Por Uma História Social de Medos e Resistências

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

HALYSON RODRYGO SILVA DE OLIVEIRA

POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DE MEDOS E RESISTÊNCIAS:


Inquisição e sociedade no Brasil colonial (séc. XVI-XVIII)

FORTALEZA
2022
HALYSON RODRYGO SILVA DE OLIVEIRA

POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DE MEDOS E RESISTÊNCIAS:


Inquisição e sociedade no Brasil colonial (séc. XVI-XVIII)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial
à obtenção do título de Doutor em
História. Área de concentração: História
Social

Orientador: Prof. Dr. Eurípedes Antônio


Funes.
Coorientador: Prof. Dr. Ronaldo Vainfas

FORTALEZA
2022
HALYSON RODRYGO SILVA DE OLIVEIRA

POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DE MEDOS E RESISTÊNCIAS:


Inquisição e sociedade no Brasil colonial (séc. XVI-XVIII)

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial
à obtenção do título de Doutor em
História. Área de concentração: História
Social

Orientador: Prof. Dr. Eurípedes Antônio


Funes.
Coorientador: Prof. Dr. Ronaldo Vainfas

Aprovada em 25/08/2022

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Prof. Dr. Eurípedes Antônio Funes (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Vainfas (Coorientador)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

__________________________________________________
Prof. Dr. Angelo Adriano Faria de Assis
Universidade Federal de Viçosa (UFV)

_________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Daniela Buono Calainho
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

_________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Cândido Rolim
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)

_________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Carmen M. de Oliveira Alveal
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Аоs meus pais, Auzinete Maria Silva
Oliveira e José de Sousa Oliveira, е a
toda minha família pelo apoio recebido,
meu muito obrigado. Esta Tese é
dedicada a vocês

A todos os filhos e filhas da classe


trabalhadora

A Aldenir Oliveira Silva, minha primeira


mestra

A Leilane Assunção (In memoriam)


AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


pelo apoio financeiro por meio da concessão da Bolsa de Demanda Social.
Ao Prof. Dr. Eurípedes Antônio Funes pela orientação primorosa, por todo o
incentivo ao desenvolvimento da pesquisa, desde apoio logístico, fornecimento de
materiais e, sobretudo, pela confiança depositada nesta tese.
Ao Prof. Dr. Ronaldo Vainfas, pela coorientação, pelo apoio e por ter
possibilitado a missão de pesquisa realizada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(ANTT) e na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, Portugal.
Aos professores participantes da banca examinadora, Prof. Dr. Angelo Adriano
Faria de Assis, Prof.ª Dr.ª Daniela Buono Calainho, Prof. Dr. Leonardo Cândido Rolim
Prof.ª Dr.ª Carmen M. de Oliveira Alveal e Prof.ª Dr.ª Maria Emília Monteiro Porto
agradeço pela leitura do presente trabalho e pelas significativas contribuições para seu
aperfeiçoamento. Ao Prof. Dr. Mário Martins Viana Júnior, pela leitura e sugestões
oferecidas no Exame de Qualificação desta pesquisa.
Ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em História Social da
Universidade Federal do Ceará (UFC), especialmente aos professores Dr. Clóvis
Ramiro Jucá Neto, Dr. Francisco Régis Lopes Ramos, Dr. Antônio Gilberto Ramos
Nogueira e a professora Dr.ª Ana Amélia de Moura Cavalcante Melo pela excelente
formação e incentivo à pesquisa.
Aos colegas da turma de doutorado do ano de 2016, Dércio Braúna, Daniel
Gonçalves, Eduardo Parente, Nágila Maia, Ramon Maciel, Roberto Sabino, Romário
Bastos, Victor Pereira, Yazid Jorge e, especialmente, a Tatiana Lima, uma pessoa
fantástica com quem tive o privilégio de dividir as alegrias e os desafios presentes no
processo de doutoramento.
Aos amigos pesquisadores da História Colonial do Brasil, Adriel Fontenele
Batista e Júlio César Vieira de Alencar, agradeço pelas conversas e contribuições. À
professora Ana Margarida Santos Pereira, agradeço pela leitura atenta e comentários
feitos acerca do Projeto de Pesquisa que deu origem a esta tese. Ao Prof. Dr. Nilton
Melo Almeida, agradeço pela disponibilidade para a realização da leitura deste trabalho.
Aos demais amigos e amigas: Álvaro Pessoa, Daniel Holanda, Douglas Lima, Elynaldo
Dantas, Gildy-cler Ferreira, Igor Leite, Jalene Medeiros, Milena Campos, Patrícia Farias
e Pollyana Gurgel, agradeço pelo incentivo e apoio de sempre.
Por fim, e não menos importante, agradeço ao ex-presidente Luís Inácio Lula da
Silva (2003-2010) e à ex-presidenta Dilma Vana Rousseff (2011-2016) pelas políticas
públicas voltadas para a educação em seus respectivos governos. O ingresso dos filhos e
das filhas da classe trabalhadora no Ensino Superior brasileiro, seja na graduação e/ou
na pós-graduação, são frutos de um projeto de Brasil que entendia que a educação é, de
fato, a base para o desenvolvimento social da nação brasileira. À História caberá a
função de lembrar para não esquecer o Golpe de Estado à democracia brasileira
ocorrido no ano de 2016.
“Conserve seu medo
Mantenha ele aceso
Se você não teme
Se você não ama
Vai acabar cedo
Esteja atento
Ao rumo da História
Mantenha em segredo
Mas mantenha viva
Sua paranoia
Conserve seu medo
Mas sempre ficando
Sem medo de nada
Porquê dessa vida
De qualquer maneira
Não se leva nada
E ande pra frente
Olhando pro lado
Se entregue a quem ama
Na rua ou na cama
Mas tenha cuidado”.

Conserve seu medo. Raul Seixas, 1978.

“Uma criança, um professor, um livro e


uma caneta podem mudar o mundo”.
Malala Yousafzai, 2013.
RESUMO

Esta tese de doutoramento investiga, sob o ponto de vista da história social, as reações à
denominada ‘pedagogia do medo’ no contexto das visitações inquisitoriais realizadas no
Brasil entre os séculos XVI e XVIII. O objetivo central desta pesquisa consiste em
demonstrar a existência de variadas maneiras de resistir aos dispositivos de intimidação
empregados pelo Santo Ofício da Inquisição. O conjunto documental analisado neste
trabalho foi formado por fontes impressas e documentos manuscritos sob guarda do
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na cidade de Lisboa, Portugal. Utilizou-se,
fundamentalmente, os livros das denúncias e das confissões das visitações, bem como
processos-crime decorrentes dessas ‘devassas das consciências’. Além destes
documentos, outras fontes foram utilizadas na pesquisa como, por exemplo, os
Regimentos do Santo Ofício, crônicas, dicionários e tratados políticos de época. A partir
do laborioso diálogo entre métodos qualitativos e do levantamento de índices
quantitativos, analisou-se as relações de força entre o tribunal inquisitorial e a sociedade
colonial. Entre os resultados alcançados, pode-se vislumbrar a identificação de diversos
arranjos desenvolvidos pelos indivíduos sob inspeção como, por exemplo, estratégias e
táticas de manutenção de hábitos religiosos proibidos, como é o caso do judaísmo
praticado ocultamente; a autopreservação da vida física e material; a defesa da memória
dos réus penitenciados; as injúrias populares desferidas contra o Santo Ofício e seus
representantes locais, bem como o questionamento dos métodos e dos procedimentos da
Inquisição, que culminou na progressiva descontinuidade da ‘pedagogia do medo’ no
contexto da segunda metade do século XVIII. As relações dialógicas entre medo e
resistência social evidenciam, nesse sentido, uma história das lutas, das convicções, das
noções de mundo e dos interesses que orientavam múltiplas relações de diferentes
indivíduos e grupos sociais entre si e com o Santo Ofício português no Brasil colonial.

Palavras-chave: pedagogia do medo; resistências; Inquisição; Brasil colonial.


ABSTRACT

This doctoral thesis investigates, from the point of view of social history, the reactions
to the so-called ‘pedagogy of fear’ in the context of the inquisitorial visits taken place in
Brazil between the 16th and 18th centuries. The main objective of this research is to
demonstrate the existence of different ways to resist the intimidation devices used by
the Holy Office of the Inquisition. The set of documents analyzed in this work consisted
of printed sources and handwritten documents in the custody of the National Archives
of Torre do Tombo, in the city of Lisbon, Portugal. Books of denunciations and
confessions of visitations were used as main resource, as well as criminal processes
arising from these meticulous investigation of consciences. In addition to these
documents, other sources were used in the research, such as, for example, Regiments of
the Holy Office, dictionaries and political treaties of the period. From the laborious
dialogue between qualitative methods and the survey of quantitative indices, the power
relations between the inquisitorial court and colonial society were analyzed. Among the
results achieved, one can see the identification of several arrangements developed by
the individuals under inspection, such as, for example, strategies and tactics for
maintaining prohibited religious habits, as is the case of Judaism practiced occultly; the
self-preservation of physical and material life; the defense of the memory of the
sentenced defendants; the popular insults against the Holy Office and its local
representatives, as well as the questioning of the methods and procedures of the
Inquisition, which culminated in the progressive discontinuity of the ‘pedagogy of fear’
in the context of the second half of the 18th century. The dialogical relationships
between fear and social resistance show, in this sense, a history of struggles,
convictions, notions of the world and interests that guided multiple relationships of
different individuals and social groups among themselves and with the Portuguese Holy
Office in colonial Brazil.

Keywords: pedagogy of fear; resistences; Inquisition; Colonial Brazil.


RESUMÉ

Cette thèse de doctorat étudie, du point de vue de l'histoire sociale, les réactions à la
appelé «pédagogie de la peur » dans le contexte des visites inquisitoriales menées au
Brésil entre le XVIe et le XVIIIe siècle. L'objectif principal de cette recherche est de
démontrer l'existence de différentes manières de résister aux dispositifs d'intimidation
utilisés par le Saint-Office de l'Inquisition. L'ensemble des documents analysés dans ce
travail se composait de sources documentaires imprimées et de documents manuscrits
conservés aux Archives nationales de Torre do Tombo, dans la ville de Lisbonne, au
Portugal. Fondamentalement, les livres de dénonciations et d'aveux de visitations ont été
utilisés, ainsi que les poursuites pénales découlant de ces vérification de consciences. En
plus de ces documents, d'autres sources ont été utilisées dans la recherche, telles que les
régiments du Saint-Office, des chroniques, des dictionnaires et des traités politiques de
l'époque. A partir du dialogue laborieux entre méthodes qualitatives et enquête sur les
indices quantitatifs, les rapports de force entre la cour de justice inquisitoriale et la
société coloniale ont été analysés. Parmi les résultats obtenus, on peut voir
l'identification de plusieurs arrangements élaborés par les individus inspectés, comme,
par exemple, des stratégies et des tactiques pour maintenir des habitudes religieuses
interdites, comme c'est le cas du judaïsme pratiqué de manière occulte ; l'auto-
préservation de la vie physique et matérielle; la défense de la mémoire des accusés
condamnés ; les injures populaires contre le Saint-Office et ses représentants locaux, au-
delà du questionnement des méthodes et procédures de l'Inquisition, qui aboutit à la
discontinuité progressive de la « pédagogie de la peur » dans le contexte de la seconde
moitié du XVIIIe siècle . Les relations dialogiques entre peur et résistance sociale
montrent, en ce sens, une histoire de luttes, de convictions, de notions du monde et
d'intérêts qui ont guidé de multiples relations d'individus et de groupes sociaux
différents entre eux et avec le Saint-Office portugais dans le Brésil colonial.

Mots clés: pédagogie de la peur; résistances; Inquisition; Brésil colonial.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DE MEDOS E


RESISTÊNCIAS ........................................................................................................... 12

2. UM TRIBUNAL DO MEDO NA EPOCA MODERNA ....................................... 30


2. 1. O Santo Ofício português e sua ‘pedagogia do medo’: percursos historiográficos
............................................................................................................................. 32
2. 2. Uma historiografia do (e sobre o) medo ............................................................. 47
2.3. ‘Tempo de medo’: Igreja e Inquisição no início da Época Moderna .................. 55
2. 4. Mecanismos de inspeção e ação inquisitorial no ‘Novo Mundo’ ....................... 77
2.5. Uma celeuma de burburinhos: as visitações do Santo Ofício no Brasil colonial 91

3. DISCURSOS OCULTOS: CRIPTOJUDAÍSMO COLONIAL – RESISTÊNCIA


SOCIAL, CULTURAL E RELIGIOSA ..................................................................... 99
3.1. Criptojudaísmo colonial: indícios, suspeitas, dissimulações ............................. 101
3.2. ‘De portas a dentro’: discursos ocultos femininos no espaço doméstico .......... 116
3.3. As esnogas coloniais: práticas de espaços e discursos ocultos .......................... 138

4. ENTRE MEDOS E RESISTÊNCIAS: O SANTO OFÍCIO NO BRASIL


COLONIAL ................................................................................................................ 159
4.1. Nos rastros dos medos, nas trilhas das resistências ........................................... 160
4.2. ‘O Diabo trouxe o Inquisidor’: palavras (mal)ditas e comportamentos afrontosos
contra o Santo Ofício. ............................................................................................... 185
4.3. Combates da fé: púlpito, pena e tinteiro ............................................................ 206
4. 4. Uma pedagogia descontinuada: Inquisição e Estado no século das Luzes....... 220

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O TRIBUNAL DO MEDO NO BRASIL


COLONIAL E OS LIMITES DE SUA PEDAGOGIA DE INTIMIDAÇÃO ....... 236

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 241


12

1. INTRODUÇÃO: POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DE MEDOS E


RESISTÊNCIAS

Olinda, 09 de novembro de 1594. Era uma quarta-feira quando João Afonso,


cristão-velho, de 35 anos de idade, mareante natural de Esposende, arcebispado de Braga, em
Portugal, apresentou-se diante de Heitor Furtado de Mendonça, primeiro visitador da
Inquisição de Portugal enviado ao Brasil, para confessar suas culpas e pedir perdão e
misericórdia por suas faltas. Dizia ele que no mês anterior viajava da Bahia para o Reino
quando a embarcação em que estava foi tomada de assalto por corsários ‘franceses luteranos’.
Contou que durante o tempo em que ficou sob o poder de seus captores foi obrigado a prestar
respeito nos momentos das orações de seus algozes, sendo coagido a se ‘desbarretar’ – isto é,
tirar o barrete (chapéu) – durante as ‘salvas luteranas’. Fazia isso, pois entre os seus
companheiros de cativeiro tinha-se informação de que nos “dias passados houveram de matar
com um pau a um português que não queria tirar o chapéu”1; “por isso com medo”, ele e seus
companheiros “se desbarretavam”.2.
Esta não foi a única confissão acerca da suposta colaboração com os “luteranos”3.
Entre 09 e 28 de novembro de 1594 a Mesa do Santo Ofício, então instalada na vila de
Olinda, Capitania de Pernambuco, recebeu uma série de confissões sobre este episódio. Trata-
se, nesse caso, de oito apresentações realizadas todas por ‘homens do mar’ – marinheiros,
mercadores e grumetes – cujas idades variavam entre 16 e 45 anos. O conjunto dessas
confissões permite perceber que ocorreram diferentes capturas de navios que transitavam na
costa brasileira e entre a colônia e Portugal; sob o domínio dos corsários, os sequestrados
eram transferidos para outra nau onde encontravam indivíduos na mesma situação de
cativeiro.
A primeira embarcação tomada vinha do reino com destino à Bahia; nela, estava
presente Domingos Luís Matosinhos4, marinheiro de 45 anos, que ficou em poder de seus
captores entre 11 de junho e 27 de outubro de 1594, sendo assim, o cativo que permaneceu

1
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça –
Confissões de Pernambuco – 1593-1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife, Ed.
Universidade Federal de Pernambuco, 1970, p. 64. Daqui para frente apenas: Confissões de Pernambuco (1593-
1595).
2
Ibid., p. 66; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2561.
3
Sobre o crime de luteranismo, Cf. BRITTO, Rossana Gomes. Os pecados do Brasil: luteranos e inquisição –
séculos XVI e XVII. 2010. Tese (Doutorado em História Política) — Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2010.
4
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7957.
13

por mais tempo em companhia dos corsários luteranos. A segunda embarcação foi tomada em
15 de outubro, vinha da Bahia e tinha o reino como destino; nesta, estavam presentes Baltazar
André5, Mateus Ribeiro, João Afonso e João Pires. Já a terceira embarcação ia de Pernambuco
para a Bahia, e nela encontravam-se Cristóvão Luís6, Gomes de Abreu Soares e Gaspar de
Amorim, tornados cativos durante um curto período, de 25 a 27 de outubro, data em que
foram lançados, junto com os demais, no litoral da capitania de Pernambuco.
As confissões faziam eco umas às outras. Cristóvão Luís disse que “bem entendia
que em estar desbarretado naquela conjunção das salvas luteranas fazia mal, mas fazia-o com
medo, por ter ouvido que os luteranos davam em quem não se desbarretava” 7; Baltazar André
confessou que fazia a mesma coisa “com medo dos luteranos lhe fazerem mal”, porém
“rezava por umas horas ou contas encomendando-se a Deus”8; Gomes de Abreu Soares só
retirou seu chapéu “pelo medo que lhes puseram que lhes fariam mal”9; Gaspar Amorim
justificou-se afirmando que “havia medo que os ditos luteranos lhes fizessem mal se ele não
descobrisse a cabeça”.10
Os demais depoimentos seguem a mesma narrativa. Domingos Luís Matosinhos,
que lembrava aos seus companheiros para retirar a carapuça, pedia perdão por isso, dizendo
acreditar “que lhes fazia boa obra de os avisar e nisso não tinha tenção de favorecer o
luteranismo”11; Mateus Ribeiro admite que teve medo, mas apenas uma única vez,
confessando que “despois de aquela [primeira] vez perdeu ele o medo e nunca se desbarretou
nem tirou o chapéu quando eles [luteranos] fizeram as mais salvas de todo o tempo em que
com eles andou”12; já João Pires, grumete de 16 anos de idade, tentava enganar seus captores,
mas “algumas vezes que ele dissimulava com a carapuça na cabeça, olhando para o mar”, os
luteranos “tiravam-lhe a carapuça da cabeça e lhe diziam ruins palavras e lhe davam com a
carapuça na cabeça”; mesmo descarapuçado à força, “rezava consigo as boas orações
católicas”, disse .13
Estes relatos apresentados ao Santo Ofício são representações de variados tipos de
medos presentes no início da modernidade e no contexto de conquista e colonização dos
espaços coloniais da América lusa. Com efeito, as narrativas desses ‘homens do mar’ que se

5
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7953.
6
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 6342.
7
Confissões de Pernambuco (1593-1595), p. 70
8
Ibid., p. 72.
9
Ibid., p. 76.
10
Ibid., p. 79.
11
Ibid., p. 85.
12
Ibid., p. 86-87.
13
Ibid., p. 89.
14

confessaram à Inquisição registram acontecimentos que exemplificam as disputas religiosas


do início da Época Moderna decorrentes da Reforma Protestante e da Contrarreforma
Católica; além, é claro, de se apresentarem como interessantes registros dos perigos
relacionados às práticas de corso e pirataria na costa da colônia luso-americana quinhentista.
Mas, para além desses fatores, esses relatos trazem nas suas entrelinhas indícios das
consciências temerosas dos depoentes; afinal, como lembrou a historiadora Anita Novinsky,
“com medo de serem denunciadas, por outrem, as pessoas se ‘apresentavam’ voluntariamente
à Mesa do Santo Ofício, confessavam e pediam perdão, procurando assim diminuir o rigor
dos procedimentos inquisitoriais”14. Junto ao medo de ser agredido pelos corsários, havia
também o de ser associado ao luteranismo e, por isso mesmo, ser denunciado e acusado de
heresia. Em outras palavras, estava aí presente o medo da própria Inquisição. De onde vem
esse medo? como os indivíduos reagiam diante do poder de intimidação da Inquisição?
Surgida na Baixa Idade Média, a denominada Inquisição medieval foi “produto de
uma longa evolução durante a qual a Igreja e o Papado sentiam-se ameaçados em seu poder”
15
. Inicialmente, tratou-se de uma Inquisição episcopal, descentralizada e administrada pelos
bispos nomeados para visitarem as paróquias suspeitas de heresia, como fora definido nas
determinações do Concílio de Verona (1184). Já no século XIII, o papa Inocêncio III
convocou a chamada Cruzada Albigense (1208), realizada no Sul da França com o objetivo de
combater movimentos religiosos considerados heréticos pela Igreja de Roma, como é o caso
do catarismo. No entanto, foi o papa Gregório IX que formalmente transformou as itinerantes
inquirições contra as heresias em uma Inquisição papal (1233), centralizada e subordinada
diretamente a Roma e delegada principalmente a Ordem dos Dominicanos.
A Inquisição medieval geralmente é, no senso comum, associada ao terror e à
intolerância religiosa de uma época caricaturalmente chamada de ‘Idade das Trevas’. No
entanto, foi na Época Moderna que os tribunais inquisitoriais alcançaram seu ápice – com a
fundação da Inquisição Espanhola (1478), do Tribunal do Santo Ofício Português (1536) e
com a reorganização da Inquisição Romana (1542) – no que se refere a sua estrutura de
organização, a amplitude de sua ação e ao refinamento de seus procedimentos.
Na Península Ibérica, o estabelecimento dos tribunais inquisitoriais esteve
relacionado a fatores políticos, sociais e religiosos. Na Espanha, a união dos reinos de Castela
e Aragão, com o casamento dos monarcas Fernando e Isabel, foi acompanhada da unidade

14
NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX – 2. ed. rev. São Paulo:
Perspectiva, 2009, p. 241.
15
NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 15.
15

territorial, da imposição do catolicismo como religião oficial do reino e da centralização


política com o emergente Absolutismo monárquico moderno. O estabelecimento da
Inquisição espanhola em 1478 foi, assim, uma expressão da política empreendida pelos ‘reis
católicos’ aos dissidentes e minorias religiosas, principalmente os judeus e os mouros – que
formavam as duas comunidades religiosas que, junto com a comunidade cristã, coabitaram
desde a Idade Média o território ibérico, convivendo sob uma relativa tolerância religiosa.16
Em Portugal, a fundação do Santo Ofício seguiu, em certo sentido, o rastro dos
eventos da Espanha. Em ambos os reinos, o antijudaísmo foi uma das principais justificativas
entre as que impulsionaram a fundação de suas respectivas Inquisições. Os cristãos-novos,
como eram chamados os judeus convertidos ao catolicismo e seus descendentes, formaram
um grupo social específico, alvo de discriminações e de desconfianças em relação à sua
identidade religiosa, sendo sistematicamente acusados de praticarem o judaísmo secretamente,
tornando-se a “razão ou pretexto da própria instalação dos tribunais em Espanha e
Portugal”.17
O Santo Ofício português foi, assim, um Tribunal de fé, formado pelo corpo
eclesiástico, mas subordinado diretamente à Coroa. Transformando-se em uma das mais
importantes esferas judiciárias da Igreja, a Inquisição reservou para si um lugar especifico no
âmbito dos sistemas e das instituições punitivas modernas, pois fundamentou sua existência
valendo-se da ideia de heresia – entendida como uma tomada de posição contrária àquilo que
foi definido pela Igreja em matéria de fé18 – sendo essa a sua especificidade: um Tribunal de
fé da Época Moderna especializado na investigação de crimes morais e religiosos associados a
comportamentos considerados heréticos.
Os réus poderiam ter suas faltas categorizadas pelos inquisidores como heresia
formal, ou seja, aquela derivada do livre arbítrio, da escolha e/ou da obstinação em sustentar
ideias contrárias aos dogmas oficiais; heresia material, comportamentos oriundos da
ignorância em relação aos dogmas, à ortodoxia e aos ritos católicos; e apostasia, que consistia
na separação pública ou oculta da fé cristã católica, ocorrendo nos casos em que indivíduos
batizados no catolicismo abandonavam esta religião para aderir a outras – judaísmo,

16
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
17
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 190.
18
NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 10.
16

islamismo ou mesmo outras doutrinas cristãs que desafiavam a Igreja de Roma, como as
agremiações luteranas e calvinistas, por exemplo.19
Não há dúvidas de que os chamados ‘judaizantes’ – os cristãos-novos acusados de
praticar o judaísmo oculto – foram os principais alvos da perseguição inquisitorial. No
entanto, o Santo Ofício estendeu sua atenção a uma série de outros delitos, incidindo sobre as
transgressões religiosas, morais e sexuais. Assim sendo, crimes como a bigamia, a feitiçaria, a
sodomia, as blasfêmias, a solicitação para torpezas – ou seja, o acometimento realizado por
padres para fins sexuais às fieis durante a confissão sacramental – e o luteranismo, por
exemplo, estiveram sob a jurisdição inquisitorial – não obstante alguns desses delitos, como a
feitiçaria e a bigamia, por exemplo, pertencerem também à alçada da justiça eclesiástica e
secular.
Ao atuar sob o lema misericórdia e justiça, os inquisidores anunciavam o tom do
discurso que caracterizaria sua ação. A misericórdia era reservada aos fiéis que
verdadeiramente se arrependessem dos delitos de que eram acusados e, por isso, poderiam ser
reconciliados ao seio da comunidade cristã; já a justiça era destinada àqueles obstinados em
manter sua conduta herética, que não apresentavam confissão suficientemente convincente,
ou, de todo modo, verdadeira aos olhos dos inquisidores, e que não conseguiam, portanto, ao
longo do processo, oferecer provas que convencessem os juízes de sua suposta, ou possível,
inocência.
As representações e os discursos que associam a Inquisição ao terror e à
intolerância religiosa na Época Moderna derivam, consideravelmente, do modus operandi
inquisitorial, fundamentado na intimidação e na coerção. Bartolomé Bennassar, historiador
francês especializado na história da Espanha na Época Moderna, ao analisar os processos dos
anos iniciais de ação do tribunal espanhol, já alertara para os métodos inquisitoriais baseados
em uma ‘pedagogia do medo’ – formada, de acordo com o autor, por três elementos: a) o
segredo do processo inquisitorial; b) a ameaça da ruína econômica ocasionada com o confisco
de bens efetuados pelos inquisidores; c) a memória social infame que era construída em torno
dos réus penitenciados e de sua família.20

19
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça; MATTOS, Yllan de. (Orgs.). Inquisição & Justiça Eclesiástica.
Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 08.
20
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole – XVª-XIXª siècles. Paris, Harchette, 1979;
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica, 1981; BENNASSAR,
Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su ‘pedagogia del miedo’.In. ALCALÁ, Angel.
(Org). Inquisición española e mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, p. 174-182.
17

Por sua vez, a historiadora Maria José Ferro Pimenta Tavares, ao analisar o caso
português, argumentou que o Santo Ofício utilizou-se de uma catequização pelo medo, que
pressupunha a extirpação da heresia por meio da força e da exemplaridade das penas –
utilizando-se da expressão latina compellere intrare (baseada, por sua vez, na interpretação de
21
Santo Agostinho acerca de uma passagem do Evangelho de São Lucas) para expressar a
coerção religiosa exercida pelos inquisidores, que introjetavam o medo da punição como um
freio à heresia: “extirpar o erro, imprimir à força, pena exemplar, purgar, temor eram
expressões usadas neste ‘compellere intrare’”, diz a autora22.
Em ambas as análises, a Inquisição é interpretada como uma instituição cuja ação
provocava medo. Ora, esta é, de fato, uma ponderação mais do que razoável – não obstante
sua suposta obviedade –, sobretudo se levarmos em consideração os discursos, a propaganda,
os métodos e os procedimentos inquisitoriais. O Santo Ofício dispunha de um considerável
conjunto de penas cuja aplicação variava de acordo com o crime cometido, e que podia ir
desde simples penitências espirituais até o ‘relaxamento à Justiça secular’, expressão utilizada
pelos inquisidores para se referir à condenação dos réus à execução nas fogueiras.
As penas aplicadas pelo Santo Ofício português impactavam a vida dos seus
processados em diferentes sentidos. O confisco de bens dos réus, não raro, deixava estes e
toda sua família na mais completa miséria. Além desta pena pecuniária, o tribunal também se
utilizava da plicação de multas e costumava destinar os custos do processo aos réus, exceto no
caso de presos pobres. O tribunal inquisitorial dispunha de um rol de punições vexatórias
como a imposição do uso de hábitos penitenciais degradantes conhecidos como sambenitos23,
durante determinado tempo ou perpetuamente.

21
A expressão “compelle intrare” é uma locução que significa “obriga-os a entrar”, derivando de uma passagem
do Evangelho de São Lucas acerca da parábola do grande banquete relatada por Jesus, que narra o episódio em
que um senhor organizou uma grande ceia e convidou alguns de seus amigos que, por motivos diferentes,
recusaram o convite – o que gerou descontentamento e humilhação para o anfitrião. Diante da recusa dos
convidados, o senhor enviou seus servos às ruas para voltar com aqueles que encontrassem: “E disse o senhor ao
servo: Saí pelos caminhos e atalhos e obriga-os a entrar, para que encha a minha casa” (Lucas, 14; 23), verso que
foi apropriado e interpretado por Santo Agostinho no sentido de justificar a conversão por meio da força ou da
persuasão argumentativa a fim de coagir alguém a fazer algo que se julga que pode lhe ser útil. Cf. GRAZ, John.
Discussões sobre fé e liberdade: defendendo o direito de professar, praticar e promover sua crença. Editora:
Casa Publicadora Brasileira, 2009.
22
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Inquisição: uma catequização pelo medo. In. Actas do III Encontro
sobre História Dominicana, Tomo II. Separata do Arquivo Histórico Dominicano Português, Porto, vol. IV, n.º
2, 1989 (a), p. 191.
23
Segundo Elias Lipiner, o sambenito era um “traje de penitência, sem mangas, imposto aos réus condenados na
Inquisição. Esta palavra para designar o hábito penitencial é corruptela, talvez, das duas palavras sacro bendito
[...] os sambenitos que os penitentes levavam aos autos-de-fé, ou passado o tempo durante o qual tinham de ser
envergados de acordo com a sentença condenatória, ficavam expostos, permanentemente e com os nomes dos
seus antigos portadores, numa igreja principal [...] as consequências sociais das condenações a levar o sambenito
(no caso dos reconciliados) ou a pendurá-los nas igrejas (no caso dos relaxados), estenderam-se além da pessoa
que cometia o delito herético, atingindo os seus descendentes para inibi-los de exercer ofícios públicos e marca-
18

A Inquisição desestruturava vidas. Desterrava seus prisioneiros para terras


inóspitas ou perigosas; prendia e enviava seus condenados para realizar trabalhos forçados nas
galés do reino sem direito a nenhum tipo de remuneração, entre os quais se destacava o
serviço de remeiro nas naus d’El Rei, durante anos ou mesmo pelo restante de suas vidas, bem
como o trabalho forçado na execução de obras públicas 24; torturava, açoitava e humilhava
publicamente, excomungava, proibia circulação do livre pensamento e, por conseguinte, a
posse e leitura de determinados livros; realizava grandes cerimônias públicas de caráter
punitivo e pedagógico conhecidas como Autos-de-fé. Como se vê, o leque de possibilidades
da engrenagem punitiva inquisitorial é bastante significativo para refletirmos sobre o
complexo aparelho de vigilância e controle social representado por esta instituição.
O poder político e o controle social que o Santo Ofício alcançou na Época
Moderna foram certamente fortalecidos pelo exercício da sutil difusão do medo no corpo
social. Assim sendo, parte-se, nesse estudo, do pressuposto de que a Inquisição portuguesa foi
o que podemos chamar de um tribunal do medo, não apenas pelo fato de sua ação provocar
medo nas coletividades, mas também pelo fato de os inquisidores utilizarem-se da
racionalização do medo com o objetivo de exercer um tipo de controle que era ao mesmo
tempo político, religioso e social, ou seja, a operacionalização do medo foi uma estratégia
conscientemente utilizada pelo tribunal inquisitorial e integrada, portanto, aos seus discursos,
métodos e procedimentos.
Claro está que a Inquisição e os inquisidores provocavam medo. No entanto,
diante desta questão, repetida e cristalizada na historiografia especializada no tema, surgem
outras perguntas que são sugestivas para avaliarmos o lugar ocupado pelo medo na história e
na historiografia da Inquisição. Se a ‘pedagogia do medo’ foi uma estratégia de controle
inquisitorial, interrogamos, sob o ponto de vista da história social, de que modo os indivíduos
comuns do cotidiano colonial construíram diferentes formas de resistência ao exercício de
poder e de controle social empreendido pelo Santo Ofício por meio desta pedagogia de
intimidação, no contexto das visitações inquisitoriais enviadas ao Brasil entre os séculos XVI
e XVIII. Dito de outro modo, como a sociedade colonial reagiu ao medo provocado pela
presença dos representantes do Santo Ofício na colônia? Que tipos de comportamentos de

los genealogicamente como suspeitos de sangue, expostos, portanto, à infâmia pública por gerações, pelo poder
evocativo do hábito penitencial”. Cf. LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição.
Lisboa: Contexto, 1999, p. 227-229.
24
Sobre o envio dos condenados pelo Santo Ofício às galés do reino, Cf. SILVA, Emãnuel Luiz Souza e. Sem
remo e sem soldo: o degredo para as galés del rei e a ação inquisitorial no Império português (Sécs. XVI-XVIII).
Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em História,
Niterói, RJ, 2018.
19

autopreservação foram adotados pela população sob inspeção? Quais estratégias e táticas
foram construídas a fim de oferecer resistência a esta relação de força desigual? Esperamos,
ao final da tese, elucidar suficientemente estas questões.
O problema aqui levantado derivou, em certo sentido, de alguns resultados
observados na nossa pesquisa de mestrado, que buscou investigar o impacto social da
‘pedagogia do medo’, especificamente sobre os cristãos-novos nas capitanias de Pernambuco,
Paraíba e Itamaracá entre 1593 e 1595, durante a primeira visitação inquisitorial realizada ao
Brasil25. Em um contexto social de perseguições religiosas, a ‘pedagogia do medo’ pareceu
atuar de modo especial sobre os cristãos-novos que viveram naquela conjunção ‘à sombra do
medo’ – conforme a expressão de Ângela Maia.26
No entanto, ao mesmo tempo em que demonstramos a presença do medo da
Inquisição entre os cristãos-novos, observamos também a recorrência de variados indícios de
microrresistências desenvolvidas no cotidiano colonial contra a presença, ou a autoridade, dos
representantes inquisitoriais – e não apenas vindos dos cristãos-novos. Com efeito, essa
constatação nos pareceu curiosamente interessante, pois sugeria a coexistência de
comportamentos indicativos do temor em relação ao Santo Ofício, mas também de
enfrentamentos sutis, disfarçados e mesmo deliberados em relação ao controle social por meio
do medo inquisitorial. Evidentemente, esta observação ultrapassava os problemas e o escopo
do nosso trabalho de mestrado. Mas uma questão permaneceu em aberto: haveria então uma
correspondência entre medo e resistência social?
A hipótese que norteou esta tese apresentava-se sugestivamente afirmativa. Sob o
ponto de vista metodológico tratou-se, nesse sentido, de uma mudança e de uma ampliação no
eixo da abordagem do problema: que a Inquisição utilizava o medo para alcançar fins
religiosos e políticos era algo que nos parecia suficientemente claro. O que nos interessou, na
presente pesquisa, foi contribuir para, em certo sentido, ponderarmos sobre esta questão,
demonstrando os limites dessa ‘pedagogia do medo’ no espaço colonial do Brasil com base na
identificação de diferentes formas de resistências sociais ao Santo Ofício e seus representantes
locais.
Estes limites da ‘pedagogia do medo’ dizem respeito à própria especificidade da
ação inquisitorial portuguesa na colônia. É importante lembrar que no Brasil não houve o

25
OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva de. Mundo de medo: Inquisição e cristãos-novos nos espaços coloniais –
capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba (1593-1595). Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em
História, Natal, 2012.
26
MAIA, Ângela Vieira. À sombra do medo – cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar. Rio de
Janeiro: Idealizarte, 2003.
20

estabelecimento formal de um tribunal inquisitorial, ficando sua jurisdição sob a alçada do


tribunal de Lisboa. A cobertura da ação inquisitorial no espaço colonial, na ausência de um
tribunal próprio, contou inicialmente com a colaboração da malha eclesiástica local e
paulatinamente com a presença de agentes locais. Em 1549, por exemplo, o Vigário de Porto
Seguro efetuou a prisão de Pero Campo Tourinho, primeiro processado pela Inquisição no
Brasil, em nome do Santo Ofício; já a partir de 1579, o Bispo da Bahia, Frei Antônio
Barreiros, passou a atuar no Brasil como delegado da Santa Inquisição, efetuando prisões e
enviando os indivíduos considerados hereges para serem julgados em Portugal.27
Entre os agentes locais, o Santo Ofício contava com o auxílio de seus
Comissários, que eram padres habilitados para atuar em regiões em que não houvesse
tribunais, sendo nestas circunstâncias a autoridade maior que representava o Santo Ofício
nestes espaços. Já os Familiares eram oficiais leigos que, assim como os comissários,
passavam por um rigoroso processo de habilitação para receber a medalha de Familiar do
Santo Ofício, símbolo de prestígio, honraria e status social. Entre as funções desses agentes
estava a de realizar diligências e prisões em nome do Santo Ofício; mas agiam eles também
estimulando delações e espionando os comportamentos alheios sendo, como analisou a
historiadora Daniela Calainho, um dos tentáculos da ‘pedagogia do medo’ inquisitorial28. De
acordo com a autora:

A simples menção do Santo Ofício, o apenas dizer-se Familiar ou mostrar a medalha


que os distinguia, mesmo que toscamente falsificada, já era suficiente para causar
um pânico generalizado. A população vergava-se a essas arbitrariedades, deixando-
se facilmente enganar, pressionar, prender e roubar, mostrando o quanto o Santo
Ofício introjetava o medo, espalhava o terror e desestruturava o tecido social29.

No entanto, foram com as chamadas Visitações inquisitoriais – inspeções


periódicas enviadas às possessões portuguesas para verificar o estado da fé – que a colônia
recebeu a efetiva presença de inquisidores vindos diretamente do reino. No século XVI, a
primeira visitação foi realizada entre 1591 e 1595 pelo Deputado do Santo Ofício, Heitor
Furtado de Mendonça, nas Capitanias da Bahia, de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba; já no
século seguinte, entre 1618 e 1620, a Bahia foi mais uma vez inspecionada pelo Santo Ofício
por meio da ação do visitador Marcos Teixeira. Alguns anos depois, foi enviada outra
visitação inquisitorial à colônia; desta vez, nas Capitanias do Sul (Rio de Janeiro, São Vicente

27
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.
28
CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colonial. Bauru,
SP: Edusc, 2006.
29
Ibid., p. 147.
21

e Espirito Santo) entre 1627 e 1628, realizada pelo padre Luís Pires da Veiga, conforme
explicitou a historiadora Ana Margarida Santos Pereira.30
A última visitação enviada ao Brasil ocorreu na Capitania do Grão-Pará e
Maranhão entre 1763 e 1769 pelo visitador Geraldo José de Abranches, sendo considerada
uma inquirição extemporânea, tendo em vista que no contexto do século XVIII – dado o
avançado processo de territorialização da Igreja no Brasil, bem como a densidade do clero
colonial e da presença de padres comissários, por exemplo – o mecanismo das Visitações já
não era costumeiramente utilizado pelo tribunal31.
O objetivo central desta pesquisa consistiu em analisar a documentação
inquisitorial resultante destas visitações a fim de identificar os comportamentos que se
contrapunham ao considerável – e supostamente inquestionável – lugar de poder ocupado
pelo Santo Ofício no âmbito das instituições religiosas portuguesas de controle e de
disciplinamento social atuantes no espaço colonial brasileiro. Em outros termos, objetivou-se
demonstrar a existência de diferentes maneiras de resistir à ‘pedagogia do medo’ empregada
pelo Santo Ofício.
Os medos de uma sociedade são significativos para visualizarmos e analisarmos
historicamente os tipos de perigos que circulavam no imaginário social de outros tempos, mas
também para compreendermos as tensões e as relações de força que costuraram o tecido
social em tempos e espaços diferentes. Afinal, o medo é, por definição, uma ideia ambígua: é
um estado afetivo-emocional suscitado pela consciência de um perigo, ao mesmo tempo em
que é um estado que suscita essa consciência, ou seja, o medo é um sentimento de
insegurança diante de uma pessoa, situação ou objeto; mas é também um estado de alerta para
a sobrevivência do indivíduo diante do objeto de temor32. Paradoxalmente, o medo da
Inquisição paralisava de temor alguns indivíduos, ao mesmo tempo em que estimulava outros
a adotarem comportamentos que objetivavam a preservação da vida, da sobrevivência
material e da honra social, individual ou familiar, por exemplo.

30
Esta historiadora explica que o maior volume da documentação produzida nesta visitação não chegou até o
Tempo Presente devido a uma intempérie enfrentada pela comitiva inquisitorial no retorno a Lisboa, pois, a
embarcação em que Luís Pires da Veiga estava presente foi tomada de assalto por corsários e a fim de resguardar
o segredo dos registros inquisitoriais o visitador teria jogado ao mar os livros da referida visitação, restando-se
apenas um relatório de memória produzido posteriormente por Pires da Veiga. Cf. PEREIRA, Ana Margarida
Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do Sul: de meados do séc. XVI ao início
do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.
31
Sobre o assunto, Cf. MATTOS, Yllan de. 'Uma visitação fora de seu tempo? O Santo Ofício no Grão-Pará
pombalino (1750-1774)' In. CALAINHO, Daniela Buono (Org.). Caminhos da intolerância no mundo ibérico do
Antigo Regime. Rio de Janeiro: Contra-capa, 2013, p. 1-20.
32
Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989; NOVAES, Adauto. (Org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora Senac;
Edições Sesc-SP, 2007.
22

Esta tese propõe, nesse sentido, investigar uma história do medo ‘a contrapelo’ –
o que significa dizer, que se trata de uma história dos enfrentamentos de homens e de
mulheres comuns aos medos que os circundavam, efetiva ou imaginariamente, em relação à
Inquisição. Ao refletir sobre o medo como objeto da história, Jean Delumeau apontou
certeiramente um dos problemas enfrentados na abordagem histórica sobre esta temática.
Assim sendo, este historiador questiona:

Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na história? Sem
dúvida, por causa de uma confusão mental amplamente difundida entre medo e
covardia, coragem e temeridade. Por uma verdadeira hipocrisia, o discurso
escrito e a língua falada – o primeiro influenciando a segunda – tiveram por
muito tempo a tendência de camuflar as reações naturais que acompanham a
tomada de consciência de um perigo por trás das falsas aparências de atitudes
ruidosamente heroicas33.

Nesse sentido, em alinhamento com Delumeau, consideramos que essa é uma


confusão significativamente contraproducente, tendo em conta que a simples oposição entre
medo e coragem – que coloca o primeiro como uma emoção ‘menos virtuosa’ em relação à
segunda – é pouco explicativa, precisamente pelo fato de que a coragem não se define pela
ausência do medo, mas sim pelo seu domínio. A identificação de estratégias e de táticas de
resistências ao Santo Ofício permite, portando, descortinar episódios e situações que põem em
xeque a falsa oposição entre coragem e medo.
O espectro de terror que caracterizou historicamente a ação do Santo Ofício esteve
presente desde o seu momento fundante, afinal, o estabelecimento do Santo Ofício português
foi consideravelmente motivado por uma série de perigos oriundos da mentalidade obsidional
moderna, entre os quais as heresias que – conforme Jean Delumeau –, perseguiam
incansavelmente os homens de Igreja34. No entanto, no Santo Ofício, os medos sentidos pela
comunidade cristã e pelos dirigentes eclesiásticos transformaram-se na força motriz dos
medos que se queria fazer sentir – medo da punição, da danação eterna, da prisão
inquisitorial, da morte nas fogueiras etc.
A ‘pedagogia do medo’ apresentou-se como um instrumento de controle
inquisitorial – apesar de também poder ser entendida, em outro sentido, como um tipo de
resistência combativa às heresias que ameaçavam a integridade do corpo social cristão. O
primeiro capítulo desta tese, intitulado Um Tribunal do Medo na Época Moderna, aborda
essas questões, apresentando o contexto histórico de fundação das Inquisições modernas, a

33
Ibid., 1989, p. 13.
34
Ibid., p. 357.
23

emergência da intolerância religiosa no espaço ibérico e os métodos de ação e intimidação


inquisitoriais. Para tanto, fez-se mister discutir mais detalhadamente o conceito de ‘pedagogia
do medo’ proposto pelo historiador Bartolomé Bennassar e seus usos na historiografia dos
estudos inquisitoriais, afinal, ‘pedagogia do medo’ é um conceito historiográfico
desenvolvido por Bennassar e operacionalizado a fim de explicar os dispositivos de
intimidação inquisitorial no contexto de estabelecimento dos tribunais ibéricos,
especificamente do tribunal espanhol – o que significa dizer que sua utilização para a
realidade colonial luso-americana precisa estar relacionada às especificidades dos
mecanismos de inspeção e ação inquisitoriais no ‘Novo Mundo’.
Nos estudos do campo da história social, a abordagem acerca das resistências de
grupos socialmente marginalizados geralmente evidencia performances coletivas cuja
‘resistência’ implica em ataques organizados ao objeto de poder – indivíduos, grupos,
instituições etc. –, como, por exemplo, motins, insurreições, sabotagens e rebeliões, ou seja,
situações e acontecimentos que apontam confrontos supostamente com maior concretude,
posto que explicitamente mais visíveis e ‘palpáveis’. As formas de resistências de que trata
esta tese são, sem dúvidas, mais sutis, discretas, improvisadas no cotidiano e mesmo
clandestinas, em alguns casos.
É certo que o padre Rafael Bluteau, em seu conhecido dicionário de língua
portuguesa, apontava que resistência era uma “reação, força que huma coisa poe a outra; que
se move contra ela [...] [uma] oposição de força armada ao ataque, ou de força a qualquer
violência”35. No entanto, Bluteau complementa esta ideia, dizendo que resistência é também a
“vontade que nega, e repugna consentir, sofrer, obedecer” 36
; resistência é, de acordo com a
definição do autor, uma tomada de posição diante de um embaraço, de uma dificuldade e/ou
de um estorvo. Com efeito, a análise da documentação inquisitorial das visitações coloniais
permite visualizar os arranjos e os estratagemas – ou seja, diferentes formas de resistência –
adotadas por indivíduos em situações ocorridas antes e concomitante aos períodos de
visitação. Por isso mesmo, alguns conceitos e categorias são nucleares na abordagem proposta
nesta tese.
Por estratégia e tática, seguimos as balizas conceituais definidas pelo historiador
Michel de Certeau, entendendo as estratégias como cálculos ou manipulações de longo prazo
que visam a enfrentar, ou resolver, os problemas decorrentes das relações de força entre os

35
BLUTEAU, Rafael. Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e
acrescentado por Antônio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro, Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo
Ferreira, 1789, vol. II, p. 332.
36
BLUTEAU, loc. cit.
24

sujeitos (ou instituições) de poder; enquanto a tática, é a arte do improviso; é a capacidade


criativa de fazer frente às figuras de poder dominantes37. Do antropólogo norte-americano,
James Scott, tomamos de empréstimo as noções de discurso público e discurso oculto a fim
de discutir as relações entre dominação e resistência social. O primeiro seria, na perspectiva
do autor, uma forma de designar as relações explícitas entre os subordinados e os detentores
do poder, sendo definido não apenas por atos discursivos, mas principalmente pelos
comportamentos dos subordinados diante da figura (pessoa, instituição, etc.) dominadora. Por
sua vez, discurso oculto é aquele que se encontra fora do campo de observação direta dos
detentores do poder; é o comportamento adotado nos ‘bastidores’ e constituído por
enunciados, gestos e práticas que confirmam ou contrariam o que aparece no discurso
público.38
Com efeito, as fontes da Inquisição evidenciam relevantes registros sobre
acontecimentos que ocorriam fora da zona de observação dos inquisidores e que só chegaram
até nós precisamente por terem sido descortinados nas denúncias, nas confissões e nos
testemunhos realizados na Mesa inquisitorial. Os documentos analisados fornecem
importantes exemplos das tensões latentes entre a Inquisição e sociedade colonial. Os atos
públicos de deferência e respeito às autoridades religiosas, em que se incluía o próprio Santo
Ofício, esbarravam-se com discursos ocultos representativos das heterodoxias e
microrresistências presentes no universo colonial.
Nesse cenário, tanto o Santo Ofício quanto os indivíduos perseguidos e/ou
temerosos desenvolveram nessa relação de força, cada um a seu modo, estratégias e táticas –
de defesa e de ataque. Por isso mesmo ancoramo-nos no exercício de análise das fontes
inquisitoriais para a operacionalização dos conceitos e das categorias supracitadas. Isto
porque, um mesmo tipo de comportamento – uma fuga, por exemplo – poderia ocorrer de
maneira orquestrada ou de acordo com as necessidades urgentes impostas pelo cotidiano; por
sua vez, os discursos ocultos poderiam se apresentar tanto sob a forma de estratégias quanto a
partir de táticas de oposição à instituição inquisitorial.
Os cristãos-novos, primeiros perseguidos pela sanha inquisitorial, parecem ter
sido igualmente os primeiros a desenvolver formas de lidar com as hostilidades de que eram
vítimas. O judaísmo oculto – também denominado criptojudaísmo – certamente se apresentou
historicamente como a mais elementar, e talvez a primeira, forma de resistência às
perseguições religiosas efetivadas pela Inquisição portuguesa. A obstinação dos judaizantes

37
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
38
SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência – discursos ocultos. Letra Livre, Lisboa, 2013.
25

em tentar manter sob segredo sua identidade religiosa e cultural camuflada, exemplifica as
relações de força presentes naquele contexto de discriminação e intolerância religiosa; afinal,
como afirmou a historiadora Anita Novinsky, “o medo que o tribunal da Inquisição incutiu
em todo o povo português criou uma estratégia de defesa – o segredo”.39
O criptojudaísmo foi discurso oculto; um tipo de resistência social, cultural e
religiosa, apresentando-se como uma estratégia de sobrevivência que implicava na construção
de táticas cotidianas de autopreservação – fechar-se em casa para evitar a observação dos
vizinhos, reunir-se clandestinamente para realizar as celebrações religiosas do judaísmo
oficial, adotar linguagem cifrada, ter uma postura dúbia e, não raro, dissimulada diante da
autoridade inquisitorial, por exemplo. No segundo capitulo, intitulado Discursos Ocultos:
criptojudaísmo colonial – resistência social, cultural e religiosa, analisamos a documentação
das visitações inquisitoriais dos séculos XVI e XVII a fim de explicitar os comportamentos –
estratégica ou taticamente – adotados pelos cristãos-novos acusados de judaísmo,
considerando, portanto, o judaísmo oculto como um tipo de “arte da resistência”.40
Ao longo dos seus quase trezentos anos de existência, o tribunal do Santo Ofício
português foi uma instituição combativa, mas também combatida. No terceiro capítulo, Entre
medos e resistências: o Santo Ofício no Brasil colonial, abordamos outros tipos de combates
contra o Santo Ofício. Nesta discussão estão presentes diferentes formas de oferecer
resistência à Inquisição como, por exemplo, os casos de fugas individuais e coletivas
motivadas pelo medo da perseguição inquisitorial, pelo perigo iminente de prisão e do
confisco de bens. Em muitos casos, fugir da Inquisição tornava-se a única possibilidade de
não sucumbir à engrenagem punitiva do tribunal, de modo que esses deslocamentos no espaço
são também representativos das resistências sociais desenvolvidas como reação à ‘pedagogia
do medo’ inquisitorial.
Neste último capítulo também discutimos os combates ao Santo Ofício por meio
dos atos de fala. A Inquisição portuguesa foi objeto de uma série de discursos detratores que
circulavam em diferentes ‘níveis culturais’ – afinal, como afirmou o historiador italiano Carlo
Ginzburg, “entre a cultura das classes dominantes e das classes subalternas existiu, na Europa
pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências reciprocas, que se movia de

39
NOVINSKY, Anita. Do outro lado da vida: a construção do discurso marrano. In: FURTADO, Júnia Ferreira;
RESENDE, Maria Leônia Chaves de (org.). Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo
Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII)., Belo Horizonte: Fino Traço,
2013, p.175.
40
SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência – discursos ocultos. Letra Livre, Lisboa, 2013.
26

baixo para cima, bem como de cima para baixo”41. Com base na documentação analisada,
identificamos as injúrias populares direcionadas ao Santo Ofício e aos seus representantes
locais, sendo estas geralmente compostas por blasfêmias e proposições de cunho herético que
continham significativo tom de escárnio e teor certeiramente ofensivo à reputação
pretensamente ilibada dos procedimentos do tribunal de fé.
De maneira igualmente relevante, abordamos as críticas oriundas de circuitos da
cultura letrada que foram direcionadas ao Santo Ofício no contexto dos séculos XVII e XVIII,
destacando-se os embates do padre Antônio Vieira (1608-1697) com a Inquisição, na segunda
metade de Seiscentos, bem como as críticas às instituições de Antigo Regime formuladas pelo
pensamento ilustrado do século seguinte; contexto este que possibilitou o desenvolvimento de
propostas de reformas do tribunal inquisitorial aventadas pelo magistrado Dom Luís da Cunha
(1662-1749), diplomata português da corte de D. João V (1689-1750), e efetivadas no período
em que Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, foi Secretário de Estado
dos Negócios Interiores do Reino (1756-1777), durante o reinado de D. José I (1750-1777).
As mudanças nos procedimentos inquisitoriais e a diminuição do poder dos inquisidores
representaram a descontinuidade do uso e/ou eficácia da ‘pedagogia do medo’? A análise do
contexto social e político do Santo Ofício na segunda metade do Setecentos permitirá alcançar
a melhor compreensão desta questão.
O conjunto documental analisado neste trabalho foi formado por fontes impressas
publicadas e documentos manuscritos sob guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
na cidade de Lisboa, Portugal. Utilizamo-nos, fundamentalmente, dos livros das denúncias e
das confissões das visitações inquisitoriais enviadas ao Brasil durante o período colonial. Ao
longo do século passado, os livros manuscritos originais passaram por um processo de
transcrição, organização e publicação desempenhados por historiadores como Capistrano de
Abreu42 e Rodolfo Garcia43; Eduardo de Oliveira França e Sônia Siqueira44; José Roberto do

41
Cf. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as ideais de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 13.

42
Cf. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça -
Denunciações da Bahia - 1591-1593. Introdução de Capistrano de Abreu. São Paulo: Ed. Paulo Prado, 1925;
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça –
Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: F. Briguet, 1935. Neste
trabalho, utilizamos esta edição das Denunciações da Bahia publicadas em 1925 por J. Capistrano de Abreu e a
reedição das Confissões da Bahia (século XVI) organizadas por Ronaldo Vainfas (1997). Cf. VAINFAS,
Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, Companhia das letras, 1997. Daqui
para frente, apenas: Denunciações da Bahia (1591-1593) e Confissões da Bahia (1591-1593).
27

Amaral Lapa45 e José Antônio Gonçalves de Mello46, sendo, a partir de então, reeditados e
publicados por outros historiadores.47
Além destes documentos, outras fontes impressas foram utilizadas na pesquisa
como, por exemplo, os Regimentos do Santo Ofício, publicados por Sônia Siqueira na revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB48, bem como crônicas, dicionários e
tratados políticos de época. No que se refere aos documentos manuscritos, o conjunto
analisado foi formado por livros de denúncias e ratificações, Cadernos do Promotor e
processos-crime.
O trabalho com as fontes inquisitoriais precisa levar em consideração as
peculiaridades desta tipologia documental, observando os tipos de filtros próprios destas
fontes – a linguagem inquisitorial; as intervenções dos inquisidores e notários, que
influenciavam, mesmo que indiretamente, na construção narrativa sobre os fatos; a presença
de vozes polifônicas nos registros, fazendo-se presentes a voz dos acusadores e as falas
atribuídas aos acusados e a testemunhas etc. Como nos alerta o historiador italiano Carlo
Ginzburg acerca das fontes da Inquisição:

43
Cf. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça -
Denunciações da Bahia - 1591-1593. Introdução de Capistrano de Abreu. São Paulo: Ed. Paulo Prado, 1929;
GARCIA, Rodolfo (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Denunciações da Bahia,
1618. Introdução Rodolfo Garcia, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 49, 1927. Este último
livro publicado por Rodolfo Garcia é parcial, contendo apenas as denúncias realizadas no período inicial da
visitação de 1618-1620. O restante da documentação produzida nesta visitação, inédita na historiografia,
encontra-se no livro manuscrito, de modo que fizemos uso de ambos suportes. Quando se tratar da
documentação impressa publicada por R. Garcia, utilizaremos apenas Denunciações da Bahia (1618); se se tratar
do livro manuscrito, a identificação ocorrerá com base na referência do documento no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo; neste caso: ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das
denunciações que se fizeram na visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do
Estado do Brasil. Recentemente, as denunciações do ‘periodo da graça’ da visitação de 1618-1620 na Bahia
foram reeditadas sob organização de Ronaldo Vainfas e Angelo Assis. Cf. ASSIS, Angelo Faria de; VAINFAS,
Ronaldo. A Santa Inquisição em Portugal (II). Denunciações da Segunda Visitação do Santo Ofício à Bahia.
Leiria: Proprietas, 2022.
44
Cf. FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUEIRA, Sônia (Org.). Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do
Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620,
Anais do Museu Paulista, v. XVII, 1963. Recentemente estes documentos foram reeditados. Cf. SIQUEIRA,
Sônia (Org.). Confissões da Bahia (1618-1620). Coleção Videlicet. João Pessoa: Ideia, 2011. Utilizamos esta
última edição – daqui para frente apenas: Confissões da Bahia (1618-1620).
45
Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará – 1763-1769. Apresentação de José
Roberto do Amaral Lapa. Petrópolis: Vozes, 1978. Daqui para frente apenas: Livro da Visitação do Grão-Pará e
Maranhão (1763-1769).
46
Cf. Confissões de Pernambuco (1593-1595). Na década de 1980, este historiador reeditou o livro das
denunciações de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, publicado por Rodolfo Garcia em 1929, acrescentando a este
livro as confissões desta visitação. Cf. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil: Denunciações e
Confissões de Pernambuco 1593-1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife, FUNDARPE.
Diretoria de Assuntos Culturais, 1984. Daqui para frente: Denunciações de Pernambuco (1593-1595).
47
Cf. FONTOURA, Antônio (Org.). Denunciações da Bahia: Denúncias feitas ao Santo Ofício em Salvador em
1618. Curitiba, Edição do Kindle, 2020; FONTOURA, Antônio (Org.). Novas Confissões da Bahia: Os
documentos da segunda visitação do Santo Ofício ao Brasil (s. XVII). Curitiba, Edição do Kindle, 2020.
48
Cf. Os Regimentos da Inquisição. In. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de
Janeiro, a. 157, nº 392. jul/set. 1996, p. 573-1020.
28

Naturalmente, esses documentos não são neutros; a informação que nos fornece não
é nada ‘objetiva’. Eles devem ser lidos como produtos de uma relação específica,
profundamente desigual. Para decifrá-los, devemos aprender a captar por trás da
superfície lisa do texto um sutil jogo de ameaças e medos, de ataques e retiradas.
Devemos aprender a desembaraçar os fios multicores que constituíam o emaranhado
desses diálogos49.

Com efeito, a leitura dessas fontes se esbarra recorrentemente com a linguagem


jurídica que lhe é característica e, por isso, com repetição de expressões-chave muitas vezes
burocratizantes. No entanto, para além do discurso formal contido nesses registros, é possível
perceber, em uma leitura atenta, uma série de sinais, pistas e/ou indícios que informam sobre
o universo religioso, cultural e social da Época Moderna, como propõe Ginzburg em seu
‘método indiciário’50. Nesse sentido, a leitura dos documentos inquisitoriais, fossem fontes
impressas ou manucristas, foi orientada pelas ponderações metodológicas realizadas pelo
referido historiador. Além disso, o trabalho de leitura dos documentos manuscritos foi
seguido do procedimento de transcrição paleográfica, do levantamento de índices
quantitativos, da tabulação e análise qualitativa dos dados. Optou-se pela modernização das
transcrições a fim de tornar o texto mais acessível ao público em geral, atualizando-se, para
tanto, a grafia das fontes manuscritas e impressas.
O impacto social da ‘pedagogia do medo’ inquisitorial e a reconstrução de
estratégias e de táticas de resistências ao Santo Ofício podem ser significativamente
analisados, sobretudo, com base em informações muitas vezes confusas, incompletas,
desencontradas e dispersas, mas que por sua recorrência na documentação, fornecem uma
serie de indícios que ajudam a recompor as relações de força entre o Santo Ofício e a
sociedade colonial.
Nos capítulos que seguem, medo e resistência apresentam-se como categorias
dialógicas para avaliar as reações ao exercício pedagógico de intimidação e controle
inquisitoriais no Brasil colonial. Procuramos, assim, localizar a ação do Santo Ofício na
colônia em uma espécie de entrelugar: precisamente entre a difusão do medo pelos
inquisidores e representantes locais da Inquisição e a sua recepção pela sociedade – o que
significa dizer que estivemos atentos aos rastros dos medos registrados na documentação do
Santo Ofício, mas, sobretudo, aos exemplos demonstrativos das diferentes formas de oferecer
resistência a esta máquina de perseguição. A imersão nesta história social de medos e
49
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
287.
50
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
p. 143-179.
29

resistências apresenta-se, assim, como uma abordagem que nos coloca no âmbito de uma
história das lutas, convicções, noções de mundo e interesses que orientavam múltiplas
relações de diferentes indivíduos e grupos sociais entre si e com o Santo Ofício português no
Brasil entre os séculos XVI e XVIII.
30

2. UM TRIBUNAL DO MEDO NA EPOCA MODERNA

“É preciso lembrar que a primeira finalidade do


processo e da condenação à morte não é salvar a
alma do acusado, mas buscar o bem público e
aterrorizar o povo [...]. Nenhuma dúvida há de que
instruir e aterrorizar o povo com a proclamação
das sentenças, a imposição dos sambenitos seja
uma boa ação” Francisco Peña, 1578. 51

A epígrafe acima registra um comentário feito pelo inquisidor espanhol Francisco


Peña, na segunda metade do século XVI, no contexto da atualização e reedição do
Directorium inquisitorum, também chamado de Manual dos inquisidores, de autoria do
dominicano Nicolau Eymerich – obra originalmente publicada no ano de 137652. Muito mais
do que uma evidente ratificação de uma representação, por vezes estereotipada, que
historicamente se cristalizou no imaginário social acerca dos Tribunais da Inquisição em seus
variados contextos, ou seja, de uma imagem de terror como parte fundante de sua existência, a
assertiva deste inquisidor é bastante interessante, pois é representativa de sua consciência
acerca do espectro de horror que acompanhava os procedimentos punitivos dos tribunais
inquisitoriais, sendo ao mesmo tempo um indício de que os inquisidores utilizaram
largamente o medo como um instrumento de controle social, religioso e das consciências.
Podemos dizer que se tratou, nesse sentido, de uma ação sutilmente coercitiva,
baseada em um discurso que era tanto de intimidação quanto de salvação. Um tipo de
‘pedagogia’ baseada no medo, como assinalou o historiador Bartolomé Bennassar53, ou talvez
de uma ‘catequização pelo medo’, como preferiu a historiadora portuguesa Maria José
Pimenta Ferro Tavares.54

51
Cf. EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores [Directorium Inquisitorum]; comentários de Francisco
Peña; tradução de Maria José Lopes da Silva. - 2. ed. - Rio de Janeiro Brasília, DF.: Rosa dos Tempos Edunb,
1993.
52
Ibid., 1993.
53
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole – XVª-XIXª siècles. Paris, Harchette, 1979, p. 101-138;
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 94-125;
BENNASSAR, Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su ‘pedagogia del miedo’. In.
ALCALÁ, Angel. (Org). Inquisición española e mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, p. 174-182.
54
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Inquisição: um “compellere intrare” ou uma catequização pelo medo
(1536-1547). Revista de História Económica e Social, nº 21, Lisboa, Sá da Costa, Setembro-Dezembro de 1987
(a), p. 1-28.
31

Com efeito, o binômio ‘Inquisição & medo’ é algo quase naturalizado no


imaginário social contemporâneo – como imaginar a Inquisição sem seu funcionamento estar
margeado pelo medo? No entanto, ele é revelador de uma relação histórica entre um
sentimento de insegurança social, de um lado, e da ação de uma instituição de cariz
policialesco existente em tempos e lugares diversos, de outro.
Compreender a Inquisição como uma absoluta instituição atemporal, seria no
mínimo uma tentativa ingênua, ineficaz e anacrônica de engessar em uma expressão singular
uma complexidade e uma multiplicidade de contextos, espaços e instituições. No entanto, seja
com a Inquisição medieval e/ou com as Inquisições Modernas – Espanhola (1478),
Portuguesa (1536), Romana (1542) – parece haver um denominador comum, que é um
imaginário no qual está presente a ideia de uma profunda correlação entre as ações da
Inquisição e a sutil difusão de um medo social – que é o medo, sobretudo, da própria
Inquisição.
Cabe, portanto, indagar que a emergência histórica das Inquisições Modernas foi
acompanhada de diversos tipos de medos que o discurso religioso potencializou e projetou
socialmente? Difícil questão para se responder objetivamente. No entanto, verificar como a
historiografia dos estudos inquisitoriais tem discutido o lugar do medo na história das
Inquisições, de modo geral, e da Inquisição portuguesa, especificamente, é um dos caminhos
possíveis para alargarmos nosso horizonte de compreensão acerca desta questão.
32

2. 1. O Santo Ofício português e sua ‘pedagogia do medo’: percursos historiográficos

Os estudos historiográficos sobre a história das Inquisições modernas possuem,


certamente, sua historicidade e, portanto, a história dessa historiografia é reveladora da
apropriação e da expansão de temas, de fontes documentais e de abordagens que caracterizam
a renovação historiográfica do século XX. Com efeito, desde o século anterior, obras
pioneiras dedicaram fôlego para a discussão sobre os tribunais da Inquisição na Época
Moderna. A clássica obra História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal,
de Alexandre Herculano (1853), é um dos exemplos mais significativos da historiografia
portuguesa do século XIX, cuja importância para a construção do conhecimento histórico
sobre o Santo Ofício português reside na sua força catalizadora para o trabalho nos arquivos
nacionais e o conhecimento das fontes primárias lá arquivadas. No entanto, é na produção
historiográfica do século XX que poderemos contemplar o alargamento do campo de
pesquisas acerca do Santo Ofício português.
No Brasil, a partir da década de 1920, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia,
entre outros historiadores, atuaram como divulgadores e analistas das fontes relativas às
visitações inquisitoriais ao Brasil. A publicação dessas fontes impressas e os estudos
introdutórios realizados por Abreu e Garcia possibilitaram, na historiografia brasileira, a
ampliação dos estudos sobre a Inquisição no Brasil, bem como a especialização de temáticas
nesse campo de estudo.
Nos anos 1960 e 1970, por exemplo, as discussões, tanto na historiografia
brasileira quanto na internacional, giravam em torno da problemática Inquisição e Cristãos-
novos, como se pode observar nos trabalhos de Anita Novinsky sobre a Inquisição no Brasil e
os cristãos-novos na Bahia do século XVII55; José Gonçalves Salvador, em um estudo acerca
dos cristãos-novos, jesuítas e Inquisição56 e sobre o papel dos cristãos-novos no povoamento
do Brasil57, bem como Elias Lipiner com o estudo sobre a presença dos cristãos-novos nas
Capitanias do Norte açucareiro58. Aliás, desde as publicações das obras do historiador
português Antônio José Saraiva – A Inquisição portuguesa59 e Inquisição e cristãos-novos60 –

55
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1972.
56
SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos novos, jesuítas e Inquisição: aspectos de sua atuação nas Capitanias do
Sul, 1530-1680. São Paulo: Pioneira, 1969.
57
SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro (1530 – 1680).
São Paulo: Pioneira, 1976.
58
LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima: estudos sobre os cristãos-novos no Brasil nos séculos
XVI e XVII. São Paulo: Brasiliense, 1969.
59
SARAIVA, Antônio José. A Inquisição portuguesa. Lisboa: Europa-América. 1956.
60
SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa, 6º ed., 1994. [1969].
33

operou-se de modo consistente as análises sobre o surgimento e funcionamento da Inquisição


portuguesa e sua relação com o grupo social formado pelos cristãos-novos. Já Sônia Siqueira,
com A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial61, sistematizou um estudo que se tornou
uma das maiores referências acerca da história da Inquisição no Brasil colonial.
Na historiografia brasileira dos anos 1980 em diante, os trabalhos de Laura de
Mello e Souza inauguraram uma abordagem, na produção sobre o período colonial brasileiro,
que buscou inserir-se no âmbito da História das Mentalidades e do Imaginário, tratando com
mais ênfase das relações entre a religiosidade popular e a feitiçaria colonial62. Outras
pesquisas como as de Luís Mott63, de Ronaldo Vainfas64 e de Ligia Bellini65 são
representativas, por sua vez, da abordagem das fontes inquisitoriais sob o prisma das
sexualidades. Tratando-se de trabalhos produzidos no Brasil acerca da organização e
funcionamento da Inquisição Portuguesa destacam-se os trabalhos de Geraldo Pieroni66 sobre
a pena de degredo para o Brasil; o de Luiz Nazário sobre as cerimônias dos Autos-de-fé67,
bem como a pesquisa realizada por Daniela Buono Calainho sobre os familiares da Inquisição
Portuguesa no Brasil colonial68. Em se tratando dos estudos de caso, aproximados de uma
perspectiva micro-histórica, podemos destacar os trabalhos de Plinio Freire Gomes 69, de
Rossana Britto70 e de Angelo Assis71 como exemplos de uma historiografia cuja produção é
considerável nos últimos anos.
Com efeito, não nos cabe aqui fazer um extenso inventário da produção sobre o
tema das Inquisições Modernas e do Santo Ofício da Inquisição no Brasil – tarefa que apesar
de ser salutar, demonstrar-se-ia contraproducente para o escopo deste texto –, mas sim

61
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.
62
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. [1986].
63
MOTT, Luís O sexo proibido: virgens, gays e lésbicas nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus. 1988.
64
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989.
65
BELLINI, L. A coisa obscura: mulher, sodomia e Inquisição no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense. 1989.
66
PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia.
Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
67
NAZÁRIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculo de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp,
2005.
68
CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colonial. Bauru,
SP: Edusc, 2006.
69
GOMES, Plinio Freire. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição
(1680-1744). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
70
BRITTO, Rossana. A saga de Pero do Campo Tourinho: o primeiro processo da inquisição no Brasil.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
71
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no
nordeste quinhentista. São Paulo: Alameda, 2011; ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia:
Criptojudaísmo Feminino na Bahia. São Paulo: Alameda, 2012.
34

evidenciar alguns exemplos em que as categorias ‘Inquisição’ e ‘medo’ estão, explicita ou


indiretamente, relacionadas. Iniciemos, portanto, nosso percurso.
No final dos anos 1970, Bartolomé Bennassar, historiador francês especializado
na história da Espanha na Época Moderna, publicou L’Inquisition espagnole – XVª-XIXª
siècle, obra sob sua organização e que continha um texto de sua autoria: ‘L’Inquisition ou la
pédagogie de la peur’ (‘A Inquisição ou a pedagogia do medo’)72. Até onde pudemos rastrear,
este é um dos primeiros textos escritos por um historiador especialista da Época Moderna que
estabelece uma relação explícita e direta entre os tribunais inquisitoriais e seus
funcionamentos baseados em procedimentos que, segundo o autor, formavam uma
‘pedagogia’ alicerçada no medo.
Este texto foi reeditado em uma edição espanhola, também sob a coordenação de
Bennassar, que versava sobre o poder político e o controle social exercido pela Inquisição
espanhola na Época Moderna73. Além disso, o autor voltou ao tema; é certo que de forma
mais sucinta e com poucos acréscimos à discussão iniciada no artigo de 1979, em um texto
publicado nos anais de um importante simpósio internacional sobre Inquisição, ocorrido em
1983, cujo título do artigo – ‘Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su
‘pedagogia del miedo’’74 – já é indicativo da relação estabelecida pelo autor entre os
procedimentos inquisitoriais e o que pode se chamar de uma mentalidade inquisitorial baseada
numa cultura de medo.
Com efeito, Bartolomé Bennassar afirmou que, durante três séculos, a Inquisição
‘reinou’ pelo medo. A ordem que a inspirava foi medida pelo medo. Os inquisidores mais
conscientes, de acordo com o pensamento deste autor, queriam obter exatamente este
resultado, ou seja, elevar o medo como obstáculo à heresia. Dessa forma, Bennassar assevera:
“el Santo Ofício expande el terror, destila el miedo en los espiritus de los ricos y de los
pobres, de los sabios y de los ignorantes, de los eclesiasticos y de los campesinos”.75
O leitor e/ou o historiador mais perspicaz logo perguntaria sobre as razões desse
fenômeno. “Sin embargo, es muy cierto [...] que lá Inquisición produce todavía más miedo”:
“¿Por què?”76 é a questão norteadora e inicial proposta pelo autor para avaliar o lugar do
medo na história da Inquisição [espanhola]. Sua resposta sugere que foi o procedimento
72
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole – XVª-XIXª siècles. Paris, Harchette, 1979, p. 101-138;
73
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 94-125.
74
BENNASSAR, Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su ‘pedagogia del miedo’. In.
ALCALÁ, Angel. (Org). Inquisición española e mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, p. 174-182.
75
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 95.
76
Ibid., p. 96.
35

inquisitorial moderno – a maneira de conduzir o processo, de julgar, de absolver ou de


condenar, que formava uma espécie de regime penitenciário diverso dos outros existentes até
então – que serviu como um ‘dispositivo’ para a Inquisição utilizar-se da difusão do medo
como instrumento de poder e, nesse sentido, também de controle, social e religioso.
De fato, os tribunais inquisitoriais da Época Moderna – o espanhol e o português,
de maneira mais específica – caracterizaram-se historicamente pelo seu monunental aparato
de funcionamento. Foram instituições marcadas pelo seu tempo: centralizadas, hierarquizadas
e burocráticas, de um complexo funcionamento, com cargos e funções definidos e detalhados
em seus diversos regimentos. Eram, deste modo, instituições policialescas formadoras de um
aparelho criminal específico, que investigava e punia os chamados crimes de heresia. Outro
historiador francês, Jean Delumeau, ao discutir a complexificação do procedimento criminal
moderno, e especificamente a utilização de procedimentos inquisitoriais pela Justiça de
Estado, assinalou que “a ‘intimidação’ tornou-se a ideia mestra do novo procedimento”77.
Seria, portanto, o Santo Ofício um tribunal especializado na operacionalização de um
procedimento singularizado pela intimidação?
Na proposição de Bartolomé Bennassar não parece haver dúvida de que a
Inquisição provocava apreensão, receio e temor, não necessariamente devido à tortura e ao
rigor das penas – que o autor aponta como ‘falsas razões’ para o medo que o Santo Ofício
inspirava –, mas, principalmente, devido a procedimentos comuns às Inquisições ibéricas
como, por exemplo, o segredo do processo, a infâmia pública que recaía sobre os condenados
e a ameaça da miséria econômica aos quais estavam sujeitos os réus – estas sim, as
“verdadeiras razões”78 do inquietante poder exercido pela instituição inquisitorial na Época
Moderna. A ‘pedagogia do medo’ seria, então, na perspectiva deste historiador, formada por
uma série de práticas que visavam ao controle social e à obediência religiosa, entre as quais se
destacam a cultura do segredo, a construção de uma memória social infame sobre os réus (e
sua familia) e a ameaça da ruína econômica por meio dos confiscos de bens.
Sobre a tortura, Bennassar envereda em uma discussão considerada por vezes
polêmica. Ao analisar o uso da tortura pelos tribunais ibéricos, tomando como exemplo o caso
da Inquisição espanhola, o autor sublinha que os tormentos não eram exclusividade
inquisitorial, tendo em vista que faziam parte do processo penal clássico no âmbito das
instituições judiciais do Antigo Regime. O ponto de vista do autor não eufemiza os efeitos

77
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 357.
78
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 110-123.
36

sociais violentos ocasionados em decorrência desta prática, tampouco nega seu uso pela
Inquisição; ao contrário, explica que a utilização deste procecimento era legitima e largamente
entendida como parte do processo criminal.
Ao utilizar alguns dados referentes ao tribunal da Inquisição de Toledo, Bennassar
demonstrou que o uso da tortura foi burocrático, regimental e, em certo sentido, pontual: “lo
cierto es que el empleo de la tortura na ha sido jamás la regla pera la Inquisición y puede
incluso aparecer, en ciertas épocas, como la excepción” e continua dizendo que “la coyuntura
politica o religiosa modifica el comportamento de los jueces de tal manera que hay que evitar
generalizaciones”79. Não obstante a sua advertência, a conclusão, talvez generalizante, a que
chega Bennassar é a de que o uso do tormento – como à época era chamada a tortura fisica –,
na Inquisição [espanhola], permaneceu muito limitado tanto nas suas modalidades quanto nas
áreas de aplicação e justamente devido a sua baixa frequência. Seria um procedimento que
não justificaria a temível reputação da Inquisição. Para Bennassar, a tortura configura,
portanto, uma falsa razão ou um falso elemento para a ‘pedagogia do medo’ engendrada pela
Inquisição.80
Para o caso especifico da Inquisição portuguesa, Ronaldo Vainfas81 discutiu sobre
o sistema punitivo da Inquisição em Portugal, utilizando dados referentes ao tribunal de
Lisboa, abordagem que se assemelha bastante às questões desenvolvidas por Bennassar para o
caso espanhol. Além de lembrar que “[...] pelo menos até o século XVII, a tortura nada mais
era do que ‘uma prova judiciária’, equivalente às denúncias, à confissão espontânea do réu ou
à simples apuração de delitos públicos”, Vainfas, em interlocução com Bennassar, registra
que assim como na Espanha, a tortura em Portugal não era exclusiva da Inquisição, sendo
prevista também nas Ordenações Manuelinas e no Código Filipino e de corrente uso na
Justiça Civil. Vainfas concorda com Bennassar sobre o uso da tortura pelas Inquisições
ibéricas, afirmando que “a prática do tormento era [...] um procedimento burocrático, cuja
natureza e intensidade era limitada de antemão pela mesa inquisitorial” 82
. A questão é assim
resumida pelo autor:

Em suma, a prática da tortura pelo Santo Ofício, longe de ser o suplício generalizado
e arbitrário que muitos supõem, era algo mais complexo. Institucionalmente, não
passava de prova judiciária herdada do direito costumeiro, e consagrada nos códigos

79
Ibid., p.103.
80
Ibid., p.104.
81
VAINFAS, Ronaldo. Justiça e Misericórdia: reflexões sobre o sistema punitivo da Inquisição portuguesa. In.
NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresia e
arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 140-157.
82
Ibid., p. 144.
37

civis portugueses até o século XVIII, antes de o ser nos regimentos inquisitoriais.
Assim, usava o Santo Ofício em diversos casos, sobretudo de judaizantes, quando as
‘culpas’ não reuniam suficiente ‘prova’.83

No entanto, a perspicácia de sua discussão reside no alargamento da própria ideia


de tortura, ao considerar, por exemplo, que o tempo de prisão no cárcere já era por si um tipo
de tortura, produto da coerção psicológica dos réus84. Os inquisidores, por exemplo, poderiam
fazer a leitura dos libelos acusatórios antes da sessão de tormento; avisar ao réu que os maus
tratos que receberia seriam resultados de sua teimosia e obstinação no erro herético; informá-
los que a Inquisição não poderia se responsabilizar pelos possíveis danos resultantes de
execução do tormento85. Na prática, travava-se de uma transferência de responsabilidade para
o prisioneiro. Ora, se a própria ideia da ameaça do tormento constituia um tipo alternativo e
subjetivo de tortura psicologica, como desconsiderar essa dimensão imaginária do alcance
social dos procedimentos do Santo Ofício?
Outra questão levantada por Bennassar para o caso espanhol – e que Ronaldo
Vainfas exemplifica para o Tribunal português – diz respeito ao rigor das penas aplicadas pela
Inquisição, sobretudo a pena capital com morte na fogueira. Ao discutir os índices de
condenações à fogueira nos tribunais da Espanha, o autor argumenta que os vereditos de
mortes e as penas mais duras foram comuns até cerca de 1530, quando a repressão aos
judaizantes foi mais acentuada na Espanha.
A ideia sustentada pelo autor não trata sobre uma suposta brandura das sentenças
à pena capital, mas sim de que esse procedimento foi utilizado com maior volume em um
momento historicamente determinado, ou seja, nas décadas iniciais de ação do Tribunal
espanhol. Assim, este historiador argumenta que o contexto inicial de atividade inquisitorial
na Espanha construiu uma espécie de ‘memória coletiva de terror’ e que, portanto, a
Inquisição aterrorizava não pelo fato de ser uma instituição que condenava individuos
deliberadamente à morte, mas sim por ter matado milhares de pessoas ao longo dos quarenta
anos iniciais de atuação86. O espectro de terror que acompanhou o Santo Ofício português
durante seus quase três séculos de atuação tem sua formação histórica nesta memória social
das primeiras décadas de ação persecutória dos tribunais inquisitoriais ibéricos.

