Práticas de Leitura Na Escola Hoje TESE
Práticas de Leitura Na Escola Hoje TESE
Práticas de Leitura Na Escola Hoje TESE
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
SÃO PAULO
2017
PATRÍCIA APARECIDA DO AMPARO
VERSÃO CORRIGIDA
SÃO PAULO
2017
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS
DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Aprovada em:
Banca Examinadora
Profa. Dra. Raquel Lazzari Leite Barbosa (Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho-
UNESP)
Julgamento: _______________________ Assinatura: _____________________________
Agradeço à Profa. Dra. Dislane Zerbinatti Moraes pela orientação realizada desde a
Iniciação Científica, o que possibilitou as condições para que esta tese fosse construída.
Assim, qualquer qualidade que ela possa ter se deve às suas contribuições e empenho com
relação à investigação que venho empreendendo.
À Profa. Dra. Denice Barbara Catani por ter sido presença importante em minha
trajetória de formação desde que frequentava o curso de Pedagogia, oferecendo
possibilidades de aprendizagens estruturantes a respeito da pesquisa. Sou grata pela
atenção com que vem participando de minha trajetória formativa.
À Profa. Dra. Raquel Lazzari Leite Barbosa, participante de minha trajetória formativa
desde o exame de qualificação do Mestrado. Sua leitura sempre generosa e o engajamento
com que tem favorecido o desenvolvimento de minhas reflexões são difíceis de retribuir.
À Profa. Dra. Rita de Cassia Gallego, com quem tive oportunidade de discutir e
desenvolver aspectos centrais da pesquisa durante a disciplina que ofereceu na Pós-
Graduação, situação que agora se prolonga na defesa da tese.
Agradeço à Talita Dias de Miranda e Silva, cuja amizade e parceria desde o curso de
Pedagogia são muito importantes para mim. As experiências que compartilhamos ao longo
dos anos foram alegrias encontradas na FEUSP.
À Juliana de Souza Silva, amiga desde o curso de Mestrado, com quem tenho
compartilhado a experiência de formação acadêmica e pessoal. Sou grata por ter contado
com sua amizade e incentivo nos momentos mais difíceis de elaboração da tese.
Bruno Ribeiro da Silva Pereira, sou grata pelo amor e companheirismo que temos
construído cotidianamente ao longo desses anos e que, mesmo à distância, tornam minha
vida mais leve. Com você aprendi que, às vezes, um bom livro começa apenas no terceiro
capítulo.
Agradeço ao CNPq que financiou esta pesquisa e ao programa Avenir Lyon Saint-
Etienne (PA-LSE) pela bolsa de mobilidade que me permitiu a realização do Doutorado-
Sanduíche.
“...eu vejo que a gente está andando em uma esteira, a gente está andando mas a
gente não vai para lugar nenhum, a gente vai ficar naquilo” (Luana).
RESUMO
AMPARO, Patrícia Aparecida do. Práticas de leitura na escola hoje: representações em
conflito. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2017.
The purpose of this research is to understand how the relations between the representations
of teachers and high school students, when confronted with school rules, curriculum and
didactic materials, come into relationship and generate disputes around the legitimate
reading of literary works in the school space . Thus, from the socio-historical perspective,
the research puts on the scene how language gains functions and meanings in the fabric of
school life through the force exerted by agents whose social positions establish points of
tension, questioning and resistance to legitimate culture while at the same time producing
the possible socializing matrix, as proposed by Bernard Lahire, from which the school
produces dispositions with regard to language. We start from the understanding that
secondary education has undergone periods of expansion since the beginning of the
twentieth century that have increased the presence of different social groups in its interior,
which gives specific contours to the disputes on the screen. For the preparation of the
research, we used as sources the observations of Portuguese Language classes in high
school; the textbooks present in class; and the current state and federal curriculum; in
addition, we conducted interviews with eight students and two teachers of Portuguese
Language; and a poll with regular high school students. In order to construct our analyzes,
we seek the contribution of authors like Roger Chartier, Pierre Bourdieu and José Mário
Pires Azanha. It was noticed that by means of socially situated actions, structured by
cognitive schemes originating from the natal world and the incorporation of temporally
articulated school meanings, the students make reelaborations of reading of literary works
in the school. By highlighting the reading according to the curricular conceptions and
present in the school unconscious, the teachers effect a problematic appropriation of the
literary works, favoring relations that take the reading as object. At the same time, students
seem to deny what is taught at school, as their approaches to natal culture are not explicit.
There remains the impression of a schooling without senses and content with little utility in
their future projects.
INTRODUÇÃO 13
1.1.A leitura de obras literárias em meio à lógica da cotidianidade: entre tempos e posições
sociais 34
1.2. As fontes para a produção das análises 45
1.3. A seleção de uma escola para participar da pesquisa 52
1.3.1. A Escola 1 e a Escola 2 57
1.3.2. Os perfis dos alunos e das professoras 60
2.2. Entre ler, escrever e falar: a formação de uma matriz socializadora possível na escola
81
2.2.1. Compreender e criar: a elaboração das aulas pelas professoras 81
2.2.2. Ler, escrever e falar: uma aproximação às aulas 89
3.1. Entre dois mundos: a produção da posição docente por meio do reconhecimento e da
diferenciação cultural com relação aos alunos 126
3.2. O mundo natal e a representação da leitura escolar: um jogo de mostrar e esconder 140
3.3. A necessidade de negociação cotidiana dos saberes e sentidos da leitura de obras
literárias 147
4.1. Desde que entrei na escola nunca gostei de Português: os alunos e suas maneiras de
significar a leitura na escola 154
4.1.1. A difícil arte de ser leitor-leitor 160
4.1.2. Os sentidos em questão: entre julgamentos escolares e representações pessoais de leitura
167
4.3 A escola é uma esteira: o futuro sem sentido da leitura e dos alunos 198
4.3.1. A tradução de um mundo para o outro 199
4.3.2. Para que serve a escolarização? 203
INTRODUÇÃO
Caminhar pela cidade é ocasião para que o observador atento acompanhe um conjunto
variado de apropriações diversas da leitura de obras literárias. Em tal circunstância é possível
notar alguém analisando livros e revistas nas bancas de jornal ou acompanhar a curiosidade
gerada por vitrines e prateleiras de uma livraria ou sebo - produzindo de leituras rápidas de
primeiras páginas, à compra de um livro ou à descoberta de um novo autor -, chegando à
leitura dos volumes preferidos durante os deslocamentos feitos no transporte público. Em tais
circunstâncias, títulos, autores e estilos dos mais variados produzem interesse e possíveis
investidas de leitores desavisados ou atentos aos movimentos do universo literário.
Provavelmente, o que existe em comum entre todas essas pessoas é o fato de terem passado
pelo processo de escolarização e se apropriado, cada um à sua maneira, das formas com que o
conteúdo literário foi dado a ver na escola. Não podemos desconsiderar que em nossa
sociedade ela é uma das instituições que definem paradigmas de leitura, como afirma Roger
Chartier (2001), e por isso desempenha papel significativo para a definição das maneiras de
lidar com as possibilidades de leitura. Nesse sentido, o que levaria pessoas igualmente
escolarizadas a realizarem apropriações tão diversas dos objetos de leitura disponíveis? Seria
possível pensarmos em um paradigma de leitura de obras literárias difundido nas escolas
públicas ou, na verdade, existiram vários? O modelo de leitura difundido na escola estaria
relacionado às práticas aprendidas pelos sujeitos em outros lugares, como nas famílias?
As questões postas acima constituem alguns elementos do conjunto de inquietações
que animam esta pesquisa, cujo objetivo é compreender o modo como as diferentes
representações de professores e alunos, confrontadas às regras escolares, aos currículos e aos
materiais didáticos entram em relação e engendram disputas em torno da leitura legítima de
obras literárias no espaço escolar. A pesquisa visa colocar em cena o modo como a linguagem
- no caso a literária - ganha funções e sentidos na trama do cotidiano escolar por meio da
força exercida por agentes cujas posições sociais estabelecem pontos de tensão,
questionamentos e resistências à cultura legítima ao mesmo tempo em que produzem as
14
práticas escolares cotidianas. Para identificar tais elementos, optamos por utilizar como fontes
as observações das aulas de Língua Portuguesa de ensino médio em duas escolas estaduais
como forma de aproximação ao nosso problema de pesquisa a partir do cotidiano escolar.
Optamos por essa disciplina no ensino médio, pois é nela que se concentra e se torna mais
complexo o ensino de literatura, o que poderia tornar ainda mais evidente nosso problema de
pesquisa. De modo a constituir nossas fontes realizamos, ainda, entrevistas semiestruturadas
com oito alunos e com as duas professoras que ministraram as disciplinas. Finalmente,
também analisamos os currículos nacionais e estaduais de Língua Portuguesa.
A escolha desse objeto de investigação decorre de nossa pesquisa de mestrado, quando
analisamos as práticas de leitura mantidas por leitoras de romances sentimentais (AMPARO,
2012). Naquela ocasião, pudemos acompanhar o modo como as participantes da pesquisa
constituíram comunidades de leitura em torno das coleções de romances feitos para mulheres,
estabelecendo, por exemplo, sentidos para a leitura, autoras e volumes clássicos bem como
modos de apropriação dos enredos. Esse trabalho foi feito ao largo da instituição escolar, por
meio dos vínculos afetivos estabelecidos entre mulheres de diferentes gerações. Apesar de
essa prática não ser mantida e produzida na escola, as entrevistas deixaram ver que a
escolarização teve influência na maneira como as mulheres que conhecemos produziram
definições para suas leituras. Foi recorrente a certeza, corroborada por experiências escolares,
de que os romances sentimentais eram menores quando comparados aos títulos presentes no
cânone escolar, e da desqualificação das maneiras como os enredos eram apropriados pelas
leitoras. Como resultado do embate entre as práticas de leitura mantidas em espaços não
escolares - com sentidos próprios criados pelas leitoras - e no espaço escolar, restou para as
entrevistadas a certeza de manterem uma prática de leitura insuficiente e pouco valorizada,
logo elas demonstravam muita insegurança ao se definirem leitoras. Para nós, surgiu então a
inquietação de saber por quais mecanismos presentes na escola seria possível a produção
dessas leitoras inseguras. Gostaríamos de saber como, no cotidiano escolar, mulheres que liam
200 páginas por semana, conheciam características de autoras e enredos, compravam,
emprestavam ou trocavam livros regularmente eram classificadas e se apropriavam da
imagem de não-leitoras ou de leitoras incompetentes. Ao final do mestrado, acreditávamos
que este seria um modo de acompanhar o modo como se produzem leitores em nossa
sociedade no jogo entre as práticas de leituras não-escolares e escolares, aceitando que elas
obedeceriam a lógicas específicas, porém não completamente autônomas, uma vez que as
leitoras que conhecemos consideravam os julgamentos escolares para definirem suas práticas.
Logo, como quem observa um bordado pelo lado direito e pelo avesso, após notar as lógicas e
15
por processos de expansão que levam à democratização de seu acesso (SPOSITO, 1984;
BEISIEGEL, 2006). A presença de alunos cujas origens sociais são cada vez mais variadas
faz com que na escola se verifique a convivência de culturas que antes do processo de
expansão não estariam em seu interior. Se no passado seria possível se pensar na homologia
entre a cultura escolar legítima e a familiar, tal aproximação passa a ser vista como cada vez
mais difícil. No que se refere ao sentido da leitura de obras literárias no ensino médio, o
quadro exposto acima problematizou e trouxe questionamentos ao modelo de formação
vigente e, portanto, à cultura legítima em seu interior, a qual, ao longo do tempo, já cumpriu a
função de apresentar o modelo da norma padrão de escrita, ser o local de inculcação de
valores e do bom gosto, além de ser forma de adquirir vantagens pessoais e espaço de
transmissão do patrimônio literário brasileiro (ZILBERMAN, 1988). Problematizar as tensões
relativas às representações de professores e alunos sobre a leitura de obras literárias nos leva a
questionar quais seriam os sentidos atribuídos pela escola a ela hoje em dia bem como suas
repercussões para os primeiros.
É preciso considerar que as disputas em tela se expressam segundo as finalidades da
literatura no nível de ensino em questão. De acordo com Anne-Marie Chartier e Jean Hébrard
(1995), a leitura escolar é apresentada em duas vertentes quando se pensa nas oposições entre
o ensino primário e o secundário. No ensino elementar a alfabetização atesta que se atingiu os
objetivos de escolarização, na medida que permite aos alunos autonomia diante dos textos. Já
no ensino médio, a leitura cumpre a função de formar o que se considera a “cultura”, ou seja,
a incorporação de sentidos da cultura letrada que distinguem quem fará parte da elite. Essa
oposição se refere a um momento em que a sociedade e a escola estavam marcadas por maior
rigidez. Após processos de democratização do acesso ao ensino médio, as fronteiras entre eles
se embaralham, entretanto, tais esquemas de compreensão dos sentidos da leitura de obras
literárias, como veremos ao longo da tese, não foram totalmente superadas. No momento,
interessa-nos dizer que os apontamentos dos autores supracitados demonstram a papel de
consagração de relações distintas com a leitura e suas correspondências no que se refere à
classificação na estrutura das hierarquias sociais (BOURDIEU, 2013b).
No caso brasileiro, Marcia de Paulo Gregorio Razzini (2000) afirma que a literatura
estrangeira, sobretudo a francesa, constituiu a referência da cultura valorizada pelas elites
durante o século XIX. No processo de institucionalização da disciplina Língua Portuguesa, no
entanto, os títulos nacionais ganham importância de modo a formar a cultura nacional, ou a
consciência nacional, como afirma Fernando de Azevedo em A cultura brasileira (2010):
17
Originalmente publicada em 1942, a obra citada ressoa o impasse relativo aos sentidos
da formação literária, pois ao longo do século XX sua finalidade de formação da
nacionalidade a partir da cultura geral de cunho humanista passa a ser questionada em favor
de uma visão mais utilitarista do ensino médio (SOUZA, 2009). O leitor desinteressado que se
vislumbra na passagem de Fernando de Azevedo parece ter menos espaço entre as
proposições curriculares e pedagógicas da segunda metade de século XX. É necessário, no
entanto, investigar e compreender o modo como tais estruturas de compreensão da boa leitura
em circulação no ensino médio circulam no espaço das escolas pesquisadas e nas
representações das professoras e alunos conhecidos.
Por meio do que temos exposto até aqui, gostaríamos de evidenciar que tomamos a
leitura como prática cultural que evidencia formas de encontro entre um leitor e um texto.
Roger Chartier (1991a; 1991b) sustenta que longe de pensarmos na atividade de decifração
dos livros como a busca pelo sentido correto proposto pelo autor, ela é caracterizada como um
trabalho. Para que ele seja realizado, os leitores constituem paradigmas de decifração e de
compreensão das formas escritas associadas à constituição de comunidades de leitura com
características próprias. Por meio de suas clivagens – sociais, religiosas, acesso à
escolarização – fundam-se formas de apropriação e produção de significados para a leitura
que dão a ver modos de classificação do espaço social a partir de um ponto de vista. Ao
mesmo tempo, as práticas de leitura tomam objetos que foram criados por editores,
vendedores, enfim, instâncias de criação e mesmo de alteração do texto. Nosso desafio é o de
considerar a leitura, muitas vezes compreendida a partir de imagens que a localizam fora das
injunções sociais e histórica que lhe são características, como observa Pierre Bourdieu em As
regras da arte (1996), como uma prática cultural semelhante a outras. Nesse sentido, ela pode
ser objeto de disputas por seus sentidos, uma vez que a cultura é objeto de classificação e
diferenciação entre os grupos que compõem a sociedade. Devemos compreender, desse modo,
que a leitura não teve os mesmos significados ao longo do tempo e suas alterações guardam
relação com o trabalho escolar na medida que a escola é responsável por ensinar a leitura de
obras literárias a grupos sociais cada vez mais amplos (CHARTIER, 1995). De modo a
realizar essa tarefa, o trabalho pedagógico efetiva determinada organização das atividades,
18
currículos, enfim, materiais diversos que colocam em prática o ensino da leitura de obras
literárias.
Ao elaborar a linguagem literária, a escola fornece os sentidos de suas finalidades
educativas. Bernard Lahire (2008) coloca em evidência que as formas assumidas pela leitura
na escola fazem com que ela seja escolarizada ou, dito de outro modo, escrituralizada,
codificada e organizada como algo a ser ensinado. Ao organizar seu trabalho desse modo, a
escola dota os alunos não apenas de um conjunto de títulos, autores e enredos conhecidos,
mas também de esquemas “...de percepção, de pensamento e de ação...” (BOURDIEU, 2013b,
p.206). Sendo assim, nosso objeto de pesquisa coloca em jogo a linguagem, aspecto
estruturante da escolarização, o que torna importante insistir um pouco mais nessa questão.
Para isso, acompanhemos o excerto a seguir:
Bernard Lahire (2000) evidencia que é apenas por meio da participação nas formas
escolares de organização da linguagem que um aluno terá acesso ao conhecimento que a
escola pode oferecer. As proposições do autor indicam que, no limite, é a entrada nas trocas
linguísticas escolares que permitirá aos alunos a apropriação dos saberes escolares. Insistindo
nesse assunto, Stéphane Bonnéry (2007) faz a seguinte observação ao verificar o modo como
alunos em situação de sucesso encararam as atividades escolares:
Par comparaison, les élèves les plus familiers des logiques scolaires savent, parce
qu'ils l'on appris auparavant (probablement hors de l'école), que la réalisation des
tâches scolaires, l'application des consignes et l'obtention du bon résultat, s'ils sont
importants, ne le sont que parce que cela constitue un moyen de construire un savoir,
de consolider ou d'évaluer son acquisition. (...) Cette attitude d'appropriation est
beaucoup plus conforme aux exigences spécifiques de la transmission scolaire et à
l'apprentissage de savoirs modelés par les logiques de la culture écrite (2007, p. 32).
Diante das diferentes posições sociais dos alunos, estes dão respostas variadas à
atividade escolar e, assim, o que pode se mostrar como falta de interesse e indisciplina guarda
relação com as posições sociais nas quais estão inseridos fora dela. Sendo assim, assumimos
que as convergências ou divergências entre as práticas culturais escolares e aquelas mantidas
nas famílias sugerem maior ou menor aproximação entre os alunos e a escola. Durante o
19
Esta pesquisa se apresenta na forma de um estudo de caso, uma vez que a investigação
foi realizada em duas escolas estaduais, contando com a participação de duas professoras e
oito alunos do ensino médio. Entre a quantidade de instituições de ensino, de professores e
alunos a comporem a rede de escolas, este número pode parecer pouco representativo do que
se pode considerar como a realidade das instituições paulistas. Porém, este trabalho visa a
20
nos permitem “...revelar as coisas enterradas nas pessoas” (BOURDIEU, 2011, p. 708).
Quando se vive em uma dada realidade ela se torna muito conhecida e, ao mesmo tempo,
completamente estranha no que se refere às razões passadas e presentes que a fazem ser como
são. O trabalho do pesquisador, nesse sentido, pode ser ocasião para que se possa evidenciar
as condições de existência, nesse caso, no que se refere à vida na escola.
O esforço de especificação do que está em jogo nas trajetórias individuais em que se
traduz o que foi exposto acima deve seguir um caminho investigativo cuidadoso, do que
depende o conhecimento do campo a ser investigado e do controle do ponto de vista sobre o
problema de pesquisa, o que será descrito no capítulo 1. Ao nos situarmos em meio ao
cotidiano escolar, tínhamos um conhecimento advindo de nossa própria experiência de
escolarização, uma vez que estudamos em uma escola semelhante àquelas conhecidas durante
a pesquisa. Marília Amorim (2004) sustenta que “todo trabalho de pesquisa seria uma
tradução do que é estranho para algo de familiar” e vice-versa, logo, em nosso caso,
precisamos tornar estranho um ambiente que nos parecia conhecido. Durante toda a pesquisa,
fomos realizando o exercício de reconhecer e estranhar, uma vez que a escola, os professores
e as salas de aula nos faziam lembrar do passado, porém as relações instauradas atualmente
nada se aproximavam daquelas que conhecemos anteriormente. Nesse sentido, em nossa
própria experiência pudemos identificar o jogo de temporalidades que marca a escolarização
e, assim, conhecemos o outro e produzimos a pesquisa enquanto também nos conhecíamos
mais, no que se refere às estruturas que produzem sujeitos escolarizados. Por meio da
observação atenta do cotidiano procuramos localizar, assim, traços significativos das relações
entre escola e cultura, seguindo por um mapa cujas linhas eram parcialmente conhecidas, de
modo a localizar no corriqueiro as pistas para traçarmos relações temporais e sociais mais
amplas. Registramos e descrevemos, assim, as ações e modos de pensar de alunos e
professores – em confronto com as urgências escolares – de modo a encará-los como práticas
valiosas pelas trajetórias pessoais de que são resultado e, também, como traços de estruturas
escolares fundamentais para compreendermos as lógicas de funcionamento das mesmas, como
nos sugere Pierre Bourdieu (2011).
De modo a expor nossa pesquisa, a tese está organizada em quatro capítulos. O
primeiro, intitulado A construção de um objeto de estudos pelo cotidiano, temos como
objetivo apresentar as bases teórico-metodológicas da pesquisa. Iremos expor o ponto de vista
por meio do qual construímos a investigação sobre as disputas pela leitura legítima de obras
literárias no cotidiano escolar. Assim, situamos a cultura escolar como algo repleto de
temporalidades, o que coloca em jogo no presente um conjunto de sentidos para a literatura na
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obras literárias, os alunos veem seus modos de se relacionar com os livros reclassificados no
espaço escolar e, assim, eles são definidos como leitores ou não em função das imagens
escolares do bom leitor. Descreveremos, também, os sentidos atribuídos por eles à
escolarização ao vivenciarem cotidianamente as tensões entre suas representações de leitura e
as escolares bem como as relações com o conhecimento favorecidas pela escola.
* * *
Interessa à nossa pesquisa conhecer outras investigações que colocam em foco a
leitura, o que nos permite compreender alguns sentidos acerca da leitura enquanto um objeto
de investigação. Ao pesquisar os resumos de teses e dissertações acerca da leitura entre 1980
e 1995, Norma Sandra de Almeida Ferreira (1999) identificou que as pesquisas sobre leitura
giram em torno de algumas áreas: Educação, Psicologia, Letras, Lingüística, Biblioteconomia
e Comunicações. A primeira pesquisa sobre o assunto foi feita em 1965 por Maria José
Aguirre no Instituto de Psicologia da USP. A partir daí outros Programas de Pós-Graduação
passam a se interessar pelo tema, são eles os Programas de Letras/linguística, Educação e
Biblioteconomia. Observa-se uma tendência de crescimento das pesquisas sobre o tema,
principalmente, após os anos 1980:
“A narrativa cronológica das pesquisas sobre Leitura no Brasil revela que esta
história se inicia timidamente, com outros trabalhos. Se nos anos que antecedem a
década de 80, em período de 14 anos, foi possível identificar 22 trabalhos, verifico
que em tempo praticamente igual, de 1980-1995, o total de trabalhos é de 189”
(FERREIRA, 1999, p. 214).
No que se refere ao interesse das investigações conhecidas pela pesquisadora, ela nota
que a maioria das pesquisas trata das séries iniciais no ensino público. A maioria dos estudos
localizados trata do desempenho/compreensão da leitura, desenvolvidas prioritariamente na
área de Psicologia (FERREIRA, 1999). Contudo, outros focos1 de interesse das pesquisas
sobre a leitura estão espalhadas pelas outras áreas. Os objetos de pesquisa viram, na primeira
metade dos anos 1980, o predomínio de estudos sobre o leitor, tanto na escola quanto na
biblioteca. Na segunda metade da mesma década, aquele foco de interesse também é ampliado
para a compreensão da formação do leitor em perspectiva histórica. Nos anos 1990, Norma
Sandra de Almeida Ferreira (1999), sustenta que os interesses das pesquisas se voltam para as
1
Os outros focos são os seguintes: análise do ensino da leitura/ proposta didática, com 61 trabalhos; leitores -
preferências, gostos, hábitos, histórias e representações, com 25 trabalhos; professor/bibliotecário como leitor,
com 15 trabalhos; texto de leitura usado na escola, com 8 trabalhos; memória de leitura, do leitor e do livro, 6
trabalhos; concepção de leitura, com 3 trabalhos (FERREIRA, 1999).
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conhecimento foram produzidas entre os anos de 2010 e 2015. Os dados da autora indicam
que as Programas de Pós-Graduação em Educação, Letras e Psicologia concentram
atualmente os estudos sobre a leitura.
De modo a particularizar a compreensão dos estudos realizados na área de ensino de
literatura, passaremos a pequenos comentários de alguns trabalhos produzidos a partir dos
anos 1970 e que foram significativos para realizarmos aproximações à questão. Não
realizamos um levantamento exaustivo das teses e dissertações sobre a leitura, porém
procuramos selecionar algumas que configuram posições variadas a respeito da leitura,
sobretudo nas áreas de Educação e Letras.
Iniciaremos esse percurso pelos trabalhos sobre a leitura e seu ensino com o livro
Literatura/ensino: uma problemática, de Maria Theresa Fraga Rocco, dissertação de mestrado
defendida em 1975. O trabalho buscava apresentar um retrato do ensino de literatura no Brasil
e ao mesmo tempo oferecia caminhos para a busca de um ensino condizente com a nova
realidade educacional. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, a pesquisadora aplica
questionários em 178 alunos pré-adolescentes, 78 adolescentes e 31 professores. Por meio da
análise dos dados, a autora configura as representações sobre a leitura, o uso do livro didático
e sobre as finalidades do ensino definidas por professores e alunos. Na segunda parte, a autora
apresenta a entrevista que fez com “professores de literatura, críticos e/ou criadores, de
indiscutível renome” de modo a configurar uma bibliografia sobre o ensino de literatura.
Figuram nessa lista: Alfredo Bosi, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Lucrécia D’Alessio
Ferrara, Michel Launay, Nelly Novaes Coelho e Zulmira Ribeiro Tavares.
É de 1979 a tese de doutorado defendida por Marisa Lajolo sob o título Usos e abusos
da literatura na escola – Bilac e a literatura escolar na República Velha. A autora analisa a
produção de livros didáticos produzidos pelo escritor, a saber: Livro de composição (1899),
Livro de leitura (1901), Contos pátrios (1904), Poesias Infantis (1904), Teatro infantil
(1905), Através do Brasil (1910), Pátria Brasileira (1911). A autora realiza a análise interna
das obras, desde seus textos de abertura até os principais temas explorados, localizando o
modo como o arcaísmo se mostrava em sua produção. Por fim, relaciona os livros ao
momento histórico em que se situam. A obra tem como contribuição o estudo e a
problematização do livro didático como produtor de uma teoria literária e do próprio ensino.
De maneira mais arrojada que os livros precedentes, Ligia Chiappini Moraes Leite
apresenta o seu Invasão da Catedral: literatura e ensino em debate, fruto de pesquisa
realizada no Brasil e na França entre 1977 e 1978. A autora também busca uma descrição da
literatura e de seu ensino no Brasil, recorrendo à comparação, entretanto, ela apresenta uma
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postura mais “iconoclasta”, como definiu Marilena Chauí no prefácio do livro. A autora
realiza entrevistas com alunos do 1º e 2º graus, seguindo as mesmas perguntas propostas por
Maria Theresa Fraga Rocco três anos antes. No entanto, o referencial bibliográfico e o ponto
de partir de Ligia Chiappini são diferentes, pois ela pretende desconstruir a leitura e a
literatura como são ensinadas na escola e na Universidade, repensando o lugar sacralizado da
literatura e do autor nos meios acadêmicos.
Alice Vieira traz a dimensão do cotidiano do ensino com a tese Análise de uma
realidade escolar: o ensino de literatura no 2º grau, hoje, defendido em 1988. O trabalho
busca compreender como se passa a aula de Português e para isso entrevista 580 estudantes
para descobrir o que gostam de ler, a razão para a leitura e seus projetos de futuro.
Compreende ainda que a aula de literatura é conformada por uma série de constrições e,
dentre elas, investiga o vestibular como fator de conformação do ensino no 2º grau. É
importante assinalarmos que Alice Vieira incorpora outros elementos na compreensão da
literatura que pode ser usada em sala de aula. Ela afirma que seria preciso incorporar leituras
como os best-sellers em sala de aula, o que poderia favorecer uma empatia entre literatura,
professores e alunos, levando ao “acesso a textos mais elaborados”. Essa discussão é muito
constante nos trabalhos atuais.
Mabel Servidone (1993) pesquisa nas salas de aula das séries iniciais as maneiras
como a língua é produzida na sala de aula. Assim, o estudo Leitor e escritor ou o observador
distanciado, mostra em perspectiva do cotidiano o modo como a língua e, portanto, a leitura
na escola é construída, no processo de alfabetização, como algo distanciado da prática dos
alunos.
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo (1994) pesquisou os Caminhos e
cotidianos de uma professora de leitura e escrita. A partir de uma perspectiva do cotidiano, a
pesquisadora acompanhou as relações cotidianas de construção da língua e a cotidianidade de
uma sala de aula de alfabetização. Por meio de seu relato é possível encontrarmos várias
situações corriqueiras que nos permitem ver maneiras de as crianças se relacionarem com a
escrita e a leitura.
Difere deste grupo o trabalho de Antônio Augusto G. Batista, A aula de português:
discursos e saberes escolares, publicado em 1997, cujo objetivo foi compreender o que se
ensina quando se ensina português. No cruzamento de referencial teórico da sociologia da
educação, os estudos da linguagem e a linguística, o pesquisador realiza observações de aula
de Língua Portuguesa. Nesse cruzamento o autor vê a sala de aula como espaço de produção
de textos variados, orais e escritos, resultando numa dada construção da disciplina que
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demonstra aquilo de fato se ensina em Língua Portuguesa. É muito importante dizer que esse
trabalho é pioneiro no recurso à observação de aulas e produz dados que buscam definir como
se configura essa disciplina escolar, atentando para as formas de texto presentes na sala.
Por fim, citamos os trabalhos de Gabriela Rodella de Oliveira, que realizou a pesquisa
de mestrado O professor de português e a literatura: relações entre formação, hábitos de
leitura e prática de ensino (2008) e, no doutorado, As práticas de leitura literária de
adolescentes e a escola: tensões e influências (2013). Retomando a tradição dos anos 1970 e
1980, a autora realiza entrevistas e aplica questionários com professores e alunos do ensino
médio de modo a configurar as relações dos primeiros e dos últimos com a literatura, além de
construir uma imagem das aulas de Português. O trabalho é feito a partir da noção de leitura
literária e procura incorporar as perspectivas do leitor nas reflexões sobre a leitura.
Os trabalhos que apresentamos acima, embora não derivados de um levantamento
exaustivo, mapeiam formas tradicionais de discutir e utilizar recursos metodológicos na
pesquisa sobre leitura. Predominam os estudos de perfil quantitativo com a realização de
entrevistas e aplicação de questionários em larga escala. A exceção é dada por Antônio
Augusto G. Batista, Mabel Servidone e Maria Rosa Rodrigues Martins, que realizam
observações das aulas de Língua Portuguesa ou do cotidiano das séries iniciais. Os estudos
parecem confirmar o que Ana Cristina Champoudry Nascimento da Silva (2012) observou em
seu estudo, pois vemos que parece existir, de fato, uma preocupação com a busca por soluções
para o ensino de literatura. Acompanhamos também que os estudos da década de 1970
partiram da teoria literária para a produção das análises e, não por acaso, Antonio Candido
escreve o prefácio dos textos de Maria Theresa Fraga Rocco e Marisa Lajolo. A seguir, ao
referencial bibliográfico da teoria literária foram sendo incorporados outros advindos da
Sociologia e da Sociologia da Leitura (caso de Ligia Chiappini Moraes Leite e Gabriela
Rodela de Oliveira) e da Linguística (Antônio Augusto G. Batista).
Quando nos voltamos para os artigos produzidos em alguns periódicos científicos,
vemos que a literatura vem sendo construída como objeto a partir de diferentes perspectivas.
Para acompanhar tal movimento, realizamos um levantamento bibliográfico entre os anos
1995-2015 de modo a compreender essa hipótese. Não se trata de um levantamento exaustivo
de produções sobre leitura, porém buscamos localizar algumas imagens e opções recorrentes
no que se refere ao estudo sobre o tema em questão. As revistas analisadas foram as seguintes:
Educação & Pesquisa; Educação & Sociedade; Revista Brasileira de Educação; Cadernos
CEDES; Cadernos de Pesquisa; Pró-posições e Leitura: teoria & prática. Os artigos
28
encontrados sobre o assunto serão apresentados a seguir, em grupos. O quadro completo com
os títulos dos artigos está em arquivo anexo (ANEXO I).
Um conjunto significativo de artigos abordou o tema da alfabetização e do letramento
quando busca falar a respeito de leitura. Esse é o caso, por exemplo, do artigo escrito por
Claudemir Belintane, Leitura e Alfabetização no Brasil: uma busca para além da
alfabetização (Educação & Pesquisa, 2006). Além disso, também podemos citar Letramento
no Brasil: alguns resultados do indicador nacional de alfabetismo funcional de Vera
Masagão Ribeiro, Claudia Lemos Vóvio e Mayra Patrícia Moura (Educação & Sociedade,
2002).
Outro grupo de artigos abordou o estudo dos impressos escolares, sejam eles os livros
de leitura, os cadernos e coleções, com ênfase no primeiro caso. Podemos citar como
exemplos desse grupo os artigos: Livros escolares de leitura: uma morfologia (1866-1956),
de Antônio Augusto Gomes Batista (Revista Brasileira de Educação, 2002); Reading as a
cultural practice: concepts for the study of schoolbooks, de Elsie Rockwell (Educação &
Pesquisa, 2001).
É significativo o número de artigos que podem ser situados na área de História da
Educação. Entre eles podemos citar Letrados da Amazônia imperial e saberes das populações
analfabetas durante a Revolução Cabana (1835 – 1840), de Magda Ricci, Luciano Demetrius
Barbosa Lima (Revista Brasileira de Educação, 2015); Educação, literatura e cultura da
infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes, de Patrícia de Cassia
Pereira Porto (Educação e Sociedade, 2014).
A literatura também aparece na relação com o ensino, o que podemos notar por meio
dos artigos: Mediações on-line em cursos de educação a distância os professores de língua
portuguesa em questão, de Flaminio de Oliveira Rangel et al. (Revista Brasileira de
Educação, 2015); Contribuições da literatura infantil para a aprendizagem de noções do
tempo histórico: leituras e indagações, de Ernesta Zamboni e Selva Guimarães Fonseca
(Cadernos CEDES, 2010). Notemos que no último caso a literatura é fonte para o ensino de
história. Alguns artigos falam de práticas escolares, como Dispositivo analítico para
compreensão da leitura de diferentes tipos textuais: exemplos referentes à Física, de
Almeida, Maria José P. M. de Almeida e Sorpreso, Thirza Pavan Sorpreso (Pro-Posições,
2011).
Alguns artigos abordam a leitura não escolar ou em espaços variados, quando as
discussões em torno da leitura virtual ganham força. Vejamos: Novas práticas de leitura e
escrita: letramento na cibercultura, de Magda Soares (Educação e Sociedade, 2002); Leitores
29
rurais: apropriação ético-prática nos sentidos atribuídos à leitura, de Lisiane Sias Manke
(Revista Brasileira de Educação, 2015).
Por fim, existem alguns trabalhos que abordam as relações entre a literatura – na
forma de romances autobiográficos e romances de formação em suas possíveis relações com a
pedagogia e a educação. Esse é o caso do artigo Como salvar a educação (e o sujeito) pela
literatura: sobre Philippe Meirieu e Jorge Larrosa, de Flávio Henrique Albert Brayner
(Revista Brasileira de Educação,2005). Nesse grupo também poderíamos inserir o artigo
Pedagogia e museificação, de Denice Catani (Revista USP, 1990).
Existem, ainda, outros artigos que visam abordar as questões de leitura levando em
conta as aproximações entre suas práticas e questões sociais. Esta abordagem do problema
pudemos encontrar, sobretudo, na revista Leitura: teoria & prática. Entre eles, podemos
mencionar Prática social de leitura na escola e na sociedade, de Telma Ferraz Leal (1999);
Compreensão de textos e classe social, de Marco Antônio Rodrigues Vieira e Guy Denhière
(1998); Uma leitura de leituras produzidas por grupos socias diferentes, de Heliana Maria e
Brina Brandão (1992).
Como procuramos observar, quando a leitura e a literatura se tornam objeto do campo
educacional ela pode ser tomada como fonte para estudos variados, aparece como um
conjunto de impressos que compõe o cotidiano escolar, tem seu papel situado entre a
alfabetização e o letramento e também é pensado a partir do ensino e da formação de
professores. Contudo, trata-se de práticas ou experiências de ensino associadas a diversas
disciplinas. As fontes e metodologias presentes nos trabalhos variavam segundo os objetivos e
áreas de origem dos pesquisadores. Contudo, vemos as características de pesquisa do campo
educacional entre os trabalhos descritos.
Como desafio para a produção de nossa tese reside a necessidade de construirmos no
campo educacional um objeto que detêm um espaço institucionalizado na área de ensino de
Português. Como poderíamos, assim, constituir bases teóricas e metodológicas para a
produção da tese?
Nesse momento, procuramos recorrer ao referencial bibliográfico francês produzido
no campo educacional e que abordava a problemática da leitura escolar. Realizamos um
levantamento bibliográfico em revistas francesas de educação em busca de artigos publicados
entre 1995 e 2015. As revistas pesquisadas foram as seguintes: Revue Française de
Pédagogie (1967); Revue Française de Sociologie (1960); Éducation et Sociétés (1998); Actes
de la Recherche en Sciences Sociales (1975); Revue de Sciences de l’Éducation
(1975). Passemos a uma aproximação aos artigos encontrados.
30
Alguns artigos buscam realizar uma descrição um pouco mais geral da leitura, como é
o caso de Lire au collège et au Lycée: [de la foi du charbonnier à une pratique sans
croyance] (1998), de Christian Baudelot e Marie Cartier, publicado na revista Actes ou La
lecture scolaire comme pratique culturelle: concepts pour l’étude de l’usage des manuels
(2006), de Elsie Rockwell, em Éducation et Sociétés. Mais relacionados a esses trabalhos
vemos outros que procuram se aproximar das práticas de ensino de literatura. Esse parece ser
o caso de Concevoir des communautés de lecteurs: la gestion de la classe dans une
didactique interacionniste (1999), de Sabine Vanhulle e de Les cercles littéraires entre pairs
en première secondaire: étude des relations entre les modalités de lecture et de collaboration
(2004), de Manon Hébert, ambos publicados na Revue de Sciences de l’Éducation.
Outros conjuntos de textos procuram evidenciar as relações entre o ensino de literatura
e suas aproximações tanto com a cultura dos alunos, quanto com o fato dessa relação entrar
em jogo na avaliação escolar. Épreuves et prouesses de l’esprit littéraire (1998), escrito por
Louis Pinto em Actes ou mesmo, em relação ao projeto de formação estética da escola, L’art
pour éduquer. La dimension esthétique dans le projet de formation postmoderne (2007), de
Alain Kerlan, publicado em Éducation et Sociétés. A Revue Française de Sociologie nos
oferece o artigo de Philippe Coulangeon que questiona exatamente esse papel cultural da
escola, com o artigo Lecture et télévision: les transformations du rôle culturel de l’école à
l’épreuve de la massification (2007).
Tal perspectiva requer outra visada com relação às questões de literatura na escola, pois
poderíamos pensar que elas nos ajudam a compreender questões mais gerais com relação às
aproximações entre a escola e a cultura; os padrões culturais legítimos e suas repercussões em
uma escola que passou pela expansão; os efeitos da escola em alunos com diferentes habitus;
uma volta à realidade escolar, tema tão caro aos estudos educacionais.
32
33
Um grupo que está na frente da mesa da professora é composto por duas meninas e
um menino. Uma delas copia a lição e as outras mexem no celular. Outro grupo está
no canto direito da sala e é formado por cinco alunos, três meninos e duas meninas.
Eles estão sentados em roda, em cima das carteiras e no colo uns dos outros.
Conversam predominantemente sobre as festas das quais participam. Falam também
sobre os casais, quem está ficando com quem e sobre música.
(Observação feita no dia 4 de novembro, 1º ano A)
Nosso objeto de pesquisa foi constituído a partir das inúmeras relações cotidianas
presentes na escola, algumas das quais podem ser conhecidas pelo trecho de nosso Diário de
Campo em epígrafe. Entre as conversas dos adolescentes e adultos sobre suas atividades de
lazer, modos de significar comportamentos dos colegas, reflexões sobre o mundo do trabalho,
jogos e músicas presentes nos celulares, as reações das professoras e suas maneiras de lidar
com os grupos formados nas turmas, foram buscados os conflitos pela leitura legítima de
obras literárias na escola. Para tanto, efetuamos em 2014 observações das aulas de Língua
Portuguesa ministradas em duas turmas do 1º ano do ensino médio na Escola 1 e em uma
turma de EJA na Escola 2, assim como realizamos entrevistas semiestruturadas com duas
professoras e oito alunos, além de aplicarmos questionários com 69 alunos do ensino médio
da Escola 1 e analisarmos os currículos e materiais didáticos utilizados nas aulas. Ao tomar a
cotidianidade como ponto de partida e espaço de síntese de nossa investigação, foi preciso
construir teoricamente tal lugar e as maneiras como as relações com a linguagem poderiam
ser constituídas como objeto de estudo, esforço que pretendemos realizar no capítulo que se
segue.
Nosso intuito foi o de compreender como as representações de alunos e professoras
entravam em tensão na sala de aula e, assim, produziam as condições para a constituição de
uma cultura legítima por meio das relações objetivamente instauradas na sala de aula. Para
tanto, buscamos situar, a partir das contribuições de autores como José Mário Pires Azanha,
Dominique Julia e Joël Zaffran as características do cotidiano, considerando que a escola é
uma instituição cuja objetivação de suas ações pedagógicas tem intencionalidade e sentidos
temporalmente articulados que geram contornos específicos aos conflitos vividos entre
professores e alunos - o que nos mostrou outra vertente de tensões na pesquisa, pois em
alguns momentos observamos professoras e alunos colocando as normas e regras escolares
em discussão. Ao mesmo tempo, consideramos que as ações cotidianas dos participantes da
pesquisa seguiam uma razão social, ou seja, os conflitos, as negociações e os acordos pelos
34
Como a exposição feita nos parágrafos anteriores sugere, não tomamos um autor como
central para a pesquisa, mas a partir da perspectiva sócio-histórica (NOVOA, 1991) buscamos
as referências que nos permitem constituir nossa perspectiva teórica, da qual decorrem nossas
escolhas metodológicas. A seguir, portanto, a partir dos conceitos de representações, cultura
escolar, habitus e práticas de leitura apresentaremos os caminhos para a produção da
pesquisa.
2
Pierre Bourdieu (2015) se refere ao termo reclassificação no artigo Classificação, desclassificação e
reclassificação, que descreve as estratégias de reconversão de capitais utilizadas por indivíduos para manterem
ou melhorarem suas posições no espaço social. Ao se referir a uma mudança estrutural na relação entre diplomas
e ocupação de cargos de trabalho, o autor demonstra a forma como a utilização recorrente do sistema de ensino
pelas diferentes classes e a consequente perda de raridade e valor de alguns diplomas leva a processos variados
de reconversão de capitais sociais e econômicos de modo a alterar ou criar profissões para que se possa manter
as posições sociais. Nesse processo os indivíduos podem ser reclassificados em função das mudanças
morfológicas das carreiras e seus requisitos, gerando a desclassificação desses indivíduos ou a reclassificação
dos mesmos, do que depende o valor dos capitais disponíveis e as estratégias exitosas de suas reconversões. Em
nosso trabalho, sempre que nos referirmos ao termo, ele nos ajudará a descrever o modo como os alunos e as
professoras veem suas representações de leitura ganhando novos valores ao serem reclassificadas no espaço
escolar, cuja morfologia é marcada por sua cultural própria temporalmente organizada, a qual também pode ser
alterada em função das pressões exercidas por eles. Queremos evidenciar, portanto, que assim como o espaço
social mais amplo, as disputas pela leitura legítima de obras literárias na escola pretendem descrever sistemas de
relações objetivas cujas posições e tomadas de posições determinam relacionalmente - e em sentido positivo ou
negativo em função dos capitais disponíveis - a cultura linguística valorizada na escola.
35
Bonnéry (2007), que ao pesquisar a produção do fracasso escolar na escola partiu da hipótese
que ele não existiria antes do processo de escolarização e, portanto, seria preciso acompanhar
como em meio às aulas, às atividades e às interações entre professores e alunos o fracasso
seria paulatinamente produzido. Caso semelhante ocorre com Maria Helena Souza Patto
(1991), ao também investigar a produção do fracasso na escola, o que a levou a uma
observação atenta das relações sociais lá estabelecidas como circunstâncias de criação de
destinos escolares e possibilidades de futuro. Disputar, portanto, a cultura legítima no espaço
escolar significa algo essencial na definição de aspectos fundamentais da vida de alunos e
professores.
Uma das preocupações envolvidas na produção de pesquisas acerca do que se passa no
cotidiano ou na realidade escolar se situa na intenção de descrever e representar o que de fato
acontece em seu interior. A esse respeito, José Mário Pires Azanha (2011) salienta que isso
não significa, necessariamente, maior conhecimento acerca de sua realidade. Em muitas
circunstâncias, proposições teóricas vindas de áreas diversas como a sociologia e a psicologia
fornecem interpretações a priori que explicam o cotidiano escolar. Nesses casos, quanto mais
se toma a escola como referência, menos se sabe sobre ela, uma vez que as relações sociais
instauradas em seu interior são repostas a partir de lógicas advindas da teoria e não de suas
especificidades. Consideramos, assim, que seria preciso levar em conta que os alunos, a
professora e a leitura ganham significados ao serem tomados como resultantes do “[...] jogo
das complexas relações sociais que ocorrem no processo institucional da educação”
(AZANHA, 1990/1991, p. 66). A partir de tais relações as características da leitura legítima
de obras literárias são engendradas e, por isso, as ações corriqueiras ganham muito significado
para nós, assim como a maneira como elas são descritas e representadas por nossos
entrevistados. Não podemos desconsiderar que a realidade humana é produzida exatamente no
cotidiano, nas inúmeras ações corriqueiras que constituem até mesmo as experiências mais
extraordinárias, como nos lembra José Mário Pires Azanha (2011). É particularmente
importante tomar esta afirmação quando consideramos os estudos educacionais, uma vez que
a escola e a sala de aula são frequentemente vistas como os lugares do trivial, da repetição,
enfim, o que se passa nesse local não costuma ser considerado digno de registro. A esse
respeito, Anne-Marie Chartier (2000) sustenta que ao olharmos para a sala de aula temos a
impressão de que ali se passam várias ações sem sentido aparente. As situações em que os
alunos são interpelados pelos professores, as contínuas repetições de comandos, as idas e
vindas nos conteúdos de ensino, entre outras práticas comuns, parecem amenidades sem
36
Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas
que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de
práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar
segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de
socialização) (JULIA, 2001, p.10).
Tal definição visa nos mostrar que, a partir do momento em que a escola passa a
funcionar em um espaço específico destinado ao ensino, quando os cursos tornam-se
graduados em níveis e um corpo profissional recrutado e formado se articula, temos as bases
para a constituição de uma cultura escolar. Tal cultura é influenciada por normas e regras que
os professores e alunos são chamados a respeitar e, portanto, componentes de suas práticas e
agentes de sua produção no cotidiano; ao mesmo tempo, a escola não é uma instituição fora
do tempo e, por isso, ela se aproxima de modos de pensar e agir em circulação na sociedade;
assim como as culturas dos alunos também se mostram em seu cotidiano (JULIA, 2001).
Espaço em que diferentes agentes e forças sociais estão em relação, a escola está,
diferentemente do que a constância de sua forma nos sugere, realizando novas negociações
com as gerações que a frequentam, com as mudanças das mentalidades sociais e perfis
profissionais. Como consequência dessa perspectiva, acompanhar tal movimento no interior
de uma escola pode evidenciar como diferentes instituições articulam suas finalidades
educativas diante dos desafios que possam enfrentar e nos permite conhecer o que se passa em
seu interior. Antonio Viñao Frago também produz uma definição de cultura escolar. Para o
autor, a cultura escolar é:
Para qualquer compreensão das culturas escolares não podemos ignorar a história.
Isto porque a escola é uma instituição na qual confluem múltiplas estruturas sociais e
temporalidades: o tempo que formaliza práticas (estruturas de longa duração, com
ritmos lentos de transformação); o tempo dos marcos de intervenção política e
organização escolar (em conjunturas de média e curta duração) os tempos dos
discursos pedagógicos e enunciados pelos professores para orientação e tomada de
decisões, que circulam no âmbito das escolas, e se constituem em saberes
engendrados na prática (muito sensíveis à mudança, aos ritmos rápidos da circulação
de leituras e prescrições e urgências pedagógicas) (MORAES, 2015, p. 2-3, grifos
nossos).
escola tomou para si o tempo da educação das crianças e também produziu em seu interior,
como afirma Rita de Cassia Gallego (2008), os mecanismos temporais de sua produção. De
acordo com Agustín Escolano Benito (2008), é por meio dele que se orienta o trabalho
pedagógico; além disso, ele também é central, pois influencia a concatenação do currículo e
do espaço. Pierre Bourdieu (1989) sustenta também que uma instituição é produzida pelas
ações de seus sujeitos, o que coloca em jogo a história na forma objetivada e incorporada. No
primeiro caso, a história se faz presente pelos objetos que puderam acumular o passado
institucional, neste caso, os livros didáticos e currículos são documentos que nos permitem
ver as formas de apresentação das questões em análise; já a história incorporada diz respeito à
produção do habitus, trabalho feito no mundo natal, como definido por Pierre Bourdieu
(2007), que permite a incorporação da história, dos jogos passados e atualizados no presente,
isto é, devemos nos perguntar como professoras e alunos, cujas posições sociais serão
descritas, produzem sentidos no presente para a leitura de obras literárias a partir do acúmulo
de experiências vividas no passado. Em nossa pesquisa não nos interessa tomar o tempo como
objetivo de análise, mas sim perceber que as regularidades sociais e escolares referentes à
leitura são aspectos estruturantes de nosso problema de pesquisa e serão explicitados sempre
que se tornarem cruciais para a exposição de nossa análise.
Com isso, consideramos que a intencionalidade formativa da escola está estruturada,
portanto, a partir da regularidade de suas ações, observada por meio das maneiras de agir
sobre os alunos que concretizam uma dada formação de seus corpos e mentes (ZAFFRAN,
2006). A escrita e a leitura desempenham papel central na arquitetura dessa temporalidade,
uma vez que a especificidade da educação escolar está baseada também na existência de
saberes escritos. Dessa forma, opera-se um tipo de socialização escolar pela escrita, ou
melhor, pela lógica escrita que produz alunos capazes de fazerem parte dos jogos sociais
organizados por seu intermédio assim como da leitura. Ao se tornar espaço privilegiado para
dotar os alunos de disposições linguísticas necessárias à inserção social, somos obrigados a
notar que a produção do leitor operada pela escola deve ter espaço e tempo na trama de sua
regularidade como condição para o êxito de sua intencionalidade educacional (LAHIRE,
2008). No que se refere à literatura, a incorporação de romances, poemas, contos e peças de
teatro como parte dos materiais de escolarização é coincidente com a criação da educação
escolarizada. Seja como meio de se fazerem exercícios de leitura, cópia, memorização
ortográfica e gramatical ou oportunidade de recitação, a literatura foi chamada a cumprir seu
papel na incorporação dos tempos escolares.
40
Precisaríamos pensar que por meio da leitura a escola vai produzindo seus alunos, os
quais incorporaram pelas atividades e frequência com que são exigidas, por exemplo, uma
maneira de organização do corpo, de contenção do ímpeto para a realização de uma atividade
silenciosa, o hábito de iniciar e terminar um volume seja ele qual for, fazendo com que as
atividades de leitura sejam parte importante da socialização escolar. Ao mesmo tempo, a
escola produz seu leitor, ou seja, define formas legítimas de apropriação do universo literário
bem como seus representantes em uma sociedade em que existem leituras e leitores
diferentemente valorizados. Pierre Bourdieu (1996) demonstra, por exemplo, o modo como a
criação e especialização do campo literário fez com que seus agentes pudessem estabelecer as
bases para a produção do olho capaz de realizar a leitura de obras literárias mais valorizada
em seu interior, o que gera a necessidade de capitais específicos de candidatos a escritores,
críticos e outros leitores especializados; Bernard Lahire evidencia que as diferentes carreiras
produzem e ao mesmo tempo exigem maneiras distintas de se apropriar e circular pelos
impressos, o que faz com que alguém que siga na área de humanas, por exemplo, desenvolva
perfil de leitura muito variado de quem está na área de exatas. Esses exemplos indicam que os
modos de apropriação da leitura constituem traços distintivos significativos e possibilitam
diferentes inserções sociais. A esse processo de formação escolar por meio da relação com a
linguagem, Bernard Lahire deu o nome de matriz socializadora escolar-universitária, ideia
que nos é cara e será explicitada no capítulo 2. Que pese o discurso de desvalor da leitura
literária, não devemos desconsiderar que o mundo virtual está repleto de leituras e a escola
não é um ator ingênuo na produção dos leitores propensos a circularem em seu interior; além
disso, para além do discurso de que os alunos não leem, é preciso compreender as
características de sua relação com a cultura. Como se faz isso hoje em dia? Como se
organizam temporalmente as atividades ligadas à leitura de obras literárias e quais são seus
sentidos formativos? Quais seriam as negociações com as demandas do presente necessárias à
efetivação de uma intencionalidade formativa por meio da leitura?
Se, como indicamos anteriormente, a escola é organizada de modo a produzir sua
intencionalidade educativa, não se pode conferir poder total às investidas estatais. Interessa-
nos saber o modo como, de acordo com as regras da cultura escolar praticada nas duas escolas
pesquisadas, efetivam-se as ações de produção do leitor. Nesse sentido, para além da
compreensão das iniciativas temporalmente organizadas da escola, é preciso notar como
alunos e professoras tensionam e trazem para o cotidiano as representações sociais
constituídas em suas experiências não-escolares. A esse respeito, Régine Sirota nos apresenta
ideia importante sobre as relações sociais instauradas na escola:
41
A autora acima referida sustenta que os tempos escolares são sempre tensionados no
cotidiano por meio dos sentidos atribuídos a eles pelos alunos e pelos professores. Ao
notarmos que as relações temporais escolares incidem diretamente sobre as relações com a
linguagem, podemos pensar que as representações de leitura dos estudantes e das professoras
problematizam as intencionalidades formativas escolares e são motores das relações sociais
que impulsionam as ações de suas interiorizações no cotidiano e, assim, fazem acontecer a
produção e classificação dos leitores. Tais representações, por sua vez, seriam engendradas
nas trajetórias sociais desses sujeitos. Como enfatiza a autora francesa “Toute pratique
scolaire est une métaphore de l'ensemble des pratiques sociales d’un individu” (1988, p. 10).
Nesse sentido, os conflitos escolares ou os problemas pedagógicos não podem ser
considerados como puramente escolares, já que muitos conflitos sociais se apresentam sob a
forma de problemas escolares. É preciso compreender que o cotidiano escolar como fato
social:
Dessa forma, localizamos as disputas pela leitura legítima de obras literárias na escola
como circunstâncias significativas para que os alunos produzam ou sejam produzidos como
detentores de disposições linguísticas escolarizadas, o que se faz no jogo cotidiano de
classificação e reclassificação de suas representações de leitura no cotidiano. Atos de
indisciplina, piadas, olhares, entre outras interações ocorridas no cotidiano podem ser indícios
que precisam ser decifrados para que possamos notar as formas explícitas e implícitas por
meio das quais se operam negociações pela relação mais valorizada com a linguagem. Nesse
caso, é preciso que se efetive uma descrição densa do cotidiano para que se busquem as
lógicas dessas relações que podem efetivar as produções do leitor na escola. A definição de
cultura dada por Clifford Geertz (2008) pode nos ajudar a construir, como metáfora, nossa
ideia sobre como interpretar o que foi observado em sala de aula:
42
Segundo sua definição de cultura, Geertz enfatiza que esta é um conjunto de teias de
significados que o próprio ser humano criou. Nesse sentido, ao pesquisador caberia interpretar
e analisar tais teias para compreender determinada cultura. Uma vez que a escola constitui
uma cultura, esta também pode ser conhecida por meio da observação atenta de sua trama, da
qual fazem parte professores e alunos. Para tanto, procuramos realizar uma observação densa
do cotidiano de modo a “[...] tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas
densamente entrelaçados” (GEERTZ, 2008, p. 19-20). Devemos mencionar que José Mário
Pires Azanha se refere à análise de Geertz a partir da célebre descrição da briga de galos em
Bali e o modo como ela pode revelar as tramas do cotidiano:
Por meio de tal esforço poderíamos nos aproximar do ideal proposto por Anne-Marie
Chartier (2000) e atribuir importância às ações escolares corriqueiras, espaço em que também
se dão os conflitos pela leitura de obras literárias.
De modo a descrevermos essa cultura, para além dos objetos do cotidiano escolar, dos
currículos e livros didáticos, também é preciso estabelecer algumas bases para situarmos as
representações de professores e alunos. De acordo com Roger Chartier (1991a; 1991b), o
conceito se refere a formas mentais que orientam as ações dos sujeitos. Ao explicar a ideia de
representação, o autor insiste que ela pode ser compreendida como uma maneira de se
apresentar algo que está ausente e, ao mesmo tempo, criar uma imagem do objeto. Nesse
sentido, os grupos sociais criam para si, para os objetos, relações sociais, entre outros,
imagens públicas que pretendem diferenciá-los e classificá-los no instante em que os separam
dos outros (CHARTIER, 1991a; 1991b). Logo, ao criarem feições para sua relação com a
leitura, os sujeitos estariam sintetizando uma forma de se posicionar no real e dar sentidos a
ele. Pierre Bourdieu também sustenta que as representações são formas de classificação,
constituídas a partir do mundo natal, que constroem as possibilidades sociais dos sujeitos
(BOURDIEU&WACQUANT, 2014). Sua produção tem relação, portanto, com uma dada
inscrição social e desse modo, o conceito de habitus, formulado por Pierre Bourdieu (2007) é
útil para pensarmos sobre as representações de leitura.
43
Podemos compreender da passagem anterior que ao ser definido como uma estrutura
estruturada, o habitus se constitui na interiorização de modos de funcionamento da realidade
que já existiam antes do nascimento de qualquer agente e se relacionam à posição social
ocupada por ele, ou seja, as variadas posições sociais podem gerar sistemas de disposições
também variadas. Ao mesmo tempo, o habitus é uma estrutura estruturante, pois além de uma
dada interiorização de regras sociais, ele supõe uma forma de classificação social capaz de se
constituir em esquemas que geram novas práticas. Tal visada permite definir o habitus como
espécie de esquema que gera novas ações diante de todas as situações e se baseia no cálculo
ou antecipação de consequências a partir das experiências anteriores (BOURDIEU, 1983).
Efetua-se a operação de “[...]transformação do efeito passado em futuro esperado, resta que
elas se definem em primeiro lugar em relação a um campo de potencialidades objetivas,
imediatamente inscritas no presente, coisas a fazer ou a não fazer, a dizer ou a não dizer [...]”
(idem, p. 62). Enquanto interiorização de determinada posição social, o habitus gera a criação
de aspirações e possibilidades ajustadas a esse determinado espaço.
Ao compreendermos a sala de aula como um espaço socialmente estruturado,
podemos pensar que as ações mantidas por alunos e professores guardam relações com seus
habitus e geram a cultura escolar daquela escola e, assim, as práticas presentes em seu interior
são fruto de uma “relação dialética entre uma situação e um habitus”. Na medida que este
último funciona como um princípio gerador, ele cria práticas que reproduzem as constantes
relações em que vivem os agentes, mas se adaptam ao rendimento das ações em situações
determinadas. Nas palavras de Bourdieu:
44
Deve-se levar em conta, também, que a leitura é sempre uma prática encarnada em
gestos, em espaços, em hábitos. Distante de uma fenomenologia que apaga qualquer
modalidade concreta do ato de ler e o caracteriza por seus efeitos, postulados como
universais ...uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições
específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura
(CHARTIER, 1999, p. 13).
Uma vez construído nosso objeto de pesquisa a partir dos referenciais teóricos
explicitados acima, buscamos caminhos metodológicos que nos possibilitassem meios para
recompor os fios da experiência acerca dos conflitos pela leitura legítima de obras literárias na
escola. Como procuramos indicar anteriormente, configurar as tensões com relação à
linguagem na escola supõe articular aspectos diversos que regem movimentos de criação de
leitores no cotidiano em meio a lógicas escolares e não-escolares entrelaçadas no dia a dia das
instituições conhecidas na pesquisa. Procuramos, portanto, por relações objetivas que dão
sentidos e significados ao objeto em questão a partir de posições diversas, sejam elas dos
alunos, das professoras e do Estado, o que nos leva à descrição de um espaço difícil pelos
embates que tantos pontos de vista podem gerar. Pierre Bourdieu (2011) salienta que esses
lugares difíceis, como os conjuntos habitacionais que pesquisou, impõem desafios para sua
descrição e para a construção de uma imagem que respeite o mosaico dessa realidade. Não
existe, portanto, como o autor sustenta, um caminho metodológico seguro que garanta o êxito
da pesquisa - até porque todas essas palavras podem comportar definições variáveis e
contrastantes. José Mário Pires Azanha (2011) também sustenta que, no que se refere às
pesquisas que partem do cotidiano, não existe o método correto, o que é para ele contrário à
investigação científica.
Nesse sentido, buscamos caminhos metodológicos que nos pareceram mais indicados
para configurarmos nosso objeto de pesquisa segundo o referencial teórico que construímos, a
saber: as observações das aulas de Língua Portuguesa no ensino médio; recolha e análise dos
usos dos livros didáticos presentes nas aulas; análise dos currículos estadual e federal em
vigência; entrevistas com alunos e professoras; e um questionário com os alunos do ensino
médio regular a respeito de suas práticas de leitura. Optamos por realizar a pesquisa no ensino
médio, pois nesse nível de ensino a literatura é abordada com maior complexidade e em
sentido diverso daquele presente no ensino fundamental I, que preza pela formação do leitor
de modo mais amplo. O ensino médio tem como tradição favorecer relação com as bases da
leitura literária e, assim, aprofundar o que foi aprendido no ensino fundamental I.
professoras e aluno, alunos e alunos, enfim, circunstâncias em que a linguagem foi tensionada
na escola. A realização das entrevistas teve como objetivo identificar os sentidos atribuídos
pelos alunos e professoras às aulas de Língua Portuguesa, bem como identificar as
representações de leitura dos mesmos. O mosaico construído a partir desses elementos nos
permitiu reconstituir as relações objetivas em torno da linguagem nas duas escolas de ensino
médio em que a pesquisa aconteceu. Nosso corpus de pesquisa foi analisado em duas
vertentes de modo a identificar os aspectos considerados significativos para a compreensão de
nosso objeto de pesquisa: por um lado, atentamos para os traços do que identificamos como
característico das práticas de leitura em circulação na escola e nas entrevistas; por outro lado,
buscamos as regularidades temporais que sustentam as mesmas no espaço escolar e familiar.
A seguir apresentamos algumas especificidades das fontes utilizadas.
Por meio das observações, buscava compreender o modo de funcionamento das aulas
de Língua Portuguesa em diferentes sentidos: o primeiro, e talvez o mais obviamente ligado
ao objeto de pesquisa, seria o de verificar, preferencialmente, como se davam as relações
entre alunos e professoras em torno da leitura e da literatura, mas também a respeito de
questões mais amplas e imprevistas pela pesquisadora inicialmente; o segundo sentido seria a
tentativa de compreender como a aula de Língua Portuguesa era estruturada pelas professoras
nas duas escolas. Identificamos o emprego do tempo utilizado por elas, os materiais
utilizados, as principais atividades propostas aos alunos, entre outros; por fim, tentamos
compreender qual era o lugar da literatura durante as aulas, isto é, quando ela era mencionada
e utilizada, para quais fins era introduzida, os títulos selecionados, a relação com outros
aspectos do ensino, como o conteúdo gramatical. Seguindo as indicações relativas à postura
do pesquisador durante as observações das aulas, procuramos não interferir no funcionamento
da sala de aula, sabendo que nossa presença ali já produzia um caráter excepcional para elas.
Procurávamos variar os locais onde me sentava de modo a ter diferentes pontos de vista sobre
a sala de aula. O registro das observações de aula deu origem aos Diários de campo que
podem ser encontrados no Anexo II.
De modo a construirmos nosso objeto de estudo, também realizamos entrevistas
semiestruturadas com oito alunos e duas professoras, cujas perguntas estão no Anexo III, de
modo a compreendermos seus pontos de vista em sala de aula. Durante as entrevistas,
buscamos nos situar a partir da postura sugerida por Pierre Bourdieu e nomeada como ativa e
metódica
ao final do ano, após o encerramento do ano letivo (Anexo VII). A professora Valquíria foi
entrevistada na casa da pesquisadora, lugar escolhido pela própria professora. Já a entrevista
com a professora Celeste começou em uma padaria a meio caminho entre a escola e sua casa,
com uma continuação na escola.
Questionários
Após a realização das observações de aulas e realização das entrevistas, sentimos falta
de dados mais gerais que possibilitassem a compreensão das características dos alunos
participantes da pesquisa em comparação com seus colegas de turma. Com tais dados,
poderíamos situar suas preferências literárias, locais de compra, entre outros, nos hábitos mais
gerais da turma. Assim, no final de 2015, voltamos à Escola 1 e pedimos autorização para
passarmos o questionário nas duas turmas em que realizamos a pesquisa. Ainda que os alunos
já estivessem no 3º ano do ensino médio, consideramos que as informações dadas por eles
poderiam contribuir com a análise de nossos dados, pois se tratava do mesmo conjunto de
estudantes. Não foi possível aplicarmos o questionário nas turmas da Escola 2 porque eles se
formaram ao final de 2014.
A confecção do questionário seguiu o interesse de mapear a escolarização e profissão
dos pais dos alunos bem como alguns traços de suas opções literárias e, para isso, tomamos as
informações as referências que tínhamos sobre as turmas para a escolha das questões. O
questionário foi respondido, ao todo, por 69 alunos do ensino médio regular nas duas turmas
em que realizamos as observações. As informações obtidas por meio dessa fonte foram
utilizadas apenas para situarmos as práticas dos alunos da Escola 1 e o modelo do
questionário está no Anexo V.
Currículos
Documentos federais:
Documento estadual:
Para além de fontes para a compreensão de disputas sociais mais gerais, os currículos
são partes da produção dos conhecimentos efetivados em sala de aula. Como afirma Jose
Gimeno Sacristán (1998), os currículos adquirem significados nos contextos em que são
inseridos e, certamente, a sala de aula é um deles. Na relação com livros didáticos, conteúdos,
alunos e professores ele ganha sentidos. Nesse sentido, pesquisadoras como Nilda Alves e
Inês Barbosa de Oliveira (2010) abordam os currículos a partir do cotidiano, ponto de vista
que permite ver as práticas curriculares compostas de saberes e fazeres pouco coerentes,
advindos das redes de referência docentes. Logo, estamos pensando que os documentos
51
A análise dos currículos também se valerá das menções ao passado, sempre que isso
for importante em nossa exposição, por meio da aproximação dos currículos vigentes a
documentos produzidos anteriormente. Sendo assim, tentaremos compreender as
especificidades dos documentos atuais no jogo de suas temporalidades, ao mesmo tempo em
que situaremos os currículos como elaborações do presente, no cotidiano. Decorre dessas
afirmações que os currículos e mesmo a seleção cultural são produzidas também no cotidiano,
nessas dimensões temporais. Jean-Claude Forquin (1996) sustenta que os saberes ensinados
pela escola foram estabilizados ao longo do tempo, pelo pertencimento a sistemas simbólicos,
sendo o currículo um deles. Entretanto, atualmente os questionamentos sobre as escolhas
culturais escolares estão muito presentes. Autores como Forquin, Sacristán e Inés Dussel
(2009) afirmam que na atualidade é difícil encontrar uma cultura comum a ser ensinada na
escola. Como afirma Inés Dussel (2009), tem-se criticado, por exemplo, o fato de que a voz
dos alunos e de sua cultura não estaria sendo ouvida na escola. Nesse sentido, nossa
abordagem dos currículos pretende ver esses acordos cotidianos em torno da cultura legítima
escolar.
Livros didáticos
3
A criação das apostilas faz parte do programa estadual São Paulo Faz Escola, em vigor desde 2008. Seu
objetivo foi a uniformização das ações de professores, gestores e alunos. Em 2010, as diretrizes do programa
foram substanciadas na Proposta Curricular do Estado de São Paulo (CATANZARO, 2012)
52
Décio Gatti Júnior (2004) sustenta que os livros didáticos apresentam os conteúdos de
ensino a partir de algumas injunções, entre elas: as novidades da ciência selecionadas pelos
autores e editores; os impactos das alterações curriculares e de concepções educativas; e a
pressão exercida pela sociedade civil. Nesse sentido, ao olharmos para nossos materiais, é
possível identificar um conjunto de questões envolvidas na produção dos saberes escolares.
No que se refere à disciplina Língua Portuguesa, autores como Miriam Schröder (2013) e
Magda Becker Soares (2002) afirmam que os livros didáticos são suportes para a produção da
regularidade escolar pela seleção de conteúdos e oferecimento de atividades que organizam,
muitas vezes, o trabalho do professor. Nesse sentido, apesar da polêmica que pode gerar o
direcionamento excessivo ocasionado por ele, os livros didáticos são referência importante
para os professores e participam da produção do currículo praticado (BITTENCOURT, 2008).
4
O projeto de escolas em tempo integral teve início no Estado de São Paulo em 2012 e oferece um período de
estudos de nove horas e meia aos alunos. As escolas também são equipadas com salas temáticas para cada uma
das disciplinas e os professores trabalham em regime de 40 horas em uma única instituição. Disponível em: <
http://www.educacao.sp.gov.br/ensino-integral> . Acesso em: 06 fev. 2018.
53
aquelas geridas pelas Universidades Estaduais e também pelo Centro Paula Souza5. Essa
última é responsável hoje em dia por 220 Escolas Técnicas (ETECS) no Estado de São Paulo
e sofreu grande expansão nos últimos anos. Sendo assim, apesar de aparentemente termos
uma rede única, ela é ramificada entre o ensino médio comum, em tempo integral e técnico.
A rede foi se configurando dessa forma a partir dos anos 1990, quando iniciativas
estatais e dinâmicas sociais alteraram o panorama do ensino médio. Ana Paula Corti (2015)
salienta que no final da década referida ocorrem, concomitantemente, a expansão das vagas
no ensino médio, fruto da grande procura por esse nível de ensino e da abertura de vagas nos
períodos noturno e diurno, esse último como consequência da municipalização das escolas de
1º ao 4º ano, ocorrida em 1996. Essa configuração gerou, na visão da autora, uma dualidade
na rede, pois ela não foi ampliada em função da construção de novas escolas igualmente
estruturadas, mas sim pela realocação de alunos nos espaços vagos deixados pelas escolas de
primeiro grau; ao mesmo tempo, aquelas unidades melhor equipadas foram passadas para o
Centro Paula Souza. Em 1994, 82 escolas se tornaram responsabilidade do Centro, as quais
foram somadas às 12 unidades anteriormente transferidas entre 1981 e 1982. Ana Paula Corti
(2015) afirma que tais alterações na oferta de vagas gerou uma corrida entre pais e alunos por
aquelas consideradas melhores. A tendência dessa dualidade vai se aprofundando nos anos
2000 com a ampliação das escolas técnicas e também com o surgimento do projeto de escolas
em tempo integral, cujas unidades concentraram investimentos em uma formação com ênfase
no aprendizado de línguas estrangeiras, artes, projetos diferenciados, professores selecionados
entre os melhor qualificados da rede, além do maior tempo de estudos. Assim, as respostas
estatais à demanda crescente pelo ensino médio foram dadas por meio de um discurso que
enfatiza compromisso com a qualidade da educação para todos, mas cria condições variadas
de formação segundo a frequência ao ensino médio comum, em tempo integral ou técnico. O
Estado torna-se, assim, um agente importante na produção de um mercado escolar que gera
concorrência entre os alunos e suas famílias, assim como os meios de selecionar aqueles que
irão frequentar cada um deles por meio de vestibulinhos, no caso das ETECS, ou pelas
matrículas permitidas apenas em escolas próximas ao local de moradia, o que gera a
concentração de alunos com perfis socioculturais semelhantes.
5
Apesar de ter sido criado em 1969 com o objetivo de organizar os cursos superiores de tecnologia, ele foi
ganhando a responsabilidade de também ser responsável pelo ensino profissionalizante em nível médio.
Disponível em: < http://www.cps.sp.gov.br/perfil-e-historico/>. Acesso em: 06 fev. 2018.
54
6
As escolas também oferecem imagem significativa dos rumos da organização da rede. Em 2015, a Escola 2,
localizada no Piqueri, distrito de Pirituba, localizada na zona norte da cidade, foi uma das escolas selecionadas
para serem desativadas na reorganização da rede prevista para acontecer no ano seguinte. Após a ocupação da
escola pelos estudantes, assim como ocorreu em muitas outras, a reorganização foi suspensa. No mesmo ano, a
Escola 2, localizada no bairro Santa Cruz se tornou escola em tempo integral.
55
médio na modalidade EJA. Apesar de não termos previsto a pesquisa no EJA, ao termos essa
possibilidade, resolvemos levar adiante as observações nas duas escolas, que poderiam nos
fornecer duas experiências variadas com o ensino médio paulista. Na primeira escola
observamos as aulas de Língua Portuguesa dadas pela professora Valquíria em duas turmas do
1° ano do ensino médio e na Escola 2 observamos as aulas ministradas pela professora
Celeste aos alunos do 3° ano do ensino médio na modalidade EJA.
No que se refere aos alunos, constituímos um grupo de adultos, que estavam no EJA, e
outro de adolescentes, alunos do ensino médio regular. Com relação ao primeiro grupo, nos
deparamos com alunos trabalhadores com idades entre 35 e 45 anos, que trabalhavam como
vendedores, secretárias e donas de casa, frequentando o curso noturno. Todos têm filhos e
dois deles são casados. Os alunos adolescentes, em sua maioria com 15 anos no momento em
56
Existe predomínio de profissões que exigem nível médio entre as ocupações de pais e
mães. Entre as mulheres, predomina a ocupação de faxineira, vendedora e enfermeira. Entre
os pais se sobressai a profissão de empreiteiro de obras. Somando-se pais e mães, podemos
57
contar seis professores, carreira que os une à Valquíria e Celeste. As profissões dos alunos
adultos também são observadas na lista acima, o que nos faz crer que lidamos com um grupo
que guarda muitas semelhanças sociais.
