
de Sodoma. Ainda que todos os povos os cometessem, cairiam na mesma
culpabilidade de pecado, segundo a lei de Deus que não fez os homens para
assim usarem dele.
Efetivamente, viola-se a própria união que deve existir entre Deus e nós,
quando a natureza, de quem Ele é autor, se mancha pelas paixões depravadas.
Porém as torpezas luxuriosas, contrárias aos costumes humanos, devem-se
repelir, em razão da diversidade de costumes, a fim de que, por nenhuma
desvergonha de cidadão ou de estrangeiro, se quebre o pacto estabelecido pelo
costume ou lei de uma cidade ou nação.443
441
AGOSTINHO, St. Bispo de Hipona. O De Excidio Vrbis Romae e outros sermões sobre a queda de
Roma. Trad. do latim, introdução e notas Carlota Miranda Urbano. 3. Ed. Coimbra: Imprensa Universidade
de Coimbra, 2013, p. 43-4.
442
AUGUSTIN. The Enchiridion. In: SCHAFF, Philip, D.D., LL.D. (Org.). A select library of the Nicene
and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Series I, Augustine volumes, Volume III, On the Holy
Virginity, Doctrinal Treatises, Moral Treatises. Edinburgh: T&T Clark, s/d., p. 567.
443
AGOSTINHO, St. Bispo de Hipona. Confissões. Trad. J. Oliveira, A. Ambrósio de Pina. 28. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015, p. 74-75. (Coleção
pensamento humano)
200
444
BENNASSAR. Inquisición española, p. 295-6.
201
coisas que lhe são lícitas quer ardendo na concupiscência do ilícito, “no uso
daquilo que é contra a natureza”.
Agem pecaminosamente revoltando-se contra a vossa vontade, de coração ou
com palavras, e recalcitrando contra o aguilhão. Ofendem-vos igualmente
quando, transpostos os limites da sociedade humana, se alegram
audaciosamente com as facções ou com as desavenças, conforme o que lhes
trouxer agrado ou mal-estar.445
445
AGOSTINHO. Confissões, p. 76.
446
FOUCAULT. História da sexualidade 2, p. 45-122; FOUCAULT. História da sexualidade 3, p. 43-
73.
202
447
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 146.
448
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 145; VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 146.
449
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 316-7.
204
espécime de pecado contra a natureza, “sempre que do ato venéreo não resulta a geração”
(Secunda secundae, questão 154, artigo 12º).450
Para definir se algum prazer é contrário à natureza, ou, dito de outra forma, se
pode haver prazer em atos contrários à natureza, foi preciso, por lógica, primeiro definir
o que é o prazer. Assim, o teólogo afirmou que prazer é o repouso dos afetos (afecções)
da alma, que só pode ocorrer no seu lugar conatural. A causa do prazer, o teólogo a
apropriou de Aristóteles, é o sentido de se estar em uma disposição conforme à natureza.
Assim, é natural a cada ser a disposição que lhe é conforme a natureza, uma vez que o
movimento natural tende a um termo natural. Daí a conclusão de S. Tomás de que todo
450
AQUINO. Suma teológica, V. VII, p. 3154.
451
AQUINO. Suma teológica, V. VII, p. 3152.
205
prazer é natural. Como consequência, fica provado, segundo a lógica tomista, que o quer
que seja estabelecido como contrário à natureza é necessariamente violento. Uma vez
que, novamente de acordo com o Estagirita, tudo que é violento gera tristeza, nada que
seja contrário à natureza (portanto, violento) pode ser deleitável. Não pode haver prazer
em atos contrários à natureza. A definição de prazer, contudo, ainda não está completa,
pois, se ela se refere à conformidade com a natureza, não é possível saber se tal ou tal ato
é prazeroso, sem saber-se da natureza do ser que o comete. Assim, para saber quais atos
proporcionam deleite ao homem, é preciso determinar o que é a natureza humana.452
Ora, conforme esses dois pontos de vista, podem certos prazeres serem
inaturais, absolutamente, mas conaturais, relativamente. Pois, pode suceder
que, num determinado indivíduo, venha a corresponder-se algum dos
princípios naturais da espécie, e então, o que seria contrário à natureza da
espécie, pode acidentalmente ser natural a esse indivíduo; assim, é natural que
a água quente aqueça. Por onde, pode dar-se que aquilo que é contra a natureza
do homem, relativamente à razão ou à conservação do corpo, se torne conatural
a um determinado homem por causa de alguma corrupção existente em a
natureza do mesmo. E esta corrupção pode provir do corpo ou da alma. Quanto
ao corpo, de alguma doença ― assim, os febricitantes acham amargo o doce e
reciprocamente; ou da má compleição ― assim, há quem se deleite comendo
terra, carvão ou coisas semelhantes. Quanto à alma, quando alguém, por
costume, se deleita em comer carne humana; no coito bestial ou com
indivíduos do mesmo sexo; ou em coisas semelhantes, que não são conforme
à natureza humana. (Prima secundae, questão 31, artigo 7º).453
Uma vez que a natureza humana é dupla, os atos humanos podem render prazer
conforme um ou outro aspecto, ou conforme ambos, ou, no vocabulário do Doutor
452
AQUINO. Suma teológica, V. III, p. 1259-1261.
453
AQUINO. Suma teológica, V. III, p. 1261-1263.
206
454
No entanto, Boswell corretamente apontou a tradição teológica que postulava a associação entre a
sodomia (como homoerotismo e/ou sexo anal) e o comportamento de certos animais. BOSWELL.
Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 137-143.
455
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 325.
456
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 324-5.
207
natureza como animal. Nessa altura, Boswell afirma que, segundo a definição de S.
Tomás de Aquino, a “homossexualidade [sic] poderia, de fato, ser bastante ‘natural’ em
um dado indivíduo” e que “ainda que não seja natural para os humanos em geral ser
homossexual [sic] aparentemente é muito natural para indivíduos particulares”. 457 No
entanto, não é uma conclusão logicamente admissível afirmar que o teólogo categorizou
o homoerotismo sodomítico como uma substância, no sentido moderno de um “ser
homossexual”: a categoria “sodomita”, dizendo respeito a uma posição de subjetividade,
opera como uma qualidade de um ser que comete determinado ato. O homoerotismo,
assim como o canibalismo e a bestialidade, não deixa nunca de ser um ato para o autor,
um ato cujo prazer derivado está sendo investigado para saber-se se ele é natural ou não.
Em uma questão posterior, a respeito dos vícios opostos à temperança, S. Tomás retomou
o paralelismo entre estas três ações, devorar outro ser humano, fazer sexo com animal de
outra espécie e fazer sexo com um ser humano do mesmo sexo. O que ele diz, neste
momento, é o seguinte:
Essas três faltas contra a natureza humana são descritas pelo teólogo como
pecados contra a temperança, localizando-se em um domínio ético, ou seja, atos que
contrariam a virtude da temperança de maneira pior que outros, pois avançam contra a
natureza humana, excedendo-a. De modo que o canibalismo, a bestialidade e a sodomia
não funcionam como substâncias, mas como categorias que qualificam, para pior, os
agentes praticantes. Em termos de categorias aristotélicas, o ato homoerótico não diz de
uma substância, mas de um acidente. Tal como a água quente não é uma substância
distinta da água, o homem sodomita, ou o homem canibal ou o homem zoofílico, não é
uma substância distinta do homem, meramente um mesmo homem, em sua natureza, que,
acidentalmente, adquiriu uma certa corrupção da alma que lhe proporciona uma alteração
sensorial específica em relação aos restantes da espécie, abrindo-lhe as comportas de um
prazer inatural absolutamente e conatural relativamente. Portanto, o homem identificado
como sodomita não o está sendo de maneira substancial, apenas acidentalmente –
457
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 326.
458
AQUINO. Suma teológica, V. VI, p. 3062-3.
208
Assim como nem todos os atos virtuosos são conforme à natureza, na medida que
algumas virtudes são especiais, no sentido de que superam as necessidades da natureza
(caso da virgindade e do celibato), alguns pecados também se posicionam contrariamente
à natureza de um modo específico. Concordando com S. João Damasceno, teólogo
ortodoxo do século VIII, S. Tomás concede que todos os pecados, no tanto que são atos
contrários à razão, são, por isso mesmo, também contrários à natureza. Está novamente
presente aqui, agora, de modo implícito, a natureza dual do homem, concebida como
animal racional. Assim, sendo o homem um ser racional, qualquer pecado é sempre contra
a sua natureza racional. Por outro lado, alguns pecados especiais contrariam também, em
acréscimo, a outra dimensão da natureza humana, sua animalidade. É o caso, no exemplo,
não aleatório, fornecido por S. Tomás, do sexo homoerótico masculino, que se afasta da
prática concebida como natural, conforme o ser animal do homem, do sexo heteroerótico.
459
AQUINO. Suma teológica, V. III, p. 1763.
209
O homoerotismo, portanto, aparece, pela segunda vez, como uma espécie singular de
pecado, uma vez que contraria a natureza humana duplamente.
Destarte, não podemos nos surpreender com a classificação feita por S. Tomás dos
tipos de pecados rotulados como vícios contra a natureza. Estão aqui enquadrados, pois,
todos os atos venéreos que, por desordenarem a forma dita natural que tais atos deveriam
ter forçosamente (incluindo a posição, os órgãos manipulados, as pessoas envolvidas e
suas espécies), conforme a natureza de animal racional do homem. Ao não seguir a forma
dita natural, tais atos se desviam do uso racional da função reprodutiva: dentro do discurso
moral da carne, reprodução, conjugalidade e erotismo não poderiam, licitamente, ser
desligados.460 Portanto, S. Tomás previu uma definição de sodomia a princípio mais larga
que aquela de seu mestre, Alberto, cujo foco principal fora o homoerotismo, mas que, ao
fim, acaba apontando igualmente para uma especialização homoerótica do pecado de
sodomia.
460
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 284-324.
210
461
AQUINO. Suma teológica, V. VII, p.3154-6.
462
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 328.
211
463
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-361.
213
estranho parentesco, como observou Bataille, criticando a moral cristã como veículo da
decadência cultural do Ocidente).464
O sodomita, portanto, pode ser lido como uma categoria de identidade relativa à
qualidade de um sujeito jurídico tão terrível, que a ele se associavam os estigmas mais
graves: era o corruptor da juventude, o analmente passivo, o afeminado, o intemperante,
o concupiscente, aquele que agia eroticamente ao contrário da natureza humana, em sua
duplicidade. Ao sodomita, esse relapso, nas palavras de Foucault,467 tão horrendo, o logos
divino respondia com fúria, descarregando catástrofes coletivas sobre a humanidade
decaída, descendo fogo dos céus sobre Sodoma, elevando maremotos e terremotos,
464
BATAILLE, Georges. Discusión sobre el pecado. Trad. Hugo Savino, Américo Cristófalo. Buenos
Aires: Paradiso, 2005, p. 19-29.
465
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 60-1.
466
"Por um lado, como já o assinalara Foucault, as condutas homoeróticas eram só um delito ou estado de
pecado e não uma "condição" ou uma "essência". A interpelação punia um comportamento somítigo e não
"criava" um sodomita". FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 125.
467
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 47.
214
468
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 330.
469
BRUNDAGE. Law, sex and Christian Society in Medieval Europe, p. 472.
470
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 147.
216
471
Na legislação inglesa, as punições contra a sodomia começam a aparecer no século XIII, em três tratados
anônimos da década de 1290. A compilação jurídica chamada Britton, provavelmente derivada de um
manuscrito anterior de Henry de Bractun († 1268), especificava o fogo como a pena para a sodomia,
classificada como crime misto, isto é, que poderia ser julgado pela Igreja e pela Estado. O tratado Fleta
dava outra pena aos sodomitas, deveriam ser enterrados vivos. O Mirror of Justices estabelecia que, em
casos de culpa pública e notória de sodomia, o julgamento de direito não era necessário, podendo o sodomita
ser condenado à morte sumariamente. CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 199-200.
472
As leis medievais francesas contra a sodomia citavam, rotineiramente, o édito de 342 de Constantius e
Constans (chamado, abreviadamente, de cum vir) e o Levítico. Na Baixa Idade Média, o reino da França
ainda era uma colcha de retalhos, composta por diversas instituições políticas tributárias à monarquia,
contando cada uma com direito penal próprios. Assim, enquanto o sul da França seguia o Direito Romano,
ao norte de Lyon, prevalecia ainda o direito consuetudinário, baseado em tradições locais, que foram
registradas a primeira vez somente no século XIII. A mais importante destas leis costumeiras foi o
Établissements de Saint Louis, compilado em 1272, a partir de uma lei costumeira da região de Touraine-
Anjou de 1246. Nessa coleção, havia uma lei contra o crime de bougrerie, o qual estava associado ao de
heresia. A definição da categoria gerou um debate inconcluso entre os juristas franceses, pois ela poderia
designar tanto a sodomia como o catarismo. Sobre esta lei, Boswell argumenta, contudo, que a indefinição
do significado de bougrerie durou pouco tempo, antes de ser decidida em favor da condenação dos
sodomitas. Além disso, a ambiguidade inicial pode ter sido proposital, uma estratégia para ampliar os
poderes do Estado para perseguir e controlar dissidentes religiosos e sexuais. Essa ambiguidade foi
suprimida em outros códigos jurídicos franceses. Os Livres de justice et de plet, datados de cerca de 1260,
baseados nos costumes de Orléans, prescreviam a morte aos hereges e, separadamente, aos sodomitas
(castrados e queimados vivos na fogueira). A coleção Coutumes de Beauvaisis, de 1283, retificou a
ambiguidade em definitivo, estipulando que as punições fossem aplicadas contra heréticos e sodomitas da
mesma forma. CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 197-9; BOSWELL. Christianity, social
tolerance and homosexuality, p. 290-1.
473
A Espanha medieval, devido à sua fragmentação em múltiplos reinos, após a queda do reino visigótico
da Primeira Idade Média, conheceu uma diversidade de disposições jurídicas sobre a sodomia e o
homoerotismo. As leis antissodomíticas do antigo reino visigótico tiveram, no entanto, uma influência
continuada. O código Fuero Juzgo ou Fuero de los Jueces, compilado originalmente em 711, sentia
especialmente a influência das leis visigóticas. Esse código estava ainda em vigor nos reinos das Astúrias,
de Leão, da Catalunha e de Aragão no século XIII, mesmo se suplementado por uma pletora de leis mais
recentes. Ao longo deste século, o reino de Castela foi impondo o código às regiões tomadas aos mouros.
Em 1255, o rei Alfonso X, o Sábio, criou uma nova legislação para Castela, o Fuero Real, que se pretendia
unificador. A lei contra a sodomia era ainda mais violenta no novo código, prescrevendo a castração pública
e a morte por suspensão pelas pernas, negando-se posterior enterro cristão ao condenado. Dez anos depois,
o mesmo rei publicou o código Las Siete Partidas, cuja lei antissodomia acrescentou um preâmbulo bíblico
como justificativa para as mesmas cruéis punições. Estas leis castelhanas continuaram em vigor até o século
XIX, passando da Espanha para a América a partir do século XV. LIMA. (Re) inventando o corpo do
sodomita no Medievo Ibérico, p. 175-198; CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 200-1.
217
474
No litoral norte da Holanda, região conhecida como Frísia, o código frísio, chamado Sendricht, datando
do século XI, condenava o homem que quebrasse, em seus termos, “a lei de Octaviano e de Moisés e de
todo o mundo” (referências, respectivamente, à Lex Julia, ao Levítico e à lei natural), a escolher entre um
de três castigos: ser queimado vivo, ser enterrado vivo ou castrar-se a si mesmo. CROMPTON.
Homosexuality & Civilization, p. 196-7.
475
Na Escandinávia, o código norueguês Gulathingslog, adotado em 1164, determinava o degredo perpétuo
aos sodomitas com o confisco de seus bens, os quais deveriam ser divididos entre o bispo e o monarca.
CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 197.
476
Em 1250, a Noruega acrescentou uma lei ao Gulathingslog permanentemente criminalizando os homens
condenados por sodomia. BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 291.
477
Na Suécia, o estatuto do bispo Brynjulf (1280) estabeleceu uma remuneração (multa) episcopal aos
condenados por sodomia. CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 197.
478
Nas comunas italianas, durante a transição entre a Idade Média e a Modernidade, novas formas de
repressão começaram a se organizar, passando depois à Espanha, Portugal e França. Ainda na primeira
metade do século XIII, na esteira da criação da Inquisição pontifícia, foram organizadas confrarias
religiosas em Perugia e em Bolonha, voltadas para a perseguição dos sodomitas. Nos dois séculos seguintes,
instituições semelhantes apareceriam em várias outras cidades, especialmente em Veneza e em Florença.
O acirrar da intolerância contra os sodomitas, desde o século XIII, mas principalmente após a Grande Peste,
deveu-se, em larga medida, às pregações fanáticas das ordens mendicantes, cujos frades pregadores
incendiaram consciências e corpos em um afã moralizador e ascético, mas que não pode ser desligado do
jogo político disputado pelas cidades, pelo Papado e pelo Sacro Império. As municipalidades italianas
foram, uma a uma, adotando a pena de morte, a mais das vezes pelo fogo, para a sodomia, muitas vezes já
para a primeira condenação, legitimadas sempre por argumentos teológicos consolidados pelos doutores da
Igreja no século XIII, como S. Alberto Magno e S. Tomás de Aquino. Pode-se listar o aparecimento de
legislações draconianas contra a sodomia nas principais cidades italianas da seguinte forma: Bolonha em
1259, Pádua em 1329, Carpi em 1351, Roma em 1363, Cremona em 1387, Lodi em 1390, Bassano em
1392, Milão em 1476, Parma em 1494 e Gênova em 1556. Algumas cidades mantiveram outras formas de
punições, como a castração ou um sistema de multas, o que foi típico das cidades da Toscana. CROMPTON.
Homosexuality & Civilization, p. 246.
479
Em Veneza, durante o século XIV, a perseguição aos sodomitas ficara a cargo de uma magistratura
especializada, os chamados Signori di Notte (Senhores da Noite), cuja função era lidar com as perturbações
noturnas na cidade e casos menores de violência. A primeira execução por sodomia de que se tem notícia
em Veneza ocorreu em 1342, dando início a uma continuidade de execuções de pessoas queimadas vivas
na fogueira. Mais tarde, o rito de execução foi alterado para a decapitação dos condenados, cujos corpos
seriam depois queimados. No século XV, quando o império veneziano atingiu seu ápice, a perseguição à
sodomia foi assumida pelo principal órgão judiciário da cidade, o Conselho dos Dez, o que significou uma
virada para uma severidade muito maior. A captação do crime de sodomia pelo principal tribunal veneziano
sugere que o pecado de Sodoma foi percebido como uma ameaça substancial à sobrevivência do Estado.
Essa percepção fora motivada por um pânico moral e religioso, estimulado pelos frades pregadores. No
século XVI, as perseguições ainda continuaram, mas as penas tenderam a se tornar menos letais para a
maioria dos casos, com o degredo e as galés substituindo as fogueiras. CROMPTON. Homosexuality &
Civilization, p. 247-251.
480
Em Florença, a perseguição aos sodomitas encontrou um contexto mais complicado, uma vez que havia
uma cultura de tolerância tácita geral, dos pobres às elites, ao crime da sodomia, que, normalmente, não era
visto como uma ofensa grave. Assim, exceto por conjunturas de pânico moral, a legislação florentina tendeu
a ser menos draconiana que a veneziana para os sodomitas, preferindo, a uma política de extermínio,
estabelecer mecanismos de controle e regulação da prática sodomítica pelo Estado, um modo de encarar a
questão que a aproximava de outros “problemas” morais, como o jogo, a bebida e a prostituição. Assim, a
política florentina resultou em um número muito maior de processos, prisões e condenações, mas não de
uma quantidade comparável de execuções. Foram muitas idas e vindas da legislação florentina, ora mais
leniente, ora bastante severa. Vale destacar que os momentos de aumento da severidade jurídica foram
sempre estimulados pela pregação de frades mendicantes radicais em seu fanatismo antissodomítico.
CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 251-260. Para uma visão aprofundada do homoerotismo
em Florença durante a Renascença, ver ROCKE, Michael. Forbidden friendships. Homosexuality and male
culture in Renaissance Florence. New York; Oxford: Oxford University Press, 1996.
218
481
DELEUZE. Michel Foucault, p. 5-38.
482
Em uma ótica um pouco distinta, pois tem como alvo o que chama de formação discursiva hegemônica
do padrão masculino/ativo, Figari também ressalta o papel instrumental da existência dos sodomitas, como
metáfora de abjeção e interpelação, para a concretização de uma dialética do Nós e os Outros na cultura
ocidental. FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 125.
483
Delumeau explicou que, a partir do século XIV, a pregação popular e urbana foi ganhando uma
importância crescente e inaudita em um cristianismo que se fazia mais e mais popular e leigo. A expansão
e a popularização da religião cristã na Europa do período entre o fim da Idade Média e o início da
Modernidade ensejou a necessidade de levar-se a mensagem do evangelho para as multidões, as quais, além
de mais numerosas, passaram a ser também mais exigentes quanto à qualidade doutrinal de seus pastores.
O autor cita, entre os importantes pregadores dos séculos XIV e XV, Vicente Ferrer (1350-1498), Manfredo
de Vercelli (ambos dominicanos, não constando maiores informações sobre o segundo, exceto que era
contemporâneo de Vicente de Ferrer e pregou na Itália no começo do século XV, antes, pois, de
Savonarola), Bernardino de Siena (1380-1444), Olivier Maillard (1430-1502) e Girolamo Savonarola
(1452-1498). Esses pregadores exerceram grande influência popular, porque eram capazes, em seus
sermões, de suscitar reações extremas e viscerais de seus espectadores, provocando desde a conciliação de
antigas inimizades ao ódio contra os pecados em si e nos outros. Em vários lugares, a pregação se desdobrou
em movimentos político-sociais de contestação da ordem, como na Inglaterra, onde engendrou o lolardismo
(ação dos padres pobres, chamados “lollards”) e a insurreição de 1381. Para muitas autoridades da Igreja
no período, mais ou menos ortodoxas, a pregação deveria se tornar a principal missão da Igreja, o dever
primário do pastor de almas. Assim a compreenderam Wycliff, Huss e Gerson. Bernardino de Siena chegara
a afirmar que a (sua) pregação era mais importante aos seus ouvintes do que a missa. Percebe-se um declínio
da liturgia em favor da pregação. A partir disso, Delumeau identificava a principal e fatal fraqueza da Igreja
219
às vésperas da Reforma protestante, como a debilidade pastoral do clero católico. DELUMEAU, Jean. A
civilização do Renascimento. Volume I. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, p. 136-7.
484
Delumeau falou do homem dividido no Renascimento, cindido entre a pastoral da culpa emanada pela
Igreja Católica (e, mais tarde, também pelas religiões protestantes), que pode ser interpretada como um
elemento complexo (com facetas discursivas e não-discursivas) do dispositivo da carne, e o otimismo em
relação às suas possibilidades intelectuais e políticas postulado pelo humanismo renascentista. “Entretanto,
apesar de medos e fracassos, ou talvez por causa deles, a civilização ocidental ia à frente, tomada por um
dinamismo profundo. Nos intervalos deixados livres para as experimentações, ela inventava, inovava,
descobria, enriquecia, oferecendo, a alguns pelo menos, possibilidades inéditas de promoção individual. A
época chamada ‘Renascença’ apresenta-se então a nós como uma associação de fortes impulsos de vida e
de mergulhos para a morte, projetos, progressos e festas, mas também desencantos e morbidez. Vontade de
ir em frente e sentimento de fracasso coexistiram então estreitamente. Philippe Ariès tinha razão em insistir
sobre esse sentimento de fracasso na época do ‘macabro’. Nossas análises coincidem com seus propósitos.
Uma elite dinâmica teve uma percepção aguda de seus limites e se sentiu prisioneira das estrelas, da fortuna,
do servo-arbítrio e do pecado. Daí sua propensão à melancolia e à meditação sobre a morte; e a necessidade,
na reconstituição de um universo mental, de marcar os vínculos que então ligaram aumento do
individualismo, consciência da fraqueza humana e propensão à tristeza”. DELUMEAU. O Pecado e o Medo
1, p. 575-6.
485
CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 245.
486
Em Vigiar e punir, Foucault explicou como a modalidade panóptica do poder, a partir do século XVII
francês, foi se disseminando pelas sociedades ocidentais, arrastando-se, atrelando-se e envolvendo as
estruturas políticas, jurídicas e administrativas dos Estados modernos, a ponto de as relações disciplinares
de poder virem a se tornar a base subterrânea do edifício político das liberdades burguesas. Em sentido
similar, guardadas as distâncias históricas entre o momento de triunfo do Iluminismo e das disciplinas na
virada do século XVIII para o XIX, e o período do Renascimento no início da Época Moderna, é possível
afirmar que a intolerância generalizada da Primeira Modernidade se revela não como um obstáculo
superado pela civilização ilustrada, mas como o esterco do qual o humanismo e o otimismo renascentistas
se nutriram para se desenvolver. FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 209-210.
220
487
Tradução minha. No original, Boswell escreveu “Between 1250 and 1300, homosexual activity passed
from being completely legal in most of Europe to incurring the death penalty in all but a few contemporary
legal compilations”. BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 293.
488
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 271-5; 283-6.
221
489
BRUNDAGE. Law, sex and Christian society in Medieval Europe, p. 399.
490
BRUNDAGE. Law, sex and Christian society in Medieval Europe, p. 473.
491
BRUNDAGE. Law, sex and Christian society in Medieval Europe, p. 493-4.
222
preocuparam-se mais e mais com o que era rotulado como sexo não-natural ou sodomia,
entre cujas práticas destacavam-se a masturbação e o homoerotismo. Na esteira da
devastação provocadas pela peste, pelas guerras e pela fome, a sodomia foi alçada à
posição de uma ameaça gravíssima à sociedade, par a par com a ameaça posta pelas seitas
e religiões heréticas.492 Na visão dos legisladores do período de transição entre o Medievo
e a Modernidade, sodomia e heresia apareciam como perigosíssimas e, por isso mesmo,
similares ameaças à ordem divina e natural da sociedade cristã, ao funcionamento do
Estado e à conservação da Igreja Católica. O parentesco entre dissidências sexuais e da
fé, em elaboração desde o século XIII, foi consolidado, especialmente na Península
Ibérica, no início da Época Moderna.493
492
BRUNDAGE. Law, sex and Christian society in Medieval Europe, p. 533.
493
Vale a pena reproduzir as palavras exatas do comentário de Brundage a esse respeito. Em tradução nossa,
o autor afirma que: "Outra pressuposição que corre em meio à legislação, aos comentários jurídicos e às
ações judiciais do período, é a desaprovação, moral e jurídica, do prazer, e do prazer sexual em particular,
como um objetivo humano legítimo. Em verdade, muitos dos cânones e dos estatutos que lidavam com
adultério, fornicação e atividade homossexual eram motivados, em parte, pela convicção de que estes
comportamentos, se não controlados, perturbariam a ordem social e, portanto, de que os interesses da
sociedade requeriam que eles fossem contidos e regulados em minucioso detalhe. Mas a crença subjacente
de que o sexo era maligno, porque era prazeroso, foi claramente um fator na forma dada à legislação sobre
o sexo. Aliada a isso, estava outra crença antiga: de que o sexo sujava e corrompia aqueles que nele se
engajavam. Referências evidentes à poluição ritual e à necessidade de purificar-se a si mesmo do sexo
ocorrem apenas raramente nos escritos jurídicos durante esse período, mas a crença nesses mecanismos
claramente subjaz a bastantes das leis sobre o sexo dessa era". No original: "Another assumption that runs
through the legislation, legal commentaries and judicial actions of this period is the moral and legal
disavowal of pleasure, and sexual pleasure in particular, as a legitimate human goal. True, many of the
canons and statutes that dealt with adultery, fornication, and homosexual activity were motivated in part by
the conviction that these behaviors, if unchecked, would disrupt the social order and therefore that society’s
interests required that they be restrained and regulated in minute detail. But the underlying belief that sex
was evil because it was pleasurable was clearly a factor in giving sex law the shape that it took. Allied to
this was another ancient belief, namely that sex dirtied and defiled those who engaged in it. Overt references
to ritual pollution and the need to cleanse oneself from it occur only rarely in legal writing during this
period, but belief in these mechanisms clearly underlies a good deal of the sex law of the age”.
BRUNDAGE. Law, sex and Christian society in Medieval Europe, p. 549.
494
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 146.
223
Ao cair da noite (…) cada família se senta esperando em silêncio em cada uma
das sinagogas; e então desce por uma corda pendurada no centro um gato negro
de proporções assombrosas. A esta visão, apagam as luzes e não cantam ou
repetem hinos de modo distinto, mas murmuram-nos entre os dentes cerrados,
e encaminham-se para perto do lugar onde viram seu mestre, tateando para
encontrá-lo, e, quando o encontram, o beijam. Quanto mais quentes seus
sentimentos, mais baixos serão seus alvos; alguns preferem seus pés, mas a
maioria a cauda e as partes pudendas. Então, como se este contato daninho
libertasse seus apetites, cada um se deita abraçado ao vizinho e se satisfaz dele
ou dela com todas as suas forças. Seus anciãos sem dúvida sustentam, e
ensinam a cada novato, que o amor perfeito consiste em dar e tomar, consoante
possam o irmão ou irmã solicitar ou exigir, cada um saciando o fogo do
outro.496
495
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 70.
496
WALTER MAP, De nugis Curialium apud RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 70.
497
BARBER, Malcom. Propaganda in the Middle Ages: The charges against the Templars. In: Nottingham
Medieval Studies, 17, 1973, p. 42-57.
498
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 146.
224
De acordo com Richards, a associação entre sodomia e heresia foi parte de uma
estratégia maior da Igreja Católica para combater as heresias. A estratégia consistiu em
três eixos de intervenção sobre as regiões com presença de grupos heréticos: a persuasão,
a repressão e a satanização. A persuasão significava a disputa de fiéis no plano do
combate religioso ou doutrinal, para o que a Igreja enviava pregadores para levar a
mensagem católica aos centros de heresia. No combate aos cátaros e aos albigenses (os
cátaros da região do Languedoc), a Igreja, em primeiro lugar, enviou pregadores da
Ordem de Cister; mais tarde, utilizou-se de outro grupo heterodoxo, porém mais próximo
à instituição eclesiástica que o catarismo, com o envio de emissários valdenses ou
derivados do tronco dos Pobres de Lyon (outro nome dos valdenses); e, a partir do século
XIII, principalmente pregadores das ordens mendicantes, dominicanos ou
franciscanos.499 Richards afirma que, por se concentrarem em uma mensagem de
confissão, penitência e arrependimento, casada à evidente escolha da vida apostólica (isto
é, a adesão à pobreza de Cristo e dos apóstolos como técnica de espiritualidade), os
mendicantes “propiciaram o tipo de clima emocional e espiritual no qual a heresia poderia
ser desbaratada”.500
A repressão, por sua vez, dizia respeito ao combate violento contra as seitas
heréticas, sua perseguição pelas instituições da Igreja e do Estado. Para justificar a
intervenção violenta contra os heréticos, nomeadamente, contra os albigenses, em 1199,
o papa Inocêncio III equiparou a heresia à traição, abrindo as portas para sua condenação
pelos poderes seculares. Diante do aparente fracasso dos primeiros pregadores
cistercianos enviados ao Languedoc (e em resposta ao assassinato do legado papal Pedro
de Castelnau enviado à região), o papa convocou, em 1208, a Cruzada contra os
albigenses. A convocação de uma Cruzada era um mecanismo jurídico-religioso para
estimular o engajamento de senhores feudais em uma causa, a princípio, religiosa, o
combate aos inimigos da Igreja. Aos nobres, vale dizer, interessava também a
possibilidade de conquista de novas terras, expropriadas aos hereges e seus apoiadores.
Foi também essa a razão para a eventual intervenção do rei de França Felipe Augusto
(Filipe II) (1165-1223) e, depois, Luís VIII (1187-1226), em uma manobra que decidiu a
guerra contra os hereges albigenses.501
499
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 57-64.
500
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 64.
501
Segundo Richards, a Cruzada quebrou a resistência dos cátaros do Sul da França. René Nelli produziu
uma narrativa detalhada dos movimentos da guerra empreendida pela Igreja, pela nobreza feudal francesa
225
e, depois, pelo Rei de França contra os albigenses e seus apoiadores na nobreza do Languedoc, que incluía
o poderoso Conde de Toulouse. O historiador mostra que a monarquia francesa entrou decisivamente na
guerra em junho de 1219 (ou seja, após onze anos de Cruzada), em uma ocasião de fragilidade dos exércitos
católicos, com a morte de sua principal liderança Simão de Montfort, 5º conde de Leicester (c. 1160/5 -
1218), um nobre franco-normando. Nelli mostra que, às vésperas da intervenção régia, a vitória dos
albigenses e de seus protetores, os condes de Toulouse, parecia assegurada. Nesse cenário desolador para
o esforço de guerra católico e francês, as tropas régias farão uma campanha avassaladora entre 1224 e 1226,
estabelecendo, em definitivo, a soberania da Coroa de França sobre a Provença e o Languedoc - de modo
que não é errôneo interpretar a Cruzada Albigense como um episódio nas lutas de consolidação do Estado
moderno em França. RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 65. NELLI, René. Os cátaros. Trad. Isabel
Saint-Aubyn. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 29-30.
502
NOVINSKY. A Inquisição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, p. 17.
503
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 66.
226
504
“Estas acusações foram imputadas tão logo surgiu a heresia no Ocidente medieval. As crenças de um
grupo de respeitáveis cônegos de Orléans, queimados por heresia em 1022, eram inteiramente coerentes
com o movimento por uma maior espiritualidade. Eles rejeitavam as cerimônias e sacramentos da Igreja e
ressaltavam o ascetismo pessoal e o misticismo. Mas os cronistas contemporâneos fizeram as acusações de
praxe contra eles. O monge Paulo de St. Père de Chartres acusou-os de patrocinar encontros em que tinham
lugar orgias sexuais indiscriminadas, e as crianças nascidas destas uniões eram mortas e queimadas.
Entretanto, este relato parece ser plagiado das descrições do antigo escritor cristão Justiniano, o Mártir a
respeito das calúnias que os propagandistas pagãos lançavam contra os cristãos”. RICHARDS. Sexo, desvio
e danação, p. 67-8.
505
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 66-8.
227
talvez ainda mais perigosa à ortodoxia religiosa e moral. Ao ser associada a práticas
religiosas dissidentes, imaginárias ou não, como rituais satânicos, orgias e relações
zoofílicas (lembrando que o pecado da bestialidade era categorizado como uma espécie
de pecado da luxúria contra a natura), a sodomia se articulava ao território do medo,
presente na cultura dirigente letrada nos séculos entre o fim da Idade Média e a Primeira
Época Moderna, de satã e de seus agentes, vários dos quais, como o muçulmano e o judeu,
já vinham sendo associados ao pecado de Sodoma, como temos acompanhado.506 A
campanha de satanização dos grupos heréticos movida pela Igreja foi exatamente essa
correia de transmissão entre as duas categorias, de sodomia e de heresia, operada por
várias instituições do campo religioso, sobretudo, no Império português a partir de
meados do século XVI, a Inquisição.
506
DELUMEAU. História do medo no ocidente, p. 354-385; 397-413; 414-461.
228
Assim, três possibilidades são postas pelo texto para a etimologia da categoria.
Em primeiro lugar, heresia teria a ver com eleição, do verbo latino eligo, no sentido de
escolher. Heresia seria uma eleição, e herético, o eleitor (electivus, haereticus). O herege,
assim, seria o que escolhe uma doutrina, falsa. Em segundo lugar, heresia derivaria do
verbo “aderir”, o herético seria o que adere, haereticus ou adhaesivus, o que adere a uma
falsa doutrina. Em terceiro lugar, heresia viria do verbo erciscor, um sinônimo de dividir.
Herético seria o ercissivus ou divisus, o que se subtrai à vida comum dos cristãos,
separando-se. Desse modo, a categoria de heresia envolveria três ações: de eleição de uma
doutrina falsa, adesão a ela e separação da cristandade ortodoxa.507
Assim, a heresia teria consequências muito para além do que hoje entendemos
como o domínio da fé. Na medida em que a religião conformava todas as esferas de
existência na Idade Média e no início da Modernidade, antes das rupturas dos séculos
XVIII e XIX, é razoável admitir que os contemporâneos não limitassem os efeitos de uma
atitude grave, como a adesão herética, a uma face singular de suas existências; bem ao
contrário, a heresia deveria ter, necessariamente, impactos sociais, coletivos, totais para
507
EYMERICH, Nicolau; LA PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. Trad. Maria José Lopes da
Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1993, p. 31-2.
Anita Novinsky apresenta um conceito similar para a categoria heresia. Segundo ela, a palavra herege vem
do grego haieresis e do latim haeresis, significando doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em
matéria de fé. O grego hairetikis quereria dizer "o que escolhe", daí havendo, na definição de heresia,
fundamentalmente, uma dimensão de escolha, eleição. "No que diz respeito propriamente ao conceito de
heresia, foi aceita a definição do teólogo medievalista M. D. Chenu, de que herege é ‘o que escolheu’, o
que isolou de uma verdade global uma verdade parcial, e em seguida se obstinou na escolha". NOVINSKY.
A Inquisição, p. 10-1.
508
EYMERICH; LA PEÑA. Manual dos Inquisidores, p. 32.
229
509
EYMERICH; LA PEÑA. Manual dos Inquisidores, p. 32-34.
510
"Juridicamente, a noção de erro e heresia tem o mesmo sentido? O conceito de erro é mais amplo, pois,
se toda heresia é um erro, nem todo erro é herético. E se todo herege está errado, nem todos aqueles que
cometem erro são necessariamente hereges. Mas, no domínio da fé, heresia e erro são absolutamente
sinônimos". EYMERICH; LA PEÑA. Manual dos Inquisidores, p. 35.
230
511
FRANCO JR. Hilário. Catarismo, uma manifestação utópica medieval. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro,
v. 19, n. 38, p. 6-34, mai./ago. 2018, p. 26.
231
512
MONTER, E. William. La sodomie à l'époque moderne en Suisse romande. Annales. Economies,
societés, civilisations. Ano 29º, n. 4, 1974, p. 1023-1033.
513
Para uma interessante história dos movimentos gnósticos e maniqueístas antigos, destacando suas
concepções de corpo, sexo, família e sociedade, ver BROWN. Corpo e sociedade, p. 95-109; 111-2; 144;
169-175.
514
FRANCO JR. Catarismo, uma manifestação utópica medieval, p. 14.
515
BOSWELL. Christianity, Social Tolerance and Homosexuality, p. 284.
516
CROMPTOM. Homosexuality & Civilization, p. 190; RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 71-2.
232
A associação entre sodomia e heresia foi além do catarismo. Ela o antecedeu, foi
por ele marcada e permaneceu ainda mais forte após a derrota dos albigenses no século
XIII. Richards nos conta que o abade Guiberto de Nogent (1055-1124) foi o primeiro a
associar sodomia e heresia em acusações contra dissidentes da fé. O abade visava à
condenação dos irmãos Clémente e Evrard, dois reformadores de verve anticlerical,
incultos, mas praticantes de um ascetismo radical, que os levava a pregar uma rejeição
total ao casamento e à procriação, além do batismo das crianças e do papel do clero como
intermediário do sagrado. Na sua acusação, o abade incluiu os relatos comuns que
produziam o elo entre os acusados e o satanismo, acrescentando, agora, acusações de
práticas sodomíticas e/ou homoeróticas.517 O heresiarca francês Henrique de Lausanne (†
1148) também foi acusado de manter tratos homoeróticos com seus seguidores, no caso,
especificamente garotos adolescentes (revivendo, como bônus, o antigo estigma do
amante homoerótico como assediador e corruptor de crianças e menores, uma acusação,
que o cristianismo emprega desde as epístolas de S. Paulo).518 Mais tarde, em 1240, o
leigo Jorge de Florença acusou os cátaros locais, em seu texto Disputa entre um católico
e um herege paterino, de serem mais inclinados ao vício sodomítico ou à cópula com
homens (diga-se de passagem, mais um sinal de como o homoerotismo e a sodomia foram
se mesclando e tornando-se cada vez mais indistintos nos discursos normativos à medida
que prosseguia a Idade Média).519 No século XIV, as mesmas acusações de dissidência
sexual foram levantadas contra os novos grupos heréticos, como os adeptos do Espírito
Livre, as irmãs beguinas, os amalricianos e os Irmãos Apostólicos, ou os Pseudo-
Apóstolos.520
517
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 68.
518
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 69.
519
RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 70.
520
“No século XIV, os adeptos do movimento do Espírito Livre, baseado em grupos beguinas-beguinos,
foram acusados de libertinagem por causa de sua crença na ausência de pecado potencial. Todas as
confissões remanescentes de adeptos do Espírito Livre incluíam o reconhecimento da liberdade de praticar
o sexo promíscua, incestuosa e sodomiticamente. A seita de João de Brunn, por exemplo, argumentava que
a liberdade de espírito permitia ao adepto ficar isento de todas as leis morais. Em matéria de sexo, eles
podiam satisfazer seu desejo com mulheres, desfrutar relações homossexuais [sic] e afogar impunemente
qualquer criança concebida ilicitamente” (Grifos meus). RICHARDS. Sexo, desvio e danação, p. 71.
233
Em seu texto, a autora abordou o viés teológico como uma de três vias para
explicar o problema do conhecimento da Inquisição aragonesa sobre o pecado/crime de
sodomia. As outras duas vias investigadas por Molina foram o contexto político e jurídico
específico que desembocou na intervenção inquisitorial em casos de sodomia no reino de
Aragão e a prática jurídica cotidiana dos inquisidores. 522 O que a historiadora considera
como "condições teológicas para a mútua identificação"523 pode ser entendido também
como uma parte do jogo enunciativo que regeu a assimilação das categorias de sodomia
e heresia nos discursos da carne cristã. Uma parte, porque diz respeito a enunciados que
modelam a noção de heresia, sendo outra parte aqueles, já estudados no capítulo 1, que
deram forma à de sodomia.
521
MOLINA, Fernanda. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas
y práxis inquisitorial. Hispania Sacra, LXII, 126, jul.- dez. 2010, p. 539-562.
522
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 542-4; 558-562.
523
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 544.
234
524
É importante notar que, como explica Molina, o "complexo idólatra" foi uma tradição discursiva mais
antiga que a Patrística, tendo sido apropriada pelos Padres da Igreja a partir da literatura imperial romana
anticristã dos primeiros séculos. MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna.
Consideraciones teológicas y práxis inquisitorial, p. 545-7.
235
525
DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 354-385.
526
BETHENCOURT. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século
XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 171-200.
527
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 194.
528
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 547-556. Para aprofundamento sobre esses traços do crime de bruxaria ou feitiçaria e a
236
forma de sua presença e disseminação, maior ou menor, em práticas populares ver, para Portugal,
BETHENCOURT. O imaginário da magia, p. 131-200, para a Itália ou a Europa, em geral, GINZBURG,
Carlo. Os andarilhos do bem. Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. Trad. Jonatas Batista
Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; GINZBURG, Carlo. História noturna. Decifrando o sabá.
Trad. Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.
529
TORQUEMADA, María Jesús. Homosexualidad feminina y masculina en relación con el delito de
sortilegios. eHumanista: Journal of Iberian Studies, vol. 26, 2014, p. 87-116.
237
Por fim, cabe relembrar, com Bethencourt, que as construções eruditas acerca da
bruxaria, bem como as práticas populares mágico-religiosas, tinham uma relação
profunda com as concepções acerca do erotismo nos vários estratos culturais das
sociedades europeias e coloniais no Período Moderno. Do ponto de vista da cultura cristã
530
TORQUEMADA. Homosexualidad femenina y masculina en relación con el delito de sortilegios, p. 89-
98. Para a confluência das figuras da feiticeira, da prostituta e da alcoviteira no mundo português e a relação
dessas com a sodomia praticada entre mulheres, ver BELLINI. A coisa obscura, p. 51-70; ROCHA.
Masculinidades e Inquisição, p. 189-235.
531
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 556.
238
[…] Com tristeza, nós descobrimos, e o mero pensar disto comprime nossa
alma com angústia, que há muitos cristãos apenas em nome; muitos que se
desviam da luz que uma vez fora deles e permitem que suas mentes sejam
enevoadas pela escuridão do erro, como que formando uma liga com a morte
e um compacto com o inferno. Eles sacrificam aos demônios e adoram-nos,
eles fazem ou causam a ser feitas imagens, anéis, espelhos, frascos ou algumas
outras coisas nas quais, pela arte da magia, espíritos malignos são encerrados.
Destes, eles buscam e recebem respostas e pedem ajuda na satisfação de seus
desejos malignos. Para um propósito imundo, eles submetem-se à mais ignóbil
escravidão. Ai de mim! Essa doença mortífera está crescendo mais que o usual
no mundo e infligindo maiores e maiores devastações no rebanho de Cristo.
532
BETHENCOURT. O imaginário da magia, p. 199-200.
533
Molina data a bula de 1320, todavia, o restante da historiografia concorda com a datação sendo 1326-7.
É provável que a autora esteja se referindo à Consulta feita pelo papa João XXII a dez teólogos sobre a
possibilidade de qualificar como heresia as práticas mágicas e de invocação demoníaca. Essa consulta
serviu de base para a bula Super illius specula, que é posterior. MOLINA. La herejización de la sodomía
en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis inquisitorial, p. 556; PEREIRA, Rita de Cássia
Mendes. Práticas de magia e personagens mágicas nas fontes eclesiásticas do Ocidente medieval. In:
Politeia: história e sociologia, Vitória da Conquista, v. 1, n. 1, p. 69-87, 2001, p. 82; BOUREAU, Alain.
O Satã herético. O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Trad. Igor Salomão
Teixeira. Rev. téc. Néri de Barros Almeida. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2016, p. 25; 28-9.
534
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 556-9.
239
Seção I: Uma vez que, portanto, nós estamos submetidos pelo dever de nosso
ofício pastoral a trazer de volta ao abraço de Cristo a ovelha que está vagando
por caminhos desviados e a excluir do rebanho do Senhor aquelas doentias,
para que eles não devam infectar as restantes, Nós, por esse édito, o qual, em
conformidade com o conselho de nossos irmãos bispos, deve permanecer em
vigor perpétuo, advertimos a todos e, em virtude de santa obediência e sob
pena de anátema, ordenamos a todos que foram regenerados nas águas do
batismo a não inculcar ou estudar qualquer dos ensinamentos perseverantes
que nós mencionamos ou, o que deve ser mais condenável, praticá-los em
qualquer maneira sobre qualquer um.
Seção II: E porque é justo que aqueles que, por seus atos, zombam do Altíssimo
devam deparar-se com punições dignas de suas transgressões, nós
pronunciamos a sentença de excomunhão que é nossa, a qual eles deverão ipso
facto incorrer, quem presuma agir em contrário aos nossos avisos e comandos
salutares. E nós firmemente decretamos que, em adição às penalidades acima,
um processo deverá começar ante juízes competentes para a imposição de
todas e cada uma das penalidades a que os heréticos estão sujeitos de acordo
com a lei, exceto pelo confisco de bens […]. (Grifos nossos).535
O texto da Bula trazia, pois, uma importante inovação no meio jurídico do fim da
Idade Média e início da Modernidade, algo que Boureau chamou de a revolução doutrinal
do papa João XXII, a saber, apresentar atos e fatos como heréticos. Tratava-se de uma
ruptura com a tradição até então prevalente na jurisdição canônica de apresentar a heresia
somente como opinião ou crença.536 A citação começa com a descrição dos atos que estão
sendo normatizados na nova legislação, citando a confecção e o uso de imagens, anéis,
espelhos, frascos e outros materiais para, por meio de artes mágicas, neles encerrar
espíritos malignos. Nessa descrição, duas características atribuídas às práticas mágicas
devem ser notadas, porque são o que permitem o passo posterior da identificação aí de
um fato herético. Quais são essas características? Uma, é a percepção dessas práticas
como "erros"; outra, é a conexão direta e pactual com o demônio. A magia passa a ser
juridicamente entendida como adoração a Satã.
535
Tradução para o português de minha autoria, a partir da versão em inglês realizada por James J. Walsh
em seu artigo Traditional versus documentary history, publicado originalmente em 1907. WALSH, James
J. Traditional versus documentary history. The Messenger, vol. XI, 7th series, p. 169, 1907. Disponível em:
http://antiquecannabisbook.com/chap2B/Church/JohnXXII.htm. Último acesso em out.2020.
536
BOUREAU. O Satã herético, p. 40.
240
Forjava-se, neste trecho, a operação de assimilação de um tipo de ato ao delito, até então
limitado ao universo da crença, de heresia. Um passo fundamental para a posterior
assimilação da sodomia ao universo herético.
537
BOUREAU. O Satã herético, p. 42.
538
BOUREAU. O Satã herético, p. 40-2.
241
construídas em torno desses mesmos fatos, tipificando uma variedade graduada de delitos
ligados à transgressão fundamental da heresia (que pode, assim, permanecer no registro
binário da crença e da descrença no erro de fé) e a sustentam, modelando-a. Passava a ser
uma tarefa do direito dos fatos, positivo, a partir do final da Idade Média e,
principalmente, da Modernidade, operar a conversão dos fatos circunstanciais e suspeitos
em fatos heréticos. Trata-se da construção da culpa de heresia a partir de um conjunto de
provas fundado em fatos, em atos reunidos em um discurso jurídico, o inquérito. A
manifestação da heresia passa a ser percebida como um ato, designado pelo verbo
"hereticar".539
539
BOUREAU. O Satã herético, p. 43-5.
540
PEREIRA. Práticas de magia e personagens mágicas nas fontes eclesiásticas do Ocidente medieval, p.
82-3.
541
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 557.
242
542
Tradução de minha autoria, na versão original: "En este sentido, el sodomita, aun cuando no manifestara
abiertamente una proposición errónea, sus mismos actos delataban sus opiniones, en este caso, vinculadas
a la creación y al orden divino. Por otra parte, dado que actuaban en secreto –a causa de la amenaza atenta
del brazo secular– era difícil poder identificarlos, por lo que determinados actos –como el amaneramiento,
la soltería, la amistad profunda con otro hombre, entre otras– podían actuar también como pruebas
suficientes para transformarlos en «sospechosos», una de las nociones centrales de la Super Illius Specula.
Por ora parte, la frecuencia en la perpetración del delito –la repetición del acto– podía convertirlos en
sospechosos simples, vehementes o muy vehementes, parangonando la misma gradación que la herejía
propositiva". MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas
y práxis inquisitorial, p. 557-8.
243
543
VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?. In: VAINFAS,
Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (Orgs.). A Inquisição em xeque. Temas, controvérsias, estudos
de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ: 2006, p. 267-280.
544
VAINFAS. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?, p. 267-271; VAINFAS.
Trópico dos pecados, p. 247-257.
545
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 241-2.
245
doutrinal católico. Essa prática judiciária, mas que decorria de escolhas políticas, tanto
no nível institucional, como no pastoral – isto é, do emprego das técnicas de
individualização –, respondia ao interesse da Inquisição em regular, controlar e reprimir
o que Vainfas chamou de "hereges morais", que ameaçavam "a pureza da fé e a própria
Igreja".546
546
VAINFAS. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?, p. 272-4; VAINFAS.
Trópico dos pecados, p. 242.
547
O artigo em questão foi inicialmente apresentado pelo autor como uma comunicação oral no XXIII
Seminário Nacional da ANPUH, realizado na Paraíba em 2003. Mais tarde, em 2006, foi publicado pelo
autor na coletânea A Inquisição em xeque. Recentemente, foi republicada (com pouquíssimas alterações de
redação, além de pequeno acréscimo ao título, que passou a ser Sodomia não é heresia: dissidência moral
e contracultura revolucionária), na coletânea, que veio à luz em 2017, organizada por Angelo Adriano
Faria de Assis, Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz e Yllan de Mattos, como homenagem a Ronaldo
Vainfas. Uma vez que não há diferenças entre as publicações de 2006 e de 2017, usarei, aqui, de preferência
a primeira: MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura. In: VAINFAS,
Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana. (Orgs.). A Inquisição em xeque. Temas, controvérsias, estudos
de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ: 2006, p. 253-266; MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral
e contracultura revolucionária. In: ASSIS, Angelo Adriano Faria de; MUNIZ, Pollyanna Gouveia
Mendonça; MATTOS, Yllan de. (Orgs.). Um historiador por seus pares. Trajetórias de Ronaldo Vainfas.
São Paulo: Alameda, 2017, p. 91-108.
548
MOTT. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura, p. 261.
246
antropólogo cita diversas fontes em que as duas categorias são distinguidas uma da
outra.549
549
MOTT. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura, p. 260-1.
550
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1456-7, 1474-5
551
HALICZER, Stephen. Inquisition and society in the Kingdom of Valencia, 1478-1834. Berkeley, CA.:
University of California Press, 1990, p. 302-5.
247
552
MOTT. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura, p. 263-4.
553
"[…] naõ se lhe pode negar o / fauor que se concede a hum herege que cometteo tanto / mayor delicto
quanto he mayor de todos o crime da / herezia […]".DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
4142, fl. 123 v.
554
VAINFAS. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?, p. 278; GOMES. Atos
nefandos, p. 97-8.
555
"O Reo tem confessado todas as que cometteo no peccado / nefando, e per rezão de sua confissaõ e de
estar ver / dadeiro penitente e arrependido mereçe perdaõ de / suas culpas, como breuemente se mostra
pelas Rezoẽs / seguintes. Suppondo antes de tudo que no crime da / Sodomia conforme aos breues
apostolicos e prouizoẽs / do senhor Cardeal Iffante se pode proçeder ou como se / costuma no crime da
Herezia ou conforme às Leys ciujs / ou finalmente como parecer mais conueniente". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 4142, fl. 163 f.
248
O trecho destacado evidencia como as relações entre sodomia e heresia não podem
ser vistas como uma questão fechada para os sujeitos que por elas se subjetivavam. A
defesa do réu não só aceitava o arbítrio dos juízes inquisitoriais, como alinhou distintos
argumentos para garantir o melhor encaminhamento possível do processo caso o Santo
Ofício adotasse a via de assimilação da sodomia à heresia ou seguissem as leis civis, isto
é, as Ordenações do Reino. A possibilidade de uma decisão ao arbítrio dos juízes,
conforme a conveniência de processo, se fez presente na ata que registra as suas
considerações a respeito da sentença e da pena a ser imposta ao cônego Vicente de
Nogueira. Dos oito juízes reunidos, todos concordaram que o réu deveria ouvir sua
sentença na sala do Tribunal do Santo Ofício em auto da fé privado, as discordâncias
apareceram a respeito de quais penas em particular deveriam ser acrescentadas. É nessa
discussão que encontramos os argumentos que aproximam ou distanciam a sodomia do
campo jurídico-conceitual da heresia.
Do conjunto de juízes, a opinião que viria a prevalecer, pois viria a ser ratificada
pelo Conselho Geral, foi a do inquisidor dr. Osório de Castro, o qual defendeu que o réu
fosse condenado a degredo perpétuo para a Ilha do Príncipe, sofresse confisco de todos
os seus bens e incorresse em suspensão de seus ofícios e benefícios. Interessa-nos,
sobretudo, as razões apresentadas pelo inquisidor para justificar sua posição:
E ao inquisidor Dr. Osório de Castro pareceu que, vista a perseverança do Réu
no pecado nefando, que incluía 27 anos, como se mostra de suas confissões e
prova da Justiça, e a grande devassidão e facilidade com que em todo lugar e
parte o cometera, e ser ainda maior a frequência dos atos, quando a idade
prometia ter mais alguma moderação, e conforme aos Breves e Provisão do
Cardeal Rei ser a pena deste delito arbitrária neste tribunal contra os
convictos e confessos, como se mostra das cláusulas dos ditos breves, e poder
este arbítrio chegar até pena ordinária – contudo, ordenava da relaxação
havendo respeito ao que em semelhantes casos se assentou no Conselho geral
por se terem os Réus apresentado voluntariamente […].556 (Grifos nossos).
A opinião do inquisidor era bastante clara, o Santo Ofício podia decidir conforme
o seu arbítrio as penas que em direito deveriam ser atribuídas ao sodomita condenado. O
que significava esse arbítrio do tribunal? Ele incluía as características particulares do
processo (no caso, o réu poder ser categorizado como devasso, convicto e confesso no
556
"E ao Jnquisidor Dro OSorio / de Castro pareceo que vista a perseueranca do Reo / no pecado nefando
que inclua - 27 - annos Como / Se mostra de Suas Confisoẽs e prouva da Justiça / E a grande deuasidam e
facilidade cõ que en / todo lugar e parte o Cometera e ser ainda mor [mancha] / a frequencia dos actos
quando a Jdade pro / metia ter mais alguã moderacaõ, e Conforme o / aos breues e porviZaõ do Cardeal
Rey Ser a pena // deste delito arbritaria neste tribunal Contra / os conuictos aut Confessos Como Se mostra
das / Clausulas dos ditos breues e poder este arbitrio / Chegar ate pena ordinaria - Contudo ordena / ua da
relaxacaõ auẽdo respeito ao que ẽ Se / melhantes casos Se aSsentou no Conselho geral por Se / terẽ os RR
[réus] apresentado uoluntariamente […]".DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 4142, fl. 163.
249
crime de sodomia), as legislações que poderiam ou não ser aplicadas ao caso (os breves,
provisões e ordenações do reino, variamente) e a jurisprudência vinculada pelo Conselho
Geral (isto é, como costumava o Conselho proceder em casos similares). O deputado
Diogo de Brito usou de argumentação parecida, até mesmo concordando com as penas
adiantadas pelo inquisidor Osório de Castro, para expressar sua opinião, que chegou a
situar a sodomia do cônego em paralelo ao crime de heresia. Vejamos:
[…] E ao deputado Diogo de Brito pareceu que, neste caso, por ser o Réu
clérigo isento de jurisdição secular, fica o juízo eclesiástico, que é o da
Inquisição, pelo Breve de Gregório XIII e Carta do Cardeal Rei, também isento
da ordenação sobredita, que dá impunidade às quantas partes confessam o tal
crime, e isto pela regra geral que as leis seculares não têm lugar no foro
eclesiástico, ao que não obstava dizer o dito Breve que poderão os tais juízes
eclesiásticos proceder conforme as leis seculares e municipais, sem fazer
distinção entre seculares e eclesiásticos, até pena de relaxação, por seu
arbítrio, porque, como esta cláusula de poderem usar de tais leis foi em
aumento da jurisdição eclesiástica, neste caso não deve obrar diminuição,
como seria necessitarem os juízes haverem de guardar a ordenação, dando
impunidade – e quem suspeito disso e quem houve circunstâncias que
mereceram ser preso o réu, posto que tivesse confessado sem a tal tempo estar
delato, pelas considerações de não vir confessar espontaneamente e ser tão
depravado e devasso no pecado nefando – é de parecer, quanto à pena que
merece, do inquisidor dr. Osório de Castro (exceto que não tenha o degredo e
seja recluso perpetuamente no cárcere da penitência) – e que não vem em pena
ordinária, atento à segunda confissão do Réu ser posta antes da publicação da
prova da Justiça e não estar ao tal tempo delato com elas e somente estar preso
um seu criado e algumas [testemunhas] terem dito do Réu antes dele confessar
delas, que o caso que consideram os mais doutores para não haver lugar a pena
de relapso no crime de heresia […].557 (Grifos nossos).
557
"[…] E ao deputado Diogo de / brito pareceu que neste Caso por Ser o Réu cle / rigo iZento de Jurisdicã
Secular fica // o JuiZo eclesiastico que he o da Jnquisicam pelo breue de / gregório 13 e Carta do Cardeal
Rei tambẽ iZento / da ordenacaõ Sobredita que da impunidade aos quantos / as parte confesã o tal Crime e
isto pela regra /geral que as leis seculares não tẽ lugar no foro ecle / siastico ao que naõ obstauao diZer o
dito bre / ue que poderã os tais JuiZes ECLesiasticos pro / ceder Conforme as leis Seculares e Municipães
/ Sem FaZer distincaõ entre Seculares e ecle / siasticos atee pena de relaxacaõ por Seo ar / Britio porque
Como esta Clausula de poderẽ / uZar das taes Leis foi ẽ aumento da Juris / dicaõ eclesiastica neste Caso
não deue / obrar diminuicaõ Como Seria necessitar / aos JuiZes auerẽ de guardar a ordenacaõ / dando
impunidade - e quem Suspeito isto e quem / ouue Sircũstancias que merecerã o Ser preSo / o Reo posto que
tiuese Confessado Sẽ ao tal tempo / estar delato pelas consideracoẽs de naõ uir / Confessar espontaneamente
e Ser tã depraua / do e deuaso no pecado nefando - he d e / parecer quanto a pena que merece do Jnquisidor
dro / Osorio de Castro (excepto que naõ tenha o de / degredo E Seya recluso perpetuamente no / Carsere da
penitência - e que não uẽ ẽ pena / ordinaria attento a Segunda Confisã do Réu. // do Réu Ser posta antes da
publicaõ da proua da Justiça / e não estar ao tal tempo delato Com ellas e somente / estar preZo hũ Seu
Criado e alguãs terẽ dito / do Réu antes delle Confessar dellas que o Caso / que Considerã os mais dos
doutores para naõ / auer lugar a pena de relapsio no Crime de / heresia […]". DGA/TT – Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 4142, fl. 165.
250
558
MOLINA, Fernanda. Entre pecado y delito: la administración de la justícia y los límites documentales
para el estudio de la sodomía en el Virreinato del Perú (siglos XVI-XVII). In: Allpanchis, Lima, Peru, ano
XXXIX, n. 71, primeiro semestre 2008, p. 141-186.
559
CARRASCO, Rafael. Inquisición y represión sexual en Valencia. Historia de los sodomitas (1565-
1785). Barcelona: Editorial Laertes, 1985, p. 41.
560
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 257-269.
561
MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna. Consideraciones teológicas y práxis
inquisitorial, p. 558.
251
Ilustríssimo senhor,
Muitas vezes não alcança o bom zelo dos prelados ao que convém ao remédio
de suas ovelhas, tanto por lhe encobrir as aparências exteriores de algumas,
como [pelo] pouco conhecimento delas: este é bem que Vossa Senhoria preze
ter mui particularmente dos curas para, conforme os costumes e procedimentos
deles, tenham de Vossa Senhoria o castigo de suas culpas e o prêmio de suas
virtudes, advertindo o dano que o mau exemplo dalgum pode causar, havendo
na sua freguesia muita gente estrangeira, em quem, por nossos pecados, a fé
está tão diminuída. Como de presente há na de São Paulo, onde moram
ingleses, flamengos, castelhanos e portugueses, os quais dizem que não se deve
estranhar fazer a punheta e usar do pecado da molície, pois o cura da mesma
freguesia de São Paulo Bartolomeu de Góis, fazendo-a e cometendo a tantos,
como aqui vão apontados, lhe não fazem nada, tomando de tão grande mal,
ocasião de presumirem que não é pecado. Pelo que, movido como cristão do
zelo da fé e súdito de Vossa Senhoria, me pareceu necessário fazer-lhe esta
lembrança, pondo-o em matéria de consciência, se mande informar do dito cura
de São Paulo por estes apontamentos, perguntando com segredo as pessoas
abaixo nomeadas.564
562
GOMES. Atos nefandos, p. 95-8.
563
Cabe relembrar que, na mesma conjuntura da década de 1620, Vainfas identificou, na visitação do Santo
Ofício à Bahia, liderada pelo visitador Marcos Teixeira, um objetivo político de controle da comunidade
judaica-holandesa que interligava Brasil, Portugal e Holanda: "Animou-a também a suspeita de contatos
entre os cristãos-novos do trópico e os judeus da Holanda, quando não os próprios hereges calvinistas".
Tratava-se do temor de uma conspiração judaico-flamenga (e, por que não, também calvinista, ou seja,
herética) contra o Santo Ofício e a dominação colonial da Coroa portuguesa sobre o Brasil. VAINFAS.
Trópico dos pecados, p. 296.
564
"Illustríssimo senhor / Muitas ueSes não alquança o bom zello dos prelados ao que conuem ao remedio
/ de suas ouelhos, tanto por lho em cubrir as apparencias exteriores de alguãs / como o pouquo conheçimento
dellas: este he bem que Vossa senhoria preze ter mui par= / ticular mente dos curas para conforme aos
custumes, e procedimentos delles / tenhaõ de Vossa senhoria o castigo de suas culpas e o premio de suas
uirtudes aduir / tindo o damno que o mao exemplo dalgũ pode CauSar auendo na Sua freguesia muita /
gente estrangeira em quem per nossos peccados a fee esta táo deminuida / como sois de preSente ha na de
Sáo paulo aonde moraõ IngreSes, framẽgos / castelhanos e portugueSes os quais dizem que náo se lhe deue
estranhar, faSer / a punheta e uSar do peccado da molicia pois o cura da meSma freguesia de Sáo / paulo
bertholomeu de goes faSendoa e cometendo a tantos como aqui uaõ, / apontados lhe náo faSem nada,
tomando de táo grande mal ocaSiaõ de preSumirẽ /que náo he peccado: pello que mouido como christaõ
do zello da fee, e subdito de / vossa senhoria me pareceo neceSsario faSerlhe esta lembrança pondolhe em
252
materia de / conciencia Se mande informar do dito cura de Sáo paulo por estes apontamẽtos / perguntando
com segredo as pessoas abaixo nomeadas". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl.
20f.
565
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (1977-1978).
Edição estabelecida por Michel Senellart, sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Trad.
Eduardo Brandão, revisão Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 155-180.
566
O historiador Hubert Jedin mostra que, durante a primeira metade do século XVI, nas décadas que
antecederam o Concílio de Trento, foi se sedimentando a percepção, entre diversos setores da Igreja, que
não somente uma reforma era necessária, mas que ela deveria ter como primado os deveres pastorais da
Igreja e de seus clérigos. A ênfase na dimensão pastoral refletiu-se em iniciativas de reformas pessoais dos
membros da Igreja, isto é, em mudanças nos sistemas de formação e de atuação dos clérigos, com maior
rigor ascético e formulação de novas formas de vida espiritual (por exemplo, as primeiras iniciativas de S.
Inácio de Loyola e do que viria a se tornar a Companhia de Jesus). O primado do ministério pastoral como
centro de gravidade de uma Igreja Católica reformada desdobrou-se na concepção do ideal do bispo pastor,
residente em sua diocese (o que valeria também para todos os clérigos com benefícios), inspirado por um
espírito apostólico e na correlata intensificação da problematização moral das práticas clericais. Segundo
Jedin, esses ideais inspiraram as elites eclesiásticas fortemente a partir de meados do século, consagrando-
se em Trento. Desde as décadas finais do XVI e ao longo dos séculos XVII e XVIII, os ventos da
Contrarreforma e da pastoral tridentina passaram a soprar nas terras do Império português, resultando em
lentas alterações na forma de organização da Igreja (no tocante à distribuição de benefícios em cabidos e
vigarias, aos deveres associados e esperados de cada cargo, às hierarquias e aos privilégios estamentais a
eles tradicionalmente associados) no reino e, particularmente, na colônia brasileira, onde o direito de
padroado régio, como lembra Aldair Rodrigues, diferenciava as instituições eclesiásticas coloniais das
metropolitanas desde o início da colonização. Em Portugal, exemplo importante da disseminação do ideal
reformista do sacerdote/bispo pastor de almas, fortalecido em Trento, foi a atuação de D. Frei Bartolomeu
dos Mártires à frente do arcebispado de Braga, como relata a historiadora Juliana Pereira. JEDIN, Hubert.
A history of the Council of Trent. Vol. I. The struggle for the Council. Trad. Dom Ernest Graf, O.S.B.
Edinburgh: Thomas Nelson and Sons Ltd., 1957, p. 410-455; RODRIGUES, Aldair Carlos. Poder
253
A petição afirma que o padre Bartolomeu de Góis, por meio de seu discurso e de
suas práticas homoeróticas, estaria difundindo a opinião (errônea, do ponto de vista da
doutrina cristã), de que praticar o pecado de molícies (tocamentos desonestos solitários
ou em conjunto com outrem, podendo ou não ter viés homoerótico, como vimos acima)
não era um delito pecaminoso. Atitude que, em qualquer circunstância, já seria perigosa,
revestiu-se de maior gravidade devido à autoridade do sacerdote em uma freguesia
habitada por pessoas desde já suspeitas de contatos com crenças heréticas, especialmente
os ingleses e os flamengos. Para os inquisidores, uma proposição como essa tinha um
certo olor herético, reforçado ainda mais por uma outra afirmativa supostamente proferida
pelo padre a respeito do sacramento da penitência. Ele teria dito "que se não havia de
confessar seus pecados mortais a clérigo, nem a frade",567 palavras que já o tinham levado
à mesa do Santo Ofício.
As blasfêmias proferidas pelo cura, em 1605, foram duas, uma mais genérica
contra a religião, outra direcionada ao sacramento da penitência:
1ª blasfêmia: "Como até agora fui pela Lei de Cristo ou ensinei a Lei de Cristo, assim
ensinarei a dos hereges e me passarei a ela, ainda que me queimem vivo, como aquele
frade que queimaram".570
2ª blasfêmia: "Tratando-se das confissões, que havia certos clérigos que nem pecados
veniais se lhes haviam de confessar. E que ele, os seus pecados, bem sabia a quem os
havia de confessar, mas que os seus mortais graves, esses que somente a Deus".571
568
" E Logo na mesma audiençia ap- / pareçeo sem ser chamado françisco / da Costa natural de Belem E
pagem / de Dom Nunes alurez Portugal E por / dizer que tinha de que se accusar nesta / Meza sendo presente
lhe foy dado Ju= / ramento dos Sanctos Euangelhos em / que pos Sua maõ, para em tudo dizer / Verdade E
ter segredo, E sob cargo delle / prometteo de aSsi fazer, E diSse ser de / ydade de dezaSeis para dezaSete
annos. / ---------- E diSse que auera tres meSes pouco / mais ou menos paSsando Elle Confitente / per
Alcantara foy a casa de Bertho= / lomeu de Gois prezo pello santo Offiçio, o / qual comẽtteo a Elle
Confitente para o / peccado de Molliçies pegando na natura / delle Confitente, E fazendo cõ que Elle /
Confitente pegaSse na Sua, e dizendo= / lhe Elle Confitente que naõ auia de fa= / Zer aquillo por que era
peccado, o dit / to // to Bertholomeu de Gois lhe diSse que naõ / era peccado, E que bem o podia fazer /
pello que persuadido Elle Confitente que / naõ era peccado como o ditto Clerigo / lhe diSse digo lhe dizia,
fez derramar / Semente cõ a maõ ao dito Clerigo, E / elle Confitente a derramou tambem / Entendendo que
nẽ em huã nem em / outra cousa peccaua; E porem loguo / depois Soube o contrario. E mais naõ / diSse E
ao costume nada". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 17v-18f.
569
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 22f.
570
"Como ate gora fui pela ley de xpó ou ensiney / a ley de xpó, assi enSinarei a dos hereges e me / passarei
a ella ainda que me queimem / Viuo como aquelle frade que o queimaraõ". DGA/TT – Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 01312, fl. 37v.
571
"tratandoSse das confissois que auia certos clerigos / que nẽ peccados ueniais Selhe auiaõ de confessar,
E que elle / os Seus peccados bem Sabia, a quẽ os auia de Confessar, mas / que os Seus mortaes graues
Esses que Somente a Deos". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 33f.
255
Foram vistos na mesa do Santo Ofício, aos 12 de fevereiro de 1621, estes autos
e culpas de Bartolomeu de Góis, sacerdote, neles conteúdo. E pareceu a todos
os votos (tirando o inquisidor Dom Manoel Pereira e os deputados Francisco
de Brito de Menezes e Diogo da Silva) que a prova da Justiça era bastante para
o Réu se haver por convicto no crime abominável de sodomia, visto o número
das testemunhas, ajudadas da infâmia pública que o Réu tinha nesta matéria. E
que como tal seja relaxado a cúria secular senratis senrandis. E que incorreu
em confiscação de todos os seus bens aplicados a quem pertencerem. E nas
mais penas em direito e leis do reino contra os semelhantes estabelecidas. E
aos ditos inquisidores Manoel Pereira e os deputados Francisco de Brito e
senhor João, pareceu que a prova da Justiça não era bastante para a pena
ordinária, visto não serem as testemunhas de atos consumados mais que cinco,
e todas cúmplices e, assim, defeituosas, número que, conforme ao estilo do
Santo Ofício, sem concorrerem outras qualidades e circunstâncias, nunca foi
bastante para relaxação. E outrossim, visto como as pessoas que nos autos [de
fé] atrás foram relaxadas, o foram por convictas e confessas, o que não há lugar
neste Réu, maiormente sendo sacerdote. E, porém, que antes doutro despacho,
será posto a tormento e tenha tudo o que puder levar esperto a arbítrio dos
inquisidores, juízo do médico e cirurgião. E que satisfeito a isto, se torne a ver
em Mesa esse processo, para se despachar em final. E a todos, que vá ao
Conselho, conforme ao regimento. E assistiu pelo Ordinário, com sua
572
"[…] porque quando as disse estaua fora de mῖ, cego / de collera, nem me lembraraõ quamdo as disse
Senaõ quamdo me / diSseraõ auellas ditas, do que muito me arrependi e me cõfeçei logo, pois / não foi
Senaõ pronunçiaçaõ de limgoa, mas não comSentimento / de uontade nem de coraçaõ". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 41v.
573
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 41v-43f.
256
A primeira observação a ser feita é que os juízes não chegaram a uma decisão
unânime sobre a pena a ser aplicada. O dissenso entre inquisidores e deputados abriu um
espaço (estreito) para argumentação a respeito da divergência, o que nos permite
perceber, em uma leitura a contrapelo, o que pode ter baseado a opinião dos juízes mais
severos, a qual terminaria por ser ratificada pelo Conselho Geral. Para a corrente mais
rigorosa presente no julgamento, o réu pode ser considerado convicto no crime
abominável da sodomia, por dois conjuntos de razões: 1) o número de testemunhas; 2) a
infâmia pública do Réu na matéria, isto é, ele era publicamente visto como sodomita (com
todos os sentidos da categoria que viemos explorando neste capítulo). A dita "infâmia
pública do Réu" incluía todos os crimes associados a ele, suas blasfêmias, suas
proposições com sentido mais ou menos leve de heresia e todas suas práticas
homoeróticas (sodomíticas ou não).
Por outro lado, para a corrente que pode ser, a princípio, dita mais leniente dos
juízes (composta pelo inquisidor Dom Manoel Pereira e pelos deputados Francisco de
Brito Menezes e Diogo da Silva), o caso do padre Bartolomeu de Góis não poderia ser
considerado merecedor da pena ordinária. Os três juízes basearam-se na jurisprudência
do Santo Ofício para chegar a essa decisão, alegando não ser conforme "ao estilo do Santo
Ofício" sentenciar um réu à pena ordinária nas condições postas pelo processo. Vemos
em funcionamento aqui, novamente, o arbítrio inquisitorial na dosimetria da pena de
suspeitos de sodomia. A principal razão para a discordância desse grupo de juízes foi a
574
"Foraõ Vistos na mesa do santo officio aos 12 / de feuereiro de 621 estes autos e culpas de Bartolomeu
/ de goés Sacerdote nelles conteudo E pa- / receo a todos os uotos (tirando o inquisidor / Dom Manoel
pereira E os deputados francisco de / britto de Menezes E Diogo da Silua) que a proua da Justiça / Era
bastante para o Réu se auer por conuicto / no crime abominauel de sodomia, visto / o numero das
testemunhas aiudadas da infamia / publica que o Réu tinha nesta materia, E que como / tal Seia relaxado a
curia Secular Senratis / Senrandis, E que encorreo em donfiscaçaõ de / todos seus bens apolicudas
a[mancha]S[mancha] quem / pertencerem E nas mais penas em direito / E leis do reino contra os
semelhantes esta- / belicidas E aos dittos Jnquisidores manoel Pereira E / os deputados francisco de britto
E senhor Joam pareceo / que a proua da Justiça naõ era bastante para / pena ordinaria visto naõ Serem as
testemunhas / de actos conSumados mais que Sinco, E todas / complices E assi defeittuosas, numeo que
con / forme ao Stilo do santo officio, Sem concorrerem / outras qualidades e circũstancias nun- / qua foi
bastante para relaxaçaõ, E outroSi / visto como as pessoas que nos autos atras foraõ / relaxadas, o foraõ por
conVictas e confessas // o que naõ ha lugar neste Reo, maiormente / Sendo sacerdote; E porem que antes
dou / tro despacho Sera posto a tormento / E tenha todo o que poder leuar es- / perto a arbitrio dos
inquisidores, juizo / do medico E Surgiaõ E que Satisfeito / a isso se torne a ver em meSa este / processo
para se despachar em final / E a todos que va ao conselho conforme ao re= / gimento E assistio pello
ordinário / cõ sua comissaõ o inquisidor mais antigo / [assinaturas de dez inquisidores e deputados]".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 73.
257
575
Kamen afirma que a tarefa principal da Inquisição era obter uma confissão e uma submissão penitencial
do réu, motivo pelo qual o processo inquisitorial partia da presunção de que todo suspeito era desde já
culpado. Tratava-se de produzir um sujeito culpado, culposo e submisso. KAMEN. The Spanish Inquisition,
p. 1927.
576
DELUMEAU. A confissão e o perdão, p. 80-3.
258
renascentista, buscando raízes ainda mais antigas na Idade Média. O historiador quis
demostrar, com essa observação, que o inquérito de tipo inquisitorial – isto é, com
segredo, presunção de culpa e uma certa lógica para a construção das evidências de culpa
– não era uma especificidade do Santo Ofício, mas um traço mais geral das justiças sob o
Antigo Regime.577 Foucault esmiuçou as distinções, efetuadas no âmbito dessa cultura
jurídica do início da Época Moderna, entre as espécies de prova e como elas poderiam se
somar (de maneira não linear) para formar a presumida culpa do réu. As várias qualidades
de prova (que podiam ser verdadeiras, diretas e legítimas, plenas, indiretas, conjeturais,
artificiais, por argumento, manifestas, consideráveis, imperfeitas ou ligeiras) ou de
indícios (próximos e longínquos ou "adminículos") desempenhavam uma função
operatória, cada uma delas podia desempenhar uma função na dosimetria da pena
(definição de um efeito judiciário específico), ou, combinadas entre si (a alquimia das
provas), segundo regras precisas de cálculo, para atingir uma definição da pena fundada
em uma aritmética casuística das provas.578
No processo do padre Bartolomeu de Góis, a aritmética casuística das provas e
dos indícios foi sobremaneira importante, porque o réu se recusou a confessar-se em
repetidos interrogatórios. O clérigo foi interrogado seguidas vezes, desde o dia 17 de
outubro de 1620 (dia seguinte de sua prisão e entrega nos cárceres secretos) até 12 de
janeiro de 1621 (momento em que lhe foi feita a publicação da prova da justiça),
totalizando cinco sessões, além de suas reiteradas negativas em suas defesas escritas,
apresentando testemunhas de defesa e contraditas.579 A confissão era a prova mais
importante e valiosa em um inquérito do tipo inquisitorial, porque seu valor de verdade
era superior ao de todas as demais variedades de evidências e indícios. 580 Como um
tribunal da consciência, o Santo Ofício se preocupou em receber, sempre que possível,
confissões dos dissidentes que se enredavam em suas teias, para poder construir um certo
saber confessional (os cadernos do promotor e do nefando, reunindo de confissões e
denúncias compilados e guardados pelos inquisidores para referência futura) e produzir
um tipo de sujeito: fiel e obediente à Igreja e à monarquia católica (em um cruzamento
entre fidelidades religiosa e política, uma fidelidade moral). 581 Para tanto, importava
577
BENNASSAR. Inquisición española, p. 96.
578
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 38-9.
579
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 26f-27f; 27v-28f; 28v30f; 31v-45v; 48v-
50f; 61f-65v; 68f-71v.
580
BENNASSAR. Inquisición española, p. 96-7.
581
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 473-480.
259
582
Outros elementos da pedagogia do medo manuseada pelas Inquisições ibéricas foram a engrenagem do
segredo inquisitorial, a memória da infâmia que perseguia os condenados e seus descendentes, a ameaça da
miséria (devido à possibilidade de incorrer em penas de confisco dos bens) e a força dos exemplos dos
penitenciados publicamente pelo Santo Ofício. BENNASSAR. Inquisición española, p. 94-125.
583
"Foraõ Vistos na meza do santo officio aos Vinte sete / dias do mes de Nouẽbro de seis centos E Vin /
te hũ estes autos, culpas cõfisois de Bart / holomeu de gois sacerdote nelles contheudo / depois de maos
atadas. E pareceo a todos / os Votos excepto o Licenciado demiaõ Viegas, que / o Réu digo que a cõfisaõ
do Réu naõ deuia / Ser Recebida para cõ elle se vzar de Mise / ricordia que pede. antes que Vista sua grãde
/ deuasidaõ no crime nefando fosse entregue / a Justica Secular seruãtis seruandis cõfor / me aos asentos
atras por cõuicto. E cõfe / So diminuto E ao dito demiaõ Viegas / que oseruasẽ para que depois fisese mais
larga / Cõfisaõ de suas Culpas; E a todos que este pro / ceSo fosse ao conselho. E asistio per ordi /nario o
Inquisidor mais antigo". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 84f.
260
A partir dessa ata das considerações dos juízes, podemos realizar algumas
observações a título de conclusão de como o jogo das categorias de sodomia e heresia
apareceu no processo do padre Bartolomeu de Góis. Em primeiro lugar, os termos do
processo falam de uma realização local e episódica de um jogo em que estão em
funcionamento as relações de verdade-poder implícitas no interagir entre réu e
inquisidores. Ao negar quase até o fim a se confessar, o sacerdote forçou os juízes a
considerarem outros elementos do processo (ou de processos anteriores, no caso das
denúncias de blasfêmia) como provas ou indícios para a construção do discurso de
verdade sobre a sujeição do réu à categoria de sodomita. A atitude não-confessional do
padre Bartolomeu de Góis pode ser lida em dois níveis. Primeiramente, foi uma estratégia
jurídica deliberada, pautada pela avaliação (ao cabo, inexata) que o ex-cura fez do quadro
das relações de força configurado pelo inquérito: o réu acreditou ser capaz de desmontar
as acusações a partir dos elementos ao seu alcance, isto é, de sua defesa, na forma de
nomeação de testemunhas e de inclusão de documentos que atestassem sua boa moral e
costumes. Em sua defesa, ele se caracterizou como alguém que procedeu sempre
conforme sua obrigação sacerdotal, praticando as virtudes da continência e da
honestidade.584 Descreveu também seu modo de vida, desde a infância, na maneira
seguinte:
Porque ele, Réu, deu sempre de si, sua vida e costumes muito bom exemplo,
como sacerdote e bom cristão que é. E foi cura da igreja de São Paulo desta
cidade. E passou dezesseis anos contínuos, onde procedeu sempre como tinha
obrigação, vivendo com muita continência e honestidade, e dando sempre
muita boa conta de si, sem nunca, em todo este tempo, se lhe saber falta
alguma. E sendo visitado todos os anos pelo seu ordinário, nunca lhe foi
imposta culpa nenhuma nas visitações. Antes saiu sempre delas com muita
honra e com muito louvor. Porque da mesma maneira procedeu ele, Réu,
sempre, desde sua meninice, continuando com o seu hábito, vindo de Santo
Amaro, onde seu pai estava por ermitão, aos pés da Companhia no Colégio de
Santo Antão todos os dias, até que teve idade para se ordenar sacerdote. Como
fez, vivendo sempre com a mesma honestidade e recolhimento, dando de si
sempre boa conta, antes de chegar a ser cura, como a deu depois de o ser.
Porque depois que, por ódio e inimizade de certas pessoas que a seu tempo
nomeará, o suspenderam do ofício de cura da dita igreja por tempo limitado,
ele Réu se recolheu nas suas casas de Alcântara com sua mãe, onde por mais
de oito anos que estava apartado de toda a conversação, fazendo vida conforme
ao seu estado de sacerdote, com toda a quietação e exemplo devido, ocupando-
se na sua reza e em dizer sua missa todos os dias nas ermidas que aí estão ao
redor. E depois se tornava a recolher. E o tempo que lhe vagava, o passava, por
sua curiosidade, no conserto de sua horta e batinas, e tinha um brinco* aí para
sua recreação, sem ofensa de Deus, nem escândalo do próximo. E vinha mui
poucas vezes à cidade, quando a ela vinha, era por lhe relevar muito. E estes
584
"[…] onde proçedeo sempre como tjnha de obrigaçaõ, Viuendo com muita / continençia, E Honestidade,
E dando sempre muito boa conta de sy […]".DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl.
49f.
261
585
"Por que elle Réu deu sempre De sy, sua Vida E Custumes muito bom / exemplo, como saçerdote, E
bom Christaõ que he, E foi Cura da / Jgreja de São Paulo desta Cidade E pasazisou desaseis annos continuos
/ onde proçedeo sempre como tjnha de obrigaçaõ, Viuendo com muita / continençia, E Honestidade, E
dando sempre muito boa conta de sy. / sem nunqua, em todo este tempo se lhe saber falta alguã, E sendo
ViZi- / tado todos os Annos do seu ordinario, nunqua lhe foi imposta / culpa nenhuá nas Vizitaçoés, Antes
saju sempre dellas com / muita Honra, E com muito Louuor / Por que Da mesma maneira proçedeo elle
Réu sempre des de sua meniniçe / continuando cõ o seu Habito, Vindo de santo Amaro onde seu pay /
estaua por Hermitaõ, aos pes da Companhia no collegio de santo / Antaõ todos os dias, ate que teue idade
para se ordenar Saçer / dote como fez Viuendo sempre com a mesma Honestidade / e recolhimento E dando
de sy sempre, boa conta antes de chegar / a ser Cura, como a deu depois de o ser // Por que depois que per
odio, E inimiZade de Certas pessoas que a seu / tempo nomeara o suspenderaõ do officio de Cura da dita
Jgreja / por tempo limitado, elle Réu se recolheo nas suas casas de / Alcantara com sua May onde por mais
de oito Annos que / estaua appartado de toda a conuersaçaõ, E fazendo Vida / conforme a seu estado, de
saçerdote com toda a quietaçaõ / E exemplo diuido, occupandose na sua reza E em dizer / sua Missa todos
os dias, nas Hermidas que ahy estaõ a redor / E depois se tornaua a recolher, E o tempo que lhe Vagaua, o
pastaua / por sua corioSidade, no conserto da sua Horta, E batinas E ty- / nha hũ brinco ahy para sua
recreaçaõ, sem offensa de Deus / nem escandalo do proximo. E vinha muy poucas VeZes / a Cidade E
quando a ella Vinha, era por lhe releuar muito E estes / foraõ sempre os proçedimentos de sua Vida […]".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 49.
586
BLUTEAU. Vocabulário Portuguez & Latino, p. 193. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/1/brinco. Último acesso em 09.jun.2020.
587
Referimo-nos aqui ao conceito de identidade narrativa, especificamente, o seu cruzamento com a noção
de performatividade de gênero de Butler, conforme trabalhamos em outro trabalho. Ver: ROCHA, Cássio
Bruno de Araujo. Identidades narrativas e performatividade de gênero: cruzamentos conceituais possíveis
após a morte do sujeito. Gênero, Niterói, RJ, v. 19, n. 1, p. 25-44, 2.sem.2018.
588
TEIXEIRA, Igor Salomão. Hagiografia e processo de canonização. A construção do tempo de santidade
de Tomás de Aquino (1274-1323). Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História, Porto Alegre, BR-RS, 2011, p.
35-66; TEIXEIRA, Igor Salomão. Homens e mulheres nos processos de canonização de santos
mendicantes: Domingos, Clara e Tomás, 1230-1330. In: TEIXEIRA, Igor Salomão; ALMEIDA, Cybele
Crossetti de. (Orgs.). Reflexões sobre o Medievo III. Práticas e saberes no Ocidente Medieval. São
Leopoldo, RS: Oikos, 2013, p. 133-140; TEIXEIRA, Igor Salomão. O tempo da santidade: reflexões sobre
262
um conceito. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 32, n. 63, p. 207-223, 2012. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
01882012000100010&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 09 jun. 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
01882012000100010.
589
TEIXEIRA. Hagiografia e processo de canonização, p. 39.
590
Nomeados pela defesa, o sapateiro Antônio Dias e o mercador castelhano Ângelo Estella relataram
rumores de práticas homoeróticas do réu. O primeiro disse apenas de um murmúrio genérico de que o padre
dormia com moços por detrás. Ao contrário, o mercador forneceu um relato, em terceira mão, mais
263
réu no crime nefando, uma vez que os juízes que discordaram da condenação imediata da
pena ordinária, o fizeram somente por desejar pressioná-lo a uma confissão, fosse por
meio do tormento (antes do réu ceder e confessar), fosse meramente pelo prolongamento
da espera pela execução.591 Ou seja, os juízes não duvidaram da culpa sodomítica de
Bartolomeu de Góis, somente desejaram submetê-lo, de forma ainda mais intensa e
violenta, às técnicas de produção da verdade que manuseavam.
A confissão final do réu atesta sua derrota no jogo de poder encetado pelo Santo
Ofício, em torno de sua subjetivação como sodomita ou sacerdote cristão honesto,
continente e virgem. Em seus derradeiros momentos, o padre Bartolomeu de Góis
sujeitou-se aos poderes inquisitoriais, reconhecendo-se como culpado, pecador e
sodomita, clamando por misericórdia. No entanto, como toda conduta em uma relação de
poder, sua ação de prostrar-se e sujeitar-se trazia uma certa ambivalência, pois não
deixava de ter os objetivos de tentar conquistar uma modificação na pena capital a que
incorrera (e do que ele já tinha ciência, no momento em que decidiu confessar-se), e/ou
de descarregar sua consciência na proximidade da morte, após ter-se consultado no foro
interior com um confessor, o padre Leonardo de Sá da Companhia de Jesus.592 Trata-se
do jogo sempre ambivalente das relações de poder-resistência, cuja valência é sempre e
necessariamente local e circunstancial.593 Vejamos com mais detalhes a primeira parte da
confissão do padre sodomita:
Confissão
Aos vinte e oito dias do mês de novembro de mil e seiscentos e vinte e um
anos, em Lisboa, nos Estaus, no cárcere do Santo Ofício, estando aí em
audiência pela manhã o senhor inquisidor Pedro da Silva de Sampaio com o
Réu Bartolomeu de Góis, preso conteúdo nestes autos, e, sendo presente, lhe
foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão e, sob cargo
dele, prometeu dizer Verdade e ter segredo. E disse que podia, quando de não
confessar mais cedo na mesa do Santo Ofício suas culpas, e que as negara com
temor da morte, por lhe dizerem que o senhor Bispo Dom Pedro de Castilho
não perdoava aos do pecado nefando. E que a Verdade era (chorando lágrimas
e dizendo Cristo Jesus propitius esto mihi peccatori) que haverá cinco anos,
pouco mais ou menos, que, por espaço de dois para três anos, em sua casa em
Alcântara, quase todas as noites, na cama, entre os lençóis, e de dia, algumas
vezes sobre a cama, cometeu e consumou ele, confitente, o pecado nefando de
sodomia, sendo sempre ele, confitente, o paciente, e o agente, Duarte Coelho,
colaço* de Luís Cezar, então solteiro, e que, naquele tempo, pretendia casar
com uma sobrinha dele, confitente, e, depois casou com Jerônima da
detalhado e preciso sobre tocamentos desonestos (homoeróticos) praticados pelo sacerdote. DGA/TT –
Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 55v-57f.
591
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 73f; 84f.
592
O réu foi notificado no dia 26 de novembro de 1621 de que estava relaxado à justiça secular e que iria
ao auto de fé público no domingo seguinte ouvir sua sentença. Suas mãos foram então atadas, para que ele
se confessasse com o padre Leonardo de Sá da Companhia de Jesus. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de
Lisboa, processo 01312, fl. 86v.
593
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 95-106.
264
594
"Confissaõ ~ / Aos Vinte oito dias do mes de Nouembro / de mil e seis çentos e Vinte hum an / nos em
lisboa nos estaos no car / çere do santo officio estando ahi em / audiencia de pola menha o senhor /
Inquisidor Pero da Silua de saõPajo / com o Réu Bartolomeu de Goes prezo Contheu / do nestes autos e
sendo presente lhe foj / dado Iuramento dos Santos euangelhos / em que pos Sua maõ e Sob Cargo delle /
prometo de dizer Verdade e ter Se / gredo ==== e disse que podia quando / de naõ Confessar mais çedo na
meza / do santo officio Suas Culpas, e que as ne / gara Com temor da Morte per lhe / dizerem, que o senhor
Bispo dom Pedro / de Castilho, naõ Perdoaua aos do pec / cado nefando, e que a Verdade era / (chorando
lamigras e dizendo xpo Iesu / propituis esto mili peccatori) que / huera Sinco annos pouco mais ou / menos
que per espaço de dous para // tres annos em sua Caza em / Alcantara, quasi todas as / noites na cama entre
os lençois / e de dia alguãs Vezes sobre / a cama cometteo e consumou / elle Confitente o peccado Nefando
/ de Sodomia sendo sempre elle con / fitente o Pacjente, e o Agente / duarte Coelho, Collaço de luis Çe /
zar, antaõ Solteiro, e que naquel- / le tempo pertendia Cazar com / huã Sobrinha delle Confitente / e depois
Cazou com Hieronima da / Bovadilha Sogra do Porteiro / da Mezae que tem hum quarto de / xpaõ nouo,
Segundo lhe disse / Seu mesmo padrasto, o qual / duarte Coelho Se punha em / cima delle confitente que
esta / ra de Bruços e lhe metia Seu / membro Viril no trazeiro delle / Confitente e dentro delle derra / maua
Semente, e as Vezes / per fraqueza, naõ a derramaua / hauendosse como hum homem aman / Çebado com
huã molher, e de huã / uez sem tirar Sem membro uiril do / trazeiro derramou duas Vezes Semente. / e por
duas Vezes tentou elle Confitente / de Consumar o ditto peccado Sendo Agente / e o ditto duarte Coelho o
paçiente, e / em hua dellas naõ o effectuou per fra / queza do seu membro, e na outra derra / mou ou na
borda do trazeiro ou qua / zi dentro do trazeiro do ditto duarte Coe / lho Semente =====". DGA/TT –
Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 76-77.
595
BLUTEAU, Raphael. Colaço. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 2, p.
367. Disponível em www.dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/colaço. Último acesso em out. 2020.
265
que não podem ser compreendidas somente como uma derradeira tentativa de comover
os juízes severos. Antes, seu pranto compungido, somado às palavras retiradas do
Evangelho de Lucas, "propitius esto mihi peccatori" ("Meu Deus, tem piedade de mim,
pecador!"),596 podemos compreendê-lo como uma proclamação da submissão aos termos
do dispositivo, em sentido moral e espiritual (no sentido de subjetivo)597 similar ao do
publicano da parábola,: "Pois todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha
será exaltado".598 Tal passagem era, sem dúvida, bastante familiar ao padre Bartolomeu
de Góis; seu enunciado tão indelevelmente modelou sua subjetividade, pois, quase aos
pés da fogueira inquisitorial, foram suas palavras que retornaram aos seus lábios.
A introjeção da parábola no modo de ser sujeito da nossa personagem exemplifica
como a Inquisição portuguesa logrou atuar como mecanismo constituidor e modelador de
subjetividades nos termos do dispositivo da carne. Trata-se de uma atuação que deve ser
compreendida em seu aspecto dual, derivada da natureza ambivalente da instituição, um
tribunal tributário à monarquia lusitana e, ao mesmo tempo, ao Papado: o Santo Ofício
teve sua atuação marcada por uma pedagogia do medo, no mesmo passo em que
funcionava como outra instância do foro da consciência. Essa dualidade, em outros
termos, correspondeu ao uso de tipos distintos de técnicas de poder para realizar
operações de vigilância, controle social e manufatura de subjetividades: técnicas de poder
soberano, de um lado, de outro, pastorais. Isso nos conduz à observação do teólogo Mark
D. Jordan acerca do sentido da famosa passagem foucaultiana em que o sodomita e o
homossexual foram diferenciados um do outro:
Um modo de explicar este contraste cerrado é insistir novamente que o tipo de
duplicação realizada aqui é criada pelo fim de exercer-se um novo poder. A
diferença real está entre o poder da Igreja sobre o sodomita como um,
biblicamente imaginado, pecado de caráter, e entre o poder psiquiátrico sobre
o homossexual como um perverso que emerge no espaço entre o direito (a lei)
e a medicina. Ao homossexual, não somente assinala-se um tipo diferente de
narrativa, como ele é colocado sob um tipo diferente de poder. 599
596
(Lc. 18: 13), Bíblia de Jerusalém, p. 1821.
597
FOUCAULT, Michel. O enigma da revolta. Entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. Trad.
Lorena Balbino. São Paulo: n-1 edições, 2019, p. 20-1.
598
(Lc. 18: 14), Bíblia de Jerusalém, p. 1821.
599
Tradução livre de minha autoria. No original, "One way to explain this tightened contrast is to insist
again that the kind of doubling performed here is created for the sake of exercising a new power. The real
difference is between church power over the sodomite as a biblically imagined sin character and the
psychiatric power over the homosexual as a pervert who emerges in the space between law and medicine.
The homosexual is not only assigned to a different sort of narrative but placed under a different sort of
power". JORDAN, Mark d. Convulsing bodies, p. 107.
266
600
Conferir as interpretações de Deleuze a partir de sua terceira aula sobre Foucault e as formações
históricas. DELEUZE. Michel Foucault, p. 5-38.
601
ARIÈS. Reflexões sobre a história da homossexualidade, p. 80-1.
267
3.1 A relação anal de Isabel Pereira e do padre Frei Felipe da Cruz: medo e culpa
na Inquisição
Contavam-se os trinta e um dias do mês de março do ano do Senhor de mil e
seiscentos e trinta e um, quando uma mulher solteira, adulta, mas sem ainda perder o viço
da juventude, que servia às freiras do convento do Salvador em Lisboa, chamada Isabel
Pereira, presa nos cárceres do Santo Ofício, compareceu, por sua instância, à mesa
inquisitorial para se confessar. Nesse primeiro relato de si, a confessante disse ser de 26
anos de idade, solteira, natural da localidade de Ponte de Lima, cristã-velha, filha de Pedro
Esteves, lavrador, e de sua mulher (isto é, de sua esposa legítima) Anna Dias (ambos, ao
que parece, ainda vivos e moradores no lugar que se chamava a Sobrada, na freguesia de
São Salvador da Rendufe, que, atualmente é parte da freguesia de Labrujó, Rendulfe e
Vilar do Monte, componentes do conselho da vila de Ponte de Lima). Sua confissão girou
em torno do seu relacionamento erótico-afetivo com o padre Frei Felipe da Cruz, pregador
dominicano, o que, por si só, poderia ser enquadrado como um delito, de acordo com as
Ordenações Filipinas:605
[…] disse que a verdade era que haverá dois anos, que começou a travar
amizade ilícita com o padre Frei Felipe da Cruz, pregador de São Domingos,
que então era superior no seu convento do [dobra da página] mada [?] na
portaria do qual, na hora do silêncio, pecou com ela, [por] via ordinária,
(práticas de liberdade) dos sujeitos assim constituídos. Os maus costumes, destarte, são aqueles que abrem
para a diferença, os que dizem de novas maneiras de ser sujeito e de se relacionar consigo e com os outros.
Entendendo a normalização como a exclusão e a eliminação daqueles que são subjetivados/sujeitados como
inaceitáveis, anormais, irracionais e/ou perigosos, nomear algo como um bom costume revela-se como a
operação implícita de diferenciar os maus costumes, banindo-os para as margens da sociedade, tornando-
os costumes abjetos. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Os "maus costumes" de Foucault". In:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc,
2007, p. 113-132.
605
As Ordenações Filipinas continham dois regulamentos voltados para as relações erótico-afetivas dos
clérigos e religiosos. Tratava-se do Livro V título 30, Das barregãs dos clérigos e de outros religiosos, e
do Livro V título 31, Que o Frade, que for achado com alguma mulher, logo seja entregue a seu Superior.
É interessante notar a assimetria de castigos prescritos para as partes envolvidas nos dois crimes. Se a
mulher, desde já estigmatizada como barregã, teúda e manteúda ou amancebada, podia incorrer em penas
violentas e degradantes, como multas pecuniárias, açoites públicos e degredo (que podia até ser perpétuo
para o Brasil), a única providência prevista para o clérigo era seu encaminhamento ao seu superior, no caso
de religioso professo. Ou seja, o Estado se escusava do disciplinamento do desvio erótico de frades, que se
tornava um encargo privativo das ordens religiosas ou do ordinário eclesiástico (ou, em casos do pecado
nefando, da Inquisição). Referindo-se à sociedade colonial brasileira, Emanuel Araújo afirmou que o
concubinato era o delito mais frequente com o qual se envolviam os padres, parecendo quase impossível
manter o compromisso sagrado com a castidade sexual. ARAUJO, Emanuel. O teatro dos vícios.
Transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p.
243-251. Para os títulos citados das Ordenações, ver ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro V Título 30: Das
barregãs dos clérigos e de outros religiosos, disponível em
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1181.htm. Último acesso em 28.jun.2020; ORDENAÇÕES
FILIPINAS, Livro V Título 31: Que o Frade, que for achado com alguma mulher, logo seja entregue a seu
Superior, disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1182.htm. Último acesso em
28.jun.2020.
269
levando-a ali de sua honra e, depois, por outras vezes, aqui, em Lisboa, na casa
da hospedaria, no paço do mosteiro do Salvador, em cuja loja ela se agasalhava,
continuou, por algumas vezes, em o conhecer, por via ordinária,
carnalmente.606
Isabel Pereira acusava, pois, o padre Frei Felipe da Cruz de tê-la desonrado, ao
iniciá-la nos prazeres eróticos, corrompendo, assim, a sua virgindade. Como vimos no
capítulo 1, a virgindade, no âmbito do dispositivo da carne, como uma forma cristã de
experimentar (no caso, pela abstinência) o frêmito erótico, era mais do que nunca ter
realizado o ato sexual (deixemos em suspenso o que se poderia significar essa expressão,
uma vez que temos visto como variou, na história da experiência cristã, seu conteúdo),
dizia de uma posição de subjetividade, uma maneira de ser sujeito de si mesmo e dos
prazeres eróticos, envolvendo a elaboração de uma interioridade caracterizada pela
pureza do coração, pela continência e pela máxima obediência e humildade (humilhação)
da própria vontade. Destarte, o ser virgem implicava um modo de vida de rigorosa
austeridade, marcada pela prática de exercícios ascéticos voltados para a elaboração do si
mesmo.607
Sendo não mais que uma serva ou criada do convento, não propriamente uma
religiosa professa, teria Isabel Pereira se devotado a uma vida espiritual de virgindade?
Segundo os estudos de Leila M. Algranti, os mosteiros, conventos e recolhimentos que
recebiam mulheres, em Portugal e na América colonial, entre a Baixa Idade Média e a
Época Moderna, não recebiam somente aquelas que sentiam uma vocação específica para
a vida religiosa. Ao contrário, a difusão de tais estabelecimentos esteve ligada a um
processo de controle e disciplina das massas populares e pobres, entre elas, as mulheres,
uma categoria de ser moldada como particularmente estigmatizada pelo discurso jurídico-
religioso medieval e do início da Modernidade.608 Algranti ligou a reclusão feminina (à
606
"[…] dice que a uerdade era que auera dous Annos / que comessou a trauar amizade illicita com o padre
/ frei fellippe da Crus Pregador de Saõ domingos // que entaõ era Supirior no seu Conuento do I [dobra na
página] / mada [?] na Portaria do qual na hora do Si= / lencio pecoú com ella uia ordinaria leuandoa / ali
de Sua onrra, e depois por outras ueses / aqui em Lisboa na caza da hospedaria no Passo / do mosteiro do
Saluador em cuia logea ella / Se agazalhaua continuoú por alguas uezes em / o conhecer uia ordinaria carnal
mente". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191, fl. 8.
607
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 145-245.
608
Ana Maria Colling resumiu o modo de ação desse discurso jurídico-religioso para a subjetivação da
categoria mulher sob o signo do negativo, do maligno e do perigoso: "A tradição cristã judaica colaborou
de maneira decisiva para a inculcação da inferioridade da mulher. O relato da criação da mulher, bem como
a da sua parte na tentação de Adão e sua consequente condenação por Deus, danando toda a humanidade,
tem efeitos devastadores muito duradouros sobre a imagem da dignidade do feminino. Nunca se perdia a
oportunidade de lembrar às mulheres o mito do Éden, reafirmado e sempre presente na história humana.
No universo dos textos jurídicos, a presença desta imagem é constante. Muitos, para referendar a menor
dignidade da mulher, recorrem ao seu papel no pecado original e na condenação com Deus, por isso, a
fulminou: ‘À mulher lhe digo: tantas serão tuas fadigas, quantos sejam teus embaraços: com trabalho parirá
270
qual era dada uma ênfase muito maior nos textos teológicos, jurídicos e nas Regras das
ordens femininas, do que em relação aos monges, devido ao elemento da clausura) à
dominação masculina, apontando a presença de mulheres leigas (virgens, solteiras,
viúvas, casadas, crianças, adultas, idosas) nos conventos femininos do período. De acordo
com a autora, mesmo após as regulamentações promulgadas pelo Concílio de Trento (tais
como a idade mínima de 16 anos para uma jovem professar sua adesão à vida religiosa e
a proibição de que uma mulher fosse forçada a esse modo de vida contra a sua vontade),
os conventos de mulheres continuaram desempenhando funções para além de ser uma
casa religiosa, servindo também como instituição de reclusão, asilo, escola ou pensão para
mulheres órfãs, mendigas (pobres), "decaídas" (solteiras, prostitutas, não virgens e não
casadas em geral), educandas ou viúvas.609
O que era, entretanto, essa vida espiritual de virgindade a que Isabel Pereira, uma
criada, poderia ter desejado consagrar-se? Um desejo nesse sentido (que se coadunaria ao
ideal da Virgem, um enunciado tão forte no dispositivo da carne) explicaria o desespero
e o sentimento de culpa de Isabel, ao ter esse modo de vida para sempre barrado, por sua
relação (mais ou menos forçada, mais ou menos consensual?) erótica com o padre. Essa
experiência de vida religiosa implicava uma ciência da ascese, a qual conduz, por meio
da mística, à formação de relações pessoais com a verdade-Deus,610 em um trabalho de
subjetivação do sujeito sobre si mesmo (um esforço de des-subjetivação).611
Teria, porém, uma serva de convento, condições materiais e espirituais para buscar
ascender ao modo de ser da virgindade? Isso não significa que um desejo nesses termos
não moldasse sua subjetividade, tendo em vista que, desde os últimos séculos do
Medievo, a espiritualidade leiga estava em ascensão nas sociedades ocidentais. A
espiritualidade das pessoas seculares gerou adaptações ao monacato tradicional, ao
mesmo tempo que ensejou o engendramento de novas formas de devoção e de
teus filhos. Teu marido te dominará’". COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais. A
construção histórica do corpo feminino. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2014, p. 64.
609
ALGRANTI, Leila M. Honradas e devotas. Mulheres da colônia. (Estudo sobre a condição feminina
através dos conventos e recolhimentos do sudeste - 1750-1822). Tese (doutorado). Universidade de São
Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História. São Paulo. 389 p.
1993, p. 46.
610
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 7; GONÇALVES. Império da fé, p. 43-56.
611
Trata-se de uma espécie de espiritualidade política, identificada, por Foucault, na Revolução islâmica
de 1979 e, em um exemplo que desperta interesse aqui, em movimentos da Reforma dos séculos XVI e
XVII, como o calvinismo. "O que é o calvinismo senão a vontade de fazer passar para a política não apenas
uma crença religiosa, não apenas uma organização religiosa, mas toda uma forma de espiritualidade, isto é,
uma relação individual com Deus, com valores espirituais". FOUCAULT. O enigma da revolta, p. 63.