83
Ibid., p. 146.
84
Ibid., loc. cit.
85
SIQUEIRA, Sonia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
592.
86
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 107.
38

Como veremos mais à frente, os tipos de penas que constituíam as sentenças


inquisitoriais formavam um conjunto de operações que, longe de apenas preverem como fim
último a justiça por meio das fogueiras, ajudaram a construir um controle que era ao mesmo
tempo social e mental – ao penetrar no território das consciências – sob o lema de uma
misericórdia que não raro carregava consigo um discurso de intimidação e construía em torno
do réu reconciliado ao seio da Igreja uma memória social infame, tendo em vista sua
experiência como ‘herege’. Não obstante ter produzido socialmente uma ‘memória de terror’
em torno dos procedimentos da Inquisição, a pena capital na fogueira não é, portanto, o único
elemento que representa o rigor das penas aplicadas pelo Santo Ofício, mesmo sendo de longe
a mais impactante de suas sentenças.
À exceção dos judaizantes, principal alvo para o funcionamento dos tribunais
ibéricos, a Inquisição não representou, segundo Bartolomé Bennassar, um medo de morte: “si
el pueblo cristiano sentia un gran temor ante el Santo Ofício, no era porque tuviera miedo a la
muerte”, assevera este autor87, não obstante este medo possuir um peso significativo. Então,
quais foram os dispositivos utilizados pelo Santo Ofício para difundir um espectro de medo
que foi historicamente subserviente ao controle social operado por esta instituição? As
possíveis respostas podem ser encontradas ao observarmos o savoir faire do Santo Ofício e o
tino de seus procedimentos.
A ação da Inquisição foi substancialmente sublinhada por uma cultura do segredo.
A ‘engrenagem do segredo’, como chamou Bennassar, era parte fundamental do
procedimento inquisitorial e nela estava, em certo sentido, um dos vértices do exercicio de
poder operado pelo Santo Ofício na Época Moderna. O controle de informações por parte dos
agentes inquisitoriais funcionava durante todas as partes do processo. Aos acusados não eram
reveladas nenhum tipo de informação substancial sobre a acusação que recebera. Essa
tendência de um controle – que era social e ao mesmo tempo religioso e jurídico – esteve
coadunada com o desenvolvimento dos Estados Modernos ibéricos e com uma vontade de
poder e controle sobre os súditos88. O Santo Ofício, nesse sentido, foi a expressão religiosa
dos estados absolutistas ibéricos português e espanhol.
Nos Regimentos do Santo Ofício não faltam instruções para que os inquisidores
mantivessem em sigilo, por exemplo, os nomes dos individuos acusadores, as situações em
que ocorrera o delito que porventura continha matéria herética e demais detalhes como o local
e o ano do ocorrido, bem como o nome das testemunhas envolvidas. Esta foi uma estratégia

87
BENNASSAR, loc. cit.
88
Ibid., p. 111.
39

utilizada pela Inquisição que geralmente culminava com a ampliação do leque de informações
obtidas pelos inquisidores a partir do depoimento dos réus e das testemunhas, daí a metáfora
do segredo funcionar como uma ‘engrenagem’. O anonimato da identidade dos acusadores era
um convite à delação, o que poderia produzir um comportamento generalizado de
desconfianças mútuas; um sintoma de um medo coletivo em relação a uma possivel delação
ao Santo Ofício e, certamente, do que isso poderia acarretar para os destinos individuais.
Com efeito, a preocupação – e em certo sentido um esmero – em manter o
processo criminal secreto foi uma caracteristica dos procedimentos jurídicos na Época
Moderna89. No Santo Ofício português, essa cultura do segredo era parte intrínseca do
próprio funcionamento do tribunal. No entanto, exitiam três momentos em que a preservação
do segredo era particularmente evidenciada: a) durante a instrução do processo, quando se
remetia ao delito, ao local e ao tempo em que ocorrera o objeto de acusação; b) quando o réu
estava preso e, portanto, deveria manter o sigilo em sua comunicação com os outros
prisioneios sobre o andamento de seu processo e sobre o que acontecia nos cárceres; e c)
quando o prisioneiro era libertado e assinava um termo sobre manter o segredo acerca do que
aconteceu nos cárceres da Inquisição.90
É evidente que estas normativas foram muitas vezes acompanhadas de
comportamentos transgressores à manutenção do segredo inquisitorial. A promessa do sigilo
era frequentemente quebrada, notícias sobre denúncias que deveriam permanecer ocultas
circulavam com recorrência, afinal, era comum que muitos réus reconciliados contassem o
que se passou com eles no tribunal, apesar de jurarem manter segredo ao ouvir as sentenças.
Além disso, os presos comunicavam-se entre si e com pessoas fora dos cárceres geralmente
por meio de subornos realizados aos funcionários do Santo Ofício91. A política de
conservação do segredo não era, portanto, algo de alcance absoluto – o que não significa
diminuir a influência e o peso social deste dispositivo de poder da engrenagem inquisitorial.
Assim sendo, não se pode negar o efeito que essa cultura inquisitorial acerca do
segredo exerceu no imaginário social cristão, ao influenciar – ou ratificar – a construção de

89
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 38.
90
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça; MATTOS, Yllan de. (Orgs.). Inquisição & Justiça Eclesiástica.
Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 19-20.
91
Sobre o cotidiano e a comunicação dos presos nos cárceres inquisitoriais. Cf. SILVA, Marco Antônio Nunes
da. “Nos cárceres não há segredo nenhum e que se falam mui livremente como se estivessem em suas casas”: o
cotidiano dos cárceres inquisitoriais. In. GANDRA, Edgar; POSSAMAI, Paulo (Orgs.). Estudos de história do
cotidiano. Pelotas: Ed. da UFPEL, 2011, p. 37-70; CALAINHO, Daniela Buono. Morrer nos cárceres do Santo
Ofício. Revista M. Estudos Sobre a Morte, Os Mortos E O Morrer, 6 (12), 2021, p. 346–361.
40

representações baseadas em uma memória social de terror sobre a Inquisição e seus estilos92.
Eis, aqui, portanto, um dos componentes da ‘pedagogia’ inquisitorial baseada em uma politica
do medo – ou como prefere Bennassar, da ‘pedagogia do medo’.
Outro elemento dessa pedagogia instruída pelo Santo Ofício diz respeito à
memória social infame que era construída em torno dos reús penitenciados e, não raro, sobre a
sua familia – “no hay duda de que una de las razones profundas del terror inspirado por el
Santo Ofício fue la reputación de infâmia que se vinculaba a todo um linaje a partir de la
condena grave a uno de sus membros”93. O alcance do Santo Ofício era, nesse sentido, amplo
e extrapolava os trâmites de um simples processo judicial. A avaliação pública tornava-se
uma espécie de julgamento coletivo, o que acarretava muitas vezes na ‘morte social’ dos
indivíduos processados pelo Santo Ofício.
Há que se evidenciar que estamos falando de uma instituição que está inserida
historicamente em uma sociedade de Antigo Regime – ou no caso brasileiro, em uma
sociedade colonial –, profundamente marcada por hierarquias sociais; uma sociedade cujos
lugares sociais eram definidos de acordo com a ‘qualidade’ do indivíduo; que se utilizava de
estatutos de “pureza de sangue”94; que via na punição pública uma medida exemplar de
instrução da população – uma sociedade caracterizada pela “ostentação dos suplícios”.95
O Santo Ofício refinou essa característica de seu tempo ao utilizar vários meios
que ajudaram a produzir uma memória infame sobre a vida de seus penitenciados. Bennassar
aponta, para este aspecto, três meios principais: a penitência pública – a ‘menos grave’, pois
seu efeito era imediato e poderia se dissipar com o tempo –, o uso de hábitos penitenciais
degradantes conhecidos como sambenitos, por determinado tempo ou perpetuamente, cujo

92
Os chamados estilos da Inquisição se referiam ao “conjunto de usos, práticas e costumes adoptados no
processamento inquisitorial, em oposição ao Direito escrito”, ou seja, tratava-se de hábitos ou rotinas adotadas
pelos inquisidores na experiência com os réus, porém, não descritas nos Regimentos do tribunal inquisitorial.
Cf. LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição. Lisboa: Contexto, 1999, p. 105-
106.
93
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 117.
94
Os estatutos de “limpeza de sangue” impediam que cristãos-novos, mouros, negros, mestiços, e indígenas
pudessem exercer cargos públicos, militares, religiosos, bem como o ingresso em universidades. Como afirma a
historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro “honra e nobreza são identificadas na sociedade portuguesa com o
conceito de ‘pureza de sangue’. Ser puro de sangue significava não ter ascendência judaica, moura ou negra.
Comprovar que não se tinha nenhuma gota de sangue infecto significava um possível acesso a cargos políticos e
religiosos, honrarias e benefícios”; e complementa “o conceito de pureza de sangue, como atributo
profundamente depreciativo, foi tradicionalmente cultivado nos países ibéricos desde a Idade Média,
estendendo-se até os inícios do século XIX, tendo a Igreja com a principal propagadora e sustentadora de tal
mito”. Cf. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial no Brasil Colônia: os cristãos-novos. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 58; LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição. Lisboa:
Contexto, 1999, p. 160.
95
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 35-72.
41

efeito social era muitas vezes avassalador, uma vez que seu uso remontaria diretamente ao
cometimento de um crime de heresia; por fim, os impedimentos legais e as inabilitações às
quais estavam sujeitos os condenados e seus descendentes, cujo principal objetivo era o de
atingir a parcela cristã-nova da sociedade, característica do antijudaísmo ibérico. Ao participar
compulsoriamente das cerimônias públicas que tinham lugar nos Autos de fé – um exemplar
‘espetáculo de massa’, como registrou o historiador Luiz Nazário96 –, os condenados eram
postos em um lugar social de infâmia, fossem eles os ‘relaxados’ – ou seja, os condenados à
morte na fogueira –, pois esta memória recaía sobre sua família, ou os ‘reconciliados’, quer
dizer, os confessos que eram readmitidos ao seio da Igreja e da sociedade cristã e que
recebiam outros tipos de penitências, excluindo-se a possibilidade da pena capital.
A repercussão social que essa mácula acarretava foi responsável pela
desestruturação de inúmeros caminhos individuais, mas também por trajetórias de famílias
que se viram estigmatizadas e marginalizadas pelo fato de terem algum parente que foi
processado pela Inquisição. No caso de famílias cristãs-novas, isto se evidencia ainda mais,
pois, nos processos de judaísmo, sob a pressão inquisitorial, era recorrente que parentes se
denunciassem reciprocamente. Ter um parente próximo preso nos cárceres do Santo Ofício
poderia significar, nesse caso, o perigo ou a iminência de também sofrer um processo
inquisitorial.
Este não foi apenas o único elemento que acarretou a desestruturação de famílias
com parentes penitenciados. A ‘ameaça da miséria’ econômica – último item da ‘pedagogia
do medo’ apontado por Bennassar –, representava um perigo real e objetivo. Entre as penas
aplicadas pelo Santo Ofício encontravam-se duas que mais diretamente poderiam desembocar
na ruína financeira do penitenciado. O desterro por meio da pena de degredo, por exemplo,
poderia ter um efeito direto sobre as finanças de um indivíduo, principalmente para aqueles
mais modestos cujas atividades econômicas estivessem relacionadas ao comércio, uma vez
que estes indivíduos teriam que reconstruir sua rede de clientes em outros lugares, o que
denota uma diferença no efeito social das penas, dependendo do lugar e/ou classe social
destes97. Além disso, o confisco dos bens dos penitenciados representou também uma ameaça
econômica, visto que sua execução poderia deixar indivíduos e grupos familiares inteiros em

96
NAZÁRIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculo de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp,
2005.
97
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Critica, 1981, p. 120-121.
42

dificuldades financeiras – “o medo da queda em pobreza era uma realidade que acrescia à
marginalização e a infâmia”, registrou Maria José P. Ferro Tavares.98
Como se percebe, os modos de proceder da Inquisição nos leva a crer que
existiram historicamente justificativas mais do que razoáveis para a construção de
representações sobre o Santo Ofício como uma instituição cujo funcionamento foi
singularizado por uma cultura de medo. O tratamento historiográfico dado por Bartolomé
Bennassar a esta questão foi cristalizado no conceito de ‘pedagogia do medo’ a fim de
explicar por que meios a Inquisição fez uso do medo como instrumento de poder e controle
social.
Não obstante seus limites e possibilidades de operacionalização – de um lado, há
uma relativização quase que excessiva sobre alguns dos procedimentos inquisitoriais, como o
uso do tormento e o rigor das penas; de outro, a argumentação do autor culmina na limitação
desta pedagogia inquisitorial, visto sua constituição ser baseada, na interpretação do autor,
apenas nos três elementos principais apontados anteriormente, o que, em certo sentido,
minimiza o efeito e o alcance dos demais métodos de ação do Santo Ofício –, o conceito de
‘pedagogia do medo’ continua sendo provocativo e ao mesmo tempo esclarecedor. Se, de
fato, a Inquisição provocou acessos de medo em indivíduos, famílias e comunidades – como
já nos parece evidente na história e na historiografia da Inquisição –, é preciso explicar de que
modo isto acontecia, explicitando os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício. Este foi
precisamente o exercício historiográfico realizado pelo referido autor.
Na historiografia dos estudos inquisitoriais dos anos 1980, a problemática sobre o
uso do medo pelo Santo Ofício voltou a ser discutida pela historiadora portuguesa Maria José
Pimenta Ferro Tavares, que analisou os anos iniciais de ação inquisitorial em Portugal (1536-
1547), focalizando especificamente a questão da política integracionista da parcela cristã-nova
da sociedade promovida pelo rei português Dom Manuel I. Para esta autora, a Inquisição foi
um sinônimo de terror e de medo, “a intenção era obrigar a entrar no seio da cristandade toda
a heterodoxia, todo o desvio religioso, moral e social, controlando os comportamentos
individuais e colectivos”99, afirma Tavares. Para tanto, o Santo Ofício se utilizou, segundo a
autora, de um meio de controle religioso expresso através de uma catequese inspirada no
medo, chamada de ‘catequização pelo medo’ pela autora. De acordo com Tavares:

98
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Inquisição: um “compellere intrare” ou uma catequização pelo medo
(1536-1547). Revista de História Económica e Social, nº 21, Lisboa, Sá da Costa, Setembro-Dezembro de 1987
(a), p. 25.
99
Ibid., p. 14.
43

Como instrumento de controlo social, de vigilância de todo o dissidente – e,


anotemos, de todo desvio religioso moral e social –, o Tribunal do Santo Ofício
desenvolveria toda uma técnica de psicologia de choque, em toda a população do
reino. O medo, o temor, o castigo exemplar, seriam a face de todo este sistema
educativo, destinado a compelir à entrada e à identificação do marginal e dissidente
no todo que era a sociedade cristã que se definia uma perante o rei, o estado e a
ecclesia. A intenção era obrigar a entrar compulsivamente no seio da cristandade
toda a heterodoxia. Por isso, a pena devia ser exemplar de modo a ser ensinado para
todos.100

O castigo e a punição são os temas privilegiados na discussão de Maria José P. F.


Tavares. A ‘catequização pelo medo’ passava por uma estética punitiva de terror representada
pelo Santo Ofício – “abjuração pública, penitência e expiação pelo fogo faziam parte
intrínseca da ‘pedagogia inquisitorial’, numa sociedade onde era muito fácil ser-se acusado de
ser herege”, registra Tavares.101
A ideia da autora é a de que visando a eliminação das dissidências religiosas, por
meio da integração dos cristãos-novos à sociedade cristã, o Santo Ofício desenvolveu um
meio de disciplinamento religioso que compelia o indivíduo a entrar no seio da Igreja,
erradicando o erro por meio de uma pena que deveria ser exemplar, “por isso o medo, o temor
se encontravam presentes, desde a entrada e publicação do ‘período da graça’ ao seu acto
final, o auto de fé, com a procissão dos condenados, a leitura pública da culpa e a penitência
espiritual ou física”102; é este, portanto, o compellere intrare inquisitorial aludido por Tavares.
Isto posto, de acordo com esta historiadora:

Dureza e misericórdia; vigilância, castigo e catequização: era este o compellere


intrare da Inquisição. A unidade religiosa e a expurgação das heresias passavam por
esta catequização pelo medo. E esta foi a única solução encontrada pelo político para
a desejada integração da minoria cristã-nova na comunidade cristã-velha.103

Em outra publicação a ideia é assim apresentada:

Era este o compellere intrare da Inquisição. Vigiar, castigar e catequizar. A Unidade


religiosa e a expurgação das heresias passavam por esta ‘pedagogia do medo’, no

100
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Judaísmo e Inquisição: estudos. Lisboa: Editorial Presença, 1987 (b),
p. 180.
101
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Inquisição: um “compellere intrare” ou uma catequização pelo medo
(1536-1547). Revista de História Económica e Social, nº 21, Lisboa, Sá da Costa, Setembro-Dezembro de 1987
(a), p. 15.
102
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Inquisição: seu estabelecimento e actuação (1536-1550). In.
SANTOS, Maria Helena Carvalho dos. (Coord). INQUISIÇÃO, Comunicações Apresentadas ao 1º Congresso
Luso-brasileiro Sobre Inquisição. Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII. Universitária Editora,
Lisboa: 1989 (b), vol.1., p. 406.
103
TAVARES, op. cit. 1987 (a), p. 28.
44

dizer de Bennassar, a qual não divergia da metodologia utilizada pelo poder civil, no
combate à criminalidade, à marginalidade.104

Há claramente na discussão de Maria José P. F. Tavares uma repercussão das


ideias de Bartolomé Bennassar, de modo que, a nosso ver, estas são duas abordagens que se
complementam a fim de compreender uma questão em comum, que é o uso do medo como
instrumento de poder e controle inquisitorial. No entanto, é importante entender estas
concepções – de ‘pedagogia’ e de ‘catequização’ – em uma perspectiva histórica, ou seja,
compreendê-las dentro do seu horizonte de significados no tempo e no espaço. Tratar-se-ia
mesmo de uma ‘pedagogia’ ou de uma ‘catequização’ dimensionada por um espectro de
medo? Até que ponto os discursos e os dispositivos de controle e intimidação inquisitoriais
possuíam um fim pedagógico e/ou catequético?
No dicionário da língua portuguesa composto pelo padre Rafael Bluteau, podemos
encontrar a definição de ‘pedagogo’ como ‘preceptor de moços’, ou seja, com seu sentido
remetendo a sua origem etimológica grega; aquele que ensina o caminho, que é condutor, é
mestre e guia105. Por sua vez, neste mesmo dicionário, a ideia de ‘catequese’ está relacionada
a ensinar a doutrina cristã, sendo, portanto, um tipo de “instrução doutrinal de viva voz feita
aos catecúmenos”106. Dito isto, é possível afirmar que os inquisidores fizeram, de fato, às
vezes de pedagogos e/ou catequistas? Ou, antes, estas são categorias e conceitos que foram
apropriados pela historiografia e utilizados como metáforas para o exercício de coerção
refinadamente executado pelos representantes do Santo Ofício da Inquisição portuguesa?
De fato, podemos afirmar que, em certo sentido, os procedimentos do Santo
Ofício tinham um fim pedagógico variável e flutuante, posto que, não se pode deixar de ter
em mente que se tratava de um tribunal de fé cujo funcionamento tinha como principal função
extirpar os erros heréticos do corpo social cristão. Os inquisidores acreditavam ensinar o
caminho para a salvação e conduzir os faltosos para a reconciliação com a Igreja. As
pomposas apresentações das comitivas do Santo Ofício na ocasião das visitas inquisitoriais,
os sermões de fé proferidos para a comunidade, a leitura e fixação do Édito da fé e do
Monitório de culpas – o primeiro convocava a população para denunciar os crimes contra a fé
católica; o segundo listava e especificava quais crimes eram esses – fizeram parte do

104
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Judaísmo e Inquisição: estudos. Lisboa: Editorial Presença, 1987 (b),
p. 185.
105
BLUTEAU, Rafael. Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e
acrescentado por Antônio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. (Volume II: L – Z), Lisboa: Na Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 175.
106
Ibid., p. 246.
45

cerimonial que objetivava informar a população e, ao mesmo tempo, demonstrar o poder do


Santo Ofício. Na documentação da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil não faltam
referências que indicam a recepção social destes dispositivos pedagógicos, como, por
exemplo, o caso de André Pinto, morador no Cabo de Santo Agostinho, na capitania de
Pernambuco, que – ao confessar-se em 1594 por ter dito certa vez que o estado dos casados
era melhor que o dos religiosos – esclareceria para o visitador que apenas “quando ouviu
publicar o edito da fé e papéis da Santa Inquisição [...] soube e entendeu ser a dita proposição
errada e herética e conheceu seu engano em que estivera”.107
O aparato pedagógico que o Santo Ofício colocava em funcionamento – ou seja,
um tipo de ‘pedagogia’ que visava aos ensinamentos da obediência religiosa e o sincero
arrependimento diante da falta cometida – pareceu assim, ter tido seu discurso lastreado entre
a misericórdia e a justiça, o lema do Santo Ofício. Se a compaixão, a benevolência e a
reconciliação davam o tom misericordioso das ações inquisitoriais, a coerção, as
admoestações e o rigor das penas ofereciam a ideia da justiça e das leis aplicadas àqueles
indivíduos supostamente obstinados a não permanecer no caminho justo e correto para a
salvação de suas almas.
Foi nessa flutuação entre a misericórdia e a justiça que se situou a
operacionalização do medo pelo Santo Ofício. Assim, podemos falar de uma ‘pedagogia do
medo’ que extrapola, na nossa perspectiva, os elementos propostos por Bennassar (cultura do
segredo, infâmia pública e ruína econômica) e que se configura nos discursos e nas práticas
inquisitoriais, nas exortações, nos avisos, nas ameaças acerca das punições reservadas aos
hereges, na teatralização dos espetáculos de massa. Não se tratou, portanto, de ensinar o
indivíduo a ter medo – um tipo de emoção ou sentimento inerente à condição humana, mesmo
que provocado, expresso e representado de diferentes formas em tempos e espaços distintos –,
mas sim de ter medo dos castigos vindouros e de um futuro incerto, seja terreno ou espiritual,
e com isso alcançar o controle social e a obediência religiosa e moral de cada indivíduo.
Ao considerarmos a definição de Bluteau, não podemos dizer o mesmo acerca da
ideia de ‘catequização pelo medo’, desenvolvida por Maria José P. F. Tavares, visto que a
instrução doutrinal formal não era necessariamente a principal preocupação dos inquisidores.
Isto não significa dizer que agentes do Santo Ofício não se vissem entrelaçados com situações
frívolas fruto da ignorância e falta de instrução catequética dos denunciantes e dos
confidentes. Uns não sabiam persignar-se, ou seja, benzer-se fazendo corretamente o sinal da

107
Confissões de Pernambuco (1594-1595), p. 31.
46

cruz; outros desconheciam quais eram os mandamentos da Igreja, por exemplo. Nestes casos,
era mais comum o pêndulo para a ‘misericórdia’ inquisitorial, cujo encaminhamento dos
inquisidores muitas vezes era precisamente a doutrinação na fé cristã que ficava a cargo de
clérigos regulares e seculares.
Por mais que o estudo desta historiadora se concentre nas décadas iniciais da
atuação do Santo Ofício português, com enfoque na ação do tribunal sobre a comunidade
cristã-nova recém-convertida – o que ajudaria a explicar a ideia de ‘catequização’ –, a força
conceitual da ‘catequização pelo medo’ parece ser também a sua fragilidade, ou seja, uma
categoria que opera apenas como metáfora explicativa do exercício coercitivo engendrado
pela Inquisição portuguesa, sem levar em consideração a própria historicidade da ideia de
catequização. De maneira mais ampla, poderíamos ponderar que essa ‘catequização pelo
medo’ tinha também um fim pedagógico, levando em consideração que evidenciava a
exemplaridade do castigo e da punição, cuja principal função seria a de integrar, pela força ou
pela ameaça, os indivíduos dissidentes à comunidade cristã – “castigo ‘salutar’ e perdão
tomavam igualmente parte integrante nesta metodologia de choque, desenvolvida pela
Inquisição”; “o castigo era sempre exemplar para incutir medo e disciplina”, aponta
Tavares108. No entanto, se assim fosse, seria mais producente entender essa ‘catequização’
como um instrumento de coerção, de ensinamento e de condução ao que se considerava o
verdadeiro caminho da fé, ou seja, entendê-la também como um tipo de pedagogia
inquisitorial.

108
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Judaísmo e Inquisição: estudos. Lisboa: Editorial Presença, 1987 (b),
p. 183-186.
47

2. 2. Uma historiografia do (e sobre o) medo

Como temos visto até aqui, o edifício historiográfico acerca da ideia de medo
possibilita vislumbrar a fortuna crítica construída acerca dessa temática. Estas são balizas
importantes se desejamos entender a ideia de medo em sua complexidade historicamente
contextualizada. Com efeito, a elevação do medo como um objeto de estudo para a
historiografia é algo relativamente recente – uma repercussão direta da ampliação de temas,
objetos e abordagens da historiografia francesa dos anos 1970 – e, nesse sentido, os trabalhos
do historiador francês Jean Delumeau são obras paradigmáticas acerca dos medos que
assolavam a Europa Ocidental, sobretudo, entre o final da Idade Média e a época da
Renascença.109
Em sua História do medo no Ocidente, Delumeau traz à baila os variados tipos de
medos oriundos de uma cultura obsidional da sociedade ocidental que se sentia cercada por
perigos de inúmeras naturezas. O subtítulo desta obra – ‘uma cidade sitiada’ – é
exemplarmente metafórico para ilustrar a relação da cultura cristã dirigente com os tipos de
ameaças que cercavam sua hegemonia e ortodoxia. A história do medo de Jean Delumeau é,
em grande medida, uma história dos medos do mundo cristão europeu na transição do
medievo para a Época Moderna – “na Europa do começo da Idade Moderna, o medo,
camuflado ou manifesto, está presente em toda a parte”, adverte Delumeau.110. Ao estudar os
medos na mentalidade da civilização ocidental entre os séculos XIV e XVIII, Delumeau
aborda desde os temores relacionados a fenômenos naturais ou a figuras sobrenaturais
presente na mentalidade do medievo na Europa, como o medo do mar, do escuro e de
fantasmas, por exemplo, até os medos refletidos pelo discurso religioso erudito – chamado
pelo autor de ‘cultura dirigente’ – a respeito dos comportamentos heterodoxos que eram
interpretados pela Igreja como sendo de inspiração diabólica.
De fato, a transição da Idade Média para Idade Moderna foi marcada pela
emergência histórica de variados tipos de medos, muitos deles referentes ao Diabo, inimigo
primeiro da comunidade cristã. Jean Delumeau elaborou um consistente dossiê sobre esses
medos, oferecendo uma discussão sobre os variados discursos – nos estudos teológicos, nos
sermões, na literatura, no teatro, na iconografia de época etc. – sobre o fim do mundo, sobre o
Demônio no imaginário cristão e sobre aqueles denominados de ‘agentes de Satã’ – os

109
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989; DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13 – 18) –
Bauru, SP: EDUSC, 2003. Vols. I e II.
110
Id., 1989, p. 41.
48

idolatras, os muçulmanos, os judeus e as mulheres, sobretudo aquelas associadas aos cultos


pagãos identificados pela Igreja como feitiçaria.
Em outra obra, publicada no Brasil em dois volumes, Jean Delumeau aprofunda as
111
discussões acerca de sua pesquisa sobre o medo na Época Moderna . De acordo com
Delumeau, este período foi marcado por “um discurso de medo típico das elites religiosas e
disseminado por ela: aquele a respeito dos castigos aos vindouros pecados cometidos na
terra”112, no qual estava presente um tipo de intimidação que construía socialmente acessos de
culpabilização nos indivíduos, fruto de uma “pastoral do medo”, conforme analisou no
referido estudo113. Com efeito, a pesquisa deste historiador sobre os variados medos que
circulavam no imaginário cristão-católico moderno é significativa para avaliarmos a própria
experiência histórica da emergência dos tribunais inquisitoriais na Idade Moderna, em um
momento no qual a denúncia e o combate às dissidências religiosas se encontraram com a
preservação da Igreja enquanto instituição de poder.
O espectro de medo que envolveu o Santo Ofício pareceu se situar, portanto, entre
os medos sentidos pela cultura dirigente cristã e aqueles que esta pretendeu fazer sentir.
Assim sendo, podemos dizer que o Santo Ofício foi uma representação da cultura obsidional
cristã do início da Época Moderna – voltaremos a essa questão mais à frente de nosso estudo.
Por ora, basta-nos apenas sublinhar a importância das pesquisas de Delumeau para o estudo
sobre o medo na Época Moderna, tendo em conta que – não obstante tratar de questões mais
amplas do que a relação especifica acerca do emprego do medo pelo Santo Ofício – estes
trabalhos fornecem-nos uma densa contextualização sobre uma sociedade caracterizada por
uma cultura de medo cujo estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição foi um de seus
produtos.
Na historiografia brasileira, a temática sobre o medo no imaginário social
moderno pode ser observada de maneira mais ou menos pontual em diferentes trabalhos. No
entanto, isto não significa dizer que esta questão deixou de ser discutida pelos historiadores
brasileiros. Existe uma clara repercussão, inclusive, das ideias de Bartolomé Bennassar e da
interpretação de Jean Delumeau sobre a emergência histórica de medos presentes na
mentalidade europeia em um período de longa duração.

111
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13 – 18) – Bauru, SP:
EDUSC, 2003. Vols. I e II.
112
DELUMEAU, Jean. Uma pesquisa histórica sobre o medo: razões, explicações e conclusões. In. Revista
MultiTextos. O medo no Ocidente. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ CTCH, nº 03. 2006. Paginação irregular.
113
DELUMEAU, op. cit., p. 11-434.
49

Ao tratar da construção da figura do Diabo no imaginário cristão, Carlos Roberto


F. Nogueira muito se aproxima da discussão realizada por Jean Delumeau sobre a ascensão de
uma cultura demonológica na Baixa Idade Média e na Europa Moderna, de modo que não se
pode deixar de notar a expressa semelhança entre ambas narrativas. A título de exemplo,
temos Nogueira afirmando que:

O início da Modernidade na Europa ocidental é marcado por um incrível medo do


Diabo. O Renascimento herdou os conceitos e imagens demoníacas que foram
determinados e multiplicados no decorrer da Idade Média, mas lhes emprestou uma
coerência, uma importância e uma difusão jamais alcançadas.114

Aqui é perceptível a repercussão da História do medo no Ocidente, publicada


originalmente no ano de 1978. Nesta obra, Delumeau já sublinhara:

A emergência da modernidade em nossa Europa ocidental foi acompanhada de um


inacreditável medo do diabo. A Renascença herdava seguramente conceitos e
imagens demoníacos que se haviam definido e multiplicado no decorrer da Idade
Média. Mas conferiu-lhes uma coerência, um relevo e uma difusão jamais atingidos
anteriormente.115

Muito mais do que uma mera influência, trata-se aqui do próprio Delumeau
falando por meio da pena do historiador brasileiro. Carlos Roberto F. Nogueira chega também
a fazer alusão a uma ‘pedagogia do medo’, não especificamente aquela discutida por
Bennassar, mas outra, baseada em discursos demonológicos que difundiram o medo da figura
do Diabo e, por conseguinte, do inferno e de seus ‘agentes’ – outro evidente uso das
categorias aventadas por Delumeau.
Laura de Mello e Souza e Iza Chain foram outras historiadoras que também
estabeleceram, em suas interpretações, interlocuções profícuas com Bartolomé Bennassar e
Jean Delumeau, respectivamente, sobre a emergência histórica da feitiçaria na Idade Moderna
e sobre os reflexos da demonização praticada pela Igreja na constituição da religiosidade
brasileira – a primeira diz que “[...] a tortura integrava a pedagogia do medo, que assombrou a
Época Moderna” 116
, ao passo que a segunda baseia-se fundamentalmente no estudo de

114
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986, p. 73.
115
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 239.
116
SOUZA, Laura de Mello e. A feitiçaria na Europa Moderna. Editora Ática, 1987, p. 38. Não obstante a
utilização da expressão ‘pedagogia do medo’, o emprego deste termo pela autora parece, nesse caso especifico, ir
de encontro as proposições de Bartolomé Bennassar, tendo em vista que segundo este autor, o tormento não era
parte integrante da ‘pedagogia do medo’, como vimos anteriormente.
50

Delumeau para conduzir a abordagem do seu problema de investigação. Desta feita, ao


acompanhar a discussão de Delumeau, Chain registrou:

Acusando bárbaros [sic], muçulmanos, judeus e mulheres praticantes de ritos pagãos


milenares de tramarem contra a fé em Cristo, os dirigentes clericais instauraram o
paroxismo de um medo nas populações de então, identificando o grande inimigo do
qual aqueles acusados eram apenas agentes menores: o Diabo.117.

Em seu estudo sobre Inquisição, moral e sexualidade no Brasil colonial, Ronaldo


Vainfas também já fazia referência à ideia de ‘pedagogia do medo’ ao afirmar que a
conivência da sociedade para com a ação inquisitorial foi uma de suas resultantes. Para este
autor, o uso do medo foi largamente empregado pelo Santo Ofício durante as visitas de
inspeção inquisitorial realizadas no Brasil – as chamadas Visitações –, tendo em vista que a
instalação da comitiva inquisitorial provocava uma espécie de pânico generalizado: “a simples
chegada dos visitadores, as solenidades de convocatória ao povo, os monitórios e os pregões
logo geravam uma atmosfera de vigilância, um atiçar de memórias, de sentimento de culpa e
de acessos de culpabilização”118. Ao se referir à primeira visitação do Santo Oficio enviada ao
Brasil, em 1591, este historiador assevera:

É-nos possível reconstituir um pouco dessa massa de sentimentos contraditórios que


a todos assolava, examinando certas motivações do confessar e do acusar na
visitação dos quinhentos. Os que atendiam à convocação do visitador, apressando-se
a delatar erros alheios ou confessar os próprios, eram movidos por algumas espécies
de medo. Antes de tudo pelo medo de ser acusado, o que levava muitos a se
anteciparem às denúncias apresentando-se ao visitador ou a delatarem os outros para
‘mostrar serviço’ à Inquisição.119

Na perspectiva do autor, as visitações inquisitoriais alteravam o fluir do cotidiano


social, arruinando laços familiares, de amizade e de solidariedade. O espectro de medo que
circundava a Inquisição se expandia até alcançar o cotidiano, produzindo uma sensação de
desconfianças mútuas nas relações interpessoais e comunitárias. Quem enfrentou mais direta e
especificamente esta questão sobre o rompimento de laços sociais de amizade e solidariedade
em decorrência da ação inquisitorial foi a historiadora Ângela Vieira Maia, em sua obra À
sombra do medo: cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar, analisando, para

117
CHAIN, Iza Gomes da Cunha. O diabo nos porões das caravelas: mentalidades, colonialismo e reflexos na
constituição da religiosidade brasileira nos séculos XVI e XVII. Juiz de Fora: Ed. UFJF, Campinas: Pontes
Editores, 2003, p. 11.
118
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 226.
119
VAINFAS, loc. cit.
51

tanto, a documentação da visitação inquisitorial quinhentista realizada nas capitanias da


Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, entre os anos de 1591 e 1595.120
Ao seguir o rastro da discussão iniciada por Vainfas, Ângela Maia avaliou o
impacto que a visitação quinhentista alcançou nos relacionamentos sociais entre cristãos-
velhos e cristãos-novos, argumentando que a presença do Santo Ofício trouxe consigo
mudanças significativas no cotidiano local, de modo que, segundo esta historiadora registra:

As denúncias e as confissões apresentadas diante da Mesa do Visitador são indícios


de medo; medo de ser acusado ou de ser suspeito. Esse medo que levava homens e
mulheres a confessar, denunciar e apontar, levantou suspeitas, desorganizou a
sociedade desestruturando a convivência das pessoas na Colônia, beneficiando uma
instituição que defendia a ferro e fogo uma ortodoxia religiosa, moral e mental para
manter intocado um modelo próprio de Poder 121.

E complementa:

O Medo, usado como arma pelo Tribunal, desencadeou a desconfiança e a


perseguição, desestruturando as formas de convívio e cooperação que a Colônia
havia encontrado, deixando-a com isso socialmente mais frágil e submissa aos
padrões de atitude estabelecidos como corretos pela Metrópole portuguesa.122

Para Ângela Maia, estava em desenvolvimento no Brasil do primeiro século de


colonização um modelo de integração social entre cristãos-velhos e cristãos-novos baseado
em uma cooperação recíproca, na qual os preconceitos em relação aos cristãos-novos, devido
à sua ancestralidade judaica, foram deixados de lado em detrimento de uma necessidade
muito mais urgente representada pelos problemas da vida cotidiana nos espaços coloniais da
América portuguesa. Um exemplo disso são os casamentos mistos ocorridos entre cristãos-
novos e velhos que a documentação inquisitorial da visitação dos Quinhentos permite acessar
e que foram inventariados pela autora123. Sobre as formas de integração social entre cristãos-
velhos e novos, esta historiadora pontua que:

Era esse modelo que achamos que começava a se desenvolver nas terras do Açúcar
quando a Visitação inquisitorial ali desembarcou. Cristãos novos e cristãos velhos já
se encontravam fortemente unidos por laços de família e da própria convivência
cotidiana. A Visitação remexeu as brasas que já estavam quase apagadas sob as
cinzas. O equilíbrio social foi quebrado. O preconceito subiu à tona acionado pelos
mecanismos de pressão psicológica forçados pelo medo e o tecido social

120
MAIA, Ângela Vieira. À sombra do medo – cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar. Rio de
Janeiro: Idealizarte, 2003.
121
Ibid., p. 53.
122
MAIA, loc. cit.
123
MAIA, op. cit. p. 110.
52

fragmentou-se. A realidade geral unida dividiu-se em várias pequenas realidades


individuais assustadas e solitárias.124

Esta é uma perspectiva que ajuda a explicar a emergência do pânico social


decorrente da ação inquisitorial e que demonstra um alcance mais específico do emprego do
medo pelo Santo Ofício, uma vez que sua operacionalização provocou diversos tipos de
rupturas no tecido social. Para Ângela Maia, a presença da Inquisição no Brasil quinhentista,
atrvés de suas visitações, caracterizou, nesse sentido, um tempo de medo, sobretudo para os
cristãos-novos sistematicamente acusados de praticarem ocultamente o judaísmo. Uma das
conclusões a que chega Maia é a de que “a Visitação inquisitorial de 1591-1595 desarticulou a
tranquila situação social vigente nas Capitanias do Açúcar, ao amedrontar as pessoas
pressionando e impressionando suas estruturas emocionais e por aí reconstruindo um
imaginário de modelos preconceituosos e excludentes”.125
Outra abordagem acerca da temática sobre o medo na história da Inquisição no
Brasil pode ser vista na pesquisa de Daniela Calainho sobre os Familiares do Santo Ofício na
colônia luso-brasileira, trabalho que lança relevantes questões para se compreender os
mecanismos locais de ação inquisitorial por meio da atuação de um corpo próprio de
colaboradores. Os chamados Familiares eram “oficiais leigos do aparelho inquisitorial de todo
o mundo ibérico no Antigo Regime que, desfrutando de inúmeros privilégios, exerciam
variadas funções: espionavam, delatavam, prendiam”126. Além de detectar e delatar as
heresias, um dos papéis exercidos por estes agentes era o de provocar a delação através de
pressões psicológicas e até mesmo físicas. O Familiar, nesse sentido, concentrava em si o
temor e o medo que a Inquisição inspirava socialmente. Para esta historiadora:

Muito mais instigadores da delação do que propriamente delatores, consideramos


esses funcionários como um dos alicerces principais no Brasil do que Bennassar
chamou de ‘pedagogia do medo’. O Familiar era a presença viva, a personificação
das práticas que vimos atormentar as populações no mundo ibérico. Prendendo
suspeitos, sequestrando-lhe os bens ‘em nome do Santo Ofício’, espionando presos,
acompanhando os condenados e entregando os ‘relaxados’ à beira do cadafalso, o
Familiar representou o elo entre o Tribunal e o réu.127

Mais recentemente, na obra Inquisição: o reinado do medo, a temática sobre o


emprego do medo como um instrumento de controle político e religioso pela Inquisição foi

124
Ibid., p. 128.
125
Ibid., p. 163.
126
CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colonial. Bauru,
SP: Edusc, 2006, p. 26.
127
Ibid., p. 137-138.
53

discutida pelo historiador britânico Toby Green128. Ao longo de quatorze capítulos Green
aborda o problema em uma perspectiva panorâmica, considerando como eventos iniciais a
formação dos Estados Ibéricos Modernos e a emergência histórica da intolerância étnico-
cultural e religiosa, que teve seu ápice com as fundações das Inquisições de Espanha e
Portugal; e como recorte temporal final o contexto histórico do século XVIII com a gradativa
derrocada dos tribunais da Inquisição em Espanha e Portugal. Para este autor a questão é
sintetizada da seguinte forma:

É evidente que a Inquisição acreditava que o medo era a melhor forma de alcançar
fins políticos. Como afirmou o historiador Bartolomé Bennassar, tratava-se de uma
‘pedagogia do medo’: uma armadura político-institucional destinada a propagar o
terror na população, cujos interesses supostamente deveria defender. O medo
transformou-se em mito com o emprego da tortura e da fogueira. Tinha início no
momento em que os inquisidores chegavam a um povoado e liam o édito de fé,
convocando os que tivessem cometido um pecado da fé, ou conhecessem alguém
que o tivesse feito, a se apresentar a eles num período de trinta dias, para se
confessar ou fazer uma denúncia. O medo se espalhava no seio da sociedade devido
ao poder da Inquisição de provocar a ruína social e econômica, confiscar os bens das
vítimas e condená-las à pobreza, expulsá-las de sua cidade natal e decretar que seus
descendentes não poderiam ocupar nenhum cargo público nem usar joias, sedas e
outros adornos de prestigio. O medo provinha, acima de tudo, do princípio do sigilo,
o que significava que o acusado desconhecia o nome de seus acusadores.129

Como podemos observar, as abordagens historiográficas que evidenciaram de


alguma forma a relação entre o modo de proceder do Santo Ofício e o emprego de uma
pedagogia baseada no medo é algo relativamente recente na historiografia, de modo geral, e
na historiografia brasileira, especificamente. Baseando-se, especialmente, nas ideias
desenvolvidas por Jean Delumeau e Bartolomé Bennassar, estes trabalhos constroem, quando
vistos em conjunto, uma visão múltipla e panorâmica das variadas formas pelas quais a
‘pedagogia do medo’ foi operada pelo Santo Ofício e se fez presente também no Brasil. Seja
por meio das consciências pesadas e temerosas em decorrência da chegada de uma visitação
do Santo Ofício, do alcance cotidiano através do rompimento de laços sociais, ou da atuação
de agentes inquisitoriais locais, por exemplo, a temática acerca do emprego do medo pelo
Santo Ofício e, consequentemente, do lugar do medo na história da Inquisição portuguesa e de
sua atuação no Brasil vem, nos últimos anos, sendo discutida nos estudos sobre a Inquisição
no Brasil.
Sob o ponto de vista da história da historiografia da Inquisição no Brasil é
interessante perceber como esta considerável produção historiográfica a qual nos referimos é

128
GREEN, Toby. Inquisição: o reinado do medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. (Originalmente publicado em
língua inglesa no ano de 2007. Cf. GREEN, Toby. Inquisition: The Reign of Fear. London: Macmillan, 2007.)
129
Ibid., p. 38.
54

também um registro histórico das preocupações dos pesquisadores e das pesquisadoras, de


suas escolhas temáticas e teóricas e de suas abordagens. Como podemos perceber, há uma
recorrente apropriação da ideia de ‘pedagogia do medo’, desenvolvida por Bennassar, e da
análise de Jean Delumeau sobre a história do(s) medo(s) no mundo ocidental cristão. Não
obstante a contribuição significativa desta historiografia, a problemática envolvendo o
binômio Inquisição e medo dificilmente resultará em avanços e novas abordagens, caso
continuemos a considerar importante apenas explicitar que existiu uma relação de
concomitância histórica entre o Santo Ofício português e o uso de sua ‘pedagogia do medo’
como instrumento de poder. Que o Santo Ofício provocava medo e incitava a emergência de
consciências pesadas pelo sentimento de culpa é algo consolidado. Interessa-nos, isto sim,
entender outros aspectos da recepção social destes dispositivos de poder e de coerção,
observando nos registros documentais do Santo Ofício diferentes tipos de reações ao exercício
policialesco perpetrado pelo aquele tribunal.
Nesse sentido, evidenciar as diferentes formas de resistência ao Santo Ofício e ao
seu poder opressor nos parece um caminho para pensar, inclusive, os limites de apropriação e
operacionalização de conceitos e de categorias desenvolvidos pela historiografia internacional
– como é o caso de Bartolomé Bennassar, preocupado com o contexto fundamentalmente
europeu do início da Época Moderna – para a análise do caso brasileiro. Em certo sentido,
poderíamos dizer que a abordagem aqui adotada trata também de uma história de medo ‘a
contrapelo’, ou seja, de uma perspectiva que busca evidenciar não apenas os comportamentos
passivos de indivíduos paralisados pelo medo que o Santo Ofício imprimia, mas de evidenciar
que a tomada de consciência do medo incutido pelos inquisidores sugere também a sua
superação – seja por meio de comportamentos de autopreservação individuais ou coletivos,
planejados ou improvisados. A preocupação com as formas de resistência ao controle social
perpetrado pelo Santo Ofício é, nesse sentido, um caminho para refletir sobre o real alcance
do medo ‘pedagógico’ e sua operacionalização pelo Santo Ofício no Brasil colonial.
55

2.3. ‘Tempo de medo’: Igreja e Inquisição no início da Época Moderna

A fundação do Santo Ofício português foi a expressão político-religiosa de uma


sociedade marcada pela circulação de variados tipos de medos. O discurso religioso de
combate às heresias e da manutenção da ortodoxia do cristianismo católico como a religião
oficial do reino e dos domínios de Portugal, com efeito, é exemplar no sentido de ser
demonstrativo dos tipos de perigos que acreditavam ameaçar aquela sociedade. Podemos
dizer, assim, que o Santo Ofício da Inquisição portuguesa foi um tribunal do medo por ser,
precisamente, um produto de uma sociedade singularizada por uma cultura obsidional? A
afirmativa simples e direta a este problema não nos parece resolver o problema posto por essa
questão. Ao levarmos em consideração os fatores e acontecimentos políticos e sociais
ocorridos na Europa, mais precisamente na Península Ibérica, na transição entre os séculos
XV e XVI, bem como o imaginário religioso (e sobrenatural) do início da Época Moderna,
podemos ampliar nosso horizonte de compreensão e, conseguintemente, elucidarmos a
questão proposta.
Voltemos aqui ao subtítulo que Jean Delumeau deu ao seu estudo sobre os medos
no Ocidente: “uma cidade sitiada”, que é utilizado pelo autor para se referir à Igreja dos
séculos XIV-XVII com vistas a expressar a ideia de que a sociedade cristã se sentia cerceada,
cercada por variados inimigos; alguns publicamente conhecidos, como os judeus, outros
encobertos – podendo estes últimos ser mesmo os próprios cristãos, caso não se
autovigiassem e servissem de instrumento ao Diabo, principal inimigo da cristandade130.
Sob o ponto de vista religioso, o início da Época Modera foi marcado por um
imaginário temeroso e ao mesmo tempo combativo. Com efeito, pode-se dizer que desde pelo
menos o século XIV se produziu na Europa uma ampla difusão sobre o temor do fim dos
tempos, de modo que a transição entre os séculos XV e XVI foi acompanhada da emergência
de uma cultura de medo constituída por elementos como a escatologia, a demonologia e a
detração de grupos socialmente marginalizados que foram acusados de heresia ou a ela
associados – geralmente chamados de ‘bodes expiatórios’ pela historiografia.
A escatologia – doutrina que versa sobre o destino final do homem e do mundo,
podendo ser expressa por meio de discursos proféticos ou apocalípticos –, por exemplo, foi
difundida no teatro religioso, na iconografia e na imprensa, recente invenção de Johannes
Gutenberg que revolucionou a velocidade da circulação da informação na modernidade; o

Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo:
130

Companhia das Letras, 1989.


56

temor do Anticristo, do Juízo Final e do fim do mundo foram, assim, medos que estiveram
presentes na constituição imaginária cristã do final do medievo e início dos tempos modernos.
Concomitante às profecias apocalípticas que incitavam o medo do fim do mundo, estiveram
presentes neste contexto alguns outros tipos de perigos que ajudam a entender não apenas a
mentalidade religiosa e sobrenatural moderna, mas também a fundação dos tribunais
inquisitoriais, no nosso caso, especialmente o tribunal português, e seu modus operandi, que
empregava a intimidação como meio para atingir a salvação das almas.
Certamente um dos maiores medos expressados pelo cristianismo oficial neste
contexto foi o medo do Diabo – “a emergência da modernidade em nossa Europa ocidental foi
acompanhada de um inacreditável medo do diabo”, registra Delumeau131. Tratou-se,
sobretudo, de um medo construído no interior dos círculos letrados da Igreja, onde a imagem
do Diabo como agente do mal e, por definição, inimigo da cristandade se distanciava da
representação do Diabo na cultura popular; imagem esta que, assim como os discursos
escatológicos sobre o fim do mundo, tiveram sua disseminação impulsionada principalmente
pela inovação técnica advinda com a imprensa. A ação diabólica sobre os homens na terra foi
uma preocupação tão significativa entre essa elite letrada que foi neste contexto que a
demonologia se fortaleceu enquanto corpo doutrinário especializado no estudo sistemático
sobre os demônios, propondo maneiras de enfrentar a ameaça representada por Satã e seus
sequazes. A este respeito a historiadora Laura de Mello e Souza pontuou:

Fundada por santo Agostinho, que deu estatuto concreto e multiforme ao demônio
imaterial do Antigo Testamento, a demonologia se enriqueceu durante a Idade
Média, sendo marcos nesta produção o Formicarium, de [Johannes] Nider, e o
Malleus malleficarum, de [James] Sprenger e [Heinrich] Kramer. Nos séculos
seguintes surgiriam seus maiores expoentes: a Démonomanie des sorciers (1580), de
Jean Bodin; a Daemonologie (1597), de Jaime VI Stuart, depois Jaime I da
Inglaterra; o Tableau de l’inconstance des mauvais anges et des démons (1612), do
juiz Pierre de Lancre.132

Entre os tratados demonológicos mais conhecidos, além do Malleus malleficarum


(1486), de autoria dos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, também denominado
de O Martelo das Feiticeiras133, outra obra de grande expressão que influenciou a cultura
demonológica moderna foi o Diretorium inquisitorum (1376) ou Manual dos Inquisidores, do
dominicano Nicolau Eymerich, reeditado e atualizado pelo inquisidor espanhol Francisco

131
Ibid., p. 239.
132
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI – XVIII. São Paulo:
Companhia das letras, 1993, p. 23 [grifo nosso].
133
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das feiticeiras [Malleus maleficarum]; trad. Paulo
Froes. - 10. ed. - Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
57

Peña, na segunda metade do século XVI134. Além da evidente função de auxiliar os homens
de Igreja a identificar a influência diabólica e os comportamentos heréticos, estas obras são
também exemplos contundentes dos discursos misóginos sobre a mulher que circulavam na
Europa medieval e moderna. Considerada fonte de todo mal, a figura feminina foi alvo de
discursos de detração e de inferiorização, sendo constantemente demonizada pelo discurso
religioso. Aliás, a figura feminina representava, na interpretação demonológica, um perigo
real por sua inclinação natural para a heresia, sendo ela considerada geralmente como um
potencial agente de Satã na terra.
As mulheres foram as principais acusadas de feitiçaria, conceito bastante amplo
utilizado pelos inquisidores para categorizar as mais diferentes práticas relacionadas com
mentalidade sobrenatural do mundo moderno, que englobavam feitiços de bem e
malquerença, curandeirismo, adivinhações etc. O principal indício de feitiçaria averiguado
pelos inquisidores era o pacto diabólico; era ele que assinava o ‘contrato’ entre o feiticeiro e o
próprio Diabo. Na imagem clássica da feitiçaria na Europa Moderna, os voos noturnos e a
participação de bruxos e bruxas em assembleias noturnas (Sabá) formaram os elementos
primordiais para que os inquisidores encaixassem um complexo sistema de valores e crenças
que tinham sua origem em ritos de fertilidade rituais de uma sociedade predominantemente
rural, em um modelo demonológico prévio, como foi o caso dos feiticeiros que na Itália do
século XVI e XVII se autoproclamavam bennandanti (‘andarilhos do bem’), isto é, espécie de
“feiticeiros bons”, estudados por Carlo Ginzburg.135
Em Portugal este universo mental de práticas mágico-religiosas foi formado
principalmente pelas técnicas e ritos mágicos presentes no cotidiano, em que não raro os
serviços das feiticeiras eram solicitados para a resolução de questões práticas do dia a dia – o
que pode ser visto nas práticas de cura que envolviam o conhecimento da medicina popular;
nas práticas de adivinhação, que serviam, por exemplo, para reaver objetos roubados ou
perdidos; nos feitiços de amor, para resolver questões passionais136. No Brasil a feitiçaria
também esteve presente e adquiriu cariz próprio ao misturar elementos da religiosidade
popular e dos ritos indígenas e africanos, culminando em um sincretismo de comportamentos
e práticas cujo registro chegou até nós através, principalmente, da documentação

134
EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores [Directorium Inquisitorum]; comentários de Francisco Peña;
tradução de Maria José Lopes da Silva. - 2. ed. - Rio de Janeiro Brasília, D.F.: Rosa dos Tempos Edunb, 1993.
135
Cf. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001; GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o Sabá. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
136
Cf. BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal
no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
58

inquisitorial137. O imaginário misógino da Época Moderna fortaleceu a repressão às mulheres,


consideradas fonte de pecado e um perigo iminente – “os processos de feitiçaria foram uma
autodefesa da ética dominante contra uma prática coletiva que a julgava em contrário e que
serviu de bode expiatório”, registou Delumeau138.
E não foi apenas a mulher a figura associada ao Diabo. Na verdade, quando
tratamos dos medos refletidos pela cultura dirigente cristã desse período estamos a falar da
coexistência de variados perigos que se acreditava que eram ameaças para a integridade do
cristianismo, entre o maior deles, as heresias. A caça às bruxas na Europa foi um fenômeno
simultâneo ao antijudaísmo ibérico, que entendia que o judeu também era um colaborador de
Satã – senão o principal deles:

[...] certo número de medos de fato culminou em conjunto, em particular, o medo de


bruxas, de blasfemadores, de heréticos, de Satã, dos judeus, dos turcos e do fim do
mundo [...]. Esta progressão no medo se desenvolve, por si mesma, sobre o fundo de
pestes, de revoltas, de guerras e de violências de todos os tipos.139

Além das mulheres e dos judeus, os idolatras e os muçulmanos também foram


considerados cooperadores do diabo, ou dito de outro modo, ‘agentes de Satã’. A segunda
parte do estudo de Delumeau se detém a esta discussão, construindo um exemplar inventário
dos medos representados por Satã e seus agentes para os cristãos do início da época
moderna140. De nossa parte, o objetivo aqui é evidenciar de que modo este horizonte cultural
sublinhado pelo medo fomentou o estabelecimento das Inquisições Ibéricas, de modo geral, e
do Santo Ofício português, especificamente na colônia luso-americana.
Por mais que a produção demonológica tenha sido incipiente na Península Ibérica
– na Espanha os tratados contra superstições foram a expressão local dessa produção141, ao
passo que em Portugal não se pode dizer efetivamente que houve uma produção
demonológica, mas sim uma cultura demonológica combativa às superstições e que buscava
diferenciar os domínios da religião e da magia, as fronteiras entre o divino e o diabólico,
construída sob a influência dos tratados publicados no restante da Europa – não se pode deixar
de considerar a significativa importância que esses escritos tiveram na fase inicial de

137
Cf. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
138
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 387.
139
Cf. DELUMEAU, Jean. Uma pesquisa histórica sobre o medo: razões, explicações e conclusões. In. Revista
MultiTextos. O medo no Ocidente. Rio de Janeiro: PUC-Rio/ CTCH, nº 03, 2006. Paginação irregular.
140
DELUMEAU, op. cit., p. 204-392 (Segunda Parte – A cultura dirigente e o medo).
141
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI – XVIII. São Paulo:
Companhia das letras, 1993, p. 24.
59

estabelecimento dos tribunais inquisitoriais de Espanha e Portugal. A cultura demonológica


deste período serviu como lastro intelectual para a atuação inquisitorial, o que pode ser visto
nos sermões, nas pregações, nos escritos quinhentistas e seiscentistas, bem como nos
Regimentos do Santo Ofício que foram, nesse sentido, um tipo de expressão normativa e
jurídica dessa cultura demonológica.
Esta mentalidade religiosa foi correspondida no âmbito da política monárquica
ibérica. Na Espanha do final do século XV a unidade política e territorial dos reinos de
Castela e Aragão, a partir do casamento dos ‘reis católicos’ Fernando de Aragão e Isabel I de
Castela engendrou não apenas a formação do Estado nacional espanhol, baseado em um só
território, uma só lei e uma só religião, mas também a formação de uma política de
discriminação social baseada em antigos preconceitos contra as duas principais comunidades
religiosas que coexistiram com o cristianismo no espaço ibérico desde pelo menos o século
VIII, como é o caso dos judeus e dos mouros – como eram conhecidos os povos islâmicos
ibéricos.
A centralização política da Espanha foi acompanhada pela exclusão e perseguição
social a estes grupos. Nesse contexto, Estado e Igreja atuaram juntos na formulação de
discursos de detração acerca das minorias religiosas presentes no território espanhol e ibérico,
na associação dessas crenças religiosas à heresia e no seu combate. Para tanto, os monarcas
espanhóis estabeleceram seu próprio tribunal da Inquisição em 1478, por meio da assinatura
da bula Exigit sincerae devotionis affectus pelo papa Sisto IV.
Em 1483, Tomás de Torquemada foi nomeado como o primeiro grão-inquisidor
da Espanha, sendo um dos grandes responsáveis por ajudar a construir uma imagem
terrificante acerca do tribunal inquisitorial espanhol. Foi este inquisidor que reativou o uso
dos sambenitos pela Inquisição moderna e que refinou a legislação inquisitorial na Espanha –
baseada inicialmente no Manual dos Inquisidores de Eymerich –, ao decretar, em 1484, um
código de conduta para os inquisidores conhecido como Instrucciones. Também foi
Torquemada que promoveu a publicidade do tribunal espanhol a fim de fortalecer a força de
seu controle religioso. “Para aumentar o temor público e o impacto dos autos”, diz Toby
Green, “o inquisidor-geral Torquemada ordenou que 15 dias antes de cada auto de fé o evento
fosse anunciado publicamente por toda a cidade por uma procissão de oficiais montados”,
fazendo com que “a Inquisição fosse, pela primeira vez, um assunto verdadeiramente
público”. 142

142
GREEN, Toby. Inquisição: o reinado do medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 46.
60

Nesta conjuntura, a Espanha projetava-se nos cenários político e econômico como


uma grande potência mundial. A ‘descoberta’ da América por Cristóvão Colombo; a
expedição do Decreto de Alhambra, que ordenava a expulsão dos judeus da Espanha ou sua
conversão ao catolicismo; a retomada da cidade de Granada e a expulsão dos mouros,
episódio que finalizava o longo processo da Guerra de Reconquista – todos esses
acontecimentos ocorridos em 1492 – deram à Espanha um sentido de união nacional e de
força. O estabelecimento do tribunal inquisitorial neste reino foi, nesse sentido, a
representação religiosa da política de fortalecimento do moderno Estado espanhol.
O discurso de combate às heresias fundamentou a perseguição aos grupos
considerados inimigos religiosos e políticos da monarquia espanhola, nomeadamente os
conversos e mouriscos. Com a fundação da Inquisição, “o medo e o terror tomou conta do
país, sendo os conversos duramente castigados pelo Tribunal da Inquisição. Muitos judeus
procuraram proteção em Portugal, na tentativa de escapar à morte e aos maltratos do Santo
Ofício”, diz Maria Luiza Tucci Carneiro143. Essas fugas foram o primeiro efeito da política de
intolerância religiosa espanhola que repercutiu diretamente no reino vizinho.
A perseguição institucionalizada aos mouros e aos judeus foi, de fato, um dos
principais elementos que norteou as relações políticas entre as Coroas ibéricas no início da
Época Moderna. O decreto de expulsão dos judeus e dos mouros de Portugal (1496) foi um
dos resultados diretos do contrato de casamento do rei português Dom Manuel com a infanta
Isabel, filha dos reis espanhóis – casamento que lhe oferecia uma posição estratégica visando
uma possível, ou futura, união entre as coroas.
Em Portugal, esta medida adquiriu contornos diferenciados, principalmente, pela
importância econômica da comunidade judaica e pela presença dos judeus nos mais variados
segmentos sociais – no comércio, no artesanato, na medicina, na astronomia, na matemática, e
provavelmente na política, por exemplo – o que incitou o rei Dom Manuel a intentar uma
política de integração dos cristãos-novos portugueses. Nos meses que seguiram à publicação
do decreto, crianças judias menores de quatorze anos foram batizadas à força e entregues a
famílias cristãs; uma provisão de maio de 1497 isentava os judeus que se convertessem
voluntariamente ao cristianismo de qualquer inquirição religiosa pelo prazo de 20 anos.144.
Mas, certamente, a estratégia de maior eficácia utilizada pela Coroa portuguesa na
tentativa de integrar a comunidade judaica foi o batismo forçado ocorrido em 1497. O decreto

143
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial no Brasil Colônia: os cristãos-novos. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 48.
144
SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa. 6º ed., 1994.
61

de expulsão do ano anterior limitou a saída dos judeus de Portugal ao porto de Lisboa, medida
que ocasionou a concentração neste espaço dos sefarditas – ou seja, dos judeus oriundos da
Península Ibérica – que buscavam evadir-se do reino português. Foi nesta conjuntura que os
judeus portugueses foram forçosamente convertidos ao cristianismo.
O historiador Antônio José Saraiva, ao narrar este episódio, faz referência aos
escritos do humanista português Damião de Góis, que disse que, naquela conjunção,
juntaram-se no porto lisboeta cerca de 20 mil judeus vindos de várias partes de Portugal. No
entanto, registra Saraiva, “um bando de frades acompanhados de sicários investiu os locais
onde eles estavam concentrados, e, violentando-os, lançou sobre eles a água do baptismo”145.
A partir deste episódio, os judeus convertidos e seus descendentes eram considerados cristãos
– sendo denominados de ‘cristãos-novos’ em contraposição ao ‘cristãos-velhos’ – podendo
recair sobre eles as penas reservadas aos casos de crimes de heresia e de apostasia, aplicadas
aos súditos que, uma vez batizados, atentassem ou renegassem a fé cristã146.
É evidente que muitos dos convertidos buscaram assimilar a nova religião,
preocupando-se em seguir os ensinamentos e a doutrina católica e dando mostras públicas de
que eram bons cristãos e tementes a Deus. No entanto, vozes dissonantes também se
ergueram. Muitos judeus migraram para regiões livres da perseguição de que eram vítimas e
lá professaram livremente a sua fé – como é o caso da chamada diáspora sefardita na região
do Mediterrâneo ou as migrações para os Países Baixos no século XVII –; outros não tiveram
como migrar e enfrentaram a convivência social em uma atmosfera de desconfiança, de
disfarce e de uma dubiedade religiosa não raro teatralizada. Estes últimos praticavam o
judaísmo oculto, ou seja, publicamente adotavam a identidade religiosa cristã, mas
reconditamente – seja nos seus lares ou, em um sentido simbólico, em sua consciência –,
continuavam a praticar os ritos do judaísmo oficial em que foram radicados. Eram, portanto,
criptojudeus. Alguns anos mais tarde, o Santo Ofício português justificou e fundamentou sua
atuação denunciando os convertidos – que continuavam a praticar seus antigos ritos – como
uma nova ameaça para o cristianismo. A este respeito Stuart Schwartz aponta:

A Igreja e o Estado concentravam forças na eliminação do criptojudaísmo e na


construção de uma cultura de discriminação racial e religiosa contra os cristãos-
novos. Essa cultura havia penetrado em todos os níveis da sociedade, de modo que
os indícios de divergência ou resistência a ela podem ser ótimos exemplos de
tolerância ou de relativismo religioso. Havia punições bastante severas a quem
abrigasse, protegesse ou ajudasse hereges, ou a quem levantasse críticas ao trabalho

145
Ibid., p. 33-34.
146
Sobre este episódio. Cf. LIPINER, Elias. Os Baptizados em Pé: Estudos acerca da origem e da luta dos
cristãos-novos em Portugal. Lisboa: Vega, 1998.
62

da Inquisição ou dos inquisidores. O Santo Ofício empregou todo o seu poder e


autoridade para extirpar essa resistência. Mesmo assim, ergueram-se vozes em
contrário.147

O antijudaísmo deu o tom da intolerância institucionalizada pelo Santo Ofício


português. O discurso inquisitorial refinou uma série de caricaturas sobre os judeus e
redirecionou estas representações para os cristãos-novos, principal fonte de desconfiança dos
inquisidores. Desde a Idade Média, tanto no plano popular quanto na cultura letrada,
circulavam representações estereotipadas sobre os judeus, geralmente colocando-os como a
causa dos mais variados infortúnios coletivos e/ou individuais. Entre as mais diversas
acusações que lhes imputavam – envenenadores das águas dos cristãos, assassinos de
crianças, profanadores de hóstias etc. –, duas queixas foram as que mais se sobressaíram. A
primeira vinda das camadas populares e dos meios comerciantes, que acusavam os judeus de
praticar ostensivamente a usura; já a segunda acusação foi a de deicídio, oriunda do discurso
eclesiástico que responsabilizava coletivamente os judeus pela crucificação de Jesus. Foi,
sobretudo, no nível religioso que o temor aos judeus se manifestou com maior afinco,
precisamente no momento em que a Igreja se percebia cercada de adversários.148
Assim como na Espanha, o rei português negociou com a Sé romana o
estabelecimento do tribunal inquisitorial lusitano. Em 1532, Dom João III, sucessor de Dom
Manuel, teve seus intentos satisfeitos por meio da assinatura da bula Cum ad nihil magis, pelo
papa Clemente VII, que estabelecia Tribunal do Santo Oficio em Portugal. No entanto, em
decorrência dos protestos e das fortes pressões dos cristãos-novos em Roma, o pontífice
revogou a bula no ano seguinte, em abril de 1533. Foi apenas com a ascensão do pontificado
do papa Paulo III, sucessor de Clemente VII, que o rei português conseguiu o
reestabelecimento da referida bula em 23 de maio de 1536, instaurando o Santo Ofício da
Inquisição portuguesa – feito este confirmado pela bula Meditatio cordis, assinada pelo
mesmo pontífice em 16 de julho de 1547.
Não obstante a inspiração em sua congênere medieval e o discurso comum de
combate às heresias, os Tribunais da Inquisição estabelecidos na Época Moderna (Espanha e
Portugal) adquiriram características peculiares, seja pela sua complexidade de organização,
pela sua hierarquia ou, principalmente, por ser uma instituição eclesiástica, mas que estava,
efetivamente, subordinada aos monarcas e não diretamente ao papado. Em Portugal, o Santo

147
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 165.
148
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 278.
63

Ofício se estruturou por meio da fixação de tribunais distritais em Lisboa, Coimbra, Évora,
Lamego, Porto e Tomar (os três últimos extintos nos anos iniciais de atividade inquisitorial).
Além disso, em 1560 foi estabelecido o tribunal da Inquisição em Goa, na Índia, com
jurisdição “sobre todos os domínios portugueses além do Cabo da Boa Esperança; todas as
possessões da Ásia e da costa oriental da África”149, sendo o único tribunal do Santo Ofício
português estabelecido fora de Portugal. A jurisdição sobre o Brasil ficou, assim, a cargo do
tribunal de Lisboa, que também tinha alçada sobre Angola, Guiné e as ilhas africanas
atlânticas de domínio português – Açores, Madeira, Cabo Verde e São Tomé.
A bula de estabelecimento da Inquisição em Portugal nomeou o bispo de Ceuta,
dom Diogo da Silva, como o primeiro inquisidor-geral de Portugal, cargo que ocupou até
1539, quando abdicou devido a sua avançada idade e problemas de saúde. O seu sucessor foi
o cardeal dom Henrique, irmão do rei, que assumiu a função de inquisidor-geral em julho
daquele ano, com apenas 27 anos de idade. Alguns anos mais tarde, entre 1562-1568, dom
Henrique foi o regente da Coroa no reinado de Dom Sebastião, momento em que acumulou
todos os grandes poderes que havia em Portugal – pois era o inquisidor-geral, o representante
apostólico e da Coroa –, tornando-se efetivamente rei de Portugal em 1578, após o
desaparecimento do rei Dom Sebastião. Um exemplar caso da união entre a Igreja, o Estado e
a instituição inquisitorial na figura de uma só pessoa.
Ao longo de quase três séculos de atuação (1536-1821), o Santo Ofício português
orientou suas ações com base no conjunto de normas e procedimentos definidos pelos seus
regimentos internos, publicados por mandado dos inquisidores-gerais. O primeiro deles foi
publicado por ordem do cardeal dom Henrique, em 1552; o segundo, publicado em 1613, por
mandado de dom Pedro de Castilho; o regimento seguinte foi o de 1640, quando dom
Francisco de Castro ocupava o cargo de inquisidor-geral; já o último regimento, que data de
1744, foi publicado por determinação do cardeal da Cunha e estava inserido no contexto das
reformas das instituições religiosas no governo do Marquês de Pombal. Estes regimentos,
além de serem fontes do Direito inquisitorial, registram as mudanças internas da própria
mentalidade inquisitorial. Ao mesmo tempo, são documentos que também permitem
visualizar a “instauração de uma teia de terror”150. De acordo com o historiador Antônio
Vasconcelos Saldanha:

149
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
281.
150
FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. As metamorfoses de um polvo: religião e política nos
regimentos da Inquisição portuguesa (sécs. XVI-XIX) – estudo introdutório e edição integral dos Regimentos da
Inquisição Portuguesa. Lisboa: Prefácio, 2004, p. 63.
64

O ‘regimento’ é, por natureza, um texto provido de força vinculativa, destinado a


regulamentar, disciplinando, os fins ou actuações próprias de determinado cargo,
órgão ou toda a estrutura em que uns e outros se integram. Como em todas as
codificações jurídicas, estão na base da sua elaboração objectos primaciais como os
do conhecimento facilitado do Direito através da colocação e sistematização
científica [sic] dos casos, acompanhada de um disciplinamento unitário, tendente a
eliminar incongruências e evitar paralelismos.151

A jurisdição inquisitorial estava baseada na ideia de crimes contra a fé que, por


sua vez, apoiava-se no conceito de heresia, entendida como “desvio ou erro de fé, no qual o
réu batizado praticava, cria divulgava opiniões contrárias aos dogmas da Igreja romana”152,
sendo estas categorizadas como heresia formal, heresia material e apostasia, como
explicitado anteriormente. Deste modo, herege era “aquele que, tendo sido batizado, não quer
crer em todas as verdades que ensina o magistério da Igreja Católica, sustentando
obstinadamente algum erro oposto ao dogma católico”, sendo assim, era preciso três
condições para ser herege, a saber: “ser batizado como católico; recusar crer na verdade
revelada por Deus à Igreja; ser pertinaz na prática do erro”153. Entre os principais crimes
contra a fé católica, perseguido pelo Santo Ofício português na colônia lusa americana, o
criptojudaísmo ocupa lugar de destaque, estando também presentes as proposições heréticas, o
luteranismo, os sacrilégios, bem como as práticas de feitiçaria que, de acordo com os
inquisidores, pressupunham o pacto com o demônio.154.
Já no campo das moralidades, a ação persecutória da Inquisição enquadrou um
amplo conjunto de diferentes comportamentos e práticas. Alguns destes expressavam, na
lógica dos inquisidores, o desrespeito dos fiéis aos sacramentos da Igreja – como a bigamia,
por exemplo, que representava uma afronta direta ao sacramento do matrimônio, normatizado
e fortalecido pelo Concílio de Trento –; em outra frente de combate estavam os crimes morais
de sexualidade, como o crime de solicitação (Solicitatio ad turpia), ou seja, uma ‘solicitação
para cometer torpezas’, que consistia precisamente no assédio sexual cometido pelos padres
às suas fiéis no momento da confissão sacramental. Outro delito sexual era a sodomia, quer
dizer, o ato sexual anal – fosse ela o resultado de práticas homoeróticas ou realizada entre

151
SALDANHA, Antônio Vasconcelos. Do Regimento da Inquisição portuguesa: notas sobre fontes de Direito.
In. NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresia
e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992, p. 104.
152
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça; MATTOS, Yllan de. (Orgs.). Inquisição & Justiça Eclesiástica.
Jundiaí, Paco Editorial: 2013, p. 8.
153
MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura. In. VAINFAS, Ronaldo; FEITLER,
Bruno; LAGE, Lana da Gama Lima (Org.) A inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de
Janeiro: Eduerj, 2006, p. 254.
154
Cf. NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX – 2. ed. rev. São Paulo:
Perspectiva, 2009, p. 44-46.
65

pessoas de sexos diferentes – que era entendida pelos teólogos e inquisidores como uma
prática antinatural.
Delitos decorrentes de atos de fala também eram punidos, destacando-se entre eles
as proposições heréticas – que segundo Schwartz eram “declarações que potencialmente
indicavam concepções erradas em questões de fé e que eram, portanto, pecaminosas” – e as
blasfêmias, um crime geralmente cometido entre as classes mais populares, “uma
demonstração da grosseria, rusticidade ou ignorância; uma prática nascida do hábito, da
ironia, do humor, da raiva ou da decepção”.155
Como podemos observar, a classe de delitos perseguidos pelo Santo Ofício foi
significativamente ampla. Alguns destes crimes pertenciam também à alçada de outras
instâncias judiciais, ou seja, eram os chamados crimes de foro misto (mixti fori) – como é o
caso da feitiçaria, da sodomia e da solicitação que também eram punidos pela Justiça
eclesiástica e a Justiça secular –, mas que o Santo Ofício garantiu sua prerrogativa
jurisdicional apoiado na publicação de bulas papais ou despachos reais, o que possibilitou aos
inquisidores elevar seu poderio nas esferas jurídica e política.156
Em sentido contrário, alguns delitos deixaram de ser da alçada inquisitorial a
partir das reformas de seus regimentos – o que é o caso das molícies157 e da bestialidade
(prática sexual com animais), que no Regimento de 1613 deixaram de pertencer ao foro
inquisitorial. No que diz respeito ao controle do pensamento e da livre circulação de ideias, a
Inquisição agia principalmente enviando visitadores às naus e livrarias para inspecionar os
livros que chegavam e saiam de Portugal, além da proibição de um vasto leque de livros
considerados defesos que formavam o índice de livros proibidos (Index Librorum
Prohibitorum). Em certo sentido, podemos dizer que o funcionamento do Santo Ofício foi
exercido a partir de variados tentáculos, em uma espécie de ‘Leviatã’ religioso.
O tribunal inquisitorial era formado por uma estrutura hierárquica de cargos e
funções, absorvendo elementos do âmbito eclesiástico (visitadores e capelães), secular
(promotores, procuradores e meirinhos) e até mesmo figuras caracteristicamente policiais

155
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 40.
156
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça; MATTOS, Yllan de. (Orgs.). Inquisição & Justiça Eclesiástica.
Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 08-09.
157
“Era o nome dado pela teologia moral a vasto elenco de pecados contra natura que não implicassem coito
anal ou vaginal, a exemplo da masturbação solitária ou a dois, da felação e da cunilíngua”. Cf. VAINFAS,
Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p.
207.
66

(alcaides)158. Aliás, este sentido hierárquico também pode ser visto na qualificação dos crimes
e na qualidade dos réus. Os negativos eram aqueles que nada diziam a não ser declararem-se
inocentes; os diminutos eram aqueles que faziam confissão incompleta; os revogantes eram os
réus que tendo confessado, em seguida, desdiziam-se; os relapsos eram os que reincidiam no
erro e que tiveram um novo processo inquisitorial instruído contra si; os convictos eram os
que insistiam em suas faltas; os falsos, aqueles que fingiam arrependimento dos seus erros; já
os contumazes eram os ausentes que tinham fugido da justiça do Santo Ofício.
Na aplicação das penas esta lógica esteve mais uma vez presente, fixando-se a
sentença de acordo com o crescente grau de culpa do réu: levemente, veementemente ou
veementissimamente suspeito em questões de fé159. A escala das penas variava de acordo com
o comportamento do réu durante o processo, mas, de modo geral, oscilavam entre o cárcere
por tempo determinado pelos inquisidores (ou mesmo, em alguns casos, cárcere perpétuo),
penitências espirituais, penas físicas e penas pecuniárias. A pena máxima era o relaxamento
ao braço secular – termo eufêmico utilizado pelos inquisidores para se referir ao
encaminhamento do réu à Justiça secular para ter sua morte executada na fogueira. A morte
na fogueira não era apenas parte de um espetáculo de expiação dos hereges considerados
incorrigíveis; ela fazia parte de um complexo sistema de valores que equiparava a gravidade
do castigo à do delito. O primeiro auto de fé realizado na cidade de Lisboa ocorreu em 1540.
Muitas das penas aplicadas pelos inquisidores reforçavam a construção da
memória social infame em torno do réu e, não raro, de sua família. Este é o caso dos
sambenitos, ou seja, do traje de penitência utilizado pelos condenados pela Inquisição. Nos
casos dos réus reconciliados, o sambenito era usado por tempo determinado pelos
inquisidores (ou perpetuamente) e trazia pintada no peito a cruz de Santo André 160; nos casos
dos condenados que se salvaram pouco antes do auto de fé, o sambenito era pintado com
chamas viradas para baixo; já nos casos dos condenados à fogueira, o hábito penitencial

