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08

FEV

Novos
Estudos
Pessoanos
2018
Novos
Estudos
Pessoanos
Ponto de situação
8 DE FEVEREIRO DE 2018
CASA FERNANDO PESSOA

2
Índice
Lista de participantes · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 5

Última incorporação na biblioteca particular


de Fernando Pessoa: a gramática inglesa· · · · · ·9

O Teatro Estático de Fernando Pessoa· · · · · · · · 10

A última paixão de Fernando Pessoa· · · · · · · · 20

O desassossego como consciência:


da Rua dos Douradores para o cânone
do romance moderno· · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 31

Ricardo Reis e a heteronímia pessoana· · · · · · · 32

Curadoria e revogação: o caso Pessoa · · · · · · · 44

Porquê tal coisa a respeito de outra ou o


desespero da diferença — o fragmento como
programa estético em Fernando Pessoa · · · · · 122

O lugar do esoterismo na classificação


da biblioteca de Fernando Pessoa· · · · · · · · · · · 123

Notas sobre a construção


do autor em Francisco Sanches
(com Fernando Pessoa ao fundo)· · · · · · · · · · · ·124

Edição digital e estudo da marginália


de Fernando Pessoa · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 149

Notas biográficas · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 159


Antonio Cardiello

ÚLTIMA INCORPORAÇÃO NA BIBLIOTECA


PARTICULAR DE FERNANDO PESSOA:
A GRAMÁTICA INGLESA

Filipa de Freitas

O TEATRO ESTÁTICO DE FERNANDO PESSOA

José Barreto

A ÚLTIMA PAIXÃO DE FERNANDO PESSOA

Madalena Lobo Antunes

O DESASSOSSEGO COMO CONSCIÊNCIA:


DA RUA DOS DOURADORES PARA O CÂNONE
DO ROMANCE MODERNO

Nuno Amado

RICARDO REIS E A HETERONÍMIA PESSOANA

Pedro Tiago Ferreira

CURADORIA E REVOGAÇÃO: O CASO PESSOA

Raquel Nobre Guerra

PORQUÊ TAL COISA A RESPEITO DE OUTRA


OU O DESESPERO DA DIFERENÇA
— O FRAGMENTO COMO PROGRAMA
ESTÉTICO EM FERNANDO PESSOA

5
Rita Catania Marrone

O LUGAR DO ESOTERISMO NA CLASSIFICAÇÃO


DA BIBLIOTECA DE FERNANDO PESSOA

Rui Sousa

NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO


DO AUTOR EM FRANCISCO SANCHES
(COM FERNANDO PESSOA AO FUNDO)

Teresa Filipe

EDIÇÃO DIGITAL E ESTUDO


DA MARGINÁLIA DE FERNANDO PESSOA

MODERADORES
Antonio Cardiello
Claudia J. Fischer
Mariana Gray de Castro
Pedro Sepúlveda

6
Comunicações
entregues
e resumos
8
Última incorporação
na biblioteca particular
de Fernando Pessoa:
a gramática inglesa
Antonio Cardiello

RESUMO

Breve apresentação da integração da gramática The Elements of the English Language de Ernest Adams
no catálogo da Biblioteca Particular da Casa Fernando Pessoa.

Esta gramática inglesa pertenceu a Fernando Pessoa e foi por si emprestada a Manuel Alves da Silva, seu
colega numa das casas comerciais onde trabalhou no início dos anos 30. O livro manteve-se na posse da
família até que o seu filho, Jorge Alves da Silva, a ofereceu ao seu último proprietário, João Ruas, em
Dezembro de 1970. A gramática foi doada por João Ruas à Casa Fernando Pessoa em 2017, é agora dada a
conhecer, com especial enfoque nos elementos da marginália.

9
O Teatro Estático
de Fernando Pessoa
Filipa de Freitas1

1 Centro de Estudos de Teatro (FLUL); Instituto de Estudos Filosóficos (FLUC).

10
O teatro de Fernando Pessoa é, ainda, um campo pouco explorado pelos estudos
pessoanos, não só no que respeita às edições das suas peças, mas igualmente
aos estudos críticos. Uma visita ao espólio de Pessoa, que comporta cerca de
30 000 papéis, revela um conjunto significativo de textos que permanecem iné-
ditos. Pessoa, mais conhecido pela sua poesia e, especialmente, pela sua criação
heteronímica, está longe de poder ser considerado, pelos investigadores, um au-
tor «fechado», na medida em que a sua obra continua a despertar um interesse
sempre renovado, em parte pela existência de muitos textos inéditos. É o que su-
cede com a sua criação dramatúrgica. Pessoa foi, num sentido estrito, um dra-
maturgo. O que se pretende aqui é apresentar brevemente essa faceta.

Pessoa escreveu cerca de trinta peças, mais ou menos fragmentadas, mas ape-
nas se conhece pouco mais de metade da sua produção. O espólio oferece-nos
uma visão deste núcleo, complementada pelas edições que foram feitas nas últi-
mas décadas. Peças em verso e em prosa, escritas em português e em inglês,
continuam à espera de publicação, o que permitirá avaliar adequadamente o
seu lugar na obra completa do poeta. Vários títulos foram trazidos à luz por
Teresa Rita Lopes, nos anos 70, através do seu pioneiro estudo Fernando Pessoa
et le Drame Symboliste, mas este conhecimento não parece ter fomentado poste-
riores edições críticas. Na verdade, a história da edição do teatro de Pessoa reve-
la a sua insuficiência. Em 1915, no primeiro número de Orpheu, Pessoa publica a
sua única peça completa, O Marinheiro, uma peça estática que tem sido objecto
de estudo mais ou menos frequente e de várias edições. Mas se este texto tem
despertado frequentemente o interesse dos investigadores, outros carecem des-
te tratamento. Muitos anos se passaram até que surgisse informação sobre ou-
tras peças de Pessoa. O Fausto, peça fragmentada em verso, teve de esperar até
1952 para ser parcialmente publicada por Eduardo Freitas da Costa, na Ática, em
Poemas Dramáticos (juntamente com O Marinheiro). Não obstante o interesse
que o mito fáustico tem suscitado nos estudos literários, a composição de Pessoa
não teve um lugar fundamental. Na verdade, após a edição de Freitas da Costa,
apenas Duílio Colombini e Teresa Sobral Cunha tentaram novas edições, a primei-
ra em 1986 e a segunda em 1988 (e 1990). Foram precisos quase trinta anos para que
o Fausto pessoano ganhasse nova visibilidade, com a edição crítica de Carlos
Pittella, em 2018. Mas o caso de Fausto não é único no âmbito do teatro de Pessoa.
De modo ainda mais flagrante, o Teatro Estático do poeta esteve longamente es-
quecido, com as suas devidas excepções. António Pina Coelho publicou, como
apêndice dos Textos Filosóficos, um fragmento de Diálogo na Sombra, não identifi-
cado como peça de teatro, em 1968. Cerca de uma década depois, Teresa Rita
Lopes, investigadora fundamental para o estudo do texto dramático em Pessoa,
trouxe à luz, no estudo citado acima, quatro peças inéditas do Teatro Estático pes-
soano — Diálogo no Jardim do Palácio, A Morte do Príncipe, Salomé e Sakyamuni.

11
Nos anos 80, Lopes publicou ainda fragmentos de outra peça estática, intitulada
Calvário. As poucas edições que surgiram no século XX seguiram o texto fixado
por Lopes. Foi necessário esperar até ao século XXI para que emergisse novo in-
teresse pela obra dramatúrgica de Pessoa. Em 2003, Richard Zenith publicou o
fragmento de As Cousas, não identificado como peça de teatro; em 2014, Luísa
Monteiro publicou Inércia; e somente em 2017 foram reunidas todas as peças do
Teatro Estático, numa edição que co-editei com Patricio Ferrari, e contou com a cola-
boração de Claudia Fischer. No mesmo ano, tive oportunidade de publicar outra
peça inédita, temporalmente prévia às do Teatro Estático, intitulada O Amor. Em
suma, é este o estado da arte da edição do teatro de Pessoa.

Como se depreende pelo que ficou dito, de entre as peças conhecidas do poeta, o
Teatro Estático constitui um núcleo fundamental. Trata-se de um conjunto de cator-
ze peças, maioritariamente incompletas, escritas em duas fases da vida do poeta, a
primeira entre finais de 1913 e 1918 e a segunda entre 1932 e 1934: O Marinheiro;
Diálogo no Jardim do Palácio; A Morte do Príncipe; As Cousas; Diálogo na Sombra; Os
Estrangeiros; Inércia; A Cadela; Os Emigrantes; Sakyamuni; Salomé; A Casa dos
Mortos; Calvário; e Intervenção Cirúrgica. Além destes textos, Pessoa deixou seis lis-
tas sobre o Teatro Estático e três fragmentos teóricos, um dos quais elucida o que
está em causa:

Chamo theatro estatico áquelle cujo enredo dramatico não constitue acção —
isto é, onde os fantoches não só não agem, porque nem se deslocam nem dialo-
gam sobre deslocaremse, mas nem sequér teem sentidos capazes de produzir
uma acção; onde não ha conflicto nem perfeito enredo. Dirseha que isto não é
theatro. Creio que o é porque creio que o theatro transcende o theatro meramente
dynamico e que o essencial do theatro é, não a acção nem a progressão e conse-
quência da acção — mas, mais abrangentemente, a revelação das almas atravez
das palavras trocadas [...]. Pode haver revelação de almas sem acção, e pode haver
creação de situações de inercia, meramente de alma,7 sem janellas ou portas para
a realidade. (Pessoa, 2017: 276)

As listas de Pessoa que dizem respeito exclusivamente ao Teatro Estático, datadas


entre 1913 e post-1918, revelam a indecisão do poeta, na medida em que se nota uma
oscilação no número de peças a serem incluídas no corpus. Um certo paralelismo
pode ser estabelecido com outro projecto de Pessoa — o Arco de Triumpho de Álvaro
de Campos, que engloba as suas grandes odes (Pessoa, 2014) —, dado que os dois
projectos revelam uma progressiva redução dos textos. Quanto ao Teatro Estático,
dois dos títulos que figuram nas listas pessoanas — O Erro e Cronos — parecem ter
sido abandonados pelo autor, uma vez que não se encontrou no seu espólio nenhum
fragmento correspondente.

12
O Teatro Estático de Fernando Pessoa foi fortemente influenciado pelo simbolis-
mo francês do século XIX. Um dos expoentes principais deste movimento foi o
dramaturgo Maurice Maeterlinck, presença fundamental na concepção de O
Marinheiro. Alguns estudos sobre a influência do dramaturgo belga na obra dra-
mática do poeta português têm sido trazidos à luz (vide, entre outros, Lopes,
1977; Correia, 2011; Fischer, 2012). É possível que a noção de estático tenha
sido retirada dos escritos de Maeterlinck e a própria construção de O Marinheiro
apresenta paralelismos textuais evidentes com algumas peças do dramaturgo.
Não obstante o papel principal que a leitura da obra de Maeterlinck possa ter,
Pessoa não era um mero seguidor de correntes instituídas ou em desenvolvi-
mento. O Teatro Estático não é, assim, um simples devedor das principais direc-
trizes do simbolismo, mas, pelo contrário, resultado da convergência de diferen-
tes núcleos de conhecimento. Ésquilo, Shakespeare, Oscar Wilde e Edgar Allan
Poe são, neste sentido, presenças dialogantes com as peças estáticas do poeta
português. Mas o círculo de influência também não se esgota aqui, na medida
em que Pessoa bebeu não só de fontes dramatúrgicas, como as mencionadas,
mas também de correntes filosóficas e religiosas ocidentais e orientais. Deste
modo, poderíamos dizer que o Teatro Estático é resultado de uma apropriação
de conjuntos diversos. Não cabe aqui, todavia, uma incursão profunda pelos
meandros dessas influências, que futuras investigações poderão trazer à luz
com maior precisão.

O Marinheiro, escrito em 1914, é a única peça publicada em vida de Pessoa, em


1915, no primeiro número de Orpheu (onde figura a data fictícia 11/12 de Outubro
de 1913), mas apresenta características que importa assinalar. O texto foi prova-
velmente concebido, na sua fase inicial, como um drama escrito em francês.
Existem oito fragmentos em francês, datados de finais de 1913, que correspon-
dem a oito inícios diferentes da peça. A par dos fragmentos franceses, Pessoa in-
tentou traduzir o texto para inglês, deixando-nos três fragmentos posteriores,
de 1918. Mas a única versão completa que se manteve foi, de facto, a portuguesa.
Não obstante o Teatro Estático ter sido um projecto que acompanhou alguns
anos da vida do poeta, não se encontraram no espólio fragmentos que indicas-
sem o retomar da peça em francês, o que parece indicar que o plano inicial de
Pessoa foi abandonado.

Temporalmente próximo de O Marinheiro, na sua génese francesa e portuguesa,


encontra-se outra peça, intitulada Diálogo no Jardim do Palácio. Este texto data
de finais de 1913 e de 1914. Os seus fragmentos revelam também um apuramento
da ideia inicial de Pessoa: a peça parece ter sido previamente pensada como um
diálogo entre duas mulheres, posteriormente substituído por um diálogo entre
um homem e uma mulher. O eixo central da peça é o amor enquanto sentimento

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que não se pode conhecer e, partindo deste pressuposto, aborda temas recorren-
tes na obra de Pessoa, como o enigma do mundo e da natureza humana. As per-
sonagens do Diálogo reflectem sobre os sentidos do homem — o que significa ou-
vir, ver, tocar —, sobre a noção de corpo e de emoção. Deste modo, o que está em
causa nesta peça (e nas demais) é a instalação da dúvida, mediante a consciên-
cia de um mundo opaco que esconde sentidos só parcialmente manifestados.
A própria linguagem, enquanto âmbito de partilha entre os sujeitos, revela-se
insuficiente e as tentativas de esclarecimento das personagens falham conti-
nuamente. Não é a realidade que se impõe, mas a consciência de que a realidade
é a imagem que fazemos dela, de tal modo que a peça representa, tal como
Pessoa indica num dos seus projectos sobre o Teatro Estático, a «introdução do
Symbolo como mysterio» (Pessoa, 2017: 272).

A par destas peças, encontra-se A Morte do Príncipe, de 1914. Influenciado pela


obra de Shakespeare, a peça invoca novamente o mistério do mundo, através de
um diálogo entre as suas duas personagens — o príncipe e o seu criado —, de tal
modo que o príncipe oscila no limbo entre a sanidade e a loucura. O que signifi-
ca existir um mundo, existirem coisas e existir um sujeito que se relaciona com
elas são algumas das questões fundamentais desta peça. O príncipe é uma espé-
cie de espectador da sua própria existência, que não consegue evitar a condição
de contemplador. Mas a noção de que o mundo não é transparente prende-se,
ainda, com a fronteira entre o sonho e a realidade, de modo que a personagem
salienta (tal como sucede em O Marinheiro) a possibilidade de a vida não ser
mais do que um sonho. Do mesmo ano é a peça As Cousas, que partilha uma das
folhas em que se encontra um fragmento de A Morte do Príncipe. Embora o títu-
lo figure em três projectos sobre o Teatro Estático, Pessoa só nos deixou um frag-
mento muito incompleto da peça, que, todavia, permite extrair a sua ideia prin-
cipal: a prisão dos homens ao mundo (aos objectos), do ponto de vista do próprio
mundo, que a personagem da peça salienta, quando afirma «Os homens são os
meus prisioneiros. Os corpos d’elles são os laços com que os prendemos…
A belleza é a cadeia de ouro da nossa tyrannia» (Pessoa, 2017: 111).

O ano de 1914 incluiu ainda o aparecimento de mais três peças: Diálogo na


Sombra, Inércia e Os Emigrantes. A primeira trata de um diálogo entre a alma e o
corpo, identificados como A e E, salientando a infinita distância entre os dois,
num tom metafísico que as peças precedentes já anunciavam. Inércia, pelo con-
trário, apresenta um tom mais coloquial entre dois irmãos que debatem sobre a
necessidade de viver e a incapacidade de fugir ao poder da inércia, que os domi-
na. O argumento de Os Emigrantes depreende-se de uma indicação deixada por
Pessoa num dos seus projectos: «children who pretend to emigrate, and their ar-
dour of otherness» (Pessoa, 2017: 272). No espólio, não se encontrou nenhum

14
texto explícito desta peça e a nossa atribuição de um fragmento inédito, na edi-
ção crítica, é, por isso, conjectural. Segundo este fragmento, as personagens de
Os Estrangeiros — A e B (uma masculina e outra feminina) — dialogam, por um
lado, sobre o significado de se ser estrangeiro, salientando a estranheza de viver
numa pátria diferente e a angústia que resulta dessa condição e, por outro, sobre
a percepção de que cada indivíduo é um estrangeiro para si mesmo e para os ou-
tros, o que retoma a noção do desconhecimento do sujeito que outras peças de-
senvolvem. Importa frisar, também, que parece haver uma referência ao argu-
mento da peça no diálogo entre as personagens de Inércia, quando uma delas
indica: «Tu não tens lido tantos livros onde se falla de tanta gente, até creanças,
que sahiram de casa e fôram pela vida fóra, e, d’uma maneira ou d’outra, lá
fôram vivendo… E eram creanças, olha que eram creanças» (PESSOA, 2017: 128).
Esta intertextualidade é única no teatro estático.

Em 1915, surge a sua única peça — A Cadela — que revela mudanças significati-
vas. Com duas personagens identificadas como «Ele» e «Ela», o diálogo expressa
laivos de violência e de excesso que lembram as odes sensacionistas de Álvaro
de Campos. No entanto, o seu argumento não se afasta do Teatro Estático: a per-
sonagem feminina deambula entre a vontade de sentir excessivamente e a ne-
cessidade de sonhar, que domina a primeira. Como também sucede em Campos,
trata-se de um desejo que se preenche unicamente pela imaginação.

A partir de 1916, o Teatro Estático conhece um novo impulso. Deste ano é a peça
Os Estrangeiros, que sofre a influência da obra de Nicolas Evreinoff, especial-
mente do seu «Teatro da Alma». Na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa en-
contra-se um exemplar de uma tradução inglesa da peça, impressa em 19152.
Segundo Pessoa, o drama de Evreinoff apresenta «varias sub-individualidades
componentes d’esse pseudosimplex a que se chama o espirito» (Pessoa, 2013:
63). N’Os Estrangeiros encontra-se uma epígrafe dedicada ao dramaturgo russo, e
um dos seus fragmentos permite reconstituir o argumento da peça: o confronto
entre diferentes percepções do sujeito. Se o drama de Evreinoff salienta os vários
constituintes da alma — a entidade racional, a emotiva e a subliminar —, o dra-
ma pessoano, por sua vez, pretendia salientar diferentes modos de ser do sujeito.

No mesmo ano surge outra peça que abre portas a uma nova expansão do Teatro
Estático, centrada em dramas com raízes históricas e bíblicas. Sakyamuni, ini-
ciado em 1916 e desenvolvido até 1918, traz à luz a história de Buda, através das
várias renúncias que a caracterizam. Num dos seus papéis, Pessoa indica as três
fases da personagem: a renúncia à vida terrena e à personalidade; a renúncia

2 The Theatre of the Soul. A Monodrama in One Act (CFP 8 179).

15
à vida nirvânica; e a renúncia à vida impessoal, que resulta na absorção do mal
do mundo. Sakyamuni foi pensado como parte de um projecto mais lato: numa
das suas folhas, datada de c. 1917, encontra-se a indicação «part of Calvario»
(PESSOA, 2017: 169), título de uma peça, sobre Cristo, que surgirá muito mais
tarde. A par desta folha, pode-se ainda encontrar, num dos fragmentos de
Calvário, outra indicação que corrobora esta hipótese: «As Trez Tragedias —
Sakyamuni | Christo (Calvario) » (Pessoa, 2017: 204).

O interesse de Pessoa por esta temática verifica-se, ainda, noutra peça de 1917-
1918: Salomé. A história de Salomé foi aproveitada por diversos escritores, no-
meadamente Oscar Wilde, cuja peça influenciou a de Pessoa. O argumento das
peças inglesa e portuguesa retoma o episódio bíblico da decapitação do profeta
São João Baptista, na corte de Herodes. Pessoa parece ter pensado, inicialmen-
te, em criar um poema ou um drama em verso, como revelam dois fragmentos de
c. 1915, não se excluindo ainda a hipótese de o poeta ter pensado em dois projec-
tos diferentes. Todavia, em 1917 e 1918, Salomé ganha a sua forma definitiva de
drama em prosa, dentro dos moldes do Teatro Estático. Assim, a peça de Pessoa
não se confina a uma reconstituição da história de Salomé, mas aborda as ténues
fronteiras entre a imaginação, o sonho e a realidade. Salomé é vítima de uma na-
tureza insatisfeita com a vida, de modo que se refugia no sonho e na imaginação.
Todavia, o que começa como fictício torna-se real e a morte de São João Baptista
resulta da dissolução dessa fronteira. A peça representa a concretização de uma
história imaginada e contada, mas foi pensada como multiplicação de planos: se
Salomé dá vida à história de São João Baptista, que partilha com as suas aias, a
história de Salomé é contada por um narrador externo. Trata-se, por isso, de uma
história dentro de outra história ou do teatro dentro do teatro.

O ano de 1917 não é apenas palco destas peças. A Casa dos Mortos é o título de
outra peça, cujo argumento parece ter sido abandonado pelo autor. O seu único
fragmento indica: «Um drama, num acto, que simboliza o poder das coisas tra-
dicionais e a força dos poderes ignorantes da sociedade nos pontos de extrema
tensão espiritual» (Pessoa, 2017: 189). Com uma temática diferente das que en-
contramos nas peças anteriores ou coevas, A Casa dos Mortos pode ter sido in-
fluenciada pelas obras de Edgar Allan Poe. As poucas falas que se encontram no
único fragmento da peça permitem depreender que Pessoa pretendia desenvol-
ver o tema do medo enquanto impulsionador de sugestões irracionais.

