Práticas de Leitura Na Escola Hoje TESE

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 468

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PATRÍCIA APARECIDA DO AMPARO

PRÁTICAS DE LEITURA NA ESCOLA HOJE:


REPRESENTAÇÕES EM CONFLITO

SÃO PAULO
2017
PATRÍCIA APARECIDA DO AMPARO

PRÁTICAS DE LEITURA NA ESCOLA HOJE:


REPRESENTAÇÕES EM CONFLITO

VERSÃO CORRIGIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Educação da
USP como parte dos requisitos para
obtenção do título de Doutora em
Educação.

Área de Concentração: Didática, teorias


de ensino e práticas escolares

Orientação: Profa. Dra. Dislane


Zerbinatti Moraes.

SÃO PAULO
2017
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS
DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

375.101 Amparo, Patrícia Aparecida do


A526p Práticas de leitura na escola hoje: representações em conflito / Patrícia
Aparecida do Amparo; orientação Dislane Zerbinatti Moraes. São Paulo: s.n.,
2017.
458 p.; anexos

Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área de


Concentração: Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares) - - Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo.
Versão Corrigida
1. Ensino Médio 2. Práticas de leitura 3. Cotidiano escolar 4. Representações
5. Leitura de obras literárias I. Moraes, Dislane Zerbinatti, orient.
PATRÍCIA APARECIDA DO AMPARO
Práticas de leitura na escola hoje: representações em conflito.

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Educação da
USP como parte dos requisitos para
obtenção do título de Doutora em
Educação.

Aprovada em:
Banca Examinadora

Profa. Dra. Dislane Zerbinatti Moraes (Universidade de São Paulo)

Julgamento: _______________________ Assinatura: _____________________________

Prof. Dr. André D. Robert (Universidade de Lyon)

Julgamento: _______________________ Assinatura: _____________________________

Profa. Dra. Denice Barbara Catani (Universidade de São Paulo)

Julgamento: _______________________ Assinatura: _____________________________

Profa. Dra. Raquel Lazzari Leite Barbosa (Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho-
UNESP)
Julgamento: _______________________ Assinatura: _____________________________

Profa. Dra. Rita de Cássia Gallego (Universidade de São Paulo )

Julgamento: _______________________ Assinatura: _____________________________


AGRADECIMENTOS

Agradeço à Profa. Dra. Dislane Zerbinatti Moraes pela orientação realizada desde a
Iniciação Científica, o que possibilitou as condições para que esta tese fosse construída.
Assim, qualquer qualidade que ela possa ter se deve às suas contribuições e empenho com
relação à investigação que venho empreendendo.

À Profa. Dra. Denice Barbara Catani por ter sido presença importante em minha
trajetória de formação desde que frequentava o curso de Pedagogia, oferecendo
possibilidades de aprendizagens estruturantes a respeito da pesquisa. Sou grata pela
atenção com que vem participando de minha trajetória formativa.

Ao Prof. Dr. André D. Robert que generosamente me recebeu na Universidade de Lyon.


No período de estadia tive meu trabalho incentivado pelo enriquecimento teórico
possibilitado por suas orientações. As circunstâncias que me foram oferecidas para
conhecer outros pesquisadores e modos de fazer investigações educacionais trouxeram
outras perspectivas à minha trajetória de pesquisa e formação.

À Profa. Dra. Raquel Lazzari Leite Barbosa, participante de minha trajetória formativa
desde o exame de qualificação do Mestrado. Sua leitura sempre generosa e o engajamento
com que tem favorecido o desenvolvimento de minhas reflexões são difíceis de retribuir.

À Profa. Dra. Rita de Cassia Gallego, com quem tive oportunidade de discutir e
desenvolver aspectos centrais da pesquisa durante a disciplina que ofereceu na Pós-
Graduação, situação que agora se prolonga na defesa da tese.

Às professoras, Valquíria e Celeste, e aos alunos, Luana, Amanda, Carolina, Adriana,


Clair, Karina, Paulo e Marcelo, cuja participação nesta pesquisa permitiu que ela
pudesse acontecer. Não é fácil autorizar que o “outro” faça parte da intimidade em que se
produzem as relações cotidianas, por isso, agradeço imensamente a permissão para entrar
em suas salas de aula.
A pesquisa não é algo que se pode fazer sozinha, por isso, agradeço aos colegas do Grupo
de Pesquisa Literatura, História e Educação: faces do ensino e da pesquisa sobre formação
e profissão docente (GP/LIHED/CNPq), Arlete dos Santos Oliveira, Fernando Jorge dos
Santos Farias, Fernando Henrique Tisque dos Santos, Jaqueline Oliveira dos Santos,
Marta Rocha de Oliveira, Silmara de Fátima Cardoso e Thais Surian, pelas
possibilidades de trocas intelectuais.

Agradeço à Talita Dias de Miranda e Silva, cuja amizade e parceria desde o curso de
Pedagogia são muito importantes para mim. As experiências que compartilhamos ao longo
dos anos foram alegrias encontradas na FEUSP.

À Juliana de Souza Silva, amiga desde o curso de Mestrado, com quem tenho
compartilhado a experiência de formação acadêmica e pessoal. Sou grata por ter contado
com sua amizade e incentivo nos momentos mais difíceis de elaboração da tese.

À Patrícia Claudia da Costa, colega de Pós-Graduação e de muitas conversas e debates


acadêmicos. Sua inquietação constante se mostrou um estímulo ao debate e à
problematização de nossas escolhas teóricas e metodológicas.

A dedicação necessária à carreira acadêmica também implica nossas relações familiares.


Por isso, agradeço de modo especial aos meus pais, Jorge Aparecido do Amparo e
Angela Maria da Costa do Amparo, cujo incentivo, confiança e apoio foram
determinantes para que eu pudesse produzir sentidos para a carreira acadêmica e tivesse
engajamento suficiente para sempre continuar.

Agradeço igualmente aos meus irmãos, Anderson Aparecido do Amparo e Andrea


Aparecida do Amparo, meus parceiros de sempre. Vocês são as pessoas com quem
compartilho raízes que levo para toda parte.

Bruno Ribeiro da Silva Pereira, sou grata pelo amor e companheirismo que temos
construído cotidianamente ao longo desses anos e que, mesmo à distância, tornam minha
vida mais leve. Com você aprendi que, às vezes, um bom livro começa apenas no terceiro
capítulo.
Agradeço ao CNPq que financiou esta pesquisa e ao programa Avenir Lyon Saint-
Etienne (PA-LSE) pela bolsa de mobilidade que me permitiu a realização do Doutorado-
Sanduíche.
“...eu vejo que a gente está andando em uma esteira, a gente está andando mas a
gente não vai para lugar nenhum, a gente vai ficar naquilo” (Luana).
RESUMO
AMPARO, Patrícia Aparecida do. Práticas de leitura na escola hoje: representações em
conflito. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2017.

Esta pesquisa tem como objetivo compreender como as relações entre as


representações de professores e alunos do ensino médio, quando confrontadas às regras
escolares, aos currículos e aos materiais didáticos, engendram disputas em torno da leitura
legítima de obras literárias no espaço escolar. Assim, a partir da perspectiva sócio-
histórica, a pesquisa coloca em cena o modo como a linguagem ganha funções e sentidos
na trama do cotidiano escolar por meio da força exercida por agentes cujas posições sociais
estabelecem pontos de tensão, questionamento e resistência à cultura legítima ao mesmo
tempo em que produzem a matriz socializadora possível, como propõe Bernard Lahire, a
partir da qual a escola produz disposições com relação à linguagem. Partimos da
compreensão que o ensino médio vem passando por períodos de expansão desde o início
do século XX que ampliaram a presença de diferentes grupos sociais em seu interior, o que
dá contornos específicas às disputas em tela. Para a confecção da pesquisa, utilizamos
como fontes as observações das aulas de Língua Portuguesa no ensino médio; os livros
didáticos presentes nas aulas; e os currículos estadual e federal em vigência; além disso,
realizamos entrevistas com oito alunos e duas professoras de Língua Portuguesa; e uma
enquete com os alunos do ensino médio regular. Para construirmos nossas análises,
buscamos a contribuição de autores como Roger Chartier, Pierre Bourdieu e José Mário
Pires Azanha. Percebeu-se que por meio de ações socialmente situadas, estruturadas por
esquemas cognitivos advindos do mundo natal e da incorporação de sentidos escolares
temporalmente articulados, os alunos e as professoras efetuam reelaborações de leitura de
obras literárias na escola. Ao colocar em evidência a leitura segundo as concepções
curriculares e presentes no inconsciente escolar, as professoras efetivam uma apropriação
problemática das obras literários, favorecendo relações que tomam a leitura como objeto.
Ao mesmo tempo, os alunos parecem negar o que é ensinado na escola, pois não são
explicitadas suas aproximações com a cultura natal. Resta a impressão de uma
escolarização sem sentidos e de conteúdos com pouco utilidade em seus projetos de futuro.

Palavras-chave: Ensino médio; Práticas de leitura; Cotidiano escolar;


representações; leitura de obras literárias.
ABSTRACT

AMPARO, Patrícia Aparecida do. Reading practices in schools today: conflicting


representations. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2017.

The purpose of this research is to understand how the relations between the representations
of teachers and high school students, when confronted with school rules, curriculum and
didactic materials, come into relationship and generate disputes around the legitimate
reading of literary works in the school space . Thus, from the socio-historical perspective,
the research puts on the scene how language gains functions and meanings in the fabric of
school life through the force exerted by agents whose social positions establish points of
tension, questioning and resistance to legitimate culture while at the same time producing
the possible socializing matrix, as proposed by Bernard Lahire, from which the school
produces dispositions with regard to language. We start from the understanding that
secondary education has undergone periods of expansion since the beginning of the
twentieth century that have increased the presence of different social groups in its interior,
which gives specific contours to the disputes on the screen. For the preparation of the
research, we used as sources the observations of Portuguese Language classes in high
school; the textbooks present in class; and the current state and federal curriculum; in
addition, we conducted interviews with eight students and two teachers of Portuguese
Language; and a poll with regular high school students. In order to construct our analyzes,
we seek the contribution of authors like Roger Chartier, Pierre Bourdieu and José Mário
Pires Azanha. It was noticed that by means of socially situated actions, structured by
cognitive schemes originating from the natal world and the incorporation of temporally
articulated school meanings, the students make reelaborations of reading of literary works
in the school. By highlighting the reading according to the curricular conceptions and
present in the school unconscious, the teachers effect a problematic appropriation of the
literary works, favoring relations that take the reading as object. At the same time, students
seem to deny what is taught at school, as their approaches to natal culture are not explicit.
There remains the impression of a schooling without senses and content with little utility in
their future projects.

Key-words: High school; Reading practices; School daily; representations; reading of


literary works.
RÉSUMÉ

AMPARO, Patrícia Aparecida do. Pratiques de lecture au lycée aujourd’hui : conflit de


représentations. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2017.

Cette étude a pour objectif de comprendre comment les représentations de


professeurs et d’élèves du lycée, lorsqu’elles sont confrontées aux règles scolaires, aux
programmes et au matériel didactique, entrent en relation et engendrent des conflits autour
de la lecture légitime d’ œuvres littéraires en milieu scolaire. Ainsi, sur la base d’une
perspective socio-historique, cette étude met en évidence la façon dont le language gagne
en fonctions et en sens dans le contexte du quotidien scolaire de par la force exercée par
des agents dont les positions sociales établissent des points de tenson, de remise en
question et de résistance à la culture légitime, en produisant dans le même temps la matrice
sociale fondamentale, comme le suggère Bernard Lahire, à partir de laquelle l’école met en
place les dispositions en rapport avec le langage. Nous sommes partis de la compréhension
que le lycée est passé par des périodes d’expansion depuis le XX ème siècle qui ont amplifié
la présence de différents groupes sociaux au sein de ce dernier, donnant ainsi les contours
spécifiques aux conflits en exergue. Pour la mise en place de l’étude, nous avons utilisé
comme sources les observations en classe de langue portugaise au lycée ; les manuels
scolaires utilisés en classe ; et les programmes scolaires d’Etats et nationaux en vigueur ;
de plus, nous avons interrogé huit élèves et deux professeures de langue portugaise ; et
effectué une enquête auprès des élèves du lycée général. Pour construire nos analyses, nous
avons eu recours à la contribution d’auteurs tels que Roger Chartier, Pierre Bourdieu et
José Mário Pires Azanha. L’observation a été faite que par le biais d’actions sociales,
structurées par des schémas cognitifs issus du monde natal et l’incorporation de sens
scolaires articulés dans le temps, les élèves et les professeurs effectuent une réélaboration
de la lecture des œuvres littéraires à l’école. En mettant en évidence la lecture selon la
conception des programmes scolaires et présente dans l’inconscient scolaire, les
professeurs instaurent une appropriation problématique des œuvres littéraires, favorisant
les rapports à la lecture comme à un objet. En même temps, les élèves semblent rejeter ce
qui est enseigné à l’école, car les similitudes avec le monde natal ne sont pas explicites.
Reste l’impression d’une scolarisation dénuée de sens et de contenus sans grande utilité
pour leurs projets futurs.

Mots clés : Lycée; Pratiques de lecture ; Quotidien scolaire ; Représentations ;


lecture d’ œuvres littéraires.
Sumário

INTRODUÇÃO 13

CAPÍTULO 1 - A CONSTRUÇÃO DE UM OBJETO DE ESTUDOS PELO COTIDIANO 33

1.1.A leitura de obras literárias em meio à lógica da cotidianidade: entre tempos e posições
sociais 34
1.2. As fontes para a produção das análises 45
1.3. A seleção de uma escola para participar da pesquisa 52
1.3.1. A Escola 1 e a Escola 2 57
1.3.2. Os perfis dos alunos e das professoras 60

CAPÍTULO 2 - NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO: OS TEMPOS ESCOLARES DA


LEITURA DE OBRAS LITERÁRIAS E SEUS CONFLITOS 69

2.1. As regularidades da literatura na escola: as aulas, os currículos 70


2.1.1. As finalidades do ensino da literatura: uma visão dos currículos 71
2.1.2. O Estado e a produção de um sentido para a leitura de obras literárias na escola 76

2.2. Entre ler, escrever e falar: a formação de uma matriz socializadora possível na escola
81
2.2.1. Compreender e criar: a elaboração das aulas pelas professoras 81
2.2.2. Ler, escrever e falar: uma aproximação às aulas 89

2.3. As fronteiras porosas da escola de ensino médio 100


2.3.1.O dia a dia das aulas de Língua Portuguesa: à procura do leitor-leitor 100
2.3.2. A expansão do ensino médio e a configuração dos conflitos entre professores e alunos
em sala de aula 114

CAPÍTULO 3 - A BRICOLAGEM COTIDIANA: O TRABALHO DOCENTE NA


ENCRUZILHADA ESCOLAR 123

3.1. Entre dois mundos: a produção da posição docente por meio do reconhecimento e da
diferenciação cultural com relação aos alunos 126
3.2. O mundo natal e a representação da leitura escolar: um jogo de mostrar e esconder 140
3.3. A necessidade de negociação cotidiana dos saberes e sentidos da leitura de obras
literárias 147

CAPÍTULO 4 - A LEITURA SERVE PARA SOLTAR O CORPO: TENSÕES ENTRE AS


PRÁTICAS SOCIAIS E ESCOLARES DE LEITURA NA ESCOLA 153

4.1. Desde que entrei na escola nunca gostei de Português: os alunos e suas maneiras de
significar a leitura na escola 154
4.1.1. A difícil arte de ser leitor-leitor 160
4.1.2. Os sentidos em questão: entre julgamentos escolares e representações pessoais de leitura
167

4.2. São todos como eu: a construção não-escolar do leitor 170


4.2.1 A gestão familiar dos tempos e temporalidades da leitura de obras literárias 171
4.2.2. Os tempos das leituras juvenis: as livrarias, os sebos e bancas de jornal como lugares de
aprendizagem sobre as obras literárias 179
4.2.3. Os títulos, autores e objetos literários prediletos 183

4.3 A escola é uma esteira: o futuro sem sentido da leitura e dos alunos 198
4.3.1. A tradução de um mundo para o outro 199
4.3.2. Para que serve a escolarização? 203

CONSIDERAÇÕES FINAIS 209

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 219

ANEXO I – Quadros contendo a revisão bibliográfica 229


ANEXO II – Diários de campo 243
ANEXO III – Perguntas para as entrevistas semiestruturadas 265
ANEXO IV – Questionário 269
ANEXO V – Transcrição da entrevista com os alunos 273
ANEXO VI – Transcrição das entrevistas com as professoras 404
13

INTRODUÇÃO

A cultura não é apenas um código comum nem mesmo um repertório comum de


respostas a problemas recorrentes. Ela constitui um conjunto comum de esquemas
fundamentais, previamente assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo
uma “arte da invenção” análoga à da escrita musical, uma infinidade de esquemas
particulares diretamente aplicados a situações particulares.
Pierre Bourdieu

Caminhar pela cidade é ocasião para que o observador atento acompanhe um conjunto
variado de apropriações diversas da leitura de obras literárias. Em tal circunstância é possível
notar alguém analisando livros e revistas nas bancas de jornal ou acompanhar a curiosidade
gerada por vitrines e prateleiras de uma livraria ou sebo - produzindo de leituras rápidas de
primeiras páginas, à compra de um livro ou à descoberta de um novo autor -, chegando à
leitura dos volumes preferidos durante os deslocamentos feitos no transporte público. Em tais
circunstâncias, títulos, autores e estilos dos mais variados produzem interesse e possíveis
investidas de leitores desavisados ou atentos aos movimentos do universo literário.
Provavelmente, o que existe em comum entre todas essas pessoas é o fato de terem passado
pelo processo de escolarização e se apropriado, cada um à sua maneira, das formas com que o
conteúdo literário foi dado a ver na escola. Não podemos desconsiderar que em nossa
sociedade ela é uma das instituições que definem paradigmas de leitura, como afirma Roger
Chartier (2001), e por isso desempenha papel significativo para a definição das maneiras de
lidar com as possibilidades de leitura. Nesse sentido, o que levaria pessoas igualmente
escolarizadas a realizarem apropriações tão diversas dos objetos de leitura disponíveis? Seria
possível pensarmos em um paradigma de leitura de obras literárias difundido nas escolas
públicas ou, na verdade, existiram vários? O modelo de leitura difundido na escola estaria
relacionado às práticas aprendidas pelos sujeitos em outros lugares, como nas famílias?
As questões postas acima constituem alguns elementos do conjunto de inquietações
que animam esta pesquisa, cujo objetivo é compreender o modo como as diferentes
representações de professores e alunos, confrontadas às regras escolares, aos currículos e aos
materiais didáticos entram em relação e engendram disputas em torno da leitura legítima de
obras literárias no espaço escolar. A pesquisa visa colocar em cena o modo como a linguagem
- no caso a literária - ganha funções e sentidos na trama do cotidiano escolar por meio da
força exercida por agentes cujas posições sociais estabelecem pontos de tensão,
questionamentos e resistências à cultura legítima ao mesmo tempo em que produzem as
14

práticas escolares cotidianas. Para identificar tais elementos, optamos por utilizar como fontes
as observações das aulas de Língua Portuguesa de ensino médio em duas escolas estaduais
como forma de aproximação ao nosso problema de pesquisa a partir do cotidiano escolar.
Optamos por essa disciplina no ensino médio, pois é nela que se concentra e se torna mais
complexo o ensino de literatura, o que poderia tornar ainda mais evidente nosso problema de
pesquisa. De modo a constituir nossas fontes realizamos, ainda, entrevistas semiestruturadas
com oito alunos e com as duas professoras que ministraram as disciplinas. Finalmente,
também analisamos os currículos nacionais e estaduais de Língua Portuguesa.
A escolha desse objeto de investigação decorre de nossa pesquisa de mestrado, quando
analisamos as práticas de leitura mantidas por leitoras de romances sentimentais (AMPARO,
2012). Naquela ocasião, pudemos acompanhar o modo como as participantes da pesquisa
constituíram comunidades de leitura em torno das coleções de romances feitos para mulheres,
estabelecendo, por exemplo, sentidos para a leitura, autoras e volumes clássicos bem como
modos de apropriação dos enredos. Esse trabalho foi feito ao largo da instituição escolar, por
meio dos vínculos afetivos estabelecidos entre mulheres de diferentes gerações. Apesar de
essa prática não ser mantida e produzida na escola, as entrevistas deixaram ver que a
escolarização teve influência na maneira como as mulheres que conhecemos produziram
definições para suas leituras. Foi recorrente a certeza, corroborada por experiências escolares,
de que os romances sentimentais eram menores quando comparados aos títulos presentes no
cânone escolar, e da desqualificação das maneiras como os enredos eram apropriados pelas
leitoras. Como resultado do embate entre as práticas de leitura mantidas em espaços não
escolares - com sentidos próprios criados pelas leitoras - e no espaço escolar, restou para as
entrevistadas a certeza de manterem uma prática de leitura insuficiente e pouco valorizada,
logo elas demonstravam muita insegurança ao se definirem leitoras. Para nós, surgiu então a
inquietação de saber por quais mecanismos presentes na escola seria possível a produção
dessas leitoras inseguras. Gostaríamos de saber como, no cotidiano escolar, mulheres que liam
200 páginas por semana, conheciam características de autoras e enredos, compravam,
emprestavam ou trocavam livros regularmente eram classificadas e se apropriavam da
imagem de não-leitoras ou de leitoras incompetentes. Ao final do mestrado, acreditávamos
que este seria um modo de acompanhar o modo como se produzem leitores em nossa
sociedade no jogo entre as práticas de leituras não-escolares e escolares, aceitando que elas
obedeceriam a lógicas específicas, porém não completamente autônomas, uma vez que as
leitoras que conhecemos consideravam os julgamentos escolares para definirem suas práticas.
Logo, como quem observa um bordado pelo lado direito e pelo avesso, após notar as lógicas e
15

modos de produção de uma comunidade de leitura fora da escola, acreditávamos poder


acompanhar a maneira como em seu interior se criavam condições para a formação de
leitores.
Ao tomarmos como objetivo da pesquisa a compreensão de como ocorrem na escola
as disputas em torno da leitura legítima de obras literárias, por meio das contribuições de
Pierre Bourdieu (2014), partimos do suposto que a escola é espaço em que são consagrados
alguns aspectos da cultura e não outros. De acordo com o autor, nas sociedades marcadas por
hierarquias sociais, existem instituições encarregadas de transmitir a cultura erudita ou a
cultura legítima, entre as quais podemos citar a escola. Nesse sentido, ao realizar seu trabalho
de seleção e consagração de alguns aspectos da cultura, a escola acaba constituindo um
arbítrio cultural, ou seja, um conjunto de saberes que funciona como referência para a
formação das crianças e jovens (BOURDIEU, 2013a). Por meio dessa cultura arbitrariamente
definida, a escola exerce o poder de integração cultural dos alunos, o que é feito também por
meio de uma integração lógica: “Na verdade, os indivíduos ‘programados’, quer dizer,
dotados de um programa homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, constituem o
produto mais específico de um sistema de ensino” (BOURDIEU, 2013b, p.206). Assim, ao
passar pela escolarização, os alunos compartilham vocabulário, conceitos, modos de agir,
entre outros, que pretendem exercer a integração das novas gerações. Em nossas sociedades, a
instituição escolar é uma das responsáveis por engendrar representações acerca da leitura
correta de obras literárias bem como dos volumes merecedores de atenção, logo a partir da
reelaboração de alguns aspectos da cultura, como nos lembra Jean-Claude Forquin (1986), ela
fornece um conjunto de ferramentas mentais que permitem a quem passou por seu interior
lidar com as possibilidades literárias existentes. Nesse sentido, o processo de escolarização
auxilia, como afirma Pierre Bourdieu no excerto em epígrafe, a dotar os sujeitos de esquemas
de ação capazes de se apropriarem do universo literário, aspecto da cultura que desempenha
diversos papéis sociais. Ocorre que o próprio autor se pergunta se tal efeito se daria desse
modo apenas entre as classes cultivadas ou, dito de outro modo, se tal compartilhamento de
referências poderia ser realizado com mais êxito por esses grupos (BOURDIEU, 2013b). Nós
incluiremos a pergunta: como se daria esse processo quando pensamos no ensino médio atual,
que passou por momentos de expansão?
As salas de aula de ensino médio que conhecemos bem como os alunos e professoras
presentes em seu interior dão indícios acerca desse processo de expansão por que passou esse
nível de ensino. Até o século XIX, o ensino médio, que era destinado à formação das elites,
como afirma Elza Nadai (1987), altera sua destinação e, ao longo do século seguinte, passa
16

por processos de expansão que levam à democratização de seu acesso (SPOSITO, 1984;
BEISIEGEL, 2006). A presença de alunos cujas origens sociais são cada vez mais variadas
faz com que na escola se verifique a convivência de culturas que antes do processo de
expansão não estariam em seu interior. Se no passado seria possível se pensar na homologia
entre a cultura escolar legítima e a familiar, tal aproximação passa a ser vista como cada vez
mais difícil. No que se refere ao sentido da leitura de obras literárias no ensino médio, o
quadro exposto acima problematizou e trouxe questionamentos ao modelo de formação
vigente e, portanto, à cultura legítima em seu interior, a qual, ao longo do tempo, já cumpriu a
função de apresentar o modelo da norma padrão de escrita, ser o local de inculcação de
valores e do bom gosto, além de ser forma de adquirir vantagens pessoais e espaço de
transmissão do patrimônio literário brasileiro (ZILBERMAN, 1988). Problematizar as tensões
relativas às representações de professores e alunos sobre a leitura de obras literárias nos leva a
questionar quais seriam os sentidos atribuídos pela escola a ela hoje em dia bem como suas
repercussões para os primeiros.
É preciso considerar que as disputas em tela se expressam segundo as finalidades da
literatura no nível de ensino em questão. De acordo com Anne-Marie Chartier e Jean Hébrard
(1995), a leitura escolar é apresentada em duas vertentes quando se pensa nas oposições entre
o ensino primário e o secundário. No ensino elementar a alfabetização atesta que se atingiu os
objetivos de escolarização, na medida que permite aos alunos autonomia diante dos textos. Já
no ensino médio, a leitura cumpre a função de formar o que se considera a “cultura”, ou seja,
a incorporação de sentidos da cultura letrada que distinguem quem fará parte da elite. Essa
oposição se refere a um momento em que a sociedade e a escola estavam marcadas por maior
rigidez. Após processos de democratização do acesso ao ensino médio, as fronteiras entre eles
se embaralham, entretanto, tais esquemas de compreensão dos sentidos da leitura de obras
literárias, como veremos ao longo da tese, não foram totalmente superadas. No momento,
interessa-nos dizer que os apontamentos dos autores supracitados demonstram a papel de
consagração de relações distintas com a leitura e suas correspondências no que se refere à
classificação na estrutura das hierarquias sociais (BOURDIEU, 2013b).
No caso brasileiro, Marcia de Paulo Gregorio Razzini (2000) afirma que a literatura
estrangeira, sobretudo a francesa, constituiu a referência da cultura valorizada pelas elites
durante o século XIX. No processo de institucionalização da disciplina Língua Portuguesa, no
entanto, os títulos nacionais ganham importância de modo a formar a cultura nacional, ou a
consciência nacional, como afirma Fernando de Azevedo em A cultura brasileira (2010):
17

A cultura, nas suas múltiplas manifestações, sendo a expressão intelectual de um


povo, não só reflete como as ideias dominantes em cada uma das fases de sua
evolução histórica, e na civilização de cuja vida ele participa, como mergulha no
domínio obscuro e fecundo em que se elabora a consciência nacional (AZEVEDO,
2010, p. 38).

Originalmente publicada em 1942, a obra citada ressoa o impasse relativo aos sentidos
da formação literária, pois ao longo do século XX sua finalidade de formação da
nacionalidade a partir da cultura geral de cunho humanista passa a ser questionada em favor
de uma visão mais utilitarista do ensino médio (SOUZA, 2009). O leitor desinteressado que se
vislumbra na passagem de Fernando de Azevedo parece ter menos espaço entre as
proposições curriculares e pedagógicas da segunda metade de século XX. É necessário, no
entanto, investigar e compreender o modo como tais estruturas de compreensão da boa leitura
em circulação no ensino médio circulam no espaço das escolas pesquisadas e nas
representações das professoras e alunos conhecidos.
Por meio do que temos exposto até aqui, gostaríamos de evidenciar que tomamos a
leitura como prática cultural que evidencia formas de encontro entre um leitor e um texto.
Roger Chartier (1991a; 1991b) sustenta que longe de pensarmos na atividade de decifração
dos livros como a busca pelo sentido correto proposto pelo autor, ela é caracterizada como um
trabalho. Para que ele seja realizado, os leitores constituem paradigmas de decifração e de
compreensão das formas escritas associadas à constituição de comunidades de leitura com
características próprias. Por meio de suas clivagens – sociais, religiosas, acesso à
escolarização – fundam-se formas de apropriação e produção de significados para a leitura
que dão a ver modos de classificação do espaço social a partir de um ponto de vista. Ao
mesmo tempo, as práticas de leitura tomam objetos que foram criados por editores,
vendedores, enfim, instâncias de criação e mesmo de alteração do texto. Nosso desafio é o de
considerar a leitura, muitas vezes compreendida a partir de imagens que a localizam fora das
injunções sociais e histórica que lhe são características, como observa Pierre Bourdieu em As
regras da arte (1996), como uma prática cultural semelhante a outras. Nesse sentido, ela pode
ser objeto de disputas por seus sentidos, uma vez que a cultura é objeto de classificação e
diferenciação entre os grupos que compõem a sociedade. Devemos compreender, desse modo,
que a leitura não teve os mesmos significados ao longo do tempo e suas alterações guardam
relação com o trabalho escolar na medida que a escola é responsável por ensinar a leitura de
obras literárias a grupos sociais cada vez mais amplos (CHARTIER, 1995). De modo a
realizar essa tarefa, o trabalho pedagógico efetiva determinada organização das atividades,
18

currículos, enfim, materiais diversos que colocam em prática o ensino da leitura de obras
literárias.
Ao elaborar a linguagem literária, a escola fornece os sentidos de suas finalidades
educativas. Bernard Lahire (2008) coloca em evidência que as formas assumidas pela leitura
na escola fazem com que ela seja escolarizada ou, dito de outro modo, escrituralizada,
codificada e organizada como algo a ser ensinado. Ao organizar seu trabalho desse modo, a
escola dota os alunos não apenas de um conjunto de títulos, autores e enredos conhecidos,
mas também de esquemas “...de percepção, de pensamento e de ação...” (BOURDIEU, 2013b,
p.206). Sendo assim, nosso objeto de pesquisa coloca em jogo a linguagem, aspecto
estruturante da escolarização, o que torna importante insistir um pouco mais nessa questão.
Para isso, acompanhemos o excerto a seguir:

La pédagogisation des relations sociales d'apprentissage ne peut se comprendre sans


la prise en compte du processus de scripturalisation des activités. Par
scripturalisation, il faut entendre le double travail de mise en écriture d'une pratique
afin de constituer un savoir explicite (qui apparaît désormais comme tel), qui a sa
propre cohérence, sa propre logique interne et d'objectivation des phases, des
séquences, des moyens, des matériaux, etc., nécessaires à son apprentissage:
codification des savoirs et de la relation sociale d'apprentissage (LAHIRE, 2000, p.
35).

Bernard Lahire (2000) evidencia que é apenas por meio da participação nas formas
escolares de organização da linguagem que um aluno terá acesso ao conhecimento que a
escola pode oferecer. As proposições do autor indicam que, no limite, é a entrada nas trocas
linguísticas escolares que permitirá aos alunos a apropriação dos saberes escolares. Insistindo
nesse assunto, Stéphane Bonnéry (2007) faz a seguinte observação ao verificar o modo como
alunos em situação de sucesso encararam as atividades escolares:

Par comparaison, les élèves les plus familiers des logiques scolaires savent, parce
qu'ils l'on appris auparavant (probablement hors de l'école), que la réalisation des
tâches scolaires, l'application des consignes et l'obtention du bon résultat, s'ils sont
importants, ne le sont que parce que cela constitue un moyen de construire un savoir,
de consolider ou d'évaluer son acquisition. (...) Cette attitude d'appropriation est
beaucoup plus conforme aux exigences spécifiques de la transmission scolaire et à
l'apprentissage de savoirs modelés par les logiques de la culture écrite (2007, p. 32).

Diante das diferentes posições sociais dos alunos, estes dão respostas variadas à
atividade escolar e, assim, o que pode se mostrar como falta de interesse e indisciplina guarda
relação com as posições sociais nas quais estão inseridos fora dela. Sendo assim, assumimos
que as convergências ou divergências entre as práticas culturais escolares e aquelas mantidas
nas famílias sugerem maior ou menor aproximação entre os alunos e a escola. Durante o
19

processo de ensino, os alunos e professores operacionalizariam, então, suas disposições,


capital cultural, enfim, seus habitus acerca dos livros e da leitura, que podem ser mais
próximos ou distantes do universo escolar (BOURDIEU, 2007). Para a pesquisa,
consideramos significativo compreender como a literatura e a leitura, formas de elaboração da
linguagem, se constroem e se mostram no cotidiano bem como as formas como são
diferentemente apropriadas pelos alunos.
Não podemos deixar de considerar que a cultura escolar será composta pelas ações,
modos de fazer e pensar dos estudantes e alunos em sala de aula. Ao pensarmos acerca dos
primeiros, é imprescindível localizarmos suas ações como práticas geradas a partir de seus
habitus que podem corresponder a diferentes grupos presentes em sala de aula, os quais
fundam culturas próprias a eles que antecedem e também se mostram na sala de aula. A
observação das aulas nos permitiu acompanhar as preferências dos alunos, seu gosto pela
música, a presença do celular, os grupos que se formam em torno de interesses e modos de
vestir semelhantes, enfim, as culturas formadas pelos jovens. Maíra Soares Ferreira (2012), ao
pesquisar as origens culturais de alunos de uma escola paulista, demonstrou o quanto as suas
matrizes culturais podem ser materiais importantes para a constituição das aulas. Uma parte
dos alunos conhecidos durante a pesquisa era formada por adolescentes, alunos do ensino
médio regular, e outra parte é composta por adultos com mais de 30 anos, alunos da EJA. As
culturas dos dois grupos se diferenciavam pela maneira como habitavam a sala de aula,
configurando dois espaços bastante diferentes. As duas professoras conhecidas também
demonstravam formas particulares de se portar durante as aulas, de organizá-las e de
produzirem relações com a literatura. A partir do encontro entre esses dois grupos em um
espaço organizado para o ensino, com materiais didáticos e currículo que orientam os modos
de abordagem e finalidades para o ensino de literatura, poderemos encontrar possíveis tensões
relativas às disputas de representações em torno das práticas de leitura legítimas.

Um olhar atento para as relações objetivamente praticadas na escola

Esta pesquisa se apresenta na forma de um estudo de caso, uma vez que a investigação
foi realizada em duas escolas estaduais, contando com a participação de duas professoras e
oito alunos do ensino médio. Entre a quantidade de instituições de ensino, de professores e
alunos a comporem a rede de escolas, este número pode parecer pouco representativo do que
se pode considerar como a realidade das instituições paulistas. Porém, este trabalho visa a
20

apresentar as relações objetivamente instauradas nas escolas em questão de modo a


identificarmos as características dos problemas referentes às disputas pela leitura legítima de
obras literárias na escola hoje, compreendendo que os conflitos vividos pelos sujeitos que
acompanhamos nos revelam mais do que suas trajetórias singulares. O movimento que
pretendemos empreender considera a possibilidade analítica descrita por Carlo Ginzburg
(2006), em O queijo os vermes, ao explicitar a maneira como o crivo estabelecido por
Menocchio entre os livros e a construção de uma visão de mundo permitiram ao autor
compreender uma forma específica de elaboração da realidade a partir de elementos
disponíveis a vários segmentos da sociedade naquele período. Nesse sentido, seu leitor
exemplar permitiu a Carlo Ginzburg descrever um “...microcosmo de um estrato social inteiro
em um período histórico” (GINZBURG, 2006, p. 20), uma vez que até a trajetória atípica de
Menocchio não esteve distante da cultura de seu tempo e de sua classe social. De forma
semelhante, a aproximação às escolas conhecidas nessa pesquisa nos permite compreender
crivos possibilitados por representações sobre a leitura de professores e alunos situados em
uma instituição da rede paulista.
Compreendemos, desse modo, que as relações com a cultura e os modos de
configuração da linguagem em circulação nas Escola 1 e 2 e também entre os espaços do
mundo social ocupados por nossos entrevistados podem gerar formas específicas de interação,
que uma vez compreendidas permitem vislumbrar o que está em jogo no que se refere às
disputas pela leitura de obras literárias. Pierre Bourdieu (2011) diria que por esse caminho
seria possível notar as estruturas do espaço escolar nas quais os alunos e professoras estão
inseridos, ao que incluiríamos as repercussões escolares de algumas estruturas dos espaços
sociais de onde se originam. Para tanto, é preciso assumir que os depoimentos a que tivemos
acesso e as salas de aula que conhecemos evidenciam, para além de histórias singulares dos
participantes da pesquisa, “...as relações objetivas, presentes e passadas, entre sua trajetória e
a estrutura dos estabelecimentos escolares que elas frequentarem e, por isso, toda a estrutura e
a história do sistema de ensino que neles se exprime” (BOURDIEU, 2011, p. 705). Por
conseguinte, a Escola 1 e a Escola 2 são maneiras de situarmos as relações atuais no que se
refere às formas como a linguagem foi elaborada, as quais ganham contornos próprios por
meio de clivagens específicas.
Quando situamos os sujeitos participantes da pesquisa assim como a própria realidade
escolar como parte dessa rede de temporalidades que constitui o presente, procuramos
evidenciar que as reclamações, insatisfações, felicidades, angústias entre outros sentimentos
advindos da experiência de escolarização e as aproximações com a cultura que dela decorre,
21

nos permitem “...revelar as coisas enterradas nas pessoas” (BOURDIEU, 2011, p. 708).
Quando se vive em uma dada realidade ela se torna muito conhecida e, ao mesmo tempo,
completamente estranha no que se refere às razões passadas e presentes que a fazem ser como
são. O trabalho do pesquisador, nesse sentido, pode ser ocasião para que se possa evidenciar
as condições de existência, nesse caso, no que se refere à vida na escola.
O esforço de especificação do que está em jogo nas trajetórias individuais em que se
traduz o que foi exposto acima deve seguir um caminho investigativo cuidadoso, do que
depende o conhecimento do campo a ser investigado e do controle do ponto de vista sobre o
problema de pesquisa, o que será descrito no capítulo 1. Ao nos situarmos em meio ao
cotidiano escolar, tínhamos um conhecimento advindo de nossa própria experiência de
escolarização, uma vez que estudamos em uma escola semelhante àquelas conhecidas durante
a pesquisa. Marília Amorim (2004) sustenta que “todo trabalho de pesquisa seria uma
tradução do que é estranho para algo de familiar” e vice-versa, logo, em nosso caso,
precisamos tornar estranho um ambiente que nos parecia conhecido. Durante toda a pesquisa,
fomos realizando o exercício de reconhecer e estranhar, uma vez que a escola, os professores
e as salas de aula nos faziam lembrar do passado, porém as relações instauradas atualmente
nada se aproximavam daquelas que conhecemos anteriormente. Nesse sentido, em nossa
própria experiência pudemos identificar o jogo de temporalidades que marca a escolarização
e, assim, conhecemos o outro e produzimos a pesquisa enquanto também nos conhecíamos
mais, no que se refere às estruturas que produzem sujeitos escolarizados. Por meio da
observação atenta do cotidiano procuramos localizar, assim, traços significativos das relações
entre escola e cultura, seguindo por um mapa cujas linhas eram parcialmente conhecidas, de
modo a localizar no corriqueiro as pistas para traçarmos relações temporais e sociais mais
amplas. Registramos e descrevemos, assim, as ações e modos de pensar de alunos e
professores – em confronto com as urgências escolares – de modo a encará-los como práticas
valiosas pelas trajetórias pessoais de que são resultado e, também, como traços de estruturas
escolares fundamentais para compreendermos as lógicas de funcionamento das mesmas, como
nos sugere Pierre Bourdieu (2011).
De modo a expor nossa pesquisa, a tese está organizada em quatro capítulos. O
primeiro, intitulado A construção de um objeto de estudos pelo cotidiano, temos como
objetivo apresentar as bases teórico-metodológicas da pesquisa. Iremos expor o ponto de vista
por meio do qual construímos a investigação sobre as disputas pela leitura legítima de obras
literárias no cotidiano escolar. Assim, situamos a cultura escolar como algo repleto de
temporalidades, o que coloca em jogo no presente um conjunto de sentidos para a literatura na
22

escola. Além disso, também circunscrevemos o modo como os alunos e a professora


produzem a cotidianidade escolar a partir de ações socialmente situadas. Realizamos, ainda, a
exposição das fontes utilizadas para a produção da pesquisa bem como os perfis das escolas,
dos oito alunos e das duas professoras.
O segundo capítulo, chamado Na escola de ensino médio: os tempos escolares da
leitura de obras literárias e seus conflitos, cujo principal objetivo é apresentar o modo como a
literatura se apresenta no cotidiano pelo cruzamento entre as práticas mantidas hoje em dia
nas escolas e estruturas cognitivas que ao serem atualizadas constroem uma matriz
socializadora possível. Sendo assim, ele se estrutura em três partes: na primeira, por meio do
olhar sobre os currículos atuais e outros mais antigos bem como sobre a história da disciplina,
apresentaremos as imagens da boa leitura e do bom leitor que conformam o inconsciente
escolar sobre as obras literárias; a seguir, por meio da descrição das atividades colocadas em
prática durante as aulas, vemos como ao serem incorporadas e reelaboradas em função das
posições de professores e alunos as professoras constroem a matriz socializadora possível;
finalmente, exploramos como a expansão escolar produz fronteiras culturais porosas nas
escolas, que se veem pressionadas entre a imagem do leitor ideal presente nos esquemas
interpretativos escolares e as representações de leitura de professores e aluno.
Em A bricolagem cotidiana: o trabalho docente na encruzilhada escolar, descrevemos
as práticas de leitura de Valquíria e Celeste, as professoras que entrevistamos, situando as
especificidades da posição docente nas escolas de ensino médio atuais. Para tanto, a partir da
ideia de bricolagem, exploramos o modo como as professoras articulam diferentes materiais e
sentidos em circulação no espaço escolar de modo a constituir as aulas e os currículos
cotidianos da disciplina Língua Portuguesa. Assim, inicialmente, descreveremos como as
professoras vivem em um mundo cultural cindido entre suas práticas de leitura não-escolares
e a necessidade assumir uma relação com a cultura esperada segundo os imperativos
escolares. A seguir, apresentaremos as práticas de leitura das professoras demonstrando o
quanto a menção aos mesmos é gerida pelas professoras de modo a manterem a imagem da
leitura legítima escolar. Por fim, falaremos sobre o modo como elas incorporam a profissão
em cursos de formação e no início do período de trabalho nas escolas.
Finalmente, em A leitura serve para soltar o corpo: tensões entre as práticas sociais e
escolares de leitura na escola, descreveremos as características das práticas de leitura dos
estudantes. Nesse capítulo analisaremos as práticas e representações de leitura dos
participantes da pesquisa, demonstrando os sentidos familiares e modos de circulação no
universo literário em que vivem. Veremos que a partir de modos de compreensão da leitura de
23

obras literárias, os alunos veem seus modos de se relacionar com os livros reclassificados no
espaço escolar e, assim, eles são definidos como leitores ou não em função das imagens
escolares do bom leitor. Descreveremos, também, os sentidos atribuídos por eles à
escolarização ao vivenciarem cotidianamente as tensões entre suas representações de leitura e
as escolares bem como as relações com o conhecimento favorecidas pela escola.

* * *
Interessa à nossa pesquisa conhecer outras investigações que colocam em foco a
leitura, o que nos permite compreender alguns sentidos acerca da leitura enquanto um objeto
de investigação. Ao pesquisar os resumos de teses e dissertações acerca da leitura entre 1980
e 1995, Norma Sandra de Almeida Ferreira (1999) identificou que as pesquisas sobre leitura
giram em torno de algumas áreas: Educação, Psicologia, Letras, Lingüística, Biblioteconomia
e Comunicações. A primeira pesquisa sobre o assunto foi feita em 1965 por Maria José
Aguirre no Instituto de Psicologia da USP. A partir daí outros Programas de Pós-Graduação
passam a se interessar pelo tema, são eles os Programas de Letras/linguística, Educação e
Biblioteconomia. Observa-se uma tendência de crescimento das pesquisas sobre o tema,
principalmente, após os anos 1980:

“A narrativa cronológica das pesquisas sobre Leitura no Brasil revela que esta
história se inicia timidamente, com outros trabalhos. Se nos anos que antecedem a
década de 80, em período de 14 anos, foi possível identificar 22 trabalhos, verifico
que em tempo praticamente igual, de 1980-1995, o total de trabalhos é de 189”
(FERREIRA, 1999, p. 214).

No que se refere ao interesse das investigações conhecidas pela pesquisadora, ela nota
que a maioria das pesquisas trata das séries iniciais no ensino público. A maioria dos estudos
localizados trata do desempenho/compreensão da leitura, desenvolvidas prioritariamente na
área de Psicologia (FERREIRA, 1999). Contudo, outros focos1 de interesse das pesquisas
sobre a leitura estão espalhadas pelas outras áreas. Os objetos de pesquisa viram, na primeira
metade dos anos 1980, o predomínio de estudos sobre o leitor, tanto na escola quanto na
biblioteca. Na segunda metade da mesma década, aquele foco de interesse também é ampliado
para a compreensão da formação do leitor em perspectiva histórica. Nos anos 1990, Norma
Sandra de Almeida Ferreira (1999), sustenta que os interesses das pesquisas se voltam para as

1
Os outros focos são os seguintes: análise do ensino da leitura/ proposta didática, com 61 trabalhos; leitores -
preferências, gostos, hábitos, histórias e representações, com 25 trabalhos; professor/bibliotecário como leitor,
com 15 trabalhos; texto de leitura usado na escola, com 8 trabalhos; memória de leitura, do leitor e do livro, 6
trabalhos; concepção de leitura, com 3 trabalhos (FERREIRA, 1999).
24

representações sobre a leitura. Nesse sentido, predominam as fontes memorialísticas e as


histórias de vida.
Ao pesquisar a constituição da leitura como objeto de pesquisa, Ana Cristina
Champoudry Nascimento da Silva (2012) nos mostra como nos anos 1980 se consagra uma
maneira particular de se tratar a leitura bem como se definem os principais problemas ao seu
redor. De acordo com a autora, esse período da produção de pesquisas em nível de Pós-
Graduação foi marcado pela primazia do ensino sobre a pesquisa, quando as questões a serem
investigadas buscavam dar respostas aos problemas escolares. Ao mesmo tempo, os anos
1980 veem surgir novas abordagens sobre a leitura a partir de seu papel libertador e
transformador. Com relação a esse aspecto, o que escreve Antonio Candido no prefácio do
livro de Maria Theresa Fraga Rocco é revelador: “É bastante alentador o interesse que começa
a se manifestar sistematicamente pela revisão do ensino de literatura” (1981, p.xi).
O aumento do interesse pela leitura se traduziu predominantemente em uma visão de
que ela seria um fator de transformação social por meio da mudança no ensino de literatura, o
que deu tom reformista ao período. Do ponto de vista teórico, a leitura foi marcada pelas
seguintes abordagens: social, literária, cognitiva e sociointeracionista (SILVA, 2012). Além
disso, os trabalhos também criaram algumas imagens sobre a leitura e o seu ensino que
parecem ser chaves interpretativas ainda presentes. A primeira diz que a leitura foi construída
como fundamental para o aprendizado de outras disciplinas e, portanto, ela seria mais
importante que as outras. A segunda é a imagem da crise, que perpassa o fracasso da escola ao
formar o leitor, o que geraria a necessidade de alterar as formas tradicionais de ensino de
literatura. Essas transformações procuravam oferecer uma resposta para as transformações do
perfil dos alunos que chegavam à escola em decorrência da expansão do ensino de 1ºgrau:

Esse discurso seguiu em duas direções, uma de cunho quantitativo,


relacionado à ampliação da oferta de educação tendo em vista a
universalização do ensino de 1º grau, e outra que abordava os aspectos mais
qualitativos, podendo ser caracterizados a partir das reformas educacionais,
de reformulações da organização escolar, da introdução de novas
metodologias de ensino e do aperfeiçoamento do professor (SILVA, 2012, p.
34).

Fruto de tal contexto, as pesquisas do período parecem demonstrar interesse crescente


no aluno e na escola, procurando compreender o que se apresentava como uma nova realidade
educacional. Outras pesquisas acerca da leitura como objeto de pesquisa têm demonstrado a
contínua tendência de aumento dos estudos sobre a leitura. Gislene de Souza Oliveira Silva
(2017) observou que mais de 400 pesquisas sobre o tema, espalhadas em diversas áreas de
25

conhecimento foram produzidas entre os anos de 2010 e 2015. Os dados da autora indicam
que as Programas de Pós-Graduação em Educação, Letras e Psicologia concentram
atualmente os estudos sobre a leitura.
De modo a particularizar a compreensão dos estudos realizados na área de ensino de
literatura, passaremos a pequenos comentários de alguns trabalhos produzidos a partir dos
anos 1970 e que foram significativos para realizarmos aproximações à questão. Não
realizamos um levantamento exaustivo das teses e dissertações sobre a leitura, porém
procuramos selecionar algumas que configuram posições variadas a respeito da leitura,
sobretudo nas áreas de Educação e Letras.
Iniciaremos esse percurso pelos trabalhos sobre a leitura e seu ensino com o livro
Literatura/ensino: uma problemática, de Maria Theresa Fraga Rocco, dissertação de mestrado
defendida em 1975. O trabalho buscava apresentar um retrato do ensino de literatura no Brasil
e ao mesmo tempo oferecia caminhos para a busca de um ensino condizente com a nova
realidade educacional. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, a pesquisadora aplica
questionários em 178 alunos pré-adolescentes, 78 adolescentes e 31 professores. Por meio da
análise dos dados, a autora configura as representações sobre a leitura, o uso do livro didático
e sobre as finalidades do ensino definidas por professores e alunos. Na segunda parte, a autora
apresenta a entrevista que fez com “professores de literatura, críticos e/ou criadores, de
indiscutível renome” de modo a configurar uma bibliografia sobre o ensino de literatura.
Figuram nessa lista: Alfredo Bosi, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Lucrécia D’Alessio
Ferrara, Michel Launay, Nelly Novaes Coelho e Zulmira Ribeiro Tavares.
É de 1979 a tese de doutorado defendida por Marisa Lajolo sob o título Usos e abusos
da literatura na escola – Bilac e a literatura escolar na República Velha. A autora analisa a
produção de livros didáticos produzidos pelo escritor, a saber: Livro de composição (1899),
Livro de leitura (1901), Contos pátrios (1904), Poesias Infantis (1904), Teatro infantil
(1905), Através do Brasil (1910), Pátria Brasileira (1911). A autora realiza a análise interna
das obras, desde seus textos de abertura até os principais temas explorados, localizando o
modo como o arcaísmo se mostrava em sua produção. Por fim, relaciona os livros ao
momento histórico em que se situam. A obra tem como contribuição o estudo e a
problematização do livro didático como produtor de uma teoria literária e do próprio ensino.
De maneira mais arrojada que os livros precedentes, Ligia Chiappini Moraes Leite
apresenta o seu Invasão da Catedral: literatura e ensino em debate, fruto de pesquisa
realizada no Brasil e na França entre 1977 e 1978. A autora também busca uma descrição da
literatura e de seu ensino no Brasil, recorrendo à comparação, entretanto, ela apresenta uma
26

postura mais “iconoclasta”, como definiu Marilena Chauí no prefácio do livro. A autora
realiza entrevistas com alunos do 1º e 2º graus, seguindo as mesmas perguntas propostas por
Maria Theresa Fraga Rocco três anos antes. No entanto, o referencial bibliográfico e o ponto
de partir de Ligia Chiappini são diferentes, pois ela pretende desconstruir a leitura e a
literatura como são ensinadas na escola e na Universidade, repensando o lugar sacralizado da
literatura e do autor nos meios acadêmicos.
Alice Vieira traz a dimensão do cotidiano do ensino com a tese Análise de uma
realidade escolar: o ensino de literatura no 2º grau, hoje, defendido em 1988. O trabalho
busca compreender como se passa a aula de Português e para isso entrevista 580 estudantes
para descobrir o que gostam de ler, a razão para a leitura e seus projetos de futuro.
Compreende ainda que a aula de literatura é conformada por uma série de constrições e,
dentre elas, investiga o vestibular como fator de conformação do ensino no 2º grau. É
importante assinalarmos que Alice Vieira incorpora outros elementos na compreensão da
literatura que pode ser usada em sala de aula. Ela afirma que seria preciso incorporar leituras
como os best-sellers em sala de aula, o que poderia favorecer uma empatia entre literatura,
professores e alunos, levando ao “acesso a textos mais elaborados”. Essa discussão é muito
constante nos trabalhos atuais.
Mabel Servidone (1993) pesquisa nas salas de aula das séries iniciais as maneiras
como a língua é produzida na sala de aula. Assim, o estudo Leitor e escritor ou o observador
distanciado, mostra em perspectiva do cotidiano o modo como a língua e, portanto, a leitura
na escola é construída, no processo de alfabetização, como algo distanciado da prática dos
alunos.
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo (1994) pesquisou os Caminhos e
cotidianos de uma professora de leitura e escrita. A partir de uma perspectiva do cotidiano, a
pesquisadora acompanhou as relações cotidianas de construção da língua e a cotidianidade de
uma sala de aula de alfabetização. Por meio de seu relato é possível encontrarmos várias
situações corriqueiras que nos permitem ver maneiras de as crianças se relacionarem com a
escrita e a leitura.
Difere deste grupo o trabalho de Antônio Augusto G. Batista, A aula de português:
discursos e saberes escolares, publicado em 1997, cujo objetivo foi compreender o que se
ensina quando se ensina português. No cruzamento de referencial teórico da sociologia da
educação, os estudos da linguagem e a linguística, o pesquisador realiza observações de aula
de Língua Portuguesa. Nesse cruzamento o autor vê a sala de aula como espaço de produção
de textos variados, orais e escritos, resultando numa dada construção da disciplina que
27

demonstra aquilo de fato se ensina em Língua Portuguesa. É muito importante dizer que esse
trabalho é pioneiro no recurso à observação de aulas e produz dados que buscam definir como
se configura essa disciplina escolar, atentando para as formas de texto presentes na sala.
Por fim, citamos os trabalhos de Gabriela Rodella de Oliveira, que realizou a pesquisa
de mestrado O professor de português e a literatura: relações entre formação, hábitos de
leitura e prática de ensino (2008) e, no doutorado, As práticas de leitura literária de
adolescentes e a escola: tensões e influências (2013). Retomando a tradição dos anos 1970 e
1980, a autora realiza entrevistas e aplica questionários com professores e alunos do ensino
médio de modo a configurar as relações dos primeiros e dos últimos com a literatura, além de
construir uma imagem das aulas de Português. O trabalho é feito a partir da noção de leitura
literária e procura incorporar as perspectivas do leitor nas reflexões sobre a leitura.
Os trabalhos que apresentamos acima, embora não derivados de um levantamento
exaustivo, mapeiam formas tradicionais de discutir e utilizar recursos metodológicos na
pesquisa sobre leitura. Predominam os estudos de perfil quantitativo com a realização de
entrevistas e aplicação de questionários em larga escala. A exceção é dada por Antônio
Augusto G. Batista, Mabel Servidone e Maria Rosa Rodrigues Martins, que realizam
observações das aulas de Língua Portuguesa ou do cotidiano das séries iniciais. Os estudos
parecem confirmar o que Ana Cristina Champoudry Nascimento da Silva (2012) observou em
seu estudo, pois vemos que parece existir, de fato, uma preocupação com a busca por soluções
para o ensino de literatura. Acompanhamos também que os estudos da década de 1970
partiram da teoria literária para a produção das análises e, não por acaso, Antonio Candido
escreve o prefácio dos textos de Maria Theresa Fraga Rocco e Marisa Lajolo. A seguir, ao
referencial bibliográfico da teoria literária foram sendo incorporados outros advindos da
Sociologia e da Sociologia da Leitura (caso de Ligia Chiappini Moraes Leite e Gabriela
Rodela de Oliveira) e da Linguística (Antônio Augusto G. Batista).
Quando nos voltamos para os artigos produzidos em alguns periódicos científicos,
vemos que a literatura vem sendo construída como objeto a partir de diferentes perspectivas.
Para acompanhar tal movimento, realizamos um levantamento bibliográfico entre os anos
1995-2015 de modo a compreender essa hipótese. Não se trata de um levantamento exaustivo
de produções sobre leitura, porém buscamos localizar algumas imagens e opções recorrentes
no que se refere ao estudo sobre o tema em questão. As revistas analisadas foram as seguintes:
Educação & Pesquisa; Educação & Sociedade; Revista Brasileira de Educação; Cadernos
CEDES; Cadernos de Pesquisa; Pró-posições e Leitura: teoria & prática. Os artigos
28

encontrados sobre o assunto serão apresentados a seguir, em grupos. O quadro completo com
os títulos dos artigos está em arquivo anexo (ANEXO I).
Um conjunto significativo de artigos abordou o tema da alfabetização e do letramento
quando busca falar a respeito de leitura. Esse é o caso, por exemplo, do artigo escrito por
Claudemir Belintane, Leitura e Alfabetização no Brasil: uma busca para além da
alfabetização (Educação & Pesquisa, 2006). Além disso, também podemos citar Letramento
no Brasil: alguns resultados do indicador nacional de alfabetismo funcional de Vera
Masagão Ribeiro, Claudia Lemos Vóvio e Mayra Patrícia Moura (Educação & Sociedade,
2002).
Outro grupo de artigos abordou o estudo dos impressos escolares, sejam eles os livros
de leitura, os cadernos e coleções, com ênfase no primeiro caso. Podemos citar como
exemplos desse grupo os artigos: Livros escolares de leitura: uma morfologia (1866-1956),
de Antônio Augusto Gomes Batista (Revista Brasileira de Educação, 2002); Reading as a
cultural practice: concepts for the study of schoolbooks, de Elsie Rockwell (Educação &
Pesquisa, 2001).
É significativo o número de artigos que podem ser situados na área de História da
Educação. Entre eles podemos citar Letrados da Amazônia imperial e saberes das populações
analfabetas durante a Revolução Cabana (1835 – 1840), de Magda Ricci, Luciano Demetrius
Barbosa Lima (Revista Brasileira de Educação, 2015); Educação, literatura e cultura da
infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes, de Patrícia de Cassia
Pereira Porto (Educação e Sociedade, 2014).
A literatura também aparece na relação com o ensino, o que podemos notar por meio
dos artigos: Mediações on-line em cursos de educação a distância os professores de língua
portuguesa em questão, de Flaminio de Oliveira Rangel et al. (Revista Brasileira de
Educação, 2015); Contribuições da literatura infantil para a aprendizagem de noções do
tempo histórico: leituras e indagações, de Ernesta Zamboni e Selva Guimarães Fonseca
(Cadernos CEDES, 2010). Notemos que no último caso a literatura é fonte para o ensino de
história. Alguns artigos falam de práticas escolares, como Dispositivo analítico para
compreensão da leitura de diferentes tipos textuais: exemplos referentes à Física, de
Almeida, Maria José P. M. de Almeida e Sorpreso, Thirza Pavan Sorpreso (Pro-Posições,
2011).
Alguns artigos abordam a leitura não escolar ou em espaços variados, quando as
discussões em torno da leitura virtual ganham força. Vejamos: Novas práticas de leitura e
escrita: letramento na cibercultura, de Magda Soares (Educação e Sociedade, 2002); Leitores
29

rurais: apropriação ético-prática nos sentidos atribuídos à leitura, de Lisiane Sias Manke
(Revista Brasileira de Educação, 2015).
Por fim, existem alguns trabalhos que abordam as relações entre a literatura – na
forma de romances autobiográficos e romances de formação em suas possíveis relações com a
pedagogia e a educação. Esse é o caso do artigo Como salvar a educação (e o sujeito) pela
literatura: sobre Philippe Meirieu e Jorge Larrosa, de Flávio Henrique Albert Brayner
(Revista Brasileira de Educação,2005). Nesse grupo também poderíamos inserir o artigo
Pedagogia e museificação, de Denice Catani (Revista USP, 1990).
Existem, ainda, outros artigos que visam abordar as questões de leitura levando em
conta as aproximações entre suas práticas e questões sociais. Esta abordagem do problema
pudemos encontrar, sobretudo, na revista Leitura: teoria & prática. Entre eles, podemos
mencionar Prática social de leitura na escola e na sociedade, de Telma Ferraz Leal (1999);
Compreensão de textos e classe social, de Marco Antônio Rodrigues Vieira e Guy Denhière
(1998); Uma leitura de leituras produzidas por grupos socias diferentes, de Heliana Maria e
Brina Brandão (1992).
Como procuramos observar, quando a leitura e a literatura se tornam objeto do campo
educacional ela pode ser tomada como fonte para estudos variados, aparece como um
conjunto de impressos que compõe o cotidiano escolar, tem seu papel situado entre a
alfabetização e o letramento e também é pensado a partir do ensino e da formação de
professores. Contudo, trata-se de práticas ou experiências de ensino associadas a diversas
disciplinas. As fontes e metodologias presentes nos trabalhos variavam segundo os objetivos e
áreas de origem dos pesquisadores. Contudo, vemos as características de pesquisa do campo
educacional entre os trabalhos descritos.
Como desafio para a produção de nossa tese reside a necessidade de construirmos no
campo educacional um objeto que detêm um espaço institucionalizado na área de ensino de
Português. Como poderíamos, assim, constituir bases teóricas e metodológicas para a
produção da tese?
Nesse momento, procuramos recorrer ao referencial bibliográfico francês produzido
no campo educacional e que abordava a problemática da leitura escolar. Realizamos um
levantamento bibliográfico em revistas francesas de educação em busca de artigos publicados
entre 1995 e 2015. As revistas pesquisadas foram as seguintes: Revue Française de
Pédagogie (1967); Revue Française de Sociologie (1960); Éducation et Sociétés (1998); Actes
de la Recherche en Sciences Sociales (1975); Revue de Sciences de l’Éducation
(1975). Passemos a uma aproximação aos artigos encontrados.
30

Alguns artigos buscam realizar uma descrição um pouco mais geral da leitura, como é
o caso de Lire au collège et au Lycée: [de la foi du charbonnier à une pratique sans
croyance] (1998), de Christian Baudelot e Marie Cartier, publicado na revista Actes ou La
lecture scolaire comme pratique culturelle: concepts pour l’étude de l’usage des manuels
(2006), de Elsie Rockwell, em Éducation et Sociétés. Mais relacionados a esses trabalhos
vemos outros que procuram se aproximar das práticas de ensino de literatura. Esse parece ser
o caso de Concevoir des communautés de lecteurs: la gestion de la classe dans une
didactique interacionniste (1999), de Sabine Vanhulle e de Les cercles littéraires entre pairs
en première secondaire: étude des relations entre les modalités de lecture et de collaboration
(2004), de Manon Hébert, ambos publicados na Revue de Sciences de l’Éducation.
Outros conjuntos de textos procuram evidenciar as relações entre o ensino de literatura
e suas aproximações tanto com a cultura dos alunos, quanto com o fato dessa relação entrar
em jogo na avaliação escolar. Épreuves et prouesses de l’esprit littéraire (1998), escrito por
Louis Pinto em Actes ou mesmo, em relação ao projeto de formação estética da escola, L’art
pour éduquer. La dimension esthétique dans le projet de formation postmoderne (2007), de
Alain Kerlan, publicado em Éducation et Sociétés. A Revue Française de Sociologie nos
oferece o artigo de Philippe Coulangeon que questiona exatamente esse papel cultural da
escola, com o artigo Lecture et télévision: les transformations du rôle culturel de l’école à
l’épreuve de la massification (2007).

Desse modo, as revistas em análise constroem a literatura como objeto de análise


principalmente a partir da sua relação com uma ideia de formação cultural promovida pela
escola, algo que se relaciona ao projeto escolar, mas que se articula também ao capital cultural
dos alunos, o que varia ao longo do tempo e ganha, portanto, características marcantes em
momento de democratização do liceu. Percebemos uma abordagem mais ampla a partir de
uma perspectiva que situa as questões de leitura em relação a questões sociais mais gerais e
com a própria forma escolar.
A partir do quadro exposto acima, buscamos configurar o ponto de ancoragem teórica
do nosso objeto de pesquisa, situado na área de didática. Para tanto, estamos lidando com uma
literatura consagrada sobre o assunto que definiu questões ao redor da leitura e da literatura na
escola. Contudo, gostaríamos de trazer discussões próprias ao campo educacional brasileiro,
como ele vem se configurando nas últimas décadas por meio da construção desse objeto com
o auxílio de conceitos como cultura escolar, tempo escolar, currículo, mas situando a escola e
a sala de aula como espaços socialmente estruturados, frutos de um “precipitado da história”.
31

Tal perspectiva requer outra visada com relação às questões de literatura na escola, pois
poderíamos pensar que elas nos ajudam a compreender questões mais gerais com relação às
aproximações entre a escola e a cultura; os padrões culturais legítimos e suas repercussões em
uma escola que passou pela expansão; os efeitos da escola em alunos com diferentes habitus;
uma volta à realidade escolar, tema tão caro aos estudos educacionais.
32
33

CAPÍTULO 1 - A CONSTRUÇÃO DE UM OBJETO DE ESTUDOS PELO COTIDIANO

Um grupo que está na frente da mesa da professora é composto por duas meninas e
um menino. Uma delas copia a lição e as outras mexem no celular. Outro grupo está
no canto direito da sala e é formado por cinco alunos, três meninos e duas meninas.
Eles estão sentados em roda, em cima das carteiras e no colo uns dos outros.
Conversam predominantemente sobre as festas das quais participam. Falam também
sobre os casais, quem está ficando com quem e sobre música.
(Observação feita no dia 4 de novembro, 1º ano A)

Nosso objeto de pesquisa foi constituído a partir das inúmeras relações cotidianas
presentes na escola, algumas das quais podem ser conhecidas pelo trecho de nosso Diário de
Campo em epígrafe. Entre as conversas dos adolescentes e adultos sobre suas atividades de
lazer, modos de significar comportamentos dos colegas, reflexões sobre o mundo do trabalho,
jogos e músicas presentes nos celulares, as reações das professoras e suas maneiras de lidar
com os grupos formados nas turmas, foram buscados os conflitos pela leitura legítima de
obras literárias na escola. Para tanto, efetuamos em 2014 observações das aulas de Língua
Portuguesa ministradas em duas turmas do 1º ano do ensino médio na Escola 1 e em uma
turma de EJA na Escola 2, assim como realizamos entrevistas semiestruturadas com duas
professoras e oito alunos, além de aplicarmos questionários com 69 alunos do ensino médio
da Escola 1 e analisarmos os currículos e materiais didáticos utilizados nas aulas. Ao tomar a
cotidianidade como ponto de partida e espaço de síntese de nossa investigação, foi preciso
construir teoricamente tal lugar e as maneiras como as relações com a linguagem poderiam
ser constituídas como objeto de estudo, esforço que pretendemos realizar no capítulo que se
segue.
Nosso intuito foi o de compreender como as representações de alunos e professoras
entravam em tensão na sala de aula e, assim, produziam as condições para a constituição de
uma cultura legítima por meio das relações objetivamente instauradas na sala de aula. Para
tanto, buscamos situar, a partir das contribuições de autores como José Mário Pires Azanha,
Dominique Julia e Joël Zaffran as características do cotidiano, considerando que a escola é
uma instituição cuja objetivação de suas ações pedagógicas tem intencionalidade e sentidos
temporalmente articulados que geram contornos específicos aos conflitos vividos entre
professores e alunos - o que nos mostrou outra vertente de tensões na pesquisa, pois em
alguns momentos observamos professoras e alunos colocando as normas e regras escolares
em discussão. Ao mesmo tempo, consideramos que as ações cotidianas dos participantes da
pesquisa seguiam uma razão social, ou seja, os conflitos, as negociações e os acordos pelos
34

sentidos da leitura de obras literárias se aproximavam das representações de leitura caras ao


seu grupo familiar e social mais amplo. Assim, autores como Régine Sirota, Pierre Bourdieu,
Bernard Lahire e Roger Chartier nos auxiliaram a descrever as ações escolares como
socialmente configuradas e quando reclassificadas na escola, se tornam momentos
significativos para as trajetórias futuras dos alunos e professoras.

Como a exposição feita nos parágrafos anteriores sugere, não tomamos um autor como
central para a pesquisa, mas a partir da perspectiva sócio-histórica (NOVOA, 1991) buscamos
as referências que nos permitem constituir nossa perspectiva teórica, da qual decorrem nossas
escolhas metodológicas. A seguir, portanto, a partir dos conceitos de representações, cultura
escolar, habitus e práticas de leitura apresentaremos os caminhos para a produção da
pesquisa.

1.1.A leitura de obras literárias em meio à lógica da cotidianidade: entre tempos e


posições sociais

Colocar em evidência as disputas pela leitura legítima de obras literárias na escola


supõe pensar que os processos de produção do leitor ou do não-leitor se dão na cotidianidade
daquela instituição, no cruzamento das representações que ela confere à linguagem com
aquelas dos professores e alunos. Trata-se de acompanhar as maneiras de interiorização
escolar das práticas sociais e a reclassificação2 das mesmas como ações fundamentais no
processo de produção de diversas imagens de leitor apropriadas pelos alunos e mesmo por
professoras. Essa perspectiva de investigação tem tradição entre os estudos educacionais e
alguns deles nos servem como referência. É o caso, por exemplo do estudo de Stéphane

2
Pierre Bourdieu (2015) se refere ao termo reclassificação no artigo Classificação, desclassificação e
reclassificação, que descreve as estratégias de reconversão de capitais utilizadas por indivíduos para manterem
ou melhorarem suas posições no espaço social. Ao se referir a uma mudança estrutural na relação entre diplomas
e ocupação de cargos de trabalho, o autor demonstra a forma como a utilização recorrente do sistema de ensino
pelas diferentes classes e a consequente perda de raridade e valor de alguns diplomas leva a processos variados
de reconversão de capitais sociais e econômicos de modo a alterar ou criar profissões para que se possa manter
as posições sociais. Nesse processo os indivíduos podem ser reclassificados em função das mudanças
morfológicas das carreiras e seus requisitos, gerando a desclassificação desses indivíduos ou a reclassificação
dos mesmos, do que depende o valor dos capitais disponíveis e as estratégias exitosas de suas reconversões. Em
nosso trabalho, sempre que nos referirmos ao termo, ele nos ajudará a descrever o modo como os alunos e as
professoras veem suas representações de leitura ganhando novos valores ao serem reclassificadas no espaço
escolar, cuja morfologia é marcada por sua cultural própria temporalmente organizada, a qual também pode ser
alterada em função das pressões exercidas por eles. Queremos evidenciar, portanto, que assim como o espaço
social mais amplo, as disputas pela leitura legítima de obras literárias na escola pretendem descrever sistemas de
relações objetivas cujas posições e tomadas de posições determinam relacionalmente - e em sentido positivo ou
negativo em função dos capitais disponíveis - a cultura linguística valorizada na escola.
35

Bonnéry (2007), que ao pesquisar a produção do fracasso escolar na escola partiu da hipótese
que ele não existiria antes do processo de escolarização e, portanto, seria preciso acompanhar
como em meio às aulas, às atividades e às interações entre professores e alunos o fracasso
seria paulatinamente produzido. Caso semelhante ocorre com Maria Helena Souza Patto
(1991), ao também investigar a produção do fracasso na escola, o que a levou a uma
observação atenta das relações sociais lá estabelecidas como circunstâncias de criação de
destinos escolares e possibilidades de futuro. Disputar, portanto, a cultura legítima no espaço
escolar significa algo essencial na definição de aspectos fundamentais da vida de alunos e
professores.
Uma das preocupações envolvidas na produção de pesquisas acerca do que se passa no
cotidiano ou na realidade escolar se situa na intenção de descrever e representar o que de fato
acontece em seu interior. A esse respeito, José Mário Pires Azanha (2011) salienta que isso
não significa, necessariamente, maior conhecimento acerca de sua realidade. Em muitas
circunstâncias, proposições teóricas vindas de áreas diversas como a sociologia e a psicologia
fornecem interpretações a priori que explicam o cotidiano escolar. Nesses casos, quanto mais
se toma a escola como referência, menos se sabe sobre ela, uma vez que as relações sociais
instauradas em seu interior são repostas a partir de lógicas advindas da teoria e não de suas
especificidades. Consideramos, assim, que seria preciso levar em conta que os alunos, a
professora e a leitura ganham significados ao serem tomados como resultantes do “[...] jogo
das complexas relações sociais que ocorrem no processo institucional da educação”
(AZANHA, 1990/1991, p. 66). A partir de tais relações as características da leitura legítima
de obras literárias são engendradas e, por isso, as ações corriqueiras ganham muito significado
para nós, assim como a maneira como elas são descritas e representadas por nossos
entrevistados. Não podemos desconsiderar que a realidade humana é produzida exatamente no
cotidiano, nas inúmeras ações corriqueiras que constituem até mesmo as experiências mais
extraordinárias, como nos lembra José Mário Pires Azanha (2011). É particularmente
importante tomar esta afirmação quando consideramos os estudos educacionais, uma vez que
a escola e a sala de aula são frequentemente vistas como os lugares do trivial, da repetição,
enfim, o que se passa nesse local não costuma ser considerado digno de registro. A esse
respeito, Anne-Marie Chartier (2000) sustenta que ao olharmos para a sala de aula temos a
impressão de que ali se passam várias ações sem sentido aparente. As situações em que os
alunos são interpelados pelos professores, as contínuas repetições de comandos, as idas e
vindas nos conteúdos de ensino, entre outras práticas comuns, parecem amenidades sem
36

importância. Contudo, segundo a autora, os fazeres ordinários colocam em prática as lógicas


e sentidos de funcionamento escolar (CHARTIER, 2000). Logo, as representações da leitura.
O desafio desse tipo de investigação reside, como afirma Azanha (2011), na
dificuldade de se encontrar a totalidade por meio de partes, ou seja, localizar entre o caos do
cotidiano os aspectos que possam produzir ligação e continuidade na experiência comum. Em
nossa pesquisa, seria o caso de notar quais aspectos da realidade poderiam ser mais férteis
para se compreenderem os aspectos centrais da disputa pela linguagem na escola. Ainda
segundo o autor supracitado, a maneira de empreender tal esforço reside na operação
conceitual, na construção de um ponto de vista teórico que permita a articulação desses
múltiplos aspectos. A partir de tal ponto de vista teórico será possível estabelecer os passos
metodológicos ajustados ao conjunto de questões relacionadas ao problema de investigação.
Nesse sentido, Pierre Bourdieu (2011) ressalta a necessidade de se efetivar nas pesquisas um
trabalho classificado por ele como reflexividade reflexa, que é um esforço de explicitação dos
pressupostos teóricos da pesquisa, mas também os pressupostos pessoais que animam o
investigador.
Como mencionamos na Introdução, a partir dos resultados de nossa pesquisa de
mestrado e também de nossa trajetória pessoal, interessa-nos investigar a problemática
relacionada à linguagem, compreendendo que as relações com a leitura, assim como com
outras linguagens artísticas, são produzidas, reproduzidas e classificadas de acordo com regras
social e historicamente definidas. Os estudos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu se
mostraram potentes para que pudéssemos construir teoricamente a leitura como uma prática
social que repõe, na forma de apropriações da cultura, modos de classificação do espaço
social e de si. A escola tem, nesse processo, lugar de destaque por ser o local em que se
produzem os alunos dotados das disposições culturais mais valorizadas socialmente. Nesse
sentido, as disputas de representações vividas por professoras e alunos, em uma escola
específica, nos permitiriam notar como estas questões ganham corpo hoje em dia.
Ao construirmos o cotidiano - e as imagens produzidas por professores e alunos a seu
respeito - como ponto de partida da pesquisa, consideramos que ele constitui uma cultura
própria caracterizada pela regularidade temporal de suas ações e pelas inscrições sociais de
docentes e discentes, ou seja, a realidade das escolas também é produzida por suas
representações. No que se refere à ideia de cultura escolar, partimos de algumas definições
que nos permitem sintetizá-la em seus aspectos estruturantes, como a de Dominique Julia:
37

Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas
que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de
práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar
segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de
socialização) (JULIA, 2001, p.10).

Tal definição visa nos mostrar que, a partir do momento em que a escola passa a
funcionar em um espaço específico destinado ao ensino, quando os cursos tornam-se
graduados em níveis e um corpo profissional recrutado e formado se articula, temos as bases
para a constituição de uma cultura escolar. Tal cultura é influenciada por normas e regras que
os professores e alunos são chamados a respeitar e, portanto, componentes de suas práticas e
agentes de sua produção no cotidiano; ao mesmo tempo, a escola não é uma instituição fora
do tempo e, por isso, ela se aproxima de modos de pensar e agir em circulação na sociedade;
assim como as culturas dos alunos também se mostram em seu cotidiano (JULIA, 2001).
Espaço em que diferentes agentes e forças sociais estão em relação, a escola está,
diferentemente do que a constância de sua forma nos sugere, realizando novas negociações
com as gerações que a frequentam, com as mudanças das mentalidades sociais e perfis
profissionais. Como consequência dessa perspectiva, acompanhar tal movimento no interior
de uma escola pode evidenciar como diferentes instituições articulam suas finalidades
educativas diante dos desafios que possam enfrentar e nos permite conhecer o que se passa em
seu interior. Antonio Viñao Frago também produz uma definição de cultura escolar. Para o
autor, a cultura escolar é:

... un conjunto de modos de hacer y pensar, de creencias y prácticas, de mentalidades


y comportamientos sedimentados a lo largo del tiempo y compartidos en el seno de
las instituciones educativas (VIÑAO FRAGO, 1998, p.21).

A definição reforça o caráter múltiplo, dependente de maneiras variadas da articulação


de crenças, práticas, mentalidades, entre outros. Isso nos sugere que cada instituição escolar
vai articular seu trabalho por meio de uma forma particular e dar, desse modo, contornos
próprios a ela. No que se refere às relações com a linguagem, poderíamos nos perguntar: quais
são as práticas e normas específicas das escolas que pesquisamos? Ao serem articuladas,
quais efeitos produzem? Existem similaridades entre os modos de fazer e pensar das duas
escolas?
38

Entre as afirmações sobre a cultura escolar apresentadas acima, é importante para


nossa pesquisa o que diz respeito à relação com o tempo sugerida pelos autores. Viñao Frago
e Dominique Julia indicam que as características das normas, mentalidades e práticas
escolares levam tempo para serem sedimentadas no cotidiano e podem variar segundo as
épocas correspondentes. Poderíamos dizer, então, que as práticas relacionadas à leitura de
obras literárias nas escolas pesquisadas foram sendo entranhadas em suas culturas com o
passar do tempo, porém sempre realizando negociações com as épocas em que existiram.
Nesse caso, relacionamos as formas de lidar com a linguagem literária na escola tanto a uma
espécie de história daquela instituição particular, quanto das repercussões que as discussões
públicas atuais, as demandas das famílias e dos alunos geram em seu interior. A esse respeito,
José Mário Pires Azanha afirma que a escola é uma “[...] instituição que possui uma cultura
específica com um certo grau de autonomia e, além do mais, que essa cultura (ou subcultura)
é um ‘precipitado da história’” (1990/1991, p. 67). Ainda a respeito das relações entre o
tempo e a cultura escolar, Dislane Zerbinatti Moraes (2015) sustenta que:

Para qualquer compreensão das culturas escolares não podemos ignorar a história.
Isto porque a escola é uma instituição na qual confluem múltiplas estruturas sociais e
temporalidades: o tempo que formaliza práticas (estruturas de longa duração, com
ritmos lentos de transformação); o tempo dos marcos de intervenção política e
organização escolar (em conjunturas de média e curta duração) os tempos dos
discursos pedagógicos e enunciados pelos professores para orientação e tomada de
decisões, que circulam no âmbito das escolas, e se constituem em saberes
engendrados na prática (muito sensíveis à mudança, aos ritmos rápidos da circulação
de leituras e prescrições e urgências pedagógicas) (MORAES, 2015, p. 2-3, grifos
nossos).

Ao chamar atenção para as temporalidades presentes nas culturas escolares, a autora


supracitada torna evidente que a observação de uma escola no presente supõe compreender
também o papel que o passado exerce na produção de sua realidade. As práticas de ensino,
livros didáticos e currículos conhecidos durante a pesquisa nos mostraram os diversos ritmos,
resquícios do passado e negociações de diversas ações relacionadas à leitura de obras
literárias. Ao relacionarmos os elementos em discussão, evidenciou-se para nós que as escolas
conhecidas são compostas desse precipitado da história que, nos limites desta tese, precisam
ser explicitados.
Não podemos desconsiderar que a relação objetiva de ensino instaurada na escola tem
como um de seus elementos significativos o tempo, ou melhor, a organização temporal
escolar (VINCENT et al, 2001; GALLEGO, 2008). Na disputa com outros atores sociais, a
39

escola tomou para si o tempo da educação das crianças e também produziu em seu interior,
como afirma Rita de Cassia Gallego (2008), os mecanismos temporais de sua produção. De
acordo com Agustín Escolano Benito (2008), é por meio dele que se orienta o trabalho
pedagógico; além disso, ele também é central, pois influencia a concatenação do currículo e
do espaço. Pierre Bourdieu (1989) sustenta também que uma instituição é produzida pelas
ações de seus sujeitos, o que coloca em jogo a história na forma objetivada e incorporada. No
primeiro caso, a história se faz presente pelos objetos que puderam acumular o passado
institucional, neste caso, os livros didáticos e currículos são documentos que nos permitem
ver as formas de apresentação das questões em análise; já a história incorporada diz respeito à
produção do habitus, trabalho feito no mundo natal, como definido por Pierre Bourdieu
(2007), que permite a incorporação da história, dos jogos passados e atualizados no presente,
isto é, devemos nos perguntar como professoras e alunos, cujas posições sociais serão
descritas, produzem sentidos no presente para a leitura de obras literárias a partir do acúmulo
de experiências vividas no passado. Em nossa pesquisa não nos interessa tomar o tempo como
objetivo de análise, mas sim perceber que as regularidades sociais e escolares referentes à
leitura são aspectos estruturantes de nosso problema de pesquisa e serão explicitados sempre
que se tornarem cruciais para a exposição de nossa análise.
Com isso, consideramos que a intencionalidade formativa da escola está estruturada,
portanto, a partir da regularidade de suas ações, observada por meio das maneiras de agir
sobre os alunos que concretizam uma dada formação de seus corpos e mentes (ZAFFRAN,
2006). A escrita e a leitura desempenham papel central na arquitetura dessa temporalidade,
uma vez que a especificidade da educação escolar está baseada também na existência de
saberes escritos. Dessa forma, opera-se um tipo de socialização escolar pela escrita, ou
melhor, pela lógica escrita que produz alunos capazes de fazerem parte dos jogos sociais
organizados por seu intermédio assim como da leitura. Ao se tornar espaço privilegiado para
dotar os alunos de disposições linguísticas necessárias à inserção social, somos obrigados a
notar que a produção do leitor operada pela escola deve ter espaço e tempo na trama de sua
regularidade como condição para o êxito de sua intencionalidade educacional (LAHIRE,
2008). No que se refere à literatura, a incorporação de romances, poemas, contos e peças de
teatro como parte dos materiais de escolarização é coincidente com a criação da educação
escolarizada. Seja como meio de se fazerem exercícios de leitura, cópia, memorização
ortográfica e gramatical ou oportunidade de recitação, a literatura foi chamada a cumprir seu
papel na incorporação dos tempos escolares.
40

Precisaríamos pensar que por meio da leitura a escola vai produzindo seus alunos, os
quais incorporaram pelas atividades e frequência com que são exigidas, por exemplo, uma
maneira de organização do corpo, de contenção do ímpeto para a realização de uma atividade
silenciosa, o hábito de iniciar e terminar um volume seja ele qual for, fazendo com que as
atividades de leitura sejam parte importante da socialização escolar. Ao mesmo tempo, a
escola produz seu leitor, ou seja, define formas legítimas de apropriação do universo literário
bem como seus representantes em uma sociedade em que existem leituras e leitores
diferentemente valorizados. Pierre Bourdieu (1996) demonstra, por exemplo, o modo como a
criação e especialização do campo literário fez com que seus agentes pudessem estabelecer as
bases para a produção do olho capaz de realizar a leitura de obras literárias mais valorizada
em seu interior, o que gera a necessidade de capitais específicos de candidatos a escritores,
críticos e outros leitores especializados; Bernard Lahire evidencia que as diferentes carreiras
produzem e ao mesmo tempo exigem maneiras distintas de se apropriar e circular pelos
impressos, o que faz com que alguém que siga na área de humanas, por exemplo, desenvolva
perfil de leitura muito variado de quem está na área de exatas. Esses exemplos indicam que os
modos de apropriação da leitura constituem traços distintivos significativos e possibilitam
diferentes inserções sociais. A esse processo de formação escolar por meio da relação com a
linguagem, Bernard Lahire deu o nome de matriz socializadora escolar-universitária, ideia
que nos é cara e será explicitada no capítulo 2. Que pese o discurso de desvalor da leitura
literária, não devemos desconsiderar que o mundo virtual está repleto de leituras e a escola
não é um ator ingênuo na produção dos leitores propensos a circularem em seu interior; além
disso, para além do discurso de que os alunos não leem, é preciso compreender as
características de sua relação com a cultura. Como se faz isso hoje em dia? Como se
organizam temporalmente as atividades ligadas à leitura de obras literárias e quais são seus
sentidos formativos? Quais seriam as negociações com as demandas do presente necessárias à
efetivação de uma intencionalidade formativa por meio da leitura?
Se, como indicamos anteriormente, a escola é organizada de modo a produzir sua
intencionalidade educativa, não se pode conferir poder total às investidas estatais. Interessa-
nos saber o modo como, de acordo com as regras da cultura escolar praticada nas duas escolas
pesquisadas, efetivam-se as ações de produção do leitor. Nesse sentido, para além da
compreensão das iniciativas temporalmente organizadas da escola, é preciso notar como
alunos e professoras tensionam e trazem para o cotidiano as representações sociais
constituídas em suas experiências não-escolares. A esse respeito, Régine Sirota nos apresenta
ideia importante sobre as relações sociais instauradas na escola:
41

...considérées comme un système de signes symbolisant le sens et les enjeux que


représente le temps scolaire pour les acteurs en présence, en fonction de l'ensemble
des déterminants sociaux dans lesquels ils se situent. Le sens de ces comportements
découlant à la fois de la situation elle-même, mais aussi de l'ensemble des pratiques
dans lesquelles ils s'insèrent (SIROTA, 1988, p. 12).

A autora acima referida sustenta que os tempos escolares são sempre tensionados no
cotidiano por meio dos sentidos atribuídos a eles pelos alunos e pelos professores. Ao
notarmos que as relações temporais escolares incidem diretamente sobre as relações com a
linguagem, podemos pensar que as representações de leitura dos estudantes e das professoras
problematizam as intencionalidades formativas escolares e são motores das relações sociais
que impulsionam as ações de suas interiorizações no cotidiano e, assim, fazem acontecer a
produção e classificação dos leitores. Tais representações, por sua vez, seriam engendradas
nas trajetórias sociais desses sujeitos. Como enfatiza a autora francesa “Toute pratique
scolaire est une métaphore de l'ensemble des pratiques sociales d’un individu” (1988, p. 10).
Nesse sentido, os conflitos escolares ou os problemas pedagógicos não podem ser
considerados como puramente escolares, já que muitos conflitos sociais se apresentam sob a
forma de problemas escolares. É preciso compreender que o cotidiano escolar como fato
social:

Constituer le quotidien en fait social, c’est attribuer au détail de chaque instant, à la


banalité, à la répétition de tous les jours le sens et la force des grands événements qui
cristallisent les points d’inflexion des itinéraires sociaux (SIROTA, 1988, p.10).

Dessa forma, localizamos as disputas pela leitura legítima de obras literárias na escola
como circunstâncias significativas para que os alunos produzam ou sejam produzidos como
detentores de disposições linguísticas escolarizadas, o que se faz no jogo cotidiano de
classificação e reclassificação de suas representações de leitura no cotidiano. Atos de
indisciplina, piadas, olhares, entre outras interações ocorridas no cotidiano podem ser indícios
que precisam ser decifrados para que possamos notar as formas explícitas e implícitas por
meio das quais se operam negociações pela relação mais valorizada com a linguagem. Nesse
caso, é preciso que se efetive uma descrição densa do cotidiano para que se busquem as
lógicas dessas relações que podem efetivar as produções do leitor na escola. A definição de
cultura dada por Clifford Geertz (2008) pode nos ajudar a construir, como metáfora, nossa
ideia sobre como interpretar o que foi observado em sala de aula:
42

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de


significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 2008, p. 4).

Segundo sua definição de cultura, Geertz enfatiza que esta é um conjunto de teias de
significados que o próprio ser humano criou. Nesse sentido, ao pesquisador caberia interpretar
e analisar tais teias para compreender determinada cultura. Uma vez que a escola constitui
uma cultura, esta também pode ser conhecida por meio da observação atenta de sua trama, da
qual fazem parte professores e alunos. Para tanto, procuramos realizar uma observação densa
do cotidiano de modo a “[...] tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas
densamente entrelaçados” (GEERTZ, 2008, p. 19-20). Devemos mencionar que José Mário
Pires Azanha se refere à análise de Geertz a partir da célebre descrição da briga de galos em
Bali e o modo como ela pode revelar as tramas do cotidiano:

[...] em face da variedade possível de caminhos da prática científica no estudo dos


assuntos do mundo cotidiano, aqueles caminhos que não permitirem vencer a
opacidade do mundo e distinguir tiques nervosos de piscadelas conspiratórias, ou
brigas de galo em Bali de passatempos coletivos, podem vir a ser erráticos e
correrem o risco de apenas produzir flatus vocis (AZANHA, 2011, p. 165).

Por meio de tal esforço poderíamos nos aproximar do ideal proposto por Anne-Marie
Chartier (2000) e atribuir importância às ações escolares corriqueiras, espaço em que também
se dão os conflitos pela leitura de obras literárias.
De modo a descrevermos essa cultura, para além dos objetos do cotidiano escolar, dos
currículos e livros didáticos, também é preciso estabelecer algumas bases para situarmos as
representações de professores e alunos. De acordo com Roger Chartier (1991a; 1991b), o
conceito se refere a formas mentais que orientam as ações dos sujeitos. Ao explicar a ideia de
representação, o autor insiste que ela pode ser compreendida como uma maneira de se
apresentar algo que está ausente e, ao mesmo tempo, criar uma imagem do objeto. Nesse
sentido, os grupos sociais criam para si, para os objetos, relações sociais, entre outros,
imagens públicas que pretendem diferenciá-los e classificá-los no instante em que os separam
dos outros (CHARTIER, 1991a; 1991b). Logo, ao criarem feições para sua relação com a
leitura, os sujeitos estariam sintetizando uma forma de se posicionar no real e dar sentidos a
ele. Pierre Bourdieu também sustenta que as representações são formas de classificação,
constituídas a partir do mundo natal, que constroem as possibilidades sociais dos sujeitos
(BOURDIEU&WACQUANT, 2014). Sua produção tem relação, portanto, com uma dada
inscrição social e desse modo, o conceito de habitus, formulado por Pierre Bourdieu (2007) é
útil para pensarmos sobre as representações de leitura.
43

O habitus se forma na primeira educação e auxilia os sujeitos a desenvolverem


maneiras de se vestir, de se relacionar com as obras de arte, de falar, de se portar, enfim, de
estar no mundo. Ele é o resultado da conjunção entre a condição econômica e social do sujeito
e os traços distintivos que o ligam a certo lugar no espaço dos estilos de vida, gerando
práticas classificáveis e sistemas de classificação das práticas, logo um esquema gerador de
práticas (BOURDIEU, 2007). Como parte significativa da teoria das práticas de Pierre
Bourdieu (1983), o autor busca uma forma de explicitar sua proposta para a ação na relação
entre a estrutura social e o agente. Por conseguinte, o habitus é definido como:

[...] um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a


funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e
estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente
‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ (BOURDIEU, 1983, p. 60-61).

Podemos compreender da passagem anterior que ao ser definido como uma estrutura
estruturada, o habitus se constitui na interiorização de modos de funcionamento da realidade
que já existiam antes do nascimento de qualquer agente e se relacionam à posição social
ocupada por ele, ou seja, as variadas posições sociais podem gerar sistemas de disposições
também variadas. Ao mesmo tempo, o habitus é uma estrutura estruturante, pois além de uma
dada interiorização de regras sociais, ele supõe uma forma de classificação social capaz de se
constituir em esquemas que geram novas práticas. Tal visada permite definir o habitus como
espécie de esquema que gera novas ações diante de todas as situações e se baseia no cálculo
ou antecipação de consequências a partir das experiências anteriores (BOURDIEU, 1983).
Efetua-se a operação de “[...]transformação do efeito passado em futuro esperado, resta que
elas se definem em primeiro lugar em relação a um campo de potencialidades objetivas,
imediatamente inscritas no presente, coisas a fazer ou a não fazer, a dizer ou a não dizer [...]”
(idem, p. 62). Enquanto interiorização de determinada posição social, o habitus gera a criação
de aspirações e possibilidades ajustadas a esse determinado espaço.
Ao compreendermos a sala de aula como um espaço socialmente estruturado,
podemos pensar que as ações mantidas por alunos e professores guardam relações com seus
habitus e geram a cultura escolar daquela escola e, assim, as práticas presentes em seu interior
são fruto de uma “relação dialética entre uma situação e um habitus”. Na medida que este
último funciona como um princípio gerador, ele cria práticas que reproduzem as constantes
relações em que vivem os agentes, mas se adaptam ao rendimento das ações em situações
determinadas. Nas palavras de Bourdieu:
44

Só podemos, portanto, explicar essas práticas se colocarmos em relação a estrutura


objetiva que define as condições sociais de produção do habitus (que engendrou
essas práticas) com as condições de exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura
que, salvo transformação radical, representa um estado particular dessa estrutura
(1983, p. 65).

Nosso desafio neste trabalho será o de perceber como os diferentes sistemas de


disposições dos estudantes e dos docentes entram em jogo no espaço escolar e tensionam a
partir de suas práticas as variadas representações de leitura. Ao mesmo tempo, procuramos
verificar o modo como a escola, ao produzir um arbítrio cultural, participa da configuração do
habitus dos alunos.
No espaço dessa pesquisa, não buscamos o conjunto de todas as disposições dos
alunos e professores conhecidos. Tomamos como significativas apenas as práticas
relacionadas à leitura de obras literárias, as quais nos dão indícios acerca das representações
de leitura dos sujeitos de nossa pesquisa. De acordo com Roger Chartier (1999), a prática de
leitura pode ser compreendida como os diferentes usos que variadas comunidades de leitores
podem fazer dos livros em função de suas competências, normas e convenções de leitura,
expectativas contrastantes com relação aos livros, variados usos feitos desse objeto, enfim,
tudo o que se possa definir como uma cultura específica ao redor dos livros. Ao defender o
estudo das práticas de leitura, o autor afirma

Deve-se levar em conta, também, que a leitura é sempre uma prática encarnada em
gestos, em espaços, em hábitos. Distante de uma fenomenologia que apaga qualquer
modalidade concreta do ato de ler e o caracteriza por seus efeitos, postulados como
universais ...uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições
específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura
(CHARTIER, 1999, p. 13).

Os alunos e professores colocam em jogo exatamente suas tradições e representações


de leitura. Se estas últimas são engendradas pelo modo de funcionamento do habitus,
podemos dizer que ao aparecerem em sala de aula, temos um cotidiano composto pelas
disputas sociais recolocadas na escola na forma de questões pedagógicas e escolares. De
modo a tirarmos consequências metodológicas dessa afirmação, buscamos compreender as
práticas de leitura de alunos e professoras por meio dos seguintes elementos: sentidos para a
leitura de obras literárias; formas de ler; títulos prediletos; regimes familiares e não escolares
de leitura em confronto com as representações escolares.
45

1.2. As fontes para a produção das análises

Uma vez construído nosso objeto de pesquisa a partir dos referenciais teóricos
explicitados acima, buscamos caminhos metodológicos que nos possibilitassem meios para
recompor os fios da experiência acerca dos conflitos pela leitura legítima de obras literárias na
escola. Como procuramos indicar anteriormente, configurar as tensões com relação à
linguagem na escola supõe articular aspectos diversos que regem movimentos de criação de
leitores no cotidiano em meio a lógicas escolares e não-escolares entrelaçadas no dia a dia das
instituições conhecidas na pesquisa. Procuramos, portanto, por relações objetivas que dão
sentidos e significados ao objeto em questão a partir de posições diversas, sejam elas dos
alunos, das professoras e do Estado, o que nos leva à descrição de um espaço difícil pelos
embates que tantos pontos de vista podem gerar. Pierre Bourdieu (2011) salienta que esses
lugares difíceis, como os conjuntos habitacionais que pesquisou, impõem desafios para sua
descrição e para a construção de uma imagem que respeite o mosaico dessa realidade. Não
existe, portanto, como o autor sustenta, um caminho metodológico seguro que garanta o êxito
da pesquisa - até porque todas essas palavras podem comportar definições variáveis e
contrastantes. José Mário Pires Azanha (2011) também sustenta que, no que se refere às
pesquisas que partem do cotidiano, não existe o método correto, o que é para ele contrário à
investigação científica.
Nesse sentido, buscamos caminhos metodológicos que nos pareceram mais indicados
para configurarmos nosso objeto de pesquisa segundo o referencial teórico que construímos, a
saber: as observações das aulas de Língua Portuguesa no ensino médio; recolha e análise dos
usos dos livros didáticos presentes nas aulas; análise dos currículos estadual e federal em
vigência; entrevistas com alunos e professoras; e um questionário com os alunos do ensino
médio regular a respeito de suas práticas de leitura. Optamos por realizar a pesquisa no ensino
médio, pois nesse nível de ensino a literatura é abordada com maior complexidade e em
sentido diverso daquele presente no ensino fundamental I, que preza pela formação do leitor
de modo mais amplo. O ensino médio tem como tradição favorecer relação com as bases da
leitura literária e, assim, aprofundar o que foi aprendido no ensino fundamental I.

Com o auxílio dos livros didáticos e currículos articulados às observações,


configuramos as representações estatais sobre a leitura de obras literárias, as relações com a
linguagem favorecidas pelo Estado, ou seja, buscamos reconstituir a matriz socializadora
escolar. Ao mesmo tempo, notamos durante as observações situações de conflito entre
46

professoras e aluno, alunos e alunos, enfim, circunstâncias em que a linguagem foi tensionada
na escola. A realização das entrevistas teve como objetivo identificar os sentidos atribuídos
pelos alunos e professoras às aulas de Língua Portuguesa, bem como identificar as
representações de leitura dos mesmos. O mosaico construído a partir desses elementos nos
permitiu reconstituir as relações objetivas em torno da linguagem nas duas escolas de ensino
médio em que a pesquisa aconteceu. Nosso corpus de pesquisa foi analisado em duas
vertentes de modo a identificar os aspectos considerados significativos para a compreensão de
nosso objeto de pesquisa: por um lado, atentamos para os traços do que identificamos como
característico das práticas de leitura em circulação na escola e nas entrevistas; por outro lado,
buscamos as regularidades temporais que sustentam as mesmas no espaço escolar e familiar.
A seguir apresentamos algumas especificidades das fontes utilizadas.

Observações de aula e entrevistas

As observações de aula foram feitas em duas escolas de ensino médio da cidade de


São Paulo e alguns alunos presentes nessas aulas bem como as professoras responsáveis pelas
disciplinas foram entrevistadas. A partir de outubro de 2014 iniciamos as observações de
aulas na Escola 2 uma vez por semana e assistíamos à duas aulas dadas na mesma turma, o 3°
ano B. Em novembro do mesmo ano passamos a observar as aulas de Língua Portuguesa na
Escola 1 três vezes por semana durante a manhã. Acompanhávamos apenas as aulas da
professora Valquíria no 1° ano A e no 1°ano B. Ao lado de outros recursos metodológicos, o
uso das observações tem sido frequente nos estudos educacionais há algumas décadas, quando
o interesse sobre as práticas, experiências de escolarização, entre outras temáticas ligadas à
caixa preta escolar ganham relevo. Nesse sentido, histórias de vida e autobiografias se tornam
recorrentes em estudos sobre a profissão docente, dando a ver processos de formação,
identidades docentes e práticas escolares (CATANI et al., 2006); pesquisas sobre a história da
educação também passaram a buscar novas fontes que pudessem recuperar as experiências de
escolarização do passado, valorizando, por exemplo, as fontes literárias e memorialísticas
(CARVALHO, 1993; MORAES, 1996) e, quando possível, os depoimentos de professoras há
muitos anos na profissão; estudos sobre o currículo se voltam para o cotidiano buscando as
subjetividades em sua produção (ALVES & OLIVEIRA, 2010). Ao mesmo tempo, a
influência da pesquisa etnográfica, que se desenvolve a partir dos anos 1960, constitui
47

ferramentas para investigação da realidade escolar (BUENO, 2008). O enfoque dado às


pesquisas educacionais faz com que observações de aulas e de outras situações escolares e
entrevistas não-estruturadas estejam no vocabulário comum de quem tem contato com elas e
as produz. Nessa perspectiva, alguns trabalhos que partem da realidade escolar nos serviram
como influência, como No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries
inicias, de Marília Pinto de Carvalho (1999) e A produção do fracasso escolar: histórias de
submissão e rebeldia de Maria Helena Souza Patto (1990), cujas observações atentas
trouxeram contribuições à compreensão dos processos de escolarização bem como
evidenciaram as repercussões das relações de gênero e das desigualdades sociais em seu
interior.

Por meio das observações, buscava compreender o modo de funcionamento das aulas
de Língua Portuguesa em diferentes sentidos: o primeiro, e talvez o mais obviamente ligado
ao objeto de pesquisa, seria o de verificar, preferencialmente, como se davam as relações
entre alunos e professoras em torno da leitura e da literatura, mas também a respeito de
questões mais amplas e imprevistas pela pesquisadora inicialmente; o segundo sentido seria a
tentativa de compreender como a aula de Língua Portuguesa era estruturada pelas professoras
nas duas escolas. Identificamos o emprego do tempo utilizado por elas, os materiais
utilizados, as principais atividades propostas aos alunos, entre outros; por fim, tentamos
compreender qual era o lugar da literatura durante as aulas, isto é, quando ela era mencionada
e utilizada, para quais fins era introduzida, os títulos selecionados, a relação com outros
aspectos do ensino, como o conteúdo gramatical. Seguindo as indicações relativas à postura
do pesquisador durante as observações das aulas, procuramos não interferir no funcionamento
da sala de aula, sabendo que nossa presença ali já produzia um caráter excepcional para elas.
Procurávamos variar os locais onde me sentava de modo a ter diferentes pontos de vista sobre
a sala de aula. O registro das observações de aula deu origem aos Diários de campo que
podem ser encontrados no Anexo II.
De modo a construirmos nosso objeto de estudo, também realizamos entrevistas
semiestruturadas com oito alunos e duas professoras, cujas perguntas estão no Anexo III, de
modo a compreendermos seus pontos de vista em sala de aula. Durante as entrevistas,
buscamos nos situar a partir da postura sugerida por Pierre Bourdieu e nomeada como ativa e
metódica

Efetivamente, ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a


submissão à singularidade de sua história particular, que pode conduzir, por uma
espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar
48

em seus pontos de vistas, em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a


construção metódica, forte, do conhecimento das condições objetivas, comuns a toda
uma categoria. (BOURDIEU, 2011, p. 695)

Essa posição pressupõe, de uma só vez, que o pesquisador se aproxime e se submeta


ao ponto de vista do entrevistado como condição para compreender aquilo que é característico
de sua posição; mas também exige uma forte fundamentação teórica acerca de seu papel em
meio àquela entrevista. Também procuramos estar atentos ao envolvimento e aos interesses
dos entrevistados durante a pesquisa. Assim, as entrevistas possuem perfis diversos, apesar de
versarem sobre o mesmo tema. Procuramos fazê-las um momento de construção conjunta do
problema com o entrevistado, este a partir do trabalho sobre sua memória a respeito das
representações sobre os livros e a leitura, e do pesquisador, a partir da construção do objeto de
pesquisa, como sugerem Meihy(2005) e Alberti(2005).
Para selecionar os entrevistados, quando contávamos cerca de um mês de observação
de aulas, começamos a realizar os movimentos necessários para a realização das entrevistas
com os alunos. Em um primeiro momento, gostaríamos de realizar as entrevistas com
diferentes alunos, que pudessem nos mostrar variadas experiências escolares, como as de
sucesso e fracasso; posições mais positivas ou conflituosas com relação às aulas, entre outros.
Do nosso ponto de vista, este poderia ser o caminho para a compreensão das diferentes
posições possíveis diante das aulas de Língua Portuguesa e da literatura.
Assim, em algumas aulas, convidamos os alunos para darem a entrevista, explicando
sobre o seu conteúdo, os seus objetivos, entre outros. As reações diante do convite foram
variadas. Alguns alunos se mostraram dispostos a realizarem a entrevista logo no primeiro
momento, seja para “te ajudar com seu trabalho”, seja pela curiosidade de ter sua fala gravada
como em entrevistas da televisão. Outro grupo se mostrou desconfiado sobre a entrevista,
achando que aquilo seria uma espécie de denúncia sobre as condições da escola pública.
Apesar de nossa insistência de que não se tratava disso, optaram por não participar da
pesquisa. Outro grupo foi indiferente, não demonstrando recusa ou aceitação em fazer parte
da pesquisa. Ao final, estabelecemos algumas datas para a realização das entrevistas, que
aconteceram sempre na escola, no caso dos alunos da Escola 1 – exceção feita a uma aluna,
que foi entrevistada também em sua casa – e em lugares públicos no caso dos alunos da
Escola 2. Nos dias e horários combinados com os alunos tivemos, ainda, um conjunto de
desistências por parte deles, assim, ao final, realizamos oito entrevistas com alunos, sendo seis
com mulheres e duas com homens (Anexo VI). As entrevistas com as professoras foram feitas
49

ao final do ano, após o encerramento do ano letivo (Anexo VII). A professora Valquíria foi
entrevistada na casa da pesquisadora, lugar escolhido pela própria professora. Já a entrevista
com a professora Celeste começou em uma padaria a meio caminho entre a escola e sua casa,
com uma continuação na escola.

Questionários

Após a realização das observações de aulas e realização das entrevistas, sentimos falta
de dados mais gerais que possibilitassem a compreensão das características dos alunos
participantes da pesquisa em comparação com seus colegas de turma. Com tais dados,
poderíamos situar suas preferências literárias, locais de compra, entre outros, nos hábitos mais
gerais da turma. Assim, no final de 2015, voltamos à Escola 1 e pedimos autorização para
passarmos o questionário nas duas turmas em que realizamos a pesquisa. Ainda que os alunos
já estivessem no 3º ano do ensino médio, consideramos que as informações dadas por eles
poderiam contribuir com a análise de nossos dados, pois se tratava do mesmo conjunto de
estudantes. Não foi possível aplicarmos o questionário nas turmas da Escola 2 porque eles se
formaram ao final de 2014.
A confecção do questionário seguiu o interesse de mapear a escolarização e profissão
dos pais dos alunos bem como alguns traços de suas opções literárias e, para isso, tomamos as
informações as referências que tínhamos sobre as turmas para a escolha das questões. O
questionário foi respondido, ao todo, por 69 alunos do ensino médio regular nas duas turmas
em que realizamos as observações. As informações obtidas por meio dessa fonte foram
utilizadas apenas para situarmos as práticas dos alunos da Escola 1 e o modelo do
questionário está no Anexo V.

Currículos

De modo a construir o cotidiano escolar em nossa pesquisa, como explicitado


anteriormente, também selecionamos os currículos escolares que se constituem em elementos
que produzem impactos na sala de aula. Para tanto, selecionamos os documentos federais e
estaduais. Em um primeiro momento, procuramos situar os currículos - assim como pareceres
e decretos - como fontes para a compreensão dos processos sociais que indicam os conflitos
relativos à educação (FARIA FILHO, 1998). Para isso, selecionamos os documentos
50

curriculares vigentes no ano em que realizamos as observações de aula e que, portanto,


serviriam de base ao trabalho docente, a saber:

Documentos federais:

● BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o


Ensino Médio. Brasília, 2000.

● Parecer CEB/CNE nº 15/98 IN: BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros


Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: bases legais. Brasília, 1999.

● BRASIL. Ministério da Educação. PCN+ Orientações educacionais


complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Linguagens, códigos e
suas tecnologias. Brasília, 2002.

● BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação Básica. Brasília, 2013.

● Ministério da educação e cultura/SEB. (2006) Orientações Curriculares


Nacionais (ensino médio).Literatura. Ministério da Educação. Secretaria da
Educação Média e Tecnológica. Brasília.

Documento estadual:

● São Paulo (Estado). Currículo do Estado de São Paulo Ensino Fundamental II


e Ensino Médio. Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. São Paulo,
FDE, 2012

Para além de fontes para a compreensão de disputas sociais mais gerais, os currículos
são partes da produção dos conhecimentos efetivados em sala de aula. Como afirma Jose
Gimeno Sacristán (1998), os currículos adquirem significados nos contextos em que são
inseridos e, certamente, a sala de aula é um deles. Na relação com livros didáticos, conteúdos,
alunos e professores ele ganha sentidos. Nesse sentido, pesquisadoras como Nilda Alves e
Inês Barbosa de Oliveira (2010) abordam os currículos a partir do cotidiano, ponto de vista
que permite ver as práticas curriculares compostas de saberes e fazeres pouco coerentes,
advindos das redes de referência docentes. Logo, estamos pensando que os documentos
51

enumerados acima são articulados em função das contradições cotidianas


(ALVES&OLIVEIRA, 2010).

A análise dos currículos também se valerá das menções ao passado, sempre que isso
for importante em nossa exposição, por meio da aproximação dos currículos vigentes a
documentos produzidos anteriormente. Sendo assim, tentaremos compreender as
especificidades dos documentos atuais no jogo de suas temporalidades, ao mesmo tempo em
que situaremos os currículos como elaborações do presente, no cotidiano. Decorre dessas
afirmações que os currículos e mesmo a seleção cultural são produzidas também no cotidiano,
nessas dimensões temporais. Jean-Claude Forquin (1996) sustenta que os saberes ensinados
pela escola foram estabilizados ao longo do tempo, pelo pertencimento a sistemas simbólicos,
sendo o currículo um deles. Entretanto, atualmente os questionamentos sobre as escolhas
culturais escolares estão muito presentes. Autores como Forquin, Sacristán e Inés Dussel
(2009) afirmam que na atualidade é difícil encontrar uma cultura comum a ser ensinada na
escola. Como afirma Inés Dussel (2009), tem-se criticado, por exemplo, o fato de que a voz
dos alunos e de sua cultura não estaria sendo ouvida na escola. Nesse sentido, nossa
abordagem dos currículos pretende ver esses acordos cotidianos em torno da cultura legítima
escolar.

Livros didáticos

Como sugerido no excerto acima, os livros didáticos também são elementos


estruturantes da produção de conhecimentos escolares. Durante as aulas pudemos notar que,
apesar de a secretaria de educação de São Paulo ter produzido apostilas para o Ensino
Fundamental II e Médio, as professoras utilizavam preferencialmente os livros didáticos que
ainda recebem. As apostilas são usadas de maneira pouco frequente no ensino médio regular 3.
Os títulos utilizados são os seguintes:

● CAMPOS, Elizabeth; CARDOSO, Paula Marques; ANDRADE, Sílvia Letícia.


Viva Português: ensino médio. São Paulo: Ática, 2010. Vol.1

3
A criação das apostilas faz parte do programa estadual São Paulo Faz Escola, em vigor desde 2008. Seu
objetivo foi a uniformização das ações de professores, gestores e alunos. Em 2010, as diretrizes do programa
foram substanciadas na Proposta Curricular do Estado de São Paulo (CATANZARO, 2012)
52

● FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO JÚNIOR,


José Hamilton. Língua Portuguesa: linguagem e interação. São Paulo: Ática,
2010. Vol.3
● SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Língua portuguesa e literatura.
Linguagens. São Paulo, 2014. (Caderno do aluno, v.1)
● SÃO PAULO. Secretaria da Educação. Língua portuguesa e literatura.
Linguagens. São Paulo, 2014. (Caderno do aluno, v.2)

Décio Gatti Júnior (2004) sustenta que os livros didáticos apresentam os conteúdos de
ensino a partir de algumas injunções, entre elas: as novidades da ciência selecionadas pelos
autores e editores; os impactos das alterações curriculares e de concepções educativas; e a
pressão exercida pela sociedade civil. Nesse sentido, ao olharmos para nossos materiais, é
possível identificar um conjunto de questões envolvidas na produção dos saberes escolares.
No que se refere à disciplina Língua Portuguesa, autores como Miriam Schröder (2013) e
Magda Becker Soares (2002) afirmam que os livros didáticos são suportes para a produção da
regularidade escolar pela seleção de conteúdos e oferecimento de atividades que organizam,
muitas vezes, o trabalho do professor. Nesse sentido, apesar da polêmica que pode gerar o
direcionamento excessivo ocasionado por ele, os livros didáticos são referência importante
para os professores e participam da produção do currículo praticado (BITTENCOURT, 2008).

1.3. A seleção de uma escola para participar da pesquisa

A Escola 1 e a Escola 2, localizadas nas diretorias de ensino Norte 1 e Centro sul de


São Paulo, respectivamente, fazem parte da rede estadual de ensino, composta em sua
totalidade por 5672 unidades em todo o estado e 1162 na capital. Dentre elas, em 2014, a rede
também contava com 178 escolas de tempo integral, segundo informações obtidas no site da
Secretaria Estadual de Educação4. Tal contagem leva em consideração apenas as escolas
mantidas pela Secretaria Estadual de Educação, mas ainda existem, em menor quantidade,

4
O projeto de escolas em tempo integral teve início no Estado de São Paulo em 2012 e oferece um período de
estudos de nove horas e meia aos alunos. As escolas também são equipadas com salas temáticas para cada uma
das disciplinas e os professores trabalham em regime de 40 horas em uma única instituição. Disponível em: <
http://www.educacao.sp.gov.br/ensino-integral> . Acesso em: 06 fev. 2018.
53

aquelas geridas pelas Universidades Estaduais e também pelo Centro Paula Souza5. Essa
última é responsável hoje em dia por 220 Escolas Técnicas (ETECS) no Estado de São Paulo
e sofreu grande expansão nos últimos anos. Sendo assim, apesar de aparentemente termos
uma rede única, ela é ramificada entre o ensino médio comum, em tempo integral e técnico.

A rede foi se configurando dessa forma a partir dos anos 1990, quando iniciativas
estatais e dinâmicas sociais alteraram o panorama do ensino médio. Ana Paula Corti (2015)
salienta que no final da década referida ocorrem, concomitantemente, a expansão das vagas
no ensino médio, fruto da grande procura por esse nível de ensino e da abertura de vagas nos
períodos noturno e diurno, esse último como consequência da municipalização das escolas de
1º ao 4º ano, ocorrida em 1996. Essa configuração gerou, na visão da autora, uma dualidade
na rede, pois ela não foi ampliada em função da construção de novas escolas igualmente
estruturadas, mas sim pela realocação de alunos nos espaços vagos deixados pelas escolas de
primeiro grau; ao mesmo tempo, aquelas unidades melhor equipadas foram passadas para o
Centro Paula Souza. Em 1994, 82 escolas se tornaram responsabilidade do Centro, as quais
foram somadas às 12 unidades anteriormente transferidas entre 1981 e 1982. Ana Paula Corti
(2015) afirma que tais alterações na oferta de vagas gerou uma corrida entre pais e alunos por
aquelas consideradas melhores. A tendência dessa dualidade vai se aprofundando nos anos
2000 com a ampliação das escolas técnicas e também com o surgimento do projeto de escolas
em tempo integral, cujas unidades concentraram investimentos em uma formação com ênfase
no aprendizado de línguas estrangeiras, artes, projetos diferenciados, professores selecionados
entre os melhor qualificados da rede, além do maior tempo de estudos. Assim, as respostas
estatais à demanda crescente pelo ensino médio foram dadas por meio de um discurso que
enfatiza compromisso com a qualidade da educação para todos, mas cria condições variadas
de formação segundo a frequência ao ensino médio comum, em tempo integral ou técnico. O
Estado torna-se, assim, um agente importante na produção de um mercado escolar que gera
concorrência entre os alunos e suas famílias, assim como os meios de selecionar aqueles que
irão frequentar cada um deles por meio de vestibulinhos, no caso das ETECS, ou pelas
matrículas permitidas apenas em escolas próximas ao local de moradia, o que gera a
concentração de alunos com perfis socioculturais semelhantes.

5
Apesar de ter sido criado em 1969 com o objetivo de organizar os cursos superiores de tecnologia, ele foi
ganhando a responsabilidade de também ser responsável pelo ensino profissionalizante em nível médio.
Disponível em: < http://www.cps.sp.gov.br/perfil-e-historico/>. Acesso em: 06 fev. 2018.
54

No mercado no qual se configura a rede estadual, as escolas em que a pesquisa foi


realizada ofereciam, em 2014, o ensino médio regular, cujo diploma é o menos valorizado
quando comparado com as escolas particulares, técnicas e escolas de tempo integral, além de
também serem as escolas com menor oferta de infraestrutura adequada e a presença de muitos
alunos que gostariam de estar em outros lugares. Muitos estudantes mencionaram estar na
Escola 1 após tentarem fazer vestibulinhos em outras instituições e não serem aprovados; já
os alunos da Escola 2 são marcadas pela escolarização truncada, apesar de a instituição
oferecer melhor estrutura física que a primeira6.
Diante desse quadro, as relações estabelecidas dentro da escola e desta com as famílias
são bastante truncadas. Pudemos perceber isso, inicialmente, pela dificuldade em encontrar
local para fazer nossa pesquisa de campo. Encontramos muitos desafios até mesmo para
sermos ouvidos pelos coordenadores e diretores das escolas. Comumente, chegávamos à
secretaria da escola, um espaço gradeado, onde a secretária nos recebia e repassava a
informação para a coordenadora ou diretora da escola. Geralmente, já recebíamos uma
resposta negativa e, apesar de nossa insistência, não conseguíamos ser recebidos pelos
membros da direção escolar. As tentativas por telefone também não lograram. Situações como
essas se repetiram em outras escolas visitadas pela pesquisadora.
Por fim, conseguimos ser recebidos pela diretora da Escola 1, que atende alunos desde
o 6° ano até o ensino médio nas modalidades regular e EJA. Em conversa com a diretora,
estabelecemos um dia para conhecermos uma professora indicada por ela. No dia combinado,
fui conversar com a professora, que trabalhava em uma escola de ensino fundamental I e no
3° ano do ensino médio da Escola 1. Acertamos o início das observações para a próxima
sexta-feira. Iniciou-se então uma série de cancelamentos por parte da professora ao longo de
quase um mês. Ao final desse período, tivemos nova conversa com a diretora, que nos indicou
outra professora, chamada Valquíria. Assim, comecei a fazer as observações de suas aulas em
duas turmas de 1° ano do ensino médio em novembro de 2014. Ao mesmo tempo, também
fomos aceitos para fazer a pesquisa em uma escola situada na V. Mariana, por intermédio de
uma amiga que já trabalhou na instituição. Conversamos com a coordenadora bem como com
a professora Celeste e passamos a assistir às aulas de Língua Portuguesa do 3° ano do ensino

6
As escolas também oferecem imagem significativa dos rumos da organização da rede. Em 2015, a Escola 2,
localizada no Piqueri, distrito de Pirituba, localizada na zona norte da cidade, foi uma das escolas selecionadas
para serem desativadas na reorganização da rede prevista para acontecer no ano seguinte. Após a ocupação da
escola pelos estudantes, assim como ocorreu em muitas outras, a reorganização foi suspensa. No mesmo ano, a
Escola 2, localizada no bairro Santa Cruz se tornou escola em tempo integral.
55

médio na modalidade EJA. Apesar de não termos previsto a pesquisa no EJA, ao termos essa
possibilidade, resolvemos levar adiante as observações nas duas escolas, que poderiam nos
fornecer duas experiências variadas com o ensino médio paulista. Na primeira escola
observamos as aulas de Língua Portuguesa dadas pela professora Valquíria em duas turmas do
1° ano do ensino médio e na Escola 2 observamos as aulas ministradas pela professora
Celeste aos alunos do 3° ano do ensino médio na modalidade EJA.

Algumas considerações sobre as professoras e os alunos

Apesar de terem nível de formação e tempo na profissão semelhantes, Valquíria e


Celeste vivenciam condições de trabalho diversas no que se refere à estabilidade. Enquanto
Celeste sempre trabalhou na rede pública, inicialmente na rede municipal e, a seguir, na
estadual, normalmente, em um único período, Valquíria tem sua trajetória marcada por
passagens em escolas públicas e privadas e, no ano em que a conhecemos, era professora
efetiva na rede estadual e contratada na rede municipal, o que lhe rendia três períodos de
trabalho e também a sensação de instabilidade gerada por seu tipo de contratação.
Aparentemente, o casamento realizado mais tarde e a ausência de filhos fez com que Celeste
não tivesse a necessidade de buscar outros períodos de trabalho, o que Valquíria, casada e
mãe de duas filhas adolescentes teve que fazer. Também é importante mencionar que, em
2015, a Escola 2 passou a funcionar em tempo integral, oferecendo regime de trabalho de 40h
na mesma instituição, o que assegurou as condições de trabalho, no que se refere à
estabilidade, à Celeste. Valquíria, nos anos seguintes, teve seu contrato de trabalho na
prefeitura encerrado, o que lhe obrigou a procurar por ampliação de horas na rede estadual e a
esperar por nova contratação temporária. Percebemos então que há uma espécie de força de
atração gerada pelas iniciativas do Estado: as escolas com melhores estruturas físicas também
oferecem melhores condições de trabalho e, por vezes, se situam em bairros mais valorizados
e vice-versa, o que gera possibilidades de escolarização muito diversas e seleções sociais
dentro da rede de ensino.

No que se refere aos alunos, constituímos um grupo de adultos, que estavam no EJA, e
outro de adolescentes, alunos do ensino médio regular. Com relação ao primeiro grupo, nos
deparamos com alunos trabalhadores com idades entre 35 e 45 anos, que trabalhavam como
vendedores, secretárias e donas de casa, frequentando o curso noturno. Todos têm filhos e
dois deles são casados. Os alunos adolescentes, em sua maioria com 15 anos no momento em
56

que os conhecemos, estudavam no período da manhã e, no contraturno, realizavam cursos de


informática e inglês ou ficavam em casa. Nenhum de nossos alunos entrevistados trabalhava
quando os conhecemos, o que é representativo do grupo de que fazem parte. Com base nos
dados obtidos por meio do questionário, é possível afirmar que este é o perfil dos outros
alunos da escola. Entre os 69 alunos que responderam ao questionário apenas 14 trabalhavam
e 29 realizam algum curso, já 26 alunos não realizavam outras atividades ao saírem da escola.

A escolaridade dos pais e mães dos alunos entrevistados se concentrou no ensino


médio, no caso dos adolescentes, e no ensino fundamental I quando se tratou dos adultos. Há
uma tendência, portanto, de ampliação da escolaridade das últimas gerações que se expressa
nas trajetórias de nossos entrevistados. As professoras também são parte desse processo, pois
apenas o pai de Celeste tem nível superior, completado já na idade adulta, ao passo que as
mães das professoras estudaram até o ensino fundamental e o pai de Valquíria tem nível
médio de escolarização. Com relação aos dados obtidos por meio do questionário, pudemos
encontrar os seguintes dados:

Gráfico 1. Escolaridade dos pais e responsáveis dos alunos.

Quando consideramos os dados dos pais e mães, notamos a concentração de estudos


no ensino médio. Porém ao isolarmos os dados notamos que existem mais mães que detém o
ensino superior do que pais. Observamos que ao comparar pais e filhos, os dados indicam a
tendência de manutenção da formação em nível médio e maior procura pelo nível superior.
Isso demonstra que as famílias de nossos alunos têm acumulado capital cultural escolar.
Entretanto, a maior escolaridade das mães não lhes garante sempre maiores salários que os
pais.

Existe predomínio de profissões que exigem nível médio entre as ocupações de pais e
mães. Entre as mulheres, predomina a ocupação de faxineira, vendedora e enfermeira. Entre
os pais se sobressai a profissão de empreiteiro de obras. Somando-se pais e mães, podemos
57

contar seis professores, carreira que os une à Valquíria e Celeste. As profissões dos alunos
adultos também são observadas na lista acima, o que nos faz crer que lidamos com um grupo
que guarda muitas semelhanças sociais.

Sendo assim, pesquisamos os conflitos com relação à leitura legítima de obras


literárias por meio da visão sobre o problema que as injunções de suas posições sociais
conferem ao problema; além disso, é no interior de duas escolas determinadas, Escola 1 e
Escola 2, que relações objetivas irão evidenciar as linhas fortes das disputas pela linguagem
na escola de ensino médio. Se anteriormente buscamos as linhas gerais que descrevem os
personagens da pesquisa, abaixo traremos os perfis dos mesmos de modo a fornecer os traços
principais que lhes tornam reconhecíveis ao longo da leitura.

1.3.1. A Escola 1 e a Escola 2

Escola 1

A Escola 17 se situa no Piqueri, zona norte de São Paulo, próxima à estação de trem
Pirituba. O bairro faz parte do distrito que dá nome à estação de trem. Ela atende ao ensino
fundamental II e médio regular e EJA, divididos em três períodos. Os 882 alunos da escola
estão divididos em 10 salas de aula. Em 2014, havia 269 alunos de 5º ao 8º ano, no ensino
médio regular 483 e 138 na EJA. A escola é equipada com laboratórios de química e de
informática, sala de leitura, refeitório, ventiladores em todas as salas, equipamentos
multimídia, quadra coberta e descoberta. Os laboratórios de química não são utilizados e
Adriana, durante sua entrevista, mencionou que gostaria de ter aulas mais práticas em
laboratórios. Vemos que, do ponto de vista das instalações isso seria possível. Os alunos são
moradores do entorno da escola, Piqueri e Pirituba, mas também há alunos que moram em
outros bairros da zona norte, como Parada de Taipas, Jaraguá e Perus. Isso demonstra que a
escola é um ponto de atração para os alunos da região, o que pode ser o resultado das políticas
da rede estadual que, como vimos, favorece a existência de escolas muito desiguais, o que

7
De modo a preservar a identidade das escolas, professoras e alunos, utilizamos nomes fictícios para nos referir
a eles.
58

produz uma corrida dos pais de alunos por instituições vistas como melhores. Pirituba, distrito
do qual o Piqueri faz parte, conta com 437.592 habitantes e tem apenas um centro de cultura,
nenhuma galeria de arte e nenhum museu. A escola esteve na lista de fechamento do plano de
reestruturação do sistema de ensino proposto pelo governo estadual e foi ocupada pelos
estudos como forma de protesto. Os alunos fecharam a Marginal Tietê na altura da Ponte do
Piqueri, o que deu visibilidade à escola. Como a reestruturação foi suspensa, a Escola 1 se
manteve em funcionamento no ano de 2015.

Escola 2

A Escola 2 está situada no bairro V. Mariana, próxima ao metrô Santa Cruz, zona
centro-sul da cidade de São Paulo. Atende ao ensino fundamental II e ao ensino médio regular
e na modalidade jovens e adultos. A escola tem uma sala equipada com máquinas de escrever
braille, sorobãs (ou ábaco, instrumento para cálculos matemáticos), dois computadores com
leitores de tela (Dosvox e Virtual Vision) e lupas eletrônicas, capacitando a escola a oferecer
educação para deficientes auditivos e visuais, com uma professora especializada. Além disso,
a escola também tem sala de informática com 26 computadores, sala de leitura e quadra de
esportes. Registram-se cerca de 2.500 alunos matriculados, cujos períodos de estudo estavam
divididos em três períodos: manhã, tarde e noite. Contudo, 2014 foi o último ano neste
modelo, pois a partir de 2015 a escola passou a funcionar em tempo integral, o que acabou
com a EJA. Entre os alunos matriculados, a maior parte vem de bairros que ficam na região
próxima à V. Mariana. A proximidade da escola ao metrô e ao terminal de ônibus favorece a
chegada de estudantes vindos de regiões mais distantes. O bairro V. Mariana parece funcionar
como um centro de atração para os moradores dos bairros mais pobres da zona sul da cidade,
seja pela oferta de transporte ou pela dinâmica do comércio do bairro. Também pudemos
constatar que a V.Mariana, cuja população era de 344. 632 habitantes em 2014, tem em sua
região seis centros e espaços de cultura, 14 galerias de arte e oito museus, os quais nenhum
dos entrevistados mencionou frequentar. Apenas Paulo disse que iria passar a frequentar o
SESC V. Mariana. Na sala que acompanhamos, a maioria dos estudantes era composta por
pessoas que trabalhavam na região e, por isso, matricularam-se na instituição. A professora
Celeste mencionou em sua entrevista que os alunos do bairro raramente se matriculam na
escola, o que tem se tornado mais comum no EF II. A professora chegou também a mencionar
a diferença entre os alunos que moram no bairro, que dariam mais valor para a escola, e
aqueles que moram em vizinhanças mais distantes. Em conversas com alunos e professores,
59

notamos que a escola goza de boa reputação, sendo muito procurada pelos estudantes da
região.

Alguns dados comparativos sobre educação

Para finalizar a descrição das escolas, gostaríamos de acrescentar alguns dados sobre a
escolarização da população habitante dos dois bairros, obtidos no site da subprefeitura de São
Paulo, cujo ano de referência é 2010. Em primeiro lugar, gostaríamos de chamar atenção para
o número de analfabetos contabilizado. Em 2010, na V.Mariana havia 1.804 analfabetos, ao
passo que em Pirituba havia 11. 494 pessoas nessa situação. Com relação ao ensino médio,
pudemos notar que em Pirituba havia 69. 840 pessoas com esse nível de ensino incompleto,
ao passo que na V.Mariana o número foi de 37.049. Com relação às pessoas que completaram
o nível superior, no bairro da zona sul havia 105.331 pessoas e no da zona norte 17.974.
Chama atenção a grande quantidade de moradores com nível superior completo e o pequeno
número de pessoas cursando o ensino médio na V. Mariana, situação oposta à Pirituba. Isso
chama atenção para a composição dos habitantes da região, que são mais jovens no último.
Além desses dados nos ajudarem na compreensão do perfil dos alunos da escola, ele também
nos auxilia a entender um pouco do perfil das professoras. Por um lado, Valquíria é moradora
do bairro em que trabalha, Pirituba, e assim pode estar mais próxima do ponto de vista de seu
estilo de vida dos alunos da região. Celeste também é moradora do bairro em que trabalha,
porém a maior parte de seus alunos vem de outras partes, o que pode favorecer a sensação que
a professora tem de ser diferente de seus alunos. Finalmente, gostaríamos de sinalizar também
que o fato de essas escolas serem pontos de atração para alunos vindos de diferentes origens
significa que ela encerra alunos com disposições, referências culturais, expectativas de futuro
muito diversas, o que poderá ser visto nos perfis dos alunos apresentados a seguir. Ao
pensarmos na escola da expansão e dos desafios que ela impõe, precisamos considerar essa
característica de seus alunos.
60

1.3.2. Os perfis dos alunos e das professoras


a) Os perfis das professoras

Professora Valquíria

Conheci a professora Valquíria já na escola, quando fomos apresentadas pela diretora,


que a indicou como a professora que poderia acompanhar. Fui ao seu encontro no final de um
dia de aulas. Entrei em sua sala e me sentei em uma cadeira o sinal bater. Assim que me
apresentei pedi para assistir às suas aulas e expliquei o objetivo da pesquisa, Valquíria se
mostrou muito aberta e receptiva afirmando que nós aprendemos uns com os outros e que, por
isso, não haveria problema algum eu fazer a pesquisa na escola. Foi, realmente, muito
agradável conhecer uma professora tão aberta e receptiva com relação à pesquisa. Aos
poucos, durante as aulas e por meio da entrevista, pudemos nos conhecer um pouco melhor. A
professora Valquíria tem 49 anos, é casada e tem duas filhas. Ela é formada em Letras-Inglês
pela faculdade Oswaldo Cruz, curso terminado em 1994, e tem pós-graduação em literatura
pela PUC-SP. É importante notar que ela tem preferência pelo ensino de língua inglesa. Ela
sempre usa palavras em inglês durante as aulas e usa frequentemente uma bolsa da escola de
inglês Cultura Inglesa, escola em que ela faz um curso oferecido em convênio com o governo
estadual. Entretanto, parece que a professora vai lidando sempre com suas vontades e com o
que é possível. Seu primeiro trabalho foi como funcionária administrativa da SPTRANS,
empresa de transportes de São Paulo. O curso de Letras foi uma opção para se tornar
secretária bilíngue, entretanto, a possibilidade de trabalhar por meio período no momento em
que teve sua primeira filha foi decisivo para optar pela docência na educação básica. Assim, a
professora passou por diferentes instituições de ensino de modo conciliar suas preferências e
suas necessidades. Ela começou a dar aulas em uma escola estadual, no Ensino Fundamental
II, como funcionária contratada a partir de 1995. No mesmo ano se transferiu para outra
escola estadual. Até 2008 deu aula em diversas escolas, pois não era concursada e precisava
mudar sempre que um funcionário concursado assumia a vaga que ela ocupava. Em 2003,
passou em um concurso para ser professora de inglês e também deu aulas em uma escola
particular, para que suas duas filhas tivessem uma bolsa na instituição. Hoje em dia dá aulas
de inglês no EJA e português no ensino médio. Em vários momentos a professora falou de sua
dificuldade com a rotina, pois trabalha em três períodos, o que a faz correr de uma escola para
a outra e, consequentemente, diminui sua possibilidade de dedicação à preparação das aulas e
mesmo às leituras. Apesar de morar no mesmo bairro em que boa parte dos alunos, a
61

professora se vê de modo distanciado do grupo. Exemplo disso é a maneira como ela opõe
suas filhas aos alunos que tem: “A maioria dos brasileiros é muito visual, gosta muito de
televisão então está incutido esse negócio de leitura. Na minha casa está porque como eu
gosto de ler, minhas filhas acho que me acompanharam e também meus irmãos deram livros
infantis quando elas eram crianças, elas já têm essa prática”. Entre suas preocupações ela
sempre menciona o desafio de levar todos os alunos a aprenderem, mesmo que na maior parte
do tempo eles demonstrem desinteresse nas aulas. Em vários momentos durante as
observações das aulas, e até mesmo durante a entrevista, a professora se lembra de um
professor de Prática de Ensino para quem “...não era para a gente ficar frustrado quando a
gente não atingir 100% [dos alunos]”. Ao colocar em segundo plano o sucesso escolar dos
alunos, a professora ressalta as relações afetivas mantidas com eles como base para se
perceber o êxito.

