Resenha - Deslembro

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC

SANTO AMARO

Edemilson Roberto da Silva Junior

Resenha
Deslembro (2018), dirigido por Flávia Castro

São Paulo
2020
Resenha do filme “Deslembro” (2018)

Manter a memória viva é um dos valores mais preciosos da humanidade. Entre as


famílias que sofreram com a Ditadura Militar de 1964, este é um preceito recorrente.
Lembro da história de como meu bisavô foi levado preso – uma imagem muito clara em
minha mente, mesmo que não a tenha presenciado. Era um homem bem-quisto, que
pertencia ao partido socialista da cidade, uma pequena ilha de Santa Catarina. Todos os
dias, recebia em sua varanda (hoje a casa dos meus avós) vizinhos e políticos que o
procuravam para conversar – como um médico em seu consultório. E foi ali, enquanto
estava sentado na sua velha cadeira de balanço, que foi levado coercitivamente pelos
policiais. Apesar do breu provocado pela noite densa naquela rua mal iluminada, formou-
se uma pequena aglomeração que acompanhou atônita a situação. Ele foi solto da prisão
pouco tempo depois. Todavia, aquilo provavelmente o mudou para sempre. E,
consequentemente, toda a nossa família.
“Deslembro” (2018), dirigido e roteirizado por Flávia Castro, compreende o impacto atroz
de agressões como esta pela ditadura. Que transforma em vítima não apenas os
perseguidos diretamente, mas toda as pessoas que os cercam. Compartilhando alguns
temas com o ótimo “A Memória que me Contam” (2012), de Lúcia Murat, o filme
acompanha Joana (Jeanne Boudier), uma jovem que morava na França com sua família
de exilados políticos. É então que, durante o período de reabertura, decidem retornar ao
Brasil – revisitando reminiscências dolorosas, como o assassinato de Eduardo (Jesuíta
Barbosa), pai da menina e vítima do regime.
É possível categorizar o filme dentro do subgênero de “coming of age”. As problemáticas
são tratadas conforme Joana lida com seu amadurecimento. Desde a primeira cena
vemos como é difícil para ela abandonar Paris. Seus amigos, um vizinho próximo, o estilo
de vida e todas as agonias do passado no Brasil tornam esse retorno angustiante. E é
admirável a abordagem de “Deslembro” de moldar tudo que presenciamos pela
subjetividade da protagonista – uma escolha correta que valida e intensifica todos os
dilemas propostos. Um exemplo é quando, ainda na França, a adolescente escuta uma
música apresentada por Luis (Julián Marras), atual companheiro de sua mãe (Sara
Antunes). A mixagem sonora de Valéria Ferro condiciona o que ouvimos a ela. O mesmo
acontece quando sua vó, Lúcia (Eliane Giardini), está mostrando a casa em que vive. A
mulher gesticula, aponta para quadros e fala com um sorriso no rosto, contudo o único
som audível é o de Caetano Veloso cantando repetidamente “show me from behind the
wall”, que toca nos fones de Joana. É só quando os retira que podemos participar da
conversa. Além de inserir a trilha-musical na diegese, a importância desses momentos
está em explicitar que as percepções da moça filtram a realidade apresentada. A
fotografia de Heloísa Passos também é hábil em acentuar esses elementos. Nos
flashbacks, a diretora adota uma câmera baixa buscando simular o olhar de uma criança
– condizente com a idade dela no período.
A adolescência é um dos períodos mais intensos e tumultuados da vida – gerado por
uma demanda hormonal e emocional que excede a experiência e maturidade. Assim,
apesar do contexto histórico, é fácil se identificar com os impasses da jovem. A
inadequação é um sentimento constante e a direção de arte retrata essas aflições através
do figurino. Durante grande parte da projeção, Joana usa roupas pretas e opacas,
enquanto sua família costuma alternar entre o vermelho (principalmente a mãe), o azul e
o amarelo. Sobretudo nas primeiras cenas, após a viagem, essa escolha também soa
como um ato de resistência ao “novo” país – além de escuras, as modelagens são