271
Ademais, a perda da honra/virgindade por uma jovem mulher, não casada, nas
sociedades de Antigo Regime do Império lusitano trazia consequências graves para o seu
estatuto social. É preciso recordar, como ressaltou Vainfas, que a categoria de “solteira”
não significava apenas não ser casada, sendo distinta também de virgem. Ser “solteira”
era um estigma, dizia de "[…] uma mulher desimpedida, livre, sem proteção de família
ou marido, passível de envolver-se em quaisquer relações amorosas".614 Em outro
trabalho, relacionamos tal definição de "mulher solteira" à manutenção de um certo
"direito masculino de fornicar", isto é, ao estigmatizar uma mulher como “solteira”, os
homens, em uma ânsia de se perceber e se reafirmar como viris e másculos –
correspondente ao que Figari chamou de uma formação discursiva do padrão masculino-
ativo –,615 atribuíam-se direitos de posse e de uso dos corpos dessas mulheres. Isso era
ainda mais grave e imediato para mulheres negras, indígenas, mestiças, escravizadas ou
não. Como mulher solteira, sem pai ou marido (o patriarcado imperial, colonial e
escravista português funcionava de acordo com as regras do tráfico de mulheres expostas
por Rubin),616 elas passavam a ter o estatuto de mulheres quaisquer ou da vida, podendo
sofrer todo tipo de abuso erótico, sem que, ao agressor homem, recaísse qualquer
responsabilidade criminal.617
612
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 139-148.
613
Vauchez usa o conceito de espiritualidade em sentido mais largo, para conseguir abranger práticas não
sistematizadas e descentralizadas em relação às ordens sociais e às instituições que concentravam as
possibilidades de uma vida espiritualizada ao longo da Idade Média. Cremos ser possível apropriarmo-nos
do seu conceito para pensar as práticas de espiritualidade de pessoas leigas também nos séculos iniciais da
Modernidade. O conceito do autor é como segue: "Nessa perspectiva, a espiritualidade não é mais
considerada um sistema que codifica as regras da vida interior, mas uma relação entre certos aspectos do
mistério cristão, particularmente valorizados em uma época dada, e práticas (ritos, preces, devoções)
privilegiadas em comparação a outras práticas possíveis no interior da vida cristã". VAUCHEZ. A
espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 8.
614
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 60.
615
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 115-119.
616
RUBIN. O tráfico de mulheres (1975), p. 9-61.
617
ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 120.
272
Isabel Pereira parece ter sido assim percebida pelo seu amante/agressor, como
mais uma pessoa de estamento social inferior e, por isso mesmo, disponível para seu
usufruto. O padre mal soube individualizar Isabel das demais servidoras do convento,
descrevendo-a como baixa de corpo, amarela de rosto e de mais ou menos 30 anos de
idade, ignorando seu nome completo ou qualquer dado particular.618 Além disso, seu
depoimento não contém maiores detalhes sobre como a relação principiara, consistindo
em um relato mais seco e concentrado na morfologia do crime de sodomia,
diferentemente da confissão de Isabel Pereira. Isso pode ser atribuído tanto a uma
estratégia discursiva do padre, de não se alongar em seu relato, como a uma decisão de
inquisidores e/ou notário de filtrar um relato talvez mais completo aos aspectos técnico-
jurídicos que, de fato, preocupavam a faina judiciária do Santo Ofício. A desclassificação
social da criada pode ser percebida pelo simples fato de que seu relacionamento ilícito
não se desdobrou em ações judiciais contra seu amante/agressor, tendo em vista que a
violação de virgens ou o sexo consensual com elas eram crimes tipificados pelas
Ordenações no Livro V, Título 16, Do que dorme com a mulher, que anda no Paço, ou
entra em casa de alguma pessoa para dormir com mulher virgem, ou viúva honesta, ou
escrava branca de guarda, e no Livro V Título 23, Do que dorme com mulher virgem, ou
viúva honesta por sua vontade.619 Ao contrário, a dimensão sodomítica da relação entre
a criada e o frei acarretaria a completa desclassificação da mulher, por sua prisão e
eventual condenação pelo Santo Ofício.
E haverá, agora, dez meses, pouco mais ou menos, na dita casa, por três vezes,
em três dias diferentes, o dito Frei Felipe, indo pregar ao [convento do]
Salvador e falar e jantar à dita casa da hospedaria, tendo jantado, a chamava
acima. E ali, no sobrado, começou a ter ajuntamento carnal por diante com ela
confitente. E, depois de ter entrado assim com ela, se tornou a tirar e lhe disse
que volvesse para dormir com ela por detrás. […] E assim, em cada uma das
618
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191, fl. 6v.
619
ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro V, título 16, Do que dorme com a mulher, que anda no Paço, ou
entra em casa de alguma pessoa para dormir com mulher virgem, ou viúva honesta, ou escrava branca de
guarda, disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1165.htm. Último acesso em 28.jun.2020.
ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro V, título 23, Do que dorme com mulher virgem, ou viúva honesta por
sua vontade, disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1173.htm. Último acesso em
28.jun.2020.
273
ditas três vezes, lhe meteu, o dito Frei Felipe, o seu membro viril dentro do
traseiro dela, confitente. E aí esteve cometendo o pecado nefando e lá dentro,
em cada uma das vezes, derramou semente, tendo pregado em alguma das ditas
vezes no mesmo dia. E não passaram mais nessa matéria, nem ela, confitente,
antes ou depois, conheceu outro homem, nem por diante, nem por detrás, nem
sabe, nem ouviu com quem mais o dito Frei Felipe pegasse por detrás, nem
pessoa outra que tal fizesse.620
620
"E auera agora des mezes pouquo mais ou me / nos na ditta caza por tres uezes em tres dias / deferentes
o ditto frei fellippe indo pregar ao / Saluador ^ e fallar E iantar a ditta caza da hospedaria ten / do iantado a
chamaua aCima e aly no sobrado / comessoú a ter aiuntamento carnal por diante / Com ella Comfitente e
depois de ter emtrado aSi / Com ella Se tornou a tirar e lhe disse que se uol / uesse pera dormir com ella
por detras […] E aSim em cada hua das dittas tres uezes lhe meteo / o ditto frei fellippe seu membro ueril
dentro do tra / zeiro della confitente E ahi esteue cometendo / o pequado nefando e la dentro em cada hua
das / uezes derramou Semente tendo pregado Em / algua das dittas uezes no mesmo dia e naõ passaraõ /
mais nesta materia, nem ella Comfitente antes ou / depois Conheceo outro homen nem por diante nem / por
detras nem Sabe, nem ouuio com quem mais / o ditto frei fellippe pequasse por detras nem pessoa / outra
que tal fizesse". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191, fl. 8-9.
621
Segundo Edlene Oliveira Silva, em seu estudo sobre as Cartas de Perdão concedidas a mulheres
acusadas, presas ou condenadas como concubinas de padres, em Portugal ao fim da Idade Média, era
comum que essas mulheres, ao apresentar sua defesa, tentassem construir uma imagem de si o mais próximo
que conseguissem do ideal cristão de virgindade e pureza, ou valendo-se do enunciado da fraqueza da carne,
para dissimularem suas culpas. A contrapartida era, a mais das vezes, uma tentativa de construir uma
imagem bastante negativa dos padres, responsabilizando-os inteiramente pelo pecado cometido. SILVA,
Edlene Oliveira. "Quem chegar por último é mulher do padre": as Cartas de Perdão de concubinas de padres
na Baixa Idade Média portuguesa. In: Cadernos Pagu, Campinas, SP, (37), julho-dezembro de 2011: 357-
386.
622
Roberto Daibert Jr. comenta sobre um inefável carisma dos padres nas sociedades de Antigo Regime do
Império português, sobretudo na colônia americana (durante longo tempo, parcamente controlada pelas
instituições eclesiásticas). Um carisma que se desprendia de seu status social, como autoridade consagrada
à vida espiritual, e de sua simbologia, como um homem-anjo, devotado, ao menos teoricamente, ao celibato.
"E assim, por sua condição especial e localização privilegiada, esses homens-anjos ou quase anjos
construíam sua fama e encarnavam o papel de pessoas consagradas ao serviço divino, por meio do status
obtido a partir de sua ordenação. Ao seu modo, no entanto, assim como os hóspedes de Ló, esses seres
especiais, porque teoricamente separados do mundo e consagrados a Deus, despertavam desejos nos
moradores das cidades onde se hospedavam. Quanto mais proibidos, mais cobiçados". DAIBERT JR.,
Robert. Entre homens e anjos: padres e celibato no período colonial no Brasil. In: PRIORE, Mary del;
AMANTINO, Marcia (orgs.). História dos homens no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 51.
274
consumando o pecado de sodomia nos termos da mecânica do ato enquadrada pelo Santo
Ofício, isto é, realizando a penetração anal com o membro viril e ali derramando semente.
O relato de Isabel Pereira pinta uma figura ainda mais dissidente e heterodoxa do
padre sodomita, ao recontar um diálogo que teria ocorrido entre os dois, nos quais a
criada, de sua parte, se apresenta como contrária ao pecado, temerosa do castigo divino,
ao passo que o sacerdote, diferentemente, destila enunciados que, como vimos no capítulo
anterior, atuam no sentido de colocar as categorias de sodomia e de heresia em estreita
colaboração no âmbito do dispositivo da carne. O debate erótico teria acontecido na forma
seguinte (descontando o filtro inquisitorial):
E ele a volvia, dizendo que fazia aquilo [a sodomia] para ela não emprenhar.
E ela confitente, pondo as mãos, lhe rogava que tal não fizesse e lhe dizia que
já que ela fora tão desgraçada, que chegara àquele estado. E que era mulher e
não homem, que dormisse com ela, confitente, por diante, como os homens
dormiam com suas mulheres, que o mais era grande pecado. E que Deus o não
perdoaria. E o dito Frei Felipe dizia, calai-vos, besta, que não sabeis o que
dizeis, que o pecado da carne, perdoa Deus mais que nenhum.624
623
Sobre o processo histórico da imposição do celibato ao clero secular da Igreja Católica durante a Idade
Média, ver: BRUNDAGE. Law, sex and Christian society, p. 214-223; PARISH. Clerical celibacy in the
West. Para uma abordagem geral das contestações populares à Igreja Católica na época das Reformas, ver
DELUMEAU. A civilização do renascimento, p. 136-8.
624
"E elle a / uoluia dizendo que fazia aquillo pa ella naõ / emprenhar e ella comfitente pondo as maõs / lhe
rogaua que tal naõ fizesse e lhe dezia que / ia que ella fora taõ desgraciada que chegara / aquelle estado E
que era molher e naõ homen / que dormice com ella confitente por diante / como os homens dormiaõ com
Suas molheres / que o mais que era grande pequado. E que // Deus lho naõ Perdoaria, E o ditto frei Fellippe
dizia / callaiuos besta que naõ sabeis o que dizeis que / o pequado da Carne perdoa deos mais que nenhũm".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191, fl. 8-9.
275
potencialmente escandalosa, ainda que bastante comum, consequência do coito por via
ordinária, vis-à-vis, uma eventual gravidez de Isabel Pereira. Ainda que pragmático, esse
argumento não dissuadiu a criada sobre a controversa vantagem da cópula sodomítica.
Ao contrário, a sensatez mundana do Frei parece ter causado ainda maior estresse
emocional à sua parceira, que, debatendo-se, expressou a interessante visão, disseminada
na cultura popular (mas tampouco alienígena à cultura erudita, como vimos no capítulo
anterior), de que o sexo anal, conformando o pecado/delito de sodomia, era uma prática
tipicamente homoerótica.625
625
Vainfas detectou a mesma associação entre sodomia e homoerotismo no nível da cultura popular, ao
analisar o processo da prostituta Maria Machada, trabalhadora do sexo em Lisboa no início do século XVII,
também ela acusada de sodomia imperfeita. "Também para gente simples, claro está, sodomia era coisa de
fanchonos ou somítigos, isto é de homossexuais [sic]". Apenas a relação de identidade entre os fanchonos
e somítigos da Lisboa seiscentista e os homossexuais modernos deve ser questionada na ponderação do
historiador. Mais a frente, trabalharemos em detalhe o processo de Maria Machada, pelo prisma das técnicas
de interpelação (sujeição-subjetivação) utilizadas pelo Santo Ofício. VAINFAS. Trópico dos pecados, p.
271.
626
RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 87-8.
627
"Dessas cinco formações ideológicas, amais importante é a negatividade sexual. As sociedades
ocidentais geralmente consideram o sexo uma força perigosa, destrutiva e negativa. Para grande parte da
tradição cristã, seguindo Paulo, o sexo é inerentemente pecaminoso". RUBIN. Pensando o sexo (1984), p.
81.
628
RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 82.
276
E como era essa ação do Santo Tribunal do Santo Ofício em relação àquelas
ovelhas desgarradas que terminavam por vagar pelas sulfúreas pastagens de Sodoma?
Vejamos como a pobre criada sodomizada sofreu convulsões de culpa, medo e
arrependimento ao sentir, em seu corpo, que assim se constituía como somítico e
barregão, o roçar das técnicas de poder manipuladas pelos inquisidores:629
E que não tinha outras culpas que confessar e que destas pedia perdão e
misericórdia a Deus e a esta mesa. E que se calou, quando pecou como dito é,
por não desonrar as freiras a quem servia e ao dito frade […].
[…]
629
Retiramos a figura dos corpos convulsionantes, sob o efeito das técnicas de poder em ação, em meio ao
jogo das relações de saber-poder-subjetivação em um dado dispositivo (no caso, o dispositivo da carne
cristã), da caracterização feita pelo teólogo Mark D. Jordan dos sujeitos estudados, em seus próprios
processos de constituição, por Foucault, como no trecho seguinte: "Minha leitura tem seguido uma fila de
corpos escandalosos em Foucault. A muitos deles, falta o discurso. Eles respondem à infinita loquacidade
do poder com sons inarticulados: o murmúrio inseto dos loucos excluídos, as orações rosnadas de um
regicida desmembrado, os gritos de freiras convulsionantes, os genitais que permanecem silenciosos,
enquanto nós fantasiamos seu discurso encantado, os gemidos da penitente quaresmal Fabíola, os clamores
de Creusa ao estuprador Apolo, os barulhos animalescos ou berros públicos de amor dos cínicos antigos
tentando atrair as multidões de volta para o divino". Tradução de minha autoria, no original: "My reading
has followed a line of scandalous bodies in Foucault. Many of them lack speech. They reply to the endless
loquacity of power with inarticulate sounds: the insect murmurs of the excluded mad, the groaning prayers
of a dismembered regicide, the cries of convulsing nuns, genitals that remain silent as we fantasize their
enchanted speech, the groans of the Lenten penitent Fabiola, the cries of Creusa to the rapist Apollo, the
animal noises or public love cries of the ancient Cynics trying to lure crowds back toward divinity".
JORDAN. Convulsing bodies, p. 198-9.
277
Ao 3º [artigo do libelo acusatório, respondeu] que não tinha mais que dizer,
que pedia perdão e misericórdia, o que fez com lágrimas e sinais de
arrependimento [...].
[...]
Perguntada se tinha contraditas com que vir e, para as formar, [se queria estar]
com seu procurador, disse que não e que só pedia perdão e misericórdia de suas
culpas. E que nelas caíra como mulher fraca e de pouco juízo, o que fez com
lágrimas e sinais de arrependimento.630
630
"E que naõ tinha outras Cul / pas que Comfessar e que destas pedia Perdaõ e misericórdya / a Deus e a
esta Santa meZa e que se callou quando / pequou como ditto he por naõ deSonrrar as freiras / a quem Seruia
E ao ditto frade […]. […] Ao 3º dice / que Naõ tinha mais que dizer, que pedia / perdaõ, e misericórdia, o
que fez cõ lagrimas, E / Sinais de arependimento [...]. [...]Perguntada, se tinha contradittas com / que uir e
para lhas formar, estar com seu / procurador. Dice que naõ, e que Só / pedia perdaõ, e misericórdia de Suas
culpas, e que / nellas cahira como Mulher fraca e de / pouco iuizo, o que fez cõ lagrimas, e / Sinais de
arrependimento [...]".DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191, fl. 9; 15v; 21v.
278
631
PRAXEDES, Vanda Lúcia. Mulheres concubinas de padres: tramas e enredos dos amores proibidos. In:
MAIA, Cláudia; PUGA, Vera Lúcia (orgs.). História das mulheres e do gênero em Minas Gerais.
Florianópolis: Ed. Mulheres, 2015, p. 43-44; SILVA. "Quem chegar por último é mulher do padre": as
Cartas de Perdão de concubinas de padres na Baixa Idade Média portuguesa, p. 372.
632
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 93-5; ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 142-5.
633
"A "defesa dos casados" configurava, assim, um "discurso" amalgamado, estranha composição de
sentimentos e ideias nem sempre convergentes. Nele se imiscuíam o apreço que a cultura ibérica devotava
ao casamento, elementos da propaganda matrimonial tridentina e, às vezes, o questionamento da primazia
que o catolicismo atribuía ao estado clerical ̶ debate erudito, este último, que por caminhos intangíveis
penetrara nas conversas de homens comuns". VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 95.
279
Se a sodomia imperfeita não era encarada pelos inquisidores como uma ofensa tão
grave como a sua versão perfeita – ou, em outras palavras, se a sodomia entre pessoas
categorizadas como ser-homem e ser-mulher não funcionava no campo discursivo com
634
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 274.
635
Essa hesitação que operamos aqui, e, em verdade, ao longo de todo o texto, sobre o que, quem e como
podia ser categorizado discursivamente e subjetivado, em relações de saber-poder, como ser-homem ou
ser-mulher, corresponde a um dos termos do contrato contrassexual elaborado por Paul-Beatriz Preciado
como estratégia de resistência ao regime de sexualidade do início do século XXI. O filósofo queer, depois
de apontar como a ideia de natureza que governa as definições de ser-homem e de ser-mulher não é mais
que um contrato social, escreve que: "No âmbito do contrato contrassexual, os corpos de reconhecem a si
mesmos não como homens ou mulheres, e sim como corpos falantes, e reconhecem os outros corpos
falantes como falantes" (ênfases nossas). O que está em jogo, aqui, é uma suspensão das categorias de ser-
homem e de ser-mulher, ou, ao menos, uma suspensão da sua naturalização. Ser-homem e ser-mulher são
modos de subjetivação, posições de subjetividade, históricos, portanto, imanentes às relações de poder
locais, provinciais, historicamente datadas. Mais do que "sexuados", os seres são conceituados por Preciado
como corpos (uma certa corporeidade que também é histórica) capazes de produzir discurso, fala,
linguagem, cultura. No contexto específico desta tese, por conseguinte, as noções de ser-homem e de ser-
mulheres devem ser percebidas como imanentes ao regime da carne cristã e às sociedades de Antigo
Regime, coloniais e escravistas, nas quais tais corpos falantes experimentam-se e produzem-se como
sujeitos de sua carne. PRECIADO. Manifesto contrassexual, p. 2.
636
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 269-274.
280
637
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 271.
281
como sodomitas. Trata-se de analisar como a operação de certas técnicas de poder, como
tecnologias de interpelação performativa dos sujeitos, como a confissão (distinguindo
entre os foros privado e o público da consciência), a tortura judicial, a apresentação em
autos da fé públicos ou privados e, finalmente, a relaxação ao braço secular (isto é, a
execução de condenados na fogueira) agiram na subjetivação/sujeição das personagens,
formando-as, até certo ponto (qual ponto?), como sujeitos sodomitas, dentro da cadeia de
enunciados anteriormente estudados.
638
"Duas reformas? Poderíamos igualmente distinguir quatro, sem em nada ceder aos demônios da análise",
afirmou Chaunu, ao problematizar a temporalidade das Reformas protestante e católica do século XVI.
Assim, o autor identifica uma primeira reforma na Idade Média Central, o movimento que girou em torno
da Reforma Gregoriana, sem se resumir a ela, conformando o que Brenda Bolton chamou da reforma
religiosa do século XII, um vasto movimento que vai de 1050 a 1226, terminando com a morte de S.
Francisco de Assis. A segunda reforma seria a de Lutero, correspondendo a terceira à contrarreforma da
Igreja. Finalmente, Chaunu inclui o heterogêneo campo das crenças e práticas religiosas dissidentes e
heterodoxas, categorizadas pelos poderes eclesiásticos como heresias, na problemática das reformas
religiosas do Ocidente, como um quarto movimento reformista. CHAUNU. O tempo das reformas, p. 10-
2; BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Século XII. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 13-4. Por sua
vez, Prodi considera que a discussão sobre a existência de uma "pré-reforma católica" deve ser considerada
superada, uma vez que é evidente que houve um tal movimento preliminar de reforma, desde que se entenda
com isso a ideia de que os vários grupos cristãos, no contexto das crises da cristandade, reivindicavam, de
maneira contínua, artigos como a autonomia eclesial em relação ao poder temporal (as liberdades da
Igreja), o combate aos abusos eclesiásticos e o retorno à Igreja primitiva (anseio pela vita apostolica).
Tratava-se, como temos visto, de um desejo por uma espiritualidade mais intensa, de maneira que a ideia
de que a Igreja deveria ser reformada tornou-se prevalente e associada à debilidade carnal, concupiscente,
inerente à condição decaída do homem, vindo daí a máxima Ecclesia semper reformanda, "a Igreja deverá
sempre ser reformada até ser governada pelos homens na história", conforme a explicou o historiador.
PRODI. Uma história da justiça, p. 238-9.
282
639
Para o conceito de interseccionalidade, ver o capítulo final desta tese, sobre sodomia e escravidão no
Brasil colonial. Para uma introdução ao conceito, ver: AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade?
Belo Horizonte, MG: Letramento, 2018.
640
Pensamos, com Margareth de Almeida Gonçalves, no barroco como uma expressão cultural das crises,
dos medos, das incertezas, dos dilaceramentos das subjetividades ocidentais em meio às crises de um
mundo superpovoado, ou que assim se percebia. GONÇALVES. Império da fé, p. 22-3.
641
Delumeau fala de uma subida e uma afirmação da piedade popular desde a Baixa Idade Média, contexto
em que a religião cristã ocidental tornara-se popular, tornando mais difícil o seu controle pelos clérigos.
283
Como resultado, expôs Le Goff, foi possível a expansão das superfícies cultivadas
e o crescimento da quantidade e da variedade da produção agrícola. A produção de
rendimentos superiores resultou que as populações medievais passaram a dispor de uma
alimentação mais abundante.645 Esse ganho de produção desdobrou-se no crescimento
demográfico e na expansão geográfica e cultural da cristandade. Cabe ter em mente que,
como comentou Duby, esse crescimento foi interpretado pelos contemporâneos como
uma dilatação do reino cristão na terra. Ou seja, a expansão social da Idade Média era
Formava-se um cristianismo de massas. Por sua vez, Chaunu vê, no movimento do laicato em direção a
uma maior espiritualidade, um dos marcos da ruptura do equilíbrio social e cultural que mantivera coesa a
sociedade medieval ocidental, uma vez que evidenciou a ruptura do antigo monopólio da camada clerical
sobre a cultura letrada e a possibilidade de acesso a uma rigorosa ascese erótico-espiritual. DELUMEAU.
A civilização do Renascimento 1, p. 136-8; CHAUNU. O tempo das Reformas, p. 72-3.
642
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 65.
643
"Os escritores nada dizem acerca do crescimento que começa então a apoderar-se do corpo da
cristandade ocidental. Os autores de crônicas e de histórias não sentiram que os homens à sua volta se
tonavam cada vez mais numerosos, melhor alimentados. […] Não se aperceberam sequer que, na ordem
das realidades temporais, o mundo mudava à sua volta". DUBY. O ano Mil, p. 195.
644
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Trad. José Rivair de Macedo. Bauru, Sp: Edusc,
2005, p. 55-8. (Coleção História)
645
LE GOFF. A civilização do Ocidente Medieval, p. 58-9; CHAUNU. O tempo das Reformas, p. 40.
284
646
DUBY. O ano Mil, p. 197-9.
647
"Da fusão de todos esses elementos nasceu, no fim do século XI, a espiritualidade da Cruzada. Não se
deve esquecer que foi por ocasião de uma assembleia de paz, reunida em Clermont em 1095, que o papa
Urbano II lançou um apelo que provocou a partida para a Terra Santa de inumeráveis fiéis. Para fazer reinar
por toda a parte a paz de Deus e libertar os cristãos do Oriente, oprimidos pelos turcos, era preciso combater
com o ferro. O apelo direto lançado pelo Papado aos cavaleiros, sem passar pelos soberanos - pelo menos
em um primeiro tempo - suscitou um poderoso movimento em favor da libertação do túmulo de Cristo. Ao
mesmo tempo, conferiu ao uso das armas, tarefa específica da classe feudal, o caráter de uma ação religiosa,
fazendo dele o instrumento de uma restauração cristã e da propagação da fé. Com as Cruzadas, a luta contra
os infiéis, e mais tarde contra os heréticos e outros inimigos da Igreja, o apelo de Clermont, oferecia-se uma
chance à aristocracia para que assegurasse a sua salvação, sem renunciar à sua vocação militar".
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 62
648
CHAUNU. O tempo das Reformas, p. 64-9.
285
649
CHAUNU. O tempo das Reformas, p. 69.
650
De fato, para um período posterior, Chartier demarca os diferentes ritmos de alfabetização em distintas
áreas do continente europeu. CHARTIER, Roger. As práticas da escrita. In: CHARTIER, Roger (org.).
História da vida privada 3. Da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 113-162.
651
"Assim, em toda a parte a era moderna conhece um crescimento, muitas vezes nítido, das porcentagens
de homens e mulheres capazes de assinar o nome, seja qual for o nível das taxas em valor absoluto. Nos
países reformados e nas nações católicas, nas cidades e nos campos, no Velho e no Novo Mundo, a
familiaridade com a escrita progride, dotando as populações de competências culturais que antes
constituíam o apanágio de uma minoria". CHARTIER. As práticas da escrita, p. 116-7.
652
"Assistimos, portanto, à formação de um escalão intermediário no saber. Estes middlemen da escrita vão
ser tentados a insurgir-se contra os detentores da cultura clerical, contra os escalões superiores, cujas
sutilezas lhes escapam. São talvez estes primeiros escalões mais numerosos que, no século das reformas da
Igreja, transportam mais tensões". CHAUNU. O tempo das Reformas, p. 71.
286
653
Para toda a história anterior à modernidade capitalista burguesa ocidental, devemos suspeitar dos
sentidos da categoria "indivíduo". Poderia ela sempre ter tido os significados liberais a que estamos
acostumados no presente? Cremos que não, no que nos apoiamos nas análises da historiadora Caroline
Walker Bynum sobre a descoberta do indivíduo ou do individual pela cultura da Idade Média Central. A
autora cita uma bibliografia variada, para mostrar como a noção de indivíduo começou a aparecer nessa
altura do medievo na teoria política, na literatura e no pensamento religioso. O indivíduo emergiu no
pensamento religioso a partir do século XII devido à sua nova preocupação com a descoberta de si e com
o exame psicológico de si, formando uma sensibilidade crescente à fronteira entre o Eu e o Outro, ao mesmo
tempo em que alimentava um novo otimismo quanto às capacidades do "Homem" para elevar-se
espiritualmente. Bynum enfatiza o sentido propriamente medieval do individualismo do século XII, díspar
do contemporâneo. No medievo, a personalidade individual não foi enfatizada às custas da consciência
corporativa ou estamental, o indivíduo medieval não se identificava para além da sua corporação ou
estamento. BYNUM, Caroline Walker. Jesus as mother. Studies in the spirituality of the High Middle Ages.
Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1982, p. 82-5.
654
"Para quem pode praticá-la, a leitura silenciosa abre horizontes inéditos. […] Depois permitiu um fervor
mais pessoal, uma devoção mais privada, outra relação com o sagrado além daquela regulamentada pelas
disciplinas e mediações eclesiais. A espiritualidade das ordens mendicantes, a devotio moderna, o próprio
protestantismo, visto como uma relação direta entre o indivíduo e a divindade, apoiaram-se largamente na
nova prática, que pelo menos a alguns permitia nutrir sua fé a partir da leitura íntima dos livros de
espiritualidade ou da Bíblia". CHARTIER. As práticas da escrita, p. 129.
287
feudal (um dos fatores a impulsionar a Reforma Gregoriana como estratégia de libertação
do clero das ingerências laicas), abriu espaço para a elaboração de novos arranjos nas
relações entre verdade-poder-subjetividade no seio do dispositivo da carne cristã,
tomando a forma de novas práticas de espiritualidade, tanto entre os clérigos (religiosos
e seculares), como, o que é de se ressaltar, entre os leigos. Enquanto o renascimento
urbano-comercial proporcionava o enriquecimento de vários, com a correlata difusão de
uma mentalidade do lucro,655 gestava-se, em contrapartida, um sentimento de repúdio ao
novo universo urbano-mercantil, que logo evoluiria para uma nova valorização da
pobreza como modo de vida. Ao mesmo tempo, o novo dinamismo social permitiu o
fortalecimento de práticas espirituais intensivas que demandavam o deslocamento das
pessoas, individual ou coletivamente, como as peregrinações. Nesse sentido, as cruzadas
não foram outra coisa que peregrinações armadas.656 Para a elaboração de novas práticas
de espiritualidade, concorreram também fatores externos à sociedade ocidental medieval,
como a difusão da (nova) experiência eremítica, das seitas dualistas orientais e das
controvérsias teológicas eruditas, com o tempo, mais e mais populares, isto é, mais
imersas na cultura popular.657
655
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. Economia e religião na Idade Média. Trad. Rogerio Silveira Muoio;
Revisão técnica Hilário Franco Júnior. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 13-29. Vale a pena lembrar
de uma curta passagem de Le Goff em sua biografia de S. Francisco: "Já na virada do século XII para o
XIII é a aceitação ou a recusa de possuir aquilo que o dinheiro consegue no ritmo acelerado da difusão da
economia monetária". LE GOFF. São Francisco de Assis, p. 65.
656
"A cruzada, peregrinação armada, apagava a pena devida pelo pecado, que ocupava, nessa época, um
lugar tão importante quanto a confissão no processo penitencial, pois considerava-se que a falta só era
totalmente redimida depois de expiada" (Grifos nossos). VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média
ocidental, p. 91.
657
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 65-8.
658
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 69.
288
Medievo. Antes disso, contudo, a Reforma Gregoriana abrira a possibilidade para que as
pessoas leigas começassem a se pensar um tanto quanto autônomas em relação ao clero,
porque o Papado demandara de todos os cristãos uma fidelidade direta, realizando-se na
colaboração com os objetivos da Reforma. No século XI, esses objetivos diziam respeito
ao combate aos clérigos simoníacos, casados ou concubinários (para o que os papas
convocaram a intervenção de príncipes e cavaleiros). O sentido desse apelo foi repetido
pelo papa Urbano II, em 1095, na convocação de Clermont, reiterando a importância do
laicado na Igreja. Em todo esse demorado processo, que não desconheceu retrocessos, os
leigos foram abandonando a postura passiva e adotavam posturas de ação no que dizia
respeito à sua conversão à verdade cristã. Estava sendo elaborada uma nova fase no
regime das relações entre verdade, poder e subjetivação nos termos do dispositivo da
carne.659
Como se pode caracterizar essa nova fase do dispositivo, no que tocava às práticas
de espiritualidade a partir da Idade Média Central?
659
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 90-1.
660
Em razão de sua apropriação constante pelos movimentos que adotaram uma estilística da existência
centrada na pobreza evangélica, vale a pena citar uma passagem do capítulo 2 dos Atos. Nela, a primeira
comunidade cristã é descrita nos termos seguintes: "Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos
apóstolos; à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações. Apossava-se de todos o temor, pois numerosos
eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos. Todos os que tinham abraçado a fé
reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos,
segundo as necessidades de cada um. Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam
289
conforme estudamos no capítulo 1, era um dos três traços centrais do dispositivo da carne
cristã), baseada no retorno às fontes antigas, não se desliga do contexto cultural do
Renascimento do século XII, que valorizava o que se chamava de "a boa latinidade".661
O estilo de existência chamado vita apostolica foi experimentado como um novo encontro
do Evangelho com o mundo, resultando em subjetividades carnais e cristãs que se
pretendiam mais autênticas, por emularem a figura que construíam dos apóstolos e de um
Cristo humanizado. O novo estilo de existência espiritual centrou-se em dois tipos de
práticas: a vida comunitária e a pobreza voluntária.662
Este novo ideal de vita apostolica veio disputar com a tradicional vida monástica
a condição de modelo de vida perfeita. O que estava em jogo nessa disputa era a definição
das condições de acesso à verdade. Tratava-se de uma nova metanóia ou conversão. Na
trilha dos ensinamentos patrísticos, a vida monástica tinha assumido a posição de
exemplo mais perfeito da vida voltada à contemplação da verdade, como se lê, por
exemplo, no tratado Contra os Impugnadores da Vida Monástica, de S. João Crisóstomo.
No contexto medieval, após a Reforma Gregoriana, iniciou-se um processo de
alargamento da concepção de vida perfeita para os cristãos. Esse processo foi deflagrado
pela própria Igreja, ao pretender cuidar das condutas de todo o clero, não somente o
regular, forçando-o inteiramente ao modelo de vida angélica até então esperado e
demandado apenas aos monges. Trata-se do combate à simonia e, principalmente, ao
nicolaísmo.
Ainda que uma minoria tenha de fato abraçado o novo ideal de vita apostolica, foi
um contingente suficiente para engendrar novas formas de práticas de espiritualidade. No
meio clerical, desenvolveram-se um eremitismo e um monaquismo de novo tipo (foi o
momento do nascimento da Ordem de Cister), além da difusão da vida canônica entre os
clérigos seculares, muitos dos quais se tornaram cônegos regulares. No meio leigo, a nova
espiritualidade foi praticada por uma variedade de movimentos, como as cruzadas, os
humilhados e penitentes de várias vertentes, as ordens mendicantes a partir do século XIII
e as dissidências heréticas.663
o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e gozavam
da simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos" (At. 2:
42-47), Bíblia de Jerusalém, p. 1905. Também vale destacar o capítulo dois da Epístola aos Gálatas, (Gl.
2), Bíblia de Jerusalém, p. 2032-3.
661
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 70.
662
BOLTON. A reforma na Idade Média, p. 22.
663
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 72.
290
664
DUVERNOY, Jean. La religione dei Catari. Fede, dottrine, riti. Roma: Edizioni Mediterranee, 2000, p.
33-5.
665
Comentando o tema da conversão de S. Francisco, conforme narrado nas duas primeiras biografias
medievais do santo, Le Goff escreveu: "A todos, longe das hierarquias, das categorias, das
compartimentações, [S. Francisco] propõe um único modelo, o Cristo, um único programa, "seguir nu o
Cristo nu". LE GOFF. São Francisco de Assis, p. 38. O historiador Franco Mormando interessou-se pela
trajetória do adágio nudus nudum Christum sequi (ou sequere) no contexto da espiritualidade medieval e
das atitudes do período em relação à nudez masculina. O autor identifica que, em S. Francisco e nos
primeiros franciscanos, indo até a juventude de S. Bernardino de Siena, no início do século XV, a exortação
ao fiel que se desnudasse em imitação ao Cristo nu não fora meramente um apelo espiritual. O ato de despir-
se e ir às cidades pregar nu (o que não significa exatamente despido de toda vestimenta, uma vez que o
sentido de nudez, na época, não compreendia a ausência total de roupas) tinha o sentido de admoestar os
povos à penitência e a seguir o exemplo de Cristo. De fato, há relatos de que S. Francisco e S. Bernardino
praticaram esta forma de nudez, como penitência do corpo e do ego. Todavia, no início do século XV, os
sentidos da nudez masculina começaram a mudar nas cidades italianas. Ela passou a ser gravemente
penalizada, por associação à sodomia, à heresia e à feitiçaria (trata-se do contexto de assimilação discursiva
das categorias de sodomia e de heresia, estudado no capítulo anterior). A pregação do próprio S. Bernardino
de Siena, radicalmente antissodomítica, foi um dos vetores para a intolerância intensificada, refletindo-se
na criação de leis mais severas contra os sodomitas (como vimos no capítulo anterior). Assim, Mormando
relata o caso de um grupo de frades franciscanos que, pregando nus pelas ruas de Veneza, em 1420, não
obstante o séquito de leigos devotos que os acompanhavam, foram presos pelos Signori de Notte (Senhores
da Noite) e acusados de sodomia. MORMANDO, Franco. "Nudus nudum Christum sequi": the Franciscans
and differing interpretations of male nakedness in Fifteenth-century Italy. In: Fifteenth-century Studies,
Rochester, NY, 33, 171-197, 2008.
291
666
BOLTON. A reforma na Idade Média, p. 31.
667
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 62.
668
Vauchez mostra como o monasticismo beneditino alcançou seu maior esplendor entre o fim do século
XI e as décadas iniciais do XII. O autor adverte contra a ideia de que houve uma crise monástica no fim do
século XI. Os cistercienses abandonaram Cluny no momento de apogeu da ordem, em busca de uma outra
experiência espiritual. Tratava-se da emergência de uma nova espiritualidade monacal. VAUCHEZ. A
espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 86-7.
292
(daí o nome valdenses), que estourou na região do reino de Arles (que seria incorporado
ao reino de França no século XIV) por volta de 1173.669 Vauchez fala também de um mal-
estar ou angústia generalizado entre os leigos, motivado pelas condenações da Igreja ao
dinheiro, ao lucro e à usura (o que se demonstra pela ascensão da avareza na hierarquia
dos pecados capitais no período). Excitados, os escrúpulos morais das pessoas laicas –
ansiosas por se (trans)formarem, estilizarem suas existências, por meio de uma
experiência espiritual intensa – frequentemente se radicalizaram, levando-as a adotar,
como penitência, a pobreza, bem como a criticar, cada vez mais ferozmente, as
contradições da majestade da Igreja visível.670
669
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 73-4; 88-90.
670
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 98. Vale lembrar aqui das considerações de
Delumeau a respeito do que chamou de "mal-estar religioso", manifestado como uma "doença do
escrúpulo", a se tornar mais forte e mais frequente na passagem do Medievo à Modernidade, dentro da
pastoral cristã do medo e da culpa, intensificada ainda mais pelos choques das Reformas do século XVI e
pelo Concílio de Trento: "Em nossa civilização ocidental, essa doença da alma não atingiu apenas
personagens fora de série. Ela foi um fenômeno relativamente disseminado, identificável […]".
DELUMEAU. O Pecado e o Medo 1, p. 600.
671
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 91-4.
672
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 90.
293
Queda patente que, nesse novo quadro, o problema do acesso à Palavra Divina
estava posto e se tornaria central nos conflitos em torno da definição dos limites da
ortodoxia e da heresia.673 Desde o século XII, cada vez mais o laicato pretendeu um acesso
imediato à Palavra, à sua leitura (inclusive em vernáculo), à interpretação e,
eventualmente, à divulgação. Se todos os cristãos foram intimados (uma nova missão) a
transformarem-se em imitação à humanidade de Cristo, aderindo, como penitência, a um
novo estilo de vida, uma existência apostólica e evangélica, por que não poderiam todos
os cristãos cumprirem inteiramente a missão penitencial? Por que não poderiam também
os leigos assumir os encargos de pregação?
673
BOLTON. A reforma na Idade Média, p. 30.
674
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 98.
294
675
BOLTON. A reforma na Idade Média, p. 23-4.
676
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 98-9.
677
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 154-205.
678
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 249-324. Ver a tese de Wendell dos Reis Veloso, para uma
análise queer do projeto de saber-poder agostiniano para o sexo (o dispositivo da sexualidade agostiniano,
como o denominou o autor), e suas relações com as problemáticas da virgindade e do sexo conjugal.
VELOSO, Wendell dos Reis. Os continentes, os conjugati e os outros. Identidade cristã e a instituição da
sexualidade divina nos escritos de Agostinho de Hipona (séculos IV e V). Tese (doutorado em História).
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-
graduação em História, Seropédica, RJ, 2019, p. 73-103; 141-188.
295
679
DUBY. Idade Média, idade dos homens, p. 10-30; 120-8. Para uma abordagem feminista crítica às
teorias marxista, estruturalista e psicanalista do parentesco, consultar RUBIN. O tráfico de mulheres (1975),
p. 9-61.
680
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 108. Para as regras eclesiásticas a regular a
continência sexual dos esposos, ver o tópico de Vainfas, "A economia dos prazeres: o leito conjugal".
VAINFAS. Casamento, amor e desejo no Ocidente, p. 36-48.
681
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 100.
296
matrimônio cristão ao longo da Idade Média. João Scoto, já no século IX, prescreveu o
consenso individual (isto é, a noção de que a escolha dos nubentes deveria ser espontânea,
individual e pessoal) como necessário para o casamento, o qual não poderia ser
considerado completo sem a realização da cópula, uma parte doravante considerada
obrigatória da união conjugal (o que não excluía a noção de casamentos espirituais, uma
vez que a castidade dos cônjuges podia ser interpretada como continente, ou seja,
seguindo os preceitos da Igreja sobre quando, como e por quais razões praticar o coito).
No século XII, vários autores interferiram na polêmica. No Decreto, Graciano
argumentou que o consenso individual necessário ao casamento implicava
obrigatoriamente o sexo. Hugo de São Vítor declarou que a razão de ser do casamento
residia no débito conjugal (isto é, nas relações sexuais conjugais). Hildebert de Lavardin
elevou a união carnal natural à posição de símbolo da união espiritual entre Cristo e a
Igreja (uma metáfora antiga, empregada, antes, preferencialmente ao estado da
virgindade).682
Seguindo essa linha teológica, o papa Alexandre II, ainda no século XI,
reconheceu como simples conselhos, não como preceitos, os antigos cânones relativos à
continência dos casados nos dias de jejum. Tratou-se de uma operação discursiva de
fundamental importância, pois retirava poder de verdade dos enunciados que regulavam
682
VAINFAS. Casamento, amor e desejo no Ocidente, p. 30-1.
683
VAINFAS. Casamento, amor e desejo no Ocidente, p. 31.
297
da forma mais estrita o sexo conjugal. Um século depois, o papa Alexandre III, em sua
bula ao mestre da Milícia de S. Tiago, no contexto da cruzada pela reconquista cristã da
Península Ibérica, afirmou que o estado de perfeição da vida cristã não se restringia à
virgindade. Passava, por conseguinte, a ser possível conduzir uma vida perfeita, voltada
para as relações com a verdade, mesmo no estado de leigo. Segundo Vauchez, o impacto
desta ordem foi grande, resultando no deslocamento do centro de gravidade da vida
religiosa cristã (ao menos no que tocava os leigos, acrescentaríamos) da
virgindade/continência/celibato, para as virtudes da obediência e da penitência.684
Contudo, vale lembrar, com Vainfas, que o novo modelo de casamento cristão fazia parte
do projeto de poder da Igreja durante o Medievo, não podendo ser descolado da Reforma
Gregoriana. Assim, a benção do matrimônio para os leigos, ou até a aceitação dele como
um estado espiritual, sagrado e sacramental, foi uma forma de compromisso entre a
doutrina tradicional (o ideal da virgindade) e a vontade de poder eclesiástica sobre o
laicato. Assim, se os leigos passaram a se casar em igrejas e com as bênçãos de um
sacerdote, podendo inclusive professar uma vida espiritual neste estado (como nas ordens
militares ou nas confrarias leigas), não se deve esquecer que, do ponto de vista da Igreja,
a superioridade clerical estava assegurada devido à imposição do celibato ao clero secular.
Destarte, permanecia, em concordância com a doutrina, o celibato e a virgindade como
estado superior.685
Figura 3: A hierarquia sexual: a disputa por onde traçar uma linha divisória
684
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 108-9.
685
VAINFAS. Casamento, amor e desejo no Ocidente, p. 36.
298
686
RUBIN. Pensando o sexo (1984), p. 83.
299
687
RUBIN. Pensando o sexo, p. 83-4.
688
VAINFAS. Casamento, amor e desejo no Ocidente, p. 30-4.
689
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 49-65, 93-5; ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 115-125,
142-7.
690
BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Parenética e profissão de religiosas em Seiscentos. A
glorificação da vida fora do século. OPSIS, Catalão, v. 13, n. 2, p. 419-447, jul./dez. 2013.
300
691
A historiadora Sueann Caulfield estudou o problema da honra na sociedade brasileira do início do
período republicano, conectando-o diretamente ao processo de formação da identidade nacional brasileira.
A tipificação do crime de defloramento no Código Penal republicano de 1890 – mantendo, com algumas
alterações, a categoria existente no antigo Código Penal do Império, de 1830 – esteve no centro do debate
sobre a honra, seus significados em uma ordem liberal e patriarcal e sua relação com a identidade nacional.
Caulfield mostrou que, a despeito das tentativas de uma geração mais jovem de juristas, em 1890, a
definição jurídica de honra manteve uma dimensão patriarcal teoricamente incongruente com o liberalismo
clássico. Como resultado dessa contradição interna ao Código Penal (e também ao Código Civil de 1916),
foram preservadas as ideias de uma honra masculina estamental, que estabelecia seu privilégio no público,
e da honra feminina como um atributo moral-sexual, do que derivariam as noções de pureza sexual e de
honestidade, como categorias jurídico-morais, além da conclusão de que a defesa da honra feminina seria
uma responsabilidade masculina. Nessas condições, o crime de defloramento foi tipificado na sua relação
com o problema de definição da virgindade. O que era ser virgem, na sociedade brasileira que se queria em
um processo de modernização (com a abolição da escravidão e a proclamação da República), mas que, do
ponto de vista de suas elites brancas, contava com uma população cuja miscigenação étnica era interpretada
como degeneração racial e civilizacional? A virgindade das moças foi definida como um problema da honra
da família, de modo que, desde já, mulheres consideradas sem uma família “honesta” dificilmente poderiam
ser virgens e, portanto, não poderiam ser defloradas. A definição do defloramento envolveu muitas
questões. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Trad. Elizabeth de Avelar Solano Martins. Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de
Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 51-107.
692
AQUINO. Suma teológica. V. VII (Questão 154, Livro III), p. 3137-8; 3155-6
301
693
DUBY, George. Heresias e sociedades na Europa pré-industrial, séculos XVI-XVIII. In: DUBY, George.
Idade Média, idade dos homens. Do amor e outros ensaios. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 206-7.
302
do sexo em geral e da sodomia em particular, uma vez que, como temos visto, os dois
domínios de práticas discursivas (o da espiritualidade e o do erotismo) se intercalavam,
com enunciados transitando de um campo a outro.694 Assim, se a definição do que era ser
herético variou no tempo, é razoável imaginar que as definições de dissidência erótica
também foram transitórias. Isso é útil ao investigar-se como os inquisidores procederam
variamente em relação às distintas modalidades do pecado/delito de sodomia na Época
Moderna.
694
Para as relações profundas, na cultura ocidental, entre o erotismo e o sagrado, ver BATAILLE. O
erotismo, p. 53-62; 87-93; 142-153.
695
Para esse contexto, ver BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente. Trad. Eduardo
Nogueira. Rev. Saul Barata. Lisboa: Editorial Presença, 1999. (Construir a Europa)
696
BARROS. Papas, imperadores e hereges na Idade Média, p. 56-9.
303
uma coincidência estrita entre experiência, estética e veridição do cristão que se pretenda
verdadeiro (critério de autenticidade). Encaixaram-se nesse filão movimentos como os
Pobres de Lyon, os franciscanos, os humilhados. Note-se que não se trata de criticar os
fundamentos dogmáticos do cristianismo. As objeções eram dirigidas às estruturas
eclesiásticas, o que não quer dizer que um repúdio a esse nível não poderia transformar-
se em ruptura, como no caso do movimento hussita no século XV e o próprio rasgo
luterano no XVI. A segunda corrente, que se consolida após 1140, dirigiu suas críticas
aos dogmas do cristianismo, incorporando as crenças dualistas, que retraçam sua
genealogia ao maniqueísmo antigo, que se espalhavam por regiões da Europa nos séculos
XI-XII. Esse filão é representado principalmente pelos cátaros.697
697
VAUCHEZ. A espiritualidade na Idade Média ocidental, p. 102-105.
698
DUBY. Heresias e sociedades na Europa pré-industrial, séculos XVI-XVIII, p. 216.
304
699
MANSELLI, Raoul. La religion populaire au Moyen Âge. Problèmes de méthode et d'histoire.
Conférence Albert-Le-Grand 1973. Paris: Institut D'Études Médiévales Albert-Le-Grand, 1975, p. 191-3.
700
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. Trad. Denise Bottman. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 11-9.
701
MANSELLI. La religion populaire au Moyen Âge, p. 195-6.
702
SULLIVAN, Karen. Truth and the heretic. Crises of knowledge in Medieval French Literature. Chicago,
IL: University of Chicago Press, 2005, p. 120.
305
Inquisição se fez temida pela sua prerrogativa de remeter os que julgasse culpados ao
braço secular, indicando tratar-se de hereges impenitentes, não arrependidos, não
submetidos, portanto, passíveis, segundo as leis seculares dos vários reinos, de morrer na
fogueira.703
703
MANSELLI. La religion populaire au Moyen Âge, p. 196-7.
704
A questão das pessoas que intermediavam o trânsito cultural entre as tradições é central para escapar à
uma concepção inflexível da cultura. Schwartz as descreveu como "pessoas com um certo grau de instrução,
que sabiam ler e escrever e que graças ao acesso à informação oferecido pela imprensa e por livros baratos
reivindicavam cada vez mais a possibilidade de saber e pensar por si mesmas", as quais "tiveram um papel
fundamental de agentes e intermediários na relação entre os dois tipos de cultura". SCHWARTZ, Stuart B.
Cada um na sua lei. Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. Trad. Denise Bottman. São
Paulo: Companhia das Letras; Bauru, SP: Edusc, 2009, p. 31. 263. As ações dos mediadores culturais
empreendiam o trânsito ou a circulação de ideias, valores, sentimentos, práticas entre os estratos culturais,
um movimento que ocorria em múltiplas direções. O historiador italiano Carlo Ginzburg defendeu
fortemente a ideia de circularidade entre os estratos culturais para explicar como algumas proposições
podiam aparecer em atos de falas de pessoas que ocupavam posições sociais distintas e distantes na
hierarquia vertical. Apoiado em Bakhtin, Ginzburg entende a circularidade cultural como o influxo
recíproco entre a cultura subalterna e a hegemônica, o que foi particularmente intenso no século XVI.
GINZBURG. O queijo e os vermes, p. 10; 15-19. Todavia, diferentemente de Ginzburg, não consideramos,
aqui, que a proposta de Bakhtin das influências recíprocas seja antagônica à abordagem do método
foucaultiano (que consideramos ter sido distorcido na caracterização que dele fez Ginzburg, no seu prefácio
à edição italiana de O queijo e os vermes). Juntamente a Durval Muniz de Albuquerque Júnior,
reconhecemos, ao mesmo tempo, algumas semelhanças nas abordagens de Foucault e Ginzburg, e
diferenças fundamentais acerca das suas respectivas concepções de história, sujeito e razão. Tais diferenças
acabam resultando em focos distintos na análise de personagens, até certo ponto, similares (o parricida
Riviére e o herético Menocchio). Nas palavras de Albuquerque Jr.: "Ginzburg toma a palavra para superar
os silêncios, Foucault toma a palavra para ressaltar os silêncios. O primeiro tenta tornar tais silêncios em
palavras ditadas pela razão, o segundo usa a palavra para denunciar os silêncios produzidos pela razão"
(uma posição que não pode de forma alguma ser dita "uma muda contemplação estetizante"). Se, para
Foucault, o discurso é em si mesmo um acontecimento histórico, o problema da circulação de enunciados
(funções das frases, proposições e atos de fala que constituem determinado arquivo) entre os diferentes
discursos que compõem ou ocupam distintos estratos culturais (hierarquizados segundo as relações de poder
contingentes) é central. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Menocchio e Rivière: criminosos
da palavra, poetas do silêncio. In: ___. História. A arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007, p.
111.
306
transmitida principalmente de forma oral, mas também por meio de escritos (manuscritos
e cada vez mais impressos) de baixo custo, popularizados na Época Moderna após a
disseminação da imprensa e acompanhando a elevação secular do domínio das
habilidades de ler-escrever (nem sempre coincidentes) ao longo dos séculos XVI ao XIX.
Ainda que as duas tradições fossem interdependentes, Burke caracterizou o seu processo
histórico como um afastamento recíproco, motivado pelas campanhas de reforma da
cultura popular no início da Modernidade.705
705
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 26-100.
706
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 19.
307
Monarquias Católicas ibéricas) e os bispos locais foram impondo, por meio de decretos,
novas constituições, sínodos e concílios episcopais ou paroquiais, os dogmas reformistas
da cultura popular e da Contrarreforma católica. A conexão entre as reformas cultural e
religiosa se dava sobretudo no terreno das definições do sagrado e do profano. Os
reformadores pressionavam por uma distinção mais rígida nas práticas cotidianas
populares. Estava em jogo uma disputa entre o que Burke chamou de duas éticas ou
modos de vida rivais, o que podemos entender como duas estéticas da existência, dois
modos de se experimentar e se constituir como sujeito. Na descrição do historiador, a
ética dos reformadores girava em torno dos valores de decência, diligência, gravidade,
modéstia, ordem, prudência, razão, autocontrole, sobriedade e frugalidade, podendo ser
resumida na expressão weberiana "ascetismo mundano".707 Vemos aí uma vontade de
poder dos reformadores (culturais e religiosos) de difundir e impor a ordem de discurso
da carne cristã.
707
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 280-293.
708
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 289.
709
ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 87-148.
308
710
VIANA JÚNIOR, Mário Martins. Masculinidades compósitas nas capitanias do Norte da América
portuguesa (séculos XVI e XVII). Tese (Doutorado em História Cultural). Florianópolis, Universidade
Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-graduação em História Cultural, 2013, p. 37-136; 186-193.
711
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio. França e Inglaterra. Prefácio
Jacques Le Goff; Trad. Júlia Mainardi. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 253-294.
712
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François
Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
1999, p. 1-7.
309
713
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 201.
714
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 9-15.
310
715
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 16.
716
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 17-9.
717
Enxergamos, aqui, a caracterização do erotismo como experiência interior da transgressão do interdito,
conforme descrita por Bataille. Segundo o autor, o erotismo é uma das dimensões fundantes do humano,
na medida em que abre para o homem questionar-se sobre o seu ser a partir de sua atividade sexual,
formando, destarte, sua interioridade. O que na atividade sexual humana, mas não na animal, permite essa
espécie de questionamento do ser? Uma resposta primária ou objetiva (a resposta científica) seria a
experiência do interdito como algo exterior, algo imposto de fora. Todavia, não é nesse nível que, segundo
Bataille, se torna possível uma descrição do erotismo como experiência interior, conectada, por
conseguinte, à religião. O que faz com que a atividade sexual, nos seres humanos, abra para a experiência
da interioridade é a conexão, que Bataille entende nos termos da dialética hegeliana, entre o interdito e a
transgressão. O que é a transgressão? É a ação de superar mantendo (aufheben) o interdito, isto é, suspendê-
lo, sem suprimi-lo. Transgredir implica, pois, uma cumplicidade entre a lei e a sua violação, entre o
mandamento divino e o pecado, uma conciliação do inconciliável. Na experiência, interiorizada, erótica,
consequentemente, o medo que o interdito provoca não se separa do desejo, que é seu sentido profundo. A
angústia da transgressão, da superação do interdito que não foi suprimido, é a própria experiência do
pecado, de maneira que vemos como a espiritualidade (no sentido de prática de subjetivação) não se desliga
da voluptuosidade do interdito. No caso do interdito anal, a conexão dialética entre pecado e beatitude é
311
cima, vindo de uma ação do ânus e dos intestinos até o coração e a mente, chocando-se
com as maneiras como a cultura letrada passou a conceber o indivíduo e seu prazer
individual durante a Época Moderna, centrando-os ambos nas partes altas e nobres do
corpo, notadamente no coração.718 O ânus, na cultura popular, é um órgão ativo na
produção de prazer, que deriva da concepção aberta do corpo. A exploração do ânus fazia
parte das possibilidades de experiências eróticas, de uma maneira não controlada por
dispositivos de poder.719 Isso não quer dizer que o ânus fosse uma zona livre para além
das relações de poder: essas somente eram as que organizavam a inteligibilidade e a
comunicabilidade da cultura popular, ou seja, os princípios do cômico, da materialidade
corporal e do rebaixamento.
ainda mais dramática, na medida que a angústia da transgressão (do superar mantendo) é mais aguda,
conforme narrou Bataille em sua vertiginosa História do olho. BATAILLE. O erotismo, p. 53, 62;
BATAILLE, Georges. Historia del ojo. Trad. Margo Glantz. 2. ed. México, D.F.: Ediciones Coyoacán,
1994.
718
"O corpo humano é quente. Para o homem da época moderna, o comportamento é determinado pela
qualidade e pela quantidade do calor do corpo. Não havia dúvida sobre as origens desse calor. Ele não vem
do fígado, nem do baço, nem do cérebro, e sim do coração. A ideia do eu centraliza-se, pois, no coração".
Trata-se de uma concepção de eu vincada na grande tradição da cultura letrada, como a referência à antiga
teoria dos calores corporais deixa implícito. RANUM, Orest. Os refúgios da intimidade. In: CHARTIER,
Roger (org.). História da vida privada 3. Da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 231.
719
Na modernidade contemporânea, algumas subculturas experimentam com a atividade do ânus, com o
prazer da analidade, deslocado do sistema de sexo-gênero da penetração fálica. "O ânus, como lugar de
exploração, de prazer e de trabalho; o ânus e o reto, lugares tradicionalmente excluídos do prazer, são
reivindicados de uma forma diferente, não como lugar de recepção do pênis (órgão que dá valor de uso
dentro do pornô), mas como lugar ativo, de produção de prazer e de abertura do corpo". (Ênfases do autor).
SÁEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Pelo cu. Políticas anais. Trad. Rafael Leopoldo. Belo Horizonte, MG:
Letramento, 2016, p. 113.
720
Sáez e Carrascosa, a partir das análises de Hocquenghem e de Preciado, escavam as camadas culturais
das várias categorias reguladoras do homoerotismo na história ocidental para resgatar a concepção antiga
do ânus como ativo, de maneira a engendrar uma nova ética da existência LGBTQIA+ na
contemporaneidade. "A promoção de um orgulho passivo deveria também questionar algumas das
conotações da palavra passivo. […] Na realidade, o cu, o ânus, o reto, a próstata, são lugares de atividade,
relaxam, se agitam, se excitam". SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 161. Paco Vidarte, em seu manifesto
Ética bixa, também buscou pensar o "cu" para além das normatizações dos sucessivos dispositivos
históricos que, segundo Hocquenghem e Preciado, o castraram: "O que o poder entende ser o cu de uma
bixa não é o mesmo que uma bixa entende que é o seu cu. Para o poder somos paus no cu, cus sem eu, sem
possibilidade, necessidade ou atitude para ter qualquer iniciativa política. Cus para dar, cus para tomar. Cus
que reclamam serviços públicos para não se cagarem pelas calçadas: está bem, vamos dar isso, não
queremos que encham tudo de merda. Cus despolitizados. Pois bem, meu cu é coletivizado, que não é o
mesmo que ser meu cu. Tenho um cu solitário, o que é diferente de ter um cu que busca seu prazer
egoisticamente. Tenho um cu entregue, o que é diferente de ter um cu vampiro. Tenho um cu engajado,
incapaz de foder com necas anônimas, de direita, depauperadas, imigrantes: dando na mesma para ele. Ou,
312
Na cultura popular da Época Moderna, o ânus era aberto e ativo, formando uma
concepção de corpo bastante diferente daquela da grande tradição das elites. Aliás, foi
uma das tarefas centrais das reformas dos séculos XVI ao XVIII disseminar seu modelo
de eu-corporal, fechando, lacrando os ânuses populares. Daí a ideia de cicatriz anal
presente em Hocquenghem e em Preciado.723 Tratava-se de fazer prevalecer uma ideia do
indivíduo como um ser completo, fechado em si mesmo, uma unidade distinta, autônoma
e consciente de seus limites.724 Segundo Bakhtin, foi no Renascimento que o corpo
começou a ter um caráter privado e pessoal, o que foi resultado de uma longa
domesticação (um processo civilizador, diria Elias).725 O corpo é subtraído à unidade com
a terra (o baixo, o ânus e o ventre, os genitais) regeneradora. Esse corpo da cultura
popular, com seu ânus aberto e regenerador, não conformava um indivíduo idêntico a si
mesmo (estava distante do sujeito moderno, tratar-se-ia de uma outra subjetividade),
formava um contínuo com o mundo material (recordemos a referência de Preciado às
pessoas que anseiam por amar com as flores e os javalis),726 ultrapassando os limites da
ao menos, essa é a ética à qual aspira, sua analética". VIDARTE, Paco. Ética bixa. Proclamações libertárias
para uma militância LGBTQ. Trad. Maria Selenir Nunes dos Santos, Pablo Cardelino Soto. São Paulo: n-
1 edições, 2019, p. 34-5.
721
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 331-4.
722
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810.
723
"El ano castrado se convirtió en un mero punta de expulsion de detritus: orificio en el que culmina el
conducto digestivo y por el cual se expele el excremento. Puesto a disposici6n de los poderes publicos, el
ano fue cosido, cerrado, sellado. Así nació el cuerpo privado". Em tradução livre e de nossa autoria, "O
ânus castrado se converteu em um mero ponto de expulsão de detritos: orifício em que culmina o conduto
digestivo e por qual se expele o excremento. Posto à disposição dos poderes públicos, o ânus foi costurado,
fechado, selado. Assim, nasceu o corpo privado". PRECIADO, Paul-Beatriz. Terror anal. In:
HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual. Prólogo René Schérer. Epílogo Paul-Beatriz Preciado.
Trad. Geoffroy Huard de la Marte. Barcelona: Melusina, 2009, p. 136.
724
SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 101.
725
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann.
Revisão e apresentação Renato Janine Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 129-141.
726
"Los Santos Padres, temerosos de que el cuerpo nacido conociera el placer de no-ser-hombre, de no-ser-
humano, de revolcarse entre los jabalfes y las flares, tomaron todo lo que tenfan a mano (el fuego, la rueda,
el lenguaje, la ffsica nuclear, la biotecnología…) y pusieron en marcha una tecnica para extirpar del ano
313
pele (até que ponto uma fronteira assim porosa é uma fronteira?), fundindo particular e
universal. O corpo, na cultura popular, ultrapassava-se a si mesmo, daí as suas partes mais
destacadas serem aquelas que se abrem ao mundo exterior – o que é exterior a um corpo
no formato de uma rosquinha, ou de uma garrafa em que boca e ânus se comunicam?727
Assim, atos como o sexo, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber e a satisfação
das necessidades corpóreas tinham destaque na linguagem popular, revelando um corpo
que é princípio de crescimento, sempre incompleto, criado e criador de si mesmo. Um
corpo aberto e incompleto, misturado ao mundo, confundido com animais e coisas, com
flores e javalis.728
toda capacidad que no fuera excremental". Em tradução livre e de nossa autoria: "Os Santos Padres,
temerosos de que o corpo nascido conhecesse o prazer de não-ser-homem, de não-ser-humano, de chafurdar
entre os javalis e as flores, tomaram tudo o que tinham à mão (o fogo, a roda, a linguagem, a física nuclear,
a biotecnologia...) e colocaram em marcha uma técnica para extirpar do ânus toda a capacidade que não
fosse excrementícia". PRECIADO. Terror anal, p. 136.
727
"A topologia descreveu esse tipo de superfície coo um toro. Mas, não se emocionem os machinhos, não
nos referimos a esse animal que representa a Espanha racial e masculina, mas a uma figura que podemos
descrever rapidamente como um donut [ou rosquinha, propomos nós]. Ou, caso queira, pode-se imaginar
uma garrafa onde a boca e o cu se comunicam". SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 101-2.
728
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 20-3.
729
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 115-9.
730
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 116.
314
O dito frei José disse a ele, declarante, que tirasse as calças, e ele declarante as
tirou. E o dito frei José tirou também as que trazia e, estando assim juntos, o
dito religioso abraçou e beijou a ele, declarante, e se apertou com ele. E estando
virados um para o outro, e logo lhe disse que quisesse ele, declarante, virar-lhe
o traseiro para ele. E com efeito o virou. E, estando assim, e tendo o dito ficado
abraçado a ele declarante por detrás, lhe pôs sua natura no traseiro dele,
declarante, e fez tudo quanto pode para meter a dita sua natura no traseiro dele,
declarante. E não o podendo meter, porque ele, declarante, lhe não dava jeito
para isso, o dito frade tomou cuspe de sua boca e untou com ele o traseiro dele,
declarante, e também, com o mesmo cuspe, untou sua natura, para que pudesse
entrar, e o tornou a pôr da mesma maneira no traseiro dele, declarante. E fez
muito e quanto pode, para a meter no seu traseiro dele, declarante. E não entrou
de todo, porque ele, declarante, se apertava e não dava azo para isso. E, neste
pormenor, o dito frade derramou semente na porta do dito seu traseiro, ele,
declarante, o sentiu.732 (Grifos nossos).
731
Reservamos a discussão sobre a historicidade das categorias etárias referentes à infância e sobre a própria
natureza histórica do ser-criança para os capítulos finais da tese, quando desempenhará papel central.
732
"o ditto frei IoSe disse a elle declarante / que tirasse as calcas, he elle declarãte as tirou / e o ditto frej
IoSe tirou tambem as que trazia / e estando assi juntos o ditto Religioso abracou / e beijou a elle declarãte
e se apertou cõ elle / e estando uirados hũ pera o outro, e logo / lhe disse que quiSesse elle declarãte virarlhe
/ o trazeiro pera elle e de feito lho uirou e / estando assi, e tendo o ditto ficado abraçado / a elle declarãte
per de tras lhe pos a Sua na / tura no trazeiro delle declarãte e fez tudo / quãto // quanto pode per meter a
ditta Sua natura no traSeiro / delle declarante, e naõ o podendo meter perque elle de- / clarãte lhe naõ daua
geito pera isto o ditto frade / tomou cuspo de Sua boca E untou cõ elle o traSeiro delle / declarãte e tambem
com o mesmo cuspo ũtou a Sua / natura perque podeSse entrar, e o tornou a por da mes- / ma maneira no
traSeiro delle declarãte e fez muito / e quanto pode polla meter no Seu trazeiro delle / declarãte e naõ entrou
de todo perque elle declarãte Se / apertaua e naõ daua azo pera isso e neste omenor / o ditto frade deRamou
Semẽte na porta do ditto / Seu trazeiro elle declarãte o Sentio". DGA/TT - Inquisição de Lisboa, Segundo
Caderno do Nefando 0130, fl. 20-1.
315
E tendo assinado, disse que era lembrado que, no tempo que tem dito que
cometeu o pecado nefando com frei Nuno de Moraes, o qual é fidalgo, o dito
frei Nuno, estando ambos só na dita cela para cometer o dito pecado de que
acima tem dito, antes de o cometerem, o dito frei Nuno disse a ele, declarante,
que seu traseiro era muito pequenino, que não cabia nele um dedo, estando já
ambos com as calças embaixo e deitados sobre a cama.733 (Grifos nossos).
733
"E tendo aSsinado disse que era lem […] / brado que no tempo que tem ditto / que cometeu o peccado
nefando com frej nuno / de moraes o qual he fidalguo, o ditto frej / nuno estando ambos Sos na ditta cella
per / cometer o ditto peccado de que acima tem / ditto antes de o cometerem o ditto frej nuno / diSse a elle
declarãte que o Seu traSeiro elle / frei nuno era muito pequenino que / naõ cabia nelle hũ dedo estando ia
ambos / com as calças em baixo e deitados Sobre / a cama". DGA/TT - Inquisição de Lisboa, Segundo
Caderno do Nefando 0130, fl. 30.
734
SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 33-6.
735
De acordo com Sedgwick, o traço que aqui identificamos como ordem de gênero antiga/tradicional, ou
como formação discursiva da masculinidade-atividade, é uma estrutura cultural ainda bastante forte em
culturas mediterrânicas e latino-americanas entre os séculos XIX e XX, para barrar ou dificultar o
enraizamento social da "nova" categoria científica para o homoerotismo articulada no período, vis-à-vis, a
homossexualidade. A distinção radical entre masculino e feminino, com base na performatividade de atos
eróticos centrados na dualidade fabricada do penetrar/ser-penetrado, impediria ou dificultaria que a
categoria moderna de homossexualidade (que implica uma igualdade entre os parceiros eróticos no âmbito
da categorização sexual) fizesse sentido. SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 159, nota 32.
316
736
DE LAURETIS, Teresa. Sexual indifference and lesbian representation. In: ABELOVE, Henry;
BARALE, Michéle Aina; HALPERIN, David M. (orgs.). The Lesbian and Gay Studies Reader. New York:
Routledge, 1993, p. 141-158.
737
FOUCAULT. História da sexualidade 3, p. 9-42. Destacamos a passagem seguinte: "Como vemos, o
membro viril aparece na encruzilhada de todos esses jogos do domínio: domínio de si, posto que suas
exigências correm o risco de subjugar-nos se nos deixarmos coagir por ele; superioridade sobre os parceiros
317
sexuais, já que é através dele que se efetua a penetração; privilégios e status, posto que ele significa todo o
campo do parentesco e da atividade social". FOUCAULT. História da sexualidade 3, p. 40.
738
Existiram algumas, poucas, exceções entre a Antiguidade e a Época Moderna, mostrando que até mesmo
os motivos anais poderiam adentrar as lacunas da cultura oficial, letrada e erudita, ocupando algum espaço
nos interstícios de cada modo histórico de experimentar (ou não experimentar) o sexo (em que contextos
históricos pôde o ânus funcionar como órgão sexual?). Segundo Laqueur, o único texto antigo a abordar o
prazer anal, buscando explicações médicas para ele, visto que tal era inconcebível dentro da ordem de
gênero tradicional na cultura grega-mediterrânica, é Problemas do pseudo-Aristóteles, em que o homem
que se deleita analmente é designado como mollis (lembremos dos sentidos desta categoria estudados
anteriormente). Outras exceções, que poderiam ser citadas, são os textos de François Rabelais (1494-1553),
conforme apontam os estudos de Bakhtin, e os de Francisco de Quevedo (1580-1645), rapidamente
estudados em seu conteúdo anal por Sáez e Carrascosa, especialmente o poema Graças e desgraças do olho
do cu (Quevedo demonstraria, talvez, as conexões entre o sublime e beato e o carnal e o anal, entre o alto
e o baixo, típicas da cultura popular na Época Moderna). LAQUEUR. Making sex, p. 44, nota 58; SÁEZ;
CARRASCOSA. Pelo cu, p. 61-3. Um exemplo inesquecível é o do Marquês de Sade, que atribuía à
sodomia, ao sexo anal e ao homoerotismo, um lugar de destaque em sua ética libertina, como experiência
limite e transgressora dos aparelhos de repressão ocidentais, radicalizando o individualismo liberal para
além da culpa cristã que está em sua genealogia (com repercussões em práticas homoeróticas
contemporâneas marginais, como o barebacking). OLTRAMARI, Leandro Castro. Barebacke: roleta russa
ou ética sadeana? Cadernos de Pesquisa interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis, v. 6, n. 72,
p. 2-19, jan. 2005. Caberia empreender uma genealogia desses enunciados subterrâneos da analidade (seu
prazer, sua função regeneradora, sua atividade) entre a Época Moderna e a contemporaneidade, uma vez
que, em um olhar imediato e sem apoio de pesquisa, vemo-los ressurgir em autores como Bataille, Deleuze,
Guattari, Hocquenghem, Preciado e no campo dos estudos queer. Seria o queer o ressurgimento mais
recente do antigo grotesco popular? Hipótese de pesquisa.
739
HALPERIN. How to do the history of homosexuality, p. 109-110; 113-117.
318
derivando disso intenso prazer. Um exemplo é o frei Duarte Pacheco, frade agostiniano
português na primeira metade do século XVII.740
740
DGA/TT - Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899.
741
DELUMEAU. História do Medo no Ocidente, p. 587.
742
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 241-2.
319
743
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 89.
744
JORDAN. Convulsing bodies, p. 197.
320
Vontade de saber o quê? De certo, saber sobre o que se passava no interior das
pessoas, em seus pensamentos e em suas ações, que escondiam de olhos alheios, nos
arcanos de seus corações.746 A produção de um saber sobre a subjetividade carnal de cada
cristão (manufaturando-a, nesse mesmo processo) foi uma técnica central para o governo
das condutas dos fiéis, sujeitando-os aos ditames normativos das Monarquias Católicas e
da Igreja, instituições preocupadas com a construção da fantasia de um reino com uma só
confissão religiosa, no contexto das reformas culturais e religiosas que tentavam tornar a
sociedade mais monolítica (nunca, porém, com completo sucesso) entre os séculos XVI
e XIX, como vimos acima. Por isso, pode-se dizer que as Inquisições ibéricas, ao interferir
na manufatura de subjetividades cristãs e carnais, a níveis individuais e coletivos,
tomavam parte no processo de confessionalização dos impérios ultramarinos, exercendo
funções de disciplina dos povos sob a Coroas católicas. Há que lembrar que o
cristianismo, nos termos do dispositivo da carne, governou formulando a questão da
verdade a propósito do devir outro (da outridade em cada um, de sua vontade
concupiscente ou libidinosa, cuja expressão era o sempre retomado enunciado da fraqueza
da carne) de cada um.747
745
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 254.
746
Reencontramos, aqui, dois aspectos, anteriormente debatidos, sobre as formas de produção das
subjetividades no e pelo dispositivo da carne. Em primeiro lugar, a injunção, presente no dispositivo, pelo
menos, desde Tertuliano, de que era necessário que todo cristão, para ser merecedor e ter acesso à verdade,
exercesse uma atividade árdua de preparação, que era a penitência, a qual envolveu, desde muito cedo no
cristianismo, a prática da confissão como forma de combate e exorcismo do diabo/do Outro, que vive no
fundo da alma de todos os homens, nos arcanos mais profundos de seu coração. A confissão liga-se
permanentemente à penitência, à mortificação de si. Em segundo lugar, o tema mais recente, expressão do
individualismo cada vez mais pronunciado da Época Moderna, do coração como metonímia da
subjetividade, do eu. Sobre o primeiro ponto, ver: FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 131-148. Para o
segundo, RANUM. Os refúgios da intimidade, p. 231-260. É importante destacar a conexão que foi
construída entre o amor (sagrado ou profano) e o coração, como índice da interioridade do eu,: "Do amor?
Nos objetos de origem aristocrática, muitas vezes é mais explicitamente definido como o signo de um amor
sagrado ou profano, porém sempre permanece como a expressão de um ‘interior’ que se manifestou através
da paixão ou que ouviu, ou sentiu, o outro graças a uma afeição particular". RANUM. Os refúgios da
intimidade, p. 232.
747
FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 148, seção b.
321
O que significa dizer que o Santo Ofício foi uma instituição disciplinadora? Entre
outras coisas, significa que ele atuou no sentido de reinserir algumas formas de
748
"É preciso inserir a tipologia das penas utilizadas pela Inquisição no quadro do direito penal da época.
O que é impressionante é a existência de uma instituição disciplinar desde o século XVI - o Colégio da
Doutrina da Fé -, onde os penitentes deviam fazer a (re)aprendizagem da doutrina católica em condições
semelhantes às de uma prisão, pois não podiam sair durante diversos meses - fenômeno que complica a
perspectiva de evolução estrutural proposta por Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la
prison". BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 456, n. 69.
749
Como explicou Deleuze, a propósito dos regimes de visibilidades componentes nas formações históricas
(epistemes ou dispositivos), conforme pensados por Foucault, em uma dada época (formação histórica), há
coisas que podem ser vistas e que, quando podem ser vistas, isto é, quando estão postas as suas condições
de visibilidade, são vistas. Ao passo que há outras coisas que não podem ser vistas, uma vez que não há um
regime de visibilidade (um regime de concentração-distribuição da luz, no sentido de Goethe) que as torne
visíveis. O regime de visibilidade é formado pelas relações poder-luz, tal como o regime de enunciação é
formado pelas relações poder-saber, de maneira que o poder (as relações de poder) é perpetuamente aquilo
por meio do que somos vistos (tornados visíveis) e falados (tornados enunciáveis). Isso posto, a Inquisição
se revela um aparelho para tornar visíveis certas categorias de subjetividade e de identidade fabricadas pelos
discursos da carne, como o cristão arrependido, o herege, o judaizante, a bruxa e o sodomita. DELEUZE.
Michel Foucault, aula 4, p. 11-22.
750
ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 100-2.
322
751
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Menocchio e Rivière: criminosos da palavra, poetas do silêncio, p. 105.
752
Segundo Prosperi, "a elaboração de uma leitura unitária de um mundo variado e disperso, estranho e
incompreensível [à razão ocidental, à verdade cristã], é o trabalho a que se dedicaram os inquisidores".
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 391.
753
Como comentou, entre outros Prosperi, à vontade de saber-poder da Igreja e aos esforços que realizou
no sentido de reformar a cultura popular e as práticas espirituais, morais, de gênero e eróticas dos cristãos,
não deve ser creditada uma eficácia que não possuíram. Faltou à Igreja tridentina poderes reais para
reformar a cristandade, mesmo quando estabeleceu parcerias com as Monarquias católicas. PROSPERI.
Tribunais da consciência, p. 336.
754
FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 78.
755
A produção de um saber individualizante sobre os criminosos/pecadores por parte da Inquisição foi
possível pelo uso central da técnica de confissão pelos inquisidores, forçando a sua transposição do registro
oral (típico das confissões no foro interior) para o escrito, formando um conhecimento exato do que era
323
757
PALOMO, Federico. Fazer dos campos escolas excelentes. Os jesuítas de Évora e as missões do interior
em Portugal (1551-1630). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência e a Tecnologia,
2003, p. 49-50.
758
JAEGER, Werner. Paideia. A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira; Adaptação do texto
para a edição brasileira Monica Stahel; Revisão do texto grego Gilson César Cardoso de Souza. 6. ed. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 1-18. (Clássicos WMF)
325
759
PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 50-1.
760
"Mirabeau, igualmente, compara o que a maioria das pessoas, segundo ele, considera ser civilização
(isto é, polidez e boas maneiras) com o ideal em cujo nome a classe média em toda a Europa se alinhava
contra a aristocracia de corte e através do qual se legitimou – o ideal de virtude"; "Civilité era como cultivé,
poli, ou policé, um dos muitos termos, não raro usados quase como sinônimos, com os quais os membros
da corte gostavam de designar, em sentido amplo ou restrito, a qualidade específica de seu próprio
comportamento, e com os quais comparavam o refinamento de suas maneiras sociais, seu ‘padrão’, com as
maneiras de indivíduos mais simples ou socialmente inferiores". ELIAS. O processo civilizador, volume I,
p. 51-2. PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 52.
326
761
PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 53.
762
"Primeiro, o batismo é uma coisa que marca e que sela o pertencimento do batizado, não simplesmente
à comunidade eclesial, mas também a Deus - mais fundamentalmente que à comunidade eclesial. O batismo
é um selo […]. É um selo, é uma marca". FOUCAULT. Do governo dos vivos, p. 96.
763
PRODI. Uma história da justiça, p. 237-8. Segundo Rui Luis Rodrigues, as confissões foram
documentos, produzidos por diferentes instituições religiosas eclesiásticas, cuja finalidade era sintetizar em
fórmulas (formulae) as doutrinas consideradas, pela instituição específica, como as mais básicas para a fé
cristã. Daí a existência de confissões luteranas, calvinistas e católicas. Esses textos serviam como marcos
de fronteira entre os credos cristãos e, mais importante, entre as identidades confessionais-políticas que,
entre os séculos XVI e XVII, estavam sendo elaboradas a partir dos dogmas específicos. Sendo sínteses, as
confissões eram textos dogmáticos gerais, resumiam a essência da fé de cada uma das denominações cristãs.
Por isso, eram complementadas por catecismos (tanto entre protestantes, como entre católicos). Ao mesmo
tempo, eram textos que tentavam fazer um apanhado geral, global de cada fé, sinalizando para um contexto
mais rigoroso e disciplinado das relações entre fiéis e o conteúdo oficial da fé de cada um (havia menos
espaço para interpretações originais dentro da ortodoxia). "O fiel, informado pela confissão que, pretendia-
se, era aprendida a partir de rigorosa catequese, devia reconhecer-se como integrante de seu grupo
confessional e, simultaneamente, ganhar clareza quanto aos equívocos das outras confissões. Fica claro o
caráter subsidiariamente excludente desses documentos: ao definirem a fé, definiam também quem se
situava fora dela". As confissões eram, portanto, ferramentas para implementar identidades religiosas,
políticas, eróticas e de gênero, pois, como temos visto ao longo desta tese, a identidade de bom cristão não
se desliga de formas bem precisas de governo/cuidado/confissão do próprio sexo. RODRIGUES, Rui Luis.
Os processos de confessionalização e sua importância para a compreensão da história do Ocidente na
primeira modernidade (1530-1650). Tempo, v. 23, n. 1, p. 1-21, jan.-abr. 2017, p. 2-3.
327
indispensável à formação dos Estados, agindo par a par com o que Palomo e Oestreich
chamam de "alicerces ideológicos" do absolutismo, os quais eram o humanismo, a
disciplina eclesiástica e a filosofia neo-estoica.764
Esse governo de si e dos outros, que era a disciplina na Época Moderna, não era
realizado somente pelas monarquias, ao contrário, as instituições eclesiásticas também
atuaram nessa dimensão, modelando as subjetividades de acordo com as diretrizes das
relações de verdade-poder-subjetivação do dispositivo da carne cristã. O conceito de
confessionalização serve, então, para abordar as maneiras como as instituições
eclesiásticas também atuaram para disciplinar as sociedades europeias na Época
Moderna. Dois aspectos fundamentais do processo de confessionalização foram
destacados por Palomo. Um, a formação, ou a luta pela formação, de grupos confessionais
homogêneos no território de um dado Estado, e, outro, a Igreja (ou as igrejas), que
desempenhou um papel não desprezível na construção de formas institucionais do poder
político na Época Moderna.765 Como aponta o historiador, as estruturas eclesiásticas eram
capazes de aprofundar os efeitos de disciplinamento social de modos impossíveis para as
estruturas estatais, alcançando as periferias dos reinos e, especialmente, impérios,
formando uma cadeia de comunicação mais capilarizada com os súditos, divulgando mais
amplamente as injunções da disciplina, em prol da instituição de uma homogeneidade
estatal-confessional. Destarte, percebe-se que o objetivo do conceito de
confessionalização é demonstrar como o elemento religioso-confessional contribuiu, de
maneira essencial, para a coesão e a uniformização do conjunto dos súditos dos Estados
em um dado território.766
764
PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 25-6. É importante ressaltar, conforme explicou
Prodi, que o processo de confessionalização não se resumiu à disciplina social, especialmente, se se
entender por isso uma instrumentalização pelo poder político do Estado para instaurar disciplina
(homogeneidade) e ordem no seu território. Prodi destaca que os processos de confessionalização (no plural,
porque eles não foram os mesmos para as regiões luteranas, calvinistas, católicas e os diferentes Estados
que em cada uma brotaram, se consolidando ou não) envolveram também a formação das Igrejas territoriais,
estabelecendo relações complexas com os respectivos Estados, uma transformação no modo de relação dos
fieis com a religião, a espiritualidade e suas identidades, além de constituir aspectos de processos ainda
mais gerais de modernização e secularização. PRODI. Uma história da justiça, p. 236.
765
PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 27-8.
766
PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 28-9. Mais recentemente, Palomo publicou um
artigo reconsiderando o conceito de confessionalização à luz das críticas levantadas contra ele por
historiadores nas últimas duas décadas e meia. Em primeiro lugar, destacou que esses debates
historiográficos salientaram o que foi a “experiência ibérica nos séculos XVI e XVII”, deslocando uma
discussão que tendia a se concentrar na Europa do Norte e Central. Em segundo lugar, aplicar o conceito
de confessionalização ao mundo ibérico permitiu reconsiderar o papel histórico da Igreja Católica e da
Contrarreforma em uma duração mais longa, quebrando a ideia de que o cristianismo católico
necessariamente produzira sociedades e sociabilidades anti-modernas, superficiais, emocionais (não
328
racionais, não impessoais) e ágrafas. Críticas mais pontuais também foram feitas. Vários autores criticaram
um viés elitista e centralizador de análises que usam o conceito, as quais privilegiariam o poder régio e as
instâncias eclesiásticas por ele controladas. Assim, foi proposta a ideia de um “disciplinamento horizontal”
ou de uma “confessionalização vinda debaixo”, cujo fim era destacar o protagonismo dos agentes e das
comunidades locais para além das instituições régia e eclesiástica. Essa abordagem a partir do nível local
foi consequência das tensões que se verificaram no uso do conceito de confessionalização no âmbito da
microhistória. A questão central a esse respeito tinha a ver com o modo de interpretar a recepção das
normas, das práticas, das condutas e das doutrinas difundidas, impostas e controladas pelos processos
confessionais no seio das comunidades locais. A consideração do micro nos processos de
confessionalização permitiu detectar a existência de sujeitos que, sem estar distantes das pretensões das
reformas, puderam assumir um papel ativo e criativo na incorporação dos dogmas, das práticas religiosas,
das normas de condutas impostas desde acima. Abria-se, desse modo, um amplo espaço em que
manifestações da ortodoxia confessional poderiam conviver com apropriações originais. Em resposta a
críticas neste sentido, Palomo reconhece não ser desmedido pensar em um catolicismo plural no mundo
ibérico da Época Moderna, múltiplas maneiras de vivenciar e entender o catolicismo. Trata-se de destacar
a plasticidade do catolicismo moderno diante de suas realidades locais em relação criativa com a imposição
de uma pretensa unidade confessional. PALOMO, F. Confesionalización. In: BETRÁN, José Luis;
HERNÁNDEZ, Bernat; MORENO, Doris (orgs.). Identidades y fronteras culturales en el mundo ibérico
de la Edad Moderna. Bellaterra (Barcelona): Universitat Autònoma de Barcelona; Servei de Publicacions,
2016, p. 69-89.
767
Em outro contexto histórico-político, essa questão foi levantada por Judith Butler, ao inquirir sobre em
que condições alguns corpos (nem todos) atingem um limiar de humanidade cujo sofrimento é digno de ser
lamentado, cuja morte provoca o luto. Não é o sofrimento de qualquer corpo que suscita o luto, a
preocupação, o cuidado de outrem, especialmente se o outro designa as instituições de poder. A vida digna
de luto é somente aquela que é produzida de acordo com as normas que a caracterizam, a priori, como vida.
Trata-se de um processo de modelagem e enquadramento. Assim, na história das subjetividades no
Ocidente, nem todos os corpos conquistaram o estatuto de humanidade, ou o conquistaram somente de
maneira precária. Se a vida é sempre precária (condição que fundamenta a responsabilidade ética para
Butler), não são todos os corpos que têm a sua precariedade reconhecida, pois o sofrimento de alguns não
causou, nunca, espanto ou pausa à maioria. BUTLER, Judith. Quadros de guerra. Quando a vida é passível
de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão; Arnaldo Marques da Cunha. Rev. trad. Marina Vargas.
Rev. tec. Carla Rodriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 13-55.
768
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 49; 56.
329
Vê-se, por conseguinte, que o projeto de adequação dos diversos povos do Império
português a um ideal normativo e excludente de disciplinamento e confessionalização ––
realizado nos termos do dispositivo da carne no que tocava à gerência das experiências
subjetivo-eróticas –– só poderia desaguar na manufatura de identidades cujo
enraizamento social era, no mínimo, tênue.770 Trata-se da elaboração de categorias algo
fictícias de identificação, cujo objetivo político era enquadrar e simplificar as identidades
e práticas dissidentes (políticas, étnicas, espirituais, eróticas, de gênero) e, como
consequência, dar maior coesão político-cultural ao vasto império ultramarino. A
identidade cristã-carnal, branca, masculina, viril, autoritária-patriarcal do Império, ao
nível coletivo ou individual das subjetividades, revela-se como uma projeção, um efeito
a posteriori das relações de poder, em movimento, no processo de disciplinamento e
confessionalização.771
769
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. Trad. Laura
Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 210-5; RUSSELL-WOOD, A. J. R. The black
man in slavery and freedom in colonial Brazil. New York: Palgrave Macmillan, 1982, p. 1-4.
770
Não se pode dizer que os processos de confessionalização transcorreram sem resistências, as quais
fragilizavam as pretensões totalizantes de cada identidade confessional-política. Prodi denomina os grupos
resistentes como "cristãos radicais", indicando o conjunto, heterogêneo, dos que recusaram o processo de
confessionalização e suas consequências, tais como a adesão subjetiva e jurídica às Igrejas territoriais, aos
Estados a elas coligados e, talvez mais fundamentalmente, aos discursos de verdade da fé e de si que cada
um deles desenrolava em torno do novo fiel. Esses grupos foram hostilizados e rejeitados pelas diferentes
confissões, sendo expulsos para além da linha de cada ortodoxia, merecendo uma identificação generalizada
como hereges. Hesitando em catalogar os vários grupos resistentes, porque considera que esses movimentos
eram diversos e mesclados entre si e entre as Igrejas, configurando um fenômeno submerso, Prodi menciona
os seguintes grandes grupos ou correntes, o nicodemismo, o anabatismo, os espirituais ou místicos (dentro
ou fora das Igrejas, nos limites da ortodoxia), e os humanistas cristãos, na linha de Erasmo de Roterdã.
PRODI. Uma história da justiça, p. 240-8.
771
Estabelecemos essa interpretação a partir de uma linha dos estudos queer e pós-coloniais que procuram
situar as identidades nacionais, individuais e coletivas no eixo da reprodução de desigualdades de raça,
gênero, sexualidade. A antropóloga afro-dominicana Ochy Curiel, por exemplo, estudou como a identidade
nacional colombiana construiu-se a partir da celebração de um contrato heterossexual (baseando-se na
noção da heterossexualidade como regime político compulsório) implícito à outorga da Constituição do
país. Em linha não dissimilar, Richard Miskolci estudou o ideal de nação das elites imperiais brasileiras no
século XIX como um projeto autoritário e centrado em um regime de heterossexualidade compulsória e de
intrínseca discriminação racial. Finalmente, Preciado é quem resumiu o problema, indicando um caminho
para deslocar a questão para outras temporalidades ocidentais: "Sujeito e nação não passam de ficções
normativas que visam engessar os processos de subjetivação e de criação social em constante
330
Esse enraizamento social tênue das categorias de identidade projetadas pelo Santo
Ofício (especificamente no caso da categoria de sodomita), entre outras instituições, pode
ser explicado, parcialmente, pelos limites da ação inquisitorial. Kamen lista três grandes
razões para a relativa ineficiência das Inquisições na Época Moderna. Em primeiro lugar,
uma resistência, sem fim e sistemática, de outras cortes de justiça, tanto régias como
eclesiásticas, e das autoridades regionais, em colaborar ou submeter-se à autoridade
inquisitorial (o que não significa que não tenham ocorrido casos de estreita colaboração
entre as instituições no campo religioso, como veremos a seguir). Em segundo lugar, o
historiador aponta os recuos inatos de uma organização primitiva (isto é, que utilizava
tecnologias precárias de geração, gerência e cruzamento dos dados acumulados em seu
arquivo), administrada por pessoas muitas vezes ignorantes, incompetentes e corruptas,
de modo que os tribunais inquisitoriais nunca conseguiram alcançar um nível satisfatório
de eficiência no manuseio dos dados do saber que, aos trancos e barrancos, produziam.
E, em terceiro lugar, Kamen destaca que todo o sistema de controle inquisitorial precisava
angariar apoio, assim como informações, dos movimentos de base, todavia, os
inquisidores jamais lograram alcançar um tal apoio em uma extensão ampla o suficiente
(ainda que esforços de enraizamento social nesse sentido tenham sido feitos, como
veremos a seguir) para estabelecer uma rede cerrada de controle e disciplinamento sobre
toda a sociedade, especialmente nas áreas mais afastadas dos impérios coloniais,
poderíamos acrescentar. Dos três itens, o historiador julga o primeiro como o mais
problemático, argumentando que as Inquisições ibéricas nunca estiveram certas de sua
posição e sempre sentiram ansiedade no campo da disputa política de prestígio e poder
na economia política do Antigo Regime, daí os inquisidores terem sido sempre bastante
ciosos ao enfatizar o que julgavam ser seus direitos e privilégios.772
O apoio à ação disciplinar inquisitorial não foi nunca unânime, ainda que pudesse
ter sido majoritário, especialmente no que tocava à perseguição e ao enquadramento dos
sodomitas. Historiadores têm mostrado como a Inquisição foi contestada, nos reinos e
impérios de Espanha e de Portugal. Segundo Yllan de Mattos, os críticos (que foram tanto
eruditos como populares) ao Santo Ofício costumavam estar dispersos no conjunto dos
povos dos impérios ibéricos, à exceção dos membros da Companhia de Jesus ao longo do
século XVII (período em que vários inacianos, mas, por certo, não todos, encetaram uma
campanha, descontínua, contra a Inquisição portuguesa, culminando na suspensão
temporária do tribunal pelo papa entre 1674 e 1681) e dos cristãos-novos (empenhados,
desde antes da instalação oficial do tribunal em Portugal, a comprar sucessivos perdões
gerais ao Papado, contestando também o estilo jurídico inquisitorial). Os principais
pontos de crítica eram a ação interesseira dos inquisidores, cobiçosos dos bens dos
acusados (especialmente das fortunas dos cristãos-novos), o julgamento arbitrário e o
segredo do processo, pontos que veremos, nos próximos capítulos, repetidos inclusive por
alguns réus processados por sodomia.773 Também Schwartz registrou a existência de
muitos críticos à ação inquisitorial espalhados por vários pontos dos impérios ibéricos da
Época Moderna, na medida em que ideias acerca da tolerância religiosa faziam parte da
cultura popular não-oficial ibérica (disseminando-se, depois, pelos impérios ultramarinos,
onde estabeleceram complexas relações de mestiçagem e hibridismo cultural com as
religiões e religiosidades ameríndias e africanas), brotando, ocasionalmente, nos
discursos de muitas personagens, resumindo-se na máxima tradicional de que "cada um
se salvaria na sua lei"774
773
MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada. Críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681).
Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2014, p. 209-212.
774
"O questionamento da Inquisição e da política de intolerância floresceria no mundo ultramarino dos
impérios ibéricos, onde a autoridade era restrita, o anonimato grande e as identidades e fronteiras imperiais
étnico-religiosas permeáveis". SCHWARTZ. Cada um na sua lei, p. 178. Recentemente, o historiador Igor
Tadeu Camilo Rocha mostrou como a ideia de tolerância religiosa envolvia, várias vezes, cruzamentos
multidirecionais entre vertentes populares e os debates eruditos, especialmente durante o século XVIII, com
o advento da Ilustração (o que não significa que houve uma defesa unânime da tolerância nos meios
letrados; ao contrário, em Portugal, a cultura oficial perseguiu as ideias tolerantes pelo menos até a
Revolução Liberal do Porto em 1820). O autor analisou as relações de proximidade entre as concepções
populares de tolerância e aquelas que, advindas de variados debates eruditos (religiosos, teológicos e
filosóficos), eram mais sistematizadas. CAMILO ROCHA, Igor Tadeu. Entre o 'ímpeto secularizador' e a
'sã teologia'. Tolerância religiosa, secularização e ilustração católica no mundo luso (séculos XVIII-XIX).
Tese (doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História, 2019, p. 9-20; 188-306.
332
775
SCHWARTZ. Cada um na sua lei, p. 25.
776
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 224.
777
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 17-8.
333
778
O historiador John Bossy registrou um caso que nos ajuda a articular o contexto cultural-discursivo da
Espanha no momento da instalação da Inquisição nesse reino. Trata-se do caso do santo menino de La
Guardia (um santo popular do catolicismo tardo-medieval espanhol). O historiador teceu a seguinte
narrativa sobre o contexto cultural de medo, culpa e ódio na península ibérica ao final do século XV, em
tradução de nossa autoria: "Uma década que, alhures, viu a exposição oficial da nova heresia da feitiçaria
diabólica, concluiu-se em Castela com a revelação da história do Santo Menino de La Guardia, uma
projeção em que todos os medos e ódios do catolicismo medieval tardio estavam compostos. Em uma
pequena aldeia perto de Ávila, uma seita de judeus e conversos não-identificados havia matado uma criança
cristã, cuja identidade era igualmente obscura, mas que, evidentemente, era o menino Jesus. Eles o tinham
crucificado, ritualisticamente o insultado, e, finalmente, cortaram-no fora seu coração, elevando-o, como a
hóstia, às vistas de sua congregação. Não está claro se eles consumiram o coração, mas eles –– ou, sem
dúvida, os conversos entre eles, para quem nada era fácil - tinham procurado hóstias genuínas, as quais,
depois de serem submetidas a indignidades indizíveis no ritual, tinham sido, como o viaticum dos
moribundos, distribuídas amplamente aos confederados". BOSSY, John. Christianity in the West. 1400-
1700. Oxford; New York: Oxford University Press, 1985, p. 87. O historiador Vinicius de Freitas Morais
investigou como o relato do assassinato do menino de La Guardia, produzido pelo Santo Ofício castelhano,
estava associado a uma longa tradição erudita católica, que vinha desde o século XII (apropriando-se de
passagens de autores cristãos antigos), de construção da acusação de crime ritual cometido por judeus e,
mais tarde, por conversos. Uma linha discursiva que, ao longo do tempo, foi se enriquecendo de mais
detalhes, como a crucificação e o martírio das crianças, a retirada ritual do sangue para uso medicinal, a
profanação da hóstia (uma resposta direta à ascensão da eucaristia a uma posição central na liturgia cristã
a partir da Idade Média central, como temos visto). Relendo as atas do processo instalado contra os acusados
do assassinato ritual do menino de La Guardia, o autor aponta que as inconsistências jurídicas dos autos
(não houve sequer corpo de delito, o cadáver do menino nunca foi encontrado) não causaram qualquer
pausa nos inquisidores, visto que os acusados confessaram (sob tormento) o crime, resultando na execução
pública dos condenados. Ainda que questione uma ligação direta entre o crime de La Guardia em 1490 e a
expulsão geral dos judeus da Espanha em 1492 (defendida por vários historiadores), Morais concorda que
"é possível traçar uma relação entre a efervescência antijudaica na península Ibérica e o edito de expulsão,
a qual permitiu, como resultado que acusações sem provas se tornassem longos processos que reforçariam
o antijudaísmo". MORAIS, Vinicius de Freitas. O assassinato do santo Niño de La Guardia e as dinâmicas
da acusação de crime ritual contra os judeus na década de 1490. Anais da XII Jornada de Estudos Históricos
professor Manuel Salgado. PPGH/UFRJ, v. 3, Rio de Janeiro, 2017, p. 977-993.
779
SULLIVAN, Karen. The inner lives of medieval inquisitors. Chicago; London: The University of
Chicago Press, 2011, p. 1-29.
334
uma protuberância da Igreja feudal, que tinha pretensões universalistas.780 Essa tradição
medieval de uma Inquisição papal, contudo, como aponta Bethencourt, não estava ainda
em vigor há três séculos, quando os Reis Católicos fizeram prevalecer os novos poderes
dos Estados modernos sobre um Papado que começava a parecer arcaico. O domínio
monárquico sobre a Inquisição na Espanha e, depois, em Portugal, estabelecia, pela
primeira vez, uma conexão formal entre dois universos jurídicos, o eclesiástico e o civil,
por meio da figura do Príncipe responsável pela nomeação dos inquisidores, cuja
fidelidade, por isso mesmo, não estava mais direcionada de modo inquestionável à Igreja
de Roma.781
780
NOVINSKY. A Inquisição, p. 15-8. Segundo Prodi, o arcabouço jurídico no seio do qual o procedimento
inquisitorial foi criado (o inquérito) deve ser entendido como parte do processo mais amplo de formação
do direito canônico entre os séculos XII e XIII, ainda que a Inquisição fosse guiada também pelas normas
do Código Justiniano. PRODI. Uma história da justiça, p. 100.
781
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 18.
782
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 25.
783
MARCOCCI, Giuseppe. A fundação da Inquisição em Portugal: um novo olhar. Lusitania Sacra, 23,
jan.-jun. 2011, p. 17-40.
335
784
MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. 1531: Gil Vicente, judeus e a instauração da Inquisição em Portugal.
Contexto, Vitória, ES, v. 7, p. 95-108, 2000.
785
MARCOCCI. A fundação da Inquisição em Portugal, p. 29.
786
De acordo com Marcocci, os prelados portugueses conservavam, na primeira metade do XVI, uma
competência para proceder contra os crimes de apostasia e de heresia, inclusive sobre os de origem judaica.
Várias vezes, os bispos portugueses contrapuseram sua autoridade tradicional contra ingerências de
inquisidores castelhanos. Por isso, o projeto monárquico de uma Inquisição para Portugal chamar de sua
precisou envolver mecanismos para enfraquecer a autoridade episcopal. MARCOCCI. A fundação da
Inquisição em Portugal, p. 20-3. Por outro lado, como nos informa a historiadora Juliana Pereira, era
preponderante, no período, um modelo de bispo como um cortesão, inseridos nas disputas das sociedades
de corte em torno dos monarcas absolutistas. Os bispos tendiam a ser absenteístas e negligentes com suas
tarefas pastorais-disciplinares e também com a gerência de suas dioceses. José Pedro Paiva caracteriza este
período como uma conjuntura de corrupção e decadência do poder episcopal, que foi revertido, depois, pela
reafirmação, a partir do Concílio de Trento, do poder episcopal nas mãos de novos bispos-pastores.
Anteriormente, os bispos eram senhores nobres e comportavam-se como tais, eram cortesãos, guerreiros,
príncipes (tais eram os bispos comuns da Renascença). PEREIRA. Bruxas e demônios no arcebispado de
Braga, p. 50-1; PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777). Coimbra: Imprensa
da Universidade de Coimbra, 2006, p. 111-128.
787
MARCOCCI. A fundação da Inquisição em Portugal, p. 23-40.
336
788
MARCOCCI. A fundação da Inquisição em Portugal, p. 39-40.
789
Feitler vê o período da gestão do infante D. Henrique como inquisidor-geral como o momento de
expansão e de fixação da jurisdição da Inquisição diante das demais instituições do campo religioso,
nomeadamente, dos bispados. Foi nesse período em que o primeiro Regimento inquisitorial foi escrito, com
publicação em 1552, bem como o Regimento do Conselho Geral, datado de 1570. FEITLER. Dos usos
políticos do Santo Ofício no Atlântico. O período filipino. In: SOUZA, Laura de Melo e; FURTADO, Júnia
Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda. (Orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 242.
790
PALOMO. Fazer dos campos escolas excelentes, p. 64.
337
A dualidade funcional do Santo Ofício nos reinos ibéricos e suas colônias era um
problema de fronteiras políticas entre as jurisdições do Estado (secular e nacional) e da
Igreja (espiritual e universal), uma vez que a Inquisição reivindicava, simultaneamente,
uma isenção em relação à autoridade secular (na medida em que era um tribunal religioso
de questões de fé) e a capacidade de exercer autoridade secular.792 Isso se desdobrava em
graves problemas de etiqueta (uma questão política central nas sociedades de Antigo
Regime), pois os inquisidores pretenderam ter precedência sobre dignidades eclesiásticas
(como os bispos) e civis (como os vice-reis nas colônias espanholas) em eventos públicos,
fossem eles organizados ou não pela Inquisição.793 As Inquisições modernas, portanto,
diferente de suas antecessoras medievais, tinham um caráter híbrido,794 que se entende a
partir das funções desempenhadas pela instituição no processo de confessionalização nas
monarquias católicas da Península Ibérica e seus impérios coloniais.
791
PAIVA, José Pedro. "Com toda a conformidade e boa correspondência": Inquisição e episcopado em
Portugal (1536-1750). In: FURTADO, Júnia Ferreira; RESENDE, Maria Leônia Chaves de. (Orgs.).
Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício. Diálogos e trânsitos religiosos no
império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 17-18.
792
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 293-4.
793
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1687-94. Estudando a etiqueta que governava a realização dos
autos de fé das Inquisições modernas, Bethencourt detectou que os conflitos de precedência entre
inquisidores, bispos, governadores e vice-reis foram uma constante, resultando, muitas vezes, na ausência
das autoridades concorrentes aos inquisidores, como estratégia para evitar a perda de prestígio nestas
batalhas simbólicas. Vejamos o trecho seguinte: "O Conselho da Inquisição portuguesa explicita em 1612
a argumentação que se encontra por trás do apoio sistemático à precedência dos inquisidores: como
delegados do papa para a perseguição das heresias, eles são mais dignos do que o bispo no quadro do auto
da fé, pois se trata de um ato particular do tribunal, no qual os inquisidores estão no exercício de sua
jurisdição enquanto representantes diretos do papa". BETHENCOURT. História das inquisições, p. 246.
794
BETHENCOURT. História das inquisições, p. 229.
338
cada uma podiam se desencontrar).795 Essa dependência era, inclusive, econômica, pois
era a Coroa que financiava o funcionamento dos tribunais inquisitoriais. Não obstante
tudo isso, a existência jurídica da Inquisição dependia da aprovação da Igreja de Roma,
que conservava a prerrogativa de suspendê-la, totalmente ou algumas de suas funções (o
que ocorreu em algumas ocasiões, como em 1544, quando o papa decretou uma suspensão
temporária da execução das sentenças inquisitoriais).796
795
Sobre os conflitos entre inquisidores e Coroa em Portugal e na Espanha (para o período da União
Ibérica), como também entre os inquisidores portugueses e o Papado, ver: FEITLER, Bruno. Nas malhas
da consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Alameda; Phoebus, 2007, p. 71-82; FEITLER,
Bruno. Dos usos políticos do Santo Ofício no Atlântico. O período filipino, p. 242-5. Bethencourt afirma
com clareza que as Inquisições ibéricas souberam sempre jogar com a sua dupla natureza para manter sua
autonomia, de modo que a submissão aos monarcas nunca foi total. BETHENCOURT. História das
Inquisições, p. 294-5.
796
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1686-7; MARCOCCI. A fundação da Inquisição em Portugal, p.
39
797
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 189.
798
De acordo com Fernanda Olival, a segregação social por critério de pureza de sangue (estabelecida por
estatutos dispersos de várias instituições, não tendo sido oficializados em uma lei geral da Coroa) era um
problema de natureza "ideológica-religiosa", tendo tido forte impacto político e social. A ansiedade quanto
à pureza do sangue discriminava judeus, mouros, gentios, mulatos, negros e oficiais mecânicos, além de
condenados no Santo Ofício em alguns casos. OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de
limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de Estudos Sefarditas, n. 4, p. 151-182, 2004.
339
799
Fernanda Olival afirma que, segundo os estatutos das três ordens militares abertas aos leigos em Portugal
(as ordens de Avis, Cristo e Santiago), os que portavam seus hábitos deveriam viver existências de castidade
conjugal, ou seja, seus casamentos deveriam ser espirituais, o que suprimia as relações sexuais,
especialmente após a descendência ter sido conquistada (uma concessão feita pelo papa Alexandre VI em
1496). Para ser cavaleiro professo da Ordem de Malta, por outro lado, o voto de castidade completa
continuou sendo uma exigência. OLIVAL. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em
Portugal, p. 157.
800
Usamos a expressão "murmúrio anônimo" para emular as inúmeras posições de sujeito possível em uma
formação discursiva, que, na verdade, produz os sujeitos a partir do seu jogo com as relações de poder.
Como explicou Deleuze, todas as posições de sujeito da função enunciativa, em um discurso dado, se
alinham como derivadas das próprias regras de formação do discurso, de seu a priori histórico. A expressão
"murmúrio anônimo", cunhada, na verdade por Deleuze, tem o sentido de resumir os parágrafos de abertura
de A ordem do discurso, evocando também o trecho seguinte de uma entrevista concedida por Foucault em
1967: "Antigamente, para aquele que escrevia, o problema era se destacar do anonimato de todos; hoje é
chegar a apagar seu nome próprio e vir alojar sua voz nesse grande murmúrio anônimo dos discursos que
se mantêm". FOUCAULT, Michel. 1967. Sobre as maneiras de escrever a história. In: FOUCAULT,
Michel. Ditos e escritos II. Arqueologia das ciências humanas e história dos sistemas de pensamento.
Organização e seleção de textos Manoel Barros Motta. Trad. Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000, p. 74. DELEUZE. Michel Foucault, aula 4, p. 37.
340
do pecado nefando. Como advogou Prodi, a criminalização dos pecados foi uma etapa ao
longo do processo de juridificação das consciências, por um lado, e de sacralização do
direito positivo, por outro. O que estava em jogo era a modelação de consciências, nas
quais as leis ético-morais do cristianismo estivessem interiorizadas como leis de direito
positivo (racionais e abstratas), produzindo uma forma de obediência que não fosse
apenas externa, mas também (ou principalmente) interior. Criminalizar o pecado era
formar e forçar uma obediência à consciência, aos desejos e aos pensamentos:801 ou seja,
por meio de uma sujeição mais radical, porque acontecendo no eixo da interiorização,
manufaturavam-se subjetividades mais obedientes, fiéis, cristãs, ovelhas mansas ao poder
pastoral (mas também soberano) empregado por instituições da Igreja e, ao fim da Época
Moderna, do Estado.802
Sobre todos os pecados, bem parece ser mais torpe, sujo e desonesto o pecado
da Sodomia, e não é achado outro tão aborrecido ante DEUS e o mundo como
ele. Porque não tão somente por ele é feita ofensa ao Criador da natureza, que
é Deus, mais ainda se pode dizer que toda natureza criada, assim celestial como
humana, é grandemente ofendida. E segundo disseram os naturalistas, somente
falando os homens nele, sem outro ato algum, tão grande é o seu
801
PRODI. Uma história da justiça, p. 287-290.