Professora Celeste

Também conheci a professora Celeste em seu local de trabalho. Quando fui recebida
pela Coordenadora Pedagógica da Escola 2 recebi a indicação da professora de Português do
ensino médio que poderia me receber. Conhecemo-nos na sala dos professores e ela também
aceitou fazer parte da pesquisa sem impor qualquer problema ou restrição. A professora
Celeste tem 50 anos, é casada e mora na V. Mariana. Iniciou o curso de Licenciatura em
Português e Inglês na Faculdade UNIBAN. Inicialmente ela se formou em contabilidade, área
em que trabalhou desde os 15 anos. Por iniciativa de seu irmão, que a inscreveu no vestibular,
iniciou o curso apesar de informar que Letras sempre foi sua vontade. Assim como Valquíria,
a docência não foi a primeira opção de Celeste, que acreditava já não poder se formar em
nível universitário quando foi matriculada. A partir do momento em que começou a dar aulas,
seu percurso se tornou mais estável, permanecendo por longos períodos nas escolas em que
trabalhou. Celeste começou a dar aulas em 1989 em uma escola municipal na V. Leopoldina.
Em 1995 passou a dar aulas em uma escola estadual situada na V.Piauí, onde ficou até 2001.
Em 2004 passou a dar aulas na escola Di Cavalcante, no Alto de Pinheiros. A seguir, em
2005, pediu remoção para a Escola 2, onde dá aulas para o Ensino Fundamental II e EJA. No
final do ano, a professora descobriu que tinha sido habilitada para dar aulas na escola de
tempo integral na qual a Escola 2 se tornou em 2015.
62

A professora parece construir sua identidade docente a partir de dois sentidos fortes. O
primeiro deles é o ensino de Português a partir da gramática, que ela identifica como seu
ponto forte, apesar de ter se encantado com a literatura quando começou a fazer faculdade. Ao
mesmo tempo, a professora parece construir o sentido da escola e de seu trabalho bastante
dependente da origem social dos alunos, o que produz maior ou menor empatia entre eles.
Exemplo disso pode ser o estranhamento que sentiu na primeira escola em que trabalhou,
quando acreditou que a “clientela ia para se alimentar, eles não iam para estudar”. Diferente
do que sentiu quando começou a dar aulas no estado: “Eu fiquei encantada com as crianças do
estado. É outra clientela. É uma clientela realmente mais ligada no estudo, as famílias dão
mais valor”. Nesse sentido, a professora busca formas de manter seu ponto de vista sobre a
disciplina mesmo em turmas que, do seu ponto de vista, não valorizam tanto a escola. No caso
do EJA, ela notou que os alunos chegavam muito cansados e não se interessavam pelo que
fosse difícil, então ela mudou a aula e a transformou em atividades que dessem conta de suas
dificuldades gramaticais.

b) os alunos adolescentes

Mariana

A aluna tem 15 anos e desde o momento em que propus a realização da entrevista,


mostrou-se muito disposta a fazer parte da pesquisa. Mariana fazia parte do grupo de alunos
que se sentava próximo à professora e fazia as lições com frequência, o que poderia defini-la
como uma “boa aluna”. Estava sempre quieta na sua carteira, mas atenta a tudo o que
acontecia e vez ou outra soltava algumas risadas irônicas ao observar alguns comportamentos
dos colegas de classe. Mariana mora em Pirituba, em uma casa próxima à escola com sua
mãe, que é cozinheira, seu padrasto, vendedor e seu irmão. Durante a entrevista, é possível
verificar a proximidade que tem com sua mãe, companheira de confidências e de leituras. Por
intermédio e apoio da mãe, a adolescente circula por um conjunto significativo de publicações
como jornais, revistas e livros. A literatura é um assunto entre elas e sua representação de
leitura parece ter sido forjada em grande parte na convivência com a mãe. É o primeiro ano
que estuda na Escola 1, antes estudou em uma escola particular, no Ensino Fundamental I, e
no EMEF Monteiro Lobato no Ensino Fundamental I e II, ambas instituições estão localizadas
em Pirituba. Com relação à escola, Mariana diz já se sentir à vontade na escola e na classe que
63

pareceram muito estranhas no início do ano. A aluna estranha muito o barulho dos alunos
durante as aulas, o que dificulta sua concentração e a realização das atividades. Diz, ainda,
não gostar das aulas de Português por conta das atividades propostas e gostaria de realizar
mais atividades de produção de texto. Escrever é uma das coisas que mais gosta de fazer
desde que ganhou um prêmio de melhor redação no EF I, o que demonstra o valor que ela dá
para as avaliações e julgamentos escolares, e que o médico lhe aconselhou a escrever como
forma de diminuir o stress. Ela pretende se tornar psicóloga e escritora no futuro e, para isso,
já está lendo um livro de Psicologia.

Amanda

A aluna tem 15 anos e aceitou fazer a entrevista como forma de me ajudar a realizar
meu trabalho. Amanda foi receptiva à pesquisa e falou intensamente sobre suas leituras,
geralmente marcadas por serem religiosas ou destinadas às crianças e pré-adolescentes. Ela
sempre usa um colar com o nome “Luan”, em referência a seu cantor predileto, Luan Santana.
Ela se sentava na fileira da parede próxima à porta. Em uma das aulas ela levou o material
médico utilizado por sua mãe e estava examinando seus colegas. É seu primeiro ano na Escola
1. Até o Ensino Fundamental II estudou na escola Celso Leite, que fica no centro de São
Paulo, próxima ao Hospital Pérola Byington, onde sua mãe trabalha como enfermeira. Seu pai
é funcionário público, trabalhando no serviço funerário da cidade. Amanda tem mais um
irmão, que ainda estuda na escola do centro. A família mora na rua atrás da escola. Os pais de
Amanda parecem investir muito na formação dos filhos, o que se expressa na assinatura de
revistas, na cobrança por assistir e ler produtos que tragam informação, como insiste seu pai.
No dia em que a entrevistamos, Amanda estava sem celular como castigo por ter tirado nota
ruim. Seu pai assistiu a um filme sobre o Aleijadinho para ajudar a filha com o trabalho
escolar. Apesar disso, Amanda ainda não tem uma ideia de futuro escolar muito clara, parece-
nos que suas funções familiares e interesses culturais são prioridades para ela.

Carolina

Carolina, que tinha 16 anos no momento da entrevista, estava muito insatisfeita com a
escola, principalmente porque ela tentou fazer alguns vestibulinhos para escolas técnicas e
não teve êxito. Assim, sentia-se traída pela escola. Carolina é filha mais nova de mãe dona de
64

casa e pai comerciante e tem outros dois irmãos mais velhos, já estudantes universitários. Na
escola, a aluna estava sempre com uma amiga, mas parecia circular com facilidade entre os
grupos constituídos pelos alunos. A família mora em um condomínio de prédios que fica
próximo à escola, à estação de trem de Pirituba e ao Shopping Tietê. A aluna tem o projeto de
estudar medicina na USP e por isso acredita necessitar muito da escola, porém sente que ela
não ensina o que Carolina precisaria aprender. Passou por provas para acessar o ensino
técnico e escolas particulares, mas não obteve sucesso, o que lhe causa muita frustração. A
aluna tem relação bastante utilitária com a literatura, preferindo ler aquilo que será cobrado no
vestibular ou se rendendo aos títulos que são unanimidades entre os adolescentes, como “A
culpa é das estrelas”. Acha um absurdo comprar livros, pois para ela é um dinheiro
desperdiçado, uma vez que após a leitura o livro já não tem utilidade.

Adriana

A aluna tem 15 anos, mora com a mãe e a tia em uma casa próxima à escola. A família
é sustentada pela aposentadoria de sua tia. Seu pai não mora com ela e parece viver em uma
situação econômica mais confortável. Adriana fazia parte da “turma do fundão”, como diria
Carlos Rodrigues Brandão (2013). Ela e seus amigos faziam bastante barulho durante a aula,
estavam sempre sentados em círculo. Adriana trabalha como monitora da sala de leitura da
escola, experiência que parece tê-la marcado bastante e proporcionado relação privilegiada
com a literatura. A aluna demonstra ter disposições para uma relação de proximidade aos
padrões escolares, assim como maior desenvoltura para pensar em seu futuro, que ela parece
ter certeza que se desenvolverá em alguma universidade pública. Aqui podemos identificar
uma diferença com relação à postura de Adriana e Carolina com relação ao papel da escola
para o projeto de futuro. Adriana também quer frequentar uma universidade pública, porém
ela identifica que a escola vai ensinar o básico e ela vai correr atrás, vai providenciar por si o
que falta, é como se ela já conhecesse o caminho que precisa percorrer para chegar à
universidade e tem todas as ferramentas para isso, o que não gera ansiedade para ela. Adriana
parece depender menos da escola para aprender a circular pelo mundo da cultura ou
poderíamos pensar que ela tem disposições que lhe favorecem o aprendizado dos conteúdos
escolares. Já Carolina sente que depende integralmente da escola, pois parece que sua origem
familiar ou outras experiências sociais não lhe deram até agora todas as disposições
necessárias àquilo que identifica precisar.
65

Paulo

Paulo vive com sua mãe e irmã em um outro ponto de Pirituba, sendo necessário
pegar ônibus para ir à escola. Paulo é um aluno calado de 17 anos, que fica o tempo todo com
seus colegas, sem, contudo, levantar o tom de voz ou participar das atividades que os outros
costumam fazer. Ele pretende ser lutador de Muay Thai no futuro e não vê sentido na
frequência à escola, pois ela não o ajuda a aprender aquilo que será preciso em seu futuro.
Para ele, a escola deveria ensinar o básico: ler, escrever e contar. O restante seria perda de
tempo. Ele afirma ainda que a escola é lugar de aprender algumas regras para a vida, como o
respeito à convivência entre outros. Além disso, a escola só ocuparia o tempo dos alunos sem
necessidade, como quando a professora falta e vem alguma substituta para não ensinar nada.
Apesar disso, o aluno gosta das matérias Filosofia e Sociologia porque elas discutem assuntos
que se mostram no dia a dia. Mas ele só gosta de ouvir, discutir não.

c) os alunos adultos

Karina

Karina tem 35 anos durante a entrevista, é casada e mãe de dois filhos. Ela teve um
percurso de escolarização truncado por conta da gravidez e da necessidade de trabalhar. Por
isso, tenta retomar e finalizar seus estudos. Ela pretende fazer o curso de Letras/Inglês na
Cultura Inglesa após terminar o ensino médio, mas seus objetivos com relação à carreira
escolar parecem pouco definidos. A aluna faz parte de um grupo religioso chamado Johrei8,
que marca sua visão de mundo, fornecendo uma narrativa e leituras que dão sentidos para a
sua vida. Ela gosta muito de ler, principalmente os textos religiosos, mas também tenta ler os
títulos presentes no cânone escolar, demonstrando uma tensão entre as leituras valorizadas ou
não no espaço escolar. É evidente, em seu caso, que apesar de ter vindo de um grupo familiar
que teve dificuldades para criá-la, seus pais se separaram quando ela era bebê e, por isso, foi
criada por alguns parentes, fato que a marcou muito. A partir do momento em que precisou

8
De acordo com o site da Igreja Messiânica Mundial do Brasil, o johrei é “...um método de canalização de
energia espiritual (luz divina), para purificação do espírito, capaz de transformar a desarmonia espiritual e
material em harmonia”. Disponível em: < http://www.messianica.org.br/colunas-da-salvacao/johrei>. Acesso
em: 06 fev. 2018.
66

frequentar outros meios sociais por conta do trabalho começa a questionar sua forma de falar,
notando seus erros, o que é reforçado pelas experiências de escolarização que tem,
especialmente no ensino médio e no cursinho que frequentou anteriormente. Sua busca parece
ser, inicialmente, a tentativa de acessar essa cultura valorizada que se expressa por uma forma
correta de falar e escrever, pelo gosto de textos escritos por autores consagrados na escola.

Clair

Clair, 55 anos, tem sua via marcada pela experiência da imigração. Ela nasceu em
Santa Catarina e com cerca de 20 anos vem para São Paulo. Ao chegar aqui Clair tenta
finalizar seus estudos de ensino médio – o que não consegue fazer – enquanto trabalha como
empregada doméstica em algumas casas. Após perder o emprego tem que parar de estudar.
Ao longo dos últimos anos Clair trabalhou como caixa em um restaurante e secretária em
clínicas médicas. A aluna tem um filho de 20 anos que também parou de estudar e atualmente
a ajuda a sustentar a casa onde moram. Clair passou por crises de depressão e descobriu a
leitura e o espiritismo durante esses momentos. O espiritismo parece ter chegado em
momento de desespero e preencheu o que faltava em sua vida, inclusive com as únicas
leituras que ela fazia. Parece-nos que a disposição para a o estudo e para a leitura foi
direcionada para a leitura religiosa. Hoje em dia consegue finalmente terminar o ensino médio
com uma perspectiva pouco clara de melhorar sua formação de modo a conseguir um
emprego melhor. De modo parecido com Karina, também parece ter vontade de se aproximar
da cultura mais valorizada pela escola, o que vai fazer pela mudança de suas leituras.

Marcelo

Marcelo tem 39 anos, está em seu segundo casamento e tem duas filhas, fruto da
primeira união. Ele trabalha como vendedor em uma loja de materiais elétricos e sua esposa é
técnica em radiologia, além de fazer faculdade para se especializar na área. Quando sua
primeira filha nasceu, Marcelo tinha 14 anos e por isso parou de estudar. Desde então, ele
vem tentando de maneira truncada finalizar os estudos. O aluno de fato, precisa completar
seus estudos para se manter em seu emprego. Sua esposa parece o influenciar com relação à
leitura e, de modo mais geral, à necessidade de desenvolver hábitos culturais que não estavam
em sua perspectiva de início. Marcelo demonstra que suas expectativas e padrões com relação
67

à escolarização foram adquiridos em sua primeira experiência escolar, assim ele também fica
incomodado com as maneiras dos alunos e mesmo com a postura de alguns professores. É
importante ressaltar que ao ser questionada sobre Marcelo, a professora Celeste disse que ele
tinha alguma “deficiência intelectual”.
68
69

CAPÍTULO 2 - NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO: OS TEMPOS ESCOLARES DA


LEITURA DE OBRAS LITERÁRIAS E SEUS CONFLITOS

A professora abre um livro didático e encontra o assunto da aula. Ela diz que eles
precisam copiar e fazer as atividades porque isso será matéria para a prova. Ela
começa a escrever na lousa e, enquanto isso, fala que é importante que eles tenham
um momento de parada e organização. Para ela, as pessoas organizadas têm mais
êxito: “Quando vocês estão desrespeitando a minha aula, vocês têm que ter noção
que vocês estão se desrespeitando. Eu estou estudando, me melhorando, melhorando
meu currículo. Vocês precisam ter noção, noção de contexto
(Observação feita no dia 03/11, Escola 1).

A descrição acima sintetiza uma situação de aula na qual vários elementos estão
articulados. Ao mesmo tempo que inicia a abordagem do conteúdo previsto para a aula, a
professora observa a reação dos alunos, a conversa constante, e os repreende a partir de um
ponto de vista moral que indica uma previsão de futuro. Quando chama atenção para o
contexto, a professora alude às regras e pressupostos envolvidos na relação pedagógica
instaurada e procura servir de exemplo à turma. As possibilidades de ensino e aprendizagem
da leitura de obras literárias articulam-se por meio de circunstâncias como a descrita em
epígrafe, seguindo as lógicas dessa cultura escolar. Este capítulo pretende descrever o
cenário em que ocorrem os conflitos em tela por meio da observação das relações cotidianas.
Para tanto, partiremos da ideia de matriz socializadora escolar descrita por Bernard
Lahire em La raison scolaire (2008). O termo é utilizado pelo autor para se referir ao
conjunto de atividades escolares que modelam o tipo de aluno a ser formado. Assim, uma
escola que privilegia a leitura de livros e produção de textos terá mais chances de formar
alunos hábeis a realizar essas tarefas. A descrição das relações entre professores e alunos, das
atividades mais frequentes em sala de aula, da utilização de livros didáticos e das demandas
curriculares nos servirá para configurar uma matriz socializadora possível das escolas
pesquisadas, compreendendo que estas últimas funcionam pela articulação de diversas
temporalidades. Nesse sentido, retomaremos alguns elementos da história da disciplina, dos
currículos, do desenvolvimento dos livros didáticos e do processo de expansão escolar de
modo a situar, como afirma Pierre Bourdieu (2013a), esquemas cognitivos estruturantes das
práticas escolares, que se revelam inconscientes na composição das aulas e na construção dos
consensos escolares. Não se trata de relatar uma realidade hermeticamente articulada pelo
Estado, mas de conhecer escolas marcadas pela expansão de vagas e massificação, o que
acaba por alterar suas fronteiras culturais e regularidade temporal, tornando a negociação
70

cotidiana a ferramenta principal para a produção de acordos em sala de aula (ZAFFRAN,


2006). Assim, a partir da noção de leitor-leitor, utilizada por uma de nossas entrevistadas,
sintetizaremos os impasses em torno das representações do bom leitor construídas na escola e
apropriadas problematicamente por professores e alunos. A descrição densa, como indicamos
no capítulo 1, contribuirá para evidenciar o modo como a convivência escolar produz atritos
entre professores e alunos diante dos imperativos escolares, movimento este que nos permite
verificar os conflitos como uma forma de construção cotidiana da matriz socializadora
possível. Nesse movimento, as culturas de origem dos alunos e a posição docente entram em
jogo e configuram a escola.
Iniciaremos o capítulo buscando, na relação entre o presente das aulas e o passado da
disciplina, traços daquilo que se consolidou como inconscientes da escola no que se refere ao
ensino de literatura, situando, assim, os impasses entre as relações com a linguagem
legitimadas pela escola e suas reconfigurações a partir da expansão do ensino médio. A
seguir, situando as Escolas 1 e 2 como parte do mercado escolar produzido pelo Estado no
processo de expansão - o que gera concorrência por melhores vagas e entre os próprios alunos
-, veremos as salas de aulas com fronteiras porosas nas quais as culturas de origem dos
alunos configuram forças para a produção de saberes legítimos. Finalmente, pela descrição
das principais atividades escolares, esboçaremos os contornos da matriz socializadora escolar
possível, ou seja, aquela construída entre as representações escolares, docentes e discentes.

2.1. As regularidades da literatura na escola: as aulas, os currículos

Como indicamos no capítulo 1, a cultura escolar e suas características constituem-se


por precipitados da história; logo, práticas escolares, livros didáticos e currículos são indícios
de relações temporais que circulam na escola (AZANHA, 1990/1991). Ao frequentar as aulas,
notamos que as opções metodológicas das professoras sintetizavam uma série de
possibilidades que já foram, outrora, predominantes, de modo que o currículo seguido por elas
colocava em prática um conjunto de referências já conhecidas no processo de escolarização e
entrada na profissão. Por meio de um olhar sobre alguns currículos produzidos nos âmbitos
estadual e municipal, pretendemos acompanhar de que maneira os conhecimentos literários
foram projetados para uma escola que, cada vez mais, recebeu parcelas da população. Afora a
produção de currículos, a própria história da disciplina também implica a cristalização de
algumas compreensões e práticas de ensino. Essas linhas de compreensão também indicam
71

elementos de permanência e ruptura com relação aos ideias de formação passados e presentes.
André D. Robert (2007), ao investigar as transformações do sistema de ensino francês,
observa que ele, assim como outros com características semelhantes, caracteriza-se, hoje em
dia, por negociações desse tipo:

Em muitos pontos, como acabamos de vê-lo, a escola à francesa situa-se a meio


caminho entre práticas e valores herdados de sua tradição e adaptações às exigências
conjunturais contemporâneas (ROBERT, 2007, p. 224).

Veremos, então, que tensões entre a presença ou não da história da literatura; a leitura
estética em oposição àquela que busca situar os usos desta última; os exercícios orais e
escritos em concorrência; a necessidade ou não do estudo vocabular; o papel dos materiais
didáticos e sua importância na consagração dos textos como pontos de partida para as aulas
são situações conhecidas durante as observações, e constituem possibilidades oferecidas pelo
Estado como formas de organização das aulas em momento de negociações entre as demandas
atuais e passadas.

2.1.1. As finalidades do ensino da literatura: uma visão dos currículos

A partir das observações feitas na Escola 1 e na Escola 2 foi possível vislumbrar


situações de ensino de literatura nas quais os textos, aspectos estruturantes das aulas, foram
tratados muitas vezes como objetos distantes dos alunos e professores, permeados pela
história da literatura e, em menor grau, a literatura foi abordada como algo a ser debatido e
problematizado. Um primeiro olhar sobre as aulas pareceu-nos indicar que a realidade e os
currículos em vigor têm pouco em comum, uma vez que, a título de exemplo, o atual
Currículo do Estado de São Paulo (2012) apresenta o desenvolvimento das dimensões
comunicativas como o principal objetivo do trabalho com as linguagens, ou seja, elas
configuram formas de expressão, informação e argumentação, ideias presentes nos debates
sobre o ensino de Língua Portuguesa desde os anos 1980. Em um segundo momento, todavia,
ao nos aproximar de outros currículos escolares, veremos que tal compreensão do trabalho
com a literatura se insere entre as principais alterações vividas na área a partir dos anos 1970.
Até então, a abordagem do ensino de literatura voltava-se para finalidades mais próximas à
formação da cultura geral de perfil humanista, tendo por base o patrimônio literário escolar
72

apresentado na forma de uma história da literatura, isto é, conforme a cronologia de seu


surgimento.
Sabemos que a formação no ensino secundário se destinou, durante o Império e parte
da República, à preservação e transmissão da alta cultura, dando-se ênfase ao desinteresse dos
estudos (SOUZA, 2009). A despeito, portanto, de ser uma etapa preparatória ao ensino
superior, preservava-se o caráter de formação das elites pela aproximação com a alta cultura,
aqui identificada como legítima no ensino secundário, e como espaço de escolarização
prolongada (ISAMBERT-JAMATI,1995; HAIDAR, 2008). Durante a Exposição dos motivos
da Lei Orgânica do Ensino Secundário, em 1942, Gustavo Capanema reforça a necessidade
da formação da consciência humanista associada ao patriotismo, uma vez que o ensino
secundário de destinava:

[...] à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão
assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens
portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas,
que é preciso tornar habituais entre o povo (BRASIL, 1952).

A reforma esteve em vigência no Brasil durante vinte anos, de 1942 e 1962, período
no qual assistiu-se à expansão de vagas no ensino médio. Como sustenta Rosa Fátima de
Souza (2009), as novas gerações pertencentes à classe média e às camadas populares
passaram a ter acesso a uma escola cujas referências eram os valores humanistas e a cultura
literária. Este tipo de educação foi símbolo de distinção social para as elites e as tendências de
tornar o ensino secundário mais científico, indo ao encontro da sociedade moderna, e sofreu
muitas resistências na primeira metade do século XX. À medida que a aumentava a pressão
pela democratização do ensino secundário e pela aproximação da escola à formação da
sociedade moderna, a LDB de 1961 possibilitou a criação de um currículo diversificado no
qual o latim, base da formação humanista, tornou-se disciplina optativa. Observa-se a partir
daí uma alteração nos sentidos da formação secundária, que se torna cada vez mais marcada
pela especialização, formação para o trabalho e pelo utilitarismo (SOUZA, 2009). Nesse
sentido, é oportuno pensarmos na LDB de 1971 como um documento significativo na
alteração do entendimento sobre a Língua Portuguesa. A partir da proposição do currículo
organizado em um núcleo comum e outro diversificado, procurando conciliar a formação
geral e as demandas mais utilitárias de formações locais, entendeu-se que:
73

A parte da educação geral destina-se a transmitir uma base comum de


conhecimentos indispensáveis a todos na medida em que espelhe o Humanismo dos
dias atuais. A parte de formação especial, por sua vez, “terá o objetivo de sondagem
de aptidões e iniciação para o trabalho, no ensino de 1ºgrau, e de habilitação
profissional, no ensino de 2º grau (BRASIL, 1971).

Depois da lei 5.692/71, que promove uma grande abertura do ensino secundário às
camadas populares, percebe-se a decadência dessa formação humanista e, já na década de
1990, com a nova LDB, o perfil da formação secundária assume outros sentidos. A referida
década vê o surgimento de um conjunto de documentos que reconfiguram o ensino médio,
como Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, publicados em 1999 no
governo de Fernando Henrique Cardoso, e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),
que passou a atender o ensino médio apenas em 2005. Entre tais documentos, parece-nos
significativo o ponto de partida dos produtores do Parecer CEB/CNE nº 15/98, que aborda as
Diretrizes Curriculares Nacionais. O texto chama o ensino médio de espaço de “exclusão a
ser superada”, e identifica como seus alunos tanto os jovens que aspiram percursos
educacionais mais longos quanto as pessoas já inseridas no mercado de trabalho, que buscam
melhores condições de vida:

[...] a clientela do Ensino Médio tende a tornar-se mais heterogênea, tanto etária
quanto sócio-econômicamente, pela incorporação crescente de jovens adultos
originários de grupos sociais, até o presente, sub-representados nessa etapa da
escolaridade (BRASIL, 1999, p. 91).

O documento afirma que, além de receber novas parcelas da população no ensino


médio, é preciso proporcionar em seu interior “[...] escolhas de trabalho, de normas de
convivência, de formas de participação na sociedade” (BRASIL, 1999, p.93). Percebe-se nos
currículos a preocupação com uma espécie de formação que possa fornecer dados comuns de
convivência social. Com isso, o ensino de Português passou a enfatizar a linguagem e suas
funções expressivas, pensando-se no “uso da língua na vida e na sociedade”; rompe-se com a
divisão posta entre língua e literatura para, então, apostar nas funções sociais da língua e da
linguagem. A literatura praticamente não aparece no interior do documento e o “texto” ganha
força como unidade básica do ensino.
É importante observar que, em comparação a outros documentos curriculares, os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2000) abordam pouco a literatura,
assim como a gramática e a redação, temas consagrados na disciplina. Na visão deste
74

currículo, trata-se de incluir esses conteúdos em “[...] uma perspectiva maior, que é a
linguagem, entendida como espaço dialógico, em que os locutores se comunicam” (BRASIL,
2000, p. 23). Nesse quesito, a noção de texto, compreendida como unidade de comunicação e
expressão social, ganha centralidade nas aulas. Essa abordagem coloca-se em diálogo com as
propostas curriculares paulistas que, no final da década de 1970 e nos anos 1980, enfatizam a
abordagem dos aspectos da língua por meio dos textos. O PCN+ (2002) aprofundou tal
abordagem, situando a literatura como recurso expressivo capaz de se relacionar com o
contexto histórico de produção, a realidade dos alunos etc.
As Orientações Curriculares para o ensino médio (2006) constituem um ponto de
inflexão nessa tendência de ensino de literatura como aspecto da linguagem. Assumindo um
ponto de vista crítico e de discordância em relação ao PCN, o documento institui a literatura
como obra de arte que precisa ser abordada como tal. Ao exaltar o seu passado de prestígio,
quando sua legitimidade não era questionada, o documento faz referência ao símbolo de
cultura que a literatura outrora representou. Insiste, com isso, que a formação do leitor capaz
de realizar a fruição estética poderia lhe proporcionar um distanciamento da lógica do
trabalho alienado, configurando uma circunstância para a educação da sensibilidade; a
literatura, enfim, seria uma via possível para a superação da dureza do cotidiano, um fator de
humanização do homem coisificado (BRASIL, 2006, p. 53). Apesar de produzir seu discurso
com base em conhecimentos advindos da crítica literária, a proposta parece retomar a
literatura com sentidos próximos àqueles da primeira metade do século XX. Vemos, assim,
que não há consensos entre as propostas curriculares e, com isso, configura-se uma vertente
de conflitos nessa direção.
As alterações curriculares ocorridas principalmente, a partir da década de 1970
produziram uma sensação de crise no ensino secundário. Intelectuais da época demonstraram
certa surpresa ao perceberem que a leitura é pode ser compreendida de formas variadas entre
os diferentes grupos sociais presentes na escola. Tal sentimento de crise é perceptível no
relato da pesquisadora Maria Theresa Fraga Roco em sua tese, defendida em 1975:

Por me reconhecer numa posição mais tradicionalista que de vanguarda, preocupo-


me com certos aspectos culturais da formação do homem sobretudo em nosso
tempo, denunciado como sendo um tempo de crise. E, por acreditar ainda na
literatura como veículo essencial para o desenvolvimento da imaginação criadora,
bem como para a perpetuação de valores fundamentais, tal preocupação, como não
poderia deixar de ser, volta-se, e de maneira incisiva, para o ensino de literatura
(ROCCO, 1981, p. 3. Grifos da autora).
75

Nos anos 1980 essa sensação de crise ecoa nas pesquisas de pós-graduação. Isso pode
ser observado por Ana Cristina Champoudry Nascimento da Silva (2012), ao analisar a
produção de dissertações sobre o ensino de leitura na referida época :

A referência à escolarização da leitura aparece de modo mais evidente, nos textos


das dissertações, na indicação de um descompasso entre o ensino de leitura na escola
e as práticas de leitura socialmente valorizadas (SILVA, 2012, p. 64).

Vemos se delinear uma espécie de conflito no interior da própria disciplina em função


da expansão do seu ensino. Por um lado, existe a nova realidade educacional, marcada pela
presença de diferentes grupos sociais na escola, dos quais alguns nunca haviam tido a
possibilidade de acessar o ensino secundário. Tais grupos chegam à escola com
representações diversas a respeito do livro e da leitura, por vezes contrastantes com o padrão
escolar. Por outro lado, existem novas diretrizes curriculares que procuram abarcar esses
diferentes contingentes na escola. Nos currículos paulistas, essa discussão ocupa um espaço
de destaque entre 1986 até 1993, principalmente por meio da tentativa de compreensão do
aluno secundarista:

A criticidade latente dos adolescentes se choca com as concepções carregadas de


estereótipos cultivados, ao longo dos séculos, e reproduzidos através de critérios
nem sempre suficientemente explicitados, muitas vezes incoerentes e sem
sustentação teórica (SÃO PAULO, 1993).

O confronto entre as ideias cristalizadas e o aluno crítico abre espaço, na visão


curricular, para o contraditório na sala de aula, o que torna importante a comparação entre o
conhecimento dos alunos ou sua bagagem, na formulação de 1986, e o saber da crítica
literária. Nesse movimento, pode-se admitir a relativização de certos conceitos, uma vez que é
preciso dialogar com o novo aluno do ensino médio, o que leva os docentes à necessidade de
reconhecer que a verdade não existe, o que é “[...] difícil e doloroso para nós professores”
(BRASIL, 1993, s/p).
As modificações vividas na disciplina e evidenciadas nos textos curriculares fazem
com que, ao se buscar referências para a constituição das aulas, as professoras lidem com
sentidos contrastantes, conhecidos em seus períodos de escolarização, na formação acadêmica
e escolar, como ficará mais evidente nas seções a seguir. Nesse caso, as funções do texto, as
relações com a história da literatura, o papel de formação expressiva ou da cultura geral estão
76

em jogo como estruturas cognitivas a serem mobilizadas pelas professoras, o que pode dar
origem a situações escolares como aquelas descritas no início desta seção.

2.1.2. O Estado e a produção de um sentido para a leitura de obras literárias na escola

Para compreendermos as características da disciplina e os elementos que ela oferece


para a configuração de dada cultura escolar, é importante realizar sua retomada histórica.
Assim, ainda que de maneira sucinta, veremos como o desenvolvimento da disciplina traz
consigo algumas práticas cristalizadas no cotidiano e que constituem estruturas cognitivas às
quais as professoras recorrem de acordo com as representações construídas do ensino de
literatura.
Segundo Clecio Bunzen (2011), pode-se datar o nascimento da Língua Portuguesa em
1757, por meio da carta régia de 12 de setembro, que obrigava o ensino da língua portuguesa
europeia aos indígenas e impedia que estes últimos falassem a sua língua na colônia. Assim, a
partir da segunda metade do século XVIII, a língua portuguesa passa a ser utilizada nas
disciplinas de Latim, retórica e Poética, disputando espaço com o latim, então a língua
privilegiada no currículo jesuítico. Apenas com a Independência torna-se obrigatório o ensino
de língua por meio do português, que se tornou muito importante na formação dos setores
burocráticos e intelectuais brasileiros. No secundário, a entrada da língua portuguesa e da
literatura se dá de forma mais lenta.
Com relação às práticas de ensino de Língua Portuguesa, Márcia de Paula Gregorio
Razzini (2000) afirma que elas estiveram muito dependentes do ensino de latim durante o
século XIX e, especialmente, do ensino de gramática, que passa a ser o princípio estruturador
da disciplina. Apenas em 1855, com a reforma Couto Ferraz, o ensino da língua e da literatura
portuguesa se amplia:

A reforma de 1855 marcou uma discreta, porém segura, ascensão do estudo da


língua portuguesa e de sua literatura, a qual passou a servir de exemplo do bem falar
e do bem escrever/compor em vernáculo, predicados indispensáveis para aqueles que
se destinavam às carreiras públicas e às profissões liberais (RAZZINI, 2000, p. 43).

Vemos que a língua portuguesa e a literatura vão ganhando importância aos poucos;
apenas em 1930, com a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública, a disciplina
77

passa a ser chamada de Português. A partir desse momento, definem-se objetivos próprios
para o ensino da disciplina e assistimos ao surgimento de uma proposta para o ensino de
literatura associado ao objetivo do ensino de português, a saber:

Proporcionar ao estudante a aquisição efetiva da língua portuguesa, habilitando-o a


exprimir corretamente, comunicando-lhe o gosto da leitura dos bons escritores e
ministrando-lhes o cabedal indispensável à formação do seu espírito bem como à sua
educação literária (BRASIL, 1931 Apud BUNZEN, 2011, p. 896).

Da leitura de textos clássicos e estrangeiros pulverizados nas disciplinas de retórica,


poética e gramática, o ensino de literatura aproxima-se do ensino da língua portuguesa e tem
como propósito a formação do espírito e a educação literária dos alunos. Para atingir tais
objetivos, as atividades sugeridas eram orais, como a recitação de poesia e o estudo do
vocabulário relacionado aos trechos escolhidos, recorrendo-se à gramática apenas em caso de
necessidade (ZILBERMAN, 1996, p. 23). A partir de 1940, a disciplina tem como principal
finalidade a construção de um sentimento nacional: o texto literário deveria veicular valores e,
ao mesmo tempo, constituir um cânone da literatura e da língua nacional.
Com relação aos materiais didáticos, utilizavam-se as gramáticas e as coletâneas ou
seletas de textos. Geralmente versando sobre a literatura brasileira e portuguesa, essas
coleções eram apresentadas integral ou parcialmente e constituíam material de trabalho do
professor com vistas a realizar os exercícios orais ou estudo vocabular. Não existiam, nessas
seletas, orientações didáticas ou exercícios, o que sugere para Magda Becker Soares (2002)
que o professor criava sua própria metodologia de ensino por meio de um conhecimento
profundo da literatura. São exemplos disso publicações como Literatura Luso-Brasileira, de
Francisco da Silveira Bueno (1944), e Língua Portuguesa, de Clovis Leite Ribeiro, Jorge
Felipe, José Lourenço e Valter Wey (1945). Apesar de apresentarem seções de discussão
sobre o conceito de literatura e conceitos gerais sobre os movimentos literários, não havia
orientações didáticas como as existentes atualmente. Esses livros também assumiram como
função a produção do cânone escolar, ou seja, a fixação de títulos e autores que comporiam o
nosso patrimônio literário.
A década de 1960 vê determinada variação no ensino de língua portuguesa e, assim, a
expressão oral, a expressão escrita e a gramática expositiva passam a ser os eixos do ensino.
A literatura cumprirá tanto a função de ensinar a expressão oral, que parte da leitura de textos
escritos, quanto do ensino de gramática, que já começa, na época, a ser reconhecido como
78

mais eficaz quando associado aos textos (BUNZEN, 2011). Essa tendência para a expressão
oral amplia-se à medida que o ensino da língua materna recai na noção de comunicação.
As décadas de 1970 e 1980 vivenciam, de acordo com Clecio Bunzen (2011), uma
discussão em torno dos objetivos do ensino de língua portuguesa e os pesquisadores
acadêmicos passam a exercer cada vez mais influência nesse território. Além disso, constrói-
se um discurso de oposição entre o ensino tradicional de português e outro que se pretende
conforme as necessidades de democratização do país. Estas questões frutificam e, de acordo
com o autor supracitado, o panorama do ensino de língua portuguesa que temos hoje guarda
relação com a visão da disciplina defendida por esses grupos progressistas.
Nos anos 1990 vemos surgir um conjunto de iniciativas que procuram oferecer as
bases curriculares para a configuração do ensino médio de modo a seguir o que foi indicado
na LDB 9.394/96. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio são lançados em
1999 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Assistimos também à criação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que passou a atender o ensino médio apenas
em 2005. Como complemento, o governo lança o PCN+ (2002), que detalha o ensino de
literatura e reforça a possibilidade de trabalho com a história da literatura. Por fim, as
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) são editadas.
Os materiais didáticos também sofrem transformações ao longo desse período. Na
década de 1960, ao lado da expansão do ensino secundário, surgem os livros didáticos nos
quais os textos passam a ser associados aos exercícios, como é o caso de Português através de
exercícios, de Fernando dos Santos Costa e Telmo Correia Arrais (1969). Nesses exemplos,
os fragmentos textuais são acrescidos de orientações, exercícios e atividades (PFROMM
NETO, 1974). Décio Gatti Júnior (2004) sustenta que, a partir dos anos 1960, os livros
didáticos são alvo de inovações no formato e na linguagem de modo a atender às demandas da
expansão escolar. Apesar dessas mudanças terem início na referida década, ainda nos anos
1990 elas continuam a acontecer, incorporando diferentes linguagens artísticas, exercícios e
boxes. Paralelamente a isso, o livro ganha centralidade no trabalho pedagógico, cumprindo a
função de resolver os problemas de investimento na expansão:

Aparentemente, sempre foi cômodo, barato e seguro para o governo, do ponto de


vista político, distribuir livros, pois agindo dessa forma o governo não precisava
investir diretamente nas escolas; agradava aos setores industriais e evitava ter que
agir junto os cursos deficientes de licenciatura oferecidos por boa parte das
faculdades que se espalhavam pelo país à época (GATTI JÚNIOR, 2004, p.200).
79

A associação entre inovações didáticas e as novas concepções curriculares vão alçando


o texto à condição de protagonista do ensino de literatura, seja ele propriamente literário,
seja ele publicitário, jornalístico, entre outros. Como vimos anteriormente, o texto é a base
para a leitura, produção de textos e para a análise linguística e literária (SCHRÖDER, 2013).
Ao comparar os usos dos textos em sala nos anos 1980 e 2000, Marisa Lajolo (2009) destaca
as polêmicas surgidas em torno desse assunto. Inicialmente, a utilização dos textos é criticada
pela artificialidade com a qual eles eram explorados em sala de aula, opinião esta igualmente
compartilhada por outros autores:

[...] esse ensino das propriedades do texto na sala de aula deu origem a uma
gramaticalização dos eixos do uso, passando o texto a ser ‘pretexto’ não somente
para um ensino de gramática normativa, mas também da gramática textual, na
crença de que ‘quem sabe as regras sabe proceder’[...] (ROJO, CORDEIRO apud
SCHRÖDER, 2013, p.204).

Ao acompanhar, em linhas gerais, as configurações da disciplina, podemos observar


duas tendências com relação ao ensino de língua portuguesa. Até a década de 1960,
predomina o estudo da literatura, entendida como um sistema cuja expressão estética poderia
ser identificada (RAZZINI, 2000; SCHRÖDER, 2013). Nesse tocante, a utilização das seletas
e coletâneas, na qual se verifica a tênue presença de exercícios, serviu de base para o
aprendizado da língua e da literatura. Este quadro passará por significativas alterações a partir
da década de 1960, quando se opera o estudo dos usos da literatura, isto é, quando os aspectos
expressivos e suas funções sociais ganham relevo (SCHRÖDER, 2013). Junto aos materiais
didáticos que ampliam a compreensão dos textos, cada vez mais estruturantes das aulas, a
literatura é situada em suas funções comunicativas, assim como outros gêneros textuais. Com
o desenvolvimento do mercado de livros didáticos e as regulamentações estatais, os livros
didáticos ganham centralidade nas aulas e consagram as unidades didáticas com textos e
exercícios de análise literária e gramatical.
É igualmente significativo ressaltar que os materiais didáticos utilizados em sala de
aula são instrumentos de interiorização escolar dos valores associados à leitura (CHARTIER
& HÈBRARD, 1995). Nesse sentido, eles selecionam entre os valores atribuídos às obras
literárias em circulação na sociedade aqueles que serão legitimados pela escola. Ao notar as
diferenças entre as seletas e as coletâneas utilizadas, principalmente, até os anos 1950, vemos
a prevalência de materiais compostos por muitos contos, poemas e excertos de romances que
80

não eram ladeados por exercícios. Assim, esses materiais ofereciam a sensação de inteireza e
continuidade. Conforme avançam as inovações editoriais e as mudanças de concepções
educacionais, os livros didáticos tornam-se cada vez mais fragmentados pela presença de
excertos cada vez menores, boxes com outros textos explicativos ou outras linguagens
artísticas. Consagra-se, desse modo, um tipo de leitura que, ao mesmo tempo que responde às
demandas de transformações social e educacional - ou seja, é marcada pela presença cada vez
maior dos gêneros advindos dos meios de comunicação, de diferentes relações com a
linguagem e as demandas por expansão escolar -, também reforça um mundo literário
marcado pela fragmentação.
A partir das tendências em concorrência pelo ensino de literatura, buscamos situar as
concepções que estruturam as práticas de ensino conhecidas durante as observações de aula.
Ressalta-se a concorrência e a convivência entre as concepções mais aproximadas do sentido
de uso ou estudo da literatura, postas lado a lado em concepções de ensino e na produção de
materiais didáticos. Nesse sentido, não parece haver um consenso em torno dos objetivos do
ensino de literatura.

***

Diante da retomada histórica que buscamos fazer, situamos esses problemas como
bases para a compreensão das tensões observadas em sala de aula. A partir de um passado
glorioso no qual o ensino secundário era pensado como um modo de distinção social pelo
acesso à alta cultura, a expansão desse nível de ensino gerou uma reconfiguração dessa
relação com a cultura, ainda que seu sentido primário permaneça na fala das professoras que
conhecemos, na seleção dos títulos e autores presentes no cânone escolar e na base do saber
legítimo escolar que passou, pelo contato com a cultura, de uma relação desinteressada para o
conhecimento especializado da crítica literária. Desse modo, tem-se um conjunto de ideias
que dão corpo ao que poderíamos classificar como inconscientes escolares, conforme propõe
Pierre Bourdieu (2013a). Logo, questionamentos sobre para quem o ensino médio se destina
legitimamente ou qual seria o saber mais valorizado, ainda que de difícil execução ou
desvalorizados por alunos e professores, norteiam as ações docentes e a organização escolar.
Constituem-se, assim, algumas dualidades, como a visão da leitura de obras literárias na
escola com traços de concepção humanista, capaz de comportar maior diálogo com a
81

bagagem dos alunos desde que sirvam ao aprendizado da leitura estética das obras literárias, a
valorização da leitura estética, como vemos nas OCEM, e a ênfase nos aspectos
comunicativos da linguagem, que fazem com que exista certa incoerência nos documentos.

2.2. Entre ler, escrever e falar: a formação de uma matriz socializadora possível na
escola

Esta seção objetiva acompanhar de que maneira as atividades propostas pelas


professoras Celeste e Valquíria incorporam ideias que podem ser contrastantes a respeito do
ensino de literatura. Ao articular tendências de ensino marcadas por diversas temporalidades,
as professoras tornam práticas estruturas cognitivas, no sentido proposto por Pierre Bourdieu
(2013a), criadas ou avaliadas pelo Estado. Nesse sentido, a partir de alguns verbos – ler,
escrever e falar –, procuraremos dar a ver práticas de ensino como ações resultantes das
representações criadas pelas professoras acerca do ensino de literatura (CHARTIER,
1991a;1991b). Veremos, assim, os primeiros passos da construção de uma matriz
socializadora escolar possível pela ação de produção de um currículo no contexto da sala de
aula (SACRISTÁN, 1998).

2.2.1. Compreender e criar: a elaboração das aulas pelas professoras

As aulas de Língua Portuguesa, situações nas quais um currículo se concretiza, têm


como articulador de suas ações os professores. A partir das possibilidades materiais oferecidas
pelas escolas, das representações que têm dos alunos, dos fragmentos curriculares e dos livros
didáticos, Valquíria e Celeste constituem os tempos do ensino de literatura. Nas palavras de
Lucrécia D’Aléssio Ferrara (1993), elas são emblemas que atribuem sentidos ao cotidiano
vivenciado pelos alunos e por elas mesmas. De modo a produzir tal sensação de totalidade e
dar sentidos às aulas, as professoras lidam com diferentes linguagens que lhes permitem criar
as aulas a partir de suas representações sobre estas últimas. Em outras palavras, a partir da
ação de compreender a disciplina, isto é, a conjugação das condições sociais reproduzidas no
cotidiano, analisaremos as criações que Celeste e Valquíria realizaram. Nesse momento, nos
aproximaremos apenas das relações entre as professoras e as demandas estatais, buscando
82

identificar também os ritmos escolares, em especial aqueles característicos do dia a dia das
aulas (CARPENTIER, 2015).
De início, as professoras colocam em jogo o sentido de seus trabalhos a partir das
percepções que têm dos alunos. Como vimos em seções anteriores, Celeste e Valquíria
acreditam que os alunos são pouco preparados para o ensino médio. A professora da Escola 1
percebia os alunos distantes da leitura, pois talvez suas famílias não tivessem esse hábito; já
Celeste compreendia os alunos do EJA como ausentes dos jogos escolares. Diante disso, elas
reelaboram os conhecimentos a serem ensinados a partir da compreensão dos alunos, o que
Celeste torna evidente:

É muito difícil trabalhar com eles. Muito difícil. O problema do EJA é esse: eles
chegam cansados, eles não querem nada que seja difícil, nada que peça muito
raciocínio, eles não querem nada disso. Não tem jeito, eles não querem mesmo. Eles
querem uma coisa assim, uma tarefinha, sabe? ‘Ah, deixa eu fazer uma tarefinha
aqui e pronto. É isso mesmo’. Eu me lembro que quando eu comecei a dar aulas para
eles, eles falavam para mim: ‘Nossa, sua aula é tão fácil, o que você ensina é tão
fácil. A gente não entendia nada do que a outra professora ensinava’. Por quê?
Porque ela dava aula de 3º ano para eles e eu não fazia isso. Eu continuava no meu
processo, sabe? ‘Vamos trabalhar esse texto. O que tem nesse texto? Por que esse
artigo está no singular? Por que a gente faz o plural dessa forma?’ Então eu dava
coisas assim. No fim, eles viam que eles estavam aprendendo alguma coisa, mas era
fácil o que eu ensinava. Na boca deles era isso, sabe? … eu fui facilitando a minha
aula. A minha aula era muito fácil e eles gostavam. Eu consegui até que eles
tivessem um comportamento diferente do que eles tinham nas outras aulas (Celeste).

A professora percebe a necessidade de facilitar o que ensina em função das


características dos alunos. Yves Dutercq (2014) observa que em escolas consideradas difíceis
os professores tendem a reconfigurar os critérios de avaliação ao perceber as dificuldades de
convivência ou de aprendizagem de grupos distanciados da cultura ensinada na escola.

Eu vi quais eram as dificuldades deles. Por exemplo, eu tive aluno no 3º ano que não
sabia segmentar palavras, não sabia separar as sílabas. Por que você separa as sílabas?
Nunca pensou nisso, que tem a ver com a fala. Quantas sílabas eu ponho naquela
entonação, naquela forma de falar? Por que eu não posso colocar um “s” sozinho
naquela linha? Como é que eu vou falar esse “s” sozinho? Ninguém nunca falou isso
para ele ou se falou... Então no 3º ano eu fui falar isso e fez muito sentido na cabeça
dele (Celeste).

O autor chama esse movimento de adaptação contextual e, no caso da avaliação, pode


ser compreendida como a substituição de expectativas de aprendizagem em termos de
aprendizagem para aquelas em termos de “[...] motivação, de relação com o trabalho e de
83

aquisição de confiança por parte dos alunos” (DUTERCQ, 2014, p. 205). Com base nas
afirmações de Celeste, é possível observar que sua estratégia funciona, pois ela consegue
manter boas relações com os alunos.
Afora a identificação com os sentidos da formação diante dos alunos, as professoras
também têm como tarefa a seleção curricular para colocar em prática conteúdos literários.
Nota-se que as principais referências para esse trabalho vêm dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), que constituem fontes para a construção de perspectivas de ensino e de
demandas estatais:

A cobrança vem dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais, então eles mandam
aquele montante em cima dos, do que é necessário para o aluno. Então a gente tem
que condensar isso, trabalhar isso para não prejudicar, de repente ele vai fazer essas
provas ENEM, a prova do Saresp, vai ser cobrado isso, então a gente tem que deixar o
aluno flexível para todo tipo de necessidade que ele tiver (Valquíria).

Valquíria tem uma visão difusa acerca dessas demandas. Os próprios alunos gostariam
de ouvir mais sobre essas questões, demonstrando interesse quando se trata do ensino médio,
o que não parece ser de fato explorado (Uma aluna pergunta para a professora “Por que
nessa escola ninguém falou no ENEM?” A professora responde: “I don’t know. Mas, no ano
que vem, se eu estiver por aqui vocês serão treinados”). O que se evidencia pelo impasse é a
existência do ENEM e das avaliações em larga escala como realidades presentes tanto para
alunos quanto para a professora. Ainda a respeito do PCN, ele também foi identificado por
Celeste como uma referência significativa de trabalho:

No segundo ano, não sei, acho que no segundo ano que já vieram os PCN’s, que a
gente começou a trabalhar com aquele currículo que era comum a todas as escolas
do Brasil. [...] [Nós] tivemos formação. Nós fomos, eu me lembro que eu passei, nós
passamos semanas estudando isso. Eles faziam núcleos de estudo. Cada região era
em uma escola. Então naquele dia você não ia para a escola, você ia para os cursos,
essa formação. Teve um trabalho do estado para colocar a gente, para fazer a gente
falar de uma forma parecida. Mas eu nunca mudei muito a minha forma de dar aula,
não (Celeste).

Na interação entre o poder do Estado de impor um perfil docente e suas próprias


referências, Celeste costumava explorar a análise sintática nas aulas de Língua Portuguesa e
fazia negociações com os PCN, gerando um trabalho baseado nos textos, cuja centralidade
recaía no entendimento das palavras. Assim, a partir da relação com a linguagem construída
em função do conhecimento gramatical, que lhe foi caro durante a escolarização, ela rearticula
os saberes impostos pelo Estado na forma de mudanças curriculares:
84

Eu acho que, assim, eu valorizo muito o entendimento das palavras. Eu percebo que,
assim, mesmo quando as crianças sabem ler, elas muitas vezes só estão juntando
sílabas e formando palavras, elas não estão entendendo. Então eu sempre trabalhei
muito em cima do entendimento das palavras. Explicar, por exemplo, expressão
idiomática, que às vezes eles não entendem, mesmo sendo usadas dentro da família
deles, eles não entendem. Você pergunta: ‘Mas o que que é isso? O que significa
isso? ’ Às vezes eles vão para a tradução literal, eles não entendem o sentido
figurado que está ali na expressão idiomática. Eu sempre trabalhei muito assim
(Celeste).

Valquíria não parece ter tido trabalho, como Celeste, antes dos PCN’s e, desse modo,
ela incorporou de maneira mais forte uma certa compreensão do trabalho na disciplina de
Língua Portuguesa:

Selecionava um dos textos, falava das características das trovas e dos trovadores, e
aí eu trabalhava o texto para eles entenderem porquê chegou naquele contexto. Por
que trovadorismo? Por que essa palavra? O que tem a ver? Então, dentro do texto,
puxava toda a história e as ideias e através do texto já puxava a gramática também.
O Quinhentismo também desse mesmo seguimento (Valquíria).

O ponto de partida de suas aulas é o texto, o que também ocorre nas aulas de Celeste, e
a partir dele a gramática, as características dos movimentos literários e a interpretação do
texto poderiam, um a um, ser puxados. A imagem construída pela professora é significativa da
maneira como ela compreende o texto, pois à medida que ela vai puxando ou extraindo os
elementos que pretende explorar, temos a impressão de que os aspectos gramaticais ou
literários são autônomos ou independentes do texto. É importante mencionar que, desde o
final da década de 1970, o texto aparece na Proposta Curricular de São Paulo (1977) como
um ponto de partida para o estudo da literatura, o que vai se aprofundando em outras
propostas paulistas e ganha centralidade com a publicação dos PCN’s. A partir deste marco as
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) passam a refletir sobre o aprendizado
referente ao uso e à circulação dos textos, tendo em vista suas funções sociais e a formação do
leitor literário. Nesse sentido, compreender a centralidade tomada pelo texto nas salas de aula
pressupõe-se pensar nas alterações curriculares, muitas vezes marcadas pelas inscrições
institucionais dos seus formuladores. Deve-se também considerar que a importância atribuída
aos textos consiste em uma criação dos livros didáticos. A partir da década de 1960, à medida
que os livros de gramática e coletânea de textos se misturam, vai se constituindo um formato
85

de livro dividido em unidades com um texto, exercícios de gramática e de interpretação. Uma


vez que o material didático ganha centralidade no cotidiano, sobretudo dos anos 1980 em
diante, ele auxilia na produção do currículo praticado nas escolas:

Trabalhei figuras de linguagem para trabalhar com eles interpretação de textos,


trabalhei literatura, seguindo toda aquela, a literatura, se você observar depois nesse
livro aqui [abre o livro didático e, ao mesmo tempo, continua a responder à
pergunta]. Aí você vai contemplando. Eu comecei por Quinhentismo, falei também
dos trovadores, expliquei para eles [o] porquê Quinhentismo, trabalhei a gramática
dentro do contexto, dentro desses textos, que é de interpretação dentro da literatura
eu puxava a gramática (Valquíria).

Décio Gatti Junior (2004) afirma que os livros didáticos viabilizam a escola em
processo de expansão, o que igualmente se verifica no ensino médio, dado que eles fornecem
os meios materiais para o ensino, assim como tornam evidente aquilo que deveria ser
ensinado. No caso de Valquíria, podemos notar que a forma como ela explicita a sequência na
qual os movimentos literários são explorados esclarece como os livros didáticos são
significativos para as suas aulas. É importante destacar que, ao fazer esse uso do material, a
professora coloca-se em sentido oposto ao Currículo de Estado de São Paulo. No 4º bimestre,
período no qual centramos nossas observações, Valquíria abordava o Barroco, porém o
currículo paulista prevê os seguintes objetivos de ensino para o quarto bimestre do 1º ano do
Ensino Médio:

Esferas de atividades sociais da linguagem


A construção do caráter dos enunciadores
A palavra: profissões e campo de trabalho
O texto literário e o tempo

Leitura e expressão escrita


Estratégias de pré-leitura
Conhecimento sobre o gênero do texto e
a antecipação de sentidos a partir de diferentes
indícios

Estruturação da atividade escrita


• Projeto de texto
• Construção do texto
• Revisão
86

Texto narrativo (foco: leitura)


• Prosa literária: comparação entre diferentes
gêneros de ficção
• Cordel
• Epopeia
Texto argumentativo (foco: leitura e escrita)
Ethos e produção escrita
A opinião crítica e a mídia impressa
Estratégias de pós-leitura
• Organização da informação e utilização das
habilidades desenvolvidas em novos contextos
de leitura

Intencionalidade comunicativa

Funcionamento da língua
Análise estilística: pronomes, artigos e numerais
Conhecimentos linguísticos e de gênero textual
Construção da textualidade
Intertextualidade: interdiscursiva, intergenérica,
referencial e temática
Lexicografia: dicionário, glossário, enciclopédia
Relações entre os estudos de literatura e
linguagem

Compreensão e discussão oral


Discussão de pontos de vista em textos literários
Expressão de opiniões pessoais
Estratégias de escuta

Fonte: São Paulo (Estado). Currículo do Estado de São Paulo Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo. São Paulo, FDE, 2012.

Como vimos anteriormente, a proposta de organização do trabalho se dá a partir de


quatro campos de estudo: Linguagem e sociedade (no sentido de atividades sociais da
linguagem), leitura e expressão escrita, funcionamento da língua, produção e compreensão
oral. Tomando tal enfoque como ponto de partida, a literatura estaria atrelada aos gêneros
textuais; nesse caso, a sugestão seria trabalhar com os textos narrativos, dos quais se
destacariam a epopeia e o cordel. A professora opta por estruturar suas aulas a partir da
87

ordenação fornecida pelo livro didático adotado na escola, a saber, Viva Português: ensino
médio, de Elizabeth Campos, Paula Marques Cardoso e Sílvia Letícia de Andrade, publicado
pela Ática (2010). O livro organiza-se em seis unidades, que abordam as diferentes escolas
literárias e gêneros textuais. Com relação aos conteúdos de gramática, a professora parece se
basear nos exercícios de outros livros didáticos aos quais ela recorre eventualmente, sem
disponibilizar cópias para os alunos, quando passa a lição na lousa. No EJA, as aulas ganham
um sentido diferente:

[Utilizei o conto Cachorro canibal] Porque a Sandra Jorge copiou para mim. Na
verdade, foi por isso que eu trabalhei esse texto e para trabalhar um pouquinho o
narrador, que ele é um tipo de narrador onisciente. Ele fala, expressa o sentimento,
não só o que a personagem fala […] É a professora da sala de leitura. A gente
precisava usar a máquina de xerox da sala de leitura, daí eu virei para ela e falei
‘Xeroca uns textos aí para eu usar com os alunos’. Então ela que escolheu. Se eu
falar que eu escolhi é mentira. Ela procurou para mim (Celeste) .

Para o EJA não são produzidas as apostilas referentes ao programa São Paulo Faz
Escola e, aparentemente, não foram enviados à instituição os livros didáticos destinados a
esse nível de ensino. Desse modo, seguindo a sua opção por aulas organizadas em torno de
interpretação de textos e curiosidades gramaticais, a professora improvisa a utilização dos
materiais. Nesse caso, a regularidade das aulas e a sequência de conteúdos são fragmentadas e
descontínuas. Apesar de não ser possível que se efetive o acompanhamento de um livro
didático, a docente segue a lógica de organização das aulas proposta pelo livro, com unidades
de ensino formadas por texto, sua interpretação e exercícios de gramática.
De volta ao caso de Valquíria, fica evidente que a professora segue a sequência das
escolas literárias descritas no livro didático. De acordo com o trecho acima, trata-se de seguir
uma determinada sequência de atividades, o que evidencia uma certa lógica do trabalho
efetuado, mas não há problematização do que representa aquela sequência de nomes e textos.
Ao falar a respeito das aulas de Língua Portuguesa, Neide Luzia de Rezende (2013) afirma
que, de modo geral, elas costumam ser organizadas pelos professores a partir do livro
didático, preservando-se, assim, uma visão de ensino de literatura baseado na história da
literatura, na perspectiva do nacionalismo literário, com vestígios do positivismo e do
marxismo em sua perspectiva de história. Finalmente, a autora esclarece que:
88

[...] se pretende ensinar algo sobre movimentos estéticos e estilos de época seguindo-
se uma determinada linha do tempo, das informações sobre grandes obras e suas
características numa pretensa relação entre texto e contexto (REZENDE, 2013, p.
102).

O problema parece residir em uma relação conflituosa entre as noções de história, de


história da literatura e suas formas escolares. Alfredo Bosi chama atenção (2000) para as
diferentes concepções de história da literatura postas em prática no Brasil. O autor nos ajuda a
compreender essa tensão:

Uma história da literatura brasileira que pretendesse ser verdadeira, isto é, fiel ao seu
objeto, deveria admitir que os textos dispostos no tempo do relógio não tem nem a
continuidade nem a organicidade dos fenômenos da natureza. Os escritos de ficção,
objetos por excelência de uma história da literatura, são individuações descontínuas
do processo cultural. Enquanto individuações, podem exprimir tanto reflexos
(espelhamentos) quanto variações, diferenças, distanciamentos, problematizações,
rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo (BOSI,
2000, p. 11-12).

Fica claro que os textos literários não contêm em si a sequência temporal, mas sim que
ela advém de interpretações que originam determinadas organizações. Desse modo, pode-se
produzir as interpretações a seu respeito, como aquelas que imprimem uma imagem
nacionalista nesse processo. Nas escolas inexiste uma discussão acerca dos sentidos da
história da literatura e de sua adoção, uma vez que essa organização dos movimentos literários
serve às necessidades cotidianas das professoras diante dos imperativos de criação das aulas
com poucos materiais e, no caso de Valquíria, com pouco tempo para isso. Logo, os livros
didáticos são convenientes diante das condições de trabalho que as professoras enfrentam. Ao
mesmo tempo, a tendência da organização do ensino de literatura por sua história foi
reforçada em muitos currículos, como na Proposta Curricular de São Paulo (1977) e até
mesmo nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1996). Apenas a Proposta Curricular atual
de São Paulo não prevê o ensino de literatura pelo viés dessa sequência temporal, assim como
não foi esta a proposta das Orientações Curriculares para o ensino médio (2006). Houve,
entretanto, um esforço na formação das professoras, como Celeste demonstrou, de acordo
com a perspectiva educacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o que teve impactos
em sua prática e na de Valquíria. Não houve o mesmo esforço de modo a acompanhar outras
propostas curriculares.
89

Ao circular por essas referências, as professoras exercem a tarefa de produção das


aulas, conjugando suas representações sobre os alunos e sobre o conhecimento literário em
face das opções materiais oferecidas pela escola. A seguir, apresentaremos as principais
atividades a partir das quais as aulas se organizam.

2.2.2. Ler, escrever e falar: uma aproximação às aulas

As aulas de Língua Portuguesa seguiam uma lógica descrita pelos alunos da seguinte
forma: “É aquilo que você viu, ela [a professora] passa um tema, a gente faz trabalho em cima
do tema, perguntas, provas, aí outro tema” (Carolina). Essa rotina é seguida a cada novo
bimestre e, no caso das escolas estaduais, vemos quatro bimestres organizando o trabalho
anual. No interior dessa organização, as atividades desempenham papel central, uma vez que
elas têm a função de tornar possíveis os objetivos da aprendizagem de maneira bem-sucedida
(CHERVEL, 1990). Por isso, exploraremos as atividades que estruturaram as aulas
observadas em torno de alguns verbos – ler, escrever e falar – que indicam as práticas ligadas
à formação literária dos alunos.
A Escola 1 tem dois núcleos de atividades que pudemos conhecer: o primeiro se refere
aos questionários e, o segundo, ao trabalho feito pelos alunos, ambos referentes ao Barroco.
Os questionários e as atividades de completar espaços em branco foram mais frequentes para
a abordagem dos textos relacionados ao movimento literário em questão. Nas duas turmas que
acompanhamos, Valquíria utilizou atividades semelhantes No dia 09/11, a professora chegou
à sala e informou que pediria uma atividade avaliativa sobre o Barroco, “[...] que é a arte
imperfeita e [que] tem a ver com a arte literária”. Para tanto foram distribuídos livros
didáticos e a seguinte consigna foi escrita na lousa:

“Atividade para nota

Ler o texto ‘Sermão do bom ladrão (ou da audácia)’, p. 238 e 239.

Responder questões 1 a 3.”

Percebemos que, ao final do bimestre, a professora procura passar mais atividades que
valem nota, de modo a compor a avaliação final. Além da explicação expressa acima, não
existem outras orientações que situem a atividade e o que ela exige entre os objetivos de
aprendizagem do bimestre, tampouco a explicitação do que seria pedido nos questionários.
Nesse caso, os alunos tiveram que responder às seguintes questões:
90

1- Nesse trecho do sermão, o padre Antônio Vieira distingue dois tipos de


ladrão.

A) descreva brevemente cada tipo.

B) de qual tipo ele trata nesse trecho do ‘sermão’? Comprove sua resposta
com um trecho do texto.

2- Após citar São Basílio Magno (em latim traduzido), Vieira aponta as
diferenças entre os dois tipos de ladrão. Copie no caderno o trecho em que aparecem
essas diferenças.

3- Se o padre Vieira se referisse aos dias de hoje, a que grupos sociais


pertenciam esses ladrões que ‘roubam cidades e reinos’, que ‘furtam e enforcam’?

(CAMPOS, CARDOSO, ANDRADE, 2010, p. 239).

No caso da atividade proposta por Valquíria, os alunos fizeram a leitura de um trecho


do Sermão do bom ladrão (ou da audácia) sozinhos, para em seguida responder a algumas
questões. É importante ressaltar que havia três questões que a professora não pediu para que
fossem respondidas, as quais exploravam mais informações sobre o momento histórico no
qual o sermão foi publicado e tratavam de coesão textual. Devemos notar que o texto
escolhido poderia guardar muitas relações com nosso atual momento histórico e tal aspecto
poderia ser explorado com os alunos. Contudo, os alunos receberam apenas as instruções
descritas acima e, a partir daí, fizeram a atividade sozinhos. Alguns até comentaram sobre os
ladrões de hoje em dia, mas isso não foi aproveitado na aula. Chamou-nos a atenção que as
atividades que os alunos deveriam executar abriram uma discussão sobre a construção de
personagens. Contudo, isso também não foi explorado durante a aula. Nesse sentido, parece-
nos que o conteúdo que poderíamos associar ao ensino de literatura se esvazia e a atividade no
modelo pergunta/resposta parece ser o próprio conteúdo da aula; ou, ainda, parece existir a
crença de que os textos e as atividades ensinam por si só, isto é, seriam auto evidentes (“A
professora disse, também, que não teve muito tempo para falar sobre o Barraco, mas que a
atividade ajuda por isso” Observação feita no dia 9 de novembro/ 1º ano A). Ao final da aula,
os alunos começam a entregar a atividade, que é prontamente corrigida pela professora. Uma
situação é significativa para compreendermos os critérios de avaliação da professora. Ao
receber em mãos o primeiro trabalho, olha para o grupo que o fez e diz: “[este] trabalho está
bom, quem fez foi o Léo. Eu já destaco o nome dele na folha porque comigo não tem vez”. A
professora diz que a avaliação, para ela, deve ser integral, deve levar em consideração tanto o
material que eles entregam quanto o comportamento dos alunos.
91

A afirmação da professora nos indica que sua avaliação não leva em conta apenas o
desempenho estritamente relacionado ao assunto tratado na aula - nesse caso, a resposta
correta às questões. Além disso, ela considera um aspecto que poderíamos tomar como mais
subjetivo ou até mesmo moralizante quando fala em avaliação global. Apesar de ter
permanecido sentada em sua mesa, a professora identifica que um dos alunos fez a atividade
sozinho e afirma que dará notas diferentes para o trabalho em grupo. Ao dizer isso de sua
mesa, sem explicar seus critérios, pode gerar nos alunos a impressão de que sua decisão é
arbitrária. Vemos que a docente se baseia em vivências e convicções experimentadas em
situações passadas, o que auxilia Valquíria a construir seus critérios de avaliação sem
evidenciá-los aos alunos. Podemos igualmente pensar que tais critérios resultam de uma
construção conjunta entre os docentes em espaços como a sala dos professores ou em
situações de reunião. Isso demonstra a dificuldade do diálogo em sala de aula e uma
reconfiguração dos critérios de avaliação.
Em outra aula, nova atividade no modelo questionário sobre o Barroco é solicitada,
neste caso, com a ajuda da professora Sônia, que exerce a função de auxiliar. Percebemos
uma mudança significativa na turma, que está mais silenciosa e atenta, procurando realizar o
exercício. Ocorre que existe uma dificuldade específica para a realização da atividade, apesar
desta última ser simples: os alunos deveriam completar algumas frases que caracterizavam o
Barroco. Contudo, como o capítulo sobre o Barroco não foi explorado, exceto pela atividade
feita na aula anterior, eles sentem dificuldade para responder às questões, dado que precisam
ler o capítulo e realizar uma síntese naquele momento. Nesse sentido, ler e escrever são ações
que orientam o trabalho de Valquíria na sala de aula, e por meio delas os alunos devem
aprender sobre os movimentos literários. Uma vez que existem poucas ações de mediação por
parte da professora, parece-nos que as atividades, por si só, dariam conta de explicitar a sua
importância. A abordagem indica que a professora supõe que os alunos sejam capazes de
enxergar sozinhos o que está pressuposto nas tarefas, a saber, o fato de serem esses títulos e
autores ocasiões para a constituição de um patrimônio literário escolar, as atividades como
ensejo para o aprendizado de formas de interpretação a partir de dados da análise literária e
gramatical e as relações entre literatura e cotidiano. Entretanto, todos esses espaços não
parecem ser preenchidos pelos alunos e, assim, como bem afirma Stéphane Bonnéry (2007),
eles perdem pouco a pouco o sentido de sua presença em sala de aula e nas atividades, o que
se torna mais problemático no caso de alunos cujas práticas culturais são distantes daquelas
valorizadas na escola.
92

Outro conjunto de atividades se revela por meio do trabalho sobre o Barroco solicitado
aos alunos, colocando em jogo a leitura e a escrita.

A professora se levanta e os lembra do trabalho sobre o Barroco, ‘para não passar


em branco’. Eles devem contar o marco inicial, as principais características do
movimento literário e falar sobre Gregório de Matos

(Observação feita no dia 4 de novembro, 1º ano B).

Na aula seguinte a professora retoma a explicação sobre o trabalho, que deveria ser
feito para aquele mesmo dia. Como os alunos não o fizeram, ela transfere a entrega para o
próximo dia. Na lousa, são retomadas as orientações para a realização do trabalho:

“O Barroco no Brasil

Características

Marco inicial

Gregório de Matos (Biografia)

Bibliografia”

(Observação feita no dia 4 de novembro, 1º ano B).

A seguir a professora sugere o mesmo exercício exposto anteriormente para a outra


turma, no qual solicita uma síntese das principais características do Barroco. Os alunos
também enfrentam dificuldades para realizar a atividade e, por isso, a professora circula pela
sala com a intenção de ajudá-los. Eles vão fazendo as atividades enquanto lêem o livro
didático pela primeira vez. Na última aula observada, a professora retoma a explicação sobre
o trabalho a partir daqueles que já foram entregues e insiste para que os demais entreguem
também. Para nós, é significativo acompanhar o que a professora fala a respeito dos trabalhos:

“As orientações a respeito do trabalho são retomadas e, a partir da observação


daqueles já entregues, a professora insiste que a parte ‘estética’ do trabalho é
importante. Por isso, os alunos devem comprar papel almaço com pauta. Isso é
importante, afirma a professora, porque um professor pode se lembrar dos alunos
que têm responsabilidade e compromisso. Para ela um professor pode ser perguntado
por um jovem com mais de 16 anos para algum trabalho e eles devem se lembrar que
todos são seres individuais e raros. A seguir, ao pegar um trabalho todo amassado
por ter sido molhado pergunta:
- Se vocês fossem professores, aceitariam isso?
- Sim, claro! – dizem os alunos.
93

- Claro que não! – Afirma a professora. Vocês não podem entregar o trabalho vítima
da enchente da mochila. (toda a sala ri.)
O aluno para quem era a indireta fala alto. Ela diz que ele está se acusando, uma vez
que ela não mencionou seu nome.
A professora explica que eles precisam ser organizados, arrumar suas camas,
manterem responsabilidade com o trabalho.
“- Assim o Brasil vai para frente – diz Maicon com ironia
(Observação feita no dia 11 de novembro, 1º ano B).

Chama-nos a atenção, novamente, que a professora passa de uma avaliação que pouco
considera o processo de aprendizagem dos alunos para, em seguida, ressaltar os aspectos
“estéticos” e “morais”, isto é, a aparência e o cuidado com o trabalho, destacando que isso
poderia beneficiá-los futuramente. Há de se ressaltar, ainda, os sentidos opostos atribuídos ao
termo estético por Valquíria e pelas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006).
No documento, a análise estética das obras literárias enfatiza os aspectos estilísticos da
literatura, ao passo que a professora utiliza o termo para se referir à limpeza, carregando-o de
uma conotação moralizante. Ao mesmo tempo, parece-nos que esses momentos demonstram o
sentido do que a professora ensina para os alunos, vistos por ela como despreparados para o
aprendizado da literatura ou da língua de modo geral. Se o trabalho aborda o Barroco e isso
não entra em questão na avaliação - pelo menos não no momento em que ela discorre sobre
ele -, as atividades configuram para ela uma maneira de moralizar os alunos e prepará-los para
o futuro. Mais uma vez, presenciamos a adaptação contextual das expectativas de
aprendizagem, traduzidas em critérios de avaliação em ação na sala de aula (DUTERCQ,
2014). A reação de Maicon, no entanto, demonstra ironia e a percepção de que há, para ele,
uma inadequação nas afirmações de Valquíria.
Diante disso, os alunos seguem as regras do jogo e executam os trabalhos e as
atividades de acordo com o valor que eles terão. Geralmente eles identificam, pela experiência
escolar, quais são as atividades efetivamente cobradas na prova e só copiam o conteúdo
nessas situações. As atividades parecem ser um simulacro da aula, impressão esta que se
repete quando os alunos comentam sobre o trabalho feito a partir do Barroco:

A gente até fez um trabalho. A gente não aprendeu sobre ele [o Barroco], a gente
teve que fazer um trabalho sobre ele (Mariana).
94

Mariana distingue muito bem a produção do trabalho do processo de aprendizagem,


deixando entrever que o trabalho é apenas uma ação mecânica destinada a cumprir a tarefa
escolar e receber a nota. Até mesmo a visão que ela tem sobre o modo como a professora
propôs a atividade demonstra certo descaso com ele – tanto da professora quanto dos alunos:

O barroco a gente não aprendeu nada sobre ele, a gente só aprendeu isso que eu
estava falando do radical. Sobre o trabalho ela falou assim “pesquisa isso sobre ele”
e já era (Mariana).

Quando a professora falou sobre o trabalho, ela chamou atenção para sua importância
como parte da avaliação e remeteu o trabalho ao Barroco. Não vimos menção à razão pela
qual esse tema foi escolhido, e não outro, e tampouco explicações sobre a forma correta de
fazê-lo. Abaixo temos a fotografia do material que serviu de base para Carolina fazer o seu
trabalho:

Fotografia 1. Material pesquisado na internet pela aluna Camila para o trabalho sobre o Barroco. Registro feito
em 19/12/2014.

As aulas na Escola 2 relacionavam as ações de ler e falar como eixos centrais da


atividade. Apesar de também recorrer ao questionário, Celeste enfatizava as circunstâncias
nas quais intervinha com vistas a realizar as atividades de interpretação de textos. Assim se
sucedeu com a leitura de O amor por entre o verde, de Vinícius de Moraes, seguida da
realização de um exercício do tipo pergunta/resposta. Em um primeiro momento os alunos
foram orientados a fazer a leitura em voz baixa. Eles são instruídos e parecem estar
95

acostumados a procurar e a anotar as palavras desconhecidas. Mais adiante a professora


conversa com a turma, conforme pudemos acompanhar:

A professora se volta para a turma para conversar sobre o texto e pergunta o que são
as palavras em negrito, no vocabulário. Os alunos respondem corretamente e, a
seguir, a professora pergunta se eles têm dúvidas relacionadas a outras palavras.
Surge uma dúvida quanto ao sentido da palavra “Indecomponíveis”. Uma aluna
pergunta se são palavras que não se decompõem. A professora diz que sim e informa
que o prefixo “in” indica a negação. Então ela menciona a palavra “compreensível”
e pergunta o que aconteceria com ela caso fosse incluído o prefixo “in.”

Depois a professora pergunta qual é a diferença entre as palavras “espaçar” e


“espaçamento” que está no minidicionário do texto. Um aluno do fundo da sala
afirma:

- Ela está conjugada.

- Era isso o que eu queria ouvir! Eu não queria ter que explicar, agora é
minha vez de perguntar!

(Observação feita no dia 31 de outubro, 3º ano B).

O momento de conversar sobre o texto após a leitura é oportuno para a professora


abordar outros aspectos gramaticais, como observamos acima. Celeste retoma o prefixo na
construção das palavras e a conjugação verbal. Nesse momento, entretanto, não é o caso de
ensinar o que é discutido ou recuperar o tópico de forma um pouco mais sistematizada. Trata-
se de uma atividade oral que busca pela resposta certa, como Celeste deixa claro: “Era isso o
que eu queria ouvir! Eu não queria ter que explicar, agora é minha vez de perguntar!”. Ainda
com base no texto de Vinícius de Moraes, a professora segue a atividade com alguns
exercícios copiados do livro didático:

1-Qual é a localização do narrador e o que ele observa a partir desse local?

2- Nos 3º e 4º parágrafos o narrador reflete a respeito do futuro dos jovens


namorados. Em sua opinião, o narrador considera que o amor daqueles jovens será
eterno ou não sabe se aqueles jovens continuarão se amando ou se eles perderão o
interesse um pelo outro nos próximos dias?

3-Copie do último parágrafo o trecho que comprova que o narrador gostaria que
seu amor fosse eterno.

Os exercícios procuram chamar atenção para o foco narrativo do texto. Os alunos


devem responder sozinhos às questões, o que é difícil para alguns. Assim, perguntam o que
significa a localização do narrador, pois estão em dúvida entre o local ocupado pelo
96

narrador ou o foco narrativo. Diante dessas demandas, a professora passa para a correção dos
exercícios oralmente, sem anotar as respostas na lousa:

Ela lê a primeira questão e espera as respostas dos alunos. Alguns já se antecipam e


falam que o narrador está observando da janela. A professora pergunta, então, onde
fica essa janela e os alunos vão dizendo: “fica perto ”. “ É como se o narrador
estivesse onde você está e o casal estivesse lá – e aponta para a janela”. Nesse
momento, um aluno fala: “ele está olhando os brotos”. A professora aproveita e fala
que isso ajuda a saber a idade do narrador. Ela pergunta para os alunos como é
possível saber disso. Alguns alunos afirmam que hoje em dia ninguém mais fala
isso. A professora pergunta: “Se fosse hoje, que palavra o autor usaria?” Os alunos
ficam mais agitados e um aluno diz “novinho e novinha”, recebendo todo o apoio
dos colegas de sala. No mesmo momento a professora diz que não, pois “novinho e
novinha não é gíria, é um adjetivo”. Os alunos não se convencem da resposta e
começam a discutir entre eles e o barulho de fala aumenta. De repente uma aluna
fala “gatinhos”, gíria aceita pela professora.
Ao iniciar a correção da segunda questão a professora também pede para os
alunos falarem suas respostas, mas eles titubeiam. Logo a professora percebe que os
alunos não entenderam bem a questão. Ela lê e explica a pergunta, de modo que os
mesmos alunos que responderam a questão anterior dão a resposta certa para essa.
Enquanto a professora corrige, Eduardo tem um suporte para tirar fotos no
celular, conhecido como pau de selfie, e começa a manipular o objeto com seus
amigos. O barulho vai ficando cada vez mais alto e a professora fala que eles
precisam fazer silêncio.
Para responder a terceira questão, a professora pede que os alunos leiam em
voz alto o trecho escolhido para responder à pergunta. Os alunos que conseguiram
encontrar a resposta, a maioria da turma, leem a resposta em voz alta
(Observação feita no dia 31 de outubro, 3º ano B).

Ao terminar de corrigir os exercícios, a professora conversa com os alunos sobre o que


eles conhecem a respeito de Vinícius de Moraes e expressa o que ela mesma sabe do autor:

Eles se lembram do nome, mas não se lembram exatamente do que conhecem. Uma
aluna do fundo da sala se lembra da Garota de Ipanema. A professora confirma que é
uma música dele e começa a declamar o início do Soneto da Fidelidade.
De tudo, ao meu amor serei atento antes
E com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
A seguir a professora passa a cantar Eu sei que vou te amar, sendo seguido por
alguns alunos, que cantam com a professora. Um dos alunos diz: “Cálice”, para os
colegas que estão cantando com ela.
Eu sei que vou te amar
97

Por toda a minha vida eu vou te amar


Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar
Eu sei que vou te amar
A professora logo para de cantar visivelmente emocionada, dizendo que se ela
continuar vai chorar, pois essa música a faz lembrar de seu pai, já falecido, que
cantava essa música com ela. Mas ela diz que tentará levar a turma até a sala de
multimídia para ouvirem a música, mas não garante que conseguirá porque é preciso
reservá-la com muita antecedência
(Observação feita no dia 31/10/2014, 3º ano B).

Tal passagem é bastante significativa pois representa, do nosso ponto de vista, um


momento no qual a professora permite que os alunos conheçam algumas de suas referências
culturais e as significações pessoais que ela estabelece com o conteúdo. Foi importante notar
que os alunos ficaram igualmente tocados ao perceber o apreço da professora pelo autor.

***

Até o momento, a exposição dos dados permitiu-nos construir a sala de aula como um
espaço composto segundo as lógicas estatais, que são reelaboradas de acordo com os sentidos
atribuídos a elas pelas professoras e alunos. A partir das relações objetivamente instauradas
em duas escolas estaduais paulistas, procuramos mapear as tensões envolvendo a leitura de
obras literárias. Situamos, a partir da figura do leitor-leitor, a imagem da boa leitura
construída contraditoriamente nas práticas escolares, nos livros didáticos e nos currículos ao
longo do tempo. A inclusão dessas diversas temporalidades em nossa análise possibilitou-nos
apreender que, como um inconsciente das ações, as professoras tentam se aproximar dessa
imagem da leitura nas escolas, o que se mostra problemático pela ausência de condições para
sua execução, pelas contradições curriculares, resistência dos alunos, entre outros motivos.
Diante desse quadro, a matriz socializadora possível, constituída em sala de aula pelo trabalho
de síntese efetuado pelas professoras, permite a construção das aulas em torno de algumas
atividades que são eixos estruturantes da imagem do ensino de literatura conhecido nas
observações de aula.
As experiências com a linguagem vivenciadas durante as aulas, as quais envolvem a
leitura, a escrita e as trocas orais, dão-se por meio das atividades que procuram ensinar sobre
a literatura e, ao mesmo tempo, formar o espírito do aluno (CHERVEL, 1990). Élisabeth
98

Bautier e Jean-Yves Rochex (1998) em suas pesquisas sobre as experiências escolares dos
alunos oriundos de grupos sociais que não costumavam frequentar o ensino médio, sustentam
que as relações com a linguagem são reconfiguradas. Uma vez que ela é um aspecto
importante para a construção de si, visto que é por meio da fala, da escrita e da leitura que se
dá forma às experiências individuais, aos afetos, aos conflitos, entre outras ações de produção
individual e coletiva. As atividades que procuramos descrever acima configuram uma relação
com a linguagem enquanto objeto de estudo; assim, os textos são oportunos para extrair
aspectos gramaticais, fazer interpretações estruturadas a partir da busca pela palavra correta
definida pelo dicionário ou pelo bom senso escolar. Em função da imagem que se construiu
sobre o sentido da leitura no ensino médio - uma atividade individual e desinteressada -, sua
cristalização em livros didáticos e currículos, reelaborados em função das novas demandas de
escolarização prolongada para todos, encontramos leituras, escritas e trocas orais que se
distanciam dos alunos e até mesmo das professoras. Apesar da porosidade de suas fronteiras e
das dificuldades de sua manutenção, as estruturas cognitivas do ensino médio fazem-se
presentes nas práticas das professoras e, por meio das atividades, são também incorporadas
pelos alunos. Entretanto, essa incorporação não se dá pela oportunidade de reelaboração de si,
das referências pessoais por meio das relações com a linguagem favorecidas pela escola.
Pensando-se a partir das sugestões de Élisabeth Bautier e Jean-Yves Rochex (1998), podemos
dizer que os alunos e, talvez, as próprias professoras –principalmente Valquíria – não
disponham da oportunidade de realizar atividades de leitura espontâneas, originárias de suas
representações familiares, e de adentrar no universo da leitura de obras literárias propostas
pela escola. As relações com os saberes escolares são, consequentemente, bastante
fragmentadas:

É, então né... [fala como quem deixa a entender que não gostou.] Tipo, um livro,
como eu sou péssima em Português eu não sei, eu não entendi direito o que é o
Barroco. Mas pelo que eu entendi eu não gostei muito, não. Tipo, Idade Média e
tal.... Que tem a ver com a Idade Média. A época do Feudalismo. [Pausa]. Gregório
Matos, que foi um escritor Barroco, que eles faziam sátiras das, dos... Em tudo o que
eles escreviam faziam sátiras da sociedade daquela época. Acho que eu não seria,
que não me interessaria, não (Adriana).

Notamos na fala acima uma tentativa de manipulação de um conjunto de palavras


presentes no livro didático e que passam a integrar o imaginário dos alunos: Barroco, Idade
Média, Feudalismo, sátiras, Gregório de Matos. Contudo, essas palavras tendem a ser
articuladas em um discurso que não faz sentido. Ao mesmo tempo que o conteúdo literário se
99

mostra de forma pouco clara, cria-se para os alunos uma imagem de distanciamento em
relação ao conteúdo:

Na verdade, [me lembro de] nada. Tipo, na hora sim, mas agora eu sei que é
uma, que [o Barroco] é um movimento artístico que foi construído no Brasil,
tipo um patrimônio histórico, e é o que eu lembro. Para você ver o quanto
aquilo você tem que fazer para fazer a prova e você nunca mais vai usar. É
isso o que eu lembro (Carolina).

Nas palavras da aluna, o estilo que se convencionou chamar de Barroco torna-se um


patrimônio histórico, algo rígido e bem definido, produzido no Brasil. Carolina não explora os
termos associados ao movimento, como Adriana fez; contudo, ela demonstra outra
apropriação do conteúdo, como algo distante a ser decorado. É importante também discutir o
que as alunas querem dizer ao afirmar que não gostam de Língua Portuguesa ou de Barroco e
que não farão nenhum uso disso a não ser para a prova. A partir do que foi observado nas
aulas e em suas falas, poderíamos pensar que se trata, antes de tudo, de uma reação às práticas
de ensino endereçadas a elas e às aulas das quais participam. A relação com o conhecimento
observada acima também se mostra no aprendizado de outros conteúdos além da literatura:

Tipo, tem que pegar eu não lembro.... Aqui está escrito atividades o radical é o "a”.
Aí tem que falar uma palavra que tenha "a," tipo macaco...aí você tem que escrever
isso (Mariana).

Ao comparar as aulas da Escola 1 com as aulas da Escola 2, parece-nos que a


professora Celeste tem mais sucesso em produzir situações de aprendizagem para os alunos.
As estratégias de leitura oferecidas por ela, a presença constante de textos completos ou
trechos lidos toda semana produzem situações que permanecem na memória dos alunos. Clair
nos mostra seu ponto de vista sobre as atividades de leitura feitas pela referida professora:

Outra coisa que e achei muito importante, quando eu estudei há muitos anos atrás, eu
estou falando da aula de Português agora, quando eu estudei lá em Santa Celeste, a
gente não aprendia a interpretar texto. Eu tenho muita dificuldade de interpretar
texto, hoje, eu aprendi isso nas aulas de Português com ela. Aprendi. Eu não sabia.
Quando eu estudei, a gente tinha o livro e aí vinha a matéria e a gente sabia que
vinha aquele monte de questões, perguntas e respostas, perguntas e respostas e era só
isso. A gente ia ter que estudar para a prova as perguntas e respostas para responder
na prova. Não aprendi a interpretar texto e ela ensinou isso para a gente e eu aprendi
aqui com ela. Eu achei muito importante (Clair).
100

A relação mais próxima mantida com Celeste, com a literatura e as circunstâncias nas
quais podem ler juntos geram mais interesse nos alunos e empatia pelas obras literárias.
Entretanto, não é possível afirmar se isso assegurar para Clair a autonomia para ler e
compreender os textos literários. Se as experiências escolares têm dificuldade para se fazer
presentes e ressignificar representações pessoais, cabe a nós buscar entender como elas se
caracterizam para os alunos e professores de modo a notar as aproximações e distanciamentos
entre eles.

2.3. As fronteiras porosas da escola de ensino médio

As duas seções a seguir têm como objetivo oferecer uma aproximação ao cotidiano
escolar e às características das escolas e das aulas observadas. A partir da exploração do
Diário de campo, apresentaremos as relações estabelecidas entre direção, professores e alunos
com vistas a situar as escolas. Veremos que, em função da necessidade de convivência
escolar, diferentes estilos de vida entram em relação e embate, ao mesmo tempo que as
referências culturais, sobretudo dos alunos, resvalam-se nas relações que estabelecem com a
leitura. Logo, almejamos construir a escola como um espaço de posições no qual conflitos
culturais são efetivados pelas personagens que ocupam seu interior, buscando as
circunstâncias nas quais a literatura se faz presente. Desse modo, as instituições conhecidas
mantêm fronteiras culturais porosas, uma vez que os saberes escolares são negociados em seu
interior em função de interesses diversos e, ao mesmo tempo, a regularidade das aulas
também é negociada entre professores e alunos. Por meio desse caminho, buscamos situar as
aulas e os conflitos observados no âmbito de relações sociais mais amplas.

2.3.1.O dia a dia das aulas de Língua Portuguesa: à procura do leitor-leitor

As relações estabelecidas na escola constituem, segundo Philippe Perrenoud (1995), a


vida daqueles que a habitam durante algumas horas ao longo de anos, e auxiliam na
elaboração de aspectos afetivos e relacionais que formam as personalidades dos sujeitos. A
participação nessas interações faz com que se enquadrem em um modo de vida que extrapola
os objetivos pedagógicos e definem perfis de professores e alunos. De início, quando
101

passamos a frequentar as escolas pesquisadas, efetuamos uma aproximação lenta que nos
possibilitou uma visão geral de seus espaços burocráticos, corredores, sala dos professores até
chegarmos à sala de aula. Desse modo, nos tornamos pouco a pouco mais próximos da vida
construída nas duas escolas.
O primeiro espaço escolar visitado foram as secretarias, cujos funcionários são
encarregados de abrir e fechar as portas das escolas ao exterior, trabalho este realizado por
meio de sistemas eletrônicos de travamento das portas. Esses espaços são o lugar do trabalho
burocrático, onde são armazenados muitos papéis, fichas e cadernos de registro, assim como
panfletos com a indicação de vestibulinhos e vestibulares e avisos de horários para os alunos.
No início, obter autorização para entrar era mais difícil e os ânimos dos funcionários, mais
exaltados, até que a crescente familiaridade com a pesquisadora foi tornando a passagem mais
fácil. Na Escola 1, o acesso aos corredores que nos levavam às salas de aula ou dos
professores nos aproximava dos adolescentes, sempre dispostos em grupos configurados pelo
jeito de se vestir e se comportar, conversando animadamente enquanto circulavam nos
intervalos de aula ou no recreio. Já a Escola 2, que recebia os alunos adultos no mesmo
horário frequentado por nós, tinha corredores mais vazios e silenciosos. Como podemos ver
na fotografia abaixo:

Fotografia 2. Corredor das salas da Escola 1.26/11/2014.

Passando pelo corredor, seguíamos para a sala dos professores ou para a sala de aula.
Durante a permanência na sala dos professores acompanhamos circunstâncias de interação e
troca entre eles, conforme descrito abaixo:
102

Chego 10 minutos antes da aula começar e fico na sala dos professores, onde quatro
professores, dois homens e duas mulheres já estavam. As professoras conversam
sobre um trabalho que estão fazendo com os alunos, mas não consigo identificar do
que se trata. Um dos professores está lendo um jornal e o outro está impaciente, indo
de um lado para o outro, até ir ao computador e começar a ler as notícias na tela
(Observação feita no dia 03 de novembro, Escola 1).

Entre uma aula e outra os professores revelam-se cúmplices, dando dicas sobre como
estão os alunos naquele dia, comentando sobre o que aconteceu nas últimas semanas e
acordando entre eles critérios de classificação das turmas. Era recorrente ouví-los trocar
impressões a respeito das turmas consideradas mais “difíceis” ou informando aos colegas
sobre o humor de uma delas naquele dia. Além dos assuntos relacionados ao trabalho,
observamos que há uma espécie de comércio entre os professores, que vendem alguns
produtos como doces e queijos. Eles se inserem, assim, em um grupo composto pelos colegas
de trabalho que, para Maurice Tardif e Claude Lessard (2014), caracteriza-se por quatro
elementos: a ideia de que a escola é um espaço familiar e partilhado por todos em suas
interações diárias, tornando as questões de seu interior algo normal, natural; a existência de
um espaço de troca de conhecimentos práticos entre os professores, o que ajuda estes últimos
a delinear seus objetivos de ensino; a criação de valores compartilhados entre os docentes,
estabilizando uma ética do que é permitido ou não na relação com os alunos; por fim, o tempo
escolar é visto como algo poroso, pois mesmo nos momentos destinados ao descanso, muitas
vezes os professores precisam realizar atividades relacionadas ao ensino, ou seja, seu tempo
livre é em parte dedicado aos alunos. A construção de um universo familiar e a produção de
conhecimentos práticos por meio desse compartilhamento é evidente, porém mais forte no
caso da Escola 1, uma vez que, na Escola 2, notamos uma sala de professores mais ampla e
com poucas interações entre os professores. É de Valquíria a seguinte definição do grupo de
professores com o qual trabalhava:

A Escola 1 já é um outro contexto, mas também lá é muito bom porque há uma


casualidade com os professores. Os professores se completam, a gente um encoraja o
outro (Valquíria).

Aqui vemos o quanto o grupo de professores configura um pilar importante para o que
diz Valquíria sobre o trabalho cotidiano, reforçando que em sala de aula a identidade do corpo
profissional é um dos elementos utilizados por ela durante o ensino. Opera-se, assim, uma
103

socialização escolar por meio dos colegas de trabalho (ZANTEN, 2014). Essa socialização
também é feita por meio de livros didáticos, cadernos, mapas e informações obtidas pela
internet, como testemunhamos. As professoras sempre carregavam muitos livros didáticos,
cadernos e diários, o que serve de motivo para conversas, leitura e escrita. Não pudemos
notar, nesse lugar e em outras ocasiões nas quais estivemos na escola, a presença de objetos
literários não relacionados ao ambiente escolar. Logo, podemos compreender que a
socialização nesse ambiente se dá pela imersão nos gêneros de escrita escolares e, portanto,
segundo suas características. Nesse sentido, devemos pensar no papel formativo dos livros
didáticos, o que eles representam sobre a cultura escrita, tanto para alunos quanto para as
professoras. O mesmo vale para os livros distribuídos aos alunos no início do ano, pois o kit
composto por quatro livros também foi lido pelas professoras (“Mas em casa eu ganho muitos
livros. Ganho livros porque a gente recebe kits também. Esse O Diário de Anne Frank eu já
tinha lido, voltei a ler. O D.Casmurro eu também li” Valquíria).
Algo semelhante se passa na relação com a direção. Notamos que o grupo de
professores mantém certa distância dos coordenadores e diretores, que ocupam outras salas e
se dirigem até os docentes para dar informes e recados. O distanciamento físico e, sobretudo,
simbólico, fica evidente na passagem abaixo. Fracassadas as tentativas de iniciar a aula, sem
ser ouvida pelos alunos, a professora Valquíria começou a chorar e saiu da sala. Instantes
depois ela retornou e prosseguiu com a aula. Os alunos ficaram muito preocupados e com
medo de serem repreendidos pela diretora, que logo apareceu na sala de aula:

Perto do final da aula, a diretora passa na sala, fica na porta e pergunta se a


professora está bem. Ela diz que sim e a diretora se vira para um aluno: “Fala para
sua mãe que agradeço a cortina para a biblioteca”. A seguir sai sala. Alguns minutos
depois, a aula termina

(Observação feita no dia 03 de novembro, Escola 1).

A presença da diretora funciona como um anticlímax, uma vez que os alunos, cientes
de terem passado dos limites, esperavam pela repreensão. Aparentemente, o caminho da
negociação é preferível ao conflito direto com os alunos. De acordo com Agnès van Zanten
(2014), nas escolas que passaram pela massificação, cujos alunos são considerados mais
difíceis, costuma-se exigir dos diretores que assegurem a paz nas instituições sob sua
responsabilidade. No caso em discussão, notamos que a diretora mantinha muitos conflitos
com os alunos para conter os atrasos destes últimos e a insatisfação com a falta de
104

professores. Nos anos que seguiram o período de observação, principalmente após a


ocupação9, a situação da Escola 1 tornou-se ainda mais conflituosa, pois os alunos que
participaram dos protestos identificaram que a diretora se posicionou contra os seus
interesses. Em 2016, os alunos estavam muito afastados da direção e pediam a saída da
diretora, recorrendo para isso até mesmo a uma pichação do muro em frente à escola. É
possível compreender a ação descrita anteriormente como uma maneira de manter o controle
da situação e evitar uma reação forte dos alunos. Entretanto, a professora parece ter tido
pouco respaldo da instituição escolar e, possivelmente, isso produz a sensação de isolamento
da professora. Na Escola 2, as relações que os professores e os alunos mantinham com a
direção pareciam menos conflituosas, talvez porque a proximidade do habitus de parte dos
alunos às exigências escolares, como descreveremos a seguir, tornasse as relações
pedagógicas e de autoridade mais compartilhadas. No caso dos alunos do EJA, sua relação
com a escola parecia ser menos problemática, pois ali permaneciam menos tempo do seu dia
e, além disso, atribuíam certo valor simbólico à escola, localizada em um bairro valorizado
pelos moradores da região. Aparentemente, esse valor era emprestado aos professores e à
direção.
Nesses espaços assim marcados, além da posição nas relações hierárquicas da escola,
os professores também assumiam suas posições em sala de aula, quando as tensões próprias a
cada instituição se concretizam nas relações pedagógicas. Ao adentrar em sala de aula
encontramos, em ambas as salas, exceto por algum trabalho colado nas paredes, a ausência de
elementos que revelassem alguma identidade entre os alunos e professores que ocupavam
aquele espaço. Tudo ali parecia revelar uma ocupação efêmera, cujos ritos de início e fim são
marcados pelo sinal tocando. Abaixo podemos ver a fotografia da sala vazia da Escola 2:

9
Em 2015, o governo estadual lançou um projeto de reestruturação da rede com a previsão do fechamento de
algumas escolas. Grande parte das unidades que seriam fechadas foram ocupadas pelos estudantes secundaristas
como forma de resistir à reestruturação. Ao final de algumas dicas, a mudança foi suspensa.
105

Fotografia 3. Fotografias da sala de aula da Escola 2. Registro feito em 01/12/2014.

Todos os dias, na sala de aula, acompanhávamos o mesmo exercício dos professores e


alunos que ocupavam suas respectivas posições ao lado da lousa ou nas carteiras. As
professoras geralmente se dirigiam até suas mesas, onde dispunham seus materiais, em geral o
livro didático, o diário de classe, um caderno e um estojo. A professora Celeste costumava
cumprimentar os alunos assim que entrava na sala, já a professora Valquíria entrava andando
muito rápido, sem olhar com mais atenção para os alunos, deixando os cumprimentos ou as
primeiras palavras para depois. Ao conhecer a professora Celeste, notamos uma professora
cuja imagem transmitia autoridade aos alunos. Ela sempre mantinha a postura ereta, a voz
firme e criava um espaço muito distinto em relação a eles. O espaço delimitado pelo entorno
da lousa e de sua mesa eram reservados a ela, onde os alunos não ficavam, exceto quando ela
permitia. Percebemos que a todo momento Celeste reforçava a diferença entre a sua posição e
a dos alunos. Estes últimos tinham por ela respeito e pareciam reconhecer a legitimidade
dessa postura. Em vários momentos a professora reforçava isso, como por exemplo quando
outros professores precisavam transmitir algum recado para a turma. De forma cerimoniosa a
professora dava permissão, exigia silêncio e prestava atenção no que a outra professora dizia.
Não podemos desconsiderar que, nos espaços escolares, o professor é investido da
legitimidade na relação pedagógica instaurada na instituição de ensino. A escola oferece
símbolos que pretendem legitimar tal posição. Ao falar sobre a escola que chama de
tradicional, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron elencam alguns deles:

Soerguido e fechado no espaço que o consagra como orador, separado do auditório,


tanto quanto a afluência o permite (...) o professor, distante e intangível, cercado de
‘afirma-se que’ vagos e assustadores, está condenado ao monopólio teatral e à
exibição de virtuoso por uma necessidade de posição bem mais coerciva que a mais
imperiosa regulamentação (BOURDIEU & PASSERON, 2014, p. 138).
106

Certamente estamos distantes de uma polarização tão rígida entre professores e alunos
e de um domínio verbal tão extensivo nas escolas de ensino médio paulistas. Entretanto, a
representação do professor descrito acima e suas formas de distinção parecem persistir no
modo de pensar de docentes e discentes, e, sem dúvidas, ela é uma das bases da relação
pedagógica, fornecendo, talvez, elementos para a construção do inconsciente escolar
(BOURDIEU, 2013a). A partir de tal representação, a professora Celeste constrói sua imagem
pública ao se apresentar em sala de aula. Se acreditarmos, com Erving Goffman (2002), que
no dia a dia representamos um papel de modo a produzir determinados efeitos em nossos
interlocutores, veremos que a professora Celeste ocupa sua posição na sala de aula e
representa plenamente a autoridade que lhe compete. Parece haver uma coincidência entre o
papel que a professora representa e sua visão da realidade.
Valquíria posicionava-se de maneira diversa em sala de aula. Ela não conseguia
ocupar a posição de autoridade docente, manipulando os símbolos e regras institucionais que
poderiam consagrar sua posição. Parece-nos que o isolamento referido acima e a instabilidade
nas relações com a direção da escola repetiam-se na sala de aula. Constantemente ela tenta
falar sem conseguir ser ouvida, algumas vezes suas propostas de atividade soam um pouco
vagas e, com isso, na maior parte das aulas ela tem dificuldade de fazer seu discurso ser
reconhecido pelos alunos. A título de exemplo, no dia 3 de novembro ela falou sobre uma
proposta de atividade várias vezes, mudou de estratégia e passou a escrever na lousa; depois
entrou e saiu da sala repetidas vezes para buscar os materiais. Ou Valquíria não acredita no
papel que deveria representar em sala de aula ou não detinha as condições necessárias para
isso, diferentemente do que acontecia com Celeste. Em circunstâncias como essa, nas escolas
marcadas por conflitos por conta da expansão escolar, a professora tenta construir as bases de
legitimidade do seu trabalho por meio de uma relação mais próxima aos alunos, ouvindo-os e
conversando com eles, sem recorrer a uma postura mais autoritária. Essa pode ser uma forma
da docente construir as bases para a sobrevivência em sala de aula, a ser explorado com mais
detalhes adiante.

A partir de suas posições e modos de enxergar o trabalho, as professoras ocupavam


suas posições no início da aula e encontravam grupos de alunos bastante diversos. No caso do
3º ano B, situada na Escola 2, os alunos eram mais velhos, conforme descrito no registro do
dia 27/10: “a turma tem alunos jovens, aparentando estar na casa dos 20 anos, mas também
há alguns alunos um pouco mais velhos, com 30, 40 e 50 anos”. Eles conversavam
107

constantemente em voz alta durante a aula, sobretudo um grupo de alunos mais jovens
sentados na fileira ao lado da porta. Ao mesmo tempo, eles seguiam os ritos propostos pela
professora: liam em voz baixa quando solicitados e respondiam às questões em voz alta ou no
caderno quando era necessário. Enquanto realizavam as atividades, conversavam, mexiam no
celular e faziam brincadeiras. A organização dos alunos na sala segue a ordem das carteiras
enfileiradas

Os alunos do 1ª ano A e do 1º ano B, da Escola 1, eram adolescentes com 14 ou 15


anos. Eles se organizavam em grupos de afinidades e assim se mantinham ao longo da aula,
intercalando períodos sentados com momentos nos quais entravam e saíam da sala. Um
exemplo da organização dos alunos em sala é o seguinte trecho das observações realizadas no
dia 4 de novembro:

Um grupo que está na frente da mesa da professora é composto por duas meninas e
um menino. Uma delas copia a lição e as outras mexem no celular. Outro grupo está
no canto direito da sala e é formado por cinco alunos, três meninos e duas meninas.
Eles estão sentados em roda, em cima das carteiras e no colo uns dos outros.
Conversam predominantemente sobre as festas das quais participam. Falam também
sobre os casais, quem está ficando com quem e sobre música. Outro grupo está logo
ao lado da porta e é formado por seis estudantes, todos meninos. Eles brincam e
brigam entre si. Depois de alguns minutos, dois desses alunos passam a copiar a
lição. Vejo que existe um aluno sozinho, no fundo da sala, copiando a lição muito
próximo ao armário da professora. Depois descubro que se trata de um aluno com
muitas notas vermelhas e que passará a frequentar o EJA no próximo ano
(Observação feita no dia 4 de novembro, 1º ano A).

Percebe-se que, enquanto a aula acontece ou no momento em que aguardam por ela,
os alunos se ocupam e encontram diversas formas para realizarem tal atividade. Abaixo
apresentamos um conjunto de excertos que retratam como os alunos preenchem seu tempo:

Enquanto a professora fala, dois alunos estão ouvindo música no celular. A maioria
tem o celular na nas mãos e ficam com o fone no ouvido o tempo todo
(Observação feita no dia 3 de novembro, 1º ano A).

Continuam a fazer o trabalho da aula de Ciências enquanto Marcos canta e dança no


fundo da sala, outros grupos ouvem música nos celulares ou conversam
animadamente em seus grupos.
108

Giovana joga no celular com o som do jogo alto e a professora se levanta da cadeira
e pede para ela desligar o celular
(Observações feitas no dia 12 de novembro, 1º ano B).

Enquanto a professora escreve as questões na lousa, os alunos conversam sobre


diferentes modelos de celulares que acabaram de ser lançados. Também falam se
irão ou não assistir às aulas de reposição
(Observação feita no dia 31 de outubro, 3º ano B).

As passagens anteriores nos mostram que os alunos se ocupam com as atividades e


assuntos de seu interesse durante as aulas. Geralmente falam sobre aquilo que costumam fazer
fora da escola, como ir às festas, celulares e músicas, entre outros. Isso pode acontecer em
momentos oportunos ou não. Percebemos que os alunos criam práticas de sociabilidade e
ações que passam ao largo ou independem das atividades ou daquilo que deveriam fazer como
parte do que identificamos como aprendizagem dos componentes curriculares. Da parte dos
alunos, existe uma espécie de mundo que lhes é próprio, formado pelas relações que
estabelecem entre si. Carlos Rodrigues Brandão (2013), no texto A turma de trás, apresenta-
nos um bom panorama dessa espécie de geopolítica da sala de aula. Partindo da oposição
principal entre os alunos que sentavam no fundão e aqueles que se sentavam na parte da frente
da sala, o autor nos conta a lógica de organização dos alunos:

Em alguns (colégios) a distribuição era aleatória e era neles que, com mais
facilidade, aqueles em que a vocação do prazer costumava ser maior do que o desejo
do estudo, reuniam-se pelas últimas carteiras, às vezes individuais, outras vezes em
duplas. Ficavam então as ‘primeiras’ para os alunos ‘sérios’ e estudiosos, a quem a
proximidade sagrada do professor e do quadro negro era absolutamente
indispensável (BRANDÃO, 2013, p. 95).

Além da proximidade de interesses em torno dos estudos, o autor explica que os


amigos fora da sala de aula também se aproximavam no dia a dia, enfim, muitas são as razões
para que os alunos se reúnam e realizem diferentes transgressões:

Ler livros de sacanagem; fazer desenhos do mesmo teor (tive amigos que foram e
serão por certo, ainda hoje, verdadeiros artistas no ramo), escrever ‘jornaizinhos’
com fofocas e malandragens que circulavam gostosamente entre nós (vocações
promissoras terão começado ali), redigir bilhetes de gozação entre colegas, ou, mais
sérios e às vezes até comprometedoras, às meninas (BRANDÃO, 2013, p. 99).
109

Na oposição entre a turma da frente e a de trás, talvez apenas a sala do 3º ano B possa
se aproximar dessa lógica, já que está organizada em fileiras. Nas salas do ensino médio
regular essa divisão foi excluída, pois os alunos que poderiam ser classificados como do
fundão se misturam entre os grupos; talvez o único local interditado seja em frente à mesa da
professora. Não podemos deixar de observar, assim, que o espaço da sala de aula caracteriza-
se pela ocupação de posições relativas aos professores e aos alunos, sendo que estes criam
submundos dentro daquilo que constitui a sala de aula como realidade social. Tais submundos
parecem variar no tempo e espaço. Se Carlos Rodrigues Brandão falava de jornaizinhos,
bilhetes e desenhos, hoje vemos submundos formados por celulares e tudo aquilo que
oferecem, especialmente as músicas, os jogos, as redes sociais e o whatsapp. Em torno dos
símbolos em circulação nesses ambientes os alunos vão produzindo suas formas de habitar a
sala de aula e estabelecendo um ritmo para as aulas, isto é, as pausas, retomadas do conteúdo,
conversas sobre assuntos diversos, entre outros.
As relações objetivas instauradas na sala de aula são fruto da interação entre
professores e alunos conjugando suas referências culturais diante dos ideais de formação que
produzem a cultura escolar. Configuram-se, desse modo, as fronteiras relativas aos saberes
válidos nas escolas, pois diferentemente de outros momentos nos quais a escolarização se
dava por meio de uma cultura comum compartilhada por quem conseguia acessar o ensino
médio, vê-se agora a negociação em situação de aula (ZAFFRAN, 2006; NOVOA, 2014).
Entretanto, não podemos desconsiderar que tal cultura tem algumas especificidades, pois ela
está situada em um espaço e grupo específicos. Como procuramos descrever anteriormente, os
alunos do ensino médio regular fazem parte de camadas mais pobres da população paulistana
e residem em bairros periféricos das zonas norte e sul da cidade. Entre os elementos que
parecem caracterizar esse grupo, podemos citar a relação que os jovens estabelecem com a
música. Isso não é surpreendente, pois autores que se dedicam a pesquisar a juventude
ressaltam a música como um dos elementos de construção das identidades dos grupos jovens
(SPOSITO, 2000; MARTINS, CARRANO, 2011). Durante as aulas, os jovens costumam
ouvir música, cantar e dançar durante as aulas, demonstrando sua proximidade com tal
universo. Entre os estilos musicais identificados, notamos que o funk é o que mais escutam
durante as aulas. A opção por determinados estilos musicais articula as práticas de
sociabilidade, pois os alunos encontram-se aos finais de semana nos bailes que tocam seus
estilos musicais prediletos. Além disso, a opção pela compra de revistas, livros, acesso a sites
110

e blogs também tem como norte a busca por informações dos artistas preferidos. Tais
referências culturais são levadas para a sala de aula nos modos de se comportar, se vestir, de
construção do vocabulário etc.
A produção dos alunos segue a lógica da cultura própria aos adolescentes, tanto na
Escola 1 quanto na Escola 2, uma vez que muitos jovens frequentam o EJA e também
impõem sua cultura em sala de aula. Como ponto de partida, é importante buscar uma
definição do que seria a juventude, momento da vida pelo qual passa a maior parte dos alunos
conhecidos durante a pesquisa. Concordamos com Angelina Peralva (2007) quando afirma
que a divisão da vida em fases é um fato da modernidade e, ao lado de tal divisão, criam-se
representações acerca de todas elas, como a infância, a idade adulta, a velhice e a juventude.
Juarez Dayrell (2007) afirma que a juventude é uma condição social e também uma
representação sobre ela. Nesse sentido, as compreensões de juventude podem variar segundo
critérios como “[...] condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades
religiosas, valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, entre outros aspectos”
(DAYRELL, 2007, p. 157). Além desses elementos, há de se considerar que a juventude é
construída em um momento marcado pela globalização, o que produz um ambiente específico
de produção da juventude, quando padrões culturais, modos de se vestir e agir circulam com
maior velocidade pela nossa sociedade (MARTINS & CARRANO, 2011).
De modo especial nas salas de ensino médio regular, os ritmos e interesses dos alunos
desempenhavam um papel muito importante na organização da rotina das aulas de Língua
Portuguesa. A partir dos espaços oferecidos pelos professores ou impostos pelos alunos, estes
últimos davam mostras constantes de seus interesses. Nesse sentido, temos a impressão de
que as culturas juvenis, com suas formas de sociabilidade e entretenimento, faziam-se
regularmente presentes em sala de aula. O principal elemento que se fez notar foi o funk,
talvez porque as músicas e as danças geradas por ele causavam incômodo às professoras e a
alguns alunos. Esse era o ritmo musical predominante durante as aulas, como podemos notar
no excerto abaixo:

Ao terminar de escrever nas três partes em que dividiu a lousa, a professora apaga a
primeira parte e recomeça a passar a lição. Uma aluna pergunta à professora se o
Largo da Matriz é longe. A professora diz que não. Então o grupo que fica no canto
esquerdo da sala recomeça a conversar e fala sobre o baile funk que vai acontecer no
Largo da Matriz. Outra aluna fala que não vai ao baile funk, que existem outras
coisas além disso
(Observação feita no dia 04 de novembro, 1º ano A).
111

Carlos Henrique Martins e Paulo Carrano (2011) afirmam que os jovens têm um
espaço relativamente grande para constituírem uma identidade cultural própria, que passa ao
largo do “mundo dos adultos”. Segundo os autores, por conta do rápido processo de
globalização, que força vínculos internacionais ou de diversos níveis locais, tais identidades
são marcadas por escolhas de diferentes referências com as quais pretendem construir suas
identidades. O espaço da cidade é propício para o desenvolvimento de práticas culturais que
tornam significativos, do ponto de vista da cultural, seus territórios. Em torno de tais lugares,
podem-se desenvolver diversas identidades de grupo. Como afirma Marília Sposito (2000), as
práticas em torno da música são bastante significativas para a produção de sentidos dessa
identidade juvenil. Martins e Carrano (2011) afirmam:

A música – elemento importante da cultura juvenil – apresenta-se, assim, como


aglutinadora de sociabilidades e, por isso, permitiria aos jovens a possibilidade de
participação e atuação efetiva nas questões relacionadas com a sua comunidade e
como interlocutora com determinados setores da sociedade civil
(MARTINS&CARRANO, 2011, p. 45).

Os exemplos que podemos extrair das observações em sala de aula mostram que o funk
é bastante representativo das práticas culturais dos jovens alunos. Em um trecho citado acima
os alunos combinavam de se encontrar em um baile que aconteceria no Largo da Matriz, no
bairro Freguesia do Ó; o funk também poderia ser vetor de discussões sobre temas de interesse
dos alunos, como aqueles relativos aos comportamentos sexuais:

Quando os alunos terminam a lição, a professora dá visto com carimbo em seus


cadernos. Ela também circula pela sala para que os alunos façam as atividades. Uma
aluna, Jaqueline, canta enquanto copia a lição: “Dá uma empinadinha”, “Beijo na
boca é coisa do passado, a moda agora é namorar pelado”. Enquanto isso a
professora está circulando pela sala para ver quem fez a lição
(Observação feita no dia 5 de novembro, 1º ano A).

A primeira música, de Mc Roba Cena, e a segunda, do Furacão 2000, sugerem a


sensualidade e parecem ir ao encontro de um tema de grande interesse para os alunos. Ao
levar o tema da sexualidade para a sala de aula, os alunos procuram transgredir as regras
escolares e, com isso, tensionar as fronteiras da escola:

Os alunos estão agitados conversando sobre um assunto referente ao comportamento


sexual de uma menina. Um grupo de alunos, no canto direito da sala fala
insistentemente sobre essa menina, recriminando o modo como ela se mostra “fácil”
para os meninos.
A sala está mais silenciosa do que na semana passada. Um aluno entra na sala e fica
dançando
112

(Observação feita no dia 3 de novembro,1º ano B).

A mediadora da escola bate na porta e procura por um aluno chamado Rafael. A


professora vai até a porta e conversa com a mediadora. Os alunos vão fazendo as
atividades e alguns deles se levantam e começam a dançar no meio da sala. Então
um grupo do fundo da sala começa a cantar para os outros dançarem.
Continuam a fazer o trabalho da aula de Ciências enquanto Marcos canta e dança no
fundo da sala, outros grupos ouvem música nos celulares ou conversam
animadamente em seus grupos. De sua maneira, os alunos estão organizados em suas
carteiras, nas rodas de conversa ou ouvindo música
(Observação feita no dia 11 de novembro,1º ano B).

O funk como transgressão começa a ganhar contorno por meio de danças e cantos fora
de hora, e sua força reside exatamente em ser uma prática cultural muito mal vista na escola.
Os alunos sabem que esse estilo musical é reprovado pelas professoras, e com base nisso
parecem criar um jogo de provocações. Como sabemos, apesar de existirem bailes funk desde
a década de 1970 no Rio de Janeiro, é a partir de 1990 que eles ganham maior popularidade,
sobretudo entre os jovens que viviam em comunidades. George Yúdice (2013) afirma que nos
anos 1990 a música que representava a classe média branca carioca e paulista era o rock e o
pop nacional e internacional, ao passo que os pobres não brancos se articulavam em torno do
rap como forma de expressão, no caso paulista, e do funk, no caso carioca. O antropólogo
afirma que o funk é uma espécie de resposta dos jovens moradores das favelas e das periferias
cariocas ao modelo de democracia surgida após o impeachment do ex-presidente Fernando
Collor (YÚDICE, 2013). Enquanto era praticado por excluídos sociais, o funk foi concebido
pela crítica musical e mesmo pelos rappers como uma prática pouco política e muito alienada,
criando-se uma representação do funk e do funkeiro como inaceitáveis. Com uma espécie de
decadência do rap em São Paulo, o fenômeno do funk ostentação trouxe o ritmo musical e o
estilo de se vestir para a cidade.
No que se refere aos nossos dados, interessa-nos evidenciar que a cultura funk, muito
presente durante as aulas, representa mais do que a música. Em tese sobre a zoeira em sala de
aula, Alexandre Barbosa Pereira (2010) demonstra que o funk representa um conjunto de
práticas associadas à cultura de massa, à posse de carros e aparelhos celulares, entre outros,
que se relacionam a um modo de vida das periferias de São Paulo. Nesse sentido, ele articula
grupos de jovens ao redor desses interesses ou produz estranhamentos entre eles pela
identificação do funk ao crime, por exemplo.
É igualmente importante mencionar que os aparelhos eletrônicos, sobretudo o celular,
trazem para o espaço da sala de aula outros gêneros de escrita, caracterizados pelas formas de
113

organização da linguagem do whatsapp e das redes sociais, utilizados com frequência pelos
alunos. Vemos aqui outro ponto em que as fronteiras escolares são tensionadas, pois, como
visto anteriormente, os currículos escolares e os livros didáticos, apesar de terem ampliado os
gêneros explorados na escola, não consideram ou legitimam as práticas de escrita virtuais.
Nesse sentido, os alunos parecem atribuir menos valor à cultura literária conhecida nas
escolas, situação também percebida por Alexandre Barbosa Pereira (2010) nas escolas por ele
pesquisadas.
Na Escola 1, o quadro acima se mostra de maneira mais homogênea por conta da faixa
etária semelhante dos alunos. Na sala de aula da EJA, contudo, o ambiente é mais dividido.
Existe um grupo de alunos mais jovens que se assemelha àquele descrito anteriormente,
porém existem os estudantes mais velhos, na faixa dos 30, 40 e 50 anos que, além de se
distanciarem da juventude e dos modos de comportamento dessa fase, também estranham o
modo de ser dos alunos e da organização escolar. Talvez esses alunos tenham vivido uma
experiência de escolarização bastante singular, pois são fruto da expansão do ensino, mas
sentem os efeitos de sua aceleração dentro da escola. Uma vez que eles iniciaram os estudos
nos anos 1980 ou no início dos anos 1990 e retornam agora, mais de vinte anos depois,
sentem os impactos sofridos pelo ensino médio nos anos 1990. Como resultado disso, existe
um estranhamento na sala de aula entre os próprios estudantes. Karina chega até mesmo a
dizer: “[...] a falta de respeito dos alunos não permitia que eles [os professores] pudessem
introduzir alguma matéria e eles, os alunos se comportavam de maneira animalesca”. Para
ela, a forma de agir dos seus colegas de classe é semisselvagem, o que impede que a aula
aconteça.
Além do conflito entre os estudantes, os adultos também se veem diante de padrões de
formação que parecem ter mudado ao longo do tempo. Assim, eles costumam estranhar as
variações na concepção de autoridade docente e não entendem o que, para eles, parece ser
uma certa permissividade dos professores com a indisciplina dos alunos. Adriana Dias de
Oliveira (2015), ao estudar a autoridade docente no ensino médio, sustenta que a autoridade
atualmente não se baseia em uma ideia rígida, como em outros momentos, mas sim em
critérios móveis e instáveis, fruto das características das relações sociais na modernidade. Os
alunos mais velhos, contudo, por terem vivenciado outra experiência de escolarização,
estranham as características da sala de aula tal como a conhecemos.
Outra faceta deste estranhamento é a verificação de outros padrões educacionais com
os quais os alunos adultos tiveram que se deparar. Um exemplo disso é dado por Clair: “Eu
achei ruim porque a gente não consegue fazer uma prova aqui, fazer uma prova séria”. A
114

seriedade parece ser a síntese do que faltou, de modo geral, para todos os alunos adultos, que
esperavam um professor com mais autoridade para impor disciplina na classe e que, ao
mesmo tempo, transmitisse conteúdos a serem aprendidos e verificados por meio de uma
prova. Parece haver, assim, a mistura entre um modelo de escolarização marcado por maior
rigidez e as experiências de escolarização vividas atualmente.
É importante ressaltar que a convivência de culturas diversificadas na escola é
igualmente desafiadora para as professoras. Durante as entrevistas, elas buscam demonstrar
que mantêm uma prática de leitura semelhante àquela valorizada na escola, representada pela
imagem do leitor-leitor. Efetivam, desse modo, a desvalorização das culturas que se
distanciam do que é considerado o padrão escolar. Contudo, as entrevistas permitem entrever
que elas próprias se aproximam de objetos literários mais variados. Os best-sellers convivem
com a leitura de fragmentos jornalísticos, matérias sobre educação, enfim, relações múltiplas
com as obras literárias. Podemos notar o quanto as professoras procuram e precisam modelar
suas trajetórias com vistas a se tornarem as profissionais que a escola e os documentos legais
definem, apesar dessa posição ser difícil (LAWN, 2000).
A despeito dos embates, alunos e professores devem conviver em um mesmo espaço
no tempo delimitado para a aula, o que gera alterações em sua regularidade, bem como no
estabelecimento de fronteiras entre ela e as referências externas. Após o processo de expansão
e massificação do ensino médio, observa-se que as referências culturais e a regularidade das
ações funcionam segundo o ritmo das interações e negociações possíveis entre professores e
alunos. Joël Zaffran (2006) afirma que isto se deve ao fato de que a escola perdeu a
legitimidade que detinha como lugar por excelência de formação do cidadão, segundo uma
ideia de cultura comum compartilhada ao menos por aqueles que conseguiam chegar ao
ensino médio. Vemos uma fronteira porosa marcada por diferentes estilos de vida em
convivência na sala de aula.

2.3.2. A expansão do ensino médio e a configuração dos conflitos entre professores e alunos
em sala de aula

A configuração da escola descrita anteriormente é, em parte, resultado das políticas de


expansão vivenciadas pelo ensino médio desde meados do século XX. A partir dessa lógica,
por um lado, atendeu-se às demandas por escolarização com a criação de vagas em
instituições despreparadas para atender o ensino médio; por outro, com a produção de uma
115

rede de ensino com ramificações nas quais condições variadas de ensino são proporcionadas,
ocorre a potencialização dos possíveis conflitos entre professores e alunos. Como sabemos,
esse processo teve seus primeiros momentos em meados do século XX. A demanda da
população por vagas e os movimentos em defesa da democratização do acesso ao ensino
secundário produziram momentos de expansão ao longo dos anos. Dos anos 1940 até a década
de 1970, a quantidade de vagas era insuficiente para a demanda e, assim, as pressões da
população levavam ao seu atendimento por meio da ação dos poderes locais. Contudo, o
sentido dessa expansão foi dado pela ausência de um projeto voltado para o ensino médio.
Assim, as escolas foram criadas em municípios com pouca demanda, os prédios nem sempre
estavam preparados para esse nível de ensino e não ofereciam vagas suficientes para a
necessidade que se tinha (SPOSITO, 1984; BEISIEGEL, 2006). Essa tendência de expansão é
enfatizada na década de 1970, quando a lei 5.692/71 tornou o 2º grau etapa subsequente ao 1º
grau. Assim, as matrículas tiveram um aumento muito significativo: 1 milhão e 700 mil
alunos passaram a frequentar esse nível de ensino em 1970. Contudo, Ana Paula Corti (2015)
chama a atenção para o fato de que essa demanda foi atendida majoritariamente pela rede
privada. Este perfil de expansão vai sofrendo significativas alterações nas décadas seguintes.
Já em 1980 as redes estaduais se tornam predominantes no atendimento aos alunos do ensino
médio, muitos deles trabalhadores que estudavam no período noturno (CORTI, 2015). Ocorre
que o movimento realizado pela rede estadual paulista, para dar conta da nova demanda por
matrículas, foi pouco organizado e seguiu as necessidades impostas pelas pressões sociais,
mantendo a tendência de criação de escolas improvisadas para o ensino médio. Como
consequência, cria-se a circunstância de convivência entre diferentes grupos sociais na escola.
A educação de adultos na década de 1970 é marcada pela criação da Fundação
MOBRAL, uma iniciativa governamental para a erradicação do analfabetismo entre pessoas
de 15 a 35 anos. Os cursos foram criticados por serem aligeirados e não alfabetizarem os
alunos, ensinando-os muitas vezes a apenas decodificar palavras (OLIVEIRA & SOUSA,
2013). O MOBRAL teve fim apenas em 1985. Com a nova Constituição de 1988 o Estado
amplia a definição de sua responsabilidade diante da EJA, assegurando a oferta do ensino
fundamental mesmo a quem não tivesse a idade própria (BRASIL, 1988).
Ao longo das entrevistas, vários depoimentos de professoras e alunos davam conta de
explicitar os conflitos e estranhamentos vividos entre eles. A partir dos diferentes estilos de
vida presentes em sala de aula, exemplificados ao longo do capítulo, foi recorrente a
observação de queixas de professores na direção dos alunos e destes em relação aos colegas:
116

O pessoal só sabe ouvir funk, gostar de funk, saber fazer aquelas danças ridículas e
aquilo é a vida deles. Se você não gosta você não é a mesma coisa que eles (Luana).

Apesar da presença do funk parecer hegemônica no espaço da sala de aula, não


poderíamos realizar tal afirmação e tampouco dizer que todos os alunos preferem esse estilo
musical. Conforme o trecho citado anteriormente, uma das alunas diz que “existem outras
coisas além disso”. Sua fala indica a existência de um tensionamento no próprio grupo de
alunos e procura demonstrar um distanciamento bastante marcado entre ela e os outros,
produzindo até mesmo a exclusão ou a inclusão dos colegas em função disso. A organização
em torno de grupos faz parte da cultura juvenil e ela parece ganhar importância ao evidenciar
uma tensão entre os próprios alunos encerrados na mesma sala de aula. Utilizando a imagem
do funk, Luana marca novamente sua diferença em relação aos outros:

Não pensam, tipo, ‘ah eu quero estudar’, eu quero comprar minha casa logo, com 20
anos eu quero comprar meu carro, com 27 eu quero fazer um intercâmbio, quero
morar fora. Não, eles pensam ‘vou para o baile funk, vou comprar o meu tênis de
mil parcelas de R$2.000, 00 e está tudo numa boa’ (Luana).

O trecho acima torna mais evidente que a distância que separa os grupos reside na
oposição entre estilos de vida e perspectivas futuras. O que Luana recrimina são as formas de
habitar a sala de aula, fruto de um modo de vida representado pelo funk, que parece, de sua
perspectiva, não ter futuro, restringindo-se à espera por um trabalho pouco valorizado, que
remunere o suficiente para manter a recreação do final de semana e a aquisição de símbolos
de ostentação do funk, como o tênis caro, o boné e mesmo o carro, que também é seu objeto
de desejo. Amanda parece se construir como alguém que, por meio da escola, almeja
ascender socialmente, morar fora do Brasil, comprar uma casa e um carro. Tal opção parece
se estender para suas escolhas musicais. Ela e outras colegas entrevistadas dizem gostar de
ouvir Luan Santana, cantor de outro ritmo bastante popular, o sertanejo universitário, que
produz músicas românticas.
Todos esses exemplos nos sugerem que a sala de aula de Língua Portuguesa, lugar
estruturado em um determinado espaço e tempo, habitado por diferentes alunos e professores,
constitui-se como um espaço de tensão. O embate não se encerra apenas na oposição entre
professores e alunos, mas também entre os próprios estudantes. Isso parece ir ao encontro das
propostas de Pierre Bourdieu (2011), para quem o mundo social funda diferentemente os
117

pontos de vista dos agentes a respeito da realidade. Assim, nos mesmos lugares, como a sala
de aula, podemos encontrar diversos pontos de vista:

É no interior de cada um dos grupos permanentes (vizinhos de bairro ou de prédio,


colegas de escritório etc.), com todos os erros (principalmente de perspectiva),
resultando do efeito de tela as oposições, em matéria de estilos de vida, sobretudo,
que separam classes, etnias ou gerações diferentes (BOURDIEU, 2011, p. 12).

Observamos na sala de aula exatamente este movimento: verificamos a existência de


diferentes pontos de vista que fundam representações daqueles identificados como os outros,
sejam eles professores ou alunos. Acreditamos que as salas de aula aqui abordadas colocam
no mesmo lugar diferentes posições do espaço social que se confrontam em torno do sentido
da escolarização, dos papéis da escola e dos ritmos e ações possíveis durante as aulas.
Além da expansão do ensino, que produz a convivência de diferentes estilos de vida,
na década de 1990, as novas reformas paulistas ocasionam a produção de dualidades no
interior do próprio sistema de ensino. Naquela década, São Paulo vê uma nova explosão no
número de alunos que procuram o ensino médio, como resultado do que se passou a chamar
de “onda jovem”, ocorrida entre 1991 e 1996. No referido período, as tendências de
diminuição da população jovem brasileira que começaram em 1960 cessaram e houve um
aumento de 2,5 milhões de jovens em nossa sociedade, especialmente na faixa etária atendida
pelo ensino médio (CORTI, 2015). Contudo, a nova demanda poderia ser atingida, em parte,
pela rede privada, o que não aconteceu porque o final dos anos 1980 é marcado pela inflação
alta, provocando a opção dos pais pela troca da escola privada pela pública. Diante deste
quadro, a solução encontrada foi a abertura de cursos noturnos, pois o governo aproveitou os
prédios já existentes que atendiam ao ensino fundamental durante o dia e não suportariam
novas salas no mesmo período; além disso, a quantidade de alunos trabalhadores fez do
período noturno uma boa opção. Ana Paula Corti (2015) afirma que, em 1995, 74% das
matrículas foi feita no período noturno. A expansão do ensino médio de maneira não
planejada e, principalmente, pela ocupação de espaços ociosos das escolas de ensino
fundamental foi gerando mais problemas e uma tendência de dualidades dentro do próprio
sistema. Um exemplo disso ocorre em 1994, quando as escolas de ensino técnico
profissionalizantes, melhor estruturadas que as demais, passaram para o Centro Paula Souza,
produzindo dentro da própria rede uma incoerência: o ensino médio regular com seus
118

problemas de estrutura e organização e o ensino técnico profissionalizante, com caminho de


entrada diferente. Ana Paula Corti sintetiza as desigualdades do sistema:

A busca por qualidade era uma das variáveis da disputa por vagas, pois elas
faltavam, sobretudo, em escolas consideradas de boa qualidade pela população.
Porém esta busca permaneceu subterrânea, e não se converteu em reivindicações. O
discurso da SEE-SP ora negava a falta de vagas, afirmando que o problema era sua
distribuição pelo estado, ora desqualificava a pressão por vagas em escolas
prestigiadas, como uma ação da classe média visando manter seus privilégios, o que
desviou o debate público do que seria, talvez, a questão principal: a desigualdade
crescente entre as escolas da rede estadual, em termos de qualidade. A tentativa da
população de contornar esse fato procurando escolas de melhor qualidade era não só
legítima, como também desejável num sistema de ensino tão desigual. E esta
situação gerava uma concorrência interna à rede estadual. As mais prestigiadas
possuíam corpo docente estável, eram equipadas, e possuíam uma identidade
própria. O prestígio destas unidades circulava entre a população e gerava um
desequilíbrio na pressão por vagas: as escolas valorizadas e tradicionais eram mais
procuradas do que as outras (CORTI, 2015, p. 268).

O quadro acima ilustra a concorrência entre as instituições escolares e uma corrida das
famílias pela matrícula de seus filhos nas instituições de maior prestígio e mais bem
qualificadas. De modo a conter tal movimento e a organizar a rede, o Estado passa a
centralizar as matrículas feitas no ensino médio e a planificar a oferta, ou seja, a gerenciar as
matrículas em função das vagas existentes na rede. À medida que, nas décadas seguintes, o
crescimento da rede organizada pelo Centro aumenta e surge, em 2002, o projeto Escola em
Tempo Integral, as ramificações são ampliadas. Passam a existir o ensino médio regular, em
tempo integral, e as ETECs.
Esse panorama leva à produção de um mercado escolar, cujo principal agente é o
Estado, no qual os diplomas são diferentemente valorizados, o que gera a competição entre os
alunos pelas melhores vagas. Nesse sentido, a construção da vida relacional escolar também
leva em conta a posição ocupada nesse espaço de posições diferentemente valorizadas, como
os alunos e professoras deixam ver. Assim, disputas sociais com base em estranhamentos
culturais, como vimos no início da seção, ganham relevo. Também se ampliam as
concorrências no interior da própria escola, uma vez que, na ausência de uma cultura comum
que articule a regularidade e os saberes a serem ensinados, as negociações e conflitos travados
diariamente colocam os alunos e professores em choque.
No que se refere aos alunos, as reclamações mútuas multiplicam-se. A maior queixa
dos estudantes entrevistados reside no volume das conversas na sala, o que, para eles,
inviabiliza a dinâmica da aula. Karina chega a dizer que os alunos têm comportamento
animalesco. Porém, é a fala de Luana que nos parece bastante reveladora das disputas
ocorridas nesse espaço:
119

Se você não gosta você não é a mesma coisa que eles. Nem isso a escola ajuda:
preparar não só tipo para a gente não ter só uma posição social, um cargo, mas nem
para preparar a gente para viver em sociedade. Aí eu também digo, não é culpa da
escola porque eles tentam, é culpa dos alunos (Luana).

Luana indica que a sala de aula, apesar de ser construída como um grupo
homogêneo pelas professoras, constitui-se, na verdade, como um agrupamento de pessoas
diferentes em seus estilos de vida (BOURDIEU, 2007b). Para Luana, a escola deveria se
ocupar de ensinar os alunos a lidar com essas diferenças para chegarem a um consenso. Outro
ponto importante a ser observado é que a crítica de Luana exposta acima recai sobre a música
ouvida pelos estudantes e, em outro momento, em suas expectativas de futuro. Ao se
posicionar de forma crítica em relação aos seus colegas, Luana evidencia suas expectativas de
futuro, evidentemente um desejo de ascensão social por meio da escolarização. Em sua visão,
os alunos que só sabem ouvir e dançar funk pensam de maneira diferente e tem expectativas
que, do seu ponto de vista, são criticáveis. Mais uma vez, percebe-se a presença de pessoas
com diferentes posições sociais e projetos de futuro confinados em uma mesma sala de aula, o
que torna muito difícil a convivência. Adriana oferece outros elementos para investigarmos a
questão:

O ensino é bom, mas você percebe que ele podia ser melhor, mas tem aqueles alunos
que acabam, que eles não conseguem compreender e eles acabam deixando aquilo....
A gente não tem tempo de aprender o necessário, a gente tem só o básico (Adriana).

Diferentemente da oposição que Luana criou entre ela e seus colegas, Adriana
assume uma posição mais compreensiva da questão. Apesar de também considerar que a aula
é prejudicada pelo comportamento de alguns alunos, ela toca em algo que nos pareceu
importante ao dizer que alguns alunos não conseguem compreender aquilo. De nosso ponto de
vista, aquilo pode ser o conteúdo das aulas e, talvez, o jogo escolar. A necessidade de
compreensão e entendimento aparece em alguns momentos durante as entrevistas (“A falta de
informação, de entendimento sobre uma leitura, realmente atrapalha muito”, disse Karina;
“Tem coisas que eu não entendo bulhufas”, admitiu Camila; “Acho que é assim que se faz
trabalho, não sei”, afirma Paulo).
Diante de vozes tão diferentes, apesar de parecidas, na sala de aula parece ser possível
ouvir apenas as músicas, o funk, as danças e as conversas desses alunos descritos como
animalescos, conforme observado ao longo da pesquisa. Parece-nos que a medida do
distanciamento cultural em face da cultura privilegiada no espaço escolar modula a altura com
que música irá tocar na sala de aula. Se os alunos não compreendem porquê estão sendo
120

apresentados aos textos, às escolas literárias e aos livros, não nos surpreende que um aluno se
pergunte: “Por que eu vou querer saber do Barroco? Para mim não vai mudar em nada”
(Paulo). É evidente que na sala de aula existem os alunos que parecem negar completamente a
cultura privilegiada na escola, mas também aqueles que teriam disposições para se apropriar
daquela cultura, sobretudo por verem nela a possibilidade de ascensão social e, em outros
casos, por admirarem os livros e autores objetos de ensino. O problema que se coloca é como
lidar com uma realidade tão complexa.
No que tange aos conflitos sociais entre professores e alunos, vemos que no espaço
escolar os saberes a serem ensinados são reconfigurados pelas professoras em função da
maneira como os alunos são vistos pela escola e pelas docentes. As tensões vividas pela
leitura legítima de obras literárias são ressignificadas no espaço escolar de modo a demonstrar
os conflitos sociais. Nesse sentido, os alunos são vistos como pessoas cujas relações com a
leitura são pouco favoráveis ao ensino médio:

Eles [os alunos] não têm a cultura de leitura. A família não tem a cultura de leitura.
A maioria dos brasileiros é muito visual, gosta muito de televisão, então não está
incutido esse negócio de leitura. Na minha casa está porque como eu gosto de ler,
minhas filhas acho que me acompanharam e também meus irmãos deram livros
infantis quando elas eram crianças, elas já têm essa prática. A maioria dos alunos
não tem. Mas não deixa de fazer crescer essa vontade neles (Valquíria).