Escola 1
A Escola 17 se situa no Piqueri, zona norte de São Paulo, próxima à estação de trem
Pirituba. O bairro faz parte do distrito que dá nome à estação de trem. Ela atende ao ensino
fundamental II e médio regular e EJA, divididos em três períodos. Os 882 alunos da escola
estão divididos em 10 salas de aula. Em 2014, havia 269 alunos de 5º ao 8º ano, no ensino
médio regular 483 e 138 na EJA. A escola é equipada com laboratórios de química e de
informática, sala de leitura, refeitório, ventiladores em todas as salas, equipamentos
multimídia, quadra coberta e descoberta. Os laboratórios de química não são utilizados e
Adriana, durante sua entrevista, mencionou que gostaria de ter aulas mais práticas em
laboratórios. Vemos que, do ponto de vista das instalações isso seria possível. Os alunos são
moradores do entorno da escola, Piqueri e Pirituba, mas também há alunos que moram em
outros bairros da zona norte, como Parada de Taipas, Jaraguá e Perus. Isso demonstra que a
escola é um ponto de atração para os alunos da região, o que pode ser o resultado das políticas
da rede estadual que, como vimos, favorece a existência de escolas muito desiguais, o que
7
De modo a preservar a identidade das escolas, professoras e alunos, utilizamos nomes fictícios para nos referir
a eles.
58
produz uma corrida dos pais de alunos por instituições vistas como melhores. Pirituba, distrito
do qual o Piqueri faz parte, conta com 437.592 habitantes e tem apenas um centro de cultura,
nenhuma galeria de arte e nenhum museu. A escola esteve na lista de fechamento do plano de
reestruturação do sistema de ensino proposto pelo governo estadual e foi ocupada pelos
estudos como forma de protesto. Os alunos fecharam a Marginal Tietê na altura da Ponte do
Piqueri, o que deu visibilidade à escola. Como a reestruturação foi suspensa, a Escola 1 se
manteve em funcionamento no ano de 2015.
Escola 2
A Escola 2 está situada no bairro V. Mariana, próxima ao metrô Santa Cruz, zona
centro-sul da cidade de São Paulo. Atende ao ensino fundamental II e ao ensino médio regular
e na modalidade jovens e adultos. A escola tem uma sala equipada com máquinas de escrever
braille, sorobãs (ou ábaco, instrumento para cálculos matemáticos), dois computadores com
leitores de tela (Dosvox e Virtual Vision) e lupas eletrônicas, capacitando a escola a oferecer
educação para deficientes auditivos e visuais, com uma professora especializada. Além disso,
a escola também tem sala de informática com 26 computadores, sala de leitura e quadra de
esportes. Registram-se cerca de 2.500 alunos matriculados, cujos períodos de estudo estavam
divididos em três períodos: manhã, tarde e noite. Contudo, 2014 foi o último ano neste
modelo, pois a partir de 2015 a escola passou a funcionar em tempo integral, o que acabou
com a EJA. Entre os alunos matriculados, a maior parte vem de bairros que ficam na região
próxima à V. Mariana. A proximidade da escola ao metrô e ao terminal de ônibus favorece a
chegada de estudantes vindos de regiões mais distantes. O bairro V. Mariana parece funcionar
como um centro de atração para os moradores dos bairros mais pobres da zona sul da cidade,
seja pela oferta de transporte ou pela dinâmica do comércio do bairro. Também pudemos
constatar que a V.Mariana, cuja população era de 344. 632 habitantes em 2014, tem em sua
região seis centros e espaços de cultura, 14 galerias de arte e oito museus, os quais nenhum
dos entrevistados mencionou frequentar. Apenas Paulo disse que iria passar a frequentar o
SESC V. Mariana. Na sala que acompanhamos, a maioria dos estudantes era composta por
pessoas que trabalhavam na região e, por isso, matricularam-se na instituição. A professora
Celeste mencionou em sua entrevista que os alunos do bairro raramente se matriculam na
escola, o que tem se tornado mais comum no EF II. A professora chegou também a mencionar
a diferença entre os alunos que moram no bairro, que dariam mais valor para a escola, e
aqueles que moram em vizinhanças mais distantes. Em conversas com alunos e professores,
59
notamos que a escola goza de boa reputação, sendo muito procurada pelos estudantes da
região.
Para finalizar a descrição das escolas, gostaríamos de acrescentar alguns dados sobre a
escolarização da população habitante dos dois bairros, obtidos no site da subprefeitura de São
Paulo, cujo ano de referência é 2010. Em primeiro lugar, gostaríamos de chamar atenção para
o número de analfabetos contabilizado. Em 2010, na V.Mariana havia 1.804 analfabetos, ao
passo que em Pirituba havia 11. 494 pessoas nessa situação. Com relação ao ensino médio,
pudemos notar que em Pirituba havia 69. 840 pessoas com esse nível de ensino incompleto,
ao passo que na V.Mariana o número foi de 37.049. Com relação às pessoas que completaram
o nível superior, no bairro da zona sul havia 105.331 pessoas e no da zona norte 17.974.
Chama atenção a grande quantidade de moradores com nível superior completo e o pequeno
número de pessoas cursando o ensino médio na V. Mariana, situação oposta à Pirituba. Isso
chama atenção para a composição dos habitantes da região, que são mais jovens no último.
Além desses dados nos ajudarem na compreensão do perfil dos alunos da escola, ele também
nos auxilia a entender um pouco do perfil das professoras. Por um lado, Valquíria é moradora
do bairro em que trabalha, Pirituba, e assim pode estar mais próxima do ponto de vista de seu
estilo de vida dos alunos da região. Celeste também é moradora do bairro em que trabalha,
porém a maior parte de seus alunos vem de outras partes, o que pode favorecer a sensação que
a professora tem de ser diferente de seus alunos. Finalmente, gostaríamos de sinalizar também
que o fato de essas escolas serem pontos de atração para alunos vindos de diferentes origens
significa que ela encerra alunos com disposições, referências culturais, expectativas de futuro
muito diversas, o que poderá ser visto nos perfis dos alunos apresentados a seguir. Ao
pensarmos na escola da expansão e dos desafios que ela impõe, precisamos considerar essa
característica de seus alunos.
60
Professora Valquíria
professora se vê de modo distanciado do grupo. Exemplo disso é a maneira como ela opõe
suas filhas aos alunos que tem: “A maioria dos brasileiros é muito visual, gosta muito de
televisão então está incutido esse negócio de leitura. Na minha casa está porque como eu
gosto de ler, minhas filhas acho que me acompanharam e também meus irmãos deram livros
infantis quando elas eram crianças, elas já têm essa prática”. Entre suas preocupações ela
sempre menciona o desafio de levar todos os alunos a aprenderem, mesmo que na maior parte
do tempo eles demonstrem desinteresse nas aulas. Em vários momentos durante as
observações das aulas, e até mesmo durante a entrevista, a professora se lembra de um
professor de Prática de Ensino para quem “...não era para a gente ficar frustrado quando a
gente não atingir 100% [dos alunos]”. Ao colocar em segundo plano o sucesso escolar dos
alunos, a professora ressalta as relações afetivas mantidas com eles como base para se
perceber o êxito.
Professora Celeste
Também conheci a professora Celeste em seu local de trabalho. Quando fui recebida
pela Coordenadora Pedagógica da Escola 2 recebi a indicação da professora de Português do
ensino médio que poderia me receber. Conhecemo-nos na sala dos professores e ela também
aceitou fazer parte da pesquisa sem impor qualquer problema ou restrição. A professora
Celeste tem 50 anos, é casada e mora na V. Mariana. Iniciou o curso de Licenciatura em
Português e Inglês na Faculdade UNIBAN. Inicialmente ela se formou em contabilidade, área
em que trabalhou desde os 15 anos. Por iniciativa de seu irmão, que a inscreveu no vestibular,
iniciou o curso apesar de informar que Letras sempre foi sua vontade. Assim como Valquíria,
a docência não foi a primeira opção de Celeste, que acreditava já não poder se formar em
nível universitário quando foi matriculada. A partir do momento em que começou a dar aulas,
seu percurso se tornou mais estável, permanecendo por longos períodos nas escolas em que
trabalhou. Celeste começou a dar aulas em 1989 em uma escola municipal na V. Leopoldina.
Em 1995 passou a dar aulas em uma escola estadual situada na V.Piauí, onde ficou até 2001.
Em 2004 passou a dar aulas na escola Di Cavalcante, no Alto de Pinheiros. A seguir, em
2005, pediu remoção para a Escola 2, onde dá aulas para o Ensino Fundamental II e EJA. No
final do ano, a professora descobriu que tinha sido habilitada para dar aulas na escola de
tempo integral na qual a Escola 2 se tornou em 2015.
62
A professora parece construir sua identidade docente a partir de dois sentidos fortes. O
primeiro deles é o ensino de Português a partir da gramática, que ela identifica como seu
ponto forte, apesar de ter se encantado com a literatura quando começou a fazer faculdade. Ao
mesmo tempo, a professora parece construir o sentido da escola e de seu trabalho bastante
dependente da origem social dos alunos, o que produz maior ou menor empatia entre eles.
Exemplo disso pode ser o estranhamento que sentiu na primeira escola em que trabalhou,
quando acreditou que a “clientela ia para se alimentar, eles não iam para estudar”. Diferente
do que sentiu quando começou a dar aulas no estado: “Eu fiquei encantada com as crianças do
estado. É outra clientela. É uma clientela realmente mais ligada no estudo, as famílias dão
mais valor”. Nesse sentido, a professora busca formas de manter seu ponto de vista sobre a
disciplina mesmo em turmas que, do seu ponto de vista, não valorizam tanto a escola. No caso
do EJA, ela notou que os alunos chegavam muito cansados e não se interessavam pelo que
fosse difícil, então ela mudou a aula e a transformou em atividades que dessem conta de suas
dificuldades gramaticais.
b) os alunos adolescentes
Mariana
pareceram muito estranhas no início do ano. A aluna estranha muito o barulho dos alunos
durante as aulas, o que dificulta sua concentração e a realização das atividades. Diz, ainda,
não gostar das aulas de Português por conta das atividades propostas e gostaria de realizar
mais atividades de produção de texto. Escrever é uma das coisas que mais gosta de fazer
desde que ganhou um prêmio de melhor redação no EF I, o que demonstra o valor que ela dá
para as avaliações e julgamentos escolares, e que o médico lhe aconselhou a escrever como
forma de diminuir o stress. Ela pretende se tornar psicóloga e escritora no futuro e, para isso,
já está lendo um livro de Psicologia.
Amanda
A aluna tem 15 anos e aceitou fazer a entrevista como forma de me ajudar a realizar
meu trabalho. Amanda foi receptiva à pesquisa e falou intensamente sobre suas leituras,
geralmente marcadas por serem religiosas ou destinadas às crianças e pré-adolescentes. Ela
sempre usa um colar com o nome “Luan”, em referência a seu cantor predileto, Luan Santana.
Ela se sentava na fileira da parede próxima à porta. Em uma das aulas ela levou o material
médico utilizado por sua mãe e estava examinando seus colegas. É seu primeiro ano na Escola
1. Até o Ensino Fundamental II estudou na escola Celso Leite, que fica no centro de São
Paulo, próxima ao Hospital Pérola Byington, onde sua mãe trabalha como enfermeira. Seu pai
é funcionário público, trabalhando no serviço funerário da cidade. Amanda tem mais um
irmão, que ainda estuda na escola do centro. A família mora na rua atrás da escola. Os pais de
Amanda parecem investir muito na formação dos filhos, o que se expressa na assinatura de
revistas, na cobrança por assistir e ler produtos que tragam informação, como insiste seu pai.
No dia em que a entrevistamos, Amanda estava sem celular como castigo por ter tirado nota
ruim. Seu pai assistiu a um filme sobre o Aleijadinho para ajudar a filha com o trabalho
escolar. Apesar disso, Amanda ainda não tem uma ideia de futuro escolar muito clara, parece-
nos que suas funções familiares e interesses culturais são prioridades para ela.
Carolina
Carolina, que tinha 16 anos no momento da entrevista, estava muito insatisfeita com a
escola, principalmente porque ela tentou fazer alguns vestibulinhos para escolas técnicas e
não teve êxito. Assim, sentia-se traída pela escola. Carolina é filha mais nova de mãe dona de
64
casa e pai comerciante e tem outros dois irmãos mais velhos, já estudantes universitários. Na
escola, a aluna estava sempre com uma amiga, mas parecia circular com facilidade entre os
grupos constituídos pelos alunos. A família mora em um condomínio de prédios que fica
próximo à escola, à estação de trem de Pirituba e ao Shopping Tietê. A aluna tem o projeto de
estudar medicina na USP e por isso acredita necessitar muito da escola, porém sente que ela
não ensina o que Carolina precisaria aprender. Passou por provas para acessar o ensino
técnico e escolas particulares, mas não obteve sucesso, o que lhe causa muita frustração. A
aluna tem relação bastante utilitária com a literatura, preferindo ler aquilo que será cobrado no
vestibular ou se rendendo aos títulos que são unanimidades entre os adolescentes, como “A
culpa é das estrelas”. Acha um absurdo comprar livros, pois para ela é um dinheiro
desperdiçado, uma vez que após a leitura o livro já não tem utilidade.
Adriana
A aluna tem 15 anos, mora com a mãe e a tia em uma casa próxima à escola. A família
é sustentada pela aposentadoria de sua tia. Seu pai não mora com ela e parece viver em uma
situação econômica mais confortável. Adriana fazia parte da “turma do fundão”, como diria
Carlos Rodrigues Brandão (2013). Ela e seus amigos faziam bastante barulho durante a aula,
estavam sempre sentados em círculo. Adriana trabalha como monitora da sala de leitura da
escola, experiência que parece tê-la marcado bastante e proporcionado relação privilegiada
com a literatura. A aluna demonstra ter disposições para uma relação de proximidade aos
padrões escolares, assim como maior desenvoltura para pensar em seu futuro, que ela parece
ter certeza que se desenvolverá em alguma universidade pública. Aqui podemos identificar
uma diferença com relação à postura de Adriana e Carolina com relação ao papel da escola
para o projeto de futuro. Adriana também quer frequentar uma universidade pública, porém
ela identifica que a escola vai ensinar o básico e ela vai correr atrás, vai providenciar por si o
que falta, é como se ela já conhecesse o caminho que precisa percorrer para chegar à
universidade e tem todas as ferramentas para isso, o que não gera ansiedade para ela. Adriana
parece depender menos da escola para aprender a circular pelo mundo da cultura ou
poderíamos pensar que ela tem disposições que lhe favorecem o aprendizado dos conteúdos
escolares. Já Carolina sente que depende integralmente da escola, pois parece que sua origem
familiar ou outras experiências sociais não lhe deram até agora todas as disposições
necessárias àquilo que identifica precisar.
65
Paulo
Paulo vive com sua mãe e irmã em um outro ponto de Pirituba, sendo necessário
pegar ônibus para ir à escola. Paulo é um aluno calado de 17 anos, que fica o tempo todo com
seus colegas, sem, contudo, levantar o tom de voz ou participar das atividades que os outros
costumam fazer. Ele pretende ser lutador de Muay Thai no futuro e não vê sentido na
frequência à escola, pois ela não o ajuda a aprender aquilo que será preciso em seu futuro.
Para ele, a escola deveria ensinar o básico: ler, escrever e contar. O restante seria perda de
tempo. Ele afirma ainda que a escola é lugar de aprender algumas regras para a vida, como o
respeito à convivência entre outros. Além disso, a escola só ocuparia o tempo dos alunos sem
necessidade, como quando a professora falta e vem alguma substituta para não ensinar nada.
Apesar disso, o aluno gosta das matérias Filosofia e Sociologia porque elas discutem assuntos
que se mostram no dia a dia. Mas ele só gosta de ouvir, discutir não.
c) os alunos adultos
Karina
Karina tem 35 anos durante a entrevista, é casada e mãe de dois filhos. Ela teve um
percurso de escolarização truncado por conta da gravidez e da necessidade de trabalhar. Por
isso, tenta retomar e finalizar seus estudos. Ela pretende fazer o curso de Letras/Inglês na
Cultura Inglesa após terminar o ensino médio, mas seus objetivos com relação à carreira
escolar parecem pouco definidos. A aluna faz parte de um grupo religioso chamado Johrei8,
que marca sua visão de mundo, fornecendo uma narrativa e leituras que dão sentidos para a
sua vida. Ela gosta muito de ler, principalmente os textos religiosos, mas também tenta ler os
títulos presentes no cânone escolar, demonstrando uma tensão entre as leituras valorizadas ou
não no espaço escolar. É evidente, em seu caso, que apesar de ter vindo de um grupo familiar
que teve dificuldades para criá-la, seus pais se separaram quando ela era bebê e, por isso, foi
criada por alguns parentes, fato que a marcou muito. A partir do momento em que precisou
8
De acordo com o site da Igreja Messiânica Mundial do Brasil, o johrei é “...um método de canalização de
energia espiritual (luz divina), para purificação do espírito, capaz de transformar a desarmonia espiritual e
material em harmonia”. Disponível em: < http://www.messianica.org.br/colunas-da-salvacao/johrei>. Acesso
em: 06 fev. 2018.
66
frequentar outros meios sociais por conta do trabalho começa a questionar sua forma de falar,
notando seus erros, o que é reforçado pelas experiências de escolarização que tem,
especialmente no ensino médio e no cursinho que frequentou anteriormente. Sua busca parece
ser, inicialmente, a tentativa de acessar essa cultura valorizada que se expressa por uma forma
correta de falar e escrever, pelo gosto de textos escritos por autores consagrados na escola.
Clair
Clair, 55 anos, tem sua via marcada pela experiência da imigração. Ela nasceu em
Santa Catarina e com cerca de 20 anos vem para São Paulo. Ao chegar aqui Clair tenta
finalizar seus estudos de ensino médio – o que não consegue fazer – enquanto trabalha como
empregada doméstica em algumas casas. Após perder o emprego tem que parar de estudar.
Ao longo dos últimos anos Clair trabalhou como caixa em um restaurante e secretária em
clínicas médicas. A aluna tem um filho de 20 anos que também parou de estudar e atualmente
a ajuda a sustentar a casa onde moram. Clair passou por crises de depressão e descobriu a
leitura e o espiritismo durante esses momentos. O espiritismo parece ter chegado em
momento de desespero e preencheu o que faltava em sua vida, inclusive com as únicas
leituras que ela fazia. Parece-nos que a disposição para a o estudo e para a leitura foi
direcionada para a leitura religiosa. Hoje em dia consegue finalmente terminar o ensino médio
com uma perspectiva pouco clara de melhorar sua formação de modo a conseguir um
emprego melhor. De modo parecido com Karina, também parece ter vontade de se aproximar
da cultura mais valorizada pela escola, o que vai fazer pela mudança de suas leituras.
Marcelo
Marcelo tem 39 anos, está em seu segundo casamento e tem duas filhas, fruto da
primeira união. Ele trabalha como vendedor em uma loja de materiais elétricos e sua esposa é
técnica em radiologia, além de fazer faculdade para se especializar na área. Quando sua
primeira filha nasceu, Marcelo tinha 14 anos e por isso parou de estudar. Desde então, ele
vem tentando de maneira truncada finalizar os estudos. O aluno de fato, precisa completar
seus estudos para se manter em seu emprego. Sua esposa parece o influenciar com relação à
leitura e, de modo mais geral, à necessidade de desenvolver hábitos culturais que não estavam
em sua perspectiva de início. Marcelo demonstra que suas expectativas e padrões com relação
67
à escolarização foram adquiridos em sua primeira experiência escolar, assim ele também fica
incomodado com as maneiras dos alunos e mesmo com a postura de alguns professores. É
importante ressaltar que ao ser questionada sobre Marcelo, a professora Celeste disse que ele
tinha alguma “deficiência intelectual”.
68
69
A professora abre um livro didático e encontra o assunto da aula. Ela diz que eles
precisam copiar e fazer as atividades porque isso será matéria para a prova. Ela
começa a escrever na lousa e, enquanto isso, fala que é importante que eles tenham
um momento de parada e organização. Para ela, as pessoas organizadas têm mais
êxito: “Quando vocês estão desrespeitando a minha aula, vocês têm que ter noção
que vocês estão se desrespeitando. Eu estou estudando, me melhorando, melhorando
meu currículo. Vocês precisam ter noção, noção de contexto
(Observação feita no dia 03/11, Escola 1).
A descrição acima sintetiza uma situação de aula na qual vários elementos estão
articulados. Ao mesmo tempo que inicia a abordagem do conteúdo previsto para a aula, a
professora observa a reação dos alunos, a conversa constante, e os repreende a partir de um
ponto de vista moral que indica uma previsão de futuro. Quando chama atenção para o
contexto, a professora alude às regras e pressupostos envolvidos na relação pedagógica
instaurada e procura servir de exemplo à turma. As possibilidades de ensino e aprendizagem
da leitura de obras literárias articulam-se por meio de circunstâncias como a descrita em
epígrafe, seguindo as lógicas dessa cultura escolar. Este capítulo pretende descrever o
cenário em que ocorrem os conflitos em tela por meio da observação das relações cotidianas.
Para tanto, partiremos da ideia de matriz socializadora escolar descrita por Bernard
Lahire em La raison scolaire (2008). O termo é utilizado pelo autor para se referir ao
conjunto de atividades escolares que modelam o tipo de aluno a ser formado. Assim, uma
escola que privilegia a leitura de livros e produção de textos terá mais chances de formar
alunos hábeis a realizar essas tarefas. A descrição das relações entre professores e alunos, das
atividades mais frequentes em sala de aula, da utilização de livros didáticos e das demandas
curriculares nos servirá para configurar uma matriz socializadora possível das escolas
pesquisadas, compreendendo que estas últimas funcionam pela articulação de diversas
temporalidades. Nesse sentido, retomaremos alguns elementos da história da disciplina, dos
currículos, do desenvolvimento dos livros didáticos e do processo de expansão escolar de
modo a situar, como afirma Pierre Bourdieu (2013a), esquemas cognitivos estruturantes das
práticas escolares, que se revelam inconscientes na composição das aulas e na construção dos
consensos escolares. Não se trata de relatar uma realidade hermeticamente articulada pelo
Estado, mas de conhecer escolas marcadas pela expansão de vagas e massificação, o que
acaba por alterar suas fronteiras culturais e regularidade temporal, tornando a negociação
70
elementos de permanência e ruptura com relação aos ideias de formação passados e presentes.
André D. Robert (2007), ao investigar as transformações do sistema de ensino francês,
observa que ele, assim como outros com características semelhantes, caracteriza-se, hoje em
dia, por negociações desse tipo:
Veremos, então, que tensões entre a presença ou não da história da literatura; a leitura
estética em oposição àquela que busca situar os usos desta última; os exercícios orais e
escritos em concorrência; a necessidade ou não do estudo vocabular; o papel dos materiais
didáticos e sua importância na consagração dos textos como pontos de partida para as aulas
são situações conhecidas durante as observações, e constituem possibilidades oferecidas pelo
Estado como formas de organização das aulas em momento de negociações entre as demandas
atuais e passadas.
[...] à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão
assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens
portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas,
que é preciso tornar habituais entre o povo (BRASIL, 1952).
A reforma esteve em vigência no Brasil durante vinte anos, de 1942 e 1962, período
no qual assistiu-se à expansão de vagas no ensino médio. Como sustenta Rosa Fátima de
Souza (2009), as novas gerações pertencentes à classe média e às camadas populares
passaram a ter acesso a uma escola cujas referências eram os valores humanistas e a cultura
literária. Este tipo de educação foi símbolo de distinção social para as elites e as tendências de
tornar o ensino secundário mais científico, indo ao encontro da sociedade moderna, e sofreu
muitas resistências na primeira metade do século XX. À medida que a aumentava a pressão
pela democratização do ensino secundário e pela aproximação da escola à formação da
sociedade moderna, a LDB de 1961 possibilitou a criação de um currículo diversificado no
qual o latim, base da formação humanista, tornou-se disciplina optativa. Observa-se a partir
daí uma alteração nos sentidos da formação secundária, que se torna cada vez mais marcada
pela especialização, formação para o trabalho e pelo utilitarismo (SOUZA, 2009). Nesse
sentido, é oportuno pensarmos na LDB de 1971 como um documento significativo na
alteração do entendimento sobre a Língua Portuguesa. A partir da proposição do currículo
organizado em um núcleo comum e outro diversificado, procurando conciliar a formação
geral e as demandas mais utilitárias de formações locais, entendeu-se que:
73
Depois da lei 5.692/71, que promove uma grande abertura do ensino secundário às
camadas populares, percebe-se a decadência dessa formação humanista e, já na década de
1990, com a nova LDB, o perfil da formação secundária assume outros sentidos. A referida
década vê o surgimento de um conjunto de documentos que reconfiguram o ensino médio,
como Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, publicados em 1999 no
governo de Fernando Henrique Cardoso, e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),
que passou a atender o ensino médio apenas em 2005. Entre tais documentos, parece-nos
significativo o ponto de partida dos produtores do Parecer CEB/CNE nº 15/98, que aborda as
Diretrizes Curriculares Nacionais. O texto chama o ensino médio de espaço de “exclusão a
ser superada”, e identifica como seus alunos tanto os jovens que aspiram percursos
educacionais mais longos quanto as pessoas já inseridas no mercado de trabalho, que buscam
melhores condições de vida:
[...] a clientela do Ensino Médio tende a tornar-se mais heterogênea, tanto etária
quanto sócio-econômicamente, pela incorporação crescente de jovens adultos
originários de grupos sociais, até o presente, sub-representados nessa etapa da
escolaridade (BRASIL, 1999, p. 91).
currículo, trata-se de incluir esses conteúdos em “[...] uma perspectiva maior, que é a
linguagem, entendida como espaço dialógico, em que os locutores se comunicam” (BRASIL,
2000, p. 23). Nesse quesito, a noção de texto, compreendida como unidade de comunicação e
expressão social, ganha centralidade nas aulas. Essa abordagem coloca-se em diálogo com as
propostas curriculares paulistas que, no final da década de 1970 e nos anos 1980, enfatizam a
abordagem dos aspectos da língua por meio dos textos. O PCN+ (2002) aprofundou tal
abordagem, situando a literatura como recurso expressivo capaz de se relacionar com o
contexto histórico de produção, a realidade dos alunos etc.
As Orientações Curriculares para o ensino médio (2006) constituem um ponto de
inflexão nessa tendência de ensino de literatura como aspecto da linguagem. Assumindo um
ponto de vista crítico e de discordância em relação ao PCN, o documento institui a literatura
como obra de arte que precisa ser abordada como tal. Ao exaltar o seu passado de prestígio,
quando sua legitimidade não era questionada, o documento faz referência ao símbolo de
cultura que a literatura outrora representou. Insiste, com isso, que a formação do leitor capaz
de realizar a fruição estética poderia lhe proporcionar um distanciamento da lógica do
trabalho alienado, configurando uma circunstância para a educação da sensibilidade; a
literatura, enfim, seria uma via possível para a superação da dureza do cotidiano, um fator de
humanização do homem coisificado (BRASIL, 2006, p. 53). Apesar de produzir seu discurso
com base em conhecimentos advindos da crítica literária, a proposta parece retomar a
literatura com sentidos próximos àqueles da primeira metade do século XX. Vemos, assim,
que não há consensos entre as propostas curriculares e, com isso, configura-se uma vertente
de conflitos nessa direção.
As alterações curriculares ocorridas principalmente, a partir da década de 1970
produziram uma sensação de crise no ensino secundário. Intelectuais da época demonstraram
certa surpresa ao perceberem que a leitura é pode ser compreendida de formas variadas entre
os diferentes grupos sociais presentes na escola. Tal sentimento de crise é perceptível no
relato da pesquisadora Maria Theresa Fraga Roco em sua tese, defendida em 1975:
Nos anos 1980 essa sensação de crise ecoa nas pesquisas de pós-graduação. Isso pode
ser observado por Ana Cristina Champoudry Nascimento da Silva (2012), ao analisar a
produção de dissertações sobre o ensino de leitura na referida época :
em jogo como estruturas cognitivas a serem mobilizadas pelas professoras, o que pode dar
origem a situações escolares como aquelas descritas no início desta seção.
Vemos que a língua portuguesa e a literatura vão ganhando importância aos poucos;
apenas em 1930, com a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública, a disciplina
77
passa a ser chamada de Português. A partir desse momento, definem-se objetivos próprios
para o ensino da disciplina e assistimos ao surgimento de uma proposta para o ensino de
literatura associado ao objetivo do ensino de português, a saber:
mais eficaz quando associado aos textos (BUNZEN, 2011). Essa tendência para a expressão
oral amplia-se à medida que o ensino da língua materna recai na noção de comunicação.
As décadas de 1970 e 1980 vivenciam, de acordo com Clecio Bunzen (2011), uma
discussão em torno dos objetivos do ensino de língua portuguesa e os pesquisadores
acadêmicos passam a exercer cada vez mais influência nesse território. Além disso, constrói-
se um discurso de oposição entre o ensino tradicional de português e outro que se pretende
conforme as necessidades de democratização do país. Estas questões frutificam e, de acordo
com o autor supracitado, o panorama do ensino de língua portuguesa que temos hoje guarda
relação com a visão da disciplina defendida por esses grupos progressistas.
Nos anos 1990 vemos surgir um conjunto de iniciativas que procuram oferecer as
bases curriculares para a configuração do ensino médio de modo a seguir o que foi indicado
na LDB 9.394/96. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio são lançados em
1999 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Assistimos também à criação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que passou a atender o ensino médio apenas
em 2005. Como complemento, o governo lança o PCN+ (2002), que detalha o ensino de
literatura e reforça a possibilidade de trabalho com a história da literatura. Por fim, as
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) são editadas.
Os materiais didáticos também sofrem transformações ao longo desse período. Na
década de 1960, ao lado da expansão do ensino secundário, surgem os livros didáticos nos
quais os textos passam a ser associados aos exercícios, como é o caso de Português através de
exercícios, de Fernando dos Santos Costa e Telmo Correia Arrais (1969). Nesses exemplos,
os fragmentos textuais são acrescidos de orientações, exercícios e atividades (PFROMM
NETO, 1974). Décio Gatti Júnior (2004) sustenta que, a partir dos anos 1960, os livros
didáticos são alvo de inovações no formato e na linguagem de modo a atender às demandas da
expansão escolar. Apesar dessas mudanças terem início na referida década, ainda nos anos
1990 elas continuam a acontecer, incorporando diferentes linguagens artísticas, exercícios e
boxes. Paralelamente a isso, o livro ganha centralidade no trabalho pedagógico, cumprindo a
função de resolver os problemas de investimento na expansão:
[...] esse ensino das propriedades do texto na sala de aula deu origem a uma
gramaticalização dos eixos do uso, passando o texto a ser ‘pretexto’ não somente
para um ensino de gramática normativa, mas também da gramática textual, na
crença de que ‘quem sabe as regras sabe proceder’[...] (ROJO, CORDEIRO apud
SCHRÖDER, 2013, p.204).
não eram ladeados por exercícios. Assim, esses materiais ofereciam a sensação de inteireza e
continuidade. Conforme avançam as inovações editoriais e as mudanças de concepções
educacionais, os livros didáticos tornam-se cada vez mais fragmentados pela presença de
excertos cada vez menores, boxes com outros textos explicativos ou outras linguagens
artísticas. Consagra-se, desse modo, um tipo de leitura que, ao mesmo tempo que responde às
demandas de transformações social e educacional - ou seja, é marcada pela presença cada vez
maior dos gêneros advindos dos meios de comunicação, de diferentes relações com a
linguagem e as demandas por expansão escolar -, também reforça um mundo literário
marcado pela fragmentação.
A partir das tendências em concorrência pelo ensino de literatura, buscamos situar as
concepções que estruturam as práticas de ensino conhecidas durante as observações de aula.
Ressalta-se a concorrência e a convivência entre as concepções mais aproximadas do sentido
de uso ou estudo da literatura, postas lado a lado em concepções de ensino e na produção de
materiais didáticos. Nesse sentido, não parece haver um consenso em torno dos objetivos do
ensino de literatura.
***
Diante da retomada histórica que buscamos fazer, situamos esses problemas como
bases para a compreensão das tensões observadas em sala de aula. A partir de um passado
glorioso no qual o ensino secundário era pensado como um modo de distinção social pelo
acesso à alta cultura, a expansão desse nível de ensino gerou uma reconfiguração dessa
relação com a cultura, ainda que seu sentido primário permaneça na fala das professoras que
conhecemos, na seleção dos títulos e autores presentes no cânone escolar e na base do saber
legítimo escolar que passou, pelo contato com a cultura, de uma relação desinteressada para o
conhecimento especializado da crítica literária. Desse modo, tem-se um conjunto de ideias
que dão corpo ao que poderíamos classificar como inconscientes escolares, conforme propõe
Pierre Bourdieu (2013a). Logo, questionamentos sobre para quem o ensino médio se destina
legitimamente ou qual seria o saber mais valorizado, ainda que de difícil execução ou
desvalorizados por alunos e professores, norteiam as ações docentes e a organização escolar.
Constituem-se, assim, algumas dualidades, como a visão da leitura de obras literárias na
escola com traços de concepção humanista, capaz de comportar maior diálogo com a
81
bagagem dos alunos desde que sirvam ao aprendizado da leitura estética das obras literárias, a
valorização da leitura estética, como vemos nas OCEM, e a ênfase nos aspectos
comunicativos da linguagem, que fazem com que exista certa incoerência nos documentos.
2.2. Entre ler, escrever e falar: a formação de uma matriz socializadora possível na
escola
identificar também os ritmos escolares, em especial aqueles característicos do dia a dia das
aulas (CARPENTIER, 2015).
De início, as professoras colocam em jogo o sentido de seus trabalhos a partir das
percepções que têm dos alunos. Como vimos em seções anteriores, Celeste e Valquíria
acreditam que os alunos são pouco preparados para o ensino médio. A professora da Escola 1
percebia os alunos distantes da leitura, pois talvez suas famílias não tivessem esse hábito; já
Celeste compreendia os alunos do EJA como ausentes dos jogos escolares. Diante disso, elas
reelaboram os conhecimentos a serem ensinados a partir da compreensão dos alunos, o que
Celeste torna evidente:
É muito difícil trabalhar com eles. Muito difícil. O problema do EJA é esse: eles
chegam cansados, eles não querem nada que seja difícil, nada que peça muito
raciocínio, eles não querem nada disso. Não tem jeito, eles não querem mesmo. Eles
querem uma coisa assim, uma tarefinha, sabe? ‘Ah, deixa eu fazer uma tarefinha
aqui e pronto. É isso mesmo’. Eu me lembro que quando eu comecei a dar aulas para
eles, eles falavam para mim: ‘Nossa, sua aula é tão fácil, o que você ensina é tão
fácil. A gente não entendia nada do que a outra professora ensinava’. Por quê?
Porque ela dava aula de 3º ano para eles e eu não fazia isso. Eu continuava no meu
processo, sabe? ‘Vamos trabalhar esse texto. O que tem nesse texto? Por que esse
artigo está no singular? Por que a gente faz o plural dessa forma?’ Então eu dava
coisas assim. No fim, eles viam que eles estavam aprendendo alguma coisa, mas era
fácil o que eu ensinava. Na boca deles era isso, sabe? … eu fui facilitando a minha
aula. A minha aula era muito fácil e eles gostavam. Eu consegui até que eles
tivessem um comportamento diferente do que eles tinham nas outras aulas (Celeste).
Eu vi quais eram as dificuldades deles. Por exemplo, eu tive aluno no 3º ano que não
sabia segmentar palavras, não sabia separar as sílabas. Por que você separa as sílabas?
Nunca pensou nisso, que tem a ver com a fala. Quantas sílabas eu ponho naquela
entonação, naquela forma de falar? Por que eu não posso colocar um “s” sozinho
naquela linha? Como é que eu vou falar esse “s” sozinho? Ninguém nunca falou isso
para ele ou se falou... Então no 3º ano eu fui falar isso e fez muito sentido na cabeça
dele (Celeste).
aquisição de confiança por parte dos alunos” (DUTERCQ, 2014, p. 205). Com base nas
afirmações de Celeste, é possível observar que sua estratégia funciona, pois ela consegue
manter boas relações com os alunos.
Afora a identificação com os sentidos da formação diante dos alunos, as professoras
também têm como tarefa a seleção curricular para colocar em prática conteúdos literários.
Nota-se que as principais referências para esse trabalho vêm dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), que constituem fontes para a construção de perspectivas de ensino e de
demandas estatais:
A cobrança vem dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais, então eles mandam
aquele montante em cima dos, do que é necessário para o aluno. Então a gente tem
que condensar isso, trabalhar isso para não prejudicar, de repente ele vai fazer essas
provas ENEM, a prova do Saresp, vai ser cobrado isso, então a gente tem que deixar o
aluno flexível para todo tipo de necessidade que ele tiver (Valquíria).
Valquíria tem uma visão difusa acerca dessas demandas. Os próprios alunos gostariam
de ouvir mais sobre essas questões, demonstrando interesse quando se trata do ensino médio,
o que não parece ser de fato explorado (Uma aluna pergunta para a professora “Por que
nessa escola ninguém falou no ENEM?” A professora responde: “I don’t know. Mas, no ano
que vem, se eu estiver por aqui vocês serão treinados”). O que se evidencia pelo impasse é a
existência do ENEM e das avaliações em larga escala como realidades presentes tanto para
alunos quanto para a professora. Ainda a respeito do PCN, ele também foi identificado por
Celeste como uma referência significativa de trabalho:
No segundo ano, não sei, acho que no segundo ano que já vieram os PCN’s, que a
gente começou a trabalhar com aquele currículo que era comum a todas as escolas
do Brasil. [...] [Nós] tivemos formação. Nós fomos, eu me lembro que eu passei, nós
passamos semanas estudando isso. Eles faziam núcleos de estudo. Cada região era
em uma escola. Então naquele dia você não ia para a escola, você ia para os cursos,
essa formação. Teve um trabalho do estado para colocar a gente, para fazer a gente
falar de uma forma parecida. Mas eu nunca mudei muito a minha forma de dar aula,
não (Celeste).
Eu acho que, assim, eu valorizo muito o entendimento das palavras. Eu percebo que,
assim, mesmo quando as crianças sabem ler, elas muitas vezes só estão juntando
sílabas e formando palavras, elas não estão entendendo. Então eu sempre trabalhei
muito em cima do entendimento das palavras. Explicar, por exemplo, expressão
idiomática, que às vezes eles não entendem, mesmo sendo usadas dentro da família
deles, eles não entendem. Você pergunta: ‘Mas o que que é isso? O que significa
isso? ’ Às vezes eles vão para a tradução literal, eles não entendem o sentido
figurado que está ali na expressão idiomática. Eu sempre trabalhei muito assim
(Celeste).
Valquíria não parece ter tido trabalho, como Celeste, antes dos PCN’s e, desse modo,
ela incorporou de maneira mais forte uma certa compreensão do trabalho na disciplina de
Língua Portuguesa:
Selecionava um dos textos, falava das características das trovas e dos trovadores, e
aí eu trabalhava o texto para eles entenderem porquê chegou naquele contexto. Por
que trovadorismo? Por que essa palavra? O que tem a ver? Então, dentro do texto,
puxava toda a história e as ideias e através do texto já puxava a gramática também.
O Quinhentismo também desse mesmo seguimento (Valquíria).
O ponto de partida de suas aulas é o texto, o que também ocorre nas aulas de Celeste, e
a partir dele a gramática, as características dos movimentos literários e a interpretação do
texto poderiam, um a um, ser puxados. A imagem construída pela professora é significativa da
maneira como ela compreende o texto, pois à medida que ela vai puxando ou extraindo os
elementos que pretende explorar, temos a impressão de que os aspectos gramaticais ou
literários são autônomos ou independentes do texto. É importante mencionar que, desde o
final da década de 1970, o texto aparece na Proposta Curricular de São Paulo (1977) como
um ponto de partida para o estudo da literatura, o que vai se aprofundando em outras
propostas paulistas e ganha centralidade com a publicação dos PCN’s. A partir deste marco as
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) passam a refletir sobre o aprendizado
referente ao uso e à circulação dos textos, tendo em vista suas funções sociais e a formação do
leitor literário. Nesse sentido, compreender a centralidade tomada pelo texto nas salas de aula
pressupõe-se pensar nas alterações curriculares, muitas vezes marcadas pelas inscrições
institucionais dos seus formuladores. Deve-se também considerar que a importância atribuída
aos textos consiste em uma criação dos livros didáticos. A partir da década de 1960, à medida
que os livros de gramática e coletânea de textos se misturam, vai se constituindo um formato
85
Décio Gatti Junior (2004) afirma que os livros didáticos viabilizam a escola em
processo de expansão, o que igualmente se verifica no ensino médio, dado que eles fornecem
os meios materiais para o ensino, assim como tornam evidente aquilo que deveria ser
ensinado. No caso de Valquíria, podemos notar que a forma como ela explicita a sequência na
qual os movimentos literários são explorados esclarece como os livros didáticos são
significativos para as suas aulas. É importante destacar que, ao fazer esse uso do material, a
professora coloca-se em sentido oposto ao Currículo de Estado de São Paulo. No 4º bimestre,
período no qual centramos nossas observações, Valquíria abordava o Barroco, porém o
currículo paulista prevê os seguintes objetivos de ensino para o quarto bimestre do 1º ano do
Ensino Médio:
Intencionalidade comunicativa
Funcionamento da língua
Análise estilística: pronomes, artigos e numerais
Conhecimentos linguísticos e de gênero textual
Construção da textualidade
Intertextualidade: interdiscursiva, intergenérica,
referencial e temática
Lexicografia: dicionário, glossário, enciclopédia
Relações entre os estudos de literatura e
linguagem
Fonte: São Paulo (Estado). Currículo do Estado de São Paulo Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo. São Paulo, FDE, 2012.
ordenação fornecida pelo livro didático adotado na escola, a saber, Viva Português: ensino
médio, de Elizabeth Campos, Paula Marques Cardoso e Sílvia Letícia de Andrade, publicado
pela Ática (2010). O livro organiza-se em seis unidades, que abordam as diferentes escolas
literárias e gêneros textuais. Com relação aos conteúdos de gramática, a professora parece se
basear nos exercícios de outros livros didáticos aos quais ela recorre eventualmente, sem
disponibilizar cópias para os alunos, quando passa a lição na lousa. No EJA, as aulas ganham
um sentido diferente:
[Utilizei o conto Cachorro canibal] Porque a Sandra Jorge copiou para mim. Na
verdade, foi por isso que eu trabalhei esse texto e para trabalhar um pouquinho o
narrador, que ele é um tipo de narrador onisciente. Ele fala, expressa o sentimento,
não só o que a personagem fala […] É a professora da sala de leitura. A gente
precisava usar a máquina de xerox da sala de leitura, daí eu virei para ela e falei
‘Xeroca uns textos aí para eu usar com os alunos’. Então ela que escolheu. Se eu
falar que eu escolhi é mentira. Ela procurou para mim (Celeste) .
Para o EJA não são produzidas as apostilas referentes ao programa São Paulo Faz
Escola e, aparentemente, não foram enviados à instituição os livros didáticos destinados a
esse nível de ensino. Desse modo, seguindo a sua opção por aulas organizadas em torno de
interpretação de textos e curiosidades gramaticais, a professora improvisa a utilização dos
materiais. Nesse caso, a regularidade das aulas e a sequência de conteúdos são fragmentadas e
descontínuas. Apesar de não ser possível que se efetive o acompanhamento de um livro
didático, a docente segue a lógica de organização das aulas proposta pelo livro, com unidades
de ensino formadas por texto, sua interpretação e exercícios de gramática.
De volta ao caso de Valquíria, fica evidente que a professora segue a sequência das
escolas literárias descritas no livro didático. De acordo com o trecho acima, trata-se de seguir
uma determinada sequência de atividades, o que evidencia uma certa lógica do trabalho
efetuado, mas não há problematização do que representa aquela sequência de nomes e textos.
Ao falar a respeito das aulas de Língua Portuguesa, Neide Luzia de Rezende (2013) afirma
que, de modo geral, elas costumam ser organizadas pelos professores a partir do livro
didático, preservando-se, assim, uma visão de ensino de literatura baseado na história da
literatura, na perspectiva do nacionalismo literário, com vestígios do positivismo e do
marxismo em sua perspectiva de história. Finalmente, a autora esclarece que:
88
[...] se pretende ensinar algo sobre movimentos estéticos e estilos de época seguindo-
se uma determinada linha do tempo, das informações sobre grandes obras e suas
características numa pretensa relação entre texto e contexto (REZENDE, 2013, p.
102).
Uma história da literatura brasileira que pretendesse ser verdadeira, isto é, fiel ao seu
objeto, deveria admitir que os textos dispostos no tempo do relógio não tem nem a
continuidade nem a organicidade dos fenômenos da natureza. Os escritos de ficção,
objetos por excelência de uma história da literatura, são individuações descontínuas
do processo cultural. Enquanto individuações, podem exprimir tanto reflexos
(espelhamentos) quanto variações, diferenças, distanciamentos, problematizações,
rupturas e, no limite, negações das convenções dominantes no seu tempo (BOSI,
2000, p. 11-12).
Fica claro que os textos literários não contêm em si a sequência temporal, mas sim que
ela advém de interpretações que originam determinadas organizações. Desse modo, pode-se
produzir as interpretações a seu respeito, como aquelas que imprimem uma imagem
nacionalista nesse processo. Nas escolas inexiste uma discussão acerca dos sentidos da
história da literatura e de sua adoção, uma vez que essa organização dos movimentos literários
serve às necessidades cotidianas das professoras diante dos imperativos de criação das aulas
com poucos materiais e, no caso de Valquíria, com pouco tempo para isso. Logo, os livros
didáticos são convenientes diante das condições de trabalho que as professoras enfrentam. Ao
mesmo tempo, a tendência da organização do ensino de literatura por sua história foi
reforçada em muitos currículos, como na Proposta Curricular de São Paulo (1977) e até
mesmo nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1996). Apenas a Proposta Curricular atual
de São Paulo não prevê o ensino de literatura pelo viés dessa sequência temporal, assim como
não foi esta a proposta das Orientações Curriculares para o ensino médio (2006). Houve,
entretanto, um esforço na formação das professoras, como Celeste demonstrou, de acordo
com a perspectiva educacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o que teve impactos
em sua prática e na de Valquíria. Não houve o mesmo esforço de modo a acompanhar outras
propostas curriculares.
89
As aulas de Língua Portuguesa seguiam uma lógica descrita pelos alunos da seguinte
forma: “É aquilo que você viu, ela [a professora] passa um tema, a gente faz trabalho em cima
do tema, perguntas, provas, aí outro tema” (Carolina). Essa rotina é seguida a cada novo
bimestre e, no caso das escolas estaduais, vemos quatro bimestres organizando o trabalho
anual. No interior dessa organização, as atividades desempenham papel central, uma vez que
elas têm a função de tornar possíveis os objetivos da aprendizagem de maneira bem-sucedida
(CHERVEL, 1990). Por isso, exploraremos as atividades que estruturaram as aulas
observadas em torno de alguns verbos – ler, escrever e falar – que indicam as práticas ligadas
à formação literária dos alunos.
A Escola 1 tem dois núcleos de atividades que pudemos conhecer: o primeiro se refere
aos questionários e, o segundo, ao trabalho feito pelos alunos, ambos referentes ao Barroco.
Os questionários e as atividades de completar espaços em branco foram mais frequentes para
a abordagem dos textos relacionados ao movimento literário em questão. Nas duas turmas que
acompanhamos, Valquíria utilizou atividades semelhantes No dia 09/11, a professora chegou
à sala e informou que pediria uma atividade avaliativa sobre o Barroco, “[...] que é a arte
imperfeita e [que] tem a ver com a arte literária”. Para tanto foram distribuídos livros
didáticos e a seguinte consigna foi escrita na lousa:
Percebemos que, ao final do bimestre, a professora procura passar mais atividades que
valem nota, de modo a compor a avaliação final. Além da explicação expressa acima, não
existem outras orientações que situem a atividade e o que ela exige entre os objetivos de
aprendizagem do bimestre, tampouco a explicitação do que seria pedido nos questionários.
Nesse caso, os alunos tiveram que responder às seguintes questões:
90
B) de qual tipo ele trata nesse trecho do ‘sermão’? Comprove sua resposta
com um trecho do texto.
2- Após citar São Basílio Magno (em latim traduzido), Vieira aponta as
diferenças entre os dois tipos de ladrão. Copie no caderno o trecho em que aparecem
essas diferenças.
A afirmação da professora nos indica que sua avaliação não leva em conta apenas o
desempenho estritamente relacionado ao assunto tratado na aula - nesse caso, a resposta
correta às questões. Além disso, ela considera um aspecto que poderíamos tomar como mais
subjetivo ou até mesmo moralizante quando fala em avaliação global. Apesar de ter
permanecido sentada em sua mesa, a professora identifica que um dos alunos fez a atividade
sozinho e afirma que dará notas diferentes para o trabalho em grupo. Ao dizer isso de sua
mesa, sem explicar seus critérios, pode gerar nos alunos a impressão de que sua decisão é
arbitrária. Vemos que a docente se baseia em vivências e convicções experimentadas em
situações passadas, o que auxilia Valquíria a construir seus critérios de avaliação sem
evidenciá-los aos alunos. Podemos igualmente pensar que tais critérios resultam de uma
construção conjunta entre os docentes em espaços como a sala dos professores ou em
situações de reunião. Isso demonstra a dificuldade do diálogo em sala de aula e uma
reconfiguração dos critérios de avaliação.
Em outra aula, nova atividade no modelo questionário sobre o Barroco é solicitada,
neste caso, com a ajuda da professora Sônia, que exerce a função de auxiliar. Percebemos
uma mudança significativa na turma, que está mais silenciosa e atenta, procurando realizar o
exercício. Ocorre que existe uma dificuldade específica para a realização da atividade, apesar
desta última ser simples: os alunos deveriam completar algumas frases que caracterizavam o
Barroco. Contudo, como o capítulo sobre o Barroco não foi explorado, exceto pela atividade
feita na aula anterior, eles sentem dificuldade para responder às questões, dado que precisam
ler o capítulo e realizar uma síntese naquele momento. Nesse sentido, ler e escrever são ações
que orientam o trabalho de Valquíria na sala de aula, e por meio delas os alunos devem
aprender sobre os movimentos literários. Uma vez que existem poucas ações de mediação por
parte da professora, parece-nos que as atividades, por si só, dariam conta de explicitar a sua
importância. A abordagem indica que a professora supõe que os alunos sejam capazes de
enxergar sozinhos o que está pressuposto nas tarefas, a saber, o fato de serem esses títulos e
autores ocasiões para a constituição de um patrimônio literário escolar, as atividades como
ensejo para o aprendizado de formas de interpretação a partir de dados da análise literária e
gramatical e as relações entre literatura e cotidiano. Entretanto, todos esses espaços não
parecem ser preenchidos pelos alunos e, assim, como bem afirma Stéphane Bonnéry (2007),
eles perdem pouco a pouco o sentido de sua presença em sala de aula e nas atividades, o que
se torna mais problemático no caso de alunos cujas práticas culturais são distantes daquelas
valorizadas na escola.
92
Outro conjunto de atividades se revela por meio do trabalho sobre o Barroco solicitado
aos alunos, colocando em jogo a leitura e a escrita.
Na aula seguinte a professora retoma a explicação sobre o trabalho, que deveria ser
feito para aquele mesmo dia. Como os alunos não o fizeram, ela transfere a entrega para o
próximo dia. Na lousa, são retomadas as orientações para a realização do trabalho:
“O Barroco no Brasil
Características
Marco inicial
Bibliografia”
- Claro que não! – Afirma a professora. Vocês não podem entregar o trabalho vítima
da enchente da mochila. (toda a sala ri.)
O aluno para quem era a indireta fala alto. Ela diz que ele está se acusando, uma vez
que ela não mencionou seu nome.
A professora explica que eles precisam ser organizados, arrumar suas camas,
manterem responsabilidade com o trabalho.
“- Assim o Brasil vai para frente – diz Maicon com ironia
(Observação feita no dia 11 de novembro, 1º ano B).
Chama-nos a atenção, novamente, que a professora passa de uma avaliação que pouco
considera o processo de aprendizagem dos alunos para, em seguida, ressaltar os aspectos
“estéticos” e “morais”, isto é, a aparência e o cuidado com o trabalho, destacando que isso
poderia beneficiá-los futuramente. Há de se ressaltar, ainda, os sentidos opostos atribuídos ao
termo estético por Valquíria e pelas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006).
No documento, a análise estética das obras literárias enfatiza os aspectos estilísticos da
literatura, ao passo que a professora utiliza o termo para se referir à limpeza, carregando-o de
uma conotação moralizante. Ao mesmo tempo, parece-nos que esses momentos demonstram o
sentido do que a professora ensina para os alunos, vistos por ela como despreparados para o
aprendizado da literatura ou da língua de modo geral. Se o trabalho aborda o Barroco e isso
não entra em questão na avaliação - pelo menos não no momento em que ela discorre sobre
ele -, as atividades configuram para ela uma maneira de moralizar os alunos e prepará-los para
o futuro. Mais uma vez, presenciamos a adaptação contextual das expectativas de
aprendizagem, traduzidas em critérios de avaliação em ação na sala de aula (DUTERCQ,
2014). A reação de Maicon, no entanto, demonstra ironia e a percepção de que há, para ele,
uma inadequação nas afirmações de Valquíria.
Diante disso, os alunos seguem as regras do jogo e executam os trabalhos e as
atividades de acordo com o valor que eles terão. Geralmente eles identificam, pela experiência
escolar, quais são as atividades efetivamente cobradas na prova e só copiam o conteúdo
nessas situações. As atividades parecem ser um simulacro da aula, impressão esta que se
repete quando os alunos comentam sobre o trabalho feito a partir do Barroco:
A gente até fez um trabalho. A gente não aprendeu sobre ele [o Barroco], a gente
teve que fazer um trabalho sobre ele (Mariana).
94
O barroco a gente não aprendeu nada sobre ele, a gente só aprendeu isso que eu
estava falando do radical. Sobre o trabalho ela falou assim “pesquisa isso sobre ele”
e já era (Mariana).
Quando a professora falou sobre o trabalho, ela chamou atenção para sua importância
como parte da avaliação e remeteu o trabalho ao Barroco. Não vimos menção à razão pela
qual esse tema foi escolhido, e não outro, e tampouco explicações sobre a forma correta de
fazê-lo. Abaixo temos a fotografia do material que serviu de base para Carolina fazer o seu
trabalho:
Fotografia 1. Material pesquisado na internet pela aluna Camila para o trabalho sobre o Barroco. Registro feito
em 19/12/2014.
A professora se volta para a turma para conversar sobre o texto e pergunta o que são
as palavras em negrito, no vocabulário. Os alunos respondem corretamente e, a
seguir, a professora pergunta se eles têm dúvidas relacionadas a outras palavras.
Surge uma dúvida quanto ao sentido da palavra “Indecomponíveis”. Uma aluna
pergunta se são palavras que não se decompõem. A professora diz que sim e informa
que o prefixo “in” indica a negação. Então ela menciona a palavra “compreensível”
e pergunta o que aconteceria com ela caso fosse incluído o prefixo “in.”
- Era isso o que eu queria ouvir! Eu não queria ter que explicar, agora é
minha vez de perguntar!
3-Copie do último parágrafo o trecho que comprova que o narrador gostaria que
seu amor fosse eterno.
narrador ou o foco narrativo. Diante dessas demandas, a professora passa para a correção dos
exercícios oralmente, sem anotar as respostas na lousa:
Eles se lembram do nome, mas não se lembram exatamente do que conhecem. Uma
aluna do fundo da sala se lembra da Garota de Ipanema. A professora confirma que é
uma música dele e começa a declamar o início do Soneto da Fidelidade.
De tudo, ao meu amor serei atento antes
E com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
A seguir a professora passa a cantar Eu sei que vou te amar, sendo seguido por
alguns alunos, que cantam com a professora. Um dos alunos diz: “Cálice”, para os
colegas que estão cantando com ela.
Eu sei que vou te amar
97
***
Até o momento, a exposição dos dados permitiu-nos construir a sala de aula como um
espaço composto segundo as lógicas estatais, que são reelaboradas de acordo com os sentidos
atribuídos a elas pelas professoras e alunos. A partir das relações objetivamente instauradas
em duas escolas estaduais paulistas, procuramos mapear as tensões envolvendo a leitura de
obras literárias. Situamos, a partir da figura do leitor-leitor, a imagem da boa leitura
construída contraditoriamente nas práticas escolares, nos livros didáticos e nos currículos ao
longo do tempo. A inclusão dessas diversas temporalidades em nossa análise possibilitou-nos
apreender que, como um inconsciente das ações, as professoras tentam se aproximar dessa
imagem da leitura nas escolas, o que se mostra problemático pela ausência de condições para
sua execução, pelas contradições curriculares, resistência dos alunos, entre outros motivos.
Diante desse quadro, a matriz socializadora possível, constituída em sala de aula pelo trabalho
de síntese efetuado pelas professoras, permite a construção das aulas em torno de algumas
atividades que são eixos estruturantes da imagem do ensino de literatura conhecido nas
observações de aula.
As experiências com a linguagem vivenciadas durante as aulas, as quais envolvem a
leitura, a escrita e as trocas orais, dão-se por meio das atividades que procuram ensinar sobre
a literatura e, ao mesmo tempo, formar o espírito do aluno (CHERVEL, 1990). Élisabeth
98
Bautier e Jean-Yves Rochex (1998) em suas pesquisas sobre as experiências escolares dos
alunos oriundos de grupos sociais que não costumavam frequentar o ensino médio, sustentam
que as relações com a linguagem são reconfiguradas. Uma vez que ela é um aspecto
importante para a construção de si, visto que é por meio da fala, da escrita e da leitura que se
dá forma às experiências individuais, aos afetos, aos conflitos, entre outras ações de produção
individual e coletiva. As atividades que procuramos descrever acima configuram uma relação
com a linguagem enquanto objeto de estudo; assim, os textos são oportunos para extrair
aspectos gramaticais, fazer interpretações estruturadas a partir da busca pela palavra correta
definida pelo dicionário ou pelo bom senso escolar. Em função da imagem que se construiu
sobre o sentido da leitura no ensino médio - uma atividade individual e desinteressada -, sua
cristalização em livros didáticos e currículos, reelaborados em função das novas demandas de
escolarização prolongada para todos, encontramos leituras, escritas e trocas orais que se
distanciam dos alunos e até mesmo das professoras. Apesar da porosidade de suas fronteiras e
das dificuldades de sua manutenção, as estruturas cognitivas do ensino médio fazem-se
presentes nas práticas das professoras e, por meio das atividades, são também incorporadas
pelos alunos. Entretanto, essa incorporação não se dá pela oportunidade de reelaboração de si,
das referências pessoais por meio das relações com a linguagem favorecidas pela escola.
Pensando-se a partir das sugestões de Élisabeth Bautier e Jean-Yves Rochex (1998), podemos
dizer que os alunos e, talvez, as próprias professoras –principalmente Valquíria – não
disponham da oportunidade de realizar atividades de leitura espontâneas, originárias de suas
representações familiares, e de adentrar no universo da leitura de obras literárias propostas
pela escola. As relações com os saberes escolares são, consequentemente, bastante
fragmentadas:
É, então né... [fala como quem deixa a entender que não gostou.] Tipo, um livro,
como eu sou péssima em Português eu não sei, eu não entendi direito o que é o
Barroco. Mas pelo que eu entendi eu não gostei muito, não. Tipo, Idade Média e
tal.... Que tem a ver com a Idade Média. A época do Feudalismo. [Pausa]. Gregório
Matos, que foi um escritor Barroco, que eles faziam sátiras das, dos... Em tudo o que
eles escreviam faziam sátiras da sociedade daquela época. Acho que eu não seria,
que não me interessaria, não (Adriana).
mostra de forma pouco clara, cria-se para os alunos uma imagem de distanciamento em
relação ao conteúdo:
Na verdade, [me lembro de] nada. Tipo, na hora sim, mas agora eu sei que é
uma, que [o Barroco] é um movimento artístico que foi construído no Brasil,
tipo um patrimônio histórico, e é o que eu lembro. Para você ver o quanto
aquilo você tem que fazer para fazer a prova e você nunca mais vai usar. É
isso o que eu lembro (Carolina).
Tipo, tem que pegar eu não lembro.... Aqui está escrito atividades o radical é o "a”.
Aí tem que falar uma palavra que tenha "a," tipo macaco...aí você tem que escrever
isso (Mariana).
Outra coisa que e achei muito importante, quando eu estudei há muitos anos atrás, eu
estou falando da aula de Português agora, quando eu estudei lá em Santa Celeste, a
gente não aprendia a interpretar texto. Eu tenho muita dificuldade de interpretar
texto, hoje, eu aprendi isso nas aulas de Português com ela. Aprendi. Eu não sabia.
Quando eu estudei, a gente tinha o livro e aí vinha a matéria e a gente sabia que
vinha aquele monte de questões, perguntas e respostas, perguntas e respostas e era só
isso. A gente ia ter que estudar para a prova as perguntas e respostas para responder
na prova. Não aprendi a interpretar texto e ela ensinou isso para a gente e eu aprendi
aqui com ela. Eu achei muito importante (Clair).
100
A relação mais próxima mantida com Celeste, com a literatura e as circunstâncias nas
quais podem ler juntos geram mais interesse nos alunos e empatia pelas obras literárias.
Entretanto, não é possível afirmar se isso assegurar para Clair a autonomia para ler e
compreender os textos literários. Se as experiências escolares têm dificuldade para se fazer
presentes e ressignificar representações pessoais, cabe a nós buscar entender como elas se
caracterizam para os alunos e professores de modo a notar as aproximações e distanciamentos
entre eles.
As duas seções a seguir têm como objetivo oferecer uma aproximação ao cotidiano
escolar e às características das escolas e das aulas observadas. A partir da exploração do
Diário de campo, apresentaremos as relações estabelecidas entre direção, professores e alunos
com vistas a situar as escolas. Veremos que, em função da necessidade de convivência
escolar, diferentes estilos de vida entram em relação e embate, ao mesmo tempo que as
referências culturais, sobretudo dos alunos, resvalam-se nas relações que estabelecem com a
leitura. Logo, almejamos construir a escola como um espaço de posições no qual conflitos
culturais são efetivados pelas personagens que ocupam seu interior, buscando as
circunstâncias nas quais a literatura se faz presente. Desse modo, as instituições conhecidas
mantêm fronteiras culturais porosas, uma vez que os saberes escolares são negociados em seu
interior em função de interesses diversos e, ao mesmo tempo, a regularidade das aulas
também é negociada entre professores e alunos. Por meio desse caminho, buscamos situar as
aulas e os conflitos observados no âmbito de relações sociais mais amplas.
passamos a frequentar as escolas pesquisadas, efetuamos uma aproximação lenta que nos
possibilitou uma visão geral de seus espaços burocráticos, corredores, sala dos professores até
chegarmos à sala de aula. Desse modo, nos tornamos pouco a pouco mais próximos da vida
construída nas duas escolas.
O primeiro espaço escolar visitado foram as secretarias, cujos funcionários são
encarregados de abrir e fechar as portas das escolas ao exterior, trabalho este realizado por
meio de sistemas eletrônicos de travamento das portas. Esses espaços são o lugar do trabalho
burocrático, onde são armazenados muitos papéis, fichas e cadernos de registro, assim como
panfletos com a indicação de vestibulinhos e vestibulares e avisos de horários para os alunos.
No início, obter autorização para entrar era mais difícil e os ânimos dos funcionários, mais
exaltados, até que a crescente familiaridade com a pesquisadora foi tornando a passagem mais
fácil. Na Escola 1, o acesso aos corredores que nos levavam às salas de aula ou dos
professores nos aproximava dos adolescentes, sempre dispostos em grupos configurados pelo
jeito de se vestir e se comportar, conversando animadamente enquanto circulavam nos
intervalos de aula ou no recreio. Já a Escola 2, que recebia os alunos adultos no mesmo
horário frequentado por nós, tinha corredores mais vazios e silenciosos. Como podemos ver
na fotografia abaixo:
Passando pelo corredor, seguíamos para a sala dos professores ou para a sala de aula.
Durante a permanência na sala dos professores acompanhamos circunstâncias de interação e
troca entre eles, conforme descrito abaixo:
102
Chego 10 minutos antes da aula começar e fico na sala dos professores, onde quatro
professores, dois homens e duas mulheres já estavam. As professoras conversam
sobre um trabalho que estão fazendo com os alunos, mas não consigo identificar do
que se trata. Um dos professores está lendo um jornal e o outro está impaciente, indo
de um lado para o outro, até ir ao computador e começar a ler as notícias na tela
(Observação feita no dia 03 de novembro, Escola 1).
Entre uma aula e outra os professores revelam-se cúmplices, dando dicas sobre como
estão os alunos naquele dia, comentando sobre o que aconteceu nas últimas semanas e
acordando entre eles critérios de classificação das turmas. Era recorrente ouví-los trocar
impressões a respeito das turmas consideradas mais “difíceis” ou informando aos colegas
sobre o humor de uma delas naquele dia. Além dos assuntos relacionados ao trabalho,
observamos que há uma espécie de comércio entre os professores, que vendem alguns
produtos como doces e queijos. Eles se inserem, assim, em um grupo composto pelos colegas
de trabalho que, para Maurice Tardif e Claude Lessard (2014), caracteriza-se por quatro
elementos: a ideia de que a escola é um espaço familiar e partilhado por todos em suas
interações diárias, tornando as questões de seu interior algo normal, natural; a existência de
um espaço de troca de conhecimentos práticos entre os professores, o que ajuda estes últimos
a delinear seus objetivos de ensino; a criação de valores compartilhados entre os docentes,
estabilizando uma ética do que é permitido ou não na relação com os alunos; por fim, o tempo
escolar é visto como algo poroso, pois mesmo nos momentos destinados ao descanso, muitas
vezes os professores precisam realizar atividades relacionadas ao ensino, ou seja, seu tempo
livre é em parte dedicado aos alunos. A construção de um universo familiar e a produção de
conhecimentos práticos por meio desse compartilhamento é evidente, porém mais forte no
caso da Escola 1, uma vez que, na Escola 2, notamos uma sala de professores mais ampla e
com poucas interações entre os professores. É de Valquíria a seguinte definição do grupo de
professores com o qual trabalhava:
Aqui vemos o quanto o grupo de professores configura um pilar importante para o que
diz Valquíria sobre o trabalho cotidiano, reforçando que em sala de aula a identidade do corpo
profissional é um dos elementos utilizados por ela durante o ensino. Opera-se, assim, uma
103
socialização escolar por meio dos colegas de trabalho (ZANTEN, 2014). Essa socialização
também é feita por meio de livros didáticos, cadernos, mapas e informações obtidas pela
internet, como testemunhamos. As professoras sempre carregavam muitos livros didáticos,
cadernos e diários, o que serve de motivo para conversas, leitura e escrita. Não pudemos
notar, nesse lugar e em outras ocasiões nas quais estivemos na escola, a presença de objetos
literários não relacionados ao ambiente escolar. Logo, podemos compreender que a
socialização nesse ambiente se dá pela imersão nos gêneros de escrita escolares e, portanto,
segundo suas características. Nesse sentido, devemos pensar no papel formativo dos livros
didáticos, o que eles representam sobre a cultura escrita, tanto para alunos quanto para as
professoras. O mesmo vale para os livros distribuídos aos alunos no início do ano, pois o kit
composto por quatro livros também foi lido pelas professoras (“Mas em casa eu ganho muitos
livros. Ganho livros porque a gente recebe kits também. Esse O Diário de Anne Frank eu já
tinha lido, voltei a ler. O D.Casmurro eu também li” Valquíria).
Algo semelhante se passa na relação com a direção. Notamos que o grupo de
professores mantém certa distância dos coordenadores e diretores, que ocupam outras salas e
se dirigem até os docentes para dar informes e recados. O distanciamento físico e, sobretudo,
simbólico, fica evidente na passagem abaixo. Fracassadas as tentativas de iniciar a aula, sem
ser ouvida pelos alunos, a professora Valquíria começou a chorar e saiu da sala. Instantes
depois ela retornou e prosseguiu com a aula. Os alunos ficaram muito preocupados e com
medo de serem repreendidos pela diretora, que logo apareceu na sala de aula:
A presença da diretora funciona como um anticlímax, uma vez que os alunos, cientes
de terem passado dos limites, esperavam pela repreensão. Aparentemente, o caminho da
negociação é preferível ao conflito direto com os alunos. De acordo com Agnès van Zanten
(2014), nas escolas que passaram pela massificação, cujos alunos são considerados mais
difíceis, costuma-se exigir dos diretores que assegurem a paz nas instituições sob sua
responsabilidade. No caso em discussão, notamos que a diretora mantinha muitos conflitos
com os alunos para conter os atrasos destes últimos e a insatisfação com a falta de
104
9
Em 2015, o governo estadual lançou um projeto de reestruturação da rede com a previsão do fechamento de
algumas escolas. Grande parte das unidades que seriam fechadas foram ocupadas pelos estudantes secundaristas
como forma de resistir à reestruturação. Ao final de algumas dicas, a mudança foi suspensa.
105
Certamente estamos distantes de uma polarização tão rígida entre professores e alunos
e de um domínio verbal tão extensivo nas escolas de ensino médio paulistas. Entretanto, a
representação do professor descrito acima e suas formas de distinção parecem persistir no
modo de pensar de docentes e discentes, e, sem dúvidas, ela é uma das bases da relação
pedagógica, fornecendo, talvez, elementos para a construção do inconsciente escolar
(BOURDIEU, 2013a). A partir de tal representação, a professora Celeste constrói sua imagem
pública ao se apresentar em sala de aula. Se acreditarmos, com Erving Goffman (2002), que
no dia a dia representamos um papel de modo a produzir determinados efeitos em nossos
interlocutores, veremos que a professora Celeste ocupa sua posição na sala de aula e
representa plenamente a autoridade que lhe compete. Parece haver uma coincidência entre o
papel que a professora representa e sua visão da realidade.
Valquíria posicionava-se de maneira diversa em sala de aula. Ela não conseguia
ocupar a posição de autoridade docente, manipulando os símbolos e regras institucionais que
poderiam consagrar sua posição. Parece-nos que o isolamento referido acima e a instabilidade
nas relações com a direção da escola repetiam-se na sala de aula. Constantemente ela tenta
falar sem conseguir ser ouvida, algumas vezes suas propostas de atividade soam um pouco
vagas e, com isso, na maior parte das aulas ela tem dificuldade de fazer seu discurso ser
reconhecido pelos alunos. A título de exemplo, no dia 3 de novembro ela falou sobre uma
proposta de atividade várias vezes, mudou de estratégia e passou a escrever na lousa; depois
entrou e saiu da sala repetidas vezes para buscar os materiais. Ou Valquíria não acredita no
papel que deveria representar em sala de aula ou não detinha as condições necessárias para
isso, diferentemente do que acontecia com Celeste. Em circunstâncias como essa, nas escolas
marcadas por conflitos por conta da expansão escolar, a professora tenta construir as bases de
legitimidade do seu trabalho por meio de uma relação mais próxima aos alunos, ouvindo-os e
conversando com eles, sem recorrer a uma postura mais autoritária. Essa pode ser uma forma
da docente construir as bases para a sobrevivência em sala de aula, a ser explorado com mais
detalhes adiante.
constantemente em voz alta durante a aula, sobretudo um grupo de alunos mais jovens
sentados na fileira ao lado da porta. Ao mesmo tempo, eles seguiam os ritos propostos pela
professora: liam em voz baixa quando solicitados e respondiam às questões em voz alta ou no
caderno quando era necessário. Enquanto realizavam as atividades, conversavam, mexiam no
celular e faziam brincadeiras. A organização dos alunos na sala segue a ordem das carteiras
enfileiradas
Um grupo que está na frente da mesa da professora é composto por duas meninas e
um menino. Uma delas copia a lição e as outras mexem no celular. Outro grupo está
no canto direito da sala e é formado por cinco alunos, três meninos e duas meninas.
Eles estão sentados em roda, em cima das carteiras e no colo uns dos outros.
Conversam predominantemente sobre as festas das quais participam. Falam também
sobre os casais, quem está ficando com quem e sobre música. Outro grupo está logo
ao lado da porta e é formado por seis estudantes, todos meninos. Eles brincam e
brigam entre si. Depois de alguns minutos, dois desses alunos passam a copiar a
lição. Vejo que existe um aluno sozinho, no fundo da sala, copiando a lição muito
próximo ao armário da professora. Depois descubro que se trata de um aluno com
muitas notas vermelhas e que passará a frequentar o EJA no próximo ano
(Observação feita no dia 4 de novembro, 1º ano A).
Percebe-se que, enquanto a aula acontece ou no momento em que aguardam por ela,
os alunos se ocupam e encontram diversas formas para realizarem tal atividade. Abaixo
apresentamos um conjunto de excertos que retratam como os alunos preenchem seu tempo:
Enquanto a professora fala, dois alunos estão ouvindo música no celular. A maioria
tem o celular na nas mãos e ficam com o fone no ouvido o tempo todo
(Observação feita no dia 3 de novembro, 1º ano A).
Giovana joga no celular com o som do jogo alto e a professora se levanta da cadeira
e pede para ela desligar o celular
(Observações feitas no dia 12 de novembro, 1º ano B).
Em alguns (colégios) a distribuição era aleatória e era neles que, com mais
facilidade, aqueles em que a vocação do prazer costumava ser maior do que o desejo
do estudo, reuniam-se pelas últimas carteiras, às vezes individuais, outras vezes em
duplas. Ficavam então as ‘primeiras’ para os alunos ‘sérios’ e estudiosos, a quem a
proximidade sagrada do professor e do quadro negro era absolutamente
indispensável (BRANDÃO, 2013, p. 95).
Ler livros de sacanagem; fazer desenhos do mesmo teor (tive amigos que foram e
serão por certo, ainda hoje, verdadeiros artistas no ramo), escrever ‘jornaizinhos’
com fofocas e malandragens que circulavam gostosamente entre nós (vocações
promissoras terão começado ali), redigir bilhetes de gozação entre colegas, ou, mais
sérios e às vezes até comprometedoras, às meninas (BRANDÃO, 2013, p. 99).
109
Na oposição entre a turma da frente e a de trás, talvez apenas a sala do 3º ano B possa
se aproximar dessa lógica, já que está organizada em fileiras. Nas salas do ensino médio
regular essa divisão foi excluída, pois os alunos que poderiam ser classificados como do
fundão se misturam entre os grupos; talvez o único local interditado seja em frente à mesa da
professora. Não podemos deixar de observar, assim, que o espaço da sala de aula caracteriza-
se pela ocupação de posições relativas aos professores e aos alunos, sendo que estes criam
submundos dentro daquilo que constitui a sala de aula como realidade social. Tais submundos
parecem variar no tempo e espaço. Se Carlos Rodrigues Brandão falava de jornaizinhos,
bilhetes e desenhos, hoje vemos submundos formados por celulares e tudo aquilo que
oferecem, especialmente as músicas, os jogos, as redes sociais e o whatsapp. Em torno dos
símbolos em circulação nesses ambientes os alunos vão produzindo suas formas de habitar a
sala de aula e estabelecendo um ritmo para as aulas, isto é, as pausas, retomadas do conteúdo,
conversas sobre assuntos diversos, entre outros.
As relações objetivas instauradas na sala de aula são fruto da interação entre
professores e alunos conjugando suas referências culturais diante dos ideais de formação que
produzem a cultura escolar. Configuram-se, desse modo, as fronteiras relativas aos saberes
válidos nas escolas, pois diferentemente de outros momentos nos quais a escolarização se
dava por meio de uma cultura comum compartilhada por quem conseguia acessar o ensino
médio, vê-se agora a negociação em situação de aula (ZAFFRAN, 2006; NOVOA, 2014).
