Fabio Medina Osorio. Retroatividade Da Lei 14230

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RETROATIVIDADE DA NOVA LEI DE IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA

FÁBIO MEDINA OSÓRIO, advogado, sócio do Medina


Osório Advogados, Doutor em Direito Administrativo
pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em
Direito Público pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Ex Ministro da AGU. Presidente da
Comissão Nacional de Direito Administrativo
Sancionador da OAB.

I. SOBRE O PAPEL DA OAB NO COMBATE AO


ARBÍTRIO

Inicialmente, agradeço aos colegas Presidente Felipe Santa


Cruz, José Alberto Simonetti, Anderson Prezia, pela oportunidade de
colaborar na Presidência da Comissão Nacional de Direito Administrativo
Sancionador da OAB, onde tenho podido trocar ideias e reflexões da maior
importância com os colegas de todo o Brasil sobre direito administrativo
sancionador.

A OAB, na gestão do Presidente Felipe Santa Cruz, e por


consequência também esta foi a tônica dos seminários que nortearam
nossa Comissão, foi pautada pela luta contra o arbítrio.
Trago estas presentes reflexões como Presidente da Comissão
de Direito Administrativo Sancionador da OAB Nacional e doutrinador da
matéria, para debatermos o alcance da Nova Lei de Improbidade
Administrativa no Brasil, notadamente quanto aos seus efeitos retroativos.

II. SOBRE OS TIPOS SANCIONADORES


REVOGADOS: CONSIDERAÇÕES GERAIS

1. No dia 25 de outubro do corrente ano foi publicada a


Lei Federal nº 14.230/2021, que promoveu profundas alterações na Lei
8.429/1992, tendo havido expressa revogação da improbidade
culposa, nos seguintes termos:

Art. 2º A Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, passa a vigorar


com as seguintes alterações:
"Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de improbidade
administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no
exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do
patrimônio público e social, nos termos desta Lei.

Parágrafo único. (Revogado).

§ 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as


condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei,
ressalvados tipos previstos em leis especiais.
§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de
alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei,
não bastando a voluntariedade do agente.
No art.10º da Lei de Improbidade anteriormente vigente havia
múltiplas modalidades de comportamentos lesivos ao erário que
comportavam modalidades culposas. Tais condutas típicas estão
revogadas.

Assim, todos os tipos que contemplavam modalidades culposas


e que foram objeto de ações civis públicas punitivas devem ser atingidos
por ações rescisórias ou pedidos de julgamento antecipado da lide, por
superveniência de lei que decretou falta de tipicidade do fato
(impossibilidade jurídica do pedido). Por certo, deve-se observar o prazo
legal da rescisória.

A nova Lei consigna, ainda, no novo § 8º, do art.2º, que “não


configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência
interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada,
mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões
dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário."

Houve, lamentavelmente, muitas condenações envolvendo atos


administrativos alicerçados em pareceres jurídicos. Não raro, o gestor
praticava um ato de boa fé, fundamentado em jurisprudência, doutrina, leis
e pareceres jurídicos, mas por azar discrepando do entendimento do
Ministério Público. Em tais hipóteses, poderia ocorrer – e de fato ocorreu
– condenação por improbidade administrativa. Tais condenações, pela
nova Lei, devem ser revistas, seja nos processos em curso, seja através
de ações rescisórias.

Trata-se de um novo elemento de figura típica, que interfere


retroativamente nas normas produzidas pelos intérpretes, dada a opção
expressa do Legislador pelo elemento cultural associado ao conceito de
improbidade. Sustento, aliás, desde 2006, que “a violação de normas
controvertidas, nas quais se discute abertamente a própria legalidade da
atuação do agente público, não poderia, a priori, desembocar em um
julgamento de grave desonestidade funcional. A lógica do razoável e da
racionalidade congrega vetores da maior importância na configuração do
suporte fático e normativo da grave desonestidade funcional. Por isso,
surge a relevância da roupagem juridicamente razoável da conduta
apontada como ilícita. Se o sujeito está a respaldar sua conduta em
normas altamente controversas e discutidas na via judicial, não se pode
pretender censura-lo pela incidência de tipos de improbidade. É claro que
tratamos de discussões e controvérsias idôneas, não de mero ajuizamento
de demandas temerárias ou desprovidas de plausibilidade (...). Não se
pode ignorar que as normas culturais produzem efeitos na redução da
proteção de determinados direitos fundamentais”.