A professora concebe os alunos a partir de uma imagem homogeneizante, uma vez que
ela não pondera a respeito da relação que os alunos possam ter com a literatura, advinda
possivelmente de informações recorrentes em discursos sobre os problemas do ensino de
literatura nas escolas, como a identificação da ausência de cultura literária nas famílias dos
estudantes e o gosto do brasileiro pela televisão, informações vindas de estudos sociológicos e
históricos, apropriadas de modo a dar razões para o pouco sucesso no ensino de literatura. Em
outro momento da entrevista, Valquíria fala sobre sua própria formação pedagógica, quando
seu professor de prática de ensino lhe explicou que “não é para a gente ficar frustrado
quando a gente não atingir 100%. Para dar-se por satisfeito atingindo 60% da sala, que isso
é assim mesmo”. Esses elementos de seu discurso demonstram que, para ela, o ensino de
literatura necessita de alunos que já sejam dotados do gosto e das práticas de leitura,
tornando-os aptos à apreciação dos textos literários, pois parece que isso depende mais deles
do que dela e de suas iniciativas pedagógicas (“Era uma adaptação [de Dom Quixote], mas
ele está mais voltado para o texto original, eu li e ele está mais voltado para o texto integral.
Eles acharam confuso. ‘Ai, professora, eu não gostei’”). A distância cultural identificada por
ela torna difícil o ensino.
121

Não se pode desconsiderar que as professoras enxergam os alunos a partir dessas


inadequações ao ensino médio, porém elas próprias poderiam ser classificadas de modo
semelhantes, como vimos anteriormente. No capítulo 4 exploraremos as especificidades da
posição docente; por ora, importa-nos dizer que em termos de origens sociais, de práticas de
leitura e dos bairros onde vivem, os professores se assemelham muito aos alunos. Porém, pela
lógica de incorporação da profissão docente e da cultura escolar legítima, elas se identificam
como diferentes dos alunos.
Em seu trabalho, as professoras buscam os estudantes e as instituições com quem
possam se identificar socialmente. Em função disso, Celeste gosta de trabalhar na Escola 2,
pois está localizada no bairro onde mora, a Vila Mariana, e tem alunos de quem se sente
próxima:

É uma clientela de alunos que são, na sua maioria, bons, de famílias, assim, que
respeitam a educação. De famílias que respeitam o professor, de famílias que, assim,
o que o professor falar é lei. Entendeu? Isso ajuda muito a gente a trabalhar. Você
sabe que o que você está falando a criança escuta em casa (Celeste).

A relação estabelecida por ela com a Escola 2 é oposta à relação que manteve com a
escola municipal na qual se iniciou na profissão, pois os alunos correspondiam a “uma
clientela que ia [à escola] só para se alimentar, eles não iam para estudar”. Porém, desde
que se mudou para as escolas estaduais localizadas na região da avenida Paulista e para a
escola atual, ela se identifica com o perfil de seus alunos, uma vez que muitos deles são
moradores do bairro em que a escola está situada e, frequentemente, compartilham com a
escola certa visão de mundo.
Nessa lógica de compreensão da realidade, os alunos do EJA com quem convivemos
durante a pesquisa de campo são considerados inadequados, por princípio, para o acesso à
cultura privilegiada no espaço escolar. Ao falar sobre a divisão dos alunos do EJA, a
professora afirma que “é qualquer um em qualquer sala”. A construção dessa imagem dos
alunos demonstra que eles são estudantes fora do jogo, o que se torna mais evidente pela
maneira como a professora organiza as aulas. Segundo ela, os alunos não querem nada que
exija maior esforço intelectual, pois chegam cansados depois do trabalho, por isso ela ministra
suas aulas a partir da leitura de textos e da abordagem pontual de aspectos gramaticais:

Eu me lembro que eles falavam para mim ‘Nossa, sua aula é tão fácil, o que você
ensina é tão fácil. A gente não entendia nada do que a outra professora ensinava’.
Por quê? Porque ela dava aula de 3º ano para eles e eu não fazia isso. Eu continuava
no meu processo, sabe? ‘Vamos trabalhar esse texto. O que tem nesse texto? Por que
esse artigo está no singular? Por que a gente faz o plural dessa forma?’ Então eu
122

dava coisas assim. No fim, eles viam que eles estavam aprendendo alguma coisa,
mas era fácil o que eu ensinava. Na boca deles era isso, sabe? (Celeste).

O ensino de literatura se dava porque o “texto” é sempre o ponto de partida para as


aulas, porém é um ensino mais “leve”, quase destinado apenas a preencher o tempo dos
alunos. Ao falar sobre o que aprendiam na escola, os alunos pareciam identificar essa falta de
propósito das aulas, o que lhes causava muita angústia. Os conflitos a respeito das práticas de
leitura de obras literárias também parecem ter as marcas das disputas entre grupos sociais
postos em relação no espaço escolar e, assim, as resistências ou opções em relação à literatura
parecem ser estratégias de distinção da cultura do outro ou demonstração de insatisfação com
a escola. Nesse sentido, diante das representações que a professora e a escola têm dos alunos,
realiza-se uma seleção da parcela da cultura apresentada a eles e também das possibilidades
de se relacionar com ela. No caso da Escola 1 acontece algo semelhante, porém com
diferentes elementos. A escola se situa em bairro da periferia de São Paulo e, talvez, se
identifique com um grupo de alunos cuja cultura é mais distante da escolar, além de a
professora se reconhecer entre os alunos. Nesse caso, os conteúdos são demonstrados a eles;
porém o conteúdo literário é visto como algo inacessível, pois os alunos não têm, na visão da
professora, a prática cultural necessária para reconhecer o valor da literatura, ao mesmo tempo
a própria professora não parece ter relação privilegiada com a linguagem literária, o que
resulta em um ensino em que faltam objetivos a serem alcançados. De antemão, professoras e
alunos sugerem levar adiante uma escolarização fora do jogo. É importante dizer que os
alunos percebem isso e dizem sentir raiva da escola, falta de vontade de estar lá, resistência
com relação às aulas e outras demonstrações de descontentamento.
123

CAPÍTULO 3 - A BRICOLAGEM COTIDIANA: O TRABALHO DOCENTE NA


ENCRUZILHADA ESCOLAR

Os professores, coitados, eles fazem o que podem (Clair).

A configuração escolar produzida após o processo de expansão vivido nos últimos


anos, conforme vimos no capítulo anterior, gerou impactos diretos no trabalho docente. A
presença de grupos sociais diversos em sala de aula, as disputas pelo sentido da escolarização
e a definição de fronteiras escolares, em última instância, são problemas resolvidos
diferentemente em sala de aula a partir de seus conhecimentos disciplinares e disposições
culturais acionados para a promoção de bricolagens cotidianas. Esse trabalho é marcado pela
posição10 ocupada por Valquíria e Celeste nas escolas pesquisadas. Como ressalta Ludivine
Balland (2012) ao analisar o caso de uma professora francesa chamada Magda, o processo de
expansão escolar permitiu que pessoas oriundas de grupos sociais antes distanciados de
alguns cargos docentes mais seletivos alcançassem tais posições. No caso conhecido pela
pesquisadora, no trabalho de incorporação da profissão e atribuição de sentidos para ela, a
docente praticou um jogo de reconfiguração do capital escolar bem como das expectativas
escolares, tomando-os meios de ascensão social; ao mesmo tempo, o reconhecimento da
legitimidade da cultura valorizada na escola, condição para ocorrer a identificação com a
carreira, produziu certo distanciamento entre ela e o grupo social de origem, enquanto gerou
estranhamento diante dos alunos pertencentes a outras frações de classes populares presentes
nas escolas (BALLAND, 2012). Nesse sentido, a autora evidenciou que nos processos de

10
Ao utilizarmos o termo posição, colocamos em evidência o fato de que nas relações objetivas instauradas na
escola entre professoras e alunos, Celeste e Valquíria ocupam um lugar específico por meio do qual produzem
um ponto de vista, como proposto por Pierre Bourdieu (2011), acerca dos sentidos da leitura de obras literárias.
Como explicitamos anteriormente, a tela através da qual veem a questão é formada pelas disposições culturais
familiares e também por aquelas apropriadas nos processos de formação na licenciatura e no início do trabalho
como professoras. Assim, quando falamos em posição docente, evidenciamos que por meio da tela construída
por elas, o que coloca em jogo sentidos pessoais e estatais sobre o ensino de obras literárias (LAWN, 2000), elas
efetivam o trabalho docente que se caracteriza por algumas especificidades. No que se refere à produção escolar
da cultura legítima, tomamos como algo particular do trabalho docente a reinvenção parcial da cultura realizada
na sala de aula. Philippe Perrenoud (1995) aponta que no espaço entre as prescrições curriculares e o domínio
pessoal do conteúdo a ser ensinado, ocorrem as reinvenções tornadas currículos reais em funcionamento nas
escolas. Da representação constituída por esse movimento, as professoras selecionam as atividades e exercícios
que permitirão a inculcação dessa perspectiva sobre as obras literárias, ou melhor, será efetivada a produção da
matriz socializadora escolar fortemente marcada pelo trabalho inventivo das professoras. Nesse sentido, para
nosso trabalho, é importante investigarmos o modo como as professoras constituem e lidam com sua posição no
espaço escolar.
124

formação docente em momento de expansão escolar, as relações com a cultura são aspectos
centrais para a compreensão do trabalho docente e, diríamos, da produção da cultura mais
valorizada na escola.
As análises presentes neste capítulo tomam como ponto de partida os depoimentos
dados por Celeste e Valquíria ao longo de duas entrevistas realizadas com elas em 2014 e
2016, após termos observado suas aulas em 2014. Durante essas circunstâncias, elas
procuraram construir suas identidades em função de uma imagem da profissão e das relações
com a cultura de acordo com ela. Compreendemos que “a vida contada não é vida”, ou seja,
as narrações produzidas pelos sujeitos não são a vida propriamente dita, mas construções
linguísticas que nos mostram pontos de vista acerca dos acontecimentos descritos segundo
algumas intencionalidades, como afirma Christine Delory-Momberger (2006). Veremos dessa
forma que o modo como as professoras constroem tais imagens sobre suas trajetórias pessoais
e formativas indicam como veem suas identidades docentes. Ao acompanhar o modo como
elas se acomodam a uma representação da professora de Língua Portuguesa e suas relações
com as obras literárias, poderemos nos aproximar das maneiras como elas compreendem as
classificações do mundo social que orientam suas práticas cotidianas, como nos indicam
Pierre Bourdieu (2007) e Roger Chartier (1991a; 1991b). No que se refere especificamente ao
trabalho docente, Jean-Michel Chapoulie (1979) salienta o quanto é significativo notarmos as
categorias segundo as quais agem os professores de modo a percebermos suas formas de
significação do mundo social e de seu trabalho no interior do mesmo. Tal significação se
expressa de modo a sintetizar as temporalidades presentes na escola, sejam aquelas
verificadas nas prescrições do Estado, sejam nas práticas escolares e suas representações
cotidianas, o que torna as negociações e as relações em que estão inseridos aspectos
importantes para tais classificações do mundo social.
Foi evidente que, para constituírem sua legitimidade, as professoras buscaram
descrever e ocupar uma posição de distinção cultural e social/espacial dos alunos, o que se fez
pelos movimentos de reconhecimento e diferenciação com os estudantes. Entretanto, a
estratégia é problemática, pois eles guardavam semelhanças sociais fortes o suficiente para
que elas se lembrassem disso frequentemente, mas também eram diferentes demais, no que se
refere ao valor dado por elas à cultura valorizada na escola, pelo menos do ponto de vista de
seus discursos. Com isso, apesar do incômodo gerado pela posição que poderiam ocupar, as
professoras buscavam negociar com alunos, direção e famílias o reconhecimento de seu valor,
uma vez que de maneira talvez mais radical que outrora, são as negociações em nível local os
meios capazes de gerar o valor simbólico da profissão (CHAPOULIE, 1979; ZAFFRAN,
125

2006). Enquanto Celeste buscava legitimar seu valor por meio da relação com a cultura
escolar adquirida em tenra idade, Valquíria apostava nas relações afetivas com os alunos para
se manter próxima a eles. Afora os aspectos relacionais, as professoras também efetuavam
transações entre suas relações com a cultura familiar, reconfiguradas no processo de formação
e, por fim, a operacionalização disso para a construção do currículo real, aquele efetivamente
realizado na escola, do que também depende a ação dos alunos.
Percebemos que as professoras ocupam uma posição desconfortável, pois precisam ser
o elo de um sistema de ensino marcado pela fragmentação, ao mesmo tempo em que elas
próprias estão cindidas entre referências tão variadas com a cultura, ou seja, referências
familiares, estatais e do cotidiano escolar. Nesse sentido, o trabalho feito por elas está
marcado pela bricolagem. Philippe Perrenoud (1993) sustenta que os docentes efetivam a
produção das atividades e, assim, do sentido escolar pela colagem de diferentes elementos,
tais como modelos de exercícios, prescrições didáticas estatais, informações advindas dos
livros didáticos, enfim, materiais cujas perspectivas nem sempre são coincidentes, como
vimos no capítulo 2. A partir desses fragmentos, os docentes realizam uma síntese e
produzem a sensação de inteireza do trabalho pedagógico em função de suas disposições e
relações com a cultura. Desse modo, como atributo de suas funções, Celeste e Valéria criam
suas aulas e funcionam como emblemas para os alunos (FERRARA, 1993). Nesse caso
específico, o problema que se coloca é a dupla fragmentação vivida por elas: por um lado,
devem lidar com materiais e sentidos estatais do trabalho docente cujos pressupostos
sintetizam diversas temporalidades relacionadas aos sentidos das obras literárias; por outro
lado, elas próprias estão cindidas entre suas relações pessoais com a linguagem e aquela que
deveriam ter por serem professoras de Língua Portuguesa.
De modo a apresentarmos essa configuração da posição docente e suas
especificidades, inicialmente, mostraremos as impasses vividos pelas professoras no esforço
de reconhecimento e diferenciação social e cultural dos alunos, o que configura a posição
desconfortável ocupada por Valquíria e Celeste; a seguir, exploraremos as representações
familiares de leitura construídas pelas professoras e os modos como as relações efetivamente
praticadas com a leitura de obras literárias são escondidas de modo a se produzir sua
legitimidade cultural; finalmente, exploraremos os indícios que pudemos encontrar a respeito
do modo como os sentidos familiares e escolares da leitura são ressignificados em seu
trabalho. De acordo com Vera Lúcia Gaspar da Silva (2004), os sentidos são formas de se
construírem apropriações, as quais são sempre produzidas a partir de uma base cultural capaz
de fornecer valores e representações ao objeto em questão. Desse modo poderemos dar a ver
126

as especificidades, no caso brasileiro, da construção da posição docente entre professoras


fruto da expansão escolar, quando se tornam agentes das expansões atuais e, como define
Clair, fazem o que podem diante desse quadro.

3.1. Entre dois mundos: a produção da posição docente por meio do reconhecimento e
da diferenciação cultural com relação aos alunos

Ao retomarem suas trajetórias formativas ou falarem sobre o trabalho cotidiano, as


professoras demonstraram que se tornar responsável pela disciplina Língua Portuguesa
pressupõe a ocupação de uma posição distintiva. Ao longo das duas entrevistas realizadas
com elas, tornou-se evidente que os processos de formação e entrada na profissão pressupõem
assumir a imagem do professor presente no inconsciente escolar cristalizado nessas
circunstâncias, caracterizado pela apropriação especializada com a leitura de obras literárias,
circulação entre o universo literário valorizado pelo escola e faculdades frequentadas por elas;
ao mesmo tempo, também seria preciso assumir distinção cultural de alunos identificados
como pouco próximos à leitura de obras literárias. Entretanto, o mundo natal, como o entende
Pierre Bourdieu (BOURDIEU&WACQUANT, 2014), em que cresceram e vivem, assim
como as disposições culturais elaboradas nesse espaço, tem códigos culturais diferentes do
inconsciente escolar. Por conseguinte, as professoras vivem entre dois mundos, que devem ser
equilibrados de modo a sustentarem a maneira mais legítima de serem professoras de
Português.
Se um dos traços distintivos é a localidade em que vivem, iniciemos a seção de modo
a precisar tal informação. Podemos dizer que as professoras são próximas aos seus alunos
geograficamente, pois Valquíria mora e trabalha no mesmo bairro em que viveu desde a
primeira infância, gozando de forte identificação com Pirituba. Celeste também mora muito
perto da Escola 2, o que lhe permite ir caminhando ao trabalho. Valquíria vem de uma família
cujo pai é contador, tendo estudado até a 8ª série e a mãe é dona de casa. Celeste também teve
pai contador, que, a seguir, formou-se em Direito ao chegar à São Paulo e sua mãe, que
estudou até as séries iniciais, era costureira. No que se refere ao mundo natal e à construção
de disposições escolares, é possível notar que a profissão dos pais se tornou algo significativo
para que elas construíssem possibilidades de futuro relacionadas a profissões de nível médio.
Valquíria gostaria de ser secretária e, por isso, aos 15 anos começou a estudar em período
noturno e a trabalhar durante o dia de modo a frequentar o ensino médio técnico. Quando
127

terminou o curso, começou a trabalhar como secretária na SPtrans por intermédio de seu pai,
já funcionário da instituição. Até esse momento, Valquíria não demonstrava a vontade de
prolongamento dos estudos, tampouco havia forte identificação com a escola. No caso de
Celeste, ela se tornou contadora porque, em suas palavras, era apaixonada pelo pai. Assim
como Valquíria, ao completar 15 anos, passou ao curso noturno de modo que pudesse
trabalhar ao longo do dia, porém não se identificou com os colegas (...era uma menininha e eu
fui estudar com adultos. Então para mim isso foi muito chocante). Após o início em um curso
de desenho, Celeste passa ao curso de contabilidade e a trabalhar como contabilista11.
Ao assumirem o ponto de vista da família e das pessoas conhecidas como
possibilidades de futuro escolar e social, Valquíria e Celeste produzem a “...interiorização do
destino objetivamente determinado (e medido em termos de probabilidades estatísticas) para o
conjunto da categoria social à qual pertencem” (BOURDIEU, 2015, p. 52). Suas inscrições
sociais pareciam indicar, assim, a ocupação de trabalhos que necessitavam de formação em
nível médio. Entretanto, logo após um período inicial de trabalho administrativo, elas
realizaram cursos de licenciatura em Letras em instituições privadas de ensino e, nesse
sentido, a maneira como Valquíria e Celeste entraram na profissão são indicações importantes
para compreendermos as situações vividas por nossas entrevistadas e, de modo geral, outros
professores em contexto de expansão escolar. As entrevistas deixaram ver que a docência não
foi o primeiro trabalho mantido por elas e, portanto, não foi a primeira opção profissional.
Diferentemente de Valquiria, Celeste mantinha expectativas de escolarização prolongada,
provavelmente seguindo os passos do pai, que era um exemplo de ascensão social via
escolarização:

...meu pai tinha uma coisa de buscar uma vida melhor. Outro dia eu contei uma
história para as crianças, eu não sei se posso contar para você? [...] Meu pai
trabalhou na roça até os 15 anos, ele não sabia o que era calçar um sapato até os 15
anos e aos 15 anos eles saíram da roça e foram para a cidade, para Poços e aí meu
pai ganhou um sapato porque ia procurar emprego. Aí ele chegou em um hotel
chamado Quisisana em Poços, imagina um hotel no meio de uma floresta, o
Quisisana é isso, maravilhoso e era muito chique na época, hoje em dia não mais
porque virou um condomínio, ainda existe, mas é um condomínio, não é mais um
hotel, mas na época era o hotel mais chique da cidade e o meu pai, a minha avó
sempre fez os meninos estudarem, 7 filhos, todos estudados, apesar de estar na roça,
eles tinham que estudar. E meu pai foi fazer uma ficha nesse hotel para conseguir um
emprego [...] estava pleiteando uma vaga para garçom porque ele achou que estava
bom ser garçom, quando viram a letra do meu pai, a pessoa, né, provavelmente o
gerente falou: nossa, sua letra é muito bonita, você não vai ser garçom não, você vai
ser escriturário. Aí já colocou o meu pai no escritório do hotel, meu pai já começou a
ser escriturário, fazia livro fiscal porque ele tinha a letra muito bonita, imagine você

11
Aqui fazemos referência ao termo utilizado pela entrevistada. Ela utiliza a palavra contabilista, a qual se refere
ao profissional formado em nível técnico. Quando a profissão passou a exigir formação universitária, o termo
utilizado se tornou contador.
128

[...] aí foi para a Contabilidade e trabalhou muitos anos, aos 40 anos ele se formou
como advogado e sempre foi assim (Celeste).

Como se vê, o pai da professora, por quem ela era apaixonada, é construído em suas
memórias como alguém que buscou a melhoria de suas condições de vida por meio da
escolarização. Ressalta-se, também, que na maneira de exposição dessa busca, existe uma
hierarquização de valores no percurso do pai de trabalhador rural sem calçado até se tornar
advogado. Existe em seu discurso a reiteração da valorização de carreiras que exigem
formação em nível superior. Nesse sentido, Celeste valoriza muito e repete várias vezes o fato
de ter uma irmã psicanalista. Esse sistema de valores se aproxima do escolar, marcado pelas
hierarquizações entre as leituras e obras mais legítimas, o que, como vimos no capítulo 2,
também estrutura sua maneira de ocupar a sala de aula e de se relacionar com os alunos, por
vezes, produzindo seleções daqueles que poderão participar dos jogos escolares de maneira
bem-sucedida. Essa maneira de compreender a realidade, aproximada da visão escolar, é uma
disposição importante no momento de entrada na profissão (BALLAND, 2012).
Valquíria guarda relação diferente com a escolarização e a possibilidade de ascensão
social por seu intermédio. Suas referências familiares, sintetizadas na figura do pai, levam à
direção dos conhecimentos práticos e da manutenção das relações com a vizinhança:

[Meu pai] é contador, ele fazia toda a parte de contabilidade lá do bairro e depois ele
fundou a Sociedade Amigos do Bairro [...] então chamavam ele até de presidente [...]
É presidente, é prefeito, cada um assim, então a gente ficou muito assim conhecido
no bairro, tanto que o pessoal pergunta muito dele porque agora ele está com
Parkinson e Alzheimer, então ele está acamado em casa (Valquíria).

Em seus depoimentos devemos ressaltar que existia pouca identificação com a


escolarização e com a possibilidade de ascensão por seu intermédio, ao passo que as relações
cotidianas com as pessoas da vizinhança se sobressaem. Ao descrever sua trajetória, Valquíria
explicitou que conseguiu seus empregos pelo intermédio de seu pai, seja como funcionária
administrativa, seja como professora:

[...] meu pai era responsável para assinar os cheques da APM [...]aí ele, como que se
diz, participava das reuniões não de pais e mestres, quem participava era minha mãe,
agora ele ia lá para resolver esses negócios, eu me lembro até que a Beth, eu nem
sabia, que eu fui trabalhar lá. Quando eu comecei a trabalhar na área da educação eu
comecei a trabalhar no Altenfelder lá na Vila Jaguara, que era uma escola padrão na
época que se falava que tinha que fazer entrevista no Estado, aí depois eu falei, ah,
eu quero tanto trabalhar aqui, eu falei para a Beth, aí em junho a Beth já me chamou
para vir para cá (Valquíria).
129

Em sua visão de mundo, a formação acadêmica pode, portanto, ser colocada em


segundo plano, o que também se mostra em seu trabalho cotidiano, pois ela coloca em
evidência o trabalho relacional mantido com os alunos. Enquanto Celeste tem um pensamento
vertical, marcado pelas hierarquizações, Valquíria tem pensamento horizontal em que a
imersão entre os pares permite a estruturação da vida e resolução de problemas. Nesse mundo
natal em que habitam, as professoras constituem, assim, disposições variadas a respeito da
cultura e da escolarização, o que se converte em diferentes relações com a formação
universitária e com a profissão, como nos indica Pierre Bourdieu (1983; 2007). A entrada na
profissão se dá de forma inusitada no caso das professoras conhecidas na pesquisa:

[Comecei a fazer faculdade] de uma forma totalmente inesperada. Eu tenho um


irmão que é quatro anos mais novo que eu e um dia ele chegou em casa e falou assim
para mim: “Você vai prestar vestibular”. Eu falei: “Como assim vou prestar
vestibular? Eu nem me inscrevi”. “Se inscreveu, sim. Eu te inscrevi no vestibular na
faculdade de Letras. Você vai prestar Letras e eu vou prestar para Matemática”. Ele
e um amigo dele tinham se inscrito. Aí eu prestei vestibular, eles também. Nós três
passamos. Na metade do primeiro ano os dois desistiram e eu fui até o fim e me
apaixonei (Celeste).
[...]Não, você vai prestar sim, você vai prestar para Letras porque você gosta de ler,
você escreve bem, você me ensina poemas. Falei, mas Beto, não é assim, aí eu fui de
brincadeira prestar com ele (Celeste).

Apesar de não esperar pela possibilidade de fazer o curso, Celeste constrói sua
narrativa demonstrando que queria fazê-lo, mas não tinha o ímpeto para tanto, o que a atitude
de seu irmão ajudou a superar. Já Valquíria demonstra que a entrada no curso se deu em razão
de injunções pessoais, sobretudo pela interferência de seu marido e sua família:

Eu peguei, deixa eu ver, quando terminei o ensino médio eu fiquei parada 1 ano,
depois aí eu fui fazer, eu fiz várias faculdades, o vestibular. Na Cásper Líbero, eu
queria fazer até jornalismo na Cásper Líbero, né, até passei no vestibular, mas aí eu
estava namorando na época o meu marido, aí ele falou, ah, vamos fazer no Oswaldo
Cruz, eu vou fazer administração, aí você passa em letras, faz letras e aí fica tudo
perto, aí eu fiz letras, aí me identifiquei com o curso, gosto (Valquíria).

É, eu casei em 1993, terminei a faculdade em 1994 e aí engravidei em 93 também,


no ano do casamento. Tive a Amanda em 1994 e aí eu me formei em 1994 e falei
assim “não, eu vou pegar uma área com mais flexibilidade para criar o filho”. Então
eu fui para a educação e gostei (Valquíria).

Ressaltamos que na primeira entrevista que fizemos com Valquíria, as razões para ter
feito o curso de Letras eram outras, relacionadas ao interesse de ser secretária (Eu fiz Letras
porque eu me interessava em ser secretária bilíngue da diretoria então eu fiz essa faculdade.)
130

As inconsistências de sua fala demonstram que, por um lado, ela pode modular suas
afirmações em função do mercado linguístico em que a entrevista se dá, o que a faz selecionar
os aspectos a relatar em função do que acredita ser a resposta esperada (BOURDIEU, 2011);
mas também demonstra a ausência de um projeto mais claro de ascensão via escolarização,
assim, a formação nesse nível se dá pelas injunções entre necessidades pessoais e o
surgimento de oportunidades. Ao mesmo tempo, é bem presente, no caso das duas
professoras, a predominância que os homens têm ao definirem o futuro de ambas e também as
tarefas familiares que devem cumprir. No que se refere ao ensino primário, a identificação da
docência como profissão feminina é chave interpretativa importante para a compreensão desse
ofício. Jane Soares de Almeida (1998), por exemplo, salienta o quanto a entrada na profissão
docente se constitui em uma das únicas possibilidades de as mulheres acessarem o mercado
de trabalho diante das relações de poder constituídas entre os gêneros feminino e masculino.
Nesse sentido, na impossibilidade de conquistar educação e postos de trabalho identificados
apenas com os homens, as mulheres viram na docência, que foi identificada com as tarefas de
cuidado e espécie de ampliação das atividades domésticas, uma maneira de acesso à
escolarização e trabalho.
As interpretações quanto ao ensino secundário colocam em relevo as relações entre a
especialização e os saberes no que se refere ao processo de profissionalização. Paula Perin
Vicentini (2002) afirma que em 1931 foi estabelecido o marco referente à delimitação do
campo profissional dos professores do secundário, pois a Reforma Francisco Campos exigia a
formação universitária específica aos docentes feita na Faculdade de Filosofia. Até esse
momento, os profissionais presentes nesse nível de ensino eram autodidatas ou intelectuais
(SANTOS, 2013; RAZZINI, 2000). Em seu estudo acerca do ensino de Português e Literatura
no ensino secundário entre o Império e a República, Marcia de Paula Gregorio Razzini (2000)
chama atenção para a autonomia com que os colégios e liceus públicos preparavam os exames
preparatórios para o nível superior. Nesse sentido, os próprios professores eram os
idealizadores dos exames e também dos currículos, o que poderia lhes conferir prestígio social
e melhores retornos financeiros. O ensino secundário, que só começou a ser pensado para as
mulheres no final do Império, como nos indica Maria de Lourdes Mariotto Haidar (2008),
estava concentrado nas mãos de homens e suas produções dos saberes necessários ao ensino
secundário. Essa tendência se alterou nos últimos anos. Ao realizar uma pesquisa acerca dos
professores de Língua Portuguesa e seus hábitos de leitura, Gabriela Rodella de Oliveira
(2008) fez uso de questionários para a identificação do perfil docente presente na rede
estadual paulista. Ao analisar seus dados, a pesquisadora notou que, em um universo de 86
131

profissionais, 82% deles pertenciam ao sexo feminino. Ao aproximar seus dados aos de
pesquisas feitas nos nos anos 1980 e 1990, ela afirma que “... há atualmente uma
predominância de mulheres entre os professores de língua portuguesa, levando à possível
caracterização desta disciplina específica como uma função feminina” (OLIVEIRA, 2008, p.
69). Mesmo assim, as discussões em torno do magistério e o exercício profissional feminino
parecem estar menos presentes. Contudo, os depoimentos de Valquíria e Celeste colocam lado
a lado o perfil do trabalho docente e as demandas sociais femininas, como a necessidade de
conciliar o trabalho às tarefas domésticas. Nesse sentido, a expansão do ensino médio e a
necessidade de formação docente para atender à demanda também trouxe mais mulheres para
esse nível de ensino e as questões relativas ao trabalho feminino.
No que se refere ao modo pouco planejado com que optam pelo trabalho docente,
devemos relacionar a esse dado o processo de expansão do ensino médio e as soluções
encontradas pelo Estado para a formação de professores. Mariana Pfeifer e Paulo Fioravante
Giareta (2009) ressaltam que existiram, ao longo do século XX, dois períodos de forte
expansão do ensino superior. O primeiro ocorreu no período de Ditadura Militar e o segundo
tem início nos anos 1990. Valquíria e Celeste, que estudaram no curso de Letras em 1990 e
1985, respectivamente, foram beneficiadas por essas circunstâncias, frequentando instituições
privadas de ensino, as quais representam, ainda hoje, a maioria de instituições de nível
superior. Entre o final dos anos 1980 e primeira metade dos anos 1990, as instituições
privadas contavam mais que o dobro das faculdades públicas (PFEIFER & GIARETA, 2009).
A crescente possibilidade de ingresso no ensino superior, como vimos no caso das professoras
entrevistadas, gerou a oportunidade de realizar escolarização nesse nível de ensino, como
possivelmente aconteceu com outras pessoas oriundas de camadas sociais que mantinham a
expectativa de escolarização em nível médio. A docência, no caso das professoras, foi a
possibilidade de ascender socialmente em profissão mais confortável às suas tarefas
domésticas. Para tanto, pode haver identificação com a profissão ou não, pois enquanto
Celeste busca produzir suas memórias de modo a demonstrar identificação com a profissão -
trabalho facilitado por sua visão de mundo ser próxima à escolar - Valquíria é pouco
identificada com a profissão ou pelo menos com uma certa imagem da profissão legitimada
pelo insconsciente escolar.
Como vimos anteriormente, a imagem do professor de ensino secundário, que apesar
de não ter formação específica chancelada pelo Estado até a década de 1930, gozava de
prestígio por ser visto como pessoa com relações privilegiadas com a profissão é
predominante. No início do período republicano, quando o primeiro colégio é criado na
132

cidade de São Paulo, o qual é descrito como um luxo aristocrático pelo professor Almeida Jr.,
cujo relato foi analisado por Marilia Sposito (1985), foi constituído por professores
renomados, considerados intelectuais. Conforme as reformas impõem a necessidade de
formação especializada, Amalia Dias e Claudia Alves (2014) afirmam que o modelo de
formação para o ensino secundário foi marcado pela ênfase no domínio de conteúdos e menos
pela domínio pedagógico dos saberes. Aos professores do ensino secundário, cabia a
responsabilidade de formação dos espíritos dirigentes do Brasil. Assim, apesar de o conjunto
dos professores ser bastante heterogêneo, como afirmam Paula Perin Vicentini e Rosário
Genta Lugli (2009), podemos perceber que a imagem dessa modalidade de ensino tinha certo
prestígio por estar atrelada à educação das elites e também às instituições muito valorizadas,
cujo exemplo maior é o Colégio Pedro II. Entretanto, conforme o ensino secundário passa por
processos de expansão e o Estado exerce maior poder de controle sobre a formação de
professores destinados a ele, a categoria busca manter o prestígio e a renda. Nesse sentido,
Paula Perin Vicentini (2002) afirma que nos anos 1950 os professores se engajaram na
reivindicação do “padrão universitário” à categoria, ou seja, os vencimentos maiores em
função da necessidade de formação em nível superior. Entretanto, essa associação não foi
integralmente atingida, uma vez que o Estado passou a legislar cada vez mais sobre a carga
horária dos professores, que vem de uma tradição de aulas avulsas e particulares em
negociação direta com as instituições de ensino e com os alunos; bem como, os vencimentos
atrelados ao trabalho passaram a ser menores.
Nos anos 1960 e 1970, a formação nos cursos de licenciatura se tornou um aspecto
central na articulação e reivindicações da categoria, entretanto, a expansão do ensino médio
feita sempre de maneira desordenada, como vimos no capítulo 2, intensificou a contratação de
professores interinos (VICENTINI, 2002). Não podemos nos esquecer que, atualmente, a rede
estadual de ensino é marcada pela presença de grande número de professores contratados,
cuja estabilidade e rendimentos são piores que o de profissionais concursados. Nesse sentido,
não houve a manutenção de uma forma única de habilitação para o ensino secundário até os
anos 1980, pois havia a modalidade da licenciatura, os exames de suficiências e as
licenciaturas curtas (VICENTINI & LUGLI, 2009).
Assim, o professor do ensino médio parece viver um paradoxo, uma vez que ao
mesmo tempo em que os rendimentos e as relações com o saber vão se alterando pela ação do
Estado, mantêm-se uma “aura” de maior prestígio pelo conhecimento especializado mantido
pelos professores nesse nível de ensino. Tem-se, desse modo, a constituição de um traço do
inconsciente escolar que é apropriado pelas professoras de modo a poderem assumir a posição
133

docente mais valorizada. Nos cursos de Licenciatura e no início do trabalho, Valquíria e


Celeste vão incorporando essa história do campo e suas contradições em seu habitus
profissional e, para isso, convertem suas disposições culturais e escolares conhecidas no
mundo natal (BOURDIEU, 1989). Como veremos, os rendimentos obtidos são diferenciados.
Nesse sentido, o espaço de formação universitária parece ser ocasião privilegiada para
a incorporação de tal inconsciente, uma vez que é essa relação com a literatura aquela
valorizada durante a graduação, porém em contraste com o prestígio profissional que ao longo
do tempo foi perdido. Esse esforço de incorporação também é um processo de adaptação das
professoras à profissão que não havia sido desejada anteriormente e cujo prestígio está em
declínio. É, sobretudo, Valquíria quem nos mostra esse processo ao contar sobre a
desaprovação da família:

Depois eu comecei a me identificar, assim, o pessoal falava “fulano está dando aula
(Valquíria).

Minha mãe, o Adriano, meu marido, falou: ‘nossa, vai sair de lá e vai cair o padrão e
não sei o que, né”. “Eu tinha já até carro, né, não, comprei carro depois que eu saí de
lá, comprei um carro com a rescisão”. Ele falou assim, ai, não sai de lá não Eu falei,
ah, não, mas eu vou sair porque eu consegui pegar oito meses de licença, como eu
acumulei folga que era operário padrão a gente ia ganhando folgas, né (Valquíria).

A seguir, o curso de formação começa o processo de socialização para a profissão. No


caso de Celeste, isso é um grande prazer, ao chegar a uma instituição que parecia o paraíso:

É, e aí na hora que eu fui, quando eu fui fazer o vestibular, eu já estava totalmente


encantada com a ideia porque era uma faculdade pequena, Faculdade Moema, era
dirigida por padres, salvatorianos acho que eles são, não vou lembrar direito a que
congregação eles são, mas enfim, era uma faculdade linda. Esteticamente ela era
linda, nossa, falei: aqui é o paraíso, o paraíso e as aulas eram maravilhosas. Eu
lembro assim, eu estudava à noite, eu tinha 4 aulas de literatura no sábado, das 8 ao
meio dia, eram as melhores aulas que eu tinha (Celeste).

É importante destacar que a Faculdade, que lhe agrada tanto por aglutinar uma
organização física que lhe é cativante e a felicidade de estar em um curso de nível superior, o
que ela valoriza muito, contrasta com as condições de formação, feita em período noturno e
com muitas aulas aos sábados. Trata-se de um perfil de formação rápida e organizada pelas
instituições privadas de modo a atenderem o aluno trabalhador. Apesar disso, nesse processo
de encantamento pela profissão, as aulas de literatura no ensino superior são fatores
predominantes para Celeste:
134

Era maravilhoso, maravilhoso, a professora era uma pessoa muito especial, ela era
apaixonada pelo que ela fazia e ela passava essa paixão para a gente. Não tinha um
aluno que dizia assim: que droga essa aula da Maria Lúcia, não tinha um aluno [...]
Sim, ela fazia tudo e eu me lembro assim, da 1ª aula de literatura ela falava: estou
muito triste, ela falou assim quando inaugurou a 1ª aula dela, foi a 1ª aula que eles
dão tudo que eles têm. Eu lembro que ela falou assim: estou muito triste hoje, eu
vou destruir literatura para vocês. Todo mundo: por que Maria Lúcia? Ah, porque
agora vamos olhar a literatura do avesso. A gente não vai mais olhar como leitor
distraído, que é o jeito mais gostoso de ler literatura, é o leitor distraído, né? Aquele
que se apaixona por um personagem, se encanta com o cenário, né? Porque agora
vamos ver por dentro, vamos ver o esqueleto da literatura. Quando ela falou isso, a
gente falou: espera aí, o que é isso? Nossa, mas foi maravilhoso. Eu não vou
lembrar, são 25 anos, né? Mas eu me lembro assim do empenho das pessoas, das
conversas. Falta era muito pouco, nós éramos uma classe de 50 alunos, eu não me
lembro de muitas faltas no sábado. E assim, seria normal que todo mundo faltasse.
Você trabalhou a semana inteira, estudou todas as noites, de sábado não, mas não
faltava (Celeste).

O excerto acima demonstra o encantamento que a professora e a disciplina causam em


Celeste. Nesse momento, a professora também se torna um modelo do que se deve considerar
como “boa leitura”. Por meio de sua descrição, a partir de um ponto de vista da crítica
literária, os livros devem ser compreendidos objetivamente, como condição para isso se exige
o afastamento da experiência da leitura comum, ou seja, do “leitor distraído”. Essa relação
com a literatura sugerida pela sua professora foi bem recebida por Celeste, que estava disposta
a reconhecer nos saberes acadêmicos o valor de algo especial. Já Valquíria, mais distante
dessa cultura, não fala sobre os cursos de formação por que passou, exceto para se lembrar da
afirmação sobre a impossibilidade de todos os alunos aprenderem. Nesse sentido, suas
memórias marcantes recuam até a educação básica:

Porque gosto de literatura, me envolvi assim com a língua portuguesa, a professora


da 8ª série do Silvado, a Cibele, ela [me] inspirou a gostar de português e eu fazia
teatro, a gente fazia um monte de coisa, nossa, tudo o que a professora propunha
para a gente fazer, ah, educação física, vamos fazer 7 de setembro, formação da
bandeira, tem que tingir as camisetas, a gente ia lá e fazia. Ah, vamos fazer o
pequeno príncipe, tem que fazer isso e não sei o que, aí a gente ia lá e elaborava
(Valquíria).

A disciplina não é significativa pelo conteúdo, mas pelas ações positivas da professora
que não se relacionam à especificidade da disciplina. As relações afetivas em torno da
literatura e atividades que aprofundam os laços entre os alunos e os colegas moradores do
mesmo bairro estão em evidência em seu depoimento. A literatura, nesse caso, não produz
encantamento pelo que tem a oferecer, mas sim pelas relações e atividades que pode suscitar
e, mais uma vez, vemos o quanto a imersão entre os pares é determinante para Valquíria.
Ressaltamos que a própria imagem da leitura está ligada à encenação, o que é uma dimensão
135

da atividade, porém não é sobre essa tarefa que se sobressai como a expectativa literária
predominante nos currículos e livros didáticos.
É importante destacarmos, também, o modo como as práticas de leitura das próprias
professoras são reclassificadas por suas experiências de escolarização. No caso de Celeste, a
professora de literatura imediatamente recusa a leitura mantida pelos alunos ao afirmar que
vai destruir a maneira como eles concebem os livros. Nesse caso, ela não abre espaço para
que se vejam os alunos de licenciatura enquanto leitores e suas relações com a cultura. O
mesmo parece acontecer com Valquíria, pois em suas lembranças não há espaço para a
elaboração do que é ser leitor para além do conhecimento especializado ou das práticas
escolares que não colocam a leitura no centro de seu trabalho.
A esse respeito, Denice Barbara Catani (2010) questiona a natureza dos
conhecimentos e discursos educacionais explorados nos cursos de formação de professores.
Para a pesquisadora, os cursos têm proporcionado “...rápida assimilação de informações, de
lógicas de argumentação, de conceitos e de vocabulários que, no meu entender, não favorece a
apropriação detida das várias contribuições de autores e teorias...” (CATANI, 2010, p. 78).
Desse modo, se ao invés de um contato rápido com autores, fosse possível o conhecimento
demorado de suas proposições teóricas, que possibilitasse a produção de relações fecundas
com o conhecimento de modo a que eles se tornassem formas de compreensão das questões
educacionais seria possível ir além do conhecimento vocabular ou conceitual. Nesse sentido, a
formação que se daria por meio de aproximações demoradas aos autores e seus sistemas de
pensamento, levariam os professores em formação a desenvolverem estilos didáticos, isto é,
“[...] modalidades inventadas pessoalmente a partir dessa mobilização criadora dos
conhecimentos, experiências, história pessoal e variações de práticas já conhecidas”
(CATANI, 2010, p. 85). Logo, de acordo com essa proposta, experiências como a de Celeste
seriam posta em outros termos. Denice Catani (2010) propõe a cultura da atenção, a qual
pressupõe que os conhecimentos intelectuais e científicos terão significados apenas quando
eles puderem ser relacionados e servirem de ponto de partida para que os sujeitos possam se
reconhecer no que é conhecido. Esta proposição tem como um de seus pilares a ideia de
educação como iniciação, formulada por R.S. Peters segundo a qual para que se possa
apropriar dos conhecimentos, é preciso compreender os modos de produção dos mesmos, o
que o contato demorado com autores e sistemas de pensamento poderiam gerar.
As relações com o conhecimento, como vimos no caso de Valquíria e Celeste,
favorecem a compreensão dos saberes do ponto de vista dos conceitos, vocabulários, enfim,
daquilo que não implica, necessariamente a experiências das professoras em formação. Ao
136

estudar a formação de professores de Língua Portuguesa e suas relações com a leitura,


Ludmila Thomé de Andrade (2007) analisa um documento distribuído pelo governo estadual
do Rio de Janeiro para os professores de modo a subsidiar a elaboração do currículo nas
escolas. Ao verificar as citações presentes no currículo, a pesquisadora notou que grande parte
dos autores mencionados são pesquisadores que estão vulgarizando conhecimentos cujo
endereçamento é o espaço acadêmico. Logo, a análise dos discursos desses autores deixa ver
que eles desconsideram os professores como leitores e pretendem apresentar como o
conhecimento deve se dar. Decorre disso que o autor tem:

...a esperança de que o leitor possa compartilhar as mesmas motivações e, assim,


identificar-se com o autor. Tal percurso, iniciado a partir da necessidade de uma boa
definição do conceito, é bem característico de um pesquisador. O autor supõe que o
professor possa ter um ponto de partida semelhante ao seu (ANDRADE, p. 38,
2007).

Se, como vimos anteriormente, o Estado toma a responsabilidade pela formação dos
professores e organiza instituições, currículo e profissionais para isso, ele está exercendo um
esforço significativo de modo a gerir as identidades dos professores, o que nos lembra Martin
Lawn (2000). Para o autor, a produção de identidades docentes é fundamental para que o
Estado possa dar a ver os sentidos dos sistemas de ensino. Pelo processo que estamos
descrevendo, os cursos de formação, enquanto instâncias de construção de identidades
docentes, excluem as disposições culturais de seus alunos, legitimando outras formas de
concepção da cultura, ao mesmo tempo em que fornece conteúdo à linguagem por meio de
saberes especializados, produzidos majoritariamente nos campos acadêmicos e políticos,
como vimos no capítulo 212. Essa questão se torna mais problemática porque os
conhecimentos acadêmicos não são apresentados aos professores por meio da cultura da
atenção, o que significaria a possibilidade de Valquíria e Celeste terem acesso a um
conhecimento poderoso, no sentido de ser cheio de significados para que elas pudessem
pensar sobre suas próprias experiências literárias e, no limite, sobre a de seus alunos
(CATANI, 2010).
As formas como as professoras lidam com isso varia de acordo com suas disposições.
A idealização e valorização da formação acadêmica levam Celeste a construir cada vez maior
identificação com a disciplina conhecida na Faculdade e a valorizá-la quando está na escola,

12
Não é o objetivo de nossa pesquisa a busca pelos efeitos gerados pela influência dos discursos acadêmico e
político na produção da cultura escolar legítima. Entretanto, torna-se latente em nossa exposição a presença de
tais campos nas tensões escolares cotidianas, pois eles disputam pela legitimidade para definir os critérios da
seleção cultural que a escola deve fazer.
137

já como professora. Em seu trabalho ela se mostra como uma representante dessa cultura, a
qual recorre em suas aulas. Ao mesmo tempo em que busca construir sua autoridade com base
em relação privilegiada com uma certa representação de alta cultura, ela utiliza esse critério
em seu trabalho com os alunos. Some-se a isso a imagem que constrói de alguém cujo pai é
advogado, a irmã é psicanalista e que sempre morou e trabalhou em bairros centrais. Ela
procura, desse modo, se distanciar social e culturalmente dos alunos que costuma receber na
escola. A professora reitera em seu trabalho a visão do leitor-leitor, a valorização dos autores
consagrados na escola. Valquíria, da mesma maneira, procura fazer isso. No entanto, sua
aproximação com a cultura e com a profissão tornam esse trabalho um pouco mais difícil.
Valquíria mora no mesmo bairro em que os alunos, situado na periferia de São Paulo,
frequentou as mesmas escolas em que trabalha e sua identificação com a cultura não passou
pelas regras escolares, como foi o caso de Celeste. Apesar desses problemas, ela busca outros
elementos, sobretudo as relações com a cultura - informadas pelos espaços de formação.
Como discutimos anteriormente, ela afirma que as famílias não têm prática de leitura, mas
que ela é diferente, pois é leitora e suas filhas também são. Para produzir a distinção, além de
tentar desenvolver uma relação cultivada com a leitura, o que é uma posição bastante frágil, a
professora também manteve as filhas estudando em escolas particulares, mesmo que isso lhe
custou trabalhar em local que não gostava e dobrando período. A passagem é significativa,
pois a professora parece dar pistas de que se identifica demasiadamente com os estudantes:

Aqui eu dou aula para alunos do Liberato, os alunos vão para a igreja também, a
mesma que eu vou, eu frequento, depois assim de […] na igreja católica. Aí eles
estão lá e eles me enxergam lá e eles vão lá me abraçar, me beijar, olha, estou aqui
também (Valquíria).

Entretanto, a tomada de posição docente gera nas professoras a necessidade de


esquecimento dos alunos para além da imagem homogeneizante. No caso estudado por
Ludivine Balland (2012), a professora oriunda de camadas populares se sente diferente dos
alunos, pois eles concebem a cultura escolar em outros sentidos. Entretanto, as afirmações de
Valquíria nos deixam ver que ela não vivencia essa oposição como alguém que se apropriou
de outros códigos culturais, uma vez que ela parece ter incorporado de maneira frágil os
valores escolares, o que Celeste, em função de suas disposições, pode fazer de maneira um
pouco mais consistente. Em função disso, o distanciamento dos alunos é produzido de outras
formas. Em seu trabalho, Celeste busca os alunos e as instituições com quem possa se
identificar socialmente. Em função disso, Celeste gosta de trabalhar na Escola 2, pois ela está
situada no bairro em que a professora mora, V. Mariana, e tem alunos que lhe agradam:
138

É uma clientela de alunos que são, na sua maioria, bons, de famílias, assim, que
respeitam a educação. De famílias que respeitam o professor, de famílias que, assim,
o que o professor falar é lei. Entendeu? Isso ajuda muito a gente a trabalhar. Você
sabe que o que você está falando a criança escuta em casa (Celeste).

A relação estabelecida por ela com a Escola 2 é oposta àquela que manteve com a
escola municipal em que iniciou na profissão, pois os alunos correspondiam a “uma clientela
que ia [à escola] só para se alimentar, eles não iam para estudar”. Porém, desde que se mudou
para escolas estaduais que ficavam na região da avenida Paulista e para a escola atual, ela
pôde se sentir identificada com os alunos que encontrava. Ainda assim, no interior da escola,
Celeste contou que no 5º ano, logo que os alunos chegam ao Ensino Fundamental II, ocorre
uma separação das turmas. A escola separa em uma turma os alunos com mais “interesse”,
uma vez que assim é possível “ajudar as crianças realmente interessadas”. Segundo a
professora, o critério de interesse é determinante para a seleção dos alunos, porém mais
adiante notamos que a palavra interesse se refere à identificação dos alunos com o habitus
escolar que coincide com as crianças mais privilegiadas economicamente e moradoras do
entorno escolar ( “A maioria mora por aqui. Exatamente essas crianças vizinhas. Inclusive
isso, são crianças que têm um poder aquisitivo melhor porque quem mora aqui não estuda
aqui”). A professora demonstra, portanto, que os alunos com maior “interesse” são aqueles
que parecem compartilhar concepção semelhante do que é a cultura, valorizam a autoridade
escolar e dos professores, visão compartilhada pela instituição escolar. Parece-nos que dentro
da rede de São Paulo existem as escolas com perfis de seleção interna e organização dos
alunos em função de suas identidades, as quais já estão situadas em uma rede de ensino
ramificada. A Escola 2, por estar em bairro mais valorizado, identifica-se com o grupo social
do entorno e constrói imagem hierarquizada da cultura, destinada àqueles que conseguem
reconhecer seu valor e excludente para aqueles que não sabem reconhecer o valor dessa
cultura. Os alunos do EJA, conhecidos durante a pesquisa de campo, nessa lógica de
compreensão da realidade, são identificados como inadequados por princípio para terem
acesso à cultura privilegiada no espaço escolar, como demonstramos no capítulo 2. Para
sustentar suas afirmações, a professora opera de outra maneira os elementos que tem para
marcar sua posição de distinção. Em função de sua origem familiar, Celeste procura ressaltar
aspectos que valorizem seu conhecimento da cultura valorizada na escola:

Eu sou filha de seresteiro, sou irmã de uma psicanalista, minha vivência familiar é
bastante rica. A despeito das pessoas que eu conheço, que só leem os best-sellers,
coisas assim, não é o meu caso não. Então, assim, eu gosto muito de música popular
139

brasileira, conheço bastante por uma vivência pessoal mesmo, não acadêmica
(Celeste).

Novamente, a imagem do leitor-leitor é retomada pela professora. Além disso, ela


também evidencia que seus hábitos culturais advém da vivência pessoal, não aquela com as
marcas do que é aprendido nos bancos escolares. Ela também demonstra classificar as
publicações entre os best-seller e a literatura séria. Uma vez que ela se identifica como
alguém ligada por origem familiar à cultura valorizada no espaço escolar, demonstra estar
segura de sua posição. Algo que não é tão claro no caso de Valquíria. A segurança que tem no
que se refere à formação cultural de que desfruta faz com que seu repertório pessoal,
praticamente familiar, seja predominante nas escolhas didáticas que faz (“Eu trabalho com o
que eu gosto, com o que eu acho bonito. Então eu trabalho muito o Vinícius, Drummond, é
pelo meu gosto mesmo é pela minha sensibilidade”). Essa opção tanto reforça sua
familiaridade com alguns autores, quanto pode dar a ver seu distanciamento de outros, pois
ela também diz que descobriu muitos autores por meio dos livros didáticos.
Outro aspecto que difere Celeste de Valquíria se mostra no fato de que ela
compreende os mecanismos de legitimação das práticas culturais e se remete a eles. Ela se
apropria de um discurso corrente do aprendizado a respeito da cultura por meio do ambiente
familiar e demonstra o que a sua vivência foi rica. A seguir, opõe o aprendizado familiar ao
acadêmico. Assim ela procura legitimar um conhecimento que não é procurado de forma
interessada, pelo contrário, ele é incorporado “naturalmente” em função de sua vivência
familiar (BOURDIEU, 2015). São esses os elementos que fundam sua relação com a
literatura, como ela informa. Contudo, ela não se vê tão bem formada em literatura, sendo
melhor professora de gramática. Talvez seja importante continuarmos investigando essa visão
da professora, pois ela parece questionar seu habitus cultural em função, talvez, das formas de
organização e classificação da literatura enquanto produto escolar. Ocorre que a manutenção
dessa posição não é fácil para as duas professoras, pois para elas a arte de ser leitor-leitor
também é difícil. Isso fica evidente nas falas de Celeste:

Literatura. Eu me apaixonei por literatura. Apesar de eu não ser uma professora bem
formada em literatura, eu não sou, não. Eu sou muito melhor em gramática porque
na hora em que eu comecei a trabalhar, eu vi que eu tinha muito mais jeito para
gramática do que para literatura (Celeste).

Para ensinar as crianças a escrever, mesmo. Quando você ensina as regras da


língua... É óbvio que eu uso a literatura. O meu, como posso dizer? Tudo o que eu
ensino é em cima do texto. O contexto que eu uso para ensinar gramática é sempre o
140

texto literário. Tomo bastante cuidado para escolher bons textos. Nem todos os
textos do livro didático são bons, são bem escolhidos (Celeste).

Dar sustentação à legitimidade cultural não é fácil para ela, que oscila entre uma
posição segura no que se refere ao preparo para o trabalho e insegurança, quando se pensa na
literatura. Algo semelhante acontece com Valquíria:

De literatura dos grandes autores, Machado de Assis, Raul Pompéia, então toda essa,
como se fala, dentro do que eu vou ensinar, eu sempre estou dando uma lida nos
livros, nos grandes autores (Valquíria).

Ela demonstra pouca intimidade com os autores e reitera a visão escolar de que a “boa
leitura” se resume aos grandes autores. A insegurança presente em sua fala pode indicar
distanciamento dos livros que deve ensinar e, também, evidencia sua compreensão que o trato
com a leitura de obras literárias mantida por ele deveria ser outra. Nesses momentos, o jogo
de distanciamento cultural dos alunos se torna muito problemático.
Ocorre assim, uma oscilação entre esse mundo natal vivido por elas e o mundo da
cultura valorizado na escola. Esse fato é significativo para compreendermos uma das
características do processo de expansão pelo qual a rede de ensino passou no que se refere às
relações com a cultura, pois ao receber grupos sociais mais alargados como alunos e
professores, porém preservando representações a respeito da boa leitura e da boa relação com
a cultura pouco alterados no que se refere ao imaginário sobre a questão, os professores
precisam manejar suas relações com a cultura no trabalho cotidiano. É preciso, ainda, ocupar
uma posição difícil.

3.2. O mundo natal e a representação da leitura escolar: um jogo de mostrar e esconder

A posição docente desejada por Celeste e Valquiria exige que elas manejem suas
origens culturais e referências literárias de modo a manterem a imagem exigida pelas
representações curriculares e pelos cursos de formação. Nesse sentido, elas oscilaram durante
as duas entrevistas entre expor suas práticas culturais, que passam por leituras escolares e não
escolares, e a manutenção de relações exclusivas com a cultura legítima no espaço escolar. Ao
longo de toda a entrevista elas foram gerenciando a descrição de suas práticas culturais, ora
mostrando o que gostam de ler, ora escondendo tais preferências.
141

Rosária de Fátima Boldarine (2014), em sua tese de doutorado em que investiga as


práticas de leitura dos supervisores que trabalham na rede paulista, percebe algo semelhante.
De acordo com a pesquisadora, durante as entrevistas com esses profissionais, foi possível
perceber que as leituras ligadas ao universo profissional eram citadas de maneira privilegiada,
ao passo que a leitura de lazer, quando descrita, foi identificada como algo de menor valor. As
supervisoras, assim como as professoras que conhecemos, incorporam uma visão do que
representa o bom gosto literário (BOLDARINE, 2014). Nesse caso, os dados aproximados
indicam que os profissionais que trabalham nas redes de ensino realizem um esforço de
incorporação do arbítrio cultural escolar de modo a legitimarem suas posições.
As relações com a cultura familiar fazem sobressair a importância da música e dos
meios de divulgação cultural como as bases de suas representações de leitura. Falemos
inicialmente das músicas, presentes nas memórias de ambas as professoras. A esse respeito,
Valquíria nos contou sobre o papel desempenhado pela mãe:

Ai, a minha mãe é muito musical, muito assim, as histórias dela é muito rica porque
ele teve uma infância muito assim privilegiada na natureza, no meio do mato porque
ela é da Bahia, meus pais são baianos e meus pais são primos de 1º grau [...] a minha
mãe, nossa, eu me lembro que ela cantava muito, ela fazia muito bolo, fazia muita
coisa a gente diferente assim, inventava muita coisa em casa, então eu ficava muito
no quintal e quando era época de fruta eu não queria nem jantar, eu me lembro que
eu ficava muito, pensei que era a Amália que estava chegando, então aí ela era
muito musical, cantava, ela escutava muita música, era Caetano Veloso, Tom Jobim,
Vinícius de Moraes. Eu decorei muita coisa assim do Vinícius através da minha mãe
(Valquíria).

Então ele tocava essas peças assim, peças que não é do chorinho, mas tocava
algumas músicas clássicas também, eu acho que isso tudo ficou na minha cabeça,
construiu esse gosto por isso [...] Isso, para mim. Eu me lembro que o meu pai
ensinava a minha irmã a cantar algumas músicas e ela me ensinou a cantar. Ele
ensinava para ela e tocava para ela cantar, depois ela me ensinou. [...]Não, não,
porque ele queria juntar a família cantando junto com ele, entendeu? Era isso, então
as nossas reuniões de família sempre eram regadas de música, todas as reuniões de
família tinham meu pai tocando. Logo que ele morreu, eu não aguentei, né? Hoje em
dia eu já quero que toquem, mas nos primeiros anos, era muito duro, ter a música e
não ter ele. Eu tenho 2 irmãos que tocam também, mas no começo eu, foi muito
difícil. Mas agora eu já sinto saudades, quero que toquem, mesmo que eu chore, eu
quero ouvir (Celeste).

Durante as entrevistas, mas sobretudo durante as conversas informais que mantivemos


com as professoras, tornou-se evidente para nós que existia certa coincidência para as
professoras entre as construções oral e escrita. Muitas vezes, ao nos referimos ao repertório
literário das professoras, elas falavam sobre as histórias que ouviam quando crianças, sobre as
músicas conhecidas por intermédio dos pais e a audição de programas de rádio. Assim, o
142

repertório literário parece ser um conjunto de narrativas ficcionais advindas de fontes orais e
escritas, sem que existam diferenças substanciais entre elas. Lembremos que Vinicius de
Moraes, muito especial para Celeste, foi lembrado em função de uma música. Parece-nos que
a socialização vivenciada por elas privilegia as formas orais, as quais precisam ser
reelaboradas de modo a se apropriarem das lógicas escritas (BAUTIER & ROCHER, 1998).
No que se refere ao acesso aos impressos durante a infância e juventude, as possibilidades
presentes nas bancas de jornal são importantes:

Jornais, livros, tudo quanto é coisa que, Capitães de Areia, eu ficava observando ele
ler Capitães de Areia, eu vi qual mais que ele já leu, ele falava muito do Camilo
Castelo Branco, Amor de Perdição, aí tinha essas coisas lá, tinham muitos clássicos
assim, muitos livros clássicos lá, sempre na estante lá para a gente [...] Ele
comprava, comprava, tinha coleção assim de jornaleiros, né [...] Aí ele fazia aquelas
coleções sempre, né, sempre tinha, ah, tem clássico aí, O Cortiço, Machado de Assis
que é o Memórias Póstumas de Brás Cubas, tinha todos esses livros aí clássicos.
Tinha O Caso dos Dez Negrinhos que era de Sidney Sheldon, muito bom, tinha esse
aí, eu me lembro que eu li (Valquíria).

Eu lembro que ele tinha uma coleção de Seleções, Reader’s Digest[...] eu lembro
que meu pai tinha essa coleção. O meu pai era assim, a gente morava numa casa
alugada, mas ele comprava enciclopédias, nós tínhamos o Tesouro da Juventude,
que acho que são 5 livros com todos os contos de fadas. Eu era apaixonada por
aqueles livros (Celeste).

As professoras demonstram forte aproximação à venda de livros nas bancas de jornal,


modalidade de comercialização dos impressos que ganhou importância a partir da década de
1960, quando foi permitida a venda em vários pontos além das livrarias A prevalência das
bancas de jornal no que se refere às práticas de leitura populares também foi verificada em
nossa pesquisa de mestrado (AMPARO, 2012). Laurence Hallewell (2012) salienta que nesse
momento editoras como a Abril passam a publicar um conjunto de fascículos e livros
clássicos em um formato que resulta em preços mais baixos. Como também veremos no caso
dos alunos, os fascículos, livros clássicos e revistas vendidos em bancas de jornal são espaços
importantes de acesso ao universo impresso. Em nossa pesquisa de mestrado, também
notamos que esses pontos de venda são fundamentais para o acesso aos romances
sentimentais novos e usados, o que indica práticas de leitura e sociabilidade formadas ao redor
dos centros de comércio popular e nos trajetos aos locais de trabalho (AMPARO, 2012).
Valquíria também menciona a importância dos sebos:

E a gente tinha a facilidade do sebo, né, de comprar em sebo, né [...] você não ficava
comprando muita coisa nova, eu só tinha dificuldade de ler quando era muito velho
porque eu tinha renite, eu era muito atacada da renite (Valquíria).
143

A frequência aos sebos em busca de livros mais baratos também orienta a classificação
do universo literário. Esses espaços bem como as publicações a que se tem acesso modelam
práticas baseadas em pontos de cultura menos valorizados por instituições como as
acadêmicas e escolares. Aqui vemos um fator pelo qual as professoras falam pouco sobre
essas relações com a leitura, uma vez que por suas posições docentes, devem também
desvalorizar tais espaços. Laurence Hallewell (2012) identifica um traço de conservadorismo
com relação ao público leitor brasileiro no que se refere a um objeto especial de “cultura”,
desvalorizando as edições de bolso e, podemos dizer, os locais de comercialização das edições
mais baratas. Os gêneros em circulação nesses espaços são exemplares no que se refere ao uso
da linguagem literária:

É, na minha época não era nada disso, então na minha casa eu me lembro das
enciclopédias que o meu pai comprava, os Tesouros da Juventude, como eu estava
te falando, que era 5 livros, cada um era de uma cor, era linda a coleção, linda, mas
eles deixavam acessível, que a gente podia ler, todo mundo podia ler e tudo e o
Reader’s Digest que meu pai colecionava, eu adorava aquelas revistas, adorava e é
engraçado porque eram revistas de mais textos, não eram revista, mas aquilo lá me
fascinava [...] Eu sempre gostei muito de publicidade, eu gostava de ler as
propagandas, sempre fui apaixonada por propagandas [...] A foto, sabe, o jeito que o
produto é apresentado, eu gosto muito. Eu gosto muito de trabalhar isso com os
alunos também (Celeste).

As relações familiares também são muito significativas para configuração das práticas
de leitura e sua configuração (CHARTIER, 1990). Como vimos anteriormente, as relações
com os pais e irmãos foram mencionadas pelas professoras de maneira nostálgica e muito
significativa. Celeste nos oferece as relações familiares como possibilidade de aproximação à
produção de alguns autores:

Sim, muito, muito, a gente conversa muito sobre isso. Deixa eu ver, lembrar de um
livro que lemos juntas. Isabel Aliende a gente lê junto, acho que foi o último que a
gente leu porque foi antes de eu me casar e a gente lia antes de dormir, a gente
ficava lendo essas coisas (Celeste).

Quando falam sobre as leituras familiares e sobre as experiências de infância, repletas


de afetividade, elas aparentam ser densas de sentidos pessoais e sociais. No entanto, quando
falam sobre os impressos conhecidos atualmente, a fragmentação é prevalecente:

Esses fragmentos são notícias do dia a dia, coisas que me interessam voltadas para
educação. Revistas de educação. Não são, assim, livros com uma leitura completa.
São textos que, por exemplo, acabei de fazer faculdade de Pedagogia, então tem
textos lá a respeito de Educação Infantil, textos técnicos. (Valéria).
144

A ausência de tempo para a leitura é um dos fatores mais significativos para a


configuração da prática mantida pelas professoras e Valquíria nos mostra como isso acontece:

Olha, ultimamente, de uns dois anos para cá, assim eu não tenho feito uma leitura
completa de um texto, quer dizer, de um livro. Eu pego fragmentos, guardo os
fragmentos. Pego coisas assim, por exemplo, no tablete, alguma parte, daí eu leio,
mas um livro inteiro eu não tive mais tempo de ler e eu gosto muito de leitura. Só
que eu sou assim, como se diz, eu guardo, minha memória, graças a Deus, é boa.
Então eu leio muita coisa e essas leituras que eu já fiz anteriormente, elas me
ajudam hoje em dia (Valquíria).

O excerto acima nos sugere o conflito de ser professora de Língua Portuguesa e o fato
de não conseguir, por conta do tempo e mesmo de seu hábito, ler livros inteiros. A professora
busca resolver a questão com a sua memória, porém essa justificativa parece ser frágil para
ela, que insiste em passagens da entrevista que tem o conhecimento necessário para ser
professora. Diante desse quadro, parece que o Estado é importante para fornecer materiais de
leitura para a professora:

Mas em casa eu ganho muitos livros. Ganho livros porque a gente recebe kits
também. Esse O Diário de Anne Frank eu já tinha lido, voltei a ler. O D.Casmurro
eu também li (Valquíria).

Atualmente, a professora realiza uma leitura bastante fragmentada de trechos das


publicações literárias, como descrevemos acima, e daquelas que cumprem tarefas em seu
cotidiano, ou seja, as notícias de jornal ou informações técnicas sobre a profissão, como
vemos a seguir:

Esses fragmentos são notícias do dia a dia, coisas que me interessam voltadas para
educação. Revistas de educação. Não são, assim, livros com uma leitura completa.
São textos que, por exemplo, acabei de fazer faculdade de Pedagogia, então tem
textos lá a respeito de Educação Infantil, textos técnicos (Valquíria).

Observamos também que apesar de as Orientações Curriculares (BRASIL, 2006)


privilegiarem a leitura de obras integrais, parece que as condições de trabalho da professora
não favorecem essa prática de leitura, o que indica a contradição entre as prescrições estatais e
as condições de trabalho oferecidas pelo Estado. Esse também parece ser o caso de Celeste:

Estou lendo redação para corrigir! [risos] não, sinceramente, eu ando com
dificuldade para ler, bastante dificuldade. Assim, tento.... Ah, caiu na minha mão
ultimamente, mas não é nada que eu trabalho com aluno, esses livros espíritas, sabe?
Mas eu não consigo ler, não sei por quê. Eu tenho que ler para devolver, eu estou me
forçando a ler, mas não vai. Parece que tem alguma coisa ali que diz assim, que não
faz sentido para mim. Eu tenho que ler o livro para devolver, mas... O último livro
145

que eu li? Tá bom. Nos meus 50 anos eu ganhei uma antologia de um poeta que
acabou de morrer, esqueci o nome dele. Manoel de Barros. Literatura foi o último
que eu li (Celeste).

O início da fala de Celeste sugere que o tempo que poderia ser dedicado à leitura é
gasto com a correção de atividades escolares, assim, o último livro ao qual teve acesso foi
conhecido um ano antes do momento da entrevista. A seguir, novamente a professora insiste
na oposição entre a leitura valorizada na escola e um título não reconhecido, como o espírita.
Não podemos deixar de considerar que se o livro “caiu em sua mão” é porque ele circula em
seu espaço social. Logo, ela convive com diversos tipos de publicação de maneira mais
intensa do que gostaria de admitir. Porém quando vai se remeter ao último texto literário, fala
de Manoel de Barros, reforçando sua identidade próxima ao autor de literatura “séria”, o
quadro com as suas leituras de preferência também demonstra a oscilação entre as leitura
escolar e não-escolar:

Quadro 1. Obras e autores citados pelas professoras.

Esse é um conflito que revela os problemas vividos pelas professoras, pois elas devem
ensinar o gosto literário, porém não mantém relação privilegiada com a leitura de obras
literárias. Ao falar sobre os professores de Português de São Paulo, Gabriela Rodella de
Oliveira (2008) nos oferece uma imagem bastante dura sobre eles e insiste na recorrência
desse problema:
146

...a grande maioria desses professores é originária de famílias com baixos níveis de
escolarização, tendo tido pouco contato com a leitura e constituindo a primeira
geração a conquistar a escolarização de longa duração. Essa escolarização, no
entanto, se mostra precária quando analisados os dados que apontam a frequência ao
ensino básico público e ao ensino superior em instituições particulares, geralmente
no período noturno. Tal formação não costuma levar esses professores a
desenvolverem as disposições necessárias ao hábito da leitura literária, no sentido de
se apropriarem das obras de literatura, conhecendo-as efetivamente; dessa maneira,
esses docentes tendem a reproduzir o conhecimento a que tiveram acesso, sem que
tenham se tornado sujeitos de suas leituras e de tal conhecimento (OLIVEIRA, 2008,
p. 177).

A partir dos dados que obtivemos, podemos ver que, de fato, as professoras realizaram
sua formação em instituições de ensino particulares e, assim, reconfiguraram suas formações
iniciais em função disso. As professoras manipularam suas disposições para a leitura de modo
a produzirem relações diferenciadas com a literatura e, a seguir, para o seu ensino. Afora a
necessidade de sustentarem a imagem de quem mantém leitura valorizada no espaço escolar,
quando assumem um ponto de vista mais pessoal indicam os sentidos atribuídos à leitura de
obras literárias:

[...]eu sempre fui encantada com história, eu gosto muito de história, eu gosto muito
de contar história, gosto muito de ouvir história, então, gosto dos cronistas, gosto de
histórias curtas, gosto de histórias motivadoras, histórias que apontem para uma
coisa mais iluminada da vida mesmo (Celeste).

Eu acho que é fazer com que eles fiquem, sensibilizar, né, sensibilizar assim, não
ficarem pessoas tão mecânicas, pessoas que olhem, como se fala, saibam olhar com
mais cuidado as coisas, a vida. Tem a, como se fala, o mesmo gosto que eu tive e a
mesma sensibilidade que eu desenvolvi, que eles têm também a mesma
oportunidade que eu [...] é, para ele enxergar, assim, não ver uma rua ou então não
conseguir observar se é uma pessoa idosa querendo atravessar a rua, ter uma visão
de mundo (Valquíria).

A descrição das suas aulas, feita no capítulo 2, demonstra o quanto a imagem


oferecida acima por elas está presente no cotidiano, sobretudo quando elas têm a possibilidade
de serem mais espontâneas. Entretanto, ao se verem diante dos imperativos escolares e de
currículo, as professoras acabam por tentar colocar a cultura valorizada em primeiro plano, o
que as leva a esconder a leitura que de fato mantêm, como a fala de Celeste deixa ver:

Outro dia eu estava passando pelo metrô e tem uma banca de livros espíritas, eu
nunca li livros espíritas, nunca li, aí tinham vários títulos, como nesse dia estou
vivendo um drama muito, aí encostei lá e comecei a conversar com a moça e falei:
você já leu alguns desses livros? Ela falou: sim, já, eu gosto, né? Ela começou a
explicar e eu até comprei um livro, eu li 100 páginas num dia, de tão interessada que
147

eu fiquei, mas depois assim, eu me desinteressei. Foi a única vez que pedi ajuda
também (Celeste).

Esse depoimento aparece rapidamente já no meio da segunda entrevista feita com a


professora e ela procura dizer que foi a única vez em que precisou de ajuda e, para nós, revela
uma tensão importante com relação aos dilemas vividos pelas professoras. Ao realizarmos a
descrição das práticas de leitura das professoras Valquíria e Celeste, procuramos colocar em
evidência as características de suas relações com as obras literárias em função de suas
inscrições sociais e necessidade de assumir a posição docente, como a descrevemos
anteriormente. Roger Chartier (1990; 1991) sustenta que as representações de leitura são
significativas para a constituições de inscrições sociais e sentimento de pertencimento a
comunidades de leitura. Quando as professoras entrevistadas falam acerca das práticas vindas
de seu mundo natal, percebemos a densidade de seus depoimentos, porém quando é preciso
sustentar a manutenção da leitura conforme o arbítrio escolar, percebe-se a oscilação e
fragmentação dessa identificação. Assim, assumir a posição docente supõe o esquecimento ou
a necessidade de se esquecer do mundo natal, ou, dito de outro modo, é preciso esquecer de si,
do ponto de vista das relações com a cultura.

3.3. A necessidade de negociação cotidiana dos saberes e sentidos da leitura de obras


literárias

Face às mudanças e sentidos contraditórios da leitura de obras literárias presentes nas


Orientações Curriculares (2006), nos Parâmetros Curriculares Nacionais (2000), nos livros
didáticos e suas disposições, cabe às professoras a realização de negociações cotidianas para
que se defina a cultura legítima escolar. Joël Zaffran (2006) sustenta que as escolas que
passaram pela expansão escolar impõem outras tarefas aos professores. A ausência de uma
cultura compartilhada pela sociedade a ser ensinada pela escola faz com que os professores
precisem realizar negociações cotidianas para gerir as situações de sala de aula. Do ponto de
vista das relações com a cultura, é necessário efetuar constantemente negociações pelo sentido
do aprendizado da leitura de obras literárias. Por conseguinte, uma vez que as professoras
concretizam o currículo em sala de aula por meio de suas disposições culturais e apropriações
dos conteúdos de ensino, a especificidade do jogo escolar atual individualiza as negociações
148

docentes. Notamos que Celeste e Valquíria partem de negociações com suas próprias
concepções literárias até constituírem os saberes a serem ensinados em sala de aula.
As primeiras negociações efetuadas se deram para Celeste na própria faculdade, uma
vez que ela se deparou com professores cuja familiaridade com as obras literárias eram vistas
como muito diferentes das suas, o que abordamos na primeira seção deste capítulo. Essa
circunstância foi importante para a incorporação e reforço da imagem literária de acordo com
suas disposições. Valquíria, por outro lado, pouco mencionou suas experiências de formação
em nível superior apesar de ter feito graduação e especialização em literatura. A seguir,
quando iniciam o trabalho nas escolas, elas efetuam novas negociações entre suas disposições
e as representações de leitura aprendidas no curso de formação:

E uma coisa que eu tenho para te dizer, eu tive ótimos professores que me ajudaram
nessa escola. Professoras muito dedicadas, sabe? Elas percebiam que eu era
inexperiente e elas me chamavam de lado e falavam “Faz assim, assado”. Elas me
deram muitas dicas. Eu devo a elas a minha formação. O que eu faço hoje em dia eu
aprendi com elas (Celeste).

Os conteúdos a serem ensinados são incorporados em meio às relações com os pares.


Já mencionamos anteriormente o fato de ser a escola um espaço de socialização docente.
Nesse sentido, os primeiros anos de trabalho são circunstâncias de definição conjunta do que
significa ser professor de Língua Portuguesa (ZANTEN, 2014). Além das relações com os
colegas, a familiarização com os conteúdos a serem ensinados também é faz parte desse
processo:

[...] as minhas primeiras aulas, para você ter uma ideia, eu fazia assim, pegava 5 ou
6 livros daquela série, eu abria no mesmo assunto, eu fazia todos os exercícios, eu
fazia os exercícios [...] como se eu fosse aluna e dali eu inventava um exercício
para o meu aluno fazer, era assim que eu fazia, para descobrir o sujeito, o que é
objeto direto, dessa forma (Celeste).

Apesar de se referir ao período em que tinha acabado de ser formar, Celeste se


apropria dos livros didáticos de modo a se sentir segura durante as aulas. Esse material ganha
relevo como depositário do que de fato será ensinado nas escolas e, também, como
circunstância de incorporação de relações com a leitura (BITTENCOURT, 2008). Nas
circunstâncias descritas acima, também notamos que a imersão nas relações com outros
professores e também com os materiais didáticos são ocasiões de apropriação das diversas
temporalidades presentes na escola. As práticas escolares de Celeste sintetizam diálogos
temporais variados em que sentidos da escolarização e da leitura de obras literárias
produzidos em diferentes momentos se articulam pela atualização feita pela docente, como
149

sugerem José Mário Pires Azanha (1990/1991) e Pierre Bourdieu (2013a). Acontece, assim,
nova circunstância de incorporação da história da instituição escolar em que trabalha. No caso
de Valquíria, o processo de socialização na escola também é relembrado pela dificuldade
enfrentada ao mudar de profissão:

Ah, dificuldade porque assim, eu trabalhei sempre num escritório, tinha a minha
parte para fazer, agora você pegar e ser mediadora de conflito em sala de aula, eu
peguei uma sala tão difícil lá na essa escola que é assim […] muito desgastante e
ainda depois tinha que chegar em casa, tinha a carga diária, comida, lavar, cuidar da
filha (Valquíria).

A natureza relacional do trabalho foi algo marcante para Valquíria, que mencionou em
algumas circunstâncias os desafios de lidar com os alunos no início da carreira. Ao mesmo
tempo, o aprendizado relativo aos conteúdos também se deu:

É, aí ficou também complicado porque era ensino médio e não tinha muita
convivência assim, quer dizer, não tinha prática, né, então aí alguns alunos ficaram
falando, ah, que a professora não soube explicar aquilo, não tinha muita didática, né,
pedagogia, assim, a gente aprende muito, mas praticar mesmo é só com os anos, mas
aí, deixa eu ver, teve assim, como se fala, eu fui fazendo cursos paralelos e os cursos
que eu tinha também da empresa, porque eu fazia curso de informática, eu sempre
fazia todos os cursos, então isso aí foi me ajudando de alguma forma (Valquíria).

Chama atenção a presença de cursos paralelos e de informática não relacionados ao


trabalho docente. O período de adaptação ao trabalho docente parece ter sido conflituoso, pois
ela pouco fala sobre ele e fez uma rara menção a esse respeito. Em conversa informal,
Valquíria nos contou que nos primeiros anos de trabalho voltou a ler os títulos presentes no
cânone escolar e que foi se adaptando ao ensino deles de acordo com as demandas escolares e
dos alunos.
Concluímos que, nesse processo de apropriação do trabalho docente, as professoras
vão realizando o segundo estágio da construção de si como professoras por meio da
aproximação com os livros didáticos e também ocorre a negociação com os currículos,
sobretudo, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PERRENOUD, 1995). Esses materiais
fornecem a trama por meio da qual as professoras constituem o tecido de suas aulas, como
afirma Philippe Perrenoud (1995). Celeste afirma que os PCN foram ponto importante para a
formação como professoras:

Eles faziam núcleos de estudo. Cada região era em uma escola. Então naquele dia
você não ia para a escola, você ia para os cursos, essa formação. Teve um trabalho
do estado para colocar a gente, para fazer a gente falar de uma forma parecida. Mas
eu nunca mudei muito a minha forma de dar aula, não (Celeste).
150

Celeste evidencia o esforço do Estado para a implementação da mudança curricular


por meio dos cursos de formação. Porém, é significativo o momento em que ela afirma que,
na verdade, nunca mudou sua forma de dar aula. A fala sinaliza um processo de resistência à
alteração curricular e também o processo de negociação que ela precisou empreender, pois
está claro que apesar de dizer que nunca mudou suas aulas, realizou processo de apropriação
das abordagens trazidas nos PCN. Como vimos no capítulo 2, ela realiza articulações entre o
modo como a análise sintática se relaciona com a linguagem de modo a operacionalizar a
análise dos textos. Valquíria menciona também as avaliações em larga escala:

A cobrança vem dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais então eles mandam
aquele montante em cima dos, do que é necessário para o aluno. Então a gente tem
que condensar isso, trabalhar isso para não prejudicar, de repente ele vai fazer essas
provas ENEM, a prova do Saresp, vai ser cobrado isso então a gente tem que deixar
o aluno flexível para todo tipo de necessidade que ele tiver (Valquíria).

A fala da professora evidencia, além da presença dos currículos, seus usos da


linguagem. Parece-nos inadequada sua utilização do adjetivo flexível para se referir ao
processo de aprendizagem. Uma vez que é responsável por criar atividades e proporcionar
exemplos de relações com a linguagem, Valquíria parece se distanciar do uso desejado pelas
diretrizes escolares.
A necessidade de utilização dos textos é um grande imperativo incorporado pelas
professoras, que se esforçam em afirmar que partem dele para ensinar os conteúdos da
disciplina. Em todas as aulas observadas, Celeste realizou atividades de leitura de textos e
interpretação desses materiais a partir da compreensão dos sentidos das palavras. A professora
parte da ideia que o entendimento das palavras desencadeará a compreensão da literatura.
Além disso, as menções aos gêneros textuais também estão presentes durante as aulas sendo
inclusive lembrados pelos seus alunos durante as entrevistas, o que já sinaliza um aspecto da
reforma curricular apropriada pela professora. É importante ressaltar que a mesma estratégia
utilizada no ensino de literatura está presente no ensino de gramática. Essa aproximação ao
conhecimento da língua parece advir de suas experiências de escolarização. Tal hipótese
parece ganhar força porque a professora compreende a disciplina Língua Portuguesa pela
divisão entre gramática e literatura. Tal divisão remete, em passado recente, à LDB 5691/71
que dividiu a disciplina entre língua e literatura, produzindo a divisão das aulas entre
gramática, estudos literários e redação. Durante seu período de escolarização esse era o
currículo vigente, no entanto atualmente o currículo não tem essa divisão. Porém, na
151

representação que Celeste tem da disciplina, torna-se imperativa a progressão dos conteúdos
gramaticais.
No processo de apropriação dos currículos, vemos que existe um sentido forte das
representações das professoras sobre a disciplina na produção das aulas. A imagem do leitor-
leitor, que vem dos cursos de graduação e também se estende para os materiais didáticos,
articula a construção da disciplina. Nesse processo, quem sai vencedor é o texto, porém não
necessariamente o texto como ele é definido nos PCN a partir da sociolinguística. As
professoras se apropriam do texto, na verdade, do fragmento de romances, contos e poemas
presentes no livro didático. A partir desses fragmentos, elas ensinam aspectos gramaticais e
literatura, que na prática se torna uma ideia de história da literatura e de gêneros textuais um
pouco difusos. A bricolagem efetuada por elas também guarda relações com suas referências
pessoais com a literatura:

Eu acho que o jeito como fui trabalhando, fui tentando descobrir na literatura coisas
simples e interessantes para trazer para as aulas [...] às vezes um texto mais simples
tem o poder de despertar no aluno algum tipo de empatia, não é? E fazer com que
aquele aluno se veja numa posição diferente porque quando você trabalha com
criança assim, que são crianças que vêm de histórias diferentes muito ruins, como eu
posso dizer que a minha aula vai transformar essa criança? Mas um texto pode trazer
um personagem que tenha vencido alguma dor, que tenha vencido. E que aquilo seja
também para o aluno um modelo, um impulso para ele dizer: olha, a minha vida não
é tão ruim assim, esse personagem também sofreu, eu também posso superar essa
dor, essa dificuldade, essa precariedade porque o que temos aqui são crianças com
vida assim, muito precárias, elas não são, são famílias fragilizadas, são famílias que
às vezes estão em situação de risco, mas eles mandam para a escola, aqui tem
comida e tem gente para cuidar deles, não é isso? É isso que a gente tem aqui
(Celeste).

O sentido do ensino de literatura para Celeste se relaciona ao enredo como exemplo


para que os alunos possam realizar superação das dificuldades enfrentadas. Não vemos a
leitura como produção estética, visão presente nas Orientações Curriculares (BRASIL, 2006),
tampouco é aspecto de comunicação e expressão pessoal, como sugerem os Parâmetros
Curriculares Nacionais (2000). O que está presente é a literatura atrelada aos sentidos
cotidianos dados a ela, o que também foi visto nos sentidos atribuídos pelos alunos às obras
literárias. No caso de Valquíria, a literatura parece não ter especificidade e, assim, ela é
compreendida em sua possibilidade de gerar relações afetivas:

A humanização é o seguinte, às vezes o aluno não tem a necessidade de aprender a


estrutura de um texto [...] de construir um texto, elaborar uma, como se fala, a
própria atividade mesmo escrita. De repente um lado humanizado, ele com uma
conversa assim de um adulto, de uma necessidade de eles estarem sendo orientados
assim, às vezes eles estão num momento assim tão de angústia dele particular e esse
modo de eu lidar com eles, de repente eu tenho a sensibilidade de perceber se eles
152

estão num momento assim ruim, assim numa aflição, aí de repente eu posso
conversar com eles e ajudá-los a crescer, a humanizar (Valquíria).

Apesar de sustentarem o discurso de apropriação dos sentidos curriculares da leitura


de obras literárias e, de fato, manterem as aulas organizadas em função dos textos, prevalece o
que foi aprendido por elas em suas socializações familiares:

[Eu me lembro do] Meu pai tocando. É, exatamente, que tinha um trechinho do ‘Eu
sei que vou te amar’. Eu falei, ‘Ah, não posso nem ler que vou me emocionar’. Eu
uso muito isso. Todas as vezes que eu vou falar de alguma coisa, eu falo dos meus
sentimentos para eles. Isso é uma coisa impressionante, o quanto eu tenho que tomar
cuidado para ser verdadeira. O dia que eu mentir para eles eu tenho certeza que eles
vão falar ‘Nossa, isso não é tão bonito quanto ela está falando, ela não está
emocionada’. Isso faz muita diferença para eles, é como se eles colassem um pouco
nisso. É como se eles falassem ‘Ah, eu também posso ficar emocionado’. Eu me
lembro que, no dia desse texto, eu tenho um aluno muito difícil. tinha, né? Já
terminou... Muito difícil nessa sala, o Eduardo. Ele estava muito revoltado, ele tinha
tido uma briga muito feia e ele falou assim ‘Ah, eu não vou fazer nada nessa aula’.
Assim, me provocando. Quando terminou o texto ele estava chorando. Ele falou
‘Professora, que coisa mais linda!’ Eu me lembro direitinho dele. Eu pensei ‘É bem
por aí mesmo’ (Celeste).

O exemplo de sala de aula trazido pelo excerto demonstra que a professora assume o
dever de mostrar seu encantamento com a leitura de modo que se possa transmitir tal
abordagem da literatura para os alunos. Tais circunstâncias em que a professora pode
evidenciar suas relações pessoais com a leitura foram as situações de ensino mais
significativas que pudemos testemunhar. Em ambos os casos, desse modo, o que vemos é a
operacionalização do mundo natal das professoras. Ele é o filtro por meio do qual as
experiências de formação acadêmica e do espaço de trabalho são elaboradas e, como vimos,
são pressupostos da ação das professoras, ainda que elas procurem dar pouca evidencia a isso.
153

CAPÍTULO 4 - A LEITURA SERVE PARA SOLTAR O CORPO: TENSÕES ENTRE AS


PRÁTICAS SOCIAIS E ESCOLARES DE LEITURA NA ESCOLA

“Aquele negócio do leitor-leitor... [ele] não faz porque é obrigado, faz porque gosta” (Luana).

Como evidenciamos no capítulo 2, as relações com a linguagem que se pretende


favorecer na escola guardam semelhança com a imagem que Luana constrói a esse respeito. O
leitor-leitor sintetiza o ideal de formação desejado pelas práticas escolares e está igualmente
presente no imaginário dos alunos e das professoras como o leitor legítimo. Ao se comparar
com esse ideal, Luana não se identifica como sua representante, mas sim como alguém que
não gosta de ler. O processo de apropriação de tal imagem coincide com as definições
construídas pelos julgamentos escolares. Nesse sentido, os conflitos em análise ganham
espaço importante no processo de produção de classificações efetuadas na escola,
enquadrando os alunos como leitores legítimos ou não em função de suas representações de
leitura incorporadas no espaço das relações familiares e de amizade. Logo, os momentos nos
quais tais representações são reclassificadas na escola são decisivos para a construção de
imagens que, uma vez incorporadas pelos alunos, produzem disposições com durabilidade
maior que o período de escolarização.
Ao situar esse processo na relação entre representações escolares e familiares de
leitura, colocamos em evidência dois espaços cujas organizações temporais produzem
sentidos concorrentes para a leitura de obras literárias. Régine Sirota (1988) considera que o
tempo escolar é repleto dos tempos sociais, diríamos, dos tempos familiares que forjam as
representações de leitura de alunos e professores em sala de aula. Roger Chartier (1999)
afirma que o aprendizado relativo à leitura ocorre em meio às práticas culturais que
estruturam, por exemplo, o vínculo social e a construção da subjetividade individual,
localizando esse aprendizado como outra forma de representar a compreensão de um grupo
sobre a ordem de relações entre as instituições e entre outros agentes do mundo social.
Assim, os esforços de pais, tios, avós, amigos, entre outros, para introduzir os jovens na
cultura escrita constituem igualmente sua iniciação ao mundo social. Para tanto, as ocasiões
de leitura, os ritmos de compra ou empréstimo de livros criam condições para a efetivação
desse processo e, portanto, serão abordados no capítulo que se segue. O universo coerente no
qual vivem os alunos é colocado à prova pela reclassificação escolar, cuja coerência também
existe e se expressa de outras maneiras, como descrevemos anteriormente. Por meio da
aproximação de universos cujas lógicas são diversas, apesar de complementares, vemos a
leitura de obras literárias sendo produzida. Procuramos realizar, assim, um movimento
154

parecido ao de Raquel Lazzari Leite Barbosa (2001), quando pesquisa a produção paulatina
de preferências literárias em uma comunidade situada em Assis. A autora nos permite ver
como a incorporação de uma representação sobre a cidade também se dá pelo viés dos autores
e história da leitura que a conformam. A bonita passagem a seguir sugere férteis caminhos
investigativos para situarmos a leitura como uma produção de classificações sobre o mundo
social em que precisamos considerar não apenas as características da leitura, mas também os
sentidos em circulação na sociedade e que podem ser evidenciados nas práticas:

Os acontecimentos das décadas subsequentes estiveram estreitamente ligados ao


desenvolvimento desse transporte e das formas de comunicação presentes na região
em estudo. O sentido dado à escolaridade, às práticas de leitura, à escolha de
autores, aos valores sociais defendidos esteve estreitamente ligado à didática e à
pedagogia instituídas pelo Estado, e que chegavam pelos meios de comunicação
(BARBOSA, 2001, p. 141).

Isto posto, iniciaremos o capítulo indicando de que maneira as disputas pela leitura
legítima das obras escolares se apresentam em sala de aula. A partir dos indícios fornecidos
pelos participantes da pesquisa, tomaremos as situações descritas como significativas para a
estruturação de esquemas interpretativos relacionados à leitura de obras literárias em espaços
não escolares, cientes de que tais esquemas entram em jogo na escola. A descrição desse
universo literário familiar confrontado ao escolar nos servirá de ferramenta para situar os
conflitos pelos sentidos legítimos da leitura de obras literárias, quando representações
familiares e escolares entram em concorrência.

4.1. Desde que entrei na escola nunca gostei de Português: os alunos e suas maneiras de
significar a leitura na escola

Assim como Carolina, cuja fala dá título a esta seção, a afirmação de que não
gostavam de Língua Portuguesa era recorrente entre outros entrevistados. Razões variadas
distanciam os alunos da disciplina e as tensões decorrentes desse quadro nos revelam como as
disputas em questão se expressam no cotidiano e são concebidas por eles. A exposição e a
investigação dos desgostos com relação à disciplina também se revelaram como uma via
importante para a identificação do problema, pois as disputas se mostram, sobretudo, de
maneira implícita; logo, para mapeá-las, compreender o que os alunos querem dizer por “não
155

gostar” pareceu-nos mais eficiente. Foi possível notar que o caminho da negociação feita no
dia a dia orienta o trabalho de produção da cultura escolar legítima.
Apesar de não ser recorrente, registramos uma situação de conflito mais explícito na
aula da professora Celeste, na Escola 2, durante a correção de uma atividade referente ao
conto O amor por entre o verde:

Nesse momento, um aluno fala: “ele está olhando os brotos”. A professora aproveita
e fala que isso ajuda a saber a idade do narrador. Ela pergunta para os alunos como é
possível saber disso. Alguns alunos afirmam que hoje em dia ninguém mais fala
isso. A professora pergunta: “Se fosse hoje , que palavra o autor usaria?”. Os alunos
ficam mais agitados e um aluno diz “novinho e novinha”, recebendo todo o apoio
dos colegas de sala. No mesmo momento a professora diz que não, pois “novinho e
novinha não é gíria, é um adjetivo”. Os alunos não se convencem da resposta e
começam a discutir entre eles e o barulho de fala aumentam. De repente uma aluna
fala “gatinhos”, gíria aceita pela professora
(Observação feita no dia 31 de novembro, 3º ano B).

Em resposta à questão feita pela professora, os alunos mencionam um termo criado


pela cultura funk e bastante conhecido nesse meio, qual seja, novinho ou novinha, referindo-se
aos jovens. A agilidade com a qual encontram nesse termo uma equivalência para “broto”,
bem como a sua aceitação unânime demonstram que, de fato, é uma palavra bastante utilizada
por eles. Contudo, tal equivalência é imediatamente recusada pela professora, pois ela
também conhece o termo “novinha” e sua origem. Colocando-se como representante da
cultura erudita no espaço da sala de aula, a professora interdita o seu uso, dizendo se tratar de
um adjetivo, até que os alunos mencionam gatinhos, termo prontamente aceito por ela. Nesse
sentido, é ainda por meio do reforço da cultura erudita que a professora marca seu lugar
institucional e se investe do monopólio da linguagem legítima no espaço escolar. Conforme
discutido no capítulo 2, o professor tem todo o espaço escolar organizado de modo a produzir
legitimidade para seu discurso, cabendo a ele agir em função do arbítrio cultural presente na
escola. As disputas pela cultura legítima são estruturadas por modos de inteligibilidade
diversos do mundo literário: os alunos, com seu vocabulário e suas referências, interpretam o
texto; investida da cultura legítima, a professora realiza um interdito e impõe os termos
adequados segundo a sua perspectiva. Diante deste limite, abre-se pouco espaço para que
referências distantes do cânone escolar estejam presentes no cotidiano, como se nota no
depoimento da professora Celeste:

Sim. Harry Potter, né? Que eu não li, uma história que não me interessa, mas eu já li
bastante texto de Harry Potter porque é o que eles gostavam, era o que eles queriam.
Deixo eles me contarem, sabe? Deixo muito eles me contarem. “Mas o que é que
156

você está lendo?” Essa última classe que eu tive, eles eram, a maior parte deles liam.
Quando eles terminavam a tarefa “Ah, posso ler, professora?” Eles tinham os livros
deles. Não era nada do que eu tinha pedido. Eu tinha pedido para eles lerem esse ano
só O Diário de Anne Frank (Celeste)

Uma vez que não têm legitimidade para estar no centro do trabalho pedagógico, as
opções não-escolares dos alunos ocupam espaço marginal na sala de aula, e cabe à professora
controlar os limites do que é permitido ou não. Trata-se de mais um exemplo das negociações
feitas no cotidiano escolar diante de outros padrões culturais concorrentes presentes na
instituição, cujo ator principal é o professor (ZAFFRAN, 2006). Chama-nos igualmente a
atenção o esforço da professora para se distanciar do livro, explicitando que nunca o leu,
porém se dispõe a conversar sobre ele com os alunos e autoriza sua leitura em sala de aula,
desde que seja feita após o término das atividades prescritas por ela. Evidencia-se que o
caminho da negociação é preferível à interdição mais explícita. Assiste-se, assim, a um
processo de interiorização das disputas pela cultura legítima, diferentemente do que acontecia
no ensino médio antes da expansão, quando a limitação do número de vagas, as séries de
retenção, entre outros fatores, expulsavam os alunos distantes do ideal de formação escolar. A
expansão do ensino médio e sua inserção na escolarização obrigatória levam culturas variadas
para o cotidiano (ZAFRAN, 2006), um espaço no qual o jogo escolar deve se encarregar de
produzir as hierarquias culturais segundo as normas escolares.
As poucas circunstâncias nas quais os conflitos diretos acontecem e o fato de a
produção das hierarquizações culturais se desenvolver nas negociações cotidianas fazem com
que os alunos expressem seus incômodos e o que está em jogo para eles na escolarização de
modos variados. Isso pode ser expresso por meio do estranhamento dos livros presentes no
cânone escolar, conforme os excertos a seguir:

Teve o Dom Quixote, que a professora de português passou pra gente ler no
primeiro bimestre e fazer a prova... Horrível! Chata em todos os sentidos. Estava
falando como tudo começou, o nome do livro, porque Dom Quixote, falando da vida
dele e eu não gostei disso (Mariana).

Uma prova. A gente teve uma prova... Não, foi uma prova fácil...Como foi do
primeiro bimestre, tipo, eu...” Qual era o sonho de Dom Quixote?” Tipo, qual era a
fantasia que existia na cabeça dele, que era a dele ser um, ai, esqueci a palavra. O
sonho dele era ser um cavaleiro da mancha. Esse era o sonho dele... Achei meio
esquisita, meio louca (Adriana).

A leitura de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, foi pedida no início do ano de


2014 e fazia parte do kit dado pelo governo estadual a todos os alunos do 1º ano do ensino
157

médio. Em suas falas, as alunas explicitam que o livro lhes causou muito estranhamento,
sobretudo porque seu enredo parece fugir do repertório conhecido por elas. As fantasias de
Quixote e a linguagem utilizada pelo autor dificultam sua inserção no universo literário das
alunas e, assim, as duas se sentem distanciadas de sua narrativa. Conforme detalharemos
adiante, os alunos frequentemente leem os chamados best-sellers, cujos enredos costumam
apresentar de maneira direta os conflitos entre as personagens, em geral tipos facilmente
identificáveis conforme se habitua ao universo de publicações semelhantes (SODRÉ, 1988).
Como afirma Roger Chartier (1999), as práticas de leitura, constituídas a partir de
posicionamentos sociais distintos, produzem disposições para o reconhecimento de livros
comuns ao grupo do qual se faz parte. Se para além de ser apenas uma forma de se
reconhecerem títulos semelhantes, as representações de leitura se constituírem como
estruturas que nos permitem ver pelo viés da cultura as posições sociais dos leitores e seus
modos de produzir sentidos para a realidade, estaremos diante de um modo específico de
produção de inteligibilidades baseadas no conhecimento literário. As representações também
podem se basear na dificuldade de se estabelecer o que é ou não real:

Ah, igual o livro...livro não, principalmente texto. Eu tô lendo aquilo, aí fala que
Afrodite não sei o quê. Eu ouvi falar, todos os professores falam, mas eu não sei se é
verdade ou não. Não tem aquilo que comprova que aquilo aconteceu (Mariana).

A relação entre verdade e literatura apresenta de outro modo um confronto entre o


pensamento dos alunos e do ideal de formação escolar. Enquanto a escola lida com a
possibilidade de circulação por diversos gêneros, cujas características oferecem
representações variadas do mundo, os alunos parecem esperar por aproximações mais diretas
da literatura com as suas realidades. As razões para isso podem variar e uma delas se refere
aos sentidos atribuídos aos textos, chamados a produzir sínteses e modos de compreensão da
própria realidade, o que veremos melhor a seguir. Ao mesmo tempo, o best-seller, gênero de
preferência dos alunos, tem como uma de suas principais características elaborar sua
linguagem de modo a produzir “[...] uma indistinção radical entre real e imaginário” (SODRÉ,
1988, p.19). Some-se a isso o distanciamento com relação à disciplina Língua Portuguesa que
estamos descrevendo nesta seção. Na busca pelo real ou pela compreensão dos textos
literários, os alunos frequentemente recorrem aos filmes para ampliar seu entendimento da
literatura: “Eu ia passar filmes sobre os livros, para entender melhor o que estava passando no
livro”, disse-nos Amanda. O estranhamento dos títulos conhecidos na escola é somado
158

também com a dificuldade encontrada pelos alunos - e pelas professoras – em virtude da


ausência de condições das aulas para a incorporação da posição do leitor-leitor:

Então eu gosto de ler, mas quando eu tenho que ler, eu gosto de ler no silêncio e
aqui na escola já fica ruim, já perco a concentração. Eu gosto de ler mais em casa
que é melhor (Mariana).

Não tinha livro para todo mundo ela passava um texto na lousa e a gente tinha que
copiar...Tinha texto que a gente tinha que passar duas aulas copiando (Luana).

Deixa eu ver. É bem difícil, viu, porque a gente realmente não tinha continuidade.
Teve pouca aula e quando tinha a oportunidade de absorver as coisas era bem difícil
por causa da energia do ambiente (Karina).

Não. Ela não deu nenhum livro para a gente ler. Seria até interessante, mas ela sabe
que a gente não tem tempo, que todo mundo que vem... Tinha gente que chegava
aqui correndo antes da aula para fazer o trabalho. Se ela desse um livro para a gente
ler, a maioria não ia ler (Clair).

Seja em função do barulho em sala de aula, da ausência de materiais ou da falta de


tempo, por se tratarem de alunos trabalhadores, muitas vezes as condições da escola são vistas
pelos alunos como impeditivas da leitura. Não podemos nos esquecer de que é preciso haver
tempo na escola para que se possa produzir o leitor-leitor (LAHIRE, 2008). Assim, exceto nos
momentos de cópia ou de leitura de excertos presentes nos livros didáticos, a regularidade
relativa à aprendizagem da leitura de obras literárias não se concretiza, ou, talvez, a
organização temporal favorecida pela escola seja marcada pela fragmentação.
Em face do estranhamento dos alunos, as investidas das professoras cumpririam um
papel central na aproximação dos estudantes com o conteúdo das disciplinas. Entretanto, as
atividades e as abordagens das professoras parecem acentuar os mal-entendidos:

É porque eu sou o tipo de pessoa que nunca gostei de português. Nunca. Desde
quando entrei na escola nunca gostei de português. Aí toda vez tem que ler aquele
texto aí tem que fazer aquelas questões, tipo, o texto nunca é pequeno, são sempre 3,
4 folhas. E o que vai cair naquelas 10 questões só é aquela primeira página! Aí eu já
não gosto, eu fico estressada porque eu tenho que ler o texto todo à toa, aí eu já não
gosto (Mariana).

Às vezes ela passa as questões na lousa, passa os textos na lousa para a gente copiar.
Aí depois a gente tem que ler e fazer as perguntas de novo. Aí em uma aula ela
passa os textos e na outra aula a gente faz as questões. A gente tem que responder e
ela vista (Amanda).

A principal atividade que organiza as aulas de Língua Portuguesa, como vimos no


capítulo 2, é o questionário. Por meio dele, as professoras cumprem as tarefas de ensinar
literatura, gramática e organizar a regularidade das aulas. A retomada do ritmo em que as
159

aulas acontecem, descritas como leitura/cópia de um texto, resposta às questões e correção


seguida de visto demonstra que as alunas incorporaram essa dinâmica, bem como o que se
espera delas. Ou seja, seguindo a lógica que opera no aprendizado de um ofício
(PERRRENOUD, 1995), as alunas sabem que devem cumprir as demandas da professora,
realizar as atividades até o fim, buscar a resposta certa e dar a ver a prova do trabalho
cumprido, recompensado na forma de visto. Elas, no entanto, não sabem exatamente por quê
devem fazer isso. Por conseguinte, a repetição desse esquema tem como efeito, inicialmente, a
produção da perda de sentidos das aulas. A incorporação um tanto mecânica das ações
escolares não resulta na compreensão das razões de ser destas últimas, como Mariana e
Amanda nos deixam ver, pois os textos parecem servir apenas para localizar a resposta certa,
perdendo-se de vista os objetivos de ensino de literatura e gramática, ao mesmo tempo que a
regularidade escolar parece se esvaziar, servindo apenas para preencher o tempo entre o início
e final das aulas. Stéphane Bonnery (2007), que pesquisou a produção do fracasso escolar na
escola, observou que, em função da ausência de capitais necessários à compreensão do jogo
escolar, para alguns alunos é muito difícil entender para entender a utilidade de algumas
atividades e, assim, elas se tornam apenas demandas a serem cumpridas, um conjunto de
ações sem outro papel além da realização de pequenas tarefas. Com o passar do tempo,
conforme avançam os níveis de ensino, os professores tornam-se cada vez menos dispostos a
explicitar o que está em jogo na atividade, ao passo que os alunos se distanciam cada vez mais
das aulas. No caso de nossos entrevistados, a compreensão de que não gostam das aulas de
Língua Portuguesa e de que não gostam de literatura explicitam seu distanciamento dos
objetivos de ensino.
Nesse sentido, dado que os alunos não escondem seu desgosto, caberia ao professor
exercer o papel importante de traduzir esse mundo e seus pressupostos e, com isso, aproximá-
los da matriz socializadora escolar:

Bom, ela lia com a gente e nós acompanhávamos. Aí quando eu gostava do texto eu
prestava mais atenção. Porque a minha cabeça sempre fica, assim, desde pequena
minha cabeça fica meio fora. Aí isso acontece muito. Por isso tem pessoas que não
conseguem continuidade no estudo. Mas, assim, o que me fez admirar muito a
Língua Portuguesa foi por muitos professores. Foi pelo professor Ataulfo, foi
pelo Roberto Juliano, foi pela Vanessa. Ah, tive o professor de redação também, o
Cláudio (Karina).

Ah, como a gente quer. A professora deixa, tipo, ela passa o texto para a gente e a
gente pode, ela deixa livre, a gente pode fazer em grupo ou a gente pode fazer
individual também. A gente que vê (Adriana).

De vez em quando... de vez em quando a professora discute com a gente sim


(Amanda).
160

Os depoimentos acima são dos alunos do EJA e do ensino médio regular, sendo que os
primeiros passaram por mais situações de explicitação dos pressupostos das atividades por
parte da professora do que os alunos da Escola 1. Foi o esforço de tradução feito pelas
docentes que permitiu, frequentemente, momentos de maior aproximação dos alunos aos
textos, como Karina demonstra. Talvez um efeito disso seja o fato de os alunos do EJA
recordarem de algumas situações escolares. Entre as experiências positivas de escolarização,
as situações em que as narrativas literárias se aproximam das experiências dos alunos tendem
a ser mais lembradas.

Ah, eu adorava, eu gostei do Patativa do Assaré. Adorei a poesia dele, que era uma
poesia simples, do interior. Como eu sou do interior, eu me identifiquei [risos], achei
lindas. Eu não conhecia ele. Ai um dia ela mandou a gente pesquisar. Colocou na
lousa assim: ‘Pesquisem, eu quero que vocês me entreguem uma poesia do Patativa
do Assaré. É um poeta de Nordeste’. Aí eu fui procurar na internet, em casa, quando
eu fui encontrando as poesias dele eu fiquei fascinada. Eu escrevi duas poesias e
trouxe para entregar para ela para ganhar nota. Eu falei para ela: “Gente, eu amei
esse cara!” (Clair).

Sim, mas os livros iguais a esses. Livros legais, que chamem a atenção, embora você
não goste de ler, para a nossa idade, é bom que uma coisa tenha ação, quando os
caras entram lá, então, tipo, é uma coisa que chama a atenção (Luana).

No caso de Clair fica evidente a identificação proporcionada pela produção de Patativa


do Assaré, que fala de uma paisagem que ela reconhece. Já Luana, apesar de reafirmar que
não gosta de ler, abre-se para a possibilidade de realizar a atividade desde que ela tenha ação,
aspecto este que lhe agrada.
Ao insistirem que não gostam de Português e de leitura, os alunos entrevistados
enfatizam, sobretudo, o distanciamento vivido por eles diante de enredos que lhes parecem
pouco apreensíveis. Observamos, aqui, a configuração de duas inteligibilidades com relação
às obras literárias: uma escolar e outra social. Entre elas, as práticas escolares, aos olhos dos
alunos, parecem aprofundar distâncias entre eles, situação que irá configurar as ações de
classificação dos alunos no espaço escolar.

4.1.1. A difícil arte de ser leitor-leitor

Uma das primeiras tensões vindas à tona durante as entrevistas feitas com as
professoras e com os alunos diz respeito ao dilema enfrentado por eles ao responderem a
questões relacionadas ao seu perfil de leitura. Ao falarem sobre o que gostam ou não de ler, a
161

frequência com que compram ou emprestam livros, por exemplo, foi possível notar certa
hesitação ou respostas evasivas como “eu gosto de ler o que me agrada”, demonstrando que
descrever seus hábitos de leitura produz a sensação de pisar em um campo minado. No espaço
de suas experiências individuais, os entrevistados sugerem que assumir a posição de leitor vai
além de saber ler, exigindo-se também outros atributos.
Em uma sociedade hierarquizada, muitas são as possibilidades de se produzirem
variadas comunidades de leitura, passíveis de entrar em disputa ou serem diferentemente
valorizadas (CHARTIER, 2004). Os caminhos de valorização ou desvalorização das leituras
podem passar por instâncias como a academia, prêmios literários, a escola, reconhecimento
comercial, entre outros, que auxiliam na produção de balizas para a produção e classificação
dos leitores.
Entre as instâncias de produção dos discursos sobre a leitura, a escola tem papel
especial, pois ela tem sido compreendida como responsável pela alfabetização e pelo ensino
da leitura para crianças e jovens, tornando-se, portanto, um dos lugares onde se forjam as
representações do leitor de obras literárias (CHARTIER, 2001; CHARTIER & HÉBRARD,
1995). Se a leitura configura um espaço de disputa, os estudantes e mesmo as professoras
conhecidas durante a pesquisa de campo parecem lidar com um espaço de tensão ao tentarem
se definir enquanto leitoras – assim sugere a hesitação ao falarem sobre suas opções literárias
e modos de ler -, o que coloca em jogo exatamente as representações de leitura
sociais/familiares e escolares, uma vez que para falarem de si, os entrevistados tomavam
como referência ou o modelo de leitura escolar ou os sentidos literários advindos da escola e
os efeitos que eles produzem nas representações familiares.
As maneiras como tais elementos – sua própria imagem como leitor, as representações
familiares e escolares - foram articulados durante as entrevistas revelaram a nós algumas
posições possíveis no jogo de produção de sentidos para a leitura de obras literárias nesse
espaço de tensão entre a escola e a família. Dois estudantes entrevistados, Paulo e Marcelo,
indicaram um modo semelhante de significar suas respectivas posições de leitor em uma
chave narrativa que parece colocá-los em oposição à leitura escolar. No caso de Paulo, aluno
da Escola 1, e de Marcelo, que frequentava a Escola 2, problemas no processo de
aprendizagem da leitura, a visão dos professores sobre eles - e a consequente incorporação de
uma certa posição de aluno -, além das representações familiares da leitura de obras literárias
parecem ajudar na sua compreensão enquanto leitores. Alguns excertos de suas entrevistas
dão a ver como isso procede:
162

Eu já tentei ler um livro do Allan Kardec, não lembro o nome agora. Eu tentei, mas
não consegui ler inteiro. A última vez que eu li um livro eu era pequenininho,
aqueles de três páginas [...] não conseguia ler direito. Eu conseguia, eu sei ler
direitinho, mas eu não tenho muita paciência para ficar lendo (Paulo).

Assim, eu tenho algumas dificuldades, tenho que correr atrás disso atualmente que é:
começo a ler e começa a lacrimejar meus olhos. Óculos, pelo jeito deve ser óculos.
Me dá muito cansaço ler, mas assim, se for coisa pequena eu vou ler, mas se for
coisa grande já não me dá paciência (Marcelo).

Ao descreverem sua dificuldade de leitura, Paulo e Marcelo constroem a


argumentação de maneira parecida: parece haver, inicialmente, problemas com a decifração
das palavras, no caso de Paulo, e de insistir na leitura, no caso de Marcelo; a seguir, o
problema é reconfigurado e passa a ser individual ou físico, como falta de paciência ou falta
de óculos. Segundo essa lógica de compreensão da leitura, os alunos se percebem como não
leitores ou como pessoas que não são íntimas dessa atividade. Finalmente, ao ser perguntado
se gostava de ler, Paulo responde com um lacônico “não”, ao passo que Marcelo insiste na
ausência de paciência para a leitura. O circuito de afirmações sobre seus desempenhos tem
passagem importante na escola, onde os julgamentos das professoras parecem indicar as
possibilidades de aprendizagem dos alunos:

Ah, o Marcelo. O Marcelo tem deficiência mental, eu não sei se você percebeu. Um
problema sério aquele rapaz. Ele disfarça bem, mas ele tem um comprometimento
mental [...], mas eu não sei te dizer muito dele não. Não conheço muito ele não. As
duas [Clair e Karina] eu sei te dizer quem são, o Marcelo muito pouco (Cida).

Questionada sobre Marcelo, a professora Cida sustenta que o aluno tem uma
deficiência mental que o torna problemático, impedindo-o de ter bom desempenho em sua
disciplina. É curioso notar que durante as observações de aulas, assim como durante a
entrevista, nada indicou a existência de qualquer deficiência intelectual ou motora do aluno.
Foi possível notar, entretanto, os usos que Marcelo faz da linguagem e da leitura, que revelam
um grande distanciamento da maneira como elas são assumidas pela escola e pela professora.
Um exemplo disso é a forma inadequada com que ele utiliza a linguagem ao falar sobre uma
experiência positiva vivenciada em outra escola ao aprender sobre os sinônimos:

[A professora explicava] algumas pegadinhas, como a gente dizia. Umas pegadas


como os sinônimos. Quero dizer, assim, pegar o sinônimo da situação (Marcelo).

Diante de um aluno que causa tanto estranhamento a Cida, sua reação é identificar
possíveis problemas individuais no aluno e, para tanto, faz uso de certo discurso psicológico,
163

aplicado aos problemas pedagógicos. Isto é feito de maneira imprecisa, mas a auxilia a lidar
com um aluno que está menos próximo de suas práticas pedagógicas, ao contrário do que se
passa com Clair e Karina, lembradas durante a entrevista. Ao pesquisar a produção do
fracasso escolar, Maria Helena Souza Patto (1991) nota que as professoras conhecidas por ela
durante a pesquisa também recorriam à Psicologia e à Medicina para falar de alunos
identificados por elas como fadados ao fracasso. Muitas vezes tais discursos estavam repletos
de visões preconceituosas e estereotipadas a respeito dos alunos pobres que frequentavam a
escola investigada, o que também ressoa em nossa pesquisa, pois a professora Cida vê, de
modo geral, os alunos do EJA como espécie de alunos fora do jogo escolar e, dentre eles,
Marcelo parece ser digno de poucas esperanças.
Se Marcelo é referido por sua professora por sua pretensa deficiência mental, Paulo
sequer é lembrado por Verônica durante a entrevista e, consequentemente, ela não diz nada
sobre ele. Enquanto Marcelo conseguia ser notado pelos “problemas” que causa à sua
professora, Paulo parece ocupar a sala sem ser percebido assim como suas dúvidas e a
dificuldade de leitura. Ao reconhecer que não consegue ler direito e que não conhece bem a
classificação das palavras, o aluno aponta os desafios a serem enfrentados por ele e por sua
professora. Entretanto, o aluno reage a isso pelo silêncio que o torna invisível aos olhos de
Verônica. Ao chegar ao ensino médio, já está certo de que não tem paciência para a leitura, de
que não gosta de Português e que só precisa sair da escola. São muitas as formas de os alunos
reagirem à situação escolar, sendo o silêncio uma das maneiras de sobreviver a circunstâncias
que parecem sem saída (PATTO, 1991).
As situações vivenciadas pelos estudantes na escola favorecem a produção de uma
visão de si como leitores não proficientes ou não leitores, e reforçam ainda mais certa
inadequação em suas maneiras de ler. Tampouco a família parece representar um estímulo à
produção dos leitores e, nesse sentido, as relações de gênero parecem desempenhar papel
importante aqui. Marcelo sempre recorre à sua esposa como representante de uma verdadeira
leitora, ao passo que Paulo se refere à figura da mãe:

[Os livros recebidos da prefeitura] Estão guardados. Acho que minha mãe lê… ela lê
sempre. Ela lê um monte de livro (Paulo).

A minha esposa mesmo lê muito aquele “Marley e Eu”. Quando eu peguei aquele
livro que eu vi, falei “Meu, como é que você conseguiu ler?”. Eu já não tenho aquela
paciência para ler. Não sei, não tenho aquela mente “Vou pegar para ler agora”. Eu
prefiro um documentário passando na TV que, ou um computador para ler que um
livro (Marcelo).
164

A identificação com tais figuras femininas e, ao mesmo tempo, a negação de se


reconhecer como leitores remetem-nos à imagem comum de que a leitura estaria mais ligada
às mulheres. No ocidente, pode-se reconhecer a literatura como atividade de lazer feminina,
aquela que auxilia na construção da intimidade e da vida privada burguesa (SONNET, 1994);
a mulher leitora também é uma imagem que sintetiza a construção do público leitor de
romances no Brasil - não podemos nos esquecer de Machado de Assis se dirigindo às suas
leitoras. Além disso, as mulheres criaram práticas de sociabilidade, liberdade e subversão em
torno da leitura, situações nas quais conjugaram o aprendizado da leitura, a escrita de si e a
construção da feminilidade (MORAIS, 2002). Ao mesmo tempo, as figuras do leitor são
vistas como pouco masculinas, uma vez que a atividade esteve associada às mulheres, apesar
de serem eles a compor a maior parte dos escritores presentes em nosso cânone literário.
Essas representações sobre a leitura e seus tensionamentos com o gênero aparecem tanto na
escola quanto na família. A fala das professoras, sobretudo a de Cida, ao opor Marcelo às
alunas, por exemplo, deixa entrever que ela opera com tais representações. Notamos que
Marília Pinto de Carvalho (2008) indica o quanto as representações de gênero interferem na
avaliação feita pelas professoras. Com relação à avaliação escolar, as moças geralmente são
vistas como boas alunas, uma vez que elas demonstram capitais necessários para responder
positivamente às demandas escolares, como é o caso de Karina e Clair.
As relações de gênero também parecem significativas no polo da família para
compreendermos a visão de nossos entrevistados a respeito da leitura de obras literárias.
Nesse espaço, os contrapontos mencionados por eles são femininos e representam modelos do
que se define como um bom leitor. Como já mencionamos, Marcelo toma sua esposa como
exemplo e Pedro tem como referência a sua mãe, a quem gosta de ouvir falar sobre os livros,
em um misto de interesse pela leitura e pela afetividade com a mãe. A produção de
identidades masculinas, no caso de alguns grupos sociais, passa pelo distanciamento de ações
identificadas como femininas. Ao realizar uma pesquisa sobre leitura na América latina,
Michele Petit (2009) observou que muitos jovens falavam que livros eram coisas de maricas
e, assim, mantinham-se longe deles. Fica claro, portanto, que entre as clivagens a partir das
quais se constroem os leitores, as identidades de gênero desempenham papel importante.
Assim, pelo circuito dos julgamentos e representações de gênero familiares e escolares,
Marcelo e Paulo são distanciados da leitura e vão, pouco a pouco, incorporando a imagem de
que não servem para isso.
As alunas entrevistadas reagiram de modo diverso a essa questão. A leitura não foi
encarada como uma atividade estranha para elas; pelo contrário, trata-se de uma atividade
165

familiar. Nesse sentido, o conflito que se sobressai é com a escola – qual seria a leitura
legítima? Outras alunas do ensino médio regular identificavam-se como leitoras, porém
apenas daquilo que lhes interessava e, por isso, diziam ser “chatas” a maioria das leituras
sugeridas na escola. Enquanto os homens descritos no parágrafo acima parecem ter maior
distância em relação à literatura de um modo geral, as mulheres dão indícios de perceberem
suas preferências e práticas de leitura tensionadas pela escola. A leitura constitui-se como um
espaço de construção da subjetividade e de intimidade entre mulheres, o que ficará mais claro
na seção abaixo. É comum que as estudantes leiam best-sellers, revistas e blogs em busca de
informações para suas vidas práticas e, assim, suas motivações de leitura e objetos
selecionados por vezes distanciam-se do que é previsto no currículo escolar e nos materiais
didáticos, como procuramos demonstrar no capítulo 2:

[Não gosta da leitura escolar] porque tem que ler, pra mim eu acho que isso é chato
[...] eu não gosto de ler história, assim, eu gosto de ler livros (Amanda).

Eu gosto [muito de ler]. Eu gosto de ler coisas do meu interesse, mas eu gosto muito
de coisa... eu gosto do, que eu li... Eu li aquele Vidas Secas (Karina).

A insistência em reforçar o gosto pela leitura de interesse sugere o desinteresse


constante associado à leitura escolar, que adquire sentido apenas quando se aproxima das
experiências individuais das entrevistadas, o que não acontece comumente. Karina optou pela
leitura de Vidas Secas, sugestão de um professor do cursinho, porque o enredo se relacionava
à sua infância, vivida no interior. Além disso, a oposição trazida por Amanda, que prefere os
livros às histórias, é significativa dos efeitos da abordagem conferida à leitura de obras
literárias nas escolas pesquisadas. A ênfase dada ao período no qual os livros foram escritos e
seus autores viveram torna a literatura uma espécie de “patrimônio histórico”, que pouco se
presta àquilo que os alunos parecem gostar: o acompanhamento das peripécias da trama, o
desenvolvimento das personagens, entre outros. Luana expressa tal perspectiva:

Na hora [eu me lembro do que é o Barroco] sim, mas agora eu sei que é uma, que é
um movimento artístico que foi construído no Brasil, tipo um patrimônio histórico, e
é o que eu lembro (Luana).

Tais indícios evidenciam uma distância de representações de leitura e,


consequentemente, o afastamento recíproco entre a escola e seus alunos. Em função das
representações de leitura constituídas em ambientes não escolares, as alunas são classificadas
166

segundo suas capacidades de leitura, ao passo que os homens são excluídos da possibilidade
de atingirem a posição idealizada de leitura. Nesse tocante, Luana sintetiza a situação da
seguinte forma:

Aquele negócio do leitor-leitor... [ele] não faz porque é obrigado, faz porque gosta
(Luana).

A aluna da Escola 1 não se vê como uma leitora-leitora, pois para atingir tal
classificação seria preciso incorporar o gosto pela leitura de obras literárias a ponto de não
fazer isso por obrigação, mas sim por prazer. Além dessas características, Bernard Lahire
(2008) afirma que a imagem da leitura mais legítima também é marcada por uma atividade
que leva tempo, ou seja, dias e semanas, e que é extensiva. A leitura fragmentada ou curta é
pouco legítima, pois a periodicidade da leitura deveria ser constante, diferentemente do que
Luana faz. Diante disso, ela não pode se considerar uma leitora, classificação que todos os
entrevistados tiveram dificuldade de atribuir para si. Eles são leitores com ressalvas,
demonstrando o tensionamento produzido por suas práticas constituídas em espaços não
escolares quando comparadas às escolares.
Vemos em alguns casos a existência de uma tensão entre se dizer leitor – na maneira
como se lê cotidianamente - e as expectativas escolares, como Camila e Luana demonstraram.
Já mencionamos que a leitura estética é defendida nos currículos escolares, nomeadamente, as
OCEM. Apesar de circularem outras ideias de leitura na escola, por exemplo, aquelas
expressas pelos alunos, os livros didáticos e as representações de leitura das professoras na
sala de aula vão ao encontro das propostas oficiais de ensino literário, ainda que se apropriem
de fragmentos dos PCN e OCEM. Esse tipo de leitura seria um dos elementos que compõem o
arbítrio cultural defendido na sala de aula (BOURDIEU, 2014b). Parece-nos que, uma vez
identificado tal arbítrio, os alunos se posicionam ou não como leitores em função de sua
proximidade ou distanciamento com relação a ele. É significativo notar que a percepção de
suas possibilidades de leitura foi sendo produzida pelos alunos ao longo de seu processo de
escolarização, no ritmo dos ciclos e dos anos escolares. Encontramos nossos entrevistados já
na fase final desse processo, quando a regularidade das ações escolares já havia produzido
diversos efeitos nos estudantes. Os alunos mencionaram em suas entrevistas situações nas
quais se esforçaram para gostar dos livros ou tiveram uma experiência positiva com a
literatura, mas elas parecem estar no passado. No presente, o sentimento é de uma permanente
frustração e a impressão de não conseguirem alcançar a posição de leitor-leitor.
167

No confronto com o ideal de formação escolar, expresso segundo bases inatingíveis,


de acordo com seus depoimentos, os alunos e a escola parecem disputar, sobretudo, os
sentidos da leitura de obras literárias na escola, como veremos a seguir.

4.1.2. Os sentidos em questão: entre julgamentos escolares e representações pessoais de


leitura

Os sentidos atribuídos aos textos literários por nossos entrevistados também emulam
as tensões concernentes às formas de apropriação da literatura entre a escola e a família.
Romances, revistas, textos de blogs são vistos ora como momentos de distração e evasão, ora
como circunstância de aprendizagem sobre a linguagem e sobre a vida em geral. No que se
refere ao primeiro caso, a possibilidade da imaginação é o que dá contornos à leitura, como
podemos acompanhar nas falas de Mariana e Amanda:

Eu gosto de um meio dramático, eu gosto de imaginar aquela coisa o que está se


passando, o que a pessoa está sentindo. Agora, eu não gosto de nada de aventura,
essas coisas. Ah, é meio ruim essas coisas de aventura e de não poder imaginar…
(Mariana).

[...] no livro você pode imaginar um monte de coisas, você vê como é (Amanda).

Se “imaginar” ou “habitar o mundo da imaginação” parecem pressupor certa


passividade por parte do leitor, segundo as definições de dicionário do verbo em questão,
percebemos que esse momento de ideação pode ser definido como uma ocasião para a
produção de algo ou de si. O dicionário Houaiss (2006) afirma que imaginar significa:
“descobrir, criar (algo abstrato); idear, inventar; fazer ideia de (algo, alguém ou de si mesmo);
visualizar(-se); conceber ideia (sobre algo, alguém ou sobre si mesmo) de; julgar(-se), supor(-
se), presumir(-se)”. A imaginação produzida durante a leitura se mostra como um trabalho
feito a partir dos elementos literários sobre os aspectos do mundo e dos outros abordados,
principalmente, nos romances. Ao mesmo tempo em que se pode pensar sobre os outros, a
literatura possibilita um olhar para si; trata-se de produzir novos significados ou reviver a
própria trajetória. Esse aspecto fica evidente quando Karina explica a razão de ter lido Vidas
Secas, de Graciliano Ramos:
168

[Escolhi ler Vidas Secas] Porque é a história do sertão, né? É uma história parecida
com a minha… olha, [o livro não tem tanta relação com minha história], não...
algumas coisas. O fato de eu estar numa situação, na época, porque eu era bebê. Mas
eu também passava as férias com a minha vó lá [no sertão]. Quando eu ia para lá a
infância era diferente. Lá eu tinha liberdade, eu podia correr, subir os morros, nadar
no rio. Lá eu tinha infância (Karina).

Podemos pensar a literatura em seu aspecto formativo. A esse respeito, Antonio


Candido (2004) afirma que a literatura pode ser um fator de humanização, por meio dos
exemplos e tipos que ela apresenta. As alunas entrevistadas parecem se referir a algo
semelhante quando partem da literatura para revisitar suas experiências ou até mesmo para
aprender a partir das situações vividas pelos personagens:

Pensei, cara, imagina perder uma pessoa muito especial que você tem na sua vida
desse jeito? Você conta a história desses dois de um jeito muito bonito. Tipo, você
imagina, no momento, você imagina você perdendo aquela pessoa muito especial
para você. Isso que faz você se sentir na história (Adriana).

As dificuldades enfrentadas pelas personagens tanto ampliam as referências de


situações que podem ser vividas pelas pessoas, como funcionam como incentivo ou
inspiração para o enfrentamento de seus problemas pessoais. Para Luana, a literatura pode
desempenhar essa função. Ao mesmo tempo, os enredos também são fontes para que se
realize uma fuga da realidade, como afirma Adriana:

Por isso eu gosto mais de aventura, fantasia... Porque eu posso fugir para aquele
mundo e tal (Adriana).

A possibilidade de embarcar nesse mundo literário liga-se a uma certa visão idealizada
da literatura como um lugar elevado e cheio de belezas, o que remete, por sua vez, a um
discurso recorrente no século XIX (SONNET, 1994; CHARTIER, 2002).

Então, eu faria um texto cheio de beleza. Acho que eu escolheria os mais belos.
Realmente, eu escolheria coisas belas para as crianças encherem a imaginação de,
sabe, para elas entrarem num mundo de beleza e não nesse mundo que passa na
televisão (Karina).

A literatura também é vista como espaço de tratamento para males psicológicos,


elemento este trazido por Clair. Após um quadro depressivo, a estudante recorre à leitura de
periódicos e obras ficcionais relacionadas ao universo espírita para se recuperar:

Depois da depressão eu fui obrigada a ler porque eu tinha que estudar o que eu tinha
porque os primeiros 3 meses de crises eu não sabia o que eu tinha (Clair).
169

Só livro espírita porque eu precisava disso para entender o que estava acontecendo
comigo (Clair).

Em nossa pesquisa de mestrado (AMPARO, 2012) mencionamos o caso de uma


mulher que iniciou a leitura de romances sentimentais como forma de ajuda emocional.
Nesses casos, parece-nos que a necessidade de algum tratamento psicológico, a dificuldade de
acesso a ele e uma imagem terapêutica da literatura conjugam-se. Virgínia Bentes Pinto
(2005) sustenta que a imagem dos livros e das bibliotecas como possibilidades de tratamento
remonta à Antiguidade, passando pela Idade Média, quando os textos sagrados eram lidos
durante as cirurgias. Quando os conhecimentos psicológicos ganharam terreno, a biblioterapia
surgiu como uma ação terapêutica baseada na leitura, interpretação do texto e diálogo com o
terapeuta (PINTO, 2005; LUCAS, CALDIN, SILVA, 2006).
De todo modo, a leitura parece ter mais relevância para algumas pessoas caso ela
esteja próxima do real, seja o real atrelado às experiências das entrevistadas, seja um
problema concreto vivido por elas, como é o caso de Clair. A realidade parece ser sempre o
referente quando se trata da linguagem literária. Novamente, uma passagem do depoimento de
Mariana sintetiza a relação entre os entrevistados e o real:

Porque geralmente é sempre coisa assim, muito coisa que não existe. Coisa tipo,
coisa grega, aventura. Muita coisa que você sabe que não existe, mas aquilo tá
falando. Eu não gosto de coisa muito artificial, eu gosto daquilo que você sabe que é
e que aconteceu (...) eu tô lendo aquilo, aí fala que Afrodite não sei o quê. Eu ouvi
falar, todos os professores falam, mas eu não sei se é verdade ou não. Não tem
aquilo que comprova que aquilo aconteceu (Mariana).

Possivelmente também decorre disso a preferência pelos romances, como


demonstraram alguns entrevistados. Veremos a seguir que os estudantes optam
frequentemente pela leitura de livros que falam sobre comportamento juvenil, relações
amorosas, enfim, vemos a preferência pelos textos que oferecem maior aproximação ou
mesmo soluções para os dilemas cotidianos. Em outra vertente, a literatura também é vista
como algo que precisa ser útil, sobretudo para o mundo do trabalho ou para a ascensão social
via escolarização. Luana é um bom exemplo disso:

[...]para você ver o Diário de Anne Frank, como eu achei uma história, tipo, aquele
sim eu uso (...) porque é uma história legal, é uma coisa que a gente sabe que cai e
ela fez diferença (Luana).
170

A leitura predileta parece estar entre o prazer e a utilidade, adquirindo, com isso, um
valor:

Tem que gostar. Quem lê fala bem, escreve bem, se comunica bem, tudo é bem e
quem não lê, não. Eu tinha que gostar (Luana).

Eu acho que eu sei que eu preciso ler porque eu estou tendo dificuldades de formatar
ideias (Clair).

Os alunos demonstram a incorporação de um discurso constante de valorização da


leitura. Professores, campanhas governamentais e não governamentais ligadas ao tema,
novelas, jornais, entre outros, são unânimes ao ressaltar o valor da leitura e nossos
entrevistados veem que ela é importante para falar, escrever e se comunicar bem, assim como
para formatar ideias. O modo como as alunas falam deixa ver que elas pretendem se tornar a
pessoa que via leitura domina os capitais linguísticos necessários ao que desejam, entretanto,
é importante mencionar que Clair, Adriana e Karina, por exemplo, têm o hábito de ler com
frequência, entretanto, elas não consideram leitoras legítimas. Talvez seu distanciamento em
relação ao que a imagem do leitor-leitor propõe, sustentada pelas classificações escolares dos
alunos como não leitores, auxilie na produção desse quadro.

4.2. São todos como eu: a construção não-escolar do leitor

Nas seções anteriores discutimos os critérios com os quais os alunos identificam suas
distâncias e aproximações em relação ao ideal de formação literário na escola. Observamos
que a partir de sentidos, repertórios e lógicas diversas, a produção do leitor legítimo é vista da
maneira problemática na escola. Ao se valerem de suas disposições no espaço escolar, os
alunos se percebem desvalorizados. Isto posto, torna-se importante acompanharmos mais
detalhadamente a produção do leitor fora da escola de modo a situar a elaboração do problema
mencionado acima. Para tanto, observaremos os ritmos e temporalidades da literatura a fim
de compreender como ela é representada pelos estudantes. A transmissão de sentidos para a
leitura de obras literárias se dá cotidianamente, sem a mesma intencionalidade que na escola,
mas com a presença constante dos familiares que, a seu modo, estabelecem uma relação com
os livros, recorrendo a eles de acordo com as circunstâncias e, assim, fornecendo as
condições para a incorporação de práticas de leitura. O tempo, nesse aspecto, é fundamental e
condição estruturante desse processo, pois as repetições de ações semelhantes, com o passar
171

dos dias, meses e anos favorecem a incorporação de hábitos de leitura (LAHIRE, 2002).
Nesse quesito, os estudantes entrevistados oferecem experiências significativas acerca do
papel das famílias na produção das práticas e representações literárias.

4.2.1 A gestão familiar dos tempos e temporalidades da leitura de obras literárias

As práticas de leitura dependem das interações de pessoas e comunidades de leitores


dos quais se faz parte. O contato com o outro auxilia na constituição de repertórios literários,
modos de ler, gestos e espaços atrelados à leitura (CHARTIER, 1999). As famílias
correspondem ao primeiro exercício de contato com o outro e funda maneiras de compreender
e representar livros, jornais, revistas, entre outros objetos da cultura escrita. A esse respeito,
Pierre Bourdieu (2011) sustenta que a família é uma palavra de ordem, pois ela estrutura a
realidade, uma vez que a experiência que vivenciamos nos fornece os parâmetros para pensar
no que consiste o real. É claro que o autor está falando de um real socialmente situado, cuja
densidade desenvolve nos sujeitos pontos de vista estruturantes do mundo social. O espaço
familiar ainda tem a função de acumular os diferentes capitais, entre os quais o capital
cultural. Assim as disposições com a cultura tendem a ser reproduzidas em seu interior. No
caso dos alunos entrevistados, observamos que as relações familiares são responsáveis pela
produção de disposições com a cultura, as quais são levadas para a sala de aula e
reclassificadas no processo de escolarização.
De início buscamos identificar a posse dos objetos de leitura. Por meio de um
questionário feito com os alunos do ensino médio regular, foi possível apreender o
predomínio dos livros, incluindo-se a bíblia, entre os objetos de leitura presentes em suas
casas. As revistas ocupam o segundo lugar, indicando a proximidade dos estudantes de
periódicos que tratam, sobretudo, de assuntos relacionados ao universo adolescente. Gibis e
jornais completam o quadro das publicações de preferência dos estudantes. Com relação a
outros objetos culturais, chama-nos a atenção o fato de que nem todos os alunos têm um
computador em casa: dos 69 alunos que responderam ao questionário, 44 possuem
computador, ao passo que 25 não têm acesso a ele no espaço doméstico. Como veremos
adiante, sites e blogs são fontes de informação muito presentes no dia a dia dos alunos, o que
nos indica que, na ausência dos computadores, o smartphone permite o acesso a tais espaços
virtuais.
172

Quadro 2. Presença de impressos e outros objetos culturais na casa dos alunos

Além do acesso aos objetos culturais, interessa-nos compreender de que modo os


alunos passam a se apropriar de livros, revistas, jornais e gibis. Os depoimentos de
adolescentes e adultos acerca de suas relações familiares indicam que esses objetos, mais que
meios de entretenimento e informação, constituem elos entre eles e suas mães, irmãos e pais.
Desse modo, ocorre um processo de aprendizagem sobre os livros e sobre si, construindo-se
uma identidade por meio dos objetos da cultura impressa. Nesse tocante, Mariana mantém
relação de cumplicidade com a mãe e, assim, seus intercâmbios de leituras são permeados
pela cumplicidade entre mãe e filha. A esse respeito, pareceu-nos significativo quando a aluna
descreveu uma ocasião na qual foi à livraria com sua mãe e escolheram os livros:

Sim, porque ela fala assim, a gente está lá escolhendo e ela fala assim: “olha esse
livro,” e eu falo: “o que tem esse livro?” “Ele não tem nada a ver com você”. “Esse
livro aqui, você tem que ler, parece com você”. “Por quê?”. “Por que são As
confissões de um adolescente”. Mas eu falei: “isso não tem nada a ver comigo”. Mas
ela falou: “Parece sim, por isso mesmo!” “Então tá bom, então” (...) Aí eu não levo.
Isso aí não é minha cara. Aí ela falou assim: “É sim sua cara!” Então tá bom, mas eu
não levo. Ela queria que eu levasse aquele, mas eu levei O código da inteligência
(Mariana).