Depois de 1918, o Teatro Estático sofre um longo período de inactividade (com


ocasionais excepções, na medida em que Pessoa escreve algum fragmento).
Pessoa só retoma o Teatro Estático entre 1932 e 1934, período em que surgem as
duas últimas peças: Intervenção Cirúrgica e Calvário. A primeira tem proximidade

16
com as peças de 1914, especialmente com o Diálogo no Jardim do Palácio, uma
vez que retoma o tema do amor. Todavia, os quatro fragmentos da peça expõem
um diálogo menos metafísico do que aquele que se encontra no Diálogo. Um dos
fragmentos da peça anuncia três personagens, mas apenas duas têm lugar: a
mulher e um antigo amante, que reflectem sobre o papel da beleza feminina en-
quanto elemento fundamental no surgimento do amor. Todavia, esta peça tem
um enredo diferente do do Diálogo no Jardim do Palácio: se no último, a perso-
nagem masculina duvida do amor, pondo em causa o seu significado, o que re-
sulta na ruptura com a personagem feminina, na Intervenção o amante conven-
ce a mulher a ceder novamente ao amor perdido. Deste modo, as duas peças
funcionam como faces complementares. Calvário, por sua vez, como indicámos,
é uma peça baseada na história de Cristo e no legado que deixou. No entanto, é
de assinalar que Calvário não é uma peça de índole mística ou teológica: o seu
principal fio condutor é a figura humana de Cristo. Assim, a peça (a par de
Sakyamuni) funciona como um exemplo da origem humana do mito.

Esta breve apresentação do Teatro Estático pretendeu somente chamar a aten-


ção para um núcleo pouco conhecido dentro da obra de Fernando Pessoa. Para
compreender o devido lugar da obra dramática do poeta, assim como o lugar de
Pessoa enquanto dramaturgo, é necessário que futuras edições tragam à luz as
peças que ainda permanecem inéditas no seu espólio. O conhecimento do teatro
completo de Pessoa será indispensável para avaliar a sua verdadeira importân-
cia na obra do autor.

17
BIBLIOGRAFIA

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— A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 9, Primavera 2016, pp. 128-185
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(disponível em https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:759869/).

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Ronald de Carvalho (dir.), Orpheu — Revista Trimestral de Literatura, n.º 1,
Janeiro/Fevereiro/Março 1915, pp. 27-39.

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Costa, Obras Completas de Fernando Pessoa, vol. VI, Lisboa, Ática, 1952.

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Edições Epopeia, 1986.

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1968.

18
PESSOA, Fernando, Fausto — Tragédia Subjectiva, texto estab. Teresa Sobral
Cunha, pref. Eduardo Lourenço, Lisboa, Editorial Presença, 1988.

PESSOA, Fernando, O Privilégio dos Caminhos, pesq., transc. e org. Teresa Rita
Lopes, Lisboa, Rolim, 1988.

PESSOA, Fernando, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal,


ed. Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.

PESSOA, Fernando, Apreciações Literárias, ed. crít. Pauly Ellen Bothe, Edição
Crítica de Fernando Pessoa, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/
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PESSOA, Fernando, Inércia, ed. Luísa Monteiro, Lisboa, Cama de Gato, 2014.

PESSOA, Fernando, Obra Completa de Álvaro de Campos, ed. Jerónimo Pizarro


e Antonio Cardiello, com colaboração de Jorge Uribe e Filipa de Freitas, Lisboa,
Tinta da China/Colecção «Pessoa», 2014.

PESSOA, Fernando, Teatro Estático, ed. Filipa de Freitas e Patricio Ferrari,


com colaboração de Claudia J. Fischer, Lisboa, Tinta da China/Colecção
«Pessoa», 2017.

PESSOA, Fernando, Fausto, ed. Carlos Pittella, com colaboração de Filipa


de Freitas, Lisboa, Tinta da China/Colecção «Pessoa», 2018 (no prelo).

19
A última paixão
de Fernando Pessoa
José Barreto

20
Publiquei em dezembro de 2017, no n.º 12 da revista Pessoa Plural, um artigo
com o título «A Última Paixão de Fernando Pessoa», do qual vou aqui fazer uma
breve apresentação.

O título do artigo refere-se à relação amorosa ou, se se preferir, ao episódio ro-


mântico que terá presumivelmente existido entre Fernando Pessoa e Madge
Anderson, irmã da sua cunhada Eileen Anderson, casada com o seu meio-irmão
John (João Maria Nogueira Rosa). Trata-se de uma hipótese que não é inteira-
mente nova, mas em sustentação da qual apresento diversa documentação,
nuns casos, pouco conhecida, noutros, inteiramente desconhecida. Nesse artigo
proponho também a interpretação de alguns poemas de Pessoa à luz da corres-
pondência com Madge no período em que esses poemas foram escritos.

Há muito que eu considerava improvável que Pessoa tivesse amado uma única
mulher, embora fosse isso o que geralmente se deduzia da história do seu namo-
ro com Ofélia Queiroz. Desse caso amoroso eu concluía algo diferente: se Pessoa
teve com Ofélia a relação que teve, documentada pela correspondência mútua,
por uma série de poemas de amor e pelo relato posterior da própria Ofélia, isso
sugeria-me que ele era um homem perfeitamente capaz de apaixonar-se — con-
trariando, portanto, a imagem ou estereótipo de homem «enrolado para dentro»,
cerebral, devotado apenas à sua obra, misógino, deprimido, consumidor de álcool
e, eventualmente, assexuado. Não falo aqui das suas hipotéticas paixões masculi-
nas, porque tudo o que se julga saber sobre esse tema resulta apenas de alguns
poemas de tema amoroso dirigidos a homens, sem que todavia existam cartas, re-
latos ou outros testemunhos, próprios ou alheios, que completem ou esclareçam
esses supostos episódios amorosos. Se Pessoa teve paixões por homens, como cer-
tos poemas seus claramente sugerem, parece tê-las sofrido solitariamente.

AS FONTES
A hipótese de uma paixão entre Pessoa e Madge Anderson proposta no meu artigo
é sustentada por dois conjuntos de documentos, a saber: cartas trocadas pelos
dois no verão-outono de 1935 e poemas de amor de Pessoa escritos no mesmo
período.

Quanto à correspondência, apenas uma carta de Madge existente no espólio da


Biblioteca Nacional era conhecida de alguns pesquisadores, mas mesmo essa
nunca fora publicada. Duas cartas de Pessoa para Madge guardadas no espólio da
família, a que tive acesso em suporte digital (graças à digitalização do dito espólio
por Jerónimo Pizarro), eram, tanto quanto sei, não só inéditas como desconheci-
das dos investigadores.

21
Diga-se que outros estudiosos se tinham já interrogado sobre diferentes aspetos
desta história e apresentado algumas hipóteses. Pude, pois, basear-me também
em alguma bibliografia existente.

Num artigo publicado numa revista espanhola em 1989, Ángel Crespo, o grande
estudioso, tradutor e biógrafo de Pessoa, sustentara já a tese de que «Pessoa
morreu profundamente apaixonado» — e não por Ofélia, obviamente. Crespo ti-
nha feito pesquisas, todas infrutíferas, no sentido de identificar essa última
amada de Pessoa.

Em 2011, outro biógrafo, J. P. Cavalcanti, falou


de uma «relação misteriosa» e de uma «simpa-
tia recíproca» entre Pessoa e Madge Anderson,
baseando-se em testemunhos dos sobrinhos
de Pessoa, Manuela Nogueira e Luís Miguel
Rosa Dias, que citou, descrevendo também o
conteúdo de uma carta de Madge para Pessoa,
mas sem citar a sua fonte nem transcrever a
dita carta (Cavalcanti, 2011: 127-128).
Este biógrafo relacionou também dois poemas
de Pessoa do início dos anos 30 com essa rela-
ção de «simpatia recíproca». São os poemas de
Álvaro de Campos «A rapariga inglesa, tão lou-
ra, tão jovem, tão boa / Que queria casar comi-
go», de 1930, em que o autor chama «meu úni-
co amor» à anónima inglesa, e «Psiquetipia»
de 1933.

Quanto aos poemas de amor de Pessoa escri-


tos em 1935, que eu relaciono com a corres-
pondência trocada com Madge no mesmo ano,
um deles foi publicado pela primeira vez, tan-
to quanto sei, em 1989, por Ángel Crespo, no Página inicial do artigo de Ángel Crespo,
publicado na Revista de Occidente (1989)
artigo já citado. É o poema inglês que começa
«The happy sun is shining». Aqui vai a trans-
crição, acompanhada de uma tradução tanto
quanto possível literal:

22
The happy sun is shining, O sol feliz brilha
The fields are green and gay, Os campos estão verdes e alegres
But my poor heart is pining Mas o meu pobre coração anseia
For something far away. Por algo que está longe.
It’s pining just for you, Anseia só por ti,
It’s pining for your kiss. Anseia pelo teu beijo
It does not matter if you’re true Não importa se és fiel
To this. A isto.
What matters is just you. O que importa és só tu.

I know the sea is beaming Sei que o mar reluz


Under the summer sun. Sob um sol de verão.
I know the waves are gleaming, Sei que as ondas cintilam
Each one and every one. Cada uma e todas elas.
But I am far from you, Mas eu estou longe de ti
Oh so far from your kiss! Oh tão longe do teu beijo!
And that’s all that is really true E apenas essa é a verdade
In this. Nisto.
What matters is just you. O que importa és só tu.

Oh, yes, the sky is splendid, Oh, sim, o céu resplende


So blue as it is now, Tão azul, agora mesmo,
The air and light are blended Confundem-se ar e luz
Oh, yes, but, anyhow, Oh, sim, mas, no entanto,
Nothing of this is you, Nada disto és tu,
I’m absent from your kiss Eu estou ausente do teu beijo
That’s all I get that is sad and true Só essa triste verdade colho
From this. Disto.
What matters is just you. O que importa és só tu

Como se pode ver, é um poema apaixonado, em que o poeta manifesta a dor pun-
gente causada pela separação física do seu amor, algo que, por regra, não se in-
venta nem se fantasia — ou, como diria o fingidor Pessoa, não se «finge». Se aten-
tarmos na data, 22 de novembro de 1935, constatamos que foi escrito por Pessoa
uma semana antes da sua morte. Penso que foi este o último poema que Pessoa
escreveu na sua vida, em qualquer língua. De facto, ele datou quase todos os seus
poemas e não há nenhum no espólio com data posterior a este. O poema chamou
a especial atenção de Ángel Crespo, que se interrogou sobre quem seria o alvo
de tal paixão. Como disse, as suas pesquisas sobre esse ponto foram infrutíferas.

23
SOBRE MADGE
O que até agora se sabia sobre Madge Anderson é que era irmã de Eileen, que em
1929 estava a divorciar-se do primeiro marido, que tinha vindo sozinha a
Portugal várias vezes, que teve uma misteriosa «simpatia recíproca» com
Pessoa, que era «muito inteligente» e tinha «mau feitio» e que tinha trabalhado
na decifração de comunicações alemãs durante a II Guerra Mundial.

Havia também umas alusões de Ofélia Queiroz, em duas cartas a Fernando


Pessoa datadas de 1929 e 1930, a uma «inglesa» ou «inglesinha», identificada por
Manuela Nogueira como sendo Madge. Essas alusões são bastante curiosas, por-
que datam dos últimos meses do seu segundo namoro com Pessoa e me parecem
motivadas por ciúmes (embora Manuela Nogueira sustentasse o contrário numa
nota a uma dessas cartas). Na primeira carta, Ofélia insinuava a pouca seriedade
da inglesa que teria estado ou estaria então em Portugal, afirmando que, se ela
era solteira, não pretenderia certamente casar; se era casada, não deveria tirar
férias do marido e viajar sozinha3. Na segunda carta, três meses depois, Ofélia
opõe-se ao plano que, na véspera, Pessoa lhe revelara de viajar sozinho a
Inglaterra em junho de 1930, temendo que ele gostasse de alguma inglesinha e
ficasse por lá, ou então a mandasse vir para cá4. Uma hipótese que se poderá, as-
sim, considerar é que a atração que Madge exerceu sobre Pessoa possa ter inter-
ferido na relação deste com Ofélia ou mesmo contribuído para o seu fim.

O que agora apurei sobre Madge, embora ainda permaneça uma larga margem
de mistério em torno desta personagem, inclui uma série de dados biográficos
sobre ela, que afinal era escocesa, natural de Glasgow; sobre os seus pais, um
escocês e uma irlandesa que, nos anos 1920 e 1930, viviam na Turquia; dados
sobre os estudos de Madge na Universidade de St. Andrews, na Escócia; infor-
mações sobre o seu trabalho no Foreign Office (em Londres), em Bletchley Park
(o centro de decriptação das telecomunicações do Eixo durante a II Guerra
Mundial), na «Broadway» (sede do SIS, ou MI6, em Londres) e em Berkeley Street
(outro centro, em Londres, de intercetação de telecomunicações, mas de carác-
ter diplomático e comercial); informações sobre o seu segundo casamento, em
1939, com um militar, Frederick Winterbotham, que ocupou um lugar de primei-
ra linha nos serviços de espionagem britânicos, nomeadamente durante a II
Guerra, do qual Madge se divorciou também (1946); dados documentais sobre a
sua vinda a Portugal em 1935; informação, enfim, sobre a sua morte em 1988,
quase coincidindo com o centenário do nascimento de Pessoa. Madge entrara ao
serviço do FO em 1927, pouco depois de terminados os estudos universitários.

3 Carta de Ofélia Queiroz a Fernando Pessoa de 25 de novembro de 1929 (NOGUEIRA e AZEVEDO, 1996: 256‑257).
Ver também a nota da p. 256, sobre a «inglesa».

4 Carta de Ofélia Queiroz a Fernando Pessoa de 3 de março de 1930 (NOGUEIRA e AZEVEDO, 1996: 292-293).

24
Quando conheceu Fernando Pessoa, em 1929, Madge já trabalhava no FO há dois
anos e, nesse ano de 1929, foi mesmo oficialmente nomeada junior assistant do
dito ministério.

A CORRESPONDÊNCIA
A primeira peça de correspondência entre Pessoa e Madge que
encontrei (no espólio do poeta na BNP) foi uma carta de Madge
para Pessoa de meados de novembro de 1935. Uma carta difícil
de ler, pela sua caligrafia exótica, e misteriosa pelo seu conteú-
do, que sugeria uma grande proximidade com Pessoa, o que
desde logo despertou a minha curiosidade, numa altura em que
estava ainda longe de conhecer o artigo de Ángel Crespo.

O nome de Madge e o seu endereço londrino apareciam também


repetidamente na agenda de argolas que Pessoa utilizou em 1935,
nos últimos meses de vida (a agenda, com a cota 144F, pode con-
sultar-se online no site da Biblioteca Nacional Digital). Na mesma
agenda acham-se também vários poemas de amor em inglês e em

Página da agenda de argolas de 1935 com, a azul,


português.
o endereço londrino de Madge Moncrieff Anderson
(espólio da BNP)

Posteriormente, descobri no espólio da família que se acha digita-


lizado os rascunhos datilografados de duas cartas de Pessoa para
Madge. Aparentemente, estes dois rascunhos não chamaram a atenção dos inves-
tigadores que eventualmente os possam ter visualizado. As duas cartas de Pessoa
relacionavam-se obviamente com a atrás referida carta de Madge e vieram, assim,
fazer luz sobre ela e uma série de outras circunstâncias.

A primeira carta, datável de agosto-setembro de 1935, é um pedi-


do de desculpa de Pessoa a Madge por ter «desaparecido» em
abril-maio desse ano, quando ela se encontrava em Portugal e
com evidente vontade de se encontrar com ele. Pessoa alega ter
desaparecido por estar deprimido ou se ter «afundado». Diz ter re-
gressado já à superfície, mas estar pronto para se «afundar» nova-
mente, agora definitivamente. É uma carta escrita num tom algo
patético, que termina apelando à «caridade cristã» de Madge.

A segunda carta de Pessoa é talvez o documento mais importante


desta história, porque contém diversas informações, em particu-
Rascunho de carta de Pessoa para Madge, datável do lar sobre um poema que Pessoa envia para Madge juntamente
fim do verão ou outono de 1935 (espólio familiar)
com a carta. O poema não é nomeado na carta, mas (com a ajuda

25
de Carlos Pittella Leite) consegui identificá-lo como sendo o poema «D. T.»,
de que há cópias datilografadas no espólio do poeta na BNP, além do origi-
nal manuscrito. Nesta carta, Pessoa pede desculpa pela sua anterior missi-
va, que considera «algo estúpida», e refere que já ultrapassou a sua depres-
são. Depois de falar de pessoas da família, refere-se também ao
primeiro-ministro (Salazar), dizendo que ainda não foi mandado prender
por ele — uma alusão ao choque provocado nas hostes do Estado Novo pelo
artigo de Pessoa em defesa da Maçonaria, em fevereiro desse ano — e dese-
jando-lhe «má sorte».

Entre estas duas cartas de Pessoa, houve uma de Madge que não consegui Rascunho de carta de Pessoa,
sem indicação de destinatário, de facto
localizar no espólio e que provavelmente se terá perdido, na qual Madge dirigida a Madge, datada de 9/10/1935
(espólio familiar)
chamava a Pessoa «velho tonto dramático», acusando-o também de usar o
«truque do afundamento» (sinking trick) para justificar o seu «desapareci-
mento» em maio. Pessoa chama a essa missiva de Madge uma «carta sim-
paticamente agressiva», acrescentando que dramatic old silly era uma das
melhores definições que poderiam ser dadas de si próprio.

«D. T.»
O poema «D. T.», assinado por Pessoa ortónimo e enviado a Madge com a
segunda carta, destaca-se pela sua importância no conjunto de poesias em
que fundamento o meu artigo e a minha hipótese. Como se sabe, D. T.
é a abreviatura de Delirium Tremens, uma perturbação psíquica e física dos
alcoólicos, que pode ser acompanhada de alucinações visuais. Na descrição
que, na carta, Pessoa faz do poema, afirma que ele «não vale nada»
(como poesia, presume-se), mas que é «um documento psicológico» e tam-
bém «bastante sincero». O poema dirige-se a uma mulher, a quem trata por
darling, e também fala sobre o amor que ela tem por ele. Escrito com ironia e
autoderisão, o poema desce ao âmago de um dilema existencial do autor.
Posto perante a escolha entre o alcoolismo e o amor, ou seja, entre o brandy e
o candy, o autor diz optar pelo brandy, embora saiba que isso lhe matará a
alma. O final do poema tem um amargo sabor suicidário, pela explícita acei-
tação da morte como solução para a sua «alma perdida». Independentemente
do valor literário do poema, sobre o qual as opiniões poderão certamente di-
vergir, mas do qual eu gosto particularmente, «D. T.» é, de facto, um impor-
tante «documento psicológico», como Pessoa lhe chama, e tem certamente
valor autobiográfico. Segue-se aqui a transcrição do poema, com uma tradu-
ção mais ou menos literal (em que agradeço a ajuda de Ricardo Vasconcelos). Uma das cópias
datilografadas do poema «D. T.»
existentes no espólio da BNP

26
DT

The other day indeed, No outro dia, de facto,


With my shoe, on the wall, Com o meu sapato, na parede,
I killed a centipede Matei uma centopeia
Which was not there at all. Que não estava lá.
How can that be? Como é isto possível?
It’s very simple, you see – Pois é muito simples –
Just the beginning of D.T. É só o princípio de D.T.

When the pink alligator Quando o jacaré cor-de-rosa


And the tiger without a head E o tigre sem cabeça
Begin to take stature Começarem a ganhar estatura
And demand to be fed, E exigerem ser alimentados,
As I have no shoes Como não tenho sapatos
Fit to kill those, Adequados para os matar,
I think I’ll start thinking: Acho que começarei a pensar:
Should I stop drinking? Devo parar de beber?

But it really doesn’t matter... Mas nada disso importa, realmente...


Am I thinner or fatter Sou mais magro ou mais gordo
Because this is this? Por isto ser como é?
Would I be wiser or better Seria eu mais sábio ou melhor
If life were other than this is? Se a vida fosse diferente?

No, nothing is right. Não, nada é certo.


Your love might O teu amor poderia
Make me better than I Tornar-me melhor do que eu
Can be or can try. Posso ser ou tentar.
But we never know – Mas nunca poderemos saber –
Darling, I never know Querida, eu não posso saber
If the sugar of your heart Se o açúcar do teu coração
Would not turn out candy... Não se tornaria rebuçado...
So I let my heart smart Deixo, pois, o coração doer
And I drink brandy. E bebo aguardente.

27
Then the centipedes come Então as centopeias vêm
Without trouble. Sem embaraço.
I can see them well Posso vê-las bem
Or even double. Ou até a dobrar.
I’ll see them home Levá-las-ei a casa
With my shoe, Com o meu sapato,
And, when they all go to hell, E, quando forem para o inferno,
I’ll go too. Irei eu também.

Then, on a whole, Então, em suma,


I shall be happy indeed, Serei realmente feliz,
Because, with a shoe Porque, com um sapato
Real and true, Real e verdadeiro,
I shall kill the true centipede – Matarei a verdadeira centopeia –
My lost soul... A minha alma perdida...

Na sua resposta a Pessoa, em carta não datada, mas datável


de 14 de novembro (alusão às eleições legislativas desse dia
em Inglaterra), Madge diz ter dedicado, entretanto, «muitos
pensamentos» a Pessoa. Declara ter gostado muito do poema e
pede mais, para a ajudar a ultrapassar a depressão em que se en-
contra. Afirma que a vida lhe parece um inferno, mas que não
buscará refúgio no brandy, que é mais caro em Inglaterra
e que, além disso, lhe daria cabo da aparência física. Anuncia que
quer voltar a Portugal após sete meses de ausência, o que parece
muito significativo do ponto de vista da hipótese de existência de
sentimentos amorosos de Madge por Pessoa. Sabemos que, após a
morte de Pessoa, Madge não voltaria a Portugal.