158
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
313.
159
Ibid., p. 607-608.
160
Cruz decussata, ou seja, em forma de X. Na história do catolicismo simboliza humildade, dor e sofrimento,
tendo relação direta com o martírio de André, apóstolo de Jesus, que, de acordo com a tradição, foi crucificado
no século I da Era Cristã numa cruz deste tipo. No conjunto dos ritos da Inquisição, a cruz de Santo André
integrava-se aos sambenitos, ocupando um importante lugar na simbologia inquisitorial, pois constituiu-se como
uma das marcas da infâmia que acompanhava os indivíduos julgados como hereges. O historiador Francisco
Bethencourt lembra que, nos sambenitos, “[...] o amarelo como cor de fundo simbolizava a traição dos hereges e
é sobre ele que estão pintados a cruz vermelha de Santo André para os reconciliados ou os grifos e as chamas do
inferno para os excluídos. O vermelho da cruz simboliza o sangue vertido por Cristo e pelos santos mártires”. Cf.
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV-XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 241
67

continha o seu retrato pintado entre chamas e imagens infernais, com seu nome e suas culpas
inscritas em sua parte inferior161.
Os relaxados à fogueira não eram queimados com o sambenito; antes de
efetivamente serem cobertos pelas chamas purificadoras, eram despidos dos sambenitos, que
deveriam permanecer expostos na principal igreja da localidade a fim de exibir publicamente
a memória herética do condenado. As consequências do uso desses hábitos penitenciais eram
objetivamente sentidas no cotidiano: “retomar as antigas ocupações, ou inserir-se em outras
vestindo o réu o hábito penitencial, era extremamente difícil, dada a má vontade popular que
se desencadeava sobre aqueles que tinham sido penitenciados”, aponta Siqueira.162 Por isso
mesmo, uma das primeiras coisas que os sambenitados faziam, depois de libertos dos
cárceres, era pedir autorização para retirar o hábito penitencial. Requisição nem sempre
atendida pelas autoridades do Santo Ofício.
Além das penitências espirituais – doutrinação na fé, confissão sacramental
obrigatória nas principais festas do calendário litúrgico católico, prática de jejuns etc. –, e das
penas pecuniárias, como o confisco de bens, o pagamento de multas e dos custos do processo,
o Santo Ofício utilizou-se largamente da pena de degredo, que afastava o réu de sua vila ou
cidade natal ou do local onde teria cometido o crime, obrigando-o a se instalar por período de
tempo determinado pelos inquisidores em outros espaços, distante de sua localidade
originária. Às vezes os réus eram enviados para os domínios portugueses ultramarinos,
sobretudo para a África e o Brasil, que receberam parcela considerável de indivíduos que
foram degredados pela Inquisição163. Outra pena muito utilizada pelos inquisidores foi o envio
dos condenados para as galés do reino, onde estavam condenados a remar sem soldo por
espaço de tempo definido pelos inquisidores e em condições precárias, o que equivalia a
condenar o réu a uma morte lenta e gradual, sendo geralmente aplicada aos bígamos e, em
menor escala, aos indivíduos acusados de sodomia.
A especificidade do Santo Ofício enquanto instituição punitiva moderna foi a de
ser um tribunal de fé especializado na punição das heresias e das apostasias, ou seja, na
perseguição e punição dos comportamentos ou ideias contrárias aos dogmas da fé, frutos de
convicções ou ignorâncias pessoais, que eram sustentadas obstinadamente pelos indivíduos
identificados como hereges ou no efetivo abandono da fé cristã em detrimento de outras

161
BETHENCOURT, loc. cit.
162
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
634.
163
Cf. PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia.
Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
68

religiões ou crenças. Uma vez identificados os adversários da fé, Igreja e Coroa


operacionalizaram um amplo programa de perseguições que teve nos cristãos-novos acusados
de judaizarem a principal justificativa para o funcionamento da Inquisição. “Em sermões, nos
púlpitos, em obras impressas, em escritos anônimos, a luta contra a heresia se transformava
numa psicose coletiva”164, aponta Anita Novinsky; e complementa: “o cristão ia servir, como
servira o judeu, em outras épocas e lugares, de ‘bode expiatório’, não faltando quem o
acusasse de ser a causa de todos os males que sofria a nação”.165
Mesmo sendo o criptojudaísmo o principal problema enfrentado em Portugal, não
podemos esquecer que neste período a Igreja se viu diante de uma nova dificuldade com a
Reforma Protestante e de seus desdobramentos, figurando o luteranismo como mais uma
heresia a ser erradicada pelo corpo eclesiástico. A refundação – ou a reorganização, como
preferem alguns historiadores166 – da Inquisição romana em 1542 por meio da bula Licet ab
initio e o Concilio de Trento (1545-1563), com a reafirmação dos dogmas da Igreja, foram
expressões da evidente oposição do cristianismo católico à ameaça da chamada ‘heresia
protestante’. A defesa do catolicismo frente ao avanço dos protestantes foi, com efeito, um
dos principais eixos da Contrarreforma católica, que pressupunha a reordenação da sociedade,
dos costumes e das moralidades vigentes167, figurando a Inquisição como a principal
instituição punitiva para os crimes de heresia no período.
A cristandade se via, portanto, cercada por diversos adversários. Poderíamos
pensar, nesse sentido, que o estabelecimento dos tribunais da Inquisição na Espanha (1478),
em Portugal (1536) e na Itália (1542) foi uma representação dos medos – no seu sentido
ambíguo, que denota tanto uma ameaça iminente quanto um sinal de alerta – dos homens de
Igreja? Os acontecimentos que fomentaram as fundações destes tribunais nos levam a crer
que sim. Neste aspecto, Delumeau é precisamente afirmativo: “[...] a Inquisição foi
semelhantemente motivada e mantida pelo medo desse inimigo sem cessar renascente: a
heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja”.168
Ao analisarmos a ação dos inquisidores vemos que essa assertiva é facilmente
corroborada. Os métodos inquisitoriais foram o reflexo dos discursos e das práticas de
coerção que, de maneira sutil, difundiram socialmente uma imagem terrificante acerca dos

164
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1972, p. 41.
165
Ibid., loc. cit.
166
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - Séculos XV-XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 17-33.
167
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 10.
168
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 22.
69

castigos aplicados pelo tribunal. Entre a ‘misericórdia’ e a ‘justiça’ dos inquisidores flutuava
um discurso ‘pedagógico’ baseado na intimidação, que perpassou – não seria exagero
ponderar – todo o funcionamento deste tribunal, estando presente nos sermões dos
inquisidores que instigavam a delação ou a confissão nas diferentes fases do processo cuja
instrução e desenrolar estavam sob o segredo inquisitorial, bem como na leitura das sentenças
dos condenados nos autos de fé e na aplicação dos suplícios públicos. Com efeito, Anita
Novinsky a este respeito registou:

Para aplicação de seu regimento de controle e repressão, o Estado e a Igreja de


Portugal dispunham de duas grandes armas de propaganda eficientíssimas: os
sermões, por meio dos quais os portugueses recebiam aterrorizados a mensagem do
pecado e do inferno, e os autos-de-fé, onde ante um fausto e exibicionismo teatral o
povo delirava, testemunhando com o rei, os infantes, os nobres a punição dos
hereges. Todos se sentiam purificados.169

Os Regimentos do Santo Ofício nos oferecem claras amostras de que os


inquisidores tinham a plena consciência dos temores que seus procedimentos causavam na
comunidade de fiéis e nos seus prisioneiros. No final dos 141 capítulos que compõem o
primeiro Regimento do Santo Ofício (1552), escrito por determinação do cardeal dom
Henrique, estão registradas dez perguntas que lhe foram feitas pelo licenciado Jorge
Rodriguez que visavam a sanar possíveis dúvidas que tivessem os inquisidores. Entre elas,
uma chama atenção, pois questiona sobre o modo que se “terá para os que não querem assinar
as denunciações que fazem”, ao que o cardeal responde “que se informem pelas testemunhas
que nomear e examinar se [há] algum medo e impedimento e prover nisso como parecer” 170
.
Já o regimento de 1613 fornece as diretrizes sobre o que fazer quando algum réu condenado
ao relaxamento na fogueira desejasse confessar suas culpas, estando no cadafalso antes da
leitura de sua sentença. O capítulo LXIII do Título IV deste regimento, assim registra:

E, porém, esta reserva dos que confessam depois de estarem no cadafalso se fará
raramente e com muita consideração, e por causas urgentíssimas, pela grande e
violenta presunção que há do réu fazer a dita confissão com medo da morte e depois
de ver e saber as pessoas que no dito Auto vão confidentes, que podiam dizer dele, e
não se converter de puro coração à Fé. E quando se tratar desta reserva, na maior
parte que vencer, entrará, pelo menos, o voto de um dos Inquisidores.171

169
NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX – 2. ed. rev. São Paulo:
Perspectiva, 2009, p. 25.
170
Regimento da Santa Inquisição – 1552. In. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, a. 157, nº 392. jul/set, 1996, p. 612. Daqui para frente apenas: Regimento de 1552.
171
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado por mandado do ilustríssimo e
reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal –
1613, Título IV. In. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 157, nº 392. jul/set,
1996, p. 654. Daqui para frente apenas: Regimento de 1613.
70

A precaução dos inquisidores, nesse caso, seria a de avaliar se a confissão era


inteira e verdadeira e não causada pela força do medo da morte, afinal, “com ordenações
rigorosas, o Regimento tentava evitar os embustes a que os réus apelavam por ocasião da
realização do auto de fé”; nestes casos, “o espetáculo de terror causava medo no penitente,
mas não a conversão desejada pela Igreja”.172
As normativas regimentais do Santo Ofício expressavam a importância desses
meios de propaganda da defesa da fé. No Regimento de 1613 determinava-se que quando os
inquisidores se instalassem nas cidades ou lugares que atuariam mandassem publicar o Édito
da Fé – que visava instigar o comparecimento dos fiéis para confessar seus erros ou delatar os
de outrem – na principal igreja da localidade onde toda a comunidade deveria estar presente
para ouvir o sermão dos inquisidores e prestar juramento de colaboração com a Inquisição.
Com efeito, neste regimento (Título II, Capítulo II) esta ideia é assim expressa:

E o sermão será principalmente em favor da Fé, e louvor e aumento do Santo Ofício,


e para animar os culpados, no crime de heresia e apostasia, e a se arrependerem de
seus erros, e pedirem perdão deles, para serem recebidos ao grêmio e união da Santa
Madre Igreja, e para declarar o zelo e a claridade com que as pessoas hão de
denunciar verdadeiramente o que souberem contra os culpados no dito crime.173

Ao mesmo tempo em que os fiéis são exortados ao arrependimento para serem


reconciliados com toda benignidade à comunidade cristã (‘misericórdia’), o tom do discurso
do regimento, logo em seguida, altera-se a fim de aludir ao rigor com que se tratariam os
faltosos (‘justiça’): “E assim declarará o grande castigo que se há de dar as pessoas que não
vierem com este zelo, e se moverem a dizer alguma coisa falsamente, contra alguma pessoa,
ou pessoas, ou em outra qualquer coisa que tocar ao Santo Ofício da Inquisição”174, registra o
regimento. A flutuação nos discursos entre misericórdia e justiça inquisitoriais é
indubitavelmente expressada no trecho em que se diz: “e declarará também no dito sermão a
intenção dos Inquisidores, que é procurar mais às almas remédio de salvação, que querer
castigar com rigor da Justiça”175. Este nos parece um manifesto exemplo de ‘catequização
pelo medo’, do compellere intrare inquisitorial – ou seja, da aplicação de um discurso
coercitivo com o objetivo de obrigar o fiel a fazer uma coisa que lhe seria útil para sua

172
FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. As metamorfoses de um polvo: religião e política nos
regimentos da Inquisição portuguesa (sécs. XVI-XIX) – estudo introdutório e edição integral dos Regimentos da
Inquisição Portuguesa. Lisboa: Prefácio, 2004, p. 67.
173
Regimento de 1613, Título II, p. 619.
174
Ibid., loc. cit.
175
Ibid., loc. cit.
71

salvação. Mais uma vez vemos aqui presente a misericórdia (na procura por dar às almas
‘remédio de salvação’) e a justiça (em ‘querer castigar com rigor da Justiça’).
Em uma sociedade com altos índices de analfabetismo, a “palavra era veículo por
excelência da transmissão das ideias e de despertar nas consciências os sentimentos através da
excitação da emotividade. Os púlpitos eram órgãos formadores da opinião pública”, diz Sônia
Siqueira176. Nesse sentido é importante considerar o impacto das admoestações públicas nos
sermões das missas, que domingo após domingo repetiam a necessidade de salvação por meio
do arrependimento dos pecados e da expiação das heresias e reforçava a obrigação cristã da
delação. O comparecimento da comunidade diante dos inquisidores era uma prova de
colaboração para com as atividades do Santo Ofício. E mais do que isso: para os inquisidores,
a denúncia era, efetivamente, uma obrigação cristã cujo incumprimento poderia ocasionar a
excomunhão do indivíduo negligente. A historiadora Ana Margarida Santos Pereira aponta
que, entre as variadas razões que levavam os indivíduos a denunciar, estavam presentes “o
medo, o respeito pela autoridade da Inquisição e os imperativos de consciência”, quer dizer, o
real desejo de “participar na luta contra a propagação da heresia e, assim, contribuir para a
preservação da ortodoxia e, em última análise, do bem-estar da comunidade”.177
A dramaticidade e a teatralização presentes nas solenidades do Santo Ofício
faziam parte de um amplo conjunto de operações utilizadas pelos inquisidores para
sensibilizar a comunidade. Aqui não se torna difícil imaginar o impacto destas exortações nas
mentes dos indivíduos que, ao ouvirem o sermão da fé, tiveram consciência de que estavam
em falta com a Igreja e com o Santo Ofício; mais fácil ainda é imaginar a celeuma de
sentimentos daí decorrentes em uma manifesta mistura de culpa e medo. A este respeito, o
historiador Bruno Feitler assevera:

Os inquisidores esperavam então que a leitura de editais da fé (ou em todo caso, o


conhecimento da jurisdição inquisitorial) provocasse nos fiéis uma irrupção de
culpabilidade e de medo: eles denunciariam para desfazerem-se de um peso que os
impediria de viver normalmente, dilaceraria suas consciências, com a certeza de que,
se não o fizessem, suas almas, assim como aquelas dos pecadores que deviam
denunciar, se perderiam, merecendo as penas do além reservadas aos
excomungados. Essa responsabilidade cristã da salvação do seu próximo, implícita
na ‘caridade’ mencionada nos regimentos, eram um elemento-chave da ortodoxia
católica buscada pela Inquisição. Ela tornava a delação indispensável para a vida
futura, invertendo o significado de um sentimento que presumidamente surgiria
numa situação como esta: se esperaria [...] que a delação provocasse um sentimento

176
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
661.
177
PEREIRA, Ana Margarida Santos. Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Capitanias do Sul,
1627-28. POLITEIA: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v.11, n.1. jan/jun, 2011, p. 46.
72

de culpabilidade, mas os inquisidores esperavam justamente o contrário – para eles,


a delação era a solução para esse sentimento de culpa, e não sua causa.178

Não é por acaso que muitos dos indivíduos que se apresentaram ao Santo Ofício
alegam o ter feito para ‘descarregar sua consciência’. Paralelamente à coerção social esteve
presente a coerção no campo das consciências, “o temor do castigo em razão da indiferença
no cumprimento de próprio dever para com os mandamentos da Igreja”179. Ao atuar no
território das consciências religiosas, o Santo Ofício foi, assim, um dos instrumentos com os
quais o Estado português perseguiu as minorias sociais, vistas como inimigos políticos, e ao
mesmo tempo a expressão do enfrentamento da Igreja aos comportamentos heréticos que
colocavam em xeque a hegemonia religiosa do Cristianismo. Neste aspecto, podemos dizer
que o estabelecimento da Inquisição em Portugal foi uma estratégia utilizada pela Igreja para
lidar com seus próprios temores, sobretudo, ao realinhar um medo que poderia ser paralisante
(o medo das heresias, do Diabo e de seus asseclas) e, conseguintemente, transformá-lo na
força motriz do funcionamento e ação inquisitorial – o que é chamado por Delumeau de
processo de objetivação: “quem tem medo pode sentir a necessidade de causar medo”180. É
nesta perspectiva que podemos definir o Santo Ofício português como um tribunal do medo.
Sob o ponto de vista da psicologia social, a objetivação é um dos processos
geradores de representações sociais, pois esse processo está ligado à qualidade imagética de
uma ideia, possibilitando a materialização de conceitos em imagens 181. Considerando a
cultura obsidional que constituiu a mentalidade religiosa deste período, pode-se dizer que o
medo da heresia foi objetivado por meio de representações sobre o Diabo e seus asseclas. É
nesse sentido que o estabelecimento dos tribunais inquisitoriais pode ser lido como um
indicativo do redirecionamento na maneira pela qual o catolicismo oficial se relacionou com
seus temores, considerando-se que a perseguição aos comportamentos heréticos e as
dissidências religiosas operadas pela Inquisição indica uma inflexão do medo sentido para o
medo que se quer fazer sentir. A denúncia contra a influência diabólica entre os homens, o
enfrentamento às heresias, as punições exemplares que recaíam sobre os hereges nas chamas
das fogueiras dos autos de fé e os dispositivos que formavam o que Bennassar chamou de

178
FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: igreja e Inquisição no Brasil – Nordeste 1640-1750. São
Paulo: Alameda: Phoebus, 2007, p. 229-230.
179
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
661.
180
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13 – 18) – Bauru, SP:
EDUSC, 2003, p. 14.
181
Cf. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes,
2003.
73

‘pedagogia do medo’ foram produtos deste processo. Mais uma vez é Delumeau que nos
lembra:

Numa atmosfera obsidional, a Inquisição apresentou tal denúncia como uma


salvação. Esta orientou suas temíveis investigações para duas grandes direções: de
um lado, para os bodes expiatórios que todo mundo conhecia, ao menos de nome –
heréticos, feiticeiras, turcos, judeus etc. –; de outro, para cada um dos cristãos,
atuando Satã, com efeito, sobre os dois quadros, e podendo todo homem, se não
tomar cuidado, tornar-se um agente do demônio. Daí a necessidade de um certo
medo de si mesmo.182

Como temos apontado, estamos aqui tratando de uma sociedade marcada por uma
cultura de medo. Um traço característico dessa mentalidade – e que o Santo Ofício incorporou
ao seu métier – foi aquilo que Jean Delumeau definiu como ‘pastoral do medo’, ou seja, a
difusão pelas elites religiosas de um discurso pastoral culpabilizador que suscitava o medo
dos castigos que recairiam aos futuros pecados cometidos na terra, culminando em uma
autovigilância constante, na promoção do medo do pecado e, nesse sentido, um medo de si
mesmo, em consciências pesadas e temerosas, e em acessos de culpabilização na Europa
moderna.
No prolongamento de sua pesquisa sobre os medos no Ocidente183, este
historiador complementou esta ideia:

Entre os agentes de Satã que os homens de Deus esforçavam-se para perseguir e


caçar, eles não podiam esquecer o mais escondido e o mais perigoso dentre todos:
cada um de nós na medida em que se descuida da indispensável vigilância que deve
exercer sobre si mesmo. Assim, somos levados a restituir em toda a sua coerência e
suas mais amplas dimensões o Medo sentido da descoberta do ‘inconsciente’: ao
‘temor’, ao ‘pavor’, ao ‘terror’ e ao ‘sobressalto’ suscitados pelos perigos exteriores
de toda natureza vindos dos elementos e dos homens juntaram-se dois sentimentos
não menos opressivos: ‘o horror’ do pecado e a ‘obsessão’ da danação.184

Esse discurso pastoral que tinha no pecado um elemento para a constituição da


culpa e do sentimento de medo recorreu a uma estratégia de terror que reforçou o poder
clerical185, estando presente nos sermões, nas homilias, nas encenações, no teatro religioso e
na iconografia, por exemplo. O medo da morte, do Juízo Final, do suplício temporário no
Purgatório, da danação eterna nas chamas do fogo do Inferno e do julgamento de um Deus
punitivo foram alguns dos principais elementos constituintes dessa pastoral. “A pastoral do

182
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, p. 32.
183
Cf. DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13 – 18) – Bauru, SP:
EDUSC, 2003. Vols. I e II.
184
Ibid., Vol. I, p. 12.
185
Ibid., Vol. II, p. 11.
74

medo, que se assenta na dramatização da existência humana e da relação do homem com


Deus pode ser detectada nos principais textos teológicos impressos em Portugal ou elaborados
por autores estrangeiros ali residentes”, diz-nos o historiador português Francisco
Bethencourt186. Com efeito, esse discurso pastoral se fez presente não apenas nos escritos
teológicos, mas também através da noção de castigo que atravessou o discurso religioso
português quinhentista e, nesse sentido, foi intrínseca à própria ação inquisitorial. É também
Bethencourt que assinala que:

Esta noção de castigo, projetada para o Juízo Final, está ligada a toda uma prática
terrena de condenações públicas que conhece sua maior produção no espetáculo do
auto da fé. A encenação exemplar do pecado e do castigo atingia, nesse caso, o
máximo de dramatização: os presos saíam em procissão solene dos cárceres do
Santo Ofício, enquadrados por clérigos, familiares do tribunal e funcionários
menores; nesta procissão, hierarquizada pela gravidade das culpas, os presos
ostentavam carochas e vestiam sambenitos com a indicação das penas a que estavam
sujeitos (pontas de fogo viradas para cima significavam o relaxamento à justiça
secular, ou seja, a condenação à morte na fogueira); no local do auto da fé, onde
previamente se tinham instalado tribunas para os convidados (família real, alto clero
e alta nobreza) e uma plataforma que servia de palco, cada réu era apresentado e sua
sentença lida em voz alta, começando pelos casos de menor gravidade, sendo em
seguida executadas as penas de excomunhão (consequentemente de execução pela
justiça civil). 187

Com efeito, os autos de fé compunham-se em uma mistura de humilhação


pública, de suplício e de terror psicológico que se convertia em um exercício pedagógico
aplicado diretamente às massas populares presentes. O auto de fé integrou o amplo complexo
de propaganda inquisitorial em que o espetáculo teatralizado da execução da justiça pelos
membros do ‘Santo Tribunal’ serviu ao mesmo tempo como instrumento de doutrinação e
controle das massas católicas. A execução dos hereges no queimadeiro foi o exemplo absoluto
dos castigos reservados aos dissidentes religiosos e, nesse sentido, uma das primeiras e mais
importantes representações do medo provocado pela Inquisição. Neste aspecto, Maria José
Pimenta Ferro Tavares assinalou:

O fogo simbolizava a expiação eterna dos pecados ou a sua purgação temporária,


neste caso purificadora e salvífica. Inferno e purgatório, mas sempre sofrimento,
representavam dantescamente, num espetáculo vivo, ante os olhos de milhares de
pessoas. O cortejo encabeçado pelos Inquisidores e pelos membros da Igreja, a
nobreza e a gente honrada da cidade, seguiu a Cruz. Depois de estes terem ocupado
o seu lugar no estrado, iniciava-se um segundo cortejo, perfilado atrás de um outro
crucifixo. Nele se integravam pela ordem crescente da culpa, os penitentes. À sua
chegada cantava-se o Veni creator spiritus. Em seguida, dava-se inicio à pregação e
depois às leituras dos processos e abjurações dos reús, num crescendo de penitência,

186
BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no
século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 235.
187
Ibid., p. 255.
75

consoante o grau de culpabilidade e de arrependimento. Por fim, os condenados ao


braço secular, ao fogo expurgatório, penitencial, ou condenatório para toda a
eternidade. Era o ensinamento visível do que esperava os que, neste mundo, se
afastavam do seio da Igreja: a condenação e o sofrimento. O medo impunha-se como
freio à heresia, ao pecado.188

Provocar o medo do pecado, da heresia e de si. Culpabilizar para salvar. Estes


foram os objetivos da difusão desse discurso pastoral. As confissões, os depoimentos e as
denúncias apresentadas ao Santo Ofício são sem dúvida uma demonstração do alcance da
‘pastoral do medo’ no território das consciências. O medo administrado pelo Santo Ofício se
tornou um instrumento de controle. Controle social e religioso, das consciências e dos corpos.
A ação inquisitorial na Época Moderna foi possibilitada, ou impulsionada, precisamente por
este horizonte cultural em que variados tipos de medos circulavam.
Assim sendo, considerar que uma instituição punitiva fortemente empenhada na
erradicação das heresias, como foi o caso do Santo Ofício, pertenceu a seu tempo, nada tem a
ver com um suposto tom eufêmico ou indulgente com seu histórico de perseguições e
punições, mas sim entendê-la em uma perspectiva histórica, o que significa avaliar em que
medida e grau o Santo Ofício foi um representante, ou uma representação, de um ‘tempo de
medo’. Pedagogia, catequização ou pastoral do medo nos parecem assim, categorias que se
coadunam a fim de explicar a complexidade do conjunto de acontecimentos, de discursos, de
enunciados, de práticas e de métodos que integraram o exercício de controle das consciências
por meio da intimidação, especialidade inquisitorial na Época Moderna.
“Acusar para defender: eis o que muitos faziam com medo da Inquisição”189.
Poderíamos dizer, parafraseando Vainfas, que a própria fundação das Inquisições Modernas,
mormente a Inquisição Portuguesa, foi motivada por alguns tipos de medos, frutos da
mentalidade obsidional de uma sociedade que se sentia perseguida e insegura, que percebia na
diferença – seja étnica, religiosa e/ou social – uma ameaça iminente. Este sentimento foi
expresso na linguagem religiosa por meio das ameaças que as heresias e as dissidências
religiosas representavam para a manutenção da ortodoxia do corpo social cristão. Como em
uma espécie de ‘desafio-resposta’, o estabelecimento do Tribunal da Inquisição Portuguesa,
em 1536, representou o esforço de uma sociedade que entendia o combate às heresias como

188
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. Inquisição: uma catequização pelo medo. Actas do III Encontro sobre
História Dominicana, Tomo II. Separata do Arquivo Histórico Dominicano Português, Porto, vol. IV, n.º 2, 1989
(a), p. 195. [grifo do original]
189
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 229.
76

uma defesa do catolicismo, ao mesmo tempo em que também foi uma máquina do Estado
para repressão dos inimigos políticos e das minorias sociais.
77

2. 4. Mecanismos de inspeção e ação inquisitorial no ‘Novo Mundo’

A ‘descoberta’ do Novo Mundo foi, sem dúvidas, algo paradigmático que


caracterizou o início da Época Moderna como um momento histórico, singularizado pela
abertura de novos horizontes para o impulso colonizador de Espanha e Portugal, as duas
grandes potências europeias daquele contexto. A destreza ibérica no domínio dos mares e, por
extensão, o acesso a espaços alhures que seriam forçosamente colonizados conferiram a
Espanha e a Portugal uma posição de destaque na chamada Expansão Marítima europeia na
busca por novas rotas comerciais para o mercado de especiarias e na colonização dos espaços
do Novo Mundo.
As conquistas portuguesas além-mar fizeram-se sob o efeito do Padroado régio,
um conjunto de direitos e privilégios concedidos pela Santa Sé romana aos monarcas ibéricos,
que pressupunha a autoridade dos soberanos sobre todos os postos, cargos, benefícios e
funções eclesiásticas nos territórios ultramarinos sob o seu domínio, culminando assim na
união entre Igreja e Estado, uma situação em que, na prática, o rei possuía grandes poderes
para intervir em assuntos religiosos190. Nesse contexto, colonizar significava,
necessariamente, também cristianizar. Como afirmou Charles Boxer, “a aliança estreita e
indissolúvel entre a Cruz e a Coroa, o trono e o altar, a Fé e o Império, era uma das principais
preocupações comuns aos monarcas ibéricos, ministros e missionários em geral”191. Dessa
forma, a colonização do Brasil não pode ser compreendida sem considerar o imaginário
religioso europeu que lhe deu sustentação, afinal, “a fé não se apresentava isolada da empresa
ultramarina: propagava-se a fé, mas colonizava-se também”.192
É fato que representantes da Igreja estiveram presentes desde as cerimônias de
posse que marcaram o momento inicial da colonização portuguesa no Brasil. No entanto, o
processo de territorialização da Igreja na colônia e de cristianização das populações locais foi
lento e gradual. O sentido missionário português, característico da Contrarreforma católica –
que pressupunha a reordenação da sociedade sob os valores e as moralidades cristãs, bem
como a defesa do catolicismo frente ao avanço das heresias, sobretudo dos protestantes –
encontrou no Brasil uma paisagem social peculiar com a descoberta de um novo mundo com
terras estranhas e gentes desconhecidas.

190
FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: igreja e Inquisição no Brasil – Nordeste 1640-1750. São
Paulo: Alameda: Phoebus, 2007.
191
BOXER, Charles. A igreja e a expansão ibérica (1440-1770). Lisboa: Edições 70, 1978, p. 98.
192
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 49.
78

As representações sobre o Novo Mundo neste início de Época Moderna são, de


fato, demonstrativas de um imaginário estriado por elementos que vão do ‘maravilhoso’ ao
‘sobrenatural’. Os trabalhos consagrados de Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do
Paraíso, e Laura de Mello e Souza, em O Diabo e a Terra de Santa Cruz, apontaram,
respectivamente, para as duas principais vertentes interpretativas que puderam ser
interceptadas nos documentos da época sobre o Novo Mundo e seus habitantes: ao passo que
Sérgio Buarque de Holanda exaltou a perspectiva edênica sobre a natureza dos trópicos,
aproximando-a da ideia de ‘Paraíso Terrestre’ presente no imaginário europeu moderno;
Laura de Mello e Souza, sem desconsiderar a abordagem presente em Visão do Paraíso,
procurou demonstrar a perspectiva ‘infernal’ do Brasil, sobretudo devido às características
culturais específicas da humanidade ameríndia, incompreendidas pelos portugueses e, nesse
sentido, demonizadas. “Paraíso terrestre pela natureza, inferno pela humanidade peculiar que
abrigava, o Brasil era purgatório pela sua relação com a metrópole”, diz Laura de Mello e
Souza.193
É interessante observar essas diferentes representações espaciais sobre o Brasil
dos primeiros tempos, principalmente, no sentido de perceber as diferentes possibilidades de
apreensão e prática deste espaço em vias de colonização. Ao mesmo tempo em que era
‘Paraíso Terrestre’, ‘Inferno’ e/ou ‘Purgatório’, no caso daqueles indivíduos condenados ao
degredo, por tempo determinado ou perpétuo, pelas Justiças secular ou inquisitorial, a colônia
poderia também ser um espaço de liberdade, principalmente para os cristãos-novos, vítimas
da perseguição do Santo Ofício em Portugal.
Podemos dizer, nesse sentido, que o Brasil do século XVI representava um espaço
tanto de possibilidades econômicas quanto de liberdade religiosa, tendo em vista a amplitude
territorial da colônia e a carência inicial de uma malha eclesiástica local densa. A economia
açucareira, que então se projetava, atraiu grande contingente de cristãos-novos interessados
nos negócios do açúcar e que se instalaram, principalmente, na Capitania de Pernambuco e na
região do Recôncavo baiano. Para aqueles que judaizavam, ou seja, que continuavam a
praticar clandestinamente os ritos do judaísmo oficial, a vida em uma terra onde não havia a
presença do Santo Ofício, apesar das dificuldades inerentes à faina colonizadora, poderia ser
mais tranquila, principalmente pelo fato de se manterem relativamente distantes dos espaços
onde existiam tribunais inquisitoriais portugueses plenamente estabelecidos. A historiografia

193
Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização
do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1959]; SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de
Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1986].
79

brasileira e internacional dos estudos inquisitoriais no século passado foi categórica no


sentido de abordar o ‘problema cristão-novo’ e a participação desta comunidade na formação
da sociedade brasileira, resultando em um montante considerável de produções que se
utilizaram da documentação da Inquisição no Brasil e que são basilares para a compreensão
da perseguição inquisitorial a este grupo social 194.
O fato é que o Brasil do século XVI recebeu parcela considerável de cristãos-
novos, vítimas diretas ou indiretas das perseguições inquisitoriais e da discriminação social
que lhes recaía. Essa era a “gente da nação” da qual tratou o historiador José Antônio
Gonçalves de Mello195. É possível dizer então que as diferenças religiosas entre cristãos-
novos e cristãos-velhos foram amenizadas na colônia, entre outros fatores, devido às
dificuldades inerentes à vida em um espaço em vias de colonização e à necessidade de uma
sociabilidade que implicasse algum grau de mútua solidariedade.
Como apontou Ângela Maia196, essas relações vão se alterar consideravelmente
com a presença do visitador do Santo Oficio, nos últimos anos do século XVI, que vai
provocar o reacender de antigas memórias e inimizades ao estimular o comparecimento dos
fiéis à Mesa inquisitorial e lembrá-los da obrigação de denunciar os faltosos e desviantes.
Elias Lipiner chamou atenção sobre os burburinhos que gravitavam em torno das notícias da
vinda do inquisidor.

Não se tratava do monstro imaginário com que se amedrontam as crianças, mas de


um verdadeiro e fanático tribunal que vinha – segundo se murmurava – da
metrópole às partes do Brasil, com todo o seu séquito de fogueiras, cadafalsos e
cárceres, para converter em desencanto, e quiçá pesadelo, o tímido sonho de
liberdade religiosa nutrido pelos judaizantes.197

Até 1591 a atuação do Santo Ofício português no Brasil foi incipiente e indireta,
não apenas pela ausência da fundação de um tribunal próprio no Brasil, mas também pela
insuficiência de agentes locais que representassem o Tribunal da Inquisição lisboeta. Os

194
Cf. WIZNITZER, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. Ed. Pioneira: São Paulo, 1966; LIPINER, Elias. Os
judaizantes nas capitanias de cima: estudos sobre os cristãos-novos no Brasil nos séculos XVI e XVII. São
Paulo: Brasiliense, 1969; SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo
brasileiro (1530 – 1680). São Paulo: Pioneira, 1976; SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos novos, jesuítas e
Inquisição: aspectos de sua atuação nas Capitanias do Sul, 1530-1680. São Paulo: Pioneira. 1969; NOVINSKY,
Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972; CARNEIRO, Maria Luiza
Tucci. Preconceito racial no Brasil Colônia: os cristãos-novos. São Paulo: Brasiliense, 1983; MELLO, José
Antônio Gonçalves de. Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: FUNDAJ,
Editora Massangana, 1990.
195
Cf. MELLO, op. cit.
196
Cf. MAIA, Ângela Vieira. À sombra do medo – cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar. Rio
de Janeiro: Idealizarte, 2003.
197
LIPINER, Elias. op. cit., p. 32.
80

primeiros registros da atividade inquisitorial na colônia datam dos anos 1540, sendo o
198
resultado da colaboração do clero local com o Conselho Geral do Santo Ofício . Por meio
da atuação dos bispos no Brasil, os inquisidores portugueses tinham notícias sobre
comportamentos supostamente heréticos, praticados pelos colonos. Este é o caso, por
exemplo, de Pero do Campo Tourinho, donatário da Capitania de Porto Seguro, que foi
acusado de proferir impropérios e blasfêmias contra a fé, pois era fama pública que não
guardava os dias santos e se auto proclamava ‘rei’ e ‘papa’ de sua capitania, sendo, desse
modo, o primeiro processado pelo Santo Ofício no Brasil, em 1546 199.
Na segunda metade do século XVI, verifica-se, portanto, os primeiros registros de
réus residentes no Brasil que foram processados pela Inquisição. Em 1579, o bispo da Bahia,
d. Antônio Barreiros, recebeu ordens para atuar como ‘Inquisidor apostólico’ no Brasil,
porém, com poder de atuação limitando-se aos cristãos-novos. Antes deste ano, entretanto,
identifica-se o registro de mais três casos de indivíduos que se viram às voltas com o Santo
Ofício. O padre Antônio de Gouveia, que já viera degredado para o Brasil, em 1567, acusado
de praticar necromancia, ou seja, de se utilizar das artes mágicas para adivinhar o futuro por
meio do contato com o sobrenatural200, foi preso em Olinda, em 1571, acusado pelo mesmo
delito201. Em 1573, um francês conhecido como Jean des Boulez (João de Bolés) foi preso
acusado de difundir ideias calvinistas202. No ano seguinte, em Ilhéus, foi a vez do italiano
Rafael Olivi ser acusado de blasfemar contra a fé católica, além disso, possuía também uma
coleção de livros suspeitos, entre os quais O Príncipe (1532), de Nicolau Maquiavel (1469-
1527), o que fomentou ainda mais as suspeitas que lhe recaíram.203
Ao contrário da América Espanhola, onde foram estabelecidos tribunais
inquisitoriais em Lima (1570), no México (1571) e em Cartagena (1610), não houve no Brasil
a instalação de um tribunal inquisitorial permanente. No entanto, não faltaram projetos e
intentos para que isso ocorresse. No final do século XVI e ao longo do século XVII, e mesmo
durante o século XVIII, a proposta para a criação de um tribunal da Inquisição na América

198
A cooperação entre os bispos e a Inquisição se estabeleceu desde o contexto de estabelecimento do tribunal
inquisitorial em Portugal. Sobre este assunto ver: PAIVA, José Pedro. Os bispos e a Inquisição portuguesa
(1536-1613). Lusitânia Sacra, 2º série, 15, 2003, p. 43-76.
199
BRITTO, Rossana. A saga de Pero do Campo Tourinho: o primeiro processo da inquisição no Brasil.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
200
Sobre o ritual de necromancia Cf. BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras,
adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
201
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 5158.
202
COSTA, Jorge Luiz de Oliveira. Jean Cointa, o senhor de Bolés e a polêmica proveniente da França
Antártica. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências
e Letras, Assis-SP, 2019.
203
MOTT, Luís. Bahia: Inquisição e sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 173-191.
81

Portuguesa circulou em vários escritos da época, geralmente associando a necessidade da


fundação de um tribunal local ao grande número de cristãos-novos na colônia.
O historiador Bruno Feitler lembra-nos que foi a desconfiança para com os
cristãos-novos, bem como o medo da influência e de uma possível invasão holandesa, que
fizeram com que, em 1621, o rei Felipe IV de Espanha (Felipe III de Portugal) cogitasse a
nomeação de ministros inquisitoriais permanentes na Bahia. Em agosto desse ano, o Conselho
Geral do Santo Ofício deu parecer favorável à criação de um tribunal na Bahia. No entanto, a
criação desse tribunal estava longe de se efetivar, devido, principalmente, às relações de força
entre a Coroa e o Conselho Geral do Santo Ofício. De um lado, o rei “querendo que [os]
poderes inquisitoriais fossem dados ao bispo da Bahia”204; de outro, o Santo Ofício insistindo
na criação de um tribunal completo, argumentando sobre as dificuldades “que encontraria o
prelado para arcar ao mesmo tempo com suas funções episcopais e com os carregados
negócios inquisitoriais, o que faria com que no fim das contas o funcionamento das duas
instituições fosse prejudicado”.205
Esta querela evidencia uma clara divergência existente entre os projetos políticos
da Coroa e do Santo Ofício. A primeira atuando a partir de uma política centralizadora, e,
nesse sentido, tentando exercer um maior controle sobre a Inquisição, além do aumento do
controle sobre a população colonial; e a segunda oferecendo uma deliberada resistência, no
sentido de preservar a autonomia de ação que lhe cabia.
A historiadora Ana Margarida Santos Pereira também discute acerca das intenções
da criação de um tribunal da Inquisição no Brasil206. A autora lembra-nos que o historiador
português Antônio Baião já alertara que esta tentativa de controle do Santo Ofício pela Coroa
estaria relacionada à intervenção de d. Marcos Teixeira, muitas vezes confundido com seu
homônimo, o visitador do Santo Ofício na Bahia entre 1618 e 1620 207. Nomeado bispo do
Brasil em 1621, d. Marcos Teixeira tinha sido inquisidor e membro do Conselho Geral do

204
FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: igreja e Inquisição no Brasil – Nordeste 1640-1750. São
Paulo: Alameda: Phoebus, 2007, p. 72-73.
205
FEITLER, loc. cit.
206
Cf. PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do
Sul: de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
2006.
207
Os dados biográficos do visitador d. Marcos Teixeira foram discutidos por diversos historiadores, como por
exemplo, Eduardo de Oliveira França e Sônia Siqueira. Cf. FRANÇA, Eduardo de Oliveira; SIQUEIRA, Sônia.
Introdução. In. Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos
Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia, 1618-1620. FRANÇA, Eduardo de Oliveira;
SIQUEIRA, Sônia (Org.). Anais do Museu Paulista, v. XVII, 1963, p. III-XXXIX. No entanto, a discussão mais
atualizada sobre a identidade do visitador d. Marcos Teixeira pode ser conferida em: ASSIS, Angelo Faria de;
VAINFAS, Ronaldo. Apresentação. In. ASSIS, Angelo Faria de; VAINFAS, Ronaldo. A Santa Inquisição em
Portugal (II). Denunciações da Segunda Visitação do Santo Ofício à Bahia. Leiria: Proprietas, 2022, p. 20-39.
82

Santo Ofício e, nesse contexto, tornou-se um dos principais nomes cogitados para nomeação
pelo rei como inquisidor do Brasil208. De fato, após a morte de d. Marcos Teixeira, ocorrida
entre 1623 e 1624, diz Bruno Feitler, “a ideia de instalar um tribunal da Inquisição na Bahia
não parece mais ter estado na ordem do dia”209.
É possível que a morte de d. Marcos Teixeira tenha enfraquecido os planos de
instalação inquisitorial no Brasil aos moldes da Coroa. No entanto, é necessário considerar
outras questões do contexto, como as invasões holandesas na costa do Brasil – Bahia, em
1624, e Pernambuco, em 1630, – e os conflitos envolvendo a Restauração portuguesa (1640).
Como aponta Ana Margarida Santos Pereira:

O fracasso das negociações constituiu, sem dúvida, uma vitória para o Santo Ofício
que, sem entrar em confronto directo com o monarca, conseguiu impedir a criação
de um tribunal que obedecesse às condições por ele determinadas [...] em suma, a
inexistência de um tribunal da Inquisição em território brasileiro ficou a dever-se
não a um mas a vários factores. A sua importância variou, com certeza, ao longo dos
tempos, mas o elemento determinante parece ter sido a falta de convergência entre
os representantes do órgão inquisitorial e da Monarquia. Apesar das ligações que os
uniam, os dois poderes tinham interesses próprios a defender e compatibilizá-los
nem sempre era fácil. Para que o projecto de criação de um tribunal no Brasil
pudesse concretizar-se tinha de haver interesse por parte da instituição, mas também
a vontade política para tal. Embora as motivações pudessem ser diversas (e sê-lo-
iam por certo), um empreendimento desta envergadura e com as implicações que
este fatalmente teria exigia que houvesse unanimidade a seu respeito, mas foi
exatamente isso o que sempre faltou.210

Com efeito, em diferentes momentos do período colonial brasileiro, cogitou-se a


criação de um tribunal da Inquisição na América Portuguesa. No entanto, este foi um projeto
que efetivamente nunca foi executado. Ao longo de todo o período colonial, o Santo Ofício
atuou no Brasil contando com a colaboração da malha eclesiástica local, fosse por meio de
visitas episcopais ou através da ação de Comissários do Santo Ofício, que costumavam
realizar digliências e recolher testemunhos para encaminhar aos inquisidores lisboetas. Além
deste mecanismo, o Santo Ofício português contava com o envio de agentes próprios em
comitivas vindas diretamente de Portugal para averiguar sobre o estado da fé e inquirir sobre
os desvios morais e os delitos cometidos em matérias religiosas. Eram as chamadas Visitações
do Santo Ofício, inspeções periódicas realizadas por mandato do Conselho Geral do Santo

208
PEREIRA, op. cit. p. 63-76.
209
FEITLER, loc. cit.
210
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do Sul: de
meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006,
p. 71-75.
83

Ofício, que, de tempos em tempos, enviava inquisidores para regiões mais distantes dos
distritos dos tribunais, incluindo aí os espaços coloniais do ultramar português211.
Para o caso brasileiro, até pouco tempo atrás, costumava-se afirmar que tinham
ocorrido apenas três visitações inquisitoriais à colônia: Bahia, Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba, no final do século XVI; Bahia, no início do século XVII, e Grão-Pará, na segunda
metade do século XVIII. No entanto, os recentes estudos apontaram a presença de
inquisidores nas capitanias do Sul, como é o caso dos estudos de Lina Gorenstein 212 e da
pesquisa de Ana Margarida Santos Pereira213 sobre a visitação inquisitorial ocorrida no Rio de
Janeiro, São Vicente e Espirito Santo, nos anos 1627-1628, e realizada pelo visitador Luís
Pires da Veiga. Aliás, há indícios de outras visitações que teriam sido programadas ou
efetivamente realizadas no Brasil: em 1605 nas capitanias do Sul, e nos anos 1619-1620 em
Pernambuco e na Paraíba214. Além disso, houve o episódio da ‘Grande Inquirição’ de 1646,
estudado por Anita Novinsky na clássica obra Cristãos-novos na Bahia.215
As visitações de 1591-1595 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba), de 1618-
1620 (Bahia) e de 1763-69 (Grão-Pará) resultaram na produção de um considerável acervo
documental, preservado nos arquivos portugueses e que chegou até nós por meio do trabalho
de historiadores lusos e brasileiros nestes arquivos. Os livros de denúncias e de confissões,
além dos processos inquisitoriais decorrentes dessas visitações, constituem o mais consistente
conjunto de fontes sobre a atuação do Santo Ofício no Brasil por meio das visitações.
Já sobre a visitação às capitanias do Sul no século XVII, pouca documentação se
conservou, pois, como demonstrou Ana Margarida Santos Pereira216, no retorno para
Portugal, a embarcação em que estava o visitador Luís Pires da Veiga viajava foi tomada de
assalto por corsários. A fim de proteger o segredo dos documentos da Inquisição – e talvez em
uma atitude desesperada –, o visitador atirou ao mar os livros de denúncias e confissões,
restando para nós historiadores apenas um relatório escrito de memória por Pires da Veiga e
alguns poucos processos resultantes desta visitação.

211
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 183.
212
GORENSTEIN, Lina. A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII). In. VAINFAS,
Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana da Gama Lima (Org.) A inquisição em xeque: temas, controvérsias,
estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 25-31.
213
Cf. PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do
Sul: de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
2006.
214
SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos novos, jesuítas e Inquisição: aspectos de sua atuação nas Capitanias
do Sul, 1530-1680. São Paulo: Pioneira. 1969, p. 95; FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: igreja e
Inquisição no Brasil – Nordeste 1640-1750. São Paulo: Alameda: Phoebus, 2007, p. 78.
215
Cf. NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972.
216
PEREIRA, op. cit.
84

Mesmo que de modo limitado, esta ‘patrulha da vigilância’, como apontou Sônia
Siqueira217, fez- se presente na colônia brasileira em contextos diferentes e com base em
diferentes motivações. Sobre a primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil (1591-1595),
muito se falou na historiografia nacional sobre os motivos que suscitaram a vinda de Heitor
Furtado de Mendonça, capelão fidalgo d’el-rey, membro do Desembargo do Paço e deputado
da Inquisição de Évora. Um desses motivos, de acordo com as vertentes historiográficas mais
tradicionais, teria relação com o funcionamento econômico da máquina inquisitorial. O envio
da primeira visitação inquisitorial ao Brasil é explicado, nessa perspectiva, devido ao grande
fluxo de cristãos-novos para as capitanias açucareiras. Afinal, devido às notícias da
prosperidade econômica da colônia, o número de cristãos-novos vindos para o Brasil
aumentou consideravelmente no último quartel do século XVI. É somente neste contexto que,
de acordo com a historiadora Anita Novinsky, “a Inquisição também volta sua atenção para
estas terras”.218
Outras abordagens focalizaram nas preocupações institucionais e religiosas da
Inquisição, como no caso da historiadora Sônia Siqueira219, que explica que esta inspeção
funcionou a fim de averiguar o estado da fé e das consciências coloniais, sendo assim uma
“operação de coleta de material para alimentação da máquina da justiça do Santo Ofício”220.
Certamente, estas abordagens evidenciam aspectos relevantes, considerando que o Santo
Ofício, de fato, costumava direcionar suas atenções para regiões populosas, principalmente se
a população fosse constituída por um considerável volume de cristãos-novos. Além disso, a
investigação acerca do estado das consciências religiosas era, por princípio, um dos fatores
principais que fomentavam as inquirições.
O historiador Ronaldo Vainfas221 oferece uma explicação para a visitação do
século XVI, que articula diferentes jogos de escalas, ou seja, não desconsidera as abordagens
predecessoras de Novinsky e Siqueira, mas procura situar o lugar da primeira visitação
inquisitorial ao Brasil no amplo contexto da expansão ultramarina portuguesa: “perseguições
rapaces contra os cristãos-novos, ânimo de expandir o catolicismo, investigação da fé, eis os
objetivos que norteariam tanto a visitação ao Brasil quando a atuação inquisitorial portuguesa
no conjunto até meados do século XVIII”222.

217
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 183.
218
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972, p. 110.
219
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 183.
220
Ibid., p. 183.
221
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989.
222
Ibid., p. 217.
85

Assim sendo, para Vainfas, a referida visitação “não possuiu qualquer atributo
especial senão o de incluir-se no vasto programa expansionista efetivado pelo Santo Ofício na
última década dos quinhentos”223. Isto se torna ainda mais evidente se considerarmos outras
visitações ocorridas no mesmo contexto e direcionadas para espaços outros do Império
ultramarino português, tendo em consideração que “até 1590, as visitações concentravam-se
na metrópole, mas a partir dessa altura assistiu-se a uma viragem estratégica da Inquisição,
cujas atenções se viraram para o Ultramar”224. Exemplos disso são as visitações enviadas às
Ilhas da Madeira e dos Açores (1575-76, 1591-93 e 1618-19), a Angola (1561-62, 1589-91,
1596-98 e 1626-27), além daquelas enviadas aos territórios asiáticos sob o domínio português
(1596, 1610, 1619-21, 1636 e 1690).225
A visitação realizada na Bahia entre 1618 e 1620 também esteve inserida neste
contexto de preocupações dos inquisidores com os territórios do ultramar e, assim como sua
antecessora, foi motivada pelo “aumento do afluxo de cristãos-novos para o Brasil”226, e
principalmente pela desconfiança de que os cristãos-novos da Bahia se aliassem aos
holandeses a fim de invadir a Capitania. O responsável delegado pelo Conselho Geral para
realizar a visita foi o licenciado d. Marcos Teixeira, Protonotário da Santa Sé Apostólica,
ordenado Deputado da Inquisição e nomeado Inquisidor para visitar o Brasil e Angola227.
Nesta ocasião, o visitador Marcos Teixeira recolheu denúncias e confissões, além de ter
instruído processos contra alguns poucos moradores da Bahia.
Se vista de maneira isolada, esta visitação parece ter obtido resultados pouco
relevantes, sendo recorrentes as denúncias e as confissões sobre as suspeitas de judaísmo, as
palavras heréticas que ganhariam proporções de blasfêmias, alguns casos de sodomia, entre
outros delitos menores. No entanto, quando entendida como uma continuidade da ação
inquisitorial iniciada nos territórios ultramarinos no final do primeiro século de colonização
do Brasil e presente no início do século seguinte, a visita inquisitorial realizada por d. Marcos
Teixeira pode adquirir outro cariz e lugar na história do Santo Ofício no Brasil. O historiador
Rodolfo Garcia, em 1925, já alertara que:

223
VAINFAS, loc. cit.
224
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do Sul:
de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
2006, p. 62.
225
PEREIRA, loc. cit.
226
Confissões da Bahia (1618-1620), p. 64.
227
ASSIS, Angelo Faria de; VAINFAS, Ronaldo. A Santa Inquisição em Portugal (II). Denunciações da
Segunda Visitação do Santo Ofício à Bahia. Leiria: Proprietas, 2022, p. 29.
86

A formidável vassourada da primeira visitação não fora sufficiente para varrer todo
o mal [sic]; o Brasil continuava a ser, e continuou por muito tempo, o refúgio e o
lugar de degredo dos christãos-novos: refúgio para os que podiam da metrópole
escapar às malhas do temeroso tribunal, degredo para os que, por culpas leves, saiam
por elle penitenciados – esses em menor número do que aquelles.228

Entender as relações de continuidade presentes entre estas visitações significa


considerar diferentes ângulos de análise. Primeiramente é importante ponderar que há um
distanciamento temporal de vinte e três anos entre o final da primeira visitação inquisitorial
(1595) e o início da segunda (1618), ocorrendo casos em que indivíduos denunciados na
Bahia, no final do século XVI, foram, mais uma vez, delatados no século XVII. A
documentação da visitação de Marcos Teixeira pode, assim, ajudar a compreender os casos
arrolados por Heitor Furtado de Mendonça, sendo a recíproca igualmente verdadeira.
Além disso, também se faz necessário observar o relacionamento entre Igreja e
Estado no cenário político português, sobretudo porque estamos nos referindo ao contexto da
Monarquia Dual, chamada tradicionalmente de “União das Coras Ibéricas” (1580-1640) pela
historiografia. Neste contexto, a anexação política de Portugal ao reino espanhol provocou
uma tentativa de maior ingerência da Coroa espanhola no funcionamento das instituições
portuguesas, entre as quais se encontrava o Santo Ofício. É curioso observar que o maior
impulso de ação inquisitorial na colônia tenha ocorrido com as visitações do final do século
XVI e início do XVII, precisamente neste contexto político das monarquias ibéricas. As
dificuldades encontradas nas negociações para o estabelecimento de um tribunal da Inquisição
no Brasil também se inserem neste contexto marcado por disputas de poder entre o Santo
Ofício português e o rei Felipe IV de Espanha229.
As visitações foram um mecanismo de inspeção e um tipo de controle social
perpetrados pelo Santo Ofício, sobretudo a partir da segunda metade do século XVI, no
desenrolar da Contrarreforma católica, até a segunda metade do século XVII, momento em
que o Santo Ofício deixou paulatinamente de realizá-las, devido principalmente aos altos
custos que envolviam estas inspeções, ao estado de guerra em que vivia o reino entre os anos
de 1640 e 1660, além do próprio desenvolvimento jurídico e do corpo de agentes que
ingressavam as fileiras de colaboradores da Inquisição, como é o caso dos comissários e
familiares do Santo Ofício que representavam o tribunal em espaços onde não existia um
tribunal permanente em funcionamento.

228
Denunciações da Bahia (1618), p. 78.
229
Sobre este assunto, Cf. CODES, Ana Isabel Lópes-Salazar. Inquisición y política el Gobierno del Santo
Oficio em el Portugal de los Austrias (1578-1653). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa/Centro de Estudos
de História Religiosa, 2011.
87

São por estes motivos que a visita realizada por Geraldo José de Abranches à
Capitania do Grão-Pará e Maranhão, na segunda metade do século XVIII, costuma ser
considerada pela historiografia como um episódio extemporâneo. Se, de fato, no contexto da
segunda metade do século XVIII, as visitações estavam em desuso, como explicar esta
inspeção ao Estado do Grão-Pará? Umas das hipóteses aventadas pelo historiador Yllan de
Mattos230 é a de que a presença do Santo Ofício nesta região serviu ao projeto pombalino de
conhecer ‘as gentes’ e as terras do extremo norte do Brasil.
Com a administração de Sebastião José de Carvalho e Mello, Marquês de Pombal
e Conde de Oeiras, no cargo de principal secretário de Estado do Reino durante o reinado de
d. José I (1750-1777), o Santo Ofício passou por uma série de mudanças em sua estrutura
jurídica e funcionamento, relacionadas, por sua vez, à política pombalina de promover o
regalismo, ou seja, operacionalizar uma doutrina política que pretendia subordinar o clero à
autoridade do soberano e não do papa. A “Inquisição foi domesticada e direcionada para
outras esferas, contra aqueles que tinham ideias perigosas ao Estado”231. Assim sendo, para
entender as motivações desta visitação é necessário considerar o contexto político e social
especifico que a forjou, em que estiveram presentes elementos como:

[...] a urgência do Tratado de Madri (1750), a transferência da sede do antigo e


Grão-Pará para Belém (1751), o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
e Fernando de Ataíde Teive (irmão e sobrinho de Pombal, respectivamente), a
incorporação de escravos oriundos de África e a lei de liberdade dos índios (1755), o
estabelecimento do Diretório dos índios (1757), a expulsão dos jesuítas (1759),
enfim, uma atenção redobrada da coroa em relação ao norte da colônia. Do mesmo
modo, a Inquisição portuguesa sofreu reformas e mudanças de postura introduzidas
nesta época, associado ao declínio das atividades do próprio Tribunal, iniciadas com
a direção do irmão de Pombal, Paulo de Carvalho Mendonça, no Conselho Geral do
Santo Ofício entre os anos 1761 e 1769.232

Outra abordagem acerca da presença inquisitorial nessa região foi realizada pela
historiadora Maria Olindina Andrade de Oliveira233 que evidencia a atuação do Santo Ofício,
na Amazônia Portuguesa, em períodos anteriores à visita da segunda metade do século XVIII
e, desta feita, aponta quatro fases principais da ação inquisitorial nesta região, sendo a
primeira no período entre 1617 e 1700; a segunda, num período anterior à visitação, entre

230
Cf. MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento da Inquisição no Grão-Pará
pombalino (1763-1769). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em História, Niterói, 2009.
231
Ibid., p. 10.
232
Ibid., p. 9.
233
OLIVEIRA, Maria Olindina Andrade de. Olhares inquisitoriais na Amazônia portuguesa: o Tribunal do
Santo Ofício e o disciplinamento dos costumes (XVII-XIX). Dissertação (Mestrado em História Social).
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2010, p. 59.
88

1701 e 1762; a terceira fase entre 1763 e 1773, período que abrange a visitação e, por fim, a
fase que se dá depois da visitação, entre 1774 e 1805.
Além de um significativo corpo documental, composto pelos livros da visitação,
processos inquisitoriais e outros tipos de documentações do Santo Ofício, como é o caso dos
Cadernos do Promotor, a pesquisa desta historiadora registra a importância de repensar as
periodizações clássicas da atuação inquisitorial na região norte do Brasil, defendendo,
inclusive, a ideia de que a visitação de Geraldo José de Abranches seja compreendida até o
ano de 1773 e não até 1769 como costumeiramente é entendida pela historiografia, isso
devido aos registros disponíveis no livro da visitação publicado pelo historiador José R.
Amaral Lapa, pois, de acordo com indícios documentais identificados pela autora, Abranches
continuou atuando em suas funções até aquela data.234
É importante lembrar que, além dos períodos de visitações, o Santo Ofício
também se fez representar na colônia através da atuação de um corpo de servidores, leigos e
eclesiásticos, que faziam funcionar de modo permanente a engrenagem inquisitorial de
vigilância religiosa e, nesse sentido, ajudavam a demarcar um tipo de ação fluida, sutil e
cotidiana, como é o caso dos chamados Familiares e Comissários do Santo Ofício. Os
primeiros eram oficiais leigos do aparelho inquisitorial e tinham como principais funções
espionar e delatar suspeitos, além de realizar prisões em nome do Santo Ofício. Em uma
sociedade do Antigo Regime, obter uma habilitação de familiar da Inquisição tornava-se um
privilégio social, sendo o alcance deste cargo muitas vezes utilizado como instrumento de
ascensão social235. Daniela Calainho236 aponta que foi apenas em meados do século XVII que
a rede de familiares começou, de fato, a organizar-se em Portugal, vindo a atingir o seu ápice
no século seguinte, registrando que, para a região baiana e pernambucana, foram expedidas
148 habilitações para familiar do Santo Ofício no século XVII, 1148 no século XVIII e 76 no
século seguinte.237
De acordo com estes dados, percebe-se claramente o aumento significativo do
volume de habilitações de familiaturas expedidas para o Brasil no século XVIII. No caso dos
Comissários, esta dinâmica também foi similar. Os comissários da Inquisição eram pessoas
eclesiásticas cujas principais funções eram, segundo o historiador Aldair Carlos Rodrigues,
“ouvir testemunhas nos processos dos réus e nas habilitações de agentes inquisitoriais;

234
Ibid., p. 51.
235
Cf. CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colonial.
Bauru, SP: Edusc, 2006.
236
Ibid., p. 76.
237
Ibid., p. 176.
89

cumprir mandados de prisão com o auxílio dos familiares e organizar a condução dos
presos”238; vigiar os condenados que estivessem cumprindo pena de degredo nas suas áreas de
atuação; além de manter um extremo contato com o Tribunal de Lisboa, colhendo e
transferindo denúncias. Nas palavras de Sônia Siqueira, os comissários eram, por fim, “nas
regiões em que não havia Tribunal, a autoridade maior a quem se deviam dirigir os outros
oficiais do Santo Ofício porventura existentes, e os familiares”.239
Podemos, assim, dizer que a Inquisição fez-se presente em outros espaços do
território colonial ao ter, na atuação da malha eclesiástica local, uma rede de colaboração. Há
outras referências da atuação do Santo Ofício, por exemplo, no Rio de Janeiro, nos séculos
XVII e XVIII; nas Minas Gerais, no século XVIII, bem como no extremo norte das Capitanias
do Norte240. Este expansionismo da presença da Igreja e da vigilância da fé foi possibilitado
pela articulação da instituição inquisitorial com o clero local. Yllan de Mattos e Pollyanna
Muniz chamam atenção para este fator, ao afirmarem que:

[...] para pôr em funcionamento as denúncias e averiguações nas terras de além-mar


que não conhecem a fundação do tribunal, a Inquisição teve que mobilizar membros
locais do alto e do baixo clero, regulares – notadamente jesuítas –, poder secular e
simples anônimos, além, claro, de seus próprios agentes. Essa peculiaridade garantiu
aos inquisidores a constante atividade persecutória nas terras americanas.241

O mecanismo do envio de visitações foi utilizado pela Inquisição no Brasil,


sobretudo, no contexto inicial da colonização, momento no qual o aparelho eclesiástico local
mostrava-se pouco denso em relação a extensão territorial do espaço colonial luso-americano.
238
RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção
social, século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014, p. 126.
239
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 160.
240
Cf. SILVA, Lina Gorestein Ferreira da. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e
XVIII. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005; FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais
no século XVIII. Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2000; MOTT, Luiz. A
Inquisição em Sergipe. Aracaju: Sercore Artes Gráficas, 1989; MOTT, Luiz. A Inquisição no Rio Grande do
Norte. O Poti, (Natal), 13-7-1986; VIEIRA JUNIOR, Antônio Otaviano. A Inquisição e o Sertão. 1. ed.
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2008; ALMEIDA, Nilton Melo. Cristãos-novos, seus descendentes e
Inquisição no Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2021; PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Novos
ares, nova vida: mobilidade, casamento e família nos sertões do Siará Grande (1759-1766). Dissertação
(Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza – CE, 2016. Recentemente o Laboratório de Experimentação em História Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – Lehs/UFRN, publicou uma série de registros localizados nos Cadernos do
Promotor da Inquisição de Lisboa sobre casos referentes a capitania do Rio Grande entre os séculos XVII-XIX.
Cf. ALVEAL, Carmen; PEREIRA, Ana Margarida Santos [et. al.]. Hereges e degredados na capitania do Rio
Grande (séculos XVII-XIX), Natal, RN: Editora Flor do Sal, 2018 (Documentos Coloniais do Rio Grande). Para
uma discussão atualizada sobre o uso do termo ‘Capitanias do Norte’, Cf. ALVEAL, Carmen; DIAS, Thiago
Alves. Por uma história das Capitanias do Norte: questões conceituais e historiográficas sobre uma região
colonial no brasil. História Unicap, [S.L.], v. 7, n. 13, jan./jun. 2020.
241
MUNIZ, Pollyanna Gouveia Mendonça; MATTOS, Yllan de. Vigiar a ortodoxia: limites e
complementariedades entre a Justiça Eclesiástica e a Inquisição na América portuguesa. Revista de História, São
Paulo, n. 171, Jul/dez, 2014, p. 293.
90

Aldair Rodrigues, ao estudar os mecanismos de promoção social por meio dos cargos da
Inquisição, chega mesmo a afirmar que houve uma espécie de reordenamento nas estratégias
da Inquisição, a qual, no contexto do século XVIII, teria se apoiado principalmente na sua
rede de agentes próprios, diminuindo, em consequência, o envio de comitivas para realizar
visitações em nome do ‘Santo Ofício’. Esta ideia está apoiada sobretudo no volume de
habilitações de agentes inquisitoriais expedidas no período entre 1700 e 1801, cujo número
total seria de 198 comissários neste contexto.242
A complexidade da organização da malha eclesiástica colonial acompanhou a
expansão territorial da Igreja, e podemos dizer que, por extensão, a atividade inquisitorial
pôde atingir outros espaços por meio da colaboração da Justiça eclesiástica e seus
representantes locais. O processo de apropriação e organização do espaço colonial do Brasil
teve na ação da Igreja portuguesa um importante mecanismo de territorialização e
cristianização destes espaços.
Ao atuar por meio de uma complexa rede de agentes e colaboradores, pode-se
dizer que o alcance da Inquisição na colônia estendeu-se, atingindo não somente os períodos
específicos de inspeção nas visitações, mas principalmente para o contexto do século XVIII,
no qual o aparelho eclesiástico colonial já atingira um elevado grau de extensão e
organização. Nesse sentido, a presença do Santo Ofício – presença mesmo que ‘virtual’, por
meio de representantes eclesiásticos – nos espaços mais distantes e recônditos do império
ultramarino português, e no nosso caso especificamente do Brasil, foi possibilitava devido à
construção de uma complexa rede que era ao mesmo tempo social, política e religiosa, cujos
valores da ortodoxia cristã e as mensagens de controle e ordem social por meio da religião
estiveram presentes.
Ao lado da manutenção da fé, da moral e da ortodoxia da cristandade nos espaços
coloniais do Brasil pela Inquisição, operou-se um exercício de integração destes espaços aos
demais territórios do império ultramarino português. As visitações inquisitoriais, ao
integrarem o mecanismo de atuação em rede, fizeram parte deste movimento de apropriação
espacial. A presença e atuação inquisitorial no Brasil, seja por meio das visitas esporádicas ou
através da ação de agentes locais devidamente habilitados, como é o caso dos comissários e
familiares, foi um exemplo do intrínseco diálogo entre Igreja e Estado no mais refinado
exercício de controle social e das consciências da coletividade cristã.

242
RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção
social, século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014, p. 126-130.
91

2.5. Uma celeuma de burburinhos: as visitações do Santo Ofício no Brasil colonial

A construção social de estratégias de sobrevivência – individual ou coletiva;


econômica, social e/ou religiosa, por exemplo – diante da ação repressora de instituições
religiosas como é o caso da Inquisição portuguesa, não foi uma especificidade do Brasil; ao
contrário, estas foram práticas que emergiram antes mesmo da própria fundação do tribunal
inquisitorial lusitano em 1536, caso consideremos o batismo forçado dos judeus portugueses
em 1497 como um dos episódios precursores da onda de intolerância que caracterizou a
transição do medievo para a Época Moderna na Peninsula Ibérica. Nesse sentido, cabe
ressaltar que foi a consciência do perigo que se acreditava iminente que impulsionou a
emergência de comportamentos auto protetivos.
No Brasil, a chegada da comitiva inquisitorial responsável pelas inspeções
realizadas nas visitações inquisitoriais certamente provocou considerável alvoroço não apenas
devido à grandiosidade da ocasião – receber em terras coloniais representantes do Santo
Tribunal –, mas também pela transformação do cotidiano da população local sob inspeção,
como discutimos anteriormente. De fato, a celeuma social provocada com a instalação das
visitas do Santo Ofício pode ser percebida pelo próprio volume das denúncias e das
confissões apresentadas aos representantes do tribunal lisboeta, bem como a sua distribuição
ao longo do tempo decorrente dos períodos de inspeção.
Uma vez iniciada a visitação, o comparecimento da população às Mesas
inquisitoriais foi expressivo, seja para se confessar ou delatar outrem. Na primeira visitação
(1591-95), por exemplo, o grande volume das apresentações ocorreu no ‘período da graça’,
momento da visita em que pesava mais a misericórdia e a brandura do Santo Ofício.
Na Bahia, o primeiro ‘período da graça’ concedido para a cidade de Salvador e
seus arredores, iniciou-se no dia 29 de julho de 1591 e estendendo-se até 27 de agosto daquele
mesmo ano, sendo registradas nesse momento 166 denúncias e 39 confissões243; além disso,
38 denúncias e 03 confissões foram registradas entre agosto de 1591 e janeiro de 1592, ou
seja, entre o fim do primeiro e o início do segundo ‘tempo da graça’ (este segundo

243
No livro organizado por J. Capistrano de Abreu (1925) com essa documentação, constam o total de 164
denúncias transcritas. No entanto, verificamos que as duas primeiras denúncias do manuscrito original não foram
incluídas no livro de fontes impressas publicado sob a supervisão de Abreu no início do século passado, são elas:
Ciprião Velho contra Manoel de Paredes e Bernardo Velho; Manoel Rodrigues contra Pero Nunes; ambas
deleções foram realizadas no dia 29 de julho de 1591 e tratam de delitos como blasfêmias e proposições de
cunho herético como, por exemplo, duvidar da virgindade de Maria de Nazaré, mãe de Jesus, ou praguejar contra
Deus num momento de infortúnio. Cf. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro 1 de
denúncias da 1ª visitação ao Brasil por Heitor Furtado de Mendonça, fl. 11-13; Denunciações da Bahia (1591-
1593).
92

direcionado para a região do Recôncavo Baiano, durando do dia 02 de janeiro ao dia 11 de


fevereiro de 1592, com o registro de uma denúncia e de 79 confissões). O Santo Ofício
permaneceu atuante na capitania da Bahia até setembro de 1593 – registrando nesse interim,
ou seja, entre fevereiro de 1592 e setembro de 1593, o total de 09 denúncias; não há registros
de confissões nessa última etapa da visitação na Bahia –, momento em que a pequena
comitiva inquisitorial se deslocou para a capitania de Pernambuco para dar prosseguimento à
visitação.
Por mais que sejam bastante expressivos, estes números explicitam uma realidade
relativa, definida pelos limites da própria documentação que permaneceu para a posteridade.
Como nos explicou o historiador José Antônio Gonçalves de Mello, o segundo livro das
denunciações da Bahia, relativo ao Recôncavo, bem como o segundo livro das confissões
(formado por registros da Bahia e de Pernambuco) foram extraviados. Além destes, o
primeiro livro das ratificações, relativo à Bahia, teve igual destino. 244
Na documentação disponível e conhecida – devido à organização e publicação dos
historiadores João Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia no início do século passado – há, de
fato, uma considerável lacuna, principalmente nas denúncias da Bahia, cujos registros
fornecem informações mais volumosas das delações ocorridas em 1591 (204 das 214
denúncias disponíveis para a Bahia), sendo os índices decrescentes para os anos seguintes –
nove denúncias para o ano de 1592 e apenas um registro para o ano de 1593 245. Certamente o
acesso às informações contidas nos livros extraviados nos possibilitaria aprofundar o quadro
das análises deste período, mas não há dúvida de que o conjunto documental das
denunciações, confissões, ratificações e os processos-crime disponíveis decorrentes desta
visitação são elucidativos para visualizarmos o funcionamento do tribunal inquisitorial na
colônia luso americana do século XVI.
De todo modo, não deixa de ser interessante observar, de acordo com os
documentos existentes, que na capitania da Bahia 77% das delações (166 denúncias) foram
realizadas no logo primeiro mês de atividade inquisitorial, entre julho e agosto de 1591. Em
relação às confissões, o maior índice refere-se às apresentações do ‘tempo da graça’
concedido a região do recôncavo, cujos registros concentram 65% (79 entre o total de 121)
das confissões disponíveis apresentadas à Mesa inquisitorial na Bahia quinhentista246.

244
MELLO, José Antônio Gonçalves de. Introdução. Confissões de Pernambuco (1594-1595), p. 8-9.
245
Denunciações da Bahia (1591-1593).
246
Confissões da Bahia (1591-1593).
93

Além do recebimento dessas apresentações espontâneas, a Mesa inquisitorial


funcionou convocando pessoas para prestar depoimento, fossem elas testemunhas dos delitos
denunciados; os próprios depoentes que, ao serem chamados, apresentavam-se para confirmar
seus relatos; ou mesmo indivíduos com considerável prestígio social, convocados à Mesa para
atestar o ‘crédito’, ou seja, a credibilidade dos denunciantes e demais testemunhas. Sobre
estes últimos, Manoel Francisco, notário da visitação, registrava nos livros do Santo Ofício
que “era necessário tomarse informarção de alguas pessoas honradas e de co[n]fiança” a fim
de averiguar “se lhes parece q[eu] as tais testªs fallarão verdade no que testemunharem pera
com essa informação se saber o créditto q[ue] se lhas poderá dar a seus testºs”247, de modo
que podemos verificar o registro de 31 convocações de indivíduos pertencentes a setores com
maior privilégio social, sendo na maioria das vezes identificados como ‘cidadãos’ de Salvador
ou da ‘governança da terra’.
Na capitania de Pernambuco o visitador Heitor Furtado também concedeu dois
períodos da graça; o primeiro destinado à vila de Olinda, mais especificamente às freguesias
do Salvador, São Pedro Mártir, do Corpo Santo e de Nossa Senhora da Várzea do Capibaribe,
tendo seu início junto com a própria visitação no dia 24 de outubro de 1593 e estendendo-se
até o dia 23 de novembro do mesmo ano, sendo registrado nesse momento da visitação o total
de 83 denúncias. Como as confissões de Pernambuco encontram-se incompletas – devido ao
cariz lacunar da documentação apontado anteriormente –, falta-nos a parte referente ao
‘período da graça’ da vila de Olinda e arredores, além da parte inicial do segundo ‘período da
graça’ em Pernambuco, que foi concedido à vila de Igaraçu e às freguesias de São Cosme e
Damião, São Lourenço, Santo Antônio do Cabo e São Miguel de Ipojuca, iniciando-se no dia
13 de janeiro de 1594 e perdurando até o dia 08 do mês seguinte.
A documentação referente a este ‘período da graça’ de Igaraçu e demais
freguesias registra 60 denúncias e 12 confissões, estas últimas realizadas entre os dias 06 e 08
de fevereiro de 1594, ou seja, no final da ‘graça’. Nos meses que se seguiram, após o término
do ‘tempo da graça’, a Mesa inquisitorial instalada na vila de Olinda continuou a receber
denúncias e confissões, registrando até o início de dezembro de 1594 o total de 60 denúncias e
22 confissões.
Entre dezembro de 1594 e fevereiro de 1595, Heitor Furtado visitou as capitanias
de Itamaracá e da Paraíba. A permanência da Mesa inquisitorial nestes espaços foi mais
pontual, tendo em conta que o tempo total reservado à visitação destes lugares correspondeu

247
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro 1 de denúncias da 1ª visitação ao Brasil por
Heitor Furtado de Mendonça, fl. 234-251.
94

apenas ao chamado ‘período da graça’. Em Itamaracá a Mesa atuou entre os dias 08 e 21 de


dezembro, concedendo, portanto, um ‘período da graça’ consideravelmente mais curto em
comparação com os usuais 30 dias concedidos aos lugares em que se instalou anteriormente,
recolhendo nesta capitania 22 denúncias e 14 confissões. Já na Paraíba, a Mesa recebeu
denúncias e confissões entre os dias 08 e 24 de janeiro de 1595, sendo este o período
destinado pelo visitador para a concessão da ‘graça’ e da misericórdia inquisitoriais,
registrando 16 denúncias e nove confissões. Ao término das inspeções em Itamaracá e na
Paraíba, a Mesa inquisitorial retornou para Olinda no início de fevereiro de 1595,
permanecendo em atividade até Heitor Furtado de Mendonça seguir as instruções do
Conselho Geral do Santo Ofício lisboeta e dar por encerrada a visitação, retornando para
Portugal no início de 1596. Nesta última etapa da visitação – ou seja, após o retorno do
visitador da Paraíba para Olinda – há o montante de cinco confissões (a última registrada em
29 de julho de 1595) e 38 denúncias (último registro realizado em 13 de setembro do mesmo
ano).
Considerando-se o volume de delações realizadas na Capitania de Pernambuco,
logo se pode perceber fenômeno similar ao ocorrido na Bahia, com o maior índice das
denúncias ocorrendo no período inicial da inspeção do Santo Ofício, entre outubro e
novembro de 1593 – 34% (83) do total das delações em Pernambuco. Além disto, pode-se
também observar uma distribuição mais equilibrada das denúncias nos momentos
subsequentes da visitação nesta capitania: 25% (60) das denúncias realizadas no ‘período da
graça’ de Igaraçu e suas freguesias vizinhas; 25% (60) entre fevereiro e dezembro de 1594, ou
seja, após o término dos dois ‘tempos da graça’ destinados à capitania; 16% (38) no retorno
da comitiva para a vila de Olinda, após a realização das visitas ocorridas em Itamaracá e na
Paraíba. Já em relação às convocações realizadas por Heitor Furtado nessas capitanias no
decorrer de 1594 e 1595, identifica-se a ocorrência de trinta depoentes – a ampla maioria
pertencente a cargos eclesiásticos e à nobreza da terra – para investigar o crédito dos
denunciantes, sendo 20 deles em Pernambuco, 04 em Itamaracá e 06 na Paraíba 248. As
ratificações relativas a estas capitanias somam o total de 88 registros (51 em Pernambuco, 20
em Itamaracá e 17 na Paraíba). No entanto, são relatos que geralmente pouco acrescentam às
narrativas das denúncias, tendo em vista que se trata, grosso modo, da confirmação dos fatos e

248
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro 3 das denúncias da primeira visitação ao Brasil,
fl.97-128.
95

circunstâncias apontadas nos depoimentos anteriores, que são repetidos burocrática e


pacientemente sob a pena do notário e ratificados pelos denunciantes.249
No tocante aos índices das denunciações da visitação de Marcos Teixeira entre
1618 e 1620 na capitania da Bahia verificou-se a incidência de 231 apresentações à Mesa
inquisitorial – entre denúncias apresentadas voluntariamente, ratificações dessas denúncias e
convocações de testemunhas. Nesta visitação, o inquisidor estendeu dois ‘períodos da graça’ –
o primeiro para a cidade de Salvador e arredores e o segundo para a região do Recôncavo
Baiano – com duração de 15 dias cada.
No ‘período da graça’ destinado à cidade de Salvador – iniciado em 11 de
setembro de 1618 e estendido até o fim daquele mês – foram registradas 80 denúncias por
meio de apresentações voluntárias; após esse período de ‘misericórdia’, houve o registro de
mais 10 denúncias realizadas sem convocação do inquisidor, todas realizadas ao longo do ano
de 1619 (02 em janeiro; 02 em maio; 03 em junho; 02 em outubro e 01 em dezembro),
totalizando assim 90 denúncias voluntárias. Isto quer dizer que de um universo de 231
registros, apenas 39% referem-se, efetivamente, às delações apresentadas por livre escolha e
iniciativa dos depoentes250.
Os outros 141 registros foram produtos do próprio labor inquisitorial, resultado
das investigações realizadas pelo visitador Marcos Teixeira, constituindo-se de um conjunto
de convocações de testemunhas, confirmações das denúncias e de registros sobre a
credibilidade de acusados e de testemunhas. Caso o montante total dos registros dessa
visitação seja dividido de acordo com os anos em que durou a inspeção, logo temos as já
citadas 80 denúncias do ‘período da graça’ de 1618; 107 registros para o ano de 1619 – em
que se incluem as 10 outras delações voluntárias, apontadas anteriormente – e 44 registros em
1620. Aqui é interessante observar que todas as denúncias registradas no ano de 1618 foram
realizadas no mês de setembro durante o ‘período da graça’, não havendo, portanto, registros
de delações voluntárias nos meses de outubro, novembro e dezembro daquele ano.
Pelo o exposto, pode-se pontuar que houve uma considerável diminuição das
apresentações dos indivíduos delatores após um período inicial de intensa atividade da Mesa.
Ao que parece, se se dependesse apenas das apresentações voluntárias dos indivíduos
delatores, a atuação de Marcos Teixeira resumir-se-ia aos 15 dias iniciais da visitação em

249
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Segundo Livro das Ratificações da primeira visitação
do Santo Ofício, das partes do Brasil, feita pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça, por especial comissão
do cardeal Alberto, inquisidor mor, fl. 1-89.
250
Denunciações da Bahia (1618); ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das
denunciações que se fizeram na visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do
Estado do Brasil.
96

1618, acrescido de momentos pontuais no ano seguinte – o que sugere, nesse sentido, que a
presença da comitiva inquisitorial provocou um susto inicial que foi concomitantemente
acompanhado pelo desenvolvimento de estratégias de autopreservação. Já as confissões dessa
visitação somam o total de 125 registros, sendo que 44% (55) foram realizadas em 1618
durante o primeiro ‘período da graça’; 47,2% (59) no ano de 1619 e 8,8% (11) em 1620
(destas 11 confissões, 07 foram realizadas no segundo ‘período da graça’, destinado ao
Recôncavo, iniciado no dia 18 de outubro de 1620 e finalizado no fim daquele mês).251
As duas últimas visitações inquisitoriais realizadas na colônia (1627-28 nas
capitanias do Sul e 1763-69 na capitania do Grão-Pará e Maranhão), por razões diferentes,
resultaram em um conjunto documental com menor volume de registros – que se relaciona, no
primeiro caso, com as vicissitudes que envolveram a visitação de 1627-28, e, no segundo
caso, com próprio contexto político da Inquisição na segunda metade do século XVIII,
momento em que as visitações inquisitoriais já não eram mecanismos largamente utilizados
pela Inquisição portuguesa.
Como discutido anteriormente, a visitação realizada por Luís Pires da Veiga nas
capitanias do Sul entre 1627 e 1628 carece de um maior volume de documentação – devido ao
episódio de captura da nau em que o visitador viajava e da realização do desesperado descarte
dos livros contendo as denúncias e confissões – que permitam o levantamento significativo
dos índices decorrentes dessa inspeção. Um dos principais documentos referentes a esta visita
trata-se de um relatório produzido de memória pelo próprio Luís Pires da Veiga sobre
acusações que recebeu no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Vila de Santos e na Vila de
Vitória na capitania do Espirito Santo.
A historiadora Ana Margarida Santos Pereira localizou este relatório em meio aos
Cadernos do Promotor, de modo que, de acordo com o documento, Luís Pires da Veiga teria
recebido 24 denúncias e 40 confissões, além processar três indivíduos em sua passagem por
estes espaços252. Esta historiadora discute os resultados dessa visitação, afirmando que “em
termos concretos, parecem ter sido quase nulos os efeitos da visitação de 1627-28 às
Capitanias do Sul”, e complementa dizendo que “é natural que a presença do visitador tenha
provocado algum alvoroço entre os habitantes, alterando momentaneamente o ritmo da vida e
a boa condução dos negócios, mas nada que se assemelhe ao que aconteceu durante as

251
Confissões da Bahia (1618-1620).
252
Relatório da visitação de Pires da Veiga às Capitanias do Sul (1627/28). In. ANTT, Tribunal do Santo
Ofício, Inquisição de Lisboa, 24º Caderno do Promotor (liv. 224), fl. 313-316. Este documento foi reproduzido
como apêndice documental no referido estudo de Ana M. S. Pereira. Cf. PEREIRA, Ana Margarida Santos. A
Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do Sul: de meados do séc. XVI ao início do séc.
XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.
97

visitações ao Nordeste”253. De fato, como veremos mais à frente, um dos efeitos mais curiosos
dessa visitação não reside nos seus resultados práticos sob o ponto de vista do funcionamento
da maquinaria inquisitorial, mas sim dos problemas enfrentados pelo visitador na sua
recepção pela população local.
Relativamente à última visitação realizada no espaço colonial luso americano,
pode-se verificar uma manifesta desproporção entre o tempo de duração desta inspeção
inquisitorial e os seus resultados no que diz respeito ao recolhimento de denúncias e
confissões pela Mesa encabeçada pelo visitador Geraldo José de Abranches. Na
documentação publicada pelo historiador José Roberto do Amaral Lapa há o registro de
apenas 27 delações e 20 confissões para os seis anos de duração da missão inquisitorial.
Verifica-se a ocorrência da mesma tendência de maior concentração de apresentações à Mesa
no período inicial da visitação (14 denúncias e 09 confissões registradas em 1763), com o
decréscimo do volume de registros ao longo do restante do período de visitação (08 denúncias
e 03 confissões em 1764; 01 denúncia e 02 confissões em 1765; 02 denúncias e 04 confissões
em 1766; 01 denúncia e 01 confissão em 1767 e em 1769, respectivamente. Não há nenhum
registro para o ano de 1768).254
É certo que o exame quantitativo do volume de apresentações (denúncias,
confissões, testemunhos, ratificações) à Mesa inquisitorial é relativo e parcial, devido,
principalmente, à característica lacunar da documentação que foi preservada para a
posteridade. De todo modo, considerando-se o conjunto documental existente resultante
dessas visitações, é possível observar algumas tendências em comum que podem ratificar ou
relativizar o alcance social do poder de coerção impetrado pelo Santo Ofício em um espaço
que, de fato, não tinha um tribunal inquisitorial formalmente estabelecido e que recebeu,
pontualmente, comitivas vindas de Lisboa para visitar regiões estratégicas da colônia.
Ora, a celeuma inicial e a evidente correria da população para se apresentar à
Mesa aproveitando-se do ‘período da graça’ não representou, necessariamente, uma total
passividade diante do poder de coerção social do Santo Ofício, mas a conformação e
demonstração pública de um comportamento que era socialmente esperado; quer dizer, os atos
de deferência e respeito ao Santo Ofício – como o comparecimento nas cerimônias públicas
de instalação das visitações e a demonstração de colaboração nas delações –, integravam
ações que eram socialmente esperadas, tendo em vista a ameaça de excomunhão para aqueles

253
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do Sul: de
meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006,
p. 136.
254
Livro da Visitação do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769)
98

que não o fizessem. Este foi o caso, por exemplo, de Bernardo Pimentel, vereador da cidade
de Salvador, que se negou a participar das solenidades para a recepção do visitador Heitor
Furtado de Mendonça, em 1591, sendo, por isso, obrigado a pagar cem cruzados para as
despesas do Santo Ofício.255
Como afirma Scott, “uma pessoa pode tratar um padre com deferência por respeito
pelos padres em geral e pela fé que representam, não deixando por isso de nutrir um desprezo
inconfessado por esse padre em particular”256. Poderíamos dizer, parafraseando o autor, que o
respeito público destinado aos inquisidores – considerando-se os índices das apresentações em
massa nos ‘períodos da graça’ – certamente relacionava-se com o respeito a Deus e à Igreja,
de modo geral, além do próprio medo provocado pela Inquisição; o que não quer dizer que a
presença das autoridades inquisitoriais fosse algo ampla e socialmente desejado. É nessa
relação complexa que podemos visualizar os diferentes tipos de tensões que costuravam o
tecido social durante os períodos de visitação.
A aparente submissão pública que o volume de apresentações permite visualizar
não deixa emergir as diferentes estratégias adotadas diante do perigo representado pelo Santo
Ofício – dentre as quais se encontrava, inclusive, o comparecimento à Mesa da visitação
aproveitando-se do ‘período da graça’ para delatar outrem ou confessar-se. A imersão no
universo documental das fontes inquisitoriais das visitações ao Brasil possibilita, nesse
sentido, a identificação de diferentes formas de resistência – individual e/ou coletiva;
deliberada e/ou oculta – ao exercício de controle social, religioso e das consciências,
operacionalizado pela Inquisição portuguesa no Brasil através de variados dispositivos, em
que se destaca aquilo que convencionalmente se cristalizou na historiografia como ‘pedagogia
do medo’.