compridas e parecem muito quentes para o clima brasileiro. É notável como as cores são
usadas também para estabelecer relações entre os personagens. Joana e Enesto
(Antonio Carrara), em seu primeiro encontro em uma festa, são os únicos com trajes
negros. Esta estratégia os isola dos outros e logo estabelece uma conexão entre eles –
que futuramente se tornará um romance. Um artifício semelhante é usado para delinear
a relação da garota e sua mãe. Elas possuem um convívio difícil e estão constantemente
em conflito. Portanto, até quase metade do filme, as duas nunca usam roupas da mesma
cor. Isso só muda quando Joana começa a aceitar sua nova vida e quebrar as barreiras
que as separam. Assim, em uma cena que Ana pergunta à filha qual camisa deve usar,
ela responde apontando para uma cinza (do mesmo matiz que está vestindo).
É inegável, no entanto, que o núcleo dramático de “Deslembro” se concentra na memória
e os vestígios do regime militar. Todos os personagens são afetados de alguma forma
pelas brutalidades do período. Ana sofre com toda a agonia que viveu e não é capaz de
lidar com isso abertamente. Paco perdeu a mãe, Luis a esposa – ambos a terra natal.
Lúcia nunca desistiu de solucionar a morte do filho. O quarto dele permanece intocado
como um museu. Ela guarda jornais, documentos e dados que investigou. Quando
perguntada se acha que um dia vão descobrir o que aconteceu com Eduardo, responde:
“...o importante é a gente continuar procurando. E lutando para que o Estado reconheça
o seu crime”. Mostrando como uma das maiores violências da ditadura está em abrir uma
ferida que nunca desvanece. E que em Joana foi capaz de supurar até as emoções e
sentidos. Apesar de tentar suprimir recordações da época, esses traumas surgem
pusilânimes. Do escuro, em sua cama, emergem fragmentos do tempo da
clandestinidade. Ao ver a foto de seu pai, recorda uma caminhada com ele e a mãe pela
rua. Uma jabuticaba suscita os olhos esverdeados de seu progenitor. E todas essas
memórias doridas que tanto suprimiu formaram uma base instável sobre a qual construiu
a vida. E a direção de arte evoca isso ao criar uma alegoria usando raízes/galhos. Eles
aparecem em um relevo no quarto da moça, em uma cena logo após ela ver o retrato de
seu pai, de forma relacional no plano detalhe das veias da mão de uma escultura de
aleijadinho (que também se torna uma rima visual de Ernesto acariciando Joana) e,
especialmente, na casa em que se escondiam dos militares. É a sinalização de como
aquele episódio originou todo o sofrimento que se sucedeu. Até o ponto de a adolescente
sofrer por uma lembrança de algo que nunca ocorreu. E o diálogo entre a menina e a mãe
sobre essas memórias se coloca, não como uma solução para as perdas, entretanto como
um apaziguador, um mecanismo para lidar com os traumas. Algo que é ilustrado pelo
figurino de Joana ao final do filme. No carro com a família, ela usa verde pela primeira vez
– uma cor ligada ao seu pai (tom de seus olhos e que ele aparece vestindo em um dos
flashbacks).
Foi através de uma conversa parecida com minha mãe, que descobri que muitas
recordações que tinha de meu bisavô, Antenor, não eram reais. A casa de onde foi levado
pela polícia não era a atual de meus avós (como a imagem tão clara que criei). Pois só
foi construída anos depois do ocorrido. Ele não ficou preso apenas por alguns dias
(chegou a ser torturado em cárcere). Após sofrer ameaças, teve que se exilar do Brasil –
passou todos os anos da ditadura longe do país. Voltando apenas durante a reabertura.
Uma história muito semelhante à da família de Joana. Que eu fui modificando com o
tempo e só redescobri através dessa investigação sobre o passado. Um aprendizado que
compartilho com a protagonista de “Deslembro”: manter a memória viva é um dos valores
humanos mais importante.

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