Primeira página da carta de Madge para Pessoa,


A carta de Madge, enviada a 14, terá chegado às mãos de Pessoa datável de 14 de novembro de 1935 (espólio da BNP)

por volta do dia 20-21 de novembro. Ora, o poema apaixonado


«The happy sun is shining», a que atrás me referi, está datado
de 22 de novembro. Estaremos assim perante uma mera coinci-
dência na galeria de um poeta «fingidor» (a quem Casais
Monteiro chamou o «insincero verídico») ou, pelo contrário, pe-
rante a expressão da paixão de Pessoa por Madge, reacendida
no momento da chegada da sua carta? Acho plausível esta se-
gunda hipótese. Dias depois, a 26, Pessoa sofria uma grave cri-
se, a 28 era internado e a 30 ocorria a sua morte, pondo um ter-
mo inexorável à história de uma paixão de contornos diáfanos, Quarta e última página da carta de Madge para
Pessoa, datável de 14 de novembro de 1935
talvez para sempre envolvida em mistério. (espólio da BNP)

28
Os dados aqui apresentados sobre a última paixão de Pessoa sugerem uma mera
possibilidade, que seria certamente muito difícil provar cabalmente. Há, natu-
ralmente, que encarar com reserva as tentadoras conjeturas que é fácil tecer em
torno de relações tão complexas, por vezes insondáveis, como as que certamente
há entre a vida afetiva e a obra lírica de um poeta, quanto mais quando ele se
chama Pessoa. As biografias dos poetas, tal como as outras, têm de assentar
principalmente em factos documentados. Mas como é que se provam
sentimentos?

Não posso deixar de evocar aqui certas apreciações feitas acerca do próprio epi-
sódio amoroso entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, tão abundantemente do-
cumentado pela correspondência recíproca, por poemas de significado óbvio e
até pelo relato posterior da amada do poeta. Perante a publicação de «provas»
tão consistentes como as cartas de um e de outra, não faltou, antes abundou
quem duvidasse da existência de verdadeiro amor nessa relação, pelo menos da
parte do poeta, ou então quem, não negando a realidade do sentimento, prefe-
risse taxá-lo de infantil, egoísta, contraditório ou inconsequente, como se isso
esclarecesse definitivamente alguma coisa. Dessa massa de céticos destaca-se,
com a sua natural sofisticação, Eduardo Lourenço, que imagina Pessoa convo-
cando «a sua criatura diabólica Álvaro de Campos para se desfazer de um laço
que ele próprio criara para ter a ilusão, solitário absoluto, de que podia ter com-
panhia» (sublinhado meu). O autor refere-se ao laço amoroso de Pessoa e Ofélia,
que na sua hipótese é remetido para o universo puramente ficcional criado pelo
poeta, em registo de «comédia de enganos»5. Mas, já que Lourenço certamente
não pensa que o casamento canónico é o fim natural e o critério decisivo do
amor verdadeiro, como seria então possível «provar» a existência de sentimento
amoroso não só em Pessoa, mas em qualquer pessoa?

5 LOURENÇO, 2013.

29
BIBLIOGRAFIA

BARRETO, José, «A Última Paixão de Fernando Pessoa», Pessoa Plural —


A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 12, outono 2017, pp. 596-641 (disponí-
vel em https://repository.library.brown.edu/storage/bdr:759871/PDF/; consulta-
do em 14.III.2018).

CAVALCANTI, J. P., Fernando Pessoa: Uma Quase Autobiografia, Porto, Porto


Editora, 2012.

CRESPO, Ángel, «El Último Amor de Fernando Pessoa», Revista de Occidente,


Madrid, n.º 94, 1989, pp. 5-26.

LOURENÇO, Eduardo, «Amor e Literatura», JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias,


n.º 1112, 15 de maio de 2013, pp. 8-10.

MONTEIRO, Adolfo Casais, Fernando Pessoa: O Insincero Verídico, Lisboa,


Ed. Inquérito, 1954.

NOGUEIRA, Manuela, AZEVEDO, Maria da Conceição, Cartas de Amor de Ofélia


a Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.

30
O desassossego
como consciência:
da Rua dos Douradores
para o cânone
do romance moderno
Madalena Lobo Antunes

RESUMO

O Livro do Desassossego é um objecto literário que não segue um protocolo genológico específico.
Apesar disso, tem características romanescas que o aproximam do romance como género literário propí-
cio a renovações e reinterpretações. Esta apresentação pretende iluminar algumas das minhas propostas
relativamente à aproximação do Livro do Desassossego ao romance de stream of consciousness (um subgé-
nero com lugar de destaque no cânone da prosa modernista europeia). Fernando Pessoa, Virginia Woolf
e James Joyce concebem personagens cujas consciências reflectem o espaço urbano que as produz
ao mesmo tempo que são questionadas e desconstruídas por ele.

31
Ricardo Reis
e a heteronímia
pessoana 6
Nuno Amado

6 Este texto procura resumir o argumento central da minha tese de doutoramento (AMADO, 2016). Dada a contenção exigida por um artigo deste género, é fatal
que algumas das ideias basilares pareçam decorrer de saltos lógicos.

32
Tradicionalmente, os heterónimos pessoanos são entendidos como poetas dis-
tintos, cada um com características próprias, não devendo aos outros senão a
proximidade genética e contingente. Ricardo Reis, por exemplo, é geralmente
apresentado como um poeta clássico, ao qual compete verter para português as
odes latinas de Horácio, copiando-lhes a dicção e os preceitos. Esta descrição
sempre me pareceu redutora, sobretudo porque a relação entre Reis e Caeiro não
me parecia de mera vizinhança. Acima de tudo, não me parecia fácil explicar
devidamente o heterónimo Ricardo Reis sem explicar devidamente o heteróni-
mo Alberto Caeiro.

Aceitando que o poeta que Reis é depende em grande medida da relação que es-
tabelece com Caeiro, a tese mais ou menos consensual de que Reis é discípulo de
Horácio requer deflação. E, em abono da verdade, os dois poetas (Reis e Horácio)
são profundamente distintos. Não obstante as semelhanças formais e os tópicos
comuns, o tom de um não é de modo algum o tom do outro. Uma diferença im-
portante jaz na opinião dos dois acerca da utilidade da poesia. Para Horácio, fa-
zer poesia é uma forma de obter a imortalidade, e todo o seu programa poético
serve esse intuito ulterior. Ocupar a vida a fazer versos seria assim um modo de
erigir um monumento no qual pudesse subsistir depois de morto. Ricardo Reis
rejeita liminarmente esta hipótese. Ao contrário do que boa parte da crítica pes-
soana pensa, a ode I do Livro I, publicado em 1924 na revista Athena, não é uma
réplica da ode III.30 de Horácio, e Reis não defende a poesia como meio de so-
brevivência póstuma nem celebra a monumentalidade do ofício de poeta. Se lida
com atenção, a ode é, pelo contrário, um argumento contra a possibilidade de
alguém perdurar nos versos que produz. Bastará talvez que cite alguns versos de
uma versão anterior dessa ode para que se tenha uma ideia de tal argumento:
«Seguro assento na columna firme / dos versos em que fico. / O creador interno
movimento / por quem fui author d’elles / passa, e eu sobrevivo, já não quem / es-
creveu o que fez» (Pessoa, 1994: 64-65). Como se percebe por estes versos, a pes-
soa que escreve, e que «passa», não é a mesma pessoa que lhe sobrevive, e que
fica. Para Reis, a ideia de subsistir na obra é absurda, acima de tudo, porque o au-
tor da obra não tem subsistência senão no instante em que a produz. Como tal,
não se pode assumir que a obra lhe pertença, nem que a imortalidade dela lhe ga-
ranta a imortalidade a ele: «a obra imortal excede o author da obra; / e é menos
dono d’ella / quem a fez do que o tempo em que perdura» (Pessoa, 1994: 64-65).

A rejeição do programa poético de Horácio é, aliás, flagrante na ode XX do mes-


mo Livro I, onde Reis descompõe Horácio de modo ostensivo. O «ínvio» a que se
dirige nessa ode («Cuidas, invio, que cumpres, apertando / teus infecundos, tra-
balhosos dias / em feixes de hirta lenha / sem ilusão a vida» [RR, 74]), e contra
o qual protesta por gastar a vida a projectar o futuro em vez de a aproveitar

33
enquanto dura, tinha nome numa versão primitiva da mesma ode: «Cuidas tu,
louro Flacco, que apertando / teus infecundos, trabalhosos dias / em feixes de
hirta lenha, / cumpres a tua vida?» (Pessoa, 1994: 103). O «louro Flacco» é justa-
mente o poeta laureado, Quintus Horatius Flaccus. Na opinião de Reis, Horácio
preocupa-se em demasia com o futuro, e por isso não saboreia o presente: «para
folgar não folgas; e, se legas, / antes legues o exemplo, que riquezas, / de como a
vida basta / curta, nem também dura» (Pessoa, 1994: 75). O remoque é tipica-
mente epicurista: a vida deve ser passada sem preocupações, não ambicionando
nada e aproveitando calmamente o pouco tempo em que consiste. É esta, na ver-
dade, a postura permanente de Reis face a Horácio: compara-o à formiga da fá-
bula, que se afadiga para ter com que se governar mais tarde, e, invertendo a
moral à fábula, constitui-se como a cigarra cuja vida merece imitação.

Isto afasta Reis de Horácio e torna indispensável a compreensão do epicurismo


de que faz uso. Ao contrário de um epicurista tradicional, cuja filosofia prática
consiste em buscar a calma, a liberdade e a felicidade, Ricardo Reis assume a
impossibilidade de buscar tais coisas, de acordo com aquilo que é proposto num
texto assinado por Frederico Reis, e consola-se com a busca da ilusão de todas
elas. É aliás por isso que o seu epicurismo é «triste» (PESSOA, 2003: 280). Uma
vez que a calma dos antigos não pode ser alcançada num mundo moderno que
se caracteriza pela exacerbada consciência da morte («quem vive na angústia
complexa de hoje, quem vive sempre na espera da morte, dificilmente pode fin-
gir-se calmo»), a única coisa que compete a um pagão moderno é buscar a ilusão
dessa calma. A Reis cabe, pois, fingir que a morte não o atormenta e comprazer-
-se nesse fingimento. O mesmo acontece a respeito dos outros dois objectivos de
vida do epicurista. Uma vez que a liberdade é algo de que nem sequer os deuses
usufruem, sujeitos que estão aos caprichos inexplicáveis do Fado («quanto a li-
berdade, os próprios deuses — sobre que pesa o Fado — a não têm»), a única coi-
sa que é possível buscar é a ilusão dela. Nesse sentido, compete aos mortais imi-
tar a indiferença dos deuses a respeito das leis que acima deles lhes regem a
existência e comprazerem-se nisso. E, uma vez que a felicidade de um pagão é
impossível num mundo cristão («quanto a felicidade, não a pode ter quem está
exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver»), não resta a Reis senão
rejeitar o mundo em que calhou nascer comprazendo-se porém nesse exílio. Não
podendo ser feliz como o seria se tivesse nascido num mundo pagão, cabe-lhe
apenas fingir que o é.

Esta é, para todos os efeitos, a descrição de um retardatário. A postura de Reis é


a de alguém que chegou tarde ao mundo, a de alguém que perdeu alguma coisa e
que já não vai a tempo de recuperá-la. O tom elegíaco da sua poesia, marcado na
tristeza deste género de epicurismo, é irrecusável. O impulso a que obedece é o

34
de corrigir um mal de nascença, o de mitigar um sofrimento qualquer. Há qual-
quer coisa perdida da qual não pode usufruir e que o conduz a comprazer-se na
ilusão dela. Este tom simultaneamente elegíaco e terno, sobretudo manifesto na
sua poesia adulta (a que escreveu de 1916 em diante), faz de Reis mais um poeta
romântico do que um poeta clássico, o que é surpreendente. Não obstante o ri-
gor formal e o apreço pela disciplina e pela contenção métrica, sem dúvida mar-
cas do classicismo, há uma faceta romântica no heterónimo à qual nunca se deu
o devido destaque.

Mais até do que isso, há várias odes na obra de Reis que sugerem a natureza
amorosa dessa perda. Uma das mais relevantes é a ode «Pequena vida conscien-
te, sempre», na qual Reis aponta três razões para abominar a presença inaliená-
vel da consciência de si. Ela é abominável, em primeiro lugar, porque suscita
permanentemente a consciência da morte e, em segundo, por sugerir que a pes-
soa que se é em dado momento, e sobre a qual incide o peso dessa consciência de
si, já não é a mesma pessoa que se era antes. É desses dois males que dão conta
os primeiros quatros versos da ode: «Pequena vida consciente, sempre / da repe-
tida imagem perseguida / do fim inevitável, a cada hora / sentindo-se mudada».
Advém da consciência de si, no entanto, um terceiro mal. Além de problemati-
zar a relação da criatura que somos no presente com a criatura que seremos no
futuro (dada a constante presença da morte, que nos persegue até nos apanhar),
a consciência de si problematiza também a nossa relação com o passado, conde-
nando mesmo ao extermínio tudo aquilo que recordamos: «E, como Orpheu vol-
vendo á vinda esposa / o olhar algoz, para o passado erguendo / a memoria pra
em maguas o apagar / no barathro da mente» (Pessoa, 1994: 149). Cercados pelo
abismo da morte, que nos persegue, e pelo abismo da mente, lugar no qual o
passado inevitavelmente se apaga, ficamos pois limitados ao instante presente.
Dado o episódio mitológico escolhido por Reis nesta ode para expor a tese de
que somos algozes de nós mesmos, a pessoa que éramos e que perdemos no mo-
mento em que, voltando o olhar para dentro de nós mesmos, a sentenciamos ao
abismo da mente, era alguém que amávamos. A relação de perda que estabelece-
mos com o nosso passado é assim de natureza amorosa. Desse ponto de vista, é
possível que o problema de Reis não seja tanto a ausência e a distância do paga-
nismo quanto a de um pagão no qual o paganismo se consubstancie, e que aqui-
lo que perdeu não seja tanto o mundo pagão quanto uma companhia particular.
Sem o objecto amoroso na companhia do qual seria feliz, restaria assim a Reis
satisfazer-se amorosamente a sós.

Dissociado de Horácio e compreendido o ímpeto retrospectivo e pesaroso


da sua poesia, é preciso agora compreender as razões de ser desse ímpeto.

35
É aqui que a figura de Alberto Caeiro ganha relevo para a explicação de Ricardo
Reis, e que a relação discipular (e, em certa medida, filial) entre os dois merece
análise. Os efeitos do contacto com o mestre, em todas as descrições que se co-
nhecem, são idênticos: Caeiro abriu-lhe os olhos, permitiu que visse o que não
via, que acedesse ao que não era capaz de aceder, e que passasse, por conseguin-
te, a ser poeta. Vejam-se, a título de exemplo, algumas dessas descrições. De
acordo com Álvaro de Campos, o contacto com Caeiro fez com que nascesse na
alma de Reis «o sol contra as cornijas dos velhos templos», o que lhe permitiu
ver «agora de novo» (Pessoa, 2012: 107) os deuses antigos. O próprio Reis assu-
me que a obra de Caeiro foi «a mão do cirurgião que me abriu, com os olhos, a
vista» (Pessoa, 2003: 142), e que, depois de lê-la, se lhe abriram «de par em par,
visualmente, as portas em que Amon começa o dia» (PESSOA, 2003: 65). A aqui-
sição de uma identidade poética, em Reis, é sempre justificada através de uma
aquisição de natureza visual.

Em poucas palavras, Caeiro ensinou Reis a ver. Tal lição pressupõe uma teoria
da visão: Caeiro ensinou Reis a ver de acordo com os seus postulados epistemo-
lógicos, de entre os quais se destaca a ideia de que ver uma coisa implica ver-lhe
as fronteiras (as fronteiras que estabelecem com outras coisas e as fronteiras
que estabelecem com o observador). Como considera que «todas as coisas são dif-
ferentes», Caeiro considera também que «ser real é ser uma coisa que não é essas
outras coisas, é ser differente d’elas», e, por conseguinte, que «não se pode ser
real sòsinho» (Pessoa, 2012: 123). Em sentido inverso, «o que é egual a outra
cousa não existe» (Pessoa, 2012: 133). Num poema não datado, Caeiro leva um
pouco mais longe esta ideia, sugerindo não só que a essência de uma coisa está
justamente em não ser uma coisa diferente como que cada coisa é delimitada
por um abismo e nem sequer existiria sem outra coisa da qual se pudesse distin-
guir: «cada coisa só lembra o que é / e só é o que nada mais é. / Separa-a de todas
as outras o abysmo de ser ella / (e as outras não serem ella). / Tudo é nada sem
outra coisa que não é» (BNP, 65-71v)7. É esta mesma ideia que subjaz à explicação
dada por Caeiro a Campos, numa das Notas para a recordação do meu mestre
Caeiro, quando inquirido acerca da possibilidade de tudo ter limites. De acordo
com essa nota, «o que não tem limites não existe», pois «existir é haver outra coi-
sa qualquer, e portanto cada coisa ser limitada» (Pessoa, 2012: 97-98). O objecti-
vismo absoluto que Caeiro preconiza pressupõe, pois, que a existência de qual-
quer coisa depende de haver outras coisas à volta dela, as quais diferem dela e as

7 A abreviatura BNP diz respeito ao espólio de Fernando Pessoa à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal.
Por questões de argumento, transcrevo o terceiro destes cinco versos a partir da lição mais antiga, e não da última,
como o faz Ivo Castro. Depois de escrever «o abysmo de ser ella», Caeiro terá mudado para «o facto de que é ella»
(PESSOA, 2015: 77). Também não transcrevo o quinto verso exactamente como Ivo Castro propõe, lendo «ser»
(PESSOA, 2015: 77) em vez de «sem» (PESSOA, 2004: 146), como o fazem Fernando Cabral Martins e Richard Zenith,
por me parecer que, dessa forma, o conteúdo do verso se torna ininteligível.

36
quais ajudam a definir-lhe os limites pela vizinhança. Mas o princípio da indis-
cernibilidade de Caeiro não pressupõe apenas este corolário, como se percebe
pela formulação ligeiramente adulterada desse mesmo princípio noutra das
Notas para a recordação do meu mestre Caeiro: «Tudo é diferente de nós, e por
isso é que tudo existe» (Pessoa, 2012: 94). Além de depender das fronteiras esta-
belecidas pelas coisas diferentes que a rodeiam, a realidade de uma coisa depen-
de assim também da fronteira que estabelece com aquele que a vê. São estes dois
corolários que estão na génese de Ricardo Reis.

Para Caeiro, só é real aquilo que estabelece fronteiras com outras coisas (uma
nuvem só é real porque é delimitada pelo céu) e aquilo que estabelece fronteiras
connosco. Portanto, é real o mundo exterior, mas irreal o mundo interior. Esta
lei inviabiliza a realidade de um eu interior. É por isso que Caeiro considera o
corpo real, mas refuta a realidade da alma (ou da consciência)8. Esta mesma lei
pressupõe, contudo, um contraste entre o que é exterior e o que é interior.
A partir do momento em que reparamos numa fronteira entre o mundo exterior
e outra coisa, passamos a ter conhecimento, ainda que apenas por inferência, de
uma determinada interioridade. Uma vez que não admite conhecimento infe-
rencial, que apenas aceita como epistemologicamente válido aquilo que se co-
nhece de modo imediato («navio que partes para longe, / porque é que, ao con-
trario dos outros, / não fico, depois de desappareceres, com saudades de ti? /
Porque quando te não vejo, deixaste de existir» [AC, 96]), Caeiro rejeita esta con-
sequência lógica, e estipula que tal interioridade não é real. Ora, Reis adopta
esta lição visual, mas não recusa essa consequência lógica. Como tal, admite
a inferência e não rejeita a existência da interioridade, que seria assim o contrá-
rio do que é visível, o que existe do lado de cá da fronteira que estabelecemos
com o que vemos. Isto faz com que Reis seja exactamente aquela pessoa
que Caeiro seria se não travasse a consequência lógica a que a sua teoria da rea-
lidade fatalmente o conduz.

Ao contrário de Caeiro, que não admite a inferência e preserva a sua unidade,


Reis é uma criatura cindida: é simultaneamente aquilo que vê (o mundo exterior
do qual o seu corpo faz parte) e aquilo que há do lado de dentro do que vê (uma
alma, ou uma consciência); é simultaneamente o agente da visão e o objecto visto.
Para o heterónimo, a pessoa que é no momento da enunciação de um poema, por
exemplo, não é a mesma pessoa que foi no instante anterior, nem a mesma pessoa
que foi no passado: «quem fui é externo a mim. Se lembro, vejo; / e ver é ser alheio.
Meu passado / só por visão relembro. / Aquillo mesmo que senti me é claro. /

8 Há um conjunto de poemas onde Caeiro procura justamente refutar essa existência. Refiro-me ao poema «Sim, talvez
tenham razão» (BNP, 59-27v), ao poema «Dizem que em cada coisa uma coisa occulta mora» (BNP, 59-28), ao poema
«Dizes-me: tu és mais alguma cousa» (BNP, 59-28) e ao poema tradicionalmente conhecido por «Penúltimo Poema».