Repito, pois, que condenações de gestores que decidiram


baseados em pareceres jurídicos fundamentados, lastreados em
jurisprudência, doutrina, leis, devem ser imediatamente revisitadas. Tais
fatos tornaram-se atípicos. A tipicidade, aqui, deve ser vista como uma
norma sancionadora em branco. Esse novo elemento normativo interfere
em todas as normas da Lei de Improbidade Administrativa, na
configuração do elemento subjetivo.

De resto, tipos sancionadores suprimidos tornam, por si só,


atípicas as respectivas condutas.

Revogou-se, nesse contexto, expressamente, o inciso II do


artigo 11 (além de limitar a incidência da cabeça do dispositivo),
trazendo, também, nova redação ao inciso III, nos seguintes termos:
revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições
e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por
informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da
sociedade e do Estado.
2. Com efeito, na nova redação dada ao artigo 11, as
condutas possíveis de enquadramento típico agora são numerus
clausus, não mais se tratando os incisos de meras exemplificações de
condutas ímprobas definidas no caput, pois suprimida a conjunção
aditiva “e” e substituído o termo “notadamente”, da anterior redação,
por “caracterizada por uma das seguintes condutas”, o que significa
não haver mais um somatório da definição do caput com os exemplos dos
incisos.

3. Vejamos:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que


atenta contra os princípios da administração pública a ação
ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de
imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma
das seguintes condutas: (Redação dada pela Lei nº
14.230, de 2021)

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento


ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

I - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 14.230, de


2021)

II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de


ofício;

II - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 14.230, de


2021)
III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em
razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em


razão das atribuições e que deva permanecer em segredo,
propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou
colocando em risco a segurança da sociedade e do
Estado; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

IV - negar publicidade aos atos oficiais;

IV - negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de


sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e
do Estado ou de outras hipóteses instituídas em
lei; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

V - frustrar a licitude de concurso público;

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter


concorrencial de concurso público, de chamamento ou de
procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício
próprio, direto ou indireto, ou de terceiros; (Redação
dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-


lo;

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a


fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com
vistas a ocultar irregularidades; (Redação dada pela
Lei nº 14.230, de 2021)
VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de
terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de
medida política ou econômica capaz de afetar o preço de
mercadoria, bem ou serviço.

VIII - descumprir as normas relativas à celebração,


fiscalização e aprovação de contas de parcerias firmadas
pela administração pública com entidades privadas. (Vide
Medida Provisória nº 2.088-35, de 2000) (Redação
dada pela Lei nº 13.019, de 2014) (Vigência)

IX - deixar de cumprir a exigência de requisitos de


acessibilidade previstos na legislação. (Incluído pela
Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

IX - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 14.230, de


2021)

X - transferir recurso a entidade privada, em razão da


prestação de serviços na área de saúde sem a prévia
celebração de contrato, convênio ou instrumento
congênere, nos termos do parágrafo único do art. 24 da
Lei nº 8.080, de 19 de setembro de
1990. (Incluído pela Lei nº 13.650, de 2018)

X - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 14.230, de


2021)

XI - nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha


reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da
mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção,
chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em
comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada
na administração pública direta e indireta em qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, compreendido o ajuste mediante designações
recíprocas; (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

XII - praticar, no âmbito da administração pública e com


recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o
disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de
forma a promover inequívoco enaltecimento do agente
público e personalização de atos, de programas, de obras,
de serviços ou de campanhas dos órgãos
públicos. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

