Coleção Mitologia #2 Heróis - José Francisco Botelho

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Coleção Mitologia

LIVRO I I

Heróis

José Francisco Botelho


M684
Mitologia: livro 2: herói s. - São Paulo : Ed. Abril,
2011.
128 p. : il. color. ; 19cm. - (Coleção
mitologia Superinteressante ; 2)

ISBN 978-85-364-1133·0

1. Heróis - Grécia. 2. Mitologia grega. I. Série

COO 398.20938
índice

Odisseu . . . . . . . . . . . . . . ....... 5
Perseu ..... ............................. 30
Hércules.... ............................. 41
A Guerra de Troi a ......................................................................... 61
Os Argonautas.... ................... lU
Capítulo 1

Odisseu

Certa manhã, na Ilha de Feácia, a princesa Nausícaa


divertia-se à beira do mar com suas damas de compa-
nhia. Era filha do rei Antínoo, governante da ilha. Ela
tinha ido lavar roupas com suas servas no rio. Termi-
nada a tarefa, as moças se divertiam jogando bola na
espuma das ondas. Às vezes, a princesa lançava um
olhar melancólico ao horizonte. Tudo o que enxerga-
va era água e mais água: a Feácia era um país isolado,
perdido nos mares que cercam a Grécia. Nausícaa per-
guntava-se se algum dia conheceria outro lugar além
de sua ilha natal. Era improvável. Estava em idade de
se casar, e todos os seus pretendentes eram rapazes
obtusos e acomodados. Subitamente irritada, Nausí-
caa chutou a bola para longe. "Chega de brincadeiras",
disse às servas. Nausícaa lançou um último olhar ao
horizonte azul, à areia branca da praia ... e, nesse mo-
mento, todas as moças levaram um grande susto. Um
vulto desgrenhado e coberto de lama havia saído do
meio dos arbustos e caminhava em direção a elas.

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Odisseu

o homem tinha olhos azuis e havia muito não apa-


rava a barba. Seu único arremedo de vestimenta era
um ramo de oliveira, que ele segurava junto à cintura.
Apesar da lama que o cobria, Nausícaa pôde ver que
tinha mãos grandes e fortes. As damas de companhia
debandaram, apavoradas. Mas Nausícaa se manteve
onde estava. Era uma princesa da Casa Real da Feácia.
Não seria tão fácil fazê-la correr.
- Apresente-se, estranho - ela ordenou.
Para seu espanto, a assustadora figura não falou
com voz rouca ou sinistra - mas com palavras suaves,
empostadas e convincentes.
- Sou um pobre náufrago, e estou à sua mercê -
disse o estranho. - Eu me jogaria a seus pés e beijaria
seus joelhos agora mesmo, se não estivesse paralisado
diante de sua beleza, e se não estivesse tão sujo.
Aquelas palavras imediatamente arrefeceram a
desconfiança de Nausícaa. O estranho contou-lhe que
esteve durante dias ao sabor das ondas, vindo da Ilha
de Ogígia, a muitas léguas de distância. Os ventos da
tempestade destruíram sua frágil jangada e o lança-
ram ali , naquela terra para ele desconhecida. A Feácia
era um país tão isolado que poucos viajantes haviam
aportado em suas praias. Ainda assim , os feácios ti -
nham o costume de tratar os raros visitantes com a
maior cortesia e hospitalidade. Seguindo a tradição,

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Odisseu

Nausícaa ordenou às servas que dessem ao estranho


uma das roupas que haviam lavado. Depois, sugeriu
sutilmente ao forasteiro que se banhasse no rio. Mi-
nutos mais tarde, o náufrago estava limpo e bem ves-
tido. Nausícaa sentiu o coração acelerar-se ao ver o
porte de seu hóspede. Era um homem maduro, com
o rosto marcado por intempéries e peripécias - um
rosto de quem correu o mundo e já viu muitas coisas
na vida. Mas os sinais de experiência não diminuíam
a beleza do estranh o - pelo contrário, realçavam-na.
Mentalmente, Nausícaa comparou aquele belo espé-
cime com os tolos garotos que lhe faziam a corte. De
novo, sentiu-se irritada.
- Vamos - ela disse, chutando uma pedrinha sobre
a areia - , meus pais irão recebê-lo.
a hóspede era estranhamente esquivo em relação
à própria identidade - mas sua lábia e seu cavalheiris-
mo compensavam o mistério. Mesmo sem dizer seu
nome, aquele forasteiro estranhamente sedutor caiu
nas graças do rei, da rainha e de toda a corte. a rei An-
tínoo empolgou-se tanto com o hóspede anônimo que
lhe ofereceu um grande banquete. Todos os nobres
da Feácia compareceram. Para divertir os convivas, o
soberano convocou um aedo - espécie de bardo da
Grécia antiga, que contava histórias ao som da harpa.
Dedilhando as cordas do instrumento, o aedo começou

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Odisseu

a cantar uma história que já era famosa: a do Cavalo


de Troia. A mais célebre das guerras havia terminado a
cerca de dez anos atrás - as façanhas de Odisseu, Aqui-
les e Ájax já eram conhecidas em toda a Grécia. A au-
diência feácia sabia de cor o nome dos heróis da Guerra
de Traia, e também seu destino - Aquiles fora morto
por uma flecha no calcanhar; Agamênon fora assassi-
nado pela esposa, Clitemnestraa, ao retornar para casa;
Menelau descansava agora em Esparta, com sua esposa,
Helena, a causa de tanta mortandade ... Havia apenas
um herói cujo destino permanecia obscuro: Odisseu.
Sabia-se apenas que ele desaparecera no mar, tentando
retornar à sua Ítaca natal; a esposa, Penélope, o pai La-
ertes, e o filho Telêmaco o aguardavam em vão.
Todos os convivas estavam com os olhos e os ouvi-
dos fixos na canção do aedo, que falava da construção
do cavalo de madeira, e do ataque noturno liderado
por Odisseu e Aquiles. Nesse momento, o rei Antínoo
percebeu algo estranho: o forasteiro sem nome escon-
dera o rosto sob o manto, e seus ombros se mexiam
convulsivamente. Estava chorando.
O rei decidiu que estava na hora de acabar com o
mistério. Quando terminou a canção, ele se levantou
e disse:
- Agora chega de artimanhas, meu amigo! Com
certeza, não existe no mundo nenhum homem sem

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Odisseu

nome. Afinal de contas, quem é você?


O estranho se ergueu, com a face molhada de lá-
grimas. Agora todos os rostos se voltavam para ele.
Nausícaa comprimiu os dedos, ansiosa por escutar a
revelação do forasteiro.
- Pois bem - disse o estranho, já sem nenhum tre-
mor de pranto na voz. - Sou Odisseu, filho de Laertes,
. célebre em todo mundo por minhas façanhas e por
minha astúcia. Agora, ouçam minha história: vou lhes
contar o estranho trajeto que os deuses traçaram para
mim, começando naquele momento, dez anos atrás,
em que parti de Traia, rumo ao lar...
E, com isso, o mais estranho, charmoso e ambíguo
dos heróis gregos começou a narrar suas desventuras
e trapaças, diante da atônita audiência, e olhando de
tempos em tempos para a princesa Nausícaa, que o
fitava cheia de deliciada perplexidade.
As aventuras de Odisseu no cerco de Traia são nar-
radas na Ilíada - mas suas desventuras no mar são o
tema de outro poema também atribuído a Homero, a
Odisseia. Na Ilíada, Odisseu é pintado como o mais as-
tuto dos heróis gregos. Sua virtude principal continua
a mesma na Odisseia - mas sua esperteza não impe-
de que ele passe pelas mais variadas desventuras. O
protagonista da Odisseia também é o mais sofrido dos
heróis. Espécie de trapaceiro azarado, ele é arrastado

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Odisseu

pelo destino de desgraça em desgraça - mas sempre


consegue usar o cérebro para salvar a vida. E seu ob-
jetivo não é conquistar uma cidade nem igualar-se aos
deuses - mas, simplesmente, voltar para casa. Isso faz
dele, acima de tudo, o mais humano de todos os he-
róis da mitologia.
Após conquistarem Troia, os guerreiros helenos
entraram em seus navios e zarparam para casa. To-
dos chegaram lá em questão de meses - mas a frota
de Odisseu, soprada pelos ventos do destino, acabou
perdendo-se em uma fantástica geografia de perigos,
maravilhas e tentações. A primeira parada nessa mira-
bolante travessia foi a Ilha dos Lotófagos. O país tinha
esse nome porque seus habitantes se alimentavam do
lótus: um fruto mágico que apagava todas as lembran-
ças. Os lotófagos eram criaturas desmemoriadas e fe-
lizes: viviam num eterno presente, desconhecendo o
passado e sem pensar no futuro. Alguns dos marujos
de Odisseu experimentaram a guloseima local: ime-
diatamente, esqueceram-se do lar e resolveram ficar
para sempre naquela maravilhosa amnésia. Odisseu
teve de arrastá-los à força de volta aos navios - e par-
tiu dali o mais rápido possível. Ele ainda passaria por
muitos perigos, mas o primeiro talvez tenha sido o
maior deles: as delícias do esquecimento são uma ten-
tação à qual é difícil resistir.

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Odisseu

Após alguns dias de viagem, a frota avistou uma


ilha rochosa, coberta por névoas. De longe, escutavam-
se balidos de cabras e ovelhas, e vozes ásperas ecoando
entre os penhascos. Sombras colossais moviam-se em
meio à neblina. Odisseu e seus marujos já tinham ou-
vido falar daquela ilha: era o país dos Cíclopes, gigan-
tes de um olho só, que viviam afastados de todas as
outras criaturas, pastoreando seus rebanhos.
Odisseu estava decidido a ver de perto aquelas cria-
turas. Após desembarcarem numa praia, ele e seus
companheiros se aventuraram até uma caverna nas vi-
zinhanças. Como de praxe naqueles tempos, Odisseu
levava consigo um presente para oferecer a possíveis
anfitriões. Era um vinho fortíssimo e de sabor indes-
critível, que trouxera da ilha de Ismaura. Acompanha-
do de alguns marinheiros, e com sua dádiva etílica
em mãos, Odisseu entrou na caverna. Junto às paredes
de pedra, h avia grandes cestas de vime cheias de lã
e imensas tigelas com leite fresco . Pelo chão, havia
uma sortida coleção de cajados de pastor - cada um
deles do tamanho de um mastro de navio. Então uma
sombra cobriu a entrada da caverna. O proprietário
da monstruosa residência estava chegando. O Cíclope
entrou tangindo seu rebanho. !ao logo o último cor-
deirinho passou, o gigante lacrou a boca da caverna
com um pedregulho. Ao ver os intrusos, ele franziu o

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Odisseu

cenho de forma nada hospitaleira. Odisseu pigarreou


e deu um passo à frente ; falando em palavras açucara-
das e suaves, como sempre, lembrou o gigante sobre
as leis da hospitalidade, respeitadas por deuses e por
mortais. O cíclope soltou uma gargalhada furiosa.
- Eu sou Polifemo, filho de Posêidon! Em minha
caverna, não há outra lei além de minha vontade!
E transformando suas palavras em ações, apanhou
dois gregos, esmigalhou suas cabeças e devorou-os.
Horrorizados, Odisseu e os demais marujos se enco-
lheram no fundo da caverna, enquanto o sangue dos
companheiros espirrava pelo chão.
As sinistras refeições tornaram-se rotina. Todos os
dias, o cíclope levava seus rebanhos para pastar, dei-
xando a caverna selada; voltava de tardezinha, e ma-
tava a fome degustando dois gregos antes de dormir.
Odisseu, tentando manter a racionalidade no meio
daquele espetáculo de horrores, cogitou trespassar o
coração do gigante durante o sono. Mas como fariam
para abrir a porta da caverna? Se matassem o cíclope,
ficariam presos para sempre. Odisseu ponderou tudo
isso e, certa manhã, concebeu um estratagemas. Quan-
do o cíclope partiu novamente para apascentar suas
ovelhas, Odisseu apanhou um dos cajados colossais,
com a ajuda dos companheiros, e afiou-lhe a ponta a
golpes de espada. Naquela noite, ofereceu ao captor

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Odisseu

antropófago o odre com o vinho de Ismaura.


- Isso vai lhe ajudar a digerir - disse o herói.
O gigante secou o odre. O vinho era tão forte que
até a dantesca cabeça do Ciclope ficou estonteada.
- Um presente magnífico - exclamou o gigante em
meio a sua bebedeira. - Agora me diga o seu nome,
para que eu lhe devolva essa gentileza em espécie.
- O meu nome - responde Odisseu - é Ninguém.
- Excelente, meu caro Ninguém! Agora, eis o meu
presente para você: vou devorá-lo por último. - E com
isso, o Ciclope mergulhou num sono profundo.
Odisseu não perdeu tempo. Com a ajuda dos cinco
marujos sobreviventes, ergueu a lança improvisada e
atravessou o olho do seu captor. Com um grito, Po-
lifemo arrancou o chuço da órbita: estava cego. Seus
berros de raiva chamaram a atenção dos compatriotas.
Em breve, vozes chegaram de fora da caverna:
- Polifemo, que maIo aflige? Quem o feriu ? - per-
guntavam os Ciclopes.
- Ninguém! - gritou Polifemo. - Ninguém me fe-
riu! Ninguém está escondido em minha caverna! Nin-
guém quer me matar!
Os demais Ciclopes foram embora.
Polifemo urrou, esbravejou, bateu as mãos na
parede - tudo em vão. Os gregos estavam bem es-
condidos em um recanto da caverna; o Ciclope cego

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Odisseu

não conseguiu encontrá-los. Na manhã seguinte, as


ovelhas começaram a balir de fome. Sem outra alter-
nativa, o mastodôntico pastor teve de abrir a caverna
para deixá-las pastar. Na medida que o rebanho saía,
ele ia apalpando os lombos lanudos ... sem desconfiar
que seus prisioneiros arrastavam-se sob as barrigas
das ovelhas. Finalmente livres, Odisseu e seus compa-
nheiros voltaram aos navios.
Vendo afastar-se a Ilha dos Ciclopes, Odisseu não
imaginava que naquele momento sua pequena era
observada pelos olhos irados de Posêidon, deus dos
mares e pai de Polifemo. O senhor dos oceanos plane-
java uma longa e dolorosa vingança. A curiosidade de
Odisseu haveria de custar-lhe anos e anos vagando pe-
lo m ar, longe de casa, sem destino certo, sem família ,
sem fortuna - como se fosse mesmo ninguém.
Logo após a assustadora parada na Ilha dos Cíclo-
pes, Odisseu desembarcou na Eólia, terra governada
pelo rei Eolo. Era um soberano tão justo e ponderado
que os deuses o haviam transformado em Guardião
dos Ventos. Em uma alta torre, ele mantinha aprisio-
nados os ventos Norte, Sul, Leste e Oeste, libertando-
os apenas sob ordem divina. Odisseu entreteve o rei
com histórias sobre a Guerra de Troia; agradecido e
encantado, Eolo lhe deu um presente: os irritadiços
ventos Norte, Sul e Leste, bem presos em um saco.

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Odisseu

- Mantenha-os encerrados aí dentro, e não os solte


sob hipótese alguma. Assim , você chegará com segu-
rança e sem tempestades a Ítaca.
Eolo deixou solto apenas o suave Zéfiro, o vento
Oeste, que se encarregou de soprar a frota de Odisseu
rumo à terra natal. Odisseu passou a viagem encer-
rado em sua cabine, agarrando com força o saco que
continha os ventos; temia que um deles escapasse por
engano e soprasse a frota para longe ... Quando estava
apenas a algumas horas de viagem de Ítaca, o coman-
dante da esquadra caiu no sono. Sua tripulação havia
dias vinha arrastando o olho para aquele presente.
- O qu e haverá de tão precioso naquele saco? -
perguntavam-se alguns marujos. - Se é um tesouro
tão valioso, nosso capitão deveria dividi-lo conosco.
Aproveitando-se do sono exausto de Odisseu, os
marinheiros abriram o saco E um uivo ensurdecedor
encheu a terra e o céu. Os três ventos escaparam, en-
redando-se um nos outros e formando um repentino
furacão. Odisseu acordou a tempo de ter um vislum-
bre de sua terra natal: entreviu as colinas verdes e os
camponeses acendendo fogueiras ... Mas logo em se-
guida a frota foi arrebatada por enormes vagalhões;
empoleirados nas cristas espumosas, os navios foram
arrastados para longe, e Ítaca afastou -se, afastou-se,
afastou -se até desaparecer no encapelado horizonte ...

lS
Odisseu

- Naquele momento - murmurou Odisseu, percor-


rendo a audiência com os olhos - cheguei a amaldiçoar
a vida. Eu estivera tão perto, tão perto ... e agora estava
novamente longe de casa, perdido no mar... Por um ins-
tante, pensei em me atirar pela amurada e acabar com
tudo ... Mas me recusei a desistir. Resolvi lutar até o fim ,
por mais reviravoltas que ainda tivesse pela frente ...
Em seu assento, num canto da sala, Nausícaa deixou
cair uma lágrima.
Após a quase chegada a Ítaca, as desgraças passaram
a se acumular sobre a pobre frota de Odisseu - era
Posêidon, que ia dosando sua vingança com calculada
crueldade, jogando Ninguém de uma catástrofe para
outra. Nem hem escapou à fúria dos ventos, a esqua-
dra grega foi parar na terra dos Lestrigões - uma feroz
nação de canibais que acabou devorando onze das doze
tripulações de Odisseu. Os poucos sobreviventes esca-
param num único barco. Após algumas semanas em
alto-mar, chorando a triste sina dos amigos devorados,
eles aportaram em uma ilha aparentemente tranquila
e acolhedora. Havia colinas suaves e florestas serenas;
a terra emanava uma luz tênue e docemente fantasma-
górica, como se o lugar estivesse mergulhado em um
eterno crepúsculo. Estonteados e exauridos pelos últi-
mos eventos, os marinheiros se convenceram de que
a maré de azar finalmente estava recuando: além da

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Odisseu

aparência paradisíaca, a ilha recém-descoberta contava


com uma fauna abundante e suculenta. Após um dia
inteiro caçando veados e javalis, Odisseu e seus amigos
se refestelaram com um pródigo churrasco. Mais tarde,
contudo, ficou evidente que aquele éden zoológico es-
condia algum tipo de pesadelo. Um grupo de gregos se
aventurou no interior da ilha; apenas um deles retor-
nou ao acampamento, trazendo uma história escabrosa.
- Encontramos um palácio de inacreditável beleza e
fomos acolhidos por uma ninfa deslumbrante - con-
tou o marinheiro, chamado Euríloco. - Ela disse ser
a rainha desta ilha e nos convidou para um banquete.
Serviu-nos uma bebida saborosa, mas estranha ... Em
seguida, fez alguns gestos com uma varinha, disse meia
dúzia de palavras que não compreendi, e todos os nos-
sos amigos se transformaram em porcos! Consegui fu-
gir, apavorado ... Olhei para trás, vi a feiticeira trancafiar
nossos companheiros em uma pocilga, escutei sua gar-
galhada ... Então corri como louco, até chegar aqui.
Odisseu logo compreendeu: aquela ninfa cruel e
caprichosa certamente era Circe, temível feiticeira, co-
nhecida pelo passatempo de transformar homens em
animais. (Fitando o resto da refeição que acabara de co-
mer, Odisseu sentiu um embrulho no estômago.) Deci-
dido a salvar seus amigos daquele destino literalmente
suíno, Odisseu pegou sua espada e partiu sozinho rumo

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Odisseu

ao palácio de Circe. No meio do caminho, foi abordado


por uma aparição: um jovem com sandálias aladas e ros-
to luminoso. Era o deus Hermes, que se compadecera
vendo tantas desventuras e, às escondidas de Posêidon,
resolvera dar uma ajudinha ao nosso herói.
- Beba isso - ele disse , entregando um frasco a
Odisseu. - É um antídoto contra a poção mágica de
Circe. E não deixe que ela saque a varinha encantada.
Outro conselho: ela tem uma queda por homens rudes.
Use isso em seu proveito. - Hermes piscou um olho
m atreiro e desapareceu como um raio no espaço.
Bem provido e bem aconselhado, Odisseu chegou
ao palácio. Circe o recebeu com falsa cortesia e o con-
vidou para um jantar a dois. Serviu-lhe a poção en-
cantada, dissimulando um sorriso ... mas Odisseu es-
tava protegido pelo antídoto de Hermes. Nem bem a
feiticeira fez menção de levantar sua varinha, o grego
saltou sobre ela de espada em punho e a apertou con -
tra a parede. Circe, que realmente gostava de homens
rudes, apaixonou-se na hora. Deixando cair a varinha,
ela convidou o rústico hóspede para uma visita íntima
ao seu quarto - onde Odisseu demonstrou ter outras
habilidades além da eloquência.
Após várias noites tórridas, Circe concordou em li-
bertar os amigos de Odisseu e devolvê-los a sua forma
original. Com efeito, a ninfa estava tão deleitada com a

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Odisseu

performance de seu hóspede que resolveu ajudá-lo em


sua viagem de volta. Entregou-lhe um mapa dos ma-
res vizinhos e fez uma profecia: antes de chegar a Ítaca,
Odisseu teria de viajar para o mais extremo e perigoso
dos destinos - o Hades, reino subterrâneo habitado
pelos mortos. Lá, Odisseu deveria falar com o espírito
de Tirésias, o mais célebre adivinho da Grécia antiga.
Seguindo os conselhos de Circe, Odisseu dirigiu
seu navio na direção do sol poente. Navegou até os
confins ocidentais do mundo, terras soturnas, cober-
tas por uma noite eterna - e chegou ao Rio Oceano,
um gigantesco anel de águas que envolvia toda a Ter-
ra. Lá, desembarcou em um promontório coberto por
bosques negros; no fundo da floresta, estava a entrada
do Hades. Odisseu penetrou na cinzenta região dos
mortos. Atravessou os três rios infernais: o Aqueronte,
o Estige e o Letes. Chegou a uma planície tétrica e
silenciosa, habitada por sombras espectrais. Invocou
o fantasma de Tirésias; o adivinho aproximou-se em
meio aos nevoeiros do além, apoiado em seu cajado.
- Odisseu, já conheço sua variada fama e seus mui-
tos descaminhos - disse o vate em voz rouca. - Ago-
ra escute meu conselho! Para levar seus homens de
volta a Ítaca, você deve ficar longe da Ilha de Hélios,
onde o deus do Sol guarda seus rebanhos sagrados ...
Não pise nessa terra, Odisseu, pois ela será a ruína de

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Odisseu

seus companheiros!
Após essas enigmáticas palavras, o fantasma do
adivinho lhe deu as costas e voltou a mergulhar na
nebulosa distância. Odisseu estreitou os olhos e divi-
sou uma multidão de espectros ... Pouco a pouco, foi
reconhecendo feições familiares: lá estava o orgulhoso
Agamênon e o feroz Aquiles, seus irmãos em armas; lá
estava Heitor, seu nobre inimigo; e também Anticleia,
sua mãe, que morrera a esperá-lo em vão ... Com o co-
ração pesado de sombras, o herói voltou as costas aos
fantasmas e retornou ao perigoso mundo dos vivos.
Após a visita ao Inferno, a nau de Odisseu seguiu
em direção a Ítaca. No entanto, Circe o havia preve-
nido: no caminho, passariam pela Ilha das Sereias.
Com seus cantos hipnóticos, elas atraíam marinheiros
extraviados para sua ilha - e lá os pobres náufragos
morriam à míngua, sem pensar em outra coisa além
da melodia mortalmente bela de suas captoras. À me-
dida que o vento empurrava o barco rumo à Ilha das
Sereias, Odisseu bolou outro de seus planos. Primeiro,
ordenou a todos os marinheiros que tapassem os ou-
vidos com cera de abelha. Assim, ficariam imunes ao
canto. Odisseu, contudo, era curioso demais. Queria
ouvir o célebre canto. Mas ordenou aos marinheiros
que o amarrassem ao mastro.
- Se eu ordenar que me soltem, não obedeçam. O

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Odisseu

vento impeliu o navio para a costa rochosa da ilha.