37
Alheia é a alma antiga» (Pessoa, 1994: 166). A pessoa que foi antes é alguém que
pode ver (através da memória), e como tal é alguém que se distingue do agente
que, nesse momento, a vê assim: «Não sei de quem recordo meu passado / que
outrem fui quando o fui, nem se conheço / como sentindo com minha alma
aquella / alma que a sentir lembro». O que cada um é, como se percebe pela impli-
cação do que é dito nestes versos, é uma sucessão de pessoas diferentes: «De dia a
outro nos desamparamos. / Nada de verdadeiro a nós nos une. / Somos quem so-
mos, e quem fomos foi / coisa vista por dentro» (Pessoa, 1994: 165). Esta teoria da
subsistência, tão cara a Reis, decorre integralmente da teoria da realidade de
Caeiro.

O tom elegíaco que subjaz a toda a sua poesia adulta justifica-se então pelas sauda-
des da pessoa que era antes de ser a pessoa diferente que é agora: «Se recordo quem
fui, outrem me vejo, / no passado, presente da lembrança. / [...] / E a saudade que
me afflige a mente / não é de mim nem do passado visto, / senão de quem habito /
por traz dos olhos cegos» (Pessoa, 1994: 164-165). Aquilo que Reis lamenta ter per-
dido é a pessoa que ele próprio era antes do contacto com Caeiro e da cisão funda-
mental que esse contacto protagonizou, essa criatura una, incapaz de estabelecer
uma diferença entre o agente da visão e o objecto da visão, e que, remetida ao fun-
do da sua mente desde que adquiriu consciência de si, passou a ocupar um lugar
inacessível à visão, «por traz dos olhos cegos». Mas essa criatura una é o que pro-
priamente Alberto Caeiro é. Isto faz de Ricardo Reis, muito concretamente, um
prolongamento daquilo que Caeiro foi, se não tivesse morrido antes de se tornar
outra coisa; trata-se de uma criatura fatalmente cindida, metamorfoseada a par-
tir da criatura una que Caeiro fora, sobre quem pesa a impossibilidade de voltar
essa criatura original.

O queixume constante que resulta dessa impossibilidade é, como referi atrás,


tendencialmente amoroso. A relação entre a pessoa que é agora e aquela pessoa
que era antes de ser o que é agora, entre Reis e Caeiro, é, portanto, de índole eró-
tica. Há, aliás, um conjunto de epicédios (cantos fúnebres) que tornam explícito
esse homoerotismo particular. É o caso, por exemplo, de uma ode datada de
Maio de 1927, que é dirigida a um defunto («a nada imploram tuas mãos já coi-
sas, / nem convencem teus lábios já parados, / no abafo subterrâneo / da húmida
imposta terra») que, aceitando o adjectivo «anónimo» como o vocativo da frase
que encerra a ode, parece ser do sexo masculino: «a ode grava, / Anónimo, um
sorriso» (Pessoa, 1994: 80). É também o caso de uma ode de Julho de 1927:
«Aqui, dizeis, na cova a que me chego, / não stá quem eu amei. Olhar nem falla /
se escondem nesta leiva. / Ah, mas olhos e bocca aqui se escondem! / Mãos aper-
tei, não alma, e aqui morrem. / Homem, um corpo chóro» (Pessoa, 1994: 157).
E é ainda o caso de uma ode de Novembro de 1928, na qual o defunto é desta vez

38
inequivocamente um homem: «quem nos conhece, amigo, taes quaes fomos?»
(Pessoa, 1994: 163). Estes epicédios devem ser lidos em conjunto com um outro,
cujos primeiros dois versos elucidam acerca de algumas características do de-
funto velado: «como este infante que alourado dorme / fui. Hoje sei que ha mor-
te» (Pessoa, 1994: 184). Dada a natureza eufemística do sono, há boas razões
para crer que o infante a que Reis se refere nestes versos é justamente o defunto
dos epicédios anteriores. Se assim for, esse defunto não é só alguém a quem em
tempos o poeta amou: é também um jovem rapaz, de cabelo louro, igual ao ra-
paz que o próprio poeta era antes de ter consciência da morte. É escusado justifi-
car as semelhanças entre esse jovem e Alberto Caeiro. Se Reis e Caeiro são meta-
des um do outro, fatalmente desunidos após o desaparecimento prematuro de
uma das metades, o imperador Adriano e o favorito Antínoo, de cuja desunião
dá conta Antinous, são prefigurações dos dois heterónimos. À união carnal, que
caracterizara a relação harmoniosa do par antes da fatalidade, sucede, com a
morte do jovem, a desunião que Adriano procura agora apaziguar com o plano
da erecção de estátuas do amado. Toda a obra de Reis procede do mesmo ímpeto
escultórico: é uma forma de reparar, ainda que artificialmente, a desunião que
advém do desaparecimento de Caeiro.

A relação de dependência entre as duas figuras (Reis e Caeiro) que a análise


da obra de Reis assim institui impõe a análise da obra de Caeiro. Estruturalmente,
essa obra divide-se em três partes muito diferentes (O Guardador de Rebanhos, O
Pastor Amoroso e os Poemas Inconjuntos), às quais correspondem três autores dife-
rentes. O Guardador de Rebanhos é escrito por Caeiro, mas os Poemas Inconjuntos
são uma obra póstuma (Caeiro, tal como era n’O Guardador de Rebanhos, já está
morto no momento da concepção desse conjunto de poemas). E O Pastor Amoroso,
dando conta da passagem de um estado ao outro, é escrito pela pessoa em processo
de metamorfose que o poeta então é. O Guardador de Rebanhos e O Pastor Amoroso
devem, aliás, ser lidos como um díptico: o regime nocturno do segundo conjunto
de poemas contrasta de modo inequívoco com o regime diurno, solar, luminoso,
de claridade evidente, que pauta o primeiro. Em larga medida, O Pastor Amoroso
corresponde à noite que sucede ao dia d’O Guardador de Rebanhos (os Poemas
Inconjuntos seriam a manhã de nevoeiro seguinte). Esta leitura pressupõe que o
conjunto de 49 poemas d’O Guardador de Rebanhos corresponde a um único dia, e
que a evolução do poeta adentro desse ciclo de poemas, aliás reconhecida pelos
seus discípulos9, acompanha a evolução solar ao longo desse dia. Não é por acaso,
de resto, que os dois últimos poemas do ciclo ocorrem ao final do dia.

9 Num texto sobre os defeitos da obra de Caeiro (BNP, 21-94), Ricardo Reis chama a atenção para a «curva ascensional»
(PESSOA, 2003: 139) do ciclo de 49 poemas. Num dos trechos que deveria incluir o prefácio Aspectos (BNP, 48C-29),
Pessoa reconhece essa curva: «Da limpidez primitiva (que nunca, eu, logrei compreender ou sentir) da impressão
nativa, a evolução é directa, adentro de O Guardador de Rebanhos, para a aprofundação filosófica» (PESSOA, 2007: 147).

39
Este contraste entre o regime diurno do primeiro ciclo e o regime nocturno do
segundo é operativo em Caeiro. Isto porque a claridade exterior, na poesia do
mestre dos heterónimos, é proporcional ao grau de realidade das coisas: quanto
mais claridade houver, mais realidade as coisas têm. Como Caeiro explica no
poema XXVI, é justamente «em dias de luz perfeita e exacta» que «as cousas
teem toda a realidade que podem ter» (PESSOA, 2015: 51). É essa claridade que,
em última análise, justifica o esplendor presente em todo O Guardador de
Rebanhos. E mesmo quando o sol se põe ou quando passa uma nuvem à frente
do sol, a introspecção a que o poeta é levado não é irremediável. Sempre que
cede à imaginação, como o justifica logo no primeiro poema do ciclo, é porque
«sinto o que escrevo ao pôr do sol, / ou quando uma nuvem passa a mão por cima
da luz / e corre um silencio pela herva fora» (Pessoa, 2015: 30).

Se a claridade é impositiva, é natural que o momento triunfal desse ciclo coinci-


da com um momento de especial claridade. É por isso que o poema XLVII, aque-
le no qual se regista o verso mais admirável de Caeiro para os seus discípulos,
ocorre num «dia excessivamente nítido» (Pessoa, 2015: 63). Mas há outro poema
em que essa ocasião triunfal tem lugar: o poema VIII, que ocorre a um «meio-dia
de fim de primavera» (Pessoa, 2015: 37). Em larga medida, esse poema é uma
síntese do próprio dia a que o conjunto d’O Guardador de Rebanhos corresponde.
O Menino Jesus que ensina Caeiro a olhar para as coisas («a mim ensinou-me
tudo. / Ensinou-me a olhar para as coisas» [Pessoa, 2015: 39]) é, por assim dizer,
a prefiguração do astro solar que, no conjunto dos 49 poemas, estabelece as con-
dições de visibilidade de Caeiro. O poema, de resto, termina com uma curiosa
inversão de papéis. O Menino Jesus adormece nos braços de Caeiro, ele deita-o
como uma mãe extremosa, e depois passa inclusivamente a existir dentro do
próprio Caeiro, brincando-lhe com os sonhos: «Êle dorme dentro da minha alma
/ e às vezes acorda de noite / e brinca com os meus sonhos. / Vira uns de pernas
para o ar, / põe uns em cima dos outros / e bate as palmas sòsinho / sorrindo
para o meu sôno» (PESSOA, 2015: 41). Se durante o dia acompanha o poeta, dan-
do-lhe a mão enquanto caminham pelos campos («a Criança Nova que habita
onde vivo / dá-me uma mão a mim / e outra a tudo que existe» [PESSOA, 2015:
40]), com a chegada da noite recolhe-se ao interior do poeta. De um certo ponto
de vista, comporta-se como se fosse a própria alma, ou a consciência, de Caeiro,
funcionando primeiro como uma fonte de saber imediato (indica o que deve ver
a partir de um ponto de vista exterior) e evoluindo depois, com a maturidade,
para uma posição interna.

O Guardador de Rebanhos (assim como o poema VIII que o sintetiza) dá conta do


percurso de Caeiro até ao momento em que a sua consciência começa a desper-
tar. Já os poemas que constituem O Pastor Amoroso são, em larga medida,

40
as honras fúnebres prestadas a Caeiro pela pessoa em que Caeiro se tornou de-
pois de, adquirida a consciência de si que lhe faltava, se enamorar de si mesmo e
morrer. Esse desdobramento é assinalado, por exemplo, a meio do poema com
que retoma a escrita d’O Pastor Amoroso no final da década de 1920 (BNP, 68-14):
«Eu não sei fallar porque estou a sentir. / Estou a escutar a minha voz como se
fosse de outra pessoa, / e a minha voz falla d’ella como se ella é que fallasse». Ao
sentir ao mesmo tempo que fala, Caeiro repara na autonomia da sua própria voz
e separa-se dela. A voz passa assim a pertencer a outra pessoa, e os atributos de
Caeiro passam a inerir na pessoa que fala: «Tem o cabello de um louro amarello
de trigo ao sol claro, / e a bocca quando falla diz cousas que não ha nas palavras.
/ Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio» (Pessoa, 2015: 69). É sobre
esta segunda pessoa que incidirá o amor de Caeiro.

Como o declara no primeiro verso de outro dos poemas do conjunto (BNP, 67-
63r), «o amor é uma companhia» (Pessoa, 2015: 69). Significa isto que o amor é,
n’O Pastor Amoroso, exactamente o que o Menino Jesus é no poema VIII («damo-
-nos tam bem um com o outro / na companhia de tudo / que nunca pensamos
um no outro» [Pessoa, 2015: 40]), com a importante diferença de que esta com-
panhia lhe é consciente. A amada de Caeiro é ele próprio, mais concretamente a
alma de que não tinha a percepção anteriormente. Equivale, pois, ao Menino
Jesus do poema VIII, sendo aquilo que num primeiro momento lhe permite ver
o mundo exterior e aquilo que, acabando a claridade, se recolhe ao seu interior.
É nesse momento, quando deixa de ser uma criatura exterior, que o acompanha
para todo o lado, que lhe aponta para as coisas e da qual não tem percepção, que
a amada de Caeiro, passando a ter existência interior, suscita o amor dele. Sem a
sua presença constante, Caeiro passa a pensar constantemente nela, conferin-
do-lhe portanto a existência interior que não lhe reconhecia antes. Ao aperce-
ber-se da companhia dessa criatura, Caeiro deixa de poder ser apenas a pessoa
sozinha que era até então e passa a ser Caeiro mais aquilo que agora o acompa-
nha: «Já não sei andar só pelos caminhos, / porque já não posso andar só»
(Pessoa, 2015: 69).

No momento em que deixa de haver sol (ou um Menino Jesus em quem o astro é
figurado), Caeiro fica perante a ausência daquilo que antes o acompanhava e por
intermédio do qual podia ver toda a realidade exterior, começa a pensar nele
para suprir essa ausência, e apercebe-se da sua antiga presença. O Pastor
Amoroso dá conta da evolução dessa percepção, terminando com a descoberta
inevitável de que afinal ninguém o amara: «amei, e não fui amado, o que só vi
no fim» (Pessoa, 2015: 69). Ao descobrir-se, ao ver-se a si mesmo, Caeiro perde
em definitivo o seu aspecto larvar original e deixa de ser quem fora. Como expli-
cado anteriormente, passa a ser Ricardo Reis, que deve então ser entendido

41
como uma espécie de segunda natureza de Caeiro. E quem é o Caeiro que assina
os Poemas inconjuntos? Em poucas palavras, a própria consciência que Caeiro
não tinha antes; o lado de dentro da criatura cindida cujo lado de fora é agora
Ricardo Reis. É nesse sentido que me parece justo falar desse ciclo de poemas
como uma obra póstuma.

Em «Ambiente», um texto publicado na revista presença em 1927, Álvaro de


Campos declara que «a vida é o lado de fora da morte». Em certa medida,
Ricardo Reis é o lado de fora da criatura em cujo interior jaz agora Caeiro morto.
Mas Caeiro é mais do que isso. Enquanto habitante privilegiado desse espaço in-
terior, Caeiro corresponde à consciência que Ricardo Reis tem de si. Como
Campos também diz no mesmo texto, «um deus, no sentido pagão, isto é, verda-
deiro, não é mais que a inteligência que um ente tem de si próprio, pois essa in-
teligência, que tem de si próprio, é a forma impessoal, e por isso ideal, do que é».
Caeiro é o ideal de vida de Ricardo Reis, mas é também a forma impessoal que,
no momento em que tomou conhecimento da sua própria pessoa, passou a exis-
tir dentro de si. «Formando de nós um conceito intelectual», diz ainda Álvaro de
Campos, «formamos um deus de nós próprios» (Pessoa, 2000: 367). Ao desco-
brir-se, Caeiro separa-se então de si mesmo e dá lugar a uma criatura cindida em
cujo interior o próprio Caeiro passa a existir como um deus.

Há um poema ortónimo de 1935 que resume em poucas quadras o processo de


metamorfose que acabo de descrever. Refiro-me a «Eros e Psique». O poema nar-
ra a história de dois amantes (uma princesa adormecida e um infante que virá
acordá-la) que desconhecem a existência um do outro: «Longe o infante, esforça-
do, / sem saber que intuito tem, / rompe o caminho fadado. / Ele dela é ignorado.
/ Ela para ele é ninguém». Tal como o infante deste poema, que busca sem saber
a princesa em quem nem sequer pensava, o caminho percorrido por Caeiro n’O
Guardador de Rebanhos leva-o ao encontro de uma amada que não procurava. O
que acontece ao infante no final do poema, ao chegar «onde em sono ela mora»,
é de resto o que acontece a Caeiro n’O Pastor Amoroso: infere a existência da
amada, enamora-se dela e, por fim, percebe que ela não é senão uma abstracção
de si mesmo: «e, inda tonto do que houvera, / à cabeça, em maresia, / ergue a
mão, e encontra hera, / e vê que ele mesmo era / a Princesa que dormia» (Pessoa,
2006: 134-135). Enquanto criança em quem a alma ainda não despertou, Caeiro é
o deus Eros rompendo o «caminho fadado» que o levará a descobrir a sua pró-
pria alma adormecida. É dessa descoberta que nasce Ricardo Reis, a criatura
cindida na qual se actualiza a tensão conjugal entre Eros e Psique, entre aquilo
que Caeiro fora até então e a alma (ou a consciência) que nessa altura passa a
conhecer.

42
BIBLIOGRAFIA

AMADO, Nuno, Ricardo Reis (1887-1936), tese de doutoramento no Programa em


Teoria da Literatura, Universidade de Lisboa, 2016 (disponível em http://www.
letras.ulisboa.pt/images/areas-unidades/literaturas-artes-culturas/programa-
-teoria-literatura/documentos/amado2_def.pdf).

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Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.

PESSOA, Fernando, Crítica: Ensaios, Artigos e Entrevistas, ed. Fernando Cabral


Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000.

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Nacional-Casa da Moeda, 2015.

PESSOA, Fernando, Poemas de Ricardo Reis, ed. Luiz Fagundes Duarte, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994.

PESSOA, Fernando, Poesia: 1931-1935 e Não Datada, ed. Manuela Parreira da


Silva, Ana Maria Freitas e Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006.

PESSOA, Fernando, Prosa de Álvaro de Campos, ed. Jerónimo Pizarro e Antonio


Cardiello, com colaboração de Jorge Uribe, Lisboa, Babel, 2012.

PESSOA, Fernando, Prosa de Ricardo Reis, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa,
Assírio & Alvim, 2003.

PESSOA, Fernando, Prosa Íntima e de Autoconhecimento, ed. Richard Zenith,


Obra Essencial de Fernando Pessoa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.

43
Curadoria e revogação:
o caso Pessoa 10
Pedro Tiago Ferreira

10 O presente texto é uma versão abreviada de Curadoria e Revogação: O Caso Pessoa, tese de doutoramento em Teoria da Literatura apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.

44
I. INTRODUÇÃO
Este estudo versa sobre dois problemas que são tão antigos quanto a Literatura e
a Filologia, visto que são intrínsecos a estas duas áreas do conhecimento; as
duas soluções que aqui são propostas para os mesmos são construídas tendo por
base o trabalho de outros autores, mas, tanto quanto sabemos, a articulação que
neste trabalho lhes é dada é original. Surpreendentemente, o primeiro destes
problemas (na ordem de exposição, não de importância) não é quase nunca dis-
cutido com a profundidade merecida, ao passo que a existência do segundo pura
e simplesmente não é, tanto quanto nos é dado a observar, sequer reconhecida
pelas literaturas especializadas.

Toda a discussão se encontra vinculada ao «caso Pessoa», expressão que se refe-


re à obra de Fernando Pessoa, dado que a mesma oferece um exemplo excelente
da maneira como os dois problemas discutidos ao longo deste trabalho afectam
tanto a crítica textual como a crítica literária. No nosso entender, vincular toda
a discussão a uma obra concreta é muito mais vantajoso do que abordar os pro-
blemas em abstracto. Por um lado, esta vinculação possibilita a delimitação do
escopo do assunto deste ensaio com uma eficácia que não seria possível se a dis-
cussão fosse travada em abstracto; por outro lado, esta opção confere uma visão
muito mais adequada de ambos os problemas e das dificuldades que estes pro-
vocam a críticos literários e a críticos textuais, sem embargo de, como começá-
mos por afirmar, nem uns nem outros se aperceberem destes mesmos proble-
mas em toda a sua extensão.

O primeiro problema pode ser formulado através da pergunta «O que é um filólo-


go?», e surge a partir de dois vectores, discutidos na segunda secção deste estu-
do, mas que poderão ser desde já sucintamente mencionados: por um lado, da
aceitação de um argumento da autoria de Steven Knapp e de Walter Benn
Michaels, que acabou por ficar conhecido por argumento «contra a teoria», se-
gundo o qual o significado de um texto corresponde, em todas as circunstân-
cias, à intenção com que o seu autor o redigiu; por outro lado, da aceitação de
uma das três conclusões apresentadas por Hershel Parker no âmbito da objecção
por si avançada com o intuito de refutar o argumento acima referido. Esta con-
clusão consiste na chamada de atenção para o facto de que a responsabilidade
do conteúdo do texto de uma obra literária publicada não é exclusivamente do
seu autor; a partir da argumentação de Parker, torna-se claro que este usa o ter-
mo «autor» em referência à pessoa cujo nome se encontra na capa do livro que
serve de suporte à obra em questão, e que, tal como Michel Foucault famosa-
mente observa, cumpre uma função específica sobre a qual nos pronunciamos
igualmente na secção 2.

45
Este problema consiste, portanto, em perceber em que medida o significado
de um texto pode corresponder, em todas as circunstâncias, à intenção com que
o seu autor o redigiu sem se deixar de reconhecer que outros intervenientes,
além do autor originário, designadamente revisores editoriais, na fase de revi-
são do texto para publicação, e críticos textuais, na fase de transmissão, têm res-
ponsabilidade textual, isto é, responsabilidade pelo conteúdo da versão publica-
da do texto em questão.

Quanto ao segundo problema, este pode ser formulado através da seguinte per-
gunta: de entre as várias edições de uma obra literária disponíveis no mercado,
qual se deve considerar canónica para efeitos de interpretação e análise literá-
ria? A pertinência da pergunta advém do facto de cada uma das edições em
questão ser da responsabilidade de um crítico textual diferente, e, por isso, o
conteúdo de cada uma delas é substancialmente diferente entre si. Tal como su-
cede com o primeiro problema, esta segunda questão também é discutida à luz
do caso Pessoa, que fornece vários exemplos de edições diferentes de obras cujo
conteúdo, de edição para edição, é substancialmente díspar, não obstante todas
as edições partilharem, entre si, o mesmo título e serem atribuídas foucaultia-
namente ao mesmo autor. Esta situação é, de resto, perfeitamente natural, dado
que as várias edições disponíveis de obras intituladas Livro do Desassossego ou
O Guardador de Rebanhos, por exemplo, são da responsabilidade de críticos tex-
tuais diferentes. Como defendemos ao longo deste estudo, estabelece-se uma
co-autoria entre Pessoa e o respectivo crítico textual de uma dada obra, o que
produz o efeito de cada uma das obras em questão ser uma obra em si mesma,
por direito próprio; estamos perante obras distintas, e não somente diante
de versões distintas da mesma obra. Esta ideia acarreta consigo algumas impli-
cações jurídicas que são discutidas na secção 4.