4. Logo, não mais resta caracterizado como ato de


improbidade administrativa a conduta de retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício, anteriormente prevista no inciso II do artigo
11 da Lei 8.429/1992, além de limitarem-se às hipóteses expressas
contidas nos incisos remanescentes, não subsistindo a incidência
isolada do caput. Em relação ao inciso III do aludido dispositivo legal,
adicionou-se um elemento que não constava anteriormente,
consignando-se interesse da sociedade e beneficiamento como
conceitos necessários à consumação do ilícito. Nesse sentido, a Lei
posterior, no particular, também é mais benéfica, pois trata com mais
rigor o tipo sancionador, retroagindo para beneficiar os infratores da
Lei anterior.
III. SOBRE A RETROATIVIDADE DA LEI MAIS
BENÉFICA EM DIREITO ADMINISTRATIVO
SANCIONADOR:

5. Trata-se, pois, de lei posterior mais benéfica, o que


implica em sua retroatividade, nos termos do artigo 5º, inciso XL1, da
Constituição Federal, pois as garantias penais, por simetria, se aplicam ao
direito administrativo sancionador, conforme nossa doutrina preconiza
desde longa data quanto às ações de improbidade2 e consoante
jurisprudência remansosa dos Tribunais Superiores pátrios3.

1 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

2 Sustentamos, desde longa data, que o direito administrativo sancionador rege as ações de
improbidade. Veja-se artigo publicado na Revista de Administración Pública (RAP) da Espanha
149, em 1999, nosso trabalho pioneiro nesta matéria, quando introduzimos no Brasil um novo
conceito de sanção administrativa, que permitiu o alargamento do regime do direito
administrativo sancionador para o campo das ações de improbidade administrativa. Na primeira
edição de nossa obra Direito Administrativo Sancionador, em 2000, reafirmamos o conceito de
sanção administrativa que permitiu sua aplicação pelo Poder Judiciário, alcançando as ações de
improbidade administrativa, conceito este que teve repercussão na formação do convencimento
dos Tribunais Superiores sobre essa matéria. Com efeito, concepção alcançou o entendimento
dos Tribunais Superiores. A jurisprudência do STJ, em matéria de improbidade administrativa,
tem sido sensível aos princípios do Direito Administrativo Sancionador, como se vê inúmeros
julgados do STJ, destacando-se este julgamento paradigmático:“O direito administrativo
sancionador está adstrito aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das
garantias constitucionais”, no qual cita nossa doutrina: Osório, Fábio Medina. Teoria da
improbidade administrativa: má gestão pública: corrupção: ineficiência (p. 300). (RESP 87.360-
SP, Rel. Min.Luiz Fux, julgado em 17 de junho de 2008.
3 O Ministro ALEXANDRE DE MORAIS expressamente admitiu a aplicação do direito

administrativo sancionador nas ações de improbidade no julgamento de admissão de


repercussão geral no recurso extraordinário com agravo 1.175.650- Paraná́ .
6. Muitos autores falam sobre a aplicabilidade do Direito
Administrativo Sancionador às ações de improbidade administrativa, mas
é necessário compreender a principal razão para que tal incidência se
torne possível do ponto de vista jurídico. E, de fato, o Legislador acolheu,
acertadamente, nosso conceito de sanção administrativa, proposto em
1999 e ratificado em 2000, segundo o qual cabe também ao Poder
Judiciário aplicar sanções administrativas, ou seja, o poder administrativo
sancionador não é privativo da Administração Pública.

7. Nesse sentido, superamos o clássico conceito


estatutário de Direito Administrativo, para abarcar uma visão substantiva
do Direito Administrativo. Nosso conceito está assim redigido: “Consiste
a sanção administrativa em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos,
com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela
Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por
corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente
público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de
sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal,
tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou
disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito
Administrativo. A finalidade repressora, ou punitiva, já inclui a disciplinar,
mas não custa deixar clara essa inclusão, para não haver dúvidas”.
8. Como se pode observar, a construção doutrinária para
se chegar ao regime jurídico do direito administrativo sancionador às
ações de improbidade administrativa teve um longo percurso.