Entretanto, não podemos desconsiderar que tal cultura tem algumas especificidades, pois ela
está situada em um espaço e grupo específicos. Como procuramos descrever anteriormente, os
alunos do ensino médio regular fazem parte de camadas mais pobres da população paulistana
e residem em bairros periféricos das zonas norte e sul da cidade. Entre os elementos que
parecem caracterizar esse grupo, podemos citar a relação que os jovens estabelecem com a
música. Isso não é surpreendente, pois autores que se dedicam a pesquisar a juventude
ressaltam a música como um dos elementos de construção das identidades dos grupos jovens
(SPOSITO, 2000; MARTINS, CARRANO, 2011). Durante as aulas, os jovens costumam
ouvir música, cantar e dançar durante as aulas, demonstrando sua proximidade com tal
universo. Entre os estilos musicais identificados, notamos que o funk é o que mais escutam
durante as aulas. A opção por determinados estilos musicais articula as práticas de
sociabilidade, pois os alunos encontram-se aos finais de semana nos bailes que tocam seus
estilos musicais prediletos. Além disso, a opção pela compra de revistas, livros, acesso a sites
110
e blogs também tem como norte a busca por informações dos artistas preferidos. Tais
referências culturais são levadas para a sala de aula nos modos de se comportar, se vestir, de
construção do vocabulário etc.
A produção dos alunos segue a lógica da cultura própria aos adolescentes, tanto na
Escola 1 quanto na Escola 2, uma vez que muitos jovens frequentam o EJA e também
impõem sua cultura em sala de aula. Como ponto de partida, é importante buscar uma
definição do que seria a juventude, momento da vida pelo qual passa a maior parte dos alunos
conhecidos durante a pesquisa. Concordamos com Angelina Peralva (2007) quando afirma
que a divisão da vida em fases é um fato da modernidade e, ao lado de tal divisão, criam-se
representações acerca de todas elas, como a infância, a idade adulta, a velhice e a juventude.
Juarez Dayrell (2007) afirma que a juventude é uma condição social e também uma
representação sobre ela. Nesse sentido, as compreensões de juventude podem variar segundo
critérios como “[...] condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades
religiosas, valores) e de gênero, e também das regiões geográficas, entre outros aspectos”
(DAYRELL, 2007, p. 157). Além desses elementos, há de se considerar que a juventude é
construída em um momento marcado pela globalização, o que produz um ambiente específico
de produção da juventude, quando padrões culturais, modos de se vestir e agir circulam com
maior velocidade pela nossa sociedade (MARTINS & CARRANO, 2011).
De modo especial nas salas de ensino médio regular, os ritmos e interesses dos alunos
desempenhavam um papel muito importante na organização da rotina das aulas de Língua
Portuguesa. A partir dos espaços oferecidos pelos professores ou impostos pelos alunos, estes
últimos davam mostras constantes de seus interesses. Nesse sentido, temos a impressão de
que as culturas juvenis, com suas formas de sociabilidade e entretenimento, faziam-se
regularmente presentes em sala de aula. O principal elemento que se fez notar foi o funk,
talvez porque as músicas e as danças geradas por ele causavam incômodo às professoras e a
alguns alunos. Esse era o ritmo musical predominante durante as aulas, como podemos notar
no excerto abaixo:
Ao terminar de escrever nas três partes em que dividiu a lousa, a professora apaga a
primeira parte e recomeça a passar a lição. Uma aluna pergunta à professora se o
Largo da Matriz é longe. A professora diz que não. Então o grupo que fica no canto
esquerdo da sala recomeça a conversar e fala sobre o baile funk que vai acontecer no
Largo da Matriz. Outra aluna fala que não vai ao baile funk, que existem outras
coisas além disso
(Observação feita no dia 04 de novembro, 1º ano A).
111
Carlos Henrique Martins e Paulo Carrano (2011) afirmam que os jovens têm um
espaço relativamente grande para constituírem uma identidade cultural própria, que passa ao
largo do “mundo dos adultos”. Segundo os autores, por conta do rápido processo de
globalização, que força vínculos internacionais ou de diversos níveis locais, tais identidades
são marcadas por escolhas de diferentes referências com as quais pretendem construir suas
identidades. O espaço da cidade é propício para o desenvolvimento de práticas culturais que
tornam significativos, do ponto de vista da cultural, seus territórios. Em torno de tais lugares,
podem-se desenvolver diversas identidades de grupo. Como afirma Marília Sposito (2000), as
práticas em torno da música são bastante significativas para a produção de sentidos dessa
identidade juvenil. Martins e Carrano (2011) afirmam:
Os exemplos que podemos extrair das observações em sala de aula mostram que o funk
é bastante representativo das práticas culturais dos jovens alunos. Em um trecho citado acima
os alunos combinavam de se encontrar em um baile que aconteceria no Largo da Matriz, no
bairro Freguesia do Ó; o funk também poderia ser vetor de discussões sobre temas de interesse
dos alunos, como aqueles relativos aos comportamentos sexuais:
O funk como transgressão começa a ganhar contorno por meio de danças e cantos fora
de hora, e sua força reside exatamente em ser uma prática cultural muito mal vista na escola.
Os alunos sabem que esse estilo musical é reprovado pelas professoras, e com base nisso
parecem criar um jogo de provocações. Como sabemos, apesar de existirem bailes funk desde
a década de 1970 no Rio de Janeiro, é a partir de 1990 que eles ganham maior popularidade,
sobretudo entre os jovens que viviam em comunidades. George Yúdice (2013) afirma que nos
anos 1990 a música que representava a classe média branca carioca e paulista era o rock e o
pop nacional e internacional, ao passo que os pobres não brancos se articulavam em torno do
rap como forma de expressão, no caso paulista, e do funk, no caso carioca. O antropólogo
afirma que o funk é uma espécie de resposta dos jovens moradores das favelas e das periferias
cariocas ao modelo de democracia surgida após o impeachment do ex-presidente Fernando
Collor (YÚDICE, 2013). Enquanto era praticado por excluídos sociais, o funk foi concebido
pela crítica musical e mesmo pelos rappers como uma prática pouco política e muito alienada,
criando-se uma representação do funk e do funkeiro como inaceitáveis. Com uma espécie de
decadência do rap em São Paulo, o fenômeno do funk ostentação trouxe o ritmo musical e o
estilo de se vestir para a cidade.
No que se refere aos nossos dados, interessa-nos evidenciar que a cultura funk, muito
presente durante as aulas, representa mais do que a música. Em tese sobre a zoeira em sala de
aula, Alexandre Barbosa Pereira (2010) demonstra que o funk representa um conjunto de
práticas associadas à cultura de massa, à posse de carros e aparelhos celulares, entre outros,
que se relacionam a um modo de vida das periferias de São Paulo. Nesse sentido, ele articula
grupos de jovens ao redor desses interesses ou produz estranhamentos entre eles pela
identificação do funk ao crime, por exemplo.
É igualmente importante mencionar que os aparelhos eletrônicos, sobretudo o celular,
trazem para o espaço da sala de aula outros gêneros de escrita, caracterizados pelas formas de
113
organização da linguagem do whatsapp e das redes sociais, utilizados com frequência pelos
alunos. Vemos aqui outro ponto em que as fronteiras escolares são tensionadas, pois, como
visto anteriormente, os currículos escolares e os livros didáticos, apesar de terem ampliado os
gêneros explorados na escola, não consideram ou legitimam as práticas de escrita virtuais.
Nesse sentido, os alunos parecem atribuir menos valor à cultura literária conhecida nas
escolas, situação também percebida por Alexandre Barbosa Pereira (2010) nas escolas por ele
pesquisadas.
Na Escola 1, o quadro acima se mostra de maneira mais homogênea por conta da faixa
etária semelhante dos alunos. Na sala de aula da EJA, contudo, o ambiente é mais dividido.
Existe um grupo de alunos mais jovens que se assemelha àquele descrito anteriormente,
porém existem os estudantes mais velhos, na faixa dos 30, 40 e 50 anos que, além de se
distanciarem da juventude e dos modos de comportamento dessa fase, também estranham o
modo de ser dos alunos e da organização escolar. Talvez esses alunos tenham vivido uma
experiência de escolarização bastante singular, pois são fruto da expansão do ensino, mas
sentem os efeitos de sua aceleração dentro da escola. Uma vez que eles iniciaram os estudos
nos anos 1980 ou no início dos anos 1990 e retornam agora, mais de vinte anos depois,
sentem os impactos sofridos pelo ensino médio nos anos 1990. Como resultado disso, existe
um estranhamento na sala de aula entre os próprios estudantes. Karina chega até mesmo a
dizer: “[...] a falta de respeito dos alunos não permitia que eles [os professores] pudessem
introduzir alguma matéria e eles, os alunos se comportavam de maneira animalesca”. Para
ela, a forma de agir dos seus colegas de classe é semisselvagem, o que impede que a aula
aconteça.
Além do conflito entre os estudantes, os adultos também se veem diante de padrões de
formação que parecem ter mudado ao longo do tempo. Assim, eles costumam estranhar as
variações na concepção de autoridade docente e não entendem o que, para eles, parece ser
uma certa permissividade dos professores com a indisciplina dos alunos. Adriana Dias de
Oliveira (2015), ao estudar a autoridade docente no ensino médio, sustenta que a autoridade
atualmente não se baseia em uma ideia rígida, como em outros momentos, mas sim em
critérios móveis e instáveis, fruto das características das relações sociais na modernidade. Os
alunos mais velhos, contudo, por terem vivenciado outra experiência de escolarização,
estranham as características da sala de aula tal como a conhecemos.
Outra faceta deste estranhamento é a verificação de outros padrões educacionais com
os quais os alunos adultos tiveram que se deparar. Um exemplo disso é dado por Clair: “Eu
achei ruim porque a gente não consegue fazer uma prova aqui, fazer uma prova séria”. A
114
seriedade parece ser a síntese do que faltou, de modo geral, para todos os alunos adultos, que
esperavam um professor com mais autoridade para impor disciplina na classe e que, ao
mesmo tempo, transmitisse conteúdos a serem aprendidos e verificados por meio de uma
prova. Parece haver, assim, a mistura entre um modelo de escolarização marcado por maior
rigidez e as experiências de escolarização vividas atualmente.
É importante ressaltar que a convivência de culturas diversificadas na escola é
igualmente desafiadora para as professoras. Durante as entrevistas, elas buscam demonstrar
que mantêm uma prática de leitura semelhante àquela valorizada na escola, representada pela
imagem do leitor-leitor. Efetivam, desse modo, a desvalorização das culturas que se
distanciam do que é considerado o padrão escolar. Contudo, as entrevistas permitem entrever
que elas próprias se aproximam de objetos literários mais variados. Os best-sellers convivem
com a leitura de fragmentos jornalísticos, matérias sobre educação, enfim, relações múltiplas
com as obras literárias. Podemos notar o quanto as professoras procuram e precisam modelar
suas trajetórias com vistas a se tornarem as profissionais que a escola e os documentos legais
definem, apesar dessa posição ser difícil (LAWN, 2000).
A despeito dos embates, alunos e professores devem conviver em um mesmo espaço
no tempo delimitado para a aula, o que gera alterações em sua regularidade, bem como no
estabelecimento de fronteiras entre ela e as referências externas. Após o processo de expansão
e massificação do ensino médio, observa-se que as referências culturais e a regularidade das
ações funcionam segundo o ritmo das interações e negociações possíveis entre professores e
alunos. Joël Zaffran (2006) afirma que isto se deve ao fato de que a escola perdeu a
legitimidade que detinha como lugar por excelência de formação do cidadão, segundo uma
ideia de cultura comum compartilhada ao menos por aqueles que conseguiam chegar ao
ensino médio. Vemos uma fronteira porosa marcada por diferentes estilos de vida em
convivência na sala de aula.
2.3.2. A expansão do ensino médio e a configuração dos conflitos entre professores e alunos
em sala de aula
rede de ensino com ramificações nas quais condições variadas de ensino são proporcionadas,
ocorre a potencialização dos possíveis conflitos entre professores e alunos. Como sabemos,
esse processo teve seus primeiros momentos em meados do século XX. A demanda da
população por vagas e os movimentos em defesa da democratização do acesso ao ensino
secundário produziram momentos de expansão ao longo dos anos. Dos anos 1940 até a década
de 1970, a quantidade de vagas era insuficiente para a demanda e, assim, as pressões da
população levavam ao seu atendimento por meio da ação dos poderes locais. Contudo, o
sentido dessa expansão foi dado pela ausência de um projeto voltado para o ensino médio.
Assim, as escolas foram criadas em municípios com pouca demanda, os prédios nem sempre
estavam preparados para esse nível de ensino e não ofereciam vagas suficientes para a
necessidade que se tinha (SPOSITO, 1984; BEISIEGEL, 2006). Essa tendência de expansão é
enfatizada na década de 1970, quando a lei 5.692/71 tornou o 2º grau etapa subsequente ao 1º
grau. Assim, as matrículas tiveram um aumento muito significativo: 1 milhão e 700 mil
alunos passaram a frequentar esse nível de ensino em 1970. Contudo, Ana Paula Corti (2015)
chama a atenção para o fato de que essa demanda foi atendida majoritariamente pela rede
privada. Este perfil de expansão vai sofrendo significativas alterações nas décadas seguintes.
Já em 1980 as redes estaduais se tornam predominantes no atendimento aos alunos do ensino
médio, muitos deles trabalhadores que estudavam no período noturno (CORTI, 2015). Ocorre
que o movimento realizado pela rede estadual paulista, para dar conta da nova demanda por
matrículas, foi pouco organizado e seguiu as necessidades impostas pelas pressões sociais,
mantendo a tendência de criação de escolas improvisadas para o ensino médio. Como
consequência, cria-se a circunstância de convivência entre diferentes grupos sociais na escola.
A educação de adultos na década de 1970 é marcada pela criação da Fundação
MOBRAL, uma iniciativa governamental para a erradicação do analfabetismo entre pessoas
de 15 a 35 anos. Os cursos foram criticados por serem aligeirados e não alfabetizarem os
alunos, ensinando-os muitas vezes a apenas decodificar palavras (OLIVEIRA & SOUSA,
2013). O MOBRAL teve fim apenas em 1985. Com a nova Constituição de 1988 o Estado
amplia a definição de sua responsabilidade diante da EJA, assegurando a oferta do ensino
fundamental mesmo a quem não tivesse a idade própria (BRASIL, 1988).
Ao longo das entrevistas, vários depoimentos de professoras e alunos davam conta de
explicitar os conflitos e estranhamentos vividos entre eles. A partir dos diferentes estilos de
vida presentes em sala de aula, exemplificados ao longo do capítulo, foi recorrente a
observação de queixas de professores na direção dos alunos e destes em relação aos colegas:
116
O pessoal só sabe ouvir funk, gostar de funk, saber fazer aquelas danças ridículas e
aquilo é a vida deles. Se você não gosta você não é a mesma coisa que eles (Luana).
Não pensam, tipo, ‘ah eu quero estudar’, eu quero comprar minha casa logo, com 20
anos eu quero comprar meu carro, com 27 eu quero fazer um intercâmbio, quero
morar fora. Não, eles pensam ‘vou para o baile funk, vou comprar o meu tênis de
mil parcelas de R$2.000, 00 e está tudo numa boa’ (Luana).
O trecho acima torna mais evidente que a distância que separa os grupos reside na
oposição entre estilos de vida e perspectivas futuras. O que Luana recrimina são as formas de
habitar a sala de aula, fruto de um modo de vida representado pelo funk, que parece, de sua
perspectiva, não ter futuro, restringindo-se à espera por um trabalho pouco valorizado, que
remunere o suficiente para manter a recreação do final de semana e a aquisição de símbolos
de ostentação do funk, como o tênis caro, o boné e mesmo o carro, que também é seu objeto
de desejo. Amanda parece se construir como alguém que, por meio da escola, almeja
ascender socialmente, morar fora do Brasil, comprar uma casa e um carro. Tal opção parece
se estender para suas escolhas musicais. Ela e outras colegas entrevistadas dizem gostar de
ouvir Luan Santana, cantor de outro ritmo bastante popular, o sertanejo universitário, que
produz músicas românticas.
Todos esses exemplos nos sugerem que a sala de aula de Língua Portuguesa, lugar
estruturado em um determinado espaço e tempo, habitado por diferentes alunos e professores,
constitui-se como um espaço de tensão. O embate não se encerra apenas na oposição entre
professores e alunos, mas também entre os próprios estudantes. Isso parece ir ao encontro das
propostas de Pierre Bourdieu (2011), para quem o mundo social funda diferentemente os
117
pontos de vista dos agentes a respeito da realidade. Assim, nos mesmos lugares, como a sala
de aula, podemos encontrar diversos pontos de vista:
A busca por qualidade era uma das variáveis da disputa por vagas, pois elas
faltavam, sobretudo, em escolas consideradas de boa qualidade pela população.
Porém esta busca permaneceu subterrânea, e não se converteu em reivindicações. O
discurso da SEE-SP ora negava a falta de vagas, afirmando que o problema era sua
distribuição pelo estado, ora desqualificava a pressão por vagas em escolas
prestigiadas, como uma ação da classe média visando manter seus privilégios, o que
desviou o debate público do que seria, talvez, a questão principal: a desigualdade
crescente entre as escolas da rede estadual, em termos de qualidade. A tentativa da
população de contornar esse fato procurando escolas de melhor qualidade era não só
legítima, como também desejável num sistema de ensino tão desigual. E esta
situação gerava uma concorrência interna à rede estadual. As mais prestigiadas
possuíam corpo docente estável, eram equipadas, e possuíam uma identidade
própria. O prestígio destas unidades circulava entre a população e gerava um
desequilíbrio na pressão por vagas: as escolas valorizadas e tradicionais eram mais
procuradas do que as outras (CORTI, 2015, p. 268).
O quadro acima ilustra a concorrência entre as instituições escolares e uma corrida das
famílias pela matrícula de seus filhos nas instituições de maior prestígio e mais bem
qualificadas. De modo a conter tal movimento e a organizar a rede, o Estado passa a
centralizar as matrículas feitas no ensino médio e a planificar a oferta, ou seja, a gerenciar as
matrículas em função das vagas existentes na rede. À medida que, nas décadas seguintes, o
crescimento da rede organizada pelo Centro aumenta e surge, em 2002, o projeto Escola em
Tempo Integral, as ramificações são ampliadas. Passam a existir o ensino médio regular, em
tempo integral, e as ETECs.
Esse panorama leva à produção de um mercado escolar, cujo principal agente é o
Estado, no qual os diplomas são diferentemente valorizados, o que gera a competição entre os
alunos pelas melhores vagas. Nesse sentido, a construção da vida relacional escolar também
leva em conta a posição ocupada nesse espaço de posições diferentemente valorizadas, como
os alunos e professoras deixam ver. Assim, disputas sociais com base em estranhamentos
culturais, como vimos no início da seção, ganham relevo. Também se ampliam as
concorrências no interior da própria escola, uma vez que, na ausência de uma cultura comum
que articule a regularidade e os saberes a serem ensinados, as negociações e conflitos travados
diariamente colocam os alunos e professores em choque.
No que se refere aos alunos, as reclamações mútuas multiplicam-se. A maior queixa
dos estudantes entrevistados reside no volume das conversas na sala, o que, para eles,
inviabiliza a dinâmica da aula. Karina chega a dizer que os alunos têm comportamento
animalesco. Porém, é a fala de Luana que nos parece bastante reveladora das disputas
ocorridas nesse espaço:
119
Se você não gosta você não é a mesma coisa que eles. Nem isso a escola ajuda:
preparar não só tipo para a gente não ter só uma posição social, um cargo, mas nem
para preparar a gente para viver em sociedade. Aí eu também digo, não é culpa da
escola porque eles tentam, é culpa dos alunos (Luana).
Luana indica que a sala de aula, apesar de ser construída como um grupo
homogêneo pelas professoras, constitui-se, na verdade, como um agrupamento de pessoas
diferentes em seus estilos de vida (BOURDIEU, 2007b). Para Luana, a escola deveria se
ocupar de ensinar os alunos a lidar com essas diferenças para chegarem a um consenso. Outro
ponto importante a ser observado é que a crítica de Luana exposta acima recai sobre a música
ouvida pelos estudantes e, em outro momento, em suas expectativas de futuro. Ao se
posicionar de forma crítica em relação aos seus colegas, Luana evidencia suas expectativas de
futuro, evidentemente um desejo de ascensão social por meio da escolarização. Em sua visão,
os alunos que só sabem ouvir e dançar funk pensam de maneira diferente e tem expectativas
que, do seu ponto de vista, são criticáveis. Mais uma vez, percebe-se a presença de pessoas
com diferentes posições sociais e projetos de futuro confinados em uma mesma sala de aula, o
que torna muito difícil a convivência. Adriana oferece outros elementos para investigarmos a
questão:
O ensino é bom, mas você percebe que ele podia ser melhor, mas tem aqueles alunos
que acabam, que eles não conseguem compreender e eles acabam deixando aquilo....
A gente não tem tempo de aprender o necessário, a gente tem só o básico (Adriana).
Diferentemente da oposição que Luana criou entre ela e seus colegas, Adriana
assume uma posição mais compreensiva da questão. Apesar de também considerar que a aula
é prejudicada pelo comportamento de alguns alunos, ela toca em algo que nos pareceu
importante ao dizer que alguns alunos não conseguem compreender aquilo. De nosso ponto de
vista, aquilo pode ser o conteúdo das aulas e, talvez, o jogo escolar. A necessidade de
compreensão e entendimento aparece em alguns momentos durante as entrevistas (“A falta de
informação, de entendimento sobre uma leitura, realmente atrapalha muito”, disse Karina;
“Tem coisas que eu não entendo bulhufas”, admitiu Camila; “Acho que é assim que se faz
trabalho, não sei”, afirma Paulo).
Diante de vozes tão diferentes, apesar de parecidas, na sala de aula parece ser possível
ouvir apenas as músicas, o funk, as danças e as conversas desses alunos descritos como
animalescos, conforme observado ao longo da pesquisa. Parece-nos que a medida do
distanciamento cultural em face da cultura privilegiada no espaço escolar modula a altura com
que música irá tocar na sala de aula. Se os alunos não compreendem porquê estão sendo
120
apresentados aos textos, às escolas literárias e aos livros, não nos surpreende que um aluno se
pergunte: “Por que eu vou querer saber do Barroco? Para mim não vai mudar em nada”
(Paulo). É evidente que na sala de aula existem os alunos que parecem negar completamente a
cultura privilegiada na escola, mas também aqueles que teriam disposições para se apropriar
daquela cultura, sobretudo por verem nela a possibilidade de ascensão social e, em outros
casos, por admirarem os livros e autores objetos de ensino. O problema que se coloca é como
lidar com uma realidade tão complexa.
No que tange aos conflitos sociais entre professores e alunos, vemos que no espaço
escolar os saberes a serem ensinados são reconfigurados pelas professoras em função da
maneira como os alunos são vistos pela escola e pelas docentes. As tensões vividas pela
leitura legítima de obras literárias são ressignificadas no espaço escolar de modo a demonstrar
os conflitos sociais. Nesse sentido, os alunos são vistos como pessoas cujas relações com a
leitura são pouco favoráveis ao ensino médio:
Eles [os alunos] não têm a cultura de leitura. A família não tem a cultura de leitura.
A maioria dos brasileiros é muito visual, gosta muito de televisão, então não está
incutido esse negócio de leitura. Na minha casa está porque como eu gosto de ler,
minhas filhas acho que me acompanharam e também meus irmãos deram livros
infantis quando elas eram crianças, elas já têm essa prática. A maioria dos alunos
não tem. Mas não deixa de fazer crescer essa vontade neles (Valquíria).
A professora concebe os alunos a partir de uma imagem homogeneizante, uma vez que
ela não pondera a respeito da relação que os alunos possam ter com a literatura, advinda
possivelmente de informações recorrentes em discursos sobre os problemas do ensino de
literatura nas escolas, como a identificação da ausência de cultura literária nas famílias dos
estudantes e o gosto do brasileiro pela televisão, informações vindas de estudos sociológicos e
históricos, apropriadas de modo a dar razões para o pouco sucesso no ensino de literatura. Em
outro momento da entrevista, Valquíria fala sobre sua própria formação pedagógica, quando
seu professor de prática de ensino lhe explicou que “não é para a gente ficar frustrado
quando a gente não atingir 100%. Para dar-se por satisfeito atingindo 60% da sala, que isso
é assim mesmo”. Esses elementos de seu discurso demonstram que, para ela, o ensino de
literatura necessita de alunos que já sejam dotados do gosto e das práticas de leitura,
tornando-os aptos à apreciação dos textos literários, pois parece que isso depende mais deles
do que dela e de suas iniciativas pedagógicas (“Era uma adaptação [de Dom Quixote], mas
ele está mais voltado para o texto original, eu li e ele está mais voltado para o texto integral.
Eles acharam confuso. ‘Ai, professora, eu não gostei’”). A distância cultural identificada por
ela torna difícil o ensino.
121
É uma clientela de alunos que são, na sua maioria, bons, de famílias, assim, que
respeitam a educação. De famílias que respeitam o professor, de famílias que, assim,
o que o professor falar é lei. Entendeu? Isso ajuda muito a gente a trabalhar. Você
sabe que o que você está falando a criança escuta em casa (Celeste).
A relação estabelecida por ela com a Escola 2 é oposta à relação que manteve com a
escola municipal na qual se iniciou na profissão, pois os alunos correspondiam a “uma
clientela que ia [à escola] só para se alimentar, eles não iam para estudar”. Porém, desde
que se mudou para as escolas estaduais localizadas na região da avenida Paulista e para a
escola atual, ela se identifica com o perfil de seus alunos, uma vez que muitos deles são
moradores do bairro em que a escola está situada e, frequentemente, compartilham com a
escola certa visão de mundo.
Nessa lógica de compreensão da realidade, os alunos do EJA com quem convivemos
durante a pesquisa de campo são considerados inadequados, por princípio, para o acesso à
cultura privilegiada no espaço escolar. Ao falar sobre a divisão dos alunos do EJA, a
professora afirma que “é qualquer um em qualquer sala”. A construção dessa imagem dos
alunos demonstra que eles são estudantes fora do jogo, o que se torna mais evidente pela
maneira como a professora organiza as aulas. Segundo ela, os alunos não querem nada que
exija maior esforço intelectual, pois chegam cansados depois do trabalho, por isso ela ministra
suas aulas a partir da leitura de textos e da abordagem pontual de aspectos gramaticais:
Eu me lembro que eles falavam para mim ‘Nossa, sua aula é tão fácil, o que você
ensina é tão fácil. A gente não entendia nada do que a outra professora ensinava’.
Por quê? Porque ela dava aula de 3º ano para eles e eu não fazia isso. Eu continuava
no meu processo, sabe? ‘Vamos trabalhar esse texto. O que tem nesse texto? Por que
esse artigo está no singular? Por que a gente faz o plural dessa forma?’ Então eu
122
dava coisas assim. No fim, eles viam que eles estavam aprendendo alguma coisa,
mas era fácil o que eu ensinava. Na boca deles era isso, sabe? (Celeste).
10
Ao utilizarmos o termo posição, colocamos em evidência o fato de que nas relações objetivas instauradas na
escola entre professoras e alunos, Celeste e Valquíria ocupam um lugar específico por meio do qual produzem
um ponto de vista, como proposto por Pierre Bourdieu (2011), acerca dos sentidos da leitura de obras literárias.
Como explicitamos anteriormente, a tela através da qual veem a questão é formada pelas disposições culturais
familiares e também por aquelas apropriadas nos processos de formação na licenciatura e no início do trabalho
como professoras. Assim, quando falamos em posição docente, evidenciamos que por meio da tela construída
por elas, o que coloca em jogo sentidos pessoais e estatais sobre o ensino de obras literárias (LAWN, 2000), elas
efetivam o trabalho docente que se caracteriza por algumas especificidades. No que se refere à produção escolar
da cultura legítima, tomamos como algo particular do trabalho docente a reinvenção parcial da cultura realizada
na sala de aula. Philippe Perrenoud (1995) aponta que no espaço entre as prescrições curriculares e o domínio
pessoal do conteúdo a ser ensinado, ocorrem as reinvenções tornadas currículos reais em funcionamento nas
escolas. Da representação constituída por esse movimento, as professoras selecionam as atividades e exercícios
que permitirão a inculcação dessa perspectiva sobre as obras literárias, ou melhor, será efetivada a produção da
matriz socializadora escolar fortemente marcada pelo trabalho inventivo das professoras. Nesse sentido, para
nosso trabalho, é importante investigarmos o modo como as professoras constituem e lidam com sua posição no
espaço escolar.
124
formação docente em momento de expansão escolar, as relações com a cultura são aspectos
centrais para a compreensão do trabalho docente e, diríamos, da produção da cultura mais
valorizada na escola.
As análises presentes neste capítulo tomam como ponto de partida os depoimentos
dados por Celeste e Valquíria ao longo de duas entrevistas realizadas com elas em 2014 e
2016, após termos observado suas aulas em 2014. Durante essas circunstâncias, elas
procuraram construir suas identidades em função de uma imagem da profissão e das relações
com a cultura de acordo com ela. Compreendemos que “a vida contada não é vida”, ou seja,
as narrações produzidas pelos sujeitos não são a vida propriamente dita, mas construções
linguísticas que nos mostram pontos de vista acerca dos acontecimentos descritos segundo
algumas intencionalidades, como afirma Christine Delory-Momberger (2006). Veremos dessa
forma que o modo como as professoras constroem tais imagens sobre suas trajetórias pessoais
e formativas indicam como veem suas identidades docentes. Ao acompanhar o modo como
elas se acomodam a uma representação da professora de Língua Portuguesa e suas relações
com as obras literárias, poderemos nos aproximar das maneiras como elas compreendem as
classificações do mundo social que orientam suas práticas cotidianas, como nos indicam
Pierre Bourdieu (2007) e Roger Chartier (1991a; 1991b). No que se refere especificamente ao
trabalho docente, Jean-Michel Chapoulie (1979) salienta o quanto é significativo notarmos as
categorias segundo as quais agem os professores de modo a percebermos suas formas de
significação do mundo social e de seu trabalho no interior do mesmo. Tal significação se
expressa de modo a sintetizar as temporalidades presentes na escola, sejam aquelas
verificadas nas prescrições do Estado, sejam nas práticas escolares e suas representações
cotidianas, o que torna as negociações e as relações em que estão inseridos aspectos
importantes para tais classificações do mundo social.
Foi evidente que, para constituírem sua legitimidade, as professoras buscaram
descrever e ocupar uma posição de distinção cultural e social/espacial dos alunos, o que se fez
pelos movimentos de reconhecimento e diferenciação com os estudantes. Entretanto, a
estratégia é problemática, pois eles guardavam semelhanças sociais fortes o suficiente para
que elas se lembrassem disso frequentemente, mas também eram diferentes demais, no que se
refere ao valor dado por elas à cultura valorizada na escola, pelo menos do ponto de vista de
seus discursos. Com isso, apesar do incômodo gerado pela posição que poderiam ocupar, as
professoras buscavam negociar com alunos, direção e famílias o reconhecimento de seu valor,
uma vez que de maneira talvez mais radical que outrora, são as negociações em nível local os
meios capazes de gerar o valor simbólico da profissão (CHAPOULIE, 1979; ZAFFRAN,
125
2006). Enquanto Celeste buscava legitimar seu valor por meio da relação com a cultura
escolar adquirida em tenra idade, Valquíria apostava nas relações afetivas com os alunos para
se manter próxima a eles. Afora os aspectos relacionais, as professoras também efetuavam
transações entre suas relações com a cultura familiar, reconfiguradas no processo de formação
e, por fim, a operacionalização disso para a construção do currículo real, aquele efetivamente
realizado na escola, do que também depende a ação dos alunos.
Percebemos que as professoras ocupam uma posição desconfortável, pois precisam ser
o elo de um sistema de ensino marcado pela fragmentação, ao mesmo tempo em que elas
próprias estão cindidas entre referências tão variadas com a cultura, ou seja, referências
familiares, estatais e do cotidiano escolar. Nesse sentido, o trabalho feito por elas está
marcado pela bricolagem. Philippe Perrenoud (1993) sustenta que os docentes efetivam a
produção das atividades e, assim, do sentido escolar pela colagem de diferentes elementos,
tais como modelos de exercícios, prescrições didáticas estatais, informações advindas dos
livros didáticos, enfim, materiais cujas perspectivas nem sempre são coincidentes, como
vimos no capítulo 2. A partir desses fragmentos, os docentes realizam uma síntese e
produzem a sensação de inteireza do trabalho pedagógico em função de suas disposições e
relações com a cultura. Desse modo, como atributo de suas funções, Celeste e Valéria criam
suas aulas e funcionam como emblemas para os alunos (FERRARA, 1993). Nesse caso
específico, o problema que se coloca é a dupla fragmentação vivida por elas: por um lado,
devem lidar com materiais e sentidos estatais do trabalho docente cujos pressupostos
sintetizam diversas temporalidades relacionadas aos sentidos das obras literárias; por outro
lado, elas próprias estão cindidas entre suas relações pessoais com a linguagem e aquela que
deveriam ter por serem professoras de Língua Portuguesa.
De modo a apresentarmos essa configuração da posição docente e suas
especificidades, inicialmente, mostraremos as impasses vividos pelas professoras no esforço
de reconhecimento e diferenciação social e cultural dos alunos, o que configura a posição
desconfortável ocupada por Valquíria e Celeste; a seguir, exploraremos as representações
familiares de leitura construídas pelas professoras e os modos como as relações efetivamente
praticadas com a leitura de obras literárias são escondidas de modo a se produzir sua
legitimidade cultural; finalmente, exploraremos os indícios que pudemos encontrar a respeito
do modo como os sentidos familiares e escolares da leitura são ressignificados em seu
trabalho. De acordo com Vera Lúcia Gaspar da Silva (2004), os sentidos são formas de se
construírem apropriações, as quais são sempre produzidas a partir de uma base cultural capaz
de fornecer valores e representações ao objeto em questão. Desse modo poderemos dar a ver
126
3.1. Entre dois mundos: a produção da posição docente por meio do reconhecimento e
da diferenciação cultural com relação aos alunos
terminou o curso, começou a trabalhar como secretária na SPtrans por intermédio de seu pai,
já funcionário da instituição. Até esse momento, Valquíria não demonstrava a vontade de
prolongamento dos estudos, tampouco havia forte identificação com a escola. No caso de
Celeste, ela se tornou contadora porque, em suas palavras, era apaixonada pelo pai. Assim
como Valquíria, ao completar 15 anos, passou ao curso noturno de modo que pudesse
trabalhar ao longo do dia, porém não se identificou com os colegas (...era uma menininha e eu
fui estudar com adultos. Então para mim isso foi muito chocante). Após o início em um curso
de desenho, Celeste passa ao curso de contabilidade e a trabalhar como contabilista11.
Ao assumirem o ponto de vista da família e das pessoas conhecidas como
possibilidades de futuro escolar e social, Valquíria e Celeste produzem a “...interiorização do
destino objetivamente determinado (e medido em termos de probabilidades estatísticas) para o
conjunto da categoria social à qual pertencem” (BOURDIEU, 2015, p. 52). Suas inscrições
sociais pareciam indicar, assim, a ocupação de trabalhos que necessitavam de formação em
nível médio. Entretanto, logo após um período inicial de trabalho administrativo, elas
realizaram cursos de licenciatura em Letras em instituições privadas de ensino e, nesse
sentido, a maneira como Valquíria e Celeste entraram na profissão são indicações importantes
para compreendermos as situações vividas por nossas entrevistadas e, de modo geral, outros
professores em contexto de expansão escolar. As entrevistas deixaram ver que a docência não
foi o primeiro trabalho mantido por elas e, portanto, não foi a primeira opção profissional.
Diferentemente de Valquiria, Celeste mantinha expectativas de escolarização prolongada,
provavelmente seguindo os passos do pai, que era um exemplo de ascensão social via
escolarização:
...meu pai tinha uma coisa de buscar uma vida melhor. Outro dia eu contei uma
história para as crianças, eu não sei se posso contar para você? [...] Meu pai
trabalhou na roça até os 15 anos, ele não sabia o que era calçar um sapato até os 15
anos e aos 15 anos eles saíram da roça e foram para a cidade, para Poços e aí meu
pai ganhou um sapato porque ia procurar emprego. Aí ele chegou em um hotel
chamado Quisisana em Poços, imagina um hotel no meio de uma floresta, o
Quisisana é isso, maravilhoso e era muito chique na época, hoje em dia não mais
porque virou um condomínio, ainda existe, mas é um condomínio, não é mais um
hotel, mas na época era o hotel mais chique da cidade e o meu pai, a minha avó
sempre fez os meninos estudarem, 7 filhos, todos estudados, apesar de estar na roça,
eles tinham que estudar. E meu pai foi fazer uma ficha nesse hotel para conseguir um
emprego [...] estava pleiteando uma vaga para garçom porque ele achou que estava
bom ser garçom, quando viram a letra do meu pai, a pessoa, né, provavelmente o
gerente falou: nossa, sua letra é muito bonita, você não vai ser garçom não, você vai
ser escriturário. Aí já colocou o meu pai no escritório do hotel, meu pai já começou a
ser escriturário, fazia livro fiscal porque ele tinha a letra muito bonita, imagine você
11
Aqui fazemos referência ao termo utilizado pela entrevistada. Ela utiliza a palavra contabilista, a qual se refere
ao profissional formado em nível técnico. Quando a profissão passou a exigir formação universitária, o termo
utilizado se tornou contador.
128
[...] aí foi para a Contabilidade e trabalhou muitos anos, aos 40 anos ele se formou
como advogado e sempre foi assim (Celeste).
Como se vê, o pai da professora, por quem ela era apaixonada, é construído em suas
memórias como alguém que buscou a melhoria de suas condições de vida por meio da
escolarização. Ressalta-se, também, que na maneira de exposição dessa busca, existe uma
hierarquização de valores no percurso do pai de trabalhador rural sem calçado até se tornar
advogado. Existe em seu discurso a reiteração da valorização de carreiras que exigem
formação em nível superior. Nesse sentido, Celeste valoriza muito e repete várias vezes o fato
de ter uma irmã psicanalista. Esse sistema de valores se aproxima do escolar, marcado pelas
hierarquizações entre as leituras e obras mais legítimas, o que, como vimos no capítulo 2,
também estrutura sua maneira de ocupar a sala de aula e de se relacionar com os alunos, por
vezes, produzindo seleções daqueles que poderão participar dos jogos escolares de maneira
bem-sucedida. Essa maneira de compreender a realidade, aproximada da visão escolar, é uma
disposição importante no momento de entrada na profissão (BALLAND, 2012).
Valquíria guarda relação diferente com a escolarização e a possibilidade de ascensão
social por seu intermédio. Suas referências familiares, sintetizadas na figura do pai, levam à
direção dos conhecimentos práticos e da manutenção das relações com a vizinhança:
[Meu pai] é contador, ele fazia toda a parte de contabilidade lá do bairro e depois ele
fundou a Sociedade Amigos do Bairro [...] então chamavam ele até de presidente [...]
É presidente, é prefeito, cada um assim, então a gente ficou muito assim conhecido
no bairro, tanto que o pessoal pergunta muito dele porque agora ele está com
Parkinson e Alzheimer, então ele está acamado em casa (Valquíria).
[...] meu pai era responsável para assinar os cheques da APM [...]aí ele, como que se
diz, participava das reuniões não de pais e mestres, quem participava era minha mãe,
agora ele ia lá para resolver esses negócios, eu me lembro até que a Beth, eu nem
sabia, que eu fui trabalhar lá. Quando eu comecei a trabalhar na área da educação eu
comecei a trabalhar no Altenfelder lá na Vila Jaguara, que era uma escola padrão na
época que se falava que tinha que fazer entrevista no Estado, aí depois eu falei, ah,
eu quero tanto trabalhar aqui, eu falei para a Beth, aí em junho a Beth já me chamou
para vir para cá (Valquíria).
129
Apesar de não esperar pela possibilidade de fazer o curso, Celeste constrói sua
narrativa demonstrando que queria fazê-lo, mas não tinha o ímpeto para tanto, o que a atitude
de seu irmão ajudou a superar. Já Valquíria demonstra que a entrada no curso se deu em razão
de injunções pessoais, sobretudo pela interferência de seu marido e sua família:
Eu peguei, deixa eu ver, quando terminei o ensino médio eu fiquei parada 1 ano,
depois aí eu fui fazer, eu fiz várias faculdades, o vestibular. Na Cásper Líbero, eu
queria fazer até jornalismo na Cásper Líbero, né, até passei no vestibular, mas aí eu
estava namorando na época o meu marido, aí ele falou, ah, vamos fazer no Oswaldo
Cruz, eu vou fazer administração, aí você passa em letras, faz letras e aí fica tudo
perto, aí eu fiz letras, aí me identifiquei com o curso, gosto (Valquíria).
Ressaltamos que na primeira entrevista que fizemos com Valquíria, as razões para ter
feito o curso de Letras eram outras, relacionadas ao interesse de ser secretária (Eu fiz Letras
porque eu me interessava em ser secretária bilíngue da diretoria então eu fiz essa faculdade.)
130
As inconsistências de sua fala demonstram que, por um lado, ela pode modular suas
afirmações em função do mercado linguístico em que a entrevista se dá, o que a faz selecionar
os aspectos a relatar em função do que acredita ser a resposta esperada (BOURDIEU, 2011);
mas também demonstra a ausência de um projeto mais claro de ascensão via escolarização,
assim, a formação nesse nível se dá pelas injunções entre necessidades pessoais e o
surgimento de oportunidades. Ao mesmo tempo, é bem presente, no caso das duas
professoras, a predominância que os homens têm ao definirem o futuro de ambas e também as
tarefas familiares que devem cumprir. No que se refere ao ensino primário, a identificação da
docência como profissão feminina é chave interpretativa importante para a compreensão desse
ofício. Jane Soares de Almeida (1998), por exemplo, salienta o quanto a entrada na profissão
docente se constitui em uma das únicas possibilidades de as mulheres acessarem o mercado
de trabalho diante das relações de poder constituídas entre os gêneros feminino e masculino.
Nesse sentido, na impossibilidade de conquistar educação e postos de trabalho identificados
apenas com os homens, as mulheres viram na docência, que foi identificada com as tarefas de
cuidado e espécie de ampliação das atividades domésticas, uma maneira de acesso à
escolarização e trabalho.
As interpretações quanto ao ensino secundário colocam em relevo as relações entre a
especialização e os saberes no que se refere ao processo de profissionalização. Paula Perin
Vicentini (2002) afirma que em 1931 foi estabelecido o marco referente à delimitação do
campo profissional dos professores do secundário, pois a Reforma Francisco Campos exigia a
formação universitária específica aos docentes feita na Faculdade de Filosofia. Até esse
momento, os profissionais presentes nesse nível de ensino eram autodidatas ou intelectuais
(SANTOS, 2013; RAZZINI, 2000). Em seu estudo acerca do ensino de Português e Literatura
no ensino secundário entre o Império e a República, Marcia de Paula Gregorio Razzini (2000)
chama atenção para a autonomia com que os colégios e liceus públicos preparavam os exames
preparatórios para o nível superior. Nesse sentido, os próprios professores eram os
idealizadores dos exames e também dos currículos, o que poderia lhes conferir prestígio social
e melhores retornos financeiros. O ensino secundário, que só começou a ser pensado para as
mulheres no final do Império, como nos indica Maria de Lourdes Mariotto Haidar (2008),
estava concentrado nas mãos de homens e suas produções dos saberes necessários ao ensino
secundário. Essa tendência se alterou nos últimos anos. Ao realizar uma pesquisa acerca dos
professores de Língua Portuguesa e seus hábitos de leitura, Gabriela Rodella de Oliveira
(2008) fez uso de questionários para a identificação do perfil docente presente na rede
estadual paulista. Ao analisar seus dados, a pesquisadora notou que, em um universo de 86
131
profissionais, 82% deles pertenciam ao sexo feminino. Ao aproximar seus dados aos de
pesquisas feitas nos nos anos 1980 e 1990, ela afirma que “... há atualmente uma
predominância de mulheres entre os professores de língua portuguesa, levando à possível
caracterização desta disciplina específica como uma função feminina” (OLIVEIRA, 2008, p.
69). Mesmo assim, as discussões em torno do magistério e o exercício profissional feminino
parecem estar menos presentes. Contudo, os depoimentos de Valquíria e Celeste colocam lado
a lado o perfil do trabalho docente e as demandas sociais femininas, como a necessidade de
conciliar o trabalho às tarefas domésticas. Nesse sentido, a expansão do ensino médio e a
necessidade de formação docente para atender à demanda também trouxe mais mulheres para
esse nível de ensino e as questões relativas ao trabalho feminino.
No que se refere ao modo pouco planejado com que optam pelo trabalho docente,
devemos relacionar a esse dado o processo de expansão do ensino médio e as soluções
encontradas pelo Estado para a formação de professores. Mariana Pfeifer e Paulo Fioravante
Giareta (2009) ressaltam que existiram, ao longo do século XX, dois períodos de forte
expansão do ensino superior. O primeiro ocorreu no período de Ditadura Militar e o segundo
tem início nos anos 1990. Valquíria e Celeste, que estudaram no curso de Letras em 1990 e
1985, respectivamente, foram beneficiadas por essas circunstâncias, frequentando instituições
privadas de ensino, as quais representam, ainda hoje, a maioria de instituições de nível
superior. Entre o final dos anos 1980 e primeira metade dos anos 1990, as instituições
privadas contavam mais que o dobro das faculdades públicas (PFEIFER & GIARETA, 2009).
A crescente possibilidade de ingresso no ensino superior, como vimos no caso das professoras
entrevistadas, gerou a oportunidade de realizar escolarização nesse nível de ensino, como
possivelmente aconteceu com outras pessoas oriundas de camadas sociais que mantinham a
expectativa de escolarização em nível médio. A docência, no caso das professoras, foi a
possibilidade de ascender socialmente em profissão mais confortável às suas tarefas
domésticas. Para tanto, pode haver identificação com a profissão ou não, pois enquanto
Celeste busca produzir suas memórias de modo a demonstrar identificação com a profissão -
trabalho facilitado por sua visão de mundo ser próxima à escolar - Valquíria é pouco
identificada com a profissão ou pelo menos com uma certa imagem da profissão legitimada
pelo insconsciente escolar.
Como vimos anteriormente, a imagem do professor de ensino secundário, que apesar
de não ter formação específica chancelada pelo Estado até a década de 1930, gozava de
prestígio por ser visto como pessoa com relações privilegiadas com a profissão é
predominante. No início do período republicano, quando o primeiro colégio é criado na
132
cidade de São Paulo, o qual é descrito como um luxo aristocrático pelo professor Almeida Jr.,
cujo relato foi analisado por Marilia Sposito (1985), foi constituído por professores
renomados, considerados intelectuais. Conforme as reformas impõem a necessidade de
formação especializada, Amalia Dias e Claudia Alves (2014) afirmam que o modelo de
formação para o ensino secundário foi marcado pela ênfase no domínio de conteúdos e menos
pela domínio pedagógico dos saberes. Aos professores do ensino secundário, cabia a
responsabilidade de formação dos espíritos dirigentes do Brasil. Assim, apesar de o conjunto
dos professores ser bastante heterogêneo, como afirmam Paula Perin Vicentini e Rosário
Genta Lugli (2009), podemos perceber que a imagem dessa modalidade de ensino tinha certo
prestígio por estar atrelada à educação das elites e também às instituições muito valorizadas,
cujo exemplo maior é o Colégio Pedro II. Entretanto, conforme o ensino secundário passa por
processos de expansão e o Estado exerce maior poder de controle sobre a formação de
professores destinados a ele, a categoria busca manter o prestígio e a renda. Nesse sentido,
Paula Perin Vicentini (2002) afirma que nos anos 1950 os professores se engajaram na
reivindicação do “padrão universitário” à categoria, ou seja, os vencimentos maiores em
função da necessidade de formação em nível superior. Entretanto, essa associação não foi
integralmente atingida, uma vez que o Estado passou a legislar cada vez mais sobre a carga
horária dos professores, que vem de uma tradição de aulas avulsas e particulares em
negociação direta com as instituições de ensino e com os alunos; bem como, os vencimentos
atrelados ao trabalho passaram a ser menores.
Nos anos 1960 e 1970, a formação nos cursos de licenciatura se tornou um aspecto
central na articulação e reivindicações da categoria, entretanto, a expansão do ensino médio
feita sempre de maneira desordenada, como vimos no capítulo 2, intensificou a contratação de
professores interinos (VICENTINI, 2002). Não podemos nos esquecer que, atualmente, a rede
estadual de ensino é marcada pela presença de grande número de professores contratados,
cuja estabilidade e rendimentos são piores que o de profissionais concursados. Nesse sentido,
não houve a manutenção de uma forma única de habilitação para o ensino secundário até os
anos 1980, pois havia a modalidade da licenciatura, os exames de suficiências e as
licenciaturas curtas (VICENTINI & LUGLI, 2009).
Assim, o professor do ensino médio parece viver um paradoxo, uma vez que ao
mesmo tempo em que os rendimentos e as relações com o saber vão se alterando pela ação do
Estado, mantêm-se uma “aura” de maior prestígio pelo conhecimento especializado mantido
pelos professores nesse nível de ensino. Tem-se, desse modo, a constituição de um traço do
inconsciente escolar que é apropriado pelas professoras de modo a poderem assumir a posição
133
Depois eu comecei a me identificar, assim, o pessoal falava “fulano está dando aula
(Valquíria).
Minha mãe, o Adriano, meu marido, falou: ‘nossa, vai sair de lá e vai cair o padrão e
não sei o que, né”. “Eu tinha já até carro, né, não, comprei carro depois que eu saí de
lá, comprei um carro com a rescisão”. Ele falou assim, ai, não sai de lá não Eu falei,
ah, não, mas eu vou sair porque eu consegui pegar oito meses de licença, como eu
acumulei folga que era operário padrão a gente ia ganhando folgas, né (Valquíria).
É importante destacar que a Faculdade, que lhe agrada tanto por aglutinar uma
organização física que lhe é cativante e a felicidade de estar em um curso de nível superior, o
que ela valoriza muito, contrasta com as condições de formação, feita em período noturno e
com muitas aulas aos sábados. Trata-se de um perfil de formação rápida e organizada pelas
instituições privadas de modo a atenderem o aluno trabalhador. Apesar disso, nesse processo
de encantamento pela profissão, as aulas de literatura no ensino superior são fatores
predominantes para Celeste:
134
Era maravilhoso, maravilhoso, a professora era uma pessoa muito especial, ela era
apaixonada pelo que ela fazia e ela passava essa paixão para a gente. Não tinha um
aluno que dizia assim: que droga essa aula da Maria Lúcia, não tinha um aluno [...]
Sim, ela fazia tudo e eu me lembro assim, da 1ª aula de literatura ela falava: estou
muito triste, ela falou assim quando inaugurou a 1ª aula dela, foi a 1ª aula que eles
dão tudo que eles têm. Eu lembro que ela falou assim: estou muito triste hoje, eu
vou destruir literatura para vocês. Todo mundo: por que Maria Lúcia? Ah, porque
agora vamos olhar a literatura do avesso. A gente não vai mais olhar como leitor
distraído, que é o jeito mais gostoso de ler literatura, é o leitor distraído, né? Aquele
que se apaixona por um personagem, se encanta com o cenário, né? Porque agora
vamos ver por dentro, vamos ver o esqueleto da literatura. Quando ela falou isso, a
gente falou: espera aí, o que é isso? Nossa, mas foi maravilhoso. Eu não vou
lembrar, são 25 anos, né? Mas eu me lembro assim do empenho das pessoas, das
conversas. Falta era muito pouco, nós éramos uma classe de 50 alunos, eu não me
lembro de muitas faltas no sábado. E assim, seria normal que todo mundo faltasse.
Você trabalhou a semana inteira, estudou todas as noites, de sábado não, mas não
faltava (Celeste).
A disciplina não é significativa pelo conteúdo, mas pelas ações positivas da professora
que não se relacionam à especificidade da disciplina. As relações afetivas em torno da
literatura e atividades que aprofundam os laços entre os alunos e os colegas moradores do
mesmo bairro estão em evidência em seu depoimento. A literatura, nesse caso, não produz
encantamento pelo que tem a oferecer, mas sim pelas relações e atividades que pode suscitar
e, mais uma vez, vemos o quanto a imersão entre os pares é determinante para Valquíria.
Ressaltamos que a própria imagem da leitura está ligada à encenação, o que é uma dimensão
135
da atividade, porém não é sobre essa tarefa que se sobressai como a expectativa literária
predominante nos currículos e livros didáticos.
É importante destacarmos, também, o modo como as práticas de leitura das próprias
professoras são reclassificadas por suas experiências de escolarização. No caso de Celeste, a
professora de literatura imediatamente recusa a leitura mantida pelos alunos ao afirmar que
vai destruir a maneira como eles concebem os livros. Nesse caso, ela não abre espaço para
que se vejam os alunos de licenciatura enquanto leitores e suas relações com a cultura. O
mesmo parece acontecer com Valquíria, pois em suas lembranças não há espaço para a
elaboração do que é ser leitor para além do conhecimento especializado ou das práticas
escolares que não colocam a leitura no centro de seu trabalho.
A esse respeito, Denice Barbara Catani (2010) questiona a natureza dos
conhecimentos e discursos educacionais explorados nos cursos de formação de professores.
Para a pesquisadora, os cursos têm proporcionado “...rápida assimilação de informações, de
lógicas de argumentação, de conceitos e de vocabulários que, no meu entender, não favorece a
apropriação detida das várias contribuições de autores e teorias...” (CATANI, 2010, p. 78).
Desse modo, se ao invés de um contato rápido com autores, fosse possível o conhecimento
demorado de suas proposições teóricas, que possibilitasse a produção de relações fecundas
com o conhecimento de modo a que eles se tornassem formas de compreensão das questões
educacionais seria possível ir além do conhecimento vocabular ou conceitual. Nesse sentido, a
formação que se daria por meio de aproximações demoradas aos autores e seus sistemas de
pensamento, levariam os professores em formação a desenvolverem estilos didáticos, isto é,
“[...] modalidades inventadas pessoalmente a partir dessa mobilização criadora dos
conhecimentos, experiências, história pessoal e variações de práticas já conhecidas”
(CATANI, 2010, p. 85). Logo, de acordo com essa proposta, experiências como a de Celeste
seriam posta em outros termos. Denice Catani (2010) propõe a cultura da atenção, a qual
pressupõe que os conhecimentos intelectuais e científicos terão significados apenas quando
eles puderem ser relacionados e servirem de ponto de partida para que os sujeitos possam se
reconhecer no que é conhecido. Esta proposição tem como um de seus pilares a ideia de
educação como iniciação, formulada por R.S. Peters segundo a qual para que se possa
apropriar dos conhecimentos, é preciso compreender os modos de produção dos mesmos, o
que o contato demorado com autores e sistemas de pensamento poderiam gerar.
As relações com o conhecimento, como vimos no caso de Valquíria e Celeste,
favorecem a compreensão dos saberes do ponto de vista dos conceitos, vocabulários, enfim,
daquilo que não implica, necessariamente a experiências das professoras em formação. Ao
136
Se, como vimos anteriormente, o Estado toma a responsabilidade pela formação dos
professores e organiza instituições, currículo e profissionais para isso, ele está exercendo um
esforço significativo de modo a gerir as identidades dos professores, o que nos lembra Martin
Lawn (2000). Para o autor, a produção de identidades docentes é fundamental para que o
Estado possa dar a ver os sentidos dos sistemas de ensino. Pelo processo que estamos
descrevendo, os cursos de formação, enquanto instâncias de construção de identidades
docentes, excluem as disposições culturais de seus alunos, legitimando outras formas de
concepção da cultura, ao mesmo tempo em que fornece conteúdo à linguagem por meio de
saberes especializados, produzidos majoritariamente nos campos acadêmicos e políticos,
como vimos no capítulo 212. Essa questão se torna mais problemática porque os
conhecimentos acadêmicos não são apresentados aos professores por meio da cultura da
atenção, o que significaria a possibilidade de Valquíria e Celeste terem acesso a um
conhecimento poderoso, no sentido de ser cheio de significados para que elas pudessem
pensar sobre suas próprias experiências literárias e, no limite, sobre a de seus alunos
(CATANI, 2010).
As formas como as professoras lidam com isso varia de acordo com suas disposições.
A idealização e valorização da formação acadêmica levam Celeste a construir cada vez maior
identificação com a disciplina conhecida na Faculdade e a valorizá-la quando está na escola,
12
Não é o objetivo de nossa pesquisa a busca pelos efeitos gerados pela influência dos discursos acadêmico e
político na produção da cultura escolar legítima. Entretanto, torna-se latente em nossa exposição a presença de
tais campos nas tensões escolares cotidianas, pois eles disputam pela legitimidade para definir os critérios da
seleção cultural que a escola deve fazer.
137
já como professora. Em seu trabalho ela se mostra como uma representante dessa cultura, a
qual recorre em suas aulas. Ao mesmo tempo em que busca construir sua autoridade com base
em relação privilegiada com uma certa representação de alta cultura, ela utiliza esse critério
em seu trabalho com os alunos. Some-se a isso a imagem que constrói de alguém cujo pai é
advogado, a irmã é psicanalista e que sempre morou e trabalhou em bairros centrais. Ela
procura, desse modo, se distanciar social e culturalmente dos alunos que costuma receber na
escola. A professora reitera em seu trabalho a visão do leitor-leitor, a valorização dos autores
consagrados na escola. Valquíria, da mesma maneira, procura fazer isso. No entanto, sua
aproximação com a cultura e com a profissão tornam esse trabalho um pouco mais difícil.
Valquíria mora no mesmo bairro em que os alunos, situado na periferia de São Paulo,
frequentou as mesmas escolas em que trabalha e sua identificação com a cultura não passou
pelas regras escolares, como foi o caso de Celeste. Apesar desses problemas, ela busca outros
elementos, sobretudo as relações com a cultura - informadas pelos espaços de formação.
Como discutimos anteriormente, ela afirma que as famílias não têm prática de leitura, mas
que ela é diferente, pois é leitora e suas filhas também são. Para produzir a distinção, além de
tentar desenvolver uma relação cultivada com a leitura, o que é uma posição bastante frágil, a
professora também manteve as filhas estudando em escolas particulares, mesmo que isso lhe
custou trabalhar em local que não gostava e dobrando período. A passagem é significativa,
pois a professora parece dar pistas de que se identifica demasiadamente com os estudantes:
Aqui eu dou aula para alunos do Liberato, os alunos vão para a igreja também, a
mesma que eu vou, eu frequento, depois assim de […] na igreja católica. Aí eles
estão lá e eles me enxergam lá e eles vão lá me abraçar, me beijar, olha, estou aqui
também (Valquíria).
É uma clientela de alunos que são, na sua maioria, bons, de famílias, assim, que
respeitam a educação. De famílias que respeitam o professor, de famílias que, assim,
o que o professor falar é lei. Entendeu? Isso ajuda muito a gente a trabalhar. Você
sabe que o que você está falando a criança escuta em casa (Celeste).
A relação estabelecida por ela com a Escola 2 é oposta àquela que manteve com a
escola municipal em que iniciou na profissão, pois os alunos correspondiam a “uma clientela
que ia [à escola] só para se alimentar, eles não iam para estudar”. Porém, desde que se mudou
para escolas estaduais que ficavam na região da avenida Paulista e para a escola atual, ela
pôde se sentir identificada com os alunos que encontrava. Ainda assim, no interior da escola,
Celeste contou que no 5º ano, logo que os alunos chegam ao Ensino Fundamental II, ocorre
uma separação das turmas. A escola separa em uma turma os alunos com mais “interesse”,
uma vez que assim é possível “ajudar as crianças realmente interessadas”. Segundo a
professora, o critério de interesse é determinante para a seleção dos alunos, porém mais
adiante notamos que a palavra interesse se refere à identificação dos alunos com o habitus
escolar que coincide com as crianças mais privilegiadas economicamente e moradoras do
entorno escolar ( “A maioria mora por aqui. Exatamente essas crianças vizinhas. Inclusive
isso, são crianças que têm um poder aquisitivo melhor porque quem mora aqui não estuda
aqui”). A professora demonstra, portanto, que os alunos com maior “interesse” são aqueles
que parecem compartilhar concepção semelhante do que é a cultura, valorizam a autoridade
escolar e dos professores, visão compartilhada pela instituição escolar. Parece-nos que dentro
da rede de São Paulo existem as escolas com perfis de seleção interna e organização dos
alunos em função de suas identidades, as quais já estão situadas em uma rede de ensino
ramificada. A Escola 2, por estar em bairro mais valorizado, identifica-se com o grupo social
do entorno e constrói imagem hierarquizada da cultura, destinada àqueles que conseguem
reconhecer seu valor e excludente para aqueles que não sabem reconhecer o valor dessa
cultura. Os alunos do EJA, conhecidos durante a pesquisa de campo, nessa lógica de
compreensão da realidade, são identificados como inadequados por princípio para terem
acesso à cultura privilegiada no espaço escolar, como demonstramos no capítulo 2. Para
sustentar suas afirmações, a professora opera de outra maneira os elementos que tem para
marcar sua posição de distinção. Em função de sua origem familiar, Celeste procura ressaltar
aspectos que valorizem seu conhecimento da cultura valorizada na escola:
Eu sou filha de seresteiro, sou irmã de uma psicanalista, minha vivência familiar é
bastante rica. A despeito das pessoas que eu conheço, que só leem os best-sellers,
coisas assim, não é o meu caso não. Então, assim, eu gosto muito de música popular
139
brasileira, conheço bastante por uma vivência pessoal mesmo, não acadêmica
(Celeste).
Literatura. Eu me apaixonei por literatura. Apesar de eu não ser uma professora bem
formada em literatura, eu não sou, não. Eu sou muito melhor em gramática porque
na hora em que eu comecei a trabalhar, eu vi que eu tinha muito mais jeito para
gramática do que para literatura (Celeste).
texto literário. Tomo bastante cuidado para escolher bons textos. Nem todos os
textos do livro didático são bons, são bem escolhidos (Celeste).
Dar sustentação à legitimidade cultural não é fácil para ela, que oscila entre uma
posição segura no que se refere ao preparo para o trabalho e insegurança, quando se pensa na
literatura. Algo semelhante acontece com Valquíria:
De literatura dos grandes autores, Machado de Assis, Raul Pompéia, então toda essa,
como se fala, dentro do que eu vou ensinar, eu sempre estou dando uma lida nos
livros, nos grandes autores (Valquíria).
Ela demonstra pouca intimidade com os autores e reitera a visão escolar de que a “boa
leitura” se resume aos grandes autores. A insegurança presente em sua fala pode indicar
distanciamento dos livros que deve ensinar e, também, evidencia sua compreensão que o trato
com a leitura de obras literárias mantida por ele deveria ser outra. Nesses momentos, o jogo
de distanciamento cultural dos alunos se torna muito problemático.
Ocorre assim, uma oscilação entre esse mundo natal vivido por elas e o mundo da
cultura valorizado na escola. Esse fato é significativo para compreendermos uma das
características do processo de expansão pelo qual a rede de ensino passou no que se refere às
relações com a cultura, pois ao receber grupos sociais mais alargados como alunos e
professores, porém preservando representações a respeito da boa leitura e da boa relação com
a cultura pouco alterados no que se refere ao imaginário sobre a questão, os professores
precisam manejar suas relações com a cultura no trabalho cotidiano. É preciso, ainda, ocupar
uma posição difícil.
A posição docente desejada por Celeste e Valquiria exige que elas manejem suas
origens culturais e referências literárias de modo a manterem a imagem exigida pelas
representações curriculares e pelos cursos de formação. Nesse sentido, elas oscilaram durante
as duas entrevistas entre expor suas práticas culturais, que passam por leituras escolares e não
escolares, e a manutenção de relações exclusivas com a cultura legítima no espaço escolar. Ao
longo de toda a entrevista elas foram gerenciando a descrição de suas práticas culturais, ora
mostrando o que gostam de ler, ora escondendo tais preferências.
141
Ai, a minha mãe é muito musical, muito assim, as histórias dela é muito rica porque
ele teve uma infância muito assim privilegiada na natureza, no meio do mato porque
ela é da Bahia, meus pais são baianos e meus pais são primos de 1º grau [...] a minha
mãe, nossa, eu me lembro que ela cantava muito, ela fazia muito bolo, fazia muita
coisa a gente diferente assim, inventava muita coisa em casa, então eu ficava muito
no quintal e quando era época de fruta eu não queria nem jantar, eu me lembro que
eu ficava muito, pensei que era a Amália que estava chegando, então aí ela era
muito musical, cantava, ela escutava muita música, era Caetano Veloso, Tom Jobim,
Vinícius de Moraes. Eu decorei muita coisa assim do Vinícius através da minha mãe
(Valquíria).
Então ele tocava essas peças assim, peças que não é do chorinho, mas tocava
algumas músicas clássicas também, eu acho que isso tudo ficou na minha cabeça,
construiu esse gosto por isso [...] Isso, para mim. Eu me lembro que o meu pai
ensinava a minha irmã a cantar algumas músicas e ela me ensinou a cantar. Ele
ensinava para ela e tocava para ela cantar, depois ela me ensinou. [...]Não, não,
porque ele queria juntar a família cantando junto com ele, entendeu? Era isso, então
as nossas reuniões de família sempre eram regadas de música, todas as reuniões de
família tinham meu pai tocando. Logo que ele morreu, eu não aguentei, né? Hoje em
dia eu já quero que toquem, mas nos primeiros anos, era muito duro, ter a música e
não ter ele. Eu tenho 2 irmãos que tocam também, mas no começo eu, foi muito
difícil. Mas agora eu já sinto saudades, quero que toquem, mesmo que eu chore, eu
quero ouvir (Celeste).
repertório literário parece ser um conjunto de narrativas ficcionais advindas de fontes orais e
escritas, sem que existam diferenças substanciais entre elas. Lembremos que Vinicius de
Moraes, muito especial para Celeste, foi lembrado em função de uma música. Parece-nos que
a socialização vivenciada por elas privilegia as formas orais, as quais precisam ser
reelaboradas de modo a se apropriarem das lógicas escritas (BAUTIER & ROCHER, 1998).
No que se refere ao acesso aos impressos durante a infância e juventude, as possibilidades
presentes nas bancas de jornal são importantes:
Jornais, livros, tudo quanto é coisa que, Capitães de Areia, eu ficava observando ele
ler Capitães de Areia, eu vi qual mais que ele já leu, ele falava muito do Camilo
Castelo Branco, Amor de Perdição, aí tinha essas coisas lá, tinham muitos clássicos
assim, muitos livros clássicos lá, sempre na estante lá para a gente [...] Ele
comprava, comprava, tinha coleção assim de jornaleiros, né [...] Aí ele fazia aquelas
coleções sempre, né, sempre tinha, ah, tem clássico aí, O Cortiço, Machado de Assis
que é o Memórias Póstumas de Brás Cubas, tinha todos esses livros aí clássicos.
Tinha O Caso dos Dez Negrinhos que era de Sidney Sheldon, muito bom, tinha esse
aí, eu me lembro que eu li (Valquíria).
Eu lembro que ele tinha uma coleção de Seleções, Reader’s Digest[...] eu lembro
que meu pai tinha essa coleção. O meu pai era assim, a gente morava numa casa
alugada, mas ele comprava enciclopédias, nós tínhamos o Tesouro da Juventude,
que acho que são 5 livros com todos os contos de fadas. Eu era apaixonada por
aqueles livros (Celeste).
E a gente tinha a facilidade do sebo, né, de comprar em sebo, né [...] você não ficava
comprando muita coisa nova, eu só tinha dificuldade de ler quando era muito velho
porque eu tinha renite, eu era muito atacada da renite (Valquíria).
143
A frequência aos sebos em busca de livros mais baratos também orienta a classificação
do universo literário. Esses espaços bem como as publicações a que se tem acesso modelam
práticas baseadas em pontos de cultura menos valorizados por instituições como as
acadêmicas e escolares. Aqui vemos um fator pelo qual as professoras falam pouco sobre
essas relações com a leitura, uma vez que por suas posições docentes, devem também
desvalorizar tais espaços. Laurence Hallewell (2012) identifica um traço de conservadorismo
com relação ao público leitor brasileiro no que se refere a um objeto especial de “cultura”,
desvalorizando as edições de bolso e, podemos dizer, os locais de comercialização das edições
mais baratas. Os gêneros em circulação nesses espaços são exemplares no que se refere ao uso
da linguagem literária:
É, na minha época não era nada disso, então na minha casa eu me lembro das
enciclopédias que o meu pai comprava, os Tesouros da Juventude, como eu estava
te falando, que era 5 livros, cada um era de uma cor, era linda a coleção, linda, mas
eles deixavam acessível, que a gente podia ler, todo mundo podia ler e tudo e o
Reader’s Digest que meu pai colecionava, eu adorava aquelas revistas, adorava e é
engraçado porque eram revistas de mais textos, não eram revista, mas aquilo lá me
fascinava [...] Eu sempre gostei muito de publicidade, eu gostava de ler as
propagandas, sempre fui apaixonada por propagandas [...] A foto, sabe, o jeito que o
produto é apresentado, eu gosto muito. Eu gosto muito de trabalhar isso com os
alunos também (Celeste).
As relações familiares também são muito significativas para configuração das práticas
de leitura e sua configuração (CHARTIER, 1990). Como vimos anteriormente, as relações
com os pais e irmãos foram mencionadas pelas professoras de maneira nostálgica e muito
significativa. Celeste nos oferece as relações familiares como possibilidade de aproximação à
produção de alguns autores:
Sim, muito, muito, a gente conversa muito sobre isso. Deixa eu ver, lembrar de um
livro que lemos juntas. Isabel Aliende a gente lê junto, acho que foi o último que a
gente leu porque foi antes de eu me casar e a gente lia antes de dormir, a gente
ficava lendo essas coisas (Celeste).
Esses fragmentos são notícias do dia a dia, coisas que me interessam voltadas para
educação. Revistas de educação. Não são, assim, livros com uma leitura completa.
São textos que, por exemplo, acabei de fazer faculdade de Pedagogia, então tem
textos lá a respeito de Educação Infantil, textos técnicos. (Valéria).
144
Olha, ultimamente, de uns dois anos para cá, assim eu não tenho feito uma leitura
completa de um texto, quer dizer, de um livro. Eu pego fragmentos, guardo os
fragmentos. Pego coisas assim, por exemplo, no tablete, alguma parte, daí eu leio,
mas um livro inteiro eu não tive mais tempo de ler e eu gosto muito de leitura. Só
que eu sou assim, como se diz, eu guardo, minha memória, graças a Deus, é boa.
Então eu leio muita coisa e essas leituras que eu já fiz anteriormente, elas me
ajudam hoje em dia (Valquíria).
O excerto acima nos sugere o conflito de ser professora de Língua Portuguesa e o fato
de não conseguir, por conta do tempo e mesmo de seu hábito, ler livros inteiros. A professora
busca resolver a questão com a sua memória, porém essa justificativa parece ser frágil para
ela, que insiste em passagens da entrevista que tem o conhecimento necessário para ser
professora. Diante desse quadro, parece que o Estado é importante para fornecer materiais de
leitura para a professora:
Mas em casa eu ganho muitos livros. Ganho livros porque a gente recebe kits
também. Esse O Diário de Anne Frank eu já tinha lido, voltei a ler. O D.Casmurro
eu também li (Valquíria).
Esses fragmentos são notícias do dia a dia, coisas que me interessam voltadas para
educação. Revistas de educação. Não são, assim, livros com uma leitura completa.
São textos que, por exemplo, acabei de fazer faculdade de Pedagogia, então tem
textos lá a respeito de Educação Infantil, textos técnicos (Valquíria).
Estou lendo redação para corrigir! [risos] não, sinceramente, eu ando com
dificuldade para ler, bastante dificuldade. Assim, tento.... Ah, caiu na minha mão
ultimamente, mas não é nada que eu trabalho com aluno, esses livros espíritas, sabe?
Mas eu não consigo ler, não sei por quê. Eu tenho que ler para devolver, eu estou me
forçando a ler, mas não vai. Parece que tem alguma coisa ali que diz assim, que não
faz sentido para mim. Eu tenho que ler o livro para devolver, mas... O último livro
145
que eu li? Tá bom. Nos meus 50 anos eu ganhei uma antologia de um poeta que
acabou de morrer, esqueci o nome dele. Manoel de Barros. Literatura foi o último
que eu li (Celeste).
O início da fala de Celeste sugere que o tempo que poderia ser dedicado à leitura é
gasto com a correção de atividades escolares, assim, o último livro ao qual teve acesso foi
conhecido um ano antes do momento da entrevista. A seguir, novamente a professora insiste
na oposição entre a leitura valorizada na escola e um título não reconhecido, como o espírita.
Não podemos deixar de considerar que se o livro “caiu em sua mão” é porque ele circula em
seu espaço social. Logo, ela convive com diversos tipos de publicação de maneira mais
intensa do que gostaria de admitir. Porém quando vai se remeter ao último texto literário, fala
de Manoel de Barros, reforçando sua identidade próxima ao autor de literatura “séria”, o
quadro com as suas leituras de preferência também demonstra a oscilação entre as leitura
escolar e não-escolar:
Esse é um conflito que revela os problemas vividos pelas professoras, pois elas devem
ensinar o gosto literário, porém não mantém relação privilegiada com a leitura de obras
literárias. Ao falar sobre os professores de Português de São Paulo, Gabriela Rodella de
Oliveira (2008) nos oferece uma imagem bastante dura sobre eles e insiste na recorrência
desse problema:
146
...a grande maioria desses professores é originária de famílias com baixos níveis de
escolarização, tendo tido pouco contato com a leitura e constituindo a primeira
geração a conquistar a escolarização de longa duração. Essa escolarização, no
entanto, se mostra precária quando analisados os dados que apontam a frequência ao
ensino básico público e ao ensino superior em instituições particulares, geralmente
no período noturno. Tal formação não costuma levar esses professores a
desenvolverem as disposições necessárias ao hábito da leitura literária, no sentido de
se apropriarem das obras de literatura, conhecendo-as efetivamente; dessa maneira,
esses docentes tendem a reproduzir o conhecimento a que tiveram acesso, sem que
tenham se tornado sujeitos de suas leituras e de tal conhecimento (OLIVEIRA, 2008,
p. 177).
A partir dos dados que obtivemos, podemos ver que, de fato, as professoras realizaram
sua formação em instituições de ensino particulares e, assim, reconfiguraram suas formações
iniciais em função disso. As professoras manipularam suas disposições para a leitura de modo
a produzirem relações diferenciadas com a literatura e, a seguir, para o seu ensino. Afora a
necessidade de sustentarem a imagem de quem mantém leitura valorizada no espaço escolar,
quando assumem um ponto de vista mais pessoal indicam os sentidos atribuídos à leitura de
obras literárias:
[...]eu sempre fui encantada com história, eu gosto muito de história, eu gosto muito
de contar história, gosto muito de ouvir história, então, gosto dos cronistas, gosto de
histórias curtas, gosto de histórias motivadoras, histórias que apontem para uma
coisa mais iluminada da vida mesmo (Celeste).