802
Sobre o conceito de poder pastoral, ver: FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso
dado no Collège de France (1977-1978). Edição estabelecida por Michel Senellart, sob direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Trad. Eduardo Brandão, revisão Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2008; FOUCAULT, Michel. La technologie politique des individus. In: FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits
IV. 1980-1988. DEFER, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques. (Orgs.). Trad. Gilles
Barbedette, Pierre-Emmanuel Dauzat, Fabiene Durand-Bogaert, Annie Ghizzardi, Herny Merlin de
Caluwé, Plinio Walder Prado Jr. Paris: Gallimard, 1994, p. 813-828; FOUCAULT, Michel. "Omnes et
singulatim": vers une critique de la raison politique. In: FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits IV. 1980-1988.
DEFER, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques. (Orgs.). Trad. Gilles Barbedette, Pierre-
Emmanuel Dauzat, Fabiene Durand-Bogaert, Annie Ghizzardi, Herny Merlin de Caluwé, Plinio Walder
Prado Jr. Paris: Gallimard, 1994, p. 134-162; FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir. In: FOUCAULT,
Michel. Dits et Écrits IV. 1980-1988. DEFER, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques. (Orgs.).
Trad. Gilles Barbedette, Pierre-Emmanuel Dauzat, Fabiene Durand-Bogaert, Annie Ghizzardi, Herny
Merlin de Caluwé, Plinio Walder Prado Jr. Paris: Gallimard, 1994, p. 222-243. Para uma abordagem que
traça a relação entre o poder pastoral e o Estado Moderno, ver : BUTTGEN, P. H. Theologie politique et
pouvoir pastoral. Annales. Histoire, Sciences sociales, n. 62, 2007, p. 1129-1154; SILVEIRA, Marco
Antonio. Razão de Estado e colonização: algumas questões conceituais e historiográficas. História, São
Paulo, v. 37, 2018, p. 1-22.
341
803
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue. "Sobre
todollos peccados bem parece seer mais / torpe, çujo, e deshonesto o peccado da Sodo- / ia, e nom he achado
outro tam avorrecido ante / DEOS, e o mundo, como elle; porque nom tam soo- / mente por elle he feita
offensa ao Creador da natura- / leza, que he Deos, mais ainda se pode dizer, que / toda natura criada, assy
celestial como humanal, he / grandemente offendida. E segundo disseron os natu- / raes, soomente fallando
os homẽs em elle sem ou- / tro algum auto, tam grande he o seu avorrecimento, / que o aar ho nom pode
soffrer, mais naturalmente / he corrompido, e perde sua natural virtude. E ain- / da se lee, que por este
peccado lançou DEOS o de- / luvio sobre a terra, quando mandou a Noé fazer huã / Arca, em que escapasse
el, e toda sua geeraçom, per / que reformou o mundo de novo; e por este peccado / soverteo as Cidades de
Sodoma, e Gomorra, que fo- / ram das notavees, que aaquella sazom avia no mun- / do; e por este peccado
foi estroida a Hordem do / Templo per toda a Christandade em hum dia, E por- / que segundo a qualidade
do peccado, assy deve gra- / vemente seer punido: porem Mandamos, e poemos / por Ley geeral, que todo
homem, que tal peccado / fezer, per qualquer guisa que seer possa, seja quei- / mado, e feito per fogo em
poo, por tal que já nunca / de seu corpo, e sepultura possa seer ouvida memoria". ORDENAÇÕES
AFONSINAS, Livro V, título XVIII, Dos que cometem peccado de Sodomia. Disponível em:
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/pagini.htm, último acesso em out.2020.
342
corrupção moral dos homens. O tema da corrupção faz a ponte com o enunciado que
associa a sodomia a doenças, o qual aparece no texto no argumento da suposta razão
“natural” para a criminalização da categoria: ela seria responsável pela corrupção do
próprio ar, envenenando-o. A sodomia está claramente posta como o pecado mais grave
de todos, é o mais torpe, sujo e desonesto.
804
MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p. 120-1.
343
Injunção similar está presente na lei antissodomia das Ordenações Filipinas, com
a diferença de que, nessas, a união dos crimes de sodomia e de bestialidade é elevada ao
nome do título em questão – Dos que cometem pecado de sodomia e com alimárias, o
título XIII do Livro V. Como foi possível a assimilação entre dois pecados que, a
princípio, tipificavam práticas eróticas bastante diversas? Do sexo anal (homoerótico ou
não) ao sexo com animais, a transição foi possível porque o primeiro já fora deslocado
para o domínio do contrário à natureza e do irracional, a partir de sua associação
derrogatória com a feminilidade, no sentido de intemperança e corrupção da alma, como
vimos anteriormente. Os pecados de sodomia e de bestialismo não eram, contudo,
concebidos como igualmente graves, se a punição a cada um pode ser tomada como um
indicativo. Embora ambos fossem suficientemente graves para garantir a morte na
fogueira para seus perpetradores, a sodomia tinha o diferencial, em relação à bestialidade,
de gerar uma pena de infâmia para toda a linhagem do sodomita, tornando seus
descendentes inábeis para cargos, o que não estava previsto para os descendentes dos
condenados por praticar o sexo com animais.
805
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue:
"OUTRO SI qualquer homem, ou molher, que / dormir carnalmente com algũa alimaria, seja quei- / mada,
e feita em poo; peró por tal condenaçam / nom ficara seus filhos, nem outros descendentes, / em este caso
inabiles, nem infames, nem lhes fará / perjuizo alguũ acerca da socessam, nem aos ou- / tros que por Dereito
seus bens deuam herdar". ORDENAÇÕES MANUELINAS, Livro V, Título XII, Dos que cometem pecado
de sodomia. Disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/. Último acesso em out.2020.
344
dos repertórios de nefandos, uma espécie de livro de registro das pessoas denunciadas no
Santo Ofício pelo crime nefando, consta a seguinte informação:
806
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue. " No
Secreto desta Inquisiçaõ ha de prezente, dous repertorios de pesso- / as delatas pelo peccado de sodomia.
O 1º começa no Anno de 1587, / o 2º no Anno de 1630; e destes dous repertorios trata principal / mente o
Indez que se segue. // Porẽ, porque ia dantes do tempo do dito 1º repertorio, Se conheçia / na Inquisição,
deste crime, como consta da provizaõ d'El Rey Dom / Joaõ 3º passada em Lisboa a 10 de Janeiro de 1553,
e doutra / provizaõ do Cardeal Infante legado a latere, passada em Lisboa a / 24 de Mayo de 1555, que
andaõ no Livro das provizoẽs folha 90 e 38, / e dos breves apostolicos que depois disso concederá o Papa
Pio 4º em / 20 de Fevereiro de 1562, e o Papa Gregorio 13 em 13 de Agosto de 1574 / os quais estão
lançados no collettorio folha 75, e 76. // Pera que athe destas pessoas culpadas naquelle tempo, se possa ter
/ mais facil noticia, vaõ tambem reduzidas a hum index particu: / lar no fim deste, folha 249". DGA/TT-
Lisboa, Inquisição de Lisboa, Cadernos de Nefandos 1587-1799, Índices de repertórios de nefandos, 026-
0150, fl. 8 [formato digital]. Disponível em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4481991. Último acesso
em out.2020.
807
"Provisão que certamente foi solicitada pela cúpula inquisitorial, posto que quando menos desde 1547
já encontramos cinco sodomitas presos, processados, e alguns degredados para o Brasil – entre eles, um
moço-do-rei e um criado do governador. Quer dizer: o ‘vício elegante’ se alastrava pelos palácios, do trono
à cozinha". MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p. 121.
345
Se alguém cometer o nefando pecado contra natureza, pelo qual a ira de Deus
vem sobre os filhos da desconfiança, seja entregue à Justiça Secular para ser
castigado. E se for clérigo, sendo primeiro degradado de todas as ordens, fique
submetido à mesma pena.
Também admoestamos e mandamos, em virtude da santa obediência, a todos
os ordinários dos lugares, que façam estreitamente guardar as coisas ordenadas
no concílio Tridentino contra os amancebados, assim clérigos como leigos, sob
pena que darão conta a Deus e a nós, se assim não fizerem.808
E como quer que tivéssemos posto todo nosso cuidado em tirar todas as coisas
que, de alguma maneira, podem ofender à divina majestade, ordenamos,
primeiramente e sem tardança, emendar aquelas coisas que sabemos, pelas
divinas escrituras e exemplos gravíssimos, descontentarem mais que outras a
808
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue: "SE
algum cometer o nefando peccado contra natureza, pollo qual / a ira de Deos vem sobre os filhos da
desconfiança, seja entregue à / Iustiça Secular pera ser castigado. E se for clerigo, sendo primeiro de /
gradado de todas as ordẽs, fique sometido à mesma pena. // Tambem amoestamos & mandamos em virtude
da sancta obedien / cia a todos os ordinarios dos lugares, que fação esteitamente goardar / as cousas
ordenadas no concilio Tridentino contra os amancebados, / aSsi clerigos como leigos, sob pena que daram
disso conta a Deos & a / nos, Se aSsi não fizerem". Coimbra, Bispo, 1545-1572 (João Soares). Carta pastoral
de D. João Soares que manda publicar uma bula de Pio V onde se proíbe a blasfémia, sodomia, sinomia…
Biblioteca Nacional de Lisboa, RES. 1427//6 V, digitalizado. Disponível em http://purl.pt/14869. Último
acesso em out.2020.
346
Todos os pecados arrolados na bula do papa Pio V recebem o que se pode chamar
de tratamento sodomítico, isto é, alguns temas presentes nos enunciados do nefando
foram dilatados para abarcar os outros pecados, de maneira que a todos são atribuídos a
causa de calamidades coletivas, como guerras, fomes e pestes. Trata-se de uma manobra
discursiva para agravar os sentimentos de periculosidade, de culpa e de medo associados
a esses delitos. Cabe notar que a sodomia não recebe nenhum privilégio de tratamento em
relação aos demais crimes, sendo, inclusive, equiparada ao pecado de amancebamento,
um crime que, do ponto de vista inquisitorial, pareceria bastante mais insonso, pois não
estava sob sua jurisdição, ainda que fosse um pecado mortal, tanto quanto a sodomia.
Percebemos nisso uma estratégia discursiva para justificar a presença da sodomia em uma
lista de faltas puníveis pelos tribunais ordinários, afastando os tentáculos inquisitoriais.
809
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue: "E
como quer que tiuessemos posto todo nosso cuydado em tirar todas / as cousas que dalgũa maneira podẽ
offender â diuina magestade, or / denamos primeiramente, & sem tardança emẽdar aquellas cousas que /
Sabemos por diuinas escripturas & exemplos grauiSsimos desconten / tarẽ mais que outras a Deos, &
provocarẽ Sua ira .S. o desprezo do cul / to diuino, o vicio a simonia, o crime da blasfemia, & o peccado
nefã / do da luxuria contrairo à natureza. Pellos quaes peccados, por justo / castigo de Deos os pouos &
nações sam muytas vezes affligidos com / miserias de guerras, fomes, & peste". Coimbra, Bispo, 1545-
1572 (João Soares). Carta pastoral de D. João Soares que manda publicar uma bula de Pio V onde se proíbe
a blasfémia, sodomia, sinomia… Biblioteca Nacional de Lisboa, RES. 1427//6 V, digitalizado. Disponível
em http://purl.pt/14869. Último acesso em out.2020.
810
PROVISÄO do pelo cardeal inquisidor geral, dom Henrique, do breve do pecado de sodomia destinado
aos inquisidores do Estado da Índia, para que pudessem tomar conhecimento do dito pecado, assim como
encarcerar, punir e castigar os culpados. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 25, 1,003 nº009-011.
Disponível em
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1312886_87/mss1312886_009.pdf. Último
acesso em out.2020.
347
Cânon III
§ Todo aquele que for compreendido pecar no pecado contra natura, se for
clérigo, será deposto e metido em religião, para que faça perpétua penitência,
e se for leigo, deve ser excomungado e apartado da companhia dos fiéis
cristãos, até fazer condigna satisfação. Porque este pecado é mais grave que
conhecer carnalmente sua própria mãe. […]
Cânon VIII
§ O que comete pecado de incesto ou contra natura ou brutal tendo ajuntamento
com animais brutos, fará penitência mais de sete anos.812
811
PROVISÄO do cardeal Henrique inquisidor geral ordenando aos inquisidores da Índia que cumpram
fielmente o breve do pecado de sodomia do Papa Pio III, despachando todos os sentenciados para a Mesa
da Santa Inquisição. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 25, 1,003 nº014. Disponível em
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1312886_87/mss1312886_014.pdf. Último
acesso em out.2020.
812
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue: "Canon
iij. / § Todo aquelle que for comprehendido peccar no peccado contra natura, se for clerigo, / seraa deposto,
& metido em religião, pera que faça perpetua penitencia, & se for leygo, deue / ser excomungado & apartado
da companhia dos fieis Christãos, atee fazer condigna satis- / fação. Porque este peccado he mais graue,
que conhecer carnalmente sua propria mãy. // […]Canon viij. / § O que comete peccado de incesto ou contra
natura ou brutal tendo ajuntamento cõ ani- / maes brutos, faraa penitencia mais de sete annos".
Constituicones [sic] do Arcebispado de Goa, aprouadas pello primeiro cõcilio prouincial. - Goa : per Ioão
de Endem, 8 Abril 1568. Biblioteca Nacional de Lisboa, res-134-a. Disponível em http://purl.pt/14666.
Último acesso em out.2020.
348
século XVI, dos demais bispados portugueses, pois nenhuma outra apresenta cânones
semelhantes. Vale a pena notar como, no cânone VIII, o pecado de sodomia encontra-se
confluído aos de incesto e bestialidade (também conhecido como brutalidade), sob a égide
da irracionalidade contrária à natureza, posta como comum aos três pecados, no sentido
de que todos os três eram contravenções gravíssimas ao sexto mandamento.
[…] que no Santo Ofício destes Reinos e Senhorios pudessem conhecer das
pessoas culpadas no crime nefando de sodomia, assim seculares, como
eclesiásticas de qualquer qualidade e condição que fossem. Assim e da maneira
que se costuma proceder nos crimes de heresia. E punir e castigar os ditos
culpados até os embargar à Justiça secular, sendo necessário. E Sua Santidade,
que os não fez bastante informação se conviesse, fizesse assim e tomasse
conhecimento no Santo Ofício do dito crime, por seu Breve apostólico,
cometeu a el Rei Dom Henrique, que Deus haja, sendo inquisidor-geral destes
Reinos, que o conhecesse no Santo Ofício, o que lhe parecesse bem e em
serviço de Deus, e necessário para se evitar e extinguir o dito, e se castigarem
os culpados nele bem mais largamente, se contém no dito Breve, cuja cópia
composta vos será dada. O qual Breve, o dito Rei Dom Henrique inquisidor
geral aceitou e dando-o sua devida acuição ordenou, mandou e cometeu aos
inquisidores destes Reinos que pudessem inquirir e receber quaisquer
testemunhos e denunciações contra todas as pessoas conteúdas no dito Breve
que se retratassem culpadas no dito crime, posto que já o estivessem presas por
isso. E que pudessem contra elas do mesmo modo e forma que se costuma
proceder no Santo Ofício nas causas de heresia. E pudessem punir e castigar
os culpados até os relaxar à Justiça secular, conforme ao dito Breve […].
(grifos nossos).813
813
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue: "[…]
que no santo officio des / tes dittos Reynos E senhorios pudessẽ conhecer das as / pessoas culpadas no
crime nefando de sodomia assj secula / res como ecclesiasticas de qualquer qualidade e condicaõ que foss
/ assj E da maneyra que se costuma proceder nos crimes de heresia / E punir E castigar os dittos culpados
até os enbargar a Justi / ca secular sendo necessario, E Sua sanctidade que os naõ Fez / bastante informacáo
se conuinSe fizesse assy E tomasse / conhecimento no santo officio do ditto crime, per seu Breue apost /
cometteo a el Rey Dom Henrique que Deos aJa sendo Jnqui / sidor geral destes Reynos que o conhecesse
no santo officio o que / lhe parecesse bem e em seruico e Deus E necessario pera Se / euitar E extinguir o
ditto crime E se castigarem os cul / pados nelle bem maẏs Largamente se contem no ditto Breue / cuia copia
composta uos sera dada: o qual Breue o ditto / Rey Dom Henrique Jnquisidor geral aceitou e dandoo / sua
deuida acuicaõ ordenou, Mandou E cometteo aos / Jnquisidores destes Reynos que pudessem Jnquirir, E
reçe / ber quaesquer testemunhos E denunciações contra todas as / pessoas conteudas no ditto Breue que se
retrassem culpadas / no ditto crime posto que Ja o estiuessem prezas por isso E / E que pudessem contra
ellas do mesmo modo de forma que / Se costuma proceder no santo offiçio nas causas de heresia i / E
pudessem punir E castigar os culpados te os relaxar / a Justiça secular conforme ao ditto Breue […]".
COMISSÄO do cardeal arquiduque inquisidor geral de Portugal enviada aos inquisidores de Goa e partes
da Índia para conhecerem o pecado de sodomia, e a ordem que a isto devem guardar. Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, 25, 1,003 nº072. Disponível em
349
E porque neste crime se deve proceder com muita cautela, pela grande infâmia
que dele se segue, não procedereis à prisão de pessoa alguma eclesiástica, nem
secular, de que se possa seguir escândalo, sem o nos fazerdes primeiro saber.
Assim como temos mandado que se faça no crime de heresia e apostasia. E
assim vos mandamos que não tomeis final determinação em caso de relaxação
por este crime, sem me avisardes dela primeiro, para em tudo provermos como
nos parecer serviço de Deus e Justiça. 814
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1312886_87/mss1312886_072.pdf. Último
acesso em out.2020.
814
A ortografia e a pontuação do texto foram atualizadas. Na versão original, o texto é como segue. "E por
que neste crime se deue proceder com / muita cautela, polla grande infamia que delle se segue / naõ
procedereis a prisaõ de pessoa alguã Ecclesiastica / nem secular, de que se possa seguir escandalo, sem no
/ lo fazerdes primeiro saber. Assi como temos mandado / que se faça no crime de heresia, e Appostasia. E
assi / vos mandamos, que naõ tomeis final determinaçaõ / em caso de relaxaçaõ por este crime, sem me
auisardes / dello primeiro pera entodo prouermos como nos parecer / seruiço de Deos, e Iustica".
PROVISÄO do cardeal dom Henrique inquisidor geral aos inquisidores de Lisboa para o conhecimento dos
culpados do crime de sodomia, até a Justiça secular os poder relaxar, declarando a ordem que os vão
guardar, processar e sentenciar. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 25, 1,003 nº020. Disponível em
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1312886_87/mss1312886_020.pdf. Último
acesso em out.2020.
350
815
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 157, n. 392, p. 495-1020, jul/set.
2006, p. 659.
351
apresentam voluntariamente, dos que são denunciados por outrem, assim como os que
são reincidentes no mesmo crime. Em todos os casos, a sodomia é sempre posta em
equivalência à heresia.
816
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 157, n. 392, p. 495-1020, jul/set.
2006, p. 385.
352
onde ele se cometia. Sobre o dito crime fez o santo Pio V duas constituições
em que ordenou o modo que se deve observar no castigo dos clérigos culpados
neste delito, e os reis deste reino, com santo zelo, impetraram da Sé Apostólica
que, para melhor ser castigado este nefando delito, se cometesse o castigo dele
aos inquisidores apostólicos do Tribunal do Santo Ofício, como se fez por um
breve do Papa Gregório XIII.817
817
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Estudo introdutório
e edição FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales; JANCSÓ, Istvan; PUNTONI, Pedro. (Orgs.). São
Paulo: EDUSP, 2010, p. 482.
818
BENNASSAR. Inquisición española, p. 94-125.
353
819
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 220.
354
juízo pelo muito vinho".820 Henrique Carneiro salienta que o costume de se embriagar
pela ingestão de álcool era tratado como um vício, categoria que, até a Modernidade
iluminista, tinha um sentido predominantemente moral e religioso, oposto à virtude, não
necessariamente conectado à ideia de um hábito de excesso, que seria já uma visão mais
moderna.821 Seguindo essa direção, Mott acrescenta que "bêbedo" era uma ofensa
gravíssima nos tempos coloniais, um ultraje à honra alheia.822 Algranti, finalmente,
completa que o vício (esta falha moral-religiosa habitual, no sentido tomista) era
associado, na Época Moderna, por viajantes europeus e colonos luso-brasileiros, às
camadas subalternas (escravizados ou forros), especialmente aos indígenas, aos africanos
e aos seus descendentes, mestiços ou não (uma clara inflexão racista e eurocêntrica, visto
que se tratava de um consumo generalizado em todas as camadas sociais). 823 O que nos
importa saber dos sentidos do que hoje entendemos como alcoolismo na Época Moderna
e suas relações com as práticas, supostamente, sodomíticas da personagem? Importa,
porque esse hábito vicioso terminou servindo-lhe como um tipo de álibi de
irresponsabilidade criminal, diante das interpelações da Inquisição e da Igreja, ainda que
talvez não para as interpelações de sua vizinhança, brotadas, ao que parece, de um veio
de intolerância popular ao homoerotismo e às transgressões da ordem de gênero
tradicional da masculinidade.
820
BLUTEAU, Raphael. Bebedo. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 2, p.
77. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/bebedo. Último acesso em out.2020.
821
CARNEIRO, Henrique. Transformações do significado da palavra "droga": das especiarias coloniais ao
proibicionismo contemporâneo. In: VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool e drogas
na história do Brasil. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2005, p. 19.
822
Mott ainda fornece algumas expressões típicas presentes em relatos inquisitoriais para descrever o estado
de embriaguez alcoólica, tais como "estar alegre de vinho, esquentado pelo vinho, chumbado de aguardente,
tomado do vinho, turbado com aguardente, bêbedo, cheio de vinho, dado à bebida". MOTT, Luiz. In vino
veritas: vinho e aguardente no cotidiano dos sodomitas luso-brasileiros à época da Inquisição. In:
VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo:
Alameda; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2005, p. 61.
823
ALGRANTI, Leila Mezan. Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma história da produção e do
consumo de licores na América portuguesa. In: VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool
e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2005, p. 73; 84;
86; 90.
824
O historiador Tarcísio R. Botelho relata que a produção da tiquira, uma aguardente de mandioca, é típica
do Maranhão (com uma presença pequena em regiões próximas na Bahia e no Piauí), tendo aparecido a
partir da mistura da técnica de fermentação da mandioca da cultura indígena local com o processo de
355
E assim mais disse ela, testemunha, que, por algumas vezes, estando em casa
de seu genro, em uma delas vira ao dito seu genro recolher o negro Jacinto e
mandar-lhe despir as ceroulas para o comunicar. E acudindo ela, testemunha,
e sua filha a desviar e impedir, que não comunicasse o negro, nem com ele
cometesse o pecado nefando, pelejando muito com seu genro, ele lhe
respondera que mais valia o traseiro dos homens, que quantas dianteiras de
mulher havia.825 (Grifos nossos).
A expressão destacada, "mais valia o traseiro dos homens, que quantas dianteiras
de mulher havia", talvez fosse um chavão corrente entre as pessoas comuns no Maranhão,
ou na América portuguesa, ou uma destilação de palavras consideradas mais vulgares
pelo licenciado Ignácio da Fonseca Silva, vigário da vara do tribunal eclesiástico
maranhense em 1672, logo, impróprias a figurar em um documento judiciário, ainda que
seu assunto fossem sodomias e relações homoeróticas.826 Assim, vemos a mesma
destilação de aguardente levado para lá pelos portugueses. "Neste contexto, portanto, ocorre
progressivamente a aproximação entre as soluções encontradas pelos indígenas para fermentação do amido
da mandioca e as técnicas de fermentação e destilação trazidas pelos portugueses para a produção de
aguardente. Surge desse encontro, em algum momento entre a segunda metade do século XVII e a segunda
metade do século XVIII, a produção da tiquira". BOTELHO, Tarcísio R. A produção de tiquira no
Maranhão: história de uma ausência. In: VENÂNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. Álcool e
drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2005, p. 224-5.
825
" E aSsim maiS diSse el / la testemunha que por algumas uezes / estando em Caza de seu genro em huma
/ dellas uira ao ditto seu genro ReColher / o negro Hiacinto, e mandarlhe despir / as Siroulas para o
Comunicar, e aCodin / do ella testemunha, e sua Filha a desui / ar, e empedir que nam ComuniCasse o ne /
gro, nem Com elle Cometesse o peCcado ne / fando peleijando muito Com seu genro / elle lhe Respondera
que maiS ualia o tra / Zeiro dos homens que quantas diantei / ras de mulher auia". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 25v.
826
Talvez possamos pensar, a título de hipótese circunstancial, numa espécie de linguagem algo híbrida,
entre popular e erudita, em que foram feitos os documentos das devassas feitas pelo tribunal eclesiástico
local nas décadas de 1660 e 1670 contra Francisco Coelho. Trata-se de uma linguagem diferente daquela
que observamos nos textos compilados pelos notários inquisitoriais, a partir dos ditames de inquisidores
letrados e de profissionais no manuseio de técnicas de extração/produção de um discurso de saber sobre a
carne pecadora dos cristãos transgressores, linguagem esta que era bastante mais seca e objetiva
(pragmática). A linguagem dos textos documentos escritos por eclesiásticos de fora da Inquisição (como
nas varas de justiça dos ordinários locais) deixava transparecer, em maior grau ou volume, as vozes dos
sujeitos interpelados, menos destiladas pelos saberes eruditos da Igreja e da Monarquia, daí um grau talvez
mais híbrido, porque os agentes (interrogadores, interrogados, notários) compartilhariam mais elementos
de uma cultura popular comum (lembremos como Burke mostrou que, antes dos séculos XVIII e XIX, a
pequena tradição era compartilhada por pessoas de todos os estratos sociais, diferentemente da grande
tradição, apanágio das elites letradas). As devassas movidas pelos vigários-gerais do Maranhão, sem
instrução inicial do Santo Ofício, são evidências nesta direção. Nelas, lemos expressões e frases que, mais
claramente, dizem de traços de uma ordem de gênero e erótica popular que não necessariamente era aquela
que a Igreja pretendia fazer avançar, nos termos do dispositivo da carne. BURKE. Cultura popular na Idade
Moderna, p. 50-7. Em uma outra direção, Foucault observou que a explosão discursiva sobre o sexo que
tem caracterizado o Ocidente desde, pelo menos, o século XVII (mas que podemos rastrear, em menor
volume, a períodos bem anteriores, como vimos no capítulo um), foi caracterizada também por uma
depuração rigorosa do vocabulário autorizado. Foram criadas novas regras de decência que filtraram os
enunciados (uma polícia dos enunciados), além de um controle das condições de enunciação. "Houve, é
356
expressão repetida pelo índio forro Duarte, morador da aldeia dos pernambucanos,827 com
um acréscimo interessante, que destaca a analidade do sodomita, com uma percepção
negativa do sexo anal entre as pessoas daquela sociedade:
quase certo, toda uma economia restritiva, que se integra nesta política da língua e da palavra – espontânea
por um lado, concertada por outro – que acompanhou as redistribuições sociais da idade clássica". Assim,
o incitamento crescente à discursificação do sexo, parte central da pastoral tridentina, técnica importante
para a disciplina dos povos, conviveu com uma discrição recomendada insistentemente. Se, a nós, leitores
contemporâneos, o palavreado inquisitorial pode parecer chocante, trata-se apenas das vantagens do nosso
disciplinamento mais profundo e interiorizado como sujeitos sexuais. FOUCAULT. História da
sexualidade 1, p. 21-4.
827
A denominação dessa aldeia remete aos movimentos de migração dos índios potiguaras entre os séculos
XVI e XVII. Segundo Maria Regina Celestino de Almeida, os potiguaras foram protagonistas das guerras
que resultaram na conquista de Pernambuco e capitanias adjacentes (Paraíba e Rio Grande) até o final do
século XVI. Uma paz foi celebrada entre portugueses e potiguaras na cidade de Filipeia de Nossa Senhora
das Neves (atual João Pessoa) em 1599. ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história do
Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 49-53. (Coleção FGV de bolso. Série História) No Atlas
Histórico da América Lusa, podemos observar, em um dos mapas sobre as migrações dos povos nativos,
vetores que mostram um movimento indo de povoamentos do século XVI, na costa atlântica (regiões das
capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande), para outros núcleos de povoamento mais recente no
século XVII, já na região da serra de Ibiapaba, entre os atuais Ceará e Piauí. Com o avanço da fronteira
colonial em direção ao Ceará, no século XVII, e, junto com ela, das guerras, epidemias e escravizações,
justifica-se a continuidade de migrações de grupos indígenas, originalmente vindos da costa pernambucana,
para o Maranhão (migrações que também se deram na forma de deslocamentos militares auxiliando as
conquistas portuguesas no Ceará, na serra de Ibiapaba e no Maranhão). No mesmo Atlas, o mapa dos grupos
nativos no século XVII também mostra forte presença potiguar na região ao redor de São Luís do Maranhão.
GIL, Tiago Luís; … {et. al.]. Atlas histórico da América Lusa. Coordenação Tiago Luís Gil, Leonardo
Brandão Barleta. Porto Alegre: Ladeira Livros, 2016, p. 28-30.
828
"[…] fora a Caza della testemunha / hum indio forro da Aldeia dos Pernam / buCanos por nome Duarte,
e Sua mu / lher, e lhe disseram a ella teStemunha / que o ditto FranciSco Coelho pegara pel / lo braço em
hum indio dizendolhe que / Se namoraSse delle, e que o indio lhe Respon / dera que o nam quizeSse Sujar,
e que Se / despedira delle Com que nam obrou o que / tinha no pensamento, e que o mesmo jndio / lhe
diSsera // Lhe diSsera que o ditto FranciSco Coelho era / majs affeiçoado aS partes trazeiras, e dos / machos,
que das femeaS". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 30v-31f.
357
(grafia que também apareceu no processo) aponta para uma percepção negativa acerca do
sexo anal e/ou do homoerotismo. Interessantemente, ao convite (assédio) de Francisco
Coelho para que tivessem relações físicas (será que necessariamente o sexo anal?), o
indígena anônimo respondeu duramente que não o “sujasse”. Que sujeira era essa
transmissível pelo contato sodomítico? Vislumbramos, aqui, a circulação dos enunciados
dos discursos da carne, que aproximavam a sodomia à corrupção moral, à doença e às
tragédias, coletivas ou individuais.
829
RUBIN. O tráfico de mulheres (1975), p. 9-61.
358
por estas e outras suspeitas, presumira que o dito seu marido continuava com
o pecado nefando.830
É certo que as palavras de Maria Soares devem ser tomadas com uma dose de
suspeição, uma vez que ela era diretamente interessada na condenação do marido, de
quem queria se divorciar, para o que iniciara tratativas no Eclesiástico de São Luís
(segundo o testemunho de Manoel de Carvalho de Barros).831 Os próprios inquisidores
tiveram ciência de que a denúncia de Maria Soares (e, adicionalmente, de seus familiares
e mais pessoas em sua facção, como denominou o próprio Francisco Coelho em suas
contraditas) poderia ser falsa, derivada de seus interesses particulares, em uma tentativa
de instrumentalizar a justiça inquisitorial. Foi para investigar essa possibilidade que a
mesa da Inquisição de Lisboa comissionou ao padre Frei Manoel de Brito, vigário
provincial da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, no Estado do Maranhão e comissário
do Santo Ofício,832 que averiguasse, especificamente, os conflitos existentes na localidade
de São Luís envolvendo o réu, para o que deveriam ser perguntadas seis testemunhas que
830
"[…] E anouteCendo Logo uiera o dito seu marido de / Fora para caza, e se fora deitar na cama trazendo
com sigo hum / indio seu escrauo do gentio da terra por nome Hiaçinto que ja / morreu na Aldeia de Saõ
Jozeph, e pegandolhe per hum braço, e preçu / adindoo, que se deitaSse Com elle na Cama, e neste tempo
uiera huã Ra / pariga forra do gentio da terra que estaua em Caza a quem o dito / seu marido tinha mandado
espreitar se dormiaõ ja os homens que es / tauaõ no Cupiar da Caza, e diSsera a dita Rapariga a ella testemu
/ nha que olhaSse que seu marido estaua persuadindo o negro que com si / go tinha, que se deitaSse na
Cama Com elle, ouuindo ella testemunha / na parte onde estaua todas as ReIoẽs, e afagos que o dito seu
marido / fazia ao negro para effeito de o comunicar, e naõ lhe sofrendo a ella / testemunha mais o Coração
sahira da Camera donde estaua, e dis / sera ao dito seu marido por estas formaés palauras = Para iSso me /
leuou uosse para Caza de minha Maẏ para deitar Com sigo em o meu / Lugar hum negro macho na minha
cama bem se puder a Vossa Merce lem / brar de que esteue prezo trez annos por este Cazo, e eu se Cazej /
Com Vossa MerCe // Com Vossa merCe Foi por me pareçer que eraõ aleiues que lhe tinhaõ leuantado /
porem pellas acções preZentes, e o acto que o uẏo Crio que tudo foi uerda de, e que por estas Rezoẽs
mandara ella testemunha o negro para fora pele jando muito Com elle, e o dito seu marido naõ falara
palaura, e que por estas, e outras sospeitas prezumira que o dito Seu marido continuaua Com o pe Cado
nefando". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 7v-8f. Sobre o termo aleivosia,
segundo o dicionário do padre Bluteau, “aleive: Duarte Nunes de Liam, na origem da lingoa Portugueza,
fol. 211. poem esta palavra no numero das antigas. Vid. Aleivosia. Sendo por este Aleive condenada”.
“Aleivosia, Alevozia. Segundo as proprias palavras da Ordenação liv. 5, tit. 37. he huma maldade cometida
atreiçoadamẽte sob mostrança de amizade”. BLUTEAU, Raphael. Aleive. In: BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da
Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 1, p. 234. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/1/aleive. Último acesso em out.2020.
831
Manoel Carvalho de Barros, homem branco de 53 anos, contou ao vigário da vara, em seu testemunho
do dia 21 de janeiro de 1672, que, quando Maria Soares estava tratando de seu divórcio, retirara um escravo
da casa do marido, que a acusou, em retorno, de roubo. Mas, segundo a testemunha, Maria Soares o fizera
para que Francisco Coelho não praticasse a sodomia com o indígena. Em sua opinião, era voz pública que
Francisco Coelho cometia sodomia. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 17f.
832
No início da cópia do sumário de testemunhas da primeira comissão, passada pelos inquisidores de
Lisboa ao padre Frei Manoel de Brito, encontra-se a informação de que ele também era comissário do Santo
Ofício. "[…] Eu frei Antonio da Madre de Deus fui cha / mado estando ahi prezente o Muito / Reverendo
Padre Commissario / Frei Manoel de Brito …" DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717,
fl. 72f.
359
833
O comissário ouviu, para esta comissão específica, sete testemunhas, sendo três mulheres, uma delas
uma sobrinha do réu chamada Andreza de Oliveira, que já fora ouvida repetidas vezes a partir da devassa
de 1672. É interessante que as perguntas e as respostas das testemunhas pareceram dirigidas mais a
eventuais conflitos entre Francisco Coelho e o índio Pascoal, nenhuma delas cita as desavenças do réu com
sua esposa. Por outro lado, confirmam que ele era julgado como homem ébrio e vicioso por todas as pessoas
na localidade. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 82f-85v.
834
RODRIGUES. Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro, p. 121.
835
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 148f.
360
836
Os modos de circulação, trânsito ou passagem dos enunciados de um discurso a outro, ou, em um
discurso, de um sistema homogêneo a outro, é uma das marcas definidoras do enunciado e de sua família
(a formação discursiva). Assim, de acordo com Deleuze, pode-se dizer que uma das marcas definidoras do
enunciado é a variação inerente que o faz passar intrinsecamente de um sistema a outro. O enunciado,
portanto, é inseparável do que Foucault chamou de seu domínio associado, daquilo que está às suas
margens, e o que povoa suas laterais são exatamente outros enunciados (também específicos, não-
aleatórios), que formam seu contexto e o tornam possível. "Não há enunciado que não suponha outros; não
há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma
distribuição de funções e de papeis". FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 112. Este campo contextual
não é uma estrutura, um invariável, ao contrário, trata-se de um domínio de variáveis intrínsecas ao
discurso/linguagem, sua variação inerente. Portanto, o que especifica a função enunciativa em um discurso
é, entre outras, as regras intrínsecas destas variações entre os sistemas, entre os discursos, pelo contato
marginal com outros enunciados. DELEUZE. As formações históricas, aula 5, p. 1-13.
837
" Sebastiaõ Preto do / gentio de angola crioulo da caza de Joaõ de Siqueira, e seu escrauo de ida / de que
diSse ser de çeçenta annos pouco mais, ou menos testemunha a quem o dito Re / uerendo Vigário da Vara
deu juramento dos Sanctos Euangelhos, e lhe enCarre / gou diceSse uerdade do que SoubeSse, e lhe fosse
preguntado pelo Contheudo no auc / to atraS, e Referimentos o que elle prometeo Fazer, por ser muito
Ladino, e criou / Lo = / E perguntado a elle teStemunha pelo Contheudo no aucto, e Referimento diSse que
uin / do elle teStemunha do porto do Cotê para caza de seu Senhor, e no caminho / anteS de chagar a Caza
de Francisco Coelho, e ao seu caminho no meS de Julho / pouco maiS, ou menoS deste prezente anno de
seiSçentos çetenta e hum / que acabou, e que Com oS seuS olhos uira estar o dito Francisco Coelho na /
361
borda da Sua Roça metido na Capoeira Com hum negro Seu escrauo por / nome Pascoal ao qual estaua
persuadindo que despisse as Seroulas / para // Para o Comunicar por detraz, e que o negro se defendia delle
quanto / podia dizendolhe que naõ era mulher, que tambem era homem como elle / ao que o dito seu Senhor
lhe Respondia que Senaõ consentia, e Fazia o que lhe / pareçia / digo / o que lhe mandaua o auia de tratar
dali por diante muito mal / e que uendo elle teStemunha o dezaForo, e má tençaõ do dito Francisco Coelho
chama / ra por elle treS uezeS só afim de atalhar o tal peccado, e aCodindo o dito Fran / ciSco Coelho a
Seu chamado o leuou para caza, e no caminho lhe fora dizen / do que porque se naõ emmendaua daquelle
uiçio pois ja estiuera prezo / por amor do dito peccado, e que seu Paẏ, e sua Maẏ o liuraraõ os quaeS ja /
eraõ mortos, que se o tornaSsem a prender pelo meSmo peccado que naõ tinha mais / amparo que quem lhe
tiraSse a Capa, e o dito Francisco Coelho lhe naõ ReSpondera / Couza alguã; E dizendo elle teStemunha a
Sua mulher Maria SoareS porque Re / zaõ naõ tiraua a Seu marido daquelle uiçio ella lhe ReSpondera, que
/ bem tinha batalhado Com elle, maS que naõ tinha Remedio que Com o dito uici / o auia de morrer, e que
tambem diSsera elle testemunha ao negro PaScoal que / naõ consentiSse o que seu senhor lhe pedia por
nenhum Cazo; E bem aSsim diSse / elle teStemunha que da primeira uez que o dito Francisco Coelho esteue
prezo por este peccado / ouuio elle teStemunha dizer a algunS escrauoS do mesmo Francisco Coelho que
seu senhor / Vzaua do peccado nefando Com hum indio seu eScrauo por nome Hiacinto que / ja morreo, e
que iSto era publico por indioS escrauoS, e forros". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
01717, fl. 10v-11f.
838
Segundo o dicionário do padre Bluteau, capoeira podia significar ou uma gaiola (algo como um cesto,
segundo Moraes Silva) para criação de galinhas (ou outras aves) ou uma arquitetura de fortificações,
"espécie de cesto muito grande, redondo e sem fundo, feito de ramos entrefechados, e que se enche de terra
bem batida, e se põe em pé, para cobrir, os que se defendem" (grafia atualizada). Segundo o dicionário de
Moraes Silva, "na fortificação, é uma cava de quatro até cinco pés de alto, cercada de parapeito de dois pés,
que se cobre por cima com pranchas carregadas de terra; nos lados dos parapeitos se abrem canhoneiras;
de ordinário recolhe até 20 mosqueteiros, e se faz sobre a extremidade da contraescarpa". Mais
modernamente, o termo, conservando os sentidos antigos, foi dotado de dois novos, um referente à arte
marcial afro-brasileira, outro que diz de um terreno em que o mato foi roçado ou queimado para cultivo.
Assim, pelo contexto do relato, inclinamo-nos a pensar que o termo aparece no sentido mais recente de
"mato que nasceu nas derrubadas de mata virgem", ainda que não fosse dicionarizado antes de, pelo menos,
finais do século XIX. BLUTEAU, Raphael. Capoeira. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez &
latino: aulico, anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 -
1728, v. 2, p. 129. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/capoeira. Último acesso
em out.2020. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. Recompilado dos
vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por
ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813 [1789], p. 343. Disponível em
www.dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/capoeira. Último acesso em out.2020. HOLANDA,
Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975,
p. 276.
362
839
O mistério em torno da primeira devassa levantada contra Francisco Coelho acompanhou o
desenvolvimento do processo por décadas. Os inquisidores de Lisboa mostraram-se intrigados e suspeitosos
pelo fato de a devassa, cujo traslado atravessara o Atlântico, constando dos arquivos inquisitoriais mais de
15 anos depois, não ter resultado em mais diligências e o réu ter saído aparentemente incólume. Fora
libertado da cadeia de São Luís sem explicação clara. Repetidamente, nas várias diligências que ordenaram
para juntar mais provas e ratificar as que tinham acumulado, os inquisidores solicitavam que a questão fosse
apurada, passando-se certidão explicando se o réu fora ou não punido pelos atos investigados em 1660.
Suspeitava-se de alguma transgressão, alguma prática de corrupção (conforme os sentidos morais,
religiosos e políticos que o conceito tinha na Época Moderna), envolvendo tanto corrupções dos costumes
(afinal, tratava-se de um caso de sodomia), como dos juízes envolvidos. A partir dos estudos de Adriana
Romeiro sobre a corrupção no Brasil colonial, não devemos subestimar a preocupação da Inquisição, pois
se entendia a corrupção como a degradação da política e da república (poderia conduzir à tirania). Em um
caso em que o desvio da justiça ocorrera no sentido de proteger um sodomita, um pecado/delito que, como
vimos, tinha associações terríveis e catastróficas até mesmo para a coletividade, o perigo era
exponencialmente maior. Um ato corrupto de alguns (as pessoas no Maranhão suspeitavam de que os pais
do réu agiram no sentido de libertá-lo, como se pode ver no depoimento de Sebastião) delinquentes
assomava-se em ameaça à cristandade. A dúvida somente foi esclarecida na sexta sessão de interrogatório
do réu, já nos Estaus em Lisboa, no dia 07 de maio de 1677, quando ele próprio esclareceu as circunstâncias
de sua prisão e libertação pelo Ordinário do Maranhão em 1660. Segundo seu relato, com as mortes
sucessivas dos vigários-gerais daquele Estado, não havendo notícia do Tribunal do Santo Ofício, ele réu
recorrera ao padre Manoel Nunes da Companhia de Jesus, visitador do Colégio e que, então, governava o
Eclesiástico local, pedindo-lhe que o soltasse. A que o padre atendera, sem lhe dar pena alguma, sem fazer
figura de juízo ou processo. Ainda que seja possível suspeitar do relato do réu, que talvez tenha apagado
alguma transgressão envolvendo seus pais e os padres da Companhia, para a Inquisição o que interessava
era a certeza de que Francisco Coelho não fora oficialmente castigado pelas faltas levantadas na devassa de
1660, que foram, por isso, ajuntadas às provas do processo. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 01717, fl. 143f-144v. ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil. Uma história, séculos
XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 19-89. (História & Historiografia)
363
delas era evitar que o cônjuge caísse em pecado mortal. Logo, se Francisco Coelho
procurara satisfação erótica fora do casamento, mesmo que de maneira contrária à
natureza, parte da culpa, do ponto de vista cristão-carnal, recaía sobre sua esposa. Uma
versão parecida desta culpabilização da esposa pela sodomia do marido aparece nos
relatos que afirmam a virgindade de Maria Soares, que nunca teria sido tocada pelo
marido. Duas testemunhas fizeram essa afirmação: Brás da Fonte, homem branco de 60
anos, e Antônio Ribeiro, alferes reformado de 40 anos, na forma seguinte: "E outrossim
disse ele, testemunha, que ouvira dizer publicamente que o dito Francisco Coelho não
queria comunicar com sua mulher Maria Soares pelo vaso natural, senão por detrás. E
que ainda a dita Maria Soares estava honrada por diante".840
Se, por um lado, a esposa podia carregar alguma culpa pelos pecados eróticos do
marido (ao menos por omissão no débito conjugal), por outro, a possibilidade de uma
virgindade continuada da mulher (em um casamento que não era espiritual) sugeria um
decréscimo de virilidade por parte do marido. Deparamo-nos, novamente, com a
associação entre sodomia, homoerotismo e afeminação. A predileção (que era vista como
uma idiossincrasia pecaminosa de Francisco Coelho) pelo sexo anal o impedia de cumprir
seus deveres de marido e de homem, tornando-o suscetível a interpelações mais e mais
violentas por parte, primeiramente, de seus pares, depois, de autoridades eclesiásticas e,
por fim, de oficiais inquisitoriais. Além das várias injúrias, a intolerância à sodomia
manifestou-se também em agressões físicas, em espancamentos, quase linchamentos.
Ataques violentos contra Francisco Coelho foram relatados por quatro testemunhas
(Felipe Parente, Anna Sobral, Antônio de Siqueira e Antônio Rodrigues Gouvêa),
algumas das quais foram os próprios agressores – seria necessário comentar que nenhum
desses atos foi criminalizado por qualquer instância oficial de poder? Tais agressões
foram de pauladas e espancamentos a tentativas de assassinato, motivadas pela
intolerância sexual. A mera visão das carícias trocadas entre Francisco Coelho e um de
seus amantes (no caso, o indígena Rodrigo, ainda em 1660) era suficiente para atiçar
ímpetos homicidas nos viris homens que realizavam, dia a dia, a empresa colonial
portuguesa no Maranhão, como confessara um deles: "[…] o que não quis fazer [ir
repreender o casal homoerótico], por ser em sua fazenda e porque entendia que se
840
"E outro Sim diSse elle / testemunha que ouuira dizer publicamen / te que o dito Francisco Coelho nam
queria / Comunicar Com Sua mulher Maria Soares / pello uazo natural, Senam por detras, e que / ainda a
dita Maria SoareS estaua honrada por diante". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717,
fl. 18f.
364
[…] e, indo ela testemunha ver o que era, vira andar o dito seu marido lutando
com o dito negro Pascoal, dizendo-lhe que o deixasse comunicar com ele, que
lhe fizesse a vontade, que lhe prometia de o forrar. E o dito negro lhe
respondera, defendendo-se dele o melhor que podia, que olhasse, que era
casado e que tinha a sua senhora por mulher, que o não quisesse comunicar,
pois também era homem como ele. Quem com a dita sua senhora podia cumprir
seu apetite, ao que o dito seu marido lhe respondera que, com mulheres, não
matava seu apetite, ainda que comunicasse quantas havia no mundo, e que
somente com ele o mataria e ficaria satisfeito.842 (Grifos nossos).
841
"[…] o que nam quiz / fazer por Ser em Sua fazenda, e que / entendia Se apaixonaria de uer Seme /
lhante Couza, e talues os mataria a am / bos aChando os deitados". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 01717, fl. 37v.
842
"[…] e indo ella testemunha a uer o que era uira andar o dito seu marido / lutando Com o dito negro
Pascoal, dizendolhe que o deizasse Comu / nicar Com elle, que lhe fizesse a uontade, quẽ lhe prometia de
/ o forrar, E o dito negro lhe Respondera defendendose delle o milhor que / podia, que olhase que era
Cazado, e que tinha a Sua Senhora por mu / lher quẽ o naõ quizesse Comunicar pois tambem era homem
Como elle / quẽ com a dita Sua Senhora podia Cumprir Seu apetite, ao que o di / to Seu marido lhe
Respoñdera que Com mulheres naõ mataua seu /apetite ainda que ComunicaSse quantas auia no mundo e
que Sómente Com elle / o mataria, e ficaria Satisfeito". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
01717, fl. 8f.
365
Nesse trecho e nos anteriores, vemos uma recusa ao sexo anal homoerótico,
baseada em uma identidade de gênero masculina bastante sensível. A mera oferta da
prática sexual desviante era o bastante para melindrá-la, ao mesmo tempo que provocava
uma prática performativa mais intensa da virilidade. Partindo de um homem indígena (do
gentio da terra, provavelmente de povo potiguar, tupinambá e/ou tupi), os termos com
que repudiara o assédio sexual de Francisco Coelho apontam para a organização de
gênero das culturas nativas brasileiras. Historiadores e antropólogos mostram a existência
de hierarquias marcadas entre as pessoas socialmente classificadas como homens e as
demais (marcadas como mulheres, crianças ou outras categorias intermédias), indicando
uma ordem de gênero mais ou menos rígida. Rita Laura Segato fala de um "patriarcado
de baixa intensidade" para explicar a economia de gênero entre os povos nativos
americanos em geral.843 Imaginando um dia na vida de uma aldeia dos tupi da costa
brasileira no século XVI, antes da intensificação da colonização europeia, Beatriz
Perrone-Moisés descreve papeis sociais, valores culturais e práticas artesanais-produtivas
caracterizadas por uma clivagem de gênero, delimitando modos de ser distintos para
indígenas-homens e indígenas-mulheres.844
O repúdio às práticas homoeróticas de Francisco Coelho parece ter sido geral entre
homens e mulheres indígenas da localidade de São Luís do Maranhão e aldeias ao redor,
ao longo dos muitos anos que antecederam a prisão definitiva do réu e seu envio para
Lisboa em 1672. Isso pode ser constatado pela expressão, presente em vários
testemunhos: "era voz comum e pública entre o gentio da terra". Essa expressão indica
843
Com o conceito, a antropóloga argentina refere-se à existência de nomenclaturas de gênero em
sociedades tribais indígenas americanas e afro-americanas, configurando uma hierarquia patriarcal, mas
que não era idêntica à ocidental, porque menos rígida, mais aberta a transitividades de gênero e sexuais.
"Dados documentais, históricos e etnográficos do mundo tribal, mostram a existência de estruturas
reconhecíveis de diferença semelhantes ao que chamamos relações de gênero na modernidade, que incluem
hierarquias claras de prestígio entre a masculinidade e a feminilidade, representados por figuras que podem
ser entendidas como homens e mulheres. Apesar do caráter reconhecível das posições de gênero, nesse
mundo são mais frequentes as aberturas ao trânsito e à circulação entre essas posições que se encontram
interditas em seu equivalente moderno ocidental. Como é sabido, povos indígenas, como os Warao da
Venezuela, Cuna do Panamá, Guayaquís do Paraguai, Trio do Suriname, Javaés do Brasil e o mundo inca
pré-colombiano, entre outros, assim como vários povos nativos norte-americanos e das nações originárias
canadenses, além de todos os grupos religiosos afro-americanos, incluem linguagens e contemplam práticas
transgenéricas estabilizadas, casamentos entre pessoas que o Ocidente entende como do mesmo sexo e
outras transitividades de gênero bloqueadas pelo sistema de gênero absolutamente engessado da colonial /
modernidade". SEGATO, Rita. “Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário
estratégico descolonial”. E-Cadernos Ces, n. 18, p. 105-131, 2012, p. 117.
844
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. A vida nas aldeias tupi da costa. Oceanos, 42, p. 8-20, 2000. A
historiadora Maria Regina Celestino de Almeida traz elementos complementares à análise do patriarcado
dos povos nativos brasileiros, ao descrever o funcionamento dos sistemas de parentesco dos indígenas.
ALMEIDA. Os índios na história do Brasil, p. 38; 40.
366
que a conversação acerca das práticas eróticas dissidentes de Francisco Coelho fora feita,
em grande medida, a partir dos membros dos povos originários brasileiros que viviam e
trabalhavam em seu engenho, atingindo, aos poucos, pessoas da cidade e de outras
localidades próximas. Nesse contexto, não seria absurdo pensar que essa rede de
transmissão de notícias/fofocas/intrigas funcionava também como uma prática de
resistência ao que era percebido como uma violência, um maltrato, muito para além do
admissível dentro dos parâmetros da relação senhor-escravizado. Tratava-se de uma
resistência que se valia das normas de gênero e das instituições de poder, interpelando,
por sua vez, um outro sujeito, o que evidencia a ambivalência própria das relações de
poder-resistência.845
[…] e que indo ele em sua companhia [de Francisco Coelho] no caminho,
pegara nele e se sentara com ele, pegando-lhe em suas vergonhas, dizendo-lhe
que a tinha mole, e que só a sua estava dura e tesa. E que lhe pedira que pegasse
nas suas, e que ele logo lhe pegara nelas, e vendo que a tinha muito dura,
largara logo por mão e deitara a fugir, chamando-lhe tibiro. E o dito Francisco
Coelho o desonrara de corno e cão, e mais não disse. 846 (Grifos nossos).
O que era ser tibiro? No processo de Francisco Coelho, todas as testemunhas (ou
haveria aqui a ação intérprete dos agentes eclesiásticos?) afirmam que se trata de uma
palavra indígena que quer dizer sodomita, ou somitigo. Por exemplo, o testemunho de
Amaro Martins Pestana, que, ademais, ilustra a ação dos indígenas para enquadrar as
práticas eróticas de Francisco Coelho de acordo com suas categorias culturais de gênero
e sexo.
[…] E outrossim disse ele testemunha que era público, assim nas aldeias dos
índios forros, como pelos escravos, que o dito Francisco Coelho não
comunicava com sua mulher, se não com seus escravos. E que os índios lhe
não sabiam outro nome mais que de tibiro, que quer dizer somitigo.847
845
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 95-106.
846
"[…] e que indo elle em sua Com / panhia no Caminho pegara nelle / e Se sentara Com elle pegandolhe
em / SuaS uergonhas dizendolhe que a ti / nha molle, e que Só a Sua estaua / dura, e teza, e que lhe pedira
que pe / gasse naS suaS, e que elle logo lhe pe / gara nellaS, e uendo que a tinha muito / dura largara logo
por mam, e deitara / a fugir Chamandolhe tibiro, e o dit / to FranciSco Coelho o deshonrara de / Corno, e
Cam, e maiS nam diSse". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 34v.
847
"[…] E outro Sim / diSse elle testemunha que era publico, aSsim / nas AldeiaS dos indios forroS como
pellos escra / uos que o dito Francisco Coelho nam Comunica / ua Com sua mulher, se nam Com seus
367
escrauos / e que os indios lhe nam Sabiam outro nome ma / iS que de tibiro que quer dizer Somitigo".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 15f.
848
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 159-160. Para uma visão geral e introdutória das sexualidades pré-
colombianas, ver MOTT, Luiz. Etno-história da homossexualidade na América Latina. Comunicação
apresentada no Seminario-Taller de historia de las mentalidades y los imaginarios. Pontíficia Universidad
Javerina de Bogotá, Colômbia, Departamento de História e Geografia, 1994.
849
CLASTRES, Pierre. “O Arco e o Cesto”. In: A Sociedade contra o Estado. Pesquisas de Antropologia
Política. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978, p. 71-89.
850
BAPTISTA, Jean T. "Machorras" e "afeminados" indígenas: corpos objetos nas Missões e Paraguai.
Revistas de Estudos Feministas. [No prelo] Texto gentilmente cedido pelo autor em versão manuscrita.
Para uma abordagem crítica das práticas eróticas e identidades de gênero dos povos originários do Brasil,
a partir do ponto de vista da queer of color critique, ver BAPTISTA, Jean T. Entre o arco e o cesto: notas
Queer sobre indígenas heterocentrados nos museus e na museologia. Cadernos de sociomuseologia, 2021,
v. 61, n. 17, p. 43-65. RICH. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica, p. 18-44.
851
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 33-4. BAPTISTA. "Machorras" e "afeminados" indígenas: corpos
objetos nas Missões e Paraguai.
368
insultado, explicitando sua pouco virilidade, expressa no modo como ele não
desempenhava bem as atividades constituintes do ser-homem. Para além do insulto,
existia também uma categoria (encontrada entre os guaicurus) de enquadramento das
pessoas que performatizavam uma transgenereidade no sentido masculino para o
feminino, eram as pessoas cudinas (ou cudinos), sem um valor pejorativo necessário
implicado.852 Baptista fornece mais detalhes sobre os sentidos associados ao tivira, além
de identificar outras categorias adicionais. Assim, tevi significaria ânus, e avá tiviro
designaria o homem que faz sexo anal (não fica claro em que posição, como penetrador
ou como penetrado). Outras categorias citadas pelo historiador são as de abacuña ecó,
ava aky (com conotações de gênero explícitas, no sentido de "modos de homem-mulher"
ou "amujerado", afeminado), kuimb'ae ojoche e kuimba'e oñomenõ (que designam a
prática sexual anal entre homens), sendo a expressão kuña teviro identificadora da mulher
que pratica o sexo anal.853
Destarte, fica claro que os vários homens indígenas que denominaram Francisco
Coelho tivira estavam, na realidade, insultando-o, lançando uma injúria contra ele,
fundada no efeito supostamente desvirilizante da prática do sexo anal entre homens. Era,
portanto, mais uma interpelação. Vale mencionar que uma testemunha, chamada Pedro
Vilas Boas, identificou, ainda em 1662, uma expressão diferente usada pelos indígenas
para se referir a Francisco Coelho. A expressão era cunha carayba, traduzindo-a
simplesmente como "sua mulher".854 Carlos Fausto mostrou como "caraíba" era um termo
com aplicação heterogênea entre os povos tupinambás brasileiros, tendo sido utilizada
para denominar os grandes pajés e xamãs, mas também os jesuítas e outros missionários
católicos, e, até mesmo, os europeus em geral.855 Freyre e Vainfas mostraram que muitos
pajés eram indivíduos que exerciam variedades de homoerotismo, o que não os fazia ser
menos respeitados, ao contrário, sugeria um elo entre o homoerotismo, a ambiguidade em
relação ao binário de gênero do sistema patriarcal e o acesso ao universo sobrenatural,
852
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 28-33.
853
BAPTISTA. "Machorras" e "afeminados" indígenas: corpos objetos nas Missões e Paraguai.
854
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl. 106f.
855
O autor ressalta que a compreensão do deslizamento semântico da expressão caraíba é fundamental para
"entender melhor o lugar ocupado pelos conquistadores na cosmologia indígena e, dessa forma, iluminar o
círculo hermenêutico de (des)entendimentos recíprocos da história colonial". FAUSTO, Carlos.
Fragmentos de história e cultura tupinambá. Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-
histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras: FAPESP: SMC, 1992, p. 381-396.
369
856
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da
Economia Patriarcal. 51. ed. rev. São Paulo: Global, 2006, p. 186; VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 160.
857
O historiador Michael J. Horswell pesquisou as possibilidades de subjetividades de terceiro gênero
(third-gender subjectivity) nas sociedades coloniais andinas entre os séculos XVI e XIX. O autor investiga
as características peculiares que o fenômeno das pessoas ditas berdache pode assumir na região dos Andes
sob colonização espanhola. Berdache é um termo adotado pela antropologia a partir dos discursos coloniais
nas Américas para referir-se a homens que se vestem como mulheres e adotam os papeis sociais
desempenhados por elas nas sociedades nativas americanas. Os observadores coloniais, bem como
etnógrafos oitocentistas e, depois, antropólogos documentaram a existência de tais indivíduos em dezenas
de sociedades indígenas norte-americanas. Diante da impossibilidade de nomear esta prática e seus atores
com os termos do binário homem-mulher ocidental, esses observadores apropriaram-se do termo berdache,
de origem persa e árabe, que dizia do homem jovem participante de uma relação homoerótica. Em se
tratando especificamente do espaço colonial hispânico, Horswell mostra que as culturas andinas concebiam
um espaço simbólico específico para o erotismo não-procriativo nos limites do tempo e do espaço em rituais
comunitários. Indo mais além, o autor descreve a existência de performances de subjetividades orientadas
a um terceiro gênero, em diversas instâncias rituais das culturas andinas, especialmente no que a
historiografia construcionista chamou de temple sodomy (prática ritual de sodomia nos templos). O autor
aprofundou suas pesquisas no livro La descolonización del “sodomita” en los Andes coloniales.
HORSWELL, Michael J. Toward an Andean Theory of Ritual Same-sex sexuality and third-gender
subjectivity. In: SIGAL, Pete. (Org.). Infamous Desire. Male homosexuality in colonial Latin America.
Chicago, Londres: The University of Chicago Pres, 2003, p. 25-69.
858
Para uma narrativa histórica construída do ponto de vista indígena two-spirit transgênera, ver o texto
pleno de potência política-epistemológica de Qwo-Li Driskill. O contraste é marcante com autores que,
apesar de problematizar, ainda usam a categoria de berdache como recurso heurístico para estudar as
sexualidades e gêneros dos povos nativos americanos. DRISKILL, Qwo-Li. Asegi stories. Cherokee queer
and Two-spirit memory. Tucson, AZ: The University of Arizona Press, 2016; SIGAL, Peter. (Homo)Sexual
desire and masculine power in colonial Latin America: Notes towards an integrated analysis. In: SIGAL,
Peter. Infamous desire. Male homosexuality in colonial Latin America. Chicago and London: The
University of Chicago Press, 2003, p. 1-24.
370
[…] e que o dito índio Matheus, por algumas vezes, avisara ao índio Pascoal
que viesse a esta cidade avisar ao Vigário-geral do pecado que seu senhor com
ele obrava. E quando assim não fizesse, que seria preso e castigado juntamente
com o dito seu senhor, e que tomasse exemplo do negro Rodrigo, que morrera
na cadeia, da outra vez que seu senhor estivera preso por comunicar com ele
na forma e maneira que o fazia com o dito Pascoal. 859
Há que se atentar para o fato de que Matheus era o que os agentes coloniais
denominavam "boçal", isto é, não falava o português, tendo sido necessária a
intermediação de um padre tradutor para a realização do interrogatório. Não obstante isso,
Matheus se mostrara suficientemente imerso nas categorias discursivas cristã-coloniais
(significou as ações de Francisco Coelho como um pecado e uma transgressão
criminalizável) para usá-las de acordo com os interesses seus e de outros indígenas
submetidos à violência sexual do senhor. A partir da experiência anterior da prisão e
morte na cadeia do indígena Rodrigo (preso na devassa de 1660 junto a Francisco
Coelho), Matheus alertara Pascoal para o que era provável que lhe acontecesse (o que, de
fato, se deu, com a prisão de Pascoal em 1672), instando-o a tomar uma atitude
preventiva. A prevenção seria acionar uma instituição cristã-colonial, o juízo Eclesiástico
de São Luís do Maranhão, para que interpelasse Francisco Coelho.860
859
"[…] e que o ditto in / dio Matheus por algumas uezes aui / zara o indio Pascoal que uiesse a esta /
Cidade auizar ao Vigario geral do pecca / do que seu senhor Com elle obraua, e / quando aSsim nam fizesse
que seria pre / zo, e Castigado juntamente Com o ditto / Seu senhor, e que tomasse exemplo / do negro
Rodrigo que morrera na Ca / deia da outra ueS que seu senhor estiuera / prezo // Prezo por ComuniCar Com
elle na / forma, e maneira que o fazia Com o dit / to Pascoal". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 01717, fl. 33.
860
Analisamos o pensamento e a ação estratégicos do indígena Matheus no sentido que Maria Regina
Celestino de Almeida considera o complexo processo de catequese, ressocialização, mestiçagem e
reconstrução identitária (cultural-subjetiva) nas aldeias criadas e mantidas pela colonização portuguesa.
Segundo a historiadora, o lento, descontínuo e complexo processo de transformação dos indígenas em
súditos cristãos do Império português não se deu sem que os mesmos índios-cristãos usassem das novas
armas políticas e culturais para tentar fazer avançar seus planos e objetivos específicos. ALMEIDA. Os
índios na história do Brasil, p. 71-106.
371
sua honra pessoal, atestava as intrigas urdidas por sua esposa e familiares, servindo de
prova à sua contraditas no processo inquisitorial formal –, estava em disputa o
enquadramento em que seriam encerradas a experiência erótica do réu, encetando
posições de subjetividade concorrentes. Em outras palavras, qual o sentido da dissidência
homoerótica de Francisco Coelho, pecado de sodomia ou meros tocamentos desonestos
produzidos mais pelo abuso vicioso do álcool, mas que não chegariam a desqualificá-lo
como sujeito masculino e patriarcal?861
861
Em uma das últimas sessões de interrogatório na mesa do Santo Ofício, já em 1677, ou seja, estando há
cinco anos preso em Lisboa, sem contar o tempo anterior de confinamento no Maranhão, Francisco Coelho
chegou a confessar algumas das ações de cunho homoerótico narradas na primeira Prova da Justiça
publicada contra ele, mas nunca admitiu ter praticado a sodomia perfeita. Usou de uma estratégia comum
a vários sodomitas processados pela Inquisição, nem sempre frutífera, porque arriscava que ser interpretado
como negativo. No presente caso, essa conduta somava-se às outras estratégias da robusta defesa de
Francisco Coelho, tendo um resultado amplamente positivo. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 01717, fl. 138v.
862
"Após cuidadosa análise das contraditas, a Mesa do Santo Ofício conclui que não havia prova material
suficiente de que Francisco Coelho tivesse cometido o crime de sodomia perfeita, e levando-se em conta
seu alcoolismo e que "já se achava bastante castigado com a longa prisão que tem padecido, absolvem o
réu da instância em juízo". MOTT, Luiz. A Inquisição no Maranhão. São Luís: EDUFMA, 1995, p. 65.
863
Pensamos aqui na frase de Foucault, "a alma, prisão do corpo", pela qual o filósofo pretendia argumentar
que, nos dispositivos de saber-poder, a alma (ou a subjetividade, a noção de Eu) é elaborada de modo a
conformar, disciplinar, aprisionar, o corpo. Dessa maneira, a noção de uma alma insubstancial aparece
como um mecanismo de controle, articulando saber e poder, produzindo um tipo de sujeito que nada mais
é do que o efeito das relações de saber-poder atuantes sobre seu corpo (disciplinando-o), por meio da
formação, estilização de sua alma. Daí as técnicas de controle atuarem (criando) prioritariamente sobre a
alma. No dispositivo da carne, a alma assim interpelada (sujeitada e subjetivada) tem "natureza", ou seria
372
possibilidades como historiador no presente, uma vez que, para além do processo ora
analisado, Francisco Coelho desaparece.
melhor dizer, formato e função, da carne concupiscente. É por isso que perguntamos se a alma (a
subjetividade, o Eu) de Francisco Coelho teria um dia superado o molde, os constrangimentos de culpa,
medo e ódio, da carne cristã. O que é o mesmo que interrogar se um dia teria ele conseguido subjetivar-se
diferentemente? Embora não tenhamos base empírica para qualquer afirmação, cremos que não, dada a
longa violência que sofrera. FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 31-2; SILVEIRA, Fernando de Almeida;
FURLAN, Reinaldo. Corpo e alma em Foucault: postulados para uma metodologia da psicologia.
Psicologia USP, São Paulo, v. 14, n. 3, 2003, p. 171-194.
864
"Quem melhor sintetizou em nossa língua a suposta malignidade revolucionária representada pelos
sodomitas foi o cardeal D. Henrique (1512-80), segundo inquisidor geral da Inquisição portuguesa, que,
em 1574, obteve um Breve de Gregório XIII ratificando a pena de morte aos sodomitas, referidos na
documentação inquisitorial como "filhos da dissidência"". MOTT, Luiz. Revolução homossexual: o poder
de um mito. Revista USP, São Paulo, n. 49, p. 40-59, março/maio 2001, p. 54.
865
Judith Butler explicita sua apropriação do conceito althusseriano de interpelação na introdução de
Bodies that matter, a partir da crítica da ação interpelativa fundante que, nas nossas sociedades ocidentais
contemporâneas, é executada pelo discurso médico. Na tradução feita por Sara Salih, podemos ler o
seguinte: "Consideremos a interpelação médica que, não obstante a emergência recente das ecografias,
transforma um bebê de um ser ‘neutro’ num ‘ele’ ou ‘ela’: nessa nomeação, a menina torna-se menina, ela
é trazida para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação de gênero. Mas esse tornar-
373
Didier Eribon, em seu emocionante texto Reflexões sobre a questão gay, pensa
como a interpelação é um mecanismo central na fabricação das subjetividades gays
modernas. Não sendo o caso de simplesmente transplantar as considerações do filósofo
para o contexto histórico dos sodomitas do Império português na Época Moderna, seu
raciocínio nos é útil por destrinchar o funcionamento interno da interpelação, destacando
aí a importância da injúria, seja ela homofóbica, de gênero ou erótica. Sendo um ato de
fala performativo, a injúria é a explosão do processo de sujeição-subjetivação, sendo, por
se uma menina não termina aí; pelo contrário, essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades
e, ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A nomeação
é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma"
(grifos da autora). SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Tradução e notas Guacira Lopes Louro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 109. Na versão original em inglês, Butler escreveu: "Consider
the medical interpellation which (the recent emergence of the sonogram notwithstanding) shifts an infant
from an "it" to a "she" or a "he", and in that naming, the girl is "girled", brought into the domain of language
and kinship through the interpellation of gender. But that "girling" of the girl does not end there; on the
contrary, that founding interpellation is reiterated by various authorities and throughout various intervals
of time to reenforce or contest this naturalized effect. The naming is at once the setting of a boundary, an
also the repeated inculcation of a norm". BUTLER, Judith. Bodies that matter. On the discursive limits of
'sex'. New York: Routledge, 1993, p. 7-8. Para Butler, portanto, a interpelação é o mecanismo de produção
de sujeitos de gênero no seio do discurso/linguagem generificada e do sistema de parentesco específico à
cultura em questão.
866
ALTHUSSER. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, p. 93-104.
867
BUTLER. Problemas de gênero, p. 48. Notamos aqui como a ideia nietzschiana da ausência de um
sujeito anterior à sua enunciação tem ressonâncias com aquilo que Lucien Febvre descreveu como as
limitações do equipamento mental dos homens do século XVI, particularmente no que tocava à organização
sintática da linguagem erudita até aquele período. Febvre aponta a ausência de uma perspectiva temporal
na língua vulgar quinhentista (especificamente, no francês), a variedade de formas de sujeito, ainda pouco
submissas ao sistema sujeito-regência, com o verbo (predicado) sendo mais importante na frase que o
sujeito (pouco distinto). Havia uma precariedade da posição de subjetividade na linguagem escrita,
sugerindo, segundo o autor, uma certa desorganização do pensamento. Haveria uma história do sujeito
linguístico a ser feita aqui. FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI. A religião de
Rabelais. Trad. Maria Lúcia Machado; tradução dos trechos em latim José Eduardo dos Santos Lohner. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 311-2.
374
868
ERIBON. Reflexões sobre a questão gay, p. 27-29; 75-82; 83-89.
869
"A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne
não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma
de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos
obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar
em discurso". FOUCAULT, Michel. Não ao sexo rei. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.
Organização e tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 230. Trata-se também
da construção da lógica do dispositivo do armário, conforme o estudou Eve Sedgwick, a qual explica o
segredo aberto como o eixo de funcionamento do armário homossexual. SEDGWICK. Epistemology of the
closet, p. 67-9.
870
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 124.
375
871
"Denominaremos esse paradoxo de "dialética das interpelações absolutas". Por um lado, no campo das
regras formais, a existência mesma da sodomia é impossível, pois ex ante está garantido seu
desaparecimento. Nessa hipótese, não há sequer um sujeito real, mas um sujeito potencial para contrastar o
padrão masculino/ativo". A sodomia teria uma existência proscrita, na formação discursiva da
masculinidade/atividade, sobrevivendo em seus interstícios, para possibilitar o efeito propedêutico da
definição dos limites da masculinidade. FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 125-6.
872
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 46-7.
873
Vale a pena recuperarmos um conselho metodológico-hermenêutico de Halperin sobre essa passagem
foucaultiana: "Se o trabalho de Foucault nos ensina qualquer coisa, é a inquirir mais de perto sobre as
conexões sutis entre atos e identidades sexuais no período pré-moderno, a prestar mais (e não menos)
atenção às condições sociais e discursivas em que os desejos de sujeitos históricos são construídos".
Tradução de nossa autoria, no original: "If Foucault’s work should teach us anything, it is to inquire more
closely into the subtle connections between sexual acts and sexual identities in the pre-modern period, to
pay more (not less) attention to the changing social and discursive conditions in which the desires of
historical subjects are constructed". HALPERIN. How to do the history of homosexuality, p. 8-9; JORDAN.
Convulsing bodies, p. 105-108. Na A arqueologia, Foucault assim definiu a episteme: "[…] é o conjunto
das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas
no nível das regularidades discursivas". A episteme diz da descontinuidade que especifica os saberes numa
época assim distinta. FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 214.
376
Em segundo lugar, sugerir que o Santo Ofício teve uma ação "benévola" em
relação aos sodomitas é subestimar a pedagogia do medo, tão central ao funcionamento
do tribunal. Se é certo, como o comprovou Luiz Mott, que a Inquisição portuguesa
perseguiu, em termos absolutos, menos sodomitas que os tribunais, eclesiásticos ou civis,
de outros reinos europeus, como os Países Baixos, a Suíça ou a Inglaterra, no mesmo
período,874 o mesmo autor ressalta que os inquisidores lusitanos foram severos com os
sodomitas, talvez até mais, relativamente, do que com os cristãos-novos judaizantes, suas
presas mais usuais.875 Como ensinou Bennassar, as Inquisições modernas reinaram por e
através do medo que inspiravam nos povos (em todas as categorias sociais), o terror a que
submetiam as pessoas era a principal mola propulsora para as instar a colaborar com a
instituição, confessando ou denunciado a si e aos outros, inclusive familiares, vizinhos,
amigos. No limite, tratava-se de disciplinar as pessoas a se estilizarem na forma de
cristãos conscientes, isto é, capazes de vigiar a si mesmos.876 Não devemos, contudo,
exagerar o sucesso dos inquisidores, pois, como argumentou Kamen, as Inquisições
funcionaram como um sistema policial pré-moderno, com os limites inerentes às suas
circunstâncias históricas.877
Ainda assim, com todos os limites, a pastoral do medo, difundida pelo Santo
Ofício, foi amedrontadora o suficiente para, por meio da intimidação sistemática dos fiéis
e da ameaça permanente da infâmia e da miséria, garantir importantes efeitos globais no
governo das massas nos vários territórios do Império português.878 Funcionando em
relação intrínseca com os discursos da carne cristã que constituíam a sodomia como o
pecado/delito abominável, horrendo e nefando, com implicações terríveis para a
subjetividade cristã, o Tribunal do Santo Ofício não podia nunca ter agido
"benevolamente" em relação aos sujeitos jurídicos sodomitas que manufaturava. O
874
"Comparando-se o ‘homocídio’ praticado pela Inquisição Portuguesa com o ocorrido nos demais países
da Europa, somos obrigados a relativizar o fanatismo e a intolerância dos inquisidores no tocante aos crimes
sexuais. Não obstante, viviam os sodomitas sob constante clima de terror, tendo o Santo Ofício lançado
mão de vergonhosos procedimentos, como a tortura e a instigação à delação, atirando centenas de famílias
na mais deplorável abjeção social pelo fato de terem em seu seio um parente envolvido com o abominável
pecado de sodomia". MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p.
123.
875
"Depois dos judeus - o principal bode expiatório das Inquisições ibéricas - os sodomitas foram o grupo
que mais sofreu nas garras deste monstro sagrado"; "Proporcionalmente, em números relativos, a sanha
inquisitorial foi mais severa com os fanchonos do que com os cristãos-novos". MOTT. Justitia et
misericordia: a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia, p. 709.
876
BENNASSAR. Inquisición española, p. 94-5.
877
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1756.
878
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 7-13.
377
número, à primeira vista, reduzido de sodomitas relaxados ao braço secular para morrer
na fogueira – Mott fala que apenas 8% dos sodomitas processados tiveram este fim, o que
se traduz em 30 indivíduos queimados ao longo dos três séculos de ação inquisitorial –879
deve ser antes explicado pelas idiossincrasias do funcionamento do tribunal (mais
preocupado em perseguir os cristãos-novos) e às suas limitações históricas, do que a uma
não-documentada tolerância à sodomia, pois, de acordo com os próprios inquisidores:
"Os culpados no crime de sodomia são mais castigados que os hereges porque estes têm
penitências de cárcere e hábito por 4 ou 5 anos, e os de sodomia muitos anos de galé".880
879
A estatística de Mott parece um pouco conflitante entre seus textos. No artigo Pagode português, de
1988, ele escreve: "Portanto, em Portugal, das 4.419 denúncias registradas nos Repertórios do nefando, 394
redundaram em prisão – 8,9% – e destes, tão-somente 30 foram queimados -– 0,6%". Por outro lado, em
seu capítulo Justitia et misericordia, de 1991, afirma: "Pouco mais de 10% dos denunciados-confessados
pelo crime de sodomia foram encarcerados, e destes 8% morreram na fogueira" e "Dos homossexuais, 8%
tiveram o castigo máximo: pena de morte". Em todo caso, nos dois textos, o número absoluto dos sodomitas
executados foi o mesmo, 30, sendo 3 no século XVI, 27 no XVII e nenhum no XVIII. MOTT. Pagode
português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p. 123; MOTT. Justitia et misericordia:
a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia, p. 709; 728; 738.
880
Processo de Luís Simões em 1611, DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 313 apud MOTT.
Justitia et misericordia: a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia, p. 710.
881
Foraclusão (ou forclusão, perclusão, repúdio, rejeição) é um conceito psicanalítico, do qual nos
apropriamos, aqui, a partir de sua definição lacaniana e do uso que dele fez Butler. Conforme o Dicionário
de psicanálise, foraclusão se define como: "Conceito forjado por Jacques Lacan para designar um
mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para
fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é
integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito". Isso
significa que aquilo que é foracluído é rejeitado para fora do "simbólico", da cultura, do discurso (no sentido
de Foucault e Butler), mas não da mesma maneira que o recalcado, pois o repudiado deixa de ser significado
como fazendo parte da cultura. No nosso caso, a função ativa do ânus foi assim repudiada, foracluída,
enxotada para fora do discurso (não se admitia mais sua existência), e os que insistissem nela poderiam ser
igual e radicalmente excluídos (mortos na fogueira). Todavia, também faz parte da noção de foraclusão o
retorno do foracluído, como se dá esse retorno? Dá-se por meio da alucinação paranoica (o que é diferente
de retornar no inconsciente) que invade o discurso do sujeito. Podemos pensar a obsessão inquisitorial de
enxergar sodomitas monstruosos em todos os amantes homoeróticos, mesmo naqueles que não praticavam
o sexo anal ou naqueles que, sentindo o peso da culpa cristã, se arrependiam, como uma alucinação
paranoica? Não se tratando de diagnosticar inquisidores, é interessante, no entanto, deslocar o ônus psíquico
da castração anal da cultura ocidental também aos agentes da Lei. O uso que Butler faz do conceito de
foraclusão vai nessa direção, posicionando-o em sua crítica da concepção estruturalista do "Simbólico" e
da "cultura" a partir de uma interpretação da tragédia de Antígona. Butler critica a distinção, cara ao
estruturalismo, entre o Simbólico e o social, argumentando que a Lei (o falo paterno) não pode funcionar
efetivamente sem produzir e manter o espectro de sua própria transgressão. Desse modo, as leis,
supostamente, pré- ou quase-culturais produzem, ao mesmo tempo, a conformidade e o seu excesso
378
devemos pensar como os inquisidores a eles chegavam, ou, melhor, como alcançavam os
homens e mulheres que, por suas práticas eróticas, eram sujeitados à categoria de
sodomita. Essa é a questão de como o Santo Ofício instava as pessoas comuns a colaborar
com seu afã normativo, uma colaboração de que dependia a ação inquisitorial.882
transgressor. A lei simbólica, por conseguinte, para Butler, não é sem contingência e sem temporalidade,
as quais a abrem para a subversão a partir de dentro e para um futuro que não pode ser antecipado. Daí a
pergunta central, o que acontecerá aos herdeiros de Édipo (que somos nós) quando as leis que o próprio
Édipo cegamente desafiara e instituíra não mais dispuserem da estabilidade que o estruturalismo lhes
atribuíra? Nesse viés, Antígona põe em questão a Lei do Pai (o falo simbólico) que estrutura o parentesco,
a família normatizada, a ordem de gênero tradicional, abrindo um espaço político para desestabilizar as
condições de inteligibilidade, asseguradas pelo sistema de parentesco nas sociedades ocidentais, que tornam
certas vidas vivíveis, enquanto outras são foracluídas (foreclosed). Assim, Antígona revela o mecanismo
de foraclusão como sendo importante ao funcionamento naturalizado do sistema sexo-gênero. No que nos
interessa mais de perto em nossa pesquisa, a função ativa do ânus foi um dos elementos a sofrer semelhante
foraclusão, indispensável à constituição do sujeito universal no Ocidente como sujeito de ânus-fechado,
isto é, individual. ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera
Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão ed. brasileira: Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar,
1998, p. 245-6; BUTLER, Judith. Antigone's claim. Kinship between life and death. New York: Columbia
University Press, 2000, p. 1-25.
882
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1526.
883
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1530-1
884
FEITLER. Nas malhas da consciência, p. 158.
885
FEITLER. Nas malhas da consciência, p. 71-8.
379
886
FEITLER. Nas malhas da consciência, p. 78-83.
887
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 186-214.
888
KAMEN. The Spanhish Inquisition, p. 1525-7.
380
889
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 51-66.
890
"Os dados não são definitivos, mas já temos elementos suficientes para fundamentar a tese de um modelo
organizacional português divergente do espanhol, baseado em uma sedentarização precoce dos tribunais,
uma centralização da cultura administrativa e uma articulação de poderes mais desenvolvida, que devem
ser relacionados com as relativamente fracas redes de comissários e, sobretudo, de familiares durante a
segunda metade do século XVI e a maior parte do século XVIII". BETHENCOURT. História das
Inquisições, p. 63.
891
Bruno Feitler aponta que a rede de oficiais inquisitoriais de maior patente somente se consolidou na
Bahia em 1690, no Rio de Janeiro e em Pernambuco entre 1710-1720 e, mais tarde ainda, para o restante
da colônia. No caso da rede de familiares, a rede era exígua até o início do século XVII, momento em que
começa a crescer exponencialmente, atingindo um ápice em 1790. No reino e no Brasil, os familiares eram,
em grande parte, comerciantes ricos que buscavam forma de distinção social e racial. “Em troca dessa
distinção, o tribunal conseguia desses oficiais laicos uma penetração social que extrapolava o papel
repressivo tanto do Santo Ofício quanto dos próprios familiares”. FEITLER, Bruno. A ação da Inquisição
no Brasil: uma tentativa de análise. In: FURTADO, Júnia Ferreira; RESENDE, Maria Leônia Chaves de.
(Orgs.). Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício. Diálogos e trânsitos
religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 29-46.
Segundo Aldair Carlos Rodrigues, a expansão da quantidade de comissários habilitados em ação na
América portuguesa ganhou fôlego nas últimas décadas do século XVII, atingindo um pico no XVIII.
RODRIGUES. Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro, p. 121-3.
892
Bethencourt resume a questão como uma intervenção do Santo Ofício no mercado de privilégios típico
das sociedades de Antigo Regime, possibilitando uma certa mobilidade social, na medida em que membros
das novas elites, especialmente nas colônias, buscavam os hábitos inquisitoriais para alcançar privilégios e
distinção social. Ao mesmo tempo, a heterogeneidade resultante das redes assim formadas representaria a
capacidade de enraizamento social da Inquisição, mesmo no seu declínio. Neste sentido argumentou
Rodrigues, ao afirmar que a abertura de mais hábitos de comissários, numa conjuntura de crise da instituição
(final do século XVII, em sequência à sua suspensão temporária pelo Papado), significou uma tentativa de
reação do Tribunal do Santo Ofício. O autor acrescenta que a Inquisição portuguesa controlava, por meio
de seus processos de habilitação (reputados como rigorosos no que concernia à verificação de eventuais
impedimentos de acordo com os estatutos de limpeza de sangue), uma das clivagens estruturantes da ordem
social no Antigo Regime, qual fosse, a distinção entre cristãos-velhos e novos. A habilitação inquisitorial,
como familiar e, sobretudo, como comissário, oferecia distinção social, prestígio e honra.
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 146; RODRIGUES. Poder eclesiástico e Inquisição no
século XVIII luso-brasileiro, p. 123.
381
893
Os autos de fé em geral realizavam-se aos domingos, de modo a aproveitar o caráter de festa religiosa
desse dia consagrado pela Igreja, porém, nos domingos em que aconteciam autos da fé, a cerimônia
inquisitorial dominava a vida da cidade. MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da
Inquisição portuguesa. (1536-1821). Lisboa: A esfera do livro, 2013, p. 266-7.
894
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 221-226.
895
Marcocci e Paiva listam algumas das tarefas preparatórias empreendidas pelos inquisidores nos dias
anteriores ao auto da fé, para organizá-lo. "A cerimônia era cuidadosa e minuciosamente preparada, pelo
que nos dias que a antecediam a azáfama era grande. Ultimavam-se processos, dispunham-se os réus nos
cárceres de modo a que os que iam sair no auto não comunicassem com os que permaneceriam presos,
preparavam-se os sambenitos, cortavam-se os cabelos e as barbas aos homens, providenciavam-se caixões
para os restos dos defuntos e cadeiras para transporte de réus que, em virtude dos tormentos, tivessem ossos
quebrados, e não pudessem caminhar, elegia-se o pregador para o sermão, expediam-se confites que
supunham uma etiqueta a representantes papais, rei, bispos, cabidos, ordens religiosas, montava-se o palco,
redigiam-se os editais de anúncio do auto". MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p.
266.
382
pública, isto é, que se prostituía de casa aberta, chamada Maria Machada, cristã-velha, de
36 anos de idade, pouco mais ou menos, natural da Ilha Terceira nos Açores.896 Ela estava
condenada pelo abominável e nefando crime de sodomia. Vejamos a descrição
introdutória do auto da fé, conforme presente no documento citado:
896
Para um resumo do processo da personagem, ver VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 271-2.
897
"Sendo inquizidor geral destes Rejnos E Se- / nhorios de Portugal o Jllustríssimo Senhor Bispo dom
Fer- / não Martins Mascarenhas; E inquizidores da / meza ordinaria os senhores doutores Dom Manoel
Pereira E o Licenciado Pero / da Silua de Sampaio se çelebrou no Rossio des / ta cidade em Domingo 28
de Nouembro do año / de 1621 o auto da fé, no qual esteue o dito Senhor / Bispo em cadejra debajxo de
doçel à mão derejta, / E da outra parte em huã janella Singida os / gouernadores deste Rejno, que erão o
bispo de / Coimbra Dom Martim Afonso Mexia, E o conde / de Basto Dom Diogo de Castro, E dom Nuno
aluerez de / Portugal. E os deputados do conselho geral / o Licenciado Antonio Diaz Cardozo, E o doutor
Gaspar Pereira / E alem dos inquizidores da meza, os depu- / tados della; o Licenciado Pero da Silua de
Faria, o Licenciado / Dom João da Silua, E o doutor Francisco de Britto de Martins, / E o Licenciado
Antonio Correa, E os mais deputados, / E o secretário do conselho geral, E os da meza or- / dinaria, E os
callificadores, que por serem / muitos se não nomeão". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, Autos de
fé 1556/1778, Listas ou "Notícias" Livro 1º 1563/1632.
898
É interessante notar como, segundo a descrição oficial do auto da fé, as autoridades representantes do
poder secular (a Junta Governativa que governava Portugal naquele momento, entre setembro de 1621 e
agosto de 1623), representando o imperador espanhol Filipe IV, encontravam-se deslocadas, assistindo à
celebração da janela do palácio. Bethencourt assinalou exatamente o mesmo procedimento em vários autos
ocorridos em diferentes regiões do Império dos Habsburgo. Tratava-se de um "jogo complicado de
ausências e presenças" disputado pelas autoridades, cada qual preocupada em assegurar a própria
precedência sobre as demais, os inquisidores, os bispos e os governantes seculares, por vezes com
sobreposições, como no caso deste auto da fé de 28 de novembro de 1621 em Lisboa, no qual o bispo de
Coimbra ocupava também uma posição de representante da monarquia. Bethencourt narra que, em autos
realizados na cidade de Palermo, na Sicília (possessão espanhola no período), o vice-rei também assistia ao
rito de uma janela do palácio do arcebispo por detrás da cortina, como recurso para não admitir uma
inferioridade circunstancial em relação à Inquisição. No mesmo sentido, era comum, segundo o autor, os
bispos locais não comparecerem aos autos da fé, para não ceder prestígio. BETHENCOURT. História das
Inquisições, p. 268-9.
383
eclesiásticas, da nobreza à plebe.899 Essa festa que era o auto da fé, não devemos pensá-
la como um carnaval ou festa dos tolos: não havia espaço ali para o cômico corrosivo e
satírico comum às festas populares da Época Moderna,900 ao contrário, tratava-se de um
rito sério, solene e pungente, mais próximo do suplício de Damiens, que ocorreria mais
de um século depois na França.901
899
"Da mesma forma que a monarquia, também a igreja contrarreformista aderiu às grandes demonstrações
festivas para atingir o universo de seus fiéis, transformando a piedade em espetáculo. A festa, que
congregava diferentes setores da sociedade, foi uma das características do Barroco, que encontrou terreno
fértil de difusão na América ibérica, desde o México até o Brasil". GONÇALVES. Império da fé, p. 25.
900
"[…] as festas oficiais da Idade Média - tanto as da Igreja como as do Estado feudal - não arrancavam o
povo à ordem existente, não criavam essa segunda vida. Pelo contrário, apenas contribuíam para consagrar,
sancionar o regime em vigor, para fortificá-lo (…). A festa oficial (…) tendia a consagrar a estabilidade, a
imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus
religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante,
que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória. Por isso o tom oficial só podia ser
o da seriedade sem falha, e o princípio cômico lhe era estranho". (Grifos do autor). BAKHTIN. A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento, p. 8.
901
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 9-11. O auto da fé era uma festa, cuja solenidade expressava o poder
dual do Santo Ofício, representando, a um só tempo, a monarquia e a Igreja, os poderes temporal e religioso.
Tinha um alto grau de aglutinação e convencimento sobre os espectadores, do povo aos fidalgos e
autoridades eclesiásticas. Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro acrescenta, sobre o sentido das festas no
período barroco, "As festas enquadram-se no culto ao efêmero, ao passageiro, simbolizando a fragilidade e
pouco valor da vida; a nulidade do homem diante do regente máximo de seu destino". RIBEIRO, Benair
Alcaraz Fernandes. Arte e Inquisição na Península Ibérica. (A arte, os artistas e a Inquisição). Tese
(doutorado em História). Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História Social, São Paulo, 2006, p. 159.
902
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 264-274.
384
903
Segundo Bethencourt, inicialmente, nos autos da fé espanhóis, a procissão dos inquisidores ocorria antes
do cortejo dos condenados, de modo que estes pudessem ser recebidos pelos inquisidores sentados no
cadafalso. Após meados do século XVI, a ordem se inverteu, de modo a atribuir maior destaque e honra
aos inquisidores, que buscavam todas as formas para ressaltar seu prestígio de acordo com as normas de
etiqueta da sociedade estamental e cortesã do Antigo Regime. Nos autos da fé portugueses, os inquisidores
chegavam primeiro e esperavam os demais religiosos, nobres e autoridades, tendo percorrido um cortejo
diferente da procissão dos condenados, com locais de partida e percursos independentes. Tratava-se de
sublinhar a distância social incomensurável entre os retos inquisidores e os hereges dissidentes.
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 242. Marcocci e Paiva, por sua vez, apontam que a
procissão dos inquisidores era antecedida por uma missa ao raiar do dia, que podia acontecer ou na igreja
da Inquisição ou na catedral da cidade. Entre o século XVII e o XVIII, as procissões das autoridades
eclesiásticas e a dos condenados haviam se unificado em um só longo e serpentinoso desfile, estando os
condenados à frente e as autoridades ao fim, em lugar de destaque. Os inquisidores eram separados dos
penitentes por um conjunto de familiares a cavalo, pelo meirinho inquisitorial com a sua vara erguida, e
por mais agentes do Santo Ofício, como notários, promotor, deputados e inquisidores, montados em mulas.
O inquisidor-geral, quando presente, vinha ao final, cavalgando um corcel branco e ladeado por dois
familiares. MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 267.
904
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 268.
905
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 244.
906
Na tradução do catecismo contemporâneo da Igreja Católica disponibilizado pelo Vaticano, esses versos
aparecem como: "Vem, ó Espírito Santo / E da tua luz celeste / Soltando raios piedosos / Nossos ânimos
reveste". Uma tradução mais próxima do sentido em latim poderia ser: "Vinde, Espírito criado, / Visitai as
vossas almas / enchei com a graça do alto / os corações que criaste". O catecismo está disponível em
www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html. Último
acesso em 09.agos.2020. A letra em latim do hino Veni creator spiritus, assim como a partitura para sua
execução em formato de canto gregoriano, pode ser consultada em THE BENEDICTINES OF
385
SOLESMES. (Ed.). The Liber Usualis. With introduction and rubrics in English. Tournai, Belgium; New
York: Desclee Company, 1961, p. 885-6.
907
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, Autos de fé 1556/1778, Listas ou "Notícias" Livro 1º
1563/1632. Segundo nos conta Mott, a Dança dos Fanchonos, também conhecida como "escarramão" ou
"esparramão", foi criação do sodomita Antônio Rodrigues, um mulato que contava 30 anos ao ser
processado pela Inquisição. Ele era o "mestre de cerimônias" desses bailados, conhecido publicamente em
Lisboa por sua afeminação. De Domingos Rodrigues, Mott relata que o mulato "bailava numa dança em
trajos de mulher", sendo apontado como outro "guia da dança dos fanchonos". Sobre Luís Álvares, o autor
informa somente que era um esmoler, não o relacionando à Dança dos Fanchonos. MOTT. Pagode
português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p. 132-3.
908
BENNASSAR. Inquisición española, p. 117.
909
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 240.
386
É importante ter em mente que o porte do sambenito não era uma técnica pontual,
ao contrário, sua eficácia como mecanismo de interpelação vinha do fato de que alguns
indivíduos eram condenados a usá-lo durante uma certa duração, que poderia se prolongar
por toda a sua vida e mesmo além. Era uma forma de fazer a infâmia produzida e
descarregada pelo Santo Ofício sobre cada condenado durar mais no tempo, indo além da
ocasião do auto público ou da execução de penas pontuais (como o açoitamento pelas
ruas da cidade, por exemplo). O estigma podia sobreviver ao próprio condenado,
manchando sua rede de parentesco, uma vez que a Inquisição ordenava que os sambenitos
fossem conservados e expostos nas igrejas locais, com identificações claras e legíveis de
a quem se referiam e por qual crime, sendo inclusive uma das tarefas dos agentes externos
(familiares e comissários) fiscalizar a conservação dos sambenitos nas igrejas, de modo
a manter o mecanismo interpelador da infâmia funcionando por mais tempo.910
910
BENNASSAR. Inquisición española, p. 117-8.
911
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 164-185.
912
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 240.
913
"O povo concentrado ao longo do percurso podia reconhecer o tipo de pena infligido aos presos através
do hábito e da posição no cortejo. O simbolismo do sambenito foi reforçado em face da prática medieval,
em que o hábito penitencial consistia apenas numa longa túnica em tecido cru largo e fechado, benzido pelo
bispo com certas orações. Desse modelo muito simples, que simbolizava a humilhação do arrependido,
chega-se a um suporte de mensagens muito mais complexas: o amarelo como cor de fundo simbolizava a
traição dos hereges e é sobre ele que estão pintados a cruz vermelha de Santo André para os reconciliados
ou os grifos e as chamas do inferno para os excluídos". BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 241.
387
914
Os autos da fé se realizavam sobre imensos estrados, verdadeiros palcos, que eram armados, dias antes,
nas praças ou, como foi mais comum a partir do século XVIII, nas igrejas em que a cerimônia aconteceria.
Nos autos lisboetas, o palco chegava a medir 45 metros de comprimento por 20 de largura, acomodando
cerca de 300 pessoas sobre si (porém, as dimensões exatas variaram ao longo do tempo). Era construído
acoplado à Casa dos Contos ou ao palácio real, conforme a localização do auto. Devendo servir a um regime
de visibilidade, o palco possuía desníveis e degraus, de modo a possibilitar a visão do espetáculo pelas
pessoas ao redor até aos pontos mais elevados, alcançados por escadas internas. A variação de degraus no
palco era manipulada pela Inquisição para distinguir os diversos atores entre si, com seus níveis
diferenciados de prestígio e poder. O grandioso palco se dividia em três zonas, teatralizando as distinções
sociais e espirituais entre os atores do ritual. A zona dos inquisidores ficava à cabeceira (ponto de destaque
e prestígio), elevada como um altar-mor, dominado pelo crucifixo transportado, nos autos lisboetas, do
Hospital de Todos os Santos pela irmandade de S. Jorge, e completo por quatro círios de cera amarela. Na
posição mais acima, ficava a cadeira do inquisidor geral (ou do inquisidor que presidia o auto), ricamente
decorada com tecidos de veludo, rubros e dourados, tapetes e baldaquino, ostentando as armas do Santo
Ofício. O assento do inquisidor geral ficava do lado do evangelho no altar-mor (à sua direita) e, nos autos
realizados em conexão ao palácio real, logo abaixo da janela de onde o rei assistiria ao espetáculo. Do outro
lado do altar-mor (lado da epístola, à esquerda), ainda na zona nobre do palco, sentavam-se os
qualificadores e oficiais da Inquisição. A segunda zona era a dos familiares e dos religiosos que
participavam, com funções variadas e coadjuvantes, do auto, localizada ao centro. Aí estava posto também
o púlpito, coberto por um tejadilho, para a pregação em um andar mais alto. A terceira zona era a dos
penitentes, disposta em total oposição à dos inquisidores. Sua decoração era pobre, escura, com tecidos
vulgares e, preferencialmente, negros. Era disposta em arquibancada, para assento dos condenados
conforme o diferencial de gravidade de suas transgressões. Ficavam aí expostos, dependurados sobre a
balaustrada artefatos de controle físico dos prisioneiros, como mordaças e algemas, prontos para serem
usados pelos familiares vigilantes caso um dos penitenciados esboçasse alguma reação violenta. O palco
era composto ainda por elementos acessórios, como o altar das abjurações, um vão para o coro, camarotes
para as personalidades convidadas (alguns completos com mesa, copa e despensa). Toda a gigantesca
estrutura era coberta por toldos, dispostos a partir de enorme mastro central. O palco era desmontado ao
fim da cerimônia. BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 230-5; MARCOCCI; PAIVA. História
da Inquisição portuguesa, p. 269-270; LOURENÇO, Leonardo Coutinho. Palavras que o vento leva. A
parenética inquisitorial portuguesa dos Áustrias aos Braganças (1605-1673). Dissertação (mestrado em
História). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de
História, Niterói, RJ, 2016, p. 29-30.
915
GLASER, Edward. Sermons at autos-da-fé: introduction and bibliography. Studies in Bibliography and
Booklore, v. 2, n. 2, Cincinnati, 1955, p. 53-96.
916
Segundo Bluteau, intróito era "o principio da Missa. As primeiras palavras que os Cantores entoaõ numa
Missa cantada. Requiem æternam, he o Introito de huma Missa de Defuntos. O Papa Celestino foy o que
introduzio o uso das Antiphonas para Introito da Missa". BLUTEAU, Raphael. Introito. In: BLUTEAU,
Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das
Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 4, p. 178. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-
br/dicionario/1/introito. Último acesso em out.2020.
917
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 244.
388
momento do sermão do que o do juramento. Por isso, vamos nos deter um pouco no
sermão da fé pregado no dia 28 de novembro de 1621, pelo padre André Gomes da
Companhia de Jesus.
Uma vez que os sermões eram meios poderosos para estabelecer uma
comunicação com grandes grupos de pessoas, não é estranho que aqueles pregados nos
autos da fé tenham se especializado na transmissão de algumas mensagens caras ao Santo
Ofício.919 Para tanto, a instituição era cuidadosa na escolha do pregador (ainda que a
norma só tenha sido regularizada pelo regimento de 1640), via de regra, por uma decisão
do Conselho geral, a partir de listas tríplices encaminhadas pelos tribunais (às vezes,
exigia-se que o texto do sermão fosse apresentado antecipadamente, para sua avaliação).
Entre meados do século XVI e as primeiras décadas do XVII, o costume era uma
alternância entre jesuítas e dominicanos. Porém, posteriormente, os jesuítas deixaram de
ser escolhidos, e membros de outras ordens passaram a ser convidados.920
918
BRAGA. Parenética e profissão de religiosa em Seiscentos. A glorificação da vida fora do século, p.
419-447.
919
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 245-6.
920
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 270.
389
921
NORTON, Howard W. An analysis of a sermon preached against the jews at the Portuguese Inquisition.
In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (orgs.). Inquisição. Ensaios sobre mentalidade,
heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992, p. 503.
922
GLASER. Sermons at Autos-da-fé: introduction and bibliography, p. 56; BRAGA, Paulo Drumond.
[POR] Sermões setecentistas portugueses de Autos-da-fé. // Portuguese Seventeenth-century sermons
preatched at Autos-da-fé. Librosdelacorte.es, n. 6, p. 223-232, 2017.
923
GLASER. Sermons at Autos-da-fé: introduction and bibliography, p. 54-5.
924
Segundo Delumeau, a Europa católica, entre os fins do século XVI e a primeira metade do XVII, encheu-
se de místicos e iluminados (o que não significa que não tenha existido uma diversidade de movimentos
espirituais aparentados ao misticismo e ao quietismo anteriormente, particularmente na Itália e na Espanha).
Se Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz construíram exemplos de uma via heroica para a santidade,
Miguel de Molinos (1628-1711) deu uma guinada no movimento místico, contestando o sentido da culpa
cristã. Em seus textos impressos, entre os quais se destaca seu Guia Espiritual (1675), e em suas cartas de
aconselhamento e direção de consciência de discípulos, Molinos negou o livre arbítrio e a responsabilidade
pessoal do cristão nas alturas místicas. Assim, operava-se a desculpabilização de todos os atos dos
"contemplativos" e "unitivos", os dirigidos de consciência de Molinos. Assim, os mais altos místicos
estariam em um estado de impecabilidade. Nessas doutrinas, percebe-se ecos alumbrados e pelagianos. As
proposições de Molinos foram condenadas pela Inquisição romana e pela bula Coelestes Pastor do Papa
Inocêncio XI em 1687. Molinos abjurou suas culpas, sendo condenado à prisão perpétua. Mais tarde,
surgiria na França outra expoente do quietismo, a viúva Joana Maria Bouvier de la Motte-Guyon. Ela
recebia a orientação espiritual do padre Francisco Lacombe. De acordo com seus escritos, a pessoa cuja
vontade se abandonasse e se transportasse a Deus, ficava forçosamente impedida de pecar. É importante
perceber como o quietismo se diferenciava, nesse aspecto, da mística anterior, a qual tinha um sentido muito
forte do pecado e se pautava por técnicas acéticas de mortificação rigorosas. No quietismo, a noção de
salvação, central no cristianismo, acabava desaparecendo, sendo esse um dos principais motivos de sua
condenação pela ortodoxia católica. Outro foi que a noção mística de abandono de si em Deus do quietismo
parecia desdobrar-se em uma negligência com os deveres religiosos e uma apologia da inação e da
insensibilidade. Em Portugal, a obra de Molinos foi conhecida e apreciada, mas não chegou a ser publicada
traduzida. A partir do final do século XVII, começaram a sair nos autos de fé os condenados pelo Santo
Ofício como "molinistas". Segundo Pedro Vilas Boas Tavares, esses condenados eram menos seguidores
doutrinais de Molinos, do que indivíduos que usavam argumentos que pareciam remeter às proposições
molinosistas para justificar suas desordens morais. O autor argumenta que os condenados como
"molinistas" em Portugal foram uma pequena parte de uma multidão de fiéis que, ao longo da Época
Moderna, se aventurou à descoberta pessoal-experimental interior. Testemunham uma paixão popular pelos
390
apenas um sermão em 1720.925 Isso não significa que outros pecados não fossem
tematizados pelos pregadores, ao sabor das circunstâncias específicas do auto, pois cada
sermão tendia (ou assim era esperado, embora houvesse exceções) a se referir aos delitos
dos penitenciados na cerimônia. Assim, o historiador Leonardo Coutinho Lourenço,
identificou a sodomia como tema ou subtema de sermões pregados em pelo menos mais
quatro autos da fé, realizados em Lisboa e em Évora, entre 1624 e 1664, sem contar esse
de 1621, que ora estudamos.926 Por outro lado, um bom sermão não deveria apenas
estigmatizar os cristãos-novos como inimigos da cristandade e do Império português,927
deveria também inspirar a audiência a se identificar e reconhecer como parte do rebanho
cristão. Tratava-se de operar formas de reconhecimento com polarizações opostas.
não o dissimulam.928
Não nos enganemos, não se tratou, nesse sermão, de uma prédica voltada
diretamente contra a sodomia, menos ainda contra seus sentidos homoeróticos e anais. O
objetivo do pregador, tal como o do profeta antes dele, era associar a heresia judaica ao
pecado de Sodoma, valendo-se da indefinição tradicional do conteúdo do pecado dos
sodomitas no discurso moral e religioso da carne cristã, como vimos ao estudarmos o
funcionamento do enunciado do mito de Sodoma. Nessa instância discursiva, a sodomia
servia como um conceito que balizava a passagem de um discurso a outro; no caso desse
sermão, como correia de transmissão de estigmas entre os crimes de judaizar e do pecado
nefando. Em vários momentos do texto, percebemos essa via de passagem sendo
estabelecida entre a sodomia e a apostasia judaica, a começar pelos termos que aparecem
para caracterizar o criptojudaísmo, supostamente praticado pelos cristãos-novos, tais
como "mil torpezas", "abominações carnais", ambos retirados de S. Jerônimo, "[…]
Aquele povo, depois de adorar seu ouro convertido e fundido em seu deus, depois de
comer e beber, se soltou a fazer cousas tão torpes, que o Texto Sagrado só se atreveu a
dizer […], o que São Jerônimo declara de mil torpezas e abominações carnais […]"
(grifos nossos).929 Isso nos permite acompanhar o trânsito dos enunciados constitutivos
da sodomia como uma categoria de estigma entre as várias instâncias dos discursos da
carne, da Patrística à Época Moderna, costurando, assim, o dispositivo.
928
(Is. 3: 8-9), Bíblia de Jerusalém, p. 1258. O pregador apresentou o trecho em latim, fornecendo, em
sequência, sua tradução. " C Aio Ierusalem, & o pouo Iudaico aca- / bou, porque sua lingua, suas traças, &
in- / uençoẽs prouocaraõ a vingança a diuina / Iustiça, seus disfarces, & finginmẽtos foraõ / conhecidos, &
publicados, & seus pecca- / dos como os de Sodoma foraõ castigados". GOMES, André. Sermaõ que fez o
Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […]. Lisboa: Pedro Craesbeck, 1621.
Disponível em Biblioteca digital de fundo antigo da Universidade de Coimbra.
https://almamater.sib.uc.pt/pt-
pt/fundo_antigo/serma%C3%B5_que_fez_o_padre_andre_gomez_no_auto_da_f%C3%A9_que_se_celeb
rou_no_recio_sic_da_cidade. Último acesso em 12.agos.2020.
929
"[…] Aquelle pouo depois de a- / dorar seu ouro cõuertido, & fundido em seu Deos, depois / de comer
& beber, se soltou a fazer cousas tam torpes; que / o Texto sagrado sò se atreueo a dizer, […] o que S.
Ieronimo declara de mil torpezas, & abomina- / çoẽs carnaes […]". GOMES. Sermaõ que fez o Padre Andre
Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […], p. 6.