9. Com efeito, o Direito Administrativo Sancionador nasce


e se alimenta de muitos dos princípios orientadores do Direito Penal,
balizando-se, portanto, por princípios normativos constitucionais que
objetivam, em última análise, limitar o arbítrio do Estado, em respeito às
liberdades públicas e individuais dos cidadãos. A esse respeito:4

A norma jurídica não se confunde com o texto


legislativo. O sistema brasileiro adotou a teoria dos
precedentes. Direito Penal e Direito Administrativo
confluem para dar nascimento ao Direito
Administrativo Sancionador. Há princípios
constitucionais comuns ao Direito Público punitivo. Ao
Direito Administrativo Sancionador se aplicam os
princípios do direito penal e processual penal, com
matizes, por simetria. A teoria da pena deve ser
observada à luz do direito positivo brasileiro e não de
uma perspectiva abstrata do direito estrangeiro, o que
exige um compromisso com os precedentes da civil
law.

10. Ainda que se faça uma análise critica à unidade do ius


puniendi estatal, não se pode negar que ambos campos de incidência do
poder punitivo do Estado estão impregnados de postulados e garantias

4 Osório, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. Thomson Reuters Revista dos
Tribunais. Edição do Kindle. p. 87.
constitucionais de proteção aos administrados e jurisdicionados, cuja
inobservância deslegitima a aplicação de qualquer sanção5:

Do exposto, o que se percebe é que o Direito Penal e


o Direito Administrativo Sancionador, se bem que não
se valham invariavelmente das mesmas técnicas, nem
encontrem os mesmos regimes jurídicos, acabam
adentrando núcleos estruturantes dos direitos
fundamentais dos acusados em geral, na perspectiva
de submissão às cláusulas do devido processo legal e
do Estado de Direito. O Direito Punitivo, assim,
encontra um núcleo básico na Constituição Federal,
núcleo normativo do qual emanam direitos
constitucionais de conteúdos variáveis, embora
também com pontos mínimos em comum e aqui talvez
resida a confusão conceitual em torno ao debate sobre
Direito Público Punitivo. E é precisamente aqui que se
deve compreender a unidade do Direito Sancionador:
há cláusulas constitucionais que dominam tanto o
Direito Penal, quanto o Direito Administrativo Punitivo.
Tais cláusulas, se bem que veiculem conteúdos
distintos, também veiculam conteúdos mínimos
obrigatórios, onde repousa a ideia de unidade mínima
a vincular garantias constitucionais básicas aos
acusados em geral.

11. Aplicando-se os princípios e garantias informadores do


Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador, inegável a
incidência da retroatividade da lei mais benigna6:

5 Osório, Fábio Medina. Op. Cit. (p. 151).


6 Osório, Fábio Medina. Op. Cit. (pp. 300-301).
Não há dúvidas de que, na órbita penal, vige, em sua
plenitude, o princípio da retroatividade da norma
benéfica ou descriminalizante, em homenagem a
garantias constitucionais expressas e a uma razoável
e racional política jurídica de proteger valores
socialmente relevantes, como a estabilidade
institucional e a segurança jurídica das relações
punitivas. Se esta é a política do Direito Penal, não
haverá de ser outra a orientação do Direito Punitivo em
geral, notadamente do Direito Administrativo
Sancionador, dentro do devido processo legal. Se há
uma mudança nos padrões valorativos da sociedade,
nada mais razoável do que estender essa mudança ao
passado, reconhecendo uma evolução do padrão
axiológico, preservando-se, assim, o princípio
constitucional da igualdade e os valores relacionados
à justiça e à atualização das normas jurídicas que
resguardam direitos fundamentais. O engessamento
das normas defasadas e injustas não traria nenhuma
vantagem social. A retroatividade decorre de um
imperativo ético de atualização do Direito Punitivo, em
face dos efeitos da isonomia.