Subitamente, toda a brisa cessou. Dos altos rochedos,
vozes melódicas e irresistíveis começaram a ecoar.
- Chegue mais perto, Odisseu ... Venha descansar...
Nós lhe daremos a suprema sabedoria ...
E Odisseu gritou para que seus marujos o soltas-
sem. Mas os gregos, com os ouvidos tapados, continu-
aram a remar. Estavam livres.
Nem bem se livraram das Sereias, os viajantes tive-
ram de enfrentar o mais horripilante obstáculo da jor-
nada: o Estreito de Cila e Caríbdis. Era uma passagem
entre dois paredões de pedra escarpada - de um lado,
estava Caríbdis, um redemoinho capaz de engolir em-
barcações inteiras; do outro, espreitava Cila, um mons-
tro com doze tentáculos e dez cabeças de cão raivoso,
que vivia empoleirado em um alto penedo. Primeiro, a
nau de Odisseu soçobrou à beira de Caríbdis: o torve-
linho de águas espumantes abria-se feito uma bocarra
com léguas de largura - tão grande que lá embaixo se
podiam entrever as pedras esbranquiçadas do leito do
mar. Os remadores conseguiram impulsionar o barco
na direção contrária - mas, tão logo se afastaram de
Caríbdis, os tentáculos de Cila apanharam uma dezena
de marinheiros e os ergueram no ar. Gritando em de-
sespero o nome de seu comandante, os marujos foram
puxados para o alto do penhasco e destroçados pelas

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Odisseu

presas ferozes do monstrengo ...


Com lágrimas nos olhos, Odisseu faz nova pausa
na narrativa, soltando um pesado suspiro.
- De todas as coisas funestas que testemunhei - ele
murmurou -, nada me causou mais dor do que a vi-
são de meus camaradas gritando meu nome em vão e
desaparecendo na neblina sangrenta ...
Após o pavoroso ordálio nas mandíbulas de Cila e
Caríbdis, a nau grega encontrou uma praia calma e
aprazível para descansar. Era um lugar verde, ensola-
rado, soprado por uma brisa suave e quente ... Nas bai-
xas colinas, pastavam bois de chifres enrodilhados. Os
marinheiros estavam deleitados após tanto sofrimen-
to; mas Odisseu, que já se acostumara a desconfiar do
destino, não se deixou enganar pela aparente calmaria.
Consultando o mapa de Circe, constatou que estavam
na Ilha de Hélios, o deus do Sol. Lembrou-se imedia-
tamente da profecia de Tirésias.
- Temos de partir agora mesmo - ele ordenou. Mas
seus marinheiros, que já não aguentavam rodar de um
lado para outro sobre as ondas, ameaçaram amotinar-
se: não arredariam pé daquela ilha antes de estarem
todos bem descansados e alimentados. Odisseu nada
pôde fazer. Com as mãos na cabeça e olhar ominoso,
ele assistiu impotente a seus amigos se lançarem com
voracidade sobre os bois sagrados do Sol. Repimpados

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Odisseu

após uma orgia de carne assada , os marinheiros volta-


ram ao navio, que navega docemente sobre as ondas
calmas - até que um relâmpago desce do céu azul , in-
cinera a embarcação e mata todos os m arinheiros. Era
a vingança de Zeus, que recebera as queixas indignadas
do deus do Sol. Apenas Odisseu sobreviveu, agarrado
a um pedaço de mastro chamuscado. E foi assim que
chegou à Ilha de Ogígia, governada pela ninfa Calipso.
A deusa-rainha já ouvira falar dos dotes masculinos de
Odisseu (Circe, pelo visto, não era muito discreta com
esses assuntos). O pobre herói foi mantido em uma
espécie de prisão amorosa na Ilha de Ogígia por nada
menos que sete anos - tendo de atender aos desejos
insaciáveis de Calipso noite e dia, sem descanso. Fi-
nalmente saciada, ela deixou que Odisseu partisse em
uma jangada improvisada. As tempestades de Posêidon
o haviam lançado, finalmente, nas praias da Feácia ...
- E aqui estou - disse Odisseu, por fim , sentando-
se após a longa narrativa, com um suspiro de profun-
do, interminável, indescritível cansaço.
Com seu relato, Odisseu comoveu e fascinou toda
a corte da Feácia - especialmente o rei e sua filha. Na-
quela mesma noite , enquanto o banquete prosseguia,
Antínoo chamou o ilustre hóspede para um a conver-
sa a sós. Pondo-lhe a mão no ombro, foi tecendo co-
mentários sobre as aventuras de Odisseu e elogios à

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Odisseu

sua temperança - ao mesmo tempo, pouco a pouco,


foi moldando, à base de indiretas, uma proposta sutil.
"Que grande honra para NausÍcaa se, em vez dos verdes
garotões feácios , ela tivesse por marido um homem
experiente, sofrido e testado nas agruras do mundo ... ",
o rei disse , como quem não quer nada. E Odisseu -
que já havia sobrevivido ao canto das Sereias, que es-
capara à voracidade de Cila e Caríbdis e que passara
de coração incólume pelos possessivos afetos de duas
semideusas - viveu naquele instante seu maior desa-
fio. Estava cansado, infinitamente cansado; para falar a
verdade, não sabia que tipo de recepção o esperava em
Ítaca - e se sua esposa, Penélope, houvesse cedido aos
avanços de outro homem? Afinal de contas, vinte anos
haviam-se passado desde que Odisseu partira de casa.
E a princesa NausÍcaa, com sua inteligência, modés-
tia e simplicidade, fizera aquilo que as divinas Circe e
Calíope haviam tentado sem conseguir: ela lançara na
alma do herói vagamundo o desejo de ficar.
Resistir àquela tentação foi uma proeza que exigiu
mais força e determinação do que todas as outras jun-
tas. A última grande façanha de Odisseu em sua jorna-
da pelo mundo foi recusar a mão da doce e inesque-
cível NausÍcaa. Odisseu entraria na memória da hu -
manidade como o maior de todos os viajantes - mas
voltar para casa sempre foi seu destino, e sua obsessão.

24
Odisseu

Alguns dias depois, na praia, Nausícaa observou


um barco que se afastava pelo mar liso e sem ondas. A
lu z do sol brilhou por um instante na vela branca. De-
pois a embarcação desapareceu no horizonte. Odisseu
fora embora de Feácia. Fora para nunca mais voltar.
Vinte anos são vinte anos. Ao desembarcar em sua
terra natal , Odisseu mal a reconheceu. Árvores ago-
ra cresciam onde antes havia só campinas. Em outros
pontos, bosques tinham desaparecido para dar lugar a
plantações. Mas o herói logo divisou algo fami liar: os
contornos de sua fortaleza, entre dois montes verdes.
Respirou fundo e pôs-se a caminho. Nesse momento,
contudo, sentiu-se envolver por uma espécie de nebli-
na luminosa - sentiu um misto de medo e exaltação
- e soube que sua amiga e protetora, a deusa Atena,
estava nas vizinhanças ...
- Eis-me aqui - disse Atena, surgindo diante de
Odisseu com seus olhos verde-azulados e seu ar de
elegante sabedoria.
- Já não era sem tempo - murmurou Odisseu, ou-
sando introduzir uma leve reprovação no tom de voz.
Ele e Atena eram velhos amigos - mas, nos últimos
anos , ela havia desaparecido de sua vida. Deixara-o à
mercê das intempéries e aos caprichos da fatalidade.
Atena baixou os olhos brevemente e levou a mão aos
cabelos, dissimulando o embaraço atrás de uma reful-

2S
Odisseu

gente madeixa ruiva. Atena era tão bela e curvilínea


quanto todas as deusas olímpicas - mas, ao contrário
da maioria de suas parentas, vivia no mais completo
celibato. Dedicara sua imortalidade ao culto da sabe-
doria e ao exercício das armas - jamais se entregara a
deus ou a um mortal. Odisseu era a única criatura na
Terra, no Olimpo ou nos Infernos capaz de deixá-la,
vez por outra, com as pernas bambas.
- Perdoe-me, caro Odisseu, semelhante aos deuses
- ela disse ("semelhante aos deuses" era o elogio que os
heróis gregos mais gostavam de ouvir). - Mas, acredite,
a culpa não foi minha ... - Logo tratou de explicar que
a ira de Posêidon é que a mantivera afastada. Por mais
poderosa que fosse , Atena não era páreo para seu tio ,
cujas sísmicas oscilações de humor podiam sacudir os
alicerces da terra e as profundezas do mar. Por sor-
te, Posêidon havia partido em uma longa viagem aos
confins do mundo - fora visitar os Hiperbóreos, seus
servos mais queridos, que viviam nas últimas margens
do Oceano. A providencial ausência do deus dos mares
havia permitido que Odisseu voltasse para casa.
Em seguida, a deusa contou-lhe o que andara acon-
tecendo no palácio real nos últimos anos. Penélope
estava cercada por insistentes e agressivos pretenden-
tes. Mais de cem nobres cortejavam a mão da rainha e
o trono de Ítaca. Furioso, o príncipe Telêmaco partira

26
Odisseu

na tentativa de encontrar o pai, mas voltara frustrado.


Juntos, Odisseu e Atena bolaram um plano para livrar
a casa real da praga dos pretendentes e, ao mesmo
tempo , testar a fidelidade de Penélope. Num desses
atos mágicos que parecem tão corriqueiros entre os
deuses gregos, Atena alterou as feições de Odisseu,
mudando-lhe o formato da barba e encurvando-lhe
um pouco o nariz. E cobriu-o com roupas de mendigo.
Assim , disfarçado pelo truque divino, Odisseu entrou
no pátio de sua casa. Ninguém o reconheceu. Ou me-
lhor - nenhum humano. Nem bem pisou a soleira
do grande portão , o herói escutou um suave ganido.
Olhou para o lado. Uma forma esquálida e de patas
trêmulas estava a seus pés. Era Argos, o cachorro que
havia acompanhado Odisseu em muitos passeios e ca-
çadas. Já tinha quase 30 anos - um verdadeiro Matu-
salém canino. Durante duas décadas, havia aguardado
o retorno do mestre. E o reconhecera, apesar do ar-
tifício de Atena. Segurando as lágrimas, Odisseu fez
uma breve carícia na cabeça esfalfada do amigo. Argos
esticou a cabeça, fechou os olhos e morreu.
Ninguém igualou a façanha de Argos. Odisseu hos-
pedou-se na própria casa sem que ninguém visse atra-
vés do disfarce. Para todos os efeitos, ele era apenas um
mendigo andarilho. (Naquela época, os ricos tinham o
costume de acolher e alimentar os pobres; já se vê que

27
Odisseu

eram mesmo outros tempos.) Durante dias, engoliu a


raiva observando os debochados e vorazes pretendentes
que enchiam as peças de sua casa, bebendo o seu vinho,
comendo a sua comida e jogando cantadas em cima
de sua mulher. Diversas vezes, os jovens e arrogantes
invasores lançaram injúrias àquele mendigo anônimo,
que comia silenciosamente ao pé da lareira. Penélope
- que continuava bonita após tantos anos decorridos -
parecia resistir aos avanços com a mais perfeita dureza.
Certo dia, o mendigo conseguiu aproximar-se da rai-
nha e disse: "Seu marido está perto". Nos olhos de Pe-
nélope, Odisseu divisou o mais sincero alívio e a mais
profunda alegria. Sim, ela ainda me ama, ele concluiu.
Antes de fazer a limpeza geral da casa, Odisseu re-
velou-se ao filho Telêmaco. Após uma longa conversa,
pai e filho planejaram vingança. Aliciaram dois servos
leais a Telêmaco - e começaram a afiar suas espadas.
Penélope havia decretado um desafio público. Na
sala do trono, havia um grande arco que ninguém
além de Odisseu jamais conseguira disparar. Quem
conseguir puxar este arco e lançar uma flecha com ele
- declarou a rainha - terá a minha mão. O desafio era
só uma artimanha para ganhar tempo: ela sabia que
ninguém conseguiria usar a arma além do legítimo
rei de Ítaca. Mas todos os pretendentes se candidata-
ram a tentar - e, além deles, o mendigo sem nome.

28
Odisseu

Da turba de aristocratas ergueu-se uma retumban-


te gargalhada de desdém. Num canto, Telêmaco sor-
riu: "Vocês não perdem por esperar".
Um por um , os candidatos tentaram e falharam.
Chegou a vez do mendigo - que não apenas dobrou o
arco como disparou a flecha no coração do pretenden-
te mais próximo. Nisso, os dois servos leais entraram
na sala carregados de armas e trancaram as portas.
E a matança começou.
Odisseu, Telêmaco e os dois criados lutaram contra
mais de cem inimigos. Foi uma luta desigual. Desi-
gual ao extremo: os pretendentes não tiveram a me-
nor chance, pois Odisseu tinha do seu lado ninguém
menos que Atena.
Só após lavar a honra da casa e da família em um
banho de sangue, o herói que mais rodou pelo mundo
se revelou a sua esposa - a mais paciente das mulhe-
res. E, naquela noite, o homem chamado Ninguém
dormiu profundamente em sua cama, com a mulher
que amava aconchegada em seu peito. Com que te-
rá sonhado Odisseu naquela noite? Nenhuma canção,
nenhum poema ou epopeia revela esse detalhe.
Talvez tenha sonhado com o mar.

29
Capítulo 2

Perseu

No alto de uma torre, em um cárcere com grades de


bronze, a princesa de Argos passava os dias chorando.
Seu nome era Dânae. Não cometera crime algum , ja-
mais ofendera os deuses e fora sempre uma filha dedi-
cada. Ainda assim, seu pai, o rei Acrísio, a havia conde-
nado àquela vida reclusa, sem esperança de libertação.
A solidão era rompida apenas, de tempos em tempos ,
pela criada que vinha lhe trazer água, comida e roupas
limpas. Às vezes, Dânae se lançava em desespero contra
as grades, ferindo suas mãos delicadas nos ferrolhos;
gritava até ficar rouca, implorando compaixão. Mas
não havia ninguém para escutá-la. Não havia guardas
na torre. Por decreto do rei , Dânae estava condenada a
jamais ser vista ou tocada por um homem.
A condenação era obra da Pitonisa - a sacerdotisa
do célebre santuário de Apolo em Delfos. Gente de to-
da a Grécia ia lá para escutar os oráculos que o deus
transmitia pelos lábios da Pitonisa. Havia anos o rei
Acrísio estava preocupado com a sucessão de seu tro-

30
Perseu

no. Não tinha filhos homens - o que significaria a ruí-


na de sua linhagem. Viajou para Delfos para saber qual
o destino de sua estirpe e lá ouviu uma revelação.
- O rei de Argos jamais terá filhos; e será m orto
pelas mãos do próprio neto.
As palavras do oráculo afundaram no coração de
Acrísio e se transformaram em obsessão: sempre que
um homem se aproximava da princesa Dânae, o rei
era tomado de uma fúria louca. Escorraçou todos os
pretendentes da fi lha. Passou a co nd enar à m orte
qualquer um que pusesse os olhos nela. Ainda as-
sim, Acrísio não con seguia descansar. Sua ira e seu
m edo aumentavam à m edida que Dânae ia se tornan-
do mais bela e desejável. Por fim , o rei ordenou que
seu s engenheiros construíssem uma torre de bronze
e encerrou a princesa lá em cima. Cercou-a de tran-
cas e paredes metálicas; ao redor da torre, prendeu
cachorros furiosos. Acrísio não se atrevia a matar a
própria filha , mas estava disposto a isolá-la para sem-
pre dos olhos e dos desejos masculinos.
Mas a própria Dânae estava agora doente de desejo.
À noite, já exausta de tanto chorar, ela escorregava pa-
ra sonhos úmidos em que um herói ou um deus vinha
salvá-la de sua virgindade forçada. Zeus, o senhor dos
deuses, acabou comovido pelas lágrimas de Dânae - e
irresistivelmente seduzido pela visão daquela volúpia

31
Perseu

reprimida. O deus precipitou-se das nuvens, tomban-


do do alto do céu em direção à torre de bronze - e,
no caminho, transformou-se em uma cálida chuva de
gotas douradas. Aquela torrente brilhante e luxuriosa
escorreu pelas grades das janelas, encharcou o vesti-
do de Dânae, molhando-lhe os seios e as coxas. Meio
desperta, meio acordada, ela soltou um grito de prazer
havia muito tempo contido no fundo de sua alma. Um
deus a possuía, e por isso ela estava livre.
Naquele dia, foi concebido Perseu.
Dânae fez o possível para esconder de Acrísio o
fruto daquela estranha noite de amor. A criada logo
percebeu que a barriga da princesa crescia - Dânae
implorou à serva para que mantivesse segredo. Mas
nove meses se passaram, e aconteceu o que tinha de
acontecer. Quando veio ao mundo, Perseu fez aquilo
que todos os bebês fazem. Chorou a plenos pulmões.
Acrísio, que sempre andava próximo à torre, vigiando-
a por todos os ângulos possíveis, escutou aquele vigo-
roso pranto de criança - e arrepiou-se dos pés à cabe-
ça. Aos ouvidos do paranoico monarca, aquele som pa-
recia a gargalhada de !anatos, o deus da morte. Acrísio
ordenou que a serva fosse estrangulada e tomou uma
espada para trespassar o menino, que se agarrava ao
pescoço de Dânae. Mas sua mão fraquejou.
Não foi a piedade o que o deteve - mas a covardia.