Estas considerações indicam as razões pelas quais o segundo problema sobre


o qual este trabalho incide só é sentido como um problema após uma discussão
aprofundada do primeiro. Com efeito, é necessário, em primeiro lugar, enten-
der que críticos textuais são co-autores das obras que editam para que se sinta
que a existência de várias edições que partilham o mesmo título e o mesmo
nome de autor, mas que têm um conteúdo divergente entre si, é um problema
para a crítica literária que não pode ser ignorado. A visão da crítica textual
como consubstanciando uma situação de co-autoria sui generis emerge muito
claramente a partir da qualificação do crítico textual como um curador textual,
algo que resulta da sua actividade enquanto interveniente no texto literário à
luz do primeiro problema discutido no presente ensaio, e que é discutido na
secção 3.

46
Por razões que ficarão perceptíveis ao longo da secção 6, os críticos literários
não conseguem manter-se agnósticos quanto à canonicidade das edições de
obras como, por exemplo, o Livro do Desassossego ou O Guardador de Rebanhos,
dado que, ao escolherem determinada edição sobre a qual desenvolver o seu
trabalho, tomam uma decisão cujo efeito consiste em revogar as demais edições
existentes. Torna-se, por isso, necessário desenvolver o conceito de «revogação lite-
rária», o que é feito na secção 5.

II. AUTORIDADE E RESPONSABILIDADE TEXTUAL


O primeiro problema sobre o qual este estudo versa consiste em perceber qual o esta-
tuto do filólogo perante dois argumentos de sinal (aparentemente) contrário. O pri-
meiro destes argumentos consiste na tese segundo a qual todos os textos significam
aquilo que os seus autores querem que os mesmos signifiquem, tese essa que acabou
por ficar conhecida por argumento contra a teoria. O segundo argumento encontra-
-se numa vertente da objecção formulada por Parker ao argumento contra a teoria;
de acordo com Parker, qualquer edição publicada de uma obra literária contém por-
ções textuais cujo significado não é da responsabilidade do autor da obra em ques-
tão. A solução deste problema, avançada no final desta secção, passa por arguir que
a concepção de autoria utilizada por autores como Parker, que é tributária da con-
cepção de autoria de Foucault, é demasiado estreita para discutir questões de autori-
dade, ou responsabilidade textual, visto que contempla somente o indivíduo cujo
nome figura na capa de um livro, excluindo os demais intervenientes, que, apesar de
habitualmente não serem reconhecidos enquanto tal, são co-criadores intelectuais
da obra literária em questão. Por este motivo, a objecção de Parker é improcedente.

II.I. O argumento «contra a teoria»


Knapp e Michaels começam o seu argumento definindo o termo «teoria» como con-
sistindo num projecto especial no âmbito da crítica literária, a saber, o de tentar go-
vernar interpretações de textos em concreto através do apelo a uma descrição geral
de interpretação (Knapp e Michaels, 1985: 11)11. No entanto, a tese de Knapp e
Michaels é aplicável a todas as teorias da interpretação, não se restringindo à de tex-
tos literários, conforme os próprios o explicitam em dois ensaios posteriores, onde,
através dos mesmos argumentos, refutam os projectos teóricos da hermenêutica e
da desconstrução, projectos esses que usam a interpretação muito para além do âm-
bito da análise de textos literários (Knapp e Michaels, 1987), e estendem o argu-
mento expressamente aos textos jurídicos (Knapp e Michaels, 1992a).

11 «By “theory” we mean a special project in literary criticism: the attempt to govern interpretations of particular texts by
appealing to an account of interpretation in general.»

47
A razão pela qual os autores se manifestam contra a teoria prende-se com o fac-
to de esta tentar resolver problemas imaginários, que apenas parecem proble-
mas quando os teóricos não conseguem reconhecer a inseparabilidade funda-
mental dos elementos envolvidos (Knapp e Michaels, 1985: 11-12)12. Os elementos
envolvidos na interpretação são, por um lado, a intenção do autor e, por outro, o
significado do texto por si produzido. Ora, na medida em que, argumentam
Knapp e Michaels, o significado de um texto é simplesmente idêntico ao significa-
do intencionado pelo seu autor, a teoria, enquanto projecto especial que consiste
em alicerçar o significado na intenção, é incoerente e inconsequente, visto que o
momento teórico, onde o intérprete decide interpretar ou o significado do texto, ou
a intenção do autor, se revela ilusório. Assim sendo, interpretar é apurar a intenção
do autor manifestada através das palavras do texto por si produzido. Como defen-
dem Knapp e Michaels, estes elementos são inseparáveis, e, por isso, em bom rigor
não são dois, mas sim um único elemento (Knapp e Michaels, 1985: 12)13.

Ao se separar estes elementos, observam Knapp e Michaels, criam-se as condi-


ções necessárias para a formulação de teoria positiva, isto é, teoria em que a in-
tenção é adicionada à linguagem, por oposição a teoria negativa, onde se visa
subtrair intenção à linguagem (Knapp e Michaels, 1985: 24)14. No âmbito da teo-
ria positiva existe uma querela entre intencionalistas, que atribuem preponde-
rância à intenção do autor enquanto critério de validade da interpretação,
e anti-intencionalistas, para quem o importante é a análise do significado do
texto, ou seja, do sentido das palavras, independentemente de qual tenha sido a
intenção do seu autor ao usá-las. A discussão é travada tendo por referência traba-
lho desenvolvido por E. D. Hirsch e John Searle (Knapp e Michaels, 1985: 13-18).
No seio da teoria negativa, Knapp e Michaels destacam argumentos de Paul de
Man (Knapp e Michaels, 1985: 21-24).

12 «Theory attempts to solve — or to celebrate the impossibility of solving — a set of familiar problems: the function of
authorial intention, the status of literary language, the role of interpretive assumptions, and so on. We will not attempt
to solve these problems, nor will we be concerned with tracing their history or surveying the range of arguments they
have stimulated. In our view, the mistake on which all critical theory rests has been to imagine that these problems are
real. In fact, we will claim such problems only seem real — and theory itself only seems possible or relevant –
when theorists fail to recognize the fundamental inseparability of the elements involved.»

13 «The clearest example of the tendency to generate theoretical problems by splitting apart terms that are in fact
inseparable is the persistent debate over the relation between authorial intention and the meaning of texts. Some
theorists have claimed that valid interpretations can only be obtained through an appeal to authorial intentions. This
assumption is shared by theorists who, denying the possibility of recovering authorial intentions, also deny the possi-
bility of valid interpretations. But once it is seen that the meaning of a text is simply identical to the author’s intended
meaning, the project of grounding meaning in intention becomes incoherent. Since the project itself is incoherent, it
can neither succeed nor fail; hence both theoretical attitudes toward intention are irrelevant. The mistake made by
theorists has been to imagine the possibility or desirability of moving from one term (the author’s intended meaning)
to a second term (the text’s meaning), when actually the two terms are the same. One can neither succeed nor fail in
deriving one term from the other, since to have one is already to have them both.»

14 «[T]he positive theorist adds intention, the negative theorist subtracts it.»

48
O ponto de vista segundo o qual a intenção e o significado são inseparáveis é fun-
damentado por Knapp e Michaels não através da formulação de um argumento na
linha de autores que, como Searle, defendem que é impossível fugir da intenciona-
lidade, mas sim demonstrando que a alternativa, i. e., separar a intenção da lin-
guagem, é contra-intuitiva. Tal é feito recorrendo ao seguinte exemplo: alguém vai
a passear na praia e vê riscos na areia; após retroceder alguns passos, consegue
discernir que os riscos são palavras de um poema de Wordsworth. Segundo os au-
tores, este caso poderia parecer um exemplo de significado sem intenção, dado que
quem vê os riscos reconhece o que está escrito como sendo escrita, consegue com-
preender o significado das palavras, e, inclusive, poderá identificá-las como partes
constituintes de uma estrofe poética rimada, sendo que tudo isto é possível sem se
saber nada acerca do autor, nem ser necessário ligar as palavras a qualquer noção
de autoria; qualquer pessoa pode fazer tudo isto sem pensar na intenção de quem
quer que seja.

Passados alguns segundos, uma onda atinge a areia, por baixo das palavras, e
inscreve a segunda estrofe do referido poema. Knapp e Michaels questionam até
que ponto a intenção continua a parecer irrelevante, conforme o aparentava ser
antes do surgimento da onda, para a decifração de como é possível o mar ter es-
crito uma estrofe de um poema, e chegam à conclusão de que há duas explica-
ções possíveis para este fenómeno: por um lado, o mesmo será da responsabili-
dade de um agente capaz de intenções, que poderia ser o fantasma de
Wordsworth, ou o mar como criatura viva, ou, em alternativa, as marcas surgem
na areia em consequência de processos mecânicos não intencionais, isto é, as
marcas seriam o resultado de um acidente da natureza que, por coincidência, se
assemelhariam a signos linguísticos.

49
Para Knapp e Michaels, eleger a segunda opção levantaria a seguinte questão:
onde as marcas agora parecem ser acidentes, continuarão a parecer palavras? Os
autores respondem negativamente, uma vez que as marcas apenas parecerão as-
semelhar-se a palavras, mas, na realidade, não o são, uma vez que, se são produ-
zidas em resultado de um processo natural de erosão, não são linguagem; esta é
a conclusão óbvia que se retira da classificação das marcas como sendo um aci-
dente (Knapp e Michaels, 1985: 15-16)15.

Deste modo, a conclusão que se extrai do argumento contra a teoria é a de que as pa-
lavras não têm sentidos em abstracto que existem independentemente da intenção
de quem as utiliza; se certas marcas, postas aleatoriamente juntas umas às outras,
formarem aquilo que um falante de uma determinada língua natural reconheça
como uma palavra dessa mesma língua, não estaremos perante uma palavra, mas
sim perante um acidente. Além do poema na areia, são exemplos de acidentes deste
género a utilização de computadores por parte de macacos e os sons emitidos por pa-
pagaios. Na medida em que os macacos não são dotados da capacidade de escrever,

15 «The claim that all meanings are intentional is not, of course, an unfamiliar one in contemporary philosophy
of language. John Searle, for example, asserts that “there is no getting away from intentionality,” and he and others
have advanced arguments to support this claim. Our purpose here is not to add another such argument but to show
how radically counterintuitive the alternative would be. We can begin to get a sense of this simply by noticing how dif-
ficult it is to imagine a case of intentionless meaning. Suppose that you’re walking along a beach and you come upon a
curious sequence of squiggles in the sand. You step back a few paces and notice that they spell out the following words:

A slumber did my spirit seal;


I had no human fears:
She seemed a thing that could not feel
The touch of earthly years.

This would seem to be a good case of intentionless meaning: you recognize the writing as writing, you understand
what the words mean, you may even identify them as constituting a rhymed poetic stanza — and all this without
knowing anything about the author and indeed without needing to connect the words to any notion of an author at all.
You can do all these things without thinking of anyone’s intention. But now suppose that, as you stand gazing at this
pattern in the sand, a wave washes up and recedes, leaving in its wake (written below what you now realize was only
the first stanza) the following words:

No motion has she now, no force;


She neither hears nor sees;
Rolled round in earth’s diurnal course,
With rocks, and stones, and trees.

One might ask whether the question of intention still seems as irrelevant as it did seconds before. You will now, we
suspect, feel compelled to explain what you have just seen. Are these marks mere accidents, produced by the mechani-
cal operation of the waves on the sand (through some subtle and unprecedented process of erosion, percolation, etc.)?
Or is the sea alive and striving to express its pantheistic faith? Or has Wordsworth, since his death, become a sort of
genius of the shore who inhabits the waves and periodically inscribes on the sand his elegiac sentiments? You might go
on extending the list of explanations indefinitely, but you would find, we think, that all the explanations fall into two
categories. You will either be ascribing these marks to some agent capable of intentions (the living sea, the haunting
Wordsworth, etc.), or you will count them as nonintentional effects of mechanical processes (erosion, percolation, etc.).
But in the second case — where the marks now seem to be accidents — will they still seem to be words?

Clearly not. They will merely seem to resemble words. You will be amazed, perhaps, that such an astonishing coinci-
dence could occur. Of course, you would have been no less amazed had you decided that the sea or the ghost of Word-
sworth was responsible. But it’s essential to recognize that in the two cases your amazement would have two entirely
different sources. In one case, you would be amazed by the identity of the author — who would have thought that the
sea can write poetry? In the other case, however, in which you accept the hypothesis of natural accident,
you’re amazed to discover that what you thought was poetry turns out not to be poetry at all. It isn’t poetry because it
isn’t language; that’s what it means to call it an accident.»

50
se um destes animais, encontrando-se diante do teclado de um computador, pres-
sionar as teclas, fá-lo-á aleatoriamente, sem qualquer intuito de escrever palavras ou
de elaborar um texto. É, todavia, provável que este uso do teclado, por parte do ma-
caco, produza, esporadicamente, signos que se assemelham às palavras de uma lín-
gua natural. Dito por outras palavras, é perfeitamente possível que o macaco pres-
sione as seguintes quatro teclas de forma sequencial: C-A-S-A, e, seguidamente,
a barra de espaços. Ao fazer isto, o macaco criou uma marca semelhante à da palavra
«casa». A razão pela qual lhe chamamos «marca», e não «palavra», prende-se preci-
samente com o facto de a marca ter sido criada sem intenção. O macaco não quis es-
crever «casa» porque não é dotado da capacidade de escrever. O mesmo raciocínio se
aplica à capacidade que os papagaios têm em emitir sons que se parecem com os fo-
nemas que compõem as palavras das línguas naturais; naturalmente, o que os papa-
gaios produzem não são palavras, na medida em que não o fazem intencionalmente,
i. e., os sons não são a expressão de um pensamento articulado.

Em suma, palavras, orações, períodos, frases e parágrafos que, em conjunto, for-


mam um texto, dão expressão a uma unidade indivisível de sentido que é, ine-
rente e inevitavelmente, criada por um agente humano. Dito de outra forma,
aquilo que um intérprete retira de um texto, independentemente da sua índole,
é a manifestação da intenção do seu autor, visto que todos os textos são produzi-
dos por seres humanos, o que nos leva a concluir que o significado de um texto é,
e não pode deixar de ser, equivalente àquilo que o seu autor quer dizer no mo-
mento em que o redige.

A conclusão a que esta linha de raciocínio conduz é, portanto, a seguinte:


as marcas que compõem os signos linguísticos utilizados pelos seres humanos
na produção de textos não são, em si mesmas, palavras. O que as torna palavras
é o seu uso em actos de fala, que são actos intencionais. Na medida em que as
palavras são sempre usadas em actos de fala — só podem ser usadas em actos
de fala, dado que, caso contrário, não são palavras —, elas têm sempre o signifi-
cado que lhes é atribuído por quem as utiliza. Há uma objecção óbvia a esta as-
serção: as palavras definidas nos dicionários não estão a ser usadas em actos
de fala. No entanto, esta objecção não procede, visto que parece somente que es-
sas palavras não estão a ser usadas em actos de fala; na realidade, estão: confor-
me Knapp e Michaels notam, um dicionário é um índice de usos frequentes de
palavras em actos de fala concretos, não uma matriz de possibilidades abstrac-
tas e pré-intencionais (Knapp e Michaels, 1985: 21, nota 12)16.

16 «[A] dictionary is an index of frequent usages in particular speech acts — not a matrix of abstract, pre-intentional
possibilities.»

51
Assim, pelos motivos avançados ao longo desta subsecção, ao intérprete de um
texto, independentemente da posição teórica que assuma, não é concedida alter-
nativa: em ordem a apurar o significado do texto, apurar-se-á, inevitavelmente, a
intenção do seu autor, e vice-versa, uma vez que a obtenção de um dos termos im-
plica a obtenção do outro, dado que não existe linguagem independente de uma
intenção. Interpretar é unicamente entender a intenção do autor, que é manifesta-
da através do seu texto.

II.II. A objecção de Parker


A propósito da posição resumidamente descrita na subsecção anterior, Parker afir-
ma que Knapp e Michaels se referem ao «significado do texto» sem se interrogarem
acerca de como é que o mesmo alcançou o estado sob o qual os intérpretes o encon-
tram (Parker, 1983: 72)17. Com efeito, sem embargo de todo o significado válido ser
o significado do autor (Parker, 1984: IX)18, as vicissitudes próprias da produção, re-
visão e transmissão de textos literários provocam alterações no texto original, i. e.,
no texto tal como o autor o escreveu pela primeira vez. O argumento que Parker uti-
liza para sustentar a sua posição é o seguinte: a teoria editorial dominante na tradi-
ção anglo-americana da crítica textual moderna19 entre as décadas de 60 e de 80 do
século XX é, na óptica de Parker, inválida na maioria dos casos em que os textos são
alvo de revisões tardias porque se funda na assumpção, que Parker considera erra-
da, de que todo e qualquer autor retém autoridade completa sobre tudo o que escre-
ve ao longo da sua vida (Parker, 1984: IX)20. Esta teoria foi desenvolvida a partir de
um texto apresentado por W. W. Greg numa conferência em 1949, e publicado um
ano depois (Greg, 1950). A imputação efectuada por Parker, se dirigida especifica-
mente a Greg, não é exacta, dado que este último apelida editores que usam como
texto-base da edição que estão a preparar a última edição impressa durante a vida
do autor de «excêntricos», argumentando que a assumpção sobre a qual estes edito-
res se baseiam, a saber, a de que o autor reviu todas as edições publicadas ao longo
da sua vida, leva a resultados crítico-textuais deploráveis (Greg, 1950: 23, nota 7)21.
No entanto, uma leitura atenta do argumento de Parker revela que a sua crítica é di-
rigida à tradição editorial moderna anglo-americana baseada nas ideias de Greg,
não sendo, de facto, especificamente formulada contra este autor.

17 «In their attempts to clarify and improve upon some of the arguments of E. D. Hirsch and his recent follower P. D. Juhl,
Steven Knapp and Walter Benn Michaels refer to “the meaning of a text” without asking how the text reached the state
in which they encounter it.»

18 «All valid meaning is authorial meaning.»

19 Para uma história da crítica textual tradicional e da crítica textual moderna, bem como para a distinção entre ambas,
cf. McGann, 1992.

20 «The dominant editorial theory of the last three decades, W. W. Greg’s “Rationale of Copy-Text”, is invalid in most cases
of belated revision because it is grounded on the assumption that every author retains full authority over anything he
has written for as long as he lives.»

21 «I have above ignored the practice of some eccentric editors who took as copy-text for a work the latest edition printed
in the author’s lifetime, on the assumption, presumably, that he revised each edition as it appeared. The textual results
were deplorable.»

52
Começando pela fase de produção, Parker assevera que os escritores repetida-
mente falham o objectivo de atingir os significados por si intencionados durante
o processo criativo, apesar de ser nesta fase que o seu controlo sobre o trabalho a
emergir é mais forte (Parker, 1983: 73)22. Para fundamentar esta afirmação
Parker recorre a uma ideia de John Dewey, a de que o significado é incutido no
texto no momento em que cada parte do mesmo é escrita. Segundo Dewey, o ar-
tista é controlado no processo do seu trabalho pelo entendimento da ligação en-
tre o que já fez e aquilo que irá fazer a seguir. Assim, o autor deve a cada momen-
to reter aquilo que está para trás como sendo um todo com referência a um todo
ainda por vir; se tal não acontecer, não haverá nem consistência, nem segurança
nos actos subsequentes executados pelo autor (Parker, 1983: 73)23.

A perda de autoridade a que Parker se refere adensa-se numa segunda fase, a saber,
a da revisão, visto que, nesta fase, frequentemente intervêm outros agentes que não o
autor, que, através das alterações por si promovidas, lhe retiram autoridade. Por fim,
na fase da transmissão, a perda de autoridade agudiza-se, chegando-se a um momen-
to, o da morte do autor, em que a perda de controlo e de autoridade passa a ser total.
Com efeito, se, na fase da revisão, a última palavra cabe ao autor na medida em que o
mesmo poderá, quando as provas lhe são apresentadas, corrigir lapsos editoriais
(e. g. gralhas, eliminação indevida de porções textuais, eliminação, acrescento ou tro-
ca de palavras, etc.) ou rejeitar sugestões efectuadas pelo revisor (e. g., alterações de
pontuação, de ortografia, de palavras, etc.)24, podendo argumentar-se que a não rejei-
ção equivale a uma aceitação tácita das alterações25, no caso da transmissão de texto
este controlo é, por um lado, muito mais ténue, desde logo porque o autor estará pre-
disposto a aceitar as provas submetidas para edições subsequentes sem sequer as ler,
e, por outro lado, deixa definitivamente de existir após a morte do autor, sendo a par-
tir deste momento que as questões verdadeiramente problemáticas se colocam.

Deste modo, Parker adverte que os autores, ao reverem ou permitirem a outrem que
reveja uma obra literária, especialmente após se considerar a mesma como estando
completa, frequentemente perdem autoridade, daqui resultando três coisas, a saber,

22 «Writers repeatedly fail to achieve their intended meanings during the actual creative process, even though their
control over the emerging work is then at its strongest.»

23 «[A]s John Dewey says, meaning is infused into the text at the moment each part is written. The “artist is controlled in
the process of his work by his grasp of the connection between what he has already done and what he is to do next”.
He must “at each point retain and sum up what has gone before as a whole and with reference to a whole to come”;
if this does not happen, there will be “no consistency and no security in his successive acts”.»