392
[…] Moisés sabendo, quebrou as tábuas da lei, para mostrar que homens
cobiçosos, quais eram os que adoravam seu ouro feito em seu deus, homens
deliciosos, quais eram os que com tanta demasia comiam e bebiam, homens
luxuriosos, quais eram os que tais torpezas faziam, não havia lei de Deus que
bastasse para os frear e emendar.930
[…] São cegos, sem entendimento, sem luz, sem conhecimento, que não sem
causa, na morte de Cristo, a terra escureceu […], para mostrar a cegueira e
trevas de ignorância em que os judeus haviam de ficar, que a dureza de seus
corações se quebrara, como se quebraram as pedras […].932
[…] E desta verdade nem devemos, nem podemos duvidar, porém, também
não se pode negar que em gente, mormente de menor porte e de baixa sorte,
não acaba esta peste. E esta contagia de lavrar, pelo que para tal podridão, é
necessária a cauterização pelo fogo, para que o podre não corrompa o são. 933
930
"[…] Moyses sabendo, quebrou / as taboas da ley, pera mostrar que homẽs cobiçosos, quaes / eraõ os
que adorauaõ seu ouro feito em seu Deos, homes / deliciosos, quaes eraõ os que com tanta demasia comiaõ
/ & bebiaõ, homẽs luxuriosos, quaes eraõ os que taes / torpezas faziaõ, não auia ley de Deos que bastasse
aos / enfrear & emendar". GOMES. Sermaõ que fez o Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no
Auto da Fé […], p. 6.
931
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 9-51.
932
"[…] Saõ cegos sem entendimento, sem luz, sem conhe- / cimento, que não sem causa na morte de
Christo a / terra se escureceo; […] pera mostrar a cegueria & treuas de ignorãcia em / que os Iudeos auiaõ
de ficar que se a dureza de seus coraçoẽs / se quebrara, como se quebraraõ as pedras […]". GOMES. Sermaõ
que fez o Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […], p. 8.
933
"[…]& desta verdade nem deuemos, nem / podemos duuidar; porem tambem não se pode negar / que
em gente, mormente de menos porte, & de baixa / sorte não acaba esta peste, & esta contagiaõ de laurar, /
pello que pera tal podridão he necessario cauterio de fo- / go, pera que o podre não corrompo o saõ".
GOMES. Sermaõ que fez o Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […], p. 13v.
393
E já pode ser que, por isso, o profeta, à perfídia desta gente, chama pecado de
Sodoma […], porque, como o pecado de Sodoma foi castigado com fogo do
céu, assim a perfídia judaica, para acabar, com o fogo da terra se há de castigar.
Mas notai que, em Sodoma, uns se abrasaram, outros escaparam e se salvaram.
Porém, os que fecharam os olhos do entendimento e da razão, e ficaram tão
cegos que nem com as portas da casa de Ló atinaram, esses se abrasaram.
[…]
Porém, os que fecham os olhos à luz de nossa santa Fé e querem ficar cegos
como os de Sodoma, esses, assim como a divina Justiça manda que sejam
castigados, assim a vossa os relaxa à secular, para que sejam como os de
Sodoma abrasados.934
934
"E ja pode ser, que por isso o Profeta à perfidia desta / gente chama peccado de Sodoma […], // porque
como o peccado de Sodoma / foy castigado com fogo do Ceo, assi a perfidia Iudaica, / pera acabar, com
fogo da terra se ha de castigar. Mas no- / tai, que em Sodoma hũs se abrazarão, outros escapa- / raõ, & se
saluaraõ; Porem os que fecharaõ os olhos do / entendimento, & da rezaõ, & ficaraõ tam cegos, que nem /
com as portas da casa de Loth atinaram, esses se abraza- / ram. […] Porem os que fechaõ os / olhos à luz
de nossa sancta Fè, & querem ficar cegos co- / mo os de Sodoma, estes assi como a diuina Iustiça man / da
que sejaõ castigados, assi a vossa os relaxa a secular, / pera que sejaõ como os de Sodoma abrazados".
GOMES. Sermaõ que fez o Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […], p. 14.
394
Ora, eu não sei se o santo profeta, neste lugar, falou só da perfídia judaica ou
se, porventura, lançando os olhos mais avante, veio dar com eles na desventura
de nossos tempos, em que a Sodoma tanto tempo acabada, vemos reparada […]
e eu, em seu nome, digo: Maledictus qui erexit Sodomis; maldita seja a gente
que, com os desaforamentos e devassidões de sua vida, torna a ressuscitar
Sodoma, que Deus, pelos próprios anjos do céu, mandou castigar e abrasar.
Não sei, senhores, com que palavras possa dizer e encarecer o grande
sentimento que todos devemos mostrar e as lágrimas que devemos chorar, por
vermos o nosso Reino de Portugal, que Deus, por mercê e graça, fez tão famoso
e glorioso […], pôr o vermos tão afrontado e desautorizado, que pode ser
comparado aos arrabaldes de Sodoma.935 (Grifos no original).
935
"O R A eu não sey se o sancto Propheta neste lugar / falou só da perfidia Iudaica, ou se por ventura /
lançando os olhos mais auante, veo dar com elles / na desauentura de nossos tempos, em que a Sodoma tan
/ to tempo ha acabada vemos reparada. […] & eu em / seu nome digo: Maledictus qui suscitauit Sodoma;
mal / dita seja a gente que com os desaforamentos, & deuaci / doẽs de sua vida, torna a resuscitar a Sodoma,
que Deos / pellos proprios Anjos do Ceo mandou castigar, & abra- / sar. Naõ sey Senhores com que palauras
possa dizer, / & encarecer, o grande sentimento que todos deuemos / mostrar, & as lagrimas que deuemos
chorar, por ver / mos ao nosso Reino de Portugal que Deos por merce & / graça sua fez tam famoso, & tã
glorioso […], pella vermos[…] // tam afrontada, & desautorizada, que pode ser compara- / da a arrabaldes
de Sodoma". GOMES. Sermaõ que fez o Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […],
p. 14.
936
Não usamos a expressão "transviado" aqui de forma impune. Nosso objetivo é ecoar uma das
possibilidades aventadas para a tradução do conceito de queer para o português e o contexto político-
epistemológico do Sul global, latino-americano e brasileiro. Assim, Berenice Bento propôs, como tradução
cultural e idiossincrática de teoria queer, a expressão estudos/ativismos transviados, pretendendo, com essa
operação, permitir que a potência de subversão política que o queer possui no contexto estadunidense cruze
a fronteira imaginária do Equador epistêmico e floresça também no Sul. "Se eu falo transviado, viado,
sapatão, traveco, bicha, boiola, eu consigo fazer com que meu discurso tenha algum nível de inteligibilidade
local". As preocupações descoloniais com a tradução do queer têm estado presentes nas pesquisas de várias
395
sermão da fé, gerava mais um efeito de interpelação dos cristãos e dos sodomitas,
categorias antagônicas, mas indispensáveis uma à outra e ao ideal normativo do processo
de confessionalização.
autoras e autores, resultando em uma pletora de interpretações que, cada qual ao seu modo, aponta e reforça
o potencial corrosivo do campo na política e na epistemologia (e na política da epistemologia). Ainda na
academia brasileira, podemos citar a teoria-cu proposta por Larissa Pelúcio como uma torção do queer que
nos força a pensar pelas margens abjetas, pouco assépticas, excrementícias, da cultura. Segundo a proposta
da pesquisadora: "Falar em uma teoria cu é acima de tudo um exercício antropofágico, de se nutrir dessas
contribuições tão impressionantes de pensadoras e pensadores do chamado norte, de pensar com elas, mas
também de localizar nosso lugar nessa ‘tradição’, porque acredito que estamos sim contribuindo para gestar
esse conjunto farto de conhecimentos sobre corpos, sexualidades, desejos, biopolíticas e geopolíticas
também". Outras tentativas ou opções de tradução foram "teoria rarita" ou "teoria vadia". Respondendo ao
imperativo de ser ou estar queer (transviado, bixa, do cu, marica, transmaricabollo) na América Latina, o
que envolve aprender a dizer o queer-cuíer com a língua para fora, propomos também uma leitura
transviada, na qual a potência anal tenha uma historicidade a ser traçada, que se cruza com esforços
normativos dos dispositivos de saber-poder-subjetivação que, historicamente, lograram enquadrá-la até
certo ponto, estigmatizando as relações homoeróticas e/ou anais com mecanismos como a sodomia ou, mais
tarde, o binômio heterossexualidade-homossexualidade. Assim, se a imagem de um Portugal transviado em
Sodoma era uma visão infernal para o Santo Ofício, para nós, representa as possibilidades de experiências
e de sujeitos que foram historicamente excluídos e silenciados, interpelados e enquadrados como abjetos,
expulsos para as sombras e subsumidos em ficções de identidades nacionais, de gênero e sexuais
totalizantes. BENTO, Berenice. É o queer tem pra hoje? Conversando sobre as potencialidades e
apropriações da Teoria Queer ao Sul do Equador. [Entrevista concedida a] Felipe Padilha; Lara Facioli.
Áskesis, São Carlos, SP, v. 4, n. 1, p. 143-155, jan./jul. 2015; PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o
que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil? Periódicus, Salvador, BA, v. 1, n. 1, p. 68-91, mai./out.
2014; RÍOS, Paola Arboleda. ¿Ser o estar "queer" en Latinoamérica? El devenir emancipador en:
Lemmebel, Perlongher y Arenas. Ícanos. Quito, Equador, n. 39, p. 111-121, jan. 2011; RIVAS, Felipe.
Diga "queer" con la lengua afuera: Sobre las confusiones del debate latinoamericano. In: Por un feminismo
sin mujeres. Fragmentos del Segundo Circuito Disidencia Sexual. Santiago, Chile: Territorios Sexuales
Ediciones; Coordinadora Universitaria por la Disidencia Sexual, 2011, p. 59-66; PEREIRA, Pedro Paulo
Gomes. Queer nos trópicos. Contemporânea - Revista de sociologia da UFSCar. São Carlos, SP, v. 2, n. 2,
p. 371-394, jul./dez. 2012.
937
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 271.
396
cristã. Vejamos como este mecanismo foi ativado na sentença de Maria Machada, lida e
proclamada perante a multidão, reunida no Rossio de Lisboa, em 28 de novembro de
1621:
938
"Acordaõ os Inquisidores Ordinario E Deputados / da Santa Inquisicaõ et cet Que uistos estes / Autos
culpas e confissoẽs de Maria machada / christam uelha, natural da Ilha Terceira, mo= / radora nesta cidade
ao tempo de sua prisaõ, mo= / lher que nunca casou, Ree presa que presente / está; perque se mostra que
sendo christam Bap= / tisada e como tal obrigada a uiuer limpa e ho= / nesta mente e a dar de sua uida e
costumes bom / exemplo; ella o fes pello contrario, e de certo / tempo tempo a esta parte, esquecida de sua
obrigua= / caõ com muito atréuimento e pouco temor de Deus con= / sentio que alguás pessoas do sexu
mascolino co= / metessem com ella o horrendo e abominauel / peccado de Sodomia contra natura,
consuman= / doo por alguãs ueses. O que uisto e a enormidade // do crime, por respeito do qual a Ira de
Deus ueo so= / bre as cidade infames de sodoma e Gomorra e / uisto outro Sy os Breues Appostolicos de
sua / Santidade e prouisaõ Del Rei Dom Henrique / de boa memoria e sendo cardeal legado alatere /
Inquisidor geral destes Reinos de Portugal, e com / o mais que dos Autos resulta Mandaõ que a Ree / Maria
machada em pena e penitençia de suas cul / pas uá ao Auto da fee na forma costumada cõ / huã uella acesa
na maõ, e nella ouça sua senten= / ca; e a comdenaõ em des annos de degredo para ilha / do Principe, e em
confiscacaõ de todos seus / bẽns applicados para o fisco e Camara Real / e nas mais penas em Direito comũ
e leis do / Reino contra os semelhantes estabellecidas / E da maior condenacaõ a releuaõ a uendo Respeito
// a fragilidade do sexu e as mostras de arrependimento / com que confessou suas culpas e outras considera=
/ coẽns que no caso se tiueraõ: e mandaõ que seja / asoutada pellas Ruas publicas desta cidade citra /
Sanguinis efusionem e pague as custas". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 38-
39.
397
939
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 272.
940
MOTT. Justitia et misericordia: o Santo Ofício português e a repressão ao nefando pecado da sodomia,
p. 719-725.
941
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191.
398
942
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 3-4.
399
Peço a vossas mercês que a Ré seja presa, com sequestro de bens, nos cárceres
deste Santo Ofício e que contra ela se proceda com todo o rigor da justiça. 943
943
"Muito Illustres Senhores / Contra Maria machada molher publica offereço / estes autos pelos quais
consta auer cometido o abo / minauel peccado nefando de Sodomia contra na / turaõ, e perque as
testemunhas depoem de actos de Sodomia / completos, e huã dellas dos mesmos continuados e re / petidos
por uses em diuersos tempos, e porque estaõ / muitas mulheres induçidas no dito crime, e para se emen /
darem, ou uirem confessar Suas culpar Ser grande par / te Saberem que tambem o Santo officio procede
Contra ellas / o que poderaõ Saber por meo desta prisaõ / Peço a Vossas Mercês que a Ré seia presa cõ
sequestro / de bens nos carceres deste Santo officio e que contra / ella se proceda cõ todo o rigor da justiça".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 5f.
944
"Foraõ uistos na mesa do santo officio aos 9 / de 9bro de 620 os dous testemunhos atras / E o requerimento
do promotor contra María / Machada mulher publica, nelles conteuda, / E Pareceo a todos os uotos que
eram bastan- / tes para a Re por Elles ser preza com sequestro de / bens nos Carceres do santo officio, Vista
/ a qualidade do Crime, da Re, E das teste- / munhas, que ambas depóem de actos de So- / domia completos;
E huá dellas dos mesmos / continuados E repetidos por uezes em di- / uersos tempos. E pareceo maís a
todos os Votos / (tirando o deputado Dom Joam da silua) que a pri- / saõ se executasse logo, Visto auer
400
O voto desse deputado, contudo, foi vencido por seus pares e pelo Conselho,
resultando na prisão de Maria Machada, com sequestro de seus bens. Vemos como a
Inquisição pôs em ação sua engrenagem punitiva/disciplinadora, interpelando-a como
sodomita, para estimular, por meio do medo e da culpa, muitas outras mulheres a se
inserirem no mesmo mecanismo. A prisão e a condenação exemplares de Maria Machada
deveriam funcionar como catalisadores para que mais mulheres fossem interpeladas como
sodomitas, moldando suas experiências do sexo segundo a tecnologia da categoria de
outras muitas / molheres indiciadas no mesmo crime, E para / Se emendarem ou uirem confessar suas culpas
/ ser grande para saberem que tambem o santo officio / procede contra ellas, como poderaõ saber por meio
/ desta prizaõ. E ao sobredito deputado, que ella de de / uia suspender por ora, Visto naõ auer proua /
bastante pera pena ordinaria, E naõ Ser / conVeniente prender molher por este crime / Sendo esta a primeira
que se prende, senaõ para Ser castigada // cõ muito rigor. E a todo que antes de se Exe / cutar este aSSento
Va ao conselho na forma do regimento". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 5-6.
945
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 272.
401
946
Embora seja tomado como uma das características definidoras da Inquisição, o segredo não foi uma
constante na história do Santo Ofício português. Em primeiro lugar, o instituto do segredo não foi outorgado
à Inquisição de Portugal, na ocasião de sua criação, em 1536, com a bula Cum ad nihil magis. Somente em
1547, o segredo processual foi introduzido, segundo instrução contida na normativa Medidatio cordis,
reforçada depois por um breve do papa Pio V em 1556. Os sucessivos regimentos foram normatizando a
aplicação do segredo aos processos inquisitoriais. No século XVIII, no contexto das reformas pombalinas,
o funcionamento da Inquisição seria drasticamente alterado, submetendo-se o tribunal inteiramente à
Monarquia, o que significava excluir todos os elementos divergentes da praxe das justiças régias. Uma das
principais mudanças foi a supressão do segredo. A partir de então, os acusados deveriam ter acesso integral
às denúncias, com os registros dos nomes dos denunciantes e as circunstâncias dos crimes de que eram
acusados. BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 44-5; 47-8.
947
De acordo com Bennassar, a "engrenagem do segredo" era um dos pilares da pedagogia do medo dos
tribunais das Inquisições ibéricas, pois as pessoas viviam aterrorizadas por não saber a razão pela qual eram
acusadas, além de ficarem amedrontadas com a possibilidade de serem confinadas em cárceres secretos. O
historiador mostra que a Inquisição era capaz de usar o segredo processual para, por meio do medo e da
angústia, paulatinamente, a cada admoestação, ir corroendo as vontades de suas vítimas. Não se estranha
que a resistência ao instituto do segredo tenha sido forte, com várias denúncias sobre como os inquisidores
abusavam do segredo, usando testemunhos fraudulentos para mover processos. Na Espanha, as cortes
aragonesas levantaram a acusação de que o sigilo do processo inquisitorial era uma novidade sem validade
jurídica, algo que ia contra os direitos costumeiros e tradicionais dos povos. Contudo, como mostra
Bennassar, apoiado na análise de Foucault em Vigiar e punir, o segredo não era uma prática específica do
Santo Ofício (ainda que os inquisidores o tenham aperfeiçoado), era antes uma tendência da época,
tributária do desenvolvimento dos Estados modernos (era praticado pela maioria dos países europeus, à
exceção da Inglaterra) e de sua vontade de poder e controle dos súditos. Kamen complementa que o segredo
foi instalado no Santo Ofício como um mecanismo a mais para a proteção das testemunhas, tornando mais
vantajoso para elas denunciar na Inquisição do que em outras cortes régias. Assim, as
testemunhas/denunciantes não eram nomeadas nas provas de justiça e nas sentenças publicadas contra os
réus, resultando que os delitos eram necessariamente descritos em termos genéricos, evitando as
especificidades de local e tempo que pudessem ajudar a identificar o delator. Nada disso evitava, como
destacou o autor, que o segredo possibilitasse perjúrios e testemunhos maliciosos. BENNASSAR.
Inquisición española, p. 110-116; FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 37; KAMEN. The Spanish Inquisition,
p. 1837-1841.
948
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 13.
402
Perguntada se cuidou em suas culpas, como nesta mesa lhe foi mandado, e as
quer confessar para descargo de sua consciência e salvação de sua alma? Disse
que não tinha culpas que confessar nesta mesa. Pelo que lhe foram feitas as
perguntas seguintes. Perguntada se sabe as culpas porque costumam prender
nesta Casa? Respondeu que por judeus, fanchonos ou somitigos. Perguntada se
cometeu ela alguma destas culpas? Respondeu que não. Perguntada se pecou
ela com algumas pessoas sodomiticamente, consentindo que usassem dela
contra natura? Respondeu que nunca tal fizera.949 (Grifos nossos).
Tudo isso não significa que uma pessoa como Maria Machada não se sujeitasse
de acordo com os termos normativos da experiência cristã do sexo. É o que vemos em
sua primeira tentativa de defesa, formada por seu procurador, após a publicação do libelo
acusatório da promotoria. Até aqui, a ré mantinha sua negativa (sem saber, talvez, que,
do ponto de vista da dinâmica do inquérito inquisitorial, ela estaria apenas agravando a
suspeita em torno de suas intenções dissidentes), dizendo não ter culpas a confessar.
949
"Perguntada se cuydou em Suas culpas como / nesta mesa lhe foi mandado, E as quer / confessar pera
descargo de Sua consciência, / E Saluaçaõ de Sua alma? Disse que / naõ tinha culpas que confessar que /
confessar nesta mesa, Pello que lhe / foraõ feitas as perguntas seguintes ---- / Perguntada Se Sabe as culpas
porque / costumão prender nesta Casa? ----- / Respondeo que por Judeos, fanchonos / ou Somitigos --------
---------- Perguntada / Se commetteo ella alguã destas culpas? -- / Respondeo que naõ ------------- Perguntada
/ Se peccou ella com alguãs pessoas Sodomi= / ticamente consentindo que usassẽ della / contra natura? ---
-------- Respondeo / que nunqua tal fizera". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p.
14.
403
Diante disso, sua defesa se armou em torno de sua qualidade na sociedade de Antigo
Regime e as implicações dela para sua provável intenção ao pecar:
950
"Muito Illustres Senhores / Contesta a Ré Maria Machada per negaçaõ / o libelo da Justiça contra ella
offereçido, E con- / trariando Diz. / a se Cumprir. / Por que ella Ré posto e grande peccadora, Viveo sempre
/ conforme a ley de Deus trabalhando tudo o que podia por / se appartar de seus Viçios, E por o seruir, inda
que sendo / mulher, E fragil tornara facil mente a cajr em offensas desse / mesmo Deus. Porem naõ que
comettesse taõ abominauel / peccado como he este ser que he accusada. / Por que conforme o direito (caso
negado) que ella comettera o / peccado se presume foi forçada, E que naõ deu consentimento / a isso pella
repugnançia da Natureza. E que inda que contra / ella ouuera muitas testemunhas E essas taõ qualificadas
o fossẽ […], / inda assy naõ depondo de Verdadeiro consentimento // E Habito, se deue presumor força, E
Violencia na Ré so por / ser molher, sendo Homẽs os com que se diz auer commettido / o tal delicto quando
mais que a Ré negua auer passado tal cousa / prella, E he falso tudo que as testemunhas Contra ella dizẽ".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 21v -22f.
951
O historiador António Manuel Hespanha mostrou como "as mulheres" formavam uma das categorias de
inferioridade nas sociedades de Antigo Regime que, exatamente em razão de sua inferioridade naturalizada,
desfrutavam de alguns privilégios ou bem-aventuranças em relação aos outros grupos sociais. Destacamos,
entre as maneiras como o autor delineia a inferioridade (subalternidade) da categoria jurídica "mulheres",
a caracterização das "mulheres" como lascivas, astutas e más, fundando a categoria como natural e
sexualmente perversa: "Como em geral, as fémeas em relação aos machos, as mulheres são mais lascivas
do que os homens. A própria forma côncava da madre [útero] criaria um desejo mais violento de ser
penetrada, explicável pelo princípio natural do horror ao vácuo", explica o autor, mostrando como a
definição jurídica da categoria, em vigor na sociedade de Antigo Regime imperial portuguesa, ainda
buscava seus termos em Aristóteles (Da geração dos animais). HESPANHA. Imbecillitas, p. 114.
404
952
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 473-4.
405
953
PRODI. Uma história da justiça, p. 96.
954
Notamos o processo de assimilação entre heresia e sodomia também na introdução da categoria de lesa-
majestade às heresias. Com essa operação, os hereges passaram a poder ser penalizados com a pena de
morte, o confisco dos bens e a punição infamante de seus descendentes. A noção de "majestade" inspiraria
a de "majestade divina", usada como legitimador jurídico para a introdução da tortura e da pena da fogueira
nos processos inquisitoriais contra os hereges. Vale destacar que essa evolução ocorreu a partir da união
entre os poderes temporal (Sacro Império e, depois, Monarquia francesa) e espiritual (o Papado) no combate
às heresias no Sul da França e no Norte da Itália. PRODI. Uma história da justiça, p. 99-100.
955
Em um documento de 1587, o papa Sixto V, entre outras providências relativas às Inquisições italianas,
definiu de forma mais precisa os crimes de competência do Santo Ofício, listando a heresia manifesta, o
cisma, a apostasia, a magia, os sortilégios, as adivinhações, os abusos de sacramentos e, de modo
significativo para o argumento que ora fazemos, qualquer outra matéria que permitisse a suspeita de heresia.
O texto usa a expressão praesumpta haeresis, sinalizando uma mudança importante (antes os documentos
406
Praticar a sodomia podia ser tomado como um contemptus e uma intenção de desobedecer
a lei natural e divina.956 Uma das consequências dessa guinada jurídico-discursiva, nas
definições de pecado e de heresia, foi a sobreposição entre o foro interior da penitência e
o exterior da Inquisição.957
usavam manifesta haeresis). A criminalização da mera presunção, ou seja, dos suspeitos, mostra uma maior
severidade da Igreja e da Inquisição em sua vontade de normatização. PROSPERI. Tribunais da
consciência, p. 396.
956
Isso é bastante próximo do argumento de historiadores como Ronaldo Vainfas e Fernanda Molina, entre
outros, como vimos anteriormente, para explicar a razão jurídico-discursiva que justificou a expansão do
domínio do Santo Ofício para o pecado nefando. VAINFAS. Inquisição como fábrica de hereges: os
sodomitas foram exceção?, p. 267-280; MOLINA. La herejización de la sodomía en la sociedad moderna.
Consideraciones teológicas y práxis inquisitorial, p. 558-562.
957
PRODI. Uma história da justiça, p. 96-7.
958
Por sobreposição, não devemos entender que a Inquisição portuguesa tenha adotado uma via pastoral
em sua abordagem dos hereges. Como mostrou Giuseppe Marcocci, na altura dos séculos XVI e XVII, não
era mais possível que a Inquisição portuguesa se desviasse de seu método judiciário, que tinha um impacto
social mais óbvio que o método pastoral de controle ensaiado por algumas autoridades eclesiásticas em
suas jurisdições (como D. Frei Bartolomeu dos Mártires em seu arcebispado de Braga). Assim, a Inquisição
manteve uma atuação marcada pela quebra dos equilíbrios sociais nas comunidades locais, efeito necessário
para a geração de um fluxo mais ou menos constante de denúncias e confissões, com perseguições e
punições mais terrificantes, especialmente no que tocava os cristãos-novos. No caso dos sodmitas, como
estamos vendo, mesmo usando algumas táticas do poder pastoral, notadamente a confissão, o Santo Ofício
tampouco deixou de funcionar tendo como base uma pedagogia do medo. MARCOCCI. O arcebispo de
Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1559-82): um caso de inquisição pastoral?, p. 119-146.
959
MASINI. Sacro Arsenale Overo Prattica dell'Officio dela S. Inquisizione, Roma, 1705, p. 356 apud
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 260.
407
Uma vez que os confessores não poderiam mais absolver os hereges das penas
judiciais, a sobreposição dos dois campos se tornou ainda mais pronunciada. A raiz do
problema estava na questão da satisfação. Como nos lembra Bossy, segundo a doutrina
ortodoxa da Igreja a partir do século XIII, a remissão dos pecados pelo sacramento da
penitência era o efeito de um ato tríplice, efetuado privadamente entre um pecador e um
sacerdote: a contrição (arrependimento verdadeiro), a confissão e a satisfação. 964 A
960
O historiador fala de uma benevolência paternal do confessionário, como no trecho seguinte: “Assim,
uma investigação sobre o passado da confissão, tal como é compreendida aqui, é levada a ultrapassar suas
próprias fronteiras para constatar que o confessionário quis ser e certamente constituiu amiúde um dos
lugares da benevolência paterna. Chateaubriand evocou-o justamente em uma passagem célebre das
Mémoires d’outre-tombe” (Grifos nossos). Todavia, todos nós que sentimos em nossos corpos infames a
bondosa violência da interpelação em-nome-do-pai, arqueamos, ironicamente hesitantes, as sobrancelhas
diante dessa caracterização. Quanto poder, assédio e violência há nesta bondade do confessor cristão? É
nesse sentido que entendemos também a confissão sacramental como uma outra técnica de interpelação,
parte de um poder pastoral, componente do dispositivo da carne: "Não se deve esquecer que a pastoral
cristã, fazendo do sexo o que por excelência tinha de ser confessado, o apresentou sempre como o
inquietante enigma". Daí ser interessante também a abordagem de Prodi, que insere a confissão, o tribunal
da consciência, nos temas do controle social e do medo. É ao foro, ao julgamento da ação e dos pensamentos
(as intenções), que o cristão comum é convocado, seja por se tratar de uma antecipação do juízo universal
e eterno (o sacramento da penitência), seja por se tratar da condenação a uma pena temporal (que podia ser
concebida como instrumento para evitar ou diminuir a pena no além). Em um caso como em outro, vemos
como a temática do poder não se dissocia das práticas de confissão e de seu lugar na história da justiça.
DELUMEAU. A confissão e o perdão, p. 10; FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 38; PRODI. Uma
história da justiça, p. 231.
961
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 250-1.
962
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 137-8.
963
"A Inquisição romana utiliza de uma forma sistemática as garantias de proteção dos denunciantes, com
promessas de abjuração privada na sala do tribunal, e cria condições para o desenvolvimento das confissões
espontâneas, com a difusão de formulários que, preenchidos e assinados, permanecem nos arquivos do
tribunal. Estamos, portanto, perante formas de pressão e de controle pouco espetaculares mas eficazes, mais
próximas das pessoas e dos métodos tradicionais dos confessores. As Inquisições hispânicas conhecem e
utilizam também esses métodos, mas não de uma maneira sistemática – elas privilegiam as ações de grande
impacto". Daí ser possível dizer que a Inquisição romana, em geral, foi mais pastoral que as ibéricas.
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 287.
964
BOSSY. Christianity in the West, 1400-1700, p. 45.
408
questão do que serviria como satisfação e de como realizá-la, contudo, foi polêmica entre
teólogos e fiéis ao longo de toda a Época Moderna. Nas disputas entre correntes
teológicas, mais ou menos rigorosas sobre a prática do sacramento da penitência,
importou saber se um pecador poderia ser absolvido, se ele não se afastasse das causas,
próximas ou remotas, do pecado. Por essa razão, era importante também determinar as
circunstâncias do pecado, uma vez que elas poderiam alterar a espécie da transgressão.
Levando o exame-confissão nesse rumo, os sacerdotes que julgavam no foro interno
exercitavam um olhar de penetrante acuidade por sobre cada fiel, cuja
interioridade/subjetividade era, assim, tão mais eficazmente elaborada. 965 No caso dos
pecados públicos e mortais criminalizados no foro externo, na esfera da justiça da Igreja
– o que incluía a Inquisição no caso das heresias e dos crimes a ela assimilados –, passou
a ser considerado que a sua satisfação penitencial exigiria a confissão aos inquisidores. A
exigência tornou-se tal que ficou estabelecido que o confessor era obrigado a remeter o
penitente ao Santo Ofício, sendo obrigado a adiar sua absolvição, 966 até que a culpa
inquisitorial fosse sanada.967
965
DELUMEAU. A confissão e o perdão, p. 73-85.
966
O adiamento da absolvição sacramental foi uma vitória da corrente rigorista na Época Moderna, visto
que permitia que o perdão de penitentes julgados indignos fosse postergado. Por penitentes indignos,
entendia-se não-contritos, isto é, que não se apresentavam com um arrependimento perfeito. DELUMEAU.
A confissão e o perdão, p. 65-70.
967
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 256-7.
968
Bethencourt ressalta que o dever de denúncia, inclusive denúncia de si mesmo, ao Tribunal do Santo
Ofício sobrepunha-se ao dever da penitência sacramental. Ou seja, era mais importante delatar ao inquisidor
do que ao confessor. BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 248.
409
intenção de não tornar mais a ofender a Deus, e por razão de ir este ano para a
Índia na nau que se perdeu na barra desta cidade, que se viu ali perdido e perdeu
o que levaria, e entendeu que se não tinha bem certificado quando embarcou,
se determinou, por conselho do dito confessor, a vir dizer tudo a esta mesa,
como dito tem.969
969
" E o ueo dizer a esta mesa perque confessan= / dosse esta paschoa no collegio de Santo antaõ da Compa=
/ nhia nesta Cidade confessandosse geralmente com tẽ- / çaõ de naõ tornar mais a offender a deos E per /
razaõ de vir este año pera a india na nao que Se pendeo / na barra desta Cidade que Se uio ali perdido E /
perdeu o que leuaria E entendeo que Se naõ tinha bem / certificado quando Se embarcou Se determinou /
per conselho do ditto confessor a uir dizer tudo a esta / mesa como tem ditto". DGA/TT - Lisboa, Inquisição
de Lisboa, Segundo Caderno do Nefando 0130, fl. 11.
970
DGA/TT - Lisboa, Inquisição de Lisboa, Segundo Caderno do Nefando 0130, fl. 31-41.
971
DGA/TT - Lisboa, Inquisição de Lisboa, Segundo Caderno do Nefando 0130, fl. 19-31; 69-74.
410
la de modo mais rígido (impedindo que cada devoto escolhesse, a cada ano, onde e com
que sacerdote se confessar).972 A doutrina da penitência como sacramento vinha, desde o
século XIII, consolidando o seu aspecto judicial, pois conferia à Igreja, pelo poder das
chaves, a capacidade (sobrenatural) de definir o pertencimento ou não do indivíduo à
cristandade, por meio da absolvição ou não de suas faltas (o problema do vínculo do
homem pecador com a Igreja). A penitência sacramental centrou-se, consequentemente,
na confissão, no ato de confessar, relegando à expiação, ao estado penitencial, um lugar
mais e mais desimportante. O ato do juiz/confessor de absolver transformou-se num ato
judicial em si mesmo, revelando o sacramento como um tribunal (foro) da consciência.973
A partir de Trento, a judicialização do sacramento da penitência se aprofundou,
desempenhando um papel importante, como temos visto, nos processos de
confessionalização dos países católicos, o que se deu com a sobreposição, acima referida,
entre os foros interno da consciência e o externo da justiça (onde se inseriam as
Inquisições). Destarte, sendo um actus iudiciales, a confissão tridentina se consolidou (no
que se percebe o aspecto conservador de Trento)974 como uma sentença pronunciada em
nome de Deus.975
972
PROSPERI. Triibunais da consciência, p. 281-292.
973
PRODI. Uma história da justiça, p. 70-3.
974
Prosperi destaca que, no tocante à confissão, como em vários outros aspectos, o trabalho do Concílio de
Trento foi, sobretudo, de conservação, isto é, de afirmação e preservação das instituições jurídicas
eclesiásticas surgidas durante a Idade Média, especialmente aquelas vindas no bojo das reformas medievais
(reforma gregoriana). Daí sua rigorosa apologia, contra as investidas luteranas, do caráter sacramental
específico (ou seja, distinto do batismo) da confissão privada, bem como a reafirmação do dever da
confissão e da comunhão anuais. PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 283-4.
975
PRODI. Uma história da justiça, p. 309-311.
976
FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 162-3.
411
Ó meu Deus, sinto muito por ter te ofendido e detesto todos os meus pecados,
porque temo a perda do Céu e as dores do inferno, mas acima de tudo porque
eles te ofendem, meu Deus, que é tudo de bom e merecedor de todo meu amor.
977
DELUMEAU. A confissão e o perdão, p. 10-1.
978
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 317.
979
FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 4.
980
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 288.
412
Com firmeza, resolvo com a ajuda de Tua graça confessar meus pecados, fazer
penitência e alterar minha vida. Amém.981
Nessa oração, que, conforme vimos, ocupava a primeira posição dentre os três
atos que compunham o sacramento da penitência, o pecador realizava mais operações do
que meramente começar a confessar-se, a produzir um discurso de verdade sobre si e suas
faltas perante a Igreja e a comunidade dos cristãos. Em primeiro lugar, a confissão
envolvia um custo, pois traduzir o pecado em discurso era uma operação que exigia um
trabalho, cujo esforço demandava um ônus. Na confissão cristã-católica, esse ônus era a
vergonha, o pudor, o enrubecimento que externalizava o arrependimento. Arrepender-se,
verdadeiramente, era detestar os próprios pecados, aquilo em si que conduzia, sempre, o
homem ao pecado (sua vontade concupiscente). Em segundo lugar, a confissão acontecia
em uma relação de poder assimétrica, entre o que confessa e o que escuta ou interroga,
de uma e outra forma, extraindo o discurso da verdade. Daí que o penitente devia se
apresentar livremente e, "com firmeza", se "resolvia a confessar". Essa resolução ou
disposição (conversão a um modo de ser confessante) era o que tornava a confissão uma
promessa, um compromisso existencial. O confessante prometia a ser aquilo que
confessava, "alterando a sua vida". Ao realizar essa promessa (lembrando, com Austin,
que promessas funcionam como enunciados performativos), o confessante se inseria em
uma relação de submissão com referência ao juiz-confessor-inquisidor-deus, a quem
dedicava seu "amor", em uma profissão de fé que reinstaurava a relação de poder e gerava,
por conseguinte, um custo. Finalmente, a confissão alterava a relação do sujeito com a
verdade de si que ele ora confessava, fazendo-o assumir-se, isto é, subjetivar-se,
sujeitando-se ao estatuto de pecador, vinculando-o a essa condição e qualificando-o como
sujeito talvez passível de absolvição, desde que verdadeiramente arrependido, contrito.982
Por isso, os inquisidores tomavam como essencial que o réu confessasse todos os
seus crimes. Caso contrário, caso ele se mantivesse negativo, a promessa da confissão
não se realizaria de maneira total, sua vinculação e sua qualificação ao estatuto de
pecador-criminoso não se consolidariam, ele não seria, por conseguinte, candidato ao
perdão e à misericórdia, porque não se arrependera. Disso alcançamos a definição
foucaultiana de confissão: "um ato verbal por meio do qual o sujeito faz uma afirmação
981
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição típica vaticana. Vaticano: Edições Loyola, 1997, artigo
4, § 1422-1495. Disponível em http://www.vatican.va/archive/ccc/index_po.htm. Último acesso em
18.agos.2020.
982
FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 6-8.
413
sobre o que ele é, vincula-se a essa verdade, coloca-se numa relação de dependência
perante outrem e modifica ao mesmo tempo a relação que tem consigo mesmo".983
[…] vindo ele testemunha do Reino a esta terra e cidade [de São Luís do
Maranhão], achara preso na cadeia dela Francisco Coelho, e que se dizia que
era por ter cometido o pecado nefando. E bem assim, disse que, haverá pouco
tempo a esta parte que, sendo vizinho do dito Francisco Coelho, lhe dissera
Francisco Nunes da Veiga que Maria Soares, mulher do dito Francisco Coelho,
tinha intenção de denunciar seu marido pelo caso do mesmo pecado, ao que
ele, testemunha, respondeu que vissem se o podiam emendar e retirar do vício
por via de confessores.984
983
FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 8.
984
"[…] uindo elle testemunha do Reino / a esta terra, e Cidade aChara prezo na Ca / deia della a Francisco
Coelho, e que se dezia / que era por ter Cometido o peccado nefando, e / bem aSsim diSse que auera pouco
tempo a / esta parte que Sendo uezinho do dito Fran / cisco Coelho lhe diSsera Francisco Nunes / da Veiga
que Maria soares mulher do di / to FranciSco Coelho tinha tençaõ de denun / Çiar de Seu marido pello cazo
do mesmo pec / cado ao que elle testemunha Respondeu / que uiSsem se o podiam emmendar, e Retirar /
do uicio // Do Viçio por uia de Confessores". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717, fl.
17.
985
BOSSY. Christianity in the West, 1400-1700, p. 49.
414
E feita assim a dita publicação, como dito é, e sendo ouvida pela Ré, para ela
em tudo dizer verdade, lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que
pôs sua mão e, sob cargo dele, prometeu de a dizer. Perguntada se é verdade o
que se contém na dita publicação, disse que era verdade o que na dita
publicação se continha, e que ela queria confessar a verdade de suas culpas. E
sendo admoestada na forma do estilo, disse que era verdade que, com três
homens, cometera o pecado nefando de sodomia, consentindo que eles
metessem seu membro viril no traseiro dela confitente e dentro dele
derramassem semente. O que seria por dez ou doze vezes pouco mais ou
menos. Porém, que não sabe quem as ditas pessoas eram, porque, como era
mulher pública, exposta a todos os homens que viessem à sua casa, não sabia
os nomes das pessoas com quem pecava. E que nisto consentiu por sua
fraqueza e pelo dinheiro que lhe dariam, mas que de tudo estava muito
arrependida e pedia perdão e misericórdia. E que isto era o que lhe lembrava
de suas culpas. E mais não disse.986 (Grifos nossos).
Aqui, Maria Machada começou a dar sinais visíveis de sua sujeição à interpelação
dos inquisidores, assumindo as culpas nefandas que lhe eram imputadas, as quais atribuiu
à sua fraqueza (novamente, o enunciado da fraqueza da carne, forma resumida de referir-
se à operação discursiva da libidinização do sexo) e ao dinheiro que recebia (outro pecado
mortal, se fosse entendido como avareza ou cobiça). Quanto à fórmula que dizia "de que
tudo estava muito arrependida e pedia perdão e misericórdia", podemos entendê-la como
o linguajar jurídico da praxe inquisitorial, que traduzia as súplicas e externações corpóreas
da culpa da Ré. Porém, se atentarmo-nos para a diferença com que o seu arrependimento
foi transcrito, em relação ao da outra mulher sodomita que estudamos, Isabel Pereira,987
poderemos considerar que os inquisidores nutriam desconfianças em relação à veracidade
do arrependimento de Maria Machada. De fato, porque ela não confessara os nomes de
986
"E feita aSsi a ditta publicaçaõ como ditto / he, E Sendo ouuida pella Ree, para ella / em tudo dizer
Verdade lhe foy dado Jura= / mento dos Sanctos Euangelhos em que / pos Sua maõ, E Sob cargo delle
prometteo / de a dizer. ---------- Perguntada se he Ver= / dade o que se contem na ditta publicaçaõ? - / diSse
que era Verdade o que na ditta publica= / çaõ Se continha, E que ella queria con / feSsar a Verdade de Suas
culpas; E Sen= / do admoestada na forma do estillo, diSse / que era Verdade, que cõ tres homẽs cõmettera
/ o peccado nephando de Sodomia, conSen= / tindo que elles meteSsem Seu membro Viril / no trazeiro
della Confitente, E que dentro nelle / derramaSsem Semente, o que seria por dez / ou // ou doze Vezes
pouco mais ou menos: porem que / naõ sabe quem as dittas pessoas eraõ, porque / como era molher publica
exposta a todos / os homẽs que VieSsem a sua caza, naõ Sabia / os nomes das peSsoas cõ que peccaua; E
que / nisto conSentio por sua fraqueza, E pello di= / nheiro que lhe dariaõ, mas que de tudo esta= / ua muito
arrependida, E pedia perdaõ e mi= / Sericordia; E que isto era o que lhe lembraua / de Suas culpas. E mais
naõ diSse". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 24-5.
987
No processo de Isabel Pereira, a expressão usada é "com lágrimas e sinais de arrependimento", o que
sugere que os juízes se convenceram que a ré se arrependera verdadeiramente, devido às provas visíveis
que ela fornecera. "E que naõ tinha outras Cul / pas que Comfessar e que destas pedia Perdaõ e misericórdya
/ a Deus e a esta Santa meZa e que se callou quando / pequou como ditto he por naõ deSonrrar as freiras /
a quem Seruia E ao ditto frade […]. […] Ao 3º dice / que Naõ tinha mais que dizer, que pedia / perdaõ, e
misericórdia, o que fez cõ lagrimas, E / Sinais de arependimento [...]. [...]Perguntada, se tinha contradittas
com / que uir e para lhas formar, estar com seu / procurador. Dice que naõ, e que Só / pedia perdaõ, e
misericórdia de Suas culpas, e que / nellas cahira como Mulher fraca e de / pouco iuizo, o que fez cõ
lagrimas, e / Sinais de arrependimento [...]". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 13191, fl.
9; 15v; 21v.
415
Foi-lhe dito que, já nesta mesa, lhe disseram como não era verossímil que ela
Ré estivesse esquecida das pessoas com quem cometeu o dito pecado,
lembrando-se do número delas. E sendo as ditas pessoas de qualidade que mal
lhe podem esquecer, maiormente sendo os atos de sodomia com as mesmas
pessoas repetidos e continuados por tantas vezes, como tem confessado nesta
mesa. E porque o Promotor fiscal deste Santo Ofício a quer acusar por esta
falta e diminuição que tem em sua confissão e pelo indício de impenitência que
dela resulta, e lhe será melhor, para descargo de sua consciência e abreviar
mais seu despacho, satisfazer, antes de ser acusada, que depois, a admoestam
da parte de Cristo nosso senhor e com muita caridade, o queira assim fazer.988
Foram vistos na mesa do Santo Ofício, aos 15 de fevereiro de 1621, estes autos,
culpas e confissões de Maria Machada, cristã-velha, neles conteúda. E pareceu
a todos os votos que, pela diminuição que tem de não dizer de Francisco Dias,
seu cúmplice e testemunha, não devia ir a tormento, assim por haver sido um
único ato e há dez anos, por onde facilmente se pode presumir esquecimento.
Como também porque vai pouco em a Ré dizer ou não dizer dele, visto estar
confesso e ter dito dela. E que, assim, fosse despachada em final.989
A ameaça da tortura esteve, pois, sobre Maria Machada, mas terminou sendo
afastada pelos inquisidores, motivados por uma análise jurídica casuística das condições
do processo. Ainda que a tortura fosse uma técnica admitida como válida, pelos diversos
foros de justiça, para a produção de discursos de verdade, não se pode dizer que seu
988
"[…] foy lhe ditto / que ia nesta meza lhe diSseraõ como naõ / era Verisimel que ella Ree esteja esque=
/ cida das pessoas cõ quem cometteo o dito / peccado lembrandose do numero dellas, / E Sendo as dittas
peSsoas de qualidade / que mal lhe podem esqueçer maiormente / Sendo os actos de Sodomia cõ as mesmas
pes- / Soas repetidos E cõtinuados per tantas Ve= / zes como tem confessado nesta meza: / E por que o
Promottor fiscal deste sancto / officio // offiçio a quer accusar por esta falta E / diminuiçaõ que tem em sua
confissaõ, / E pello indiçio de impenitençia que della / Resulta, E lhe sera melhor para descargo / de sua
consciencia E a breuiar mais / Seu despacho, Satisfazer antes de ser / accusada que despois, a admoestaõ /
da parte de Christo noSso senhor e com / muita charidade o queira assi fa / zer". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 11860, p. 26-7.
989
"Foraõ Vistos na mesa do santo officio aos 15 de feuereiro de / 621 estes autos culpas e confissoés de
Maria machada / xpam Velha nelles conteuda; E pareceo a todos os uotos / que pella diminuiçaõ que tem
de naõ dizer de francisco / Dias seu complice, e testemunha, naõ deuia ir a tormento, assi / por auer sido hú
unico acto E á des annos por onde / facilmente Se pode presumir Esquecimento; como tambem / porque
Vai pouco em a Re dizer ou naõ dizer delle, Visto / Estar confesso e ter ditto della. E quiz assi fosse
despachada / Em final". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, fl. 36.
416
Entre os casos possíveis (não muitos, como vimos), escolhemos resgatar o relato
da experiência do jovem Luiz Delgado, sodomita de Évora, por considerarmos se tratar
de um caso relevante e estudado a contento por Luiz Mott em artigo clássico, Desventuras
de um português no Brasil seiscentista.992 Não será, por conseguinte, o caso de
adiantarmos uma nova leitura geral do caso. O foco será exclusivamente sobre o uso do
tormento. Um breve resumo do processo inquisitorial que levou Luiz Delgado a essa
situação se faz, contudo, necessário. A personagem evorense era um tangedor de viola e
tinha 25 anos no momento de sua prisão na cadeia pública de Évora, por motivo de furtos.
Estando ali preso, era frequentemente visitado pelo menino Brás Nunes, de 10 a 12 anos,
irmão de sua noiva Esperança. Nessas visitas, que incluíam noites passadas juntos na
cadeia, foram flagrados cometendo o pecado de sodomia, pelo que foram denunciados à
Inquisição por um dos outros detentos. Ambos foram presos pelos inquisidores,
processados e torturados para que fizessem confissões completas. Mott afirma que Brás
Nunes provavelmente foi o mais jovem homem acusado de sodomia a ser preso e
990
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 200.
991
MOTT. Justitia et misericordia: A Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia,
p. 711-2; 736 (quadro II).
992
MOTT. O sexo proibido, p. 75-129. O caso também foi trabalhado por VAINFAS. Trópico dos pecados,
p. 168-9; e FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 70-5.
417
torturado pelo Santo Ofício.993 A ordem do Santo Ofício de Évora para que Luiz Delgado
fosse submetido ao tormento foi a seguinte:
Vemos bem como o tormento não foi ordenado como uma punição, mas como
uma ferramenta para incitar, violenta e dolorosamente, o réu a confessar, para o
descarrego de sua consciência, salvação de sua alma (funções penitenciais da Inquisição)
e bom despacho de sua causa (função judiciária da Inquisição). Vejamos, agora, como o
assento foi cumprido, em que condições, como os inquisidores usaram a tortura para
tentar persuadir o réu e como este se portou:
Aos cinco dias do mês de junho de mil e seiscentos e sessenta e seis anos, em
Évora, na casa da Santa Inquisição deputada para o tormento, estando aí os
senhores inquisidores Pero Mexia de Magalhães, pelo ordinário e sua
comissão, e os senhores deputado André de Mello Freire e o padre Mateus
Fernandes Valério de São Raimundo, pelas sete horas da manhã. Mandaram
vir perante si a Luiz Delgado, preso conteúdo nestes autos, para se executar o
assento do Conselho. E sendo presente, lhe foi dado juramento dos santos
evangelhos, em que pôs sua mão sob cargo do qual lhe foi mandado dizer a
verdade e ter segredo, o que prometeu cumprir. Foi admoestado pela casa em
que estava e instrumentos que nela há, entenderá facilmente quão trabalhosa e
perigosa é a diligência que com ele se há de fazer, ao que poderá se usar e o
trabalho e perigo em que se há de ver, confessando a verdade e suas culpas. E
por dizer que não tinha culpas que confessar, foi desfocado de seus vestidos e
assentado no escabelo, começado a estar com a primeira. Escrevi e pelo
tombado por mim notário, em nome dos senhores inquisidores e mais ministros
que foram no despacho de seu processo, que se este morrer, perder o sentido
993
"Os inquisidores mandaram que fosse "levantado até o lugar do libelo", isto é, até o meio a alta parede
da câmara de suplícios e não até o alto, na roldana, como sucedeu com o antecedente [Luiz Delgado]. "E
sendo bem atado com a correia e cordel, por julgar o médico e cirurgião que por ser de pouca idade e os
ossos muito tenros não era o caso de ser levantado, foi somente posto no calavre e se lhe deu um solavanco,
com o que foi mandado desatar para ser curado". MOTT. O sexo proibido, p. 80. Segundo Kamen, não
havia um limite de idade oficial para as vítimas da tortura nas Inquisições ibéricas. KAMEN. The Spanish
Inquisition, p. 1915.
994
"ACordão os Inquisidores Ordinario E Deputados da santa Inquisicam que uistos / estes autos Libelo e
pRoua de Justiça A Contrariedade e defeza de / Luis delgado violejro solteiro filho de outro Luis delgado
natural / E morador desta Cidade de Euora, Reo preso nelles Contheudo e os / indicios que delles Contra
elle resa logo, de auer Comettido o ne / fando peccado de sodomia Contra naturam, Com pessoa do / sexo
masCulino, e Como sendo++ por ueses amoestado quizesse Comfessar / suas Culpas e lhe o naõ quis fazer
Mandaõ que antes de / outro despacho o Reo Luis delgado seja posto a tormento Com / torne o asento que
neste seu proCesso esta tomado onde sera / perguntado pello Libello para que manifeste a uerdade para
salua / Caõ de sua alma e desCargo de sua Consciencia o que asy man / daõ sem prejuiso do prouado".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04769, fl. 99.
418
ou quebrar algum membro, seja sua a culpa, pois voluntariamente age e se põe
a este perigo, que poderia escusar, declarando a verdade. E dizem os ditos
senhores que julgaram conforme o merecimento da causa. E por dizer que não
tinha que confessar, foi continuado a estar assim com a correia e cordel,
chamando sempre pela Virgem Nossa Senhora e pedindo misericórdia, atado
perfeitamente, foi posto no calavre, levantado até o lugar do libelo, que lhe foi
lido, e levantado até a roldana e deixado cair lentamente, levou um trato
corrido, e foi levantado até o lugar do libelo, e por estar satisfeito o assento do
Conselho, e dizer que não tinha que confessar mais do que tem dito, foi
mandado desatar e levar a seu cárcere para ser curado. Ao que foi satisfeito e
disse passar na verdade.995
A cena do tormento é descrita com algum detalhe pelo notário. Tudo se passa de
manhã cedo, quando o réu foi levado para o aposento devotado especificamente para a
aplicação do tormento. O acompanham o inquisidor e deputados,996 além do notário, o
carrasco (o torturador normalmente era um carrasco público que trabalhava para as cortes
seculares)997 e o médico, não nomeados. Luiz Delgado é admoestado mais uma vez pelo
inquisidor, que, desta feita, usa das circunstâncias para aterrar de maneira mais cruel o
prisioneiro. Esperava-se que a visão dos instrumentos da tortura funcionasse como um
incentivo adicional à confissão (conspectu tormentorum). Diante da negativa, o réu é
atado, despido, à polé. Antes do início da tortura, os inquisidores o admoestam mais uma
vez e, agora, comentam, de forma que o observador contemporâneo dificilmente não
interpretará como uma cínica crueldade, mas que, para os inquisidores, era um dever de
misericódia cristã, que a morte, desmaio ou fratura de algum membro não seria de
995
" Aos cinco diaz do mez de Junho de / mil e seizcentos e sessenta e seiz annos / em Euora na caza da
Santa Inquisiçao de / putada para o tormento estando ahy / os senhores Inquisidores Pedro mexia de
Magalhaes / pelo ordinario e sua comissao e os se- / nhores Deputado Andre de mello / Freire e o Padre
Mateu Fernandes Valerio de / Saõ Raymundo pela sette horas da / menhã mandaraõ uir perante Sy a / Luiz
Delgado pRezo conteudo nestes / autos para se ezecutar o assento do conse / lho e sendo pRezente lhe foy
dado ju / ramento dos Santos euangelhos / em que pos sua maõ sob cargo do / qual lhe foy mandado dizer
a Verdade / e ter segredo o que pRometteo cum- / pRir: Foy amoestado os pela caza / em que esta e
instrumentos que ralteu // entendera facilmente que eram trabalhozar / e perigoza he a diligencia que com
elle se / há de fazer ao que podera se usar e o traba / lho e perigo em que se há de uer confessan / do a
uerdade e suas culpas. e por dizer / que naõ tinha culpas que confessar foy / desfocado [?] de seus uetidos
e assentado / no escabello começado a estar com a pRimeira / escreuea e pelo taõbado por mim notário com
/ nomeados senhores Inquisidores e maiz minis / tros que foraõ no despacho de seu pRocesso / que se este
morrer perder o sentido ou que / brar algũ membro seja sua a culpa pois / uo lanbariamente se aje poem a
este perigo / que pudera escuzar declarando a uer- / dade e naõ diz ditos senhores que jul / garaõ conforme
o merecimento da cauza / e por dizer que naõ tinha que confessar foy / continuado a estar assy com a Correa
/ e cordel chamando sempre pela uir / gem nossa senhora e pedindo mizericordia / altado perfeictamente
foy posto no ca / laure leuantado te o lugar do libelo / que lhe foy lido e leuantado ate a rol / dana e deixado
cair lentamente // leuou hũ trato corrido e foy leuanta / do ate o lugar do libello: e por estar sa / tisfeito ao
assento do Conselho e dizer que / naõ tinha que confessar mais do que tem / dito foy mandado dejatar e
leuar / a seu Carcere para ser curado ao que / foy satisfeito e dise passar na verdade". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04769, fl. 100-1.
996
Vemos um inquisidor representando o ordinário (a instância do bispo) por sua comissão. Segundo
Bethencourt, a partir do regimento inquisitorial de 1613, o voto do representante do bispo deixou de ser
obrigatório para a tortura. BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 47.
997
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1908.
419
998
Havia duas técnicas de tortura utilizadas pela Inquisição portuguesa. Uma, era a polé. A segunda, era o
potro, no qual "réu era deitado numa espécie de mesa (potro) e amarrado pelas canelas e braços com
garrochas de ferro presas com cordas, que por sua vez se ligavam a rodas que permitiam apertar e esticar o
corpo dos supliciados". MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 200. Kamen e Mott
falam de uma terceira forma de tortura, a toca ou o tormento da água, no qual "amarrava-se o réu deitado
com a cabeça voltada para o alto, mantendo-lhe a boca aberta com panos enquanto era obrigado a beber
através de um funil cântaros e mais cântaros de água até ser afogado". O autor registra um sodomita
torturado dessa forma pela Inquisição portuguesa, um turco chamado Osmão, que foi relaxado em 1586.
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1912-4; MOTT. Justitia et misericordia: A Inquisição portuguesa e
a repressão ao nefando pecado de sodomia, p. 712.
999
MOTT. Justitia et misericordia: A Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia,
p. 713.
1000
Kamen registra que os réus torturados eram comumente deixados em estado lastimável, muitos com
membros irremediavelmente quebrados, as vezes com a saúde e a sanidade prejudicadas. Alguns morriam
sob tortura. KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1917-8.
1001
BENNASSAR. Inquisición española, p. 100.
420
custas).1002 Por outro lado, quando o réu era dobrado pela violência da tortura e
confessava, era indispensável que ele, depois, repetisse a confissão em sala, como recurso
para assegurar a veracidade do relato.1003
Vemos, portanto, que o tormento, em sua variedade técnica, era mais uma
ferramenta de interpelação à disposição dos inquisidores, mesmo se eles a usassem
infrequentemente. O uso judicial da tortura não era exclusividade da Inquisição, pois
todos os tribunais de justiça (o foro externo) da Época Moderna a utilizavam. Não era
uma penalidade, mas uma parte do sistema de prova, sendo controlada por regras a que
os inquisidores obedeciam.1004 Segundo Felipe Martins Pinto, essa concepção da tortura
como uma parte do sistema de produção de provas legais constituintes de uma "verdade
real" data da Inquisição medieval, tendo se difundido nos séculos seguintes com apoio
papal e referendado por Heinrich Kramer e Jamer Sprenger no Malleus Malleficarum.
Tão eficiente se mostrou o método de extrair confissões a partir de tortura, que os
inquisidores consideraram o método infalível e abençoado. A tortura foi chamada de um
remédio para a alma, na medida em que encaminhava o pecador ao arrependimento e à
confissão.1005 A tortura judicial manteve-se uma técnica de extração/produção de um
discurso de verdade e de interpelação de sujeitos até o período pombalino. Sob a tutela
do Marquês de Pombal, a Inquisição portuguesa passou por uma reforma radical, como
já foi referido, submetendo-se à autoridade monárquica. No que concerne à tortura, a
prática foi duramente criticada, apontada como avessa ao que se esperaria da misericórdia
e da piedade da Igreja. Se, antes, os inquisidores consideravam a tortura uma técnica
quase perfeita para a produção da verdade, agora, ela foi condenada como prática que
1002
Essa não foi a única vez que Luiz Delgado se viu enredado pela Inquisição. Mott acompanhou
detalhadamente a agitada e aventureira vida posterior do sodomita, povoada por muitos amores e
sofrimentos, novas prisões em Lisboa e no Brasil (na Bahia, no Rio de Janeiro e no Espírito Santo). Preso
novamente pela Inquisição décadas depois, foi novamente torturado, quando acabou condenado novamente,
mas não por sodomia perfeita. Ouviu novamente sua sentença em auto privado e sofreu o degredo de dez
anos para Angola. MOTT. O sexo proibido, p. 75-129.
1003
KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1899.
1004
A tortura estava proibida em três circunstâncias. Uma, quando os depoimentos da acusação eram
convincentes por si só, independente da ausência de confissão do réu. Em segundo lugar, quando o réu fazia
confissão dos delitos, mas não se arrependia, mantendo-se impenitente. Em terceiro, quando o réu era
julgado incapaz de sofrer a tortura, por motivo de doença ou qualquer debilidade. MARCOCCI; PAIVA.
História da Inquisição portuguesa, p. 200.
1005
A tortura foi uma arma importante do Papado no combate às heresias medievais. Uma primeira
autorização de seu uso judicial veio com o decreto papal Licet ad capiendos baixado por Gregório IX em
1233, confirmado depois pela bula Ad extirpanda de Inocêncio IV em 1252. Depois, em 1311, o papa
Clemente V, por meio da bula Multorum Querela, permitiu que os inquisidores utilizassem a tortura judicial
contra os hereges. PINTO, Felipe Martins. A Inquisição e o sistema inquisitório. Rev. Fac. Direito UFMG,
Belo Horizonte, n. 56, p. 189-206, jan./jun. 2010. BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 356.
421
Nas mãos dos inquisidores, a tortura era mais uma técnica para extrair a confissão
dos réus, ou, em outros termos, para a manufatura do sujeito culpado e submisso almejado
pelo tribunal, a um só tempo, régio e eclesiástico, soberano e pastoral (no sentido de que
se imiscuía em problemas da consciência e adotava técnicas de subjetivação). Como
relembra Lana Lage da Gama Lima, para o Santo Ofício, o sujeito era, de saída, culpado,
dispondo de poucas chances de se defender e provar sua inocência. O caso de Francisco
Coelho, analisado acima, é absolutamente pontual e, mesmo com sua absolvição, não
podemos subestimar as sequelas que se prolongariam sobre sua subjetividade após ser
libertado, anos depois de sua prisão, em uma cidade estranha e sem recursos. A confissão
era, pois, buscada, incitada, estimulada e extraída mesmo à força pelos inquisidores, que,
nisso, não esqueciam como também se movimentavam no território da consciência. O réu
não era somente um criminoso, era também um pecador que precisava se arrepender e se
confessar para ser salvo.1007 Mas se confessar como? Quais eram as qualidades de uma
confissão considerada boa e como verificar o arrependimento do pecador?
1006
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 354; 362. BETHENCOURT. História
das Inquisições, p. 48.
1007
LIMA, Lana Lage da Gama. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição: o suspeito é culpado. Revista
de sociologia e política, n. 13, p. 17-21, nov. 1999; KAMEN. The Spanish Inquisition, p. 1927.
1008
FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 164.
422
Isabel Pereira, por exemplo, chorou ao confessar suas culpas, assim como o padre
Bartolomeu de Góis, que estava para ser relaxado no auto da fé que ora estudamos, o do
dia 28 de novembro de 1621. Conforme vimos anteriormente, ao receber a notificação de
que seria relaxado no auto referido, toda a resistência política-subjetiva do sacerdote
esmoreceu. Nesse momento, vale a pena conferirmos novamente como as suas
demonstrações físicas, externas e visíveis de arrependimento – e, podemos dizer, de
desespero ante a morte (e a danação eterna) –, foram traduzidas pelo filtro inquisitorial.
Confissão
Aos vinte e oito dias do mês de novembro de mil e seiscentos e vinte e um
anos, em Lisboa, nos Estaus, no cárcere do Santo Ofício, estando aí em
audiência pela manhã o senhor inquisidor Pedro da Silva de Sampaio com o
Réu Bartolomeu de Góis, preso conteúdo nestes autos, e, sendo presente, lhe
foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão e, sob cargo
dele, prometeu dizer Verdade e ter segredo. E disse que podia, quando de não
confessar mais cedo, na mesa do Santo Ofício, suas culpas e que as negara com
temor da morte, por lhe dizerem que o senhor Bispo Dom Pedro de Castilho
não perdoava aos do pecado nefando. E que a Verdade era (chorando lágrimas
e dizendo Cristo Jesus propitius esto mihi peccatori) que haverá cinco anos,
pouco mais ou menos, que, por espaço de dois para três anos, em sua casa em
Alcântara, quase todas as noites, na cama entre os lençóis e, de dia, algumas
vezes sobre a cama, cometeu e consumou ele, confitente, o pecado nefando de
sodomia, sendo sempre ele, confitente, o paciente, e o agente Duarte Coelho,
colaço de Luís Cezar, então solteiro, e que, naquele tempo, pretendia casar com
uma sobrinha dele, confitente e, depois, casou com Jerônima da Bovadilha,
sogra do porteiro da Mesa, que tem um quarto de cristão-novo, segundo lhe
disse seu mesmo padrasto. O qual Duarte Coelho se punha em cima dele,
confitente, que estava de bruços, e lhe metia seu membro viril no traseiro dele,
confitente, e dentro dele derramava semente. E, às vezes, por fraqueza, não a
derramava, havendo-se como um homem amancebado com uma mulher. E de
uma vez, sem tirar seu membro viril do traseiro, derramou duas vezes semente.
E por duas vezes tentou ele, confitente, consumar o dito pecado sendo agente
e o dito Duarte Coelho o paciente. E, em uma delas, não efetuou por fraqueza
do seu membro e, na outra, derramou ou na borda do traseiro ou quase dentro
do traseiro do dito Duarte Coelho semente.1009 (Grifos nossos).
1009
Conferir a transcrição paleográfica semi-diplomática no capitulo anterior. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 76-77.
423
O jesuíta, aqui, amplia o dom das lágrimas para todos os cristãos portugueses,
inserindo-os em uma dimensão imperial, na medida em que Lisboa é descrita como rainha
do Ocidente (Brasil ou a esfera atlântica) e do Oriente (as Índias). As lágrimas deveriam
verter de todos os cristãos indignados (vemos aqui o sentimento de ódio e intolerância
que não se desliga da caridade cristã) com o Império transviado em Sodoma, com o
pecado da analização ou de o império ainda estar com a função anal aberta e ativada. O
ânus sodomítico português manchava a todos. Em consequência dessa situação, vista
1010
DELUMEAU. A confissão e o perdão, p. 47-8.
1011
REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: In: CHARTIER, Roger. (Org.). História da vida privada
3. Da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.
191.
1012
Ver acima para a transcrição paleográfica semi-diplomática da passagem. GOMES. Sermaõ que fez o
Padre Andre Gomez da Companhia de IESVS no Auto da Fé […], p. 14.
424
1013
BOSSY. Christianity in the West, 1400-1700, p. 45-9.
425
readmissão dos que apresentaram lapsos de fé, isto é, cederam às perseguições romanas
e renegaram a religião cristã, problema abordado por Pais da Igreja como Cipriano de
Cartago), que inaugurava um estado existencial do cristão. Como regime hegemônico de
penitência na cristandade, a exomologésis perdera força desde a Alta Idade Média, mas
alguns traços permaneceram, notadamente, o ritual da súplica como um espetáculo
público, em que o penitente manifestava dramaticamente seu estado existencial, seu modo
de ser sujeito culpado de sua carne concupiscente. Tratava-se de uma mortificação de si
que expressava o discurso de verdade do penitente sobre si.1014 Algo desse estado
existencial de penitente, dramático e espetacular, sobrevivia nas performances públicas e
corpóreas de contrição, nas lágrimas dos pecadores, dos sodomitas, mais ainda na
celebração pública dos autos de fé, grandes festas em que a penitência era teatralizada
para a interpelação de toda a cristandade. Para além do auto, não seria a obrigação de
portar o sambenito uma descendente moderna do estado penitencial da exomologésis?
1014
FOUCAULT. Malfazer, dizer verdadeiro, p. 90-101; FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 78-
105.
1015
JORDAN. Convulsing bodies, p. 87-90.
1016
FOUCAULT. Os anormais, p. 173-199.
426
delatores cristãos.1017 Todavia, em sua sentença, como lemos, e como Maria ouviu
proclamada na praça do Rossio de Lisboa, no auto da fé de que tomou parte, os
inquisidores afirmaram que ela deu mostras de arrependimento, razão porque a pena
ordinária fora relevada (além do estigma da fragilidade do sexo e das especificidades do
seu caso). Quais foram estes sinais de arrependimento? Encontramos pistas deles nos
últimos documentos apensos ao processo, atestados e súplicas de comutação da pena. O
que se passara com Maria Machada?
Entre o julgamento do seu caso (em março, data de que a ré não tinha
conhecimento, devido ao segredo do processo) e a leitura pública da sentença, no auto da
fé (em novembro), Maria Machada adoeceu de alguma doença contagiosa, grave o
suficiente para motivar sua transferência para um confinamento à parte, no cárcere da
penitência. Qual doença seria essa e como se comportou a ré nos cárceres da Inquisição
neste ínterim?
Diz Maria Machada, que ela está presa vai em oito meses no cárcere da
penitência, onde curou a muitos doentes, por mandado dos senhores
inquisidores, com muita diligência e cuidado. Como informará o alcaide da
porta do dito cárcere. E, pois, está mui doente e cega, com muitas
enfermidades, que lhe sobrevieram, como dirão os físicos. E corre muito perigo
de sua vida, se passar o trabalho dos açoites a que foi julgada. Pede a vossa
ilustríssima senhoria, à honra das cinco chagas de Cristo Senhor Nosso, haja
misericórdia dela e lhe perdoe os ditos açoites, porquanto está mui debilitada.
A Ré esmola e mercê.1019
Essa petição e súplica data de 15 de julho de 1622, portanto, alguns meses depois
do auto da fé. No documento, a sodomita atestava um comportamento que vinha
desempenhando há vários meses, não obstante sua enfermidade, que, a julgar por seu
1017
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 255.
1018
"a Ré Maria machada adoeçeo estãdo no / carçere, de Roubas, E por Ser doẽça conta / geosa, E dizerẽ
os medicos, que se naõ podia / curar no Carcere, E cõ licẽca do Senhor / bispo inquisidor geral se mãdou a
dita / maria machada, para o Carcere da peni / tẽcia, pera Ser la Curada; em Lixboa aos / 21 de Junho de
621". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, fl. 37.
1019
"Diz Maria Machada, que ella esta preza Vai em oito Mezes No Carcere / da penitençia onde Curou a
Muitas doentes, per Mandado dos senhores inquizi / dores, Com Muita deligência e Cudado, Como
imformara, o Alcaide / da porta do dito Carssere; e pois está Muj doente, e sega; Com / muitas Infermidades
que lhe sobreuieraõ como diraõ os fizicos; / e Corre muito perigo sua Vida; se passar o trabalho dos asoutes
/ a que foi Iulgada; Pede a Vossa Ilustrissima Senhoria a honra das / sinco chagas de Christo Senhor Nosso
aja Mizericordia / della; e lhe perdoe os ditos asoutes, porquanto está / muj debellitada e Ré esmolla e
Mercê". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, fl. 41.
427
relato, era grave a ponto de a deixar cega, desde sua transferência para o cárcere da
penitência. Maria Machada, que fora prostituta, desempenhava, agora, o ofício de criada,
enfermeira ou acompanhante, ajudando os doentes também presos nas celas do Santo
Ofício. Em sua súplica, a condenada, com certeza, destacava os traços de sua nova
persona, que evocavam as virtudes cristãs e os modelos conhecidos de santidade, ela se
mostrava quase como uma mártir. Não devemos nos espantar com isso, pois o objetivo
do documento era suplicar uma mercê aos inquisidores, o perdão ou comutação de sua
pena de açoitamento público (para o que, não é inoportuno acrescentar, ela forneceu a
opinião do saber médico, como acessório aos jogos de poder pautados pelo discurso da
religião cristã e do direito absolutista que se desenrolavam no Santo Ofício). Estava
ocorrendo, portanto, uma negociação entre Maria Machada e os inquisidores, uma
negociação cujos termos eram as virtudes e os pecados cristãos, a folha corrida de serviços
espirituais prestados pela ré, que a tornariam merecedora da mercê dos juízes
eclesiásticos. Nesse contexto, não há razão para duvidar da introjeção da culpa e das
categorias de subjetividade da carne cristã no modo de ser sujeito de Maria Machada.
A suplicante Maria Machada foi presa nos cárceres desta Inquisição aos 12
dias do mês de novembro do ano de 1620 por culpas de sodomia. E foi-se
correndo com ela, estando sempre negativa, até se lhe fazer publicação da
prova da justiça que havia contra ela. E, na mesma audiência em que se lhe fez
a dita publicação, começou a confessar suas culpas aos 9 de janeiro de 1621.
E, noutras sessões, foi continuando suas confissões, dizendo de si e de alguns
cúmplices. E, aos 15 de fevereiro do mesmo ano, se viu seu processo em mesa.
E se assentou pelos mais votos que a suplicante fosse condenada em dez anos
de degredo para Angola, e nas mais penas de direito e leis do Reino. E nos 10
de março de 1621, se tornou a ver o processo em Conselho. E se mandou que
fosse açoitada pelas ruas públicas desta cidade e degradada por tempo de dez
anos para a Ilha do Príncipe. E a suplicante saiu no auto que se celebrou no
Rossio, desta cidade, aos 28 de novembro de 1621. E depois foi recolhida nos
cárceres da penitência, onde está de presente, curando os doentes com muita
caridade e cuidado. E é muito enferma, e mulher de idade e fraca. Parecem
que, visto ser mulher ainda de boa idade, e visto indisposta, e haver servido no
cárcere todos estes meses, acompanhando, fazendo e dando de comer a
Esperança Henriques, que agora se está curando no Hospital dos doentes, lhe
poderá vossa senhoria ilustríssima, sendo servido, fazer mercê de lhe remitir a
pena de açoites. E que, com efeito, vá cumprir logo seu degredo, como será
razão que o façam as mais pessoas condenadas todas as mais por este crime.
Em mesa, aos 23 de julho de 1622.1020
1020
"A supplicante Maria Machada foj preza nos Carce= / res desta Inquisiçaõ aos 12 dias do mes de
Nouembro do / anno de 1620 per culpas de Sodomia. E foisse correndo // com ella, estando sempre Negatiua
até Se lhe fazer pu= / blicaçaõ da proua da Justiça que hauia contra ella. E na / mesma audiencia em que se
lhe fez a ditta publicaaõ / comecou a confessar suas culpas aos 9 de Janeiro de / 621 e noutras sessoés foj
continuando suas confissoés / dizendo de Si E de algums complices. E aos 15 de feuereiro / do mesmo anno
Se uio seu processo em Meza e se assen / tou pellos mais uotos que a Supplicante fosse condenada em dez
428
Essa, contudo, não é a última notícia que temos de Maria Machada. Meses depois,
em fevereiro de 1623, ela submeteu outra súplica ao Santo Ofício. Desta feita, implorava
pela comutação de sua pena de degredo, transferindo-a da Ilha do Príncipe para o Brasil,
em razão da ausência de embarcações com destino ao porto africano e da extrema miséria
em que se encontrava.1021 A que os inquisidores responderam da maneira seguinte:
/ annos de degredo para Angola, e nas mais penas de direito / E leis do Reino. E nos 10 de Março de 621
Se ter / nou a uer o processo em Conselho. E se mandou que fosse / acoutada pellas Ruas publicas desta
Cidade, E degrada= / da por tempo de dez annos para a Ilha do Principe. E / a Supplicante Sahio no Auto
que se celebrou no Rocio desta / Cidade aos 28 de Nouembro de 621. E despois foy re= / colhida nos
Carceres da Poenitencia onde esta de presente. / curando os doentes com muita charidade, E cuidado, / E
he muito enferma, e molher de idade e fraca. / Parecem que uisto Ser molher ainda de boa idade / E visto
indisposta, E hauer seruido no Carcere / todos estes mezes acompanhando, fazendo E / dando de comer a
Esperança Henriques que / agora se esta Curando no Hospital dos doenttes / lhe podera Vossa Senhoria
Illustríssima sendo seruido, fazer me / de lhe remettir a pena de Açoutes. E que com ef= / feito // ua comprir
logo seu degredo, como sera rezaõ / que o facam todas as mais pesoas condenadas / todas as mais por este
Crime. Em Mesa / aos 23 de Julho de 622". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, fl.
41-3.
1021
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860, fl. 43f.
429
comutar o dito degredo para o Brasil para todo sempre. Em Lisboa, aos 21 de
fevereiro de 1623.1022 (Grifos nossos).
O que queremos dizer com esta análise do modo de vida de Maria Machada no
cárcere do Santo Ofício? Duas coisas. Em primeiro lugar, que podemos atribuir, a essa
transformação (uma conversão), a categorização que os inquisidores fizeram da ré nos
momentos finais de seu processo. A partir do momento em que ela adoeceu e passou a
realizar boas obras no cárcere (afetando uma vida guiada por virtudes cristãs, a principal
delas sendo a caridade), ou seja, demonstrando, com ações visíveis, sua condição de boa
confitente, os inquisidores recompensaram-na com misericórdia. Lembremos que, como
vimos em detalhes acima, havia indícios de impenitência até a sua última sessão de
interrogatório, no dia 13 de fevereiro de 1621. Como afirmou Bethencourt, os
inquisidores julgavam a credibilidade de um relato, entre outros fatores, pela observação
do comportamento do depoente no tribunal. Os inquisidores observavam sua fisionomia,
1022
"A Supplicante Maria machada x [cristã] uelha Saio / no auto da fee que se celebrou no Rocio desta /
cidade em 28 de nouẽbro 621; E nelle Ouuio / Sua Sentẽca pella qual foj condenada / pello peccado nefãdo,
que Confessou en / dez annos de degredo para Ilha do prῖcipe / o qual degredo se lhe cometteu pella orde /
Nança, pera Angolla, / E perque de presente naõ ha monçaõ / nẽ ha Nauios para as dittas partes de / Angola,
nos parece auẽdo respeito a Supplicante / estar no Carcere da penitẽcia ha quinze meses / Seruindo he
companhada a Esperãca anrriques / Se ueo douda, que alguas uezes esta furioSa; ja / quizera matar; E a Ella
Supplicante Ser boa / Confitente; E dizer de alguãs pessoas / mais das com que estaua indiciada, que Sera
/ iusto fazerlhe Vossa Illustrissima merce de / lhe comutar o ditto degredo pera o // o brazil pera todo
Sempre, en Lixboa aos / 21 de feuereiro de 623". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11860,
fl. 43v.
430
1023
Outros critérios de controle da credibilidade de uma testemunha eram a verificação de sua qualidade e
a comprovação de seu prestígio social entre os seus vizinhos, em sua localidade. BETHENCOURT.
História das Inquisições, p. 50.
431
baixar a cabeça e tapar o rosto) à revolta furiosa. As lágrimas eram sempre presentes.1024
Até o final do século XVI, a abjuração era feita individualmente (ou em grupos de duas
a quatro pessoas), cada condenado levantava-se para ouvir sua sentença e aproximava-se,
levado pelo alcaide do cárcere, do altar da abjuração, junto ao qual se ajoelhava e
pronunciava as palavras da abjuração.1025 A partir do século XVII, a abjuração destacou-
se como um momento autônomo no auto da fé, acontecendo depois da leitura de todas as
sentenças (inclusive as dos relaxados), sendo um ato jurídico-performativo coletivo, pois
passou a ocorrer em pequenos grupos. Segundo Bethencourt, nos autos mais tardios,
realizados no século XVIII, a abjuração tornou-se o momento final da cerimônia, após o
encaminhamento dos relaxados à justiça secular. Seria, do ponto de vista inquisitorial, um
"final feliz", sua vitória com a reintegração dos hereges à cristandade sadia e pura.1026
No auto que analisamos neste capítulo, os sodomitas não abjuraram, uma vez que
Maria Machada não fora a isso obrigada e os três outros estavam relaxados.1027 Assim,
finda a leitura das sentenças dos penitentes e dos relaxados, seus destinos se separaram.
A sodomita foi encaminhada de volta aos cárceres da Inquisição, onde, conforme já
vimos, ainda purgaria durante longo tempo sua culpa, suas doenças e sua servidão, até
receber permissão para partir em degredo perpétuo para o Brasil. O fim do padre
Bartolomeu de Góis, de Domingos Rodrigues Rocha e de Luís Álvares seria bem outro,
mas o compartilhariam com mais cinco pessoas relaxadas por culpas de judaísmo (além
de três indivíduos que seriam queimados em estátua).1028
A rigor, a cerimônia de execução não era uma parte do auto da fé, que se encerrava
com a abjuração ou, em alguns casos, como no de 28 de novembro de 1621, que ora
1024
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 248-9.
1025
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 272.
1026
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 250-4.
1027
Segundo Mott e Vainfas, os sodomitas não eram forçados a abjurar (de leve, de forma, na mesa, de
veemente) por causa do pecado de sodomia, apenas quando estavam condenados também por outros crimes.
Ou seja, a sodomia não tinha como pena alguma maneira de abjuração. Para Mott, isso seria mais uma
prova da distinção entre sodomia e heresia. Para Vainfas, seria um sinal a mais da confusão dos inquisidores
acerca do estatuto jurídico-teológico da sodomia em relação à sodomia. Como vimos na Parte I, a
assimilação da sodomia à heresia era, ao mesmo tempo, uma artimanha do dispositivo da carne e uma
questão suficientemente aberta para abrigar esse tipo de ambiguidade na processualística do nefando.
MOTT. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura, p. 261; VAINFAS. Inquisição como
fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?, p. 279.
1028
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, Autos de fé 1556/1778, Listas ou "Notícias" Livro 1º
1563/1632.
432
estudamos, com a queima de livros proibidos.1029 Isso porque o direito canônico proibia
que eclesiásticos participassem de penas sangrentas e de morte, tanto que os inquisidores
sequer assistiam à queima mortal dos condenados. Para salientar a separação dos dois
momentos e a normativa e oficial discordância dos inquisidores, ainda que não
necessariamente verdadeira, em relação à aplicação da pena capital, ocorriam repetidos
momentos, gestos e palavras de agentes da Inquisição expressando sua suposta
contrariedade e implorando, aos juízes seculares, por uma clemência que eles sabiam que
não ocorreria, e aos condenados, para que se confessassem e morressem reconciliados
com a Igreja. Até o final do século XVI, ocorria um interregno entre a leitura das
sentenças dos relaxados e sua entrega ao poder secular, durante o qual eles podiam
realizar uma derradeira confissão que talvez comutasse a pena ordinária. Esta indulgência
deixou de ter lugar nos autos a partir do século XVII, de modo que os relaxados
compareciam à cerimônia desenganados.1030 Outro gesto que marcava o fim da
responsabilidade do Santo Ofício sobre os condenados à morte, transferida ao poder
secular, era praticado pelo alcaide dos cárceres, que tocava com sua mão o peito dos
relaxados, um gesto de transferência.1031 Nesse momento, os inquisidores realizavam
também gestos teatralizados de "protestações costumadas", dramatizando o tabu
eclesiástico do sangue e sua misericórdia, clamavam aos juízes régios que demonstrassem
piedade para com os que seriam mortos. 1032 Ademais, ao final do texto das sentenças dos
relaxados, os inquisidores escreviam súplicas de misericórdia aos representantes do rei,
tal como lemos na sentença do padre Bartolomeu de Góis:
O que tudo visto, a soltura, devassidão e perseverança com que o réu cometia
tão horrendo e abominável pecado, por respeito do qual a ira de Deus abrasou
as cidades infames de Sodoma e Gomorra. E vistos outrossim os Breves
Apostólicos de Sua Santidade, e a Provisão del Rei Dom Henrique de boa
memória, sendo legado a latere e inquisidor geral nestes Reinos de Portugal. E
a pouca esperança que há de sua emenda, com o mais que dos autos resulta.
Christi Iesu nomine invocati. Declaram ao réu Bartolomeu de Góis por
convicto e confesso diminuto no dito crime de sodomia e por tal o condenam
a que incorreu em confiscação de todos os seus bens, aplicados a quem
pertencerem e nas mais penas em direito e leis do Reino contra os semelhantes
estabelecidas. E o excluem da jurisdição eclesiástica e mandam que seja
deposto de suas ordens e atualmente degradado delas na forma dos sagrados
cânones. E o relaxam à Justiça Secular, a quem pedem, com muita instância e
1029
"E no fim se leo a sentença dos liuros prohibi- / dos que ao auto forão em canastras cubertas / com
panos pintados de fogos". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, Autos de fé 1556/1778, Listas ou
"Notícias" Livro 1º 1563/1632.
1030
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 274.
1031
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 254.
1032
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 265.
433
1033
"O que tudo visto, a soltura, deuaçidaõ / e perseuerançia com que o Reo cometia taõ horrendo / a
abominauel peccado, por respeito do qual a ira de / Deus abrazou as çidades infames de Sodoma e Gomorra;
/ e vistos outro sy os breves Apostolicos de Sua San= / tidade, e a prouizaõ del Rey Dom Henrique de boa
me= / moria sendo legado á latere Jnquisidor geral nestes / Reynos de Portugal, e a pouca esperança que ha
de / sua ẽmenda, com o mais que dos autos resulta. Christi / Jesu nomine inuocati. Declaraõ ao Reo Bertho=
/ lomeu de Gois por conuicto e confesso dominuto no dito crime / de Sodomia, e por tal o condenaõ, e que
encorreo / em confiscaçaõ de todos seus bens, applicados a quem / pertençerẽ, e nas mais penas em direito
e leys do / Reyno contra os semelhantes estabeleçidas; e o ex= / cluem da Jurisdiçaõ ecclesiastica; e mandaõ
que // seia deposto de suas ordens, e actual mente degra= / dado dellas na forma dos sagrados canones. E o
/ relaxaõ á justiça secular, a quem pedem com muita / instançia e efficaçia se aia com elle benigna e piedoza
/ mente, e naõ proçeda a pena de morte, nem effuzaõ / de sangue". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 01312, fl. 88.
1034
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 274.
434
A procissão dos condenados à morte seguia pelas ruas da cidade, como um cortejo
de mortos-vivos, acompanhada, em Lisboa, pelos irmãos da confraria de S. Jorge, que
transportavam sua bandeira, sua cruz e tochas, fazendo ressoar matracas, além de por uma
multidão de populares.1039 Contruía-se uma cena macabra, amedrontadora e angustiante,
um teatro da execução, estimulando a intensa participação popular na cerimônia.
1035
" E nos Vinte E Seis dias do mez de Nouem / bro de mil SeiScentos, E Vinte E hum / annos, Em lisboa
nos estaos, E carçeres da / Santa Jnquisição, de maõdado dos Senhores Jnquisi / dores, fui eu notario à caSa
onde esta / ua preso o Padre Bartolomeu de Goes cõtheudo / neste proçeSso, E lhe notefiquej Em como elle
/ estaua relaxado a Justiça Secular, E / Jria logo ao domingo Seguinte ouuir Sua / Sentença no auto da fee;
E logo lhe foraõ ata / das as maõs, E ficou cõ Elle para o cõfeSsar, E / acõSelhar, o Padre Leonardo de Sá
da Companhia / de Jesu. Jacome Rodriguez notario do santo offi / çio o eScreui". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 01312, fl. 86v.
1036
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 254; LOURENÇO. Palavras que o vento leva, p. 32;
NOVINSKY. A Inquisição, p. 62.
1037
MOTT. Justitia et misericordia: A Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia,
p. 728.
1038
LOURENÇO. Palavras que o vento leva, p. 32; NOVINSKY. A Inquisição, p. 62.
1039
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 275.
435
Ocorriam, nesse clima, demonstrações fortes de sentimentos em relação aos infelizes, que
podiam ser contraditórios, indo desde a indignação, a cólera, o desprezo e o ódio, até a
piedade, a angústia e o pavor.1040 A expressão popular era cultivada e incentivada pelos
membros de confrarias e ordens religiosas que acompanhavam a procissão (em Lisboa,
eram os irmãos da confraria de S. Jorge, mas em outras cidades havia variação). Esses
religiosos estavam ali para prover assistência espiritual aos relaxados, ou seja, para os
interpelar até o fim a que se confessassem, produzindo um último discurso de verdade
sobre si mesmos e, destarte, dobrando-se à injunção de sujeição/subjetivação do
dispositivo da carne.
Na verdade, todo o ritual em torno da fogueira tinha esse sentido. Desde que foram
notificados de sua iminente morte, os relaxados eram importunados sem cessar por
religiosos (que podiam ser teólogos de diversas ordens, mas principalmente jesuítas). O
padre Bartolomeu de Góis, por exemplo, recebeu a assistência interpelativa do padre
jesuíta Leonardo de Sá. Segundo Francisco Bethencourt, a persistência dos clérigos,
interrompendo o cortejo diante de todos os oratórios e de todas as imagens de santos para
novas interpelações, relacionava-se à ambiguidade inerente ao rito da execução, ao
mesmo tempo exemplar, atemorizante e uma vitória sutil dos hereges, resistentes, até o
amargo fim, ao arrependimento e à penitência católica. Dessa maneira, somente o
arrependimento dos condenados, público e visível, antes de morrer, poderia ser
significado como uma vitória da Igreja e da Inquisição, dentro do ideal da boa morte
cristã.1041
1040
RIBEIRO. Arte e Inquisição na Península Ibérica, p. 161.
1041
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 255; MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição
portuguesa, p. 274.
1042
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 254; MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição
portuguesa, p. 274.
436
1043
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 254; FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 188-9.
1044
Francisco Bethencourt relata formas mais complexas de arquitetura das fogueiras inquisitoriais em
Coimbra, Sevilha e Palermo, entre os séculos XVII e XVIII. BETHENCOURT. História das Inquisições,
p. 256.
1045
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição portuguesa, p. 275.
437
1046
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 248; MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição
portuguesa, p. 274-5.
1047
(Gn. 19: 28), Bíblia de Jerusalém, p. 58.
1048
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 50-5.
1049
BENNASSAR. Inquisición española, p. 40-67.
438
1050
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 350.
1051
VAINFAS. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?, p. 267-280;
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 463.
1052
MOTT. A revolução homossexual: o poder de um mito, p. 40-59.
439
Chegamos, agora, à terceira e última parte da tese, após termos percorrido os eixos
das relações de saber e de poder da ação do dispositivo da carne cristã relativa,
respectivamente, à constituição discursiva da categoria de sodomia e à interpelação
(sujeição e subjetivação) de sujeitos sodomitas por meio de técnicas locais de poder, tanto
pastorais, como soberanas. Resta agora trabalharmos o terceiro eixo do dispositivo,
aquele voltado diretamente para as relações do sujeito, isto é, para as práticas de
subjetividade ou subjetivação. Nosso contexto histórico persiste, as terras do Império
ultramarino português durante a Época Moderna, nas quais privilegiaremos, nos próximos
dois capítulos, as rotinas da sodomia e do homoerotismo em localidades diversas desse
império colonial, escravista e de Antigo Regime. É certo que, nas duas partes anteriores,
as subjetividades estiveram presentes, uma vez que não é possível analisar cada eixo de
forma completamente isolada, as relações entre as dimensões discursivas e não-
discursivas de um dado dispositivo são sempre cruciais para a compreensão do
dispositivo, da mesma forma, os enunciados e o discurso acerca da sodomia, bem como
as técnicas de poder para a interpelação dos sujeitos não podem ser abstraídas da narrativa
neste e no próximo capítulos.1053 A diferença será o foco, doravante, voltado para
acompanhar os sentidos possíveis da dissidência dos sujeitos sodomitas em suas práticas
cotidianas de subjetivação: isto é, como transcorria a normatização dos sujeitos sodomitas
em sociedades cortesãs, coloniais e escravistas?
Sejamos claros com o que queremos dizer com dissidência e normatização no que
toca aos sujeitos sodomitas. Como vimos a sobejo nas duas primeiras partes da tese, a
ideia de que a sodomia era uma perigosa dissidência em relação à ordem natural e divina
constituía um traço central do dispositivo da carne. Podemos dizer que o sodomita era
construído como sujeito jurídico exatamente para arcar com a culpa da sua dissidência,
1053
Quando falamos de três eixos de um dispositivo, estamos pensando, juntamente a Roberto Machado,
em algo como a "trajetória da arqueologia", isto é, queremos ressaltar as mudanças de curso, de direção,
necessárias à pesquisa arqueológica, flexionando-a em direção a uma genealogia das relações de poder e a
uma problematização das subjetividades. São mecanismos de dobradiças que nos permitem visualizar o
dispositivo como uma engrenagem multidimensional, articular discursos, instituições, técnicas e
tecnologias de poder, corpos, almas, carne, próteses. A ideia de três eixos constitutivos de uma formação
histórica (episteme, regime ou dispositivo) também está presente na interpretação que Deleuze fez de
Foucault. MACHADO. Impressões de Foucault, p. 40; DELEUZE. Michel Foucault. Aula 4, p. 10.
441
intrínseca ao seu crime ancestral. Qual o conteúdo desse crime? Vimos que o primeiro
enunciado sobre a sodomia consiste na estratégica imprecisão do delito: o que era esse
sexo culpado dos sodomitas? Poderia ser o sexo anal, o homoerotismo, a zoofilia,
masturbações, sexo oral ou até um crime inteiramente não sexual, como mostrou
Boswell.1054 Portanto, não é esse sentido de dissidência que está em questão.
1054
BOSWELL. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 91-8.
1055
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 115-9.
1056
É útil incorporar as diferenciações que Miskolci esquematiza entre os conceitos de heterossexismo,
heterossexualidade compulsória e heteronormatividade. "Heterossexismo é a pressuposição de que todos
são, ou deveriam ser, heterossexuais. Um exemplo de heterossexismo está nos materiais didáticos que
mostram apenas casais formados por um homem e uma mulher. A heterossexualidade compulsória é a
imposição como modelo dessas relações amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. Ela se expressa,
frequentemente, de forma indireta, por exemplo, por meio da disseminação escolar, mas também midiática,
apenas de imagens de casais heterossexuais. Isso relega à invisibilidade os casais formados por dois homens
442
como adequados e legítimos".1059 Assim, se, do ponto de vista queer, é possível discernir
graus diversos de subalternização entre as homossexualidades na contemporaneidade,
com coeficientes diferenciais de vergonha, abjeção e violência entre elas, pensamos que
também é possível desnaturalizarmos o sujeito sodomita, no sentido de identificar graus
e práticas distintas de normalização entre cada caso.1060
Desse modo os estudos que efetuamos nesta Parte III podem ser descritos como
uma analítica da normalização aplicada à micropolítica dos processos (práticas) de
subjetivação que enredavam, constituindo-os, sujeitos sodomitas no Império ultramarino
português na primeira modernidade.1061 Como ponto de partida do capítulo atual,
examinamos a questão de como o sodomita era constituído como sujeito jurídico, como
pessoa responsável por um crime de imensa gravidade aos olhos das leis do Reino e da
Igreja, a partir do caso de André de Freitas Lessa, um sapateiro que, à parte de ter
cometido múltiplos atos consumados de sodomia com uma multidão de rapazes,
confessou sofrer de alguma enfermidade mental que o tornava louco. Ou quase. Foi a
loucura confessa do réu o suficiente para isentá-lo das penalidades decorrentes dos seus
crimes de sodomia? O que era a loucura segundo o arranjo jurídico-político do Antigo
Regime português, em particular, e na cultura europeia coeva em geral? Qual era o estado
de juízo necessário para responsabilizar um réu por seus crimes aos olhos da Inquisição?
Como o estatuto jurídico da loucura se relacionava com a constituição do sodomita como
um sujeito jurídico? Ao longo do capítulo, outros casos nos ajudam a continuar nosso
esforço para estabelecer a radical descontinuidade histórica entre o relapso sodomita e a
espécie homossexual.1062
1059
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2016, p. 89.
1060
MISKOLCI, Richard. Não somos, queremos - reflexões queer sobre a política sexual brasileira
contemporânea. In: COLLING, Leandro (org.). Stonewall 40+ o que no Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011,
p. 50-1.
1061
Citando Suely Rolnik, Leando Colling descreve a micropolítica: "[…] que ela define como ‘as questões
que envolvem os processos de subjetivação em sua relação com o político, o social e o cultural, através dos
quais se configuram os contornos da realidade em seu movimento contínuo de criação contínua’. Ou seja,
micropolítica, defende Rolnik, não é política em estado micro, mas aquela que produz novos processos de
subjetivação". COLLING. Que os outros sejam o normal, p. 182.
1062
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 47.
444
1063
Uma vez que o caso do sapateiro André de Freitas Lessa compõe a documentação da Primeira Visitação
do Santo Ofício ao Brasil, cujas edições impressas já datam, hoje, de quase um século, ele tem sido muitas
vezes trabalhado pela historiografia. Luiz Mott, em particular, dedicou-lhe atenção em seu artigo “Cripto-
sodomitas em Pernambuco colonial”, no qual tentou identificar os contornos de uma subcultura gay [sic]
na dita Capitania, a mesma intenção do seu artigo anterior, “Pagode Português, a subcultura gay em Portugal
nos tempos inquisitoriais” (1988). O caso do sapateiro sodomita de Olinda também foi estudado, mais
rapidamente, por Ronaldo Vainfas, junto a muitos outros, no seu Trópico dos Pecados, como se verá
adiante. Mais recentemente, o mesmo episódio compõe as descrições do jovem pesquisador Ronaldo
Manoel Silva, cujo foco é buscar as raízes da intolerância homossexual no passado colonial. Ver: MOTT,
Luiz. Cripto-sodomitas em Pernambuco colonial. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 6, volume 13(2): 7-
38, Recife, PE, 2002, p. 7-38; VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 172, 260; SILVA, Ronaldo Manoel.
Raízes da Intolerância. Inquisição e sodomitas em Pernambuco colonial (1593-1595). Brasília: Edições do
Senado Federal, 2016, p. 101-106.
1064
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 2f.
1065
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 7f, denúncia de João Baptista. Ver também:
PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Denunciações de Pernambuco – 1593-1595. Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo: Homenagem de
Paulo Prado, 1929, p. 2778-279.
445
dois irmãos, que permaneceram em Portugal. Um, era Domingos de Freitas, que exercia
o ofício de pintor, outra, era Caterina de Freitas, ainda não casada e que permanecia
morando com sua mãe.1066
Filho de uma família com raízes fundiárias em Guimarães, André de Freitas Lessa
transitou de Portugal para a América. O fato de a antiga terra da família ter passado a uma
irmã de seu pai, que exerceu ofício mecânico, sugere que o modo de vida camponês dos
seus antepassados não estava mais disponível ao réu. Nota-se que o seu ramo da família
é inteiramente composto por oficiais mecânicos (ele e seu pai, sapateiros; o irmão, pintor).
Talvez essa rápida trajetória familiar ajude a explicar a mudança de André de Freitas
Lessa para a conquista americana, em busca de melhores perspectivas de vida. Porém,
deve-se considerar também se suas predileções homoeróticas tiveram algum peso na
busca do sapateiro por paragens menos vigiadas pela Igreja e pela Inquisição.
Uma outra razão, porém, pode explicar não só a migração da personagem do reino
para a colônia americana, como também, como se verá adiante, seu modo particular de
abordar parceiros sexuais. Em sua terceira sessão de interrogatório diante do visitador, o
réu fez a seguinte afirmação:
[…] disse que tem feito diligência consigo e não lhe lembra mais do que tem
confessado. E disse mais, que ele foi já muito enfermo do miolo, que pelas luas
endoidecia e fazia desatinos fora de seu juízo, da qual enfermidade foi curado
haverá cinco anos, e dela está já são e melhorado de cinco anos a esta parte,
posto que ainda algumas luas lhe fazem mal, e, em algumas conjunções de lua
nova, se sente perturbado e alienado do juízo. E que uma ou duas vezes, das
que tem confessado que pecou o nefando, estava ele réu assim alienado do
juízo, com acidente de lua, mas que estas, uma ou duas vezes que assim
alienado pecou, não sabe quais foram das que confessado tem nestes autos,
nem sabe com qual ou quais dos cúmplices que declarado tem foram […]1067
Nesse momento do seu relato, o réu deu uma pista fundamental para a
compreensão de sua vida, de suas aventuras homoeróticas e de seu relacionamento
contraditório com o Santo Ofício. Ademais, a confissão de loucura do sapateiro Lessa
enseja uma interrogação sobre a responsabilidade jurídica dos delinquentes de sodomia a
1066
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 21.
1067
“djxe que tem / fejto dilligentia Consiguo, E naõ lhe lembra / mais do que tem confeSsado, E dixe mais
/ que elle foj Jaa mujto Enfermo do mjollo / que pellos // que Pellas luas Em doudecja e faZja des / atinos
fora de Seu JuiZo da qual Jnfermj / dade foj curado auera cjnquo annos / E della esta Ja sam E melhorado
de cjn / quo annos a esta partE posto que Jnda / alguãs luas lhe faZEm mal, E Em alguãs / conJunçoῖs de
lua noua se sente pertur / bado E alljEnado do JuiZo, E que huã, ou / duas ueZes, das que tem confeSsado
que / peccou o nefando estaua elle Reo a / Sim aliEnado do JuiZo com acidentE / de lua mas que estas, huã
ou duas / ueZes, que aSsjm aliEnado peccou naõ / Sabe quaes foraõ das que confeSsado / tEm nestes autos,
nem Sabe com qual / ou quaes dos complices que declarado / tem foraõ [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 08473, fl. 22.
446
1068
PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Novas perspectivas.
Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 311. Ver também MACDONALD, Michael.
Mystical Bedlam. Madness, anxiety and healing in Seventeenth Century England. Cambridge: Cambridge
University Press, 1981. (Cambridge Studies in the History of Medicine)
1069
Foucault afirma que a influência da Lua sobre a loucura foi uma asserção aceita pelo saber médico e
erudito por séculos, apoiando-se em considerações astrológicas que afirmavam que a Lua era o mais
aquático dos astros. Daí também o termo lunático como sinônimo de louco. FOUCAULT, Michel. História
da loucura. Na Idade clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 13, nota
41.
1070
Michel Foucault aponta que, como composição literária, o tema da Nau dos Loucos é derivado do ciclo
dos argonautas, trazido à tona, novamente, em 1413, por Jacob Van Oestvoren com Blauwe Schute, na
Borgonha. Diversas obras sucedem-se, a partir de então, até o início do século XVI, com variações do
mesmo tema. FOUCAULT. História da loucura, p. 9.
447
Nos séculos entre o fim da Idade Média e o início da Modernidade, antes do início
do movimento da grande internação, os loucos tinham, na Europa, uma existência errante.
Eram expulsos das cidades e relegados a uma vida vagante pelos campos. Algumas vezes,
os loucos eram entregues a mercadores e peregrinos, que se encarregavam de levá-los
para lugares distantes. Se o sentido aparente desse costume era expurgar as cidades de
pessoas indesejáveis (e que acarretariam custos para as municipalidades), não se
identificam políticas sistemáticas de expurgos dos loucos nas cidades europeias do
período. Ao contrário, havia subvenções específicas para o cuidado dos loucos, bem como
pontos de reunião para eles em muitas cidades, especialmente em lugares de
peregrinação.1071
1071
FOUCAULT. História da loucura, p. 9-10.
1072
FOUCAULT. História da loucura, p. 12.
1073
FOUCAULT. História da loucura, p. 14.
448
latim Locus, porque este tal não é outra coisa mais que Lugar e Vasilha em que
as ditas coisas haviam de estar.
Louco. Inconsiderado, imprudente, temerário.
Louco. Alegre. Amigo de rir e zombas.1074
1074
BLUTEAU, Raphael. Louco. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 5, p.
186. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/louco. Acesso em out.2020.
1075
BLUTEAU, Raphael. Loucura. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 5, p.
187. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/loucura. Acesso em out.2020.
449
O que importa para a questão presente é que a loucura, até fins do século XVIII
português, dizia de um conjunto de características acerca da menor capacidade de cada
pessoa afligida se adequar à sociedade. Assim, o julgamento sobre a loucura de cada um
só podia ser particular, de acordo com suas circunstâncias específicas. Um tal
procedimento se articulava bem à vocação casuística do Tribunal do Santo Ofício. O
1076
HESPANHA. Imbecillitas, p. 94.
1077
HESPANHA. Imbecillitas, p. 94-5.
450
1078
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado do
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos
de Portugal – 1613. Título IV, parágrafo XXXII: Dos presos que endoideceram no cárcere. RIHGB, ano
157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 638.
1079
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado por mandado do
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo dom Francisco de Castro, Inquisidor-geral do Conselho de
Estado de Sua Majestade – 1640. Livro II, título XVII: Dos presos, que endoidecem no cárcere. RIHGB,
ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 808.
1080
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12899.
451
estado de loucura, o réu poderia ser solto e posto aos cuidados de um parente ou de um
hospital, sob fiança.1081
O que se pode concluir dessas prescrições é que a Inquisição entendia que um réu
em estado de loucura era incapaz de responder adequadamente ao processo. Isso estava
de acordo com o ordenamento jurídico do reino e com as definições médicas e filosóficas
da loucura. Um réu louco, cujo estado de consciência não se adequasse à ordem do
mundo, não poderia confessar e assumir suas culpas, nem delas se arrepender, ser
perdoado, penalizado e reconciliar-se com a Igreja. Nesse estado de incapacidade, ele não
poderia exercer a condição de um sujeito jurídico de suas ações. Vejamos, agora, que
papel as categorias de louco e de loucura puderam desempenhar no processo de André
Lessa. Teria ele sido considerado irresponsável pelo crime nefando de sodomia?
Inicialmente, podemos reler o relato que o réu fez de sua genealogia. Dessa forma,
ainda que a migração de André Lessa pudesse ser entendida como a de tantos outros que
partiram do reino para a América em busca de fortuna ou de apenas melhores condições
de vida, há que se suspeitar de razões subterrâneas. É certo que os relatos do réu não dão
muitas informações a esse respeito, sequer permitem precisar em que altura da vida ele
deixou Portugal. A ausência da pergunta de praxe, durante o interrogatório de sua
genealogia, sobre ter o réu visitado outros reinos (cujo sentido era indicar se o réu se
contaminara com as heresias protestantes ou com a religião islâmica), pode indicar ou
omissão por parte do visitador ou do notário, ou que o réu respondera que nunca estivera
em outras partes, não tendo, por esta razão, o visitador e o notário sentido necessidade de
indicar esta negação nos autos do processo. Assim, não se pode saber mais sobre a vida
do réu antes de sua chegada a Pernambuco. Resta ao historiador apresentar algumas
questões de acordo com o contexto.
A loucura do sapateiro pode ter sido um fator para sua partida da terra natal. Se
os loucos ocupavam um não lugar na sociedade e na cultura europeias do período, se se
caracterizavam por uma inadequação fundamental, não seria de se estranhar que a
personagem tenha sido impedida, ou se sentido impedida, de permanecer em Guimarães,
suspeita que se torna mais forte ao considerar-se que ele assumiu o ofício do pai morto,
mas não sua posição social. A permanência da família em Guimarães, especialmente, da
mãe e da irmã donzela, indica que havia uma posição a ser ocupada, um lugar preciso na
1081
RIHGB, ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 638, 808-809.
452
sociedade. O louco, contudo, por sua própria definição à época, não podia ocupar nenhum
espaço, seu destino era as margens. Ainda mais destinado às sombras e ao esquecimento,
rejeitado como monstruoso e abominável, culpado de um crime sem-nome, nos termos
do dispositivo da carne, era o sodomita.
Os relatos do sapateiro Lessa e de seus parceiros (muitos dos quais também foram
processados e condenados pelo visitador) corroboram a imagem de que a casa e oficina
do réu eram frequentadas por muitos rapazes. De fato, André Lessa confessou algum tipo
de envolvimento homoerótico com mais de duas dezenas de homens, todos moços entre
quinze e vinte e poucos anos. Porém, dificilmente justifica-se a imagem de uma multidão
de jovens entrando e saindo da casa do réu e, ainda menos, a de uma camarilha de
sodomitas liderados pelo sapateiro.
1082
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 172.
1083
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 02552, fl. 11f.
453
suspeitas suficientemente fortes para denunciar. De toda forma, o caso não se tornara
público, o que fatalmente aconteceria se houvesse sempre dezenas de moços entrando e
saindo das casas do sapateiro.
Não obstante, é certo que, em sua vida cotidiana em Olinda, o sapateiro Lessa
pôde dar vazão aos seus desejos homoeróticos com paixão e violência. Seus relatos diante
do visitador comprovam-no. Em sua primeira confissão, ainda no tempo da Graça
concedido a Pernambuco, no dia 23 de novembro de 1593, ele narrou seus encontros
eróticos com ao menos 11 homens,1085 sendo estes apenas os que ele conseguia nomear,
tendo havido outros moços cujos nomes ele não lembrava mais. Com todos, ele confessou
atos eróticos que eram então enquadrados na categoria de molícies. Nos termos do
processo:
E confessando, disse que de doze ou treze anos a esta parte, por todo este
espaço de tempo de treze anos até agora, tem pecado na sensualidade torpe por
muitas vezes, com muita sua dissolução, com muitos moços, sendo ele sempre
o autor e provocador de tais torpezas. Teve ajuntamento por diante com os
membros viris e com as mãos solicitando e efetuando polução um ao outro ele
confessante com os moços […].1086
1084
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 260. De acordo com Luiz Mott, as categorias fanchono e sodomita
não tinham o mesmo significado. A última dizia dos praticantes do sexo anal, ao passo que a primeira se
reservava aos que praticavam os diversos atos abrigados sob a rubrica de pecado de molícies. MOTT, Luiz.
Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais, p. 128.
1085
Foram eles: Domingos, alfaiate, João Ingres, que estava ora ausente, Francisco d'Abreu, Hipólito
mameluco, Antônio Jorge, alfaiate, um mulato criado de Antônio Ribeiro, um moço que era sapateiro, um
criado de Baltasar Leitão, um moço filho de Frutuoso Fernandes, Antônio da Rosa e Francisco Carvalho.