Eu acho que é fazer com que eles fiquem, sensibilizar, né, sensibilizar assim, não
ficarem pessoas tão mecânicas, pessoas que olhem, como se fala, saibam olhar com
mais cuidado as coisas, a vida. Tem a, como se fala, o mesmo gosto que eu tive e a
mesma sensibilidade que eu desenvolvi, que eles têm também a mesma
oportunidade que eu [...] é, para ele enxergar, assim, não ver uma rua ou então não
conseguir observar se é uma pessoa idosa querendo atravessar a rua, ter uma visão
de mundo (Valquíria).
Outro dia eu estava passando pelo metrô e tem uma banca de livros espíritas, eu
nunca li livros espíritas, nunca li, aí tinham vários títulos, como nesse dia estou
vivendo um drama muito, aí encostei lá e comecei a conversar com a moça e falei:
você já leu alguns desses livros? Ela falou: sim, já, eu gosto, né? Ela começou a
explicar e eu até comprei um livro, eu li 100 páginas num dia, de tão interessada que
147
eu fiquei, mas depois assim, eu me desinteressei. Foi a única vez que pedi ajuda
também (Celeste).
docentes. Notamos que Celeste e Valquíria partem de negociações com suas próprias
concepções literárias até constituírem os saberes a serem ensinados em sala de aula.
As primeiras negociações efetuadas se deram para Celeste na própria faculdade, uma
vez que ela se deparou com professores cuja familiaridade com as obras literárias eram vistas
como muito diferentes das suas, o que abordamos na primeira seção deste capítulo. Essa
circunstância foi importante para a incorporação e reforço da imagem literária de acordo com
suas disposições. Valquíria, por outro lado, pouco mencionou suas experiências de formação
em nível superior apesar de ter feito graduação e especialização em literatura. A seguir,
quando iniciam o trabalho nas escolas, elas efetuam novas negociações entre suas disposições
e as representações de leitura aprendidas no curso de formação:
E uma coisa que eu tenho para te dizer, eu tive ótimos professores que me ajudaram
nessa escola. Professoras muito dedicadas, sabe? Elas percebiam que eu era
inexperiente e elas me chamavam de lado e falavam “Faz assim, assado”. Elas me
deram muitas dicas. Eu devo a elas a minha formação. O que eu faço hoje em dia eu
aprendi com elas (Celeste).
[...] as minhas primeiras aulas, para você ter uma ideia, eu fazia assim, pegava 5 ou
6 livros daquela série, eu abria no mesmo assunto, eu fazia todos os exercícios, eu
fazia os exercícios [...] como se eu fosse aluna e dali eu inventava um exercício
para o meu aluno fazer, era assim que eu fazia, para descobrir o sujeito, o que é
objeto direto, dessa forma (Celeste).
sugerem José Mário Pires Azanha (1990/1991) e Pierre Bourdieu (2013a). Acontece, assim,
nova circunstância de incorporação da história da instituição escolar em que trabalha. No caso
de Valquíria, o processo de socialização na escola também é relembrado pela dificuldade
enfrentada ao mudar de profissão:
Ah, dificuldade porque assim, eu trabalhei sempre num escritório, tinha a minha
parte para fazer, agora você pegar e ser mediadora de conflito em sala de aula, eu
peguei uma sala tão difícil lá na essa escola que é assim […] muito desgastante e
ainda depois tinha que chegar em casa, tinha a carga diária, comida, lavar, cuidar da
filha (Valquíria).
A natureza relacional do trabalho foi algo marcante para Valquíria, que mencionou em
algumas circunstâncias os desafios de lidar com os alunos no início da carreira. Ao mesmo
tempo, o aprendizado relativo aos conteúdos também se deu:
É, aí ficou também complicado porque era ensino médio e não tinha muita
convivência assim, quer dizer, não tinha prática, né, então aí alguns alunos ficaram
falando, ah, que a professora não soube explicar aquilo, não tinha muita didática, né,
pedagogia, assim, a gente aprende muito, mas praticar mesmo é só com os anos, mas
aí, deixa eu ver, teve assim, como se fala, eu fui fazendo cursos paralelos e os cursos
que eu tinha também da empresa, porque eu fazia curso de informática, eu sempre
fazia todos os cursos, então isso aí foi me ajudando de alguma forma (Valquíria).
Eles faziam núcleos de estudo. Cada região era em uma escola. Então naquele dia
você não ia para a escola, você ia para os cursos, essa formação. Teve um trabalho
do estado para colocar a gente, para fazer a gente falar de uma forma parecida. Mas
eu nunca mudei muito a minha forma de dar aula, não (Celeste).
150
A cobrança vem dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais então eles mandam
aquele montante em cima dos, do que é necessário para o aluno. Então a gente tem
que condensar isso, trabalhar isso para não prejudicar, de repente ele vai fazer essas
provas ENEM, a prova do Saresp, vai ser cobrado isso então a gente tem que deixar
o aluno flexível para todo tipo de necessidade que ele tiver (Valquíria).
representação que Celeste tem da disciplina, torna-se imperativa a progressão dos conteúdos
gramaticais.
No processo de apropriação dos currículos, vemos que existe um sentido forte das
representações das professoras sobre a disciplina na produção das aulas. A imagem do leitor-
leitor, que vem dos cursos de graduação e também se estende para os materiais didáticos,
articula a construção da disciplina. Nesse processo, quem sai vencedor é o texto, porém não
necessariamente o texto como ele é definido nos PCN a partir da sociolinguística. As
professoras se apropriam do texto, na verdade, do fragmento de romances, contos e poemas
presentes no livro didático. A partir desses fragmentos, elas ensinam aspectos gramaticais e
literatura, que na prática se torna uma ideia de história da literatura e de gêneros textuais um
pouco difusos. A bricolagem efetuada por elas também guarda relações com suas referências
pessoais com a literatura:
Eu acho que o jeito como fui trabalhando, fui tentando descobrir na literatura coisas
simples e interessantes para trazer para as aulas [...] às vezes um texto mais simples
tem o poder de despertar no aluno algum tipo de empatia, não é? E fazer com que
aquele aluno se veja numa posição diferente porque quando você trabalha com
criança assim, que são crianças que vêm de histórias diferentes muito ruins, como eu
posso dizer que a minha aula vai transformar essa criança? Mas um texto pode trazer
um personagem que tenha vencido alguma dor, que tenha vencido. E que aquilo seja
também para o aluno um modelo, um impulso para ele dizer: olha, a minha vida não
é tão ruim assim, esse personagem também sofreu, eu também posso superar essa
dor, essa dificuldade, essa precariedade porque o que temos aqui são crianças com
vida assim, muito precárias, elas não são, são famílias fragilizadas, são famílias que
às vezes estão em situação de risco, mas eles mandam para a escola, aqui tem
comida e tem gente para cuidar deles, não é isso? É isso que a gente tem aqui
(Celeste).
estão num momento assim ruim, assim numa aflição, aí de repente eu posso
conversar com eles e ajudá-los a crescer, a humanizar (Valquíria).
[Eu me lembro do] Meu pai tocando. É, exatamente, que tinha um trechinho do ‘Eu
sei que vou te amar’. Eu falei, ‘Ah, não posso nem ler que vou me emocionar’. Eu
uso muito isso. Todas as vezes que eu vou falar de alguma coisa, eu falo dos meus
sentimentos para eles. Isso é uma coisa impressionante, o quanto eu tenho que tomar
cuidado para ser verdadeira. O dia que eu mentir para eles eu tenho certeza que eles
vão falar ‘Nossa, isso não é tão bonito quanto ela está falando, ela não está
emocionada’. Isso faz muita diferença para eles, é como se eles colassem um pouco
nisso. É como se eles falassem ‘Ah, eu também posso ficar emocionado’. Eu me
lembro que, no dia desse texto, eu tenho um aluno muito difícil. tinha, né? Já
terminou... Muito difícil nessa sala, o Eduardo. Ele estava muito revoltado, ele tinha
tido uma briga muito feia e ele falou assim ‘Ah, eu não vou fazer nada nessa aula’.
Assim, me provocando. Quando terminou o texto ele estava chorando. Ele falou
‘Professora, que coisa mais linda!’ Eu me lembro direitinho dele. Eu pensei ‘É bem
por aí mesmo’ (Celeste).
O exemplo de sala de aula trazido pelo excerto demonstra que a professora assume o
dever de mostrar seu encantamento com a leitura de modo que se possa transmitir tal
abordagem da literatura para os alunos. Tais circunstâncias em que a professora pode
evidenciar suas relações pessoais com a leitura foram as situações de ensino mais
significativas que pudemos testemunhar. Em ambos os casos, desse modo, o que vemos é a
operacionalização do mundo natal das professoras. Ele é o filtro por meio do qual as
experiências de formação acadêmica e do espaço de trabalho são elaboradas e, como vimos,
são pressupostos da ação das professoras, ainda que elas procurem dar pouca evidencia a isso.
153
“Aquele negócio do leitor-leitor... [ele] não faz porque é obrigado, faz porque gosta” (Luana).
parecido ao de Raquel Lazzari Leite Barbosa (2001), quando pesquisa a produção paulatina
de preferências literárias em uma comunidade situada em Assis. A autora nos permite ver
como a incorporação de uma representação sobre a cidade também se dá pelo viés dos autores
e história da leitura que a conformam. A bonita passagem a seguir sugere férteis caminhos
investigativos para situarmos a leitura como uma produção de classificações sobre o mundo
social em que precisamos considerar não apenas as características da leitura, mas também os
sentidos em circulação na sociedade e que podem ser evidenciados nas práticas:
Isto posto, iniciaremos o capítulo indicando de que maneira as disputas pela leitura
legítima das obras escolares se apresentam em sala de aula. A partir dos indícios fornecidos
pelos participantes da pesquisa, tomaremos as situações descritas como significativas para a
estruturação de esquemas interpretativos relacionados à leitura de obras literárias em espaços
não escolares, cientes de que tais esquemas entram em jogo na escola. A descrição desse
universo literário familiar confrontado ao escolar nos servirá de ferramenta para situar os
conflitos pelos sentidos legítimos da leitura de obras literárias, quando representações
familiares e escolares entram em concorrência.
4.1. Desde que entrei na escola nunca gostei de Português: os alunos e suas maneiras de
significar a leitura na escola
Assim como Carolina, cuja fala dá título a esta seção, a afirmação de que não
gostavam de Língua Portuguesa era recorrente entre outros entrevistados. Razões variadas
distanciam os alunos da disciplina e as tensões decorrentes desse quadro nos revelam como as
disputas em questão se expressam no cotidiano e são concebidas por eles. A exposição e a
investigação dos desgostos com relação à disciplina também se revelaram como uma via
importante para a identificação do problema, pois as disputas se mostram, sobretudo, de
maneira implícita; logo, para mapeá-las, compreender o que os alunos querem dizer por “não
155
gostar” pareceu-nos mais eficiente. Foi possível notar que o caminho da negociação feita no
dia a dia orienta o trabalho de produção da cultura escolar legítima.
Apesar de não ser recorrente, registramos uma situação de conflito mais explícito na
aula da professora Celeste, na Escola 2, durante a correção de uma atividade referente ao
conto O amor por entre o verde:
Nesse momento, um aluno fala: “ele está olhando os brotos”. A professora aproveita
e fala que isso ajuda a saber a idade do narrador. Ela pergunta para os alunos como é
possível saber disso. Alguns alunos afirmam que hoje em dia ninguém mais fala
isso. A professora pergunta: “Se fosse hoje , que palavra o autor usaria?”. Os alunos
ficam mais agitados e um aluno diz “novinho e novinha”, recebendo todo o apoio
dos colegas de sala. No mesmo momento a professora diz que não, pois “novinho e
novinha não é gíria, é um adjetivo”. Os alunos não se convencem da resposta e
começam a discutir entre eles e o barulho de fala aumentam. De repente uma aluna
fala “gatinhos”, gíria aceita pela professora
(Observação feita no dia 31 de novembro, 3º ano B).
Sim. Harry Potter, né? Que eu não li, uma história que não me interessa, mas eu já li
bastante texto de Harry Potter porque é o que eles gostavam, era o que eles queriam.
Deixo eles me contarem, sabe? Deixo muito eles me contarem. “Mas o que é que
156
você está lendo?” Essa última classe que eu tive, eles eram, a maior parte deles liam.
Quando eles terminavam a tarefa “Ah, posso ler, professora?” Eles tinham os livros
deles. Não era nada do que eu tinha pedido. Eu tinha pedido para eles lerem esse ano
só O Diário de Anne Frank (Celeste)
Uma vez que não têm legitimidade para estar no centro do trabalho pedagógico, as
opções não-escolares dos alunos ocupam espaço marginal na sala de aula, e cabe à professora
controlar os limites do que é permitido ou não. Trata-se de mais um exemplo das negociações
feitas no cotidiano escolar diante de outros padrões culturais concorrentes presentes na
instituição, cujo ator principal é o professor (ZAFFRAN, 2006). Chama-nos igualmente a
atenção o esforço da professora para se distanciar do livro, explicitando que nunca o leu,
porém se dispõe a conversar sobre ele com os alunos e autoriza sua leitura em sala de aula,
desde que seja feita após o término das atividades prescritas por ela. Evidencia-se que o
caminho da negociação é preferível à interdição mais explícita. Assiste-se, assim, a um
processo de interiorização das disputas pela cultura legítima, diferentemente do que acontecia
no ensino médio antes da expansão, quando a limitação do número de vagas, as séries de
retenção, entre outros fatores, expulsavam os alunos distantes do ideal de formação escolar. A
expansão do ensino médio e sua inserção na escolarização obrigatória levam culturas variadas
para o cotidiano (ZAFRAN, 2006), um espaço no qual o jogo escolar deve se encarregar de
produzir as hierarquias culturais segundo as normas escolares.
As poucas circunstâncias nas quais os conflitos diretos acontecem e o fato de a
produção das hierarquizações culturais se desenvolver nas negociações cotidianas fazem com
que os alunos expressem seus incômodos e o que está em jogo para eles na escolarização de
modos variados. Isso pode ser expresso por meio do estranhamento dos livros presentes no
cânone escolar, conforme os excertos a seguir:
Teve o Dom Quixote, que a professora de português passou pra gente ler no
primeiro bimestre e fazer a prova... Horrível! Chata em todos os sentidos. Estava
falando como tudo começou, o nome do livro, porque Dom Quixote, falando da vida
dele e eu não gostei disso (Mariana).
Uma prova. A gente teve uma prova... Não, foi uma prova fácil...Como foi do
primeiro bimestre, tipo, eu...” Qual era o sonho de Dom Quixote?” Tipo, qual era a
fantasia que existia na cabeça dele, que era a dele ser um, ai, esqueci a palavra. O
sonho dele era ser um cavaleiro da mancha. Esse era o sonho dele... Achei meio
esquisita, meio louca (Adriana).
médio. Em suas falas, as alunas explicitam que o livro lhes causou muito estranhamento,
sobretudo porque seu enredo parece fugir do repertório conhecido por elas. As fantasias de
Quixote e a linguagem utilizada pelo autor dificultam sua inserção no universo literário das
alunas e, assim, as duas se sentem distanciadas de sua narrativa. Conforme detalharemos
adiante, os alunos frequentemente leem os chamados best-sellers, cujos enredos costumam
apresentar de maneira direta os conflitos entre as personagens, em geral tipos facilmente
identificáveis conforme se habitua ao universo de publicações semelhantes (SODRÉ, 1988).
Como afirma Roger Chartier (1999), as práticas de leitura, constituídas a partir de
posicionamentos sociais distintos, produzem disposições para o reconhecimento de livros
comuns ao grupo do qual se faz parte. Se para além de ser apenas uma forma de se
reconhecerem títulos semelhantes, as representações de leitura se constituírem como
estruturas que nos permitem ver pelo viés da cultura as posições sociais dos leitores e seus
modos de produzir sentidos para a realidade, estaremos diante de um modo específico de
produção de inteligibilidades baseadas no conhecimento literário. As representações também
podem se basear na dificuldade de se estabelecer o que é ou não real:
Ah, igual o livro...livro não, principalmente texto. Eu tô lendo aquilo, aí fala que
Afrodite não sei o quê. Eu ouvi falar, todos os professores falam, mas eu não sei se é
verdade ou não. Não tem aquilo que comprova que aquilo aconteceu (Mariana).
Então eu gosto de ler, mas quando eu tenho que ler, eu gosto de ler no silêncio e
aqui na escola já fica ruim, já perco a concentração. Eu gosto de ler mais em casa
que é melhor (Mariana).
Não tinha livro para todo mundo ela passava um texto na lousa e a gente tinha que
copiar...Tinha texto que a gente tinha que passar duas aulas copiando (Luana).
Deixa eu ver. É bem difícil, viu, porque a gente realmente não tinha continuidade.
Teve pouca aula e quando tinha a oportunidade de absorver as coisas era bem difícil
por causa da energia do ambiente (Karina).
Não. Ela não deu nenhum livro para a gente ler. Seria até interessante, mas ela sabe
que a gente não tem tempo, que todo mundo que vem... Tinha gente que chegava
aqui correndo antes da aula para fazer o trabalho. Se ela desse um livro para a gente
ler, a maioria não ia ler (Clair).
É porque eu sou o tipo de pessoa que nunca gostei de português. Nunca. Desde
quando entrei na escola nunca gostei de português. Aí toda vez tem que ler aquele
texto aí tem que fazer aquelas questões, tipo, o texto nunca é pequeno, são sempre 3,
4 folhas. E o que vai cair naquelas 10 questões só é aquela primeira página! Aí eu já
não gosto, eu fico estressada porque eu tenho que ler o texto todo à toa, aí eu já não
gosto (Mariana).
Às vezes ela passa as questões na lousa, passa os textos na lousa para a gente copiar.
Aí depois a gente tem que ler e fazer as perguntas de novo. Aí em uma aula ela
passa os textos e na outra aula a gente faz as questões. A gente tem que responder e
ela vista (Amanda).
Bom, ela lia com a gente e nós acompanhávamos. Aí quando eu gostava do texto eu
prestava mais atenção. Porque a minha cabeça sempre fica, assim, desde pequena
minha cabeça fica meio fora. Aí isso acontece muito. Por isso tem pessoas que não
conseguem continuidade no estudo. Mas, assim, o que me fez admirar muito a
Língua Portuguesa foi por muitos professores. Foi pelo professor Ataulfo, foi
pelo Roberto Juliano, foi pela Vanessa. Ah, tive o professor de redação também, o
Cláudio (Karina).
Ah, como a gente quer. A professora deixa, tipo, ela passa o texto para a gente e a
gente pode, ela deixa livre, a gente pode fazer em grupo ou a gente pode fazer
individual também. A gente que vê (Adriana).
Os depoimentos acima são dos alunos do EJA e do ensino médio regular, sendo que os
primeiros passaram por mais situações de explicitação dos pressupostos das atividades por
parte da professora do que os alunos da Escola 1. Foi o esforço de tradução feito pelas
docentes que permitiu, frequentemente, momentos de maior aproximação dos alunos aos
textos, como Karina demonstra. Talvez um efeito disso seja o fato de os alunos do EJA
recordarem de algumas situações escolares. Entre as experiências positivas de escolarização,
as situações em que as narrativas literárias se aproximam das experiências dos alunos tendem
a ser mais lembradas.
Ah, eu adorava, eu gostei do Patativa do Assaré. Adorei a poesia dele, que era uma
poesia simples, do interior. Como eu sou do interior, eu me identifiquei [risos], achei
lindas. Eu não conhecia ele. Ai um dia ela mandou a gente pesquisar. Colocou na
lousa assim: ‘Pesquisem, eu quero que vocês me entreguem uma poesia do Patativa
do Assaré. É um poeta de Nordeste’. Aí eu fui procurar na internet, em casa, quando
eu fui encontrando as poesias dele eu fiquei fascinada. Eu escrevi duas poesias e
trouxe para entregar para ela para ganhar nota. Eu falei para ela: “Gente, eu amei
esse cara!” (Clair).
Sim, mas os livros iguais a esses. Livros legais, que chamem a atenção, embora você
não goste de ler, para a nossa idade, é bom que uma coisa tenha ação, quando os
caras entram lá, então, tipo, é uma coisa que chama a atenção (Luana).
Uma das primeiras tensões vindas à tona durante as entrevistas feitas com as
professoras e com os alunos diz respeito ao dilema enfrentado por eles ao responderem a
questões relacionadas ao seu perfil de leitura. Ao falarem sobre o que gostam ou não de ler, a
161
frequência com que compram ou emprestam livros, por exemplo, foi possível notar certa
hesitação ou respostas evasivas como “eu gosto de ler o que me agrada”, demonstrando que
descrever seus hábitos de leitura produz a sensação de pisar em um campo minado. No espaço
de suas experiências individuais, os entrevistados sugerem que assumir a posição de leitor vai
além de saber ler, exigindo-se também outros atributos.
Em uma sociedade hierarquizada, muitas são as possibilidades de se produzirem
variadas comunidades de leitura, passíveis de entrar em disputa ou serem diferentemente
valorizadas (CHARTIER, 2004). Os caminhos de valorização ou desvalorização das leituras
podem passar por instâncias como a academia, prêmios literários, a escola, reconhecimento
comercial, entre outros, que auxiliam na produção de balizas para a produção e classificação
dos leitores.
Entre as instâncias de produção dos discursos sobre a leitura, a escola tem papel
especial, pois ela tem sido compreendida como responsável pela alfabetização e pelo ensino
da leitura para crianças e jovens, tornando-se, portanto, um dos lugares onde se forjam as
representações do leitor de obras literárias (CHARTIER, 2001; CHARTIER & HÉBRARD,
1995). Se a leitura configura um espaço de disputa, os estudantes e mesmo as professoras
conhecidas durante a pesquisa de campo parecem lidar com um espaço de tensão ao tentarem
se definir enquanto leitoras – assim sugere a hesitação ao falarem sobre suas opções literárias
e modos de ler -, o que coloca em jogo exatamente as representações de leitura
sociais/familiares e escolares, uma vez que para falarem de si, os entrevistados tomavam
como referência ou o modelo de leitura escolar ou os sentidos literários advindos da escola e
os efeitos que eles produzem nas representações familiares.
As maneiras como tais elementos – sua própria imagem como leitor, as representações
familiares e escolares - foram articulados durante as entrevistas revelaram a nós algumas
posições possíveis no jogo de produção de sentidos para a leitura de obras literárias nesse
espaço de tensão entre a escola e a família. Dois estudantes entrevistados, Paulo e Marcelo,
indicaram um modo semelhante de significar suas respectivas posições de leitor em uma
chave narrativa que parece colocá-los em oposição à leitura escolar. No caso de Paulo, aluno
da Escola 1, e de Marcelo, que frequentava a Escola 2, problemas no processo de
aprendizagem da leitura, a visão dos professores sobre eles - e a consequente incorporação de
uma certa posição de aluno -, além das representações familiares da leitura de obras literárias
parecem ajudar na sua compreensão enquanto leitores. Alguns excertos de suas entrevistas
dão a ver como isso procede:
162
Eu já tentei ler um livro do Allan Kardec, não lembro o nome agora. Eu tentei, mas
não consegui ler inteiro. A última vez que eu li um livro eu era pequenininho,
aqueles de três páginas [...] não conseguia ler direito. Eu conseguia, eu sei ler
direitinho, mas eu não tenho muita paciência para ficar lendo (Paulo).
Assim, eu tenho algumas dificuldades, tenho que correr atrás disso atualmente que é:
começo a ler e começa a lacrimejar meus olhos. Óculos, pelo jeito deve ser óculos.
Me dá muito cansaço ler, mas assim, se for coisa pequena eu vou ler, mas se for
coisa grande já não me dá paciência (Marcelo).
Ah, o Marcelo. O Marcelo tem deficiência mental, eu não sei se você percebeu. Um
problema sério aquele rapaz. Ele disfarça bem, mas ele tem um comprometimento
mental [...], mas eu não sei te dizer muito dele não. Não conheço muito ele não. As
duas [Clair e Karina] eu sei te dizer quem são, o Marcelo muito pouco (Cida).
Questionada sobre Marcelo, a professora Cida sustenta que o aluno tem uma
deficiência mental que o torna problemático, impedindo-o de ter bom desempenho em sua
disciplina. É curioso notar que durante as observações de aulas, assim como durante a
entrevista, nada indicou a existência de qualquer deficiência intelectual ou motora do aluno.
Foi possível notar, entretanto, os usos que Marcelo faz da linguagem e da leitura, que revelam
um grande distanciamento da maneira como elas são assumidas pela escola e pela professora.
Um exemplo disso é a forma inadequada com que ele utiliza a linguagem ao falar sobre uma
experiência positiva vivenciada em outra escola ao aprender sobre os sinônimos:
Diante de um aluno que causa tanto estranhamento a Cida, sua reação é identificar
possíveis problemas individuais no aluno e, para tanto, faz uso de certo discurso psicológico,
163
aplicado aos problemas pedagógicos. Isto é feito de maneira imprecisa, mas a auxilia a lidar
com um aluno que está menos próximo de suas práticas pedagógicas, ao contrário do que se
passa com Clair e Karina, lembradas durante a entrevista. Ao pesquisar a produção do
fracasso escolar, Maria Helena Souza Patto (1991) nota que as professoras conhecidas por ela
durante a pesquisa também recorriam à Psicologia e à Medicina para falar de alunos
identificados por elas como fadados ao fracasso. Muitas vezes tais discursos estavam repletos
de visões preconceituosas e estereotipadas a respeito dos alunos pobres que frequentavam a
escola investigada, o que também ressoa em nossa pesquisa, pois a professora Cida vê, de
modo geral, os alunos do EJA como espécie de alunos fora do jogo escolar e, dentre eles,
Marcelo parece ser digno de poucas esperanças.
Se Marcelo é referido por sua professora por sua pretensa deficiência mental, Paulo
sequer é lembrado por Verônica durante a entrevista e, consequentemente, ela não diz nada
sobre ele. Enquanto Marcelo conseguia ser notado pelos “problemas” que causa à sua
professora, Paulo parece ocupar a sala sem ser percebido assim como suas dúvidas e a
dificuldade de leitura. Ao reconhecer que não consegue ler direito e que não conhece bem a
classificação das palavras, o aluno aponta os desafios a serem enfrentados por ele e por sua
professora. Entretanto, o aluno reage a isso pelo silêncio que o torna invisível aos olhos de
Verônica. Ao chegar ao ensino médio, já está certo de que não tem paciência para a leitura, de
que não gosta de Português e que só precisa sair da escola. São muitas as formas de os alunos
reagirem à situação escolar, sendo o silêncio uma das maneiras de sobreviver a circunstâncias
que parecem sem saída (PATTO, 1991).
As situações vivenciadas pelos estudantes na escola favorecem a produção de uma
visão de si como leitores não proficientes ou não leitores, e reforçam ainda mais certa
inadequação em suas maneiras de ler. Tampouco a família parece representar um estímulo à
produção dos leitores e, nesse sentido, as relações de gênero parecem desempenhar papel
importante aqui. Marcelo sempre recorre à sua esposa como representante de uma verdadeira
leitora, ao passo que Paulo se refere à figura da mãe:
[Os livros recebidos da prefeitura] Estão guardados. Acho que minha mãe lê… ela lê
sempre. Ela lê um monte de livro (Paulo).
A minha esposa mesmo lê muito aquele “Marley e Eu”. Quando eu peguei aquele
livro que eu vi, falei “Meu, como é que você conseguiu ler?”. Eu já não tenho aquela
paciência para ler. Não sei, não tenho aquela mente “Vou pegar para ler agora”. Eu
prefiro um documentário passando na TV que, ou um computador para ler que um
livro (Marcelo).
164
familiar. Nesse sentido, o conflito que se sobressai é com a escola – qual seria a leitura
legítima? Outras alunas do ensino médio regular identificavam-se como leitoras, porém
apenas daquilo que lhes interessava e, por isso, diziam ser “chatas” a maioria das leituras
sugeridas na escola. Enquanto os homens descritos no parágrafo acima parecem ter maior
distância em relação à literatura de um modo geral, as mulheres dão indícios de perceberem
suas preferências e práticas de leitura tensionadas pela escola. A leitura constitui-se como um
espaço de construção da subjetividade e de intimidade entre mulheres, o que ficará mais claro
na seção abaixo. É comum que as estudantes leiam best-sellers, revistas e blogs em busca de
informações para suas vidas práticas e, assim, suas motivações de leitura e objetos
selecionados por vezes distanciam-se do que é previsto no currículo escolar e nos materiais
didáticos, como procuramos demonstrar no capítulo 2:
[Não gosta da leitura escolar] porque tem que ler, pra mim eu acho que isso é chato
[...] eu não gosto de ler história, assim, eu gosto de ler livros (Amanda).
Eu gosto [muito de ler]. Eu gosto de ler coisas do meu interesse, mas eu gosto muito
de coisa... eu gosto do, que eu li... Eu li aquele Vidas Secas (Karina).
Na hora [eu me lembro do que é o Barroco] sim, mas agora eu sei que é uma, que é
um movimento artístico que foi construído no Brasil, tipo um patrimônio histórico, e
é o que eu lembro (Luana).
segundo suas capacidades de leitura, ao passo que os homens são excluídos da possibilidade
de atingirem a posição idealizada de leitura. Nesse tocante, Luana sintetiza a situação da
seguinte forma:
Aquele negócio do leitor-leitor... [ele] não faz porque é obrigado, faz porque gosta
(Luana).
A aluna da Escola 1 não se vê como uma leitora-leitora, pois para atingir tal
classificação seria preciso incorporar o gosto pela leitura de obras literárias a ponto de não
fazer isso por obrigação, mas sim por prazer. Além dessas características, Bernard Lahire
(2008) afirma que a imagem da leitura mais legítima também é marcada por uma atividade
que leva tempo, ou seja, dias e semanas, e que é extensiva. A leitura fragmentada ou curta é
pouco legítima, pois a periodicidade da leitura deveria ser constante, diferentemente do que
Luana faz. Diante disso, ela não pode se considerar uma leitora, classificação que todos os
entrevistados tiveram dificuldade de atribuir para si. Eles são leitores com ressalvas,
demonstrando o tensionamento produzido por suas práticas constituídas em espaços não
escolares quando comparadas às escolares.
Vemos em alguns casos a existência de uma tensão entre se dizer leitor – na maneira
como se lê cotidianamente - e as expectativas escolares, como Camila e Luana demonstraram.
Já mencionamos que a leitura estética é defendida nos currículos escolares, nomeadamente, as
OCEM. Apesar de circularem outras ideias de leitura na escola, por exemplo, aquelas
expressas pelos alunos, os livros didáticos e as representações de leitura das professoras na
sala de aula vão ao encontro das propostas oficiais de ensino literário, ainda que se apropriem
de fragmentos dos PCN e OCEM. Esse tipo de leitura seria um dos elementos que compõem o
arbítrio cultural defendido na sala de aula (BOURDIEU, 2014b). Parece-nos que, uma vez
identificado tal arbítrio, os alunos se posicionam ou não como leitores em função de sua
proximidade ou distanciamento com relação a ele. É significativo notar que a percepção de
suas possibilidades de leitura foi sendo produzida pelos alunos ao longo de seu processo de
escolarização, no ritmo dos ciclos e dos anos escolares. Encontramos nossos entrevistados já
na fase final desse processo, quando a regularidade das ações escolares já havia produzido
diversos efeitos nos estudantes. Os alunos mencionaram em suas entrevistas situações nas
quais se esforçaram para gostar dos livros ou tiveram uma experiência positiva com a
literatura, mas elas parecem estar no passado. No presente, o sentimento é de uma permanente
frustração e a impressão de não conseguirem alcançar a posição de leitor-leitor.
167
Os sentidos atribuídos aos textos literários por nossos entrevistados também emulam
as tensões concernentes às formas de apropriação da literatura entre a escola e a família.
Romances, revistas, textos de blogs são vistos ora como momentos de distração e evasão, ora
como circunstância de aprendizagem sobre a linguagem e sobre a vida em geral. No que se
refere ao primeiro caso, a possibilidade da imaginação é o que dá contornos à leitura, como
podemos acompanhar nas falas de Mariana e Amanda:
[...] no livro você pode imaginar um monte de coisas, você vê como é (Amanda).
[Escolhi ler Vidas Secas] Porque é a história do sertão, né? É uma história parecida
com a minha… olha, [o livro não tem tanta relação com minha história], não...
algumas coisas. O fato de eu estar numa situação, na época, porque eu era bebê. Mas
eu também passava as férias com a minha vó lá [no sertão]. Quando eu ia para lá a
infância era diferente. Lá eu tinha liberdade, eu podia correr, subir os morros, nadar
no rio. Lá eu tinha infância (Karina).
Pensei, cara, imagina perder uma pessoa muito especial que você tem na sua vida
desse jeito? Você conta a história desses dois de um jeito muito bonito. Tipo, você
imagina, no momento, você imagina você perdendo aquela pessoa muito especial
para você. Isso que faz você se sentir na história (Adriana).
Por isso eu gosto mais de aventura, fantasia... Porque eu posso fugir para aquele
mundo e tal (Adriana).
A possibilidade de embarcar nesse mundo literário liga-se a uma certa visão idealizada
da literatura como um lugar elevado e cheio de belezas, o que remete, por sua vez, a um
discurso recorrente no século XIX (SONNET, 1994; CHARTIER, 2002).
Então, eu faria um texto cheio de beleza. Acho que eu escolheria os mais belos.
Realmente, eu escolheria coisas belas para as crianças encherem a imaginação de,
sabe, para elas entrarem num mundo de beleza e não nesse mundo que passa na
televisão (Karina).
Depois da depressão eu fui obrigada a ler porque eu tinha que estudar o que eu tinha
porque os primeiros 3 meses de crises eu não sabia o que eu tinha (Clair).
169
Só livro espírita porque eu precisava disso para entender o que estava acontecendo
comigo (Clair).
Porque geralmente é sempre coisa assim, muito coisa que não existe. Coisa tipo,
coisa grega, aventura. Muita coisa que você sabe que não existe, mas aquilo tá
falando. Eu não gosto de coisa muito artificial, eu gosto daquilo que você sabe que é
e que aconteceu (...) eu tô lendo aquilo, aí fala que Afrodite não sei o quê. Eu ouvi
falar, todos os professores falam, mas eu não sei se é verdade ou não. Não tem
aquilo que comprova que aquilo aconteceu (Mariana).
[...]para você ver o Diário de Anne Frank, como eu achei uma história, tipo, aquele
sim eu uso (...) porque é uma história legal, é uma coisa que a gente sabe que cai e
ela fez diferença (Luana).
170
A leitura predileta parece estar entre o prazer e a utilidade, adquirindo, com isso, um
valor:
Tem que gostar. Quem lê fala bem, escreve bem, se comunica bem, tudo é bem e
quem não lê, não. Eu tinha que gostar (Luana).
Eu acho que eu sei que eu preciso ler porque eu estou tendo dificuldades de formatar
ideias (Clair).
Nas seções anteriores discutimos os critérios com os quais os alunos identificam suas
distâncias e aproximações em relação ao ideal de formação literário na escola. Observamos
que a partir de sentidos, repertórios e lógicas diversas, a produção do leitor legítimo é vista da
maneira problemática na escola. Ao se valerem de suas disposições no espaço escolar, os
alunos se percebem desvalorizados. Isto posto, torna-se importante acompanharmos mais
detalhadamente a produção do leitor fora da escola de modo a situar a elaboração do problema
mencionado acima. Para tanto, observaremos os ritmos e temporalidades da literatura a fim
de compreender como ela é representada pelos estudantes. A transmissão de sentidos para a
leitura de obras literárias se dá cotidianamente, sem a mesma intencionalidade que na escola,
mas com a presença constante dos familiares que, a seu modo, estabelecem uma relação com
os livros, recorrendo a eles de acordo com as circunstâncias e, assim, fornecendo as
condições para a incorporação de práticas de leitura. O tempo, nesse aspecto, é fundamental e
condição estruturante desse processo, pois as repetições de ações semelhantes, com o passar
171
dos dias, meses e anos favorecem a incorporação de hábitos de leitura (LAHIRE, 2002).
Nesse quesito, os estudantes entrevistados oferecem experiências significativas acerca do
papel das famílias na produção das práticas e representações literárias.
Sim, porque ela fala assim, a gente está lá escolhendo e ela fala assim: “olha esse
livro,” e eu falo: “o que tem esse livro?” “Ele não tem nada a ver com você”. “Esse
livro aqui, você tem que ler, parece com você”. “Por quê?”. “Por que são As
confissões de um adolescente”. Mas eu falei: “isso não tem nada a ver comigo”. Mas
ela falou: “Parece sim, por isso mesmo!” “Então tá bom, então” (...) Aí eu não levo.
Isso aí não é minha cara. Aí ela falou assim: “É sim sua cara!” Então tá bom, mas eu
não levo. Ela queria que eu levasse aquele, mas eu levei O código da inteligência
(Mariana).
estreitam laços entre si e, ao mesmo tempo, com a literatura. Em ocasiões como essa, as
famílias produzem um arbítrio cultural para os filhos, ou seja, fornecem a eles obras
merecedoras de leitura e os usos a que se prestam, constituindo um universo literário segundo
os sentidos estruturados a partir de suas posições sociais (BOURDIEU, 2007). O debate em
torno do título que Mariana deve escolher demonstra o esforço da mãe para, de alguma forma,
auxiliar a filha a se aproximar de um título que considera condizente com o momento atual de
sua vida, mas Mariana quer projetar seu futuro como psicóloga. O mesmo tipo de relação
afetuosa tendo o livro como intermediário se observou no caso de Paulo, que parece apreciar
o modo como a mãe compartilha com ele suas leituras:
Minha mãe geralmente [comenta] sim [sobre o que está lendo] .... Ela conta sempre
a história do livro e ela fala para mim ler…. [eu] Gosto [de ouvir]. Ela sempre conta
da história do livro, ela fala o que achou bonito dos livros (Paulo).
Ela [mãe] vai pra me levar, pra me acompanhar e pra dar opção de qual livro eu
devo levar ou não! (...) Ela falou assim: “ você que tá lendo, você escolhe”. Mas às
vezes eu sou meio indecisa também de qual devo levar, aí minha mãe me ajuda a
escolher. (...) ela lê o resumo aqui [aponta para a quarta capa do livro que seguro],
que mostra o que acontece. Ela vê o autor, tipo quem é e fala assim: “eu acho que
você tem que levar esse, parece mais com você. Você tem que levar esse (Mariana).
Por meio da relação de cumplicidade com a sua mãe, Mariana vivencia um processo
de aprendizagem sobre que sentido atribuir aos textos literários, ou, mais especificamente,
como aproximar estes últimos à sua personalidade ou à situação pela qual está passando. Ao
mesmo tempo, o acesso aos livros é associado a um lugar de compra bem como a aquisição
dos livros vai se tornando um valor relativo à prática de leitura, constituindo-se um repertório
de ações e critérios para a seleção de um título que passa pela investigação da capa, da quarta
capa, da leitura do resumo e de informações sobre o autor. A partir de tais elementos,
podemos inferir que Mariana está construindo ao longo do tempo um conhecimento que pode
ser utilizado para circular no mundo letrado, mas que, nesse momento, ainda depende da
presença da mãe. Ao mesmo tempo, em casa, a mãe compra e guarda jornais e revistas, que
fazem parte do cotidiano de Mariana e lhe oferecem possibilidades de leitura:
174
Ela lê bastante revista e jornal também. Ela lê a Folha de São Paulo (...) Eu olho,
assim, às vezes. Tem aquelas tirinhas, né, aí dependendo da tirinha eu vou lá e vou
ler. Agora, aquelas outras partes eu não vou ler (Mariana).
Eu leio bastante revistas. Eu nunca gostei de gibi. Eu leio bastante revista porque a
minha mãe sempre traz. Minha mãe toda dia traz uma revista, aí eu vou lá, vou
virando as folhas para ver o que tem. Eu vou passando e aquilo que me interessar eu
vou ler... Acho que é Viva, aquela que fala sobre os famosos. Tem tudo lá (Mariana).
Mariana vive, assim, em um mundo familiar coerente no qual a mãe exerce um papel
fundamental ao representar um certo circuito literário. A participação em um universo
familiar organizado no qual livros, jornais e revistas desempenham papel importante também
foi destacado por Amanda. No seu caso, adiciona-se um componente religioso, ao enfatizar
que as revistas lidas por sua mãe e outras assinadas para os filhos são da igreja. Torna-se mais
claro que no universo familiar cada objeto de leitura tem seu lugar, pois estão articulados aos
modos de sociabilidade, ao exercício de classificação e organização do mundo literário e
social. Bernard Lahire (2008) afirma que a regularidade constitui um aspecto central para que
as disposições culturais possam ser incorporadas. Consequentemente, a constância e a
articulação dos livros e revistas presentes no dia a dia das famílias produzem a imagem do
universo literário possível aos alunos. Nota-se que os adolescentes estão imersos em mundos
literários que muitas vezes são invisíveis no espaço escolar. Ao mesmo tempo, as afirmações
de Amanda permitem entrever que a leitura parece uma atividade compartilhada por toda a
família:
Minha mãe faz uma assinatura de uma revista; meu pai, ele é funcionário público,
ele trabalha na funerária e ele lê muito processo; e o meu irmão, minha mãe faz
assinatura pra ele de duas revistas (Amanda).
A assinatura do meu irmão antes era minha, aí parou um pouco para mim e depois a
minha mãe começou a fazer para ele (Amanda).
O projeto de seus pais se torna mais evidente quando a aluna conta as tensões entre
aquilo que ela gosta de ler, a saber, as revistas para adolescentes, e a leitura que seu pai julga
útil:
175
Meu pai fala que não aprende lendo revista de fofoca, que é a Todateen (fala toda
tem). Eu vou para o meu quarto e leio a minha revista. Eu tenho um bolo de tamanho
assim de revista da Todateen [gesticula uma pilha de livros bem grande]. Eu tenho
mais um bloco desse tamanho assim da Turma da Mônica. Eu queria continuar mas
a minha mãe falou que por causa da escola eu não poderia. Para não desconcentrar...
da Mônica. Mas todo mês eu vou lá e compro da todateen com meu dinheiro. Não é
com dinheiro dela, então tudo bem (Amanda).
Vemos que nessa família a leitura é vista, sobretudo, como algo planejado de acordo
com suas funções relacionadas à idade dos filhos. Quando mais jovens, são ofertados a
Amanda e seu irmão gibis e revistas voltadas para o público infantil, assim, a leitura é vista
como entretenimento e, possivelmente, como espaço de aprendizagens edificantes. Entretanto,
quando se torna mais velha, no período pré-vestibular, as leituras devem ter um conteúdo que
seja proveitoso para o aprendizado na escola e para a entrada na faculdade de Direito ou
Pedagogia, conforme as sugestões de seus pais. Amanda vive essa tensão, uma vez que já se
apropriou da leitura como espaço de formação, mas também como atividade de distração:
Mas [meu pai] também implica quando eu assisto Malhação, que eu gosto. Mas eu
também assisto jornal. Vejo bastante na internet (Amanda).
São todos como eu. Eles leem porque é alguma coisa que interessa. Eu já peguei a
minha mãe lendo dois livros. Minha irmã eu já peguei lendo, agora que ela está na
faculdade ela está lendo mais. Eu já peguei ela lendo uns três livros. Meu irmão me
surpreendeu que uma vez ele leu um livro dessa grossura assim, gigante, enorme,
tudo texto, não tinha nada figura. Um livro gigante que você olha, meu Deus, nunca.
Só um que eu não vejo ler que é meu irmão, Lucas (Luana).
Ao dizer que já pegou seus familiares lendo, Luana indica o quanto isso foi
surpreendente para ela, que também utiliza essa expressão para falar do irmão. As leituras
feitas no âmbito familiar parecem inexistir, dando assim a dimensão da distância com relação
176
à leitura que verifica em sua família. Nesse tocante, o espaço da escolarização parece
significativo para produzir o interesse e ampliar sua frequência de leitura. Podemos
identificar, por meio desse exemplo, o efeito que uma experiência de escolarização pode
sugerir aos modos de se aproximar da leitura (LAHIRE, 2008). Nesse caso, a matriz
socializadora escolar produz estruturas mobilizadas pelos alunos mesmo quando estão fora da
escola. A frequência à Universidade, se tomarmos o exemplo da irmã, e a necessidade de ler,
comprar livros e, portanto, ir às livrarias pode ter a função de ampliar as ocasiões de leitura:
Minha irmã lê livros da faculdade e A Menina que roubava livros, esses livros
assim. Minha mãe também. Não lembro o nome do livro, mas era esse gênero aí
(Luana).
Uma vez que se gera mais interesse, vê-se que se tem acesso aos objetos literários que
estão na moda, acessíveis nos lugares por onde os jovens circulam, e também àqueles que
guardam relação com os ambientes de formação dos alunos. Nesse caso, a influência dos
familiares parece ser menos significativa para modelar as práticas de leitura no sentido afetivo
ou em um projeto mais claro de ascensão social. Luana se recorda apenas de sua avó, cuja
proximidade com a literatura é mencionada:
Quando eu era criança, minha vó comprava muito livro e como ela pagava muito
caro nos livros eu não tenho coragem de dar. Então, tipo, eu tenho uma sobrinha.
Quando ela começar a ler eu vou dar para ela. Então esses ficam guardados (...) Ah,
uns livros mais trabalhados, assim, de criança, sabe. Mas todos bonitos, coloridos. E
todos os livros que eu tenho eu li quando eu era pequena (Luana).
Apesar de se aproximar da figura da avó, que representa uma verdadeira leitora (“Ela
compra livro, ela dá livro. Ela paga absurdo em livro, coisa que eu jamais faria”) , Luana se distancia
dessa figura e se fixa em outros valores. Para a aluna, a função dos objetos de leitura está em
primeiro plano, assim como o preço dos livros:
Eu compro, assim, quando ela vem com algum pôster, alguma coisa assim que me
interessa. Se não eu vejo na internet, no site. O que vem na revista eu leio no site
porque a gente compra a revista, se ela vem com algum pôster, alguma coisa que
você é fã, você quer guardar porque você é fã é uma coisa. Agora, você leu e fica lá
papel guardando, juntando pó e você gastou dinheiro. É melhor você ler lá no
computador, leu, acabou, quer ler de novo entra lá de novo (Luana).
Você pagar, tipo, R$150,00 em um livro. Onde já seu viu isso? Aí você vai lá, leu e
acabou. Não, eu não tenho coragem de dar isso num livro (Luana).
Por meio das passagens acima vemos que Luana avalia as aquisições de revistas e
livros pela relação entre custo e benefício dos mesmos. Uma vez que a atividade de leitura se
177
esvai no momento em que ela é concluída, não faria sentido gastar tanto dinheiro com livros e
revistas, exceto quando a revista, por exemplo, oferece algo para além do ato de leitura, como
um pôster colecionável. Observa-se, desse modo, que a leitura é vista como uma espécie de
acúmulo de informações e enredos que, ao serem conhecidos, devem ser deixados de lado
para que se adquira algo novo. O valor pago por livros e revistas, nesses casos, torna-se ainda
mais predominante para a aquisição dos livros. Vimos nos casos de Amanda e Mariana que o
dinheiro também é um fator importante para o regime de compra dos livros e revistas,
entretanto, suas famílias parecem atribuir maior valor simbólico aos livros, o que permite a
satisfação do desejo de comprá-los com maior frequência. Luana e sua família parecem ver
menos valor simbólico nos objetos impressos, assim, eles valem exatamente o que podem
oferecer, como um pôster ou uma informação precisa sobre algo que vai ser cobrado no
vestibular. Parece-nos que o livro vale o quanto pesa e, assim, seu valor é medido como o de
qualquer outro objeto.
Uma das bases do sistema simbólico que a escola parece defender tem como
referência, como vimos no capítulo 2, a hierarquização de autores e publicações. Os alunos
não incorporaram essa hierarquia. Os valores estão tensionados no registro do que é útil -
trabalho/prazer - ou como uma atividade de lazer como qualquer outra. Isso difere os leitores
jovens dos mais velhos
Essa maneira de produção de sentidos para a leitura de obras literárias fica mais
evidente quando confrontamos as experiências dos entrevistados mais jovens com a dos mais
velhos. Clair, Karina e Marcelo não vivenciaram situações familiares tão articuladas em torno
do universo literário, quanto os alunos mais jovens. Suas famílias demonstram, de acordo com
suas afirmações, não valorizar tais espaços e mesmo a educação, além de enfrentarem a
situação de escolarização interrompida:
Então, é eu saí da casa dos meus, eu terminei a 8ª série com 20 anos. Aí meu pai
falou assim “Bom, agora eu já te dei o estudo que eu podia te dar” porque ele tinha
mais 8 filhos”. Se você quiser continuar estudando.”. Eu sempre gostei muito de
estudar, sempre achei isso muito importante “[...] você vai trabalhar fora e vai
continuar a estudar”. Aí meu pai já até tinha arrumado um trabalho. Naquele tempo,
emprego para a gente era em casa de família (Clair).
Eu parei já muito tempo porque eu tive filho cedo. Filhas, eu tive duas filhas. Eu
tenho uma de 21 e uma de 17 anos. Com isso eu tive que começar a trabalhar e tive
que optar: ou os estudos, ou o trabalho [...] eu estava na 5ª série na época. Eu me
amiguei cedo, com 14 anos. Eu estava na 6ª série (Marcelo).
igreja. Para esses alunos, os professores são as figuras mais significativas para que produzam
representações positivas a respeito das obras literárias. Em razão disso, Karina se lembra
vivamente de seus professores do cursinho, um momento considerado privilegiado para a sua
formação:
Assim, eu estudei pouco na vida, mas eu fiz oito meses de cursinho lá na Poli e
também nesse supletivo que eu fiz no segundo ano eu também estudei com o
professor, o Ataulfo (Karina).
Eu gosto de ler coisas do meu interesse, mas eu gosto muito de coisa... eu gosto do,
que eu li... Eu li aquele Vidas Secas. Eu li porque quando eu estava fazendo o
cursinho da Poli eles falavam para a gente ir lendo. Aí eu li também Carlos
Drummond de Andrade. Li também não sei o que lá do Ipê. Muito lindo. [risos] É
porque eu sou romântica. Então esse daqui é um sobre o que eu faço, energia.
[Mostra o livro que está em sua bolsa] Aí fala um pouco de Deus, né? [Karina].
Diferentemente dos estudantes do ensino médio regular, Karina tem como principais
referências literárias aquelas advindas da escola, sem contar as leituras religiosas. Assim, suas
principais referências vêm do ambiente escolar e suas idas e vindas no universo literário
giram em torno das referências trazidas pelas instituições de ensino que frequentou, apesar
das dificuldades enfrentadas (“Conseguia ler um pouco, mas não conseguia ler mais. Eu não
conseguia me entreter”). Lembremos que as preferências dos alunos mais jovens giravam ao
redor de livros vindos do cânone escolar, mas também os best-sellers, revistas e gibis, sem
acentuar grandes distinções entre eles. Karina e Clair, sobretudo, concebem de maneira
especial os livros conhecidos no espaço escolar, conforme ressalta o comentário desta última:
4.2.2. Os tempos das leituras juvenis: as livrarias, os sebos e bancas de jornal como lugares
de aprendizagem sobre as obras literárias
Mas eu vou mais em banca de jornal, assim sabe? Para comprar revista. (Amanda).
Ao pesquisar as leituras mantidas por operárias, Ecléa Bosi (1981) demonstrou que as
possibilidades oferecidas por carros que paravam nas portas dos locais de trabalho foram
importantes para que elas tivessem acesso a livros, fascículos e outros objetos culturais. Em
nossa pesquisa de mestrado, demonstramos o quanto as bancas de jornal foram importantes
para que se tivesse acesso aos romances sentimentais (AMPARO, 2012). Podemos identificar,
assim, a existência de um sistema de circulação de materiais impressos que articula espaços
próximos aos locais por onde os alunos circulam no dia a dia, conjugando facilidade de acesso
e os preços baixos. A respeito das bancas de jornal, Sandra Reimão (1996) afirma que a
possibilidade de vendas de livros nesse espaço deve-se a uma lei datada de 1968, que ampliou
a rede varejista autorizada a realizar o comércio de livros. É importante destacar que, no
Brasil, a venda de livros que passa ao largo das grandes livrarias é significativa, uma vez que
bancas de jornal, sebos e mesmo a venda de porta a porta ainda se fazem presentes entre os
locais mais distantes dos centros onde ficam as livrarias (AMPARO, 2012). Além das bancas
e livrarias populares, as lojas de shoppings, geralmente partes de grandes redes, são muito
frequentadas pelos alunos:
Mas quando a gente vai no shopping, a gente sempre passa na livraria para ver os
livros...Aí, quando a minha mãe deixa, a gente compra um livro. Ela deixa a gente
escolher um livro, aí a gente pega e escolhe (Amanda).
180
Livraria, tipo, para comprar livros, não. A gente vai na livraria, tipo, para fazer outra
coisa. Tipo, ver CD, essas coisas. Mas para comprar livro... Eu nunca comprei livro
(Luana).
Costumo porque meus filhos, a gente vai no shopping, eles já vão direto para a
Saraiva ou para a, eles gostam muito da FNAC (Karina).
A visita às grandes lojas das redes do setor é uma opção secundária como atividade de
lazer. É significativo insistir que, longe de pensarem na literatura como algo especial, trata-se,
para esses jovens, de olhar e manusear os objetos como fariam com quaisquer outros exibidos
nas vitrines. Amanda, cuja família tem relação mais frequente com os textos impressos, inclui
a seleção e compra de livros entre as atividades de lazer; já Luana, cuja família mantém uma
relação mais distanciada com a leitura, acha estranho comprar livros. Mais uma vez, o que
está em jogo é o valor simbólico e monetário dos mesmos:
O problema é que eu tenho dó de comprar livro...é uma coisa que eu vou ler e depois
vai ficar lá.... Se fizesse uma coisa tipo alugar poder ser que eu... alugar, sim
(Luana).
Vou [à livraria]. Mas eu não costumo muito ir, tipo, eu não trabalho, não faço nada.
Não tenho muito dinheiro às vezes... Aí você fica meio perdida, queria levar isso,
isso, isso e isso. [vou à] Saraiva. A que eu mais vou é a Saraiva e Cultura. É a que
mais vou. [Elas ficam] No West Plaza e no Bourbon tem a Cultura (Adriana).
Luana chama atenção para a ausência de propósito na compra e guarda de livros, uma
vez que ela encara a leitura como uma atividade que se esvai quando é finalizada. Ao
pesquisarem as relações com a leitura de alunos que passam do colégio para o liceu, Christian
Baudelot e Marie Cartier (1998) constataram que existe entre eles a representação dos livros
como objetos iguais a todos os outros. Os autores identificam uma relação não sacralizada, na
qual os livros valem o quanto pesam, ou seja, os atributos considerados são a quantidade de
páginas e o peso. Os pesquisadores notaram que os livros eram organizados sem que as
prateleiras onde estavam dispostos fossem centrais em suas casas e eram classificados
segundo critérios que levavam em conta os aspectos de cobertura, como as capas, tamanhos,
entre outros. Como notamos em outros depoimentos, os livros e revistas encontram-se
dispostos na casa de nossos entrevistados nos quartos, sala e cozinha em meio a outros objetos
cotidianos. Assim, a relação não sacralizada com os livros é recorrente, principalmente
quando falamos dos adolescentes. Ao mesmo tempo, o preço do livro é um fator
predominante. Nesses casos, as redes de sociabilidade operam em torno da leitura:
181
Eu vou mais na banca de jornal. Livraria eu só vou quando eu vou na casa espírita.
Lá tem livraria. Só que, assim, eu também não tenho dinheiro para ficar comprando.
Eu mais pego emprestado das pessoas. A minha irmã também é espírita, ela pega
emprestado, daí ela me empresta. Tem o nosso cabeleireiro, que corta o meu cabelo,
ele é um senhor, ele não é gay, bom, mas se fosse não tinha problema. Ele é um
senhor barbeiro, que trata do cabelo de homem, mas ele corta maravilhosamente
bem o meu cabelo e o dela. Não sei porquê. Desde o dia que ele botou a mão no
nosso cabelo a gente se apaixonou. Então só ele corta o meu cabelo e o dela e ele
tem uma pilha assim de livros. Ele é espírita também, então a gente pega muitos
livros lá com ele, mas também não fica só no espiritismo. Ele tem outros livros
também. A gente pega os livros que a gente quiser com ele, então a gente está
sempre trocando (Clair).
A sala de leitura é pouco conhecida e aproveitada pelos alunos, o que seria uma
alternativa para o empréstimo de livros. A rede estadual de ensino desenvolve um projeto
chamado Salas de leitura, que tem por objetivo a construção de ambientes nos quais os alunos
podem emprestar e ter acesso ao acervo presente nas escolas. São responsáveis por elas os
professores efetivos adidos, contratados ou readaptados (ASBAHR, 2013)13. A rede estadual
de ensino conta atualmente com 5672 unidades em todo o estado, e 3144 delas contam com
sala de leitura. Como as salas dependem da existência de professores para se
responsabilizarem por elas, podemos pensar apenas que uma parcela desse total se encontra
em funcionamento. Na Escola 1, a biblioteca funcionava, em 2014, durante todo o dia com
uma professora efetiva que frequentou cursos de formação em serviço para ocupar a função.
Já em 2016 ela foi trabalhar em outra unidade, e uma professora readaptada, formada em
Matemática, assumiu a responsabilidade pela biblioteca. A sala funcionava apenas no período
da manhã e, frequentemente, a professora era chamada para desempenhar funções na
secretaria da escola. Na Escola 2, a sala de leitura funcionava apenas no período diurno e,
assim, os alunos do EJA não tinham acesso a ela. Afora as dificuldades de acesso e do
profissional responsável por ela, a sala de leitura também não parece estar presente nas
práticas dos alunos do ensino médio14:
13
Quando iniciamos a pesquisa de campo na Escola 1, a sala de leitura era coordenada por uma professora
efetiva adida, que desenvolvia um projeto que foi premiado pela secretaria. A professora organizou o acervo,
além de ser responsável por sua ampliação, pois fazia festas com vistas a arrecadar dinheiro para isso, também
trabalhava junto com os professores de outras disciplinas e acolhia os alunos que gostariam de emprestar livros
para lazer ou pesquisas. A aluna Adriana trabalhava junto com ela na biblioteca e demonstra ter aprendido muito
sobre o universo literário. Entretanto, com a tentativa de reestruturação da rede, em 2015, a sala foi fechada e a
professora responsável por ela mandou uma proposta de projeto a ser desenvolvido em uma escola de tempo
integral. Seu projeto foi bem acolhido e ela acabou transferida para essa instituição. Em 2016, quando voltamos
à escola, a sala de leitura era coordenada por uma professora readaptada, cujo envolvimento com a sala de leitura
não era tão intenso.
14
Devemos ressaltar que, durante a nossa pesquisa de campo, a biblioteca era utilizada como espaço de castigo.
Quando os alunos chegavam atrasados, eles eram encaminhados para a biblioteca e obrigados a copiar partes de
livros.
182
Ah, já peguei um livro da escola. Um só, que eu demorei muito para ler. Eu li,
devolvi, depois, um bimestre depois eu li mais um pouquinho e devolvi. E consegui
ler (Luana).
É porque eu não gosto daquele negócio de ter um certo tempo para ler e aquele certo
tempo pra entregar. Eu gosto de ler, tipo, quando me der vontade. E se me der na
telha eu vou ler tipo o dia todo, se for necessário, [vou] ler a madrugada inteira
aquele livro. Eu vou ler porque eu quero e não porque eu estou sendo obrigada: “Ó,
você tem dois dias para ler esse livro aí”. Eu já não gosto (Mariana).
É que eu não sei onde é ainda porque eu sou nova, então tipo eu nunca fui lá ainda,
mas eu já ouvi falar (Amanda).
[...] na minha opinião, está ficando uma coisa meio inútil porque, por exemplo, você
quer procurar um tema, por exemplo, um trabalho de escola, você não precisa mais
ir na biblioteca pegar uns livros. Você vê, tipo, na internet e acabou (Luana).
O universo literário no qual vivem os alunos do ensino médio permite a eles o contato
com um conjunto variado de títulos e autores. Reconhecemos entre suas preferências objetos
produzidos nos circuitos não-escolares, sobretudo os best-sellers, revistas e livros de
influenciadores digitais. Percebemos, também, a forte influência da televisão e das fontes de
informação virtuais para a produção de referências literárias, rivalizando, desse modo, com
um trabalho que, no passado, era exclusivo da escola. Esta última ainda se faz presente de
modo a influenciar os títulos e autores conhecidos pelos estudantes, contudo não ocupa papel
central nas escolhas literárias dos alunos. No intento de elaborar nossa exposição dos dados,
faremos uso da comparação entre as entrevistas e as enquetes respondidas pelos alunos da
Escola 1.
Inicialmente, os alunos estão imersos nas referências conhecidas nas bancas de jornal.
Como Amanda sugere, além dos livros, os alunos entrevistados costumam ler revistas,
principalmente aquelas destinadas a adolescentes, gibis e jornais. Com relação às revistas,
vejamos quais os principais títulos lidos:
Eu leio revista que eu compro todo mês por causa do Luan…. Eu não compro
Capricho porque o meu dinheiro não dá, aí não dá pra eu comprar Capricho. Eu
compro só Todateen (Amanda).
O trecho acima nos deixa ver que o preço das revistas – assim como o preço dos livros
– é um fator determinante para a compra. Além disso, a jovem entrevistada busca na revista
notícias sobre seu cantor predileto, cujo nome está pendurado no colar que ela usa durante a
nossa conversa. Outra aluna, Mariana, também costuma ler uma revista, a Viva, comprada por
sua mãe, além do jornal:
Eu leio bastante revistas. Eu nunca gostei de gibi. Eu leio bastante revista porque a
minha mãe sempre traz. Minha mãe todo dia traz uma revista, aí eu vou lá, vou
virando as folhas para ver o que tem. Eu vou passando e aquilo que me interessar eu
vou ler. Acho que é Viva, aquela que fala sobre os famosos. Tem tudo lá. Ela lê
bastante revista e jornal também. Ela lê a Folha de São Paulo. Eu olho, assim, às
vezes. Tem aquelas tirinhas, né, aí dependendo da tirinha eu vou lá e vou ler. Agora,
aquelas outras partes eu não vou ler (Mariana).
O excerto de Mariana deixa ver a importância da mãe para que ela conheça outros
impressos além daqueles indicados pela escola. É o hábito de leitura que a mãe tem que a
impulsiona a conhecer como funciona o jornal, por exemplo, e a descobrir que ela gosta de ler
184
as tirinhas. O trecho reforça, ainda, a preferência que os adolescentes têm por publicações que
tratam de seus artistas favoritos. Em estudo anterior já havíamos notado o quanto os laços
entre mulheres muita próximas, como mães e filhas, podem ser predominantes para a
formação de novas leitoras (AMPARO, 2012). A relação que Amanda estabelece com sua
mãe por meio dos livros é muito significativa nesse processo. Além das relações familiares,
outra fonte importante de informação e entretenimento dos alunos são a televisão e a internet:
Jornal. Mas eu também assisto jornal. Vejo bastante na internet… Meu face, o site
da Malhação, aí depois eu fico no site de notícias do Terra, da Globo (Amanda).
[Na internet] Eu gosto de ver só sobre o Muay Thay mesmo. Eu entro no Facebook,
assim (Paulo).
Aqui vemos uma circularidade entre revistas, indústria musical e literária para a
formação das preferências de leitura. Christian Baudelot e François Leclercq (2005) afirmam
que nas últimas décadas o centro de gravidade das práticas culturais está passando para o
audiovisual, sobretudo entre os jovens. Com o surgimento dos smartphone, poderíamos dizer
que isso fica ainda mais predominante, conforme as observações das aulas parecem atestar.
Ao selecionar apenas as preferências dos alunos entrevistados com relação aos livros,
notamos uma polarização entre os títulos conhecidos na escola, aqueles que constituem o
cânone escolar, os livros infanto-juvenis, os volumes de autoajuda/religiosos e, por fim, os
best-sellers. Em sua pesquisa acerca das práticas de leitura dos alunos de ensino médio,
Gabriela Rodella de Oliveira (2013) também notou a presença de títulos variados entre as
preferências dos jovens. No que se refere aos títulos do cânone escolar, os livros e textos lidos
em 2015, durante nossa pesquisa de campo, foram os mais citados e, assim, O Diário de Anne
Frank, Dom Quixote e O cachorro Canibal, por exemplo, foram lembrados. A quase ausência
de outros títulos conhecidos em diferentes momentos da escolarização parece nos apontar que
as indicações escolares fazem sentido apenas no momento da escolarização, quando os alunos
fazem uso do material. Somente Adriana e Mariana citaram outros exemplos de livros.
Mariana menciona volumes que estiveram envolvidos em práticas pedagógicas positivas em
sua trajetória e Adriana trabalhava na biblioteca, o que lhe rendeu maior aproximação ao
universo literário. Outro caso significativo é o de Paulo e Luana. Apesar de almejar se tornar
leitora-leitora, as experiências escolares de Luana são pouco eficientes, de acordo com sua
perspectiva. Nesse sentido, ela menciona apenas livros infanto-juvenis e aqueles presentes no
cânone escolar. Paulo, cujas situações escolar e familiar distanciam-no do universo literário,
185
& CARTIER, 1998). Como vimos anteriormente, os alunos atribuem significados aos livros
em função de atributos como capas, quantidade de páginas, dimensões, enfim, uma lógica de
classificação literária que não corresponde à prevista no universo acadêmico. Porém, ela
ganha espaço entre as práticas escolares, pois a descrição das aulas permitiu-nos conhecer
uma matriz socializadora que se concretiza pelo contato com textos e autores desconectados,
principalmente, no ensino médio regular. Gregório de Matos, por exemplo, não foi associado
em momento algum a alguma obra que tenha produzido. Já a lógica das grandes livrarias,
sobretudo no que se refere ao best-seller, tem como característica o investimento em aspectos
de cobertura dos livros que identifiquem as coleções e sagas, as quais são reconhecidas pelos
alunos por sua identidade (CHARTIER, 1991). Ainda sobre o universo do best-seller, os
autores mais lembrados são aqueles que se tornaram ídolos dos adolescentes, como John
Green e Nicholas Spark. Os autores correspondentes ao cânone escolar são lembrados quando
fizeram parte de experiências de escolarização positivas.
Quando comparados, por meio das enquetes, a outros alunos do ensino médio, vemos
que esta tendência se mantém. Existe um grande predomínio do best-seller em comparação
aos títulos presentes no cânone escolar, como o gráfico a seguir demonstra ao contar o
187
número de menções a títulos correspondentes a cada classificação criadas por nós15. Vemos
que os títulos de autoajuda são menos citados que os escolares, porém o best-seller é
incomparavelmente superior em número de citações.
15
Os quadros com a descrição dos títulos mencionados encontram-se ao final dessa seção.
188
ordenação temporal dos movimentos artísticos. Nesse sentido, podemos inferir que a
construção de um patrimônio cultural, o que exige maior estabilidade nas ações escolares, não
se concretiza entre as práticas de ensino que conhecemos e, portanto, as professoras e os
alunos têm dificuldade de identificação com os títulos consagrados na escola. Assim, as ações
escolares não se mostram de maneira mais presente nos depoimentos dos estudantes. Em todo
caso, vale ressaltar que o inconsciente escolar, ao preservar um conjunto de autores do cânone
escolar, ao fazer poucas concessões às práticas de leitura dos alunos presentes no ensino
médio, parecem contribuir de alguma forma para a desvalorização da literatura enquanto
forma de conhecimento válido para o cotidiano dos alunos.
No que se refere ao best-seller, existe o predomínio de autores estrangeiros. Para além
dos autores citados anteriormente, chamou nossa atenção a presença de livros decorrentes de
blogs e youtubers. Neste caso enquadram-se Vinicius Campos, Isabela Freitas e Marina
Barbieri, que produziram livros a partir de seus blogs, canais do youtube e programas de
televisão com conteúdo que versa sobre o comportamento de homens e mulheres a respeito de
relações amorosas em perspectiva autobiográfica ou em linguagem em circulação nas redes
sociais. Com relação aos autores brasileiros, os nomes mencionados acima são os únicos
citados, pois há o predomínio de autores estrangeiros. Notamos também a presença de
coleções de romances sentimentais, como a saga A Seleção, de Kiera Cass, jovem escritora
norte-americana conhecida por ter beijado catorze homens em sua vida, sem que nenhum
deles fosse seu príncipe16. As publicações de romances para mulheres mostram-se, assim,
como uma prática reiterada ao longo do tempo, pois mesmo Clair demonstra ter tido contato
com esse tipo de publicação em outro momento de sua vida:
Já li muito. Eu tinha até esquecido isso (risos). Você perguntou se eu lia outros
livros e eu esqueci. Eu lia muitos... Quando eu tinha uns 23, 24 mais ou menos. Eu
já estava em São Paulo quando eu comecei a entrar em contato esses livros… acho
que através das amigas, conhecidas. A minha mãe gosta muito de ler e a minha irmã
ela ganhou uma caixa cheia desses livros de uma ex-patroa dela. Acho que foi. E aí
tinha um montão de livro. Tinha livro, assim, a “dar à rodo”. Aí minha mãe deu uns
para ler e minha irmã deu uns para a gente. Eu lembro que eu li, mas não gosto. Na
época, sim, esses romancezinhos assim, água com açúcar, já não me agradam.
(risos) acho que no tempo que eu era iludida como mulher eu gostava (risos).
(Clair).
16
Em sites e na página da autora pertencente à Companhia das Letras, editora que tem o direito de venda dos
seus livros no Brasil, repetem essa frase para criar uma imagem da escrita associada à procura pelo homem
perfeito. Disponível em: <https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=03180>. Acesso em: 06
fev. 2018.
189
Outros autores que apresentam conteúdo amoroso presentes na lista são Becca
Fitzpatrick, Nicholas Sparks, John Green. É importante notar que essas publicações chegam
às leitoras, jovens ou mais velhas, por meio de outras mulheres e, com isso, os livros atuam
como formas de sociabilidade que, por sua vez, articulam modos de compreensão de si e dos
papéis sociais ao se inserir nos laços entre as leitoras (AMPARO, 2012). Notamos igualmente
a presença de livros vindos dos vídeo games, como é o caso de Assassin’s creed. A
característica dos títulos preferidos pelos alunos é a sua circulação pela cultura de massas. Os
estudantes que entrevistamos estão imersos nesse universo, como é o caso de Adriana:
Então, meu escritor predileto é o Rick Riordan, que é o de Percy Jackson, o Nicholas
Sparks e o John Green…. Esse Rick Riordan, eu sou apaixonada nesse Percy
Jackson. Meu livro preferido, o Percy Jackson. John Green, A culpa é das estrelas
(Adriana).
[Eu li]A culpa é das estrelas e depois eu assisti o filme. Eu gostei do livro inteiro.
(Amanda).
aprendizagem nas relações entre pais e filhos. Verificamos o predomínio dos discursos
protestantes, pois os livros de Edir Macedo e Renato Cardoso, membros dessa vertente
religiosa, estão entre os autores citados. A respeito dos livros de autoajuda, acompanhemos os
depoimentos de Karina e Clair:
Mas eles também entravam na parte espiritual, viu? [risos] esse 10 passos para a
prosperidade era para aprender como se dar bem na vida, financeiramente, mas eles
explicavam muito o plano espiritual. (...)Foram. Sabe por quê? Só tem palavras
positivas. Um dia vai lá e escolhe um livro para você. Esse Dinamize sua
capacidade, nossa, foi muito importante na minha vida também. Muito importante
(Karina).
Vemos aqui as alunas buscando livros que proporcionem algum sentido para suas
vidas. A leitura, nesse caso, pode ter adquirido o sentido de evasão (MAUGER, POLIAK,
1998). É importante mencionar que, entre as pessoas entrevistadas, Karina e Clair são aquelas
que mais tiveram dificuldades financeiras e familiares.
As referências do espaço virtual, como vimos, também são predominantes entre os
alunos. Por meio das entrevistas e enquetes, entramos em contato com um grande conjunto de
páginas visitadas pelos alunos. Com vistas a melhor compreender esse universo, ele foi
classificado em quatro categorias: Mangás, games e música; Redes sociais/ e-mail; Notícias e
curiosidades; e Comportamento/ religioso17. Predomina entre os alunos a circulação por redes
sociais, sobretudo o Facebook e o Instagram, mas também consideramos, nesse caso, o
Youtube. Pesquisas feitas nos últimos anos, como as de Gabriela Rodella de Oliveira (2013) e
Alexandre Barbosa Pereira (2010) reiteram a insistência com que os alunos circulam por tais
espaços virtuais, configurando modos de organização da linguagem e concepções sobre os
textos a partir deles.