255
Anita Novinsky aponta este caso em seu inventário dos prisioneiros do Brasil sem, contudo, indicar o número
do processo. Ao que parece, Bernardo Pimental não chegou a ser efetivamente processado por Heitor Furtado.
As informações sobre seu caso podem ser, no entanto, visualizadas no processo de Antônio Mendes, seu criado,
acusado de proferir proposições de cunho herético. Cf. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,
processo nº 6359; NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX – 2. ed. rev. São
Paulo: Perspectiva, 2009, p. 77.
256
SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência – discursos ocultos. Letra Livre, Lisboa, 2013, p. 56.
99

3. DISCURSOS OCULTOS: CRIPTOJUDAÍSMO COLONIAL –


RESISTÊNCIA SOCIAL, CULTURAL E RELIGIOSA

As formas de resistência construídas historicamente perante o exercício


policialesco inquisitorial – ou a sua ‘pedagogia do medo’ – nem sempre estiveram associadas
a comportamentos de deliberado ataque ao Santo Ofício. Pelo contrário, as diferentes
maneiras de resistir ao controle social imposto pela atuação do Santo Ofício foram forjadas no
cotidiano, tendo como sua força principal a ideia de sobrevivência, seja física, propriamente
dita, seja social, econômica, religiosa ou cultural. Nesse sentido, muito mais do que protestos,
motins ou afrontes diretos de uma multidão em polvorosa contra as visitações realizadas pelos
representantes do Santo Ofício, é possível interceptar, nas fontes inquisitoriais do período
colonial brasileiro, ações sutis e camufladas, comportamentos dissimulados e sub-reptícios
que, de uma maneira mais ou menos oculta, faziam parte do conjunto de ações táticas que
compuseram as estratégias de resistência social judaizante.
O criptojudaísmo foi uma destas estratégias de resistência que se pretendia
silenciosa, ou no mínimo discreta. Na verdade, o termo criptojudaísmo visa a dar conta de
todo um complexo de costumes, práticas e hábitos vindos do judaísmo oficial e adaptados
pelos cristãos-novos judaizantes que continuavam a praticar, em segredo, os ritos da lei de
Moisés; ou seja, o criptojudaísmo era uma estratégia que implicava, necessariamente, em
práticas mantidas em segredo e realizadas fora do espaço de sociabilidade público.
Desde a Baixa Idade Média, e com maior intensidade no final do século XV, o
clima de intolerância religiosa para com os judeus ibéricos fomentou a perseguição popular e
institucional a esta comunidade, culminando, em Portugal, com o batismo forçado de 1497,
que proporcionou a emergência social de um novo grupo: os ‘cristãos-novos’. Com o passar
das gerações, muitos desses abraçaram verdadeiramente a nova fé, tornando-se ‘exemplares’
cristãos católicos. No entanto, outra parcela considerável de neoconversos encontrou na
dubiedade religiosa um modo de manter suas tradições e identidade sociocultural. Eram,
portanto, criptojudeus ou judaizantes, ou seja, “os judeus que, impelidos pelo terror,
aceitaram o baptismo e se tornaram pseudo-cristãos, vivendo como católicos, mas prestando
culto no seu íntimo à Lei velha”.257
Com efeito, o criptojudaísmo foi, por definição, uma estratégia de resistência de
caráter oculto desenvolvida pelos cristãos-novos que judaizavam – não obstante as proibições

257
LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição. Lisboa: Contexto, 1999, p. 80.
100

perpetradas pela Coroa, pela Igreja católica e pelo Santo Ofício –, sendo constituído,
sobretudo, por meio de táticas cotidianas que garantissem a manutenção de alguns costumes
significativos no âmbito da tradição judaica, como, por exemplo, a guarda do sábado; a
realização de jejuns, orações e juramentos ao modo dos judeus; o desprezo pelos símbolos
católicos; a observação de ritos funerários e de interdições alimentares próprias do judaísmo;
a posse e a leitura da Torah; a realização de reuniões clandestinas, entre outros indícios.258
Os registros acerca da manutenção de alguns hábitos do judaísmo oficial são
indícios significativos de que, não obstante a desconfiança, a discriminação social e as
perseguições destinadas aos neoconversos, os costumes da tradição judaica se mantinham
numa relação dúbia com o novo lugar social ocupado pela comunidade de cristãos-novos,
sobretudo nos casos dos judaizantes. As denúncias apresentadas nas visitações foram
resultado do atendimento da população aos itens listados no Monitório de culpas, lido nas
igrejas e fixado em suas portas para que toda a comunidade tivesse conhecimento dos casos
que deveriam denunciar ou confessar. Na Capitania da Bahia – sobretudo na região do
Recôncavo – e nas Capitanias do Norte, importantes espaços das plantations açucareiras dos
séculos XVI e XVII, são fartos os exemplos de grupos de cristãos-novos acusados de judaizar.

ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo Feminino na Bahia – séculos XVI-
258

XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2004, p. 12.
101

3.1. Criptojudaísmo colonial: indícios, suspeitas, dissimulações

O criptojudaísmo pode também ser compreendido nessa relação dialógica entre


medo e resistência. Ora, o desenvolvimento desta estratégia de sobrevivência religiosa esteve
historicamente ligado às perseguições empreendidas contra a comunidade de neoconversos
pela Igreja e pela Coroa desde o final do século XV – e a partir do segundo quartel do século
XVI, pelo Santo Ofício. A necessidade de adaptar os ritos do judaísmo oficial para as
circunstâncias socialmente desfavoráveis foi, em certo sentido, um produto desta sistemática e
institucionalizada perseguição de que eram vítimas. Se o tribunal inquisitorial português
utilizou-se de uma série de dispositivos que objetivavam alcançar o controle das consciências
por meio, principalmente, de uma estética de terror e de intimidação, os cristãos-novos que
continuavam a praticar a observância religiosa mosaica, por sua vez, desenvolveram na esfera
cotidiana maneiras sutis de contornar as proibições que lhes foram impostas, principalmente
aqueles cristãos-novos pertencentes as gerações mais próximas da conversão forçada de 1497,
momento em que a memória da fé mosaica alcançava maior concretude na transmissão aos
descendentes.
Com efeito, estamos aqui tratando de uma relação de poder significativamente
desigual que fomentou a dubiedade social e religiosa dos judaizantes, a qual pode ser
entendida, nos termos de James Scott, a partir das ideias de ‘discurso público’ e ‘discurso
oculto’. De fato, se o ‘discurso público’ refere-se, segundo Scott, ao comportamento – como,
por exemplo, atos de deferência e demonstrações de respeito – dos subordinados na presença
da figura dominadora, o ‘discurso oculto’ relaciona-se, por sua vez, aos comportamentos que
têm “lugar fora do campo de observação direta dos detentores do poder”, sendo, portanto,
“conotativo no sentido em que consiste em enunciados, gestos e práticas que, tendo lugar fora
de cena, confirmam, contraditam ou inflectem aquilo que aparece no discurso público”.259
Pode-se ponderar, nesse sentido, que o criptojudaísmo colonial constituiu-se como
um tipo de discurso oculto estratégico no âmbito das relações de dominação perpetradas pelas
instituições religiosas portuguesas, notadamente pelo Tribunal do Santo Ofício. A
camuflagem social dos neoconversos que judaizavam em segredo foi forjada, à vista disso,
com base em diferentes táticas que, em determinadas circunstâncias, envolviam discursos
públicos – por exemplo, o empenho em demostrar que eram bons cristãos ou, no caso das
visitações, o próprio comparecimento à Mesa do inquisidor para delatar ou confessar os

259
SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência – discursos ocultos. Letra Livre: Lisboa, 2013, p. 31.
102

desvios em matéria de fé. No entanto, muitas táticas desenvolveram-se, fundamentalmente, a


partir de discursos ocultos, como os costumes que eram mantidos com certa discrição no
cotidiano, o que, apesar de escandalizar muitos indivíduos, não aparentava ser um dos
problemas mais urgentes, pelo menos até a instalação das visitações inquisitoriais no território
colonial luso-americano significativamente despoliciado no que se refere ao estado espiritual
dos colonos.
O encontro, ou o confronto, desses dois discursos pode ser visualizado nos
testemunhos registrados nos documentos do Santo Ofício. De um lado, existia uma série de
indícios que atribuíam culpas de judaísmo aos cristãos-novos; de outro, pode-se observar, nos
documentos do Santo Oficio no Brasil, as tentativas destes sujeitos de dirimir as suspeitas
sobre si através de um aparente comportamento colaborativo com a autoridade inquisitorial,
além de diversas outras condutas que objetivavam proporcionar algum tipo de
autopreservação (individual ou coletiva) e garantir a manutenção dos costumes mosaicos.
Uma maneira de melhor visualizar essas questões é observar os relatos apresentados à Mesa
inquisitorial pelos próprios cristãos-novos.
Apesar das proibições formais, o fato é que a manutenção e a transmissão dos
costumes vindos do judaísmo oficial eram evidentes entre muitos grupos de cristãos-novos
residentes nas capitanias inspecionadas nos séculos XVI e XVII. Mesmo em um contexto
social desfavorável, hábitos, como os ritos funerários ou os costumes alimentares
característicos da cultura judaica, por exemplo, eram amplamente praticados por diversos
grupos familiares judaizantes nas capitanias do açúcar. Em Itamaracá há uma série de
denúncias realizadas por membros de uma mesma família, que demonstram a tensão
provocada pela presença da visitação inquisitorial e a sutil operacionalização de táticas que
flutuam entre a reação de medo e a ação de autopreservação.
A Capitania de Itamaracá recebeu a visita de Heitor Furtado de Mendonça entre os
dias 08 e 21 de dezembro de 1594. Uma das primeiras denúncias registradas durante o
‘período da graça’ concedido a toda a capitania foi a de Paula Soares, filha de Simão Soeiro,
cristão-novo, e de Maria Álvares, “a qual não sabe se era cristã-nova, mas antes ouvia dizer
que era cristã-velha”. Paula Soares compareceu à Mesa para denunciar sua mãe por, certa vez,
quando da morte de uma escrava na casa de seu pai, mandar “vazar fora a água do pote de que
bebiam, que estava na sala”, afirmando que estavam presentes, como testemunhas do ato, suas
irmãs Guiomar Soeiro, Branca Ramires e Beatriz Mendes.260

260
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 362.
103

Este é o primeiro relato que compõe um conjunto de cinco denúncias realizadas por
membros desta família contra seus parentes, além de duas confissões. Todas as apresentações
tratam da mesma matéria, ou seja, sobre o costume de esvaziar as águas dos cântaros quando
da morte de outrem no espaço doméstico. Com efeito, este é um costume observado no
âmbito das leis de luto do judaísmo tradicional; sua explicação tem relação com a crença de
que o ‘Anjo da morte’ (Malach Hamavet), quando esteve ali presente para acompanhar o
falecido na transição entre os estados de vida e morte, lavara sua espada na água armazenada
nas residências, por isso a necessidade de dispensar a água de cântaros, púcaros ou recipientes
similares. De fato, este é um dos itens descritos no Monitório de Culpas de 1536 que, entre
outros itens acerca do luto judaico, chamava atenção para aqueles que derramavam ou
mandavam “derramar água dos cântaros e potes, quando alguém ou algum morre, dizendo,
que as almas dos defuntos se vem aí banhar, ou que o Anjo percuciente, lavou a espada na
água”261. Este e outros hábitos judaicos registrados nas fontes das visitações inquisitoriais são
indícios do halachá262, a lei religiosa judaica transmitida pela tradição oral, indicando a
sobrevivência do judaísmo doméstico adaptado à situação colonial.
No caso em questão, é registrado que o referido hábito foi realizado tanto pela
matriarca, Maria Álvares, quanto por sua filha Guiomar Soeiro e outros membros da família
em diferentes ocasiões e tempos. Francisco Soares, filho de Maria Álvares e irmão de
Guiomar Soeiro, denunciou ambas ao visitador alguns dias depois da sua irmã Paula Soares.
Na Mesa inquisitorial afirmou que cerca de oito ou nove anos antes, quando “a dita sua mãe
Maria Alvares ainda [era] viva e morando nesta ilha”, morreram duas pessoas em diferentes
ocasiões na sua casa e “nas ditas duas vezes tanto que levaram de casa os ditos defuntos a
entrerrar, logo a dita sua mãe Maria Alvares mandava lançar fora a água dos potes que

261
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça –
Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: F. Briguet, 1935, p. 41.
Sobre o Monitório de culpas da visitação realizada por Heitor Furtado de Mendonça, Ronaldo Vainfas explica
que é improvável que “ao contrário do que diz Capistrano de Abreu, se tenha utilizado o Monitório de 1536,
elaborado por d. Diogo da Silva, primeiro inquisidor-geral de Portugal”, chegando a conclusão de que “o
monitório utilizado foi, provavelmente, o baseado no Regimento de 1552 ou no Edital da Fé de 1571, elaborados
no tempo em que o cardeal d. Henrique, irmão de d. João III e tio avô de d. Sebastião, era o inquisidor-mor do
Santo Ofício português. Monitório muito calcado, é verdade, no de 1536, porém acrescido das culpas que, neste
intermezzo, passaram à jurisdição inquisitorial”. De todo modo, o Monitório da década de 1530 não deixa de ser
um documento que representa a publicização da ampla maioria dos crimes do foro inquisitorial no contexto do
século XVI. Cf. Confissões da Bahia (1591-1593), p. 20-21.
262
Cf. UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e traduções. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p.
112; VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 45-48.
104

estavam na cantareira da sala, de onde ela bebia, e tornar a enchê-los de água fresca da
fonte”.263
Ao que parece, este hábito era recorrente neste ambiente familiar, tendo em vista
que as narrativas dos diferentes membros desta família, mesmo que normatizadas e
padronizadas sob a pena do notário, oferecem variados exemplos da manutenção deste ritual.
Joana Mendes, outra filha de Simão Soeiro e Maria Álvares, também denunciou sua mãe,
dizendo ao visitador que, há sete anos, quando uma de suas irmãs chamada Beatriz Mendes
morreu, sua mãe mandou jogar fora a água da cantareira e “não lhe declarou a causa disso”. Já
Maria da Fonseca, sua prima e filha de outra Joana Mendes (irmã de Simão Soeiro já defunta
na época da visitação), narrou que após a morte de sua mãe foi morar na casa de sua tia
Beatriz Soares, e lá observou os mesmos costumes funerários na ocasião da morte de uma
cativa, dizendo sua tia que “tinha nojo de beber aquela água morrendo-lhe aquela negra em
casa e que por isso a mandava botar fora”.264
Fosse por força de uma tradição imemorial ou por uma consciência religiosa, o
fato é que este hábito, de acordo com as informações contidas nos registros, parece ter sido
largamente praticado pela família de Simão Soeiro e Maria Álvares e pelo núcleo familiar
constituído a partir do matrimônio de ambos. Isabel de Paiva, irmã da falecida Maria Álvares,
em 14 de dezembro de 1594, disse que cerca de dois anos antes, enquanto visitava sua
sobrinha Branca Ramires, “que estava então parida e pousou com ela aqueles dias do parto”,
veio até elas Guiomar Soeiro, mãe de Simão Soeiro e homônima de uma de suas netas, e:

[...] estando assim na dita visitação levaram a enterrar da mesma casa uma criança
de três anos, chamada Lianor, bisneta da dita Guiomar Soeiro, que falescera na
mesma casa filha de outra Guiomar Soeiro, irmã da dita Branca Ramires, que
também ali pousava. E despois que levaram a enterrar a dita criança, se chegou a
dita Guiomar Soeiro, mãe do dito Simão Soeiro, a ela denunciante e lhe disse que ‘já
que aquela criança falescera, mandasse lançar fora aquela água dos potes que estava
em casa’; então ela denunciante, por que nunca tal tinha ouvido, lhe respondeu que a
dita defunta não metera as mãos nos potes, nem era necessário vazá-los, e a dita
Guiomar Soeiro se riu, dizendo que na sua terra lançavam a água fora quando
alguém morria, não dando razão senão que era por asco [e] nojento, e contudo, ela
denunciante não quis mandar vazar os ditos potes e que mais não sabe.265

É curioso observar a presença massiva desses familiares apresentando-se ao


visitador, seja para realizar denúncias ou confessar suas culpas. Por mais paradoxal que possa
parecer, as apresentações diante da autoridade inquisitorial adquiriram, muitas vezes, um

263
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 373.
264
Ibid., p. 381.
265
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 371.
105

caráter de autodefesa. Era indubitável a manutenção do ritual funerário pela família de Simão
Soeiro e Maria Álvares, resultando em um costume perpetuado entre os descendentes deste
grupo familiar, de modo que a possibilidade de delação durante a visitação era iminente, fosse
por parentes, por vizinhos ou por pessoas próximas que orbitavam em torno do espaço
doméstico.
Nesse sentido, pode-se considerar que a ameaça de uma denúncia motivou, pela
força do medo, tanto as delações quanto as confissões apresentadas ao visitador; mas também
é possível interceptar, nas falas dos denunciantes e confitentes, alguns indícios provocativos
para visualizarmos uma sutil ‘arte da resistência’ diante de uma situação opressiva. Dito de
outro modo, é possível observar na narrativa oferecida pelos indivíduos desta família posturas
que sugerem a preocupação em colaborar com o Santo Ofício, mas também narrativas táticas
que procuravam afastar de si e de seu grupo familiar as suspeitas do judaísmo oculto.
Observando as denúncias, logo percebemos que quase todas as pessoas delatadas
já se encontravam falecidas no momento da visitação, como é o caso de Maria Álvares e de
Beatriz Soares, esposa e irmã de Simão Soeiro, respectivamente. Seria esta uma tática para
justificar a presença, no âmbito doméstico, de um costume condenado pelo Monitório do
Santo Ofício, em uma tentativa de afastar de si as culpas que lhe poderiam ser imputadas?
Responsabilizar os mortos para dirimir a suspeita sobre os vivos pode ter sido, assim, um
arranjo improvisado diante da autoridade inquisitorial para proteger a si mesmo e aos seus
familiares vivos, não obstante o Santo Ofício estender sua ação, inclusive, aos mortos,
desenterrando seus restos mortais e queimando os ossos dos defuntos condenados. Isabel de
Paiva é a única exceção neste grupo, pois não realiza denúncia contra sua falecida irmã Maria
Álvares, mas sim contra a mãe de Simão Soeiro, seu cunhado, possivelmente em uma
tentativa de não atrair a atenção do visitador sobre si devido ao grau de parentesco aí presente.
Na denúncia de Francisco Soares, por exemplo, após relatar os hábitos judaizantes
de sua mãe, este delata também sua irmã Guiomar Soeiro, viva à época da denúncia, casada e
residente em Itamaracá.

Denunciou mais que quando ora se esperava pela vinda dele Senhor Visitador nesta
vila, estando um dia falando com sua irmã dele denunciante, Guiomar Soeiro,
mulher do juiz Rodrigo Franco, e dizendo-lhe que era caso do Santo Ofício lançar
água fora dos potes quando havia defuntos em casa, ela lhe disse que tambem ela
uma vez morrendo-lhe uma sua escrava Cecilia, mandara botar a água fora dos potes
da sala e trazer água fresca, dizendo que o fizera por lhe morrer na dita sala a dita
escrava e deixava fedor.266

266
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 374.
106

Percebamos: aqui está presente a consciência temerosa de Francisco Soares acerca


dos costumes perseguidos pelo Santo Ofício. Sua apresentação à Mesa é tanto uma
representação do medo que o Santo Ofício inspirava quanto uma tentativa de diminuir as
suspeitas que orbitavam em torno de seus parentes vivos, no caso, principalmente de Guiomar
Soeiro, que mandou esvaziar os cântaros não por observância do judaísmo, mas sim pelo odor
deixado pelo cadáver ao iniciar-se o processo de putrefação do corpo. Este é um argumento
que se repete. A própria Guiomar Soeiro se apresentou à Mesa em 12 de dezembro para
confessar o caso, afirmando que

isto só fez a dita vez, e a fez com nojo que tinha um grande fedor que ficou da dita
negra que morreu em um corredor da sua sala e que não teve intenção ruim, nem
sabia que era cerimônia de judeus e agora soube despois que veio esta Visitação do
Santo Oficio.267

Na denúncia de Maria da Fonseca, sua prima, realizada alguns dias depois da


confissão de Guiomar, o mesmo argumento é evocado para remediar o hábito suspeitoso
desta. No entanto, o que também chama atenção nesta denúncia são os burburinhos sobre a
presença do Santo Ofício e a eficácia pedagógica de seu cerimonial de apresentação, cuja
repercussão da leitura dos editais de abertura da visitação se fazem ecoar no registro
juntamente com a tentativa de justificação dos atos de sua parenta.

Denunciou mais que falando ela poucos dias há despois de estar já aqui esta
Visitação do Santo Ofício com Guiomar Soeiro, cristã-nova, sua prima, filha de
Simão Soeiro, senhor de um engenho de Goiana, irmão inteiro da dita sua mãe Joana
Mendes, vindo a falar no Édito da Fé, que dizia ser coisa de judeus lançar água fora
quando havia mortos em casa; disse a ditta sua prima Guiomar Soeiro, mulher do
juiz Rodrigo Franco, que era verdade que uma só vez mandara lançar água fora dos
potes morrendo-lhe uma sua negra em casa, mas que o fizera por ter nojo do fedor
da negra morta.268

Outros depoimentos de membros dessa família também apresentam uma situação


similar e, mais uma vez, a repetição do mesmo argumento. Em sua confissão, Branca
Ramires, irmã de Guiomar, dizia que, depois de casada, teria mandado esvaziar a água dos
potes após a morte de um escravo “e que o fez somente por nojo e asco que teve e tomou de
ver morrer o dito escravo e não já com outra nenhuma ruim intenção judaica”269, justificando-

267
Confissões de Pernambuco (1593-1595), p. 108.
268
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 382.
269
Confissões de Pernambuco (1593-1595), p. 106.
107

se, pois “ela nunca soube que botar água fora quando morria alguém era cerimônia judaica,
senão despois que veio esta Visitação do Santo Ofício”.270
As diferentes formas de resistência judaizantes ao exercício de poder inquisitorial
foram produzidas num contexto, como vimos afirmando, de dubiedade social e religiosa e
podem ser interceptadas nos detalhes das narrativas normatizadas e burocráticas da
documentação das visitações do Santo Ofício. O que fica muitas vezes evidente, nesses casos,
é uma espécie de ‘economia das informações’, fornecendo os depoentes o menor volume
possível de informações na Mesa inquisitorial e respondendo peremptória e negativamente às
insinuações do visitador, que declarava os costumes judaicos condenados pelo Santo Ofício e
listados no Monitório de culpas e perguntava aos depoentes se tinham conhecimento acerca
dos mesmos ou se, por acaso, tinham parentes penitenciados pelo Santo Ofício. Nestas
confissões, o tom do visitador Heitor Furtado parece ser mais enfático, considerando-se que o
mesmo pressupõe a existência da realidade concreta do criptojudaísmo naquele contexto
familiar. À Branca Ramires inquiriu “qual foi a primeira pessoa que lhe ela começou a ensinar
as coisas e cerimônias dos judeus”, ao que a mesma respondeu que “ninguém lhe ensinou tal,
nem ela tal fez nem sabe”271. Para Guiomar Soeiro, perguntou-lhe “quantos anos há que ela
sabe e costuma fazer as cerimônias dos judeus”; esta, por sua vez, sustentava “que nunca tal
fez”.272
Este jogo de imputação de culpa, de um lado, e de negativa em ocupar o lugar de
culpado de crimes de heresia, de outro, é uma tônica comum dos registros inquisitoriais que
representam, nesse sentido, a própria relação de força desigual entre o indivíduo comum e a
instituição inquisitorial, estando aí presentes as intimidações provocadas por meio das
admoestações realizadas durante os depoimentos. Branca Ramires foi “admoestada pelo
Senhor Visitador, com muita caridade, que pois está neste tempo da graça, ela use de bom
conselho e confesse a verdade de todas suas culpas para alcançar o perdão e a graça”273; já
Guiomar, “foi admoestada para que fale a verdade e se saiba aproveitar, pois está na graça”,
ao que lhe respondeu que era “muito boa cristã e que não tem mais que dizer”.274
Este é um caso que ajuda a visualizar um dos indícios do avelut, uma das etapas
dos ritos funerários judaicos, e que, ao mesmo tempo, é demonstrativo da relação de força
desigual que se estabelecia entre os depoentes e a Mesa inquisitorial, em que a

270
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), loc. cit.
271
Confissões de Pernambuco (1593-1595), p. 107.
272
Ibid., p. 108.
273
Ibid., p. 107
274
Ibid., p. 109.
108

obrigatoriedade de se fazer presente diante do visitador foi acompanhada de depoimentos não


raro dissimulados e escorregadios. O esvaziamento dos cântaros não foi o único indício da
observância das leis de luto mosaicas que chegaram à Mesa dos visitadores, de modo que, nas
fontes dos séculos XVI e XVII, encontram-se vários exemplos de comportamentos associados
ao luto judaico.
André Lopes Ilhoa, por exemplo, foi um dos cristãos-novos preso e processado
pelo Santo Ofício na visitação de Marcos Teixeira275. Era fama pública na cidade de Salvador
e arredores que, no ano de 1611, morreu Branca Gomes, tia de André Lopes Ilhoa, e que, em
sinal de luto, este adotara uma série de comportamentos que pareciam suspeitos aos seus
vizinhos, amigos e demais pessoas do seu convívio, pois durante um período aproximado de
seis meses costumara comer sobre uma caixa baixa ao invés de sentar-se à mesa, além de
receber suas visitas, sentando-se ele próprio no chão. Chamado à época popularmente de
comer em ‘mesa-baixa’, este costume tem uma relação simbólica na cultura judaica com a
própria realidade emocional dos enlutados, que, por meio de um gesto de humildade,
demonstravam sua tristeza e condolência durante o período de luto, sentando-se no chão.
Com efeito, este hábito, mesmo que praticado no âmbito do espaço doméstico,
tornava-se facilmente observado e comentado, de modo que os depoimentos apresentados à
Mesa inquisitorial são também registros de uma relação de sociabilidade que foi alterada com
a presença do visitador da Inquisição. Catarina Fernandes, cristã-velha de sessenta e três anos,
sogra de Aleixo Paes, que era vizinho do denunciado, foi convocada pelo visitador Marcos
Teixeira, em julho de 1619, durante as investigações sobre o comportamento suspeito de
André Lopes. Ao ser perguntada se sabia de pessoas culpadas por erros contra a “Santa Fé
Católica e casos pertencentes ao Santo Ofício”, logo começou a relatar as notícias que tinha
sobre o caso em questão, dizendo que, após a morte de Branca Gomes, o sobrinho desta

se anojara [sic] muito por algum tempo; e por nojo e luto se assentava no chão em
um canto da casa e aí estava de continuo e ai comia e dormia publicamente, o que
ela denunciante disse que sabia por lhe contar Aleixo Paes, seu genro, cristã-velho
[...] lhe dizer que o vira, indo visita-lo algumas vezes pelo dito nojo por serem
amigos e vizinhos [...] e que era verdade que ela denunciante tivera sempre muito
escrúpulo nele, parecendo-lhe coisa mal feita, mas que não sabia se era cerimônia
dos Judeus ou não.276

275
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 5391.
276
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 302-303.
109

Outros depoimentos registrados na Mesa inquisitorial trazem narrativas


semelhantes que reforçaram a suspeita do luto judaico atribuído a este cristão-novo. Manoel
Serrão, cristão-novo, de cinquenta e seis anos, natural de Lisboa, morador em Peruaçu, no
recôncavo, era vizinho de André Lopes há mais de quinze anos e foi chamado pelo visitador
para dar testemunho do caso. Dizia ele que, ao visitar o enlutado, o “achara e vira estar
assentado no chão sobre um pano ou cobertor azul detrás da porta primeira da casa, no qual
lugar tomava as visitas de outras pessoas”; enfatizando que todos permaneceram “assentados
em cadeiras”, exceto André Lopes Ilhoa, que continuou “assentado no chão, como fica
dito”277.
No fim dessa visita, ao sair da casa do denunciado, Manoel Serrão chegou a
comentar com outras pessoas o quão estranho lhe pareceu o modo em que encontraram André
Lopes e “perguntara espantado que novo modo era aquele de nojo que não tinha visto outro
tal”278, sendo, pois, tranquilizado pelas pessoas que o acompanhavam, dizendo-lhe elas que
aquela era uma maneira como se fazia em Lisboa “nas casas grandes, por mostras de maior
sentimento”279, de modo que não se apresentou à Mesa antes por entender que “lhe não era
caso disso”280. Situação semelhante também foi descrita por Antônio Gonçalves, convocado
pela Mesa por ter sido referido como testemunha do caso no depoimento realizado por
Catarina Fernandes, pois ele foi visitar André Lopes várias vezes durante o período de luto,
encontrando-o sempre do mesmo modo281.
Já Pantaleão de Souza, cristão-novo, de “trinta e seis para trinta e sete anos”,
natural da cidade do Porto, foi convocado pela Mesa, em 31 de outubro de 1619, por estar
presente quando André Lopes Ilhoa recebeu a notícia da morte de sua tia. Ao ser perguntado
pelo visitador se sabia de algo que deveria ser denunciado ao Santo Ofício, disse que não
tinha em boa conta o licenciado Phelipe Tomaz de Miranda – que na altura deste depoimento
já se encontrava preso pelo Santo Ofício –, por ser homem “muito dissoluto e largo da
consciência”, e que suspeitava que André Lopes Ilhoa foi preso “pelos extremos que fizera
pela morte de sua tia Branca Gomes, mulher que foi de Diogo Lopes Ilhoa”, pois o próprio
André Lopes, antes de ser preso, dissera-lhe que duas mulheres tinham vindo denunciá-lo. No
decorrer de seu depoimento, Pantaleão de Souza diz que, há nove anos, quando estava no
Engenho Santiago, de propriedade de Diogo Lopes Ilhoa, tio do preso, chegara uma carta com

277
Ibid., fl. 182 [v].
278
Ibid., loc. cit.
279
Ibid., loc. cit.
280
Ibid., fl. 183.
281
Ibid., fl. 309.
110

as notícias do falecimento de Branca Gomes, ao que André Lopes “mostraria ficar muito triste
e anojado”.282
As notícias sobre este caso causaram, com efeito, certo burburinho entre os
amigos, vizinhos e conhecidos de André Lopes Ilhoa. Foi, inclusive, por meio de Pantaleão de
Souza, que o padre Pero Ribeiro – cristão-velho de trinta e cinco “para trinta e seis anos”,
capelão na capela de Santo Antônio em Imbiara, no recôncavo baiano – soube do luto
suspeitoso. Enquanto Pantaleão e o padre conversavam em uma tarde na varanda do engenho
Imbiara, situado na região do recôncavo, veio à tona o assunto da prisão de André Lopes.
Pantaleão de Souza parecia desgostoso com o ocorrido, dizendo que “não tinha naquela terra
outro amigo senão ao dito André Lopes Ilhoa e que se ele não retornasse, não havia de morar
mais nela”, e que se o réu tivesse de volta a sua liberdade “havia de [se] vingar das pessoas
que o acusaram”. Neste depoimento há a insinuação de que a infâmia atribuída ao réu fora
causada devido às delações de inimigos, pois Luís Rodrigues, o sogro do acusado, chegou a
afirmar para o padre Ribeiro que “Aleixo Paes, e sua mulher e sogra, lhe fizeram o mal com
os seus inimigos”, e, que, portanto, “as cerimônias que ele André Lopes Ilhoa, seu genro,
fizera na morte de sua tia, que não era nada”.283
Estes testemunhos serviram para o visitador capturar mais informações que, a
cada depoimento, fortaleciam a suspeita de que o acusado professava secretamente alguns dos
preceitos do luto judaico. No entanto, o visitador Marcos Teixeira já tinha ouvido a versão do
próprio André Lopes Ilhoa, pois este compareceu à Mesa no dia 14 de setembro de 1618,
durante o ‘período da graça’, para confessar o ocorrido dizendo que:

[...] se acusava nesta Mesa em como ia em nove anos que pela morte de uma tia sua,
que se chamava Branca Gomes, mulher de Diogo Lopes Ilhoa, morador em Liboa, a
qual morrera em Portugal, se anojara ele Confitente muito porque a tivera por mãe e
não conhecera outra e assim [...] comera ele Confitente por tempo de seis meses,
pouco mais ou menos, algumas vezes, quando não tinha hóspedes, assentado em
uma cadeira de espaldar sobre uma caixa da India de altura quase como uma mesa, e
do mesmo modo comia quando tinha gente de casa, por ser muita e não querer
comer com tanta gente [...] e, declarou que o não fizera por observância da Lei de
Moisés, por que não soubera nunca que era cerimônia dela, senão depois da
publicação do Édito da Fé, que ele Senhor Inquisidor mandara publicar há poucos
dias nesta Igreja.284

Não obstante os consideráveis indícios que caracterizavam o luto judaico, como


comer em ‘mesa-baixa’, por exemplo, o caso de André Lopes Ilhoa torna-se interessante

282
Ibid., fl. 179-180.
283
Ibid., fl. 210-211.
284
Confissões da Bahia (1618-20), p. 135-136.
111

devido à relação de força que se estabelece entre os rastros que o incriminavam e sua
obstinação em sustentar sua inocência, esperando, talvez, num primeiro momento, alcançar a
misericórdia prometida para aqueles que, no julgamento dos inquisidores, confessassem
verdadeiramente suas culpas. Assim como em outros casos, neste podemos perceber a
recorrência do depoente em explicitar desconhecimento sobre as cerimônias do judaísmo
tradicional a fim de demonstrar que os atos suspeitos não foram praticados conscientemente,
ou seja, com o intituito de realizar os ritos do luto judaico. Se André Lopes Ilhoa esperava,
com sua confissão espontânea, alcançar a misericórdia do visitador, logo se viu frustrado
nesse intento, de modo que se pode observar uma mudança de postura deste cristão-novo. Sua
relação com a Mesa inquisitorial inicia-se com a sua apresentação voluntária para confessar-
se, mas se transforma consideravelmente quando tem seu processo instruído e seu mandado
de prisão expedido pelo visitador.
Vicente Álvares e Belchior Brandão, os dois Familiares do Santo Ofício que
efetuaram sua prisão, foram os responsáveis por narrar ao visitador a cena de despedida de
André Lopes Ilhoa da sua companheira, Ana da Silveira. A narrativa adquire, em certo
sentido, um tom dramático, pois evidencia a obstinação do réu em sustentar sua inocência
diante do crime de judaísmo de que era formalmente acusado, bem como evidencia as críticas
por ele desferidas contra os procedimentos da Inquisição. De acordo com os depoimentos dos
Familiares, ao efetuarem esta prisão em 31 de agosto de 1619, “se queixara e lastimara muito
o dito André Lopes, preso, dizendo que o prendiam por certas coisas que fizera no nojo que
tivera por sua tia Branca Gomes de que se tinha confessado ao Santo Ofício”285. Um dos
pontos que chama atenção é o trecho do depoimento em que Vicente Álvares diz que “no ato
da mesma prisão, despedindo-se o dito André Lopes Ilhoa de sua mulher, lhe dissera que se
ficasse embora que nunca o mais veriam porque havia de morrer e não havia de confessar o
que não fizera” 286; narrativa esta que foi corroborada por Belchior Brandão287.
A posição de André Lopes Ilhoa era clara: preferia morrer ao ter de confessar um
crime que afirmava não ter cometido. Ao despedir-se de Ana da Silveira, este réu parecia crer,
de fato, que sua sorte não lhe seria favorável, aproveitando-se deste instante – talvez a última
vez em que estaria na presença de sua mulher – para pedir-lhe perdão por não ter casado com
ela formalmente, como preconizava a Igreja Católica (revelando aí um desvio no domínio da
moral por viver em mancebia), e pedindo-lhe para cuidar de um filho recém-nascido que com

285
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 209.
286
Ibid. fl. 209.
287
Ibid., fl.181.
112

ela tivera. O discurso de despedida do réu não soou bem aos familiares, pois lhes parecia que
o “denunciado não levava ânimo de se aproveitar da misericórdia do Santo Ofício” 288, ao
contrário, evidenciava ter “mais ânimo de morrer em seus erros, que de se arrepender e pedir
misericórdia”.289
Não há notícias, nos documentos da Inquisição, de que André Lopes Ilhoa tenha
reencontrado Ana da Silveira – esta é uma informação que os limites dos registros
documentais não permitem alcançar –, mas é possível que tenha retornado ao Brasil após
agosto de 1621, pois, até esta data, apesar de já sentenciado, estava proibido pelo Santo Ofício
de ausentar-se da cidade de Lisboa290. Preso na Bahia, no final de agosto de 1619, este réu foi
enviado para a sede do Santo Ofício lisboeta, entrando no Palácio dos Estaus, em 08 de
dezembro deste mesmo ano. Seu processo decorreu ao longo dos dois anos seguintes,
arrolando tanto acusações feitas contra o preso quanto sua defesa, insistindo o réu em
desqualificar as possíveis testemunhas que tinha contra si, dizendo, para tanto, que as
acusações eram fruto de inimizades. Após morosas investigações, o processo se encerrava
com a avaliação dos autos pelos inquisidores. A conclusão era de que o réu deveria ser
reconciliado e receber a sentença em auto de fé privado, ou seja, realizado na própria Mesa do
tribunal, gozando de todos os privilégios prometidos no édito da graça, pois se apresentou
voluntariamente durante o ‘período da graça’. Além disso, deveria realizar a “abjuração de
levi suspeita na fé” e ser “instruído nas coisas necessárias pera salvação de sua alma”, assim
como cumprir “as penitências espirituais, que pelos Inquisidores lhe forem impostas” e pagar
os custos do processo291.
Outros indícios de judaísmo fartamente denunciados aos visitadores do Santo
Ofício dizem respeito à kashrut, ou seja, as leis judaicas de alimentação, presentes na Torá,
sobretudo no Levítico. Estas englobam tanto procedimentos específicos para a preparação de
determinados alimentos quanto proibições do consumo de tantos outros. Segundo essas
diretrizes, o termo kosher designa os alimentos apropriados para o consumo e preparados de
acordo com as leis dos costumes alimentares e que, portanto, são de livre ingestão. Em
contrapartida, há os alimentos não kosher, ou seja, não apropriados e, por isso, interditados
para o consumo, como carne de animais de casco fendidos e não ruminantes, como o porco,
por exemplo; além de répteis, aves selvagens e de rapina, bem como peixes sem escama e
frutos do mar, como camarão, lagosta, ostra, entre outros.

288
Ibid., loc. cit.
289
Ibid., fl. 209 [v].
290
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 5391.
291
Ibid., fl. 99-100.
113

Em setembro de 1618, João Fernandes, cristão-velho, de dezenove anos, natural


da Ilha Terceira e morador na cidade de Salvador, denunciou os irmãos Matheus Lopes
Franco e Luís Lopes, pois trabalhou para ambos durante um período de sete meses e, nesse
ínterim, observou que, nas sextas-feiras à noite, os irmãos “lavavam os pés, e todo o corpo em
uma caldeira grande de engenho de áçucar com água morna, e vestiam camisas lavadas”; além
disso, nunca os “viu comer carne de porco” durante o período que lhes prestou serviços292. Já
Diogo Baptisa, mourisco cativo, de 26 anos, apresentou-se à Mesa, no dia 14 de setembro de
1618, para delatar Francisco Ribeiro, um senhor de engenho, morador na Ilha das Fontes,
dizendo que, quando era cativo de Francisco Ribeiro e de seu irmão Fernão Rodrigues
Ribeiro, ambos mandavam-no “varrer as casas de noite da porta para dentro” e que “por servir
de cozinheiro ao denunciado, que ele comia de ordinário a galinha degolada e afogada depois
com azeite, e que por mandado se lançava também azeite na panela da carne”. Além disso, de
acordo com outra denúncia, estes irmãos não comiam peixe sem escamas.293
No conjunto de denúncias apresentadas nas visitações inquisitoriais dos séculos
XVI e XVII, a ampla maioria das acusações de judaísmo está relacionada aos itens listados no
Monitório, de modo que muitas dessas delações fazem eco umas às outras e apresentam um
cenário por vezes impreciso, estereotipado, em que os hábitos judaizantes são informados aos
visitadores através de rastros, indícios e notícias vagas por ‘ouvir dizer’. Os indícios e as
suspeitas de judaísmo, bem como as dissimulações dos cristãos-novos que compareceram
diante da Mesa inquisitorial são ilustrativos do encontro entre o discurso público e o discurso
oculto dos cristãos-novos devassados pelos inquisidores.
Assim como no caso da família de Simão Soeiro e Maria Álvares em Itamaracá,
na Capitania de Pernambuco também houve casos de denúncias entre membros de um mesmo
grupo familiar cristão-novo, cuja suspeita de judaísmo oculto aparece envolta nas
justificativas sobre costumes associados à manutenção da alimentação kosher. Gaspar do
Casal, o Moço, filho de Gaspar do Casal, cristão-velho, e de Gracia Fernandes, cristã-nova,
denunciou sua mãe e sua irmã Isabel do Casal pelo fato delas nunca comerem coelho e
enguia. Sua denúncia, registrada em 17 de janeiro de 1594, aponta que:

vai em três anos que a dita sua mãe é falecida, e que antes de falecer viu ele
denunciante que havendo em casa algumas vezes coelho e enguia para comer, e
comendo-o os de casa, nunca a dita sua mãe o comeo, dizendo que coelho e enguia
não comia ela, não lhe lembra que razão dava para isso, e que outrossim [...] sua

292
Denunciações da Bahia (1618), p. 134; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?]
das denunciações que se fizeram na visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos,
do Estado do Brasil, fl. 200; 300.
293
Denunciações da Bahia (1618), p. 154; ANTT, ibid., fl. 269.
114

irmã dele denunciante sendo solteira e estando em casa tambem ele viu nunca comia
coelho nem enguia quando o havia em casa, não lhe lembra também que razão dava
para isso, a qual Isabel do Casal está ora casada com Ignacio do Rego [...] e que a
dita sua mãe e irmã tem por boas cristãs e delas não sabe nada que mal lhe pareça,
mas que, porquanto, no Édito da Fé ouviu publicar, se trata desta matéria, vem fazer
esta denunciação por descargo de sua consciência.294

Aqui se repete a flutuação entre a adoção de um comportamento colaborativo com


o Santo Ofício e narrativas estratégicas de afastar a suspeita sobre sua família, o que equivale
dizer afastar as suspeitas sobre si mesmo. Observe-se, também, que a principal pessoa
responsável pela manutenção do referido costume alimentar – Gracia Fernandes – encontrava-
se falecida na época da denúncia. Antônio Leitão, outro filho de Gaspar do Casal e de Gracia
Fernandes, além de apontar os hábitos alimentares suspeitos de sua mãe e de Isabel do Casal,
afirma também que, além dessas, suas irmãs “maiores de doze anos, Maria e Luzia, solteiras,
que estão em casa do dito seu pai, também havendo em casa enguia para comer, a não
comiam, dizendo todas que não comiam enguia por que era peixe feio e nojento” 295. Já sua
mãe, segundo seu relato, justificava-se “dizendo que não comia coelho nem enguia por que
lhe tinha nojo”296. Antônio Leitão encerra sua denunciação com a tentativa de remediar sua
delação, afirmando que “tem a dita sua mãe e irmãs por boas cristãs, e lhe parece não fazerem
o sobredito por cerimônia judaica, senão somente por nojo como elas dizem”297.
Gaspar do Casal, chefe desta família, também compareceu à Mesa durante o
segundo ‘período da graça’ concedido pelo visitador na capitania de Pernambuco, referente,
exclusivamente, à vila de Igarassu e às freguesias dos Santos Cosme e Damião, São Lourenço,
Santo Amaro, Santo Antônio e São Miguel, entre os dias 13 de janeiro e 08 de fevereiro de
1594. Na sua denúncia, apesar de tratar da mesma matéria que as delações antecessoras,
percebemos os diferentes e reiterados argumentos para relativizar as suspeitas que o hábito
alimentar de sua falecida mulher e de suas filhas suscitavam. Gaspar do Casal chega a
afirmar, por exemplo, que certa vez Gracia Fernandes tentara comer “um bocado de coelho,
dos coelhos do mato desta terra, e logo vieram engulhos para vomitar”298, dando a entender
que esta interdição alimentar não tinha motivos religiosos e, desse modo, fazendo questão de
frisar:

[...] que todo o mais peixe sem escama, moréia, lampreia, cação, arraia, ela comia e
lebre e todo o mais peixe de couro comia muito bem, pelo que ele dela nunca teve

294
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 147.
295
Ibid., p. 153-54.
296
Ibid., loc.cit.
297
Ibid., loc.cit.
298
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), 176.
115

ruim presumção, mas antes tem que ela foi sempre muito boa cristã e lhe viu sempre
fazer boas obras disse, confessar-se e comungar muitas vezes, esmolar, mandar dizer
missas continuar [sic] a igreja etc. e que também duas filhas moças que tem em casa
donzelas [...] não comem enguias, dizendo que lhes tem nojo por que se parecem
com cobras, mas todo o mais comem e ele não entende delas nenhua intenção
ruim.299

A dubiedade social e religiosa que caracterizava o grupo dos neoconversos


judaizantes está presente nestes relatos, como num pêndulo que flutuava entre a
obrigatoriedade da delação – cuja pena de excomunhão era reservada àqueles que soubessem
de casos de interesse do Santo Ofício e se furtassem à apresentação na Mesa – e o afastamento
dos delatados do espectro de culpa que os envolvia. Um duplo movimento que representa, de
modo quase sub-reptício, uma das formas de agir diante de uma situação de dominação e
controle social exercido por meio de uma instituição de cariz tanto religioso quanto punitivo.
No entanto, é significativo observar que a própria existência desses relatos sugere a
permanência de costumes vindos de uma tradição ancestral e que sua manutenção se apresenta
como um tipo de resistência que é, ao mesmo tempo, social, religiosa e cultural. Neste
cenário, é notória a presença feminina cristã-nova, como podemos visualizar nos casos
supracitados, de modo que o criptojudaísmo feminino adquiriu no Brasil colonial uma
expressiva importância, ao pensarmos, sobretudo, em diferentes formas de resistência
socialmente produzidas em um contexto histórico que tinha como uma de suas características
a intolerância social e religiosa direcionada aos indivíduos e grupos dissidentes da fé oficial,
como veremos mais à frente.

299
Ibid., loc.cit.
116

3.2. ‘De portas a dentro’: discursos ocultos femininos no espaço doméstico

Esse judaísmo secreto, realizado, sobretudo, ‘de portas a dentro’, no Brasil


colônia, encontrou na figura feminina uma das responsáveis pela construção desses discursos
ocultos. A documentação do Santo Ofício nas capitanias do açúcar, em especial as fontes
relativas ao século XVI, apresenta variados registros de que a manutenção dos hábitos do
judaísmo oficial ficou a cargo principalmente das mulheres cristãs-novas, que, na esfera do
cotidiano, se tornaram as principais transmissoras dos costumes ancestrais originários de sua
antiga fé. O historiador Angelo Assis lembra-nos da importância da figura feminina no âmbito
religioso judaico.

As mulheres, que já desempenhavam papel fundamental na formação religiosa dos


filhos no judaísmo tradicional, ganhariam maior destaque na orientação da profissão
de fé dos familiares por conta das proibições vigentes no mundo português. Em
alguns aspectos específicos, cabe salientar, o judaísmo demonstra ser uma religião
de cariz tradicionalmente matrilinear, posto que a pertinência e a crença judaica é
repassada aos filhos pela figura materna – só é plenamente judeu de nascimento
aquele que é nascido de mãe judia –, responsável pelos primeiros contatos com a fé
dos antepassados, atuando na iniciação dos rituais, orações, festas ou jejuns
preparados no aconchego do lar, e auxiliando na educação religiosa dos filhos.300

Nos casos analisados anteriormente, a presença feminina é uma constante. Ao


tentar interceptar, entre as confitentes, informações que pudessem imputar-lhes a culpa de
judaizantes, o visitador Heitor Furtado questiona duas das filhas de Simão Soeiro e Maria
Álvares sobre as origens de tais ensinamentos. Branca Ramires, por exemplo, ao ser
perguntada sobre “quem lhe ensinou a ela lançar água fora”, respondeu que, antes de ser
casada, viu que, morrendo alguns escravos tanto na casa de sua avó, Beatriz Mendes, quanto
na casa de seus pais, era comum mandar jogar fora as águas dos potes, de modo que “dali lhe
ficou a ela confessante, fazer o mesmo”301. No entanto, logo em seguida, quando é perguntada
sobre “qual foi a primeira pessoa que lhe ela começou a ensinar as coisas e cerimônias de
judeus”, respondeu “que ninguem lhe ensinou tal, nem ela tal fez nem sabe”302. Guiomar
Soeiro, sua irmã, também respondeu que aprendeu o referido costume com sua mãe, pois
“todas as vezes que lhe morriam escravos da porta a dentro em casa, mandava botar a água
fora dos potes e trazer água nova da fonte”303 e, do mesmo modo que sua irmã, ao ser

300
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo Feminino na Bahia – séculos XVI-
XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2004, p. 344.
301
Confissões de Pernambuco (1593-1595), p. 106.
302
Ibid., p. 107.
303
Ibid., p. 108-109.
117

questionada sobre “quantos anos há que ela sabe e costuma fazer as cerimônias dos judeus”,
respondeu negativamente, dizendo “que nunca tal fez”304
Para além do jogo retórico de culpabilização e autopreservação contido nestes
relatos, é interessante observar a presença e a importância da mulher cristã-nova na
manutenção dos costumes tradicionais vindos do judaísmo tradicional (halachá)– é certo que
de uma maneira improvisada, adaptada às condições locais da sociedade colonial – que era
exercido, principalmente, por meio da repetição de hábitos de uma prática religiosa
pretensamente oculta e que, em muitos casos, vieram à tona devido à devassa inquisitorial.
Esse quadro repete-se em quase todos os casos registrados nos livros de denúncias
e de confissões que envolviam mulheres cristãs-novas, principalmente do século XVI – ou
seja, num momento e em um contexto mais próximo das primeiras gerações de cristãos-
novos, imediatamente posterior ao batismo forçado de 1497, quando os ritos do judaísmo
tradicional se faziam mais presentes –, e que tenham como objeto da delação a suspeita do
crime de judaísmo.
O caso da família Antunes, do Recôncavo da Bahia, estudado por Angelo Assis, é
bastante exemplar para demonstrar a influência feminina na construção de discursos ocultos
por meio da manutenção dos hábitos considerados judaizantes. Ana Rodrigues – e boa parte
de seus parentes, principalmente suas filhas mulheres – foi acusada sistematicamente de ser
judia e de praticar os diferentes costumes relacionados à fé de Moisés. Filhos e filhas, netos e
netas, genros e noras de Ana Rodrigues e Heitor Antunes compareceram à Mesa inquisitorial.
A maioria deles durante o ‘período da graça’ concedido ao Recôncavo; alguns acabaram por
reforçar o estereótipo judaizante da família; outros confessaram suas culpas na tentativa de
diminuir a suspeita judaica que rondava seu grupo familiar.
O que nos interessa, nesse momento, é perceber como o judaísmo oculto
transmitido pela figura feminina pode ser entendido como uma forma de resistência à
‘pedagogia do medo’ da Inquisição. E sobre este ponto, as confissões de seus parentes são
significativamente esclarecedoras. Na confissão de Beatriz Antunes, filha de Ana Rodrigues,
há não apenas o relato da manutenção do ritual funerário de esvaziar a água dos cântaros, mas
também um amplo panorama de comportamentos característicos do luto judaico.

E que jura, quando quer afirmar alguma coisa, este modo de juramento, pelo mundo
que tem a alma de meu pai, e que algumas vezes, quando manda amortalhar os
mortos em sua casa, os manda amortalhar em lençol inteiro, sem lhe tirar o ramo,

304
ASSIS, loc. cit.
118

nem pedaço algum, por grande que o lençol seja, e atá-los amortalhados apenas com
ataduras, e que isso lhe aconteceu por seis ou sete vezes.305

E complementa:

E que todas estas coisas lhe ensinou sua mãe Ana Rodrigues, dizendo-lhe que era
bom fazê-las assim, sem lhe declarar mais alguma outra razão, nem causa, somente
que também lhe ensinaram, sendo moça em Portugal, na Sertã, uma sua comadre,
parteira cristã – velha, por nome Inês Rodrigues306

No depoimento de sua irmã Dona Leonor Antunes, esta narrativa é confirmada.


Esta afirmou que “sua mãe Ana Rodrigues lhe dissera que não era bom beber a água que
havia em casa quando morria alguém e que era bom lançá-la fora”307, ensinando-lhe a fazer o
mesmo. Assim como Beatriz Antunes, Leonor afirma que sua mãe aprendera este costume
ainda em Portugal com a referida Inês Rodrigues, que ensinou “sem lhe declarar que era
cerimônia judaica”308, o que, aparentemente, soa como uma dissimulação, considerando-se
que estaríamos falando, neste caso, de uma cristã-velha responsabilizada por ensinar alguns
costumes típicos da cultura judaica para Ana Rodrigues. Além disso, “a dita sua mãe lhe
ensinou também que não comesse carne os ditos oito dias de nojo (luto) da morte de sua
filha”309, bem como a fazer seus juramentos “ao modo dos judeus”, pois, “ouviu a dita sua
mãe o dito modo de jurar pelo mundo que tem a alma de seu pai [...] e que por isso ela usava
também o dito modo de jurar, sem nenhuma ruim intenção”310.
Não obstante admitir que praticava os costumes proibidos pelo Santo Ofício, os
argumentos de Dona Leonor Antunes sempre convergem para demonstrar certa ingenuidade
ou mesmo ignorância em repetir estes atos conscientemente, “e que tanto é verdade que ela
em todas as ditas coisas que fez nunca teve ruim intenção, e as fez simplesmente” 311, pois,
apesar de ter aprendido estes costumes com sua mãe, ela “não lhes declarou nunca que eram
lei judaica, nem ela entendeu nem presumiu de sua mãe, e a tem por boa cristã”312. Dona
Leonor insiste, nesse sentido, na sua inocência, pois, de acordo com seu testemunho, só veio
saber que tais hábitos eram proibidos depois da instalação da visitação na Bahia.

305
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 276 [grifo nosso].
306
Ibid., loc. cit.
307
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 290.
308
Ibid., loc. cit.
309
Ibid., loc. cit. [grifo nosso].
310
Ibid., loc. cit. [grifo nosso].
311
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 291.
312
Ibid., loc. cit.
119

E que tanto que ouviu dizer que, na publicação da Santa Inquisição, se declarou no
Édito da Fé que estas coisas eram cerimônias dos judeus, ela confessante, por ver
que é da nação simplesmente tinha feito estas coisas, ficou muito triste por ver que
podiam cuidar que ela era judia, não o sendo ela, na verdade, porque é boa cristã.313

Apesar de suas negativas, os indícios apontavam o contrário, de modo que o


visitador a admoestou porque não era crível que “sendo ela mulher de bom entendimento,
como mostra em sua prática, e sendo ela cristã-nova, e fazendo as ditas cerimônias tão
conhecidas de judeus, as não fizesse com intenção de judia”314, e que, devido a isso, estava
“muito forte a presunção contra ela que é judia e vive na lei de Moisés, e não tem a lei de
Jesus Cristo, verdadeiro Messias”315. Para alcançar a graça e a misericórdia do inquisidor,
teria ela que se confessar inteira e verdadeiramente, admitindo sua intenção judaizante, “o que
ela não faz, antes nega”316. Diante do discurso intimidador da Mesa, Dona Leonor mantém
sua posição de que nunca “teve intenção de judia”, mas, ao mesmo tempo, confessa mais
episódios que ratificavam as suspeitas do visitador e o papel de Ana Rodrigues nesses
ensinamentos.

E logo declarou mais, e confessou mais a dita dona Leonor que, no dito tempo,
depois de ser casada, lhe aconteceu duas ou três vezes que, morrendo-lhe em casa
gentes, mandou amortalhar mandando atar com uns fios e mandando que não
cosessem com agulha e linha a mortalha do lençol, e que isto fez por lho ensinar a
dita sua mãe Ana Rodrigues, dizendo-lhe que não era bom coser na mortalha os
defuntos com agulha e linha com que se cosia em casa, e também ouviu dizer à dita
sua mãe que não era bom tirar ramo nem pedaço de lençol em que se amortalhasse
alguém defunto, e o sobredito fez ela simplesmente, sem má intenção [...] e que
entende que também a dita sua mãe, simplesmente, lhe ensinou o sobredito sem
malícia, também por lhe ensinarem, sem entender que isso podia ser cerimônia
judaica, e da culpa que teve em fazer a dita obra exterior, não tendo dentro, no
coração, nenhum ruim intenção, pede misericórdia e perdão.317

A influência de Ana Rodrigues no papel de ‘mulher-rabi’, expressão cunhada por


Angelo Assis, repercutiu na sua descendência. A confissão de Custódia de Faria – cristã-nova
de 23 anos, casada com Bernardo Pimentel de Almeida, filha de Sebastião de Faria e Beatriz
Antunes e, portanto, neta de Ana Rodrigues e Heitor Antunes – evidencia a transmissão
cultural dos hábitos judaicos, quando ela narra que sua mãe:

lhe ensinou que lançasse a água fora que havia em casa porque era bom para os
parentes do morto que ficavam vivos, sem lhe declarar mais nada, senão somente

313
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 290.
314
Ibid., p. 292.
315
Ibid., loc. cit.
316
Ibid., loc. cit.
317
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 292-293.
120

sua avó, dela confessante, lhe ensinara também isto, a qual, sendo moça, aprendera
isto no Reino de uma cristã velha.318

Lucas D’Escobar, cristão-novo, que contava então com 21 anos, neto de Ana
Rodrigues e Heitor Antunes, filho de Diogo Vaz Escobar e de Violante Antunes, todos estes,
à exceção de Ana Rodrigues, já falecidos na época da visitação, mandou vazar fora toda a
água dos potes que havia em casa três ou quatro vezes, “sem saber que era cerimônia judaica,
mas somente tinha visto a dita sua mãe fazer o mesmo [...] e que sem saber a causa por que
sua mãe o fazia, o fez, parecendo-lhe que ia naquilo alguma coisa boa”, complementando que
“nunca teve intenção de judeu na dita cerimônia”319. Sua irmã Isabel Antunes (homônima de
uma de suas tias maternas) disse que certa vez também realizou o mesmo gesto, “porquanto
tinha ouvido dizer à sua mãe que era bom fazer isto”, e que “mandou fazer a dita cerimônia de
deitar a água fora sem saber que era cerimônia de judeus, e sem intenção disso, mas
ignorantemente, como moça.”320
Entre as apresentações dos membros desta família, há confissões que se
assemelham muito mais às delações, como é o caso da apresentação de Nicolau Faleiros de
Vasconcelos, marido de Ana Alcoforada – filha de Isabel Antunes e Antônio Alcoforado e,
portanto, neta de Ana Rodrigues e Heitor Antunes –, cuja confissão, em 27 de julho de 1591,
forneceu, mesmo que involuntariamente, diferentes elementos que incriminariam sua esposa.
Ele chegou a afirmar que o rito funerário ocorrera por pelo menos duas vezes em sua casa – a
primeira vez em 1589 e a segunda vez há cerca de sete meses antes de sua apresentação à
Mesa, ou seja, em dezembro de 1590 –, explicando que, apesar de ter consentido e aprovado o
derramamento da água dos cântaros na segunda vez, “não entendeu ser isto cerimônia dos
judeus, nem o consentiu com essa intenção”, pois não sabia com qual “intenção lançava fora
dita água a dita sua mulher”321, afirmando também que só teve noção de que o referido
costume era cerimônia judaica quando “ouviu na Sé publicar o édito da fé e ouviu ler nela esta
cerimônia e, por isso, a entendeu bem e se soube”, por isso acusava-se na Mesa e a fim de
“pedir nela misericórdia”.322
Um ponto interessante deste caso diz respeito à construção de discursos ocultos
que interrelacionam diferentes indivíduos, lugares sociais e círculos de afetividade,
principalmente ao considerarmos a origem cristã-velha de Nicolau Faleiros de Vasconcelos.

318
Ibid., p. 272.
319
Ibid., p. 324.
320
Ibid., p. 294-295.
321
Ibid., p. 52.
322
Ibid., p. 53.
121

Ora, os hábitos do judaísmo costumeiramente praticado na colônia pelos cristãos-novos que


judaizavam, apesar de se distanciarem dos ritos formais do judaísmo sinagogal, eram
consideravelmente conhecidos pela população, de modo que a narrativa de Faleiros parecia se
sustentar numa tática argumentativa escorregadia e relativamente dissimulada. Este caso
demonstra como os casamentos mistos entre cristãos-velhos e cristãos-novos possibilitou a
emergência de laços de familiaridade que eram fortalecidos por redes de solidariedade e,
poder-se-ia mesmo dizer, de tolerância e tolerantismo. Isto se torna evidente, sobretudo, pelo
fato do depoimento de Nicolau Faleiros sugerir que hábitos judaizantes eram realizados diante
de cristãos-velhos, ao menos aqueles com arranjos matrimoniais mistos. Nesta circunstância,
é possível ponderar que a preservação da honra familiar superasse a diferenciação social entre
os cristãos-velhos e os convertidos fomentada pela Inquisição.
Alguns meses depois do depoimento de seu esposo, a própria Ana Alcoforada se
apresentou à Mesa para confessar-se. Primeiro afirmou, em uma narrativa confusa que parecia
ter o objetivo de dissimular diante do visitador, que aprendera o costume de esvaziar os potes
d’água havia quatro anos (1588) com Baltasar Dias Azambujo, um criado que teve durante
certo tempo em sua casa323. Com sua avó, teria aprendido a utilizar o juramento “pelo mundo
que tem a alma de Heitor Antunes”, o qual deveria ser evocado todas as vezes que quisesse
ratificar sua convicção ao afirmar algo324. No entanto, sua confissão não parece ter
convencido Heitor Furtado de Mendonça, uma vez que este a admoestou com veemência,
insistindo que, pelo fato dela ser cristã-nova, “não se pode presumir senão que ela faz as ditas
cerimônias e juramentos com intenção de judia, e que ela é judia e vive na lei de Moisés e
deixou a fé de Jesus Cristo”325, ao passo que a mesma manteve sua posição de inocência,
respondendo-lhe que:

é boa cristã e nunca soube nem teve nada da lei de Moisés, mas que fez as ditas
coisas sem entender que eram judaicas, e que depois que se publicou a Santa
Inquisição nesta cidade, e ouviu contar as coisas que se declaravam no Édito da Fé,
entendeu serem judaicas as que dito tem e nunca mais fez, e da culpa que tem em as
fazer exteriormente, sem ter no coração erro algum da fé católica, pede perdão e
misericórdia.326

A esta altura podemos perceber a significativa influência da matriarca dos


Antunes na transmissão e nos ensinamentos dos costumes culturais da religiosidade judaica, a
julgar pelos depoimentos dos membros desta família que confirmam a presença e manutenção
323
Ibid., p. 359.
324
Ibid., p. 360.
325
Ibid., p. 361.
326
Ibid., loc. cit.
122

destes hábitos – ensinados por Ana Rodrigues e suas filhas –, mesmo que negando
peremptoriamente a intenção ou a consciência religiosa judaica, presentes nestas cerimônias.
Os indícios de que os Antunes eram judaizantes inquietou o visitador do Santo Ofício
lisboeta, de modo que o mesmo instruiu processos contra diferentes membros que integravam
esta família. Muitos destes processos foram constituídos pelo rol de culpas dos réus e também
pelas denúncias, confissões e ratificações tanto de testemunhas quanto dos próprios réus,
estando presente a observação do inquisidor de que maiores detalhes sobre os casos deveriam
ser observados no processo de Ana Rodrigues327, o que demonstra o lugar ocupado por esta
cristã-nova como uma figura de importância no judaísmo familiar dos Antunes.
Alguns processos não tiveram continuidade, como é o caso de Heitor Antunes,
que tem seu processo constituído apenas por um traslado de culpas328, e de sua filha Violante
Antunes329, cujo processo foi formado pelas confissões e ratificações de seus filhos Isabel
Antunes e Lucas d’Escobar. Observa-se que ambos, Heitor e Violante Antunes, já eram
falecidos durante a visitação, o que é indicativo da concentração dos esforços do Santo Ofício
àqueles indivíduos vivos. Nuno Fernandes, filho mais novo do casal de cristãos-novos, teve
seu processo instruído por Heitor Furtado, sendo formado a partir do depoimento do próprio
réu e de algumas denúncias que versavam sobre certo sacrilégio cometido por ele ao
supostamente açoitar um crucifixo e alguns indícios de judaísmo. O traslado de suas culpas
foi encaminhado ao Conselho Geral em Lisboa, mas não há sentença definida, o que indica
que não houve continuidade do processo330. Já seu irmão Álvaro Lopes Antunes, acusado de
sacrilégio por desrespeitar um crucifixo, foi condenado, de acordo com Angelo Assis, “a
comparecer ao auto de fé desbarretado, de pés descalços e em corpo”, além de açoites e penas
espirituais, obrigando-o também ao “pagamento de uma quantia de dez cruzados para cobrir
as despesas do Santo Ofício”.331

327
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12142.
328
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 04309.
329
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12926.
330
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 299, 343; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,
processo nº 12936.
331
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo Feminino na Bahia – séculos XVI-
XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2004, p. 373. Há uma
discordância entre alguns historiadores, como Anita Novinsky e Angelo Assis, sobre a trajetória deste réu com o
Santo Ofício, tendo em vista que a primeira sugere que Álvaro Lopes teria sido julgado em Lisboa, ao passo que
o segundo aponta que no processo do réu não há nenhuma indicação de que o mesmo fora encaminhado para a
sede lisboeta do Santo Ofício, de modo que o mais provável é “que tenha sido um dos réus acusados de crimes
menos graves julgados pelo próprio Heitor Furtado de Mendonça no Brasil”, comparecendo no Auto-de-fé
improvisado na Bahia pelo visitador. Cf. NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a
XIX. 2. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 60; ASSIS, loc. cit.
123

A própria Ana Rodrigues teve um destino trágico, sendo presa e enviada aos
cárceres do Tribunal de Lisboa e falecendo em 1593. Na sua primeira confissão, em 01 de
fevereiro de 1592, durante o ‘período da graça’ concedido à região do Recôncavo, apontou
uma série de indícios judaizantes (hábitos alimentares, luto e juramento ao modo judaico, por
exemplo), narrando diferentes episódios de seu passado, quando teria praticado esses hábitos
exteriormente, isto é, por descuido e sem saber que eram judaicos332. É evidente que sua
confissão não foi suficiente para sustentar sua inocência diante de tamanha fama e suspeita
que lhe recaía. A trajetória desta cristã-nova octogenária com o Santo Ofício é, nesse sentido,
bastante significativa para demonstrar não apenas a ocorrência do criptojudaísmo feminino na
colônia, como também as tensões e intimidações provocadas pela ação inquisitorial.
Em 08 de abril, ou seja, alguns meses depois de sua primeira apresentação à
Mesa, Ana Rodrigues foi convocada pelo visitador e, diante das admoestações que
caracterizavam a pressão e intimidação exercida pelos inquisidores, aquiesceu, afirmando que
há muitos anos “foi judia no seu coração” por “espaço de um mês”, mas que, no entanto, logo
em seguida abandonou esses erros, tendo para si a lei de Jesus Cristo como verdadeira333. No
entanto, no depoimento seguinte, prestado espontaneamente em 21 de abril de 1592, Ana
Rodrigues voltou atrás, afirmando que o testemunho anterior era falso. Explicou, desse modo,
que contou o caso para seu confessor sacramental e foi aconselhada por ele a retornar à Mesa,
revelando, para tanto, o principal motivo da oscilação dos seus depoimentos:

dissera o falso testemunho sobre si com medo dele Senhor Visitador, porque ele lhe
disse nesta Mesa que havia de mandar meter nas casinhas [cárceres], e que o dito seu
confessor lhe disse que ela não podia fazer isso que pecava em alevantar falso
testemunho contra si, pelo que ela ora movida de sua consciência vem por sua
vontade a esta Mesa pedir misericordia [e] perdão da dita falsidade e aleive que
alevantou sobre si, dizendo que fora judia não o sendo ela nunca, e que ela ora se
desdiz disso e torna a dizer e afirmar que ela nunca foi judia por nenhuma maneira,
nem no coração, nem nas obras e que quando nesta Mesa disse o dito aleive e
falsidade contra si, foi com medo dele Senhor Visitador, porquanto, lhe disse que
havia de prender e que a haviam de queimar se não confessasse verdade e que com
este medo de ela cuidar que a prendiam já e ver ela que elle Senhor Visitador tocava
a campainha e mandou chamar o merinho pelo porteiro que abriu a porta desta casa
do despacho e ver ela chegar logo a porta o merinho com a vara na mão, e cuidar ela
que já a levavam presa para as casinhas, tudo isto lhe fez muito medo e por isso ela
disse então que queria confessar verdade e então disse a dita falsidade e aleive,
dizendo que ela fora judia no coração o dito mês, sendo falso por que sempre foi boa
cristã, pelo que ora se desdiz.334

332
Confissões da Bahia (1591-1593), p. 281-287.
333
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº12142, fl. 203.
334
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº12142, fl. 205-206 [grifo nosso]; Cf.
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo Feminino na Bahia – séculos XVI-
XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2004, p. 350-351.
124

Como pontuou Angelo Assis, este depoimento de Ana Rodrigues “é relato dos
mais valiosos para o trabalho do historiador, no sentido de compreendermos a angústia e o
temor gerados pelo Tribunal em suas possíveis vítimas”335, cujo imaginário era permeado
pelas “agruras e tormentos sofridos por todos aqueles que fossem alcançados pelo braço do
Santo Ofício, na certeza de que ninguém escapava ileso da experiência inquisitorial”336.
Justamente devido a este espectro que circundava o tribunal inquisitorial, também se pode
dizer que a confusão nos depoimentos e as contradições da matriarca da família Antunes são
representações (e produtos) de uma relação de força desigual, constituindo-se como um alerta
gerado pelo medo da prisão e dos castigos do Santo Ofício, sendo, portanto, uma tática de
autopreservação improvisada. Dona Leonor337 e Beatriz Antunes338, filhas de Ana Rodrgues, e
Ana Alcoforada339, sua neta, também foram processadas, tornando-se prisioneiras do Santo
Ofício no início do século XVII. Dona Leonor e sua irmã Beatriz Antunes foram presas em
1601 e penitenciadas pelo auto de fé de 03 de agosto de 1603. A primeira recebeu como
sentença cárcere e hábito penitencial perpétuo, sem remissão; já Beatriz Antunes, além do
cárcere e hábito penitencial perpétuo, teve também o confisco de bens incluso em sua
sentença. Em 1604 foi a vez de Ana Alcoforada cair nas malhas da justiça inquisitorial,
permanecendo nos cárceres por pouco mais de um ano e sendo beneficiada pelo perdão geral
de 1605.
Aqui não nos cabe fazer um extenso inventário da trajetória e dos destinos
individuais dos membros desta família – trabalho que já fora realizado de maneira
significativa e satisfatória por meio do estudo realizado por Angelo Assis340. No entanto, a
necessidade de pontuar a experiência do ‘clã dos Antunes’ com o Santo Ofício vem da própria
precisão de inserir numa perspectiva histórica o criptojudaísmo feminino colonial, tendo em
vista que esse é um caso exemplar e dos mais conhecidos para demonstrar a sobrevivência do
judaísmo colonial oculto e o papel das mulheres na condução da religiosidade praticada no
espaço familiar e doméstico.
O criptojudaísmo colonial no Brasil foi, sobretudo, doméstico e feminino,
construído a partir de táticas forjadas na esfera do cotidiano. Desse modo, a conformação
deste criptojudaísmo esteve diretamente ligada ao espaço doméstico das habitações coloniais,

335
ASSIS, loc. cit.
336
ASSIS, loc. cit.
337
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 10716.
338
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 1276; 8991.
339
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 11618.
340
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo Feminino na Bahia – séculos XVI-
XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2004.
125

bem como à apreensão e à prática deste espaço pelas mulheres cristãs-novas. Esse judaísmo
clandestino teve o lar como um dos principais espaços para a sua manutenção. Como explica
a historiadora Lina Gorenstein, ao se referir à comunidade cristã-nova do Rio de Janeiro no
século XVIII, “muitas das práticas criptojudaicas que permaneceram eram de domínio
doméstico: práticas alimentares, de higiene e purificação, o Shabbat e as celebrações festivas,
todas tinham que ser efetuadas dentro das casas, ‘portas a dentro’”341, de modo que o
criptojudaísmo praticado dentro das casas constituiu-se como uma “religião secreta e também
uma religião principalmente feminina, em contraste com o Judaísmo, praticado
principalmente nas Sinagogas e pertencentes à esfera do domínio masculino”342. As várias
funções atribuídas ao espaço doméstico cristão-novo e o papel da mulher na manutenção da
religiosidade e na sobrevivência cultural dos hábitos judaicos foram elementos importantes
para conformação do criptojudaísmo feminino colonial, não obstante as observações e as
desconfianças de vizinhos e a pouca segurança oferecida pelas condições espaciais das
habitações coloniais.
Outro caso tão relevante quanto o da família Antunes na Bahia é o da família
encabeçada por Diogo Fernandes e Branca Dias, moradores na vila de Olinda. Esta cristã-
nova, bem como suas filhas, algumas netas e uma enteada foram acusadas na Mesa da
primeira visitação por costumes característicos do judaísmo doméstico clandestino. A
maioria das delações narram episódios que ocorreram décadas antes da visitação inquisitorial,
na época em que Branca Dias matinha em sua casa uma espécie de escola, onde ensinava,
junto com suas filhas Inês e Guiomar Fernandes, tarefas domésticas, como cozinhar e
costurar, para outras moças da vizinhança. Joana Fernandes foi uma dessas antigas aprendizes
que se apresentou à Mesa em Olinda e disse ao visitador que Branca Dias guardava os
sábados, fornecendo na sua denúncia mais detalhes para reforçar sua narrativa, tendo em vista
que

sendo costume da dita Branca Dias em todos os outros dias da semana fiar algodão e
andar vestida do seu vestido da semana, ela denunciante viu a dita Branca Dias nos
sábados de todo o dito ano que em uma casa aprendeu, não fiar nunca e viu que nos
ditos sábados pela manhã se vestia com camisa lavada e apertava a cabeça com seu
toucado lavado e vestia neles o melhor vestido que tinha, que era uma saia azul
clara, que ela tinha de festa, a qual não costumava vestir nos dias da semana, e por
quanto ela denunciante sabia ser a dita Branca Dias cristã-nova e dizerem que viera
com suas filhas e marido por caso da Inquisição para este Brasil, tinha sua suspeita

341
GORENSTEIN, Lina, A Inquisição contra as mulheres (Rio de Janeiro, séculos XVI-XVIII). In: ASSIS,
Angelo Adriano Faria de; SANTANA, Nara Maria Carlos de; ALVES, Ronaldo Sávio Paes (Org.). Desvelando o
poder: histórias de dominação – Estado, religião e sociedade. Niterói: Vício de Leitura, 2007, p. 76.
342
GORENSTEIN, loc. cit.
126

dela e lhe parecia mal ver-lhe fazer o sobreditto e por isso atentava nela aos
sábados343.