1086
“E ConfeSsando djSse quE de / doZe ou // doZe ou treZe annos a esta parte per todo este / espaco de
tempo de treZe annos ate ora / tem peccado na SenSualjdade torpe por / mujtas ueZes com mujta Sua
deSoluçaõ / com mujtos moços Sendo elle Sempre o au / tor, e prouocador de tais torpeZas. teue /
aJuntamentos por djante cõ os mẽbros / Vjrjsles, e com as maõs Soljcjtando et E / fEctuando polucaõ hum
ao outro elle / ConfeSsante com os mocos [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473,
fl. 3.
454
Confessou mais que também por todo este percurso de tempo, fez mais as
mesmas torpezas com outros moços adiante nomeados, com os quais chegou
mais avante na maldade do pecado, tendo com eles cometimentos nefandos por
detrás com os membros viris nos vasos traseiros, pretendendo efetuar com eles
o pecado de Sodomia, ora paciente, ora agente, havendo, alternadamente,
conatos e adereços para penetrar com os membros viris nos traseiros, posto que
nunca houve penetração perfeita, nem consumação do dito pecado de sodomia,
por não se poderem penetrar […].1087
1087
“ComfeSsou mais que tambẽ / per todo este discurso de tempo feZ mais / as mesmas torpeZas com
oũtros mocos a / djante nomeados cõ os quaes chegou / mais aVantE na maldade do peccado / tendo com
elles acometimentos nefando / por detras com os membros Vjris nos Vasos / traZejros pretendendo Efectuar
cõ elles / o peccado de Sodomja ora pacjentE, ora / agente avendo alternadamente Cognatos / E aderenços
pera penetrar cõ os membros / Veris nos traZejros posto que nunca ouVe / penetraçaõ perfejta, nem
conSumaçaõ / do djtto peccado de Sodomja por naõ / Se poderem penetrar [...]”. DGA/TT-Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 4v.
455
Vemos, assim, mais uma vez, como o aterrorizante poder inquisitorial podia ser
canalizado pelo agente (inquisidor, visitador, deputado) em técnicas interpelativas
direcionadas para o incitamento à discursificação da sodomia, encaixando o réu no
processo normativo de subjetivação do sodomita, do que temos sinal pela prostração
amedrontada de André de Freitas Lessa ao visitador ao final de sua confissão, pedindo
1088
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 241-5.
1089
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 8f.
1090
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 8v.
456
No dia 7 de junho de 1595 (três dias após ser preso, portanto), André Lessa fez
um relato. Confessou ter praticado a sodomia muitas vezes com cinco homens. Foram
eles: Diogo Henrique, Jorge de Sousa, Salvador Barbosa, um mancebo criado de Antônio
Bezerra e um João, criado de um físico castelhano. Confessou ainda masturbações e
tentativas incompletas de penetração anal com outros mais. Porém, bastava ao visitador
o primeiro conjunto de cópulas. Por meio delas, Heitor Furtado de Mendonça teve
material para indiciar e prender quatro dos cinco parceiros do sapateiro. A partir de então,
as prisões sucederam-se rapidamente. Jorge de Sousa foi preso a 11 de junho, Salvador
Barbosa a 2 de julho, Diogo Henriques a 13 de julho, e João Freire (o criado do físico
castelhano) a 30 de agosto.1092
1091
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 22v.
1092
As referências dos processos desses réus são como segue: Jorge de Sousa: DGA/TT-Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 02552, João Freire: DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 02557, Diogo
Henrique: DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 06349, Salvador Barbosa: DGA/TT-Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 11208.
457
sapateiro como um de seus parceiros sexuais) e com outros moços. O sapateiro teria
inclusive confidenciado a Diogo Henriques sua estratégia para atrair rapazes ao nefando,
que consistia em enganá-los com promessas (provavelmente de lhes fazer sapatos ou
chinelos) e, assim, trazê-los à sua casa, onde poderiam pecar (à força?). Apesar das
ambiguidades apontadas, Diogo Henriques pretendeu transmitir ao visitador a ideia de
que ele sempre fora forçado ao sexo por André Lessa, como o trecho final de sua primeira
sessão de interrogatório mostra:
[…] e que todas as ditas vezes que pecou ele Réu com o dito sapateiro foram
contra sua vontade, pelas provocações do dito sapateiro, o qual uma vez o
ameaçou com uma adaga, que o havia de matar se ele viesse a descobrir isto a
esta mesa […].1093
[…] depois de assim estar só, por terem consumado e efetuado o dito pecado
nefando, lhe perguntou ele Réu que se ali os achassem naquilo, que lhe fariam,
e o dito sapateiro lhe respondeu que [os] queimariam. Então ele Réu disse que
pois [se] isso assim era, que se queria ir, e se saiu então e nunca mais lhe quis
entrar nem entrou da porta para dentro […].1094
1093
“[…] e que todas as djttas ueZes que peccou / elle Reo com o djtto capateiro foj contra Sua / Vontade
pellas prouocaçois do djtto / Capateiro o qual huã ueZ ho ameaçou cõ / huã adaga que ho auja de matar Se
elle / VieSse a descobrir isto a esta mesa [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 06349, fl.
8f.
1094
“[…] despois de aSsim esta Soo ber terem cõ / Sumado E Efectuado o djtto peccado ne / fando lhe
perguntou elle Reo que Se allj / os achaSem naqujllo que lhe farjaõ, e ho / djtto capateiro lhe respondeo
que quemarjaõ / Entaõ elle Reo djxe que pois iSso aSsjm / Era que Se querja ir, e se sahio entaõ et / nunca
mais lhe quis Entrar nem entrou / da porta pera dentro [...]. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
02557, fl. 8v.
458
Foram vistos estes Autos em Mesa e pareceu a todos os Votos que, visto ser o
Réu tão habituado à horrenda e nefanda torpeza de sodomia, e constar e
1095
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 02552, fl. 8-11.
1096
Salvador Barbosa confessou ainda ter praticado molícies e tentado consumar o nefando com Antônio
Paes e Antônio de Andrade. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11208, fl. 7-10.
1097
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 08473, fl. 8v.
459
confessar consumar o dito pecado nefando tantas vezes, com tantas pessoas, e
as mais considerações que se tiveram […].1098
Não houve dúvida entre os juízes de que o sapateiro era culpado no crime de
sodomia. Não simplesmente culpado, aliás, o réu foi percebido e declarado como muito
habituado ao pecado, tendo-o consumado muitas vezes e com muitas pessoas, o que
estava demonstrado pelas confissões e denúncias que constavam nos autos do processo.
E a isso teria se resumido a discussão do processo pelos juízes, não fosse a existência da
expressão “e as mais considerações que se tiveram”. Esta era uma expressão típica do
jargão inquisitorial, cujo sentido era resumir a discussão oral que ocorreu entre os juízes
sobre os pormenores do caso. Contudo, para o historiador, ela acaba constituindo um
limite de opacidade do processo, uma vez que emudece os juízes. Teria a questão da
possível loucura do réu sido discutida pelos juízes? Nunca saberemos com certeza,
podemos apenas inferir que, caso esse ponto tenha sido levantado, a decisão final foi de
que ele não era louco, sendo, por conseguinte, penalmente imputável.
De fato, o sapateiro André Lessa não foi considerado incapaz, visto que foi
sentenciado e degredado. Mesmo na hipótese de os juízes terem acreditado no seu relato
de loucura, no momento do processo, ele se mostrou lúcido e capaz, bem como na maioria
das vezes em que praticou a sodomia. Assim, ainda que ele não fosse, aos olhos
contemporâneos, plenamente são do juízo, ao olhar do Antigo Regime português, ele o
era de modo suficiente.
1098
“Foraõ Vistos Estes Autos Em Mesa E Pareçeo / a todos os Votos que Visto Ser o Reo tã habituado a /
horrẽda E nefanda torpeza de sodomia, E cõStar E con / feSsar cõSumar o dito peccado neffãdo tantas
ueSes / cõ tantas peSsoas, E as mais cõSideraçoῖs que Se tiueraõ [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de
Lisboa, processo 08473, fl. 31.
1099
André de Freitas Lesa foi condenado a servir sem soldo por dez anos na galés do reino e a penitências
espirituais. João Freire foi condenado a dois anos de degredo nas galés e a penitências espirituais. Jorge de
Sousa foi condenado a degredo de cinco anos para o reino de Angola e penitências espirituais. Diogo
Henrique foi condenado a degredo de três anos nas galés do reino e a cumprir penitências espirituais.
Finalmente, Salvador Barbosa foi degredado por três anos para o reino de Angola e obrigado a cumprir
penitências espirituais.
460
1100
HESPANHA. Imbecilitas, p. 95-96.
1101
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01717.
461
manter uma relação direta com Deus. Ademais, criticava a Inquisição. Por todas essas
práticas discursivas e não discursivas, foi preso pela Inquisição de Cuenca, no reino da
Espanha. Schwartz julga que, fosse Bartolomé Sánchez um converso (isto é, cristão
novo), teria fatalmente sofrido as penas mais graves, porém, como era cristão-velho, os
inquisidores usaram mais de persuasão do que de violência supliciante para com ele.
Bartolomé Sánchez chegou a ser libertado, após professar arrependimento. Contudo,
reincidiu nas mesmas culpas (voltou a delirar, segundo Schwartz) e tornou a ser preso,
sob denúncia de luteranismo. Ainda assim, não foi condenado, porque, diferentemente do
que ocorrera no caso de André de Freitas Lessa, os inquisidores espanhóis acreditaram na
verdade de sua loucura, transferindo-o, consequentemente, para outra instituição
disciplinar, um manicômio.1102 Vemos, pois, que a loucura poderia sim ser uma categoria
de irresponsabilidade penal no âmbito do foro inquisitorial. Ainda que as definições de
quem seria sujeitado como louco ou como pecador/criminoso fossem tênues e imprecisas
na Época Moderna.1103
1102
O autor conclui sua análise do caso de Bartolomé Sánchez assinalando que, embora ele tenha sido
suspeito de heresia e diagnosticado como louco, suas crenças e comportamentos eram comuns às culturas
populares ibéricas da Época Moderna, as quais a Igreja da Contrarreforma tinha dificuldades em normatizar.
SCWARTZ. Cada um na sua lei, p. 49-50.
1103
Entre os séculos XVI e XVIII, as relações entre a loucura e outras instâncias de não-conformidade ou
não-adequação social foram estreitadas em algumas instituições disciplinares, como os hospitais e
manicômios, no contexto do grande internamento. Através de um processo de sujeição/subjetivação,
ocorreu a criação de novas figuras do estranho e do bizarro, a partir de personagens conhecidos e, até então,
familiares às culturas populares - o louco entre eles, mas também os vadios, os sodomitas, as prostitutas.
Em um novo entrelaçamento da medicina e da moral, uma nova forma de culpa foi atribuída às
transgressões da carne, somando-se à culpa jurídica do pecado (que de forma alguma arrefeceu),
recuperando o imperativo ascético bastante antigo da mortificação da carne. Tais desdobramentos, contudo,
no que tocavam a sodomia, como uma categoria possível de subjetivação homoerótica (mas não somente),
ainda não se faziam presentes em nosso recorte de pesquisa, o Império ultramarino português durante a
primeira modernidade. FOUCAULT. História da loucura, p. 79-110.
462
não como uma identidade substancial de seu ser. A sodomia continuava sendo
experimentada mais como um acidente, do que como uma substância (resgatando, ainda,
a definição tomista). A necessidade de os réus serem considerados capazes e responsáveis
pelo ato sodomítico que praticassem ratifica ainda mais essa compreensão do fenômeno.
1104
Luiz Mott relata que festas semelhantes ocorriam em várias outras casas, até mesmo de alguns padres,
em Lisboa na mesma época. Eram verdadeiros pagodes de sodomitas, e todos despertaram a curiosidade e
a repulsa dos vizinhos. MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais,
p. 135-136.
1105
O dicionarista esclarece ainda que galhofear com alguém tinha o sentido de zombaria. BLUTEAU,
Raphael. Galhofa. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico,
architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 5, p. 71. Disponível
em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/galhofa. Último acesso em out.2020. O dicionário
Priberam, contemporâneo, dá um sentido similar para galhofa, como risota, escárnio, troça, festa alegre e
ruidosa, mas também como espécie de bolo de farinha e ovos ou como peixe de Portugal, do gênero múgil.
"Galhofa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/galhofa [consultado em 24.dez.2019].
463
do medo, todos os cristãos a delatarem os pecados de seu próximo (ainda mais um pecado
gravíssimo e que era entendido como tendo terríveis consequências para a coletividade),
podemos atribuir a vontade de saber de Maria Pacheca ao cumprimento de seu dever
cristão, como uma injunção das relações de poder (normalizadoras) do dispositivo da
carne.1106
Colocando-se sobre esse buraco, ela, sua filha Mariana Cabral Pacheca e sua
criada Caterina da Silva viram muito do que acontecia na casa do carpinteiro. Através
desse providencial buraco, as três mulheres penetraram o espaço privado (era, afinal, tão
privado assim? Como foi visto, não o era nem como espaço do segredo, nem como da
intimidade) de Pedro Ferreira. A partir da espionagem dessas três mulheres, podem ser
traçadas considerações em duas direções. Em primeiro lugar, há que se considerar a
dinâmica histórica do que, no período abordado, era entendido como público ou como
privado. Em segundo lugar, é importante investigar como as festas dos rapazes na casa
de Pedro Ferreira se relacionavam a modos de sociabilidade característicos de uma cultura
popular na Idade Moderna. Finalmente, será o caso de perguntar onde e como esses dois
direcionamentos da análise se interceptam.
Nas sociedades de Antigo Regime no Período Moderno, não existia uma definição
clara entre o que, depois, se constituiria como uma esfera pública e uma esfera privada da
vida dos indivíduos. Isso porque ambas estavam em processo de constituição, daí a fluidez
e a indistinção, existente nesse momento, entre espaços e práticas que, depois, se
mostrarão como típicos do público ou do privado. Tal fluidez é atestada pelo sentido
duplo presente na dicotomia público-privado, conforme apresentados nos dicionários
portugueses do século XVIII. O dicionário do padre Bluteau apresenta a seguinte
definição de público:
Publico: Commu. Publicus, a, um. Communis, is. Mase. & Fem. ne, is. Neut.
He fama publica, que fizestes isto. Fama est, ou fama fert, te id fecisse. Cic.
Como he fama publica. Ut fama est, ut hominum fama est. Plaut. Isto he cousa
publica, sabida de todos. Pervagata res est, & vulgaris. Cic. Res lippis, ac
tonsoribus nota est. Horat. Res est trita, communis, & pervagata. Cis. Res
nota, ataque apud omnes pervulgata. Cic.
O publico. Os Cidadãos, a gente de qualquer lugar. O commum dos homens.
O bem publico, o bem do publico. Bonum publicum, i. Neut. A minha chegada
não foy custosa, nem deu trabalho algũ, nem ao publico, nem ao particular.
Nemini meus adventus labori, aut sumptui, neque publicè, neque privatim fuit.
Ctc. O dinheyro do publico. Pecunia publica, AEs publicum. e AErarium, ii.
Neut. Cic. Dar hum livro ao publico. Librum edere. Suet. Vid. Luz. Dar hum
1106
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 224; BENNASSAR. Inquisición española, p. 94-125.
464
livro à luz. Se isto se fizer assim, será para o bem publico. Hoc si ita fiat,
publico fiet bono. Plaut.
Em publico. Naõ apparecer em publico. Publico carere. Cic. Publico
abstinere. Suet. Tacit Naõ se atreve apparecer em publico. In publico esse non
audet. Cic. Bem vos lembra, que dizia Artemidoro, que todos os dias
banqueteava Apronio, naõ só em publico, mas tambem a custa do publico.
Memoriâ tenetis Artemidorũ dicere, Apronium quotidie solitum esse, nom
modò in publico, sed etiam de publico convivari. Cic. Tambem se diz,
Sumptibus publicis. Fallar em publico. Ad pozpulum dicere. Cic.
Mulher publica. Meretriz, Magana. Vid. nos seus lugares. Ovidio chama às
moças de má vida. Vulgares puelle. Esta mulher he mulher publica. Se omnibus
per vulgat mulier. Cic.1107
Público, adj. Do comum, do uso de todos; v.g. as ruas da cidade são públicas.
§ Mulher pública, meretriz. § O público, a gente de qualquer terra. § Em
público, perante muita gente; nas ruas; nos teatros, e lugares de concurso; v.g.
não aparece em público. § Direito público, V. Direito. § Tirar a público uma
obra, publicá-la. Arte de furtar.1108
Nas definições apresentadas pelos dois dicionaristas, vemos que dois sentidos para
o conceito de público se fazem presentes. De um lado, era público aquilo que era
conhecido por todos. Um comportamento público era aquele que conferia ao seu ator uma
fama por tê-lo desempenhado, uma fama de que todos sabiam, portanto, pública. Assim,
era público também o que aparecia perante todos, o que se punha às vistas de todas as
pessoas, do público. Por outro lado, era público o que fosse comum a todos os homens, a
todos os cidadãos, de modo que o bem público dizia do bem da coletividade, não do
indivíduo particular. Nesse segundo sentido, encaixa-se a definição da prostituta como
uma mulher pública, uma vez que ela era entendida, por definição, como uma
propriedade comum a todos, não apenas de um particular, que seria o marido.
Privado: Particular. Huma pessoa privada, que não exerce officio algum
publico, que trata só da sua familia, & dos seus entereces domesticos. Privatus,
ou homo privatus. Cic. A vida privada, a que se passa em particular, sem
officio publico. Vita privata, ae Fem. Cic. (Naõ se contentava de dar leys ao
1107
BLUTEAU, Raphael. Público. In: BLUTEAU, Raphael Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 6, p.
817. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/p%C3%BAblico. Acesso em
out.2020.
1108
SILVA, Antonio de Moraes. Público. In: SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua
portugueza. Recompilado dos vocabulários impressos até agora, e nesta segunda edição novamente
emendado e muito acrescentado. V. 2. Lisboa: Typographia Lacerdina, [1789] 1813, p. 524. Disponível em
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/p%C3%BAblico. Acesso em out.2020.
465
Imperio, mas tambem à vida Privada. Duarte Ribeyr. Vida da Princesa Theod.
pag. 153.)
Privado. Opposto a publico. Feyto em presença de pouca gente. Exame
privado. Examen privatum (O Reytor nos exames Privados terá toda a
jurisdiçaõ necessaria para quietação, & concerto delles. Estatut. da Universid.
pag. 57.)1109
Privado, por conseguinte, era aquilo que não dizia respeito à coletividade, uma
vez que a pessoa privada era aquela que não exercia qualquer ofício público. Privado
resvalava para o sentido de particular, algo que era singular, específico, distinto a alguém
individualmente. Aqui, público parece se referir também ao Estado, como instituição
voltada para a manutenção do bem comum (o privado sendo o que se opunha à ideia de
res publica, da coisa pública, isto é, de todos). A vida privada era aquela afastada dos
ofícios públicos, que tinha em mente apenas os seus interesses particulares. Mas não
apenas isso, pois também era privado o que não ocorresse na presença de muita gente, o
que não aparecesse às vistas do público. Nesse segundo sentido, privado tinha a ver com
o segredo, com o que ocorria no interior, em oposição ao público, que ocorria na rua.
1109
BLUTEAU, Raphael. Privado. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 6, p.
750. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/privado. Acesso em 24.dez.2019.
1110
SILVA, Antonio de Moraes. Particular, privadamente, privado. In: SILVA, Antonio de Moraes.
Diccionario da lingua portugueza. Recompilado dos vocabulários impressos até agora, e nesta segunda
edição novamente emendado e muito acrescentado. V. 2. Lisboa: Typographia Lacerdina, [1789] 1813, p.
402; 524. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/privado. Acesso em
28.agos.2020.
466
Gonçalo Monteiro, uma dupla oposição: uma, entre o comum e o específico (particular),
outra, entre o conhecido e o oculto (secreto).1111 Essa dupla oposição foi também apontada
por Jeff Weintraub como os dois modos fundamentais pelos quais as distinções entre o
privado e o público foram pensadas por diversas correntes do pensamento político
ocidental:
De modo que nos indagamos até que ponto e de que forma as práticas sodomíticas,
e as subjetividades que, concomitantemente, aí se formavam, eram privadas. Ou melhor,
até que ponto conseguiam os sodomitas manter-se clandestinos (uma necessidade para
escapar aos tentáculos interpeladores do Santo Ofício) em sociedades em que as barreiras
1111
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Introdução. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. (Org.). História da vida
privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2011, p. 8.
1112
WEINTRAUB, Jeff. The theory and politics of the Public/Private Distinction. In: WEINTRAUB, Jeff;
KUMAR, Krishan. (Orgs.). Public and private in thought and practice. Chicago: University of Chicago
Press, 1997, p. 4-5.
1113
ARIÈS, Philippe. Por uma história da vida privada. In: CHARTIER, Roger. (Org.). História da vida
privada 3. Da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, p. 21-25.
467
entre o público (o conhecido de todos, comum e/ou indistinto) e o privado eram débeis e
relativas? De um lado, as práticas sodomíticas nem sempre aconteciam dentro de casa ou
mesmo dentro de quartos, em camas (na América portuguesa, a mera ocorrência de camas
em cada casa não era garantida). Como veremos logo a seguir, a sodomia podia se dar em
diferentes lugares, mesmo nas ruas. A casa, como lugar por excelência da família, não
garantia sempre o ocultamento necessário a essas práticas proibidas. Desse modo, o lugar
do privado (como oculto, segredo, íntimo) podia se inverter, temporariamente,
provisoriamente, com o do público.
Phillipe Ariès bem notara que, nas sociedades de Antigo Regime, os lugares de
intimidade eram precários, as comunidades próximas que enquadravam cada indivíduo (a
comunidade rural, a pequena cidade, o bairro ou vizinhança) eram meios em que todos se
vigiavam uns aos outros (pois todos podiam se conhecer em algum nível).1114 Indo além,
Fernando Novais, apontou como, na América portuguesa (e talvez possa se pensar os
mesmos para as outras colônias portuguesas), havia uma imbricação dessas esferas, elas
não apenas se confundiam, na vida cotidiana, como estavam ligadas, articuladas e
invertidas.1115
1114
ARIÈS. Por uma história da vida privada, p. 10.
1115
NOVAIS. Condições de Privacidade na colônia, p. 14.
1116
Michel de Certeau fala de um processo de privatização e interiorização da vida cristã, uma retirada da
ordem política, durante o Antigo Regime. DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de
Lourdes Menezes. Rev. tec. Arno Vogel. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 170.
1117
ARIÈS. Por uma história da vida privada, p. 11-13.
468
novo escalonamento entre o que devia ser escondido (privado) e o que deveria ser
mostrado (público), dizendo de uma nova atitude em relação aos corpos, sobre os quais
passou a incidir uma reserva crescente. A segunda refere-se a uma vontade crescente de
relatar-se a si mesmo como forma de autoconhecimento (acompanhando o crescimento
da alfabetização na Europa). A terceira é a formação do gosto pela solidão como outra
oportunidade de autoconhecimento. A quarta refere-se às novas formas de amizade, que
agora aconteciam como um sentimento polido em um relacionamento de tranquila
fidelidade. A quinta, como confluência das categorias anteriores, diz da experiência nova
do cotidiano como exteriorização de si mesmo, exigindo refinamentos rotineiros, que
levam à elaboração do valor de gosto (ou bom gosto); enfim, uma nova arte de viver.
Finalmente, a sexta categoria é a transformação sofrida pela casa, como reflexo das novas
formas de privacidade.1118
1118
ARIÈS. Por uma história da vida privada, p. 14-18.
1119
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de
corte. Trad. Pedro Süssekind; prefácio Roger Chartier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 97-131.
1120
ARIÈS. Por uma história da vida privada, p. 21-24.
469
1121
NOVAIS. Condições de Privacidade na colônia, p. 14-15.
1122
NOVAIS. Condições de Privacidade na colônia, p. 14-39.
470
indistintas pela esfera da privacidade, que foi, assim, se consolidando como um domínio
separado da vida das pessoas.
Na Parte II, nós investigamos como o controle da função anal ativa dos sodomitas
foi uma dimensão importante dos processos de reforma (normatização) social
empreendidos em larga escala nas sociedades ocidentais no início da modernidade. O
controle da função anal, cuja atividade era um dos traços marcantes das culturas populares
no período, do que vimos alguns traços em confissões e processos inquisitoriais, se inseria
também no processo de constituição da fronteira entre o privado (o secreto, individual,
que não deveria ser mostrado a todos) e o público (o que poderia ser apresentado a todos,
o visível, aberto e coletivo), uma vez que, como mostrou o historiador Jacques Revel, a
normatização e a uniformização das manifestações corporais formaram uma das linhas
do processo de constituição de uma esfera de intimidade e privacidade distinta durante o
Antigo Regime.1123 Assim, as pessoas foram interpeladas a se civilizarem, isto é,
adotarem a civilidade.1124 Isso se traduzia em injunções para que o indivíduo aprendesse
a separar em si mesmo, nos seus comportamentos (como em suas práticas eróticas) e em
seu próprio corpo, o que, doravante, poderia ser público (classificado como civilizado, de
civilité, vindo de civilitas, compartilhável com todos, moralmente bom), e o que deveria
ser deslocado para o privado (classificado como particular, secreto, moralmente ruim). O
ânus, as funções do baixo corporal (intestinais, excrementícias, sexuais, reprodutivas)
foram relegadas à privacidade (ao secreto) e, por conseguinte, passaram a ser
consideradas, tacitamente, como moralmente ruins.1125 Elias descreveu assim a
construção do sentimento de pudor nas sociedades ocidentais.1126 As expressões de
1123
REVEL. Os usos da civilidade, p. 169-185.
1124
Elias traçou a sociogênese do conceito de civilização na história francesa, o que nos é útil para pensar
a noção de civilidade. Em resumo, a ideia francesa de civilisation resultou de um longo processo de
incorporação, pelas camadas burguesas, de algumas práticas cortesãs da nobreza de corte, absorvendo seu
ethos cortesão e, aos poucos, assumindo-o como um caráter geral. "As convenções de estilo, as formas de
intercâmbio social, o controle das emoções, a estima pela cortesia, a importância da boa fala e da conversa.
a eloquência da linguagem e muito mais –- tudo isto é inicialmente formado na França dentro da sociedade
de corte, e depois, gradualmente, passa de caráter social para nacional". ELIAS. O processo civilizador.
Volume 1, p. 49-50. Assim, a civilidade defendida e disseminada por Erasmo está na genealogia da noção
de civilização, por referir a uma prática de normatividade dos comportamentos das pessoas, segundo um
preceito de otimização das comunicações na esfera pública. "A verdadeira civilidade consiste em livrar-se
de todos os idiotismos e reivindicar somente as expressões corporais que são reconhecíveis e aceitáveis
para o maior número. Pois seu único objetivo é unir mais os homens". REVEL. Os usos da civilidade, p.
175.
1125
REVEL. Os usos da civilidade, p. 186.
1126
"O cuidado e a seriedade impertubáveis com que são publicamente discutidas questões que mais tarde
tornaram-se altamente privadas e rigorosamente proibidas em sociedade deixa bem clara a mudança da
fronteira do embaraço. O fato de que sentimentos de vergonha são mencionados frequentemente e
explicitamente na discussão mostra bem a diferença no padrão". ELIAS. O processo civilizador, p. 131.
471
1127
REVEL. Os usos da civilidade, p. 191.
1128
RANUM. Os refúgios da intimidade, p. 211-262.
1129
OLIVAL, Fernanda. Os lugares e espaços do privado nos grupos populares e intermédios. In:
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. (Org.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa:
Círculo de Leitores; Temas e Debates, 2011, p. 244-275.
1130
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e. (Org.). História
da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 83-154.
472
1131
Os relatos de Maria Pacheca Cabral, de sua filha Mariana Cabral Pacheca e de sua criada Caterina da
Silva compõem, originalmente, o processo inquisitorial de Pedro Ferreira. Foram copiados também no
processo de João Rodrigues. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00164, DGA/TT-Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 07346.
1132
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 15-24.
1133
"Na Espanha, como em outros lugares, os reformadores alcançaram de fato muitíssimo menos do que
queriam. Também pode-se dizer que alcançaram mais do que queriam, no sentido de que o movimento de
reforma teve consequências importantes que eles não pretendiam nem esperavam. A mais óbvia foi o
aumento da separação entre a grande e a pequena tradição. […] As reformas afetaram mais rápida e
cabalmente a minoria culta do que as outras pessoas, e assim acentuaram e aprofundaram a separação dessa
minoria em relação às tradições populares". BURKE. Cultura popular na Idade Moderna, p. 323.
1134
BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 1-50.
473
civilidade da cultura letrada oficial.1135 Sua espinha dorsal era o princípio carnavalesco,
cujos elementos eram nela permanentes, dando a comicidade que era a maior
característica das culturas populares, como já tivemos a oportunidade de estudar. Em suas
práticas, festas e galhofas, as culturas populares corroíam as hierarquias e distâncias
oficiais, acalmavam o medo e o terror, transformando-os em cômicas formas de grotesco.
O medo, como temos visto, era uma poderosa arma de disciplina e interpelação de
instituições oficiais, como o Santo Ofício. No terreno das culturas populares, ele era
sempre vencido pelo riso.1136
No caso dos praticantes da sodomia, tal circulação também parece ter existido.
Ainda no tempo da segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil, em 1618, o ex-
governador da Bahia Diogo Botelho foi denunciado por seu antigo pajem Fernão
Rodrigues.1137 Este relatou ao visitador Marcos Teixeira detalhes de orgias que o então
governador promovia em suas moradas na cidade da Bahia e em Lisboa. O pajem, que
tinha, no tempo em que serviu a Diogo Botelho, por volta de onze anos de idade, foi um
favorito do então governador, que o mimava e enchia de presentes. Na condição de
favorito, tomou parte de muitos encontros eróticos com o então governador e outros
homens, em várias ocasiões do dia, mas particularmente após os jantares e as ceias.1138
Vê-se que a prática de se reunirem homens para divertirem-se com atos homoeróticos e
sodomíticos não se restringia a um grupo social, ao contrário, acontecia entre grupos da
1135
De Certeau mostra como, no século XVIII, a divisão entre elite e povo (ou popular) se deu nos termos
de uma divisão entre o que seria racional e o que pôde ser deslocado para o campo da superstição ou da
selvageria. A cultura da elite estaria no primeiro campo, enquanto a popular, no segundo. Essa clivagem
teria se operado também no campo da religião cristã. Assim, o cristianismo popular foi sendo concebido,
pela cultura erudita, como folclore, na medida que escapava aos esforços de disciplina das Igrejas. Por outro
lado, nas situações em que o cristianismo e as suas igrejas participavam das práticas de poder, foi possível
à religião cristã tomar parte, de algum modo, do processo de secularização em curso entre os séculos XVIII
e XIX, ratificando uma racionalidade que, não obstante, não mais definia e que, progressivamente, invertia
os princípios da religião. DE CERTEAU. A escrita da história, p. 187-8.
1136
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 3-9; 30-41.
1137
É interessante notar que Diogo Botelho não foi o único governador da Bahia relacionado ao pecado
nefando. No século XVII, Gregório de Matos fez crítica ferina ao governador-geral Antônio Luiz Gonçalves
da Câmara Coutinho (1690-1694), acusando-o, entre outras práticas, de sodomita, no poema Apologia
cavillosa em defença do mesmo governador Antonio Luiz. Os versos sobre a sodomia do governador
aparecem ao fim do poema: “Valha o diabo a vossa alma / cabelos de colomim, / mandou-vos El-Rei por
acaso / desgovernar os quadris? / Mandou-vos acaso El-Rei / com as fêmeas não dormir, / senão com vosso
criado / que é bomba dos vossos rins? / No mais vos levanta falsos / todo este povo civil / mas isto do vosso
corpo / vo-lo levanta o Luís. / Mandou-vos El-Rei acaso / a Sodoma, ou ao Brasil? / Se não viveis em Judá,
/ quem vos meteu a Rabi? / Mandou-vos El-Rei que fosse / vosso pajem meretriz, / madrasta de vossos
filhos, / como dizem por aí? / Ora ide-vos co diabo, / que já não quero acudir / por um Tucano, um Fanchono,
/ um Sodoma, um vilão ruim”. MATOS, Gregório de. Obra poética. Edição James Amado. 5ª ed. Rio de
Janeiro: Record, 2010, p. 180-182.
1138
SEGUNDA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos
Teixeira. Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620. Anais do Museu Paulista, tomo XVII.
Introdução de Eduardo D’Oliveira França e Sônia Siqueira, p. 380-3884.
474
alta nobreza portuguesa, como Diogo Botelho, e entre populares e artesãos, como Pedro
Ferreira, sugerindo a possibilidade de circulação dessas práticas de festas homoeróticas,
o que também é corroborado pelas descrições feitas por Mott das chamadas Danças dos
fanchonos, a que fizemos referência no capítulo anterior, e outras festas sodomíticas em
Lisboa no século XVII.1139
Paralelamente, cabe pensar como a prática sodomítica do governador da Bahia
cruzava-se com a definição do público como coletividade, ligada à constituição do
aparelho estatal, e do privado, particular, como algo no nível da intimidade. Diogo
Botelho usava suas moradas na cidade da Bahia e em Lisboa como locais para realização
de seus prazeres particulares, ainda que alguns desses lugares tivessem funções de
governo e de administração colonial. Por exemplo, as duas casas em que morou na Bahia
ficavam no terreiro do Colégio, sendo que uma delas era justamente chamada de "casa
del Rei" e abrigava, em 1618, o Tribunal da Relação da Bahia. Detectamos, por
conseguinte, certa fluidez entre as esferas pública e privada no uso que o governador e
seus criados faziam de um espaço que, a princípio, era do público. 1140 Fluidez que não
deixa de ser relativa, uma vez que várias das práticas sodomíticas aconteciam na câmara
de dormir do governador Diogo Botelho, um espaço de maior privacidade mesmo na sede
do governo colonial. A fluidez entre as esferas era ademais ressaltada pelo uso privatista
da coisa pública que identificamos no relacionamento de Diogo Botelho com alguns de
seus amantes,1141 a maioria dos quais eram seus criados, tendo uns recebidos cargos na
1139
"Durante mais de dezesseis anos seguidos este sacerdote, capelão em São Miguel Aquém do Castelo,
acolheu dezenas de ganimedes que se divertiam em sua casa jogando tômbolas, bebendo, fornicando e
degustando guisados de pombas, que numerosas eram criadas no quintal. Às vezes, faziam ruidosas festas,
às quais os vizinhos chamavam de ‘grandes pagodes’. A algazarra era tanta que ‘da janela os fanchonos
desacatavam quem passava’". MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos
inquisitoriais, p. 134.
1140
Lembremos como Elias explicou que as residências da nobreza cortesã francesa, hôtel ou palais,
replicavam em menor escala o caráter mais público, nos dois sentidos de coletivo e comum, da casa do rei,
reunindo ali pequenas sociedades, que eram como cortes em miniatura. As casas da nobreza eram
guarnecidas por uma multidão de criados, que se diferenciavam entre si segundo a hierarquia dos serviços
que prestavam. Elias mostra que mesmo os aposentos dos senhores, ainda menos os do rei, não eram
totalmente privados, no nosso sentido contemporâneo, ou melhor, a barreira da esfera privada ainda não
sequestrara e isolara totalmente os dormitórios da nobreza. Os aposentos de dormir da nobreza, chamados
apparteents privés, eram frequentados regularmente pela criadagem, para tarefas de cuidados com o quarto
e com os senhores, que se acumulava na antecâmara, onde esperavam para servir aos nobres, tal como esses
esperavam na antecâmara real para servir ao monarca. Ressaltemos que, para a nobreza do Antigo Regime,
os criados, os populares, mal chegavam a ser humanos, naturalizando as desigualdades sociais, de modo
que não devemos nos surpreender com um relato como o de Fernão Rodrigues, segundo o qual todos os
criados do governador da Bahia sabiam de suas práticas sodomíticas. O governador provavelmente pouco
se importava com eles. ELIAS. A sociedade de corte, p. 66-73.
1141
Vemos aqui uma instância do traço patrimonialista que caracterizava a estrutura administrativa do
império português. Segundo Villalta: "Absolutista nos termos aqui postos, a monarquia portuguesa era
também patrimonialista. Assim, a organização do poder político pelo soberano, como ensina Max Weber,
475
dava-se de forma análoga ao seu poder doméstico, confundindo-se o público com o privado, de tal sorte
que o patrimônio público era tomado como propriedade pessoal do governante, com o que riquezas, bens
sociais, cargos e direitos eram distribuídos por ele como sua propriedade pessoal. Nessas condições, havia
um quadro administrativo pessoal do monarca, constituído por servidores (não por funcionários), regidos
pela ética do "jeitinho", o que combinava com a falta de competências fixadas segundo regras objetivas, de
hierarquia racional definida, de um sistema de nomeações e de promoções reguladas, de formação
profissional, de salário fixo ou pago em dinheiro". VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo
Regime português (1788-1822). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016, p. 28.
1142
O confessante Fernão Rodrigues de Souza admitiu que recebia muitos mimos e presentes do
governador. Relatou ainda que Diogo da Silva, outro criado e também amante dele e do governador,
recebera o cargo de almoxarife na cidade da Bahia, assim como Agostinho Ferreira, mais um criado e
amante do governador, tivera seu casamento armado por Diogo Botelho, que lhe deu ainda "muitos mil
cruzados". SEGUNDA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado
Marcos Teixeira, p. 380-2.
1143
BLUTEAU, Raphael. Deshonestidade. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino:
aulico, anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, p.
147. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/deshonestidade. Acesso em out.2020.
1144
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00164, fl. 4-13.
476
conforme discutidos por Carlo Ginzburg e Ronaldo Vainfas.1145 Se não era uma
preocupação central dos inquisidores documentar os pormenores das sociabilidades
homoeróticas, por que alguns processos continham essas informações? Podemos pensar
uma resposta em dois níveis. Em um mais subterrâneo, não seria impossível pensarmos
que um ocasional detalhamento das circunstâncias e das práticas sodomíticas sugeriria
uma dilatação da vontade de saber que movia os inquisidores, cobiçosos de adentrar e
normatizar as almas dos pecadores sodomitas em todas as suas dimensões, para a salvação
(sujeição e subjetivação) mais completa dos criminosos e deles mesmos, pois a obrigação
pastoral implicava o pastor na condenação de suas ovelhas.1146 Ademais, a extorsão de
confissões por vezes detalhadas também poderia gerar algum prazer ao inquisidor,
configurando algo parecido com as espirais perpétuas do poder e do prazer descritas por
Foucault.1147 Há prazer no exercício de um poder que interroga: teriam os inquisidores
sentido o aguilhão da carne enquanto ouviam e ditavam confissões? Em um segundo
nível, mais evidente no funcionamento jurídico cotidiano do tribunal, a resposta está na
casuística de cada processo. No caso em questão, a resposta entrelaça-se também com a
problemática do público e do privado.
As festas dos rapazes, que Maria Pacheca Cabral, sua filha e sua criada
espreitavam, deveriam ter sido acontecimentos privados, secretos. Dentro da dupla
dicotomia subjacente à oposição público e privado (o comum e o específico e entre o
conhecido e o oculto, como visto acima),1148 esses encontros de moços com gosto pelo
homoerotismo eram pensados e vividos por eles como secretos, algo que eles não fariam
daquela maneira na rua, diante de todas as outras pessoas. Porém, vê-se aí a precariedade
do espaço suposto como privado no Antigo Regime, como já notara Phillipe Ariès.1149
Mesmo pretendendo-se secretas e ocultas, essas festas não escaparam ao olhar e ao
julgamento do público, ademais, açulado pelo Santo Ofício para detectar e delatar
transgressões às leis e normas do discurso da carne. Quão mais forte a curiosidade das
vizinhas, o que se pode medir pelo nível de detalhes que gravaram na memória e relataram
1145
GINZBURG. O Inquisidor como antropólogo, p. 9-21. GINZBURG. O queijo e os vermes, p. 11-26.
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista.
In: SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 242-243.
1146
FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 172-3.
1147
FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 48-9.
1148
MONTEIRO. Introdução, p. 8-9.
1149
ARIÈS. Por uma história da vida privada, p. 10.
477
na mesa inquisitorial, mais intensos podemos supor os sentimentos de medo e culpa que
sentiam como sujeitos carnais.
Em primeiro lugar, a vizinha estranhou o movimento de pessoas (sempre homens
jovens, mulatos, escravos, estudantes, soldados, artesãos, vadios) na porta da casa de
Pedro Ferreira. Ainda que as festas transcorressem a portas fechadas, o limiar entre a
porta e a rua, nos momentos de entrada e saída da casa, foi o bastante para criar ocasião
de suspeitas. Depois, Maria Pacheca Cabral usou das debilidades das construções do
período para romper ainda mais o frágil véu de privacidade da casa de Pedro Ferreira,
usando do já comentando buraco entre o chão do seu quarto de dormir e o teto da sala do
sobredito. Foi nessa posição que ela pôde ver (com espanto, temor ou excitação? Ou todas
as três?) as brincadeiras eróticas que ali se davam. A privacidade das festas logo escoou,
pois Maria Pacheca Cabral não tardou em contar todo o caso à filha e à criada. E depois
a um padre, em confissão, e, finalmente ao inquisidor. Nesse momento, a festa dos
sodomitas já passara ao público, no sentido de que se tornaram conhecidas por terceiros,
e dali, apesar do segredo inquisitorial, atravessou os séculos até o presente.
Contudo, nem todos os segredos dos sodomitas reunidos ao redor de Pedro
Ferreira, as vizinhas curiosas conseguiram devassar. Do seu ponto de espreita, as
mulheres conseguiam espiar a sala e a entrada do quarto de dormir (onde havia uma cama)
do carpinteiro, desde que houvesse uma candeia iluminando o quarto à noite. Devido a
essas limitações espaciais e visuais, nenhuma das três denunciantes chegou a ver uma
cena de sexo com penetração anal entre qualquer dos presentes às festas de Pedro Ferreira.
O mais que elas conseguiram ver e ouvir foram casais de rapazes entrando no quarto (que,
aliás, era um aposento sem janelas), de onde escutavam gemidos, palavras eróticas e sons
de corpos batendo um contra o outro (e talvez da cama arrastando-se com a força dos
corpos?). Ou uma vez em que a criada Caterina viu Pedro Ferreira abraçando-se,
beijando-se e masturbando-se reciprocamente com um soldado chamado Vicente, até
ambos molharem o chão. A própria existência de um cômodo separado do restante da
habitação por uma porta e com uma função específica (o sono e o sexo) aponta para a
ocorrência, ali, de um precário espaço de intimidade.1150
1150
A historiadora Fernanda Olival registra que a existência de um cômodo separado, por um vão, porta ou
cortina, e especializado para dormir não era o mais comum entre os grupos populares e intermédios da
sociedade portuguesa. Também a posse de uma cama não era amplamente difundida, sendo mais comum
existir um colchão (de palha, pena, lã ou outros materiais) que, à noite, era posto sobre o chão, ou sobre
esteiras e mantas, e, durante o dia, guardado numa arca. Esses dados ressaltam, novamente, a precariedade
dos parcos espaços de intimidade existentes nas sociedades de Antigo Regime, principalmente fora dos
grupos de elite. OLIVAL. Os lugares e espaços do privado nos grupos populares e intermédios, p. 254-256.
478
Dessa forma, nenhuma delas pôde dar testemunho, no Santo Ofício, sobre atos
sodomíticos consumados entre quaisquer dos rapazes. É isso que explica o detalhamento
com que seus depoimentos foram transcritos nos autos dos processos, pois o máximo que
eles demonstravam eram indícios (ainda que fortes) de que a sodomia poderia ter ali
acontecido. Essas sugestões do pecado nefando foram importantes para justificar que a
Inquisição mandasse prender algumas das pessoas citadas (e mesmo esta decisão não foi
unânime entre os inquisidores, acabando por ser assentada pelo Conselho Geral), e
instaurasse processos contra elas. Mas, por si próprios, os indícios não eram suficientes
para a condenação.1151
De fato, Pedro Ferrreira não foi condenado. A muito contragosto, os inquisidores
tiveram que absolvê-lo das acusações de sodomia, pois, mesmo após meses de sua prisão,
nenhuma pessoa apresentou-se para denunciá-lo de atos nefandos consumados. Os
inquisidores propositalmente pausaram seu processo entre fevereiro e maio de 1662, na
esperança de que uma denúncia mais contundente aparecesse. No fim, o jovem carpinteiro
foi solto dos cárceres secretos, após assinar termo de segredo.1152
O exato oposto se deu com o mulato João Rodrigues, escravo de Manuel Caldeira
de Castro e conviva frequente das festas de Pedro Ferreira. Ademais dos indícios
fornecidos pelas três vizinhas, ele foi denunciado por dois homens, Manoel de Matos e
Francisco Mouro. Esses dois falaram diretamente do sexo anal que tiveram com João
Rodrigues, configurando provas fortes do pecado de sodomia. Por essa razão, os
inquisidores levaram o seu processo adiante, acusaram-no e admoestaram-no até que o
próprio mulato confessasse ter praticado a sodomia. Ou seja, fizeram valer seu poder
interpelativo, dobrando as resistências do réu até que ele produzisse um discurso de
verdade sobre si, no qual se reconhecia como culpado de sodomia, sujeitando-se e
subjetivando-se como sodomita. Com todos esses elementos em mãos, os inquisidores o
consideraram convencido e confesso no pecado nefando e como tal o condenaram. 1153
Vê-se, portanto, que os lugares e os tempos em que as pessoas praticavam a
sodomia poderiam influenciar diretamente a direção que os processos inquisitoriais
tomavam, na medida em que locais onde a barreira da privacidade fosse mais precária,
ou inexistente, poderiam permitir às testemunhas acumular e relatar mais detalhes sobre
1151
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00164, fl. 14-16.
1152
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00164, fl. 23-24.
1153
João Rodrigues foi condenado às penas de confisco de todos seus bens, a sair em auto público da fé
para ouvir sua sentença, a ser açoitado pelas ruas de Lisboa e ao degredo por tempo de cinco anos nas galés
do rei. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 07346.
479
1154
Segundo Elias, o novo sentido de pudor, que aos poucos se aprofundava nas sociedades ocidentais, agia
não só no sentido de banir alguns comportamentos do convívio social. Agia também na crescente
elaboração daqueles comportamentos que o indivíduo ainda podia exercer frente a outros, uma elaboração
que significava maior refinamento dos costumes, ou seja, dos comportamentos individuais executados
480
perante os outros, em público. Revel fala que houve, na Época Moderna, por conseguinte, um triunfo da
aparência, resultado da certeza de que o imperativo de um(a) cuidado/disciplina na apresentação de si
mesmo perante os outros era uma técnica de governo de si (e dos outros, como se vê na literatura de manais
de etiqueta que floresceu no período), importante para que a comunicação entre os pares pudesse ocorrer.
Daí que, a partir das cortes régias, foram se impondo exigências comportamentais que afetavam todos os
aspectos do cotidiano. Esse processo, aliás, se articulava, no nível da formação pedagógica das crianças,
com os processos mais largos de reformas das culturas populares, uma vez que, como escreveu Revel, "já
não se espera da criança a alegria erasmiana, mas ‘algo de grave e majestoso’, ‘certo ar de elevação e
grandeza’, ‘um ar de gravidade e sabedoria’". ELIAS. O processo civilizador, p. 65-70; REVEL. Os usos
da civilidade, p. 186-7.
481
braguilha de sua calça, apalpando seu membro viril e o convidou logo a dormirem juntos.
É preciso salientar que as expressões “dormir juntos”, “dormir com ele” ou “dormir com
ele por de trás” eram eufemismos usados nos processos inquisitoriais em lugar das
palavras populares para o sexo, consideradas impróprias pelos inquisidores. Assim, o
mulato fez uma proposta sexual direta, no meio da rua, a Manoel de Matos, que
imediatamente a aceitou. O casal não foi, porém, para uma casa ou qualquer outro lugar
que hoje poderíamos dizer que era separado (privatizado) das vistas do público de forma
rígida o suficiente a garantir a clandestinidade necessária a uma relação proscrita. Foram
os dois para uma pedreira, localizada na região chamada dos Cordões em Lisboa. Tratava-
se de um lugar aberto, logo, disponível ao trânsito comum, ou seja, aberto ao público.
Algo que acontecesse ali, a princípio, estaria às claras, às vistas de todos, não poderia ser
privado, escondido. Porém, os amantes se dirigiram para a pedreira sob a cobertura da
noite. Nessas condições, o lugar serviu para que o casal levasse a cabo seus desejos, longe
de olhos curiosos e delatores, ou seja, com condições, ainda que precárias, de privacidade.
Portanto, a pedreira, que era um local público, no sentido de que aberto e pertencente a
todos, se viu momentaneamente transformada em um espaço de alguma privacidade,
porque permitiu a manutenção de um segredo (prestou-se a preservar uma prática como
subterrânea). Ali, o mulato baixou suas calças e deitou-se de bruços no chão, enquanto
seu parceiro apenas tirou seu pênis para fora e o penetrou analmente, gozando dentro.
Consumou, assim o pecado da sodomia.1155
1155
Como foi dito, Manoel de Matos não sabia o nome do mulato com quem tivera o encontro sexual na
pedreira. Para ter certeza de que se tratava do mesmo João Rodrigues (já preso nos cárceres do Santo
Ofício), os inquisidores usaram uma interessante técnica de reconhecimento. DGA/TT-Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 07346, fl. 14-15.
1156
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10469, fl. 18-19.
482
escolheram um lugar que, à primeira vista, dir-se-ia público, mas que, à noite, ensejava
encontros sexuais furtivos. Foram então para um muro próximo à Igreja das Chagas, onde
João Rodrigues:
[…] desceu as calças e virou o traseiro para fora, e então ele confitente, com
suas calças descidas, ambos em pé, lhe meteu seu membro viril ereto por entre
as pernas do dito João, e nelas derramou semente, sendo que o persuadiu a que
ele confitente lhe metesse o membro no seu vaso traseiro, pegando-lhe para
isto com as mãos algumas vezes, posto que então não teve efeito […].1157
1157
“[...] deçeo as calças / e virou o trazeiro para fora, e entaõ elle Con- / fitente com suas calças decidas,
ambos em pee / lhe meteo seu membro viril erecto per entre as / pernas do ditto Joaõ, e nellas derramou
semente, / sendo que o persuadio a que elle Confitente lhe me / tesse o membro no seu vaso trazeiro,
pegandolhe / para isto cõ as maõs alguãs vezes, posto que entaõ / naõ teue effeito [...]”. DGA/TT-Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 07346, fl. 22.
1158
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 07346, fl. 22.
483
(produzindo um poderoso filtro cultural sobre os relatos orais), o que nos permite pensar
que os condenados talvez, em alguma medida, afetassem uma dor e um arrependimento
maior do que sentissem. Ou ainda, nos termos da teologia moral do período, seus clamores
e suas lágrimas, quem sabe, fossem resultado mais de um grande temor das penas terrenas
e infernais que os aguardavam, portanto, eram um resultado de sua atrição, do que um
verdadeiro arrependimento em virtude do amor de Deus (definição da contrição)?1159 Em
alguns processos, o historiador tem a sorte de encontrar um relato escrito desse processo
subjetivo. Esse foi o caso de João Rodrigues, que, em sua defesa contra a Prova de Justiça
publicada pela promotoria, forneceu a carta seguinte (escrita por seu procurador, pois era
iletrado) aos juízes.
Muito ilustres,
O réu diz que não tem contraditas, em razão de haver confessado
legitimamente suas culpas. E com grandíssima dor e arrependimento delas,
pede, com todo afeto e humildade, perdão e misericórdia, que com ele espera
se use. Vista a simplicidade com que foi enganado para consentir que se
cometesse o único ato de sodomia, somente, de que lhe faz culpa a última
testemunha. E está em grande sentimento de arrependimento e de emendar-se.
E, como tal, detesta e abomina esse pecado e torpeza e todos os mais outros
em ordem a ele. Antes, com gosto, afeto, protesta denunciar e acusar todos os
que tal vício intenderem cometer e executarem. E declaro de todo esse
arrependimento e sentimento que de suas culpas pede e espera misericórdia e
perdão delas. E não assina, por não saber.1160
Em sua carta, João Rodrigues mostrou-se aos inquisidores tal como as instituições
normativas pretendiam que os sujeitos cristãos-carnais se apresentassem, isto é, em
postura clara e visível (pública) de submissão e humilhação (humildade), que deveria se
concretizar em uma promessa (um ato de fala performativo) de emenda, isto é, de não
1159
“A palavra ‘atrição’ remonta aos começos da escolástica, isto é, à primeira metade do século XII.
Designou desde essa época uma detestação imperfeita dos pecados, mas sem que fosse precisado ainda de
que imperfeição se tratava. No século XIII, e em particular para são Tomás de Aquino, a contrição é um
arrependimento perfeito: nossa liberdade, inundada pela graça, eleva-se então ao nível da caridade e
lamenta suas faltas por amor a Deus. A atrição, por sua vez, não faz mais do que preparar a vinda da graça
e desobstruir o caminho para a contrição. A questão dos motivos da atrição não é ainda verdadeiramente
esclarecida. Ela o será no século seguinte, sobretudo graças ao nominalista Durand de Saint-Pourçain (m.
1334), que é um dos primeiros a distinguir o lamento dos pecados motivado pela caridade em relação a
Deus daquele que provém do pensamento dos castigos merecidos”. DELUMEAU. A confissão e o perdão,
p. 43.
1160
"Muito Illustres / O Réu diz que naõ tem contraditas em Rezaõ de hauer / confessado, legittimamente
Suas culpas, E com grandissima / dor E arrependimento dellas pede com todo o afecto E / humildade perdaõ
E mizericórdia que com elle Espera se / uze, que ha Simplicidade com que foi emganado / para Consentir
se cometesse o unico acto de Sodomia / Somente de que lhe faz Culpa a ultima testestemunha / E esta em
grande sentimento ^ de arrependimento Emendarse, E com o tal / detesta E abomina Este pecado, E torpeza E
todos / os mais outros em ordẽ a elle, antes com gosto / afecto protesta denunciar E accuzar todos os / que
tal uicio intentarẽ cometer, E executarẽ / E declaro de todo este arrependimento E Sintimento que / de Suas
Culpas pede E espera misericórdia E perdaõ / dellas ---- E naõ aSina por naõ Saber". DGA/TT-Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 07346, fl. 46.
484
reincidir na mesma culpa. Como vimos na Parte I, os três traços mais marcantes do sujeito
de desejo (a figura de subjetividade central ao dispositivo) eram a renúncia, a conversão
e a autenticidade. Foram exatamente essas as características que João Rodrigues buscou
afetar e expressar, de maneira teatralizada, no texto submetido à mesa inquisitorial mais
como uma súplica do que como uma defesa (seus termos são evocativos das petições
suplicantes de Maria Machada, que lemos no capítulo 4). Daí sua admissão dramática de
"grandíssima dor", "arrependimento" e "grande sentimento", emoções que ele desejou
externar como autênticas. Assim seriam creditadas pelos inquisidores. A autenticidade
de seus sentimentos era corroborada por outros dois comportamentos que mostrariam sua
conversão como uma verdadeira renúncia ao seu ser-pecador/desejante/concupiscente.
Um, era a admissão de suas limitações como sujeito carnal, vítima dos enganos do pecado
e dos pecadores (o que não deixava de ser uma tentativa, oblíqua, de defesa jurídica,
pretendendo que não tivera intenção de cometer o ato). Outro, o ódio proclamado contra
o pecado e os pecadores, assumindo o compromisso de denunciá-los sempre, ou seja,
inserindo-se nas relações de saber-poder do dispositivo, agora, na condição de agente
interpelador, não somente como interpelado. Era uma concordância com o ideal
inquisitorial de uma sociedade cristã, confessional, atemorizada, intolerante e
delatora.1161 Comparando os processos de João Rodrigues e de Francisco Mouro,
vemos diferenças marcantes nas maneiras como cada um dos amantes enfrentou o terror
da interpelação do Santo Ofício. É importante atentar, na confrontação dos dois processos,
para as datas. João Rodrigues foi acusado formalmente no dia 9 de março, ao passo que
Francisco Mouro confessou-se apenas no dia 3 de abril seguinte. Diferentemente do
primeiro réu, o segundo confessou logo no início do seu processo, antes de ser acusado
pelo promotor, o que aconteceu no dia 20 de abril.
1161
Schwartz afirma que, por várias razões políticas e doutrinárias, a Igreja e as Coroas católicas da
Península ibérica apoiaram uma política de intolerância, sendo a Inquisição um dos braços pesados para
impor (ou tentar) a unidade religiosa, entendida como condição indispensável para a paz e a integridade do
reino e do Império. "[…] homens como Diogo Saavedra Fajardo, o teórico político mais importante da
época, sustentavam que era impossível a paz interna sem a unidade religiosa. A Igreja e a Coroa usaram de
todos os seus poderes para impor essa política, mas muita gente continuou em dúvida, sem se convencer
plenamente, e alguns se mostraram dispostos a arriscar uma visão alternativa de salvação e sociedade".
SCHWARTZ. Cada um na sua lei, p. 73.
485
1162
“[...] obrigado dos muitos / rogos, e instancias que lhe fes o dito Joaõ pegandolhe / tambem No seu
Membro uiril para o dito peccado de / Sodomia [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
10469, fl. 16.
1163
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 07346, fl. 39-41.
1164
NAPHY. Born to be gay, p. 110-121.
486
1165
NAPHY. Born to be gay, p. 121.
1166
SPENCER, Colin. Homossexualidade. Uma história. Trad. Rubem Mauro Machado. Rio de Janeiro:
Record, 1996, p. 102-103.
1167
ADANG, Camilla. Ibn Hazm on homosexuality. A case-study of Ẓãhirĩ legal methodology. Al-Qantara,
XXIV, 1 (2003), Madri, p. 5-31.
487
1168
NAPHY. Born to be gay, p. 111.
1169
ADANG, Camilla. Ibn Hazm on homosexuality. A case-study of Ẓãhirĩ legal methodology, p. 7-10.
Ver também WRIGHT JR., J.W.; ROWSON, E. K. (orgs.). Homoeroticism in Classical Arabic Literature.
New York: Columbia University Press, 1997; SCHMITT, A.; SOFER, J. (orgs.). Sexuality and Eroticism
among Males in Moslem Societies. New York, London: Routledge 1992; BOUHDIBA, A. Sexuality in
Islam. London: Routledge, 1998.
488
Três denunciantes do seu processo relataram que sabiam que Gaspar Rodrigues
estivera em regiões muçulmanas, ou, como disseram, em terras de turcos e de mouros.
Manoel Miranda ouviu do próprio réu que ele fora cativo dos turcos e estivera até mesmo
em Constantinopla.1171 Outros, como Baltasar Lopes e Bartolomeu de Vasconcelos,
disseram que tinham ouvido dizer que Gaspar Rodrigues andara nessas regiões.1172 Isso
mostra como uma informação suspeita como essa circulava na localidade e era resgatada
quando outros fatos, como, por exemplo, a suspeita de sodomia, se apresentavam para
corroborar a ideia pré-concebida que se fazia do islamismo e seus seguidores como
pecadores, infiéis e devassos. Domingos de Araújo, uma das testemunhas de defesa do
réu, foi ainda mais explícito ao fazer essa ligação, ao dizer que:
[…] no desbarate do Rei Sebastião, foi ele testemunha cativo e levado à Fez,
onde, pelo que tem visto e entendido lá, sabe que os mouros, e principalmente
os turcos, têm por costume usar o pecado nefando com os cristãos cativos
tornados mouros ou turcos […].1173
[…] foi tornado [a ser] admoestado que não cuide que está preso por esta causa,
que, portanto, faça confissão de suas culpas, assim das que tem feito e dito e
cometido em Portugal, como em terra de turcos e de mouros, onde ele esteve
cativo muitos anos, como neste Brasil e em outras partes mais [por] onde ele
tem andado […].1174
1170
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11061.
1171
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11061, fl. 4-5.
1172
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11061, fl. 9-14, 21-23
1173
“[...] que no desbarate de Rey Bastiam / foj elle testemunha Captiuo e leuado a feZ / onde pello que tem
Visto entendjdo / Laa Sabe que os mouros, e prjncipal / mente os Turcos tem por costume / Vsar o peccado
nefando cõ os cristaõ / Captiuos tornados mouros ou turcos [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 11061, fl. 59-60.
1174
“[...] foj tornado amo / estar que naõ cujde que esta preSso por / esta causa que portanto faça comfiSsaõ
/ de Suas culpas aSsim das que tem / fejto E djtto et cometido Em portugal / como En terra de turcos, e de
489
A união simbólica entre ser mouro, ou ter com eles convivido, e praticar a sodomia
era tão forte, que serviu, por si mesma, de elemento de acusação no libelo que o promotor
apresentou contra Gaspar Rodrigues. O artigo seis da acusação diz que o réu tinha fama
pública de ser somítico e de ter cometido o mesmo pecado nas terras de mouros onde
estivera.1175 Dos relatos das testemunhas e do modo como o processo foi conduzido pelo
visitador pode-se depreender que as pessoas que conviviam com Gaspar Rodrigues
sabiam que ele cometera a sodomia com um ou mais homens e que ele estivera em terras
de mouros e turcos, e que as duas informações se ligavam pela noção, corrente na cultura
cristã, do mundo islâmico como ambiente de pecado e devassidão, onde a sodomia seria
prática costumeira. O modo como circularam as informações a respeito do caso de Gaspar
Rodrigues na cidade da Bahia, atingindo também Sergipe e Pernambuco, permite
retomar-se a discussão das condições precárias e mutantes da privacidade ou publicidade
dessas práticas.
No que toca às regiões visitadas pelo Santo Ofício, no Brasil, no final do século
XVI e no início do XVII, conforme se pode ler nos livros de confissões e denúncias na
Bahia e em Pernambuco, percebe-se que a maioria dos praticantes do nefando o fez dentro
de casas, em camas, esteiras, redes ou no chão. De 29 casos, levantados na leitura desses
livros, de práticas sodomíticas entre dois homens (a mais das vezes consumada de modo
perfeito, isto é, com efusão de sêmen dentro do ânus do parceiro), 22 foram de relatos de
que o sexo acontecera dentro das casas, fossem essas dos parceiros, de seus parentes ou
de seus senhores (inclusive nos palácios do bispo da Bahia, do governador e do Deão da
Sé de Lisboa).1176 Podem ser citados também, nesse grupo, o padre Frutuoso Álvares,
Jerônimo Parada, Bastião de Aguiar, Mateus Nunes, Belchior da Costa, Marcos Barroso,
mouros / onde elle esteue captiuo mujto annos / como neste brasil et Em outros par / tes mais onde elle tem
andado [...]”. DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11061, fl. 33.
1175
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 11061, fl. 45.
1176
Eliseu Lopes, cristão-velho de 40 anos, ao se confessar, relatou, na 2ª visitação ao Brasil, ter praticado
a sodomia com Manoel Cana na casa do bispo de Salvador D. Antônio Barreiros, quando os dois eram
pajens do prelado. SEGUNDA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o
licenciado Marcos Teixeira. Livro das ratificações e confissões da Bahia - 1618-1620, p. 481-482. Os casos
de sodomia na casa do governador se referem à confissão de Fernão Rodrigues de Souza, analisadas
anteriormente. João Queixada, cristão-velho, do qual não se sabe a idade, confessou ter servido ao Deão da
Sé de Lisboa como pajem e ter praticado a sodomia com outro criado do mesmo clérigo na casa deste em
Lisboa em 1591. VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia. Santo Ofício da Inquisição de Lisboa.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 270-271.
490
1177
Relatos presentes no livro das confissões da Bahia na primeira Visitação do Santo Oficio. VAINFAS.
Confissões da Bahia, p. 45-51, 86-89, 151-155, 213-215, 240-242, 243-244, 268-269, 316-317.
1178
Relatos presentes no livro das denunciações de Pernambuco na primeira Visitação do Santo Ofício.
PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça –
Denunciações de Pernambuco – 1593-1595. Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo: Homenagem de
Paulo Prado, 1929, p. 399-401. Relatos contidos também no processo inquisitorial de Baltasar da Lomba,
DGA/TT-Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 06366.
1179
Relatos contidos no livro das confissões e ratificações da Bahia na segunda Visitação do Santo Ofício.
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira. Livro
das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 354-356, 392-393, 417-418, 441-442, 444-446, 446-
447, 459-460, 460-461, 522-523, 525-526.
491
praticava o nefando também ao longo do dia, em diferentes ocasiões, fosse pela manhã
ou à tarde. Para entender essa variação, seria necessário analisar cada caso e confrontar o
momento do sexo com o lugar em que foi realizado, pois era, sobretudo, a confluência de
fatores de oportunidade que ditava se os parceiros arriscariam ou não o ato em
determinada hora e lugar.
A partir dos poucos casos em que a correlação é possível, pode-se aferir como, em
locais em que a privacidade era mais assegurada – isto é, em que a separação entre as
esferas era mais forte e esperava-se menor intromissão do público (havendo uma
suposição razoável de segredo), tais como casas (própria, do parceiro ou de terceiros, ou
ainda palácios do bispo da Bahia, do governador e do Deão da Sé de Lisboa) e, dentro
delas, quartos –, as temporalidades foram bastante variadas, abrangendo qualquer
momento do dia. Como foi dito, esses somam 22 casos, para os quais, os marcadores de
tempo foram "à noite" (conforme relatado por Frutuoso Álvares, Sebastião de Aguiar,
Mateus Nunes, João Queixada, Maria Grega, Antônio de Aguiar, Maria de Lucena,
Vitória e Margaryda),1181 "dia de Páscoa, à tarde e à noite" (conforme dito por Jerônimo
1180
Dados retirados do livro das confissões da Bahia na primeira Visitação do Santo Oficio, do livro das
denunciações de Pernambuco na primeira Visitação do Santo Ofício e do livro das confissões e ratificações
da Bahia na segunda Visitação do Santo Ofício.
1181
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 45-51; 151-5; 213-5; 270-1; 278-9; 316-7. PRIMEIRA visitação
do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações de
Pernambuco – 1593-1595, p. 37-8, 49-50.
492
Parada),1182 "à noite após a ceia" (tal como dito por Jácome Queiroz),1183 "à tarde, depois
da missa em dia santo" (algo presente no relato de Paula de Siqueira),1184 "à tarde, durante
a sesta, e à noite" (segundo Maria Lourenço),1185 "de manhã ou à tarde" (como consta na
narrativa de Guiomar Pinheira),1186 "à noite e à tarde" (como dito por Belchior da
Costa),1187 "durante o dia" (segundo Maria Rangel),1188 "em diversos tempos" (segundo
Diogo Afonso),1189 "enquanto brincavam" (segundo Isabel Marques),1190 "após a ceia,
"em diversos tempos" (segundo o relato de Fernão Rodrigues de Sousa),1191 pela manhã,
à tarde, após o jantar" (conforme João Fernandes),1192, "à noite após a ceia" (segundo
Antônio Pereira),1193 "à noite após todos terem dormido" (como presente no relato de Pero
Garcia),1194 e "de dia e de noite" (segundo Bento).1195 Vemos, portanto, que, assegurada
a privacidade de uma casa ou um quarto, em redes ou camas, afastados os olhares intrusos
e potencialmente delatores do público, qualquer horário do dia ou da noite era apto à
prática sodomítica, ainda que encontros noturnos fossem mais relatados.
1182
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 86-9.
1183
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 102-3.
1184
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 104-114.
1185
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 157-162.
1186
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 198-200.
1187
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 240-2.
1188
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 257-261
1189
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 268-9.
1190
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 331-2.
1191
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 380-4.
1192
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 392-3.
1193
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 417-8.
1194
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 444-6.
1195
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 460-1.
493
bastante comum, como temos visto).1196 Sobre as condições de lugar e de tempo dos
encontros, afirmou o seguinte.
Trata-se, como vemos, de um relato impreciso, mas que sugere como os dois
jovens pouco se preocupavam com cuidados de segredo em seus encontros eróticos, uma
vez que em "diversos tempos e diferentes lugares", o cometiam. O cuidado que pudessem
ter na escolha de circunstâncias mais propícias a práticas que deveriam permanecer
privadas, no sentido de secretas, não transpareceu no relato de sua confissão. Diferente é
o que encontramos na análise das denúncias a respeito de uma suposta cópula sodomítica
que teria acontecido entre Antônio, criado de um certo Pedralvares, e Francisco, mulato
ou mestiço, filho (ou enteado) de André Gonçalves, indígena, e de uma negra brasílica,
rapazes de uns 17 anos. Ambos eram moradores na aldeia de Hayamaa, freguesia de
Iguaraçu, na capitania da Paraíba. Digo suposta, porque, enquanto dois denunciantes
falam de sodomia entre os jovens, um terceiro (que, aparentemente, estaria esperando
para participar do ato sexual com os dois jovens) relatou ter sido um engano, que os dois
estariam apenas brincando.1198 De todo modo, é interessante atentarmo-nos para os
marcadores de tempo e lugar (que são comuns às três versões) identificáveis no caso.
Assim, na denúncia de Domingos da Costa, temos o relato seguinte.
O cenário dessa suposta cópula sodomítica, portanto, foi um espaço público, mas
ao qual o manto noturno poderia ter fornecido alguma precária privacidade, no sentido de
1196
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 268-9.
1197
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 269.
1198
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 399; 437-9; 441-2.
1199
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 437.
494
um tênue véu de segredo. O fato de o casal, que sequer estava sozinho (havia um terceiro
integrante na brincadeira ou sexo que ocorria entre os rapazes), ter sido flagrado por três
testemunhas, que não demoraram a relatar o que viram a terceiros, tornando o fato
público, isto é, de conhecimento geral, mostra como a necessária privacidade da sodomia
era contingente.
Ainda nas visitações do Santo Ofício ao Brasil, dois homens confessaram ter
praticado o nefando em mosteiros portugueses. Em 1592, Marcos Barroso, cristão-velho,
com 45 anos ao se apresentar ao visitador, contou que, por volta de 1564, frequentava o
Mosteiro de Bustello, da ordem de São Bento, localizado nos arredores da cidade do
Porto, onde seu tio, o frei Antônio de Rio Douro, era prior. Nesse convento, Marcos
Barroso, que teria então 13 anos, dividia a cama com um jovem criado chamado
Domingos. Partilhando a cama, os dois logo desenvolveram uma amizade desonesta e
1200
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, Segundo Caderno do Nefando 0130, fl. 51-60.
1201
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, Segundo Caderno do Nefando 0130, fl. 60-69.
495
praticaram o nefando, algumas duas ou três vezes, sempre à noite. Apesar do ambiente
coletivo que era o mosteiro, no qual, ao menos em teoria, deveria ser exercida uma
vigilante disciplina contra os pecados da carne (dos quais a sodomia era o mais grave),
relatou acreditar que ninguém os vira pecar dessa forma.1202 Francisco de Sampaio
Aranha, cristão-velho de 35 anos ao se confessar, por sua vez, relatou ao visitador Marcos
Teixeira que cometera a sodomia no Mosteiro de Nossa Senhora do Socorro da ordem de
São Francisco de Recoleta, em Alcochete, quando tinha 20 anos. Seus parceiros foram
Antônio Gonçalves ou Fernandes e um frade João do mesmo mosteiro.1203
Uma última cena revela como, no jogo dos prazeres homoeróticos, no Período
Moderno, as definições de quais ambientes eram públicos e quais privados eram
cambiantes, efetivando-se, na prática, conforme o sucesso ou o fracasso dos amantes em
conduzirem seus contatos em segredo. Luís Carneiro era um jovem estudante de quatorze
anos que confessou, em 1610, várias cópulas sodomíticas, entre muitas outras formas de
sexo homoerótico, aos inquisidores de Lisboa, com muitos parceiros e em diferentes
lugares e ocasiões. Entre elas, narrou seu encontro com o padre Antônio Sedenho, que
bem poderia ter saído das páginas dos romances pastoris em voga no período:
[…] E disse mais que, haverá dois meses, pouco mais ou menos, foi ele
declarante à Almada visitar a Antônio Sedenho, sacerdote que tem uma cruz
branca no peito, o que chamam Catisprotes, a qual trouxe de Roma, onde tinha
ido, e seria de idade de trinta anos, pouco mais ou menos, e tem benefício, e
logo em Almada nesta casa dele […] estando com ele no mesmo dia que lá
chegou, ambos foram a uma vinha do dito Antônio Sedenho, que é cristão-
velho, estando na dita vinha, debaixo de uma figueira de figos brancos, o dito
clérigo disse a ele, declarante (porque já nesta cidade tinham cometido ambos
o pecado de molícies), que quisesse ele tirar as calças para fazerem por detrás.
E, com efeito, ambos tiraram as calças e o dito padre deitou o seu manto
debaixo da figueira, que era lugar escondido, e ele declarante se pôs de bruços
sobre o dito manto, e o dito clérigo se pôs sobre ele declarante e pôs sua natura
no traseiro dele declarante, e fez muito e pôs toda sua força para lha meter
dentro no seu traseiro. E por ele declarante se apertar muito, lha não pôde meter
dentro no traseiro para derramar semente fora, à porta do dito traseiro. E o dito
clérigo quisera derramá-la dentro no traseiro dele declarante, e ele lhe disse
que lhe doía muito e que a não podia esperar. E assim acabaram de o fazer e se
vieram, e ele se veio ao mesmo dia para esta cidade […].1204
1202
VAINFAS. Confissões da Bahia, p. 243-244.
1203
SEGUNDA visitação do Santo Oficio às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador Marcos Teixeira.
Livro das confissões e ratificações da Bahia - 1618-1620, p. 458-459.
1204
“[...] E disse mais que auera / dous meSes pouco mais ou menos foi elle / declarãte à almada visitar a
Antonio Sedenho / Sacerdote que tem huã cruz branca no peito / o que chamaõ Catisprotes a qual trouxe
de Roma / onde tinha ido e Seria de idade de trῖta anos / pouco mais ou menos e tem beneficio e logo / em
almada e esta em casa delle a maj / Bauo a que naõ sabe os nomes e estando cõ / elle no mesmo dia que la
chegou ambos / foraõ a huã uinha do ditto Antonio Sedenho / que he xpaõ uelho e estando na ditta vinha /
debaixo de huã Figueira de figos brãcos / o ditto clerigo diSse a elle declarãte / (porque ia nesta Cidade
tinhaõ cometido ãbos / o pecado de molícies) que quisesse elle / tirar as calcas pera fazerem per / detras, e
496
de feito ambos tiraraõ as calças / e o ditto padre deito o Seu manto de / baixo da figueira que era luguar es
/ condido, e elle declarãte Se pos de / brucos Sobre o ditto manto, e o ditto / clerigo // clerigo Se pos Sobre
elle declarãte e pos Sua natura / no traSeiro delle declarãte e fez muito e pos toda Sua / força pera lha meter
dentro no Seu traSeiro e per / elle declarãte Se apertar muito lha naõ pode meter / dentro no traSeiro para
deRamar Semẽte fora / a porta do ditto traSeiro e o ditto clerigo quiSera / derramalla dentro no traSeiro
delle declarãte / e elle lhe diSse que lhe doía muito e que a naõ podia es / perar e aSsi acabaraõ de o fazer
e Se uieraõ / e elle Se ueo ao mesmo dia pera esta cidade [...]. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
Segundo Caderno do Nefando 0130, fl. 19-31.
1205
ELIAS. A Sociedade de Corte, p. 106-110
497
civilizador.1206 Esse processo caracterizou-se pela construção, ainda que lenta, de uma
barreira entre tudo o que deveria ser mostrado aos outros e tudo aquilo que não. Assim,
demandou, e produziu, um controle cada vez maior de cada um sobre si mesmo, sobre
suas ações e emoções. Dessa maneira, o processo civilizador e a sociedade de corte (parte
desse processo) gestaram e disseminaram um novo tipo de existência, na qual a identidade
das pessoas se produzia de acordo com o lugar dinâmico que ocupavam nas hierarquias
regidas pela etiqueta.1207 Em uma leitura de viés queer desse "processo civilizador",
podemos interpretá-lo como o longo disciplinar das culturas diversas da grande tradição
ocidental (o que, em um primeiro momento, incluía as culturas populares europeias), pela
qual elas foram colonizadas a partir da conquista/produção das próprias almas-
subjetividades das pessoas. Nesse quadro, a ética cortesã pode ser caracterizada como
mais uma tecnologia de controle e produção de sujeitos educados segundo regras precisas
de etiqueta.1208 Enquanto Elias fala de interiorização das regras da ética cortesã, nós
podemos replicar que essas mesmas regras produziam a interioridade como uma partição
fantasiosa entre o que poderia ser público e o que o pudor (ponta de lança da ferramenta
de controle) impunha que fosse privatizado.
Para o que concerne a esta tese, que é uma genealogia queer das subjetividades
sodomíticas no contexto do Império português no Período Moderno, é preciso pensar
como uma ética que exigia um controle sempre redobrado de cada um sobre suas ações,
seus pensamentos, seus sentimentos, ou seja, que manufaturava sujeitos disciplinados e
educados, afetava o acontecer cotidiano dos sujeitos sodomíticos que, nesse mesmo
processo, se sujeitavam e se subjetivavam. Isso incluía, em não pouca medida, o controle
de seus prazeres, ou ao menos daquelas ações e sentimentos que cada um deixava,
conscientemente ou não, transparecer perante os outros, em público. Assim, podemos
1206
Pode-se entender o livro A sociedade de Corte, de Norbert Elias, como um capítulo específico de sua
obra O processo civilizador. Segundo Chartier: “É preciso, portanto, tomar A sociedade de corte como uma
primeira formulação dos conceitos e teses que os dois tomos de 1939 desenvolverão em larga escala”.
CHARTIER, R. Prefácio. In: ELIAS. A sociedade de corte, p. 11.
1207
ELIAS. A Sociedade de corte. p. 116.
1208
Contudo, é importante ter em mente como essa figura de subjetividade (o homem cortesão) típica do
Antigo Regime não pode ser compreendida nos mesmos termos do sujeito moderno a partir do racionalismo
cartesiano. Margareth de Almeida Gonçalves mostrou como o sujeito cortesão distinguia-se do sujeito
moderno, uma vez que não apresentava um núcleo interno coerente de consciência. De maneira que, se o
ideal fidalgo cortesão valorizou como conduta nobre o controle de paixões desenfreadas (ditas irracionais,
no sentido de divergirem das noções de prudência e de discrição em vigor no Antigo Regime), lutando para
superar um ethos aristocrático feudal-guerreiro (medieval), fundado em uma brutalidade exteriorizada, essa
conduta, teatralizada perante todos (na cena pública), a interiorização, destarte manufaturada, correspondia,
de certa forma, a "um revestimeto que encobrisse algo oco e vazio". Gonçalves conclui disso que "a
educação [cortesã] é puro artifício, jogo de salão". GONÇALVES. Império da fé, p. 33-5.
498
questionar como a sodomia, ou outros prazeres homoeróticos que não cabiam na estrita
definição inquisitorial desse pecado, no contexto de vigência de regras de uma
sociabilidade cortesã, pôde ser praticada por muitas pessoas.
Em primeiro lugar, há que se recordar que, mesmo nas Cortes, epicentro dessa
tecnologia de controle, sujeição e subjetivação, o homoerotismo continuou tendo lugar,
convivendo de alguma forma com as regras seguidamente mais intricadas da etiqueta.
Notícias de reis com interesses homoeróticos, mais ou menos explícitos, percorriam a
Europa, constituindo também um elemento a mais para críticas a seus reinados e à
monarquia em geral. Na história dos reis ingleses escrita por John Taylor, The English
Monarchs, publicada em 1630, a paixão homoerótica do rei Eduardo II por Piers
Gaveston, conde da Cornualha, é associada a um desrespeito geral do monarca à ordem
natural e divina do mundo, o que teria acarretado o desastre do seu reinado e sua
abdicação. Fica implícita a constatação de que até mesmo os reis absolutistas ingleses do
século XVII deveriam obedecer às leis naturais e de Deus, o que nos sugere como as
críticas políticas podiam ser feitas também com linguagens de gênero e erótica.1209 A
tragédia Edward II, composta por Christopher Marlowe, o primeiro grande poeta-
dramaturgo inglês – famoso, mesmo em sua época, também pelas suas posições
heterodoxas (dissidentes) em relação à religião e ao erotismo, tendo-lhe sido atribuída,
por um de seus denunciantes, ao Conselho privado da rainha Elizabeth I, a frase “all they
that love not not tobacco and boys werer fools” –, em 1592, também comentava o
relacionamento homoerótico do rei com o conde. A tragédia serviu, junto a outros textos
do período, como advertência ao futuro rei da Inglaterra, James VI, da Escócia, contra os
perigos em que o monarca poderia incorrer ao se cercar de favoritos inescrupulosos e de
linhagem duvidosa.1210 A peça de Marlowe, contudo, era mais que um aviso de precaução
ao futuro rei, uma vez que, diferentemente do que era comum na literatura elisabetana,
não só tinha um protagonista cuja paixão era homoerótica, como essa paixão era central
na narrativa. A imagem que a peça elabora do amor entre Eduardo II e Gaveston foi
percebida, mesmo no século XVI, como tão sensível, que o trágico rei aparecia ao fim,
após a encenação de seu tormento e de sua morte, como vítima e suscetível à piedade dos
espectadores. Ademais, algumas passagens ressoam como um convite à tolerância ao
1209
BRAY. Homosexuality in Renaissance England, p. 26.
1210
Crompton. Homosexuality & Civilization, p. 368-372.
499
amor que não diz seu nome, o que era uma dissidência flagrante aos imperativos do
dispositivo da carne, como a seguinte:
1211
MARLOWE, C. Edward II. New York: Gordian Press, 1966, p. 104-105. Disponível em:
https://archive.org/details/edwardiiaplay00marl. Último acesso em out.2020. Não estando a peça
traduzida para o português, uma proposta de tradução foi feita por Mary Ellen Rivera Cacheado em sua
dissertação de mestrado, a qual escolhi reproduzir acima. O trecho original é como segue.
The mightest kings have had their minions:
Great Alexander loved Hephestion;
The conquering Hercules for Hylas wept;
And for Patroclus stern Achilles drooped,
And not kings only, but the wisest men:
The roman Tully loved Octavius,
Grave Socrates, wild Alcibiades.
Then let his grace, whose youth is flexible
And promiseth as much as we can wish,
Freely enjoy that vain light-headed earl,
For riper years will wean him from such toys.
ACHEADO, Mary Ellen Rivera. Poder e sexualidade na Peça Histórica Eduardo II, de Christopher
Marlowe. 2013. 138f. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Amazonas, Manaus,
2013, p. 122.
1212
SPENCER. Homossexualidade, p. 127-128; GREENBERG. The construction of homosexuality, p. 309.
500
Mesmo os monarcas dos séculos XVI e XVII que amaram outros homens não o
podiam fazer abertamente, tal era a força do dispositivo. A proibição e a abjeção da
sodomia eram necessárias para a construção mais efetiva de sujeitos juridicamente
culpados, quer para um rei europeu, quer para um camponês nas colônias (no plano dos
processos de sujeição, que não extinguiam nunca as possibilidades de resistência e
contradição nos termos do dispositivo). Tornar-se um favorito do rei era visto como sinal
de que a relação entre o monarca e o cortesão estava, no mínimo, próxima ao terreno do
pecado nefando. Tais suspeitas pululavam, por exemplo, ao redor do rei James I da
Inglaterra (antes James VI da Escócia). Ao longo de sua vida, James I envolveu-se com
ao menos três homens nobres, com quem manteve relacionamentos mais ou menos
duradouros. Foram eles, seu primo Esmé Stuart, senhor d’Aubigny e depois duque de
Lennox por graça real; Robert Carr, cortesão escocês que se tornou conde de Sommerset
(também por favor régio); e George Villiers, filho de um baronete de Leicestershire e,
depois, duque de Buckingham.1213
1213
CROMPTON. Homosexuality & Civilization, p. 381-388. NAPHY. Born to be gay, p. 142-144.
1214
John Boswell deu indicações nesse sentido, ao destacar a maneira como o rei Edward II, referido
anteriormente, foi assassinado. O monarca foi morto empalado pelo ânus com um espeto quente. Para o
historiador, o suplício do monarca é indicador de uma crescente intolerância ao homoerotismo a partir dos
últimos séculos da Idade Média. BOSWELL, J. Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 300.
501
Outro monarca famoso por suas relações homoeróticas foi Henrique III da França
(1551-1589). As suspeitas em torno desse rei giram ao redor dos maneirismos de sua
personalidade e de seus modos de vestir-se, e, principalmente, pela sua associação com
um grupo de jovens cortesãos que ficou conhecido como os mignons. Esses eram jovens,
belos, atléticos e aventureiros, replicavam o estilo extravagante do rei. Embora o
envolvimento afetivo (há discussões se o afeto se desdobrou em relações sexuais de
alguma natureza) do monarca com seus mignons fosse público, seus favoritos tornaram-
se famosos também por suas variadas aventuras amorosas com diversas mulheres.
Reinando em momento de crise na França, em meio às Guerras de Religião, o
homoerotismo e comportamento de gênero ambíguo de Henrique III serviram de munição
suplementar para seus opositores, como demonstram centenas de panfletos que
circularam no período, acusando-o de tirania, heresia, feitiçaria e sodomia. No que vemos,
aliás, o pleno funcionamento do discurso estudado na Parte I, com o encadear das
categorias de feitiçaria (bruxa), heresia (herege) e sodomia (sodomita). O agravar da crise
política religiosa conduziu, afinal, ao assassinato do rei em 1589.1216
Para além das Cortes e dos romances dos reis, a questão que se coloca é como o
modo de vida emanado por tais ambientes afetava as maneiras como o homoerotismo e a
sodomia eram praticados pelas pessoas comuns. Se o grau de controle de si e dos outros
era exacerbado entre os nobres em competição nas Cortes, tal ética cortesã difundiu-se
também para círculos sociais mais amplos.1217 O controle de si e a dissimulação dos
1215
Cromptom cita a surpresa de um observador inglês diante das manifestações de amor de James I e Esmé
Stuart: “An English observer described him [o rei] as in such love with him [Esmé Stuart] as in the open
sight of the people oftentimes he will clasp him about the neck with his arms and kiss him”. CROMPTOM.
Homosexuality & Civilization, p. 382. Naphy conta que o Conselho Privado do rei discutiu os problemas
políticos, religiosos e morais da relação do monarca com seu favorito, a que James I respondeu: “Jesus
Cristo fazia o mesmo, e por isso não posso ser condenado. Cristo tinha seu filho João, e eu tenho o meu
George”. NAPHY. Born to be gay, p. 143.
1216
CROMPTOM. Homosexuality & Civilization, p. 328-331; NAPHY. Born to be gay, p. 141-142.
1217
Nobert Elias mostra como a competição com a nobreza levou as camadas superiores da burguesia a
adotarem, progressivamente, comportamentos semelhantes aos dos aristocratas. Assim, o raio de influência
da ética cortesã se dilatava. ELIAS. A sociedade de corte, p. 160-218.
502
Para além das descrições dos atos sexuais, os relatos contidos nos documentos
inquisitoriais são ricos em detalhes da vida cotidiana dos povos do Império. Neles, é
possível perceber como a teatralização, o cuidado com as aparências e as maneiras
públicas, o cultivo de constantes intrigas (familiares, locais ou de ofícios) e a preocupação
com a fama que se tinha, eram fatores constantes na vida das pessoas em geral. Todos
esses fatores para introjeção do controle e governo de si mesmo afetavam as práticas de
subjetividades sodomíticas.
1218
VILLALTA. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822), p. 28-30; ARAÚJO. O teatro
dos vícios, p. 83-190.
503
1219
ELIAS. O processo civilizador, p. 134-141.
1220
DELEUZE; GUATTARI. O anti-Édipo, p. 189-191.
1221
Segundo Paul-Beatriz Preciado, a construção dos corpos individuais, com vistas à elaboração de uma
identidade sexual considerada normal, é sempre produto de uma tecnologia biopolítica com custos altos. A
tecnologia biopolítica atua na delimitação dos órgãos e suas funções, designando alguns como sexuais e
outros, não – obviamente, o ânus, desinvestido dos fluxos de desejo, é removido do campo sexual, ou
heterossexual. Relendo a teoria da performatividade de gênero de Judith Butler, Preciado argumenta que a
interpelação que todos sofrem não é apenas performativa, como também protéstica, no sentido de que
produz corpos. Como mostrou Foucault, em Vigiar e punir e em A vontade de saber, a formação das
relações de poder de controle disciplinar e biopolítico dos corpos e populações se deu concomitantemente
à do capitalismo. PRECIADO. Manifesto cntrassexual, p. 123-144. FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 131-
214. FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 135-161. Para o conceito de matriz sexo-gênero-desejo,
ver: BUTLER. Problemas de gênero, 2012, p. 24-26.
504
1222
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 67-90.
1223
KATZ. The invention of heterosexuality, p. 31-44.
505
uma engrenagem de ligações duplas (double bind ou "duplos vínculos"),1224 pelas quais
o discurso público sobre a homossexualidade era, a um só tempo, incentivado e proibido.
A homossexualidade não poderia ser pública, mas não poderia, tampouco, subsistir na
esfera privada.1225
Como tudo isso se relacionaria com a experiência cristã do sexo e para as práticas
de subjetividade dos sodomitas sob o Antigo Regime? Encaremos o problema por duas
frentes: uma, a dos moldes da experiência cristã do sexo, outra, a do estágio da
constituição histórica da divisão entre público e privado no Antigo Regime. Na primeira
frente, temos visto que a experiência cristã do sexo é fundada no enunciado da culpa
jurídica pela concupiscência como característica intrínseca da vontade humana,
conformando a figura do sujeito de desejo, impulsionado sempre à tarefa de veridicção
de si mesmo pelas relações de poder (pastorais ou soberanas), engendrando, dessa
maneira, sujeitos que carregam pesadas culpas por seu erotismo (no sentido de relação de
interioridade), atormentando-se.1226 O espaço possível para subjetividades sodomíticas,
segundo a normatividade da carne, é, pois, o espaço da culpa pelo pecado gravíssimo,
contrário à natureza, o que não impedia ninguém de experimentar o homoerotismo ou o
sexo anal, mas tendia a fazer com que tais atos fossem enquadrados na tecnologia jurídica
da sodomia. Lembremos ainda como essa categoria jurídica de culpabilização era
publicamente proclamada pelas instituições de poder, como a Inquisição, para melhor
interpelar os sodomitas, bem como todos os cristãos, com a arma do terror da infâmia de
ser assim reconhecido publicamente.
Na segunda frente, temos visto como, nas sociedades de Antigo Regime, a barreira
entre o espaço público e o privado ainda não estava firmemente erguida, de modo que
eram comuns intromissões do público no privado. Consequentemente, alguns espaços a
princípio públicos poderiam oferecer maiores condições para a privacidade, do que casas,
quartos, aposentos de particulares. Vemos como, em seus dois sentidos, a distinção entre
público e privado era débil. Ao mesmo tempo, estava em curso o processo de
disciplinamento de corpos e condutas segundo a tecnologia da ética cortesã, que impunha
efeitos subjetivos não desprezíveis de teatralização e afetação da apresentação pública de
si, ao mesmo tempo que de dissimulação das partes de si mesmo rejeitadas para o âmbito
1224
SEDGWICK. Epistemologia do armário, p. 26.
1225
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 69-70.
1226
BATAILLE. O erotismo, p. 53-62.
506
Segundo Sedgwick, as duas frentes estão conectadas pelo elo da relação profunda
entre sexo e verdade na cultura ocidental. Resgatando Foucault, a teórica queer mostrou
que a imbricação entre sexo e verdade resultou na elaboração do sexo como a verdade,
isto é, como a principal verdade de si a ser posta em discurso (preferencialmente, em
alguma forma de confissão).1227 Trata-se de um processo iniciado ainda antes da
modernidade capitalista, na verdade, muito antes, como o filósofo mostrou na sua
genealogia do dispositivo da carne cristã.1228 Sedgwick fala de uma longa cadeia de
identificações entre uma sexualidade (prática sexual) e um posicionamento cognitivo
particular (subjetividade), que se fundaria nas condenações paulinas à sodomia, conforme
as estudamos na Parte I, e se estenderia até a identidade homossexual moderna.1229 Trata-
se de um bonito esquema, que precisamos quebrar para fazer saltar a descontinuidade
histórica que não pode ser subestimada entre o sodomita e o homossexual. A
descontinuidade está na posição do segredo em relação às práticas de subjetividade
distintas de uma e outra personagens. Enquanto para o homossexual moderno, o segredo
revelado do armário é construído segundo metáforas consolidadas e enrijecidas do dentro
e do fora (segredo/revelação, privado/público), para o sodomita do Antigo Regime, tais
metáforas não estavam consolidadas, devido à debilidade da separação do público e do
privado. Neste tópico, veremos casos em que a prática homoerótica e ou anal não tinha
muitas condições de ser mantida em segredo (a privacidade era precária em relações de
1227
"E onde hoje vemos a história de uma censura dificilmente destruída, reconheceremos antes o longo
progresso através dos séculos de um dispositivo complexo para fazer falar o sexo, para a ele amarrar a nossa
atenção e os nossos cuidados, para nos fazer acreditar na soberania da sua lei, quando, na realidade, somos
trabalhados pelos mecanismos de poder da sexualidade". FOUCAULT. História da sexualidade 1, p. 160.
1228
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 49.
1229
SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 73-4.
507
vizinhança), ao mesmo tempo que era imperativo que cada um afetasse, de maneira
teatralizada, um modo de existir cristão e devoto, afastado de tais práticas. A possibilidade
de uma fama pública de sodomita era perigosa, uma vez que poderia ser o primeiro passo
para se ver interpelado pelo Santo Ofício e enquadrado, por condenações infamantes,
como sodomita. Não obstante, existiu quem se apresentasse, em certas condições, como
sodomita, como logo veremos. Portanto, ainda que a sodomia acontecesse em relação
complexa com as definições de público e privado, não podemos entender essa relação
como funcionando totalmente de acordo com o mecanismo do armário homossexual
moderno, simplesmente porque as conexões entre verdade, poder e sexo que modelavam
as subjetividades sodomíticas não eram as mesmas que conformam a experiência
moderna da homossexualidade. Como sujeito jurídico, o segredo do sodomita não era
internalizado, introjetado ao longo das mesmas práticas de subjetividade que vemos no
sujeito biopolítico que é o homossexual. Tratava-se de uma outra forma de controle
jurídica (pastoral e soberana), não biopolítica.
1230
Diferenças mais radicais devem ser pensadas para as sociedades coloniais, como advertiu a historiadora
Laura de Mello e Souza. Dessa maneira, a transposição do conceito de Antigo Regime para a sociedade
colonial da América portuguesa exigiria atenção para as implicações subjacentes e para as relações que esta
sociedade estabeleceu com a Europa na qualidade de possessão externa. A autora mostra que falar de Antigo
Regime nos trópicos exige reconciliar esta categoria com as peculiaridades das colônias, notadamente, no
caso da América portuguesa, com o escravismo, mas também com o capitalismo comercial, a produção em
larga escala de gêneros coloniais e com a existência de uma condição colonial que se opunha, muitas vezes,
à de reinol. Em oposição às considerações de Laura de Mello e Souza, vários autores propõem a categoria
508
Adquirir certa fama era uma questão central nas sociedades de Antigo Regime.
Construir uma reputação positiva, por exemplo, de serviços prestados à Coroa para o seu
engrandecimento, poderia resultar em diferentes formas de benesses para os que os
desempenhassem, tornando-se reconhecidos como famosos por tal.1234 Por outro lado, ser
alvo de uma fama negativa, poderia acarretar consequências perigosas ao indivíduo.
de Antigo Regime como ferramenta para pensar a dinâmica imperial portuguesa no Período Moderno.
Conservando as ressalvas da autora, consideramos o conceito de uma sociedade de Antigo Regime na
América portuguesa útil para pensar a difusão da sociabilidade de corte como ética governante das relações
entre os indivíduos nas sociedades do império, sem perder de vista a especificidade da dinâmica público-
privado em contexto colonial, como abordado no início desse capítulo. SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e
a Sombra. Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 63-70; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; BICALHO, Maria Fernanda
Baptista. O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 21-5.
1231
XAVIER, Ângela; HESPANHA, Antônio Manuel. A representação da sociedade e do Poder. In:
HESPANHA, Antônio Manuel (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1993, p.
121-155.
1232
Para as ambiguas diferenças e aproximações entre as concepções do poder político mais ou menos
hegemônicas em Portugal (e na Península Ibérica) antes e depois da Restauração de 1640, ver TORGAL,
Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Volume II. Coimbra: Biblioteca geral da
universidade, 1982, p. 3-43.
1233
Trata-se de uma concepção corporativa da sociedade portuguesa do Antigo Regime. Segundo
Hespanha, a monarquia lusitana era corporativa, tendo como três principais características: “o poder real
partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor hierarquia; o direito legislativo da coroa era
limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius commune) e pelos usos e práticas jurídicos locais; os
deveres políticos cediam perante os deveres morais (graça, piedade, misericórdia, gratidão) ou afetivos,
decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes de amigos e clientes”. HESPANHA, António
Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO,
João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos
trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 164.
1234
Francisco Eduardo de Andrade explica como a representação de si como descobridor, a construção
desta fama e a prova dela como pública e notória, eram peças fundamentais nas petições que os primeiros
colonizadores de Minas Gerais enviavam à Coroa para angariar mercês e privilégios sobre a exploração das
riquezas, minerais ou não, da região. ANDRADE, Francisco Eduardo. A invenção de Minas Gerais.
509
Não obstante essa fama, de que deram testemunho várias pessoas, o caso de Matias
Franco chegou aos ouvidos dos inquisidores devido a um acontecimento imediato.
Ocorreu que, na noite do dia 26 de agosto de 1630 para o dia 27, ele foi dormir em uma
estalagem, propriedade de uma mulher castelhana chamada Francisca de Prado,
localizada às Carnecerias Velhas em Lisboa, próxima ao pelourinho, acompanhado de um
jovem rapaz chamado Gregório Palácios, que ele apresentava como seu sobrinho. Nessa
estalagem, dormiu em um quarto a sós com o falso sobrinho e dividiu com ele a cama.1237
Até aqui, nada de muito anormal, pois, como mostrou Elias, era costumeiro que muitas
pessoas dividissem o leito nesse período.1238 Uma má suspeita surgiu entre as pessoas da
estalagem, porque Matias Franco ia lá dormir várias vezes e com diferentes rapazes,
sempre bastante mais novos que ele. Levado por essa suspeita, D. Antônio Terrones, um
senhor castelhano que estava em romaria em Lisboa e se hospedara na mesma estalagem,
Empresas, descobrimentos e entradas nos sertões do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte:
Autêntica Editora; Editora PUC-Minas, 2008, p. 29-55, 218-234. Fabiana Léo mostra também como os
primeiros governadores da capitania de Minas Gerais tentaram construir para si uma fama heroica e
guerreira no combate à rebeldia escrava, com vistas a progredir na hierarquia nobiliárquica do Império
português. LÉO, Fabiana. Os capitães-generais e a resistência quilombola (1711-1722). A construção de
um discurso contra a rebelião escrava nas Minas auríferas. 2015. 142f. Dissertação (mestrado em História).
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015, p. 23-62.
1235
Conforme vimos anteriormente, Mott defende que as categorias fanchono e sodomita não tinham o
mesmo significado. A última dizia dos praticantes do sexo anal, ao passo que a primeira se reservava aos
que praticavam os diversos atos abrigados sob a rubrica de pecado de molícies. Essa distinção, contudo,
não aparece exatamente nesses termos no processo de Matias Franco, no qual ao menos uma testemunha
explicitamente disse entender por fanchono aquele que praticava a cópula anal, consumando o pecado
nefando, o que nos sugere que também o sexo anal tinha associações homoeróticas na cultura popular. Um
outro significado para fanchono, explicado por Mott, diz respeito às ambiguidades de gênero, referindo-se
à efeminação de alguns homens pouco viris. Na Parte II, quando estudamos os casos de Francisco Coelho
e de Maria Machada, vimos como a observação do autor tem procedência em várias expressões da cultura
popular no Império português da Época Moderna. MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal
nos tempos inquisitoriais, p. 128.
1236
A primeira descrição de Matias Franco que aparece no processo o apresenta como “hum homem
pequeno do corpo que traz hua mulleta / E temia cair, e representa Ser de idade de quasi / Cinquoenta
annos”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 9. O caso de Matias Franco foi
primeiro referenciado por Luiz Mott no seu artigo Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos
tempos inquisitoriais. MOTT. Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais,
p. 128.
1237
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 9.
1238
ELIAS. O processo civilizador, p. 157-164.
510
tratou logo de espreitar o que faziam o velho e o moço sozinhos no quarto. Vemos aqui
mais um caso de intromissão do público no âmbito particular, mostrando a precariedade
com que segredos privados eram mantidos. Assim, colocou-se à porta do quarto dos dois,
que estava fechada, e pôs-se a ouvir. Escutou e sentiu, então, como os dois brincavam na
cama, e que o velho disse ao jovem que se virasse, ao que este respondeu que queria fazer
primeiro, o que foi negado por Matias Franco. Depois, ouviu ainda sinais claros de que
faziam sexo, a cama e os parceiros gemiam. Nesse ponto, o romeiro foi buscar outra
testemunha, a criada Francisca da Silva, que também escutou os dois homens fazerem
sexo dentro do quarto.1239 Ouvida depois pela Inquisição, a criada corroborou essa
narrativa.1240
Dois dias depois de sua prisão, o réu foi submetido à sessão de interrogatório para
clarificação de sua genealogia. Em relação às perguntas gerais, deu alguns detalhes de
1239
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 9-10.
1240
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 11-13.
1241
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 5.
1242
O testemunho de Gregório Palácios foi tresladado para o processo de Matias Franco, porém, o processo
individual do jovem não se encontra digitalizado e disponível no site do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, motivo pelo qual não foi consultado nesta pesquisa. Seu código de referência é DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 00864. O sítio do arquivo registra a existência de um segundo processo
inquisitorial contra Gregório de Palácios, datando-o entre 1654-5, enquanto o primeiro contém a data de
1630-1640. A referência do segundo processo é DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00864-
1. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 15-17.
1243
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 33-34.
511
sua vida familiar, que se mostrarão importantes para o entendimento do seu meio social,
principalmente, sua relação conflituosa com sua esposa Caterina de Moraes, de alcunha
Garabulha, de quem estava apartado fazia dez anos. Além disso, Matias Franco começou
a pôr em ação a linha de defesa que manteve ao longo do processo, confessando pecados
menores, que não estavam na jurisdição do Santo Ofício. Assim, confessou ter praticado
o pecado de molícies com vários moços diferentes desde fazia 7 anos. Não nomeou,
contudo, nenhum deles. Continuou negando ter praticado o pecado nefando, com certeza
por saber da gravidade desse crime e tentando escapar das pesadas penas a ele
associadas.1244
1244
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 35-37.
1245
Segundo o regimento inquisitorial de 1613, a primeira sessão a ser feita com um réu preso era a de sua
genealogia, acompanhada de admoestação geral para que ele confesse suas culpas. A segunda sessão
deveria ser a de um interrogatório in genere, em que são feitas perguntas gerais de acordo com a culpa
particular pela qual o réu era acusado. Em terceiro lugar, aconteceria uma sessão de interrogatório in specie,
com perguntas mais específicas sobre as culpas do réu, porém, sem que se nomeassem quaisquer cúmplices,
para não sugestionar o réu. O regimento, todavia, não estabelecia prazos para a realização de cada sessão.
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado do
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos
de Portugal – 1613. Título IV, parágrafo XII: Da genealogia que se há de fazer na primeira sessão. RIHGB,
ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 629-631.
1246
Os familiares eram membros leigos que apoiavam a ação dos tribunais inquisitoriais. Gozavam de
privilégios papais (espirituais e simbólicos) e régios (poderiam incluir isenções de impostos de obrigações
comunitárias, de serviço militar ou de alojamento de tropas, permissão para vestir seda, mesmo sem ser
cavaleiro, licença de porte de armas ofensivas e defensivas, reconhecimento de jurisdição privada,
privilégios que mudavam no tempo e no espaço). Eram investidos por meio de processos de habilitação,
mais ou menos rigorosos conforme o lugar e o momento histórico, que objetivavam investigar a pureza de
sangue do candidato ao hábito de familiar. Assim, conquistar a posição de familiar do Santo Ofício se
512
setembro de 1630. Ele disse que conhecia o réu fazia anos, porque morava na sua
vizinhança, e que, havia por volta de 18 anos, Matias Franco tinha fama pública de
fanchono sodomítico, por manter conversações (termo que subentende sexo) com moços
e rapazes. Era visto com eles à noite, nas escadas e em partes escuras da cidade. Disse
ainda que fazia tempos que esperava que o réu fosse preso pela Inquisição, ainda que não
soubesse de nenhum caso em particular de sodomia que o envolvesse.1247
Relato similar fez o familiar Francisco Luís dois dias depois, dando mais detalhes
da fama pública de Matias Franco. Segundo sua narrativa, a fama do réu era antiga, de
pelo menos 15 anos. Ele seria chamado de fanchono por todas as pessoas que o
conheciam. É interessante notar que Francisco Luís associou explicitamente a categoria
de fanchono, de fundo popular, à de sodomita, termo do linguajar inquisitorial. Seria uma
instância de cruzamento e circulação de categorias eróticas entre os discursos da grande
e da pequena tradição? Detalhou ainda mais:
[…] e disto esta infamado, entre pessoas também de crédito, e entre seus
parentes, e dizem que seu trato é com rapazes, e que ele os alcovita para
outrem, ou o têm por alcoviteiro de outros. E por cabeça de alguns vinte e cinco
moços e homens deste trato, e pecaminosos em molícies e nefando. E esta é a
suspeita que dele se tem, e que acudiam à sua casa, e habitá-lo e chegaria o
negócio a tanto, que Felipe da Cruz, mestre da Capela da Misericórdia, que lhe
disse que muito tempo havia que esperava que o Santo Ofício o prendesse ao
dito Matias Franco, pelo que ouvia dele nesta matéria […].1248
Os dois familiares declararam que Matias Franco tinha fama pública de sodomita
não só bastante disseminada, como muito antiga, de quase duas décadas, sendo, portanto,
incluía nas estratégias de diversos grupos na luta por prestígio e privilégio dentro das sociedades de Antigo
Regime. No caso do Império português, isso é percebido também pelo grande crescimento da rede de
familiares mesmo ao longo do século XVIII, momento de crise da Inquisição. As funções dos familiares
eram principalmente de representação, como prender e transportar presos e acompanhar os condenados nos
autos da fé. Ver: BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 54-61,134-147; LOPES, Luiz Fernando
Rodrigues. Vigilância, Distinção e Honra. Inquisição e Dinâmica dos poderes locais no sertão das minas
setecentistas. Curitiba: Editora Prismas, 2014, p. 93-147. Sobre a ação dos familiares do Santo Ofício no
Brasil, ver os estudos pioneiros de Daniela Calainho e Aldair Carlos Rodrigues. CALAINHO, Daniela
Buono. Agentes da Fé. Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil colonial. Bauru: Edusc ed., 2006;
RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas Colonial. Os Familiares do Santo Ofício
(1711-1808). Dissertação (Mestrado em História). São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade d
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2007. Para mais detalhes sobre a atuação dos agentes externos da
Inquisição (familiares e comissários) na interpelação dos sujeitos sodomíticos, ver nossa discussão na Parte
II da tese.
1247
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 19.
1248
“[...] e disto esta infamado, entre pessoas / taõbem de credito, e entre seos parentes, e di / zem que seu
trato he Com rapazes, e que elle / os aCouita pera outrem, ou o tem por aCouui / teiro de outros, e por
Cabesa de alguns uinte/ cinco mosos, e homens deste trato, e pecaminosos / em molicias, e nefando, e esta
he a sospeita // que delle se tem, e que aCudiaõ a sua / Caza, e abitallo, e Chegaria o negocio a tan / to, que
felipe da Cruz, mestre da Capella de / mesericordia, que lhe dice que muitos tempos / auia, que esperaua
que o santo officio, o pren / dese ao dito matias franco pello que / ouuia delle nesta materia [...]”. DGA/TT
– Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 19-20.