A conversa em torno dos livros, que acompanhamos na perspectiva da filha, consiste


em uma das situações privilegiadas entre as duas e parece ser a ocasião na qual mãe e filha
173

estreitam laços entre si e, ao mesmo tempo, com a literatura. Em ocasiões como essa, as
famílias produzem um arbítrio cultural para os filhos, ou seja, fornecem a eles obras
merecedoras de leitura e os usos a que se prestam, constituindo um universo literário segundo
os sentidos estruturados a partir de suas posições sociais (BOURDIEU, 2007). O debate em
torno do título que Mariana deve escolher demonstra o esforço da mãe para, de alguma forma,
auxiliar a filha a se aproximar de um título que considera condizente com o momento atual de
sua vida, mas Mariana quer projetar seu futuro como psicóloga. O mesmo tipo de relação
afetuosa tendo o livro como intermediário se observou no caso de Paulo, que parece apreciar
o modo como a mãe compartilha com ele suas leituras:

Minha mãe geralmente [comenta] sim [sobre o que está lendo] .... Ela conta sempre
a história do livro e ela fala para mim ler…. [eu] Gosto [de ouvir]. Ela sempre conta
da história do livro, ela fala o que achou bonito dos livros (Paulo).

As relações familiares permitem que os jovens aprendam as funções e maneiras de


circular pelo universo da cultura escrita. No exemplo a seguir, Mariana indica como sua mãe
lhe apresentou a cobertura dos livros e como eles auxiliam na escolha de um título:

Ela [mãe] vai pra me levar, pra me acompanhar e pra dar opção de qual livro eu
devo levar ou não! (...) Ela falou assim: “ você que tá lendo, você escolhe”. Mas às
vezes eu sou meio indecisa também de qual devo levar, aí minha mãe me ajuda a
escolher. (...) ela lê o resumo aqui [aponta para a quarta capa do livro que seguro],
que mostra o que acontece. Ela vê o autor, tipo quem é e fala assim: “eu acho que
você tem que levar esse, parece mais com você. Você tem que levar esse (Mariana).

Por meio da relação de cumplicidade com a sua mãe, Mariana vivencia um processo
de aprendizagem sobre que sentido atribuir aos textos literários, ou, mais especificamente,
como aproximar estes últimos à sua personalidade ou à situação pela qual está passando. Ao
mesmo tempo, o acesso aos livros é associado a um lugar de compra bem como a aquisição
dos livros vai se tornando um valor relativo à prática de leitura, constituindo-se um repertório
de ações e critérios para a seleção de um título que passa pela investigação da capa, da quarta
capa, da leitura do resumo e de informações sobre o autor. A partir de tais elementos,
podemos inferir que Mariana está construindo ao longo do tempo um conhecimento que pode
ser utilizado para circular no mundo letrado, mas que, nesse momento, ainda depende da
presença da mãe. Ao mesmo tempo, em casa, a mãe compra e guarda jornais e revistas, que
fazem parte do cotidiano de Mariana e lhe oferecem possibilidades de leitura:
174

Ela lê bastante revista e jornal também. Ela lê a Folha de São Paulo (...) Eu olho,
assim, às vezes. Tem aquelas tirinhas, né, aí dependendo da tirinha eu vou lá e vou
ler. Agora, aquelas outras partes eu não vou ler (Mariana).

Eu leio bastante revistas. Eu nunca gostei de gibi. Eu leio bastante revista porque a
minha mãe sempre traz. Minha mãe toda dia traz uma revista, aí eu vou lá, vou
virando as folhas para ver o que tem. Eu vou passando e aquilo que me interessar eu
vou ler... Acho que é Viva, aquela que fala sobre os famosos. Tem tudo lá (Mariana).

Mariana vive, assim, em um mundo familiar coerente no qual a mãe exerce um papel
fundamental ao representar um certo circuito literário. A participação em um universo
familiar organizado no qual livros, jornais e revistas desempenham papel importante também
foi destacado por Amanda. No seu caso, adiciona-se um componente religioso, ao enfatizar
que as revistas lidas por sua mãe e outras assinadas para os filhos são da igreja. Torna-se mais
claro que no universo familiar cada objeto de leitura tem seu lugar, pois estão articulados aos
modos de sociabilidade, ao exercício de classificação e organização do mundo literário e
social. Bernard Lahire (2008) afirma que a regularidade constitui um aspecto central para que
as disposições culturais possam ser incorporadas. Consequentemente, a constância e a
articulação dos livros e revistas presentes no dia a dia das famílias produzem a imagem do
universo literário possível aos alunos. Nota-se que os adolescentes estão imersos em mundos
literários que muitas vezes são invisíveis no espaço escolar. Ao mesmo tempo, as afirmações
de Amanda permitem entrever que a leitura parece uma atividade compartilhada por toda a
família:

Minha mãe faz uma assinatura de uma revista; meu pai, ele é funcionário público,
ele trabalha na funerária e ele lê muito processo; e o meu irmão, minha mãe faz
assinatura pra ele de duas revistas (Amanda).

A valorização da leitura é um esforço articulado que faz parte de um projeto de


educação e ascensão social da família. Assim, Amanda descreve como os pais planejam as
leituras para os filhos de acordo com as suas idades e seu nível de escolarização:

A assinatura do meu irmão antes era minha, aí parou um pouco para mim e depois a
minha mãe começou a fazer para ele (Amanda).

Minha mãe já fez assinatura do gibi da Mônica. A turma da Mônica jovem e da


pequena também, eu tenho um monte lá em casa (Amanda).

O projeto de seus pais se torna mais evidente quando a aluna conta as tensões entre
aquilo que ela gosta de ler, a saber, as revistas para adolescentes, e a leitura que seu pai julga
útil:
175

Meu pai fala que não aprende lendo revista de fofoca, que é a Todateen (fala toda
tem). Eu vou para o meu quarto e leio a minha revista. Eu tenho um bolo de tamanho
assim de revista da Todateen [gesticula uma pilha de livros bem grande]. Eu tenho
mais um bloco desse tamanho assim da Turma da Mônica. Eu queria continuar mas
a minha mãe falou que por causa da escola eu não poderia. Para não desconcentrar...
da Mônica. Mas todo mês eu vou lá e compro da todateen com meu dinheiro. Não é
com dinheiro dela, então tudo bem (Amanda).

Vemos que nessa família a leitura é vista, sobretudo, como algo planejado de acordo
com suas funções relacionadas à idade dos filhos. Quando mais jovens, são ofertados a
Amanda e seu irmão gibis e revistas voltadas para o público infantil, assim, a leitura é vista
como entretenimento e, possivelmente, como espaço de aprendizagens edificantes. Entretanto,
quando se torna mais velha, no período pré-vestibular, as leituras devem ter um conteúdo que
seja proveitoso para o aprendizado na escola e para a entrada na faculdade de Direito ou
Pedagogia, conforme as sugestões de seus pais. Amanda vive essa tensão, uma vez que já se
apropriou da leitura como espaço de formação, mas também como atividade de distração:

Mas [meu pai] também implica quando eu assisto Malhação, que eu gosto. Mas eu
também assisto jornal. Vejo bastante na internet (Amanda).

É importante observar que as leituras privilegiadas nessa família são as revistas e


gibis. Os textos literários têm pouca função, seja nas escolhas de distração feitas por Amanda,
seja no projeto de ascensão dos pais. Podemos associar tal opção ao espaço concedido aos
livros pela família na educação da jovem, mas também ao preço dos livros e o acesso a eles.
Se o valor de uso dos textos literários já se mostrou no caso de Amanda, na família de
Luana isso parece ser fator muito significativo para se pensar sobre eles. Além disso, a
maneira como ela e sua família representam sua relação com os livros demonstra
distanciamento. O trecho a seguir parece demonstrar tal aspecto:

São todos como eu. Eles leem porque é alguma coisa que interessa. Eu já peguei a
minha mãe lendo dois livros. Minha irmã eu já peguei lendo, agora que ela está na
faculdade ela está lendo mais. Eu já peguei ela lendo uns três livros. Meu irmão me
surpreendeu que uma vez ele leu um livro dessa grossura assim, gigante, enorme,
tudo texto, não tinha nada figura. Um livro gigante que você olha, meu Deus, nunca.
Só um que eu não vejo ler que é meu irmão, Lucas (Luana).

Ao dizer que já pegou seus familiares lendo, Luana indica o quanto isso foi
surpreendente para ela, que também utiliza essa expressão para falar do irmão. As leituras
feitas no âmbito familiar parecem inexistir, dando assim a dimensão da distância com relação
176

à leitura que verifica em sua família. Nesse tocante, o espaço da escolarização parece
significativo para produzir o interesse e ampliar sua frequência de leitura. Podemos
identificar, por meio desse exemplo, o efeito que uma experiência de escolarização pode
sugerir aos modos de se aproximar da leitura (LAHIRE, 2008). Nesse caso, a matriz
socializadora escolar produz estruturas mobilizadas pelos alunos mesmo quando estão fora da
escola. A frequência à Universidade, se tomarmos o exemplo da irmã, e a necessidade de ler,
comprar livros e, portanto, ir às livrarias pode ter a função de ampliar as ocasiões de leitura:

Minha irmã lê livros da faculdade e A Menina que roubava livros, esses livros
assim. Minha mãe também. Não lembro o nome do livro, mas era esse gênero aí
(Luana).

Uma vez que se gera mais interesse, vê-se que se tem acesso aos objetos literários que
estão na moda, acessíveis nos lugares por onde os jovens circulam, e também àqueles que
guardam relação com os ambientes de formação dos alunos. Nesse caso, a influência dos
familiares parece ser menos significativa para modelar as práticas de leitura no sentido afetivo
ou em um projeto mais claro de ascensão social. Luana se recorda apenas de sua avó, cuja
proximidade com a literatura é mencionada:

Quando eu era criança, minha vó comprava muito livro e como ela pagava muito
caro nos livros eu não tenho coragem de dar. Então, tipo, eu tenho uma sobrinha.
Quando ela começar a ler eu vou dar para ela. Então esses ficam guardados (...) Ah,
uns livros mais trabalhados, assim, de criança, sabe. Mas todos bonitos, coloridos. E
todos os livros que eu tenho eu li quando eu era pequena (Luana).

Apesar de se aproximar da figura da avó, que representa uma verdadeira leitora (“Ela
compra livro, ela dá livro. Ela paga absurdo em livro, coisa que eu jamais faria”) , Luana se distancia
dessa figura e se fixa em outros valores. Para a aluna, a função dos objetos de leitura está em
primeiro plano, assim como o preço dos livros:

Eu compro, assim, quando ela vem com algum pôster, alguma coisa assim que me
interessa. Se não eu vejo na internet, no site. O que vem na revista eu leio no site
porque a gente compra a revista, se ela vem com algum pôster, alguma coisa que
você é fã, você quer guardar porque você é fã é uma coisa. Agora, você leu e fica lá
papel guardando, juntando pó e você gastou dinheiro. É melhor você ler lá no
computador, leu, acabou, quer ler de novo entra lá de novo (Luana).

Você pagar, tipo, R$150,00 em um livro. Onde já seu viu isso? Aí você vai lá, leu e
acabou. Não, eu não tenho coragem de dar isso num livro (Luana).

Por meio das passagens acima vemos que Luana avalia as aquisições de revistas e
livros pela relação entre custo e benefício dos mesmos. Uma vez que a atividade de leitura se
177

esvai no momento em que ela é concluída, não faria sentido gastar tanto dinheiro com livros e
revistas, exceto quando a revista, por exemplo, oferece algo para além do ato de leitura, como
um pôster colecionável. Observa-se, desse modo, que a leitura é vista como uma espécie de
acúmulo de informações e enredos que, ao serem conhecidos, devem ser deixados de lado
para que se adquira algo novo. O valor pago por livros e revistas, nesses casos, torna-se ainda
mais predominante para a aquisição dos livros. Vimos nos casos de Amanda e Mariana que o
dinheiro também é um fator importante para o regime de compra dos livros e revistas,
entretanto, suas famílias parecem atribuir maior valor simbólico aos livros, o que permite a
satisfação do desejo de comprá-los com maior frequência. Luana e sua família parecem ver
menos valor simbólico nos objetos impressos, assim, eles valem exatamente o que podem
oferecer, como um pôster ou uma informação precisa sobre algo que vai ser cobrado no
vestibular. Parece-nos que o livro vale o quanto pesa e, assim, seu valor é medido como o de
qualquer outro objeto.
Uma das bases do sistema simbólico que a escola parece defender tem como
referência, como vimos no capítulo 2, a hierarquização de autores e publicações. Os alunos
não incorporaram essa hierarquia. Os valores estão tensionados no registro do que é útil -
trabalho/prazer - ou como uma atividade de lazer como qualquer outra. Isso difere os leitores
jovens dos mais velhos
Essa maneira de produção de sentidos para a leitura de obras literárias fica mais
evidente quando confrontamos as experiências dos entrevistados mais jovens com a dos mais
velhos. Clair, Karina e Marcelo não vivenciaram situações familiares tão articuladas em torno
do universo literário, quanto os alunos mais jovens. Suas famílias demonstram, de acordo com
suas afirmações, não valorizar tais espaços e mesmo a educação, além de enfrentarem a
situação de escolarização interrompida:

Então, é eu saí da casa dos meus, eu terminei a 8ª série com 20 anos. Aí meu pai
falou assim “Bom, agora eu já te dei o estudo que eu podia te dar” porque ele tinha
mais 8 filhos”. Se você quiser continuar estudando.”. Eu sempre gostei muito de
estudar, sempre achei isso muito importante “[...] você vai trabalhar fora e vai
continuar a estudar”. Aí meu pai já até tinha arrumado um trabalho. Naquele tempo,
emprego para a gente era em casa de família (Clair).

Eu parei já muito tempo porque eu tive filho cedo. Filhas, eu tive duas filhas. Eu
tenho uma de 21 e uma de 17 anos. Com isso eu tive que começar a trabalhar e tive
que optar: ou os estudos, ou o trabalho [...] eu estava na 5ª série na época. Eu me
amiguei cedo, com 14 anos. Eu estava na 6ª série (Marcelo).

Nesses casos, apesar de a escolarização realizada com muitas interrupções, as


principais referências culturais vêm da escola, além de outras instituições - sobretudo da
178

igreja. Para esses alunos, os professores são as figuras mais significativas para que produzam
representações positivas a respeito das obras literárias. Em razão disso, Karina se lembra
vivamente de seus professores do cursinho, um momento considerado privilegiado para a sua
formação:

Assim, eu estudei pouco na vida, mas eu fiz oito meses de cursinho lá na Poli e
também nesse supletivo que eu fiz no segundo ano eu também estudei com o
professor, o Ataulfo (Karina).

Eu gosto de ler coisas do meu interesse, mas eu gosto muito de coisa... eu gosto do,
que eu li... Eu li aquele Vidas Secas. Eu li porque quando eu estava fazendo o
cursinho da Poli eles falavam para a gente ir lendo. Aí eu li também Carlos
Drummond de Andrade. Li também não sei o que lá do Ipê. Muito lindo. [risos] É
porque eu sou romântica. Então esse daqui é um sobre o que eu faço, energia.
[Mostra o livro que está em sua bolsa] Aí fala um pouco de Deus, né? [Karina].

Diferentemente dos estudantes do ensino médio regular, Karina tem como principais
referências literárias aquelas advindas da escola, sem contar as leituras religiosas. Assim, suas
principais referências vêm do ambiente escolar e suas idas e vindas no universo literário
giram em torno das referências trazidas pelas instituições de ensino que frequentou, apesar
das dificuldades enfrentadas (“Conseguia ler um pouco, mas não conseguia ler mais. Eu não
conseguia me entreter”). Lembremos que as preferências dos alunos mais jovens giravam ao
redor de livros vindos do cânone escolar, mas também os best-sellers, revistas e gibis, sem
acentuar grandes distinções entre eles. Karina e Clair, sobretudo, concebem de maneira
especial os livros conhecidos no espaço escolar, conforme ressalta o comentário desta última:

Eu acho que um romance bem elaborado já é diferente. Você lê um romance bem


elaborado, um livro bem escrito, é uma coisa que te fascina, que te segura ali para
você continuar lendo e a leitura é sempre bom, não importa o que você vai ler, você
está lendo! (risos) Mas eu gosto muito de aprender, coisa que eu gosto é de
aprender. Conhecimento para mim é sempre bom (Clair).

Os adultos vivem em um mundo muito marcado pelas hierarquias culturais e sociais, o


que não acontece entre os adolescentes. As disposições dos primeiros fazem-nos mais
próximos do universo simbólico escolar, ao passo que os segundos entram em maiores
conflitos com a escola. Assim, as relações com a leitura mantidas nas famílias e suas
repercussões nos espaços de formação permitem-nos ver as disposições culturais e os
esquemas interpretativos dos quais nossos entrevistados dispõem para compreender os
códigos por meio dos quais a leitura é apresentada na escola.
179

4.2.2. Os tempos das leituras juvenis: as livrarias, os sebos e bancas de jornal como lugares
de aprendizagem sobre as obras literárias

As práticas dos alunos e professoras participantes da pesquisa são tributárias de lojas


físicas e virtuais nas quais livros, revistas e jornais são comprados, manuseados e lidos. Nesse
tocante, é significativo acompanharmos esses caminhos para continuar a delinear seus
respectivos modos de apropriação do universo literário. Sobressaem-se, aqui, os centros de
comércio e shoppings e, assim, o acesso aos impressos se dá no vai e vem cotidiano ou em
passeios aos finais de semana. Em um primeiro momento, é interessante observar a
importância das bancas de jornal e dos centros de comércio como lugar de acesso às revistas,
objeto de leitura recorrente:

Tem a 12 de outubro da 12 de outubro, lá no começo, não sei explicar se é no


começo ou no fim, eu sei que é lá perto do “Cacau Show”. É bem lá pra cima
(Mariana).

Mas eu vou mais em banca de jornal, assim sabe? Para comprar revista. (Amanda).

Ao pesquisar as leituras mantidas por operárias, Ecléa Bosi (1981) demonstrou que as
possibilidades oferecidas por carros que paravam nas portas dos locais de trabalho foram
importantes para que elas tivessem acesso a livros, fascículos e outros objetos culturais. Em
nossa pesquisa de mestrado, demonstramos o quanto as bancas de jornal foram importantes
para que se tivesse acesso aos romances sentimentais (AMPARO, 2012). Podemos identificar,
assim, a existência de um sistema de circulação de materiais impressos que articula espaços
próximos aos locais por onde os alunos circulam no dia a dia, conjugando facilidade de acesso
e os preços baixos. A respeito das bancas de jornal, Sandra Reimão (1996) afirma que a
possibilidade de vendas de livros nesse espaço deve-se a uma lei datada de 1968, que ampliou
a rede varejista autorizada a realizar o comércio de livros. É importante destacar que, no
Brasil, a venda de livros que passa ao largo das grandes livrarias é significativa, uma vez que
bancas de jornal, sebos e mesmo a venda de porta a porta ainda se fazem presentes entre os
locais mais distantes dos centros onde ficam as livrarias (AMPARO, 2012). Além das bancas
e livrarias populares, as lojas de shoppings, geralmente partes de grandes redes, são muito
frequentadas pelos alunos:

Mas quando a gente vai no shopping, a gente sempre passa na livraria para ver os
livros...Aí, quando a minha mãe deixa, a gente compra um livro. Ela deixa a gente
escolher um livro, aí a gente pega e escolhe (Amanda).
180

Livraria, tipo, para comprar livros, não. A gente vai na livraria, tipo, para fazer outra
coisa. Tipo, ver CD, essas coisas. Mas para comprar livro... Eu nunca comprei livro
(Luana).

Costumo porque meus filhos, a gente vai no shopping, eles já vão direto para a
Saraiva ou para a, eles gostam muito da FNAC (Karina).

A visita às grandes lojas das redes do setor é uma opção secundária como atividade de
lazer. É significativo insistir que, longe de pensarem na literatura como algo especial, trata-se,
para esses jovens, de olhar e manusear os objetos como fariam com quaisquer outros exibidos
nas vitrines. Amanda, cuja família tem relação mais frequente com os textos impressos, inclui
a seleção e compra de livros entre as atividades de lazer; já Luana, cuja família mantém uma
relação mais distanciada com a leitura, acha estranho comprar livros. Mais uma vez, o que
está em jogo é o valor simbólico e monetário dos mesmos:

O problema é que eu tenho dó de comprar livro...é uma coisa que eu vou ler e depois
vai ficar lá.... Se fizesse uma coisa tipo alugar poder ser que eu... alugar, sim
(Luana).

Vou [à livraria]. Mas eu não costumo muito ir, tipo, eu não trabalho, não faço nada.
Não tenho muito dinheiro às vezes... Aí você fica meio perdida, queria levar isso,
isso, isso e isso. [vou à] Saraiva. A que eu mais vou é a Saraiva e Cultura. É a que
mais vou. [Elas ficam] No West Plaza e no Bourbon tem a Cultura (Adriana).

Luana chama atenção para a ausência de propósito na compra e guarda de livros, uma
vez que ela encara a leitura como uma atividade que se esvai quando é finalizada. Ao
pesquisarem as relações com a leitura de alunos que passam do colégio para o liceu, Christian
Baudelot e Marie Cartier (1998) constataram que existe entre eles a representação dos livros
como objetos iguais a todos os outros. Os autores identificam uma relação não sacralizada, na
qual os livros valem o quanto pesam, ou seja, os atributos considerados são a quantidade de
páginas e o peso. Os pesquisadores notaram que os livros eram organizados sem que as
prateleiras onde estavam dispostos fossem centrais em suas casas e eram classificados
segundo critérios que levavam em conta os aspectos de cobertura, como as capas, tamanhos,
entre outros. Como notamos em outros depoimentos, os livros e revistas encontram-se
dispostos na casa de nossos entrevistados nos quartos, sala e cozinha em meio a outros objetos
cotidianos. Assim, a relação não sacralizada com os livros é recorrente, principalmente
quando falamos dos adolescentes. Ao mesmo tempo, o preço do livro é um fator
predominante. Nesses casos, as redes de sociabilidade operam em torno da leitura:
181

Eu vou mais na banca de jornal. Livraria eu só vou quando eu vou na casa espírita.
Lá tem livraria. Só que, assim, eu também não tenho dinheiro para ficar comprando.
Eu mais pego emprestado das pessoas. A minha irmã também é espírita, ela pega
emprestado, daí ela me empresta. Tem o nosso cabeleireiro, que corta o meu cabelo,
ele é um senhor, ele não é gay, bom, mas se fosse não tinha problema. Ele é um
senhor barbeiro, que trata do cabelo de homem, mas ele corta maravilhosamente
bem o meu cabelo e o dela. Não sei porquê. Desde o dia que ele botou a mão no
nosso cabelo a gente se apaixonou. Então só ele corta o meu cabelo e o dela e ele
tem uma pilha assim de livros. Ele é espírita também, então a gente pega muitos
livros lá com ele, mas também não fica só no espiritismo. Ele tem outros livros
também. A gente pega os livros que a gente quiser com ele, então a gente está
sempre trocando (Clair).

A sala de leitura é pouco conhecida e aproveitada pelos alunos, o que seria uma
alternativa para o empréstimo de livros. A rede estadual de ensino desenvolve um projeto
chamado Salas de leitura, que tem por objetivo a construção de ambientes nos quais os alunos
podem emprestar e ter acesso ao acervo presente nas escolas. São responsáveis por elas os
professores efetivos adidos, contratados ou readaptados (ASBAHR, 2013)13. A rede estadual
de ensino conta atualmente com 5672 unidades em todo o estado, e 3144 delas contam com
sala de leitura. Como as salas dependem da existência de professores para se
responsabilizarem por elas, podemos pensar apenas que uma parcela desse total se encontra
em funcionamento. Na Escola 1, a biblioteca funcionava, em 2014, durante todo o dia com
uma professora efetiva que frequentou cursos de formação em serviço para ocupar a função.
Já em 2016 ela foi trabalhar em outra unidade, e uma professora readaptada, formada em
Matemática, assumiu a responsabilidade pela biblioteca. A sala funcionava apenas no período
da manhã e, frequentemente, a professora era chamada para desempenhar funções na
secretaria da escola. Na Escola 2, a sala de leitura funcionava apenas no período diurno e,
assim, os alunos do EJA não tinham acesso a ela. Afora as dificuldades de acesso e do
profissional responsável por ela, a sala de leitura também não parece estar presente nas
práticas dos alunos do ensino médio14:

13
Quando iniciamos a pesquisa de campo na Escola 1, a sala de leitura era coordenada por uma professora
efetiva adida, que desenvolvia um projeto que foi premiado pela secretaria. A professora organizou o acervo,
além de ser responsável por sua ampliação, pois fazia festas com vistas a arrecadar dinheiro para isso, também
trabalhava junto com os professores de outras disciplinas e acolhia os alunos que gostariam de emprestar livros
para lazer ou pesquisas. A aluna Adriana trabalhava junto com ela na biblioteca e demonstra ter aprendido muito
sobre o universo literário. Entretanto, com a tentativa de reestruturação da rede, em 2015, a sala foi fechada e a
professora responsável por ela mandou uma proposta de projeto a ser desenvolvido em uma escola de tempo
integral. Seu projeto foi bem acolhido e ela acabou transferida para essa instituição. Em 2016, quando voltamos
à escola, a sala de leitura era coordenada por uma professora readaptada, cujo envolvimento com a sala de leitura
não era tão intenso.
14
Devemos ressaltar que, durante a nossa pesquisa de campo, a biblioteca era utilizada como espaço de castigo.
Quando os alunos chegavam atrasados, eles eram encaminhados para a biblioteca e obrigados a copiar partes de
livros.
182

Ah, já peguei um livro da escola. Um só, que eu demorei muito para ler. Eu li,
devolvi, depois, um bimestre depois eu li mais um pouquinho e devolvi. E consegui
ler (Luana).

É porque eu não gosto daquele negócio de ter um certo tempo para ler e aquele certo
tempo pra entregar. Eu gosto de ler, tipo, quando me der vontade. E se me der na
telha eu vou ler tipo o dia todo, se for necessário, [vou] ler a madrugada inteira
aquele livro. Eu vou ler porque eu quero e não porque eu estou sendo obrigada: “Ó,
você tem dois dias para ler esse livro aí”. Eu já não gosto (Mariana).

É que eu não sei onde é ainda porque eu sou nova, então tipo eu nunca fui lá ainda,
mas eu já ouvi falar (Amanda).

Os depoimentos evidenciam que o regime de leitura imposto pela biblioteca não


parece agradar os alunos. Além disso, a alteração da abordagem da leitura na passagem do
ensino fundamental II para o ensino médio também oferece uma quebra na concepção da sala
de leitura. No Ensino Fundamental, as práticas de ensino relacionadas à leitura têm
perspectiva formativa, na qual a sala de leitura parece ter maior função. No entanto, a imagem
do bom leitor presente no inconsciente escolar do ensino médio pressupõe independência por
parte de aluno, que poderá optar pelo que quer ler. Nesses casos, a visita à sala de leitura não
faz parte das investidas docentes.
Diante disso, a internet passa a ser o espaço privilegiado para a busca por informações
e a constituição de referência. A leitura virtual também vai ganhando espaço como substituto
das bibliotecas:

[...] na minha opinião, está ficando uma coisa meio inútil porque, por exemplo, você
quer procurar um tema, por exemplo, um trabalho de escola, você não precisa mais
ir na biblioteca pegar uns livros. Você vê, tipo, na internet e acabou (Luana).

No que se refere à circulação pelos lugares de acesso ao impresso, as livrarias


presentes nos Shoppings, bancas de jornal e espaços virtuais têm privilégio no que se refere à
constituição dos ritmos de leitura dos estudantes. Notamos que os códigos por meio dos quais
eles funcionam fornecem um conjunto de saberes utilizados pelos alunos. Por conseguinte, a
frequência a tais espaços com suas famílias é importante para a constituição de disposições
literárias a partir dos títulos, autores e tipos de impresso consagrados e selecionados nesse
circuito, o que auxilia, como temos visto até aqui, na produção de um arbítrio cultural
familiar. A seguir, veremos como ele se expressa no que se refere aos volumes preferidos
pelos estudantes.
183

4.2.3. Os títulos, autores e objetos literários prediletos

O universo literário no qual vivem os alunos do ensino médio permite a eles o contato
com um conjunto variado de títulos e autores. Reconhecemos entre suas preferências objetos
produzidos nos circuitos não-escolares, sobretudo os best-sellers, revistas e livros de
influenciadores digitais. Percebemos, também, a forte influência da televisão e das fontes de
informação virtuais para a produção de referências literárias, rivalizando, desse modo, com
um trabalho que, no passado, era exclusivo da escola. Esta última ainda se faz presente de
modo a influenciar os títulos e autores conhecidos pelos estudantes, contudo não ocupa papel
central nas escolhas literárias dos alunos. No intento de elaborar nossa exposição dos dados,
faremos uso da comparação entre as entrevistas e as enquetes respondidas pelos alunos da
Escola 1.
Inicialmente, os alunos estão imersos nas referências conhecidas nas bancas de jornal.
Como Amanda sugere, além dos livros, os alunos entrevistados costumam ler revistas,
principalmente aquelas destinadas a adolescentes, gibis e jornais. Com relação às revistas,
vejamos quais os principais títulos lidos:

Eu leio revista que eu compro todo mês por causa do Luan…. Eu não compro
Capricho porque o meu dinheiro não dá, aí não dá pra eu comprar Capricho. Eu
compro só Todateen (Amanda).

O trecho acima nos deixa ver que o preço das revistas – assim como o preço dos livros
– é um fator determinante para a compra. Além disso, a jovem entrevistada busca na revista
notícias sobre seu cantor predileto, cujo nome está pendurado no colar que ela usa durante a
nossa conversa. Outra aluna, Mariana, também costuma ler uma revista, a Viva, comprada por
sua mãe, além do jornal:

Eu leio bastante revistas. Eu nunca gostei de gibi. Eu leio bastante revista porque a
minha mãe sempre traz. Minha mãe todo dia traz uma revista, aí eu vou lá, vou
virando as folhas para ver o que tem. Eu vou passando e aquilo que me interessar eu
vou ler. Acho que é Viva, aquela que fala sobre os famosos. Tem tudo lá. Ela lê
bastante revista e jornal também. Ela lê a Folha de São Paulo. Eu olho, assim, às
vezes. Tem aquelas tirinhas, né, aí dependendo da tirinha eu vou lá e vou ler. Agora,
aquelas outras partes eu não vou ler (Mariana).

O excerto de Mariana deixa ver a importância da mãe para que ela conheça outros
impressos além daqueles indicados pela escola. É o hábito de leitura que a mãe tem que a
impulsiona a conhecer como funciona o jornal, por exemplo, e a descobrir que ela gosta de ler
184

as tirinhas. O trecho reforça, ainda, a preferência que os adolescentes têm por publicações que
tratam de seus artistas favoritos. Em estudo anterior já havíamos notado o quanto os laços
entre mulheres muita próximas, como mães e filhas, podem ser predominantes para a
formação de novas leitoras (AMPARO, 2012). A relação que Amanda estabelece com sua
mãe por meio dos livros é muito significativa nesse processo. Além das relações familiares,
outra fonte importante de informação e entretenimento dos alunos são a televisão e a internet:

Jornal. Mas eu também assisto jornal. Vejo bastante na internet… Meu face, o site
da Malhação, aí depois eu fico no site de notícias do Terra, da Globo (Amanda).

[Na internet] Eu gosto de ver só sobre o Muay Thay mesmo. Eu entro no Facebook,
assim (Paulo).

Aqui vemos uma circularidade entre revistas, indústria musical e literária para a
formação das preferências de leitura. Christian Baudelot e François Leclercq (2005) afirmam
que nas últimas décadas o centro de gravidade das práticas culturais está passando para o
audiovisual, sobretudo entre os jovens. Com o surgimento dos smartphone, poderíamos dizer
que isso fica ainda mais predominante, conforme as observações das aulas parecem atestar.
Ao selecionar apenas as preferências dos alunos entrevistados com relação aos livros,
notamos uma polarização entre os títulos conhecidos na escola, aqueles que constituem o
cânone escolar, os livros infanto-juvenis, os volumes de autoajuda/religiosos e, por fim, os
best-sellers. Em sua pesquisa acerca das práticas de leitura dos alunos de ensino médio,
Gabriela Rodella de Oliveira (2013) também notou a presença de títulos variados entre as
preferências dos jovens. No que se refere aos títulos do cânone escolar, os livros e textos lidos
em 2015, durante nossa pesquisa de campo, foram os mais citados e, assim, O Diário de Anne
Frank, Dom Quixote e O cachorro Canibal, por exemplo, foram lembrados. A quase ausência
de outros títulos conhecidos em diferentes momentos da escolarização parece nos apontar que
as indicações escolares fazem sentido apenas no momento da escolarização, quando os alunos
fazem uso do material. Somente Adriana e Mariana citaram outros exemplos de livros.
Mariana menciona volumes que estiveram envolvidos em práticas pedagógicas positivas em
sua trajetória e Adriana trabalhava na biblioteca, o que lhe rendeu maior aproximação ao
universo literário. Outro caso significativo é o de Paulo e Luana. Apesar de almejar se tornar
leitora-leitora, as experiências escolares de Luana são pouco eficientes, de acordo com sua
perspectiva. Nesse sentido, ela menciona apenas livros infanto-juvenis e aqueles presentes no
cânone escolar. Paulo, cujas situações escolar e familiar distanciam-no do universo literário,
185

menciona apenas o título da leitura obrigatória daquele ano. A quantidade de livros


mencionados também varia muito entre os alunos, indicando maior ou menor aproximação ao
universo dos livros.

Quadro 3. Livros mencionados nas entrevistas.

Entre os adolescentes, existe o predomínio do best-seller e títulos como Harry Potter,


A Cabana, A menina que roubava livros e A culpa é das estrelas são citadas frequentemente.
Este fato também aparece entre os dados de Gabriela Rodella de Oliveira (2013), que
observou o predomínio desse gênero entre os livros prediletos dos alunos que participaram da
pesquisa. Ressaltamos também que entre os títulos preferidos houve uma coincidência de
citações. Existe, portanto, uma espécie de construção de clássicos relacionados ao universo
literário por onde circulam os alunos, bastante marcado pelo acesso aos livros veiculados
pelos meios de comunicação e presentes nas grandes livrarias, bancas de jornal e sebos.
Quanto aos autores, é importante notar que eles são pouco lembrados. Os alunos não
parecem associar necessariamente os títulos a quem os escreveu. Podemos identificar aqui um
traço dessa leitura não sacralizada dos objetos literários, cuja característica é romper com os
esquemas de compreensão dos impressos forjada em meio às práticas escolares (BAUDELOT
186

& CARTIER, 1998). Como vimos anteriormente, os alunos atribuem significados aos livros
em função de atributos como capas, quantidade de páginas, dimensões, enfim, uma lógica de
classificação literária que não corresponde à prevista no universo acadêmico. Porém, ela
ganha espaço entre as práticas escolares, pois a descrição das aulas permitiu-nos conhecer
uma matriz socializadora que se concretiza pelo contato com textos e autores desconectados,
principalmente, no ensino médio regular. Gregório de Matos, por exemplo, não foi associado
em momento algum a alguma obra que tenha produzido. Já a lógica das grandes livrarias,
sobretudo no que se refere ao best-seller, tem como característica o investimento em aspectos
de cobertura dos livros que identifiquem as coleções e sagas, as quais são reconhecidas pelos
alunos por sua identidade (CHARTIER, 1991). Ainda sobre o universo do best-seller, os
autores mais lembrados são aqueles que se tornaram ídolos dos adolescentes, como John
Green e Nicholas Spark. Os autores correspondentes ao cânone escolar são lembrados quando
fizeram parte de experiências de escolarização positivas.

Quadro 4. Autores mencionados nas entrevistas.

Quando comparados, por meio das enquetes, a outros alunos do ensino médio, vemos
que esta tendência se mantém. Existe um grande predomínio do best-seller em comparação
aos títulos presentes no cânone escolar, como o gráfico a seguir demonstra ao contar o
187

número de menções a títulos correspondentes a cada classificação criadas por nós15. Vemos
que os títulos de autoajuda são menos citados que os escolares, porém o best-seller é
incomparavelmente superior em número de citações.

Gráfico 2. Classificação dos livros citados no questionário.

Entre os títulos presentes no cânone escolar, observamos o predomínio de autores que


fazem parte das leituras obrigatórias dos vestibulares, como a Fuvest, e também a ausência de
escritores contemporâneos. Aqui vemos o reforço da articulação entre a leitura prevista na
escola e seu sentido de uso naquele instante, pois como as enquetes foram feitas em 2016,
quando os alunos estavam no 3º ano do ensino médio e, portanto, se preparando para o
vestibular, títulos como Til, de José de Alencar e Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis foram citados. É significativo mencionar que entre os livros presentes no
cânone escolar há o predomínio da literatura brasileira, um traço da constituição da disciplina
de Língua Portuguesa e também de nossa identidade nacional, ideia mais presente até meados
do século XX (NADAI, 1975; RAZZINI, 2000). Hoje em dia, a configuração do que será lido
no ensino médio guarda forte relação com o vestibular e já não parece ser tão significativa a
literatura como configuração da identidade. Pierre Bourdieu (2011) afirma que a escola,
enquanto instituição organizada pelo Estado e, portanto, parte de seu esforço de legitimação
de seu poder, tem a história da literatura como um dos pilares da construção de uma imagem
nacional, esforço de totalização que funciona como uma estrutura cognitiva de compreensão
da realidade. É importante notar que existe certa desarticulação, no que diz respeito à
literatura, na proposta do que se deve considerar como os códigos compartilhados por todas as
pessoas escolarizadas. Vimos que os currículos em vigência aconselham a não seguir a
história da literatura, o que não acontece, pois os livros didáticos muitas vezes mantêm a

15
Os quadros com a descrição dos títulos mencionados encontram-se ao final dessa seção.
188

ordenação temporal dos movimentos artísticos. Nesse sentido, podemos inferir que a
construção de um patrimônio cultural, o que exige maior estabilidade nas ações escolares, não
se concretiza entre as práticas de ensino que conhecemos e, portanto, as professoras e os
alunos têm dificuldade de identificação com os títulos consagrados na escola. Assim, as ações
escolares não se mostram de maneira mais presente nos depoimentos dos estudantes. Em todo
caso, vale ressaltar que o inconsciente escolar, ao preservar um conjunto de autores do cânone
escolar, ao fazer poucas concessões às práticas de leitura dos alunos presentes no ensino
médio, parecem contribuir de alguma forma para a desvalorização da literatura enquanto
forma de conhecimento válido para o cotidiano dos alunos.
No que se refere ao best-seller, existe o predomínio de autores estrangeiros. Para além
dos autores citados anteriormente, chamou nossa atenção a presença de livros decorrentes de
blogs e youtubers. Neste caso enquadram-se Vinicius Campos, Isabela Freitas e Marina
Barbieri, que produziram livros a partir de seus blogs, canais do youtube e programas de
televisão com conteúdo que versa sobre o comportamento de homens e mulheres a respeito de
relações amorosas em perspectiva autobiográfica ou em linguagem em circulação nas redes
sociais. Com relação aos autores brasileiros, os nomes mencionados acima são os únicos
citados, pois há o predomínio de autores estrangeiros. Notamos também a presença de
coleções de romances sentimentais, como a saga A Seleção, de Kiera Cass, jovem escritora
norte-americana conhecida por ter beijado catorze homens em sua vida, sem que nenhum
deles fosse seu príncipe16. As publicações de romances para mulheres mostram-se, assim,
como uma prática reiterada ao longo do tempo, pois mesmo Clair demonstra ter tido contato
com esse tipo de publicação em outro momento de sua vida:

Já li muito. Eu tinha até esquecido isso (risos). Você perguntou se eu lia outros
livros e eu esqueci. Eu lia muitos... Quando eu tinha uns 23, 24 mais ou menos. Eu
já estava em São Paulo quando eu comecei a entrar em contato esses livros… acho
que através das amigas, conhecidas. A minha mãe gosta muito de ler e a minha irmã
ela ganhou uma caixa cheia desses livros de uma ex-patroa dela. Acho que foi. E aí
tinha um montão de livro. Tinha livro, assim, a “dar à rodo”. Aí minha mãe deu uns
para ler e minha irmã deu uns para a gente. Eu lembro que eu li, mas não gosto. Na
época, sim, esses romancezinhos assim, água com açúcar, já não me agradam.
(risos) acho que no tempo que eu era iludida como mulher eu gostava (risos).
(Clair).

16
Em sites e na página da autora pertencente à Companhia das Letras, editora que tem o direito de venda dos
seus livros no Brasil, repetem essa frase para criar uma imagem da escrita associada à procura pelo homem
perfeito. Disponível em: <https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=03180>. Acesso em: 06
fev. 2018.
189

Outros autores que apresentam conteúdo amoroso presentes na lista são Becca
Fitzpatrick, Nicholas Sparks, John Green. É importante notar que essas publicações chegam
às leitoras, jovens ou mais velhas, por meio de outras mulheres e, com isso, os livros atuam
como formas de sociabilidade que, por sua vez, articulam modos de compreensão de si e dos
papéis sociais ao se inserir nos laços entre as leitoras (AMPARO, 2012). Notamos igualmente
a presença de livros vindos dos vídeo games, como é o caso de Assassin’s creed. A
característica dos títulos preferidos pelos alunos é a sua circulação pela cultura de massas. Os
estudantes que entrevistamos estão imersos nesse universo, como é o caso de Adriana:

Então, meu escritor predileto é o Rick Riordan, que é o de Percy Jackson, o Nicholas
Sparks e o John Green…. Esse Rick Riordan, eu sou apaixonada nesse Percy
Jackson. Meu livro preferido, o Percy Jackson. John Green, A culpa é das estrelas
(Adriana).

[Eu li]A culpa é das estrelas e depois eu assisti o filme. Eu gostei do livro inteiro.
(Amanda).

A literatura voltada para os jovens é muito comum entre os nossos entrevistados


adolescentes, que optam por esses livros por conta do apelo de marketing e pelo alvoroço que
se forma com relação aos livros. Mais de um aluno mencionou que leu A culpa é das estrelas
porque todo mundo estava lendo. Isso demonstra, além do poder da propaganda, a
importância que as comunidades de leitura exercem (CHARTIER,1999). Se pensarmos nos
adolescentes como uma comunidade, pelo menos no espaço escolar, veremos que ela define
esses objetos privilegiados de leitura.
Foi curioso notar que, além dos best-sellers para jovens, Amanda citou entre suas
preferências livros infanto-juvenis, o que talvez revele a fase de transição entre a infância e
adolescência pela qual a aluna atravessa:

Eu terminei hoje o livro do Diário de um banana…. O da capa amarela. Eu não sei o


nome, acho que é Um dia de cão. Aí eu já vou começar o novo de capa verde. Eu
não sei o nome, mas que eu tenho lá em casa só que é do meu irmão, mas como ele
não gosta, eu vou ler... Eu já li Querido diário otário, eu já li também... eu leio
revista... (Amanda).

Com relação aos livros de autoajuda, predominam aqueles de cunho religioso e as


autobiografias. Os alunos leram as autobiografias de Michael Jordan e Justin Bieber, o que
nos leva a constatar a reiteração de referências vindas do mercado editorial norte-americano.
Livros de divulgação científica, na perspectiva de autoajuda, também se fazem presentes,
como é o caso do livro Não pergunte se ele estudou, de Renato Alvez, que traz ideias sobre a
190

aprendizagem nas relações entre pais e filhos. Verificamos o predomínio dos discursos
protestantes, pois os livros de Edir Macedo e Renato Cardoso, membros dessa vertente
religiosa, estão entre os autores citados. A respeito dos livros de autoajuda, acompanhemos os
depoimentos de Karina e Clair:

E aí eu comecei a pensar e já tinha estudado um pouco o espiritismo. Foi ali que eu


comecei a ler. Livro eu não tinha coragem de ler. Era muito grosso. Eu não tinha
paciência para ler, mas aí eu comecei a ler revistas. Ler revista espírita que fala
sobre depressão, síndrome do pânico, fala sobre todas essas coisas. Eu comecei a
estudar e depois comecei a estudar sobre a mente, outras revistas. Aí que eu comecei
a ler livros. Só livro espírita porque eu precisava disso para entender o que estava
acontecendo comigo (Clair).

Mas eles também entravam na parte espiritual, viu? [risos] esse 10 passos para a
prosperidade era para aprender como se dar bem na vida, financeiramente, mas eles
explicavam muito o plano espiritual. (...)Foram. Sabe por quê? Só tem palavras
positivas. Um dia vai lá e escolhe um livro para você. Esse Dinamize sua
capacidade, nossa, foi muito importante na minha vida também. Muito importante
(Karina).

Vemos aqui as alunas buscando livros que proporcionem algum sentido para suas
vidas. A leitura, nesse caso, pode ter adquirido o sentido de evasão (MAUGER, POLIAK,
1998). É importante mencionar que, entre as pessoas entrevistadas, Karina e Clair são aquelas
que mais tiveram dificuldades financeiras e familiares.
As referências do espaço virtual, como vimos, também são predominantes entre os
alunos. Por meio das entrevistas e enquetes, entramos em contato com um grande conjunto de
páginas visitadas pelos alunos. Com vistas a melhor compreender esse universo, ele foi
classificado em quatro categorias: Mangás, games e música; Redes sociais/ e-mail; Notícias e
curiosidades; e Comportamento/ religioso17. Predomina entre os alunos a circulação por redes
sociais, sobretudo o Facebook e o Instagram, mas também consideramos, nesse caso, o
Youtube. Pesquisas feitas nos últimos anos, como as de Gabriela Rodella de Oliveira (2013) e
Alexandre Barbosa Pereira (2010) reiteram a insistência com que os alunos circulam por tais
espaços virtuais, configurando modos de organização da linguagem e concepções sobre os
textos a partir deles.
Quanto às informações cotidianas, notamos que os alunos acessam sites de portais de
notícias, principalmente G1.com, Globoesporte.com, e Veja.com.br, com notícias gerais e
sobre esportes. Predominam, porém, os sites de fofoca e de curiosidade sobre culinária,
divulgação científica, como Fatos Curiosos e Mega Curioso. Essa opção liga-se aos sites
classificados como de Estudo. Os alunos buscam muitas informações sobre ciência e outras

17
As descrições dos sites citados pelos alunos estão no final desta seção
191

enciclopédias e, assim, páginas como Guia do Estudante, Desciclopédia, Wikipédia e sites de


história são citados. Devemos ponderar que as visitas a essas páginas demonstram o interesse
dos alunos, porém elas não são especializadas e oferecem informações que não são confiáveis.
Durante as entrevistas, notamos que os alunos recorrem aos sites para se prepararem para
processos seletivos ou ampliarem seus conhecimentos sobre os conteúdos apreendidos em
sala de aula. Ocorre que o espaço virtual é formado por redes e modos de reiteração de suas
informações que levam os usuários a entrar em contato constantemente com informações
parecidas. Além disso, a ausência de diálogo entre o universo escolar e o virtual, muito
acessado pelos alunos, não faz com que eles produzam modos de classificação e avaliação das
informações a que têm acesso.
Finalmente, os alunos também acessam os sites para atenderem às suas necessidades
mais cotidianas e, por isso, em Comportamento/religioso, vemos uma profusão de sites que
dão soluções para a vida amorosa, religiosa, sobre filmes e, como vimos, a reiteração dos sites
e os livros publicados a partir deles conforma o universo cultural em que vivem nossos
alunos. Novamente, sites pertencentes a Edir Macedo, e Namoro blindado, cujos livros
estavam presentes entre preferidos, reforçam a existência de um dado universo cultural.
Outros sites como Boca Rosa, Capricho, blogs de culinária oferecem referências para os
adolescentes. A busca por informações úteis aos problemas cotidianos parece ser uma
estrutura que ganha novos contornos com o passar do tempo. Roger Chartier (2004), ao
pesquisar os leitores do Antigo Regime, notou a presença cada vez maior de livros, dedicados
à nobreza e ao povo, com normas e formas de agir que formavam as ideias de civilidade no
período. No início do século XX brasileiro, vemos a presença de livros, fascículos e
enciclopédias que versam sobre as áreas de saúde, história, literatura e, enfim, trazem saberes
úteis às pessoas (HALLEWELL,2012). Atualmente, os sites cumprem a função de conformar
modos de se comportar, expectativas sobre relações amorosas e casamento, conteúdos
religiosos, entre outros assuntos, que configuram maneiras de compreensão de si e da
realidade. Em todos os casos, por mais que se alterem os suportes da leitura, ela ainda é um
instrumento para a construção do indivíduo, mesmo entre grupos sociais cujas práticas são
invisíveis aos olhos dos esquemas interpretativos escolares.
Finalmente, em Mangás, games e música, nos deparamos com o universo dos jogos e
das músicas, bastante relevantes para os estudantes. Portais que possibilitam o contato com
jogos de vídeo game e músicas que possam ser baixadas são citados. Além disso, vemos a
inserção dos alunos no universo dos mangás, lidos e conhecidos no espaço virtual.
192

Concluímos, assim, que a leitura empreendida pelos alunos conhecidos durante a


pesquisa circula pelo best-seller, por títulos conhecidos por meio da propaganda e dos filmes,
tornando o audiovisual o centro de gravidade das referências literárias dos alunos. Adiciona-
se a isso a leitura de revistas e jornais. É importante destacar que as leituras escolares de
autores consagrados apareceram com menor frequência, e sempre atreladas às urgências do
vestibular ou dos processos seletivos. Como Anne-Marie Chartier e Jean Hébrard (1995)
mencionam, a ampliação das referências de leitura traz a necessidade de uma reconfiguração
das representações da escola sobre as práticas relativas ao impresso, o que leva a um discurso
sobre a crise da educação. Como temos demonstrado ao longo dos capítulos precedentes, os
esquemas interpretativos com relação à boa leitura mantêm-se estáveis, apesar de as
alterações curriculares procurarem ampliar as compreensões do texto, a sala de aula consagra
apenas os grandes autores, dificilmente os contemporâneos. Não há espaço ou legitimidade
para que o universo literário dos estudantes se faça presente. Assim, como fala Bernard Lahire
(2008), as leituras que não correspondem ao ideal de formação escolar são invisíveis e o aluno
é classificado como não-leitor.
193

Quadros com os títulos citados pelos alunos

Cânone escolar
Título/ autor(a) Quantidade de citações
1 Auto da barca do inferno - Gil Vicente 1
2 1984 - George Orwell 1
3 A droga da obediência – Pedro Bandeira 1
4 A hora da estrela – Clarice Lispector 3
5 Capitães de Areia – Jorge Amado 1
6 Dom Quixote – Miguel de Cervantes 2
7 Histórias mal-assombradas de Portugal e Espanha - 5
Adriano Messias e Alexandre Teles
8 Iracema – José de Alencar 2
9 Laranja Mecânica – Anthony Burgess 1
10 Lolita – Vladimir Nabokov 2
11 Memória de um sargento de milícias - Manuel Antônio 1
de Almeida
12 Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de 1
Assis
13 Morro dos ventos uivantes - Emily Brontë 1
14 Morte e vida Severina – João Cabral de Melo Neto 1
15 O Diário de Anne Frank – Anne Frank 4
16 O guarani – José de Alencar 2
17 Robin Hood – Alexandre Dumas 1
18 Til - José de Alencar 1
19 Vidas Secas - Graciliano Ramos 5

Autoajuda/religiosos/ autobiografias
Título/ autor(a) Quantidade de citações
1 Atitude alpha 2.0 - Renato Alves 1
2 Bíblia 4
3 Casamento blindado - Renato Cardoso 1
4 Código de Atração – Eduardo Santorini 1
5 Fique com alguém que não tenha dúvidas – Marina 1
Barbieri
6 Nos passos de Jesus - Edir Macedo 1
7 Não pergunte se ele estudou - Renato Alves 1
8 Nunca deixe de tentar – Michael Jordan 1
9 O Desígnio – Mike Murdock 1
10 O código da inteligência – Augusto Cury 1
11 O segredo – Lucy Rocha 1
12 Primeiro passo para a eternidade – Justin Bieber 1
13 Segredos dos gênios - Renato Alves 1
194

Best-seller
Título/ autor(a) Quantidade de
citações
1 #sqn – Vinícius Campos * 1
2 As aventuras de Pi – Yann Martel 1
3 As crônicas de gelo e fogo - George R. R. Martin 1
4 As vantagens de ser invisível - Stephen Chbosky 1
5 A cabana - William P. Young 3
6 As crônicas de gelo e fogo (trilogia) – George R.R. 1
Martin
7 A culpa é das estrelas /The fault is in our stars - John 7
Green
8 A elite - Kiera Cass 1
9 A Seleção - Kiera Cass 1
10 A fantástica fábrica de chocolates – Roald Dahl 1
11 A garota que eu quero - Markus Zusak 1
12 À primeira vista - Nicholas Sparks 1
13 A probabilidade estatística do amor à primeira vista - 1
Jennifer E. Smith
14 A revolução dos bichos - George Orwell 1
15 Assassin’s creed unit – Anton Gill 1
16 Batman – O silêncio Parte 1 e 2 - Geoff Johns 1
17 Caçadores de bruxas (coleção) - Raphael Draccon 1
18 Carta de amor aos mortos - Ava Dellaira 1
19 Cidades de Papel - John Green 3
20 Como eu era antes de você - Jojo Moyes 4
21 Divergente - Veronica Roth 1
22 Garota de vidro - LAURIE HALSE ANDERSON 1
23 Gelo negro - Becca Fitzpatrick 3
24 It – Stephen King 1
25 Harry Potter - J. K. Rowling 2
26 Jogos Vorazes - Suzanne Collins 2
27 Louco por você - Jasinda Wilder 1
28 Louca por você - A.C. Meyer 1
29 Lua de larvas – Sally Gardner 1
30 Marley e eu - John Grogan 1
31 Não se apega, não - Isabela Freitas* 2
32 Não se iluda, não - Isabela Freitas* 1
33 O andarilho das sombras - Eduardo Kasse 1
34 O diário de um banana - Jeff Kinney 1
35 O filho de Netuno - Rick Riordan 1
36 O guarda – Kiera Cass 1
37 O Hobbit – J. R. R. Tolkien 2
38 Os imortais - Alyson Noël 1
39 O lado bom da vida - Matthew Quick 1
40 O menino do pijama listrado – John Boyne 1
41 O melhor de mim - Nicholas Sparks 1
42 O reino das vozes que não se calam - Carolina 1
Munhóz e Sophia Abrahão
43 O vale dos anjos – Leandro Schulai 1
195

44 O Xangô de Baker street – Jô Soares 1


45 Orange is the new black - Piper Kerman 1
46 Poço dos desejos – Roseana Murray 1
47 Quem é você, Alasca? - John Green 1
48 Resident Evil - S. D. Perry 1
49 Saco de ossos - Stephen King 1
50 Se eu ficar - Gayle Forman 1
51 Senhor dos anéis - J. R. R. Tolkien 1
52 Soul Rebel - KIMBERLLY MASCARENHAS 1
53 Stars (Trilogia Butterfly) - Kathryn Harvey 1
54 Superman – O último Filho - Geoff Johns 1
55 Sussurro - Becca Fitzpatrick 1
56 Teorema de Katherine - John Green 1
57 Trilogia “Sem limites” – Abbi Glines 1
58 Um estranho no espelho – Sidney Sheldon 1
59 Um homem de sorte – Nicholas Sparks 1
60 Um porto seguro - Nicholas Sparks 1
61 Zac Power – H. I. Larry 1
196

Quadros com os sites e endereços eletrônicos citados pelos alunos


Mangás, games e música

Páginas citadas Quantidade de citações


Central de Mangás 1
Anitube 1
Riot games 1
Super animes 1
Song 365 1
g-mail 1
Tudo para android.com 1
Minhateca 1
Mega 1
Jogos-para-android.com 1
Spirit Fanfics - Fanfiction (Blog de Histórias 1
de ficção de fãs)

Redes sociais/ e-mail


Páginas citadas Quantidade de citações
Facebook 54
Instagram 13
Whatsapp 14
Snapchat 4
Tumbler 1
Twitter 9
Youtube 17
Hotmail 1
Outlook 1
Google 6

Notícias e curiosidades
Páginas citadas Quantidade de citações
Globo Esporte 4
G1.com 4
Veja 1
Fatos desconhecidos 2
Sites de receitas 1
Sites de fofocas 1
Mega curioso 1
197

Comportamento/ religioso
Páginas citadas Quantidade de citações
Tutoriais de maquiagem 1
Omelete 1
João Bidu 1
Capricho 5
Jáfostes.com 1
Um quarto de palavras 1
Boca rosa 1
5 minutos – Kéfera (Youtube) 1
Fonte a Jorrar (blog) 1
Edir Macedo (blog) 1
Depois dos quinze 1
Vistase.com 1
Namoro blindado (blog) 1
Blogs de culinária 1

Estudo
Páginas citadas Quantidade de citações
Guia do Estudante 2
Hypscience 1
Desciclopédia 1
Wikipedia 1
Sites de história 1
198

4.3 A escola é uma esteira: o futuro sem sentido da leitura e dos alunos

Diante das diferenças entre as suas práticas de leitura e a imagem do bom leitor
construída na escola e defendida pelas professoras, os alunos não se sentem distanciados
apenas da disciplina, como também qualificam de modo negativo a experiência de
escolarização. O tempo gasto no interior da escola vem aumentando progressivamente no
Brasil e em outras partes do mundo. Este período da vida de crianças e jovens é visto
comumente como um momento de preparação para o futuro, ou seja, para o trabalho e vida
em sociedade (PERRENOUD, 1995). De modo a realizar tal preparação, a escola é
organizada não apenas em função de seu período obrigatório, mas de programações anuais,
mensais e diárias que têm por função a construção de uma ordem temporal que torna as
experiências internas do tempo conformadas ao tempo público (BOURDIEU, 2014). Ao
manter os jovens na escola pelo período legitimamente construído para a sua preparação
(GALLEGO, 2008), é preciso haver um sentido para que se aguarde, por exemplo, 12 anos
pelo término dos estudos, ou seja, para que se considere aos olhos da sociedade alguém
formado e preparado para a vida. Logo, a questão dos sentidos da escolarização é fundamental
para que se compreendam as relações que os alunos mantêm com a escola.
Philippe Perrenoud (1995) argumenta que poucas pessoas conseguem se resignar ao
non-sens. Assim, os alunos e, possivelmente, os professores buscam constituir sentidos para a
permanência na escola. Por conseguinte, o sentido das experiências de escolarização tem
relação com as disposições dos alunos e o quanto escola pode atender às perspectivas
socialmente geradas com relação às aprendizagens possíveis. Entre os alunos entrevistados,
percebemos perspectivas variadas com relação à escola, como a aprovação em vestibular
muito concorrido, o aprendizado do convívio social, a preparação para o trabalho e o
desenvolvimento de boas formas de escrita e leitura. No entanto, apesar de alguns alunos
notarem que têm suas expectativas atendidas, a maioria deles demonstra que a escolarização
não serve para nada, sobretudo quando ela foi prolongada, como ocorre atualmente. Por essa
razão, o tempo gasto na escola parece perdido ou, nas palavras de Luana, o período de
escolarização é experimentado como uma esteira rolante. Como em uma esteira, ela
permanece parada enquanto é lentamente transportada de um lugar ao outro. Apesar desse
deslocamento, não ocorre qualquer alteração, uma vez que física e cognitivamente
permanecemos da mesma forma. Evidentemente, não é possível sustentar a afirmação de que
se passam 12 anos na escola sem que se tenha aprendido nada; entretanto, ao construir essa
imagem, a aluna evidencia o quanto a escola pode estar distante de suas expectativas.
199

Pierre Bourdieu (2013b) salienta que em seu trabalho de formação a escola precisa
destruir um mundo de modo a criar outro. Logo, na tarefa de favorecer determinadas relações
com a cultura, é necessário que se efetive uma espécie de desarticulação das lógicas e
inteligibilidades familiares com vistas a produzir uma nova articulação em função das
relações com a linguagem, modos de classificação e hierarquização cultural. As relações entre
professoras e alunos no espaço escolar parecem nos indicar que este trabalho de
desarticulação e nova articulação do mundo cultural de nossos entrevistados é feito de
maneira problemática, pois existem diversos sentidos e traduções culturais que implodem a
coerência que esses movimentos parecem ter na descrição do autor francês. Compreendemos
que, ao destruir um mundo, o modo de funcionamento escolar - com suas regras, sistema de
ensino ramificado, condições de trabalho e formação docente - tem dificuldade de manter
inteireza o suficiente para se criar outro. Assim, existe um espaço de conflito entre a escola e
os alunos à medida que, como vimos ao longo do capítulo, eles vivem em um mundo cultural
cujos códigos são diferentes dos escolares. Uma vez perdido o contato cultural entre os alunos
e a escola, a escolarização prolongada parece não ter sentido ou é desnecessária. Vejamos, a
seguir, como isso acontece.

4.3.1. A tradução de um mundo para o outro

No que se refere à possibilidade de os alunos encontrarem sentidos na escolarização e


na leitura de obras literárias, tornou-se evidente que muitas vezes eles julgam ter
conhecimentos insuficientes para que possam se apropriar do universo cultural escolar. A
referência a autores, modos de leitura e vocabulários específicos necessários para a produção
de um discurso legítimo sobre as obras literárias, conhecimento este verificado muitas vezes
por meio dos exercícios, conversas em sala de aula, provas, entre outros, parecem
inalcançáveis aos olhos dos alunos. Como consequência, foi possível identificar muitas
afirmações que demonstram a percepção dos estudantes a esse respeito:

Eu não sei falar da minha leitura (Adriana).

Acho que é assim que se faz trabalho, não sei (Paulo).

A utilização da negação para falar sobre o que aprenderam daquilo que foi explorado
em sala de aula coloca em evidência a insegurança experimentada pelos alunos. Ao se referir
ao modo como fez o trabalho sobre o Barroco, Paulo evidencia uma cultura formada por
200

indivíduos que têm o mesmo ofício que ele, a saber, os alunos (PERRENOUD, 1995). Diante
de uma relação distanciada com o objeto de ensino, as atividades escolares proporcionam a
descoberta da existência de estilos literários e autores; no entanto, não permite que seja
possível atribuir significados a eles:

A gente até fez um trabalho. A gente não aprendeu sobre ele [o Barroco], a gente
teve que fazer um trabalho sobre ele (Mariana).

A aluna indica, assim como Paulo, que prática e aprendizagem estão separadas. Reside
aí uma contradição, pois, como sustenta André Chervel (2001), as atividades escolares
propiciam a ginástica mental necessária à incorporação dos saberes escolares. Adriana deixa
evidente a percepção de que existe um vocabulário específico para falar das obras literárias,
porém ela não o domina. A dúvida quanto à exatidão de suas ações e a separação entre elas e
a modificação de suas percepções sobre os assuntos abordados é um dos pilares da sensação
de ausência de sentidos na escolarização. Karina insiste sobre isso quando fala sobre a
dificuldade de manter a leitura de alguns livros:

A falta de informação, de entendimento sobre uma leitura, realmente, atrapalha


muito. Você não se interessa pela leitura (Karina).

Os depoimentos dispostos anteriormente permitem-nos ver que a relação com o saber


sugerida na escola torna os alunos e até mesmo as professoras distantes das possibilidades de
tomarem tais saberes como esquemas interpretativos dotados de significados para suas vidas.
Ao falar da formação de professores, Denice Catani (2007) nos oferece importantes
contribuições para compreender o problema. A partir do conhecimento apresentado como um
conjunto de palavras e nomes de autores deslocados dos modos como eles são produzidos,
torna-se difícil compreender e se apropriar deles. Quanto ao nosso objeto de pesquisa, as
representações de leitura escolares não produzem laços com aquelas mantidas pelos alunos. A
partir disso, diante de um objeto de ensino encarado como algo distante, os pressupostos das
atividades e o que deveria ser aprendido por parte dos alunos não se tornam evidentes.
Tampouco é evidente a maneira como as atividades selecionadas pelas professoras poderia
produzir contatos com as disposições culturais dos alunos. Nesse momento, podemos
justapor as situações de aprendizagem vivenciadas pelos alunos e pelas professoras. Valquíria
e Celeste passaram por um tipo de formação universitária que rendeu a elas a incorporação da
leitura de obras literárias a partir de concepções advindas do campo acadêmico, as quais
foram incorporadas ao preço de um suposto apagamento de suas próprias relações com a
201

leitura. Diante disso, elas parecem reproduzir tal relação com a cultura. Este jogo, no entanto,
não é confortável para os alunos. As abordagens pedagógicas mais eficientes, de acordo com
seus depoimentos, dizem respeito a situações nas quais os professores conseguem produzir
contatos com os interesses e preferências dos alunos:

[...] na sétima série, o professor de Português, ele contou o Conto do gato preto, do
Edgar Allan Poe. Ele contou de um jeito que a sala toda se interessou por ler, a sala
toda. Vinha filas, filas de espera para o livro dele. Filas. Tipo, do jeito que ele
contou, interessou a gente completamente e a gente lendo, a gente via que não era
exatamente como ele contou, mas do mesmo jeito foi interessante (Adriana).

A busca por maneiras de aproximar e, assim, produzir engajamentos nas atividades


escolares é fator determinante para que os alunos possam construir sentidos para aquilo que
aprendem. Outras situações consideradas positivas pelos alunos residem na ênfase das trocas
orais entre os professores e eles:

Umas só ficavam falando, outras só ficavam escrevendo. Olha o escrevendo eu até


achava legal, mas o falando eu acho que para mim é legal quando você consegue
pegar o fio da meada. Quando você não consegue entender a aula não adianta. Vai
falar, vai falar, que nem político, vai falar e não vai entender nada. Você tem que
saber por que ele está falando aquilo, sobre o que é o assunto (Marcelo).

Eu acho que, eu mesma, tenho uma facilidade que eu não... quando eu leio ali
escrito, eu não, eu não aprendo muito. Quando a pessoa fala que eu aprendo mais, eu
tenho essa facilidade. Quando tem a pessoa falando (Adriana).

É possível interpretar essas afirmações de duas maneiras. Por um lado, os alunos


demonstram circular com mais facilidade por meio da cultura oral. Nesse sentido, as trocas
ocorridas dessa maneira são passagens necessárias para que se possa chegar à lógica da
cultura escrita. Como vimos no capítulo 2, a maioria das atividades propostas pelas
professoras parte da escrita, que deve transmitir os conhecimentos válidos. Por outro lado, os
depoimentos demonstram a importância da comunicação no processo pedagógico. Pierre
Bourdieu (2014) sustenta que toda ação pedagógica depende da comunicação para que sua
eficácia ocorra, o que pressupõe não apenas o fato de alguém ser capaz de ouvir o que o outro
diz. Para o autor, a comunicação pedagógica depende do grau de domínio do código cultural
por meio do qual a comunicação se produz. Assim, em nosso caso, quando os alunos se
remetem ao problema da ausência de vocabulário, à falta de conversas e à dificuldade de
entendimento do que se passa nas aulas, eles parecem estar aludindo ao fato da cultura
legítima no espaço escolar se ligar a esquemas interpretativos da realidade cultural não
compartilhados entre eles. Quando os estudantes se voltam para a necessidade da fala,
202

percebemos a necessidade de que os conteúdos sejam explicados, ou seja, que se tornem


conhecimentos apreensíveis segundo suas disposições culturais. A cultura da atenção, como a
propõe Denice Catani (2010), também se faz necessária no ensino médio.
Fica evidente, também, a necessidade de as professoras efetuarem traduções ao longo
das aulas. Os alunos acolhem melhor os momentos nos quais os pressupostos das atividades
são destacados para eles, o que nem sempre acontece. A observação das aulas e os
depoimentos das professoras e alunos demonstraram que os conteúdos literários são
apresentados a estes últimos como em uma exposição de arte, cujas informações necessárias à
sua compreensão não foram compartilhadas. Os quadros estão lá, os visitantes podem
comprovar sua existência, porém muitas vezes é difícil fazer a leitura dessas obras. Pierre
Bourdieu (2007) chama atenção para a necessidade de se constituir capitais necessários à
apreciação artística. No caso escolar, ocorre algo semelhante, pois a ausência de distribuição
das formas de apropriação da leitura de obras literárias torna difícil a compreensão de seus
significados segundo os critérios escolares. Não podemos nos esquecer de que, segundo o que
temos exposto neste capítulo e no anterior, os alunos – assim como as professoras – dispõem
de esquemas interpretativos do universo literário; contudo eles são invisíveis às lógicas
escolares.
Adriana, aluna do ensino médio regular, teve a possibilidade de ajudar a professora
responsável pela sala de leitura da Escola 1 por mais de um ano. Entre todos os nossos
entrevistados, ela dispunha de conhecimentos que demonstravam a apropriação do
funcionamento do universo literário segundo as regras do universo literário legítimo no
espaço escolar. A aluna havia incorporado os modos de classificação dos livros segundo seu
gênero, tinha compreensão sobre as relações individuais que se pode produzir com a
literatura, relacionava universos literários aos autores que lhes produziram, enfim, ela
dominava os códigos em circulação na biblioteca. Apesar de também se sentir uma leitora
insegura, ela demonstra que a experiência de lidar com a biblioteca e seu cotidiano forneceu-
lhe saberes que puderam reconfigurar seu conhecimento sobre esse tema. Logo, mais
experiências como essa poderiam proporcionar nos alunos a sensação de aprendizagem e de
que o tempo gasto na escola não é perdido. Nesse caso, como também notamos em nossa
pesquisa de mestrado (AMPARO, 2012), a escola produz o arbítrio cultural na medida que
legitima e valoriza um conjunto de obras e leituras, porém tem dificuldades de ligar os saberes
àquilo que os alunos sabem:
203

Com a [aula] de Português [eu ficaria] porque eu acho que precisa, mas eu não uso,
mas eu acho que tem que ter (Paulo).

Até aprendi, mas eu não gosto. Eu finjo que eu não aprendi, eu só boto
conhecimento na prova (Mariana).

Como os alunos não têm a oportunidade, para além da incorporação do arbítrio


cultural, de terem modificadas as suas disposições e aprendizagens, parecem sentir que o
tempo vivido na escola é semelhante àquele gasto em uma esteira. A ausência de modificação
passa a ser comprovada por outros espaços que dão legitimidade ao saber escolar na sua
perspectiva, o que alguns alunos chegam a formular de maneira mais direta. Inicialmente, o
próprio sistema de ensino comprova a insuficiência da escola:

O [processo seletivo] da ETEC eu fiz para fazer o ensino médio. Mas eu não fiz para
passar, eu fiz mais para ver como funciona para quando eu quiser fazer um ENEM
eu não ficar aquele “meu Deus, o que é isso?” Para preparar mais. Só o da Nossa
Senhora da Lapa era ensino técnico com o ensino médio. Mas eu não consegui
passar. Fiquei com 35% só. As matérias que eu consegui esses 35%, eu sei o quanto
eu me matei para conseguir. Foi assistindo videoaula, foi na internet. Eu sei o quanto
me esforcei para não conseguir... eu deveria ter conseguido, na minha concepção, eu
só aceitaria se eu conseguisse 80%, pelo menos. Eu vou lá e vejo em 35!
Desencoraja. Meu Deus, o que vai ser de mim daqui dois anos? E agora é um ano só.
É horrível, a gente fica se sentindo meio impotente (Luana).

Paulo também expressa que a escola não o auxilia a encontrar trabalho:

Quase nada. Nas duas coisas que eu quero fazer, [a escola não ajuda] em nada
(Paulo).

As ponderações dos alunos indicam que eles não têm acesso a um saber capaz de se
relacionar às suas maneiras de compreender a cultura e, ao mesmo tempo, eles também não
conseguem produzir relações entre tal conhecimento e seus projetos futuros. A produção de
elos entre o que é ensinado na escola, as experiências dos alunos e projetos de futuro
precisariam estar melhor articulados no processo de escolarização.

4.3.2. Para que serve a escolarização?

A impressão de que a escolarização não é pensada de modo a proporcionar


modificações consistentes nos alunos torna-se mais evidente por meio da utilização do tempo
e do planejamento das atividades diárias, semanais, mensais e anuais, as quais não parecem
204

corresponder a um objetivo formativo. Ao falar da constituição do tempo nas escolas


primárias paulistas, Rita de Cassia Gallego (2008) nos mostra a importância da arquitetura
temporal para as atividades de ensino. A esse respeito, uma invenção descrita pela
pesquisadora nos auxilia a compreender o problema em questão. No processo de articulação
dos ritmos de aprendizagem, o século XIX vê surgirem os tempos didáticos, que articulam o
modo de ensino dos professores. Uma de suas características é a articulação do ensino
concêntrico, “[...] caracterizado pela organização dos programas compostos por todas as
matérias simultaneamente numa mesma série e em séries consecutivas, desenvolvendo-se pelo
aumento crescente de intensidade” (GALLEGO, 2008, p. 206-207). Por meio desse ritmo de
ensino e organização dos currículos, a escola tornava mais complexo o efeito produzido nos
estudantes, dando a ver seu potencial formativo. A diferença produzida nos alunos depende
muito, portanto, dessa engrenagem ritmada das atividades cotidianas e a relação com os
saberes. As observações de aula e as entrevistas nos deixam ver que a ação escolar não parece
oferecer essa experiência articulada aos alunos.
Enquanto ocupávamos a posição de observadores das aulas, a impressão de um tempo
que passava vagarosamente se fez presente para nós. Em algumas circunstâncias as próprias
professoras tornavam esse fato evidente, como aconteceu com a profissional que substituiu
Valquíria em um dos dias em que ela faltou: “[a professora] adverte que sua aula é mais
“light” por ser substituta. Ela diz que costuma passar “textinho na lousa” e dá visto”.
Também notamos o progressivo aumento das faltas ao longo da semana. A situação se torna
ainda mais incômoda à medida que as atividades mantidas por Valquíria e Celeste pareciam
acentuar essa impressão, pois as intencionalidades formativas nem sempre eram claras.
Apesar da impressão de que a escolarização poderia ter efeitos mais duradouros, os alunos
que frequentavam o EJA contam sobre uma experiência com mais sentidos, indicando que a
opção de Celeste pelo trabalho com os textos de modo a explorar seu vocabulário e aspectos
gramaticais surtiu efeitos para os alunos. No caso do ensino médio regular, as aulas não
articulavam um sentido para o ensino que fosse evidente para os alunos. As duas situações
vividas indicam que na ausência de uma cultura comum que dê sentidos compartilhados ao
ensino, as articulações e negociações cotidianas tornam-se ainda mais importantes
(ZAFFRAN, 2006; DUSSEL, 2007), o que vai depender muito das circunstâncias do encontro
entre um grupo de professores, os alunos e uma instituição particular. Nesse sentido, temos
duas situações possíveis. Devemos ressaltar que essa característica pode levar os alunos a
vivenciar experiências de escolarização bastante fragmentadas, pois além de variar de escola
205

para escola, também pode variar de professor para professor. Dessa forma, na aula de
Geografia ou História os alunos podem identificar circunstâncias mais formativas.
Sabemos que não é possível realizar atividades de aprendizagem durante todo o tempo
em que se fica na escola, como afirma Philippe Perrenoud (1995). No entanto, nas aulas
observadas, muitas vezes essa ideia parece ganhar maiores consequências. Assim
observamos:

A professora se levanta e os lembra do trabalho sobre o Barroco, “para não passar


em branco
(Observação de aula no dia 04/11, 3º ano B).

A ideia do tempo escolar com sentido formativo parece se inverter e as atividades tem
a função de fazer com que o tempo passe. Nas circunstâncias em que isso não fica claro, o
pressuposto parece estar presente nas relações entre alunos e professores durante as aulas. A
organização escolar parece incentivar essa sensação:

Entra na sala a mediadora da escola para pedir aos alunos com mais de três notas
vermelhas para procurar o professor da disciplina e pedir um trabalho. Ela continua
explicando que um aluno que tenha sete notas vermelhas pode repor. Ela está com
uma lista dos alunos nessa situação. Os alunos pedem para ela não ler o nome em
voz alta. Contudo, ela lê os nomes. Depois de citar o nome de um aluno com 7 notas
vermelhas diz: “Esse aluno tá todo lascado, coitado”. Sobre outro aluno diz, “Tem
sete faltas, mas dá para repor”. Ao final, cerca de 15 anos tem pelo menos três notas
vermelhas, sendo que a maioria tem mais que 5

(Observação feita no dia 10/11, Escola 1).

Conforme a mediadora apresenta a possibilidade aos alunos com notas vermelhas de


entregar um trabalho a fim de alterarem sua situação, o próprio jogo escolar parece não fazer
mais sentido. O tempo que se passa na escola não é fundamental, pois ainda que eles não
frequentem as aulas e não realizem as atividades, ao final haverá um trabalho que valerá todo
o tempo gasto na escola. As situações vividas pelos alunos produzem algumas reações diante
das situações escolares. Entre elas, situaremos a seguir aquelas que pudemos reconhecer entre
os alunos.

● A revolta diante da escolarização


Luana representa uma visão a respeito da escola expressa pelo sentimento de revolta.
Vendo-se diante uma escolarização que, apesar de prolongada, não lhe permite atingir vagas
206

localizadas entre as mais concorridas, a aluna se sente indignada. Essa posição gera a vontade
de faltar e de se ausentar das aulas. Algumas de suas frases expressam o que sente:
Não é uma rebeldia, é uma raiva que dá (Luana).
Eu quero me formar na escola, mas eu não quero ir [à escola] (Luana).

● A indiferença diante da escola

Paulo e Amanda demonstram duas formas de sentir indiferença com relação à escola. O
primeiro compreende que a escolarização não poderá lhe render nada. Diante disso, ele não se
sente revoltado, mas sim indiferente. Ele encontra maneiras de ocupar o espaço
silenciosamente e sem chamar a atenção. Por meio de sua estratégia de realização das
atividades, procura passar pelo tempo ainda necessário à escolarização sem ser importunado,
assim como não importuna a professora ou os colegas.

Minha meta é só sair da escola (Paulo).


Ser esperto, só. Você não precisa ficar fazendo tudo, é só ser esperto [...] entregar os
trabalhos, sempre, e fazer lição na sala (Paulo).

Amanda também não parece identificar sentidos para a escolarização para além da
obrigatoriedade de os adolescentes estarem nesse local e das aspirações de seus pais. O fato
de ter sido reprovada em um processo seletivo ou de não compreender os conteúdos não lhe
exaspera, exceto se isso causar reprimenda por parte de seus responsáveis.

Tem coisas que eu não entendo bulhufas. Eu não lembro direito o quê, mas, por
exemplo, a parte do radical entendi. Tomara que eu tire mais do que 5 se não minha
mãe me mata (Amanda).

● Entre o encantamento e a decepção

Clair e Karina, as estudantes adultas, mostraram-se muito encantadas com a possibilidade


de voltar aos bancos escolares. O término da escolarização, mesmo na idade adulta, foi
encarado de maneira muito positiva. Elas se mostraram contentes ao ter acesso a saberes que
consideram mais valorizados, o que lhes rendeu uma visão positiva sobre a volta aos estudos.
Entretanto, a satisfação segue ao lado da decepção, ao notarem que a escola a qual tiveram
acesso não oferecia as condições de construções de saberes como elas tinham projetado.
207

Eu acho que na verdade eu acordei. Ter voltado para a escola fez eu acordar como
pessoa, tipo “Eu posso aprender, eu sei. Eu ainda consigo aprender” (Clair).

E eu estou saindo daqui sem saber quase nada (Clair).

Esse ano, eu estudei o3º [ano], mas eu não pude absorver nada (Karina).

● O desdém com relação à escola

Mariana não está revoltada e tampouco está satisfeita com a escolarização. Diante
disso, ela não se rebela, porém parece querer dar de volta a indiferença com a qual a escola a
trata. A incorporação da visão de si como alguém que não consegue “guardar” o que lhe é
ensinado oscila com o desdém demonstrado por ela.

É que eu sou o tipo de pessoa que esquece muito rápido das coisas (Mariana).

Até aprendi, mas eu não gosto. Eu finjo que eu não aprendi, eu só boto
conhecimento na prova (Mariana).

● Posição compreensiva

Adriana foi a única aluna a manter uma posição de compreensão das interações
mantidas dentro da escola. Ela notou algumas limitações, porém buscou situá-las entre as
injunções da instituição. Ela sugere que a presença de alunos que não compreendem o jogo
escolar produz certas especificidades aos saberes a serem explorados na escola. Como
resultado, ela parece aceitar que vai aprender o que for possível e, depois do ensino médio,
procurará outras maneiras de ter acesso os conhecimentos necessários ao vestibular.

O ensino é bom, mas você percebe que ele podia ser melhor, mas tem aqueles alunos
que acabam, que eles não conseguem compreender e eles acabam deixando aquilo...
a gente não tem tempo de aprender o necessário, a gente tem só o básico (Adriana).

As posições descritas acima não esgotam as possibilidades que uma sala de aula pode
comportar, entretanto, tais imagens nos servem para dar visibilidade a alguns ângulos de
refração possíveis para as experiências de escolarização verificadas na Escola 1 e na Escola 2.
No espaço entre as expectativas de futuro, disposições culturais e organizações escolares,
percebemos a construção de significações para a escola a partir de relações objetivamente
instauradas. As imagens também indicam a fragmentação verificada em sala de aula. No
208

início de nosso trabalho procuramos indicar que a sala de aula é composta por diferentes
frações de classe que trazem possibilidades diversas para a produção de engajamentos
escolares e, acreditamos, este é um dos elementos que podem gerar experiências de
escolarização tão diversas.

* * *

Ao iniciarmos o capítulo, procuramos situar as práticas de leitura dos estudantes e as


maneiras como elas são classificadas na escola. Para tanto, buscamos as lógicas não-escolares
nas quais foram produzidas, os sentidos atribuídos ao universo literário, bem como em quais
bases eram definidas. Descrevemos livros, jornais, revistas e blogs conhecidos e praticados de
modo não sacralizado, segundo lógicas não valorizadas ou percebidas no espaço escolar.
Evidenciamos, também, que uma vez reclassificadas na escola, as relações com a leitura dos
alunos faziam com que estes últimos fossem classificados como não-leitores ou leitores pouco
proficientes. Desse modo, os esquemas interpretativos conhecidos pelos alunos são invisíveis
na escola ou desvalorizados. Os alunos, nesse tocante, atribuem valor à leitura, uma forma de
fazer com que possam soltar o corpo. Eles mencionam frequentemente a importância da
linguagem para conseguirem se expressar por meio da fala, da escrita e da leitura. No entanto,
ao final da trajetória formativa, ainda não se identificam como quem tem esses conhecimentos
construídos. Como resultado, os alunos demonstram a necessidade de traduções ou elos entre
as culturas, para que possam perceber que a escola vale a pena, que o tempo de escolarização
não foi perdido. Notamos, portanto, situações de formação marcadas pela fragmentação, que
se expressa na distância entre os esquemas interpretativos do universo literário das
professoras, dos alunos e da escola, cujas normas e regras colocam em jogo o inconsciente
escolar. A fragmentação também se estende para o dia a dia das escolas, no qual textos
fragmentados estruturam as aulas nas quais as relações com a leitura também estão dadas
desse modo. Ao mesmo tempo, diante de tantos aspectos a serem articulados, efetivam-se
negociações constantes como uma tentativa de superação da fragmentação. As negociações,
no entanto, são sempre provisórias e marcadas pelo mosaico do cotidiano.
209

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Será que a leitura ainda é uma parte constitutiva da cultura?


Jéan Hèbrard e Anne-Marie Chartier

No estudo acerca dos discursos sobre a leitura produzidos na França entre 1880 e
1980, Jean Hébrard e Anne-Marie Chartier (1995) fazem a pergunta em epígrafe já no último
capítulo da extensa obra. Após acompanharem mudanças significativas nas compreensões
sociais e escolares dos sentidos da leitura, os autores se perguntam se ela tem relevância como
parte do que se pode considerar a “cultura” francesa no presente. No volume referido acima e
também em outros artigos, Anne-Marie Chartier (1995) discutiu o fato de mudanças sociais,
tais como a ampliação da alfabetização, expansão dos sistemas de ensino e novas
compreensões da função da leitura terem provocado alterações nas articulações entre ela e a
cultura. No caso francês, a escola republicana foi ancorada no binômio literatura e cultura
geral, conjugação que forneceu um dos pilares de seu sentido social. No entanto, as explosões
demográficas e o surgimento da cultura de massa impuseram novos tipos de leitura e, assim,
desfizeram para refazerem os papéis desempenhados por ela. Desse modo, a busca pelos
endereçamentos sociais que a literatura escolarizada poderia gerar é aspecto significativo para
a compreensão dos problemas relacionados a ela.
Quando nos propusemos a investigar as disputas pela leitura legítima de obras
literárias, de certo modo, também tratamos das possibilidades de articulação da formação
escolar e suas repercussões para as professoras e alunos. As sugestões de autores como Pierre
Bourdieu e Bernard Lahire acerca do papel estruturante que a linguagem desempenha na
articulação do trabalho pedagógico bem como a certeza de que a leitura é um objeto de
disputa, ajudaram-nos a perceber que os acordos ou injunções do presente poderiam nos
auxiliar a compreender quais seriam os sentidos da literatura para o ensino médio hoje. Nossa
pesquisa de mestrado (AMPARO, 2012), como indicamos no capítulo 1, também nos
forneceu um certo tipo de aproximação à questão, pois pudemos identificar os efeitos que as
formas de classificação operadas na escola foram marcantes para as mulheres cujas leituras
investigamos. Nesse sentido, notamos que o tipo de educação a que se tem acesso pode
produzir afinidades com as obras artísticas assim como fornecer interpretações sociais,
incorporadas individualmente, acerca da linguagem literária. Assim, em um sentido positivo
ou negativo, fornecem chaves interpretativas das práticas de leitura individuais e, no limite,
210

das classificações sociais por meio da cultura, já que elas são aspectos de identificação e
diferenciação dos grupos em sociedades diferenciadas (CHARTIER, 1991a, 1991b).
De modo a nos aproximarmos dessas questões, selecionamos o caminho do cotidiano,
uma vez que ele efetiva a síntese dos problemas em questão e, assim, produz as inúmeras
determinações do que se pode considerar como o problema da leitura de obras literárias no
presente. Procuramos construir teoricamente e metodologicamente a cotidianidade como algo
temporal e socialmente estruturado em diálogo com autores como José Mário Pires Azanha,
Pierre Bourdieu, Dominique Julia e Régine Sirota. A partir daí, tomamos dois caminhos
investigativos. Por um lado, construímos um espaço cruzado por temporalidades que
sintetizam diferentes diretrizes e sentidos atribuídos às obras literárias. Evidenciamos que a
articulação desses elementos depende da apropriação feita pelas professoras em seu trabalho
cotidiano. Por outro lado, a sala de aula e seu dia a dia são constituídos por pessoas cujas
posições sociais produzem diversos ângulos de refração aos tempos escolares e à cultura
legítima. Para nós, foi muito importante a compreensão de que as práticas pedagógicas são
sínteses de disputas sociais reapresentadas por meio da lógica educacional (SIROTA, 1988).
De modo a concretizar tal abordagem, recorremos ao conceito de inconsciente escolar,
tal qual proposto por Pierre Bourdieu (2013a) para definir as estruturas cognitivas que
produzem a realidade. Ao se referir a um transcendente histórico, o autor nos propõe a
compreensão dessa dimensão da história incorporada que produz o senso comum ou as ideias
impensadas, porque consideradas evidentes. Por meio da relação entre o presente e os
diversos traços do passado da qual se depreendem as estruturas cognitivas em circulação,
procuramos situar, nos limites propostos na pesquisa, as disputas pela leitura legítima de
obras literárias. Assim, os ritmos e regularidades escolares e sociais deram os contornos à
cultura cotidiana.
Por meio do crivo estabelecido pelo inconsciente escolar, operam-se as classificações
das práticas culturais dos alunos e também das professoras, de modo a se produzir a
socialização nas instituições de ensino. Diríamos que a escola exerce uma força centrífuga
que ao girar, ou melhor, ao ser praticada, atrai as disposições culturais dos professores, alunos
e outros agentes, ao mesmo tempo em que as reclassifica, dando sentidos tomados como
gerais ou como destinos sociais por cada um deles. Devemos considerar, também, que
tomamos em nossa análise as características dadas pelas relações objetivamente instauradas
em duas instituições de ensino e, portanto, conhecemos sentidos possíveis dados nesses
espaços e nas circunstâncias vivenciadas ali. Conhecemos uma rede de ensino marcada pela
ramificação, a qual tem gerado uma tendência de diferentes vias de entrada e experiências
211

para os alunos. Entre as escolas técnicas, regulares em período normal e em tempo integral –
sem contarmos as instituições particulares – podemos inferir a possibilidade de modos
diferenciados de apropriação de estruturas cognitivas que podem gerar classificações
diferenciadas em função das condições pedagógicas, do recrutamento social de professores e
alunos e da estrutura física oferecida por elas.
A realidade que pudemos descrever está marcada pelos estranhamentos sociais dados
na cotidianidade entre alunos recrutados em frações da mesma classe social, cujos estilos de
vida diferem em suas práticas culturais e expectativas de escolarização. Por isso, os conflitos
entre eles são constantes. As professoras, cujas origens sociais são compartilhadas com os
alunos, buscam se diferenciar destes últimos quando assumem a posição docente. Como
consequência, ocorrem vários pequenos conflitos e mal-entendidos dinamizados pela força
centrífuga do cotidiano e suas imagens da cultura legítima.
A observação das aulas e entrevistas com professoras e alunos, bem como a análise
dos materiais didáticos e currículos em vigência, permitiu-nos elaborar uma imagem da matriz
socializadora escolar, isto é, das ações pedagógicas articuladas que fornecem perfis da
socialização no que se refere às relações com a leitura de obras literárias (LAHIRE, 2008).
Uma dimensão importante dessa matriz socializadora se refere ao fato de que ela é produzida
no próprio cotidiano e, assim, as professoras exercem papel fundamental para a produção
desse currículo criado na sala de aula pela articulação de suas disposições culturais e
conhecimentos disciplinares informados por estruturas cognitivas conhecidas nos cursos de
formação e entrada na profissão. Principalmente por meio de práticas ancoradas nos textos,
efetuam-se atividades de leitura, escrita e discussões orais que possibilitam a produção de
imagens da leitura de obras literárias, as quais evidenciam os seus desafios atuais.
Podemos iniciar a descrição do que dá conteúdo a essa matriz socializadora recorrendo
ao passado. Por meio de uma retomada da história da disciplina e de alguns currículos
notamos que o ensino médio tem um passado ligado à educação das elites por meio do
fornecimento de uma cultura geral, cujo perfil humanista teve papel central. Assim, esse nível
de ensino buscava legitimar, em consonância com o perfil social de seus alunos, uma relação
desinteressada com a literatura, baseada nos autores e títulos presentes no cânone escolar –
criados e legitimados pelas seletas e coletâneas. Na medida que, ao longo do século XX, o
ensino médio passa por momentos de expansão, o sentido formativo da leitura de obras
literárias foi modificado de modo a atender a grupos sociais mais amplos. Os sentidos sociais
presentes nos currículos e livros didáticos passam a estar associados à comunicação e
expressão, processo que têm início nos anos 1960 e vai se aprofundando. O ensino, que se dá
212

cada vez mais com o auxílio de livros didáticos que se estruturam geralmente pela presença de
textos, atividades de análise dos mesmo e exercícios gramaticais, volta-se para os aspectos
relativos aos usos dos materiais impressos. Os documentos curriculares paulistas dão a ver a
necessidade de se compreender não apenas o texto literário como ponto de partida das aulas,
mas também textos advindos da cultura de massas, como as propagandas, jornais, gibis, entre
outros. Essa mudança é significativa, uma vez que a disciplina foi se estruturando por meio da
relação com os autores clássicos e aqueles celebrados pela crítica literária, dispostos nos
livros didáticos e currículos.
A mudança de sentidos proposta às obras literárias, que passa de sua análise para uma
forma de suprir as necessidades formativas de grupos sociais cada vez mais amplos e das
referências sociais alargadas a respeito do que seriam os objetos de leitura, resultaram em
certo paradoxo. A análise de nossos dados demonstrou que, apesar dessas alterações, mantém-
se como esquema interpretativo uma imagem da boa leitura, caracterizada por uma das alunas
entrevistadas pela figura do leitor-leitor. Ele é caracterizado por alguém que realiza, em
silêncio, a leitura desinteressada – muitas vezes descrita como a leitura por prazer – de obras
de tamanhos variados e tem como ponto de partida apenas os grandes autores, os quais hoje
em dia permanecem nos livros didáticos e vestibulares, enfim, nos circuitos de legitimidade
escolar. Vemos, assim, que apesar das reconfigurações dos sentidos da leitura de obras
literárias, permanecem estruturas cognitivas repletas de significados que prolongam no
presente a ideia do ensino médio destinado às elites e sua relação com a cultura, pelo menos
no que se refere à imagem da boa leitura.
Diante de tais sentidos contrastantes no que se refere às obras literárias, vemos a sala
de aula ocupada por professoras e alunos e suas disposições culturais dissonantes, como
falamos anteriormente, em um sistema de ensino ramificado, produzindo negociações
cotidianas pelos sentidos e pelo que se pode compreender como a leitura legítima. Nesse jogo
acontecem ações constantes de classificação e reclassificação diante das imagens relativas à
boa relação com a literatura. Logo, as posições de professoras e alunos demonstram as
especificidades desses conflitos.
No que se refere às professoras, identificamos a ocupação de uma posição difícil, uma
vez que elas devem ser as representantes da relação com a linguagem presente nas prescrições
curriculares, livros didáticos e consensos atrelados à leitura. Em consonância à imagem do
leitor-leitor, elas precisaram incorporar tais sentidos, o que foi feito sobretudo nos espaços de
formação docente em cursos universitários e início do exercício profissional. Vimos que a
partir de disposições culturais e expectativas de escolarização variadas, Valquíria e Celeste
213

frequentaram cursos de formação que trouxeram imagens da leitura advindas do espaço


acadêmico em que os valores presentes na escola foram mais uma vez legitimados. De modo
a serem representantes dessa relação com a cultura, as professoras realizam movimentos de
esconder e mostrar suas práticas de leitura. Também procuramos situar os movimentos pelos
quais as professoras incorporaram a história da profissão no que se refere aos saberes
legítimos e, assim, assumiram uma visão marcada pela necessidade de diferenciação cultural e
social dos alunos. Uma vez que tal distinção não está completamente configurada em suas
trajetórias de vida, elas foram descrevendo uma posição difícil de ser ocupada.
Os alunos, por sua vez, são unânimes ao definirem o desgosto com relação à disciplina
Língua Portuguesa e expressaram de maneira mais clara tal percepção. É importante ressaltar
que essa é uma diferença fundamental entre professoras e alunos, uma vez que estes últimos
têm mais liberdade para informarem sua contrariedade a respeito da leitura escolar. No
entanto, as professoras precisam assumir seus pressupostos como condição para
desempenharem a função docente. Como vimos, Celeste tem disposições mais favoráveis a
essa aproximação, ao passo que Valquíria demonstra vivenciar maiores contrariedades com
relação a imagem da literatura encontrada em seu ambiente profissional. Mesmo assim, ambas
as professoras precisam legitimar tal relação com a cultura, o que as leva a esconderem suas
práticas culturais. No tocante aos conflitos vividos pelos alunos, seus maiores problemas
seguem em duas direções. O primeiro deles se refere ao fato de suas aproximações às obras
literárias serem forjadas sobretudo nos espaços familiares, que articulam a leitura por meio de
sentidos afetivos, religiosos, enfim, repletos de significados para as experiências individuais
dos mesmos. Contudo, as chaves interpretativas constituídas nesses espaços não podem ser
utilizadas na escola, uma vez que o universo literário dessa instituição é estruturado segundo
outros códigos. O segundo deles se refere ao fato de que suas relações com a leitura são
reclassificadas, assim, os estudantes vão se apropriando, por meio dos julgamentos docentes,
da visão de si como não-leitores ou leitores pouco proficientes. Ao mesmo tempo, sabem da
existência de grandes autores e obras clássicas, mas têm poucas ferramentas para circularem
por seu universo, pois não há de maneira constante o trabalho de tradução cultural realizada
pelos professores.
As formas de compreensão da linguagem descritas por professoras e alunos assim
como a observação das aulas demonstrou que os textos literários são assumidos de maneira
distante dos sentidos que alunos e professoras atribuem a eles. A partir da imagem do leitor-
leitor e as características que a envolvem, os participantes da pesquisa falam a respeito de
uma disciplina que para eles que não mudou com o tempo e que dá a ver a literatura como um
214

tipo de saber que não pode ser utilizado para que eles elaborem suas demandas cotidianas.
Isso indica que, cada um à sua maneira, Valquíria, Celeste e os alunos devem lidar com
esquemas interpretativos do universo literário que estão apartados de suas experiências. Como
Denice Barbara Catani (2010) nos indicou, esta é a característica das aproximações ao
conhecimento favorecidas em cursos de formação de professores em que os saberes não são
apresentados de maneira articulada às experiências dos profissionais em formação. Vemos o
quanto elas são duradouras, uma vez que são reproduzidas em suas práticas pedagógicas.
Afora as especificidades de suas posições, ambos lidam com hábitos de leitura
semelhantes. Como mencionamos no início do capítulo, as professoras são agentes da
expansão atual do ensino médio, porém elas próprias também são fruto de antigas ampliações
do ensino médio e universitário. Assim como os alunos, elas passaram por situações em que
suas representações culturais foram postas de lado ao incorporarem o arbítrio cultural. A
licenciatura bem como as prescrições estatais favorecem relação especializada com e leitura
de obras literárias a partir de conhecimentos advindos dos espaços acadêmicos. Nesse
trabalho pedagógico permeado pela violência simbólica em que se instaura o arbitrário
cultural (BOURDIEU,2014), as professoras incorporam a hierarquia cultural escolar ao preço
de efetuarem um jogo de esconder e mostrar suas inscrições sociais. Em função de suas
posições docentes, do que depende certo apagamento de suas práticas de leitura, as
professoras também geram tais modos de circulação no universo literário. Para isso, elas se
valem de práticas de ensino que as distanciam de suas representações de leitura em favor
daquela mais valorizada em seu espaço de trabalho.
Assim, na impossibilidade de poderem colocar suas experiências e modos de
compreensão da realidade em jogo, os alunos entendem a escolarização como algo sem
sentido. Essa sensação está relacionada a uma dada aproximação ao conhecimento, mas
também ao modo de estruturação do tempo. As observações de aula e as entrevistas
permitiram ver que a organização da jornada cotidiana não consegue atribuir sentidos para a
aprendizagem. Diante desse objeto de ensino, as atividades são articuladas sem que se torne
evidente seu sentido formativo, o que gera a sensação de tempo perdido. Para os alunos, as
aulas não produzem ganho de conhecimentos úteis, ou seja, aqueles que permitem revisitar
seus saberes e a elaboração de novos a serem utilizados no futuro.
A valorização exclusiva do leitor-leitor promove o apagamento e a desvalorização de
formas variadas de concepção do universo literário, sobretudo aquelas que passam ao largo
dos espaços mais valorizados no campo acadêmico. As práticas de leitura dos participantes de
pesquisa evidenciaram espaços de circulação literária marcados pelas livrarias pertencentes a
215

grandes redes situadas em shoppings centers, por livrarias de rua, por sebos e por bancas de
jornal – sem contar na troca de livros – que colocam em evidência os grandes centros de
comércio, as possibilidades oferecidas pelos caminhos percorridos para ir ao trabalho e pelos
passeios de final de semana. Em meio às práticas de sociabilidade constituídas nesses locais,
são produzidas maneiras de apropriação do universo literário. Um exemplo disso vem de
Luana, que não vê a necessidade de existirem bibliotecas e que não vê a compra de livros
como um bom investimento, já que a leitura se esvai no momento em que acaba.
Diferentemente do que a imagem do leitor-leitor sugere, delineiam-se leituras marcadas pelo
efêmero, logo, por experiências temporais diversas da imagem presente nos esquemas
interpretativos escolares. Além disso, os circuitos formados em torno de pessoas consagradas
no espaço virtual, por meio de blogs e sites, constituem referências literárias. Como se vê, o
universo de leituras dos alunos e das professoras é amplo, seguindo as lógicas de suas
trajetórias de vida e significados elaborados nessas circunstâncias. A escola tem, assim,
sentidos concorrentes no tocante às referências de leitura (CHARTIER & HÉBRARD, 1995)
e sua reação é marcada pela classificação de tais imagens como não-leituras e os alunos como
não-leitores.
Como a exposição feita até aqui deixa ver, os conflitos a respeito da leitura de obras
literárias não ocorrem de maneira polarizada entre professores e alunos. Identificamos
pequenos conflitos, muitas vezes apresentados como negociações, que nos permitem ver os
traços que definem o que está em jogo no que se refere às obras literárias. As maneiras de
apropriação de leitura favorecidas pela escola, como vimos, tornam os livros e autores
valorizados por ela os representantes de uma cultura que pouco implica os saberes e
expectativas de futuro dos estudantes. Apesar de notarmos essa relação com a leitura como
algo predominante, pudemos acompanhar uma circunstância em que observamos um
rompimento no perfil predominante da abordagem do texto literário. Ao final de nosso texto,
gostaríamos de apresentar essa circunstância, pois ela nos permite compreender o problema da
leitura de obras literárias a partir da apresentação de como ela concretiza os conflitos
encontrados em nossa pesquisa:

“Ao terminar de distribuir os textos, a professora começa a leitura. No canto da


página impressa existe uma explicação sobre o que é o conto. Ela lê essa explicação
e, a seguir, o título do conto: “O cachorro canibal”. A professora pergunta para a
turma o que é canibal. Eles logo respondem que é aquele come gente.

[...]
216

Ao terminar a leitura, os alunos ficam em silêncio, aparentemente,


surpreendidos pelo final do conto, quando um cachorro come o outro que tinha
chegado em seu quintal. Diante da sala perplexa a professora responde: “É um conto
pesado, bem pesado”. A seguir, vira-se e passa algumas questões na lousa para que
os alunos as respondam

(Observação de aula dia 07/11, 3º ano B)

A leitura do conto O cachorro canibal, de José J. Veiga, foi realizada da maneira


habitual. A folha xerocada serviu de material para a exploração do vocabulário e gênero
textual a que corresponde. A leitura em voz alta mantida pela professora, no entanto, foi se
configurando de maneira inesperada, pois a trama criada por José J. Veiga foi envolvendo a
turma cada vez mais à medida que avançava. O clímax da atividade aconteceu quando, ao
final do texto, um dos cachorros comeu o outro, o que os alunos não esperavam. A professora
também não contava com esse final, pois ela não havia feito a leitura do mesmo
anteriormente. O final surpreendente provocou uma ruptura na lógica das aulas, a qual
enquadra a obra literária enquanto um patrimônio a ser preservado ou ensejo para exercícios
gramaticais. Em nossa interpretação identificamos que o conto fez com que os alunos e a
professora fossem implicados na leitura em suas expectativas sobre os comportamentos entre
animais, lembremos que os cachorros podem ser bichos de estimação, e sobre a visão que eles
têm acerca do canibalismo. Nesse momento, pareceu-nos que a professora e os alunos não
souberam como reagir e, assim, se fez um grande silêncio. Aos nossos olhos, a situação
demonstra que a forma de organização das aulas pode ser um fator de distanciamento das
obras literárias ao mesmo tempo em que os conhecimentos e práticas atrelados a elas
fornecem poucas chaves para diferentes abordagens da literatura. Assim, alunos e professora
não souberam o que fazer diante da ruptura causada pelo conto.
O exemplo acima, assim como toda a tese, tratou da leitura de obras literárias na
escola por meio das características que ela ganha no momento em que é colocada em prática.
As opções de atividades, escolhas docentes e discentes, romances, contos e poemas a serem
articulados em sala de aula nos permitiram encontrar nosso objeto de pesquisa como uma
criação escolar. Como nos lembra Dominique Julia, a cultura produzida em seu interior se
mostra por meio da incorporação de normas e práticas que a caracterizam. Com a linguagem,
um dos traços centrais da elaboração dessa cultura, ocorre algo semelhante. O exemplo
anterior evidencia os conflitos entre uma imagem da leitura presente como pressuposto nas
práticas escolares e suas possibilidades de articulação com os sentidos e esquemas
interpretativos socialmente constituídos por professores e alunos. De situações como aquela
217

se depreendem e se mostram no cotidiano os pequenos conflitos pela leitura legítima de obras


literárias e, no limite, as possibilidades de formação escolar nas escolas de ensino médio
conhecidas. Para concretizar nosso objeto de pesquisa, o trabalho considerou aspectos
estruturantes da cotidianidade escolar, tais como o tempo, a elaboração das aulas pelas
professoras, as relações entre cultura e educação e, obviamente, a própria leitura, atividade
importante do trabalho escolar. Desse modo, a pesquisa apresentada abordou assuntos caros
aos estudos pedagógicos e, nesse sentido, pode contribuir com a revitalização de estudos
sobre temas semelhantes.
218
219

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Textos legais
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Brasília, 2000.

Parecer CEB/CNE nº 15/98 IN: BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares


Nacionais para o Ensino Médio: bases legais. Brasília, 1999.

BRASIL. Ministério da Educação. PCN+ Orientações educacionais complementares aos


Parâmetros Curriculares Nacionais. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 2002.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica.


Brasília, 2013.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado,


1988.

Ministério da educação e cultura/SEB. (2006) Orientações Curriculares Nacionais (ensino


médio).Literatura. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica.
Brasília.

São Paulo (Estado). Currículo do Estado de São Paulo Ensino Fundamental II e Ensino
Médio. Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. São Paulo, FDE, 2012

Livros, teses e artigos


ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
ALMEIDA, Jane Soares de Almeida. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São
Paulo: Editora da Unesp, 1998.

ALVES, Nilda; Oliveira, Inês Barbosa de. Uma história da contribuição dos estudos do
cotidiano escolar ao campo de currículo. In: LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth
(Org.). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2010.

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo:
Musa editora, 2004.

AMPARO, P. A. Sonhando acordada: um estudo sobre as práticas de leitura da coleção


de romances Clássicos Históricos. 2012. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.
ANDRADE, L. T. A linguagem da formação docente. Língua Escrita (UFMG), v. 1, p. 124-
135, 2007.
AZANHA, José Mário P. Cultura escolar brasileira: um programa de pesquisas. Revista USP,
São Paulo, n.8, 65-69, dez./jan./ fev., 1990/1991.
AZANHA, José Mário P. Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: EDUSP, 2011.
AZEVEDO, Fernando. A cultura brasileira. São Paulo : EDUSP, 2010.
220

BALLAND, Ludivine. Un cas d’école: l’entrée dans le métier d’une « enfant de la


démocratisation scolaire ». Actes de la Recherche en Sciences Sociales. v.191-192, n. 1, p.
40-47, 2012.
BARBOSA, Raquel Lazzari Leite. A construção do ‘herói”. Leitura na escola – Assis
1920/1950. São Paulo: Editora da Unesp, 2001.
BATISTA, Antônio A. G. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
BAUDELOT, Christian ; CARTIER, Marie. Lire au collège et au Lycée : [de la foi du
charbonnier à une pratique sans croyance]. Actes de la Recherche en Sciences Sociales.
v.123, p. 25-44, 1998.
BAUDELOT, C. ; LECLERCQ, F. (dirs.) Les effets de l’éducation. Paris: La documentation
française, 2005.
BAUTIER, Élisabeth; ROCHEX, Jean-Yves. L’experience scolaire des nouveaux lycéens :
démocratisation ou massification ? Paris : Armand Colin, 1998.
BEISIEGEL, C. de R. A qualidade do ensino da escola pública. Brasília: Líber Livro,
2006.
BELMIRA, Oliveira Bueno. Entre a Antropologia e a História: uma perspectiva para a
etnografia educacional. PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 25, n. 2, 471-501, jul./dez. 2007.
BENITO, Augustín Escolano. La invencion del tiempo escolar. In: FERNANDES, Rogério;
MIGNOT, Ana Chrystina V. (orgs.) O tempo na escola. Profedições: Porto, Portugal, 2008.

BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte:


Autêntica, 2008.
BLANK, K. C.; GONÇALVES, R.B. A leitura na adolescência: um estudo em escolas
públicas e particulares de ensino médio. Revista Didática Sistêmica, v. 13, n. 2, 2011.
BOLDARINE, Rosaria de Fátima. Supervisores de ensino da Rede Estadual de São Paulo:
entre práticas e representações. 2014.Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, 2014
BONNERY, Stéphane. Comprendre l'échec scolaire : élèves en difficultés et dispositifs
pédagogiques. Paris: La Dispute, 2007.
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular – Leituras operárias. Petrópolis: vozes,
1981.
BOSI, Alfredo. Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão na história literária. Teresa,
São Paulo, n. 1, p. 9-47, dez. 2000.
BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu: Sociologia. ORTIZ, Renato (org.) São Paulo: Ática,
1983.
_____________. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
221

___________. Leitura, leitores, letrados, literatura. IN: _______. Coisas Ditas. São Paulo:
Brasiliense, 2004.
___________. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre:
Zouk, 2007.
____________. A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
___________. O inconsciente escolar. Pró-Posições. v. 24, n.3, p. 227-233, set./dez. 2013a.
___________. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013b.
___________; WACQUANT, Loic. Invitation à la sociologia réflexive. Paris : Seuil, 2014a.
___________. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2014b.
___________. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura.
IN:________. Escritos de Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
BRANDÃO, C.R. A turma de trás. IN: MORAIS, R. (org.) Sala de aula: que espaço é esse?
Campinas, SP: Papirus, 2013.
BUNZEN, Clecio. A fabricação da disciplina escolar Português. Rev. Diálogo Educ.,
Curitiba, v. 11, n. 34, p. 885-911, set./dez. 2011.
CAMARGO, M. R. R. M. Caminhos e cotidianos de uma professora de leitura e
escrita.1994. Dissertação (Mestrado) -Faculdade de Educação da Universidade de Campinas,
Campinas.
CAMPOS, E.; CARDOSO, P.M.; ANDRADE, S.L. Viva Português: Ensino Médio. São
Paulo: Ática, 2010.
CANDIDO, Antonio. Prefácio. IN: ROCCO, Maria Theresa Fraga. Literatura/Ensino: uma
problemática. São Paulo: Ática, 1981.
______. O direito à literatura. IN:______. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades; Rio de
Janeiro: Ouro sobre azul, 2004.
CARPENTIER, Claude. De qual doença sofre a escola francesa? Reformas e Refundação em
questão? In: CATANI, Denice Barbara; GATTI JÚNIOR, Décio (Org.). O que a escola faz?
Elementos para a compreensão da vida escolar. Uberlândia: EDUFU, 2015. p. 71-106
CARVALHO, M. P. No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries
iniciais. São Paulo, Xamã, 1999.
CATANI, Denice Barbara; BUENO, Belmira Oliveira; SOUSA, Cyntia Pereira de. Histórias
de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente (Brasil, 1985-
2003).Educação e Pesquisa, vol 32 nº 2 São Paulo mai/aug., 2006
CATANI, Denice Barbara. Por uma pedagogia da pesquisa educacional e da formação de
professores na universidade. Educar em Revista, v. 37, p. 77-92, 2010.
222

CATANI, Denice. Memória e biografia: “O poder do relato e o relato do poder” na História


da Educação. IN: Pesquisa História: Retratos da Educação no Brasil. Rio de Janeiro:
UERJ, 1995.

CATANZARO, Fabiana Olivieri. O programa São Paulo Faz a Escola e suas apropriações
no cotidiano de uma escola de ensino médio. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
CHARTIER, Anne-Marie. Leitura escolar: entre pedagogia e sociologia. Revista Brasileira
de Educação. Nº0, p. 17 – 52, set/out/nov/dez. 1995.
CHARTIER, Anne-Marie; HÉBRARD, Jean. Discursos sobre a leitura (1880-1980). São
Paulo: Ática, 1995.
CHARTIER, Anne-Marie. Fazeres ordinários da classe: uma aposta para a pesquisa e para a
formação. Educação & Pesquisa. V. 26, n.2, p. 157 – 168, jul./dez. 2000.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1991a.
__________. O mundo como Representação. Estudos avançados. 11(5), 1991b.
__________. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os
séculos XIV e XVIII. Brasília: Ed. UnB, 1999.
__________. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos
Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto Alegre:
Artmed, 2001.
__________. As práticas da escrita. IN: ARIÈS, P; CHARTIER, R. (orgs.) História da Vida
Privada, 3: Da renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das letras, 2002.

CHAPOULIE, Jean-Michel. La compétence pédagogique des professeurs comme enjeu de


conflits. Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 30, novembre 1979. L’institution
scolaire. pp. 65-85.

CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.
Teoria & Educação. Nº 2. Porto Alegre, 1990, p. 177-229.

CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 549-566, set./dez. 2004.

CORTI, Ana Paula. À deriva: um estudo sobre a expansão do ensino médio no estado de
São Paulo (1991-2003). 2015. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, São Paulo.

DAYRELL, J. O jovem como sujeito social. IN: Spósito, M. et alli (Org.). Espaços públicos
e tempos juvenis: um estudo de ações no poder público em cidades de regiões
metropolitanas brasileiras.São Paulo: Global, 2007, v. 1, p. 47-82.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e socialização: os ateliês biográficos de


projeto Educação e Pesquisa, v.32, n.2, São Paulo. Maio/ago, 2006.
223

DUSSEL, Inés. A transmissão cultural assediada: metamorfoses da cultura comum na


escola. Cadernos de Pesquisa, v.39, n.137, p.351-365, maio/ago. 2009.

DUTERCQ, Y. Pluralidade dos mundos e cultura comum: professores e alunos à procura de


normas consensuais. IN: TARDIF, M.; LESSARD, C. (orgs.) O ofício do professor:
história, perspectivas e desafios internacionais. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar como fonte para a história da
educação. In: Faria Filho, Luciano Mendes de. (Org.) Educação, modernidade e
civilização. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

FERRARA, L. D. Sala de aula: espaço de uma experiência. Margem. n.2, São Paulo, Nov.
1993.

FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. Pesquisa em leitura: Um estudo de resumos de


dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas no Brasil, de 1980 a 1995.
1999. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.

FERREIRA, Maíra Soares. A rima na escola, o verso na história. São Paulo: Boitempo,
2012.

FORQUIN, Jean-Claude. École et culture : le point de vue des sociologues britanniques.


Paris, Bruxelles: De Boeck Université, 1986.

GALLEGO, R. de C. Tempo, temporalidades e ritmos nas escolas públicas primárias em


São Paulo – heranças e negociações. 2008. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, São Paulo.

GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil
(1970-1990). Bauru: EDUSC, 2004.

GEERTZ, C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. IN:______. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GOFFMAN. I. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2002.

HAIDAR, M. L. M. O ensino secundário no Brasil Império. São Paulo: EDUSP, 2008.

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2012.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed.


Objetiva, 2006.
224

ISAMBERT-JAMATI, Viviane. Les savoirs scolaires: enjeux sociaux des contenus


d’enseignement et de leur réformes. Paris : L’ Harmattan, 1995.

JOSSO, Marie Christine. As figuras de ligação nos relatos de formação: ligações formadoras,
deformadoras e transformadoras. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 373-383,
maio/ago. 2006.

JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da


Educação, Campinas, jan./junho, n. 1, 2001, p. 9-43.

__________. Culture écrite et inégalités scolaires – sociologie de l'“ échec scolaire” à


l'école primaire. Lyon: PUL, 2000.

LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo:
Ática, 2004.
__________. La raison scolaire : école et pratiques d’écriture, entre savoir et pouvoir.
Rennes : Presses Universitaires de Rennes, 2008.
__________. C’est um nouveau style de vie qui est em voie de s’imposer: le modèle de
l’honnête homme cultivé est battu en brèche. IN : BESSARD-BANQUY, O. (dir) Les
mutations de la lecture. Presses Universitaires de Bordeaux : Bourdeaux, 2012.
LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e a literatura escolar na
República Velha. Rio de Janeiro: Globo, 1982.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. Será que não é mesmo? In: ZILBERMAN, Regina;
RÖSING, Tania M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global,
2009. p. 99-112.
LAWN, Martin. Os professores e a fabricação de identidades. In: NOVOA, A.,
SCHRIEWER, J. (orgs.). A difusão mundial da escola. Portugal: Educa e Autores, 2000, p.
69-84.
LEITE, LIGIA C. M. Invasão da catedral: literatura e ensino em debate. Porto Alegre:
Mercado aberto, 1983.

LESSARD, C.; TARDIF, M. As transformações atuais do ensino: três cenários possíveis na


evolução da profissão professor?. IN: _________ (orgs.) O ofício do professor: história,
perspectivas e desafios internacionais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

LUCAS, E. R. O.; CALDIN, C. F.; SILVA, P. V. P. Biblioterapia para crianças em idade pré-
escolar: um estudo de caso. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v.11,
n.3, p. 398-415, set. 2006
MAUGER, Gérard ; POLIAK, Claude. Les usages sociaux de la lecture. Actes de la
Recherche en Sciences Sociales. V.123,p. 3-24, 1998.
225

MARTINS, P. H. S; CARRANO, P.C.R. A escola diante das culturas juvenis: reconhecer


para dialogar. Educação, Santa Maria, v. 36, n. 1, p. 43-56, jan./abr. 2011.
MARTUCCELLI, Danilo. La individuación como macrosociología de la sociedad
singularista. Persona y Sociedad . Universidad Alberto Hurtado. Vol. XXIV . Nº 3, p.9-29,
2010.
MEIHY, José Carlos S. B. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
MIGNOT, Ana Chrystina V. Um objeto quase invisível. In: MIGNOT, Ana Chrystina
Venâncio. Cadernos a vista: Escola, Memória e Cultura escrita. Rio de Janeiro:
edUERJ,2008.
MORAES, Dislane Zerbinatti. Literatura, memoria e ação política : uma análise de
romances escritos por professores. 1996. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, São Paulo.
MORAES, Dislane Zerbinatti. Narrar e compreender a profissão docente: o exame
de fontes literárias na pesquisa em História da Educação. IV Congresso Internacional
Ciências, Tecnologias y Culturas. Santiago: Universidade de Santiago de Chile, 2015 (texto
apresentado no Simpósio Diálogos entre Literatura y Educación)

NACARATO, A. M.; GRANDO, R.C.; SILVA, V.B. A parceria universidade-escola: a


apresentação de um projeto compartilhado, tecido a várias mãos e vozes. IN:_______. Nos
bastidores de uma escola pública: tecendo vozes dos atores... revelando cenas,
produzindo olhares. Campinas, SP: Mercado das letras, 2012.

NADAI, Elza. O ginásio do Estado em São Paulo: uma preocupação republicana (1880 -
1806). 1987. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,
São Paulo.

NÓVOA, A. Os professores e no “novo” espaço público da educação. IN: TARDIF, M.;


LESSARD, C. (orgs.) O ofício do professor: história, perspectivas e desafios
internacionais. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014.

NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da Educação e


Fontes, In: GONDRA, José Gonçalves (Org.). Pesquisa em História da Educação no
Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 17-62

OLIVEIRA, G. R. O professor de português e a literatura: relações entre formação,


hábitos de leitura e prática de ensino. 2008. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São
Paulo, São Paulo.

______________. As práticas de leitura literária de adolescentes e a escola: tensões e


influências. (2013). Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo.

OLIVEIRA, Letícia B.; SOUZA, Sauloéber T. de. A alfabetização no Mobral, métodos e


materiais didáticos (Uberlândia/MG, 1970-1985). Acolhendo a Alfabetização nos Países de
Língua Portuguesa. v. 7, n. 13 (2013).
226

OLIVEIRA, A. D. de. Autoridade docente no ensino médio: compassos e descompassos


no contexto contemporâneo. 2015. Tese (Doutorado) Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo.

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São


Paulo: T. A. Queiroz, 1990.

PERALVA, A. T. O jovem como modelo cultural. IN: Spósito, M. et all (Org.). Espaços
públicos e tempos juvenis: um estudo de ações no poder público em cidades de regiões
metropolitanas brasileiras. São Paulo: Global, 2007, v. 1, p. 47-82.

PEREIRA, Alexandre Barbosa. "A maior zoeira": experiências juvenis na periferia de São
Paulo. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação:


perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote, 1993.

PERRENOUD, Philippe. O ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto


Editora, 1995.

PFEIFER, Mariana; GIARETA. Paulo Fioravante. Expansão da Educação Superior no Brasil:


panorama e perspectiva para a formação de professores. In: IX CONGRESSO NACIONAL
DE EDUCAÇÃO, 2009, Curitiba. Anais do Congresso Nacional de Educação. Curitiba:
PUCPR, 2009.

PFROMM NETO, Samuel. O livro na educação. Rio de Janeiro: Primor-Instituto Nacional


do Livro, 1974.

PINTO, Virginia Bentes. A biblioterapia como campo de atuação para o bibliotecário.


Transinformação, Campinas, 17(1):31-43, jan./abr., 2005

POPKEWITZ, T.S. Uma perspectiva comparativa das parcerias, do contrato social e dos
sistemas racionais emergentes. IN: TARDIF, M.; LESSARD, C. (orgs.) O ofício do
professor: história, perspectivas e desafios internacionais. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014.

RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. O espelho da nação: a antologia nacional e o ensino


de português e de literatura (1838-1931). 2000. Tese (Doutorado) – UNICAMP, Campinas.

REIMAO, Sandra. Mercado editorial brasileiro 1960-1990. São Paulo: ComArte, 1996.

REZENDE, N. L. O ensino de literatura e a leitura literária. IN: DALVI, M.A.; REZENDE,


N.L.; JOVER-FALEIROS, R. Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013.

ROBERT, Andre D. Ainda é possível falar de escola “à francesa” algumas reflexões sobre as
políticas educacionais no contexto contemporâneo. Educação & Sociedade, Campinas, vol.
28, n. 98, p. 211-230, jan./abr. 2007
227

ROCCO, Maria Theresa Fraga. Literatura/Ensino: uma problemática. São Paulo: Ática,
1981.
SACRISTÁN, José Gimeno. Currículo: Uma Reflexão Sobre a Prática. 3. ed. Tradução
Ernani Ferreira da Fonseca Rosa. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

SACRISTÁN, José Gimeno. A cultura para os sujeitos ou os sujeitos para a cultura? O mapa
mutante dos conteúdos na escolaridade. In: _______. Poderes instáveis em educação. Porto
Alegre: ArtMed, 1999.
SANTOS, M. C. F.. Reflexões sobre a formação de professores do ensino secundário nos
anos 1920-30 no Brasil. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação, 2013, Cuiabá.
Anais do VII Congresso Brasileiro de História da Educação. Cuiabá: SBHE/UFMT, 2013. p.
1-13
SCHRÖDER, Miriam. O ensino de língua portuguesa nas páginas do livro didático. Revista
Trama, Volume 9, número 18, 2ºsemestre de 2013, p. 193-208.
SERVIDONE, Mabel. Leitor e escritor distanciado. 1993. Dissertação (Mestrado) -
Faculdade de Educação da Universidade de Campinas, Campinas.
SETTON, Maria da Graça J.; SPOSITO, Marilia P. Como os indivíduos se tornam
indivíduos? Entrevista com Danilo Martuccelli. Educação & Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 1,
p. 247-267, jan./mar. 2013.
SILVA, A. C. C. N. da. Entre a crise e a mudança : a constituição do ensino de leitura
como objeto de pesquisa em investigações acadêmicas. 2012. Dissertação (Mestrado) -
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.
SILVA, G. S. O. Estado da Arte da Leitura no Brasil: 2010 a 2015. 2017. Dissertação
(Mestrado) -Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
SIROTA, Régine. L’école primaire au quotidien. Paris: PUF, 1988.
SOARES, Magda. Português na escola: história de uma disciplina curricular. In: BAGNO, M.
(Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 155-177.
SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Editora Ática, 1988.
SONNET, Martine. Uma filha para educar. IN: DUBY, Georges; PERROT, Michelle.
História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1994.
SOUZA, Rosa Fátima de. A renovação do currículo do ensino secundário no Brasil: as
últimas batalhas pelo humanismo (1920–1960). Currículo sem Fronteiras, v.9, n.1, pp.72-
90, Jan/Jun 2009.

SPOSITO, M. O povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público de São
Paulo. São Paulo: Edições Loyola, 1984.

SPOSITO, M. P. Algumas hipóteses sobre as relações entre juventude, educação e


movimentos sociais. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 13, p. 73-94, 2000.
228

VICENTINI, P. P.; LUGLI, Rosario Silvana Genta . História da Profissão Docente no Brasil:
representações em disputa. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2009. v. 1. 234p .

VIEIRA, Alice. Análise de uma realidade escolar: o ensino de literatura no 2º Grau, hoje.
1988. Tese (doutorado). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.

VIÑAO FRAGO, Antonio. Culturas escolares, reformas e innovaciones: entre la tradición


y el cambio. VIII Jornada Estatales Forum Europeo de Administradores de la
Educación, Murcia, 1996.

VINBERT, Anne. Faire place au sujet lecteur en classe. Ministère de l’Éducation Nationale.
Disponível em : http://eduscol.education.fr, acesso em: 07 de setembro de 2015.
VINCENT, Guy, LAHIRE, Bernard, THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma
escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, jun./2001.

VICENTINI, P. P. Os professores secundários no Brasil entre o ensino público e o particular:


uma análise do movimento de organização da categoria em São Paulo e no Rio de Janeiro
(1945-1964). II Congresso Brasileiro de História da Educação, 2002, Natal. História e
memória da educação brasileira - anais. Natal: UFRN, 2002. p. 1-15.

YÚDICE, G. A funkização do rio. In:_______A conveniência da cultura: usos da cultura


na era global. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.
ZAFRAN, Joël. La discipline et la régularité à l'école républicaine et à l'école démocratique
de masse. Éducation et Sociétés. v.17, n.1, p. 141-158, 2006.
ZANTEN, Agnès van. A influência das normas de estabelecimento na socialização
profissional dos professores: o caso dos professores dos colégios periféricos franceses. In: IN:
TARDIF, M.; LESSARD, C. (orgs.) O ofício do professor: história, perspectivas e desafios
internacionais. Petrópolis: Vozes, 2014. p.200-216.
ZILBERMAN, R. No começo, a leitura. Em Aberto, Brasília, n. 69, ano 16, 1996.
ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino de literatura. São Paulo: Contexto, 1988.
229

ANEXO I – Quadros contendo a revisão


bibliográfica
230

Levantamento de artigos sobre leitura e literatura em revistas francesas de educação

Revue Française de Pédagogie (1967)

Nenhum artigo sobre o tema foi encontrado.

Revue Française de Sociologie (1960)

BRESSOUX, Pascal. Les effects du context scolaire sur les acquisitions des élèves : effet-école et
effets-classes en lecture. V.36, n.2, p. 273-294, 1995.
COULANGEON, Phil ippe. Lecture et télévision : les transformations du rôle culturel de l’école à
l’épreuve de la massification scolaire. V.48, n. 4, p. 657-691, 2007.
CHAMPY, Florent. Littérature, sociologie et sociologie de la littérature. À propos de lectures
sociologiques de À la recherche du temps perdu. V.41, N.2, p. 345-364, 2000.

Éducation et Sociétés (1998)

KERLAN, Alain. L'art pour éduquer. La dimension esthétique dans le projet de formation
postmoderne. V. 19, n.1, p. 83-97, 2007.
ROCKWELL, Elsie. La lecture scolaire comme pratique culturelle : concepts pour l'étude de
l'usage des manuels. V.17, n.1, p. 29-48, 2006.

Actes de la Recherche em Sciences Sociales (1975)

BAUDELOT, Christian ; CARTIER, Marie. Lire au collège et au Lycée : [de la foi du


charbonnier à une pratique sans croyance] v.123, p. 25-44, 1998.
MAUGER, Gérard ; POLIAK, Claude. Les usages sociaux de la lecture. V.123,p. 3-24, 1998.
PINTO, Louis. Épreuves et prouesses de l’esprit littéraire. V. 123, p. 45-64, 1998.

Revue de Sciences de l’Éducation (1975)

BEDOIN, Évelyne. Ruptures culturelles dans le débat interprétatif : une incidence de la


reformulation magistrale sur la dynamique de construction des savoirs. V.33, n.1, p. 433-446,
2007.
BOURQUE, Jimmy ; BLAIS, Jean-Guy ; LAROSE, François. L’interprétation des texts
d’hypothèses : p, la taille de l’effet et la puissance. V.35, n.1, p. 211-226, 2009.
BURNS, Susan ; ESPINOSA, Linda ; SNOW, Catherine E. Débuts de la littératie, langue et
culture : perspective socioculturelle. V.29, n.1, p. 75-100, 2003.
CARTIER, Sylvie C. Stratégies d’apprentissage par la lecture rapportées par des élèves en
difficulté d’apprentissage de première secondaire en classe de cheminement particulier de
231

formation. V. 32, n.2, p. 439-460, 2006.


DEMOUGIN, Patrick. Enseigner le français et la littérature: du linguistique à
l’anthropologique. V.33, n.1, p. 401-414, 2007.
FOUCABERT, Denis. L’amélioration de la compréhension en lecture d’élèves du
secondaire par un entraînement syntaxique: modalités, résultats et perspectives. V.35,
n.3, p. 41-63, 2009.
HÉBERT, Manon. Les cercles littéraires entre pairs en première secondaire: étude des
relations entre les modalités de lecture et de collaboration. V. 30, N. 3, p. 605-630,
2004.
JEZAK, Monika. Évolution et défis conceptuels des enquêtes au sujet des
habiletés de lecture et écriture des populations adultes: quelques leçons tirées de
l’histoire. V.36, n.1, p. 515-535, 2012.
LAFONTAINE,Lizanne; PRÉFONTAINE, Clémence. Modèle didactique descriptif de
la production orale en classe de français langue première au secondaire. V.33, n.1, p.
47-66, 2007.
MORAIS, José; PIERRE, Régine; KOLINSKY, Régine. Du lecteur compétent au
lecteur débutant: implications des recherches en psycholinguistique cognitive et en
neuropsychologie pour l’enseignement de la lecture. V. 29, n.1, p. 51-74, 2003.
NOËL-GAUDREAULT, Monique; LE BRUN, Claire. La littérature de jeunesse:
le lecteur, l’oeuvre, les passeurs et le passage. V.39, n.1, p. 25-32, 2013.
PIERRE, Régine. Introduction:l’enseignement de la lecture au Québec de 1980 à 2000
: fondements historiques, épistémologiques et scientifiques. V.29, v.1, p. 3-35, 2003.
PLESSIS-BÉLAIR, Ginette; SORIN, Noëlle; PELLETIER, Katyar. Le journal
quotidien comme outil de développement de la littératie au secondaire: perception des
enseignants et des élèves en difficulté dans le contexte des Centres de formation en
entreprise et récupération. V.35, N.1, P. 99-110, 2009.
ROMAIN, Christina. L’emploi des temps et des organisateurs textuels dans des textes
narratifs d’élèves de 9 à 14 ans issus de milieux socioculturels contrastés. V.33, n.1, p.
209-235, 2007.
VANHULLE, Sabine. Concevoir des communautés de lecteurs: la gestion de la classe
dans une didactique interactionniste. V.25, n.3, p. 651-674, 1999.
232

Levantamento de artigos sobre leitura e literatura em revistas brasileiras de educação

Educação & Pesquisa (1975)

ROCKWELL, Elsie. Reading as a cultural practice: concepts for the study of


schoolbooks; v.27, n.1, São Paulo jan./jun. 2001.

BELINTANE, Claudemir. Leitura e alfabetização no Brasil: uma busca para além da


polarização. Educ. Pesqui. v.32 n.2 São Paulo maio/ago. 2006

FERNÁNDEZ, Gretel Eres; KANASHIRO, Daniela S. Kawamoto. Leitura em língua


estrangeira: entre o ensino médio e o vestibular
Educ. Pesqui. v.32 n.2 São Paulo maio/ago. 2006

VERRIER, Jean. Vãs querelas e verdadeiros objetivos do ensino da literatura na


França. Educ. Pesqui. v.33 n.2 São Paulo maio/ago. 2007

FERNANDES, Priscila Correia; MUNFORD, Danusa; FERREIRA, Márcia


Serra. Sentidos de prática pedagógica na produção brasileira sobre formação inicial de
professores de ciências (2000-2010). Jun 2014, vol.40, no.2, p.415-434.

VERRIER, Jean. Vãs querelas e verdadeiros objetivos do ensino da literatura na


França. Ago 2007, vol.33, no.2, p.207-213.

Educação & Sociedade (1978)


SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na
cibercultura. vol.23, no.81, Dez 2002, p.143-160.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Oralidade, memória e a mediação do outro: práticas


de letramento entre sujeitos com baixos níveis de escolarização - o caso do cordel
(1930-1950). Dez 2002, vol.23, no.81, p.115-142.
233

BONAMINO, Alicia; COSCARELLI, Carla; FRANCO, Creso. Avaliação e


letramento: concepções de aluno letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA. Dez 2002,
vol.23, no.81, p.91-113.

RIBEIRO, Vera Masagão; VÓVIO, Claudia Lemos; MOURA, Mayra


Patrícia .Letramento no Brasil: alguns resultados do indicador nacional de alfabetismo
funcional. Dez 2002, vol.23, no.81, p.49-70.

GOULART, Ilsa do Carmo Vieira. O livro nas memórias de leitura. Educ. Soc., Jun
2011, vol.32, no.115, p.567-582.

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. O método de ensino da leitura e da escrita


concretizado no método lição de coisas.Mar 2011, vol.32, no.114, p.103-120.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa; BEZERRA, Gema Galgani; GUAZZELLI,


Tatiana. Estágio supervisionado e práticas de oralidade, leitura e escrita no ensino
fundamental. Jun 2010, vol.31, no.111, p.563-583.

PORTO, Patrícia de Cassia Pereira. Educação, literatura e cultura da


infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes. Mar 2014, vol.35,
no.126, p.129-141.

FAJARDO, Indinalva Nepomuceno; MINAYO, Maria Cecilia de Souza; MOREIRA,


Carlos Otávio Fiúza. Resiliência e prática escolar: uma revisão crítica.Mar 2013,
vol.34, no.122, p.213-224.

SILVA JÚNIOR, João dos Reis; LUCENA, Carlos; FERREIRA, Luciana


Rodrigues. As relações entre o ensino médio e a educação superior no
Brasil: profissionalização e privatização. Set 2011, vol.32, no.116, p.839-856.

PEREIRA, Gilson R. de M. A arte de se ligar às coisas da cultura: escola e lei de


retorno do capital simbólico.Educ. Soc., Dez 1997, vol.18, no.60, p.36-50.
234

Revista Brasileira de Educação (1995)

MANKE, Lisiane Sias. Leitores rurais: apropriação ético-prática nos sentidos


atribuídos à leitura. Dez 2015, vol.20, no.63, p.885-905.

RICCI, Magda; LIMA, Luciano Demetrius Barbosa. Letrados da Amazônia Imperial e


saberes das populações analfabetas durante a Revolução Cabana (1835-1840). Dez
2015, vol.20, no.63, p.845-867.

SIMÕES, Fernanda Maurício; FONSECA, Maria da Conceição Ferreira


Reis. Apropriação de práticas de letramento escolares por estudantes da Educação de
Jovens e Adultos. Dez 2015, vol.20, no.63, p.869-884.

RANGEL, Flaminio de Oliveira et al. Mediações on-line em cursos de educação a


distância os professores de língua portuguesa em questão. Jun 2015, vol.20, no.61,
p.359-382.

GONTIJO, Cláudia Maria Mendes; CAMPOS, Dulcinéa. Bases nacionais para o


ensino da leitura e da linguagem na escola primária (1949). Jun 2014, vol.19, no.57,
p.307-328.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Processos de inserção de analfabetos e semi-


alfabetizados no mundo da cultura escrita (1930-1950). Abr 2001, no.16, p.81-94.

BATISTA, Antônio Augusto Gomes; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; KLINKE,


Karina. Livros escolares de leitura: uma morfologia (1866-1956). Ago 2002, no.20,
p.27-47.

FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Uma genealogia dos impressos para o ensino
da escrita no Brasil no século XIX. Ago 2010, vol.15, no.44, p.264-281.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel; BONIN, Iara Tatiana; RIPOLL, Daniela. Ensinando
sobre a diferença na literatura para crianças:paratextos, discurso científico e discurso
multicultural. Abr 2010, vol.15, no.43, p.98-108.
235

TAVARES, Ana Cláudia Ribeiro; FERREIRA, Andréa Tereza Brito. Práticas e


eventos de letramento em meios populares: uma análise das redes sociais de crianças
de uma comunidade da periferia da cidade do Recife. Ago 2009, vol.14, no.41, p.258-
268.
TEIXEIRA, Roberta Araújo. Espaços, recursos escolares e habilidades de leitura de
estudantes da rede pública municipal do Rio de Janeiro: estudo exploratório. Ago 2009,
vol.14, no.41, p.232-245.

GOULART, Cecília; KRAMER, Sonia Alfabetização, leitura, escrita: 25 anos da


ANPEd e 100 anos de Drummond.Rev. Bras. Educ., Dez 2002, no.21, p.127-146.