Diferentes mulheres que passaram quando jovens pela casa de Branca Dias, a fim
de receber instrução para realizar trabalhos domésticos do universo feminino da época,
apresentaram relatos muito parecidos sobre o recolhimento sabático que ocorria
semanalmente naquela casa. Alguns relatos são, inclusive, bastante sugestivos de como essa
família preparava o espaço doméstico para o Shabbat. Maria Lopes, cristã-velha, de quarenta
e três anos, natural da Vila de Olinda, fez diante da Mesa um exercício de memória,
relembrando que há mais de trinta anos, ela foi aprendiz de costura com Inês Fernandes, filha
de Branca Dias. Apesar de ser muito jovem na época e não ter clareza sobre o significado
oculto de certos costumes daquelas cristãs-novas, observava que:

sempre todas as sextas-feiras à tarde, despois da véspera, espanavam as paredes e


limpavam a casa e a louça; e sempre nos sábados, todos sendo dias de trabalho,
guardaram e não trabalharam nada, e nos ditos sábados vestiam camisas lavadas e se
toucavam com toalhas e toucados lavados e se enfeitavam e vestiam dos melhores
vestidos, assim como os cristãos-velhos costumam fazer ao domingo344.

Com efeito, o espaço doméstico foi o principal lugar para a manutenção dos
discursos ocultos observados no criptojudaísmo feminino. É interessante notar que os usos
deste espaço e a manutenção dos costumes judaizantes que se pretendiam ocultos foram
acompanhados de práticas improvisadas e dissimuladas no cotidiano, que tentavam alcançar a
discrição que lhes era possível. Fechar-se em casa nos dias de recolhimento sabático, ou em
outros tipos de reuniões, parece ter sido um desses improvisos que visavam preservar o
caráter secreto que lhe era peculiar, bem como minorar os olhares curiosos e observadores de
vizinhos, por exemplo. No entanto, a própria existência dos testemunhos que denunciam estas
táticas já é uma demonstração dos seus limites e do alcance de seus objetivos.
Isabel Frasoa, cristã-velha, de quarenta e cinco anos, natural de Pernambuco e
enteada de Guiomar Fernandes, uma das filhas de Branca Dias, bem como Anna Lins, cristã-
velha, de trinta e oito anos, natural da vila de Olinda, apresentaram-se à Mesa de Olinda,
respectivamente, nos dias 6 e 10 de novembro de 1593, para denunciar Branca Dias e suas
filhas, Ana da Paz, Inês Fernandes, Beatriz Fernandes, Felipa da Paz, Andressa Jorge e Isabel
Fernandes. Os depoimentos delas giram em torno de como era o cotidiano desta família nas
sextas-feiras e, principalmente, nos sábados, de modo que, segundo Isabel Frasoa:

343
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 31.
344
Ibid, p. 150.
127

todas se fechavam em uma casa térrea grande, e mandavam fechar as portas da Rua,
que eram em umas casas nesta Vila na Rua que vai para Jesus, em todos os sábados
daquele tempo que ela denunciante em sua casa esteve, e nos ditos sábados se
fechavam a dita Branca Dias com as ditas filhas todo o dia de pela manhã até a
noite, e não trabalhavam, e mandavam as moças que aprendiam para suas casas nos
ditos sábados e algumas vezes as mandavam para um quintal a folgar.345

É interessante observar como o espaço doméstico aparece como lugar principal do


criptojudaísmo feminino. Mas os relatos que fornecem essas informações são os mesmos que
apontam que esse espaço era devassado pelos olhares curiosos de vizinhos346. Se, por
exemplo, algumas dessas cristãs-novas se fechavam em casa, principalmente em dia de
sábado, a suspeita judaizante era fortalecida e, caso cometesse o deslize de se expor
publicamente sem trabalhar neste dia, a suspeita que lhes rondava era igualmente ratificada.
Em 12 de novembro de 1593, Antônia Bezerra, vizinha de Inês Fernandes, uma
das filhas de Branca Dias que era casada com Baltazar Leitão, foi à Mesa do visitador acusar
Inês pelo já conhecido costume de não trabalhar nos sábados, dizendo que “de dentro de sua
casa, pelas janelas, vê o que se faz dentro na casa do dito Balthesar Leitão”, e que, de
propósito, sempre atentou que a referida cristã-nova folgava “por muitos sábados em que de
próposito olhava”347. Além disso, também foi acusada por outras pessoas de se enfeitar aos
sábados e se pôr à janela e de manter comportamentos relativos às interdições alimentares
consideradas judaizantes, como, por exemplo, não comer peixe sem escama, sendo esta última
acusação também feita contra sua filha Maria de Paiva348.
Os depoimentos sobre os recolhimentos realizados dentro das possibilidades do
espaço doméstico desta família apontam como praticantes, em sua grande maioria, as
mulheres. No entanto, também há registros pontuais em que a presença masculina pode ser
observada no Shabat, como é o caso do relato de Isabel de Lamas, por exemplo, que
denunciou, em janeiro de 1594, Branca Dias, suas filhas Inês, Violante e Guiomar Fernandes
e Bento Dias Santiago, parente delas, mercador e senhor de engenho em Pernambuco. A
denúncia registra que todos estes se reuniam na casa de Branca Dias, indo:

de suas casas ajuntar-se com a dita Branca Dias, na dita sua casa, certas vezes na
semana [...] se recolhiam em cima no sobrado levando consigo sempre para cima

345
Ibid, p. 45.
346
Sobre as condições de privadicade no período colonial. Cf. VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas:
deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In. SOUZA, Laura de Mello e. (Org.). História da
Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 221-274.
347
Ibid., p. 65.
348
Ibid, p. 105; 110 e 222.
128

outra filha da mesma Branca Dias, chamada Beatriz Fernandes [que nunca casou]
[...] a qual sempre subia com má vontade.349

E aí permaneciam reunidos “por grande espaço de tempo, às vezes pela manhã, e


às vezes despois de jantar com as portas fechadas por dentro”350. A fim de obter mais
informações sobre este caso, o visitador questionou, inclusive, sobre a presença de outros
homens da família, como Diogo Fernandes “ou algum filho macho”, nestes recolhimentos, ao
que a denunciante respondeu negativamente, “porque o dito Diogo Fernandes sempre estava
fora na roça e quando faziam o sobreditto não estava ele em casa segundo sua lembrança”351,
o que reforça o lugar de destaque ocupado pelas mulheres cristãs-novas na manutenção e
transmissão doméstica da sua religiosidade e dos seus costumes culturais e na construção de
táticas do cotidiano diante das constantes desconfianças de que eram vítimas.
É evidente que a documentação inquisitorial é, ela própria, produto de vozes
polifônicas e de relatos que tinham como função, no âmbito do funcionamento da justiça
inquisitorial, indiciar e atestar culpas de supostos crimes contra a fé católica. Quando se trata
de casos envolvendo cristãos-novos, esta é uma questão ainda mais delicada, justamente pelo
fato desse grupo social ser historicamente o mais perseguido pela Inquisição portuguesa, de
modo que os depoimentos registrados pela pena do notário contra os neoconversos – fossem
ou não eles efetivamente judaizantes – são demonstrativos tanto da circulação social dos
hábitos judaizantes, condenados pelo Santo Ofício, quanto uma representação da
discriminação e da desconfiança que lhes eram direcionadas. Se a presença, por exemplo, de
Bento Dias Santiago na casa de Branca Dias em um dia qualquer da semana teve uma
intenção judaizante é algo de difícil confirmação. No entanto, a preocupação em evitar os
olhares alheios, ao fecharem as portas e janelas da casa, continua sendo uma demonstração de
uma tática improvisada dentro das possibilidades imediatas, a fim de sustentar um sutil, e nem
sempre efetivo, tipo de autopreservação.
Além das denúncias sobre o recolhimento semanal característico do Shabbat
judaico, os membros dessa família foram alvo de delações que reforçavam o estereótipo
judaizante que os acompanhava. Há relatos que denunciam comportamentos suspeitos, como
a negação da fé, por exemplo, quando Diogo Fernandes estava no leito de morte e alguns
circunstantes, oferecendo-lhe a cruz e pedindo-lhe que clamasse por Jesus Cristo, contaram
que ele “nunca nomeou o nome de Jesus, nem olhou direito para o crucifixo, mas virava o

349
Ibid., p. 182.
350
Ibid., loc. cit.
351
Ibid., p. 183.
129

rosto para uma parte e outra, e assim na mesma morreu”352. Ou Branca Dias, que era
conhecida por ter em sua posse a “Toura dos judeus”353, assim como por cometer sacrilégios
açoitando um crucifixo e por oferecer a cruz ao demônio, pois “trazendo ao pescoço umas
contas de rezar com uma cruz pendurada nelas [...] tomou com a mão a cruz e dizendo para a
cruz ‘dou-te do demo’ a lançou para detrás das costas”354. Além disso, eram recorrentes as
notícias sobre reuniões coletivas que ocorriam clandestinamente no engenho de Camaragibe
com outros cristãos-novos da vila de Olinda para, segundo seus delatores, celebrarem os ritos
do judaísmo e suas datas comemorativas, como veremos mais à frente.
Como se sabe, tanto Branca Dias quanto Diogo Fernandes já haviam morrido
quando ocorreu a visitação na vila de Olinda. No entanto, assim como o caso dos Antunes do
Recôncavo baiano, sua descendência também foi processada pelo Santo Ofício, sobretudo
suas filhas. Beatriz Fernandes, chamada também de “alcorcovada” devido a uma característica
física que lhe era peculiar, foi a primeira a ter seu processo instruído, tendo como base inicial
as denúncias de Isabel Frasoa, Anna Lins, Maria Lopes e Isabel de Lamas, acima referidas355.
Presa em Olinda, em 25 de agosto de 1595, foi entregue aos cárceres em Lisboa, em 19 de
janeiro de 1596, permanecendo em privação de liberdade até pelo menos 1599, quando saiu
no auto de fé em 31 de janeiro daquele ano, recebendo como sentença a abjuração em forma,
isto é, confessando plenamente seus crimes e jurando não mais voltar a cometê-los, além do
confisco de bens, cárcere e hábito penitencial perpétuo e penitências espirituais. No entanto,
cinco anos depois foi dispensada do uso perpétuo do sambenito, teve suspensa a pena de
cárcere e lhe foram impostas penitências espirituais356.
O espectro da ‘infâmia pública’, como discutido anteriormente, era um dos
elementos da ‘pedagogia do medo’ empregada pelo Santo Ofício, de acordo com
Bennassar357. Quando observamos o caso da família Fernandes, não é difícil verificar como o
estigma judaizante rondava aquele núcleo familiar. Poucos meses depois do auto de fé em que
Beatriz Fernandes foi sentenciada, as atenções do tribunal voltaram-se para sua irmã Andressa

352
Ibid., p. 33.
353
Ibid., p. 406 e 456. ‘Toura’ era a forma popular e aportuguesada de Torah, “termo em hebraico significando
doutrina, lei, ensinamento, com que se designam especificamente os cinco livros do Pentateuco”. Cf. LIPINER,
Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição. Lisboa: Contexto, 1999, p. 259.
354
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 202 e 282.
355
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 4580.
356
Ibid., fl. 120.
357
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole – XVª-XIXª siècles. Paris: Harchette, 1979;
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In: BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica, 1981; BENNASSAR,
Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su ‘pedagogia del miedo’. In: ALCALÁ, Angel.
(Org). Inquisición española e mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, p. 174-182.
130

Jorge, sua meia-irmã Briolanja Fernandes, meia cristã-nova, filha de Diogo Fernandes e
Madalena Alves, cristã-velha, e sua sobrinha Ana da Costa, filha de Felipa da Paz e de Pero
da Costa. Todas elas foram presas e entregues aos cárceres de Lisboa no dia 16 de dezembro
de 1599, recebendo suas sentenças quatro anos depois no Auto de fé ocorrido no dia 03 de
setembro de 1603.
Andressa Jorge e Briolanja Fernandes, por exemplo, foram obrigadas a ir ao Auto-
de-fé com uma vela acesa na mão, e suas sentenças determinavam que deveriam realizar
abjuração de veemente suspeita na fé, ou seja, procedimento destinado às “faltas consideradas
tão graves que apesar de as negarem e elas não ficarem provadas, deixavam sempre dúvidas
sobre a integridade de suas crenças”358. Além de abjurarem, também deveriam receber
instrução e penitências espirituais, cárcere a arbítrio dos inquisidores e pagar os custos dos
seus processos359. Já Ana da Costa fez abjuração de leve suspeita na fé, isto é, quando o réu
tinha leves indícios contra si, recebendo também penas e penitências espirituais e a
obrigatoriedade do pagamento dos custos do processo360. Certamente uma imersão mais
demorada nesses processos possibilita alcançar mais detalhes sobre a teia do inquisidor
envolvendo as trajetórias individuais e coletivas dessas cristãs-novas acusadas de judaizar, o
que exigiria um trabalho de fôlego na perspectiva, por exemplo, dos estudos de caso, que
fogem ao escopo desta pesquisa. No entanto, além de registrarem indícios do criptojudaísmo
feminino, estes processos, se tomados como índices, ratificam o imaginário social acerca do
estereótipo judaizante, bem como ratificam a perseguição social contra a comunidade cristã-
nova e, em especial, contra as mulheres neoconversas.
Nos exemplos anteriormente citados, podemos perceber o protagonismo feminino
nas denúncias que envolvem os discursos ocultos envoltos no criptojudaísmo doméstico. Seja
em relação aos ritos funerários, à cultura alimentar, ao descanso sabático ou a outros indícios
que sugeriam culpas de judaísmo, a presença da mulher cristã-nova na manutenção desses
hábitos é uma constante nas fontes do século XVI, por isso a importância de revisitar casos
célebres como os acima referidos, tendo em vista que discutir as evidências do
criptojudaísmo feminino nas fontes das visitações inquisitoriais realizadas no Brasil é um

358
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
608.
359
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 6321; 9417
360
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 11116
131

trajeto que passa, necessariamente, pela experiência histórica dos Antunes e dos Fernandes
com o Santo Ofício lisboeta361.
No entanto, é curioso observar a flutuação no volume de narrativas sobre o
judaísmo oculto praticado pelas cristãs-novas e registrado nas fontes das visitações dos
séculos XVI e XVII. Se no primeiro século de colonização foram recorrentes os relatos sobre
práticas judaizantes realizadas por mulheres cristãs-novas nas capitanias inspecionadas, os
registros da visitação inquisitorial do século XVII são menos numerosos nesse sentido nas
fontes até aqui conhecidas. Considerando o caso da Bahia, que recebeu esta visitação entre
1618 e 1620, pouco se vê sobre delações que indiciavam diretamente práticas judaizantes
femininas.
Os hábitos alimentares das cristãs-novas Phelippa Gonçalves, sua filha Beatriz
Nunes e Margarida Dinis, sogra de Beatriz, por exemplo, foram informados ao visitador
Marcos Teixeira pela cristã-velha Margarida Jorge, em 13 de setembro de 1618. Segundo sua
lembrança, cerca de onze ou doze anos antes, quando Beatriz Nunes se casou com Dinis
Bravo, cristão-novo e senhor de engenho na Bahia, ela se hospedeu em Lisboa na casa de
Phelippa Gonçalves durante poucos dias, pois viria para o Brasil juntamente Beatriz Nunes.
Foi então que a delatora observou “que no dia da boda se cozeu a carne com azeite na casa da
dita Phelippa Guonçalves.”362
Em outra ocasião, depois da celebração do casamento e antes da viagem para o
Brasil, Margarida Jorge acompanhou Beatriz Nunes à cidade do Porto a fim de visitarem
Margarida Dinis e lá pôde ver que “a dita Margarida Dinis tirava a gordura da vaca antes de a
salgar”, que se costumava cozinhar “o toucinho apartado” e que o davam “à gente do
serviço”, o que presumiu ela ser “alguma cerimônia da Lei Velha”363. Apesar de não ser um
caso que aconteceu efetivamente no Brasil, esta é uma das primeiras referências, no livro das
delações da visitação de Marcos Teixeira, que permite visualizar a manutenção de hábitos
associados ao judaísmo e realizados por mulheres cristãs-novas. Além disso, esta denúncia
não deixa de ser interessante, sobretudo, por estabelecer relações com outras pessoas também

361
Com efeito, os casos das famílias Antunes e Fernandes são referidos em vários trabalhos clássicos, bem como
na recente historiografia dos estudos inquisitoriais. Cf., por exemplo, COSTA PÓRTO, José da. Nos Tempos do
Visitador: subsídio ao estudo da vida colonial pernambucana, nos fins do século XVI. Recife: Universidade
Federal de Pernambuco, 1968; LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima: estudos sobre os
cristãos-novos no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Brasiliense, 1969; WIZNITZER, Arnold. Os
Judeus no Brasil Colonial. Ed. Pioneira: São Paulo, 1966; MELLO, José Antônio Gonçalves de. Gente da
Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990;
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo Feminino na Bahia – séculos XVI-
XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2004.
362
Denunciações da Bahia (1618), p. 142.
363
Ibid., p. 143-144.
132

delatadas durante a devassa inquisitorial do início do século XVII, como é o caso do próprio
Dinis Bravo referido anteriormente.
Outas denúncias da visitação do início do século XVII estabelecem vinculações
com a visitação do final do século XVI. Dona Leonor, “que já foi penitenciada pelo Santo
Ofício, e sua mãe queimada”364, tinha se visto às voltas com o Santo Ofício, sendo
processada por judaísmo, presa em 1601 e penitenciada em 1603. Ela era, como vimos, filha
de Ana Rodrigues e de Heitor Antunes e esposa de Henrique Muniz Telles, mercador, cidadão
de Salvador. O comportamento suspeito desta vez referia-se a sua insistência para que o
casamento de seu filho Diogo Muniz fosse realizado “em dia de sábado", como de fato
aconteceu365. Além disso, chamava atenção os tipos de relações familiares estabelecidas a
partir dos casamentos dos filhos de Dona Leonor, pois Diogo Muniz se casou com “uma filha
de Manoel Gomes Victoria, da nação, que esteve preso nesta cidade pelo Santo Ofício por
mandato do Bispo dela”366. Já sua irmã se casara com “Diogo Lopes Franco, da nação, cujo
pai [...] fora queimado pelo Santo Ofício”, o que causou grande escândalo a todos que tinham
conhecimento disso367. Este é um caso demonstrativo da mácula social que acompanhava os
cristãos-novos, principalmente aqueles que, no passado, foram presos e penitenciados pela
Inquisição. O menor indício de algo que pudesse implicar em culpas de judaísmo era
observado nas relações sociais dos neoconversos, incluindo-se aí as relações que estes
estabeleciam com outros indivíduos e as notícias públicas sobre a vida pregressa dessas
pessoas.
As denúncias de ‘ouvir falar’ também eram recebidas pela Mesa do visitador,
afinal, as comunidades eram relativamente pequenas, fato que potencializava a credibilidade e
a densidade informativa dos rumores públicos. Pedro de Aguirre, cristão-velho, de sessenta
anos e capitão do Forte de São Felipe na Bahia, disse que, no ano de 1615, recebeu em sua
casa por um período de quinze dias uma criada de Maria Cardosa, esposa de Diogo Lopes
Abrantes, ambos cristãos-novos, pois a criada entrara em atrito com Abrantes. Dona Catarina,
esposa do capitão, por ser amiga de Maria Cardosa, acatou o pedido de receber a referida
criada em sua casa durante alguns dias. Foi então que a criada, cujo nome não é explicitado na
denúncia, confidenciou a Dona Catarina, que, por sua vez, repetiu as informações para seu
esposo, que Maria Cardosa a trouxe de Portugal “por força e enganada por que ela vira fazer

364
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 86.
365
Ibid., loc. cit.
366
Ibid., loc. cit.
367
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 86; 108.
133

algumas judiarias da dita Maria Cardosa, e outras parentas suas, e que por esta razão não
queria largar de si”.368.
Em outros casos, o crime de judaísmo aparece como um véu que encobre outros
tipos de conflitos pessoais. Em 24 de maio de 1619, o padre Jerônimo Peixoto compareceu
diante da Mesa inquisitorial, declarando que, três anos antes, Francisco Gomes, morador em
Sergipe do Conde, o procurou em Salvador, no Colégio da Companhia Jesus, dizendo-lhe que
tinha “casos de consciência para tratar com ele”369. O padre, ao explicar ao visitador que ele
estava dando o seu depoimento com a licença de Francisco Gomes, disse que este lhe
confessou que, devido ao sentimento de ódio que nutria por uma de suas enteadas, “lhe
levantara muitas coisas em que mostrava não ser boa cristã em matéria de nossa Santa Fé, e
de judaísmo”370, dizendo ainda que Ângela Cordeira, a enteada em questão, era “judia e
judaizava”. A fim de incriminar Ângela Cordeira, Francisco Gomes tinha, à época,
denunciado o caso ao Bispo dom Constantino Barradas, obrigando, inclusive, “sua mulher
Paula Cordeira, mãe da dita Ângela Cordeira, e duas ou três de suas enteadas e filhas dela
Paula Cordeira” a também denunciarem, pois todas elas foram “induzidas por força e maus
tratamentos, medos, e ameaças que lhes fizera”.371
Seguindo os rastros da documentação do Santo Ofício, é possível entender melhor
as circunstâncias e os motivos que fomentaram a falsa acusação à Ângela Cordeira. Suas
irmãs Agueda Cordeira, de quinze anos de idade, Marcelina e Úrsula Pinheira, de treze e doze
anos de idade, respectivamente, apresentaram-se à Mesa da visitação para confessar o falso
testemunho que fizeram não apenas contra sua irmã, mas também contra seu tio Domingos
Ribeiro, por culpas de judaísmo. Agueda Cordeira, por exemplo, disse ao visitador que, no
depoimento dado ao Bispo, cerca de três ou quatro anos antes, afirmou que sua irmã comia
carne nas sextas-feiras, vestia camisa lavada aos sábados e cuspia em uma imagem de Nossa
Senhora. Já contra seu tio, disse que ele jogou a imagem de Nossa Senhora contra uma
parede, que era não era bom cristão e que guardava os sábados 372; todas estas acusações
também foram feitas por Úrsula e Marcelina Pereira373, ambas coagidas a isso pelo seu
padrasto. Todas elas, como se pode perceber, eram muito novas quando foram intimidadas
por Francisco Gomes a mentir diante do Bispo.

368
Ibid., fl. 204.
369
Ibid., fl. 282.
370
Ibid., fl. 282 [v].
371
Ibid., fl. 282.
372
Confissões da Bahia (1618-1620), p. 107.
373
Ibid., p. 115 e 128.
134

Para além da imagem estereotipada dos costumes judaizantes que ordinariamente


era utilizada como um dispositivo facilmente acessível para tentar incriminar outrem, é
interessante observar como os registros do Santo Ofício permitem acessar, nas entrelinhas,
relações familiares conflituosas. Na confissão apresentada no dia 13 de setembro de 1618,
Marcelina Pinheira disse que sua irmã fugiu para a casa de seu tio pelo fato do seu padrasto
“pretender usar da dita Angela Cordeira, sua enteada, desonestamente e ela o não querer
consentir”374. Aqui nos fica evidente o motivo, que não estava presente no depoimento do
padre Jerônimo Peixoto, do ‘ódio’ que Francisco Gomes nutria por sua enteada: ela resistira
as suas recorrentes tentativas de defloramento. A própria Agueda Cordeira explicou ao
visitador da Inquisição o comportamento de seu padrasto. Em seu depoimento consta que
Francisco Gomes ficou:

apaixonado da dita Angela Cordeira se ir de sua casa sem sua licença para a casa do
dito Dominguos Ribeiro, seu tio, e ele a casar, tendo o dito seu Padrasto
determinado de levar-lhe sua virgindade, como tentara fazer muitas vezes por ser
homem muito deshonesto e desalmado, e tanto que o mesmo quis fazer as outras
irmaãs dela confitente, e a levou sua virgindade por força, e a outra sua irmaã, e com
muitos medos que lhes punha, e por ser homem muito terrível e cruel, como era
notório, fez testemunhar falsamente como dito tem a ela confitente, usando de
muitas ameaças e medos que havia de matar, se não jurasse quanto ele lhe ensinava
e dizia contra a dita Angela Cordeira, e o dito Domingos Ribeiro.375

Como podemos perceber nos exemplos acima, os casos que fazem algum tipo de
alusão ao judaísmo feminino na Bahia, no primeiro quartel do século XVII, estão longe de
representar, principalmente se comparado às notícias da primeira visitação inquisitorial ao
Brasil ocorrida havia menos de três décadas antes, índices suficientemente seguros para
exemplificar um cenário em que o criptojudaísmo feminino possa ser consistentemente
caracterizado. O que se tem, como vimos, são indícios muito imprecisos e, não raro,
estereotipados de mulheres cristãs-novas que reproduziram costumes considerados
socialmente suspeitos, bem como notícias vagas de episódios que não ocorreram
necessariamente no Brasil e até mesmo incriminações envolvendo denúncias falsas de
judaísmo. No livro que restou das Confissões da visitação de Marcos Teixeira, por exemplo,
há apenas três depoimentos que envolvem o tema do criptojudaísmo feminino, mas tratam-se,
nesse caso, justamente das acusações falsas realizadas pelas irmãs de Ângela Cordeira.
O que essas imprecisões, ausências e silêncios sobre as práticas criptojudaicas
femininas sugerem? Que ocorreu uma considerável descontinuidade do criptojudaísmo

374
Ibid., p. 129.
375
Ibid., p. 108.
135

feminino no decorrer de pouco mais de uma geração, entre o final do século XVI e a segunda
década do século XVII? Esse certamente é um juízo temerário, pois, constatar que existem
poucos relatos registrados nos documentos da visitação do Santo Ofício sobre determinada
prática não significa afirmar que a mesma deixou de existir socialmente, sobretudo quando se
trata de costumes culturais transmitidos, na longa duração, de geração em geração, como é o
caso dos elementos da tradição judaica presentes no criptojudaísmo feminino colonial. Tendo
em vista os registros pontuais presentes na documentação conhecida da visitação de Marcos
Teixeira, seria mais salutar ponderar (à guisa de hipótese) que, de tanto objetivar o alcance e o
sucesso das estratégias de preservação desenvolvidas no cotidiano de discriminação social, os
discursos ocultos dos judaizantes da Bahia do inicio do século XVII lograram algum sucesso,
mantendo seus praticantes em uma posição de relativa segurança, distantes dos olhares
curiosos e, por conseguinte, do Santo Ofício. Afinal, os silêncios, os indícios e as imprecisões
dos registros documentais também fornecem rastros para a prática historiográfica.
A presença diminuta de denúncias sobre o judaísmo oculto feminino nesta
visitação inquisitorial segue, na verdade, uma tendência mais ampla referente aos índices
pouco volumosos das apresentações de mulheres à Mesa inquisitorial, independente de sua
origem social, religiosa e/ou qualidade, na condição de delatoras, de delatadas, de
testemunhas convocadas ou de confitentes376.
As denúncias espontâneas e as convocações de testemunhas mulheres não chegam
a duas dezenas, alcançando o total de 16 apresentações, a ampla maioria realizada por
mulheres cristãs-velhas, sendo exceções Ana da Silva, meia cristã-nova, que denunciou seu
pai Frutuoso Antunes por duvidar da imaculação da Virgem Maria377; e Juliana, escrava de
João Gomes, que deu conta do caso do Padre Balthasar Marinho, vigário da freguesia de
Santo Amaro em Itaparica, o qual costumava dormir em uma cama com um “mulato
chamado Manoel [...] que com ele dormia carnalmente”378. Esses relatos versavam sobre
diferentes assuntos de interesse do Santo Ofício, como casos de sacrilégios, blasfêmias,
sodomia, solicitação para atos torpes e judaísmo, este último representado por duas delações:
a de Margarida Jorge contra Phelippa Gonçalves, Beatriz Nunes e Margarida Dinis, e a de
Catarina Fernandes contra André Lopes Ilhoa.

376
Anteriormente, no capítulo Um Tribunal do medo na Época Moderna, apresentamos com mais detalhes os
índices quantitativos das apresentações às Mesas nas visitações do Santo Ofício dos séculos XVI, XVII e XVIII
ao Brasil. Cf. Uma celeuma de burburinhos: as visitações do Santo Ofício no Brasil colonial, p. 90-97.
377
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 221-223.
378
Ibid., fl. 281.
136

Já em relação ao número de denúncias registradas contra mulheres, observa-se a


mesma tendência. Além dos casos de judaísmo citados anteriormente (Phelippa Gonçalves,
Beatriz Nunes e Margarida Dinis; Dona Leonor, Maria Cardosa e Ângela Cordeira), há o
registro de mais três denúncias realizadas contra mulheres cristãs-novas: Dona Isabel,
Violante Pacheca e Catarina Mendes. Essas denúncias não se referem diretamente a crimes de
judaísmo, mas sim a blasfêmias e sacrilégios, como, por exemplo, afirmar que “estava tão
virgem como a Virgem Nossa Senhora”379, cuspir na imagem de Nossa Senhora do Rosário
380
ou ter comportamentos desrespeitosos durante a missa, como ficar sentada durante toda a
celebração, inclusive, no momento da consagração da hóstia381. Além destes registros, há na
documentação da visitação do século XVII uma denúncia contra Gracia, escrava de Francisco
da Motta, por realizar adivinhações382.
Sobre as confissões apresentadas na Mesa do visitador Marcos Teixeira, além das
três cristãs-novas já mencionadas por falso testemunho contra sua irmã Ângela Cordeira,
acrescentam-se mais três apresentações de mulheres cristãs-velhas: Maria de Espinosa, que
praticava sortilégios envolvendo adivinhações383; Catarina Nunes, que confessou ter cometido
o pecado de sodomia com Francisco da Costa, porteiro do Tribunal da Relação da Bahia 384; e
Joana Correa, que confessou ter realizado certos feitiços de bem-querença para fins
amorosos385. Desse modo, pode-se observar que a tendência aos baixos índices de denúncias e
de confissões realizadas por (e contra) mulheres não foi uma especificidade da parcela cristã-
nova da população na Bahia seiscentista. No entanto, não deixa de ser interessante ponderar
que se o criptojudaísmo constituiu-se, por definição, como uma prática oculta, os poucos
rastros percebidos nas fontes da visitação do século XVII, ao invés de questionar sua
materialidade, podem, ao contrário, ratificar sua existência como discurso oculto, não obstante
os limites e indícios que a documentação existente permite interceptar.
Se, comparativamente, os registros documentais dos livros das visitações
realizadas por Heitor Furtado de Mendonça e Marcos Teixeira apontam um decréscimo nos
relatos de práticas criptojudaicas femininas ‘de portas a dentro’ no espaço doméstico, o
mesmo não se pode dizer sobre outros comportamentos que sugerem indícios da permanência
do judaísmo oculto praticado por homens, como é o caso das reuniões de caráter clandestino

379
Ibid., fl. 81; 84.
380
Ibid., fl. 222-223.
381
Ibid., fl. 225-226.
382
Ibid., fl. 113.
383
Confissões da Bahia (1618-1620), p. 202.
384
Ibid., p. 220.
385
Ibid., p. 302.
137

realizadas por cristãos-novos, cujos relatos evidenciam diferentes arranjos para que estes
ajuntamentos passassem despercebidos pela comunidade local.
138

3.3. As esnogas coloniais: práticas de espaços e discursos ocultos

Podemos dizer que o criptojudaísmo colonial foi um discurso oculto de estratégia


de resistência ao controle social e religioso encabeçado pelo Santo Ofício e que se constituiu
por diferentes tipos de arranjos táticos, como foi o caso do judaísmo feminino, predominante
no espaço doméstico no mundo ibérico e colonial. No entanto, as fontes do Santo Ofício
também registram outras formas de expressão e organização tática para tentar manter sob o
véu da clandestinidade a manutenção do ‘judaísmo possível’. Se o criptojudaísmo feminino
permite visualizar a manutenção de hábitos judaizantes no cotidiano doméstico, as reuniões de
caráter clandestino, que eram realizadas tanto no interior dos espaços domésticos como nos
engenhos das capitanias da Bahia e de Pernambuco, são exemplos significativos da
conformação e adaptação dos ritos do judaísmo oficial em um contexto de perseguição e
discriminação social.
As esnogas coloniais, como eram denominadas essas reuniões, representam junto
com o criptojudaísmo doméstico feminino as duas táticas mais elementares do criptojudaísmo
colonial dos dois primeiros séculos de colonização. Sobre o significado das ‘esnogas’, o
historiador Angelo Assis explica a origem deste termo:

Eshnoga, esnoga, exnoga, snoga, synoga, sinoga, senoga, todos a significar a mesma
coisa: ajuntamentos clandestinos em locais específicos – ou, ao menos, dissimulados
– de cristãos-novos com o intuito de judaizar. O significado da expressão ensina
[Elias] Lipiner, mais do que uma simples corruptela do termo sinagoga, poder ser
encontrado no Zohar (Livro do Esplendor): ‘Deus é chamado Nógah [em hebraico:
relâmpago] e está escrito [Ezequiel I, 13] que o relâmpago saía do fogo [em
hebraico: esh], daí chamarem ao lugar de reunião Eshnoga.386

As esnogas coloniais foram historicamente um tipo de resposta judaizante às


discriminações de que os cristãos-novos eram vítimas, constituindo-se muito mais como um
tipo de comportamento do que um espaço físico, um templo, propriamente dito. Poderíamos
dizer, nesse sentido, que as esnogas coloniais se forjaram como um tipo de ‘prática de
espaço’, ou seja, como o conjunto de atribuições e de significados dados aos espaços a partir
das práticas que lhe conferiam sentido387. Deste modo, o que caracteriza as esnogas não é
necessariamente seu espaço físico, mas sim a reunião de cristãos-novos judaizantes nesses
espaços – engenhos e casas, por exemplo –, a fim de professarem clandestinamente as

386
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Macabéias da colônia: criptojudaismo feminino na Bahia – séculos XVI –
XVII. Tese de doutorado apresentada a Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2004, p. 153. Cf.
LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição. Lisboa: Contexto, 1999, p. 102.
387
Cf. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
139

celebrações da lei mosaica. No entanto, é certo que havia considerável racionalização na


escolha desses lugares, afinal, como lembra Elias Lipiner388, a preferência para que as esnogas
ocorressem nos engenhos é explicada pelo próprio lugar de importância desses espaços na
vida econômica e social do começo da colonização, pois, “além da função própria de empresa
particular agrícola”389, cabia aos engenhos também a “função religiosa, e especialmente a
militar, destinada a torna-los baluartes armados para defender-se dos ataques dos índios ou
outros inimigos”.390
Com efeito, devido ao caráter secreto dessas reuniões, é possível observar na
documentação do Santo Ofício uma série de comportamentos que visavam a projetar sobre si
algum tipo de autopreservação dentro das possibilidades imediatas, como se fechar em casa
para diminuir as observações alheias sobre si, reunir-se em lugares distantes dos núcleos
urbanos (em engenhos, por exemplo), ou utilizar códigos próprios e cifrados para avisar
quando aconteceriam estas reuniões, aproximando estes comportamentos a um espectro de
clandestinidade, devido a sua condição que se pretendia oculta. Não obstante este caráter
clandestino e secreto, essas reuniões não passaram despercebidas pelos olhares vigilantes da
comunidade local e, por isso, chegaram até nós por meio das fontes da repressão. Talvez, por
este fato, sejam mesmo exemplos significativos da concomitância entre controle religioso e as
microrresistências sociais ou, dito de outro modo, das diferentes formas que os judaizantes da
sociedade colonial do Brasil encontraram para exercerem sua limitada liberdade de crença em
detrimento da desconfiança social e de uma possível ação inquisitorial.
Para a Bahia do século XVI, existe o registro sobre diferentes esnogas realizadas
nas casas e engenhos de cristãos-novos, principalmente na região do Recôncavo e arredores
da cidade de Salvador. Ambrósio Peixoto de Carvalho, cristão-velho, natural de Guimarães e
“provedor maior dos defunctos e ausentes”, “ouvio dizer em geral que em Perabasu [sic] que
é no recôncavo desta Bahia, havia uma esnoga”391. Bernaldimo Ribeiro de Gram informou
que, há mais de vinte anos, corria a fama de que na casa de Álvaro Mendes funcionava “uma
esnoga com uma toura”392; João Garcez, cristão-velho, de trinta e sete anos e natural da cidade
do Porto, disse que o mercador Antônio Thomaz “tinha em sua casa a esnoga de judeus, e
que em sua casa se ajuntavam cristãos-novos a judaizar”393; já Bernardo Pimentel de Almeida,

388
LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima: estudos sobre os cristãos-novos no Brasil nos séculos
XVI e XVII. São Paulo: Brasiliense, 1969.
389
Ibid., p. 95.
390
LIPINER, loc. cit.
391
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 377.
392
Ibid., p. 382.
393
Ibid., p. 467.
140

cristão-velho, de quarenta anos e morador no Recôncavo baiano, testemunhou contra Antônio


Lopes Ilhoa, mercador e irmão do senhor de engenho Diogo Lopes Ilhoa, dizendo que ali
“havia suspeita haver esnoga de judeus”.394
As denúncias sobre esse tipo de ajuntamento apresentam informações, não raro,
vagas e imprecisas, repercutindo o burburinho e rumor público em relatos baseados em ‘ouvir
dizer’. No entanto, são nos detalhes dessas narrativas, por vezes repetitivas e mesmo
estereotipadas, que conseguimos observar alguns rastros do funcionamento e organização das
esnogas. Há relatos, por exemplo, que apontam para mudanças nos locais onde ocorriam essas
reuniões, como foi o caso delatado por Miguel Gonçalves, cristão-velho, de “quarenta e cinco
ou seis anos”, que informava em Salvador que a esnoga que funcionava na casa do mercador
Rui Teixeira foi transferida para a casa de Gomez Fernandes depois que o primeiro foi para
Lisboa.395
As notícias sobre a esnoga que a família Antunes mantinha no engenho de
Matoim também chegaram à Mesa do visitador. Margarida Pacheca, cristã-velha, de quarenta
e sete anos, residente em Salvador, por exemplo, informou que “haverá vinte anos que ouviu
dizer nesta cidade geralmente em pública fama, que em Mathoim nesta Capitania havia uma
esnoga de judeus”396; Ilena da Fonseca, cristã-velha, de cinquenta e cinco anos, viúva, natural
de Leiria, foi ao visitador para denunciar que uma conhecida lhe dissera que “em Mathoim
desta capitania havia uma esnoga de judeus”397; já o lavrador Diogo Dias informou à Mesa
que ouviu sempre dizer que Heitor Antunes tinha “em sua casa esnoga e toura e que em sua
casa se ajuntavam cristãos-novos e judaizavam e guardavam a lei judaica”.398
Como demonstrado anteriormente, estes não foram os únicos indícios de judaísmo
presente neste grupo familiar, de modo que podemos observar que a prática da esnoga entre
os cristãos-novos desta família processava-se no espaço doméstico, principalmente por meio
do criptojudaísmo feminino, mas também em espaços específicos nos engenhos, recebendo,
neste caso, outros cristãos-novos da região. Isto é o que sugere a denúncia de Inês de Barros,
cristã-velha, de vinte e sete anos, casada e moradora na freguesia de Tasuapina, que ouviu
dizer que Heitor Antunes “tinha em sua fazenda uma casinha separada, na qual certos dias ele
com outros cristãos-novos se ajuntavam e que faziam ali a esnoga”399. Aqui, além da notícia
desta reunião, é interessante observar as pistas que a denúncia oferece acerca das táticas

394
Ibid., p. 488.
395
Ibid., p. 428.
396
Ibid., p. 392.
397
Ibid., p. 542.
398
Ibid., p. 475.
399
Ibid., p. 537.
141

utilizadas pelos frequentadores desta esnoga para despistar os curiosos, pois, segundo a
delatora, “quando os cristãos-novos iam lá em aqueles certos dias, deixavam dito na cidade
que iam fazer peso”.400
Se este é um indicio de uma postura dissimulada para diminuir as observações
alheias – ou ao menos manter uma limitada discrição –, em outros casos não restam dúvidas
de que essas reuniões foram acompanhadas da adoção de alguns procedimentos táticos a fim
de manter seu caráter oculto, como, por exemplo, quando Manoel Brás, cristão-velho, de
trinta e oito anos, lavrador e morador em Itaparica, narrou ao visitador em agosto de 1591
que três meses antes soubera, através do cirurgião Antônio Machado, que Diogo Lopes Ilhoa
fazia em sua casa “esnoga com ajuntamento de Judeus”, e que, quando isso ocorria, “uns
estavam dentro fazendo a esnoga, outros andavam de fora vigiando”401. Ao contrário da
maioria das delações da Bahia, que narram casos em que a realização das esnogas ocorreu
décadas antes da visitação inquisitorial, a acusação contra Diogo Lopes Ilhoa sugere que essa
esnoga estava em pleno funcionamento durante a visitação, o que ajuda a explicar ainda mais
a preocupação dos cristãos-novos quanto a passarem despercebidos.
Na capitania de Pernambuco, as esnogas também foram uma realidade, assim
como o desenvolvimento de táticas cotidianas para que sua existência se coadunasse com a
dubiedade social dos judaizantes. As denúncias da Mesa de Olinda dão conta, em sua grande
maioria, da esnoga de Camaragibe mantida no engenho da família Fernandes. As notícias que
circulavam eram de que ali os cristãos-novos reuniam-se, há décadas, a fim de celebrarem
seus ritos e observarem, por exemplo, algumas festas do calendário judaico.
Um dos acusadores foi Felipe Cavalcanti, florentino, ‘dos da governança’ da
capitania de Pernambuco, que, no dia 16 de novembro de 1593, denunciou casos que
ocorreram “haverá quarenta anos pouco mais ou menos”, informando ao visitador que o
cristão-novo Anrique Mendes era, assim como seu cunhado Antônio Dias – conhecido como
‘Alma de Burzeguins’ –, frequentador da esnoga de Camaragibe. De acordo com a denúncia,
Anrique Mendes:

era acostumado todas as luas novas de agosto ir com sua mulher, Violante Roiz, e
com toda a mais casa e família em carros enrramados e com festas, desta vila ao
lugar de Camaragibe, que está daqui quatro ou cinco léguas, e lá se estavam um e
dois meses e era fama pública nesta terra, geralmente dito por todos nobres ou
principais, como mais gente e povo, que no dito Camaragibe havia esnoga onde se
ajuntavam os judeus desta terra e faziam as cerimônias e que nas ditas luas novas de
agosto iam ao dito Camaragibe a celebrar a festa do jejum do Kipur e que ele

400
Ibid., loc. cit.
401
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 420.
142

denunciante viu três ou quatro anos [...] ir o dito Anrique Mendes com sua familia e
casa pela sobredita maneira ao ditto Camaragibe.402

Com efeito, os relatos sobre estas reuniões de caráter oculto que ocorriam com
certa regularidade no engenho de Camaragibe permite visualizar uma rede de sociabilidade
cristã-nova. Além de Branca Dias e Diogo Fernandes, aparecem nestas denúncias outros
familiares, como Bento Dias Santiago, Diogo Fernandes – genro de Branca Dias e homônimo
de seu esposo – e Duarte Fernandes, irmão de Diogo, além de outros cristãos-novos que
mantinham relações com esta família, como, por exemplo, Ambrósio Fernandes Brandão,
cristão-novo, senhor de engenho na Paraíba e autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil403.
De modo geral, as denúncias sobre a esnoga de Camaragibe fazem eco umas às outras. Em
outro relato sobre o caso, Diogo Barreiros, cristão-velho, de quarenta e sete anos, morador na
freguesia de Santo Amaro em Pernambuco, disse que os cristãos-novos da família Fernandes
“viviam no ditto Camaragibe na lei judaica e faziam suas cerimônias e faziam a esnoga e que
com eles se ajuntavam e faziam o mesmo Francisco Pardo cristão-novo que ora é lavrador e
morador no mesmo Camaragibe”404, Simão Vaz, feitor do engenho de Camaragibe, seus
parentes Pantaleão Vaz e Manoel Vaz, “e outros muitos cristãos-novos que lhe não
lembram”.405
Uma das coisas que chama atenção no caso da esnoga da Camaragibe tem relação
com o desenvolvimento, no cotidiano, de certas táticas que tinham como finalidade manter
uma comunicação secreta, ou cifrada, com os cristãos-novos judaizantes da vila de Olinda,
com o objetivo de avisá-los sobre as esnogas. Este é o caso que se pode observar nas
denúncias contra o mercador cristão-novo Thomas Lopes, que carregava a alcunha de ‘o
Maniquete’, apelido adquirido possivelmente por associação popular ao paramento

402
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 75. O Yom Kipur é o Dia do Perdão (ou Dia da expiação),
uma data importante do judaísmo que implica na reflexão individual dos erros e pecados cometidos voluntária ou
involuntariamente. O Yom Kipur deve ser observado com um período de jejum de 24 horas. De acordo com
Elias Lipiner, esta celebração “é o jejum do perdão ou da expiação praticado pelos judeus no dia 10 do mês de
Trishré do calendário judaico, correspondente ao mês de Setembro. O dia é de jejum absoluto e o mais terrível da
vida religiosa judaica [...]. Não havendo uma plena concordância entre os meses dos calendários judaico e não-
judaico, ou por aproximação derivada de simples ignorância ou falha de memória, o jejum de Quipur às vezes é
dado como praticado no mês de Agosto”. LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa
Inquisição. Lisboa: Contexto, 1999, p. 141.
403
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 519. Cf. BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas
do Brasil – Segundo a edição da Academia Brasileira / corrigida e aumentada com numerosas notas de Rodolfo
Garcia e introdução de Jaime Cortesão. – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010. (Edições do
Senado Federal; v. 134).
404
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 251.
405
Ibid., loc. cit.
143

litúrgico406. Thomas Lopes costumava “em certos dias e tempos atar um pano no dedo do pé
para outros cristãos-novos irem ajuntar-se a Camaragibe a fazerem esnoga”407. Segundo os
relatos apresentados ao visitador, este era, precisamente, o papel tático do “Maniquete” no
âmbito da rede judaizante de Olinda, ou seja, circular despretensiosamente pelas ruas da vila
com um pano atado ao pé para servir de ‘sinal’ secreto e de aviso sobre os dias das reuniões
no engenho Camaragibe. O licenciado Diogo Bahia, que serviu de oficial de justiça do Santo
Ofício durante a visitação de Pernambuco, também deu conta do caso ao visitador em 25 de
agosto de 1595, dizendo que:

De três ou quatro anos a esta parte tem ouvido dizer nesta Vila geral e publicamente
a algumas pessoas com quem fala na matéria de cristãos-novos, que quando se
ajuntam os cristãos-novos em Camaragibe ou em outra parte para fazerem suas
cerimônias judaicas, que Thomas Lopes, de alcunha o Maniquete, [...] ata um pano
em um pé e que assim com aquele pano atado no pé lhes dá sinal, com o qual eles o
entendem para se ajuntarem a fazer as cerimônias judaicas, e que isto tem ele
testemunha ouvido dizer nesta Vila a muitas pessoas por maneira que entende que é
fama pública nesta terra entre grandes, pequenos, altos e baixos.408

Não há dúvidas de que a presença do visitador reavivou estas memórias e os


rumores públicos sobre os comportamentos duvidosos que indiciavam os cristãos-novos de
judaizarem secretamente. No entanto, é também interessante observar que muitos dos relatos
sobre o arranjo improvisado pelo ‘Maniquete’, para supostamente se comunicar ocultamente
com a comunidade judaizante de Olinda, diz respeito a episódios que ocorreram antes da
visitação inquisitorial. Aqui está claro que, se o pano atado ao pé de Thomas Lopes tinha um
papel performático no sentido de camuflar o aviso para “fazer esnoga”, seu objetivo de
manter-se oculto – dado a existência dos relatos apresentados na Mesa do inquisidor – esteve
longe de ser alcançado.
Isto não significa, no entanto, dizer que este improviso não logrou algum sucesso;
ao contrário, pareceu ser uma tática dissimulada e utilizada no âmbito das possibilidades do
dia a dia, cujas notícias da existência de reuniões recorrentes confirmam o alcance da
transmissão da mensagem carregada por Thomas Lopes. Se a comunidade cristã-velha
observava essa cena pitoresca, e mesmo sabendo do seu potencial significado, convivia com
essa prática de maneira mais ou menos harmônica, isto diz respeito ao cenário social de

406
No âmbito dos paramentos litúrgicos, maniquete é a renda presente na manga das alvas, ou seja, das túnicas
compridas, normalmente em linho branco, usada interiormente pelos padres, usada sob outros paramentos como
a casula, dalmática e pluvial. Cf. FERREIRA, Maria João. Et.al. Paramentos Litúrgicos – Coleção Duarte Pinto
Coelho. Catálogo da Exposição produzida pela Fundação D. Luís I – MFET Soluções Gráficas, Casa Duarte
Pinto Coelho, março/2018, p. 56 e 65.
407
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 54.
408
Ibid., p. 471-472.
144

tolerância e de cooperação entre cristãos-velhos e cristãos-novos, característico do início da


colonização e que foi alterado com a presença dos inquisidores409.
Aliás, essa era efetivamente uma cena conhecida na vila de Olinda, pois, de
acordo com o testemunho do padre Francisco Pinto Doutel, registrado em Salvador em
outubro de 1591, há vinte anos era fama pública em Pernambuco que o calceteiro410 Jorge
Dias de Caja – já falecido à época deste testemunho – “era o rabi e sacerdote dos judeus” e
que “saía pela Vila de Olinda com um pano atado num pé branco e com a espada na cinta que
em outros tempos não costumava e que este era o sinal para se ajuntarem”411. A existência
deste relato é bastante significativa, principalmente, para demonstrar a antiguidade dessa
forma tática de comunicação, em que Thomas Lopes, antes de ser um ‘inventor’, aparece
como uma espécie de ‘herdeiro’ de um lugar e de uma prática especifica no âmbito da
gramática oculta judaizante da vila de Olinda.
Com efeito, esse era um costume conhecido por muitas pessoas nesta vila,
algumas dessas, inclusive, empenharam-se bastante na tentativa de esclarecer – ou
desmascarar – os motivos desse comportamento atípico e curioso de Thomas Lopes. Este foi
o caso da denúncia do padre Pero Leitão, religioso da Companhia de Jesus, que, no dia 13 de
setembro de 1595, apresentou-se à Mesa e, entre outros casos, denunciou Thomas Lopes pelo
conhecido comportamento, chamando-o de “campainha dos judeus [...] para saberem quando
se haviam de ajuntar”412.
Este depoente contou ao inquisidor que observou Thomas Lopes e o viu “três
vezes diversas em dias diferentes andar pelas ruas desta Vila da dita maneira com um pé
descalço, que lhe parece era o esquerdo, com um lenço atado nele no artelho ou por cima do
artelho”413. No entanto, desconfiado, “e por eles serem ambos conhecidos e falarem muitas
vezes”414, perguntou-lhe o que era aquilo em seu pé, “e o Maniquete lhe respondeu que era

409
Cf. MAIA, Ângela Vieira. À sombra do medo – cristãos velhos e cristãos novos nas capitanias do açúcar. Rio
de Janeiro: Idealizarte, 2003; SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no
mundo atlântico ibérico. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
410
De acordo com o dicionário do padre Raphael Bluteau a palavra calceteiro tem dois significados: a) aquele
que faz e vende calças e b) o que calça as ruas com pedras. Por sua vez, calceta diz respeito tanto as argolas de
ferro unidas por uma corrente e presas nas pernas dos indivíduos condenados às galés, quanto a estes condenados
que trabalhavam forçadamente nas ruas; já calcetaria, diz respeito ao bairro ou rua de calçada. Cf. BLUTEAU,
Rafael. Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por
Antônio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p.
216. Considerando as informações da denúncia não é possível, no entanto, afirmar qual categoria correspondia
Jorge Dias de Caja.
411
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 522.
412
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 480.
413
Ibid., loc. cit.
414
Ibid., loc. cit.
145

uma ferida”415, sendo em seguida interpelado pelo padre que pareceu não acreditar naquela
resposta, pois este “lhe disse que olhasse não fosse o que diziam que ele Maniquete servia de
campanhia com aquele trapo assim atado no pé para que os judeus se ajuntassem em
Camaragibe”, recebendo como tréplica de Thomas Lopes que aquele juízo que faziam dele
“era dito de vadios.”416.
Não satisfeito com esta investida inicial, o padre Pero Leitão foi visitar Thomas
Lopes dois dias depois, encontrando-o em sua casa “em chinelas sem ter pano nenhum atado”.
Diante disso, perguntou-lhe pela ferida que Thomas Lopes afirmou ter no pé, e “ele lhe não
respondeu com mais que se rir e dissimular”, sendo então desmascarado pelo padre, pois “de
propósito logo lhe olhou o pé onde lhe tinha visto o pano atado e não lhe achou ferida, nem
chaga nenhuma, nem nódoa, nem signal dela”417. Esta situação provocou tamanha má suspeita
que o padre, desde a ocorrência desse episódio, deixou de ouvir as confissões sacramentais de
Thomas Lopes.
Essas não foram as únicas investidas feitas contra Thomas Lopes. Pelo contrário,
os relatos permitem visualizar outras querelas que envolviam o ‘Maniquete’ e a sua atuação
na esnoga de Camaragibe. Em uma destas situações, o ‘Maniquete’ aparece como vítima num
episódio numa tentativa de extorsão realizada por um falso Familiar do Santo Ofício. Manoel
Ferreira, meirinho da vara eclesiástica da Bahia, denunciou este caso ao visitador, explicando-
lhe que Thomas Lopes lhe contou a situação pouco agradável que vivenciou. Segundo a
denúncia, Belchior (ou Melchior) Mendes de Azevedo, cristão-velho, de cinquenta anos,
natural de Avis, procurou Thomas Lopes, dizendo ser ministro do Santo Ofício a fim de lhe
dizer em segredo “que ele trazia da Bahia poderes e uma provisão dele Senhor Visitador para
pender a ele ditto Thomas Lopes e o levar preso pela Santa Inquisição a Bahia”418 devido à
culpa que tinha em “dar sinal para os cristãos-novos se ajuntarem em certa parte a fazer sua
esnoga”419. No entanto, caso o Thomas Lopes lhe desse “uma pipa de vinho e certo dinheiro”,
ele “lhe daria na sua mão a provisão que trazia do Santo Oficio e o não prenderia” 420, suborno
este que ficou acordado entre ambos até o cristão-novo ir contar o caso aos padres da
Companhia de Jesus e “por conselho deles não deu nada ao dito Belchior Mendes”, o falso
Familiar da Inquisição. 421

415
Ibid., loc. cit.
416
Ibid., loc. cit.
417
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 481.
418
Ibid., p. 85.
419
Ibid., loc. cit.
420
Ibid., loc. cit.
421
Ibid., loc. cit.
146

Interessante observar que, não obstante a fama pública e geral que se tinha sobre
este caso da ‘campainha dos judeus’, o próprio Thomas Lopes compareceu à Mesa do
visitador, mas, ao contrário do que se possa inicialmente pensar, não se tratou de uma
apresentação para confessar algum tipo de desvio que incorresse em culpas no Santo Ofício,
mas sim para denunciar o chantagista Belchior Mendes de Azevedo. Esta denúncia, registrada
no dia 11 de novembro de 1593, esclarece que, além de dizer ser ministro do Santo Ofício,
Belchior Mendes teve o impropério de dizer que era “primo dele Senhor Visitador”, e que este
tinha lhe dado na Bahia as referidas provisões para prender Thomas em nome da Inquisição.
As idas de Belchior Mendes à casa de Thomas Lopes a fim de intimidá-lo tornaram-se
frequentes – o denunciante aponta que ocorreram pelo menos quatro visitas –, mas suas
tentativas de suborno pareceram não surtir o efeito desejado, de modo que o cristão-novo
disse para Belchior Mendes que “não tinha vinho, nem dinheiro para lhe dar, nem tinha a dita
culpa, nem outra alguma do Santo Offício por que temesse nada”422. Diante da postura
inflexível de Thomas Lopes, o falso Familiar insistiu na ameaça da prisão:

e vendo que ele denunciante lho não queria dar o vinho, nem dinheiro que lhe pedia,
lhe disse então que, pois, lhe não dava nada que se aparelhasse por que o havia de
levar em uma corrente de ferro preso pela Santa Inquisição à Bahia a ele Senhor
Visitador que lá estava então, dizendo-lhe que ele tinha poderes que ele Senhor
Visitador lhe dera para prender a ele denunciante pelo Santo Oficio. 423

As intimidações recorrentes de Belchior Mendes de Azevedo parecem ter mexido


com os brios de Thomas Lopes, pois foi ao colégio da Companhia de Jesus falar sobre o caso
com os padres Henrique Gomes, Pero Leitão e Simão Travassos, dizendo-lhes, por desespero
ou pelo exagero comum a uma situação emocionalmente instável, “que ele se havia de
enforcar com uma corda se aquele homem lhe tornava a casa com aquillo” e que, por isso,
“lhes pedia que o chamassem e repreendessem”424. Este pedido de ajuda aos padres jesuítas,
aparentemente, surtiu efeito, pois depois disso Thomas Lopes não foi mais incomodado por
Belchior Mendes de Azevedo. Ao final de sua denúncia, o visitador, como é de se esperar,
interrogou Thomas Lopes sobre seus estranhos hábitos, perguntando-lhe “quem lhe ensinou a
invenção de que ele usa de trazer o pano atado no pé para ser entendido dos Judeus e em que
dias costuma ele fazer isto”425, cuja resposta foi peremptória ou dissimuladamente negativa,
afirmando na Mesa “é falsidade que lhe alevantaram e que nunca tal fez [...] e que tal não usa

422
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 61.
423
Ibid., loc. cit.
424
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 62.
425
Ibid., p. 63.
147

nem usou”426, mas que se por acaso o viram algumas vezes com o pé enfaixado foi devido ter
“um dedo do pé doente entrapado como muitos tem nesta terra”427, encerrando seu relato
dizendo que era bom cristão. Com efeito, é difícil apontar se os argumentos apresentados por
Thomas Lopes foram o suficiente para despistar ou desviar as atenções do visitador Furtado
de Mendonça, mas o fato é que não há nenhum rastro de que o “Maniquete” foi processado
pelo Santo Ofício. O mesmo, no entanto, não se pode dizer de Belchior Mendes de Azevedo.
Na verdade, essa não foi a primeira vez que Belchior Mendes de Azevedo teve seu
nome anotado nos registros da visitação quinhentista. A primeira denúncia apresentada nesta
visitação contra Thomas Lopes, acerca da tática relativa ao aviso para as esnogas, não é
encontrada no livro de denunciações da vila de Olinda, mas sim em 1591, no início da
visitação, quando o inquisidor ainda estava na Bahia. Foi o próprio Belchior Mendes de
Azevedo que, estando naquele tempo em Salvador, deu conta do caso da esnoga de
Camaragibe em Pernambuco, dizendo que “quando é o dia em que hão de fazer a esnoga, os
vai chamar a vila um homem que vive no Varadouro de alcunha, o Maniquete”428, o qual
serve de campainha para os cristãos-novos, “passando-lhe pelas portas com um pé descalço e
com um pano atado nele e desta maneira é entendido para se ajuntarem”429. Aqui ele figura
como delator, no entanto, quando voltou para Pernambuco, pouco tempo após realizar esta
denúncia, ele se tornaria réu devido ao caso em que fingiu ser agente do Santo Ofício para
intimidar e extorquir Thomas Lopes.
No seu processo consta que seus crimes foram: perjúrio, revelar segredos do
Santo Ofício e fazer-se passar por ministro da Inquisição430. Esse documento é constituído por
diferentes peças, que datam de 1591 (denúncia de Belchior Mendes realizada em Salvador)
até 1595 (ano da expedição de sua sentença), como traslados de denúncias, ratificações,
confissões, sessões de interrogatórios e diligências da Mesa que, apesar de, no âmbito do
processo, tratarem principalmente do caso do fingimento de Belchior Mendes de Azevedo,
ratificam também as notícias sobre o papel tático desempenhado por Thomas Lopes para a
realização das esnogas no engenho de Camaragibe.
Para entender a natureza do processo de Belchior Mendes de Azevedo e a relação
deste com as notícias das esnogas da vila de Olinda, é preciso atentar para a trajetória deste
delator que se tornou réu da Inquisição: primeiro denunciou o caso na Bahia, em 24 de agosto

426
Ibid., p. 62.
427
Ibid., p. 63.
428
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 450.
429
Ibid., loc. cit.
430
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7956.
148

de 1591; depois seguiu para Pernambuco e, em 1592, ou seja, antes da instalação da visitação
naquela capitania, tentou extorquir Thomas Lopes. No entanto, quando o visitador chegou à
vila Olinda, apresentou-se voluntariamente à Mesa em 18 de novembro de 1593, sete dias
após Thomas Lopes tê-lo denunciado, confessando-se durante o ‘período da graça’ concedido
para aquela vila. Nesta confissão, ele diz que “há um ano pouco mais ou menos, que vindo ele
da Bahia e estando nesta vila” foi à casa de Thomas Lopes e, lá estando, foi, de pronto,
interpelado pelo cristão-novo que quis saber se era verdade que Belchior Mendes o acusou na
Bahia, pois disto soube e queria que “aclarasse se era assim”.431
Neste retorno diante do visitador, agora na condição de confitente, Belchior
Mendes omitiu uma série de detalhes que, com o desenrolar de seu processo, foram cada vez
mais esclarecidos para a Mesa. Dá a entender, por exemplo, que ele foi até à casa de Thomas
Lopes apenas duas vezes; que na segunda visita, em decorrência de uma discussão entre
ambos, possivelmente acerca da acusação feita à Mesa em Salvador, blefou dizendo que trazia
o mandado de prisão expedido pelo visitador na Bahia; que inventou esta mentira porque
estava colérico devido a queixa prestada pelo ‘Maniquete’ ao reitor do Colégio da Companhia
de Jesus sobre o assédio de que era vítima. No entanto, contou que, como Thomas Lopes
começou a se “mesquinhar dizendo que não dissera tal ao dito padre”432, o que evidentemente
não era verdade, pois, de fato, Thomas Lopes recorreu aos padres jesuítas, ele “tomou o dito
papel que fingira ser provisão e o rompeu perante ele em pedaços, dizendo-lhe que estava
zombando”433, fazendo Thomas Lopes jurar que não contaria a ninguém o que ali aconteceu e,
por fim, “se apartou dele e nunca mais lhe falou”.434
Neste relato, prestado espontaneamente em novembro de 1593 durante o ‘período
da graça’ concedido a vila de Olinda e freguesias vizinhas, Belchior Mendes de Azevedo
apresentou uma versão bastante superficial e desencontrada dos acontecimentos. Mas o
mesmo não aconteceu quando, quase dois anos depois, em 21 de agosto de 1595, ele foi
convocado pelo visitador para a primeira sessão de interrogatório do seu processo. Ao ser
admoestado para falar toda a verdade de suas culpas, Belchior Mendes de Azevedo pareceu
entender a gravidade da situação em que se encontrava. Disse, então, que agiu sozinho “por si
mesmo de propósito a fim de tirar do dito Thomas Lopes alguma coisa que lhe desse para
suas necessidades”, confirmando que, de fato, afirmou que “tinha poder para embarcar a ele
Thomas Lopes e o mandar preso a Bahia a ele senhor visitador”; negou, porém, que tivesse

431
Ibid., fl. 11.
432
Ibid., loc. cit.
433
Ibid., loc. cit.
434
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7956, fl. 11-12.
149

dito que era primo de Heitor Furtado de Mendonça, mas sim – como se fosse menos agravante
– que “era parente dos parentes dele Senhor”, e que esta mentira dissera apenas “para mais
efetuar seu intento”435, pedindo ao visitador perdão e misericórdia porque estava “muito
arrependido, e disso deu mostras de joelhos, chorando muitas lágrimas”.436
No dia seguinte, 22 de agosto de 1595, este réu se apresentou, mais uma vez,
diante da Mesa para sua segunda sessão de interrogatório. Nesta altura do processo, pode-se,
sem dificuldade, perceber as investidas do inquisidor e o tom intimidador de suas
admoestações e questionamentos, principalmente quando o mesmo coloca em xeque a
narrativa de Belchior Mendes. Heitor Furtado perguntou, por exemplo, se ele, quando foi
chantagear Thomas Lopes, atentou “então que incorria em perjúrio por ter testemunhado este
caso na Bahia e jurar então ter segredo”, ao que o réu respondeu “que não atentou então a
isso, nem lhe lembrou tal”437. Triste sorte de Belchior Mendes, que do lugar de delator passou
a ocupar o lugar de réu, não apenas por ter fingido ser ministro da Inquisição, mas também
por ter quebrado o juramento para manter segredo dos casos tocados na Mesa do Santo
Ofício, feito diante do inquisidor em Salvador
Em um jogo argumentativo muito sagaz entre a Mesa e o réu, o visitador Heitor
Furtado de Mendonça questionou se Belchior Mendes sabia que no Monitório estava
explicitado que era caso de excomunhão revelar os assuntos contados na Mesa da Inquisição e
teve como resposta do réu que este “não sabia do monitório geral, nem o ouviu na Bahia”438,
mas apenas quando a visitação chegou a Pernambuco “ouvio o Édito e Monitório geral e por
isso veio ele então no tempo da graça a esta Mesa fazer a confissão que nela fez”439. Nesta
altura do depoimento, a arguição do inquisidor foi certeira, pois o réu foi questionado:
“porque então na graça não confessou ele a verdade de sua culpa, assim como ora tem
confessado nestas sessões depois de chamado a juízo?”.440
Ao ser confrontado, Belchior Mendes não pôde alegar senão que, naquela ocasião,
não se lembrou de informar esses detalhes na sua confissão. Não por acaso, o esquecimento se
deu justamente no que tocava às incongruências omitidas no seu relato – o próprio objetivo de
extorsão material, a mentira sobre ser ministro do Santo Ofício e primo do visitador, a
recorrência das visitas e a insistência das intimidações –, contradições estas que agora
estavam evidentes para o visitador. Preocupado com seu destino, Belchior Mendes lançou

435
Ibid., fl. 26-27.
436
Ibid., fl. 27.
437
Ibid., fl. 29.
438
Ibid., loc. cit.
439
Ibid., loc. cit.
440
Ibid., loc. cit.
150

mão de vários argumentos para sustentar que se foi omisso com algumas informações o foi
por puro esquecimento, explicitando, inclusive, que, ao final daquela sua confissão realizada
em 1593, disse ele ao visitador que “se mais alguma coisa havia que por esquecimento o não
declarava, ele o havia por declará-lo”441 e que, portanto, “lhe pareceu então que com isso
satisfazia na obrigação de confessar sua culpa”.442
Isto, no entanto, não aquiesceu a Mesa inquisitorial, tendo em vista que o visitador
partiu para o confronto direto dos testemunhos, fazendo com que a confissão duvidosa fosse
lida diante do réu e perguntando-lhe se reconhecia aquele relato como seu. Ao responder
afirmativamente, Belchior Mendes de Azevedo ratificou, mesmo sem querer e sob a pressão
da Mesa, as contradições dos seus testemunhos, sendo, portanto, prontamente admoestado
pelo visitador, pois “tudo o que na dita confissão se contém é o contrário do que tem
confessado nesta Mesa ontem e hoje”443. Posto em xeque, Belchior Mendes admitiu, enfim,
que “agora vendo ele a dita confissão que então fez, que ora lhe foi lida, vê que tudo o que
nela se contém é falso, por que a verdade é como ontem e hoje tem confessado”.444
Há ainda neste processo mais uma sessão de interrogatório, ocorrida em 23 de
agosto de 1595, que pouco acrescenta as anteriores. Pode-se observar, de um lado, a
insistência do visitador para que o réu confessasse toda a verdade de suas culpas “porque a
desculpa que ele diz de esquecimento não parece verossímil”445, e, de outro, vê-se Belchior
Mendes sustentando esta justificativa. Após esta terceira sessão, a Mesa analisou os autos e
deliberou a sentença do réu, que foi expedida em Olinda, em quatro de novembro de 1595,
determinando que Belchior Mendes de Azevedo fosse:

ao Auto Público da Fé em corpo com a cabeça descoberta e com uma vela acesa na
mão, e que logo se confesse de confissão geral e se confesse e comungue de
conselho do seu confessor todos os meses do ano seguinte e em cada um deles reze
três vezes os salmos e penitências de David e assim mais em cada um deles jejue
uma quarta-feira nas quais quartas feiras ouvirá missa [e pague as custas]. 446

Este foi um dos processos instruídos e julgados pelo próprio visitador Heitor
Furtado de Mendonça durante a visitação e sem a necessidade do envio do réu para os
cárceres do tribunal de Lisboa. No entanto, como se vê na sentença, Belchior Mendes de
Azevedo foi um dos indivíduos obrigados a participar da vexação pública através de um dos

441
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7956, fl. 30.
442
Ibid., loc. cit.
443
Ibid., loc. cit.
444
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7956, fl. 31.
445
Ibid., fl. 33.
446
Ibid., fl. 38.
151

Autos de fé improvisado pelo visitador na colônia, fato este que extrapolava, inclusive, os
poderes que lhe foram delegados pelo Conselho Geral do Santo Ofício lisboeta. Por mais que
não se trate, especificamente, de um caso de acusação de judaísmo, o processo de Belchior
Mendes de Azevedo é bastante significativo, pois não só faz eco às notícias da esnoga de
Camaragibe, como também exemplifica, em vários níveis, a relação entre o imaginário social
temeroso acerca da Inquisição e o desenvolvimento de táticas de preservação individual e/ou
coletiva. Observe-se, por exemplo, que o fato de Belchior Mendes cogitar intimidar alguém
fingindo ser agente da Inquisição é um fator que demonstra como os familiares do Santo
Ofício eram vistos socialmente e, nesse caso, não se pode negar que esta estratégia de
intimidação tenha alcançado algum sucesso. Manoel Leitão, cristão-velho, de setenta anos,
que atuou durante muitos anos como guarda da Inquisição de Coimbra, por exemplo, disse
que Thomas Lopes quando falava com ele sobre o falso familiar “falava medroso, e como
homem que teme”447. Por sua vez, o padre Henrique Gomes, reitor do Colégio da Companhia
de Jesus, pediu que Belchior Mendes não falasse mais com Thomas Lopes, “porque estava
temeroso dele”.448
É interessante observar o contraste, ou a flutuação, nas tomadas de posição de
Thomas Lopes, pois, ao mesmo tempo em que demonstrava estar temeroso com o mandado
de prisão supostamente expedido pelo visitador na Bahia, negava as investidas de Belchior
Mendes de Azevedo fazendo questão de dizer que não tinha nenhuma culpa relacionada ao
Santo Ofício “por que temesse nada”449. Aliás, se considerarmos a presteza com que se
apresentou ao visitador para denunciar o falso Familiar, logo percebemos que a denúncia de
Thomas Lopes contra Belchior Mendes de Azevedo foi também uma tentativa de dirimir as
suspeitas sobre si, posto que sua acusação poderia manchar qualquer credibilidade do discurso
de Belchior Mendes, seu delator em Salvador.
Já Belchior Mendes de Azevedo, em conversa com o padre Henrique Gomes,
deixou transparecer que, se se utilizou do Santo Ofício para intimidar outrem, estava agora
temeroso, pois, apesar de negar ao padre que tinha feito se passar por Familiar do Santo
Ofício, perguntou-lhe sobre “que Remédio tinha aquilo se o viessem acusar a esta Mesa”,
antecipando-se, portanto, em saber qual seria o tratamento dado pela Mesa do visitador se
viesse a ter problemas com a Inquisição, ao que o padre “lhe aconselhou que quando ele
Senhor Visitador viesse da Bahia, por que ainda então lá estava, que se aproveitasse com vir a

447
Ibid., fl. 14.
448
Ibid., fl. 26.
449
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 61.
152

Mesa”, ficando a partir dali com suspeitas e considerando que Thomas Lopes falava a
verdade450. Além disso, nos pedidos de misericórdia feitos pelo réu na Mesa do visitador, não
se pode deixar de observar sua preocupação com a infâmia pública e a sobrevivência material
de sua família, não por acaso, dois dos elementos que compunham a ‘pedagogia do medo’.

E que de toda sua culpa a que neste caso tem pede perdão e esta muito arrependido e
pede se use com ele de misericórdia por que tem mulher moça e muitas filhas e
filhos [...] e que com tudo isto é muito pobre e tem muitas necessidades e que
dando-se-lhe pena pública ficarão ele e sua casa e família desremedeados e que,
portanto, pedia misericórdia a qual pede com muitas mostras de arrependimento, de
joelhos com muitas lágrimas, com as mãos levantadas.451

Com efeito, os registros sobre as esnogas coloniais apontam rastros de diferentes


trajetórias individuais que não estão necessariamente relacionadas aos indícios de judaísmo ou
mesmo a indivíduos de origem cristã-nova, como no exemplo anteriormente discutido. De
todo modo, esse não deixa de ser um exemplo das relações de força que constituíam o tecido
social entre cristãos-velhos e cristãos-novos nos primeiros tempos de colonização do Brasil,
além, é claro, de ratificar o imaginário social sobre o lugar de poder ocupado pela instituição
inquisitorial.
Os resultados da visitação iniciada em 1618 na Bahia são pontuais, até onde a
documentação alcança, no que se refere às reuniões de caráter clandestino realizadas pelos
cristãos-novos. Como aponta a historiadora Sônia Siqueira, “apesar da fama que ia tendo a
Bahia de ninho da marranagem peninsular, poucos réus foram apanhados. E por culpas
inexpressivas de judaísmo”452. De fato, assim como o criptojudaísmo feminino, poucos relatos
chegaram à Mesa do visitador sobre as esnogas na Bahia do século XVII. No entanto, as
denúncias permitem observar a predominância masculina nessas ocasiões, considerando-se
que não há nenhuma referência à participação de mulheres cristãs-novas nos casos delatados
ao visitador Marcos Teixeira. Além disso, esses relatos são também indícios, mesmo que
pouco volumosos, da sobrevivência e continuidade do criptojudaísmo colonial no primeiro
quartel do século XVII.
Belchior Fernandes de Basto, mercador, cristão-velho, residente em Salvador, por
exemplo, na denúncia que apresentou contra Simão Nunes de Mattos, disse que foi seu
vizinho entre 1610 e 1611, e que devido a isso era comum observar que naquela casa se
reuniam outros cristãos-novos, entre os quais se encontravam Francisco Tinoco de Lisboa,

450
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7956, fl. 16.
451
Ibid., fl.31- 32.
452
Confissões da Bahia (1618-1620), p. 70.
153

Simão Machado, Diogo Fernandes de Elvas, Simão de Leão, Francisco Duarte Tinoco,
Manoel Alvares de Gallegos e Pascoal Bravo. Em seu depoimento, registrado no dia 14 de
setembro de 1618, consta que:

ouvira ele [...] por espaço de um ano ou mais todas as sextas-feiras e sábados, assim
de noite como de dia, muita festa e traquinada em casa do dito denunciado, e via que
nos mesmos dias principalmente vinham jantar e cear e dormir em sua casa muitos
homens da nação, tanto que espantado [...] perguntara a um cabra do denunciado por
nome Manoel [...] que era aquillo que não deixavam dormir a vizinhança com tanta
matinada e festa, lhe respondera o cabra, que ‘tiravão a toura dos farelos’, do que
elle denunciante ficara escandalizado.453

Em alguns casos, pode-se perceber certa confusão entre os ajuntamentos de


caráter oculto e as reuniões de cristãos-novos em associações católicas, como confrarias ou
irmandades. Como explicita Elias Lipiner, “os cristãos-novos aparecem frequentemente
filiados nestas corporações e nelas ocupam posições de destaque, talvez, em muitos casos,
para melhor dissimular com tais actos públicos de devoção as suas clandestinas práticas
judaizantes”, e continua, “em certas ocasiões os cristãos-novos instituíram confrarias
aparentemente católicas, destinadas, porém a dissimular o culto prestado à memória de
célebres vítimas do Santo Ofício, bem como à prática de ritos judaizantes”454. Na segunda
visitação inquisitorial ao Brasil, há algumas as notícias indiciárias sobre esta questão. Gaspar
Affonso, cristão-velho, de trinta e quatro anos, natural da Bahia, denunciou, em setembro de
1618, os cristãos-novos Pedro Fernandes Raphael e Luís Lopes Paredes, pois havia oito ou
nove anos em que Matheus de Souza, sobrinho do primeiro denunciado, teria confidenciado
que “seu tio fechava de noite em uma loja sua com Luís Lopes de Paredes [...] e aí estavam
até meia noite escrevendo em um livro grande [...] que não era senão o livro da confraria dos
Judeus”.455
Há também notícias sobre a Confraria de Nossa Senhora da Ajuda, formada por
cristãos-novos, entre os quais estava Duarte Álvares Ribeiro, tesoureiro desta confraria, que se
confessou em setembro de 1618 por ter zombado de algumas imagens dos apóstolos que
estavam na ermida de Nossa Senhora da Ajuda456. Estas são referências imprecisas e indiretas
acerca do uso das confrarias católicas (discurso público) para supostamente mascarar reuniões
de cunho judaizante (discurso oculto). De todo modo, estes ruídos não deixam de ser

453
Denunciações da Bahia (1618), p. 150.
454
LIPINER, Elias. Terror e linguagem: um dicionário da Santa Inquisição. Lisboa: Contexto, 1999, p. 70.
455
Denunciações da Bahia (1618), p. 185.
456
Confissões da Bahia (1618-1620), p. 121.
154

demonstrativos das diferentes possibilidades e maneiras de conformação do criptojudaísmo


colonial.
Outro caso diz respeito à esnoga mantida na casa do cristão-novo Gonçalo
Nunes457, que era frequentada, inclusive, por alguns indivíduos citados anteriormente, como
Pascoal Bravo e o próprio Simão Nunes de Mattos, além de outros denunciados, como, por
exemplo, Dinis Bravo, irmão de Pascoal Bravo, Diogo de Albuquerque, Francisco Lopes
Brandão, Domingos Alvares de Serpa e Diogo Lopes Franco. De acordo com Melchior de
Bragança, delator do caso, este “viu e notou que de ordinário às sextas-feiras à tarde se
ajuntavam em casa do dito Guonçallo Nunes”, observando também que:

[na] casa estavam todos com as portas fechadas mais de cinco horas, porque
entravam às sete da tarde e saiam depois da meia noite, o que ele denunciante disse
que sabia pelo ver três noites em que espreitou de um canto da rua detrás da cadeia
até que os via sair, além de outras muitas vezes em que os via entrar na dita casa no
mesmo dia que tem dito à tarde e fecharem-se por dentro, de que suspeitava que era
para fazerem algumas cerimônias da Lei Velha e celebrarem a festa do Salvador.458

A trajetória pessoal de Melchior de Bragança é característica das desventuras de


indivíduos que caíram nas malhas da justiça do Antigo Regime e que ajuda, inclusive, a
explicar seu afinco em colaborar com o Santo Ofício, comparecendo por duas vezes à Mesa
do visitador para denunciar alguns cristãos-novos da cidade de Salvador. Natural do
Marrocos, judeu de nascimento, mas convertido ao catolicismo, Melchior de Bragança era
doutor e havia ensinado hebraico nas Universidades de Alcalá e Salamanca, na Espanha, e no
Colégio da Companhia de Jesus na cidade de Coimbra. No entanto, viu sua sorte transformada
devido a um assassinato que cometeu em Portugal, sendo degredado por esta culpa para o
Brasil.
Desterrado e passando por necessidades, foi, então, pedir ajuda aos cristãos-novos
Domingos Álvares Serpa, mercador, e Dinis Bravo, senhor de engenho. Aqui, é interessante
observar como a narrativa da denúncia dá acesso a episódios que ocorreram fora da cena
pública. Ao ir à casa de Domingos Álvares Serpa, Melchior de Bragança explicava sua infeliz
trajetória quando o anfitrião disse que:

sabia de certo que ele fugira de Marrocos por quebrar do crédito, e não por se vir
fazer cristão de vontade, por quanto a lei de Moisés era a lei verdadeira, e que por

457
Denunciações da Bahia (1618), p. 101-102; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro
[2.º?] das denunciações que se fizeram na visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os
Santos, do Estado do Brasil, fl. 86 [v].
458
Denunciações da Bahia (1618), p. 101-102.
155

isso não podia ele denunciante deixá-la. E que se tinha necessidade, que se
recolhesse a cada dele denunciado, e se declarasse com ele459.