Quanto às informações cotidianas, notamos que os alunos acessam sites de portais de
notícias, principalmente G1.com, Globoesporte.com, e Veja.com.br, com notícias gerais e
sobre esportes. Predominam, porém, os sites de fofoca e de curiosidade sobre culinária,
divulgação científica, como Fatos Curiosos e Mega Curioso. Essa opção liga-se aos sites
classificados como de Estudo. Os alunos buscam muitas informações sobre ciência e outras
17
As descrições dos sites citados pelos alunos estão no final desta seção
191
Cânone escolar
Título/ autor(a) Quantidade de citações
1 Auto da barca do inferno - Gil Vicente 1
2 1984 - George Orwell 1
3 A droga da obediência – Pedro Bandeira 1
4 A hora da estrela – Clarice Lispector 3
5 Capitães de Areia – Jorge Amado 1
6 Dom Quixote – Miguel de Cervantes 2
7 Histórias mal-assombradas de Portugal e Espanha - 5
Adriano Messias e Alexandre Teles
8 Iracema – José de Alencar 2
9 Laranja Mecânica – Anthony Burgess 1
10 Lolita – Vladimir Nabokov 2
11 Memória de um sargento de milícias - Manuel Antônio 1
de Almeida
12 Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de 1
Assis
13 Morro dos ventos uivantes - Emily Brontë 1
14 Morte e vida Severina – João Cabral de Melo Neto 1
15 O Diário de Anne Frank – Anne Frank 4
16 O guarani – José de Alencar 2
17 Robin Hood – Alexandre Dumas 1
18 Til - José de Alencar 1
19 Vidas Secas - Graciliano Ramos 5
Autoajuda/religiosos/ autobiografias
Título/ autor(a) Quantidade de citações
1 Atitude alpha 2.0 - Renato Alves 1
2 Bíblia 4
3 Casamento blindado - Renato Cardoso 1
4 Código de Atração – Eduardo Santorini 1
5 Fique com alguém que não tenha dúvidas – Marina 1
Barbieri
6 Nos passos de Jesus - Edir Macedo 1
7 Não pergunte se ele estudou - Renato Alves 1
8 Nunca deixe de tentar – Michael Jordan 1
9 O Desígnio – Mike Murdock 1
10 O código da inteligência – Augusto Cury 1
11 O segredo – Lucy Rocha 1
12 Primeiro passo para a eternidade – Justin Bieber 1
13 Segredos dos gênios - Renato Alves 1
194
Best-seller
Título/ autor(a) Quantidade de
citações
1 #sqn – Vinícius Campos * 1
2 As aventuras de Pi – Yann Martel 1
3 As crônicas de gelo e fogo - George R. R. Martin 1
4 As vantagens de ser invisível - Stephen Chbosky 1
5 A cabana - William P. Young 3
6 As crônicas de gelo e fogo (trilogia) – George R.R. 1
Martin
7 A culpa é das estrelas /The fault is in our stars - John 7
Green
8 A elite - Kiera Cass 1
9 A Seleção - Kiera Cass 1
10 A fantástica fábrica de chocolates – Roald Dahl 1
11 A garota que eu quero - Markus Zusak 1
12 À primeira vista - Nicholas Sparks 1
13 A probabilidade estatística do amor à primeira vista - 1
Jennifer E. Smith
14 A revolução dos bichos - George Orwell 1
15 Assassin’s creed unit – Anton Gill 1
16 Batman – O silêncio Parte 1 e 2 - Geoff Johns 1
17 Caçadores de bruxas (coleção) - Raphael Draccon 1
18 Carta de amor aos mortos - Ava Dellaira 1
19 Cidades de Papel - John Green 3
20 Como eu era antes de você - Jojo Moyes 4
21 Divergente - Veronica Roth 1
22 Garota de vidro - LAURIE HALSE ANDERSON 1
23 Gelo negro - Becca Fitzpatrick 3
24 It – Stephen King 1
25 Harry Potter - J. K. Rowling 2
26 Jogos Vorazes - Suzanne Collins 2
27 Louco por você - Jasinda Wilder 1
28 Louca por você - A.C. Meyer 1
29 Lua de larvas – Sally Gardner 1
30 Marley e eu - John Grogan 1
31 Não se apega, não - Isabela Freitas* 2
32 Não se iluda, não - Isabela Freitas* 1
33 O andarilho das sombras - Eduardo Kasse 1
34 O diário de um banana - Jeff Kinney 1
35 O filho de Netuno - Rick Riordan 1
36 O guarda – Kiera Cass 1
37 O Hobbit – J. R. R. Tolkien 2
38 Os imortais - Alyson Noël 1
39 O lado bom da vida - Matthew Quick 1
40 O menino do pijama listrado – John Boyne 1
41 O melhor de mim - Nicholas Sparks 1
42 O reino das vozes que não se calam - Carolina 1
Munhóz e Sophia Abrahão
43 O vale dos anjos – Leandro Schulai 1
195
Notícias e curiosidades
Páginas citadas Quantidade de citações
Globo Esporte 4
G1.com 4
Veja 1
Fatos desconhecidos 2
Sites de receitas 1
Sites de fofocas 1
Mega curioso 1
197
Comportamento/ religioso
Páginas citadas Quantidade de citações
Tutoriais de maquiagem 1
Omelete 1
João Bidu 1
Capricho 5
Jáfostes.com 1
Um quarto de palavras 1
Boca rosa 1
5 minutos – Kéfera (Youtube) 1
Fonte a Jorrar (blog) 1
Edir Macedo (blog) 1
Depois dos quinze 1
Vistase.com 1
Namoro blindado (blog) 1
Blogs de culinária 1
Estudo
Páginas citadas Quantidade de citações
Guia do Estudante 2
Hypscience 1
Desciclopédia 1
Wikipedia 1
Sites de história 1
198
4.3 A escola é uma esteira: o futuro sem sentido da leitura e dos alunos
Diante das diferenças entre as suas práticas de leitura e a imagem do bom leitor
construída na escola e defendida pelas professoras, os alunos não se sentem distanciados
apenas da disciplina, como também qualificam de modo negativo a experiência de
escolarização. O tempo gasto no interior da escola vem aumentando progressivamente no
Brasil e em outras partes do mundo. Este período da vida de crianças e jovens é visto
comumente como um momento de preparação para o futuro, ou seja, para o trabalho e vida
em sociedade (PERRENOUD, 1995). De modo a realizar tal preparação, a escola é
organizada não apenas em função de seu período obrigatório, mas de programações anuais,
mensais e diárias que têm por função a construção de uma ordem temporal que torna as
experiências internas do tempo conformadas ao tempo público (BOURDIEU, 2014). Ao
manter os jovens na escola pelo período legitimamente construído para a sua preparação
(GALLEGO, 2008), é preciso haver um sentido para que se aguarde, por exemplo, 12 anos
pelo término dos estudos, ou seja, para que se considere aos olhos da sociedade alguém
formado e preparado para a vida. Logo, a questão dos sentidos da escolarização é fundamental
para que se compreendam as relações que os alunos mantêm com a escola.
Philippe Perrenoud (1995) argumenta que poucas pessoas conseguem se resignar ao
non-sens. Assim, os alunos e, possivelmente, os professores buscam constituir sentidos para a
permanência na escola. Por conseguinte, o sentido das experiências de escolarização tem
relação com as disposições dos alunos e o quanto escola pode atender às perspectivas
socialmente geradas com relação às aprendizagens possíveis. Entre os alunos entrevistados,
percebemos perspectivas variadas com relação à escola, como a aprovação em vestibular
muito concorrido, o aprendizado do convívio social, a preparação para o trabalho e o
desenvolvimento de boas formas de escrita e leitura. No entanto, apesar de alguns alunos
notarem que têm suas expectativas atendidas, a maioria deles demonstra que a escolarização
não serve para nada, sobretudo quando ela foi prolongada, como ocorre atualmente. Por essa
razão, o tempo gasto na escola parece perdido ou, nas palavras de Luana, o período de
escolarização é experimentado como uma esteira rolante. Como em uma esteira, ela
permanece parada enquanto é lentamente transportada de um lugar ao outro. Apesar desse
deslocamento, não ocorre qualquer alteração, uma vez que física e cognitivamente
permanecemos da mesma forma. Evidentemente, não é possível sustentar a afirmação de que
se passam 12 anos na escola sem que se tenha aprendido nada; entretanto, ao construir essa
imagem, a aluna evidencia o quanto a escola pode estar distante de suas expectativas.
199
Pierre Bourdieu (2013b) salienta que em seu trabalho de formação a escola precisa
destruir um mundo de modo a criar outro. Logo, na tarefa de favorecer determinadas relações
com a cultura, é necessário que se efetive uma espécie de desarticulação das lógicas e
inteligibilidades familiares com vistas a produzir uma nova articulação em função das
relações com a linguagem, modos de classificação e hierarquização cultural. As relações entre
professoras e alunos no espaço escolar parecem nos indicar que este trabalho de
desarticulação e nova articulação do mundo cultural de nossos entrevistados é feito de
maneira problemática, pois existem diversos sentidos e traduções culturais que implodem a
coerência que esses movimentos parecem ter na descrição do autor francês. Compreendemos
que, ao destruir um mundo, o modo de funcionamento escolar - com suas regras, sistema de
ensino ramificado, condições de trabalho e formação docente - tem dificuldade de manter
inteireza o suficiente para se criar outro. Assim, existe um espaço de conflito entre a escola e
os alunos à medida que, como vimos ao longo do capítulo, eles vivem em um mundo cultural
cujos códigos são diferentes dos escolares. Uma vez perdido o contato cultural entre os alunos
e a escola, a escolarização prolongada parece não ter sentido ou é desnecessária. Vejamos, a
seguir, como isso acontece.
A utilização da negação para falar sobre o que aprenderam daquilo que foi explorado
em sala de aula coloca em evidência a insegurança experimentada pelos alunos. Ao se referir
ao modo como fez o trabalho sobre o Barroco, Paulo evidencia uma cultura formada por
200
indivíduos que têm o mesmo ofício que ele, a saber, os alunos (PERRENOUD, 1995). Diante
de uma relação distanciada com o objeto de ensino, as atividades escolares proporcionam a
descoberta da existência de estilos literários e autores; no entanto, não permite que seja
possível atribuir significados a eles:
A gente até fez um trabalho. A gente não aprendeu sobre ele [o Barroco], a gente
teve que fazer um trabalho sobre ele (Mariana).
A aluna indica, assim como Paulo, que prática e aprendizagem estão separadas. Reside
aí uma contradição, pois, como sustenta André Chervel (2001), as atividades escolares
propiciam a ginástica mental necessária à incorporação dos saberes escolares. Adriana deixa
evidente a percepção de que existe um vocabulário específico para falar das obras literárias,
porém ela não o domina. A dúvida quanto à exatidão de suas ações e a separação entre elas e
a modificação de suas percepções sobre os assuntos abordados é um dos pilares da sensação
de ausência de sentidos na escolarização. Karina insiste sobre isso quando fala sobre a
dificuldade de manter a leitura de alguns livros:
leitura. Diante disso, elas parecem reproduzir tal relação com a cultura. Este jogo, no entanto,
não é confortável para os alunos. As abordagens pedagógicas mais eficientes, de acordo com
seus depoimentos, dizem respeito a situações nas quais os professores conseguem produzir
contatos com os interesses e preferências dos alunos:
[...] na sétima série, o professor de Português, ele contou o Conto do gato preto, do
Edgar Allan Poe. Ele contou de um jeito que a sala toda se interessou por ler, a sala
toda. Vinha filas, filas de espera para o livro dele. Filas. Tipo, do jeito que ele
contou, interessou a gente completamente e a gente lendo, a gente via que não era
exatamente como ele contou, mas do mesmo jeito foi interessante (Adriana).
Eu acho que, eu mesma, tenho uma facilidade que eu não... quando eu leio ali
escrito, eu não, eu não aprendo muito. Quando a pessoa fala que eu aprendo mais, eu
tenho essa facilidade. Quando tem a pessoa falando (Adriana).
Com a [aula] de Português [eu ficaria] porque eu acho que precisa, mas eu não uso,
mas eu acho que tem que ter (Paulo).
Até aprendi, mas eu não gosto. Eu finjo que eu não aprendi, eu só boto
conhecimento na prova (Mariana).
O [processo seletivo] da ETEC eu fiz para fazer o ensino médio. Mas eu não fiz para
passar, eu fiz mais para ver como funciona para quando eu quiser fazer um ENEM
eu não ficar aquele “meu Deus, o que é isso?” Para preparar mais. Só o da Nossa
Senhora da Lapa era ensino técnico com o ensino médio. Mas eu não consegui
passar. Fiquei com 35% só. As matérias que eu consegui esses 35%, eu sei o quanto
eu me matei para conseguir. Foi assistindo videoaula, foi na internet. Eu sei o quanto
me esforcei para não conseguir... eu deveria ter conseguido, na minha concepção, eu
só aceitaria se eu conseguisse 80%, pelo menos. Eu vou lá e vejo em 35!
Desencoraja. Meu Deus, o que vai ser de mim daqui dois anos? E agora é um ano só.
É horrível, a gente fica se sentindo meio impotente (Luana).
Quase nada. Nas duas coisas que eu quero fazer, [a escola não ajuda] em nada
(Paulo).
As ponderações dos alunos indicam que eles não têm acesso a um saber capaz de se
relacionar às suas maneiras de compreender a cultura e, ao mesmo tempo, eles também não
conseguem produzir relações entre tal conhecimento e seus projetos futuros. A produção de
elos entre o que é ensinado na escola, as experiências dos alunos e projetos de futuro
precisariam estar melhor articulados no processo de escolarização.
para escola, também pode variar de professor para professor. Dessa forma, na aula de
Geografia ou História os alunos podem identificar circunstâncias mais formativas.
Sabemos que não é possível realizar atividades de aprendizagem durante todo o tempo
em que se fica na escola, como afirma Philippe Perrenoud (1995). No entanto, nas aulas
observadas, muitas vezes essa ideia parece ganhar maiores consequências. Assim
observamos:
A ideia do tempo escolar com sentido formativo parece se inverter e as atividades tem
a função de fazer com que o tempo passe. Nas circunstâncias em que isso não fica claro, o
pressuposto parece estar presente nas relações entre alunos e professores durante as aulas. A
organização escolar parece incentivar essa sensação:
Entra na sala a mediadora da escola para pedir aos alunos com mais de três notas
vermelhas para procurar o professor da disciplina e pedir um trabalho. Ela continua
explicando que um aluno que tenha sete notas vermelhas pode repor. Ela está com
uma lista dos alunos nessa situação. Os alunos pedem para ela não ler o nome em
voz alta. Contudo, ela lê os nomes. Depois de citar o nome de um aluno com 7 notas
vermelhas diz: “Esse aluno tá todo lascado, coitado”. Sobre outro aluno diz, “Tem
sete faltas, mas dá para repor”. Ao final, cerca de 15 anos tem pelo menos três notas
vermelhas, sendo que a maioria tem mais que 5
localizadas entre as mais concorridas, a aluna se sente indignada. Essa posição gera a vontade
de faltar e de se ausentar das aulas. Algumas de suas frases expressam o que sente:
Não é uma rebeldia, é uma raiva que dá (Luana).
Eu quero me formar na escola, mas eu não quero ir [à escola] (Luana).
Paulo e Amanda demonstram duas formas de sentir indiferença com relação à escola. O
primeiro compreende que a escolarização não poderá lhe render nada. Diante disso, ele não se
sente revoltado, mas sim indiferente. Ele encontra maneiras de ocupar o espaço
silenciosamente e sem chamar a atenção. Por meio de sua estratégia de realização das
atividades, procura passar pelo tempo ainda necessário à escolarização sem ser importunado,
assim como não importuna a professora ou os colegas.
Amanda também não parece identificar sentidos para a escolarização para além da
obrigatoriedade de os adolescentes estarem nesse local e das aspirações de seus pais. O fato
de ter sido reprovada em um processo seletivo ou de não compreender os conteúdos não lhe
exaspera, exceto se isso causar reprimenda por parte de seus responsáveis.
Tem coisas que eu não entendo bulhufas. Eu não lembro direito o quê, mas, por
exemplo, a parte do radical entendi. Tomara que eu tire mais do que 5 se não minha
mãe me mata (Amanda).
Eu acho que na verdade eu acordei. Ter voltado para a escola fez eu acordar como
pessoa, tipo “Eu posso aprender, eu sei. Eu ainda consigo aprender” (Clair).
Esse ano, eu estudei o3º [ano], mas eu não pude absorver nada (Karina).
Mariana não está revoltada e tampouco está satisfeita com a escolarização. Diante
disso, ela não se rebela, porém parece querer dar de volta a indiferença com a qual a escola a
trata. A incorporação da visão de si como alguém que não consegue “guardar” o que lhe é
ensinado oscila com o desdém demonstrado por ela.
É que eu sou o tipo de pessoa que esquece muito rápido das coisas (Mariana).
Até aprendi, mas eu não gosto. Eu finjo que eu não aprendi, eu só boto
conhecimento na prova (Mariana).
● Posição compreensiva
Adriana foi a única aluna a manter uma posição de compreensão das interações
mantidas dentro da escola. Ela notou algumas limitações, porém buscou situá-las entre as
injunções da instituição. Ela sugere que a presença de alunos que não compreendem o jogo
escolar produz certas especificidades aos saberes a serem explorados na escola. Como
resultado, ela parece aceitar que vai aprender o que for possível e, depois do ensino médio,
procurará outras maneiras de ter acesso os conhecimentos necessários ao vestibular.
O ensino é bom, mas você percebe que ele podia ser melhor, mas tem aqueles alunos
que acabam, que eles não conseguem compreender e eles acabam deixando aquilo...
a gente não tem tempo de aprender o necessário, a gente tem só o básico (Adriana).
As posições descritas acima não esgotam as possibilidades que uma sala de aula pode
comportar, entretanto, tais imagens nos servem para dar visibilidade a alguns ângulos de
refração possíveis para as experiências de escolarização verificadas na Escola 1 e na Escola 2.
No espaço entre as expectativas de futuro, disposições culturais e organizações escolares,
percebemos a construção de significações para a escola a partir de relações objetivamente
instauradas. As imagens também indicam a fragmentação verificada em sala de aula. No
208
início de nosso trabalho procuramos indicar que a sala de aula é composta por diferentes
frações de classe que trazem possibilidades diversas para a produção de engajamentos
escolares e, acreditamos, este é um dos elementos que podem gerar experiências de
escolarização tão diversas.
* * *
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No estudo acerca dos discursos sobre a leitura produzidos na França entre 1880 e
1980, Jean Hébrard e Anne-Marie Chartier (1995) fazem a pergunta em epígrafe já no último
capítulo da extensa obra. Após acompanharem mudanças significativas nas compreensões
sociais e escolares dos sentidos da leitura, os autores se perguntam se ela tem relevância como
parte do que se pode considerar a “cultura” francesa no presente. No volume referido acima e
também em outros artigos, Anne-Marie Chartier (1995) discutiu o fato de mudanças sociais,
tais como a ampliação da alfabetização, expansão dos sistemas de ensino e novas
compreensões da função da leitura terem provocado alterações nas articulações entre ela e a
cultura. No caso francês, a escola republicana foi ancorada no binômio literatura e cultura
geral, conjugação que forneceu um dos pilares de seu sentido social. No entanto, as explosões
demográficas e o surgimento da cultura de massa impuseram novos tipos de leitura e, assim,
desfizeram para refazerem os papéis desempenhados por ela. Desse modo, a busca pelos
endereçamentos sociais que a literatura escolarizada poderia gerar é aspecto significativo para
a compreensão dos problemas relacionados a ela.
Quando nos propusemos a investigar as disputas pela leitura legítima de obras
literárias, de certo modo, também tratamos das possibilidades de articulação da formação
escolar e suas repercussões para as professoras e alunos. As sugestões de autores como Pierre
Bourdieu e Bernard Lahire acerca do papel estruturante que a linguagem desempenha na
articulação do trabalho pedagógico bem como a certeza de que a leitura é um objeto de
disputa, ajudaram-nos a perceber que os acordos ou injunções do presente poderiam nos
auxiliar a compreender quais seriam os sentidos da literatura para o ensino médio hoje. Nossa
pesquisa de mestrado (AMPARO, 2012), como indicamos no capítulo 1, também nos
forneceu um certo tipo de aproximação à questão, pois pudemos identificar os efeitos que as
formas de classificação operadas na escola foram marcantes para as mulheres cujas leituras
investigamos. Nesse sentido, notamos que o tipo de educação a que se tem acesso pode
produzir afinidades com as obras artísticas assim como fornecer interpretações sociais,
incorporadas individualmente, acerca da linguagem literária. Assim, em um sentido positivo
ou negativo, fornecem chaves interpretativas das práticas de leitura individuais e, no limite,
210
das classificações sociais por meio da cultura, já que elas são aspectos de identificação e
diferenciação dos grupos em sociedades diferenciadas (CHARTIER, 1991a, 1991b).
De modo a nos aproximarmos dessas questões, selecionamos o caminho do cotidiano,
uma vez que ele efetiva a síntese dos problemas em questão e, assim, produz as inúmeras
determinações do que se pode considerar como o problema da leitura de obras literárias no
presente. Procuramos construir teoricamente e metodologicamente a cotidianidade como algo
temporal e socialmente estruturado em diálogo com autores como José Mário Pires Azanha,
Pierre Bourdieu, Dominique Julia e Régine Sirota. A partir daí, tomamos dois caminhos
investigativos. Por um lado, construímos um espaço cruzado por temporalidades que
sintetizam diferentes diretrizes e sentidos atribuídos às obras literárias. Evidenciamos que a
articulação desses elementos depende da apropriação feita pelas professoras em seu trabalho
cotidiano. Por outro lado, a sala de aula e seu dia a dia são constituídos por pessoas cujas
posições sociais produzem diversos ângulos de refração aos tempos escolares e à cultura
legítima. Para nós, foi muito importante a compreensão de que as práticas pedagógicas são
sínteses de disputas sociais reapresentadas por meio da lógica educacional (SIROTA, 1988).
De modo a concretizar tal abordagem, recorremos ao conceito de inconsciente escolar,
tal qual proposto por Pierre Bourdieu (2013a) para definir as estruturas cognitivas que
produzem a realidade. Ao se referir a um transcendente histórico, o autor nos propõe a
compreensão dessa dimensão da história incorporada que produz o senso comum ou as ideias
impensadas, porque consideradas evidentes. Por meio da relação entre o presente e os
diversos traços do passado da qual se depreendem as estruturas cognitivas em circulação,
procuramos situar, nos limites propostos na pesquisa, as disputas pela leitura legítima de
obras literárias. Assim, os ritmos e regularidades escolares e sociais deram os contornos à
cultura cotidiana.
Por meio do crivo estabelecido pelo inconsciente escolar, operam-se as classificações
das práticas culturais dos alunos e também das professoras, de modo a se produzir a
socialização nas instituições de ensino. Diríamos que a escola exerce uma força centrífuga
que ao girar, ou melhor, ao ser praticada, atrai as disposições culturais dos professores, alunos
e outros agentes, ao mesmo tempo em que as reclassifica, dando sentidos tomados como
gerais ou como destinos sociais por cada um deles. Devemos considerar, também, que
tomamos em nossa análise as características dadas pelas relações objetivamente instauradas
em duas instituições de ensino e, portanto, conhecemos sentidos possíveis dados nesses
espaços e nas circunstâncias vivenciadas ali. Conhecemos uma rede de ensino marcada pela
ramificação, a qual tem gerado uma tendência de diferentes vias de entrada e experiências
211
para os alunos. Entre as escolas técnicas, regulares em período normal e em tempo integral –
sem contarmos as instituições particulares – podemos inferir a possibilidade de modos
diferenciados de apropriação de estruturas cognitivas que podem gerar classificações
diferenciadas em função das condições pedagógicas, do recrutamento social de professores e
alunos e da estrutura física oferecida por elas.
A realidade que pudemos descrever está marcada pelos estranhamentos sociais dados
na cotidianidade entre alunos recrutados em frações da mesma classe social, cujos estilos de
vida diferem em suas práticas culturais e expectativas de escolarização. Por isso, os conflitos
entre eles são constantes. As professoras, cujas origens sociais são compartilhadas com os
alunos, buscam se diferenciar destes últimos quando assumem a posição docente. Como
consequência, ocorrem vários pequenos conflitos e mal-entendidos dinamizados pela força
centrífuga do cotidiano e suas imagens da cultura legítima.
A observação das aulas e entrevistas com professoras e alunos, bem como a análise
dos materiais didáticos e currículos em vigência, permitiu-nos elaborar uma imagem da matriz
socializadora escolar, isto é, das ações pedagógicas articuladas que fornecem perfis da
socialização no que se refere às relações com a leitura de obras literárias (LAHIRE, 2008).
Uma dimensão importante dessa matriz socializadora se refere ao fato de que ela é produzida
no próprio cotidiano e, assim, as professoras exercem papel fundamental para a produção
desse currículo criado na sala de aula pela articulação de suas disposições culturais e
conhecimentos disciplinares informados por estruturas cognitivas conhecidas nos cursos de
formação e entrada na profissão. Principalmente por meio de práticas ancoradas nos textos,
efetuam-se atividades de leitura, escrita e discussões orais que possibilitam a produção de
imagens da leitura de obras literárias, as quais evidenciam os seus desafios atuais.
Podemos iniciar a descrição do que dá conteúdo a essa matriz socializadora recorrendo
ao passado. Por meio de uma retomada da história da disciplina e de alguns currículos
notamos que o ensino médio tem um passado ligado à educação das elites por meio do
fornecimento de uma cultura geral, cujo perfil humanista teve papel central. Assim, esse nível
de ensino buscava legitimar, em consonância com o perfil social de seus alunos, uma relação
desinteressada com a literatura, baseada nos autores e títulos presentes no cânone escolar –
criados e legitimados pelas seletas e coletâneas. Na medida que, ao longo do século XX, o
ensino médio passa por momentos de expansão, o sentido formativo da leitura de obras
literárias foi modificado de modo a atender a grupos sociais mais amplos. Os sentidos sociais
presentes nos currículos e livros didáticos passam a estar associados à comunicação e
expressão, processo que têm início nos anos 1960 e vai se aprofundando. O ensino, que se dá
212
cada vez mais com o auxílio de livros didáticos que se estruturam geralmente pela presença de
textos, atividades de análise dos mesmo e exercícios gramaticais, volta-se para os aspectos
relativos aos usos dos materiais impressos. Os documentos curriculares paulistas dão a ver a
necessidade de se compreender não apenas o texto literário como ponto de partida das aulas,
mas também textos advindos da cultura de massas, como as propagandas, jornais, gibis, entre
outros. Essa mudança é significativa, uma vez que a disciplina foi se estruturando por meio da
relação com os autores clássicos e aqueles celebrados pela crítica literária, dispostos nos
livros didáticos e currículos.
A mudança de sentidos proposta às obras literárias, que passa de sua análise para uma
forma de suprir as necessidades formativas de grupos sociais cada vez mais amplos e das
referências sociais alargadas a respeito do que seriam os objetos de leitura, resultaram em
certo paradoxo. A análise de nossos dados demonstrou que, apesar dessas alterações, mantém-
se como esquema interpretativo uma imagem da boa leitura, caracterizada por uma das alunas
entrevistadas pela figura do leitor-leitor. Ele é caracterizado por alguém que realiza, em
silêncio, a leitura desinteressada – muitas vezes descrita como a leitura por prazer – de obras
de tamanhos variados e tem como ponto de partida apenas os grandes autores, os quais hoje
em dia permanecem nos livros didáticos e vestibulares, enfim, nos circuitos de legitimidade
escolar. Vemos, assim, que apesar das reconfigurações dos sentidos da leitura de obras
literárias, permanecem estruturas cognitivas repletas de significados que prolongam no
presente a ideia do ensino médio destinado às elites e sua relação com a cultura, pelo menos
no que se refere à imagem da boa leitura.
Diante de tais sentidos contrastantes no que se refere às obras literárias, vemos a sala
de aula ocupada por professoras e alunos e suas disposições culturais dissonantes, como
falamos anteriormente, em um sistema de ensino ramificado, produzindo negociações
cotidianas pelos sentidos e pelo que se pode compreender como a leitura legítima. Nesse jogo
acontecem ações constantes de classificação e reclassificação diante das imagens relativas à
boa relação com a literatura. Logo, as posições de professoras e alunos demonstram as
especificidades desses conflitos.
No que se refere às professoras, identificamos a ocupação de uma posição difícil, uma
vez que elas devem ser as representantes da relação com a linguagem presente nas prescrições
curriculares, livros didáticos e consensos atrelados à leitura. Em consonância à imagem do
leitor-leitor, elas precisaram incorporar tais sentidos, o que foi feito sobretudo nos espaços de
formação docente em cursos universitários e início do exercício profissional. Vimos que a
partir de disposições culturais e expectativas de escolarização variadas, Valquíria e Celeste
213
tipo de saber que não pode ser utilizado para que eles elaborem suas demandas cotidianas.
Isso indica que, cada um à sua maneira, Valquíria, Celeste e os alunos devem lidar com
esquemas interpretativos do universo literário que estão apartados de suas experiências. Como
Denice Barbara Catani (2010) nos indicou, esta é a característica das aproximações ao
conhecimento favorecidas em cursos de formação de professores em que os saberes não são
apresentados de maneira articulada às experiências dos profissionais em formação. Vemos o
quanto elas são duradouras, uma vez que são reproduzidas em suas práticas pedagógicas.
Afora as especificidades de suas posições, ambos lidam com hábitos de leitura
semelhantes. Como mencionamos no início do capítulo, as professoras são agentes da
expansão atual do ensino médio, porém elas próprias também são fruto de antigas ampliações
do ensino médio e universitário. Assim como os alunos, elas passaram por situações em que
suas representações culturais foram postas de lado ao incorporarem o arbítrio cultural. A
licenciatura bem como as prescrições estatais favorecem relação especializada com e leitura
de obras literárias a partir de conhecimentos advindos dos espaços acadêmicos. Nesse
trabalho pedagógico permeado pela violência simbólica em que se instaura o arbitrário
cultural (BOURDIEU,2014), as professoras incorporam a hierarquia cultural escolar ao preço
de efetuarem um jogo de esconder e mostrar suas inscrições sociais. Em função de suas
posições docentes, do que depende certo apagamento de suas práticas de leitura, as
professoras também geram tais modos de circulação no universo literário. Para isso, elas se
valem de práticas de ensino que as distanciam de suas representações de leitura em favor
daquela mais valorizada em seu espaço de trabalho.
Assim, na impossibilidade de poderem colocar suas experiências e modos de
compreensão da realidade em jogo, os alunos entendem a escolarização como algo sem
sentido. Essa sensação está relacionada a uma dada aproximação ao conhecimento, mas
também ao modo de estruturação do tempo. As observações de aula e as entrevistas
permitiram ver que a organização da jornada cotidiana não consegue atribuir sentidos para a
aprendizagem. Diante desse objeto de ensino, as atividades são articuladas sem que se torne
evidente seu sentido formativo, o que gera a sensação de tempo perdido. Para os alunos, as
aulas não produzem ganho de conhecimentos úteis, ou seja, aqueles que permitem revisitar
seus saberes e a elaboração de novos a serem utilizados no futuro.
A valorização exclusiva do leitor-leitor promove o apagamento e a desvalorização de
formas variadas de concepção do universo literário, sobretudo aquelas que passam ao largo
dos espaços mais valorizados no campo acadêmico. As práticas de leitura dos participantes de
pesquisa evidenciaram espaços de circulação literária marcados pelas livrarias pertencentes a
215
grandes redes situadas em shoppings centers, por livrarias de rua, por sebos e por bancas de
jornal – sem contar na troca de livros – que colocam em evidência os grandes centros de
comércio, as possibilidades oferecidas pelos caminhos percorridos para ir ao trabalho e pelos
passeios de final de semana. Em meio às práticas de sociabilidade constituídas nesses locais,
são produzidas maneiras de apropriação do universo literário. Um exemplo disso vem de
Luana, que não vê a necessidade de existirem bibliotecas e que não vê a compra de livros
como um bom investimento, já que a leitura se esvai no momento em que acaba.
Diferentemente do que a imagem do leitor-leitor sugere, delineiam-se leituras marcadas pelo
efêmero, logo, por experiências temporais diversas da imagem presente nos esquemas
interpretativos escolares. Além disso, os circuitos formados em torno de pessoas consagradas
no espaço virtual, por meio de blogs e sites, constituem referências literárias. Como se vê, o
universo de leituras dos alunos e das professoras é amplo, seguindo as lógicas de suas
trajetórias de vida e significados elaborados nessas circunstâncias. A escola tem, assim,
sentidos concorrentes no tocante às referências de leitura (CHARTIER & HÉBRARD, 1995)
e sua reação é marcada pela classificação de tais imagens como não-leituras e os alunos como
não-leitores.
Como a exposição feita até aqui deixa ver, os conflitos a respeito da leitura de obras
literárias não ocorrem de maneira polarizada entre professores e alunos. Identificamos
pequenos conflitos, muitas vezes apresentados como negociações, que nos permitem ver os
traços que definem o que está em jogo no que se refere às obras literárias. As maneiras de
apropriação de leitura favorecidas pela escola, como vimos, tornam os livros e autores
valorizados por ela os representantes de uma cultura que pouco implica os saberes e
expectativas de futuro dos estudantes. Apesar de notarmos essa relação com a leitura como
algo predominante, pudemos acompanhar uma circunstância em que observamos um
rompimento no perfil predominante da abordagem do texto literário. Ao final de nosso texto,
gostaríamos de apresentar essa circunstância, pois ela nos permite compreender o problema da
leitura de obras literárias a partir da apresentação de como ela concretiza os conflitos
encontrados em nossa pesquisa:
[...]
216
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Chego 10 minutos antes da aula começar e fico na sala dos professores, onde quatro
professores, dois homens e duas mulheres, já estavam. Elas conversam sobre um trabalho que
estão fazendo com os alunos, mas não consigo identificar do que se trata. Um dos professores
lê o jornal e o outro, impaciente, fica de um lado para o outro, até que se dirige ao computador
e começa a ler as notícias na tela.
A sala dos professores tem uma mesa ao centro, geladeira, uma mesinha ao fundo,
onde fica a cafeteira, sofá, televisão, computador e impressora; ao redor, nas paredes, os
armários de ferro estão identificados com o nome dos professores. Com o horário de troca de
aulas se aproximando, chegam outras duas professoras à sala. Uma delas é a professora
Márcia, que está muito agitada. Nesse dia ela entra mais tarde, às 9h50, pois vem do curso do
inglês que frequenta na Cultura Inglesa, no centro da cidade, graças a um convênio com o
Estado. Do centro até a escola o deslocamento é feito de trem, meio de transporte que a deixa
desconfortável, pois a faz passar mal.
O sinal toca e vamos juntas para a sala. Nesse primeiro dia de visita de observação,
espero ser a apresentada aos alunos, o que não acontece. Ao entrar na sala de aula,
encontramos os alunos dispostos em grupos. Parece que estão reunidos por afinidades
musicais e modos de se vestir. Eles ficam conversando, olhando os celulares - presentes nas
mãos de quase todos, assim como os fones de ouvido -, brincando, rindo, falando sobre seus
assuntos. A professora dispõe seus materiais na mesa e tenta falar com eles, sem muito
sucesso. Ela enfrenta dificuldades com a turma, que não a escuta e parece não tomar
conhecimento de sua presença.
Ela propõe iniciar a aula com uma atividade relacionada à Iniciação Científica, projeto
presente na E.E. Silvio Xavier. Para tanto, os alunos devem confeccionar um pôster para
expor a pesquisa que fizeram e a professora tenta orientá-los. Ela pede para que eles peguem
seu material relativo à pesquisa. Sem conseguir a atenção dos alunos, muda a estratégia e
245
Ela sai novamente e volta com um banner, que servirá de modelo para os alunos. Ela
explica que o banner deve ter título ou tema, o nome dos autores na ordem inversa, com o
sobrenome primeiro, seguido do nome. Os alunos não entendem o que isso quer dizer. A
professora, então, explica como isso funciona escrevendo na lousa o seu nome conforme as
orientações solicitadas para o banner. Um dos grupos é desfeito, pois seus integrantes estavam
fazendo muita bagunça durante a explicação. Ela pede para que um representante de cada
grupo vá até a lousa fotografar o banner. Enquanto isso, os alunos que brigaram são chamados
pela professora para fora da sala. A aula termina e vamos para outra turma.
Chego à sala de aula e percebo que a professora Márcia faltou. Uma professora
substituta está dando aula. Peço para que ela me deixe assistir à aula, ela consente, mas
adverte que sua aula é mais “light” por ser substituta. Ela diz que costuma passar “textinho na
lousa” e dar visto. Muitos alunos faltaram e a sala está mais silenciosa que ontem. Os alunos
estão organizados em grupos. Percebo que uma aluna copia a lição enquanto os outros
conversam, principalmente aqueles reunidos no canto direito da sala, e mexem no celular.
Em frente à mesa da professora há duas meninas e um menino; uma delas copia a lição
e os outros dois mexem no telefone. No canto direito da sala há outro grupo formado por
cinco alunos, três meninos e duas meninas. Sentados em círculo, em cima das carteiras e no
colo uns dos outros, conversam sobre festas, quem está ficando com quem, sobre música.
Ao lado da porta, seis estudantes, todos meninos, brincam e brigam entre eles. Passado um
tempo, dois desses alunos começam a copiar a lição. Reparo em um aluno no fundo da sala,
próximo ao armário da professora, que copia a lição sozinho. Depois descubro que se trata de
um aluno com muitas notas vermelhas e que passará a frequentar o EJA no próximo ano.
A professora copia a lição na lousa e avisa que seu conteúdo ainda não foi dado pela
professora Márcia, mas ela resolveu adiantá-lo. Ao terminar de escrever nas três partes em
que dividiu a lousa, apaga a primeira parte e recomeça a passar a lição. Uma aluna pergunta à
professora se o Largo da Matriz é longe, ela diz que não. O grupo situado no canto esquerdo
da sala volta a conversar e fala do baile funk que vai acontecer no Largo da Matriz. Uma
aluna fala que não vai ao baile funk, que existem outras coisas além disso.
A professora continua a conversar com as meninas sentadas perto dela. Falam sobre
casamento. Uma aluna diz que gostaria de se casar. A professora pergunta se ela quer ser
sustentada pelo marido, ela diz não.
A aula acaba e a professora sai da sala. Como ela precisa ir à sala de reforço, não vai
substituir a professora Márcia na outra turma, que é, então, dispensada.
Sônia começa a passar a lição na lousa sem dar instruções sobre o que vai fazer. Ao
perceber que os alunos não copiavam, foi passando de grupo em grupo e conversando com
eles para que copiassem a lição. A ação tem efeito e a maioria dos alunos começa a copiar.
Chegam duas alunas que estavam fazendo um trabalho de Sociologia fora da sala. Ao se
sentarem, um aluno pede a elas para que incluam seu nome no trabalho, mas descobre que
este é individual.
Escuto o som dos jogos de celular. Enquanto isso a professora começa a fazer
chamada. Um aluno brinca que é preciso benzer a sala porque alguns de seus colegas fazem
macumba.
aluna, Jaqueline, canta enquanto copia a lição: “Dá uma empinadinha”, “Beijo na boca é coisa
do passado”. Jaqueline me vê escrevendo e acha estranho, já que eu sou professora. Eu brinco
que sou boa aula e um aluno do fundo da sala diz que eu deveria escrever sobre eles. Digo que
já estou fazendo isso, eles ficam espantados e dão risada .
Chego à sala e o sinal já bateu. Tento entrar, mas a porta está trancada. Bato, mas não
abrem. Depois de alguns minutos chegam duas alunas, que dizem que a professora sempre faz
isso. A porta é aberta, cumprimento a professora. Sento na primeira fileira, perto dela, e ela
me pergunta se continuarei indo às aulas. Digo que sim, se ela não se importar. Ela diz que
não. Vira-se para a turma e fala que vai passar a atividade avaliativa em grupo.
Esse trabalho “tem a ver com o Barroco, do trabalho que vocês estão fazendo”, ela diz,
explicando a eles que o Barraco é uma arte imperfeita, ligada à arte literária. Os alunos terão
que responder as questões a partir da leitura do texto. A professora distribuiu livros didáticos
comprados pelo Estado para a turma. Na lousa ela escreve:
Ler o texto ‘Sermão do bom ladrão (ou da audácia)’, páginas 238 e 239.
Os alunos falam alto e a professora diz ironicamente: “Vocês me dão licença para eu
explicar o que é para fazer?”. Depois sai da sala para pegar outros livros. Ela distribui os
exemplares e se senta na sua cadeira. Como estou perto, ela começa a conversar comigo,
conta que gosta muito da língua inglesa e que faz o curso na Cultura Inglesa. Ela reclama que
está muito desgastada nessa época do ano, sobretudo porque os alunos vão ficando cada vez
menos receptivos à escola. Fala com orgulho de suas filhas, diz que elas não são assim.
Ainda sobre os alunos, ela se lembra do professor de Prática de Ensino da Faculdade, que
dizia que não era possível ensinar todo mundo, que “50% já estava bom”.
249
A professora recebe o primeiro trabalho, entregue pelo grupo reunido próximo à porta.
Ela olha para eles e me fala que “O trabalho está bom, [mas] quem fez foi o Léo. Eu já
destaco o nome dele na folha porque comigo não tem vez”. Diz que a avaliação, para ela,
deve ser integral, considerando tanto o material entregue quanto o comportamento dos alunos.
Ela diz, também, que não teve muito tempo para falar sobre o Barroco, mas que a atividade
ajuda por isso.
Os alunos do 3º ano vão apresentar uma peça de teatro no final de semana e adentram
a sala para convidar os alunos. Com o auxílio da professora de apoio, aparentemente a maioria
da turma está fazendo a lição. A professora Márcia está sentada em sua cadeira enquanto a
professora Sônia circula pela sala.
Entra na sala a mediadora da escola para pedir aos alunos com mais de três notas
vermelhas que procurem o professor da disciplina e peçam a ele um trabalho. Com uma lista
em mãos, ela explica que um aluno com sete notas vermelhas pode repor. Os alunos pedem
para que ela não leia o nome em voz alta, mas ela o faz. Depois de citar o nome de um aluno
com 7 notas vermelhas, diz: “Esse aluno tá todo lascado, coitado.” Sobre outro aluno, diz
“Tem sete faltas, mas dá para repor”. Ao final, cerca de 15 alunos têm, pelo menos, três notas
vermelhas, sendo que a maioria tem mais que 5. A mediadora explica também que os alunos
com muitas notas vermelhas vão para o noturno, o “supletivo”, e que lá é mais “ferradinho.”
Antes de falar isso, a mediadora diz que vai fechar a porta porque ninguém pode ouvir.
Após a saída a mediadora entra uma aluna do 3º ano, que pede às professoras para
aplicar um questionário sobre o consumo de maconha entre os alunos Pouco tempo depois a
aula termina.
250
Chego à escola e sigo para a sala dos professores, onde a professora Márcia se prepara
antes de entrar em sala. Quando o sinal toca nos dirigimos à sala de aula com os livros
didáticos que estão sendo utilizados nos últimos dias.
A sala está bastante vazia, os alunos vão chegando atrasados, mas ainda assim são
poucos. Alguns alunos estão curiosos, pelo que pude entender, sobre um conteúdo de
História. A professora conversa com um grupo de alunos reunido no fundo da sala e menciona
algo sobre identidade de gênero. No grupo há uma menina que se veste e se comporta de
modo masculino.
Depois disso comenta sobre o tom de voz que os alunos devem usar. Segundo ela, eles
devem falar em tom de voz baixo porque o tom alto faz mal para a saúde. Isso será ruim na
vida deles, no trabalho, as pessoas vão julgar.
Ela passa por mim e diz: “Em alguns momentos a gente tem que conversar”.
Após a chamada, começa a conversar com um aluno que foi transferido de outra
escola e pergunta sobre suas notas. Ele diz que elas já estão na escola. A professora insiste
perguntando se ele sabe quais são as notas, ao que o aluno responde que já conversou com a
diretora e que vai fazer o supletivo no noturno no próximo ano. Vai ser importante, assegura a
docente. Em seguida ela explica a uma aluna que havia faltado o conteúdo da aula: a
formação das palavras. Os outros grupos conversam entre si.
A professora termina a aula dizendo que na prova vai cair formação das palavras e
Barroco no Brasil, que é o tema do trabalho que eles deverão fazer.
251
* * *
Essa turma é mais silenciosa e os alunos estão um pouco mais organizados nas fileiras.
Rapidamente os grupos se formam e a professora enfrenta dificuldade para organizar a sala:
“Não é à toa que todo mundo reclama dessa sala. A gente fala e vocês continuam falando.”
Um aluno entre na sala e fica dançando praticamente ao lado da professora.
Ela inicia a chamada e os alunos ficam um pouco mais quietos. No canto direito da
sala, uma aluna faz teste de diabetes nos colegas com agulhas e objetos de enfermagem.
A professora abre o livro didático e localiza o assunto da aula. Diz aos alunos que eles
precisam copiar o conteúdo e fazer as atividades porque isto será cobrado na prova. Enquanto
escreve na lousa insiste que é importante que eles tenham um momento de parada e
organização. Segundo ela, as pessoas organizadas têm mais êxito: “Quando vocês estão
desrespeitando a minha aula, vocês têm que ter noção que vocês estão se desrespeitando. Eu
estou estudando, me melhorando, melhorando meu currículo. Vocês precisam ter noção,
noção de contexto.” Aproximadamente metade da sala está copiando a matéria, ao passo que a
outra metade não parece disposta a participar da aula. O conteúdo exposto na lousa trata de
semântica.
Dois alunos aproveitam que a professora está de costas e jogam bolas de papel e
caderno uns nos outros. Ela sai da sala, volta, continua a escrever na lousa e os alunos
parecem alheios àquilo que acontece. Estão agitados conversando sobre o comportamento
sexual de uma menina. Um grupo de alunos, no canto direito da sala, fala insistentemente
sobre essa menina, recriminando o modo como ela se mostra “fácil” para os garotos.
A professora pede aos alunos que fiquem quietos e façam a lição. O barulho parece
incomodá-la cada vez mais. De repente ela começa a chorar, diz que não aguenta mais e sai da
sala. Nesse momento os alunos se assustam e automaticamente se calam. Algumas alunas
sentem-se culpadas pelo que aconteceu e vão até o corredor onde fica a sala dos professores.
Elas dizem: “Será que a diretora vai nos suspender?” Entro na sala dos professores para
oferecer auxílio à professora. Ela está tomando água e diz que está mais calma. Alguns
minutos depois ela volta para a sala e é cercada pelas alunas, que pedem desculpas. Ela diz
252
que está tudo bem e se senta em sua cadeira. Os alunos continuam a copiar, aparentemente
ainda afetados pelo que aconteceu.
Perto do final da aula, a diretora passa na sala, fica na porta e pergunta à professora se
está bem. Ela diz que sim, a diretora se vira para um aluno e diz: “Fala para sua mãe que
agradeço a cortina para a biblioteca.” Em seguida, sai da sala. Alguns minutos depois a aula
termina.
A professora passa na lousa a mesma lição dada à turma anterior e distribui os livros
didáticos. Trata-se de um livro da escola. Um aluno fala mais alto e pede desculpas à
professora. Ela responde: “Você está desculpado porque está inserido no contexto da aula.”
Um outro aluno também se desculpa, mas a professora diz “Você não, você está nas
margens.”
Uma aluna pergunta a ela “Por que nessa escola ninguém falou no ENEM?”. A
professora responde: “I don’t know. Mas, no ano que vem, se eu estiver por aqui vocês serão
treinados.”
No momento em que ela começaria a falar sobre a atividade do Barroco, outra aluna a
interrompe para falar do ENEM. Ela diz que gostaria de fazer a prova, mas que não soube das
datas. A professora ouve e depois se senta. Os alunos fazem as atividades enquanto mexem
nos celulares, conversam e brincam entre eles.
Alguns alunos estão em pé, indo de um lado para o outro, falando alto, mexendo em
seus celulares. No quadro negro há uma explicação sobre o que é o ditongo e o tritongo. A
professora apaga a lousa e começa a explicar sobre o trabalho que deveria estar pronto
naquele dia, mas que poderia ser entregue na aula do dia seguinte. Ela escreve na lousa:
“O Barroco no Brasil
Características
Marco inicial
Bibliografia”
Enquanto isso, duas alunas, com o boletim eletrônico em mãos, vão conversar com a
professora dizendo estar decepcionadas, pois a professora havia dito que elas eram boas
alunas, mas fecharam com 2 em Língua Portuguesa. A professora fica sem graça, mas diz que
a nota é essa mesma.
Um aluno do grupo sentado no canto direito da sala está com uma camisinha nas
mãos. Quando os outros alunos percebem isso, todas as atenções se voltam para ele. Os
alunos riem, mostram curiosidade, apontam, até que a professora pega a camisinha com uma
caneta e a joga no lixo. Algumas meninas começam a gritar e a falar que vão pegar alguma
doença por causa daquela camisinha na sala. A professora, então, sai da sala.
254
Os alunos continuam a fazer a atividade com certa dificuldade, pois não leram o livro
sobre o Barroco e, por isso, procuram as respostas na hora. Logo a aula termina e eles se
comprometem a entregar as respostas no outro dia.
A professora volta à sala e diz que precisará da sua mesa, ocupada por um grupo de
alunos que fazia um cartaz. Questionados se terminaram a lição de ontem, não há resposta
clara. Giovana joga no celular com o som alto, a professora se levanta da cadeira e pede para
a aluna desligar o aparelho. Volta-se de novo para a sala e retoma as orientações de que irá
receber o trabalho sobre o Barroco até sexta-feira, dia 14/11.
Inicia a chamada, mas enfrenta dificuldades. O barulho é grande. Marcos fala muito
alto.
As orientações a respeito do trabalho são retomadas e, com base naqueles que já foram
entregues, a professora insiste que a parte “estética” do trabalho é importante. Para isso, diz
aos alunos que eles devem comprar almaço com pauta. Isso é importante, continua, porque
um professor pode se lembrar dos alunos que têm responsabilidade e compromisso. Ela
afirma que o professor pode ser perguntado por um jovem com mais de 16 anos para algum
trabalho. Além disso, os alunos devem se lembrar que todos são seres individuais e raros. Ela
pega, então, um trabalho todo amassado por ter sido molhado e pergunta à classe:
255
- Claro que não! – rebate a professora. Vocês não podem entregar o trabalho vítima da
enchente da mochila.” Toda a sala ri.
O aluno, para quem era a indireta, se acusa. Ela diz que é ele quem está se acusando,
uma vez que ela não mencionou seu nome.
A professora insiste que eles precisam ser organizados, arrumar suas camas, ser
responsáveis com o trabalho.
Enquanto a professora fala Maicon concorda, em voz alta, de maneira irônica. Ela o
ignora e continua a falar. Maicon volta a cantar funk, o fim da aula se aproxima e os alunos
começam a sair da sala antes mesmo do sinal tocar.
A turma, até então agitada, começa a ler o texto em silêncio. Eduardo, que se recusara
a fazê-lo, inicia a atividade e parece estar gostando do texto. Uma aluna pergunta se é para
anotar as palavras que não conhece. A professora responde que sim. Eduardo sai da sala para
falar com a coordenadora.
Mais adiante ela pergunta qual seria a diferença entre as palavras “espaçar” e
“espaçamento”, conforme consta no minidicionário do texto. Um aluno do fundo da sala
afirma:
- Era isso o que eu queria ouvir! Eu não queria ter que explicar, agora é minha vez de
perguntar!
aqueles jovens continuarão se amando ou se eles perderão o interesse um pelo outro nos
próximos dias?
3-Copie do último parágrafo o trecho que comprova que o narrador gostaria que seu amor
fosse eterno.
A professora refaz a chamada para quem chegou atrasado, pede para que desliguem o
celular e diz que vai dar faltas para quem insistir em ficar com o aparelho ligado. A sala fica
mais cheia, sendo metade composta por mulheres. Os homens, jovens, sentam-se ao fundo e
conversam mais.
A sala tem como cor predominante o verde. A porta é de aço, sem maçaneta. Na
parede oposta à porta há várias janelas com grades. Nas paredes há um mapa-múndi e um
trabalho feito pelos alunos, um gráfico de barras. Há também um ventilador.
A turma, liderada por Eduardo, não para de conversar. Isso começa a irritar os outros
colegas. Um aluno começa a brigar com uma das colegas de Eduardo, Letícia, que retruca
falando “Pau no seu cú.” Nesse momento a professora interrompe a discussão. Outro aluno
diz: “Isso é foda.” A professora exige que os alunos utilizem linguagem apropriada e que não
debochem do que ela diz, pois fica brava.
Uma aluna termina o exercício e pede para que a professora verifique se está correto.
A professora responde que logo todos corrigirão os exercícios juntos.
Os alunos retardatários tentam devolver as folhas com o texto xerocado para a aula. A
professora precisa explicar de novo que eles não precisam devolver. Isso acontece repetidas
vezes até que todos finalmente entendem que podem ficar com o material.
Uma aluna vai até a mesa da professora e pede para ela explicar a primeira questão,
pois não entendeu o que a pergunta quer dizer com «a localização do narrador», isto é, se a
pergunta se refere ao local ocupado pelo narrador ou ao foco narrativo do texto. Outros alunos
demonstram uma dúvida parecida. Diante disso, a professora decide iniciar a correção das
questões.
observando da janela. A professora pergunta, então, onde fica essa janela e os alunos vão
dizendo: “fica perto“, “é como se o narrador estivesse onde você está e o casal estivesse lá” –
e apontam para a janela. Nesse momento, um aluno fala: “ele está olhando os brotos.” A
professora aproveita a ocasião e fala que isso pode ajudar a saber a idade do narrador. Ela
pergunta para os alunos como isso seria possível. Alguns afirmam que hoje em dia ninguém
mais fala desse jeito. Ela insiste: “Se fosse hoje, que palavra o autor usaria?”. Os alunos se
agitam, até que um deles responde “novinho e novinha”, recebendo o apoio dos colegas de
sala. A professora, no entanto, diz que não, pois “novinho e novinha não é gíria, é um
adjetivo”. Os alunos não se convencem da resposta e começam a discutir entre eles,
aumentando o barulho na sala. Até que uma aluna fala “gatinhos”, gíria aceita pela
professora.
Enquanto a professora corrige os exercícios, Eduardo tem um suporte para tirar fotos
no celular, conhecido como pau de selfie, e começa a manipular o objeto com seus amigos. O
barulho vai ficando cada vez mais alto e a professora fala que eles precisam fazer silêncio.
Para responder a terceira questão, a professora pede que os alunos leiam em voz alta o
trecho escolhido para responder a pergunta. Boa parte da turma acerta a resposta e a lê em voz
alta.
Quando a correção termina a professora pergunta aos alunos: “O que vocês conhecem
sobre o Vinícius de Moraes?” Eles se lembram do nome, mas não exatamente do que
conhecem. Uma aluna do fundo da sala se lembra de Garota de Ipanema. A professora
confirma que é uma música dele e começa e declamar o início do Soneto da Fidelidade.
Em seguida ela canta Eu sei que vou te amar, acompanhada por alguns alunos, que
cantam junto. Um dos alunos diz: “Cálice” para os colegas que estão cantando com ela.
Eduardo volta a tirar fotos da sala com seu suporte de celular. A sala vai ficando mais
agitada enquanto a professora olha para Eduardo e conversa com Aline. A professora vai até
Eduardo e pede para ver o objeto. Quando ela pega o suporte, vira as costas e fala que vai
tomá-lo. Eduardo começa a ficar contrariado, mas a professora ri e deixa ver que se tratava de
uma brincadeira. Por fim, ela se aproxima do rapaz e este fala para ela tirar uma selfie com a
turma. Ela atende ao pedido e tira a foto com os alunos que estão por perto. O sinal toca e a
aula termina. Saímos eu e a professora da sala de aula.
Uma das características dos contos de J.J. Veiga é a hostilidade implacável do prepotente
contra o mais fraco. Como esta característica aparece neste conto “O cachorro canibal?
O professor de matemática entra na sala e pede para dar um recado para a turma, o que
a professora consente. Trata-se de um erro que ele cometeu ao passar uma fórmula para uma
atividade que valeria nota. Em razão disso, os alunos terão uma semana a mais para entregar a
atividade. Enquanto o professor transmite o recado os alunos começam a falar alto e a se
mexer nas cadeiras. Muitos estão insatisfeitos com o erro do professor. Enquanto ele dá o
recado, a professora se senta e as alunas que estão perto dela, Ana e Clair, reclamam do
barulho.
Os alunos ao meu lado conversam o tempo todo sobre o ENEM. Giovana comenta que
só pode usar caneta preta para fazer a prova, Eduardo diz que não vai fazer a prova porque
não sabe física e química. Seus colegas tentam incentivá-lo, porém ele não parece disposto a
mudar de ideia. Outros alunos do mesmo círculo contam que já fizeram a prova antes, mas
não foram bem. A professora interrompe a conversa e reclama que eles estão falando muito
alto e atrapalhando a aula.
Eduardo, que tinha saído da sala, volta com novidades sobre a formatura da classe. Ele
começa a passar os recados e a aula termina. A resolução das questões fica para a aula
seguinte.
A aula tem início com a professora cobrando um trabalho a ser entregue no dia de
hoje. A sala está mais cheia, como eu nunca não havia visto nos outros dias. Alguns alunos
entregam o trabalho, mas muitos nem se lembravam da atividade. A professora, então, diz que
fará uma nova atividade com os alunos que já terminaram, caso contrário eles passarão duas
aulas sem tarefa. Ela pede a Ana Paula para ajudá-la a pegar um conjunto de livros didáticos.
Em sua ausência os alunos conversam sobre a formatura, que acontecerá no dia 04/12,
e sobre os trabalhos de Sociologia e Biologia que precisarão entregar. Eduardo sai para falar
com outra turma.
262
A professora volta com a aluna e duas pilhas de livros didáticos. Ela explica que quem
está fazendo a atividade avaliativa pode continuar fazendo;quem não estiver deve fazer a
atividade escrita na lousa: um resumo de um trecho de “Vidas Secas”, presente no livro
didático.
Ler o texto:
“A fuga”
Pág. 181/182
Um aluno vai até a mesa pedir explicação sobre a atividade avaliativa. Trata-se de uma
atividade de interpretação na qual os alunos devem identificar, no trecho selecionado, qual é
o sentido de “isso” e “por que”.
A professora pede aos alunos que não estão ocupados com a atividade da aula que não
conversem, pois, como ela, devem respeitar os colegas Ela avisa que, neste final de ano, toda
aula terá uma atividade valendo nota, portanto o resumo também será avaliado.
Outra aluna pergunta sobre a atividade de casa. Uma parte da atividade consiste em
pontuar corretamente o parágrafo de um texto, sem vírgula e ponto final. Nesse momento os
alunos permanecem em silêncio ocupados com a tarefa.
A professora não explica o que é o resumo e, com isso, presume-se que os alunos
sabem do que se trata.
Ela ajuda a organizar a eleição na lousa. Os alunos deverão escrever no papel suas
opções e Eduardo contará os votos. Enquanto seus colegas escrevem, Eduardo com seus
amigos começam a fazer bastante barulho.
Uma aluna pergunta se o resumo tem limite de linhas. A colega sentada na frente,
Ana Paula, diz que não . A professora concorda e lhe pede para sintetizar o texto,
esclarecendo o que entendeu: “Para quê você leu o texto?”, pergunta à garota. O aluno deve
falar, de acordo com a professora, do sentido do texto para ele. Eduardo está agitado para
fazer a contagem dos votos. Finda a contagem, a professora Cida é eleita paraninfa e
Eduardo é escolhido como orador, vencendo Karina. A aula termina e a professora combina
de pegar o resumo dos alunos que não terminaram no dia seguinte.
264
265
ANEXO IV – Questionário
270
7- Assinale abaixo o que você costuma ler (é permitido assinalar mais de uma resposta):
i) ( )Livros vii) ( ) Sites de revistas
ii) ( ) Revistas viii) ( ) Sites sobre assuntos
iii) ( ) Gibi diversos
iv) ( )Blogs ix) Outros:__________________
v) ( )Jornais ____
vi) ( ) Sites de notícias
ii) ( ) Aventura
iii) ( ) Terror
iv) ( ) Humor
v) ( ) Religioso
vi) ( ) Biografia
vii) ( ) Outros:___________________________________
10- Cite abaixo quais foram os últimos três livros que você leu:
i) _____________________________________________________________
ii) _____________________________________________________________
iii) _____________________________________________________________
11- Quais são as páginas, blogs, redes sociais que você costuma acessar na internet?
i) _____________________________________________________________
ii) _____________________________________________________________
iii) _____________________________________________________________
12- Quem ou o que costuma sugerir para você a leitura desses livros e sites (é permitido
assinalar mais de uma resposta)?
i) ( ) Família
ii) ( ) Amigos
iii) ( ) Escola
iv) ( ) Outros:_____________________________________________________
13- Nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio, quais são as atividades que você
mais costuma fazer (é permitido assinalar mais de uma resposta)?
i) ( )Leitura de textos do livro v) ( ) Atividades de tipo
didático “pergunta e resposta”
ii) ( )Leitura de livros inteiros vi) ( ) Produção de texto
iii) ( ) Cópia de textos e vii) ( ) Acompanhar aula
atividades da lousa expositiva
iv) ( ) Conversa sobre livros e
textos lidos em sala de aula ou
em casa
272
i) ( ) Livro didático
ii) ( ) Apostila do Estado
iii)( ) Livros literários
iv) ( ) Data Show
v) ( ) Materiais variados como
jornais, gibis, revistas
vi) ( ) Outros:
________________________
________________________
___
273
com mulher já fico com o pé atrás. Tem essas bagunças, mas não é assim do jeito que eu
picuinhas... olhava. Eu estava na sétima, oitava série,
para mim era: o povo que está no colegial são
Entrevistadora: É... fofoca é muito chato.
os melhores. Mas não é. É tudo a mesma
E com relação os professores, você acha os
merda, não muda nada.
professores daqui são muito diferentes dos
professores do Monteiro? Entrevistadora: E com relação às coisas
que você está aprendendo aqui no ensino
Entrevistada: Não. São tipo do mesmo
médio? Tem alguma coisa que você não está
jeito. aprendendo, mas que você acha que poderia
matemática se você não entende ela vai laboratório e fazer experiência tipo química,
explica em slides e aí dá para entender escrever, mas o resto pra mim tanto faz como
Entrevistadora: As outras coisas você faz Entrevistada: Teve o Dom Quixote, que
por obrigação? Por exemplo, o que você faz a professora de português passou pra gente
por obrigação? Um exercício de gramática? ler no primeiro bimestre e fazer a prova.
lerem em casa?
277
Entrevistadora: Mas você disse que gosta Entrevistadora: Por quê? O que você
de escrever, sua praia mesmo é escrever. E aprendeu aqui?
como começou isso de você gostar de
Entrevistada: Ah, os professores. É
escrever?
diferente, tipo, na sétima série no Monteiro
Entrevistada: Eu acho que foi desde a tinha uma professora que ela não ensinava,
época em que eu estudava em escola ela só sabia gritar e xingar os alunos. Aí
particular, que eu saí da escola da prefeitura e quando foi pra oitava série, aí a professora
fui para escola particular. Aí eles pegavam ensinou mas ela não podia ensinar a matéria
tipo muito no pé. Todas as provas que eram toda, ela só ensinava aquilo que ia cair no tal
pra fazer era, tipo, duas folhas frente e verso exercício, agora essa professora não, tinha
pra fazer redação de texto. Era sempre assim coisa que eu não tinha entendido na sétima e
e tinha que ler em voz alta e sempre. Aí eu na oitava série e com ela eu entendi
comecei a pegar o jeito e gostei.
Entrevistadora: E você costuma escrever
Entrevistadora: Você estudou em escola no seu dia a dia? Por exemplo, você faz
particular em que série? diário?
professora de português mas ela sabe Nunca. Desde quando entrei na escola nunca
explicar, não sei... mas tá passando um texto, gostei de português. Aí toda vez tem que ler
aí a professora Sônia vem, se você pede uma aquele texto aí tem que fazer aquelas
explicação pra ela, ela vai explicar. questões, tipo, o texto nunca é pequeno, são
sempre 3, 4 folhas. E o que vai cair naquelas
Entrevistadora: O que, na maior parte do 10 questões só é aquela primeira página! Aí
tempo, vocês fazem nas aulas de língua eu já não gosto, eu fico estressada porque eu
portuguesa? Vocês fazem mais atividade de tenho que ler o texto todo à toa, aí eu já não
gramática, de leitura e interpretação de texto, gosto.
de produção de texto... quais são as coisas
que você mais faz? Entrevistadora: você se lembra de algum
autor ou de algum texto que vocês leram
Entrevistada: Ah, mais interpretação de nessas atividades?
texto... a gente lê bastante texto e a gente tem
Entrevistada: ah, sempre é o Carlos
que responder às perguntas
Drummond de Andrade, sempre é ele. A
Entrevistadora: ler e responder às maioria dos textos é ele que a gente lê.
perguntas. E vocês usam qual material
geralmente? Entrevistadora: porque será? (risos)
vezes, apostila ela manda pra fazer em casa. Todos os textos que a gente faz, a maioria
Eu tenho um livro mesmo. dos textos que a gente faz, é sempre dele. Ele
que fez.
Entrevistadora: livro didático?
Entrevistadora: então você já se
Entrevistada: É. acostumou com o Carlos Drummond de
Andrade?
Entrevistadora: Ele está na sua casa?
Entrevistada: Gosto do que ele escreve,
Entrevistada: É
eu acho legal porquê.... não sei, tudo
Entrevistadora: você gosta de fazer esses depende do que ele escreve. Eu não gosto de
exercícios de leitura e responder às questões? texto de tipo aventuras, essas coisas. Eu gosto
279
livro chamado “O código da inteligência” legal do que no filme porque no livro você
porque eu quero ser psicóloga e ele fala um pode imaginar um monte de coisas, você vê
pouco do inconsciente e de tudo que acontece como é. Agora no filme não tem graça.
na sua mente. Aí eu já estou lendo esse livro Entrevistadora: É verdade, o filme acaba
pra ter uma idéia daquilo que eu vou estudar terminando com a imaginação. Você disse
daqui 2 anos.
que comprou todos esses livros, onde você
Entrevistadora: Você vai sozinha ou você você escolhe”. Mas às vezes eu sou meio
vai com alguém? indecisa também de qual devo levar, aí minha
mãe me ajuda a escolher.
Entrevistada: Eu sempre vou com a
minha mãe. Entrevistadora: Geralmente ela fala o que
pra te ajudar a escolher? Ela diz assim: “ah,
Entrevistadora: Sua mãe gosta de ler esse parece que tem uma história mais
também? bonita”. O que ela fala pra você?
Entrevistadora: De quem é o livro? autor, tipo quem é e fala assim: “eu acho que
você tem que levar esse, parece mais com
Entrevistada: Eu não sei, mas eu sei que você. Você tem que levar esse”.
é antigo.
Entrevistadora: Então ela vê se tem a sua
Entrevistadora: Ela lê sempre esse livro? cara?
Entrevistada: Isso, ela vai pra me levar, tenho que ler, eu gosto de ler no silêncio e
aqui na escola já fica ruim, já perco a
pra me acompanhar e pra dar opção de qual
concentração. Eu gosto de ler mais em casa
livro eu devo levar ou não!
que é melhor.
Entrevistadora: Ah, ela te barra? Ela diz:
Entrevistadora: Mas só que na escola,
“esse livro você pode comprar, esse você não
fora os exercícios de interpretação de texto
pode”?
você tem que ler muito?
Entrevistada: Não, não é que ela me
Entrevistada: Na aula de português,
barra. Ela falou assim: “ você que tá lendo,
não. Mas tipo principalmente na aula de
281
história, que é muito slide, entendeu? Você sua cara!” Então tá bom, mas eu não levo.
tem que ler, você tem que memorizar aquilo Ela queria que eu levasse aquele, mas eu
que você está lendo, entendeu? levei O código da inteligência.
Entrevistadora: Você disse que sua mãe te gosto de ler, tipo, quando me der vontade. E
ajuda a escolher os livros que são mais a sua se me der na telha eu vou ler tipo o dia todo,
cara. Você gosta desses momentos de ir na se for necessário, [vou] ler a madrugada
livraria com sua mãe? inteira aquele livro. Eu vou ler porque eu
quero e não porque eu estou sendo obrigada:
Entrevistada: Sim, porque ela fala “Ó, você tem dois dias para ler esse livro aí”.
assim, a gente está lá escolhendo e ela fala Eu já não gosto.
assim: “olha esse livro,” e eu falo: “o que tem
Entrevistadora: Você pode ficar quanto
esse livro?” “Ele não tem nada a ver com
tempo com os livros da biblioteca?
vocꔓ.Esse livro aqui, você tem que ler,
parece com vocꔓ. Por quê?” “Por que são Entrevistada: Eu não sei não.
As confissões de um adolescente”. Mas eu
falei: “isso não tem nada a ver comigo”. Mas Entrevistadora: Os professores levam
Entrevistada: Eu leio bastante revistas. parte da tarde, você gosta de fazer o que
Entrevistadora: Então ela não lê muito Entrevistadora: Todo dia você mantém
livro, mas revista ela lê sempre? sua rotina de estudar?
Entrevistada: Até o terceiro [ano do Mesmo se você tirou nota vermelha eu quero
Entrevistada: Consegue. Mas a única Entrevistada: Ela fala assim: “Por que
coisa que não mudou é a Língua Portuguesa, você tirou nota vermelha?” Eu falo: “Ah,
porque Matemática, Física, essas coisas mãe!” Ela fala assim: “Você fica o dia todo
acabo explicando pra ela porque ela não daquela prova ela quer que eu tire nota azul.
Entrevistada: Ela pega no pé. química é uma coisa que é assim... agora no
terceiro e no quarto bimestre, eu estou
Entrevistadora: Ela vem nas reuniões e tirando nota boa, azul, em matemática.
essas coisas? Porque química, matemática e inglês é uma
coisa que eu nunca me dei bem. Eu não
Entrevistada: É que a hora que tem a
consigo entender não tem muito jeito não.
reunião não dá porque como ela trabalha em
restaurante, ela é cozinheira, não tem como Entrevistadora: Já naquelas que tem mais
ela vir nas reuniões. Acho que ela só veio em leitura você consegue ir melhor?
duas, só.
Entrevistada: Aí eu vou melhor.
Entrevistadora: Mas mesmo assim ela tá lá
todo dia olhando suas coisas? Entrevistadora: Na sua casa tem livros?
Onde ficam os seus livros?
Entrevistada: Sim, ela está todo dia no
Entrevistada: O meu livro fica no meu
pé. Chega de sábado ela quer olhar o
caderno. Ela diz: “Eu quero ver as provas. guarda roupa, no meu quarto. Ninguém
mexe, ninguém toca. Eu não empresto pra
284
ninguém também não! Eu não gosto de brigando comigo e pega no meu pé demais.
emprestar. Ainda mais matemática.
que eu estava certa, que ela estava errada. E ler que vai ajudar a dar bastante aprendizado
existe. Coisa tipo, coisa grega, aventura. Entrevistadora: Você se lembra de algum
Muito coisa que você sabe que não existe, texto dele que fez sentido para você de
mas aquilo tá falando. Eu não gosto de coisa alguma forma particular?
muito artificial, eu gosto daquilo que você
Entrevistada: Não. É que eu sou o tipo
sabe que é e que aconteceu.
de pessoa que esquece muito rápido as
Entrevistadora: Como assim, você sabe coisas. Mas eu estou em casa lendo aquele
que é algo que aconteceu? Dê o exemplo de texto, tudo, aí eu vou lembrar. É que aqui tem
um livro. muito barulho. Você está lendo, está fazendo
conta e as pessoas estão gritando, dando
Entrevistada: Ah, igual o livro...livro
risada. ouvindo música aí a minha
não, principalmente texto. Eu tô lendo
concentração... Eu estou lendo, eu vou
aquilo, aí fala que Afrodite não sei o quê. Eu
lembrar daquilo durante meia hora, depois eu
ouvi falar, todos os professores falam, mas eu
vou esquecer.
não sei se é verdade ou não. Não tem aquilo
que comprova que aquilo aconteceu. Entrevistadora: Entendi. Por causa do
barulho mesmo. E você acha que as
Entrevistadora: Entendi. É um mito.
atividades que você faz de língua portuguesa
Entrevistada: Sim é um mito, como diz ajudam a lembrar dos textos ou das coisas
gosto de ler.
Entrevistada: Em que sentido?
Entrevistadora: E os textos do
Entrevistadora: Depois você consegue
Drummond, por exemplo, que você disse que
lembrar e falar "ah, que bom aquele texto”.
leu bastante?
As atividades te ajudam nisso?
Entrevistada: Ah eu.. tem bastante
Entrevistada: Ah, não. Não ajudam não.
coisa que tem sentido. Ele fala umas coisas
sem sentido, sabe, mas ele expressa muito Entrevistadora: Porquê?
aquilo que ele pensa, entendeu, aí eu já gosto,
Entrevistada: Eu me esqueço muito
já.
rápido de tudo então não adianta eu ler, fazer
Entrevistadora: Você gosta mais das aquela atividade. A maioria das vezes eu li
coisas... um texto, aí eu estou escrevendo lá as
questões. Aí na hora em que eu vou
Entrevistada: Daquilo que a pessoa
responder a número um eu já esqueci, aí eu
pensa e é o que ela escreve. Eu gosto disso.
vou ter que ler o texto de novo e achar aquela
pergunta.
287
Entrevistadora: Como você está contando, era pra nota, [acontecia]mais no Monteiro
você gosta muito de ler e escrever. Onde Lobato.
você descobriu que ler era bom? Que
Entrevistadora: Então o Monteiro lobato
escrever era bom?
foi uma escola que você gostou bastante?
Entrevistada: Ah, ler é como eu disse, eu
Entrevistada: Sim. Nessa escola tinha
gosto de ler aquilo que me interessa. Mas
uma professora que se chamava Juliana. Ela
escrever, tipo, desde o Monteiro lobato eu
passava bastante texto que você tinha que
sempre fui aquela pessoa, eu sempre gostei
fazer, aí tinha uma paródia que tinha que
de.... principalmente naquelas provas que
fazer, que era de um cara, de um morador de
vinham de fora, sempre vem aquela redação
rua. Eu fiz sobre o morador de rua, que falava
que você tem que fazer. Tanto que em uma
que chovia, estava frio lá fora ,tudo. Aí eu
época, quando eu estudava na primeira série
fiz, assim, que a gente está aqui no frio, tudo,
no Gabriel Prestes, eu ganhei até uma
imagina aquele que está lá fora. Era tipo
medalha por que foi tipo o melhor texto que
música, aí tinha que tirar daquela música, que
teve, foi a premiação eu tenho essa medalha
ela lesse e já sabia que era sobre aquela
até hoje. E aí pode ser de qualquer tema, vai,
música.
a falta de água, eu vou pensar durante 5
minutos. Mas nesses 5 minutos eu não vou Entrevistadora: Era difícil, né?
parar nem mais um minuto para pensar, já vai
Entrevistada: Ah, eu gostei. Eu gosto
estar tudo em mente e eu vou escrever sem
parar. Eu não consigo escrever aquela coisa bastante de escrever.
Entrevistada: Aqui eu não lembro de ter Entrevistadora: Todo mundo gosta né? E
sua mãe gosta que você goste tanto de
feito algum texto, tipo produzido assim que
escrever?
288
Entrevistada: Gosta. Ela fala: “não sei isso”. Aí passa um tempo, aí acontece aquilo
de quem você puxou isso porque - ela fala - que eu falei, o que eu observei. Aí todo
ninguém da família gosta tanto”. E eu falei mundo vai ver que eu estava certa, eu não
assim para ela que eu quero ser psicóloga, estava errada, eu não estava falando demais.
Entrevistadora: Você pensa sobre tudo? carimbo é da professora Meire, que dá aula
de matemática?
Entrevistada: Penso sobre tudo, sou
Entrevistada: Sim.
bem observadora.
Entrevistada: Ah, nas meninas aqui da Entrevistada: Não, essa eu achei fácil.
ninguém vê. Eu sou o tipo de pessoa também tem lição dela... mas não tem muita
que a minha mãe fala não sei se isso é uma coisa...tem mais da professora Sônia e da
qualidade ou defeito, eu vejo aquela pessoa, professora Marisa porque o que encheu
eu falo assim: “Ó, eu não gostei dela”. A aquele caderno mesmo foi a professora
minha mãe pergunta: “ Por que você não Sônia, que eu faço junto com o da professora
gostou dela? Eu acho que ela é isso, isso e de português, a professora Márcia.
Entrevistadora: E nos outros bimestres? gente teve que fazer um trabalho sobre ele.
Entrevistadora: Essas atividades são mais começo, ela falou que era para ler. Logo a
de gramática ou são mais de leitura e primeira vez que a gente entrou na sala tudo,
Entrevistada: Amanda.
Entrevistada: É eu sou uma pessoa que
não consigo ficar em lugares quietos, essas Entrevistadora: Você estava dizendo que
coisas. Não adianta, eu gosto na sala de aula. não gosta de língua portuguesa...
Tem que ter o silêncio para eu fazer as
coisas. Mas eu sou uma pessoa que não Entrevistada: Por que tem que ler, pra
consigo ficar parada, tenho que ficar fazendo mim eu acho que isso é chato.
alguma coisa, se eu ficar muito parada vai me
Entrevistadora: Você não gosta de ler
dar sono.
nada ou você não gosta de ler as coisas da
Entrevistadora: E você não gosta então aula de português?
nem de ir ao cinema?
Entrevistada: É, eu não gosto de ler
Entrevistada: Para o cinema se for terror história, assim, eu gosto de ler livros.
eu vou querer assistir, mas se for aquela coisa
Entrevistadora: Qual livro você gosta de
drama, essas coisas eu não gosto. Se for para
ler?
assistir eu assisto em casa.