JOBIM e SOUZA, Solange; GAMBA Jr., Nilton Novos suportes, antigos


temores: tecnologia e confronto de gerações nas práticas de leitura e escrita. Dez 2002,
no.21, p.104-114.

MORAIS, Christianni Cardoso. Ler e escrever: habilidades de escravos e forros?


Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850. Dez 2007, vol.12, no.36,
p.493-504.

BERNARDES, Alessandra Sexto. Do texto pelas mãos do escritor ao texto nas mãos
do leitor: pensando a leitura e a escrita na biblioteca. Abr 2003, no.22, p.77-88.

SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Abr. 2004, no.25,


p.5-17.

FRITZEN, Celdon; CABRAL, Gladir da Silva. Rute e Alberto resolveram ser turistas a
leitura literária para crianças no período Vargas. Jun 2014, vol.19, no.57, p.329-347.

SANTOS, Vívian Matias dos. Para pensar o campo científico e educacional: mulheres,
educação e letras no século XIX. Set 2014, vol.19, no.58, p.585-610.

MACIEL, Ira Maria. Coleção literatura para todos. Rev. Bras. Educ., Dez 2007, vol.12,
no.36, p.537-540.
236

SANTOS, Wildson Luiz Pereira dos. Educação científica na perspectiva de letramento


como prática social: funções, princípios e desafios. Dez 2007, vol.12, no.36, p.474-492
ROIZ, Diogo da Silva. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura
inglesa. Dez 2006, vol.11, no.33, p.555-558.
MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Literatura e representações da escola pública de horário
integral. Dez 2004, no.27, p.40-56.

BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Como salvar a educação (e o sujeito) pela


literatura: sobre Philippe Meirieu e Jorge Larrosa. Ago 2005, no.29, p.63-72.

Cadernos CEDES (1980)

HENRIQUES, Eda Maria de Oliveira. Textos literários e a formação do


professor: novas possibilidades de narrar. Dez 2012, vol.32, no.88, p.319-334.

PRADO, Patrícia Dias. Os três porquinhos e as temporalidades da infância. Abr 2012,


vol.32, no.86, p.81-96.

CANTUÁRIA, Adriana Lech. De protagonista a coadjuvante: o ônus das virtudes de


Narizinho. Abr 2012, vol.32, no.86, p.45-60.

ZAMBONI, Ernesta; FONSECA, Selva Guimarães. Contribuições da literatura


infantil para a aprendizagem de noções do tempo histórico: leituras e indagações. Dez
2010, vol.30, no.82, p.339-353.

AUGUSTI, Valéria. O caráter pedagógico-moral do romance moderno. Nov 2000,


vol.20, no.51, p.89-102.

MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. A leitura de romances no século XIX. Jul 1998,
vol.19, no.45, p.71

BRAGA, Elizabeth dos Santos. O trabalho com a literatura: memórias e histórias. Abr
2000, vol.20, no.50, p.84-102.
237

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; LEAL, Telma Ferraz; NASCIMENTO, Bárbhara


Elyzabeth Souza. Conversando sobre textos na alfabetização: o papel da mediação
docente. Ago 2013, vol.33, no.90, p.215-236.
GONÇALVES, Angela Vidal. Alfabetização: o olhar das crianças sobre o aprendizado
da linguagem escrita. Abr 2013, vol.33, no.89, p.125-140.

CALIL, Eduardo, Amorim, Kall Anne and Lira, Lidiane Letramento e processo de
escritura de alunos recém-alfabetizados. Cad. CEDES, Abr 2013, vol.33, no.89, p.73-
89.

STREET, Brian V. Políticas e práticas de letramento na Inglaterra: uma perspectiva de


letramentos sociais como base para uma comparação com o Brasil. Abr 2013, vol.33,
no.89, p.51-71.

DALLABRIDA, Adarzilse Mazzuco; LUNARDI, Geovana Mendonça. O acesso


negado e a reiteração da dependência: a biblioteca e o seu papel no processo formativo
de indivíduos cegos. Ago 2008, vol.28, no.75, p.191-208.

LODI, Ana Claudia. A leitura em segunda língua: práticas de linguagem constitutivas


da(s) subjetividade(s) de um grupo de surdos adultos. Ago 2006, vol.26, no.69, p.185-
204.

COSTA, Sérgio Roberto. (Hiper)textos ciberespaciais: mutações do/no ler-


escrever. Abr 2005, vol.25, no.65, p.102-116.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Sites construídos por adolescentes: novos


espaços de leitura/escrita e subjetivação.Abr 2005, vol.25, no.65, p.87-101.

GUEDES-PINTO, Ana Lúcia; FONTANA, Roseli Aparecida Cação. As mulheres


professoras, as meninas leitoras e o menino leitor: a iniciação no universo da escrita no
patriarcalismo rural brasileiro. Uma leitura a partir de Infância de Graciliano
Ramos. Ago 2004, vol.24, no.63, p.165-191.

OLIVEIRA, Cátia Regina Guidio Alves; Souza, Rosa Fátima de. As faces do livro de
leitura. Nov 2000, vol.20, no.52, p.25-40.
238

CUNHA, Maria Teresa Santos. Mulheres e romances: Uma intimidade radical. Cad.
CEDES, Jul 1998, vol.19, no.45, p.100-100.

Cadernos de Pesquisa (1971)


CUNHA, Marcus Vinicius da; SOUZA, Aline Vieira de. Cecília Meireles e o temário
da escola nova. Dez 2011, vol.41, no.144, p.850-865.

VIEIRA, Alice. Formação de leitores de literatura na escola brasileira: caminhadas e


labirintos. Ago 2008, vol.38, no.134, p.441-458.

FHILADELFIO, Joana Alves. Literatura, indústria cultural e formação humana. Nov


2003, no.120, p.203-219. ISSN 0100-1574

MANKE, Lisiane Sias. Práticas rurais de leitura: dos acervos aos modos de ler. Dez
2013, vol.43, no.150, p.1054-1075.

VEIGA-SIMÃO, Ana Margarida da; FRISON, Lourdes Maria Bragagnolo;


MACHADO, Rejane Flor. Escrita de resumos e estratégias de autorregulação da
aprendizagem. Mar 2015, vol.45, no.155, p.30-55.

ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do


sujeito leitor? Abr 2012, vol.42, no.145, p.272-283.

KRAMER, Sonia. Leitura e escrita de professores em suas histórias de vida e


formação. Mar 1999, no.106, p.129-157.

VIEIRA, Alice. Formação de leitores de literatura na escola brasileira: caminhadas e


labirintos. Ago 2008, vol.38, no.134, p.441-458.

SARTI, Flavia Medeiros; BUENO, Belmira Oliveira. Leituras profissionais docentes e


apropriação de saberes acadêmico-educacionais. Ago 2007, vol.37, no.131, p.455-479.
239

MARIN, Alda Junqueira; GIOVANNI, Luciana Maria. Expressão escrita de


concluintes de curso universitário para formar professores. Abr 2007, vol.37, no.130,
p.15-41.

GOULART, Cecília Maria. A apropriação da linguagem escrita e o trabalho


alfabetizador na escola. Jul 2000, no.110, p.157-175.
DIETZSCH, Mary Julia Martins. Professoras dialogam com o texto literário. Ago
2004, vol.34, no.122, p.359-389.

LEITE, Sérgio Antonio da Silva; VALLIM, Ana Marisa de Campos. O


desenvolvimento do texto dissertativo em crianças da 4ª série. Mar 2000, no.109,
p.173-200.

Pró-posições (1990)

PISTORI, Maria Helena Cruz. Literatura e outras linguagens. Abr 2011, vol.22, no.1,
p.215-219.

FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. Um estudo das edições de Ou isto ou


aquilo, de Cecília Meireles. Ago 2009, vol.20, no.2, p.185-203.

TOZZI, Juliana Bernardes. Educação, infância e leitura: contribuições da teoria dos


processos civilizadores de Norbert Elias. Ago 2013, vol.24, no.2, p.127-145.

FERREIRA, Norma Sandra de Almeida and Santos, Maria Lygia Cardoso Köpke O
Livro de Hilda (1902), a cartilha do método analítico, por João Köpke. Dez 2014,
vol.25, no.3, p.185-209.

BATISTA, Antônio Augusto Gomes. A retórica da infelicidade: laço social e leitura


em livros escolares do cânone republicano. Dez 2012, vol.23, no.3, p.87-102.

DRESCH, Márcia; LEBEDEFF, Tatiana Bolívar ; DICKEL, Adriana. Memórias de


leitura, lugar de leitor e conhecimento na formação inicial de docentes. Abr 2011,
vol.22, no.1, p.45-58.
240

ASSOLINI, Filomena Elaine P. Leitura e formação inicial de professores: sentidos,


memória e história a partir da perspectiva discursiva. Abr 2011, vol.22, no.1, p.33-43.

PAYER, M. Onice. O "fato da língua" na materialidade da leitura. Abr 2011, vol.22,


no.1, p.23-32.
ALMEIDA, Maria José P. M. de; SORPRESO, Thirza Pavan. Dispositivo analítico
para compreensão da leitura de diferentes tipos textuais: exemplos referentes à Física.
Abr 2011, vol.22, no.1, p.83-95.

Revista Brasileira de estudos pedagógicos (1944)

MIRANDA, Adriana Costa de. O pensamento e a obra de Lourenço Filho acerca da


literatura infantil e juvenil. Abr 2015, vol.96, no.242, p.217-220.

NEITZEL, Adair Aguiar, Pareja, Cleide Jussara Muller and Hochmann,


Serenita Práticas de leitura no ensino médio: o Pibid de Letras. Dez 2013, vol.94,
no.238, p.770-794.

DEL ALCÀZAR, Joan. Historia desde el cine [y con la literatura] para la


educación. Rev., Dic 2012, vol.93, no.235, p.645-666.

Leitura: Teoria e Prática (1982)


MARIA, Heliana; BRANDÃO, Brina. Uma leitura de leituras produzidas por grupos
sociais diferentes. Dez 1992, número 20,p. 1-16.

MIRANDA, Marildes Marinho. Os usos da escrita no cotidiano. Dez 1992, número 20,
p.17-33.

CASTANHEIRA, Maria Lucia. Da escrita no cotidiano à escrita escolar. Dez 1992,


número 20, p.34-45.

GARCIA, Maria Mello. Alfabetização: uma ou duas? Um estudo exploratório. Dez


1992, número 20, p.46-69.
ANDRADE, Ludmila Thomé. Procura-se um formador- a produção universitária sobre
241

ensino de português: uma ação reflexiva. Junho 1997, número 29, p.16-29.

ROLLA, Angela da Rocha. A leitura e o espaço do prazer: um estudo sobre as práticas


docentes. Dez 1997, número 30, p.45-54.

AUGUSTI, Valéria. Literatura prescritiva, público leitor e práticas de leitura em


bibliotecas do Rio de Janeiro do século XIX. Dezembro 1998, número 32, p.12-20.

VIEIRA, Marco Antônio Rodrigues; DENHIÈRE, Guy. Compreensão de textos e


classe social. Dezembro 1998, número 32, p.34-41.

SUASSUNA, Lívia. Cultura e Leitura. Dezembro 1998, número 32, p.42-53

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Alfabetização e modernidade no Brasil.


Dezembro 1998, número 32, p.54-58.

LEAL, Telma Ferraz. Prática social de leitura na escola e na sociedade. Dezembro


1999, número 34, p.30-39.
242
243

ANEXO II – Diários de campo


244

Observações das aulas – Escola 1

1º dia de observações 1º A - 03/11/2014

Chego 10 minutos antes da aula começar e fico na sala dos professores, onde quatro
professores, dois homens e duas mulheres, já estavam. Elas conversam sobre um trabalho que
estão fazendo com os alunos, mas não consigo identificar do que se trata. Um dos professores
lê o jornal e o outro, impaciente, fica de um lado para o outro, até que se dirige ao computador
e começa a ler as notícias na tela.

A sala dos professores tem uma mesa ao centro, geladeira, uma mesinha ao fundo,
onde fica a cafeteira, sofá, televisão, computador e impressora; ao redor, nas paredes, os
armários de ferro estão identificados com o nome dos professores. Com o horário de troca de
aulas se aproximando, chegam outras duas professoras à sala. Uma delas é a professora
Márcia, que está muito agitada. Nesse dia ela entra mais tarde, às 9h50, pois vem do curso do
inglês que frequenta na Cultura Inglesa, no centro da cidade, graças a um convênio com o
Estado. Do centro até a escola o deslocamento é feito de trem, meio de transporte que a deixa
desconfortável, pois a faz passar mal.

O sinal toca e vamos juntas para a sala. Nesse primeiro dia de visita de observação,
espero ser a apresentada aos alunos, o que não acontece. Ao entrar na sala de aula,
encontramos os alunos dispostos em grupos. Parece que estão reunidos por afinidades
musicais e modos de se vestir. Eles ficam conversando, olhando os celulares - presentes nas
mãos de quase todos, assim como os fones de ouvido -, brincando, rindo, falando sobre seus
assuntos. A professora dispõe seus materiais na mesa e tenta falar com eles, sem muito
sucesso. Ela enfrenta dificuldades com a turma, que não a escuta e parece não tomar
conhecimento de sua presença.

Ela propõe iniciar a aula com uma atividade relacionada à Iniciação Científica, projeto
presente na E.E. Silvio Xavier. Para tanto, os alunos devem confeccionar um pôster para
expor a pesquisa que fizeram e a professora tenta orientá-los. Ela pede para que eles peguem
seu material relativo à pesquisa. Sem conseguir a atenção dos alunos, muda a estratégia e
245

começa a escrever na lousa as instruções e, depois, retoma as orientações de maneira mais


pausada. Ela pede para um aluno ficar quieto e ele responde que está quieto. A professora
insiste: “Você nunca está inserido no contexto da aula”. De volta à aula, diz que o pôster vai
fechar o trabalho iniciado no começo do ano até o momento atual. Enquanto ela fala, dois
alunos ouvem música no celular. A maioria tem o celular nas mãos e permanecem com o fone
no ouvido o tempo todo.

A professora, que estava em pé no centro da sala, senta-se na cadeira e alguns alunos,


com o material em mãos, começam a conversar sobre o trabalho, enquanto outros continuam a
falar de música e sobre o que farão no final de semana. Novamente em pé, a professora dá
novas orientações sobre o banner, dizendo que este deve ser feito primeiro no papel e, depois,
ser passado para o Power Point. De volta à sua mesa, encontra em seus materiais algumas
orientações para a confecção dos banners no Power Point, que ela passa mostrando de grupo
em grupo, e em seguida sai da sala para fazer uma cópia desse material.

Durante a sua ausência os alunos continuam conversando e começam a se levantar


das cadeiras, a entrar e a sair da sala. De repente, dois alunos começam a brigar e se
empurram, porque um deles xingou a mãe do outro. Os outros tentam, com dificuldade,
separá-los. A professora ouve o barulho e volta correndo para a sala. Os alunos se controlam.
Ela diz que esse é o pior dia para eles brigarem, pois está enjoada por ter andado de trem. Tal
situação, no entanto, não causou grande impressão nem na professora, nem nos alunos.

Ela sai novamente e volta com um banner, que servirá de modelo para os alunos. Ela
explica que o banner deve ter título ou tema, o nome dos autores na ordem inversa, com o
sobrenome primeiro, seguido do nome. Os alunos não entendem o que isso quer dizer. A
professora, então, explica como isso funciona escrevendo na lousa o seu nome conforme as
orientações solicitadas para o banner. Um dos grupos é desfeito, pois seus integrantes estavam
fazendo muita bagunça durante a explicação. Ela pede para que um representante de cada
grupo vá até a lousa fotografar o banner. Enquanto isso, os alunos que brigaram são chamados
pela professora para fora da sala. A aula termina e vamos para outra turma.

2º dia de observações 1º A - 04/11


246

Chego à sala de aula e percebo que a professora Márcia faltou. Uma professora
substituta está dando aula. Peço para que ela me deixe assistir à aula, ela consente, mas
adverte que sua aula é mais “light” por ser substituta. Ela diz que costuma passar “textinho na
lousa” e dar visto. Muitos alunos faltaram e a sala está mais silenciosa que ontem. Os alunos
estão organizados em grupos. Percebo que uma aluna copia a lição enquanto os outros
conversam, principalmente aqueles reunidos no canto direito da sala, e mexem no celular.

Em frente à mesa da professora há duas meninas e um menino; uma delas copia a lição
e os outros dois mexem no telefone. No canto direito da sala há outro grupo formado por
cinco alunos, três meninos e duas meninas. Sentados em círculo, em cima das carteiras e no
colo uns dos outros, conversam sobre festas, quem está ficando com quem, sobre música.
Ao lado da porta, seis estudantes, todos meninos, brincam e brigam entre eles. Passado um
tempo, dois desses alunos começam a copiar a lição. Reparo em um aluno no fundo da sala,
próximo ao armário da professora, que copia a lição sozinho. Depois descubro que se trata de
um aluno com muitas notas vermelhas e que passará a frequentar o EJA no próximo ano.

A professora copia a lição na lousa e avisa que seu conteúdo ainda não foi dado pela
professora Márcia, mas ela resolveu adiantá-lo. Ao terminar de escrever nas três partes em
que dividiu a lousa, apaga a primeira parte e recomeça a passar a lição. Uma aluna pergunta à
professora se o Largo da Matriz é longe, ela diz que não. O grupo situado no canto esquerdo
da sala volta a conversar e fala do baile funk que vai acontecer no Largo da Matriz. Uma
aluna fala que não vai ao baile funk, que existem outras coisas além disso.

A professora termina de passar a lição e se senta. Começa a conversar com as alunas


que estão sentadas por perto e pergunta a uma delas, sentada à minha frente, se ela sabe por
quê faltaram tantos alunos. A aluna responde que é porque está chovendo. Em dias de chuva
sempre faltam muitos alunos. Peço a ela para folhear seu caderno. Ela permite, mas diz que
ele está incompleto. Ao folhear o caderno, vejo que, de fato, ele contém lições de diversas
matérias misturadas umas às outras. Muitas páginas contêm lições passadas por professores
substitutos.

A professora aguarda os alunos a terminarem as atividades. Em seguida ela dá visto


no caderno de quem já copiou a matéria; aparentemente, aqueles que ainda não copiaram não
vão copiar. Ao ser questionado pela professora, um aluno lhe responde: “Eu vou ser músico,
não preciso escrever”. Alguns alunos dormem.
247

A professora continua a conversar com as meninas sentadas perto dela. Falam sobre
casamento. Uma aluna diz que gostaria de se casar. A professora pergunta se ela quer ser
sustentada pelo marido, ela diz não.

A aula acaba e a professora sai da sala. Como ela precisa ir à sala de reforço, não vai
substituir a professora Márcia na outra turma, que é, então, dispensada.

3º dia de observações 1º A - 05/11

A professora Márcia faltou de novo e a professora Sônia a substituirá. Ela já conhece


a turma e chama os alunos pelo nome. Ela abre o livro didático que estava na bolsa e começa
a passar a lição na lousa. A classe está organizada nos mesmos grupos de ontem, porém o
grupo próximo à porta está maior. Parece que a professora Sônia foi chamada para substituir a
professora Márcia de última hora, pois ouço a diretora agradecê-la por estar lá.

Sônia começa a passar a lição na lousa sem dar instruções sobre o que vai fazer. Ao
perceber que os alunos não copiavam, foi passando de grupo em grupo e conversando com
eles para que copiassem a lição. A ação tem efeito e a maioria dos alunos começa a copiar.
Chegam duas alunas que estavam fazendo um trabalho de Sociologia fora da sala. Ao se
sentarem, um aluno pede a elas para que incluam seu nome no trabalho, mas descobre que
este é individual.

Depois de passar a lição na lousa, a professora orienta os alunos a preencher as


lacunas com “eu” ou “mim”. Alguns alunos têm dúvidas e ela explica o conteúdo. Eles
dizem que é fácil, então a professora faz questão de dizer que apesar de ser fácil eles erram na
prova.

Escuto o som dos jogos de celular. Enquanto isso a professora começa a fazer
chamada. Um aluno brinca que é preciso benzer a sala porque alguns de seus colegas fazem
macumba.

Quando os alunos terminam a lição, a professora dá visto com carimbo em seus


cadernos. Ela também circula pela sala para incentivar os alunos a fazer as atividades. Uma
248

aluna, Jaqueline, canta enquanto copia a lição: “Dá uma empinadinha”, “Beijo na boca é coisa
do passado”. Jaqueline me vê escrevendo e acha estranho, já que eu sou professora. Eu brinco
que sou boa aula e um aluno do fundo da sala diz que eu deveria escrever sobre eles. Digo que
já estou fazendo isso, eles ficam espantados e dão risada .

Os alunos que já copiaram e fizeram a atividade conversam em seus respectivos


grupos até a aula acabar.

4º dia de observações 1º A – 09/11

Chego à sala e o sinal já bateu. Tento entrar, mas a porta está trancada. Bato, mas não
abrem. Depois de alguns minutos chegam duas alunas, que dizem que a professora sempre faz
isso. A porta é aberta, cumprimento a professora. Sento na primeira fileira, perto dela, e ela
me pergunta se continuarei indo às aulas. Digo que sim, se ela não se importar. Ela diz que
não. Vira-se para a turma e fala que vai passar a atividade avaliativa em grupo.

Esse trabalho “tem a ver com o Barroco, do trabalho que vocês estão fazendo”, ela diz,
explicando a eles que o Barraco é uma arte imperfeita, ligada à arte literária. Os alunos terão
que responder as questões a partir da leitura do texto. A professora distribuiu livros didáticos
comprados pelo Estado para a turma. Na lousa ela escreve:

“Atividade para nota

Ler o texto ‘Sermão do bom ladrão (ou da audácia)’, páginas 238 e 239.

Responder questões de 1 a 3”.

Os alunos falam alto e a professora diz ironicamente: “Vocês me dão licença para eu
explicar o que é para fazer?”. Depois sai da sala para pegar outros livros. Ela distribui os
exemplares e se senta na sua cadeira. Como estou perto, ela começa a conversar comigo,
conta que gosta muito da língua inglesa e que faz o curso na Cultura Inglesa. Ela reclama que
está muito desgastada nessa época do ano, sobretudo porque os alunos vão ficando cada vez
menos receptivos à escola. Fala com orgulho de suas filhas, diz que elas não são assim.
Ainda sobre os alunos, ela se lembra do professor de Prática de Ensino da Faculdade, que
dizia que não era possível ensinar todo mundo, que “50% já estava bom”.
249

A professora recebe o primeiro trabalho, entregue pelo grupo reunido próximo à porta.
Ela olha para eles e me fala que “O trabalho está bom, [mas] quem fez foi o Léo. Eu já
destaco o nome dele na folha porque comigo não tem vez”. Diz que a avaliação, para ela,
deve ser integral, considerando tanto o material entregue quanto o comportamento dos alunos.
Ela diz, também, que não teve muito tempo para falar sobre o Barroco, mas que a atividade
ajuda por isso.

Os alunos vão entregando os trabalhos e assim transcorre a aula.

5º dia de observações 1º A – 10/11

Os alunos continuam a fazer a atividade do livro didático sobre o Barroco. Eles


parecem ter certa dificuldade em entender a atividade, mas vão fazendo. Hoje a professora de
apoio, Sônia, está na sala junto com a Márcia.

Os alunos do 3º ano vão apresentar uma peça de teatro no final de semana e adentram
a sala para convidar os alunos. Com o auxílio da professora de apoio, aparentemente a maioria
da turma está fazendo a lição. A professora Márcia está sentada em sua cadeira enquanto a
professora Sônia circula pela sala.

Entra na sala a mediadora da escola para pedir aos alunos com mais de três notas
vermelhas que procurem o professor da disciplina e peçam a ele um trabalho. Com uma lista
em mãos, ela explica que um aluno com sete notas vermelhas pode repor. Os alunos pedem
para que ela não leia o nome em voz alta, mas ela o faz. Depois de citar o nome de um aluno
com 7 notas vermelhas, diz: “Esse aluno tá todo lascado, coitado.” Sobre outro aluno, diz
“Tem sete faltas, mas dá para repor”. Ao final, cerca de 15 alunos têm, pelo menos, três notas
vermelhas, sendo que a maioria tem mais que 5. A mediadora explica também que os alunos
com muitas notas vermelhas vão para o noturno, o “supletivo”, e que lá é mais “ferradinho.”
Antes de falar isso, a mediadora diz que vai fechar a porta porque ninguém pode ouvir.

Após a saída a mediadora entra uma aluna do 3º ano, que pede às professoras para
aplicar um questionário sobre o consumo de maconha entre os alunos Pouco tempo depois a
aula termina.
250

6º dia de observações 1º A – 12/11

Chego à escola e sigo para a sala dos professores, onde a professora Márcia se prepara
antes de entrar em sala. Quando o sinal toca nos dirigimos à sala de aula com os livros
didáticos que estão sendo utilizados nos últimos dias.

A sala está bastante vazia, os alunos vão chegando atrasados, mas ainda assim são
poucos. Alguns alunos estão curiosos, pelo que pude entender, sobre um conteúdo de
História. A professora conversa com um grupo de alunos reunido no fundo da sala e menciona
algo sobre identidade de gênero. No grupo há uma menina que se veste e se comporta de
modo masculino.

Depois disso comenta sobre o tom de voz que os alunos devem usar. Segundo ela, eles
devem falar em tom de voz baixo porque o tom alto faz mal para a saúde. Isso será ruim na
vida deles, no trabalho, as pessoas vão julgar.

O grupo de trás começa a falar sobre marcas de perfumes e roupas. A professora


participa da conversa e fala que gosta de usar perfumes das marcas Gabriella Sabatini, Calvin
Klein, Dolci & Gabanna. Ela conta que já trabalhou no Free Shop.

Ela passa por mim e diz: “Em alguns momentos a gente tem que conversar”.

A professora cobra o trabalho de Iniciação Científica de um aluno, que pede para


entregá-lo no último dia de aula. Ela volta para a mesa e faz a chamada.

Após a chamada, começa a conversar com um aluno que foi transferido de outra
escola e pergunta sobre suas notas. Ele diz que elas já estão na escola. A professora insiste
perguntando se ele sabe quais são as notas, ao que o aluno responde que já conversou com a
diretora e que vai fazer o supletivo no noturno no próximo ano. Vai ser importante, assegura a
docente. Em seguida ela explica a uma aluna que havia faltado o conteúdo da aula: a
formação das palavras. Os outros grupos conversam entre si.

Distribuo as autorizações dos alunos e converso com eles. A maioria se compromete a


conceder as entrevistas. Walmir quer dar a entrevista e diz que terá um momento de fama.

A professora termina a aula dizendo que na prova vai cair formação das palavras e
Barroco no Brasil, que é o tema do trabalho que eles deverão fazer.
251

* * *

1º dia de observações 1º B - 03/11/2014

Essa turma é mais silenciosa e os alunos estão um pouco mais organizados nas fileiras.
Rapidamente os grupos se formam e a professora enfrenta dificuldade para organizar a sala:
“Não é à toa que todo mundo reclama dessa sala. A gente fala e vocês continuam falando.”
Um aluno entre na sala e fica dançando praticamente ao lado da professora.

Ela inicia a chamada e os alunos ficam um pouco mais quietos. No canto direito da
sala, uma aluna faz teste de diabetes nos colegas com agulhas e objetos de enfermagem.

A professora abre o livro didático e localiza o assunto da aula. Diz aos alunos que eles
precisam copiar o conteúdo e fazer as atividades porque isto será cobrado na prova. Enquanto
escreve na lousa insiste que é importante que eles tenham um momento de parada e
organização. Segundo ela, as pessoas organizadas têm mais êxito: “Quando vocês estão
desrespeitando a minha aula, vocês têm que ter noção que vocês estão se desrespeitando. Eu
estou estudando, me melhorando, melhorando meu currículo. Vocês precisam ter noção,
noção de contexto.” Aproximadamente metade da sala está copiando a matéria, ao passo que a
outra metade não parece disposta a participar da aula. O conteúdo exposto na lousa trata de
semântica.

Dois alunos aproveitam que a professora está de costas e jogam bolas de papel e
caderno uns nos outros. Ela sai da sala, volta, continua a escrever na lousa e os alunos
parecem alheios àquilo que acontece. Estão agitados conversando sobre o comportamento
sexual de uma menina. Um grupo de alunos, no canto direito da sala, fala insistentemente
sobre essa menina, recriminando o modo como ela se mostra “fácil” para os garotos.

A professora pede aos alunos que fiquem quietos e façam a lição. O barulho parece
incomodá-la cada vez mais. De repente ela começa a chorar, diz que não aguenta mais e sai da
sala. Nesse momento os alunos se assustam e automaticamente se calam. Algumas alunas
sentem-se culpadas pelo que aconteceu e vão até o corredor onde fica a sala dos professores.
Elas dizem: “Será que a diretora vai nos suspender?” Entro na sala dos professores para
oferecer auxílio à professora. Ela está tomando água e diz que está mais calma. Alguns
minutos depois ela volta para a sala e é cercada pelas alunas, que pedem desculpas. Ela diz
252

que está tudo bem e se senta em sua cadeira. Os alunos continuam a copiar, aparentemente
ainda afetados pelo que aconteceu.

Perto do final da aula, a diretora passa na sala, fica na porta e pergunta à professora se
está bem. Ela diz que sim, a diretora se vira para um aluno e diz: “Fala para sua mãe que
agradeço a cortina para a biblioteca.” Em seguida, sai da sala. Alguns minutos depois a aula
termina.

2º dia de observações 1º B - 04/11/2014

Saímos do 1ºA e entramos no 1º B. A turma é mais numerosa e, segundo a professora,


considerada a mais difícil por todos. A sala está mais silenciosa do que na semana passada.
Um aluno entra e fica dançando.

A professora passa na lousa a mesma lição dada à turma anterior e distribui os livros
didáticos. Trata-se de um livro da escola. Um aluno fala mais alto e pede desculpas à
professora. Ela responde: “Você está desculpado porque está inserido no contexto da aula.”
Um outro aluno também se desculpa, mas a professora diz “Você não, você está nas
margens.”

Uma aluna pergunta a ela “Por que nessa escola ninguém falou no ENEM?”. A
professora responde: “I don’t know. Mas, no ano que vem, se eu estiver por aqui vocês serão
treinados.”

No momento em que ela começaria a falar sobre a atividade do Barroco, outra aluna a
interrompe para falar do ENEM. Ela diz que gostaria de fazer a prova, mas que não soube das
datas. A professora ouve e depois se senta. Os alunos fazem as atividades enquanto mexem
nos celulares, conversam e brincam entre eles.

A professora se levanta e fala do trabalho sobre o Barroco, “para não passar em


branco.” Os alunos devem abordar o marco inicial, as principais características, discorrer
sobre Gregório de Matos. Às 12h00 eles começam a devolver os livros, alguns pedem para
entregar a atividade na próxima aula. Levantam-se, arrumam o material e conversam. Em
seguida, começam a sair da sala.
253

3º dia de observações 1º B - 11/11/2014

Alguns alunos estão em pé, indo de um lado para o outro, falando alto, mexendo em
seus celulares. No quadro negro há uma explicação sobre o que é o ditongo e o tritongo. A
professora apaga a lousa e começa a explicar sobre o trabalho que deveria estar pronto
naquele dia, mas que poderia ser entregue na aula do dia seguinte. Ela escreve na lousa:

“O Barroco no Brasil

Características

Marco inicial

Gregório de Matos (Biografia)

Bibliografia”

Em seguida, fala para os alunos se organizarem em grupos de, no máximo, quatro


pessoas para fazer a atividade presente no livro didático sobre o Barroco. Eles devem
preencher os triângulos que contêm afirmações sobre o Barroco. A sala está barulhenta e os
alunos gritam pela professora pedindo orientação. Ela circula pela sala.

A mediadora da escola bate à porta e procura por um aluno chamado Rafael. A


professora vai até ela e conversa com a mediadora. Os alunos seguem fazendo as atividades,
alguns se levantam e começam a dançar no meio da sala. Um grupo começa a cantar para os
outros dançarem.

Enquanto isso, duas alunas, com o boletim eletrônico em mãos, vão conversar com a
professora dizendo estar decepcionadas, pois a professora havia dito que elas eram boas
alunas, mas fecharam com 2 em Língua Portuguesa. A professora fica sem graça, mas diz que
a nota é essa mesma.

Um aluno do grupo sentado no canto direito da sala está com uma camisinha nas
mãos. Quando os outros alunos percebem isso, todas as atenções se voltam para ele. Os
alunos riem, mostram curiosidade, apontam, até que a professora pega a camisinha com uma
caneta e a joga no lixo. Algumas meninas começam a gritar e a falar que vão pegar alguma
doença por causa daquela camisinha na sala. A professora, então, sai da sala.
254

Os alunos continuam a fazer a atividade com certa dificuldade, pois não leram o livro
sobre o Barroco e, por isso, procuram as respostas na hora. Logo a aula termina e eles se
comprometem a entregar as respostas no outro dia.

4º dia de observações 1º B – 12/11/2014

Chegamos à sala e os alunos estão agitados, colando cartazes no corredor com a


professora de Ciências. Aqueles que estão dentro da sala preparam cartazes sobre algo que
ainda não pude identificar.

A professora entra e sai da sala na tentativa de compreender o que os alunos estão


fazendo. Agitados, os alunos mantêm-se do mesmo modo na passagem de uma aula para
outra: continuam a fazer o trabalho de Ciências enquanto Marcos canta e dança no fundo da
sala, alguns colegas ouvem música nos celulares ou conversam animadamente em seus
grupos. À sua maneira, organizam-se em suas carteiras, nas rodas de conversa ou ouvindo
música. Eles se ocupam.

A professora volta à sala e diz que precisará da sua mesa, ocupada por um grupo de
alunos que fazia um cartaz. Questionados se terminaram a lição de ontem, não há resposta
clara. Giovana joga no celular com o som alto, a professora se levanta da cadeira e pede para
a aluna desligar o aparelho. Volta-se de novo para a sala e retoma as orientações de que irá
receber o trabalho sobre o Barroco até sexta-feira, dia 14/11.

Inicia a chamada, mas enfrenta dificuldades. O barulho é grande. Marcos fala muito
alto.

As orientações a respeito do trabalho são retomadas e, com base naqueles que já foram
entregues, a professora insiste que a parte “estética” do trabalho é importante. Para isso, diz
aos alunos que eles devem comprar almaço com pauta. Isso é importante, continua, porque
um professor pode se lembrar dos alunos que têm responsabilidade e compromisso. Ela
afirma que o professor pode ser perguntado por um jovem com mais de 16 anos para algum
trabalho. Além disso, os alunos devem se lembrar que todos são seres individuais e raros. Ela
pega, então, um trabalho todo amassado por ter sido molhado e pergunta à classe:
255

“Se vocês fossem professores aceitariam isso?

- Sim, claro! – dizem os alunos.

- Claro que não! – rebate a professora. Vocês não podem entregar o trabalho vítima da
enchente da mochila.” Toda a sala ri.

O aluno, para quem era a indireta, se acusa. Ela diz que é ele quem está se acusando,
uma vez que ela não mencionou seu nome.

A professora insiste que eles precisam ser organizados, arrumar suas camas, ser
responsáveis com o trabalho.

- Assim o Brasil vai para frente – diz Maicon com ironia.

- Maicon vai trabalhar de arrumar cama em hotel – provoca um aluno.

- Eu não! – responde o rapaz.

Enquanto a professora fala Maicon concorda, em voz alta, de maneira irônica. Ela o
ignora e continua a falar. Maicon volta a cantar funk, o fim da aula se aproxima e os alunos
começam a sair da sala antes mesmo do sinal tocar.

Observações das aulas – Escola 2

1º dia de observações 3º B – 31/10/2014

A professora me apresenta à classe e entrega o material da aula: “Hoje será um luxo,


vocês não precisarão devolver o texto.” Trata-se do texto “O amor por entre o verde”, de
Vinícius de Moraes. Ela se desculpa por ter entrado na sala um pouco atrasada. Ouço um
aluno comentar que a professora nem precisava ter vindo. “Leiam em silêncio! Se houver
alguma expressão que não conhecem, anotem no caderno, por favor! Depois esclarecemos o
significado dela”, diz a professora. Há um aluno surdo na sala que sai com sua intérprete para
fazer a leitura do lado de fora da sala.
256

A turma é composta de alunos jovens, aparentemente na faixa dos 20 anos, mas


também de pessoas um pouco mais velhas, com 30, 40 e 50 anos. Enquanto eles leem a
professora faz chamada, oscilando entre uma postura mais descontraída e, ao mesmo tempo, a
segurança de alguém com experiência.

A turma, até então agitada, começa a ler o texto em silêncio. Eduardo, que se recusara
a fazê-lo, inicia a atividade e parece estar gostando do texto. Uma aluna pergunta se é para
anotar as palavras que não conhece. A professora responde que sim. Eduardo sai da sala para
falar com a coordenadora.

Em conversa sobre o texto, a professora pergunta o que seriam as palavras em negrito.


Os alunos respondem corretamente e, em seguida, a professora pergunta se eles têm dúvidas
relacionadas a outras palavras. Surge uma dúvida quanto ao sentido da palavra
“indecomponíveis”. Uma aluna pergunta se seriam palavras que não se decompõem. A
professora diz que sim e informa que o prefixo “in” indica negação. Ela cita a palavra
“compreensível” como exemplo e pergunta aos alunos o que aconteceria com ela caso fossa
incluído o prefixo “in”.

Mais adiante ela pergunta qual seria a diferença entre as palavras “espaçar” e
“espaçamento”, conforme consta no minidicionário do texto. Um aluno do fundo da sala
afirma:

- Ela está conjugada.

- Era isso o que eu queria ouvir! Eu não queria ter que explicar, agora é minha vez de
perguntar!

A professora lê a última linha e, então, a coordenadora entra na sala para avisar do


adiantamento das aulas por conta da ausência de outra professora. Ela entrega, também, uma
ficha para os alunos com excesso de faltas. Assim que a coordenadora sai, a professora se
dirige à sala e diz: “Antes de falarem sobre gostei e não gostei, vou passar algumas questões
para vocês.” Então ela copia do livro didático as seguintes questões:

1- Qual é a localização do narrador e o que ele observa a partir desse local?

2- Nos 3º e 4º parágrafos o narrador reflete a respeito do futuro dos jovens namorados. Em


sua opinião, o narrador considera que o amor daqueles jovens será eterno ou não sabe se
257

aqueles jovens continuarão se amando ou se eles perderão o interesse um pelo outro nos
próximos dias?

3-Copie do último parágrafo o trecho que comprova que o narrador gostaria que seu amor
fosse eterno.

Enquanto ela escreve na lousa os alunos conversam sobre diferentes modelos de


celulares que acabaram de ser lançados, se irão ou não assistir às aulas de reposição.

A professora refaz a chamada para quem chegou atrasado, pede para que desliguem o
celular e diz que vai dar faltas para quem insistir em ficar com o aparelho ligado. A sala fica
mais cheia, sendo metade composta por mulheres. Os homens, jovens, sentam-se ao fundo e
conversam mais.

A sala tem como cor predominante o verde. A porta é de aço, sem maçaneta. Na
parede oposta à porta há várias janelas com grades. Nas paredes há um mapa-múndi e um
trabalho feito pelos alunos, um gráfico de barras. Há também um ventilador.

A turma, liderada por Eduardo, não para de conversar. Isso começa a irritar os outros
colegas. Um aluno começa a brigar com uma das colegas de Eduardo, Letícia, que retruca
falando “Pau no seu cú.” Nesse momento a professora interrompe a discussão. Outro aluno
diz: “Isso é foda.” A professora exige que os alunos utilizem linguagem apropriada e que não
debochem do que ela diz, pois fica brava.

Uma aluna termina o exercício e pede para que a professora verifique se está correto.
A professora responde que logo todos corrigirão os exercícios juntos.

Os alunos retardatários tentam devolver as folhas com o texto xerocado para a aula. A
professora precisa explicar de novo que eles não precisam devolver. Isso acontece repetidas
vezes até que todos finalmente entendem que podem ficar com o material.

Uma aluna vai até a mesa da professora e pede para ela explicar a primeira questão,
pois não entendeu o que a pergunta quer dizer com «a localização do narrador», isto é, se a
pergunta se refere ao local ocupado pelo narrador ou ao foco narrativo do texto. Outros alunos
demonstram uma dúvida parecida. Diante disso, a professora decide iniciar a correção das
questões.

A correção é feita oralmente e de forma descontraída. Ela lê a primeira questão e


espera pelas respostas dos alunos. Alguns já se antecipam e falam que o narrador está
258

observando da janela. A professora pergunta, então, onde fica essa janela e os alunos vão
dizendo: “fica perto“, “é como se o narrador estivesse onde você está e o casal estivesse lá” –
e apontam para a janela. Nesse momento, um aluno fala: “ele está olhando os brotos.” A
professora aproveita a ocasião e fala que isso pode ajudar a saber a idade do narrador. Ela
pergunta para os alunos como isso seria possível. Alguns afirmam que hoje em dia ninguém
mais fala desse jeito. Ela insiste: “Se fosse hoje, que palavra o autor usaria?”. Os alunos se
agitam, até que um deles responde “novinho e novinha”, recebendo o apoio dos colegas de
sala. A professora, no entanto, diz que não, pois “novinho e novinha não é gíria, é um
adjetivo”. Os alunos não se convencem da resposta e começam a discutir entre eles,
aumentando o barulho na sala. Até que uma aluna fala “gatinhos”, gíria aceita pela
professora.

Ao iniciar a correção da segunda questão, a professora também pede para que os


alunos respondam, mas eles titubeiam. Logo ela percebe que eles não compreenderam bem a
questão. Ela relê o enunciado e explica, de modo que os mesmos alunos que responderam a
questão anterior acertam essa.

Enquanto a professora corrige os exercícios, Eduardo tem um suporte para tirar fotos
no celular, conhecido como pau de selfie, e começa a manipular o objeto com seus amigos. O
barulho vai ficando cada vez mais alto e a professora fala que eles precisam fazer silêncio.

Para responder a terceira questão, a professora pede que os alunos leiam em voz alta o
trecho escolhido para responder a pergunta. Boa parte da turma acerta a resposta e a lê em voz
alta.

Quando a correção termina a professora pergunta aos alunos: “O que vocês conhecem
sobre o Vinícius de Moraes?” Eles se lembram do nome, mas não exatamente do que
conhecem. Uma aluna do fundo da sala se lembra de Garota de Ipanema. A professora
confirma que é uma música dele e começa e declamar o início do Soneto da Fidelidade.

De tudo, ao meu amor serei atento antes


E com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
259

Em seguida ela canta Eu sei que vou te amar, acompanhada por alguns alunos, que
cantam junto. Um dos alunos diz: “Cálice” para os colegas que estão cantando com ela.

Eu sei que vou te amar


Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar
Eu sei que vou te amar

A professora logo para de cantar, visivelmente emocionada, dizendo que se continuar


vai chorar, pois essa música a faz lembrar de seu pai, já falecido, que cantava a música com
ela. Ela diz que tentará levar a turma até a sala multimídia para ouvirem a música, mas não
garante que conseguirá pois é preciso reservar a sala com muita antecedência.

Eduardo volta a tirar fotos da sala com seu suporte de celular. A sala vai ficando mais
agitada enquanto a professora olha para Eduardo e conversa com Aline. A professora vai até
Eduardo e pede para ver o objeto. Quando ela pega o suporte, vira as costas e fala que vai
tomá-lo. Eduardo começa a ficar contrariado, mas a professora ri e deixa ver que se tratava de
uma brincadeira. Por fim, ela se aproxima do rapaz e este fala para ela tirar uma selfie com a
turma. Ela atende ao pedido e tira a foto com os alunos que estão por perto. O sinal toca e a
aula termina. Saímos eu e a professora da sala de aula.

2º dia de observações 3º B – 7/11/2014

A professora e eu entramos na sala. Ela começa a distribuir um texto impresso, depois


será lido pelos alunos. Enquanto a professora circula pela sala, uma aluna pergunta se ela dá
aulas particulares, pois quer se preparar para o ENEM. A professora diz que sim e que é bom
fazer aulas particulares para se preparar para a prova. A aluna pergunta o preço da aula e a
professora diz que custa R$120, 00. A aluna responde: “Muito caro”. A professora rebate:
“Não pelo que estudei para te dar aula.”

Ao terminar de distribuir os textos, a professora começa a leitura. No canto da página


impressa há uma explicação sobre do que se trata o conto. Ela lê a explicação e, em seguida,
260

lê o título do conto em questão: “O cachorro canibal.” A professora pergunta para a turma o


que é canibal. Os alunos, logo, respondem que é quem come gente.

A professora inicia a leitura do conto. Em um canto da sala, uma intérprete traduz o


texto para um aluno surdo. Os demais alunos acompanham atentamente a leitura feita pela
professora. Ela para o texto de modo recorrente para falar sobre alguma palavra e, a partir
delas, abordar algum assunto gramatical: “O que a palavra ‘inimigos’ retoma?” Apenas duas
alunas conseguem responder a pergunta. A professora prossegue dizendo que “quando a gente
escreve um texto tem que tomar cuidado para não repetir a mesma palavra.” Eles devem estar
atentos a isso para fazer a prova do ENEM.

Em outro momento a professora pergunta “O que significa ter êxito?”. “É sinal de


sucesso”, diz um aluno. A professora geralmente responde com um “Muito bem, é isso
mesmo.” No parágrafo seguinte ela pergunta: “O que é um enigma?”, para o qual Marcelo
responde: “É uma dúvida.” A professora concorda dizendo: “Sim, é algo que você precisa
descobrir.”

Ao terminar a leitura, os alunos ficam em silêncio, aparentemente surpreendidos pelo


final do conto, no qual um cachorro come o outro que tinha chegado em seu quintal. Diante da
sala perplexa, a professora responde: “É um conto pesado, bem pesado.” A seguir, passa
algumas questões na lousa para que os alunos respondam:

O narrador do texto é um observador ou é uma personagem?

O narrador é onisciente? Justifique sua resposta com um trecho do texto.

Quais são as características psicológicas do cão no momento de sua chegada à casa?

Em sua opinião, o narrador consegue revelar o mundo interior do protagonista?

Uma das características dos contos de J.J. Veiga é a hostilidade implacável do prepotente
contra o mais fraco. Como esta característica aparece neste conto “O cachorro canibal?

Enquanto isso, Eduardo e Giovana começam a resmungar em voz alta do calor e


ligam o ventilador. Enquanto copiam as questões, os alunos começam a perguntar: “O que é
mesmo onisciente?”. Um aluno responde: “É aquele que participa da história.” Já outro aluno
afirma que é um narrador que sabe de tudo. A professora reforça a resposta e diz que é isso
mesmo.
261

O professor de matemática entra na sala e pede para dar um recado para a turma, o que
a professora consente. Trata-se de um erro que ele cometeu ao passar uma fórmula para uma
atividade que valeria nota. Em razão disso, os alunos terão uma semana a mais para entregar a
atividade. Enquanto o professor transmite o recado os alunos começam a falar alto e a se
mexer nas cadeiras. Muitos estão insatisfeitos com o erro do professor. Enquanto ele dá o
recado, a professora se senta e as alunas que estão perto dela, Ana e Clair, reclamam do
barulho.

Os alunos ao meu lado conversam o tempo todo sobre o ENEM. Giovana comenta que
só pode usar caneta preta para fazer a prova, Eduardo diz que não vai fazer a prova porque
não sabe física e química. Seus colegas tentam incentivá-lo, porém ele não parece disposto a
mudar de ideia. Outros alunos do mesmo círculo contam que já fizeram a prova antes, mas
não foram bem. A professora interrompe a conversa e reclama que eles estão falando muito
alto e atrapalhando a aula.

Assim que o professor de matemática sai os alunos retomam a atividade. Um deles


pergunta: “Professora, a questão 4 não é a mesma da 2?”. A professora responde: “Não sei,
essa é sua opinião. Elas são diferentes. Eu diria que elas são complementares.”

Eduardo, que tinha saído da sala, volta com novidades sobre a formatura da classe. Ele
começa a passar os recados e a aula termina. A resolução das questões fica para a aula
seguinte.

3º dia de observações 3º B – 21/11/2014

A aula tem início com a professora cobrando um trabalho a ser entregue no dia de
hoje. A sala está mais cheia, como eu nunca não havia visto nos outros dias. Alguns alunos
entregam o trabalho, mas muitos nem se lembravam da atividade. A professora, então, diz que
fará uma nova atividade com os alunos que já terminaram, caso contrário eles passarão duas
aulas sem tarefa. Ela pede a Ana Paula para ajudá-la a pegar um conjunto de livros didáticos.

Em sua ausência os alunos conversam sobre a formatura, que acontecerá no dia 04/12,
e sobre os trabalhos de Sociologia e Biologia que precisarão entregar. Eduardo sai para falar
com outra turma.
262

A professora volta com a aluna e duas pilhas de livros didáticos. Ela explica que quem
está fazendo a atividade avaliativa pode continuar fazendo;quem não estiver deve fazer a
atividade escrita na lousa: um resumo de um trecho de “Vidas Secas”, presente no livro
didático.

Assim ela escreve na lousa:

Ler o texto:

“A fuga”

(trecho de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos)

Pág. 181/182

Fazer um resumo do texto

Um aluno vai até a mesa pedir explicação sobre a atividade avaliativa. Trata-se de uma
atividade de interpretação na qual os alunos devem identificar, no trecho selecionado, qual é
o sentido de “isso” e “por que”.

A professora pede aos alunos que não estão ocupados com a atividade da aula que não
conversem, pois, como ela, devem respeitar os colegas Ela avisa que, neste final de ano, toda
aula terá uma atividade valendo nota, portanto o resumo também será avaliado.

Outra aluna pergunta sobre a atividade de casa. Uma parte da atividade consiste em
pontuar corretamente o parágrafo de um texto, sem vírgula e ponto final. Nesse momento os
alunos permanecem em silêncio ocupados com a tarefa.

A professora não explica o que é o resumo e, com isso, presume-se que os alunos
sabem do que se trata.

A professora de Matemática bate à porta dizendo que eles precisam escolher um


paraninfo e o orador, pois a outra turma não fez isso com seriedade, levando a tarefa na
brincadeira. Segundo ela, esses alunos disseram que iriam zoar a formatura. Eduardo vai à
frente e diz aos colegas que eles devem escolher um paraninfo. Ele diz que cada um pode
escolher o seu, mas que, de sua parte, ele escolheria a professora Cida. Nesse momento a
professora intervém e afirma que seria melhor fazer a seleção de maneira democrática.
263

Ela ajuda a organizar a eleição na lousa. Os alunos deverão escrever no papel suas
opções e Eduardo contará os votos. Enquanto seus colegas escrevem, Eduardo com seus
amigos começam a fazer bastante barulho.

Uma aluna pergunta se o resumo tem limite de linhas. A colega sentada na frente,
Ana Paula, diz que não . A professora concorda e lhe pede para sintetizar o texto,
esclarecendo o que entendeu: “Para quê você leu o texto?”, pergunta à garota. O aluno deve
falar, de acordo com a professora, do sentido do texto para ele. Eduardo está agitado para
fazer a contagem dos votos. Finda a contagem, a professora Cida é eleita paraninfa e
Eduardo é escolhido como orador, vencendo Karina. A aula termina e a professora combina
de pegar o resumo dos alunos que não terminaram no dia seguinte.
264
265

ANEXO III – Perguntas para as entrevistas


semiestruturadas
266

Perguntas para entrevista com os estudantes

1-Qual é seu nome?


2- Quantos anos você tem?
3- Você mora com seus pais? Parentes? Eles nasceram em São Paulo?
4 – Qual é a profissão de seus pais?
5- Em que ano escolar você está? Sempre estudou na Escola 1?
6- Esse foi seu primeiro ano no Ensino Médio. Ele foi do jeito que você imaginou? Por quê?
7- Existe alguma coisa que você gostaria de aprender na escola, mas que ainda não foi
trabalhada pelos professores?
8 – Do que você mais gosta na escola? Do que você menos gosta?
9 – Como são as suas aulas de Língua Portuguesa?
10 – O que você costuma fazer nas aulas de Língua Portuguesa?
11- Você leu algum livro ao longo desse ano na escola?
12– Você frequenta a biblioteca da escola? Outras bibliotecas? Você costuma ler gibis,
revistas, jornais?
13 – Quando você não está na escola, o que você costuma fazer?
14 – Qual foi o último livro que você leu? Você se lembra de algum livro que tenha lido? Se
sim, você poderia contar a história, o assunto do livro?
15 – Existem livros na sua casa? Você guarda os livros que lê?
16 – Você costuma ver seus pais/familiares lendo livros, jornais, anúncios, entre outros, em
sua casa? Você comenta os livros, jornais, histórias em quadrinho, com outras pessoas,
amigos, familiares?
267

Perguntas para entrevista com as professoras

1-Qual é seu nome?


2- Quantos anos você tem?
3 - você mora sozinha ?
4- Ha quantos anos você trabalha como professora ?
5- Por que você escolheu se tornar professora ?
6- Como você planeja as suas aulas ?
7- Como você articula o currículo na preparação das suas aulas ?
8-Como você seleciona os textos que utiliza em sala de aula ?
9- Como você acha que os alunos reagem aos textos e atividades que você propõe a eles ?
10- Quais são seus principais desafios durante as aulas ?
11 - Como você caracterizaria seus alunos ?
12 - O que você gosta de fazer nas suas horas vagas ?
13 - Você costuma ler ? O quê ?
268
269

ANEXO IV – Questionário
270

Questionário para os alunos


Esse questionário tem como objetivo configurar o perfil de leitura dos alunos do 3º ano da
Escola 1. As respostas serão mantidas em sigilo e desde já agradeço a disposição de vocês em
colaborar com a pesquisa.
1- Idade:___________

2- Sexo: ( ) feminino ( ) masculino

3- Informe a profissão de seu pai/responsável:________________________

4- Informe a profissão de sua mãe/responsável:_______________________

5- Seu pai/ responsável estudou até:


i) ( )Ensino Fundamental (8ª série)
ii) ( )Ensino Médio
iii) ( )Ensino Superior ( curso:_________)
iv) ( )Outros (qual?______)

6- Sua mãe/responsável estudou até:


v) ( )Ensino Fundamental (8ª série)
vi) ( )Ensino Médio
vii) ( )Ensino Superior ( curso:_________)
viii) ( )Outros (qual?______)

7- Assinale abaixo o que você costuma ler (é permitido assinalar mais de uma resposta):
i) ( )Livros vii) ( ) Sites de revistas
ii) ( ) Revistas viii) ( ) Sites sobre assuntos
iii) ( ) Gibi diversos
iv) ( )Blogs ix) Outros:__________________
v) ( )Jornais ____
vi) ( ) Sites de notícias

8- Em sua casa podemos encontrar(é permitido assinalar mais de uma resposta):


i) ( ) Livros v) ( ) Bíblia
ii) ( ) Revistas vi) ( ) DVD’s
iii) ( ) Jornais vii) ( ) CD’s
iv) ( ) Gibis viii) ( ) Computador

9- Com relação aos livros, qual é o tipo que você prefere?


i) ( ) Romance romântico
271

ii) ( ) Aventura
iii) ( ) Terror
iv) ( ) Humor
v) ( ) Religioso
vi) ( ) Biografia
vii) ( ) Outros:___________________________________

10- Cite abaixo quais foram os últimos três livros que você leu:
i) _____________________________________________________________
ii) _____________________________________________________________
iii) _____________________________________________________________

11- Quais são as páginas, blogs, redes sociais que você costuma acessar na internet?
i) _____________________________________________________________
ii) _____________________________________________________________
iii) _____________________________________________________________

12- Quem ou o que costuma sugerir para você a leitura desses livros e sites (é permitido
assinalar mais de uma resposta)?
i) ( ) Família
ii) ( ) Amigos
iii) ( ) Escola
iv) ( ) Outros:_____________________________________________________

13- Nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio, quais são as atividades que você
mais costuma fazer (é permitido assinalar mais de uma resposta)?
i) ( )Leitura de textos do livro v) ( ) Atividades de tipo
didático “pergunta e resposta”
ii) ( )Leitura de livros inteiros vi) ( ) Produção de texto
iii) ( ) Cópia de textos e vii) ( ) Acompanhar aula
atividades da lousa expositiva
iv) ( ) Conversa sobre livros e
textos lidos em sala de aula ou
em casa
272

14- Quais são os materiais utilizados


nas aulas de Língua Portuguesa (é
permitido assinalar mais de uma
resposta)?

i) ( ) Livro didático
ii) ( ) Apostila do Estado
iii)( ) Livros literários
iv) ( ) Data Show
v) ( ) Materiais variados como
jornais, gibis, revistas
vi) ( ) Outros:
________________________
________________________
___
273

ANEXO V – Transcrição da entrevista com os


alunos
274

Entrevistadora: Ah, ele trabalha pertinho.


E esse é o primeiro ano em que você está
Entrevista com a aluna Mariana
estudando aqui na Escola 1?
25/11/2014

Entrevistada: É o primeiro ano.

Entrevistadora: Qual é seu nome? Entrevistadora: Antes você estudava no


Monteiro?
Entrevistada: Mariana.
Entrevistada: Isso no Monteiro Lobato.
Entrevistadora: Quantos anos você tem?
Entrevistadora: Você sentiu muita
Entrevistada: Eu tenho 15, eu vou fazer diferença de uma escola para outra?
16 em janeiro.
Entrevistada: Ai, eu senti por causa dos
Entrevistadora: Você mora com seus pais amigos e todos os professores que eu já
ou com algum outro parente? estava acostumada desde a quarta série. É
bem diferente. Quando eu vim pra cá eu me
Entrevistada: Mora só eu, minha mãe,
senti perdida.
meu padrasto e meu irmão.
Entrevistadora: É? Por quê?
Entrevistadora: Fora você, tem mais
alguém que estuda na sua casa? Entrevistada: É porque eu vim pra cá e
eu não conhecia ninguém. Aí, aos poucos, eu
Entrevistada: Só eu só. Meu irmão já
fui começando a fazer amizade.
terminou.
Entrevistadora: E agora você já está bem
Entrevistadora: O seu irmão é mais velho
ambientada?
que você?
Entrevistada: Já estou no meu lugar.
Entrevistada: Sim. Ele já tem 21.

Entrevistadora: O que você achou dos


Entrevistadora: E sua mãe e o seu
seus novos colegas da classe logo que você
padrasto, eles fazem o quê?
entrou?
Entrevistada: minha mãe é cozinheira e
Entrevistada: Eu falei: “meu deus!”. É
meu padrasto trabalha nas Casas Bahia.
porque tem muita gente diferente de mim,
Entrevistadora: nas Casas Bahia aqui da entendeu? Eu sou uma pessoa que pra fazer
Benedito? amizade é difícil, ainda mais se for mulher.
Homem acabo me entendendo mais, agora
Entrevistada: É.
275

com mulher já fico com o pé atrás. Tem essas bagunças, mas não é assim do jeito que eu
picuinhas... olhava. Eu estava na sétima, oitava série,
para mim era: o povo que está no colegial são
Entrevistadora: É... fofoca é muito chato.
os melhores. Mas não é. É tudo a mesma
E com relação os professores, você acha os
merda, não muda nada.
professores daqui são muito diferentes dos
professores do Monteiro? Entrevistadora: E com relação às coisas
que você está aprendendo aqui no ensino
Entrevistada: Não. São tipo do mesmo
médio? Tem alguma coisa que você não está
jeito. aprendendo, mas que você acha que poderia

Entrevistadora: Como eles são? aprender ou o contrário?

Entrevistada: Principalmente a Entrevistada: Podia ter negócio de

professora de matemática. A professora de química. Eu gostaria que tivesse um

matemática se você não entende ela vai laboratório e fazer experiência tipo química,

explicar, explicar, quantas vezes for essas coisas no laboratório.

necessário. A minha professora do Monteiro Entrevistadora: Para praticar?


Lobato também era do mesmo jeito:
explicava mil vezes até você entender Entrevistada: É, para também colocar
na prática a física.
Entrevistadora: Isso é bom?
Entrevistadora: E na aula de língua
Entrevistada: Ajuda a gente entender
portuguesa, tem alguma coisa que não tem
bem. mas você queria que tivesse?

Entrevistadora: Os outros professores


Entrevistada: Ah, é que eu não gosto
também são assim?
muito de português, mas eu queria que
Entrevistada: Depende. A professora de tivesse mais produção de texto. Que você

português é assim, o professor de história já criasse um texto. Eu gosto de criar texto,

explica em slides e aí dá para entender escrever, mas o resto pra mim tanto faz como

também... tanto fez porque eu não gosto de português.


Eu só gosto da parte (corte)
Entrevistadora: E agora você está no
ensino médio. O ensino médio é do jeito que Entrevistada: Assim se tiver um... ah,

você imaginou? qualquer coisa eu vou fazer, mas se for um


negócio de produção de texto, aí eu vou me
Entrevistada: Não, eu pensava que fosse
inspirar mais eu vou fazer com mais gosto,
mais divertido, que eu ia fazer várias não por obrigação.
276

Entrevistadora: As outras coisas você faz Entrevistada: Teve o Dom Quixote, que
por obrigação? Por exemplo, o que você faz a professora de português passou pra gente
por obrigação? Um exercício de gramática? ler no primeiro bimestre e fazer a prova.

Entrevistada: Pura obrigação! 99 %. Entrevistadora: Como foi a leitura deste


livro?
Entrevistadora: E ler, por exemplo?
Entrevistada: Horrível! Chata em todos
Entrevistada: Ah, eu tenho um pouco de
os sentidos. Estava falando como tudo
vergonha...
começou, o nome do livro, por que Dom
Entrevistadora: De ler? Por quê? Quixote, falando da vida dele e eu não gostei
disso.
Entrevistada: Em voz alta eu tenho.
Sempre tive vergonha. Entrevistadora: Você não gostou porque
você achou que essa informação era chata?
Entrevistadora: E você já teve que ler em
voz alta muitas vezes na escola? Entrevistada: Não é que eu achei o jeito
da prova chato, eu achei chato o livro.
Entrevistada: Lá no Monteiro Lobato
tinha que ler muitas vezes. Entrevistadora: Vocês têm o livro ou ele
era emprestado?
Entrevistadora: Mas se o professor te pede
pra ler em voz baixa, só pra você, você vai se Entrevistada: A gente tem um livro,

incomodar? vem no material que tem um monte de livros


juntos.
Entrevistada: Não.
Entrevistadora: O material que vem do
Entrevistadora: Então você gosta de ler? estado?

Entrevistada: Mas eu não gosto de ler Entrevistada: Isso.


em voz alta pra todo mundo. Eu sinto
vergonha. E se eu errar? (risos) Entrevistadora: Fora esse livro quais
outros vieram nesse material?
Entrevistadora: Ao longo desse ano vocês
leram bastante aqui na escola? Entrevistada: Veio mais dois que eu não
lembro nome.
Entrevistada: Na sala de aula ou que
deram um livro pra gente ler em casa? Entrevistadora: Você leu os outros livros?

Entrevistadora: Deram um livro pra vocês Entrevistada: Não.

lerem em casa?
277

Entrevistadora: Mas você disse que gosta Entrevistadora: Por quê? O que você
de escrever, sua praia mesmo é escrever. E aprendeu aqui?
como começou isso de você gostar de
Entrevistada: Ah, os professores. É
escrever?
diferente, tipo, na sétima série no Monteiro
Entrevistada: Eu acho que foi desde a tinha uma professora que ela não ensinava,
época em que eu estudava em escola ela só sabia gritar e xingar os alunos. Aí
particular, que eu saí da escola da prefeitura e quando foi pra oitava série, aí a professora
fui para escola particular. Aí eles pegavam ensinou mas ela não podia ensinar a matéria
tipo muito no pé. Todas as provas que eram toda, ela só ensinava aquilo que ia cair no tal
pra fazer era, tipo, duas folhas frente e verso exercício, agora essa professora não, tinha
pra fazer redação de texto. Era sempre assim coisa que eu não tinha entendido na sétima e
e tinha que ler em voz alta e sempre. Aí eu na oitava série e com ela eu entendi
comecei a pegar o jeito e gostei.
Entrevistadora: E você costuma escrever
Entrevistadora: Você estudou em escola no seu dia a dia? Por exemplo, você faz
particular em que série? diário?

Entrevistada: Na segunda até a terceira. Entrevistada: É, eu tenho assim, não é


tipo um diário, diário. Eu tenho, assim, um
Entrevistadora: E depois você foi para o
monte de folha porque eu sou assim, uma
Monteiro?
pessoa muito estressada.
Entrevistada: Não. Aí eu fui morar no
Entrevistadora: Ah é?
jaguaré e eu fui pra escola do estado. Depois
eu fui para o Monteiro Lobato na quarta Entrevistada: Sim, muito estressada. Aí
série, aí fiquei até o oitavo e vim aqui para a minha mãe mandou passar por um psicólogo
Escola 1. e ele falou que tudo que eu sentisse, que
passasse no dia todo, nem que fosse pra dar
Entrevistadora: Das escolas em que você
10 folhas, era pra eu escrever que ia
estudou, de qual você gostou mais? O Que
melhorar. E melhorou! Aí todo dia eu vou lá
você acha que aprendeu mais?
e escrevo tudo. Tudo o que acontece no dia.
Entrevistada: Foi aqui. Tirando a escola
Entrevistadora: Que gostoso. Ah, eu
particular foi aqui. também acho bom escrever! Falando um

Entrevistadora: Na Escola 1? pouco sobre as aulas de língua portuguesa, se


você fosse contar para um alienígena que
Entrevistada: Sim. acabou de chegar aqui como são as aulas de
278

língua portuguesa, como é que você vai Entrevistada: Não.


contar para ele?
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistada: Aí eu não sei ela já foi
Entrevistada: é porque eu sou o tipo de
minha professora de inglês na oitava série,
ela era substituta. Aí ela veio pra cá como pessoa que nunca gostei de português.

professora de português mas ela sabe Nunca. Desde quando entrei na escola nunca

explicar, não sei... mas tá passando um texto, gostei de português. Aí toda vez tem que ler

aí a professora Sônia vem, se você pede uma aquele texto aí tem que fazer aquelas

explicação pra ela, ela vai explicar. questões, tipo, o texto nunca é pequeno, são
sempre 3, 4 folhas. E o que vai cair naquelas
Entrevistadora: O que, na maior parte do 10 questões só é aquela primeira página! Aí
tempo, vocês fazem nas aulas de língua eu já não gosto, eu fico estressada porque eu
portuguesa? Vocês fazem mais atividade de tenho que ler o texto todo à toa, aí eu já não
gramática, de leitura e interpretação de texto, gosto.
de produção de texto... quais são as coisas
que você mais faz? Entrevistadora: você se lembra de algum
autor ou de algum texto que vocês leram
Entrevistada: Ah, mais interpretação de nessas atividades?
texto... a gente lê bastante texto e a gente tem
Entrevistada: ah, sempre é o Carlos
que responder às perguntas
Drummond de Andrade, sempre é ele. A
Entrevistadora: ler e responder às maioria dos textos é ele que a gente lê.
perguntas. E vocês usam qual material
geralmente? Entrevistadora: porque será? (risos)

Entrevistada: o livro, a apostila. Às Entrevistada: não sei, é sempre ele.

vezes, apostila ela manda pra fazer em casa. Todos os textos que a gente faz, a maioria

Eu tenho um livro mesmo. dos textos que a gente faz, é sempre dele. Ele
que fez.
Entrevistadora: livro didático?
Entrevistadora: então você já se
Entrevistada: É. acostumou com o Carlos Drummond de
Andrade?
Entrevistadora: Ele está na sua casa?
Entrevistada: Gosto do que ele escreve,
Entrevistada: É
eu acho legal porquê.... não sei, tudo
Entrevistadora: você gosta de fazer esses depende do que ele escreve. Eu não gosto de
exercícios de leitura e responder às questões? texto de tipo aventuras, essas coisas. Eu gosto
279

de um meio dramático, eu gosto de imaginar Entrevistadora: E mesmo tendo que fazer


aquela coisa o que está se passando, o que a a prova você gostava do livro?
pessoa está sentindo. Agora, eu não gosto de
Entrevistada: Mesmo assim. Eu
nada de aventura, essas coisas. Ah, é meio
ruim essas coisas de aventura e de não poder gostava dele. Aí era pra eu ter escolhido “A

imaginar... menina que roubava livros” aí eu fui e


comprei “A menina que roubava livros”. Aí
Entrevistadora: Então vocês leram lançou o filme e eu assisti o filme. Mas não
basicamente o texto do Dom Quixote e os era aquela coisa que eu imaginava.
textos do Drummond? E no seu dia a dia? Por
exemplo, agora você está lendo um livro? Entrevistadora: O livro era mais legal?

Entrevistada: Não. Ah, eu comprei um Entrevistada: Era. Todo livro é mais

livro chamado “O código da inteligência” legal do que no filme porque no livro você

porque eu quero ser psicóloga e ele fala um pode imaginar um monte de coisas, você vê

pouco do inconsciente e de tudo que acontece como é. Agora no filme não tem graça.

na sua mente. Aí eu já estou lendo esse livro Entrevistadora: É verdade, o filme acaba
pra ter uma idéia daquilo que eu vou estudar terminando com a imaginação. Você disse
daqui 2 anos.
que comprou todos esses livros, onde você

Entrevistadora: entendi, quando você costuma comprar seus livros?

terminar o ensino médio. E quais outros


Entrevistada: Na lapa.
livros você gosta de ler?
Entrevistadora: Onde na lapa?
Entrevistada: eu já li “A metamorfose”.
Entrevistada: Tem a 12 de outubro, lá
Entrevistadora: do Kafka. Onde você
no começo, não sei explicar se é no começo
pegou livro?
ou no fim, eu sei que é lá perto “Cacau
Entrevistada: eu comprei. Eu já li “O Show”. É bem lá pra cima.

diário de Anne Frank”, eu já li “A última Entrevistadora: É uma livraria?


música,” “A culpa é das estrelas,” eu já li
também. Todo o livro da escola que eles Entrevistada: É.
estavam eu tinha que ler, eu lia.
Entrevistadora: Você sabe o nome da
Entrevistadora: No monteiro ou aqui? livraria?

Entrevistada: No Monteiro. Igual, “O Entrevistada: Não, não sei.


diário de Anne Frank” tive que ler para uma
prova sobre ele. Aí eu li sobre ele.
280

Entrevistadora: Você vai sozinha ou você você escolhe”. Mas às vezes eu sou meio
vai com alguém? indecisa também de qual devo levar, aí minha
mãe me ajuda a escolher.
Entrevistada: Eu sempre vou com a
minha mãe. Entrevistadora: Geralmente ela fala o que
pra te ajudar a escolher? Ela diz assim: “ah,
Entrevistadora: Sua mãe gosta de ler esse parece que tem uma história mais
também? bonita”. O que ela fala pra você?

Entrevistada: A minha mãe tem um Entrevistada: Não, ela lê o resumo aqui


livro que ela gosta e ela já leu, sei lá quantas [aponta para a quarta capa do livro que
vezes. Chama “Um estranho no espelho”. seguro], que mostra o que acontece. Ela vê o

Entrevistadora: De quem é o livro? autor, tipo quem é e fala assim: “eu acho que
você tem que levar esse, parece mais com
Entrevistada: Eu não sei, mas eu sei que você. Você tem que levar esse”.
é antigo.
Entrevistadora: Então ela vê se tem a sua
Entrevistadora: Ela lê sempre esse livro? cara?

Entrevistada: Ela lê direto. Entrevistada: É. Ela vê se é a minha


cara: [ela diz:] “então você leva esse!” Aí eu
Entrevistadora: Ela comprou outros livros
fui e levei esse.
pra ler?
Entrevistadora: Com isso você já leu
Entrevistada: Não, ela não gosta muito
vários livros? Você já leu mais livros na sua
de ler, ela gosta só daquele livro. casa ou você leu mais livros aqui na escola?

Entrevistadora: Então ela vai lá mais pra


Entrevistada: Ah, eu acho que mais na
te levar?
escola. Então eu gosto de ler, mas quando eu

Entrevistada: Isso, ela vai pra me levar, tenho que ler, eu gosto de ler no silêncio e
aqui na escola já fica ruim, já perco a
pra me acompanhar e pra dar opção de qual
concentração. Eu gosto de ler mais em casa
livro eu devo levar ou não!
que é melhor.
Entrevistadora: Ah, ela te barra? Ela diz:
Entrevistadora: Mas só que na escola,
“esse livro você pode comprar, esse você não
fora os exercícios de interpretação de texto
pode”?
você tem que ler muito?
Entrevistada: Não, não é que ela me
Entrevistada: Na aula de português,
barra. Ela falou assim: “ você que tá lendo,
não. Mas tipo principalmente na aula de
281

história, que é muito slide, entendeu? Você sua cara!” Então tá bom, mas eu não levo.
tem que ler, você tem que memorizar aquilo Ela queria que eu levasse aquele, mas eu
que você está lendo, entendeu? levei O código da inteligência.

Entrevistadora: O professor sempre traz Entrevistadora: Porque tem mais a ver


um slide? com você? Você está lendo esse livro? Está
gostando?
Entrevistada: Ele traz em todas as aulas
os slides, fala para a gente ler ou para gente Entrevistada: Estou.
tirar foto ou para anotar o que é importante.
Entrevistadora: E aqui na escola, você
Mas mesmo assim ele criou um site, colocou
frequenta a biblioteca?
os slides lá que. [Os slides que] ele passou na
aula, para quem quiser dar uma revisada Entrevistada: Não.

Entrevistadora: E aí no caso você acaba Entrevistadora: Por quê?


tendo que ler muito mais nas aulas de história
do que na aula de língua portuguesa? Entrevistada: É porque eu não gosto
daquele negócio de ter um certo tempo para
Entrevistada: Isso.
ler e aquele certo tempo pra entregar. Eu

Entrevistadora: Você disse que sua mãe te gosto de ler, tipo, quando me der vontade. E

ajuda a escolher os livros que são mais a sua se me der na telha eu vou ler tipo o dia todo,

cara. Você gosta desses momentos de ir na se for necessário, [vou] ler a madrugada

livraria com sua mãe? inteira aquele livro. Eu vou ler porque eu
quero e não porque eu estou sendo obrigada:
Entrevistada: Sim, porque ela fala “Ó, você tem dois dias para ler esse livro aí”.
assim, a gente está lá escolhendo e ela fala Eu já não gosto.
assim: “olha esse livro,” e eu falo: “o que tem
Entrevistadora: Você pode ficar quanto
esse livro?” “Ele não tem nada a ver com
tempo com os livros da biblioteca?
vocꔓ.Esse livro aqui, você tem que ler,
parece com vocꔓ. Por quê?” “Por que são Entrevistada: Eu não sei não.
As confissões de um adolescente”. Mas eu
falei: “isso não tem nada a ver comigo”. Mas Entrevistadora: Os professores levam

ela falou: “Parece sim, por isso mesmo!” vocês na biblioteca?

“Então tá bom, então”.


Entrevistada: Não, nem um pouquinho.
Entrevistadora: Aí você leva?
Entrevistadora: Fora os livros, o que mais
Entrevistada: Aí eu não levo. Isso aí você gosta de ler? Você lê gibi, revistas?

não é minha cara. Aí ela falou assim: “É sim


282

Entrevistada: Eu leio bastante revistas. parte da tarde, você gosta de fazer o que

Eu nunca gostei de Gibi. Eu leio bastante nessa parte da tarde?

revista porque a minha mãe sempre traz.


Entrevistada: Aí eu chego da escola, vou
Minha mãe todo dia traz uma revista, aí eu
tomar banho porque eu tenho mania. Se eu
vou lá, vou virando as folhas para ver o que
chego de um lugar já tenho que tomar banho
tem. Eu vou passando e aquilo que me
porque a minha mãe fala que é para tirar a
interessar eu vou ler.
inhaca do corpo, aquele peso que a pessoa
Entrevistadora: Qual revista ela costuma coloca em você. Aí eu vou tomar banho, eu
comprar? almoço, dou uma descansada. Depois eu vou
limpar a casa, vou pra academia e quando eu
Entrevistada: Acho que é Viva, aquela
volto, se tem alguma lição ou trabalho, eu
que fala sobre os famosos. Tem tudo lá. faço.

Entrevistadora: Então ela não lê muito Entrevistadora: Todo dia você mantém
livro, mas revista ela lê sempre? sua rotina de estudar?

Entrevistada: Ela lê bastante revista e Entrevistada: Se tem lição eu mantenho.


jornal também. Ela lê a Folha de São Paulo. Agora, o que tem mais rotina mesmo é física

Entrevistadora: Ela leva o jornal pra casa e matemática, que eu gosto.

também? Entrevistadora: E sua mãe te cobra de


fazer a lição?
Entrevistada: Leva.

Entrevistada: Cobra. Ela fala: “cadê seu


Entrevistadora: E você dá uma folheada?
caderno?”
Entrevistada: Eu olho, assim, às vezes.
Entrevistadora: Ela olha?
Tem aquelas tirinhas, né, aí dependendo da
tirinha eu vou lá e vou ler. Agora, aquelas Entrevistada: Olha! Desde pequena ela
outras partes eu não vou ler. olha o caderno, ela pergunta: “Por que essa

Entrevistadora: Então sua mãe é uma questão não tá respondida?” Aí eu digo

grande leitora! porque eu não entendi, mas ela fala: “Então


você vai fazer!”. Aí eu vou lá e tem que
Entrevistada: É, ela lê aquelas revistas, fazer. Ela explica, entendeu?
ela lê todinha...
Entrevistadora: Ela te ajuda. Ela estudou
Entrevistadora: Quando você não está na até que série?
escola, você estuda de manhã né, aí tem a
283

Entrevistada: Até o terceiro [ano do Mesmo se você tirou nota vermelha eu quero

Ensino Médio]. Ela terminou. ver”.

Entrevistadora: Então ela consegue te Entrevistadora: E se você tirou nota

ajudar, né? vermelha, o que ela faz?

Entrevistada: Consegue. Mas a única Entrevistada: Ela fala assim: “Por que

coisa que não mudou é a Língua Portuguesa, você tirou nota vermelha?” Eu falo: “Ah,

porque Matemática, Física, essas coisas mãe!” Ela fala assim: “Você fica o dia todo

mudou bastante. em casa, sem fazer nada, sua obrigação é


estudar. Eu falo: “ Então tá bom mãe”.
Entrevistadora: Aí fica mais difícil de
ajudar. Entrevistadora: Aí você vai lá e estuda?

Entrevistada: Aí, em vez dela me Entrevistada: Ela vai lá e faz eu estudar

explicar, às vezes Matemática e Física eu de novo. E se tem alguma recuperação

acabo explicando pra ela porque ela não daquela prova ela quer que eu tire nota azul.

lembra daquela matéria.


Entrevistadora: E você sempre consegue

Entrevistadora: Então ela gosta muito que tirar nota azul?

você vá bem na escola, que você estude?


Entrevistada: Ah, em matemática e

Entrevistada: Ela pega no pé. química é uma coisa que é assim... agora no
terceiro e no quarto bimestre, eu estou
Entrevistadora: Ela vem nas reuniões e tirando nota boa, azul, em matemática.
essas coisas? Porque química, matemática e inglês é uma
coisa que eu nunca me dei bem. Eu não
Entrevistada: É que a hora que tem a
consigo entender não tem muito jeito não.
reunião não dá porque como ela trabalha em
restaurante, ela é cozinheira, não tem como Entrevistadora: Já naquelas que tem mais
ela vir nas reuniões. Acho que ela só veio em leitura você consegue ir melhor?
duas, só.
Entrevistada: Aí eu vou melhor.
Entrevistadora: Mas mesmo assim ela tá lá
todo dia olhando suas coisas? Entrevistadora: Na sua casa tem livros?
Onde ficam os seus livros?
Entrevistada: Sim, ela está todo dia no
Entrevistada: O meu livro fica no meu
pé. Chega de sábado ela quer olhar o
caderno. Ela diz: “Eu quero ver as provas. guarda roupa, no meu quarto. Ninguém
mexe, ninguém toca. Eu não empresto pra
284

ninguém também não! Eu não gosto de brigando comigo e pega no meu pé demais.
emprestar. Ainda mais matemática.

Entrevistadora: E os da sua mãe, por Entrevistadora: Ele te ajuda?


exemplo, as revistas dela?
Entrevistada: Não. Ele fala: “A mãe
Entrevistada: As revistas dela ficam lá nunca me ajudou, então eu também não vou
na gaveta, lá na cozinha. Mas ela deixa eu te ajudar eu sempre fiz tudo sozinho”.
mexer. Ela fala: “Se você quiser ver, pode
Entrevistadora: Sua mãe ajuda mais você
olhar, fuçar tudo”. Ela não liga
do que ajudava ele?
Entrevistadora: E você tem muitas
Entrevistada: É porque a minha mãe
lembranças de ver ela lendo?
não tinha muito tempo. Ela trabalhava mais.
Entrevistada: Ah, tenho. Quando eu era Aí agora ela vai lá e me ajuda porque [antes]
pequena eu ganhei no meu aniversário de 5 ela só tinha que trabalhar e minha vó ficava
anos tipo uma caixinha que tocava música e com ele e não dava tempo para ela ensinar
tinha todos os livros tipo a Branca de neve, o porque ela chegava tarde.
Rei leão... eram cinco livros. Eu lembro dos
Entrevistadora: E vocês costumam
três, eram os três que ela sempre lia pra mim.
conversar sobre as coisas que vocês leem?
Eu lembro bastante daquilo.
Entrevistada: Não muito, nem com
Entrevistadora: Você lembra da situação?
minha mãe nem com meu irmão. Eu e minha
Entrevistada: Lembro. mãe, a gente conversa demais. Eu conto tudo
para ela, mas o que eu leio sobre os livros eu
Entrevistadora: Seu irmão também gosta
não comento.
de ler bastante?
Entrevistadora: E porque você não fala
Entrevistada: Meu irmão é daquela
sobre isso?
pessoa que, tipo, não gosta de ler. Nossa, tem
hora que você acha que ele não tá nem aí pra Entrevistada: Ah, sei lá. Tipo eu sou
vida, mas se você perguntar tal coisa ele vai teimosa e a minha mãe também e se ela
fazer e se ele faltar o ano todo na escola, conhecer o livro ela diz assim: “Não, mas não
quando ele fazia as provas ele tirava nota é aquilo que ele falou, não”“.É, sim. Eu li, eu
máxima. Maior que todo mundo. Em também [li]”. E aí já rola uma discussão.
matemática ele é muito inteligente, ele fala:
Entrevistadora: Você se lembra de algum
“Nossa! Não sei como você consegue tirar 0
livro que aconteceu uma briga dessas?
em matemática, não sei o quê!” Aí ele fica
285

Entrevistada: Já, A última música. Entrevistada: Ah eu não sei porquê. A


Jaque eu nem sei se ela lê. A Daniele piorou,
Entrevistadora: Ela também leu esse
ela não lê. Então não rola muito essa troca.
livro?
Entrevistadora: E com os professores,
Entrevistada: Sim, ela leu. Aí ela falou
você tem a oportunidade de conversar com
assim que o cara morreu de desgosto da filha, eles sobre o que você lê, sobre as coisas que
aí eu falei: “não, ele morreu de uma doença”. você gosta?
Aí ficou aquele debate, aí ela assistiu o filme
e viu que ele tinha uma doença mesmo, que Entrevistada: Ah, eu falei com a
ele ia morrer. professora de português que eu tava lendo O
código da inteligência. Ela falou assim:
Entrevistadora: Então ela se convenceu
“Você já terminou?” E eu disse não. Ela
depois com sua interpretação?
falou assim: “Esse livro deve ser bom”. Ela
Entrevistada: Sim, ela se convenceu olhou assim um pouco, falou assim: “Pode

que eu estava certa, que ela estava errada. E ler que vai ajudar a dar bastante aprendizado

fica assim, eu tenho uma opinião e ela tem a para você”.

dela. Entrevistadora: E você achou legal ela ter

Entrevistadora: Então é mais fácil falado isso?

conversar sobre um livro que só ela leu ou


Entrevistada: Aí eu comecei a ler mais
que só você leu.
a cada dia.
Entrevistada: Sim, porque daí ela só
Entrevistadora: Porque deu aquele
pergunta o que foi que aconteceu e daí eu vou estímulo?
lá e explico. Eu falo de algum livro para ela,
ela vai lá e ouve e não critica em nada porque Entrevistada: Isso.
ela não o conhece.
Entrevistadora: Você acha que os livros
Entrevistadora: E você também conversa que você leu aqui na escola, assim como os
com as suas amigas, colegas da classe, sobre livros que você escolheu com a sua mãe, têm
os livros que você lê? a sua cara?

Entrevistada: Não Entrevistada: Não.

Entrevistadora: Porquê? Entrevistadora: Por quê?

Entrevistada: Por que geralmente é


sempre coisa assim, muito coisa que não
286

existe. Coisa tipo, coisa grega, aventura. Entrevistadora: Você se lembra de algum
Muito coisa que você sabe que não existe, texto dele que fez sentido para você de
mas aquilo tá falando. Eu não gosto de coisa alguma forma particular?
muito artificial, eu gosto daquilo que você
Entrevistada: Não. É que eu sou o tipo
sabe que é e que aconteceu.
de pessoa que esquece muito rápido as
Entrevistadora: Como assim, você sabe coisas. Mas eu estou em casa lendo aquele
que é algo que aconteceu? Dê o exemplo de texto, tudo, aí eu vou lembrar. É que aqui tem
um livro. muito barulho. Você está lendo, está fazendo
conta e as pessoas estão gritando, dando
Entrevistada: Ah, igual o livro...livro
risada. ouvindo música aí a minha
não, principalmente texto. Eu tô lendo
concentração... Eu estou lendo, eu vou
aquilo, aí fala que Afrodite não sei o quê. Eu
lembrar daquilo durante meia hora, depois eu
ouvi falar, todos os professores falam, mas eu
vou esquecer.
não sei se é verdade ou não. Não tem aquilo
que comprova que aquilo aconteceu. Entrevistadora: Entendi. Por causa do
barulho mesmo. E você acha que as
Entrevistadora: Entendi. É um mito.
atividades que você faz de língua portuguesa
Entrevistada: Sim é um mito, como diz ajudam a lembrar dos textos ou das coisas

é um mito, mitologia grega. Daí eu já não que vocês estudam?

gosto de ler.
Entrevistada: Em que sentido?

Entrevistadora: E os textos do
Entrevistadora: Depois você consegue
Drummond, por exemplo, que você disse que
lembrar e falar "ah, que bom aquele texto”.
leu bastante?
As atividades te ajudam nisso?
Entrevistada: Ah eu.. tem bastante
Entrevistada: Ah, não. Não ajudam não.
coisa que tem sentido. Ele fala umas coisas
sem sentido, sabe, mas ele expressa muito Entrevistadora: Porquê?
aquilo que ele pensa, entendeu, aí eu já gosto,
Entrevistada: Eu me esqueço muito
já.
rápido de tudo então não adianta eu ler, fazer
Entrevistadora: Você gosta mais das aquela atividade. A maioria das vezes eu li
coisas... um texto, aí eu estou escrevendo lá as
questões. Aí na hora em que eu vou
Entrevistada: Daquilo que a pessoa
responder a número um eu já esqueci, aí eu
pensa e é o que ela escreve. Eu gosto disso.
vou ter que ler o texto de novo e achar aquela
pergunta.
287

Entrevistadora: Como você está contando, era pra nota, [acontecia]mais no Monteiro
você gosta muito de ler e escrever. Onde Lobato.
você descobriu que ler era bom? Que
Entrevistadora: Então o Monteiro lobato
escrever era bom?
foi uma escola que você gostou bastante?
Entrevistada: Ah, ler é como eu disse, eu
Entrevistada: Sim. Nessa escola tinha
gosto de ler aquilo que me interessa. Mas
uma professora que se chamava Juliana. Ela
escrever, tipo, desde o Monteiro lobato eu
passava bastante texto que você tinha que
sempre fui aquela pessoa, eu sempre gostei
fazer, aí tinha uma paródia que tinha que
de.... principalmente naquelas provas que
fazer, que era de um cara, de um morador de
vinham de fora, sempre vem aquela redação
rua. Eu fiz sobre o morador de rua, que falava
que você tem que fazer. Tanto que em uma
que chovia, estava frio lá fora ,tudo. Aí eu
época, quando eu estudava na primeira série
fiz, assim, que a gente está aqui no frio, tudo,
no Gabriel Prestes, eu ganhei até uma
imagina aquele que está lá fora. Era tipo
medalha por que foi tipo o melhor texto que
música, aí tinha que tirar daquela música, que
teve, foi a premiação eu tenho essa medalha
ela lesse e já sabia que era sobre aquela
até hoje. E aí pode ser de qualquer tema, vai,
música.
a falta de água, eu vou pensar durante 5
minutos. Mas nesses 5 minutos eu não vou Entrevistadora: Era difícil, né?
parar nem mais um minuto para pensar, já vai
Entrevistada: Ah, eu gostei. Eu gosto
estar tudo em mente e eu vou escrever sem
parar. Eu não consigo escrever aquela coisa bastante de escrever.

pequena tipo, uma folha. Eu não vou


Entrevistadora: O que você sente quando
conseguir. Eu vou escrever em duas porque
você termina de escrever um texto?
aí eu tenho, eu penso, eu já tenho aquilo em
mente. Aí eu escrevi aquilo, aí quando eu vou Entrevistada: Ah, eu vou ler. Eu falo
ver, para ver se está bom, aí já vai vir outra assim: “Nossa, caramba ficou bom”. Aí eu
coisa sobre aquilo. Que é interessante vou dar para professora, o professor vai falar
também aí acaba sendo mais do que uma assim: “nossa, ficou bom. Parabéns”.
folha.
Entrevistadora: E aí você gosta daquilo?
Entrevistadora: E quando você faz as
provas com esses textos, geralmente você tira Entrevistada: Eu gosto daquilo, ouvir

nota boa? aquele parabéns.

Entrevistada: Aqui eu não lembro de ter Entrevistadora: Todo mundo gosta né? E
sua mãe gosta que você goste tanto de
feito algum texto, tipo produzido assim que
escrever?
288

Entrevistada: Gosta. Ela fala: “não sei isso”. Aí passa um tempo, aí acontece aquilo

de quem você puxou isso porque - ela fala - que eu falei, o que eu observei. Aí todo

ninguém da família gosta tanto”. E eu falei mundo vai ver que eu estava certa, eu não

assim para ela que eu quero ser psicóloga, estava errada, eu não estava falando demais.

mas eu queria fazer aquela faculdade para ser


Entrevistadora: Você trouxe seu caderno,
tipo escritor. Eu queria fazer um livro sobre a
a gente pode dar uma folheada?
minha vida, sobre a minha opinião.
Entrevistada: É que aqui não tem língua
Entrevistadora: Ah, então você quer falar
portuguesa.
sobre a sua opinião?
Entrevistadora: Ah, que pena. Mas vamos
Entrevistada: Sobre aquilo que eu penso
olhar o seu caderno de matemática. Sua letra
e acho.
é bonita, seu caderno é caprichado, né? Esse

Entrevistadora: Você pensa sobre tudo? carimbo é da professora Meire, que dá aula
de matemática?
Entrevistada: Penso sobre tudo, sou
Entrevistada: Sim.
bem observadora.

Entrevistadora: Sobre o que você tem Entrevistadora: Você achou difícil o

pensado ultimamente? logaritmo? Eu achei quando estava na escola.

Entrevistada: Ah, nas meninas aqui da Entrevistada: Não, essa eu achei fácil.

escola. Elas são meio tipo anuviadas. Eu fico


Entrevistadora: Seu caderno de Língua
pensando assim, como pode? Essa menina
Portuguesa também é assim: cheio e bem
não tem mãe? Olha o jeito que ela anda, olha
organizado?
o que ela fala.
Entrevistada: Não, ele é organizado mas
Entrevistadora: Você queria escrever um
quase não tem coisa porque todo bimestre eu
livro sobre essas coisas que você vê?
mudo de caderno para não ficar aquela coisa,
Entrevistada: Aquilo que eu vejo, o que aquela confusão. Aí nesse bimestre quase não

ninguém vê. Eu sou o tipo de pessoa também tem lição dela... mas não tem muita

que a minha mãe fala não sei se isso é uma coisa...tem mais da professora Sônia e da

qualidade ou defeito, eu vejo aquela pessoa, professora Marisa porque o que encheu

eu falo assim: “Ó, eu não gostei dela”. A aquele caderno mesmo foi a professora

minha mãe pergunta: “ Por que você não Sônia, que eu faço junto com o da professora

gostou dela? Eu acho que ela é isso, isso e de português, a professora Márcia.

isso. Não tem nada, mas eu acho que ela é


289

Entrevistadora: A professora Sônia dá isso para os outros copiarem e ninguém


aulas do quê? copia... a professora Marisa, não, ela já passa,
ela começou a passar um texto e começou a
Entrevistada: Ela dá aula de português
ensinar um negócio que a professora depois
quando a professora Márcia falta. Quando a de uns bons tempos, uma semana, 15 dias a
professora de português falta entra professora professora Márcia veio e ensinou aquilo.
Sônia e a professora Marisa. Mas às vezes
quando a professora Marisa está em outra Entrevistadora: E quais foram as coisas

sala, só ela dá lição. que vocês estudaram esse ano?

Entrevistadora: Só a professora Marisa dá Entrevistada: Literatura, gramática e o


lição? radical que tem que mudar. Tipo, tem que
pegar eu não lembro.... aqui está escrito
Entrevistada: Não, a professora Marisa
atividades o radical é o "a”. aí tem que falar
não pode entrar porque ela está em outra sala, uma palavra que tenha "a," tipo macaco...aí
aí a professora Sônia vai entrar e vai passar a você tem que escrever isso.
lição.
Entrevistadora: Vocês também
Entrevistadora: Então quem passou mais aprenderam sobre o barroco não é?
lição foram as professoras substitutas?
Entrevistada: A gente até fez um
Entrevistada: É. A Sônia e a Marisa.
trabalho. A gente não aprendeu sobre ele, a

Entrevistadora: E nos outros bimestres? gente teve que fazer um trabalho sobre ele.

Entrevistadora: E o que você aprendeu a


Entrevistada: Também. A professora de
partir de trabalho sobre o barroco?
português, sei lá o que ela tem, o problema
que ela tem. Aí ela não pode ficar nervosa Entrevistada: Nada, porque eu só
que dá tremedeira nela, ela passa mal e ela imprimi e já era.
trabalha, acho, que em quatro escolas e nunca
tem tempo para vir aqui e dar aula. Entrevistadora: Você pegou da internet?

Entrevistadora: E é diferente o que a Entrevistada: Sim.


professora Sônia ou a professora Marisa
Entrevistadora: Você teve curiosidade de
passam do que aquilo que a Márcia passa?
dar uma olhadinha ou não?
Entrevistada: Não. A professora Sônia
Entrevistada: Não.
passa coisas, tipo, o que você sabe, bem
simples, coisa que não tem erro mesmo. Você
só erra se for largado mesmo. Ela já fazia
290

Entrevistadora: Nada que é de português Entrevistada: Não.


me interessa. Só se for produção de texto
porque o resto... Entrevistadora: Não aprendeu nada?

Entrevistadora: Geralmente a professora Entrevistada: Até aprendi, mas eu não


dá muito trabalho? gosto. Eu finjo que eu não aprendi, eu só boto
conhecimento na prova.
Entrevistada: Ela sempre passa mais
atividades. Ela ensina aqui aí ela fala vamos Entrevistadora: Porque na prova...

fazer uma atividade para nota. Ela vai lá e


Entrevistada: É aquilo...
passa.
Entrevistadora: É a nota né?
Entrevistadora: Como costumam ser essas
atividades? Entrevistada: E quando vocês leram,
por exemplo, Dom Quixote. tinha alguma
Entrevistada: Ela passa atividades sobre
relação com algum movimento literário ou
aquilo que ela mostrou e você pode procurar
não? Porque vocês leram o dom quixote?
no caderno, consultar, geralmente sempre em
dupla. Entrevistada: Ela falou assim, logo no

Entrevistadora: Essas atividades são mais começo, ela falou que era para ler. Logo a

de gramática ou são mais de leitura e primeira vez que a gente entrou na sala tudo,

interpretação de texto? aí chegaram esses livros também que é o


estado que dá. Ela falou assim: “ó, eu vou
Entrevistada: São leitura e interpretação fazer uma prova, a prova do 1º bimestre vai
de texto que você tem que responder. ser sobre o Dom Quixote. Eu quero que
vocês falem sobre isso”.
Entrevistadora: No 3º bimestre vocês
aprenderam o quê de literatura? Esse último Entrevistadora: Vocês leram em casa
foi o barroco, no anterior foi o quê? então para fazerem a prova?

Entrevistada: Não lembro. O barroco a Entrevistada: Isso.


gente não aprendeu nada sobre ele, a gente só
Entrevistadora: Vocês não leram aqui?
aprendeu isso que eu estava falando do
radical. Sobre o trabalho ela falou assim Entrevistada: Não. Ela até falou que
“pesquisa isso sobre ele” e já era. pode ler, mas vocês que sabem.

Entrevistadora: Nos outros semestres você Entrevistadora: E vocês conversaram


acha que você aprendeu mais coisas sobre sobre o livro aqui na sala?
literatura ou sobre gramática?
291

Entrevistada: Não. eu quero um grupo que faça uma peça. Ia ser


aquilo. Ia pedir mais a opinião das pessoas.
Entrevistadora: Você leu sozinha em casa? Tipo, o professor de Sociologia...é sempre
debate e ele escolhe que tema a gente vai
Entrevistada: Sozinha em casa. Ela
fazer hoje. Se for a professora de Português
faltou um bom tempo, acho que no primeiro
eu ia falar, o que a gente vai fazer hoje? Uma
bimestre, ela faltou um mês. A gente ficou
aula ao ar livre, essas coisas.
sem ver ela, aí ela veio, aí passou a prova.
Entrevistadora: Você acha mesmo que as
Entrevistadora: O que caiu nessa prova?
pessoas têm que dar sua opinião.
Entrevistada: Tudo sobre o dom
Entrevistada: É, a pessoa tem que dar
quixote. Quem era o Dom Quixote, que ano,
opinião porque se você parar para pensar,
até que ano ele viveu essas coisas.
tipo todas as aulas assim são a mesma coisa.
Entrevistadora: Quem escreveu dom Se você fizer uma aula diferente, a pessoa vai
quixote? aprender. Agora se fizer sala de aula, texto,
texto, texto, a pessoa não vai aprender, ela
Entrevistada: Não faço a mínima ideia.
está cansada daquilo. Mas se fosse assim: “Ó,
hoje eu vou passar um filme”
Entrevistadora: E depois desse livro vocês
não leram nenhum outro? Entrevistadora: Já dá uma diferença.

Entrevistada: Não. Entrevistada: Já dá uma diferença. Ela


vê que não vai ser todas aquelas seis aulas
Entrevistadora: Só os textos mesmo das
que ela teve. Ela vai querer prestar atenção e
atividades?
fazer de tudo para aprender sobre aquilo.
Entrevistada: Só os textos das
Entrevistadora: E por que você acha que
atividades.
teatro é tão legal?
Entrevistadora: E os textos são para
Entrevistada: Porque a pessoa expressa
interpretação de texto?
tudo o que ela sente
Entrevistada: Isso.
Entrevistadora: Você vai bastante ao
Entrevistadora: Se você fosse professora teatro?
de Língua Portuguesa, como seriam suas
Entrevistada: Não.
aulas?

Entrevistadora: Você gostaria de ir mais


Entrevistada: Ah, ia ser tipo bastante
ou você queria fazer teatro?
teatro. Ia falar assim: “Ó, eu quero um texto”,
292

Entrevistada: Eu gosto do teatro em si, 26/11/2014


tipo em sala de aula. Mas não que eu goste de
ir em teatro, essas coisas.

Entrevistadora: Qual é o seu nome?


Entrevistadora: Você não gosta?

Entrevistada: Amanda.
Entrevistada: É eu sou uma pessoa que
não consigo ficar em lugares quietos, essas Entrevistadora: Você estava dizendo que
coisas. Não adianta, eu gosto na sala de aula. não gosta de língua portuguesa...
Tem que ter o silêncio para eu fazer as
coisas. Mas eu sou uma pessoa que não Entrevistada: Por que tem que ler, pra

consigo ficar parada, tenho que ficar fazendo mim eu acho que isso é chato.
alguma coisa, se eu ficar muito parada vai me
Entrevistadora: Você não gosta de ler
dar sono.
nada ou você não gosta de ler as coisas da
Entrevistadora: E você não gosta então aula de português?
nem de ir ao cinema?
Entrevistada: É, eu não gosto de ler
Entrevistada: Para o cinema se for terror história, assim, eu gosto de ler livros.
eu vou querer assistir, mas se for aquela coisa
Entrevistadora: Qual livro você gosta de
drama, essas coisas eu não gosto. Se for para
ler?
assistir eu assisto em casa.
Entrevistada: Eu terminei hoje o livro do
Entrevistadora: Em casa, você vê sozinha
ou com seus pais, família, com seus amigos? Diário de um banana.

Entrevistadora: Qual livro do diário de um


Entrevistada: Geralmente eu vejo com a
banana?
minha mãe, que domingo que ela está em
casa, ela vai lá e ver comigo. Entrevistada: O da capa amarela. Eu não

Entrevistadora: Então é isso. Tem mais sei o nome, acho que é Um dia de cão. Aí eu
já vou começar o novo de capa verde. Eu
alguma coisa que você queria falar?
não sei o nome, mas que eu tenho lá em casa
Entrevistada: Não. só que é do meu irmão, mas como ele não
gosta, eu vou ler.
Entrevistadora: Então obrigada!
Entrevistadora: Você tá gostando de ler
esses livros?

Entrevista com a aluna Amanda


293

Entrevistada: Eu já li Querido diário Entrevistadora: O que você gostou no

otário, eu já li também... eu leio revista... livro A culpa é das estrelas?

Entrevistadora: Qual livro você leu? Entrevistada: Eu gostei do livro inteiro.

Entrevistada: Querido diário otário Entrevistadora: Por que você achou essa
história legal e as da escola chatas?
Entrevistadora: O que mais?
Entrevistada: Não, mas teve um que a
Entrevistada: Eu leio revista que eu
professora passou que eu gostei: O diário de
compro todo mês por causa do Luan. Anne Frank. Eu gostei porque também fala

Entrevistadora: Qual? na culpa é das estrelas...

Entrevistadora: Ah é?
Entrevistada: Todateen.

Entrevistada: Mostra um pouco da Anne


Entrevistadora: Ah, por causa do Luan
Santana? Por isso você tem um colar dele? Frank, fala de quando eles vão na casa dela
para conhecer e foi lá que teve o primeiro
Entrevistada: Eu não compro Capricho beijo.
porque o meu dinheiro não dá, aí não dá pra
Entrevistadora: A professora indicou pra
eu comprar Capricho. Eu compro só
sala inteira o livro?
Todateen.
Entrevistada: Foi. E outro livro lá. Só
Entrevistadora: Qual parte da Todateen
você mais gosta? que aí... até caiu na prova, a professora falou
que era matéria de prova.
Entrevistada: Da que tem o Luan.
Entrevistadora: Você se lembra o que caiu
(risos)
na prova?
Entrevistadora: Todo mês tem Luan?
Entrevistada: Perguntou onde ela
Entrevistada: Não, mas quando não tem nasceu, com quantos anos ela tinha morrido e
eu compro só por comprar, mas aí eu leio como foi a vida dela.
toda revista. Só daqueles artistas que eu não
Entrevistadora: Então você foi bem nessa
gosto, eu não leio.
prova?
Entrevistadora: Mas não tem necessidade
Entrevistada: Mais ou menos porque
né. Quais outros livros você leu?
tinha mais coisas que ela tinha passado, mas
Entrevistada: A culpa é das estrelas e nessa parte eu fui boa.
depois eu assisti o filme.
294

Entrevistadora: E todo mundo leu então? Entrevistada: É da igreja.

Entrevistada: Não. Entrevistadora: Então você sempre se


lembra de ver seus pais lendo?
Entrevistadora: Mas praticamente. É que
eu li, minha amiga leu. Só que nem todo Entrevistada: Sim. A assinatura do meu
mundo leu, entendeu? irmão antes era minha, aí parou um pouco
para mim e depois a minha mãe começou a
Entrevistadora: Você conversa com seus
fazer para ele.
amigos sobre os livros que você leu?

Entrevistadora: Então você sempre teve


Entrevistada: Não.
assinatura de revista?
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistada: Minha mãe já fez
Entrevistada: Não sei. assinatura do gibi da Mônica. A turma da
Mônica jovem e da pequena também, eu
Entrevistadora: Você acha que seus
tenho um monte lá em casa.
amigos gostam de ler?
Entrevistadora: Hoje em dia você ainda lê
Entrevistada: Eu tenho uma amiga que
gibi?
só gosta de dormir então...(risos)
Entrevistada: De vez em quando,
Entrevistadora: Então não tem muito jeito.
quando não tem nada pra fazer.
Então você gosta de ler?
Entrevistadora: Aí você volta para os
Entrevistada: O que me interessa, sim.
gibis. Que legal seu pai gostar de ver os
processos, isso não te dá curiosidade?
Entrevistadora: Na sua casa as pessoas
também gostam de ler? Entrevistada: Não, tem um monte de

Entrevistada: Minha mãe faz uma coisa chata lá. É porque ele trabalha no setor
de compras então tipo ele tem que ler tudo
assinatura de uma revista; Meu pai, ele é
para saber o que está acontecendo, porque
funcionário público, ele trabalha na funerária
senão ele vai ter que fazer tudo de novo.
e ele lê muito processo; e o meu irmão,
Tipo quantas canetas, quantas cartas tem que
minha mãe faz assinatura pra ele de duas
comprar, o preço, entendeu?
revistas. Mas eu não lembro o nome da
revista. Entrevistadora: Mesmo assim ele gosta de
ler essas coisas?
Entrevistadora: Você se lembra o nome da
revista que a sua mãe assina?
295

Entrevistada: Ele gosta mais de assistir Entrevistada: Por que minha mãe
filmes, ele prefere assistir o filme do que ler trabalha lá no hospital Pérola Bayton e meu
um livro, mas se for preciso ler um livro, ele pai também. E meu irmão também estuda lá,
lê. então tipo eu fui para lá. Aí eu pedi esse ano
para vir para cá, perto de casa, e eles
Entrevistadora: Você assiste filmes com
deixaram.
ele?
Entrevistadora: Aí você fica sozinha de
Entrevistada: Quando ele deixa sim.
tarde?

Entrevistadora: Por que ele não deixa?


Entrevistada: Não, ela chega cedo, ela

Entrevistada: Não sei. chega às 6 horas no trabalho e sai às 11


horas. Aí tipo é pertinho. Aí quando eu vou
Entrevistadora: Então você mora com a ficar sozinha eu vou para casa da minha vó,
sua mãe, com seu pai e com seu irmão? que é perto também então, tipo, eu nunca fico
sozinha.
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: Sua mãe cobra muito suas
Entrevistadora: Vocês moram aqui perto?
coisas para ver se está tudo feito, essas

Entrevistada: Sim, na rua de cima. coisas?

Entrevistadora: Você tem quantos anos? Entrevistada: As notas. Eu estou sem


celular essa semana por causa das provas, eu
Entrevistada: Eu tenho 15. até chorei ontem porque eu queria meu
celular de volta, mas aí ela falou que vai ver
Entrevistadora: Esse é o seu primeiro ano
se hoje à tarde pode me devolver.
no ensino médio, né?
Entrevistadora: Aí você se preocupa em ir
Entrevistada: Nessa escola é.
bem nas provas para não causar problemas?
Entrevistadora: Você veio de outra escola?
Entrevistada: Na verdade, eu fiquei sem
Entrevistada: Lá do centro da cidade. celular porque eu tirei 5 em português mês
passado e essa foi a minha nota, por isso...
Entrevistadora: Em qual escola você
estudava? Entrevistadora: Geralmente quanto você
costuma tirar?
Entrevistada: O Celso Leite.
Entrevistada: De Matemática, física e
Entrevistadora: Porque você mudou de lá
química eu tiro boas notas. Tipo, nessa última
pra cá?
296

prova mês passado eu tirei 10 em matemática Entrevistadora: O que os professores


e 10 em física e nas outras é 7 ou 8. Só em exigem, os tipos de aula também não foram
português que eu não me dou bem. Só que a surpresa?
minha mãe brigou comigo porque eu tirei 5.
Entrevistada: Não.
Entrevistadora: Então o padrão dela é alto.
Entrevistadora: Como são seus
Entrevistada: Muito. professores no ensino médio?

Entrevistadora: Você está gostando do Entrevistada: O professor de história


ensino médio é o que você estava passa muitos slides. Isso é legal.
imaginando?
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistada: Sim, porque no ano
Entrevistada: Por que depois a gente
passado, na 8º, eu fiz um cursinho de
sábado que tinha todas as matérias que eu pega no site dele, ele tem um site, depois a

tenho então esse ano não foi uma surpresa. gente pega e estuda não preciso copiar,
entendeu?
Entrevistadora: E onde é esse cursinho?
Entrevistadora: E com os outros
Entrevistada: Na Lapa. professores tem que copiar?

Entrevistadora: O cursinho da Poli? Entrevistada: É. De matemática a


professora é meio brava, de química é, pra
Entrevistada: Não é "de se" alguma
você, só que comigo ele é legal. A professora
coisa assim. Eu não lembro o nome dele.
de português também é legal, só que eu não
Entrevistadora: Você tentou algum gosto do português. Geografia a professora é
vestibulinho? legal. Todos são legais.

Entrevistada: Eu tentei a Etec. Entrevistadora: Você disse que não gosta


das aulas de português. Por quê? O que
Entrevistadora: Você achou que os acontece nas aulas de português para você
professores são muito diferentes da outra não gostar delas?
escola em que você estudava?
Entrevistada: Como eu disse, não é a
Entrevistada: Não, porque o meu
professora é a matéria.
professor de Ciências também era bravo igual
o professor de química, então eu não tenho Entrevistadora: Entendo, mas o que tem

problema. na matéria que faz com que você não se dê


bem nela? Por exemplo, os exercícios?
297

Entrevistada: Tem coisas que eu não Entrevistadora: Vocês costumam discutir

entendo bulhufas. Eu não lembro direito o as respostas de vocês para as perguntas?

que mas, por exemplo, a parte do radical Vocês conversam sobre os textos que vocês

entendi. Tomara que eu tire mais do que 5 se leem?

não minha mãe me mata.


Entrevistada: De vez em quando... de
Entrevistadora: E com relação à leitura, vez em quando a professora discute com a
você disse que gosta de ler, nas aulas de gente sim.
Língua Portuguesa você tem que ler
Entrevistadora: Você se lembra de algum
bastante?
texto que ela tenha discutido com vocês?
Entrevistada: Não, tem que fazer vários
Entrevistada: Ela passou um trabalho do
exercícios, tem que ler um texto que ela
barroco que ela discutiu com a gente sobre
passa, mas eu acho que é tranquilo
isso.
Entrevistadora: Tem que ler o texto pra
Entrevistadora: O que você se lembra
fazer exercício?
sobre essa discussão?
Entrevistada: É, do livro.
Entrevistada: Mais nada, eu não lembro.
Entrevistadora: Por exemplo, exercícios [ela fica em silêncio tentando se lembrar] Ah,
de interpretação de texto? eu não lembro.

Entrevistada: É. Entrevistadora: Em um dos últimos dias


em que eu assisti uma aula em que a
Entrevistadora: Quando eu estava nas professora estava falando do barroco, do
aulas eu vi vocês lendo um texto e aleijadinho...
respondendo questões. As aulas são
geralmente assim? Entrevistada: É, eu até assisti um filme
com meu pai do aleijadinho. Ele baixou e a
Entrevistada: É, mais ou menos. Às
gente assistiu lá em casa.
vezes ela passa as questões na lousa, passa os
textos na lousa para a gente copiar. Aí Entrevistadora: Por que ele descobriu que

depois a gente tem que ler e fazer as você estava estudando barroco?

perguntas de novo. Aí em uma aula ela passa


Entrevistada: Por que eu falei pra ele me
os textos e na outra aula a gente faz as
ajudar na lição. Aí ele falou que era do
questões. A gente tem que responder e ela
Aleijadinho, do Barroco, aí ele pegou o
vista.
filme.
298

Entrevistadora: Você gostou do filme? mas eu gosto de ficar na sala de informática.


Quando precisa os professores deixam, mas
Entrevistada: Eu gostei! Eu lembro que
eu não gosto porque a escola não deixa eu
o aleijadinho nasceu de uma mãe negra e um ficar aqui na sala na hora do intervalo. Eu
branco, eu não lembro o nome dos pais.. Aí não sou muito, como fala, comunicativa com
ele foi crescendo e se tornando escultor e as pessoas eu não gosto de ficar lá embaixo,
quando ele era bem velho já, ele teve uma gosto de ficar aqui em cima. Mas eu acho que
doença nas mãos, no olho e no pé e aí eu vi eles pegam e trancam a porta, aí não dá pra
no vídeo, no filme que ele, de tanta dor no pé, ficar aqui dentro.
arrancou o dedo. Isso foi bem nojento. O
meu pai ainda voltou nessa parte. ai, que Entrevistadora: Obrigatoriamente você

nojo! [risos] Mas tudo bem... tem que ficar lá embaixo?

Entrevistadora: Isso te ajudou a fazer Entrevistadora: É, ou no corredor. Mas

trabalho? às vezes no corredor de vez em quando eles


pedem pra descer, aí fecham o portão lá
Entrevistada: Ajudou. embaixo.

Entrevistadora: E seu pai sempre te ajuda Entrevistadora: Aí vocês ficam presos lá


a fazer a lição quando você pede? embaixo?

Entrevistada: É de vez em quando. Mais Entrevistada: É porque não pode ficar


física, química e matemática ele me ajuda e aqui em cima.
essas outras matérias é minha mãe porque a
Entrevistadora: O que você gostaria de
minha mãe gosta mais de ler.
aprender aqui na escola que você ainda não
Entrevistadora: Seu pai gosta mais de aprendeu? Algo que você gostaria que os
exatas e sua mãe mais leitura? professores abordassem mais...

Entrevistada: É eu também gosto mais Entrevistada: Acho que nada.


de exatas, mas tudo bem, já que tem que
Entrevistadora: Você acha que está ok?
estudar os dois...
Murmura afirmativamente.
Entrevistadora: Vamos falar um pouco
mais da escola... o que tem aqui na escola, na Entrevistadora: As coisas que os
Escola 1 que você mais gosta e do que você professores fazem são boas?
menos gosta?
Entrevistada: O professor de História fez
Entrevistadora: Aqui é o meu primeiro
um site para os alunos, para pegar as matérias
ano então, tipo, eu não sei muita coisa ainda
299

que ele passou. Aí a gente pega no site Entrevistada: Hoje eu vou fazer um
depois. trabalho, que tem que fazer iniciação
científica no sábado, então tem que separar as
Entrevistadora: Qual é o site dele?
coisas. Mas hoje eu tenho inglês também
Entrevistada: É então, tipo, eu tenho que estudar por que hoje
geoprofessorvinicius.com. Porque ele é tem prova. Hoje tem prova no CNA que eu
professor de história e de geografia. Ele no faço.
começo era de geografia aí depois passou
Entrevistadora: Você faz outro curso fora
para a história.
daqui além do inglês?
Entrevistadora: Além da sala de
Entrevistada: Não, mas ano que vem eu
informática, aqui na escola também tem
vou fazer para entrar no ENEM, eu vou
biblioteca. Você costuma ir na biblioteca?
tentar fazer dança e vou cuidar do meu primo
Entrevistada: É que eu não sei onde é que vai nascer.
ainda porque eu sou nova, então tipo eu
Entrevistadora: Então você também vai
nunca fui lá ainda, mas eu já ouvi falar.
ser babá no ano que vem?
Entrevistadora: Nenhum professor nunca
Entrevistada: É, ia ser o dia inteiro, mas
levou vocês lá?
não dá...eu tenho que vir para a escola, fazer
Entrevistada: Não, mas eu já ouvi falar curso.
da biblioteca.
Entrevistadora: Você gosta do curso de
Entrevistadora: O que você ouviu falar da inglês?
biblioteca. Que existe?
Entrevistada: Gosto. Eu comecei em
Entrevistada: É, que existe. [risos] Que agosto, então eu tô caminhando.
tem livros lá. [riso] só isso.
Entrevistadora: E o que você quer fazer
Entrevistadora: Então vocês não quando você terminar o ensino médio? Você
costumam frequentar essa parte da escola. já tem uma ideia de profissão?

Entrevistada: Não. Entrevistada: não. Não faço a mínima


ideia ainda. Acho que eu vou ser modelo, é
Entrevistadora: E fora da escola, por
mais fácil. [risos] Muito mais fácil.
exemplo, agora à tarde, quando você volta da
escola, o que você costuma fazer? Entrevistadora: E seus pais não te falam:
"Ah, você deveria fazer isso? Ah você
deveria fazer aquilo"?
300

Entrevistada: Eles falam que eu tenho Entrevistada: Depende. Meu pai fala que
que fazer Pedagogia ou música. não aprende lendo revista de fofoca, que é a
Todateen (fala toda tem).
Entrevistadora: E te anima alguma dessas?
Entrevistadora: O que você sente quando
Entrevistada: Pedagogia, por causa que
ele fala isso?
eu amo criança então Pedagogia seria bom.
Mas eu descobri que tem que ler muito, aí eu Entrevistada: Eu vou para o meu quarto
desisti. [risos] Eu também queria fazer e leio a minha revista. Eu tenho um bolo de
advocacia por que o meu tio é advogado, mas tamanho assim de revista da Toda teen
eu já desisti um pouco por que eu descobri [gesticula uma pilha de livros bem grande].
que tem que ler muito processo. Eu não sou Eu tenho mais um bloco desse tamanho assim
muito afim de ler essas coisas assim, sabe, da Turma da Mônica.
demoradas.
Entrevistadora: Aí você continua lendo do
Entrevistadora: Já que você gosta tanto de mesmo jeito?
exatas você não pensou em seguir uma
Entrevistada: Eu queria continuar mas a
profissão nessa área?
minha mãe falou que por causa da escola eu
Entrevistada: Não, não quero ficar não poderia.
fazendo conta para o resto da minha vida. Já
Entrevistadora: Porquê?
basta a de casa. Então eu não quero.
Entrevistada: Para não desconcentrar...
Entrevistadora: Mas também né, ainda é
uma decisão mais para frente. Retomando o da mônica. Mas todo mês eu vou lá e

que você falou antes, você disse que a seu compro da todateen com meu dinheiro. Não é

irmão gosta de ler, seus pais gostam de ler... com dinheiro dela, então tudo bem.

tem livros na sua casa? Em que lugares eles Entrevistadora: E na escola, o que os
ficam? professores falam que você tem que ler? A
professora de língua portuguesa ou os outros
Entrevistada: Tem nos quartos, que são
professores.
as revistas, tem na sala, que é uma mesinha
que tem revista da minha mãe, do meu irmão. Entrevistada: A única professora que
E tem uma estante que tem livros, têm o falou que era pra ler um livro assim foi a de
dicionário, essas coisas assim, sabe, de ler. português que foi O diário de Anne Frank.

Entrevistadora: Então vocês têm contato Só. Que eu lembre, só.

com a leitura o tempo todo, então você


aprende muitas coisas também não é?
301

Entrevistadora: E eles não falam: "Ah, não Entrevistadora: Eu queria te fazer uma
pode ser revista", "Ah, não pode ser..”.. Você outra pergunta. Se você fosse ser professora
nunca ouviu uma coisa dessas? de Língua Portuguesa, e fosse dar uma aula
de que você gostasse, como seria essa aula?
Entrevistada: Na sala?
Entrevistada: Os alunos iam ler o livro
Entrevistadora: Sim.
que quisessem que eu indicasse, no caso da
Entrevistada: Não. É que o meu pai fala prova, por exemplo.

de vez em quando, brincando. Mas também Entrevistadora: Qual livro você indicaria?
implica quando eu assisto "Malhação," que
eu gosto. Entrevistada: Ah, sei lá. Eu não conheço
muito livro. Deixa eu ver...O da Anne Frank
Entrevistadora: Então o que ele quer que
é legal, A culpa é das estrelas. Mas tem
você veja?
muita gente que não gosta, né, de negócio
Entrevistada: Jornal. Mas eu também romântico assim. Então não ia dar certo.

assisto jornal. Vejo bastante na internet. Entrevistadora: Você leu, por exemplo, a

Entrevistadora: O que você gosta de ver saga Crepúsculo?

na internet?
Entrevistada: Não, meu pai não

Entrevistada: Meu face, o site da comprou o livro. Mas eu vi o filme. Assisti

“Malhação”, aí depois eu fico no site de depois de uns dois meses que estreou o filme,

notícias do “Terra” , da “Globo”. mas tudo bem. [risos].

Entrevistadora: Então você também lê Entrevistadora: E o que mais teria na sua

bastante notícia. [risos] aula?

Entrevistada: Sim, as mais importantes Entrevistada: Eu ia passar filmes sobre

eu leio. Aí, tipo, eu sei o que está os livros, para entender melhor o que estava

acontecendo. passando no livro.

Entrevistadora: E o que está acontecendo Entrevistadora: E você ia cobrar o livro na

agora? prova?

Entrevistada: Agora? É que hoje eu não Entrevistada: Não sei...se todo mundo

li, nem ontem, por causa das provas. Mas eu tivesse lido o mesmo livro eu ia passar na

vi na televisão hoje de manhã que a represa prova. Se fosse passar, assim, dois ou três

subiu. Subiu um pouco, mas subiu. livros aí eu não sei o que eu ia fazer. Tipo:
“Quem leu esse livro?” [risos].
302

Entrevistadora: E você costuma ir à Entrevistada: Mais ou menos porque


livraria? minha amiga não lê muito então, tipo, não dá
para compartilhar...por que ela não gosta das
Entrevistada: Eu ia, para comprar os
coisas que eu gosto.
livros. Mas eu vou mais em banca de jornal,
assim sabe? Para comprar revista. Mas Entrevistadora: E nas aulas? Você
quando a gente vai no shopping, a gente consegue, por exemplo, quando o professor
sempre passa na livraria para ver os livros. está falando alguma coisa você consegue
colocar sua ideias, suas opiniões das coisas
Entrevistadora: Com sua família?
que você lê?
Entrevistada: Sim. Aí, quando a minha
Entrevistada: Teve uma vez, na aula de
mãe deixa, a gente compra um livro. Ela
História, que eu consegui responder uma
deixa a gente escolher um livro, aí a gente
pergunta que o professor fez porque eu li o
pega e escolhe.
livro, tipo, eu consegui responder. Mas só
Entrevistadora: E qual foi o último livro uma vez, só.
que você comprou desse jeito?
Entrevistadora: De resto, o que os
Entrevistada: A culpa é das estrelas. professores ensinam não tem nada a ver com

[risos] Na verdade, eu escolhi outro livro, aí o que você lê?

minha mãe comprou A culpa é das estrelas


Entrevistada: Não.
para ela. Só que aí, na verdade, eu peguei o
livro e li sozinha porque ela não gostou. Aí, Entrevistadora: Você queria que tivesse a
tipo, eu peguei e fiquei com dois livros. ver?

Entrevistadora: E seu irmão gosta de ler Entrevistada: Muito! [diz com


os livros tanto quanto você? entusiasmo] Ia ser mais fácil para mim. Mas
nem todo mundo usa, né.
Entrevistada: Ah, mais ou menos. Ele
gosta mais de ler, de ler não, de ter livros de Entrevistadora: Como assim?
carro. Por que ele gosta de carro.
Entrevistada: Nem todo mundo lê as
Entrevistadora: E você acha que essas coisas que eu leio.
coisas que você lê, que você tem interesse em
ler e gosta são aproveitadas pela escola. Por Entrevistadora: Você acha que seus

exemplo, você tem oportunidade de colegas leem também?

conversar sobre as coisas que você lê aqui na


Entrevistada: Acho que não.
escola?
303

Entrevistadora: Então muito obrigada pela Acho que tipo 80% é pra escola e 20% acho
entrevista. que fica na parte do aluno. Mas acho que o
mais importante é a base que a escola dá.
Entrevistada: De nada.
Que é coisa que a gente aprende no começo e
a gente não dá muito valor, mas lá na
Entrevista com a aluna Carolina
frentona vai fazer muita diferença.
27/11/2014
Entrevistadora: Quando você fez essas
provas todas você sentiu que faltou a base ou
Entrevistadora: Você já tem alguma você pensou: “não, a minha base está
faculdade em mente? Você não conhece bacana”?
nenhum médico na família?
Entrevistadora: Não, a minha base está na
Entrevistadora: Não. corda bamba porque tipo a... Pelo menos em
matéria de matemática eu nunca fui bem. Em
Entrevistadora: Onde seu irmão fez
matemática... eu odeio matemática, eu odeio
faculdade?
coisa com conta. Eu sou muito mais a parte

Entrevistada: na Anhanguera. humana então por exemplo nas... Eu, eu


lembro que tá até a quarta série todo mundo
Entrevistadora: E você imagina em qual sabe matemática, mas eu comecei a ir me
faculdade você quer estudar? embananando na sexta. Até então como a
matemática é uma escada, me embananei na
Entrevistada: A gente sempre quer a
sexta e a gente acha que nunca mais vai ver
melhor de todas mas às vezes não é a que...
aquilo, mas aquilo volta. Então até peguei

Entrevistadora: Para você qual é a melhor umas aulas com professor a parte para tentar

de todas? maquiar alguma coisa. Ainda ficava


assistindo vídeo aula na internet, tentando...
Entrevistada: A melhor de todas é USP, Apesar que é muita coisa, não dá para eu
aí tem a Mackenzie e essas coisas... voltar tudo então eu vou tentando pegar por
partes. Mas fez muita diferença, a minha
Entrevistadora: Mas para isso vai ser
base está péssima.
super importante você saber ler e escrever
bem, né? Entrevistadora: E você chegou a essa
conclusão fazendo as provas ou você já tinha
Entrevistada: Então, isso é outra coisa
chegado a ela antes?
que é da base que às vezes a gente não está
tendo aqui. Uma base que a gente precisava,
mas não que a culpa seja 100% da escola.
304

Entrevistada: Acho que lendo as provas acumulando cota. Eu faço um pouquinho

que ficam disponíveis, aí eu percebi que eu esse ano, um pouquinho no outro. Só que

me ferrei. esse negócio que eu sou muito desastrada eu


acabei esquecendo de pagar o boleto. Então
Entrevistadora: E agora você está tentando perdi o primeiro semestre do ano passado e
correr atrás. E o que você tem feito para esse ano, mas ano que vem eu vou fazer.
correr atrás disso?
Entrevistadora: Só para retomar, você
Entrevistada: Olha, agora eu estudo disse que passou em duas ETECs, não foi?
assim... É porque, assim, eu odeio fazer uma
Entrevistada: Não, foram duas escolas.
coisa que eu não quero, esse é um defeito
meu que todo mundo da minha família
Entrevistadora: Escolas de ensino médio
reclama. Eu tenho, tipo, uma coisa que eu
que têm vestibulinho?
não quero fazer, uma coisa eu não faço, não
há cristo que me faça fazer. Então tipo Entrevistada: Sim, é escola tipo ETEC, é
estudar matemática eu vou ter... eu odeio com curso profissionalizante.
matemática. Eu não gosto de matemática, eu
Entrevistadora: Ah, é com curso
não gosto de física, eu não gosto de química,
profissionalizante. Em quais você passou?
mas pode ser que depois eu me interesse
mais. Por exemplo, agora um texto tipo de... Entrevistada: Foi no Colégio Eco e eu
que nem, desde o ano passado todo mundo
consegui uma porcentagem em uma outra
fala que, tipo, trabalha sempre doença,
escola lá no centro [de São Paulo]. Era um
doença. Isso é uma coisa que eu gosto de
nome parecido com nome de igreja, mas eu
fazer, então tipo se é um tema que eu gosto,
não lembro o nome.
que nem eu falei, eu faço com maior prazer.
Então tipo às vezes não é nem por obrigação, Entrevistadora: Mas eram só escolas de
eu faço porque eu quero. Aquele negócio do Ensino Médio públicas que tinham ensino
leitor-leitor... [ele] não faz por que é profissionalizante ou era escolas particulares?
obrigado, faz porque gosta. Então faço coisas
Entrevistada: Não. Eram escolas
que eu gosto. Temas que eu gosto.
particulares. As duas.
Entrevistadora: E agora você pretende
Entrevistadora: Mas aí você não quis
fazer outras provas durante o ensino médio
porque você achou injusto seus pais
ou vai esperar ele terminar?
pagarem?
Entrevistada: Olha, como eu fiz... Eu ia
fazer o Enem esse ano porque embora a
gente ainda não tenha a coisa, ele vai
305

Entrevistada: É porque eu acho que isso quem vai se ferrar sou eu. Claro que ele tem

é uma coisa que tem que vir de mim e não que dar um toquinho, assim, mas aquela coisa

deles. de ficar em cima, não.

Entrevistadora: E quando você não está na Entrevistada: Entendi. E você costuma ir


escola, quando você está em casa, você a livrarias, essas coisas, com sua família ou
costuma fazer para passar seu tempo? sozinha?

Entrevistada: Esse é o lado obscuro da Entrevistada: Não.


vida. Eu sou extremamente desorganizada.
Entrevistadora: Você se lembra de já ter
Eu tenho um problema muito grande que é:
ido com eles à livraria?
eu troco o dia pela noite.
Entrevistada: Livraria, tipo, para
Entrevistadora: Aí você vai dormir de
tarde? comprar livros, não. A gente vai na livraria,
tipo, para fazer outra coisa. Tipo, ver CD,
Entrevistada. É. Que nem, ontem, eu cheguei, essas coisas. Mas para comprar livro... Eu
dormi até nove horas da noite. Aí depois eu nunca comprei livro.
fiquei acordada e faço as coisas. Eu dou uma
lidinha na matéria da prova e venho. Só hoje Entrevistadora: Não? E como você leu A

que eu dormi mais cedo porque eu dormi culpa é das estrelas?

muito pouco. Eu dormi era quatro horas e


Entrevistada: Eu peguei emprestado de
acordei sete. Então eu acordei meio
uma amiga.
zumbizão.
Entrevistadora: Ah, entendi. Mas você
Entrevistadora: E seus pais te cobram
nunca comprou um livro?
muito? Por exemplo, à tarde sua mãe quer
saber se você fez lição, se tem lição para Entrevistada: Não. O problema é que eu
fazer e essas coisas? tenho dó de comprar livro.

Entrevistada: Não. Então, foi o que eu Entrevistadora: Por quê?


disse. Que esse negócio de lição, esse
Entrevistada: Sei lá... por que é uma
negócio de estudar não é uma coisa que...
sim, eles cobram, mas eu tenho que ter em coisa que eu vou ler e depois vai ficar lá.

mente que eu tenho que fazer a lição. Então


Entrevistadora: Você não vai poder usar
eu já falo para ele: “Pai, eu sei o que eu tenho
depois.
que fazer!” Por que eu não gosto de ficar
falando. Então, tipo, eu sei o que eu tenho Entrevistada: Se fizesse uma coisa tipo
que fazer. Então se eu não fizer eu sei que alugar poder ser que eu... alugar, sim.
306

Entrevistadora: Você já pegou emprestado Entrevistada: Tem. Antigamente tinha


da biblioteca? Da escola, por exemplo? mais, mas como teve esse negócio da
biblioteca a gente deu mais.
Entrevistada: Ah, já peguei um livro da
escola. Um só, que eu demorei muito para Entrevistadora: E onde ficam esses livros?
ler. Eu li, devolvi, depois, um bimestre
Entrevistada: Fica em um...a gente
depois eu li mais um pouquinho e devolvi. E
consegui ler. chama de quartinho da bagunça. Aí fica lá.

Entrevistadora: Você se lembra qual era Entrevistadora: E são livros seus, dos

esse livro? irmãos, pais?

Entrevistada: Era Confissões, confusões Entrevistada: Tem livros que são meus,

de um adolescente. tem livros de faculdade que o meu irmão usa,


tem livros que, quando eu era criança, minha
Entrevistadora: Você leu em que ano? Foi vó comprava muito livro e como ela pagava
agora ou faz tempo? muito caro nos livros eu não tenho coragem
de dar. Então, tipo, eu tenho uma sobrinha.
Entrevistada: Não, foi na sexta e na
Quando ela começar a ler eu vou dar para ela.
sétima.
Então esses ficam guardados.
Entrevistadora: Entendi. Fora isso você
Entrevistadora: Que livros são esses?
nunca precisou pegar livro emprestado da
biblioteca? Entrevistada: Ah, uns livros mais
trabalhados, assim, de criança, sabe. Mas
Entrevistada: Não. Acho que, assim,
todos bonitos, coloridos. E todos os livros
meio que, não que seja assim.... do meu
que eu tenho eu li quando eu era pequena.
ponto de vista, não que seja, na minha
opinião, está ficando uma coisa meio inútil Entrevistadora: Então era isso. Eu te
porque, por exemplo, você quer procurar um agradeço muito pela entrevista.
tema, por exemplo, um trabalho de escola,
Entrevistada: Imagina.
você não precisa mais ir na biblioteca pegar
um livros. Você vê, tipo, na internet e
Continuação da Entrevista com a aluna
acabou.
Carolina 19/12/2014
Entrevistadora: Entendi. E tem livros,
revistas, essas coisas na sua casa?
Entrevistadora: Qual é o seu nome?

Entrevistada: Luana.
307

Entrevistadora: Você tem quantos anos? Entrevistadora: Ele fez o quê?

Entrevistada: 16. Entrevistada: De...

Entrevistadora: Você mora com seus pais? Mãe da entrevistada: Contabilidade.

Entrevistada: Sim. A entrevistada ri ao ter sua frase completada


pela mãe.
Entrevistadora: Com sua mãe e seu pai?
Entrevistadora: E você também quer fazer
Entrevistada: Isso e meus irmãos.
faculdade de contabilidade?

Entrevistadora: Você tem irmãos mais


Entrevistada: Não.
velhos?
Entrevistadora: Você quer fazer faculdade
Entrevistada: Isso. Uma de 25, uma de
de quê?
22.
Entrevistada: De medicina.
Mãe da entrevistada: 23.
Entrevistadora: Que legal ter uma médica
Entrevistada: É, 23. na família.

Entrevistadora: Agora as informações Mãe da entrevistada: Ela vai cuidar de


estarão precisas. todo mundo.

Entrevistada: Às vezes até demais! Entrevistadora: Qual é a profissão dos


Agora tem o Lucas com 18. seus pais?

Entrevistadora: Seus irmãos também Entrevistada: Minha mãe é manicure e


estudam? meu pai é vendedor.

Entrevistada: A Karen faz faculdade e o Entrevistadora: Nenhum de vocês está


Lucas está cursando o ensino médio. seguindo a carreira dos pais.

Mãe da entrevistada: O mais velho Entrevistada: Não.


terminou a faculdade.
Mãe da entrevistada: Pelo amor de
Entrevistadora: Ah, que legal. Terminou Deus. Não quero!
esse ano?
Entrevistadora: Não quer.
Entrevistada: Sim.
308

Mãe da entrevistada: Pelo amor de Entrevistada: É obrigado, mas uma boa


Deus, não faça isso, tem que estudar. parte que ficou não vai mais então é bem
bagunçado. Bastante descaso.
Entrevistadora: E ela está estudando!
Você terminou o 1º ano do ensino médio. Entrevistadora: Então você sentiu que o
Você estudava na Escola 1 antes? ensino médio é mais difícil?

Entrevistada: Sim, desde a 5ª série. Entrevistada: Da escola teve uma


melhora, mas dos alunos teve piora. Tanto é
Entrevistadora: E com relação à mudança
que a escola está ficando cada vez mais para
do ensino fundamental II para o Ensino
baixo.
médio, você sentiu muita diferença de um
para o outro? Entrevistadora: Mais para baixo no quê?

Entrevistada: Sim. Entrevistada: Nessas provas que o


governo manda, sabe? Tá piorando cada vez
Entrevistadora: Quais foram essas
mais.
diferenças que você sentiu?
Entrevistadora: Você sabe dessas notas? A
Entrevistada: Percebi que bastante gente
escola divulga?
que repetiu na oitava largou a escola e eu
percebi que de manhã o pessoal já trabalha, Entrevistada: Sim, eles falam. Eles
então é mais bagunçado. falam que vamos fazer a prova e eles falam...
que nem, da última vez o pessoal da direção
Entrevistadora: Bagunçado pelo jeito da
falou que tinha que melhorar, que não dava
escola ou pelo comportamento dos alunos?
para ficar mais desse jeito.
Entrevistada: Pelo comportamento.
Entrevistadora: E o que você pensou

Entrevistadora: Por que as pessoas quando eles falaram isso?

trabalham e não...
Entrevistada: A gente sabe, já. Não tem

Entrevistada: Elas trabalham e outra, até um...

a quinta série o pessoal ia porque era mais Entrevistadora: Você já sente no dia a dia?
obrigado. Agora, nem tanto.
Entrevistada: É, não tem uma surpresa,
Entrevistadora: Você acha que ir à escola
tipo, eu achei que estava indo tudo tão bem!
não é tão obrigado pelos pais?
[risos] Não, a gente já sabia.
309

Entrevistadora: O que você acha que pode Entrevistadora: Mas como é que você vê
melhorar na escola para ela melhorar nessa essa história? Como você se sente diante
avaliação? disso tudo?