24 Um lapso e uma sugestão editoriais são diferenciáveis somente se o revisor assinalar, na versão submetida a título de
provas, as sugestões; quando tal acontece, as alterações (em relação à versão primeiramente submetida pelo autor) não
assinaladas serão seguramente lapsos. Como é óbvio, quando nenhuma alteração é assinalada, torna-se impossível
diferenciar lapsos de sugestões, a não ser, naturalmente, que se trate de um erro ortográfico injustificado à luz do texto
(como, por exemplo, escrever «trica» em vez de «troca», gralha que resulta de pressionar inadvertidamente a tecla que
se encontra ao lado daquela que o revisor quereria pressionar).

25 Naturalmente, o argumento da aceitação tácita apenas faz sentido no caso de sugestões, visto que, quando lapsos
criados pelo revisor aparecem na versão publicada tal não resulta da aceitação tácita, por parte do autor, do lapso,
mas sim do facto de o próprio autor não ter corrigido o lapso por não o ter detectado.

53
que há textos literários que, em determinados pontos: 1) não têm significado; 2) o seu
significado é apenas em parte da responsabilidade do autor; 3) o significado do texto é
acidental, não sendo intencionado nem pelo autor, nem por outrem (Parker, 1983: 74)26.

No nosso entender, a objecção de Parker é improcedente em relação à primeira e à ter-


ceira conclusão, sendo aparentemente procedente quanto à segunda, aparência essa
que advém de uma concepção de autoria utilizada por Parker que temos por inade-
quada para efeitos da presente discussão. A partir do momento em que esta concep-
ção de autoria seja corrigida, verificar-se-á que a objecção de Parker desaparece. De
forma a sustentarmos esta posição, procederemos à análise da primeira e terceira
conclusões na próxima subsecção, abordando a segunda na subsecção subsequente.

II.III. Trechos sem significado e significados acidentais


Nada temos a opor à ideia segundo a qual, em virtude de o significado de um
texto ser criado no momento em que cada uma das suas partes é redigida, dado
que, efectivamente, o texto manifesta a intenção com que o seu autor o escreve,
o autor se encontra, durante a fase de produção, por razões de coerência interna
do próprio texto, como que «refém» das partes escritas em primeiro lugar, sendo
que estas, aquando da sua redacção, foram, por sua vez, moldadas tendo em vis-
ta as partes ainda por escrever. Contudo, as razões pelas quais Parker considera
que esta descrição do processo criativo, que entendemos ser correcta, implica
que os autores não conseguem atingir o desiderato de transmitir para o papel os
significados por si intencionados não são óbvias, embora presumivelmente
Parker pense que, por alterarem constantemente o texto, os autores não conse-
guem evitar discrepâncias ao nível do texto final. Esta presunção é, de resto,
corroborada pela paráfrase que Parker faz a duas passagens de Murray Krieger,
que argui que, na melhor das hipóteses, os autores transformam os falhanços de
transmissão de intenções originais para o texto em composição em oportunida-
des de sucesso oriundas de direcções inesperadas, além de que falhas que resul-
tam de intenções modificadas ou imperfeitamente transmitidas sobrevivem fre-
quentemente no texto impresso enquanto «detalhes contrários» que os leitores
ignoram devido a uma compulsão inerente ao ser humano em descortinar um
sentido em tudo aquilo que lê (Parker, 1983: 73)27. Assim, e independentemente
da obscuridade das razões que levam Parker a pensar deste modo, o resultado
do seu raciocínio é relativamente claro: na medida em que os autores nem sem-
pre conseguem transmitir as suas intenções para o texto, o que se pode dever ao

26 «In revising or allowing someone else to revise a literary work, especially after it has been thought of as complete,
authors very often lose authority, with the result that familiar literary texts at some points have no meaning, only
partially authorial meaning, or quite adventitious meaning unintended by the author or anyone else.»

27 «At best, as Murray Krieger argues, [authors] turn these failures of original intention into opportunities for success in
some unexpected direction, but flaws which result from shifting or imperfectly realized intentions commonly survive
in the printed text in the form of “contrary details” which we override in our compulsion to make sense of what we read.»

54
facto de o alterarem constantemente durante a fase de produção, deparamo-nos
por vezes com trechos textuais sem significado, ou cujo significado é acidental,
no texto publicado. É por este motivo que Parker se refere a perda de autoridade,
que, além de advir das circunstâncias acimas mencionadas, que se relacionam
com a fase de produção de texto, também pode sobrevir nas fases de revisão e de
transmissão, sendo que, nestas, outros agentes entram em acção, sejam eles
revisores de casas editoriais ou críticos textuais que continuam a cadeia
de transmissão postumamente.

No entanto, defender que as constantes modificações a que um texto está sujeito


durante os processos de composição, revisão e transmissão podem conduzir a
que versões publicadas contenham trechos sem significado ou com significados
acidentais que, em ambos os casos, não correspondem às intenções do autor,
implica que se distingam claramente três usos possíveis da expressão «não tem
sentido» e dois usos frequentes de «o sentido é acidental», a saber: 1) um texto
não tem sentido por desígnio autoral; 2) um texto não tem sentido, ou o seu sen-
tido é acidental, porque o autor não consegue, por incapacidade, actualizar as
suas intenções no texto; 3) um texto não tem sentido, ou o seu sentido é aciden-
tal, porque as partes que o compõem revelam, em resultado de lapsos produzi-
dos durante a composição, a revisão ou a transmissão, e não detectados antes da
publicação, incoerências entre si. Estas distinções são importantes porque,
tal como passaremos a demonstrar, na verdade não existem textos que se subsu-
mam no primeiro uso, não é possível haver autores segundo o que é descrito no
segundo uso, e, em relação ao terceiro uso, o «texto» apresentado não é, na reali-
dade, um texto, visto que não é linguagem.

Esperar-se-ia, tendo em atenção a adesão de Parker ao argumento de Dewey, que


o primeiro usasse a expressão «não tem significado» apenas na acepção aqui
mencionada em 3). Contudo, como vimos, tal não se verifica, dado que Parker
defende que os escritores repetidamente falham o objectivo de atingir os signifi-
cados por si intencionados durante o processo criativo, e, se falham, é porque
não o conseguem fazer, não porque não o queiram ou porque estejam constante-
mente a cometer lapsos. Ora, falhar o desiderato de comunicar intenções através
de textos, orais ou escritos, só acontece sistematicamente em pessoas que pade-
cem de um grau considerável de anomalia psíquica; nestes casos, faz sentido
afirmar que o indivíduo não consegue criar textos cujo significado corresponda à
sua intenção. No entanto, é notório que pessoas que se encontram nesta situa-
ção não conseguem, precisamente, tornar-se autores.

Fora destes casos, só é compaginável a existência de trechos textuais cujo signi-


ficado seja acidental em resultado de lapsos, e de passagens cujo significado não

55
tem sentido, além do que ocorre, também aqui, devido a lapsos, se tal for o de-
sígnio do autor, ou seja, se este, intencionalmente, quiser provocar incongruên-
cias. No entanto, uma curta reflexão sobre o uso da expressão «não tem sentido»
para descrever situações em que o autor, propositadamente, produz trechos
ininteligíveis, conduz inevitavelmente à conclusão de que, na realidade, esta-
mos, também neste caso, perante trechos cujo significado manifesta a intenção
do autor, intenção essa que é, precisamente, a de conduzir o intérprete a pensar
que está perante um trecho sem significado. Uma outra reflexão, que passare-
mos desde já a encetar, revela, por seu turno, que significados acidentais ou tex-
tos sem significado que surjam em resultado de lapsos não são instâncias de lin-
guagem, e, por isso, «textos» nestas condições não são textos, e, por este motivo,
não são interpretáveis.

Estas conclusões deixam de ser contra-intuitivas a partir do momento em que se


observe que o argumento contra a teoria não preclui a existência de textos sem
significado tendo por padrão de significado o sistema linguístico (gramatical e
semântico) de uma determinada língua natural. Tal como Knapp e Michaels ob-
servam, qualquer pessoa pode usar qualquer coisa para significar qualquer coi-
sa (Knapp e Michaels, 1992b: 187)28, e, por isso, qualificar o significante como
«certo» ou «errado», «inteligível» ou «ininteligível», só faz sentido tendo em vista
um determinado padrão. Assim, seria semanticamente errado, do ponto de vista
da língua portuguesa, designar o animal que todos conhecemos por «cão» atra-
vés do termo «gato»; este erro, contudo, não faz com que a frase «o gato ladra»
seja ininteligível per se, ainda que o seja à luz do código linguístico designado
através da expressão «língua portuguesa». Ora, «o gato ladra» é uma proposição
que pode ser produzida intencionalmente ou acidentalmente. Em ambos os ca-
sos, há vários motivos que a podem explicar. A proposição pode ser intencional,
por exemplo, numa obra surrealista, tal como pode ser acidental em virtude de
um lapso freudiano cometido pelo autor, ou, então, por um lapso ocorrido na re-
visão ou na transmissão de texto. Argumentar que proposições como «o gato la-
dra» não são absolutamente ininteligíveis é contra-intuitivo, em grande parte
devido à influência de ideias apresentadas por autores como Searle (Searle,
1999: 22-127) e Paul Grice (Grice, 1991: 86-137), por exemplo, que estabelecem
uma diferença entre significado linguístico e significado do falante (que é exten-
sível ao autor de um texto reduzido a escrito), mas o argumento acaba por se tor-
nar mais claro se, na esteira de Stanley Fish, se considerar que não existe «lingua-
gem comum», pelo menos no sentido ingénuo que frequentemente é dado ao
termo, a saber, o de um sistema abstracto formal, que, observa Fish parafraseando

28 «[T]here is no limit to what someone can intend something to mean — or, to put this another way, […] anyone can use
anything to mean anything.»

56
Searle, é apenas usado incidentalmente para propósitos de comunicação huma-
na (Fish, 1994: 106)29. Ora, apenas postulando a existência de uma linguagem
comum, constituída por um sistema meramente formal que apresentaria factos
independentemente de quaisquer considerações de valor, interesse, perspectiva
ou propósito (Fish, 1994: 97)30, cujo constituinte definidor seria a sua capacida-
de de transportar mensagens (Fish, 1994: 101)31, por oposição a, por exemplo,
linguagem literária, que seria supostamente dotada de propriedades formais
do domínio exclusivo de textos literários, e que, ao contrário da linguagem co-
mum, seria valorativa, parcial e orientada (Fish, 1994: 101-102)32, é possível ar-
guir que um determinado passo de um texto literário não tem significado, ou
que o seu significado é acidental. Ao se eliminar a ilusão da existência de uma
linguagem comum no sentido de sistema linguístico abstracto e formal dotado
de propriedades gramaticais e semânticas cujo sentido é independente da inten-
ção com que os falantes usam o sistema, resta-nos constatar que todas as ins-
tâncias de utilização de uma língua (actos de fala) são intencionais, e, por isso, o
significado de um acto de fala é, e não pode deixar de ser, manifestação da in-
tenção do seu autor. Arguir que determinado acto de fala (que, naturalmente,
inclui as proposições que compõem o texto de uma obra literária) carece de sig-
nificado, ou que o seu significado é acidental, é algo que só faz sentido se se pre-
tender afirmar que o acto de fala em questão é resultado de um lapso freudiano
do autor ou do revisor. Nestes casos, o trecho textual em questão carecerá efecti-
vamente de sentido, ou terá um sentido acidental, em virtude de lapsos e erros,
que, sendo involuntários, não são fruto da intenção de ninguém, o que faz com
que, em bom rigor, o trecho em questão não seja, na realidade, um acto de fala,
e, por isso, não seja uma instância de linguagem.

Desta forma, parece-nos notório que Parker pense que as necessidades intrínse-
cas à produção de um texto coerente sejam responsáveis pela disjunção que este
autor julga existir entre o significado intencionado pelo autor de um texto e o
significado efectivamente presente (ou ausente) no texto por si redigido.
A premissa sobre a qual este argumento de Parker assenta não é, pelos motivos aci-
ma apontados, sólida. É um facto que os autores, quando escrevem, têm em consi-
deração aquilo que escreverão no futuro, i. e., as partes ainda por redigir.
É igualmente verdade que, quando essas mesmas partes começam a ser redigidas,

29 «[T]here is no such thing as ordinary language, at least in the naive sense often intended by that term: an abstract
formal system, which, in John Searle’s words, is only used incidentally for purposes of human communication.»

30 «“Ordinary language” is one of a number of terms used to designate a kind of language that “merely” presents or mir-
rors facts independently of any consideration of value, interest, perspective, purpose, and so on.»

31 «For some, the defining constituent of ordinary language, or language, is its capacity to carry messages.»

32 «But whatever the definition [of language], two things remain constant: (1) the content of language is an entity that can
be specified independently of human values (it is, in a word, pure) and (2) a need is therefore created for another entity
or system in the context of which human values can claim pride of place. That entity is literature, which becomes by
default the repository of everything the definition of language excludes.»

57
a sua produção se encontra condicionada pelos trechos textuais escritos ante-
riormente. Pode, inclusive, dar-se o caso de o autor mudar de ideias e alterar ou
eliminar parte do que já se encontra escrito, invertendo-se a direcção do condi-
cionamento: aquilo que é escrito posteriormente condiciona os trechos escritos
anteriormente, levando à sua modificação ou eliminação. Todavia, defender que
os escritores repetidamente falham o objectivo de atingir os significados por si
intencionados durante o processo criativo porque mudam constantemente de
ideias, o que os levaria, segundo o argumento, a criar trechos dotados de signifi-
cados acidentais ou, inclusive, trechos sem significado, dadas as dificuldades
inerentes a este processo de reformulação, efectuado pelo próprio autor com o
intuito de preservar a coerência do seu texto, é errado. Mudar de ideias, bem
como estar dependente de constrangimentos próprios da escrita coerente, não
implica que não se consiga passar as intenções para o papel (como vimos, ape-
nas a anomalia psíquica profunda o impede; casos em que, ocasionalmente, o
autor de um texto, oral ou escrito, não consegue manifestar as suas intenções
através do seu texto são manifestamente lapsos, ou malapropismos não inten-
cionais)33. As dificuldades próprias da reformulação de trechos escritos anterior-
mente poderão criar significados ininteligíveis à luz de um padrão de coerência
que os autores (supostamente, segundo Parker) respeitam. No entanto, quem
concorde com Dewey, como é o caso de Parker, não pode tentar construir um ar-
gumento (coerente) com o intuito de demonstrar que há significados acidentais
ou ininteligíveis per se.

Dito por outras palavras, o que o argumento de Dewey demonstra é que todas as
partes de um texto literário têm um significado intencional; uma reformulação
não tão cuidadosa quanto o desejável não cria trechos com significado acidental
ou sem significado, dado que o significado presente no trecho em questão conti-
nua, tal como Knapp e Michaels defendem, a manifestar a intenção do seu autor,
e, tal como Dewey argui, a manifestar a intenção do autor no momento da redac-
ção. O que Parker deveria ter argumentado é que alterações ao que foi escrito an-
teriormente feitas pelo autor com o intuito de harmonizar as partes escritas há
mais tempo com as partes textuais recentemente redigidas, de forma a evitar
discrepâncias entre umas e outras, são muitas vezes insusceptíveis de eliminar
todas as contradições e incoerências, inclusive em casos em que o grau de dili-
gência que é empregado pelo autor é consideravelmente alto. Assim sendo, tex-
tos literários só contêm trechos cujo significado é acidental, ou que padecem de
significado, devido a lapsos ou malapropismos não intencionais, sem embargo
de também poderem conter significados que não se harmonizam com o signifi-
cado do texto na sua globalidade. Os textos literários podem, portanto, conter

33 Cf. Davidson, 2005.

58
contradições, incoerências, aporias, ou, se se quiser, ininteligibilidade (no senti-
do de impossibilidade de apurar o sentido, não no de ausência desse mesmo sen-
tido), dado que passa a ser quase impossível, ao intérprete, apurar um significa-
do coerente, assumindo que a obra interpretada foi construída precisamente
com o intuito de ser coerente; o que o texto literário não contém, todavia, são
trechos sem significado ou significados acidentais cuja origem não se localiza
no lapso. O que se retira de uma contradição presente num texto publicado, por
conseguinte, é que o autor, em dois (ou, como será normalmente o caso, em vá-
rios) momentos de escrita diferentes, manifestou ideias incompatíveis entre si,
que, por qualquer razão, não foram harmonizadas; por outro lado, não harmoni-
zar um texto propositadamente seria manifestação de uma intenção, que pode-
ria ser ininteligível ou difícil de identificar, mas não seria, seguramente, um
exemplo de trecho sem significado por desígnio autoral. Desde que exista desíg-
nio autoral, existe significado. Se, por outro lado, estivermos perante um lapso,
este não será, seguramente, fruto da intenção de ninguém, e, por isso, não esta-
remos perante linguagem, o que nos leva a concluir que nada há a interpretar.

Note-se que Knapp e Michaels não estão preocupados com situações deste géne-
ro, dado que, não abordando a questão a partir da perspectiva da crítica textual,
não lhes interessa discutir o que fazer, em termos filológicos, com trechos sem
sentido. O ponto onde o argumento contra a teoria pretende chegar é somente o
de que o significado de um texto corresponde à intenção do seu autor. Decidir o
que fazer perante trechos sem significado e, por inerência, sem intenção, que,
por isso mesmo, não são textos, é algo que cai fora do escopo de toda a discussão
que o argumento contra a teoria visa fomentar, dado que este é um problema de
crítica textual a ser resolvido por críticos textuais, cabendo aos críticos literá-
rios apenas, e só, notar que, por qualquer motivo, determinada obra literária
contém passagens sem sentido. Não pretendemos, naturalmente, arguir que tal
constatação é óbvia, especialmente porque será muito difícil que a mesma seja
feita por críticos literários sem inclinação filológica, i. e., sem a formação que
lhes possibilite indagar acerca dos processos de produção, revisão e transmissão
de texto, ou sem o interesse para se apoiarem nos escritos de críticos textuais
que se debruçam sobre estas temáticas. Como o próprio Parker observa, os críti-
cos literários, desde a era marcada pela posição conhecida por «New Criticism»
(e, naturalmente, acrescentamos nós, até à década de 80 do século passado, al-
tura em que os textos de Parker foram publicados), descartam sistematicamen-
te a relevância de provas biográficas e textuais que, de acordo com Parker, são
cruciais para que se produza tanto teoria literária cogente como interpretação
responsável. A formulação mais conhecida desta posição é, como se sabe,
da autoria de William K. Wimsatt Jr. e Monroe C. Beardsley, que argumentam
que críticos que buscam a intenção do autor de um texto com o intuito de apurar

59
o significado do mesmo incorrem naquilo que estes dois autores designam por
«falácia intencional» (Wimsatt e Beardsley, 1954: 3)34. Assim, para os não-in-
tencionalistas, «nada mais, para além das palavras do texto, pode ser tomado
em consideração ao interpretar-se» esse mesmo texto (Ferreira, 2015a: 1845).
O principal problema desta contenção, para Parker, consiste no facto de a mes-
ma ser aceite por indivíduos que, enquanto intérpretes, tentam ler textos ilegí-
veis (Parker, 1984: p. X)35. Todo este raciocínio demonstra que críticos literários
que descuram questões filológicas muito dificilmente se aperceberão das razões
que conduzem determinados passos de uma obra a não terem sentido; contudo,
ao contrário do que Parker parece intimar, compreender isto não transforma o
problema, que é de crítica textual, numa questão de crítica literária.

Arguir, assim, que há obras literárias publicadas que contêm trechos sem sig-
nificado não afecta, de todo, o argumento contra a teoria, que mais não é do
que uma descrição da forma como se interpreta; por isso mesmo, não se pode
utilizar aquilo que não é interpretável (trechos sem significado) para refutar
uma tese que incide sobre interpretação. Por estes motivos, entendemos que a
posição de Knapp e Michaels é correcta, e, nessa medida, a objecção de Parker,
quanto às duas conclusões analisadas ao longo desta subsecção, não merece
acolhimento.

II.IV. Responsabilidade textual


Na nossa óptica, a correcção da conclusão avançada por Parker nos termos da
qual o significado do texto de uma obra literária publicada é apenas em parte
da responsabilidade do seu autor depende de uma concepção de autoria seme-
lhante à avançada por Foucault, que, como é sabido, entende, por «autor», o
nome de um determinado indivíduo, nome esse que permite reagrupar, sob si,
um certo número de textos, delimitando-os e diferenciando-os dos textos de
outrem (Foucault, 1969: 11)36, e que aparece inscrito na capa de um livro.
Antes de expormos as razões pelas quais, no nosso entender, esta concepção
de autoria é inadequada para refutar o argumento contra a teoria, efectuare-
mos uma análise do mérito intrínseco da objecção de Parker, que, com efeito,
demonstraria a improcedência da tese de Knapp e Michaels se a concepção de
autor à qual Parker adere fosse, de facto, apropriada para a discussão em
causa.

34 «[T]he design or intention of the author is neither available nor desirable as a standard for judging the success of a work
of literary art.»

35 «Literary critics from the time of the New Critics have often systematically ruled out the possible relevance of biogra-
phical and textual evidence which I would call crucial to cogent literary theory as well as to responsible interpretation,
and they have done so, often enough, while they were reading unreadable texts.»

36 «[U]n tel nome permet de regrouper un certain nombre de textes, de les délimiter, d’en exclure quelques-uns,
de les opposer à d’autres.»