12. Veja-se, a propósito, posição já consagrada na


jurisprudência dos Tribunais pátrios. No tema, não se pode olvidar do voto
paradigmático do Ministro GILMAR MENDES na Reclamação no
41.557/SP7, no qual acolhe a aplicabilidade do direito administrativo
sancionador ao campo da improbidade administrativa, in litteris:

“Nessa linha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos


(TEDH) estabelece, a partir do paradigmático caso
Oztürk, em 1984, um conceito amplo de direito penal,
que reconhece o direito administrativo sancionador
como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-
penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-
penais se estenderiam para o âmbito do direito
administrativo sancionador, que pertenceria ao
sistema penal em sentido lato. (OLIVEIRA, Ana
Carolina. Direito de Intervenção e Direito
Administrativo Sancionador. 2012. P. 128)
Acerca disso, afirma a doutrina:
‘A unidade do jus puniendi do Estado obriga a
transposição de garantias constitucionais e penais
para o direito administrativo sancionador. As
mínimas garantias devem ser: legalidade,
proporcionalidade, presunção de inocência e ne
bis in idem”. (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de
Intervenção e Direito Administrativo Sancionador.
2012. P. 241).
A assunção desse pressuposto pelo intérprete,
principalmente no tocante ao princípio do ne bis in
idem, resulta na compreensão, como será observado,
que tais princípios devem ser aplicados não somente
dentro dos subsistemas, mas também e
principalmente na relação que se coloca entre ambos
os subsistemas – trata-se aqui justamente de uma

7 STF, Rcl nº 41.557/SP, Relator Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, Julgamento
15/12/2020, Publicação DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03.
baliza hermenêutica para a qualidade da relação’.”
(grifos do texto)

13. Ademais, a adoção dos princípios penais, com


matizes, ao direito administrativo sancionador, além de se encontrar
sedimentada na jurisprudência do STJ e do STF, decorre da compreensão
acerca da estrutura normativa da teoria do Direito Administrativo
Sancionador. Nesse passo, fiz um histórico importante sobre essa matéria
na obra Direito Administrativo Sancionador, em 2000: Não há dúvidas de
que, na órbita penal, vige, em sua plenitude, o princípio da retroatividade da
norma benéfica ou descriminalizante, em homenagem a garantias
constitucionais expressas e a uma razoável e racional política jurídica de
proteger valores socialmente relevantes, como a estabilidade institucional e
a segurança jurídica das relações punitivas. Se esta é a política do Direito
Penal, não haverá de ser outra a orientação do Direito Punitivo em geral,
notadamente do Direito Administrativo Sancionador, dentro do devido
processo legal”.

14. Nesse sentido, cumpre lembrar que a incidência dos


princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador ao terreno
da improbidade administrativa, na linha preconizada desde 1999 por nossa
doutrina, foi expressamente incorporada ao sistema jurídico
brasileiro com o § 4º do artigo 1º da nova redação da lei de
improbidade:

Art. 1º O sistema de responsabilização por atos de


improbidade administrativa tutelará a probidade na
organização do Estado e no exercício de suas
funções, como forma de assegurar a integridade do
patrimônio público e social, nos termos desta
Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
Parágrafo único. (Revogado). (Redação dada pela
Lei nº 14.230, de 2021)

§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade


disciplinado nesta Lei os princípios
constitucionais do direito administrativo
sancionador. (Incluído pela Lei nº 14.230, de
2021) (grifei):

15. E, expressamente sobre a aplicação da retroatividade


benéfica, colacionam-se precedentes do STJ (grifos apostos) que
igualmente acolhem precedente doutrinário:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO


RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE
SEGURANÇA. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO
3/STJ. PROCESSO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO
PUNITIVA. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO INTERNO
NÃO PROVIDO. 1. A sindicância investigativa não
interrompe prescrição administrativa, mas sim a
instauração do processo administrativo. 2. O processo
administrativo disciplinar é uma espécie de direito
sancionador. Por essa razão, a Primeira Turma do
STJ declarou que o princípio da retroatividade
mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito
dos processos administrativos disciplinares. À luz
desse entendimento da Primeira Turma, o recorrente
defende a prescrição da pretensão punitiva
administrativa. 3. Contudo, o processo administrativo
foi instaurado em 11 de abril de 2013 pela Portaria n.
247/2013. Independente da modificação do termo
inicial para a instauração do processo administrativo
disciplinar advinda pela LCE n. 744/2013, a
instauração do PAD ocorreu oportunamente. Ou seja,
os autos não revelam a ocorrência da prescrição
durante o regular processamento do PAD. 4. Agravo
interno não provido.
(STJ - AgInt no RMS: 65486 RO 2021/0012771-8,
Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
Data de Julgamento: 17/08/2021, T2 - SEGUNDA
TURMA, Data de Publicação: DJe 26/08/2021)

___

ADMINISTRATIVO. CONSUMIDOR. RECURSO


ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA
PREVENTIVO MANEJADO POR DIVERSOS
SINDICATOS DO RAMO VAREJISTA. PRETENSÃO
DE VER RECONHECIDA A VALIDADE DE PREÇO A
MAIOR PARA O CONSUMIDOR QUE PAGA COM
CARTÃO DE CRÉDITO. POSSIBILIDADE. PRÁTICA
HODIERNAMENTE AUTORIZADA NO
ORDENAMENTO JURÍDICO. ART. 1º DA LEI N.
13.455/17. ALCANCE RETROATIVO. 1. A cobrança
diferenciada de preços de bens e serviços ao público
em face do pagamento mediante cartão de crédito
passou a ser legalmente admitida pelo ordenamento
jurídico pátrio. Logo, inexiste abusividade em tal
prática comercial. 2. Antes da entrada em vigor da Lei
n. 13.455/17, inexistia expressa vedação legal à
prática diferenciada de preços em função da forma de
pagamento utilizada pelo consumidor, por isso que
não se cuida de hipótese de superveniente atipicidade
da conduta, mas, ao invés, de positivação normativa
com o intuito de referendar e estabilizar a prática
comercial em realce. 3. A norma administrativa mais
benéfica, no que deixa de sancionar determinado
comportamento, é dotada de eficácia retroativa.
Precedente: REsp 1.153.083/MT, Rel. p/ Acórdão
Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe
19/11/2014). 4. Nesse norte, incensurável se revela o
acórdão recorrido no passo em que, ao conceder a
segurança pleiteada no presente writ preventivo,
ordenou à autoridade coatora que se abstenha de
impor penalidade contra as empresas integrantes das
categorias econômicas representadas pelos
sindicatos impetrantes, na hipótese de concessão de
descontos para compras efetuadas mediante dinheiro
ou cheque, sem extensão de tal vantagem às
transações realizadas mediante cartão de crédito. 5.
Recurso especial não provido.

(REsp 1402893/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA,


PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/04/2019, DJe
22/04/2019)

___
DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL.
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS
BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE.
EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À
IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E
271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE
1973. APLICABILIDADE. I - Consoante o decidido pelo
Plenário desta Corte na sessão realizada em
09.03.2016, o regime recursal será determinado pela
data da publicação do provimento jurisdicional
impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo
Civil de 1973. II - As condutas atribuídas ao
Recorrente, apuradas no PAD que culminou na
imposição da pena de demissão, ocorreram entre
03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei
Municipal n. 8.979/79. Por outro lado, a sanção foi
aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já
vigente a Lei Municipal n. 13.530/03, a qual prevê
causas atenuantes de pena, não observadas na
punição. III - Tratando-se de diploma legal mais
favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei
Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da
retroatividade da lei penal mais benéfica,
insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da
República, alcança as leis que disciplinam o direito
administrativo sancionador. Precedente. IV -
Dessarte, cumpre à Administração Pública do
Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção,
observando a legislação mais benéfica ao Recorrente,
mantendo-se indenes os demais atos processuais. V -
A pretensão relativa à percepção de vencimentos e
vantagens funcionais em período anterior ao manejo
deste mandado de segurança, deve ser postulada na
via ordinária, consoante inteligência dos enunciados
das Súmulas n. 269 e 271 do Supremo Tribunal
Federal. Precedentes. VI - Recurso em Mandado de
Segurança parcialmente provido.
(RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA
COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018,
DJe 20/02/2018)

16. Portanto, pela superveniência da impossibilidade


jurídica do pedido, as ações em andamento devem, de imediato, merecer
julgamento de improcedência antecipada, quando versarem sobre fatos
atípicos.