Entrevistada: Acho que o que tem que Entrevistada: Em relação ao meu futuro
mudar não é a escola, são os alunos. Eu falei, ou ao da escola de modo geral?
a escola em si não é ruim. A coordenação
Entrevistadora: Os dois. Com relação à
dela é muito boa, mas os alunos têm que
escola e o que isso tem de reflexo para você.
mudar. Tem que mudar os alunos. Na escola
não tem o que melhorar. O que podia Entrevistada: Olha, em mim, o que eu
melhorar, melhorou. percebo, assim, meio eles estão

Entrevistadora: O que melhorou? despreparando a gente. Não só não estão


fazendo nada como estão piorando porque,
Entrevistada: Então, a coordenação. Eles tipo, a responsabilidade em já estar no
dão bastante suporte. Se precisa fazer ensino médio, então a gente já tem que ter em
trabalho eles disponibilizam computador, mente as nossas responsabilidades, de tudo
material, tudo, então a escola dá bastante que a gente tem que fazer com relação ao
suporte, mas se os alunos não colaboram. trabalho, ao comportamento, a ouvir a
opinião dos outros então, tipo, isso você não
Entrevistadora: E por que você acha que
vê na escola. Em relação ao todo eu vejo que
os alunos acabam não colaborando?
a gente está andando em uma esteira, a gente
Entrevistada: Porque a gente sabe, está andando mas a gente não vai para lugar

também têm as aulas. As aulas não são muito nenhum, a gente vai ficar naquilo. Agora em

atrativas. Aí todo mundo sabe que pode ficar mim eu sinto que, tipo, eu estou perdendo

de bobeira o ano inteiro. No final do ano faz tempo porque você ficar lá, um dia inteiro na

uma recuperação de um dia e está tudo certo. escola, para nada porque na prática você não

A pessoa, o ano inteiro, tinha que somar 20 está aprendendo, você está, no máximo,

pontos. A pessoa dormiu o ano inteiro, tinha decorando. Então acho que é uma perda de

4, mas faz um trabalho e passou, então.... Isso tempo.

é o que mais apoia o descaso. Apesar que dá Entrevistadora: Você acha que essa
para entender porque, tipo, se já está ruim, sensação vem mais das aulas?
vai ficar segurando os alunos lá, ninguém vai
até o 3º ano, eles vão largando. Então meio Entrevistada: É. Às vezes não é nem
que vai empurrando com a barriga para “vai e culpa do professor. Os mesmos professores
tchau, vai de uma vez”. que dão aulas na pública dão na particular
então eu acho que o comportamento do aluno
310

reflete no ensinamento do professor. A aula é 8ª até, melhor antes, só matéria de vestibular.


chata, mas eu entendo o professor porque ele Acho que se fosse assim seria bem melhor.
quer dar uma aula mais participativa, não dá
Entrevistadora: Como você chegou a essa
porque a sala é enorme, um monte de gente e
conclusão?
aquela bagunça não dá. Então, na maioria das
vezes, não digo em todas as aulas, mas a Entrevistada: Porque quando eu me meti
maioria é texto, pergunta, prova, visto. para fazer uns vestibulinhos eu falei “Meu

Entrevistadora: Você aprende com esse Deus, isso aqui está escrito em grego” porque

tipo de aula? são matérias que um aluno da escola


particular aprendeu na 7ª série, a gente, no 1º
Entrevistada: Ninguém aprende. Por ano, não sabe nem o que é.
uma, você copia, mas você não copia porque
Entrevistadora: Dê um exemplo.
tem que aprender, você copia porque, tipo,
“tenho que copiar senão não vou ganhar Entrevistada: Olha, ano passado eu
visto, senão eu não passo”. estava na 8ª e fui para o 1º ano. Fui fazer um

Entrevistadora: Então o que você tem que vestibulinho para o 1º ano e, principalmente

mostrar é o visto? em matemática, tinha umas figuras


geométricas, teoria de Pitágoras, Bháskara.
Entrevistada: É. Você pode não saber Bháskara a gente sabia, mas era uma
escrever, mas tendo o visto é o que conta. Bháskara que meu Deus.
Você conseguindo um cinco está tudo ótimo.
Entrevistadora: Era uma Bháskara que
Enquanto eles não pegam mesmo o que a
você nunca tinha visto na vida?
gente precisa, uma aula mais prática, mais
interativa, mais, tipo, de coisas que a gente Entrevistada: Era uma Bháskara muito
precisa mesmo para quem está no ensino elevada, não era só a fórmula. Então eu falo
médio. “Jesus, o que é isso? “ Muita coisa que eu vi

Entrevistadora: O que você precisaria naquela prova até hoje eu não aprendi. Eu

mesmo aprender no ensino médio? peguei uma prova para estudar e peguei um
professor de química. A prova é para quem
Entrevistada: Eu acho que eles deveriam estaria na 8ª série e eu estou no 1º ano. Eu
pegar mais firme, não todos os professores peguei o professor e falei “Professor, como é
não pegam, mas tem um professor que ele vai que eu faço isso aqui?”. Ele olhou, resolveu e
muito nisso, em matéria de vestibular e eles falou “Isso aqui vocês vão aprender lá para o
têm que, acho que todos os professores têm 3º ano”. Isso que eu deveria ter aprendido na
que... Deveria ser uma lei que a partir do, da 8ª série.
311

Entrevistadora: Você fez quais Entrevistada: Eles entendem em algum


vestibulinhos? certo ponto, mas eles não concordam quando
eu falo que é perda de tempo porque
Entrevistada: Eu fiz o da ETEC, fiz do
ultimamente eu ando faltando muito. Às
Colégio ECO, fiz o da Nossa Senhora da
vezes, sabe... ainda mais quando eu vi o
Lapa duas vezes e só.
resultado da minha prova. Não é uma
Entrevistadora: Esses cursos eram para o rebeldia, é uma raiva que dá. Não, não quero
Ensino médio técnico ou ensino médio ficar porque, tipo, a gente levanta cedo, isso
regular? não é agora, é desde, vamos começar a contar
da 5ª série, são oito anos, aí você fica fazendo
Entrevistada: O do ETEC eu fiz para
aquilo tudo para nada! Então eles entendem,
fazer o ensino médio. Mas eu não o fiz para concordam, mas tem essa coisa de que dizem
passar, eu fiz mais para ver como funciona que eu tenho que ir porque eu tenho que
para quando eu quiser fazer um ENEM eu aproveitar daquele pouquinho que a escola
não ficar aquele “meu Deus, o que é isso? ” proporciona, eu tenho que pegar o máximo. É
Para preparar mais. Só o da Nossa Senhora isso o que eles falam.
da Lapa era ensino técnico com o ensino
médio. Mas eu não consegui passar. Fiquei Entrevistadora: Mas qual é sua vontade de

com 35% só. As matérias que eu consegui verdade?

esses 35%, eu sei o quanto eu me matei para


Entrevistada: Não de largar a escola,
conseguir. Foi assistindo vídeo-aula, foi na
parar a escola nunca. Mas uma vontade de
internet. Eu sei o quanto me esforcei para não
não quero mais ir, eu quero me formar na
conseguir... eu deveria ter conseguido, na
escola, mas eu não quero ir.
minha concepção, eu só aceitaria se eu
conseguisse 80%, pelo menos. Eu vou lá e Entrevistadora: Se tivesse uma poção
vejo em 35! Desencoraja. Meu Deus, o que mágica...
vai ser de mim daqui dois anos? E agora é
Entrevistada: Para pular tudo eu pularia.
um ano só. É horrível, a gente fica se
sentindo meio impotente. Entrevistadora: Por que você não está se

Entrevistadora: Você chegou a falar sobre sentindo bem na escola. Você acha que ela

isso com alguém? não te prepara bem.

Entrevistada: Já, com meu pai e com a Entrevistada: É que eu preciso mesmo,

minha mãe. não é uma opção, é uma necessidade. A


gente precisa disso.
Entrevistadora: E o que eles te falam?
312

Entrevistadora: Para que você precisa Não pensam, tipo, ah eu quero estudar, eu
disso? quero comprar minha casa logo, com 20 anos
eu quero comprar meu carro, com 27 eu
Entrevistada: Porque a escola nada mais
quero fazer um intercâmbio, quero morar
é que uma preparação para o que a gente vai fora. Não, vou para o baile funk, vou comprar
ser no futuro porque o que a gente vai o meu tênis de mil parcelas de R$2000, 00 e
aprender na escola é o que a gente vai usar na está tudo numa boa.
vida inteira. Se a gente não está aprendendo
nada, o que a gente vai usar? É tão assim, que Entrevistadora: Você quer todas essas

não é nem na parte da matéria, até a parte que coisas?

a escola tem que ensinar, tipo, a gente ter


Entrevistada: Quero.
visão crítica das coisas, saber ouvir a opinião
do outro, saber discutir um assunto, sabe? A Entrevistadora: A escola está te dando
gente vê na escola, nem isso... viver em uma esse suporte?
sociedade onde você não concordando com a
Entrevistada: Não. Nem um pouco.
pessoa, você pode achar que ela está 100%
errada, você respeitar a opinião dela, saber ter
Entrevistadora: Quando você foi fazer
uma convivência. Nem isso a escola.... O
esses vestibulinhos, com relação à Língua
pessoal só sabe ouvir funk, gostar de funk,
Portuguesa, você se sentiu mais preparada?
saber fazer aquelas danças ridículas e aquilo
é a vida deles. Se você não gosta você não é a Entrevistada: A Língua Portuguesa, eu
mesma coisa que eles. Nem isso a escola lembro que a prova era matemática, biologia,
ajuda: preparar não só tipo para, a gente não humanas, exatas... Acho que o da Portuguesa,
ter só uma posição social, um cargo, mas tanto é que a Portuguesa é a que eu fui
nem para preparar a gente para viver em melhor e eu não sou nenhuma tiete de
sociedade. Aí eu também digo, não é culpa Português, eu não sou, eu não fico assim nas
da escola porque eles tentam, é culpa dos aulas, mas não são coisas difíceis porque,
alunos. tipo, matemática você precisa saber as
fórmulas, saber de tudo, mas acho que
Entrevistadora: Você acha que seus
Português, embora ela seja complexa, é um
colegas compartilham dessa opinião?
raciocínio que você vai seguindo, então não
Entrevistada: Olha, não vou dizer, tive muita dificuldade em Português.

assim, da escola inteira eu acho que 30%,


Entrevistadora: Seus irmãos também
menos, 20% pensa assim. O resto tipo, vou,
estudaram na Escola 1 ou estudaram em outra
vou minha mãe está aí, ela vai me bancar,
escola?
vou trabalhar de caixa, dá para eu ir numa
festinha no final de semana e está tudo certo.
313

Entrevistada: Sim, todos se formaram Entrevistada: Então, eu sonho com a


aqui. Não desde o começo. A Karen começou USP e não é nem porque além dela não ser
no 1º ano, o Felipe no 2º, o Lucas começou paga ela é a melhor então, tipo, é isso. Mas a
na 5ª. gente vê, a gente sonha com a USP, assim,
mas sabe que não. Mas o que a gente quer é a
Entrevistadora: Antes eles estudavam em
USP. Os professores falam, tipo, tem um
qual escola?
professor lá que ele também se formou em
Entrevistada: Ah, não lembro, mas era escola pública, em escola que não era boa e

pública. ela fala, ele tentou, tentou e conseguiu entrar


na USP, mas eu acho que isso é um em um
Entrevistadora: Sempre fizeram escola milhão que consegue.
pública?
Entrevistadora: Você quer ser esse um em
Entrevistada: Sim. um milhão?

Entrevistadora: E eles fizeram cursinho Entrevistada: Querer eu quero, quem


para fazer faculdade? não quer? [risos] Mas a gente tenta.

Entrevistada: Eles pagaram. A Karen Entrevistadora: Tem algum aspecto que


paga faculdade e o Felipe também. Eles você gosta na escola?
fizeram aquela prova para conseguir
Entrevistada: É o suporte que a escola
desconto.
dá. Acho que, por exemplo, tem lá os
Entrevistadora: Do Prouni? computadores, se você precisa fazer um
trabalho, quem não tem internet, entendeu?
Entrevistada: Eu não sei.
eles ajudam, eles têm uma boa vontade de
Entrevistadora: Eles conseguiram? passar, que nem, os alunos que não
conseguiram eles dão trabalho, tem iniciação
Entrevistada: Eles pagam. Eu não sei se científica, eles fazem baile para arrecadar
com desconto. Eles devem ter conseguido dinheiro para os banners. Acho que isso é
alguma porcentagem. Mas eles pagam. bem legal da escola porque eles podiam bem
fazer, eles podiam bem dizer “o que vai
Entrevistadora: Você quer fazer alguma
salvar vocês da recuperação é a iniciação
faculdade paga?
científica”, então vocês pagam os banners,
Entrevistada: Não. mas não, eles pagam tudo.

Entrevistadora: Onde você quer fazer? Entrevistadora: Você participou da


iniciação científica?
314

Entrevistada: sim. Entrevistadora: Onde vocês fizeram


pesquisa?
Entrevistadora: Como foi?
Entrevistada: Na internet.
Entrevistada: Olha, eu participo desde
que eu entrei na escola. Não, acho que desde Entrevistadora: Geralmente, como

a 6ª só que tem. Não é uma Iniciação costumam ser as aulas de Língua Portuguesa?

científica [aumenta o tom de voz], mas é.


Entrevistada: É aquilo que você viu, ela
Entrevistadora: O que vocês fazem passa um tema, a gente faz trabalho em cima
geralmente? do tema, perguntas, provas, aí outro tema.

Entrevistada: Você fica lá, tipo no Entrevistadora: No último bimestre que eu

intervalo, é aquela correria, não é muito acompanhei o tema de vocês era o Barroco.

organizado, aí você fica lá na frente, aí vem O que vocês fizeram em relação ao Barroco?

um professor, você explica para ele e ele dá


Entrevistada: Era para procurar fazer um
nota e pronto.
trabalho escrito, ai depois ela passou umas
Entrevistadora: O que você pesquisou esse questões, que foi aquele dia que você foi e
ano? depois teve a prova.

Entrevistada: Foi Acidente Vascular Entrevistadora: O que você entendeu do

Cerebral. Barroco?

Entrevistadora: Por que vocês escolheram Entrevistada: Na verdade, nada. Tipo, na


pesquisar esse assunto? hora sim, mas agora eu sei que é uma, que é
um movimento artístico que foi construído no
Entrevistada: Eu escolhi porque eu
Brasil, tipo um patrimônio histórico, e é o
gosto. que eu lembro. Para você ver o quanto aquilo

Entrevistadora: Você quer tratar disso você tem que fazer para fazer a prova e você

quando for médica? nunca mais vai usar. É isso o que eu lembro.

Entrevistadora: Você se lembra quais


Entrevistada: É, sim.
foram os outros temas que você viu nos
Entrevistadora: Você aprendeu mais sobre outros bimestres?
o AVC? Sobre fazer pesquisa?
Entrevistada: Foi o livro Diário de Anne
Entrevistada: Não, eu reforcei o que eu Frank, para você ver o Diário de Anne Frank,
já tinha uma noção. como eu achei uma história, tipo, aquele sim
eu uso. O que eu fiz no primeiro bimestre eu
315

lembro, agora o que eu fiz no último eu não Entrevistada: Foi.


lembro.
Entrevistadora: Você acha que poderia ter
Entrevistadora: O que vocês fizeram no mais atividades como essas de ler livros?
primeiro bimestre?
Entrevistada: Sim, mas os livros iguais a
Entrevistada: Foi para ler o livro, em
esses. Livros legais, que chamem a atenção,
cima do livro tinha trabalho, questões e a embora você não goste de ler, para a nossa
prova. idade, é bom que uma coisa tenha ação,
quando os caras entram lá, então, tipo, é uma
Entrevistadora: Então você gostou do
coisa que chama a atenção.
livro?

Entrevistadora: Dá uma emoção.


Entrevistada: Bastante.

Entrevistada: É. Você fica meio que...


Entrevistadora: Por quê?
então é uma coisa legal, você vai usar e não
Entrevistada: Porque é uma história fica uma coisa tão chata.
legal, é uma coisa que a gente sabe que cai e
Entrevistadora: “Você vai usar”, quer
ela fez diferença.
dizer que cai no vestibular?
Entrevistadora: A Anne Frank?
Entrevistada: É.
Entrevistada: É. É bem triste.
Entrevistadora: E você gosta de ler?
Entrevistadora: E quais trabalhos e provas
Entrevistada: Eu deveria gostar, mas eu
vocês tiveram que fazer em relação ao livro?
não gosto.
Entrevistada: A gente teve que ler o
Entrevistadora: Por que você deveria
livro, aí a gente fez trabalho sobre esse livro
gostar?
e aí a gente fez a prova. Aí acabou o bimestre
e veio o segundo, o terceiro. Entrevistada: Tem que gostar.

Entrevistadora: Você se lembra o que foi Entrevistadora: Quem disse que tem que
nesse segundo e nesse terceiro? gostar?

Entrevistada: Não. Não lembro. Entrevistada: Tem que gostar. Quem lê


fala bem, escreve bem, se comunica bem,
Entrevistadora: E o único livro que vocês
tudo é bem e quem não lê, não. Eu tinha que
leram inteiro nesse ano foi O Diário de Anne
gostar.
Frank?
316

Entrevistadora: Fora O Diário de Anne Entrevistada: Não, de uma amiga de


Frank, você leu outro livro? outro lugar.

Entrevistada: Eu li A culpa é das Entrevistadora: E você gostou do livro?


estrelas e li Confissões, confusões de um
Entrevistada: Gostei.
adolescente em crise. Só.

Entrevistadora: Você leu esse ano esses Entrevistadora: O que te chamou a

livros? atenção no livro?

Entrevistada: A culpa é das estrelas, Entrevistada: Tudo. A história. É bem

sim, Anne Frank, sim, Confissões, confusões legal. Ela conta a história de uma menina, aí

de um adolescente em crise eu li picado. Eu ela surpreende todo mundo porque todo

comecei a ler na 5ª série e acabei na 7ª. Eu lia mundo acha que quem vai morrer é o menino

e devolvia, “Ah, vou voltar”, lia e aí e quem morre é ela. Então é uma coisa que

consegui terminar. você fica “Não acredito! ” Você se envolve.


Depois ainda assisti o filme e gostei mais
Entrevistadora: E como você chegou a ainda.
esses livros? Por exemplo, A culpa é das
estrelas não foi lido na escola. Como você Entrevistadora: O filme também é legal?

descobriu que ele existia?


Entrevistada: Sim, só que como ele é

Entrevistada: Porque ficou uma euforia, livro, o livro sempre tem mais detalhes então

todo mundo falando, falando. você fica mais assim, mas é bom o livro
também.
Entrevistadora: Na escola?
Entrevistadora: Quando você lê alguma
Entrevistada: Não, todo lugar. Todo coisa você gosta desses livros que te
lugar. Aí eu falei “Não, estou curiosa, deixa prendem, te causam emoção?
eu ver”. Aí eu li a introdução, gostei, achei
Entrevistada: O livro tem que ser bom
legal e li.
na primeira página. Se ele não for na primeira
Entrevistadora: Você comprou o livro? página não dá mais.

Entrevistada: Não, peguei emprestado. Entrevistadora: Geralmente você vai a


algum lugar onde você possa ler a primeira
Entrevistadora: De quem?
página?
Entrevistada: De uma amiga.
Entrevistada: Não, eu pergunto.

Entrevistadora: Da escola? Antigamente eu ia, para você ver como eu


317

queria gostar de ler, eu falava “Não, quero Entrevistadora: Você gosta?


um livro tal, tal e tal”. A pessoa mostrava, eu
Entrevistada: Bastante.
lia.

Entrevistadora: Você tentou. Entrevistadora: E essa você assina, ou


você...
Entrevistada: É, mas eu devia tentar
Entrevistada: Não, eu já tive. Agora,
mais. Eu vou tentar mais.
tipo, eu compro, assim, quando ela vem com
Entrevistadora: Você lê outras coisas além algum pôster, alguma coisa assim que me
do livro? Você disse que não gosta tanto de interessa. Senão eu vejo na internet, no site.
ler os livros, você lê alguma revista... O que vem na revista eu leio no site porque a
gente compra a revista, se ela vem com
Entrevistada: Ah, eu leio blog, eu leio...
algum pôster, alguma coisa que você é fã,
Ah, é o que eu me interesse. Eu gosto de ler o
você quer guardar porque você é fã é uma
que eu gosto. Então, tipo, às vezes que quero
coisa. Agora, você leu e fica lá papel
saber alguma coisa e eu leio em um blog.
guardando, juntando pó e você gastou
Rede social, apesar que rede social eu não
dinheiro. É melhor você ler lá no
uso muito, mais internet, revista.
computador, leu, acabou, quer ler de novo
Entrevistadora: Em quais blogs você entra lá de novo.
costuma entrar?
Entrevistadora: E acabou. E geralmente
Entrevistada: Eu não procuro um blog você vai à livraria?

específico. Um exemplo, eu quero saber


Entrevistada: Não.
alguma coisa sobre luz, aí eu vou lá, vejo,
tem os blogs e o melhor qualificado eu leio. Entrevistadora: Você não gosta do
ambiente da livraria?
Entrevistadora: Como você sabe qual é o
melhor qualificado? Entrevistada: Não, não é que eu não é
que eu não gosto daquele ambiente, é que eu
Entrevistada: É o que tem mais visitas.
não sou muito fã da leitura.
Entrevistadora: Você vê isso no google?
Entrevistadora: E na banca de jornal, você
Entrevistada: É. vai?

Entrevistadora: Você lê essas revistas Entrevistada: Vou. Aí eu olho a revista,

como Capricho? vejo o que me interessa e vou lá no site.

Entrevistada: Sim.
318

Entrevistadora: E dá para ter todo o Entrevistada: Minha irmã lê livros da


conteúdo da revista no site? faculdade e A Menina que roubava livros,
esses livros assim. Minha mãe também. Não
Entrevistada: Sim.
lembro o nome do livro, mas era esse gênero
Entrevistadora: Então você lê mais no site aí.
mesmo. E o que você acha de ler na tela?
Entrevistadora: E vocês trocam os livros?
Entrevistada: Eu prefiro ler no papel
Entrevistada: Não. Minha vó lê bastante,
porque o computador, conforme você fica
aí minha irmã já pegou livro dela para ler.
vendo, deve ter alguma coisa porque
conforme eu vou lendo o olho cansa, começo Entrevistadora: E o que sua vó lê?
a ficar vesga e não dá certo, mas não é uma
Entrevistada: Ela lê tudo. Ela gosta
coisa que me incomoda tanto, mas eu prefiro
papel. Só que é aquilo, eu vou lá, compro bastante de ler. Ela compra livro, ela dá livro.

uma coisa, aí eu leio e ela vai ficar lá, Ela paga absurdo em livro, coisa que eu

juntando papel e bagunça e poeira, sendo que jamais faria.

eu leio lá e pronto. Entrevistadora: Por quê?

Entrevistadora: Sua mãe, seu pai, seus


Entrevistada: Porque você pagar, tipo,
irmãos gostam de ler?
R$150,00 em um livro. Onde já seu viu isso?
Entrevistada: Revista ou livro? Aí você vai lá, leu e acabou. Não, eu não
tenho coragem de dar isso num livro.
Entrevistadora: Tanto faz.
Entrevistadora: Você precisa ir ou vai por
Entrevistada: São todos como eu. Eles que quer à biblioteca da escola?
leem porque é alguma coisa que interessa. Eu
Entrevistada: Não.
já peguei a minha mãe lendo dois livros.
Minha irmã eu já peguei lendo, agora que ela Entrevistadora: Mesmo quando você
está na faculdade ela está lendo mais. Eu já estava no Fundamental II?
peguei ela lendo uns três livros. Meu irmão
me surpreendeu que uma vez ele leu um livro Entrevistada: Eu lembro que eles
dessa grossura assim, gigante, enorme, tudo falavam para a gente ir, mas a gente não ia, a
texto, não tinha nada figura. Um livro gigante gente pesquisava na internet.
que você olha, meu Deus, nunca. Só um que
Entrevistadora: Você vai mais à sala dos
eu não vejo ler que é meu irmão, Lucas.
computadores do que à biblioteca?
Entrevistadora: E o que você os
Entrevistada: Muito mais.
surpreendeu lendo?
319

Entrevistadora: Você acha que seus Entrevistada: Não, tem. Mas a escola
colegas também? começou a atrasar livros e a cobrar livros que
não foram entregues, aí teve o negócio do
Entrevistada: Sim.
horário. Aí parou.
Entrevistadora: E quando você não vai
Entrevistadora: Você gostava muito da
para a escola, o que você gosta de fazer?
aula de inglês.
Entrevistada: Nada. [risos] Agora eu
Entrevistada: Sim, não só de inglês, mas
estudo de manhã então se eu não vou para a
de informática também. Informática eu entrei
escola eu estou dormindo.
assim, era para eu ter escolhido um curso, só
Entrevistadora: Você faz algum curso que quem entrou nesse curso foi uma amiga
extra escolar? minha e ela entrou para fazer informática. Só
que ela ficou “ah, não sei o que lá. Vamos,
Entrevistada: Não, mas eu fazia. Só que
vamos! ” Aí eu falei “não, vou fazer de
eu comecei a estudar de manhã aí eu parei. inglês, de inglês eu vou usar mais”. Aí ela
falou “não, vamos, vamos!”. Aí eu precisei
Entrevistadora: Você fazia curso de quê?
fazer os dois e acabei gostando. A aula é tão
Entrevistada: Fazia curso de inglês e de atrativa que uma coisa que eu não gosto eu
informática. Eu amava. Eu nem me comecei a gostar pelo jeito da aula.
importava de levantar cedo, você vê como é
Entrevistadora: Como é essa aula?
diferente! Aí eu acordava cedo, fazia o curso,
vinha correndo para dar tempo de ir para a Entrevistada: O ambiente era uma
escola. Pegava trem de manhã. delícia, o pessoal que estava lá era muito
legal, o professor era muito legal também, era
Entrevistadora: Onde era o seu curso?
tudo... Era uma sala pequena com pouca
Entrevistada: Era lá na Lapa. Mas, gente. Cada um tinha seu espaço, uma
nossa, eu daria tudo para voltar a estudar à mesona para cada um com o seu computador.
tarde e voltar a fazer meu curso. Tinha uma telona grande e o professor falava
e a gente fazia. Não era aquela coisa, assim,
Entrevistadora: Você só parou por causa
“eu tenho que fazer”. O professor brincava
do horário?
demais, ele dava essa folga para a gente, mas

Entrevistada: Sim. ao mesmo tempo que ele dava folga ele, tipo,
você não é obrigado a fazer tudo.... ele
Entrevistadora: E não tem à tarde? pegava firme e ao mesmo tempo não. Então a
gente não ficava aquela coisa “eu tenho que
fazer, eu vou decorar para fazer a prova.
320

Pronto!” Igual a gente fez. Não, porque era pega só as partes principais e coloca lá, aí
assim, a gente tinha que fazer a prova, se tem a prova para a gente fazer no site.
você não ia bem você tinha que pagar outra
Entrevistadora: Vocês fazem a prova
prova, então todo mundo fica aquela coisa,
online?
mas não, com aquele professor era diferente.
Ele dava a prova. Se a gente não ia bem ele Entrevistada: Não, a gente pega a prova,
dava outra sem a direção saber. Então ele só copia a prova ou imprime. A gente entrega a
considerava a que a gente ia bem. Mas para prova em mãos e ela dá o resultado da prova
ele dar essa outra prova ele tinha que ver a no site. E ele fez o site, foi muito bom porque
gente se esforçando. Mas não aquela coisa ele fez dividindo as matérias tudo direitinho,
“Vai fazer! Senta aí e faz! “[imita uma voz tudo mastigado, tudo bonitinho lá. Cada
brava] série, cada ano, bimestre, dividiu tudo

Entrevistadora: Mas você se esforçava certinho. Fez até um símbolo lá com

porque você gostava, não? camiseta.

Entrevistadora: Você aprendeu bastante


Entrevistada: É e era bem legal.
com ele?
Entrevistadora: E na escola tem algum
Entrevistada: É, aprendi. [fala sem
professor que é parecido com ele?
convicção]
Entrevistada: Não. Nenhum professor
Entrevistadora: Voltando um pouco às
vai ser doido igual ele. Mas era muito legal.
aulas de Língua Portuguesa, sobre a leitura
Entrevistadora: Tinha um professor de que vocês fizeram do livro da Anne Frank,
História sobre o qual você falou, não? como era essa leitura? Cada um tinha um
livro?
Entrevistada: Sim, ele é bem esforçado,
ele pega matéria de vestibular, como eu falei Entrevistada: Não. Ela só exigiu, assim,
da USP, ele incentiva a gente. Tipo, ele é um que a gente lesse um, que seria Anne Frank,
professor que se destaca. Embora a matéria mas como não teve kit escolar para todo
seja chata, a sala não ajuda, mas a gente vê o mundo, que teve uns que foram chegando
esforço que ele tem. Ele gosta daquilo que ele uma semana depois, aí ela deu outro.
faz. Acho que a formação dele é de
Entrevistadora: Qual?
Geografia. Ele começou na escola dando
aulas de Geografia e depois passou para Entrevistada: Eu não lembro, mas veio
História. Ele fez um blog para a gente com no kit escolar. Veio Anne Frank e mais dois.
slides, tipo, não aquele texto gigante. Ele Aí ela passou e falou que quem não tem
Anne Frank lê tal. Veio no kit. Até na prova
321

veio lá, tinha pergunta sobre os dois livros Entrevistada: O livro que o governo dá.
para você responder só o que você leu.
Entrevistadora: Aquela apostila?
Entrevistadora: O que vem nesse kit da
escola? Entrevistada: Não, o livro mesmo. Aí
ela não... Como não tinha livro para todo
Entrevistada: Vem dois kits: o material,
mundo ela passava um texto na lousa e a
que vem os cadernos, caneta, lápis; e o de gente tinha que copiar.
Português que vem livros. Quatro livros.
Entrevistadora: E vocês passavam
Entrevistadora: Você tem esses livros? bastante tempo da aula copiando?

Entrevistada: Não. Até a oitava série eu Entrevistada: Tinha texto que a gente
pegava. Agora não porque eu sei que vai ficar tinha que passar duas aulas copiando.
aqui em casa e vai acabar ninguém
aproveitando. Entrevistadora: Vocês copiavam e depois
faziam os exercícios?
Entrevistadora: Mas você só pega os
livros se quer? Entrevistada: Isso.

Entrevistada: Não, você não é obrigado Entrevistadora: E esse livro vocês não

a pegar. Você vai lá na secretaria e assina o podiam levar para casa?

papel para ninguém pegar vários.


Entrevistada: Não. Ele ficava com ela.
Entrevistadora: Mas aí você só pegou Usou, devolveu por isso a gente ficava
aquele. bastante tempo, umas duas aulas para copiar
um texto.
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: E todo mundo copiava?
Entrevistadora: Os outros professores não
usavam? Entrevistada: 30% copiava, até menos.
Às vezes copiava um, mas ninguém copiava
Entrevistada: Era mais para Português
tudo o ano inteiro. Nem eu.
mesmo.
Entrevistadora: E por que não copiava?
Entrevistadora: E ela só usou aquele livro? Não ficava a fim?

Entrevistada: Sim. Entrevistada: Porque você fica três aulas


copiando um texto gigante para valer um
Entrevistadora: Quais materiais a
visto, 0,1 na nota? Você sabe que você não
professora costumava usar durante a aula?
vai aprender, não vai copiar. Eu mesma não
322

copio. No caderno, as matérias que eu.... História, a de Português, o de Química, a de


Física é uma matéria chata para mim porque Matemática, só. São aqueles que a gente via
é cálculo, mas o professor é bem rígido, mas que se esforçavam. Mesmo a sala não
não é nem por ele ser rígido, tanto é que ele ajudando eles dão aquela coisa, assim, não,
não dava visto, olha a diferença. Ele falava vamos tentar de outro jeito.
“copia quem quer, a nota vem de acordo”. Aí
Entrevistadora: E você desconfia da razão
você copia se você tem, ele não dá visto e o
pela qual os alunos têm tanta dificuldade de
do site também não dá visto, você tem lá o
deixar a aula acontecer?
conteúdo, se você tem o conteúdo você
consegue fazer a prova, se você não tem você Entrevistada: É um zilhão de fatores. O
não consegue. Aí você faz o que você acha desinteresse, tipo, “eu não quero fazer, eu
que tem que fazer. E valia porque o que a não sou obrigado a fazer isso e eu não vou
gente copiava nem era tanto, mas não ia valer fazer”.; O segundo é: “Isso não vai me servir
0,1, valia a minha nota cheia, minha nota de nada”. ; o terceiro é: “Ah, eu estou de saco
inteira. Então vale a pena. cheio desse lugar”.; O quarto é: “Eu tenho

Entrevistadora: E por que você acha que que ser o mais engraçado, eu tenho que ser

os professores tomam decisões tão diferentes mais vida louca então eu vou atrapalhar a

ao conduzirem a aula? aula”.; O quinto é: “Eu não quero, eu estou


de saco cheio”.; ... assim, sabe, aí junta tudo
Entrevistada: Não especificando, tal ai até os que querem veem aquela bagunça,
professor é por causa disso e tal professor é não conseguem aprender e acabam entrando
por causa daquilo. Tanto é porque os na bagunça também. Acho que é isso.
melhores professores que são bons
Entrevistadora: Eu via durante as aulas
professores é a Márcia e ela não conseguia
que a sala não ficava em fileiras, ela ficava
dar aula. Ela é uma ótima professora e não
em grupinhos.
conseguia dar aula. Ela não conseguia dar
aulas e a gente não aprendeu quase nada nas Entrevistada: É assim.
aulas dela. Mas a gente vê que ela é
esforçada, ela é uma ótima professora. Então Entrevistadora: E sempre foi assim?

não dá para falar que aquele professor é ruim,


Entrevistada: No primeiro dia de aula
aquele jeito de ensinar é ruim, ela é uma boa
não, digo porque nem todo mundo se
professora. A professora de Biologia era
conhecia. Não tinha uma coisa. Mas é sempre
completamente diferente. Você via que ela
grupinho.
não tinha interesse nenhum em ensinar, a sala
muito menos, então ficava aquela coisa. Entrevistadora: Você gosta dessa
Então os professores mais assim é o de organização dos grupinhos?
323

Entrevistada: Eu acho que a gente está e Entrevistada: Acho que foi, não tem
se fosse para tudo ser do jeito que tem que data.
ser, não, porque a gente está lá para aprender,
Entrevistadora: Você se lembra da
lá não é Playground. Então nesse ponto de
estrutura das palavras, dessas coisas que você
vista não. Mas do ponto de vista que a gente
copiou?
também está em uma idade que a gente é
agitado então se não é uma coisa que nos Entrevistada: Não, foi só os vistos. Não
interessa, que nos chame a atenção, que a lembro.
gente ache que a gente não precisa, a gente
vai dispersar. Não vou falar que eu sou uma Entrevistadora: Ah, esse é o visto da

santa. Não, eu não sou. A gente, nessa idade, professora?

é normal, a gente tem muita agitação. Não


Entrevistada: É. Mas quando é coisas
que seja certo fazer isso na escola, mas se
assim, você vê que eu não copio textos, eu
isso não interessar, eu estou tentando fazer,
copio só o explicativo assim. Então é por isso
mas eu não estou conseguindo por causa da
que eu copio. Se me chama atenção e eu acho
bagunça, não vou ficar me esgoelando “ah,
que eu vou usar, aí eu faço.
cala a boca! Sai da frente!”. Não, a gente tem
o nosso limite, aí a gente vê que não dá... Entrevistadora: E como você faz com os
textos? Boa parte dos vistos vem com eles,
Entrevistadora: Eu gostaria de saber se
não?
você tem ainda o seu caderno?

Entrevistada: Eu não faço. A minha nota


Entrevistada: Olha, eu troquei de
é a prova, iniciação científica e algum
caderno várias vezes, eu acho que eu tenho
trabalho.
um só.
Entrevistadora: Você já direcionou suas
A entrevistada sai para pegar o caderno.
energias. [risos] E como é que você
Entrevistadora: E por que você troca tanto seleciona, sabe o que vai cair na prova?
de caderno? Ele acaba?
Entrevistada: Eu pego assim, por
Entrevistada: Não, nenhum acabou. É exemplo, alguma coisa que eu já saiba, que
que eu não gosto de caderno que a gente vai eu já vi. Então tem aquele texto, eu já vi
colocando na bolsa e ele vai ficando aquela matéria então não faço.
desgastado, sabe? Aí eu troco.
Entrevistadora: Quando vocês fizerem na
Entrevistadora: Ah, isso é o que vocês aula uma atividade sobre o Barroco. Você fez
viram no último bimestre, a estrutura das aquela atividade?
palavras.
324

Entrevistada: Não, porque precisava Entrevistada: Sim.


fazer um texto do Barroco e eu não fiz. Aí ela
Entrevistadora: De estrutura das palavras?
passou um trabalho depois. Eu faço trabalho.
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: Você sabe que ele vale
bastante. E como você costuma fazer o Entrevistadora: De gramática?
trabalho?
Entrevistada: Sim. Não porque é uma
Entrevistada: eu fiz o trabalho escrito.
coisa de que eu goste, mas sim.
Tem professor que pode ser impresso e tem
professor que não. O dela foi à mão mesmo. Entrevistadora: Então era isso o que eu
queria te perguntar. Muito obrigada!
Entrevistadora: E você procura na
internet?

Entrevistada: É.

Entrevistadora: Você organiza o que você


encontra por lá. E dá certo, você tira boas
notas?

Entrevistada: Sim.

Entrevistadora: E se você fosse dar aulas


de Língua Portuguesa, como elas seriam?

Entrevistada: Não sei porque


Português.... Primeiro, ensinar não é uma
coisa que eu saiba, eu sou melhor em
aprender do que em ensinar. Ser professor, Entrevista com a aluna Adriana
jamais na minha vida eu pensei em ser 27/11/2014
professora.

Entrevistadora: Por quê?


Entrevistadora: Eu vou começar a
Entrevistada: Porque não, não é uma entrevista te caracterizando. Qual é o seu
coisa que me atraia nenhum pouquinho nome?
assim.
Entrevistada: Adriana.
Entrevistadora: Você daria mais
Entrevistadora: Você tem quantos anos?
atividades de leitura como a de Anne Frank?
325

Entrevistada: 15. excelente escola. Cara, e os professores daqui


também, muito bons.
Entrevistadora: E você estuda na Escola 1
desde que série? É seu primeiro ano? Entrevistadora: E o que você considera
um bom professor?
Entrevistada: Estudo aqui desde a quinta
Entrevistada: Então, aquele professor
série.
que não falta muito. Não aquele que encha de
Entrevistadora: Onde você estudava
lição a lousa e tal e pare cinco minutinhos
antes?
para explicar. Não aquele professor severo e

Entrevistada: No Pio XII que era o tal, um que interaja com a turma, que brinque
na hora certa. Às vezes, e tal, mas que a
Fundamental I.
turma tenha um certo respeito, que é meio
Entrevistadora: Onde fica o Pio XII? difícil, né, essas coisas. Deixa eu ver, um

Entrevistada: É aqui perto. Não sei exemplo, um professor que eu tenho não
passa lição na lousa, as aulas dele são de
exatamente. Sabe o Cingapura?
slides. Isso é muito bom porque a gente acaba
Entrevistadora: Sei. aprendendo mais com isso?

Entrevistada: Então, é ali perto. Todos Entrevistadora: Por que você aprende
os alunos do Pio XII vem para cá. mais com os slides?

Entrevistadora: Então você tem vários Entrevistada: Não sei. Eu acho que, eu
colegas aqui que vieram de lá? mesma, tenho uma facilidade que eu não...
quando eu leio ali escrito, eu não, eu não
Entrevistada: Tenho.
aprendo muito. Quando a pessoa fala que eu
Entrevistadora: E você gosta de estudar aprendo mais, eu tenho essa facilidade.
aqui? O que você acha da Escola 1? Quando tem a pessoa falando.

Entrevistada: Então, cara, eu acho uma Entrevistadora: Então para você fica
escola muito boa e tal. É uma escola pequena melhor quando existe o slide e você não
mas, tipo, o que eu escuto das outras pessoas precisa copiar?
falando e tal, é uma excelente escola. Esse
Entrevistada: Ele até...ele, para ajudar a
ano mesmo eu fiquei...minha amiga, estudou
gente, até criou um site dele e todos os slides
a vida inteira em escola particular na
ele coloca naquele site para a gente estudar
Espanha, aí ela me falou: “sério,
em cima e tal. Foi muito, tipo.... um exemplo:
sinceramente Adriana, eu não vejo diferença
é o professor de História, ele, no começo do
entre a Escola 1 e as escolas que eu estudei”.
ano era uma outra professora, ela passa lição
Isso ficou tipo, cara, a Escola 1 é uma
na lousa normal, livro e tal. Eu tirei 3 e 5 no
326

primeiro bimestre. Agora eu vejo 10, tem Entrevistada. Vou andando. Eu moro perto
essa diferença. do Sonda.

Entrevistadora: E quanto ao ensino médio Entrevistadora: Tem alguma coisa que


de modo geral, ele é muito diferente do que você gostaria de aprender na escola mas que
você tinha imaginado antes de começar a você ainda não aprendeu, mas gostaria de ter
fazer? a oportunidade de aprender?

Entrevistada: Não sei. [risos] É um Entrevistada: Não sei. Tem várias coisas
pouco [diferente]. Até que foi mais ou menos que, tipo, elas não, nas matérias normais elas
como eu imaginei, mais, o povo mais livre e não....algumas lições também, mais... é que o
tal. No Ensino Fundamental sempre está a estado não tem, não sei exatamente se é o
direção em cima, pegando no pé. Mas no estado ou não, não tem estrutura de fornecer
Ensino Médio eles deixam mais solto e eu novas matérias e tal. Tipo, aula de música e
acho que, tipo, não adianta muito avisar. Eles tal, diferentes matérias, espanhol, outras
aliviam um pouco, eles não matam a gente de matérias.
estudar. Como tem bastante gente que
Entrevistadora: São coisas que você
trabalha eles não...não passam muito trabalho
gostaria de aprender. E você tem perspectiva
para a gente morrer...
de que vá aprender essas coisas de alguma
Entrevistada: Tem muitos alunos que forma?

trabalham na sala do 1ºano?


Entrevistada: Não muito.

Entrevistada: Na minha sala não muito,


Entrevistadora: E do que você mais gosta
mas tem curso. Eles fazem muito curso. Por aqui na escola?
que fica muito pesado... eles aliviam um
pouco. Mas é bem legal. Entrevistada: Então, é que a escola é
meio que um refúgio para mim. Eu não gosto
Entrevistadora: Você faz algum curso fora
muito de ficar em casa, aí... a mesma coisa,
da escola?
eu passo o dia na escola porque eu faço parte
Entrevistada: Não. Agora eu não faço da sala de leitura. Eu sou monitora. Aí eu fico

nada. Estou parada. Não faço nada. de manhã e de tarde aqui. Às vezes eu ficava
de noite. Agora é difícil. Eu passava o dia
Entrevistadora: Você mora aqui perto da
aqui.
escola?
Entrevistadora: Como monitora você faz o
Entrevistada: Moro. que na sala de leitura?

Entrevistadora: Que bom. Você vai


andando para casa?
327

Entrevistada: Então, os alunos vão lá oitava, eles sempre pedem seminário, todo

procurar os livros e eu os oriento e tal. Eu bimestre. E isso ajuda muito. Tem aluno que

ajudo na organização de lá. eu não vejo frequentando direto, mas vem


pelo menos uma vez no bimestre pegar um
Entrevistadora: Então você conhece a
livro. E a gente percebe que ele lê por causa
biblioteca como a palma da sua mão?
do professor, que pediu esse trabalho. Ajuda

Entrevistada: É. Eu sou bem próxima bastante os professores também.

dos professores e tal. Entrevistadora: E você lê bastante?

Entrevistadora: Por que você faz o meio Entrevistada: Leio. Então, quando eu
de campo...
entrei na sala de leitura foi muito bom porque

Entrevistada: É. eu odiava ler, eu não sabia o meu gosto de


leitura. Aí eu comecei... peguei um livro e tal.
Entrevistadora: E tem muita gente que vai Aí eu descobri meu gosto pela leitura e aí eu
na sala de leitura? sou apaixonada por livro.

Entrevistada: Tem. Os alunos do ensino Entrevistadora: O que te fez descobrir esse


médio é mais difícil, mas os do ensino gosto? Quer dizer, você entrou na sala de
fundamental é um número bem maior. leitura, mas foi algum livro... O que te fez
descobrir esse gosto?
Entrevistadora: Por que você acha que
isso acontece? Entrevistada: Na verdade foi, tipo assim,

Entrevistada: Pelo interesse. É que, tipo, eu lembro que a professora... Uma coisa que
eu sempre gostei é de mitologia grega. A
no ensino médio meio que já sabe do que
professora, eu lembro que eu estava na sexta
gosta e do que não gosta”.Ah, eu não gosto
série, ela passou um filme: Percy Jackson: o
de ler então para quê?” No ensino
ladrão de raios. Aí eu vi, na sala de leitura,
fundamental, não, eles são mais crianças
tem esse livro, vou ler. Comecei a ler e,
então eles estão mais “Ah, vou tentar”. Vou
nossa, me apaixonei pelo livro. Aí o resto, os
tentar ver do que eu gosto ou não, essas
próximos livros da série tinham lá. Eu
coisas.
comecei a ler e me apaixonei. Aí eu fui lendo
Entrevistadora: Você acha que tem livros de tema de aventura também, mas eu
alguma relação também com os professores? fui lendo romances, essas coisas. Comecei a
Com o que os professores pedem? pegar esse gosto pela leitura.

Entrevistada: Sim, sim. Que nem, eu Entrevistadora: E quais livros você leu
percebo bastante que os professores da oitava esse ano, por exemplo?
série, professor de Português, da sétima e
328

Entrevistada: A culpa é das estrelas, Entrevistadora: E esses livros que você

Quem é você Alasca?, esse ano eu tô lendo disse que leu esse ano, você os pegou na

bastante romance. Nicholas Spark eu li quase biblioteca ou você os comprou em algum

todos. Aventura também eu li alguns, tipo, ah lugar?

eu esqueci o nome do livro. Um livro que eu Entrevistada: Então, alguns tem na


achei muito interessante [Incompreensível] é
biblioteca, mas a maioria eu comprei. A sala
o Capitães de Areia.
de leitura tem um acervo bem grande. Que
Entrevistadora: Ah é, e o que você gostou nem, tipo, uma parte da verba da escola,
nele? principalmente a arrecadada nos bailes,
separa para a gente comprar livros mais
Entrevistada: Ah, eu não lembro
atuais, que o povo tem uma maior procura.
exatamente, mas eu gostei muito. Foi uma
amiga minha que me indicou ele. Eu queria Entrevistadora: Por exemplo, A culpa é

ver o filme, aí disse: não, vou ler o filme das estrelas?

primeiro. Eu gosto do livro, mas eu não sei te


Entrevistada: A culpa é das estrelas,
falar exatamente o que... eu não sei falar da
tem. The Walking dead, que é uma série que
minha leitura. Eu guardo para mim. Eu acho
todo mundo gosta, tem essas coisas.
muito difícil então se alguém chegar para
mim e perguntar: “Ah, como é que foi o Entrevistadora: E eles saem bastante?
livro?” Acho meio difícil falar.
Entrevistada: Saem bastante, tem lista
Entrevistadora: Mas você guarda de de espera enorme.
alguma forma para você?
Entrevistadora: E são os mais velhos que
Entrevistada: É. pegam ou os mais novos?

Entrevistadora: E por que os livros te Entrevistada: Os dois.


fazem bem?
Entrevistadora: Isso é bacana. E os livros
Entrevistada: Tipo, eu fujo para aquele que não são do momento, eles também saem
mundo. Por isso eu gosto mais de aventura, muito?
fantasia... por que eu posso fugir para aquele
Entrevistada: Também pegam, também.
mundo e tal.
Entrevistadora: E da sua sala, você se
Entrevistadora: Entendi, então você
lembra se tem alguém que sempre vai à
prefere esses livros de aventura...
biblioteca?
Entrevistada: E de fantasia.
Entrevistada: Não, da minha sala é
difícil vir alguém. Os primeiros anos são
329

mais desinteressados. O que eu vejo bastante Entrevistadora: São professores


é o terceiro e o segundo. diferentes?

Entrevistadora: Será que seus colegas Entrevistada: São.


sabem que tem esses livros na biblioteca?
Entrevistadora: Faz quanto tempo que
Entrevistada: Então, se a gente não você trabalha na sala de leitura?
falasse, eu acho que praticamente ninguém
Entrevistada: No final da sexta série eu
saberia, mas toda vez que chegam novos
comecei a frequentar e na sétima série eu
livros a gente faz uns cartazes e os colocamos
fiquei mesmo lá.
na escola. As novidades e tal.
Entrevistadora: Faz tempo. E seus pais
Entrevistadora: E quantas vezes por ano
gostam que você frequente a biblioteca? Que
tem novidade?
você seja monitora da sala de leitura?
Entrevistada: então, depende... Mas
Entrevistada: Sim, sim. Por que, tipo, eu
umas 3, 4 vezes. Por que depende é, depende
não fico... por que a sala de leitura ocupa o
da verba da escola para a gente ter esses
meu tempo fazendo com que eu faça algo,
novos livros.
que eu não fique olhando para o teto.
Entrevistadora: E os professores? Como
Entrevistadora: Aí seus pais acham isso
você vê que os professores se relacionam
bom.
com a sala de leitura?

Entrevistada: É. Tipo, por que muitos,


Entrevistada: [silencia] Meio difícil, mas
eu vejo muitos dos meus amigos, das minhas
eles.... Eles sempre estão, tipo, eu vejo que
amigas na rua, não sei fazendo o que da vida
alguns professores sempre estão lá e tal. Que
e eu estou na escola.
a sala de leitura também é um meio de usar
uma sala de estudo. Tipo, vamos dizer, o Entrevistadora: Entendi. E seus pais fazem
professor vai fazer um trabalho em sala, ele o quê?
vai lá..”.Ah, tem certos livros e tal?” E a
Entrevistada: Então, na verdade
gente tem para ser usado na sala e não
internet, computador, nada. Os professores, ninguém trabalha porque ó, eu não moro, eu

eles usam bastante. não tenho pai. Eu moro com a minha tia e
com a minha mãe. Minha tia vive de
Entrevistadora: Mais os professores do
aposentadoria.
ensino médio ou do ensino fundamental?
Entrevistadora: Da aposentadoria...
Entrevistada: Do ensino fundamental
Entrevistada: Da aposentadoria da
[diz rapidamente].
minha tia.
330

Entrevistadora: Ah, entendi. E moram só Entrevistadora: Você conhece alguém que


vocês três? Você não tem irmãos? estuda nessas faculdades?

Entrevistada: Não, eu tenho irmãos mas Entrevistada: Conheço. Conheço, tem


eles moram fora. minha amiga mesmo, ela está, ela passou
para a segunda fase na UNESP e tal. Tenho
Entrevistadora: E sua mãe e sua tia acham
uns amigos que são já formados na UNESP.
bacana que você fique na biblioteca?
Meu professor mesmo, o de História, é da
Entrevistada: Às vezes brigam por eu USP. Isso me deu mais vontade ainda de
ficar muito tempo aqui, mas acham legal. E estudar.
também porque o meu comportamento
Entrevistadora: E você disse que tem essa
melhorou muito desde que eu entrei na
amiga que mora na Espanha. Onde você a
biblioteca, nos estudos também.
conheceu?
Entrevistadora: E como você era antes?
Entrevistada: Não, tipo, ela morava na
Entrevistada: Eu era aquela Espanha e ela veio para o Brasil uma época.
encrenqueira que ia direto na direção e tal, A família dela retornou para o Brasil. Aí ela
essas coisas. Minhas notas sempre foram veio estudar aqui, ela estudava aqui. Tinha
boas, mas eu arrumava muita confusão, mas uns seis meses que ela veio estudar aqui.
eu fui melhorando.
Entrevistadora: Entendi. E esses colegas
Entrevistadora: A sala de leitura te salvou que estudam na USP e UNESP vocês os
então? [risos] conhece de onde?

Entrevistada: Ôh!! [risos] Entrevistada: Eu conheci, assim, não sei,


tipo, da escola...
Entrevistadora: E quando você terminar o
ensino médio você quer ter qual profissão? Entrevistadora: E isso te fez pensar que é
lá que você quer estudar?
Entrevistada: Eu tenho uma grande...
meu sonho mesmo é ser astrônoma, mas no Entrevistada: Fez. A USP mesmo ela

Brasil é um campo meio restrito. Então eu tem um certo nome....


penso em fazer física, mas eu também penso
Entrevistadora: E o que você aprende aqui
em Biologia. Física e Biologia, eu não decidi
você acha que é suficiente para você entrar
exatamente o que ainda.
na USP?
Entrevistadora: E você já pensa mais ou
Entrevistada: Não. Não porque tipo.... o
menos em que faculdade você quer estudar?
ensino é bom, mas você percebe que ele
Entrevistada: USP, UNESP. podia ser melhor, mas tem aqueles alunos
331

que acabam, que eles não conseguem Entrevistadora: Por que você tem que ler
compreender e eles acabam deixando para entender. Essas coisas. Já em exatas,
aquilo....a gente não tem tempo de aprender o não. Você não tem que ler para entender
necessário, a gente tem só o básico. Não mais muito é uma explicação que o professor te dá
do que isso. Então a gente tem que fazer e tem números. Me dou muito melhor com
curso, cursinho para fazer o vestibular. números. Tipo, ler e entender aquilo não dá,
acho meio difícil. Ainda mais eu, que não me
Entrevistadora: Por que você acha que
interesso.
esses alunos agem assim?
Entrevistadora: Você gosta de ler e
Entrevistada: Desinteresse.
daquilo que a leitura te traz, mas na hora de
Entrevistadora: E você é amiga desses transmitir, fazer o que se exige em Lingua
alunos? Portuguesa você não se dá bem?

Entrevistada: Sou. A entrevistada acena afirmativamente com a


cabeça.
Entrevistadora: E você já conversou com
Entrevistadora: E sempre foi assim?
eles e entendeu um pouco mais desse
desinteresse? Entrevistada: Sempre. Eu sempre de

Entrevistada: Eu nunca cheguei a destaquei mais em exatas.

perguntar isso. Mas eu percebo a bagunça, o Entrevistadora: E sua família de modo


desinteresse, o dormir na sala. Eu também geral também?
durmo na sala, mas eu presto atenção na aula.
Entrevistada: Não, tipo, não. Minha
Eu não fico bagunçando, eu não fico
cabulando. família, na verdade, nem sei...Minha família
é meio desinteressada na escola. Meus
Entrevistadora: Os outros, não?
irmãos, só chegaram no ensino médio, minha

Entrevistada: É. mãe, ela também já tem uma certa idade, não


pode, 1ª a 4ª série. Minha tia também, 1ª a 4ª
Entrevistadora: E com relação às aulas de série. Mas e, tipo, o que eu vejo eles são
Língua Portuguesa, você gosta muito de ler e melhores na área de humanas, em Português.
tudo, o que você acha das aulas?
Entrevistadora: Seus irmãos são mais
Entrevistada: Então, é aí que está. Eu velhos que você?
adoro ler, mas eu não gosto de Português
Entrevistada: São. Eles têm 30 e 37
porque eu tenho uma dificuldade enorme em
anos.
humanas. Humanas eu sou horrível.

Entrevistadora: Por quê?


332

Entrevistadora: E como são, de modo Entrevistada: A gente entrega. Aliás, eu


geral, as aulas de Língua Portuguesa? acho que na minha sala as professoras

Entrevistada: São legais, tipo, essa transmitem que algumas turmas não têm o
que discutir, ficam caladas, não têm o que
professora nossa de Português, ela é bem
discutir.
legal porque ela interage com a turma. Ela
brinca, mas ela impõe respeito. Isso que é o Entrevistadora: Você sente falta disso?
professor bom.
Entrevistada: Um pouco... não sei
Entrevistadora: E o que vocês aprenderam exatamente. Um pouco porque quando eu
ao longo desse ano? tenho dificuldade de entender mais, cria

Entrevistada: Então, ai que está. [risos] dúvidas que podem ser respondidas juntas...

Como eu não gosto muito, eu presto atenção, Entrevistadora: Nas aulas de Língua
mas eu não guardo muito. Tipo, o Barroco, Portuguesa deste ano vocês leram um livro?
prefixo, sufixo... Ai, caramba. Tem umas
Entrevistada: Sim, sim. Teve um livro, o
coisinhas a mais.. Crô, crô, crônica... [tenta
Dom Quixote. A gente tinha que ler Dom
se lembrar do gênero] cronista e, por aí...
Quixote ou Anne Frank. Se bem que, como a
Entrevistadora: E uma aula normal de gente tinha que fazer uma leitura obrigatória.
Língua Portuguesa, como é? Quais são as A gente tinha que... Eu mesmo, eu não
atividades que vocês mais costumam fazer? cheguei a terminar o livro, que foi algo

Entrevistada: Ah, explicação sobre um obrigatório, não foi eu que escolhi. Isso que é
o ruim, eu não gosto. Então isso faz aquilo
tema, tipo, o Barroco. Uma explicação, um
ficar horrível, isso para qualquer pessoa. Eu
pequeno texto e perguntas.
acho que na minha sala pouquíssimas pessoas
Entrevistadora: E como esses pequenos terminaram de ler o livro. Pararam na
textos são abordados? Por exemplo, vocês metade.
leem em conjunto, sozinhos?
Entrevistadora: E o que vocês fizeram
Entrevistada: Ah, como a gente quer. A com a leitura do livro?
professora deixa, tipo, ela passa o texto para
Entrevistada: Uma prova. A gente teve
a gente e a gente pode, ela deixa livre, a
uma prova.
gente pode fazer em grupo ou a gente pode
fazer individual também. A gente que vê. Entrevistadora: E foi difícil fazer a prova
sem ter terminado o livro?
Entrevistadora: E vocês discutem as
respostas das perguntas em sala? Ou vocês Entrevistada: Não, foi uma prova fácil.
entregam? Como é?
333

Entrevistadora: Você se lembra de alguma Entrevistada: Isso mesmo.


pergunta?
Entrevistadora: Você acha que as aulas
Entrevistada: Como foi do primeiro que você tem, hoje em dia, despertam o seu
bimestre, tipo, eu..”.Qual era o sonho de interesse em ler alguns livros?
Dom Quixote?” Tipo, qual era a fantasia que
Entrevistada: Sim, sim.
existia na cabeça dele, que era a dele ser um,
ai, esqueci a palavra. O sonho dele era ser um Entrevistadora: Quais livros você leu a
cavaleiro da mancha. Esse era o sonho dele. partir das indicações da escola?

Entrevistadora: E daí você não gostou Entrevistada: Eu li o Wesley, História da


dessa história? uma Coruja. [Stacey O’Brian – Wesley- A

Entrevistada: Achei meio esquisita, Incrível História de amizade entre uma garota
e sua Coruja] Eu ouvi falar na aula de
meio louca.
Ciências, de Biologia.
Entrevistadora: Ele é meio louco, né?
Entrevistadora: Os professores de
[risos]
Ciências desse ano?
Entrevistada: Meio não, completo. É, até
Entrevistada: Desse ano, do ano
que é legalzinho, assim, mas eu não gostei
passado.
muito, não.
Entrevistadora: E com relação à aula de
Entrevistadora: Será que se você tivesse
Língua Portuguesa, ela te motivou a ler
conhecido o livro de outro jeito você teria
algum livro esse ano?
gostado dele?
Entrevistada: Então, Capitães de Areia.
Entrevistada: É, que nem, na sétima
Um pouco porque como é uma
série, o professor de Português, ele contou o
literatura....ah, vou ler e tal, vai que ajuda.
Conto do gato preto, do Edgar Allan Poe. Ele
contou de um jeito que a sala toda se Entrevistadora: Ajuda com o que vocês
interessou por ler, a sala toda. Vinha filas, estavam estudando?
filas de espera para o livro dele. Filas. Tipo,
Entrevistada: Isso.
do jeito que ele contou, interessou a gente
completamente e a gente lendo, a gente via Entrevistadora: Se você fosse dar aulas de
que não era exatamente como ele contou, Língua Portuguesa, como elas seriam?
mas do mesmo jeito foi interessante.
Entrevistada: Um tédio.
Entrevistadora: Pelo menos despertou uma
vontade... Entrevistadora: Por quê?
334

[risos] Entrevistadora: Como você preferir.

Entrevistada: Eu não sei, nossa. Eu não Entrevistada: Então, meu escritor


me vejo de jeito nenhum.... Ah, não sei, acho predileto é o Rick Riordan, que é o de Percy
que seria, eu seria... Eu me vejo sendo de Jackson, o Nicholas Sparks e o John Green.
dois jeitos: ou eu seria aquela professora
Entrevistadora: E por que eles são seus
muito brava, que não daria liberdade para os
prediletos?
alunos, ou diria: “Eu quero assim, vai ser
assim”. Ou eu seria aquela professora Entrevistada: Ah, pelas histórias. Esse
espontânea, que brinca com os alunos. Eu Rick Riordan, eu sou apaixonada nesse Percy
seria um desses dois. Não tem nenhum meio Jackson. Meu livro preferido, o Percy
termo. Jackson. John Green, A culpa é das estrelas.
Todo mundo fala e tal. Ah, tipo, não é tudo
Entrevistadora: E com relação a aula
isso esse livro, mas você acaba meio que
mesmo? Quais atividades você gostaria de
entrando na história, pelo menos comigo, eu
propor?
me vi, eu meio que me vi ali no livro.
Entrevistada: Ah, eu não sei. Agora que
Entrevistadora: Você se viu em que
veio na cabeça a postura. Eu não sei, eu acho
aspecto do livro?
que de um modo geral, eu achei muito
interessante, esse professor, ele me marcou. Entrevistada: Pensei, cara, imagina
Eu leria, contaria a história de um jeito perder uma pessoa muito especial que você
interessante e daria, indicaria os livros e tal. tem na sua vida desse jeito? Você conta a
Isso me marcou bastante que foi o modo que história desses dois de um jeito muito bonito.
incentivou muito. Tipo, você imagina, no momento, você
imagina você perdendo aquela pessoa muito
Entrevistadora: E você acha importante
especial para você. Isso que faz você se
que os professores tenham essa postura?
sentir na história.
Entrevistada: Sim, claro. Por que ajuda
Entrevistadora: Já o Percy Jackson é a
o aluno, tipo, eu nunca soube que aquele
questão da mitologia?
livro existia, aquela história. Ajuda muito que
o aluno conheça [os livros]. Entrevistada: É, da fantasia. Então você
se vê naquele mundo e tal, você entra no
Entrevistadora: Verdade. Quais são os
livro.
seus autores prediletos?
Entrevistadora: Mas você está falando
Entrevistada: Em que ordem? Que eu
sobre o livro, não está?
li...
335

Entrevistada: É. [risos] Isso que eu acho Barroco. Mas pelo que eu entendi eu não

estranho, penso... Nossa, sou péssima com gostei muito, não. Tipo, Idade Média e tal.

algumas coisas. Percy Jackson sou Entrevistadora: O que você entendeu de


apaixonada. Quando eu amo um livro é mais Barroco?
fácil.
Entrevistada: Que tem a ver com a Idade
Entrevistadora: Mas você acha que nas
Média. A época do Feudalismo. [Pausa].
aulas, por exemplo, de Língua Portuguesa, as
Gregório Matos, que foi um escritor Barroco,
leituras e atividades contemplam um pouco
que eles faziam sátiras das, dos... Em tudo o
essas coisas que você gosta?
que eles escreviam faziam sátiras da
Entrevistada: Não muito. Acho que não sociedade daquela época. Acho que eu não

muito. Não sei. Eu vejo isso mais em seria, que não me interessaria, não.

História. Entrevistadora: Entendi. E você fez um

Entrevistadora: Você consegue dar um trabalho sobre o Barroco, né?

exemplo dessa relação?


Entrevistada: Fiz.

Entrevistada: Primeiro lugar, eu odeio


Entrevistadora: O que tinha no seu
História. Pior matéria do mundo. Mas o trabalho?
professor começou a falar de Grécia, Roma.
Percy Jackson. Mitologia grega, mitologia Entrevistada: Então, foi isso o que eu

romana. Agora eu vou prestar atenção que... acabei de falar do Gregório Matos.
Ai foi uma maravilha. O bimestre que o [risos]
professor passou sobre esse tema eu tirei 10.
Entrevistadora: Entendi.
Entrevistadora: Já em Língua Portuguesa
nunca apareceu um tema que você pudesse... Entrevistada: É isso.

[interrompendo] Entrevistadora: E quando você não está


aqui na escola.... Na verdade, você fica o dia
Entrevistada: Não, não tem nada que eu
inteiro aqui?
goste. É difícil.
Entrevistada: Às vezes. Agora no final
Entrevistadora: O que você achou do
do ano diminui um pouco o tempo que eu
Barroco?
fico na escola.
Entrevistada: É, então né... [fala como
Entrevistadora: Por quê? Você tem que
quem deixa a entender que não gostou.] Tipo, estudar?
um livro, como eu sou péssima em Português
eu não sei, eu não entendi direito o que é o
336

Entrevistada: É, estudar um pouco e Entrevistada É.

fico muito cansada porque eu durmo demais. Entrevistadora: E você acompanha esses
Eu durmo demais [diz com ênfase.] Eu autores em outros lugares?
durmo umas dez ou mais horas por dia.
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: Você não é obrigada a vir?
Você vem quando você quer? Entrevistadora: Como você acompanha
esses autores?
Entrevistada: isso. É um trabalho
voluntário. Mas não exige tal tempo. É o que Entrevistada: Ah, Twitter vendo as

você pode. Se você pode naquele momento publicações e tal. Vejo quando o próximo
então tudo bem. livro vai ser lançado, que livro vai ser...

Entrevistadora: E você faz algum curso Entrevistadora: Você participa de alguma


fora da escola? comunidade, assim, de leitores dele?

Entrevistada: Nada. Entrevistada: Então, eu devo participar.


[risos]. Sou meio desligada um pouco
Entrevistadora: Você gostaria de fazer
também. Ah, eu vou lá, faço uma coisa mas
algum?
esqueço. Percebo na hora que aparece ali.
Entrevistada: Sim, então agora mesmo Mas é, praticamente, acompanho mais assim,

eu me inscrevi na ETEC, vou fazer a prova ele, eles [autores] mesmo.

para fazer o curso de meio ambiente, que é o Entrevistadora: E você vai às livrarias?
que eu gosto.
Entrevistada: Vou. Mas eu não costumo
Entrevistadora: Além dos livros, você
muito ir, tipo, eu não trabalho, não faço nada.
gosta de ler outras coisas, como revistas,
Não tenho muito dinheiro às vezes...Aí você
gibis ou outras coisas?
fica meio perdida, queria levar isso, isso, isso
Entrevistada: Depende do assunto que e isso.

me interesse. Se for sobre... [pausa] é muito Entrevistadora: Quando você vai às


difícil de eu ler, que não é um assunto que vai livrarias, você vai à qual?
me interessar. Se for um assunto sobre tais
atores, tal escritor, tipo, que eu goste, aí com Entrevistada: Tipo Saraiva. A que eu

certeza que vou ler. Muito difícil. mais vou é a Saraiva e Cultura. É a que mais
vou.
Entrevistadora: E basicamente você vai ler
então o que tem a ver com o John Green, com Entrevistadora: Onde fica a Saraiva mais
esses autores? perto daqui?
337

Entrevistadora: No West Plaza e no Entrevistada: Gosto. Gosto de ir no


Bourbon tem a Cultura. cinema e tal.

Entrevistadora: Você vai nessas livrarias Entrevistadora: Qual foi o último filme
sozinha? que você viu no cinema?

Entrevistada: Geralmente sozinha. Entrevistada: Eu acho que foi A culpa é

Entrevistadora: Com quem você conversa das estrelas. Eu gosto, mas eu não vou muito

sobre os livros que você lê? no cinema.

Entrevistada: Ah, depende. Com os Entrevistadora: Você vai a outros lugares,


como teatros, exposições?
amigos, com quem se interessa. Que nem,
com a professora Léia, que é a professora da Entrevistada: Exposição não muito,
sala de leitura. E a pessoa que mais converso porque eu não tenho muita paciência. Eu não
sobre os livros. compreendo muito exposição. Teatro eu

Entrevistadora: Com a professora de gosto, eu já fui numa peça. A última que eu

Língua Portuguesa você já conversou? fui foi A bela e a fera.

Entrevistada: Já, eu já conversei. Eu já Entrevistadora: Você foi com quem?

cheguei a conversar sobre os Anne Frank, Entrevistada: Com a minha irmã. Foi
que eu tinha... eu li há um tempo atrás e eu bem legal.
conversei com ela.
Entrevistadora: Só para terminar, eu
Entrevistadora: Você leu antes dela gostaria de perguntar um pouco sobre os
passar? materiais que vocês usam nas aulas de
Língua Portuguesa. Nas aulas que eu assisti,
Entrevistada: Bem antes. Eu li quando
vocês não usavam os material de vocês, a
eu estava na sétima série.
professora trazia um livro e vocês liam os
Entrevistadora: Você gostou desse livro? textos e respondiam às questões. Isso é a
regra ou não? Vocês tem aquela apostila do
Entrevistada: Gostei porque é um tema
Estado que vocês usam?
que eu gosto. Eu gosto. É a Segunda Guerra.
Entrevistada: A gente não usa aquela
Entrevistadora: Você se interessa pela
segunda guerra? apostila de Português. A gente só usou uma
vez aquela apostila, semestre passado. A
Entrevistada: Me interesso um pouco. gente não usa muito a apostila. É mais o
livro, que na verdade deveria ficar com a
Entrevistadora: E você gosta de ir ao
cinema, ver filmes?
338

gente. Mas como não tem a quantia exata, Entrevistada: Pelo menos umas duas,
fica na escola e a gente usa os livros. três vezes por ano eu vou para visitá-lo, ele

Entrevistadora: Os livros didáticos? mora lá.

Entrevistadora: Você veio para cá com


Entrevistada: É, os livros didáticos.
quantos anos?
Entrevistadora: Você gostaria de falar
Entrevistada: Um ano e meio.
mais alguma coisa?

Entrevistadora: Você veio com a família


Entrevistada: Não.
toda?
Entrevistadora: Então muito obrigada pela
Entrevistada: Não. Meus pais... eu não
entrevista.
morei com os meus pais. Eles se separaram
Entrevistada: Não foi nada. quando eu e minha irmã éramos bebês. E
meu pai bebia e não levava comida para casa
Entrevista com a aluna Karina
e minha mãe ficava com a gente passando
01/12/2014
fome. Eu nasci num lugar que é bem roça
mesmo, sabe? Rua não pavimentada, bem
mato mesmo. E aí não tinha condição. Minha
Entrevistadora: Qual é o seu nome?
mãe quis vir embora, levar a gente para a
Entrevistada: Karina. Eu sou do interior cidade junto, mas o meu pai não permitiu.

de São Paulo, mas eu sempre morei aqui. Ameaçou ela de morte. Ai ele também não
conseguiu cuidar da gente porque ele bebia.
Entrevistadora: De que cidade você vem?
Aí a gente teve que vir para São Paulo. Eu
Entrevistada: Barra do Turvo, na divisa morei um pouco com a minha vó, a minha

com o Paraná. Assim, dá para você atravessar irmã morou com os meus tios, sempre. Mas

o rio nadando e você já vai estar no Paraná. eu morei com três famílias: a minha vó,
minha tia e depois uma outra tia.
Entrevistadora: E você já fez isso?
Entrevistadora: E eles moravam sempre
Entrevistada: Já! É muito bom e o rio é por aqui? Em quais bairros você acabou
de correnteza, é bem perigoso. Mas aí, meu morando?
pai que me ensinou a nadar então a gente
Entrevistada: Eu sempre morei ali no
curte fazer essas coisas.
bairro Jardim Cupecê, Jardim Prudência,
Entrevistadora: E você vai lá sempre?
sabe? É sentido Diadema, assim, mas é
Jardim Cupecê, perto do Pão de açúcar que é
339

o antigo Gonçalves. Você lembra desse que arrumar um lugar para você ficar”. E ela
mercado? não conversou comigo durante a gravidez
toda.
Entrevistadora: Não me lembro. Mas
quais lembranças você guarda da sua Entrevistadora: Então foi bem traumática?
infância?
Entrevistada: Foi, foi bem dramático. E
Entrevistada: Olha, eu guardo boas já não era fácil a convivência mesmo com
lembranças e ruins. Na verdade, eu não ela. Só que, assim, eu entendi que aconteceu
guardo mais as ruins com um sentimento tudo isso, fiquei grávida nova porque eu não
triste. Não! [diz com maior intensidade] Por podia ir para lugar nenhum e ela também não
que eu aprendi, foi para aprendizado. Depois conversava. Não orientava.
dessa prática que eu comecei a fazer de
Entrevistadora: Você não sabia...
energia de luz.
Entrevistada: A gente até tem algumas
Entrevistadora: Então isso foi muito
informações de fora sobre camisinha e essas
importante para você?
coisas. Mas se você não tiver uma orientação,
Entrevistada: Foi muito importante na assim, da mãe, do pai, pessoas que você
minha vida. Eu me sentia vítima do mundo confia, você....
porque eu morava de favores, de favor com
Entrevistadora: É uma coisa que você
as pessoas. Então....
decora, mas não....
Entrevistadora: Imagino que isso foi
Entrevistada: Não é na escola que você
muito difícil.
tem educação. Na escola você tem conteúdo
Entrevistada: Foi muito difícil. pedagógico, né? Na escola você tem que ir
para estudar o conteúdo pedagógico, línguas,
Entrevistadora: E isso continuou a
matérias. Mas a educação é de casa.
acontecer mesmo depois que você teve
filhos? Entrevistadora: Aí você sente que essa
educação faltou um pouco?
Entrevistada: Bom, depois que eu tive
filhos, aí eu... Quando eu fiquei grávida, Entrevistada: Faltou muito porque a
muito novinha, 16 anos, eu já estava minha vó, que foi a primeira a cuidar de mim,
trabalhando. Sorte que eu estava trabalhando. ela me deu amor. Eu lembro. Mas só que aí,
Mas o meu, o pai do meu filho ele era um depois dos seis anos, eu tive que morar com
moleque muito irresponsável. Mas só que eu outras pessoas. E essa minha tia, última
bati o pé e consegui alugar um lugar. Por que pessoa com quem eu morei, ela era muito
a minha tia pegou e falou assim: “Você tem sofrida também, muito amarga.
340

Entrevistadora: Entendi. Ela também tinha coisas também podem ter me atrapalhado. E
uma história de vida sofrida. eu não sabia lidar com isso. E aí quando eu
comecei a trabalhar esse meu lado espiritual,
Entrevistada: Tinha uma história triste.
aí realmente.... Hoje eu me sinto uma rocha.
Aí eu entendo, eu entendo tudo o que ela
É, eu me sinto uma rocha. Nada me abala. Aí
passou, né? Mas assim, realmente.... Na
eu me separei do meu marido. Acontecerem
escola, eu ficava assim, no mundo da lua.
várias coisas. Antes ainda de eu conhecer
Não conseguia prestar atenção no que o
essa parte espiritual, e fiquei mal. Depois que
professor falava. Não foi fácil.
eu comecei a trabalhar isso, aí minha vida
Entrevistadora: Por que você acha que mudou.
faltou um respaldo familiar?
Entrevistadora: Você ficou casada por

Entrevistada: Então, hoje... Eu sentia quanto tempo?

sempre um vazio, né? Criança que sente um Entrevistada: Então, eu estou hoje ainda
vazio assim. Se você, não sei se você já
com meu atual marido. Eu me separei por um
começou a fazer estágio assim em escola com
ano e dois meses, mas aí eu voltei. Por quê?
criança pequena.
Porque eu sempre queria resgatar, eu ficava
Entrevistadora: Sim, eu já trabalhei com sempre pensando nas crianças. Para elas não
crianças pequenas. sentirem o que eu senti. Mas só que aí,
estudando, estudando, estudando, você vai
Entrevistada: Então, aí eu casei, meu
sempre mais a fundo. Eu vi que os
marido também era alcóolatra. [risos pensamentos, mesmo sendo diferentes. Eu e
nervosos] Porque o que acontece? A gente o meu marido a gente pensa muito diferente.
tem uma figura de um pai que é alcóolatra, a Muito, muito diferente. E aí acaba tendo
gente acha que é normal a gente ter um conflito. Então tem que ser uma coisa muito
marido alcóolatra. Até um certo tempo, né? bem trabalhada, a separação, porque sempre
Mas aí depois que você vai procurando ajuda, tem uma pessoa que vai querer... Que nem,
vai estudando sobre algumas outras coisas.... meu marido é uma pessoa que se faz de
E eu, o que me atraiu muito foi sempre o, vítima e coloca as crianças no meio para
estudar o espiritual. fazer drama. Chantagem. E ele fez isso da
Entrevistadora: Sempre? primeira vez, né?

Entrevistada: Sempre, desde criança. Entrevistadora: Difícil.

Assim, desde adolescente. Eu sempre [risos]


procurei saber. Aí eu descobri que eu tenho
Entrevistada: Não é fácil. Mas hoje eu já
um lado mediúnico e também pode ter me
tenho essa força. Eu tenho essa força, tipo, de
ajudado, mas pode ser que algumas outras
341

não me abalar por causa disso. Não me abalo Entrevistadora: E sempre foi assim? Por
mais e as crianças eu sei que tenho que que você está no terceiro ano então você se
trabalhar a mente delas. Elas também lembra de como eram os outros anos?
recebem energia para se fortalecer. Meu filho
Entrevistada: Ah, não. Os outros, não.
já fez uma série de coisas, já. Ele entregou
Os outros não foram assim.
um jogo na semana passada. Eu cheguei a
comentar com você? Entrevistadora: Mas eram os mesmos
alunos?
Entrevistadora: Não.

Entrevistada: Ah, não. Mas eu só fiz o


Entrevistada: Entregou um jogo. Ele
terceiro aí.
está na ETEC de programação. Ele fez um
jogo de computador. Um joguinho. Ele fez Entrevistadora: Você estudava em outra
um pouco parecido com o do Mário, mas ele escola?
que fez toda a modelagem, toda a
Entrevistada: Isso. Eu vim de outra
programação.
escola. Eu vim do Manoel de Nóbrega. Ele
Entrevistadora: Ah, que orgulho.
era lá em Santo Amaro, do lado do cursinho

Entrevistada: Com isso aí a gente fica da Poli. Mas agora ele mudou. Ele agora é na
Borba Gato. Eu estudei o segundo ano lá. Só
feliz. Mas aí eu vou te falar uma coisa. Eu
que era bem pouquinho aluno e era supletivo
não sentia vontade de estudar na sala de aula
também e era com um pessoal mais velho.
desse Colégio. Eu não sei o que que houve.
Então não tinha, assim, conversa. Era
Também não é só a... os alunos. Eu acho que
muito.... Eu aprendi muito lá. Nossa aprendi
o Estado, ele está agindo de uma forma
muito. E aí eu tirava notas boas porque aí eu
errada.
tinha vontade de estudar lá. Agora, aqui eu
Entrevistadora: Por quê? não tenho...eu não tinha, menina. Eu tinha

Entrevistada: Porque, por exemplo, o vontade de ir embora. Eu chegava e já queria


ir embora. [risos] Então, assim, essa coisa do
professor não tem mais autoridade na sala. A
aluno ter esse direito todo em sala de aula
professora não pode falar nada para o aluno,
está atrapalhando muito a vida de todo
o aluno vem quase para cima do professor.
mundo. Tanto o trabalho do professor como
Eu acho que esse método não é bacana. Eu
dos outros alunos que realmente querem
acho que, se o aluno fala de forma ríspida, ele
estudar. É muito triste isso, muito triste.
já tem que sair da sala, ele já tem que sair da
aula porque ele não está se comportando de Entrevistadora: Você poderia dar o
forma adequada. Ele não está respeitando os exemplo de uma coisa que você aprendeu
alunos, as pessoas que têm que ouvir a nessa outra escola e que você acha que
matéria. Então eu acho isso muito errado. poderia continuar a aprender no Lasar?
342

Entrevistada: Olha, para dizer a verdade, Entrevistada: E eu fiquei sabendo que o


isso varia muito de professor para professor e Governo Federal, é eles que mandam a verba
também de como o professor tem a abertura para o Estado, para contratar professores, né?
para introduzir isso para o aluno. Então lá, os
Entrevistadora: Na verdade o próprio
professores eram todos com muita vontade de
estado faz seu concurso e contrata os
ensinar e, realmente, os professores passaram
professores.
um conteúdo bom. É claro que tem a nossa
dificuldade porque quando a gente é mais Entrevistada: Ah. É, mas realmente, não
velho, a gente já não tem mais aquela é culpa dos professores. Não é porque, assim,
facilidade de absorver igual os mais novos, e quando uma pessoa dá atenção para a gente,
os professores muito pacientes. Aqui, os aí a gente quer passar o que a gente sabe. É
professores também eram legais, eles eram uma coisa natural. Até porque quando a
legais. Só que a falta de respeito dos alunos pessoa decide ser professor, dar aula, ela
não permitia que eles pudessem introduzir realmente está disposta a passar o que ela
alguma matéria e eles, os alunos se sabe, né?
comportavam de maneira animalesca. O
Entrevistadora: Eu acompanhei na sua sala
professor entra em sala de aula e acha que
as aulas de Língua Portuguesa. Nas aulas que
está lidando com retardados.
assisti sempre havia um exercício de leitura e
Entrevistadora: Me dê um exemplo desse interpretação de textos. As aulas, ao longo
comportamento animalesco. desse ano, costumavam ser sempre assim?

Entrevistada: Gritar, né? Por exemplo, Entrevistada: Sempre, sempre tinha uma
eu não tenho preconceito contra a leitura. Ai tinha interpretação de texto e junto
homossexualidade, não tenho nenhum, meu com a interpretação de texto, ela já falava um
irmão é gay, mas assim, tem um limite. Você pouco da gramática. Ela já entrava, assim,
não precisa gritar, maltratar, falar palavrão, um pouquinho na gramática e com os textos
usar nomes feios. E não é só os literários, né? Ela tentava, não era fácil, mas
homossexuais. Não, não é. Tinha lá uma ela tentava, eu pude reparar. Assim, eu
menina gritando palavrão alto, falta de estudei pouco na vida, mas eu fiz oito meses
respeito, tanto com o professor quanto com de cursinho lá na Poli e também nesse
as outras pessoas. É uma forma semi- supletivo que eu fiz no segundo ano eu
selvagem. Nós, seres humanos, não é assim também estudei com o professor, o Ataulfo .
que nós fomos criados. E, nossa, eu tive assim muita sorte de ter ele
como professor. Aí eu também tive aula com
[Pausa na entrevista]
a Andréia. Não, era Andréia o nome dela?
343

Não Vanessa do Mato. Você conheceu? Entrevistada: Olha, eu já tinha falado


[risos] para você que eu gosto muito de Português.

Entrevistadora: Não. Eu pensei em Letras, mas eu também vi que


lá na Cultura Inglesa tem um curso de...
Entrevistada: Por que tem a Vanessa da Faculdade de Inglês mesmo e é o inglês
Mata, o cabelo dela é igualzinho o da britânico.
Vanessa da Mata, aí ela colocou no Facebook
Entrevistadora: E você já fala inglês?
Vanessa do Mato. Procura para você ver. Ela
te adiciona. Ela escreve cada coisa legal. O Entrevistada: Não, eu não falo. Mas, por
Roberto Juliano também. Não sei se eles tem exemplo, na faculdade são 4 anos.
mais espaço no Face, né? Mas se você
Entrevistadora: Aí você aprende.
colocar lá “Seguir” você sempre vai ver o
que eles escrevem. Então eu tive aula com Entrevistada: São 4 anos e é curso
eles. Pena que depois eu não continuei
presencial, todos os dias, das 7h30 ao meio
porque eu tenho filhos, assim, então eu dava
dia ou das 18h30 às 23h00. E aí se você entra
prioridade para algumas coisas. Eu sempre
você não precisa saber inglês, mas eles vão
tentei...
dar o curso todinho em inglês. Todos os dias
Entrevistadora: Você estudou na idade então é bem puxado.
esperada pela escola até que série?
Entrevistadora: E inglês é alguma coisa

Entrevistada: Até a oitava só. que você sempre quis aprender?

Entrevistadora: E aí para o Ensino Médio Entrevistada: Olha, hoje em dia, você

você voltou faz quanto tempo? não consegue emprego, né? Mas, por
exemplo, Letras na USP não tem inglês.
Entrevistada: Para o ensino médio eu
Entrevistadora: Tem inglês, sim.
voltei fizeram? Porque aí eu voltei para o
Habilitação em inglês.
segundo ano, já fazem dois anos que eu voltei
para o segundo ano. E agora que eu voltei Entrevistada: Então deve ter dois cursos.
para fazer o terceiro ano.
O Ataulfo fez só Português.
Entrevistadora: Você tem quantos anos
Entrevistadora: Você tem vontade de
agora?
prestar o vestibular da USP?

Entrevistada: Eu tenho 32 anos. Eu


Entrevistada: Tenho muita vontade mas,
quero tentar fazer uma faculdade ano que
olha, eu realmente não estou preparada.
vem.
Entrevistadora: Por que você acha que não
Entrevistadora: Do quê?
está preparada?
344

Entrevistada: Quem nem eu falei, né. Entrevistada: Sim. [risos] Assim, é que
Esse ano, eu estudei o3º [ano], mas eu não eu meio que me encanto. A gente tem um
pude absorver nada. E tudo o que eu aprendi projeto para a humanidade. Então qual é o
no cursinho da USP, no cursinho da Poli, a objetivo do nosso projeto? É ajudar todas as
maioria eu esqueci. Eu precisaria fazer acho pessoas. Que nem, o que aconteceu comigo,
que, pelo menos, mais um ano. eu me achava vítima do mundo. Uma pessoa
que não tinha recebido amor dos pais. E aí eu
Entrevistadora: E você chegou a fazer o
conheci o Johrei e preencheu minha alma. E
ENEM esse ano?
aí eu já não senti mais aquela carência. Eu
Entrevistada: Não porque passou da não senti mais nada disso e eu percebi que o
data. que eu aprendi ninguém me falou. A gente já
começa a ter uma percepção diferente. A
Entrevistadora: Você já fez o ENEM?
gente começa a entender que nós viemos aqui
Entrevistada: Nunca fiz. Eu preciso não para ser paparicados por pai e mãe. Não,
praticar, né? a gente vem com uma missão de ajudar uma
pessoa, ajudar a outra. E inclusive os nossos
Entrevistadora: Quando a gente conversou
pais. A gente nasce na família para ajuda-los.
na aula você falou para mim que você
Aí eu consegui ajuda-los. A minha mãe, ela,
gostava muito de ler.
a minha mãe biológica sofre de
Entrevistada: Eu gosto. Eu gosto de ler esquizofrenia. Aí eu consegui lá no interior,

coisas do meu interesse, mas eu gosto muito trazer ela para cá, ela não falava nada com

de coisa... eu gosto do, que eu li... Eu li nada, ela fez esse tratamento com energia, aí

aquele Vidas Secas. Eu li porque quando eu ela se recuperou, ficou bem melhor do que

estava fazendo o cursinho da Poli eles estava sem tomar remédio.

falavam para a gente ir lendo. Aí eu li Entrevistadora: Que bom. E quando você


também o Carlos, Carlos.... descobriu que você gostava de ler?

Entrevistadora: Drummond?
Entrevistada: Que eu descobri?

Entrevistada: Carlos Drummond de


Entrevistadora: Quando você se lembra de
Andrade. É. Li também não sei o que lá do ter começado a ler qualquer coisa.
Ipê. Muito lindo. [risos] É porque eu sou
romântica. Então esse daqui é um sobre o que Entrevistada: Olha, no segundo ano

eu faço, energia. [Mostra o livro que está em mesmo, com o Ataúfo.


sua bolsa] Aí fala um pouco de Deus, né? Entrevistadora: Com o professor do
Entrevistadora: E são esses os livros que cursinho?
você mais lê?
345

Entrevistada: Não, com o outro. Com o Entrevistadora: Você se lembra de alguma

segundo ano do supletivo porque eu fiz o vez em que você desistiu de ler algum livro

cursinho depois do segundo ano porque eu ou parou de ler por sentir alguma

pensava em fazer a prova do ENEM para ir dificuldade?

direto porque tem essa possibilidade. Entrevistada: Olha, para falar a


Entrevistadora: E o que esse professor tem verdade... Ah, eu lembrei de uma coisa. Na
de diferente? sexta série eu li aquele livro Droga da
obediência. Eu li aquele livro em um dia e no
Entrevistada: Olha, ele primeiro lia o
outro dia eu li de novo. E eu não senti
texto para a gente e pedia para acompanhar.
dificuldade. [risos]. Mas eu acho que
Entrevistadora: Ele lia em voz alta algumas coisas psicológicas da vida.

Entrevistada: É. E aí ele explicava Entrevistadora: Você não sentiu


dificuldade de ler aquele...
direitinho. Ele explicava como fazer a
dissertação, como fazer a redação. Aí ele ia Entrevistada: Porque a história me
lendo e falava das pontuações. Ele ia lendo e
entreteve.
ia explicando tudo dos textos: “Olha, você
não pode fazer isso, fica sem sentido”. Então, Entrevistadora: Entendi. A história te

assim, eu comecei a ter uma noção de interessou. E depois dele...

pontuação, assim, com ele. Por que antes eu


Entrevistada: Nenhuma história me
fiquei muito tempo sem estudar e eu acabei
interessou.
esquecendo um pouco das regras que são
muito sérias, muito importantes na Língua Entrevistadora: Nada te interessava?
Portuguesa. Se você não sabe fica tudo sem
Entrevistada: Não.
sentido. Você vai ler um texto sem vírgula,
sem ponto você vai ficar confuso. Entrevistadora: Você se lembra dos livros
que os professores pediam para você ler na
Entrevistadora: Como é que você lia antes
escola?
de passar por essa experiência do segundo
ano? Quando você pegava alguma coisa para Entrevistada: Sim, por exemplo, eu
ler, você acha essas coisas dificultavam a tentei ler o Til, eu o comprei e consegui ler
leitura para você? todo. O livro Viagens na minha terra [diz em
tom imponente]. Estão lá na minha casa até
Entrevistada: Sim, dificultava. A falta de
hoje. Conseguia ler um pouco, mas não
informação, de entendimento sobre uma
conseguia ler mais. Eu não conseguia me
leitura, realmente, atrapalha muito. Você não
entreter.
se interessa pela leitura.
346

Entrevistadora: E você tinha algum você se identificava com a leitura desses


auxílio da escola para fazer a leitura? textos?

Entrevistada: Olha, no cursinho. No Entrevistada: Bom, ela lia com a gente e


cursinho, realmente, eles.... Ah, eles tinha nós acompanhávamos. Aí quando eu gostava
trechos na apostilas e aí eles comentavam. do texto eu prestava mais atenção. Porque a
minha cabeça sempre fica, assim, desde
Entrevistadora: E o comentário te fazia ter
pequena minha cabeça fica meio fora. Aí isso
vontade de ler?
acontece muito. Por isso tem pessoas que não
Entrevistada: Fazia. Tanto que eu li o conseguem continuidade no estudo. Mas,
Vidas Secas. Sabe por que eu li? assim, o que me fez admirar muito a Língua
Portuguesa foi por muitos professores. Foi
Entrevistadora: Por quê?
pelo professor Ataúfo, foi pelo Roberto
Entrevistada: Porque é a história do Juliano, foi pela Vanessa. Ah, tive o
sertão, né? É uma história parecida com a professor de redação também, o Cláudio.
minha. [risos] Entrevistadora: Mas das aulas da
Entrevistadora: É verdade, tem tudo a ver professora Cida, o que fica?
com você. E você se identificou com a
Entrevistada: Deixa eu ver. É bem
história?
difícil, viu, porque a gente realmente não
Entrevistada: Olha, não... algumas tinha continuidade. Teve pouca aula e quando
coisas. O fato de eu estar numa situação, na tinha a oportunidade de absorver as coisas era
época, por que eu era bebê. Mas eu também bem difícil por causa da energia do ambiente.
passava as férias com a minha vó lá [no Mas, assim, eu me lembro que a gente fez um
sertão]. Então, assim, lá. Quando eu ia para lá texto. Ah, lembrei de um texto sobre meninos
a infância era diferente. Lá eu tinha da areia, não, como é aquele livro lá?
liberdade, eu podia correr, subir os morros, Capitães de Areia. Lemos em trecho e aí ela
nadar no rio. Lá em tinha infância. quis que fizéssemos uma resenha, é assim
que fala, né? Ah não, tinha uma interpretação
Entrevistadora: Então foi bom ler o livro?
lá. E aí ela queria que a gente escrevesse com
Entrevistada: Sim. Na verdade, é um as nossas palavras o que a gente tinha sentido

livro um pouco triste, mas a história me sobre o menino. O menino que tinha que

entreteve então eu. morar na rua. Eu acho que um não tinha uma
perna. Então eu, nossa, até lembrei da
Entrevistadora: E com relação aos textos
Vanessa também porque a Vanessa comentou
que você leu esse ano, de Língua Portuguesa,
que ela também foi para lá, para Salvador. A
história era em Salvador, né?
347

Entrevistadora: Isso. Entrevistada: Não necessariamente.

Entrevistada: E aí ela falou que tinha um Entrevistadora: Qual foi o último livro que
monte de moleques lá e que quando ela você leu?
chegou e viu aquele monte de moleques ela
Entrevistada: Esse. [Mostra o livro que
lembrou da história do livro, que ela se sentiu
estava em sua bolsa]. Eu li três [capítulos]
na história, que ela se sentiu na época. E aí eu
desse aqui. Tem uns outros falando... Por que
consegui passar o meu sentimento no que a
é um projeto para a humanidade. Eu fico
professora queria. Por que aí eu consigo
muito eufórica com isso.
entender as coisas com o meu sentimento
porque eu também tive essa parte que faltou Entrevistadora: Você se lembra de algum
na infância então eu entendia o sofrimento do livro que você leu e não fazia parte do
menino porque ele também não teve esse projeto?
amor. Então eu também entendia esse
Entrevistada: Realmente, que não fazia
sentimento dele e eu pude passar. Então essa
realmente marcou para mim. Realmente, eu parte do projeto, mas que tinha a ver com

sempre acho que marca muito as coisas, energia: Irmãos de luz. Eu tentei ler um que

assim, marca o que parece um pouco com a chama A cabana, que também falava de Deus

nossa história de alguma forma, de alguma de uma certa maneira, mas não consegui me

coisa que a gente viveu, né? entreter. Na verdade eu não consegui, assim,
me prender no livro. Eu não terminei ele, eu
Entrevistadora: Quando você vai escolher
não posso falar, né? [risos].
um livro para ler você usa esse critério?
Entrevistadora: E você costuma ir à
Entrevistada: Olha, se for falar assim, livraria?
praticamente, mais materialmente no plano
Entrevistada: Costumo porque meus
fenomênico, não mais porque eu já não
evoluo mais com aquilo. filhos, a gente vai no shopping, eles já vão
direto para a Saraiva ou para a, eles gostam
Entrevistadora: Então o que você busca
muito da FNAC.
hoje em dia?
Entrevistadora: E o que seus filhos gostam
Entrevistada: Eu sempre busco além. Eu de ler?
nunca consigo me prender muito nos livros
Entrevistada: Ah, o Vítor gosta de ler
que falam mais da vida do nosso cotidiano. O
que me preenche é o que está no plano tudo com ficção, magia. Então é da mitologia

espiritual. grega o Percy Jackson. Ele já leu todos dele.


Tem um que é dessa grossura, assim, ele já
Entrevistadora: Então hoje em dia você só
leu dois desse. Marvin não sei das quantas.
lê os textos do Johrei?
348

Eu esqueci o nome, mas é tudo meio assim Entrevistadora: E ele está em que série?
parecido com O Senhor dos anéis. Essas
Entrevistada: Ele estuda na ETEC. É
coisas, assim, que tem magia, que tem guerra
período integral lá. É aqui perto? Não, é no
e tudo misturado e tudo diferente, sabe?
Itaim. Não é longe daqui, só é contramão.
[risos]
Entrevistadora: E a sua filha também
Entrevistadora: E sua menina, ela gosta de
estuda?
ler o quê?

Entrevistada: Ela estuda, mas ela está no


Entrevistada: Ela já leu, acho que ela já
particular porque não está fácil colégio
leu. Ela comprou há duas semanas, o Diário
público.
de um Banana. Já é o segundo que ela está
lendo. E ela lê muito gibi. Ela lê muito, Entrevistadora: Você acompanha bastante
muito. Ela vai na internet e ela põe gibi para a escolarização dela?
ler.
Entrevistada: Cobrar eu cobro. Eu já
Entrevistadora: Ela tem nove anos?
cobrei melhor. Esse ano eu não cobrei muita

Entrevistada: Nove anos. E também coisa de ninguém. Realmente eu tenho que


ser sincera. Esse ano eu fiquei um pouco
esses livros pequenininhos elas gostam
desanimada com algumas coisas nesse
porque tem desenho.
aspecto. Talvez porque eu tenha ficado muito
Entrevistadora: E você lia para os seus entretida com outras coisas, mas. Ah, assim,
filhos quando eles eram menores? eu sempre procuro corrigir quando falam

Entrevistada: Para ser sincera eu lia alguma coisa errada. O Vitor às vezes vai
escrever um texto lá e eu vejo e falo “Não,
pouco. A Cláudia, ela sempre seguiu muito o
isso aqui está escrito de maneira errada”. Eu
Vítor e o Vítor, o primeiro livro dele foi
não entendo muito, mas o pouco que eu
Harry Potter, que eu comprei para ele. E aí
entendo da pontuação errada, essa palavra
eu fiz uma dedicatória nesse livro. A
não combina, está sem sentido. Por que o
professora dele tirou xerox da dedicatória e
Vitor é muito bom em matemática. E aí,
colocou no quadro da escola. O professor
quem gosta de informática e de programação
dele, na escola do Estado, escola estadual da
gosta de matemática e já não liga tanto para o
Mooca, ele lia todos os dias para eles, um
Português. Isso é normal. Você é bom em
pouco do Harry Potter. E aí ele se interessa
uma coisa, na outra você acaba... mas como
muito por esses temas. Inclusive ela já foi
eu gosto muito do Português eu acabei
pesquisar a Wiica. Você já ouviu falar? É
reparando nisso.
uma religião de bruxos, né? [risos] E ele está
lendo livros na internet de bruxaria. Ah, eu esqueci de falar de uma professora
que eu tive particular de português.
349

Entrevistadora: E quando você teve aulas Entrevistadora: Como você percebeu isso?
com ela?
Entrevistada: Ele começou a falar de
Entrevistada: Ela chama Maria muitas coisas que a gente falava errado. Mas
Antonieta. Ela foi professora da USP. Ela já é se você não pratica, não lê, você esquece
idosa e já não enxerga bem, mas ela tem tanta porque você acaba falando com algumas
coisa para contar. pessoas ou outras e acaba pegando um pouco
da influência. Isso é muito ruim. Então, por
Entrevistadora: E ela te ensinou bastante
exemplo, o “pra mim” e “pra eu”. Isso é uma
coisa?
coisa que eu tinha gravado muito na minha
Entrevistada: Ensinou. Ensinu também mente porque isso vem de infância. Eu falava
sobre a interpretação de texto, sobre os muito “para mim”. Com o tempo eu estou
fonemas, o que mais? Sobre a parte de conseguindo tirar o “pra mim,” pra mim
gramática, assim. fazer, né, e consegui introduzir o pra eu.

Entrevistadora: Você sempre teve isso em Entrevistadora: Com esse professor?


você de querer aprender a escrever
Entrevistada: Nossa, ele falava muitas
corretamente, de aprender a Língua
coisas legais. Ele explicava tudo. Ele falou:
Portuguesa? Ou foi algo que você descobriu
“Olha, não tem como você entrar no ônibus.
em algum momento?
Como é que você vai entrar no ônibus?”
Entrevistada: Não, eu... Olha, eu [risos] “Você vai adentrar”. Ele falava “Não
comecei a trabalhar cedo em shopping. Com tem como você se formar, você já é formado
quatorze anos eu já trabalhava no shopping desde os nove meses. Você se formou na
Ibirapuera. Então lá as pessoas sempre barriga da sua mãe. Na verdade você
ficavam corrigindo a maneira de você falar. concluiu o curso”. Então tem muitas coisas
bacanas que ele me ensinou. E a minha
Entrevistadora: Os chefes ou os clientes?
professora também. E eu fui tendo aula com
Entrevistada: Os chefes. Eles sempre essa professora querendo aprender inglês,
corrigiam e falavam “Não, não é assim que mas na verdade ela viu que meu Português
fala”. É bacana, só que até aí não tinha me era tão fraco que ela foi dar português. [risos]
caído a ficha, assim, da importância do Um amor. E ela começou a me dar aulas sem
Português. Foi nessa época. Até porque as cobrar nada porque ela sabia que eu não
coisas aconteceram muito rápido para mim. podia pagar. E ela era professora de latim, de
Com 16 anos eu já fiquei grávida, né? Aí, que francês.
eu comecei a me dar conta de como eu falava Entrevistadora: E onde você a conheceu?
errado mesmo foi no segundo ano do (corte?)
colegial. Foi com o professor Ataúfo.
350

Entrevistada: Meu marido é taxista. congelado eu vendia. Então eu comecei a


aprender a cozinhar para vender. Assim,
Entrevistadora: E você trabalhou com o
congelados, na rotisseria. Molho, era uma
quê?
delícia, eu aprendi a fazer patês, berinjela,

Entrevistada: Meu primeiro trabalho foi assim, essas coisas bem legais. Nossa, eu
trabalhava bastante. O dia inteiro eu não
quando eu tinha 13 anos, entregar folheto no
parava. Oito horas por dia, meu horário era
farol. A gente aprende tanta coisa assim
das 13h30 às 20h30.
porque não é só você entregar o folheto, você
conhece um monte de gente, conhece a Entrevistadora: E você conseguia estudar
índole da pessoa. Aí você vê que tem os nessa época?
homens que ficam mexendo com as
Entrevistada: Um tempo eu estudei de
mulheres, aí tem mulher que gosta que os
caras chamem a atenção. Aí eu lembro que eu manhã. Depois eu passei para a noite e fui

era emburrada, eu sou totalmente diferente estudar de manhã. Foi a pior coisa que eu fiz

das outras. Na verdade, eu sempre fui porque o ensino à noite é muito pior em

carismática, mas quem vinha de fora para escola pública. Também eu não sei, eu acho

tentar fazer amizade eu era emburrada que é a energia. O pessoal já chega cansado.

porque, tipo assim, “eu não te conheço. Não O melhor horário para estudar é de manhã.

vou ser simpática porque eu não te conheço” Você está com a cabeça limpinha, você está

[risos] Coisa de adolescente que também não pronto para receber as informações. Então, aí

tinha muita instrução. Então eu aprendi, depois que eu saí de lá eu fui para o

conheci pessoas, num simples entregar de Shopping Ibirapuera. Eu já ia fazer 15 anos.

folheto. Aí eu pude comprar as minhas Aí eu trabalhei e também aprendi muita

roupas porque até então eu só ficava usando a coisa. Lá eu vendia perfumes, canetas

roupa que era ganhada dos outros, já usada. importadas.

Aí depois eu fui trabalhar em uma rotisseria, Entrevistadora: Era uma loja de


ai eu aprendi tanta coisa. Ai eu aprendi a importados?
cozinhar nessa rotisseria porque eu e a minha
prima, a gente ficava sozinhas em casa Entrevistada: Era. Arigatô. Hoje em dia

porque minha tia trabalhava o dia inteiro, não ela já não tem muitas coisas que tinham
dava tempo de dar atenção para a gente. Não antes. A gente trabalhava antigamente com
podia. A gente tinha que se virar, comia lá eletrônicos, vídeo game, tudo que era tipo de
qualquer coisa. Um arroz com ovo, arroz com brinquedos importados, vasos da China.
banana. Coitada, ela era um pouco mais velha Sabe, os vasos da China, as artes da China
que eu, mas ela cuidava de mim direitinho. sempre foram muito belas. Coisa linda. E lá
Lá eu aprendi a fazer feijoada. Aquele tinha todas essas coisas. E aí que ficava
encantada com a loja. Eles não eram fáceis,
351

os meus chefes. Eles eram bem frios, mas eu eu trabalhei naquela loja e eu já sabia falar.
sempre me vi no meio dessa coisa do Japão. Eu não sabia o que era. Eu aprendi Konitua,
Ah, eu lembrei de uma coisa. Eu li muitos boa tarde, Saionara, boa noite. Hamaté é até
livros da Seicho-no-ie. logo. Bom dia é.... Nossa, eu sabia. Peraí,
deixa só eu lembrar. Fugiu.
Entrevistadora: Nessa época?
Entrevistadora: Então esses livros da
Entrevistada: Nessa época não. Depois
Seicho-no-ie foram muito legais.
que eu ganhei o meu primeiro filho. Eu li um
livro da Seicho-no-ie que era 10 passos para Entrevistada: Foram. Sabe por quê? Só
a prosperidade, li Dinamize sua capacidade tem palavras positivas. Um dia vai lá e
e não sei o que lá dos jovens. Eram tipo escolhe um livro para você. Esse Dinamize
livros de auto-ajuda mesmo. sua capacidade, nossa, foi muito importante
na minha vida também. Muito importante.
Entrevistadora: E foi importante para você
ler esses livros? Entrevistadora: O que ele trouxe para sua
vida?
Entrevistada: Foram muito importantes.
Mas eles também entravam na parte Entrevistada: Ele diz que você é capaz
espiritual, viu? [risos] Esse 10 passos para a de tudo. Ele diz que você é, que não tem nada
prosperidade era para aprender como se dar que você não possa fazer. E aí eu sempre
bem na vida, financeiramente, mas eles falei isso para os meus filhos, o que eu
explicavam muito o plano espiritual. É do aprendi nesse livro. Minha filha às vezes fala
Japão também. Tudo que é do Japão me atrai “será que isso? Será que aquilo? ” Aí desde
com muita força. Até o idioma japonês, o quando ela se entende por gente, ela me
pessoal está falando e eu estou prestando perguntava e eu falava “Não há nada que
atenção. Então eles falam uma palavra e eu já você não consiga fazer. Nada! ” Esse livro foi
pergunto. Se eu vejo que eles falam muito um muito importante para mim. Eu insisti muito
palavra eu pergunto. Até no outro dia eles para que o meu filho lesse quando ele era
estavam falando muito uma palavra, eles novinho, ele tinha 11 anos, mas é que ele é
falavam korê, korê. Aí eu perguntei o que era fininho. Eu disse “Vítor, faz um esforço para
korê. É como. É uma palavra de ligação, você ler esse livro porque ele é muito legal”.
como é que fala...
Entrevistadora: E o Vitor leu? Ele gostou?
Entrevistadora: Uma conjunção.
Entrevistada: Ele gostou.
Entrevistada: É. Por exemplo, ‘Eu vôo
Entrevistadora: Você ainda tem esses
como borboleta”. Tipo uma fantasia, fazer
livros na sua casa?
uma comparação. Aí eu já aprendi também
Arigatô Kosaimá. Arigatô eu já sabia porque
352

Entrevistada: Eu tenho. Posso perguntar também meio moleca. Eu falei para ele assim

e até te emprestar. “Então você pode falar do Residente vil, você


pode falar, é que eu também sou romântica”.
Entrevistadora: Tem muitos livros na sua
Tem vários outros filmes, mas como é para a
casa?
idade deles, no momento não tem como eles

Entrevistada: Tem mais porque meu falarem dos outros.

filho que compra. Meu filho pega todo Entrevistadora: Você é romântica?
dinheiro dele e compra em livros. [risos] Em
Entrevistada: É. Eu li e gostei daquele
mangás e aqueles outras da, que até
colecionador gosta, que fala dos super heróis filme, não lembro o nome inteiro. Não sei o

antigos. que lá do Ipê.

Entrevistadora: Da Marvel? Entrevistadora: O tronco do Ipê?

Entrevistada: É. Tem até um nome lá. Entrevistada: O tranco do Ipê, que tem

Ele tem um canal no YouTube. Nossa, você até um outro que é muito parecido. Não sei se

ia gostar muito de ver ele. Ele narra jogos de é o Til. Acho que é o Til que é dele também.

vídeo game e aí a voz dele é muito legal. É Também comecei a ler ele um pouco, mas

que eu sou mãe, né? [risos] Mas no canal também não li tudo. Mas não porque eu não

dele tem um programinha agora, um gosto, porque faltou um pouco de

noticiário. Ele fala de vários filmes novos. Aí organização na minha vida. Então eu

eles pede ideias. Aí ontem mesmo eu falei começava uma coisa e depois já queria

“olha, Vitor, você fala dos filmes novos, mas começar outra. Começava sem terminar então

é bacana você tem uns cinco minutos de túnel isso é realmente uma falta de organização

do tempo para você falar dos filmes antigos minha. Na vida. Mas graças a Deus meus

que também são muito legais”. E tem gente filhos não são assim. [risos]

que não conhece os filmes antigos. Os Entrevistadora: E depois que você saiu
meninos novos, agora, não conhecem os dessa loja, Arigatô, você saiu de lá?
filmes antigos, não conhecem os filmes bons
que passaram antigamente. Entrevistada: Eu saí porque eu fiquei
grávida, aí eu saí de licença maternidade,
Entrevistadora: De quais filmes você
passou os quatro meses, eu tinha que voltar e
falaria?
deixar o meu bebê. Aí voltei e fiquei um mês.
Entrevistada: Na idade deles, assim, eles Nossa, não consegui ficar mais. Eu não

gostam dessas coisas tipo Resident evil, conseguia, sabe por quê? Porque era como se

Senhor dos anéis. Eu adoro essas coisas eu deixasse a minha alma em casa. Eu sentia

também. Eu adoro. Eu tenho esse lado um vazio tão grande. Não conseguia mais
trabalhar assim. Aí depois de um ano. Por
353

exemplo, quando ele fez um ano eu tentei Entrevistada: Hoje em dia eu trabalho é,
voltar a trabalhar num salão de cabelereiro. com energia de luz.
Trabalhei uns 6 meses. Também não
Entrevistadora: E você pretende continuar
consegui ficar.
a trabalhar com energia de luz?
Entrevistadora: Como cabeleireira?
Entrevistada: Sim. Não é uma coisa que
Entrevistada: Como ajudante de
eu vá parar nunca.
cabeleireira. A minha tia é cabeleireira,
Entrevistadora: Mas você não ganha nada
então...
com isso?
Entrevistadora: Alguma coisa você sabia.
Mas você também não conseguiu ficar? Entrevistada: Não ganho nada.

Entrevistada: Não porque ele era Entrevistadora: Você pretende conciliar


com algo que te traga renda?
pequenininho.

Entrevistadora: Você não tentou mais Entrevistada: Sim. E ainda quero fazer

depois? uma faculdade. [risos] Porque para eu


conseguir um trabalho melhor eu preciso de
Entrevistada: Tentei. Tentei várias vezes
uma graduação.
voltar a trabalhar. Mas nunca consegui
Entrevistadora: Então foi por isso que
porque eu sempre sentia um vazio longe dele.
você voltou para o ensino médio?
Depois eu tive mais uma menina porque ele
estava crescendo e ele cobrava muito eu Entrevistada: Foi. Mas eu não me
brincar. Aí eu percebi que ele estava se
esforcei o tanto que eu gostaria, eu não me
sentindo sozinho e eu cresci assim, meio que
comportei como eu gostaria. Assim, eu não
sozinha. Eu cresci separada de todos os meus
frequentei todas as aulas porque eu não
irmãos.
conseguia frequentar. Eu chegava na sala de
Entrevistadora: Você queria que ele aula e já ficava irritada. Então não foi como
tivesse a experiência de ter um irmão. antes. Eu precisava, eu preciso focar mesmo
se seu for começar uma faculdade porque eu
Entrevistada: Sim, porque irmão é tão
sou uma pessoa daquela detalhista. Eu não
bom. Uma cumplicidade. Aí, por exemplo, gosto de perder nem uma vírgula.
quando os pais morrem ficam os irmãos, né.
Entrevistadora: E se você fosse dar aulas
Entrevistadora: Hoje em dia você de Língua Portuguesa, como seriam suas
trabalha, certo? Como eu posso falar? aulas?
354

Entrevistada: Eu gosto muito da parte Entrevistada: Não mais. Só às vezes ele


de gramática. Então eu entraria mais nessa vê futebol.
parte porque, assim, eu sempre corrijo o meu
Entrevistadora: Ele também vai no projeto
filho.
de luz?
Entrevistadora: Por que você gosta tanto
Entrevistada: Ele frequentou por
de gramática?
bastante tempo, mas como ele trabalha muito,
Entrevistada: Ah, eu não sei o porquê, ele faltava muito no trabalho. Alguém tem
eu não sei. Mas eu consigo ver o sentido. que fazer a parte material, né? [risos]
Tem vezes que falta, não só gramática. Às
Entrevistadora: Ele é mais pé no chão.
vezes a gente lê um texto que está meio sem
sentido, eu sei corrigir também. Entrevistada: É exatamente isso que
você falou. Eu sou muito... Eu não tenho
Entrevistadora: Você consegue fazer a
muito os pés no chão. Eu vivo nesse mundo,
revisão de um texto?
assim, de beleza porque isso deixa a minha
Entrevistada: Isso. Eu falo para o meu alma leve e eu gosto de despertar o sorriso
filho “Aqui precisa de um ponto”. Essa é a das pessoas. Então eu gostaria muito...
parte de gramática, não é? Falar “Essa Assim, se eu fosse dar aulas de português, eu
palavra aqui está sem sentido, essa palavra escolheria histórias que sempre tivesse finais
não combina, é feia, tem palavras melhores”. felizes.
Ah, o Ataúfo me ensinou a usar palavras
Entrevistadora: Como você imagina sua
mais ricas para o texto ficar melhor. Então,
vida daqui dez anos?
eu faria um texto cheio de beleza. Acho que
eu escolheria os mais belos. Realmente, eu Entrevistada: Realmente, eu quero estar
escolheria coisas belas para as crianças passando uma coisa boa para as pessoas. Eu
encherem a imaginação de, sabe, para elas não sei se é com o inglês, se eu vou
entrarem num mundo de beleza e não nesse realmente fazer essa faculdade de inglês. Ou
mundo que passa na televisão. A televisão se eu for fazer português, letras. O que eu sei
não é coisa para criança assistir. Nem adulto. é que eu quero passar algo de bom para as
Lá em casa a gente não assiste televisão. A pessoas. E eu tenho um terreno lá no interior,
gente vai direto na internet e assiste algum que a gente comprou e lá tem um monte de
programa, documentário. Não tem nada na árvores frutíferas. A gente cultiva muito a
televisão. Só em canal fechado. agricultura natural. Os alimentos daqui vem
tudo com agrotóxicos e também não é
Entrevistadora: Seu marido também não
qualquer tipo de carne que eu como. Eu
assiste televisão.
compro mais da Korim, já ouviu falar?
355

Entrevistadora: Não. caso, eu fui primeiro na Fé correta. Mas,


assim, porque esse aqui é uma introdução de
Entrevistada: Korim é um frango que
todos os outros, um resumo de todos os
também é da associação... . Você coloca lá
outros. Mas é porque eu tinha que ler porque
Korim e você vai ver que é da fundação ....
eu ia receber um rikai mais forte, é como se
Esses frangos, eles são criados em terreiros e
fosse uma graduação a mais. Tem o rikai
eles fazem o ciclo certinho. A galinha, ela
pendante e o comeu pendante. Tem mais
cuida dos pintinhos, os pintinhos recebem
força na energia. Agora, por exemplo, o
amor. Eles comem vegetais e as galinhas
Johrei é um item que talvez, página 76. Mas
botam os ovinhos com propriedades mesmo e
eu fui na Fé correta e está lá no final. Então
o frango não vem com hormônio, nem
eu faço isso, mas o Johrei 76, vamos ver se
antibióticos. Hoje em dia você compra esses
tem alguma coisa bem legal para você. Vou
frangos que crescem em menos de 45 dias.
ver um trecho aqui que explique um pouco
Esses outros frangos, não. Eles crescem no
mais do Johrei. Aqui:
tempo certo. Acho que são 65 dias. Aí, o que
eles fazem? Quando tem que ir para o abate, Johrei é uma manipulação científica elevada,

é feito um culto de elevação para o espírito que deverá ser comprovada com o

das aves. Esses aves, no culto, terão desenvolvimento espiritual....

entendimento que vieram para cumprir Já foi comprovada pela ONU. Coloca na
missão de alimentar o homem. internet

Então daqui a 10 anos eu quero ter mais Entrevistadora: E você lê de uma vez ou
conteúdo para passar para as pessoas. Por você lê um pouquinho e para? Por exemplo,
exemplo, se eu puder dar aulas de inglês. você escolheu ler a Fé correta, então você
Essa faculdade da Cultura inglesa é nova, leu...
mas quem consegue essa graduação pode dar
aulas até lá fora. São quatro anos só de Entrevistada: Eu leio toda aquela parte.

inglês. Entrevistadora: Você lê só na sua casa ou


Entrevistadora: Só para terminarmos, eu em qualquer lugar?
gostaria de retomar a questão da leitura. Você
Entrevistada: Não, eu leio, esses livros
tem um livro na sua bolsa, eu queria saber
aqui eu leio em qualquer lugar. Por quê? Eu
como você lê. Quero dizer, quando você vai
consigo me entreter com eles. E, assim, até
começar a ler um livro novo, como você faz?
nas palavras nós acreditamos que existe
Entrevistada: Eu começo pelo índice, energia. Então, conforme você vai lendo, dá
né? Aí eu vejo o que mais me atrai primeiro. um despertar.
[risos] Aí então eu vou lá. [ela abre o livro e
começa e se referir ao índice] Esse aqui, no
356

Entrevistadora: Você tem que comprar palavras que não tem como substituir o
esses livros ou eles são distribuídos? sentido, o sentimento.

Entrevistada: Nós compramos, mas é Entrevistadora: Por conta das aulas de

um valor, realmente, só para pagar o Língua Portuguesa você teve que ler algum

material. Esse aqui é R$ 10,00. livro?

Entrevistadora: Quem te apresentou o Entrevistada: Para a aula não porque não


Johrei? dava tempo. Ela tentou dar um pouco a
matéria ali, falar das coisas que caem no
Entrevistada: Minha tia, um primo meu
ENEM, mas ela não pediu, talvez porque ela
estava sofrendo com depressão,
deveria saber que a maioria não ia ler. A
esquizofrenia, essas coisas. Ela levou ele para
maioria estava que estava ali não fazia
receber. Ela só me indicou para eu receber
nenhum exercício, então... Assim, ela fazia a
também. Quando ela falou, eu sempre
leitura com a gente em sala porque ela sabia
passava na frente do Johrei e eu nunca
que em casa a maioria não iria fazer nada.
entrava porque eu via que eles estavam
Então ela lia aquele livro lá que ela levava.
ministrando, mas eu tinha medo de perguntar
Ela sempre levava aquele livro de Português
o que eles estavam fazendo.
para a gente.
Entrevistadora: Aí você tinha curiosidade
Entrevistadora: O livro didático é o
de ver o que era aquilo?
mesmo desde o começo do ano?

Entrevistada: É, só que o que ela me


Entrevistada: É o mesmo e ele tem
indicou outro. Esse que eu conheci, na Praça
trechos do Capitães de areia. Trechos de
da Árvore, tinha muita força. Você já começa
Vinícius de Moraes. A gente leu um texto de
a sentir. Você sente a personalidade das
Vinícius de Moraes lindo também.
pessoas. É igual você ter feito graduação.
Entrevistadora: Então é isso. Muito
É muito ensinamento que vem do Japão e
obrigada.
eles tem que passar do japonês para o
português. É muito difícil porque o sentido Entrevistada: De nada, fiquei feliz que
fica totalmente errado. O intérprete até passa pude ajudar de alguma maneira.
para o português, porém ele não consegue
Entrevista com a aluna Clair
colocar o português correto ali. Achar aquela
01/12/2014
palavra mesmo, que pegou o sentido todo
daquela coisa. Então, por exemplo, amor.
Qual é a outra palavra que a gente possa
substituir por amor? Qual? Difícil. Mãe pode Entrevistadora: E de onde vem esse amor

ser ou Deus, dependendo da fé. Então tem pela televisão?


357

Entrevistada: Não sei, acho que desde eu vim eu era uma pessoa sonhadora,

pequena. A gente não tinha televisão quando ignorante das violências do mundo, das

eu era pequena. Eu lembro que eu andava coisas que poderiam ter acontecido comigo.

quilômetros para ver as primeiras televisões Eu vim com um endereço e um telefone na

que surgiram em Santa Cida eu andava bolsa, confiando em uma pessoa.

quilômetros. Eu e as minhas irmãs, meus Entrevistadora: Você tinha quantos anos?


irmãos pequenos, para ir para a casa dos
amigos assistir televisão. Então a gente Entrevistada: Eu tinha 22 para 23 anos.

assistia programa do Chacrinha. Eram vários Entrevistadora: Você ia ficar na casa de


programas, filmes. Longo, eu andava longe quem?
de noite para ver programas na casa dos
outros. Entrevistada: Então, é eu saí da casa dos
meus, eu terminei a 8ª série com 20 anos. Aí
Entrevistadora: E você tem quantas irmãs?
meu pai falou assim “Bom, agora eu já te dei
Entrevistada: Eu tenho três e um irmão. o estudo que eu podia te dar” porque ele tinha
mais 8 filhos”.Se você quiser continuar
Entrevistadora: Você é a mais velha?
estudando..”. eu sempre gostei muito de
Entrevistada: Eu sou a mais velha de estudar, sempre achei isso muito importante

todos. Somos em nove irmãos e eu sou a “...você vai trabalhar fora e vai continuar a

mais velha de todos. Eu sou a mãezona, foi estudar”. Ai meu pai já até tinha arrumado

eu que trouxe eles para cá. Minha mãe está um trabalho. Naquele tempo, emprego para a

em Santa Cida. gente era em casa de família. Meu pai tinha


arrumado um emprego num munícipio lá
Entrevistadora: Você é de lá? Toda sua
perto, na casa de um professor que eu
família é de lá?
conhecia, estava tudo certo para eu ir e eu

Entrevistada: Sou gaúcha e fui criada não quis ir. Eu combinei com uma amiga
minha que tinha feito a oitava série comigo
em Santa Cida. Eu tinha dois anos e meio
falou “vamos embora para Foz do Iguaçu,
quando meu pai mudou para lá. Meu pai
que é no Paraná, que eu tenho uma irmã lá e
mora lá até hoje. Aí eu vim para São Paulo
ela arruma um emprego para a gente”.
assim, por ser boba demais. [risos]
Emprego em casa de família que era a única
Entrevistadora: Por quê? coisa que a gente conseguia fazer. Aí lá

Entrevistada: Porque, assim, se fosse viemos nós duas. Minha mãe não queria
deixar de nenhum jeito porque era muito
hoje, conhecendo a maldade e a malícia do
longo, no Paraná, outro estado, muito longe.
mundo, eu jamais viria. Não que eu não goste
Para ir em casa não ia ser fácil. Aí eu me
de estar aqui, claro que eu gosto. Mas quando
mandei para Foz do Iguaçu com a Marieta,
358

essa minha amiga. Aí chegamos lá e fomos quando a gente saiu de Foz do Iguaçu, eu e
para a casa da irmã dela. O marido dela, as essa amiga, não, digo, de Santa Cida, ela
crianças acolheram a gente. Depois, a irmã também queria vir para São Paulo. Então, nós
dela conhecia muita gente em Foz do Iguaçu duas tínhamos combinado. Ela sempre falava
e começou a procurar emprego para ela e que queria vir para São Paulo. Um dia,
para mim, em casa de família. E aí eu fiquei conversando, ela falou: “eu sonho vir para
2 anos em Foz do Iguaçu. Mas meu sonho era são Paulo ”. E eu falei “eu também tenho
vir para São Paulo. Não sei porquê, mas esse sonho. Vamos juntas? ”. Só que aí nós
desde os meus 12 anos e tinha essa coisa na viemos para Foz do Iguaçu, nós duas, e ela
cabeça: “Quero ir para São Paulo”. Acho que era muito danada [fala baixo] para algumas
quando eu tinha 12 anos meu pai comprou coisas. Ela começou a sair com os homens e
um rádio, aí meu pai ouvia São Paulo e eu engravidou. Aí eu fiquei sozinha com aquele
achava que era o paraíso. [risos] Aquela coisa meu sonho de vir para São Paulo. Eu pensei
de criança, 12 anos, para mim São Paulo era “agora está osso porque sozinha não tem
o paraíso e eu queria conhecer, mas eu não como”. Fiquei lá em Foz do Iguaçu
tinha ideia do que era. Nossa, eu trabalhava trabalhando. Eu trabalhava num hotel pensão
na roça até os 20 anos. Eu não tinha ideia do perto da rodoviária. Eu trabalhava de
que era uma cidade grande. arrumadeira. Eu ajudava a limpar, ajudava a
lavar a roupa. Tinha a dona, que era uma
Entrevistadora: O que você fazia ou
senhora, e tinha uma outra senhora que
cultivava na roça?
ajudava a fazer as coisas também. Eu entrei
Entrevistada: Ajudava a fazer tudo. de ajudante porque eu era conhecida dessa
Plantava milho, colhia milho, capinava mato, irmã da minha amiga. E eu fui trabalhar lá.
assim, tirava o mato do meio do caminho. Nesse lugar eu conheci essa senhora que era
Tudo. de São Paulo. D. Terezinha, ela comprava
coisas lá no Paraguai. Todo mês ela ia uma
Entrevistadora: Junto com seu pai?
vez para o Paraguai. Ela ia uma vez por mês
Entrevistada: Tirava leite, junto com para Miami e outra vez no mês ela ia para o
meu pai, minha mãe, meus irmãos. Tirava Paraguai. E daí ela comprava um monte de
leite de vaca, fazia tudo. Tratava os porcos, coisas e às vezes ela pagava para a gente
dava pasto para os porcos. Fazia tudo isso, atravessar a ponte para ajudar a trazer
daí você vir para uma cidade grande. whisky, roupa. Whisky, por exemplo, só
Imagina? Eu tive muita sorte. Hoje, quando podia trazer dois por pessoa. Ela ia na loja,
eu penso, eu penso assim “nossa, eu tive comprava um monte, que ela ia trazer para
muita sorte. Deus me protegeu muito” .São as São Paulo, e deixava guardado na loja,
orações da minha mãe porque podia ter porque eles já conheciam ela. Daí ele levava
acontecido tanta coisa comigo; porque a gente e ia trazendo.
359

Entrevistadora: Vocês faziam várias o telefone e endereço e, eu acho, ela pensou


viagens. assim: “vou dar por dar, mas ela não vai ser
doida de ir”. E eu não fui doida de vir sem
Entrevistada: Isso, cada pessoa podia
avisar.
trazer dois. Aí quando a fiscalização entrava
no ônibus a gente só estava com dois whisky Entrevistadora: Um mês depois?

cada um, passava. Depois ele colocava tudo Entrevistada: Não, demorou, deixa eu
na mala e trazia para São Paulo para vender
ver. Ela me deu esse telefone e esse endereço
aqui. Essa senhora se tornou muito amiga
no meio do ano mais ou menos. Aí eu fiquei
minha. Toda vez que ela vinha de São Paulo
com aquilo na cabeça, sabe? Um sonho de
ela não ficava em outro lugar que não nesse
infância ir para São Paulo. Era a única chance
lugar aí que eu trabalhava. Uma senhora
que tinha aparecido de vir para São Paulo e
muito legal. Eu tive sorte. Aí um dia ela me
eu tinha que agarrar aquela chance. E com
chamou no quarto dela “ah, vem ver os
aquela minha ignorância daquela época. Eu
vestidos bonitos que eu comprei lá no
era muito ignorante. Eu não via maldade
Paraguai ” Daí eu fui. A gente sempre
nenhuma. Eu achava que todas as pessoas
conversava. Aí, não sei o porquê, calhou de
eram boas que nem eu lá no meio do mato.
cair a conversa de estudo. Eu comentei com
Não fazia maldade com ninguém, não matava
ela, assim, dentro do quarto dela lá no hotel.
uma barata. Eu achava que todo mundo no
Eu comentei com ela “Ah, eu vim para Foz
mundo era assim, igual a gente do interior.
do Iguaçu porque eu queria muito estudar,
Eu fiquei com isso na cabeça até o resto do
mas até hoje eu não tive oportunidade. Não
ano. Eu fiz os planos, na minha cabeça. Eu
deu certo”. Em Foz do Iguaçu era meio difícil
vou trabalhar até o fim do ano e quando
naquele tempo.
chegar o fim do ano pego férias, vou viajar
Entrevistadora: Que ano era? para Santa Cida ver minha mãe, passar o
Natal com ela. Não vou falar nada para ela
Entrevistada: 1982, é 1982. Ai ela falou
porque se eu falar ela vai dar cria. [risos] Ela
assim “ Por que você não vai para São Paulo?
já não gostava que eu tinha ido para Foz do
Lá é muito mais fácil. Lá tem supletivo, tem
Iguaçu, imagine se ela soubesse que eu
não sei o quê”. Eu falei, “olha D. Terezinha,
queria vir para São Paulo? Ela não ia deixar
mas eu não conheço ninguém em São Paulo.
de jeito nenhum. Ai o que eu fiz? Tudo
Como é que eu vou para São Paulo? ” Daí ela
planejado dentro da minha cabeça. Viajei,
falou “Não, eu vou te deixar meu endereço
passei um mês lá de férias. Nem a minha
com você e meu telefone. Eu não preciso de
patroa de Foz do Iguaçu não sabia.
empregada, mas eu arrumo para você porque
eu conheço muita gente”. Com as vendas Entrevistadora: Estava tudo acertado na

dela, ela conhecia muita gente. Aí ela me deu sua cabeça?