60
Assim, tal como Parker observa, durante o período temporal que medeia entre
o momento em que o autor considera a obra acabada e a sua publicação, os tex-
tos são, regra geral, revistos por terceiros com o seu consentimento, como su-
cede, por exemplo, nas revisões efectuadas pelas casas editoriais. Deste modo,
a revisão editorial de um texto considerado pelo autor como completo de um
ponto de vista criativo afecta frequentemente, segundo Parker, o sentido do
texto em questão, visto que as alterações de índole editorial, introduzidas por
terceiro com o seu consentimento, fazem com que o autor perca autoridade; no
entanto, ao contrário do que Parker, como vimos supra, defende, esta perda de
autoridade, por parte do autor, é insusceptível, pelos motivos avançados ao
longo da última secção, de resultar na publicação de trechos cujo significado é
acidental ou inexistente, sendo, todavia, óbvio que a responsabilidade do sig-
nificado de um texto revisto por outrem antes da respectiva publicação é ape-
nas parcialmente do autor, cabendo a restante aos revisores intervenientes.

Este segmento da objecção de Parker torna-se mais forte a propósito da edição


póstuma, razão pela qual será útil tecer algumas considerações sobre as
implicações que surgem neste domínio em virtude da divisão estabelecida no
seio da crítica textual entre crítica textual tradicional e crítica textual moderna.
McGann nota que todos os críticos textuais seus contemporâneos (em 1983)
concordam que, para produzir uma edição crítica, é necessário avaliar a história
da transmissão do texto em questão com o propósito de expor e eliminar erros,
sendo o objectivo idêntico em todos os casos: estabelecer um texto que
represente, o mais fielmente possível, as intenções originais (ou finais) do autor.
Este objectivo era, pelo menos até aos anos 80 do século XX, segundo McGann,
universalmente aceite, sendo que o autor observa ainda que esta posição
emergiu gradualmente ao longo dos últimos dois séculos, tratando-se de um
princípio que assume, correctamente, que todos os actos de transmissão de
informação produzem vários tipos de corrupção do material original.
Os procedimentos a seguir, que acabaram por ficar colectivamente conhecidos
por «método de Lachmann», dado que os primeiros passos na construção desta
teoria da crítica textual, que visava editar textos clássicos, foram dados
por Karl Lachmann37, consistiam, de acordo com McGann, no seguinte: faltando
os documentos originais do autor, e possuindo apenas um conjunto mais
ou menos extenso de manuscritos posteriores, o editor clássico desenvolveu
procedimentos para rastrear a história interna desses manuscritos posteriores.

37 Cf. Timpanaro, 2012.

61
O método procurava, assim, «limpar o texto» das suas corruptelas, e, por conse-
guinte, produzir, ou aproximar, por subtracção (das corruptelas) o documento ori-
ginal perdido, o «texto dotado de autoridade» (McGann, 1992: 15)38.

Após constatar que os procedimentos do método de Lachmann passaram a ser


aplicados a vários tipos de texto, indo o destaque, em Inglaterra, para os de
Shakespeare (McGann, 1992: 15-16)39, que colocavam problemas semelhantes
àqueles que o método de Lachmann visava originariamente resolver, McGann
argui que o modelo clássico frequentemente não se adequa às necessidades dos
críticos de textos modernos porque, ao contrário do que acontece com os editores
de textos clássicos, isto é, com a crítica textual tradicional, que não dispõem de
originais para trabalhar, dado que estes se perderam, os editores de textos moder-
nos deparam-se com vários originais, tais como cópias de rascunhos, rascunhos
corrigidos, cópias passadas a limpo, ou provas, entre outros (McGann, 1992: 30)40.
Deste modo, como nota Jerónimo Pizarro, a existência de originais foi suficiente
para provocar uma mudança de orientação na crítica textual, visto que esta, na
vertente que se pode denominar «tradicional», é uma crítica do original ausente,
que se interroga acerca de como editar um texto sem o original do autor, ao passo
que na vertente «moderna» é uma crítica do original presente, que se interroga acer-
ca de como editar um texto com o original do autor (Pizarro, 2012a: 145-146)41.

De facto, se a presença do original significasse o acesso a um único texto pré-publi-


cado, cremos que, sem embargo de o método de Lachmann ter de ser ligeiramente
modificado, quanto mais não fosse quanto ao seu objectivo, a saber, o de produzir
um texto que represente o mais fielmente possível a intenção do autor, dado que
esta estaria já acessível através do original, a tarefa ficaria apesar de tudo mais fa-
cilitada do que aquilo que sucede em comparação com a crítica do original ausen-
te. O método de Lachmann continuaria, grosso modo, a ser aplicável, ainda que os

38 «All current textual critics [...] agree that to produce a critical edition entails an assessment of the history of the text’s
transmission with the purpose of exposing and eliminating errors. Ultimately, the object in view is the same in each
case: to establish a text which, in the now universally accepted formulation, most nearly represents the author’s
original (or final) intentions.
This critical commonplace has emerged gradually during the past two hundred years or so. It is a principle which
assumes, quite correctly, that all acts of information transmission produce various sorts of corruption from the origi-
nal material. Classical scholarship, which eventually produced the determinate breakthrough known as the
Lachmann Method, established the basic rationale for the general procedures. Lacking the author’s original
documents, possessing only a more or less extensive set of later manuscripts, the classical editor developed procedures
for tracing the internal history of these late manuscripts. The aim was to work out textual errors by revealing the his-
tory of their emergence. Ultimately, the method sought to “clear the text” of its corruptions and, thereby, to produce
(or approximate) — by subtraction, as it were — the lost original document, the “authoritative text”.»

39 «These methods were soon applied to national scriptures of various kinds. In England, the New Bibliography centered
its work in Shakespeare, where the problems which the Lachmann Method was fashioned to deal with were in certain
respects quite similar.»

40 «[I]n more recent periods, and especially in those which saw the emergence of modern textual criticism itself, authorial
texts abound: draft copies, corrected drafts, fair copies (holograph, or amanuensis copies with or without autograph
corrections for the press), proofs (uncorrected or corrected, sometimes by the author, sometimes by his editors).»

41 «La existencia de esos originales ha sido suficiente para provocar un cambio de orientación en la crítica textual, ya que
ésta, en la vertiente que se puede llamar “tradicional”, es una crítica del original ausente, que se pregunta cómo editar
un texto sin el original del autor, mientras que en la vertiente “moderna” es una crítica del original presente, que se
pregunta cómo editar un texto con el original del autor.»

62
fins a alcançar deixassem de ser os mesmos dos da crítica tradicional. No entan-
to, a realidade, como indica McGann, é bem diferente. Por terem acesso a vários
originais, e não somente a um, os críticos modernos vêem-se obrigados, de forma a
alcançar a verdadeira intenção do autor, a construir um texto que, antes da inter-
venção do editor, nunca chegou a existir. McGann argumenta que a ideia de um
texto final intencionado pelo autor corresponde à ideia de «original perdido» que
os críticos textuais de obras clássicas procuram construir através da recensão.
Ambos são «textos ideais», ou seja, não existem de facto, embora os críticos os
usem heuristicamente de modo a focar o estudo dos documentos existentes. Tanto
os editores clássicos como os modernos, continua McGann, laboram em direcção
ao seu texto ideal através de um processo de recensão que tem por objectivo chegar
tão próximo desse ideal quanto possível. Ambos são termini ad quem, e, embora
não sejam exactamente alcançáveis, possibilitam ao crítico isolar e remover erros
acumulados. Contudo, conclui McGann, o modelo clássico é quase sempre desade-
quado para o crítico de textos modernos porque este possui os «originais perdidos»
cuja reconstrução é objectivo da crítica tradicional. Isto conduz a que, paradoxal-
mente, a noção de texto ideal que o crítico moderno visa atingir seja uma abstrac-
ção pura, ao passo que o texto ideal do crítico clássico permanece, enquanto se
mantiver «perdido», historicamente verdadeiro (McGann, 1992: 56-57)42.

Dito de outro modo, os esforços da crítica tradicional resultam num texto que po-
deria ter existido, ao passo que os esforços da crítica moderna estão condenados ao
insucesso logo à partida, na medida em que os críticos sabem, de antemão,
que, tendo acesso a vários originais, o processo de recensão culminará numa ver-
são diferente de todas aquelas que o autor do texto efectivamente criou. Dado este
cenário, é fácil perceber a razão pela qual a objecção de Parker é extremamente for-
te quando vista à luz da edição póstuma de texto. Recorde-se que Parker formulou
a sua objecção a Knapp e Michaels em textos publicados em 1983 e em 1984, preci-
samente numa altura em que, como mencionámos supra, a grande maioria
dos críticos textuais modernos, segundo McGann, continuava a aplicar o método
de Lachmann, não obstante a sua inadequação, pelos motivos acima apontados,
para a crítica do original presente.

42 «The idea of a finally intended text corresponds to the “lost original” which the textual critics of classical works sought
to reconstruct by recension. Both are “ideal texts” — that is to say, they do not exist in fact — but in each case the criti-
cs use this ideal text heuristically, as a focussing device for studying the extant documents. Both classical and modern
editors work toward their ideal text by a process of recension that aims to approximate the Ideal as closely as possible.
Both are termini ad quem which, though not strictly reachable, enable the critic to isolate and remove accumulated
error.
For the critic of modern texts, the classical model upon which his own procedures are based frequently does not suit
the materials he is studying, and has often served, in the end, to confuse his procedures. Because this textual critic
actually possesses the “lost originals” which the classical critic is forced to hypothesize, his concept of an ideal text
reveals itself to be — paradoxically — a pure abstraction, whereas the classical critic’s text remains, if “lost,”
historically actual. Modern editors who possess a large body of prepublication materials therefore stand in an entirely
different relation to the editorial situation than do their classical counterparts.»

63
Parece-nos, por conseguinte, insofismável que a responsabilidade, ou autoridade,
textual, isto é, a responsabilidade sobre o conteúdo de uma obra literária, não recai
somente sobre o autor no sentido que Foucault dá ao termo, e, por isso, não é sur�-
preendente que esta ideia de responsabilidade textual também se revele presente
na mente de McGann, não obstante este não mencionar o trabalho de Parker, nem
empregar a mesma terminologia, a propósito desta questão. McGann argui que to-
dos os textos são produzidos e reproduzidos sob condições sociais e institucionais
específicas, e, por isso, todos os textos, incluindo os que aparentam ser puramente
privados, são textos sociais, o que implica que um «texto» não seja uma «coisa ma-
terial», mas sim um evento, ou grupo de eventos, materiais, uma localização no
tempo, ou um momento no espaço, onde certos intercâmbios linguísticos estão
a ser praticados (McGann, 1991: 21)43.

Para McGann, o desiderato de apurar e respeitar a intenção, original ou final, do au-


tor de um texto no âmbito da crítica do original presente será, na melhor das hipóte-
ses, um factor a ter em consideração na edição de texto, mas não o seu objectivo úni-
co ou, sequer, um objectivo primordial, ao contrário do que era defendido, como
vimos, pela tradição editorial anglo-americana desenvolvida sobre o método de
Lachmann. Ora, a única razão pela qual, no nosso entender, é justificável rele-
gar para segundo plano o objectivo de apurar a intenção do autor de um texto
aquando do estabelecimento do mesmo com o intuito de o editar consiste em
ser, de facto, impossível determinar, com um grau de certeza pelo menos satis-
fatório, que partes do texto em questão são da responsabilidade do autor e que
partes são corruptelas introduzidas por outros agentes, dificuldade esta exa-
cerbada pela existência de múltiplos originais e de versões publicadas em vida
do autor. Se fosse relativamente fácil apurar a verdadeira intenção do autor, ne-
nhum crítico textual arguiria que a procura dessa mesma intenção não deveria
ser o objectivo primordial, porventura único, de uma edição. A objecção de
Parker mais não é do que uma constatação, com base no senso comum formado
através da observação empírica, que os textos, máxime os literários (a propósito
dos quais a objecção surge), acabam, ao longo do tempo, por ser, de uma forma
mais ou menos substancial, modificados por outrem que não o autor original.
Com efeito, a passagem do tempo faz com que a capacidade de distinguir entre
as contribuições do autor original e as de outros agentes seja cada vez mais té-
nue, como o demonstra um argumento de Paul Eggert (Eggert, 2009) onde é
traçada uma relação, por vezes directa, outras, analógica, entre a edição de tex-
to e a restauração e curadoria de obras de arte plástica e de edifícios44.

43 «[T]exts are produced and reproduced under specific social and institutional conditions, and hence […] every text,
including those that may appear to be purely private, is a social text. This view entails a corollary understanding, that
a “text” is not a “material thing” but a material event or set of events, a point in time (or a moment in space) where
certain communicative interchanges are being practiced.»

44 Para um aprofundamento das ideias de Eggert cf. Ferreira, 2016: 241-250.

64
É esta constatação de senso comum que conduz a que autores como McGann
postulem que apurar a intenção do autor é um objectivo a ter em conta na edi-
ção de texto, mas não o objectivo principal, e a oferecer uma alternativa à linha
seguida até então pela tradição editorial anglo-americana, a saber, a de, ao edi-
tar, ter em mente que, quando os textos são interpretados, estas leituras fre-
quentemente evitam reflectir sobre as condições materiais (sociais e institucio-
nais) das obras que estão a ser «lidas» e sobre as leituras que estão a ser
executadas. Ora, continua McGann, essas condições materiais e institucionais
são insusceptíveis de afastamento quando se está a editar um texto e, se for in-
tenção do editor encetar uma edição académica de uma obra, as condições so-
ciais que envolvem a produção de texto, refere McGann, e as que envolvem a re-
visão e a transmissão, acrescentamos nós, tornam-se manifestas e imperativas.
Consequentemente, conclui McGann, apercebemo-nos de que os textos se en-
contram sempre dentro de um horizonte editorial (o horizonte da sua produção
e reprodução) (McGann, 1991: 21)45.

Como afirmámos no início desta secção, o primeiro problema sobre o qual este
estudo incide consiste num paradoxo aparente que nasce a partir da conjugação
da aceitação parcial da objecção de Parker que temos vindo a discutir com a ade-
são ao argumento contra a teoria. A aceitação da objecção de Parker é parcial
porque, como demonstrámos, apenas é procedente quanto a uma das suas três
conclusões, a de que a responsabilidade do conteúdo do texto de uma obra lite-
rária é apenas parcialmente do seu autor, sendo que há intervenções não negli-
genciáveis de revisores e editores incluídas, a par do texto criado pelo autor, nas
versões publicadas da obra em questão. A procedência deste argumento depen-
de, contudo, de uma concepção de autoria desadequada para a discussão para a
qual o argumento visa contribuir.

É verdade que, à primeira vista, a objecção de Parker refuta o argumento contra


a teoria porque demonstra que há intervenções, por parte de terceiros, sobre a
obra que alteram o significado da mesma, sendo que, no caso de edições póstu-
mas, o autor nada pode fazer para impedir esta situação. Aceitar o argumento
contra a teoria mantendo, simultaneamente, que Parker tem razão em relação
àquilo que afirma é, prima facie, contraditório. Contudo, a contradição é elimi-
nada quando se constata que o argumento contra a teoria defende que o signifi-
cado de um texto é produto da intenção do seu autor, sendo que, por «autor», se
entende o criador intelectual do texto, e não o nome acerca do qual Foucault

45 «When texts are interpreted, the readings frequently […] avoid reflecting on the material conditions of the works being
“read” and the readings being executed. Those material and institutional conditions, however, are impossible to set
aside if one is editing a text; and if one intends to execute a scholarly edition of a work, the social conditions of textual
production become manifest and even imperative. Consequently, one comes to see that texts always stand within an
editorial horizon (the horizon of their production and reproduction).»

65
tece as considerações mencionadas no início da presente subsecção. Assim, a
contradição transforma-se, em primeira instância, num paradoxo porque a cha-
mada de atenção que acabámos de efectuar implica que se considere que reviso-
res e críticos textuais são autores, ou co-autores, das obras sobre as quais inter-
vêm. Esta constatação, sem embargo de ser contra-intuitiva, permite aceitar
simultaneamente a objecção de Parker e o argumento contra a teoria; não per-
mite, contudo, continuar a encarar a «objecção» como uma objecção, na medida
em que, em rigor, nada refuta. O único mérito de todo o argumento de Parker é o
de chamar a atenção para o facto de que a autoria de uma obra literária não se
circunscreve ao indivíduo cujo nome se lhe encontra associado: há tantos co-au-
tores de uma obra literária em concreto quanto o número de indivíduos que so-
bre ela intervêm nas fases de produção, revisão e transmissão de texto, na medi-
da em que todas estas intervenções são criações intelectuais.

O foco de Parker é correcto ao nível da questão que suscita, mas falha na respos-
ta fornecida. A conclusão de que há indivíduos que, nas fases de revisão e de
transmissão, intervêm num texto criado por outrem não é a de que há significa-
dos acidentais ou trechos sem significado, algo que, como tivemos oportunidade
de demonstrar, pura e simplesmente não é possível, nem tão-pouco a de que há
significados cuja responsabilidade é de terceiros; a conclusão que Parker deveria
ter retirado do seu argumento é a de que todas as obras literárias publicadas têm
múltiplos autores que nunca são reconhecidos como tal, entendendo-se, por
«autor», criador intelectual de um texto. Com efeito, tal como Parker e McGann,
entre outros, convincentemente demonstram, os filólogos criam textos que nun-
ca chegariam a existir sem a sua intervenção. Isto significa que estes autores,
bem como outros, não estão errados quanto aos problemas que levantam, nem
quanto à argumentação que usam para demonstrar que esses mesmos proble-
mas existem e não são despiciendos, mas sim quanto às conclusões avançadas.
Não há textos cujo significado seja da responsabilidade de outrem que não o au-
tor porque todos aqueles que intervêm em qualquer uma das fases da criação de
uma obra literária são, em maior ou menor medida, co-autores da mesma, inde-
pendentemente de haver, ou não, reconhecimento literário ou jurídico deste fac-
to. Por isso, a concepção foucaultiana de autoria é desadequada para uma dis-
cussão sobre responsabilidade textual, ou, para utilizar o termo usado por
Parker, para uma discussão sobre a autoridade retida pelo autor de uma obra li-
terária no culminar do seu processo de criação, que coincide com o momento da
publicação, visto que a concepção de autoria de Foucault não versa sobre o cria-
dor intelectual da obra, mas sim sobre um nome sob o qual determinadas obras
podem ser aglutinadas.

66
III. CURADORIA TEXTUAL

III.I. Tipos de filólogo


Nesta subsecção, pretendemos demonstrar que os filólogos aos quais a pergunta
«O que é um filólogo?», ligada à primeira questão sobre a qual o presente
trabalho incide, se refere são os revisores editoriais e os críticos textuais, com o
intuito de ressalvar que os argumentos sobre curadoria e co-autoria desenvolvi-
dos ao longo deste ensaio se aplicam somente a estes filólogos; todavia, o univer-
so daqueles que podem ser, com propriedade, denominados «filólogos» é mais
vasto. Com efeito, ao falar da importância da crítica textual, McGann observa
que, até às primeiras décadas do século XX, aquilo que hoje em dia designamos
por «Estudos de Literatura e de Cultura» era designado por «Filologia», sendo que
se entendia que todos os procedimentos interpretativos desta disciplina se fun-
davam na crítica textual. Contudo, no século XX, os estudos textuais deslocaram
o seu centro da Filologia para a hermenêutica, uma subdisciplina filológica cen-
trada na interpretação especificamente literária da cultura (McGann, 1999)46.

Pode constatar-se, a partir desta observação, que a Filologia era, tradicional-


mente, uma disciplina que abarcava várias subdisciplinas especializadas que,
apesar de diferentes entre si, tinham (e continuam a ter) em comum o facto de
incidirem sobre a análise de textos. McGann nota, igualmente, que o termo
«Filologia» caiu em desuso, o que pode ser explicado através da verificação de
que os praticantes das referidas subdisciplinas especializadas não as conside-
ram, actualmente, como subdisciplinas da Filologia, mas sim como disciplinas
totalmente autónomas. Em relação ao caso português47, Ivo Castro observa que,
mais do que ter caído em desuso, «Filologia» é um vocábulo que adquiriu, ao
longo do tempo, um sentido técnico:

É frequente […] vermos […] as actividades centradas no estudo da produção


de linguagem e de literatura serem classificadas como filológicas […].
Isto porque o uso corrente da língua continua a chamar filólogos aos linguistas,
aos literatos e a outros estudiosos afins, sem que estes se reconheçam na desig-
nação ou sequer a apreciem como justa descrição das suas ocupações.

46 «Until the early decades of the twentieth century, what we now call “Literary and Cultural Studies” was called philolo-
gy, and all its interpretive procedures were clearly understood to be grounded in textual scholarship. But in the twen-
tieth century, textual studies shifted their centre from philology to hermeneutics, that subset of philological inquiry
focused on the specifically literary interpretation of culture. From the vantage of the nineteenth-century philologist,
this “turn to language” would have been seen as a highly specialized approach to the study of literature.»

47 Entende-se, por «caso português», a questão de uso linguístico descrita no texto, que é, com efeito, um caso de evolução
do uso da língua portuguesa. Não se pretende defender que existe uma Filologia, bem como uma evolução histórica
desta disciplina, que seja especificamente portuguesa, distinta da Filologia em geral.

67
Existe uma inadequação entre o significado geral e tradicional do termo
«Filologia» e algumas disciplinas científicas ou artísticas a que ele é atribuído,
inadequação que decorre de não ser tomada em conta a autonomização que es-
sas disciplinas (designadamente a linguística e as ciências literárias) alcança-
ram a partir do séc. XIX em relação à sua raiz comum. (Castro, 1999: 602-603)

Assim, a crítica literária, a crítica textual, a hermenêutica ou a linguística, por


exemplo, apesar de terem em comum o facto de os seus praticantes trabalharem
sobre textos, não são vistas, contemporaneamente, e de um ponto de vista técni-
co, nem como «Filologia», nem como subdisciplinas desta. Segundo Castro, hoje
em dia «Filologia» designa, tecnicamente, uma ciência cujas «funções e preocu-
pações — aquelas mais de perto associadas à produção material e à existência
histórica do texto escrito — não foram transferidas», sendo que essas mesmas
funções «desencadearam novas disciplinas» que, «além da compartimentação
de abordagens próprias, são entre si solidárias por visarem um objecto comum,
que também é complexo: o texto e a sua escrita» (Castro, 1999: 604).
As principais disciplinas desencadeadas pela Filologia são, de acordo com
Castro, a paleografia, a codicologia, a manuscriptologia e a bibliografia material
(Castro, 1999: 604-605).