32
Perseu

Acrísio não verteria o sangue de sua filha nem o de


seu neto - mas entregaria ambos a um destino ainda
pior que o fio da espada. Trancafiou mãe e filho den-
tro de uma arca, que jogou no mar. As grossas paredes
de madeira, aliadas ao rumor das ondas, sufocaram os
gritos de Dânae. Sepultados sob as águas, a princesa
e seu filho estavam condenados a morrer de fome e
sede. Ou seriam jogados contra os rochedos e recifes
do Mar Egeu. Vendo a arca desaparecer no horizonte,
em meio às crespas elevações do mar, Acrísio sentiu
a alma serena, pela primeira vez em muitos anos. A
filha - que ele um dia amara de todo o coração, mas
agora odiava com um rancor incontrolável - havia fi-
nalmente desaparecido de sua vida.
Mas o destino sempre acaba completando seus
planos - por mais que os homens tentem driblá-lo
ou despistá-lo. Soprada por ventos suaves, a arca de
madeira foi aportar na Ilha de Serifo. Um pescador,
chamado Díctis, avistou na areia aquele artefato trazi-
do pelo m ar. Acreditando ter encontrado um tesouro,
rompeu o ferrolho e levantou a tampa da arca.
Dânae e Perseu, exaustos de tanto chorar, haviam
adormecido. A ruiva beldade respirava docemente com
o menino junto ao seio. Díctis não havia encontrado
ouro, como esperava - mas tampouco se sentiu decep-
cionado. Homem justo e sensível, o pescador encheu-

33
Perseu

se de misericórdia e levou aqueles estranhos náufragos


para casa. Sua esposa, Climena, banhou o menino e
envolveu a jovem mãe em um manto para aquecê-la.
Quando Dânae despertou, o pescador e sua esposa não
lhe fizeram perguntas. A princesa de Argos sorriu,
percebendo que finalmente encontrara um lar.
Certa tarde, o rei Polidectes, que estivera caçando
nos bosques vizinhos, avistou a exuberante desconhe-
cida que varria a casa de Díctis. Polidectes sentiu nas-
cer n o peito uma furiosa paixão. E naquele mesmo
dia convidou Dânae para viver no palácio real.
Dânae sabia que reis não fazem convites, dão or-
dens. Perseu, já moço , acompanhou a mãe à corte,
mas não conseguia esconder seu desprezo pelo rei
- um homem brutal e zombeteiro, cujos olhares gu-
losos devoravam Dânae diariamente. Polidectes bem
que gostaria de matar aquele rapaz inoportuno - mas
sabia que, se fizesse isso, perderia Dânae para sempre.
Experimentado em intrigas e subterfúgios, Polidectes
logo tramou um ardil. Convocou todos os nobres e
cortesãos para um grande banquete, anunciando que
pretendia casar-se com uma famosa princesa chamada
Hipodâmia. Todos os convivas deveriam trazer alguma
contribuição para o dote da noiva. O filho de Dânae
apareceu no banquete com ar sisudo e irritado, e Poli-
dectes indagou, com falsa doçura na voz:

34
Perseu

- Então, nobre Perseu, o que trouxe para o dote de


minha noiva?
- Vossa Majestade bem sabe que não tenho rique-
zas, além da força de meus braços. - Perseu replicou.
- Um tesouro inestimável. - Polidectes sorriu, be-
bericando uma taça de vinho. - E que tipo de troféu
esses fortes braços podem conquistar?
- Se sua intenção é casar-se com Hipodâmia, e não
com minha mãe, eu lhe darei qualquer coisa. - Perseu
retrucou , impetuoso. - Até a cabeça de uma GÓrgona.
- Muito bem. - Polidectes pôs a taça sobre a mesa
e levantou-se, com ar sombrio. Já não estava sorrindo.
- Suas ações terão de fazer jus às suas palavras, Per-
seu. Traga-me a cabeça de Medusa.
O noivado com Hipodâmia era uma farsa desde o
início. Polidectes buscara apenas um meio de livrar-
se do inconveniente Perseu sem sujar as mãos de san-
gue. E a armadilha havia funcionado. Na época, poucos
monstros eram mais temidos que as GÓrgonas. Séculos
atrás elas haviam sido três jovens e formosas irmãs.
Vaidosíssimas, gabaram-se de ser mais lindas que as
deusas do Olimpo. A blasfêmia foi castigada de forma
exemplar: as três irmãs foram convertidas em mons-
tros horrendos. Suas louras madeixas se tornaram ni-
nhos de serpente. Os lábios viraram focinhos e presas
de javali brotaram de suas gengivas. Para afastá-las de-

35
Perseu

finitivamente do resto da humanidade, os deuses con-


feriram às Górgonas um poder terrível: quem olhasse
para elas seria transformado imediatamente em pedra.
Medusa era a mais feroz das GÓrgonas. E também a
única mortal. Além de gabar-se da formosura, como as
irmãs, ela havia se entregado à paixão de Posêidon no
interior de um templo de Atena. Havia séculos que as
Górgonas habitavam seu covil, numa região remota da
Grécia. Todos os que tentaram derrotá-las morreram.
Perseu bem sabia desses perigos. Mesmo assim,
aceitou o desafio de Polidectes. Naquela mesma noi-
te, partiu, sem rumo certo. Ele não fazia ideia de on-
de ficava o covil das Górgonas - seu plano era vagar
pelo mundo até encontrá-las. A deusa Atena, que a
tudo assistia, resolveu ajudá-lo. Ela odiava Medusa
pela profanação que cometera em seu templo. Sur-
gindo diante de Perseu num súbito clarão de luz pra-
teada, ela ordenou ao jovem aventureiro que buscasse
as Hespérides, ninfas que guardavam os pomares da
deusa Hera. Com elas, o herói encontraria as armas
necessárias para derrotar Medusa. Mas a localização
do Jardim das Hespérides era conhecida apenas pelas
três Greias - criaturas decrépitas e monstruosas que
dividiam entre si um único olho e um único dente.
Perseu esgueirou-se até a sombria moradia das Greias,
ao pé do Monte Atlas, e roubou seu maior tesouro: o

36
Persell

olho e o dente, sem os quais elas não podiam enxergar


nem alimentar-se. Cegas e incapazes de atacá-lo, as
Greias tiveram de responder a todas as suas pergun-
tas, revelando o caminho para o Jardim das Hespé-
rides. Por sorte, o local ficava ali perto, à sombra do
Monte Atlas. De bom grado, as ninfas entregaram a
Perseu três artefatos fantásticos: um par de sandálias
aladas, que havia pertencido a Hermes, o mensageiro
dos deuses; o capacete de Hades, que tornava invisível
quem o usasse; e um alforje mágico, em que Perseu
poderia guardar a cabeça de Medusa sem que ela apo-
drecesse. Para completar o arsenal, Atena deu-lhe um
escudo de bronze rutilante. A superfície era tão polida
que parecia um espelho.
- Quando atacar Medusa, não a olhe diretamente -
instruiu a deusa -, mas mire o golpe usando o reflexo
neste escudo.
Calçando as sandálias aladas, Perseu voou em di-
reção à Hiperbórea, uma região nos confins do mun-
do varrida por ventos gelados e envolta em sombras
permanentes. Encontrou as Górgonas adormecidas em
meio a um sinistro jardim, adornado com estátuas de
homens e animais. As faces de pedra estavam gastas pe-
la chuva, mas Perseu conseguiu distinguir sua paralisa-
da expressão de horror. Compreendendo que em breve
ele poderia juntar-se àqueles tétricos ornamentos, o he-

37
Perseu

rói esforçou··se por seguir à risca as instruções de Ate-


na. Segurando o espelho diante do rosto, aproximou-se
do monstro adormecido. Fixou os olhos no horrendo
reflexo desenhado na superfície de bronze e desferiu
o golpe. Atena guiou sua mão, as serpentes sibilaram e
o sangue de Medusa jorrou. Suas irmãs imortais, Estê-
nelo e Euríale, despertaram enfurecidas e puseram-se
a buscar o assassino. Mas Perseu usava o capacete de
Hades - e voou, invisível, para bem longe dali.
Perseu só retirou o capacete quando a nevoenta e
gélida Hiperbóreajá se perdera na distância. Enquanto
cruzava os céus, o herói sentia o sol brilhar mais forte .
Por fim, cansado da jornada, desceu velozmente em
direção à terra. Avistou praias banhadas por um mar
revolto e altos rochedos escuros. Estava na Etiópia.
Na encosta de um penedo, junto às ondas, Perseu
avistou a mulher mais linda que já encontrara na vida.
Estonteado, pousou ao lado dela. Percebeu que a moça
estava acorrentada às rochas e tinha os olhos marea-
dos. Ela contou-lhe, entre soluços, sua triste história.
Chamava-se Andrômeda e era filha do rei Cefeu e da
rainha Cassiopeia. Havia tempos o reino da Etiópia era
assolado por um pavoroso monstro marinho, que er-
guia vagalhões com seus braços, devorava navios in-
teiros e devastava o litoral com as chicotadas de seu
rabo gigantesco. Um oráculo revelara que o leviatã só

38
Perse u

seria aplacado se o rei etíope lhe entregasse a própria


filha. E agora Andrômeda estava ali, esperando que
seu abominável algoz saísse das profundezas do mar.
Nem bem a donzela acabara de falar, o mar pa-
receu entrar em ebulição. Gigantescas borbulhas vi-
nham à tona enquanto a espuma das ondas borrifava
os penedos pontiagudos. Primeiro, uma cauda imen-
sa e horrenda rasgou as águas; em seguida, surgiu o
dorso, coberto de escamas aguçadas como adagas. A
criatura levantou-se num redemoinho, escancarando
as mandíbulas, nas quais se prendiam restos de al-
gas e pedaços de navios. Erguendo ondas ainda maio-
res, avançou em direção a Andrômeda. Nisso, Perseu
saltou pelos ares fazendo rufiar as asas das sandálias.
Cobrindo os olhos com o braço esquerdo, ele abriu o
alforje e puxou a cabeça coroada de víboras. O mons-
tro vivo olhou o monstro morto - e a fera marinha
voltou a afundar no oceano, transformada em um gi-
gantesco rochedo.
Semanas depois, Perseu iria pousar na Grécia, car-
regando Andrômeda - com quem se casara, é claro.
Apressado, dirigiu-se ao palácio do rei. A notícia de
que Perseu retornara já havia chegado aos ouvidos de
Polidectes. O traiçoeiro soberano resolveu deixar de
lado as dissimulações; reuniu sua guarda pessoal e or-
denou que Perseu fosse destroçado assim que pusesse

39
Perseu

os pés na sala do trono. !ao logo entrou ali, o herói


escutou o som metálico de uma centena de espadas
pulando das bainhas. Um batalhão de inimigos saltou
sobre ele de armas em riste - mas, um instante de-
pois, a sala estava cheia de estátuas imóveis.
De pé, em frente ao trono, o rei Polidectes tinha o
rosto eternamente congelado numa expressão de sur-
presa e terror - com a face de Medusa gravada para
sempre em seus olhos de pedra.
A missão fora cumprida. Perseu ofereceu a petrifi-
cante cabeça decepada como presente a Atena - e até
hoje o troféu horripilante adorna o escudo da deu-
sa. Díctis e Climena, de modestos pescadores, foram
transformados em soberanos de Serifo.
Mas as histórias dos heróis gregos raramente têm
final feliz. Anos mais tarde, Perseu participava de uma
competição atlética na cidade de Larissa. Seu esporte
favorito era o arremesso de discos. No meio de um
lançamento, contudo, uma rajada de vento desviou o
disco de Perseu na direção da plateia. Um dos espec-
tadores tombou nos degraus da arena, com a cabeça
fatalmente rachada. Dânae, que estava do outro lado
das arquibancadas, soltou um grito ao ver aquele rosto
que manchava de vermelho o mármore branco.
O oráculo se cumprira: Acrísio acabara de ser mor-
to por seu neto, Perseu.

40
Capítulo 3

Hércules
(Héracles)

Perseu foi um dos mais célebres heróis gregos - mas


o herói dos heróis, que se tornou o modelo épico de
todos os outros, foi seu bisneto, Héracles. Hoje o ra-
paz é bem mais conhecido pelo nome que os roma-
nos lhe dariam, Hércules. Mas vamos chamá-lo no
original aqui. Afinal, estamos na Grécia.
Héracles, enfim, foi o mais extraordinário mor-
tal que já passou sobre a Terra - tanto que, após sua
morte, acabou convertido em semideus. Com efeito,
ele reúne todas as características de um personagem
inesquecível: foi corajoso e ignóbil, cruel e piedoso;
realizou grandes façanhas e passou por terríveis sofri-
mentos; cometeu crimes pavorosos, buscou redenção
e teve um fim ao mesmo tempo glorioso e trágico.
Naquela época, a Terra era habitada por inúme-
ros monstros, remanescentes dos antigos poderes do
caos. Zeus, o rei dos deuses, resolveu engendrar um
paladino capaz de expurgar essa praga de criaturas
hediondas que assolava a humanidade.
Para isso, Zeus desceu até a cidade de Tebas, on-

41
Hércules

de vivia Alcmena, neta de Perseu. Anfitrião, marido


de Alcmena, encontrava-se guerreando em uma ilha
distante. Havia semanas a esposa sonhava com o re-
torno do marido. Naquele dia avistou um vulto que
entrava pela janela. Sufocou um grito: era seu esposo,
que voltava. Tombaram sobre a cama. E teve início a
maior noite de amor de que se tem notícia.
Tudo, claro, era um engodo: Zeus, sabendo da
exemplar fidelidade de Alcmena, tomara a aparência
de Anfitrião para seduzi-la, como adorava fazer com
qualquer deusa ou bela mortal que da face da Terra.
Quando o sol finalmente nasceu, Alcmena desper-
tou no leito revolto, exausta após tanto exercício. E o
que ela vê logo de cara? O marido entrando no quar-
to, com roupas sujas de viagem, como se houvesse
acabado de chegar.
Aquele era o verdadeiro Anfitrião, que vinha cheio
de saudade e desejos.
- O quê? Mais uma vez? - indagou Alcmena, en-
quanto o marido lhe abraçava o corpo dolorido.
Nesse momento, Zeus já estava bebendo uma taça
de n éctar em seu trono, satisfeito por ter plantado
mais uma vez sua semente entre os mortais.
Anfitrião acabou descobrindo que um deus passara
por sua cama - mas resolveu criar o fruto da tripla
noite de adultério como se fosse seu filho .

42
Hércules

Desde a infância, Héracles deu mostras de sua ori-


gem divina. Aos 17 anos , já era um guerreiro letal,
com olhos fulgurantes e pontaria infalível. Tudo nele
era exacerbado: a bondade, a raiva , a paixão, a vio-
lência. Seu temperamento tinha oscilações épicas, que
às vezes davam em surtos de fúria assassina - ainda
criança, matou seu professor de música, que tentara
lhe dar uma surra. Mas, quando não estava tomado de
ira, Héracles era de uma gentileza incomum, capaz de
tratar até os adversários com cortesia.
Sua altivez não conhecia limites: desprezava inclu-
sive espadas e armaduras, equipamento básico de todo
herói grego. Preferia lutar com o peito nu; além do
arco e das flechas, armava-se apenas de uma clava co-
lossal, talhada em um tronco de oliveira.
Graças a suas façanhas, Héracles foi recompensado
com a mão de Mégara, princesa de Tebas, com quem
teve seis filhos. Dali por diante, o herói poderia ter
desfrutado uma vida feliz e pacata - mas Hera, a rai-
nha do Olimpo, tinha outros planos para ele. A deu-
sa estava furiosa com a eterna infidelidade de Zeus;
temendo atacar diretamente seu onipotente marido,
resolveu vingar-se atormentando o filho favorito do
luxurioso monarca olímpico.
A vingança de Hera foi de uma crueldade exem-
plar: ela invocou Atê, a deusa da loucura, que lançou

43
Hércules

a sombra da insanidade sobre o orgulhoso espírito de


Héracles. Durante um festival religioso, em Tebas, o
filho de Zeus e Alcmena foi possuído por uma de-
mência súbita e sanguinária. Numa alucinação, pen-
sou ver um bando de inimigos a atacá-lo com lanças e
espadas; furioso, crivou-os de flechas e ateou fogo em
seus corpos. Ofegou, piscou as pálpebras, e o véu de
Atê ergueu-se de seus olhos: só então ele reconheceu
os rostos enegrecidos em meio às brasas. Eram seus
próprios filhos . Cegado pela ira divina, Héracles havia
cometido o crime mais abominado na cultura grega:
vertera o sangue de sua família.
Hoje, alguém poderia argumentar que Héracles
cometera o hediondo massacre em estado de loucu-
ra - mas os antigos gregos não faziam distinção entre
crimes propositais e involuntários. Para cada gota de
sangue, havia um preço; para todo crime, um castigo.
Abandonado pela esposa, arrasado pela dor e pela cul-
pa, o malfadado herói viajou para o Oráculo de Delfos
e perguntou o que deveria fazer para expiar a carnifi-
cina dos filhos.
- Você só será purificado depois de colocar-se a ser-
viço de Euristeu, rei de Micenas - a voz da Pitonisa
ecoou no fundo da caverna. - Realize todos os Trabalhos
que ele ordenar, ainda que tenha de descer os infernos.
Héracles comprimiu os punhos, em desespero.

44
Hércules

Tratava-se de uma punição realmente dura. Héracles e


Euristeu eram primos - e se odiavam. Covarde e inve-
joso, Euristeu temia que o parente um dia lhe tomasse
o trono. Para Héracles, não poderia haver humilhação
maior do que virar servo de seu detestado primo.
Ainda assim, o herói curvou-se à misteriosa von -
tade dos deuses. Foi a Micenas e apresentou-se, co-
mo um simples vassalo, junto ao trono do desprezível
Euristeu.
- Quais são suas ordens? - o herói perguntou,
com a garganta apertada de raiva.
Euristeu sorriu , deliciado. Os Doze Trabalhos de
Héracles estavam para começar.

Os doze trabalhos

1. o leão de Nemeia
Para Euristeu, a penitência de Héracles parecia uma
dádiva do destino. O rei de Micenas jamais tivera co-
ragem de atacar diretamente seu odiado primo; ago-
ra, tinha a chance de enviá-lo à morte certa. Logo de
início, o soberano encarregou Héracles de uma tarefa
aparentemente impossível: arrancar o couro do mons-
truoso Leão da Nemeia. A fera, que havia caído da Lua,
tinha a pele invulnerável a qualquer arma, e ninguém
jamais conseguira feri-la.

4S
Hércules

Viajando até a Nemeia, Héracles encontrou a região


quase deserta: o leão havia devorado a maior parte dos
habitantes. Depois de muito perambular, o herói avistou
a fera retornando a seu covil, na encosta de um mon-
te. Héracles disparou suas flechas, mas elas tombaram
no chão sem arranhar o animal. Enfurecido, Héracles
atracou-se com o leão numa luta corpo a corpo e aper-
tou o pescoço do monstro até sufocá-lo. Mas logo depa-
rou com a parte mais complicada de sua missão. Como
arrancar a pele de uma criatura invulnerável? Atena, a
deusa da sabedoria, enviou-lhe a solução.
- O leão é invulnerável a tudo, exceto a si mes-
mo - murmurou a deusa no ouvido de Héracles. De
imediato, o herói apanhou as patas do próprio animal
e usou suas enormes garras para rasgar-lhe o couro.
Héracles ficou tão orgulhoso dessa proeza que, daquele
dia em diante, passou a usar a pele do Leão da Nemeia
amarrada ao redor do corpo.

2. A hidra de Lema
Amaldiçoando a incompetência do leão lunar, que se
deixara abater tão facilmente , Euristeu logo concebeu
outro Trabalho: ordenou ao primo que decapitasse a
Hidra de Lerna, um dos monstros mais temidos da an-
tiga Grécia. A Hidra tinha corpo de cão e dez cabeças de
serpente; era tão venenosa que o cheiro de seu rastro

46
Hércules

bastava para matar anim ai ,- é: plantas. Corria o boato de


que uma de suas cabeC'<•.:> era imortal e indestrutível.
Acompanhado por seu sobrinho e escudeiro Iolau,
Héracles viajou para o pestilento pântano de Lerna.
Prendendo a respiração para evitar os vapores peço-
nhentos, o herói investiu contra o reduto da Hidra -
que arreganhou suas dez bocas de serpente, escanca-
rando dez pares de presas mortíferas. Com poderosos
golpes de clava, Héracles começou a esmagar as cabeças
da Hidra - mas, sempre que uma delas era destruída,
outra crescia em seu lugar. O problema foi resolvido
por Iolau, que se pôs a cauterizar cada toco decapitado,
impedindo que a Hidra se regenerasse. Por fim, sobrou
apenas a cabeça mais alta - que, de fato, era imortal.
Héracles arrancou-a, pisoteou-a, tentou esmigalhá-la
com as mãos e com a clava - mas a medonha cabeça
decepada continuava a sibilar, revirando os pavorosos
olhos amarelos. Por fim , enojado, Héracles enterrou-a
sob uma enorme pedra no m eio do pântano - e a últi-
ma cabeça da Hidra está lá até hoje, vivíssima e cheia
de um insaciável ódio pela humanidade.
Antes de deixar aquele lugar nefasto, Héracles mer-
\ gulhou suas flechas no sangue venenoso do monstro.
A essência da morte penetrou nas pontas de bronze e
entranhou-se nas hastes de madeira. Héracles guar-
dou-as na aljava e lançou um último olhar ao pedre-

47
Hércules

gulho que havia sepultado os resquícios da Hidra.


E nesse momento o mais destemido dos heróis
sentiu um calafrio.

3. A corça de Cerínia
Após a destruição da terrível Hidra, Euristeu ordenou
que Héracles lhe trouxesse a famosa corça da Cerínia.
A bela criatura, que tinha cascos de prata e chifres de
ouro, era conhecida por sua velocidade sobrenatural
- Euristeu tinha esperança de que Héracles morresse
de cansaço de tanto correr atrás dela. O herói perse-
guiu a corça, a pé, durante um ano inteiro, seguindo-a
até os confins da terra, sem jamais disparar uma seta
- pois não queria ferir um animal tão bonito. Certo
dia, a corça adormeceu exausta debaixo de uma árvo-
re, e o herói a apanhou numa rede. Colocou-a sobre
os ombros, com toda a delicadeza possível , e partiu
para Micenas, respirando fundo. A correria, com efei-
to, quase o deixara cansado.

4. O javali de Erimanto
Os bosques do Monte Erimanto, na Arcádia, eram as-
solados por um javali gigantesco. A criatura era tão
grande e feroz que, em seus galopes pelas encostas do
Erimanto, arrancava árvores pela raiz, deixando tri-
lhas de destruição nos bosques de oliveiras. Euristeu

48
Hércules

havia ordenado que o javali fosse levado com vida até


Micenas; quando Héracles voltou, trazendo o selva-
gem troféu , o rei Euristeu apavorou-se com os urros
do monstro e foi correndo trancafiar-se numa câmara
subterrânea. Héracles balançou a cabeça e aguardou a
próxima ordem.

s. Os currais do rei Áugias


Euristeu estava furioso: a cada Trabalho cumprido,
Héracles ganhava mais fama e respeito. Resolvido a
lhe dar uma tarefa ignóbil, o rei ordenou ao herói que
limpasse os célebres e imundos currais do rei Áugias.
Áugias, governante de Élis, possuía os maiores
rebanhos do mundo: por graça divina, seus animais
eram livres de doenças, além de gozar de uma ferti-
lidade sobrenatural. Mas toda fortuna tem seu lado
fétido . Áugias possuía tantos bois, cavalos e ovelh as
que nem mesmo um exército de servos seria capaz
de limpar diariamente os currais de Élis. Havia trinta
anos que o esterco de milhares de animais se acumu-
lava em grotescas e imensas camadas nos pátios e nas
paredes. Euristeu divertiu-se imaginando o grandio-
so Héracles a carregar infinitos baldes de estrume em
seus ombros heroicos.
Todavia, o filho de Zeus provou mais uma vez que
não era um bruto descerebrado: abriu duas brechas

49
Hércules

nas paredes do curral e depois desviou o curso dos


rios Alfeu e Mênio. A torrente de água varreu os pá-
tios arrastando toda a sujeira acumulada. Em um úni-
co dia, e sem sujar as mãos, Héracles realizou a faxina
mais célebre da mitologia grega.

6. As aves do Lago EstÍnfale


TrJdas as manhãs, as redondezas do Lago Estínfale, na
Arcádia, eram sacudidas por um ensurdecedor estré-
pito de asas, e o sol desaparecia sob uma nuvem de
ferozes criaturas voadoras.
As aves do Estínfale tinham bicos, patas e plumas
de bronze. Ao voarem pelo céu, despejavam na terra
um dilúvio de penas afiadas como punhais. Héracles,
encarregado de livrar a Arcádia daquela praga, tentou
derrubar os pássaros a flechadas - mas os alvos eram
demasiado numerosos. Mais uma vez, a solução veio
de Atena, eterna padroeira dos heróis gregos. Ela pre-
senteou Héracles com dois címbalos (castanholas de
metal), forjadas por Hefesto. Tapando os ouvidos com
cera, o filho de Zeus subiu ao cume de um monte e
ressoou os bombásticos instrumentos divinos.
libertaram um ribombar tão monstruoso que os
pássaros metálicos ficaram loucos de pavor e, numa
revoada, desapareceram além do horizonte, para nunca
mais voltar.