513
significativo, do nosso ponto de vista, que nunca tivesse sido denunciado. Até mesmo
seus parentes a reconheciam. A questão que se impõe, então, é por que o réu levou tantos
anos para ser preso? A existência de uma fama pública como sodomita não era fator
suficiente para levar uma pessoa às barras do Santo Ofício? Ou outros fatores precisavam
intervir para canalizar essa fama em denúncias? Segundo Kamen, as sociabilidades no
nível das vizinhanças eram cruciais para a ativação do mecanismo de denúncias do Santo
Ofício. O autor comenta que, nas comunidades pré-industriais, as relações comunais eram
caracterizadas por sentimentos de pertença e bem-estar, ao mesmo tempo que por um
medo difuso do olhar dos vizinhos, devido à ausência de privacidade, de modo que
vizinhos nem sempre ofereciam uma boa-vizinhança. Nesses ambientes, as pessoas se
observavam, o que, aliás, era incentivado abertamente pela Igreja e pela Inquisição, como
temos visto. Formava-se um jogo complexo de observações e vigilâncias recíprocas, no
qual a reputação (a fama pública) construída modelava as atitudes dos vizinhos uns com
os outros. Comportamentos designados como corretos eram aqueles aceitos pela
comunidade e valorizados moralmente como bons, de acordo com os preceitos do
discurso religioso da carne cristã e pelas injunções de privatização de certos
comportamentos. Ao revés, o comportamento julgado incorreto era fruto de uma má
reputação (uma má fama) e poderia provocar conflitos mais ou menos graves na
comunidade em algum momento. Era normalmente nessa altura que o olhar inquisitorial
era atraído, quando os conflitos rompiam equilíbrios tensos nas relações de
vizinhança.1249 Teria sido assim que a Inquisição acumulara um saber sobre Matias
Franco e suas práticas sodomíticas?
1249
KAMEN. The Spanish Inquisition p. 1804-6.
1250
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 8.
514
do ato. Assim, o estilo inquisitorial ditou que se esperasse que mais denúncias ou
confissões fossem feitas, antes que se procedesse contra o suspeito – ainda não réu.1251
1251
O regimento inquisitorial de 1613 estabelecia que: “Posto que uma pessoa esteja indiciada de crime de
heresia e apostasia, se a prova não for bastante para prisão, a tal pessoa culpada não será chamada à Mesa,
nem examinada, nem se fará com ela diligência alguma, porque se sabe por experiência que não há de
confessar que é herege, estando solta em liberdade; e semelhantes exames servem mais de avisar os
culpados, que de outo bom efeito e assim convém mais esperar que sobrevenham novos indícios ou nova
prova”. REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado
do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos
Reinos de Portugal – 1613. Título IV, parágrafo III. RIHGB, ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1996, p. 627-628.
1252
FEITLER, Bruno. A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise, p. 34-37.
1253
Segundo Ronaldo Vainfas: “Mas, antes de estimular cumplicidades ou resistências, as inquirições e
visitas minavam as solidariedades, arruinando lealdades familiares, desfazendo amizades, rompendo laços
de vizinhança, afetos, paixões. Despertavam rancores, reavivavam inimizades, atiçavam velhas
desavenças”. VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 226.
515
No processo de Matias Franco, fica clara a existência de uma rede de inimigos que
desejavam sua ruína. Em suas contraditas, ele fala contra sua esposa Caterina de Moraes,
a Garabulha, Diogo Ribeiro, o homem com quem ela vivia amasiada, e toda uma rede de
pessoas, amigos ou familiares; afirma que os dois se articularam para prejudicá-lo ou
mesmo matá-lo.1255 Outro inimigo do réu era Antônio Soares Panteja, a quem Matias
Franco devia muito dinheiro e que, segundo o texto das contraditas, chegou a organizar
um complô, reunindo vários rapazes para denunciar o réu em uma devassa feita pelo
regedor de Lisboa contra os fanchonos.1256
Não foram, todavia, quaisquer dessas pessoas que denunciaram Matias Franco
inicialmente, como se tem visto. Ele foi denunciado por pessoas externas à sua rede de
relacionamento mais próxima, tanto que nenhuma das primeiras testemunhas disse da
fama pública de Matias Franco como sodomita. O que se pode pensar é que Matias Franco
conseguiu evitar que a fama pública que o perseguia e da qual ele estava ciente, em algum
nível,1257 chegasse ao conhecimento da Inquisição, provavelmente tendo algum cuidado
1254
Na América portuguesa, um caso de intrigas familiares envolvendo o pecado nefando e de tentativa de
manipulação da Inquisição é o do casal Pero Domingues e Maria Grega. A esposa acusou o marido de tê-
la sodomizado e articulou um complô familiar para conseguir que ele fosse condenado pelo visitador Heitor
Furtado de Mendonça. Contudo, o esposo conseguiu provar a existência da intriga e, argumentando seu
direito como marido de usar sexualmente da esposa, conseguiu ser absolvido. VAINFAS. Trópico dos
pecados, p. 231-232, ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 125-129. Nos reportamos, ainda, ao caso
de Francisco Coelho, que trabalhamos em detalhe no capítulo anterior.
1255
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 59.
1256
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 60.
1257
A oitava testemunha do processo, o barbeiro Pero Vaz, 30 anos, relatou ao inquisidor uma ocasião em
que brigara com Matias Franco, ao vê-lo comendo, em frente à sua tenda, com dois rapazes. A testemunha
516
para não ser visto nunca durante o ato sodomítico em si. Isso nos sugere uma manipulação
minimamente eficiente do seu segredo diante das condições precárias de privacidade da
Lisboa do século XVII, na qual Matias Franco dava a ver ao público certos
comportamentos, enquanto ocultava outros, cuja condenação moral era mais rigorosa e
perigosa, nomeadamente o sexo anal homoerótico, passível de ser enquadrado como
sodomia.
Não obstante isso, após a sua prisão e devido à sua estadia prolongada nos cárceres
do Santo Ofício, a fama pública de sodomita de Matias Franco entrou em ação com a
circulação das notícias. Tanto é que, com o passar dos meses, mais pessoas se
apresentaram à Inquisição para falar de culpas do réu. No total, mais quatro homens
confessaram envolvimento homoerótico com ele, José de Avelar, no dia 2 de dezembro
de 1630; Fernão Martins, em 18 de março de 1631; frei João de Santo Antônio, em 23 de
março de 1631 e João Gouvêa, em 8 de maio de 1631. Desses, apenas o frade não
confessou ter cometido a sodomia com Matias Franco, falando apenas do pecado de
molícies, o que nos é sugestivo de uma maior malícia do religioso na composição de seu
discurso confessional perante a Inquisição.1258
Os inquisidores reuniram, desse modo, quatro pessoas (os três acima e Gregório
Palácios) que confessaram ter praticado a sodomia muitas vezes com Matias Franco, além
do relato de Manoel de Figueiredo sobre uma sexta pessoa. Não fosse o suficiente, ainda
tinham em mãos quatro testemunhos que comprovavam a fama pública do réu como
sodomita e causador de grande escândalo entre todos os que o conheciam. Não
surpreende, portanto, que, ao julgarem o processo, os inquisidores tenham se pronunciado
nos termos seguintes:
tomou escândalo da situação e o chamou de fanchono, com o que o réu se agastou muito e falou que o
mataria com uma espingarda. Assim, Matias Franco deveria saber como era retratado por seus vizinhos,
conhecidos e familiares. Em seu depoimento, Pero Vaz ainda confirmou a fama que o réu tinha, dizendo
que era voz púbica que ele andava com moços de 17 ou 18 anos e sem barba, os quais iam à sua casa e
assentavam-se com ele nas escadas de Nossa Senhora d’Oliveira em São Julião. Disse mais que Matias
Franco os tratava com palavras brandas, chamando-os de manos e meninos. DGA/TT – Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 01201, fl. 22-23.
1258
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 01201, fl. 23-27, 29-30.
517
devia receber, para se usar com ele de misericórdia, que pede, atento não
satisfazer e ser maior e tão devasso e infamado, e ser necessário castigo
exemplar neste delito, neste tempo mormente, nos que são escandalosos. E
como tal convicto confesso e diminuto no crime abominável de sodomia, devia
ser entregue à Justiça secular ser natis servandis e que incorreu em confiscação
de todos os seus bens para o fisco e câmara real e nas mais penas em direito e
leis do Reino contra os semelhantes estabelecidas. E que vá este assento ao
Conselho Geral, conforme ao regimento. E assistiu pelo ordinário de sua
comissão o chantre João Bezerra Jácome.1259
Teria o réu, em seus momentos finais, tido um acesso confessional como o que
vimos, nos capítulos anteriores, acometer o padre Bartolomeu de Góis, outro infeliz
condenado à fogueira? Matias Franco foi levado a auto da fé público no dia 21 de março
de 1632, em cerimônia realizada na Ribeira de Lisboa. Ali, foi entregue à Justiça Secular,
na forma como descrevemos no capítulo anterior.1260 Antes disso, foi notificado,
conforme o estilo regimental, do que foi produzido um documento com o teor seguinte:
Auto de como foi notificado o réu Matias Franco de que estava relaxado.
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e seiscentos e trinta e
dois em Lisboa, nos Estaus, fui eu notário abaixo assinado aos cárceres do
Santo Ofício, à quarta casa do corredor novo, digo, velho debaixo, onde estava
preso o réu Matias Franco. E o notifiquei como por suas culpas estava relaxado
à Justiça Secular, que tratasse de se confessar para poder receber o Santíssimo
Sacramento. E logo lhe foram atadas as mãos e ficou com ele o padre Bento
1259
“foram uistos na meSa do Santo officio em 29 de ianeiro de 632 / estes autos culpas E confiSoῖs de
Mathias franco X N / que tanje rabequinha nelles conteudo E pareceu a todos / os uotos, que uisto deporem
contra o Réu dom Antonio de torrones / E francisca da Silua contestamente que Sentiram per Sinais que
elle / cometera o abominauel crime de Sodomia com gregorio de palacios / que tambem depoem o mesmo,
daquelle mesmo acto, E Iozeph / de auellar, E ioam de gouuea de poiem de outros actos conSuma / dos e
fernam mandes de Conatos prozimos, e outras testemunhas que / estaua grauemente infamado neste crime,
que a proua da / Iustiça era bastante para o auerẽ por conuicto, e que Sna confisã / Se naõ deuia receber
para se uzar com elle de miSericordia que / pede attento ^ nã Satisfazer E Ser maior, e tam deuaSso e
infamado, e Ser neceSa / rio castigo exemplar neste dilicto neste tempo mormente / nos que sam
eScandalozos, E como tal conuicto confesso E / diminuto no crime abominauel de Sodomia deuia Ser En /
tregue a Iustiça Secular Ser natis Seruandis e que encorreo em confis / cacã de todos os Seus bens para o
fisco e camera real e nas mais / penas em direito e leis do Reino contra os Semilhantes estabe / lecidas, e
que uaa este aSsento ao Conselho Geral conforme ao re / gimento e aSistio pello ordinario de Sua comiSã
o chantre / Ioam bezerra Iacome”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 028/01201, fl. 66.
1260
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 028/01201, fl. 71v.
518
de Sequeira da Companhia de Jesus. De que fiz este auto, Diogo Velho que o
escrevi.1261
A fama pública, portanto, foi não só um fator relevante no processo, como também
bastante prejudicial ao réu no desenlace final do seu processo. O que se pode concluir a
partir do caso de Matias Franco é que a prática homoerótica e sodomítica corria graves
perigos ao se expor na cena pública e, ainda mais, se fosse associada à apresentação que
cada um fazia de si perante os outros para se promover. Se a máscara que cada um vestia,
ao adentrar no palco que era a sociedade de Antigo Regime, determinava a posição de
cada um no teatro do mundo, a máscara sodomítica igualmente tinha um lugar
determinado para os que, ainda a contragosto, ousavam envergá-la. Esse lugar era a
fogueira inquisitorial.1264
1261
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 028/01201, fl. 69f.
1262
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 028/01201, fl. 42f, 60f, 65f.
1263
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 028/01201, fl. 66f.
1264
Após a confirmação do julgamento pelo Conselho Geral, Matias Franco foi levado ao auto da fé no dia
21 de março de 1632 e entregue à justiça secular para ser relaxado. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 01201, fl. 68-71.
519
1265
Segundo Stuart Hall, o movimento gay faz parte dos novos movimentos sociais que emergiram na
segunda metade do século XX no Ocidente. Outros exemplos de novos movimentos sociais são: feminismo,
lutas negras, movimentos de libertação nacional, movimentos antinucleares e ecológicos. Hall os designa
como novos, porque são produto da nova política de identidade que surgia no período e da desagregação
da categoria de classe social como identidade prioritária dos grupos sociais. O movimento gay dito moderno
se organizou primeiro nos Estados Unidos a partir do fim da década de 1960 (o que não quer dizer que
outras formas de luta políticas de pessoas LGBTQIA+ não tivessem ocorrido em períodos anteriores), sendo
seu evento definidor a batalha de Stonewall em Nova Iorque, em junho de 1969, atravessando, a partir de
então, diversas fases e espalhando-se por outros países ocidentais. No Brasil, o movimento homossexual
começou a se organizar ao fim da década de 1970 e no início da seguinte, no momento de abertura do
regime militar. A bandeira do orgulho, o assumir publicamente a identidade gay, foi levantada primeiro nos
Estados Unidos, dando nome às principais manifestações do movimento com as Gay Pride Paredes, as
paradas do Orgulho Gay, como ficaram conhecidas no Brasil. Ver: HALL, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005,
p. 7-22; GREENBERG. The construction of homosexuality, p. 455-481; MACRAE, Edward. Os
respeitáveis militantes e as bichas loucas. In: COLLING, Leandro. (Org.). Stonewall 40+ o que no Brasil?.
Salvador: EDUFBA, 2011, p. 21-35; PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O Arco-íris (des)coberto. Santa
Maria: Ed. da UFSM, 2009, p. 133-142. Para uma história mais ampla do movimento gay no Brasil, ver:
FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?. Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos
anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005; GREEN, James. Além do carnaval. A homossexualidade
masculina no Brasil do século XX. São Paulo: EDUNESP, 2000.
520
relação de orgulho que foi construída pelo movimento gay (mais recentemente,
LGBTQIA+) moderno? Se a experiência cristã do sexo engendrava sujeitos juridicamente
culpados, marcados por uma infinidade de técnicas ascéticas de mortificação do eu (des-
subjetivação), como poderia um sodomita ter orgulho do seu pecado? Em que medida
seria esse orgulho uma paródia dos enunciados e das hierarquias pastorais conformadores
da sodomia no discurso cristão?
1266
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 56-57.
521
encontros, tinha entre 17 e 18 anos, com quem o padre dividiu uma cama em uma
estalagem e a quem o padre tentou penetrar duas vezes, sem poder dizer se, de fato, o
conseguira. A mesma estratégia discursiva foi adotada em relação a André Ribeiro, rapaz
de 18 anos, a quem o padre tentara penetrar repetidas vezes, atrás da igreja de São Roque.
Finalmente, o padre Antônio Veloso confessou ter praticado molícies por detrás com dois
moços, Francisco Pacheco (de 15 ou 16 anos) e Manoel de Souza (17 ou 18 anos), com
quem partilhara a cama em uma ocasião em que dormira na casa de D. Antônio da Silva,
em novembro de 1637.1267
Vê-se em ação uma estratégia dupla do padre Antônio Veloso para tentar escapar
da sanha inquisitorial em 1638. De um lado, ele se apresentou voluntariamente, não
esperou ser convocado pelo Santo Ofício. Aos olhos do tribunal, tal proceder indicava
certo arrependimento do confitente e uma vontade de não incorrer mais no mesmo erro.
Por outro lado, o padre confessou ter praticado a sodomia com apenas um homem (ainda
que várias vezes), tendo o resto do relato consistido em molícies, um pecado fora da
jurisdição inquisitorial. A conjugação dessas estratégias garantiu que o padre Antônio
Veloso não sofresse processo em 1638. Porém, ele foi advertido, como era de praxe, a
não reincidir no pecado, caso em que seria severamente processado pelo tribunal.
1267
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 36-39.
1268
As testemunhas foram: Lourenço de Góis, em 24 de setembro de 1644; Antônio Rodrigues, em 3 de
março de 1644; Manuel Gomes, em3 de setembro de 1644 e 03 de junho de 1645; Manuel Nunes ou Duarte,
em 26 de setembro de 1644; Antônio Seixas, em 18 de junho de 1645; Luís de Abreu Cobreiro, em 17 de
junho de 1645; André Ribeiro, em 7 de setembro de 1644 e 20 de fevereiro de 1645; e Manuel Francisco,
em 14 de janeiro de 1645. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 5-6, 6-8, 8-11, 11-
14, 14-16, 16-18, 18-20, 34-35.
522
sexuais relatadas: ele apenas penetrava, sem nunca ser penetrado. Mesmo nas práticas de
molícies descritas, não se percebe que o padre tenha manuseado os falos dos parceiros
(apenas o contrário), nem ter tomado qualquer medida para o prazer deles além de os
penetrar. Não cremos ser desarrazoado conectar o padre Antônio Veloso tanto à formação
discursiva da masculinidade/atividade (a ordem de gênero tradicional nas sociedades
ibéricas e suas colônias americanas), como ao enunciado que assimilava o modelo da
antiga pederastia clássica à sodomia. Como se verá a seguir, a condição de agente
convicto no ato sodomítico era central na sua relação com o sexo, o homoerotismo e a
analidade. Mais ainda, o padre parece ter assentado, neste status relativo e contingente de
uma masculinidade viril e penetrativa, as bases de sua paródia do pastorado e da ética
cristãos relativos ao erotismo.
1269
Autores como Luiz Mott e Ronaldo Vainfas já apontaram para os modos como os encontros eróticos
de homens sodomitas foram, muitas vezes, atravessados pelas relações de poder mais gerais das sociedades
de Antigo Regime. Eles enfatizaram a exploração da miséria e a violência escravista passíveis de serem
reproduzidas nesses encontros. Ver: MOTT. O sexo proibido; VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 159-
176.
1270
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 3-4.
1271
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 40-51.
523
A situação do réu complicar-se-ia ainda mais após sua prisão, devido a dois
testemunhos que comprovariam sua persistência no pecado da sodomia, mesmo nos
próprios cárceres secretos da Inquisição. No dia 17 de agosto de 1645, o padre Antônio
Nabo de Mendonça denunciou à Mesa do Santo Ofício supostos crimes cometidos pelo
réu nos cárceres da Penitência. A testemunha os presenciara por também estar lá preso.
A denúncia do padre Antônio Nabo compreendeu vários crimes e é reveladora das
ligações sentimentais profundas que podiam existir entre aqueles que praticavam o
pecado nefando. Em primeiro lugar, o padre denunciou que ouviu o réu, seu companheiro
de cela, jactar-se de cometer o pecado de sodomia sempre na condição de agente. O relato
leva a crer que o padre Antônio Lourenço Veloso falava mais ou menos abertamente de
sua vida e de suas relações com a Inquisição com seus companheiros de infortúnio, visto
que ele também foi denunciado por quebrar o juramento de segredo imposto pelos
inquisidores (de forma dita atrevida e soberba), contando a seus pares detalhes dos
interrogatórios que sofrera na Mesa inquisitorial. Agravando a quebra do segredo, o réu
teria ainda dito que apenas se apresentara a segunda vez à Inquisição porque soubera que
um de seus parceiros sexuais fora preso, o que o fizera temer que ele réu fosse também
preso. Essa denúncia atingiria diretamente seu argumento de que estava arrependido de
suas culpas e por isso se apresentara, razão por que mereceria a misericórdia do tribunal,
o que foi levado em conta por alguns dos juízes.1272 Estaria o réu realmente arrependido?
Essa difícil pergunta também deve ter sido ponderada pelos juízes seiscentistas, para os
quais as atitudes do réu dificilmente poderiam ser concebidas como demonstrações de
contrição, no máximo de uma forma muito menor de arrependimento, aquele ligado ao
medo das penas pelo pecado, a atrição. Para os inquisidores, a atrição não era suficiente
para angariar a misericórdia do tribunal, que só era concedida aos prisioneiros que se
humilhassem e se prostrassem, dando provas visíveis e físicas de seu arrependimento,
como vimos na Parte II. Era preciso que o processo de subjetivação segundo as normas
do dispositivo da carne fosse muito mais profundo.
1272
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 25.
524
Sobre as relações do réu com outros sodomitas, o relato de Antônio Nabo revela
interessante contrapeso aos textos das denúncias, que não mostraram sentimentos, o que
era praxe na escrita dos processos, não indicando, necessariamente, que estivessem
ausentes nem nos encontros eróticos, nem nas narrativas orais das testemunhas. Nesses
casos, possivelmente, atuaram os filtros inquisitoriais. Geralmente, os relatos prestados
ao Santo Ofício não trazem informações sobre a existência de apego sentimental entre os
parceiros sexuais, limitando-se quase exclusivamente à descrição da mecânica erótica dos
atos sodomíticos. Isso certamente tem a ver com as Ordenações do Reino e os regimentos
inquisitoriais, que se focavam nas práticas, mais que no teor das relações entre os
praticantes. Segundo o relato da denúncia, porém, o réu teria o costume de falar, no
cárcere, de alguns moços gentis-homens com quem tinha o costume de praticar o nefando
(o que sugere talvez que ele tivesse parceiros outros além dos presentes nos autos de seu
processo), dizendo ter por eles saudades e grandes sentimentos.1274
1273
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 27-28. As críticas do padre Antônio
Lourenço Velos à Inquisição não devem ser tomadas como estranhas ao período, ao contrário. Como
mostrou Yllan de Mattos, existia, em Portugal, um leque disseminado de críticas populares à ação do Santo
Ofício, dentre as quais se destacava uma percepção de que os inquisidores eram interesseiros, corrompidos
e ambiciosos, objeção feita tanto por cristãos-novos, quanto pelos velhos. MATTOS, Yllan. A Inquisição
Contestada. Críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681). Rio de Janeiro: Mauad; Faperj,
2014, p. 121-166.
1274
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 27.
525
1275
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 26.
1276
BLUTEAU, Raphael. Puta; puto. In: BLUTEAU, Raphael Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 6, p.
837-8. Disponível em http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/puta. Acesso em out.2020.
526
1277
Durante os séculos XVI e XVII, o ideal da virgindade estava em alta nos meios monásticos,
especialmente femininos, da Igreja Católica. Sobretudo após as reformas inspiradas pelo Concílio de
Trento, os votos de castidade de freiras e monjas receberam maior destaque (do que os de pobreza e de
obediência) nos mosteiros espalhados pelo Império português. Frisava-se, assim, que as esposas de Cristo
deveriam ser virgens, ou seja, ocupar a posição de sujeito da virgindade cristã. GONÇALVES. Império da
fé, p. 21.
1278
BROWN. Corpo e sociedade, p. 18; FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 161-176.
1279
Dover explicou em detalhes, por meio de sua análise da acusação contra Timarco, as relações recíprocas
complexas e ambíguas entre a pederastia e a prostituição masculina na Atenas clássica. DOVER. A
homossexualidade na Grécia Antiga, p. 36-156.
1280
GRUZINSKI, Serge. Las cenizas del deseo. Homosexuales novohispanos a mediados del siglo XVIII.
In: ORTEGA, Sergio. De la santidad a la perversión. O de porqué no se cumplía la ley de Dios en la
sociedad novohispana. México: Editorial Grijalbo, 1986, p. 255-281. (Serie Enlace/Historia)
527
usado, na Época Moderna, para designar a criança em obras de arte, na forma italiana do
vocábulo, putto.1281 Significava também uma das fases da vida da criança, aquelas bem
pequenas. Os dois sentidos se uniam nas pinturas que decoravam os quartos das crianças
pequenas da realeza e da nobreza francesa, chamados chambres aux enfants, os quartos
dos putti, que era decorado com afrescos de crianças pequenas nuas. O putto, era, enfim,
um símbolo para a infância, tal como ela podia existir no Antigo Regime.1282 Destarte, ao
designar seus parceiros pacientes na sodomia como putos, Antônio Veloso resgatava uma
rede semântica prenhe de ambiguidades entre práticas eróticas, modos de existência e
fases da vida. Como as personagens elaboravam uma hierarquia erótico-anal nesse
contexto discursivo? Como essa hierarquia parodiava os mecanismos de interpelação, o
próprio poder pastoral, do dispositivo da carne?
Um dos fatos mais graves denunciados pelo padre Antônio Nabo foi o
relacionamento do réu com o jovem Joseph de Lis. Ao longo dos depoimentos das três
personagens em todo o processo, percebe-se que o padre Antônio Veloso devotou uma
atenção especial ao jovem preso. As versões serão conflitantes apenas quanto aos motivos
para tanto. O relato de Antônio Nabo é, em vários pontos, semelhante às denúncias feitas
contra o réu por seus antigos parceiros sexuais. Em primeiro lugar, o padre Antônio
Veloso tratou de aproximar-se do jovem, dizendo-lhe palavras brandas e procurando
pegar em seu corpo, estabelecendo uma proximidade corporal. A relação teria se
consumado em uma noite em que, dada a proximidade de seus leitos no cárcere, o padre
Antônio Veloso e Joseph de Lis teriam cometido o pecado nefando por três vezes. A
denúncia de Antônio Nabo baseou-se no fato de que, no dia seguinte ao suposto encontro
sexual, Joseph de Lis movera sua cama para longe da do réu e de que esse confessara à
testemunha ter praticado a sodomia com o jovem. Porém, ele considerou que tudo poderia
não ter passado de uma zombaria por parte do padre Antônio Veloso.1283
1281
Como nos informa o professor doutor Luiz Carlos Villalta, a categoria puto é usada ainda hoje, em
Portugal, para se referir às crianças. De modo que vemos a persistência, na longa duração, das ambiguidades
entre as categorias de inferioridade em recortes de gênero e etário na cultura portuguesa.
1282
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1986, p. 21; 41; 56; 61-2.
1283
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 26-27.
528
Castro (nome com o qual assinou seu relato nesse processo).1284 Ele era um jovem francês
de 19 anos e professava a fé judaica, estando preso na Inquisição por essa razão.1285 Em
seu testemunho, confirmou as denúncias do padre Antônio Nabo sobre os discursos
proferidos pelo réu no cárcere, dizendo que ele era dado a contar histórias do pecado
nefando, sempre com tom de orgulho por ser sempre agente nesse pecado. Confirmou
também as conversas lascivas mantidas pelo padre Antônio Veloso e os sodomitas João
de Freitas e João Lopes, nas quais o padre era tratado irônica e respeitosamente como o
“Provincial da sodomia” e os outros, como “putas” ou "putos". Igualmente confirmou as
críticas que o réu fazia ao proceder injusto do Santo Ofício ante os suspeitos de
sodomia.1286 Sobre seu relacionamento pessoal com o réu, no entanto, Isaac de Castro deu
uma versão diferente daquela de Antônio Nabo. Disse que o padre Antônio Veloso, de
fato, tentara cultivar uma relação de proximidade com ele, testemunha, tocando-lhe o
rosto, dizendo que ele estava melancólico ou que tinha espinhas. Também relatou que o
réu lhe mostrara seu pênis, pretextando pedir a sua opinião sobre se ele estava com algum
achaque na região. Esse fato teria lhe despertado a suspeita de que o réu tinha alguma
intenção lasciva.1287
Um detalhe relevante de sua denúncia é o relato que o padre Antônio Veloso teria
lhe feito sobre seu modo de conquistar outro homem para a prática do pecado nefando. A
tática consistiria em não tentar tudo – leia-se por “tudo” a penetração anal – logo da
primeira vez, mas em ir aos poucos conseguindo as facilidades, até conseguir a cometer
o pecado. Por facilidades, devem ser entendidas práticas eróticas preliminares, como
masturbações recíprocas ou pelas coxas do alvo pretendido. Joseph de Lis enfatizou que
não cometera o pecado nefando com o réu, mas que percebera que essa era a intenção do
padre, motivo pelo qual movera seu leito para longe do padre, como também relatara o
padre Antônio Nabo.1288
1284
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 33.
1285
Ronaldo Vainfas estudou o processo de Isaac de Castro ou Joseph de Lis, em seu livro Jerusalém
Colonial. Segundo o historiador, ele foi preso na Bahia em 1644, tendo sido remetido para Lisboa no ano
seguinte. Preso nos cárceres secretos da Inquisição, seu processo alongou-se por dois anos, ao fim dos
quais, por negar-se a converter-se ao cristianismo católico, foi relaxado ao braço secular e morto em auto
de fé no dia 15 de dezembro de 1647. Isaac de Castro foi posteriormente homenageado pela comunidade
judaica de Amsterdã, celebrado como um dos judeus heroicos que enfrentaram a Inquisição portuguesa,
recebendo uma biografia ilustre escrita por Elias Lipiner em 1992. VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém
colonial. Judeus portugueses no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 308-327.
1286
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 30-31.
1287
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 31.
1288
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 31-32.
529
Não há como saber com certeza se Antônio Veloso e Joseph de Lis realmente
ousaram cometer a sodomia sob os narizes dos inquisidores, pois ambos negaram com
veemência o fato.1289 A explicação dada pelo padre Antônio Veloso para suas atenções
ao jovem francês foi que ele tentara afastá-lo da lei mosaica, convertendo-o ao
cristianismo católico. Não obstante, os testemunhos do padre Antônio Nabo e de Joseph
de Lis apontam para maneirismos do réu, que se coadunam com suas práticas eróticas
narradas pelas denúncias iniciais e por suas confissões. Em todas elas, vemos que o réu
nunca cometera o pecado nefando logo de saída. Com todos os seus parceiros, sempre ele
iniciara os contatos eróticos através das molícies (seriam masturbações preliminares?). A
penetração anal foi sempre uma etapa posterior, às vezes antecedida por mais de um
encontro somente com masturbações. Essa estratégia leva a crer, juntamente aos indícios
de que o réu nutria sentimentos profundos por alguns de seus parceiros, que a categoria
de sodomia, conforme manipulada pelos inquisidores, funcionava como uma tecnologia
de enquadramento e simplificação de uma realidade muito mais complexa de atos,
prazeres e sentimentos entre os amantes homoeróticos, pretendendo reduzi-los a uma
mecânica sexual centrada na penetração anal com ejaculação interna ao ânus. Por essa
perspectiva, os encontros, aparentemente, sem maiores consequências que o gozo dos
envolvidos, pelas práticas as mais variadas, mas que podiam se fazer acompanhar, de
maneira mais ou menos explícita (conforme a circunstância) de sentimentos afetivos mais
ou menos profundos entre os parceiros, podem ser lidos como uma espécie de resistência
local importante ao dispositivo da Carne cristã que orientava as relações de poder nas
sociedades de Antigo Regime.1290
Ao longo do mês de junho de 1645, o réu foi submetido a mais três sessões de
interrogatório (de genealogia, de genere e in especie por diminuições e de admoestação,
antes da apresentação do Libelo da promotoria). Nelas, o padre Antônio Veloso começou
1289
Ronaldo Vainfas, evocando o biógrafo Lipiner, também não chegou a uma conclusão decisiva sobre o
quanto de teor sexual houve na relação entre Isaac de Castro e o padre Antônio Veloso, mas pondera como
poderiam ter sido atraentes e, talvez, até reconfortantes, para o jovem prisioneiro as atenções e carícias que
lhe devotavam o Provincial da Sodomia. Não havendo como responder definitivamente a essa questão, cabe
ao leitor imaginar. VAINFAS. Jerusalém colonial, p. 321-322.
1290
Conforme mostrou Carlos Figari, é preciso resistir ao apelo de projetar sentimentos de um amor
romântico para contextos culturais anteriores ao romantismo do século XIX. Segundo o autor, "O amor
romântico modifica também as subjetividades masculinas. O 'sexo feio' quer amar e viver histórias
passionais, ainda que em detrimento de sua autoridade e de suas funções de direção". Formaram-se, no
contexto oitocentista, novos arranjos afetivos, no âmbito das famílias, mas também no das práticas de
subjetividade, os quais arranjos não tinham existência histórica anterior. O que não é invalidar ou apagar
os sentimentos, por vezes, fortes e profundos entre os amantes dos séculos anteriores, apenas iniciar um
movimento para explorar a historicidade desses sentimentos. FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 152-158.
530
Durante o seu processo, o réu foi submetido a dois Libelos Acusatórios e a duas
Provas da Justiça, nas quais a Inquisição apresentava, progressivamente, as evidências,
cada vez mais contundentes, das culpas do sacerdote. As provas inquisitoriais enfatizaram
a continuada prática sodomítica do padre Antônio Veloso, procurando mostrar que ele
não só não se arrependera verdadeiramente de seus erros, como crescera sempre em
devassidão na prática dos mesmos, não obstante ter-se apresentado duas vezes para
confessá-los. Também foram enfatizados os elementos das denúncias do padre Antônio
Nabo e de Joseph de Lis, com o objetivo de comprovar o apego contumaz do réu ao
pecado nefando, inclusive tendo tornado a cometê-lo na prisão.1292
Para sua defesa, o réu arrolou muitas contraditas, chamando a testemunhar vários
clérigos da igreja de São Nicolau, com o objetivo de atestar seus bons costumes e sua
vida honesta. Contudo, muitos dos padres, embora dissessem que o réu levava, até onde
sabiam, vida limpa, confirmaram que ele tinha fama pública de sodomita, devido às
amizades que mantinha com diferentes homens infamados no mesmo pecado.
Novamente, há um sinal de que o padre Antônio Veloso mantinha relações afetivas
profundas com outros sodomitas, não limitando seu convívio ao ato sexual. Além disso,
a fala das testemunhas mostra que, também nesse caso, como no de Matias Franco, visto
anteriormente, a existência de uma fama pública negativa, a de ser tido e havido como
sodomita, pesou contra o réu em seu processo.1293
Ouvidas todas as testemunhas e após o réu não levantar contraditas contra a quarta
prova da Justiça, os juízes inquisidores reuniram-se para considerar a culpa do réu e qual
sentença seria cabível. Quanto à culpa, todos concordaram ser o padre Antônio Veloso
culpado no crime de sodomia, por suas confissões e pelas provas de justiça. Não houve,
porém, acordo quanto à pena a ser-lhe imposta. Alguns juízes tomaram como atenuantes
os fatos do réu ter feito confissão inteira (embora um exame atento dos autos do processo
mostre que isso não era verdade), ser clérigo e não ser publicamente escandaloso e
1291
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 56-57, 58-59, 59-62, 62.
1292
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 63-64, 79-80, 99-103, 119.
1293
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 81-96, 113-118.
531
1294
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 121-122.
1295
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 123.
1296
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04810, fl. 125-137.
532
1297
Pedro Paulo de Oliveira marca a masculinidade cortesã como elemento de transição entre dois padrões
antitéticos do que era ser homem, o do nobre guerreiro medieval e o do homem burguês. Assim, a
masculinidade cortesã incorpora alguns elementos novos, em relação à medieval, como a competência na
execução de tarefas e a responsabilidade, que se tornariam centrais para o homem burguês posteriormente.
Ao mesmo tempo, o homem nobre, para se qualificar como homem, mantinha-se comprometido com
valores tradicionais, como a lealdade, a probidade, a correção, a coragem, a bravura, a sobriedade e a
perseverança. Na transição para o padrão burguês de masculinidade, valores como coragem e bravura serão
esvaziados de suas conotações violentas. O autor interpreta a prática do duelo como exemplar dessa
transição. A leitura feita por Hervé Drévillon da transformação do guerreiro medieval no militar moderno
caminha na mesma direção, quanto à transição de um padrão de masculinidade caracterizado pela violência
exacerbada e exteriorizada, para um burguês em que a violência é internalizada. Sobre o padrão de
masculinidade dos clérigos, Jean-Marie Le Gall comenta que, no Período Moderno, os sacerdotes
expressavam uma virilidade ambígua, pois ao mesmo tempo em que fogem às práticas mais comumente
associadas à virilidade (ao menos em teoria), especialmente a prática sexual, eles exerciam autoridade, eram
respeitados e temidos; nesse sentido, eram másculos. Roberth Daibert Jr. vai além, em seu estudo sobre a
masculinidade dos padres no Brasil colonial, e comenta como a autoridade clerical muitas vezes foi o
elemento que tornava os sacerdotes eroticamente atraentes e cobiçados. OLIVEIRA. A construção social
533
no negativo a condição do ser mulher ou do ser criança (no sentido grego antigo),
entendidas como penetrável por natureza. Uma outra característica da masculinidade
aparente aqui é a necessidade de prová-la repetidamente. Vem daí a incontrolável
verborragia erótica do padre, mesmo em situação de risco como a que ele estava.
Os autores levantam sua argumentação com mira nas violências que pesam na
contemporaneidade sobre os homossexuais, especialmente os que aceitam e sentem
prazer em ser penetrados, e sobre quaisquer pessoas que têm prazer erótico no ânus. Por
isso, é necessário um cuidado histórico ao trazer essa discussão para o Período Moderno.
Como temos visto ao longo da tese, há uma descontinuidade histórica que não pode ser
menosprezada entre o ser sodomita e o ser homossexual, a qual dizia da disparidade dos
regimes de saber-poder-subjetivação que conformavam cada categoria de interpelação.
Isso nos leva a perguntar sobre as consequências, no sentido dos processos de
normalização, do ser penetrado pelo ânus no contexto do dispositivo da carne cristã.
Os vários casos trabalhados nesse capítulo mostram que ser o amante penetrado
no sexo sodomítico acarretava consequências similares àquelas sofridas pelo que
penetrava. Aos olhos da Inquisição, ambos eram cúmplices no mesmo pecado; o homem
penetrado só teria algum atenuante se ficasse provado que sofrera estupro e, mesmo
assim, seria no mínimo admoestado a que não repetisse o ato e receberia penitências
espirituais. Ou seja, os dois eram interpelados, pois os inquisidores pretendiam produzir
os discursos de verdade e as formas de subjetividade de ambos. A diferença estaria na
violência das técnicas utilizadas em cada circunstância. Os casos mais graves poderiam
vir a sentir todo o peso da vingança que marcava o poder do soberano no período. Além
do caso de tentativa de estupro praticado pelo padre Antônio Lourenço Veloso, pode-se
1300
SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 27.
535
retomar os estupros cometidos pelo sapateiro André Lessa, em Olinda. Ser penetrado
analmente trazia, sim, desdobramentos perigosos, ainda mais se fosse presente uma fama
pública de que se praticava o sexo anal (em qualquer postura), porém, ao menos perante
a Inquisição, as consequências não seriam muito diferentes daquelas sofridas pelo
penetrador. Como foi visto em relação a Matias Franco e também sobre o padre Veloso,
a fama de sodomita gerava inimizades, ódios, intrigas e era um agravante nos processos
inquisitoriais. Desse modo, praticar o sexo anal, penetrando ou sendo penetrado, de fato,
transformava as pessoas, não da mesma forma como será depois, com a criação da espécie
homossexual, mas no estatuto jurídico que a pessoa possuía. Ela ficava ameaçada de ser
conhecida como sodomita e até condenada na Inquisição como tal. Uma condenação
inquisitorial por sodomia era uma pena infamante, que transcendia o próprio autor do ato,
sendo transmitida a seus descendentes, como prescreviam as Ordenações Filipinas:
Qualquer Pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de Sodomia, por
qualquer guisa fizer, seja queimado, e feito por fogo em pó…; e mais pelo
mesmo caso seus filhos, e descendentes ficarão inábeis, e infames, assim
propriamente como os daqueles que cometem crime de lesa-majestade contra
seu Rei e Senhor.1301
Por certo, a flagrante hierarquia estabelecida pelo padre Veloso e seus parceiros
eróticos não pode ser tomada como uma regra geral para as relações sodomíticas e/ou
homoeróticas no período. Aliás, é exatamente porque as personagens envolvidas nesse
caso exageram e nomeiam uma hierarquia pautada na diferença das posições no sexo anal,
1301
“Qualquer Pessoa, de qualquer quallidade que seja, que peccado de Sodomia por qualquer guiza fizer,
seja queimado, e feito por fogo em pó...; e mais pelo mesmo caso seus filhos, e descendentes ficarão
inhabiles, e infames, assim propriamente como os daquelles, que comettem crime de leza Magestade contra
seu Rey, e Senhor”. Ordenações Filipinas, Livro 5 Tit. 13: Dos que cometem pecado de sodomia, e com
alimarias. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1162.htm. Acesso em out.2020.
1302
SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 33-36.
536
1303
SAEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 29-30
1304
GREEN, James N.; POLITO, Ronald. Frescos Trópicos. Fontes sobre a homossexualidade masculina
no Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 27-34.
1305
Segundo a autora, o peso maior que se dá, nessas culturas, à hierarquização de gênero, conforme a
postura sexual no ato homoerótico anal, foi responsável pela mais lenta difusão do conceito de identidade
homossexual nessas regiões. SEDGWICK. Epistemology of the closet, p. 159, nota 32.
537
Um outro caso que nos é útil para pensar as complexas relações de gênero e
eróticas entre a sodomia (como categoria jurídica de identidade) e a função anal ativa é o
do senhor de engenho Pero Garcia. Ele se confessou ao visitador Marcos Teixeira em 17
de setembro de 1618 em Salvador, durante a Segunda Visitação do Santo Ofício às partes
do Brasil. Essa personagem, senhor de quatro engenhos, portanto, bastante rica e
poderosa, confessou ter mantido relações sodomíticas, sempre sendo o agente
(penetrante) no ato, com diversas pessoas, a maioria sendo escravos ou criados forros:
João Fernandes, Joseph mulato forro, um mulato forro do qual não se lembrava o nome,
Bento e Jacinto (esse, um moleque escravo de poucos anos), mas também com Maria
Álvares, mulher casada, cujo marido estava ausente. Pela narrativa de sua confissão, bem
como pelo que lemos nos relatos dos e da parceira que também confessaram, vê-se que
Pero Garcia usava as relações sodomíticas que mantinha com essas pessoas como forma
de reiterar sua posição de poder e dominância sobre elas, de modo que sua prática erótica
anal se ligava à performativização da sua masculinidade por meio de signos de violência
e penetração. Outros dois detalhes dos relatos são importantes: um, que o mulato forro
Jozeph era chamado, por Juliana e Inês, escravas indígenas do Brasil, de “manceba de seu
senhor”, indicando que, do seu ponto de vista, uma vez que Jozeph mantinha uma relação
erótica (e talvez emocional) com seu senhor, ele expressaria seu gênero no feminino. O
segundo detalhe é que a situação de Maria Álvares, casada com marido ausente, pode ter
sido interpretada por Pero Garcia como uma abertura para sua intervenção erótica,
assimilando-a à condição de mulher pública, disponível ao uso erótico masculino, uma
vez que não era mais virgem e não estava sob a tutela do marido. Fica claro como a prática
do sexo anal podia ser usada para reproduzir as hierarquias sociais e de gênero nas
sociedades do Império português no recorte.1306 Nesses usos, a possibilidade de atuação
de uma função anal ativa ficava repudiada ou foracluída.1307
1306
Segunda visitação do Santo Oficio às partes do Brasil – livro das ratificações e confissões da Bahia:
1618-1620: confissão de Pero Garcia, p. 444-446; confissão de João Fernandes, p. 392-393; confissão de
Jozeph Fernandes, p. 490-491; confissão de Bento, p. 496-497. À margem da confissão de Pero Garcia,
está escrito “A dita Maria Alverez confessou dentro do tempo da graça o dito pecado na conformidade do
confitente e tomou-se-lhe sua confissão em memorial, e se não lançou nesse livro por causa de sua absencia
e de o Inquisidor se ir para o Reino”.
1307
O caso do senhor de engenho Pero Garcia ilustra a observação feita por Gonçalves sobre como, nas
colônias portuguesas, o ideal do nobre cortesão não foi hegemônico, submetendo-se à ideia do aventureiro
bruto e guerreiro. Brutalidade que se manifestava também no "transbordamento de sexualidade" que
conformava as relações de dominação em torno do complexo da casa-grande e da senzala. O "nobre", ou
senhor, colonial e patriarcal, acostumava-se, por conseguinte, a usar a força também em seu erotismo
desmedido. GONÇALVES. Império da fé, p. 28-37.
538
Tais hierarquizações e bloqueios anais não podem, contudo, ser tomados como
universais ou regras de conduta dos praticantes do homoerotismo sodomítico nos tempos
e espaços aqui estudados. Tanto é, que, em muitos outros casos, essas hierarquias, e as
exclusões que subentendem, estavam, aparentemente, ausentes, acontecendo de os atos
eróticos do sexo anal não corresponderem a uma hierarquização semelhante à que foi
estudada pelos autores citados acima durante os séculos XIX e XX, estando o prazer anal
desbloqueado. Isso não significa dizer que não houvesse outras formas de hierarquias
nessas relações, reproduzindo, de outras maneiras, o ordenamento mais amplo das
sociedades de Antigo Regime. Ou, ainda, que a manipulação das hierarquias eróticas e
anais não pudesse configurar certa contraconduta nos termos do pastorado cristão. Vale
a pena detalhar ao menos um caso interessante nesse sentido.
539
Frei Duarte Pacheco foi também autor de obras eruditas e sermões, publicados em
vida. Tais como Vida, virtudes e milagres de S. Clara de Monte Falco, uma tradução da
obra de Miguel Solon, publicada em Lisboa em1628; Epítome da Vida Apostólica de S.
Thomaz de Villa Nova, arcebispo de Valença, com um tratado da vida do Venerável
Padre Frei Luiz da Moytoia, publicado em Lisboa em 1629; Sermon de la S. S. Trinidad,
publicado em Córdoba em 1636; Triunfos do S. S. Sacramento e de sua devida adoração
e culto, bem como Sermões do S. S. da Ordem. Conservaram-se, ainda, alguns
1308
A partir de sugestões da professora doutora Margareth de Almeida Gonçalvez, consultei a
documentação seguinte. ORDEM dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834). Edição da
colecção de memórias de Fr. Domingos Vieira, OESA. AZEVENHO, Carlos A. Moreira (Org.). Lisboa:
Universidade Católica Portuguesa; Centro de Estudos de História Religiosa, 2011; ALONSO, Carlos (Org.)
“Las profesiones religiosas en la Provincia de Portugal durante el período 1513-1631”, in Analecta
Augustiniana 48 (1985) 331-389. Agradeço à professora pelas referências e por sua gentileza em enviar a
digitalização das fontes.
1309
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 4.
1310
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 50-51.
1311
ORDEM dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834), p. 363; ALONSO, “Las
profesiones religiosas en la Provincia de Portugal durante el período 1513-1631”, p. 359.
1312
ORDEM dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834), p. 363; DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 3, denúncia de Jorge Mendes.
540
manuscritos de sua autoria, como a Vida da Beata Verônica de Binarco, traduzida para
português a partir do latim do Fr. Isidoro de Issolanis, dominicano, além de tratados de
diferentes matérias.1313 Além disso, era viajado, tendo estado em Madri e em Roma, onde
disse ter conhecido o papa.1314 Por essas informações e pela forma como o processo foi
conduzido, como se verá a seguir, percebe-se que se trata de uma personagem com poder
e prestígio em sua Ordem, ocupando posições de autoridade em mais de uma ocasião.
Entre os denunciantes, apenas dois não falaram de cópulas sodomíticas com o réu:
Manoel da Silveira, o segundo denunciante, e Valentim Côrrea, o nono. Isso não quer
dizer que não praticaram outros atos homoeróticos com ele. Manoel da Silveira tentou
penetrá-lo, acabando por gozar às bordas do ânus do réu, e Valetim Côrrea contou como
1317
frei Duarte o beijara. Dos demais, seis confessaram ter praticado a sodomia à
perfeição com o réu, isto é, executando penetrações anais e depositando a semente dentro
do vaso traseiro – quase sempre no do réu, que praticou o ato no papel de paciente com
todos os denunciantes, exceto Jorge Mendes de Oliveira1318 e João Soares (nesse caso, os
dois revezaram a penetração)1319. Somente Diogo de Azambuja de Carvalho falou de
1313
ORDEM dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834), p. 363.
1314
“[…] que pedia, pelas chagas de Nosso Senhor, que se dobrassem as penitências e que lhe desse o Santo
Ofício as que que lhe parecesse em respeito de sua pessoa, das quais só não as dessem, por amor do crédito
que houvera da sua religião e de seus parentes, que ele estava em estado muito favorecido, que Sua
Santidade escrevera um bilhete à sua mesma mãe em louvor dele”. Transcrição semi-diplomática, “[…]
que / pedia pellas chagas de Nosso Senhor que Se dobrassem as peniten / çias, e que lhe desse o santo
officio as que lhe pareçesse ẽ respei / to de Sua pessoa, das quais se naõ Soo desse por amor do / credito le
houvera de a da sua Religiaõ e parentes e / que elle estaua ẽ stado mui fauorecido, e que Sua santidade escre
/ uera hũ bilhete a Sua mesma mai ẽ louuor dele”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899,
fl. 33.
1315
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 3.
1316
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 9-10.
1317
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 3-4; 8-9.
1318
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 3.
1319
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 6-7.
541
penetração anal ou sem gozo, enquanto o frei Diogo Lobo, ou da Ressurreição referiu-se
à efusão fora do vaso traseiro.1320
1320
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 4-5; 5.
1321
HESPANHA. Imbecillitas, p. 69-82; ARIÈS. História social da família e da criança, p. 195-274.
1322
“e nisto o ditto padre Frej Duarte Pacheco, lhe disse / que se quisesse por de bruços, e que Cometeriaõ
o peccado / de Sodomia, e elle declarante se poz de bruços”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 04899, fl. 3 verso.
1323
“o ditto Frade leuou a elle Confitente / a hum Campo de dia, e tirando ambos os Calçoẽs o / ditto Frade
Se deitou de Jlharga, e mandou a elle Con / fitente que metesse Seu Membro Viril no trazeiro / delle ditto
Frej Duarte”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 4 frente.
542
confitente para pecar”.1324 Diogo de Azambuja de Carvalho, por sua vez, revelou que “o
dito Frei Duarte chamou, uma noite, a ele Confitente, para a sua cama, e estando nela,
entre os lençóis, o dito frade se virou de bruços e disse a ele confitente que se pusesse em
cima”.1325 João Soares declarou que o frade “deitando-se de bruços, com as calças baixas,
disse a ele, confitente, que se pusesse em cima e dormisse com ele por detrás”.1326 João
de Gouvêa contou que “Frei Duarte o cometeu para o pecado nefando”.1327 Por fim,
Bartolomeu de Tovar disse que “Frei Duarte cometeu a ele confitente para o pecado
nefando”.1328
Os dois frades que denunciaram o réu nesse estágio inicial do processo não
fizeram menções a quem teria iniciado os contatos eróticos, o que pode ser tomado como
outra evidência da situação de maior paridade social entre cada um deles e frei Duarte,
em comparação com o poder que esse exercia sobre os outros denunciantes. Embora o
criado Valentim Côrrea não tenha cometido a sodomia (ou sequer o pecado de molícies,
masturbações) com o réu, seu relato é significativo para o conhecimento das estratégias
executadas por frei Duarte para obter que um jovem inferior cometesse com ele o pecado
nefando. Assim:
disse que o que tinha que denunciar era que, anteontem, que fora vinte e um
do presente, foi ele denunciante ao mosteiro de Nossa Senhora da Graça com
um recado do dito seu amo ao Padre Frei Duarte Pacheco, e vindo-lhe o dito
Padre falar ao corredor que está junto da portaria, estando ali com o dito Padre
João, dando-lhe o recado, o dito Padre lhe pegou na mão e lha apertou e lhe
disse que lhe apertasse a sua, e que havia muitos dias que andava desejando
ser seu, se ele denunciante quisesse ser seu, e que lhe havia de dar palavra
disso. E chamando o Padre junto a uma coluna, que está junto a uma capela do
dito corredor, lhe deu um beijo e lhe disse: mas não metereis por entre as pernas
a Vossa Torcida. E ele denunciante lhe disse que lhe desse a resposta do recado
que não tinha que entender com aquelas razões. E o dito Padre lhe cometeu
que quisesse lá tornar à tarde, que iriam à sua cela, onde tinha muitas coisas
boas e que lhe proveria a bolsa cada oito dias, e lhe daria meias de seda. E disto
1324
“encontrou com hum religiozo da / mesma Ordem, por nome Frej duarte Pacheco filho / [...] o qual o
foi leuando a elle confitente para Sua / Sella, e fechando a porta Cometeo a elle Confi / tente para peccar”.
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 4 verso.
1325
“o ditto Frej / duarte chamou huã noute a elle Confitente, para / a Sua Cama, e estando nella entre os
Lançois, o / ditto Frade Se uirou de bruços e disse a elle Confitente / que se pusesse en Sima”. DGA/TT –
Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 5 frente.
1326
“e logo deitandosse / de brussos Com as calças baixas disse a elle Confitente // que se pusesse en cima
e dormisse Com elle por detras”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 6 verso – 7
frente.
1327
“Frei Duarte o Cometeo para o peccado Nefando”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
04899, fl. 7 verso.
1328
“dito Frei Duarte cõmetteo a elle / confitente para o peccado nefando”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 04899, fl. 10 frente.
543
entendeu ele denunciante que o dito Padre o cometia para o pecado nefando,
do que ficou muito escandalizado.1329
A narrativa de Valentim Côrrea mostra como frei Duarte estava com ele
encantado, talvez há vários dias, e, através de contatos corporais progressivamente mais
intensos, indo de um aperto de mão a um beijo furtivo, tentou criar uma relação com o
jovem. Ousando ainda mais, o frade convidou o denunciante a ir à sua cela, onde lhe daria
presentes e dinheiro. Não sendo ingênuo, Valentim Côrrea entendeu que tais benesses
não viriam de graça, o preço seria cometer com o frei o pecado da sodomia.
Logo, fica patente como frei Duarte usava de sua posição de poder e riqueza para
conseguir favores eróticos de muitos jovens que lhe eram inferiores socialmente. Todavia,
os atos eróticos desejados por frei Duarte não reproduziam a hierarquia social da mesma
forma que aqueles praticados pelo padre Veloso estudado anteriormente. Isso porque, na
maioria das vezes, frei Duarte foi o parceiro penetrado, agindo poucas vezes como o
agente penetrador. Significaria isso que essas relações eróticas não eram atravessadas por
relações de poder hierárquicas? Ou poderia ser que a inflexão das relações de poder
mudava conforme a privacidade ou a publicidade das relações? Está claro que as relações
não aconteciam em um vácuo de poder, como os relatos das denúncias demonstram. O
que se pode entender é que frei Duarte manipulava as hierarquias sociais para desfrutar
do prazer como lhe parecia melhor, no âmbito que pretendia que fosse privado, sem pautar
publicamente o ordenamento social em termos diretamente relacionados a seu erotismo –
como faziam o Provincial da Sodomia e suas putas ou putos.
A maneira como frei Duarte conduzia a si e aos seus parceiros para o gozo de
experiências erótico-anais duplamente dissidentes, nos inclina a pensar suas ações como
uma espécie bastante localizada e algo precária de contraconduta em relação às injunções
do dispositivo da carne sobre a sodomia. Em primeiro lugar, por que podemos dizer que
1329
“diSse que o que tinha que / denunciar era que antehontem que fora Vin / te e hum do prezente foj elle
denunciante / ao mosteiro de noSsa senhoRa da graça com / hum recado do dito Seu Amo ao Padre Frei Du
/ arte pacheco, e uindo lhe o dito Padre fallar / ao Corridor que esta junto da portaria / estando allj com o
dito Padre Joaõ dando / lhe o recado o dito Padre lhe pegou na maõ / e lha apertou e lhe disse que lhe
apertaSse / a Sua, e que hauia muitos dias que // andava dezejando de Ser Seu Se elle / denunciante quisesse
Ser Seu e que / lhe hauia de dar palaura diSso / e chamando o padre Junto a huã colunna / que esta iunto a
hua Capella do dito Corre / dor lhe deu hum beijo, e lhe disse maes Naõ / mettereis per antre as pernas a
Vossa Torcida / e elle denunciante lhe diSse que lhe deSse / a reposta do Recado que naõ tinha que /
entender com aquellas razoẽs, e o dito / Padre lhe cõmetteo que quizeSse lá Tor / nar a tarde que jriaõ a Sua
Sella / onde tinha muitas CouSas boas e que lhe / proueria a bolça cada oito dias e lhe daria / meias de Seda,
e disto entendeo elle de / nunciante que o ditto Padre o Comettia para / o peccado nefando do que ficou
muito EScanda / lizado”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 8.
544
Essa dupla dissidência caracterizava uma contraconduta por parte do frei. Isso
porque denota certa inventividade ou autonomia do eclesiástico na condução de si mesmo
em relação ao seu erotismo, como também influiu na maneira como ele conduzia os outros
ao seu redor no domínio do erótico.1331 Vimos como frei Duarte, segundo os relatos de
seus denunciantes, cometia seus parceiros para o nefando, atraindo-os, com seu poder,
para locais propícios, porque presumia haver ali alguma privacidade, para praticarem a
sodomia perfeita na maneira que, é seguro presumir, mais prazer acarretaria ao erudito
frade. Destarte, ao menos até onde os termos do processo deixam perceber, o sexo anal
praticado entre frei Duarte e seus parceiros não parece ter sido usado como um
significante das relações de poder que distinguiam socialmente cada um deles. O que não
significa que não houvesse uma hierarquia eclesiástica-pastoral ali, o frei meramente
manipulava-a para seus fins, desobedecendo-a e recusando-se a submeter sua experiência
1330
FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 115-119.
1331
Foucault usa o conceito de conduta para traduzir e atualizar as ideias grega e latina de oikonomía
psykhôn e regimen animarum, respectivamente. Algo próximo a um regime das almas, ou uma conduta das
almas. Conduta, propõe o filósofo, a partir dos Ensaios de Montaigne no século XVI, tem um sentido duplo.
Refere-se à atividade de conduzir, à condução, e à maneira como a pessoa se conduz, como se deixa
conduzir, como é conduzida, como se comporta sob o efeito de um ato de condução. Portanto, a conduta
diz da duplacidade de um regime, governo, condução das almas de si e do outro no contexto de um estilo
de poder, isto é, de uma forma de técnicas e relações de poder, que é o pastorado cristão. FOUCAUT.
Segurança, território, população, p. 252-5.
545
1332
FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 305-310.
1333
FOUCAULT. Segurança, território, população, p. 262-6.
1334
Jean Delumeau mostrou como, entre os séculos XV e XVI, as sociedades europeias apresentaram um
gosto renovado pela cultura greco-romana, em diferentes formas artísticas e intelectuais. A nova onda de
estudo do grego, estimulada pela redescoberta dos Diálogos de Platão, fez com que o conhecimento da
mitologia e da cultura gregas se difundisse entre os letrados no Período Moderno. Nesse contexto, autores
latinos e gregos que trataram do homoerotismo, como Virgílio, Platão, Cícero, entre outros, tiveram suas
obras publicadas em milhares de exemplares. Delumeau calcula que mais de meio milhão de exemplares
de livros de Virgílio circularam pela Europa neste momento. Mesmo levando em consideração a
advertência de Boswell sobre as maneiras como o homoerotismo foi tradicionalmente apagado de vários
textos da Antiguidade, desde a Idade Média até o século XX, é razoável pensar que os termos básicos que
ordenavam o homoerotismo antigo estivessem difundidos entre os letrados da Europa, especialmente
porque eles diziam de um ideal de virilidade masculino. Como explicou Dover, o homoerotismo era
amplamente praticado pelos homens gregos e podia, desde que seguisse as regras da relação pederástica,
ser social e culturalmente muito valorizado (Boswell, contudo, contesta a ideia de que a pederastia fosse a
forma mais difundida do homoerotismo na Antiguidade greco-romana). As regras da relação pederástica,
de forma resumida, estabeleciam uma dualidade entre o amante (erastes), o homem mais velho, adulto,
iniciador da relação e instrutor do amado nos jogos eróticos e políticos, e o amado (erômenos), o jovem
adolescente, que deveria ser, ao menos inicialmente, reticente aos avanços do amante (de modo a preservar
sua honra) e aprendiz do parceiro adulto. A relação pederástica reproduz o ideal de masculinidade antigo,
valorizando a postura viril, temperante do homem e sua posição de dominador, que se estendia para o campo
erótico. O homem ideal, na cultura greco-romana, era aquele que não se deixava subjugar por outrem, o
546
Frei Duarte Pacheco fez duas confissões ao Santo Ofício. Com base nesses textos,
podem ser explicitadas as estratégias que o frade pôs em ação para escapar à punição
inquisitorial. Em primeiro lugar, foram confissões voluntárias: o réu se apresentou por
vontade própria para se confessar. Decerto, ele sabia que a Inquisição era mais
misericordiosa com os praticantes da sodomia que confessassem suas culpas antes de
serem denunciados e formalmente acusados – como especifica o regimento inquisitorial
de 1640, o primeiro a tratar especificamente da processualística do pecado nefando.1335
Seu tom foi sempre cauteloso, com palavras medidas e calculadas para alcançar o objetivo
de diminuir a gravidade das culpas confessadas, como será detalhado a seguir.
que, no ato erótico, era traduzido por não se deixar penetrar. Aqueles homens que, em seus relacionamentos
homoeróticos, não se conformassem a essas regras, poderiam sofrer pesadas sanções, caso de Timarco,
estudado por Dover. Alan Bray, em seu livro sobre o homoerotismo na Inglaterra renascentista, explicitou
a influência de textos antigos sobre o homoerotismo sobre as produções artísticas e intelectuais de homens
letrados nos séculos XVI e XVII, como o dramaturgo Christopher Marlowe, estudado anteriormente neste
capítulo. Em relação a Portugal nesse mesmo momento, faltam estudos aprofundados acerca da influência
do modelo pederástico antigo sobre as experiências e expectativas dos amantes homoeróticos em Portugal
e nas terras do Império, embora Luiz Mott e Ronaldo Vainfas ofereçam pistas iniciais nesse sentido. Fica
aberta essa senda para pesquisas futuras. Para o caso de frei Duarte, que em momento algum do processo
fez qualquer menção à Antiguidade e à pederastia, essa ligação, embora provável, fica como elemento
secundário para a explicação histórica, até que novas pesquisas sejam feitas. DELUMEAU. A civilização
do Renascimento, p. 85-119; DOVER. Homossexualidade na Grécia Antiga, p. 36-156; BOSWELL.
Christianity, social tolerance and homosexuality, p. 3-87; MOTT. O sexo proibido, p. 75-129; VAINFAS.
Trópico dos pecados, p. 144-159.
1335
RIHGB, ano 157, n. 392, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1996, p. 871-874.
547
as palavras que dizia se faz notar pelo modo como ele seguidamente se esquivou de dizer
categoricamente se cada uma das relações sodomíticas foi completada até a emissão de
sêmen no interior do vaso traseiro do parceiro paciente (a mais das vezes, ele próprio).1336
Com essa estratégia, o frade procurava diminuir a gravidade das culpas que,
simultaneamente, confessava. Uma evidência indicativa de que esse modo de expressão
era calculado foi fornecida pelo réu em sua segunda confissão, quando alegou que: “E
porque, em semelhante ato, um cúmplice que não se lembrasse se estivesse qual disse que
derramando fora não era caso da Inquisição”.1337 Por um bom tempo, sua tática foi bem-
sucedida, pois ele não voltou a ter notícias da Inquisição por dez anos.
1336
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 13 verso.
1337
“E porque em Semelhante acto hum / complice; que naõ Se lembrase Si esta / Se qual disse que
derramando fora naõ / era cazo da Jnquisiçaõ”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899,
fl. 21 verso.
1338
“mas naõ lhe lembra / Se o ditto Abreu derramou dentro semen / te Se fora”. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 21 verso.
1339
“E Comecando Com abraços mostrando o dito / Dom Luis que Sabia dos daquella materia / E
convidandoo E induzndoo a elle con / fitente com palauras E obras ao pecado / nefando”. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 20 verso.
1340
“o dito Abreu disse que deceSsem os calçoẽs / e que Se deitassem Sobre a Cama E a instancia / do
mesmo Abreu se pos elle confitente / de bruços”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899,
fl. 21 verso.
548
Todo este esforço retórico do frei Duarte foi inútil, pois os inquisidores
imediatamente perceberam que sua intenção era tentar escapar ao castigo inquisitorial, ou
seja, não se convenceram de que seu arrependimento era verdadeiro. Tal estratagema, do
ponto de vista do Santo Ofício, era antes um agravante para sua culpabilidade, pois
demonstrava que suas confissões não foram sinceras e que ele não assumira um modo de
ser penitente. As técnicas de interpelação do dispositivo da carne não tinham ainda
1341
“decidos o dito Mancebo deu / principio ao Nefando dizendo, VireSse que he / melhor, querendo dizer
demais SenSualida / de”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 22 frente.
1342
“naõ derramava Semente daquelle / modo Senaõ por detras”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 04899, fl. 23 frente.
1343
“o dito pagem lhe disse ques quiseSse elle / confitent uirarSe e arremarSe a Cadeira / onde tem e
fazendoo aSsj o dito pagem metteo / Seu membro uiril no trazeiro delle confiten / te”. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 23 verso.
1344
“o dito moço / pagem o induzio que Se viraSse e posto elle / confitente de bruços o dito pagem se pos
en Sima / e metteo Seu membro uiril no trazeiro delle / confitente”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 04899, fl. 24 frente.
1345
“naõ lhe lembra Se o dito Valenca / lhe diSse que CometteSsem o nefando mas bem / Se lembra que o
naõ conuidou elle confitente”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 24 frente.
1346
“o dito mancebo bexigozo, este / com grande afficazia lhe disse que tirassem os / calçoẽs e comettessem
per outro modo que era / dizer o pecado nefando”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
04899, fl. 25 verso.
549
funcionado a contento sobre o frade sodomita. Isso pode ser constatado pelo modo como
o Promotor escreveu o requerimento para a prisão do frade
E porque em pessoa tão devassa não se pode esperar facilmente emenda, antes
é de crer que fez sua confissão só a fim de se assegurar, e não por outro respeito
– temendo que estaria delato no Santo Ofício, como o estava com efeito, pelo
testemunho de João Soares, 7ª testemunha, e está diminuto na 1 – 2 – 4 – e 8ª
testemunhas.1347
1347
“E porque em pessoa tam deuassa, naõ Se pode esperar / façilmente emenda, antes he de crer que fez
Sua // Confissaõ Só afim de Se assegurar, e naõ / por outro respeito – temendo que estaria / dellato no santo
officio Como o estaua com / effeito pelo testemunho de João Soares 7ª testemunha / e esta diminuto na 1 –
2 – 4 – E 8ª testemunhas”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 11.
1348
Por esse motivo, concluo que a informação constante na descrição virtual do documento na página do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo está incorreta, pois o réu não pode ter sido preso no dia 27 de
setembro de 1630, um ano e meio antes de sua prisão ser requerida pelo promotor. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 10 verso.
1349
“E pareceo aos Jnquisidores / Pedro da Silua de Sampayo e Diogo OSorio de Castro / que uisto Ser
prouauel naõ Se auer o Reo de rela / xar per religiozo e outras Consideracoẽs que erã / de parecer que elle
fosse logo para fora do Reino / para Sempre”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl.
27 frente.
550
sua causa em final e se sentenciar como for de Justiça”.1350 Mesmo aqui, o frei não seria
tratado como todos os demais sodomitas igualmente considerados devassos e com pouca
esperança de emenda, pois não seria preso nos cárceres secretos da Inquisição. Diante do
dissenso entre os inquisidores, o processo subiu para decisão final pelo Conselho Geral.
e assentou-se que o Réu seja privado de voz ativa e passiva para sempre, e do
exercício das ordens a arbítrio do Ilustríssimo Senhor Inquisidor geral, e que
tenha dez anos de prisão no cárcere do mosteiro que os inquisidores nomearem,
e que, no dito cárcere, cumpra as penitências que em sua religião se costumam
dar para gravíssima culpa. E que, passados os dez anos de prisão, não seja solto
dela sem especial licença do Ilustríssimo Senhor Inquisidor geral. E que, solto,
quando o for, não saia toda a vida do dito mosteiro onde esteve preso. E que
esta Sentença se leia na Mesa do Santo Ofício perante os inquisidores,
promotor e notários somente. E que lida ela, vão dois familiares acompanhando
o réu até seu mosteiro, onde, em capítulo presentes todos os religiosos da Casa,
lerá um notário do Santo Ofício a dita Sentença e deixará o Réu entregue a seu
prelado, para que logo, sem dilatação, execute em tudo a dita Sentença.
Mandam que assim se cumpra e se dê a execução.1351
Frei Duarte Pacheco foi, portanto, condenado à privação perpétua de voz ativa e
passiva e do exercício de suas ordens, à prisão por dez anos em um convento de sua ordem
(que fosse fora de Lisboa), onde cumpriria penitências espirituais. Findados os dez anos,
o frade estava condenado a permanecer por toda a vida no mesmo convento, salvo se
obtivesse licença especial do inquisidor geral. Além disso, foi condenado a ouvir a leitura
de sua sentença na mesa do Santo Ofício e no capítulo de seu convento de Nossa Senhora
da Graça, em Lisboa, diante de todos os religiosos ali residentes.
1350
“fosse preso no Seu Conuento e dahẏ / uiesse a mesa e se procedesse cõtra elle atee / se por Sua Causa
ẽ final e Se Sentẽcear Como for / de Justiça”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl.
27 verso.
1351
“e aSsentouçe / que o Reo seia priuado de uos actiua e passiua pera / Sempre, e do exerçicio das ordens
a arbitrio do Illustríssimo / Senhor Inquisidor geral e que tenha des annos de prizaõ no / carcere do
mosteyro que os jnquisidores nomea / rem, e que no ditto carcere cumpra as penitencias / que em sua
relligiaõ se costumaõ dar pro graui ovi / Culpa e que passados os des annos da prizaõ não seia / Solto della
Sem espicial lisença do Illustríssimo senhor Inquisidor ge / ral e que solto, quando o for, naõ saia toda a ui
/ da do ditto mosteẏro onde esteue prezo e que / esta Sentenca Se Lea na Meza do Santo officio por ante /
os Jnquisidores ^promotor e notários Somente e que lida ella uaõ dous fa / milliares aCompanhando o Reo
te seu mosteiro / onde em capitollo presentes todos os Relligiosos da / Caza lera hum notário do santo
officio a ditta Sentença / e deixara o Reo entregue a Seu prellado pera que / logo sem dillaçaõ execute em
tudo a ditta Sem / tença mandaõ que aSsi Se Cumpra e Se de a ex / ecusaõ”. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 29 frente.
551
O que distingue o processo de frei Duarte Pacheco é a queima das etapas comuns
à processualística inquisitorial referente à sodomia. Ele não foi preso nos cárceres da
Inquisição, não sofreu sucessivos interrogatórios, não teve sua genealogia auferida,
tampouco precisou dar provas de conhecimento dos ensinamentos da Igreja. A Inquisição
não pareceu interessada, nesse caso particular, em ouvir novas confissões do réu, mesmo
ele estando diminuto, ou seja, não confessara tudo pelo que fora acusado. Desse modo,
frei Duarte não teve a oportunidade de apresentar nomes de outras pessoas que teriam
praticado a sodomia (o que era sempre de interesse do Santo Ofício).
1352
MOTT. Justitia et misericordia: A Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia,
p. 726, 738 quadro VII.
1353
MOTT. Justitia et misericordia: A Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia,
p. 718.
1354
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 34 verso.
1355
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 33 verso.
552
autoridade da Igreja. Com isso, o tribunal convergia com o interesse do réu em evitar
penas infamantes. Essa hipótese é confirmada pela seguinte afirmação, contida no termo
de leitura da sentença em Mesa: “lhe disseram [ao Provincial da Ordem de Santo
Agostinho em Portugal], como se acabava agora de ler sentença ao dito Frei Duarte, com
muito sentimento dos ministros desta Inquisição, e que nas culpas e processo do dito Frei
Duarte, se guardara tudo quanto fora possível em respeito ao hábito e religião e ao mesmo
Frei Duarte”.1356 Todavia, devido a intrigas internas à Ordem de Santo Agostinho, parece
que frei Duarte não escapou incólume da infâmia.
A última peça constante no processo de frei Duarte Pacheco é uma petição de seu
irmão Álvaro Pérez Pacheco, atuando como seu procurador, suplicando ao Santo Ofício
a moderação da pena do réu ou seu degredo para fora do Reino, retirando-o do convento
de Évora, em que estava preso. A petição não está datada, mas é possível saber que ela
foi escrita depois de 14 de maio, provavelmente de 1632 ainda, pois se refere à eleição
do novo provincial da Ordem de Santo Agostinho em Portugal (ocorrida nessa data),
como um acontecimento recente e que teve consequências ruins para frei Duarte.1357 Para
justificar seu pedido, o procurador elenca argumentos jurídicos, baseados em diversas
autoridades tradicionais e no fato de que o réu se confessara voluntariamente. Isso, como
foi visto, constituiu uma das bases da estratégia do frade para escapar à Inquisição.
Acrescentou, ademais, que ele não poderia ser considerado devasso no crime, visto que o
praticara, conforme documentado no processo, apenas algumas vezes por ano e não caíra
mais em tentação desde 1629.1358 Além desses argumentos, o procurador também
mobilizou ataques aos inimigos do réu, o que permite analisar as intrigas, internas à ordem
dos agostinianos em Portugal (mas também na Espanha e em Roma), que concorreram
para a condenação de frei Duarte.
O procurador as explicita:
Porque seus dois Provinciais, assim o que acabou, como o que agora é, por
seus particulares respeitos com os seus confederados, procuraram sempre
desacreditar ao dito Frei Duarte, dando vários capítulos contra ele, assim na
Corte de Roma, como em Madri, e aqui, por via de um certo secretário, parente
de um frade que pretendia o Provincialato, tudo a fim de lhe não presidir no
1356
“lhe disseraõ [ao Provincial da Ordem de Santo Agostinho em Portugal] como se / acabaua agora de ler
sentença ao dito frei Duarte cõ mui / to sentimento dos ministros desta Inquiziçaõ, e que nas cul / pas e
proçesso do dito Frei Duarte Se gardara tudo quã // to fora possiuel a respeito ao habito, e Religiaõ, e ao
mes / mo frei Duarte”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 33-34.
1357
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 50 verso.
1358
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 50-51.
553
Pelo seu relato, obviamente interessado – portanto, não podendo ser tomado
acriticamente –, frei Duarte teria sido vítima das intrigas de seus inimigos em sua ordem,
desde antes de sua condenação pelo Santo Ofício. Há uma insinuação de que o frade tinha
pretensões ao cargo de Provincial, de modo que seus concorrentes se mobilizaram para
destruí-lo, o que conseguiram efetivamente com a sentença inquisitorial que privou o réu
de suas ordens. Porém, as desavenças não terminaram com a inabilitação do frade ao
posto de provincial. Segundo o relato de seu procurador, frei Duarte foi submetido a
formas de infâmias não previstas pela sua sentença, que teve, como foi visto, o sentido de
poupá-lo de tais circunstâncias. As situações de ordenar que o clérigo fosse conduzido,
publicamente, às vistas de todo o povo, para Évora, de modo que se atestasse sua condição
de condenado em meio às comemorações da quinta-feira santa (dia de Endoenças), e sua
humilhação perante o Provincial frei Francisco da Gama e de vários outros religiosos,
foram estratégias para destruir a figura pública de frei Duarte, dando-lhe uma nova fama,
a de condenado pelo Santo Ofício e, no caso mais restrito da ordem, como sodomita
devasso e sem possibilidade de emenda. Interpretamos essas ações dos inimigos do réu
1359
“Por que seus dous Prouinçiais, aSsĩ o que acabou, como o que agora he, por seus particu / lares
Respeitos com os Seus confederados procuraraõ Sempre dezacreditar / ao dito Freẏ Duarte dando Varios
capitolos contra elle, aSsĩ na Corte / de Roma como em Madrid, e aqui por Via de hũ certo Secretario /
parente de hũ Frade que pretendia o Prouincialado, tudo aFim de lhe / naõ prezedir no capitulo, e aSsim
ficarẽ Senhores da Prouincia // e tam notoriamente saõ seus inimigos, que de todos saõ tidos por tais, e o
mostrou / o Prouinçial paSsado, em o mandar prezo com quatro Frades, quinta feira / de Endoenças as duas
oras depois do Meẏo dia, quando toda a gente anda / pelas Ruas pera mais infamia E pera o Fazer Suspeito
de Fuga man / dou no Carcere dobrar as fechaduras tirandolhe habitto preto, constando / lhe como o dito
prezo o naõ quis fazer, na charnequa por esperar da beni / nidade da Sancta Inquisiçaõ o Remedio de Seu
mal, e naõ querendo / outro, por caminhos extraordinarios. / Por Como o Prouincial nouamente eleẏto, Freẏ
Francisco da Gama, quarta feira 14 / deste mes de Maẏo com os seus aleados foj a Cella do dito Freẏ Duar
/ te onde tinha Sua Liuraria, e peças de Valor com licença de Seus Pre / lados Maẏores, e como se Foraõ
beñs confiscados, os distribuhẏo / por seus amigos, com escandalo dos Religiosos de Vertude daquele /
conuento, E aSsim memorias, papeis, Requerimentos, lembranças feitas / pelas dittas peSsoas se lhe naõ
deue dar credito, como de Inimigos pu / blicos”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899,
fl. 50.
554
1360
Os frades Gabriel de Santo Agostinho e Dionísio de Carvalho, que acompanharam o réu em sua viagem
até Évora, relataram à Inquisição, como um grupo de homens, a cavalo, com os rostos cobertos e armados
de pistolas e espingardas, os interpelaram, em uma charneca deserta, para que o frade condenado lhes fosse
entregue. Fica claro que se tratou de uma tentativa de fuga de frei Duarte, a qual só foi impedida pela
intervenção de um outro grupo de homens a cavalo e que reforçou a comitiva dos frades, e por estes terem
alertado os pistoleiros de que se tratava de um caso do Santo Ofício, querendo dizer com isso que era um
caso grave e que eles não deveriam interferir. A aura de medo e autoridade da Inquisição entrou, então, em
ação, pois os pistoleiros desistiram do plano. Frei Duarte, talvez querendo mostrar que não tinha nada com
o ocorrido, afirmou, em meio à confusão, que não queria ir com tais homens, tendo toda a intenção de
cumprir sua pena e suas penitências, conforme estabelecidas pelos inquisidores. Essa afirmação foi, depois,
mobilizada pelo seu procurador, como visto acima, para comprovar a sinceridade das intenções penitentes
do irmão. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 04899, fl. 38-40, 40-42.
1361
ORDEM dos eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834), p. 363.
555
1362
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-361.
1363
SEDWGWICK. Epistemology of the closet, p. 109-114.
556
1364
“No Brasil, mais especificamente, o ‘Antigo Regime’, tal como ele era representado no momento de
sua crise, compunha-se dos seguintes elementos: a sujeição política a Lisboa (e, conforme a localidade,
depois de 1808, sobretudo no Norte, atual Nordeste, em 1817, ao Rio de Janeiro), a escravidão, a
discriminação dos homens de cor, certa oposição entre o “reinol” e o “brasileiro”, a produção em larga
escala de gêneros coloniais e o monopólio comercial metropolitano, que, abolido em 1808, era esconjurado
e temido nos idos de 1821 e 1822. De todos esses elementos, a escravidão merece uma análise mais
pormenorizada”. VILLALTA. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822), p. 31.
558
1365
Vê-se, desde já, como a noção de interseccionalidade é crucial para problematizar as relações
escravistas que perpassam a narrativa dos processos inquisitoriais. Essas relações emaranham-se num nó
que era próprio à organização sociocultural colonial da América portuguesa. Não é possível, pois, pensar
as desigualdades evidenciadas nos processos isoladas uma das outras. O conceito de interseccionalidade,
segundo Crenshaw, é uma ferramenta útil no sentido de perceber este nó, sem, necessariamente, desatá-lo,
ou seja, compreender como há uma interação simultânea das estruturas e categorias de identidade. A
interação simultânea entre as categorias de raça, gênero e sexo, isto é, a intersecção está presente nos vários
tipos de relações de dominação abordadas no capítulo. Por exemplo, na exploração violenta da posição de
559
entanto, como bem apontou Catarina Isabel Caldeira Martins, ser vítima de violências
desumanizantes não significa ser despojado de agência, o que alguns negros africanos
escravizados no Brasil colonial souberam demonstrar, como veremos a seguir.1366
homem branco adulto pelo comerciante sobre a moleca ou pelo cirurgião sobre o mulatinho, bem como na
dominação social, econômica e política dos homens bons, os potentados locais, contra o cirurgião sodomita,
ou dos cristãos-velhos sobre os cristãos-novos, ou ainda entre um padre branco e seus escravos negros ou
mestiços, ou até entre os escravos distintos como ladinos e boçais em uma mesma casa. CRENSHAW,
Kimberle. Demarginalizing the intersection of Race and Sex: a black feminist critique of Antidiscrimination
Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, p. 139-167; AKOTIRENE. O que é
interseccionalidade?, p. 11-50.
1366
Em um marcante artigo sobre mulheres poderosas na literatura africana pós-colonial, a professora da
Universidade de Coimbra analisou as personagens femininas de dois romances de autoras africanas
contemporâneas, Chimamanda Ngozi Adichie, que escreveu Americanah, e Maria Ndiaye, que publicou
Trois femmes puissantes. Acompanhando os modos de construção da subjetividade das personagens,
conforme a narração articulada pelas autoras, Catarina Martins escreveu: “Não se trata, de modo algum,
nem de uma estratégia que suscite compaixão, nem de uma idealização da vítima, antes da ressignificação
desse conceito e da noção de subalternidade, ao retirá-los da condição de objeto para os transformar em
sujeitos, afirmando que há sempre algo de inalienável e uma voz, mesmo que inaudível, uma capacidade
de fazer, mesmo que mínima, na mais subalterna entre as subalternas. Ser vítima não significa, pois, ser
despojada de agência ou, mais concretamente, de poder, com base numa noção de dignidade pessoal que
se pode preservar a despeito da mais terrível miséria e tornar-se a origem da resistência”. MARTINS,
Catarina Isabel Caldeira. Mulheres poderosas: gênero, raça, sexualidade, classe, nação e outras categorias
nómadas na literatura contemporânea de mulheres africanas. In: COLLING, Leandro. Dissidências sexuais
e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 190.
560
duas últimas categorias tinham sentidos específicos na Idade Moderna, que divergiam em
aspectos importantes dos seus sentidos na contemporaneidade, tema sobre o qual nos
alongaremos no próximo tópico).1367 Nesta tese, a violência da relação senhor-escravo é
tratada segundo a proposta inaugurada por autoras como Sílvia Hunold Lara, ou seja, de
acordo com seu enquadramento histórico no escravismo colonial, atuando como elemento
de ligação que dava coesão às relações de dominação e de exploração conformadoras da
escravidão.1368
6.1.1. A sodomia do padre José Ribeiro Dias: uma vida convertida em infâmia
O primeiro caso que analisaremos começou com a denúncia apresentada por
Felipe de Santiago contra seu senhor, o doutor padre José Ribeiro Dias,1369 a Dom Frei
1367
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 29-49.
1368
“Assim sendo, atribuir uma noção geral de ‘violência’ à prática do castigo físico significa desconsiderar
a historicidade dessa noção e ignorar que seu significado era produzido no interior e no decorrer de relações
sociais específicas e que, portanto, não pode ser atribuído de modo exterior, preconcebido”. LARA, Sílvia
Hunold. Campos de violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 342.
1369
O caso do padre José Ribeiro Dias foi estudado por Ronaldo Vainfas, que o descreveu como "um dos
melhores casos" para se estudar as práticas sodomíticas que ocorriam nas Minas Setencistas. Ademais,
ressaltou que o "Padre José foi, no conjunto da história inquisitorial, um dos raros [senhores] a pagar caro
por sofrer denúncia de um escravo a quem sodomizara". O autor se refere à pesada condenação inquisitorial
que concluiu o processo do padre, condenado ao confisco de todos os seus bens (que eram muitos, porque
o padre era um homem rico), ao degredo para as galés por dez anos e à suspensão perpétua de suas ordens.
VAINFAS. Sodomia, amor e violência nas Minas Setecentistas. In: RESENDE, Maria Ifigênia Lage de,
561
João da Cruz, bispo do Rio de Janeiro, no contexto de uma visita geral que ele ora fazia
aos locais do bispado, no dia 29 de novembro de 1743.1370 A cena da denúncia se passou
na freguesia de São Miguel do Piracicaba, nas casas que serviam de residência temporária
ao bispo, enquanto visitava a região. Nesse ato de denunciar o seu senhor, Felipe Santiago
exercia significativa agência no contexto das relações escravistas, insurgindo-se contra
uma prática de seu senhor que considerou uma violência, algo que não poderia suportar
mais, sem esboçar uma reação pública, excedendo o âmbito privado da relação senhor-
escravo. Tanto mais coragem exigia a denúncia, porque, no crime de sodomia, do ponto
de vista da Igreja, ele também estava implicado. Assim, ao denunciar seu senhor, ele
denunciava a si mesmo (ainda que sua condição de escravizado e a limitação jurídica de
sua autonomia pudessem servir de atenuantes no que tocava ao problema de sua intenção
de pecar).1371
O escravizado Felipe Santiago denunciou seu senhor, o padre José Ribeiro Dias,
por várias cópulas sodomíticas. Ele as teria praticado com uma série de pessoas. O
escravo citou várias por nome, fornecendo detalhes para sua identificação pelas
autoridades eclesiásticas. Os citados foram: Luís, um aprendiz de boticário que morava
com Manoel da Costa em São Caetano; Carlos, irmão de Floriano, músico em São
Caetano; João da Costa, filho de Tomé da Costa, pardo forro; Alexandre alfaiate, mulato
forro no Ribeirão do Carmo; Manoel Ramos, harpista, pardo forro na mesma vila;
Francisco Mezia e João Alves, pardos rabequistas em Vila Rica; João Boquinha,
rabequista e alfaiate, pardo forro, morador no morro de Santa Anna; Fernando, filho de
José de Almeida Costa, assistente no Rio de Janeiro; e, por último, Francisco Pereira,
filho de Antônio Pereira do Lago, na freguesia de São Caetano, assistente também no Rio
VILLALTA, Luiz Carlos. As Minas Setecentistas. 2 vol. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo,
2007, vol. 2, p. 527.
1370
Segundo Joaquim Ramos de Carvalho, as visitas diocenas foram estimuladas pela pastoral tridentina da
Igreja da Contrarreforma, uma vez que os bispos tinham se tornado agentes centrais na tarefa de
normalização dos comportamentos dos cristãos (e, acrescentaríamos, formando, nesse mesmo processo,
suas subjetividades como sujeitos da carne). A visita era um percurso de fiscalização, vigilância e disciplina,
que deveria acontecer com certa periodicidade, por todas (idealmente) paróquias da diocese. Era uma forma
dos prelados conhecerem o estado da vida local, ao mesmo tempo controlando a ação dos sacerdotes
paroquianos. O autor indica que, nas dioceses maiores, não era sempre o bispo que visitava pessoalmente
todos os locais (apesar de esse ser o ideal tridentino), por vezes delegando funções a oficiais eclesiásticos
importantes na administração diocesana. CARVALHO, Joaquim Ramos de. Confessar e devassar: a Igreja
e a vida privada na Época Moderna. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. (Org.). História da vida privada em
Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, p. 36.
1371
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 25.
562
Com as quais pessoas, ele, testemunha, viu o denunciado estar atualmente nos
ditos atos de somitigaria própria por várias vezes, pela confidência que o
denunciado fazia a ele testemunha e juntamente pelo pouco recato que o
mesmo denunciado tinha. Pois muitas vezes estava nos ditos atos com alguma
das referidas pessoas declaradas, metido ele denunciado como cúmplice no seu
quarto com a porta aberta, onde ele testemunha ia dar com eles e os via no
próprio ato de somitigaria. E no mesmo dia, digo, de somitigaria. Disse mais
que o denunciado, muitas vezes acabando os ditos atos de somitigaria, e no
mesmo dia em que os cometia, ia dizer missa, como costumava ir nos mais
dias. O que sabe pelo ver e presenciar, pela razão que dito tem. 1373
1372
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 26-7.
1373
" Com as quais peSsoas elle / testimunha vio o denunciado estar / actualmente nos ditos actos de Somiti-
/ garia propria por varias vezes pela Con- / fidencia, que o denunciado fazia delle / testimunha, e juntamente
pelo pouco Re- / cato, que o mesmo denunciado ti- /nha; pois Muitas vezes estava nos ditos /actos com
algua das Referidas peSsoas /declaradas metido elle denunciado / Como Complice no Seu quarto com a
por- /ta aberta, onde elle testimunha hia /dar com elles e os via no proprio acto / de Somitigaria, e no mesmo
dia, digo, / de Somitigaria. DiSse mais que o de- / nunciado muitas vezes acabando dos / ditos actos de
Somitigaria, e no mes- / mo dia, em que os Comméttia hia di- / zer miSsa, como costumava nos mais / dias.
O que tudo sabe pelo Ver, e pre- / señciar, e pela razaõ, que dito tem". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de
Lisboa, processo 10426, fl. 27.
1374
"Acostumados a ver nos escravos bens pessoais, os senhores, mesmo que pobres, estendiam seu
senhorio à esfera sexual, de maneira que não seria exagero dizer que a escravidão não raro implicava a
possibilidade de concubinato, de chamegos entre amos e cativas, e por vezes de relações homossexuais com
os cativos". VAINFAS. Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade
escravista, p. 234.
563
hierarquia senhorial) entre eles. Tratava-se, afinal, de uma relação aos moldes da
dominação paternalista típica do escravismo colonial.1375
1375
"Ora, mesmo que tal relação tenha sido profundamente amigável e sincera, e isto ocorreu muitas vezes
entre senhores e escravos e ex-escravos, ainda assim as posições, os interesses, os objetivos e as leituras da
realidade eram distintos". PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia, p. 78.
1376
A presença e a circulação constantes dos escravos no ambiente doméstico foram destacadas pela
historiadora Leila Mezan Algranti como um dos fatores a limitar a separação de uma esfera de privacidade
e intimidade nas casas da América portuguesa. Recriando uma cena de trabalho comum das pessoas
escravizadas no período colonial, o abastecimento de água, a autora mostra como, em uma situação assim
trivial, a privacidade sofria intrusões do público, como no trecho seguinte. "[…] o vaivém dos escravos,
que se incumbiam do abastecimento de água, propiciava os encontros dos cativos e os inevitáveis mexericos
sobre o que se passava nos domicílios, mais um fator que contribuía para devassar o cotidiano dos
indivíduos, já tão à mercê de olhares estimulados pela arquitetura externa e interna das casas". ALGRANTI.
Famílias e vida doméstica, p. 103.
1377
"No campo das moralidades populares - refiro-me aqui aos costumes e estilos sexuais concretamente
vivenciados, independente da posição social dos indivíduos -, a "espiritualização" do sexo era ainda mais
radical. Pois, se a Igreja esforçava-se por separar, em todos os níveis, o sagrado do profano, aproximando
este último do diabólico, as populações da cristandade, inclusive as de nossa Colônia, agiam em sentido
contrário. Cópulas e orações, beijos e liturgias, Deus e o diabo, enfim, misturavam-se admiravelmente, o
que por vezes conferia às relações sexuais, ao menos em parte, o aspecto de um rito religioso". VAINFAS.
Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista, p. 246.
564
denunciado. O pouco caso que o padre José parecia fazer do sacrilégio que cometia
cotidianamente contrastava com sua sólida formação espiritual e com o arrependimento
que mais tarde professou (como verificaremos a seguir), sinalizando que a construção de
um repúdio total à função anal ativa da cena pública, ou aquilo que Deleuze e Guattari
chamaram de uma decodificação (abstração, expulsão para fora da linguagem) dos fluxos
de produção de desejo a partir do prazer anal, no processo de privatização do ânus e sua
retirada, bem como de seus efeitos, do público, do compartilhado, do às vistas de todos,
ainda não estava consolidada.1378
Não fora somente com terceiros que o padre José Ribeiro Dias cometera a
sodomia, conforme o relato de Felipe Santiago. O assunto inicial de sua denúncia
concernia as relações homoeróticas e anais que se estabeleceram entre ele próprio, um
escravizado, e seu senhor. Acrescente-se que o escravizado parecia sentir culpa e rejeição,
sentimentos que, estimulados e incitados pelo discurso da carne, por meio de suas técnicas
normativas de interpelação, o levaram à mesa da visita episcopal para denunciar o seu
senhor e a si mesmo. De forma paralela, mas em direção semelhante, cabe observar que
interessava ao agente eclesiástico (no caso, o bispo, mais tarde, os inquisidores) construir
uma narrativa processual que destacasse a visão normativa acerca das experiências
confessadas, filtrando-as com o discurso erudito sobre a sodmia, pautado pela culpa e
pela concupiscência. Assim, cabe ao historiador colocar um asterisco nos termos do
relato, tentando discernir, entre suas linhas, as várias experiências em jogo. Vejamos em
quais termos ele fez a denúncia:
E assim disse ele testemunha denunciante, que, haverá três para quatro anos,
que ele dito seu senhor, o doutor José Ribeiro Dias, costuma ter com ele
testemunha atos desonestos de molície e algumas vezes também atos nefandos
de sodomia, conhecendo carnalmente a ele testemunha por cópula sodomítica
consumadamente pelas partes posteriores e via traseira dele testemunha. A
1378
Dominique Laporte comenta que, entre os séculos XVI e XVIII, o processo de fechamento, bloqueio e
privatização da função anal não se deu de maneira linear na cultura ocidental. Argumentando contra Freud,
que preconizara uma semelhança entre o processo civlizador e a evolução individual da libido, a autora
afirma que o interesse sobre as funções de excreção na cultura ocidental não se converteu de maneira direta
em um aumento do gosto por ordem, limpeza e beleza, como pretendia o ideal higienista do século XIX.
Para tanto, ela verificou o fracasso do controle do lixo (incluindo dos excrementos humanos) pelas
autoridades locais dos Estados da Época Moderna. A domesticação dos desperdícios, sua privatização,
ainda estava sendo inculcada nas pessoas, do que era um sinal o fato de que o lugar da defecação ainda não
era sempre o lugar privilegiado do monólogo interior, havendo o costume das pessoas conversarem fazendo
suas necessidades. LAPORTE, Dominique. Historia de la mierda. Trad. Nuria Pérez de Lara. Valencia:
Pre-textos, 1989, p. 20-35. A historiadora Fernanda Olival mostrou como "as retretes, secretas ou latrinas,
também chamadas ‘privadas’, não seriam frequentes nas casas do período moderno" em Portugal, indicando
até mesmo que a definição de "privada" fornecida pelo padre Bluteau a caracterizava como um "lugar
público para as necessidades da natureza". OLIVAL. Os lugares e espaços do privado nos grupos populares
e intermédios, p. 263-4.
565
1379
" e aSsim diSse elle tes- / temunha denunciante, que haverá tres pa- / ra quatro annos, que elle dito Seu
Senhor / o Doutor Joze Ribeiro Dias costuma / ter com elle testimunha actos des honeStos / de molicie, e
alguãs vezes tambem actos / nefandos de Sodomia conhecendo carnal- / mente a elle testimunha por Copula
Sodo- / mitica consumadamente pelas partes pos- / teriores, e via trazeira delles testimunha, a quem / vio
lentamente o denunciado com o poder / e Respeito de Senhor, digo a quem violen- / tava o denunciado com
o poder e Respeito / de Senhor, e elle testimunha obedecia / com o medo de escravo que hé; e para o di- /
to effeito mandava o denunciado cha- / mar a elle testimunha denunciante de / noute quando estava já na
Cama / para vir com elle dormir para a Cama / delle denunciado; e com effeito elle tes- / timunha hia, e Lá
dormia muitas, / noutes, e que quando mandava cha- / mar a elle testimunha era por outro / seu escravo
chamado Joam Barbeiro / preto". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 25.
566
Foi nesse sentido que a relação que mantinha com seu senhor parece ter sido
experimentada (subjetivada) por Felipe Santiago, como uma violação. A sodomia
configurava, aqui, uma violência que ele não podia tolerar para sempre (embora sua
relação com seu senhor durasse, no momento da denúncia, de três a quatro anos).
Chegaria um momento, concretizado no ato de se apresentar ao bispo-juiz para denunciar,
em que a dor, o ódio e a culpa – certamente em relação ao senhor, mas talvez também em
relação a si mesmo, visto como o dispositivo da carne interpelava o praticante da sodomia
como um pecador monstruoso – superariam o medo. A visita episcopal pode ter
funcionado, assim, como um mecanismo de canalização desses sentimentos em uma
denúncia, desencadeando, como sua consequência, um complexo mecanismo jurídico
(envolvendo múltiplos personagens, autoridades e instituições no campo religioso) para
punição, disciplina e interpelação (sujeição e subjetivação) do pecador/criminoso.
Foi o que ocorreu posteriormente com o padre José Ribeiro Dias. Registrada a
denúncia do escravo Felipe Santiago, o bispo ordenou, no dia 14 de dezembro de 1743,
uma investigação mais aprofundada. Por comissão episcopal, o padre vigário José Matias
de Gôuvea, comissário do Santo Ofício, iniciou uma diligência para interrogar
judicialmente as pessoas nomeadas pelo escravo como cúmplices/parceiras do padre José
em seus atos homoeróticos e sodomíticos, enviando, depois, a documentação ao tribunal
do bispado.1381 O comissário conseguiu interrogar somente três das pessoas nomeadas
(Luís de Abreu Lobato, Carlos Pedro da Silveira e a João da Costa Soares), dando crédito
1380
“Havia, portanto, um optimum na dissimetria que envolvia a relação senhor-escravo e que se constituía,
tal como o expressavam as fórmulas descritas acima, num certo ideal senhorial da relação senhor-escravo.
A reunião do amor e do medo, do cuidado e do castigo, da mercê e do rigor só era possível nas mãos
senhoriais, de cima para baixo, na direção da eficácia da dominação escravista. A alquimia dos contrários
se fazia, portanto, numa só direção e a ordem dos fatores, aqui, alterava o produto”. LARA. Campos de
violência, p. 121-2.
1381
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 27-9.
567
aos ditos do primeiro apenas. Sobre as demais pessoas nomeadas, afirmou que não havia
notícias das demais e seria trabalhoso tentar localizá-las.1382 O interrogatório de Luís de
Abreu Lobato gerou mais acusações de sodomia contra o padre José Ribeiro Dias, que
ocorreram quando a testemunha tinha entre 12 e 13 anos de idade e o padre era pároco da
freguesia de São Caetano. O jovem (tinha 15 ou 16 anos ao ser interrogado) relatou ainda
a fama pública de sodomita que acompanhava o padre.1383
1382
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 32-3.
1383
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 30-2.
1384
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 37.
1385
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 12-7.
1386
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 36-7
568
terminou sendo preso lá mesmo em Paracatu, sendo enviado a Lisboa, onde faria sua
primeira confissão no dia 18 de maio de 1747.
as orações e mandamentos da Igreja, o que não surpreende, visto que era formado em
cânones e cursara um ano de filosofia.1387
1387
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 61-4.
1388
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 56-8.
1389
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 65-6.
1390
"[…´] E que / estas Saõ as culpas que nella tem / que ConfeSsar, e de as haver cómetti- / do está muyto
aRependido dellas / perdaõ e que Com elle se uze de mi / zericordia, e piedade". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 58.
1391
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 80-1; 88.
570
Cabe considerar que, no século XVIII, como explicou Mott, a ação persecutória
inquisitorial contra os sodomitas perdera fôlego, comparada ao período anterior, antes da
suspensão temporária do Tribunal no final do século XVII. Poucos foram presos (o autor
1392
"O Padre Jozep Ribeiro Dias / Foraõ vistos na Meza do Sancto Officio desta Inquiziçaõ de / Lisboa em
os 12 de Julho de 1747 estes autos cul / pas e Confissoens do Padre Jozeph Ribeiro Dias, Sacerdote, / e
Vigário que foy da freguezia de São Caetano, nas Minas, na / tural da Cidade de Braga, e morador no
Arrayal / do Paracatú, Bispado de Mariana; Reo prezo nelles / contheudo: E pareceu a todos os votos que
elle / pella prova da Justiça e Sua Confissaõ, e por va legitimamente / convicto no Crime de Sodomia
complecta, e ConSuma / da por Repetidas vezes e com diverSsas peSsoas, Sendo / agente, e tambem
paCiente; e que Supposto esta cul / pa por dispoziçaõ de direitoçevil, da Ley do Reyno / e Breves de Pio
5º; Se mande castigar com penna / ordinario; Contudo tem prevalecido a pracxe em con / trario, moderando
esta penna no 1º Lapso, naõ obstante / qualquer circunstancias aggravantes; especialmente havendo / como
ha no prezénte cazo auendeteis sinaes de peniten / çia, e haver feito a sua confiSsaõ Logo que chegou a es
/ ta Meza: E que por tanto vá ao autto pu / blico da Fé na forma costumada; nelle ouça Sua Sen /
tença, Seus Béns lhe Sejaõ confiscados para quem de direi / to pertencerem, devendo Ser havido por
convicto para / eSse effeito desde o mez de Novembro de 1740, em / diante; Seja SuspenSso do exzerçicio
de suas ordéns para / Sempre, e privado de quaesquer ófficios e Beneficios, que / tiver cenhabilitado para
outros, e degradado por tempo / de dés annos para as gálles de Sua Magestade; e que inco / rreu nas maes
pennas de direito contra semelhantes / estabelecidas: Mas que antes de Se exzecuttár este / aSento Seja com
os proprios auttos levado ao Conselho / Geral na forma do Regimento; e aSestio a este despacho / pello
ordinario de Sua ComiSsaõ o Inquizidor // maes antigo". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
10426, fl. 91-2.
571
Assim, o padre José Ribeiro Dias teve a pena ordinária (a execução na fogueira)
moderada (o que não significa que sua pena foi trivial, como vimos), para o que também
contribuiu, significativamente, o julgamento que os inquisidores fizeram de seus
sentimentos e estado espiritual. Com base em sua postura ao longo do processo
(confessou voluntariamente, fazendo longo relato, assumindo todas as culpas e delatando
outros criminosos), ele teve reconhecida sua condição subjetiva de penitente. Ainda mais,
o texto da sentença completou a descrição subjetiva do réu, afirmando que ele pedira
perdão e misericórdia, o que demonstrava esperança de que ele se emendasse do vício.1396
Fica mais uma vez claro como o sodomita era uma categoria jurídica de subjetividade,
dizendo respeito a atos que podiam formar hábitos viciosos, mas dos quais era possível
emendar-se, corrigir-se. O homoerotismo e/ou a predileção pelo sexo anal não eram
subjetivados de forma a constituir espécies sexuais biopolíticas.
1393
MOTT. Justitia et misericordia: a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia,
p. 710; 738 quadro VIII.
1394
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição Portuguesa, p. 243-4.
1395
MARCOCCI; PAIVA. História da Inquisição Portuguesa, p. 248-259.
1396
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 102.
572
Diz o padre José Ribeiro Dias, penitenciado por suas culpas pelo Tribunal do
Santo Ofício desta corte no auto público da fé, que se celebrou em 24 de
setembro de 1747, há dez anos nas galés em que está. Que próximo a completar
nela no mês de setembro sete anos, e com mais de oito e meio desde que foi
preso, com a liberdade ligada na horrorosa prisão em que está, que mais parece
sepultura que habitação, passando as horas do dia e da noite atônito com o
espetáculo de seus infortúnios, que, roubando-lhe até aos olhos o sono, lhe
negam aquele descanso de que a natureza é tão liberal com os mortais.
Padecendo nela uma febre maligna, ficou com enfermidades, como já
representou e mostrou por certidão, sendo como por enfermidade a velhice.
Com o limitado e grosseiro sustento que se lhe dá, a roupa com que foi para a
galé rota, sem ter já quem o socorra, como é vulgar com os presos em prisões
de muitos anos. Com tantas aflições, próximo a cair em impaciência com
evidente risco da salvação de sua alma, havendo-as sofrido com muita
paciência e verdadeiramente arrependido de suas culpas, humilde e vivamente
rogando a Vossas Ilustríssimas, e implorando a sua mesma benignidade. Pede
a Vossas Ilustríssimas pela paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e dores de sua
Santíssima Mãe, se dignem de usar com o suplicante da sua inata piedade e
misericórdia que costumam, perdoando-lhe o mais tempo que lhe falta de
cumprir de penitência na galé. E por tão grande esmola, pedirá a Deus pela
vida e saúde de Vossas Ilustríssimas.1397
Em sua súplica, cuja dramaticidade deve ser lida também como uma tática
discursiva e jurídica para angariar a mercê pretendida, por meio da construção de uma
narrativa pontuada por mortificações e penitências por parte do condenado, este
descreveu em que consistia sua vida de trabalhador forçado, sete anos após sua
condenação pelo Santo Ofício. Sua miséria era enorme e ele encontrava-se desassistido.
Sua infâmia como sodomita condenado pela Inquisição afastava qualquer ajuda que
pudesse receber de parentes (o que ele relatou em sua segunda petição).1398 Além de tudo,
as condições insalubres de trabalho provocaram seu adoecimento e o deixaram aleijado
de uma perna, conforme certificado por um médico familiar do Santo Ofício.1399 O que
1397
"Diz o Padre Jozé Ribeiro Dias penitenceado por Suas culpas pello Tribunal do / do Santo officio desta
Corte No autto publico da fé que se selebrou em 24 de setembro / de 1747 a dés annos na Gallé em está;
que proximo a complectar nella no / mes de setembro sete annos, e Com mais de oito, e meyo des q foi
prezo, Com a liberdade / Ligada na horroroca prizaõ em que está, que mais pareçe Sepultura que habitassaõ,
paSsan / do as horas do dia, e noite atonito com o espectaculo dos Seos infortunuos, que Rouban / dolhe
até dos olhos o sono, lhe negaõ aquelle descanso, de que a natureza he taõ libe / ral com os mortaes,
padecendo nella huá febre Maligna, ficou com enfer / midades, com já Reprezentou, e mostrou por Certidaõ,
Sendo com a por enfer / midade a Velhise; Com o lemitado, e groçeiro Sustento que se lhe dâ, a Roupa
Com que / foi para a gallé Rota, Sem ter já quem o socorra Como hé Vulgar Com os prezoz em / prizoins
de muitos annos; Com tantas aflisoins proximo a cahir em impaçi / ençia Com cirdente Risco da Salvassaõ
da Sua alma, havendo as Sofrido com muita pa / ciençia, e Verdadeiramente arrependido de suas culpas,
humilde, e / vivamente Rogando a VV [vossas] Illustríssimas, e implorando a Sua Mesma be / nignidade. /
Pede a V V [vossas] Illustríssimas pella Payxaõ de Nosso Senhor Jezu / christo, e dores de Sua SantiSsima
May, se dignem de Uzar / Com o Suplicante da Sua innata piedade; e mizericordia que Cos / tumaõ,
perdoandolhe o mais tempo que lhe falta de Com / prir de penitência na gallé, e por taõ grande esmola
pedirá / a Deos pella Vida e Saude de V V [vossas] Illustríssimas". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 10426, fl. 116.
1398
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 127.
1399
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 10426, fl. 117-8. Há uma bibliografia sobre as
condições precárias e insalubres de vida e labor dos condenados pelo Santo Ofício aos trabalhos forçados
nas galés do rei (o que não significava necessariamente o trabalho ao remo, mas sim todo tipo de trabalho
573
nos importa mais de perto é o modo como o padre descreveu o estado de sua alma nesse
contexto. Ainda que descontemos uma óbvia estratégia de convencimento empregada na
súplica, o efeito do acúmulo de sofrimentos e infâmias, da vergonha e da culpa da
condenação sobre as práticas de subjetividade da personagem não pode ser subestimado.
A perturbação de sua alma transparece em uma contradição do seu argumento, que quase
chega a aparecer um ato falho. Como temos observado ao longo da tese, era comum que
os penitenciados pela Inquisição buscassem emular o mais possível as virtudes cristãs,
teatralizando em palavras, atos e comportamentos visíveis e externos uma conversão
autêntica. Essa estilização da subjetividade está presente no discurso do padre José,
quando ele afirma estar suportando o sofrimento com paciência, que seria mais um sinal
de seu verdadeiro arrependimento, demonstrando, ademais, humildade perante a
autoridade inquisitorial. Todavia, o padre também se descreveu como impaciente diante
do castigo, o que, como ele próprio assume, era um risco para a salvação de sua alma.
Esse estado, acrescentava o requerente, seria culpa da demora dos inquisidores em relevar
sua pena, com o que ele lançava, implicitamente, um desafio aos juízes. Vemos, pois,
como ele suportava mal os trabalhos forçados, a miséria, a doença, a velhice e a infâmia.
Para um padre com sólida cultura letrada, disciplinado ao longo de toda a sua vida nas
relações de saber-poder-subjetivação do dispositivo da carne, José Ribeiro Dias
conservou algo de insubmisso, pois, mesmo prostrado e com sua vida destruída, foi capaz
de uma última tentativa de negociação com o Tribunal.
O processo do padre José Ribeiro Dias, portanto, nos oferece um primeiro olhar
sobre a posição da sodomia em práticas de subjetividades atravessadas pelas relações de
forçado conforme as necessidades do reino). Como introdução, ver BRAGA, Paulo Drumond. Os forçados
das galés: percursos de um grupo marginalizado. In: Carlos Alberto Ferreira de Almeida In Memoriam.