17. Nesse ponto, impende destacar que a doutrina


majoritária entende que a impossibilidade jurídica do pedido não mais
impõe a extinção do feito sem resolução do mérito, mas, do contrário, leva
ao julgamento de improcedência da ação, o que deve ser avaliado
cuidadosamente em cada processo.

18. A esse respeito FREDIE DIDIER ensina8:

8DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte
geral e processo de conhecimento. 21ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 365 e 366.
Primeiramente, não há mais menção "à possibilidade
jurídica do pedido" como hipótese que leva a uma
decisão de inadmissibilidade do pro cesso. Observe
que não há mais menção a ela como hipótese de
inépcia da petição inicial (art. 330, § 1o, CPC)55;
também não há menção a ela no inciso VI do art. 485
do CPC, que apenas se refere à legitimidade e ao
interesse de agir56; além disso, criam-se várias
hipóteses de improcedência liminar do pedido, que
poderiam ser consideradas, tranquilamente, como
casos de impossibilidade jurídica de o pedido ser
atendido.
(...)
Enfim:
a) o assunto "condição da ação" desaparece, tendo
em vista a inexistência da única razão que o
justificava: a consagração em texto legislativo dessa
controvertida categoria;
b) a ausência de "possibilidade jurídica do pedido"
passa a ser examinada como hipótese de
improcedência liminar do pedido, no capítulo
respectivo;
c) legitimidade ad causam e interesse de agir passam
a ser estudados no capítulo sobre os pressupostos
processuais. (grifei)

19. Também a jurisprudência vem assim se pronunciando:


TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RESCISÓRIA.
PRESCRIÇÃO. IMPOSTO DE RENDA. CINCO MAIS
CINCO. MATÉRIA NÃO TANGENCIADA PELO
ACÓRDÃO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS
FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RESCINDENDO.
RESCISÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. A
rescisória por violação de direito federal exige que a
tese prestigiada no acórdão seja atacada de forma
direta e específica. 2. Hipótese em que a rescisória,
fundada em alegação de violação de literal dispositivo
de lei, refere-se à questão diversa daquela que foi
apreciada pelo acórdão rescindendo. Caso de
absoluta assimetria entre o que julgou a Corte e o que
alega o autor como causa de rescisão. É inviável
pretender rescindir o que não declarou o acórdão, o
que nele não se contém. 3. No regime do CPC de
2015, em que as condições da ação não mais
configuram categoria processual autônoma,
diversa dos pressupostos processuais e do
mérito, a possibilidade jurídica do pedido deixou
de ser questão relativa à admissibilidade e passou
a ser mérito. Afirma a Exposição de motivos do
Anteprojeto do Novo CPC que "a sentença que, à luz
da lei revogada seria de carência da ação, à luz do
Novo CPC é de improcedência e resolve
definitivamente a controvérsia". 4. Nos termos do
parágrafo único do art. 974 do CPC, a conversão em
multa do depósito do art. 488, II, do CPC/1973 (atual
968, II) pressupõe ser a rescisória julgada
improcedente ou inadmissível por unanimidade, razão
pela qual a decisão quanto ao destino do depósito
somente poderá ser tomada após a conclusão do
julgamento. Ação rescisória julgada improcedente.