50
Hércules

7. O touro de Creta
Havia décadas que a ilha de Creta era assolada por um
touro selvagem que soltava chamas pelas ventas, in-
cendiando plantações e derrubando casas com os chi-
fres. Alguns diziam que a fera saíra do mar, enviada
por Posêidon; foi esse mesmo animal quem engendrou
o Minotauro. Encarregado de capturar o touro do mar,
Héracles jogou-se sobre a corcova do animal, evitando
o fogo que jorrava de seu focinho. Agarrando-o pri-
meiro pelos chifres e depois pelo pescoço, derrubou-o
ao chão e o sufocou, até fazê-lo desmaiar. Levou-o,
então, acorrentado a Micenas. Euristeu acabou liber-
tando o perigoso, porém magnífico animal; amansado
por Héracles, o touro ficou anos perambulando pela
Grécia sem causar danos.

8. Os cavalos de Diomedes
O trácio Diomedes, rei da cidade de Tírida, era um dos
mais famigerados governantes da época. Em seus te-
midos estábulos, ele mantinha presas quatro éguas in-
crivelmente ferozes, que viviam atadas a grossas cor-
rentes de ferro. Desde que eram filhotes, Diomedes
as alimentara com carne crua. Os animais adquiriram
um insaciável gosto por sangue. Sempre que algum
viajante desavisado pedia hospedagem em seu palácio,
o sádico Diomedes presenteava suas éguas com um

51
Hércules

horrendo banquete. Para acabar com aquelas barbari-


dades , Héracles desafiou Diomedes para um duelo e
derrubou-o a golpes de clava. Depois, jogou-o na baia
das éguas antropófagas, que devoraram seu dono ain-
da vivo. O herói ponderou que as pobres criaturas não
tinham culpa pela horrenda dieta a que haviam sido
submetidas; em vez de matá-las, preferiu domá-las.
Amansadas e tornadas herbívoras, as éguas passaram o
resto de seus dias pastando em Micenas.

9. O cinturão de Hipólita
A região da Frígia (parte da atual Turquia) era ocupada
pela belicosa nação das Amazonas. Elas eram súditas
de Ares, o deus da guerra, e viviam em sociedade ma-
triarcal: os homens caçavam, aravam a terra e cuida-
vam das crianças, enquanto as mulheres se ocupavam
da guerra. As temidas amazonas combatiam a cavalo,
vestidas com peles de animais ferozes , armadas com
arcos, flechas e pequenos escudos em forma de m eia-
lua. Hipólita, a rainha das Amazonas, não usava coroa
na cabeça: em vez disso, andava sempre com os belos
quadris cingidos por um cinturão de ouro. Admeta,
a mimada filha de Euristeu, sonhava em adornar-se
com aquele famoso enfeite. O rei de Micenas ordenou
a Héracles que atravessasse o mar e enfrentasse a nação
de guerreiras para satisfazer o capricho da princesa.

52
Hércules

o filho de Zeus reuniu uma tropa de confrades he-


roicos, entre os quais se incluía Teseu, rei de Atenas, e
zarpou rumo à Frígia. Ancorou seu navio no litoral e
enviou uma mensagem a Hipólita, convidando-a para
um banquete a dois: pretendia usar seus dotes de se-
dutor para resolver a questão.
A rainha das Amazonas deixou seu exército acam-
pado na praia e foi encontrar-se com aquele célebre
guerreiro. Seduzida pelo corpo musculoso de Héra-
cles, Hipólita lhe ofereceu de bom grado o cinturão
de ouro, como prova de amor. Tudo teria acabado
sem derramamento de sangue, não fosse por Hera.
Transformando-se em amazona, a deusa correu pelo
acampamento e gritou que os gregos haviam raptado
a rainha. As amazonas lançaram-se furiosas contra o
navio, dando início a uma batalha brutal. Comandados
por Héracles e Teseu, os gregos conseguiram repelir o
ataque e zarparam, levando Hipólita como prisioneira.
Héracles apoderou-se do cinturão, deu um rápido bei-
jo em Hipólita e depois a entregou a Teseu. A rainha
das Amazonas acabou se apaixonando pelo rei de Ate-
nas , com quem teve um filho, chamado Hipólito.
Após roubar o cinturão de Hipólita, Héracles fez
um intervalo em seus Trabalhos para participar de ou-
tra aventura famosa: a expedição dos Argonautas. Mas
isso é história para o nosso último capítulo.

S3
Hércules

10. Os bois de Gerião


Gerião, descendente dos antigos Titãs, era o rei da ci-
dade de Tartessos, nos confins ocidentais do mundo,
às margens do Rio Oceano. Nascera com três cabe-
ças, seis braços e três troncos unidos pela cintura; sua
maior riqueza era um rebanho de belíssimos bois ver-
melhos, que ficavam a pastar nas bordas do mundo.
Após voltar da expedição dos Argonautas, Héracles
foi enviado por Euristeu à remota Tartessos, com a
missão de roubar os bois e conduzi-los até a Grécia.
O herói enfrentou o terrível Gerião em um duelo:
mirando um dos flancos do monstro, conseguiu tres-
passar-lhe os três corpos com uma única e compri-
díssima flecha. Em seguida, veio a parte mais difícil
do Décimo Trabalho: atravessar toda a Europa com o
gado roubado. Héracles passou anos tocando a boiada
até chegar a Micenas.

11. As maçãs das Hespérides


No dia em que se casou com Zeus, Hera recebeu de sua
avó, Gaia, um presente deslumbrante: uma árvore que
dava refulgentes maçãs de ouro. A macieira mágica foi
plantada em umjardim guardado pelas ninfas Hespéri-
des, a oeste da Grécia. Alguns dizem que o local ficava
nos confins da África; outros afirmam que o Jardim das
Hespérides estava situado na Hiperbórea, junto ao Rio

S4
Hércules

Oceano. Mas todos concordam numa coisa: o Jardim


ficava à sombra de Atlas, o gigantesco Titã condenado a
suportar nos ombros o peso da abóbada celeste.
Segundo as profecias do Oráculo de Delfos, nenhum
mortal podia colher os frutos da macieira sagrada sem
perecer. Encarregado de apanhar aqueles pomos fatais,
Héracles conc~beu um plano. Chegando ao pé do gi-
gante Atlas, ofereceu-se para aliviar seu fardo por al-
gum tempo - desde que o Titã lhe trouxesse alguns
frutos do jardim encantado. Atlas aceitou a proposta
- e, por algumas horas, Héracles sustentou nas costas o
próprio céu, com todo o peso das estrelas e dos plane-
tas. Voltando com as maçãs douradas, Atlas disse:
- Pode deixar que eu mesmo as levo para a Grécia.
Sabendo que Atlas planejava deixá-lo ali para sem-
pre, Héracles respondeu com falsa cordialidade:
- Muito obrigado. Peço apenas que segure o céu por
alguns segundos, para que eu coloque uma almofada
nas costas. Atlas, que pelo visto era muito ingênuo,
caiu na armadilha e acomodou o firmamento outra vez
sobre os ombros. Héracles se afastou com as maçãs no
alforje, rindo e acenando para o desditado gigante.

12. Cérbero, o cão do inferno


Ao perceber que nenhuma criatura que andasse sobre
a Terra poderia derrotar Héracles, Euristeu resolveu

ss
Hércules

enviá-lo até as profundezas do Inferno.


- Traga-me Cérbero, o cão de três cabeças que guar-
da as margens do Rio Estige, no Tártaro - ordenou Eu-
risteu. O rei esperava que, dessa vez, Héracles confes-
sasse sua impotência e implorasse misericórdia. Mas o
herói simplesmente lhe deu as costas, apoiando a clava
ao ombro, e partiu rumo à província dos mortos.
Os antigos gregos conheciam duas entradas para
o reino de Hades: a caverna Aquerúsia, às margens
do Mar Negro, e uma fenda nos rochedos do Cabo
Tênaros, no Peloponeso. Não se sabe ao certo qual o
caminho escolhido por Héracles - mas o fato é que
ele desceu até o Rio Estige, que corre pelo fundo da
Terra, e obrigou o barqueiro Caronte a conduzi-lo até
o reino da morte. Ao vê-lo chegar, todos os fantasmas
fugiram - exceto por Medusa, que o bisavô de Héra-
cles matara tempos atrás, e por um galante espírito
coberto por vistosa armadura. Medusa arregalou os
olhos, reconhecendo o descendente de seu inimigo, e
soltou um silvado de fúria; Héracles puxou a clava pa-
ra se defender, mas o guerreiro fantasma aproximou-
se, tirando o elmo, e disse, com um sorriso triste:
- Não se preocupe; não há o que temer dos mortos.
Héracles reconheceu seu velho amigo Meléagro,
que havia conhecido durante a expedição dos Argonau-
tas. Os dois heróis - o vivo e o morto - conversaram

S6
Hércules

amigavelmente, relembrando os tempos em que sin-


gravam os mares sob o comando de ]asão.
Depois de indicar o local onde se encontrava Cér-
bero, Meléagro fez um pedido a Héraeles.
- Quando voltar ao mundo dos vivos, procure mi-
nha irmã Dejanira e a peça em casamento. Será uma
honra, para mim, ter você como cunhado.
Héraeles jurou que faria isso - nem sequer imagi-
nando que aquele fortuito encontro com um fantasma
amigável haveria de acarretar sua destruição.
Antes de se engalfinhar com o cão infernal, Héra-
eles foi pedir permissão ao dono da fera - Hades. O
temido Senhor dos Mortos respondeu que o herói po-
dia levar o monstro, desde que conseguisse capturá-lo
sem utilizar nenhuma arma. Héraeles envolveu, com
os braços, os três pescoços de Cérbero, enquanto as
três bocarras tentavam mordê-lo ao mesmo tempo - a
pele do Leão da Nemeia, porém , neutralizava as mor-
didas. Depois, o herói acorrentou a besta infernal e
arrastou-a para a superfície. Cérbero, que odiava a luz
do sol, pôs-se a soltar latidos horrendos, que reverbe-
ravam a quilômetros de distância.
Quando Héraeles entrou na sala do trono de Mi-
cenas, invadido pelo alarido da besta, Euristeu tapou
os ouvidos e fechou os olhos. A presença do cão era
mais do que o covarde monarca podia suportar.

S7
Hércules

- Leve essa coisa de volta para o Inferno! - gritou


o rei. - E nunca mais ponha os pés em Micenas! Você
está dispensado de meus serviços! Suma!
Héracles ajeitou o monstro nas costas e foi embo-
ra. A penitência fora cumprida, e o herói estava livre.

A morte de Héracles

Após pagar seus pecados cumprindo as doze tarefas


colossais, Héracles continuou perambulando pela
Grécia e realizando as mais variadas façanhas - tantas
que seriam necessários muitos livros iguais a este para
contá-las. Seu destino, no entanto, estava selado desde
o momento em que encontrara Meléagro no mundo
subterrâneo. Fiel à promessa que fizera , Héracles des-
posou Dejanira e passou a levá-la em suas aventuras
pela Grécia. Dejanira amava loucamente seu marido,
mas se ressentia de suas constantes infidelidades (tam-
bém nisso Héracles havia puxado ao pai).
Certo dia, enquanto o casal andava às margens
do Rio Eunôo, Dejanira foi avistada por um centau-
ro chamado Nesso - que se apaixonou perdidamente
por ela. Num súbito galope, Nesso apanhou Dejanira e
tentou fugir pelos campos; mas Héracles derrubou-o
com uma saraivada de flechas envenenadas. Enquanto
Héracles se aproximava, o agonizante Nesso despiu a

S8
Hércules

túnica que cobria seu tronco e a entregou a Dejanira.


O tecido estava empapado de sangue.
- Faça com que seu marido use essa túnica, e ele
amará você para sempre, pois ela está banhada com o
sangue de meu coração, o coração que você domina -
disse Nesso, em seu último suspiro.
Sem nada contar ao marido, Dejanira guardou a tú-
nica. Não havia compreendido que o sangue de Nesso,
ao encharcar o tecido, já estava contaminado com a
peçonha da Hidra de Lema.
Os anos se passaram. Um dia, Dejanira ouviu o bo-
ato de que o herói estava apaixonado por outra. Sem
pestanejar, enviou-lhe um mensageiro com a túnica
de Nesso: "Um presente para meu querido esposo".
Naquele mesmo dia, Héracles resolveu oferecer um
sacrifício ao seu divino pai. Ergueu uma pilha de
grandes achas de madeira, banhou-as em óleo e con-
vidou vários amigos para o ritual. Antes de começar a
cerimônia, vestiu a túnica que acabara de ganhar. Ime-
diatamente, sentiu uma dor dominar-lhe o corpo.
Nesse momento, nas profundezas do pântano de
Lerna, a cabeça da Hidra sorriu. Héracles tentou des-
troçar a veste, mas a túnica havia grudado de tal forma
em sua pele que o herói acabou por arrancar as pró-
prias carnes, expondo ossos e nervos. Enlouquecido
de dor, jogou-se sobre o monte de lenha e implorou

S9
Hércules

que alguém pusesse fim àquele sofrimento. Umjovem


chamado Filoctetes respirou fundo , adiantou-se e jo-
gou uma tocha sobre a lenha. E então as chamas se
ergueram e crepitaram, afogando, por fim, os gritos do
maior herói da Terra.
Foi somente no além que Héracles encontrou des-
canso para suas peripécias e desventuras. Exceto por
Hera, todos os deuses do Olimpo admiravam sua co-
ragem e se compadeciam de seu sofrimento. Zeus de-
cretou que, em vez de descer ao Tártaro, o espírito de
Héracles viveria para sempre no Olimpo. E até mes-
mo Hera teve de aceitar aquela decisão soberana.
Desde então, Héracles desfruta serenamente a
eternidade, espiando às vezes o mundo lá embaixo,
palco de sua espetacular e laboriosa existência. Al-
guns dizem que, logo após sua morte, ele apareceu
em sonhos a Filoctetes e lhe deu de presente as céle-
bres flechas com que matara Gerião e Nessa.
- Guarde-as bem. Vai precisar delas- alertou.
Anos depois, o destino levaria Filoctetes - e as fle-
chas de Héracles com o fatal sangue da Hidra - ao
maior de todos os conflitos: aquele travado diante das
muralhas de Traia.

60
Capítulo 4

A Guerra de Traia

Às vezes, tudo o que somos é determinado por algo


que destruímos. É o caso dos relatos sobre o cerco e
a destruição de Ílion - a mais suntuosa e exuberan-
te das cidades do mundo antigo, também conhecida
como Troia. Localizada onde hoje é a Turquia, Troia
foi conquistada e aniquilada na Idade do Bronze pelos
habitantes da região que séculos mais tarde se chama-
ria Grécia. A lembrança dessa guerra seria cantada ao
longo de mais de mil anos - entre eles, Homero, que
compôs a Ilíada por volta de 800 a.c.
Ninguém sabe ao certo quando a Guerra de Troia
ocorreu - alguns arqueólogos acreditam que tenha si-
do no século 14 a.c. A única certeza é que, na raiz
desse aglomerado de lendas, existe um grão de verda-
de. Os personagens que você conhecerá nas próximas
páginas, tão carregados de paixões, vícios e virtudes,
são reflexos de pessoas, hoje anônimas, que existiram
trinta séculos atrás. Na época de Platão e Aristóteles,
os gregos consideravam a Guerra de Troia o marco

61
A Guerra de Traia

fundador de seu país - um ponto em que a história


lentamente começava a emergir da lenda.
A conquista de Traia era lembrada não apenas co-
mo uma façanha , mas também como uma tragédia.
Heitor, o cavalheiresco defensor dos troianos, era tão
admirado quanto seu arquirrival Aquiles, o maior dos
guerreiros gregos. No pano de fundo da Ilíada, e de
tantas outras obras dedicadas ao assunto, paira uma
ideia sugestiva: a destruição da mais bela das cidades
foi algo ao mesmo tempo lamentável e necessário. Os
gregos acreditavam que, acima dos esplêndidos e às
vezes frívolos deuses olímpicos, havia uma divinda-
de obscura e incompreensível: Moira, a senhora do
Destino. Contra os seus desígnios, nem mesmo Zeus
poderia rebelar-se. Moira decidiu que Traia deveria
cair, para que a Grécia existisse.
Como disse Homero, em um dos mais célebres ver-
sos da Ilíada: "Os deuses criam sofrimentos e conflitos
para que os homens tenham histórias para contar".

Os filhos de Leda

O destino de Traia foi selado no dia em que Leda, rai-


nha de Esparta, foi banhar-se nua no Rio Eurotas. Do
Olimpo, Zeus viu e cobiçou as formas da rainha. Des-
ceu à Terra, no formato de um cisne, e possuiu Leda

62
A Guerra de Traia

sobre a relva , às margens do rio. Naquela mesma noi-


te, Leda entregou-se aos legítimos desejos de seu ma-
rido, Tíndaro, rei de Esparta. Nove meses depois , dava
à luz dois casais de gêmeos: Helena e Pólux, filhos de
Zeus; Clitemnestra e Cástor, fil hos de Tíndaro.
Desde menina , Helena foi dona de uma beleza
transcendental, capaz de levar os homens ao êxtase
ou à loucura - para ciúme de sua irmã, Clitemnestra,
que nutria por Helena um rancor nada fraternal. Já
Cástor e Pólux se tornaram amigos inseparáveis e cor-
reram a Grécia realizando façanhas memoráveis. De
seu pai, Zeus, Pólux ganhou o dom da imortalidade:
quando seu corpo morresse, ele subiria ao Olimpo e
lá viveria como um semideus. Cástor jamais invejou a
sorte do irmão. Juntos, participaram da expedição dos
Argonautas e da fam osa caça ao javali da Caledônia;
tantos feitos realizaram que ganharam o apelido de
"Dióscuros", ou "garotos divinos".
Quando Helena tinha apenas 12 anos, su a beleza
já causava batalhas. Teseu, rei de Atenas, reuniu um
exército e invadiu Esparta só para raptá-la. Enfureci-
dos, Cástor e Pólux convocaram um batalhão de es-
partanos e devastaram a Ática, região onde ficava Ate-
nas , até encontrar e resgatar a irmã. Nascia ali a ri -
validade entre Atenas e Esparta, que se este nderia até
os tempos históricos. Quando Helena chegou à idade

63
A Guerra de Traia

de se casar, os maiores heróis e governantes da Grécia


vieram cortejá-la. Temendo que a mão da princesa de-
sencadeasse mais uma guerra, Tíndaro obrigou a mul-
tidão de pretendentes a fazer uma promessa solene:
se um dia Helena fosse raptada, todos eles deveriam
unir-se para defender os direitos do marido legítimo.
Feito o juramento, Tíndaro entregou sua cobiçada filha
adotiva a Menelau, irmão do riquíssimo Agamênon -
o mais abonado dos soberanos gregos, que governava a
grande cidade de Micenas. O próprio Agamênon rece-
beu a mão de Clitemnestra - forjando , assim, um vín-
culo formidável entre duas das cidades mais poderosas
da península grega. Mas essa aliança acabaria num cé-
lebre e medonho banho de sangue.

o casamento de Peleu e Tétis


Quando Helena ainda era uma garota, ocorreu na Tes-
sália um fato aparentemente benfazejo, mas que serviu
de estopim para a mais sangrenta guerra da mitologia
grega: as núpcias de Peleu - um dos Argonautas - e Té-
tis, uma das Nereidas, filhas do deus marinho Nereu.
A belíssima Tétis já atraíra olhares cobiçosos de
Zeus; mas o senhor do Olimpo não se atrevera a pos-
suí-la: segundo uma profecia, o filho de Tétis estava
destinado a ser muito mais poderoso que seu pai. Por

64
A Guerra de Traia

isso, a divina Tétis foi obrigada a casar-se com um


mortal. Essa união estava fadada à infelicidade: Tétis
ficaria jovem para sempre, enquanto Peleu envelhe-
ceria como todos os homens. Ainda assim, as núpcias
entre a Nereida e o Argonauta foram uma celebração
grandiosa. O festim , organizado pelo centauro Quíron,
ocorreu nos prados à sombra do Monte Pélion - e foi
ali que, pela última vez, deuses e mortais se sentaram
lado a lado, compartilhando a mesa.
Em meio ao divino panteão de convivas, contudo,
faltava uma figura: Éris, a deusa da discórdia. O cen-
tauro Quíron, famoso por sua sabedoria, esquecera-se
de enviar a ela um convite. O lapso do sábio quadrúpe-
de era compreensível. Todos respeitavam os temíveis
poderes de Éris - mas ninguém gostava de sua compa-
nhia. Ela era responsável por fazer o serviço sujo dos
deuses, semeando desentendimento entre os mortais.
Uma deusa terrível, mas necessária: sem conflito, a vi-
da de deuses e humanos ficaria estagnada.
Enquanto olímpicos e mortais se divertiam nos
prados da Tessália, Éris espionava a festa, escondida
em um bosque - e sentia o severo espírito ferver de
ciúme e indignação. Especialista em forjar rixas, Éris
resolveu transformar a alegria em conflito - enquanto
o vinho e o néctar escorriam pelas taças na festa de
Quíron, Éris planejou punir a desfeita semeando uma

65
A Guerra de Traia

guerra como os homens jamais haviam visto. Usando


os poderes fantásticos que até os deuses menos pres-
tigiados desfrutam, ela deslocou-se num instante ao
Jardim das Hespérides e colheu um dos famosos po-
mos dourados. Com uma agulha, escreveu na casca da
fruta as fatídicas palavras: "À mais bela". Em seguida,
voltou às vizinhanças da festa e deixou que o pomo da
discórdia rolasse pelo chão, até a mesa dos olímpicos.
Na Grécia lendária, os deuses podiam ser tão in-
cautos e desavisados quanto os mortais: Zeus apanhou
distraidamente a fruta fatal e leu em voz alta a dedica-
tória. De imediato, o silêncio tomou conta do banque-
te. Todos os olhares se voltaram, discretamente, para
as três mais grandiosas senhoras do Olimpo: Hera,
Atena e Afrodite. As três eram gloriosamente belas, e
também vaidosas - como todos os seres divinos. Até
Atena, conhecida por seu celibato e por sua raciona-
lidade, podia perder as estribeiras quando seus dotes
estivessem em jogo. Zeus, que não queria meter-se
em uma querela familiar, desconversou:
- Não sou adequado para fazer esse julgamento; me-
lhor seria encontrar um árbitro fora de nossa família.
Nenhum dos convivas se adiantou , é claro, pois
aquele julgamento só poderia trazer desgraça: esco-
lhendo uma das deusas como a mais bela, o juiz fatal-
mente atrairia o ódio das outras duas.