Não há dúvidas de que aqui, apesar da situação não se relacionar especificamente


com a prática das esnogas, trata-se de outro discurso oculto que veio à tona através das vozes
polifônicas presentes na documentação inquisitorial. Defender ampla e abertamente o
judaísmo era, certamente, algo possível de ser realizado apenas na limitada privacidade de um
encontro sem muitas testemunhas. Além disso, há aqui a evidente sugestão de que o
acolhimento ofertado a Melchior de Bragança estava condicionado à adesão – ou, neste caso,
ao retorno – do mesmo ao judaísmo. Situação semelhante ocorreu com Dinis Bravo, que
ironizou a situação precária em que Melchior de Bragança se encontrava, dizendo-lhe “vós
sois, vós sois, vós sois o doutor hebreo? é possível que ereis pregador da lei de Moisés, e
desamparastes dela? bem dizem que a não desamparastes, senão por necessidade. Ivos embora
que temos cá muito a que acudir”.460
Com efeito, as duas denúncias realizadas por Melchior de Bragança, apesar de
terem como foco as acusações de judaísmo, permitem também visualizar as tensões religiosas
entre o cristianismo e o judaísmo, as duas principais religiões monoteístas do mundo ocidental
no início da Época Moderna. Nesse exemplo específico, vemos as hostilidades de alguns
cristãos-novos judaizantes em relação ao referido judeu de nascimento que se converteu ao
cristianismo. Estas não foram as únicas vezes em que seus pedidos foram negados. Melchior
de Bragança narrou que também pediu ajuda a Gonçalo Nunes, no entanto, assim como os
demais, este não lhe ofereceu a melhor recepção, dizendo que ele era o principal responsável
pela sua situação de penúria, pois “quem renunciara lei, pai e mãe, não tinha para que cá
contar misérias”, lamentando pelo seu afastamento da “lei que se deu no Monte Sinai”.461
Já em outra ocasião este denunciante foi jantar na casa de Manoel Rodrigues
Sanches, cristão-novo, mercador e senhor de engenho na Bahia, onde também estava presente
Luís Álvares, cristão-novo, funcionário do referido engenho. Entre os diversos assuntos que
conversaram, veio à tona uma discussão sobre o judaísmo de Flandres, nos Países Baixos. Foi
então que, ao ser questionado pelo anfitrião, Luís Álvares apresentou um detalhado relato
sobre o judaísmo e as sinagogas presentes naquela região, dizendo aos circunstantes que:

ao entrar da Sinagoga lavavam as mãos e punham a mão na testa e então beijavam a


mesma mão e levantavam ambas e entravam dentro, e meneando o corpo rezavam os
salmos de David em lingua hebréia. E depois que acabavam a reza, vinha um Rabino

459
Ibid., p. 98.
460
Ibid., p. 99.
461
Ibid., p. 130.
156

vestido com uma alva branca por cima do vestido ordinário e subia a um púlpito
grande aonde dizia certas orações e respondiam os demais, Amém, dando saltos para
cima dizendo ‘Cadox, Cadox, Cadox’, que queria dizer, ‘Sanctus, Sanctus, Sanctus
Dominus Deus Sabaoth’.462

Aqui, mais uma vez, a documentação inquisitorial permite acessar, mesmo que
virtualmente e considerando os filtros presentes nas fontes do Santo Ofício e nas narrativas
dos denunciantes, situações que dificilmente ocorreriam na cena pública. No meio desta
discussão, Melchior de Bragança não deixou de se posicionar, respondendo que “a fé de
Cristo Nosso Senhor era a que permanecia e havia de permanecer para todo sempre”463. Luís
Álvares, suspirando, replicou, afirmando que “há que a lei escrita não se pode borrar, que foi
dada por Moisés no Monte Sinai”, sendo, por sua vez, prontamente repreendido por Manoel
Rodrigues Sanches, pois eles não sabiam se Melchior de Bragança realmente “era dos seus”,
por isso “não falasse tão claro”464. Este foi, certamente, um discurso oculto que veio à tona
duas vezes: primeiro, durante o jantar em que o caso ocorreu; depois, quando informado na
Mesa do visitador.
Poder-se-ia ponderar, com certa razão, que as acusações realizadas por Melchior
de Bragança foram motivadas por um ressentimento pessoal devido à hostilidade que lhe foi
direcionada pelos cristãos-novos que ele denunciou ao visitador. No entanto, ele não foi o
único acusador que compareceu à Mesa inquisitorial para relatar situações envolvendo os
frequentadores da esnoga que tinha lugar na casa de Gonçalo Nunes. Há registros de outras
acusações contra os cristãos-novos referidos nos depoimentos de Melchior de Bragança, que
reforçaram, por sua vez, as suspeitas de judaísmo publicamente conhecidas em Salvador.
Paulo Affonso, cristão-velho, de quarenta e sete anos, natural da Bahia, denunciou
em setembro de 1618 que, três anos antes, o meirinho Diogo de Albuquerque foi à igreja de
São Bento, em Salvador, prender um fugitivo da justiça que ali estava presente e “andara por
cima do Altar-mor que é onde está o Santissimo Sacramento, com chapeu na cabeça e espada
nua com grandíssimo desacato e irreverência”, fato este que causou “grande escândalo em
toda pessoa que sabia do caso”. Além disso, segundo o denunciante, o meirinho era
“infamado nesta terra de judeu, e de conversar nesta terra com outros semelhantes, o que é
notório nela”465. Álvaro Sanches denunciou, em 12 de setembro de 1618, uma situação que
ocorrera cerca de um mês antes, quando observou durante a missa que “quando toda a gente

462
Ibid., p. 129.
463
Ibid., loc. cit
464
Ibid., loc. cit
465
Denunciações da Bahia (1618), p. 113.
157

estava de joelhos e batia nos peitos”, Domingos Álvares Serpa estava “sentado em um banco
logo a entrada da porta principal à mão esquerda encostado a parede com uma perna sobre
outra, dando e bolindo com a perna que tinha sobre a outra, sem bater nos peitos”466. Já aos
irmãos Pascoal e Dinis Bravo eram somadas outras acusações, como, por exemplo, ter em sua
posse a “toura dos judeus” e defender abertamente que os cristãos-novos queimados pelo
Santo Ofício morriam como mártires.467
Uma dessas denúncias chama atenção não apenas por sugerir a presença do
judaísmo oculto, mas também por apontar rastros de uma rede de comunicação secreta dos
cristãos-novos da capitania da Bahia com indivíduos presentes em espaços com maior
liberdade e tolerância religiosa, como a região de Flandres e algumas regiões da Península
itálica. Este foi o caso narrado por Gaspar Affonso que, na denúncia realizada em setembro de
1618, disse ao visitador que, sete anos antes, estava no engenho de Pero Garcia “fazendo-lhe
uma contas de sua fazenda” quando encontrou em seu escritório uma carta remetida da cidade
de Piza, na Itália, pelo cristão-novo Diogo Fernandes e endereçada a seu irmão Henrique
Fernandes, “já defunto também da nação”468. Segundo o denunciante, Diogo Fernandes pedia
ao seu irmão “que se fosse para a dita cidade fazer o que Deus mandava porque sem fazer a
dita viagem se não podia salvar”469. Por fim, requisitava que “quando lhe escrevesse, fosse
por via de Diniz Bravo, ou de Luiz Vaz de Paiva ou de Francisco de Paiva seu irmão
mercador e morador em Lisboa e encomendava na carta que tanto que fosse lida a
queimasse”.470
A essa altura pode-se observar que as denúncias sobre a existência das esnogas
coloniais informam não apenas sobre a existência dessas reuniões de caráter oculto; pelo
contrário, também apresentam outros tipos de discursos ocultos que reforçavam as
desconfianças sobre a existência de células judaizantes nas capitanias inspecionadas durante
as visitações dos séculos XVI e XVII. No entanto, no conjunto de táticas que compunham o
criptojudaísmo, não há dúvidas de que as esnogas representaram uma das práticas mais
basilares para sua existência e manutenção.
O criptojudaísmo colonial no Brasil constituiu-se, nesse sentido, como um tipo de
estratégia oculta de enfretamento à desigual relação de forças entre as instituições régias,

466
Ibid., p. 123.
467
Ibid., p. 194; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se
fizeram na visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl.
297 [v].
468
Denunciações da Bahia (1618), p. 186.
469
Ibid., loc. cit.
470
Ibid., loc. cit.
158

eclesiásticas e judiciais portuguesas, especialmente o Tribunal do Santo Ofício, e a


comunidade cristã-nova estigmatizada socialmente. Como vimos, esta estratégia foi
acompanhada de diversas táticas forjadas no cotidiano – sobretudo no âmbito do espaço
doméstico, onde destaca-se a atuação feminina –, como fechar-se em casa em dias de reuniões
sabáticas para tentar atenuar a observação alheia, a realização de reuniões clandestinas
conhecidas como esnogas, além da utilização de códigos próprios que construíam uma
gramática de comunicação oculta. Esses gestos, enunciados, práticas e performances sociais
forjaram, por excelência, discursos ocultos, dado o caráter propriamente ‘cripto’ do judaísmo
colonial.
Diante da autoridade inquisitorial, ao ir se confessar ou delatar outras pessoas, os
cristãos-novos suspeitos de judaizar também adotaram posturas muitas vezes improvisadas
para abrandar ou justificar as acusações que recebiam, acusando pessoas do círculo familiar
para demonstrar colaboração com o Santo Ofício, mas, ao mesmo tempo, lançando mão de
uma série de argumentos retóricos que visavam projetar algum tipo de autopreservação
individual e/ou coletiva, tendo, não raro, posturas flutuantes e relativamente dissimuladas,
assumindo a culpa dos seus desvios, mas, no entanto, alegando que não havia intenção
judaizante na realização dos hábitos suspeitos.
É certo que o estabelecimento do Santo Ofício português teve como uma de suas
principais motivações a perseguição aos cristãos-novos. Nesse sentido, pode-se dizer que o
criptojudaísmo constituiu-se como um dos mais elementares – e talvez o primeiro – tipos de
resistência às formas de controle social e religioso, perpetradas pelo Santo Ofício, com
destaque para a chamada ‘pedagogia do medo’. No entanto, há, nas fontes documentais do
Santo Ofício no Brasil, uma variedade de situações que permitem visualizar uma paisagem
social que, apesar de muitas vezes se relacionar com indivíduos cristãos-novos e com o
estereótipo judaizante que fomentava a discriminação social que lhes era direcionada, vai
além do universo que envolve o criptojudaísmo, sendo, portanto, demonstrativas de outras
estratégias e táticas cotidianas construídas nessa estreita relação entre medo e resistência, que
podem ser visualizadas nos registros das visitações do Santo Ofício ao Brasil colonial.
159

4. ENTRE MEDOS E RESISTÊNCIAS: O SANTO OFÍCIO NO BRASIL


COLONIAL

As relações de força entre a Inquisição e a sociedade colonial no Brasil


constituíram-se com base em diferentes comportamentos que denotavam os conflitos e as
tensões presentes no tecido social. As volumosas apresentações voluntárias, no início das
visitações inquisitoriais, apesar de demonstrarem a relativa colaboração da população com o
funcionamento do Santo Ofício, não significavam necessariamente a subserviência e a
paralisia de indivíduos com consciências temerosas diante da maquinaria do tribunal do medo.
Ao contrário, o espectro de terror e a sensação de insegurança provocada pelas visitações
inquisitoriais impulsionaram a construção de diferentes arranjos individuais e coletivos que
culminaram num leque de diferentes possibilidades para preservação da vida física e
econômica, bem como da honra e da memória social dos acusados e processados pela
Inquisição.
O domínio e a racionalização do medo provocado pelo Santo Ofício engendraram
formas de resistência que iam desde estratégias e táticas, construídas na esfera do cotidiano
por indivíduos comuns oriundos das mais diversas camadas e grupos sociais, chegando
mesmo a alcançar debates políticos na cena pública, cujo questionamento acerca dos excessos
dos métodos inquisitoriais influenciou o lento e gradual abandono dos mecanismos que
formavam a ‘pedagogia do medo’ historicamente utilizada pelo Santo Ofício português. A
experiência histórica da atuação do Santo Ofício no Brasil colonial foi, assim, marcada por
uma linha tênue entre o controle religioso e o controle das consciências por meio da difusão
do medo e a emergência de variadas formas de resistências sociais.
160

4.1. Nos rastros dos medos, nas trilhas das resistências

O sentimento de insegurança causado pela possibilidade de ser preso e processado


pelo Santo Ofício foi um dos fatores preponderantes para que muitos indivíduos tentassem de
variadas maneiras colocarem-se à margem das inspeções inquisitoriais. O medo de ser preso
originou a adoção de comportamentos de autopreservação que, em grande medida, tendiam a
dificultar o trabalho dos inquisidores, como é o caso dos diversos tipos de deslocamentos
espaciais cometidos por indivíduos e grupos familiares que fugiram para outros espaços a fim
de distanciaram-se de possíveis diligências empreendidas pelo Santo Ofício.
Com efeito, o Regimento do Santo Ofício de 1613 registrava que, caso pessoas
culpadas nos crimes de heresia e apostasia se encontrassem ausentes, os inquisidores
deveriam fazer o Sumário de sua ausência e mandar publicar um Édito contra os culpados
“para que venham alegar e dizer de da Justiça e mostrar sua inocência dentro no termo que lhe
for assinado”471 [sic]. O Santo Ofício, como discutimos anteriormente, contava com um denso
conjunto instrumental de propaganda e controle, além da colaboração da comunidade local
para dar notícias sobre os suspeitos. A publicação do édito na porta das moradias dos réus
ausentes servia, portanto, para informar e animar a comunidade para a delação, ou, pelo
menos, estimular o fornecimento de informações que pudessem levar ao paradeiro do ausente.

E no edito se declarará que dentro no dito termo venham aparecer perante eles, no
juízo da Santa Inquisição, pessoalmente, a pedir perdão de suas culpas, e responder
sobre certos artigos tocantes à Fé e em certo delito de heresia, e sob pena de
excomunhão, com suas admoestações em forma. Os quais editos e citação se
publicarão às portas da casa da morada onde sonham a morar e habitar os tais
ausentes, notificando-se as pessoas de suas casas, se aí estiverem, e os vizinhos mais
conjuntos. E depois o tal dito será lido e publicado em um domingo ou dia santo de
guarda na igreja principal do tal lugar onde eram assim vizinhos e moravam e tal
edito se lerá à missa do dia, acabada a pregação ou estação, em alta e inteligível voz,
de modo que possa ser bem entendido dos circunstantes e depois se fixará na porta
principal da dita Igreja.472

Casos de pessoas que se ausentaram das localidades inspecionadas pelos


visitadores inquisitoriais, bem como casos de indivíduos que, por terem parentes condenados
pela Inquisição, se organizaram e empreenderam fugas devido ao medo de também serem
presos, ou situações em que outras pessoas ajudaram indivíduos suspeitos a fugir, não são tão
raros de localizar nos documentos da Inquisição portuguesa. Com efeito, a documentação
produzida pelas visitações do Santo Ofício português ao Brasil colonial registra trajetórias

471
Regimento de 1613, Título IV, p. 635.
472
Ibid., loc. cit.
161

familiares e individuais de deslocamentos espaciais que explicitam o trânsito de pessoas entre


Portugal, Espanha e suas possessões americanas, Brasil e os territórios coloniais portugueses
na África, característicos do processo de mundialização do inicio dos ‘tempos modernos’. As
motivações para esses deslocamentos são variadas. No entanto, muitas delas foram causadas
pela emergência de um comportamento de autopreservação diante do perigo de se ver
envolvido na engrenagem repressiva inquisitorial.
O cristão-novo Henriques Gomes, por exemplo, fugiu da Inquisição espanhola
junto com sua família e foi refugiar-se na cidade do Porto. Esta história atravessou o Atlântico
e teve sua continuidade na colônia. Foi Maria Salvadora, uma antiga conhecida, que, em 14 de
janeiro de 1595, na capitania de Itamaracá, compareceu à Mesa para denunciá-lo, informando
ao visitador Furtado de Mendonça que havia cerca de vinte anos que, na cidade do Porto, ela
tivera amizade “e conversação em casa de Henrique Gomes e de sua mulher Isabel Nunes,
mercadores ricos cristãos-novos”473 e com os seus filhos Antônia Enriques e Duarte Dias
Enriques, que à época da denúncia estava em Olinda. Foi Antônia que certa vez contou para a
denunciante a trajetória de sua família: tinham eles vindo da região do Golfo Ártabro, na
Galícia, Espanha, para a cidade do Porto, localizada cerca de 300 km de distância do norte do
território espanhol. A motivação para a migração tinha sido a Inquisição, pois:

sendo moradores em Galícia, fugira da Santa Inquisição para o Golfo o dito seu pai
Henrique Gomes e levara consigo a dita sua mãe Isabel Nunes e a ela e a todos os
mais seus irmãos e que todos foram a cavalo e que depois de irem o Golfo se
tornarm para a dita cidade do Porto onde então estavam.474

Muitos relatos de fugas apresentam essa linha tênue entre o medo do Santo Ofício
e os estratagemas de autoproteção. Em uma denúncia de agosto de 1591, realizada na Bahia
pelo cristão-novo João Batista, não se pode deixar de observar a paradoxal circunstância de
seu comparecimento à Mesa do Santo Ofício, posto que, ao mesmo tempo em que acusava
Gregório Nunes por comportamentos suspeitos na fé, fornecia informações de que ele próprio
tivera um passado de apóstata. Francisco Roiz Montemor e Phelipa Cabros, seus pais, são
identificados na denúncia como “cristãos-novos judeus”, em um explicito apontamento de
uma reconversão ao judaísmo e, nesse sentido, do abandono voluntário e consciente da fé
cristã católica. Assim sendo, teria João Batista vivido junto com seus pais em uma judiaria na

473
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 405.
474
Ibid., loc. cit.
162

Turquia, “de onde ele denunciante, sendo judeu, fugiu para Portugal e foi penitenciado pelos
Inquisidores na Santa Inquisição em Lisboa”.475
O curioso desta fuga é o seu destino, que parece ir na contramão de tantos outros
casos. Quais motivos alguém, com o passado de apostasia na fé cristã, teria para fugir de um
lugar, onde se poderia praticar sua liberdade religiosa, justamente para o centro de ação de
uma instituição repressora como era o Santo Ofício? Tratar-se-ia de um sincero
arrependimento individual e do anseio de retornar ao cristianismo? Seu passado judaico teria
sido escolha própria, ou foi resultado do retorno de seus pais ao judaísmo? Estas são questões
cujas informações contidas no relato de sua denúncia não nos permitem aprofundar. No
entanto, sua presença diante da autoridade inquisitorial na Bahia é um exemplo de um tipo de
colaboração que, sub-repticiamente, visava a sua proteção individual ao tentar esclarecer sua
trajetória para o visitador diante da possibilidade de ser denunciado por outrem.
João Batista contou ao visitador que, ao viajar da ilha da Madeira para a capitania
da Bahia na mesma nau que Gregório Nunes, presenciara vários comportamentos
escandalosos da parte de Gregório: este virava o traseiro para uma imagem de Cristo e lhe
dava “muitos traques com o traseiro”476; no momento dos sermões e ladainhas, afastava-se e
ia conversar com outras pessoas; “nunca tomou contas, nem livro na mão, nem rezava, nem
dizia a dita ladainha”477; algumas vezes declamava as trovas de Bandarra478 e, principalmente,
ao conversar com João Batista, costumava atiçá-lo, dizendo-lhe que seus parentes, moradores
em Lisboa, eram judeus, e dizia isso a fim de testar sua reação. O medo de João Batista era,
sobretudo, o medo da sombra de seu passado. Sua denúncia foi uma tentativa de
demonstração de que sua reconciliação com a fé cristã católica foi efetiva, utilizando, para
tanto, a acusação contra Gregório Nunes como estratégia de autodefesa.
O Brasil do primeiro século de colonização tornou-se um espaço atrativo tanto
para aqueles que estivessem dispostos a fazer vida em meio às dificuldades de uma região de
fronteira, sobretudo os cristãos-novos interessados na economia açucareira que despontava
nas Capitanias do Norte, principalmente na região do Recôncavo da Bahia e na Capitania de

475
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 316.
476
Ibid., p. 317.
477
Ibid., loc. cit.
478
Gonçalo Anes Bandarra (1500-1556), sapateiro, natural de Trancoso, Portugal. Foi o autor de escritos de cariz
messiânico, cujo teor profetizava o regresso do rei Dom Sebastião, sumido na batalha de Alcácer-Quibir (1578).
Foi perseguido pela Inquisição na década de 1540. As Trovas de Bandarra inspiraram e fomentaram fenômenos
relacionados ao sebastianismo e ao milenarismo em Portugal nos séculos XVI e XVII. Cf. MAGALHÃES,
Leandro Henrique. As Trovas de Gonçalo Anes Bandarra, Sapateiro de Trancoso. Temas & Matizes, [S. l.], v. 3,
n. 6, 2000, p. 65–70. Sobre o sebastianismo em Portugal, Cf. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: A
construção do sebastianismo em Portugal – Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
163

Pernambuco, quanto para aqueles que estivessem às voltas com a Inquisição. Nesse sentido,
pode-se dizer que, neste contexto, o território do Brasil apresentou-se como um refúgio, ou
seja, como um espaço de relativa liberdade, tendo em vista que se configurava
consideravelmente despoliciado em questões de fé e distante dos inquéritos inquisitoriais.
Nos livros da primeira visitação do Santo Ofício, há diferentes registros de fugas
realizadas para o Brasil. O conhecido casal de cristãos-novos da vila de Olinda, Branca Dias e
Diogo Fernandes, foram acusados juntamente com suas filhas – mesmo ambos já falecidos na
época da visitação – de serem judaizantes por diversas pessoas. Beatriz Luís, uma antiga
vizinha de Branca Dias, dissera ao visitador, em novembro de 1593, que era de conhecimento
público que a cristã-nova “viera degradada para este Brasil pela Santa Inquisição de Lisboa e
que ele [Diogo Fernandes] viera fugido”479. Gaspar Pacheco, um mercador, cristão-novo, que
morou em Salvador e que, à época de sua denúncia ao Santo Ofício, em agosto de 1591,
morava em Itaparica, “veio [da ilha] de São Tomé haverá quinze ou dezesseis anos”, e de lá
vinha “fugido por causa do Santo Ofício”480. Uma mulher, cristã-nova, identificada apenas
como “mãe de Pero Teixeira”481, havia cerca de vinte anos, ou seja, no início da década de
1570, que viera da cidade do Porto fugida do Santo Ofício, e que “ora estão nesta terra netos e
sobrinhos dela e diziam que em Portugal queimaram uma irmã dela”482. Já Maria Loba, uma
cristã-velha, de cinquenta anos de idade, casada com Diogo Dias da Costa e moradora em
Salvador, apresentou-se ao visitador para denunciar três irmãs cristãs-novas Maria Lopes,
Catarina Mendes e Lianor da Rosa. Todas elas, segundo esta denunciante, mantiveram
juntamente com sua mãe um crucifixo próximo da latrina onde faziam suas necessidades
fisiológicas em uma antiga casa que moraram, sendo conhecidas por este caso e pelo fato de
que quando “vieram a esta terra, vinham fugidas da Santa Inquisição e nela ficava preso em
Lisboa o pai delas, marido da velha, e depois disseram que fora lá queimado”.483
Outro caso de fuga foi o de Pedro Homem, um cristão-novo, de cerca de vinte e
seis anos de idade. Ele já tinha vindo de Portugal para o Brasil por volta do ano de 1582,
então retornou para Portugal e voltou mais uma vez ao Brasil no ano de 1590. Na Bahia,
Pedro residia na casa de parentes, seus tios Tristão Ribeiro e Leonel Mendes, e tinha um
irmão chamado Daniel Mendes, “mercador desta cidade ao qual ele veio dirigido”484. João
Alvares Pereira, seu primeiro delator, compareceu à Mesa chefiada por Heitor Furtado de

479
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 33.
480
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 321 [grifo nosso].
481
Ibid., 322.
482
Ibid., loc. cit.
483
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 358.
484
Ibid., p. 509.
164

Mendonça no dia 31 de julho de 1591 e relatou que é “fama pública que o dito Pedro Homem
veio fugido de Portugal da Santa Inquisição”485. Logo mais à frente dessa denúncia, entende-
se o principal fato que motivou sua fuga, pois é “fama pública nesta terra que, em Lisboa, na
Santa Inquisição, está presa uma sua irmã casada com um mercador que chamam Gonçalo
Mendes Pinto e que por isto fugiu ele para cá”.486
Esta não é a única denúncia contra Pedro Homem. Alguns dias depois, em 13 de
agosto, há outra referência sobre a trajetória deste indivíduo. João Batista, um mercador,
cristão-novo, foi ao encontro de Heitor Furtado e afirmou que ouviu dizer que um mancebo,
parente de Leonel Mendes, tio de Pedro Homem, “veio fugido [da cidade] do Porto com medo
da Inquisição por que lhe prenderam uma irmã”487. Em 21 de agosto, outro mercador,
chamado Pero Dias, denunciou que:

ouvio dizer em fama pública por esta cidade, que em casa de Tristão Ribeiro,
morador em Pasé, estava um seu sobrinho cristão-novo por nome de Pedro Homem
e que vem fugido [da cidade] do Porto da Santa Inquisição e que prenderam lá, pela
Santa Inquisição, uma sua irmã e que veio fugido por via de Viana e isto ouviu em
fama geralmente.488

No dia seguinte, em 22 de agosto, foi a vez de Sebastião Barreto delatá-lo. Ao que


parece, este era um assunto que circulava na cidade de Salvador, tendo em vista que este
denunciante também afirmou que soube publicamente que “Pedro Homem vem fugido da
Santa Inquisição de Portugal e que naquele comenos em que ele dela fugiu, lhe prenderam
uma sua irmã pela Santa Inquisição”.489
No total, o livro da visitação de 1591 na Bahia contém seis denúncias contra
Pedro Homem, e todas elas são bastante similares em seu conteúdo. A denúncia de João
Garcez, realizada no dia 25 de agosto, segue a mesma narrativa das anteriores, dizendo ele
que soube desse caso há cerca de dois anos e repete que, quando prenderam a irmã de Pedro
Homem na cidade do Porto, “ele fugira para Viana e de Viana se embarcara para esta
Bahia”490. A última denúncia que dá notícias sobre a fuga de Pedro Homem para o Brasil foi
realizada por Guilherme Martins Pompejo. No entanto, neste relato o denunciante afirma que,
além da irmã, a mãe de Pedro também havia sido presa pelo Santo Ofício.

485
Ibid., p. 256.
486
Ibid., p. 257.
487
Ibid., p. 318.
488
Ibid., p. 386 [grifo nosso].
489
Ibid., p. 416.
490
Ibid., p. 467 [grifo nosso].
165

O interessante nesse conjunto de seis denúncias, realizadas entre julho e setembro


de 1591, é que elas são representativas não apenas do medo social engendrado pela
Inquisição, mas também dos dramas vividos por famílias que viviam ‘à sombra do medo’.
Quando alguém era preso, sobretudo por suspeita de judaísmo, não era raro que, no decorrer
do processo, alguns indivíduos, sob a pressão inquisitorial, delatassem parentes e amigos
próximos. Nestas circunstâncias é possível compreender a estratégia de fuga do acusado, uma
vez que estava diante da possibilidade de uma prisão iminente. No entanto, Pedro Homem não
foi o único a fugir da Inquisição.
Em Pernambuco, a primeira denúncia realizada depois de iniciada a visitação, em
outubro de 1593, foi contra Francisco Mendes Leão. Na delação, feita por Jorge Fernandes,
consta que

haverá ora quinze anos pouco mais ou menos, estando ele [Jorge Fernandes] na vila
da Vidigueira, em Portugal, ouviu dizer publicamente em publica fama geralmente a
muitos assim honrados, como do povo da dita vila, que um Francisco Mendes Leão,
cristão-novo, o qual ele testemunha já antes tinha conhecido na mesma vila, era
desaparecido e fugido dela pela Santa Inquisição, e que no dito tempo pouco mais
ou menos, houve uma prisão de judeus de Beja, quatro legoas da Vidigueira, e que
com medo de também ser preso pela Santa Inquisição fugira o dito Francisco
Mendes, e também diziam que juntamente fugira com ele outro seu cunhado, que
eram casados com duas irmãs, o qual cunhado ele testemunha não conhece, nem
sabe o nome, mas no ditto tempo seria de idade de vinte e cinco anos, pouco mais ou
menos, barbirruivo, e ora dizem estar na Bahia, e quanto é ao dito Francisco Mendes
Leão, aqui está ora morador nesta vila [de Olinda].491

Francisco Mendes Leão era casado com Beatriz Mendes, filha de Fernão Lopes e
Branca Rodrigues492. A família de Beatriz já tinha um histórico de parentes penitenciados
pelo Santo Oficio: Fernão Lopes, seu pai, e seu tio, o cirurgião-mestre Roque, foram ambos
acusados em Évora de judaizarem e condenados à pena capital na fogueira. No processo de
mestre Roque consta que ele foi preso em 1560 e que cometeu suicídio no cárcere do Santo
Ofício. Sua sentença foi a excomunhão maior, seus ossos foram desenterrados e entregues à
justiça secular para serem queimados493. Foi, portanto, em meio a uma tragédia familiar que
Branca Rodrigues, sogra de Francisco Mendes Leão, fugiu junto com sua irmã Violante, o
esposo desta e os filhos de ambas para a Bahia.494
Com efeito, temos neste caso trajetórias de fugas distintas. A primeira ocorreu na
década de 1560 motivada pela prisão de Fernão Lopes e mestre Roque; a segunda foi

491
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 12. [grifo nosso]
492
PINHEIRO, Cândido; LIMA, Koren de. Inquisição, o mar e a seca. O Povo, Fortaleza, 23 mai. 2010.
Especial. Inquisição – no rastro dos amaldiçoados, p. 10.
493
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, processo nº 10161.
494
PINHEIRO; LIMA, loc.cit.
166

realizada por Francisco Mendes Leão no final da década de 1570. Ambos os casos se
relacionam, não apenas pelas motivações em comum para o empreendimento da fuga para o
Brasil, ou seja, a estratégia de estar o mais longe possível dos espaços de atuação inquisitorial
mais intensificada, mas também pelos laços familiares aí envolvidos. Neste caso, o enlace
matrimonial de Francisco Mendes Leão com Beatriz Mendes, que tinha fugido de Portugal
alguns anos antes com sua família para a Bahia.
As circunstâncias do casamento de Francisco e Beatriz Mendes não são
explicadas nos documentos inquisitoriais. A denúncia contra Francisco Mendes aponta apenas
que ele já era casado à época de sua fuga nos anos 1570, pois deslocara-se junto com seu
cunhado, e ambos eram casados, respectivamente, com duas irmãs. Seria uma delas Beatriz
Mendes? Em caso afirmativo, estariam eles vivendo a um oceano de distância durante mais de
uma década? Ou seria o casamento com Beatriz Mendes seu segundo matrimônio já realizado
no Brasil? Como se trata, neste caso, de uma denúncia e não efetivamente de um processo
instruído pelas autoridades inquisitoriais, as informações que ajudariam a esclarecer essas
questões são limitadas. Seja como for, o fato é que Francisco Mendes Leão e sua esposa
Beatriz Mendes estavam devidamente estabelecidos na vila de Olinda à época da visitação em
1593.
Uma vez em Pernambuco, Francisco e Beatriz Mendes tiveram uma filha
chamada Isabel Mendes, que se casou com Pero Cardigo, um cristão-velho processado pelo
Santo Ofício por ter proferido blasfêmias495, e com ele teve duas filhas: Felipa e Tomázia
Cardigo. A primeira se casou com Frutuoso Barbosa, o primeiro capitão-mor e governador da
Paraíba nomeado pelo rei; já sua irmã foi esposa de Pero Coelho da Costa, personagem que,
em 1603, participou da conquista da Ibiapaba, nos sertões do Ceará.496
O processo contra Pero Cardigo foi instruído devido à certa blasfêmia que ele
teria proferido ao discutir com Frutuoso Barbosa. Em determinada ocasião, Pero Cardigo
emprestara um cavalo de sua propriedade ao seu genro, que devolveu o animal sem a cela, o
que gerou um conflito entre ambos que ficaram mutuamente se acusando do sumiço do
acessório. Foi esta querela que provocou Pero Cardigo a dizer que “descria de Deus” se não
tivesse ele entregado a cela aos cuidados de seu genro. Ao se apresentar ao inquisidor em
junho de 1594, Pero Cardigo alegou que não se lembrava de ter proferido a referida blasfêmia,
que se por acaso tinha dito isso, teria sido apenas uma única vez e pelo fato de estar

495
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12967.
496
Cf. PINHEIRO, Cândido; LIMA, Koren de. Inquisição, o mar e a seca. O Povo, Fortaleza, 23 mai. 2010.
Especial. Inquisição – no rastro dos amaldiçoados.
167

aborrecido com a briga. O réu então pediu perdão “de joelhos e com lágrimas e mostras de
arrependimento”497, insistindo que nunca se “confessou disso por esquecimento”498. Pero
Cardigo foi repreendido na Mesa, em julho de 1594, sendo obrigado a pagar os custos do
processo e cem cruzados para as despesas do Santo Ofício. Além dessas penas pecuniárias,
ele foi encaminhado para ser instruído na fé, no Mosteiro de São Bento de Olinda, durante
quinze dias, recebendo penitências espirituais e comprometendo-se a realizar confissão nas
principais festas litúrgicas do calendário católico499.
Com efeito, a documentação inquisitorial é caracteristicamente marcada pelos
diversos fios que tecem conexões entre as mais diferentes trajetórias individuais ou coletivas.
Os casos apontados são demonstrativos da vida errante que muitos dos cristãos-novos
portugueses levaram devido às perseguições da Inquisição e os medos daí decorrentes. Em um
contexto de discriminação social para com os convertidos, e por isso mesmo de desconfianças
constantes, o deslocamento de famílias inteiras de cristãos-novos é representativo do alcance
do medo social que o Santo Ofício causava e da sensação de insegurança provocada pela
atividade deste tribunal. No entanto, esses deslocamentos espaciais também podem ser
considerados uma estratégia de sobrevivência, objetivando a migração para lugares em que
pudessem viver sob menos pressão e perigo. Entre os elementos motivadores para estas fugas,
pode-se observar a recorrência de parentes presos pela Inquisição, bem como a ocorrência de
ações inquisitoriais em seus respectivos lugares de moradia.
O antijudaísmo ibérico da época moderna, representado, principalmente, pelas
perseguições inquisitoriais, foi acompanhado, nesse sentido, de constantes deslocamentos de
famílias de judeus e de cristãos-novos para regiões onde pudessem se ver distantes da
discriminação social de que eram vítimas e dos tentáculos da ação inquisitorial. Assim sendo,
pode-se dizer que esses deslocamentos no espaço foram, nesta perspectiva, um tipo de
comportamento adotado diante do fenômeno da intolerância religiosa do início da época
moderna, na Península Ibérica. As fugas de judeus e de cristãos-novos que se iniciaram a
partir dos decretos de expulsão da Espanha (1492) e de Portugal (1496) são exemplos das
linhas de força entre o controle social e religioso operado pela Coroa e pela Igreja e o desejo
de liberdade e autopreservação, individual ou coletiva, dos grupos socialmente
marginalizados. Foram estas motivações que possibilitaram, por exemplo, as fugas de
cristãos-novos para as comunidades sefarditas da região do Mar Mediterrâneo no século XVI,

497
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12967, fl. 15.
498
Ibid., loc. cit.
499
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12967, fl. 25-26.
168

bem como a emergência de comunidades judaicas nos Países Baixos no decorrer do século
seguinte, além da vivência em um espaço menos policiado em questões de fé, como o era o
caso do Brasil quinhentista.
Que o antijudaísmo foi o móvel principal da Inquisição de Portugal e serviu de
tônica para as perseguições sustentadas por uma hostil discriminação social, a qual os judeus
convertidos e seus descendentes estiveram sujeitos, é algo já cristalizado quando se trata do
estabelecimento das Inquisições ibéricas modernas. No entanto, é sempre importante lembrar
que a condição social de ser ‘cristão-novo’ não foi um sinônimo de ser ‘judaizante’, ou seja,
de continuar a praticar ocultamente o judaísmo, como muitas vezes os inquisidores e parcela
significativa da população acreditavam. Não foram poucos os cristãos-novos que efetivamente
abraçaram a fé católica, tornando-se exímios cristãos católicos e educando sua prole nesta fé.
Isto, no entanto, não os livrou de serem taxados como pessoas de ‘sangue impuro’ e de
sofrerem o preconceito, as desconfianças sobre sua fé e as hostilidades que lhes eram
comumente dirigidas.
O documento intitulado “Lista de vários cristãos-novos que fugiram de Portugal
por medo da Inquisição e viveram fora dele católicos”500 é um exemplo considerável para
perceber como a discriminação social contra os cristãos-novos estendia-se a indivíduos que
demonstravam abraçar o catolicismo com afinco e que, não obstante seu zelo religioso,
fugiram em decorrência da insegurança provocada pelas perseguições do Santo Ofício. O
documento enumera o destino de alguns destes ‘homens divididos’ que eram considerados
cristãos pelos judeus e judeus pelos cristãos.501
As pessoas listadas fugiram de Portugal para a Itália e “outras partes da
cristandade”. Muitas pertenciam ao mesmo grupo familiar, como é o caso de certo Ruy Lopes
Nunes, natural de Abrantes e que foi queimado sob a forma de efígie em Lisboa; de seu irmão
frei Antônio, que se tornou religioso do hábito de São Paulo, bem como do seu filho Gracia
Rodrigues e duas netas suas, filhas deste último, que foram parar no convento de São
Bernardo dos descalços na cidade de Pisa502.
Outros indivíduos listados no documento também professaram uma vida exemplar
e religiosa, ingressando, inclusive, em ordens regulares. Este foi o caso de alguns indivíduos,
como Manuel Mendes da Cruz, que mudou de nome para frei Salvador, ingressante no

500
ANTT, Armário Jesuítico e Cartório dos Jesuítas, Lista de vários cristãos-novos que fugiram de Portugal por
medo da Inquisição e viveram fora dele católicos.
501
Cf. NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1972.
502
ANTT, Armário Jesuítico e Cartório dos Jesuítas, Lista de vários cristãos-novos que fugiram de Portugal por
medo da Inquisição e viveram fora dele católicos, fl. 2.
169

mosteiro do hábito de São Paulo, na Itália; Simão da Silva, carmelita descalço em Roma,
conhecido como frei Simão de São José; Antônio de Santa Maria e Joseph Mendes da Cruz,
ambos também carmelitas. Alguns tiveram, à semelhança de outros casos de conversos,
parentes que foram presos pela Inquisição, como é o caso de João Thomas e Antônio Pereira,
que viviam em Roma e cuja irmã foi presa em Évora. Já Manuel Mendes, fugiu de Portugal
com medo da Inquisição e se tornou “pregador em Holanda contra o judaísmo e tem
convertido alguns judeus” para o catolicismo.503
Como podemos perceber nesses casos, a motivação para o empreendimento
dessas fugas esteve relacionada a dois principais fatores: existência de parentes que se
tornaram réus do Santo Ofício e a possibilidade, nem tão remota, de prisão dos indivíduos
fugitivos. Isto não era por acaso. Os interrogatórios dos prisioneiros julgados no decorrer das
visitações eram feitos em três sessões, sendo uma delas a sessão de genealogia. Nesta, os
presos deveriam declarar como se chamavam, sua naturalidade, idade e ofício, se foram
casados (e, em caso de afirmativa, quantas vezes contraíram matrimônio), o nome de seu
cônjuge, de seus filhos, pais, avós paternos e maternos, se tinham ancestralidade judaica ou
moura, se tinham algum parente antes processado pelo Santo Ofício, entre uma série de outras
questões que serviam para esquadrinhar a vida e os costumes dos réus504.
Este procedimento, ao mesmo tempo em que fornecia aos inquisidores detalhes
sobre o acusado, construía também uma rede de possíveis suspeitos representados por amigos
e familiares próximos. Aqui não se pode deixar de observar a presença de um dos elementos,
apontados por Bennassar505, que constituiu a ‘pedagogia do medo’ empregada pelo Santo
Ofício, que se trata, neste caso, da mácula social de ser considerado herege ou de ter má fama
por ser parente de um. Acrescida à infâmia pública de ter um familiar processado pela
Inquisição, residia o perigo iminente de se ver envolvido pela engrenagem dos processos
inquisitoriais, ser delatado, processado, preso, penitenciado. As fugas adquirem, nesse
sentido, uma dupla forma: são representações do medo provocado pelo Santo Ofício, mas
também um tipo de comportamento que denota uma atitude de autoproteção, ou, dito de outro
modo, uma forma de resistência ao poder e controle inquisitoriais.

503
Ibid., fl. 3.
504
Regimento de 1613, Título IV, p. 629-630.
505
BENNASSAR, Bartolomé. L’Inquisition espagnole – XVª-XIXª siècles. Paris, Harchette, 1979;
BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición o la pedagogia del miedo. In. BENNASSAR, Bartolomé [et.al].
Inquicisión española: poder político y control social. Barcelona: Editorial Crítica, 1981; BENNASSAR,
Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su ‘pedagogia del miedo’.In. ALCALÁ, Angel.
(Org). Inquisición española e mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984, p. 174-182.
170

Nos livros da visitação quinhentista à Bahia, há relatos de cristãos-novos que


efetivamente se organizaram com o objetivo de fugir do Brasil ao terem notícias da instalação
da comitiva do Santo Ofício. Em agosto de 1591, Belchior Mendes de Azevedo estava em
Salvador e se apresentou ao visitador para relatar que, na capitania de Pernambuco, seu lugar
de moradia, há cerca de dois meses, ou seja, em junho daquele ano, havia chegado notícias em
Olinda de que o cristão-novo Thomas Nunes, que há pouco tempo tinha se ausentado de
Pernambuco, “fora queimado por judeu”506. Com esta notícia, os cristãos-novos Duarte Dias
Henriques, Diogo Vaz, Pantaleão Vaz, Gemmes Lopes e Manuel Nunes, todos eles
mercadores e moradores na vila de Olinda, “trouxeram dó pelo dito queimado, por serem seus
parentes e cunhados”507. Diante da notícia da execução de Thomas Nunes na fogueira, há na
denúncia de Belchior Mendes uma evidente indicação de que os parentes do réu planejavam
fugir devido a presença do visitador do Santo Ofício no Brasil.

E dizem em rumor público na dita vila, que o dito queimado deixou culpa dos
setenta judeus, e porque os sobreditos nomeados, tanto que se soube que esta
visitação da Santa Inquisição era entrada neste estado do Brasil, logo começaram a
não querer passar letras, presume-se que se aparelham para fugirem eles e outros
mais que há na dita capitania508.

Em outros casos são narrados episódios que ocorreram décadas antes da vinda do
Santo Ofício ao Brasil, mas que não deixam de ser exemplos de casos em que prevaleceram
estratagemas que culminaram em fugas da Inquisição. Maria da Costa, cristã-velha, moradora
nos arredores de Salvador, contou ao visitador, em agosto de 1591, que, há cerca de trinta e
cinco anos, seu marido, Antônio de Castro, dissera-lhe que Francisco Mendes, cristão-novo,
morador na capitania de São Vicente, “era judeu e vivia na lei de Moisés e guardava os
sábados e se lavava e vestia neles de camisa lavada e do melhor vestido que tinha”509 e,
segundo sua suspeita, possuía o “livro da lei dos judeus”510. Para além dos indícios – ou
estereótipos – que caracterizavam a conservação oculta do judaísmo, a delação de Maria da
Costa é interessante por conter um indicativo da resistência cristã-nova diante de um destino
supostamente já traçado, considerando-se que a mesma narrou que “viu que prenderam por
judeu o pai do dito Francisco Mendes e que estando preso, seus filhos, a saber, o dito

506
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 451.
507
Ibid., p. 451.
508
Ibid., p. 452 [grifo nosso].
509
Ibid., loc. cit.
510
Ibid., loc. cit.
171

Francisco Mendes e outro seu irmão, de noite quebraram a cadeia e o tiraram e o embarcaram
para Portugal”.511
Não há dúvidas de que as fugas serviram como alternativa para muitos indivíduos
não serem presos pelo Santo Ofício. No entanto, nem sempre a estratégia de fugir ocorreu
com o sucesso que era esperado. Margarida Pacheca e seu esposo Antônio da Fonseca
compareceram à Mesa do Santo Ofício na Bahia, respectivamente, nos dias 24 e 25 de agosto
de 1591, para denunciar o cristão-novo Luís Alvares, que tinha vindo de Angola para o Brasil.
Segundo Margarida Pacheca, foi Manoel Barreto, mancebo, cristão-velho e conterrâneo de
Luís Alvares, quem lhe contou que “ouvira sempre dizer de menino, em fama pública, que o
dito Luís Alvares fugira da dita terra indo para o prenderem pela Inquisição, e que
desaparecera dela e viera para estas partes”512. As informações sobre essa fuga são detalhadas
na segunda denúncia e explicam o temor do fugitivo, tendo em vista que o delator Antônio da
Fonseca afirmou que “o dito Luis Alves viera fugido para estas partes com medo da Santa
Inquisição, e que fora ter a Angola, e de Angola viera para esta terra”513. Não obstante os
esforços de Luís Alvares para permanecer em um espaço pouco policiado pelo Santo Ofício,
estas duas denúncias foram suficientes para o visitador Heitor Furtado instaurar um processo
contra o acusado.
De acordo com as informações do processo, Luís Alvares foi preso por mandado
do visitador no dia cinco de setembro de 1591, menos de um mês após a realização das
denúncias, sob a acusação de judaísmo514. No entanto, no interrogatório ocorrido seis dias
após sua prisão, ele se defendeu dizendo que “não sente em si culpa contra a fé de Cristo, e
que se ele esta culpado, [é] por algumas testestemunhas serão falsas"515, dando
demonstrações de que era um bom cristão, pois benzeu-se, persignou-se e demonstrou saber
as principais orações católicas – Pai Nosso, Salve Rainha, Ave-Maria e Credo –, bem como
os artigos da fé católica, os pecados mortais, os Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja e os
Sacramentos, apenas não sabendo responder quais eram os dons do Espirito Santo e “disse
que todos os dias ia ouvir missa e vive as pregações, se confessa três [ou] quatro vezes no

511
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 314.
512
Ibid., p. 430.
513
Ibid., p. 462.
514
Anita Novinsky (2009), confundiu este indivíduo com seu homônimo denunciado por judaísmo na visitação
de 1618 na Bahia, dando-nos a impressão que se trata do mesmo sujeito. No entanto, verificamos que além das
naturalidades serem diferentes – o primeiro (século XVI) era natural de Fronteira, comarca de Évora e o segundo
natural da cidade do Porto – as idades informadas também se chocam, pois, o primeiro contava com vinte e cinco
anos de idade em 1591 e o segundo com vinte e sete anos em 1618. Cf. ANTT, Tribunal do Santo Ofício,
Inquisição de Lisboa, processo nº 11073, fl. 1; Confissões da Bahia (1618-1620), p. 73; NOVINSKY, Anita.
Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX – 2. ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 133.
515
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 11073, fl. 11.
172

ano”516. Assim sendo, segundo o réu, todas as acusações não passariam de testemunhos
falsos.
Não se pode afirmar se o argumento de Luís Alvares foi convincente, mas o que
seguramente sabemos é que o seu processo foi descontinuado, pois no documento não consta
nenhum tipo de sentença, sendo o réu provavelmente posto em liberdade, pois, ao que parece,
ele já se preparava para partir do Brasil. Isto fica mais evidente levando-se em consideração a
preocupação do notário da visitação, Manoel Francisco, pois, no dia dois de setembro de
1591, apressava-se para concluir os autos do processo, dizendo que “há perigo na fartança,
porque havendo muitos anos que o dito réu anda por estas partes, agora, novamente nesta
conjunção, trata de se ir nesta armada que vai para o reino e está com sua fazenda
embarcada”517.
Apesar de ser o grupo social mais perseguido pela Inquisição, não foram apenas
os cristãos-novos que dela fugiram – seja de Portugal para o Brasil, no interior do próprio
território colonial, ou da colônia para outros espaços do império ultramarino português. Na
documentação das visitações inquisitoriais ao Brasil, há casos, por exemplo, de bígamos que
deliberadamente fugiram ao terem notícias da comitiva inquisitorial. O fabricante de tonéis
Diogo Gonçalves, por exemplo, foi denunciado na capitania de Itamaracá, em 1594, por se
casar na Bahia com Beatriz Correa, de alcunha a “Baldaia”, estando sua primeira esposa viva
em Portugal, e, de acordo com o denunciante Domingos Martins Santos, “antes de ele Senhor
Visitador vir da Bahia para Pernambuco, correu no dito Pernambuco fama, e ainda corre,
pública e frequentemente, que o dito tanoeiro fugiu da dita Bahia com medo do Santo Ofício,
para as Capitanias de baixo e delas passara para Angola”518.
Outro acusado de bigamia que fugiu para as capitanias do Sul do Brasil foi
Domingos Fernandes. Morador de Porto Seguro, no início da década de 1580, contraiu união
matrimonial com Maria Nunes e com ela permaneceu casado por cerca de quatro anos até
chegarem notícias do reino que o desmascarou; devido a isso, registra o documento, “o dito
Domingos Fernandes fugiu para as capitanias de baixo e dizem ainda ora andar neste
Brasil”519. Nesta mesma denúncia, mais um bígamo também foi delatado. Trata-se de Rui
Lopes, que se casou pela segunda vez com Maria de Aguiar, na Capitania do Espírito Santo.
Estando na Bahia, foi descoberto “que era casado em Portugal e lá tinha sua mulher e filhos

516
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 11073, fl. 12.
517
Ibid., fl. 9-10
518
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 365.
519
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 455.
173

vivos”520; posto em xeque “o dito Rui Lopes fugiu pera Portugal”521. À margem da denúncia
contra Rui Lopes, o notário registrou: “este se nomeou também por Rodrigo de Avellar, e o
seu nome era Rodrigo das Neves”522. Este era um indício que corroborava a acusação, pois
não era raro que os acusados mudassem de nomes a fim de encobrir o delito cometido.
Essa estratégia também foi adotada pelo marinheiro Antônio Monteiro, também
conhecido como Antônio Gonçalves, bígamo, que fugiu do Peru para Lisboa para não cumprir
a sentença de dez anos nas galés, a qual lhe foi determinada pela justiça castelhana. De
Lisboa, Antônio Monteiro veio para o Brasil. Não obstante sua condenação não ter ocorrido
no âmbito da justiça inquisitorial portuguesa, a documentação do Santo Ofício no Brasil
registra a narrativa sobre sua trajetória. Quem se apresentou à Mesa do visitador, em
novembro de 1593, em Olinda, foram Domingas Fernandes e Francisca Fernandes, duas
irmãs, naturais de Vila Nova, na região do Algarve português, que eram nada menos do que a
cunhada e a legítima esposa do acusado, respectivamente.
Em seu depoimento, Francisca Fernandes contou que há vinte e três anos era
casada com Antônio, que à época do matrimônio chamava-se Antônio Gonçalves, e que, após
cerca dez meses de casados, seu marido “a deixou e se foi as partes do Peru” 523. Somente
depois de passados sete anos, ou seja, em 1577, a esposa abandonada voltou a ter notícias de
seu cônjuge por meio de conhecidos seus que tinham ido ao Peru e que lá descobriram que
Antônio Monteiro casara-se de novo e “vendo-o assim casado e sabendo ficar ela viva em
Vila Nova, o denunciaram a justiça castelhana da Guiana”524. Esta acusação resultou na sua
prisão e na condenação para as galés e “sendo mandado para elas fugiu, e sem cumprir o
degredo foi ter a Lisboa”525. Foi então que reencontrou sua primeira esposa e com ela voltou a
viver maritalmente, justificando seu delito com o argumento de que teria casado de novo
porque “lhe disseram, em Peru, que sua mulher era morta”.526
Depois desse episódio, Antônio Monteiro veio para o Brasil, fixando-se em
Pernambuco e de lá “escreveu a ela denunciante que se viesse, como de feito veio, e vai ora
em cinco anos que aqui está com ele vivendo como legítimos casados que são”527, disse sua
esposa à Mesa em 15 de novembro de 1593, o que nos leva a crer que este casal manteve-se à
distância, mais uma vez, durante onze anos, entre 1577 e 1588, ano em que Francisca chega
520
Ibid., loc. cit.
521
Ibid., loc. cit.
522
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 454.
523
Ibid., p. 71.
524
Ibid., loc. cit. [grifo nosso].
525
Ibid., loc. cit
526
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 69-72.
527
Ibid., p. 71-72.
174

ao Brasil acompanhada de sua irmã por mandado de seu marido. Com efeito, como diz
Ronaldo Vainfas:
tudo nos parece indicar que, na Época Moderna, especialmente nos impérios
coloniais ibéricos, a bigamia tornou-se um delito ‘popular’, impulsionado entre
outros motivos pelo deslocamento constante de indivíduos entre a Península e as
possessões ultramarinas.528

O caso de Antônio Monteiro (ou Antônio Gonçalves) é um claro exemplo dessa


assertiva ao mesmo tempo em que, em outro sentido, também é uma demonstração de como a
fuga foi um meio encontrado para não cumprir a sentença que lhe foi determinada pela justiça
inquisitorial.
Com efeito, as notícias sobre a circulação de pessoas que tentavam se colocar à
distância de lugares com maior controle inquisitorial fornecem exemplos dos deslocamentos
nos espaços coloniais de Portugal e Espanha, nas Américas. O historiador José Gonçalves
Salvador529 chamou atenção para “o êxodo de judeus e de cristãos-novos”530 para as regiões
do rio da Prata e do Peru, no início do século XVII, “em vista das oportunidades econômicas
que o altiplano andino lhes oferecia”531, considerando também o fato dos portos do norte da
América portuguesa estarem “proibidos a estrangeiros, cristãos-novos, a hereges e apóstatas, e
sob estrita vigilância da Inquisição”532. Uma das razões que impulsionou estes deslocamentos
foi a conjuntura politica da União das Coroas ibéricas, devido o afrouxamento das fronteiras
das Américas hispânica e portuguesa. De acordo com Salvador, esta migração se intensificou
no contexto da visitação de Marcos Teixeira à Capitania da Bahia.

A visitação de 1618 compeliu-os a se refugiarem no Sul pela via marítima ou pelo


mediterrâneo de São Paulo. Relata Lafuente Machain que a 4 de março de 1619
chegou ao porto de Buenos Aires uma nave do Brasil, abarrotada de portugueses,
tidos por judeus ou judaizantes, e que, até meados do mesmo ano, tinham chegado
oito navios com passageiros lusos, usando toda sorte de ardis, ou se quisermos, de
disfarces e recursos. Nesse sentido o comissário buenarense cientificou a Inquisição
de Lima que essa gente vinha fugindo do visitador ‘que abia venido de Portugal a las
costas del Brasil y Angola’, e pediu melhor orientação sobre como agir. Então os
inquisidores limenhos se dirigiram ao rei, solicitando cédulas, a fim de que as
autoridades platinas e vice-reis dessem ao comissário toda ajuda possível.533

528
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados – Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Campus, 1989, p. 99.
529
SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos novos, jesuítas e Inquisição: aspectos de sua atuação nas Capitanias
do Sul, 1530-1680. São Paulo: Pioneira. 1969.
530
Ibid., p. 101.
531
SALVADOR, loc. cit.
532
SALVADOR, op. cit., p. 101-102.
533
Ibid., p. 103.
175

Na segunda metade do século XVII, durante o desenrolar das guerras luso-


holandesas, a região caribenha também se tornou um destino atrativo para a comunidade
judaica que havia se enraizado na capitania de Pernambuco durante o Brasil holandês. Além
das motivações econômicas e políticas envoltas nas ‘guerras do açúcar’, as perseguições
religiosas destacam-se como mais um fator que impulsionou a migração, para as Antilhas, de
cristãos-novos reconvertidos ao judaísmo e de judeus oriundos dos Países Baixos que até
então se encontravam estabelecidos em Pernambuco. De acordo com a historiadora Daniela
Levy:
A maior parte dos judeus que viveu no Brasil holandês voltou para a Holanda e
algum tempo depois se dirigiu a outras regiões, como as Antilhas, onde desenvolveu
uma zona produtora de açúcar. Isto foi possível por causa do conhecimento
adquirido nos engenhos pernambucanos. Outra parte dos judeus se fixou nas
Guianas, em Barbados, na Martinica, em Nova Amsterdã, na América do Norte e
depois em Curaçao.534

Como podemos ver, esses deslocamentos espaciais são exemplos do constante


fluxo de pessoas entre a Europa, a África e as Américas portuguesa e espanhola. No entanto,
diversas fugas também ocorriam no interior do espaço colonial do Estado do Brasil. Em
alguns casos, os registros sobre as intrigas do cotidiano explicitam o imaginário temeroso em
relação ao Santo Ofício e a adoção de comportamentos de autopreservação realizados por
meio de fugas. Aleixo Lopes, denunciado na Bahia, era morador da ilha de São Tomé e lá
ficou conhecido como judeu. Em certa ocasião, ao espancar um de seus filhos, “o dito filho
estava gritando que prendessem o dito seu pai Aleixos Lopes por que era judeu e que tinha um
crucifixo e que o açoitava”535. Diante do escândalo, o denunciado “lhe rogou que se calasse e
lhe faria tudo o que quisesse"536. No entanto, “sentindo o dito Aleixos Lopes que tratavam de
o prender, fugiu para as roças”.537
Algumas vezes, os indivíduos desconfiados com a presença do Santo Ofício
fugiram para regiões nem tão longínquas da Mesa inquisitorial. De todo modo, essas fugas
são exemplos de diferentes arranjos para garantir certo distanciamento do controle
inquisitorial. Um caso parecido com o de Aleixo Lopes foi o de Ana Franca, que, segundo os
rumores que corriam, “era uma cadela judia que cuspira em um crucifixo dentro do mosteiro
das convertidas de Lisboa”538, que blasfemara durante a páscoa dizendo que “os diabos a

534
LEVY, Daniela. De Recife para Manhattan: os judeus na formação de Nova York. 1. Ed. – São Paulo:
Planeta, 2018, p. 109.
535
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 291.
536
Ibid., loc. cit.
537
Ibid., loc. cit.
538
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 368.
176

levassem”539 e cometera um grave delito moral ao desrespeitar o sacramento do matrimônio,


pois vivia em mancebia com Antônio da Silva, escrivão dos órfãos na cidade de Salvador.540
Como pode-se observar, motivos não faltavam para Ana Franca ser delatada para
o Santo Ofício, e sua situação tornara-se ainda mais delicada pelo fato de ela vir degredada do
reino para o Brasil. No entanto, antes de efetivamente ter problemas com o Santo Ofício, Ana
se ausentou de Salvador com a ajuda de seu companheiro, Antônio da Silva, que a mandou
para o engenho de certo João de Ramirão, “por lhe ir a notícia que a haviam de vir acusar a
Santa Inquisição”541. Fugir antes de ser delatada, eis a tática adotada por Ana Franca com a
ajuda de seu companheiro.
Ao examinarmos a documentação inquisitorial, verificamos a recorrência de casos
de fugas ocorridas no interior do espaço colonial luso brasileiro. O bígamo João Leitão, por
exemplo, era morador da vila de Porto Seguro e foi denunciado em 1591, em Salvador, por ter
casado, cerca de quinze anos antes, com Beatriz Dias, mesmo estando viva sua primeira
esposa em Portugal. No entanto, logo após o primeiro ano de casamento com Beatriz, foi
enviada de Lisboa uma carta precatória para ele ser preso por esse delito e “tanto que isto
soube, o dito João Leitão fugiu daí para o rio das Caravelas, e daí para a capitania do Espirito
Santo, costa deste Brasil”.542
No que tange as fugas ou ausências relacionadas a outros delitos investigados pelo
Santo Ofício, como, por exemplo, os casos de feitiçaria, há registros, no livro das denúncias
da visitação de Pernambuco, de como a presença do Santo Ofício naquela capitania alterou o
fluir do cotidiano de alguns de seus moradores. Ana Jácome, uma conhecida feiticeira da
região, foi acusada pela morte de uma criança recém-nascida, em outubro de 1593. Quem
compareceu à Mesa inquisitorial para delatá-la foi a mãe da criança, Isabel Antunes, uma
cristã-velha, de vinte e sete anos de idade, casada com André Fernandes e moradora na
freguesia de São Pedro, em Olinda.
A denunciante contou ao inquisidor que, em abril daquele ano, estava
convalescendo do parto na casa de sua mãe, Domingas da Costa, em Olinda. Além de sua mãe
e da criança recém-nascida, também se encontravam na casa uma vizinha, chamada Branca
Lopes, e uma menina cativa, de três anos de idade, que era afilhada de Isabel. Foi então que,
em certo dia, durante sua recuperação, uma mulher “torta de um olho, cujo nome lhe parece
ser Ana Jácome, mulher que não tem marido”, entrando nesta casa, dissera-lhe que “se quereis

539
Ibid., loc. cit.
540
Ibid., loc. cit.
541
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 369.
542
Ibid., p. 444-445.
177

que não vos venham as bruxas em casa, tomai uma mesa e ponde-a com os pés virados para
cima, e uma trempe543 também virada com os pés para cima, e com sua vassoura em cima
tudo detrás da porta, e desta maneira não vos virão bruxas a casa”544. Isabel continuou sua
denúncia pormenorizando a situação suspeitosa.

E dizendo isto [Ana Jácome] se chegou a cama pela banda de onde estava a dita
menina escrava mulatinha e disse estas palavras, como que falava com a mesma
mulatinha, ‘vós afilhada vivestes e a minha filha morreu’, e acabando estas palavras
cuspio três vezes com a boca, lançando o cuspinho fora, por cima da dita mulatinha,
e por cima da cama toda, e acabando de cuspir disse ‘ora ficai-vos’, e se saiu pela
porta fora; e logo em se ela saindo pela porta fora, logo ela denunciante começou a
ter febre e frio, e o mesmo começou também a ter febre e frio a dita mulatinha de
que depois disso, alguns dias estiveram doentes, e logo tanto que se a ditta Ana
Jacome saiu pela porta fora, a dita sua criança pagã, que até então estivera sempre sã
e lhe tomava bem a mama, começou de chorar alto e acudindo a criança, a acharam
embruxada, com a boca chupada em ambos os cantos, tendo em cada canto da boca
uma nódoa negra com sinal de dentada, e assim mais nas virilhas, em cada uma,
outra chupadura e nódoa negra, e nunca mais lhe tomou a mama, nem pode levar
pela boca coisa alguma, e logo a batizaram em casa, e chorando continuou até que
não pode mais abrir a boca e no dia seguinte morreu, que ela denunciante parira ao
sábado, e o ditto caso aconteceu a quinta-feira seguinte pela manhã, e a criança
morreu logo a sexta-feira logo pela manhã.545

Como podemos observar, a morte da criança foi creditada a um pretenso malefício


supostamente realizado por Ana Jácome. Ao menos era o que acreditava Isabel Antunes, pois
afirmou isso com bastante segurança ao visitador. Este é um significativo caso para
demonstrar como o imaginário sobrenatural fazia parte da vida cotidiana no início da Época
Moderna. Os casos de infanticídio atribuídos às mulheres identificadas como bruxas são mais
comuns do que podemos imaginar. Com efeito, a historiadora Laura de Mello e Souza
assevera que:

a precariedade da vida na época, a miséria, a incidência de doenças provocavam


grande mortalidade infantil. Tanto no meio rural quanto no urbano a bruxa
funcionou como uma espécie de bode expiatório, como aliviador de tensões geradas
por esta conjuntura cruel. Um bebê nascera são, roliço, corado e, repentinamente,
abandonara o peito materno, recusando o alimento, definhando? Uma bruxa o
chupara, matando-o. 546

Certamente, Ana Jácome tinha a consciência da demonização do discurso


religioso sobre as mulheres identificadas como feiticeiras; e é mais possível ainda que tenha

543
Trempe: espécie de aro de ferro sobre três pés em que se assenta a panela ao lume. Cf. BLUTEAU, Raphael.
Dicionário da língua portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por
Antônio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
(Volume 2: L - Z), p. 488.
544
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 25.
545
Ibid., p. 25-26. [grifo nosso]
546
SOUZA, Laura de Mello e. A feitiçaria na Europa Moderna. Editora Ática, 1987, p. 18.
178

se alertado do perigo que corria quando da instalação da visita do Santo Ofício, pois, de
acordo com o relato, ela “se ausentou segundo dizem despois da vinda do Santo Ofício” 547, o
que evidencia uma medida cautelar racionalizada, se considerarmos os discursos detratores
sobre as mulheres chamadas de feiticeiras e o imaginário misógino da Época Moderna, que
enxergava na figura feminina a própria representação do diabólico548.
A documentação do Santo Ofício no Brasil também registra planos de fugas que
contaram com a ajuda e a cumplicidade de outros indivíduos, demonstrando exemplos de uma
forma de resistência que não era apenas individual, mas coletiva e colaborativa. Retornamos
aqui ao caso de Diogo Gonçalves, o tanoeiro acusado de bigamia em Itamaracá, em 1594, que
fugiu da Bahia para as capitanias do Sul, tendo como destino Angola. Este caso já era
conhecido pelo visitador Furtado de Mendonça desde o final de 1591, momento em que o
Santo Ofício moveu um processo contra Cristóvão Fernandes, pescador e morador na
freguesia do Jaguaribe, no Recôncavo baiano, que foi acusado de ajudar na fuga de Diogo
Gonçalves549. Com base neste processo, temos mais detalhes acerca do planejamento e
execução da fuga do tanoeiro bígamo.
A prisão de Cristóvão Fernandes foi realizada em 17 de dezembro de 1591, e sua
sentença foi publicada em 26 de janeiro do ano seguinte, sendo o seu processo instruído e
concluído celeremente na própria colônia e baseado apenas na denúncia de uma única
testemunha, Sebastião Alvares, cristão-velho, de vinte e oito anos e conhecido dos
circunstantes. Os depoimentos contidos no processo, tanto a denúncia de Sebastião Alvares
quanto a confissão e o interrogatório de Cristóvão Fernandes, dão a ver um verdadeiro
estratagema, no qual também participou Pero Fernandes, amigo de Diogo e de Cristóvão, para
embarcar o fugitivo em um navio que ia para as capitanias do Sul.
De acordo com as informações do processo, era dia 02 de dezembro de 1591
quando ocorreu o fato denunciado. Cristóvão Fernandes estava em uma casa de sua
propriedade, localizada na praia da cidade de Salvador, e depois da meia noite ali apareceu
Pero Fernandes, conhecido como ‘o maraxo’, para “pedir o seu barco para chegar a bordo do
navio que ia para o rio da Prata”550, acompanhado “com negros sem lhe declarar para que é
isso”, e junto com ele também ia um homem embuçado, isto é, com o rosto tapado, deixando

547
Denunciações de Pernambuco (1593-1595), p. 26.
548
Cf. PAIVA, José Pedro. Bruxaria e Superstição num país sem caça às bruxas. 1600- 1774. 2a ed. Lisboa:
Notícias, 2002.
549
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7949.
550
Ibid., fl.5 [v]
179

apenas os olhos de fora ou coberto com uma capa, o qual não foi reconhecido por
Cristóvão.551
Se este réu afirma que não reconheceu o fugitivo encapuzado, o mesmo não
acontece no depoimento de Sebastião Alvares que, em 09 de dezembro, havia denunciado o
caso para o Santo Ofício dizendo que no dia do ocorrido:

se ergueu de madrugada três horas antes [da] manhã e saindo na praia para a fonte
do pereiro, viu estar na praia Cristovvão Fernandes, morador junto da ilha de
Itaparica, com Pero Fernandes maraxo [...] e com um homem embuçado como um
foragido e um chapéu pardo e uns calções azuis e suas botas brancas, o qual depois
conheceu que era Diogo Gonçalves Machado, tanoeiro, o qual ouvio dizer que
andava homiziado por parte da Santa Inquisição por se casar duas vezes552

A identidade do foragido foi assim informada por essa testemunha, tendo em vista
que o argumento de Cristóvão foi de que não conhecia Diogo Gonçalves, dando a entender
que o conheceu fortuitamente naquelas circunstâncias e por intermédio de Pero Fernandes.
Assim sendo, ao ser flagrado por Sebastião Alvares naquela madrugada emprestando o barco
para que Pero Fernandes fosse junto com Diogo Gonçalves negociar secretamente a fuga
deste último, Cristóvão Fernandes foi inserido no rol dos denunciados para o Santo Ofício,
preso e processado.
Cristóvão Fernandes colaborou e emprestou sua embarcação. No entanto,
permaneceu no continente. Segundo o registro do notário, somente após Pero e seu
companheiro encapuzado retornarem, foi que “então perguntou ele preso ao dito Pero
Fernandes quem era o embuçado, que com ele fora e tornara”553, ao que Pero Fernandes lhe
respondeu que se tratava do “marido da Baldaia, tanoeiro, que andara escondido da
Inquisição, que o queriam prender pela Inquisição por dizerem que é casado duas vezes”554.
Sua resposta é esclarecedora em vários aspectos, pois não apenas narra o momento em que a
identidade do homiziado lhe fora revelada, mas também oferece uma justificativa
racionalizada para a fuga de Diogo Gonçalves, pois, se o prendessem “havia de estar preso um
ano enquanto viesse a prova do reino”555. Nestas circunstâncias era melhor fugir do que
permanecer preso na colônia, ou em Lisboa, até, idealmente, conseguir provas que
remediassem sua situação jurídica perante as autoridades inquisitoriais. Além disso, o relato
fornecido ao visitador é um exemplo indubitável das cumplicidades que forjaram as variadas

551
Ibid., loc. cit.
552
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7949, fl.2-3.
553
Ibid., fl.5 [v]
554
Ibid., loc. cit.
555
Ibid., loc. cit.
180

formas de resistência ao Santo Ofício, o que pode ser demonstrado no trecho em que Pero
Fernandes teria dito para Cristóvão que, por ser amigo de Diogo Gonçalves, que com ele
comia e bebia, “andava vendo se lhe podia dar secretamente remédio que se embarcasse e
fosse para fora”, o que, segundo Cristóvão, logo “então lhe pareceu aquilo mal e lhe avisou
que lhe poderia vir dano nisso”556.
Mesmo demonstrando certa consciência de que aquela ajuda oculta não lhe
parecia uma atitude das mais corretas aos olhos das autoridades, Cristóvão Fernandes não
deixou de colaborar com os demais, pois, segundo a testemunha Sebastião Alvares, o fugitivo
teria pernoitado na casa de Cristóvão. No entanto, o problema do réu não foi apenas ter
emprestado, por pedido de Pero Lopes, o barco para dar rota ao fugitivo, tampouco o ter
recebido em sua casa, mas sim não ter comparecido ao Santo Ofício para dar testemunho do
caso. Como esperado, essa ausência foi precisamente questionada pelo visitador, pois “se ele
ouvio ao ditto Pero Fernandes que o dito tanoeiro fugia da Santa Inquisição, por que razão não
veio logo a esta Mesa denunciá-lo?”, ao que ele respondeu “que não advertiu a isso e que
ignorantemente pecou nessa falta e pede perdão e misericórdia”557. A sentença deste processo
resume o episódio nos seguintes termos:

consta que aos dois dias do mês de dezembro, próximo passado depois da meia
noite, antes de amanhecer, foi uma certa pessoa a casa do réu que tem na praia desta
cidade, e lhe pediu o seu barco para chegar a bordo de um navio que estava para ir
para as Capitanias de Baixo, e o réu deu para isso o seu barco, cujo que se meteu
nele um homem embuçado por não ser conhecido, e depois de chegarem a bordo
tornaram a terra, e perguntou o réu a dita pessoa que lhe pediu o barco, quem era
aquele embuçado, e ela lhe respondeu e declarou quem era o dito embuçado,
dizendo-lhe que andava escondido da Santa Inquisição, que o queriam prender por
culpas pertencentes ao Santo Ofício, e que por não o prenderem lhe andava
negociando-se esta embarcação, E sabendo o réu isto e vendo-o assim passar, não
veio a esta Mesa declará-lo, e denunciá-lo, mas antes se calou e, enfim, o dito
homiziado fugiu, no que o réu é muito culpado, pois, sabendo ser negócio da
Santa Inquisição, que todos são obrigados com muita dilligência declarar e
denunciar, ele o não fez assim.558

A omissão de Cristóvão foi punida com a expiação pública de sua falta, sendo o
réu obrigado a ir numa missa dominical na Sé de Salvador e nela permanecer em pé e com
uma vela acesa na mão para que toda a comunidade soubesse do seu delito. Foi ainda
obrigado a pagar dez cruzados para as despesas do Santo Ofício e os custos do processo, além
de ser doutrinado na fé cristã, pois “sendo perguntado na Mesa, não se soube benzer, nem

556
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7949, fl. 6.
557
Ibid., loc. cit.
558
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7949, fl.9-10. [grifo nosso]
181

persignar, nem soube os mandametos da Lei de Deus, nem os da Santa Madre Igreja, nem os
pecados mortais”.559
É interessante aqui observar de que modo a própria linguagem inquisitorial é uma
representação do poder do Santo Ofício e de seu discurso intimidador. Na sequência desta
sentença, é feito o adendo de que o réu cumpriria o que lhe fora determinado, porém, com
“cominação, que acontecendo-lhe outro caso semelhante se executará nele, o estreito rigor de
Justiça. E assim também se há de executar, em qualquer pessoa que deixar de vir denunciar
logo a esta Mesa os casos a ela pertencentes”560. A exposição pública de Cristóvão Fernandes
serviu como um exemplo para a comunidade dos castigos vexatórios aplicados pelo inquisidor
visitador, sendo assim uma estratégia pedagógica de controle inquisitorial. No caso de
Cristóvão Fernandes, prevaleceu a misericórdia do Santo Ofício, mas não podemos deixar de
observar que a advertência contida na sentença é indicativa de que, caso reincidisse, seria
tratado com o rigor atribuído aos casos de relapsos, ou seja, aqueles que voltavam a ser
processados após reconciliados.
Algumas personagens conhecidas na história do Brasil colonial também tiveram
seus nomes registrados na documentação do Santo Ofício por serem testemunhas de casos de
indivíduos que colaboraram com fugas de outras pessoas. Antônio Raposo Tavares, que se
tornaria um afamado bandeirante dos sertões coloniais na primeira metade do século XVII,
tinha 21 anos quando foi convocado à Mesa inquisitorial por Marcos Teixeira para prestar
depoimento no dia 19 de fevereiro de 1619, em Salvador, afirmando ser cristão-velho, filho de
Fernão Vieira Tavares, solteiro e natural de Beja, no Reino. De acordo com o relato, o pai de
Raposo Tavares hospedou, na cidade de Salvador, certo Manoel Soares, cristão-novo, solteiro,
de “idade de vinte e dois até vinte e três anos"561, cuja vinda estratégica para o Brasil é
explicada no depoimento de Raposo Tavares. Este informou ao visitador Marcos Teixeira que
perguntou a Manoel Soares “por novas da terra e pela causa por que se viera dela”, ao que
este lhe respondeu:

que se viera por ter posto em salvo uma mulher da nação que era casada com
Jerônimo Machado, também da nação, mercador e morador na praça da dita cidade
que dizem que também fugira [...] além da dita causa de sua vinda a estas partes lhe
dera também outra, a saber: que por o ameaçar um homem da nação que ia preso
pelo Santo Oficio por nome João Pinto, sombrereiro, natural da mesma cidade, o
denunciado se ausentara dela e se lançara nestas partes.562

559
Ibid., fl. 10 [v].
560
Ibid., fl. 10.
561
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 251.
562
ANTT, loc. cit.
182

Outra testemunha deste caso, o padre Manoel Magro, também natural de Beja,
capelão da Sé de Salvador, foi convocado pelo visitador no mesmo dia que Antônio Raposo
Tavares. Seu depoimento confirma que, há cerca de oito meses, estava na casa de Fernão
Tavares, na companhia do filho do anfitrião e do denunciado, quando presenciou o
questionamento de Raposo Tavares sobre o motivo da viagem transoceânica de Manoel
Soares. Este, então, respondeu que veio de Portugal para o Brasil:

por temer que o prendessem pelo Santo Oficio por causa de ter posto em salvo uma
mulher da nação que queriam prender pelo Sancto Oficio, que era a mulher de
Jerônimo Machado, da nação, mercador e morador na dita cidade de Beja, E por o
ter ameaçado um homem que prenderam pelo Santo Oficio que o havia de fazer
também prender.563

Ora, estes dois depoimentos são bastante significativos para atestar os tipos de
comportamentos adotados a partir do medo provocado pelo Santo Ofício. Nesse sentido, é
importante pontuar que as fugas não se constituíram apenas como um dos resultados do
imaginário terrificante sobre a Inquisição, mas também em uma atitude bastante pragmática
para a manutenção da vida e da liberdade. Mais pragmática ainda, devido ao destino que era
recorrentemente escolhido, como é o caso dos chamados ‘lugares de liberdade’ no
Mediterrêneo (nos séculos XV-XVI) ou no norte europeu (no século XVII), pois estas regiões
integravam os espaços abarcados pelas redes comerciais sefarditas da época.
O medo de Manoel Soares aparece, principalmente, devido ao perigo que
acreditava correr com a possibilidade de ser preso – e aqui se acrescenta o fato de seu pai,
Fernão Mendes, ter sido penitenciado pelo Santo Ofício e obrigado a usar o hábito
penitencial, como aponta o depoimento do padre Manoel Magro564. No entanto, esse medo
não se converteu em um sentimento de paralisia ou de impotência, mas sim em estratégias de
proteção. Estas, por sua vez, se encontraram com uma atitude de solidariedade, tendo em vista
que um dos motivos para o empreendimento da fuga relacionou-se com a cobertura que o
delatado forneceu para o deslocamento a salvo da cristã-nova, identificada nas denúncias pelo
seu vínculo matrimonial com certo Jerônimo Machado. Estas fugas – fossem individuais ou
coletivas, planejadas ou improvisadas – foram expressões dos rastros dos medos, mas,
sobretudo, da construção das trajetórias de resistências.