(STJ - AR: 3667 DF 2006/0236076-5, Relator: Ministro


HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento:
27/04/2016, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de
Publicação: DJe 23/05/2016)

____

APELAÇÃO – AÇÃO DE PROCEDIMENTO COMUM


– IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO
SUPERVENIENTE – JULGAMENTO DE MÉRITO –
TERORIA DA CAUSA MADURA - HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. Pleito da parte apelante em ser
reconhecido em seu favor, por ser servidora pública
municipal e pensionista, décimo quarto salário, abono
salarial, cesta natalina, auxílio alimentação, auxílio
saúde, prestações vencidas e vincendas e seus
reflexos. Sentença que reconheceu a ilegitimidade
passiva do Município de Paulínia, retificou o valor da
causa para R$ 140.402,55 e julgou extinto o feito, sem
resolução de mérito, nos termos do artigo 485, VI do
CPC. VALOR DA CAUSA – Valor da causa que deve
corresponder à expressão econômica da demanda –
Artigo 292 do Código de Processo Civil – Autora que
expressamente requereu a retificação do valor da
causa para R$ 140.402,55 – Sentença que apenas
reconhece o valor da causa apresentado.
ILEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO –
Caracterizada – Município que é parte ilegítima para
figurar na demanda ante a existência de autarquia
municipal – Legitimidade municipal que somente seria
possível com comprovada ineficiência da PAULIPREV
em honrar os compromissos – Responsabilidade
subsidiária do Município – Inteligência do artigo 2º, §
1º da Lei nº 9.717/98. MÉRITO – Possibilidade
jurídica do pedido que é matéria de mérito à luz do
Código de Processo Civil vigente – Precedente do
STJ no julgamento do REsp nº 1.157.123/SP –
Necessidade de reforma da sentença que reconhece
a ocorrência superveniente de impossibilidade jurídica
do pedido para que seja julgado o mérito da demanda.
TEORIA DA CAUSA MADURA – Aplicabilidade –
Controvérsia restrita à questão de direito – Aplicação
do artigo 1.013, § 3º, inciso I do CPC – Prevalência
dos princípios da razoável duração do processo e da
economia processual. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS – Princípio da sucumbência –
vencida a parte autora deve pagar honorários aos
patronos dos réus nos termos do artigo 85, caput do
CPC – Autora é quem deu causa a demanda ao propor
a ação – Assunção dos riscos do processo que
compõe os interesses dos litigantes, devendo suportar
com os ônus e bônus da lide. Sentença reformada.
Recurso da PAULIPREV parcialmente provido.

(TJ-SP - AC: 10011626320188260428 SP 1001162-


63.2018.8.26.0428, Relator: Leonel Costa, Data de
Julgamento: 07/07/2021, 8ª Câmara de Direito
Público, Data de Publicação: 08/07/2021) (grifei)

19. Finalmente, cabe o registro de que a Reforma da Lei de


Improbidade foi decorrência de uma série de abusos no seu manejo. Tais
desvios ocorreram por conta de uma distorção do princípio da
independência funcional do Ministério Público, que deveria harmonizar-se
constitucionalmente com o princípio da unidade institucional, mas na
prática vem esmagando esse último princípio. Assim, como tive
oportunidade de alertar, cada tipo sancionador transforma-se num
fragmento autônomo à luz da independência dos membros da Instituição,
através de peculiares interpretações a respeito de cláusulas gerais e
conceitos jurídicos indeterminados. Houve, em tal contexto, uma
intolerável erosão da segurança jurídica em matéria de aplicação da Lei
Geral de Improbidade Administrativa. O Legislador sentiu a necessidade
de suprimir tipos sancionadores e eliminar, até mesmo, a improbidade
culposa. Abusos ensejam reação de outros Poderes, não há dúvidas. O
Ministério Público precisa aperfeiçoar-se e repensar sua atuação, para
atingir maiores padrões de eficiência, unidade e responsabilidade na
busca de resultados.

Brasilia, 29 de outubro de 2021.

FABIO MEDINA OSORIO


OAB/DF- 29786
OAB/RJ – 160107
OAB/RS – 64975
OAB/SP - 290720

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