Entrevistada: Eu terminei hoje o livro do
Entrevistadora: Em casa, você vê sozinha
ou com seus pais, família, com seus amigos? Diário de um banana.
Entrevistadora: Então é isso. Tem mais sei o nome, acho que é Um dia de cão. Aí eu
já vou começar o novo de capa verde. Eu
alguma coisa que você queria falar?
não sei o nome, mas que eu tenho lá em casa
Entrevistada: Não. só que é do meu irmão, mas como ele não
gosta, eu vou ler.
Entrevistadora: Então obrigada!
Entrevistadora: Você tá gostando de ler
esses livros?
Entrevistada: Querido diário otário Entrevistadora: Por que você achou essa
história legal e as da escola chatas?
Entrevistadora: O que mais?
Entrevistada: Não, mas teve um que a
Entrevistada: Eu leio revista que eu
professora passou que eu gostei: O diário de
compro todo mês por causa do Luan. Anne Frank. Eu gostei porque também fala
Entrevistadora: Ah é?
Entrevistada: Todateen.
Entrevistada: Minha mãe faz uma coisa chata lá. É porque ele trabalha no setor
de compras então tipo ele tem que ler tudo
assinatura de uma revista; Meu pai, ele é
para saber o que está acontecendo, porque
funcionário público, ele trabalha na funerária
senão ele vai ter que fazer tudo de novo.
e ele lê muito processo; e o meu irmão,
Tipo quantas canetas, quantas cartas tem que
minha mãe faz assinatura pra ele de duas
comprar, o preço, entendeu?
revistas. Mas eu não lembro o nome da
revista. Entrevistadora: Mesmo assim ele gosta de
ler essas coisas?
Entrevistadora: Você se lembra o nome da
revista que a sua mãe assina?
295
Entrevistada: Ele gosta mais de assistir Entrevistada: Por que minha mãe
filmes, ele prefere assistir o filme do que ler trabalha lá no hospital Pérola Bayton e meu
um livro, mas se for preciso ler um livro, ele pai também. E meu irmão também estuda lá,
lê. então tipo eu fui para lá. Aí eu pedi esse ano
para vir para cá, perto de casa, e eles
Entrevistadora: Você assiste filmes com
deixaram.
ele?
Entrevistadora: Aí você fica sozinha de
Entrevistada: Quando ele deixa sim.
tarde?
tenho então esse ano não foi uma surpresa. gente pega e estuda não preciso copiar,
entendeu?
Entrevistadora: E onde é esse cursinho?
Entrevistadora: E com os outros
Entrevistada: Na Lapa. professores tem que copiar?
que mas, por exemplo, a parte do radical Vocês conversam sobre os textos que vocês
depois a gente tem que ler e fazer as você estava estudando barroco?
que ele passou. Aí a gente pega no site Entrevistada: Hoje eu vou fazer um
depois. trabalho, que tem que fazer iniciação
científica no sábado, então tem que separar as
Entrevistadora: Qual é o site dele?
coisas. Mas hoje eu tenho inglês também
Entrevistada: É então, tipo, eu tenho que estudar por que hoje
geoprofessorvinicius.com. Porque ele é tem prova. Hoje tem prova no CNA que eu
professor de história e de geografia. Ele no faço.
começo era de geografia aí depois passou
Entrevistadora: Você faz outro curso fora
para a história.
daqui além do inglês?
Entrevistadora: Além da sala de
Entrevistada: Não, mas ano que vem eu
informática, aqui na escola também tem
vou fazer para entrar no ENEM, eu vou
biblioteca. Você costuma ir na biblioteca?
tentar fazer dança e vou cuidar do meu primo
Entrevistada: É que eu não sei onde é que vai nascer.
ainda porque eu sou nova, então tipo eu
Entrevistadora: Então você também vai
nunca fui lá ainda, mas eu já ouvi falar.
ser babá no ano que vem?
Entrevistadora: Nenhum professor nunca
Entrevistada: É, ia ser o dia inteiro, mas
levou vocês lá?
não dá...eu tenho que vir para a escola, fazer
Entrevistada: Não, mas eu já ouvi falar curso.
da biblioteca.
Entrevistadora: Você gosta do curso de
Entrevistadora: O que você ouviu falar da inglês?
biblioteca. Que existe?
Entrevistada: Gosto. Eu comecei em
Entrevistada: É, que existe. [risos] Que agosto, então eu tô caminhando.
tem livros lá. [riso] só isso.
Entrevistadora: E o que você quer fazer
Entrevistadora: Então vocês não quando você terminar o ensino médio? Você
costumam frequentar essa parte da escola. já tem uma ideia de profissão?
Entrevistada: Eles falam que eu tenho Entrevistada: Depende. Meu pai fala que
que fazer Pedagogia ou música. não aprende lendo revista de fofoca, que é a
Todateen (fala toda tem).
Entrevistadora: E te anima alguma dessas?
Entrevistadora: O que você sente quando
Entrevistada: Pedagogia, por causa que
ele fala isso?
eu amo criança então Pedagogia seria bom.
Mas eu descobri que tem que ler muito, aí eu Entrevistada: Eu vou para o meu quarto
desisti. [risos] Eu também queria fazer e leio a minha revista. Eu tenho um bolo de
advocacia por que o meu tio é advogado, mas tamanho assim de revista da Toda teen
eu já desisti um pouco por que eu descobri [gesticula uma pilha de livros bem grande].
que tem que ler muito processo. Eu não sou Eu tenho mais um bloco desse tamanho assim
muito afim de ler essas coisas assim, sabe, da Turma da Mônica.
demoradas.
Entrevistadora: Aí você continua lendo do
Entrevistadora: Já que você gosta tanto de mesmo jeito?
exatas você não pensou em seguir uma
Entrevistada: Eu queria continuar mas a
profissão nessa área?
minha mãe falou que por causa da escola eu
Entrevistada: Não, não quero ficar não poderia.
fazendo conta para o resto da minha vida. Já
Entrevistadora: Porquê?
basta a de casa. Então eu não quero.
Entrevistada: Para não desconcentrar...
Entrevistadora: Mas também né, ainda é
uma decisão mais para frente. Retomando o da mônica. Mas todo mês eu vou lá e
que você falou antes, você disse que a seu compro da todateen com meu dinheiro. Não é
irmão gosta de ler, seus pais gostam de ler... com dinheiro dela, então tudo bem.
tem livros na sua casa? Em que lugares eles Entrevistadora: E na escola, o que os
ficam? professores falam que você tem que ler? A
professora de língua portuguesa ou os outros
Entrevistada: Tem nos quartos, que são
professores.
as revistas, tem na sala, que é uma mesinha
que tem revista da minha mãe, do meu irmão. Entrevistada: A única professora que
E tem uma estante que tem livros, têm o falou que era pra ler um livro assim foi a de
dicionário, essas coisas assim, sabe, de ler. português que foi O diário de Anne Frank.
Entrevistadora: E eles não falam: "Ah, não Entrevistadora: Eu queria te fazer uma
pode ser revista", "Ah, não pode ser..”.. Você outra pergunta. Se você fosse ser professora
nunca ouviu uma coisa dessas? de Língua Portuguesa, e fosse dar uma aula
de que você gostasse, como seria essa aula?
Entrevistada: Na sala?
Entrevistada: Os alunos iam ler o livro
Entrevistadora: Sim.
que quisessem que eu indicasse, no caso da
Entrevistada: Não. É que o meu pai fala prova, por exemplo.
de vez em quando, brincando. Mas também Entrevistadora: Qual livro você indicaria?
implica quando eu assisto "Malhação," que
eu gosto. Entrevistada: Ah, sei lá. Eu não conheço
muito livro. Deixa eu ver...O da Anne Frank
Entrevistadora: Então o que ele quer que
é legal, A culpa é das estrelas. Mas tem
você veja?
muita gente que não gosta, né, de negócio
Entrevistada: Jornal. Mas eu também romântico assim. Então não ia dar certo.
assisto jornal. Vejo bastante na internet. Entrevistadora: Você leu, por exemplo, a
na internet?
Entrevistada: Não, meu pai não
“Malhação”, aí depois eu fico no site de depois de uns dois meses que estreou o filme,
eu leio. Aí, tipo, eu sei o que está os livros, para entender melhor o que estava
agora? prova?
Entrevistada: Agora? É que hoje eu não Entrevistada: Não sei...se todo mundo
li, nem ontem, por causa das provas. Mas eu tivesse lido o mesmo livro eu ia passar na
vi na televisão hoje de manhã que a represa prova. Se fosse passar, assim, dois ou três
subiu. Subiu um pouco, mas subiu. livros aí eu não sei o que eu ia fazer. Tipo:
“Quem leu esse livro?” [risos].
302
Entrevistadora: Então muito obrigada pela Acho que tipo 80% é pra escola e 20% acho
entrevista. que fica na parte do aluno. Mas acho que o
mais importante é a base que a escola dá.
Entrevistada: De nada.
Que é coisa que a gente aprende no começo e
a gente não dá muito valor, mas lá na
Entrevista com a aluna Carolina
frentona vai fazer muita diferença.
27/11/2014
Entrevistadora: Quando você fez essas
provas todas você sentiu que faltou a base ou
Entrevistadora: Você já tem alguma você pensou: “não, a minha base está
faculdade em mente? Você não conhece bacana”?
nenhum médico na família?
Entrevistadora: Não, a minha base está na
Entrevistadora: Não. corda bamba porque tipo a... Pelo menos em
matéria de matemática eu nunca fui bem. Em
Entrevistadora: Onde seu irmão fez
matemática... eu odeio matemática, eu odeio
faculdade?
coisa com conta. Eu sou muito mais a parte
Entrevistadora: Para você qual é a melhor umas aulas com professor a parte para tentar
que ficam disponíveis, aí eu percebi que eu esse ano, um pouquinho no outro. Só que
Entrevistada: É porque eu acho que isso quem vai se ferrar sou eu. Claro que ele tem
é uma coisa que tem que vir de mim e não que dar um toquinho, assim, mas aquela coisa
Entrevistadora: Você se lembra qual era Entrevistadora: E são livros seus, dos
Entrevistada: Era Confissões, confusões Entrevistada: Tem livros que são meus,
Entrevistada: Luana.
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trabalham e não...
Entrevistada: A gente sabe, já. Não tem
a quinta série o pessoal ia porque era mais Entrevistadora: Você já sente no dia a dia?
obrigado. Agora, nem tanto.
Entrevistada: É, não tem uma surpresa,
Entrevistadora: Você acha que ir à escola
tipo, eu achei que estava indo tudo tão bem!
não é tão obrigado pelos pais?
[risos] Não, a gente já sabia.
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Entrevistadora: O que você acha que pode Entrevistadora: Mas como é que você vê
melhorar na escola para ela melhorar nessa essa história? Como você se sente diante
avaliação? disso tudo?
Entrevistada: Acho que o que tem que Entrevistada: Em relação ao meu futuro
mudar não é a escola, são os alunos. Eu falei, ou ao da escola de modo geral?
a escola em si não é ruim. A coordenação
Entrevistadora: Os dois. Com relação à
dela é muito boa, mas os alunos têm que
escola e o que isso tem de reflexo para você.
mudar. Tem que mudar os alunos. Na escola
não tem o que melhorar. O que podia Entrevistada: Olha, em mim, o que eu
melhorar, melhorou. percebo, assim, meio eles estão
também têm as aulas. As aulas não são muito nenhum, a gente vai ficar naquilo. Agora em
atrativas. Aí todo mundo sabe que pode ficar mim eu sinto que, tipo, eu estou perdendo
de bobeira o ano inteiro. No final do ano faz tempo porque você ficar lá, um dia inteiro na
uma recuperação de um dia e está tudo certo. escola, para nada porque na prática você não
A pessoa, o ano inteiro, tinha que somar 20 está aprendendo, você está, no máximo,
pontos. A pessoa dormiu o ano inteiro, tinha decorando. Então acho que é uma perda de
é o que mais apoia o descaso. Apesar que dá Entrevistadora: Você acha que essa
para entender porque, tipo, se já está ruim, sensação vem mais das aulas?
vai ficar segurando os alunos lá, ninguém vai
até o 3º ano, eles vão largando. Então meio Entrevistada: É. Às vezes não é nem
que vai empurrando com a barriga para “vai e culpa do professor. Os mesmos professores
tchau, vai de uma vez”. que dão aulas na pública dão na particular
então eu acho que o comportamento do aluno
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Entrevistadora: Você aprende com esse Deus, isso aqui está escrito em grego” porque
Entrevistadora: Então o que você tem que vestibulinho para o 1º ano e, principalmente
Entrevistadora: O que você precisaria naquela prova até hoje eu não aprendi. Eu
mesmo aprender no ensino médio? peguei uma prova para estudar e peguei um
professor de química. A prova é para quem
Entrevistada: Eu acho que eles deveriam estaria na 8ª série e eu estou no 1º ano. Eu
pegar mais firme, não todos os professores peguei o professor e falei “Professor, como é
não pegam, mas tem um professor que ele vai que eu faço isso aqui?”. Ele olhou, resolveu e
muito nisso, em matéria de vestibular e eles falou “Isso aqui vocês vão aprender lá para o
têm que, acho que todos os professores têm 3º ano”. Isso que eu deveria ter aprendido na
que... Deveria ser uma lei que a partir do, da 8ª série.
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Entrevistadora: Você chegou a falar sobre sentindo bem na escola. Você acha que ela
Entrevistada: Já, com meu pai e com a Entrevistada: É que eu preciso mesmo,
Entrevistadora: Para que você precisa Não pensam, tipo, ah eu quero estudar, eu
disso? quero comprar minha casa logo, com 20 anos
eu quero comprar meu carro, com 27 eu
Entrevistada: Porque a escola nada mais
quero fazer um intercâmbio, quero morar
é que uma preparação para o que a gente vai fora. Não, vou para o baile funk, vou comprar
ser no futuro porque o que a gente vai o meu tênis de mil parcelas de R$2000, 00 e
aprender na escola é o que a gente vai usar na está tudo numa boa.
vida inteira. Se a gente não está aprendendo
nada, o que a gente vai usar? É tão assim, que Entrevistadora: Você quer todas essas
a 6ª só que tem. Não é uma Iniciação costumam ser as aulas de Língua Portuguesa?
intervalo, é aquela correria, não é muito acompanhei o tema de vocês era o Barroco.
organizado, aí você fica lá na frente, aí vem O que vocês fizeram em relação ao Barroco?
Cerebral. Barroco?
Entrevistadora: Você quer tratar disso você tem que fazer para fazer a prova e você
quando for médica? nunca mais vai usar. É isso o que eu lembro.
Entrevistadora: Você se lembra o que foi Entrevistadora: Quem disse que tem que
nesse segundo e nesse terceiro? gostar?
sim, Anne Frank, sim, Confissões, confusões legal. Ela conta a história de uma menina, aí
comecei a ler na 5ª série e acabei na 7ª. Eu lia mundo acha que quem vai morrer é o menino
e devolvia, “Ah, vou voltar”, lia e aí e quem morre é ela. Então é uma coisa que
Entrevistada: Porque ficou uma euforia, livro, o livro sempre tem mais detalhes então
todo mundo falando, falando. você fica mais assim, mas é bom o livro
também.
Entrevistadora: Na escola?
Entrevistadora: Quando você lê alguma
Entrevistada: Não, todo lugar. Todo coisa você gosta desses livros que te
lugar. Aí eu falei “Não, estou curiosa, deixa prendem, te causam emoção?
eu ver”. Aí eu li a introdução, gostei, achei
Entrevistada: O livro tem que ser bom
legal e li.
na primeira página. Se ele não for na primeira
Entrevistadora: Você comprou o livro? página não dá mais.
Entrevistada: Sim.
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uma coisa, aí eu leio e ela vai ficar lá, Ela paga absurdo em livro, coisa que eu
Entrevistadora: Você acha que seus Entrevistada: Não, tem. Mas a escola
colegas também? começou a atrasar livros e a cobrar livros que
não foram entregues, aí teve o negócio do
Entrevistada: Sim.
horário. Aí parou.
Entrevistadora: E quando você não vai
Entrevistadora: Você gostava muito da
para a escola, o que você gosta de fazer?
aula de inglês.
Entrevistada: Nada. [risos] Agora eu
Entrevistada: Sim, não só de inglês, mas
estudo de manhã então se eu não vou para a
de informática também. Informática eu entrei
escola eu estou dormindo.
assim, era para eu ter escolhido um curso, só
Entrevistadora: Você faz algum curso que quem entrou nesse curso foi uma amiga
extra escolar? minha e ela entrou para fazer informática. Só
que ela ficou “ah, não sei o que lá. Vamos,
Entrevistada: Não, mas eu fazia. Só que
vamos! ” Aí eu falei “não, vou fazer de
eu comecei a estudar de manhã aí eu parei. inglês, de inglês eu vou usar mais”. Aí ela
falou “não, vamos, vamos!”. Aí eu precisei
Entrevistadora: Você fazia curso de quê?
fazer os dois e acabei gostando. A aula é tão
Entrevistada: Fazia curso de inglês e de atrativa que uma coisa que eu não gosto eu
informática. Eu amava. Eu nem me comecei a gostar pelo jeito da aula.
importava de levantar cedo, você vê como é
Entrevistadora: Como é essa aula?
diferente! Aí eu acordava cedo, fazia o curso,
vinha correndo para dar tempo de ir para a Entrevistada: O ambiente era uma
escola. Pegava trem de manhã. delícia, o pessoal que estava lá era muito
legal, o professor era muito legal também, era
Entrevistadora: Onde era o seu curso?
tudo... Era uma sala pequena com pouca
Entrevistada: Era lá na Lapa. Mas, gente. Cada um tinha seu espaço, uma
nossa, eu daria tudo para voltar a estudar à mesona para cada um com o seu computador.
tarde e voltar a fazer meu curso. Tinha uma telona grande e o professor falava
e a gente fazia. Não era aquela coisa, assim,
Entrevistadora: Você só parou por causa
“eu tenho que fazer”. O professor brincava
do horário?
demais, ele dava essa folga para a gente, mas
Entrevistada: Sim. ao mesmo tempo que ele dava folga ele, tipo,
você não é obrigado a fazer tudo.... ele
Entrevistadora: E não tem à tarde? pegava firme e ao mesmo tempo não. Então a
gente não ficava aquela coisa “eu tenho que
fazer, eu vou decorar para fazer a prova.
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Pronto!” Igual a gente fez. Não, porque era pega só as partes principais e coloca lá, aí
assim, a gente tinha que fazer a prova, se tem a prova para a gente fazer no site.
você não ia bem você tinha que pagar outra
Entrevistadora: Vocês fazem a prova
prova, então todo mundo fica aquela coisa,
online?
mas não, com aquele professor era diferente.
Ele dava a prova. Se a gente não ia bem ele Entrevistada: Não, a gente pega a prova,
dava outra sem a direção saber. Então ele só copia a prova ou imprime. A gente entrega a
considerava a que a gente ia bem. Mas para prova em mãos e ela dá o resultado da prova
ele dar essa outra prova ele tinha que ver a no site. E ele fez o site, foi muito bom porque
gente se esforçando. Mas não aquela coisa ele fez dividindo as matérias tudo direitinho,
“Vai fazer! Senta aí e faz! “[imita uma voz tudo mastigado, tudo bonitinho lá. Cada
brava] série, cada ano, bimestre, dividiu tudo
veio lá, tinha pergunta sobre os dois livros Entrevistada: O livro que o governo dá.
para você responder só o que você leu.
Entrevistadora: Aquela apostila?
Entrevistadora: O que vem nesse kit da
escola? Entrevistada: Não, o livro mesmo. Aí
ela não... Como não tinha livro para todo
Entrevistada: Vem dois kits: o material,
mundo ela passava um texto na lousa e a
que vem os cadernos, caneta, lápis; e o de gente tinha que copiar.
Português que vem livros. Quatro livros.
Entrevistadora: E vocês passavam
Entrevistadora: Você tem esses livros? bastante tempo da aula copiando?
Entrevistada: Não. Até a oitava série eu Entrevistada: Tinha texto que a gente
pegava. Agora não porque eu sei que vai ficar tinha que passar duas aulas copiando.
aqui em casa e vai acabar ninguém
aproveitando. Entrevistadora: Vocês copiavam e depois
faziam os exercícios?
Entrevistadora: Mas você só pega os
livros se quer? Entrevistada: Isso.
Entrevistada: Não, você não é obrigado Entrevistadora: E esse livro vocês não
Entrevistadora: E por que você acha que que ser o mais engraçado, eu tenho que ser
os professores tomam decisões tão diferentes mais vida louca então eu vou atrapalhar a
Entrevistada: Eu acho que a gente está e Entrevistada: Acho que foi, não tem
se fosse para tudo ser do jeito que tem que data.
ser, não, porque a gente está lá para aprender,
Entrevistadora: Você se lembra da
lá não é Playground. Então nesse ponto de
estrutura das palavras, dessas coisas que você
vista não. Mas do ponto de vista que a gente
copiou?
também está em uma idade que a gente é
agitado então se não é uma coisa que nos Entrevistada: Não, foi só os vistos. Não
interessa, que nos chame a atenção, que a lembro.
gente ache que a gente não precisa, a gente
vai dispersar. Não vou falar que eu sou uma Entrevistadora: Ah, esse é o visto da
Entrevistada: É.
Entrevistada: Sim.
Entrevistada: No Pio XII que era o tal, um que interaja com a turma, que brinque
na hora certa. Às vezes, e tal, mas que a
Fundamental I.
turma tenha um certo respeito, que é meio
Entrevistadora: Onde fica o Pio XII? difícil, né, essas coisas. Deixa eu ver, um
Entrevistada: É aqui perto. Não sei exemplo, um professor que eu tenho não
passa lição na lousa, as aulas dele são de
exatamente. Sabe o Cingapura?
slides. Isso é muito bom porque a gente acaba
Entrevistadora: Sei. aprendendo mais com isso?
Entrevistada: Então, é ali perto. Todos Entrevistadora: Por que você aprende
os alunos do Pio XII vem para cá. mais com os slides?
Entrevistadora: Então você tem vários Entrevistada: Não sei. Eu acho que, eu
colegas aqui que vieram de lá? mesma, tenho uma facilidade que eu não...
quando eu leio ali escrito, eu não, eu não
Entrevistada: Tenho.
aprendo muito. Quando a pessoa fala que eu
Entrevistadora: E você gosta de estudar aprendo mais, eu tenho essa facilidade.
aqui? O que você acha da Escola 1? Quando tem a pessoa falando.
Entrevistada: Então, cara, eu acho uma Entrevistadora: Então para você fica
escola muito boa e tal. É uma escola pequena melhor quando existe o slide e você não
mas, tipo, o que eu escuto das outras pessoas precisa copiar?
falando e tal, é uma excelente escola. Esse
Entrevistada: Ele até...ele, para ajudar a
ano mesmo eu fiquei...minha amiga, estudou
gente, até criou um site dele e todos os slides
a vida inteira em escola particular na
ele coloca naquele site para a gente estudar
Espanha, aí ela me falou: “sério,
em cima e tal. Foi muito, tipo.... um exemplo:
sinceramente Adriana, eu não vejo diferença
é o professor de História, ele, no começo do
entre a Escola 1 e as escolas que eu estudei”.
ano era uma outra professora, ela passa lição
Isso ficou tipo, cara, a Escola 1 é uma
na lousa normal, livro e tal. Eu tirei 3 e 5 no
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primeiro bimestre. Agora eu vejo 10, tem Entrevistada. Vou andando. Eu moro perto
essa diferença. do Sonda.
Entrevistada: Não sei. [risos] É um Entrevistada: Não sei. Tem várias coisas
pouco [diferente]. Até que foi mais ou menos que, tipo, elas não, nas matérias normais elas
como eu imaginei, mais, o povo mais livre e não....algumas lições também, mais... é que o
tal. No Ensino Fundamental sempre está a estado não tem, não sei exatamente se é o
direção em cima, pegando no pé. Mas no estado ou não, não tem estrutura de fornecer
Ensino Médio eles deixam mais solto e eu novas matérias e tal. Tipo, aula de música e
acho que, tipo, não adianta muito avisar. Eles tal, diferentes matérias, espanhol, outras
aliviam um pouco, eles não matam a gente de matérias.
estudar. Como tem bastante gente que
Entrevistadora: São coisas que você
trabalha eles não...não passam muito trabalho
gostaria de aprender. E você tem perspectiva
para a gente morrer...
de que vá aprender essas coisas de alguma
Entrevistada: Tem muitos alunos que forma?
nada. Estou parada. Não faço nada. de manhã e de tarde aqui. Às vezes eu ficava
de noite. Agora é difícil. Eu passava o dia
Entrevistadora: Você mora aqui perto da
aqui.
escola?
Entrevistadora: Como monitora você faz o
Entrevistada: Moro. que na sala de leitura?
Entrevistada: Então, os alunos vão lá oitava, eles sempre pedem seminário, todo
procurar os livros e eu os oriento e tal. Eu bimestre. E isso ajuda muito. Tem aluno que
Entrevistadora: Por que você faz o meio Entrevistada: Leio. Então, quando eu
de campo...
entrei na sala de leitura foi muito bom porque
Entrevistada: Pelo interesse. É que, tipo, eu lembro que a professora... Uma coisa que
eu sempre gostei é de mitologia grega. A
no ensino médio meio que já sabe do que
professora, eu lembro que eu estava na sexta
gosta e do que não gosta”.Ah, eu não gosto
série, ela passou um filme: Percy Jackson: o
de ler então para quê?” No ensino
ladrão de raios. Aí eu vi, na sala de leitura,
fundamental, não, eles são mais crianças
tem esse livro, vou ler. Comecei a ler e,
então eles estão mais “Ah, vou tentar”. Vou
nossa, me apaixonei pelo livro. Aí o resto, os
tentar ver do que eu gosto ou não, essas
próximos livros da série tinham lá. Eu
coisas.
comecei a ler e me apaixonei. Aí eu fui lendo
Entrevistadora: Você acha que tem livros de tema de aventura também, mas eu
alguma relação também com os professores? fui lendo romances, essas coisas. Comecei a
Com o que os professores pedem? pegar esse gosto pela leitura.
Entrevistada: Sim, sim. Que nem, eu Entrevistadora: E quais livros você leu
percebo bastante que os professores da oitava esse ano, por exemplo?
série, professor de Português, da sétima e
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Quem é você Alasca?, esse ano eu tô lendo disse que leu esse ano, você os pegou na
eles usam bastante. não tenho pai. Eu moro com a minha tia e
com a minha mãe. Minha tia vive de
Entrevistadora: Mais os professores do
aposentadoria.
ensino médio ou do ensino fundamental?
Entrevistadora: Da aposentadoria...
Entrevistada: Do ensino fundamental
Entrevistada: Da aposentadoria da
[diz rapidamente].
minha tia.
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que acabam, que eles não conseguem Entrevistadora: Por que você tem que ler
compreender e eles acabam deixando para entender. Essas coisas. Já em exatas,
aquilo....a gente não tem tempo de aprender o não. Você não tem que ler para entender
necessário, a gente tem só o básico. Não mais muito é uma explicação que o professor te dá
do que isso. Então a gente tem que fazer e tem números. Me dou muito melhor com
curso, cursinho para fazer o vestibular. números. Tipo, ler e entender aquilo não dá,
acho meio difícil. Ainda mais eu, que não me
Entrevistadora: Por que você acha que
interesso.
esses alunos agem assim?
Entrevistadora: Você gosta de ler e
Entrevistada: Desinteresse.
daquilo que a leitura te traz, mas na hora de
Entrevistadora: E você é amiga desses transmitir, fazer o que se exige em Lingua
alunos? Portuguesa você não se dá bem?
Entrevistada: São legais, tipo, essa transmitem que algumas turmas não têm o
que discutir, ficam caladas, não têm o que
professora nossa de Português, ela é bem
discutir.
legal porque ela interage com a turma. Ela
brinca, mas ela impõe respeito. Isso que é o Entrevistadora: Você sente falta disso?
professor bom.
Entrevistada: Um pouco... não sei
Entrevistadora: E o que vocês aprenderam exatamente. Um pouco porque quando eu
ao longo desse ano? tenho dificuldade de entender mais, cria
Entrevistada: Então, ai que está. [risos] dúvidas que podem ser respondidas juntas...
Como eu não gosto muito, eu presto atenção, Entrevistadora: Nas aulas de Língua
mas eu não guardo muito. Tipo, o Barroco, Portuguesa deste ano vocês leram um livro?
prefixo, sufixo... Ai, caramba. Tem umas
Entrevistada: Sim, sim. Teve um livro, o
coisinhas a mais.. Crô, crô, crônica... [tenta
Dom Quixote. A gente tinha que ler Dom
se lembrar do gênero] cronista e, por aí...
Quixote ou Anne Frank. Se bem que, como a
Entrevistadora: E uma aula normal de gente tinha que fazer uma leitura obrigatória.
Língua Portuguesa, como é? Quais são as A gente tinha que... Eu mesmo, eu não
atividades que vocês mais costumam fazer? cheguei a terminar o livro, que foi algo
Entrevistada: Ah, explicação sobre um obrigatório, não foi eu que escolhi. Isso que é
o ruim, eu não gosto. Então isso faz aquilo
tema, tipo, o Barroco. Uma explicação, um
ficar horrível, isso para qualquer pessoa. Eu
pequeno texto e perguntas.
acho que na minha sala pouquíssimas pessoas
Entrevistadora: E como esses pequenos terminaram de ler o livro. Pararam na
textos são abordados? Por exemplo, vocês metade.
leem em conjunto, sozinhos?
Entrevistadora: E o que vocês fizeram
Entrevistada: Ah, como a gente quer. A com a leitura do livro?
professora deixa, tipo, ela passa o texto para
Entrevistada: Uma prova. A gente teve
a gente e a gente pode, ela deixa livre, a
uma prova.
gente pode fazer em grupo ou a gente pode
fazer individual também. A gente que vê. Entrevistadora: E foi difícil fazer a prova
sem ter terminado o livro?
Entrevistadora: E vocês discutem as
respostas das perguntas em sala? Ou vocês Entrevistada: Não, foi uma prova fácil.
entregam? Como é?
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Entrevistada: Achei meio esquisita, Incrível História de amizade entre uma garota
e sua Coruja] Eu ouvi falar na aula de
meio louca.
Ciências, de Biologia.
Entrevistadora: Ele é meio louco, né?
Entrevistadora: Os professores de
[risos]
Ciências desse ano?
Entrevistada: Meio não, completo. É, até
Entrevistada: Desse ano, do ano
que é legalzinho, assim, mas eu não gostei
passado.
muito, não.
Entrevistadora: E com relação à aula de
Entrevistadora: Será que se você tivesse
Língua Portuguesa, ela te motivou a ler
conhecido o livro de outro jeito você teria
algum livro esse ano?
gostado dele?
Entrevistada: Então, Capitães de Areia.
Entrevistada: É, que nem, na sétima
Um pouco porque como é uma
série, o professor de Português, ele contou o
literatura....ah, vou ler e tal, vai que ajuda.
Conto do gato preto, do Edgar Allan Poe. Ele
contou de um jeito que a sala toda se Entrevistadora: Ajuda com o que vocês
interessou por ler, a sala toda. Vinha filas, estavam estudando?
filas de espera para o livro dele. Filas. Tipo,
Entrevistada: Isso.
do jeito que ele contou, interessou a gente
completamente e a gente lendo, a gente via Entrevistadora: Se você fosse dar aulas de
que não era exatamente como ele contou, Língua Portuguesa, como elas seriam?
mas do mesmo jeito foi interessante.
Entrevistada: Um tédio.
Entrevistadora: Pelo menos despertou uma
vontade... Entrevistadora: Por quê?
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Entrevistada: É. [risos] Isso que eu acho Barroco. Mas pelo que eu entendi eu não
estranho, penso... Nossa, sou péssima com gostei muito, não. Tipo, Idade Média e tal.
muito. Não sei. Eu vejo isso mais em seria, que não me interessaria, não.
romana. Agora eu vou prestar atenção que... acabei de falar do Gregório Matos.
Ai foi uma maravilha. O bimestre que o [risos]
professor passou sobre esse tema eu tirei 10.
Entrevistadora: Entendi.
Entrevistadora: Já em Língua Portuguesa
nunca apareceu um tema que você pudesse... Entrevistada: É isso.
fico muito cansada porque eu durmo demais. Entrevistadora: E você acompanha esses
Eu durmo demais [diz com ênfase.] Eu autores em outros lugares?
durmo umas dez ou mais horas por dia.
Entrevistada: Sim.
Entrevistadora: Você não é obrigada a vir?
Você vem quando você quer? Entrevistadora: Como você acompanha
esses autores?
Entrevistada: isso. É um trabalho
voluntário. Mas não exige tal tempo. É o que Entrevistada: Ah, Twitter vendo as
você pode. Se você pode naquele momento publicações e tal. Vejo quando o próximo
então tudo bem. livro vai ser lançado, que livro vai ser...
para fazer o curso de meio ambiente, que é o Entrevistadora: E você vai às livrarias?
que eu gosto.
Entrevistada: Vou. Mas eu não costumo
Entrevistadora: Além dos livros, você
muito ir, tipo, eu não trabalho, não faço nada.
gosta de ler outras coisas, como revistas,
Não tenho muito dinheiro às vezes...Aí você
gibis ou outras coisas?
fica meio perdida, queria levar isso, isso, isso
Entrevistada: Depende do assunto que e isso.
certeza que vou ler. Muito difícil. mais vou é a Saraiva e Cultura. É a que mais
vou.
Entrevistadora: E basicamente você vai ler
então o que tem a ver com o John Green, com Entrevistadora: Onde fica a Saraiva mais
esses autores? perto daqui?
337
Entrevistadora: Você vai nessas livrarias Entrevistadora: Qual foi o último filme
sozinha? que você viu no cinema?
Entrevistadora: Com quem você conversa das estrelas. Eu gosto, mas eu não vou muito
cheguei a conversar sobre os Anne Frank, Entrevistada: Com a minha irmã. Foi
que eu tinha... eu li há um tempo atrás e eu bem legal.
conversei com ela.
Entrevistadora: Só para terminar, eu
Entrevistadora: Você leu antes dela gostaria de perguntar um pouco sobre os
passar? materiais que vocês usam nas aulas de
Língua Portuguesa. Nas aulas que eu assisti,
Entrevistada: Bem antes. Eu li quando
vocês não usavam os material de vocês, a
eu estava na sétima série.
professora trazia um livro e vocês liam os
Entrevistadora: Você gostou desse livro? textos e respondiam às questões. Isso é a
regra ou não? Vocês tem aquela apostila do
Entrevistada: Gostei porque é um tema
Estado que vocês usam?
que eu gosto. Eu gosto. É a Segunda Guerra.
Entrevistada: A gente não usa aquela
Entrevistadora: Você se interessa pela
segunda guerra? apostila de Português. A gente só usou uma
vez aquela apostila, semestre passado. A
Entrevistada: Me interesso um pouco. gente não usa muito a apostila. É mais o
livro, que na verdade deveria ficar com a
Entrevistadora: E você gosta de ir ao
cinema, ver filmes?
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gente. Mas como não tem a quantia exata, Entrevistada: Pelo menos umas duas,
fica na escola e a gente usa os livros. três vezes por ano eu vou para visitá-lo, ele
de São Paulo, mas eu sempre morei aqui. Ameaçou ela de morte. Ai ele também não
conseguiu cuidar da gente porque ele bebia.
Entrevistadora: De que cidade você vem?
Aí a gente teve que vir para São Paulo. Eu
Entrevistada: Barra do Turvo, na divisa morei um pouco com a minha vó, a minha
com o Paraná. Assim, dá para você atravessar irmã morou com os meus tios, sempre. Mas
o rio nadando e você já vai estar no Paraná. eu morei com três famílias: a minha vó,
minha tia e depois uma outra tia.
Entrevistadora: E você já fez isso?
Entrevistadora: E eles moravam sempre
Entrevistada: Já! É muito bom e o rio é por aqui? Em quais bairros você acabou
de correnteza, é bem perigoso. Mas aí, meu morando?
pai que me ensinou a nadar então a gente
Entrevistada: Eu sempre morei ali no
curte fazer essas coisas.
bairro Jardim Cupecê, Jardim Prudência,
Entrevistadora: E você vai lá sempre?
sabe? É sentido Diadema, assim, mas é
Jardim Cupecê, perto do Pão de açúcar que é
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o antigo Gonçalves. Você lembra desse que arrumar um lugar para você ficar”. E ela
mercado? não conversou comigo durante a gravidez
toda.
Entrevistadora: Não me lembro. Mas
quais lembranças você guarda da sua Entrevistadora: Então foi bem traumática?
infância?
Entrevistada: Foi, foi bem dramático. E
Entrevistada: Olha, eu guardo boas já não era fácil a convivência mesmo com
lembranças e ruins. Na verdade, eu não ela. Só que, assim, eu entendi que aconteceu
guardo mais as ruins com um sentimento tudo isso, fiquei grávida nova porque eu não
triste. Não! [diz com maior intensidade] Por podia ir para lugar nenhum e ela também não
que eu aprendi, foi para aprendizado. Depois conversava. Não orientava.
dessa prática que eu comecei a fazer de
Entrevistadora: Você não sabia...
energia de luz.
Entrevistada: A gente até tem algumas
Entrevistadora: Então isso foi muito
informações de fora sobre camisinha e essas
importante para você?
coisas. Mas se você não tiver uma orientação,
Entrevistada: Foi muito importante na assim, da mãe, do pai, pessoas que você
minha vida. Eu me sentia vítima do mundo confia, você....
porque eu morava de favores, de favor com
Entrevistadora: É uma coisa que você
as pessoas. Então....
decora, mas não....
Entrevistadora: Imagino que isso foi
Entrevistada: Não é na escola que você
muito difícil.
tem educação. Na escola você tem conteúdo
Entrevistada: Foi muito difícil. pedagógico, né? Na escola você tem que ir
para estudar o conteúdo pedagógico, línguas,
Entrevistadora: E isso continuou a
matérias. Mas a educação é de casa.
acontecer mesmo depois que você teve
filhos? Entrevistadora: Aí você sente que essa
educação faltou um pouco?
Entrevistada: Bom, depois que eu tive
filhos, aí eu... Quando eu fiquei grávida, Entrevistada: Faltou muito porque a
muito novinha, 16 anos, eu já estava minha vó, que foi a primeira a cuidar de mim,
trabalhando. Sorte que eu estava trabalhando. ela me deu amor. Eu lembro. Mas só que aí,
Mas o meu, o pai do meu filho ele era um depois dos seis anos, eu tive que morar com
moleque muito irresponsável. Mas só que eu outras pessoas. E essa minha tia, última
bati o pé e consegui alugar um lugar. Por que pessoa com quem eu morei, ela era muito
a minha tia pegou e falou assim: “Você tem sofrida também, muito amarga.
340
Entrevistadora: Entendi. Ela também tinha coisas também podem ter me atrapalhado. E
uma história de vida sofrida. eu não sabia lidar com isso. E aí quando eu
comecei a trabalhar esse meu lado espiritual,
Entrevistada: Tinha uma história triste.
aí realmente.... Hoje eu me sinto uma rocha.
Aí eu entendo, eu entendo tudo o que ela
É, eu me sinto uma rocha. Nada me abala. Aí
passou, né? Mas assim, realmente.... Na
eu me separei do meu marido. Acontecerem
escola, eu ficava assim, no mundo da lua.
várias coisas. Antes ainda de eu conhecer
Não conseguia prestar atenção no que o
essa parte espiritual, e fiquei mal. Depois que
professor falava. Não foi fácil.
eu comecei a trabalhar isso, aí minha vida
Entrevistadora: Por que você acha que mudou.
faltou um respaldo familiar?
Entrevistadora: Você ficou casada por
sempre um vazio, né? Criança que sente um Entrevistada: Então, eu estou hoje ainda
vazio assim. Se você, não sei se você já
com meu atual marido. Eu me separei por um
começou a fazer estágio assim em escola com
ano e dois meses, mas aí eu voltei. Por quê?
criança pequena.
Porque eu sempre queria resgatar, eu ficava
Entrevistadora: Sim, eu já trabalhei com sempre pensando nas crianças. Para elas não
crianças pequenas. sentirem o que eu senti. Mas só que aí,
estudando, estudando, estudando, você vai
Entrevistada: Então, aí eu casei, meu
sempre mais a fundo. Eu vi que os
marido também era alcóolatra. [risos pensamentos, mesmo sendo diferentes. Eu e
nervosos] Porque o que acontece? A gente o meu marido a gente pensa muito diferente.
tem uma figura de um pai que é alcóolatra, a Muito, muito diferente. E aí acaba tendo
gente acha que é normal a gente ter um conflito. Então tem que ser uma coisa muito
marido alcóolatra. Até um certo tempo, né? bem trabalhada, a separação, porque sempre
Mas aí depois que você vai procurando ajuda, tem uma pessoa que vai querer... Que nem,
vai estudando sobre algumas outras coisas.... meu marido é uma pessoa que se faz de
E eu, o que me atraiu muito foi sempre o, vítima e coloca as crianças no meio para
estudar o espiritual. fazer drama. Chantagem. E ele fez isso da
Entrevistadora: Sempre? primeira vez, né?
não me abalar por causa disso. Não me abalo Entrevistadora: E sempre foi assim? Por
mais e as crianças eu sei que tenho que que você está no terceiro ano então você se
trabalhar a mente delas. Elas também lembra de como eram os outros anos?
recebem energia para se fortalecer. Meu filho
Entrevistada: Ah, não. Os outros, não.
já fez uma série de coisas, já. Ele entregou
Os outros não foram assim.
um jogo na semana passada. Eu cheguei a
comentar com você? Entrevistadora: Mas eram os mesmos
alunos?
Entrevistadora: Não.
Entrevistada: Com isso aí a gente fica da Poli. Mas agora ele mudou. Ele agora é na
Borba Gato. Eu estudei o segundo ano lá. Só
feliz. Mas aí eu vou te falar uma coisa. Eu
que era bem pouquinho aluno e era supletivo
não sentia vontade de estudar na sala de aula
também e era com um pessoal mais velho.
desse Colégio. Eu não sei o que que houve.
Então não tinha, assim, conversa. Era
Também não é só a... os alunos. Eu acho que
muito.... Eu aprendi muito lá. Nossa aprendi
o Estado, ele está agindo de uma forma
muito. E aí eu tirava notas boas porque aí eu
errada.
tinha vontade de estudar lá. Agora, aqui eu
Entrevistadora: Por quê? não tenho...eu não tinha, menina. Eu tinha
Entrevistada: Gritar, né? Por exemplo, Entrevistada: Sempre, sempre tinha uma
eu não tenho preconceito contra a leitura. Ai tinha interpretação de texto e junto
homossexualidade, não tenho nenhum, meu com a interpretação de texto, ela já falava um
irmão é gay, mas assim, tem um limite. Você pouco da gramática. Ela já entrava, assim,
não precisa gritar, maltratar, falar palavrão, um pouquinho na gramática e com os textos
usar nomes feios. E não é só os literários, né? Ela tentava, não era fácil, mas
homossexuais. Não, não é. Tinha lá uma ela tentava, eu pude reparar. Assim, eu
menina gritando palavrão alto, falta de estudei pouco na vida, mas eu fiz oito meses
respeito, tanto com o professor quanto com de cursinho lá na Poli e também nesse
as outras pessoas. É uma forma semi- supletivo que eu fiz no segundo ano eu
selvagem. Nós, seres humanos, não é assim também estudei com o professor, o Ataulfo .
que nós fomos criados. E, nossa, eu tive assim muita sorte de ter ele
como professor. Aí eu também tive aula com
[Pausa na entrevista]
a Andréia. Não, era Andréia o nome dela?
343
você voltou faz quanto tempo? não consegue emprego, né? Mas, por
exemplo, Letras na USP não tem inglês.
Entrevistada: Para o ensino médio eu
Entrevistadora: Tem inglês, sim.
voltei fizeram? Porque aí eu voltei para o
Habilitação em inglês.
segundo ano, já fazem dois anos que eu voltei
para o segundo ano. E agora que eu voltei Entrevistada: Então deve ter dois cursos.
para fazer o terceiro ano.
O Ataulfo fez só Português.
Entrevistadora: Você tem quantos anos
Entrevistadora: Você tem vontade de
agora?
prestar o vestibular da USP?
Entrevistada: Quem nem eu falei, né. Entrevistada: Sim. [risos] Assim, é que
Esse ano, eu estudei o3º [ano], mas eu não eu meio que me encanto. A gente tem um
pude absorver nada. E tudo o que eu aprendi projeto para a humanidade. Então qual é o
no cursinho da USP, no cursinho da Poli, a objetivo do nosso projeto? É ajudar todas as
maioria eu esqueci. Eu precisaria fazer acho pessoas. Que nem, o que aconteceu comigo,
que, pelo menos, mais um ano. eu me achava vítima do mundo. Uma pessoa
que não tinha recebido amor dos pais. E aí eu
Entrevistadora: E você chegou a fazer o
conheci o Johrei e preencheu minha alma. E
ENEM esse ano?
aí eu já não senti mais aquela carência. Eu
Entrevistada: Não porque passou da não senti mais nada disso e eu percebi que o
data. que eu aprendi ninguém me falou. A gente já
começa a ter uma percepção diferente. A
Entrevistadora: Você já fez o ENEM?
gente começa a entender que nós viemos aqui
Entrevistada: Nunca fiz. Eu preciso não para ser paparicados por pai e mãe. Não,
praticar, né? a gente vem com uma missão de ajudar uma
pessoa, ajudar a outra. E inclusive os nossos
Entrevistadora: Quando a gente conversou
pais. A gente nasce na família para ajuda-los.
na aula você falou para mim que você
Aí eu consegui ajuda-los. A minha mãe, ela,
gostava muito de ler.
a minha mãe biológica sofre de
Entrevistada: Eu gosto. Eu gosto de ler esquizofrenia. Aí eu consegui lá no interior,
coisas do meu interesse, mas eu gosto muito trazer ela para cá, ela não falava nada com
de coisa... eu gosto do, que eu li... Eu li nada, ela fez esse tratamento com energia, aí
aquele Vidas Secas. Eu li porque quando eu ela se recuperou, ficou bem melhor do que
Entrevistadora: Drummond?
Entrevistada: Que eu descobri?
segundo ano do supletivo porque eu fiz o vez em que você desistiu de ler algum livro
cursinho depois do segundo ano porque eu ou parou de ler por sentir alguma
livro um pouco triste, mas a história me sobre o menino. O menino que tinha que
entreteve então eu. morar na rua. Eu acho que um não tinha uma
perna. Então eu, nossa, até lembrei da
Entrevistadora: E com relação aos textos
Vanessa também porque a Vanessa comentou
que você leu esse ano, de Língua Portuguesa,
que ela também foi para lá, para Salvador. A
história era em Salvador, né?
347
Entrevistada: E aí ela falou que tinha um Entrevistadora: Qual foi o último livro que
monte de moleques lá e que quando ela você leu?
chegou e viu aquele monte de moleques ela
Entrevistada: Esse. [Mostra o livro que
lembrou da história do livro, que ela se sentiu
estava em sua bolsa]. Eu li três [capítulos]
na história, que ela se sentiu na época. E aí eu
desse aqui. Tem uns outros falando... Por que
consegui passar o meu sentimento no que a
é um projeto para a humanidade. Eu fico
professora queria. Por que aí eu consigo
muito eufórica com isso.
entender as coisas com o meu sentimento
porque eu também tive essa parte que faltou Entrevistadora: Você se lembra de algum
na infância então eu entendia o sofrimento do livro que você leu e não fazia parte do
menino porque ele também não teve esse projeto?
amor. Então eu também entendia esse
Entrevistada: Realmente, que não fazia
sentimento dele e eu pude passar. Então essa
realmente marcou para mim. Realmente, eu parte do projeto, mas que tinha a ver com
sempre acho que marca muito as coisas, energia: Irmãos de luz. Eu tentei ler um que
assim, marca o que parece um pouco com a chama A cabana, que também falava de Deus
nossa história de alguma forma, de alguma de uma certa maneira, mas não consegui me
coisa que a gente viveu, né? entreter. Na verdade eu não consegui, assim,
me prender no livro. Eu não terminei ele, eu
Entrevistadora: Quando você vai escolher
não posso falar, né? [risos].
um livro para ler você usa esse critério?
Entrevistadora: E você costuma ir à
Entrevistada: Olha, se for falar assim, livraria?
praticamente, mais materialmente no plano
Entrevistada: Costumo porque meus
fenomênico, não mais porque eu já não
evoluo mais com aquilo. filhos, a gente vai no shopping, eles já vão
direto para a Saraiva ou para a, eles gostam
Entrevistadora: Então o que você busca
muito da FNAC.
hoje em dia?
Entrevistadora: E o que seus filhos gostam
Entrevistada: Eu sempre busco além. Eu de ler?
nunca consigo me prender muito nos livros
Entrevistada: Ah, o Vítor gosta de ler
que falam mais da vida do nosso cotidiano. O
que me preenche é o que está no plano tudo com ficção, magia. Então é da mitologia
Eu esqueci o nome, mas é tudo meio assim Entrevistadora: E ele está em que série?
parecido com O Senhor dos anéis. Essas
Entrevistada: Ele estuda na ETEC. É
coisas, assim, que tem magia, que tem guerra
período integral lá. É aqui perto? Não, é no
e tudo misturado e tudo diferente, sabe?
Itaim. Não é longe daqui, só é contramão.
[risos]
Entrevistadora: E a sua filha também
Entrevistadora: E sua menina, ela gosta de
estuda?
ler o quê?
Entrevistada: Para ser sincera eu lia alguma coisa errada. O Vitor às vezes vai
escrever um texto lá e eu vejo e falo “Não,
pouco. A Cláudia, ela sempre seguiu muito o
isso aqui está escrito de maneira errada”. Eu
Vítor e o Vítor, o primeiro livro dele foi
não entendo muito, mas o pouco que eu
Harry Potter, que eu comprei para ele. E aí
entendo da pontuação errada, essa palavra
eu fiz uma dedicatória nesse livro. A
não combina, está sem sentido. Por que o
professora dele tirou xerox da dedicatória e
Vitor é muito bom em matemática. E aí,
colocou no quadro da escola. O professor
quem gosta de informática e de programação
dele, na escola do Estado, escola estadual da
gosta de matemática e já não liga tanto para o
Mooca, ele lia todos os dias para eles, um
Português. Isso é normal. Você é bom em
pouco do Harry Potter. E aí ele se interessa
uma coisa, na outra você acaba... mas como
muito por esses temas. Inclusive ela já foi
eu gosto muito do Português eu acabei
pesquisar a Wiica. Você já ouviu falar? É
reparando nisso.
uma religião de bruxos, né? [risos] E ele está
lendo livros na internet de bruxaria. Ah, eu esqueci de falar de uma professora
que eu tive particular de português.
349
Entrevistadora: E quando você teve aulas Entrevistadora: Como você percebeu isso?
com ela?
Entrevistada: Ele começou a falar de
Entrevistada: Ela chama Maria muitas coisas que a gente falava errado. Mas
Antonieta. Ela foi professora da USP. Ela já é se você não pratica, não lê, você esquece
idosa e já não enxerga bem, mas ela tem tanta porque você acaba falando com algumas
coisa para contar. pessoas ou outras e acaba pegando um pouco
da influência. Isso é muito ruim. Então, por
Entrevistadora: E ela te ensinou bastante
exemplo, o “pra mim” e “pra eu”. Isso é uma
coisa?
coisa que eu tinha gravado muito na minha
Entrevistada: Ensinou. Ensinu também mente porque isso vem de infância. Eu falava
sobre a interpretação de texto, sobre os muito “para mim”. Com o tempo eu estou
fonemas, o que mais? Sobre a parte de conseguindo tirar o “pra mim,” pra mim
gramática, assim. fazer, né, e consegui introduzir o pra eu.
Entrevistada: Meu primeiro trabalho foi assim, essas coisas bem legais. Nossa, eu
trabalhava bastante. O dia inteiro eu não
quando eu tinha 13 anos, entregar folheto no
parava. Oito horas por dia, meu horário era
farol. A gente aprende tanta coisa assim
das 13h30 às 20h30.
porque não é só você entregar o folheto, você
conhece um monte de gente, conhece a Entrevistadora: E você conseguia estudar
índole da pessoa. Aí você vê que tem os nessa época?
homens que ficam mexendo com as
Entrevistada: Um tempo eu estudei de
mulheres, aí tem mulher que gosta que os
caras chamem a atenção. Aí eu lembro que eu manhã. Depois eu passei para a noite e fui
era emburrada, eu sou totalmente diferente estudar de manhã. Foi a pior coisa que eu fiz
das outras. Na verdade, eu sempre fui porque o ensino à noite é muito pior em
carismática, mas quem vinha de fora para escola pública. Também eu não sei, eu acho
tentar fazer amizade eu era emburrada que é a energia. O pessoal já chega cansado.
porque, tipo assim, “eu não te conheço. Não O melhor horário para estudar é de manhã.
vou ser simpática porque eu não te conheço” Você está com a cabeça limpinha, você está
[risos] Coisa de adolescente que também não pronto para receber as informações. Então, aí
tinha muita instrução. Então eu aprendi, depois que eu saí de lá eu fui para o
roupas porque até então eu só ficava usando a coisa. Lá eu vendia perfumes, canetas
porque minha tia trabalhava o dia inteiro, não ela já não tem muitas coisas que tinham
dava tempo de dar atenção para a gente. Não antes. A gente trabalhava antigamente com
podia. A gente tinha que se virar, comia lá eletrônicos, vídeo game, tudo que era tipo de
qualquer coisa. Um arroz com ovo, arroz com brinquedos importados, vasos da China.
banana. Coitada, ela era um pouco mais velha Sabe, os vasos da China, as artes da China
que eu, mas ela cuidava de mim direitinho. sempre foram muito belas. Coisa linda. E lá
Lá eu aprendi a fazer feijoada. Aquele tinha todas essas coisas. E aí que ficava
encantada com a loja. Eles não eram fáceis,
351
os meus chefes. Eles eram bem frios, mas eu eu trabalhei naquela loja e eu já sabia falar.
sempre me vi no meio dessa coisa do Japão. Eu não sabia o que era. Eu aprendi Konitua,
Ah, eu lembrei de uma coisa. Eu li muitos boa tarde, Saionara, boa noite. Hamaté é até
livros da Seicho-no-ie. logo. Bom dia é.... Nossa, eu sabia. Peraí,
deixa só eu lembrar. Fugiu.
Entrevistadora: Nessa época?
Entrevistadora: Então esses livros da
Entrevistada: Nessa época não. Depois
Seicho-no-ie foram muito legais.
que eu ganhei o meu primeiro filho. Eu li um
livro da Seicho-no-ie que era 10 passos para Entrevistada: Foram. Sabe por quê? Só
a prosperidade, li Dinamize sua capacidade tem palavras positivas. Um dia vai lá e
e não sei o que lá dos jovens. Eram tipo escolhe um livro para você. Esse Dinamize
livros de auto-ajuda mesmo. sua capacidade, nossa, foi muito importante
na minha vida também. Muito importante.
Entrevistadora: E foi importante para você
ler esses livros? Entrevistadora: O que ele trouxe para sua
vida?
Entrevistada: Foram muito importantes.
Mas eles também entravam na parte Entrevistada: Ele diz que você é capaz
espiritual, viu? [risos] Esse 10 passos para a de tudo. Ele diz que você é, que não tem nada
prosperidade era para aprender como se dar que você não possa fazer. E aí eu sempre
bem na vida, financeiramente, mas eles falei isso para os meus filhos, o que eu
explicavam muito o plano espiritual. É do aprendi nesse livro. Minha filha às vezes fala
Japão também. Tudo que é do Japão me atrai “será que isso? Será que aquilo? ” Aí desde
com muita força. Até o idioma japonês, o quando ela se entende por gente, ela me
pessoal está falando e eu estou prestando perguntava e eu falava “Não há nada que
atenção. Então eles falam uma palavra e eu já você não consiga fazer. Nada! ” Esse livro foi
pergunto. Se eu vejo que eles falam muito um muito importante para mim. Eu insisti muito
palavra eu pergunto. Até no outro dia eles para que o meu filho lesse quando ele era
estavam falando muito uma palavra, eles novinho, ele tinha 11 anos, mas é que ele é
falavam korê, korê. Aí eu perguntei o que era fininho. Eu disse “Vítor, faz um esforço para
korê. É como. É uma palavra de ligação, você ler esse livro porque ele é muito legal”.
como é que fala...
Entrevistadora: E o Vitor leu? Ele gostou?
Entrevistadora: Uma conjunção.
Entrevistada: Ele gostou.
Entrevistada: É. Por exemplo, ‘Eu vôo
Entrevistadora: Você ainda tem esses
como borboleta”. Tipo uma fantasia, fazer
livros na sua casa?
uma comparação. Aí eu já aprendi também
Arigatô Kosaimá. Arigatô eu já sabia porque
352
Entrevistada: Eu tenho. Posso perguntar também meio moleca. Eu falei para ele assim
filho que compra. Meu filho pega todo Entrevistadora: Você é romântica?
dinheiro dele e compra em livros. [risos] Em
Entrevistada: É. Eu li e gostei daquele
mangás e aqueles outras da, que até
colecionador gosta, que fala dos super heróis filme, não lembro o nome inteiro. Não sei o
Entrevistada: É. Tem até um nome lá. Entrevistada: O tranco do Ipê, que tem
Ele tem um canal no YouTube. Nossa, você até um outro que é muito parecido. Não sei se
ia gostar muito de ver ele. Ele narra jogos de é o Til. Acho que é o Til que é dele também.
vídeo game e aí a voz dele é muito legal. É Também comecei a ler ele um pouco, mas
que eu sou mãe, né? [risos] Mas no canal também não li tudo. Mas não porque eu não
noticiário. Ele fala de vários filmes novos. Aí organização na minha vida. Então eu
eles pede ideias. Aí ontem mesmo eu falei começava uma coisa e depois já queria
“olha, Vitor, você fala dos filmes novos, mas começar outra. Começava sem terminar então
é bacana você tem uns cinco minutos de túnel isso é realmente uma falta de organização
do tempo para você falar dos filmes antigos minha. Na vida. Mas graças a Deus meus
que também são muito legais”. E tem gente filhos não são assim. [risos]
que não conhece os filmes antigos. Os Entrevistadora: E depois que você saiu
meninos novos, agora, não conhecem os dessa loja, Arigatô, você saiu de lá?
filmes antigos, não conhecem os filmes bons
que passaram antigamente. Entrevistada: Eu saí porque eu fiquei
grávida, aí eu saí de licença maternidade,
Entrevistadora: De quais filmes você
passou os quatro meses, eu tinha que voltar e
falaria?
deixar o meu bebê. Aí voltei e fiquei um mês.
Entrevistada: Na idade deles, assim, eles Nossa, não consegui ficar mais. Eu não
gostam dessas coisas tipo Resident evil, conseguia, sabe por quê? Porque era como se
Senhor dos anéis. Eu adoro essas coisas eu deixasse a minha alma em casa. Eu sentia
também. Eu adoro. Eu tenho esse lado um vazio tão grande. Não conseguia mais
trabalhar assim. Aí depois de um ano. Por
353
exemplo, quando ele fez um ano eu tentei Entrevistada: Hoje em dia eu trabalho é,
voltar a trabalhar num salão de cabelereiro. com energia de luz.
Trabalhei uns 6 meses. Também não
Entrevistadora: E você pretende continuar
consegui ficar.
a trabalhar com energia de luz?
Entrevistadora: Como cabeleireira?
Entrevistada: Sim. Não é uma coisa que
Entrevistada: Como ajudante de
eu vá parar nunca.
cabeleireira. A minha tia é cabeleireira,
Entrevistadora: Mas você não ganha nada
então...
com isso?
Entrevistadora: Alguma coisa você sabia.
Mas você também não conseguiu ficar? Entrevistada: Não ganho nada.
Entrevistadora: Você não tentou mais Entrevistada: Sim. E ainda quero fazer
é feito um culto de elevação para o espírito que deverá ser comprovada com o
entendimento que vieram para cumprir Já foi comprovada pela ONU. Coloca na
missão de alimentar o homem. internet
Então daqui a 10 anos eu quero ter mais Entrevistadora: E você lê de uma vez ou
conteúdo para passar para as pessoas. Por você lê um pouquinho e para? Por exemplo,
exemplo, se eu puder dar aulas de inglês. você escolheu ler a Fé correta, então você
Essa faculdade da Cultura inglesa é nova, leu...
mas quem consegue essa graduação pode dar
aulas até lá fora. São quatro anos só de Entrevistada: Eu leio toda aquela parte.
Entrevistadora: Você tem que comprar palavras que não tem como substituir o
esses livros ou eles são distribuídos? sentido, o sentimento.
um valor, realmente, só para pagar o Língua Portuguesa você teve que ler algum
Entrevistada: Não sei, acho que desde eu vim eu era uma pessoa sonhadora,
pequena. A gente não tinha televisão quando ignorante das violências do mundo, das
eu era pequena. Eu lembro que eu andava coisas que poderiam ter acontecido comigo.
todos. Somos em nove irmãos e eu sou a “...você vai trabalhar fora e vai continuar a
mais velha de todos. Eu sou a mãezona, foi estudar”. Ai meu pai já até tinha arrumado
eu que trouxe eles para cá. Minha mãe está um trabalho. Naquele tempo, emprego para a
Entrevistada: Sou gaúcha e fui criada não quis ir. Eu combinei com uma amiga
minha que tinha feito a oitava série comigo
em Santa Cida. Eu tinha dois anos e meio
falou “vamos embora para Foz do Iguaçu,
quando meu pai mudou para lá. Meu pai
que é no Paraná, que eu tenho uma irmã lá e
mora lá até hoje. Aí eu vim para São Paulo
ela arruma um emprego para a gente”.
assim, por ser boba demais. [risos]
Emprego em casa de família que era a única
Entrevistadora: Por quê? coisa que a gente conseguia fazer. Aí lá
Entrevistada: Porque, assim, se fosse viemos nós duas. Minha mãe não queria
deixar de nenhum jeito porque era muito
hoje, conhecendo a maldade e a malícia do
longo, no Paraná, outro estado, muito longe.
mundo, eu jamais viria. Não que eu não goste
Para ir em casa não ia ser fácil. Aí eu me
de estar aqui, claro que eu gosto. Mas quando
mandei para Foz do Iguaçu com a Marieta,
358
essa minha amiga. Aí chegamos lá e fomos quando a gente saiu de Foz do Iguaçu, eu e
para a casa da irmã dela. O marido dela, as essa amiga, não, digo, de Santa Cida, ela
crianças acolheram a gente. Depois, a irmã também queria vir para São Paulo. Então, nós
dela conhecia muita gente em Foz do Iguaçu duas tínhamos combinado. Ela sempre falava
e começou a procurar emprego para ela e que queria vir para São Paulo. Um dia,
para mim, em casa de família. E aí eu fiquei conversando, ela falou: “eu sonho vir para
2 anos em Foz do Iguaçu. Mas meu sonho era são Paulo ”. E eu falei “eu também tenho
vir para São Paulo. Não sei porquê, mas esse sonho. Vamos juntas? ”. Só que aí nós
desde os meus 12 anos e tinha essa coisa na viemos para Foz do Iguaçu, nós duas, e ela
cabeça: “Quero ir para São Paulo”. Acho que era muito danada [fala baixo] para algumas
quando eu tinha 12 anos meu pai comprou coisas. Ela começou a sair com os homens e
um rádio, aí meu pai ouvia São Paulo e eu engravidou. Aí eu fiquei sozinha com aquele
achava que era o paraíso. [risos] Aquela coisa meu sonho de vir para São Paulo. Eu pensei
de criança, 12 anos, para mim São Paulo era “agora está osso porque sozinha não tem
o paraíso e eu queria conhecer, mas eu não como”. Fiquei lá em Foz do Iguaçu
tinha ideia do que era. Nossa, eu trabalhava trabalhando. Eu trabalhava num hotel pensão
na roça até os 20 anos. Eu não tinha ideia do perto da rodoviária. Eu trabalhava de
que era uma cidade grande. arrumadeira. Eu ajudava a limpar, ajudava a
lavar a roupa. Tinha a dona, que era uma
Entrevistadora: O que você fazia ou
senhora, e tinha uma outra senhora que
cultivava na roça?
ajudava a fazer as coisas também. Eu entrei
Entrevistada: Ajudava a fazer tudo. de ajudante porque eu era conhecida dessa
Plantava milho, colhia milho, capinava mato, irmã da minha amiga. E eu fui trabalhar lá.
assim, tirava o mato do meio do caminho. Nesse lugar eu conheci essa senhora que era
Tudo. de São Paulo. D. Terezinha, ela comprava
coisas lá no Paraguai. Todo mês ela ia uma
Entrevistadora: Junto com seu pai?
vez para o Paraguai. Ela ia uma vez por mês
Entrevistada: Tirava leite, junto com para Miami e outra vez no mês ela ia para o
meu pai, minha mãe, meus irmãos. Tirava Paraguai. E daí ela comprava um monte de
leite de vaca, fazia tudo. Tratava os porcos, coisas e às vezes ela pagava para a gente
dava pasto para os porcos. Fazia tudo isso, atravessar a ponte para ajudar a trazer
daí você vir para uma cidade grande. whisky, roupa. Whisky, por exemplo, só
Imagina? Eu tive muita sorte. Hoje, quando podia trazer dois por pessoa. Ela ia na loja,
eu penso, eu penso assim “nossa, eu tive comprava um monte, que ela ia trazer para
muita sorte. Deus me protegeu muito” .São as São Paulo, e deixava guardado na loja,
orações da minha mãe porque podia ter porque eles já conheciam ela. Daí ele levava
acontecido tanta coisa comigo; porque a gente e ia trazendo.
359
cada um, passava. Depois ele colocava tudo Entrevistada: Não, demorou, deixa eu
na mala e trazia para São Paulo para vender
ver. Ela me deu esse telefone e esse endereço
aqui. Essa senhora se tornou muito amiga
no meio do ano mais ou menos. Aí eu fiquei
minha. Toda vez que ela vinha de São Paulo
com aquilo na cabeça, sabe? Um sonho de
ela não ficava em outro lugar que não nesse
infância ir para São Paulo. Era a única chance
lugar aí que eu trabalhava. Uma senhora
que tinha aparecido de vir para São Paulo e
muito legal. Eu tive sorte. Aí um dia ela me
eu tinha que agarrar aquela chance. E com
chamou no quarto dela “ah, vem ver os
aquela minha ignorância daquela época. Eu
vestidos bonitos que eu comprei lá no
era muito ignorante. Eu não via maldade
Paraguai ” Daí eu fui. A gente sempre
nenhuma. Eu achava que todas as pessoas
conversava. Aí, não sei o porquê, calhou de
eram boas que nem eu lá no meio do mato.
cair a conversa de estudo. Eu comentei com
Não fazia maldade com ninguém, não matava
ela, assim, dentro do quarto dela lá no hotel.
uma barata. Eu achava que todo mundo no
Eu comentei com ela “Ah, eu vim para Foz
mundo era assim, igual a gente do interior.
do Iguaçu porque eu queria muito estudar,
Eu fiquei com isso na cabeça até o resto do
mas até hoje eu não tive oportunidade. Não
ano. Eu fiz os planos, na minha cabeça. Eu
deu certo”. Em Foz do Iguaçu era meio difícil
vou trabalhar até o fim do ano e quando
naquele tempo.
chegar o fim do ano pego férias, vou viajar
Entrevistadora: Que ano era? para Santa Cida ver minha mãe, passar o
Natal com ela. Não vou falar nada para ela
Entrevistada: 1982, é 1982. Ai ela falou
porque se eu falar ela vai dar cria. [risos] Ela
assim “ Por que você não vai para São Paulo?
já não gostava que eu tinha ido para Foz do
Lá é muito mais fácil. Lá tem supletivo, tem
Iguaçu, imagine se ela soubesse que eu
não sei o quê”. Eu falei, “olha D. Terezinha,
queria vir para São Paulo? Ela não ia deixar
mas eu não conheço ninguém em São Paulo.
de jeito nenhum. Ai o que eu fiz? Tudo
Como é que eu vou para São Paulo? ” Daí ela
planejado dentro da minha cabeça. Viajei,
falou “Não, eu vou te deixar meu endereço
passei um mês lá de férias. Nem a minha
com você e meu telefone. Eu não preciso de
patroa de Foz do Iguaçu não sabia.
empregada, mas eu arrumo para você porque
eu conheço muita gente”. Com as vendas Entrevistadora: Estava tudo acertado na
Entrevistada: Tudo na minha cabeça. Aí, tinha falado nada para ela porque acho que
quando eu cheguei de volta, passei um mês ela até tinha esquecido que tinha me dado
com a minha mãe e em janeiro, quando eu esse telefone. Ela só fez por obrigação
voltei de folga eu falei para a D. Carmen: mesmo, por constar. Acho que, na cabeça
“olha D. Carmem, eu vou trabalhar um mês e dela, ela nunca pensou que eu fosse vir
vou embora”. “Você tá doida? Para onde mesmo e eu, bobona, vim parar no Tietê.
você vai? Arrumou outro emprego? “ Ela Naquele tempo a única rodoviária era o Tietê.
achou que eu tivesse arrumado outro Eu vim parar no Tietê sozinha, sem a minha
“Mas para onde? “ Eu disse “Eu vou para São procurasse em Foz do Iguaçu, não iria saber
Paulo”“. Você tá doida? Você vai sozinha?”. onde eu estava. Nem a D. Carmen sabia onde
Eu não disse quem era, porque senão ela ia eu estava. Só eu sabia onde eu estava. Eu e
muito de mim, mas daí ela foi, acertou tudo na rodoviária em São Paulo. E aí? Eu não
comigo, pagou todos os meus direitos. Foi estava acostumada com aquele mundo.
tudo certinho e eu não gastei um centavo. Escada rolante eu nunca tinha visto na minha
Pensei assim “Se eu for para lá e não gostar vida. Mas eu prestei atenção. Eu tinha muito
ou então me perder, não achar a D. sangue frio. Até hoje eu me admiro, eu ainda
Terezinha, eu tenho dinheiro para voltar ”. tenho esse sangue frio para resolver as coisas.