563
Ibid., fl. 253.
564
Ibid., loc. cit.
183

Na visitação do século XVIII, realizada à Capitania do Grão-Pará e Maranhão,


não localizamos nenhum registro envolvendo este tipo de estratégia. No entanto, isto não
significa dizer que, ao longo do setecentos, pessoas de diferentes origens não continuassem a
fugir da Inquisição, sobretudo, aqueles indivíduos moradores nas capitanias do Sul do Estado
do Brasil, região que teve atenção especial da Inquisição devido as mudanças econômicas e
sociais daquele contexto como, por exemplo, a lenta e gradual transferência do eixo da
economia colonial açucareira das Capitanias do Norte para a região aurífera das jazidas de
ouro e diamantes na região das Minas Gerais e adjacências.
A historiadora Anita Novinsky, no levantamento que realizou dos processos de
prisioneiros oriundos do Brasil565, identificou alguns casos de pessoas que fugiram das
autoridades inquisitoriais na primeira metade do século XVIII. José Gomes da Silva, por
exemplo, cristão-novo, de dezenove anos, acusado de judaísmo, morou no Rio de Janeiro e de
lá fugiu em 1712, na companhia de alguns franceses. Este réu também teve sua esposa, filhos
e netos penitenciados pelo Santo Ofício, sendo ele próprio relaxado em estátua, quer dizer,
condenado simbolicamente à morte na fogueira, no auto-de-fé de 14 de outubro de 1714566.
Martinho da Cunha Oliveira, outro cristão-novo acusado de judaísmo, foi preso pela primeira
vez pelo Santo Ofício ainda em Portugal, em 1713. Ao ser reconciliado, migrou para o Brasil,
em 1718, para a região das Minas Gerais, ocupando-se como mercador e tratante de
diamantes. Quinze anos depois, retornou para Portugal e lá permaneceu até 1746, quando
tentou fugir para a França, tendo, contudo, seu navio interceptado pelas autoridades
inquisitoriais, tendo sido preso e entregue junto com sua família ao Santo Ofício567. Diogo
Moreno Franco, cristão-novo e morador de Pernambuco, foi preso duas vezes entre 1716 e
1720, sendo na primeira vez condenado a usar o hábito penitencial e condenado a degredo de
um ano. Acusado de judaísmo, quando foi preso, fugiu dos cárceres, sendo capturado
novamente, pedindo, desta última vez, para que fosse perdoado do “dito degredo pela pobreza
em que se acham desamparo sem família e bastante castigo teve, e vir preso nesses cárceres
há seis meses”.568
Como podemos observar, a ampla maioria dos casos aqui analisados referem-se às
visitações inquisitoriais realizadas nos séculos XVI e XVII, principalmente nas Capitanias do
Norte. Ora, isto se relaciona tanto com a própria historicidade da atuação inquisitorial no

565
Cf. NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX – 2. ed. rev. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
566
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7547; Cf. NOVINSKY, Ibid, p. 129.
567
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 8106; Cf. NOVINSKY, Ibid, p. 149.
568
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 8207; Cf. NOVINSKY, Ibid, p. 88.
184

Brasil quanto com o conjunto de fontes documentais que compõem o escopo desta pesquisa.
Em outras palavras, a evidência nas fontes dos dois primeiros séculos de colonização alinha-
se e articula-se ao contexto religioso e político do Santo Ofício – Reforma Protestante e
reordenação da Cristandade Católica, a partir do Concilio de Trento e da chamada
Contrarreforma –, bem como ao envio de visitadores aos territórios coloniais portugueses no
além-mar, mecanismo cuja utilização foi descontinuada na medida em que se formava a rede
de comissários e familiares locais da Inquisição, nos espaços onde não existia um tribunal
formal, como é o caso do Brasil. Nesse sentido, os exemplos de fugas aqui analisadas
explicitam os diferentes casos e os variados motivos que impulsionaram o deslocamento de
indivíduos isolados, ou de grupos familiares, para espaços onde julgavam estar distantes da
ação dos inquisidores. Nessa perspectiva, esses deslocamentos no espaço são uma
representação do medo do Santo Ofício. mas um medo que foi racionalizado, dominado e,
nesse sentido, transformado em alerta para a sobrevivência física, material, moral, religiosa
e/ou espiritual, logo, em um tipo de resistência social.
185

4.2. ‘O Diabo trouxe o Inquisidor’: palavras (mal)ditas e comportamentos afrontosos


contra o Santo Ofício.

Está claro que, concomitante ao sistemático emprego de uma pedagogia de


intimidação por parte do Santo Ofício, a sociedade colonial forjou diferentes formas de
enfrentamento ao controle social e das consciências, controle esse perpetrado pelo Santo
Ofício português. Considerar que o medo provocado pela presença dos inquisidores foi um
sentimento paralisante que culminou em comportamentos passivos, diante da devassa
inquisitorial, é abrir mão de contemplar um universo de ideias, de práticas e de
comportamentos que representavam as microrresistências, construídas na esfera do cotidiano,
àquela instituição de poder. Na documentação das visitações do Santo Ofício ao Brasil, é
possível interceptar diferentes tipos de comportamentos afrontosos, realizados através de
críticas e de insultos direcionados ao Santo Ofício, aos seus procedimentos e aos seus agentes
locais, além de episódios pontuais de deliberado ataque aos representantes do tribunal
inquisitorial lisboeta.
Com efeito, no universo popular do início da Época Moderna, era comum que não
apenas o Santo Ofício português, de modo especifico, mas também a própria Igreja, como
instituição religiosa oficial da Cristandade, fossem recorrentemente alvos de palavras
consideradas injuriosas, afinal, como nos lembra Laura de Mello e Souza, “a ira contra a
Inquisição não dizia respeito apenas ao temor infundido por suas práticas terríveis, conhecidas
por todos, hóspedes constantes das imaginações aterradas. Traduzia a má vontade, o
desagrado, a irritação popular contra a religião oficial”569. Esses comportamentos indecorosos
e blasfematórios, em muitos casos, aproximavam-se de delitos de foro inquisitorial. A este
respeito, o historiador Stuart Schwartz pontua que:

A Igreja sustentava que as ideias em conflito com as verdades reveladas pelos


dogmas eram “proposições” (proposiciones), isto é, declarações que potencialmente
indicavam concepções erradas em questões de fé e que eram, portanto, pecaminosas.
Essas ideias punham em risco a alma do indivíduo, mas, pior ainda, a manifestação
delas poderia provocar escândalo ou exercer influência sobre outras pessoas. A
heresia não consistia necessariamente em duvidar dos dogmas ou em fazer
declarações que divergiam da posição da Igreja, mas em não aceitar se corrigir e em
persistir obstinadamente no erro [...] entre os tipos de proposição estavam as que
pareciam heréticas; outras eram consideradas temerárias, isto é, defendiam posições
em matérias de fé que eram incomprovadas ou careciam de autoridade; outras eram

569
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 138.
186

cismáticas, defendendo uma divisão dentro da Igreja; e outras eram apenas errôneas,
blasfemas, ofensivas, escandalosas ou malsoantes a ouvidos piedosos,570

De acordo com este historiador, apesar de intimamente relacionados, integrando o


leque dos chamados atos de fala contra o Santo Oficio, as proposições e as blasfêmias não são
necessariamente sinônimas, pois, as “proposições podem ser agrupadas basicamente em
quatro ou cinco categorias”571, ao passo que a “blasfêmia ficava um pouco à parte, pois em
geral era tratada como uma categoria especifica de delito”572. Entre essas proposições
apresentadas por Schwartz, encontram-se críticas à Igreja, dúvidas heréticas sobre os
sacramentos e declarações sobre a moral sexual, ou seja, proposições de cunho popular que
circulavam no mundo atlântico ibérico, como as fontes inquisitoriais do Brasil também
permitem visualizar. Além dos tipos de proposições anteriormente elencadas – proposições
heréticas, temerárias, cismáticas e errôneas/malsoantes –, o autor chama atenção para outro
tipo de declaração ‘maldizente’, a qual nos interessa particularmente, por exemplificar alguns
tipos de comportamentos afrontosos contra o tribunal inquisitorial e seus representantes.
Nesse sentido, ele diz que:

Por fim, havia mais uma categoria de atos de fala que não se enquadravam
formalmente na definição de proposições, mas às vezes guardavam alguma relação
com elas. Eram as ofensas contra a Inquisição, uma miscelânea de crimes que iam
desde fingir ser funcionário do Santo Ofício e prestar falso testemunho até violar as
regras do sigilo dos tribunais. Essa categoria também incluía críticas verbais aos
princípios, à missão e às atividades da Inquisição. Não era raro, por exemplo, que as
pessoas dissessem que a Inquisição era injusta, estava mal orientada ou era movida
pela cobiça do que pela religião. Como a maioria das instituições espanholas e
portuguesas do começo da Idade Moderna, a Inquisição tinha poderes de censurar e
processar seus críticos e adversários.573

Um caso interessante que condensa algumas tendências das críticas recorrentes


realizadas ao Santo Ofício ocorreu na capitania da Bahia durante a visitação inquisitorial
realizada no início do século XVII. Belchior Chaves, cristão-velho, natural da vila de Viçosa
em Portugal, casado e morador na Freguesia de Nossa Senhora do Socorro na região do
Recôncavo baiano, denunciou ao visitador Marcos Teixeira, em outubro de 1619, o cristão-
novo Fernão Rodrigues Ribeiro devido a algumas palavras escandalosas que este tinha dito
contra o Santo Ofício. Era 9 de outubro quando Belchior Chaves passara pela fazenda de

570
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 38-39.
571
Ibid., p. 40.
572
Ibid., p. 41.
573
Ibid., loc. cit. [grifo nosso]
187

Fernão Rodrigues em busca de um escravo seu que tinha fugido, e ali estando, conversando
com o cristão-novo sobre algumas prisões efetuadas pelo Santo Ofício e sobre o envio de
presos para Portugal, o denunciante presenciou uma série de opiniões que questionavam em
vários aspectos a reputação supostamente ilibada do Santo Tribunal da Fé.
Fernão Rodrigues começou dizendo que os cristãos-novos presos “morreriam
mártires, porquanto lhe haviam de dizer que eram judeus não o sendo”574. Esta defesa da
reputação e da memória dos cristãos-novos sentenciados pela Inquisição é apenas o começo
de outros impropérios que, segundo o denunciante, teriam sido ditos por Fernão Rodrigues
Ribeiro. É possível verificar, por exemplo, a crítica popular que envolvia o universo
pecuniário de funcionamento do Santo Ofício, sobretudo em relação aos confiscos de bens
realizados a mandado dos inquisidores, quando Fernão Rodrigues dispara que “por lhe tomar
as fazendas, lhe fazem no Santo Ofício tudo que lhe fazem” e “por ninharias se fizeram as
prisões que eram feitas pelo Santo Ofício neste tema”.575
Ao ser retrucado por Belchior Chaves, Fernão Rodrigues Ribeiro insistiu na sua
posição dizendo que afirmava suas palavras, jurando “pela paixão do Altar, pelo filho de
Deus, pela Missa Santa, pelo menino Jesus”576, juntando a estas palavras outras “muitas e
muito afrontosas”, de modo que o próprio Belchior Chaves teve receio de repeti-las diante de
Marcos Teixeira. É somente neste momento do depoimento que a narrativa de Belchior
Chaves deixa transparecer as palavras malsoantes, escandalosas e irreverentes que afrontavam
a autoridade do visitador do Santo Ofício, pois as mesmas redundavam “em injúrias contra o
Santo Ofício”577. De acordo com o delator, Fernão Rodrigues Ribeiro dissera que “ele Senhor
Inquisidor era hum bestarrão e que fazia tudo como tal”, e que “o Diabo trouxe o Inquisidor
para inquietar os homens que tão bons e honestos são”578. Não sendo o suficiente, disse ainda
que não iria se acusar destas palavras na Mesa para “não ver o rosto a ele Senhor
Inquisidor”.579
Situações como esta não eram tão raras de acontecer. Pelo contrário, a
documentação das visitações inquisitoriais permite acessar um universo popular de críticas e
resistências direcionadas a instituição inquisitorial. Nesse sentido, não deixa de ser curioso
observar que são as fontes da repressão que apresentam alguns ruídos de resistência, como,
574
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl.217 [v].
575
Ibid., loc. cit.
576
Ibid., loc. cit.
577
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 218.
578
Ibid., loc. cit.
579
Ibid., loc. cit.
188

por exemplo, os desconfortos com a chegada e instalação da comitiva inquisitorial e as


críticas realizadas aos procedimentos do Santo Ofício, como os confiscos de bens dos
acusados e as prisões e condenações consideradas arbitrárias pelos seus críticos.
Em pesquisa recente, o historiador Yllan de Mattos dedicou-se a analisar o
universo de críticas direcionadas ao Santo Ofício português no século XVII, mais
especificamente entre 1605, data do perdão geral destinado ao cristãos-novos portugueses, e
1681, momento do reestabelecimento do tribunal inquisitorial após o período da suspensão de
suas atividades iniciado em 1674. Ao analisar as críticas contra o tribunal inquisitorial
português ao longo do seiscentos, Mattos abordou tanto as críticas oriundas do universo
popular quanto aquelas vindas da cultura letrada da época, cujos argumentos críticos
desenvolvidos por poetas, teólogos e juristas, por exemplo, descredibilizavam, não raro com
escárnio e ironia, os inquisidores, bem como questionavam os procedimentos do tribunal
inquisitorial.
Em relação ao uso do termo ‘popular’, este historiador faz uma relevante
ponderação acerca da definição e da abrangência do termo, ao registrar que o mesmo se refere
às:

[...] críticas mais cruas, com vocábulos até mesmo vulgares que provavelmente
embaraçaram alguns inquisidores em sua perspectiva formalista e oficial. “Palavras
malsoantes” que toavam como em escárnio, misturando-se aos elementos do corpo e
encabulando a ordem constituída. Essas palavras e atos podem nos parecer bem
rasteiros e de mau gosto. E talvez o fossem, caso tomemos a ótica da ordem. No
universo popular, os limites são por demais tênues e nada fixos. Ultrajados pelas
experiências e desventuras da vida, alguns indivíduos passaram a ressignificar a vida
pela galhofa, pelo impulso violento e pela hipérbole. Seria tudo considerado uma
grande imprudência própria da rusticidade, como algumas vezes qualificaram os
inquisidores. Por isso, o riso, a violência, o baixo ventre, os insultos eram seu mote,
que, paradoxalmente, as expressarem protesto contra a ordem inquisitorial,
contribuíam sobremaneira para a legitimação dessa mesma ordem. Suas críticas
foram radicais por não estabelecerem parâmetro ou objetivo de qualquer
transformação; mostravam a mais prática, concreta e incrível visão de mundo.580

Já vimos que a abertura do ‘período da graça’ nas visitações fomentou a presença


considerável dos indivíduos à Mesa inquisitorial, dando-nos a impressão de que a recepção
dos representantes do Santo Ofício português foi acompanhada de uma absoluta obediência
social. No entanto, é importante observar que isto não significa dizer, necessariamente, que a
vinda de inquisidores a partes do Brasil era algo social e massivamente desejado. Não
obstante o discurso público obediente da população durante as cerimônias de instalação das

580
MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681) – 1.º
ed. Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2014, p. 149.
189

visitações, pode-se observar que a presença dos visitadores nem sempre foi bem recebida pela
sociedade colonial.
Na Bahia do final do século XVI, a conformação e obediência coletiva
demonstradas publicamente, no comparecimento às cerimônias de instalação da visitação e à
Mesa de Heitor Furtado de Mendonça, foram acompanhadas de comportamentos individuais,
fora da cena pública, que permitem relativizar o alcance, ou mesmo eficácia da difusão e
introjeção do medo social suscitado pela presença de inquisidores na colônia.
Uma das maneiras de demonstrar descontentamento com a presença dos
inquisidores em terras coloniais baseava-se no recurso narrativo da inversão, ou seja, se se
travava de um ‘Santo Tribunal’, a presença de seus representantes era encarada por muitos
como algo ‘diabólico’. A denúncia realizada, no dia 22 de agosto de 1591, pela cristã-velha
Maria de Gois, natural da Bahia, casada com o lavrador Estevão Gomes Varella e moradora
em Itapuã, termo da cidade de Salvador, aponta que há três meses certo cristão-novo, cujo
nome não é identificado, estava na casa de Maria Soares, também moradora em Itapuã, e
“dissera que o diabo trouxe a esta terra a Inquisição”581. Tratamento semelhante também foi
dispensado ao Santo Ofício pelo cristão-velho João Luís, que, ao ser interpelado por Antônio
Botelho sobre o paradeiro de sua irmã Francisca de Almeida, dissera que mesma “foi a essa
diaba de Inquisição”582, referindo-se provavelmente à apresentação voluntária de sua irmã à
Mesa inquisitorial no ‘período da graça’. Já Fernão Garcia realizara denúncia contra João
Batista, mercador cristão-novo, no dia 02 de agosto de 1591, dizendo que “haverá [um] mês e
meio, pouco mais ou menos, depois que ele Senhor Visitador entrou nesta cidade”583 que João
Batista afirmara categoricamente: “lá vem os diabos da Inquisição”584, ao se referir a
instalação da visitação na capitania da Bahia. Como se vê, para estes indivíduos o tribunal era,
com efeito, uma Inquisição diabólica.
Esses impropérios e afrontas verbais, além de exemplificar o escárnio e o
descontentamento de parte da população com a presença do visitador, são também exemplos
representativos da resistência à própria presença inquisitorial em um espaço até então pouco
policiado, no que se refere às repressões às heterodoxias. Essa maneira, quase imperceptível,
de desrespeito e afronte ao Santo Ofício pode ser observada nos detalhes, nos rastros e nos
indícios presentes na documentação.

581
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 412.
582
Ibid., p. 535.
583
Ibid., p. 267.
584
Ibid., loc. cit.
190

Em outubro de 1591, Isabel Ribeiro, cristã-velha, casada com Álvaro Lopes


Antunes e nora de Ana Rodrigues, cristã-nova, octogenária, acusada de judaísmo que foi
presa e condenada à fogueira, deixou escapar seu espanto com a presença do visitador,
exclamando “Jesus estávamos quietos!”585, dando a entender que a visitação representou um
tipo de ruptura no ambiente social relativamente harmônico anterior à inspeção que então se
iniciava. Outras tantas situações chegaram até a Mesa do visitador através da circulação de
informações e dos burburinhos que estes comportamentos afrontosos provocavam.
No dia 29 de outubro de 1591, por exemplo, Dona Ilena da Fonseca, cristã-velha,
de 55 anos, dizia que no domingo, antes do Auto de instalação da visitação e da publicação
dos éditos na Igreja da Sé de Salvador, Dona Maria de Vasconcelos lhe contou que uma
pessoa, não identificada na denúncia, quando estava na casa de Francisco Rodrigues Castilho
tinha dito que “por nosso mal veio cá esta Inquisição”586. Em outros casos, a resistência em
relação à presença do Santo Ofício pode ser vista na tomada de posição de não comparecer à
Mesa do visitador, seja para confessar-se ou delatar outrem. Este foi o caso, por exemplo, de
Felícia da Costa, cristã-velha, casada com o lavrador Diego Álvares e moradora na freguesia
de Paripe, denunciada por Maria de Oliveira no final de outubro de 1591, pois, cerca de dois
meses antes, quando “se publicou [a] Santa Inquisição”, ela dissera a esta última que “não
havia de vir à Mesa da Santa Inquisição e que não sabia nada para vir dizer”.587
Esses são alguns exemplos de situações em que se pode perceber que a presença
daquele tribunal do medo foi acompanhada de comportamentos injuriosos que ocorriam à
revelia do visitador e fora de sua zona de observação, o que contrastava com a sugestiva
obediência e colaboração social que a população sob inspeção demonstrava praticar
publicamente, não obstante a existência desses registros apresentar-se como evidência de que
estas injúrias chegaram ao conhecimento do inquisidor através das delações realizadas na
Mesa da cidade de Salvador.
Se estas proposições injuriosas são demonstrativas dos desconfortos e de
diferentes formas de resistências, diante da presença da devassa inquisitorial, as quais
sutilmente se operavam no cotidiano colonial, outros episódios exemplificam ataques
deliberados ao Santo Ofício e seus representantes, resultando em ações diretas de afronte
físico. A este respeito, há o registro de poucas, mas significativas situações, nas quais os
visitadores do Santo Ofício no Brasil foram alvos da população local.

585
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 546.
586
Ibid., p. 542.
587
Ibid., p. 547.
191

A primeira delas refere-se ao atentado sofrido por Heitor Furtado de Mendonça


em Salvador, durante a primeira visitação inquisitorial. Com efeito, em 1592, o visitador do
Santo Ofício foi alvo de ataques com tiros de espingarda que foram direcionados ao prédio
que ocupava como moradia588. O historiador Angelo Assis, ao falar sobre o caso, aponta que:

Na manhã do sábado 18 de julho de 1592, por volta das duas ou três horas,
enquanto o visitador repousava, seria vítima de um atentado feito a tiros de
espingarda que atingiriam a janela de seu quarto, deixando buracos na parede,
sem, contudo, ferir o visitador. Passados dois dias, novos disparos sobre as casas
de morada de Heitor Furtado.589

De acordo com Assis, “mais do que uma simples tentativa de homicídio, o


inquisidor considerava o atentado dirigido mais ao Santo Ofício do que a ele próprio”590. De
fato, as palavras do visitador deixavam transparecer seu juízo sobre a violência que sofrera,
pois, segundo Heitor Furtado:

fica sendo muito grande afronta e injúria ao Santo Ofício e fica dando exemplo e
ensinando caminho aos maus para fazerem o mesmo, o que é muito grande despeito
do Santo Ofício, e tal que até hoje se não acha haver acontecido em outra parte
alguma do mundo.591

Os suspeitos de orquestrarem o atentado foram Sebastião de Faria e Henrique


Muniz Telles, dois cristãos-velhos pertencentes a nobreza da terra, ambos genros do casal de
cristãos-novos Heitor Antunes e Ana Rodrigues, ou seja, pertencentes a uma das famílias mais
denunciadas no contexto da primeira visitação inquisitorial, na capitania da Bahia. Esta
iniciativa teve como objetivo, certamente, dirimir as suspeitas públicas que rondavam a
matriarca da família, mas, também, e talvez de maneira mais significativa, constituía-se como
defesa dos demais membros desse grupo familiar, tendo-se em consideração que, no contexto
do ataque ao visitador, vários outros indivíduos da família Antunes estavam sendo
denunciados e processados pelo Santo Ofício, como vimos anteriormente.
588
Sobre este caso, Cf. DIAS FARINHA, Maria do Carmo J. O Atentado ao Primeiro Visitador do Santo Ofício
no Brasil 1592. In: NOVINSKY, Anita; KUPERMAN, Diane (orgs.). Ibéria-Judaica: Roteiros da Memória. Rio
de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1996, p. 233-253. Angelo Assis (2005), analisa o caso com
base no processo nº 14.315, da Inquisição de Lisboa. No entanto, ao tentarmos localizar o referido documento na
base de dados do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não tivemos sucesso, tendo em vista que, atualmente, o
documento encontra-se indisponível para consulta. Cf. ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,
processo nº 14315. Cf. ASSIS, Angelo Adriano Faria de. O Licenciado Heitor Furtado de Mendoça, inquisidor
da primeira visitação do Tribunal do Santo Ofício ao Brasil. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História –
ANPUH, Londrina – PR, 2005.
589
ASSIS, Angelo Adriano Faria de. O Licenciado Heitor Furtado de Mendoça, inquisidor da primeira visitação
do Tribunal do Santo Ofício ao Brasil. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – ANPUH, Londrina – PR,
2005, p. 06.
590
ASSIS, 2005, loc. cit.
591
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 14315 apud ASSIS (2005, p. 6).
192

Motivos não faltavam, portanto, para que os membros dessa família,


independentemente de sua origem cristã-nova ou cristã-velha, nutrissem sentimentos pouco
nobres em relação ao visitador e ao Santo Ofício. Além de serem suspeitos de cometer este
atentado, também circulava rumores de que os genros de Ana Rodrigues tinham mandado
retirar da igreja de Matoim uma imagem fixada por ordem da Inquisição, que continha uma
representação da cristã-nova em um cenário de danação, sendo queimada na fogueira
inquisitorial em meio a figuras diabólicas, num evidente dispositivo imagético que tinha a
potência de incutir o medo nas consciências, a fim de disciplinar a comunidade local. Ou seja,
aqui se trata, sem dúvidas, de uma evidente sabotagem de um dos instrumentos que integrava
o amplo leque de dispositivos de intimidação utilizados pelo Santo Ofício. Proteger a
memória e a honra da família passava, neste caso, pelo ataque e pela sabotagem diretas ao
Santo Ofício. Talvez, por isso mesmo, duas décadas depois, durante a visitação de Marcos
Teixeira, o cristão-velho Domingos de Andrade, “de idade de perto de cinquenta anos”,
disparasse que “vindo a Inquisição a esta cidade de Salvador havia dez casos para se darem
culpa a Henrique Moniz Telles”.592
Outro caso conhecido ocorreu durante a passagem do visitador Luís Pires da
Veiga às capitanias do Sul, entre 1627 e 1628, ocasião em que foi mal recebido pela
população da Capitania do Rio de Janeiro. Como registra a historiadora Ana Margarida
Santos Pereira, “a resistência dos habitantes teria sido porventura o entrave mais significativo
à actuação do visitador”593. Apesar de existir um volume limitado de documentos resultantes
desta visitação, tanto o historiador José Gonçalves Salvador (1969) quanto Ana Margarida
Santos Pereira (2006; 2011) apontam registros que ajudam a entender o tipo de oposição
sustentada pela comunidade que recebia, naquele contexto, a autoridade representante do
Santo Ofício594. O licenciado Loureiro de Mendonça, por exemplo, algum tempo após a
visitação, comentava em carta dirigida ao rei que:

un visitador, o comissário del Santo Ofício de la Inquisicion, a que ellos allá llaman
Inquisidor, em llegado al Rio de Janeiro le envistieron a prender y matar,
amotinando al Pueblo y llevando hasta los niños las pedradas en su Sacerdote, y

592
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 108.
593
PEREIRA, Ana Margarida Santos. Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Capitanias do Sul,
1627-28. POLITEIA: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v.11. n.1, jan/jun, 2011, p. 57. Cf. PEREIRA,
Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos de sua actuação nas Capitanias do Sul: de meados do
séc. XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.
594
Cf. SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos novos, jesuítas e Inquisição: aspectos de sua atuação nas
Capitanias do Sul, 1530-1680. São Paulo: Pioneira. 1969, p. 113-114; PEREIRA, op. cit., 2006, p. 137.
193

Ministro del Santo Ofício que aun alcançaron al Christo; y esto fue ayer, y es notório
por todo mundo.595

Há ainda outro registro sobre este caso. Alguns anos mais tarde, em 1646, o
reverendo Antônio de Mariz Loureiro, em carta aos inquisidores de Lisboa, desculpava-se por
intitular-se indevidamente como comissário do Santo Ofício, pois entendera que “como vs.
ms. mandavam publicar o edital da fé nestas minhas Igrejas, e nele se dizia que as pessoas que
soubessem dos interrogatórios o fossem denunciar à Messa do Santo Oficio, ou ao
Comissário”, sua tomada de posição não lhe pareceu incorreta. O reverendo continua sua
narrativa tecendo comentários sobre a dificuldade de correção da população local que,
segundo o mesmo, era afeita à declaração de testemunhos falsos. Por fim, relembra o caso
sobre “um inquisidor que aqui apedrejaram e lhe não valeu acolher-se a uma Igreja com um
Cristo nas mãos, tais são os moradores destas capitanias e outros motins a que estamos
sujeitos”.596
Estes episódios podem ser descritos como insurgências diretas, mas pontuais,
contra os visitadores inquisitoriais instalados na colônia luso-americana. No entanto, pode-se
observar também na documentação uma variedade de outros tipos de comportamentos críticos
que contradizem o respeito e a reputação que integravam o capital simbólico do tribunal. Com
efeito, o exame das denúncias registradas pelos notários das visitações possibilita verificar a
recorrência de críticas populares feitas ao Santo Ofício, sobretudo, no que diz respeito ao
confisco de bens, às prisões e às condenações que maculavam os réus e seu grupo familiar.
Como se pode perceber, há aqui pelo menos dois elementos que compunham o conjunto de
procedimentos da chamada ‘pedagogia do medo’. Ou melhor, há, nesses registros,
consideráveis indícios de questionamentos transformados em afrontas, injúrias e, por vezes,
em xingamentos à própria autoridade do tribunal inquisitorial e, nesse sentido, à sua
pedagogia de intimidação.
Na capitania da Bahia, em 14 de outubro de 1591, Fernão Pires foi denunciado
pela sua sogra Catarina de Almeida, pois, segundo a denunciante, ao conversarem sobre a
prisão de Fernão Cabral de Ataíde, seu genro teria disparado alguns impropérios contra “ele
Senhor visitador e mais seus oficiais", dizendo que a comitiva do Santo Ofício “não vem cá
senão para encher-se, mas que depois que forem cheios cessarão e ir-se-ão [...] com os

595
Súplica do Doutor Lourenço de Mendonça a S. Maj., lata 218, doc. 6440, Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro (IHGB) apud SALVADOR, op. cit., p. 114.
596
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, 28º Caderno do Promotor (liv. 227), fl. 478. Cf.
SALVADOR, op. cit., p. 113-114; PEREIRA, loc. cit.
194

diabos”597. As ofensas se estenderam até mesmo ao meirinho da visitação, Manoel Francisco,


que foi chamado de “esfola caras” e “má coisa” pelo denunciado.598
Com efeito, as críticas realizadas contra os procedimentos do Santo Oficio, entre
os quais se encontrava a possibilidade do confisco de bens dos réus, circulavam sob diferentes
formulações, em variados grupos sociais. Na historiografia do século XX, este tipo de questão
suscitou intensos debates entre historiadores que sustentavam a ideia de que o funcionamento
da Inquisição esteve fundamentado na construção do ‘mito judaizante’, ou seja, na atribuição
de culpas de judaísmo aos cristãos-novos, a fim de processá-los e confiscar seus bens599. É
evidente que reduzir os confiscos de bens à suposta sanha e sede inquisitoriais é algo pouco
explicativo. No entanto, não se pode deixar de observar a recorrência, nos registros das
visitações, de discursos que questionavam e criticavam o universo pecuniário em torno do
Santo Ofício, de modo que a avaliação social acerca dos confiscos de bens permite visualizar
a circulação de formulações pouco decorosas direcionadas ao Santo Ofício.
Antônio Mendes, cristão-velho, de vinte e um anos de idade, natural do Porto, era
criado e morador na casa de Bernardo Pimentel, vereador de Salvador que se recusou a
participar da cerimônia de instalação da visitação. A injúria por ele proferida em defesa do
seu patrão foi suficiente para que o visitador Heitor Furtado de Mendonça instruísse um
processo, tramitado e concluído na própria Bahia, acusando-o de pronunciar proposições
heréticas contra o Santo Ofício. Com efeito, de acordo com as duas únicas denúncias contidas
no processo, Antônio Mendes dissera, em mais de uma ocasião, que, para se ver livre da
Inquisição, a atitude mais acertada de seu amo seria “pagar e não curar demais por que estes
[os inquisidores] se vinham cá encher [os bolsos] como os outros [...] das Justiças
seculares”.600
Ao que parece, dada a celeridade da instrução do processo e o desenvolvimento
do mesmo, o visitador Heitor Furtado de Mendonça logo buscou investigar o caso para
entender as circunstâncias da injúria e da intenção do réu, mandando, assim, efetuar a prisão
de Antônio Mendes em vinte e seis de agosto de 1591, ou seja, no mesmo dia das delações
realizadas pelo Padre dom Bento e por Gonçalo Mota, seus acusadores. Poucos dias depois,
em dois de setembro, o réu receberia sua sentença em auto de fé privado, quer dizer, apenas
diante da Mesa inquisitorial formada pelo visitador e seus assessores. No entanto, antes disso
acontecer, o próprio réu, durante a primeira sessão de interrogatório, confirmou, e até mesmo

597
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 530.
598
Ibid., loc. cit.
599
Cf. SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa. 6º ed, 1994.
600
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 6359, fl.2-3 [grifo nosso].
195

incrementou, as acusações que recebeu, demonstrando ao mesmo tempo arrependimento pelas


injúrias que verbalizou.

[...] e disse que naquele dia em que foi preso por mandado dele Senhor Visitador,
vinha ele a esta Mesa acusar-se de umas palavras que disse parvoamente depois que
ele Senhor Visitador houve por condenado a Bernardo Pimentel na pena em que
incorreu dos cem cruzados, por não vir a procissão e Ato da Fé sendo vereador desta
cidade e mordomo de uma confraria, disse ele réu preso ‘o bom é dar de comer a
ladrões’ e que logo se achou compreendido nesta palavra e se arrependeu muito.601

Na sessão seguinte, o visitador pressionou Antônio Mendes, perguntando-lhe “se


sente mal do oficio da Santa Inquisição ou se teve para si que haver a Santa Inquisição foi
inventada pelos Reis Cristãos a fim de tomarem as fazendas aos homens e os condenarem em
penas sem razão”, ao que o réu respondeu que “não tem dúvida que o oficio da Santa
Inquisição é santo e ordenado pelos Sumos Pontífices e príncipes cristãos, principalmente
para a salvação das almas, mas que parvoamente disse as ditas palavras”602. O argumento
sustentado por Antônio Mendes foi o mesmo utilizado por tantos outros réus, ou seja, a
alegação de inocência estava fundamentada na ausência da intenção de ofender, esvaziando-
se, nesse sentido, o suposto fundamento herético de seu discurso. As injúrias proferidas contra
a reputação do Santo Ofício e de seus representantes, chamados de ‘ladrões’ pelo réu, foram
ditas parvamente, quer dizer, de modo parvo, tolo, estupidamente. A sentença do processo,
apesar de favorável ao réu, deixa evidente o tom de desconforto do visitador.

Vistos estes autos, ditos de testestemunhas [e] confissão da parte, mostra-se Antônio
Mendes, cristão-velho, natural do Porto, solteiro, vir a estas casas e dentro nelas
falando-se na condenação em que seu amo Bernardo Pimentel foi ordenado para as
despesas do Santo Oficio por não querer vir a procissão e publicação da Santa
Inquisição, sendo vereador desta cidade e mordomo de uma confraria, dizer que o
bom era pagá-lo e dar de comer a ladrões os quais não vinham cá a mais q encher-se
como os outros, dando a entender nas tais palavras que o dinheiro de semelhantes
condenações se convertia em próprios usos dos oficiais da Santa Inquisição, o que é
falso, e deu muito escândalo a quem o ouvio, pelo que merecia que publicamente
fosse açoitado por esta cidade e fosse degredado para as galés, porém, respeitando a
ele ser mancebo menor de vinte e cinco anos e dizer as ditas palavras sem
consideração, o condeno somente em dez cruzados para as despesas do Sancto
Ofício e depois de satisfeito seja solto, e o absolvo das demais penas e pague as
custas destes.603

Outro caso semelhante foi registrado, em seis de novembro de 1592, quando


Bernardo Velho, morador em Salvador, apresentou-se à Mesa da visitação e contou que, em

601
Ibid., fl.3.
602
Ibid., fl.4.
603
Ibid., fl.5.
196

junho daquele ano, foi até Pernambuco visitar seu amigo Antônio Lopes Lago a fim de
oferecer-lhe as condolências, devido a morte de seu filho. Nessa ocasião também estavam
presentes Duarte de Sá, senhor de engenho em Pernambuco, e um negro cativo chamado
Jorge, de alcunha ‘o Fanosca’. Ao que parece, Jorge tinha um temperamento intempestivo,
pois, de acordo com a denúncia, o escravizado era dado a contrafazer pregações religiosas, de
modo que foi repreendido por Bernardo Velho, que lhe alertou “que havia de ir a Inquisição a
Pernambuco”604. Foi, então, neste momento, que Duarte de Sá interviu dizendo-lhe: “fala
Jorge, fala, que se tu tiveras cento ou duzentos mil cruzados tu te callaras, mas não tens nada
podes fallar"605. A ironia de Duarte de Sá traz consigo a alusão de que a ação da Inquisição
era mediada por interesses econômicos e, portanto, direcionada aos grupos sociais com maior
cabedal financeiro, como era o caso dos cristãos-novos que atuavam como mercadores ou
eram proprietários de engenhos, inseridos de maneira significativa nas dinâmicas da economia
colonial.
Alguns registros apontam a recorrência de denúncias contra o mesmo indivíduo
que, em diferentes situações, não deixou de verbalizar o seu contragosto em relação a
presença da visitação inquisitorial. Fernão Rodrigues Ribeiro, acusado de dizer que “o Diabo
trouxe o Inquisidor para inquietar os homens que tão bons e honestos são”606, como
demonstrado anteriormente, foi novamente citado nos autos da visitação cerca de dois meses
depois da primeira delação. O acusador, dessa vez, foi Manoel Cordeiro, convocado pelo
visitador para ser interrogado como testemunha do caso, tendo em vista que assim fora
referenciado na denúncia apresentada por Belchior Chaves, o primeiro delator de Fernão
Rodrigues Ribeiro.
Em 22 de dezembro de 1619, Manoel Cordeiro, cristão-velho, de “idade de vinte e
sete para vinte e oito anos, Clérigo de Ordens de Evangelhos”607, natural de Ilhéus, teve seu
depoimento anotado pelo notário, dizendo que, de fato, há, mais ou menos dois meses, estava
presente no engenho de Fernão Rodrigues Ribeiro quando falavam sobre as prisões de alguns
cristãos-novos de Salvador, ocasião em que, segundo a testemunha, o referido ofendeu o
visitador “dizendo que o Senhor inquisidor era homem bruto e que por tal o tinha”608. Suas
declarações sobre as prisões efetuadas por Marcos Teixeira eram bastante indecorosas, como
se pode verificar no decorrer deste depoimento:

604
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 568.
605
Ibid., loc cit.
606
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl.218.
607
Ibid., fl.161.
608
Ibid., loc. cit.
197

E que da dita prisão se fizera por ninharias e velhacarias e por maldades que lhe
alevantaram, como fora a prisão de André Lopes Ilhoa que por comer no chão
mostrando sentimento da morte de sua tia, se fizera com falsidades e mentiras de
seus vizinhos, e que logo havia de tornar solto e livre de Lisboa; por quanto ele
Senhor Inquisidor era seu inimigo por causa de umas casas.609

Manoel Cordeiro ainda lhe fez réplica afirmando que “as prisões do Santo Oficio
não se faziam, se não com muita consideração”610, ao que o denunciado teria respondido “que
ele testemunha era menino que não entendia disso”611, e que as prisões da Inquisição “se
faziam por respeito de lhes tomarem as fazendas, e que El Rei que folgaria de levar estas
lambuçadas e que os presos da dita prisão se comunicavam por cartas com a gente da nação
de fora”.612
Esta postura hostil de Fernão Rodrigues é representativa de um imaginário social
popular em que a destreza nos insultos verbais aparece como uma forma de afronta possível
no âmbito de uma relação de poder desigual entre o indivíduo comum e as instituições
repressoras da Época Moderna – e sua atuação nos espaços coloniais portugueses. Os
impropérios ditos por Fernão Rodrigues são exemplos de uma crítica ampla contra algumas
das formas de funcionamento do Santo Ofício, como as prisões e o confisco de bens,
considerados por muitos arbitrários, mas são também um exemplo dessa linha tênue entre
uma sensibilização pelo medo e a improvisação de táticas de resistência cotidianas.
Isto já fica evidente no decorrer da denúncia de Belchior Chaves, seu primeiro
delator. Este contou ao visitador que, cerca de vinte dias antes de se apresentar à Mesa
inquisitorial, estava junto com Fernão Rodrigues na casa de Raphael Telles e, percebendo o
seu baixo estado de ânimo, perguntou-lhe por que andava ele tão ‘melancolizado’. Fernão
Rodrigues então lhe respondeu que era devido a “umas ninharias, que eram dizerem-lhe que
tinham denunciado dele e de sua mulher [por] se vestirem e se enfeitarem aos sábados [...] e
dizendo que não tinha dever com isso”613. É interessante observar como esta ‘melancolia’ tem
relação com uma consciência temerosa em relação às possíveis deleções que poderia sofrer
devido a sua origem social cristã-nova e alguns hábitos que facilmente eram associados ao
judaísmo, como é o caso da manutenção do Shabbat.

609
ANTT, loc. cit.
610
ANTT, loc. cit.
611
ANTT, loc. cit.
612
ANTT, loc. cit.
613
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 218 [grifo
nosso].
198

Mais interessante ainda é verificar que no livro de denúncias da visitação de


Marcos Teixeira não se encontra, além das já referidas, nenhuma outra delação realizada
contra Fernão Rodrigues Ribeiro, a não ser uma referência que se faz a ele em uma denúncia
contra seu irmão Francisco Ribeiro, cujos hábitos alimentares, como, por exemplo, o fato de
não comer peixe sem escama, despertavam a desconfiança de vizinhos de que aquilo poderia
ser um hábito judaizante. Neste depoimento apresentado em 23 de março de 1619 por Antônio
Martins, Fernão Ribeiro é denunciado não devido aos comportamentos que indiciavam
judaísmo, mas sim por sepultar seus escravos em terra profana, em um lugar que servia de
pasto de bois, e sem permitir a presença de um padre para dar a extrema unção, sendo este um
ato “contra o costume da Santa Madre Igreja”614.
A preocupação de Fernão Ribeiro, expressada por meio de um medo melancólico,
era mais do que razoável. O fato de ser cristão-novo e os estigmas sociais daí decorrentes
potencializavam os perigos de se tornar alvo da ação inquisitorial lusitana. Talvez, por isso
mesmo, o maior volume de situações que culminaram em impropérios contra o Santo Ofício
tenha os cristãos-novos como protagonistas. Os questionamentos dos procedimentos do
tribunal inquisitorial sugeriam que sua ação repressora era movida por interesses econômicos.
O ourives Antônio Velho, cristão-novo, morador em Salvador, por exemplo, foi denunciado
pelo seu vizinho e amigo João Rodrigues, em setembro de 1618, pois, em certa ocasião,
quando conversavam sobre algumas prisões que o Santo Ofício tinha realizado na cidade do
Porto, no Reino, Antônio Velho disse “que prendiam a gente da nação por lhe tomarem as
fazendas, porque só Deus podia saber seu coração e vontade.615
Opiniões indecorosas desta natureza eram direcionadas, às vezes, diretamente a
Coroa e, por conseguinte, ao Santo Ofício, na condição de tribunal régio. Este foi o caso de
Manoel Dias Espinosa, cristão-novo, natural da cidade do Porto. Segundo Antônio Carvalho,
cristão-velho, porteiro da alfândega da cidade de Salvador, Manoel afirmara que “sua
Majestade devia ter alguma necessidade de dinheiro, pois prendia a todos os homens da
nação”616. Com efeito, se considerarmos apenas esta passagem, poderíamos constatar que se
tratava de mais uma crítica popular que circulava sob diferentes formas. No entanto, um dia
depois desta primeira denúncia, Manoel Dias Espinosa foi mais uma vez alvo de delações
apresentadas ao Santo Ofício. As acusações que lhe foram direcionadas ajudam a entender
sua tomada de posição crítica à Inquisição e expõe o drama familiar que vivenciava naquele

614
Ibid., fl.269.
615
Denunciações da Bahia (1618), p. 133.
616
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl.221.
199

contexto. O segundo delator de Manoel Dias Espinosa, o cristão-velho Domingos Fernandes,


de vinte e oito anos, realizou sua denúncia no dia quatro de janeiro de 1619, ratificando-a no
dia vinte e dois do mesmo mês e ano. No seu relato consta que ele e Manoel Dias:

vieram a tratar das prisões que se fizeram por parte do Santo Oficio na çidade do
Porto, em que também fora preso o pai do dito Manoel Dias, e dando-lhe ele
denunciante os pêsames disso, respondera o dito Manoel Dias Espinosa que havia
muitos testemunhos falsos porque se prendiam muitos homens: E respondendo-lhe
ele denunciante que a Igreja não chegava a prender senão com prova muito boa,
replicara o denunciado Manoel Dias Espinosa, que muitos homens que sairam a
queimar que morriam mártires por quererem sustentar sua honra e serem homens
honrados e não quererem confessar.617

Se, por um lado, o Santo Ofício utilizou-se de todo um arsenal discursivo de


intimidação, ameaçando a população através de uma série de elementos, entre os quais se
encontrava a expropriação econômica, a desonra e a humilhação públicas, por outro, pode-se
interceptar nas fontes inquisitoriais recorrentes situações do cotidiano em que os poderes
inquisitoriais foram questionados pela população. No caso de Manoel Dias Espinosa, suas
opiniões sobre as prisões do Santo Ofício, e mais especificamente sobre a prisão de seu pai,
parecem ter sido uma forma de defender não apenas sua reputação familiar, mas também de
protestar contra o confisco inquisitorial.
Como afirma Domingos Fernandes na ratificação do seu depoimento, em 22 de
janeiro de 1619, era fama pública na cidade de Salvador que Manoel Dias Espinosa
encontrava-se “preso na cadeia pública dela por ser filho de um fulano Espinosa, da nação,
preso pelo Santo Oficio na cidade do Porto, e não querer entregar ao fisco a fazenda que tinha
de seu pai”618. A postura resistente de Manoel Dias Espinosa para não entregar ao Santo
Ofício o cabedal econômico de sua família resultou na sua prisão. Esta é uma das referências
mais diretas que podemos localizar no que se refere a adoção de uma postura de defesa do
patrimônio econômico familiar. No entanto, outras táticas para preservar o patrimônio
econômico também podem ser identificadas nessas fontes, como os casos que culminaram em
fugas individuais ou coletivas, como vimos anteriormente.
Descredibilizar as ações do Santo Ofício, como as prisões e os confiscos de bens
considerados injustos, foi uma forma de se posicionar taticamente em uma relação de poder
desproporcional, em que as afrontas e injúrias verbais podem ser identificadas como um tipo
de dispositivo de combate dentro do horizonte de possibilidades de ações imediatas. Dito de
outro modo, o ato de formular proposições injuriosas foi, em determinadas situações,

617
Ibid., fl.224.
618
Ibid., fl.227.
200

utilizado como uma forma de oposição ao controle e a repressão, ambos representados pelos
agentes do Santo Ofício presentes na colônia, durante as visitas de inspeção. Não é por acaso,
portanto, que, nos registros supracitados, sejam bastante recorrentes tópicos como o
questionamento sobre os procedimentos pecuniários do tribunal, relacionado à ruína
econômica ocasionada pelos confiscos de bens, e sobre as arbitrariedades das prisões,
consideradas injustas e, por isso, produtoras de uma memória social infame sobre o acusado e
sua família.
Nesse sentido, a documentação inquisitorial permite interceptar outros tipos de
combates por meio dos atos de fala, como situações relacionadas à defesa da memória das
vítimas da Inquisição. O depoimento de Domingos Fernandes contra Manoel Dias Espinosa,
anteriormente aludido, já nos oferece um indicio deste tipo de posicionamento, pois, segundo
Espinosa, os réus executados na fogueira poderiam ser considerados mártires, justamente por
sustentar sua inocência diante dos inquisidores, obstinando-se a não confessar as culpas que
lhes eram atribuídas. A postura adotada em favor dos cristãos-novos presos e condenados pelo
Santo Ofício se relacionava com a defesa da honra familiar, como se o ato de denunciar as
possíveis arbitrariedades do tribunal equivalesse, nesse sentido, a uma tentativa de dirimir a
infâmia social que acompanhava os penitenciados e/ou seus descendentes. Nesses casos, a
defesa da memória e da honra das vítimas apresentava-se geralmente associada à ideia de
sofrimento e martírio. Nas denúncias das visitações da Bahia quinhentista e seiscentista,
diferentes exemplos podem ser identificados.
O cirurgião mestre Afonso Mendes, já falecido à época da visitação, e sua mulher,
Maria Lopes, ambos cristãos-novos, foram denunciados diversas vezes, entre 1591 e 1593,
juntamente com vários outros membros de sua família, entre os quais se encontravam Branca
de Leão, Antônia de Oliveira e Álvaro Pacheco, todos esses filhos do casal; além de Catarina
Mendes e Leonor da Rosa, ambas irmãs de Maria Lopes, casadas, respectivamente, com
Antônio Serrão e João Vaz. A maioria das delações contra esse grupo familiar diz respeito às
suspeitas de judaísmo que lhes eram atribuídas. Desse modo, foram acusados de realizarem o
Shabatt judaico, de cometerem sacrilégios com imagens sacras do catolicismo, de praticar a
circuncisão nos recém-nascidos, entre vários outros hábitos que orbitavam o estereótipo
judaizante.619
O falatório geral sobre os hábitos desse grupo familiar indiciava o judaísmo oculto
praticado pela família. Além disso, as notícias que circulavam sobre o passado de alguns

619
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 242; 323; 325; 333; 334; 345; 358; 359; 364; 373; 377; 399; 404;
410; 424; 431; 540; 546; 547 e 552.
201

indivíduos dessa família com a Inquisição, principalmente de um tio de Maria Lopes,


chamado mestre Roque, provocaram conflitos entre a cristã-nova e alguns de seus vizinhos.
Maria Antunes, cristã-velha, de trinta e três anos, natural de Évora, casada com o pedreiro
Estevão Gonçalves, apresentou-se ao visitador, em 16 de agosto de 1591, para denunciar
Maria Lopes. De acordo com o relato, dez anos antes, a denunciante tivera alguns atritos com
a cristã-nova, pois, em determinada ocasião, conversava com uma vizinha, chamada Luísa de
Almeida, já falecida no contexto da denúncia, sobre as pessoas presas pelo Santo Ofício,
especialmente,

como em Évora um físico por nome mestre Roque, cristão-novo, foi preso pela
Santa Inquisição muitos anos há, o qual com um pedaço de vidro que quebrou de um
urinol se degolou uma noite e saiu a sua estátua no cadafalso, e ela denunciante a viu
e lhe viu queimar a ossada e lhe ouviu ler as culpas no auto de fé, entre as quais uma
era que cada vez que tomava o Santissimo Sacramento, o tomava da boca e o ia
lançar em um monturo 620

Aqui se apresenta de maneira mais evidente um dos principais motivos da má


reputação que acompanhou esta família: primeiro, pelo fato de terem um parente preso e
processado pelo crime de judaísmo; em segundo lugar, e não menos importante, o fato deste
parente ter cometido suicídio nos cárceres da Inquisição. O desenrolar desta desavença foi
impulsionado pelo fato de Luísa de Almeida ter comunicado a Maria Lopes tudo aquilo que
ouvira na conversa que teve com Maria Antunes. Foi então que Maria Lopes chamou a sua
casa Estevão Gonçalves “e lhe fez queixume”621 contra sua esposa. A confusão continuou no
dia seguinte, pois, segundo a denunciante, “a dita Maria Lopes pelejou muito com ela”,
questionando-lhe que “se ela denunciante sabia que o dito mestre Roque morrera morte
honrada, que por que dizia aquilo dele desonrando a ela e as suas parentas?”.622
Poucos dias depois, o assunto sobre o suicídio de mestre Roque foi novamente
evidenciado em outro registro. A denúncia, realizada em 22 de agosto de 1591 por Margarida
Carneira, cristã-velha, de cinquenta e cinco anos, casada com o alfaiate Manoel Fernandes
Leitão, confirma a versão apresentada pela primeira delatora de Maria Lopes. Com efeito, esta
segunda denunciante, cerca de três meses antes de sua denúncia, foi visitar Maria Antunes e
soube dos atritos que ocorreram com a viúva de mestre Afonso. De acordo com Margarida
Carneira, durante a visita, a anfitriã fizera questão de explicar-lhe que “conhecia muito bem a
ela dita Maria Lopes e conhecia seus parentes e seu tio mestre Roque físico que morreu uma

620
Ibid., p. 345.
621
Ibid., loc. cit.
622
Ibid., loc. cit.
202

morte tão desonrada, degolando-se com um pedaço de vidro de um urinol, estando preso por
judeu dentro na Inquisição de Évora”, ao que “a dita Maria Lopes lhe respondeu que o dito
mestre Roque não morreria senão morte muito honrada”.623
De acordo com o processo do cirurgião mestre Roque, este era natural de Évora,
tinha cerca de setenta e dois anos quando foi preso em 1560624, permanecendo nos cárceres da
Inquisição de Évora e lá cometendmo suicídio. Alguns anos depois, recebeu como sentença a
excomunhão maior, tendo seus ossos desenterrados e entregues à justiça secular para serem
queimados em efigie, ocasião presenciada por Maria Antunes que “viu queimar a ossada e lhe
ouviu ler as culpas no auto de fé”.625
Apesar de não ocorrer efetivamente na colônia luso-americana, este caso não
deixa de se relacionar com questões locais, sobretudo, por fortalecer tanto as desconfianças da
comunidade local com Maria Lopes e sua família quanto por impulsionar a postura desta na
edificação de uma memória familiar honrosa, em que as circunstâncias da morte de seu
parente construíam sua imagem como mártir. Desse modo, pode-se ponderar que a defesa da
memória pública e a construção de uma narrativa honrosa sobre a situação que culminou na
morte de mestre Roque apresentaram-se como uma medida utilizada pela cristã-nova para
preservar a honra de sua família. Nesta narrativa, pode-se ainda perceber, mesmo que sub-
repticiamente, o sugestionamento da ressignificação da própria ideia de suicídio, podendo este
ser tomado como um ato de resistência em situações de extrema opressão, como fica evidente
nas repetidas vezes em que Maria Lopes contesta as opiniões caluniosas sobre a morte de seu
parente.
Alguns anos depois, também na Bahia, pode-se verificar a recorrência e a
sobrevivência desse tipo de prática em defesa da memória dos cristãos-novos vitimados pelo
Santo Ofício. Em treze de setembro de 1618, foi registrada a denúncia de Manoel Rabello.
Este contou ao visitador Marcos Teixeira que, cerca de um mês e meio antes, fora visitar seu
vizinho Francisco Henriques, cristão-novo, alfaiate e morador em Salvador, e nessa ocasião
conversou com Christovão Henriques, irmão do anfitrião, sobre “se dizer que vinha Inquisidor

623
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 424.
624
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, processo nº 10161. O processo de mestre Roque não
se encontra disponível em formato digital. Atualmente o documento encontra-se com condição de acesso restrita,
não estando disponível para consulta no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). As informações aqui
disponibilizadas foram recolhidas com base na ficha com o nível de descrição do documento disponível na base
digital da Divisão Geral de Arquivos/Digitarq do ANTT.
625
Denunciações da Bahia (1591-1593), p. 345.
203

a estas partes e que haviam de queimar muitos judeus”, ao que Christovão Henriques lhe
respondeu que “alguns [dos judeus] morriam mártires”.626
Estas não foram as únicas acusações realizadas contra este cristão-novo. Francisco
Gonçalves, cristão-velho, de dezoito anos de idade, natural da Ilha da Madeira, e Domingos
Pinto, cristão-velho, de dezessete anos de idade, natural de Lisboa, eram aprendizes de
alfaiataria e, por isso, permaneceram algum tempo residindo na casa de Francisco Henriques.
Ambos se apresentaram ao visitador da Inquisição, respectivamente, nos dias 18 e 20 de
setembro de 1618, para registrarem suas acusações.
O primeiro afirmou que, cerca de seis meses antes, falavam “sobre a queima dos
judeus que se fazia no Reino” quando “dissera o dito Christovão Henriques que os cristãos-
novos que predia pelo Santo Oficio por testemunhos de outros que lhe queriam mal, estavam
inocentes e por isso não confessavam e morriam mártires”627. Já o segundo, que também
estava presente no episódio, confirmava as acusações dizendo que, de fato, durante a referida
conversa, Christovão Henriques afirmou que “os judeus que queimavam morriam inocentes
por respeito que lhe davam tratos, e por não confessarem os queimavam”628. Os argumentos
utilizados pelo irmão do alfaiate repercutiam os conhecidos tópicos impetrados contra a
Inquisição: a invalidação das acusações contra os réus, pois estas eram consideradas produtos
de testemunhos falsos, e a morte na fogueira entendida como o resultado da resistência dos
condenados a sustentar sua inocência, negando-se a confessar as culpas que lhes eram
atribuídas. Daí a defesa e o ajuizamento por parte de Christovão Henriques de que essas
vítimas se transformavam em ‘mártires’.
Em alguns casos, é possível identificar a recorrência de acusações contra
indivíduos denunciados por outros comportamentos indicativos do judaísmo oculto. O
cristão-novo Pascoal Bravo, além de ser identificado como um dos frequentadores das
esnogas da cidade de Salvador, também era conhecido por defender o discurso do martírio
cristão-novo. De acordo com as denúncias registradas em Salvador, entre 1618 e 1619, era
comum Pascoal Bravo afirmar que os cristãos-novos queimados pela Inquisição “morriam
mártires”629, que “alguns homens da nação presos pelo Santo Oficio morriam mártires por
serem acusados por outros falsamente, por ódio e inimizade que tinham”630, ou que “muitos

626
Denunciações da Bahia (1618), p. 139.
627
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 93-94.
628
Ibid., fl. 207-208.
629
Denunciações da Bahia (1618), p. 194.
630
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Livro [2.º?] das denunciações que se fizeram na
visitação do Santo Ofício na cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, do Estado do Brasil, fl. 316.
204

presos da nação pelo Santo Oficio se livravam que mereciam [ser] condenados, e outros
queimavam que morriam mártires”.631
Estes podem ser considerados ‘protagonistas anônimos’ da resistência à
Inquisição. Na história das lutas contra a intolerância religiosa das instituições portuguesas,
mormente o Santo Ofício, há indivíduos que se tornaram conhecidos pela sua obstinação em
não abandonar sua fé, como é o caso de Isaac de Castro, considerado um dos baluartes da
resistência contra as perseguições religiosas do Santo Ofício e alçado à condição de mártir
pela comunidade judaica sefardita da Holanda, na segunda metade do século XVII. Como
explica Ronaldo Vainfas:

A trajetória de Isaac prestava-se, de todo modo, a se transformar em grande


monumento do martírio judaico. Era um jovem de 19 anos quando foi preso na
Bahia, em 1644, pelo governador Antônio Teles da Silva, que o transferiu ao
implacável bispo dom Pedro da Silva e Sampaio. Enviado para a Inquisição de
Lisboa, em 1645, Isaac foi metido no cárcere secreto e interrogado por quase dois
anos, recusando-se a deixar o judaísmo em favor da “lei de Cristo”. A Inquisição, a
certa altura, estava mais empenhada em “reduzir” Isaac ao catolicismo do que em
condená-lo a morte. Isaac recusou-se a “negociar” com os inquisidores. Enfrentou o
sistema, debateu com os clérigos encarregados de convencê-lo de que o judaísmo era
um erro, dispôs-se, enfim, a morrer na “lei de Moisés”. Saiu no auto de fé de 15 de
dezembro de 1647, ouviu sentença e terminou sua vida na fogueira. Foi queimado
vivo, pois dispensou a misericórdia do Santo Ofício, que costumava garrotear os
condenados, antes de queimá-lo, caso desejassem morrer na “lei de Cristo”. Isaac
preferiu a morte mais cruel.632

Não obstante os casos de indivíduos residentes no Brasil não terem tido na época
ampla repercussão, como foi o de Isaac de Castro, esses não deixam de ser exemplos de uma
resistência quase silenciosa e operada no cotidiano contra a Inquisição e sua ‘pedagogia do
medo’. Como podemos perceber, a defesa da memória das vítimas do Santo Ofício constituiu-
se como uma forma de afronta possível diante de uma relação de poder significativamente
desproporcional, pois, além de combater a construção da infâmia pública, tinha como
elemento basilar o posicionamento de que os procedimentos inquisitoriais eram, por
definição, injustos. As acusações eram consideradas infundadas e entendidas como fruto da
maldade alheia; já a resistência dos réus a não confessar as culpas de que eram acusados
exemplificava uma clara posição em defender sua inocência. É possível afirmar, nesse
sentido, que estes comportamentos são representativos de um universo popular, no qual os
combates se apresentavam por meio dos atos de fala como uma maneira, no âmbito do
horizonte de ações imediatas, de descredibilizar o Santo Ofício através destes pequenos atos

631
Ibid., fl. 98 [grifo nosso].
632
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 286.
205

afrontosos que ocorriam no cotidiano colonial, no contexto das visitações inquisitoriais


realizadas no Brasil dos primeiros séculos. No decorrer do século XVII, os posicionamentos
públicos em defesa dos cristãos-novos, por parte de figuras emblemáticas da cultura letrada da
época, elevaram os debates contra o Santo Ofício e seus métodos terrificantes para o cenário
político internacional.
206

4.3. Combates da fé: púlpito, pena e tinteiro

A situação religiosa na colônia, sobretudo nas capitanias açucareiras, mudaria no


primeiro quartel do século XVII. As disputas pelo comércio e pela hegemonia dos territórios
coloniais provocaram uma série de conflitos que envolveram Espanha, Holanda, Portugal –
anexado ao reino espanhol em decorrência da União Ibérica (1580-1640) – e suas possessões
coloniais na África e na América. As ‘guerras do açúcar’, expressão cunhada pelo historiador
Evaldo Cabral de Mello633 para se referir ao estado de guerra do período de ocupação
holandesa no Brasil (1624-1654), provocaram um impacto significativo na sociedade colonial,
devido às repercussões das relações políticas e econômicas entre as potências envolvidas, mas
também em decorrência da nova paisagem social e religiosa provocada pela presença batava
nas vilas e Capitanias do Norte do Estado do Brasil e no Estado do Maranhão: Olinda (1630),
Recife (1630), Itamaracá (1633), Rio Grande (1633), Paraíba (1634), Ceará (1637) e
Maranhão (1641). Afinal, os encontros – ou os confrontos – entre católicos, calvinistas e
judeus, por exemplo, tornaram-se cada vez mais comuns na colônia.
A ocupação holandesa impulsionou a migração de judeus vindos de Amsterdã e
interessados nos negócios do açúcar. Na colônia, estes se encontraram com os cristãos-novos
que, por sua vez, não se constituíam como grupo homogêneo, tendo em vista que entre eles
existiam tanto os que aderiram efetivamente ao catolicismo quanto os que judaizavam em
segredo e desejavam retornar ao judaísmo. Sobre esta questão, a historiadora Daniela Levy
explicita que:

Cristãos-novos e judeus tinham, basicamente, diferenças em relação à religião


adotada. Os judeus que chegaram ao Brasil acompanhando os holandeses, e já
educados no judaísmo em Amsterdã, foram os responsáveis pela organização da
comunidade judaica de Pernambuco; já os cristãos-novos nascidos no Brasil, ou
recém-chegados de Portugal, estavam afastados da religião judaica havia mais de
100 anos. Mas o comportamento desses cristãos-novos foi inconsistente e
contraditório e não pode ser generalizado, como se todos eles constituíssem um
grupo uniforme. Havia aqueles que não possuíam ideais religiosos ou políticos
muito bem definidos, embora houvesse também integrantes mais rebeldes, inquietos
e vulneráveis à introdução de ideias novas.634.

A presença holandesa no Brasil seiscentista impulsionou a construção – ou


reconstrução – das identidades religiosas entre os cristãos-novos da colônia. O historiador

633
Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo: Ed.
34, 2007.
634
LEVY, Daniela. De Recife para Manhattan: os judeus na formação de Nova York. 1. Ed. – São Paulo:
Planeta, 2018, p. 45.
207

Ronaldo Vainfas635 discutiu as “metamorfoses identitárias” ocorridas no período, utilizando-


se do conceito de “judeu novo” desenvolvido pelo historiador Yosef Kaplan, a fim de explicar
as angústias, os dilemas e os trânsitos de identidade desses indivíduos. Com efeito, durante o
período de ocupação holandesa, muitos cristãos-novos converteram-se ao judaísmo, alguns
destes, inclusive, retornando ao catolicismo, de acordo com as circunstâncias. Afinal, vale
lembrar que se tratava de um período de guerra em que os conflitos políticos se encontravam
com as questões religiosas. À guisa de comparação, Vainfas recupera a imagem do ‘homem
dividido’, aventada por Anita Novinsky636. O ‘judeu novo’ encontrava-se dividido, pois era
“judeu para os cristãos, cristão para os judeus; nem judeu, nem cristão, ou um pouco dos dois,
quando olhava para si mesmo”.637
Parte considerável dessa confusão identitária devia-se também à fragilidade do
conhecimento do judaísmo rabínico pelos cristãos-novos portugueses da colônia, tendo em
consideração que estes se encontravam distantes da ortodoxia das práticas talmúdicas
tradicionais. O judaísmo colonial, como vimos, foi um ‘judaísmo possível’ adaptado,
portanto, às circunstâncias locais. Devido às vicissitudes engendradas pela perseguição
inquisitorial, muitos cristãos-novos não tinham acesso aos textos sagrados, nem recebiam a
formação doutrinária fundamental para fortalecer seus vínculos e identidade religiosa. Além
disso, “não liam o hebraico, os homens não eram necessariamente circuncidados, nunca
sequer tinham posto os olhos em um pergaminho da Torá”638.
O estabelecimento da sinagoga Kahal Zur Israel (1636), primeira sinagoga das
Américas, e da Kahal Kadosh Maguen Abraham (1637), ambas unificadas em 1648, bem
como a organização das escolas religiosas Talmud Torá e Etz Hayim, são exemplos das
estratégias desenvolvidas pela comunidade judaica da Capitania de Pernambuco para a
construção de espaços formais de culto e doutrinação, destinados aos praticantes da lei de
Moisés.639 Estes espaços de culto no Brasil holandês não se tratavam, portanto, de
estratagemas secretos. Ao contrário das esnogas improvisadas, tratava-se de sinagogas
tradicionais estabelecidas, com o aval dos holandeses, pelos judeus portugueses que se
haviam refugiado na Holanda e, posteriormente, migrado para os territórios batavos no Brasil.

635
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 58.
636
Cf. NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972.
637
VAINFAS, op. cit., p. 262.
638
NETO, José de Lira Cavalcante. Arrancados da terra: perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica,
refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2021, p. 64.
639
LEVY, Daniela. De Recife para Manhattan: os judeus na formação de Nova York. 1. Ed. São Paulo: Planeta,
2018, p. 56-58.
208

No entanto, se tornaram também espaços públicos de resistência religiosa, principalmente por


receberam muitos cristãos-novos judaizantes que apostasiaram do catolicismo para retornarem
ao judaísmo rabínico tradicional.
O cenário de relativa segurança e liberdade de culto foi resultado das políticas de
tolerância religiosa empreendidas pelo governo holandês desde o Acordo da Paraíba, em
janeiro de 1634 que, logo no seu primeiro artigo, proclamou a liberdade de consciência e de
culto. Desde 1641, por exemplo, o artigo 25 do tratado firmado entre Portugal e as Províncias
Unidas, em junho daquele ano, assentava que “todas as pessoas das Províncias Unidas e
residentes em colônias holandesas, de qualquer confissão religiosa, não seriam objetos de
perseguição inquisitorial”640. Nos territórios ocupados pelos holandeses, isso se fortalecia
devido à interdição da jurisdição inquisitorial nesses espaços, bem como pelo fato do tribunal
inquisitorial não ter, efetivamente, alcance sobre os judeus, mas sim sobre os cristãos-novos
acusados de judaizar ou aqueles que se tornaram apóstatas ao retornarem ao judaísmo.
Esse contexto de crise e de instabilidade política teve repercussão na atividade
inquisitorial, afinal, o paulatino abandono do envio de visitações inquisitoriais para os
territórios ultramarinos portugueses era justificado tanto pelo montante financeiro envolvido
neste tipo de operação, problema este discutido desde a visitação do século XVI, como
registrado na correspondência trocada entre Heitor Furtado de Mendonça e o Conselho Geral
do Santo Ofício lisboeta641, quanto pelo próprio contexto das guerras em que Portugal estava
envolvido, seja a guerra contra os holandeses no Brasil ou, de maneira igualmente importante,
os conflitos entre Portugal e Espanha, na Restauração da coroa portuguesa, em 1640, e o
consequente fim do período de União Ibérica.
Isso não significa dizer, no entanto, que a colônia ficou desassistida dos
mecanismos de investigação da Inquisição. Apesar de não poder atuar nos territórios
holandeses conquistados, a Inquisição “não deixou de infligir angústias e pavor em alguns
portugueses que viviam na região e suas proximidades”642. Foi neste período, inclusive, que a
rede de comissários e de familiares do Santo Ofício começou a se fortalecer no reino, de
modo que o aumento do número de habilitações expedidas para estes cargos no Brasil, ao
longo do seiscentos, espelhou a tendência que também ocorria em Portugal643. A partir de

640
Ibid., p. 88.
641
Correspondência inédita da Inquisição do Santo Ofício para o primeiro visitador da Inquisição. Editado por
Antônio Baião. Revista Brasília. v. 1. Coimbra: Imprensa Universitária, 1942, p. 543-551.
642
LEVY, Daniela. De Recife para Manhattan: os judeus na formação de Nova York. 1. Ed. São Paulo: Planeta,
2018, p. 85.
643
Cf. CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colonial.
Bauru, SP: Edusc, 2006.
209

meados do século XVII, os comissários e os familiares se tornaram, de maneira mais


capilarizada no espaço colonial, os principais representantes do tribunal na América lusa.
Em relação à atuação inquisitorial na colônia, no século XVII, identificamos, com
base nos levantamentos realizados pela historiadora Anita Novinsky644, o montante de 94
processos instruídos contra prisioneiros do Brasil (83 homens e 12 mulheres), sendo a ampla
maioria referentes ao crime de judaísmo (55 processos instruídos contra 44 homens e 11
mulheres). Além da visitação realizada no início deste século, na capitania da Bahia, o Santo
Ofício manteve-se atuante, dentro dos limites possíveis durante o período das guerras luso-
holandesas, processando prisioneiros de guerra que tivessem atentado contra a fé. Um
episódio conhecido ocorreu em 1645, na tomada do Forte Mauricio, quando cerca de dez
judeus foram detidos e enviados ao bispo da Bahia d. Pedro da Silva Sampaio para,
posteriormente, serem encaminhados às autoridades da Inquisição lisboeta.
Alguns destes ‘prisioneiros do São Francisco’ ou ‘do Forte Maurício’, como são
conhecidos, eram originários dos territórios que viriam a formar a Alemanha e a Polônia e
conseguiram livrar-se da Inquisição. Outros, no entanto, por falarem fluentemente o
português, despertaram suspeitas de que poderiam ser cristãos-novos apóstatas e foram
investigados pelo tribunal inquisitorial645. Sobre este episódio, Ronaldo Vainfas assinala que:

O bispo da Bahia manteve os dez judeus presos até meados de 1646, tempo que
julgou necessário para instruir os processos contra eles. Isso feito, os remeteu à
metrópole, tudo com o aval do Tribunal de Lisboa, onde chegaram em fins de julho.
Enquanto estiveram presos na Bahia, os judeus portugueses ouviram ameaças e
imprecações, muitos dizendo que iriam todos arder na fogueira do Santo Ofício ou
que “a Inquisição os haveria de queimar”. Ficaram apavorados, pois esse era o
grande medo dos “judeus novos” quando irrompeu a guerra pernambucana, em
1645, e o principal motivo de embarcarem para a Holanda às centenas, fugindo do
Recife.646

Outro momento de maior inflexão inquisitorial ocorreu no ano seguinte, na


Capitania da Bahia, na chamada ‘Grande Inquirição de 1646’, estudada por Novinsky. Foi
quando o Santo Ofício lisboeta mandou realizar um inquérito especialmente voltado para a
investigação da vida e crenças dos cristãos-novos, tendo em vista que, na esteira dos eventos
da guerra, desconfiava-se que esse grupo era um apoiador em potencial do inimigo

644
Cf. NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI a XIX. 2. ed. rev. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
645
LEVY, Daniela. De Recife para Manhattan: os judeus na formação de Nova York. 1. Ed. São Paulo: Planeta,
2018, p. 85-93.
646
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 224.
210

holandês647. Com efeito, a década de 1640 foi um momento de grandes tensões religiosas
associadas ao contexto de guerra.
No Reino, este também foi um período especialmente desafiador para o Santo
Ofício. Com a instauração da Dinastia Bragança na Coroa de Portugal, o Tribunal da
Inquisição esteve envolto não apenas no combate aos famigerados hereges, inimigos-
primeiros da Cristandade, mas, além dos habituais inimigos, a Inquisição enfrentaria, nesse
contexto, relações de força com a Coroa, a fim da manutenção do controle e do
funcionamento do tribunal, ao mesmo tempo em que era objeto de críticas e de insatisfações
vindas de diferentes camadas e grupos sociais.
As injúrias contra a Inquisição registradas no Brasil, anteriormente analisadas, por
exemplo, possuem semelhanças significativas com casos dos tribunais de Évora, Coimbra e
Lisboa, analisados pelo historiador Yllan de Mattos648, em estudo já mencionado, de modo
que se pode dizer que as críticas direcionadas ao Santo Ofício circulavam amplamente no
mundo atlântico português, configurando-se como expressões dos descontentamentos sociais
em relação ao famigerado tribunal da fé.
Essa circulação de discursos detratores – ou ao menos questionadores – sobre o
Santo Ofício atravessou tanto as camadas populares quanto os circuitos da cultura erudita. Por
mais que tenha se projetado como uma das mais importantes instituições religiosas de sua
época, a Inquisição portuguesa não passou incólume aos mais variados tipos de críticas e de
sentimentos hostis a ela dispensadas. “As críticas contra a Inquisição nasceram ainda no
projeto de estabelecimento do Tribunal, na primeira metade do século XVI, e foram sendo
acrescidas de outros pleitos ao longo dos anos”, diz Mattos649. No ‘mundo letrado’ também
borbulhavam opiniões contra os procedimentos do tribunal da fé.
Um dos mais notáveis opositores da Inquisição, no século XVII, foi o padre
Antônio Vieira (1608-1697). Nascido em Lisboa, viveu sua infância e juventude na Bahia; foi
contemporâneo das conquistas holandesas, militante da catequese jesuítica e da defesa da

647
Cf. NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia – 1624-1654. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1972.
648
Cf. MATTOS, Yllan de. A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681).
1.º ed. Rio de Janeiro: Mauad: Faperj, 2014. Ainda sobre esta questão, ver também: MATTOS, Yllan de. “Me
tome o Santo Ofício no cu”: injúrias populares, críticas e vocábulos da praça pública contra a Inquisição
portuguesa (séculos XVI-XVIII). In. ASSIS, Angelo Adriano Faria de; LEVI, Joseph Abraham; MANSO, Maria
de Deus Beites (Org.). A Expansão: quando o mundo foi português – Da conquista de Ceuta (1415) à atribuição
da soberania à Timor-Leste (2002). Braga: NICPRI – Núcleo de Investigação em Ciência Política e Relações
Internacionais, 2014, p. 132-151; MATTOS, Yllan de. “O Santo Ofício age com malícia e velhacaria, [...] prende
as pessoas por amor ao dinheiro”: as críticas e os críticos processados pela Inquisição portuguesa (1605-1750).
Revista Ultramares, n.º 7, jan/jun, 2015, p. 61-90.
649
MATTOS, Yllan de. As notícias recônditas e os escritos contra o Santo Ofício português na época Moderna
(1670-1821), Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, jan/abr. 2019, p. 86.
211

liberdade dos índios, sobretudo durante seu período de permanência no Estado do Maranhão e
Grão-Pará (1653-1661). Além de uma considerável trajetória religiosa, no âmbito da
Companhia de Jesus, Antônio Vieira também teve uma significativa atuação política na luta
pela legitimação do reinado de D. João IV, duque de Bragança, de quem foi conselheiro e
diplomata.
Com efeito, a figura de Antônio Vieira é bastante representativa para explicar as
relações de força entre as instituições religiosas portuguesas, explicitamente a Companhia de
Jesus e o Santo Ofício, e o apoio (ou a oposição) destas à nova dinastia. Se, por um lado, a
Companhia de Jesus, tendo Vieira como um de seus representantes, apoiava a legitimidade do
rei D. João IV, por outro, a Inquisição tornara-se, é certo que não de forma homogênea, “um
ninho de resistência à afirmação do Bragança”650, devido principalmente ao apoio dos
cristãos-novos ao novo monarca entronado. Os conflitos entre o tribunal inquisitorial e a
Coroa lusa se agudizaram neste contexto. A prisão do inquisidor-geral d. Francisco de Castro,
no início da década de 1640, por suspeita de envolvimento em um plano para assassinar D.
João IV, por exemplo, ilustra essas tensões entre a Coroa e a alta hierarquia do tribunal
inquisitorial.
Foi neste cenário que Antônio Vieira apresentou-se como defensor dos cristãos-
novos, chegando mesmo a ir a Roma defendê-los junto ao Papa. De acordo com os
historiadores José Eduardo Franco e Célia Cristina Tavares, o padre Antônio Vieira:

estava convencido de que a comunidade cristã-nova constituía um motor importante


para a reabilitação econômica do país. A saída maciça das empreendedoras famílias
de sangue hebraico para outros países, como consequência das perseguições
sistemáticas do Santo Ofício e da hostil mentalidade antijudaica, tinha contribuído
para a depauperação de Portugal e beneficiado o crescimento de outros lugares para
onde os judeus se deslocaram, como era o caso coevo da próspera Holanda.651

O jesuíta tinha a consciência da importância do suporte financeiro da comunidade


cristã-nova para a Coroa restaurada, de modo que, por meio de sua atuação política, seus
sermões e seus escritos, manifestava-se publicamente contra os estilos da Inquisição,
refinando críticas que circulavam entre as camadas populares, como, por exemplo, o segredo
do procedimento inquisitorial e o argumento do fluxo de cristãos-novos (e de seus cabedais)
para fora do reino, devido às perseguições da Inquisição. Aliás, pode-se dizer que este último

650
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A
Esfera dos Livros, 2013, p. 182.
651
FRANCO, José Eduardo; TAVARES, Célia Cristina. Jesuítas e Inquisição: cumplicidade e confrontações.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007, p. 61.
212

foi um dos pontos nevrálgicos das desavenças entre a Coroa de Portugal e Antônio Vieira, de
um lado, e o Tribunal da Inquisição, de outro.
Como conselheiro do rei, Vieira ponderava sobre estratégias para estimular o
retorno de cristãos-novos e judeus portugueses para o reino. “Desde 1643 Vieira defendia a
liberdade de culto para os judeus portugueses, com vistas a atrair os exilados para o reino”,
diz Ronaldo Vainfas652. Entre as propostas desenvolvidas pelo padre, destacou-se, sem
dúvidas, aquela que propunha a isenção do confisco de bens dos cristãos-novos pela
Inquisição, desde que estes investissem seus cabedais na recém-criada Companhia Geral do
Comércio do Brasil. Essas ideias foram recebidas favoravelmente pela Coroa, inspirando D.
João IV a determinar sua execução por meio de alvará régio, em 1649. Um golpe certeiro na
Inquisição.
O alvará de 1649, inspirado por Vieira, deu início a um período conturbado para a
Inquisição em sua relação com a Coroa lusa, mas também com a Sé Apostólica em Roma, que
se arrastou pelas três décadas seguintes. A retirada da jurisdição inquisitorial dos confiscos de
bens, exceto nos casos de réus impenitentes, representava uma ofensa para os inquisidores.
Não se tratava apenas da diminuição do poder de confisco de uma instituição ‘sanguinária e
cruel’, como queriam fazer crer seus contemporâneos, mas também da redução da autonomia
do tribunal inquisitorial e do amplo poder e prestigio social que lhe acompanhava.
O Santo Ofício reagiu recorrendo ao papa Inocêncio X (1644-1655), que
respondeu favoravelmente à demanda do tribunal, emitindo o Breve Pro munere
sollicitudinis, anulando no ano seguinte o alvará régio, motivo da discórdia. Apesar de coagir
os inquisidores para que não executassem o breve papal, D. João IV teve uma postura
relativamente cautelosa, pois cedeu, parcialmente, à pressão de Roma e da alta hierarquia do
tribunal português. O alvará seria suspenso momentaneamente e a Inquisição poderia
continuar a executar os confiscos de bens dos cristãos-novos processados, excetuando-se
aqueles que tivessem relações com a Companhia Geral do Brasil 653. Postura estratégica do rei,
sobretudo, pelo fato da Sé Apostólica a esta altura ainda não reconhecer a legitimidade da
dinastia de Bragança, o que só ocorreu em 1668.
Com a morte do inquisidor-geral d. Francisco de Castro, em 1653, o comando do
Santo Ofício ficou a cargo do Conselho Geral da Inquisição, justamente devido à ausência de
legitimidade dos Braganças em Roma, situação que só foi resolvida durante o pontificado do

652
VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 221.
653
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A
Esfera dos Livros, 2013, p. 186.
213

papa Clemente X (1670-1676), quando d. Pedro de Lencastre foi nomeado inquisidor-geral,


em 1671. Em meados da década de 1650, a Coroa voltou a entrar em conflito com o Santo
Ofício ao expedir, em 1655, um alvará ainda mais restritivo do que o anterior, pois
determinava que o Fisco “passava a estar subordinado ao Conselho de Fazenda, deixando de
ser administrado pela Inquisição”654. Este poderia ter sido outro duro golpe na autonomia dos
inquisidores não fosse a morte do rei D. João IV, em 1656, e a ascensão da rainha consorte D.
Luísa de Gusmão como regente no ano seguinte, devido a menoridade do futuro D. Afonso
VI. Pressionada, a regente acabou por ceder às demandas do tribunal, revogando, em 1657, os
referidos alvarás e devolvendo, enfim, o confisco de bens para a tutela da Inquisição.655
O fato é que, entre as décadas de 1640 e 1680, o tribunal inquisitorial enfrentou
diferentes opositores no campo político e religioso, tendo o padre Antônio Vieira como um de
seus principais rivais públicos. “Vieira foi o primeiro a desafiar a Inquisição portuguesa em
campo aberto”, lembra-nos Vainfas656. Com efeito, os principais embates políticos travados
entre o jesuíta e a Inquisição orbitavam em torno de questões como o conhecido e excessivo
rigor dos procedimentos inquisitoriais e das perseguições aos cristãos-novos. A bem da
verdade, pode-se dizer que Antônio Vieira impulsionou a visibilidade pública de muitas
críticas que circulavam contra o Santo Ofício, em diferentes camadas sociais. Ao trazer para a
cena política as insatisfações sociais em relação à Inquisição, Vieira colocava em xeque os
dispositivos de controle inquisitorial. “O intento de limitação das faculdades do Tribunal do
Santo Ofício visava também à alteração de alguns dos seus procedimentos regimentais mais
desumanos e injustos”, apontam Franco e Tavares657, e complementam, “[...] em particular
seu mais temível meio de manobra, o segredo garantido sobre a identidade dos denunciantes,
que os protegia do conhecimento dos acusados”.658
No campo religioso, o padre também chamou a atenção dos inquisidores por
defender em seus escritos – especialmente na obra Esperanças de Portugal – ideias
heterodoxas, como, por exemplo, a de que o rei D. João IV ressuscitaria “para conduzir, em
pessoa, o triunfo de Portugal à frente do Quinto Império”659. Esta foi, de fato, a motivação
formal para a instrução do processo inquisitorial contra Vieira, tendo-se em conta que,
independentemente das posições políticas em jogo na defesa dos cristãos-novos e nas críticas

654
Ibid., p. 190.
655
Ibid., p. 191.
656
VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 12.
657
FRANCO, José Eduardo; TAVARES, Célia Cristina. Jesuítas e Inquisição: cumplicidade e confrontações.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007, p. 62.
658
Ibid., loc. cit.
659
VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 225
214

aos estilos da Inquisição, havia na afirmativa do padre evidências significativas de conteúdo


herético. O processo arrastou-se numa quebra de braço entre o tribunal e o padre, iniciando-se
em 1663 e sendo finalizado em 1667. Depois de liberto pela Inquisição, Vieira migrou para
Roma e obteve o apoio do papa Clemente X, sendo agraciado, em 1675, por um Breve papal
que o isentava da jurisdição inquisitorial portuguesa. Se, por um lado, Vieira tornava-se um
empecilho público para a Inquisição, por outro, o tribunal também soube utilizar-se de suas
prerrogativas para perseguir o jesuíta por suas ideias proféticas em relação ao retorno do rei
morto em 1656.
O jesuíta tornou-se um inimigo público da Inquisição. Não foi por acaso, por
exemplo, que a ele foi atribuída a autoria das Notícias recônditas do modo de proceder a
660
Inquisição de Portugal com os seus prezos [...] , uma das mais conhecidas obras contra a
Inquisição escrita por seus contemporâneos. Na verdade, a autoria deste documento foi objeto
de polêmica e discussões na história e historiografia da Inquisição portuguesa, considerando-
se que outros indivíduos também foram identificados como seus autores, como, por exemplo,
Pedro de Lupina Freire, ex-secretário do Santo Ofício, e David Nieto, médico e pregador
judeu em Londres. O documento manuscrito original, nomeado Manda-me a quem devo
obedecer, foi produzido entre 1681 e 1700 e passou por uma série de manuseios em sua
trajetória editorial, com edições impressas publicadas entre 1708 e 1821. Na Inglaterra,
edições publicadas em inglês em 1708 e 1713. Em 1720 e 1722 publicações em português e
espanhol; já a edição impressa em Portugal, com autoria atribuída ao jesuíta, data de 1821,
sendo publicada, portanto, no mesmo ano de extinção do tribunal inquisitorial lusitano.661
Com efeito, as tentativas de reconstituição da autoria deste documento tornam-se
relevantes não pelo fato de inferir a identidade de seu autor, mas por fornecer informações
sobre a trajetória de constituição do próprio documento e sobre seu contexto de produção,
afinal, de acordo com Mattos662, o manuscrito original carecia da assinatura de seu autor, isto
possivelmente porque “[...] os autores sejam muitos e este texto tenha sido escrito sob certa
tradição, compilando várias críticas ao Santo Ofício português”663. Nesse sentido, muito mais
do que ponderar se Antônio Vieira foi ou não, efetivamente, o autor do texto, torna-se
imperioso considerar que narrativa deste documento foi composta por ‘vozes polifônicas’.
660
Na edição utilizada nesta pesquisa, a autoria do documento é atribuída ao padre Antônio Vieira. Cf.
VIEIRA, António. Notícias recônditas do modo de proceder de Portugal com os seus prezos, que ao pontífice
Clemente X deo o P. Antonio Vieira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821.
661
Para uma discussão mais detalhada sobre a autoria e a trajetória editorial deste documento, ver: MATTOS,
Yllan de. As notícias recônditas e os escritos contra o Santo Ofício português na época Moderna (1670-1821),
Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, jan/abr. 2019, p. 84-110.
662
Ibid., p. 96.
663
Ibid., loc. cit.
215

A circulação pública de discursos detratores sobre a imagem que se pretendia


ilibada da Inquisição e de seus estilos traz à baila um outro tipo de resistência interposta ao
Santo Ofício, baseada em escritos que questionavam seus procedimentos excessivos. O
combate ao tribunal inquisitorial também ocorreu por meio da pena, do tinteiro e do papel.
De acordo com Mattos:

O texto das Notícias recônditas – tal como o gênero de ‘notícia’ – foi construído
com a intenção de fornecer um relato sobre algo que permanecia oculto (recôndito)
e, com isso, criar um ponto de vista sobre o procedimento da Inquisição portuguesa
com os seus presos. O manuscrito, o livro e suas edições [...] apresentam uma
narrativa pública e que se propõe verídica acerca da temática.664.