66
A Guerra de Traia

Não se sabe ao certo quem fez aquela sugestão;


mas, de algum lugar, veio um sussurro:
- Ouvi dizer que ninguém conhece mais a beleza
feminina do que um pastorzinho que vive nas encos-
tas do Monte Ida. O nome dele é Páris.
Grato por livrar-se daquele fardo, ainda que ferido
em seu orgulho de mulherengo, Zeus decretou:
- Lavo minhas mãos. Que esse tal pastor, tão expe-
rimentado nas curvas femininas, decida.

o julgamento de Páris
Naquele dia, Páris encontrava-se em uma clareira cerca-
da por um bosque de pinheiros no alto do monte onde
passara quase toda a vida. Descansava de seus trabalhos.
Poucos sabiam que aquele pastor charmoso e indolen-
te era, na verdade, um dos filhos de Príamo, o rei de
Troia. Quando estava grávida de Páris, a rainha Hécuba
sonhara que dava à luz uma tocha - e as chamas consu-
miam toda a cidade. Um adivinho previu que o meni-
no em seu útero seria a ruína de todos os troianos. Por
isso, tão logo nasceu, Páris foi entregue a um pastor,
que o criou nas encostas do Monte Ida. Naquelas para-
gens idílicas, o jovem exercitou suas perícias inatas de
sedutor: no seu rol de conquistas, estavam não apenas
as pastoras e camponesas da vizinhança, mas também

67
A Guerra de Traia

ninfas que viviam nos bosques vizinhos.


Páris pensava distraidamente na última ninfa que
havia seduzido, quando, de repente, avistou um clarão
entre as árvores. O ar preencheu-se com um perfume
insuportavelmente delicioso. E, perante os olhos exta-
siados daquele jovem admirador de curvas e pernas, as
três deusas mais lindas do Olimpo se adiantaram por
entre os pinheiros. Com palavras doces, intimaram o
pastor a fazer o mais célebre e funesto julgamento de
beleza na história e na lenda. Páris confessou-se inde-
ciso: todas as candidatas eram deslumbrantes.
- Ajudaria se tirássemos a roupa? - sugeriu uma.
O troiano assentiu, com o mais perfeito sorriso de
satisfação. Contemplou, num instante, a metafísica
nudez de Hera, Atenas e Afrodite, inspirando fundo o
aroma de seus corpos. Tentando esconder, com emba-
raço, os efeitos que tamanha abundância sensorial cau-
sava no próprio corpo, Páris confessou mais uma vez:
- Não tenho como decidir; são todas lindas.
As candidatas apelaram para uma estratégia tão an-
tiga quanto homens e deuses: o suborno. Hera prome-
teu-lhe o domínio sobre todos os povos da Ásia. Atena
jurou torná-lo o mais sábio dos homens. Mas foi Afro-
dite quem ofereceu a ele a propina mais sedutora:
- Se me escolher, eu lhe darei o amor de Helena
de Esparta, a mais bela de todas as mortais.

68
A Guerra de Traia

o pastor troiano não teve dúvidas: escolheu Afro-


dite, ganhou o ódio de Hera e Atena, e, mesmo sem
saber, condenou Troia à destruição.
Ao fazer seu julgamento, Páris era apenas um ado-
lescente, e ainda não sabia de sua origem ilustre. Mui-
tos anos se passariam até que ele ousasse reclamar a re-
compensa prometida por Afrodite. Nesse meio-tempo,
o casamento de Peleu e Tétis azedou, e a Nereida voltou
a morar no oceano. Antes, contudo, o casal teve um
filho, que foi entregue aos cuidados de Quíron, expe-
riente educador de heróis. Desde a mais tenra idade, o
filho da Nereida e do Argonauta foi dono de um extra-
ordinário vigor - e de um temível instinto assassino.
Sempre que o garoto via uma espada, seu olhar corus-
cava com um brilho duro como o aço, e ninguém -
nem mesmo Quíron - era capaz de fitá-lo nos olhos.
O menino se chamava Aquiles.

páris e Helena

Pouco tempo após seu famoso julgamento, Páris via-


jou para Troia e foi reconhecido pelos pais, que havia
muito tinham se arrependido de tê-lo abandonado.
Elevado subitamente da pobreza ao fausto, ele tornou-
se um dândi na corte troiana: sempre vestido com
extravagância, coberto de perfumes e com os cabelos

69
A Guerra de Traia

luxuosamente penteados. Apesar de todas as suas con-


quistas, Páris estava convencido de que só encontraria
sossego nos braços de sua prometida, a mulher mais
bela do mundo. Em suas preces, rogou que a deusa
Afrodite cumprisse sua promessa. E começou a pla-
nejar, em segredo, uma viagem a Esparta. A ocasião
apresentou-se quando Príamo decidiu enviar uma
embaixada à cidade. Páris pediu a honra de ser man-
dado como mensageiro; Príamo assentiu, satisfeito por
encarregar o dissoluto príncipe de uma tarefa séria.
No dia em que páris tomou o navio para Esparta, sua
irmã, Cassandra, começou a chorar convulsivamente.
- Ele nos trará a morte, o fogo e a ruína - ela solu-
çou; mas ninguém lhe deu ouvidos. Cassandra tinha o
estranho e malfadado talento de ver o futuro com mi-
núcias, mas as pessoas preferiam não ouvir suas pre-
visões. Isso porque, certa vez, a princesa recusara os
avanços de Apolo. Como castigo, ele condenara Cas-
sandra a vislumbrar o destino pavoroso de sua família
- sem poder fazer coisa alguma para mudá-lo.
Alguns anos antes, Cástor fora morto em um due-
lo com seu primo Idas, quando disputavam a mão de
uma princesa da Tessália. Ao contrário de Pólux, Cás-
tor estava fadado a despencar para as sombras do Tár-
taro, onde as almas dos mortais passavam a eternidade
no esquecimento e no tédio. Exemplo de lealdade fra-

70
A Gu erra de Traia

terna, Pólux não aceitou abandonar seu querido irmão


àquele destino fantasmagórico. E decidiu dividir sua
imortalidade com Cástor. Assim, os dois irmãos pas-
saram a se revezar entre o céu e o inferno: até hoje,
cada um deles passa um dia no Olimpo e outro no
reino dos mortos. Encontram-se, às vezes, no meio do
caminho, e conversam brevemente sobre os tempos
em que andavam sobre a Terra. Em honra a eles, Zeus
colocou no céu a constelação de Gêmeos - hoje, um
símbolo do Zodíaco.
A morte prematura dos Dióscuros teve um resul-
tado direto aqui na Terra: Menelau, marido de Helena,
virou rei de Esparta. E foi ele quem recebeu, em uma
tarde ensolarada, o bem-apessoado embaixador de
Troia. Os modos de Páris logo atraíram a atenção das
espartanas, acostumadas a homens que pensavam ape-
nas em matar e conquistar. Já os espartanos erguiam
as sobrancelhas, com irritação, perante aquele hóspe-
de exótico e seu luxo decadente.
O rei Menelau, contudo, tratou o hóspede com o
máximo de cordialidade. Tanto Menelau quanto seu
irmão Agamênon sonhavam cimentar seu poder na
Grécia aliando-se à cidade mais gloriosa do mundo
antigo. Nenhum deles imaginava que a missão de Páris
era apenas uma fachada: ele estava ali para reclamar
sua recompensa. E Afrodite não falhou na promessa.

71
A Gu erra de Traia

!ao logo foi apresentada a Páris, durante um banquete


no palácio, Helena foi tomada por uma paixão inven-
cível. Páris viu o desejo nos olhos de Helena, e soube
que o poder de Afrodite estava em ação. Durante vá-
rios dias, o hóspede e a rainha trocaram espiadelas
durante os banquetes ou nos corredores do palácio.
O acaso colaborou com os apaixonados: Menelau re-
cebeu a notícia de que seu avô materno acabara de
falecer, em ereta; o rei teria de partir imediatamen-
te para os funerais. Embora fosse oriundo de outra
cidade, Menelau era espartano até a medula: polido,
violento, fanaticamente honrado e um tanto obtuso
para intrigas e dissimulações. Jamais imaginaria que o
hóspede, tão bem recebido em sua casa, tinha inten-
ções de recompensá-lo com um par de chifres.
Um dia após a partida do rei, páris foi até o quarto
de Helena, tomou a rainha pela mão e conduziu-a,
na calada da noite, até o porto, onde estava ancora-
do o navio troiano. Helena deixou-se levar, com uma
mistura de medo e excitação. O poder de Afrodite a
cegara; dominada pela paixão, Helena subiu ao barco
de Páris e, sem saber, condenou milhares de homens
e mulheres à morte.

72
A Gu erra de Traia

A escolha de Aquiles

!ao logo descobriu o que havia ocorrido em sua au-


sência, Menelau correu a Micenas e relatou a infâmia
a seu irmão. Agamênon a tudo escutou em sombrio si-
lêncio. Ergueu lentamente uma sobrancelha, enquan-
to o brilho de uma ideia se acendia em seus olhos.
Acabava de recordar o juramento que os pretendentes
de Helena haviam feito perante o rei Tíndaro e per-
cebeu que havia ali a chance de fazer algo formidável:
unir os gregos. Na época, a Grécia era formada por
inúmeros reinos, que na maior parte do tempo guer-
reavam uns contra os outros. Agora, Agamênon via a
oportunidade de juntar todos contra um inimigo co-
mum. Un.ida, a Grécia poderia tornar-se tão grandiosa
quanto Troia. Mas, para isso, Ílion tinha de cair.
Naquela época, vivia em Argos um célebre adivi-
nho, de nome Calcante. Foi um dos maiores videntes
do mundo antigo, superado apenas por Tirésias. Al-
guns dizem que Calcante era troiano, mas fugira da
cidade natal depois de contemplar, em uma visão do
futuro, a ruína total da cidade. O certo é que, alguns
anos antes, Calcante fizera uma profecia famosa: os
muros de Troia jamais cairiam, a menos que o filho de
Peleu e Tétis estivesse entre os atacantes.
Quando Agamênon começou a reunir seus exér-

73
A Guerra de Traia

citos, Aquiles não tinha mais de 1S anos - mas toda a


Grécia já escutara rumores a seu respeito. Contava-se
que, quando Aquiles era apenas um bebê, sua mãe o
levara às margens do Estige, um dos rios que correm
pelo Hades - o mundo dos mortos. Segurando-o pelo
calcanhar, Tétis mergulhara o menino nas águas do
rio infernal. Por isso, Aquiles se tornara invulnerável
a qualquer ferimento - exceto no calcanhar direito, a
única parte de seu corpo que ficara à tona.
Encarregado de sua educação, Quíron lhe ensinou
as artes da guerra e da eloquência. Aquiles tinha ape-
nas 6 anos quando matou seu primeiro javali; aos lO,
já caçava leões e lhes comia as entranhas, para absor-
ver sua força e ferocidade. Pelo visto, a peculiar dieta
funcionou .
Tétis bem que tentou impedir o filho de envolver-
se naquela guerra - mas Aquiles, aos 1S anos, já tinha
um insaciável apetite por fama e glória. O jovem prín-
cipe reuniu um exército de mirmidões (assim eram
chamados os habitantes da Ftia, reino de Peleu) e pre-
parou-se para partir. Peleu brindou o filho com uma
enorme lança de carvalho e uma armadura dourada,
que havia ganhado de presente em seu casamento
com Tétis. Aquiles também fez questão de levar Pá-
troclo - seu primo mais velho, que era também seu
melhor amigo.

74
A Guerra de Traia

Amigos, diga-se de passagem, eram o que mais fal -


tava a Aquiles. Desde criança, sentia-se mais à vontade
dando golpes do que conversando amenidades. Tinha
consciência de que era o maior guerreiro da Grécia -
e essa excelência o afastava das pessoas comuns, que o
viam com respeito e temor. Por isso, Aquiles prezava a
amizade sincera de Pátroclo acima de todas as coisas -
exceto a própria honra.
Aquiles e Pátroclo seguiram em direção a Áulis, no
litoral do Egeu, onde as forças de Agamênon se con-
centravam. Certo dia, os mirmidães acamparam jun-
to ao mar e Aquiles foi dar uma caminhada solitária
pelas areias da praia. As águas do mar se encresparam
levemente, e Tétis emergiu diante do filho , disposta a
lhe fazer um último apelo. Como todos os deuses, ela
tinha momentos de clarividência. Com o rumor das
ondas estourando aos seus pés, Tétis profetizou:
- Meu filho, agora você deve optar entre dois ca-
minhos. Pode escolher uma vida longa e pacata; nesse
caso, morrerá no anonimato e logo será esquecido, mas
conhecerá o gosto da felicidade. O outro caminho leva
à glória, mas também à morte prematura. Se for a Troia,
você morrerá ainda jovem, e sua alma descerá rapida-
mente à Mansão dos Mortos; mas sua lembrança viverá
para sempre enquanto houver homens sobre a Terra.
Aquiles hesitou por um instante. O sol batia direto

7S
A Guerra de Traia

em seu rosto e ele não conseguia ver os olhos da mãe.


- Morte e glória - ele murmurou entre os dentes.
- Você as terá - disse Tétis. E mergulhou nas águas
do mar, onde ninguém poderia ver suas lágrimas.

o sacrifício de lfigênia
A escolha de Aquiles hoje pode parecer loucura ou bra-
vata - mas, no mundo antigo, ela fazia todo o sentido.
Os gregos acreditavam que a vida humana era um bre-
ve momento de luz perante uma eternidade de trevas.
Após a morte, a alma mergulhava nas sombrias regiões
do Hades, onde perdia todas as suas lembranças. O es-
pírito passaria a eternidade em um estado de letargia,
como que mergulhado em um vago pesadelo - desper-
tando apenas de tempos em tempos, quando os vivos
lhe ofereciam sacrifícios. Por isso, os gregos amavam
ferozmente o efêmero tempo que lhes era dado a viver
sobre a terra - e faziam o possível para que os reflexos
dessa breve existência sobrevivessem na memória das
gerações futuras . Para os heróis gregos, não havia outra
recompensa além da lembrança humana.
Na região de Áulis, consagrada à deusa Ártemis,
reunia-se agora o maior exército já visto na Grécia.
Centenas de navios, com cascos de madeira escura e
velas de inúmeras cores, aglomeravam-se ao longo da

76
A Guerra de Traia

enseada. Em terra, multiplicavam-se tendas, cavalos,


arsenais. Os maiores chefes gregos estavam reunidos
ali. O sábio veterano Nereu, rei de Pilas, fora o primei-
ro a unir-se à campanha. Era o mais velho e o mais ve-
nerável dos líderes gregos. Ao seu lado, andava sempre
Odisseu, o rei de Ítaca - um sujeito mais conhecido
por sua manha e astúcia do que pela coragem. Não que
fosse inábil com a lança ou a espada - mas preferia
matar seus inimigos com truques em vez de golpes.
Da ilha de Salamina, viera Ájax, o Grande, sobri-
nho de Peleu e primo-irmão de Aquiles. Forte como
um cavalo, Ájax era famoso por sua estatura colossal
- e por sua vaidade igualmente gigantesca. Da Ló-
crida, viera outro herói com o mesmo nome, mas de
figura bem distinta: Ájax, o Pequeno. Embora baixote
e esguio, era um guerreiro temido - diziam que era o
mais veloz corredor da Grécia, depois de Aquiles. Por
onde quer que fosse , era seguido por uma enorme
serpente de estimação, que obedecia às suas ordens
como um cão amestrado.
O mais hábil arqueiro grego veio da Tessália: era
Filoctetes, famoso por sua amizade com o falecido Hé-
rades. Filoctetes havia herdado o arco e as flechas do
mais célebre dos heróis gregos. As flechas de Hérades
eram letais, pois haviam sido mergulhadas no sangue
peçonhento da Hidra de Lerna.

77
A Guerra de Traia

Outro chefe de grande importância era o jovem


rei Diomedes, que viera da majestosa cidade de Argos
(e que nada tinha a ver com o outro Diomedes, morto
por Héracles). Era um rapaz pouco chegado a fanfarra--
nadas, que costumava ouvir muito e falar pouco. Nas
horas vagas, estava sempre a afiar meticulosamente
sua espada - todos sabiam que aquele jovem discreto,
ponderado e modesto, era também um espadachim
mortífero. De todos os seus companheiros de armas,
era com Odisseu que Diomedes mais se entrosava.
Aquiles e o Grande Ájax eram o braço forte dos
gregos; Diomedes, Odisseu e Nestor eram o cérebro. E
o comandante em chefe desse formidável exército era
Agamênon - agora chamado de Andrax Andrôn, "o
Rei dos Heróis".
A esplêndida cruzada estava pronta a zarpar, mas
foi detida por um obstáculo meteorológico. Nem bem
as tropas haviam terminado de se reunir, os ventos
cessaram e uma terrível calmaria aplainou as águas
do Egeu. Os navios gregos ficaram imóveis por vários
dias. Sem vento, seria impossível partir. Alguns sol-
dados começaram a murmurar, impacientes, que os
deuses zombavam de Agamênon. Os mais ousados já
começavam a ridicularizar o pomposo título do "Rei
dos Heróis". A campanha contra Traia estava prestes a
acabar num motim.

78
A Guerra de Tra ia

Convocado por Agamênon , o adivinho Calcante


explicou a razão daquela maré de azar:
- A culpa é sua, oh, Andrax Andrôn, pois você
provocou a ira de Ártemis, a deusa-caçadora.
Agamênon sentiu um calafrio. A culpa, com efeito,
era dele. Tempos antes, durante uma cerimônia reli -
giosa, o rei de Micenas fizera uma promessa solene à
deusa Ártemis: jurou sacrificar em sua honra a cria-
tura mais bela que nascesse em Micenas naquele ano.
O que Agamênon não sabia é que sua esposa, Clitem-
nestra, estava grávida. A princesa Ifigênia nasceu antes
que o ano terminasse - e Ártemis reclamou-a para o
prometido sacrifício. Agamênon não teve coragem de
verter o sangue da filha recém-nascida. Mas os deuses
não esquecem - muito menos as deusas. Agora Árte-
mis o tinha na palma da mão. Para que Troia caísse,
Ifigênia teria de morrer.
Alguns dos principais chefes gregos já ameaçavam
partir, quando Menelau obrigou o irmão a enviar uma
mensagem a Micenas, convocando Ifigênia. A mensa-
gem dizia, enganosamente, que a princesa deveria ir
a Áulis para casar-se com Aquiles. Ifigênia chegou a
Áulis acompanhada pela mãe, Clitemnestra - ambas
empolgadas com a perspectiva daquele matrimônio
ilustre. Mas um servo alertou Clitemnestra sobre a
farsa ; em desespero, a rainha correu à tenda de Aqui-

79
A Guerra de Traia

les, atirou-se aos seus pés e implorou sua ajuda.


Aquiles, que nada sabia daquela trama, enfureceu-
se. Jamais tivera grandes simpatias por Agamênon, e
o complô forjado com seu nome o atingiu como uma
ofensa mortal. Já sacando a espada, e carregando a lan-
ça de carvalho presa às costas, ele correu à tenda de
Agamênon, onde Ifigênia estava agora presa.
Àquela altura, Agamênon havia se arrependido de
seus planos. De bom grado teria mandado Ifigênia de
volta a Micenas. Mas Calcante, o vidente, já espalhara
em meio ao exército os rumores sobre a ira de Árte-
mis e a exigência do sacrifício. Os soldados queriam
que seu comandante em chefe cumprisse a promessa
à deusa. Incapaz de resistir à pressão de suas tropas,
Agamênon estava prestes a entregar-lhes a princesa -
quando Aquiles saltou à frente de Ifigênia, desafiando
os próprios camaradas.
- Ouvi dizer que a filha de Agamênon veio casar-
se comigo. Qual de vocês tentará pôr as mãos em mi-
nha noiva?
Uma loucura assassina tomara conta dos gregos. Eles
queriam guerra, queriam glória, queriam Troia. Até os
mirmidões - com exceção de Pátroclo - voltaram-se
contra Aquiles. Centenas de mãos puxavam agora de
suas espadas e lanças; outras pegavam pedras do chão.
Nem mesmo Aquiles poderia derrotar todos os soldados

80
A Guerra de Tra ia

da imensa tropa grega - mas ele certamente derruba-


ria muitos antes de cair. O nascimento da Grécia estava
prestes a se transformar num desastroso aborto.
Então, uma voz suave ergueu-se acima da balbúrdia.
- Guardem suas espadas. Eu é que devo morrer
hoje.
lfigênia deu um passo à frente, com a mão no om-
bro de Aquiles. Encarou os soldados. Nenhum deles
teve coragem de olhá-la nos olhos.
- Essa é a vontade dos deuses - disse lfigênia. -
Não deixarei que a Grécia se destrua por minha causa.
E, sem mais palavras, caminhou até o altar de Ár-
temis, à beira do mar, onde Calcante a esperava de
adaga em punho. Um silêncio mais profundo que a
morte tomou conta do acampamento. O adivinho er-
gueu a adaga de sacrifícios. O sol reluziu na lâmina. E
o sangue de lfigênia correu.
A frota grega finalmente partiu. Mas o entusiasmo
dera lugar a um ânimo sombrio. Da amurada dos na-
vios, alguns guerreiros avistaram uma figura vestida
de negro que cavalgava para longe. Era Clitemnestra,
de luto, retornando a Micenas. Em seu coração des-
troçado ela levava um único objetivo: vingar-se, um
dia, de seu desnaturado esposo, o Rei dos Heróis.