Tudo o que eu tinha era uma mala que o meu Eu não resolvo as coisas na emoção. Eu sou
pai tinha me dado lá em Santa Cida dois anos muito emotiva, tudo me toca, mas na hora
atrás, e minhas coisinhas, minhas roupinhas e que eu tenho que resolver uma coisa, ou na
uma bolsa de mão. A mala, calçado, roupa e hora em que eu estou passando por uma
uma maletinha que era minha bolsa de mão. dificuldade... Eu fui assaltada três vezes e
Não comprei um grampo. Peguei, guardei todas as três vezes sempre fui sangue frio. Eu
bem aquele dinheiro, comprei a passagem sempre segurei o ímpeto, sempre com aquela
para São Paulo, cuidando muito bem daquele confiança que tudo ia acabar bem e,
papel, com aquele telefone e aquele endereço realmente, tudo acabou bem. E daí nesse dia
e rezando, pedindo a Deus que me eu lembro que eu cheguei na rodoviária, eu
amparasse. E lá vim eu. Saí de lá nove horas nunca tinha visto uma cidade grande. Eu
da noite de um dia e fui chegar em São Paulo lembro que eu olhei pela janela do ônibus
duas horas da tarde do outro dia. Mas a D. que eu vim e tinha um viaduto passando por
Terezinha não sabia que eu vinha. Eu não cima de mim, eu falei: “meu Deus, olha onde
361
te jogar na rua”.O que você quer de São a porta para ninguém. Faz de conta que não
Paulo?” Eu falei: “Bom, D. Terezinha, meu tem ninguém em casa”. Dai eu aproveitei
objetivo é estudar. Eu preciso estudar”. Foi a esses dias que eu fiquei em casa para limpar
primeira coisa que veio na minha cabeça. os armários dela, fiz uma faxina. Uma boa
Bom, e já era fevereiro porque eu tinha faxina na cozinha dela. Limpei armário,
pedido a conta começo em janeiro na D. parede, tudo. Aí teve um dia que ela ligou de
Carmen, daí esperei um mês ainda até ela noite para mim, estava de noite e eu estava
acertar tudo comigo, até ir no contador e.... assistindo a novela na sala e ela ligou”.Clair,
vai passar um rapaz aí, ele é meu filho,
Entrevistadora:... resolver os trâmites.
chama Édson e a mulher dele teve neném
Entrevistada: Isso, mais de um mês. Eu ontem e ela vai chegar em casa amanhã e ele
sei que era metade de fevereiro mais ou precisa de uma empregada pelo menos por
menos, quando eu cheguei em São Paulo. Daí um tempo. Você quer ir?” Claro que eu
ela falou que nessa época não ia ter mais aceitei. Dali a pouco ele bateu na porta e
vaga em colégio estadual, ela disse que eu falou que era o Édson e eu abri a porta. Ele
tinha que fazer colégio pago. Eu ia ter que combinou comigo, no dia seguinte, como eu
trabalhar em casa de família e pagar o não conhecia nada de são Paulo, ele
colégio. Mas ela ficou de ver com o amigo do combinou de pegar lá oito e meia da manhã
filho dela que estudava em um colégio perto do dia seguinte para eu ir para a casa dele
da casa dela. O Santa Inês. Hoje em dia não porque a mulher dele ia chegar de tarde da
existe mais o supletivo Santa Inês. Aí ela maternidade. Eles já tinham duas menininhas
pegou o carro e me levou lá no Santa Inês, e eu fiquei trabalhando na casa deles e
me matriculou. Eu tinha um dinheiro. Ela me estudando. Eu trabalhava o dia inteiro na casa
matriculou, eu paguei a matrícula, ela fez deles e à noite eu ia estudar lá na Santa Inês.
uma carta, como se eu fosse empregada na
Entrevistadora: E a casa deles era perto do
casa dela para eu ganhar um desconto. Eu
seu colégio?
lembro que eu ganhei 30% de desconto na
mensalidade da escola. Aí eu fiz o primeiro e Entrevistada: Era perto. Eu ia andando.
o segundo ano do ensino médio. E eu não Eu ia e voltava à pé da escola. E foi assim
tinha emprego. Eu estava na casa dela e ela ia que eu comecei minha vida em São Paulo. Eu
arrumar emprego para mim. Ai ela falou que fiz o primeiro e o segundo ano, só que no
estava tudo bem, para eu ficar na casa dela meio desse ano, porque eu fiz os dois anos
alguns dias e estava perto do carnaval. Ela em um ano só, no meio do ano, essa minha
falou “Olha, eu vou passar o carnaval na patroa que era nora dessa D. Terezinha, eles
praia com o meu filho e o meu marido”. Olha resolveram mudar de casa. Arrumaram uma
a confiança que ela teve em mim”.Eu vou casa lá na Casa Verde e eu trabalhava com
deixar a chave com você, mas você não abre eles ali na Aclimação. O Santa Inês era no
363
não estava mais... E aí o que foi que Entrevistada: Eu falei “Meu Deus, como
aconteceu? Eu trabalhava num restaurante, alguém tem coragem? ” Você vai trabalhar
no caixa, à noite. Fiquei seis anos lá. O para ser, eu trabalhei de secretária de médico,
restaurante fechou, eu ganhava bem, tinha eu trabalhava para cinco médicos para ganhar
um padrão de vida razoável e eu moro R$800,00. Aí registra e fica R$600,00. Como
sozinha com meu filho. Eu criei ele sozinha, é que alguém tem coragem de oferecer um
nunca morei com o pai dele. Foi um caso que salário desses? E aí por sorte, quando eu fui
eu tive, de oito anos. E eu engravidei e eu pedir o seguro-desemprego, o CAT me
achei que era a última chance que Deus forçava a fazer um curso no Senac e eu fiquei
estava me dando para eu ter esse filho e eu muito brava na época. Nossa, eu fiquei
tive. O pai nunca me deu muito apoio, mas eu enlouquecida no dia eu xinguei a moça,
sempre fui muito equilibrada de saber separar coitada, ela não tem culpa. Isso é lei, mas eu
eu e o pai e a criança e o pai. Eu nunca usei fiquei muito puta da vida com a moça. Daí
meu filho para chantagear. Jamais. Eu tinha três cursos para escolher: cuidadora, de
sempre pensava muito “meu filho tem direito idoso, telemarketing e balconista de farmácia.
de ficar perto do pai, o pai tem o direito de Eu escolhi o menos pior que eu achei, que era
ficar perto do filho”. E graças à Deus, ele balconista de farmácia. Desde o primeiro dia
faleceu há dois anos, o pai dele, mas o meu que eu fui nesse curso eu me senti tão bem
filho via ele, tem o maior respeito por ele, o naquela classe. Você tem que ver como eu
maior carinho. Eu nunca atritei os dois por me senti. Eu pensei “gente, eu estou no meu
conta disso, mas eu sempre criei ele sozinho. lugar, é aqui que eu quero estar”. [risos] Por
Quem me ajudava era minha família, meus isso que eu voltei a estudar.
irmãos. Ele tem como pai mesmo o padrinho
Entrevistadora: Você gostou do fato de
dele, que é meu irmão. Ele adora esse tio,
estar na escola?
nossa. Quando ele era pequenininho, quem
rolava com ele no chão, no carpete era ele. Entrevistada: De tudo! De estar na
Nós éramos muito juntos, eu meus irmãos,
escola, eu admirei demais a organização que
minhas irmãs. O padrinho dele era o mais
tem no Senac, a dedicação dos professores
chegado. Até hoje o xodó da vida dele é o
porque, assim, tiveram dois meses de curso
padrinho e o padrinho a mesma coisa. Enfim,
de balconista de farmácia. É um curso rápido,
foram anos muito difíceis e, agora que eu
mas o esforço que eles fazem para ensinar
perdi esse emprego no restaurante, eu
você, o esforço dos professores. Teve três
ganhava uns R$ 1.600,00. Pagava o aluguel e
professores no curso, nesses dois meses.
sobrava um dinheirinho. E aí eu fui procurar
Foram três períodos nesses dois meses. Eu
emprego.
me senti em casa desde o primeiro dia. Eu
Entrevistadora: Aconteceu um choque? falei “Eu posso estudar, sim”. E se você quer
365
saber eu fui uma das melhores alunas da Entrevistadora: Você acha que está
classe. Eu não fui pegar meu certificado, relacionado com o fato de você não ter tido
ainda, mas eu tenho certeza que foi assim e oportunidade...
aqui também. Eu vim estudar aqui e eu tenho
Entrevistada: Muita coisa. É muita coisa
certeza que eu sou uma das melhores alunas
junta desde a infância porque meu pai bebia
da classe porque eu levo à sério, eu sei o
muito. Inclusive, eu sai de casa com 20 anos
valor disso.
por causa do meu pai. Coitado, ele já faleceu,
Entrevistadora: Você fez esse curso no que Deus o tenha. Eu já tinha resolvido esse
ano passado? problema dentro de mim quando ele faleceu
Entrevistada: Não, esse ano. Foi no então eu não fiquei com remorso. Mas é
muita tristeza de criança e eu sofri muito
começo do ano e eu não queria perder porque
preconceito porque eu não sei se você sabe,
eu fiz o curso, eu entrei na metade de junho e
mas no Sul tem muito preconceito. Lá uma
ele acabou na metade de agosto. As aulas
pessoa da sua cor já é considerada negra. Lá
aqui começaram no começo de agosto. É
em Santa Cida você tem que ser branco
começaram em agosto. Em um periodozinho
papel. Então, se você tem essa cor você é
eu estava fazendo os dois. De manhã eu
negro [diz apontando para o próprio braço].
estudava lá, de tarde eu trabalhava no
Então você é sempre deixado de lado, se tem
escritorinho que eu trabalho e de noite eu
bullying eles te pegam o tempo todo. Então,
vinha para cá. Foi puxadíssimo e eu tinha
desde os sete anos de idade eu sofri bullying.
trabalho de lá para fazer, trabalho daqui para
Daí eu sempre me via como prego, cada vez
fazer já. Foi um sufoco para mim, mas eu não
batendo na cabeça, assim, e você vai
queria desistir. E mesmo aqui na escoa, eu
entrando cada vez mais na tábua. Vai
estou conseguindo até quatro horas e eu
afundando cada vez mais. Assim eu me via
achava que eu não tinha capacidade. Eu
então eu formei uma personalidade em mim
sempre me senti no meu lugar. [risos] Eu
bem triste e deturpada. Eu não me valorizava,
sempre falo para o meu filho. Eu falei “Filho,
auto-estima eu não tinha nenhuma. Me
eu me encontrei”. Indo para a sala de aula
envolvia com homens, depois que eu terminei
aprender, acho que para mim o
com o pai do meu filho, eu comecei a me
conhecimento, é isso o que me motiva, o
envolver com homens que não tinham nada a
conhecimento. Você acredita que eu tive
ver, que não me acrescentavam nada. Pelo
depressão há dez anos atrás? De estar lá no
contrário, só me.... só achava esse tipo de
fundo do poço e cavar mais um pouquinho.
homem, parecia que eu tinha dedo podre. Por
Eu tive depressão profunda.
quê? Porque minha autoestima era rasante. E
só depois da depressão eu fui construir a mim
mesma e minha autoestima. Hoje eu tenho
366
autoestima. Você vai até aí, dali eu não deixo toda bonitinha, e outra coisa é sua vida, que
você passar mais. Seja quem for. você tem que viver aqui. Quando aquele
homem começou a falar eu disse “Eu nunca
Entrevistadora: E você fez um tratamento?
mais vou sair disso, é aqui que eu quero
Entrevistada: Tem um monte de coisas. ficar”. Aí eu comecei a fazer o tratamento. O
Eu acho assim, em primeiro lugar e o meu fato de você assistir a palestra vai te dando
conhecimento religioso porque o espirita que conhecimento. Você começa a procurar, ler
estuda mesmo a sua religião, o espiritismo, livros sobre a doutrina. Depois foi indo, mas
ele aprende a lidar consigo mesmo e com o eu ainda entrei em depressão porque eu não
outro. Então esse conhecimento foi o que, na tinha um conhecimento profundo. Eu tinha
verdade, me tirou da depressão. que chegar a isso para poder me reconstruir.
Eu tinha uma psique bem deformada de
Entrevistadora: E quem te apresentou a
desvalorização de si. Eu tive que passar por
religião?
isso, eu sei. Na época eu sofria muito e
Entrevistada: Eu tive contato com a perguntava para Deus porque eu estava
doutrina espírita há muitos anos, mas eu não passando por aquilo, mas hoje eu sei que era
reconhecia e nem gostava. Eu era católica. A para minha construção. Para a minha
minha família era católica e quando alguém construção de uma pessoa nova, tanto que
me falava essas coisas eu saia correndo. Eu hoje eu vim para uma sala de aula. Naquele
tinha aquele preconceito. Aí, quando o meu tempo nem me passava pela cabeça, nunca
filho tinha quatro anos, eu estava mal, tinha mais estudar, nem um cursinho fazer. Nem
terminado um namoro com um cara, eu passava pela cabeça porque eu achava que eu
estava ruim, minha cabeça não estava bem. não tinha condições. Eu estava há uns dois
Aí a minha ex-cunhada, ela já faleceu, e a anos no espiritismo quando eu entrei em
mãe dela me levaram na casa espírita. Era depressão. Aí eu fui obrigada a estudar a
uma sexta-feira. Eu nunca mais esqueci esse fundo a doutrina para poder me curar. Eu
dia. Na hora em que eu entrei eles estavam fiquei dez anos lutando contra a depressão.
fazendo a oração de acolhimento na hora que Eu me curei de vez há pouco tempo. É uma
chega. E quando eu entrei eu me perguntei construção. Dez anos. É uma construção,
“como é que eu nunca encontrei um lugar você vai trabalhando. (...)
desses? “ E o homem começou a falar, tinha Entrevistadora: E nessa sua trajetória de
palestra. Quando ele começou a falar, e eu vida, a leitura foi importante em algum
sempre fui uma pessoa que fez muitas momento? Você gostava de ler?
perguntas, e as religiões não respondem as
perguntas da gente. Tem gente que conhece Entrevistada: Não. Eu só fui ler depois
de cor e salteado a bíblia, mas não responde que eu fiquei depressiva. Depois da
sobre a vida. Uma coisa é a bíblia, que está lá depressão eu fui obrigada a ler porque eu
367
Entrevistadora: E o que você lia? nós fomos atrás de outro remédio, outro
antidepressivo que não engordava. Tirava a
Entrevistada: Aí, nesses três meses que fome, na verdade, fazia o mesmo efeito, mas
eu não sabia o que eu tinha, eu ia para o não dava a ansiedade. Só que eu fiquei quatro
hospital, eles me davam Diazepan, eu voltava anos tomando antidepressivo e não resolvia o
melhor, dormia, ficava dois, três dias bem e problema. Um dia que eu ficasse sem tomar
depois voltava com crise de novo. Assim eu eu ficava em crise. E aí eu comecei a pensar e
fiquei se saber o que eu tinha. Nesses três já tinha estudado um pouco o espiritismo. Foi
meses eu fui no médico, fiz exame do ali que eu comecei a ler. Livro eu não tinha
coração, disso, daquilo, da tiroide. Não tinha coragem de ler. Era muito grosso. Eu não
nada. Aí o meu patrão mesmo, que era tinha paciência para ler, mas aí eu comecei a
médico falou “Você não nada, o seu ler revistas. Ler revista espírita que fala sobre
problema é depressão. Quando ele falou depressão, síndrome do pânico, fala sobre
depressão eu falei “Ah, o que é isso? ” Aí foi todas essas coisas. Eu comecei a estudar e
que a ficha caiu. Aí eu falei “Bom, e agora?” depois comecei a estudar sobre a mente,
Aí eu comecei a tomar antidepressivo, outras revistas. Aí que eu comecei a ler
Entrevistada: Sim, mas eu achava chato, Tinha a ver com o que você esperava dela ou
era diferente?
eu achava meio fantasioso, na verdade, esses
livros. Eu lia, lia e achava meio fantasioso, Entrevistada: É diferente do que eu
inventado. Aí depois, quando eu fui estudar à
passei no passado porque eu estudei até a 8ª
fundo, eu vi que não tem nada de fantasioso.
série em uma escola muito séria do Estado,
Aí, para a minha cura, eu não me curei com
mas lá em Santa Cida. Muito séria, mas não
antidepressivo, eu me curei com
tem a bagunça que tem aqui. É isso o que me
conhecimento, através dos meus estudos
incomodava mais. O que me incomodava era
espíritas, e de remédios homeopáticos. Fui
a falta de respeito. Eu também, mas nem
fazer por conta o tratamento homeopático
quando eu era mais nova assim, da idade
porque eu lia nas revistas espíritas que
deles, eu tinha coragem de desrespeitar um
homeopatia era muito para isso, para aquilo,
professor do jeito que eles fazem. Eu não
até para a depressão. Então, resolvi testar. Já
tinha. Eu acho muito feio. Isso é que mais me
fazia quatro anos que eu tomava
incomodou aqui. O resto tudo bem. A gente
antidepressivo e não mudava nada. Só podia
sabe que as coisas são todas feitas “nas
sobreviver. Não curava, só controlava porque
coxas”, né?
o remédio alopático tenta amenizar o efeito,
mas a depressão vem de outro lugar, vem do Entrevistadora: O que você identifica
como meio “nas coxas”?
369
ouvir]. E eu estou saindo daqui sem saber computação porque eu sou muito fraca em
quase nada. Eu gosto muito de estudar. Claro, computação.
tem muitas coisas que eu aprendi.
Entrevistadora: Você trabalha com o quê?
Principalmente com a aula de Sociologia,
Filosofia porque foi fascinante. Eu nunca Entrevistada: Eu trabalho em um
tinha tido essas aulas. No tempo que eu escritorinho. Eu estou muito mal remunerada
estudei era Ditadura Militar. Não podia falar e quero sair. Ele nem registra também. Então
certas coisas e hoje pode falar tudo. Eu eu estou procurando, estou sempre
aprendi bastante com as aulas de Filosofia e procurando alguma coisa que me pague mais,
Sociologia. Português eu aprendi bastante que registre. Está difícil. Está bem difícil. Eu
também coisas que eu tinha esquecido. vou fazer algum curso, alguma coisa, mas eu
Matemática algumas coisas que eu tinha quero fazer no SENAC, que eu acho muito
esquecido eu também aprendi. O que mais? bom.
Coitado do professor de Biologia. Ele nunca
Entrevistadora: Eu gostaria de conversar
conseguiu dar matéria. Quase nada. O
um pouco mais sobre as aulas de Língua
problema é que sempre no fim da semana não
Portuguesa. Como eram as aulas?
tinha aula. As aulas eram de quinta e sexta e
sempre era teatro, era um evento, era não sei Entrevistada: Ela sempre se esforçou
o quê, não tem aula porque tem eleição. para trazer o material xerocado porque no
Outros professores também foram começo ela vinha e começava a anotar na
prejudicados, como a [professora] de Inglês. lousa. Ela começava a anotar na lousa como
Isso porque eles começaram depois, no os outros professores. Depois ela começou a
começo a gente não tinha essas aulas. perceber que aquilo não dava certo. Perde-se
pessoa excelente, super sensível. Ela se inteiro fazendo trabalho, uma pesquisa,
identificou comigo. Ela não é espírita, mas passando à limpo. Às vezes eu fazia o
ela tem todo um contexto espiritual sem trabalho em casa, no computador, e no dia
saber. Ela tem esse lado iluminado como seguinte eu chegava, fazia resumo, lá na
pessoa que eu soube identificar, as outras mesinha lá. A maioria não tem esse tempo.
pessoas eu acho que não, mas quem é espírita Tinha gente que chegava aqui correndo antes
identifica isso nas pessoas. Um dia eu falei da aula para fazer o trabalho. Se ela desse um
assim para ela: “a senhora é muito livro para a gente ler, a maioria não ia ler.
iluminada” . Aí a gente começou a conversar
Entrevistadora: Você trouxe seu caderno?
um pouquinho e eu contei para ela que sou
espírita. Então, isso também tem. Às vezes Entrevistada: Deixa eu tirar ele da bolsa.
ela dava conselho para os alunos e eu achava A maioria não ia ler ou não ia ter tempo de
isso muito bonito. Quando começava a farra ler, assim como muita gente não entregou os
toda ela começava a conversar com eles, trabalhos. Tem uma amiga minha aqui da
explicar, falar sobre a vida. Por isso eu falo, classe que ela não entregou os trabalhos de
ela é uma pessoa iluminada, ela além de dar biologia. Nenhum. Eu não sei como ela vai
aula, ela ia um pouco mais além, tentava ficar com nota de biologia.
colocar um pouco mais de coisas na cabeça
Começo a folhear o caderno dela. É um
deles. E só eu entendia. Só eu entendia
caderno universitário de 10 matérias. Vou
porque a maioria não estava nem aí.
folheando e não encontro a parte de Língua
Entrevistadora: E vocês tiveram que ler Portuguesa.
algum livro inteiro na aula de Língua
Entrevistadora: Onde está a parte de
Portuguesa?
Língua Portuguesa?
Entrevistada: Não. Ela não deu nenhum
Entrevistada: Na segunda parte.
livro para a gente ler. Seria até interessante,
Matemática. Está meio amassado porque eu
mas ela sabe que a gente não tem tempo, que
uso essa sacola de pano. Aqui.
todo mundo que vem... Eu fiz todos os
trabalhos, eu não faltei um trabalho, não Entrevistadora: Conta para mim o que
deixei de entregar um trabalho de nenhuma vocês estavam vendo aqui. Esse é o primeiro
matéria porque onde eu trabalho eu posso dia de aula?
fazer isso lá. Eu só atendo telefone, agendo
Entrevistada: Esse é um dos primeiros
os orçamentos, que meu patrão faz, e passo
dias de aula. No primeiro dia, como ela não
um ou outro e-mail com orçamento. Só, não
tinha nada organizado ela explicou essa
faço mais nada. Então eu tinha tempo. A
gramática aqui.
minha mesa está aqui com o computador e eu
tenho outra mesa aqui que eu passo o dia
373
Entrevistadora: Diferença de mau com “u” explicar, aí ela começou a dar os textos
e mal com “l”. xerocados.
Entrevistada: Isso. Aí depois ela foi se Entrevistadora: E, por exemplo, ela dava
aprofundando mais. Ela começou a dar texto, esse texto, que é bem grande, e a seguir vocês
Entrevistada: Tem alguns alunos que Entrevistadora: Eu vi que você faz uma
não copiam. Eu copiava tudo, fazia questão anotações, por exemplo, Eros, Xico Sá...
de anotar tudo porque eu gosto de saber. Se Entrevistada: São coisas que ela vai
um dia eu for estudar outra coisa eu vou ter
dando, assim, “ah, tem um site”... Aí eu
uma referência para poder estudar.
anoto para ir procurar. Eu gosto muito de
Entrevistadora: Verdade. E tinha os estudar.
exercícios e depois tinha uma produção de
Entrevistadora: E onde está o resto do
texto?
caderno.
Entrevistada: Sim, mas isso a gente
Entrevistada: Está aqui. (Abre outro
entregou para ela para dar nota. Só que eu
caderno.) Mas é pouca coisa, só tem isso
deixei em casa. Teve até um muito
aqui. E aqui é a continuação, eu escrevi
interessante, um trabalho que ela fez com a
continuação. (risos)
gente. Foi um dia que não veio quase
ninguém, uma sexta-feira, acho que tinha Entrevistadora: Aí ela começou a passar
chovido. Aí ela pediu para a gente escrever os textos e não precisava mais copiar. E
sobre alguma história que a gente tinha depois de ter passado por tudo isso, você
vivido na infância. Muito legal aquele dia. A começou a se interessar por outras leituras,
gente escreveu umas coisas assim que eu outros tipos de livro?
fiquei emocionada de escrever porque minha
Entrevistada: Sim. Eu estava em uma
lembrou meu pai. Meu pai faleceu já fazem 7
fase que eu só lia espiritismo, mas agora eu
ou 8 anos. Sabe quando você vai passando
vou mudar o foco. Eu vou ler sobre tudo, vou
pela vida e esquece um pouco as coisas da
ler qualquer coisa. Aí eu ganhei três livros da
infância? Me fez voltar. Me emocionou
Conceição, que a Secretaria da Educação
demais aquela aula e assim todos os alunos
mandou. Eu ganhei.
que estavam naquela aula voltou o seu tempo
e escreveu. É interessante, só que essas coisas Entrevistadora: Quais livros?
a gente entregava para ela dar nota
Entrevistada: Tem um de poesia, que eu
Entrevistadora: Ela não devolveu? também vou ver, e mais dois livros de
romance, né? Eu vou ler os dois. Um é bem
Entrevistada: Devolveu, mas está em
grosso, mas eu vou ler.
casa. Esqueci de trazer. Tem um monte de
coisa que ela deu para a gente. Redação, ela Entrevistadora: E o que te faz se interessar
dava um tema e a gente tinha que fazer. por esses livros, que não são espíritas?
Redação sobre a falta de água em São Paulo
Entrevistada: Eu acho que eu sei que eu
nós fizemos também.
preciso ler porque eu estou tendo
375
Entrevistadora: Mas ele terminou até procuro ler revista que traz conselhos sobre
Entrevistadora: Mas você já leu antes? Entrevistadora: Nem tem vontade de ler
mais?
Entrevistada: Já li muito. Já li muito. Eu
tinha até esquecido isso. (risos) Você Entrevistada: Eu gosto de ler sabe o
perguntou se seu lia outros livros e eu quê? Estudos. Um livro, assim, que vai me
esqueci. Eu lia muitos. trazer algum conhecimento diferente.
Ciência, tecnologia, essas coisas. Isso sim.
Entrevistadora: Quando você tinha
quantos anos? Entrevistadora: Qual foi o último livro que
você leu?
Entrevistada: Quando eu tinha uns 23,
24 mais ou menos. Eu já estava em São Paulo Entrevistada: Sabe que eu não lembro.
quando eu comecei a entrar em contato esses Mas foi um livro espírita. Como é que
livros. chamava o livro? Ah, era um livro que nem
era espírita. Era Legião, do Robson Pinheiro,
Entrevistadora: Como você entrou em
um espírita, mas um espírita já com outra
contato com eles?
conotação. O espiritismo estuda mais os
Entrevistada: Acho que através das espíritos de luz e o Robson é espírita, só que
amigas, conhecidas. A minha mãe gosta ele já está estudando as trevas para a gente
muito de ler e a minha irmã ela ganhou uma conhecer. Eu achei fascinante esse livro.
caixa cheia desses livros de uma ex-patroa Muito interessante.
dela. Acho que foi. E aí tinha um montão de
Entrevistadora: Por quê?
livro. Tinha livro, assim, a “dar à rodo”. Aí
minha mãe deu uns para ler e minha irmã deu Entrevistada: Porque a gente pensa que
uns para a gente. Eu lembro que eu li, mas tudo é maravilhoso, que os anjos estão em
não gosto. Na época, sim, esses volta da gente. Não é nada disso. Na verdade,
romancezinhos assim, água com açúcar, já o que está em volta da gente são as trevas, os
não me agradam. (risos) Acho que no tempo anjos, eles, quando a gente sai da sintonia das
que eu era iludida como mulher eu gostava. trevas, aí eles podem ajudar senão não tem
(risos) como. Então você aprende a lidar com isso,
você aprende que isso existe, que as trevas
377
também, assim como existe a luz, e que você Entrevistadora: Ainda bem que tem os
tem que fazer a sua sintonia. dois juntos.
Entrevistada: Isso, exatamente. Por isso conhecimento, com toda a construção que eu
fiz de mim mesma, eu sei que é uma fase.
que me fascinou tanto o espiritismo, ele me
Daqui a pouco aparece uma coisa boa para
explicou muita coisa que eu não entendia. Eu
mim, daqui a pouco meu filho vai estudar e
vivo a minha vida de uma forma diferente,
então eu sei que é uma fase que eu tenho que
sabendo lidar com os dramas, os problemas,
passar para aprender alguma coisa, então...
as dificuldades. Quem nem agora eu estou
(risos) Vamos em frente. Desabar eu não vou
vivendo uma dificuldade que se fosse em
de jeito nenhum.
outros tempos eu estava depressiva. Eu pago
R$850,00 de aluguel no apartamentinho que Entrevistadora: Isso mesmo. E com esses
eu moro com o meu filho e eu ganho R$ novos livros que você vai ler, você disse que
900,00. Então você imagina. Se não fosse vai mudar sua leitura...
meu filho estar trabalhando eu ia ter que
Entrevistada: Eu vou mudar.
largar tudo. Largar a escola, largar a casa que
eu moro e, sei lá, morar num quarto de Entrevistadora: o que você espera
pensão. Se fosse em outros tempos, se eu não encontrar nesses livros?
tivesse essa força interior que eu tenho, que
Entrevistada: Acho que conhecimento
eu adquiri depois que eu fiquei doente e me
curei... Acho que eu me quebrei toda, juntei mesmo. Esses livros que eu peguei são
os caquinhos e colei e renasci forte, muito romances, eu percebi que são romances, mas
forte. Então isso faz toda a diferença. Estou não são aqueles romancezinhos água com
aqui, fui estudar apesar de todas as açúcar. São coisas mais elaboradas. Vou
dificuldades. Meu filho às vezes eu falo fazer estudos também, estou querendo pegar
“Vamos lutar, vamos em frente e vamos livros espíritas que eu nunca li, do André
conseguir”. Ele coitado, só por isso ele não Luiz. O Emmanuel, Chico Xavier, né? O
está estudando, porque ele trabalha para me espírito Emmanuel dá umas orientações mais
ajudar. Eu pago o aluguel e ele paga a conta práticas para o dia-a-dia, o hoje. O André
da internet. Ele paga a conta de luz e de Luiz é estudo mesmo de ciência que a gente
telefone, que é um plano assim, bem barato e não conhece de energias da gente, que a
a comida. Eu só pago o aluguel e sobra gente não conhece, então eu quero fazer esse
Entrevistada: Mas eu quero misturar, eu que ele botou a mão no nosso cabelo a gente
Entrevistada: Eu vou mais na banca de através da leitura e dessa rádio que eu escuto.
Mas agora eu quero aumentar esse
jornal. Livraria eu só vou quando eu vou na
conhecimento para outros lados, não ficar só
casa espírita. Lá tem livraria. Só que, assim,
naquele foco. É uma necessidade que eu
eu também não tenho dinheiro para ficar
percebi faz tempo, falei: “Não, agora eu
comprando. Eu mais pego emprestado das
quero sair um pouco”. Não que eu vou parar
pessoas. A minha irmã também é espírita, ela
de ler livro espírita. Eu vou ampliar.
pega emprestado, daí ela me empresta. Tem o
nosso cabelereiro, que corta o meu cabelo, Entrevistadora: E você acha que voltar
ele é um senhor, ele não é gay, bom, mas se para a escola te ajudou a ter essa vontade de
fosse não tinha problema. Ele é um senhor ampliar sua leitura?
barbeiro, que trata do cabelo de homem, mas
Entrevistada: Com certeza. Eu acho que
ele corta maravilhosamente bem o meu
cabelo e o dela. Não sei porquê. Desde o da na verdade eu acordei. Ter voltado para a
escola fez eu acordar como pessoa, tipo “Eu
379
posso aprender, eu sei. Eu ainda consigo Entrevistada: Sobre tudo. Sobre a vida
aprender”. Acho que foi isso mesmo. Deu principalmente. Uma professora que nem a
uma acordada mesmo e acho que foi isso que nossa de Português, olha o quanto uma escola
me fez esquecer de vez, deixar de vez os poderia tirar dela, se tivesse os recursos. A
sintomas porque eu ainda tinha uns sintomas. pessoa que ela é educar essa gente mal-
Bem leves, mas ainda tinha às vezes. Mas educada. Eu acho, estou falando como
agora não estou tendo mais nada. Uma força espíria, eu seu que a educação não para só no
que eu não sei de onde veio, depois que eu estudo dos livros, dos cadernos e do que a
comecei a estudar. Esses quatro meses de gente escreve. A educação é uma construção
aula passaram que eu nem percebi. Hoje da pessoa. Uma pessoa como essa de
mesmo eu estava lá no escritório, no final da Português, que já tem uma bagagem, poderia
tarde, estava andando, porque às vezes não ensinar mais coisas, não tem tempo para isso.
tem o que fazer e fico andando, e ficava A pessoa não tem incentivo. Não sei.
pensando: “Gente, passaram esses quatro
Entrevistadora: Você daria mais tempo
meses e eu nem vi. Começou ontem e já está
para ela?
acabando”.
Entrevistadora: É que faltava tão pouco Entrevistada: Mais uma aula, mais
Entrevistadora: Então era sobre isso que Entrevista com o aluno Paulo
Entrevistada: (corte)
Entrevistadora: Qual é o seu nome?
A entrevista tem fim, porém continuamos a
Entrevistado: Paulo.
conversar. Por isso, volto a gravar o final de
nossa conversa. Entrevistadora: Você tem quantos anos?
Entrevistadora: Sua irmã é mais velha ou Entrevistado: Por que ficou mais difícil.
mais nova:
Entrevistadora: O que ficou mais difícil?
Entrevistado: Mais velha.
Entrevistado: Acrescenta mais matérias,
Entrevistadora: Ela já terminou o ensino essas coisas assim.
médio?
Entrevistadora: Você estudava em qual
Entrevistado: Já. escola antes?
você tinha imaginado? dos seus colegas que tentaram fazer algumas
provas em outras escolas, como o ETEC.
Entrevistado: Isso que é hoje mesmo. Você também tentou?
Igual só que você que estudar um pouco
Entrevistado: Não.
mais, se esforçar um pouco mais.
exercício, às vezes copia. Sempre assim. Entrevistadora: Vocês estudaram isso esse
aula?
Entrevistado: Sim.
Entrevistadora: Qual foi o exercício que Entrevistadora: Teve alguma coisa que
você achou mais difícil? aconteceu na aula de Língua Portuguesa que
você gostou?
Entrevistado: Não.
382
Entrevistado: Não.
385
bastante peso. Eu perdi 25Kg já. Estou tempo lá, me profissionalizar, lutar. Com uns
correndo atrás para eu conseguir. 30 anos por lá eu abrir minha academia e dar
aula.
Entrevistadora: O que você faz para correr
atrás? Entrevistadora: Você já tem todo o seu
futuro esquematizado, Paulo!
Entrevistado: Ah, fechando a boca,
Entrevistado: Já.
perdendo peso, me esforçando bastante.
porque elas tratam das questões do dia-a-dia. você tem intimidade para contar suas coisas.
ano. Você lembra um pouco dos autores, do ensino médio para o ensinar a sair da escola,
que falam esses textos? o que você diria?
Entrevistadora: Esse trabalho foi fácil ou Entrevistado: Não quero ser isso, mas às
foi difícil? vezes eu fico pensando, se eu fosse professor
eu ia facilitar ao máximo para o aluno.
Entrevistado: Foi fácil.
389
que você quer fazer, você tem que se Entrevistadora: Aí você passa no
aprimorar no que você quer fazer. Se você conselho?
quer Português você aprimora, filosofia,
química, essas coisas. Entrevistado: Eu acho que sim.
coisas assim. O básico. que você gosta nos blogs de Muay Thay,
você sente falta de ler melhor ou não, o que
Entrevistadora: Saber ler direito? você sabe é suficiente?
Entrevistadora: E você acha que está bem, consigo entender as coisas tudo direitinho.
sabe ler bem, interpretar bem um texto? Entrevistadora: Teve alguma coisa que
você já tentou ler e não conseguiu?
Entrevistado: Interpretar, essas coisas,
eu não sei muito bem não. Entrevistado: Acho que não. Agora eu
Entrevistadora: E você faz algum curso Portuguesa para ele, poderia selecionar
fora da escola? Como inglês e essas coisas? atividades e textos sobre assuntos que ele
gosta, como o Muay Thay. Então ele disse
Entrevistado: Não.
que seria muito melhor porque tem a ver com
Entrevistadora: Bom, acho que era isso, ele, diferente do Barroco que, para ele, não se
Paulo. Muito obrigada por sua entrevista. relaciona com nada. Então ele retomou a
ideia que as atividades escolares terão mais
Entrevistado: De nada. sentido na medida em que se aproximem do
Quando a entrevista terminou, o entrevistado cotidiano, da vida dos alunos.
falou que achou um pouco estranho fazer a
entrevista porque ele disse tudo ao contrário.
Eu não entendi isso muito bem e pedi para
ele explicar um pouco melhor. Então ele
Entrevista com o aluno Marcelo
explicou que falou ao contrário porque ele
18/12/2014
ficou falando sobre as coisas que ele não
gosta. Ele falou que, de fato, não gosta da
escola e de ir para a escola porque ele acha
que ela não acrescenta muito. Ele falou que a Entrevistadora: Qual é o seu nome e
escola, na verdade, vai ensinar coisas para a quantos anos você tem?
vida. A boa escola, para ele, vai ensinar o
Entrevistado: Marcelo, eu tenho 39 anos.
respeito, a convivência entre as pessoas,
como respeitar quem tem uma hierarquia Entrevistadora: O que te levou a voltar a
superior. A escola serve para aprender essas estudar?
coisas, sobre a hierarquia, as relações entre as
pessoas. Tudo o que vai ser utilizado no Entrevistado: Eu parei já muito tempo
cotidiano. Depois que se aprende isso, a porque eu tive filho cedo. Filhas, eu tive duas
escola não tem mais razão de existir e por filhas. Eu tenho uma de 21 e uma de 17 anos.
isso ele não gosta da escola. Ele não gosta da Com isso eu tive que começar a trabalhar e
escola porque ele é obrigado a vir para um tive que optar: ou os estudos, ou o trabalho.
lugar de que ele não gosta. Isso é muito ruim
Entrevistadora: Você estava no ensino
para ele e ele diz que se sente mal de ter que
médio quando elas nasceram?
vir para a escola todos os dias. Conversamos
sobre a razão da entrevista e eu expliquei que Entrevistado: Eu estava na 5ª série na
gostaria de saber mais sobre as aulas de época. Eu me amiguei cedo, com 14 anos. Eu
Língua Portuguesa além de conhece-lo estava na 6ª série.
melhor. Falei que agora que o conheço
melhor, se eu fosse dar aulas de Língua Entrevistadora: 6ª série regular?
392
Entrevistado: Regular. O que seria a... fazendo ali, você acaba conseguindo o
Entrevistadora: Você trabalha com o quê? Entrevistadora: Onde você pretende fazer
o curso?
Entrevistado: Eu sou promotor de
vendas. A venda da empresa seria lâmpadas Entrevistado: Pelo que me indicaram,
fluorescentes, lâmpadas de LED, fita de pessoas amigas que já fizeram e gostaram,
LED. É a tecnologia que hoje está se falaram que na Uniban tem. Vou fazer pela
avançando. É o LED. Uniban, mas vou procurar valores também.
Onde agrega. A empresa paga um certo valor,
Entrevistadora: E você sempre trabalhou
que é o 50% a empresa paga.
com essa área de comércio? Ou você já
trabalhou com outra coisa? Entrevistadora: Aí você vê o que dá para
bancar do seu 50%.
Entrevistado: Com 14 anos eu trabalhei
com mecânica. Fiquei durante uns cinco a Entrevistado: Isso estimula a gente a
seis anos com a mecânica, onde eu cai para a continuar na área e se aperfeiçoar cada vez
área de mercado. Eu gostei, sempre era meu mais.
sonho trabalhar com mercado. Trabalhei três
Entrevistadora: Você é casado?
anos com um determinado mercado. Direto
com eles. Depois comecei na promoção, Entrevistado: Sou casado.
como promotor de vendas, gostei, e venho
trabalhando. Quer dizer, hoje até que está Entrevistadora: Sua esposa trabalha
mais aberto o leque para você trabalhar. também?
Antigamente você tinha que ter uma certa
Entrevistado: Ela trabalha. Ela é técnica
experiência. Hoje em dia, não, com pouca
em Raio-x. Ela é técnica formada e hoje ela
experiência, sabendo só o que você está
faz faculdade de raio-x. Foi ela que me
393
estimulou até: “Vamos voltar também? ”. A Entrevistadora: Qual era o nome dessa
empresa também falou ai eu falei “Vamos escola?
lá”. Ela faz aqui na FAMESP, não sei se você
Entrevistado: Olavo Fontoura. O colégio
conhece, na Saúde. Está indo para o último
ano agora, ela vai fazer porque a empresa não tinha muita estrutura, mas dava um
também exigiu. Técnico não vai bastar. Onze suporte melhor, eu posso dizer hoje, do que o
ela e ela pensa um pouco mais para frente. Entrevistadora: Por quê?
Como eu também procuro pensar junto.
Temos o carro, temos a moto, moramos num Entrevistado: É uma escola muito mais
lugar que é dos pais delas, mas procuramos humilde do bairro. Porém os professores
ter o nosso cantinho. eram muito mais organizados, as aulas eram
muito mais explicativas. Hoje eu sinto que
Entrevistadora: E as suas filhas estudam?
alguns explicam e outros enrolam. Isso é a
Entrevistado: Uma terminou e a outra realidade. Eu não posso falar que eu aprendi
parou esse ano por causa de namorado, muita coisa nesse ano agora. Eu não aprendi
segundo a mãe dela, ela mora com a mãe muita coisa. Assim, vou ter dificuldade? Vou
dela. Então a mãe dela falou que ela parou, ter dificuldade. Mas se não e hoje o
não está indo para a escola. Eu tive uma computador para a gente estar, o Google,
conversa com ela. Falei “E aí? Se você vai para a gente falar a verdade, a gente estar lá
continuar na mesma, você vai se arrepender pesquisando alguma coisa, estudando livros,
depois”. Aquela conversa que a gente sabe só a escola não bastava. Então o que
que realmente sai mais caro depois e eu sei o acontece? O Olavo, eu aprendi coisas que eu
que é isso. Segundo ela, vai voltar ano que já tinha esquecido há muito tempo. Quando
vem. Vou pegar mais firme. A primeira já eu fui para o Raul Fonseca, já foi um colégio
Acho que todo mundo fala. Eu gosto muito figura. Ele tinha muita palavra para poder
de matemática e eu consegui assimilar muito estar ensinando. Nas provas dele, eram
bem a matemática. Por mais que era muito provas muito mais rígidas e não
se aposentou, ele começava a explicação e eu você tinha um certo tempo também para você
conseguia assimilar muito bem. E assim, eu estar estudando. Por isso que eu estou
percebia que não só eu, mas os demais falando, não culpando a escola, não sei o que
também acompanhavam. Coisas que aqui eu é, ou a copa, que seja, mas foi uma coisa
não consegui e mais pessoas também não muito mais empurrada. Acho que faltou um
conseguiram. Pela idade, pelo tempo de pouco mais de interesse. Hoje, pelo que
parada na escola a gente não consegue falam, eu não sei, eles querem só passar os
assimilar muito. Eu acho que foi uma coisa alunos e você está ali, de repente... Eu fiz
muito empurrada esse último ano agora. duas vezes a 2ª série porque, basicamente, eu
Esses seis meses que não chegou a seis não conseguia acompanhar. Brinquei?
sinônimos. Quero dizer, assim pegar o redação é uma coisa que a gente acaba
sinônimo da situação. Tem o jeito mais fácil pecando até numa entrevista de emprego,
de você aprender. Aqui não. Aqui é aquilo na uma redação. Eu mesmo procuro ter o
lousa ou você pega o caderno e dá uma máximo de atenção na hora de escrever, mas
olhada. Lá não, era “professor, eu não às vezes falta a malícia de alguma coisa para
entendi como funciona isso”. Ela voltava. você estar ali aprendendo. A gente não
Tinha alunos que chegaram depois, ela consegue passar a redação da forma que ela
conseguia voltar um pouco, somente para deveria ser. Acho que a redação.
aqueles alunos, e pegar um pouco para eles
Entrevistadora: Você queria que ela
poderem acompanhar. Aqui eu acho que não.
tivesse trabalhado mais?
Aqui era tipo, vamos empurrando. Vamos
fazendo. Essa é a verdade. Eu não posso Entrevistado: Sim.
dizer que foi mentira. A Escola 2, na minha
época que eu estudava no colegial, como a Entrevistadora: Vocês tiveram que fazer
falar, não, peraí, onde você tem dificuldade? realmente um pouquinho de redação,
aprendemos adjetivos. [ tem dificuldades
Entrevistadora: Nesse semestre, em
para se lembrar.]
Língua Portuguesa, você teve alguma
dificuldade? Entrevistadora: Podemos folhear o seu
caderno.
Entrevistado: Olha, acho que uma coisa
que fica sempre, acho que até dos Entrevistado: Pode ser mais interessante.
lê, você entende da forma como você está acho isso aí, a lei do mais forte.
lendo. Só que depois, quando você dá uma Entrevistadora: Nas aulas vocês
analisada melhor, você entende que a palavra geralmente liam sozinhos os textos ou não?
tem outro significado na questão do conto.
Entrevistado: Isso, ela deixava os textos
Entrevistadora: E o que você achou
com a gente para poder fazer um resumo,
bacana aqui no conto do cachorro canibal?
depois cada um colocava aquilo que achou, o
Entrevistado: Para eu dar uma revisada, que entendeu do texto e ela depois fazia uma
eu vou dar uma olhada. Tem dois textos, né? correção dos detalhes que a gente não teria
entendido.
Entrevistadora: Não, é um só.
Entrevistadora: E você gostava de ler
Entrevistado: Não, tem esse e um outro esses textos?
que ela tinha aplicado.
Entrevistado: Olha, Português foi a aula
Entrevistadora: Ah, O amor por entre o que mais me chamou atenção. Por quê?
verde. Eu também estava na aula. Fala do Porque era duas aulas em que você tinha
casal namorando no parque. proveito e também o jeito da professora ser.
Ela era uma pessoa que não tinha muita
Entrevistado: Isso, você fica na janela
conversa e muita brincadeira. É o trabalho, é
olhando e tem a questão do tempo passando
a aula e acabou. Tinha professores que
sem saber. O canibal, não vou me lembrar
faziam? Tinha. Era pouca matéria e passava o
muito agora na mente.
tempo, para falar a verdade. Não aqui falando
mal, estou falando somente o que aconteceu.
397
tirava do livro. Eu não lembro agora. Eu não deve ser óculos. Me dá muito cansaço ler,
lembro se ele tirava exatamente desse livro, mas assim, se for coisa pequena eu vou ler,
mas esse texto eu lembro que tem. mas se for coisa grande já não me dá
paciência.
Entrevistadora: A professora não falava de
onde vinham esses textos que ela levava? Entrevistadora: O que é uma coisa
grande?
Entrevistado: Não me recordo. Não veio
Entrevistado: Aqueles livros grandes
na mente agora.
que você pega parece uma bíblia, para falar a
Entrevistadora: Entre os textos que a verdade. Aquilo me dá um desânimo para
professora levou para a aula, teve algum poder ler. Eu sei que...na oitava série a gente
autor ou algum texto mesmo que você gostou tinha aula de leitura com a professora e a
mais? gente até levou para casa. Eu pegava aqueles
pequenininhos que eu conseguia ler. Não
Entrevistado: [pausa] Ter, tem, mas para
adianta pegar um livro só para pegar também.
eu lembrar o nome agora. Não vou lembrar
Para recordar agora que livro que eu li, são
não.
coisas que eu não consegui, que eu até pego
Ele começa a folhear o caderno. para ler, mas que com o passar do tempo....
Que nem, a minha esposa mesmo lê muito
Entrevistadora: Pode olhar seu caderno.
aquele “Marley e Eu”. Quando eu peguei
Entrevistado: Pode olhar, né? aquele livro que eu vi, falei “Meu, como é
que você conseguiu ler?” Eu já não tenho
O entrevistado passa alguns minutos aquela paciência para ler. Não sei, não tenho
observando seu caderno. aquela mente “Vou pegar para ler agora”. Eu
399
prefiro um documentário passando na TV para a Vila Mariana, minha esposa está lá, ela
que, ou um computador para ler que um faz aula de natação e lá tem a parte do livro.
livro. Então de repente eu pego o gosto agora, eu
não sei. Mas lá tem a parte do livro.
Entrevistadora: Ah, você lê no
computador. O que você lê? Entrevistadora: Você já foi na parte do
livro?
Entrevistado: Olha, notícias.
Entrevistado: A gente pegou a
Entrevistadora: Tem algum portal de
carteirinha semana passado e eu,
notícias que você vê mais?
basicamente, pegava ela e saia. Agora já dei
Entrevistado: Mais pelo IG. Parte de uma diminuída no horário de trabalho, eu
esportes, notícias em geral. Então essas são acho que agora eu consigo sentar, relaxar, dar
Entrevistado: Olha, como ela sabe que Entrevistado: A parte dos artistas, na
eu não sou muito de livro então ela faz aquele verdade, o jeito deles se colocarem na frente
comentário básico” .Olha, tem um livro eu acho muito interessante. Você está com o
bom”. Que nem o livro do Crepúsculo, ela público ali na frente e você vai falando. Eles
leu todos. falam de um jeito que parece que eles estão
dentro de um mundo, parece que estão dentro
Entrevistadora: Ela leu A culpa é das
da televisão, parece que não tem ninguém ali
estrelas?
na frente deles então eu acho muito
Entrevistado: Eu não me recordo agora, interessante. A pessoa em si foi show de
mas eu acho que ela tem esse comentário bola, cenário, sabe?
sim. Que nem, Marley e eu foi o primeiro Entrevistadora: Você achou bonito?
livro, depois foi o Crepúsculo, teve mais um
que a amiga dela emprestou. Mas quando eu Entrevistado: Muito bonito, sobre a
vejo o tamanho daquele livro não dá, não parte dele ser um louco, né? Achei muito
dá.... Eu não sei, você deve ler para caramba, interessante, muito bom. Eu assistiria outros
mas meu, não dá paciência. [ Fala com voz e outros dessa parte.
mais alta.] Eu prefiro assistir um filme,
Entrevistadora: Sua esposa foi junto com
assistir um documentário que nem eu falei
você?
para você. Teatro, entendeu? Até um ópera
eu vou, mas ler um livro é complicado para a Entrevistado: Foi junto também. Alguns
minha mente. alunos não foram então a gente estava junto.
Entrevistadora: Mas vocês têm esse hábito Eu falei “bom, se tiver que pagar eu pago e
Entrevistado: Tem, tem bastante. Livro Entrevistado: Isso. Eu vejo mais esporte
bastante, assim, uns 15 livros e bastante e notícias. Notícias, assim, não só tragédia,
revista. mas política, talvez até de artistas mesmo, o
que está acontecendo no nosso dia a dia. Eu
Entrevistadora: São seus ou da sua
pego para ler, mas se for uma coisa assim
esposa? Ou dos dois?
vou 1500 lá quando descobriram o Brasil. É
Entrevistado: Mais dela. Ela é uma legal? É legal. Mas eu não vou ter aquela
pessoa que quando ela quer uma coisa ela coisa, vou pegar um dia para ler ou para
foca nessa coisa e consegue. Eu às vezes, assistir. É tanto que tinha uns livros que
acho que fico um pouquinho com um pé passavam também na escola, a parte de....
atrás, não sei, desacreditado. Mas eu estou Mas acho que estou confundindo. Não foi
ali, trilhando o caminho dela. Quando ela traz nessa escola não. Na outra escola tinha parte
alguma coisa, até um filme mesmo, quando dos filmes que passavam, que era até seriado
ela traz eu falo “Ah, esse filme chato”. Um nacional que falava da guerra de Rio Grande
filme que a gente assistiu, que estava há um do Sul com outro estado que não lembro
Benjamin Button. Meu, eu olhava o filme e muito legal, que às vezes o filme que você
falei assim “Meu!” Ainda mais porque o cara assiste, eu assisto mesmo por assistir, mas
que faz, o Brad Pitt e o outro também, eu tem um sentido naquilo ali.
esqueci o nome dele. Quando eu olhei aquilo Entrevistadora: Você acha que tudo tem
eu falei “Meu, o que é esse filme?” Só que um sentido? Livros, filmes...?
ela assistindo, eu comecei a pegar. Eu
comecei a ver o cara voltando, quando Entrevistado: Esses filmes, seriados que
chegou à criança. Aí eu assisti o filme falam da nossa história. Como o caso do
sozinho novamente. Aí eu amei o filme. filme do Lula. Eu não assisti ainda, mas deve
Amei, amei o filme. Eu tinha pegado da ter um significado. Eu acho que tem. Que
metade do filme, terminou, ela foi dormir, eu nem aquele As torres Gêmeas, muda alguma
peguei o filme e o botei para assistir. Adorei coisa, mas tem alguma coisa de verdade ali.
o filme. A-do-rei o filme. Tem o Crepúsculo Alguns filmes, estou falando de filmes tipo
também que eu peguei todos ali e falei “Que documentários.
filme chato. Vampiro”. Eu peguei e assisti
Entrevistadora: Você gosta desses filmes.
todos com ela, até o último a gente assistiu
no cinema. Entrevistado: Eu acho que você gosta de
Entrevistadora: Você passa a gostar das alguma coisa é porque tem alguma coisa a
coisas que ela gosta. ver com você. Eu acho isso. Você focou
aquilo e gostou, tem a ver. Eu digo assim, a
402
parte romântica dos filmes românticos é matéria para mim que não tem significado
legal, mas dependendo do ator eu já não nenhum, vou ser bem sincero, falei isso para
gosto tanto. Mas tem ator que você fala ele até, é filosofia e sociologia. Uma que eu
“poxa, qualquer filme com ele é fantástico “ vejo que é assim, de repente se você... por
Então tem esse lado aí. Eu gosto realmente exemplo, se amanhã mais tarde eu puder
do filme que me chama atenção. Eu não colocar aquilo em papel, eu vou ler ou ouvir
acredito muito em geminiano, mas falam que várias vezes. Eu não consigo ouvir e já gravar
geminiano quando ele gosta de alguma coisa logo de cara. Tem que dar uma assimilada
ele leva em dobro. Eu acho que tem a ver isso primeiro para depois eu saber o que eu li e o
aí. Se eu gostei daquilo, ah eu vou comprar que queria dizer aquilo.
um, não, já compro outro e deixo guardado.
Entrevistadora: A aula não tinha esses
Eu tenho isso comigo. Tênis, relógio, o que
dois momentos?
seja. Ah, vou comprar um, compro dois.
Entrevistado: Era muito rápido. Umas só
Entrevistadora: Você acha que, de modo
geral, a escola aproveita ou ela leva em ficavam falando, outras só ficavam
consideração essas coisas que você gosta? escrevendo. Olha o escrevendo eu até achava
Por exemplo, o filme que você gosta, o que legal, mas o falando eu acho que para mim é
ANEXO VI –
Transcrição das
entrevistas com as
professoras
405
Entrevistadora: Onde ficava essa escola? nessa escola. Professoras muito dedicadas,
sabe? Elas percebiam que eu era inexperiente
Entrevistada: Ficava na V. Leopoldina,
e elas me chamavam de lado e falavam “Faz
Zona Oeste. Na minha concepção, as escolas
assim, assado”. Elas me deram muitas dicas.
da prefeitura são assim mesmo, elas são um
Eu devo a elas a minha formação. O que eu
grande refeitório. Quando eu comecei a dar
faço hoje em dia eu aprendi com elas.
aulas no Estado, cinco anos depois eu fui dar
aulas no Estado. Quase cinco anos depois. Eu Entrevistadora: Você pode dar um exemplo
fiquei encantada com as crianças do Estado. mais concreto do que elas te ensinaram?
407
Entrevistada: Posso, posso. Uma coisa, Entrevistadora: Nesse momento você dava
assim, relacionada à disciplina. Elas falaram: aula para as crianças menores?
“Nunca chame a atenção de um aluno na
Entrevistada: No estado eu comecei a dar
frente da classe. Sempre que você quiser
aula para a 7ª e 8ª série. Eu dava aula à noite.
chamar a atenção de um aluno que está
Português. Português à noite.
atrapalhando a sua aula, você dá um jeito,
você não chama na hora que ele está fazendo Entrevistadora: Como eram essas aulas?
bagunça. Você só dá uma, fala no geral para Você dava aulas de gramática, literatura?
pararem com isso. Depois você tira esse Entrevistada: Eu trabalhava especialmente
aluno da sala e conversa com ele. Funciona gramática. Análise sintática, bastante análise
muito mais do que você ficar dando sermão, sintática. Mas tudo baseado em texto.
ficar maltratando a criança na frente dos
Entrevistadora: Por quê? Era uma
outros”. Então, por mais que isso estivesse
necessidade do currículo, era uma
escrito em livros, a gente, no dia a dia, acaba
necessidade...
fazendo isso.
Entrevistada: Era porque a gente tinha... Foi
Entrevistadora: Sim, a sala de aula é
antes dos PCN’s, foi antes disso, então já
muito....
existia um currículo que a gente tinha que
Entrevistada: É muito estressante. Mas seguir. No começo, exatamente, como o... no
como eu tive pessoas que olharam para mim primeiro ano eu não fiz o planejamento, eu
com vontade de me ajudar, elas foram segui o planejamento que já tinha na escola.
generosas comigo, duas professoras em No segundo ano, não sei, acho que no
especial. segundo ano que já vieram os PCN’s, que a
Entrevistadora: Elas eram mais velhas? gente começou a trabalhar com aquele
currículo que era comum a todas as escolas
Entrevistada: Bem mais velhas que eu. E
do Brasil.
gente que amava a educação. Trabalho no
estado, ganho mal, mas é isso aí que eu Entrevistadora: Você lembra do impacto
gosto, eu vou ensinar essas crianças e elas me que foi o PCN para o seu trabalho?
ensinaram isso. Muito diferente do que você Entrevistada: O que eu posso te dizer? A
escuta por aí. cobrança no estado é muito sútil, então você
Entrevistadora: Verdade, a gente ouve por não percebe isso. Eu tentei dar um jeito dar
aí... aula que funcionou. Mais ou menos o
seguinte, eu inventei um método de dar aula
Entrevistada: É um lixo, as crianças são...
de Português que funcionou e, por isso, tudo
Não é, não. Tudo dependo do jeito como
que eu ia ensinar eu dava mais ou menos
você aborda.
daquela forma. Essa forma parece que
408
combinou bastante com o que era pedido, Entrevistada: Nossa, eu acho maravilhoso.
mas a cobrança eu acho que e muito suave a Aquela visão europeia, o tempo todo, aquela
cobrança no estado. Se você quiser fazer uma literatura...
grande porcaria quando você entrar em sala
Entrevistadora: Isso tem a ver com a lei que
de aula, você faz.
obriga o ensino da história e cultura afro-
Entrevistadora: Como é essa cobrança sutil? brasileira.
Entrevistada: É porque a gente teve que Entrevistada: Com certeza. Vem pela lei
estudar os PCN’s. Os professores tiveram que porque se deixar da vontade das pessoas, é
estudar. uma repetição, você vai trabalhar sempre em
cima de repetições de modelos prontos.
Entrevistadora: Nos momentos de encontro
dos professores? Entrevistadora: E você contou que logo que
o PCN chegou, mais ou menos no mesmo
Entrevistada: Sim. Nós tivemos formação.
período, você criou um jeito seu de dar aulas
Nós fomos, eu me lembro que eu passei, nós
e que acabou dando certo com os PCN.
passamos semanas estudando isso. Eles
Como é esse seu jeito de dar aula?
faziam núcleos de estudo. Cada região era em
uma escola. Então naquele dia você não ia Entrevistada: Eu acho que, assim, eu
para a escola, você ia para os cursos, essa valorizo muito o entendimento das palavras.
formação. Teve um trabalho do estado para Eu percebo que, assim, mesmo quando as
colocar a gente, para fazer a gente falar de crianças sabem ler, elas muitas vezes só estão
uma forma parecida. Mas eu nunca mudei juntando sílabas e formando palavras, elas
muito a minha forma de dar aula, não. não estão entendendo. Então eu sempre
trabalhei muito em cima do entendimento das
Entrevistadora: Por que você achava que já
palavras. Explicar, por exemplo, expressão
tinha uma forma de dar aulas parecida?
idiomática, que às vezes eles não entendem,
Entrevistada: Isso. O que eu sinto, assim, é mesmo sendo usadas dentro da família deles,
que hoje em dia eu me obrigo a trabalhar com eles não entendem. Você pergunta: “Mas o
textos africanos, coisa que no começo eu não que que é isso? O que significa isso?“ Às
fazia. Sinceramente eu não fazia. Até porque, vezes eles vão para a tradução literal, eles
nos livros didáticos, não vinha, agora vem. não entendem o sentido figurado que ali na
Os próprios livros didáticos trazem contos expressão idiomática. Eu sempre trabalhei
africanos, você trabalha Mia Couto com as muito assim.
crianças, 8ª série você trabalha Mia Couto,
Entrevistadora: Por exemplo, nas aulas em
que é maravilhoso.
que eu assisti, eu me lembro que você sempre
Entrevistadora: Você acha isso um ganho? enfatizava o sentido de algumas palavras, é
um pouco esse jeito?
409
Entrevistada: Sempre assim. Sempre vim por uma lei chamada, pelo art.22, que é
trabalho dessa forma. Inclusive, quando eu um artigo que você se inscreve para você...
trabalho gramática, o sentido dos termos Você não perde o seu cargo na escola, você
sintáticos porque para eles é muito abstrato vaga o seu cargo, mas você vai para a escola
você falar de adjunto adnominal. E daí? que tiver vaga. Onde tiver vaga você tem o
Salada de fruta. Tanto faz aquilo, adjunto, direito de, pelo art.22, se alocar. Aí eu vim
aquilo que fica junto, adnominal, do nome. para cá em 2004, não, desculpa, eu trabalhei
Fica junto do nome, fica junto do substantivo. no DI Cavalcanti em 2004, foi em 2005. EU
Por que às vezes você se preocupa muito em tentei um ano, mas não deu para continuar lá.
dar o conteúdo para o menino decorar e não Aí em 2005 eu já vim trabalhar aqui. Em
para ele entender. Eu sinto muito que muitas 2006 teve remoção, aí já tinha vaga, aí eu
matérias são dadas dessa forma. Não existe trouxe o meu cargo para cá. Aí em 2006 eu
um entendimento verdadeiro da coisa, fica só trouxe o meu cargo para cá.
na superfície. Decodificou aquele nome,
Entrevistadora: Aí resolveu os seus
aliás, aprendeu aquele nome, treina um uso
problemas porque é perto da sua casa.
de classificação alí e pronto. Muitas vezes é
só isso. Não tem um aprofundamento. Eu não Entrevistada: Nossa, eu moro aqui do lado.
sei se eu atinjo, mas eu tento fazer isso. Entrevistadora: E aqui você dá aulas para o
Entrevistadora: É o que você tem em ensino médio, no EJA, e para o ensino
mente. fundamental II?
Entrevistadora: E como você chegou aqui Entrevistadora: E o que você achou dessa
na Escola 2? escola, desses alunos?
para o que a gente pede, com o que a gente uma classe que ia ser a melhor. Uma coisa
fala. que não é legal, mas a gente faz porque
quando eles pediam para a gente formar a
Entrevistadora: Isso com relação à
classe a gente fazia isso. A gente pegava
disciplina ou ao modo como eles veem a
aqueles alunos mais estudiosos e colocava
matéria?
numa classe. Não necessariamente que essa
Entrevistada: A matéria também. Não só a classe virava a melhor, mas a gente tinha
disciplina, a matéria também. Para você ter mais chance com ela. Essa classe, eu só tive
uma ideia, esse ano eu formei uma 8ª série. O uma oitava série esse ano, foi exatamente
que eu digo como formei: eu dei aula para essa sala que eu dei aula desde a 5ª série.
eles desde a 5ª série. Eu tenho esse hábito. Eu
Entrevistadora: Foi uma classe formada
pego a 5ª série, depois eu pego a 6ª, a 7ª, eu
assim?
persigo os meus alunos. Eu falo isso para
eles. Eu falo “Azar de vocês se eu perseguir Entrevistada: Isso, a partir do 6º ano. Na 5ª
vocês”. Uma vez ou outra não dá para série eles chegam de qualquer lugar, na 6ª
perseguir porque eu tenho que compor o série a gente já começa a selecionar. Não
horário com as classes que tiver, então eu vou pode fazer isso, não é legal, mas a gente faz.
pegar uma classe na 6ª, uma na 7ª. Quando eu Eu tive a alegria, eu consegui trabalhar com
posso, eu dou aula desde a 5ª série. Mesmo eles todos os termos sintáticos, que
que eu tenha que sacrificar o meu horário geralmente são muito difíceis de você
porque eu acho que quando você pega o trabalhar. Sempre fica alguma coisa que não
aluno desde a 5ª série, você estabelece um dá tempo de trabalhar com eles.
vínculo com ele que ninguém vai quebrar. Se
Entrevistadora: Isso da 5ª até a 8ª.
você fizer um bom trabalho com ele, ele vai
ter sempre respeito por você. Facilita o Entrevistada: Isso. Eu consegui fazer tudo.
trabalho nos próximos anos. Você sabe o que Não que todo mundo tenha aprendido tudo
aquele aluno não sabe, você sabe como você porque eu consegui, da minha parte eu fiz.
deu aula no ano anterior, o que não ficou Isso é uma coisa impressionante. Eu me
claro, o que você tem que reforçar. Isso me lembro que um dia eu cheguei para o Felipe,
ajuda muito a dar aula. Isso me dá muita nosso coordenador, e falei “Felipe, eu não
segurança no que eu faço. A própria amizade acredito, acabei de trabalhar oração reduzida
que você vai estabelecer com o aluno. com a 8ªB”. Ele falou: “Mas o que tem isso?
” Eu falei “Isso é muito raro”. A gente nunca
Entrevistadora: Você cria um vínculo.
chega à oração reduzida, a gente vai até ração
Entrevistada: Esses alunos que eu formei subordinada, mas para eles entenderem a
agora, uns três anos, a gente combinou que a reduzida, geralmente não sobra tempo. Não
gente ia selecionar as classes. A gente ia tirar sobra tempo porque é tanta coisa para
411
trabalhar e era uma classe boa que eu Algumas falhas. Mas perto da forma como
consegui trabalhar tudo. ela chegou, para a forma como ela acabou,
ela evoluiu muito. Você sabe que no Estado a
Entrevistadora: E quais são os critérios que
gente não tem recurso. Eu não sou professora
vocês usam para selecionar essa turma?
alfabetizadora. Para você alfabetizar você
Entrevistada: Era só interesse mesmo. tem que ser professora alfabetizadora. Você
Todos eles eram interessados. Não tanto tem que saber que em ponto ela está para
quanto eles eram competentes. Não é assim, saber onde ela pode chegar. Eu não sei fazer
só o aluno... Não. Às vezes tem um aluno que isso, não. Isso é para quem estudou. Então,
não rende tudo isso, mas ele é muito assim, eu vi um crescimento nela e ela só
interessado. Eu tive uma experiência cresceu, ela só evolui porque ela estava nessa
interessante nessa sala. Na 5ª série havia uma classe. Se ela tivesse ficado nas outras classes
menina, o nome dela é Inara, a Inara era mal ela teria se perdido.
alfabetizada. Mal alfabetizada mesmo. Ela
Entrevistadora: Então de alguma forma
conhecia algumas letras, sabia formar
você acha que tem um aspecto positivo de se
algumas sílabas, mas não todas, e durante a
organizar as salas assim?
5ª série ela foi assistida por uma
psicopedagoga que trabalha com as salas Entrevistada: Tem, mas isso não é aceito,
especiais. Como ela tinha horário vago, ela não é muito legal.
pegava essa Inara e trabalhava com ela.
Entrevistadora: Com essa organização, você
Então na 5ª série ela foi assistida pela... eu
acha que todas as salas se beneficiam?
não lembro o nome dela. Essa moça
trabalhava, conversava, fazia, primeiro fazia Entrevistada: Não, é.... O que eu posso
uma anamnese, ia lá ver qual eram as dizer? Eu acho que nessa classe era mais fácil
dificuldades da criança e tal. Essa menina, dar aula. Isso com certeza era mais fácil.
lógico, como não sabia escrever direito, ela Não, eu acho que não. Eu acho que isso é
tinha dificuldade de acompanhar as aulas, ela uma coisa um pouco arbitrária isso que nós
bagunçava muito. Então, na 6ª série, quando fizemos, mas eu acho que a gente ajudou
nós fomos formar essa classe, eu falei: “Nós algumas crianças que realmente estavam
vamos pôr a Inara nessa classe”. “Nossa, interessadas. É por isso que é ilegal, não dá
Entrevistada, ela não é completamente para fazer isso. Você deve ter todo tipo de
alfabetizada” “Mas é nessa classe que ela não aluno na sala de aula e você tem que saber
vai fazer bagunça, está todo mundo levar o conteúdo, saber até que ponto cada
interessado em estudar”. Ela terminou a criança está, saber como você tira a criança
8ªsérie escrevendo. Se você ditasse qualquer daquele ponto, fazer subir um degrau. Nessa
coisa ela escrevia. Não que ela escrevesse sala era mais fácil, nesse sentido, porque o
corretamente. Ela não escrevia corretamente. interesse era mais...
412
Entrevistadora: E essas crianças moram aulas para eles. Essa turma eu peguei agora
aqui no entorno ou elas são de lugares no meio do ano. Eu dava aula no Rodrigues
distantes? Alves e no meio do ano tem atribuição para o
EJA porque é um curso semestral. A cada
Entrevistada: Não, elas são vizinhas. A
semestre tem atribuição e eu estava fora da
maioria mora por aqui. Exatamente essas
minha escola então eu consegui trazer essas
crianças vizinhas. Inclusive isso, são crianças
duas classes para cá mesmo. Eu m lembro
que tem um poder aquisitivo melhor porque
que eles falavam para mim “Nossa, sua aula é
quem mora aqui não estuda aqui. Quem mora
tão fácil, o que você ensina é tão fácil. A
aqui estuda em escola particular.
gente não entendia nada do que a outra
Entrevistadora: E quando a gente pensa no professora ensinava”. Por quê? Porque ela
ensino médio, no EJA, também podemos dava aula de 3º ano para eles e eu não fazia
encontrar essa organização das turmas? isso. Eu continuava no meu processo, sabe?
Entrevistada: Não, não. Aí é qualquer um “Vamos trabalhar esse texto. O que tem nesse
disso. Não tem jeito, eles não querem fazer isso era a outra professora.
mesmo. Eles querem uma coisa assim, uma Entrevistadora: Você fez uma adequação?
tarefinha, sabe? “Ah, deixa eu fazer uma
Entrevistada: Eu vi quais eram as
tarefinha aqui e pronto. É isso mesmo”. Eu
dificuldades deles. Por exemplo, eu tive
me lembro que quando eu comecei a dar
413
aluno no 3º ano que não sabia segmentar seu trabalho foi sempre assim nesse
palavras, não sabia separar as sílabas. Por que semestre?
você separa as sílabas? Nunca pensou nisso,
Entrevistada: Foi sempre assim.
que tem a ver com a fala. Quantas sílabas eu
Intepretação de texto e, assim, o que era
ponho naquela entonação, naquela forma de
possível trabalhar de gramática ali. O que
falar? Por que eu não posso colocar um “s”
aquele texto me oferecia eu pegava e usava.
sozinho naquela linha? Como é que eu vou
falar esse “s” sozinho? Ninguém nunca falou Entrevistadora: Aí você trazia um conteúdo
isso para ele ou se falou... Então no 3º ano eu de informativa para passar na lousa ou
fui falar isso e fez muito sentido na cabeça oralmente?
dele. Entrevistada: Também, os dois. Escolhia
Entrevistadora: Então quando você pensou algumas coisas para trabalhar. Por exemplo,
em organizar o trabalho com essa turma você trabalhei crase com eles. Por que existe a
procurou partir dessas dificuldades que eles crase. Também trabalhei um pouquinho de
têm? regência, concordância e uma coisa que eu
gosto de trabalhar com EJA, que funciona
Entrevistada: Isso. Sem pensar no currículo.
muito, é trabalhar com Patativa do Assaré.
Se eu pensasse nisso eu ia continuar fazendo
Todos os alunos ficaram tocados com a
o que a outra professora estava fazendo?
leitura porque é a escrita de um homem
Entrevistadora: isso tem uma boa acolhida comum então tem uma identificação muito
da coordenação? grande com eles. Eles sentem que aquilo que
ele escreve, além de ser a história deles, é a
Entrevistada: Tem, nossa. Muito respeito e
forma como eles escrevem também. Então
consideração, até porque a disciplina da
tem, entre aspas aqui, um erro de
classe mudou. Eles se envolveram mais, eles
concordância e aquilo está em um poema e
respeitaram mais. Uma coisa que eles
aquilo fica bonito daquela forma. Ele escreve
falavam para mim era assim: “Você está
de uma forma tão bonita, a poética dele é tão
tentando ensinar. Ninguém aqui tenta
tocante que, que realmente emociona. Eles
ensinar”. Eles falavam: “Professor de EJA
ficaram muito contentes de conhecer.
coloca a lição no quadro e você se vira para
fazer”. Não é assim. Vamos fazer juntos, Entrevistadora: E como você conduziu essa
vamos mostrar”. Por que é assim? Por que leitura?
tem esse nome?
Entrevistada: Eu apresentei um poema dele.
Entrevistadora: Nas aulas que eu assisti
Entrevistadora: Onde estava o poema?
você sempre lavava um texto, aí vocês
trabalhavam a partir deles. De modo geral Entrevistada: Num livro didático. Eu pego
um desses textos que eu xerocava, selecionei
414
Entrevistadora: E de onde vem o seu gosto Moraes e ficou bastante emocionada, você
pelo Vinícius, Drummond... comentou que se lembrava do seu pai.
estava errada, mas grande parte. Eu acho que livro tão grande assim. Me conta? “ E eles
é por aí. Esse é o caminho. Se eu tivesse que me contavam.
ensinar alguma coisa para alguém eu diria
Entrevistadora: O Diário de Anne Frank
“Faça dessa forma. Descubra aí do que você
veio no material do Estado?
goste e é a partir daí que você vai começar”.
Sem emoção, se não tiver um, se eu não for Entrevistada: Veio.
fisgado ali naquele texto, você não vai se Entrevistadora: Você leu com eles?
interessar por aquilo. Vai ser só mais uma
Entrevistada: Foi assim. Eu trabalhei um
aula, um tanto de palavras que ele aprendeu,
filme. Eu te contei essa história?
mas que não faz muito sentido.
Entrevistadora: Não.
Entrevistadora: E você já levou em
consideração algum texto ou autor que o Entrevistada: Eu poderia me aposentar esse
aluno gosta na aula? ano que eu me aposentaria feliz! Esse ano
muita coisa deu certo. Nós assistimos
Entrevistada: Sim. Harry Potter, né? Que eu
Escritores da Liberdade. No filme eles
não li, uma história que não me interessa,
trabalham O Diário de Anne Frank. Eles
mas eu já li bastante texto de Harry Potter
ficaram muito emocionados. Na sequência,
porque é o que eles gostavam, era o que eles
eles ganharam no kit de aluno deles, de
queriam.
literatura, eles ganharam O Diário de Anne
Entrevistadora: Principalmente os menores? Frank. Eu falei “pronto, vamos ler”.
Entrevistada: Deixo eles me contarem, Entrevistadora: Foi coincidência?
sabe? Deixo muito eles me contarem”. Mas o
Entrevistada: Sim, coincidência. Eu falei
que é que você está lendo? ” Essa última
“Nós vamos ler”. Tá bom. Aí eles leram, mas
classe que eu tive, eles eram, a maior parte
nem todos leram. Quando nós voltamos das
deles liam. Quando eles terminavam a tarefa
férias eu falei “bom, agora a gente vai fazer o
“Ah, posso ler, professora? “ Eles tinham os
nosso trabalho”. Eles não sabiam o que era, o
livros deles. Não era nada do que eu tinha
que eu ia pedir. Eles perguntaram “Vai ter
pedido. Eu tinha pedido para eles lerem esse
que fazer um trabalho? Um resumo do
ano só O Diário de Anne Frank. Foi o
livro?” Eu falei “Não, um resumo é muito
trabalho que eu fiz com eles. Mas sempre
chato. Não vamos fazer, não”. Até por que
eles estavam lendo, sempre, e eles me
eles iam copiar. Principalmente a parte deles
contavam. Ai eu chegava perto da carteira
não leu ia copiar. Aí eu marquei acho que
deles e perguntava: “Sobre o que é esse
uma sexta-feira, aí eu perguntei “eu quero
livro? ” Aí eu olhava e falava “ah, eu tenho
que vocês realmente me digam quem leu.
certeza que eu não vou ter tempo de ler um
417
Quem leu? ” Ai só 16 alunos levantaram a Entrevistada: Não, não tem. O deles não
mão. tem. Deles não tem nada, do EJA não tem
nada. O único trabalho desse ano é O Diário
Entrevistadora: Quantos alunos havia na
de Anne Frank. Eu coloco só uma coisa ou
sala?
outra no blog, não coloco tudo.
Entrevistada: Tinha uns 32. Metade da sala
Entrevistadora: Receber esses livros do
tinha lido. Aí eu falei para eles assim
estado te ajuda?
“Vamos fazer o seguinte: nós vamos separar
a sala. Nessas duas fileiras aqui vão sentar só Entrevistada: Nossa, muito, me ajudou
os alunos que leram o livro, nas outras todo muito porque essa coisa de comprar livros é
mundo que não leu. Todo mundo vai fazer muito difícil.
trabalho porque eu quero uma aula
Entrevistadora: E como você resolve o
silenciosa”. Aí eu pedi para quem tivesse lido
problema do material com o EJA?
o livro, para escolherem qualquer parte do
livro que tinha sido emocionante, que Entrevistada: Não resolve, você não faz.
escrevesse uma carta para Anne Frank. Eles Assim, o que eu faço é trabalhar com os
escreveram. Se você visse as cartas. textos. Se você depender de alguma coisa que
eles tenham que buscar, pode esquecer, isso
Entrevistadora: Lindas?
não vai acontecer.
Entrevistada: lindas, lindas. Elas viraram...
Entrevistadora: E a escola disponibiliza
Assim, a sensação que eu tinha, só dois
xerox, folhas?
meninos, o resto meninas, tinham virado
amigas de Anne Frank. Aí você pode acessar, Entrevistada: Sim, sim.
as cartas estão no blog. Nós fizemos um Entrevistadora: Com isso você não tem
livrinho Cartas para Anne Frank. São lindas problema desde que você escolha os textos?
as cartas.
Entrevistada: isso.
Entrevistadora: Só com os alunos que
Entrevistadora: E como você faz para
tinham lido?
escolher os textos? Você pega os livros
Entrevistada: Só os alunos que tinham lido didáticos que a escola já tem?
que fizeram e foi uma coisa assim que até a
Entrevistada: Isso. Geralmente eu pego do
direção da escola leu, ficou emocionada
livro didático que já tem e seleciono o livro
também. Foi um ano bem...
didático que quero trabalhar. Como sou a
Entrevistadora: Nesse blog também tem os única professora de Português, não tenho
textos, os materiais que você fez com o com quem compartilhar, com quem dividir.
pessoal do EJA? A outra professora de Português tem um jeito
418
bem diferente de trabalhar com alunos então Entrevistada: Pode falar, quem você
a gente não tem muito diálogo. entrevistou?