360

Entrevistada: Tudo na minha cabeça. Aí, tinha falado nada para ela porque acho que

quando eu cheguei de volta, passei um mês ela até tinha esquecido que tinha me dado

com a minha mãe e em janeiro, quando eu esse telefone. Ela só fez por obrigação

voltei de folga eu falei para a D. Carmen: mesmo, por constar. Acho que, na cabeça

“olha D. Carmem, eu vou trabalhar um mês e dela, ela nunca pensou que eu fosse vir

vou embora”. “Você tá doida? Para onde mesmo e eu, bobona, vim parar no Tietê.

você vai? Arrumou outro emprego? “ Ela Naquele tempo a única rodoviária era o Tietê.

achou que eu tivesse arrumado outro Eu vim parar no Tietê sozinha, sem a minha

emprego. Eu falei “não, eu vou embora”. família saber. Minha família, se me

“Mas para onde? “ Eu disse “Eu vou para São procurasse em Foz do Iguaçu, não iria saber

Paulo”“. Você tá doida? Você vai sozinha?”. onde eu estava. Nem a D. Carmen sabia onde

Eu não disse quem era, porque senão ela ia eu estava. Só eu sabia onde eu estava. Eu e

ficar com raiva da D. Terezinha, “não é que Deus.

eu conheci um amigo do meu irmão”. Menti. Entrevistadora: Se acontecesse alguma


Ela ficou muito triste porque ela me tinha coisa ninguém ia saber nem onde procurar.
como filha na casa dela, que eu morava lá
também. Ela me tinha como filha, ela gostava Entrevistada: Exatamente. Aí eu cheguei

muito de mim, mas daí ela foi, acertou tudo na rodoviária em São Paulo. E aí? Eu não
comigo, pagou todos os meus direitos. Foi estava acostumada com aquele mundo.
tudo certinho e eu não gastei um centavo. Escada rolante eu nunca tinha visto na minha
Pensei assim “Se eu for para lá e não gostar vida. Mas eu prestei atenção. Eu tinha muito
ou então me perder, não achar a D. sangue frio. Até hoje eu me admiro, eu ainda
Terezinha, eu tenho dinheiro para voltar ”. tenho esse sangue frio para resolver as coisas.
Tudo o que eu tinha era uma mala que o meu Eu não resolvo as coisas na emoção. Eu sou
pai tinha me dado lá em Santa Cida dois anos muito emotiva, tudo me toca, mas na hora
atrás, e minhas coisinhas, minhas roupinhas e que eu tenho que resolver uma coisa, ou na
uma bolsa de mão. A mala, calçado, roupa e hora em que eu estou passando por uma
uma maletinha que era minha bolsa de mão. dificuldade... Eu fui assaltada três vezes e
Não comprei um grampo. Peguei, guardei todas as três vezes sempre fui sangue frio. Eu
bem aquele dinheiro, comprei a passagem sempre segurei o ímpeto, sempre com aquela
para São Paulo, cuidando muito bem daquele confiança que tudo ia acabar bem e,
papel, com aquele telefone e aquele endereço realmente, tudo acabou bem. E daí nesse dia
e rezando, pedindo a Deus que me eu lembro que eu cheguei na rodoviária, eu
amparasse. E lá vim eu. Saí de lá nove horas nunca tinha visto uma cidade grande. Eu
da noite de um dia e fui chegar em São Paulo lembro que eu olhei pela janela do ônibus
duas horas da tarde do outro dia. Mas a D. que eu vim e tinha um viaduto passando por
Terezinha não sabia que eu vinha. Eu não cima de mim, eu falei: “meu Deus, olha onde
361

eu vim parar. E agora? E se eu não souber me esperando e com o dinheiro na mão. O


mais voltar para casa? ” [risos] Foi assim dinheiro do táxi. Eu falei que não precisava
que eu vim parar em São Paulo. Ai eu pagar porque eu tinha dinheiro. Ai ela estava
cheguei na rodoviária, pensei, “bom, tenho chocada, né? Não esperava que ia vir assim,
que saber onde a D. Terezinha mora. Vou caindo de paraquedas na vida dela. E o
ligar para ela”. Eu desci, procurei um marido nunca ouviu falar no meu nome que
orelhão, naquele tempo era orelhão que tinha ela nunca tinha comentado nada. Ele teve que
ficha ainda. Comprei umas fichas e liguei me receber na casa dele porque eu não tinha
para a D. Terezinha. A sorte é que ela para onde ir. E o marido dela não gostou nem
atendeu. Eu falei: “Oi, D.Terezinha, é a um pouco. Ele não falou nada para mim, não
Clair”. Ela falou “Clair? “ “É, aquela que me maltratou, mas falou para ela. Eles tinham
trabalha com a D. Carmen”. “Ah, tá. Tudo um filho de 14 anos na época. Ela me
bem? Como é que está a D. Carmen? ” “ Eu colocou em um quarto de hóspedes para
não sei, eu saí de lá ontem”. Ela falou: “O dormir porque eu cheguei, devo ter chegado
quê?!”“. Eu estou aqui em São Paulo”. “Você na casa dela umas três e meia, quatro horas
está doida?”. da tarde mais ou menos. Ela me falou para
tomar um banho e ela me deu comida. Eles já
Entrevistadora: Ela levou um susto.
tinham almoçado. Ela preparou comida e me
Entrevistada: Ela levou um susto e ela deu e falou: “Agora vai dormir. Amanhã a
falou “Onde você está? “ Eu falei “Estou no gente conversa”. Aí eu dormi até o dia
Tietê, na rodoviária”. “Você pode me seguinte. Quando foi oito e meia da manhã eu
explicar o que tem à sua volta parra eu te acordei e falei “Estou em São Paulo! E agora
orientar? Você está vendo algum taxi aí?” ?” [risos] Eu levantei, fui lá para dentro. O
Daí estava perto do orelhão, eu falei “aqui quarto onde eu dormi era lá fora. Acho que
tem alguns”. Ela falou “Faz o seguinte, pega era quarto de empregada. Não era um quarto
o taxi. Você está com o meu endereço? Pega de empregada porque era um quarto grande.
um taxi e fala para o motorista vir com você
Entrevistadora: Onde era a casa?
pelo Parque D.Pedro porque se ele souber
que você não é daqui ele vai dar voltas e Entrevistada: Ali no Cambuci. Até hoje
voltas com você e vai cobrar mais. Eu vou tem essa casa lá. Eles fizeram algumas
estar no portão da minha casa te esperando”. reformas e está um pouco diferente. Mas na
Entrei no taxi e falei para o motorista: “Eu época tinha um quarto lá no fundo, lá fora,
quero ir para tal endereço, mas o senhor vai um quarto grande. E eu dormi lá, depois subi.
pelo Parque D.Pedro que é mais perto”. Eu Quando eu cheguei, o filho dela tinha ido
fiz de conta que eu sabia e ele veio e me para a escola e o marido tinha ido trabalhar.
levou direitinho até a casa dela. Quando eu Daí ela falou para mim que o Darwin não
cheguei na casa dela, ela estava no portão tinha gostado muito mas, enfim, eu não vou
362

te jogar na rua”.O que você quer de São a porta para ninguém. Faz de conta que não
Paulo?” Eu falei: “Bom, D. Terezinha, meu tem ninguém em casa”. Dai eu aproveitei
objetivo é estudar. Eu preciso estudar”. Foi a esses dias que eu fiquei em casa para limpar
primeira coisa que veio na minha cabeça. os armários dela, fiz uma faxina. Uma boa
Bom, e já era fevereiro porque eu tinha faxina na cozinha dela. Limpei armário,
pedido a conta começo em janeiro na D. parede, tudo. Aí teve um dia que ela ligou de
Carmen, daí esperei um mês ainda até ela noite para mim, estava de noite e eu estava
acertar tudo comigo, até ir no contador e.... assistindo a novela na sala e ela ligou”.Clair,
vai passar um rapaz aí, ele é meu filho,
Entrevistadora:... resolver os trâmites.
chama Édson e a mulher dele teve neném
Entrevistada: Isso, mais de um mês. Eu ontem e ela vai chegar em casa amanhã e ele
sei que era metade de fevereiro mais ou precisa de uma empregada pelo menos por
menos, quando eu cheguei em São Paulo. Daí um tempo. Você quer ir?” Claro que eu
ela falou que nessa época não ia ter mais aceitei. Dali a pouco ele bateu na porta e
vaga em colégio estadual, ela disse que eu falou que era o Édson e eu abri a porta. Ele
tinha que fazer colégio pago. Eu ia ter que combinou comigo, no dia seguinte, como eu
trabalhar em casa de família e pagar o não conhecia nada de são Paulo, ele
colégio. Mas ela ficou de ver com o amigo do combinou de pegar lá oito e meia da manhã
filho dela que estudava em um colégio perto do dia seguinte para eu ir para a casa dele
da casa dela. O Santa Inês. Hoje em dia não porque a mulher dele ia chegar de tarde da
existe mais o supletivo Santa Inês. Aí ela maternidade. Eles já tinham duas menininhas
pegou o carro e me levou lá no Santa Inês, e eu fiquei trabalhando na casa deles e
me matriculou. Eu tinha um dinheiro. Ela me estudando. Eu trabalhava o dia inteiro na casa
matriculou, eu paguei a matrícula, ela fez deles e à noite eu ia estudar lá na Santa Inês.
uma carta, como se eu fosse empregada na
Entrevistadora: E a casa deles era perto do
casa dela para eu ganhar um desconto. Eu
seu colégio?
lembro que eu ganhei 30% de desconto na
mensalidade da escola. Aí eu fiz o primeiro e Entrevistada: Era perto. Eu ia andando.
o segundo ano do ensino médio. E eu não Eu ia e voltava à pé da escola. E foi assim
tinha emprego. Eu estava na casa dela e ela ia que eu comecei minha vida em São Paulo. Eu
arrumar emprego para mim. Ai ela falou que fiz o primeiro e o segundo ano, só que no
estava tudo bem, para eu ficar na casa dela meio desse ano, porque eu fiz os dois anos
alguns dias e estava perto do carnaval. Ela em um ano só, no meio do ano, essa minha
falou “Olha, eu vou passar o carnaval na patroa que era nora dessa D. Terezinha, eles
praia com o meu filho e o meu marido”. Olha resolveram mudar de casa. Arrumaram uma
a confiança que ela teve em mim”.Eu vou casa lá na Casa Verde e eu trabalhava com
deixar a chave com você, mas você não abre eles ali na Aclimação. O Santa Inês era no
363

Cambuci, na Lins, e eu trabalhava na Entrevistadora: E como você se sentiu


Aclimação, perto para ir à pé. Por causa da quando você teve que parar de estudar?
escola eu não quis ir com a mulher. Ela
Entrevistada: Na época eu fiquei bem
queria porque queria me levar junto para
frustrada. Muito frustrada, muito triste
cuidar das crianças porque as crianças já me
pensando “eu tenho que voltar, eu tenho que
conheciam, já gostava de mim e tal. Mas eu
voltar”. Mas a vida era tão difícil para quem
não quis ir de jeito nenhum porque eu
não tem profissão, até hoje é assim, então
priorizei o estudo, eu queria terminar, eu
você sempre tinha que priorizar uma casa
gostava muito daquela escola, eu achava a
para morar e a comida, a roupa, o calçado e
escola muito boa. Eu estava indo muito bem
não sobrava. Agora que a gente tem sorte que
lá então eu não quis largar. Ela falou “Não
o governo dá estudo mais acessível para as
tem problema, eu arrumo outra amiga aminha
pessoas. Naquela época não, naquela época
que também precisa, então você fica na casa
estudava quem tinha dinheiro. Quem não
dela”. Ela morava do outro lado da rua. Aí
tinha... Só que daí, depois, foi passando o
deu tudo certo. Aí essa minha ex-patroa me
tempo, foi passando o tempo, eu comecei a
deixou com a amiga dela que também tinha
achar que eu não tinha mais capacidade para
dois menininhos e os nenês tinham mais ou
estudar. Como tinha passado muito tempo, eu
menos a mesma idade. Daí eu fui para a casa
achava que eu não lembrava mais, eu achava
dela, a Marlene. Fiquei lá um ano. Aí eu
que a minha cabeça não ia dar para
terminei o ensino médio, terminei o segundo
acompanhar as coisas, os meus colegas, que
ano e comecei a fazer o terceiro. Só que daí
eram mais novos. Foi passando o tempo,
eu briguei com a Marlene, não deu certo. Aí
passando o tempo. Eu tenho um filho de 20
eu fui morar em pensão. Uma outra
anos. Daí teve filhos, aí já vai... Ou seja, eu
conhecida, porque aí eu já tinha mais gente
achava que eu já não era mais capaz de
conhecida, quando eu trabalhava na casa
estudar. Era essa a verdade, eu não votava a
dessa Marlene eu conheci uma outra moça
estudar porque eu achava que eu não tinha
que morava em uma pensão, uma mulher que
mais capacidade para aprender, que o que eu
alugava para moças. E aí eu fui morar nessa
tinha aprendido ali, ou então eu só ia
pensão e trabalhar em outras coisas. Daí a
aprender. Porque assim, eu sou muito ligada
mulher foi comigo arrumar empego e ela
no que está rolando no mundo. Eu assisto
começou a trabalhar em uma fábrica de bolsa
muito jornal, documentário. Eu sou espírita
e sacola. Só que daí eu tive que largar os
Kardecista. Eu estudo muito o Kardecismo.
estudos porque eu tinha que pagar comida e
Eu tenho outros estudos, mas sentar numa
moradia. Casa de família era fácil porque eu
sala de aula, para mim, sentar numa sala de
tinha casa e comida de graça. Com o dinheiro
aula e assistir uma aula, eu achava que eu não
eu podia estudar. Ai eu passei 31 anos sem
tinha essa capacidade mais. Eu achava que já
estudar e agora eu voltei.
364

não estava mais... E aí o que foi que Entrevistada: Eu falei “Meu Deus, como
aconteceu? Eu trabalhava num restaurante, alguém tem coragem? ” Você vai trabalhar
no caixa, à noite. Fiquei seis anos lá. O para ser, eu trabalhei de secretária de médico,
restaurante fechou, eu ganhava bem, tinha eu trabalhava para cinco médicos para ganhar
um padrão de vida razoável e eu moro R$800,00. Aí registra e fica R$600,00. Como
sozinha com meu filho. Eu criei ele sozinha, é que alguém tem coragem de oferecer um
nunca morei com o pai dele. Foi um caso que salário desses? E aí por sorte, quando eu fui
eu tive, de oito anos. E eu engravidei e eu pedir o seguro-desemprego, o CAT me
achei que era a última chance que Deus forçava a fazer um curso no Senac e eu fiquei
estava me dando para eu ter esse filho e eu muito brava na época. Nossa, eu fiquei
tive. O pai nunca me deu muito apoio, mas eu enlouquecida no dia eu xinguei a moça,
sempre fui muito equilibrada de saber separar coitada, ela não tem culpa. Isso é lei, mas eu
eu e o pai e a criança e o pai. Eu nunca usei fiquei muito puta da vida com a moça. Daí
meu filho para chantagear. Jamais. Eu tinha três cursos para escolher: cuidadora, de
sempre pensava muito “meu filho tem direito idoso, telemarketing e balconista de farmácia.
de ficar perto do pai, o pai tem o direito de Eu escolhi o menos pior que eu achei, que era
ficar perto do filho”. E graças à Deus, ele balconista de farmácia. Desde o primeiro dia
faleceu há dois anos, o pai dele, mas o meu que eu fui nesse curso eu me senti tão bem
filho via ele, tem o maior respeito por ele, o naquela classe. Você tem que ver como eu
maior carinho. Eu nunca atritei os dois por me senti. Eu pensei “gente, eu estou no meu
conta disso, mas eu sempre criei ele sozinho. lugar, é aqui que eu quero estar”. [risos] Por
Quem me ajudava era minha família, meus isso que eu voltei a estudar.
irmãos. Ele tem como pai mesmo o padrinho
Entrevistadora: Você gostou do fato de
dele, que é meu irmão. Ele adora esse tio,
estar na escola?
nossa. Quando ele era pequenininho, quem
rolava com ele no chão, no carpete era ele. Entrevistada: De tudo! De estar na
Nós éramos muito juntos, eu meus irmãos,
escola, eu admirei demais a organização que
minhas irmãs. O padrinho dele era o mais
tem no Senac, a dedicação dos professores
chegado. Até hoje o xodó da vida dele é o
porque, assim, tiveram dois meses de curso
padrinho e o padrinho a mesma coisa. Enfim,
de balconista de farmácia. É um curso rápido,
foram anos muito difíceis e, agora que eu
mas o esforço que eles fazem para ensinar
perdi esse emprego no restaurante, eu
você, o esforço dos professores. Teve três
ganhava uns R$ 1.600,00. Pagava o aluguel e
professores no curso, nesses dois meses.
sobrava um dinheirinho. E aí eu fui procurar
Foram três períodos nesses dois meses. Eu
emprego.
me senti em casa desde o primeiro dia. Eu
Entrevistadora: Aconteceu um choque? falei “Eu posso estudar, sim”. E se você quer
365

saber eu fui uma das melhores alunas da Entrevistadora: Você acha que está
classe. Eu não fui pegar meu certificado, relacionado com o fato de você não ter tido
ainda, mas eu tenho certeza que foi assim e oportunidade...
aqui também. Eu vim estudar aqui e eu tenho
Entrevistada: Muita coisa. É muita coisa
certeza que eu sou uma das melhores alunas
junta desde a infância porque meu pai bebia
da classe porque eu levo à sério, eu sei o
muito. Inclusive, eu sai de casa com 20 anos
valor disso.
por causa do meu pai. Coitado, ele já faleceu,
Entrevistadora: Você fez esse curso no que Deus o tenha. Eu já tinha resolvido esse
ano passado? problema dentro de mim quando ele faleceu

Entrevistada: Não, esse ano. Foi no então eu não fiquei com remorso. Mas é
muita tristeza de criança e eu sofri muito
começo do ano e eu não queria perder porque
preconceito porque eu não sei se você sabe,
eu fiz o curso, eu entrei na metade de junho e
mas no Sul tem muito preconceito. Lá uma
ele acabou na metade de agosto. As aulas
pessoa da sua cor já é considerada negra. Lá
aqui começaram no começo de agosto. É
em Santa Cida você tem que ser branco
começaram em agosto. Em um periodozinho
papel. Então, se você tem essa cor você é
eu estava fazendo os dois. De manhã eu
negro [diz apontando para o próprio braço].
estudava lá, de tarde eu trabalhava no
Então você é sempre deixado de lado, se tem
escritorinho que eu trabalho e de noite eu
bullying eles te pegam o tempo todo. Então,
vinha para cá. Foi puxadíssimo e eu tinha
desde os sete anos de idade eu sofri bullying.
trabalho de lá para fazer, trabalho daqui para
Daí eu sempre me via como prego, cada vez
fazer já. Foi um sufoco para mim, mas eu não
batendo na cabeça, assim, e você vai
queria desistir. E mesmo aqui na escoa, eu
entrando cada vez mais na tábua. Vai
estou conseguindo até quatro horas e eu
afundando cada vez mais. Assim eu me via
achava que eu não tinha capacidade. Eu
então eu formei uma personalidade em mim
sempre me senti no meu lugar. [risos] Eu
bem triste e deturpada. Eu não me valorizava,
sempre falo para o meu filho. Eu falei “Filho,
auto-estima eu não tinha nenhuma. Me
eu me encontrei”. Indo para a sala de aula
envolvia com homens, depois que eu terminei
aprender, acho que para mim o
com o pai do meu filho, eu comecei a me
conhecimento, é isso o que me motiva, o
envolver com homens que não tinham nada a
conhecimento. Você acredita que eu tive
ver, que não me acrescentavam nada. Pelo
depressão há dez anos atrás? De estar lá no
contrário, só me.... só achava esse tipo de
fundo do poço e cavar mais um pouquinho.
homem, parecia que eu tinha dedo podre. Por
Eu tive depressão profunda.
quê? Porque minha autoestima era rasante. E
só depois da depressão eu fui construir a mim
mesma e minha autoestima. Hoje eu tenho
366

autoestima. Você vai até aí, dali eu não deixo toda bonitinha, e outra coisa é sua vida, que
você passar mais. Seja quem for. você tem que viver aqui. Quando aquele
homem começou a falar eu disse “Eu nunca
Entrevistadora: E você fez um tratamento?
mais vou sair disso, é aqui que eu quero
Entrevistada: Tem um monte de coisas. ficar”. Aí eu comecei a fazer o tratamento. O
Eu acho assim, em primeiro lugar e o meu fato de você assistir a palestra vai te dando
conhecimento religioso porque o espirita que conhecimento. Você começa a procurar, ler
estuda mesmo a sua religião, o espiritismo, livros sobre a doutrina. Depois foi indo, mas
ele aprende a lidar consigo mesmo e com o eu ainda entrei em depressão porque eu não
outro. Então esse conhecimento foi o que, na tinha um conhecimento profundo. Eu tinha
verdade, me tirou da depressão. que chegar a isso para poder me reconstruir.
Eu tinha uma psique bem deformada de
Entrevistadora: E quem te apresentou a
desvalorização de si. Eu tive que passar por
religião?
isso, eu sei. Na época eu sofria muito e
Entrevistada: Eu tive contato com a perguntava para Deus porque eu estava
doutrina espírita há muitos anos, mas eu não passando por aquilo, mas hoje eu sei que era
reconhecia e nem gostava. Eu era católica. A para minha construção. Para a minha
minha família era católica e quando alguém construção de uma pessoa nova, tanto que
me falava essas coisas eu saia correndo. Eu hoje eu vim para uma sala de aula. Naquele
tinha aquele preconceito. Aí, quando o meu tempo nem me passava pela cabeça, nunca
filho tinha quatro anos, eu estava mal, tinha mais estudar, nem um cursinho fazer. Nem
terminado um namoro com um cara, eu passava pela cabeça porque eu achava que eu
estava ruim, minha cabeça não estava bem. não tinha condições. Eu estava há uns dois
Aí a minha ex-cunhada, ela já faleceu, e a anos no espiritismo quando eu entrei em
mãe dela me levaram na casa espírita. Era depressão. Aí eu fui obrigada a estudar a
uma sexta-feira. Eu nunca mais esqueci esse fundo a doutrina para poder me curar. Eu
dia. Na hora em que eu entrei eles estavam fiquei dez anos lutando contra a depressão.
fazendo a oração de acolhimento na hora que Eu me curei de vez há pouco tempo. É uma
chega. E quando eu entrei eu me perguntei construção. Dez anos. É uma construção,
“como é que eu nunca encontrei um lugar você vai trabalhando. (...)
desses? “ E o homem começou a falar, tinha Entrevistadora: E nessa sua trajetória de
palestra. Quando ele começou a falar, e eu vida, a leitura foi importante em algum
sempre fui uma pessoa que fez muitas momento? Você gostava de ler?
perguntas, e as religiões não respondem as
perguntas da gente. Tem gente que conhece Entrevistada: Não. Eu só fui ler depois

de cor e salteado a bíblia, mas não responde que eu fiquei depressiva. Depois da
sobre a vida. Uma coisa é a bíblia, que está lá depressão eu fui obrigada a ler porque eu
367

tinha que estudar o que eu tinha porque os Entrevistada: Eu fui a um psiquiatra do


primeiros 3 meses de crises eu não sabia o pronto-socorro em um hospital porque eu
que eu tinha. Eu ouvia falar de depressão, estava no meio de uma crise, mais uma vez.
mas eu achava que depressão era só ficar Eu dei sorte que fui num pronto-socorro que
triste. Eu trabalhava em um consultório de tinha um psiquiatra de plantão. Aí o rapaz da
um cirurgião plástico e ele tinha muitas recepção me passou para esse psiquiatra. O
pacientes com depressão e eu olhava e falava psiquiatra conversou uma hora comigo, mais
“ai, credo. Olha a vida, dá um ânimo“ Eu ou menos. Ele me explicou tudo direitinho,
achava que era fácil, mas só quem tem mas disse que não podia me acompanhar,
depressão sabe o que é isso. Você perde mas que ele ia me encaminhar para fazer
completamente a capacidade de reagir. Não terapia. Aí ele me deu um remédio que me
adianta os outros falarem. Minha irmã falava melhorou bastante, eu pude trabalhar, mas ele
“levanta dessa cama! ” Meu irmão: “Para começou a me engordar muito. Comecei a
com isso, meu, levanta dessa cama, reage! “ engordar, engordar, engordar porque dava
Você tem força aonde para reagir? Nenhuma, uma ansiedade muito grande, comecei a
você não tem força em lugar nenhum. Até o comer muito. Ai minha irmã falou para a
seu corpo fica fragilizado. gente achar outra coisa. Sem o médico saber

Entrevistadora: E o que você lia? nós fomos atrás de outro remédio, outro
antidepressivo que não engordava. Tirava a
Entrevistada: Aí, nesses três meses que fome, na verdade, fazia o mesmo efeito, mas
eu não sabia o que eu tinha, eu ia para o não dava a ansiedade. Só que eu fiquei quatro
hospital, eles me davam Diazepan, eu voltava anos tomando antidepressivo e não resolvia o
melhor, dormia, ficava dois, três dias bem e problema. Um dia que eu ficasse sem tomar
depois voltava com crise de novo. Assim eu eu ficava em crise. E aí eu comecei a pensar e
fiquei se saber o que eu tinha. Nesses três já tinha estudado um pouco o espiritismo. Foi
meses eu fui no médico, fiz exame do ali que eu comecei a ler. Livro eu não tinha
coração, disso, daquilo, da tiroide. Não tinha coragem de ler. Era muito grosso. Eu não
nada. Aí o meu patrão mesmo, que era tinha paciência para ler, mas aí eu comecei a
médico falou “Você não nada, o seu ler revistas. Ler revista espírita que fala sobre
problema é depressão. Quando ele falou depressão, síndrome do pânico, fala sobre
depressão eu falei “Ah, o que é isso? ” Aí foi todas essas coisas. Eu comecei a estudar e
que a ficha caiu. Aí eu falei “Bom, e agora?” depois comecei a estudar sobre a mente,
Aí eu comecei a tomar antidepressivo, outras revistas. Aí que eu comecei a ler

Entrevistadora: Quem te passou os livros. Só livro espírita porque eu precisava

remédios? disso para entender o que estava acontecendo


comigo.
368

Entrevistadora: Eram livros que fundo da alma. O homeopático trata as


explicavam a doutrina ou eram romances causas.
espíritas, como os livros da Zíbia Gasparetto?
Entrevistadora: Então você lia
Entrevistada: Não, doutrinas. Da Zibia eventualmente um livro espírita que chegava

já estava ultrapassado para mim porque eu já para você...

estava mais aprofundada. Da Zíbia Entrevistada: Eu comecei a comprar


Gasparetto é mais para quem está
alguns livros e eu fui lendo, estudando, até...
começando, quem nunca teve contato.
e tem uma rádio também, a rádio Boa Nova,
Entrevistadora: Você nem chegou a ler que me ajuda com conselhos dos psiquiatras,
esses livros? psicólogos que fazem programa na rádio e eu
fui captando essas coisas e aplicando na
Entrevistada: Li, eu li vários.
minha vida. Foi como eu me curei. Aí eu vim
Antigamente, quando eu estudava, eu acho
estudar, aí melhorou mais ainda.
que eu li dois ou três livros da Zíbia.
Entrevistadora: Com relação à escola,
Entrevistadora: Quando você estudou da
você falou que teve essa importância, mas o
primeira vez.
que você achou da escola nessa volta a ela?

Entrevistada: Sim, mas eu achava chato, Tinha a ver com o que você esperava dela ou
era diferente?
eu achava meio fantasioso, na verdade, esses
livros. Eu lia, lia e achava meio fantasioso, Entrevistada: É diferente do que eu
inventado. Aí depois, quando eu fui estudar à
passei no passado porque eu estudei até a 8ª
fundo, eu vi que não tem nada de fantasioso.
série em uma escola muito séria do Estado,
Aí, para a minha cura, eu não me curei com
mas lá em Santa Cida. Muito séria, mas não
antidepressivo, eu me curei com
tem a bagunça que tem aqui. É isso o que me
conhecimento, através dos meus estudos
incomodava mais. O que me incomodava era
espíritas, e de remédios homeopáticos. Fui
a falta de respeito. Eu também, mas nem
fazer por conta o tratamento homeopático
quando eu era mais nova assim, da idade
porque eu lia nas revistas espíritas que
deles, eu tinha coragem de desrespeitar um
homeopatia era muito para isso, para aquilo,
professor do jeito que eles fazem. Eu não
até para a depressão. Então, resolvi testar. Já
tinha. Eu acho muito feio. Isso é que mais me
fazia quatro anos que eu tomava
incomodou aqui. O resto tudo bem. A gente
antidepressivo e não mudava nada. Só podia
sabe que as coisas são todas feitas “nas
sobreviver. Não curava, só controlava porque
coxas”, né?
o remédio alopático tenta amenizar o efeito,
mas a depressão vem de outro lugar, vem do Entrevistadora: O que você identifica
como meio “nas coxas”?
369

Entrevistada: Como é que eu diria? Os Entrevistada: Isso. Lá SENAC é assim,


professores não têm culpa, eu acho que é o a professora chega, você copia alguma coisa,
sistema mesmo. Os professores, coitados, você anota alguma coisa se você quiser, mas
eles fazem o que podem. Eles não têm tempo, a professora chega e vai passando os slides
foram quatro meses de aula, eles tiveram que lá, vai explicando, explicando, explicando.
fazer o que deu. Mas eu acho que é o sistema Aquilo entra na sua cabeça, você aprende
mesmo, vem lá de cima. aquilo. Eu fazia prova lá. No SENAC nunca
teve prova com consulta. Acho que teve
Entrevistadora: Mas você poderia dar um
umas três ou quatro provas e nunca teve
exemplo do que poderia ser melhor? Por
consulta. Eu ia muito bem nas provas porque
exemplo, qual a diferença entre a aula que
mesmo que eu não estudasse, às vezes não
você teve aqui e a que você teve até a 8ª
dava tempo de estudar, mas a gente lembra
série?
do dia que o professor explicou a matéria.
Entrevistada: Era tudo muito sério. Para Aqui não dá porque o professor, coitado, ele
começar, tinha livros, você não ficava tem que, primeiro, ficar escrevendo. Ai
copiando. Eu acho que a gente perde muito passou meia hora de aula. Aí tem quase uns
tempo copiando matéria, entendeu? Se você dez, quinze minutos. Aí ele tem que fazer a
tivesse pelo menos uma apostila, que fosse, o chamada. Em dez minutos ele explica aquilo
professor chegava e falava “Abra a apostila meio por cima. A culpa não é do professor, a
na página tal”. Você vai acompanhar ali, culpa é do sistema.
você não precisa ficar copiando, o professor
Entrevistadora: Você acha que os
fica lá parado esperando o pessoal copiar, a
professores são comprometidos?
maioria tá conversando e não está copiando,
aí quando o professor quer explicar eles Entrevistada: Eles se esforçaram. A
querem continuar a copiar. Aí quando a maioria deles se esforçou e se esforçaram até
professora fala “Todo mundo terminou?” .Eu muito, levam críticas dos alunos porque dão
já terminei porque eu estava trabalhando, aí muito trabalho, dão muita coisa. Coitado, ele
os outros: “Não! ”. A professora fica lá, eu está fazendo a parte dele. Ele está tentando
fico aqui de braços cruzados, a aula passa fazer a parte dele. Não deram ferramentas
porque é muito curto o tempo. Acho que tem para ele trabalhar, ele está fazendo o que ele
tudo isso. Acho que é o sistema mesmo. No pode com o que ele tem na mão. Eu acho
SENAC era diferente. No SENAC, como é isso. Mas está bem ruim, viu. Eu achei bem
que chama aquilo, igual tem na sala de ruim porque a gente não consegue fazer uma
multimídia? prova aqui, fazer uma prova séria. A maioria
das professoras deram prova para a gente
Entrevistadora: Telão?
com consulta [fala baixo para ninguém
370

ouvir]. E eu estou saindo daqui sem saber computação porque eu sou muito fraca em
quase nada. Eu gosto muito de estudar. Claro, computação.
tem muitas coisas que eu aprendi.
Entrevistadora: Você trabalha com o quê?
Principalmente com a aula de Sociologia,
Filosofia porque foi fascinante. Eu nunca Entrevistada: Eu trabalho em um
tinha tido essas aulas. No tempo que eu escritorinho. Eu estou muito mal remunerada
estudei era Ditadura Militar. Não podia falar e quero sair. Ele nem registra também. Então
certas coisas e hoje pode falar tudo. Eu eu estou procurando, estou sempre
aprendi bastante com as aulas de Filosofia e procurando alguma coisa que me pague mais,
Sociologia. Português eu aprendi bastante que registre. Está difícil. Está bem difícil. Eu
também coisas que eu tinha esquecido. vou fazer algum curso, alguma coisa, mas eu
Matemática algumas coisas que eu tinha quero fazer no SENAC, que eu acho muito
esquecido eu também aprendi. O que mais? bom.
Coitado do professor de Biologia. Ele nunca
Entrevistadora: Eu gostaria de conversar
conseguiu dar matéria. Quase nada. O
um pouco mais sobre as aulas de Língua
problema é que sempre no fim da semana não
Portuguesa. Como eram as aulas?
tinha aula. As aulas eram de quinta e sexta e
sempre era teatro, era um evento, era não sei Entrevistada: Ela sempre se esforçou
o quê, não tem aula porque tem eleição. para trazer o material xerocado porque no
Outros professores também foram começo ela vinha e começava a anotar na
prejudicados, como a [professora] de Inglês. lousa. Ela começava a anotar na lousa como
Isso porque eles começaram depois, no os outros professores. Depois ela começou a
começo a gente não tinha essas aulas. perceber que aquilo não dava certo. Perde-se

Entrevistadora: Vocês estavam sem muito tempo. Ai ela começou a trazer os

professor? textos para a gente. Outra coisa que e achei


muito importante, quando eu estudei há
Entrevistada: Isso. Aí eles entraram muitos anos atrás, eu estou falando da aula de
depois e tiveram que se virar com o que deu. Português agora, quando eu estudei lá em
Então eu estou procurando agora um curso Santa Cida, a gente não aprendia a interpretar
profissionalizante no SENAC porque eles são texto. Eu tenho muita dificuldade de
muito sérios. Lá você tem que levar à sério interpretar texto, hoje, eu aprendi isso nas
senão você sai. aulas de Português com ela. Aprendi. Eu não
sabia. Quando eu estudei, a gente tinha o
Entrevistadora: E o que você quer fazer no
livro e aí vinha a matéria e a gente sabia que
SENAC?
vinha aquele monte de questões, perguntas e
Entrevistada: Estou pensando ainda. Eu respostas, perguntas e respostas e era só isso.
queria fazer alguma coisa na área de A gente ia ter que estudar para a prova as
371

perguntas e respostas para responder na Entrevistadora: Você aprendeu nessa aula.


prova. Não aprendi a interpretar texto e ela Então eram bem produtivas?
ensinou isso para a gente e eu aprendi aqui
Entrevistada: Para mim eram, não sei se
com ela. Eu achei muito importante.
para os outros porque tem quem não gosta da
Entrevistadora: Então você gostava dos matéria. Mas eu faço questão, eu me
textos que ela passava? proponho a, eu faço questão de ter um grande
aproveitamento das aulas de todas as
Entrevistada: Adorava.
matérias, para mim foi ótimo.
Entrevistadora: Você descobriu algum
Entrevistadora: E tem alguma coisa que
autor, algum texto?
você gostaria de ter aprendido, mas não deu?
Entrevistada: Ah, eu adorava, eu gostei
Entrevistada: Na aula dela?
do Patativa do Assaré. Adorei a poesia dele,
que era uma poesia simples, do interior. Entrevistadora: De Língua Portuguesa.
Como eu sou do interior, eu me identifiquei.
Entrevistada: Acho que um pouco mais
[risos] achei lindas. Eu não conhecia ele. Ai
de gramática. Eu já esqueci porque quando
um dia ela mandou a gente pesquisar.
ela falava de gramática, porque sempre no
Colocou na lousa assim: “Pesquisem, eu
meio disso tudo ela colocava um pouquinho
quero que vocês me entreguem uma poesia
de gramática, mas eu achei pouco. Eu
do Patativa do Assaré. É um poeta de
gostaria que tivesse mais profundo. Mais
nordeste”. Aí eu fui procurar na internet, em
coisas de gramática no meio... É, também não
casa, quando eu fui encontrando as poesias
dava tempo. Mas, enfim, se ela tivesse dado
dele eu fiquei fascinada. Eu escrevi duas
mais gramática, para mim, teria sido muito
poesias e trouxe para entregar para ela para
proveitoso. Eu escrevo muito bem ainda
ganhar nota. Eu falei para ela: “Gente, eu
porque algumas coisas eu ainda lembro, mas
amei esse cara!”. E tudo o que ela trazia eram
muitas coisas eu esqueci. Eu coloco acento às
coisas bem interessantes. Ela mudava. Uma
vezes, que eu sei que vai o acento, mas eu
hora era poesia, outra hora era conto, outra
não sei o porquê que vai acento. Eu queria
hora era crônica e ela foi ensinando para a
saber por que aquela palavra leva acento,
gente o que é uma coisa, o que é outra.
enfim, eu queria aprender isso.
Ensinou a gente a fazer redação, que eu
também não sabia fazer redação. Eu fazia Entrevistadora: Mas você se identificava
redação de qualquer jeito, que nem eu fazia lá com a aula, você gostava dela.
no interior, ou quando eu vim estudar aqui
Entrevistada: Muito. Eu adorava a aula
que eu também, né? Mas agora que eu fui
aprender a identificar o que é uma crônica, o de Português dela .Uma professora

que é um conto. maravilhosa e sem contar que ela é uma


372

pessoa excelente, super sensível. Ela se inteiro fazendo trabalho, uma pesquisa,
identificou comigo. Ela não é espírita, mas passando à limpo. Às vezes eu fazia o
ela tem todo um contexto espiritual sem trabalho em casa, no computador, e no dia
saber. Ela tem esse lado iluminado como seguinte eu chegava, fazia resumo, lá na
pessoa que eu soube identificar, as outras mesinha lá. A maioria não tem esse tempo.
pessoas eu acho que não, mas quem é espírita Tinha gente que chegava aqui correndo antes
identifica isso nas pessoas. Um dia eu falei da aula para fazer o trabalho. Se ela desse um
assim para ela: “a senhora é muito livro para a gente ler, a maioria não ia ler.
iluminada” . Aí a gente começou a conversar
Entrevistadora: Você trouxe seu caderno?
um pouquinho e eu contei para ela que sou
espírita. Então, isso também tem. Às vezes Entrevistada: Deixa eu tirar ele da bolsa.
ela dava conselho para os alunos e eu achava A maioria não ia ler ou não ia ter tempo de
isso muito bonito. Quando começava a farra ler, assim como muita gente não entregou os
toda ela começava a conversar com eles, trabalhos. Tem uma amiga minha aqui da
explicar, falar sobre a vida. Por isso eu falo, classe que ela não entregou os trabalhos de
ela é uma pessoa iluminada, ela além de dar biologia. Nenhum. Eu não sei como ela vai
aula, ela ia um pouco mais além, tentava ficar com nota de biologia.
colocar um pouco mais de coisas na cabeça
Começo a folhear o caderno dela. É um
deles. E só eu entendia. Só eu entendia
caderno universitário de 10 matérias. Vou
porque a maioria não estava nem aí.
folheando e não encontro a parte de Língua
Entrevistadora: E vocês tiveram que ler Portuguesa.
algum livro inteiro na aula de Língua
Entrevistadora: Onde está a parte de
Portuguesa?
Língua Portuguesa?
Entrevistada: Não. Ela não deu nenhum
Entrevistada: Na segunda parte.
livro para a gente ler. Seria até interessante,
Matemática. Está meio amassado porque eu
mas ela sabe que a gente não tem tempo, que
uso essa sacola de pano. Aqui.
todo mundo que vem... Eu fiz todos os
trabalhos, eu não faltei um trabalho, não Entrevistadora: Conta para mim o que
deixei de entregar um trabalho de nenhuma vocês estavam vendo aqui. Esse é o primeiro
matéria porque onde eu trabalho eu posso dia de aula?
fazer isso lá. Eu só atendo telefone, agendo
Entrevistada: Esse é um dos primeiros
os orçamentos, que meu patrão faz, e passo
dias de aula. No primeiro dia, como ela não
um ou outro e-mail com orçamento. Só, não
tinha nada organizado ela explicou essa
faço mais nada. Então eu tinha tempo. A
gramática aqui.
minha mesa está aqui com o computador e eu
tenho outra mesa aqui que eu passo o dia
373

Entrevistadora: Diferença de mau com “u” explicar, aí ela começou a dar os textos
e mal com “l”. xerocados.

Entrevistada: Isso. Aí depois ela foi se Entrevistadora: E, por exemplo, ela dava

aprofundando mais. Ela começou a dar texto, esse texto, que é bem grande, e a seguir vocês

olha. [aponta para um parte do caderno onde faziam o quê?

há um texto.] Entrevistada: Ela lia porque eu acho que


Entrevistadora: Vocês o copiaram. todo mundo ficava quieto enquanto ela lia.
Ela lia e depois ia explicando para a gente.
Entrevistada: Sim, a gente copiava tudo.
Aqui: “Qual era o propósito do texto ?” Entrevistadora: Cada parte do texto?

(Leitura de uma parte do caderno)


Entrevistada: Exatamente, ela ia
Entrevistadora: A diferença de oração e explicando.
frase.
Entrevistadora: Nos dias em que eu
Entrevistada: Isso. acompanhei as aulas ela leu o texto em voz
alta e conversou um pouco com vocês sobre
Entrevistadora: Foi novidade para você?
o texto.

Entrevistada: Relembrei, porque isso eu


Entrevistada: É, chegou um ponto que
já tinha aprendido, só que eu tinha esquecido
não dava mais. Esse povo não deixava nada.
completamente então isso, para mim, foi
No começo ela conseguiu controlar. No
muito importante. Eu gostaria de ter tido
começo ela conseguiu controlar bem. Um
mais
dia, duas meninas se pegaram no meio da
Entrevistadora: E os exercícios que ela aula dela e ela ficou sem saber o que fazer.
pedia. Tem aqui exercícios de utilização do a Elas se pegaram. Os meninos tiveram que
craseado. Eram mais exercícios de segurar as duas, no meio da aula dela. Eu
interpretação ou de gramática? fiquei com tanta pena da professora. Eu falei
“Meu Deus do céu”. Entendeu? Então, sabe,
Entrevistada: As duas coisas. Ela é bem,
chega um ponto que o professor mesmo
ela organizava bem as aulas de Português. perde a motivação, se ele é desrespeitado de
Entrevistadora: Aqui tem outro texto, certas formas. No começo ela até conseguia
outro. segurar um pouco, mas depois foi demais.

Entrevistada: Isso quando a gente ainda Entrevistadora: Vocês viram aqui um


gênero textual, o perfil. Vocês aprenderam
copiava os textos da lousa. Depois ela via que
vários gêneros.
perdia muito tempo, não dava tempo de
374

Entrevistada: Tem alguns alunos que Entrevistadora: Eu vi que você faz uma

não copiam. Eu copiava tudo, fazia questão anotações, por exemplo, Eros, Xico Sá...

de anotar tudo porque eu gosto de saber. Se Entrevistada: São coisas que ela vai
um dia eu for estudar outra coisa eu vou ter
dando, assim, “ah, tem um site”... Aí eu
uma referência para poder estudar.
anoto para ir procurar. Eu gosto muito de
Entrevistadora: Verdade. E tinha os estudar.
exercícios e depois tinha uma produção de
Entrevistadora: E onde está o resto do
texto?
caderno.
Entrevistada: Sim, mas isso a gente
Entrevistada: Está aqui. (Abre outro
entregou para ela para dar nota. Só que eu
caderno.) Mas é pouca coisa, só tem isso
deixei em casa. Teve até um muito
aqui. E aqui é a continuação, eu escrevi
interessante, um trabalho que ela fez com a
continuação. (risos)
gente. Foi um dia que não veio quase
ninguém, uma sexta-feira, acho que tinha Entrevistadora: Aí ela começou a passar
chovido. Aí ela pediu para a gente escrever os textos e não precisava mais copiar. E
sobre alguma história que a gente tinha depois de ter passado por tudo isso, você
vivido na infância. Muito legal aquele dia. A começou a se interessar por outras leituras,
gente escreveu umas coisas assim que eu outros tipos de livro?
fiquei emocionada de escrever porque minha
Entrevistada: Sim. Eu estava em uma
lembrou meu pai. Meu pai faleceu já fazem 7
fase que eu só lia espiritismo, mas agora eu
ou 8 anos. Sabe quando você vai passando
vou mudar o foco. Eu vou ler sobre tudo, vou
pela vida e esquece um pouco as coisas da
ler qualquer coisa. Aí eu ganhei três livros da
infância? Me fez voltar. Me emocionou
Conceição, que a Secretaria da Educação
demais aquela aula e assim todos os alunos
mandou. Eu ganhei.
que estavam naquela aula voltou o seu tempo
e escreveu. É interessante, só que essas coisas Entrevistadora: Quais livros?
a gente entregava para ela dar nota
Entrevistada: Tem um de poesia, que eu
Entrevistadora: Ela não devolveu? também vou ver, e mais dois livros de
romance, né? Eu vou ler os dois. Um é bem
Entrevistada: Devolveu, mas está em
grosso, mas eu vou ler.
casa. Esqueci de trazer. Tem um monte de
coisa que ela deu para a gente. Redação, ela Entrevistadora: E o que te faz se interessar
dava um tema e a gente tinha que fazer. por esses livros, que não são espíritas?
Redação sobre a falta de água em São Paulo
Entrevistada: Eu acho que eu sei que eu
nós fizemos também.
preciso ler porque eu estou tendo
375

dificuldades de formatar ideias. Eu já fui escola, com o perdão da palavra, e aí ele se


melhor nisso, eu ia conversar com as pessoas desmotivou de um jeito que não quis ir mais
e eu encontrava fácil as palavras, que eu e eu quase tive um infarto no dia que ele
queria me expressar. Agora eu estou decidiu não ir mais porque eu valorizo muito
perdendo um pouco isso. Às vezes eu estou o estudo. Não teve cristo que fizesse o Rafael
conversando até em casa com o meu filho, estudar. Até agora. Já fazem dois anos que
com os meus irmãos, minha irmã porque ele não está estudando. Agora eu estou
agora eu moro sozinha com o meu filho, mas conversando com ele, falando “filho, volta a
eles sempre vão lá em casa. Às vezes eu tô estudar”. “Eu vou, mas não agora” .Ele quer
conversando e de repente eu não sei, eu quero trabalhar para comprar um computador, quer
dizer uma coisa e não consigo. Eu vejo que é guardar dinheiro e depois... Quer comprar um
falta de leitura mesmo porque eu me foquei computador bom porque o dele está muito
só numa coisa e eu preciso expandir mais e ruim.
agora eu vou voltar a ler tudo. O que vier, eu
Entrevistadora: Ele faz o quê?
me propus a isso. Até para melhorar essa
dificuldade que eu estou tendo porque eu Entrevistada: Ele trabalha num
preciso me expressar. Até assim, se eu for mercadinho. Ele é cortador de frios. Ele já
trabalhar num lugar, você precisa saber se trabalhou no Pão de Açúcar nessa área
expressar bem. também. Agora está em um mercado menor,
mas está lá.
Entrevistadora: E você conversa com seu
filho sobre leitura. Por exemplo, ele gosta de Entrevistadora: E você lê outras coisas,
ler? como revistas...

Entrevistada: Não, ele nunca leu um Entrevistada: Revista. Revista eu leio


livro. Leu um livro fininho assim no tempo muito.
em que ele estava estudando. Agora não está
Entrevistadora: Qual você gosta de ler?
estudando mais e ninguém consegue
convencer ele. Está trabalhando, mas diz que Entrevistada: Ah, eu leio a revista
vai voltar a estudar, vai fazer faculdade, mas espírita. Eu leio revistas dessas de Saúde, né.
quando eu não sei. Eu tomo remédio para pressão, então eu

Entrevistadora: Mas ele terminou até procuro ler revista que traz conselhos sobre

ensino médio? uma melhor alimentação.

Entrevistadora: Você compra na banca de


Entrevistada: Não, ele não terminou. Fez
jornal?
até a metade do terceiro ano e parou. A
escola era muito ruim. Isso é verdade, a Entrevistada: Isso.
escola era muito ruim. Uma bosta mesmo a
376

Entrevistadora: Nas bancas de jornal, você Entrevistadora: Você acreditava naquele


já chegou a comprar e ler aqueles romances amor. (risos)
sentimentais?
Entrevistada: Pode crer. Hoje eu sou
Entrevistada: Já li, mas agora não me mais realista, isso já não me motiva mais. Eu
motiva mais ler isso. não gosto, não vejo graça.

Entrevistadora: Mas você já leu antes? Entrevistadora: Nem tem vontade de ler
mais?
Entrevistada: Já li muito. Já li muito. Eu
tinha até esquecido isso. (risos) Você Entrevistada: Eu gosto de ler sabe o
perguntou se seu lia outros livros e eu quê? Estudos. Um livro, assim, que vai me
esqueci. Eu lia muitos. trazer algum conhecimento diferente.
Ciência, tecnologia, essas coisas. Isso sim.
Entrevistadora: Quando você tinha
quantos anos? Entrevistadora: Qual foi o último livro que
você leu?
Entrevistada: Quando eu tinha uns 23,
24 mais ou menos. Eu já estava em São Paulo Entrevistada: Sabe que eu não lembro.
quando eu comecei a entrar em contato esses Mas foi um livro espírita. Como é que
livros. chamava o livro? Ah, era um livro que nem
era espírita. Era Legião, do Robson Pinheiro,
Entrevistadora: Como você entrou em
um espírita, mas um espírita já com outra
contato com eles?
conotação. O espiritismo estuda mais os
Entrevistada: Acho que através das espíritos de luz e o Robson é espírita, só que
amigas, conhecidas. A minha mãe gosta ele já está estudando as trevas para a gente
muito de ler e a minha irmã ela ganhou uma conhecer. Eu achei fascinante esse livro.
caixa cheia desses livros de uma ex-patroa Muito interessante.
dela. Acho que foi. E aí tinha um montão de
Entrevistadora: Por quê?
livro. Tinha livro, assim, a “dar à rodo”. Aí
minha mãe deu uns para ler e minha irmã deu Entrevistada: Porque a gente pensa que
uns para a gente. Eu lembro que eu li, mas tudo é maravilhoso, que os anjos estão em
não gosto. Na época, sim, esses volta da gente. Não é nada disso. Na verdade,
romancezinhos assim, água com açúcar, já o que está em volta da gente são as trevas, os
não me agradam. (risos) Acho que no tempo anjos, eles, quando a gente sai da sintonia das
que eu era iludida como mulher eu gostava. trevas, aí eles podem ajudar senão não tem
(risos) como. Então você aprende a lidar com isso,
você aprende que isso existe, que as trevas
377

também, assim como existe a luz, e que você Entrevistadora: Ainda bem que tem os
tem que fazer a sua sintonia. dois juntos.

Entrevistadora: Esses livros te ajudam Entrevistada: Se fosse em outros tempos


então no seu dia-a-dia? eu estaria abaladíssima, mas com todo o

Entrevistada: Isso, exatamente. Por isso conhecimento, com toda a construção que eu
fiz de mim mesma, eu sei que é uma fase.
que me fascinou tanto o espiritismo, ele me
Daqui a pouco aparece uma coisa boa para
explicou muita coisa que eu não entendia. Eu
mim, daqui a pouco meu filho vai estudar e
vivo a minha vida de uma forma diferente,
então eu sei que é uma fase que eu tenho que
sabendo lidar com os dramas, os problemas,
passar para aprender alguma coisa, então...
as dificuldades. Quem nem agora eu estou
(risos) Vamos em frente. Desabar eu não vou
vivendo uma dificuldade que se fosse em
de jeito nenhum.
outros tempos eu estava depressiva. Eu pago
R$850,00 de aluguel no apartamentinho que Entrevistadora: Isso mesmo. E com esses
eu moro com o meu filho e eu ganho R$ novos livros que você vai ler, você disse que
900,00. Então você imagina. Se não fosse vai mudar sua leitura...
meu filho estar trabalhando eu ia ter que
Entrevistada: Eu vou mudar.
largar tudo. Largar a escola, largar a casa que
eu moro e, sei lá, morar num quarto de Entrevistadora: o que você espera
pensão. Se fosse em outros tempos, se eu não encontrar nesses livros?
tivesse essa força interior que eu tenho, que
Entrevistada: Acho que conhecimento
eu adquiri depois que eu fiquei doente e me
curei... Acho que eu me quebrei toda, juntei mesmo. Esses livros que eu peguei são

os caquinhos e colei e renasci forte, muito romances, eu percebi que são romances, mas

forte. Então isso faz toda a diferença. Estou não são aqueles romancezinhos água com

aqui, fui estudar apesar de todas as açúcar. São coisas mais elaboradas. Vou

dificuldades. Meu filho às vezes eu falo fazer estudos também, estou querendo pegar

“Vamos lutar, vamos em frente e vamos livros espíritas que eu nunca li, do André

conseguir”. Ele coitado, só por isso ele não Luiz. O Emmanuel, Chico Xavier, né? O

está estudando, porque ele trabalha para me espírito Emmanuel dá umas orientações mais

ajudar. Eu pago o aluguel e ele paga a conta práticas para o dia-a-dia, o hoje. O André

da internet. Ele paga a conta de luz e de Luiz é estudo mesmo de ciência que a gente

telefone, que é um plano assim, bem barato e não conhece de energias da gente, que a

a comida. Eu só pago o aluguel e sobra gente não conhece, então eu quero fazer esse

R$70,00 do meu salário. estudo do André Luiz.

Entrevistadora: E com esses estudos...


378

Entrevistada: Mas eu quero misturar, eu que ele botou a mão no nosso cabelo a gente

quero ler. se apaixonou. Então só ele corta o meu


cabelo e o dela e ele tem uma pilha assim de
Entrevistadora: Você acha que vai ter
livros. Ele é espírita também, então a gente
outros conhecimentos?
pega muitos livros lá com ele, mas também

Entrevistada: Sempre. não fica só no espiritismo. Ele tem outros


livros também. A gente pega os livros que a
Entrevistadora: Quais outros gente quiser com ele, então a gente está
conhecimentos você acha que vai ter nos sempre trocando.
livros da escola?
Entrevistadora: Mas você pega os
Entrevistada: Ah, eu não sei. Eu acho espíritas?
que um romance bem elaborado já é
Entrevistada: Eu pego os espíritas
diferente. Você lê um romance bem
porque eu estava nessa linha porque eu
elaborado, um livro bem escrito, é uma coisa
precisava para poder me ajudar.
que te fascina, que te segura ali para você
continuar lendo e a leitura é sempre bom, não Entrevistadora: Agora pode ser que você
importa o que você vai ler, você está lendo! pegue os outros.
(risos) Mas eu gosto muito de aprender, coisa
Entrevistada: Isso. Agora eu quero sair
que eu gosto é de aprender. Conhecimento
para mim é sempre bom. um pouco disso, quero pegar outras coisas
para eu ter mais conhecimento de outras
Entrevistadora: Você costuma ir à
coisas também. Eu consegui um
livraria? Ou você vai mais à banca de jornal?
conhecimento muito grande de espiritismo

Entrevistada: Eu vou mais na banca de através da leitura e dessa rádio que eu escuto.
Mas agora eu quero aumentar esse
jornal. Livraria eu só vou quando eu vou na
conhecimento para outros lados, não ficar só
casa espírita. Lá tem livraria. Só que, assim,
naquele foco. É uma necessidade que eu
eu também não tenho dinheiro para ficar
percebi faz tempo, falei: “Não, agora eu
comprando. Eu mais pego emprestado das
quero sair um pouco”. Não que eu vou parar
pessoas. A minha irmã também é espírita, ela
de ler livro espírita. Eu vou ampliar.
pega emprestado, daí ela me empresta. Tem o
nosso cabelereiro, que corta o meu cabelo, Entrevistadora: E você acha que voltar
ele é um senhor, ele não é gay, bom, mas se para a escola te ajudou a ter essa vontade de
fosse não tinha problema. Ele é um senhor ampliar sua leitura?
barbeiro, que trata do cabelo de homem, mas
Entrevistada: Com certeza. Eu acho que
ele corta maravilhosamente bem o meu
cabelo e o dela. Não sei porquê. Desde o da na verdade eu acordei. Ter voltado para a
escola fez eu acordar como pessoa, tipo “Eu
379

posso aprender, eu sei. Eu ainda consigo Entrevistada: Sobre tudo. Sobre a vida
aprender”. Acho que foi isso mesmo. Deu principalmente. Uma professora que nem a
uma acordada mesmo e acho que foi isso que nossa de Português, olha o quanto uma escola
me fez esquecer de vez, deixar de vez os poderia tirar dela, se tivesse os recursos. A
sintomas porque eu ainda tinha uns sintomas. pessoa que ela é educar essa gente mal-
Bem leves, mas ainda tinha às vezes. Mas educada. Eu acho, estou falando como
agora não estou tendo mais nada. Uma força espíria, eu seu que a educação não para só no
que eu não sei de onde veio, depois que eu estudo dos livros, dos cadernos e do que a
comecei a estudar. Esses quatro meses de gente escreve. A educação é uma construção
aula passaram que eu nem percebi. Hoje da pessoa. Uma pessoa como essa de
mesmo eu estava lá no escritório, no final da Português, que já tem uma bagagem, poderia
tarde, estava andando, porque às vezes não ensinar mais coisas, não tem tempo para isso.
tem o que fazer e fico andando, e ficava A pessoa não tem incentivo. Não sei.
pensando: “Gente, passaram esses quatro
Entrevistadora: Você daria mais tempo
meses e eu nem vi. Começou ontem e já está
para ela?
acabando”.

Entrevistadora: É que faltava tão pouco Entrevistada: Mais uma aula, mais

para você completar os estudos. material. Não sei.

Entrevistada: É, passou muito rápido.

Entrevistadora: Então era sobre isso que Entrevista com o aluno Paulo

eu queria conversar com você. Muito 04/12/2014

obrigada pela entrevista.

Entrevistada: (corte)
Entrevistadora: Qual é o seu nome?
A entrevista tem fim, porém continuamos a
Entrevistado: Paulo.
conversar. Por isso, volto a gravar o final de
nossa conversa. Entrevistadora: Você tem quantos anos?

Entrevistadora: Você sente que a escola


Entrevistado: 17.
aproveita tudo isso o que você sabe?
Entrevistadora: Você mora com seus pais?
Entrevistada: Não porque a escola não
tem como. Precisa muito conhecimento para Entrevistado: Com a minha mãe e com a
isso. minha irmã.

Entrevistadora: Que tipo de


conhecimento?
380

Entrevistadora: Sua irmã é mais velha ou Entrevistado: Por que ficou mais difícil.
mais nova:
Entrevistadora: O que ficou mais difícil?
Entrevistado: Mais velha.
Entrevistado: Acrescenta mais matérias,
Entrevistadora: Ela já terminou o ensino essas coisas assim.
médio?
Entrevistadora: Você estudava em qual
Entrevistado: Já. escola antes?

Entrevistadora: Qual é a profissão da sua Entrevistado: Amadeo Mendes.


mãe?
Entrevistadora: Onde fica?
Entrevistado: No momento ela não está
Entrevistado: No Parque São Domingos.
trabalhando.

Entrevistadora: E você, qual profissão Entrevistadora: Você mora no Parque São

gostaria de ter? Domingos?

Entrevistado: Mecânica. Essa parte de Entrevistado: Lá perto.

mecânica. Entrevistadora: Com relação ao que você

Entrevistadora: De carros? tem aprendido no ensino médio, tem alguma


coisa que você não aprendeu e gostaria de
Entrevistado: De carros. aprender?

Entrevistadora: Esse é seu primeiro ano no Entrevistado: Aqui na escola?


ensino médio. Ele está sendo como você
imaginou? Entrevistadora: Sim. Algum conteúdo ou
alguma coisa assim.
Entrevistado: Do jeito que eu imaginei
Entrevistado: Não.
mesmo.

Entrevistadora: Em que sentido? O que Entrevistadora: Eu conversei com alguns

você tinha imaginado? dos seus colegas que tentaram fazer algumas
provas em outras escolas, como o ETEC.
Entrevistado: Isso que é hoje mesmo. Você também tentou?
Igual só que você que estudar um pouco
Entrevistado: Não.
mais, se esforçar um pouco mais.

Entrevistadora: Por que você tem que se


esforçar mais?
381

Entrevistadora: Com relação às aulas de Entrevistado: Aquele negócio de


Língua Portuguesa, como são geralmente as classificar as palavras lá, que eu esqueço
aulas? agora os nomes. Eu não sei quase nada.

Entrevistado: Tranquilas. Normal. Entrevistadora: Identificar o radical das


palavras?
Entrevistadora: O que acontece na aula
geralmente? Por exemplo, eu assisti algumas Entrevistado: Não o radical. Classificar
aulas e vi que vocês copiavam o exercício da as palavras. Os nomes que as palavras têm,
lousa e o faziam, outros dias havia textos que eu não sei muito.
para ler e fazer exercícios. Era isso o que
geralmente acontecia? O que mais se passava Entrevistadora: Como advérbio, verbo,

nas aulas? substantivo?

Entrevistado: É sempre assim. Faço Entrevistado: Isso.

exercício, às vezes copia. Sempre assim. Entrevistadora: Vocês estudaram isso esse

Entrevistadora: Você gosta desse tipo de ano?

aula?
Entrevistado: Sim.

Entrevistado: Depende. Às vezes eu


Entrevistadora: E você não conseguiu
prefiro copiar, às vezes eu prefiro que o aprender muito.
professor explique as coisas.
Entrevistado: Não.
Entrevistadora: Quando você prefere
copiar? Entrevistadora: Por que você acha que não
conseguiu aprender muito bem?
Entrevistado: Quando... Não sei. Não
sei, quando a professora passa alguma coisa Entrevistado: Acho que eu não me
para copiar que não precisa fazer exercício. interessei muito também.

Entrevistadora: Por que o difícil é fazer Entrevistadora: Por quê?


exercício?
Entrevistado: Eu não sei. Eu não gosto
Entrevistado: Isso. muito de Português e essas coisas.

Entrevistadora: Qual foi o exercício que Entrevistadora: Teve alguma coisa que
você achou mais difícil? aconteceu na aula de Língua Portuguesa que
você gostou?

Entrevistado: Não.
382

Entrevistadora: E nas outras matérias, o Entrevistadora: Por quê?


que tem que você gosta?
Entrevistado: Ah, não gosto de ficar
Entrevistado: Eu gosto de filosofia e dando opinião, assim, para os outros.
sociologia.
Entrevistadora: E no seu cotidiano,
Entrevistadora: Por quê? quando você volta agora para casa, o que
você gosta de fazer na sua casa?
Entrevistado: Ah, porque parece que é
uma coisa que você vê no dia-a-dia mais. Entrevistado: Quando eu chego em casa
Você usa mesmo no dia-a-dia. Essas coisas. em, com certeza, tiro o tênis e começo a
assistir Tv.
Entrevistadora: É legal quando a gente
pode usar no dia-a-dia o que a gente vê na Entrevistadora: O que você assiste?
escola?
Entrevistado: Quando eu chego?
Entrevistado: É.
Entrevistadora: Quando você chega ou o
Entrevistadora: O que vocês estudaram de que você gosta de ver de modo geral.
sociologia e filosofia esse ano?
Entrevistado: Comédia. Começo a
Entrevistado: Sociologia foi a parte de assistir seriado, essas coisas.
desigualdade de gêneros e filosofia eu não
Entrevistadora: Você gosta de qual
aprendo muito. Só o que é filosofia essas
seriado?
coisas.
Entrevistado: Gosto de The Big Bang
Entrevistadora: Mas é legal discutir o que
é filosofia. O que você entendeu que ela é? theory, Um Maluco no Pedaço eu sempre
assisto quando eu chego em casa, Eu, a
Entrevistado: Que é o estudo dos patroa e as crianças. Essas séries que eu
homens e da sociedade. mais assisto.

Entrevistadora: Discutir essas questões te Entrevistadora: E você passa a tarde


agrada? fazendo essas coisas?

Entrevistado: Discutir não. Só ouvir, só. Entrevistado: Não. Às vezes eu faço


comida. Às vezes quando minha mãe enche o
Entrevistadora: Você gosta de ouvir?
saco eu tenho que limpar a casa com ela
Entrevistado: Não gosto de ficar dando também e essas coisas. De noite eu vou para

opinião, não. o treino.


383

Entrevistadora: Você treina o quê? Entrevistado: Não conseguia ler direito.


Eu conseguia, eu sei ler direitinho, mas eu
Entrevistado: Muai Thay e nos outros
não tenho muita paciência para ficar lendo.
dias eu vou para o treino também, que eu
faço corrida de rua. Entrevistadora: E na escola, você teve que
ler algum livro?
Entrevistadora: Você vai na academia?
Entrevistado: De Português, no começo,
Entrevistado: Não, academia não.
ela pediu para ler um livro para fazer uma
Academia é chato. Puxar aparelho eu não
prova.
gosto.
Entrevistadora: Qual?
Entrevistadora: E você faz a corrida de rua
com um pessoal que mora perto da sua casa? Entrevistado: O Diário de Anne Frank.

Entrevistado: Não, eu vou ao Parque Entrevistadora: Você leu?


Toronto. Eu corro lá.
Entrevistado: Não.
Entrevistadora: E você gosta de ler?
Entrevistadora: Por que você não se
Entrevistado: Não. interessou em ler o livro?

Entrevistadora: Nada? Entrevistado: Na verdade porque eu


esqueci mesmo. Eu não gosto muito de ler,
Entrevistado: Nada.
não.
Entrevistadora: Nem HQ, gibi...
Entrevistadora: Você se lembra do dia em
Entrevistado: Não. que a professora propôs a atividade? Você se
lembra como foi?
Entrevistadora: Qual foi o último livro que
você leu ou alguma coisa que você leu? Entrevistado: Não. Foi bem no
comecinho, nos primeiros dias de aula. Foi o
Entrevistado: Eu já tentei ler um livro do
livro que a escola deu e ela pediu para fazer a
Allan Kardec, não lembro o nome agora. Eu prova.
tentei, mas não consegui ler inteiro. A última
vez que eu li um livro eu era pequenininho, Entrevistadora: E você fez a prova?

aqueles de três páginas.


Entrevistado: Sim.

Entrevistadora: E por que será que você


Entrevistadora: Você se prejudicou por
não terminou esse livro do Allan Kardec?
não ter lido?
384

Entrevistado: Sim. Entrevistadora: E sua mãe fala “Ah, Paulo


você tem que ler ?”.
Entrevistadora: Entre esses livros que
vocês ganharam, vocês tiveram que ler Entrevistado: Fala.
outros?
Entrevistadora: E o que você fala para ela?
Entrevistado: Não, que eu me lembre
Entrevistado: Ah, eu falo que eu não
não.
gosto de ler.
Entrevistadora: O que você fez com esses
Entrevistadora: Sua irmã também não
livros?
gosta?
Entrevistado: Estão guardados. Acho
Entrevistado: Não, minha irmã gosta.
que minha mãe lê.
Entrevistadora: Ela lê bastante.
Entrevistadora: Sua mãe gosta de ler?
Você se lembra se ela gosta de ler? Entrevistado: Não tanto quanto minha
mãe, mas ela lê uns livros, sim.
Entrevistado: Não, ela lê sempre.

Entrevistadora: O que você lembra que ela


Entrevistadora: O que ela gosta de ler?
lê.
Entrevistado: Tudo. Ela lê um monte de
Entrevistado: Uns livros do Paulo
livro.
Coelho, lá, eu não lembro agora.
Entrevistadora: Tem bastante livro na sua
Entrevistadora: E seus amigos, gostam de
casa então?
ler?
Entrevistado: Tem, tem alguns.
Entrevistado: Não.
Entrevistadora: Onde ficam os livros na
Entrevistadora: Seus colegas da classe,
sua casa?
seus amigos...
Entrevistado: Ficam no guarda-roupa.
Entrevistado: Não.
Ficam guardados, no guarda-roupa, essas
coisas. Entrevistadora: Você já conversou sobre
isso com seus amigos?
Entrevistadora: Mas você nunca se
interessou pela leitura? Entrevistado: Não.

Entrevistado: Não.
385

Entrevistadora: E você entra bastante na Entrevistadora: E esse é seu primeiro


internet para ver site, essas coisas? plano?

Entrevistado: Entro. Entrevistado: É.

Entrevistadora: O que você costuma ver Entrevistadora: E como é a carreira de um


na internet? lutador de Muay Thay?

Entrevistado: Eu gosto de ver só sobre o Entrevistado: Não é muito fácil, mas


Muay Thay mesmo. Eu entro no Facebook, também não é muito difícil porque se você
assim. Na verdade eu, mecânico, não queria quer ser um lutador de verdade mesmo você
ser muito mesmo. Está em segunda opção. tem que ir para a Tailândia para lutar Muay
Na verdade eu queria lutar mesmo. Thay. Aqui você não vai conseguir ser um
[lutador] de verdade mesmo. Tem que ir para
Entrevistadora: Você queria ser lutador?
a Tailândia. Minha meta é essa: no máximo
Entrevistado: Estou conseguindo perder com 20 anos conseguir ir para lá, ficar um

bastante peso. Eu perdi 25Kg já. Estou tempo lá, me profissionalizar, lutar. Com uns

correndo atrás para eu conseguir. 30 anos por lá eu abrir minha academia e dar
aula.
Entrevistadora: O que você faz para correr
atrás? Entrevistadora: Você já tem todo o seu
futuro esquematizado, Paulo!
Entrevistado: Ah, fechando a boca,
Entrevistado: Já.
perdendo peso, me esforçando bastante.

Entrevistadora: No treino? Entrevistadora: No lugar onde você treina


você já aprendeu como faz para ir para lá?
Entrevistado: Sim.
Entrevistado: É, eu já sei como faz para
Entrevistadora: O treino é muito pesado? ir, tudo, mas ainda não porque eu tenho que
trabalhar ainda. Preciso juntar um dinheiro.
Entrevistado: É.
Entrevistadora: E sua mãe sabe desse
Entrevistadora: Você já participa de
projeto?
algumas competições?
Entrevistado: Sabe.
Entrevistado: Não, por causa do meu
peso. Por isso eu estou correndo atrás. Por Entrevistadora: Ela te apoia?
isso eu estou fazendo o máximo para perder
Entrevistado: Apoia, mas ela fica
mais peso.
falando para eu ter outra coisa também.
386

Entrevistadora: Para ter duas Entrevistado: Eu acho boa essa escola.


possibilidades? Eu acho boa, só não me interesso muito.

Entrevistado: É. Entrevistadora: São não tem muito a ver


com seus interesses.
Entrevistadora: E você acha que, de
alguma forma, a escola te ajuda nesse seu Entrevistado: É.
plano?
Entrevistadora: Você já foi na biblioteca
Entrevistado: Quase nada. Nas duas da escola?
coisas que eu quero fazer, em nada.
Entrevistado: Não.
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistadora: Nunca entrou lá?
Entrevistado: Nada na escola.
Entrevistado: Entrei uma vez, mas ir
Entrevistadora: Tem alguma coisa na para lá para fazer alguma coisa, não.
escola que você gostaria de mudar para te
ajudar um pouco mais no seu dia-a-dia? Entrevistadora: Algum professor já pediu
para você ir lá?
Entrevistado: Não.
Entrevistado: Não.
Entrevistadora: Você acha que a escola é
isso mesmo? Entrevistadora: E quem é a pessoa com
quem você mais conversa, conta das suas
Entrevistado: É isso. Não tem que coisas?
mudar, eu acho.
Entrevistado: Como assim?
Entrevistadora: Você disse que gostou
mais das aulas de Sociologia e Filosofia Entrevistadora: Uma pessoa com quem

porque elas tratam das questões do dia-a-dia. você tem intimidade para contar suas coisas.

Você já se perguntou por que todas as


Entrevistado: Sem ser minha mãe?
matérias não são assim?
Entrevistadora: Pode ser sua mãe.
Entrevistado: Não, mas acho que não
tem como trazer as outras matérias, trazer as Entrevistado: Minha mãe. Eu conto as
questões do dia-a-dia. coisas para ela, tudo.

Entrevistadora: E você acha que a Entrevistadora: E voltando às questões


qualidade da escola é bacana? sobre a aula de Língua Portuguesa. Nessas
aulas vocês leem vários textos ao longo do
387

ano. Você lembra um pouco dos autores, do ensino médio para o ensinar a sair da escola,
que falam esses textos? o que você diria?

Entrevistado: Não. Entrevistado: Ser esperto, só. Você não


precisa ficar fazendo tudo, é só ser esperto.
Entrevistadora: Você se lembra de algum
dia ter gostado de algum desses textos? Entrevistadora: Em que sentido?

Entrevistado: Também não. Entrevistado: Entregar os trabalhos,


sempre, e fazer lição na sala.
Entrevistadora: Mas na hora de fazer as
atividades, é fácil? Você as faz? Entrevistadora: Para o professor ver que
você está fazendo?
Entrevistado: Eu faço senão você repete.
Eu só tenho que sair da escola. Minha meta é Entrevistado: É.
só sair da escola, só. Tem que estudar só para
Entrevistadora: E você acha que você
sair.
aprende quando você faz as atividades?
Entrevistadora: Você faz o suficiente para
Entrevistado: Não. Às vezes sim, às
sair?
vezes não porque você faz só por fazer
Entrevistado: É. mesmo.

Entrevistadora: E tem sido difícil para Entrevistadora: E você separa as


você cumprir essas metas da escola? atividades que você faz para aprender de
outras que você faz para cumprir o pedido
Entrevistado: Não muito. Até que não é
pelo professor?
muito difícil, não. Só se esforçar um pouco às
vezes. Entrevistado: Sim.

Entrevistadora: Se esforçar em quê: Entrevistadora: Qual critério você usa para


esquentar a cabeça ou ter perseverança para saber a diferença?
terminar a atividade?
Entrevistado: Agora eu não sei. Eu sei
Entrevistado: Você fazer as aulas, que alguns tem que fazer para aprender para
entregar os trabalhos sempre, entregar os usar depois e alguns você só quer para aquela
trabalhos e fazer a lição na sala. hora mesmo. Você tem que fazer. Você tem
que saber que vai usar depois em outras
Entrevistadora: Se você fosse dar uma
aulas.
dica para alguém que vai entrar agora no
388

Entrevistadora: Nesse último bimestre, Entrevistadora: Eu assisti algumas aulas


nas aulas de Língua Portuguesa, tinha algum da professora Márcia e de outras professoras
conteúdo que você sabia que devia aprender que foram substituí-la. Para você, qual a
para usar depois? diferença entre uma aula da professora
Márcia e das outras professoras?
Entrevistado: Não.
Entrevistado: Eu acho que as professora
Entrevistadora: Vocês fizeram um
substitutas só vão para perder tempo. Não
trabalho sobre o Barroco. Ele te ajudou a
passa nada. Só fica enrolando. Que nem, na
aprender mais sobre o Barroco?
última aula, você vai para nada. Ao invés de
Entrevistado: Não, tinha que fazer para liberar você fica sem fazer nada, só enchendo

entregar para ganhar nota. linguiça.

Entrevistadora: Como você fez esse Entrevistadora: Aqueles exercícios que

trabalho? elas passam...

Entrevistado: Na internet. Eu copiei. Entrevistado: Não tem nada a ver com o


que a gente está vendo. A gente está vendo
Entrevistadora: Copiou totalmente? outra coisa na aula da professora ela passa
outra coisa nada a ver que.... Um texto nada a
Entrevistado: Eu li para ver se tinha
ver com o que a gente está aprendendo. Só
algum sentido e copiei.
para encher linguiça só.
Entrevistadora: E deu certo?
Entrevistadora: Isso te irrita?

Entrevistado: Deu. Acho que é assim


Entrevistado: sim.
que se faz trabalho, não sei.
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistadora: A professora deu alguma
orientação do que vocês tinham que fazer? Entrevistado: Porque não precisa
daquilo. Só vai só para nada.
Entrevistado: Não. Falou que tinha que
fazer um trabalho sobre o Barroco e entregar, Entrevistadora: Se você fosse professor de
só. Língua Portuguesa, como seriam suas aulas?

Entrevistadora: Esse trabalho foi fácil ou Entrevistado: Não quero ser isso, mas às
foi difícil? vezes eu fico pensando, se eu fosse professor
eu ia facilitar ao máximo para o aluno.
Entrevistado: Foi fácil.
389

Entrevistadora: Ah é? Em que sentido Entrevistado: É, em física eu não sabia


você ia facilitar as coisas? de nada mesmo. Eu não fiz os exercícios, eu
não sei de nada mesmo em física.
Entrevistado: Ao máximo. Eu ia dar
tudo facinho para eles e só passar o que Entrevistadora: E agora na recuperação o
precisa mesmo. Essas coisas. que você teve que fazer?

Entrevistadora: E o que precisa mesmo? Entrevistado: A prova, que eu fui bem


mal.
Entrevistado: Eu acho que no ensino
médio, o que precisa na vida mesmo você já Entrevistadora: E agora, o que você acha
aprendeu, que era, que eu acho que você só que vai acontecer?
usa as coisas mesmo até a 5ª série, que é:
Entrevistado: Não sei, mas eu acho que
conta de mais, menos, dividir e vezes e ler.
Acho que o que precisa é isso só. Depois, o eu passo. Só fiquei em duas.

que você quer fazer, você tem que se Entrevistadora: Aí você passa no
aprimorar no que você quer fazer. Se você conselho?
quer Português você aprimora, filosofia,
química, essas coisas. Entrevistado: Eu acho que sim.

Entrevistadora: Se você pudesse eliminar Entrevistadora: Não saber direito te dá


as matérias que não tem servem e ficar com alívio ou angústia?
as que te servem, com quais matérias você ia
Entrevistado: Não, eu acho que passa.
ficar?
Mas eu fico meio angustiado até saber.
Entrevistado: Com a de Português
Entrevistadora: Mas você falou uma coisa
porque eu acho que precisa, mas eu não uso,
que me intrigou. Você disse que não gosta
mas eu acho que tem que ter. Português. Qual
das aulas de Língua Portuguesa porque elas
que eu ia eliminar mesmo era química, física.
não servem muito. Mas depois você disse
Acho que só, química e física.
que ia manter as aulas de Língua Portuguesa.
Entrevistadora: Mas você não ficou de Por quê?
recuperação nem de física, nem de química.
Entrevistado: Não sei. Não serve muito,
Entrevistado: De física eu fiquei. mas você tem que saber um pouco do básico
só. Do básico.
Entrevistadora: Em física sua técnica não
deu certo. Entrevistadora: O que é o básico?
390

Entrevistado: Saber consoante, essas Entrevistadora: Quando você lê os textos

coisas assim. O básico. que você gosta nos blogs de Muay Thay,
você sente falta de ler melhor ou não, o que
Entrevistadora: Saber ler direito? você sabe é suficiente?

Entrevistado: É. Entrevistado: Não, eu entendo tudo, eu

Entrevistadora: E você acha que está bem, consigo entender as coisas tudo direitinho.

sabe ler bem, interpretar bem um texto? Entrevistadora: Teve alguma coisa que
você já tentou ler e não conseguiu?
Entrevistado: Interpretar, essas coisas,
eu não sei muito bem não. Entrevistado: Acho que não. Agora eu

Entrevistadora: E você gostaria que a não estou lembrado.

professora parasse e te ensinasse isso Entrevistadora: A sua mãe ou a sua irmã


direitinho? comentam dos livros que eles leem?

Entrevistado: Interpretar e essas coisas? Entrevistado: Comentam. Minha mãe


Sim. geralmente sim.

Entrevistadora: Por exemplo, se ao invés Entrevistadora: E o que ela comenta?


dela ensinar o Barroco, essas coisas, ela
tivesse sentido ao seu lado para te ensinar Entrevistado: Ela conta sempre a história
como interpretar um texto, você teria do livro e ela fala para mim ler.
gostado?
Entrevistadora: Mas mesmo assim não te
Entrevistado: Ah, acho que sim. Acho motiva.

que eu teria gostado mais.


Entrevistado: Não.
Entrevistadora: Por quê?
Entrevistadora: E o que ela acha bonito
Entrevistado: Porque que eu vou querer nos livros?

saber do Barroco? Para mim não vai mudar


Entrevistado: Agora não sei.
em nada.
Entrevistadora: E você gosta de ouvir
Entrevistadora: Já se você souber ler um
quando ela fala dos livros.
texto.
Entrevistado: Gosto. Ela sempre conta
Entrevistado: Serve mais.
da história do livro, ela fala o que achou
bonito dos livros.
391

Entrevistadora: E você faz algum curso Portuguesa para ele, poderia selecionar
fora da escola? Como inglês e essas coisas? atividades e textos sobre assuntos que ele
gosta, como o Muay Thay. Então ele disse
Entrevistado: Não.
que seria muito melhor porque tem a ver com

Entrevistadora: Bom, acho que era isso, ele, diferente do Barroco que, para ele, não se

Paulo. Muito obrigada por sua entrevista. relaciona com nada. Então ele retomou a
ideia que as atividades escolares terão mais
Entrevistado: De nada. sentido na medida em que se aproximem do
Quando a entrevista terminou, o entrevistado cotidiano, da vida dos alunos.
falou que achou um pouco estranho fazer a
entrevista porque ele disse tudo ao contrário.
Eu não entendi isso muito bem e pedi para
ele explicar um pouco melhor. Então ele
Entrevista com o aluno Marcelo
explicou que falou ao contrário porque ele
18/12/2014
ficou falando sobre as coisas que ele não
gosta. Ele falou que, de fato, não gosta da
escola e de ir para a escola porque ele acha
que ela não acrescenta muito. Ele falou que a Entrevistadora: Qual é o seu nome e
escola, na verdade, vai ensinar coisas para a quantos anos você tem?
vida. A boa escola, para ele, vai ensinar o
Entrevistado: Marcelo, eu tenho 39 anos.
respeito, a convivência entre as pessoas,
como respeitar quem tem uma hierarquia Entrevistadora: O que te levou a voltar a
superior. A escola serve para aprender essas estudar?
coisas, sobre a hierarquia, as relações entre as
pessoas. Tudo o que vai ser utilizado no Entrevistado: Eu parei já muito tempo

cotidiano. Depois que se aprende isso, a porque eu tive filho cedo. Filhas, eu tive duas
escola não tem mais razão de existir e por filhas. Eu tenho uma de 21 e uma de 17 anos.
isso ele não gosta da escola. Ele não gosta da Com isso eu tive que começar a trabalhar e
escola porque ele é obrigado a vir para um tive que optar: ou os estudos, ou o trabalho.
lugar de que ele não gosta. Isso é muito ruim
Entrevistadora: Você estava no ensino
para ele e ele diz que se sente mal de ter que
médio quando elas nasceram?
vir para a escola todos os dias. Conversamos
sobre a razão da entrevista e eu expliquei que Entrevistado: Eu estava na 5ª série na
gostaria de saber mais sobre as aulas de época. Eu me amiguei cedo, com 14 anos. Eu
Língua Portuguesa além de conhece-lo estava na 6ª série.
melhor. Falei que agora que o conheço
melhor, se eu fosse dar aulas de Língua Entrevistadora: 6ª série regular?
392

Entrevistado: Regular. O que seria a... fazendo ali, você acaba conseguindo o

Hoje mudou muito os nomes. Antes era, não trabalho.

era fundamental, ah, tinha um nome que eles


Entrevistadora: E você vai fazer faculdade
usavam. Parei com 14 anos e voltei com 25
de quê?
anos. Fui fazendo a 6ª, 8ª no supletivo, 1º, 2º
e tive que parar novamente porque tinha Entrevistado: Merchandising, que já é a
trabalho, muitas viagens, faltas. Tive que linha do trabalho mesmo. Promotor de
parar novamente. Voltei o ano retrasado e vendas, muitas vezes a gente cai para a área
voltei agora para terminar. A empresa pediu de merchandising, montagem de carrinho, de
também o curso ou uma faculdade, então a ilhas, terminais, cascatas então tudo tem um
gente tem que estar se atualizando. pouquinho na área de promoção de vendas.

Entrevistadora: Você trabalha com o quê? Entrevistadora: Onde você pretende fazer
o curso?
Entrevistado: Eu sou promotor de
vendas. A venda da empresa seria lâmpadas Entrevistado: Pelo que me indicaram,
fluorescentes, lâmpadas de LED, fita de pessoas amigas que já fizeram e gostaram,
LED. É a tecnologia que hoje está se falaram que na Uniban tem. Vou fazer pela
avançando. É o LED. Uniban, mas vou procurar valores também.
Onde agrega. A empresa paga um certo valor,
Entrevistadora: E você sempre trabalhou
que é o 50% a empresa paga.
com essa área de comércio? Ou você já
trabalhou com outra coisa? Entrevistadora: Aí você vê o que dá para
bancar do seu 50%.
Entrevistado: Com 14 anos eu trabalhei
com mecânica. Fiquei durante uns cinco a Entrevistado: Isso estimula a gente a
seis anos com a mecânica, onde eu cai para a continuar na área e se aperfeiçoar cada vez
área de mercado. Eu gostei, sempre era meu mais.
sonho trabalhar com mercado. Trabalhei três
Entrevistadora: Você é casado?
anos com um determinado mercado. Direto
com eles. Depois comecei na promoção, Entrevistado: Sou casado.
como promotor de vendas, gostei, e venho
trabalhando. Quer dizer, hoje até que está Entrevistadora: Sua esposa trabalha
mais aberto o leque para você trabalhar. também?
Antigamente você tinha que ter uma certa
Entrevistado: Ela trabalha. Ela é técnica
experiência. Hoje em dia, não, com pouca
em Raio-x. Ela é técnica formada e hoje ela
experiência, sabendo só o que você está
faz faculdade de raio-x. Foi ela que me
393

estimulou até: “Vamos voltar também? ”. A Entrevistadora: Qual era o nome dessa
empresa também falou ai eu falei “Vamos escola?
lá”. Ela faz aqui na FAMESP, não sei se você
Entrevistado: Olavo Fontoura. O colégio
conhece, na Saúde. Está indo para o último
ano agora, ela vai fazer porque a empresa não tinha muita estrutura, mas dava um

também exigiu. Técnico não vai bastar. Onze suporte melhor, eu posso dizer hoje, do que o

anos de casado, não tenho nenhum filho com Lasar.

ela e ela pensa um pouco mais para frente. Entrevistadora: Por quê?
Como eu também procuro pensar junto.
Temos o carro, temos a moto, moramos num Entrevistado: É uma escola muito mais
lugar que é dos pais delas, mas procuramos humilde do bairro. Porém os professores
ter o nosso cantinho. eram muito mais organizados, as aulas eram
muito mais explicativas. Hoje eu sinto que
Entrevistadora: E as suas filhas estudam?
alguns explicam e outros enrolam. Isso é a
Entrevistado: Uma terminou e a outra realidade. Eu não posso falar que eu aprendi

parou esse ano por causa de namorado, muita coisa nesse ano agora. Eu não aprendi

segundo a mãe dela, ela mora com a mãe muita coisa. Assim, vou ter dificuldade? Vou

dela. Então a mãe dela falou que ela parou, ter dificuldade. Mas se não e hoje o

não está indo para a escola. Eu tive uma computador para a gente estar, o Google,

conversa com ela. Falei “E aí? Se você vai para a gente falar a verdade, a gente estar lá

continuar na mesma, você vai se arrepender pesquisando alguma coisa, estudando livros,

depois”. Aquela conversa que a gente sabe só a escola não bastava. Então o que

que realmente sai mais caro depois e eu sei o acontece? O Olavo, eu aprendi coisas que eu

que é isso. Segundo ela, vai voltar ano que já tinha esquecido há muito tempo. Quando

vem. Vou pegar mais firme. A primeira já eu fui para o Raul Fonseca, já foi um colégio

terminou e já trabalha. melhor. Ele saiu três anos na categoria de


melhor colégio no jornal do bairro. Era um
Entrevistadora: E com relação à escola colégio mais estruturado. Fiz até o 2º lá,
mesmo, quando você voltou agora para fazer comecei o 3º, mas com o trabalho não deu.
o 3º ano, qual era sua expectativa em relação Uma baita de uma escola, uma baita de uma
à escola? explicação. Lá eu peguei bastante
explicações e entendi bastante as aulas.
Entrevistado: Quando eu voltei a estudar
depois da 6ª série, que eu fiz a 7ª e a 8ª, que Entrevistadora: Você pode me dar um
eu fui fazer supletivo, era num colégio exemplo de uma dessas boas aulas? O que
menor, perto da minha casa. acontecia?
394

Entrevistado: Eu acho que a de escola que, realmente, em todas as áreas.

Matemática é um caso muito complicado. Geografia, o professor de Geografia era uma

Acho que todo mundo fala. Eu gosto muito figura. Ele tinha muita palavra para poder

de matemática e eu consegui assimilar muito estar ensinando. Nas provas dele, eram

bem a matemática. Por mais que era muito provas muito mais rígidas e não

dificultoso, o ensinamento do professor, ele complicavam tanto a cabeça da gente porque

se aposentou, ele começava a explicação e eu você tinha um certo tempo também para você

conseguia assimilar muito bem. E assim, eu estar estudando. Por isso que eu estou

percebia que não só eu, mas os demais falando, não culpando a escola, não sei o que

também acompanhavam. Coisas que aqui eu é, ou a copa, que seja, mas foi uma coisa

não consegui e mais pessoas também não muito mais empurrada. Acho que faltou um

conseguiram. Pela idade, pelo tempo de pouco mais de interesse. Hoje, pelo que

parada na escola a gente não consegue falam, eu não sei, eles querem só passar os

assimilar muito. Eu acho que foi uma coisa alunos e você está ali, de repente... Eu fiz

muito empurrada esse último ano agora. duas vezes a 2ª série porque, basicamente, eu

Esses seis meses que não chegou a seis não conseguia acompanhar. Brinquei?

meses. Brinquei e não acompanhei. Por isso eu não


passei. Quer dizer, depois disso aí,
Entrevistadora: Quando você tinha chamavam a atenção dos meus pais e vendo
dúvidas, como é que você lidava com essas que o negócio é mais rígido, eu não sabia que
dúvidas? repetia, eu era muito novo, e os demais
amigos passaram você fala “poxa, estou
Entrevistado: Isso que era interessante.
ficando para trás”. Então você começa a
Isso que era interessante porque ele voltava e
pegar um pouco mais firme. Eu acho que
repetia. Você percebia que, poxa, tenho
hoje em dia, realmente, está muito mais
dúvida e eu quero aprender. Isso fazia muita
difícil para você aprender alguma coisa.
diferença para o professor.
Entrevistadora: E com relação às aulas de
Entrevistadora: Eles percebiam que vocês
Língua Portuguesa da Escola 2, elas eram
tinham interessa?
muito diferentes das que você teve nas outras
Entrevistado: Entendeu? Tem alunos escolas?

que não tem muito interesse? Tem, isso é


Entrevistado: Sim, elas eram diferentes
normal, mas aqueles que realmente voltaram
sim. É como eu falei, eu acho que tinha
depois de muito tempo, eles percebiam que a
tempo e a professora conseguia aplicar, como
gente tinha a necessidade e o interesse de
eu vou dizer? Algumas pegadinhas, como a
estar conhecendo melhor a parte da aula que
gente dizia. Umas pegadas como os
ele estava explicando. Então, assim, era uma
395

sinônimos. Quero dizer, assim pegar o redação é uma coisa que a gente acaba
sinônimo da situação. Tem o jeito mais fácil pecando até numa entrevista de emprego,
de você aprender. Aqui não. Aqui é aquilo na uma redação. Eu mesmo procuro ter o
lousa ou você pega o caderno e dá uma máximo de atenção na hora de escrever, mas
olhada. Lá não, era “professor, eu não às vezes falta a malícia de alguma coisa para
entendi como funciona isso”. Ela voltava. você estar ali aprendendo. A gente não
Tinha alunos que chegaram depois, ela consegue passar a redação da forma que ela
conseguia voltar um pouco, somente para deveria ser. Acho que a redação.
aqueles alunos, e pegar um pouco para eles
Entrevistadora: Você queria que ela
poderem acompanhar. Aqui eu acho que não.
tivesse trabalhado mais?
Aqui era tipo, vamos empurrando. Vamos
fazendo. Essa é a verdade. Eu não posso Entrevistado: Sim.
dizer que foi mentira. A Escola 2, na minha
época que eu estudava no colegial, como a Entrevistadora: Vocês tiveram que fazer

gente falou, era a escola que era muito mais redação?

falada. Tanto que era uma região boa, Vila


Entrevistado: Até que tivemos. Nessa
Mariana, Santa Cruz, quem estudava no
parte de Português, eu não tenho o que
Lasar era top. Não era um particular, mas era
reclamar da professora de Português. Eu acho
um colégio top. Todo mundo falava. Mas eu
que eu tive mais suporte de Português do que
não sei, também não culpo tanto o colégio,
de qualquer outra matéria. Português e inglês,
não sei se é o governo de hoje em dia que
sim, foi o suporte maior que eu tive. O
vem tirando um pouco essa responsabilidade
restante eu não posso te dizer nada.
do aluno que tem. Às vezes, de noite, a gente
ter pouco tempo para estudar, mas ser um Entrevistadora: Como eram as aulas de
pouco mais rigoroso na parte do Língua Portuguesa, de modo geral?
ensinamento. Uma coisa, assim, não que tem
que pegar na mão da criança, mas de repente Entrevistado: Olha, a gente fez

falar, não, peraí, onde você tem dificuldade? realmente um pouquinho de redação,
aprendemos adjetivos. [ tem dificuldades
Entrevistadora: Nesse semestre, em
para se lembrar.]
Língua Portuguesa, você teve alguma
dificuldade? Entrevistadora: Podemos folhear o seu
caderno.
Entrevistado: Olha, acho que uma coisa
que fica sempre, acho que até dos Entrevistado: Pode ser mais interessante.

professores, ouvi esse comentário, é a parte


O aluno abre caderno na parte de Língua
de redação. Cai muito em concursos então a
Portuguesa.
396

Entrevistadora: O que é essa atividade? Entrevistadora: Eu fiquei bem


impressionada porque é um cachorro que
Entrevistado: É uma parte do livro
come o outro. Come mesmo.
porque tinha uma parte do livro que a gente
pegava, a gente tentava resumir o texto. A Entrevistado: Então, é essa parte que a
gente tinha que resumir o texto. A mesma gente lendo, não entende muito bem as
coisa aqui nesse caso. Mesma coisa aqui palavras porque não encaixa as palavras para
nesse caso. [fala enquanto folheia o caderno.] você entender o conto. Mas depois a
professora fazendo [incompreensível] tudo,
Entrevistadora: O cachorro canibal. Eu
realmente, era um cachorro que comia o
estava na sala quando vocês leram esse texto.
outro para sobreviver, eu acho que chega a
O que você achou dele?
esse ponto ou por ser mais feroz, ele seria um
Entrevistado: Muito legal. Quando você cachorro do mato. A lei do mais forte. Eu

lê, você entende da forma como você está acho isso aí, a lei do mais forte.

lendo. Só que depois, quando você dá uma Entrevistadora: Nas aulas vocês
analisada melhor, você entende que a palavra geralmente liam sozinhos os textos ou não?
tem outro significado na questão do conto.
Entrevistado: Isso, ela deixava os textos
Entrevistadora: E o que você achou
com a gente para poder fazer um resumo,
bacana aqui no conto do cachorro canibal?
depois cada um colocava aquilo que achou, o
Entrevistado: Para eu dar uma revisada, que entendeu do texto e ela depois fazia uma

eu vou dar uma olhada. Tem dois textos, né? correção dos detalhes que a gente não teria
entendido.
Entrevistadora: Não, é um só.
Entrevistadora: E você gostava de ler
Entrevistado: Não, tem esse e um outro esses textos?
que ela tinha aplicado.
Entrevistado: Olha, Português foi a aula
Entrevistadora: Ah, O amor por entre o que mais me chamou atenção. Por quê?
verde. Eu também estava na aula. Fala do Porque era duas aulas em que você tinha
casal namorando no parque. proveito e também o jeito da professora ser.
Ela era uma pessoa que não tinha muita
Entrevistado: Isso, você fica na janela
conversa e muita brincadeira. É o trabalho, é
olhando e tem a questão do tempo passando
a aula e acabou. Tinha professores que
sem saber. O canibal, não vou me lembrar
faziam? Tinha. Era pouca matéria e passava o
muito agora na mente.
tempo, para falar a verdade. Não aqui falando
mal, estou falando somente o que aconteceu.
397

De repente, como eu falei, está recuando Entrevistado: Eu percebi que sim


porque é o último ano na escola, sei lá o que porque, como eu falei, ela falava o
é. Não deu para entender. Críticas, só críticas. significado e a pergunta era em cima daquilo,
Eu acho que é mais ou menos isso, mas é o da mesma forma que a gente não entendia.
que pareceu. Estavam tentando empurrar Então, quando ela falava o significado
“Ah, acaba logo e o ano que vem já não vai daquilo a gente conseguia pelo menos
ter mais então..”. Não sei se seria isso no 1º, resumir e clarear um pouco mais a mente na
no 2º, teria esse significado, mas no 3º eu pergunta. Mas, assim, o pouco tempo que deu
senti isso”.É um último ano mesmo, estão para acompanhar, você percebeu que a aula
aqui somente para pegar o certificado dela era muito mais produtiva do que as
mesmo”. Realmente, o que mais interesse outras aulas.
muitas vezes é isso aí, depois você vai
fazendo os seus cursos aí, por fora, na área Entrevistadora: Vocês leram textos curtos

que você procura. ou também leram livros ao longo da


disciplina?
Entrevistadora: Aí sempre que vocês liam
esses textos você entedia mais quando a Entrevistado: Bom, teve aulas que eu
professora explicava? Quando ela mostrava não cheguei na primeira aula e também teve
as coisas? aulas que eu faltei, mas as aulas que eu
frequentei aconteceu umas duas ou três vezes
Entrevistado: Eu mesmo entendia mais
de a gente estar lendo livros.
quando ela explicava. É como eu falei: é
diferente você ficar ali, um texto grande Entrevistadora: Livro em classe? Você

também, às vezes, se você pegar para ler com lembra qual é?

mais calma, ver novamente, não que não


Entrevistado: Eu acho que eu até tenho
tinha essa possibilidade de estar revendo, mas
ele em casa, mas não me lembro, não.
algumas coisas, poucas palavras que não se
encaixavam, aí ela falava o significado Entrevistadora: Do que falava? Você se
daquilo, aí realmente encaixava na hora que lembra alguma coisa desse livro?
ela falava. Aí sim fazia sentido.
Entrevistado: Como ele pegava no dia
Entrevistadora: E com relação às que a gente ia ter aula com o livro, ai ela
atividades escritas? Muitas vezes vocês recolhia. Aí no último dia que a gente teve a
tinham o texto e depois questões para última aula com o livro, a matéria, ela falou
responder? O que você acha desses “Não, pode ficar com o livro para vocês”.
exercícios? Eles ajudavam na escrita ou na Agora não lembro.
compreensão dos textos?
398

Entrevistadora: Era livro de literatura ou Entrevistado: Eu acredito que como eu


livro didático? passei esse caderno em branco, eu estava
com outro caderno.
Entrevistado: Livro de Língua
Portuguesa. Nova pausa enquanto ele folheia a caderno.

Entrevistadora: Ah, livro didático. Entrevistadora: Mas e na sua vida fora da


escola, você gosta de ler?
Entrevistado: Isso.
Entrevistado: Assim, eu tenho algumas
Entrevistadora: Era o que vocês usavam.
dificuldades, tenho correr atrás disso
Tinha esse com os textos que vocês usavam.
atualmente que é: começo a ler e começa a
Entrevistado: Eu não lembro se ela lacrimejar meus olhos. Óculos, pelo jeito

tirava do livro. Eu não lembro agora. Eu não deve ser óculos. Me dá muito cansaço ler,

lembro se ele tirava exatamente desse livro, mas assim, se for coisa pequena eu vou ler,

mas esse texto eu lembro que tem. mas se for coisa grande já não me dá
paciência.
Entrevistadora: A professora não falava de
onde vinham esses textos que ela levava? Entrevistadora: O que é uma coisa
grande?
Entrevistado: Não me recordo. Não veio
Entrevistado: Aqueles livros grandes
na mente agora.
que você pega parece uma bíblia, para falar a
Entrevistadora: Entre os textos que a verdade. Aquilo me dá um desânimo para
professora levou para a aula, teve algum poder ler. Eu sei que...na oitava série a gente
autor ou algum texto mesmo que você gostou tinha aula de leitura com a professora e a
mais? gente até levou para casa. Eu pegava aqueles
pequenininhos que eu conseguia ler. Não
Entrevistado: [pausa] Ter, tem, mas para
adianta pegar um livro só para pegar também.
eu lembrar o nome agora. Não vou lembrar
Para recordar agora que livro que eu li, são
não.
coisas que eu não consegui, que eu até pego
Ele começa a folhear o caderno. para ler, mas que com o passar do tempo....
Que nem, a minha esposa mesmo lê muito
Entrevistadora: Pode olhar seu caderno.
aquele “Marley e Eu”. Quando eu peguei

Entrevistado: Pode olhar, né? aquele livro que eu vi, falei “Meu, como é
que você conseguiu ler?” Eu já não tenho
O entrevistado passa alguns minutos aquela paciência para ler. Não sei, não tenho
observando seu caderno. aquela mente “Vou pegar para ler agora”. Eu
399

prefiro um documentário passando na TV para a Vila Mariana, minha esposa está lá, ela
que, ou um computador para ler que um faz aula de natação e lá tem a parte do livro.
livro. Então de repente eu pego o gosto agora, eu
não sei. Mas lá tem a parte do livro.
Entrevistadora: Ah, você lê no
computador. O que você lê? Entrevistadora: Você já foi na parte do
livro?
Entrevistado: Olha, notícias.
Entrevistado: A gente pegou a
Entrevistadora: Tem algum portal de
carteirinha semana passado e eu,
notícias que você vê mais?
basicamente, pegava ela e saia. Agora já dei
Entrevistado: Mais pelo IG. Parte de uma diminuída no horário de trabalho, eu

esportes, notícias em geral. Então essas são acho que agora eu consigo sentar, relaxar, dar

as partes que eu leio bastante, quando tenho uma olhadinha.

tempo também. Você entra no computador às Entrevistadora: Lá tem revista, tem


vezes, Face: patifaria. Você dá aquela clicada jornal...
ali e só vê bobeira. Mas eu gosto de ver as
partes, o que me interessa eu abro, dou uma Entrevistado: Eu quero ver se eu pego
olhada em geral. Jornal? Quando dá tempo essa parte aí. Eu preciso pegar gosto disso aí
também, mas vai no dentista, vai a algum porque é legal, você aprende a falar lendo
lugar, dá uma olhadinha. Revista? Também. também. Isso é muito legal. Você não precisa
É aquela coisa de você estar passando as tomar uma para soltar o corpo. Eu digo
folhas e o que interessar você dá uma olhada. assim, às vezes a gente toma uma e começa a
Não ler tudo. O que acontecia muito era você falar mais que a matraca velha, mas eu já falo
dentro do ônibus, sair e fica lendo as coisas de natural.
na rua. Eu faço.
Entrevistadora: E a sua esposa gosta de
Entrevistadora: No dia a dia você vai ler?
lendo. Só livro que você não lê.
Entrevistado: Ela gosta. A Li gosta de
Entrevistado: Não gosto, não tenho todo tipo, de ler, documentário. Tem coisas
aquele costume. Ah, vou pegar um livro para às vezes que eu falo “Mas para quê você
ler só se alguém me falar “Nossa, meu, lê tal vai?” “Eu estou vendo” “Você tem paciência
livro, assiste tal filme”. De repente eu pego de ficar vendo?” “Tenho”.
para ver o que a pessoa recomendou. Da
Entrevistadora: E ela conversa com você
minha parte acho que não vai ter... Teatro....
sobre as coisas que ela lê?
assim, a gente está com a carteirinha do
SESC, a gente vai para lá agora, estou indo
400

Entrevistado: Olha, como ela sabe que Entrevistado: A parte dos artistas, na
eu não sou muito de livro então ela faz aquele verdade, o jeito deles se colocarem na frente
comentário básico” .Olha, tem um livro eu acho muito interessante. Você está com o
bom”. Que nem o livro do Crepúsculo, ela público ali na frente e você vai falando. Eles
leu todos. falam de um jeito que parece que eles estão
dentro de um mundo, parece que estão dentro
Entrevistadora: Ela leu A culpa é das
da televisão, parece que não tem ninguém ali
estrelas?
na frente deles então eu acho muito
Entrevistado: Eu não me recordo agora, interessante. A pessoa em si foi show de

mas eu acho que ela tem esse comentário bola, cenário, sabe?

sim. Que nem, Marley e eu foi o primeiro Entrevistadora: Você achou bonito?
livro, depois foi o Crepúsculo, teve mais um
que a amiga dela emprestou. Mas quando eu Entrevistado: Muito bonito, sobre a
vejo o tamanho daquele livro não dá, não parte dele ser um louco, né? Achei muito
dá.... Eu não sei, você deve ler para caramba, interessante, muito bom. Eu assistiria outros
mas meu, não dá paciência. [ Fala com voz e outros dessa parte.
mais alta.] Eu prefiro assistir um filme,
Entrevistadora: Sua esposa foi junto com
assistir um documentário que nem eu falei
você?
para você. Teatro, entendeu? Até um ópera
eu vou, mas ler um livro é complicado para a Entrevistado: Foi junto também. Alguns
minha mente. alunos não foram então a gente estava junto.

Entrevistadora: Mas vocês têm esse hábito Eu falei “bom, se tiver que pagar eu pago e

de ir ao teatro? você assiste comigo”. E ela gosta dessas


coisas. E como a gente tem essa carteirinha
Entrevistado: Sim, teatrinho. O último do SESC, sempre no SESC tem essa parte de
que a gente foi, foi até pela escola. teatro.

Entrevistadora: Qual foi a peça? Entrevistadora: Agora vocês podem ir lá.

Entrevistado: Só sei que era do Miguel Entrevistado: Como a gente estava


Falabella. estudando não dava para acompanhar. Por
isso que eu falei que agora vai dar para
Entrevistadora: Ah, Dom Quixote?
acompanhar.
Entrevistado: Isso, Dom quixote.
Entrevistadora: E na sua casa tem livros,

Entrevistadora: E do que você gostou? revistas...?


401

Entrevistado: Tem, tem bastante. Livro Entrevistado: Isso. Eu vejo mais esporte
bastante, assim, uns 15 livros e bastante e notícias. Notícias, assim, não só tragédia,
revista. mas política, talvez até de artistas mesmo, o
que está acontecendo no nosso dia a dia. Eu
Entrevistadora: São seus ou da sua
pego para ler, mas se for uma coisa assim
esposa? Ou dos dois?
vou 1500 lá quando descobriram o Brasil. É
Entrevistado: Mais dela. Ela é uma legal? É legal. Mas eu não vou ter aquela

pessoa que quando ela quer uma coisa ela coisa, vou pegar um dia para ler ou para

foca nessa coisa e consegue. Eu às vezes, assistir. É tanto que tinha uns livros que

acho que fico um pouquinho com um pé passavam também na escola, a parte de....

atrás, não sei, desacreditado. Mas eu estou Mas acho que estou confundindo. Não foi

ali, trilhando o caminho dela. Quando ela traz nessa escola não. Na outra escola tinha parte

alguma coisa, até um filme mesmo, quando dos filmes que passavam, que era até seriado

ela traz eu falo “Ah, esse filme chato”. Um nacional que falava da guerra de Rio Grande

filme que a gente assistiu, que estava há um do Sul com outro estado que não lembro

tempão guardado, o curioso caso de agora. Era interessante, eu achava aquilo

Benjamin Button. Meu, eu olhava o filme e muito legal, que às vezes o filme que você

falei assim “Meu!” Ainda mais porque o cara assiste, eu assisto mesmo por assistir, mas

que faz, o Brad Pitt e o outro também, eu tem um sentido naquilo ali.

esqueci o nome dele. Quando eu olhei aquilo Entrevistadora: Você acha que tudo tem
eu falei “Meu, o que é esse filme?” Só que um sentido? Livros, filmes...?
ela assistindo, eu comecei a pegar. Eu
comecei a ver o cara voltando, quando Entrevistado: Esses filmes, seriados que
chegou à criança. Aí eu assisti o filme falam da nossa história. Como o caso do
sozinho novamente. Aí eu amei o filme. filme do Lula. Eu não assisti ainda, mas deve
Amei, amei o filme. Eu tinha pegado da ter um significado. Eu acho que tem. Que
metade do filme, terminou, ela foi dormir, eu nem aquele As torres Gêmeas, muda alguma
peguei o filme e o botei para assistir. Adorei coisa, mas tem alguma coisa de verdade ali.
o filme. A-do-rei o filme. Tem o Crepúsculo Alguns filmes, estou falando de filmes tipo
também que eu peguei todos ali e falei “Que documentários.
filme chato. Vampiro”. Eu peguei e assisti
Entrevistadora: Você gosta desses filmes.
todos com ela, até o último a gente assistiu
no cinema. Entrevistado: Eu acho que você gosta de

Entrevistadora: Você passa a gostar das alguma coisa é porque tem alguma coisa a

coisas que ela gosta. ver com você. Eu acho isso. Você focou
aquilo e gostou, tem a ver. Eu digo assim, a
402

parte romântica dos filmes românticos é matéria para mim que não tem significado
legal, mas dependendo do ator eu já não nenhum, vou ser bem sincero, falei isso para
gosto tanto. Mas tem ator que você fala ele até, é filosofia e sociologia. Uma que eu
“poxa, qualquer filme com ele é fantástico “ vejo que é assim, de repente se você... por
Então tem esse lado aí. Eu gosto realmente exemplo, se amanhã mais tarde eu puder
do filme que me chama atenção. Eu não colocar aquilo em papel, eu vou ler ou ouvir
acredito muito em geminiano, mas falam que várias vezes. Eu não consigo ouvir e já gravar
geminiano quando ele gosta de alguma coisa logo de cara. Tem que dar uma assimilada
ele leva em dobro. Eu acho que tem a ver isso primeiro para depois eu saber o que eu li e o
aí. Se eu gostei daquilo, ah eu vou comprar que queria dizer aquilo.
um, não, já compro outro e deixo guardado.
Entrevistadora: A aula não tinha esses
Eu tenho isso comigo. Tênis, relógio, o que
dois momentos?
seja. Ah, vou comprar um, compro dois.
Entrevistado: Era muito rápido. Umas só
Entrevistadora: Você acha que, de modo
geral, a escola aproveita ou ela leva em ficavam falando, outras só ficavam

consideração essas coisas que você gosta? escrevendo. Olha o escrevendo eu até achava

Por exemplo, o filme que você gosta, o que legal, mas o falando eu acho que para mim é

você gosta de ler... legal quando você consegue pegar o fio da


meada. Quando você não consegue entender
Entrevistado: Eu acho que a escola abre a aula não adianta. Vai falar, vai falar, que
um pouco mais a mente da gente. A gente nem político, vai falar e não vai entender
tem um dia a dia tão estressante, focado nada. Você tem que saber por quê ele está
naquilo que você está fazendo, fazer bem falando aquilo, sobre o que é o assunto. Uma
para no dia seguinte você estar empregado. A que eu peguei as aulas já andando, eu entrei
escola abre um outro leque que é para você depois da entrada porque eu consegui a vaga
pensar para ver aprender os detalhes que hoje depois. Para você acompanhar algumas
você não necessita, mas que futuramente coisas foi difícil. Depois, quando mudava o
você pode precisar. Eu falo porque eu fui semestre, aí eu consegui acompanhar alguma
fazer uma entrevista em uma empresa e de coisa porque mudava a atividade para todo
repente começou a cair um monte de coisas mundo, mas muita coisa que ficou ali no
lá que eu falei “nossa, peraí, o que é isso? “ começo peguei.
Coisa que de repente eu aprendi lá atrás e já
Entrevistadora: Se você fosse professor de
esqueci. Quando eu voltei a estudar agora
Língua Portuguesa, como seriam as suas
que eu vi. Eu não ia saber fazer isso, tanto
aulas?
que eu não soube fazer. Realmente, a escola
abre um pouco mais a sua mente. Uma
403

Entrevistado: Não sei se é porque eu sou


uma pessoa que procura se dedicar àquilo que
está fazendo, eu procuraria pelo menos tirar a
dúvida de muitos daqueles que têm
dificuldades. Querendo ou não, alguns pegam
muito rápido e outros têm a dificuldade de
aprender. Então, sei lá, de repente um
reforço. Ou separar aqueles alunos, dar uma
atenção especial. Acho que isso seria, eu faria
a aula diferente sempre nesse sentido. Acho
que eu tentaria decifrar cada aluno. Claro que
numa prova você consegue ver se sua aula
está rendendo e aquele que tem dificuldade,
poxa vida, não posso adiantar muito a aula,
mas pelo menos poderia passar uma lição de
casa para, no final de semana daquele aluno,
ele poder...

Entrevistadora: Com relação às aulas de


Língua Portuguesa, quando você teve
dificuldades, você teve esse tipo de ajuda?

Entrevistado: Não, de Português eu não


tenho do que reclamar. A professora fez,
sempre que eu precisei ela me deu ajuda. A
aula dela foi a aula que eu tive mais, assim,
eu consegui aproveitar um pouco mais e
entender um pouco mais sobre aquilo que ela
estava passando. Que nem eu falei, às vezes a
gente chega cansando e a escola, a sala um
pouco barulhenta. Então às vezes você quer
aprender, a professora está te explicando,
mas os colegas não ajudam. Isso foi quase
sempre. Eu tive até situações com a
professora, ela falava “Marcelo, calma”. Eu
baixava a cabeça, que dava aquela dor de
cabeça que não dava para absorver o que ela
falava. Quando você passa no caderno,
depois você dá uma revisada, mas na hora de
falar ali.

Entrevistadora: Era isso o que eu queria te


perguntar. Muito obrigada.
404

ANEXO VI –
Transcrição das
entrevistas com as
professoras
405

Entrevista com a Professora Celeste Entrevistadora: Então como a docência


12/12/2014 chegou à sua vida?

Entrevistada: De uma forma totalmente


inesperada. Eu tenho um irmão que é quatro
Entrevistadora: Qual é seu nome? anos mais novo que eu e um dia ele chegou
em casa e falou assim para mim: “Você vai
Entrevistada: É Entrevistada.
prestar vestibular”. Eu falei: “Como assim
Entrevistadora: Você tem quantos anos? vou prestar vestibular? Eu nem me inscrevi”.

Entrevistada: 50 anos. “Se inscreveu, sim. Eu te inscrevi no


vestibular na faculdade de Letras. Você vai
Entrevistadora: Há quanto tempo você
prestar Letras e eu vou prestar para
leciona?
Matemática”. Ele e um amigo dele tinham se
Entrevistada: No Estado eu estou há 20 inscrito. Aí eu prestei vestibular, eles
anos. Completei 20 anos. Mas eu leciono há também. Nós três passamos. Na metade do
25 anos porque logo que eu me formei eu dei primeiro ano os dois desistiram e eu fui até o
aula. Aí demorou um pouco para eu começar fim e me apaixonei.
no Estado.
Entrevistadora: Então no meio do curso
Entrevistadora: E você fez qual curso? você descobriu que gostaria....

Entrevistada: Licenciatura em Português. Entrevistada: Não, eu gostava. Eu sempre


gostei, mas eu não tinha esse ímpeto. Como
Entrevistadora: Onde?
eu tinha uma profissão, eu nunca me
Entrevistada: Eu comecei na Faculdade preocupei de fazer uma faculdade. Achava
Moema. No meio da faculdade a faculdade até que não dava. Eu nunca tinha pensado
foi vendida, aí eu terminei na Uniban. que eu tinha condição, sabe, de fazer uma
faculdade. E aí, deu tudo certo para mim.
Entrevistadora: E você terminou o ensino
Eles desistiram, eles foram terminar, uns 10
médio e já começou a fazer a faculdade?
anos depois que eles foram escolher uma
Entrevistada: Não, não. Eu terminei o outra faculdade, fazer um outro curso. Eu
ensino médio e fiquei uns cinco anos sem não.
estudar.
Entrevistadora: E do que você gostou no
Entrevistadora: Nesse meio tempo você curso?
trabalhou com outras coisas?
Entrevistada: Literatura. Eu me apaixonei
Entrevistada: Não, eu sempre trabalhei com por literatura. Apesar de eu não ser uma
contabilidade. Eu trabalho desde os 15 anos. professora bem formada em literatura, eu não
Eu sou formada, eu sou contabilista. sou, não. Eu sou muito melhor em gramática
406

porque na hora em que eu comecei a É outra clientela. É uma clientela realmente


trabalhar, eu vi que eu tinha muito mais jeito mais ligada no estudo, as famílias dão mais
para gramática do que para literatura. valor para isso. A prefeitura é só uma questão
de ir lá para se alimentar mesmo, para ganhar
Entrevistadora: Por quê?
mesmo. Foi o que eu senti.
Entrevistada: Para ensinar as crianças a
Entrevistadora: Você teve experiência em
escrever, mesmo. Quando você ensina as
mais de uma escola municipal?
regras da língua... É óbvio que eu uso a
literatura. O meu, como posso dizer? Tudo o Entrevistada: Só naquela escola e foi
que eu ensino é em cima do texto. O contexto péssima a experiência. Muitos anos depois eu
que eu uso para ensinar gramática é sempre o tive coragem de... falei “Não, quem sabe o
texto literário. Tomo bastante cuidado para estado é diferente”. E realmente eu me
escolher bons textos. Nem todos os textos do encantei com o estado. Eu sou apaixonada
livro didático são bons, são bem escolhidos. pelo estado.

Entrevistadora: Você começou a dar aulas Entrevistadora: Em qual escola do Estado


para as crianças ou já no ensino médio? você começou?

Entrevistada: Eu comecei dando aula de Entrevistada: Eu comecei na escola na Vila


Inglês para uma 7ª série na prefeitura. Foi Jaguara, Zona Oeste também. Aliás, na V.
uma experiência muito ruim Piauí, desculpa, na V. Piauí. Trabalhei lá de
95 a 2001. Eu entrei em caráter, eu era
Entrevistadora: Sua habilitação é
contratada, não era efetiva. Em 1999, eu
Português/inglês?
acho, eu me efetivei e eu gostava tanto
Entrevistada: É. Mas não exatamente por daquela escola que eu fiquei naquela escola.
causa da aula. Porque a escola era uma escola Mesmo sendo longe da minha casa eu
muito... a clientela, era uma clientela que ia continuei trabalhando lá. Uma escola ótima.
só para se alimentar, eles não iam para E uma coisa que eu tenho para te dizer, eu
estudar. tive ótimos professores que me ajudaram

Entrevistadora: Onde ficava essa escola? nessa escola. Professoras muito dedicadas,
sabe? Elas percebiam que eu era inexperiente
Entrevistada: Ficava na V. Leopoldina,
e elas me chamavam de lado e falavam “Faz
Zona Oeste. Na minha concepção, as escolas
assim, assado”. Elas me deram muitas dicas.
da prefeitura são assim mesmo, elas são um
Eu devo a elas a minha formação. O que eu
grande refeitório. Quando eu comecei a dar
faço hoje em dia eu aprendi com elas.
aulas no Estado, cinco anos depois eu fui dar
aulas no Estado. Quase cinco anos depois. Eu Entrevistadora: Você pode dar um exemplo

fiquei encantada com as crianças do Estado. mais concreto do que elas te ensinaram?
407

Entrevistada: Posso, posso. Uma coisa, Entrevistadora: Nesse momento você dava
assim, relacionada à disciplina. Elas falaram: aula para as crianças menores?
“Nunca chame a atenção de um aluno na
Entrevistada: No estado eu comecei a dar
frente da classe. Sempre que você quiser
aula para a 7ª e 8ª série. Eu dava aula à noite.
chamar a atenção de um aluno que está
Português. Português à noite.
atrapalhando a sua aula, você dá um jeito,
você não chama na hora que ele está fazendo Entrevistadora: Como eram essas aulas?
bagunça. Você só dá uma, fala no geral para Você dava aulas de gramática, literatura?
pararem com isso. Depois você tira esse Entrevistada: Eu trabalhava especialmente
aluno da sala e conversa com ele. Funciona gramática. Análise sintática, bastante análise
muito mais do que você ficar dando sermão, sintática. Mas tudo baseado em texto.
ficar maltratando a criança na frente dos
Entrevistadora: Por quê? Era uma
outros”. Então, por mais que isso estivesse
necessidade do currículo, era uma
escrito em livros, a gente, no dia a dia, acaba
necessidade...
fazendo isso.
Entrevistada: Era porque a gente tinha... Foi
Entrevistadora: Sim, a sala de aula é
antes dos PCN’s, foi antes disso, então já
muito....
existia um currículo que a gente tinha que
Entrevistada: É muito estressante. Mas seguir. No começo, exatamente, como o... no
como eu tive pessoas que olharam para mim primeiro ano eu não fiz o planejamento, eu
com vontade de me ajudar, elas foram segui o planejamento que já tinha na escola.
generosas comigo, duas professoras em No segundo ano, não sei, acho que no
especial. segundo ano que já vieram os PCN’s, que a
Entrevistadora: Elas eram mais velhas? gente começou a trabalhar com aquele
currículo que era comum a todas as escolas
Entrevistada: Bem mais velhas que eu. E
do Brasil.
gente que amava a educação. Trabalho no
estado, ganho mal, mas é isso aí que eu Entrevistadora: Você lembra do impacto
gosto, eu vou ensinar essas crianças e elas me que foi o PCN para o seu trabalho?
ensinaram isso. Muito diferente do que você Entrevistada: O que eu posso te dizer? A
escuta por aí. cobrança no estado é muito sútil, então você
Entrevistadora: Verdade, a gente ouve por não percebe isso. Eu tentei dar um jeito dar
aí... aula que funcionou. Mais ou menos o
seguinte, eu inventei um método de dar aula
Entrevistada: É um lixo, as crianças são...
de Português que funcionou e, por isso, tudo
Não é, não. Tudo dependo do jeito como
que eu ia ensinar eu dava mais ou menos
você aborda.
daquela forma. Essa forma parece que
408

combinou bastante com o que era pedido, Entrevistada: Nossa, eu acho maravilhoso.
mas a cobrança eu acho que e muito suave a Aquela visão europeia, o tempo todo, aquela
cobrança no estado. Se você quiser fazer uma literatura...
grande porcaria quando você entrar em sala
Entrevistadora: Isso tem a ver com a lei que
de aula, você faz.
obriga o ensino da história e cultura afro-
Entrevistadora: Como é essa cobrança sutil? brasileira.

Entrevistada: É porque a gente teve que Entrevistada: Com certeza. Vem pela lei
estudar os PCN’s. Os professores tiveram que porque se deixar da vontade das pessoas, é
estudar. uma repetição, você vai trabalhar sempre em
cima de repetições de modelos prontos.
Entrevistadora: Nos momentos de encontro
dos professores? Entrevistadora: E você contou que logo que
o PCN chegou, mais ou menos no mesmo
Entrevistada: Sim. Nós tivemos formação.
período, você criou um jeito seu de dar aulas
Nós fomos, eu me lembro que eu passei, nós
e que acabou dando certo com os PCN.
passamos semanas estudando isso. Eles
Como é esse seu jeito de dar aula?
faziam núcleos de estudo. Cada região era em
uma escola. Então naquele dia você não ia Entrevistada: Eu acho que, assim, eu
para a escola, você ia para os cursos, essa valorizo muito o entendimento das palavras.
formação. Teve um trabalho do estado para Eu percebo que, assim, mesmo quando as
colocar a gente, para fazer a gente falar de crianças sabem ler, elas muitas vezes só estão
uma forma parecida. Mas eu nunca mudei juntando sílabas e formando palavras, elas
muito a minha forma de dar aula, não. não estão entendendo. Então eu sempre
trabalhei muito em cima do entendimento das
Entrevistadora: Por que você achava que já
palavras. Explicar, por exemplo, expressão
tinha uma forma de dar aulas parecida?
idiomática, que às vezes eles não entendem,
Entrevistada: Isso. O que eu sinto, assim, é mesmo sendo usadas dentro da família deles,
que hoje em dia eu me obrigo a trabalhar com eles não entendem. Você pergunta: “Mas o
textos africanos, coisa que no começo eu não que que é isso? O que significa isso?“ Às
fazia. Sinceramente eu não fazia. Até porque, vezes eles vão para a tradução literal, eles
nos livros didáticos, não vinha, agora vem. não entendem o sentido figurado que ali na
Os próprios livros didáticos trazem contos expressão idiomática. Eu sempre trabalhei
africanos, você trabalha Mia Couto com as muito assim.
crianças, 8ª série você trabalha Mia Couto,
Entrevistadora: Por exemplo, nas aulas em
que é maravilhoso.
que eu assisti, eu me lembro que você sempre
Entrevistadora: Você acha isso um ganho? enfatizava o sentido de algumas palavras, é
um pouco esse jeito?
409

Entrevistada: Sempre assim. Sempre vim por uma lei chamada, pelo art.22, que é
trabalho dessa forma. Inclusive, quando eu um artigo que você se inscreve para você...
trabalho gramática, o sentido dos termos Você não perde o seu cargo na escola, você
sintáticos porque para eles é muito abstrato vaga o seu cargo, mas você vai para a escola
você falar de adjunto adnominal. E daí? que tiver vaga. Onde tiver vaga você tem o
Salada de fruta. Tanto faz aquilo, adjunto, direito de, pelo art.22, se alocar. Aí eu vim
aquilo que fica junto, adnominal, do nome. para cá em 2004, não, desculpa, eu trabalhei
Fica junto do nome, fica junto do substantivo. no DI Cavalcanti em 2004, foi em 2005. EU
Por que às vezes você se preocupa muito em tentei um ano, mas não deu para continuar lá.
dar o conteúdo para o menino decorar e não Aí em 2005 eu já vim trabalhar aqui. Em
para ele entender. Eu sinto muito que muitas 2006 teve remoção, aí já tinha vaga, aí eu
matérias são dadas dessa forma. Não existe trouxe o meu cargo para cá. Aí em 2006 eu
um entendimento verdadeiro da coisa, fica só trouxe o meu cargo para cá.
na superfície. Decodificou aquele nome,
Entrevistadora: Aí resolveu os seus
aliás, aprendeu aquele nome, treina um uso
problemas porque é perto da sua casa.
de classificação alí e pronto. Muitas vezes é
só isso. Não tem um aprofundamento. Eu não Entrevistada: Nossa, eu moro aqui do lado.
sei se eu atinjo, mas eu tento fazer isso. Entrevistadora: E aqui você dá aulas para o
Entrevistadora: É o que você tem em ensino médio, no EJA, e para o ensino
mente. fundamental II?

Entrevistada: É o que eu tenho em mente. Entrevistada: Isso.

Entrevistadora: E como você chegou aqui Entrevistadora: E o que você achou dessa
na Escola 2? escola, desses alunos?

Entrevistada: 2003 eu me casei. Aí eu já Entrevistada: Não sei, eu acho maravilhosa


tinha me removido para uma escola em frente essa escola, eu gosto muito dessa escola. Eu
à minha casa, no Alto de Pinheiros. Quando gosto muito dessa clientela. É uma clientela
eu me casei eu vim morar perto da Avenida de alunos que são, na sua maioria, bons, de
Paulista. Na Teixeira da Silva. O trânsito era famílias, assim, que respeitam a educação.
horrível, eu levava muito tempo e eu tinha De famílias que respeitam o professor, de
minhas obrigações da casa. Depois que eu me famílias que, assim, o que o professor falar é
casei, eu tinha que dar conta do serviço. É lei. Entendeu? Isso ajuda muito a gente a
assim para todo mundo. Aí eu percebi que era trabalhar. Você sabe que o que você está
um desgaste muito grande, uma cobrança da falando a criança escuta em casa. Então fica
escola porque eu me atrasava de vez em até fácil trabalhar dessa forma porque você
quando por causa do trânsito. Aá eu pedi, eu tem a parceria do pai. A família dá respaldo
410

para o que a gente pede, com o que a gente uma classe que ia ser a melhor. Uma coisa
fala. que não é legal, mas a gente faz porque
quando eles pediam para a gente formar a
Entrevistadora: Isso com relação à
classe a gente fazia isso. A gente pegava
disciplina ou ao modo como eles veem a
aqueles alunos mais estudiosos e colocava
matéria?
numa classe. Não necessariamente que essa
Entrevistada: A matéria também. Não só a classe virava a melhor, mas a gente tinha
disciplina, a matéria também. Para você ter mais chance com ela. Essa classe, eu só tive
uma ideia, esse ano eu formei uma 8ª série. O uma oitava série esse ano, foi exatamente
que eu digo como formei: eu dei aula para essa sala que eu dei aula desde a 5ª série.
eles desde a 5ª série. Eu tenho esse hábito. Eu
Entrevistadora: Foi uma classe formada
pego a 5ª série, depois eu pego a 6ª, a 7ª, eu
assim?
persigo os meus alunos. Eu falo isso para
eles. Eu falo “Azar de vocês se eu perseguir Entrevistada: Isso, a partir do 6º ano. Na 5ª
vocês”. Uma vez ou outra não dá para série eles chegam de qualquer lugar, na 6ª
perseguir porque eu tenho que compor o série a gente já começa a selecionar. Não
horário com as classes que tiver, então eu vou pode fazer isso, não é legal, mas a gente faz.
pegar uma classe na 6ª, uma na 7ª. Quando eu Eu tive a alegria, eu consegui trabalhar com
posso, eu dou aula desde a 5ª série. Mesmo eles todos os termos sintáticos, que
que eu tenha que sacrificar o meu horário geralmente são muito difíceis de você
porque eu acho que quando você pega o trabalhar. Sempre fica alguma coisa que não
aluno desde a 5ª série, você estabelece um dá tempo de trabalhar com eles.
vínculo com ele que ninguém vai quebrar. Se
Entrevistadora: Isso da 5ª até a 8ª.
você fizer um bom trabalho com ele, ele vai
ter sempre respeito por você. Facilita o Entrevistada: Isso. Eu consegui fazer tudo.
trabalho nos próximos anos. Você sabe o que Não que todo mundo tenha aprendido tudo
aquele aluno não sabe, você sabe como você porque eu consegui, da minha parte eu fiz.
deu aula no ano anterior, o que não ficou Isso é uma coisa impressionante. Eu me
claro, o que você tem que reforçar. Isso me lembro que um dia eu cheguei para o Felipe,
ajuda muito a dar aula. Isso me dá muita nosso coordenador, e falei “Felipe, eu não
segurança no que eu faço. A própria amizade acredito, acabei de trabalhar oração reduzida
que você vai estabelecer com o aluno. com a 8ªB”. Ele falou: “Mas o que tem isso?
” Eu falei “Isso é muito raro”. A gente nunca
Entrevistadora: Você cria um vínculo.
chega à oração reduzida, a gente vai até ração
Entrevistada: Esses alunos que eu formei subordinada, mas para eles entenderem a
agora, uns três anos, a gente combinou que a reduzida, geralmente não sobra tempo. Não
gente ia selecionar as classes. A gente ia tirar sobra tempo porque é tanta coisa para
411

trabalhar e era uma classe boa que eu Algumas falhas. Mas perto da forma como
consegui trabalhar tudo. ela chegou, para a forma como ela acabou,
ela evoluiu muito. Você sabe que no Estado a
Entrevistadora: E quais são os critérios que
gente não tem recurso. Eu não sou professora
vocês usam para selecionar essa turma?
alfabetizadora. Para você alfabetizar você
Entrevistada: Era só interesse mesmo. tem que ser professora alfabetizadora. Você
Todos eles eram interessados. Não tanto tem que saber que em ponto ela está para
quanto eles eram competentes. Não é assim, saber onde ela pode chegar. Eu não sei fazer
só o aluno... Não. Às vezes tem um aluno que isso, não. Isso é para quem estudou. Então,
não rende tudo isso, mas ele é muito assim, eu vi um crescimento nela e ela só
interessado. Eu tive uma experiência cresceu, ela só evolui porque ela estava nessa
interessante nessa sala. Na 5ª série havia uma classe. Se ela tivesse ficado nas outras classes
menina, o nome dela é Inara, a Inara era mal ela teria se perdido.
alfabetizada. Mal alfabetizada mesmo. Ela
Entrevistadora: Então de alguma forma
conhecia algumas letras, sabia formar
você acha que tem um aspecto positivo de se
algumas sílabas, mas não todas, e durante a
organizar as salas assim?
5ª série ela foi assistida por uma
psicopedagoga que trabalha com as salas Entrevistada: Tem, mas isso não é aceito,
especiais. Como ela tinha horário vago, ela não é muito legal.
pegava essa Inara e trabalhava com ela.
Entrevistadora: Com essa organização, você
Então na 5ª série ela foi assistida pela... eu
acha que todas as salas se beneficiam?
não lembro o nome dela. Essa moça
trabalhava, conversava, fazia, primeiro fazia Entrevistada: Não, é.... O que eu posso
uma anamnese, ia lá ver qual eram as dizer? Eu acho que nessa classe era mais fácil
dificuldades da criança e tal. Essa menina, dar aula. Isso com certeza era mais fácil.
lógico, como não sabia escrever direito, ela Não, eu acho que não. Eu acho que isso é
tinha dificuldade de acompanhar as aulas, ela uma coisa um pouco arbitrária isso que nós
bagunçava muito. Então, na 6ª série, quando fizemos, mas eu acho que a gente ajudou
nós fomos formar essa classe, eu falei: “Nós algumas crianças que realmente estavam
vamos pôr a Inara nessa classe”. “Nossa, interessadas. É por isso que é ilegal, não dá
Entrevistada, ela não é completamente para fazer isso. Você deve ter todo tipo de
alfabetizada” “Mas é nessa classe que ela não aluno na sala de aula e você tem que saber
vai fazer bagunça, está todo mundo levar o conteúdo, saber até que ponto cada
interessado em estudar”. Ela terminou a criança está, saber como você tira a criança
8ªsérie escrevendo. Se você ditasse qualquer daquele ponto, fazer subir um degrau. Nessa
coisa ela escrevia. Não que ela escrevesse sala era mais fácil, nesse sentido, porque o
corretamente. Ela não escrevia corretamente. interesse era mais...
412

Entrevistadora: E essas crianças moram aulas para eles. Essa turma eu peguei agora
aqui no entorno ou elas são de lugares no meio do ano. Eu dava aula no Rodrigues
distantes? Alves e no meio do ano tem atribuição para o
EJA porque é um curso semestral. A cada
Entrevistada: Não, elas são vizinhas. A
semestre tem atribuição e eu estava fora da
maioria mora por aqui. Exatamente essas
minha escola então eu consegui trazer essas
crianças vizinhas. Inclusive isso, são crianças
duas classes para cá mesmo. Eu m lembro
que tem um poder aquisitivo melhor porque
que eles falavam para mim “Nossa, sua aula é
quem mora aqui não estuda aqui. Quem mora
tão fácil, o que você ensina é tão fácil. A
aqui estuda em escola particular.
gente não entendia nada do que a outra
Entrevistadora: E quando a gente pensa no professora ensinava”. Por quê? Porque ela
ensino médio, no EJA, também podemos dava aula de 3º ano para eles e eu não fazia
encontrar essa organização das turmas? isso. Eu continuava no meu processo, sabe?

Entrevistada: Não, não. Aí é qualquer um “Vamos trabalhar esse texto. O que tem nesse

em qualquer sala. texto? Por que esse artigo está no singular?


Por que a gente faz o plural dessa forma? ”
Entrevistadora: A origem dos alunos do
Então eu dava coisas assim. No fim, eles
EJA é parecida com a dos alunos do Ensino
viam que eles estavam aprendendo alguma
Fundamental II?
coisa, mas era fácil o que eu ensinava. Na
Entrevistada: Não, eles trabalham por aqui. boca deles era isso, sabe?
Esses adultos, eles estudam aqui porque eles
Entrevistadora: Para eles a questão era a
trabalham aqui perto. É onde dá tempo para
facilidade?
eles chegarem.
Entrevistada: Era e eu fui facilitando a
Entrevistadora: Qual é a possibilidade de
minha aula. A minha aula era muito fácil e
trabalho nessa turma, com essa
eles gostavam. Eu consegui até que eles
característica?
tivessem um comportamento diferente do que
Entrevistada: Muito difícil. É muito difícil eles tinham nas outras aulas.
trabalhar com eles. Muito difícil. O problema
Entrevistadora: Por que você ensinava o
do EJA é esse, eles chegam cansados, eles
que era para o 3º ano....
não querem nada que seja difícil, nada que
peça muito raciocínio, eles não querem nada Entrevistada: Não, não, não. Quem tentava

disso. Não tem jeito, eles não querem fazer isso era a outra professora.

mesmo. Eles querem uma coisa assim, uma Entrevistadora: Você fez uma adequação?
tarefinha, sabe? “Ah, deixa eu fazer uma
Entrevistada: Eu vi quais eram as
tarefinha aqui e pronto. É isso mesmo”. Eu
dificuldades deles. Por exemplo, eu tive
me lembro que quando eu comecei a dar
413

aluno no 3º ano que não sabia segmentar seu trabalho foi sempre assim nesse
palavras, não sabia separar as sílabas. Por que semestre?
você separa as sílabas? Nunca pensou nisso,
Entrevistada: Foi sempre assim.
que tem a ver com a fala. Quantas sílabas eu
Intepretação de texto e, assim, o que era
ponho naquela entonação, naquela forma de
possível trabalhar de gramática ali. O que
falar? Por que eu não posso colocar um “s”
aquele texto me oferecia eu pegava e usava.
sozinho naquela linha? Como é que eu vou
falar esse “s” sozinho? Ninguém nunca falou Entrevistadora: Aí você trazia um conteúdo
isso para ele ou se falou... Então no 3º ano eu de informativa para passar na lousa ou
fui falar isso e fez muito sentido na cabeça oralmente?
dele. Entrevistada: Também, os dois. Escolhia
Entrevistadora: Então quando você pensou algumas coisas para trabalhar. Por exemplo,
em organizar o trabalho com essa turma você trabalhei crase com eles. Por que existe a
procurou partir dessas dificuldades que eles crase. Também trabalhei um pouquinho de
têm? regência, concordância e uma coisa que eu
gosto de trabalhar com EJA, que funciona
Entrevistada: Isso. Sem pensar no currículo.
muito, é trabalhar com Patativa do Assaré.
Se eu pensasse nisso eu ia continuar fazendo
Todos os alunos ficaram tocados com a
o que a outra professora estava fazendo?
leitura porque é a escrita de um homem
Entrevistadora: isso tem uma boa acolhida comum então tem uma identificação muito
da coordenação? grande com eles. Eles sentem que aquilo que
ele escreve, além de ser a história deles, é a
Entrevistada: Tem, nossa. Muito respeito e
forma como eles escrevem também. Então
consideração, até porque a disciplina da
tem, entre aspas aqui, um erro de
classe mudou. Eles se envolveram mais, eles
concordância e aquilo está em um poema e
respeitaram mais. Uma coisa que eles
aquilo fica bonito daquela forma. Ele escreve
falavam para mim era assim: “Você está
de uma forma tão bonita, a poética dele é tão
tentando ensinar. Ninguém aqui tenta
tocante que, que realmente emociona. Eles
ensinar”. Eles falavam: “Professor de EJA
ficaram muito contentes de conhecer.
coloca a lição no quadro e você se vira para
fazer”. Não é assim. Vamos fazer juntos, Entrevistadora: E como você conduziu essa
vamos mostrar”. Por que é assim? Por que leitura?
tem esse nome?
Entrevistada: Eu apresentei um poema dele.
Entrevistadora: Nas aulas que eu assisti
Entrevistadora: Onde estava o poema?
você sempre lavava um texto, aí vocês
trabalhavam a partir deles. De modo geral Entrevistada: Num livro didático. Eu pego
um desses textos que eu xerocava, selecionei
414

um desses textos xerocados. Aí eu percebi Entrevistadora: Você sempre trabalha com


que eles gostaram muito e aí eu falei para o Patativa do Assaré?
eles “Vamos fazer um trabalho sobre o
Entrevistada: Não. A partir da 7ª série eu
Patativa do Assaré? ” Aí eles concordaram:
trabalho o Patativa do Assaré. Se por acaso
“Como vai ser? ” Eu falei: “Eu quero a
aparecer em algum livro didático eu trabalho,
biografia. Vocês vão trazer para mim de
claro. Eu acho que numa 7ª, 8ª série eles já
forma bem resumida, vão estudar a biografia
têm mais domínio da escrita. Eles conseguem
dele e vão selecionar o que vocês acham mais
perceber as diferenças de escrita.
importante e vão colocar, escrever à mão. Eu
não quero nada digitado. Copiado e colado. E Entrevistadora: Você vai escolhendo os
quero que vocês escolham versos, cinco autores com quem vai trabalhar a partir
versos de qualquer poema dele. Eu não quero desses critérios?
o poema inteiro. Vocês vão escolher cinco Entrevistada: Isso, o quanto eles dominam a
versos com os quais vocês se identifiquem”. linguagem porque às vezes eu apresento um
Então foi muito bonito, muito gratificante texto para uma criança que faz um monte de
porque na época até que eu recolhi, a gente erros e ele pensa “Ah, é assim mesmo que se
estava no meio da campanha eleitoral e uma escreve”.
das moças escolheu uns versos em que ele
Entrevistadora: Eu gostaria que você falasse
falava sobre política. Ela fez relação com o
um pouco mais sobre como você escolhe os
momento que a gente estava vivendo. E aí eu
autores com quem você vai trabalhar, com
li para a classe. Pedi licença em nome dela,
quais textos você trabalha?
falei “eu posso ler os versos que você
escolheu? ” Aí todo mundo falou que era Entrevistada: Olha, eu vou ser honesta com
verdade. Acho que ele falava sobre os tipos você. Eu trabalho com o que eu gosto, com o
políticos. Eu não me lembro de todos, mas que eu acho bonito. Então eu trabalho muito
era uma coisa assim. Eles gostaram e eu até o Vinícius, Drummond, é pelo meu gosto
escrevi na lousa. Eu falei: “Eu vou escrever o mesmo é pela minha sensibilidade. É ela que
que você, os versos que você escolheu”. vai comandar. Sinceramente é assim que eu
trabalho. Que, para mim, não me emociona,
Entrevistadora: Por que você não pediu o
eu acho que não vai emocionar os alunos. Eu
poema inteiro?
percebo isso, o que eles gostam dos textos.
Entrevistada: Por que às vezes o poema Aí eu falo, “É assim mesmo que a gente tem
inteiro não é uma seleção, é qualquer poema. que trabalhar”. Se a gente não acredita, se
Ali ele tinha que me explicar exatamente o para a gente não funciona, para o aluno não
que ele tinha escolhido. vai funcionar. Não vai fazer diferença ler
aquilo, aprender aquilo.
415

Entrevistadora: E de onde vem o seu gosto Moraes e ficou bastante emocionada, você
pelo Vinícius, Drummond... comentou que se lembrava do seu pai.