Vol. I. Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 1999; COSTA, Thaís Tanure de Oliveira. “Nas
terras remotas o diabo anda solto” [manuscrito]: degredo, inquisição e escravidão no mundo atlântico
português (séculos XVI a XVIII). Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 229f, 2018, p. 181-208.
574
1400
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097.
1401
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 3.
575
1402
"[…] Contra Joaõ Carualho, homé pardo forro, e solteiro mo / rador na freguesia de Nossa Senhora da
Pyedade de Mathoym, Reconcauo desta dita Ci / dade, por ser infamado na culpa do peccado Nefando de
sodomya, com seus / escravos, e pRincipalmente com o escravo Jozeph Negro, e huã escraua / que por
nome naõ perca, com quem tambem Comettia o dito peccado, e solici /taua a muitos outros, para o mesmo
effeito, sendo nisto taõ deuasso, que se deita /ua com elles na cama, como se foraõ suas molheres sem temor
de deus Nem pejo /do Mundo, de que Resultaua huã pResumpcaõ Mais Violenta contra o dito Joaõ
/Carualho pardo". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 3.
1403
RUBIN. Pensando o sexo, p. 83-6.
1404
RUBIN. Pensando o sexo, p. 87.
576
Mundo, ou seja, sem ter se sujeitado e se subjetivado por técnicas incitadoras do medo e
da vergonha. Fazia-se necessário, por conseguinte, que a Igreja e a Inquisição
procedessem contra ele.
Auto de achada
Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e setecentos e três,
aos vinte e oito dias do mês de março do dito ano, nesta freguesia de Matoim
de Nossa Senhora da Piedade. Aonde eu escrivão a diante nomeado fui com o
meirinho geral deste arcebispado, Manoel Nunes dos Reis, por ordem do
Ilustríssimo senhor arcebispo metropolitano deste estado do Brasil, o senhor
Dom Sebastião Monteiro da Vide, para efeito de quem demos a João Carvalho,
homem pardo, solteiro e forro, morador na dita freguesia, por ser infamado na
culpa do pecado nefando de sodomia com os seus escravos, principalmente
com o escravo José negro. E ocultamo-nos em casa onde mora Felipa da Silva,
preta forra, a qual casa ficava perto da casa do dito João Carvalho, e ouvíamos
falar, mas não percebíamos o que havia. E sendo pelas nove horas da noite,
pouco mais ou menos, do sobredito dia acima declarado, entramos de repente
em casa do dito João Carvalho, por uma estrebaria e daí entramos por um
buraco de uma parede, e daí à sala da dita casa, e fomos entrando até a câmara
onde estava o dito João Carvalho, o qual estava com a porta meio cerrada. E o
achamos deitado na sua cama, que era um catre com seu colchão, lenços e
cobertor. E nela, juntamente, o dito negro José deitado, o qual estava nu e só
tinha uma canga pela cintura, e patentes e descobertas as suas partes
vergonhosas, com a barriga para cima e o dito João Carvalho, seu senhor, na
mesma cama, em camisa, sem ceroulas, com uma perna cavalgada sobre o dito
negro. E sentira-nos entrar de repente, se assentou o dito de cima rente na cama
e o negro ficou deitado nela, na forma que acima fica dito. E na mesma cama
os prendemos a ambos, levando em nossa companhia a Estevão da Silva,
homem pardo, casado e forro, morador no dito sítio, o qual levava um pedaço
de uma vela acesa, que também viu tudo o acima referido. E pelas muitas vozes
e gritos e repugnância do dito delinquente, o pelejamos da parte da Santa
Madre Igreja e da parte do Santo Ofício, a fim de que algumas pessoas nos
viessem ajudar a fazer a dita prisão. E as que acudiram e a ela se acharam
presentes são as seguintes: Manoel de Araújo, homem casado, Simão Corrêa,
filho de Manoel Corrêa, Manoel da Rocha, seu feitor, Felipa da Silva, preta
forra e Pedro, negro forro casado com uma escrava do dito delinquente. Todos
moradores na dita freguesia de Matoim. E achamos notícia geral de que o dito
delinquente preso era tão devasso no dito pecado, que por força e com ameaças
obrigava aos mais seus escravos para que com ele cometessem o dito pecado
de sodomia. E que, por esta causa, andavam alguns fugidos, e os que com ele
assistem se queixavam do dito delinquente seu senhor os solicitar
violentamente para que com ele cometessem o dito pecado. E declaramos que
os mais negros escravos do dito delinquente dormem e pernoitam em senzalas
à parte e que, na casa, onde achamos deitado na cama o dito delinquente João
Carvalho junto com o dito negro José seu escravo, é casa onde dorme o dito
577
delinquente somente e nenhuma outra cama estava na dita casa, que é uma
câmara térrea com suas partes, que só serve para dormir.1405
Trata-se de uma cena em que vemos a ação incisiva de agentes eclesiásticos contra
personagens interpelados como focos de dissidência à ordem natural e divina da
sociedade colonial, os sodomitas ̶ ainda que, como estamos vendo ao longo da tese, em
suas práticas cotidianas, a maioria dos praticantes do nefando movimentava-se de acordo
com os vínculos hierárquicos usuais naquela sociedade.1406 Concentremo-nos,
primeiramente, em alguns detalhes de ambientação, pensando as condições de
privacidade que poderiam ali existir. A casa de João Carvalho de Barros erguia-se em
grande proximidade às de seus vizinhos, o que se constata pelo fato de que, escondidos
em uma casa vizinha, o meirinho e o escrivão do Eclesiástico conseguiam escutar o que
se passava na morada do suspeito, mesmo se não pudessem distinguir exatamente o que
ali ocorria, talvez porque os moradores falassem baixo. Além disso, o tumulto da prisão
em flagrante foi escutado por vários vizinhos, que acorreram aos chamados do meirinho
1405
"Auto de achada / Anno do naSimento de noSo senhor e / jeSus christo de mil e setesentos e tres / annos
Aos uinte e outo dias do mes de mar / co do dito anno, nesta freguezia de ma / tuim de nosa senhora da
piedade, aon / de eu escriuam ao diante nomiado fui / com o meirinho geral deste arsebispado / manoel
nunes dos reis por ordem do is / llustrissimo senhor Arsebispo me / tropolitanno deste estado do brazil / o
senhor dom sebastiam monteiro da / uide, pera efeito de quem dermor a joaõ /Carualho homem pardo,
solteiro e forro, / morador na dita freguezia, por ser im / famado na culpa do pecado nefando /de sodomia
com o seus escrauos, e prin /sipalmente com o escrauo jozeph / negro, e ocultam dono em caza don / de
mora felipa da silua preta fo / rra, a qual caza ficaram perto da / caza do dito joam carualho, e ouuia / mos
falar mas nam per sebiamos o que / deuia: e sendo pelas noue horas da noite / pouco mais ou menos, do
sobredito dia a / sima declarado, emtramos de Repen / te em caza do dito joam Carualho por // por huma
estreuaria, e dahi entramos / por hum buraco de huma parede, e dahi / a sala da dita caza, e fomos entrando
/ athe a camara onde estaua o dito jo / am carualho, o qual estaua com a por / ta meia sarrada, e o achamos
deitado / na sua cama que era hum catre com / seu colchame lemsos e cobertor, e / nela ijuntamente o dito
negro ijo / zeph deitado, o qual estava nu, e so / tinha huma tanga pela sintura, / e patentes e descubertas as
suas partes / uergonhozas, com a bariga pera sima / e o dito ijoam carualho seu senhor na / mesma cama
em camiza, sem siroulas / com huma perna caualgada sobre / o dito negro, e semtira de nos entra / de
repente, se aseasentou o dito de / sima rente na cama e o negro ficou / deitado nela, na forma q asima fica /
dito; e na mesma cama os prendemos / a ambos, leuando em nosa companhi / a a esteuam da silua homem
pardo / cazado e forro e morador no dito sitio / o qual leuaua hum pedaso de huma uela / aseza, que tambem
uio tudo o asima Re /ferido: e pelas muitas uozes e gritos e / Repugenanfia do dito delimquente /o pelidamos
da parte da santa ma / dre igreja e da parte do santo o / fisio, a fim de que algumas peSoas / nos uiesem
aijudar a fazer a dita // A dita prizam, e as que acudiram e a ela se / acharam prezentes saõ as seguintes; /
manoel de araujo homem cazado, e Si / mam Correa filho de manoel correa / e manoel da Rocha seu feitor
e feli / pa da silua preta forra, e pedro negro / forro cazado com huma escraua do di / to delinquente, e todos
moradores / na dita freguezia de matuim e acha / mos notisia geral que o dito delimqu / ente preso era tam
deuaso no dito / pecado, que por forssa e com ameasor o / brigaua aos mais seus escrauos / pera que com
ele cometesem o dito pe / cado de sodomia, e que por esta cauza / andauam alguns fugidos, e os que / com
ele asistem se queixauam do / dito delimquente seu senhor os / solisitar uiolentamente pera / com ele
cometesem o dito pecado: e de / claramos que os mais negros escrauos / do dito delimquente dormem a per
/ noitem em samzalas a parte; e que / na caza onde achamos deitado na / cama ao dito delimquente ijoam /
carualho ijunto com o dito negro ijo / zeph seu escrauo, he a caza on / de dorme o dito delinquente so /
mente, e nenhuma outra cama esta / ua na dita caza, que he huma camara / terreia com suas partes, que so
serue pe / ra dormir". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 4-5.
1406
VAINFAS. Trópico dos pecados, p. 175.
578
e do escrivão. Como mostrou Leila Algranti, a proximidade das casas era a regra nas
localidades urbanas da colônia, separadas, às vezes, por meias paredes ou por ruas
estreitas. Era um incentivo a mais para a bisbilhotice e a delação, que, como temos visto,
eram incentivadas pela Igreja e pelo Santo Ofício como um dever cristão.1407
A casa de João Carvalho de Barros, segundo o relato, deveria ser pouco mais que
uma choupana, visto que o meirinho, o escrivão e a testemunha entraram por um buraco
na parede, que talvez fosse de barro ou de madeira. Era térrea (o que indicava que era de
chão batido) e possuía poucas divisões, provavelmente apenas uma sala e um dormitório,
separados por uma porta. Essa porta poderia fornecer um mínimo de privacidade ao
morador, todavia, João Carvalho parece que não se dava ao trabalho de fechá-la para
dormir com seus escravos. Essa prática surpreendente, por se tratar de atos eróticos
proscritos e fortemente estigmatizados, revela como, para os senhores, o olhar de seus
inferiores era naturalizado e invisibilizado. Sendo homem solteiro e morando sem outras
pessoas livres ou forras, João Carvalho parecia não ter, tal como o padre José Ribeiro
Dias, sentido de vergonha diante de seus escravos. O escrivão fez questão de destacar que
apenas o preso dormia na casa, onde só havia uma cama (na verdade, um catre com
1407
ALGRANTI. Famílias e vida doméstica, p. 96.
1408
ALGRANTI. Famílias e vida doméstica, p. 90-8.
579
colchão, lençol e cobertor), o que aumentava as suspeitas de que o escravo José fosse
dormir no mesmo leito que seu senhor. A simplicidade da casa e a parcimônia de
apetrechos domésticos eram outras duas características comuns dos domicílios da época
colonial.1409 Vemos, pois, como na maioria das casas pobres do período, a privacidade
era precária, uma vez que o que se passava no interior era mais facilmente exposto,
percebido, ouvido ou mesmo visto pela vizinhança, tornando-se de conhecimento
público.1410 Nas palavras do historiador Emanuel Araújo, tratava-se de uma "existência
promíscua", em que as condições arquitetônicas precárias colaboravam e ensejavam o
hábito de espionar, bisbilhotar, fofocar e delatar.1411
1409
ALGRANTI. Famílias e vida doméstica, p. 98-112.
1410
ALGRANTI. Famílias e vida doméstica, p. 110.
1411
ARAÚJO. O teatro dos vícios, p. 64-74.
1412
MOTT. O sexo proibido, p. 117-129; FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória. Cotidiano e
trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Prefácio Laura de Mello e Souza. 2. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1999, p. 125-132.
1413
PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia, p. 199.
580
Presos João de Carvalho Barros, José e vários outros escravos da casa, todos
infamados de praticarem a sodomia a mando e com o seu senhor, seguiu-se uma fase de
interrogatório dos envolvidos no caso pelo tribunal eclesiástico do arcebispado da Bahia.
Foi feito um sumário dessas sessões, para ser enviado aos inquisidores em Lisboa. Nossa
preocupação, agora, será destacar os trechos que nos permitem perceber como três
personagens importantes no drama, que compunham um dos vários triângulos eróticos
descritos no documento – o escravo José, a escrava Domingas e o senhor João Carvalho
de Barros –, subjetivavam-se como sodomitas, dentro das relações de saber-poder-
subjetivação do dispositivo da carne e da ordem de gênero tradicional nas sociedades do
Império ultramarino português na Época Moderna.
1414
LARA. Campos de violência, p. 112-3.
1415
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 12.
1416
João Carvalho tentou convencer Manoel de Araújo, uma das pessoas que acudira à sua casa aos
chamados do meirinho, de que o escravo José fora avisá-lo de que Matias e Domingas, outras duas pessoas
escravizadas do réu, estariam dormindo juntos. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097,
fl. 9.
1417
Trata-se de uma cena bastante similar àquelas descritas por Althusser para exemplificar seu conceito
de interpelação. ALTHUSSER. Ideologias e aparelhos ideológicos do Estado, p. 99-100.
581
Dentre os três parceiros eróticos, José foi o último a ser interrogado pelo
arcebispo, tendo sido submetido a duas sessões oficiais de perguntas. O primeiro
interrogatório aconteceu no dia 31 de março, três dias após a prisão em flagrante do
escravizado e de seu senhor. Da mesma forma que quase todas as pessoas ouvidas nessa
inquirição, José afirmou que João Carvalho era acostumado a praticar o sexo anal com
vários de seus escravos, nomeando Matias, Gonçalo, João, João barbeiro, Matheus,
Domingas e a si próprio como os parceiros/cúmplices dele. Chama atenção a maneira
como o senhor realizava seus desejos, ao mesmo tempo atraindo e convencendo seus
escravos a deles participar e, do ponto de vista do discurso normativo, acrescentando uma
camada de devassidão a mais aos atos, visto que se tratava de sessões orgiásticas de sexo
triplo. Vejamos como as descreveu José:
Disse mais que, por muitas vezes, o obrigava o dito seu senhor João Carvalho
a que, perante ele e na mesma cama e catre entre os lençóis, dormisse ele
respondente carnalmente pelo vaso natural com a dita crioula Domingas, e
nesse mesmo tempo estava o dito João Carvalho tendo cópula sodomítica com
ele respondente. De sorte que, no mesmo tempo e ato, estavam todos três tendo
cópula um em cima dos outros. E isto mesmo fazia com Matheus, Gonçalo,
Garcia, Loango João, João Barbeiro, Matias, todos seis escravos do dito João
Carvalho, conforme eles mesmos lhe disseram, e ele viu por muitas vezes
fechar-se o dito João Carvalho em uma casa com a dita negra e um dos
sobreditos.1418
1418
"Disse maes que por mui / tas uezes, o obrigaua o dito seu senhor Joaõ Carualho a que perante / elle e
na mesma cama e catre entre os Lançois durmisse elle / Respondente Carnalmente pello uazo Natural com
a dita / Crioula Domingas, e nesse Mesmo tempo estaua o dito Joaõ / Carualho tendo Copula Sodomitica
com elle Respondente, de /Sorte que no mesmo tempo e acto estauaõ todos tres tendo / Copula hum em
sima dos outros; e isto Mesmo fazia com / Matheus, Gonçalo, Garçia, Loango Joaõ, Joaõ Barbeyro, Ma /
thyas, todos seis escrauos do dito Joaõ Carualho, conforme elles / mesmos lhe disseraõ, e elle uio por muitas
uezes fecharse /o dito Joaõ Carualho em huã caza com a dita negra e hum / dos sobreditos". DGA/TT –
Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 22.
582
E perguntado ele, testemunha, pelo auto que se tinha feito contra João Carvalho
de Barros, seu senhor, disse que o dito denunciado tratava com mais mimo a
sua escrava Domingas crioula, dando-lhe mais vestidos do que as outras, e
ouviu dizer que era sua amiga. E que tratava com mais mimo que aos outros a
dois pretos escravos seus, um por nome José e outro, por nome Matias. E que
estes dois assistiam sempre de dia e de noite com o dito seu senhor na sua casa,
nem os ocupava em serviço algum mais que o acompanhar. E que, quando ia
ele testemunha à cozinha e casa do dito senhor, ou os outros companheiros
escravos, a pedir farinha ou alguma coisa para comer, corriam com eles, vão-
se embora cães, para a senzala.1419
Alguns dos escravos, escolhidos pelo senhor como seus preferidos, por razões
erótico-afetivas, tinham o cotidiano de suas vidas bastante alterado. De Domingas, diz-se
que ela recebia presentes ("mais vestidos"), o que lhe possibilitava viver melhor do que
as demais escravas. Em relação a José e Matias, a diferença seria ainda mais marcante,
uma vez que eles foram afastados do convívio diário de seus companheiros. Não viviam
mais nas senzalas e não exerciam mais as mesmas atividades. Sua função pública, perante
as pessoas de fora da casa e, até certo ponto, perante o próprio plantel, passava a ser a de
acompanhar seu senhor. Do ponto de vista dos escravizados, tal mudança dizia de uma
alteração de status, ainda que dentro da mesma condição de escravizado, na medida que
era um afastamento do trabalho manual, considerado degradante. Para o senhor, fazer-se
acompanhar de escravos (não sabemos como eles se trajavam em público, mas se
Domingas recebia vestidos novos por seus favores sexuais, talvez os homens também
recebessem roupas novas), pelas ruas era um sinal de distinção social, dentro da ambição
geral de afetar alguma forma de fidalguia, enobrecimento ou superioridade social,
seguindo os ditames da ética cortesã.1420 Essa obsessão por distinguir-se do comum de
seus pares expressou-se também no tratamento dado pelos escravos privilegiados aos
demais, chamando-os de "cães" (um pesado insulto na Época Moderna), recusando-lhes
comida e expulsando-os de volta para as senzalas, o que nos faz pensar como as
preferências eróticas do senhor produziam uma certa hierarquia interna ao seu plantel de
1419
"E preguntado elle testemunha pello auto que se tinha feito con / tra Joaõ Carualho de Barros seo senhor,
disse que o dito denunciado / trataua cõ mais mimo a sua escraua Domingas crioula dando / lhe mais
uestidos do que as outras, e o ouuio dizer que era sua miga; / e que tratava cõ mais mimo que aos outros a
dous pretos escrauos / seus, hum por nome Jozeph; e outro por nome Mathyas, e que / estes dous aSsistiaõ
sempre de dia e de noute cõ o dito seu senhor / na sua caza, nẽ os occupaua em seruiço algú Mais que
acompa / nhado; E que quando hya elle testemunha à cozinha e caza do dito / senhor, os outros
companheiros escrauos a pedir farinha ou algua / couza para Comer, corriaõ com elles Vaõ se embora cais,
para a sen / zala". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl.7.
1420
ARAÚJO. O teatro dos vícios, p. 107-117.
583
escravos, com consequências para a rotina das vidas dos escravizados.1421 Vemos, ainda,
como não havia, nesses comportamentos, qualquer subversão da hierarquia estamental
escravista, ao contrário, era mais uma estratégia para a sua reprodução.
Não era, contudo, apenas por meio de prêmios, prendas, mimos e recompensas
que João Carvalho dobrava José e os demais escravos nomeados a seus desejos eróticos.
Em se tratando de relações de dominação patriarcais e paternalistas, essa face
supostamente "bondosa" não se descolava daquela, aos nossos olhos contemporâneos,
dita "cruel", ainda que pudesse, até certo ponto, estar naturalizada no contexto histórico
do escravismo. Refirimo-nos aos castigos, que podiam ser rigorosos. José assim
descreveu o efeito que a mera ameaça dos castigos físicos tinha sobre ele:
E, com efeito, com ele, respondente, teve os ditos acessos muitas e repetidas
vezes, sendo ele sempre paciente e o dito João Carvalho agente. Posto que o
dito João Carvalho por algumas vezes solicitava a ele respondente que fosse
agente, o qual nunca quis fazer, e era paciente, porque o dito seu senhor o
obrigava não só com mercês, mas com castigos rigorosos de açoites, e que
consentia por ser ignorante e recear os castigos.1422
José confessava, desse modo, muitos e repetidos atos sodomíticos com seu senhor,
mas procurou logo esclarecer que não participara deles por sua livre intenção. Ele era a
isso obrigado por João Carvalho pelo mecanismo duplo da mercê/castigo, de modo que
os privilégios de não dormir na senzala e de não exercer trabalho manual pesado eram
contrabalançados pela ameaça dos castigos e pelo cumprimento do trabalho erótico. José
quis, ademais, reforçar que só obrigado praticara o sexo anal com seu senhor, afirmando
que apenas fora paciente (penetrado) no ato, nunca aceitando ser agente (dando a entender
que não teria desejo por esse tipo de sexo, o que lhe impossibilitaria uma penetração fálica
em seu senhor). Para além da falta de gosto pessoal por essas formas de deleite erótico,
por que o escravo José se recusava tão fortemente a penetrar analmente seu senhor? Por
1421
Falando do contexto das Minas setecentistas, Marco Antonio Silveira afirma que a obsessão pela
fidalguia e a afetação eram partilhadas por todos os estratos sociais, das elites aos populares, por brancos
aos negros, escravos e forros. De modo geral, a afirmativa do historiador vale para a sociedade colonial
como um todo, variando nas práticas cotidianas para sua realização, conforme as possibilidades regionais,
diferentes, por exemplo, em contextos rurais ou urbanos. SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do
indistinto. Estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São Paulo: Editora Hucitec, 1997, p.
179.
1422
"e com effeito com elle Responden / te teue os ditos acçessos muitas e Repetidas uezes, sendo elle
sempre / pasçiente, e o dito Joaõ Carualho Agente, posto que o dito Joaõ Carua / lho per alguãs vezes
solicitaua a elle Respondente que fosse Agente, / o qual se Nunca quis fazer, e era passiente porque o dito
seu senhor // Porque o dito seu senhor o obrigaua Naõ só com mergusses / mas com castigos Rigurozos de
assoutes, e que consentia per / ser ignorante, e Reçear os castigos". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 15097, fl. 22.
584
que ele mostrava um desgosto pelo sexo homoerótico, praticando-o somente no contexto
de uma imposição senhorial?
1423
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 22.
1424
"E pReguntado se uzaua elle Respondente deste abomi / nauel peccado cuidando que fazia mal,
Respondeo que sus // Que suposto elle era preto, tapanhúno, e viera bocçal cõ / tudo bem sabia que era
muito grande peccado, porquoanto /na sua Terra se castiga este peccado nefando Logo com / penna de
Morte e de fogo, e que elle Respondente consentio / pellas Rezois que tem dito nas pRimeiras preguntas, e
agora / Repete que era pello Rigurozo Castigo que lhe daua, e o dezejo / que elle tinha de durmir cõ a preta
Domingas, e por ser es / crauo do dito Joaõ Carualho, e naõ lhe poder fogir". DGA/TT – Lisboa, Inquisição
de Lisboa, processo 15097, fl. 22-3.
585
assédio erótico de seu senhor.1425 Por essa razão, não poderemos avançar nas
considerações sobre o processo de subjetivação experimentado por José em sua vida
como escravo na América portuguesa, sem considerarmos, ainda que rapidamente, devido
às limitações do presente espaço, os lugares possíveis do homoerotismo nas culturas das
regiões africanas, especialmente da África Central, a região da possessão lusitana de
Angola, na Época Moderna.1426
1425
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo. Uma história lexical da Ibero-América entre os séculos
XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2015, p. 199-221.
1426
Angola foi o único caso de conquista efetiva e estável realizada por Portugal (ou qualquer reino
europeu) no continente africano durante a Época Moderna. A conquista foi iniciada na década de 1560 e
consolidada até o início do século XVII. Marcos importantes desse processo foram a cessão do porto de
Luanda e a área ao redor como colônia portuguesa a partir da aliança com o rei do Kongo em 1568,
construção de uma fortaleza no rio Kwanza e a conquista de um porto avançado ao sul em Benguela a partir
de 1575. No início do século XVII, tomou forma uma pequena colônia portuguesa em Angola, que
sobreviveu devido à inserção dos comerciantes lusos no tráfico atlântico de pessoas escravizadas,
negociando com os reinos vizinhos do Kongo, de Ndongo e até o de Nziko, à leste do Kongo. A pequena
colônia manteve-se em um estado interstício de guerra até 1656, quando foi assinada uma paz com a rainha
Ana de Sousa Nijinga Mbandi do reino vizinho de Ndongo. A partir de então, segundo Thornton, a colônia
angolana se desenvolveu em um estilo semelhante às colônias americanas de Portugal. THORNTON, John
K. A Cultural History of the Atlantic World. 1250–1820. New York: Cambridge University Press, 2012, p.
184-6.
1427
Segundo Thabo Msibi, nas últimas duas ou três décadas, a homossexualidade tem sido usada
politicamente por líderes neoconservadores africanos como uma causa para angariar rápido apoio popular.
Para tanto, difundiu-se o discurso de que a homossexualidade (em qualquer forma de expressão) seria algo
não africano, um instrumento ocidental para destruir o que seriam as tradições e as famílias africanas. O
autor reconhece que o enunciado do suposto estrangeirismo ocidental da homossexualidade não é novo na
história africana (na verdade, foi primeiramente elaborado por colonizadores ingleses entre os séculos
XVIII e XIX), mas haveria, no momento atual, um arranjo novo de forças, que seria o movimento
neoconservador nacionalista e fundamentalista religioso. Nesse contexto, consideramos que vale a pena
citar um trecho do autor em que ele dá um pequeno resumo da situação jurídica de pessoas LGBTQIA+ em
vários países africanos. "Em trinta e oito dos cinquenta e três estados africanos, é ilegal praticar o sexo gay.
Países como Nigéria, Malaui, Senegal, e mais recentemente, Uganda impuseram os mais duros tratamentos
para indivíduos culpados de praticarem relacionamentos com pessoas do mesmo sexo. As punições usadas
para discriminar aquelxs que têm relacionamentos com pessoas do mesmo sexo, na África, surgem em
grande parte, das leis antissodomia, deixadas pela época colonial, quando as autoridades coloniais estavam
adeptas a regular a sexualidade. Estas leis permaneceram largamente inalteradas, hoje, na África pós-
colonial". MSIBI, Thabo. As mentiras que nos contaram: sobre a (homo)sexualidade na África. In: REA,
Caterina; FONSECA, João Bosco Soares da; SILVA, Ana Catarina Benfica Barbosa (orgs.). Traduzindo a
586
ideia nova, na verdade. Segundo o historiador Marc Epprecht, ela foi primeiro formulada
por Sir Edward Gibbon, em 1781, em seu livro História do declínio e queda do Império
romano, no qual escreveu, sem nunca ter tido contado direto com qualquer cultura do
continente africano, que acreditava que os africanos fossem isentos da “pestilência moral
da sodomia” (de passagem, vemos mais uma incidência dos enunciados de constituição
da sodomia como corrupção moral e/ou como doença). No século XIX, Sir Richard
Burton (ambos eram ingleses) apresentou, como apêndice à sua traduão de As mil e uma
noites (1885), uma divisão do mundo segundo a existência ou não de comportamentos
homoeróticos nativos em cada região, posicionando a África negra (juntamente ao Norte
da Europa) como uma zona não-homossexual.1428 A antiguidade do preconceito aponta
para seu enraizamento cultural e para a enormidade da tarefa política, nos variados
contextos africanos, que não devem ser idealizados como iguais,1429 de mostrar como as
comunidades LGBTQIA+ do continente são africanas, partícipes da rica diversidade
cultural dos seus povos. Tal tarefa, de acordo com Gathoni Blessol, começa com um
reexaminar das (muitas) evidências históricas sobre práticas e expressões eróticas e
homoeróticas africanas desde muito antes da penetração ocidental.1430
África Queer II. Figuras da dissidência sexual e de gênero em contextos africanos. Salvador: Editora
Devires, 2020, p. 197-201.
1428
EPPRECHT, Marc. Introduction. In: EPPRECHT, Marc (org.). Unspoken facts. A history of
homosexualities in Africa. Harare, Zimbábue: GALZ and Ann Arbor; Africa Books Collective, 2008, p.
12-3. Como explicam Epprecht e Naphy, a ideia de que não haveria "homossexualidade" na África foi
gerada no contexto da expansão imperialista das potências capitalistas europeias, entre os séculos XVIII e
XIX, tendo sido, por conseguinte, informada por ideias científicas e modernas de raça, de hierarquias
raciais, de branquetude e do fardo do homem branco. Ou seja, era uma ideia fundada em concepções racistas
e que fazia suposições infundadas sobre o erotismo nas culturas africanas. Em primeiro lugar, supunha que
os povos africanos seriam primitivos e naturais (o que nos séculos XVIII e XIX, queria dizer animalescos),
logo, dominados pelos "instintos" (uma categoria, como mostraram autores como Foucault e Halperin,
desenvolvida no contexto da articulação do dispositivo da sexualidade). Por essas razões, os africanos só
poderiam ser "heterossexuais" (outra categoria naturalizada) ou reprodutivos, uma vez que, em uma visão
de fundo grega, assumia-se que a homossexualidade fosse uma invenção da civilização. "Essa vontade de
identificar os africanos como uma raça 'pura' e 'primitiva' implicava encaixá-los à força na noção
preconcebida de como deveria ser essa raça. Tornava também muito mais fácil defender que eles
precisavam da mão pesada da Europa cristã pasa os 'civilizar' e 'proteger'". NAPHY. Born to be gay, p. 160-
2.
1429
NDASHE, Sibongile. A história única a homofobia africana é perigosa para o ativismo LGBTI. In:
REA, Caterina; PARADIS, Clarisse Goulart; AMANCIO, Izzie Madalena Santos (orgs.). Traduzindo a
África Queer. Salvador: Editora Devires, 2018, p. 78-88.
1430
"Uma exploração mais complexa da história e da política LGBTIQ africanas, em conjunto com o estudo
do colonialismo, nos levará à compreensão da relação entre a opressão da população negra em geral, e das
mulheres, e dos LGBTIQ, em particular". BLESSOL, Gathoni. Lutas LGBTI Queer como outras lutas em
África. In: REA, Caterina; PARADIS, Clarisse Goulart; AMANCIO, Izzie Madalena Santos (orgs.).
Traduzindo a África Queer. Salvador: Editora Devires, 2018, p. 107.
587
desde a década de 1990, como apontou Deborah P. Amory, ainda que sejam campos
pouco conhecidos na academia brasileira.1431 Não obstante, desde a década de 1980, a
historiografia brasileira conta com as intervenções de Luiz Mott sobre os pontos da
história das sexualidades africanas que se conectavam com as experiências eróticas de
africanos trazidos à América portuguesa no contexto do tráfico atlântico de
escravizados.1432 Consequentemente, hoje podemos construir uma imagem mais nítida
das múltiplas práticas e dos diversos estilos de subjetivação homoeróticos que existiam
em muitas partes do continente africano entre os séculos XVI e XVIII, ficando totalmente
afastada a ideia racista, homofóbica e imperialista de que não haveria
"homossexualidades africanas".
De modo geral, podemos falar que, nas várias culturas africanas, o homoerotismo
era experimentado de acordo com ordens de gênero bastante diversas daquela que era
familiar aos europeus na Época Moderna. Isso significa que as relações homoeróticas se
interseccionavam com identidades de gênero variadas, que nem sempre funcionavam de
acordo com o binômio homem-mulher ocidental, gerando outros gêneros e outros
arranjos.1433 Exemplos desses arranjos não-ocidentais são as identidades jimbandas e
quimbandas, estudadas por Mott a partir de documentos inquisitoriais e de relatos de
viajantes europeus. Não surpreendemente, os olhares ocidentais do inquisidor e do
viajante enquadraram essas pessoas como sodomitas, reduzindo a diversidade cultural e
de gênero dos povos da costa da África Ocidental a uma categoria jurídica cristã de culpa
e estigma. Segundo as análises de Mott e, mais tarde, de Figari, as pessoas jimbandas e
1431
AMORY, Deborah P. Homosexuality in Africa: issues and debates. Issue: A Journal of Opinion
[African Studies Review], Cambridge, 25 (1), 1997, p. 5-10.
1432
MOTT, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988, p. 19-47; MOTT,
Luiz. O sexo cativo: Alternativas eróticas dos Africanos e seus descendentes no Brasil escravista. In:
MOTT, Luiz. O sexo proibido. Escravos, gays e virgens nas garras da Inquisição. Campinas, SP: Papirus,
1988, p. 17-74.
1433
Segundo a socióloga e feminista nigeriana negra Oyèrónkẹ Oyěwùmí, nas sociedades Oyó-Iourubá, não
existira a categoria social “mulheres” (tampouco existiria, obviamente, a de “homem”), no sentido que ela
possui no Ocidente. O argumento central da autora é que a categoria “mulher”, definida estritamente em
termos de gênero, não pode ser localizada na sociedade pré-colonial iorubá, ou seja, "mulher" como
categoria de identidade de um grupo social, caracterizado por seus interesses comuns, desejos ou posição
social, não tinha forma ali, porque inexistia ali a mesma lógica de organização social estruturante das
sociedades ocidentais. Diferente do que ocorria (e ocorre) na cultura ocidental, na iourubá, o corpo
generificado não era a fundação da organização social e da identidade, existiam outros sistemas de poder
que serviam de canais primários de expressão das relações de poder e da hierarquia social, tais como o
sistema de linhagem e etário. Oyěwùmí, Oyèrónkẹ. The invention of women. Making an African sense of
Western gender discourses. Minneapolis; London: University of Minnesota Press, 1997, p. IX-XIII. Para
uma crítica à proposta de Oyěwùmí, ver BAKARE-YUSUF, Bibi. “Yorùbás don’t do gender”: a critical
review of Oyèrónké Oyěwùmí’s The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender
Discourses. African Identities, 1(1), 2003, p. 121–142.
588
1434
"Para a Inquisição, contudo, a fluidez do gênero de Antônio/Vitória, o modo como ele(a) subvertia a
masculinidade ao viver seu gênero performativamente como mulher (de fato, as práticas de gênero da
personagem podem indicar uma subversão da externalidade em geral do gênero, ao mostrar como, dentro
do ambiente cultural restritivo, ele poderia ser subvertido) era inadmissível. Um tal ser não poderia ter
existência dentro do imaginário cultual dos inquisidores, salvo caso se tratasse de um hermafrodita".
ROCHA, Cássio Bruno de Araujo. Sodomitas no mundo ibérico quinhentista: afirmação e subversão dos
padrões identitários da masculinidade. Bagoas, estudos gays, gênero e sexualidade, Natal, RN, n. 14, 2016,
p. 33.
1435
MOTT. O sexo proibido, p. 27-8; FIGARI. @s outr@s cariocas, p. 36-40. Interpretação semelhante é
oferecida por Naphy, "É possível colocar a hipótese de que algumas sociedades tenham chegado à
conclusão de que certos indivíduos, incapazes ou relutantes em participar no alargamento do grupo através
da procriação, estavam destinados (pela natureza ou pelas divindades) a desempenhar outras funções
necessárias ao mesmo grupo. Isto é, a homossexualidade [sic] tinha um desígnio na ordem maior das coisas
e, por isso, um lugar na vida digna e próspera da comunidade". NAPHY. Born to be gay, p. 165.
1436
BLESSOL. Lutas LGBTI Queer como outras lutas em África, p. 106.
1437
Para mais informações sobre a diversidade de gênero e homoerótica em várias culturas africanas, desde
o período colonial até a contemporaneidade, ver: EPPRECHT, Marc. Hungochani. The history of a
dissidente sexuality in Southern Africa. Quebec: Mcgill-Queen's University Press, 2004; EPPRECHT,
Marc. Hetero sexual Africa? The history of an idea from the Age of Exploration to the Age os AIDS.
Athens: Ohio University Press, 2008; MURRAY, Stephen; ROSCOE, Will (orgs.). Boy-wives and Female
Husbands. Studies of African homosexualities. London: Macmillan, 1998.
589
consentido ser penetrado apenas por medo do castigo e pelo desejo que sentia de ter
relações sexuais com Domingas. Ainda mais, disse que, em sua terra, na África Ocidental,
uma prática como a que realizava João Carvalho era condenável e punida com a morte
pelo fogo. Tendo em vista que relações homoeróticas e identidades transgêneras tinham
um lugar social reconhecido e respeitado nas sociedades africanas em praticamente todas
as regiões do continente ao sul do Saara, o que poderia querer dizer o escravo?
Provavelmente, que os atos praticados por ele e João de Barros não poderiam ser
entendidos da mesma forma que as identidades jimbanda, quimbanda ou chibado
mencionadas acima. Isso porque nenhum dos dois performatizavam o gênero em direção
à feminilidade ou a um terceiro gênero. José e João Carvalho se identificavam e
experimentavam, performativamente, o gênero como homens, segundo os signos da
masculinidade. Como temos visto ao longo da tese (bem como estudamos em trabalhos
anteriores), a masculinidade, em ordens patriarcais, se caracteriza por um horror à
passividade (o que se deve entender como ser penetrado) e por um correlato culto ao falo
penetrador, resultando em práticas de virilidade agressiva e exorbitante. 1438 Por esse
ponto de vista, podemos conceber que ser penetrado teria significado para José uma
angustiante perda de masculinidade (pouco remediada pela prática erótica penetrante que
ele ao mesmo tempo realizava) e um deslocamento forçado do que concebia, subjetivava,
como seu lugar em um universo generificado. Essa angústia parece ter sido canalizada
pelas técnicas interpelativas da Igreja em uma sujeição explicitada na profissão de
arrependimento manifestada por José ao final de seu segundo interrogatório, em uma
teatralização da sua culpa, o que, como temos visto, era comum às estéticas de existência
sob o Antigo Regime, além de ser ativamente estimulada pelos agentes eclesiásticos nos
termos do processo.1439
1438
ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 146-7.
1439
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 23.
590
dois depoimentos e de passagens de referimentos a ela feitos por quase todas as outras
testemunhas, temos muito elementos para construir uma figura do estado de subjetivação
angustiante em que ela deveria se encontrar nos tempos que antecederam o estouro do
caso e durante sua prisão na Bahia, até ser enviada a Lisboa. O primeiro ponto a se
destacar é que, diferentemente de José, Domingas era de qualidade crioula, o que
significava que nascera na América portuguesa, tendo tido mãe africana, que se chamava
Maria de Barros, preta natural de Angola (seu pai, como era usual, não foi nomeado).1440
A qualidade de crioulo poderia indicar também como Domingas era nascida na casa de
seu senhor.1441 De todo modo, ela era uma mulher nascida e criada na sociedade colonial,
escravista e cristã da América portuguesa, o que implicava consequências importantes
para as suas práticas de subjetivação. Diferentemente de José, ela era muito mais inclinada
a ter uma relação de culpa e medo consigo mesma em relação às suas práticas e aos seus
desejos eróticos, tanto mais no que dizia respeito a atos aos quais ela se sentia obrigada e
não necessariamente desejava.
Vejamos como Domingas começou a abordar sua relação com João Carvalho de
Barros e alguns dos outros escravos da casa:
E perguntada ela, testemunha, pelo conteúdo no auto que se fez do réu preso,
disse que é verdade que, quando o prenderam, estava o dito João Carvalho de
Barros deitado na sua cama com o preto chamado José, que era seu escravo, e
com o qual dormia quase todas as noites carnalmente, como se fora mulher,
pelo vaso posterior. Como ele, testemunha, viu por muitas e muitas vezes, no
decurso de três ou quatro anos que há que o comprou. E a razão que ela
testemunha tem de o saber é porque o dito João Carvalho, seu senhor, anda
amancebado com ela testemunha, haverá alguns dez anos, usando dela pelo
vaso natural, como mulher que é. E que tanto que comprou o dito negro José,
andados poucos dias, o mandou uma noite para a cama em que dormia o
mesmo João Carvalho, onde ela testemunha já estava deitada. E depois do dito
João Carvalho dormir com ela testemunha carnalmente pelo seu vaso natural,
mandou que o dito negro José dormisse também com ela pelo mesmo vaso. E
depois de acabada a dita cópula, mandou o negro para fora, ficando com ela na
cama e lhe disse que, com aqueles escravos que ele quisesse, dormisse ela,
testemunha, lhe fizesse a vontade, que a deveria forra. E logo na noite seguinte,
tornou a mandar deitar o dito negro com ele na cama e com ela testemunha. E
mandou que o dito negro se pusesse em cima dela testemunha, como mulher,
pelo seu vaso natural. E tanto que o dito negro José se pôs em cima dela
testemunha, logo o dito João Carvalho de Barros se pôs em cima do dito negro.
E pelo que diziam e ela sentia, conhecia claramente que lhe estava metendo o
membro pela parte posterior de seu corpo do dito negro José e que, lá dentro,
derramava semente, porque eles mesmos o diziam no dito ato. E sabe ela
testemunha que, antes de suceder isso, disse o dito João Carvalho ao dito preto
José que havia de dormir com ele carnalmente, e, porque o dito preto lhe
respondeu que tal coisa não havia de consentir, lhe deu o dito João Carvalho
muito açoite. E, assim, por esta razão do castigo que o dito seu senhor lhe deu
1440
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 7.
1441
PAIVA. Dar nome ao novo, p. 203-4.
591
e pelo amor que o dito preto tinha a ela, testemunha, e desejo de dormir com
ela, por estas causas, consentiu que o dito João Carvalho cometesse com ele o
pecado nefando. O qual cometeu muitas vezes, as muitas que tem dito, pois era
quase todas as noites no decurso de três anos. […] Disse mais ela testemunha
que foi tal a cegueira do dito João Carvalho, que, do natal próximo passado até
o entrudo deste, que agora passou, dormiu com ela três vezes pelo vaso
posterior, mandando-a deitar, a ela testemunha, de bruços, com as costas para
cima, e lhe metia o membro pelo vaso posterior, onde ela testemunha o sentia
derramar a semente. Depois, pelo decurso da noite, para contentar a ela
testemunha, que se mostrava enfadada de cometer tal pecado, dormia então
com ela pelo seu vaso natural.1442
Domingas começou seu relato pondo o foco na relação entre João Carvalho e José,
uma estratégia narrativa de acordo com a verdade que o tribunal queria que ela produzisse.
Assim, vemos como o senhor obrigou o escravo a se dobrar ao seu apetite erótico, por
meio tanto de castigos (João Carvalho açoitou José, quando esse explicitamente o
recusou), como de um prêmio bastante particular e de interesse de José, partilhar o leito
com Domingas. É interessante notar que, do ponto de vista da escrava, José estava
apaixonado por ela. Na Época Moderna, considerava-se a paixão um sentimento perigoso,
uma vez que dizia de um apetite dos sentidos (logo, nascida da concupiscência da
vontade) que perturbava o estado natural do homem e lhe podia fazer agir contrariamente
1442
"E preguntafa ella testemunha pello Contheudo no auto / que se fes do Reo prezo; Disse que he uerdade
que quando o pRen / deraõ, estaua o dito Joaõ Carualho de Barros, deitado na sua / cama com o preto
chamado Jozeph que era seu escrauo e com / o qual dormya quaze todas as noutes carnalmente, como se /
fora molher pello vazo posterior, como ella testemunha vio / por muitas e muitas uezes, No discurso de tres
ou quatro annos / que há que o comprou. E a Rezaõ que ella testemunha tẽ de o saber / hé porque o dito
Joaõ Carualho, seu senhor, anda amançebado / com ella testemunha hauerá alguns dés annos, uzando della
/ pello Vaso Natural, como molher que hé; E que tanto que / comprou o dito negro Jozeph, andados poucos
dias o mandou / hu huã noute para a cama em que dormya o mesmo Joaõ Car / ualho, adonde ella testemunha
já estaua deitada, e despois do / dito Joaõ Carualho dormir com ella testemunha carnalmente / pello seu
vazo natural; mandou que o dito Negro Jozeph dur / misse tambem com ella pello mesmo vazo, e depois
de aca / bada a dita copula mandou o negro pera fora, ficando / com ella na Cama, e lhe disse que com
aquelles escrauos que / elle quisece dormisse ella testemunha lhe ficou a uontade, e / que adeue aria forra.
E logo na noute seguinte, tornou // Tornou a mandar deitar o dito negro com elle na Cama, e com / ella
testemunha, e mandou que o dito negro se pusece em Sima / della testemunha, como molher pello seu vazo
natural, e tan / to que o dito negro Jozeph se pos em sima della testemunha, / logo o dito Joaõ Carualho de
Barros se pós em sima do dito negro / e pello que deziaõ, e ella sentia conheçia claramente que lhe / estaua
metendo o membro pella parte posterior de seu corpo do / dito negro Jozeph, e que lá dentro derramaua
semente porque / elles mesmo o deziaõ no dito acto; E sabe ella testemunha que / antes de sucçeder isto
disse o dito Joaõ Carualho ao dito preto / Joze´ que hauya de durmir com elle carnalmente, e porque / o dito
preto lhe Respondeo que tal couza Naõ hauya de consentir / lhe deu o dito Joaõ Carualho muito assoute; e
assy por esta Re / zaõ do castigo que o dito seu senhor lhe deu, e pello amor que o dito preto / tinha a ella
testemunha, e dezeios de durmir com ella, por / estas causas consentio que o dito Joaõ Carualho comettesse
com elle / o peccado Nefando; o qual cometeo as muitas uezes, e muitas que / tem dito pois era quaze todas
as noutes No discurço de tres an / nos; […] / Disse mais ella testemunha que foy tal a segueyra do dito
Joaõ / Carualho, que do Natal proximo passado, até o Intrudo este / que agora passou, durmio com ella tres
uezes pello uazo posterior / mandandoa deitar a ella testemunha de brussos, cõ as costas para / Syma e lhe
metya o membro pello Vazo posterior a donde ella tes / temunha sentia derramar a semente; vao despois
pello discur / ço da Noute pera contentar a ella testemunha que se mostraua / enfadada de cometter tal
peccado durmya entaõ com ella / pello seu vazo Natural". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 15097, fl. 7-8.
592
à razão.1443 Aos olhos de Domingas, José parece ter se comportado exatamente assim, ao
deixar-se sodomizar pelo senhor, em troca da possibilidade de dormir com ela. Notemos
que, por esse fio de pensamento, Domingas deslocava a maior parte da culpa pelos
pecados cometidos para João Carvalho, ainda que, em José, persistesse a mácula de ter-
se deixado usar carnalmente como mulher. Vemos como a angústia sentida por José
acerca de seu estatuto como homem tinha algum fundamento, uma vez que a personagem
que ele provavelmente mais desejasse que o reconhecesse como homem, logo, um
potencial parceiro erótico-afetivo, o considerava senão menos que isso, pelo menos
fustigado em sua honra viril de representante do gênero masculino, uma vez que, fosse
pela razão que fosse, concordara que o senhor dormisse com ele "como se mulher fora".
1443
BLUTEAU, Raphael. Paixão. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico [...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 6, p.
188-9. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/paixa%C3%B5. Último acesso em
out.2020.
1444
Vainfas explica que o concubinato ou amancebamento era uma situação corriqueira em todas as
camadas sociais da colônia, sendo um resultado típico das condições sociais produzidas pelo colonialismo
e pela escravidão. "A tendência geral era, porém, a de confundir exploração social e sexual, unindo-se os
senhores, casados ou solteiros, às negras e mulatas da casa-grande ou da senzala". VAINFAS. Trópico dos
pecados, p. 77.
1445
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 8.
1446
FIGUEIREDO. O avesso da memória, p. 132-7. O dicionarista Dom Raphael Bluteau assim definiu o
verbo alcovitar: "Ser terceiro, para cõcertar illicitos ajuntamentos. Lenocinium facere. Lenocinari. Cic".
Ao mesmo tempo, definiu alcoviteira como "Molher, que entrega molheres, & dà casa de alcouce", e
593
não ganhar dinheiro ao oferecer os serviços sexuais de Domingas, porém, ganhava algo
que talvez desejasse ainda mais, como veremos a seguir, o desfrute dos corpos de seus
escravos.
alcoviteiro como "Torpe medianeiro, & ministro infame da luxuria alhea". Alcouce, por sua vez, foi
definido por Bluteau como "casa de alcouce. Aquela, em que se dão commodos para lascivos commercios
[…] ganhar a vida com dar casa de Alcouce". BLUTEAU, Raphael. Alcouce; Alcovitar; Alcoviteira,
Alcoviteiro. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico
[...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728, v. 1, p. 226-7. Disponível em
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/alcovitar. Acesso em jan.2021. As Ordenações filipinas
tipificavam o crime dos alcoviteiros no título XXXII do Livro V, cuja denominação era Dos alcoviteiros,
e dos que em suas casas consentem as mulheres fazerem mal de seus corpos. Ordenações Filipinas, Livro
5 Tit. 32: Dos alcoviteiros, e dos que em suas casas consentem as mulheres fazerem mal de seus corpos
Disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1182.htm. Acesso em jan.2021. Finalmente, as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (que seriam promulgadas poucos anos depois desse caso,
em 1707) especificavam Como devem ser castigadas as pessoas compreendidas neste crime "da Alcovitaria
e Alcouce" no título XXV do Livro V. VIDE. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, p. 496.
594
Disse mais que, acudindo ele testemunha em uma ocasião, à noite, a crioula
Domingas, escrava do dito réu, por lhe estar dando muita pancada e queria
matá-la, lhe perguntou, no outro dia, que causa tinha o dito seu senhor para lhe
dar tantos e tão cruéis castigos. Lhe respondeu a dita crioula que era por ela
não querer consentir no mais enorme pecado do mundo. E examinando ele
testemunha que casta de pecado era, lhe confiara a dita crioula que o dito seu
senhor João Carvalho mandava pôr em cima dela um moleque dos declarados,
e ele então se punha em cima do dito moleque. E que por não sofrer tal cousa,
que antes ser cativa de um turco1448 (Grifos nossos).
1447
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 11.
1448
"Disse maes que accudindo elle testemunha em huã ocasiaõ / á noute, á crioula Domingas escraua do
dito Reo por lha / estar dando muita pancada, e queria Mattala, lhe pre / guntou ao outro dia, que cauza
tinha o dito seu senhor para lhe dar / tantos, e taõ crueis castigos, lhe Respondera a dita Crioula // Crioula,
que era por ella naõ querer consentir no maes E / norme peccado do Mundo; e examinando elle testemunha
/ que casta de peccado era, lhe confenara a dita Crioula, que o dito / seu senhor Joaõ Carualho, mandaua
por em syma della húm / Moleque dos declarados e elle entaõ Se punha em Syma do dito / Moleque. E que
por naõ sofrer tal couza quem a anter ser catiua / de hum Turco". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 15097, fl. 11.
595
Disse mais que Domingas, crioula escrava do réu, lhe dissera a ele, testemunha,
perante sua mulher, que antes queria ser escrava de um turco, do que do dito
João Carvalho. Porque com extraordinários castigos e muitas pancadas que lhe
dera, a fez consentir três vezes a que tivesse com ele acesso pela parte posterior.
E isto disse a dita Domingas muito tempos antes de prenderem ao dito réu. 1450
1449
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 11-2.
1450
"Disse maes que Domingas crioula escraua do Reo, lhe dissera a elle / testemunha perante sua molher
que antes queria ser escraua de húm / Turco do que do dito Joaõ Carualho, porque com extra ordinarios /
castigos, e muitas pancadas que lhe dera, a fés consentir tres uezes / a que tiuesse cõ elle acceno pella parte
posterior; e isto disse / a dita Domingas muito tempo antes de prender ao dito Reo". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 12.
596
pouco mais ou menos, foi outro que atendeu aos chamados do meirinho no momento da
prisão do réu, conforme vimos mais atrás. Sobre Domingas e sua relação com João
Carvalho, a testemunha relatou o seguinte:
E perguntado ele, testemunha, se, antes do réu ser preso, havia algum rumor
de ele ser infamado de cometer o pecado nefando, disse que, haverá dois anos,
pouco mais ou menos, que se murmurava. Posto que ele, testemunha, não dava
a isto crédito. Se bem Domingas, preta crioula escrava do réu, dissesse por
vezes a ele testemunha que estava metida no inferno, e que se não atrevia com
aquela vida, e que seu senhor lhe dava muitas pancadas, se ela lhe não
obedecia. E suposto que com ele, testemunha, se não declarava mais, contudo,
diziam algumas mulheres, com quem tinha confiança, que o dito seu senhor
não só a obrigava a que dormisse com os moleques, mas que, no mesmo tempo
que o moleque estava em cima dela, dita crioula, o réu estava em cima dos
ditos moleques.1451(Grifos nossos)
Por esse trecho, vemos como a murmuração ao redor de João Carvalho acontecia
havia alguns anos, sendo movimentada por mulheres e escravos. Todavia, a princípio, a
testemunha não lhe dava muito crédito, isto é, não acreditava na fama que se formava de
que o réu cometia a sodomia. Mesmo suas conversas com Domingas, antes da prisão de
João Carvalho, não parecem o ter convencido. Nessas conversas, a escrava lhe dissera
que se sentia como desde já condenada ao inferno, porque não se atrevia a contestar a
vida que seu senhor lhe proporcionava, devido aos castigos ("pancadas") que dele recebia.
Ainda que Domingas não confidenciasse a Manoel de Araújo a razão para esse
sentimento, nós podemos ver como a sua angústia e culpa a perturbavam havia anos,
sugerindo que ela experimentava os atos eróticos de que participava como pecados que
pesavam em sua consciência e que, em uma perspectiva fatalista, a condenariam à
danação eterna. Lembremos como a mulher descrevera a sodomia a que era forçada pelo
seu senhor como o "mais enorme pecado do mundo". O medo do juízo divino, da
condenação imposta por um deus vingador era, afinal, ubíquo nas sociedades ocidentais
na Época Moderna, conforme mostrou Delumeau.1452 Os que pecassem deviam esperar a,
justa, vingança divina.1453 Domingas estava, desde havia anos, subjetivando-se como um
1451
"E preguntado elle Testimunha se antes do Reo ser pRezo ha / uya algum Rumor de elle ser infamado
de Cometter o peccado / Nefando disse que hauerá dous annos pouco mais ou Menos, que / se murmuraua,
posto que elle testemunha naõ daua a isto / credito, se bem Domingas preta crioula escraua do Reo / disse
por Vezes a elle testemunha que estaua metida no Infer / no e que senaõ atreuia cõ aquella Vida, e que seu
senhor lhe // Seu senhor lhe daua muitas pancadas, se ella lhe naõ obedeçia / e Supposto que com elle
testemunha se naõ declaraua mais, com tudo / dizia alguás molheres, com quem tinha confiança que o dito
seu / senhor naõ só a obrigaua a que durmisse cõ os moleques, mas que / no mesmo tempo que o moleque
estaua em sima della dita crioula, / o Reo estaua em syma dos ditos Moleques". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 9-10.
1452
"De modo que a relação entre crime e castigo — já neste mundo — tornou-se uma evidência para a
mentalidade ocidental". DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 335.
1453
"É portanto da natureza de Deus, porque é justo, vingar-se. O martelo das feiticeiras, baseando-se em
um texto temível de Santo Agostinho, explica que Deus autoriza o pecado porque conserva o poder de punir
597
sujeito culpado por sua concupiscência, pelo que sentia como desejo culpado, ainda que
não tivesse nunca desejado a sodomia. Além disso, parecia disposta a confidenciar seu
estado mental a quem quisesse ouvi-la e com quem ela pudesse ter uma relação de
confiança mínima ou que ela acreditasse que levaria adiante uma denúncia formal contra
seu senhor. Veremos como ela confidenciou seu sofrimento a algumas pessoas
exatamente nessas condições.
[…] Isto ouviu ela, testemunha, dizer a Domingas, crioula escrava do dito João
Carvalho. A qual também lhe disse que o dito seu senhor chamava a ela e aos
ditos negros para cama e mandava se pusessem em cima dela por seu vaso
natural. E posto assim o negro, ele, dito João Carvalho, se punha em cima do
dito negro, cometendo o pecado nefando. E por ela não sofrer tanto e fugir, lhe
dava o dito réu muitas pancadas, que se via desesperada e se havia de botar
no mar.1454 (Grifos nossos)
os homens "para vingar-se do mal e para a beleza do universo […] a fim de que jamais a vergonha da falta
seja sem a beleza da vingança"". DELUMEAU. História do medo no Ocidente, p. 336.
1454
"[…] isto ouuio ella testemunha dizer a domingas cri / oula escraua do dito Joaõ Carualho a qual tambem
lhe disse / que o dito seu senhor chamaua a ella e aos ditos negros para Cama / e mandaua se pusece em
sima della por seu vazo Natural, / e posto assy o negro, elle dito Joaõ Carualho se punha em sima / do dito
negro comettendo o peccado Nefando, e por ella naõ / poder sofrer tanto, e fugir, lhe daua o dito Reo muitas
pan / cadas que se uya desesperada e se hauya de botar no mar". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa,
processo 15097, fl. 10.
1455
Referimo-nos, aqui, ao fenômeno cultural, típico da cristandade na Época Moderna, que Delumeau
denominou "a doença dos escrúpulos". Segundo o historiador, tratar-se-ia das dores e angústias morais que
atormentavam os cristãos no período, tornando-os convictos de sua danação, levando-os ao desânimo. "Em
nossa civilização ocidental, essa doença da alma não atingiu apenas personagens fora de série. Ela foi um
fenômeno relativamente disseminado, identificável, suscitando a reflexão dos especialistas da melancolia".
Os profundos escrúpulos morais, que podiam ser sentidos por qualquer cristão, não apenas os ascetas
penitentes mais devotos, eram estimulados pela confissão anual e obrigatória dos pecados, técnica que,
como vimos anteriormente, impulsionava, nas palavras de Delumeau, "um extraordinário desenvolvimento
da introspecção". DELUMEAU. O pecado e o medo, vol. 1, p. 598-601.
598
1456
LARA. Campos de violência, p. 237-8.
1457
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 51.
1458
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 14.
599
relação senhorial entre João Carvalho e seus escravos, e como ela se refletia no
cumprimento das atividades de trabalho diárias. Foi a partir daí que ela encetou uma
conversa com Domingas que nos interessa:
E perguntada a quem ouvira dizer que o réu cometia o pecado nefando com
seus escravos, respondeu que a Domingas, crioula escrava do réu, por ela,
testemunha, a repreender de que não fazia o serviço que o réu lhe mandava,
lhe dissera que não era possível obedecer-lhe, porquanto lhe mandava coisas
insuportáveis. E perguntando-lhe ela testemunha que coisas eram essas, a dita
Domingas, por ser muito amiga dela testemunha, lhe declarou que o réu
mandava pôr em cima dela a qualquer dos seus escravos, que melhor lhe
pareciam. E, então, ele, dito réu, se punha em cima do dito escravo e cometia
com ele o pecado nefando.1459 (Grifos nossos).
1459
"E pReguntada a quem ouuira dizer que o Reo cometía o peccado / Nefando cõ seus escrauos,
Respondeo que Domingas crioula escraua / do Reo, por ella testemunha a Reprehender de que naõ fazia o
seruiço / que o Reo lhe mandaua, lhe dissera que naõ era possiuel obedeçerlhe, por / quanto lhe mandaua
couzas insoportaueis, e preguntando lhe ella / testemunha que couzas eraõ estas, a dita Domingas por ser
muito a / miga della testemunha, lhe declarou que o Reo Mandaua pôr em sima / della a qualquer dos seus
escrauos que melhor lhe pareçiaõ, e então / elle dito Reo se punha em sima do dito escrauo e Comettia cõ
elle o pec / cado Nefando". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 14.
1460
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 20.
1461
LARA. Campos de violência, p. 245-6; 340.
1462
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 9.
600
referia. Não se tratava de nenhuma atividade de trabalho comum, porque qualquer uma
desse tipo seria aceitável em uma relação senhor-escrava. Não era sequer uma ordem para
que Domingas mantivesse relações sexuais vaginais com ele, o que também sabemos que
ela estava acostumada a fazer há uma década, sendo essa uma outra face, generificada, da
dominação senhorial (violenta, mas naturalizada). Segundo Paiva, algumas modalidades
de resistência escrava consistiram em práticas de enfrentamento ou de adaptação ao
exercício cotidiano da dominação senhorial.1463 Nesse sentido, manter uma relação
erótico-afetiva de mancebia com o senhor, mesmo se, do nosso ponto de vista atual, como
sujeitos formados por décadas de lutas feministas e raciais, representaria um estupro,
podia funcionar, na sociedade escravista, como uma tática de resistência, na medida em
que o desenvolvimento de uma relação mais ou menos próxima com o senhor, fosse com
sentimentos mais ou menos sinceros, mas sempre teatralizados segundo as regras de uma
etiqueta cortesã, era uma tática usual para a conquista da liberdade. 1464 Além disso,
sabemos que, nos termos do discurso cristão da carne, regulando e engendrando a
experiência cristã do sexo, em um casal homem-mulher, a responsabilidade e a iniciativa
para a realização das relações sexuais, bem como para sua completa "satisfação", isto é,
gozo, orgasmo das partes (ocorrência considerada indispensável para a reprodução, mas
cujo prazer o discurso da carne sempre pretendeu limitar, o máximo possível, à sua função
reprodutiva), era atribuída ao homem, nunca à mulher.1465 Portanto, Domingas, mesmo
não sendo casada de modo oficial com João Carvalho, não estava se referindo à sua
relação erótico-afetiva, já antiga e naturalizada, com seu senhor. O que restaria? Quais
eram, afinal, as tais ordens insuportáveis comandadas por João Carvalho a Domingas?
— perguntas provavelmente pensadas por Guiomar Pinheira, com sua curiosidade
1463
PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia, p. 93.
1464
"Mas esses relacionamentos [entre senhores e suas escravas] eram extremamente comuns e elas
souberam, com eficácia e pragmatismo, aproveitar a situação, mesmo quando derivada de um contato
forçado pelo proprietário, o que também foi frequente". PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia,
p. 199.
1465
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 320-2. Indo além de Foucault, ao estudar a teologia medieval
sobre o casamento e o débito conjugal, Vainfas detectou a construção da ideia do "privilégio feminino",
nos termos seguintes. "Ao darem norma à ‘cobrança’ do debitum, os teólogos instituíram o que julgavam
ser um ‘privilégio feminino’: o homem poderia manifestar-se claramente quando desejasse a sua mulher;
esta, porém, deveria eximir-se de tal solicitação, ficando o marido obrigado a decifrar no semblante ou na
sutileza gestual de sua esposa, a vontade do ato carnal. Foi Alberto Magno, no século XIII, quem instituiu
tal norma, baseando-se no pudor e na vergonha que julgava naturais ao gênero feminino. Os teólogos
posteriores seguiriam a sua fórmula: aos homens cabia a demanda explícita e às mulheres, a demanda
implícita". VAINFAS. Casamento, amor e desejo no Ocidente, p. 39. Sobre a relação considerada
obrigatória, pelos saberes pré-modernos, entre o orgasmo feminino e a geração, ver: LAQUEUR. Making
sex, p. 1-24.
601
aguçada (saber da vida privada de outrem era, como temos visto, um traço comum nas
sociedades de Antigo Regime).
1466
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 20.
602
Perguntada diretamente pelo arcebispo se sabia o quão grave era o pecado que
cometia, Domingas deu um relato que nos interessa sobremaneira, porque, por meio dele,
temos acesso a mais detalhes de como ela experimentava a sodomia, o lugar dessa
categoria em suas práticas de subjetividade e as resistências que ensaiou contra o que
considerava uma violência insuportável.
O sexo anal não parece ter sido nunca algo desejado por Domingas, ainda que ela
talvez nem sempre estivesse ciente (ela alega sua ignorância como escrava) de sua
gravidade na teologia moral cristã. Isto é, Domingas talvez não soubesse, antes de se ver
em uma relação sodomítica, como o discurso da carne cristã constituía a sodomia como
um pecado abominável, monstruoso, irracional e similar (mas não idêntico) à heresia,
conforme estudamos na Parte I. Sabendo ou não, ou até certo ponto, Domingas tentou
negar a primeira cópula, mas foi convencida e/ou intimidada por João Carvalho a ceder,
ouvindo de seu senhor que não se trataria de um pecado mais grave do que qualquer outro.
Veremos, a seguir, que, em seus interrogatórios diante do arcebispo, João Carvalho não
manteve a mesma opinião de que o sexo anal não era um pecado grave.
1467
"E pReguntada se sabia a graueza deste peccado Respondeo / que fazendo ella Respondente algũ
Reparo a primeyra ues, que o dito Joaõ / Carualho, a soliçitava, elle lhe Respondeo que naõ importaua que
/ tudo era o mesmo, e ella Como escraua Ignoraua e Consentio // O Consentio, porem dizendolhe huã sua
amiga que era taõ grande pec / cado que nenhum Confessor a ahauya de absoluer, ficou ella Respondente /
taõ temeroza, que tornandolhe a fallar o dito Joaõ Carualho, disse ella / Respondente que Naõ queria, de
que elle tomou tal Rayua que lhe deu / Rigurozos assoutes com correyas, e ella de medo do cruel castigo
con / sentio maes duas ueses, e tratou Logo de o dizer a hum Vizinho para / os uir denunçiar, e este se
chama Esteuaõ da Sylua, por ella ser / escraua, e naõ poder Largar a caza do dito seu senhor e uir fazer / a
dita denunçiaçaõ como queria, e era obrigada". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097,
fl. 20-1.
603
informações1468 – que a sodomia era um pecado tão grande, que nenhum confessor a
poderia absolver. Foi essa informação específica que, acima de tudo, atemorizou
Domingas, fazendo-a perceber que o tipo de sexo a que seu senhor a obrigava era uma
violência não só insuportável, como um crime grave o suficiente para exceder o âmbito
privado da relação senhor-escravo e mobilizar instâncias públicas, no caso, o tribunal
eclesiástico do arcebispado. Conforme vimos na Parte II, houve uma disputa entre
inquisidores e confessores a respeito do foro no qual o pecado nefando deveria ser
confessado e em que condições poderia ser perdoado, ocorrendo uma vitória inquisitorial.
Com isso, tornou-se costume que os confessores não poderiam perdoar, no foro privado
da consciência, antes que o penitente se confessasse também no foro externo da justiça
inquisitorial.1469 Destarte, inexistindo um tribunal da Inquisição na Bahia, ou na América
portuguesa em geral, Domingas poderia ver bloqueado seu acesso imediato ao perdão e,
consequentemente, à salvação. Como poderia ela alcançar o perdão dos inquisidores, ou
seja, como poderia se apresentar formalmente ao Santo Ofício para ser julgada? De sua
posição na sociedade colonial, ela necessitaria articular-se à rede de agentes externos da
Inquisição, para fazer seu caso, após um intervalo de tempo que poderia ser grande,
chegar às vistas dos inquisidores. Ao estimular uma denúncia contra seu senhor no
Eclesiástico da Bahia, foi bem isso, de certa forma, que Domingas fez. A espera, porém,
prolongava seu estado de pecadora, dilatando seu sentimento de culpa. Por isso, ela se
considerava desde já "metida no inferno", não só por ter cometido "o mais enorme pecado
do mundo", mas por não poder ser dele absolvida imediatamente, para descargo de sua
consciência, porque não havia, ali, quem a confessasse formalmente.
1468
LARA. Campos de violência, p. 240; SILVEIRA. O universo do indistinto, p. 116-7; PAIVA.
Escravidão e universo cultural na colônia, p. 81.
1469
PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 256-7.
604
pudessem intervir em seu favor.1470 Porém, mesmo assim, ela não voltou a romper de
modo radical a relação senhorial, ou seja, se recusou a fugir, pedindo que um vizinho,
provavelmente um homem branco, fosse em seu lugar fazer a denúncia. É provável, de
forma complementar, que Domingas, estrategicamente, considerasse que, feita por um
homem branco e respeitável, a denúncia teria maior peso e seria mais facilmente
reconhecida como verdade.
Nesse último trecho de seu depoimento, ainda que detectemos fórmulas usuais
para a expressão de sentimentos cristãos de arrependimento e humilhação diante das
instituições eclesiásticas, provavelmente aí inseridas pelo agente eclesiástico, é possível
verificar como Domingas se constituía como sujeito desejante enredada nas relações de
saber-poder-subjetivação do dispositivo da carne. Ou seja, ela carregava em si, como
1470
Segundo Lara, as autoridades coloniais manifestaram preocupação em controlar o que fosse percebido
como abuso do poder senhorial sobre seus cativos, de maneira que a relação entre os poderes senhorial e
público (isto é, estatal administrativo, o que poderia incluir as instituições eclesiásticas na Época Moderna)
foram, a mais das vezes, conflituosas. A maioria das desavenças, tensões ou conflitos entre senhores e
escravos tendia a se resolver no âmbito privado, raramente tornavam-se públicas, o que indica que o
controle sobre o plantel de escravos de um dado senhor concentrava-se, sobretudo, em suas próprias mãos.
Por outro lado, as resistências das pessoas escravizadas também podiam se dar na esfera privada (do
indivíduo particular) ou na pública (da administração colonial). Nesse segundo caso, os escravizados
apelavam para instâncias judiciais ou públicas para questionar o poder de seu senhor. LARA. Campos de
violência, p. 68-9; 279-280; 340. Todavia, há que se relembrar a ponderação de Stuart Schwartz sobre como
os cativos, especialmente os que trabalhavam nos engenhos, tinham bem poucos recursos contra os castigos
recebidos. Segundo o historiador, "A menos que a punição resultasse em morte e alguém se dispusesse a
informar o caso às autoridades civis, pouco ou nada podia ser feito. Os senhores de engenho e os feitores
governavam a senzala com muito pouca interferência externa". SCHWARTZ. Segredos internos, p. 123.
1471
"E pReguntada ella Respondente se estaua aRependida de hauer / Comettido tal peccado, Respondeo
que estaua muito aRependida / e pedia a Deus Nosso Senhor perdaõ da culpa, e á santa Madre Igreja se
compa / deceSse da sua Ignorançia e da myzeria de sua escrauidaõ, que se / ella naõ fora, nunca consentíra
em tal desgraçia". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 21.
605
O que era, pois, se constituir como sujeito de desejo nos termos da experiência
cristã do sexo? Como vimos no primeiro tópico do capítulo 1, se constituir como sujeito,
em uma perspectiva foucaultiana, diz de dois processos cruzados (e que se cruzam na
interpelação), um de sujeição (objetivação), outro de subjetivação. O primeiro processo
se refere aos modos pelos quais as relações de poder, através de uma variedade de
técnicas, objetivam (ou objetificam) cada um a um desejo construído como interior.1472
Esse foi o sentido das técnicas que estudamos na Parte II. O segundo processo, que entrou
em foco nos últimos dois capítulos, diz dos modos como as pessoas se constroem, se
subjetivam, elaboram suas subjetividades, em relação a suas práticas eróticas, aos saberes
e às relações de poder, cujo jogo forma o dispositivo. Destarte, interpretar Domingas
como sujeito de desejo não é afirmar algum voluntarismo seu em relação ao erotismo que
vivia, a mais das vezes, à força. É, outrossim, problematizar como ela se construía como
sujeito a partir de uma experiência culpada do sexo, a qual se interiorizava nela,
manufaturando-a como culpada de um desejo que era, assim mesmo, instalado nos
arcanos de seu coração. Os atos eróticos não-normativos a que Domingas foi, com mais
ou menos intensidade, obrigada ao longo dos anos (as sessões de sexo grupal e anal),
foram enquadrados como "o maior enorme pecado do mundo", o pecado de sodomia,
gravíssimo quando cometido com outrem em sua presença (literalmente em cima dela,
Domingas), insuportável quando ela própria passou a sofrê-lo em sua carne. Domingas,
portanto, parecia se subjetivar como sujeito sodomita, incorporando, interiorizando os
enunciados que constituíam a categoria no discurso da carne (a sodomia era uma cegueira,
uma irracionalidade), daí sua enorme culpa e seu desespero, a ponto de fazê-la tentar uma
série de práticas de resistência (fugir, contemplar o suicídio, recusar o trabalho, questionar
seu senhor, espalhar intrigas a seu respeito, procurar denunciá-lo formalmente em foro de
justiça), motivadas por sua conclusão de que a sodomia não podia ter um lugar na relação
1472
"O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação "ideológica" da sociedade; mas é
também uma realidade fabricada por esa tecnologia específica de poder que se chama a "disciplina". Temos
que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele "exclui", "reprime", "recalca",
"censura", "abstrai", "mascara", "esconde". Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam
nessa produção". FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 185.
606
comum entre o senhor e o escravo, por ser o "pecado mais enorme do mundo". Imposta
como foi a Domingas e a José, sem falar nos demais escravos do plantel de João Carvalho,
a sodomia era experimentada como algo a mais, um excesso extraordinário e insuportável.
Dos demais escravos nomeados como outros parceiros sodomíticos do réu, nós
temos pouca ou nenhuma informação sobre seu estado mental, sendo difícil construir
interpretações sobre suas práticas de subjetividade. Quatro deles foram interrogados pelo
arcebispo: Gonçalo, Matheus, Garcia e Gaspar. Porém, todos eles negaram ter praticado
a sodomia, como pacientes ou como agentes, com seu senhor, falando pouco mais do que
isso.1473 Ao final do sumário feito para ser enviado aos inquisidores, ficamos sabendo
que, dos quatro escravos, dois morreram na prisão e dois fugiram para os sertões.1474 Por
essas razões, só nos resta agora nos voltarmos para João de Carvalhos Barros, para
analisarmos suas práticas de subjetividade e o lugar que, nelas, poderia ocupar a sodomia.
1473
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 24-9.
1474
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 51.
1475
MOTT. O sexo proibido, p. 45.
1476
De acordo com Paiva, "casta" era mais um termo classificatório usado pelos colonizadores ibéricos no
Novo Mundo, mas cujas raízes antecediam a conquista da América. Era mais comumente usado na América
espanhola do que na portuguesa, porém, na altura do século XVIII, já tinha se tornado razoavelmente
comum também em terras lusitanas. "Casta" era um termo classificatório que tendia a se confundir com
"qualidade", tendo sido aplicado, entre os séculos XVI e XVII, principalmente para diferenciar os vários
povos indígenas. No século XVIII, seu uso foi alargado para abarcar uma variedade de grupos mestiços,
servindo para designar pessoas, coisas e animais. Ou seja, as dinâmicas culturais das sociedades coloniais
607
Na ocasião em que o prenderam, que seria nove horas da noite, pouco mais ou
menos, estava ele respondente deitado na sua cama, sem ceroulas, mas com
camisa, e que a cama estava em um catre largo, que contava de um colchão,
lençóis e cobertor. E que é verdade que o dito negro José estava deitado na
mesma cama, nu e só com uma tanga pela cintura. E que seria o diabo que o
levara à cama, porquanto ele respondente não o chamou nessa ocasião, na qual
sendo ele, respondente, também tentado do demônio, esteve brincando com as
partes vergonhosas do dito negro e que, nessa ocasião, entrara o meirinho e
não procedera a mais.1478 (Grifos nossos).
Negando ter praticado a sodomia, o réu atribui não só a presença do negro José
em sua cama, como, principalmente, seu desejo sexual por ele à ação demoníaca. A
associação entre o desejo homoerótico e a influência de Satã era um traço das concepções
demonológicas da Época Moderna, como mostrou Mott.1479 Conforme estudamos na
Parte I, a noção do pacto demoníaco foi crucial para o alargamento das práticas
assimiláveis à heresia desde o final da Idade Média, abrindo espaço discursivo para que
também os sodomitas pudessem receber um tratamento jurídico similar ao dos hereges
pelos tribunais do Santo Ofício. Assim, ao incorporar a tentação demoníaca ao seu desejo
transgressor, João Carvalho estava movimentando-se nas tramas discursivas do
expandiram e transformaram os sentidos ibéricos originais da categoria "casta", o que também aconteceu
com outros léxicos classificatórios usados pelos europeus na Época Moderna. PAIVA. Dar nome ao novo,
p. 136-140.
1477
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 16.
1478
"na occasiaõ em que o prenderaõ que seriaõ Noue óras da nou / te pouco maes ou menos, estaua elle
Respondente deitado na sua / Cama, sem siroulas mas com camiza, e que a cama estaua em hum / catre
largo que constaua de hum Colchaõ, lençois, e cobertor; e que hé / Verdade que o dito Negro Jozeph estaua
deitado na mesma Cama; / nú e só com hua tanga pella sintura, e que seria o diabo o que / lho leuara a
Cama, porquanto elle Respondente o naõ chamou, nes / sa occasiaõ; Na qual sendo elle Respondente
tambem tentado // Tentado do demonio esteue brincando cõ as partes Verendas do / dito negro, e que nesta
occaziaõ entrara o Meyrinho e naõ pro / çedera a maes". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
15097, fl. 16.
1479
MOTT. Escravidão, homossexualidade e demonologia, p. 139-143.
608
1480
"Se a transgressão propriamente dita, opondo-se à ignorância do interdito, não tivesse esse caráter
limitado, ela seria retorno à violência ̶ à animalidade da violência. Mas não é nada disso o que ocorre de
fato. A transgressão organizada forma com o interdito um conjunto que define a vida social. A frequência
̶ e a regularidade ̶ das transgressões não abala a firmeza intangível do interdito, de que é sempre o
complemento esperado". BATAILLE. O erotismo, p. 89.
1481
"E preguntado quantos annos há que o diabo o trás tentado na / seguira deste Viçio, Respondeo que
hauera quatro para sinco annos, e que / o pRimeiro, com quem intentou peccar, foy hum escrauo seu / por
nome Gonçalo, chegando a pigar nelle pello negro naõ con / sentir, o Não conseguio. E o segundo foy o
negro Jozeph. Com quem / foy achado coando o prenderaõ; e o terceyro Com hum seu escrauo // Escrauo
chamado Matheus, preto de Angola". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 16-7.
609
nunca conseguido manter uma ereção por tempo suficiente para realizar a penetração.1482
Uma vez que sabemos que o réu cometeu, sim, em múltiplas ocasiões, o sexo enquadrado
como sodomia, podemos pensar que a desculpa da impotência estaria associada à angústia
que seu desejo e sua consumação geravam em sua alma. Adicionalmente, em outro nível,
a impotência serviria como álibi contra a acusação de sodomia perfeita (ainda que, nos
casos em que os suspeitos queriam defletir essa culpa, o mais comum era simplesmente
negarem a penetração e/ou o gozo interno, sem pôr em questão sua virilidade). Talvez,
em algumas situações, ele não tenha realmente desejado penetrar seus parceiros, ou tenha
tido dificuldades para tanto, o que explicaria também a violência dos castigos físicos que
aplicava a eles, para compensar o que poderia ser visto como uma falha em sua
performance de gênero masculina, em sua honra viril. Trata-se, contudo, apenas de
conjecturas.
Assim, no dia 05 de maio do mesmo ano, João Carvalho continuou sua confissão
perante o arcebispo da Bahia. A estratégia do prelado para extrair a confissão do réu (ou,
em outros termos, para incitá-lo a gerar um discurso de verdade sobre si mesmo e sobre
seu desejo, subjetivando-se nos moldes do dispositivo da carne, no mesmo processo) foi
começar perguntando pelas razões da fama pública do réu como sodomita. A partir disso,
buscou passar a perguntas com foco na interiorização do desejo de João Carvalho,
levando-o a pensar-se como atingindo um suposto segredo verdadeiro do seu sexo.
1482
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 17.
610
E também poderia nascer de que ele, respondente, por duas ou três vezes,
pegou nas partes vergonhosas do dito moleque Matias e as metia na sua própria
boca dele respondente. E que uma ou mais vezes o deitara na sua própria cama
consigo, para o efeito de pecar carnalmente com Domingas crioula escrava
dele respondente, que já estava na cama. E com efeito teve cópula com a dita
Domingas diante dele respondente, que, no mesmo tempo, estava pegando nas
partes vergonhosas do dito negro. E que, ou nesta, ou em outra noite, estando
os mesmos três na cama e, depois do dito Matias ter tido cópula com a dita
crioula, se venceram eles do sono, e, então, ele respondente tentou penetrar
pelo vaso posterior ao dito moleque Matias, o que, sentindo ele, acordou e se
foi fora da cama para diante dele, respondente. E perguntado quantos anos
havia que o diabo o tinha tentado com esta imaginação e desejos de cometer o
pecado nefando, pois a isso parecia que se ordenavam os tratos ilícitos que
tinha com vários escravos seus, respondeu que haverá quatro anos pouco mais
ou menos, que, estando uma noite em companhia de alguns escravos seus e
vendo-os nus, como eles costumam andar, se lhe excitou o apetite e desejo de
pecar com eles.1483
1483
"E tambem poderia naScer de que elle Respondente per duas ou tres uezes / pegou Nas partes Verendas
do dito Moleque Mathyas, e as mettia sua / propria boca delle Respondente; e que huã ou maes uezes o
deitara Na / Sua propria Cama cõsigo, pera o effeito de peccar carnalmente com / Domingas crioula escraua
delle Respondente, que já estaua Na Cama; / e com effeito teue Copula cõ a dita Domingas diante delle
Respondente / que no mesmo tempo estaua pegando Nas partes Verendas do dito Ne / gro; e que ou Nesta,
ou em outra Noute, estando os mesmos tres Na / cama, e despois do dito Mathyas ter tido Copula cõ a dita
crioula se uem / ceraõ elles do sono, e então elle Respondente intentou penetrar pello / vazo posterior ao
dito Moleque Mathyas, o que sentindo elle acordou e se / foy fora da cama para outra parte, e dahy per
diante, nunca maes o dito / Mathyas quis ter copola cõ a tal Domingas diante delle Respondente; / E
pReguntado quantos annos hauya que o diabo o tinha tentado com / esta immaginaçaõ e dezejos de cometter
o peccado Nefando, pois a iSso, / parecia se ordenauaõ os tratos illicitos que tinha com varios escrauos /
seus, Respondeo que hauerá quatro annos pouco maes ou menos, que / estando huã Noute em companhya
de alguns escrauos seus e Vendoos / Nús, como elles costumaõ andar, Se lhe excitou o apetite e dezejo de
pec / car com elles". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 17.
611
carne, João Carvalho descreveu a visão de seus escravos nus em uma situação cotidiana
qualquer. A contemplação dos corpos desnudos de vários jovens homens africanos
excitou o desejo homoerótico do réu, que, a partir dessa constatação, se viu incitado
também a realizar uma confissão verdadeira ̶ afinal, ele já tinha alcançado o que
considerou a verdade de seu sexo e de sua posição de sujeito.
Disse mais que, conforme sua lembrança e como quem confessa toda a verdade
diante de um tribunal tão santo, de quem espera toda a misericórdia, que o
primeiro com quem cumpriu os seus desejos foi com um seu escravo que
chamam Matheus, ao qual ele chamou para a sua cama com intento de que
tivesse cópula com a crioula Domingas, com quem ele respondente andava
amigado. E porque a dita crioula andava, se pôs ele respondente a brincar com
o dito Matheus e com efeito se pôs em cima dele, e houve penetração pela parte
posterior com consumação de cópula. E perguntado se o dito escravo Matheus
consentira de boa vontade no dito pecado, respondeu que resistiu e mostrava
não querer. E só depois que ele respondente lhe prometeu que o deixaria ter
cópulas com a dita negra crioula Domingas, então consentiu. E isto foi por uma
ou duas vezes. E acabado este ato, chegou a preta Domingas e ficou na dita
cama com o dito preto Matheus, e ele respondente se levantou e foi para fora.
Porém, em outra ocasião, viu ele respondente e assistiu à cópula que os
mesmos escravos tiveram um com o outro. E perguntado se, em alguma
ocasião das que diz que estava presente e espectador dos dois escravos, o
tentara o diabo para pecar com algum deles, respondeu que, enquanto o dito
negro Matheus estava tendo cópula com a dita Domingas, estava ele
respondente também a tendo com o dito Matheus. E perguntado se cometera o
dito pecado nefando com algum de seus escravos mais, respondeu que também
o tinha cometido com os escravos José, Gonçalo e Gaspar, todos pretos de
Angola, quase da mesma forma que tem dito acima do escravo Matheus, exceto
que, com o escravo José, não foi diante da preta crioula Domingas, senão que
conforme sua lembrança, teve com o dito José passagens e só uma vez houve
penetração e derrame, porém, das outras duas, o não houve, por lhe faltar a ele,
respondente, a potência. E isso foi por uma vez na sua cama dele respondente,
e por outra, em uma varandinha da sua casa, e por outra, na estrebaria. E
perguntado se com a dita crioula Domingas tivera algum acesso pela parte
posterior, respondeu que, por duas vezes, tivera cópula com ela pela parte
posterior, sendo ela que o procurava por aquela via. Porém, que não derramava
no vaso posterior, senão que o fazia no natural. E perguntado se dera alguns
castigos na dita crioula ou nos seus escravos sobreditos, para que consentissem
no dito pecado, respondeu que não dera castigo a seus escravos, nem à crioula
por essa causa, porquanto eles o consentiam, pôr os deixar dormir com a dita
crioula, e a dita crioula o fazia para agradar a ele respondente. 1484
1484
"Disse maes que conforme sua Lembrança, e como quem confessa / toda a uerdade diante de hum
Tribunal taõ sancto, de quem espera toda / a mizericordia, que o primeyro com quem cumprio os seus
dezeios, foy / com hum seu escrauo que chamaõ Matheus, ao qual elle chamou para / a sua Cama com
intento de que tiuesse copula cõ a crioula domingas, com / quem elle Respondente andaua amigado, e
porque a dita Crioula taodaua // a dita Crioula andaua, depos elle Respondente a brincar com o / dito
Matheus e Com effeito se pos em sima delle, e ouue penetração pella / parte posterior com Consumaçaõ de
Copula; / E pReguntado se o dito escrauo Matheus consentira de boa /Vontade no dito peccado; Respondeo
que Resestio e mostraua Naõ que / rer, e só despois que elle Respondente lhe pRometeo que o deixaria ter
Copulas / com a dita Negra Crioula Domingas, então concentio; e isto foy /por huã, ou duas uezes; e acabado
este acto chegou a preta domin / gas, e ficou Na dita cama cõ o dito preto Matheus e a elle Responden / te
se leuantou e foy para fora, e porem em outra occasiaõ Via elle / Respondente e assistio á copula que os
612
Nesse relato, vemos como João Carvalho de Barros finalmente confessou ter
praticado a sodomia com vários de seus escravos, mas, mesmo assim, continuou buscando
estratégias para minorar sua culpa jurídica e para transferir ao menos parte da
responsabilidade para seus escravos. É nesse sentido que, mesmo confessando não só os
atos sodomíticos, como também vários dos encontros sexuais tríplices entre ele,
Domingas e algum dos moleques da casa, o réu, além de diminuir a quantidade de atos de
sodomia consumada que diz ter praticado, sempre faz questão de frisar que os escravos
estavam ali por vontade própria e que ele não os coagira a nenhum dos atos. Nega até
mesmo ter usado da mão pesada do castigo senhorial para obrigá-los a atender seus
desejos. Será que, internamente, João Carvalho não queria aceitar que seus parceiros não
o desejavam como ele os desejava? De toda maneira, era uma estratégia para diminuir
sua culpa pessoal perante os juízes no foro interno e no externo.
E por agora, disse que não tinha mais que confessar e que protestava de o fazer,
lembrando-lhe mais alguma coisa, porque conhecia bem que, fazendo inteira
confissão, como quem estava verdadeiramente arrependido, lhe perdoaria
mesmos escrauos tiueraõ hum / com o outro. / E pReguntado se em alguã occasiaõ das que dis que estaua
pRezente / a Espectador dous escrauo o tentara o diabo pera peccar cõ algum / delles, Respondeo que em
quanto o dito negro Matheus estaua tendo / copula com a dita Domingas, estaua elle Respondente tembem
/ tendoa com o dito Matheus; / E pReguntado se Comettera o dito peccado Nefando com / alguns de seus
escrauos maes Respondeo que tambem o tinha Cometti / do Com os escrauos Jozeph Gonçalo, e Gaspar
todos pretos de / angolla, quaze da mesma forma que tem dito aSsima do escrauo Ma / theus, excepto que
cõ o escrauo Jozeph, Naõ foy diante da preta / Crioula Domingas, senaõ que conforme sua lembraça teue
com / o dito Jozeph teue passagens, e Só de huã Ves ouue penetraçaõ, e / derramamento, porẽ das outras
duas, o naõ ouue, por lhe faltar a elle / Respondente a potençia, e isto foy por huã ves Na sua Cama / delle
Respondente, e por outra em huã varandinha da sua caza, e por / outra Na estrebaria. / E pReguntado se
Com a dita crioula domingas tiuera / alguñ acceSso pella parte posterior, Respondeo que por duas ueses /
tiuera copula com ella pella parte posterior, sendo ella a que o procu / raua por aquella via, porem que naõ
derramaua No uazo poster / rior, Senaõ que o fazia No Natural; / E pReguntado se dera alguns castigos a
dita crioula ou aos / seus escrauos sobreditos pera que consentiSsem No dito peccado, Res / pondeo que
naõ dera castigo a seus escrauos Nẽ á crioula, por esta / cauza, porquanto elles o consentiaõ, pellos deixar
durmir cõ a dita/ crioula, e a dita crioula, o fazia por agrafar a elle Respondente". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 17-8.
613
Deus Nosso Senhor tantas culpas quantas tivesse cometido em toda a sua vida,
e a Santa Madre Igreja, como mãe piedosa, se haveria com ele, respondente,
como costumava haver com os verdadeiros penitentes. E assim pede a esse
Santíssimo Tribunal, de quem esperava toda a piedade. E sendo-lhe dado o
juramento dos Santos Evangelhos, pelo que tocava a terceiro, disse que era
verdade que tanto tinha dito nessa sua confissão espontânea, pelo juramento
dos Santos Evangelhos que tinha tomado.1485
1485
"E por agora disse que naõ tinha maes que confessar, e que / pRotestaua de o fazer Lembrando lhe maes
alguã couza, porque / conheçia bem que fazendo inteyra confiçaõ como quem estaua / uerdadeiramente
aRependido, lhe perdoaria Deus Nosso senhor tantas cul / pas quantas tinha comettido em toda a sua vida;
E a Sancta Igreja / como May piedoza se haueria com elle Respondente Como custu / maua haueria com os
uerdadeyros penitentes; e assym o pede / a este santíssimo Tribunal, de quem esperaua toda a piedade; / E
Sendo lhe dado o juramento dos santos Evangelhos pello que tocaua a ter / ceiro disse que era uerdade que
tanto tinha dito Nesta sua confiçaõ / spontanea pello juramento dos santos Evangelhos que tomado tinha".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 15097, fl. 18.
614
bloqueio da função anal ativa ou pública. Como a sodomia contribuía, nesse contexto,
para formação de subjetividades carnais?
Mesmo se a violência até aqui não se fizesse presente, a autoridade coletiva dos
senhores, encarnada aqui na figura do cirurgião branco, foi forte o suficiente para obrigar
José a ir com ele cear, aparentemente, a sós.1487 Seguiu-se uma ceia, em que Lucas Pereira
começou a persuadir o cativo a que dormisse carnalmente com ele, prometendo-lhe
dádivas (uma peça de vestido, segundo denúncia de José). Diante da recusa, a violência
das relações entre senhores brancos e escravos negros e mestiços, até então latente, se
explicitou. Nas palavras da denúncia de José:
Aos doze dias do mês de julho do ano de mil e setecentos e quarenta e seis,
sendo neste arraial das Minas do Paracatu, bispado de Pernambuco, freguesia
das Mangas, apareceu perante mim [o vigário-geral interino], José, mulato
1486
Paiva lista "mulato" como outro léxico empregado nas colônias americanas de Portugal e Espanha para
exprimir a qualidade de pessoa ou grupo mestiço. O termo "mulato" é anterior à conquista da América,
tendo algumas origens prováveis. Uma das raízes da palavra a associa à mula ou ao mulo, sendo essa a
explicação mais disseminada. Uma outra possibilidade é que "mulato" venha do árabe muwallad, o que
faria o vocábulo retroceder ao século X. Parece ter sido usada, pela primeira vez em português, para se
referir a seres humanos em 1513, em uma carta de Afonso de Albuquerque, em que ele se referia a um
servo indiano. Seu uso no Novo Mundo começou a ganhar força a partir de 1530, primeiro nos domínios
castelhanos. No início do século XVII, já tinha uso mais largo na América portuguesa (como na espanhola),
servindo para distinguir uma categoria de qualidade suspeita entre os mestiços. Não obstante as
desconfianças das elites reinóis, desde os seiscentos, os "mulatos" compunham uma parcela importante dos
povos americanos. Ainda que existisse outra possibilidade para a origem do termo, Paiva indica que a
conexão com a mula se tornou a explicação mais aceita nos impérios coloniais ibéricos, tendo sido adotada
por dicionaristas e administradores letrados, como forma de ressaltar características como a animalidade, a
mestiçagem e o hibridismo que foram pensadas como típicas das pessoas "mulatas". PAIVA. Dar nome ao
novo, p. 212-220.
1487
Lara defende que a existência de uma rede de relações pessoais entre os senhores e os escravos era um
dos fatores que ajudavam o poder senhorial a erigir uma certa “aura paternal e benevolente” e a construir
uma alternativa para o exercício do poder. LARA. Campos de violência, p. 167.
615
1488
“Aoz doze diaz do mes de julho do anno de mil / e Setecentos, e quarenta e Seis, sendo neste Arra / jal
das Minas do Paracatú, Bispado de Pernambuco / Freguesia das Mangas, apareceo perante mim jozé mula
/ to escrauo do capitam Felisberto caldeira Brant / morador no Corgo Rico desta mesma freguesia / e por
elle foi dito que elle uinha a minha prezenca / delatarse de hauer cometido o pecado de sodo / mia,
sendo elle paciente, com o surgiaõ Lucaz / da Costa Pereira agente, em coatro de prezente mez / na Caza
do dito surgiaõ, chamando para o dito efeito / ao engano, dizendo que fora lá comer, e indo o dito / mulato
pello chamado do dito surgiaõ, depois de / o ter em Caza lhe dera de Comer, e fechara por den / tro a portas,
e o leuará a Camas, e lhe oferesera / por hauia de dar hú uestido ao dito mulato, se com / elle cometese o
pecado de sodomia, e naó que / rendo o mulato pegará o surgiaõ em huá faca / e lhe diçera que sendo
consentiSe o hauia de ma / Dar, e que consentio por ter medo da morte, e / por isto Consentira que Com
elle cometeSe o pe / cado nefando, por la parte posterior, huá / ues, e aSim mais diSe elle Delatante que o
dito / surgiaõ, era infamado de Cometer este peca / Do pellas mais partes por donde tem andado / e mais
naó diSe, [...]”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 18.
616
[...] E logo foi chamado João Batista, criado de Lopo Soares, natural da Ilha da
Madeira, cristão-velho, por saber falar e entender a língua de Angola. E lhe foi
dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão direita, sob cargo
do qual prometeu fielmente perguntar o que ele Senhor [visitador] mandar à
dita Maria, que presente estava, e declarar o que ela responder. E logo fez as
perguntas necessárias, que o senhor Visitador lhe mandou, à dita Maria, sobre
o dito caso, declarando-lhe primeiro a obrigação de falar a verdade. E fazendo-
lhe as admoestações necessárias para que não falasse senão a verdade, disse o
dito intérprete que a dita escrava Maria diz que um homem branco chamado
Mandel, irmão mais moço do senhor que a trouxe de Angola, o qual Mandel e
o dito irmão seu senhor ambos a trouxeram de Angola, dormiu com ela, nesta
terra, e que, uma noite, na sua cama, estando ela deitada de costas, o dito
Mandel, levantando ela as pernas para cima, se lançou sobre ela de bruços e
meteu seu membro viril desonesto por baixo, pelo seu vaso traseiro, e dentro
dele fez como se fizera no vaso dianteiro natural. E que isto foi uma só vez. E
que isto é o que a dita Maria lhe disse pela língua. E prometeu ter segredo. E
antes de fazer as ditas perguntas à dita escrava, recebeu a dita escrava
juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão direita para falar
verdade, o qual juramento foi declarado pelo dito intérprete o encargo dele. E
disse o dito intérprete que a dita Maria diz que todo o sobredito é verdade e
que ninguém lhe viu fazer o dito pecado, por ser de noite na cama do dito
Mandel. E que, depois que ele fez com ela isto pelo traseiro, fez também na
mesma noite por diante pelo natural com ela uma vez. E que, depois da dita
1489
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 3f, 3v, 4f.
617
noite, lhe acontece não reter a urina. E tudo assim disse o dito intérprete dizer
a dita Maria ser verdade. E do costume, disse nada. E prometeu segredo pelo
juramento que recebeu e assinou com o senhor Visitador aqui. Manoel
Francisco notário do Santo Ofício nesta Visitação o escrevi. [Assinaturas do
visitador e do intérprete].1490
1490
“[...] E Logo foj chamado Joam baptista / Crjado de lopo Soares natural da ylha / da madejra Christaõ
Velho por Saber / fallar e entender a lingoa de angolla / e lhe foj dado Juramento dos Sanctos / EVangelhos
En que pos Sua maõ derejta / Sob cargo do qual prometeo de fielmente per / guntar ho que elle Senhor lhe
mandar a djta / marja que preSente estaua e decla / rar // rar ho que ella responder E logo feZ / as perguntas
neceSsarjas que ho senhor Visi / tador lhe mandou a ditta marja So / bre ho ditto caSo declarandolhe prj /
meiro a obrjgaçaõ de fallar Verdade / E faZendolhe as amoestaçoῖs neçeSsa / rias pera que naõ fallaSse
Senaõ ha / Verdade djSe ho djtto Jnterpete que ha / djtta escraua marja diZ que hum ho / mẽ branco chamado
mandel Jrmaõ / mais moço do Senhor que ha trouxe de angola / o qual mandel e ho djtto Jrmaõ Seu Senhor
am / bos a trouxeraõ de angola dormjo / com ella nesta terra e que huã nojte na / Sua cama estando ella
dejtada de / costas ho djtto mandel leVantado / ella as pernas pera cjma Se lançou / Sobre ella de bruços e
meteo Seu membro / Verjl deshonesto per bajxo pello Seu / VaSo traZejro e dentro nelle feZ como / Se
fiZera no VaSo djantero natural e que / isto foj huã Soo VeZ, e que isto he o que ha / djtta // djtta Marja lhe
djSse pella lingoa e pro / meteo ter Segredo E antes de fazer as / djttas perguntas ha djtta escraua / Recebeo
a djtta escraua Juramento dos / Sanctos Euangelhos en que pos Sua / maõ derejta pera fallar Verdade / o
qual Juramento lhe foj declarado / pello djtto Jnterprete ho Em cargo delle / E djSse ho djtto Jnterpete que
a ditta marja / diZ que todo ho Sobreditto he uerdade e que / njmguem lhes Vio faZer ho djtto peccado /
por Ser de nojte na cama do djtto Mandel / E que despois que elle feZ com ella isto / pello traZejro feZ
tambem na mesma nojte / per djante pello natural Com ella huã / VeZ e que despois da djtta nojte lhe
aconteçe / naõ reter as ourjnas e tudo aSsim diSse / ho djtto Jnterprete diZer a ditta marja Ser / Verdade e
do costume dixe nada e pro / meteo Segredo pello Juramento que reçebeo et / e aSignou cõ o senhor
Visitador aquj Manoel francisco / notário do santo offjcjo nesta ujsitaçaõ o escreuj ~ / [assinaturas do
visitador e do intérprete]”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 4f, 4v, 5f.
618
1491
Quando falamos que os prazeres anais, todo o mundo das funções do baixo ventre, a analidade foram
excluídos para o universo sombrio da abjeção, queremos dizer algo mais que sua mera proibição. Afinal,
outros prazeres eróticos eram proibidos (como a fornicação), sem terem sido bloqueados na cultura
(operação de foraclusão), exilados para a posição do abjeto. O que era, então, a abjeção? Pensamos aqui o
conceito como o articulou a filósofa e psicanalista feminista Julia Kristeva, como aquilo que, excluído,
expulso, bloqueado, não é nem sujeito, nem objeto, permanecendo logo além do possível, do tolerável, do
pensável, sem poder ser assimilado. O abjeto não é um objeto definível (não é algo que encara o sujeito,
podendo ser nomeado), tampouco um outro ao desejo do si-mesmo. O abjeto não é correlativo ao sujeito,
mas possui a característica (sua única sobreposição ao objeto) de ser oposto ao Eu (ao ser do sujeito).
Diferentemente do objeto que orienta o desejo, o abjeto é o que é radicalmente excluído (bloqueado) e que
atrai o sujeito àquele lugar onde o sentido (do Eu) entra em colapso. O abjeto é aquilo que perturba (aquilo
que incomoda, estranha, queeriza) a identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita fronteiras
(inclusive ou sobretudo corpóreas), posições ou regras. Nas palavras de Kristeva, "Não é, pois, a falta de
limpeza ou de saúde que causa a abjeção, mas aquilo que perturba a identidade, o sistema, a ordem. Aquilo
que não respeita fronteiras, posições, regras. O entre-meios, o ambíguo, o composto. O traidor, o mentiroso,
o criminoso de boa consciência, o estuprador sem vergonha, o assassino que proclama ser o salvador…
Qualquer crime, porque ele chama a atenção para a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime premeditado, o
homicídio astuto, a vingança hipócrita são ainda mais, porque eles destacam a exposição de tal fragilidade.
Ele que nega a moralidade não é abjeto; pode haver grandeza na amoralidade e mesmo no crime que ostenta
seu desrespeito à lei ̶ um crime rebelde, libertário e suicida. A abjeção, por outro lado, é imoral, sinistra,
calculista e maliciosa: um terror que desmonta, um ódio que sorri, uma paixão que usa o corpo para trocar
ao invés de inflamá-lo, um devedor que te vende, um amigo que o apunhala…". Tradução livre de nossa
autoria. Na versão em inglês consultada, "It is thus not lack of cleanliness or health that causes abjection
but what disturbs identity, system, order. What does not respect borders, positions, rules. The in-between,
the ambiguous, the composite. The traitor, the liar, the criminal with a good conscience, the shameless
rapist, the killer who claims he is a savior… Any crime, because it draws attention to the fragility of the
law, is abject, but premeditated crime, cunning murder, hypocritical revenge are even more so because they
heighten the display of such fragility. He who denies morality is not abject; there can be grandeur in
amorality and even in crime that flaunts its disrespect for the law ̶ rebellious, liberating, and suicidal crime.
Abjection, on the other hand, is imoral, sinister, scheming, and shady: a terror that dissembles, a hatred that
619
Nesse período, a atitude cultural de extremo pudor sexual perante crianças, que
caracteriza o mundo ocidental contemporâneo, não existia. Ao contrário, como
demonstrou Ariès, na Época Moderna, ao menos até o século XVII, as crianças
misturavam-se ao mundo adulto do sexo sem que o fato fosse moralmente
problematizado. As brincadeiras com o sexo das crianças teriam sido comuns, dizendo de
uma atitude geral em relação às crianças e ao seu sexo no início da Época Moderna.1492
Essa atitude geral estava instalada no âmbito do público, isto é, à vista de todos e de forma
explícita, até então, sem maiores problemas.
Tais brincadeiras eróticas explícitas, bem como a inclusão não problemática das
crianças no mundo sexual dos adultos, explica-as Ariès como uma ausência de reserva,
de um pudor, que ainda não existia em relação à infância e ao erotismo. Antes do século
XVII, na sociedade de Antigo Regime francesa (cronologia esta que provavelmente será
um pouco distinta para o Império português e sua colônia brasileira), as pessoas
consideravam que a criança impúbere era totalmente estranha à sexualidade, imersa em
um estado de quase inocência.1493 Quase, porque, mesmo não tendo consciência ou
discernimento em suas ações, a criança ainda assim estava, como todos os sujeitos
carnais, sob a mancha do pecado original e da consequente libidinização do seu sexo.
Essa operação do dispositivo da carne fazia com que a culpa moral do sexo ficasse
interiorizada na própria fábrica do sujeito cristão, que era de tal maneira constituído. Isso
valia tanto para o homem adulto, como para a criança que ele fora. Ainda não existia,
antes dos séculos XVII e XVIII, uma ideia difundida da criança como fundamental e
sexualmente inocente.1494
smiles, a passion that uses the body for barter instead of inflaming it, a debtor who sells you up, a friend
who stabs you…". KRISTEVA, Julia. Powers of horror. An essay on abjection. Translated by Leon S.
Roudiez. New York City: Columbia University Press, 1982, p. 4.
1492
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 125-6.
1493
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 130.
1494
“Esse homem não apenas misturava sem repugnância as crianças a uma operação de natureza religiosa,
é verdade, do órgão sexual masculino, mas também se permitia, com a consciência limpa e publicamente,
gestos e contatos físicos que só passavam a ser proibidos quando a criança atingia a puberdade, ou seja,
praticamente o mundo dos adultos. Isso acontecia por duas razões. Primeiro, porque se acreditava que a
criança impúbere fosse alheia e indiferente à sexualidade. Portanto, os gestos e as alusões não tinham
consequência sobre a criança, tornavam-se gratuitos e perdiam sua especificidade sexual – neutralizavam-
se. Segundo, porque ainda não existia o sentimento de que as referências aos assuntos sexuais, mesmo que
despojadas na prática de segundas intenções equívocas, pudessem macular a inocência infantil – de fato ou
segundo a opinião que se tinha dessa inocência. Na realidade, não se acreditava que essa inocência
realmente existisse”. (Grifos nossos) ARIÈS. História social da criança e da família, p. 131-2.
620
moderna, o que aconteceu, nas palavras do historiador, por meio de “uma grande reforma
moral, inicialmente cristã e a seguir leiga”.1495 Começou a tomar forma, a partir de finais
do século XVII, nas sociedades de Antigo Regime, a princípio na Europa, um tipo de
interesse novo e especial por aqueles seres, até então indistintos, conhecidos como
crianças, ou como cita a historiadora Mary del Priore, “miúdos”, “ingênuos” ou “infantes”
– a autora destaca que a escassez lexical para identificar esses sujeitos dizia da própria
indistinção, da falta de personalidade, que os caracterizava no início da Modernidade.1496
Esse novo interesse, ou talvez seja melhor dizer, essa problematização nova do
ser das crianças, desdobrou-se, inicialmente, no período entre a Baixa Idade Média e o
início da Época Moderna, de uma preocupação com o sexo, solitário ou homoerótico, das
crianças. Tratou-se de preocupação encetada por uma vontade de saber os arcanos
libidinais da vontade, até mesmo de seres nos quais, a maioria das pessoas, à época, teria
dificuldade de enxergar culpa. Talvez fosse exatamente essa a razão inicial de uma
preocupação mais constante a respeito do sexo das crianças entre alguns moralistas nos
inícios do século XV. Essa preocupação acabaria tomando a dimensão de uma campanha
antimasturbatória na passagem do século XVII para o XVIII, continuando ao longo do
XIX, e iria inculcar a culpa cristã, tornar até mesmo as crianças conscientes da fraqueza
de sua carne, levando-as a confessar assim que atingissem a idade apropriada.1497
Os pequenos masturbadores, ou, pior ainda (do ponto de vista das instituições e
dos discursos de saber-poder), pequenos sodomitas, demandaram uma atitude de
crescente preocupação, vigilância e controle por parte das autoridades eclesiásticas.
Marcada de forma indelével pelo pecado original, incapaz, como sujeito carnal, de
libertar-se do seu sexo libidinal, a criança, no Antigo Regime, era um ser culpado, ainda
que sem o grau de consciência e, por isso, a responsabilidade jurídica, de um adulto. A
irresponsabilidade jurídica da criança não era, pois, o mesmo que uma concepção de uma
inocência moral presumida. Ao contrário, havia, em um tom crescente, um cuidado com
a luxúria infantil, concretizada sobretudo no vício solitário e, em menor medida, muitas
vezes como uma consequência, na sodomia.1498
1495
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 128-9.
1496
PRIORE, Mary del. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a colônia e o Império. In: PRIORE,
Mary del (org.). História das crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 47.
1497
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 132.
1498
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 132-3.
621
Há dois sentidos para a resposta a essa questão. De um lado, antes do século XIX,
não é historicamente correto considerar qualquer indivíduo como sujeito sexual ou sujeito
de sua sexualidade, na simples medida que este dispositivo ainda estava em maturação.