Entrevistadora: Você vai fazendo conforme interessava. Ela é muito interessada. Ela
um filho que está se formou agora no terceiro bastante, escreveu quase duas páginas. Eu li
ano. Ela não tinha grandes dificuldades de para os meus alunos da tarde. Geralmente eu
entender alguma coisa que eu pedisse para faço assim, eu pego os meus textos e leio
fazer. Quando outros alunos tinham muita para a outra classe, quando eu tenho que
dificuldade. Qualquer comanda, qualquer fazer uma seleção e eu queria selecionar o
enunciado tinha que ser esmiuçado. No caso melhor texto. Aí eu li ara os alunos da tarde e
dela, ela lia o enunciado e já sabia o que pedi para eles escolherem para mim quais
fazer. Ela era bastante competente, uma eram os melhores textos. Eu simplesmente li,
leitora competente. vistei e devolvi. Quando eu devolvi para a
Karine ela falou assim “ Assim, professora,
Entrevistadora: Outra pessoa que eu
eu não quero. A senhora corrige a ortografia,
entrevistei foi a Karine.
por favor”. Ela pediu para eu corrigir a
Entrevistada: É a mesma coisa. A Karine ortografia, mas ela não tem grandes erros,
um pouco mais infantil, assim, até por causa não. A grande questão que eu posso dizer que
da idade. Mas, nossa, um interesse tremendo. ela tem é a paragrafação, que até menino de
Eu me lembro que eu devolvi um texto para a faculdade tem dificuldade em paragrafar um
Karine, o qual eu não corrigi a gramática, não texto. Isso não é fácil para ninguém. A única
corrigi ortografia. Foi um texto interessante dificuldade que ela tem, na minha visão, eu
também. Eu li para eles um trecho de um lembro que a gente fez bastante, eu lembro,
texto do Elias Canetti chamado A língua eu separei os parágrafos. A ortografia é muito
absolvida. Eu li para eles um trecho desse boa e mesmo assim ela estava preocupada
livro em que ele fala do idioma, a língua que com isso.
era usada na casa dele. Ele conta que algumas
Entrevistadora: E o Marcelo?
coisas que ele se lembra da língua materna
dele forma as meninas que moravam na casa Entrevistada: Ah, o Marcelo. O Marcelo
dele que contavam as histórias e, geralmente, tem deficiência mental, eu não sei se você
eram as histórias de terror que elas contavam percebeu. Um problema sério aquele rapaz.
para ele. Aí, no dia em que eu li esse livro Ele disfarça bem, mas ele tem um
para eles, eu pensei: “Nossa, esse povo deve comprometimento mental. Ele deu alguns
ter coisas para contar. São todos adultos, mas trabalhos na minha aula, depois deu trabalho
eles foram criança um dia”. Aí eu pedi para em outras aulas também. Aí, mas eu não sei
eles, quando a gente terminou de ler esse te dizer muito dele não. Não conheço muito
texto, eu falei “Agora cada um vai contar ele não. As duas eu sei te dizer quem são, o
uma história e infância que você lembra”. E a Marcelo muito pouco.
Karine escreveu uma história de um tio dela
Entrevistadora: E a Ana Paula? Aquela
que foi fazer uma caçada. Eu achei
moça que senta bem na sua frente.
interessante a história dela. Ela escreveu
420
menina, o corpinho da menina foi carregado parece que você entra em um canto da cabeça
por quatro mulheres. Então, assim, coisas deles, da criança... Olha aqui Como
muito diferentes da nossa vivência, eles não trapezista. Esse texto eles gostaram bastante
estão acostumados com isso. Hoje em dia os também. Capitães de Areia. Eles ficaram
funerais são nos cemitérios mesmo, são nos bem tocados com esses textos. É um menino
velórios. Aqui essa coisa diferente, sabe, que se joga, né. Acho que é só isso que eu
assim. Foi muito legal trabalhar esse texto tenho aqui. Deixa eu ver se eu tenho mais
com eles. coisas.
falar que eu escolhi é mentira. Ela procurou exitosa. Então na verdade o que eu queria
para mim. conversar hoje é mais sobre as suas
experiências escolares, familiares, com a
Entrevistadora: Vocês usam bastante a sala literatura, mais para compreender o seu
conceito, para contextualizar mais a sua
de leitura? prática, porque isso ficou vazio nesse sentido,
porque eu centrei mais na compreensão das
Entrevistada: A tarde, sim. A tarde a gente aulas porque eu tinha acabado de assistir as
usa, mas à noite não. Eu não usei nenhuma aulas e essa outra parte eu não peguei tanto.
vez com os alunos. Entrevistada: O que construiu para chegar
naquilo.
Entrevistadora: Por que a sala fica fechada
Entrevistadora: É, exatamente, é isso. Então
à noite? eu queria conversar um pouquinho, que você
contasse onde você estudou, em quais
Entrevistada: Na verdade ela fica aberta, escolas, como foi a sua trajetória?
mas ela não.... Na verdade, o jeito dessa
Entrevistada: Então, eu estudei no primeiro
moça trabalhar, ela não é muito disponível. ensino fundamental numa escola pública.
Não quero ficar falando mal. Entrevistadora: Daqui do bairro?
Entrevistada: Até hoje eu falo para ela, Entrevistada: Sim, sim. Outro dia fui ao
essa minha irmã tem uma menininha e eu oculista com ela e ela está com conjuntivite,
ajudo muito cuidar, quando ela vem me então ela tem, é como se fosse uma
agradecer eu digo: não, eu estou só pagando nuvenzinha que tem assim, então tinha lá a
tudo o que você fez por mim, porque se eu letra “K”, que ela tinha que ler e ela lia “R” e
sou alguma coisa, eu devo a essa minha irmã então o médico olhou para minha cara e disse
porque ela foi uma pessoa assim, muito, e assim: ela não conhece essa letra, não? Eu
assim, minha irmã lia demais, era apaixonada falei: ela conhece, ela não está enxergando,
por literatura. porque ela é uma pessoa bem alfabetizada. Aí
quando ele trocou a lente e ela conseguiu ver
Entrevistadora: Ah, é?
o “K”, eu falei: pronto mãe, ele vai te dar
Entrevistada: Apaixonada por literatura, agora um diploma de alfabetização, ele
assim, nós estávamos todos brincando e ela começou a rir. Bom, mas vamos voltar, a
estava lendo. Então assim, ela sempre foi o minha mãe é uma pessoa muito culta nesse
meu modelo, eu não sou uma leitora como sentido, não de cultura de estudo, mas de
ela, eu não leio tanto. Mas assim, ela acabou vivência mesmo, de ser uma pessoa, sabe, o
sendo um modelo muito positivo na minha meu pai gostava muito de ler, falava que a
vida, muito positivo. Quando eu fui para o herança dos filhos eram os livros.
ensino médio, que na minha época chamava
Entrevistadora: Ah é? E você tem muito
colegial, né? Aí fiz um curso técnico em
essa memória de infância do teu pai ler
contabilidade, meu pai era contabilista e
assim?
advogado, eu fazia contabilidade porque
sempre fui apaixonada pelo meu pai. Entrevistada: Nossa, muita, muita, muita.
Entrevistadora: Tua mãe era o quê? Entrevistadora: O que ele gostava de ler?
Entrevistada: Minha mãe era costureira, do Entrevistada: Eu lembro que ele tinha uma
lar, e costurava. coleção de Seleções, Reader’s Digest.
Entrevistadora: Para fora assim? Entrevistadora: Sei, eu conheço.
Entrevistada: Um pouco para fora, mas Entrevistada: Eu lembro que meu pai tinha
mais para a família mesmo. Mas a minha mãe essa coleção. O meu pai era assim, a gente
sempre foi uma pessoa que escutou muito morava numa casa alugada, mas ele
rádio, então qualquer assunto... comprava enciclopédias, nós tínhamos o
Tesouro da Juventude, que acho que são 5
Entrevistadora: A minha mãe também.
livros com todos os contos de fadas. Eu era
Entrevistada: Qualquer assunto que você apaixonada por aqueles livros.
conversar com a minha mãe, ela sabe falar,
Entrevistadora: E você ficava lendo com a
não porque ela tenha lido, mas porque ela
tua irmã nas horas vagas?
escutou o radialista e ela entendeu a visão do
radialista e conseguiu tirar a visão dela Entrevistada: Sim, nossa! Porque assim, não
daquilo. Ela sempre foi assim, Uma pessoa era, porque assim, as crianças hoje em dia,
muito, apesar de não ter instrução, uma tem muita coisa, naquela época não tinha
pessoa muito sábia. aquele tanto de brinquedos não, tinha uma ou
outra coisa, sabe? Era um brinquedo no Natal
Entrevistadora: Ela estudou até que série?
e aquilo durava o ano inteiro, quando
Entrevistada: Até o 4º ano. acabava, acabava, você não ganhava, que
nem eu vejo os meus sobrinhos, têm mais
Entrevistadora: Entendi, ela era alfabetizada brinquedos do que roupa essas crianças de
e tudo? hoje em dia, não é assim?
424
Entrevistadora: Seu pai trabalhava ali por Entrevistadora: Você estava fazendo letras?
perto?
Entrevistada: Não, eu ainda não estava na
Entrevistada: Não, meu pai trabalhava na Letras, depois é que eu fui fazer letras,
cidade, no Centro da Cidade, aí ele não quando eu estava na importadora é que eu fui
trabalhava mais em Contabilidade, ele tinha fazer letras, entendeu? Mas eles nunca se
se formado em Advocacia. importaram com isso, o que importava para
eles é que o funcionário estivesse estudando.
Entrevistadora: Ele era advogado.
Entrevistadora: É uma outra visão.
Entrevistada: Isso, no Centro meu pai
trabalhava. E daí eu fui estudar Contabilidade Entrevistada: Para mim é, porque se eles
no Campos Sales, eu pagava, daí eu dei a fossem falar: ah, você está trabalhando
sorte de começar a trabalhar, fui mudando de porque a gente vai aproveitar do teu trabalho,
emprego e fui para o Pão de Açúcar e no Pão não, não era isso, era assim, é uma questão
de Açúcar, eu sempre tive muita sorte, não assim, queremos aqui gente interessada em
posso reclamar de nada, quando eu pagava a estudar porque isso fazia um outro perfil dos
minha mensalidade, eu levava no funcionários, eu acredito que era isso. Bom,
Departamento Pessoal o boleto que eu tinha terminei em 83 a Contabilidade, me formei
pago, eles me reembolsavam a metade do em Contabilidade, aí trabalhei uns tempos
meu pagamento. com Contabilidade. Em 85, o meu
irmãozinho se inscreveu para fazer vestibular
Entrevistadora: Que maravilha.
na Matemática e eu era muito ligada com
Entrevistada: Não sei, parece que Deus esse menino e eu estava lá...
colocou uma estrela para mim. Quando eu fui
Entrevistadora: Quantos anos mais novo
trabalhar como assistente de contabilidade
que você?
também numa empresa, tinha um Diretor da
firma que era muito velhinho e ele era filho Entrevistada: Ele é 4 anos mais novo do que
do dono, mas ele estava lá, sabe assim, essas eu. Uma noite eu estava em casa, ele falou
pessoas que vão trabalhar de enfeite? Só para assim: nós vamos prestar vestibular, eu falei:
ele não ficar sem fazer nada. Mas o que ele Beto, como assim, vamos prestar vestibular?
fazia? Todas as pessoas que estudavam, a Ele falou: eu te inscrevi. Eu falei: mas Beto,
gente fazia a mesma coisa, tinha um dia do estou trabalhando, como assim? Não, você
mês que a gente levava para ele, ele tinha que vai prestar sim, você vai prestar para Letras
ver se tinha pago, ele faz um cheque na porque você gosta de ler, você escreve bem,
metade do valor. você me ensina poemas. Falei, mas Beto, não
é assim, aí eu fui de brincadeira prestar com
Entrevistadora: Aí te ajuda muito a estudar.
ele. Bom, ele passou, entrou, desistiu no 1º
Entrevistada: Muito, claro, porque assim, eu ano, eu fui até o fim...
nunca ganhei bem, eu nunca tive um bom
Entrevistadora: Você chegou a falar para
trabalho, eu sempre fui trabalhadora assim,
ela alguns momentos antes: eu queria fazer
de ganhar 2 ou 3 salários mínimos, eu nunca
Letras, eu tinha vontade?
tive isso, mas sempre tive essas facilidades, o
que foi uma sorte para mim porque me Entrevistada: Não, nunca falei nada.
ajudou, sabe? Eu me sentia valorizada, me
Entrevistadora: Nunca passou pela tua
sentia respeitada quando isso acontecia, eu
cabeça ser professora? Nada?
me sentia com incentivo para continuar
estudando. E engraçado que essas empresas Entrevistada: Nunca. Claro que eu queria
também, para você ver como é a visão dessas fazer alguma outra coisa da minha vida
empresas, eles nunca se preocuparam que o porque assim, trabalhar no escritório é uma
que eu estava fazendo tinha a ver ou não. coisa muito chata, muito chata. Até porque eu
sou muito falante, então trabalhar como uma
426
coisa assim, eu sempre fui assim, né? Eu Entrevistada: Sim, ela fazia tudo e eu me
converso até com a janela, com a porta, se me lembro assim, da 1ª aula de literatura ela
deixarem, vão me confundir com poste falava: estou muito triste, ela falou assim
porque eu não gosto muito de falar. Então quando inaugurou a 1ª aula dela, foi a 1ª aula
assim, um trabalho que me proporcionasse que eles dão tudo que eles têm. Eu lembro
isso, seria ideal para mim, que é a sala de que ela falou assim: estou muito triste hoje,
aula, onde eu mais posso falar. eu vou destruir literatura para vocês. Todo
mundo: por que Maria Lúcia? Ah, porque
Entrevistadora: Afinal ele acabou fazendo
agora vamos olhar a literatura do avesso. A
uma opção que correspondeu a todas as suas
gente não vai mais olhar como leitor
expectativas.
distraído, que é o jeito mais gostoso de ler
Entrevistada: É, e aí na hora que eu fui, literatura, é o leitor distraído, né? Aquele que
quando eu fui fazer o vestibular, eu já estava se apaixona por um personagem, se encanta
totalmente encantada com a ideia porque era com o cenário, né? Porque agora vamos ver
uma faculdade pequena, Faculdade Moema, por dentro, vamos ver o esqueleto da
era dirigida por padres, salvatorianos acho literatura. Quando ela falou isso, a gente
que eles são, não vou lembrar direito a que falou: espera aí, o que é isso? Nossa, mas foi
congregação eles são, mas enfim, era uma maravilhoso. Eu não vou lembrar, são 25
faculdade linda. Esteticamente ela era linda, anos, né? Mas eu me lembro assim do
nossa, falei: aqui é o paraíso, o paraíso e as empenho das pessoas, das conversas. Falta
aulas eram maravilhosas. Eu lembro assim, era muito pouco, nós éramos uma classe de
eu estudava à noite, eu tinha 4 aulas de 50 alunos, eu não me lembro de muitas faltas
literatura no sábado, das 8 ao meio dia, eram no sábado. E assim, seria normal que todo
as melhores aulas que eu tinha. mundo faltasse. Você trabalhou a semana
inteira, estudou todas as noites, de sábado
Entrevistadora: Porque você trabalhava, e não, mas não faltava.
tinha aula também no sábado?
Entrevistadora: Você acha que essas aulas
Entrevistada: Isso, então era assim, eu foram influência para você dar?
chegava em casa 11 e meia, 5 e meia eu
estava de pé para ir trabalhar, foi muito difícil Entrevistada: Muito porque ela era uma
assim, mas gostoso, entendeu? Não posso te pessoa assim, e ela era encantadora como
dizer que foi sofrido, não foi porque eu uma pessoa, sabe? Ela era uma pessoa assim,
gostava. Eu gostava das aulas, eu gostava dos diferente, ela não era esse padrão, sabe? Por
trabalhos, gostava dos professores. exemplo, hoje em dia você fala assim: o que
é uma mulher bonita? Ah, é mulher de cabelo
Entrevistadora: O que tinha nas aulas, no loiro, ela era totalmente diferente, ela tinha
sábado, por exemplo? vindo de uma viagem para a Índia, então ela
Entrevistada: Era maravilhoso, maravilhoso, estava com um pearcing no nariz, aquilo já,
a professora era uma pessoa muito especial, sabe, hoje em dia é comum, mas há 25 anos
ela era apaixonada pelo que ela fazia e ela não era comum. Ela usava aquela saia
passava essa paixão para a gente. Não tinha indiana assim, então ela era uma figura
um aluno que dizia assim: que droga essa sedutora, sabe?
aula da Maria Lúcia, não tinha um aluno. Entrevistadora: Entendi,
Entrevistadora: Como era o nome dela? Entrevistada: Ela era uma figura sedutora,
Entrevistada: Maria Lúcia, não vou sabe? Assim, muito doce no jeito de falar,
lembrar o sobrenome. Tenho que olhar no muito carinhosa, assim, eu acho que as aulas
diploma para falar o sobrenome, mas ela era dela influenciaram toda aquela turma, eu
maravilhosa, maravilhosa. acho que sim, acho que influenciaram. E
tinha um professor de língua portuguesa
Entrevistadora: E ela fazia crítica literária? chamado Miguel Sales, esse eu lembro do
427
Entrevistada: Ah, porque eu sabia que não Entrevistada: A questão da literatura? Não
tinha estudado tanto, que não tinha tanta sei, eu sempre fui encantada com história, eu
cultura quanto os meus professores, gosto muito de história, eu gosto muito de
entendeu? Eu não tinha tanta bagagem, eu contar história, gosto muito de ouvir história,
achava que eu ainda estava muito, era muito então, gosto dos cronistas, gosto de histórias
precário o que eu tinha, as minhas primeiras curtas, gosto de histórias motivadoras,
aulas, para você ter uma ideia, eu fazia assim, histórias que apontem para uma coisa mais
428
Entrevistada: Nossa, eu achei muito caro Entrevistada: Isso, isso. E quando eu tinha
esses livros, tanto que sempre que eu tenho 3 meses eles mudaram para cá.
saído, assim, para passear ou descansar,
Entrevistadora: Por quê?
passo numa livraria e falo: deixa eu ver os
livros aqui, né? Entrevistada: O meu pai, lá não tinha
campo de trabalho, o meu pai arranjou
Entrevistadora: Daquelas que tem no
emprego aqui e a gente veio para cá.
Shopping?
Entrevistadora: E seu pai tinha essa coisa de
Entrevistada: Isso.
querer buscar uma vida melhor, assim?
Entrevistadora: Que no Santa Cruz tem Porque parece que ele foi uma pessoa que
várias. sempre?
Entrevistada: Hum, hum. Entrevistada: Sim, meu pai tinha uma coisa
de buscar uma vida melhor. Outro dia eu
Entrevistadora: Daí tem que ver o preço...
contei uma história para as crianças, eu não
Entrevistada: Sim para poder indicar e para sei se posso contar para você?
a partir desse livro, fazer um trabalho de
Entrevistadora: Pode.
leitura com eles.
Entrevistada: Meu pai trabalhou na roça até
Entrevistadora: Antes as escolas estavam
os 15 anos, ele não sabia o que era calçar um
dando livros no começo do ano, ainda estão
sapato até os 15 anos e aos 15 anos eles
dando? Porque agora é período integral, né?
saíram da roça e foram para a cidade, para
Entrevistada: Sim, ele dá, como chama? Um Poços e aí meu pai ganhou um sapato porque
kit de livros para eles. Eu te mostrei o ia procurar emprego. Aí ele chegou em um
trabalho da Anne Frank? hotel chamado Quisisana em Poços, imagina
um hotel no meio de uma floresta, o
Entrevistadora: Mostrou, você até passou o Quisisana é isso, maravilhoso e era muito
áudio para ver o texto. chique na época, hoje em dia não mais
Entrevistada: Isso, isso, isso, aquele livro as porque virou um condomínio, ainda existe,
crianças ganharam, mas foi o último ano que mas é um condomínio, não é mais um hotel,
eles ganharam. mas na época era o hotel mais chique da
cidade e o meu pai, a minha avó sempre fez
Entrevistadora: Ah, não deram mais os meninos estudarem, 7 filhos, todos
depois? estudados, apesar de estar na roça, eles tinha
que estudar. E meu pai foi fazer uma ficha
Entrevistada: Não deram mais. É uma pena.
nesse hotel para conseguir um emprego,
Entrevistadora: É uma pena porque não dá quando ele fez a ficha, ele pediu, como se
para você manter o trabalho. diz? Ele estava ambicionando, não sei como
se fala essa palavra. Pleiteando uma vaga,
Entrevistada: Não dá, não dá, mas que né? Estava pleiteando uma vaga para garçom
bom que fez aquele, aproveitamos e fizemos porque ele achou que estava bom ser garçom,
aquele. quando viram a letra do meu pai, a pessoa,
Entrevistadora: E recuperando um pouco, né, provavelmente o gerente falou: nossa, sua
você falou que morava em São Caetano, seus letra é muito bonita, você não vai ser garçom
pais são de São Caetano? não, você vai ser escriturário. Aí já colocou o
meu pai no escritório do hotel, meu pai já
Entrevistada: Não, a minha família é de começou a ser escriturário, fazia livro fiscal
Minas Gerais, de Poços de Caldas. porque ele tinha a letra muito bonita, imagine
você.
Entrevistadora: Ah, todos eles? Seus pais
nasceram em Minas Gerais? Entrevistadora: Que legal.
430
Entrevistada: E foi isso, meu pai foi estudar crianças, você vai lá e castiga eles, você acha
Contabilidade, se formou. que eles vão melhorar? Ah, sim, aí na 2ª
feira, eu acalmada, desci no horário que eu
Entrevistadora: Foi gostando daquilo.
disse que ia castigar, pedi licença para o
Entrevistada: Foi. Aí foi para a professor, olha, eu não vou fazer isso porque
Contabilidade e trabalhou muitos anos, aos apesar de ter alunos que desrespeitam, tem
40 anos ele se formou como advogado e mais alunos que respeitam, então em nome
sempre foi assim. desses alunos que respeitam, vocês vão ter os
15 minutos que vocês têm de almoço como
sempre e amanhã, quando eu entrar aqui para
Entrevistadora: Foi um exemplo também, dar aula, eu quero encontrar outros alunos, eu
né? quero que a maioria respeite. E aí foi ótimo,
depois não precisei nem falar porque deu
Entrevistada: Foi, nossa! Porque assim, ele tudo certo.
deu uma volta na história dele.
Entrevistadora: Deu tudo certo.
Entrevistadora: É, totalmente.
Entrevistada: Deu tudo certo porque não
Entrevistada: Deu uma volta, não era, das teve castigo, mas assim, na hora, no calor do
irmãs dele, ele foi o único que estudou. momento você quer mais bater mesmo. Você
Assim, são 5 irmãs e ele, dois irmãos fala: não, você me atrapalhou e agora eu que
morreram, espera, falei errado, 4 irmãs e ele, vou atrapalhar a tua vida também.
dois irmãos morreram e ele foi o único que
estudou. Aliás, as minhas tias estudaram Entrevistadora: Reativo.
também, mas quando eu digo estudar, assim, Entrevistada: É, e é aí que a gente faz
elas não se formaram. grandes enganos. Mais ou menos é isso.
Entrevistadora: Elas foram até onde? Entrevistadora: E ela teve uma trajetória
Entrevistada: Elas foram até o ensino parecida com a sua? Ela também trabalhou
médio, assim, no máximo e pararam. como contabilista?
Entrevistadora: Você tinha contado que a Entrevistada: Não, a minha irmã não, a
sua irmã foi uma presença bem importante minha irmã trabalhou na Prefeitura.
para você. E você também falou que ela era Entrevistadora: Como o quê?
Psicanalista, alguma coisa assim?
Entrevistada: Como escriturária da
Entrevistada: Isso, ela é Psicanalista. Prefeitura há muitos anos, depois ela se
Entrevistadora: E hoje ela ainda é uma formou em Psicologia.
pessoa significativa na sua vida? Entrevistadora: Na Universidade de Moema
Entrevistada: Muito, muito. Muito também?
significativa. A gente ainda se apoia muito, Entrevistada: Não, ela se formou pela
ela me ajuda muito, quando acontece alguma FMU e ela entrou de 1ª assim, na época não
coisa aqui eu falo para ela e ela dá a visão da era tão fácil entrar, hoje em dia você escreve
orientadora e não da professora, olha, tive um seu nome, está matriculado. Ela entrou sem
problema com uma sala outro dia, eu falei: cursinho, sem nada, ela conseguiu e se
ah, eu vou tirar os 15 minutos de almoço de formou pela FMU, teve Clínica uma época,
vocês, né? 2ª feira eu venho aqui e vou tirar e hoje em dia ela trabalha como orientadora
no fim de semana liguei para ela e disse: numa escola.
nossa, tive um problema horrível na sala, não
consegui dar aula e tal. Ela falou: mas você Entrevistadora: que legal, uma escola
acha que você teve um problema com essas pública?
431
Entrevistada: Não, não, escola particular. Entrevistada: É, que não são representadas
Ensino fundamental 1 e 2. em objetos.
Entrevistadora: Então acabou indo para a Entrevistadora: Exato.
escola também.
Entrevistada: Então é muito bom.
Entrevistada: Ah sim, a vida dela é todo
para a escola.
Entrevistadora: Que ótimo. E seu marido
faz o quê?
Entrevistadora: Ela queria trabalhar com
Entrevistada: Meu marido é físico.
escola ou foi uma coisa por acaso também?
Entrevistadora: É físico? Ele trabalha
Entrevistada: Não, é porque assim, o
também no ensino médio?
campo de psicologia é muito restrito mesmo,
ou você tem, dispõe de tempo para esperar os Entrevistada: Ele deu aula muitos anos
pacientes chegarem, que não é uma coisa tão também, no ensino médio, ele sempre no
fácil assim, você tem que fazer um nome e ensino médio. Mas também é uma pessoa
tudo o mais, então ela foi trabalhar na escola muito culta, a gente conversa bastante sobre
por isso. Ela pode trabalhar como psicóloga, filosofia, né?
mas de outra forma, entendeu? Com outra
abordagem, né, e está vinculada à educação, Entrevistadora: Ele gosta? Eu fiz...
sempre ligado a isso. Entrevistada: Eu nunca soube, não, você
Entrevistadora: E vocês compartilham talvez saiba, mas eu, como eu nunca estudei
literaturas que vocês leram? física porque assim, eu fui para o ensino
médio, técnico.
Entrevistada: Sim, muito, muito, a gente
conversa muito sobre isso. Deixa eu ver, Entrevistadora: Muito técnico.
lembrar de um livro que lemos juntas. Isabel Entrevistada: Eu falo para ele, tudo o eu
Aliende a gente lê junto, acho que foi o sei de física, eu sou casada com um físico
último que a gente leu porque foi antes de eu porque assim, eu não sei nada e eu não sabia
me casar e a gente lia antes de dormir, a que um físico poderia ser uma pessoa tão
gente ficava lendo essas coisas. espiritualizada e ele é muito, muito
Entrevistadora: Ela é casada também? espiritualizado, muito, muito, sabe assim?
Então é uma companhia muito...
Entrevistada: Não, ela não, acho que foi a
Isabel Aliende que lemos juntas. A Casa dos Entrevistadora: Perfeita.
Espíritos e era muito gostoso, a minha irmã é Entrevistada: Muito rica, entendeu? É uma
muito ligada em literatura. Às vezes eu acho riqueza de convivência. Realmente é uma
que é ela que põe essa pilha em mim. riqueza de convivência. Outro dia, para você
Entrevistadora: Que faz você se encantar de ter uma ideia das coisas que eu converso com
novo? ele, eu trabalhei no texto com o 7º ano, que
era um relato de memória. Nesse relato de
Entrevistada: É com certeza. memória, uma moça contando a história dela,
o pai dela foi, acho que era engenheiro que
Entrevistadora: É bom ter essa referencia.
acho que ajudou a construir Brasília. E essa
Entrevistada: Nossa, muito bom, num moça morava em Fortaleza antes deles irem
mundo tão cheio de coisa, alguém que se para Brasília e tal, e ela faz uma descrição da
importa com coisas... casa, de como era a casa dela, que era uma
choupana, que era uma casa enorme, uma
Entrevistadora: Belas.
casa cheia de crianças, cheia de meninas que
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a mãe dela criava, essas meninas, pelo que eu gente que fala: “ai que droga, você trabalha
entendi no texto é como se fossem no Estado, ai que porcaria, nossa, como você
empregadas da casa, mas também eram sofre! Não, olha que bacana!
tratadas como filha e tal, então assim, era um
ambiente muito bacana que ela vai
descrevendo. E ela conta que elas tinham Entrevistadora: Te traz uma visão positiva
uma vitrola e que a mãe dela colocava Clair da profissão.
de Lune, de Debussy para ouvir e quando ela
colocava Clair de Lune a irmã, acho que a Entrevistada: Da minha profissão.
irmã mais velha, não lembro, chorava. E aí a Entrevistadora: E da relação com as
Entrevistada, a idiota aqui, eu peguei as pessoas.
crianças e enfiei as crianças na multimídia e
toquei Clair de Lune para eles, porque eu Entrevistada: Com as pessoas, né? Eu falei
achei que era um direito deles conhecerem, Márcio, eu aprendi, aprendi, vou falar assim,
para ficar rica a aula. Aí uma aluna me a próxima vez que eles falarem que a música
levanta a mão e fala assim: eu estou com que eu estou tocando para eles dá sono, vou
sono. E eu, estupidamente falo: isso é falar: serenou seu espírito, acalmou sua alma,
entregar pérola para porco, vejam só e fiquei olha só. Falei uma coisa, não fui grosseira e
muito brava. Ontem, a mãe dessa menina ensinei que uma música clássica pode
veio aqui me cobrar esse “pérola para porco”. acalmar o espírito.
Entrevistada: Ah, que já vivi? Vou falar da cuidadosa me tudo, mas quando ia para lá,
casa dos meus avós, dos pais do meu pai, que parece que todo mundo estava cuidado,
era a casa que recebia gente porque nós inclusive meu pai.
morávamos aqui em São Paulo, mas sempre,
Entrevistadora: Porque aqui ele não tinha
todo feriado, todo fim de semana que a gente
que cuidar.
podia, o meu pai colocava toda a criançada
no carro e: vamos para Poços, então a casa da Entrevistada: Aqui ele era o cuidador, mas
minha avó. A casa da minha avó era assim, lá a gente estava sob os olhos do meu avô,
sabe, casa com fogão de lenha, sabe? que era uma pessoa extremamente forte, da
minha avó, que era uma mulher
Entrevistadora: Sei.
extremamente forte. Então era bom ficar lá
Entrevistada: E uma casa, as 4 irmãs do com eles, ficar embaixo das asas dos dois,
meu pai, tias muito carinhosas, quando a naquela casa, sabe?
gente chegava, tinha bandeja de bombons
Entrevistadora: Que maravilha.
feitos, porque elas eram super caprichosas,
tinham assim os doces que a gente gostava, Entrevistada: Com aquelas comidas, com
as comidas que a gente gostava, sabe e meus aqueles pães que a minha vó fazia, sabe? Eu
primos também, nossa, era maravilhoso. me lembro da minha avó, ela fazia pão, fazia,
a gente chama de quitanda em Poços.
Entrevistadora: Trazia toda aquela coisa
Quitanda é bolachinha, é broa, isso se chama
acolhedora?
quitanda. Me lembro que ela colocava uma
Entrevistada: Sim, sim, de uma família bacia, super bem areada de alumínio, na
mineira, né? De uma família carinhosa, de cadeira porque aí a força do corpo dela é que
uma família que tinha sérios problemas, mas sovava o pão. Eu me lembro da minha avó
também tinham uma convivência deliciosa fazendo pão.
quando os problemas não estavam tão fortes,
Entrevistadora: Que lindo.
tão prementes, então é a casa dos meus avós.
A casa que eu tenho na memória é a casa dos Entrevistada: Então é uma memória muito
meus avós. Se eu pudesse, às vezes eu fecho gostosa de ter, sabe?
os olhos e digo: ai, se Deus me desse mais
uma ora naquela casa, mais uma hora com Entrevistadora: E ela gostava de cantar?
eles, sabe? Ia ser tão bom, tão rico, né? Entrevistada: Minha avó não, minha avó
Porque foi tão bom viver lá. era uma pessoa extremamente triste, hoje ela
Entrevistadora: Tem um livro do Bachelard seria depressiva, porque ela perdeu 2 filhos,
que chama: a poética do espaço e ele fala um deles morreu de acidente, ela nunca se
dessa relação que a gente tem com a casa e recuperou. Depois que o último morreu, perdi
ele conta desses lugares da casa, o quanto um tio num acidente aos 24 anos, a minha
formam a gente. avó nunca mais recuperou. Inclusive, para
você ver como que foi grave, o médico, um
Entrevistada: Nossa identidade. médico, ensinou a minha avó a fumar porque
o cigarro aplacava a angústia.
Entrevistadora: Isso, você falou isso e me
lembrou muito porque é aquela casa que a Entrevistadora: Coitadinha.
gente viveu e sabe, parece...
Entrevistada: Ela só parou de fumar no fim
Entrevistada: Que a gente foi acolhida. da vida quando ela teve uma pneumonia, aí o
médico falou: eu sei que a senhora fuma para
Entrevistadora: É, e parece que aquilo que
se acalmar, mas a senhora não vai mais fumar
criou uma certa estabilidade dentro da gente.
porque o seu pulmão está nesse estado e aí
Entrevistada: Isso, isso, veja, tinhas a ela teve que parar. Mas a minha avó era uma
minha casa, a minha mãe sempre foi muito pessoa muito, mas assim, uma pessoa boa,
434
boa, mas não uma pessoa igual meu avô. O Entrevistada: Isso, para mim. Eu me
meu avô não, o meu avô brincava, meu avô lembro que o meu pai ensinava a minha irmã
falava, era uma pessoa, um velhinho muito a cantar algumas músicas e ela me ensinou a
lúcido, sabe, assistia jornal com a gente, cantar. Ele ensinava para ela e tocava para ela
entendeu? Lia jornal, o meu avô lia jornal, cantar, depois ela me ensinou.
apesar de ter pouca instrução também,
Entrevistadora: Por que ele parou?
trabalhava na roça, derrubava árvore,
trabalhava com trator, sabe? Trabalho bruto Entrevistada: Não, não, porque ele queria
mesmo, mas mesmo assim, era uma pessoa juntar a família cantando junto com ele,
muito culta. entendeu? Era isso, então as nossas reuniões
de família sempre eram regadas de música,
Entrevistadora: E quem você acha, quem ou
todas as reuniões de família tinha meu pai
o que na verdade pode ter sido essa
tocando. Logo que ele morreu, eu não
referencia que você falou? Que você pode
aguentei, né? Hoje em dia eu já quero que
fazer uma leitura bela, trazer a música bela?
toquem, mas nos primeiros anos, era muito
Entrevistada: A minha irmã, essa é a duro, ter a música e não ter ele. Eu tenho 2
minha irmã. A minha irmã é uma pessoa irmãos que tocam também, mas no começo
muito especial, eu acho que foi ela. Apesar eu, foi muito difícil. Mas agora eu já sinto
de que meu pai tocava música clássica saudades, quero que toquem, mesmo que eu
também, o meu pai era violonista. chore, eu quero ouvir.
Entrevistadora: E onde ele aprendeu a tocar Entrevistadora: Porque traz também
violão? uma coisa boa, a presença dele, né?
Entrevistada: Ele assim, antigamente, não Entrevistada: Porque traz toda a presença
sei se você sabe, quem tocava violão era dele, a lembrança dele.
desvalorizado porque só vagabundo que
Entrevistadora: Que coisa boa.
tocava violão, então a minha avó odiava, ele
tinha que esconder o violão da minha avó, Entrevistada: Eu acho que ele e a Alda, o
mas ele gostava, então ele foi para o meu pai e a minha irmã Alda, eles
conservatório, se formou no conservatório, construíram esse tipo de vontade de procurar
ele dava aula em conservatório. isso, de oferecer isso para o aluno. Porque foi
tão bom para mim, então quando uma coisa é
Entrevistadora: Isso quando ele estava
boa para a gente, a gente quer oferecer
ainda e m Minas?
também.
Entrevistada: Isso, isso em Minas, né?
Entrevistadora: Claro. E você ouve
Meu pai era seresteiro, fazia seresta, tocava
chorinho ainda?
com os amigos. E ele tocava, dentre as
músicas, ele gostava de tocar chorinho (?) ali, Entrevistada: Ouço, comprei alguns CDs,
não sei se você conhece. tem algumas gravações do meu pai que eu
ouço.
Entrevistadora: Hã, hã.
Entrevistadora: Que coisa boa. Faz tempo
Entrevistada: Então ele tocava essas peças
que ele faleceu?
assim, peças que não é do chorinho, mas
tocava algumas músicas clássicas também, eu Entrevistada: Ele faleceu em 2010.
acho que isso tudo ficou na minha cabeça,
construiu esse gosto por isso.
Entrevistadora: Esse gosto pela música Entrevistadora: Já tem 7 anos. Então é isso,
clássica, pelas coisas belas, se fosse para a obrigada, é sempre um prazer conversar com
sua irmã, você traz para você também. você porque a sua experiência é muito rica.
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Entrevistada: Que bom, que bacana poder Entrevistadora: Há quanto tempo você
te ajudar. trabalha como professora?
Entrevistadora: Me ajuda muito.
Entrevistada: Há 20 anos?
Entrevistadora: Lá no curso?
Entrevistadora: Qual é seu nome?
Entrevistada: Em letras mesmo, na
Entrevistada: Valquiria. faculdade”. Ah, está dando aula não sei o
quê”. Aí eu pensei assim, eu vou ficar presa
Entrevistadora: Você em quantos anos?
em uma empresa o dia inteiro. Eu tenho
Entrevistada: Eu tenho 49 anos. minha filha, isso em 1994.
436
Entrevistadora: Você já era casada e tinha de várias escolas para conhecer vários
uma filha? lugares e também porque como eu não era
concursada, vinha o pessoal concursado e
Entrevistada: É, eu casei em 1993, terminei
segue a escala de pontuação. Depois eu
a faculdade em 1994 e aí engravidei em 93
passei em um concurso, passei em inglês,
também, no ano do casamento. Tive a
passei no concurso em 2003. Só que eu não
Amanda em 1994 e aí eu me formei em 1994
assumir, aí em fiquei com cargo estável.
e falei assim “não, eu vou pegar uma área
Inclusive, fiquei em escola particular,
com mais flexibilidade para criar o filho”.
concomitante com o estado no Colégio Santa
Então eu fui para a educação e gostei.
Bárbara, aqui perto, sistema Objetivo. Fiquei
Entrevistadora: E você já começou na rede lecionando português na parte da manhã e à
estadual ou você começou em outra rede? noite eu ficava lecionando inglês no Estado.
Entrevistada: Agrada. A Língua Portuguesa, Lapa mesmo. Mas eu não gostei muito dessas
os alunos não têm uma receptividade assim, escolas. Elas se prendem muito a livro. Eles
quanto quando a gente leciona o inglês. prendem a livro e cobram o livro. A gente
Quando eu pego uma turma que é Português- tem que pegar o livro e fazer o aluno, de
inglês, eles falam que é totalmente diferente a qualquer jeito...e eu não gosto de trabalhar
aula de inglês. Diz que eles se envolvem assim, presa a um livro.
mais. Não sei. Eles acham muito pesada a
Entrevistadora: E como você gosta de
carga de Língua Portuguesa. É desgastante
trabalhar?
para eles e até há uma empatia para o lado da
professora de Língua Portuguesa e para a Entrevistada: Com atividades que eu monto,
professora de Matemática também, eles eu trabalho as minhas aulas em cima de um
falam isso. São várias aulas, são cinco aulas contexto que fale da realidade do aluno
semanais então a gente entra com constância também.
com eles lá. Agora, inglês eles gostam. Eu Entrevistadora: é importante.
também me identifico com inglês porque eu
Entrevistada: Não ficar presa apostila, em
trago música, tenho um leque enorme. Eu
livro. Claro, não tem como não usar tudo,
também faço Cultura Inglesa.
mas eu gosto de estar flexibilizando e eles
Entrevistadora: Você faz o curso de inglês? não gostam muito disso. Eles querem que use
Entrevistada: Faço, faço Cultura Inglesa já o livro, então eu não me adaptei a nenhuma
faz um ano e meio. Comecei no ano passado, das duas escolas por causa disso. É difícil
na metade do ano, aí foi todo esse ano e ano porque pai e mãe não pagam barato nos
que vem mais o ano todo. livros, eles pagam caro. E com razão, não tiro
a razão deles, de querer que faça o livro. Mas
Entrevistadora: E você optou fazer o curso
não é muito bom ficar preso em um livro só.
para aprender mais?
Entrevistadora: A partir disso que você
Entrevistada: Eu já havia feito esse curso
acabou de falar, como você pensa e planeja
um ano. Mas o que aconteceu? Como eu fui
as aulas para o ensino médio, me refiro às
para a escola particular, aí já não havia
aulas que acompanhei?
horário porque o horário era a parte da
manhã. Então eu me dediquei à escola Entrevistada: Nossa, até hoje eu não sei
particular porque eu ganhava duas bolsas como porque eu tenho uma versatilidade,
para as minhas filhas. Aí eu fiquei lá um vem assim a aula. Eu acho que é tão, também
tempão. Eu fiquei lá acho que uns oito, nova vinte anos, como eu me identifico com essa
anos. Aí depois eu também fui estudar em área eu acho que as coisas vêm assim. Tanto
uma escola particular lá no Alto da Lapa, em que em 1998, é assim, sinceramente, tem
duas escolas, uma no Alto da Lapa e outra na anos que a gente está bem inspirado, então a
438
gente está bem inspirado porque como eu encontro um aluno triste, alguém assim, há
estou cansada, quando eu estava só com o um conflito na sala. Então, de repente aquela
Estado era muito bom porque aí eu montava matéria que a gente vai ver não vai ser tão
as aulas, me dedicava bem. Aí os alunos, eu necessária, tanto quanto o que a sala está
já chegava já, não precisava nem de lousa, pedindo naquele momento.
nem de nada, já falava. Tanto que eu
Entrevistadora: Resolver um conflito, uma
encontro alunos meus de tempos passados,
conversa.
que eles falam “nossa, professora, eu nunca
tive uma professora de Língua Portuguesa tão Entrevistada: Isso, resolver um conflito,
boa assim”. A gente acha que não está bom. uma conversa às vezes é mais importante.
Acompanhar eles, de repente, na parte de
Entrevistadora: A gente sempre tem uma
humanizar, sociabilizar, parar para conversar
autocrítica forte.
com eles, refletir. Uma vez, eu me lembro, eu
Entrevistada: Sempre tem uma crítica e eles estava no Silvado, um aluno colou um
falam “nossa, professora, muito bom”. Eu me absorvente na lousa e riscou com caneta
sinto, até em relação há uns dez anos atrás, eu vermelha. Então a gente parou. Eu falei assim
acredito que a gente vai se prendendo muito a “gente, vendo aqui esse absorvente, alguém
coisas que eles vão cobrando. Aí vai sabe aqui o que é ciclo menstrual? “ Sexta
deixando um pouquinho da essência que a série. Ai a gente começou a falar e o outro
gente trabalha. Mas, assim, as aulas que eu professor veio e acompanhou também. Foi
monto, elas vêm, por exemplo, como eu sou uma turma muito bacana lá na escola porque
módulo na prefeitura, eu dou português na a gente tinha essa facilidade, essa
prefeitura, e eu preciso entrar em outras interdisciplinaridade, de trabalhar todo
salas: de geografia, de ciências. Então eu dou mundo junto. Então a escola, eles trabalham
uma olhadinha e tenho essa flexibilidade que por áreas. Educação física, artes, língua
já é do meu instinto. Então eu consigo portuguesa, língua inglesa. A gente fica todos
desenvolver. A professora deixou uma em uma área: códigos de linguagem. Aí
matéria de Geografia, eu olho o caderno do matemática, não é que e separado, depois eles
aluno e já consigo pegar, acompanhar, completam.
desenvolver aquilo. Então, Ciências, dou um
Entrevistadora: Em qual escola?
texto, de Língua Portuguesa, dou um texto
voltado para ciências com interpretação de Entrevistada: No Silvado.
texto para esclarecer para eles. Então eu Entrevistadora: Se compararmos o Silvado
tenho, eu chego numa sala, assim, às vezes eu com a Escola 1, qual é a diferença nessa
montei aquela aula e às vezes eu não dou questão?
aquela aula. Eu já pego e falo assim, “hoje eu
vou fazer isso”. Por que às vezes que
439
trovadores, e aí eu trabalhava o texto para Entrevistada: Esse livro foi selecionado pela
eles entenderem por que chegou naquele escola, a escoa escolheu esse livro para
contexto. Por que trovadorismo? Por que essa trabalhar.
palavra? O que tem a ver? Então, dentro do
Entrevistadora: Você participou da seleção?
texto, puxava toda a história e as ideias e
através do texto já puxava a gramática Entrevistada: Não participei porque ela foi
também. O Quinhentismo também desse no começo do ano passado. Quando eu
mesmo seguimento. cheguei nessa escola, eu cheguei em agosto.
Entrevistada: Os alunos não receberam esse Entrevistadora: Você tinha que usar a
livro. O que aconteceu? A escola só tinha apostila ou você a usava quando achava mais
uma sala de aula, a professora já pegou e conveniente?
centralizou tudo para ela lá os livros, ela Entrevistada: Não, com esse material
pegou os livros, uns 30, uma quantidade mandando pelo estado a gente utiliza. A
correta da sala e deu para os alunos. Os gente segue também.
alunos levaram para casa e eu fiquei com
Entrevistadora: você usou todo o livro?
uma pequena quantidade de 28 livros. Então
eu trabalhava em grupos e eu ficava com Entrevistada: Não. Eu usei alguns textos aí,
esses livros comigo. Aí ela ia na minha sala e não usei todo não. Tanto do volume 1 quanto
pegava os livros porque os alunos dela do volume 2.
levavam para casa e esqueciam, ai foram
Entrevistadora: o que você acha desse
desaparecendo. Ficaram só 15.
material?
Entrevistadora: E como esse livro foi
Entrevistada: É um material interessante,
selecionado?
não deixa de ser um material necessário. Ele
condensa bastante coisa que tem dentro do
currículo do 1º médio.
441
minha casa está porque como eu gosto de ler, qual parte eles mais gostavam, se eles fossem
minhas filhas acho que me acompanharam e o personagem, como é que se fala, que está
também meus irmãos deram livros infantis agindo em favor das pessoas no livro o que
quando elas eram crianças, elas já têm essa eles fariam. Coisas assim, mais assim,
prática. A maioria dos alunos não têm. Mas voltadas para eles.
não deixa de fazer crescer essa vontade neles.
Entrevistadora: Para eles se posicionarem?
Entrevistadora: Como você vê o trabalho do
Entrevistada: Se posicionarem, uma crítica
professor com relação à leitura?
em cima. Não fazer, assim, uma coisa de
Entrevistada: eles são receptivos à leitura. decorar a parte “Ah, capítulo 1 fala sobre..”.
Se eu leio. O que eu faço? Eu pego o livro e Essas coisas não.
leio em sala de aula”.Ah, gente, vamos fazer
Entrevistadora: Você contou que ao longo
uma prévia do..”. Eu instigo a leitura, aí uma
do ano trabalhou algumas escolas literárias.
vez também eu li em sala de aula, acho que
Os alunos liam textos relacionadas à elas?
foi o 1ºB, eles disseram “Ah, professora, eu
gostei”. A maioria que leu foi do 1ºB. Eles Entrevistada: Eles liam em sala. Eles
leram bastante. gostavam”.Professora, posso ler? “ Eles eram
voluntários, gostavam de ler sim. Eles liam
Entrevistadora: Alguns leram o D.Quixote,
os textos que estavam no livro didático ou os
não leram?
livros mesmo dos autores?
Entrevistada: Leram, leram o D.Quixote.
Entrevistadora: do livro didático.
Entrevistadora: Era uma adaptação ou era o
Entrevistada: Eles eram receptivos, gostam
texto integral?
dessas atividades de leitura?
Entrevistada: Era uma adaptação, mas ele
Entrevistadora: Gostavam. A maioria era
está mais voltado para o texto original, eu li e
receptiva.
ele está mais voltado para o texto integral.
Eles acharam confuso”.Ai, professora, eu não Entrevistada: Eles costumavam fazer as
gostei”. leituras e responder algumas questões?
Entrevistadora: Você falou que você acha aquele, a saga Crepúsculo. Eles leem, eles
que os alunos não têm essa prática de leitura gostam.
em casa e isso dificulta na aula. Como você
Entrevistadora: E você já pensou em incluir
vê os alunos com relação à leitura, à escrita?
essas leituras na escola? Você se aproxima
Entrevistada: Eles estão inseridos em um desse universo?
contexto de informatização. Eles gostam
Entrevistada: Ah, eu não... como se fal? Eu
muito de celular, whatsapp, essas coisas. Eles
deixo eles fazerem uma leitura individual
estão mais, assim, as informações para eles
deles, mas não chamo eles para falar a
chegam muito rápido. Às vezes eles não têm
respeito. Mas aí a escola tem a sala de leitura,
esse discernimento de pegar um livro e ler,
essa que eu estou, Escola 1, e eu comentei
relaxar. Eles não têm esse costume de
com a diretora que tem muitos filmes bons e
relaxar. Aí eu já fiz até uma análise, porque
também livros, aí ela conseguiu trazer alguns
quando eu estava na sala de aula agitada,
filmes, quer dizer, alguns livros em cima dos
assim, pego uma coisa, pego outra, não sei o
filmes que estavam passando.
quê, aí eles vão fazendo. Aí eu falo assim
“Vamos fazer uma leitura silenciosa”. Aí eu Entrevistadora: Eu conversei com a
pego e dou como exemplo. Pego o livro e Adriana, aquela aluna que trabalha na sala de
faço a leitura silenciosa, aí eles vão leitura, e ela disse que existem muitos livros
acalmando. Eu tô fazendo essa prática. dos quais os alunos gostam.
Entrevistadora: É seu maior desafio, fazer Entrevistada: Tem uma fila gigante para
eles saírem desse contexto para começar a eles lerem.
pensar na leitura. Entrevistadora: Você costuma ler?
Entrevistada: Isso. Entrevistada: Olha, ultimamente, de uns
Entrevistadora: Você acha que eles leem os dois anos para cá, assim eu não tenho feito
livros que eles gostam, mesmo fora da uma leitura completa de um texto, quer dizer,
escola? de um livro. Eu pego fragmentos, guardo os
fragmentos. Pego coisas assim, por exemplo,
Entrevistada: Leem, leem sim. Eu vejo que
no tablete, alguma parte, daí eu leio, mas um
a maioria lê livros que não são aqueles que
livro inteiro eu não tive mais tempo de ler e
estão na escola, mas leem livros que eles
eu gosto muito de leitura. Só que eu sou
gostam, se identificam, algum filme que
assim, como se diz, eu guardo, minha
gostam. Escrito nas estrelas eles leram. [se
memória, graças à Deus, é boa. Então eu leio
refere ao nome errado do livro] Então quando
muita coisa e essas leituras que eu já fiz
tem alguma coisa assim, a mídia ajuda muito.
anteriormente, elas me ajudam hoje em dia.
Quando a mídia fica mostrando algo que está
na moda eles seguem. Harry Potter, ou Entrevistadora: Quais leituras você fez?
444
Entrevistada: De literatura dos grandes leitura completa. São textos que, por
autores, Machado de Assis, Raul Pompéia, exemplo, acabei de fazer faculdade de
então toda essa, como se fala, dentro do que Pedagogia, então tem textos lá a respeito de
eu vou ensinar, eu sempre estou dando uma Educação Infantil, textos técnicos.
lida nos livros, nos grandes autores.
Entrevistadora: Você lê bastante desses
Entrevistadora: Você tem esses livros na textos?
sua casa? Você dá uma olhada?
Entrevistada: Sim, mais textos técnicos.
Entrevistada: Isso, eu dou uma olhada, mas
Entrevistadora: E você gosta de ver tv, ir ao
eu não tenho aquele tempo como antes.
cinema, ao teatro, você faz essas coisas?
Entrevistadora: Quando você diz antes você
Entrevistada: Faço, eu adoro. Teatro eu fui a
se refere à qual período?
um musical no último Road rana, que foi no
Entrevistada: Quando eu estava na teatro Bradesco no Bourboun. Cinema, eu
graduação, quando eu comecei a dar aulas. estava querendo assistir aquele Interestelar.
De uns dez anos para cá acho que ficou meio São três horas de duração. Eu estou até com
fragmentada a leitura pela falta de tempo, os convites lá porque eu queria assistir hoje,
mas não que isso me deixe menos sabedora mas o meu marido, ele está de férias, ele teve
ou menos intuitiva para incentivá-los. Mas uns contratempos e não pode ir. Eu também
em casa eu ganho muitos livros. Ganho livros estou finalizando a prefeitura e teve reunião
porque a gente recebe kits também. Esse O também. Ah, eu quero ver aquela exposição
Diário de Anne Frank eu já tinha lido, voltei que está tendo na Pinacoteca.
a ler. O D.Casmurro eu também li.
Entrevistadora: Do Rom Muek.
Entrevistadora: Esse é o kit desse ano?
Entrevistada: Deve ser muito legal. Muito
Entrevistada: Desse ano. Eu voltei a ler, belo, muito interessante. Tanto que uma
entendeu? O que a gente é contemplado de amiga minha que estava lá tirou uma foto, aí
livros eu leio os livros, aquele livro que a mandou para não sei quem e o outro
gente vai usar aquele ano. comentou “Nossa, ela falou que estava no
centro e já está na praia”. porque saiu a foto
Entrevistadora: E com relação aos
do casal que está na praia.
fragmentos, àquilo que você tem no seu
tablet, o que você costuma ler? Entrevistadora: Entendi.
Entrevistadora: E ele sempre trabalhou com Entrevistada: Ali num escritório, trabalha na
isso. parte de segurança do trabalho e o meu irmão
caçula trabalha num banco.
Entrevistada: Sempre trabalhou, depois ele
aposentou com 48 anos com aposentadoria Entrevistadora: É esse que...
especial e aí ele ficou trabalhando com
Entrevistada: Isso, é o dono aqui da casa
imposto de Renda.
do lado.
Entrevistadora: Ah, ele é contador?
Entrevistadora: (risos)
Entrevistada: É contador, ele fazia toda a
Entrevistada: Ele trabalha num banco,
parte de contabilidade lá do bairro e depois
trabalha num banco lá em Osasco.
ele fundou a Sociedade Amigos do Bairro.
Entrevistadora: E a sua mãe fazia o
Entrevistadora: É, eu lembro que na última
quê?
entrevista você falou sobre que seu pai era
uma pessoa assim bem proeminente no Entrevistada: A minha mãe é do lar.
bairro, não é?
Entrevistadora: Ah, ela é sempre dona de
Entrevistada: Isso, é, então chamavam ele casa.
até de presidente.
Entrevistada: Sempre dona de casa, sempre
Entrevistadora : (risos) cuidou da gente.
Entrevistada: É presidente, é prefeito, cada Entrevistadora: É?
um assim, então a gente ficou muito assim
conhecido no bairro, tanto que o pessoal Entrevistada: É.
pergunta muito dele porque agora ele está Entrevistadora: Vocês davam muito
com Parkinson e Alzheimer, então ele está trabalho?
acamado em casa.
Entrevistada: Não, até que não, assim, a
Entrevistadora: As pessoas querem saber gente estudou no Silvado, o Marcos, nós
dele. quatro, só que eu queria fazer técnico
Entrevistada: É, querem saber, então eu secretariado, então eu fui trabalhar com 15
assim, passei minha infância toda mesmo anos lá em cima mesmo no comércio, aquele
aqui no bairro e os meus irmãos, o mais comércio lá em cima do que (0:06:22).
velho trabalha na SPTrans como eu falei, eu Entrevistadora: Sei.
trabalhei na SPTrans, trabalhei nove anos,
depois eu saí para lecionar em 95, saí em Entrevistada: Então trabalhei ali para pagar
janeiro e já em fevereiro comecei a lecionar. o técnico, secretariado no Padre Giordano.
Entrevistada: Conhecia, isso, então ela Entrevistadora: Ah, então ela era bem assim
falou, olha, tem aula aqui. aberta, né?
Entrevistadora: Ah, que ótimo. Entrevistada: A escola em si tinha uns
professores muito bons no Silvado, tudo
Entrevistada: Aí fiquei pertinho de casa.
quanto era, assim, geografia, inglês,
Entrevistadora: Porque na verdade você fez português, matemática, educação física, tudo
o ensino fundamental e depois você fez o professores bons, tinha até filosofia.
técnico em secretariado.
Entrevistadora: Nossa!
Entrevistada: Isso.
Entrevistada: Eu me lembro até do
Entrevistadora: Só depois que você foi professor Jacobs, nossa, muito bom.
fazer curso de letras, né?
Entrevistadora: E porque eles eram
Entrevistada: Ah, foi. Eu peguei, deixa eu bons assim, quais qualidades eles tinham?
ver, quando terminei o ensino médio eu
Entrevistada: Nossa, eles se dedicavam
fiquei parada 1 ano, depois aí eu fui fazer, eu
muito mesmo, eles tinham, como se diz, a
fiz várias faculdades, o vestibular. Na Cásper
gente percebia que eles faziam aquilo por
Líbero, eu queria fazer até jornalismo na
prazer e por amor mesmo.
Cásper Líbero, né, até passei no vestibular,
mas aí eu estava namorando na época do meu Entrevistadora: Aquilo o quê?
marido, aí ele falou, ah, vamos fazer no
Entrevistada: De ser mestre, né.
Oswaldo Cruz, eu vou fazer administração, aí
você passou em letras, faz letras e aí fica tudo Entrevistadora: Hum, hum.
perto, aí eu fiz letras, aí me identifiquei com
o curso, gosto. Entrevistada: Ser professor, né, então acho
que isso que me inspirou e muita gente da
Entrevistadora: E você se identificou logo época também foi inspirado nisso.
de cara ou como foi?
Entrevistadora: Você acha?
Entrevistada: Me identifiquei logo de cara,
gostei, vi que era aquilo que eu queria. Entrevistada: Nossa, um monte de colegas
meu são educação física, português,
Entrevistadora: Por quê? geografia, tem vários professores lá. Dessa
época que a gente estudou no Silvado,
Entrevistada: Porque gosto de literatura,
mesmo eu indo para o técnico particular,
me envolvi assim com a língua portuguesa, a
mesmo assim a turma lá, todo mundo
professora da 8ª série do Silvado, a Cibele,
procurou a área da educação, aqueles
ela inspirou a gostar de português e eu fazia
professores da época muito bons.
teatro, a gente fazia um monte de coisa,
nossa, tudo o que a professora propunha para Entrevistadora: Que legal e daí eles
agente fazer, ah, educação física, vamos fazer acabaram influenciando, né?
7 de setembro, formação da bandeira, tem
que tingir as camisetas, a gente ia lá e fazia. Entrevistada: Com certeza.
Ah, vamos fazer o pequeno príncipe, tem que Entrevistadora: Seu pai então tem formação
fazer isso e não sei o que, aí a gente ia lá e universitária ou informação técnica?
elaborava.
Entrevistada: Meu pai não concluiu o
Entrevistadora: Essa professora de ensino médio.
português.
Entrevistadora: Ah, tá.
Entrevistada: Isso.
Entrevistada: Ele foi só até a 8ª série.
449
Entrevistada: É. Entrevistada: É.
Entrevistadora: E quando você começou a Entrevistadora: O que te motivou a fazer
trabalhar, quando você começou a estudar essa transição de profissão?
mais longe e tal, você tinha o seu dinheiro,
Entrevistada: Ah, eu estava formada e aí
disso tudo o que você começou a comprar
tinha a minha filha, eu falei assim, acho que é
para você em termos de música, de livro,
melhor eu ser professora, trabalhar do lado de
assim, você comprava alguma, o que você
casa e ter um tempo mais para dedicar para a
começou a comprar quando você pode.
família.
Entrevistada: Ah, eu comprava música, eu
Entrevistadora: Ah, tá.
gostava do Elvis Presley, comprava discos,
né, porque e também disco do Bebeto, né, do Entrevistada: Né?
Paulo Barbosa que era lambada, né, a gente
tinha muito, meus primos na época tinha o Entrevistadora: E seu marido trabalhava
Rubens, a Janice, o Rui, a Edna, Djalma que com o quê na época?
eles foram morar vizinhos da gente, a minha Entrevistada: O Adriano trabalhava na,
mãe alugou a casa dela para essa minha tia, espera aí, ele trabalhava no banco, aí ele foi
nem alugava, emprestou, então a gente ficava mandado embora, aí na época quando a gente
lá muito assim, dançava, inventava umas casou ele estava desempregado, ele ficou
festinhas dentro de casa. desempregado porque saiu do banco, se
Entrevistadora: Que legal. desentendeu lá com um dos funcionários,
assim, o funcionário se desentendeu com ele,
Entrevistada: Era muito legal, então aí eu ele trabalhava no Mercantil, acabou saindo,
comecei assim, quando a gente começou a aí depois ele foi para outro banco, aí não deu
trabalhar a gente falava que ia fazer as certo, aí ele foi trabalhar no Free Shop.
compras, que eu ia ficar com a parte de
sobremesa, de frutas, então a gente fazia Entrevistadora: Ah, sei.
compra juntos, né, eu e meus irmãos, livros, Entrevistada: Ele trabalhou lá um tempão
coisas para ler para a faculdade, né. no Free Shop.
Entrevistadora: Hum, hum. Entrevistadora: Como vendedor?
Entrevistada: Então aí eu comecei a Entrevistada: Como vendedor no Free
investir, comprava roupa porque eu Shop, no Aeroporto Internacional de
trabalhava de secretária. Guarulhos.
Entrevistadora: É, tem que usar Entrevistadora: Sei.
aquela roupa mais formal.
Entrevistada: Aí ele ficou muito tempo lá.
Entrevistada: Tem, então eu gastava muito Aí depois com essa queda do dólar, aí ele
dinheiro com roupa, né. saiu de lá e foi trabalhar na Fast Shop.
Entrevistadora: Hum, hum. Entrevistadora: Ah, sei.
Entrevistada: Então tinha que investir Entrevistada: Ele está, deixa eu ver quando
dinheiro por causa que tem que ter um que foi que ele entrou no, acho que a Camila
padrão, né. estava pequena ainda, acho que deve ter uns
Entrevistadora: Isso. E daí você então, 17 anos de Fast Shop mais ou menos, ele
depois que você trabalhou na SPTrans você trabalha de vendedor lá.
fez o curso de letras e aí você falou que saiu Entrevistadora: Ah, que legal. E quando
em janeiro da SPTrans e em fevereiro você fez essa mudança de profissão para você
começou a trabalhar, né, como professora.
452
foi a melhor opção, como é que as pessoas porque eu fiz isso e às vezes não, mas o
que você conhecia viram essa mudança? arrependimento foi bem menor do que...
Entrevistada: Ah, falaram que eu era louca. Entrevistadora: Dá um exemplo de uma
situação que faz você se arrepender ou fez
Entrevistadora: Quem falou que você era
você se arrepender em algum momento,
louca?
muito rapidinho.
Entrevistada: Todo mundo.
Entrevistada: Hein?
Entrevistadora: (risos)
Entrevistadora: Aqueles pensamentos que
Entrevistada: Minha mãe, o Adriano meu às vezes passa.
marido falou, nossa, vai sair de lá e vai cair o
Entrevistada: É igual esse ano aqui da
padrão e não sei o que, né, eu tinha já até
Previdência, desse negócio dessa mudança,
carro, né, não, comprei carro depois que eu
né.
saí de lá, comprei um carro com a rescisão.
Ele falou assim, ai, não sai de lá não Eu falei, Entrevistadora: É.
ah, não, mas eu vou sair porque eu consegui
Entrevistada: Meu Deus, eu trabalhei
pegar oito meses de licença, como eu
tanto, trabalhamos em dois, igual, dois
acumulei folga que era operário padrão a
cargos, né, porque eu posso pegar e ter duas
gente ia ganhando folgas, né.
aposentadorias, né, pela privada e pela
Entrevistadora: Tá. estadual, aí essa mudança me desanimou
muito, eu falei, meu Deus do céu, foi esse
Entrevistada: Porque tinha premiação na
momento assim e outros momentos que
época, chegar pontualmente e não sei o que,
passaram e que são inúmeros, né, que a gente
então aí eu tinha esse perfil de adquirir, quer
não lembra.
dizer, conquistei esse perfil, como eu tinha
esse perfil aí eu era premiada por isso, então Entrevistadora: É verdade, muitas vezes é
eu fiquei oito meses, aí eu falei, não vou difícil uma relação com aluno.
voltar mais não, mas eu tenho amizade até
Entrevistada: É.
hoje com todo mundo.
Entrevistadora: Uma relação com, né?
Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistada: É verdade.
Entrevistada: Minha ex-chefe eu tenho no
Facebook, a minha amiga saiu também na Entrevistadora: Que nem sempre...
mesma época que eu e abriu um restaurante
em Santa Cecília, não perdi o vínculo com Entrevistada: Mas assim, as relações com
ninguém. os alunos em 21 anos foram tudo tranquilo e
eu soube me sair muito bem de todas.
Entrevistadora: Ai que ótimo.
Entrevistadora: Você tem uma relação
Entrevistada: Toda turma eu, assim, muito boa com os alunos.
sempre estou em contato com eles pelas redes
sociais, sempre estou vendo o pessoal. Entrevistada: É, não sei, nossa, assim, eu
acho que é um discernimento que está na
Entrevistadora: E a crítica das pessoas era gente e a gente nem sabia, né?
porque eles achavam que não era bom ser
professora. Entrevistadora: Então são os momentos
com alunos que são aqueles que você
Entrevistada: Nossa, eles falaram, esse mencionou, eu escolhi a profissão certa, foi
país aqui não valoriza o professor não, pelo bom.
amor de Deus, não faz isso não. Aí às vezes
eu me arrependia, eu falava, meu Deus,
453
Entrevistadora: Na igreja católica? faziam as salas, aquela sala ali vamos por
fulano, aquela sala, colocava, não que os
Entrevistada: Na igreja católica. Aí eles
alunos são iguais, na minha concepção de
estão lá e eles me enxergam lá e eles vão lá
professor.
me abraçar, me beijar, olha, estou aqui
também. Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistadora: Entendi, é um Entrevistada: mas eu acho que na
reconhecimento. concepção da visão antiga lá do pessoal, que
é um pouco tradicional lá a turma, colocava
Entrevistada: É uma coisa humana,
todo mundo igual na mesma sala, para eles
humanizador, assim, enxergar o outro não
era essa visão, os bagunceiros, os repetentes.
como um aluno, aquela coisa meio distante
aluno/professor, mas ser humano que convive Entrevistadora: Sei.
em sociedade, todo mundo junto.
Entrevistada: Então essa sala, nossa
Entrevistadora: Isso, que está nos mesmos senhora, muito difícil, aí eu falei, meu Deus,
espaços. o que eu fui fazer, né? Porque eu acho que a
convivência prática, a insistência e quando a
Entrevistada: É o mesmo espaço, né?
gente percebe o que é aquilo a coisa vai
Entrevistadora: Entendi, agora ficou bem evoluindo, mas a princípio, nossa, eu me
claro. Só para finalizar, eu queria que você arrependi.
falasse um pouquinho, então como você teve
Entrevistadora: Porque era muito
essa passagem de uma profissão para outra, a
desgastante, então.
entrada numa nova profissão, como foram
esses primeiros anos de trabalho assim? Entrevistada: Muito desgastante e ainda
depois tinha que chegar em casa, tinha a
Entrevistada: Nossa, foi difícil, viu?
carga diária, comida, lavar, cuidar da filha.
Entrevistadora: Porque mais dificuldades
Entrevistadora: Que era bebê naquela
você enfrentou?
época.
Entrevistada: Ah, dificuldade porque
Entrevistada: Era bebezinha, né, ela nasceu
assim, eu trabalhei sempre num escritório,
em abril de 94 e eu comecei a trabalhar em
tinha a minha parte para fazer, agora você
fevereiro de 95.
pegar e ser mediadora de conflito em sala de
aula, eu peguei uma sala tão difícil lá na essa Entrevistadora: E era numa sala de ensino
escola que é assim... fundamental ou ensino médio?
Entrevistadora: Era aquela primeira que Entrevistada: Fundamental.
você trabalhou, como é o nome?
Entrevistadora: E era aula de língua
Entrevistada: Altenfelder. portuguesa.
Entrevistadora: Altenfelder. Entrevistada: Sim, língua portuguesa,
então eu tinha seis aulas diárias, se não me
Entrevistada: José Altenfelder, acho que é,
engano, naquela sala, seis aulas.
não sei, José Altenfelder, fica lá na Vila
Jaguara, quase divisa com Osasco, perto da Entrevistadora: Nossa!
Avenida dos Remédios. Então, acho que na
Entrevistada: Seis aulas por semana que
Agenor, fica na Agenor, não, Agenor é outro
distribuíram, era seis aulas semanais, então
lado, então, só sei que eu fui numa sala que é
eu convivia muito com eles, até que um dia
assim, antes os professores escolhiam as
eu falei assim, olha, eu não vou mais entrar
salas, eles faziam as salas heterogêneas, não
aqui nessa sala, falei até assim para eles,
faziam salas homogêneas, eles pegavam e
455
porque acho que eu não tinha experiência, Entrevistadora: Você saiu de lá e foi para o
né? Silvado.
Entrevistadora: É, primeiro ano, imagina. Entrevistada: É, aí ficou também
complicado porque era ensino médio e não
Entrevistada: É, não tinha experiência, eu
tinha muita convivência assim, quer dizer,
não vou entrar mais aqui nessa sala. Aí
não tinha prática, né, então aí alguns alunos
parece que um anjo disse amém, porque aí a
ficaram falando, ah, que a professora não
diretora me ligou e eu não fui mais lá.
soube explicar aquilo, não tinha muita
Entrevistadora: Ai que bom. didática, né, pedagogia, assim, a gente
aprende muito, mas praticar mesmo é só o
Entrevistada: Só que aí eu senti assim, que dos anos, mas aí, deixa eu ver, teve assim,
eu deveria ter feito assim, dado uma como se fala, eu fui fazendo cursos paralelos
satisfação, ido para eles lá falar, olha, eu saí e os cursos que eu tinha também da empresa,
porque vou trabalhar do lado da minha casa, porque eu fazia curso de informática, eu
não que ele sentisse que eles foram rejeitados sempre fazia todos os cursos, então isso aí foi
por mim. me ajudando de alguma forma.
Entrevistadora: Entendi. Entrevistadora: E com relação a didática
Entrevistada: Então faltou esse diálogo você diz que foi desenvolvendo.
porque eu tinha essa visão, porque assim, os Entrevistada: É.
professores que davam aula para a gente às
vezes aparecia do nada, né? Entrevistadora: Mas e com relação ao
conteúdo, você acha que quando você
Entrevistadora: É. começou a trabalhar você acha que você
Entrevistada: Então aí eu falei, não, estava, se sentia segura com relação a isso?
quando eu for professora a minha aula de Entrevistada: Não, eu me sentia segura sim
inglês vai ser assim, não vai ser daquele jeito, quando tinha tempo para preparar a aula, aí
então eu sempre me espelhava naquilo que dava para dar uma aula, mas como tinha
não era bom para não fazer com os meus muita atividade em casa, né, assim as tarefas,
alunos. né, aí eu sentia falta de um momento para
Entrevistadora: Entendi. mim, mas a partir do momento em que eu
comecei a planejar aí foi tranquilo.
Entrevistada: Eu sempre falei assim, não,
eu vou ser professora, mas eu não, até os Entrevistadora: Em que momento você
próprios professores mesmo da faculdade, ai, conseguiu planejar?
a professora fazia isso, ai, quando eu tiver Entrevistada: Ah, eu me organizava, né,
meus alunos não vou fazer isso não, não vou me organizava em casa, fui fazendo
tratar meus alunos número 1, número 2, eu direitinho uma planilha de horário, aí fui
vou olhar olho por olho e vou falar, fulano, encaixando tudo direitinho.
ciclano, tudo o nome direitinho deles, saber
cada um e eu faço isso mesmo. Entrevistadora: Entendi.
era, mudou alguma coisa ao longo desses com temas transversais para pegar e alertar
anos? eles de alguma coisa que acontecia na
comunidade, gravidez indesejada, não sei o
Entrevistada: Ah, foi mudando porque a
que, o pai que não aceitava o filho ser
gente vai ficando, como se diz, a gente
homossexual, então esse trabalho foi muito
convivendo muito com aquele conteúdo,
bom.
aquele conteúdo fica fixado na sua cabeça,
não precisa às vezes nem de livro. Você vai Entrevistadora: Mas você escreveu esses
dar uma aula sem, como se diz, explora o contos?
conteúdo porque o conteúdo já e assim,
Entrevistada: Sim, eu e os alunos.
quando você pega uma sala, a mesma série,
aí deslancha bonitinho, agora quando você Entrevistadora: Ah, entendi, vocês liam os
pega português e inglês, mas quando, eu contos de fadas.
sempre fiz curso de inglês, então aí ficava
tranquilo para desenvolver. Entrevistada: Isso.
Entrevistada: Nossa, muita coisa minha se observar se é uma pessoa idosa querendo
perdeu, muita coisa que a gente não registra, atravessar a rua, ter uma visão de mundo.
né?
Entrevistadora: Hum, hum.
Entrevistadora: É, e daí acaba, a gente
Entrevistada: Eu acho que a literatura é
esquece ou...
toda uma, como se diz, é uma história de um
Entrevistada: Esquece. crescimento de um olhar mais sensível à
vida, né.
Entrevistadora: Ou às vezes a gente nem
consegue porque é tanta coisa, a rotina é tão Entrevistadora: Sim. E que livro que para
pesada. você fez isso assim, que te falou, não, te fez
criar esse olhar mais sensível para a vida ou
Entrevistada: É tanta coisa porque...
de algum ou de alguns livros que te
Entrevistadora: Que você não lembra o que marcaram especialmente.
você fez.
Entrevistada: Ah, eu gostei muito do
Entrevistada: Porque são 21 anos já de Pequeno Príncipe, o Pequeno Príncipe é
educação e muita coisa, já fui para várias muito bom e lembro também do livro Amor
escolas, já como o Silvado, Mariano, já de Perdição que eu gostei muito. Do
trabalhei em tudo quanto é escola que você Memórias Póstumas de Brás Cubas também
imagina, (0:41:00), o Ermano Marchetti, vixi, gostei. Ah, aquela série do Vagalume
nossa, muita escola, então todo lugar que eu também gostava.
vou, tanto que o pessoal quando muda ou vai
Entrevistadora: Eu gostava.
fazer alguma coisa assim eles falam, ah, eu
quero a Entrevistada para trabalhar com a Entrevistada: Eu li muitos ali da série
gente, sempre falam assim, a Marcinha não Vagalume.
sei o que, entende bem de trabalho coletivo,
Entrevistadora: Quando você estava
então muita coisa se perdeu, infelizmente,
adolescente?
fazer o quê.
Entrevistada: Quando estava adolescente,
Entrevistadora: E qual você acha que é o
O Cadáver Ouve Rádio, O Mistério da
sentido, porque quando eu acompanhei as
Borboleta Atiria, O Escaravelho do Diabo,
aulas era uma turma de ensino médio, né, de
assim, vários livros que eu li, mas é muito
língua portuguesa. Qual é o sentido que você
livro que eu li.
vê, qual o objetivo de trabalhar a literatura, o
texto literário com os alunos do ensino Entrevistadora: É verdade, com certeza. E o
médio? Memórias Póstumas te marcou porque, você
leu em que circunstância?
Entrevistada: Eu acho que é fazer com que
eles fiquem, sensibilizar, né, sensibilizar Entrevistada: Eu li porque a gente teve o
assim, não ficarem pessoas tão mecânicas, sorteio do seminário, aí o pessoal, vai lá e
pessoas que olhem, como se fala, saibam pega o papel, aí eu peguei o papel e eles
olhar com mais cuidado as coisas, a vida. ficaram ferrados comigo, com raiva, você
Tem a, como se fala, o mesmo gosto que eu pegou o mais difícil.
tive e a mesma sensibilidade que eu
desenvolvi, que eles tem também a mesma Entrevistadora: Na faculdade?
oportunidade que eu. Entrevistada: Não, no ensino...
Entrevistadora: Sensibilidade para Entrevistadora: Ah, no ensino médio.
ver as coisas da vida.
Entrevistada: Na 8ª série.
Entrevistada: É, para ele enxergar, assim,
não ver uma rua ou então não conseguir Entrevistadora: Sei.
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