81
A Guerra de Troia

Começa a guerra

Enquanto navegava pelo Egeu - cujas águas tinham


cor de vinho, conforme garantem os poetas antigos -,
Aquiles não conseguia tirar Ifigênia de sua mente. A
dignidade da princesa, que aceitara entregar-se à mor-
te em nome da Grécia, parecia-lhe mais grandiosa que
as façanhas dos heróis. E, à medida que aumentava
sua admiração pela princesa sacrificada, crescia tam -
bém seu rancor contra o traiçoeiro comandante em
chefe dos gregos. Mais cedo ou mais tarde, Agamênon,
acertaremos nossas contas, ele prometeu.
A imensa armada grega - 1.133 navios - finalmen-
te aportou em Tênedos, uma ilha no litoral da Trôa-
de (região onde ficava Troia). Dali, Agamênon enviou
uma embaixada formada por Odisseu, Menelau e Dio-
medes. Levavam um ultimato: os troianos teriam de
entregar Helena ou lutar até a morte.
Enquanto os gregos aguardavam o retorno dos
emissários, o arqueiro Filoctetes foi dar um passeio
pelos rochedos de Tênedos. Hera, que a tudo via do
alto do Olimpo, escolheu aquele momento para vin-
gar-se da inoportuna amizade entre Filoctetes e Hé-
racles. A rainha dos deuses fez com que uma víbora
saísse de um buraco entre as rochas e cravasse os den-
tes na perna do arqueiro. A ferida inchou e parte da

82
A Guerra de Traia

perna apodreceu. Atormentado por dores dilacerantes,


Filoctetes passava as noites delirando e gritando, e o
fedor de suas pústulas empestou todo o acampamen-
to, quase enlouquecendo seus camaradas.
Percebendo que aquele homem sofria uma maldi-
ção divina, Agamênon ordenou que o arqueiro fosse
abandonado em uma região desértica de Lemnos, uma
ilha vizinha. Com o tempo, a dor da ferida acabou se
arrefecendo, mas a perna de Filoctetes ficou rija e inú-
til. E o arqueiro da Tessália passou anos na solidão, vi-
vendo como eremita e amargando um profundo ran-
cor contra os amigos que o deixaram para trás. Não
imaginava que um dia eles viriam implorar sua ajuda.
Odisseu, Menelau e Diomedes voltaram com uma
resposta simples, curta e ofensiva: não. Os encantos
de Helena haviam enfeitiçado Troia. A cidade inteira
se apaixonara por ela. Príamo a amava como se fosse
uma filha. Na rua, as pessoas soltavam gritos de êxtase
ao vê-la passar. Em sua maioria, os troianos esperavam
que as ameaças gregas não passassem de blefe.
O que os habitantes de Troia não sabiam é que
os próprios deuses estavam dispostos a levar aquele
conflito até o fim. A disputa entre gregos e troianos
se transformou em uma verdadeira obsessão para a
divina família do Olimpo - cujos membros resolve-
ram acertar suas disputas internas usando o mundo

83
A Guerra de Traia

dos mortais como tabuleiro. Hera e Atena não haviam


esquecido a desfeita de Páris - e, em todo o univer-
so, não há nada mais perigoso que uma deusa ofen-
dida. Afrodite, por seu lado, estava pronta a defender
a cidade natal de Páris, seu súdito favorito . Apolo foi
outro que decidiu lutar ao lado dos troianos. Já Po-
sêidon tinha protegidos em ambas as trincheiras. As
preferências de Zeus também pendiam ora para um
lado, ora para outro. Mas todos estavam interessados
em levar adiante seu sangrento jogo de xadrez.
Alguns dias após a partida dos embaixadores, Troia
foi despertada pelos gritos das sentinelas. Multidões
acorreram ao alto das muralhas. A linha do horizonte,
onde o céu encontra o mar, estava enegrecida por uma
assustadora fileira de navios. Os gregos, enfim, não
haviam blefado. Moira tecia seus fios implacáveis. E a
maior guerra dos tempos antigos iria começar.
Os portões de Troia se abriram e uma tropa de ca-
valeiros disparou rumo ao litoral. À frente , cavalgava
aquele que seria o maior adversário dos gregos nos dez
anos seguintes: Heitor, o filho mais velho de Príamo e
Hécuba. Era um guerreiro tão valoroso e um homem
tão honrado que sua memória seria cantada, séculos
depois, pelos descendentes de próprios inimigos. Em-
bora fosse um guerreiro temível, Heitor detestava a
guerra. Lutava por obrigação: para defender sua cida-

84
A Gu erra de Traia

de e sua família. Se tivesse de escolher entre a glória


e a felicidade , certamente teria preferido a segunda
opção. Mas, ao contrário de Aquiles, Heitor não teve
escolha. Ao ver os escuros navios se aproximando, ele
soube que uma longa guerra começava. Caberia a ele
salvar Troia - ou morrer tentando.
Tão logo chegou à praia, Heitor se deteve, intriga-
do. Os navios estavam imóveis, a alguns metros da li-
nha da arrebentação das ondas, mas nenhum inimigo
havia desembarcado. Mais uma vez, os gregos estavam
paralisados pelo medo de uma profecia: acreditava-se
que o primeiro soldado a pisar nas areias da Trôade
seria morto naquele mesmo dia.
Para dar fim à hesitação geral, Odisseu recorreu a
um de seus estratagemas mais traiçoeiros. Jogou seu
escudo na praia e pulou sobre ele, tendo o cuidado de
não encostar um único dedo na areia troiana. O barco
de Protesilau, rei da Filácia, estava junto à embarca-
ção de Ítaca. "Ótimo", pensou Protesilau, sem reparar
no escudo sob os pés de Odisseu, "a profecia cairá so-
bre ele. Acabaram-se seus ardis, Odisseu!". No instan-
te seguinte, Protesilau saltou à praia - afundando até
os tornozelos nas dunas salgadas. A cavalaria troiana
avançou sobre ele. O rei da Filácia derrubou vários ini-
migos, mas a lança de Heitor acabou por lhe atravessar
o peito. "Mais um ardil", ele pensou, antes de morrer.

85
A Guerra de Traia

Em questão de instantes, Heitor massacrou dezenas


de gregos, tornando vermelhas as espumas do mar. Con-
tudo, a morte corajosa de Protesilau dera aos atacantes
um ânimo quase sobrenatural. O príncipe troiano foi
sobrepujado pelo desembarque maciço e bateu em re-
tirada, rumo aos portões. Aos gritos, Aquiles tentou al-
cançar Heitor - mas a confusão da batalha separou os
dois guerreiros, destinados a se defrontar no futuro.
O sol já vinha se pondo, brilhando nos telhados
dourados de Troia. A areia das praias bebia o sangue
derramado. A primeira batalha chegara ao fim sem
conclusão definitiva. Os troianos encontravam-se bem
protegidos dentro de suas inexpugnáveis muralhas -
mas também estavam espantados com a ferocidade
dos gregos. Heitor aconselhou seus conterrâneos a
esperar. Que os gregos ficassem lá fora , na planície,
espremidos entre as muralhas e o mar. Havia fontes
de água potável dentro da cidade, e caminhos secretos
ligavam Troia à região da Dardânia, no Norte. De lá,
viriam suprimentos e aliados.
Agamênon e seus conselheiros sabiam que seria
loucura atacar os altíssimos muros de Troia. Os gregos,
portanto, também decidiram esperar. Ergueram uma
paliçada para proteger seus navios, construíram um
acampamento e puseram-se a afiar as armas, aguardan-
do a hora certa. Nesse impasse, correram nove anos.

86
A Guerra de Tra ia

Briseis e Criseida

Os gregos, é claro, não passaram todo esse tempo sem


fazer nada. Em vez de atacar diretamente os troia-
nos, moveram incursões contra as cidades vizinhas,
conquistando e devastando as terras onde viviam os
aliados de Príamo. Com seus mirmidões, Aquiles con-
quistou Cólofon, Lirnesso, Esmirna e muitas outras
cidades. Ricos despojos desembarcavam sem parar
no acampamento grego - que foi crescendo até se
transformar em uma enorme cidade feita de tendas ,
estábulos e muros de madeira. À noite, os troianos
avistavam as fogueiras dos gregos como milhares de
estrelas amarelas consteladas junto ao mar escuro.
Nos ataques às regiões vizinhas, os gregos não rou-
bavam apenas joias e armas, mas também mulheres.
Numa incursão à Trácia, o Grande Ájax matou o rei
Teutras e apoderou-se de sua esposa, Tecmessa, que
passou a viver em sua tenda. Agamênon, querendo
esquecer o ódio que vira nos olhos de Clitemnestra,
tomou por concubina uma bonita jovem chamada
Criseida. Filha de Crises, um sacerdote de Apolo, ela
fora capturada na cidade de Moésia, a leste do Monte
Ida. Durante o saque de Lirnesso, Aquiles capturou a
desejável rainha Briseis. O herói tratava sua prisionei-
ra com gentileza, e Briseis acabou se apaixonando por

87
A Guerra de Traia

ele. Dormiam juntos todas as noites na grande tenda


de Aquiles, sobre um leito de peles de leão. Por algum
tempo, Briseis conseguiu apagar da atormentada men-
te de Aquiles a lembrança de lfigênia.
Finalmente, havia chegado o décimo ano da guer-
ra. Uma das muitas previsões de Calcante era a de que
Troia só cairia após dez anos de cerco. Mas agora mui-
tos dos guerreiros estavam cansados do conflito. Aqui-
les já se perguntava se valia mesmo a pena desperdi-
çar sua força e coragem em benefício de Agamênon
e Menelau. Suas discussões com o Rei dos Heróis se
tornavam cada vez mais agudas. Já entre os troianos,
crescia o ressentimento em relação a Páris. Mas nin-
guém ousava erguer a voz contra Helena, cujo encan-
to continuava enfeitiçando a todos - menos a Heitor,
que era totalmente devotado a sua esposa, Andrômaca,
e ao filho recém-nascido, Astíanax.
Naquele momento de cansaço e desânimo generali-
zado, gregos e troianos poderiam ter feitos as pazes. Mas
uma série de acontecimentos acabou precipitando uma
sequência de fatos trágicos, na qual alguns dos princi-
pais personagens dessa história perderiam a vida.
No início da primavera, Crises, o sacerdote de Apo-
lo, veio ao acampamento grego implorar a devolução
de sua filha, trazendo um rico resgate. Mas Agamênon
o escorraçou aos gritos. Furioso e humilhado, Crises

88
A Guerra de Traia

ajoelhou-se à beira do mar e invocou a vingança de


Apolo. Suas preces chegaram ao Olimpo, e a face dou-
rada de Apolo ficou escura de raiva. Enchendo a aljava
com flechas letais, ele voou em direção ao acampamen-
to grego. Semelhante à noite que se aproxima, a sombra
de Apolo caiu sobre os estábulos e os navios. Empu-
nhando o arco, o deus disparou suas setas contra as
hostes gregas. Cada guerreiro alvejado tombava ao chão,
com febre, delirando. Durante nove dias, as flechas de
Apolo espalharam uma praga mortal pelo acampamen-
to grego. Piras crepitavam do entardecer à alvorada. O
cheiro da morte subia até as muralhas de Troia.
Desesperados, os gregos reuniram-se em assem-
bleia para decidir como aplacar o deus. Aquiles deu
um passo à frente.
- Fizemos por merecer a cólera de Apolo - disse.
- Que o grande Rei devolva sua concubina, e escolha
outra. Graças aos nossos esforços, há muitas prisionei-
ras e muitas riquezas à sua disposição.
A maioria dos guerreiros apoiou a sugestão - e to-
dos sorriram ante a agulhada indireta contra o Rei dos
Heróis. Agamênon foi obrigado a ceder, mas a raiva
borbulhava em sua alma: há tempos ele ressentia a
popularidade de Aquiles entre os soldados.
- Muito bem, Criseida voltará aos braços de seu
pai - disse o rei. - Mas com uma condição. Aquiles,

89
A Guerra de Troia

você mesmo disse que posso escolher quem eu quiser,


entre as nossas prisioneiras. Pois bem, tragam-me Bri-
seis agora mesmo. Ela será a minha concubina! E esta
noite o seu leito ficará vazio, filho de Peleu.
Os olhos de Aquiles coruscaram. Sua mão desceu
ao cabo da espada - e ele teria decapitado Agamênon
ali mesmo, de um único golpe, se não fosse por Atena,
que a tudo observava. Ela sabia que um duelo entre
aqueles homens arruinaria o cerco, e Troia escaparia à
vingança. Invisível aos olhos mortais, ela correu feito
uma rajada de vento até Aquiles e sussurrou em seu
ouvido:
- Não cometa essa loucura. Aguarde. Os deuses
lhe darão glória redobrada, se você obedecer.
Aquiles respirou fundo . Controlando a muito cus-
to seu impulso assassino, o filho de Peleu abriu os
braços e gritou:
- Pois então escute meu juramento, Rei dos Heróis!
Os troianos jamais me ofenderam. Não roubaram meu
gado nem feriram minha família. Foi em busca de gló-
ria que cruzei o mar, mas encontrei vergonha. Minha
espada não vai se erguer novamente contra Troia, e os
teus soldados serão derrubados um a um pelo grande
Heitor. Que desgraça ter de combater um inimigo tão
valoroso, em nome de um aliado tão estúpido!
Com isso, Aquiles deu as costas à assembleia e

90
A Guerra de Traia

marchou até a praia. Depois, sentou-se à beira do mar,


escutando as ondas e ruminando seu ódio.

páris e Menelau

A notícia de que Aquiles abandonara os combates se


espalhou como fogo - e acabou chegando aos ouvidos
dos troianos. !ao logo recebeu a mensagem, Heitor
decidiu que esse era o momento certo de contra-ata-
car. A um grito seu, milhares de soldados correram a
apanhar suas armas. Um clangor de metal tomou con-
ta da cidade. Pela primeira vez em anos, os portões de
Troia se abriram, despejando uma maré de guerreiros,
cavalos e carros de guerra. Os gregos, ainda atordoados
pela deserção de Aquiles, aprontaram-se às pressas e
marcharam para enfrentar o ataque. As posições agora
começavam a se inverter: o acampamento grego é que
estava sob cerco. De repente, uma figura destacou-se
das fileiras troianas. Era Páris, vestido numa pele de
leopardo e armado com duas lanças. Cansado do des-
prezo que lhe votavam os troianos, estava disposto a
provar seu valor. Desafiou os gregos a enviarem contra
ele seus maiores campeões.
No mesmo instante, Menelau avançou de espada
à mão, sequioso de vingança. Antes que o combate
tivesse início, Heitor e Odisseu avançaram para par-

91
A Guerra de Traia

lamentar. Combinou-se uma trégua. Todos concorda-


vam que aquela guerra já durava tempo demais. Ficou
acertado que o vencedor daquele duelo ficaria com
Helena - e o conflito chegaria ao fim, sem que mais
ninguém tivesse de morrer.
A luta começou. Páris foi o primeiro a arremes-
sar sua lança, que foi cravar-se no escudo do grego.
Em seguida, o troiano esquivou -se à azagaia do rei de
Esparta, que em seguida o golpeou com a espada. A
lâmina se partiu contra o elmo de Páris, mas o prínci-
pe perdeu o equilíbrio e caiu para trás. Com um grito
de triunfo, Menelau agarrou -o pelo capacete e come-
çou a arrastá-lo em direção às linhas gregas. Com os
cordões do elmo estrangulando seu pescoço, Páris
desmaiou. A Guerra de Troia teria acabado naquele
momento, se não fosse por Afrodite - vendo seu que-
rido súdito à beira da morte, ela desceu ao campo de
batalha envolvida em uma nuvem de vapor e arreba-
tou o príncipe troiano. De repente, Páris descobriu-se
em seu quarto, deitado sobre os lençóis perfumados
- e, lá fora, a matança recomeçou. Enquanto Mene-
lau procurava inutilmente o inimigo que acabara de
derrubar, um arqueiro troiano chamado Pândaro co-
meteu a tolice de disparar seu arco - Atena o havia
inspirado traiçoeiramente a alvejar o rei de Esparta. A
flecha acertou a cintura de Menelau - a fivela do cin-

92
A Guerra de Troia

to evitou uma ferida mortal, mas o sangue escorreu


por suas pernas, e um grito de indignação se levantou
das linhas gregas. A trégua estava rompida.
Logo, o estrondo das armas de bronze ecoou entre
as muralhas e as ondas do mar, e os cadáveres come-
çaram a tombar sobre a planície cheia de fiores de pri-
mavera. E a todas essas, os mirmidões permaneciam
ociosos junto aos navios, entretendo-se a tocar lira ou
lançar discos, enquanto seu chefe continuava cisman-
do com os olhos fixos no mar.

Diomedes enfrenta os deuses

Foi graças a Diomedes que a investida traiana foi re-


chaçada. Num duelo encarniçado, ele quebrou com um
pedregulho a perna de Eneias - o guerreiro mais hábil
entre os troianos, depois de Heitor. Eneias era fruto dos
amores entre Afrodite e o mortal Anquises, um nobre
da família real troiana. Mais uma vez, a deusa do amor
desceu à batalha - agora, para salvar seu amado filho.
Os deuses, sempre que desejavam, podiam ficar in-
visíveis aos olhos mortais - indo e vindo feito uma
brisa ou um pensamento. Naquele dia, contudo, Atena
conferiu a Diomedes um dom formidável: o poder de
ver os deuses a qualquer momento, em qualquer lu-
gar. Em meio ao furor da batalha, o jovem rei avistou

93
A Guerra de Traia

a forma luminosa de Afrodite descendo em direção a


Eneias. Oiomedes não teve dúvidas: arremessou a lança
com toda a força , rasgando o delicado vestido da deusa
e perfurando a aromática pele de seu braço. Pelo pulso
de Afrodite, escorreu o icor - o néctar dourado que
flui nas artérias divinas, assim como o sangue corre
pelas veias dos mortais. Com um grito de dor, Afrodite
deixou cair Eneias e fugiu em direção ao Olimpo.
Inebriado por sua façanha, Oiomedes admirou a
bela figura da deusa que fugia, derramando gotas de
ouro. Apolo , oculto numa nuvem de poeira, apro-
veitou o momento para apanhar Eneias nos braços
e levá-lo para bem longe dali. Oiomedes, sempre tão
ponderado, estava naquele dia possuído pelo espíri-
to da ousadia. Num salto, disparou atrás de Apolo,
tentando acertar Eneias. Três vezes o golpeou com a
espada, e três vezes Apolo repeliu seu ataque. Diome-
des erguia a m ão para desferir o quarto golpe quando
Apolo voou pelos ares e depositou o filho de Afrodite
no alto do Monte Pérgamo. Se não fosse por isso, toda
a história do mundo teria sido diferente - pois foram
os descendentes de Eneias que, muitos séculos depois ,
fundaram o Império Romano.
A batalha tornava-se tão encarniçada que seu es-
trondo chegou aos ouvidos de Ares - o pavoroso deus
da guerra, que ama o gemido dos feridos e o urro dos

94
A Gu erra de Traia

assassinos. Disposto a vingar Afrodite, com quem ti-


nha um antigo caso de amor, Ares lançou-se sobre
os gregos brandindo sua acha gigantesca. Avistando
o vulto monstruoso, que ceifava homens como se
fossem bonecos, Diomedes correu até ele com fúria .
Naquele instante, Atena conferiu ao seu braço força
redobrada - e a lança de Diomedes enterrou-se no
ventre de Ares, no ponto exato em que a couraça ter-
minava. O icor jorrou, e o deus da guerra soltou um
grito horrendo; por um instante, ambos os exércitos
ficaram paralisados de medo.
Diomedes respirou fundo e piscou os olhos. Ares
fugia pelos ares, rumo ao Olimpo. Em uma única tar-
de, o jovem rei de Argos havia enfrentado três deuses -
façanha que os poetas do futuro jamais esqueceriam.

Os feitos de Heitor

Em uma breve pausa nos combates, o príncipe Heitor


foi até os aposentos que ocupava no palácio real, sem
ter tempo sequer de despir a armadura. Pela porta en-
treaberta, espiou Adrômaca, que acalentava nos braços
o pequeno Astíanax. A esposa jogou-se em seus braços
e implorou a Heitor que não voltasse ao campo de ba-
talha, perguntando-lhe por que não ficava ele sobre as
muralhas, comandando de longe as tropas troianas?

9S
A Guerra de Troia

- De nada adianta chorar, esposa - ele disse, gen-


tilmente. - Desde que o mundo existe, nenhum ho-
mem jamais escapou de seu destino; e, se o meu for
morrer diante dos portões de Traia, que assim seja.
No fundo do coração, Heitor sabia que sua luta era
inútil e que Troia iria cair. Por um instante, imaginou
o destino sombrio que aguardava sua esposa e seu fi-
lho, mas aquele pensamento soturno foi interrompido
pelo choro de Astíanax, que se havia assustado com o
aspecto feroz do elmo de seu pai. Rindo, Heitor tirou
o capacete, ergueu o filho nos braços e disse:
- Que um dia possam dizer a teu respeito, meu
filho: 'Esse foi um homem melhor que seu pai'.
Depois de beijar o filho, Heitor voltou a acoplar
o elmo de bronze, com o longo penacho de crina de
cavalo a bater-lhe nos ombros, e afastou-se sem olhar
para trás. Teria um longo dia pela frente.
Naquela mesma tarde, Heitor tentou novamente
resolver a guerra com um combate singular. Erguendo
a lança de bronze diante das linhas troianas, convocou
nova trégua e desafiou os inimigos a enviar seu maior
campeão para um duelo. Os gregos tiraram a sorte,
e a escolha recaiu sobre o Grande Ájax. Ele avançou
com seu famoso escudo, constituído por sete cama-
das de couro de boi e uma grossa chapa de bronze. O
príncipe de Troia e o príncipe de Salamina duelaram a

96
A Guerra de Traia

golpes de lança, sob os brados de ambos os exércitos,


enquanto o sol caía em direção ao horizonte. No iní-
cio da noite, detiveram-se, arfantes e ensanguentados:
o resultado do duelo fora um justíssimo empate. A
luta renhida havia criado um laço de respeito mútuo
entre os dois inimigos, que trocaram elogios e presen-
tes: Ájax brindou Heitor com um suntuoso boldrié de
cor púrpura, enquanto o troiano lhe deu sua espada,
uma formidável arma de bronze marchetada em ouro.
Separaram-se como amigos, embora soubessem que
no dia seguinte a guerra recomeçaria. Não desconfia-
vam que Moira determinara um papel sombrio para
os presentes que haviam garbosamente trocado.
Nos dias seguintes, a maré da batalha voltou-se
contra os gregos. Nem Diomedes nem Ájax foram ca-
pazes de deter o avanço devastador dos troianos. Aga-
mênon e Odisseu foram feridos e postos fora de com-
bate. Eneias, curado por Apolo, acompanhava Heitor à
frente da carnificina. O cerco havia se invertido: ago-
ra, eram os gregos que estavam sitiados, espremendo-
se atrás das paliçadas que se erguiam junto ao mar.
Heitor ordenou que seus arqueiros ateassem fogo às
flechas, e ele próprio lançou-se contra os portões de
madeira que protegiam o acampamento inimigo. As
toras racharam, estilhaços de madeira voaram sobre
a areia, e Heitor irrompeu em meio às tendas gregas,

97
A Guerra de Traia

seu corpo recortado contra as chamas e os olhos ne-


gros como a noite.
Os gregos fugiram, tomados de horror, enquanto o
príncipe de Traia gritava a plenos pulmões:
- Às paliçadas, troianos! Tomem as paliçadas! Quei-
mem os navios!