Ora, a circulação de cópias manuscritas, na segunda metade do século XVII, e as


edições impressas das Notícias recônditas, nas primeiras décadas do século seguinte,
representaram uma oposição pública ao tribunal inquisitorial, constituindo-se como uma
espécie de libelo acusatório contra os procedimentos da Inquisição. Isto pressupunha,
obviamente, um ataque a cultura do segredo nutrida pelos inquisidores, tendo em vista que o
documento fornecia ao leitor informações detalhadas sobre o funcionamento interno do
tribunal, sobre as condições dos cárceres, sobre o percurso jurídico dos processos, por
exemplo, questões estas que só poderiam ser explicadas por pessoas que tivessem relativo
grau de familiaridade e conhecimento acerca do funcionamento da justiça inquisitorial.
No documento, pode-se interceptar diferentes passagens cujos exemplos
demonstram os infortúnios decorrentes da atividade inquisitorial. Sobre a infâmia e
humilhação social dos réus, o texto lembrava: “ainda hoje vive em Madrid uma mulher tão
honesta, que pelo que lhe sucedeo nos cárceres de uma Inquisição de Portugal, não quis que
ninguém mais lhe visse o rosto, e ainda hoje lá vive com este sentimento” 665. Em relação aos
confiscos dos bens dos prisioneiros, outro ponto sensível das críticas direcionadas ao Santo
Ofício e presente em diferentes camadas sociais, as Notícias Recônditas enfatizam a
dramática situação de vulnerabilidade econômica vivida pelas famílias dos réus cujos bens
eram confiscados pelo tribunal.

Pronunciando um homem no Santo Oficio, o mandam prender, tratando-o como se


já estivera convicto, porque na mesma hora que o prendera, lhe põem na rúa sua
mulher, e filhos; atravessam-lhe as portas; fazem inventário de todos os bens; e
como se a mulher não tivera parte neles, fica despojada de tudo sem nenhum

664
MATTOS, Yllan de. As notícias recônditas e os escritos contra o Santo Ofício português na época Moderna
(1670-1821), Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, v. 20, n. 40, jan/abr. 2019, p. 88.
665
VIEIRA, António. Notícias recônditas do modo de proceder de Portugal com os seus prezos, que ao pontífice
Clemente X deo o P. Antonio Vieira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821, p. 41.
216

remédio: e quando são marido e mulher ambos presos, ficam os filhos em tal
desamparo, que em muitas ocasiões meninos, e meninas de três e quatro anos, se
recolhera nos alpendres das Igrejas, e nos fornos, se neles acham recolhimentos;
pedindo pelas portas, por não perecerem.666

Outro ponto discutido no documento refere-se ao segredo do procedimento


inquisitorial. O compromisso de manter segredo sobre a trajetória nos cárceres e sobre
detalhes acerca do funcionamento do tribunal acompanhava os réus que eram reconciliados
pela Inquisição. Disso resultava, não raro, episódios em que os ex-réus tendiam a questionar a
idoneidade do processo inquisitorial, reservando para si o lugar de inocentes em um
julgamento considerado fundamentalmente injusto, sendo este também um artificio de dirimir
a mácula social que recaía sobre si. O autor das Notícias recônditas questionava: se no Santo
Ofício “tudo é tão justificado, para que é tanto segredo com penas, juramentos, etc?”667 A
proposta vislumbrada pelo autor do texto não é menos surpreendente do que a provocação
contida na sua indagação.

Não seria maior justificação do Santo Oficio deixar dizer aos réus publicamente o
que passam, e como em tudo se procede com eles, impondo-lhes só a obrigação
natural de dizerem a verdade [...] tirando-lhes o motivo de poderem dizer que
padecem inocentes, e que não podem abrir a boca para procurar remédio, e que
padecem indefesos, porque o medo, e o segredo, lhes impossibilita os meios de
apurarem a sua inocência?668

Ao que parece, para o autor, o medo e o segredo, ao invés de provocarem


obediência e submissão, forneciam o combustível para o argumento de inocência que era
sustentado pelos réus reconciliados. Nesse sentido, a cultura do segredo, nutrida pela
Inquisição, acabava por ter um efeito contrário àquele esperado pelos membros que
compunham o tribunal.
As acusações realizadas contra os parentes eram justificadas, na perspectiva do
autor das Notícias Recônditas, pelo próprio método inquisitorial, que induzia o depoente, no
decorrer das sessões de interrogatórios dos processos, a declarar nominalmente os seus
familiares até o segundo grau de consanguinidade. Diante dessas informações sobre a
genealogia dos réus, ficava fácil para os inquisidores montar uma rede de perseguições, pois
esperava-se que, sob a pressão dos interrogatórios, viessem à tona delações contra outros
indivíduos. Este procedimento resultava em um “dano irreparável aos inocentes”669, pois “os

666
Ibid., p. 4-5.
667
VIEIRA, António. Notícias recônditas do modo de proceder de Portugal com os seus prezos, que ao pontífice
Clemente X deo o P. Antonio Vieira. Lisboa: Imprensa Nacional, 1821, p. 42.
668
Ibid., p. 42-43.
669
Ibid., p. 49-50.
217

presos, aflitos e oprimidos, às cegas, e cheios de temor”670, viam-se obrigados a denunciar


seus parentes, precisamente porque “lhes parecia que se não dão em todos, não tem remédio
para remirem a vida, e daqui vem darem muitos nos pais, filhos, irmãos, sobrinhos e primos, e
em todos falsamente”671. Os testemunhos falsos apresentavam-se, nesse sentido, como um
estratagema de autopreservação, justamente “porque a experiência lhes ensina que não tem
outro remédio para a vida”672. Ora, em uma situação em que a vida se encontrava ameaçada,
dizer a verdade perseguida pelos inquisidores significava comprometer os seus iguais. O texto
das Notícias apresentava uma imagem dramática de denúncia pública dos excessos e dos
assombros característicos do tribunal inquisitorial.

Oh valha-nos a piedade de Jesus Cristo! Para que é tanto rigor? Para que são tantos
assombros? E se neste ato tremem e temem os homens de valor e juízo, que farão
mulheres, meninos e meninas honestas e ignorantes, delicadas e fracas? É ponto este
em que com mais declarado temor confessam muitos o que nunca fizeram673

Nesse contexto de embates políticos, as resistências à Inquisição e a sua


‘pedagogia do medo’ passavam pelo questionamento dos elementos constituintes desse
aparato de coerção. Resistir ao Santo Ofício significava também questionar os procedimentos
do tribunal, opor-se à cultura do segredo inquisitorial, criticar os confiscos dos bens dos
processados, defender a honra e a memória dos réus e propor reformas nos modos de proceder
dos inquisidores. Em 1672, sob o comando do inquisidor-geral d. Pedro de Lencastre, a
Inquisição efetuou a prisão de um grupo de importantes contratadores cristãos-novos. Este
episódio causou complicações nas atividades comerciais efetivadas por via de Lisboa, afinal,
os mercadores cristãos-novos e judeus tinham considerável controle das rotas do comércio,
isto devido à formação de redes de comunicação que eram facilitadas pelos laços de
parentesco das famílias cristãs-novas com indivíduos espalhados pelo Brasil, em Portugal, na
Itália e nos Países Baixos, por exemplo674. Tendo o apoio do jesuíta, a comunidade cristã-
nova enviou representantes para Roma a fim de requerer a Clemente X a concessão de um
novo perdão-geral, nos moldes daquele ocorrido no ano de 1605, e a reforma dos
procedimentos inquisitoriais.

670
VIEIRA, loc. cit.
671
VIEIRA, loc. cit.
672
Ibid., p. 81.
673
Ibid., p. 60.
674
Sobre as redes comerciais dos cristãos-novos nos séculos XVI e XVII, Cf. SILVA, Janaína Guimarães da
Fonseca. Cristãos-Novos no negócio da Capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas
nas redes de comércio entre os anos de 1580 e 1630. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.
218

Além das críticas já conhecidas em relação ao segredo do processo, à infâmia


pública dos penitenciados e ao fisco inquisitorial, havia também reclamações acerca das
condições desumanas dos cárceres da Inquisição, o que, não raro, depauperava as
possibilidades de sobrevivência do condenado. Também existiam reclames sobre a
possibilidade de condenar à fogueira os réus diminutos, ou seja, aqueles que omitiam
informações nos seus depoimentos, bem como o clamor geral para a abolição do uso das
chamadas ‘testemunhas singulares’. Sobre estas, o historiador Bruno Feitler675 esclarece que a
‘singularidade’ em questão não se trata de julgamentos baseados em uma única testemunha,
afinal, a instrução dos processos inquisitoriais pressupunha a realização de uma investigação
colhendo o máximo de denúncias possíveis, “mas sim de testemunhas que relatam fatos
singulares, ou seja, os inquisidores julgavam válido o acúmulo de várias testemunhas que
relatavam fatos ou atos incontestes, isto é, desencontrados, diferentes entre si” 676. Tratou-se,
na verdade, de uma discussão bastante refinada no âmbito da processualística inquisitorial e
da mudança de seus estilos. Os longos memoriais produzidos pelos procuradores e
apresentados em Roma expressavam os descontentamentos da comunidade cristã-nova,
constituindo-se como importantes instrumentos nesta ‘batalha de papéis’ travada contra o
Santo Ofício português, como assinalou Mattos.677
Nesses combates, o Santo Oficio sofreu mais um duro golpe. Com a morte do
inquisidor-geral d. Pedro de Lencastre, em 1673, a condução do tribunal ficou a cargo, mais
uma vez, do Conselho Geral do Santo Ofício. Aproveitando-se deste momento de
instabilidade do tribunal, o papa Clemente X emitiu, em 1674, o breve Cum dilecti,
decretando a suspensão das atividades inquisitoriais em Portugal. A partir de então, a
Inquisição deveria suspender todos os processos em curso, interromper a realização dos autos-
de-fé e se reportar diretamente à Santa Sé romana.
O papado requeria ao Santo Ofício o envio de documentos cuja exclusividade de
posse pertencia ao tribunal português, como é o caso do Regimento inquisitorial de 1640 e
dos processos originais para averiguar se, de fato, os pontos elencados pelos reclamantes
tinham fundamento. Por sua vez, os inquisidores de Portugal respondiam negativamente aos
pedidos de Roma. Essa situação arrastou-se durante mais de meia década, problema herdado
tanto pelo novo inquisidor-geral D. Verissimo de Lencastre quanto pelo chefe da Igreja de

675
FEITLER, Bruno. Teoria e prática na definição da jurisdição e da praxis inquisitorial portuguesa: da ‘prova’
como objeto de análise. In. ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula (Orgs.). O império por escrito:
formas de transmissão da cultura letrada do mundo ibérico (sécs. XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 82.
676
FEITLER, loc.cit.
677
Cf. MATTOS, Yllan de. Uma batalha de papéis: a suspensão e as críticas à Inquisição portuguesa (1670-
1674). Revista de História Moderna, n. 33, 2015, p. 33-55.
219

Roma, a esta altura, o Papa Inocêncio XI. Somente no final do ano de 1680, o Santo Ofício
português, depois de desobedecer a uma série de breves papais, aquiesceu e despachou para
Roma os processos requeridos pelo pontífice.
Sem dúvidas, estas foram batalhas disputadas pelo Santo Ofício em várias frentes,
tensões com a Coroa, com a Companhia de Jesus (na figura de Antônio Vieira), com a
comunidade cristã-nova expatriada, com a nobreza portuguesa e com o próprio Papado.
Nessas relações de força, o tribunal, não obstante golpeado em sua trajetória ao longo do
século, teve êxito na contenda sobre a autonomia de seus poderes. Após a análise dos
documentos inquisitoriais portugueses, o Sumo pontífice de Roma não apenas aprovou, como
também estimulou, por exemplo, a manutenção do uso das ‘testemunhas singulares’,
reabilitando o funcionamento pleno do Santo Ofício português, em 1681. As reformas
estruturais dos procedimentos inquisitoriais ainda demorariam quase um século para
efetivamente serem realizadas.
220

4. 4. Uma pedagogia descontinuada: Inquisição e Estado no século das Luzes

O século XVIII na Europa foi marcado pelo desenvolvimento da filosofia


iluminista. O ‘século das Luzes’, assim denominado por seus contemporâneos devido ao
‘esclarecimento’ decorrente do papel crítico da razão, foi, sem dúvidas, um momento de
revisão e de crítica direcionadas à sociedade do Antigo Regime, suas instituições e seus
costumes. Nesse contexto, o Iluminismo passava, necessariamente, pelo questionamento da
autoridade religiosa e do fanatismo que, não raro, acompanhava os discursos e as práticas
institucionais do Catolicismo. Ao discutir esse contexto cultural na Península Ibérica, a
historiadora Sônia Siqueira pontuou que:

No âmbito da cultura europeia ocidental definiu-se uma Ilustração típica dos países
católicos, que procurou limitar o poder jurisdicional da Igreja, defender o espírito
laico, renovar a atitude científica, propagar as reformas sociais e políticas, proteger a
indústria e comércio, levantar o nível da população. Uma Ilustração que pactuou
com o Catolicismo – não apenas fé, mas principalmente visão de mundo – e se
expressou em reformismo e pedagogismo. Nessa Ilustração se inseriu Portugal.678

Com efeito, a Ilustração em Portugal teve um cariz específico, devido à sua


tendência em articular as mudanças, que então se processavam amplamente na Europa, com
as estruturas culturais da sociedade portuguesa. A lenta e gradual inserção do pensamento
ilustrado em Portugal ocorreu, consideravelmente, a partir dos chamados estrangeirados, ou
seja, “homens que viveram em outros países europeus servindo ao reino em embaixadas e
legações, ou estrangeiros que, a convite do rei, deslocaram-se para Portugal para contribuir
com seus conhecimentos técnicos ou médicos”679. A atuação política e intelectual desses
indivíduos foi fundamental para fortalecer o processo de transformações que se desenvolvia
no reino. Entre os estrangeirados mais conhecidos, devido ao alcance de suas ideias e
proposições, destacam-se médicos, diplomatas, filósofos, teólogos, escritores e embaixadores,
como, por exemplo, Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), Francisco Xavier de
Oliveira, conhecido como ‘Cavaleiro de Oliveira’ (1702-1783), Luís Antônio Verney (1713-
1792) e Dom Luís da Cunha (1662-1749), “todos eles mostraram preocupação com sua terra
natal encarreirando sugestões para resolver seus principais problemas e recompor sua
dignidade no contexto europeu”.680

678
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição e o inquisidor no outono da modernidade. Saeculum, Revista de História.
João Pessoa, jan/jun, 2014, p. 144.
679
SIQUEIRA, loc. cit.
680
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição e o inquisidor no outono da modernidade. Saeculum, Revista de História.
João Pessoa, jan/jun, 2014, p. 145.
221

A opinião da época entre esses indivíduos dizia que Portugal era um país atrasado
e que vivia à sombra da obscuridade cultural. Não por acaso, a questão religiosa foi um ponto
de destaque nas discussões acerca da superação dos problemas que assolavam Portugal. Nesse
contexto, as críticas direcionaram-se para o Santo Ofício, principalmente em decorrência das
perseguições aos cristãos-novos e à censura intelectual operada pelos inquisidores, que
isolava Portugal e seus domínios da ampla produção cultural, filosófica e científica que
circulava na Europa dos setecentos.
Essas críticas assumiam um caráter propositivo de mudanças nos estilos da
Inquisição, como a secularização do tribunal, a suavização das penas e a extinção da tortura,
por exemplo. Em outros casos, a sátira e o descrédito em relação aos poderes sobrenaturais de
figuras do imaginário cristão representavam, sub-repticiamente, um fundo cultural que se
transformava à luz dos princípios do racionalismo ilustrado. A culminância dessas
transformações no imaginário político, religioso e social sobre o Santo Ofício resultou na
progressiva diminuição e esvaziamento dos poderes da própria Inquisição.
A célebre afirmação de Luís Antônio Verney – “tem-se notado que o diabo tem
muito medo dos países onde se sabe bem Filosofia, Medicina, Leis e Teologia, pelo que não
se atreve já em tais lugares a fazer pacto com homem nenhum” 681 – é bastante significativa
para expressar de que modo o pensamento ilustrado se projetava como discurso combativo ao
‘obscurantismo’ religioso representado, sobretudo, pela Inquisição portuguesa. Note-se que o
combate ao diabo, na perspectiva de Verney, seria travado a partir do conhecimento
cientifico, e não necessariamente pelo Santo Ofício. Além disso, não deixa de ser curioso
observar no seu discurso a inversão do lugar ocupado pelo diabo, tendo em vista que este
deixava de ser uma figura que provocava medo; ao contrário, agora ele era a figura temorosa
quando confrontado pelas ‘luzes’ do século XVIII. A sátira de Verney evidencia, com efeito,
um imaginário social e religioso, baseado na desmistificação do poder sobrenatural do diabo,
mas também da instituição inquisitorial. Outro importante representante da crítica ilustrada à
Inquisição, no século XVIII, foi o magistrado português Dom Luís da Cunha. Nascido em
Lisboa, em 1662, Luís da Cunha estudou direito canônico na Universidade de Coimbra,
ingressando na década de 1680 em cargos da administração do Estado português, tornando-se
desembargador da Relação do Porto (1685) e da Casa da Suplicação (1688). Dom Luís da
Cunha teve sua carreira como diplomata iniciada em 1695, quando foi nomeado Enviado
Extraordinário em Londres, ocupando este cargo até 1712. Sua atuação em missões

681
Cartas de Verney, publicada por Cabral de Moncada. Um Iluminista Português do Séc. XVIII, 1941, p. 155-
174 apud SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa. 6º ed., 1994, p. 203.
222

diplomáticas em países como Inglaterra, Espanha, França e Holanda serviu para orientar a
política exterior portuguesa durante o reinado de D. João V (1706-1750), de modo que a
experiência construída nesta trajetória é representativa do pensamento português de renovação
cultural e do espírito científico moderno do setecentos682.
Entre seus textos, destacam-se dois tratados políticos escritos na primeira metade
do século XVIII: Instruções políticas a Marco Antônio de Azevedo Coutinho (1738) e
Testamento político ou Máximas discretas sobre a reforma necessária da agricultura
comércio, milícia, marinha, tribunais e fábricas de Portugal (1748)683. Nesses escritos, o
diplomata reflete sobre os problemas de Portugal e propõe soluções para os males que
atingiam o reino. De acordo com Dom Luís da Cunha, Portugal enfrentava alguns grandes
problemas – por ele chamados de ‘sangrias’ –, que dificultavam a administração dos negócios
do reino. O primeiro deles dizia respeito ao excessivo volume de pessoas integradas na vida
religiosa; o segundo referia-se ao êxodo populacional que Portugal sofria, com indivíduos
migrando para o Estado da Índia e para o Brasil. Este êxodo, na perspectiva de Cunha, era
causado por dois outros problemas: o desequilíbrio no comércio, devido as maiores
oportunidades nestes espaços do império ultramarino português, e a migração de pessoas em
decorrência da ação da Inquisição.
Como vimos, as fugas de indivíduos foram muitas vezes motivadas pelo medo do
Santo Ofício, sobretudo no que se refere à ameaça de prisão com confisco de bens. Dom Luís
da Cunha identificou esse fenômeno, redirecionando, de forma pragmática, sua atenção para o
campo econômico, ou seja, para os prejuízos que Portugal sofria com a saída de capitais,
principalmente da comunidade mercadora cristã-nova. Nas ‘Instruções políticas’ este é um
ponto abordado pelo diplomata, pois, de acordo com seu pensamento, a Inquisição era a
sangria mais perigosa para o corpo do Estado.

por que sendo o Santo Ofício o sangrador, não há quem ouse pôr-lhe as ataduras: e
assim é necessário que se deixe esvair o sangue e perca toda substância, que são,
como digo, os homens que, com medo da Inquisição, estão todos os dias saindo de
Portugal, com seus cabedais, para irem enriquecer os países estrangeiros.684

682
Cf. Nota introdutória de Nanci Leonzo. In. CUNHA, Dom Luís da. Testamento político. Revisão e nota
introdutória de Nanci Leonzo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976, p. XIII-XVI.
683
Utilizamos as seguintes versões publicadas: CUNHA, Dom Luís da. Instruções políticas. Introdução, estudo e
edição crítica de Abílio Diniz Silva, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2001; CUNHA, Dom Luís da. Testamento político. Revisão e nota introdutória de Nanci Leonzo.
São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976.
684
CUNHA, Dom Luís da. Instruções políticas. Introdução, estudo e edição crítica de Abílio Diniz Silva. Lisboa,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, p. 235.
223

Uma década depois, esta questão era novamente discutida por Dom Luís da
Cunha em seu ‘Testamento Político’.

A insensível e cruelíssima sangria que o Estado leva, é a que lhe dá a Inquisição,


porque diariamente com medo dela estão saindo de Portugal com os seus cabedais
os chamados cristãos-novos. Não é fácil estancar em Portugal este mau sangue,
quando a mesma Inquisição o vai nutrindo pelo mesmo meio que pretende querer
vedá-lo ou extingui-lo.685

Evidentemente, a preocupação do diplomata é de cunho econômico. No entanto, é


significativo observar que Dom Luís da Cunha identificou na fuga uma das estratégias de
resistência utilizada pelos indivíduos diante das ameaças do confisco de bens e da ruína
econômica. Se era o medo provocado pela Inquisição que impulsionava o êxodo de pessoas e
seus cabedais, tornava-se necessário a implementação de reformas que atingissem a origem do
problema. Isso significava a adoção de uma política regalista, baseada no fortalecimento do
absolutismo luso e na subordinação de todas as esferas – políticas, sociais, econômicas e
culturais – ao poder régio. No século XVIII, o sucesso econômico de Portugal ia
diametralmente de encontro à existência de um tribunal que funcionava baseando-se numa
estética de terror.
Essas ponderações expressam, com efeito, uma postura consideravelmente crítica
em relação ao modo de proceder do Santo Ofício português e ao espectro terrificante que o
acompanhava. Nesse sentido, torna-se evidente, na narrativa de Dom Luís da Cunha, o
deslocamento do lugar ocupado pelo medo no âmbito do funcionamento do Santo Ofício. Ora,
se, no contexto dos dois primeiros séculos de funcionamento do tribunal inquisitorial
português, a ‘pedagogia do medo’ era largamente utilizada, integrando-se intrinsecamente à
estética e às representações formuladas sobre – e pelo próprio – Santo Ofício, no século
XVIII, o efeito desta utilização tornara-se contraproducente para o desenvolvimento dos
projetos políticos do Estado português.
Entre as propostas de Dom Luís da Cunha para o Santo Ofício, destacavam-se o
fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, assim como defendia Antônio Vieira
na década de 1640, e a liberdade para os judeus viverem sua religião em Portugal e seus
domínios, pontos que colocavam em xeque um dos principais argumentos para o
estabelecimento e funcionamento da própria Inquisição, pois o pressuposto da existência do
criptojudaísmo entre os cristãos-novos esvaziava-se. Outros pontos das propostas deste

685
CUNHA, Dom Luís da. Testamento político. Revisão e nota introdutória de Nanci Leonzo. São Paulo:
Editora Alfa-Ômega, 1976, p. 75-76.
224

diplomata iam diretamente de encontro àquilo que integrava a ‘pedagogia do medo’, pois
propunha o fim do confisco de bens e sua restituição aos herdeiros, a explicitação dos nomes
das testemunhas e vistas dos processos e o fim dos autos-de-fé. Pode-se dizer, nesse sentido,
que a reforma da Inquisição, proposta por Dom Luís da Cunha, passava necessariamente pela
superação dos elementos presentes no modelo de ação baseado no controle social, o qual se
efetivava por meio da sutil difusão do medo.
As proposições do diplomata são representativas da nova mentalidade que se
instalava no cenário cultural europeu setecentista. As críticas dos estrangeirados às
instituições religiosas do Antigo Regime, como é o caso do Santo Ofício, expressavam as
refinadas formulações de uma elite intelectual desejosa da implementação de soluções
eficazes para os problemas de Portugal. Este fundo cultural de mudanças paulatinas no
imaginário social sobre o Santo Ofício também alcançou outras camadas sociais. Tratou-se,
em verdade, de uma ampla circularidade de ideias, de crenças e de valores entre os diferentes
‘níveis culturais’, cujo ponto em comum era o tribunal inquisitorial como objeto de críticas e
de insatisfações.
A compreensão do processo de descontinuidade da ‘pedagogia do medo’, no
século XVIII, deve considerar, nesse sentido, tanto o entendimento dos aspectos políticos que
engendraram mudanças internas no funcionamento do tribunal inquisitorial quanto a reflexão
sobre as transformações mais amplas que se processavam no imaginário sociocultural e
religioso daquele contexto. Os historiadores Carlos André Macedo Cavalcanti e Afrânio
Jácome, ao discutirem as reformas no Direito Inquisitorial a partir da promulgação do
Regimento inquisitorial de 1774, explicitam que:

Sem o mesmo apelo de antes, o Tribunal não mais movimentaria as multidões que
marcaram seus autos-de-fé e que tanto haviam fortalecido o poder simbólico dos
‘homens de fé’. O papel de pretenso canalizador das insatisfações populares, que
havia marcado o Tribunal após a sua fundação, por mais de dois séculos, estava
exaurindo-se.686

Com efeito, esse cenário de transformações teve um impacto significativo entre os


inquisidores. Ao discutir as mudanças no imaginário inquisitorial acerca das narrativas sobre
o medo das bruxas, Carlos André Macedo Cavalcanti687 desenvolveu a ideia de ‘pedagogia do

686
CAVALCANTI, Carlos André Macêdo; JÁCOME, Afrânio Carneiro. Da Pedagogia do Medo à Inquisição
Esclarecida: o Direito Inquisitorial nos Regimentos de 1640 e de 1774. REVTEO – Revista de Teologia e
Ciências da Religião da UNICAP/PE, dez/2012, n. 1, v. 01, p. 117.
687
CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. O imaginário da Inquisição: desmitologização de valores no
Tribunal do Santo Ofício, no Direito inquisitorial e nas narrativas do medo de bruxa (Portugal e Brasil, 1536-
225

desprezo’, a fim de explicar o que define como processo de “desmitologização de valores”,


operado pelo Santo Ofício no século XVIII. De acordo com Cavalcanti, “à Pedagogia do
Medo opôs-se lentamente uma Pedagogia do Desprezo”688. Esta nova percepção
paulatinamente adotada pelo tribunal inquisitorial é definida pelo autor nos seguintes termos:

trata-se da descrença em magias e bruxas, resultante da tendência


desmitologizadora. Nos processos com a marca desta nova Pedagogia, os réus
passaram a receber um tratamento de distância e desinteresse por suas culpas, que
seriam consequência de ignorância e falta de conhecimento religioso [...]. Para a
própria fé dos inquisidores, a concepção de desprezo tem fortes consequências: ao
negar a mística em seu valor ontológico, o inquisidor estava fazendo-o não só para o
réu, mas sobretudo para si.689

As ponderações desenvolvidas por Cavalcanti são consideravelmente pertinentes


não apenas para perceber como as diferentes transformações na sociedade, na cultura e no
imaginário religioso do século XVIII se fizeram sentir no Santo Ofício, mas principalmente
para provocar a reflexão sobre o alcance deste tipo de mudança em outra escala, a saber: se
figuras emblemáticas do imaginário demonológico da época moderna, como é o caso das
bruxas, do diabo ou mesmo de tantos outros ‘agentes de Satã’, não mais provocavam entre os
inquisidores a celeuma de emoções e dramaticidade características da sensibilidade barroca, o
que dizer sobre o poder de intimidação do próprio Santo Ofício neste contexto? Em outras
palavras: quais fatores impactaram para a descontinuidade do uso da ‘pedagogia do medo’
pela Inquisição portuguesa?
Na segunda metade do século XVIII, o Santo Ofício português passou por uma
série de reformas efetivadas pelo estadista Sebastião José Carvalho de Melo (1755-1777),
Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, que atuou como Secretário do Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra (1750-1755) e Secretário de Estado dos Negócios Interiores do
Reino (1756-1777), durante o reinado de D. José I (1750-1777). Com efeito, a política
pombalina em relação ao tribunal inquisitorial marcou indubitavelmente o destino do Santo
Ofício, seu poder e possibilidades de atuação, afinal, como afirma Yllan de Mattos, “o fim
último da ação pombalina para a Inquisição era sua subordinação ao poder régio”690.

1821). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação em


História, Recife, 2001.
688
Ibiden, p. 91; CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. No imaginário da intolerância: da pedagogia do medo
à pedagogia do desprezo. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, p. 79-111.
689
CAVALCANTI, op. cit., 2001, p. 93.
690
MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento da Inquisição no Grão-Pará
pombalino (1763-1769). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em História, Niterói, 2009, p. 90.
226

De fato, a reforma pombalina da Inquisição consistiu num conjunto de estratégias


que objetivavam a plasticidade do tribunal, moldando-o aos interesses e necessidades políticas
da Coroa portuguesa, sem cogitar sua extinção, mas impactando significativamente o seu
modo de proceder, o que culminou na paulatina descontinuidade da ‘pedagogia do medo’
operacionalizada pelo tribunal inquisitorial desde o seu contexto de estabelecimento. A este
respeito, os historiadores Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, afirmam:

O projeto de Carvalho e Melo não se propunha a liquidá-la. Ao invés, tratava-se de


reabilitar, adaptando-a e submetendo-a, no contexto das reformas eclesiásticas que
se empreendiam de forma sistemática, coerente e sem o cariz pontual e avulso
característico de tentativas similares desde o reinado de D. Manuel I. As traves
mestras do programa resultam evidentes, numa época em que os valores globais na
sociedade se alteravam, o peso da Igreja católica no contexto da política
internacional europeia decaía, a piedade barroca era substituída por formas de
devoção mais reguladas e o clero já não exercia a atração de antanho. Na linha do
despotismo esclarecido, pretendia-se reforçar o processo de secularização do Estado,
mantendo-o católico, mas libertando-o da pressão ultramontana em questões de
jurisdição e afirmando a sua soberania face ao poder pontifício, enquanto a Igreja e o
clero se deviam submeter à monarquia do domínio temporal, para o que urgia
cercear-lhe os imensos privilégios que detinham. A Inquisição não foi uma ilha
neste programa reformador e nele deve ser perspectivada. O plano tinha a marca de
ideias de quem muito inspirara Pombal, como Luís da Cunha e outros ilustrados
portugueses, os quais, embora condenassem o Santo Ofício tal como ele existia,
cogitaram que uma reforma do mesmo podia servir de apoio ao Estado para
preservar o aparecimento de novas ‘seitas’, como se fosse possível harmonizar
Inquisição e Luzes.691

As proposições de Dom Luís da Cunha forneceram o lastro intelectual para a


subordinação do Santo Ofício pelo Marquês de Pombal e a consequente fragmentação dos
elementos emblemáticos que integravam o imaginário social sobre a Inquisição, como, por
exemplo, o fim dos autos-de-fé públicos (1765) definitivamente extintos em 1767. De acordo
com o historiador Luís A. de Oliveira Ramos, “[...] Pombal actua por forma a que cessem
diversas práticas do Santo Ofício, o que concorre para atenuar a sua força, enquanto entidade
produtora de medo e também a sua autonomia”692. Isto fica evidente com a criação da Mesa
Real Censória, em 1768, que retirou da Inquisição a jurisdição sobre a censura de livros, mas
fica mais evidente ainda com a abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos,
ocorrida em 1773, e com a publicação do Regimento inquisitorial de 1774, último regimento
do Santo Ofício, que representou a consolidação da reforma pombalina da Inquisição.

691
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A
Esfera dos Livros, 2013, p. 349.
692
RAMOS, Luís A. de Oliveira. A Inquisição pombalina. Lisboa: Separata da Revista Brotéria. vol. 115, n. 2-3-
4, ago-set-out/1982, p. 7.
227

Com efeito, o último regimento inquisitorial sintetizou esse processo de mudanças


no Tribunal do Santo Ofício português. No que se refere ao universo mágico-religioso da
época moderna, em que imperava a figura do diabo, o tom do regimento inquisitorial de 1774
é de descrédito em relação aos poderes sobrenaturais das feitiçarias – e todo seu complexo de
sortilégios, de malefícios e de adivinhações – e do próprio pacto com o diabo. O Título XI do
Livro III deste regimento, a este respeito explicita:

[...] se compreende que os Espíritos malignos pelos pactos ajustados com os


feiticeiros, sortilégios, adivinhadores, e astrólogos judiciários, não podem romper as
leis fundamentais da ordem da Natureza que a Providência do Supremo Autor da
mesma natureza fez invioláveis, e imutáveis, para conservação do mundo: e pela
outra parte se conclui, que se o contrário fosse, ninguém escaparia aos estragos do
ódio genial dos sobreditos Espíritos malignos, sempre enfurecidos contra a
miserável humanidade; e ninguém poderia refrear a péssima índole de todos os
malvados, que com eles se dizem conspirar; porque logo que todos eles se achassem
livres, queriam alistar-se debaixo das bandeiras de Satanás, para em causa comum
extinguirem todos os viventes racionais.693

A narrativa do documento expressa uma postura de distanciamento e de


desconfiança com os supostos poderes sobrenaturais oriundos das artes mágicas, refletindo a
influência do imaginário ilustrado da segunda metade do século XVIII, nos procedimentos
inquisitoriais. Esta nova postura é explicitamente evidenciada no texto do regimento que
ajuizava categoricamente que “pela dedução e combinação de tudo o referido, se concluiu
teológica, jurídica e geometricamente, que os feitiços, sortilégios, adivinhações,
encantamentos e malefícios, depois da redenção do mundo foram manifestamente imposturas
maquinadas”694. O famigerado pacto demoníaco tornara-se, na ótica inquisitorial, fruto da
fantasia. Nesse sentido, se o conjunto de práticas mágicas englobadas na categoria de
feitiçaria eram, na verdade, “maquinações da malicia”695, “não seria coerente que
julgássemos” – diz o regimento – “aos sobreditos réus incursos no crime de heresia a que é
anexa a pena capital; mas sim nos de fingimento, de impostura; de engano, e de
superstição”696. As feitiçarias que anteriormente eram realizadas sob influência diabólica,
neste contexto, passaram a ser tratadas com certo escárnio e foram pouco a pouco reduzidas a
superstições praticadas por embusteiros. O Direito inquisitorial expressava com este

693
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado com o real beneplácito, e régio
auxilio pelo eminentíssimo e reverendíssimo senhor Cardeal da Cunha, dos Conselhos de Estado e Gabinete de
Sua Majestade, e Inquisidor-Geral nestes reinos e em todos os seus domínios – 1774, Livro III, Titulo XI. In.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 157, n. 392, jul-set/1996, p. 949. Daqui
para frente, apenas: Regimento de 1774.
694
Regimento de 1774, Livro III, Titulo XI, p. 950.
695
Ibid., p. 952.
696
Ibid., loc. cit.
228

regimento as novas concepções que subsidiavam a abordagem e as estratégias do Santo


Ofício.

E por quanto no presente século iluminado seria incompatível com sisudeza e com o
decoro das Mesas do S. Ofício, instruírem volumosos processos com formalidades
jurídicas, e sérias, a respeito de uns delitos ideais, e fantásticos com a consequência
de que a mesma, seriedade, com que fossem tratados, continuasse em lhes fazer
ganhar maior crença nos povos, para neles multiplicarem tantos sequazes das
doutrinas de terem verdadeira existência os sobreditos enganos e imposturas,
quantos são os pusilos e ignorantes; quando pelo contrário, sendo desprezados e
ridicularizados virão logo a extinguir-se como a experiência tem mostrado entre as
nações polidas da Europa.697

O processo de descontinuidade da ‘pedagogia do medo’ esteve inserido, portanto,


nesse contexto de transformações mais amplas relacionadas ao alcance das ideias ilustradas
no direcionamento das reformas pombalinas da Inquisição, bem como nas mudanças de
percepção que essas ideias lentamente provocavam nos diferentes grupos e níveis culturais.
No Brasil, a visitação realizada por Geraldo José de Abranches ao Grão-Pará
ocorreu no mesmo momento em que as reformas pombalinas da Inquisição se processavam. A
documentação desta visitação, não obstante o pouco volume de apresentações à Mesa
inquisitorial, permite visualizar a atuação desta instituição no espaço colonial luso-americano
em um período de declínio do poder político-religioso do Tribunal do Santo Ofício, bem
como permite identificar indícios da sobrevivência do temor social provocado pela presença
da Inquisição. Com efeito, o historiador José Roberto do Amaral Lapa, responsável por
identificar as fontes dessa visitação nos arquivos portugueses, registrou que:

A Visitação no Pará se dá numa época em que já se iniciara o declínio da Inquisição


em Portugal. Não há mais o rigor antigo, a mentalidade muda aos poucos, as
perseguições ferozes aos judeus não mais se fazem. As penas de morte não mais
existem, geralmente as penas são de penitencia, muito raros os casos de açoite e
degredo [....] [A Inquisição] Era agora uma sombra do que tinha sido no passado,
embora na verdade essa sombra ainda incutisse temor e a sua ação numa colônia,
onde as dimensões das ameaças e castigos assumiam outras proporções, não podia
ser desprezada, inclusive como eficiente instrumento do Estado e da Igreja em busca
de disciplina e submissão, impondo-se pelo terror.698

Em nove de abril de 1764, o soldado Manoel José da Maia apresentou-se ao


visitador do Grão-Pará para confessar suas culpas. Dizia ele que, cerca de três anos antes,
estava em uma embarcação com destino a Ilha do Marajó e em companhia de Atanásio,
indígena que lhe ensinou algumas orações para fins amorosos, “eficaz para atrair as mulheres

697
Regimento de 1774, Livro III, Titulo XI, p. 951.
698
Livro da Visitação do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769), p. 27-28.
229

a vontade de quem usasse da dita oração tendo fé nela”699, entre as quais estavam a Oração de
São Marcos e a Oração da Cruz. De acordo com o documento, a primeira oração era
constituída pela seguinte invocação:

São Marcos, pela árvore divina três cálices consagrados, O Espirito Santo te
confirme por estes teus olhos em terra de Lambis [sic] assim meu São Marcos
brioso, sou pedra de Diamante, Jóias de Ouro para os teos olhos, assim como, digo,
assim tal fulana abranda-te como manso cordeiro, digo, abranda-te rico plantor o
coração de Touro bravo abranda-te fulana pela árvore e pela cruz.700

E a segunda oração dizia: “fulana, juro-te por esta cruz, que teu sangue será
embebido, que não poderás comer, nem beber, nem sossegar, sem que tu venhas falar
comigo”701. Com efeito, este é um interessante exemplo das práticas mágico-religiosas
populares que circulavam pelo espaço colonial e que eram constituídas por sortilégios vindos
de diferentes matrizes culturais, como a indígena, a africana e a europeia702. No entanto, o que
chama atenção na confissão de Manoel José da Maia é a advertência de Atanásio para
manterem segredo sobre aqueles sortilégios, pois, de acordo com o confitente, o indígena lhe
dizia “que não contasse a ninguém o que lhe havia ensinado, por ser tudo caso que se havia de
denunciar a Santa Inquisição”703. Como se vê, o medo de ser descoberto pelo Santo Ofício
provocou a estratégia de autoproteção de Atanásio. Apesar de relativamente infrutífero,
notadamente pelo descumprimento do segredo acordado, o estratagema do indígena não deixa
de ser um tipo de resposta ao temor ainda provocado pela Inquisição naquele contexto.
Há, nesse conjunto documental, alguns registros que explicitam narrativas de
medos presentes no imaginário ocidental na longa duração. A pesquisa da historiadora Sarah
dos Santos Araújo se debruçou sobre as fontes da visitação do Grão-Pará para traçar o que
chamou de “fisionomia do medo”704. Utilizando-se de categorias explicativas baseadas no
clássico estudo de Jean Delumeau sobre os medos no Ocidente705, Sarah Araújo identificou
mais de duas dezenas de referências sobre diferentes tipos de medos: os ‘medos particulares’,
ou seja, medo do diabo e de feitiços; os ‘medos difusos’, que consistiam no medo do escuro e

699
Ibid., p. 201.
700
Ibid., loc. cit.
701
Ibid., loc. cit.
702
Cf. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
703
Livro da Visitação do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769), p. 201.
704
ARAÚJO, Sarah dos Santos. À espreita do sentimento: Rastros do medo e cotidiano no contexto da ação
inquisitorial no Grão-Pará (1760-1773). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do
Amazonas. Programa de Pós-Graduação em História, Manaus, 2015.
705
Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300 – 1800, uma cidade sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
230

do invisível; e os ‘medos abrangentes’, constituídos pelo medo da morte e da Inquisição706.


Neste estudo, Araújo aponta que entre os 28 relatos referentes às representações do medo 18
deles dizem respeito a denúncias com indicação de situações em que o diabo, supostamente,
esteve presente, o que demonstra, por um lado, a presença e persistência do imaginário
demonológico da época moderna e sua ‘obsessão’ pela figura do diabo e, por outro, a
existência da religiosidade popular formada por práticas mágico-religiosas oriundas de
matrizes culturais que eram demonizadas e associadas pelo discurso religioso às heresias.
Com efeito, o maior volume de apresentações à Mesa inquisitorial, chefiada por
Geraldo José de Abranches, diz respeito às denúncias e às confissões sobre feitiçarias,
totalizando 25 relatos entre as 47 apresentações registradas, no livro da visitação do Grão-
Pará. O cristão-velho José Januário da Silva, por exemplo, compareceu diante do visitador, no
dia 12 de outubro de 1763, a fim de confessar que praticava, há mais de vinte anos, alguns
tipos de curas, como “uma cura do mal que chamam quebranto, o qual costuma dar-se a
conhecer por sinais de febre quebramento de corpo, dores de cabeça”707; além disso, dizia
também realizar curas de mau olhado e de dores de cabeça. Outra curandeira que confessou
práticas semelhantes foi a indígena Domingas Gomes da Ressurreição, natural da vila de
Cametá e que contava então com sessenta anos de idade à época de seu testemunho. Além de
realizar as mesmas curas que José Januário, esta depoente afirmava também dominar a arte de
curar ‘erisipela’ e um tipo de inflamação ocular popularmente chamada de “ar dos olhos” 708.
Estes eram males geralmente tratados com benzeduras, rezas, orações, defumações, entre
outros procedimentos curativos. A este respeito, a historiadora Sônia Siqueira explica:

A medicina mágica, parte da medicina rústica, abrange a benzedura e a simpatia. A


primeira usa rezas, gestos e orações, tendo como oficial o curandeiro; a segunda,
gestos e palavras, transferência e susto e tem como agentes as comadres, os pais, os
mais velhos. Os curandeiros, em geral, usavam conhecimentos provenientes de um
pajé-feiticeiro curador e algumas práticas mágicas e místicas, além de recorrerem às
virtudes medicinais da flora nativa. Usavam espécies de chocalhos, beberagens,
fumos, palavras cabalísticas e orações católicas como o Pai Nosso, a Ave Maria, o
Glória Padre. Mais do que misturas de religiões, além do pensamento mágico,
convergiam elementos culturais para se alcançar a saúde do corpo. Todos criam nos
poderes sobrenaturais de certos indivíduos privilegiados que podiam tratar com
anjos e com demônios. E muitos porque ousaram se entregar a tais práticas ou
permitir tais crenças acabaram em situações indefensáveis diante da Inquisição. Aos
olhos do Santo Ofício tudo ficou muito suspeito. Assim preocupou-se o Visitador do
Pará com o curandeirismo.709

706
ARAÚJO, op. cit.
707
Livro da Visitação do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769), p. 151.
708
Ibid., p. 179-182.
709
SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição como saber: saberes a não saberes da colônia. In. CAVALCANTI, Carlos
André; CAVALCANTI, Ana Paula; CARMONA, Raquel Miranda (Org). História das religiões: Inquisições,
intolerância religiosa e historiografia. João Pessoa: Editora da UFPB, 2018, p. 70.
231

Acusados de praticarem feitiçaria, Domingas Gomes da Ressurreição e José


Januário da Silva tiveram seus processos instruídos em 1763 e despachados no ano seguinte
pelo visitador. Ambos compareceram, respectivamente, em 07 e 16 de janeiro de 1764, diante
da Mesa inquisitorial para ouvirem suas sentenças: deveriam realizar abjuração de leve
suspeita na fé, receber instruções na fé católica, executar penitências espirituais e efetivar o
pagamento das custas de seus processos.710
Outros indivíduos processados por feitiçarias – ou por ‘superstições’ como
descritos em alguns processos – receberam o mesmo tipo de sentença, como é o caso do
ferreiro Crescêncio Escobar, mameluco, de 33 anos de idade, processado por ter transcrito em
1754 uma “carta de tocar”711 para seu amigo Adrião Pereira de Faria (ou Adrião Ferreira de
Passos), este também processado pelo Santo Ofício uma década antes da visitação ao Grão-
Pará, mais especificamente entre 1756 e 1758712. Do mesmo modo, Manoel Nunes da Silva,
ajudante de ordenança na vila da Vigia, também foi processado, pois costumava utilizar-se de
sortilégios de benquerença para fins amorosos713
A fixação das sentenças variava e era progressiva de acordo com os indícios e o
grau de culpabilidade dos réus. Alguns indivíduos processados realizaram abjurações de
veemente suspeita na fé e abjurações em forma, ambas destinadas para casos em que existiam
consideráveis indícios do cometimento de heresias. “Enquadravam-se neste caso”, diz Sônia
Siqueira, “aqueles cujas faltas eram consideradas tão graves que apesar de as negarem e elas
não ficarem provadas, deixavam sempre dúvidas sobre a integridade de suas crenças” 714. O
cristão-velho Inácio Pires Pereira, de 27 anos de idade, era sargento da companhia do capitão
António Francisco de Carvalho na praça do Pará e foi processado, em março de 1765, por
proferir blasfémias e pactuar-se com o demônio, realizando abjuração em forma em auto-de-
fé privado, além de receber penitências espirituais e pagar os custos do processo715. Manuel
Pacheco de Madureira, cristão-velho, de 40 anos de idade, confessou, em novembro de 1765,
710
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 2705; 2706
711
As “cartas de tocar” eram conjuros amorosos que se apresentavam como um tipo de magia por contágio ou
contato. Nos papéis que constituíam estas cartas, geralmente estavam escritas orações, símbolos sagrados e
encantamentos de benquerença. Acreditava-se que estas cartas possuíam um poder mágico e, portanto, deviam
ser utilizadas para tocar a pessoa desejada, que cederia ao encantamento. Cf. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo
e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
2009; BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no
século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
712
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 1894
713
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 2696; 2702
714
SIQUEIRA, Sônia. O Momento da Inquisição. Coleção Videlicet. João Pessoa: Editora Universitária, 2013, p.
608.
715
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2692
232

que realizava adivinhações e feitiços de benquerença, tendo invocado o demônio por duas
vezes, dizendo “Satanás, abranda-me o coração de fulana”716. Já o indígena Alberto Monteiro
apresentou-se ao visitador para confessar que também se utilizava das artes mágicas para fins
amorosos, recorrendo, inclusive, ao pacto com o demônio para conseguir seduzir certa
indígena casada, que reagia negativamente as suas investidas. A sua confissão realizada em 30
de abril de 1766, registra que:

Tentando ele confitente com ela, fez todas as diligências que pode para ter com ela
trato ilícito, e não querendo ela consentir, mais fortemente tentado, fez com o
demônio pacto expresso com a pretenção de a conseguir, invocando-o, e tratando
com elle pela forma, e maneira seguinte ‘Jurupari Saõ ende cremunhão se
remimutara, eyxe a caquere vaerame cuá Cunhan erume; Esxe avec ne rimimutara
seriraraso cuau ne trume’. As quais palavras pela língua portuguesa querem dizer
‘Diabo, se tu me fizeres a minha vontade, permitindo-me eu dormir com esta
mulher, eu te prometo fazer-te o que tu quiseres. E me podes levar contigo’ = E que
não obstante que o diabo lhe não deu resposta; contudo, ele confitente sentiu no
mesmo tempo um grande abalo dentro do coração, com o qual ficou bastante
temeroso de que Deus Nosso Senhor o castigasse.717

Além de demonstrar o modo pelo qual se realizava a invocação do demônio, este


relato é também um significativo exemplo dos filtros e das vozes polifônicas
caracteristicamente presentes na documentação inquisitorial, como já advertiu o historiador
italiano Carlo Ginzburg718. O mito de Jurupari, personagem da mitologia ameríndia
identificada como uma entidade com características maléficas que visitava os indígenas
durante o sono, provocando-lhes pesadelos e impedindo-os de gritarem por socorro, foi
apropriado e demonizado pelo discurso missionário cristão no decorrer do processo de
colonização e cristianização do imaginário indígena719. Alberto Monteiro continuou seu relato
afirmando ao visitador que, uma semana depois do episódio narrado, repetiu o procedimento
de invocação demoníaca:

E tendo outro semelhante abalo ou tremor no coração logo que acabou de se oferecer
ao demônio na forma que tinha dito, vendo que não conseguia o seu depravado
intento, ficou desconfiado de que o demônio lhe não queria fazer o que lhe pedia, ou
do que não tinha poder algum para o fazer. E que susposto passado algum tempo,
recolhido ele confitente também a dita certa mulher para a sua povoação, veio com
efeito a consegui-la, não julgou que para isso concoresse imediatamente o demônio

716
Livro da Visitação do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769), p. 238; ANTT, Tribunal do Santo Ofício,
Inquisição de Lisboa, processo nº 2697
717
Ibid., p. 245; ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2693
718
Cf. GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como antropólogo: Uma analogia e suas implicações. In. GINZBURG,
Carlo. Micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989, p. 203-214.
719
Sobre o mito de Jurupari. Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, 1954.
233

por virtude da invocação e oferecimento que antecedentemente lhe tinha feito, mas
sim por virtude das diligências que fizera para o dito fim.720

Outros indivíduos processados por feitiçarias deveriam ser, segundo as sentenças


de seus processos, apenas admoestados para não reincidirem nos delitos de que eram
acusados. José, escravizado mandinga, era um conhecido curandeiro da região e, por isso
mesmo, recorrentemente solicitado para tratar diversas enfermidades721; Maria Francisca,
escrava do advogado Mateus Álvares Martins, foi processada por praticar superstições722; já
os indígenas Joaquim Pedro e Anselmo da Costa, ambos sacristãos, foram processados por
roubarem das igrejas hóstias e pedaços de pedra d’ara que eram utilizados para fazer bolsas de
mandinga723. Todos estes foram asperamente repreendidos na Mesa da visitação de Geraldo
José de Abranches.
É interessante observar na sentença destes processos a postura do visitador diante
desses casos, demonstrando uma tendência que, na década seguinte, foi regulamentada pelo
regimento inquisitorial de 1774 tanto no que diz respeito a categorização das feitiçarias como
meras superstições quanto no sentenciamento dos réus, afinal, este regimento ordenava que

todas as pessoas de qualquer sexo, estado e condição, que forem denunciadas por
algum crime de feitiçaria, sortilégio, adivinhação, astrologia judiciária, predição de
futuros, encantamento, maleficio e outra semelhantes superstições, sejam autuadas
em processos meramente verbais.724

O último regimento inquisitorial sintetizava, desse modo, ideias, concepções e


práticas que já eram relativamente executadas pelos agentes inquisitoriais.
Os processos instruídos por Geraldo José de Abranches expressam, nesse sentido,
o contexto de paulatina descontinuidade do espectro de terror que acompanhava o Santo
Ofício, sendo compostos por sentenças consideradas brandas e recebidas em auto-de-fé
privado, ou seja, apenas diante da Mesa inquisitorial. Como podemos observar, dos 31
processos identificados relativos a esta visitação 13 deles não contém sentença, sendo 07
relativos a feitiçaria725, 03 sobre blasfêmias e proposições heréticas726, 02 contra bigamia727 e

720
Livro da Visitação do Grão-Pará e Maranhão (1763-1769), p. 246-247.
721
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 212.
722
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 210.
723
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 218; 213.
724
Regimento de 1774, Livro III, Titulo XI, Capítulo I, p. 951.
725
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 13325; 12889; 13331; 12890; 13336;
12893; 2704
726
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 2701; 12888; 219.
727
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 2699; 12885.
234

01 sobre sodomia728, de modo que se pode inferir que não tiveram continuidade; 07 contém
sentenças constituídas por abjurações, penitências espirituais, instrução na fé católica e nos
sacramentos da igreja e pagamento dos custos do processo729; e 11 deles limitando-se a
admoestações e repreensões feitas pelo visitador aos réus para não reincidirem nas culpas –
feitiçaria (04)730, bigamia (03)731, sodomia (03)732 e sacrilégio (01).733
Nas denúncias e confissões dessa visitação, os registros sobre os medos
provocados pelo Santo Oficio ou sobre os comportamentos relativamente estratégicos diante
da ação do visitador Geraldo José de Abranches são bastante pontuais. Nesse caso, pode-se
dizer que este conjunto documental expressa, a contrapelo, um medo ausente. Ou melhor, o
esvaziamento do sentimento generalizado de insegurança, de medo e de terror, os quais
caracterizavam historicamente o funcionamento do Santo Ofício. Considerando-se
comparativamente os registros de denúncias e confissões das visitações inquisitoriais enviadas
ao Brasil, há um evidente decréscimo de narrativas sobre o medo da Inquisição na
documentação referente ao século XVIII, assim como há diminuição de diferentes formas de
resistências semelhantes àquelas identificadas na documentação das visitações dos séculos
XVI e XVII.
Este quadro parece, portanto, expressar a relação dialógica e de coexistência entre
o sentimento de medo e as atitudes de autoproteção demonstradas sob diferentes formas de
resistências sociais. Os medos de uma sociedade são historicamente localizados, tendo relação
com as ameaças igualmente identificáveis no tempo e no espaço. Dessa forma, os elementos
provocadores do sentimento de insegurança variam e se transformam na experiência humana
no tempo, sendo necessário considerar, portanto, que as relações sociais entre o poder de
coerção, exercido através do medo, e as formas de enfrentamento e/ou atitudes de
autopreservação se retroalimentam. Dito de outro modo, o processo de descontinuidade da
‘pedagogia do medo’ foi acompanhado pela mudança na percepção social sobre a Inquisição
e, conseguintemente, nas formas de resistências adotadas diante da possível ameaça
inquisitorial.
A escassez de registros acerca das diferentes formas de resistência ao Santo Ofício
na visitação do Grão-Pará pode ser melhor entendida, levando-se em consideração o cenário

728
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12894.
729
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 2696; 2706; 2705; 2692; 2697; 2702;
2693.
730
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 212; 210; 218; 213.
731
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 5184; 225; 222.
732
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processos nº 2694; 2707; 2695.
733
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2698.
235

de mudanças conjunturais que então se processava, em que se destacava o gradual


esvaziamento do alcance do modelo inquisitorial baseado na difusão do medo. Parafraseando
o historiador Carlos André Cavalcanti734, em estudo anteriormente citado, talvez poder-se-ia
falar sobre um relativo ‘desprezo’ e/ou ‘indiferença’ social em relação a presença de uma
instituição cuja atuação costumava provocar alterações no cotidiano da população durante os
períodos de visitação. A permanência de Geraldo José de Abranches, no Grão-Pará, esteve
longe de representar uma ameaça significativa cuja ação pudesse encaminhar os réus para os
temidos ‘queimadeiros’ dos autos-de-fé em Lisboa.
Na segunda metade do século XVIII, a ação inquisitorial, fundamentada no
espectro de terror, parecia ser cada vez mais uma imagem distante. A descontinuidade dessa
pedagogia de intimidação, baseada em discursos de culpabilização e práticas inerentes a este
aparato de coerção, como o segredo do processo inquisitorial, a infâmia pública e a ameaça da
miséria econômica, foi produto de uma sociedade e de uma instituição que passavam por
mudanças em diferentes aspectos. As críticas Ilustradas à Inquisição e as reformas internas
que cristalizaram a submissão do Santo Ofício aos interesses políticos da Coroa portuguesa
obliteraram o funcionamento da ‘pedagogia do medo’ inquisitorial. ‘Domesticado’, o Santo
Ofício português deixou paulatinamente de ser o antigo ‘tribunal do medo’ da época barroca,
sendo efetivamente extinto em 1821, quase meio século após o seu último regimento.

734
Cf. CAVALCANTI, Carlos André Macêdo. O imaginário da Inquisição: desmitologização de valores no
Tribunal do Santo Ofício, no Direito inquisitorial e nas narrativas do medo de bruxa (Portugal e Brasil, 1536-
1821). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação em
História, Recife, 2001.
236

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O TRIBUNAL DO MEDO NO BRASIL


COLONIAL E OS LIMITES DE SUA PEDAGOGIA DE INTIMIDAÇÃO

A Inquisição portuguesa foi uma instituição fruto do seu tempo. Ao longo dos
seus quase trezentos anos de funcionamento (1536-1821), o tribunal inquisitorial incorporou
as demandas da Igreja militante no combate às chamadas heresias, constituindo-se como uma
das mais poderosas instituições religiosas da Época Moderna. Em uma espécie de relação de
defesa e de ataque, os diferentes temores sentidos pela Cristandade e pelos doutores da Igreja,
foram objetivados em práticas doutrinárias que tinham como fundo cultural o imaginário
demonológico moderno, cuja sistematização foi alcançada com base na formação de um
conjunto de dispositivos de controle religioso, social, dos corpos e das consciências. A
‘pedagogia do medo’ foi seu corolário.
A objetivação dos medos sentidos para àqueles que se queria fazer sentir, teve na
instituição inquisitorial seu mais refinado e complexo meio de atuação. Os discursos, as
cerimônias públicas, a emblemática e a estética de terror que acompanhavam as ações do
tribunal inquisitorial flutuavam entre a ‘misericórdia’ e a ‘justiça’ de uma instituição cujo
ofício se outorgava um estado de santificação. Era, portanto, um ‘Tribunal Santo’. Um ‘Santo
Ofício’ da Inquisição.
A perseguição às heresias foi o móvel fundante da atuação desse tribunal, cuja
concentração esteve historicamente relacionada aos cristãos-novos acusados de judaizar. A
desconfiança generalizada que pairava sobre os neoconversos fomentou diversos tipos de
discriminações e, não há dúvidas, essa parcela da sociedade foi o principal alvo da atenção
dos inquisidores, seja no Reino ou em seus espaços coloniais. No entanto, paralelamente à
‘obsessão’ pelos indivíduos acusados de continuar mantendo em segredo as práticas da
religião mosaica, o poder de observação ‘panóptica’ da Inquisição se estendia a toda e
qualquer pessoa faltosa na manutenção da ortodoxia cristã católica e das moralidades vigentes
na sociedade do Antigo Regime. A Inquisição foi, pode-se afirmar, um tipo de ‘Leviatã’
religioso.
A cristianização dos espaços coloniais pressupunha o transplante de ideias, dos
modos de vida e das instituições reinóis na empreitada colonizadora. No entanto, a simples
transposição dos medos oriundos do imaginário cristão europeu para a América lusa não é,
por si só, explicativa para inserir em um horizonte de compreensão a atuação da Inquisição no
espaço colonial do Brasil. Na América portuguesa, o imaginário religioso europeu se
237

encontrou com uma paisagem social plural, em que as representações sobre esse espaço e suas
gentes impuseram novos desafios à compreensão do Novo Mundo pelos representantes do
Santo Ofício. Isto significa dizer que a experiência inquisitorial no Brasil colonial e a
operacionalização de sua ‘pedagogia do medo’ precisa, necessariamente, ser entendida em sua
própria historicidade, considerando seus limites e formas específicas de atuação, sobretudo,
pelo fato de o Brasil não ter tido efetivamente a instalação de um tribunal inquisitorial
permanente.
Os mecanismos de inspeção e ação inquisitoriais na colônia desestruturaram
relações sociais e de solidariedade, instaurando períodos de crises, de conflitos e de tensões.
No entanto, a própria periodicidade das visitações do Santo Ofício permite relativizar o
alcance social dos temores engendrados pela presença dos agentes da Inquisição. Nesse
sentido, é pertinente a afirmativa de que os períodos de visitação representaram um tempo de
medo. Apesar disto, tratava-se, isto sim, de medos pontuais, temporários, passageiros, que
flutuaram durante o desenrolar das inspeções e que foram atiçados justamente devido à
presença dos inquisidores na colônia.
Com efeito, nos períodos das visitações as relações entre medo e resistência social
se agudizavam. A convivência relativamente harmônica entre diferentes grupos sociais e a
frouxidão na observância dos padrões morais e religiosos eram alteradas devido ao chamado
inquisitorial à delação e à confissão, fomentados pela necessidade de demonstrar colaboração
com os agentes do tribunal no decorrer das visitações. Nesse sentido, os períodos das
visitações inquisitoriais se configuraram como os momentos mais sensíveis em que, de fato,
poder-se-ia falar de um medo mais concreto em relação ao Santo Ofício e seus agentes na
colônia, não obstante serem atravessados pelas resistências que demonstramos nesta pesquisa.
É evidente que, em Portugal e em seus territórios coloniais, a relação de poder
entre o Santo Ofício e a sociedade cristã católica era substancialmente desigual. De um lado,
uma instituição religiosa e com poderes jurídicos para determinar o destino individual de seus
processados; de outro, indivíduos comuns oriundos de diferentes grupos e camadas sociais,
cujo poder de ação e de defesa diante das ações inquisitoriais era consideravelmente limitado.
Não obstante a celeuma social provocada por essas ações na colônia, o fato é que
concomitantemente ao emprego da ‘pedagogia do medo’ pelo Santo Ofício, diferentes formas
de resistência foram forjadas no cotidiano a fim de enfrentar a Inquisição e seus agentes, de
driblar os infortúnios causados pela máquina inquisitorial, de preservar a vida física, de
conservar a vida econômica e de dirimir a mácula social que recaía sobre os indivíduos e
grupos perseguidos.
238

Pode-se dizer que a construção de discursos ocultos foi uma das principais
estratégias de sobrevivência que se projetou como um contraponto ao conjunto de dispositivos
que formavam a ‘pedagogia do medo’. Entre a comunidade cristã-nova acusada de praticar o
judaísmo oculto, as estratégias e as táticas de autopreservação podem ser fartamente
interceptadas nas fontes documentais produzidas pela instituição inquisitorial no decorrer das
visitações realizadas no Brasil colônia, principalmente aquelas relacionadas aos dois
primeiros séculos de colonização.
As posturas relativamente dissimuladas nos interrogatórios, a manipulação de
informações oferecidas aos visitadores e as negativas sustentadas pelos depoentes se
confrontavam com os indícios registrados nas denúncias apresentadas à Mesa dos agentes do
Santo Ofício. As táticas improvisadas para afastar as desconfianças que pairavam sobre os
cristãos-novos, a construção de códigos próprios e de linguagens que se pretendiam cifradas
exemplificam a dubiedade social e religiosa vividas por este grupo social. O papel das
mulheres cristãs-novas na manutenção e na transmissão do ‘judaísmo possível’ praticado no
âmbito do espaço doméstico, bem como as reuniões de caráter clandestino nas chamadas
‘esnogas’ coloniais são exemplos de discursos ocultos, dos arranjos e dos estratagemas
desenvolvidos no cotidiano para lidar com uma situação desfavorável no que diz respeito às
discriminações sociais e religiosas presentes nessa relação de força entre a Inquisição e a
sociedade colonial. O criptojudaísmo colonial foi, por definição, uma estratégia de
autopreservação, constituindo-se como uma das mais elementares formas de resistência ao
Santo Ofício e a sua ‘pedagogia do medo’.
Como vimos, além destes discursos ocultos, outros arranjos se constituíram a fim
de escapar das malhas do Santo Ofício ou, ao menos, com o intuito de dificultar a captura pela
engrenagem inquisitorial. Os deslocamentos no espaço ultramarino português e no próprio
interior da colônia, realizado por meio de fugas improvisadas ou estrategicamente pensadas,
também se estabeleceram como uma das formas de resistir à Inquisição. Ora, dito de outro
modo, a preservação da vida e da liberdade eram imperativos fundamentalmente necessários
para oferecer resistência à Inquisição. A circulação de pessoas entre a América, a África e a
Europa, fugindo da Inquisição, permite visualizar uma das maneiras desenvolvidas para lidar
com o perigo representado pela sanha persecutória do Santo Ofício. Distanciar-se das zonas
de maior alcance da Inquisição significava impor obstáculos ao próprio funcionamento da
maquinaria inquisitorial.
No universo das classes populares, as formas de resistir ao Santo Ofício e aos seus
métodos baseados na difusão do medo no corpo social encontraram nas injúrias, nos insultos e
239

nos comportamentos afrontosos ao ‘Santo Tribunal’ mais uma das formas de se opor à
Inquisição e aos seus agentes nos períodos de visitação. Os impropérios desferidos contra o
Santo Ofício e contra os inquisidores foram expressões do descontentamento social de
indivíduos e de grupos que se viam na iminência de cair nas malhas da Inquisição.
Descredibilizar a ação dos inquisidores teve assim, pelo menos, uma dupla
função: pôr em xeque a reputação pretensamente ilibada do Tribunal de Fé, ao mesmo tempo
em que funcionava como um arranjo tático para a defesa social dos réus e demais indivíduos
acusados de cometer heresias. Nesta relação de força entre a Inquisição e a sociedade
colonial, a relativa liberdade representada pelos atos de fala no cotidiano, constituiu-se como
uma maneira de se posicionar, no âmbito do horizonte de possibilidades imediatas, contra a
‘pedagogia do medo’ do Santo Ofício. Não é por acaso que os testemunhos que dão a ver o
universo popular de críticas contra a Inquisição vão de encontro àqueles elementos
constituintes da pedagogia de intimidação inquisitorial como, por exemplo, o confisco dos
bens dos prisioneiros e a defesa da memória dos indivíduos maculados pela vexação pública
que marcava a vida dos réus condenados e dos penitentes reconciliados ao seio da
comunidade cristã católica.
Na segunda metade do século XVII e no decorrer do século seguinte, o
refinamento destes discursos públicos contra os modos de proceder da Inquisição expressaram
a circulação de críticas entre as camadas letradas da sociedade em relação aos excessos e aos
rigores do Santo Ofício. Claro que não se tratava de propugnar a extinção daquele Tribunal da
Fé, o que estava longe daquele horizonte sociocultural, mas sim de questionar alguns de seus
‘estilos’, propondo reformas no âmbito do funcionamento do Tribunal. As ponderações de
indivíduos das classes letradas, como o padre Antônio Vieira (1608-1697) e o diplomata Dom
Luís da Cunha (1662-1749), questionavam justamente alguns dos elementos constituintes da
pedagogia de intimidação inquisitorial.
Deste modo, é possível dizer que as críticas direcionadas ao Santo Ofício
apresentaram-se como mais uma das formas de resistência ao tribunal inquisitorial e
fortaleceram o projeto de reforma da Inquisição realizada sob o governo do Marquês de
Pombal, fomentando, nesse sentido, o processo de descontinuidade da ‘pedagogia do medo’
ao longo do último quartel do século XVIII, cristalizadas no Regimento inquisitorial de 1774.
Estas reformas regimentais diminuíram consideravelmente o poder de ação e coerção da
Inquisição, reduzindo o Tribunal a um braço do Estado português para a perseguição de
inimigos políticos. Agonizante, o Santo Ofício sobreviveu até o início do oitocentos quando,
240

na esteira da revolução de cunho liberal que se processava no Reino, foi definitivamente


extinto no ano de 1821.
Como pudemos demonstrar, a experiência inquisitorial no Brasil foi marcada pela
relação conflituosa entre o ‘tribunal do medo’ e a sociedade colonial, de modo que diferentes
formas de resistência foram desenvolvidas para fazer frente ao Santo Ofício e a sua
‘pedagogia do medo’ no decorrer dos períodos das visitações. O aprofundamento destas
questões em investigações futuras para espaços que não receberam visitas de agentes
inquisitoriais vindos diretamente de Portugal. A observação mais demorada do diálogo entre o
tribunal de Lisboa e a rede de colaboração representada pelos comissários locais, bem como a
imersão nos registros de visitas episcopais, por exemplo, pode ratificar e ampliar os resultados
desta pesquisa, explicitando e descortinando outras tantas formas de resistir aos dispositivos
de poder e de intimidação das instituições religiosas e judiciais da Época Moderna no Brasil
colônia.
Nos recêm completos duzentos anos de extinção desse ‘tribunal do medo’, a
análise histórica sobre uma instituição de cariz policialesco e punitivo permite ponderar sobre
o uso de dispositivos de intimidação a fim de alcançar o controle da sociedade. No tempo
presente, pode-se observar não apenas a sobrevivência de uma memória social sobre a
Inquisição – é certo que muitas vezes caricaturada e estereotipada quando comparada com a
análise histórica acerca desta instituição –, mas também a permanência de uma mentalidade
inquisitorial, seja nas instituições judiciais do nosso tempo ou, mais ainda, em posturas que
fomentam diferentes tipos de intolerância (religiosa, cultural e de gênero, por exemplo).
O medo é um sentimento e uma força produtora de instabilidades, de crises e de
desesperança. Mas, ao mesmo tempo, é um alerta para a resistência; uma pulsão de vida para
construção de estratégias de enfrentamento ao objeto temível, que possibilita, inclusive, o
vislumbre de dias melhores. A consciência histórica acerca dessa história social de medos e de
resistências estimula a reflexão sobre as linhas de força que costuram o tecido social do
mundo contemporâneo. A história social de medos e de resistências é também, afinal, uma
história do tempo presente.
241

REFERÊNCIAS

A) Fontes manuscritas – Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Portugal.

ANTT, Armário Jesuítico, mç. 29, n.º 25


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ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 212
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 213
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ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 219
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ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2693
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ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 7956
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ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12142
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12885
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12888
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12889
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ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12893
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12894
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12926
242

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12936


ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 12967
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 13325
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 13331
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 13336
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 14315
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 1276
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 8991
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2694
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2695
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2696
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2697
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2698
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2699
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2701
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2702
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2704
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2705
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2706
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, processo nº 2707
ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Registro de Visitações, liv. 779
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