Entrevistada: Eu sou filha de seresteiro, sou Entrevistada: Meu pai tocando. É,


irmã de uma psicanalista, minha vivência exatamente, que tinha um trechinho do “Eu
familiar é bastante rica. A despeito das sei que vou te amar”. Eu falei, “Ah, não
pessoas que eu conheço, que só leem os best- posso nem ler que vou me emocionar”. Eu
sellers, coisas assim, não é o meu caso não. uso muito isso. Todas as vezes que eu vou
Então, assim, eu gosto muito de música falar de alguma coisa, eu falo dos meus
popular brasileira, conheço bastante por uma sentimentos para eles. Isso é uma coisa
vivência pessoal mesmo, não acadêmica. impressionante, o quanto eu tenho que tomar
Acho que eu tive bastante sorte, assim, com cuidado para ser verdadeira. O dia que eu
as pessoas com as quais eu convivi. Isso foi mentir para eles eu tenho certeza que eles vão
me transformando me transformando nesse falar “Nossa, isso não é tão bonito quanto ela
tipo de leitora que eu sou. está falando, ela não está emocionada”. Isso
faz muita diferença para eles, é como se eles
Entrevistadora: E o que você está lendo
colassem um pouco nisso. É como se eles
agora? Ou o que você leu nos últimos
falassem “Ah, eu também posso ficar
tempos?
emocionado”. Eu me lembro que, no dia
Entrevistada: Estou lendo redação para desse texto, eu tenho um aluno muito difícil.
corrigir! [risos] Não, sinceramente, eu ando tinha, né? Já terminou... Muito difícil nessa
com dificuldade para ler, bastante sala, o Eduardo. Ele estava muito revoltado,
dificuldade. Assim, tento.... Ah, caiu na ele tinha tido uma briga muito feia e ele falou
minha mão ultimamente, mas não é nada que assim “Ah, eu não vou fazer nada nessa
eu trabalho com aluno, esses livros espíritas, aula”. Assim, me provocando. Quando
sabe? Mas eu não consigo ler, não sei porquê. terminou o texto ele estava chorando. Ele
Eu tenho que ler para devolver, eu estou me falou “Professora, que coisa mais linda! ” Eu
forçando a ler, mas não vai. Parece que tem me lembro direitinho dele. Eu pensei “É bem
alguma coisa ali que diz assim, que não faz por aí mesmo”.
sentido para mim. Eu tenho que ler o livro
Entrevistadora: Você acha que seus alunos
para devolver, mas... O último livro que eu
compartilham desse seu sentimento com
li? Tá bom. Nos meus 50 anos eu ganhei uma
relação à literatura?
antologia de um poeta que acabou de morrer,
esqueci o nome dele. Manoel de Barros. Entrevistada: Eu acho que sim. Eu acho que
Literatura foi o último que eu li. eles acabam, de alguma forma. Não posso
dizer que 100%. Nada é dessa forma. Se
Entrevistadora: Eu me lembro que durante a
fosse não seria verdadeiro, alguma coisa
aula você leu um texto do Vinícius de
416

estava errada, mas grande parte. Eu acho que livro tão grande assim. Me conta? “ E eles
é por aí. Esse é o caminho. Se eu tivesse que me contavam.
ensinar alguma coisa para alguém eu diria
Entrevistadora: O Diário de Anne Frank
“Faça dessa forma. Descubra aí do que você
veio no material do Estado?
goste e é a partir daí que você vai começar”.
Sem emoção, se não tiver um, se eu não for Entrevistada: Veio.
fisgado ali naquele texto, você não vai se Entrevistadora: Você leu com eles?
interessar por aquilo. Vai ser só mais uma
Entrevistada: Foi assim. Eu trabalhei um
aula, um tanto de palavras que ele aprendeu,
filme. Eu te contei essa história?
mas que não faz muito sentido.
Entrevistadora: Não.
Entrevistadora: E você já levou em
consideração algum texto ou autor que o Entrevistada: Eu poderia me aposentar esse
aluno gosta na aula? ano que eu me aposentaria feliz! Esse ano
muita coisa deu certo. Nós assistimos
Entrevistada: Sim. Harry Potter, né? Que eu
Escritores da Liberdade. No filme eles
não li, uma história que não me interessa,
trabalham O Diário de Anne Frank. Eles
mas eu já li bastante texto de Harry Potter
ficaram muito emocionados. Na sequência,
porque é o que eles gostavam, era o que eles
eles ganharam no kit de aluno deles, de
queriam.
literatura, eles ganharam O Diário de Anne
Entrevistadora: Principalmente os menores? Frank. Eu falei “pronto, vamos ler”.
Entrevistada: Deixo eles me contarem, Entrevistadora: Foi coincidência?
sabe? Deixo muito eles me contarem”. Mas o
Entrevistada: Sim, coincidência. Eu falei
que é que você está lendo? ” Essa última
“Nós vamos ler”. Tá bom. Aí eles leram, mas
classe que eu tive, eles eram, a maior parte
nem todos leram. Quando nós voltamos das
deles liam. Quando eles terminavam a tarefa
férias eu falei “bom, agora a gente vai fazer o
“Ah, posso ler, professora? “ Eles tinham os
nosso trabalho”. Eles não sabiam o que era, o
livros deles. Não era nada do que eu tinha
que eu ia pedir. Eles perguntaram “Vai ter
pedido. Eu tinha pedido para eles lerem esse
que fazer um trabalho? Um resumo do
ano só O Diário de Anne Frank. Foi o
livro?” Eu falei “Não, um resumo é muito
trabalho que eu fiz com eles. Mas sempre
chato. Não vamos fazer, não”. Até por que
eles estavam lendo, sempre, e eles me
eles iam copiar. Principalmente a parte deles
contavam. Ai eu chegava perto da carteira
não leu ia copiar. Aí eu marquei acho que
deles e perguntava: “Sobre o que é esse
uma sexta-feira, aí eu perguntei “eu quero
livro? ” Aí eu olhava e falava “ah, eu tenho
que vocês realmente me digam quem leu.
certeza que eu não vou ter tempo de ler um
417

Quem leu? ” Ai só 16 alunos levantaram a Entrevistada: Não, não tem. O deles não
mão. tem. Deles não tem nada, do EJA não tem
nada. O único trabalho desse ano é O Diário
Entrevistadora: Quantos alunos havia na
de Anne Frank. Eu coloco só uma coisa ou
sala?
outra no blog, não coloco tudo.
Entrevistada: Tinha uns 32. Metade da sala
Entrevistadora: Receber esses livros do
tinha lido. Aí eu falei para eles assim
estado te ajuda?
“Vamos fazer o seguinte: nós vamos separar
a sala. Nessas duas fileiras aqui vão sentar só Entrevistada: Nossa, muito, me ajudou
os alunos que leram o livro, nas outras todo muito porque essa coisa de comprar livros é
mundo que não leu. Todo mundo vai fazer muito difícil.
trabalho porque eu quero uma aula
Entrevistadora: E como você resolve o
silenciosa”. Aí eu pedi para quem tivesse lido
problema do material com o EJA?
o livro, para escolherem qualquer parte do
livro que tinha sido emocionante, que Entrevistada: Não resolve, você não faz.
escrevesse uma carta para Anne Frank. Eles Assim, o que eu faço é trabalhar com os
escreveram. Se você visse as cartas. textos. Se você depender de alguma coisa que
eles tenham que buscar, pode esquecer, isso
Entrevistadora: Lindas?
não vai acontecer.
Entrevistada: lindas, lindas. Elas viraram...
Entrevistadora: E a escola disponibiliza
Assim, a sensação que eu tinha, só dois
xerox, folhas?
meninos, o resto meninas, tinham virado
amigas de Anne Frank. Aí você pode acessar, Entrevistada: Sim, sim.
as cartas estão no blog. Nós fizemos um Entrevistadora: Com isso você não tem
livrinho Cartas para Anne Frank. São lindas problema desde que você escolha os textos?
as cartas.
Entrevistada: isso.
Entrevistadora: Só com os alunos que
Entrevistadora: E como você faz para
tinham lido?
escolher os textos? Você pega os livros
Entrevistada: Só os alunos que tinham lido didáticos que a escola já tem?
que fizeram e foi uma coisa assim que até a
Entrevistada: Isso. Geralmente eu pego do
direção da escola leu, ficou emocionada
livro didático que já tem e seleciono o livro
também. Foi um ano bem...
didático que quero trabalhar. Como sou a
Entrevistadora: Nesse blog também tem os única professora de Português, não tenho
textos, os materiais que você fez com o com quem compartilhar, com quem dividir.
pessoal do EJA? A outra professora de Português tem um jeito
418

bem diferente de trabalhar com alunos então Entrevistada: Pode falar, quem você
a gente não tem muito diálogo. entrevistou?

Entrevistadora: E quanto você vai escolher Entrevistadora: A primeira pessoa que eu


um dos textos, no caso de EJA, você pensa na entrevistei foi a Clair.
questão da dificuldade, o que eles não
Entrevistada: Nossa, é uma senhora muito
conseguir ler, o que eles não vão conseguir?
interessada. Ela percebeu, quando eu comecei
É um desafio?
a dar aulas para eles, que eu estava com
Entrevistada: É porque eles desistem com medo. Ela percebeu isso e o tempo todo,
facilidade. Se você pegar alguma coisa muito enquanto eu dava aula, ela estava ali me
difícil... amparando. Sabe, com o olhar, com a
aprovação. Como quem diz “Vai, está certo
Entrevistadora: Geralmente qual é sua
assim”. Por que realmente, eu peguei essa
estratégia?
classe no final do EJA e isso não é fácil, não
Entrevistada: Olha, eu já tive a experiência é fácil para ninguém. É fácil quando você
de trabalhar o mesmo texto com todas as começa com uma classe, é difícil quando
classes. Cada classe eu trabalhei de um jeito. você termina com uma classe que você não
Eu pego o mesmo texto e vou trabalhar desde conhece. Eles estavam há dois períodos com
o 5º ano até o EJA porque, na verdade, é a mesma professora então eu estava
mais fácil para mim. Eu domino aquele quebrando o vínculo deles com a outra
conteúdo e vou fazendo adequação. O que eu professora. A Clair foi uma pessoa que me
vou trabalhar com tal classe? Não tem assim ajudava bastante na sala de aula, com um
uma regra, não tem uma regra. jeito, como ele recebia a aula, como ela se

Entrevistadora: Você vai fazendo conforme interessava. Ela é muito interessada. Ela

vai precisando? compartilhou algumas coisas da vida pessoal


dela comigo. Ela é uma pessoa muito
Entrevistada: Isso e às vezes conformo o
interessante. Eu não tive muito tempo porque
material que eu tenho, sabe? Se eu tenho uma
foram seis meses. Seis meses que, na
cópia lá de um negócio eu dou um jeito de
verdade, não chegaram há quatro porque se
colocar o meu conteúdo ali dentro. Nem
você contar os finais de semana, feriados,
sempre eu consigo tirar cópia das coisas, nem
esse mês que a gente nem dá aula direito.
sempre está disponível a máquina de xerox
Mas ela é uma pessoa bastante interessante,
para mim
muito.
Entrevistadora: Eu fiz entrevistas com
Entrevistadora: E pedagogicamente, qual
alguns dos seus alunos. Eu gostaria que você foi o maior desafio para ela?
contasse um pouco como são, para você, Entrevistada: Ela não tinha grandes
esses alunos que eu entrevistei. dificuldades. Até porque parece que ela tem
419

um filho que está se formou agora no terceiro bastante, escreveu quase duas páginas. Eu li
ano. Ela não tinha grandes dificuldades de para os meus alunos da tarde. Geralmente eu
entender alguma coisa que eu pedisse para faço assim, eu pego os meus textos e leio
fazer. Quando outros alunos tinham muita para a outra classe, quando eu tenho que
dificuldade. Qualquer comanda, qualquer fazer uma seleção e eu queria selecionar o
enunciado tinha que ser esmiuçado. No caso melhor texto. Aí eu li ara os alunos da tarde e
dela, ela lia o enunciado e já sabia o que pedi para eles escolherem para mim quais
fazer. Ela era bastante competente, uma eram os melhores textos. Eu simplesmente li,
leitora competente. vistei e devolvi. Quando eu devolvi para a
Karine ela falou assim “ Assim, professora,
Entrevistadora: Outra pessoa que eu
eu não quero. A senhora corrige a ortografia,
entrevistei foi a Karine.
por favor”. Ela pediu para eu corrigir a
Entrevistada: É a mesma coisa. A Karine ortografia, mas ela não tem grandes erros,
um pouco mais infantil, assim, até por causa não. A grande questão que eu posso dizer que
da idade. Mas, nossa, um interesse tremendo. ela tem é a paragrafação, que até menino de
Eu me lembro que eu devolvi um texto para a faculdade tem dificuldade em paragrafar um
Karine, o qual eu não corrigi a gramática, não texto. Isso não é fácil para ninguém. A única
corrigi ortografia. Foi um texto interessante dificuldade que ela tem, na minha visão, eu
também. Eu li para eles um trecho de um lembro que a gente fez bastante, eu lembro,
texto do Elias Canetti chamado A língua eu separei os parágrafos. A ortografia é muito
absolvida. Eu li para eles um trecho desse boa e mesmo assim ela estava preocupada
livro em que ele fala do idioma, a língua que com isso.
era usada na casa dele. Ele conta que algumas
Entrevistadora: E o Marcelo?
coisas que ele se lembra da língua materna
dele forma as meninas que moravam na casa Entrevistada: Ah, o Marcelo. O Marcelo
dele que contavam as histórias e, geralmente, tem deficiência mental, eu não sei se você
eram as histórias de terror que elas contavam percebeu. Um problema sério aquele rapaz.
para ele. Aí, no dia em que eu li esse livro Ele disfarça bem, mas ele tem um
para eles, eu pensei: “Nossa, esse povo deve comprometimento mental. Ele deu alguns
ter coisas para contar. São todos adultos, mas trabalhos na minha aula, depois deu trabalho
eles foram criança um dia”. Aí eu pedi para em outras aulas também. Aí, mas eu não sei
eles, quando a gente terminou de ler esse te dizer muito dele não. Não conheço muito
texto, eu falei “Agora cada um vai contar ele não. As duas eu sei te dizer quem são, o
uma história e infância que você lembra”. E a Marcelo muito pouco.
Karine escreveu uma história de um tio dela
Entrevistadora: E a Ana Paula? Aquela
que foi fazer uma caçada. Eu achei
moça que senta bem na sua frente.
interessante a história dela. Ela escreveu
420

Entrevistada: Bem interessada também, mas Entrevistada: Vamos lá.


não tanto quanto a Clair e a Karine. Menos
Na escola....
interessada que as duas, mais respeitosa que
interessada. Agora com a Clair e a Karine Chegamos até a escola e vamos para a sala
realmente, a gente teve uma empatia muito dos professores, onde a professora busca seus
grande. materiais do armário para me mostrar. O
diálogo a seguir tem início enquanto ela está
Entrevistadora: E então qual era o maior
folheando um livro didático em busca dos
desafio da Ana Paula? Com a escrita, com a
textos que ela usou com a turma.
leitura?
Entrevistada: Tudo era uma questão
Entrevistada: Ela tinha dificuldade, ela tinha
política. Para os mais jovens, tudo era uma
muita dificuldade de entender um enunciado,
questão política. Nem sempre é política.
de pedir que eu dissesse que estava tudo certo
o que ela estava fazendo. Entrevistadora: Mas eles achavam?

Entrevistadora: Ela tinha insegurança? Entrevistada: Eles sempre colocavam a


política no meio. Eu achava engraçado isso.
Entrevistada: Insegurança”.Professora, mas
é isso mesmo o que eu estou fazendo? “ É Entrevistadora: Você achava mais fácil ou
estranho ver isso num adulto, imagina, assim. mais difícil trabalhar com eles assim.

Entrevistadora: E como você agia? Entrevistada: Aqui em baixo? Eu achava


mais fácil. Eles tinham mais facilidade de
Entrevistada: Eu pedia para ela assim, eu
aprender qualquer coisa. Lá era muito difícil.
dava uma olhada e falava “Não, isso vale
tinha uma turma que nem copiar o texto
nota, eu não posso corrigir. Vai por aí”. Eu
copiava. Nem copiar da lousa eles copiavam.
dava uma incentivada nela para acabar de
fazer. Entrevistadora: E como você lidou com o
Eduardo?
Entrevistadora: No final você acha que ela
evoluiu bem? Entrevistada: Como eu lidei com ele?
Então, é aí... Foi esse texto aqui, o
Entrevistada: Ah, eu acho que sim. Não,
Modernismo O monstro de rodas, Alcântara
vamos dizer assim, se eu tivesse mais tempo
Machado. Você conhece esse texto?
de trabalho talvez, mas foram poucas aulas e
nesses últimos tempos, nesse mês de outubro Entrevistadora: Não.
tem muito feriado então... Se a gente tivesse Entrevistada: Depois você vai ler você vai
mais tempo talvez tivesse evoluído mais. ver que bacana que é. Conta de São Paulo
Entrevistadora: Então é isso. Se a gente antiga, no cemitério da Consolação, de uma
puder ir agora lá ver o material. menina que foi carregada, o caixãozinho da
421

menina, o corpinho da menina foi carregado parece que você entra em um canto da cabeça
por quatro mulheres. Então, assim, coisas deles, da criança... Olha aqui Como
muito diferentes da nossa vivência, eles não trapezista. Esse texto eles gostaram bastante
estão acostumados com isso. Hoje em dia os também. Capitães de Areia. Eles ficaram
funerais são nos cemitérios mesmo, são nos bem tocados com esses textos. É um menino
velórios. Aqui essa coisa diferente, sabe, que se joga, né. Acho que é só isso que eu
assim. Foi muito legal trabalhar esse texto tenho aqui. Deixa eu ver se eu tenho mais
com eles. coisas.

Entrevistadora: E você já conhecia esse Entrevistadora: E quando você dava os


texto também? exercício de gramática você também pegava
dos livros?
Entrevistada: Não. Tem coisa que é por
causa do livro mesmo, eu não vou mentir Entrevistada: Gramática desse livro eu não
para você. O Eduardo, a minha facilidade trabalhei. Trabalhei a gramática do outro.
com o Eduardo é que eu dei aula para ele Cachorro Canibal. Você estava na aula
quando li esse texto?
Entre o coordenador pedagógico e somos
interrompidas. Entrevistadora: Estava. Ele é bem
impactante.
Entrevistadora: Você estava falando do
Eduardo. Entrevistada: Bem pesado.

Entrevistada: Ah, o Eduardo, eu conheci o Entrevistadora: Por que você selecionou


Eduardo na 5ª série. Eu dei aula para ele na 5ª esse texto?
e na 7ª. Eu só não tive problema com ele por
Entrevistada: Porque é o que eu tinha.
isso porque senão eu teria tido muitos
Porque a Sandra Jorge copiou para mim. Na
problemas com ele.
verdade, foi por isso que eu trabalhei esse
Entrevistadora: O que fez ele parar no EJA texto e para trabalhar um pouquinho o
então? narrador, que ele é um tipo de narrador
onisciente. Ele fala, expressa o sentimento,
Entrevistada: Ele tem vários problemas
não só o que a personagem fala.
pessoas. Ele é homossexual mal resolvido.
Bem mal resolvido. Um coitado. Mas assim, Entrevistadora: Quem é a Sandra Jorge.
eu não tive mais problema com ele, e teria
Entrevistada: É a professora da sala de
tido muitos problemas, eu sei que ele teria me
leitura. A gente precisava usar a máquina de
enfrentado muito se eu não conhecesse ele.
xerox da sala de leitura, daí eu virei para ela e
Como ele me conhecia, ele segurava a onda
falei “Xeroca uns textos aí para eu usar com
dele. É o conhecimento que te falei, da 5ª
os alunos”. Então ela que escolheu. Se eu
série. Quando você conhece na 5ª série,
422

falar que eu escolhi é mentira. Ela procurou exitosa. Então na verdade o que eu queria
para mim. conversar hoje é mais sobre as suas
experiências escolares, familiares, com a
Entrevistadora: Vocês usam bastante a sala literatura, mais para compreender o seu
conceito, para contextualizar mais a sua
de leitura? prática, porque isso ficou vazio nesse sentido,
porque eu centrei mais na compreensão das
Entrevistada: A tarde, sim. A tarde a gente aulas porque eu tinha acabado de assistir as
usa, mas à noite não. Eu não usei nenhuma aulas e essa outra parte eu não peguei tanto.
vez com os alunos. Entrevistada: O que construiu para chegar
naquilo.
Entrevistadora: Por que a sala fica fechada
Entrevistadora: É, exatamente, é isso. Então
à noite? eu queria conversar um pouquinho, que você
contasse onde você estudou, em quais
Entrevistada: Na verdade ela fica aberta, escolas, como foi a sua trajetória?
mas ela não.... Na verdade, o jeito dessa
Entrevistada: Então, eu estudei no primeiro
moça trabalhar, ela não é muito disponível. ensino fundamental numa escola pública.
Não quero ficar falando mal. Entrevistadora: Daqui do bairro?

Entrevistadora: claro. Entrevistada: Não, em São Caetano, eu


comecei em São Caetano.
Entrevistada: Nem todo mundo que trabalha
Entrevistadora: Ah, você morava lá?
no Estado trabalha com vontade.
Entrevistada: Eu morava lá. Depois em 72
Entrevista com a Professora Celeste – mudei para o Alto de Pinheiros, saí do ABC
lá e vim morar na zona oeste de São Paulo e
17/04/2016 tal, era outra realidade e sempre em escola
pública, tinha dificuldades, eu tinha várias
Entrevistadora:...porque você sempre fazia dificuldades porque sempre fui uma criança
análise oral da literatura, você discutia com muito distraída. Eu lembro assim
eles e tal, eu estava lá acompanhando a aula Entrevistadora, chegava em casa, assim, de 2º
de EJA, é mais difícil porque eles têm várias ano, 1º ano, eu tenho uma irmã mais velha, 5
dificuldades, mas dentro daquela anos mais velha do que eu.
possibilidade, foi muito parecido, sabe?
Entrevistadora: Bem mais velha.
Entrevistada: Estou toda orgulhosa aqui.
(risos) Entrevistada: Bem mais velha, então a
minha mãe falava assim: agora você vai
Entrevistadora: Mas tem que saber, sabe? estudar com ela. Eu me lembro da minha
Achei muito legal. Quando eu fiz a irmã levantar da mesa e falar: mãe, ela não
qualificação, os professores gostaram muito sabe nada, mãe, assim, doce, sabe?
das suas práticas e tal, só que a gente ficou
assim, porque é tão legal e tão original e Entrevistadora: Desesperada.
funciona tão bem e tal, os entrevistados falam
Entrevistada: Aí a minha mãe falava: o que
isso que eu te contei até. Os alunos
você fez na aula? Eu falava: eu não sei mãe,
entrevistados falaram que suas aulas fizeram
já esqueci a aula. E essa minha irmã é uma
toda a diferença, que foram muito boas e daí
pessoa muito inteligente, ela me ensinava
ficou faltando compreender um pouco mais
tudo outra vez, todos os dias.
você, para compreender assim como que
você chegou a essa prática de ensino tão Entrevistadora: Que legal.
423

Entrevistada: Até hoje eu falo para ela, Entrevistada: Sim, sim. Outro dia fui ao
essa minha irmã tem uma menininha e eu oculista com ela e ela está com conjuntivite,
ajudo muito cuidar, quando ela vem me então ela tem, é como se fosse uma
agradecer eu digo: não, eu estou só pagando nuvenzinha que tem assim, então tinha lá a
tudo o que você fez por mim, porque se eu letra “K”, que ela tinha que ler e ela lia “R” e
sou alguma coisa, eu devo a essa minha irmã então o médico olhou para minha cara e disse
porque ela foi uma pessoa assim, muito, e assim: ela não conhece essa letra, não? Eu
assim, minha irmã lia demais, era apaixonada falei: ela conhece, ela não está enxergando,
por literatura. porque ela é uma pessoa bem alfabetizada. Aí
quando ele trocou a lente e ela conseguiu ver
Entrevistadora: Ah, é?
o “K”, eu falei: pronto mãe, ele vai te dar
Entrevistada: Apaixonada por literatura, agora um diploma de alfabetização, ele
assim, nós estávamos todos brincando e ela começou a rir. Bom, mas vamos voltar, a
estava lendo. Então assim, ela sempre foi o minha mãe é uma pessoa muito culta nesse
meu modelo, eu não sou uma leitora como sentido, não de cultura de estudo, mas de
ela, eu não leio tanto. Mas assim, ela acabou vivência mesmo, de ser uma pessoa, sabe, o
sendo um modelo muito positivo na minha meu pai gostava muito de ler, falava que a
vida, muito positivo. Quando eu fui para o herança dos filhos eram os livros.
ensino médio, que na minha época chamava
Entrevistadora: Ah é? E você tem muito
colegial, né? Aí fiz um curso técnico em
essa memória de infância do teu pai ler
contabilidade, meu pai era contabilista e
assim?
advogado, eu fazia contabilidade porque
sempre fui apaixonada pelo meu pai. Entrevistada: Nossa, muita, muita, muita.
Entrevistadora: Tua mãe era o quê? Entrevistadora: O que ele gostava de ler?
Entrevistada: Minha mãe era costureira, do Entrevistada: Eu lembro que ele tinha uma
lar, e costurava. coleção de Seleções, Reader’s Digest.
Entrevistadora: Para fora assim? Entrevistadora: Sei, eu conheço.
Entrevistada: Um pouco para fora, mas Entrevistada: Eu lembro que meu pai tinha
mais para a família mesmo. Mas a minha mãe essa coleção. O meu pai era assim, a gente
sempre foi uma pessoa que escutou muito morava numa casa alugada, mas ele
rádio, então qualquer assunto... comprava enciclopédias, nós tínhamos o
Tesouro da Juventude, que acho que são 5
Entrevistadora: A minha mãe também.
livros com todos os contos de fadas. Eu era
Entrevistada: Qualquer assunto que você apaixonada por aqueles livros.
conversar com a minha mãe, ela sabe falar,
Entrevistadora: E você ficava lendo com a
não porque ela tenha lido, mas porque ela
tua irmã nas horas vagas?
escutou o radialista e ela entendeu a visão do
radialista e conseguiu tirar a visão dela Entrevistada: Sim, nossa! Porque assim, não
daquilo. Ela sempre foi assim, Uma pessoa era, porque assim, as crianças hoje em dia,
muito, apesar de não ter instrução, uma tem muita coisa, naquela época não tinha
pessoa muito sábia. aquele tanto de brinquedos não, tinha uma ou
outra coisa, sabe? Era um brinquedo no Natal
Entrevistadora: Ela estudou até que série?
e aquilo durava o ano inteiro, quando
Entrevistada: Até o 4º ano. acabava, acabava, você não ganhava, que
nem eu vejo os meus sobrinhos, têm mais
Entrevistadora: Entendi, ela era alfabetizada brinquedos do que roupa essas crianças de
e tudo? hoje em dia, não é assim?
424

Entrevistadora: É, as coisas baratinhas da Contabilidade, fiquei um ano parada e nesse


China, né? ano que fiquei parada fui fazer o curso de
desenho porque eu adoro desenho, eu fui
Entrevistada: É, na minha época não era
aprender desenho.
nada disso, então na minha casa eu me
lembro das enciclopédias que o meu pai Entrevistadora: Isso seguindo os passos do
comprava, os Tesouros da Juventude, como seu pai, né?
eu estava te falando, que era 5 livros, cada
Entrevistada: Sim, mas isso antes de ir para
um era de uma cor, era linda a coleção, linda,
a Contabilidade, assim, eu passei da 8ª série
mas eles deixavam acessível, que a gente
para o 1º colegial, aí comecei a fazer, assim,
podia ler, todo mundo podia ler e tudo e o
eu estudava à tarde, quando fui para a escola
Reader’s Digest que meu pai colecionava, eu
noturna eu não aguentei porque não era a
adorava aquelas revistas, adorava e é
minha realidade, eu era uma menininha e eu
engraçado porque eram revistas de mais
fui estudar com adultos. Então para mim isso
textos, não eram revista, mas aquilo lá me
foi muito chocante.
fascinava.
Entrevistadora: Mas por que você teve que
Entrevistadora: E nem era para criança.
ir para a noite?
Entrevistada: Aquilo não era para criança,
Entrevistada: Porque eu quis trabalhar. Eu
aquilo não era, mas aquilo me fascinava. Eu
falei, agora vou arrumar um emprego, e
sempre gostei muito de publicidade, eu
realmente eu arrumei um emprego e comecei
gostava de ler as propagandas, sempre fui
a trabalhar.
apaixonada por propagandas. A minha mãe
fala que quando eu era pequena, nem sabia de Entrevistadora: Você quis trabalhar por que
nada ainda, se tivesse passando alguma coisa procurava independência?
na televisão, por exemplo, às vezes passava
desenho, na hora do desenho eu estava Entrevistada: Não, porque eu precisava
brincando, começa a propaganda eu parava porque precisava ajudar em casa, eu sempre
para ver a propaganda. Acabava a trabalhei porque eu tinha que ajudar. O meu
propaganda e ia voltar para o desenho, aí eu salário nunca foi, como você vê hoje os
ia brincar. Eu sempre fui muito ligada em jovens estudando hoje para viajar, para
propaganda, eu gosto muito dessa linguagem comprar tênis. Não, o meu era assim para
persuasiva, sabe? A foto, sabe, o jeito que o ajudar em casa. É claro que a minha mãe
produto é apresentado, eu gosto muito. Eu falava: não, isso aqui filha é teu, quer
gosto muito de trabalhar isso com os alunos comprar uma blusinha, eu ia visitar meus
também. avós que moravam em Minas, assim, uma
coisa ou outra eu fazia, mas o dinheiro era
tudo para a minha mãe. E para mim isso
nunca foi um sacrifício, foi assim uma honra
Entrevistadora: É muito legal, né? E chama
fazer isso, sabe? Porque eu sempre fui muito
muito a atenção deles.
ligada à minha família, se eu pudesse ajudar,
Entrevistada: E hoje em dia, eles são alvo. para mim estava ótimo, eu não queria outra
Os jovens são os grandes consumidores. coisa. Aí fiquei um ano parada, mas falei,
bom, agora quero estudar, mas vou estudar
Entrevistadora: Exatamente.
numa boa escola. Eu morava entre o Alto de
Entrevistada: São os grandes consumidores, Pinheiros e o Alto da Lapa. Na Lapa tinha
então eu acho muito importante falar sobre uma escola chamada Campos Sales.
isso com eles. Bom, aí o ensino médio fui
Entrevistadora: Que ano era esse, mais ou
fazer numa escola particular, fui trabalhar,
menos?
aos 15 anos comecei a trabalhar, fui fazer
numa escola particular, Campos Sales, eu fiz Entrevistada: 80, em 81 eu fui estudar...
425

Entrevistadora: Seu pai trabalhava ali por Entrevistadora: Você estava fazendo letras?
perto?
Entrevistada: Não, eu ainda não estava na
Entrevistada: Não, meu pai trabalhava na Letras, depois é que eu fui fazer letras,
cidade, no Centro da Cidade, aí ele não quando eu estava na importadora é que eu fui
trabalhava mais em Contabilidade, ele tinha fazer letras, entendeu? Mas eles nunca se
se formado em Advocacia. importaram com isso, o que importava para
eles é que o funcionário estivesse estudando.
Entrevistadora: Ele era advogado.
Entrevistadora: É uma outra visão.
Entrevistada: Isso, no Centro meu pai
trabalhava. E daí eu fui estudar Contabilidade Entrevistada: Para mim é, porque se eles
no Campos Sales, eu pagava, daí eu dei a fossem falar: ah, você está trabalhando
sorte de começar a trabalhar, fui mudando de porque a gente vai aproveitar do teu trabalho,
emprego e fui para o Pão de Açúcar e no Pão não, não era isso, era assim, é uma questão
de Açúcar, eu sempre tive muita sorte, não assim, queremos aqui gente interessada em
posso reclamar de nada, quando eu pagava a estudar porque isso fazia um outro perfil dos
minha mensalidade, eu levava no funcionários, eu acredito que era isso. Bom,
Departamento Pessoal o boleto que eu tinha terminei em 83 a Contabilidade, me formei
pago, eles me reembolsavam a metade do em Contabilidade, aí trabalhei uns tempos
meu pagamento. com Contabilidade. Em 85, o meu
irmãozinho se inscreveu para fazer vestibular
Entrevistadora: Que maravilha.
na Matemática e eu era muito ligada com
Entrevistada: Não sei, parece que Deus esse menino e eu estava lá...
colocou uma estrela para mim. Quando eu fui
Entrevistadora: Quantos anos mais novo
trabalhar como assistente de contabilidade
que você?
também numa empresa, tinha um Diretor da
firma que era muito velhinho e ele era filho Entrevistada: Ele é 4 anos mais novo do que
do dono, mas ele estava lá, sabe assim, essas eu. Uma noite eu estava em casa, ele falou
pessoas que vão trabalhar de enfeite? Só para assim: nós vamos prestar vestibular, eu falei:
ele não ficar sem fazer nada. Mas o que ele Beto, como assim, vamos prestar vestibular?
fazia? Todas as pessoas que estudavam, a Ele falou: eu te inscrevi. Eu falei: mas Beto,
gente fazia a mesma coisa, tinha um dia do estou trabalhando, como assim? Não, você
mês que a gente levava para ele, ele tinha que vai prestar sim, você vai prestar para Letras
ver se tinha pago, ele faz um cheque na porque você gosta de ler, você escreve bem,
metade do valor. você me ensina poemas. Falei, mas Beto, não
é assim, aí eu fui de brincadeira prestar com
Entrevistadora: Aí te ajuda muito a estudar.
ele. Bom, ele passou, entrou, desistiu no 1º
Entrevistada: Muito, claro, porque assim, eu ano, eu fui até o fim...
nunca ganhei bem, eu nunca tive um bom
Entrevistadora: Você chegou a falar para
trabalho, eu sempre fui trabalhadora assim,
ela alguns momentos antes: eu queria fazer
de ganhar 2 ou 3 salários mínimos, eu nunca
Letras, eu tinha vontade?
tive isso, mas sempre tive essas facilidades, o
que foi uma sorte para mim porque me Entrevistada: Não, nunca falei nada.
ajudou, sabe? Eu me sentia valorizada, me
Entrevistadora: Nunca passou pela tua
sentia respeitada quando isso acontecia, eu
cabeça ser professora? Nada?
me sentia com incentivo para continuar
estudando. E engraçado que essas empresas Entrevistada: Nunca. Claro que eu queria
também, para você ver como é a visão dessas fazer alguma outra coisa da minha vida
empresas, eles nunca se preocuparam que o porque assim, trabalhar no escritório é uma
que eu estava fazendo tinha a ver ou não. coisa muito chata, muito chata. Até porque eu
sou muito falante, então trabalhar como uma
426

coisa assim, eu sempre fui assim, né? Eu Entrevistada: Sim, ela fazia tudo e eu me
converso até com a janela, com a porta, se me lembro assim, da 1ª aula de literatura ela
deixarem, vão me confundir com poste falava: estou muito triste, ela falou assim
porque eu não gosto muito de falar. Então quando inaugurou a 1ª aula dela, foi a 1ª aula
assim, um trabalho que me proporcionasse que eles dão tudo que eles têm. Eu lembro
isso, seria ideal para mim, que é a sala de que ela falou assim: estou muito triste hoje,
aula, onde eu mais posso falar. eu vou destruir literatura para vocês. Todo
mundo: por que Maria Lúcia? Ah, porque
Entrevistadora: Afinal ele acabou fazendo
agora vamos olhar a literatura do avesso. A
uma opção que correspondeu a todas as suas
gente não vai mais olhar como leitor
expectativas.
distraído, que é o jeito mais gostoso de ler
Entrevistada: É, e aí na hora que eu fui, literatura, é o leitor distraído, né? Aquele que
quando eu fui fazer o vestibular, eu já estava se apaixona por um personagem, se encanta
totalmente encantada com a ideia porque era com o cenário, né? Porque agora vamos ver
uma faculdade pequena, Faculdade Moema, por dentro, vamos ver o esqueleto da
era dirigida por padres, salvatorianos acho literatura. Quando ela falou isso, a gente
que eles são, não vou lembrar direito a que falou: espera aí, o que é isso? Nossa, mas foi
congregação eles são, mas enfim, era uma maravilhoso. Eu não vou lembrar, são 25
faculdade linda. Esteticamente ela era linda, anos, né? Mas eu me lembro assim do
nossa, falei: aqui é o paraíso, o paraíso e as empenho das pessoas, das conversas. Falta
aulas eram maravilhosas. Eu lembro assim, era muito pouco, nós éramos uma classe de
eu estudava à noite, eu tinha 4 aulas de 50 alunos, eu não me lembro de muitas faltas
literatura no sábado, das 8 ao meio dia, eram no sábado. E assim, seria normal que todo
as melhores aulas que eu tinha. mundo faltasse. Você trabalhou a semana
inteira, estudou todas as noites, de sábado
Entrevistadora: Porque você trabalhava, e não, mas não faltava.
tinha aula também no sábado?
Entrevistadora: Você acha que essas aulas
Entrevistada: Isso, então era assim, eu foram influência para você dar?
chegava em casa 11 e meia, 5 e meia eu
estava de pé para ir trabalhar, foi muito difícil Entrevistada: Muito porque ela era uma
assim, mas gostoso, entendeu? Não posso te pessoa assim, e ela era encantadora como
dizer que foi sofrido, não foi porque eu uma pessoa, sabe? Ela era uma pessoa assim,
gostava. Eu gostava das aulas, eu gostava dos diferente, ela não era esse padrão, sabe? Por
trabalhos, gostava dos professores. exemplo, hoje em dia você fala assim: o que
é uma mulher bonita? Ah, é mulher de cabelo
Entrevistadora: O que tinha nas aulas, no loiro, ela era totalmente diferente, ela tinha
sábado, por exemplo? vindo de uma viagem para a Índia, então ela
Entrevistada: Era maravilhoso, maravilhoso, estava com um pearcing no nariz, aquilo já,
a professora era uma pessoa muito especial, sabe, hoje em dia é comum, mas há 25 anos
ela era apaixonada pelo que ela fazia e ela não era comum. Ela usava aquela saia
passava essa paixão para a gente. Não tinha indiana assim, então ela era uma figura
um aluno que dizia assim: que droga essa sedutora, sabe?
aula da Maria Lúcia, não tinha um aluno. Entrevistadora: Entendi,
Entrevistadora: Como era o nome dela? Entrevistada: Ela era uma figura sedutora,
Entrevistada: Maria Lúcia, não vou sabe? Assim, muito doce no jeito de falar,
lembrar o sobrenome. Tenho que olhar no muito carinhosa, assim, eu acho que as aulas
diploma para falar o sobrenome, mas ela era dela influenciaram toda aquela turma, eu
maravilhosa, maravilhosa. acho que sim, acho que influenciaram. E
tinha um professor de língua portuguesa
Entrevistadora: E ela fazia crítica literária? chamado Miguel Sales, esse eu lembro do
427

sobrenome e me lembro muito dele pegava 5 ou 6 livros daquela série, eu abria


ensinando a contestação da gramática. Nós no mesmo assunto, eu fazia todos os
fazíamos assim, estudávamos a gramática e exercícios, eu fazia os exercícios.
estudávamos argumentos contraditórios
Entrevistadora: Como se fosse aluna?
dentro da gramática, por que você fala “um
objeto”, por que é um objeto, sabe? Me Entrevistada: Isso, como se eu fosse aluna,
lembro assim das coisas que são inanimadas, E dali eu inventava um exercício para o meu
que você chama de objeto, ele dizia que o aluno fazer, era assim que eu fazia, para
objeto tem que ter poder de ação, ele falava descobrir o sujeito, o que é objeto direto,
isso, sabe? Ele falava, você vai ensinar isso dessa forma.
para o teu aluno, mas pensa atrás disso, como
que o teu aluno vai acreditar nesse teu Entrevistadora: Dessa forma você testava o
discurso? Ele era um professor maravilhoso seu conhecimento.
também. E ele falava assim para a gente, Entrevistada: Sim, quando eu fui começar a
falou uma coisa que não me esqueço, faz 25 trabalhar, quando eu peguei um oitavo ano,
anos que me formei, ele falava assim: vocês que eu tive que ensinar oração subordinada,
vão se formar de fato, quando vocês saírem aí quando eu fui ensinar para eles, eu aprendi
daqui e trabalharem 5 anos, depois de 5 anos oração subordinada. Porque eu nunca tive um
de trabalho, acreditem, aí vocês estão professor que me ensinasse isso, nunca tive.
formados.
Entrevistadora: Porque tem a experiência.
Entrevistadora: Nem na escola, nem na
Entrevistada: Sim, ele falava não adianta faculdade, em lugar nenhum?
você ter na ponta da língua uma definição
gramatical, sabe, enquanto aquilo não se Entrevistada: Não, não, não tive, quando eu
transformar em alguma coisa que você possa fui ensinar, eu aprendi e isso foi muito
oferecer para o aluno e o aluno entender, gostoso, assim, eu não posso dizer que o meu
aquilo é só um discurso vazio. E eu, hoje em trabalho é penoso. É penoso o dia a dia,
dia acredito nisso, foram 5 anos a mais para a acordar, levantar, preparar o diário, mas
gente realmente ver. E assim, me lembro das assim, a relação com o aluno era sempre
primeiras aulas que eu dei, cada pergunta era prazerosa.
uma alfinetada porque eu morria de medo de
Entrevistadora: Continua assim?
não ter competência para responder.
Entrevistada: Continua, claro, continuo
Entrevistadora: Claro, no começo...
aprendendo.
Entrevistada: E outra, você acabou de
Entrevistadora: E com relação assim, a
estudar com mestres, eu não sou mestre, eu
relação que você tinha com a literatura
não fiz mestrado, eles eram muito
quando sentiu que teve uma transformação
capacitados, eu era muito frágil diante dos
no momento da faculdade, como você
alunos, né?
articulou isso, sabe? A bagagem que você
Entrevistadora: Mas por que você sentia tinha, aquilo que você aprendeu na faculdade,
essa fragilidade? para depois dar as suas aulas?

Entrevistada: Ah, porque eu sabia que não Entrevistada: A questão da literatura? Não
tinha estudado tanto, que não tinha tanta sei, eu sempre fui encantada com história, eu
cultura quanto os meus professores, gosto muito de história, eu gosto muito de
entendeu? Eu não tinha tanta bagagem, eu contar história, gosto muito de ouvir história,
achava que eu ainda estava muito, era muito então, gosto dos cronistas, gosto de histórias
precário o que eu tinha, as minhas primeiras curtas, gosto de histórias motivadoras,
aulas, para você ter uma ideia, eu fazia assim, histórias que apontem para uma coisa mais
428

iluminada da vida mesmo. Eu acho que o Entrevistada: Sim, sim, geralmente é


jeito como fui trabalhando, fui tentando assim, estou passando por um problema e tal,
descobrir na literatura coisas simples e falo: o que será que vai me aliviar dessa
interessantes para trazer para as aulas. angústia? Me colocar, sabe, assim
mentalmente em um outro lugar.
Entrevistadora: O que é uma coisa simples
e interessante? Entrevistadora: Que vai trazer...
Entrevistada: É uma coisa assim, que não Entrevistada: Sim, que realmente vai ser
seja muito rebuscada, muito cheia de... um bálsamo nesse momento de dor e tal. Eu
tento também.
Entrevistadora: Uma linguagem mais?
Entrevistadora: Você busca sozinha esses
Entrevistada: Uma linguagem assim mais
livros?
elevada, mais erudita, entendeu?
Entrevistada: Às vezes eu peço ajuda.
Entrevistadora: Entendi.
Entrevistadora: Para quem?
Entrevistada: Às vezes um texto mais
simples tem o poder de despertar no aluno Entrevistada: Outro dia eu estava passando
algum tipo de empatia, não é? E fazer com pelo Metrô e tem uma banca de livros
que aquele aluno se veja numa posição espíritas, eu nunca li livros espíritas, nunca li,
diferente porque quando você trabalha com aí tinham vários títulos, como nesse dia estou
criança assim, que são crianças que vêm de vivendo um drama muito, aí encostei lá e
histórias diferentes muito ruins, como eu comecei a conversar com a moça e falei:
posso dizer que a minha aula vai transformar você já leu alguns desses livros? Ela falou:
essa criança? Mas um texto pode trazer um sim, já, eu gosto, né? Ela começou a explicar
personagem que tenha vencido alguma dor, e eu até comprei um livro, eu li 100 páginas
que tenha vencido. E que aquilo seja também num dia, de tão interessada que eu fiquei,
para o aluno um modelo, um impulso para ele mas depois assim, eu me desinteressei. Foi a
dizer: olha, a minha vida não é tão ruim única vez que pedi ajuda também. E agora
assim, esse personagem também sofreu, eu exatamente, o que estou procurando patrícia?
também posso superar essa dor, essa Eu quero trabalhar um livro com os meus
dificuldade, essa precariedade porque o que sétimos anos, eu tenho dois sétimos anos
temos aqui são crianças com vida assim, muito bons e eu quero indicar um livro. Vai
muito precárias, elas não são, são famílias ser uma coisa difícil porque eles vão ter que
fragilizadas, são famílias que às vezes estão comprar esse livro ou vão ter que ir até a
em situação de risco, mas eles mandam para biblioteca conseguir ou vão ter que pegar
a escola, aqui tem comida e tem gente para num sebo, eu não sei. Então nessas últimas
cuidar deles, não é isso? É isso que a gente semanas, toda hora que eu saio, vou numa
tem aqui. livraria e eu fico vendo o preço de livro, para
ser uma coisa acessível para eles.
Entrevistadora: Aí você vê um pouco o seu
papel assim, no ensino de português? Entrevistadora: Você ainda não
escolheu o livro?
Entrevistada: Sim, sim, eu tento trazer
textos realmente interessantes, edificantes. Se Entrevistada: Não, ainda não, estou
tem algum personagem malvado? Vamos tentando descobrir uma coisa que seja
analisar esse personagem, por que será que interessante, que seja uma linguagem mais
ele usou essa palavra? Sabe assim? Eu faço atual, tá? Eu pensei naquela coleção da Ática
isso durante as aulas, né? – Para gostar de ler – mas eu fui ver e os
livros são muito caros, R$56,00/R$60,00.
Entrevistadora: E quando você procura um
livro para você ler, para o seu prazer, você Entrevistadora: É muito caro.
também busca desse jeito?
429

Entrevistada: Nossa, eu achei muito caro Entrevistada: Isso, isso. E quando eu tinha
esses livros, tanto que sempre que eu tenho 3 meses eles mudaram para cá.
saído, assim, para passear ou descansar,
Entrevistadora: Por quê?
passo numa livraria e falo: deixa eu ver os
livros aqui, né? Entrevistada: O meu pai, lá não tinha
campo de trabalho, o meu pai arranjou
Entrevistadora: Daquelas que tem no
emprego aqui e a gente veio para cá.
Shopping?
Entrevistadora: E seu pai tinha essa coisa de
Entrevistada: Isso.
querer buscar uma vida melhor, assim?
Entrevistadora: Que no Santa Cruz tem Porque parece que ele foi uma pessoa que
várias. sempre?
Entrevistada: Hum, hum. Entrevistada: Sim, meu pai tinha uma coisa
de buscar uma vida melhor. Outro dia eu
Entrevistadora: Daí tem que ver o preço...
contei uma história para as crianças, eu não
Entrevistada: Sim para poder indicar e para sei se posso contar para você?
a partir desse livro, fazer um trabalho de
Entrevistadora: Pode.
leitura com eles.
Entrevistada: Meu pai trabalhou na roça até
Entrevistadora: Antes as escolas estavam
os 15 anos, ele não sabia o que era calçar um
dando livros no começo do ano, ainda estão
sapato até os 15 anos e aos 15 anos eles
dando? Porque agora é período integral, né?
saíram da roça e foram para a cidade, para
Entrevistada: Sim, ele dá, como chama? Um Poços e aí meu pai ganhou um sapato porque
kit de livros para eles. Eu te mostrei o ia procurar emprego. Aí ele chegou em um
trabalho da Anne Frank? hotel chamado Quisisana em Poços, imagina
um hotel no meio de uma floresta, o
Entrevistadora: Mostrou, você até passou o Quisisana é isso, maravilhoso e era muito
áudio para ver o texto. chique na época, hoje em dia não mais
Entrevistada: Isso, isso, isso, aquele livro as porque virou um condomínio, ainda existe,
crianças ganharam, mas foi o último ano que mas é um condomínio, não é mais um hotel,
eles ganharam. mas na época era o hotel mais chique da
cidade e o meu pai, a minha avó sempre fez
Entrevistadora: Ah, não deram mais os meninos estudarem, 7 filhos, todos
depois? estudados, apesar de estar na roça, eles tinha
que estudar. E meu pai foi fazer uma ficha
Entrevistada: Não deram mais. É uma pena.
nesse hotel para conseguir um emprego,
Entrevistadora: É uma pena porque não dá quando ele fez a ficha, ele pediu, como se
para você manter o trabalho. diz? Ele estava ambicionando, não sei como
se fala essa palavra. Pleiteando uma vaga,
Entrevistada: Não dá, não dá, mas que né? Estava pleiteando uma vaga para garçom
bom que fez aquele, aproveitamos e fizemos porque ele achou que estava bom ser garçom,
aquele. quando viram a letra do meu pai, a pessoa,
Entrevistadora: E recuperando um pouco, né, provavelmente o gerente falou: nossa, sua
você falou que morava em São Caetano, seus letra é muito bonita, você não vai ser garçom
pais são de São Caetano? não, você vai ser escriturário. Aí já colocou o
meu pai no escritório do hotel, meu pai já
Entrevistada: Não, a minha família é de começou a ser escriturário, fazia livro fiscal
Minas Gerais, de Poços de Caldas. porque ele tinha a letra muito bonita, imagine
você.
Entrevistadora: Ah, todos eles? Seus pais
nasceram em Minas Gerais? Entrevistadora: Que legal.
430

Entrevistada: E foi isso, meu pai foi estudar crianças, você vai lá e castiga eles, você acha
Contabilidade, se formou. que eles vão melhorar? Ah, sim, aí na 2ª
feira, eu acalmada, desci no horário que eu
Entrevistadora: Foi gostando daquilo.
disse que ia castigar, pedi licença para o
Entrevistada: Foi. Aí foi para a professor, olha, eu não vou fazer isso porque
Contabilidade e trabalhou muitos anos, aos apesar de ter alunos que desrespeitam, tem
40 anos ele se formou como advogado e mais alunos que respeitam, então em nome
sempre foi assim. desses alunos que respeitam, vocês vão ter os
15 minutos que vocês têm de almoço como
sempre e amanhã, quando eu entrar aqui para
Entrevistadora: Foi um exemplo também, dar aula, eu quero encontrar outros alunos, eu
né? quero que a maioria respeite. E aí foi ótimo,
depois não precisei nem falar porque deu
Entrevistada: Foi, nossa! Porque assim, ele tudo certo.
deu uma volta na história dele.
Entrevistadora: Deu tudo certo.
Entrevistadora: É, totalmente.
Entrevistada: Deu tudo certo porque não
Entrevistada: Deu uma volta, não era, das teve castigo, mas assim, na hora, no calor do
irmãs dele, ele foi o único que estudou. momento você quer mais bater mesmo. Você
Assim, são 5 irmãs e ele, dois irmãos fala: não, você me atrapalhou e agora eu que
morreram, espera, falei errado, 4 irmãs e ele, vou atrapalhar a tua vida também.
dois irmãos morreram e ele foi o único que
estudou. Aliás, as minhas tias estudaram Entrevistadora: Reativo.
também, mas quando eu digo estudar, assim, Entrevistada: É, e é aí que a gente faz
elas não se formaram. grandes enganos. Mais ou menos é isso.
Entrevistadora: Elas foram até onde? Entrevistadora: E ela teve uma trajetória
Entrevistada: Elas foram até o ensino parecida com a sua? Ela também trabalhou
médio, assim, no máximo e pararam. como contabilista?

Entrevistadora: Você tinha contado que a Entrevistada: Não, a minha irmã não, a
sua irmã foi uma presença bem importante minha irmã trabalhou na Prefeitura.
para você. E você também falou que ela era Entrevistadora: Como o quê?
Psicanalista, alguma coisa assim?
Entrevistada: Como escriturária da
Entrevistada: Isso, ela é Psicanalista. Prefeitura há muitos anos, depois ela se
Entrevistadora: E hoje ela ainda é uma formou em Psicologia.
pessoa significativa na sua vida? Entrevistadora: Na Universidade de Moema
Entrevistada: Muito, muito. Muito também?
significativa. A gente ainda se apoia muito, Entrevistada: Não, ela se formou pela
ela me ajuda muito, quando acontece alguma FMU e ela entrou de 1ª assim, na época não
coisa aqui eu falo para ela e ela dá a visão da era tão fácil entrar, hoje em dia você escreve
orientadora e não da professora, olha, tive um seu nome, está matriculado. Ela entrou sem
problema com uma sala outro dia, eu falei: cursinho, sem nada, ela conseguiu e se
ah, eu vou tirar os 15 minutos de almoço de formou pela FMU, teve Clínica uma época,
vocês, né? 2ª feira eu venho aqui e vou tirar e hoje em dia ela trabalha como orientadora
no fim de semana liguei para ela e disse: numa escola.
nossa, tive um problema horrível na sala, não
consegui dar aula e tal. Ela falou: mas você Entrevistadora: que legal, uma escola
acha que você teve um problema com essas pública?
431

Entrevistada: Não, não, escola particular. Entrevistada: É, que não são representadas
Ensino fundamental 1 e 2. em objetos.
Entrevistadora: Então acabou indo para a Entrevistadora: Exato.
escola também.
Entrevistada: Então é muito bom.
Entrevistada: Ah sim, a vida dela é todo
para a escola.
Entrevistadora: Que ótimo. E seu marido
faz o quê?
Entrevistadora: Ela queria trabalhar com
Entrevistada: Meu marido é físico.
escola ou foi uma coisa por acaso também?
Entrevistadora: É físico? Ele trabalha
Entrevistada: Não, é porque assim, o
também no ensino médio?
campo de psicologia é muito restrito mesmo,
ou você tem, dispõe de tempo para esperar os Entrevistada: Ele deu aula muitos anos
pacientes chegarem, que não é uma coisa tão também, no ensino médio, ele sempre no
fácil assim, você tem que fazer um nome e ensino médio. Mas também é uma pessoa
tudo o mais, então ela foi trabalhar na escola muito culta, a gente conversa bastante sobre
por isso. Ela pode trabalhar como psicóloga, filosofia, né?
mas de outra forma, entendeu? Com outra
abordagem, né, e está vinculada à educação, Entrevistadora: Ele gosta? Eu fiz...
sempre ligado a isso. Entrevistada: Eu nunca soube, não, você
Entrevistadora: E vocês compartilham talvez saiba, mas eu, como eu nunca estudei
literaturas que vocês leram? física porque assim, eu fui para o ensino
médio, técnico.
Entrevistada: Sim, muito, muito, a gente
conversa muito sobre isso. Deixa eu ver, Entrevistadora: Muito técnico.
lembrar de um livro que lemos juntas. Isabel Entrevistada: Eu falo para ele, tudo o eu
Aliende a gente lê junto, acho que foi o sei de física, eu sou casada com um físico
último que a gente leu porque foi antes de eu porque assim, eu não sei nada e eu não sabia
me casar e a gente lia antes de dormir, a que um físico poderia ser uma pessoa tão
gente ficava lendo essas coisas. espiritualizada e ele é muito, muito
Entrevistadora: Ela é casada também? espiritualizado, muito, muito, sabe assim?
Então é uma companhia muito...
Entrevistada: Não, ela não, acho que foi a
Isabel Aliende que lemos juntas. A Casa dos Entrevistadora: Perfeita.
Espíritos e era muito gostoso, a minha irmã é Entrevistada: Muito rica, entendeu? É uma
muito ligada em literatura. Às vezes eu acho riqueza de convivência. Realmente é uma
que é ela que põe essa pilha em mim. riqueza de convivência. Outro dia, para você
Entrevistadora: Que faz você se encantar de ter uma ideia das coisas que eu converso com
novo? ele, eu trabalhei no texto com o 7º ano, que
era um relato de memória. Nesse relato de
Entrevistada: É com certeza. memória, uma moça contando a história dela,
o pai dela foi, acho que era engenheiro que
Entrevistadora: É bom ter essa referencia.
acho que ajudou a construir Brasília. E essa
Entrevistada: Nossa, muito bom, num moça morava em Fortaleza antes deles irem
mundo tão cheio de coisa, alguém que se para Brasília e tal, e ela faz uma descrição da
importa com coisas... casa, de como era a casa dela, que era uma
choupana, que era uma casa enorme, uma
Entrevistadora: Belas.
casa cheia de crianças, cheia de meninas que
432

a mãe dela criava, essas meninas, pelo que eu gente que fala: “ai que droga, você trabalha
entendi no texto é como se fossem no Estado, ai que porcaria, nossa, como você
empregadas da casa, mas também eram sofre! Não, olha que bacana!
tratadas como filha e tal, então assim, era um
ambiente muito bacana que ela vai
descrevendo. E ela conta que elas tinham Entrevistadora: Te traz uma visão positiva
uma vitrola e que a mãe dela colocava Clair da profissão.
de Lune, de Debussy para ouvir e quando ela
colocava Clair de Lune a irmã, acho que a Entrevistada: Da minha profissão.
irmã mais velha, não lembro, chorava. E aí a Entrevistadora: E da relação com as
Entrevistada, a idiota aqui, eu peguei as pessoas.
crianças e enfiei as crianças na multimídia e
toquei Clair de Lune para eles, porque eu Entrevistada: Com as pessoas, né? Eu falei
achei que era um direito deles conhecerem, Márcio, eu aprendi, aprendi, vou falar assim,
para ficar rica a aula. Aí uma aluna me a próxima vez que eles falarem que a música
levanta a mão e fala assim: eu estou com que eu estou tocando para eles dá sono, vou
sono. E eu, estupidamente falo: isso é falar: serenou seu espírito, acalmou sua alma,
entregar pérola para porco, vejam só e fiquei olha só. Falei uma coisa, não fui grosseira e
muito brava. Ontem, a mãe dessa menina ensinei que uma música clássica pode
veio aqui me cobrar esse “pérola para porco”. acalmar o espírito.

Entrevistadora: Veio aqui? Entrevistadora: Exatamente. Ele dá aula


hoje em dia?
Entrevistada: Sim, claro, né? E eu
comentei isso com o meu marido, falei assim: Entrevistada: Ele dá aula de karatê, além
ontem eu pedi desculpas para a mãe dela, eu de ser professor.
falei que não deveria ter falado dessa forma,
Entrevistadora: Que maravilha.
mas eu como professora me senti agredida.
Eu estou oferecendo uma coisa simplesmente Entrevistada: É, ele é mestre de karatê, ele
maravilhosa, na minha visão de adulto e ela tem uma academia.
não quis nem ouvir, eu nem toquei a música
toda, deixei tocar 1 minuto porque sei que Entrevistadora: Então deve ser mesmo uma
mais de 1 minuto eles perdem o interesse, né? convivência muito boa, né?
Aí comentando isso com o meu marido, ele Entrevistada: Muito bacana, a única coisa
falou assim: olha, é verdade o que você está assim, que ele queria que eu fosse esportista
falando, até porque é uma passagem bíblica: como ele, eu não sou, não, eu gosto de comer
não entreguei pérolas a porcos. Mas você mesmo e descansar, não tem nada a ver com
poderia dizer assim, quando ela falou que esporte, o nosso único drama é esse.
ficou com sono pela sua música, você poderá
ter dito assim: que bacana, isso acalmou o teu Entrevistadora: Tem que ter algum drama.
espírito, olha que interessante essa música!
Entrevistada: Tem que ter, senão a vida
Então ele é uma pessoa assim, ele fala esse
não é...
tipo de coisa para mim, entendeu? Quando eu
levo uma coisa que eu fiz assim, Entrevistadora: Muito perfeito não dá, né?
agressividade.
Entrevistada: É, não dá, não dá.
Entrevistadora: E ele faz essa leveza.
Entrevistadora: E você estava falando que
Entrevistada: Ele faz essa leveza, trouxe memórias para a sala de aula dessa
entendeu? É com isso que eu convivo, então moça, que ela trouxe da casa. E para você,
assim, não é difícil eu fazer o que eu faço qual é a casa que você lembra mais com mais
porque eu tenho apoios muito bons assim, carinho, das casas que você já viveu?
muito, gente muito positiva, entendeu? Não é
433

Entrevistada: Ah, que já vivi? Vou falar da cuidadosa me tudo, mas quando ia para lá,
casa dos meus avós, dos pais do meu pai, que parece que todo mundo estava cuidado,
era a casa que recebia gente porque nós inclusive meu pai.
morávamos aqui em São Paulo, mas sempre,
Entrevistadora: Porque aqui ele não tinha
todo feriado, todo fim de semana que a gente
que cuidar.
podia, o meu pai colocava toda a criançada
no carro e: vamos para Poços, então a casa da Entrevistada: Aqui ele era o cuidador, mas
minha avó. A casa da minha avó era assim, lá a gente estava sob os olhos do meu avô,
sabe, casa com fogão de lenha, sabe? que era uma pessoa extremamente forte, da
minha avó, que era uma mulher
Entrevistadora: Sei.
extremamente forte. Então era bom ficar lá
Entrevistada: E uma casa, as 4 irmãs do com eles, ficar embaixo das asas dos dois,
meu pai, tias muito carinhosas, quando a naquela casa, sabe?
gente chegava, tinha bandeja de bombons
Entrevistadora: Que maravilha.
feitos, porque elas eram super caprichosas,
tinham assim os doces que a gente gostava, Entrevistada: Com aquelas comidas, com
as comidas que a gente gostava, sabe e meus aqueles pães que a minha vó fazia, sabe? Eu
primos também, nossa, era maravilhoso. me lembro da minha avó, ela fazia pão, fazia,
a gente chama de quitanda em Poços.
Entrevistadora: Trazia toda aquela coisa
Quitanda é bolachinha, é broa, isso se chama
acolhedora?
quitanda. Me lembro que ela colocava uma
Entrevistada: Sim, sim, de uma família bacia, super bem areada de alumínio, na
mineira, né? De uma família carinhosa, de cadeira porque aí a força do corpo dela é que
uma família que tinha sérios problemas, mas sovava o pão. Eu me lembro da minha avó
também tinham uma convivência deliciosa fazendo pão.
quando os problemas não estavam tão fortes,
Entrevistadora: Que lindo.
tão prementes, então é a casa dos meus avós.
A casa que eu tenho na memória é a casa dos Entrevistada: Então é uma memória muito
meus avós. Se eu pudesse, às vezes eu fecho gostosa de ter, sabe?
os olhos e digo: ai, se Deus me desse mais
uma ora naquela casa, mais uma hora com Entrevistadora: E ela gostava de cantar?
eles, sabe? Ia ser tão bom, tão rico, né? Entrevistada: Minha avó não, minha avó
Porque foi tão bom viver lá. era uma pessoa extremamente triste, hoje ela
Entrevistadora: Tem um livro do Bachelard seria depressiva, porque ela perdeu 2 filhos,
que chama: a poética do espaço e ele fala um deles morreu de acidente, ela nunca se
dessa relação que a gente tem com a casa e recuperou. Depois que o último morreu, perdi
ele conta desses lugares da casa, o quanto um tio num acidente aos 24 anos, a minha
formam a gente. avó nunca mais recuperou. Inclusive, para
você ver como que foi grave, o médico, um
Entrevistada: Nossa identidade. médico, ensinou a minha avó a fumar porque
o cigarro aplacava a angústia.
Entrevistadora: Isso, você falou isso e me
lembrou muito porque é aquela casa que a Entrevistadora: Coitadinha.
gente viveu e sabe, parece...
Entrevistada: Ela só parou de fumar no fim
Entrevistada: Que a gente foi acolhida. da vida quando ela teve uma pneumonia, aí o
médico falou: eu sei que a senhora fuma para
Entrevistadora: É, e parece que aquilo que
se acalmar, mas a senhora não vai mais fumar
criou uma certa estabilidade dentro da gente.
porque o seu pulmão está nesse estado e aí
Entrevistada: Isso, isso, veja, tinhas a ela teve que parar. Mas a minha avó era uma
minha casa, a minha mãe sempre foi muito pessoa muito, mas assim, uma pessoa boa,
434

boa, mas não uma pessoa igual meu avô. O Entrevistada: Isso, para mim. Eu me
meu avô não, o meu avô brincava, meu avô lembro que o meu pai ensinava a minha irmã
falava, era uma pessoa, um velhinho muito a cantar algumas músicas e ela me ensinou a
lúcido, sabe, assistia jornal com a gente, cantar. Ele ensinava para ela e tocava para ela
entendeu? Lia jornal, o meu avô lia jornal, cantar, depois ela me ensinou.
apesar de ter pouca instrução também,
Entrevistadora: Por que ele parou?
trabalhava na roça, derrubava árvore,
trabalhava com trator, sabe? Trabalho bruto Entrevistada: Não, não, porque ele queria
mesmo, mas mesmo assim, era uma pessoa juntar a família cantando junto com ele,
muito culta. entendeu? Era isso, então as nossas reuniões
de família sempre eram regadas de música,
Entrevistadora: E quem você acha, quem ou
todas as reuniões de família tinha meu pai
o que na verdade pode ter sido essa
tocando. Logo que ele morreu, eu não
referencia que você falou? Que você pode
aguentei, né? Hoje em dia eu já quero que
fazer uma leitura bela, trazer a música bela?
toquem, mas nos primeiros anos, era muito
Entrevistada: A minha irmã, essa é a duro, ter a música e não ter ele. Eu tenho 2
minha irmã. A minha irmã é uma pessoa irmãos que tocam também, mas no começo
muito especial, eu acho que foi ela. Apesar eu, foi muito difícil. Mas agora eu já sinto
de que meu pai tocava música clássica saudades, quero que toquem, mesmo que eu
também, o meu pai era violonista. chore, eu quero ouvir.
Entrevistadora: E onde ele aprendeu a tocar Entrevistadora: Porque traz também
violão? uma coisa boa, a presença dele, né?
Entrevistada: Ele assim, antigamente, não Entrevistada: Porque traz toda a presença
sei se você sabe, quem tocava violão era dele, a lembrança dele.
desvalorizado porque só vagabundo que
Entrevistadora: Que coisa boa.
tocava violão, então a minha avó odiava, ele
tinha que esconder o violão da minha avó, Entrevistada: Eu acho que ele e a Alda, o
mas ele gostava, então ele foi para o meu pai e a minha irmã Alda, eles
conservatório, se formou no conservatório, construíram esse tipo de vontade de procurar
ele dava aula em conservatório. isso, de oferecer isso para o aluno. Porque foi
tão bom para mim, então quando uma coisa é
Entrevistadora: Isso quando ele estava
boa para a gente, a gente quer oferecer
ainda e m Minas?
também.
Entrevistada: Isso, isso em Minas, né?
Entrevistadora: Claro. E você ouve
Meu pai era seresteiro, fazia seresta, tocava
chorinho ainda?
com os amigos. E ele tocava, dentre as
músicas, ele gostava de tocar chorinho (?) ali, Entrevistada: Ouço, comprei alguns CDs,
não sei se você conhece. tem algumas gravações do meu pai que eu
ouço.
Entrevistadora: Hã, hã.
Entrevistadora: Que coisa boa. Faz tempo
Entrevistada: Então ele tocava essas peças
que ele faleceu?
assim, peças que não é do chorinho, mas
tocava algumas músicas clássicas também, eu Entrevistada: Ele faleceu em 2010.
acho que isso tudo ficou na minha cabeça,
construiu esse gosto por isso.
Entrevistadora: Esse gosto pela música Entrevistadora: Já tem 7 anos. Então é isso,
clássica, pelas coisas belas, se fosse para a obrigada, é sempre um prazer conversar com
sua irmã, você traz para você também. você porque a sua experiência é muito rica.
435

Entrevistada: Que bom, que bacana poder Entrevistadora: Há quanto tempo você
te ajudar. trabalha como professora?
Entrevistadora: Me ajuda muito.
Entrevistada: Há 20 anos?

Entrevistadora: Qual é sua formação?

Entrevistada: Eu fiz o curso de Letras na


faculdade Oswaldo Cruz. Bacharelado e
licenciatura. Português-inglês e fiz um ano de
francês também, mas eu preferi fazer inglês.

Entrevistadora: Você se identifica bastante


com a língua inglesa.

Entrevistada: eu me identifico. Depois eu


fiz um curso, uma pós na UNINOVE em
gramática. Antes da UNINOVE eu fiz uma
pós em literatura a PUC.

Entrevistadora: O que te levou a escolher


ser professora?

Entrevistada: Então, eu trabalhava na


SPTRANS, eu era concursada lá já há oito
anos.

Entrevistadora: Na parte administrativa?

Entrevistada: Na parte administrativa. Eu


fiz letras porque eu me interessava em ser
secretária bilíngue da diretoria então eu fiz
essa faculdade. Depois eu comecei a me
Entrevista com a Professora Valquíria
identificar, assim, o pessoal falava “fulano
20/12/2014
está dando aula”.

Entrevistadora: Lá no curso?
Entrevistadora: Qual é seu nome?
Entrevistada: Em letras mesmo, na
Entrevistada: Valquiria. faculdade”. Ah, está dando aula não sei o
quê”. Aí eu pensei assim, eu vou ficar presa
Entrevistadora: Você em quantos anos?
em uma empresa o dia inteiro. Eu tenho
Entrevistada: Eu tenho 49 anos. minha filha, isso em 1994.
436

Entrevistadora: Você já era casada e tinha de várias escolas para conhecer vários
uma filha? lugares e também porque como eu não era
concursada, vinha o pessoal concursado e
Entrevistada: É, eu casei em 1993, terminei
segue a escala de pontuação. Depois eu
a faculdade em 1994 e aí engravidei em 93
passei em um concurso, passei em inglês,
também, no ano do casamento. Tive a
passei no concurso em 2003. Só que eu não
Amanda em 1994 e aí eu me formei em 1994
assumir, aí em fiquei com cargo estável.
e falei assim “não, eu vou pegar uma área
Inclusive, fiquei em escola particular,
com mais flexibilidade para criar o filho”.
concomitante com o estado no Colégio Santa
Então eu fui para a educação e gostei.
Bárbara, aqui perto, sistema Objetivo. Fiquei
Entrevistadora: E você já começou na rede lecionando português na parte da manhã e à
estadual ou você começou em outra rede? noite eu ficava lecionando inglês no Estado.

Entrevistada: Comecei na rede estadual. Entrevistadora: E quais foram as suas

Entrevistadora: Trabalhando com o impressões sobre ser professora?

Fundamental II e Ensino médio? Entrevistada: Eu achei muito bom porque é

Entrevistada: Comecei com o Fundamental muito bom, é uma satisfação a gente

II. trabalhar com a parte humana, humanizar.


Essa troca de experiências com os alunos e
Entrevistadora: Dando aulas de Língua
comigo é muito boa, é muito gratificante.
Portuguesa?
Não tem, assim, a gente não ganha o
Entrevistada: Isso. Lá na Vila Jaguara. suficiente, tanto que a gente tem que ficar...
Trabalhei pertinho da Av. dos Remédios. Eu estou na prefeitura. A gente não ganha o
fui para lá em 1995. Dia 23 de fevereiro de suficiente aí a gente tem que ficar fazendo
1995. Eu comentei com a diretora do Joaquin dois, três períodos até, mas eu não trocaria,
Silvado “estou formada,” ela disse “se tiver não. Não me arrependo.
alguma vaga aqui você vem para cá”. Por que
Entrevistadora: E atualmente você só dá
essa escola que eu entrei era escola modelo,
aulas de Português?
era escola padrão. A gente fazia entrevista e
eles admitiam a gente. Entrevistada: Eu estou concursada como
professora de Inglês e Português no Estado.
Entrevistadora: Então não era concurso?
Estou dando aula no EJA de inglês e no
Entrevistada: Não, era contratado. Eu fiquei médio de manhã Português.
lá acho que foi só seis meses. Logo em
Entrevistadora: Dar aulas das duas
seguida eu fui para o Silvado, aí no Silvado
disciplinas te agrada da mesma forma?
eu fiquei uns seis anos, sete. Depois, em 1998
eu fui para outra escola, aí ficava mudando
437

Entrevistada: Agrada. A Língua Portuguesa, Lapa mesmo. Mas eu não gostei muito dessas
os alunos não têm uma receptividade assim, escolas. Elas se prendem muito a livro. Eles
quanto quando a gente leciona o inglês. prendem a livro e cobram o livro. A gente
Quando eu pego uma turma que é Português- tem que pegar o livro e fazer o aluno, de
inglês, eles falam que é totalmente diferente a qualquer jeito...e eu não gosto de trabalhar
aula de inglês. Diz que eles se envolvem assim, presa a um livro.
mais. Não sei. Eles acham muito pesada a
Entrevistadora: E como você gosta de
carga de Língua Portuguesa. É desgastante
trabalhar?
para eles e até há uma empatia para o lado da
professora de Língua Portuguesa e para a Entrevistada: Com atividades que eu monto,
professora de Matemática também, eles eu trabalho as minhas aulas em cima de um
falam isso. São várias aulas, são cinco aulas contexto que fale da realidade do aluno
semanais então a gente entra com constância também.
com eles lá. Agora, inglês eles gostam. Eu Entrevistadora: é importante.
também me identifico com inglês porque eu
Entrevistada: Não ficar presa apostila, em
trago música, tenho um leque enorme. Eu
livro. Claro, não tem como não usar tudo,
também faço Cultura Inglesa.
mas eu gosto de estar flexibilizando e eles
Entrevistadora: Você faz o curso de inglês? não gostam muito disso. Eles querem que use
Entrevistada: Faço, faço Cultura Inglesa já o livro, então eu não me adaptei a nenhuma
faz um ano e meio. Comecei no ano passado, das duas escolas por causa disso. É difícil
na metade do ano, aí foi todo esse ano e ano porque pai e mãe não pagam barato nos
que vem mais o ano todo. livros, eles pagam caro. E com razão, não tiro
a razão deles, de querer que faça o livro. Mas
Entrevistadora: E você optou fazer o curso
não é muito bom ficar preso em um livro só.
para aprender mais?
Entrevistadora: A partir disso que você
Entrevistada: Eu já havia feito esse curso
acabou de falar, como você pensa e planeja
um ano. Mas o que aconteceu? Como eu fui
as aulas para o ensino médio, me refiro às
para a escola particular, aí já não havia
aulas que acompanhei?
horário porque o horário era a parte da
manhã. Então eu me dediquei à escola Entrevistada: Nossa, até hoje eu não sei
particular porque eu ganhava duas bolsas como porque eu tenho uma versatilidade,
para as minhas filhas. Aí eu fiquei lá um vem assim a aula. Eu acho que é tão, também
tempão. Eu fiquei lá acho que uns oito, nova vinte anos, como eu me identifico com essa
anos. Aí depois eu também fui estudar em área eu acho que as coisas vêm assim. Tanto
uma escola particular lá no Alto da Lapa, em que em 1998, é assim, sinceramente, tem
duas escolas, uma no Alto da Lapa e outra na anos que a gente está bem inspirado, então a
438

gente está bem inspirado porque como eu encontro um aluno triste, alguém assim, há
estou cansada, quando eu estava só com o um conflito na sala. Então, de repente aquela
Estado era muito bom porque aí eu montava matéria que a gente vai ver não vai ser tão
as aulas, me dedicava bem. Aí os alunos, eu necessária, tanto quanto o que a sala está
já chegava já, não precisava nem de lousa, pedindo naquele momento.
nem de nada, já falava. Tanto que eu
Entrevistadora: Resolver um conflito, uma
encontro alunos meus de tempos passados,
conversa.
que eles falam “nossa, professora, eu nunca
tive uma professora de Língua Portuguesa tão Entrevistada: Isso, resolver um conflito,
boa assim”. A gente acha que não está bom. uma conversa às vezes é mais importante.
Acompanhar eles, de repente, na parte de
Entrevistadora: A gente sempre tem uma
humanizar, sociabilizar, parar para conversar
autocrítica forte.
com eles, refletir. Uma vez, eu me lembro, eu
Entrevistada: Sempre tem uma crítica e eles estava no Silvado, um aluno colou um
falam “nossa, professora, muito bom”. Eu me absorvente na lousa e riscou com caneta
sinto, até em relação há uns dez anos atrás, eu vermelha. Então a gente parou. Eu falei assim
acredito que a gente vai se prendendo muito a “gente, vendo aqui esse absorvente, alguém
coisas que eles vão cobrando. Aí vai sabe aqui o que é ciclo menstrual? “ Sexta
deixando um pouquinho da essência que a série. Ai a gente começou a falar e o outro
gente trabalha. Mas, assim, as aulas que eu professor veio e acompanhou também. Foi
monto, elas vêm, por exemplo, como eu sou uma turma muito bacana lá na escola porque
módulo na prefeitura, eu dou português na a gente tinha essa facilidade, essa
prefeitura, e eu preciso entrar em outras interdisciplinaridade, de trabalhar todo
salas: de geografia, de ciências. Então eu dou mundo junto. Então a escola, eles trabalham
uma olhadinha e tenho essa flexibilidade que por áreas. Educação física, artes, língua
já é do meu instinto. Então eu consigo portuguesa, língua inglesa. A gente fica todos
desenvolver. A professora deixou uma em uma área: códigos de linguagem. Aí
matéria de Geografia, eu olho o caderno do matemática, não é que e separado, depois eles
aluno e já consigo pegar, acompanhar, completam.
desenvolver aquilo. Então, Ciências, dou um
Entrevistadora: Em qual escola?
texto, de Língua Portuguesa, dou um texto
voltado para ciências com interpretação de Entrevistada: No Silvado.
texto para esclarecer para eles. Então eu Entrevistadora: Se compararmos o Silvado
tenho, eu chego numa sala, assim, às vezes eu com a Escola 1, qual é a diferença nessa
montei aquela aula e às vezes eu não dou questão?
aquela aula. Eu já pego e falo assim, “hoje eu
vou fazer isso”. Por que às vezes que
439

Entrevistada: A Escola 1 já é um outro Entrevistadora: Você mencionou antes que


contexto, mas também lá é muito bom porque seu jeito de dar aulas é mais solto, porém
há uma casualidade com os professores. Os atualmente é muito difícil trabalhar assim por
professores se completam, a gente um conta das cobranças. De onde vêm essas
encoraja o outro e lá eles têm a, como se fala, cobranças?
o trabalho de Iniciação Científica. Não tem
Entrevistada: A cobrança vem dentro dos
nada a ver com a minha área só que nós, o
Parâmetros Curriculares Nacionais então eles
aluno está livre de escolher um tema. Se ele
mandam aquele montante em cima dos, do
escolhe, a gente, por obrigação, tem que
que é necessário para o aluno. Então a gente
saber sobre aquele tema, como leucemia.
tem que condensar isso, trabalhar isso para
Toda área de medicina e essas coisas. A
não prejudicar, de repente ele vai fazer essas
gente vai atrás para ajudar o aluno. Então a
provas ENEM, a prova do Saresp, vai ser
gente acaba aprendendo todo mundo junto.
cobrado isso então a gente tem que deixar o
Entrevistadora: Mas como funciona isso? aluno flexível para todo tipo de necessidade
Você tem que orientar uma quantidade de que ele tiver.
alunos?
Entrevistadora: E nesse ano, o que você
Entrevistada: Isso. Eu tenho que orientar a trabalhou com o 1º ano, quais foram os
sala inteira. assuntos?

Entrevistadora: Qual sala você pegou? Entrevistada: trabalhei figuras de linguagem


para trabalhar com eles interpretação de
Entrevistada: o 1º A. Só que assim, no 1ºA
textos, trabalhei literatura, seguindo toda
era uma sala um pouco apática. Eles tinham
aquela, a literatura, se você observar depois
já umas certas manias então, infelizmente, eu
nesse livro aqui. [abre o livro e vai falando].
consegui atingir só três grupos. Eram cinco
Aí você vai contemplando. Eu comecei por
grupos então três grupos apresentaram e o
Quinhentismo, falei também dos trovadores,
restante não. Até o professor falou para a
expliquei para eles porquê Quinhentismo,
gente, o professor da prática de Língua
trabalhei a gramática dentro do contexto,
Portuguesa, ele falou que não é para a gente
dentro desses textos, que é de interpretação
ficar frustrado quando a gente não atingir
dentro da literatura eu puxava a gramática.
100%. Para dar-se por satisfeito atingindo
60% da sala, que isso é assim mesmo. Entrevistadora: E como é que você
trabalhava, por exemplo, o Quinhentismo ou
Entrevistadora: No seu curso de graduação?
o trovadorismo, que você disse que
Entrevistada: Isso, ele falou isso para mim. trabalhou?
Ele comentou assim com a gente.
Entrevistada: Selecionava um dos textos,
falava das características das trovas e dos
440

trovadores, e aí eu trabalhava o texto para Entrevistada: Esse livro foi selecionado pela
eles entenderem por que chegou naquele escola, a escoa escolheu esse livro para
contexto. Por que trovadorismo? Por que essa trabalhar.
palavra? O que tem a ver? Então, dentro do
Entrevistadora: Você participou da seleção?
texto, puxava toda a história e as ideias e
através do texto já puxava a gramática Entrevistada: Não participei porque ela foi
também. O Quinhentismo também desse no começo do ano passado. Quando eu
mesmo seguimento. cheguei nessa escola, eu cheguei em agosto.

Entrevistadora: Nas aulas que eu Entrevistadora: Você gosta de trabalhar


acompanhei vocês estavam vendo o Barroco. com ele?
Vocês não trabalharam com o Arcadismo? Entrevistada: Eu gosto de trabalhar com
[a professora abre o livro no capítulo esse e com um outro também lá que é da
dedicado ao Barroco] editora... não lembro. Eu não ficava só nesse.

Entrevistada: Não, não deu tempo de Entrevistadora: Você ficava nesse e no


trabalhar. outro?

Entrevistadora: Como se dava o uso desse Entrevistada: Isso, nesse, no outro e na


livro? apostila.

Entrevistada: Os alunos não receberam esse Entrevistadora: Você tinha que usar a
livro. O que aconteceu? A escola só tinha apostila ou você a usava quando achava mais
uma sala de aula, a professora já pegou e conveniente?
centralizou tudo para ela lá os livros, ela Entrevistada: Não, com esse material
pegou os livros, uns 30, uma quantidade mandando pelo estado a gente utiliza. A
correta da sala e deu para os alunos. Os gente segue também.
alunos levaram para casa e eu fiquei com
Entrevistadora: você usou todo o livro?
uma pequena quantidade de 28 livros. Então
eu trabalhava em grupos e eu ficava com Entrevistada: Não. Eu usei alguns textos aí,
esses livros comigo. Aí ela ia na minha sala e não usei todo não. Tanto do volume 1 quanto
pegava os livros porque os alunos dela do volume 2.
levavam para casa e esqueciam, ai foram
Entrevistadora: o que você acha desse
desaparecendo. Ficaram só 15.
material?
Entrevistadora: E como esse livro foi
Entrevistada: É um material interessante,
selecionado?
não deixa de ser um material necessário. Ele
condensa bastante coisa que tem dentro do
currículo do 1º médio.
441

Entrevistadora: E funciona com os alunos? Entrevistadora: Ela não está pronta.

Entrevistada: Olha, se o aluno teve um Entrevistada: Mas ela é atraente.


acompanhamento do 9º ano tranquilo ele
Entrevistadora: Com relação ao trabalho
acompanha esse aí, mas há algumas
desse ano, vocês chegaram a ler algum livro?
dificuldades.
Entrevistada: Lemos. Lemos O Diário de
Entrevistadora: Os alunos têm dificuldade
Anne Frank. Eles gostaram.
com esse livro?
Entrevistadora: Como foi esse trabalho?
Entrevistada: Tem, eles têm dificuldade. Eu
tenho que estar junto com eles. A gente tem Entrevistada: o trabalho é assim, nós
que estar lendo e respondendo junto. Se eu recebemos os livros.
explicar e pedir para eles fazerem em casa Entrevistadora: Cada aluno recebe um kit,
eles não... um conjunto de livros.
Entrevistadora: Por quê? Entrevistada: Isso. Havia três, só que com
Entrevistada: Aspectos de gramática, esse negócio de copa do mundo, sabe,
interpretação de textos. Mas com a gente vai. eleições, dificultou, atrapalhou totalmente
porque eu ia trabalhar os três livros. Então
Entrevistadora: Aí você tem que fazer a
eles leram o livro e eu dei uma prova em
seleção.
cima da interpretação do livro.
Entrevistada: sim.
Entrevistadora: Como foi essa leitura? Na
Entrevistadora: Você faz essa seleção escola ou em casa?
sozinha ou com os outros professores de
Entrevistada: Na casa. Alguns leram em
Língua Portuguesa?
sala quando era aula assim, atípica, quando
Entrevistada: Como a professora dava aula terminavam a atividade perguntava se
só no 1ºE e eu do a até o d, a gente poderiam ler. Mas foram poucos que leram
conversava a respeito. Mas só que assim, tem porque eles perderam os livros, deixaram o
coisa, tem uma música que é pedida aqui. kit na escola, esqueceram.
Eles têm que mandar o CD, só que o CD não
Entrevistadora: Por que você acha que isso
estava lá. Então tem coisa que emperra.
acontece?
Então a gente tem que ir atrás. Tem a parte
aqui de uma, de um texto que tem que ler Entrevistada: Porque eles não têm a cultura
para o aluno, só que você tem que buscar de leitura. A família não tem a cultura de
esse texto e imprimir ele. Não está junto, leitura. A maioria dos brasileiros é muito
entendeu? A apostila, você tem que montar a visual, gosta muito de televisão então não
aula em cima dela. Aí é tranquilo. está incutido esse negócio de leitura. Na
442

minha casa está porque como eu gosto de ler, qual parte eles mais gostavam, se eles fossem
minhas filhas acho que me acompanharam e o personagem, como é que se fala, que está
também meus irmãos deram livros infantis agindo em favor das pessoas no livro o que
quando elas eram crianças, elas já têm essa eles fariam. Coisas assim, mais assim,
prática. A maioria dos alunos não têm. Mas voltadas para eles.
não deixa de fazer crescer essa vontade neles.
Entrevistadora: Para eles se posicionarem?
Entrevistadora: Como você vê o trabalho do
Entrevistada: Se posicionarem, uma crítica
professor com relação à leitura?
em cima. Não fazer, assim, uma coisa de
Entrevistada: eles são receptivos à leitura. decorar a parte “Ah, capítulo 1 fala sobre..”.
Se eu leio. O que eu faço? Eu pego o livro e Essas coisas não.
leio em sala de aula”.Ah, gente, vamos fazer
Entrevistadora: Você contou que ao longo
uma prévia do..”. Eu instigo a leitura, aí uma
do ano trabalhou algumas escolas literárias.
vez também eu li em sala de aula, acho que
Os alunos liam textos relacionadas à elas?
foi o 1ºB, eles disseram “Ah, professora, eu
gostei”. A maioria que leu foi do 1ºB. Eles Entrevistada: Eles liam em sala. Eles
leram bastante. gostavam”.Professora, posso ler? “ Eles eram
voluntários, gostavam de ler sim. Eles liam
Entrevistadora: Alguns leram o D.Quixote,
os textos que estavam no livro didático ou os
não leram?
livros mesmo dos autores?
Entrevistada: Leram, leram o D.Quixote.
Entrevistadora: do livro didático.
Entrevistadora: Era uma adaptação ou era o
Entrevistada: Eles eram receptivos, gostam
texto integral?
dessas atividades de leitura?
Entrevistada: Era uma adaptação, mas ele
Entrevistadora: Gostavam. A maioria era
está mais voltado para o texto original, eu li e
receptiva.
ele está mais voltado para o texto integral.
Eles acharam confuso”.Ai, professora, eu não Entrevistada: Eles costumavam fazer as
gostei”. leituras e responder algumas questões?

Entrevistadora: E eles faziam a leitura e Entrevistadora: Eu faço assim, eu faço a


depois tinha uma prova. leitura na sala e eu já fiz curso de teatro, aí eu
interpreto. Eu peço para alguém ler comigo e
Entrevistada: Isso.
aí eu interpreto o barulho, a sonoplastia, tudo
Entrevistadora: O que você costuma pedir do texto. Eles gostam. Eu tenho essa
nessa prova com relação à leitura? facilidade com o ensino médio, eu chamo
eles para perto de mim. Tem essa afinidade.
Entrevistada: Eu costumo perguntar com
qual personagem eles se identificaram, de
443

Entrevistadora: Você falou que você acha aquele, a saga Crepúsculo. Eles leem, eles
que os alunos não têm essa prática de leitura gostam.
em casa e isso dificulta na aula. Como você
Entrevistadora: E você já pensou em incluir
vê os alunos com relação à leitura, à escrita?
essas leituras na escola? Você se aproxima
Entrevistada: Eles estão inseridos em um desse universo?
contexto de informatização. Eles gostam
Entrevistada: Ah, eu não... como se fal? Eu
muito de celular, whatsapp, essas coisas. Eles
deixo eles fazerem uma leitura individual
estão mais, assim, as informações para eles
deles, mas não chamo eles para falar a
chegam muito rápido. Às vezes eles não têm
respeito. Mas aí a escola tem a sala de leitura,
esse discernimento de pegar um livro e ler,
essa que eu estou, Escola 1, e eu comentei
relaxar. Eles não têm esse costume de
com a diretora que tem muitos filmes bons e
relaxar. Aí eu já fiz até uma análise, porque
também livros, aí ela conseguiu trazer alguns
quando eu estava na sala de aula agitada,
filmes, quer dizer, alguns livros em cima dos
assim, pego uma coisa, pego outra, não sei o
filmes que estavam passando.
quê, aí eles vão fazendo. Aí eu falo assim
“Vamos fazer uma leitura silenciosa”. Aí eu Entrevistadora: Eu conversei com a
pego e dou como exemplo. Pego o livro e Adriana, aquela aluna que trabalha na sala de
faço a leitura silenciosa, aí eles vão leitura, e ela disse que existem muitos livros
acalmando. Eu tô fazendo essa prática. dos quais os alunos gostam.

Entrevistadora: É seu maior desafio, fazer Entrevistada: Tem uma fila gigante para
eles saírem desse contexto para começar a eles lerem.
pensar na leitura. Entrevistadora: Você costuma ler?
Entrevistada: Isso. Entrevistada: Olha, ultimamente, de uns
Entrevistadora: Você acha que eles leem os dois anos para cá, assim eu não tenho feito
livros que eles gostam, mesmo fora da uma leitura completa de um texto, quer dizer,
escola? de um livro. Eu pego fragmentos, guardo os
fragmentos. Pego coisas assim, por exemplo,
Entrevistada: Leem, leem sim. Eu vejo que
no tablete, alguma parte, daí eu leio, mas um
a maioria lê livros que não são aqueles que
livro inteiro eu não tive mais tempo de ler e
estão na escola, mas leem livros que eles
eu gosto muito de leitura. Só que eu sou
gostam, se identificam, algum filme que
assim, como se diz, eu guardo, minha
gostam. Escrito nas estrelas eles leram. [se
memória, graças à Deus, é boa. Então eu leio
refere ao nome errado do livro] Então quando
muita coisa e essas leituras que eu já fiz
tem alguma coisa assim, a mídia ajuda muito.
anteriormente, elas me ajudam hoje em dia.
Quando a mídia fica mostrando algo que está
na moda eles seguem. Harry Potter, ou Entrevistadora: Quais leituras você fez?
444

Entrevistada: De literatura dos grandes leitura completa. São textos que, por
autores, Machado de Assis, Raul Pompéia, exemplo, acabei de fazer faculdade de
então toda essa, como se fala, dentro do que Pedagogia, então tem textos lá a respeito de
eu vou ensinar, eu sempre estou dando uma Educação Infantil, textos técnicos.
lida nos livros, nos grandes autores.
Entrevistadora: Você lê bastante desses
Entrevistadora: Você tem esses livros na textos?
sua casa? Você dá uma olhada?
Entrevistada: Sim, mais textos técnicos.
Entrevistada: Isso, eu dou uma olhada, mas
Entrevistadora: E você gosta de ver tv, ir ao
eu não tenho aquele tempo como antes.
cinema, ao teatro, você faz essas coisas?
Entrevistadora: Quando você diz antes você
Entrevistada: Faço, eu adoro. Teatro eu fui a
se refere à qual período?
um musical no último Road rana, que foi no
Entrevistada: Quando eu estava na teatro Bradesco no Bourboun. Cinema, eu
graduação, quando eu comecei a dar aulas. estava querendo assistir aquele Interestelar.
De uns dez anos para cá acho que ficou meio São três horas de duração. Eu estou até com
fragmentada a leitura pela falta de tempo, os convites lá porque eu queria assistir hoje,
mas não que isso me deixe menos sabedora mas o meu marido, ele está de férias, ele teve
ou menos intuitiva para incentivá-los. Mas uns contratempos e não pode ir. Eu também
em casa eu ganho muitos livros. Ganho livros estou finalizando a prefeitura e teve reunião
porque a gente recebe kits também. Esse O também. Ah, eu quero ver aquela exposição
Diário de Anne Frank eu já tinha lido, voltei que está tendo na Pinacoteca.
a ler. O D.Casmurro eu também li.
Entrevistadora: Do Rom Muek.
Entrevistadora: Esse é o kit desse ano?
Entrevistada: Deve ser muito legal. Muito
Entrevistada: Desse ano. Eu voltei a ler, belo, muito interessante. Tanto que uma
entendeu? O que a gente é contemplado de amiga minha que estava lá tirou uma foto, aí
livros eu leio os livros, aquele livro que a mandou para não sei quem e o outro
gente vai usar aquele ano. comentou “Nossa, ela falou que estava no
centro e já está na praia”. porque saiu a foto
Entrevistadora: E com relação aos
do casal que está na praia.
fragmentos, àquilo que você tem no seu
tablet, o que você costuma ler? Entrevistadora: Entendi.

Entrevistada: Esses fragmentos são notícias Entrevista com a Professora Valquíria


do dia a dia, coisas que me interessam 31/03/2016
voltadas para educação. Revistas de
educação. Não são, assim, livros com uma
445

Entrevistadora: Então o que eu fiquei de Entrevistada: É sim, eu até quando estava


perguntar, que foi o que eu perguntei da namorando com o Adriano, a minha mãe
última vez, é porque a 1ª entrevista que eu estava, essa casa aqui que ela mora agora,
fiz, nós falamos bastante sobre o trabalho, estava alugada, então o que a gente fez? Eu e
sobre as aulas e tal e ficou faltando um meu marido reformamos na época, para
pouco, de minha parte, eu ter perguntado casar, aí a gente morou lá 8 anos, depois
mais sobre a sua trajetória pessoal, origem fomos para a Freguesia. Mas a minha
familiar, foi o que a gente conversou um infância foi toda ali e depois a minha mãe,
pouco. depois ela mudou para a casa do meu tio, que
é do lado que eles mudaram para Brasília, aí
Entrevistada: Entendi.
minha mãe mudou para lá e meu tio falou, ah,
Entrevistadora: Então eu queria começar muda para cá porque a casa é maior, aí
retomando um pouquinho, que você contasse depois minha mãe voltou para casa, depois
onde você passou a tua infância, sobre sua que a gente saiu de lá aí meu tio vendeu a
família. casa dele, aí meus pais moram no mesmo
lugar onde eu passei a minha infância.
Entrevistada: Então, a minha infância eu
passei toda ali na Professor Jorge Levi, que é Entrevistadora: E você tem quantos irmãos?
ali perto do Dia, sabe o mercado Dia?
Entrevistada: Eu tenho três.
Entrevistadora: Sei sim.
Entrevistadora: Com você?
Entrevistada: Então, passei lá, a minha
Entrevistada: É, não, quatro comigo.
mãe diz que eu vim com 2 anos da Freguesia
do Ó, que eles moravam na Freguesia, a Entrevistadora: E você é a filha mais nova
princípio eles moravam lá de aluguel e aí eles ou a do meio?
estavam querendo até comprar uma casa em
Entrevistada: Eu sou a segunda. Tem o
Jaçanã porque o meu pai tinha amigos em
Marcos que é dois anos mais velho que eu,
comum em Jaçanã. Acontece que o irmão do
depois vem eu, depois vem o Maurício e
meu pai falou assim: está tendo um
depois vem o Mauro. O Marcos trabalha na
loteamento em conta ali em Pirituba, a gente
SPTrans já há uns, deixa eu ver, nós
vai dar uma olhadinha, aí meu pai foi lá e
entramos lá em 89, que eu trabalhei na
eles compraram.
SPTrans, então de 89, aí eu saí em 95 e o
Entrevistadora: Era terreno na época? Marcos continua lá desde 89.
Entrevistada:Terreno, aí eles compraram o Entrevistadora: Entendi.
terreno um do lado do outro. Construíram e aí
Entrevistada: Trabalha lá porque meu pai
eu passei a minha infância toda ali, vi tudo
trabalhou 32 anos na SPTrans.
progredir, colocando esgoto, os meus irmãos,
a gente brincando na terra. E até hoje o Entrevistadora: Seu pai era, não sei se ele já
terreno lá da minha mãe, o meu pai que é falecido.
pegou e construiu, o terreno é bem comprido,
né? Bem mais comprido que esse terreno Entrevistada: Não, meu pai é vivo.
aqui. Então o meu pai construiu no fundo do Entrevistadora: Ah, graças a Deus. Ele
terreno para poder deixar a frente toda livre trabalhou com o quê?
para que se a gente quisesse construir, né?
Então até hoje lá tem, o terreno está livre. Entrevistada: Ele trabalhava na parte
administrativa da SPTrans.
Entrevistadora: Ah, é?
Entrevistadora: Ah, então ele é funcionário
Entrevistada: É. administrativo?
Entrevistadora: E ainda é de vocês lá? Entrevistada: Ele era, é.
446

Entrevistadora: E ele sempre trabalhou com Entrevistada: Ali num escritório, trabalha na
isso. parte de segurança do trabalho e o meu irmão
caçula trabalha num banco.
Entrevistada: Sempre trabalhou, depois ele
aposentou com 48 anos com aposentadoria Entrevistadora: É esse que...
especial e aí ele ficou trabalhando com
Entrevistada: Isso, é o dono aqui da casa
imposto de Renda.
do lado.
Entrevistadora: Ah, ele é contador?
Entrevistadora: (risos)
Entrevistada: É contador, ele fazia toda a
Entrevistada: Ele trabalha num banco,
parte de contabilidade lá do bairro e depois
trabalha num banco lá em Osasco.
ele fundou a Sociedade Amigos do Bairro.
Entrevistadora: E a sua mãe fazia o
Entrevistadora: É, eu lembro que na última
quê?
entrevista você falou sobre que seu pai era
uma pessoa assim bem proeminente no Entrevistada: A minha mãe é do lar.
bairro, não é?
Entrevistadora: Ah, ela é sempre dona de
Entrevistada: Isso, é, então chamavam ele casa.
até de presidente.
Entrevistada: Sempre dona de casa, sempre
Entrevistadora : (risos) cuidou da gente.
Entrevistada: É presidente, é prefeito, cada Entrevistadora: É?
um assim, então a gente ficou muito assim
conhecido no bairro, tanto que o pessoal Entrevistada: É.
pergunta muito dele porque agora ele está Entrevistadora: Vocês davam muito
com Parkinson e Alzheimer, então ele está trabalho?
acamado em casa.
Entrevistada: Não, até que não, assim, a
Entrevistadora: As pessoas querem saber gente estudou no Silvado, o Marcos, nós
dele. quatro, só que eu queria fazer técnico
Entrevistada: É, querem saber, então eu secretariado, então eu fui trabalhar com 15
assim, passei minha infância toda mesmo anos lá em cima mesmo no comércio, aquele
aqui no bairro e os meus irmãos, o mais comércio lá em cima do que (0:06:22).
velho trabalha na SPTrans como eu falei, eu Entrevistadora: Sei.
trabalhei na SPTrans, trabalhei nove anos,
depois eu saí para lecionar em 95, saí em Entrevistada: Então trabalhei ali para pagar
janeiro e já em fevereiro comecei a lecionar. o técnico, secretariado no Padre Giordano.

Entrevistadora: Ai que bom. Entrevistadora: Mas por quê? Seu pai


queria que você fosse trabalhar ou não, você
Entrevistada: É. E o meu irmão, o terceiro, que quis.
o Maurício também trabalhou na SPTrans,
trabalhou na parte de mecânico, ele Entrevistada: Não, eu que quis, meu pai
trabalhava de torneiro mecânico, ele fez não queria que eu trabalhasse, aí até eu fui
SENAI tudo lá dentro, aí ele se formou, trabalhar até escondida dele. Ele, ah, que não
agora ele saiu, acho que no mesmo ano que sei o que, aí eu queria uma coisa melhor para
eu saí ele saiu também e aí ele fez engenharia mim, eu queria seguir carreira de secretária,
mecatrônica, trabalhou no Play Center e até que eu consegui mesmo na SPTrans.
depois aí ele saiu de lá, agora ele trabalhando
Entrevistadora: Isso. Você estudou
onde era a Siemens.
até o ensino, na metade do ensino médio você
Entrevistadora: Ah, sei. quis fazer um médio técnico, foi isso?
447

Entrevistada: Isso, isso, aí eu fiz no Padre Entrevistada: Eu me lembro que era


Giordano técnico de secretariado, comecei a amarela, toda bordada, linda.
fazer contabilidade, aí não gostei.
Entrevistadora: Ela pintava.
Entrevistadora: Entendi. E mas como era
Entrevistada: Ela pintava e depois
você assim aluna. Se você quiser olhar o seu
finalizava com paetê.
celular não tem problema.
Entrevistadora: Hum, que lindo, uma coisa
Entrevistada: Não, eu vou tirar o coiso.
bem elaborada.
Aluna, era tranquila, sossegada, eu prestava
atenção na aula, eu não era muito assim de Entrevistada: Eu acho que foi aí que eu
ficar estudando em casa, mas eu prestava comecei a ficar gostando de paetê. (risos)
atenção na aula.
Entrevistadora: Por causa dela, né? (risos)
Entrevistadora: Aí você ia bem depois.
Entrevistada: Adoro paetê.
Entrevistada: Conseguia, assim,
principalmente na parte que, ah, está falando Entrevistadora: É?
aqui a vizinha. Entrevistada: É.
Entrevistadora: Ah, que bom. Entrevistadora: E você falou que o seu pai
Entrevistada: Ah, tá. Deixa eu falar com era um pouco conhecido mesmo na escola,
ela aqui. né?

Entrevistadora: Tá. Entrevistada: Nossa, meu pai era da, como


que chama que fala de escola quando tem.
Entrevistada: Se eu era tranquila na escola.
Entrevistadora: APM?
Entrevistadora: É, como é que você era na
escola. Entrevistada: APM, meu pai era
responsável para assinar os cheques da APM.
Entrevistada: Ah, tranquila, eu assim, a
parte de..., como que se fala, exatas era um Entrevistadora:Nossa, responsabilidade
pouquinho assim complicado porque tinha porque ele era contador, né?
um professor muito chato, o professor de Entrevistada: Isso, aí ele, como que se diz,
matemática, Professor Hélio, um japonês, ai, participava das reuniões não de pais e
pegava muito no pé, mas as outras coisas mestres, quem participava era minha mãe,
assim eu era tranquila, eu ia muito bem em agora ele ia lá para resolver esses negócios,
educação física, em artes, em todas as eu me lembro até que a Beth, eu nem sabia,
matérias lá, em ciências eu gostava, história, que eu fui trabalhar lá. Quando eu comecei a
geografia. Adorava a professora de inglês, a trabalhar na área da educação eu comecei a
Professora Emiko, ela fazia tanta camiseta, trabalhar no Altenfelder lá na Vila Jaguara,
inclusive fez até uma camiseta para mim de que era uma escola padrão na época que se
presente. falava que tinha que fazer entrevista no
Entrevistadora: Ah, é? Estado, aí depois eu falei, ah, eu quero tanto
trabalhar aqui, eu falei para a Beth, aí em
Entrevistada: É. (risos) junho a Beth já me chamou para vir para cá.
Entrevistadora: Que fofa. Entrevistadora: Quem é a Beth?
Entrevistada: Fofinha, né? Entrevistada: A Beth é diretora do Silvado.
Entrevistadora: Muito. Entrevistadora: Ah, tá, seu pai conhecia ela
e ela te conhecia.
448

Entrevistada: Conhecia, isso, então ela Entrevistadora: Ah, então ela era bem assim
falou, olha, tem aula aqui. aberta, né?
Entrevistadora: Ah, que ótimo. Entrevistada: A escola em si tinha uns
professores muito bons no Silvado, tudo
Entrevistada: Aí fiquei pertinho de casa.
quanto era, assim, geografia, inglês,
Entrevistadora: Porque na verdade você fez português, matemática, educação física, tudo
o ensino fundamental e depois você fez o professores bons, tinha até filosofia.
técnico em secretariado.
Entrevistadora: Nossa!
Entrevistada: Isso.
Entrevistada: Eu me lembro até do
Entrevistadora: Só depois que você foi professor Jacobs, nossa, muito bom.
fazer curso de letras, né?
Entrevistadora: E porque eles eram
Entrevistada: Ah, foi. Eu peguei, deixa eu bons assim, quais qualidades eles tinham?
ver, quando terminei o ensino médio eu
Entrevistada: Nossa, eles se dedicavam
fiquei parada 1 ano, depois aí eu fui fazer, eu
muito mesmo, eles tinham, como se diz, a
fiz várias faculdades, o vestibular. Na Cásper
gente percebia que eles faziam aquilo por
Líbero, eu queria fazer até jornalismo na
prazer e por amor mesmo.
Cásper Líbero, né, até passei no vestibular,
mas aí eu estava namorando na época do meu Entrevistadora: Aquilo o quê?
marido, aí ele falou, ah, vamos fazer no
Entrevistada: De ser mestre, né.
Oswaldo Cruz, eu vou fazer administração, aí
você passou em letras, faz letras e aí fica tudo Entrevistadora: Hum, hum.
perto, aí eu fiz letras, aí me identifiquei com
o curso, gosto. Entrevistada: Ser professor, né, então acho
que isso que me inspirou e muita gente da
Entrevistadora: E você se identificou logo época também foi inspirado nisso.
de cara ou como foi?
Entrevistadora: Você acha?
Entrevistada: Me identifiquei logo de cara,
gostei, vi que era aquilo que eu queria. Entrevistada: Nossa, um monte de colegas
meu são educação física, português,
Entrevistadora: Por quê? geografia, tem vários professores lá. Dessa
época que a gente estudou no Silvado,
Entrevistada: Porque gosto de literatura,
mesmo eu indo para o técnico particular,
me envolvi assim com a língua portuguesa, a
mesmo assim a turma lá, todo mundo
professora da 8ª série do Silvado, a Cibele,
procurou a área da educação, aqueles
ela inspirou a gostar de português e eu fazia
professores da época muito bons.
teatro, a gente fazia um monte de coisa,
nossa, tudo o que a professora propunha para Entrevistadora: Que legal e daí eles
agente fazer, ah, educação física, vamos fazer acabaram influenciando, né?
7 de setembro, formação da bandeira, tem
que tingir as camisetas, a gente ia lá e fazia. Entrevistada: Com certeza.
Ah, vamos fazer o pequeno príncipe, tem que Entrevistadora: Seu pai então tem formação
fazer isso e não sei o que, aí a gente ia lá e universitária ou informação técnica?
elaborava.
Entrevistada: Meu pai não concluiu o
Entrevistadora: Essa professora de ensino médio.
português.
Entrevistadora: Ah, tá.
Entrevistada: Isso.
Entrevistada: Ele foi só até a 8ª série.
449

Entrevistadora: Ah, entendi. Entrevistadora: E seus irmãos, eles


também gostavam, vocês acabavam trocando,
Entrevistada: O fundamental.
alguma coisa assim?
Entrevistadora: Ele teve um conhecimento
Entrevistada: Os meus irmãos eu não
prático do trabalho, né?
observava muito leitura deles não porque eles
Entrevistada: Nossa, quando a gente tinha procuraram mais uma área de exatas, né.
reuniões lá na escola e tinha alguma dúvida,
Entrevistadora: Hum, hum.
alguma coisa assim, ah, será que, aí eu ligava
para ele e ele sempre tinha toda a informação, Entrevistada: Então eles não, assim, pelo
toda informação. que eu convivia assim com eles não, acho
que pelo fato de eu ser mais velha não
Entrevistadora: Que maravilha.
observava muito isso do meus irmãos não,
Entrevistada: Nossa, é assim, foi uma mas quando eles estavam estudando eu me
formação de vida, né, de conhecimento, de lembro que tinha, você tem aquele livro ali e
ler, muita leitura, o meu pai sempre teve tal? Eles pegavam o livro, pegavam
muita leitura. emprestado também, pedia emprestado, né.

Entrevistadora: Ah, é, o que ele lia, você se Entrevistadora: Hum, hum.


lembra?
Entrevistada: E a gente tinha a facilidade
Entrevistada: Jornais, livros, tudo quanto é do sebo, né, de comprar em sebo, né.
coisa que, Capitães de Areia, eu ficava
Entrevistadora: Ah, é verdade.
observando ele ler Capitães de Areia, eu vi
qual mais que ele já leu, ele falava muito do Entrevistada: Você não ficava comprando
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, aí muito coisa nova, eu só tinha dificuldade de
tinha essas coisas lá, tinham muitos clássicos ler quando era muito velho porque eu tinha
assim, muitos livros clássicos lá, sempre na renite, eu era muito atacada da renite.
estante lá para a gente.
Entrevistadora: Mas você e seu pai iam ao
Entrevistadora: Na sua casa? sebo, é isso?
Entrevistada: Na minha casa. Entrevistada: O meu pai que ia, às vezes a
minha mãe ia para nós comprar.
Entrevistadora: Que ele comprava ou
ganhava? Entrevistadora: Ah, quando tinha uma
demanda da escola.
Entrevistada: Ele comprava, comprava,
tinha coleção assim de jornaleiros, né. Entrevistada: Isso, isso. Aí na escola
também tinha, às vezes tinha doação, alguma
Entrevistadora: Ah, sei.
coisa, a gente pegava lá, mas era difícil ter
Entrevistada: Aí ele fazia aquelas coleções disponível na escola.
sempre, né, sempre tinha, ah, tem clássico aí,
Entrevistadora: Era mais mesmo o que os
O Cortiço, Machado de Assis que é o
seus pais compravam.
Memórias Póstumas de Brás Cubas, tinha
todos esses livros aí clássicos. Tinha O Caso Entrevistada: Isso, era mais o que a minha
dos Dez Negrinhos que era de Sidney mãe ia atrás, mais a minha mãe, assim, meu
Sheldon, muito bom, tinha esse aí, eu me pai comprava essas coleções assim, mas
lembro que eu li. nunca calhava de ser a mesma obra que esta
lá disponível, então minha mãe ia atrás para a
Entrevistadora: Ah, você pegava os livros
gente.
dele para ler também?
Entrevistada: Isso, pegava lá muitos.
450

Entrevistadora: E onde, como é que era, Entrevistadora: E da convivência com a sua


esses livros ficavam em que lugar na sua mãe assim nessa formação que você teve, o
casa? que você acha que você guarda assim de tipo
uma certa contribuição.
Entrevistada: Fica na sala, na estante, uma
estantezinha lá antiga, tem até hoje. Entrevistada: Ai, a minha mãe é muito
musical, muito assim, as histórias dela é
Entrevistadora: É?
muito rica porque ele teve uma infância
Entrevistada: É, está lá, é a mesma estante, muito assim privilegiada na natureza, no
porque essas coisas antigas são fortes, né? meio do mato porque ela é da Bahia, meus
pais são baianos e meus pais são primos de 1º
Entrevistadora: São. Então você lembra de grau.
ter uma infância, uma adolescência assim que
tinha bastante livro. Entrevistadora: Ah, é?

Entrevistada: Tinha e tinha árvore frutífera Entrevistada: É.


em casa, tinha três pés de ameixa, um pé de
Entrevistadora: Então, só que meu pai antes
goiaba e um pé de maçã e tinha banana prata,
de casar, de fazer as coisas ele fez exame de
muita banana prata.
sangue para ver se não tinha problema, né,
Entrevistadora: Nossa, que delícia. assim de filhos, né, e a minha mãe, nossa, eu
me lembro que ela cantava muito, ela fazia
Entrevistada: Nossa, muita, eu acho que muito bolo, fazia muita coisa a gente
recentemente, quando a gente reformou, não, diferente assim, inventava muita coisa em
ainda tinha, a gente morava lá, quando eu casa, então eu ficava muito no quintal e
morei com o meu marido acho que tinha quando era época de fruta eu não queria nem
ainda, aí a minha mãe resolveu fazer um jantar, eu me lembro que eu ficava muito,
cômodo a mais lá, aí conseguiu pegar e matar pensei que era a Amália que estava
a tadinha do pé de bananeira, né, mas era pé chegando, então aí ela era muito musical,
de banana prata. cantava, ela escutava muita música, era
Entrevistadora: E essa memória do quintal, Caetano Veloso, Tom Jobim, Vinícius de
de estar com as árvores e tal é uma coisa que Moraes. Eu decorei muita coisa assim do
você guarda bastante? Vinícius através da minha mãe.

Entrevistada: Nossa, muito bom, dá um Entrevistadora: Ah, é?


livro ali imenso para escrever. Entrevistada: Que ela falava assim das
Entrevistadora: (risos) músicas, cantava e a gente cantava junto com
ela, Clara Nunes, era Gal Costa, ai, qual é
Entrevistada: Se a gente for pegar e aquela outra que é parente do Caetano,
registrar as memórias, né. aquela, a irmã do Caetano Veloso, esqueci o
nome dela agora.
Entrevistadora: É.
Entrevistadora: Maria Bethânia.
Entrevistada: Falando para a Camila,
Camila, você devia pegar e escrever. Entrevistada: Maria Bethânia, era o
Roberto Carlos, Erasmo Carlos, nossa, foi
Entrevistadora: Então você estava falando
uma infância muito rica de música e meu pai
as suas memórias de infância.
trazia coisa para ela escutar, fita, né, que era
Entrevistada: Isso. fita cassete e eu lembro muito que meu pai
fazia gravações, ficava gravando coisa para
Entrevistadora: As suas memórias ela.
familiares e que era uma vivência muito rica.
Entrevistadora: Ah, que legal.
Entrevistada: É.
451

Entrevistada: É. Entrevistada: É.
Entrevistadora: E quando você começou a Entrevistadora: O que te motivou a fazer
trabalhar, quando você começou a estudar essa transição de profissão?
mais longe e tal, você tinha o seu dinheiro,
Entrevistada: Ah, eu estava formada e aí
disso tudo o que você começou a comprar
tinha a minha filha, eu falei assim, acho que é
para você em termos de música, de livro,
melhor eu ser professora, trabalhar do lado de
assim, você comprava alguma, o que você
casa e ter um tempo mais para dedicar para a
começou a comprar quando você pode.
família.
Entrevistada: Ah, eu comprava música, eu
Entrevistadora: Ah, tá.
gostava do Elvis Presley, comprava discos,
né, porque e também disco do Bebeto, né, do Entrevistada: Né?
Paulo Barbosa que era lambada, né, a gente
tinha muito, meus primos na época tinha o Entrevistadora: E seu marido trabalhava
Rubens, a Janice, o Rui, a Edna, Djalma que com o quê na época?
eles foram morar vizinhos da gente, a minha Entrevistada: O Adriano trabalhava na,
mãe alugou a casa dela para essa minha tia, espera aí, ele trabalhava no banco, aí ele foi
nem alugava, emprestou, então a gente ficava mandado embora, aí na época quando a gente
lá muito assim, dançava, inventava umas casou ele estava desempregado, ele ficou
festinhas dentro de casa. desempregado porque saiu do banco, se
Entrevistadora: Que legal. desentendeu lá com um dos funcionários,
assim, o funcionário se desentendeu com ele,
Entrevistada: Era muito legal, então aí eu ele trabalhava no Mercantil, acabou saindo,
comecei assim, quando a gente começou a aí depois ele foi para outro banco, aí não deu
trabalhar a gente falava que ia fazer as certo, aí ele foi trabalhar no Free Shop.
compras, que eu ia ficar com a parte de
sobremesa, de frutas, então a gente fazia Entrevistadora: Ah, sei.
compra juntos, né, eu e meus irmãos, livros, Entrevistada: Ele trabalhou lá um tempão
coisas para ler para a faculdade, né. no Free Shop.
Entrevistadora: Hum, hum. Entrevistadora: Como vendedor?
Entrevistada: Então aí eu comecei a Entrevistada: Como vendedor no Free
investir, comprava roupa porque eu Shop, no Aeroporto Internacional de
trabalhava de secretária. Guarulhos.
Entrevistadora: É, tem que usar Entrevistadora: Sei.
aquela roupa mais formal.
Entrevistada: Aí ele ficou muito tempo lá.
Entrevistada: Tem, então eu gastava muito Aí depois com essa queda do dólar, aí ele
dinheiro com roupa, né. saiu de lá e foi trabalhar na Fast Shop.
Entrevistadora: Hum, hum. Entrevistadora: Ah, sei.
Entrevistada: Então tinha que investir Entrevistada: Ele está, deixa eu ver quando
dinheiro por causa que tem que ter um que foi que ele entrou no, acho que a Camila
padrão, né. estava pequena ainda, acho que deve ter uns
Entrevistadora: Isso. E daí você então, 17 anos de Fast Shop mais ou menos, ele
depois que você trabalhou na SPTrans você trabalha de vendedor lá.
fez o curso de letras e aí você falou que saiu Entrevistadora: Ah, que legal. E quando
em janeiro da SPTrans e em fevereiro você fez essa mudança de profissão para você
começou a trabalhar, né, como professora.
452

foi a melhor opção, como é que as pessoas porque eu fiz isso e às vezes não, mas o
que você conhecia viram essa mudança? arrependimento foi bem menor do que...
Entrevistada: Ah, falaram que eu era louca. Entrevistadora: Dá um exemplo de uma
situação que faz você se arrepender ou fez
Entrevistadora: Quem falou que você era
você se arrepender em algum momento,
louca?
muito rapidinho.
Entrevistada: Todo mundo.
Entrevistada: Hein?
Entrevistadora: (risos)
Entrevistadora: Aqueles pensamentos que
Entrevistada: Minha mãe, o Adriano meu às vezes passa.
marido falou, nossa, vai sair de lá e vai cair o
Entrevistada: É igual esse ano aqui da
padrão e não sei o que, né, eu tinha já até
Previdência, desse negócio dessa mudança,
carro, né, não, comprei carro depois que eu
né.
saí de lá, comprei um carro com a rescisão.
Ele falou assim, ai, não sai de lá não Eu falei, Entrevistadora: É.
ah, não, mas eu vou sair porque eu consegui
Entrevistada: Meu Deus, eu trabalhei
pegar oito meses de licença, como eu
tanto, trabalhamos em dois, igual, dois
acumulei folga que era operário padrão a
cargos, né, porque eu posso pegar e ter duas
gente ia ganhando folgas, né.
aposentadorias, né, pela privada e pela
Entrevistadora: Tá. estadual, aí essa mudança me desanimou
muito, eu falei, meu Deus do céu, foi esse
Entrevistada: Porque tinha premiação na
momento assim e outros momentos que
época, chegar pontualmente e não sei o que,
passaram e que são inúmeros, né, que a gente
então aí eu tinha esse perfil de adquirir, quer
não lembra.
dizer, conquistei esse perfil, como eu tinha
esse perfil aí eu era premiada por isso, então Entrevistadora: É verdade, muitas vezes é
eu fiquei oito meses, aí eu falei, não vou difícil uma relação com aluno.
voltar mais não, mas eu tenho amizade até
Entrevistada: É.
hoje com todo mundo.
Entrevistadora: Uma relação com, né?
Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistada: É verdade.
Entrevistada: Minha ex-chefe eu tenho no
Facebook, a minha amiga saiu também na Entrevistadora: Que nem sempre...
mesma época que eu e abriu um restaurante
em Santa Cecília, não perdi o vínculo com Entrevistada: Mas assim, as relações com
ninguém. os alunos em 21 anos foram tudo tranquilo e
eu soube me sair muito bem de todas.
Entrevistadora: Ai que ótimo.
Entrevistadora: Você tem uma relação
Entrevistada: Toda turma eu, assim, muito boa com os alunos.
sempre estou em contato com eles pelas redes
sociais, sempre estou vendo o pessoal. Entrevistada: É, não sei, nossa, assim, eu
acho que é um discernimento que está na
Entrevistadora: E a crítica das pessoas era gente e a gente nem sabia, né?
porque eles achavam que não era bom ser
professora. Entrevistadora: Então são os momentos
com alunos que são aqueles que você
Entrevistada: Nossa, eles falaram, esse mencionou, eu escolhi a profissão certa, foi
país aqui não valoriza o professor não, pelo bom.
amor de Deus, não faz isso não. Aí às vezes
eu me arrependia, eu falava, meu Deus,
453

Entrevistada: Isso, quando a gente vê o Entrevistadora: O que você, só que você


resultado, vê aluno conversando igual eu. Já falou isso e não desenvolveu o que eu queria
trabalhei nessa comunidade aqui, trabalho que você, o que você entende por isso?
nessa comunidade, então assim, vejo os
Entrevistada: A humanização é o seguinte,
alunos na rua e eu percebo que a minha
às vezes o aluno não tem a necessidade de
mensagem está sendo aceita porque eles me
aprender a estrutura de um texto.
tratam bem quando me veem na rua, olha lá,
tem satisfação de me ver, de vir me Entrevistadora: Hum, hum.
cumprimentar, de vir me beijar, né, não é
relação assim, ah, sou boazinha em sala de Entrevistada: De construir um texto,
aula. elaborar uma, como se fala, a própria
atividade mesmo escrita. De repente um lado
Entrevistadora: Sei. humanizado, ele com uma conversa assim de
um adulto, de uma necessidade deles estarem
Entrevistada: Né, não é aquela coisa assim,
sendo orientados assim, às vezes eles estão
ah, ela é legal e não sei o que.
num momento assim tão de angústia dele
Entrevistadora: Você acha legal isso de particular e esse modo de eu lidar com eles,
você trabalhar próximo ao local que você de repente eu tenho a sensibilidade de
mora porque você acaba encontrando muito perceber se eles estão num momento assim
aluno, né? ruim, assim numa aflição, aí de repente eu
posso conversar com eles e ajudá-los a
Entrevistada: Com certeza.
crescer, a humanizar. Humanizador é o,
Entrevistadora: Isso te dá uma satisfação? enxergar eles como até pessoas próximas, né,
assim, de uma, como se fala, um convívio
Entrevistada: É, eu acredita que antes, eu saudável entre, igual eu, por exemplo, eu
pensava, trabalhar perto de casa deve ser tenho mais é a história de vida, né, às vezes
chato, mas não, é bem o contrário, é de repente um desabafo deles e um, como se
confortável, tranquilo assim para a relação diz, uma atenção de uma pessoa que tem
com pessoas que eu conheço. mais vivência que eles às vezes é bem mais
Entrevistadora: Por quê? esclarecedor do que você praticar uma aula
sua completa em sala de aula.
Entrevistada: Porque você está, com se diz,
contribuindo com o avanço, a evolução ali do Entrevistadora: De trabalhar conteúdo
seu pedaço, né, da sua comunidade. assim que não estão relacionados com...

Entrevistadora: É verdade. Entrevistada: Conteúdo, ser humano,


enxergar eles assim até com um futuro colega
Entrevistada: Né? de trabalho.
Entrevistadora: Teve uma coisa que você Entrevistadora: Sim, claro.
falou na primeira entrevista que me chamou
bastante a atenção, quando você estava Entrevistada: De repente, né, eu acho que é
falando sobre trabalho você falou que uma o lado humano, enxergar o aluno não como
das coisas, o modo como você viu o seu um número, mas como mais alguém que vai
papel na... participar da sua vida na vida diária, por
exemplo, eu vou para a igreja.
Entrevistada: Na sociedade?
Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistadora: Na sociedade era um pouco
com essa coisa da humanização. Entrevistada: Aqui eu dou aula para alunos
aqui do Liberato, os alunos vão para a igreja
Entrevistada: Isso. também, a mesma que eu vou, eu frequento,
depois assim de...
454

Entrevistadora: Na igreja católica? faziam as salas, aquela sala ali vamos por
fulano, aquela sala, colocava, não que os
Entrevistada: Na igreja católica. Aí eles
alunos são iguais, na minha concepção de
estão lá e eles me enxergam lá e eles vão lá
professor.
me abraçar, me beijar, olha, estou aqui
também. Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistadora: Entendi, é um Entrevistada: mas eu acho que na
reconhecimento. concepção da visão antiga lá do pessoal, que
é um pouco tradicional lá a turma, colocava
Entrevistada: É uma coisa humana,
todo mundo igual na mesma sala, para eles
humanizador, assim, enxergar o outro não
era essa visão, os bagunceiros, os repetentes.
como um aluno, aquela coisa meio distante
aluno/professor, mas ser humano que convive Entrevistadora: Sei.
em sociedade, todo mundo junto.
Entrevistada: Então essa sala, nossa
Entrevistadora: Isso, que está nos mesmos senhora, muito difícil, aí eu falei, meu Deus,
espaços. o que eu fui fazer, né? Porque eu acho que a
convivência prática, a insistência e quando a
Entrevistada: É o mesmo espaço, né?
gente percebe o que é aquilo a coisa vai
Entrevistadora: Entendi, agora ficou bem evoluindo, mas a princípio, nossa, eu me
claro. Só para finalizar, eu queria que você arrependi.
falasse um pouquinho, então como você teve
Entrevistadora: Porque era muito
essa passagem de uma profissão para outra, a
desgastante, então.
entrada numa nova profissão, como foram
esses primeiros anos de trabalho assim? Entrevistada: Muito desgastante e ainda
depois tinha que chegar em casa, tinha a
Entrevistada: Nossa, foi difícil, viu?
carga diária, comida, lavar, cuidar da filha.
Entrevistadora: Porque mais dificuldades
Entrevistadora: Que era bebê naquela
você enfrentou?
época.
Entrevistada: Ah, dificuldade porque
Entrevistada: Era bebezinha, né, ela nasceu
assim, eu trabalhei sempre num escritório,
em abril de 94 e eu comecei a trabalhar em
tinha a minha parte para fazer, agora você
fevereiro de 95.
pegar e ser mediadora de conflito em sala de
aula, eu peguei uma sala tão difícil lá na essa Entrevistadora: E era numa sala de ensino
escola que é assim... fundamental ou ensino médio?
Entrevistadora: Era aquela primeira que Entrevistada: Fundamental.
você trabalhou, como é o nome?
Entrevistadora: E era aula de língua
Entrevistada: Altenfelder. portuguesa.
Entrevistadora: Altenfelder. Entrevistada: Sim, língua portuguesa,
então eu tinha seis aulas diárias, se não me
Entrevistada: José Altenfelder, acho que é,
engano, naquela sala, seis aulas.
não sei, José Altenfelder, fica lá na Vila
Jaguara, quase divisa com Osasco, perto da Entrevistadora: Nossa!
Avenida dos Remédios. Então, acho que na
Entrevistada: Seis aulas por semana que
Agenor, fica na Agenor, não, Agenor é outro
distribuíram, era seis aulas semanais, então
lado, então, só sei que eu fui numa sala que é
eu convivia muito com eles, até que um dia
assim, antes os professores escolhiam as
eu falei assim, olha, eu não vou mais entrar
salas, eles faziam as salas heterogêneas, não
aqui nessa sala, falei até assim para eles,
faziam salas homogêneas, eles pegavam e
455

porque acho que eu não tinha experiência, Entrevistadora: Você saiu de lá e foi para o
né? Silvado.
Entrevistadora: É, primeiro ano, imagina. Entrevistada: É, aí ficou também
complicado porque era ensino médio e não
Entrevistada: É, não tinha experiência, eu
tinha muita convivência assim, quer dizer,
não vou entrar mais aqui nessa sala. Aí
não tinha prática, né, então aí alguns alunos
parece que um anjo disse amém, porque aí a
ficaram falando, ah, que a professora não
diretora me ligou e eu não fui mais lá.
soube explicar aquilo, não tinha muita
Entrevistadora: Ai que bom. didática, né, pedagogia, assim, a gente
aprende muito, mas praticar mesmo é só o
Entrevistada: Só que aí eu senti assim, que dos anos, mas aí, deixa eu ver, teve assim,
eu deveria ter feito assim, dado uma como se fala, eu fui fazendo cursos paralelos
satisfação, ido para eles lá falar, olha, eu saí e os cursos que eu tinha também da empresa,
porque vou trabalhar do lado da minha casa, porque eu fazia curso de informática, eu
não que ele sentisse que eles foram rejeitados sempre fazia todos os cursos, então isso aí foi
por mim. me ajudando de alguma forma.
Entrevistadora: Entendi. Entrevistadora: E com relação a didática
Entrevistada: Então faltou esse diálogo você diz que foi desenvolvendo.
porque eu tinha essa visão, porque assim, os Entrevistada: É.
professores que davam aula para a gente às
vezes aparecia do nada, né? Entrevistadora: Mas e com relação ao
conteúdo, você acha que quando você
Entrevistadora: É. começou a trabalhar você acha que você
Entrevistada: Então aí eu falei, não, estava, se sentia segura com relação a isso?
quando eu for professora a minha aula de Entrevistada: Não, eu me sentia segura sim
inglês vai ser assim, não vai ser daquele jeito, quando tinha tempo para preparar a aula, aí
então eu sempre me espelhava naquilo que dava para dar uma aula, mas como tinha
não era bom para não fazer com os meus muita atividade em casa, né, assim as tarefas,
alunos. né, aí eu sentia falta de um momento para
Entrevistadora: Entendi. mim, mas a partir do momento em que eu
comecei a planejar aí foi tranquilo.
Entrevistada: Eu sempre falei assim, não,
eu vou ser professora, mas eu não, até os Entrevistadora: Em que momento você
próprios professores mesmo da faculdade, ai, conseguiu planejar?
a professora fazia isso, ai, quando eu tiver Entrevistada: Ah, eu me organizava, né,
meus alunos não vou fazer isso não, não vou me organizava em casa, fui fazendo
tratar meus alunos número 1, número 2, eu direitinho uma planilha de horário, aí fui
vou olhar olho por olho e vou falar, fulano, encaixando tudo direitinho.
ciclano, tudo o nome direitinho deles, saber
cada um e eu faço isso mesmo. Entrevistadora: Entendi.

Entrevistadora: Faz? Entrevistada: Porque senão, minha filha,


até hoje não ia conseguir.
Entrevistada: Faço.
Entrevistadora: E as aulas, a abordagem,
Entrevistadora: E no Silvado a relação era porque já fazem alguns anos que você
melhor com os alunos? começou, né, de agora, o tipo de aula que
Entrevistada: Era. você tem hoje é o mesmo tipo de aula que
você tinha antes, quer dizer, você trabalhava
mais, por exemplo, a literatura, como é que
456

era, mudou alguma coisa ao longo desses com temas transversais para pegar e alertar
anos? eles de alguma coisa que acontecia na
comunidade, gravidez indesejada, não sei o
Entrevistada: Ah, foi mudando porque a
que, o pai que não aceitava o filho ser
gente vai ficando, como se diz, a gente
homossexual, então esse trabalho foi muito
convivendo muito com aquele conteúdo,
bom.
aquele conteúdo fica fixado na sua cabeça,
não precisa às vezes nem de livro. Você vai Entrevistadora: Mas você escreveu esses
dar uma aula sem, como se diz, explora o contos?
conteúdo porque o conteúdo já e assim,
Entrevistada: Sim, eu e os alunos.
quando você pega uma sala, a mesma série,
aí deslancha bonitinho, agora quando você Entrevistadora: Ah, entendi, vocês liam os
pega português e inglês, mas quando, eu contos de fadas.
sempre fiz curso de inglês, então aí ficava
tranquilo para desenvolver. Entrevistada: Isso.

Entrevistadora: Entendi. E como é que Entrevistadora: Depois vocês reescreviam.


você, logo quando você começou a trabalhar Entrevistada: Isso. Tanto que a gente
como é que você abordava a literatura, os montou, teve até, foi feito o palco, aí eu fiz
textos literários. uma excursão de onze ônibus para o
Entrevistada: Ah, eu, como se diz, a minha Zoológico, arrecadamos muito dinheiro,
convivência com a literatura pelo fato de eu conseguimos montar todo o palco, comparar
gostar e me dar bem, me identificar era caixa de som, cortina, nossa, fizemos muita
tranquilo, eu tinha um assunto, desenvolvia coisa, montamos mesmo um senhor
com eles, falava às vezes, como se diz, dava espetáculo.
um texto compactado, né, e aí explicava, Entrevistadora: Ah, é?
explorava com eles, mandava eles fazer
pesquisa em cima daquilo. Entrevistada: É, nossa, foi muito bom.

Entrevistadora: Você lembra de algum, Entrevistadora: E você guardou alguma


nessa época de algum trabalho que você fez e coisa desses contos, desse teatro?
que você gostou de ter feito com eles.
Entrevistada: Não guardei nada, nada,
Entrevistada: Ah, eu gostei de fazer, nossa, nada, não registrei.
muitos, muitos, a gente vai conversando e fui
Entrevistadora: Que pena.
me encontrando com colegas meus que eu já
convivi e trabalhei, tinha até coisas que eu Entrevistada: É, então, isso que a gente
nem me lembrava mais, o pessoal, estava conversando, até que eu tenho um
Entrevistada, você lembra aquilo que você grupo agora que a gente tem esse mau
fez? Não, mas o que eu gostei mesmo foi costume de fazer muita coisa boa e não
conto de fada às avessas. Nós fizemos, assim, registrar, então é esse péssimo costume, né.
os contos de fada, porque na realidade os
contos de fada eles eram feitos para adultos, Entrevistadora: Hum, hum.
né. Entrevistada: É que se perde, né, se tivesse
Entrevistadora: Sim. feito toda uma, como se fala, um dossiê de
várias coisas que eu já fiz, nossa, ia ser muito
Entrevistada: Assim, o único que fez conto rico, viu?
para criança mesmo foi Monteiro Lobato, o
restante é tudo para adulto, mas aí eu fazia Entrevistadora: É verdade.
uma versão adaptada, quando eu fiz no
Silvado em 98, eu fiz uma versão adaptada da
Branca de Neve, da Cinderela, mas é tudo
457

Entrevistada: Nossa, muita coisa minha se observar se é uma pessoa idosa querendo
perdeu, muita coisa que a gente não registra, atravessar a rua, ter uma visão de mundo.
né?
Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistadora: É, e daí acaba, a gente
Entrevistada: Eu acho que a literatura é
esquece ou...
toda uma, como se diz, é uma história de um
Entrevistada: Esquece. crescimento de um olhar mais sensível à
vida, né.
Entrevistadora: Ou às vezes a gente nem
consegue porque é tanta coisa, a rotina é tão Entrevistadora: Sim. E que livro que para
pesada. você fez isso assim, que te falou, não, te fez
criar esse olhar mais sensível para a vida ou
Entrevistada: É tanta coisa porque...
de algum ou de alguns livros que te
Entrevistadora: Que você não lembra o que marcaram especialmente.
você fez.
Entrevistada: Ah, eu gostei muito do
Entrevistada: Porque são 21 anos já de Pequeno Príncipe, o Pequeno Príncipe é
educação e muita coisa, já fui para várias muito bom e lembro também do livro Amor
escolas, já como o Silvado, Mariano, já de Perdição que eu gostei muito. Do
trabalhei em tudo quanto é escola que você Memórias Póstumas de Brás Cubas também
imagina, (0:41:00), o Ermano Marchetti, vixi, gostei. Ah, aquela série do Vagalume
nossa, muita escola, então todo lugar que eu também gostava.
vou, tanto que o pessoal quando muda ou vai
Entrevistadora: Eu gostava.
fazer alguma coisa assim eles falam, ah, eu
quero a Entrevistada para trabalhar com a Entrevistada: Eu li muitos ali da série
gente, sempre falam assim, a Marcinha não Vagalume.
sei o que, entende bem de trabalho coletivo,
Entrevistadora: Quando você estava
então muita coisa se perdeu, infelizmente,
adolescente?
fazer o quê.
Entrevistada: Quando estava adolescente,
Entrevistadora: E qual você acha que é o
O Cadáver Ouve Rádio, O Mistério da
sentido, porque quando eu acompanhei as
Borboleta Atiria, O Escaravelho do Diabo,
aulas era uma turma de ensino médio, né, de
assim, vários livros que eu li, mas é muito
língua portuguesa. Qual é o sentido que você
livro que eu li.
vê, qual o objetivo de trabalhar a literatura, o
texto literário com os alunos do ensino Entrevistadora: É verdade, com certeza. E o
médio? Memórias Póstumas te marcou porque, você
leu em que circunstância?
Entrevistada: Eu acho que é fazer com que
eles fiquem, sensibilizar, né, sensibilizar Entrevistada: Eu li porque a gente teve o
assim, não ficarem pessoas tão mecânicas, sorteio do seminário, aí o pessoal, vai lá e
pessoas que olhem, como se fala, saibam pega o papel, aí eu peguei o papel e eles
olhar com mais cuidado as coisas, a vida. ficaram ferrados comigo, com raiva, você
Tem a, como se fala, o mesmo gosto que eu pegou o mais difícil.
tive e a mesma sensibilidade que eu
desenvolvi, que eles tem também a mesma Entrevistadora: Na faculdade?
oportunidade que eu. Entrevistada: Não, no ensino...
Entrevistadora: Sensibilidade para Entrevistadora: Ah, no ensino médio.
ver as coisas da vida.
Entrevistada: Na 8ª série.
Entrevistada: É, para ele enxergar, assim,
não ver uma rua ou então não conseguir Entrevistadora: Sei.
458

Entrevistada: Aí peguei isso aí, aí tinha


que desenvolver todo esse trabalho e aí foi
um trabalho muito assim minucioso, muito
bom e aí também teve um outro que adorei
também que era, deixa eu lembrar aqui, A
Moreninha.
Entrevistadora: Ah, tá.
Entrevistada: Nós fizemos o teatro também
com A Moreninha, fizemos a Gruta, fizemos
todo aquele trabalho, os vestidos.
Entrevistadora: Você gosta, né, de fazer a
encenação da...
Entrevistada: Ah, é muito bom, então é
isso daí.
Entrevistadora: Então está ótimo, Valquíria,
muito obrigada.
Entrevistada: Imagina.

Você também pode gostar