A ira de Aquiles

Sem suas embarcações, os gregos estariam perdidos.


Incapazes de buscar suprimentos nas regiões vizinhas,
tampouco poderiam fugir em direção ao lar. Seriam,
mais cedo ou mais tarde, exterminados.
Do acampamento dos mirmidões, Pátroclo, o que-
rido primo de Aquiles, avistou as chamas que devo-
ravam a paliçada grega. Pelo rombo que Heitor abrira
nos portões, jorravam cavaleiros e carros de guerra.
Uma chuva de flechas incendiárias envolvia as ten-
das gregas em fogo e fumaça. O fogo já se aproximava
das naves dos mirmidões. Aquiles nem sequer tentava
ocultar seu prazer perante o sofrimento dos compa-
triotas. Desesperado, Pátroclo recorreu a uma estraté-
gia que lhe custaria a vida.
- Me empreste sua armadura! - ele suplicou. - Ao
me verem, os troianos pensarão que o grande Aquiles
voltou à luta, e sairão em debandada!

98
A Guerra de Traia

A contragosto, Aquiles assentiu. Não queria rou-


bar do primo a chance de mostrar seu valor. E assim,
Pátroclo ajustou ao corpo a legendária armadura de
Aquiles, a mesma que Peleu havia recebido no dia de
seu casamento: couraça e grevas banhadas em ouro,
reluzentes como o sol refletido nas águas. O capacete
escondia seu rosto, deixando de fora apenas os olhos
e a boca. E, assim pátroclo disparou rumo ao coração
da peleja, seguido pelos mirmidões, que finalmente
receberam de Aquiles a permissão para lutar.
Vendo o brilho da armadura, os gregos sentiram o
ânimo reviver. Um grito espalhou-se: "Aquiles! Aqui-
les!". Os mirmidões rapidamente apagaram o fogo que
consumia os navios, enquanto Pátroclo se lançava na
direção de Heitor. Os gregos, antes em debandada,
seguiram-no aos brados. As forças troianas recuaram
pelos portões derruídos. Somente Heitor ousou fazer
frente à investida. O destino de Pátroclo era tombar
após ter sentido aquele gostinho de glória: o deus Apo-
lo, na forma de um nevoeiro, aproximou-se dele pelas
costas e desferiu um terrível soco entre suas omopla-
tas. O elmo voou longe, Pátroclo perdeu o fôlego, cam-
baleou - e sentiu uma estocada no ventre. Num átimo,
Heitor lhe havia atravessado a barriga com o pontia-
gudo bronze. Sentindo o frio da morte tomar conta de
seu corpo, Pátroclo disse num último suspiro:

99
A Guer ra de Tra ia

- Não comemore, Heitor! Em breve, nos encontra-


remos no Hades, pois já escuto os passos de Aquiles,
que vem te buscar...
Ao receber a funesta notícia da morte do amigo,
Aquiles tombou de joelhos no chão, jogou as cinzas da
fogueira sobre os cabelos e cravou as unhas no pesco-
ço, estrangulando um berro de dor, até sujar as mãos
com o próprio sangue. Depois do pranto, veio a ira. To-
da a admiração que Aquiles sentia por Heitor tinha se
transformado em ódio. Havia um detalhe que tornava
sua cólera ainda mais profunda: Aquiles sabia que, no
fundo, Pátroclo morrera por sua culpa. Precisava afogar
aquela mágoa num oceano de sangue. Esquecido das
antigas afrontas, reuniu os gregos e fez as pazes com
Agamênon. Enquanto isso, Tétis viajou até as profunde-
zas do Monte Vesúvio e pediu a Hefesto, o ferreiro dos
deuses, que forjasse para Aquiles uma nova armadura e
um novo escudo. Tão logo recebeu o equipamento di-
vino, Aquiles subiu em seu carro de guerra. E, envolto
num turbilhão de poeira e em brilhos de metal, o filho
de Peleu disparou em direção às tropas inimigas.
- Morram, troianos, morram! - foi seu terrível
brado de guerra. E os troianos morreram, às cente-
nas, aos milhares, esmagados sob o bárbaro ataque de
Aquiles e seus mirmidões. Bandos de troianos apavo-
rados se jogaram nas águas do Rio Escamandro, na

100
A Guerra de Traia

vã tentativa de escapar à ira de Aquiles: mas o h erói,


transformado em carniceiro, atirou-se nas águas atrás
de suas vítimas e degolou -as a todas como se fossem
cordeiros. Em seguida, disparou rumo aos portões de
Troia, deixando em seu rastro uma sangrenta estrada
de cadáveres.
Somente um troiano permanecia no campo de
batalha. Vendo a cena tétrica que se desenrolava na
planície, Heitor soube que sua hora havia chegado.
Ele era apenas um homem, e teria de enfrentar um
semideus em plena fúria. Lançou um último olhar ao
alto das muralhas, de onde Príamo e Andrômaca o ob-
servavam, paralisados de horror. Já nada havia a fazer.
Se fugisse , Heitor seria para sempre considerado um
covarde. Tentou cansar Aquiles, obrigando-o a correr
atrás dele, ao redor dos muros; mas por fim se deteve
e avançou, de espada em punho, coberto pela arma-
dura que tirara de Pátroclo. Aquiles abaixou-se atrás
do escudo de Hefesto, buscando com os olhos algum
ponto vulnerável no inimigo. Viu uma fresta entre a
couraça e o elmo, e para lá dirigiu sua azagaia, com
impulso brutal: a ponta de bronze entrou na garganta
e saiu pela nuca. Heitor tombou numa golfada de san-
gue. E seu espírito despencou vertiginosamente rumo
à Mansão dos Mortos, lamentando sua família, sua ju-
ventude perdida e a iminente queda de Troia.

101
A Guerra de Troia

Príamo e Aquiles

A ira de Aquiles ainda não fora saciada. Com o bol-


drié púrpura, que Heitor recebera de Ájax, o grego
amarrou os pés do troiano ao carro e, fustigando os
cavalos, arrastou o corpo do inimigo ao redor das mu-
ralhas três vezes seguidas. Nos dias seguintes, Aquiles
acordava cedo para arrastar o cadáver de Heitor ao re-
dor do túmulo de Pátroclo. Apolo, contudo, impediu
que o corpo do príncipe troiano se decompusesse: os
deuses sabiam que aquele homem merecia um enter-
ro digno. Certa noite, quando o acampamento grego
estava mergulhado no sono, Hermes, o arauto divino,
conduziu o rei Príamo à tenda de Aquiles. O soberano
de Troia, devastado por anos de perdas e sofrimentos,
viera implorar que lhe entregassem o corpo do filho.
De joelhos, fez uma das súplicas mais célebres nas
histórias e nas lendas antigas:
- Para que Heitor tenha o funeral que merece, fa-
rei agora o que ninguém mais suportaria fazer: vou
beijar a mão do homem que matou meu filho.
Só então Aquiles sentiu derrubar-se a muralha de
ódio, vaidade e orgulho que lhe cercava a alma. O ve-
lho Príamo lembrava-lhe a imagem de Peleu, seu ido-
so pai , que em vão esperava seu retorno na Ftia. E a
coragem daquele esquálido velhote, que viera sozinho

102
A Guerra de Traia

à tenda de seu pior inimigo, parecia-lhe mais impres-


sionante que a bravura dos guerreiros em combate.
Aquiles chamou seus criados, ordenando que o corpo
de Heitor fosse lavado e ungido com óleo. Depois, es-
coltou Príamo até o território troiano e prometeu-lhe
uma trégua de onze dias para que a cidade celebrasse
os funerais do grande Heitor.

A morte de Aquiles

A Moira havia decidido que Aquiles, o herói seme-


lhante aos deuses, logo deveria acompanhar Heitor no
mundo dos mortos. O filho de Peleu e Tétis estava
cansado daquela guerra, que lhe parecia sem sentido.
Já se arrependia da escolha que fizera anos atrás - se-
ria tarde demais para mudar de ideia e trocar a glória
letal por uma tranquila e vulgar felicidade?
Em vez de combater, ele agora preferia frequentar
o templo de Apolo Timbriano, uma singela construção
nos arrabaldes da cidade, que era considerada territó-
rio neutro. Lá, gregos e troianos às vezes se encontra-
vam, quando iam fazer preces e oferendas. Numa des-
sas ocasiões, Aquiles avistou Polixena, uma das filhas
mais novas de Príamo. Foi só então que a lembrança
de lfigênia desapareceu de sua mente. O guerreiro in-
vencível foi sobrepujado por uma paixão incontrolá-

103
A Guerra de Traia

vel pela princesa troiana. Era um amor tão avassalador


que Aquiles se dispôs a trair os companheiros. En-
viou mensagens a Príamo, garantindo que ajudaria os
troianos contra os gregos, se Polixena lhe fosse dada
em casamento. O rei de Troia concordou; mas Poli-
xena e seus irmãos odiavam Aquiles amargamente, e
aproveitaram-se daquela paixão para vingar a morte
de Heitor. Encontrando-o em segredo no templo de
Apolo, Polixena envolveu o grego em seduções e in-
diretas, até fazê-lo confessar qual era seu único ponto
vulnerável - o calcanhar. Depois, pediu que Aquiles
voltasse ao templo dali a alguns dias, sozinho e desar-
mado, para celebrar o matrimônio.
Jamais saberemos se Aquiles desconfiou de alguma
coisa. O fato é que cumpriu o desejo de sua amada.
Deífobo, irmão de Heitor e Polixena, recebeu-o junto
ao altar e lhe deu um abraço, fingindo acolhê-lo como
membro da família. Mas, naquele momento, Páris, to-
caiado atrás da estátua de Apolo, disparou uma flecha
envenenada no único ponto fraco do mais poderoso
dos gregos. Outros troianos, que estavam escondidos
atrás do altar, saltaram sobre Aquiles. Mesmo ferido e
desarmado, ele matou vários inimigos a socos. Odis-
seu, Ájax e Diomedes, que haviam seguido Aquiles,
desconfiando de sua traição, neste momento irrom-
peram no templo para defendê-lo. Mas o veneno já

104
A Guerra de Troia

se espalhara, e Aquiles soltou seu último suspiro nos


braços de Diomedes.
Logo após o funeral de Aquiles, acendeu-se uma
polêmica: quem ficaria com as armas do maior herói
grego? Decidiu-se que a honra caberia ao guerreiro
mais temido pelos troianos. Agamênon enviou espiões
às muralhas de Troia para descobrir qual inimigo des-
pertava mais temor na cidade, agora que Aquiles esta-
va morto. Os espiões voltaram com a resposta: para os
troianos, a inteligência de Odisseu era mais terrível que
a força de Ájax e Diomedes. O jovem rei de Argos levou
tudo na esportiva, mas o príncipe de Salamina sentiu-
se tão ferido em sua honra que acabou decidindo tirar
a própria vida. Retirou-se a uma região erma, apoiou a
espada no chão e jogou-se em cima da lâmina.
A espada que trespassou e matou Ájax era a mes-
ma que Heitor lhe dera de presente, meses atrás.
Após a morte de Aquiles e Ájax, os gregos começa-
ram a se desesperar. O décimo ano da guerra se apro-
ximava do fim, e nem sinal da anunciada queda de
Troia. O vidente Calcante consultou os deuses mais
uma vez, e trouxe novo vaticínio: para que Troia caís-
se, os gregos deveriam ter em seu poder as afamadas
flechas de Héracles. Só então Agamênon e seus con-
selheiros se lembraram de Filoctetes, abandonado há
anos nos desertos de Lemnos.

lOS
A Guerra de Traia

Diomedes e Odisseu foram enviados para encontrar


o guerreiro extraviado. Filoctetes, naturalmente, teve
vontade de escorraçá-los aos berros, mas o fantasma de
Héracles apareceu para ele, dizendo que sua ferida só
seria totalmente curada quando ele aceitasse ajudar os
gregos. Assim, Filoctetes embarcou rumo às praias de
Troia, com dez anos de atraso. Sua ferida, com efeito,
foi tratada e curada por Macaôn e Podalírio, filhos de
Esculápio, deus da medicina - que tinham vindo da
Tessália para se juntar às tropas gregas.
!ao logo sentiu a perna sarar, Filoctetes desafiou
Páris a um duelo de arco e flecha. páris disparou a
primeira seta, e errou; Filoctetes atirou três projéteis
na sequência, acertando o troiano na perna, no peito
e no rosto. E, assim, o maior mulherengo das lendas
e dos mitos encontrou seu fim , trespassado de setas e
fulminado pelo nefasto sangue da Hidra de Lerna -
que, anos depois de sua derrota às mãos de Héracles,
continuava fazendo vítimas entre os humanos.
Conforme os próprios habitantes de Troia haviam
previsto, a astúcia de Odisseu era mesmo a arma mais
terrível do exército invasor. Foi o rei de Ítaca quem
teve a ideia de terminar aquela guerra da forma mais
traiçoeira possível: com um presente.
Certa manhã, ao espiarem do alto das muralhas, as
sentinelas troianas encontraram as praias vazias, co-

106
A Guerra de Traia

bertas por ruínas fumegantes. Os gregos haviam quei-


mado o próprio acampamento. Todos os navios tinham
zarpado. Sobre as dunas, havia apenas um gigantesco
cavalo de madeira. Guardas troianos aprisionaram um
marujo grego extraviado, que andava vagando pelos
restos do acampamento. O homem, chamado Sínon,
afirmou ser um desertor do exército de Agamênon.
- Os gregos estavam cansados de guerra e vol-
taram a suas casas - disse o prisioneiro sob inter-
rogatório. - Deixaram este cavalo de madeira como
oferenda a Atena, cujo apoio eles haviam perdido. O
vidente Calcante anunciou que, se essa estátua fosse
levada para o interior de Troia, o rei Príamo acabaria
por derrotar os gregos. Por isso, a estátua fora cons-
truída de tal forma que não pudesse ser transportada
pelos portões da cidade.
Tudo, naturalmente, não passava de uma armadi-
lha. Príamo e seus conselheiros ficaram convencidos
de que os gregos não queriam que o cavalo entrasse em
Troia; por isso, naquele mesmo dia, derrubaram parte
dos portões para fazer passar a enorme estátua. Tiveram
o cuidado de reparar, logo em seguida, a porção derru-
bada da muralha; mas, naquela mesma noite, quando
toda a população dormia após horas de festejos, Sinon,
que apenas fingira ser um desertor, abriu um alçapão
secreto no ventre do cavalo. Os guerreiros ali escondi-

107
A Guerra de Traia

dos correram em silêncio pelas ruas adormecidas, abri-


ram os portões e deixaram entrar todo o exército grego
- que estivera oculto na Ilha de Tênedos e voltara às
praias troianas em chalupas após o crepúsculo.
Nas ruas enluaradas, o exército grego foi de casa em
casa, passando os troianos pelo fio da espada e incen-
diando as torres e palácios. Os gritos das vítimas logo
se misturaram ao crepitar das labaredas e ao estrondo
dos telhados que desabavam. Príamo foi massacrado,
com grande parte de seus filhos, no pátio do templo
de Zeus. Cassandra refugiou-se no templo de Atena,
mas o Pequeno Ájax a perseguiu sem piedade, e alguns
dizem que ele a violentou ali mesmo, sobre o altar da
deusa. Menelau finalmente reencontrou Helena, e es-
tava prestes a degolá-la por sua mortífera infidelidade
quando a filha de Leda abriu o vestido, mostrando-lhe
seus mitológicos seios. Helena já tinha quase SO anos
à época, mas as gotas de icor em suas veias lhe con-
servavam o frescor de eterna adolescente. Menelau foi
incapaz de destruir tanta beleza e levou-a de volta a
Esparta, onde Helena remoeu remorsos, lembranças e
saudade até o fim de seus dias.
No caminho de volta para casa, muitos gregos pe-
receram - entre eles, o Pequeno Ájax. Embora odiasse
os troianos, Atena ficara enojada com o estupro de
Cassandra em seu altar. Quando o navio do Pequeno

108
A Guerra de Traia

Ájax se aproximava da Lócrida, ela jogou sobre ele


uma tremenda tempestade. O navio afundou , mas
Ájax, que era exímio nadador, conseguiu salvar-se
com vigorosas braçadas. Escalou um penhasco que se
erguia entre as ondas e, lá do alto, gritou:
- Nem mesmo os deuses podem me matar!
Irritado com aquela arrogância, Posêidon ergueu-
se do fundo do mar e destroçou o Pequeno Ájax com
um golpe de tridente.
Outros líderes encontraram a morte a esperá-los
em sua casa. Foi o que aconteceu com o maior ven-
cedor daquela guerra. Agamênon retornou a Micenas
levando Cassandra, filha de Príamo, como concubina.
Mas sua esposa, Clitemnestra, jamais lhe perdoara o
sacrifício de Ifigênia. Com a ajuda de um amante, cha-
mado Egisto, a rainha tramou o assassinato do esposo.
Durante um banquete, Agamênon foi envenenado e
esfaqueado até a morte. Electra e Orestes, filhos do
casal, eram pequenos demais quando a irmã Ifigênia
fora morta e mal se lembravam dela. Por isso, fica -
ram horrorizados com o assassinato do pai. A tragédia
completou -se quando Orestes e Electra resolveram
vingar a morte de Agamênon, encurralando e matan-
do Egisto e Clitemnestra. A terrível história da família
de Agamênon é um dos temas das peças de Ésquilo e
Eurípides, dois dos maiores escritores gregos.

109
A Guerra de Traia

Enquanto todas essas coisas aconteciam na Grécia,


as ondas do mar continuavam a estourar nas praias da
Trôade. As ruínas fumegantes de Troia foram pouco a
pouco engolidas pelas areias. As ninfas do Monte Ida
desapareceram nos bosques, levando consigo a lem-
brança de Páris. Os túmulos de Aquiles, Pátroclo, Hei-
tor e tantos outros personagens, que haviam amado e
odiado ao redor das muralhas de Ílion, perderam-se
em meio às colinas e florestas . Outras gerações vieram
e passaram, e tudo o que restou de Troia - e daqueles
que a protegeram ou destruíram - foi o mito.
Os desígnios de Moira haviam-se cumprido. E ago-
ra a humanidade tinha muitas histórias para contar.

110
Capítulo 5

Os Argonautas

A praga, a fome e a carestia estavam devastando a ci-


dade de Orcômenos, na Beócia (uma região no centro
da Grécia atual ). Em uma sala escura no palácio real,
o soberano Atamas chorava pelo sofrimento de seus
súditos - e pelo ato terrível que teria de cometer para
salvá-los. O Oráculo de Delfos assim havia determina-
do: os campos de Orcômenos só voltariam a florescer
quando o rei sacrificasse os próprios filhos , o príncipe
Frixo e a princesa Hele.
A razão de estado prevaleceu sobre os afetos pater-
nos, e Atamas ordenou que os dois irmãos fossem de-
golados no centro da acrópole. Enquanto Frixo e Hele
avançavam resignados ao local da execução, uma nuvem
começou a aproximar-se rapidamente da Terra. Não se
tratava de simples fenômeno meteorológico: era a divi-
na Nefele, mãe de Frixo e Hele, que vinha ajudá-los.
Assim como havia ninfas dos rios , das florestas e
das montanhas, também havia ninfas das nuvens - e
Nefele era uma delas. Naqueles tempos, aliás, o céu
era habitado por uma ampla variedade de criaturas vo-

III
Os Araonautas

adoras. Nefele desfrutava a amizade do famoso Carnei-


ro Dourado. Filho de posêidon e da mortal Teofane, o
animal tinha lãs de ouro, era inteligente como um ser
humano e capaz de voar como um pássaro.
Precipitando-se em direção à Terra, Nefele pediu
ajuda a seu amigo voador. Num momento de confu-
são, Frixo e Hele foram envolvidos por um súbito ne-
voeiro. Em meio aos rolos de vapor, surgiu a figura
fulgurante do Carneiro. Com voz humana, ele orde-
nou aos irmãos que montassem em seu dorso. Segun-
dos depois, Frixo e Hele cruzavam o céu, agarrados à
lã dourada. Lá embaixo, terras e mares sucediam-se
loucamente, e o voo do divino animal os arrebatava
para longe da Grécia. Encantada por aquela visão, Hele
inclinou-se demais, perdeu o equilíbrio e despencou
pelos ares. A princesa tombou e afundou nas águas de
um estreito entre o Mar Negro e o Mar Egeu. E o local
passou a ser conhecido como Helesponto, ou Mar de
Hele (hoje o nome é do estreito é "Dardanelos" ).
Frixo derramou lágrimas impotentes. Nada havia
que pudesse fazer para salvar a irmã. Agora, ele avis-
tava uma cordilheira. Eram os picos do Cáucaso, no
limite entre a Europa e a Ásia. E o Carneiro pousou.
Exausto, o fantástico animal soltou o último suspi-
ro. Mas seu espírito disparou rumo às alturas, e subiu
e subiu até ultrapassar as nuvens e chegar às estrelas,

112
Os Argonautas

onde está até hoje - o Carneiro do Zodíaco. Já sua lã


dourada ficou aqui embaixo - com ela, Frixo confec-
cionou o Velocino de Ouro.
O objeto tornou-se motivo de cobiça. Seus donos ,
anos mais tarde, decidiram protejer o Velocino dos
ladrões pendurando-o a um carvalho. E colocaram ao
seu lado, de guarda, um dragão que nunca dormia.