O peso da culpa cristã ainda era forte o suficiente para impor um modo de relação de si
consigo mesmo visando à salvação no além-vida, na forma de práticas de renúncia de si
e de des-subjetivação, como maneira preponderante de ser sujeito (da carne). 1500 Com
efeito, até o século XVIII, as crianças culpadas de pecados de molícies ou de sodomia
eram controladas, vigiadas e punidas sobretudo por mecanismos de poder de instituições
morais e religiosas, vindo o controle médico em posição subsidiária — a documentação
utilizada por Ariès para acompanhar o processo de formação da nova atitude perante o
binômio infância-sexo corrobora esta afirmação, na medida que se trata apenas de textos
morais, religiosos e pedagógicos vinculados a escolas confessionais católicas ou
protestantes.1501 Tal situação mudará ao longo do XVIII e no XIX. Por outro lado, o
sentimento de pudor, que se foi construindo, não significou que a dimensão erótica da
infância tenha sido expurgada, mas antes que o discurso sobre ela foi sendo mais regulado
e monopolizado por instituições de poder socialmente autorizadas. Os silêncios que se
tornaram mais perceptíveis na relação infância-erotismo eram também mais loquazes,
dizendo de uma vontade de saber que corria subterraneamente. Assim, no século XIX,
1499
“De fato, essa preocupação com a gravidade, que analisamos aqui, só triunfaria realmente no século
XIX, apesar da evolução contrária da puericultura e de uma pedagogia mais liberal e mais naturalista”.
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 146.
1500
O regime da sexualidade, ao contrário, tem sempre o objetivo de majorar as forças do sujeito, para
obter, assim, maiores benefícios da sua exploração. Isso se coaduna com a definição de Ariès para o duplo
sentido moderno da inocência infantil, a saber, uma infância que deveria ser segregada do universo erótico
e que, por consequência, deveria ser fortalecida e desenvolvida em seu caráter e em sua razão. ARIÈS.
História social da criança e da família, p. 146-7.
1501
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 133-7.
622
será possível dizer que, com a nova criança, o novo sentimento da infância, será, ao
mesmo tempo, inocente e sexual. Mas, como categoria de classificação e distinção das
pessoas, o que era ser criança em sociedades de Antigo Regime, coloniais e escravistas?
Na leitura desse esquema das fases da vida do homem, é importante ter em mente
que ele não pretendia descrever uma sucessão de eventos biológicos. A ideia de vida que
subjazia a tal ordenamento não se fundava na biologia, como passaria a acontecer a partir
dos séculos XVIII e XIX.1503 Cada idade da vida diria respeito, antes, às funções sociais
que poderiam ser esperadas do homem naquele momento, de maneira tal que as fases
iniciais, em que os homens estavam em formação, tendiam a ser menos notadas, a
desaparecer nas sombras de seres que pouco importavam na vida social cotidiana, pois
1502
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 36-7.
1503
“É preciso ter em mente que toda essa terminologia que hoje nos parece tão oca traduzia noções que na
época eram científicas, e correspondia também a um sentimento popular e comum da vida. Aqui também
esbarramos em grandes dificuldades de interpretação, pois hoje em dia não possuímos mais esse sentimento
da vida: consideramos a vida como um fenômeno biológico, como uma situação na sociedade, sim, mas
não mais que isso. Entretanto, dizemos ‘é a vida’ para exprimir ao mesmo tempo nossa resignação e nossa
convicção de que existe, fora do biológico e do sociológico, alguma coisa que não tem nome, mas que nos
comove, que procuramos nas notícias corriqueiras dos jornais, ou sobre a qual podemos dizer ‘isto tem
vida’. A vida se torna então um drama que nos tira do tédio do quotidiano. Para o homem de outrora, ao
contrário, a vida era a continuidade inevitável, cíclica, às vezes humorística ou melancólica das idades, uma
continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas, mais do que na experiência real, pois poucos
homens tinham o privilégio de percorrer todas essas idades naquelas épocas de grande mortalidade”.
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 38-9.
623
ainda estavam a aprender como existir neste meio.1504 Assim, uma vez que, na Época
Moderna, a fase da vida designada como “juventude” significava a força da idade, pouco
espaço sobrava para uma fase intermediária entre o momento de aprendizados e o de plena
inserção no mundo de todos os adultos — fase que, hoje, conhecemos como a
adolescência. Até o século XVIII, a adolescência confundia-se com a infância, com os
termos para cada uma (em latim, puer e adolescens) aparecendo indistintamente para
pessoas até por volta da terceira década de vida. Persistia, como uma das marcas do
sentido da infância no Antigo Regime, a indiferença entre a criança e o adolescente, tal
como as conheceríamos na contemporaneidade.1505
1504
A historiadora Kátia de Queirós Mattoso assim referiu-se à obscuridade das crianças nas fontes legadas
pelas sociedades de Antigo Regime, sobretudo das crianças filhas de pessoas escravizadas: “O que se pode
então dizer das crianças escravas que são duplamente mudas, e duplamente escravas, uma vez que,
geralmente, entende-se que todo escravo, mesmo adulto, é criança para o seu senhor, menor perante a lei e
eterno catecúmeno para a Igreja?” MATTOSO, Kátia de Queirós. O filho da escrava (Em torno da Lei do
Ventre Livre). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8 n. 16, p. 37-55. mar/1988 - ago/1988, p. 38.
1505
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 39-41.
1506
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 42.
624
escravo e o ser criança, ou, mais ainda, que a experiência subjetiva do ser uma criança
escrava não comportasse especificidades marcantes em relação às crianças livres.
Se, de um modo geral, o largo período da vida que podia ser dito como infância
ou adolescência no Antigo Regime era um momento de longo aprendizado para todas as
crianças (aprendizado também no sentido de socialização, de incorporação das normas
sociais), esse processo não acontecia do mesmo modo para todas elas. Segundo Mattoso,
a inserção da criança escrava no mundo do trabalho era muito mais precoce que a da
criança livre, fosse ela branca ou mestiça. Daí uma outra ambiguidade dos sentidos de
infância na escravidão, pois, se, de um lado, o escravo era uma criança eterna, por outro,
ele não desfrutaria do privilégio de um período longo de aprendizado das normas de
socialização, sendo-lhe imposta, muito rapidamente, uma certa maioridade econômica,
no sentido restrito de que passaria a ser encarregado de tarefas similares às de seus
congêneres mais velhos. A maioridade econômica dos filhos de escravos aconteceria
antes dos dez anos de idade.1507
1507
MATTOSO. O filho da escrava (Em torno da Lei do Ventre Livre), p. 42-3.
1508
GÓES, José Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: PRIORE,
Mary del (org.). História das crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 99.
625
1509
MATTOSO. O filho da escrava (Em torno da Lei do Ventre Livre), p. 43.
1510
SOUZA, Laura de Mello e. As câmaras, a exposição de crianças e a discriminação racial. In: SOUZA,
Laura de Mello e. Norma e conflito. Aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999, p. 72-3.
1511
“O menino crioulo sobrevivente não ficava só. A consolá-lo, existia uma rede de relações sociais
escravas, em especial as de tipo parental. Muito possivelmente ele teria irmãos, um ou outro tio, primos,
além de, por vezes, avós, que poderiam viver dentro e fora de seu plantel. A extensão da rede familiar
dependia, em muito, da flutuação do tráfico atlântico. De qualquer modo, em propriedades distantes do
mercado de escravos a pelo menos vinte anos, onde não raro mais de 90% da escravaria possuía parentes,
o menino com certeza seria irmão, primo, sobrinho ou neto de alguém. Em qualquer circunstância, porém,
teria a criança já uma ‘tia’, ou um ‘tio’, mesmo que não consanguíneos. Um padrinho (e, muito
frequentemente, uma madrinha), que com certeza, os pais já lhe haviam providenciado logo no
nascimento”. GÓES; FLORENTINO. Crianças escravas, crianças dos escravos, p. 98.
1512
“Breve instrução para ensinar a doutrina cristã, ler e escrever aos meninos e ao mesmo tempo, os
princípios da língua portuguesa e sua ortografia”, AHU, Ministério do Ultramar, Portugal, s/d, caixa 49
626
Nos dois processos que começamos a acompanhar neste tópico, aquele sobre o
cirurgião Lucas da Costa Pereira e o escravo José, e o envolvendo o comerciante Rodrigo
Fidalgo e a escrava Maria, vimos como as relações sodomíticas que aconteceram entre as
partes deixaram marcas físicas nos corpos dos escravizados. Será possível conjecturar a
respeito de marcas feitas também em suas subjetividades? Até que ponto os relatos dos
processos, mais interessados em incitar a confissão dos respectivos parceiros de José e
referente a Pernambuco apud PRIORE. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a colônia e o Império,
p. 53.
1513
“No século XVII, muitos senhores do engenho aparentemente aceitavam a teoria da administração da
escravaria mencionada por Antonil, segundo a qual os cativos necessitavam de três PPP, a saber: pau, pão
e pano. Observadores estrangeiros, como Johan Nieuhoff, que visitou o Brasil naquele século, falavam
invariavelmente da brutalidade do regime escravista e informavam que os escravos brasileiros eram mal
alimentados, mal abrigados e mal vestidos. Os comentários de observadores cuja nacionalidade ou religião
predispunham-nos naturalmente a criticar os portugueses poderiam ser desconsiderados, não fossem as
afirmações semelhantes feitas por clérigos portugueses, os quais também acusavam os senhores escravistas
de desumanos. De qualquer forma, tanto os clérigos defendores de um melhor tratamento quanto os
observadores forasteiros compartilhavam com os proprietários dos cativos uma opinião nada favorável
sobre os africanos, achando que a disciplina, o castigo e o trabalho eram a única maneira de sobrepujar-
lhes a superstição, a indolência e os maus modos". SCHWARTZ. Segredos internos, p. 122.
1514
GÓES; FLORENTINO. Crianças escravas, crianças dos escravos, p. 100-1.
627
Maria, nos permitem afirmar algo a respeito de suas práticas de subjetividade? Para os
dois senhores, especialmente o cirurgião, há mais informações, como veremos logo à
frente, o que nos permite pensar, com mais profundidade, sobre o lugar da sodomia em
seu modo de se entender como sujeito de sua experiência erótica.
A única razão que pode ser apontada é sua condição de cristão-novo, portanto,
uma pessoa desde já suspeita aos olhos da Inquisição. Findados os interrogatórios de todas
as pessoas envolvidas nas sucessivas vendas da escravizada Maria, o visitador Heitor
Furtado de Mendonça passou despacho acerca de qual seria o próximo passo do processo.
Nesse momento, considerou o visitador que Rodrigo Fidalgo e seu irmão eram pessoas
suspeitas, uma vez que, sendo cristãos-novos, corria o boato na cidade de que eles não só
tinham parentes presos pela Inquisição na Ilha da Madeira (de onde eram naturais) por
suspeitas de judaísmo, como também de que eles estariam preparando uma viagem (uma
fuga aos olhos do Santo Ofício) para o Peru, nas Índias de Castela, para logo. 1516 As
considerações do Santo Ofício foram ao encontro do teor da confissão do réu, que apontou
1515
Os trechos da denúncia de Maria d’Almeida que provocaram a confusão processual são os seguintes:
“[...] que / auera ora ojto dias que pella porta de / la denuncjante paSsou hum mancebo / aluo e corado do
rosto do qual não / Sabe mais Confrontaçois e lhe djSse que / Se ella a qujSseSse tornar a Vender que / elle
lha comprarja e pagarja mujto bẽ / paga porque despois que elle a Ven / dera // dera lhe peSsara [...]” e,
depois, “[...] e que djxe / mais que ho djtto mandel que isto lhe fiZera / era aquelle que fallou com ella djtta
de / nuncjante que lha tornaSse a Vender / ho qual homẽ que trouxe ha djtta negra e ha / Vendeo Sabe ella
denuncjante que Se chama / Rodrjgo // Rodrjgo fidalgo cujo Jrmaõ djZ a djtta maria / que he ho djtto homẽ
branco a que ella chama / mandel que com ella feZ ho djtto peccado / e que por isto Ser couSa pertençente
/ ao Sancto offjcjo Vem ora declararlo /cõ a ditta escraua preSente a esta meSa". DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 3f, 3v, 4f.
1516
“[...] E Logo Juntas as djttas Culpas do / Reo Rodrjgo fjdalgo Eu Notário a falla / do promotor requerej
ao senhor Vjsjtador / procedeSse nellas por quanto o djtto / Rodrjgo fjdalgo Segundo Se djZ Vulgar / mente
nesta terra cõ outro Seu Jrmaõ / estaõ pera hir pera fora e djZem per / esta terra que elles Saõ Sobrjnhos e
parentes / de christaõs nouos que foraõ preSsos ora pella / sancta Jnqujsjcam na ylha da madejra / e que por
o djtto Reo e Seu Jrmaõ afonso / fjdalgo Serem estes e nesta conJun / caõ de tempo Vjrem pera estas /
partes et estarem pera Se tor / narem daquj e Segundo djZẽ / Se querem Jr pera as partes / do peru // frente
// do peru Jndjas de castella Se preSume / mal delles e que portanto elle senhor maõ / daSse faZer estes
autos conclusos / e procedeSse Contra o Reo Rodrjgo / fidalgo Como lhe pareçeSse Justjça / e Visto pello
senhor Vjsjtador meu reque / rjmento mandoulhe fjZeSse estes / autos conclusos E Eu lhos fiZ Ma / noel
francisco notário do santo officjo nesta Vjsj / taçaõ o escreuj ~ / [sinal]”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de
Lisboa, processo 12223, fl. 6v, 7f.
628
práticas judaizantes de seus familiares, inclusive de sua mãe e várias tias.1517 O crime de
sodomia não é mencionado pelo réu ou pelo visitador até a terceira sessão de
interrogatório, no dia 30 de julho de 1594, quando, após ter admoestado duramente o réu
para que fizesse maiores confissão e denúncias sobre judaizantes, bem como sobre a razão
de o réu não ter ido imediatamente confessar, ainda durante o período da graça, à mesa
da Visitação, Heitor Furtado de Mendonça traz à tona a denúncia de sodomia que existia
contra Rodrigo Fidalgo. Nesse ponto do interrogatório, é possível perceber a surpresa do
réu ao ser acusado de sodomia, como se vê no trecho seguinte:
[...] E por não dizer mais nada, foi perguntado se sabe ele que também na mesa
do Santo Ofício se toma conhecimento do pecado nefando de sodomia, e nela
se castiga. Respondeu que sim, sabe. Perguntado se sabe que dormir com
mulher pelo vaso traseiro é o mesmo pecado contra natura e nefando.
Respondeu que sim, sabe. Perguntado onde lhe aconteceu pecar o pecado
nefando. Respondeu que nunca, em nenhuma parte, por nenhum modo fez o
pecado nefando. Perguntado como se chama uma moleca com quem ele fez o
pecado nefando pelo traseiro. Respondeu que não sabe de tal, nem tal lhe
aconteceu nunca, nem tal pecado fez, nem ainda lhe veio em pensamento.
Perguntado quem lhe parece que o poderia ver estar fazendo o dito pecado
nefando. Respondeu que nunca tal pecado fez, nem tal lhe podiam ver fazer,
pois o não fez e que, se tal pecado fizera, bem sabe que se queimam os
somitigos e, assim como ele aqui tem dito o que disse, assim confessaria
também esse pecado e dele pediria perdão nesta mesa. Mas que se tal lhe é
imposto, que é falsidade [...].1518
1517
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 8f – 18f.
1518
“[...] E por naõ djZer mais nada foj per / guntado Se sabe elle que tambem na / mesa do Sancto offjcjo
Se toma conhe / cjmento do peccado nefando de / Sodomja E nella Se castiga Respondeo / que Ssjm Sabe
perguntado Se sabe que / dormjr com molher pello VaSso traZejro / he o mesmo peccado Contra natura / e
nefando Respondeo que Sim Sabe / perguntado onde lhe aconteçeo peccar / o peccado nefando, Respondeo
que nunca / Em nenhuã parte per nenhũ modo feZ / o peccado nefando, perguntado / Como Se chama huã
moleca Com quẽ elle / feZ o peccado nefando Pello traSejro / Respõ // Respondeo que naõ Sabe de tal nem
tal / lhe aconteçeo nunca nem tal peccado / feZ nem aJnda lhe ueo ao penSamẽto / perguntado quem lhe
pareçe que ho po / derja uer estar faZendo o djtto pecca / do nefando, Respondeo que nunca tal / peccado
feZ nem tal lhe podjaõ Ver fa / Zer pois o naõ feZ E que Se tal peccado / fiZera bem Sabe que Se quejmaõ
os Somj / tigos, e aSsim como elle aquj tem djtto / o que mais djSse aSsjm confeSsara taõ / bem eSse
peccado e delle pedjra perdaõ / nesta mesa mas que Se tal lhe he Jmposto / que he falsjdade [...]”. DGA/TT
– Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 25f, 25v.
1519
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 26f, 26v.
629
absolvido deste crime. Este foi o parecer do promotor, o bispo da Bahia,1520 que foi
acatado pelos demais juízes e pelo visitador.1521 O réu, contudo, não saiu ileso de seu
contato com a Inquisição. Ele foi condenado por ter desobedecido ao Monitório da
Visitação ao não se ter confessado (e denunciado) com presteza ao chegar a Olinda. De
acordo com sua sentença, Rodrigo Fidalgo foi condenado a ir a auto público da fé, em
Olinda, descalço e com a cabeça descoberta, segurando uma vela acesa na mão, a fazer
abjuração de levi suspeita na fé, a pagar as custas do processo e a sujeitar-se a penitências
espirituais. Foi, porém, absolvido da excomunhão maior, por ser menor de 25 anos.1522 A
violência sexual e de gênero, propiciada por sua condição de mulher africana, negra e
escravizada, sofrida por Maria, foi esquecida pela Inquisição. Pode-se pensar que a
Inquisição sequer interpretara o que se passou com a personagem como uma violência,
mas sim como um crime em que ela provavelmente era cúmplice.
Sobre a moleca Maria, nada mais é dito no processo, de modo que temos poucas
informações para avaliar suas práticas de subjetivação. O que sabemos é que ela tinha por
volta de 15 anos durante o processo e chegara há poucos meses em Pernambuco, vindo
de Angola, de onde era natural. Ou seja, Maria não era mais vista como meramente
criança, seus senhores entendiam que ela já tinha capacidade física e mental para
desempenhar tarefas como qualquer outra mulher escrava. A diferença, no caso de Maria,
estaria, provavelmente, na sua condição de recém-chegada à América, logo,
desconhecedora das normas culturais locais. Como vimos acima, ela residia, no momento
em que fez sua denúncia/confissão, na casa de Maria de Almeida, para onde fora mandada
para aprender a doutrina cristã e todos os conhecimentos necessários para as atividades
laborais que poderia desempenhar como escrava. Ou seja, ela ainda não estava totalmente
aculturada à sociedade colonial (sequer falava a língua portuguesa), o processo de
normalização de suas práticas de subjetividade, segundo as normativas do dispositivo da
carne, ainda estava em curso. Maria estava, portanto, em uma espécie de trânsito cultural,
entre suas origens africanas e as novas realidades da existência como escravizada na
1520
“Muito Illustre senhor / Destes autos naõ resulta proua bastante (ainda que pera / prender bastaua, com
os mais indiçios que acreçeraõ) / pera ap pecado nefando se vir com libello cõtra / o Réu Rodrigo fidalgo
mormente naõ tendo como naõ / dar a Justiça mais testemunhas do que se poSsa ajudar / contra elle. portanto
pode Vossa Mercê proçeder cõtra / o Réu como lhe pareçer pelo que dos autos haa”. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 29f.
1521
“[...] Foraõ Vistos Estes Autos Em Mesa E Pareçeo a / todos os Votos que quanto a o caSo do nefando
/ naõ he a proua bastante para condenaçaõ alguã [...]”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo
12223, fl. 30v.
1522
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 33f, 33v;
630
sociedade colonial, em Olinda. Tal existência, como ela já estava tendo múltiplas
oportunidades para experimentar, envolvia a sujeição a violências, algumas vezes
naturalizadas, outras não, na forma de castigos e de estupros. Se os castigos aplicados por
Maria de Almeida poderiam ser entendidos e sentidos como acontecimentos costumeiros
na relação senhorial, o estupro anal que sofrera não foi experimentado da mesma forma
por Maria, resultando em consequências visíveis para seu processo de subjetivação. A
consequência mais óbvia era a incontinência urinária, que resultou como sequela corpórea
da violência, tendo sido a chave para o desvelamento do caso. Isso nos faz pensar que a
publicidade das funções baixo-corporais da escrava, com sua urina a escapar ao seu
controle, provavelmente causando incômodos e embaraços a seus senhores, em conexão
com a atividade sexual anal-vaginal que a provocara, foi sentida como insuportável por
todas as pessoas envolvidas, provocando interpelações à escrava Maria, para que ela
confessasse (colocasse em discurso) o que entendia como razões para esse desarranjo das
fronteiras do público e do privado em seu corpo. Desse modo, as confissões de Maria,
primeiramente às suas companheiras de cativeiro, depois, à sua senhora e, por fim, ao
visitador, podem ser lidas como outro (mais profundo) desdobramento da violência que
sofrera para seu processo de subjetivação. Tendo sofrido uma violência insuportável,
cujas consequências físicas foram contínuas e embaraçosas, Maria foi outra vez forçada,
dessa feita, a se enredar nas relações de saber-poder-subjetivação do dispositivo da carne,
subjetivando-se como sodomita e como mulher africana escravizada, portanto, culpada
desde já por sua concupiscência ao menos em nível moral e espiritual, senão no jurídico,
já que fora vítima de um ato violento. Seu corpo e sua alma, sua carne, enfim, ficariam,
provavelmente, indelevalmente marcadas pelo estupro sodomítico que sofrera ao
desembarcar na sociedade colonial escravista.1523
1523
As informações sobre a escrava Maria estão espalhadas ao longo do processo. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 3, 4-5, 6, 25.
631
sendo seu pai morto havia muitos anos, dos quais ainda recebia lições e castigos físicos
(a palmatória), para aprender a ser cortês.1524 Ou seja, estava ainda, nessa idade, sendo
disciplinado segundo as regras da ética cortesã. Estava também sendo educado nas
normas do dispositivo da carne, tanto nas suas aulas na escola na cidade de Funchal, na
Ilha da Madeira, de onde era natural, como em suas sessões de confissão e direção da
consciência com o sacerdote local.1525 Em seu primeiro depoimento ao visitador, Rodrigo
Fidalgo detalhou essas suas primeiras experiências cristãs formais e o sentimento que teve
em relação a elas.
E que, depois do dito caso do dito jejum, dali a dois ou três dias, foi ele réu
confessar-se ao padre João Fernandes, cura da igreja da Sé, onde eles eram
fregueses, porque moravam na rua dos mercadores, por ser então na quaresma,
no princípio dela, por sua devoção, que se costumava confessar em cada mês.
Na qual confissão, ele confessou inteiramente seus pecados ao dito seu
confessor, mas, por não advertir, não lhe declarou o dito caso do dito jejum,
que passara com sua mãe, não fazendo ele caso de ser necessário declarar-lhe
ele isso, nem advertindo a isso então. E que o dito confessor, na dita confissão,
lhe deu licença para poder receber o Santíssimo Sacramento e lhe deu escrito
para isso, como naquela igreja se costuma, porquanto, ainda até então, ele réu
não tinha recebido nunca o Santíssimo Sacramento. E vindo ele réu para casa
muito contente com o dito escrito, disse à dita sua mãe que já trazia ali escrito
para poder tomar o Santíssimo Sacramento.1526
1524
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 15f.
1525
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 12.
1526
"E que despois do / djtto caSso do djtto JeJum dallj a dous / ou tres djas foj elle Reo ComfeSsarse ao /
padre Joam fernandeZ Cura da Jgreja da / See donde elles Eraõ fregueses que / morauaõ na Rua dos
mercadores / por Ser Entaõ na quarresma no prjn / cjpio della per Sua deuoçaõ que Se / Costumaua
confeSsar cada mes na / qual // qual confiSsaõ elle confeSsou Jntejramẽ / te Seus peccados ao djtto Seu
confeSsor / mas por naõ aduertir lhe naõ de / clarou o djtto caso do djtto JeJum que / paSsara com Sua maj
naõ faZendo / elle caSso de Ser neçeSsarjo declararlhe / elle iSso, nem aduertindo a iSso Entaõ / E que o
djtto confeSsor na djtta confiSsaõ / lhe deu liçença pera poder reçeber ho / SanctiSsimo Sacramento e lhe
deu escripto / pera iSso como naquella Jgreja Se cos / tuma por quanto Jnda ate Entaõ elle / Reo naõ tinha
reçebjdo nunca ho / SanctiSsimo Sacramento, e Vindo elle / Reo pera casa mujto contente com ho djtto /
escripto djxe a djtta Sua maj que Ja / traZia allj escripto pera poder tomar / o SanctiSsimo Sacramento".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 11.
632
Ele, portanto, elaborou uma representação de si mesmo como aquele que se sentia
e se reconhecia como bom cristão (uma construção discursiva que convinha aos interesses
do Santo Ofício, razão, sem dúvida, pela qual o visitador a fixou nos termos do
processo),1528 afirmando-o várias vezes ao visitador, dando como prova disso seu hábito
de confessar-se nas quaresmas e fora delas,1529 seu saber da verdade da doutrina da fé (o
que manifestou na sua sessão de genealogia, ao dizer bem todas as orações e
mandamentos da Igreja),1530 e, principalmente, as denúncias que fez a respeito de sua mãe
e de suas tias, por práticas suspeitas de judaísmo. Como temos visto ao longo desta tese,
a Inquisição almejava que todos os cristãos se tornassem delatores, encarando a denúncia
das dissidências de fé e eróticas como dever espiritual, ou seja, um dever tributário de sua
qualidade de sujeitos cristãos. Rodrigo Fidalgo teve essa qualidade reconhecida pelo
Santo Ofício, uma vez que lemos, na capa do seu processo, que o réu merecia que se
usasse de misericórdia com ele, por ter denunciado sua mãe e suas tias, sem haver indícios
contra elas.1531
1527
PRODI. Uma história da justiça, p. 79-88; PROSPERI. Tribunais da consciência, p. 281-298.
1528
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 19-20.
1529
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 13.
1530
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 21.
1531
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 1.
633
Abjuração de leve
Eu, Rodrigo Fidalgo, cristão novo, solteiro, perante vós Reverendo Senhor
Visitador do Santo Ofício, juro nestes Santos Evangelhos, em que tenho
minhas mãos, que de minha própria e livre vontade anatematizo e aparto de
mim toda a espécie de heresia e apostasia que for ou se levantar contra nossa
Santa Fé Católica e Sé Apostólica, especialmente estas que agora em minha
sentença me foram lidas. As quais aqui hei por expressas e declaradas de que
me houveram por de leve suspeita na fé, e juro e prometo de sempre ter e
guardar a Santa Fé Católica, o que tem e ensina a Santa Madre Igreja de Roma,
e que serei sempre muito obediente ao nosso mui Santo Padre Papa Clemente
VIII, ora na Igreja de Deus presidente, e a seus sucessores. E confesso que
1532
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 25.
1533
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 28.
634
todos os que contra essa Santa Fé Católica vierem são dignos de condenação.
E prometo nunca com eles me juntar e os perseguir e descobrir as heresias que
deles souber aos inquisidores ou visitadores e prelados da Santa Madre Igreja.
E juro e prometo, quanto em mim for, de cumprir a penitência que me é
imposta. E se contra isso ou parte dela, em algum tempo, vier (o que Deus não
permita), caia na pena que por direito em tal caso merecer. E me submeto à
severidade e correção dos Sagrados Cânones.1534
1534
"AbJuraçaõ de leuj ~ / Eu Rodrigo fidalgo christaõ nouo solteiro / Per ante uos Reuerendo senhor
Vjsitador do / santo offjcio Juro nestes Sanctos Euaõgelhos / Em que tenho mjnhas maõs que de / mjnha
propria E Liure uontade ana / thematiZo E aparto de mῖ toda a es / peciae de heresia E apostasia que for /
ou Se alleuantar Contra noSsa Sancta / fee catholica E See apostholica, espicjal / mente estas que agora Em
mjnha / Sentença me foraõ lidas as quais a / quj Ei por ExpreSsas E declaradas / de que me ouVeraõ por de
leuj suspejto / na fee E Juro E prometo de Sempre ter / E guardar a santa fee catholjca que tem et JnSigna /
a santa Madre Jgreja de Roma e que Serej Sempre / mujto obediente ao noSso muj santo Padre / Papa
clemente 8º ora na Jgreja de Deus / preSidente E a Seus SuçeSsores E ComfeSso / que todos os que Contra
esta santa fee / catholjca Vjerem Sam djgnos de cõ / denaçaõ // denação e prometo de nunca com elles / me
aJuntar E de os perSeguir E des / Cobrir as heresias que delles Souber / aos Jnqujsjdores, ou Vjsitadores et
/ prelados da santa Madre Jgreja e Juro e pro / meto quanto Em mim for de comprir / a penjtentia que me
he Jmposta e Se / contra isto ou parte dello Em algum tempo / ujer (O que Deu naõ permjtta) caya / na pena
que per derejto En tal caSso me / reçer E me Sobmeto a Seuerjdade E cor / rejçaõ dos Sagrados Canones".
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 12223, fl. 34.
1535
BETHENCOURT. História das Inquisições, p. 249-254.
635
pelas técnicas pastorais para o governo de sua alma. A qual era, sempre, aí mesmo
manufaturada por essas próprias técnicas. Tal era, e é, a ilusão de interioridade do sujeito
de desejo ocidental.
[...] que sabe que, estando ele testemunha morando em casa do capitão
Felisberto Caldeira Brant, sucedera que, no dia declarado no Sumário retro, se
queixara um mulato [do senhor], por nome José, que um Lucas da Costa
Pereira o cometera para dormir com ele. O que com efeito fizera [o mulato]
duas vezes, usando dele pela via traseira, cometendo o pecado nefando. O que
sabe ele testemunha pelo mesmo mulato, por nome José, lhe confessar e ele
testemunha fazer vistoria do dito mulato, e lhe achara a via maltratada pelo
excesso que lhe tinha feito o dito Lucas da Costa Pereira. O que ele testemunha
viu presenciar.1537
1536
Uma versão condensada da análise seguinte foi publicada em: ROCHA, Cássio Bruno de Araujo. De
violência e fama pública: uma análise das hierarquias sexo-raciais nas Minas setecentistas através do
processo inquisitorial do cirurgião Lucas da Costa Pereira (Paracatu, 1746-1755). Portuguese Studies
Review. Edited Volumes, v. 4, As Minas Gerais do Brasil: Economia, ciência e cultura nos séculos XVIII
e XIX. Edição organizada por Rafael de Freitas e Souza; Sirleia Maria Arantes; Weder Ferreira de Silva.
Peterborough, Ontário: Baywolf Press, 2019, p. 67-110.
1537
[...] que Sabe / que estando elle testemunha morando / em Caza de Capitam Felisberto Caldejra / Brant
suCedera que em o dia declara / do no somario Retro se queixara hum seo / Mulato per nome Iose que hum
LuCas Da / Costa Pereira o Commetera para dormir / Com elle, o que Com efeito o ficera duas ue / Zes
uzando delle pella uia traSeira Comme / tendo peCado nefando, o que sabe elle / testemunha pello mesmo
Mullato per no / me Ioze lhe ConfeCar e elle testemunha / fizera uistoria ao ditto Mulato e lhe acha / ra a
via maltrada de exCeSo que lhe tinha / feito o ditto Lucas da Costa Pereira; o que / elle testemunha uio
prezenCiar [...]. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 11 verso.
636
Ou seja, o ato praticado pelo cirurgião (que seria compreendido como uma
violência pelos demais envolvidos no caso, ou seja, como algo que excedia o costumeiro
na relação senhorial) sobre o corpo do escravo deixara marcas que, posteriormente, foram
lidas por terceiros, o senhor e um seu agregado ou dependente. Como mostrou Sílvia Lara,
tais marcas corporais configuravam uma certa escrita da dominação senhorial, que se
inscrevia no corpo do cativo, construindo-o aí mesmo como ente escravizado. As
marcações de propriedade dos traficantes negreiros (nos portos da África e nos da
América) uniam-se às dos castigos físicos praticados pelos senhores para construir as
subjetividades das pessoas escravizadas dentro dos parâmetros de submissão necessários
à manutenção do sistema escravista.1538 Como mostrou Foucault, em Vigiar e Punir,
tratava-se, com o emprego de castigos constantes e exemplares, de fabricar, modelar,
produzir formas de sujeito que fossem sujeitados, isto é, dóceis e produtivos até certo
ponto, limite este que se determinou pela eficiência do sistema de dominação como um
todo em controlar e vigiar a todo momento tais sujeitos.1539
Cabe pensar aqui se os estupros anais sofridos por Maria e José também não
consistiriam em outra forma de violência branca-senhorial. Em torno desta questão,
argumentos contra e a favor perfilam-se. Em primeiro lugar, é preciso ter claro o que se
entende por violência senhorial. Do ponto de vista contemporâneo, o sistema escravista
em si é uma violência sem medidas contra todos os que a ele foram sujeitados, com os
agravantes dos castigos físicos, todos igualmente percebidos, atualmente, como cruéis e
desumanos. Todavia, como ponderaram autoras que revisaram a bibliografia sobre o
escravismo brasileiro a partir da década de 1980, é preciso que um esforço seja feito para
não olhar a escravidão apenas com os olhos do presente, ou seja, tentar entender como os
atores sociais coevos (senhores e escravos) sentiam e entendiam o escravismo e suas
formas típicas de violência. Historiadoras como Maria Helena Machado, Leila Mezan
1538
LARA. Campos de violência, p. 86-7. Mott também fala de outras espécies de marcas, aquelas advindas
das experiências eróticas de cada pessoa, de acordo com as várias maneiras como o erotismo era
culturalmente significado nas sociedades africanas. "Portanto, os negros e as negras que vieram para o
Brasil, além das marcas e cicatrizes tribais [sic] estampadas no rosto, tórax e demais partes do corpo, a
grande maioria dos adultos e adolescentes certamente devia trazer mutilações sexuais como a circuncisão,
clitoridectomia e mesmo infibulação". MOTT. O sexo proibido, p. 31.
1539
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 131-161. A historiadora Liana Maria Reis igualmente utilizou as
considerações de Foucault sobre a construção de subjetividades trabalhadoras dóceis e produtivas para
entender os sentidos político e disciplinador do castigo público dado aos escravos nas Minas setecentistas,
“As análises de Michel Foucault nos ajudam a entender o significado político e o caráter disciplinador do
castigo público. A punição pública do escravo evidenciava que seu corpo estava ‘mergulhado num campo
político’ e que as relações de poder tinham ‘alcance imediato sobre ele’”. REIS. Crimes e escravos na
capitania de todos os negros, p. 74.
637
É nesse sentido que alguns autores, tais como Eduardo França Paiva e Liana Maria
Reis, concebem as várias relações eróticas comumente estabelecidas entre senhores e suas
escravas, ou ainda entre homens brancos poderosos e mulheres forras, africanas ou não,
negras ou mestiças, pobres, como momentos de acomodação entre a dominação senhorial
e a resistência escrava.1542 Dado o caráter pessoal das relações paternalistas do escravismo
colonial,1543 a aproximação afetiva-erótica entre mulheres escravizadas e homens-
senhores teria funcionado, em ocasiões, como uma estratégia destas mulheres para atingir
objetivos de resistência ao escravismo, isto é, conseguir a alforria sua e/ou de seus
filhos.1544 É importante salientar que os autores não procuram negar o caráter violento,
como estupro, desses encontros (de todos ou da maioria deles?), nem mesmo relativizar
intenções, gozos e responsabilidades dos colonizadores sobre a violência que praticavam,
ao contrário de certas passagens relativizantes do estupro que se lêem em Gilberto
Freyre,1545 substituindo a fundamentação psicológica de Freyre (masoquismo das
1540
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão. Trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987; ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente.
Estudos sobre a escravidão no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988; LARA. Campos de
violência.
1541
Maria Helena Machado afirma que “[...] resistir no interior da escravidão, como parece ter optado a
maior parte dos escravos, pressupunha a aceitação de certas normas tácitas de convivência mútua entre
senhores e escravos”. MACHADO. Crime e escravidão, p. 20.
1542
Nas palavras de Eduardo França Paiva: “É a partir de tal mobilidade e dos ganhos auferidos por
indivíduos, por familiares ou por pequenos grupos de cativos que a resistência é aqui tomada como
sinônimo de enfrentamento e de adaptação”. PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia, p. 93.
1543
LIBBY, Douglas Cole. Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Américas. In: PAIVA,
Eduardo França; IVO, Isnara Pereira. (Orgs.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo:
Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edunesb, 2008, p. 27-39.
1544
“Mas esses relacionamentos eram extremamente comuns e elas souberam, com eficácia e pragmatismo,
aproveitar a situação, mesmo quando derivada de um contato forçado pelo proprietário, o que também foi
frequente”. PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia, p. 199. Liana Maria Reis completa,
“Utilizando-se de estratégias as mais diversas, como a de tirar proveito dos intercursos sexuais com seus
senhores e dos acordos sistêmicos, as libertas conduziram independentemente suas vidas [...]”. REIS.
Crimes e escravos na capitania de todos os negros, p. 80.
1545
Retomamos uma passagem célebre de Casa-grande & senzala, em que o autor, ao afirmar que algumas
mulheres escravas, indígenas, africanas ou mestiças, sentiriam um certo prazer na violência que sofriam,
638
mulheres indígenas e africanas) pela noção de agência das escravas, capazes de manipular
a violência senhorial até mesmo no âmbito erótico.
acaba produzindo um efeito de relativizar a responsabilidade dos homens colonizadores pelas violações
que praticavam. “O intercurso sexual entre o conquistador europeu e a mulher índia não foi apenas
perturbado pela sífilis e por doenças europeias de fácil contágio venéreo: verificou-se – o que depois se
tornaria extensivo às relações dos senhores com as escravas negras – em circunstâncias desfavoráveis à
mulher. Uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas
relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu domínio. O
furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo; ainda
que se saiba de casos de pura confraternização do sadismo do conquistador branco com o masoquismo da
mulher indígena ou da negra. Isso quanto ao sadismo de homem para mulher – não raro precedido pelo de
senhor para moleque. Através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente
chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico”. FREYRE. Casa-grande
& senzala, p. 113.
1546
FIGUEIREDO. O avesso da memória, p. 183
639
1547
“ [...] e uendo elle testemunha a queixa do Rapas / mandou pegar do ditto Cirurgiam e dar parte / ao
CommiSsario do Santto officio”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 9 verso.
1548
LARA. Campos de violência, p. 147-164; 175-8; 207.
640
era uma ameaça monstruosa e abjeta, que poderia atrair a ira divina sobre toda a
comunidade de Paracatu.
Não nos admiramos, por conseguinte, com o alvoroço provocado, entre aqueles
homens viris e cristãos, pela publicidade da relação sodomítica. O ferimento anal deixara
o jovem José enfermo, talvez o impedindo de cumprir suas tarefas diárias, como verificou
pessoalmente o capitão-mor Joaquim Caldeira Brant.1549 Só isso já seria motivo para
fortes desavenças entre ele e o cirurgião. Todavia, a natureza sodomítica da relação, que
resultou na enfermidade do escravo, provocou, como um agravante, um desdobramento
peculiar da situação. A intervenção do Tribunal do Santo Ofício se fez imprescindível.
Um aspecto relevante da relação senhor-escravo transparece nesse episódio, qual seja, a
ausência de privacidade individual do escravo em relação ao seu senhor, o que,
paradoxalmente, é possibilitado pelo teor privado da relação paternalista que os mantem
unidos. Como visto atrás, a constituição de uma noção individualizada e privada de
identidade corporal tem como fator precipitante o processo de privatização do ânus e de
todas as funções a ele ligadas (sejam excretoras ou sexuais), com a foraclusão de sua
função erótica ativa.1550 Porém, a violência sofrida por José, uma pessoa escravizada, fez
com que a sua não autonomia sobre seu próprio corpo fosse salientada no que ela teria de
mais privado, o seu ânus, sua analidade. Na medida em que o senhor e seu agregado
puderam examinar o órgão de José e ali ler as marcas físicas do estupro, a sua condição
de pessoa particular foi posta em xeque. Reforçando a despossessão do seu corpo pelo
escravo, Douglas Libby relembra que o escravismo moderno buscava suas raízes jurídicas
1549
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 9.
1550
A ideia de que a privatização do ânus é o modelo para a construção da identidade pessoal foi
desenvolvida por Gilles Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo, que a utilizam para demonstrar como a
suposta construção do Eu a partir do Édipo, pensada por Freud, só é possível a partir de um desinvestimento
primário do ânus. Colocado em uma dimensão diacrônica, as identidades edipizadas se revelam típicas do
capitalismo, perdendo sua universalidade, “Eis por que os comentadores mais favoráveis à universalidade
do Édipo reconhecem, no entanto, que se encontram nas sociedades primitivas os mecanismos ou atitudes
que o efetuam na nossa sociedade. Nenhum superego, nenhuma culpabilidade. Nenhuma identificação de
um eu específico com pessoas globais – mas identificações sempre parciais e de grupo, segundo a série
compacta e aglutinada dos antepassados, segundo a série fragmentada dos camaradas ou dos primos.
Nenhuma analidade – se bem que haja, porque há o ânus investido coletivamente. Então, o que resta para
fazer Édipo? A estrutura, isto é, uma virtualidade não efetuada? Será preciso acreditar que Édipo universal
assombra todas as sociedades, mas exatamente como o capitalismo as assombra, isto é, como o pesadelo
ou o angustiado pressentimento do que seria a decodificação dos fluxos e o desinvestimento coletivo dos
órgãos, o devir-abstrato dos fluxos de desejo e o devir-privado dos órgãos?”. DELEUZE; GUATTARI. O
Anti-Édipo, p. 191. Segundo Javier Sáez e Sejo Carrascosa, trata-se, nesta passagem de Deleuze e Guattari,
de uma descrição da criação político-arquitetônica do corpo: “Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como
modelo para a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a ser colocado fora do campo
social e, assim, tem-se um desinvestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas, centros
individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos e discerníveis. O ânus já não é mais investido
coletivamente, mas desinvestido e privado”. SÁEZ; CARRASCOSA. Pelo cu, p. 13.
641
no direito romano, segundo o qual o senhor tinha total autoridade sobre o todo de sua
propriedade cativa, de modo que, na prática, “[...] tais relações envolviam, pelo menos
potencialmente, todos os aspectos da vida cotidiana de ambas as partes: cativos, senhores,
familiares e eventuais agregados”.1551
Vale lembrar que Silvia Lara ponderou como a experiência escrava acontecia em
uma relação ambígua com o público e o privado. As pessoas escravizadas eram temidas
pelos senhores e pela administração colonial, porém os interesses específicos de cada
setor distinguiam as medidas que cada um poderia tomar para manter a dominação
escravista, do que decorreram rusgas entre senhores e funcionários régios. Por outro lado,
as pessoas escravizadas poderiam traçar suas estratégias de resistência visando às
dimensões públicas (acionando as instituições da administração colonial ou da Igreja) ou
privadas (negociando e atuando diretamente em relação aos senhores). Diante da frágil e
incompleta dualidade do público e do privado na colônia,1552 os escravos jogaram com
essas ambiguidades, explorando as rivalidades senhoriais e as tensões com as grandes
instituições de poder para atingir seus objetivos.1553 Teria também o mulatinho José tido
a sagacidade de explorar as tensões senhoriais que envolviam seu algoz sodomita e seus
senhores?
1551
LIBBY, Douglas Cole. Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Américas, p. 32.
1552
NOVAIS. Condições de privacidade na colônia, p. 13-39.
1553
Nas palavras da historiadora: “Desse modo, podemos ter duas leituras diferentes e complementares para
aquela afirmação inicial. Primeiramente, o escravo era ao mesmo tempo um inimigo doméstico e público,
porque estas duas instâncias tinham objetivos divergentes em relação ao controle dos cativos, ainda que
pudessem estar associadas em momentos e circunstâncias específicas. Por outro lado, era ao mesmo tempo
inimigo doméstico e público, porque as ações de resistência escrava eram empreendidas nesses dois níveis:
tanto podia, na relação direta com seu senhor, recusar-se ao trabalho, fugir ou conseguir sua alforria, quanto
apelar para a instância judicial ou pública para questionar o poder de seu senhor ou conseguir sua liberdade.
Tanto num caso quanto noutro, podia ainda aproveitar-se dos conflitos existentes entre os senhores,
mediados ou não pela instância pública, selecionando forças, estratégias e alianças possíveis ou favoráveis
à consecução de seus próprios objetivos”. LARA. Campos de violência, p. 340.
642
[...] que com efeito fora ele testemunha ao rancho do cirurgião, e tanto que lá
apanhou a ele testemunha, o tentou [o cirurgião], oferecendo-lhe dádivas para
o capacitar a usar dele, e com efeito repugnando ele testemunha, o violentou e
cometeu com ele o pecado de sodomia, usando dele testemunha pela via
traseira.1554
Fica claro que a relação sodomítica foi forçada pelo cirurgião. José, não importa
por quais motivos, não queria tomar parte dela. É preciso, em seguida, averiguar se existia
qualquer forma de rivalidade entre o cirurgião Lucas da Costa Pereira e os potentados
locais. De saída, há que se ter em mente que, mesmo se a relação entre eles tivesse sido
sempre pacífica, a mera descoberta da prática sodomítica do cirurgião poderia ter
despertado o ódio e a intolerância dos chefes da região. Como foi visto acima, a sodomia
era compreendida como um pecado individual com consequências coletivas devastadoras,
capazes de desagregar o tecido da fábrica social. Assim, a mera ocorrência pública, isto
é, notória, da prática da sodomia nas vizinhanças dos potentados, ainda mais envolvendo
pessoas de suas casas, mesmo que escravos, poderia despertar sua intolerância em relação
ao sodomita. É preciso ter em mente, aqui, algumas características desses chefes locais
das Minas setecentistas, destacando como alguns significados de gênero da
masculinidade eram por eles performatizados em suas lides cotidianas, fosse na
mineração ou outras atividades econômicas, nas disputas políticas ou no trato com
clientes, dependentes, familiares, escravos e subalternos em geral.
1554
“[...] o que Com efei / to fora elle testemunha ao Rancho do cirurgiam / e tanto que la apanhou a elle
testemunha o tentou / offerecendo lhe dadiuidas para o capacitar a Usar / delle e Com effeito Repugnando
elle testemnha / o violentou e Commeteo com elle peCado de So / domia uzando delle testemunha pella uia
tra / zeira [...]”. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 10 frente.
1555
GONÇALVES. Império da fé, p. 28-9.
643
diante de terceiros, para construir uma fama pública e notória. 1556 É o que pudemos
verificar tanto em homens comuns que, em suas conversas cotidianas, defendiam seu
direito de fornicar sem intervenção dos padres ou a superioridade do estado conjugal
sobre o eclesiástico,1557 como em senhores de engenhos, mais ou menos poderosos, e até
mesmo em padres, que sodomizavam seus escravos, agregados, parentes, conhecidos e
clientes, como era o caso de Pero Garcia e do padre Antônio Lourenço Veloso, que
abordamos no capítulo anterior. O ser-homem, nas sociedades de Antigo Regime,
coloniais e escravistas da Época Moderna, exigia que a virilidade fosse performativizada
de forma pública, constante e exorbitante.
Quais são, pois, as características dos potentados locais descritas por Romeiro? A
primeira e mais óbvia é que eles constituíam polos de poder privado no âmbito local,
concorrendo com os interesses da Coroa, fazendo valer os seus, a mais das vezes, pela
violência.1561 A ferocidade das ações desses chefes políticos estava associada à
manutenção de valores como honra, valentia e virilidade, que estruturavam o universo
1556
ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 146-7.
1557
ROCHA. Masculinidades e Inquisição, p. 115-132.
1558
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas. Ideias, práticas e imaginário político
no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 164.
1559
SILVA, Célia Nonata. Sertão mestiço. Mandões e bandidos na capitania das Minas. Tese de Doutorado,
Universidade Federal de Minas Gerais (2004), apud ROMEIRO. Paulistas e emboabas no coração das
Minas, p. 170.
1560
Essa afirmação baseia-se no conceito de gênero articulado pela historiadora Joan W. Scott, conforme
trabalhado na Introdução. SCOTT. Gender: a useful category of historical analysis, p. 1067-8. Dessa forma,
pode-se dizer que as formações políticas descritas pela historiadora Adriana Romeira ao redor das
personagens dos potentados locais constituem relações de poder, as quais, reafirmando Scott, têm nas
relações de gênero destes mesmos potentados um dos seus modos primários de serem significadas. As
relações de gênero, pois, são um dos elementos de sentido presentes nas ações morais e políticas dos
potentados, em suas violências, revoltas e generosidades, nas suas guerras e nas suas vidas cotidianas.
1561
ROMEIRO. Paulistas e emboabas no coração das Minas, p. 146-7, 169.
644
político dos sertões das Minas setecentistas.1562 Todos esses valores compunham,
segundo nossa leitura, um padrão de masculinidade que se fazia acontecer, de modo
performativo, em ações como crimes ligados ao erotismo masculino (como no caso do
líder emboaba Amaral Gurgel, conhecido pela alcunha de “capador de homens”),1563 em
habilidades guerreiras acima da média, ou assim percebidas, em duelos (como no caso da
fama de guerreiro habilidoso cultivada por Manuel Nunes Viana na capitania da
Bahia),1564 e na aura de terror que acompanhava os potentados.1565
1562
ROMEIRO. Paulistas e emboabas no coração das Minas, p. 170.
1563
ROMEIRO. Paulistas e emboabas no coração das Minas, p.132.
1564
ROMEIRO. Paulistas e emboabas no coração das Minas, p. 158. Segundo Pedro Paulo de Oliveira, os
duelos entre homens nobres estavam associados, na Época Moderna, à honra masculina, sendo testes de
coragem e sangue-frio para os homens que deveriam defende-la, justificá-la ou prová-la. Participar de um
duelo era um distintivo de dignidade e reputação, sobretudo para o vencedor. Duelar afastava a pecha de
covarde, o que, para os homens guerreiros da transição entre a Idade Média e a Contemporaneidade, era o
pior insulto possível. OLIVEIRA. A construção social da masculinidade, p. 23-4.
1565
ROMEIRO. Paulistas e emboabas no coração das Minas, p. 168.
1566
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 9.
1567
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 11.
645
Fica, portanto, claro que havia linhas de tensões entre o cirurgião sodomita e os
potentados locais que eram seus vizinhos, um deles senhor do escravo que ele estuprou.
Outro fato que pode ter alimentado rusgas entre as personagens são as dívidas que os
capitães Joaquim e Felisberto tinham com Lucas da Costa Pereira. Segundo as
informações declaradas por ele no inventário que foi confeccionado em Lisboa (uma parte
de praxe de processos de sodomia, para que a Inquisição conhecesse os bens sequestrados
ao réu e que poderiam, em caso de condenação, ser confiscados),1569 quando de sua
chegada aos cárceres secretos do Santo Ofício, três capitães moradores da localidade de
Corgo Rico lhe eram devedores, sendo um deles (e o que tinha as maiores dívidas) o
capitão-mor Joaquim Caldeira Brant. As dívidas do capitão-mor Joaquim Caldeira Brant
totalizavam 450 oitavas de ouro e se referiam a curas feitas pelo cirurgião em seus
escravos e a uma caixa de remédios. Os outros devedores eram o capitão José Peres
Menezes e o capitão Domingos Alveres. Cada um devia 16 oitavas de ouro, referentes
também a curas feitas por Lucas da Costa Pereira em escravos.1570 Seguindo as indicações
da tabela de conversão de oitavas de ouro em réis, para Minas Gerais no período dos
eventos narrados no processo (final da década de 1740), apresentada por Eduardo França
1568
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 20 frente.
1569
O confisco dos bens dos sodomitas era uma das penas que comumente acompanhava a condenação
inquisitorial. Segundo o Regimento de 1640: “Toda pessoa que for culpada, e presa pelo crime de sodomia,
antes de vir confessar no S. Ofício, ou sendo leiga ou eclesiástica, secular ou regular, se estiver convencida
pela prova da justiça, ou pela confissão, que fez depois de presa, nos cárceres do S. Ofício, sendo exercente
(o que se entenderá, se ao menos confessar, ou contra ela se provar, dois atos consumados) será relaxada à
justiça secular, e seus bens serão confiscados [...]”. Revista Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro, 157 (392): 693-883, jul./set. 1996, p. 873. Tal pena estava prevista também nas Ordenações
Filipinas, no título 13, Dos que cometem pecado de sodomia, e com alimárias, do Livro 5, “Toda pessoa,
de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia per qualquer maneira commetter seja queimado, e
feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos seus bens sejam
confiscados para a Corôa de nossos Reinos [...]”. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1162.htm. Último acesso em out.2020.
1570
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 25-6.
646
Assim, se a dívida em si não era algo inusitado, o seu valor era significativo o
suficiente para que o capitão-mor talvez não hesitasse em recorrer a um expediente,
outrossim legítimo segundo as Ordenações do Reino, para prender seu credor e escapar
totalmente ao pagamento. Uma outra questão é se o escravo José, um mulatinho de
quatorze anos, saberia dos detalhes da dívida e, se soubesse, teria manipulado os
potentados a agir contra seu algoz? O mais provável é que, existindo todas essas rusgas e
tensões entre as partes, a constatação pública da sodomia consumada pelo cirurgião sobre
o corpo do escravo tenha funcionado como um estopim (na medida em que dizia de um
crime gravíssimo e abominável que ameaçava a coletividade) para a ação violenta e rápida
1571
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. Estratégias de
resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995, p. 226.
1572
Para fazer essa afirmação, tomamos por base os valores das coartações, alforrias e arrestos levantados
pelo autor a partir de testamentos na comarca do Rio das Velhas, tentando nos ater aos valores dos anos
finais da década de 1740. A diferença de região nas Minas, contudo, provavelmente implicaria alguma
variação no valor da conversão mais exata. PAIVA. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII,
p. 216-225.
1573
PAIVA. Escravidão e universo cultural na colônia, p. 92.
1574
Destacamos o seguinte trecho da autora: “As relações entre os oficiais da cura e seus clientes nem
sempre foram harmônicas. Aqueles, às vezes, se viam envolvidos em contendas com os responsáveis pela
administração da herança dos defuntos. Era ‘costume no país’ o contrato de serviços de cura para pagamento
a prazo. Os atendimentos esporádicos ou a prestação de serviços de cura por cirurgiões assalariados,
também estavam entre os costumes da terra. Curas e medicamentos eram cobrados, muitas vezes, anos após
o falecimento daquele que os havia contratado. As dívidas eram muitas vezes contraídas através do
empenho da palavra pelo contratante e valia como qualquer crédito devidamente assinado. Em alguns casos,
após o falecimento do contratante dos serviços, seus herdeiros ou o administrador da herança se negavam
a resgatar a dívida assumida pelo defunto”. ALMEIDA, Carla Berenice Starling. Medicina Mestiça. Saberes
e práticas curativas nas minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 2010, p. 133.
647
dos potentados. Cumpre ressaltar o teor público da constatação como fator determinante,
pois não era tampouco segredo que Lucas da Costa Pereira era useiro e vezeiro na prática
sodomítica – até mesmo com outros escravos destes mesmos senhores.1575 Ao mesmo
tempo, a maior gravidade das marcas deixadas pelo estupro no corpo do escravo José,
que o deixaram enfermo e, é provável, incapaz de cumprir suas tarefas, ao menos tão bem
quanto antes, pode ter sido sentida pelos senhores como uma afronta à sua propriedade,
demandando que o cirurgião fosse responsabilizado.
Um último ponto em relação ao escravo José precisa ser considerado, o qual serve
de ponte entre a primeira e a segunda fases do processo (transitando entre Paracatu e
Lisboa). Trata-se da razão pela qual o escravo não foi também preso e enviado para o
Santo Ofício no Reino. Alguns motivos se unem para explicar esse fato. O mais
preponderante talvez seja que o Regimento da Inquisição previa que não procederiam as
condenações juridicamente previstas a esse crime aos que fossem menores de vinte anos,
conforme explicou o historiador Alex Silva Monteiro.1576 Do ponto de vista inquisitorial,
pois, o limiar da infância, após o qual a pessoa poderia ser considerada adulta, era a idade
de discrição, quando ela tivesse capacidade de discernimento. Discrição tinha dois
sentidos. Um, ligado à civilidade, ao saber se portar na sociedade de Antigo Regime,
saber calcular e julgar seus atos e suas palavras antecipadamente, conforme o que era
considerado adequado ao público naquele contexto. O outro sentido, do ser discreto, no
século XVI, “implicava saber o que importava para a salvação da alma”.1577 A inabilidade
dos menores de serem penalizados pelo Santo Ofício concorda com o estatuto jurídico
das pessoas menores de idade na sociedade de Antigo Regime portuguesa, conforme
explicado por Hespanha.1578 No período, é verdade, como mostrou Ariès, inexistia um
sentimento de infância consolidado, especialmente no tocante a escravos, que, ainda mais
cedo que suas contrapartes livres, se misturavam ao mundo do trabalho adulto. Porém,
isso não implicava uma inserção plena nesse universo, com todos os direitos e
responsabilidades.1579 Aliás, como Hespanha argumentou, a figura da criança servia como
1575
Todos os testemunhos da primeira fase do processo, aquela conduzida pelo vigário-geral interino ainda
em Paracatu, afirmam que era pública e notória a fama de sodomita do réu, com vários escravos, pelos
matos, em todos os lugares em que morara. DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl.
8-22.
1576
MONTEIRO. O pecado dos anjos: a infância na Inquisição portuguesa, séculos XVI e XVII, p. 227.
1577
MONTEIRO. O pecado dos anjos: a infância na Inquisição portuguesa, séculos XVI e XVII, p. 228.
1578
Segundo Hespanha, de um ponto de vista jurídico, as crianças, sob o Antigo Regime, eram encaradas
como pessoas desprovidas de plena capacidade de agir de acordo com a razão humana. Por esse motivo,
elas eram consideradas incapazes de praticar atos jurídicos. HESPANHA. Imbecillitas, p. 69-70.
1579
ARIÈS. História social da criança e da família, p. 156-158.
648
O mesmo não aconteceu com sua contraparte, o cirurgião, sobre quem temos mais
o que dizer. É necessário, pois, aprofundar as experiências homoeróticas do réu Lucas da
Costa Pereira para além de seu encontro com o escravo José. As informações sobre a vida
pregressa do cirurgião constam de suas sessões de interrogatório na Inquisição de Lisboa,
onde ele, talvez por eficiente estratégia, talvez para desencarregar suas culpas (ou ambos),
forneceu relatos detalhados de sua vida aos inquisidores. Nessas sessões de interrogatório,
mais detalhes apareceram sobre a personagem, permitindo a composição de um perfil
mais nítido.
1580
HESPANHA. Imbecillitas, p. 70.
1581
Silvia Lara relata vários casos de senhores que escondiam seus escravos delinquentes da ação de justiça
de funcionários coloniais por essa razão, não ter o prejuízo da perda do patrimônio corporificado no escravo.
LARA. Campos de violência, p. 237-246.
1582
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 28.
649
Os relatos mais antigos fornecidos pela personagem são dos atos de sodomia
consumada (isto é, uma penetração anal com efusão interna de sêmen realizada entre dois
homens), ainda em sua juventude, na cidade de Funchal, na Ilha da Madeira. Com 16
anos, pouco mais ou menos, Lucas da Costa Pereira cometeu a sodomia com o padre Frei
Miguel, na cela deste, no convento dos carmelitas da cidade, e com o padre Pedro de
Miranda, sacerdote da Ordem de São Pedro (com este último, o encontro se repetiu três
ou quatro vezes).1583 Nessas cópulas sodomíticas juvenis, o réu começava a ensaiar o
estilo de prática sexual que repetiria ao longo da vida, variação de parceiros e
desempenho, sempre (exceto, de acordo com sua narrativa, em uma ocasião), do papel de
agente, isto é, de penetrador, no ato sexual.
Após essas sodomias de juventude, a confissão do réu pula para vinte e seis anos
antes (quando ele teria em torno de vinte e oito anos, logo, um homem adulto),
encontrando-se já embrenhado nos sertões da América portuguesa, em uma fazenda na
região de Barra do Rio Grande, bispado de Pernambuco, às margens do São Francisco.1584
Ali, Lucas da Costa Pereira tornou a cometer um ato de sodomia consumada com o padre
Frei Manoel Castelo Branco, da ordem do Carmo, supostamente filho dos Condes de
Pombeiro.1585 Nessa única ocasião, o réu foi também paciente no ato sodomítico, o que
enseja a questão do possível peso da hierarquia social na definição dos papeis sexuais
entre sodomitas no Antigo Regime. Como mostrou Verônica de Jesus Gomes e como
analisamos no capítulo anterior, nem sempre a hierarquia social se traduzia em hierarquia
sexual, no sentido Penetrador > Penetrado, pois o que poderia ser mais preponderante
eram as preferências sexuais específicas daquele que detinha maior poder, ditando,
1583
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 28-9.
1584
Cruzando os dados da confissão do réu com as informações presentes no Atlas Histórico da América
lusa, acreditamos que a fazenda mencionada se localizava na região da localidade de São Francisco das
Chagas da Barra do Rio Grande, que se tornou vila em 1752. Trata-se de um povoado às margens do rio
São Francisco, o que concorda com os passos seguintes das andanças do cirurgião sodomita. GIL; et al.
Atlas histórico da América lusa, p. 8-9.
1585
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 29-30.
650
Disse mais que, andando ele, confitente, pelos sertões da América, onde
continuamente mudava de sítio e habitação, por ser chamado de diferentes
terras e freguesias por ocasião da sua arte de cirurgia, acudindo aos lugares a
que era chamado, por outras muitas vezes, com diferentes pessoas, de cujos
nomes nem habitação certa se pode lembrar, teve, em diferentes ocasiões, os
mesmos atos de Sodomia Consumada, na mesma forma sobredita. E só se
lembra eu todas estas pessoas eram sempre os escravos de diferentes senhores,
que das suas terras tinham vindo há pouco tempo para os ditos lugares. E
cometeu o dito nefando pecado, sendo sempre agente e os ditos escravos
pacientes.1589
1586
Estudando relações homoeróticas entre padres no Império português no mesmo período, a autora
afirmou que: “É válido assinalar que houve casos em que o padre foi passivo de um indivíduo que tinha
uma graduação inferior na hierarquia eclesiástica, caso da relação entre os Freis Mathias dos Prazeres Gayo
e José de Jesus Maria. Gayo foi ativo na relação, por instância do segundo que, na época, era seu superior,
o que parece indicar que não importa quem foi passivo ou ativo, mas sim a relação de poder e de
subserviência intrínseca à questão, isto é, a autoridade de quem mandava e a sujeição de quem obedecia”.
GOMES. Atos nefandos, p. 174.
1587
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 36.
1588
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 31-2.
1589
“[...] DeSse Mais que andan / do elle confitente pelos sertões da / América donde continuamente /
mudava de sitio e habitaçaó por ser / chamado de diferentes terras e fre / guezias por ocaziaó da sua arte de
/ cirurgia acudindo aos lugares / a que era chamado por outras muitas / vezes com deferentes peSsoas de
cujos / nomes nem habitaçaó certa se po / de lembrar teve em diferentes oca / zioens os mesmos actos de
Sodomia / ConSumada na mesma forma Sobre / dita e Só se lembra que todas estas pe / çoas eraó sempre
dos escrauos de diferen / tes Senhores que das Suas terras tinhaó / vindo de pouco tempo para os ditos lu //
Lugares e cometeo o dito Nefando pecado / sendo sempre agente e os ditos escra / vos pacientes [...]”
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 32.
651
são as andanças que ele realizou. Em seus depoimentos, ele afirma ter percorrido os
sertões da América meridional, detalhando locais como as cidades da Bahia, do Rio de
Janeiro e de São Paulo, as vilas de Moratim de Tá, Pindamonhangaba, Taubaté, Marau, e
os arraiais e aldeias de São Romão, Barra do Rio Grande, Rio das Contas, Jacobina, Rio
das Mortes e Campanha do Rio Verde.1590 Ainda que não se possa afirmar quando, como
e por qual porto o réu penetrou na América, vindo da Ilha da Madeira, é possível dizer
que ele percorreu boa parte dos caminhos que conectavam as várias regiões da colônia.
1590
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 37 frente.
1591
Segundo Caio Prado Jr.: “Esta linha de comunicações, a mais importante do sertão do Nordeste, é
particularmente notável na história colonial. Por aí, os primeiros sertanistas e suas fazendas de gado, vindos
da Bahia e do São Francisco, penetraram o Piauí no séc. XVII e colonizaram o seu território. Transitaria
por ela, em seguida, a maior parte do gado consumido no Recôncavo baiano”. PRADO JR, Caio. Formação
do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 241.
1592
Segundo Sérgio Buarque de Holanda: “Logo que chegaram a todo o Brasil novas das minas descobertas
pelos paulistas, grandes levas de homens entraram a subir o São Francisco, caminho geral para as povoações
da Bahia, Pernambuco, Maranhão, tanto da marinha, como dos recôncavos e sertões, estabelecendo
comunicação assídua com os seus currais”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. (Org.). História geral da civilização brasileira. Tomo I A época colonial.
Vol. 2 Administração, economia, sociedade. Rio de Janeiro; São Paulo: DIFEL, 1977, p. 278.
1593
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 31 frente.
1594
De acordo com Caio Prado Jr., o caminho de São Paulo era marcado por dois escalões, o da Serra do
Mar, que conectava o planalto ao litoral, e o da Serra da Mantiqueira, que conduzia de São Paulo às Minas.
Não há indicação que Lucas Pereira tenha estado no litoral paulista, todavia, é certo que ele realizou a
travessia da Mantiqueira. PRADO JR. Formação do Brasil contemporâneo, p. 243-4.
652
afirma ter estado na cidade do Rio de Janeiro, o que poderia indicar que ele atravessou o
Caminho Novo, porém, sem haver citações de outras localidades, não há como ter certeza.
Em todo caso, é certo que ele esteve no Rio de Janeiro já preso, pois foi de lá embarcado
para Lisboa, como consta na carta inicial do vigário-geral interino que abre seu
processo.1595
Percebe-se que o réu levou uma vida nômade ou seminômade após sair de sua
terra natal. Como ele próprio alegou, no trecho acima destacado, uma razão para esse
modo de vida era o seu ofício de cirurgião. Essa também é a interpretação dada pela
historiadora Carla de Almeida para explicar a intensa mobilidade física dos médicos
durante o século XVIII nas Gerais. A historiadora vai além e mostra que foi a mobilidade
o fator que permitiu que esses oficiais curativos aprimorassem seu saber e suas técnicas,
reunindo e misturando elementos de tradições farmacopeias díspares, como a europeia, a
africana e a indiana-oriental, agindo também para a divulgação de saberes e práticas
curativas até então desconhecidas na região.1596 Ainda que Lucas Pereira não tenha
viajado para locais distantes, como partes de África ou das Índias Orientais, sabe-se que
ele possuía exemplares de livros de médicos que fizeram tais viagens e empreenderam
tais misturas. Em seu inventário, citam-se dois livros de cirurgia, um, sem título, de autor
chamado João Vigier e outro que era o Erário Mineral, escrito por Luís Gomes Ferreira,
que foi uma das obras médicas de uso mais generalizado no Brasil colonial do século
XVIII.1597 A apropriação dos saberes contidos nestes livros estava, pois, no raio de
possibilidades do réu.
1595
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 5 frente.
1596
Nas palavras da autora: “A intensa mobilidade física representada pelas idas e vindas, entre Portugal,
Índia e Brasil, permitiu ao cirurgião apreender as práticas curativas utilizadas em outras terras e os
elementos da farmacopeia aplicada nessas partes do mundo que pouco a pouco comporiam o erário”. O
cirurgião referido pela autora é Luís Gomes Ferreira, autor do Erário Mineral. “Esses exemplos evidenciam
a mobilidade geográfica dos físicos e demais oficiais da cura e as possibilidades de ampliação e divulgação
dos saberes e das práticas curativas intermediadas pelos oficiais da cura nas “Minas do Poente” e nas terras
que estavam sob a jurisdição da comarca do Rio das Velhas, ainda região das minas gerais. Embora fossem
escassos os médicos no Brasil durante o Setecentos e nos séculos anteriores, não faltavam aqueles que
exerciam os ofícios da cura de forma legal. Brancos portugueses, brancos nascidos no Brasil, negros e
mestiços biológicos se tornaram legalmente cirurgiões, boticários, sangradores, parteiras ou tira-dentes nas
Minas setecentistas”. ALMEIDA. Medicina Mestiça, p. 31-2.
1597
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 25 frente. O Erário Mineral foi
republicado modernamente em edição comentada organizada pela historiadora Júnia Ferreira Furtado,
dispondo de cinco estudos críticos compostos por Júnia Furtado, Eliane Scotti Muzzi, Maria Odila Leite da
Silva Dias, Maria Cristina Cortez Wissenbach e Ronaldo Simões Coelho, que nos permitem entender o
texto em seu contexto histórico. FURTADO, Júnia Ferreira, org., FERREIRA, Luís Gomes. Erário mineral
[online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 821 p. Mineiriana collection. Clássicos series. ISBN 85-
85930-41-1. Vol. 1 e 2. Sobre a ciência produzida na América portuguesa no século XVIII e,
especificamente, sobre a influência do Erário Mineral na formação de médicos e cirurgiões na colônia, ver:
653
A mobilidade física foi uma característica marcante dos povos das Minas desde o
início do seu povoamento, provocando preocupações constantes das autoridades coloniais
a este respeito.1598 Tão intensa mobilidade era identificada a um risco de desordenamento
da sociedade, de subversão das hierarquias sociais, o que, nas Minas tinha ainda o
agravante de poder prejudicar a tributação dos quintos reais.1599 Assim, de um lado, a vida
seminômade do cirurgião não o diferenciava tanto de uma multidão de homens livres
pobres que circulavam pela capitania, compondo um grupo social instável e ambíguo, nas
palavras de Laura de Mello e Souza, “[...] sempre prestes a se tornarem desocupados,
habituados ao biscate e à incerteza de um eterno ser e não ser”. 1600 Por outro, sua prática
erótica, ao ser modelada pelos discursos e poderes do dispositivo da carne como uma
dissidência necessariamente clandestina, contribuía para a adoção do modo de vida quase
nômade. Não se sedentarizando por muito tempo em nenhuma paragem, Lucas da Costa
tinha melhores oportunidades para continuar experimentando a sodomia como um
segredo, que o tornava um dissidente da ordem dita natural pretendida por instituições
como a Igreja e a Coroa, e, simultaneamente, como mecanismo para reificar, no nível das
FILGUEIRAS, Carlos A. L. Havia alguma ciência no Brasil setecentista? Química Nova, São Paulo, v. 21,
n. 3, p. 351-353, jum. 1998.
1598
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017, p. 121-183.
1599
“A desordem era perigosa ao governo dos povos, inda mais a milhas de distância do centro de poder.
Nas Minas, era também um entrave à tributação, e Portugal logo percebeu a necessidade de enquadrar a
capitania a fim de que o ouro e as gemas fluíssem melhor para os cofres do rei”. SOUZA. Norma e conflito,
p. 85.
1600
SOUZA. Desclassificados do ouro, p. 10.
654
1601
REIS. Crimes e escravos na capitania de todos os negros, p. 16.
1602
ALMEIDA, Angela Mendes de. O gosto do pecado. Casamento e sexualidade nos manuais de
confessores dos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Rooco, 1992, p. 55-7.
1603
SOUZA. Desclassificados do ouro, p. 24-5.
1604
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 30.
655
redução no patrimônio do réu pode ser associada às suas constantes mudanças de local de
moradia, feitas, às vezes, às pressas, para fugir à perseguição do Estado e da Inquisição à
sodomia ou às violências populares, que desejavam linchá-lo.1605 Temendo por sua
liberdade, sua segurança e sua vida, Lucas da Costa Pereira pode ter sido obrigado a se
desfazer de parte de seu patrimônio, para financiar os deslocamentos repetidos. Contudo,
há que se destacar que, no momento de sua prisão, o réu não tinha uma situação
econômica desesperadora, uma vez que constam de seu inventário, além de vários itens
específicos ao seu ofício de cirurgião, uma pequena criação de galinhas e de mandioca,
que ele provavelmente explorava para sua subsistência.1606 Ao final do processo, como
se verá a seguir, sua situação econômica terá declinado sensivelmente.
1605
Ver os testemunhos de Cipriano Antunes Vieira e de Luís de Souza e Silva na fase inicial do processo.
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 8 f; 12 f.
1606
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 25 f.
1607
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 53.
656
A sentença do réu foi cumprida, após confirmação pelo Conselho Geral no estilo
do regimento de 1640, no dia 24 de setembro de 1747, em auto de fé realizado na igreja
do Convento de São Domingos em Lisboa. Na mesma ocasião, Lucas da Costa Pereira
recebeu os açoites a que foi condenado.1608 No dia seguinte, conforme o termo de segredo,
foi enviado para o cumprimento de seu degredo.1609 A última fase do processo apresenta
um salto temporal de oito anos, revelando as consequências da desclassificação social
associada à sodomia para a subjetividade do antigo cirurgião. Trata-se de uma petição
para comutação da pena de trabalhos forçados, justificada pelo procurador do réu nos
seguintes termos:
[...] Diz Lucas da Costa Pereira, que ele, suplicante, foi sentenciado por este
Santo Tribunal, pelas suas enormes culpas, no auto público, que se celebrou
no Convento de São Domingos em 24 de setembro do ano de 1747, a dez anos
para as galés, onde está, que vai correndo para 8 anos, e dois de prisão em
cadeias e cárceres. E, como se vê com setenta anos de idade, falto de talento
para poder resistir a este rigoroso purgatório. E, como no dito ano, vieram sete
e destes só ele pobre e miserável, se ata de que Pede a Vossas Senhorias, pela
morte e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, lhe queiram perdoar o tempo que
lhe falta, de que rogará a Deus pela vida e saúde de Vossas Senhorias.1610
1608
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 59 f.
1609
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 60 f, 61 f.
1610
“[...] Diz Lucas Da Costa Pereira que elle suplicante Fuj sentenciado / por heste Santo Tribunal pellas
suas Inormer Culpas em / o auto publico que se selebrou, no Comvento de São Doming / os em 24 de 7bro
no anno 1747 a dez annos para Gallez / onde esta, que vaj Correndo para 8 annos, e doiz de prizam / em
Cadeijas, e Cateres, e Como se ve Com setenta annos de / idade Falto de talento para poder Rezestjr a Este
Riguro / zo progatorio, e Como no djto anno viheram sette e de / ttes so elle pobre, e mizeravel se ata de
que / Pede A Vossas Senhorias pella morte e pajxám de no / Sso Senhor Jezus Cristo lhe quejram pe / rduar
o tempo que lhe Falta, de que Rogara / a Deus pella vida, e Saude de Vossas Senhorias”. DGA/TT – Lisboa,
Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 65 f.
657
primeiro lugar, por suas respostas ao interrogatório para obtenção de sua genealogia,
sabemos que o réu teve uma formação cristã completa para uma pessoa leiga. Foi batizado
na igreja da Sé da cidade de Funchal, na Ilha da Madeira e, mais tarde, crismado na vila
do Cairu, no arcebispado da Bahia. Para além disso, alegou que cumpria suas obrigações
cristãs públicas e formais, como ir às igrejas assistir missas e, principalmente, se confessar
e comungar, ainda que não conseguisse provar um conhecimento pleno das orações e dos
mandamentos da Igreja, esquecendo-se de alguns dele.1611 Infelizmente, diferente do que
soubemos em relação a Rodrigo, não temos informação sobre a intensidade com que
Lucas Pereira se dedicava ao exercício da confissão, menos ainda sobre seus sentimentos
sobre essa atividade. Somente o que podemos inferir é que ele, talvez cumprindo apenas
a obrigação anual de confissão inteira na quaresma, estava familiarizado à doutrina
católica sobre esse sacramento e com a tarefa de introspecção que ele exigia para ser
realizado a contento, sendo, ao longo de sua vida, disciplinado, de modo talvez
fragmentário, nos termos do dispositivo da carne. Assim, o cirurgião sabia que era
necessário confessar e demonstrar real arrependimento para ser perdoado, o que,
satisfeitas essas duas condições, a Igreja faria. De modo que o perdão exigia o
reconhecimento de si como culpado, o que só poderia acontecer por meio da produção de
um discurso de verdade a respeito de si mesmo, o qual buscasse, nos arcanos de seu
coração (conforme estabelecia o discurso da carne), a verdade de suas culpas, que só
poderia ser encontrada no reconhecimento de sua vontade concupiscente, da fragilidade
de sua carne.
1611
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 71-2.
1612
DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 64.
658
Como vimos em vários momentos nesta tese, o arrependimento era uma condição,
ao mesmo tempo espiritual e jurídica, que os inquisidores buscavam manufaturar,
estimular e comprovar a partir dos sinais emitidos por cada réu ao longo de seu processo.
O sinal principal era a produção de uma confissão que fosse considerada boa, para o que
os critérios eram ser longa, dizer dos pecados e crimes de si e de outrem (a confissão
precisava ser também uma delação) e a mais espontânea possível (por isso, era importante
que fosse feita cedo no tempo do processo, antes que as admoestações dos juízes se
acumulassem nos autos). Se o réu emitisse, de modo subsidiário, sinais físicos
complementares (como lágrimas, gritos, tremores corporais) tanto melhor, ainda mais se
se tratasse de uma cerimônia pública, como os autos da fé. No texto do processo de Lucas
da Costa Pereira, não há registros de sinais como esses, porém, suas longas confissões
cumpriram o papel de indicar aos inquisidores que ele estava se sujeitando às
interpelações que faziam.
Perguntado se cuidou em suas culpas, como nessa mesa lhe foi mandado, e se
tem mais algumas que confessar para descargo de sua consciência e salvação
de sua alma. Disse que sim, cuidara. E que não tinha mais culpas para
confessar. Perguntado se sabe ele réu que todo cristão é obrigado a guardar os
preceitos divinos, os quais se contêm nos mandamentos de Sua Santíssima Lei,
e que peca gravemente todo aquele que os quebranta. Disse que muito bem
sabe o que se contém na pergunta. Perguntado se sabe ele réu que, no sexto
mandamento da Lei de Deus, se proíbe toda a espécie de luxúria, e que uma
delas é o abominável pecado da sodomia. Disse que muito bem sabe e conhece
tudo o que se contém na pergunta. Perguntado se sabe ele réu que o nefando
pecado da sodomia e as pessoas que o cometem sempre foram castigadas por
Lei natural, divina e humana com gravíssimas penas, por ser um dos mais
enormes e abomináveis e de a Majestade Divina mais se ofende? Disse que
sabe e conhece muito bem tudo o que se contém na pergunta. Mas que por
miséria, cegueira e fragilidade sua, não fazia a devida reflexão no mal que
obrava, levado somente de seu torpe apetite.1613 (Grifos nossos).
1613
"Perguntado Se cuidou em su / as culpas como nesta Meza / lhe foy mandado e se tem ma // Mais
algumas que confeçar / para descargo de sua conciencia / e Salvaçaõ de Sua alma. / DiSse que sim cuidara
/ e que naó tinha mais cul / pas que confeçar. / Perguntado se sabe elle / Reo que todo o christaõ he obri /
gado a guardar os preceitos di / nivos os quaes se Conthem nos / Mandamentos de Sua Santi / sima ley, e
que peca grave men / te todo aquelle que os quebran / ta. /DiSse que muito bem Sabe / o que se conthem
na pergun / ta. / Perguntado se sabe elle Reo / que no Sexto mandamento da / Ley de Deos se prohibe toda
/ a especie de luxuria, e que // e que huã dellas he o abomina / vel pecado da Sodumia. / DiSse que muito
bem sabe / e conhice tudo o que se conthem / na pergunta / Perguntado se sabe elle / Reo que o nefando
pecado da / Sodumia, e as peçoas que o come / tem sempre foraõ castigadas / por Ley natural, divina e
huma / na com gravicimas penas por / ser hu dos mais Enormes e abo / minaveis, e de que a Magestade /
divina mais se ofende? / DiSse que sabe e conhece / muito bem tudo o que se conthem / na pergunta. Mas
659
A culpa afetada pelo cirurgião devido aos seus atos de sodomia se faz evidente em
suas respostas ao exame inquisitorial. Como mostrou Foucault, o exame é uma técnica de
controle normalizante, uma forma de vigilância cujo fim é qualificar, classificar e
punir.1614 Em que sentido o exame inquisitorial realiza esses objetivos? Quem são os
sujeitos que ele qualifica, classifica e pune? Ou seja, normaliza? Trata-se dos sujeitos
cristãos, penitentes, pecadores. Também os sujeitos reconhecidos como hereges,
judaizantes, bruxas ou sodomitas. Assim, o exame inquisitorial era uma técnica para
dividir o rebanho cristão entre os penitentes arrependidos e os convictos, diminutos ou
devassos em seus crimes e pecados. Como um exame, estava em jogo, nessa sessão, uma
medição e uma sanção.1615 O que estava sendo medido? A adesão do réu à verdade cristã,
o quanto ele interorizara essa verdade, a tornara constitutiva de sua subjetividade. O que
estava sendo sancionado? A forma como cada réu se sujeitava às normativas do
dispositivo, recebendo prêmios se se sujeitasse como pecador humilhado (a misericórdia)
ou castigos, se contestasse as acusações (verdades) do tribunal (condenações mais
severas, por ser classificado como negativo ou convicto no seu crime).
que por / mizeria Segueira e fragili /dade Sua naó fazia a devida / Reflexaõ no mal que obrava / Levado
somente de seo torpe / apetite". DGA/TT – Lisboa, Inquisição de Lisboa, processo 00205, fl. 78-9.
1614
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 177.
1615
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 178.
1616
FOUCAULT. Histoire de la sexualité 4, p. 325-361.
660
poderia ocorrer na ausência da razão, o réu assume que "não fazia a devida reflexão". Tal
reflexão significava apegar-se à lei divina e natural, apresentada pelo inquisidor como
"sempre" tendo perseguido o nefando, o que era mais uma forma de retomar o enunciado
que fornecia um conteúdo homoerótico e anal ao pecado dos cidadãos de Sodoma,
punidos por Deus em um tempo mítico.
pois várias foram não só consensuais, como afetivas, podendo se estender ou não no
tempo.1617
1617
Para tanto, basta ver a bibliografia clássica de autores, tais como Luiz Mott e Ronaldo Vainfas,
amplamente utilizada e citada nesta tese.
1618
VAINFAS. Sodomia, amor e violência nas Minas Setecentistas, p. 526. Entre os casos de sodomitas
nas Minas do século XVIII citados pelo autor, está o do cirurgião Lucas da Costa Pereira, que mereceu
alguns comentários breves, mas não uma análise pormenorizada do seu processo.
662
1619
VAINFAS. Trópico dos Pecados, p. 170-176; CARVALHO, Joaquim Ramos de. As sexualidades.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa:
Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, p. 127-128.
663
Considerações finais
O propósito desta tese foi realizar o que denominamos uma genealogia queer da
sodomia e dos sodomitas, categorias concebidas como formas de identificação, controle
e repressão daquelas pessoas cujas práticas eróticas se davam fora da estreita faixa do
erotismo sancionado pela Igreja Católica. Esse projeto genealógico com um viés queer
tinha o fim último de formular questões a respeito do que é ser gay hoje, praticante do
que outrora foi o pecado nefando de sodomia, revelando-se como um exercício de história
do presente, no sentido de conformar um instrumento crítico catalisador de práticas de
liberdade na contemporaneidade.1620 A abordagem genealógica sobre a sodomia abre para
o questionamento sobre as relações histórico-temporais entre o gay que somos e o
sodomita de outrora, entre a nossa espécie sexual e o pecado/crime cuja culpa marcava
os modos de subjetivação daqueles interpelados, por poderes como o Santo Ofício, como
sodomitas.1621 Diante da abissal descontinuidade histórica demonstrada entre nós e ele, é
possível pensar, como sugeriu Sedgwick, que algo da alteridade sodomítica permanece,
hoje, em nós? Talvez uma indicação de resposta se encontre na maneira como os
diferentes dispositivos que engendram cada categoria fundam-se, cada um à sua maneira,
em uma lógica binária da normalidade, ou, em outros termos, na dialética do interdito e
da transgressão.1622
1620
Para uma história do presente na perspectiva foucaultiana, ver: MCLAREN, Margareth A. Foucault,
feminismo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 48-60; PRADO FILHO, Kleber; LOBO, Lilia
Ferreira; LEMOS, Flávia Cristina Silveira. A história do presente em Foucault e as lutas sociais. Fractal,
Rev. Psicol., Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 29-42, jan. / abr. 2014. Para a liberdade concebida como prática
em Foucault, ver FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade (1984). In:
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Volume V: ética, sexualidade, política. Organização, seleção de
textos e revisão técnica Manoel Barros da Motta; Trad. Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 3.
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 258-280.
1621
Trata-se também de um exercício de uma ontologia crítica de mim mesmo, conforme proposto por
Foucault e relembrado por Spargo: "É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente
como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso
concebê-la como uma atitude, um éthos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é
simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova sua ultrapassagem possível".
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Volume II,
Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Edição Manoel Barros da Motta; Trad.
Elisa Monteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p 351; SPARGO, Tamsin. Foucault e a
teoria queer. Seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares. Trad. Heci Regina Candiani; posfácio
Richard Miskolci. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017, p. 51. (Argos, 2)
1622
"As duas concepções, religiosa e médico-jurídica, em que pese as disputas entre ambas, traziam algo
em comum: binárias, viam de um lado a pureza/normalidade e, de outro, o pecado/anormalidade, gerando
uma interpretação/explicação do mundo baseada na saúde (da alma e do corpo-mente) experimentada por
aqueles/aquelas devidamente normalizados, ou seja, cuja correspondência quanto ao sexo, desejo e
representação social se desse, e na doença (da alma e do corpo-mente) verificada no desvio da norma. O
desvio ̶ outros caminhos trilhados pelos sujeitos ̶ eram, assim, algo ruim, a ser objeto de penitência ou de
665
Por essas razões, a sodomia, em um projeto genealógico, não pode ser abordada
como que em si mesma, isto é, descolada das formações discursivas e extra discursivas
que a faziam desempenhar certas tarefas em um jogo de saber-poder-subjetivação. Foi
devido a essas preocupações, que iniciamos a genealogia com o exercício de definir as
linhas gerais do dispositivo da carne cristã, isto é, esquematizando o arranjo das relações
entre práticas discursivas e não discursivas (regimes de enunciação e de visibilidade). Ou,
em outras palavras, entre saberes/verdades, modos de exercício do poder por parte de
instituições e agentes por meio de certas técnicas de interpelação e processos de sujeição
e subjetivação de pessoas a determinadas posições de subjetividade, que conformavam a
experiência cristã do erotismo em geral e do homoerotismo em particular.
tratamento". SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de. Rotas desviantes no oco do mundo: desejo e
performatividade no Brasil contemporâneo. In: SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo
Rodrigues (orgs.). História & teoria queer. Salvador, BA: Editora Devires, 2018, p. 30-1. Para a
perspectiva da dialética do interdito e da transgressão, ver BATAILLE. O erotismo, p. 87-93.
666
A noção de que a confissão, como aleturgia, era um exorcismo aponta para como
a hermenêutica de si tinha, na experiência erótica carnal, um sentido negativo. A relação
sujeito-verdade, mediada por técnicas de poder, acontecia, por conseguinte, como um
esconjurar da própria condição de sujeito do ser humano, uma tentativa, nunca
plenamente completa, de sujeitá-lo ou objetivá-lo simplesmente como criatura, nunca
como criador de si mesmo. São três, por conseguinte, as características do sujeito carnal,
o sujeito de desejo, das sociedades cristãs, do sujeito que experimenta seu sexo como sua
carne. Elas são a renúncia, a conversão e a autenticidade. Renúncia da vida no mundo,
em prol do além-mundo, pois a salvação, em seu sentido religioso, está para lá da morte.
667
A partir dessa concepção geral do arranjo entre saber, poder e subjetivação que
configurava a experiência cristã do erotismo, em cada uma das Partes da tese, realizamos
estudos sobre a imbricação da sodomia e dos sodomitas com cada um dos três eixos do
dispositivo. Assim, em primeiro lugar, investigamos os modos como o saber teológico-
moral cristão, que tomou a forma dupla de uma teoria geral da libido e de um discurso
confessional de si, constituiu as categorias de sodomia e de sodomita. Para tanto, foi
preciso identificar os principais enunciados que modelaram as duas categorias, o que foi
possível a partir da chave geral dada (a função enunciativa específica do dispositivo da
carne) pelo enunciado da fraqueza da carne concupiscente dos homens.
1623
PRIORE, Mary del. Ao sul do corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil
colônia. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 33-4.
672
homem à sua própria natureza e, consequentemente, como uma revolta contra Deus. A
sodomia seria uma maneira do pecado enganar, atraiçoar a própria natureza do pecador.
O culpado de sodomia enganar-se-ia a si mesmo, pervertendo-se e, com isso, ofendendo
seu Criador, infringindo seus mandamentos. A sodomia não seria somente um uso
imoderado do sexo, seria algo ainda mais grave do que isso. Enquanto a fornicação (a
intemperança sexual) peca naquilo que é lícito (o sexo reprodutivo), a sodomia seria a
concupiscência, a libido (a vontade pecadora, cobiçosa) daquilo que é ilícito, o sexo
contrário à natureza, isto é, não reprodutivo. A terceira etapa consistia em deslocar o
domínio das ações designadas como contrárias à natureza para o terreno da ética de si da
figura de subjetividade modelada no dispositivo da carne – o sujeito de desejo. Assim, a
sodomia ficava enquadrada pela operação discursiva da libidinização do sexo.
Consequentemente, o enunciado consolidava a descontinuidade histórica da experiência
sodomítica no seio do dispositivo da carne, tornando-a tributária da ética da introspecção,
da confissão de si do sujeito de desejo, específica a esse dispositivo.
O enunciado sobre as relações entre sodomia e libido tinha, portanto, quatro
importantes efeitos discursivos. Em primeiro lugar, ele associava a sodomia aos pecados
mais graves, ao orgulho e à vaidade. Com isso, abria-se uma via discursiva para a
aproximação entre as categorias de sodomia e de heresia, ambas sendo formas de
dissidência à ortodoxia da fé. Em segundo lugar, consolidava o estatuto nefando da
sodomia, uma vez que as práticas eróticas enquadradas pela categoria (sobretudo o
homoerotismo e o erotismo anal) foram deslocadas para a dimensão do abjeto. Em
terceiro lugar, permitiu o estabelecimento de uma hierarquia interna ao domínio do
erotismo contrário à natureza, na qual o sexo anal homoerótico aparecia na posição mais
grave. Consequentemente, e como quarto efeito, a sodomia foi consagrada como ápice do
uso concupiscente do sexo.
Ao fim da Idade Média, a categoria da sodomia, assim constituída pelo jogo desses
quatro enunciados, sofreu uma importante chocalhada, que a alterou de alguma forma e
a reposicionou no discurso da carne, de modo a abrir-se diretamente para a noção de
heresia. Trata-se da definição de S. Tomás de Aquino para o pecado nefando. O ponto
principal da maneira como o doutor angélico explicou a sodomia é o uso que ele fez das
categorias aristotélicas para tanto. Assim, para esse autor, um pecado como a sodomia (o
qual ele compara implicitamente à bestialidade e ao canibalismo) não funcionava ao
modo de uma substância, mas sim ao de um acidente, conforme as definições de
Aristóteles. Destarte, o homem sodomita (tal qual o homem canibal ou o homem bestial)
673
natureza humana, articulando-se à escatologia cristã (há uma conexão entre Sodoma e
Jerusalém, entre o pecado dos sodomitas e o deicídio que funciona como apoteose da
culpa cristã). Destarte, é possível dizer que o dispositivo da carne, se não criava uma
identidade sodomita como uma substância (a sodomia não dizia de uma condição ou de
uma essência do homem que assim pecasse), erigia a sodomia como um "estado de
pecado" gravíssimo.
Uma tal concepção da sodomia acabava descrevendo o sodomita como um homem
cuja vontade se corrompeu em nível máximo, a ponto de fazê-lo pecar no sexto
mandamento contra a dupla natureza humana. Seu comportamento era tão abominável e
tão heterodoxo em relação à ordem divina (racional) da Criação, que, no nível do discurso,
tornou-se possível uma aproximação à categoria da heresia, na medida em que ambos, o
sodomita e o herege, puderam ser descritos como pessoas cujo comportamento dissidente
derivava de uma infidelidade fundamental (recorrência do tema do sodomita como traidor
de si e de Deus) aos ensinamentos da Igreja.
Como estudamos no capítulo 2, a assimilação entre sodomia e heresia não foi um
processo histórico-discursivo simples. Os séculos entre o fim da Idade Média e a Primeira
Modernidade foram um longo período de perseguição violenta aos amantes
homoeróticos, bem como aos devotos de outras formas marginais de erotismo, ocorrendo
campanhas persecutórias difundidas por todos os reinos europeus do período (claro que
com diferenças de intensidade e de regularidade). Enquadrados na categoria de sodomia,
essas pessoas eram perseguidas pela Igreja (depois do século XVI, pelas várias Igrejas
cristãs, protestantes e católica) e pelos Estados modernos em vias de consolidação, que
buscavam uniformizar cultural e politicamente seus territórios. Especialmente após a
Grande Peste do século XIV, a sodomia foi mais frequentemente encarada como uma
grave e real ameaça para a sociedade. Todo esse contexto correspondeu ao que Delumeau
descreveu como a feição pessimista da outrossim otimista civilização do Renascimento.
Tratava-se de um paradoxo dessa civilização, uma vez que, no momento em que houve
uma nova liberdade intelectual e artística nas sociedades europeias, esta mesma liberdade
se fez acompanhar por uma nova onda persecutória que aniquilou mais homens e
mulheres do que em qualquer época anterior. De um ponto de vista foucaultiano, o
paradoxo pode ser explicado pelo fato de as liberdades da Modernidade Ocidental
fundarem-se em uma ânsia de controle e de poder. Na Época Moderna, essa vontade de
saber e de poder concretizou-se nas perseguições aos classificados como dissidentes ou
heterodoxos. Foram eles os hereges, as bruxas e os sodomitas.
675
É por esse motivo que houve uma estreita relação, nos níveis semântico e
discursivo, entre as três categorias, resultando em uma assimilação entre elas, o que
tornou possível que os instrumentos jurídicos de perseguição de uma delas fossem
transportados para a repressão das outras. É assim que se explica a assimilação entre a
sodomia e a heresia, que também envolveu a figura da bruxa. Desde os fins da Idade
Média, a sodomia foi sendo conceitual e juridicamente entrelaçada ao crime de heresia,
que, no período, estava em plena ebulição na Europa, com o surgimento, difusão e
consolidação de muitos e diversos movimentos de dissidência espiritual (os quais eram
em geral classificados pela Igreja como heréticos). Mas se a sodomia se aproximava da
heresia, a recíproca também era verdadeira. Ou seja, não só os sodomitas começavam a
ser tomados como hereges e a receber as punições para a heresia, como os hereges
também passaram a ser declarados como culpados da sodomia, agravando-se suas penas
de modo correspondente. É o que se observou com muita frequência em relação aos
cátaros no Sul da França. Ainda na Idade Média, o direito canônico permitiu a assimilação
da sodomia à heresia, consagrando o pecado nefando como um delictum mixti fori,
entendimento que passou às cortes seculares, que, assumindo a sodomia como um crime
contra Deus, estabeleceram a punição dos sodomitas pelo fogo (referência ao enunciado
fundante da categoria, o mito da destruição de Sodoma). Durante o Renascimento, muitos
juízes laicos passaram, simplesmente, a considerar, a priori, sodomitas a vários hereges
e a admitir que os sodomitas eram, ipso facto, hereges.
No nível discursivo, a assimilação entre a sodomia e a heresia foi possível, porque
ambas as categorias se constituíram a partir das mesmas condições discursivas (mesmas
regras de formação discursiva), que moldaram enunciados passíveis de cruzamentos e
sobreposições. Ao passo que os enunciados constitutivos da sodomia foram já aqui
estudados, aqueles referentes à heresia foram abordados a partir dos estudos da
historiadora Fernanda Molina, que decompôs o conceito em três dimensões que o
inclinaram na direção da assimilação à sodomia. Essas três dimensões – a saber, a
idolatria, a bruxaria e o conceito de factum hereticale – podem ser entendidas como três
enunciados modeladores da categoria de heresia dentro das regras da formação discursiva
da carne cristã.
A Figura 2 resumiu o jogo da assimilação discursiva entre as categorias de
sodomia e de heresia, conforme praticado pelo Tribunal do Santo Ofício português. Esse
jogo consistiu no cruzamento dos vários enunciados que constituíram, historicamente, as
duas categorias. Assim, o jogo entre a sodomia e a heresia aconteceu ao longo do eixo
676
fundamental da vontade concupiscente do homem decaído, o que quer dizer que, do ponto
de vista cristão, os problemas da sodomia e da heresia, da heterodoxia erótica e espiritual,
se fundavam na fraqueza da carne. De modo que, aos enunciados 1, 2 e 3 da sodomia,
passaram a corresponder alguns dos enunciados formadores da figura do herege. Se o
sodomita era o corruptor dos menores, o herege, como idólatra, habitava o mesmo
universo gentílico moral, erótica e espiritualmente corrupto. Construída como afeminada,
isto é, como moralmente passiva, a figura do sodomita inclinou-se à da bruxa, devido à
atribuição de uma dimensão satânica ao espectro negativo da feminilidade durante a Idade
Média. Designada como marca maior da corrupção humana, uma doença da carne (corpo
e espírito), a sodomia era correlata de catástrofes coletivas, que seriam castigos divinos
contra os herdeiros de Sodoma – a ideia do castigo da divindade contra as comunidades
que abrigassem graves pecadores, como bruxas e heresiarcas, era também um
desdobramento do enunciado da bruxaria como uma das marcas do herege a partir da
Baixa Idade Média. Por último, a noção de factum hereticale, por seu turno, abriu
caminho judicial para a dilatação jurídica da categoria de heresia, alargando-a de maneira
a abrigar mais que apenas crenças explícitas em proposições heterodoxas. Escavou-se,
destarte, um espaço no discurso para uma noção de heresia capaz de reunir práticas tão
distintas como a idolatria, a bruxaria e a sodomia, entre outras práticas de cunho erótico
dissidente, como a solicitação ad turpia e a bigamia.
A assimilação entre sodomia e heresia tornara-se, portanto, possível no nível do
discurso e juridicamente aceitável e manipulável por parte de instituições, como a
Inquisição portuguesa. O que não significa que essa possibilidade jurídico-discursiva
fosse sempre utilizada, ou sempre no sentido de reforçar o estigma condenatório das duas
categorias. As relações entre sodomia e heresia não podem ser vistas como uma questão
fechada para os sujeitos que por elas se subjetivavam: elas abriam-se a confluências e
sobreposições, conforme os arranjos locais e contextuais das relações de poder. Isso
significa que, no cotidiano dos julgamentos inquisitoriais sobre sodomia, o mecanismo
de assimilação acontecia conforme o arbítrio dos juízes e ao desenlace local e episódico
do conflito entre as relações de verdade-poder implícitas no interagir entre réu e
inquisidores.
Como já se via, a explanação da constituição discursiva da sodomia não daria
conta, por si, de explicar o funcionamento da categoria no dispositivo. Ficaria faltando a
dimensão não-discursiva, aquela que acontecia na prática da perseguição, dos
julgamentos, das interpelações, das confissões, dos tormentos, dos autos da fé e das
677
fogueiras. Era ali que o sodomita era manufaturado como figura de subjetividade carnal,
como um pecador culpado por seu abominável desejo contrário à natureza. Se os
inquisidores tinham o poder para usar elasticamente os enunciados que constituíam a
sodomia e a assimilavam à heresia, foi fundamental estudar como, usando quais técnicas,
para atingir quais fins, os agentes do Santo Ofício intervieram no domínio do
homoerotismo e do erotismo anal. Na leitura dos processos, foi possível averiguar como
os inquisidores manipulavam habilmente técnicas de governo pastoral das almas, bem
como as estratégias da sua pedagogia do medo, utilizando ambas para forjar os sujeitos
sodomitas cristãos, com o intuito de disciplinar o temível uso erótico-popular do ânus e
do homoerotismo por pessoas de maus costumes, que não poderiam ter lugar entre os fiéis
súditos dos Monarcas cristãos. Apenas um lugar de infâmia e abjeção.
Para entender os fins almejados pela Inquisição em sua ação persecutória e
reguladora ao erotismo deslocado para lá da fronteira da ortodoxia, foi preciso
contextualizar essa ação nos processos mais amplos de normalização que estavam em
curso na cultura ocidental desde os últimos séculos do Medievo. Esses processos de
normalização correspondem as reformas religiosas e culturais que tiveram curso nesse
período, assumindo suas formas mais consequentes entre os séculos XVI e XVIII, nas
quais experiências espirituais e eróticas populares foram interpeladas como dissidências
da grande tradição da cultura oficial. O combustível para esses amplos processos foram
os sentimentos de medo, culpa, insegurança e ódio que então borbulhavam nas sociedades
europeias e foram logo transportados também para as colônias. Sentimentos que foram
ao mesmo tempo estimulados por instituições que, como a Inquisição, lançaram
campanhas de perseguições a diversos grupos enquadrados nas categorias discursivas de
abjeção, como bruxas, turcos, judeus ou cristãos-novos e sodomitas. As Inquisições
modernas, com sua pedagogia do medo, funcionaram como um dos canais para a
orientação desses sentimentos de medo, insegurança, frustração e ódio contra as
dissidências religiosas, étnicas, de gênero e eróticas. A perseguição aos sodomitas
encaixa-se nesse contexto.
É nesse sentido que a ação inquisitorial foi compreendida na tese. Como uma
instituição voltada para cumprir funções de controle, vigilância, punição e disciplina das
dissidências eróticas e de gênero. Com a observação de que, para a atuação dos
inquisidores ser judicialmente válida, era necessário que, como um movimento anterior,
essas dissidências, como a bruxaria e a sodomia, tivessem sido assimiladas à categoria de
678
Após a leitura pública das sentenças, outros dois momentos do auto da fé tinham
efeitos subjetivos importantes para as pessoas interpeladas como sodomitas pelo Santo
Ofício. Um, era a abjuração dos penitentes reintegrados à comunidade cristã e outro, era
a execução dos relaxados (ainda que a execução não fosse tecnicamente parte da
cerimônia orquestrada pela Inquisição). Cabe lembrar, a propósito, que os sodomitas
somente eram convidados a abjurar, quando estavam condenados por outros crimes além
do nefando. O que, segundo Vainfas, divergindo de Mott, comprovava as incertezas (ou
a flexibilidade discursiva, diríamos nós) dos inquisidores a respeito do conteúdo dos erros
de fé dos sodomitas. Mais uma vez, a imprecisão constituinte do pecado de Sodoma
desempenhava importante função no dispositivo da carne.1624 A abjuração era um ato
jurídico-performativo individual ou coletivo, no qual se teatralizava a vitória da
Inquisição, com a reintegração dos hereges à cristandade sadia e pura. Uma comunidade
purificada pelo extermínio daqueles que foram considerados culpados demais,
impenitentes, além de qualquer esperança de emenda, que eram os condenados à fogueira.
1624
MOTT. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura, p. 260-1; VAINFAS. Inquisição
como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção?, p. 279.
683
a culpa da sua dissidência, intrínseca ao seu crime ancestral. Nos pareceu, por
conseguinte, necessário investigar como os processos de subjetivação das pessoas
interpeladas como sodomitas poderiam se dar de maneira mais ou menos normativa,
inserindo-se de maneira profunda nas normas socioculturais das sociedades de Antigo
Regime, coloniais e escravistas estudadas. Tratou-se de realizar uma analítica da
normalização aplicada à micropolítica de processos de subjetivação de pessoas
interpeladas como sodomitas e que viviam as complexidades da clandestinidade em
sociedades de parca privacidade, nas quais a fama pública era um elemento essencial da
existência, em que a privatização dos corpos e comportamentos ainda estava em curso.
Pessoas que enfrentavam as precariedades da vida colonial, encetavam processos de
deslocamento, desajuste e desclassificação e experimentavam, em seu cotidiano, relações
escravistas de dominação que naturalizam as violências sexo-raciais. Nessas condições
históricas, até que ponto é ainda possível conceber os sodomitas apenas como os filhos
da dissidência?
em sua vizinhança, sobreviver em Lisboa por mais de vinte anos sendo um sodomita de
voz e fama públicas.
sodomitas, entre a ordem sexual (o bom sexo dos senhores casados) e o caos (o sexo ruim,
cuja epítome era a sodomia), tanto mais grave, quando à sodomia se associavam outras
práticas eróticas proscritas, como as orgias impostas por João Carvalho de Barros aos
escravos da sua casa.
A questão que nos lançou nesta pesquisa, há tantos anos, foi a de compreender a
radical alteridade do sodomita em relação ao sujeito homossexual de início do século
XXI. Ao longo do percurso, constatamos como a descontinuidade histórica insuperável
que nos separa não impedia certas permanências, uma vez que os regimes de gênero e
eróticos, bem como as hierarquias raciais, que estruturam a sociedade brasileira
contemporânea, também têm marcas de continuidade. Assim, ainda que traços do
dispositivo que conformava a sodomia e o sodomita subsistam no presente, eles não
funcionam mais no mesmo arranjo, as regras do jogo mudaram no curso do longo
processo de secularização do Ocidente a partir do Iluminismo. Desse modo as maneiras
de ser sujeito existentes até o século XVIII se revelam como fundamentalmente distintas
das que hoje prevalecem, das que nós podemos experimentar de modo mais ou menos
normativo. O sodomita antigo, todas as personagens estudadas nesta tese, eram sujeitos
carnais (não eram sujeitos sexuais), cuja ética do sexo era governada de modo central pela
culpa cristã, posicionada bem no interior de cada ato sexual por S. Agostinho e sua teoria
do sexo completamente libidinal. Para o sodomita, não havia como escapar à sua libido,
ela o expunha à condenação eterna na medida em que se concretizava em um ato jurídico
identificável, como uma penetração do membro viril no vaso anterior com efusão de
semente intravas. Porém, não somente o ato importava aos agentes do dispositivo, como
inquisidores, bispos, confessores, a intenção com a qual a sodomia era praticada era um
outro aspecto central, na medida em que ela dizia de uma vontade (concupiscente) de
desobedecer, de diferir, de divergir, de trilhar uma experiência dissidente, vindo daí a
possibilidade de assimilação da sodomia à heresia, pois cada ato cometido com tal
intenção permitia supor uma adesão fundamental a um erro de fé. Por outro lado, a
intenção, isto é, o problema da vontade, também era central para o julgamento, a
1625
FOUCAULT. História da sexualidade I, p. 46-7.
690
1626
"Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante
que se tem posto ao saber humano. Escolhendo uma cronologia relativamente curta e um espaço geográfico
restrito ̶ a cultura europeia desde o século XVI ̶ , pode-se estar certo de que o homem é uma invenção
recente. Não foi em torno dele e dos seus segredos que, por longo tempo, obscuramente, o saber rondou.
De fato, entre todas as mutações que afetaram o saber das coisas e da sua ordem, o saber das identidades,
das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras ̶ em suma, no meio de todos os episódios
desta profunda história do Mesmo ̶ , um único, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja
em vias de se encerrar, deixou aparecer a figura do homem. E, esse episódio não era o da libertação de uma
velha inquietude, o trânsito para a consciência luminosa de uma preocupação milenária, acesso à
objetividade do que durante muito tempo estivera preso a crenças ou filosofias: era, sim, o efeito de uma
mudança nas disposições fundamentais do saber. O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal
como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu
próximo fim. Se estas disposições viessem a desaparecer, tal como apareceram, se por algum acontecimento
de que podemos, quando muito, pressentir a possibilidade, mas de que não conhecemos de momento ainda
nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como sucedeu na viragem do século XVII a solo do
pensamento clássico ̶ então pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto
de areia". FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa:
Portugália Editora, 1967, p. 501-2.
691
uma previsão apocalíptica sobre o fim da humanidade. Não era uma profecia, talvez
sequer um alerta. Mais uma constatação da historicidade desta figura de subjetividade que
foi o homem como objeto cognoscível de certos saberes. Tal como não existia antes do
século XIX, este homem poderia voltar a não ser, caso mudassem a episteme, as
condições discursivas e extra discursivas, as relações de poder e de subjetivação, que
permitiram sua primeira emergência. De maneira bastante similar, os sujeitos sexuais
também estão sob o signo da finitude, podem deixar de ser. É possível uma humanidade
não heterossexual, não homossexual?
1627
HOCQUENGHEM; PRECIADO. El deseo homosexual, p. 170-2.
692
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