Jasão e Pélias

O homem destinado a roubar o Velocino era Jasão, fi-


lho de Éson, rei da cidade de lolcos, na Tessália. Quan-
do Jasão era ainda criança, Éson foi destronado pelo ir-
mão, Pélias. O usurpador trancafiou o rei no calabouço
e enviou soldados para capturar o bebê. Mas Alcimede,
mãe de Jasão, conseguiu enviar o filho, em segredo,
para fora da cidade. O príncipe sem reino foi entre-
gue ao centauro Quíron, que o educou no costumeiro
currículo dos heróis gregos. Adulto, Jasão partiu rumo
à terra natal, decidido a reaver o trono do pai. Ele era
agora um formidável rapaz, alto e de cabelos compri-
dos. Gostava de se vestir com uma pele de leopardo e
andava sempre armado com duas espadas.
Chegando a lolcos, o príncipe destronado não se
preocupou em esconder a própria identidade. Foi apre-
sentar-se ao tio e, com as mãos pousadas, cada uma em

113
Os Argonautas

uma espada, exigiu a coroa. Pélias não queria matar um


parente - pois poderia incorrer na vingança das Erí-
nias, que punem todos aqueles que vertem o sangue da
própria família. Recorreu, portanto, a um estratagema.
- Eu lhe entregarei o trono - disse - se você viajar
até a Cólquida e me trouxer o Velocino de Ouro.
Jasão tamborilou os dedos sobre o cabo de uma das
espadas. Hesitou por um breve instante. Então disse:
- Você terá o Velocino. E eu terei lolcos.
E foi embora. Em seguida, Jasão enviou emissários
a todas as cortes da Grécia, convocando voluntários
para aquela missão. A fama do Velocino de Ouro e a
perspectiva de gloriosas aventuras atraíram alguns dos
maiores heróis da época. O primeiro a atender a seu
chamado foi Argus, um célebre construtor naval. Ele
projetou o maior navio dos tempos mitológicos: uma
galera com cinquenta remos - batizada de Argo , em
honra ao seu construtor. E cinquenta guerreiros foram
escolhidos para tripular o navio - dali por diante co-
nhecidos como Argonautas.
O grande Héracles fez uma pausa em seus Doze
Trabalhos, trazendo consigo Hilas, seu filho com a
ninfa Melite. Cástor e Pólux, irmãos de Helena, foram
os representantes de Esparta. De Atenas, vieram Zetes
e Calais - marinheiros alados, filhos da princesa Orítia
e de Bóreas, o tormentoso Vento Norte. Do pai, haviam

114
Os Argonautas

herdado as asas majestosas e rápidas. Outro Argo;J.auta


célebre foi Orfeu, o maior poeta e músico dos mitos
gregos. Seu talento era sublime: quando dedilhava sua
harpa na solidão das florestas , as árvores moviam-se
lentamente em suas raízes, ao ritmo da música, e os
animais selvagens vinham deitar-se a seus pés.
Havia outros nomes célebres a bordo: o príncipe
Meléagro, da Calidônia, que, anos depois, reencontra-
ria Héracles no Hades; Nestor, rei de Pilos; Eufemo,
timoneiro do Argo, que por ser filho de Posêidon ca-
minhava sobre as águas; os irmãos Peleu e Telamon,
que teriam filhos famosos - Peleu é o pai de Aquiles e
Telamon, do Grande Ájax. Era a maior aventura marí-
tima que o mundo já vira.
Tão logo haviam partido, os Argonautas depararam
com um dilema dos mais graves para um grupo de via-
jantes: nenhum deles sabia exatamente onde se situava
o destino. Para os gregos, a Cólquida era um desses
lugares tão remotos que sua localização se perdia nas
fronteiras da fábula. Uma coisa, no entanto, era certa
- para chegar lá, precisavam atravessar o Mar Egeu.
Conduzido pelo exímio timoneiro Eufemo, o barco en-
veredou por aquele labirinto de águas e ilhas. Depois
de várias semanas de viagem, fizeram uma parada em
Quios. Os tripulantes desceram rapidamente, ávidos
em busca de caça e água fresca. Acompanhado por Hi-

l1S
Os Argonautas

las, Hérades embrenhou-se nos bosques - procurava


uma árvore para esculpir um remo condizente com a
força de seus braços. Escutando o rumorejar de um
riacho, o rapaz separou-se do pai. Avançou pela flores-
ta, em busca daquela música de águas correntes, até o
cair da noite. Finalmente, ajoelhou-se à beira do arroio
e molhou o rosto na concha da mão - sem perceber
que, logo abaixo da superfície das águas, o luar dese-
nhava tênues rostos femininos. De súbito, Hilas sentiu
que muitas mãos frias e suaves o prendiam em um
abraço irresistível - eram as náiades, ninfas das águas,
que haviam se apaixonado pelo belo filho de Héraeles.
Incapaz de resistir, o rapaz deslizou para o fundo do
rio, acariciado pelos dedos gélidos da correnteza.
Percebendo a ausência do filho, Héraeles começou
a procurá-lo, com crescente desespero. Encontrou, à
beira do riacho, alguns potes vazios. Inconformado,
continuou a andar pelos bosques, gritando o nome
de Hilas - mas o jovem estava preso para sempre no
possessivo abraço das náiades. Os dias se passaram. O
Argos estava pronto para zarpar. Jasão esperou o má-
ximo que pôde - mas finalmente percebeu que Héra-
eles não voltaria. E assim a expedição partiu, deixando
para trás seu mais poderoso tripulante.
Depois de Quios, os Argonautas deram voltas e
mais voltas pelas águas - sua navegação completa é

116
Os Argonautas

narrada no poema Argonáutica, de Apolônio de Rodes.


Uma das paradas mais importantes foi a da Ilha de
Salmidesso, no Mar Negro. Lá vivia, solitário e esfo-
meado, um adivinho chamado Fineu - que certa vez
havia enfurecido Zeus com a atrevida precisão de su-
as adivinhações. Achando que Fineu já havia revelado
muitos planos divinos aos mortais, o senhor do Olim-
po o amaldiçoou com a cegueira e o jogou naquela
ilha deserta - onde o desditado adivinho era cons-
tantemente atormentado pelas Harpias. Sempre que
Fineu conseguia juntar, às apalpadelas, algumas frutas
ou nozes para comer, gritos esganiçados rasgavam o
céu, e lá do alto desciam aquelas duas criaturas hor-
rendas, que misturavam no mesmo corpo a cabeça de
mulher com as asas e garras de pássaro.
As Harpias arrancavam a comida às fracas mãos de
Fineu, que era obrigado a alimentar-se de migalhas.
O adivinho amaldiçoado implorou ajuda ao grupo
de viajantes. Jasão conferenciou com Zetes e Calais, e
depois ordenou que os tripulantes preparassem uma
fogueira para assar carnes. Quando o cheiro de comida
começou a se espalhar, duas sombras se precipitaram
das nuvens e vieram em voo rasante atacar o banque-
te. Nisso, os filhos do Vento Norte sacaram as espadas
e abriram as asas. Lâminas de bronze engancharam-
se nas ferozes garras, e penas ensanguentadas caíram.

117
Os Argonautas

Por fim , as Harpias debandaram. Zetes e Calais as per-


seguiram até que os monstros tombaram exaustos no
mar, de onde jamais emergiriam.
Depois de se fartar da primeira refeição completa
em muitos anos, o esquálido e agradecido Fineu re-
compensou Jasão com a mais preciosa das informa-
ções: a localização da Cólquida. Após explicar o cami-
nho, o adivinho deu um conselho de que o coman-
dante dos Argonautas não esqueceria:
- Quando chegar lá, confie em Afrodite.

Medeia e Jasão

Desde menina, a princesa Medeia, filha do rei Aetes,


costumava andar sozinha pelos tenebrosos bosques
da Cólquida. A neta do Sol amava as sombras. Sem
medo de monstros ou fantasmas, ela embrenhava-se
nos recantos mais obscuros e selvagens colhendo raí-
zes e ervas - para suas poções e feitiços, pois Medeia
era sacerdotisa de Hécate, a terrível deusa das bruxas.
Com a ajuda de sua infernal protetora, a princesa da
Cólquida podia conversar com os animais, invocar ou
repelir tempestades, acalmar ou enfurecer os mares.
Certo dia, Medeia avistou uma potente embarcação
aportando nas praias da Cólquida. Uma tropa de gar-
bosos guerreiros desceu do navio e dirigiu -se ao pa-

118
Os Argonautas

lácio, pedindo uma audiência com o rei. À frente dos


estrangeiros, avançava um homem de longas melenas
negras, com duas espadas no cinto e coberto por uma
pele de leopardo. Naquele momento, um desconhe-
cido feitiço dominou a feiticeira. Afrodite, a deusa do
amor, jogou seus laços irresistíveis sobre o espírito da
princesa bruxa. Medeia correu para longe, assustada:
ela, que sempre fora tão poderosa, via-se agora à mer-
cê de algo que não podia controlar. Nos dias seguintes,
esgueirando-se pelos cantos escuros do palácio, trocou
olhares com o estrangeiro em pele de leopardo. Mal
prestou atenção ao alvoroço que dominava a corte. O
herói forasteiro havia pedido algo ao rei Aetes. Medeia
notou a fúria no rosto do pai, mas não conseguiu ou-
vir sua indignada resposta. Tinha os olhos e os senti-
dos fixos naquele grego que atravessara os perigos do
mar e se apresentava como jasão, filho de Éson.
O herói percebeu os olhares de Medeia e recordou
as palavras de Fineu. Certo dia, jasão a seguiu até um
bosque escuro, onde estava o altar de Hécate.
Na silenciosa clareira, atirou-se aos pés da princesa
e implorou sua ajuda. Aetes, naturalmente, recusara-
se a ceder. Sem o Velocino, jasão voltaria em desgraça
à terra natal. Não poderia viver com aquela vergonha,
seria melhor matar-se, ali mesmo, com uma de suas
espadas ... Comovida, Medeia avançou, abraçou-o, bei-

119
Os Argonautas

jou-o, deixou cair a túnica que a cobria. Em meio aos


altos pinheiros, entregou-se ao forasteiro que vinha
roubar o tesouro de seu pai. Depois, diante do altar de
Hécate, decidiu trair a própria família e ajudar Jasão.
- Mas, antes, você deve jurar que me amará para
sempre - ela disse. E, agora, não havia doçura em sua
voz, apenas a sombra de uma ameaça.
Jasão estendeu os dedos para tocar a pedra do altar.
- Por Hécate, eu juro.

De volta à Grécia

Foi pelos sortilégios de Medeia, e não pela força dos


Argonautas, que Jasão conseguiu arrebatar o Velocino
de Ouro. A sacerdotisa de Hécate entregou ao herói um
frasco negro, contendo uma poção mágica, feita com as
águas do Letes, um dos rios que correm no Hades.
- Com algumas gotas desse filtro - disse Medeia -
você pode acalmar as ondas, atenuar os ventos de um
furacão e fazer adormecer a mais alerta das criaturas.
Em seguida, Medeia levou seu amante até um jardim
oculto por muralhas. Lá, o dragão permanecia de olhos
sempre abertos. Jasão aproximou-se; o animal ergueu a
cabeça; e o herói respingou a poção de Medeia sobre o
seu focinho. Pela primeira vez, a fera adormeceu.
Meses depois, a expedição dos Argonautas retorna-

120
Os Argonautas

va às praias da Grécia. Jasão trazia não apenas o legen-


dário artefato, mas também a bela e misteriosa prin-
cesa da Cólquida. Mesmo assim, Pélias recusou-se a
ceder o trono - na verdade, nem sequer permitiu que
Jasão entrasse em 10Icos. Numa barulhenta assembleia,
os Argonautas se dispuseram a invadir a cidade. Mais
uma vez, contudo, foi Medeia quem salvou Jasão.
- Se houver guerra, muitos irão morrer - ela dis-
se. - Deixem que eu vá a lolcos, e resolverei tudo isso
com uma única morte.
No dia seguinte, Medeia apresentou-se às portas
de lolcos. Disse ter abandonado Jasão e ofereceu-se
para ajudar Pélias. O rei usurpador estava já velho e
encarquilhado - sabia que jamais poderia vencer seu
adversário em um duelo. Medeia reuniu as filhas de
Pélias e fez uma demonstração de seus poderes má-
gicos: degolou um carneiro velho, desmembrou-o e
jogou os pedaços dentro de um caldeirão com ervas e
raízes. De lá, emergiu um imaculado cordeirinho.
Ante os olhares assombrados das princesas, Medeia
garantiu que podia também rejuvenescer o velho rei.
- Para isso - ela acrescentou - vocês precisam fa-
zer com ele o mesmo que fiz àquele carneiro.
As filhas de Pélias caíram na armadilha: degola-
ram o próprio pai enquanto ele dormia, cortaram-no
em pedaços e o levaram ao caldeirão de Medeia. Mas

121
Os Argonautas

a feiticeira não colocou no caldo borbulhante os in-


gredientes corretos - Pélias continuou morto, e suas
filhas enlouqueceram de culpa.
Medeia voltou sorrindo ao acampamento. As notÍ-
cias de sua pérfida proeza já haviam se espalhado. Os
Argonautas agora a olhavam de soslaio. E Jasão sentia
mais medo que afeto por aquela que tanto o ajudara.
O povo de lolcos, horrorizado com o assassinato de
Pélias, recusou-se a receber Jasão na cidade.
Os Argonautas se dispersaram - e Jasão foi embora
com Medeia, para nunca mais voltar ali.

A vingança de Medeia

Nos recessos de sua alma, Jasão cu lpava Medeia pe-


la perda do trono. A princesa bruxa, contudo, jamais
sentiu remorso. No código das bruxas, as coisas eram
simples: Hécate as livrava de qualquer peso na cons-
ciência. Para Medeia, o remorso e as recriminações de
seu marido eram pura hipocrisia.
Depois de perambular pela Grécia, o casal se refu··
giou em Corinto, cujo rei, Creonte, era amigo de Jasão.
Lá, ele e Medeia tiveram dois filhos , Mêrmeros e Feres.
Apesar disso, Medeia percebeu que o marido se tor-
nava cada vez mais distante. Agora, ele a tratava como
um fardo - o vestígio de um passado que ele preferia

122
Os Argonautas

esquecer. Na corte de Creonte, todos a olhavam com


desconfiança. Para eles, a bruxa da Cólquida era uma
criatura sombria e de mau agouro. Um dia, o inevitá-
vel aconteceu. Na penumbra do quarto, Medeia ouviu
de seu amado e ingrato Jasão as terríveis palavras:
- Você precisa ir embora.
Creonte havia oferecido a mão de sua filha , Creúsa,
ao príncipe destronado de lolcos. Mas impusera uma
condição: Medeia tinha de partir. A feiticeira ouviu tu-
do em silêncio. Quando falou, sua voz era calma e fria
como o vento que sopra à meia-noite. Relembrou tudo
o que havia feito por Jasão: a ele entregara sua virgin-
dade; por ele, abandonara seu país e renegara sua famí-
lia. Se não fosse por ela, Jasão não seria ninguém.
- Não foi você quem me ajudou - o herói respon-
deu bruscamente, lembrando as palavras de Fineu. -
É a Afrodite que devo agradecer.
Ante aquela réplica, Medeia se calou. E assentiu, em
silêncio. Jasão se surpreendeu: a inflexível Medeia ha-
via cedido. A feiticeira parecia realmente conformada
com seu destino - chegou mesmo a oferecer à prince-
sa Creúsa um maravilhoso vestido para o casamento.
No dia da cerimônia, Creúsa entrou no templo
usando a veste que Medeia lhe dera. Estava linda - e,
com os olhos fixos nela, Jasão sonhou com um futuro
tranquilo, após uma vida de desejos frustrados . Mas

123
Os Argonautas

não chegou a tocar em sua noiva. Um esgar de pânico


distorceu as belas feições de Creúsa. O tecido de sua
túnica se converteu em línguas de fogo.
Perante os olhos de Jasão, a princesa se transfor-
mou numa chama viva, uma chama que gritava en-
quanto sua beleza se desfazia em cinzas. Empunhando
suas duas espadas, Jasão correu à antiga morada.
Lágrimas de ódio lhe escorriam pelo rosto. Queria
matar Medeia, sim, apagá-la da face da terra - mas, ao
mesmo tempo, recordava aquele entardecer no bosque
de Hécate, e o corpo nu da princesa da Cólquida sobre
a relva. Lembrava também a noite em que haviam fu-
gido, a bordo do Argo, com o luminoso Velocino nas
mãos - ele e Medeia triunfantes, apaixonados. Tudo
aquilo parecia ter acontecido havia muito tempo, ha-
via séculos ou milênios ...
A porta da casa se abre. Jasão estaca, incapaz de se
mover. O que vê está além dos pesadelos mais sádicos.
Os olhos de Medeia ressaltam em um rosto ensan-
guentado. Uma gargalhada sacode a feiticeira. E suas
mãos vermelhas seguram o corpo dos filhos. Feridas
horrendas rasgam suas carnes. A mãe ri; ri sem loucu-
ra, ri no gozo da vingança. Jasão cai de joelhos, defini-
tivamente derrotado por aquela que mais o amou.
Um clarão o ofusca. Hélios, o deus do Sol, enviou
sua carruagem, puxada por serpentes, para resgatar

124
Os Argonautas

sua neta Medeia. Antes que os soldados de Creonte


a alcancem, a feiticeira sobe ao carro dourado com o
corpo dos filhos nos braços. As serpentes solares si-
bilam, e Jasão vê o rosto de Medeia pela última vez,
enquanto ela sobe vertiginosamente ao céu.
Com seu passado destruído, Jasão tampouco tem
um futuro. Hécate, a deusa das sombras, não esquece
juras quebradas. Por ter repudiado Medeia, o herói é
amaldiçoado pela senhora das feiticeiras. E vaga pela
Grécia, sem que ninguém ouse acolhê-lo - solitário,
esquecido e miserável.
Um dia, chega a uma praia e reconhece as ruínas
de um navio ali ancorado.
- Meu último amigo - pensa amargamente, reco-
nhecendo a proa do Argos.
À sombra da embarcação, que o conduziu à glória
e à infelicidade, Jasão se deita e mergulha num sono
sem sonhos. Somente assim consegue escapar de sua
miséria. Algum deus deve ter se apiedado de seu so-
frimento: a madeira apodrecida se rompe, e a popa do
navio tomba sobre seu antigo comandante.
Jasão morre dormindo. E seu espírito acorda no
Hades, onde tudo é esquecimento.

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Bibliografia

Clássica

ApOLODORO, Biblioteca Mitológica


HIGINO, Fábulas
HOMERO, A llíada
HOMERO, A Odisseia
OVÍDIO, As Metamorfoses
ÉSQUlLO, A Oréstia
SÓFOCLES, Ájax
SÓFOCLES, Filoctetes
EU RÍPIDES, Ijigênia em Áulis
EURÍPIDES, Medeia
ApOLÔNIO DE RODES, Argol1áutica
VIRGÍLIO, A Eneida

Moderna

BRANDÃO, junito de Souza; Mitologia Grega.


Volumes 1, 2 e 3. Editora Vozes, Petrópolis. 1997.
CALASSO, Roberto; As Núpcia s de Cadmo e Harm onia.
Companhia das Letras, São Paulo. 1996.
GRAVES, Robert; Greeks Myths. Volumes 1 e 2.
Penguin Books, Inc. Londres. 1990.
°
MORENO, Cláudio; Traia: Romance de uma Guerra.
LPM , Porto Alegre. 2004.
Sobre o autor

Gaúcho de Bagé, José Francisco Botelho formou-se em


Comunicação Social na PUC-RS e é mestre em Letras
pela UFRGS. Nasceu em 1980 e publica textos na im-
prensa desde 2001. Foi editor da revista Amanhã, em
Porto Alegre, e escreveu para outros tantos veículos,
como Superinteressante, Aventuras na História e Vida Sim-
ples - na qual assinou a coluna Filosofia, entre 2010 e
2011. Na Itália, foi publicado pela revista Focus Storia.
Sua coletânea de contos, A Árvore que Falava Aramaico,
será lançada em setembro de 2011. Mas sua obra-prima
veio ao mundo há quatro meses e se chama Eleonora.
EDITORA.Abril
Fundador: VICTOR CIVITA
(1907-1990)
Editor: Roberto Civita
Presidente Executivo: Jairo Mendes Leal
Conselho Editorial: Roberto Civita (Presidente),
Thomaz Souto Corrêa (Vice-Presidente),
Giancarlo Civita, Jairo Mendes Leal, Roberto Guzzo

Diretora Superintendente: Brenda Fucuta


Diretora de Núcleo: Alda Palma

Diretor de Redação: Sérgio Gwercman


Diretora de Arte: Alessandra Kalko, Editora de Arte: Renata
Steffen , Designe rs: Gabriel Gianordoli eJorge Oliveira
Editor: Alexandre Vers ignassi

Colaboraram nesta obra:


Joan a Amador (ed ição de arte)
Anderson C. S. de Faria (a rte )
Kako (ilustração de capa)
Marina de Souza e Selma Corrêa (revisão)

COLEÇÃO MITOLOGIA, LIVRO 2: HERÓIS


ISBN : 978-85-364-1133-0
é um a publicação da Editora Abril S.A ., distribuída em
todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de
Publicações, São Paulo. COLEÇÃO MITOLOGIA, LIVRO 2:
HERÓIS não admite publicidade redacional.

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