Em suma, pode dizer-se que, a partir de uma única disciplina, a Filologia, surgi-
ram várias outras disciplinas que têm em comum o facto de incidirem sobre tex-
tos. Estas disciplinas podem ser divididas em dois grandes grupos, a saber,
o grupo das disciplinas que continuam a ser filológicas, e que, por conseguinte,
são subdisciplinas da Filologia, e o grupo das disciplinas que descendem
da Filologia, mas que atingiram um grau de autonomização que as torna inde-
pendentes, e, por isso, não são subdisciplinas da Filologia.

Tendo em atenção este quadro, é necessário notar que, sem embargo de haver
uma perfeita autonomização conceptual entre certas actividades que se debru-
çam sobre textos, e que justifica que as mesmas sejam descritas como discipli-
nas independentes entre si, ao nível das metodologias adoptadas para a prosse-
cução das referidas actividades não é correcto falar-se em autonomização,
sendo mais indicado pensar-se em especialização. As disciplinas actualmente
designadas por «crítica literária» e «crítica textual» são actividades autónomas
porque o trabalho que desenvolvem sobre textos tem finalidades distintas; no
entanto, as metodologias empregadas, tanto por críticos literários como por crí-
ticos textuais, para atingir os objectivos respectivos de cada uma das suas áreas
não são autónomas, mas sim especializadas.

68
A diferença que pretendemos introduzir através da utilização dos termos «autó-
nomo» e «especializado» poderá ser mais bem esclarecida através da análise a
uma observação efectuada por Fredson Bowers há cerca de meio século.
Segundo Bowers, é caso de forte perturbação a constatação de que há falta de
contacto entre críticos literários e críticos textuais. Todos os críticos pratican-
tes, pela humildade das suas almas, refere o autor, deveriam estudar a transmis-
são de um determinado texto (Bowers, 1966: 4)48. Ao comentar as variantes en-
contradas em diferentes testemunhos de Hamlet, Bowers defende que
determinar, por exemplo, se Shakespeare escreveu a palavra «sallied» ou a pala-
vra «solid» valeria sumamente a pena, independentemente do número de horas
que tomasse, porque apurar o que Shakespeare realmente escreveu é um ponto
importante de interpretação da obra, em virtude de a palavra «sullied» suportar
a contenção, à qual Bowers adere, segundo a qual Hamlet sente que a sua honra,
natural ou herdada, foi manchada (soiled) pela nódoa que é o sangue desonroso
da sua mãe (Bowers, 1966: 7)49.

Bowers pretende chamar a atenção para o facto de que há uma interligação entre
crítica literária e crítica textual que não pode ser ignorada. Tanto o crítico literá-
rio como o crítico textual devem ser vistos como filólogos especializados, e não
como cultores de disciplinas completamente separadas entre si, i. e., disciplinas
que não têm uma conexão nem no âmbito dos objectivos por si prosseguidos,
nem no âmbito das metodologias empregadas para alcançar esses objectivos. O
exemplo de Bowers demonstra que o rigor com que o crítico textual deve execu-
tar a sua tarefa é justificável não só por razões científicas (próprias da disciplina
académica «crítica textual») ou éticas (e. g., descobrir exactamente o que é que o
autor escreveu) mas também por razões hermenêuticas, i. e., de interpretação da
obra, que, num quadro de autonomização total quer quanto aos objectivos, quer
quanto às metodologias empregadas, entre crítica textual e crítica literária, se-
riam preocupação exclusiva do crítico literário. Da mesma forma, o crítico lite-
rário, cuja actividade é interpretar textos e efectuar análises literárias, tem,
de forma a não ver a credibilidade do seu trabalho posta em causa, que se preo-
cupar em perceber se os testemunhos por si utilizados são fidedignos, ou se
estão corrompidos ao ponto de serem imprestáveis para analisar as ideias do au-
tor originário. Assim, da mesma forma que um neurologista tem de ter noções
básicas de cardiologia, e vice-versa, pois há uma interligação entre o cérebro

48 «We should be seriously disturbed by the lack of contact between literary critics and textual critics. Every practising
critic, for the humility of his soul, ought to study the transmission of some appropriate text.»

49 «In some small part present-day editorial concern with what seem to be relatively minor matters of accurate decision
may alienate the critic, such as the one who became impatient at anybody wasting very much time finding out whether
Shakespeare wrote sallied or solid. In this particular case I fancy the choice is important on grounds of meaning, for
the word sullied supports my contention that Hamlet feels his natural, or inherited, honour has been soiled by the taint
of his mother’s dishonourable blood. But the weight that may be put on this word is perhaps unusual. […] Yet I hold it to
be an occupation eminently worth while, warranting any number of hours, to determine whether Shakespeare wrote
one, or the other, or both.»

69
e o coração, visto que ambos são órgãos do corpo humano, que é o objecto de es-
tudo da medicina, críticos textuais e críticos literários têm, respectivamente,
de ter conhecimentos elementares de análise hermenêutica e das ferramentas
usadas na edição de texto, dado que o objecto de estudo de ambos é o mesmo,
a saber, o texto. As considerações de Parker e de McGann analisadas ao longo
da secção anterior demonstram cabalmente a necessidade desta ligação. Tal não
impede que se veja a crítica literária e a crítica textual como disciplinas autóno-
mas, desde que se entenda que o grau de autonomia é equivalente ao existente
entre neurologistas e cardiologistas; os especialistas nestas áreas são todos mé-
dicos, da mesma forma que os especialistas nas áreas que lidam com a palavra,
ou com textos, são filólogos, independentemente de, tecnicamente, esta desig-
nação não ser, porventura, considerada adequada50. Isto é assim porque, apesar
de haver autonomia quanto às finalidades próprias de cada uma das disciplinas
oriundas da Filologia no seu sentido mais antigo, há um conjunto de metodolo-
gias e competências que continuam a ser partilhadas. Assim, a crítica literária e
a crítica textual são autónomas porque a finalidade do trabalho do crítico literá-
rio é interpretar e estabelecer ligações entre diferentes obras literárias, ao passo
que o desiderato prosseguido pelo crítico textual consiste em editar textos.
Estas actividades são, conforme acima referido, conceptualmente distintas en-
tre si, ou seja, editar um texto não é o mesmo que efectuar uma análise literária
do mesmo. Esta asserção não traz nada de novo à discussão, sendo, entre os au-
tores, um ponto pacífico. O que a citação de Bowers realça, no entanto, é que,
para se editar textos, tem de se empregar métodos de análise literária, do mes-
mo modo que, para se elaborar críticas literárias, os literatos têm de estar a par
da forma como os editores utilizam metodologias da crítica textual.

Por estas razões, pode falar-se de autonomia entre a crítica literária e a crítica
textual quanto às finalidades que animam cada uma das disciplinas, mas, em
relação às metodologias empregadas, é mais correcto referir que há uma espe-
cialização. Com efeito, certos métodos empregados pelo crítico textual na edi-
ção de texto são indispensáveis para a crítica literária, e vice-versa. A diferença
reside no grau de aprofundamento do conhecimento teórico e das habilitações
práticas respeitantes a cada um desses métodos. Isto significa que o crítico
literário tem, para desenvolver a sua actividade, de estar a par da existência
de procedimentos de edição textual como, por exemplo, a transcrição, que é par-
tilhada tanto pela edição diplomática como pela edição crítica, bem como

50 Em todo o caso, no nosso entender, na medida em que os filólogos são amigos (φίλος [ filos]) da palavra (λόγος [logos]),
o termo «Filologia» deveria ser usado, tecnicamente, em referência à área que, de forma genérica, lida com a palavra,
tal como, de resto, sucedia tradicionalmente. O uso técnico actual de «Filologia» aplica-se apenas como termo geral a
algumas disciplinas especializadas que lidam com texto, mas não a todas, o que, do nosso ponto de vista, é tão absurdo
como, hipoteticamente, conferir a um especialista em Direito Constitucional o epíteto «constitucionalista» defenden-
do, simultaneamente, que constitucionalistas não são juristas.

70
procedimentos específicos da edição crítica, tais como a recensão, a colação ou
o estabelecimento do texto, porque este conhecimento permite-lhe entender as
razões pelas quais o testemunho por si escolhido para elaborar uma crítica lite-
rária pode não ser fidedigno, permitindo-lhe decidir, através da aplicação dos
critérios científicos próprios da crítica textual, qual, de entre os testemunhos
disponíveis, será o mais credível. O que não lhe é exigível é que tenha um conhe-
cimento teórico e prático equivalente àquele que é exigido a um crítico textual.
Este é, desta forma, um especialista em crítica textual, visto que tem conheci-
mentos teóricos e práticos acerca do funcionamento da disciplina muito mais
aprofundados e desenvolvidos do que aqueles de que o crítico literário ou o lin-
guista51, por exemplo, dispõem. Estamos perante uma relação de especialização
precisamente porque os profissionais destas outras áreas também têm que ter
conhecimentos de crítica textual, embora não tão aprofundados. Se este requisi-
to fosse dispensável, isto é, se críticos literários, linguistas ou outros filólogos,
no sentido comum do termo, pudessem desenvolver as suas actividades poster-
gando as ferramentas da crítica textual, e vice-versa, então, nesse caso, haveria
autonomia entre as disciplinas, e não especialização. Contudo, os argumentos
de Bowers, bem como uma análise da prática das várias disciplinas que lidam
com textos, demonstram que há uma especialização metodológica, e não uma
autonomia, na medida em que todas estas disciplinas partilham, em maior ou
menor grau, os mesmos métodos.

Os filólogos a que se refere a pergunta «O que é um filólogo?» são, portanto, os


revisores editoriais e os críticos textuais. Fica, assim, feita a ressalva de que os
argumentos sobre curadoria e co-autoria desenvolvidos ao longo deste trabalho
se aplicam a estes filólogos, e não ao crítico literário, ao linguista, ou a outros fi-
lólogos, e, naturalmente, à crítica textual, e não à crítica literária, à linguística
ou a outras subdisciplinas da Filologia.

III.II. Da curadoria em geral à curadoria textual


Entrando, assim, no tema da curadoria textual, temos que, tal como observa
Hans Ulrich Gumbrecht, o termo «Filologia» pode ser utilizado em referência
a duas realidades. Por um lado, encontram-se definições da palavra Filologia
que, trazendo-a de volta ao seu significado etimológico de «interesse em ou fas-
cínio por palavras», tornam a noção sinónima de qualquer estudo da linguagem
ou de praticamente qualquer estudo de qualquer produto do espírito humano.
Este é o sentido mais antigo de Filologia, e aquele que, pelas razões avançadas
na subsecção anterior, deve ser mantido enquanto termo de arte para designar

51 Acerca da importância da crítica textual para a linguística cf. Bowers, 1966: 152-155.

71
todas as actividades que se relacionam com textos. Por outro lado, continua
Gumbrecht, temos um significado de Filologia mais específico e, nota o autor,
familiar, que se encontra circunscrito a uma curadoria de texto histórico
referente exclusivamente a textos escritos (Gumbrecht, 2003: 3)52.

Para obviar confusões terminológicas, usaremos a expressão «curadoria tex-


tual» em referência ao segundo sentido de «Filologia» identificado por
Gumbrecht. Tal como sucede em relação a «Filologia», o termo «filólogo» não é
errado nem perde actualidade, mas é demasiado abrangente para os nossos pro-
pósitos, dado que as nossas observações não se aplicam a todos os filólogos, mas
apenas àqueles que tivemos o cuidado de destacar na subsecção anterior.
A estes referir-nos-emos através da expressão «curadores textuais».

Detendo-nos, assim, no segundo sentido proposto por Gumbrecht, isto é, na no-


ção de que a Filologia é, segundo o autor, «uma curadoria de texto histórico»,
torna-se necessário averiguar o que significa «curadoria» neste contexto.
O uso desta expressão para designar a actividade filológica é intrigante porque,
habitualmente, não se pensa na Filologia como sendo curadoria. No entanto,
a alusão não é, de todo, desajustada. Etimologicamente, a aproximação entre os
termos «Filologia» e «curadoria», bem como entre os substantivos «filólogo» e
«curador», faz todo o sentido, na medida em que «curare», em latim, é um vocá-
bulo que pode ser usado em referência à actividade de «tomar conta de» algo, ou
«administrar», sendo a pessoa que o faz um «curator». Quatro exemplos de usos
comuns da palavra «curadoria» noutros contextos ilustram que a mesma é sem-
pre usada com o intuito de aludir à administração de um património:

1) O trabalho do curador de arte, que consiste em conceber e supervisionar uma


exposição de arte, é uma curadoria, ou seja, é uma tarefa de gestão, ou adminis-
tração, que tem por objecto seleccionar as peças que farão parte da exposição,
bem como encetar as negociações necessárias para garantir a presença das mes-
mas, o que poderá ser feito quer pelo próprio curador, quer por agentes nos quais
estas funções sejam delegadas.

2) «Curadoria» é o termo genérico utilizado em referência às funções do curador


de museu, que são, identicamente, de gestão e administração, visto que o cura-
dor se encontra incumbido, por exemplo, de efectuar todas as diligências
indispensáveis à segurança das obras de arte do museu a seu cargo, tanto no in-

52 «On the one side, you will find definitions of the word philology that, bringing it back to its etymological meaning of
“interest in or fascination with words”, make the notion synonymous with any study of language or, even more gene-
rally, with almost any study of any product of the human spirit. On the other, more specific and more familiar side,
however, philology is narrowly circumscribed to mean a historical text curatorship that refers exclusively to written
texts.»

72
terior do mesmo como em transporte, de se certificar de que as obras de arte não
se deterioram no interior do museu, ou de velar pela sua restauração.

3) No âmbito da conservação e restauro de obras de arte é frequente denominar-


-se os profissionais desta área como «curadores»; a curadoria que estes profissio-
nais executam é uma forma de administração, dado que parte da administração
de um bem em geral, e de uma obra de arte em particular, consiste em conservá-
-lo/a ou restaurá-lo/a fisicamente.

4) No Direito, institui-se uma relação de assistência denominada «curadoria»


quando alguém é, por decisão judicial, nomeado curador, por exemplo, do au-
sente ou do inabilitado, assumindo a administração dos interesses patrimoniais
do curatelado53.

Pese embora o facto de estas actividades serem substancialmente diferentes tanto


entre si como em relação à Filologia, é nossa contenção que, tal como em todas as
actividades acima mencionadas a título de exemplo, também a Filologia é uma ac-
tividade nos termos da qual o filólogo tem a seu cargo a tarefa de cuidar de algo,
isto é, de uma parte, ou da totalidade, de património alheio, que, neste caso, é o
texto criado por um determinado autor.

A qualificação do texto como sendo um património do seu autor não coincide to-
talmente com os sentidos económico e jurídico do termo. Além de ser um patrimó-
nio nestas duas acepções, o texto é igualmente um património na acepção da de-
nominada «teoria pessoal», ou «personalista», de «património», cuja «nota
característica», segundo A. M. Almeida Costa,

reside na subjectivização dos conceitos de património e de dano patrimonial.


Partindo da natureza instrumental do universo económico, cuja protecção
apenas se justificaria porque integra um requisito indispensável da livre reali-
zação da pessoa humana, o património assumiria uma estrutura relacional:
longe de se esgotar num mero conjunto de coisas ou posições económicas, em
si mesmas consideradas, ele consistiria na relação fáctica entre essas coisas
ou posições e o concreto titular, consubstanciando a expressão de um conteú-
do de «utilidade» medido em função dos específicos interesses do último. [...]

53 A figura do curador ad litem é substancialmente diferente da do curador descrito em texto. O curador ad litem é efecti-
vamente representante do curatelado, e não assistente; esta relação de representação tem por objecto a representação
em juízo. Em comum com o curador enquanto assistente o curador ad litem também é nomeado por decisão judicial,
além de que as suas funções podem, se o litígio assim o exigir, incidir sobre a administração de interesses patrimoniais
do curatelado. A diferença, para os propósitos relevantes para este trabalho, entre o curador/assistente e o curador/
representante acaba por se verificar no escopo daquilo que é administrado: no primeiro caso, circunscreve-se à adminis-
tração de interesses patrimoniais do curatelado, ao passo que, no segundo caso, inclui-se a administração de interesses
pessoais do curatelado, o que aproxima o curador ad litem mais da figura do tutor do que da figura do curador/assistente.

73
[O] património constituiria, portanto, uma «unidade estruturada em termos
pessoais-individuais» (personal strukturierte Einheit) ou, mesmo, um «bem
jurídico pessoal» [...], aferindo-se a correspondente lesão segundo padrões es-
tritamente subjectivos. [...] Por outro lado, a noção de património abarcaria
bens destituídos de qualquer relevância económica (= inconvertíveis em di-
nheiro), desde que portadores de um mero valor afectivo (Affektionswert) —
v. g., diários privados, fotografias, cartas íntimas [...]. (Costa, 1999: 277-278)

Esta citação de Almeida Costa é retirada da sua anotação ao artigo 217.º


do Código Penal, epigrafado «burla», e surge no contexto de uma refutação da
utilidade da concepção personalista de «património» para a interpretação da ex-
pressão «prejuízo patrimonial», presente no n.º 1 do artigo mencionado, tendo
em vista a definição do tipo do crime de burla. Não obstante ser imprestável
para o Direito Penal, a concepção de «património» fornecida pela teoria perso-
nalista torna possível qualificar o texto de uma obra como sendo um património
do seu autor imediatamente a partir do momento da sua criação, na medida em
que, para este, o texto tem valor pelo simples facto de ser uma criação intelec-
tual sua. Dito por outras palavras, o texto não adquire o estatuto de «patrimó-
nio» apenas a partir do momento em que uma editora, durante a vida do autor,
ou um curador textual, após o falecimento daquele, o explora economicamente
proporcionando-lhe a atribuição, por parte do mercado, de um determinado va-
lor pecuniário. A teoria personalista permite que o texto seja considerado como
um património independentemente de o mesmo vir, algum dia, a ter valor de
mercado.

Ao referir-se a «específicos interesses do último», tendo em vista o «titular»


(i. e., o criador intelectual), por exemplo, da coisa incorpórea «texto», Almeida
Costa pretende justificar a inadequação da concepção personalista de patrimó-
nio para o Direito Penal em virtude de o Direito Penal obedecer a padrões
de objectividade que são incompatíveis com uma concepção de património com-
pletamente subjectiva. A teoria personalista é, de facto, desajustada para esta-
belecer o valor pecuniário concreto de coisas em geral, bem como de coisas in-
corpóreas como, por exemplo, textos, em particular. No entanto, revela que
qualquer coisa pode ser considerada como um património, incluindo coisas cujo
valor de mercado é inexistente. É isto que sucede entre o período em que o texto
é criado e a sua divulgação. O Livro do Desassossego, por exemplo, não
tinha valor de mercado antes de a equipa de curadores textuais orientada por
Jacinto do Prado Coelho o ter curado, mas os vários textos que compõem esta
obra já eram património de Pessoa antes de os curadores se terem debruçado so-
bre eles.

74
Deste modo, o ponto onde queremos chegar é o de que a qualificação de deter-
minada realidade, material ou imaterial, como sendo um «património» não de-
pende exclusivamente das suas potencialidades económicas. Com efeito, a par-
tir do prisma do seu autor, o texto, enquanto criação intelectual, tem um valor
estritamente «pessoal-individual», «subjectivo» ou «afectivo». A «utilidade»
do texto, enquanto coisa incorpórea, é, efectivamente, medida, para o seu titu-
lar, o seu criador intelectual, o autor, «em função dos específicos interesses
do último», para utilizar a expressão de Almeida Costa. Dito por outras pala-
vras, o texto é um património do seu criador intelectual em termos morais e
afectivos, não necessariamente em termos económicos e jurídicos. Nada impe-
de, naturalmente, que, entre os interesses do autor, se encontrem interesses de
natureza pecuniária que se prendam com a exploração económica da obra.
O nosso argumento é apenas o de que estes mesmos interesses são irrelevantes
para a qualificação do texto como um património, i. e., o texto é um património
mesmo que o seu autor nunca o explore economicamente.

A Filologia, no sentido pertinente para este trabalho, que corresponde ao segun-


do identificado por Gumbrecht, é, portanto, uma forma de curadoria porque um
tipo especial de património, o texto, que é especial em virtude de se tratar de
uma coisa incorpórea que não tem necessariamente de ter um valor de mercado,
é curado por um especialista, o curador textual, sendo que esta curadoria envol-
ve o estabelecimento, ou manutenção, do acesso, por parte de leitores interessa-
dos, ao património em questão, o texto. Este tipo muito especial de curadoria
vai para além da curadoria em geral. Com efeito, a curadoria textual incide não
só sobre a gestão ou administração de um património, nos sentidos que estes
termos normalmente adquirem quando utilizados para descrever a actividade
de curadoria sobre coisas corpóreas, mas envolve, igualmente, uma componente
criativa, dado que o estabelecimento, ou manutenção, do acesso a este patrimó-
nio especial, a coisa incorpórea à qual chamamos «texto», requer uma produção
intelectual, da parte dos curadores, que justifica que estes sejam considerados,
em maior ou menor grau, co-autores das obras sobre as quais intervêm.

É, todavia, importante ressalvar que, na medida em que existem diferenças cla-


ras de grau ao nível da intervenção do curador de obra para obra, ou de edição
para edição, nem sempre se justifica que o reconhecimento da sua co-autoria
seja prestado de um ponto de vista literário e jurídico. Sob estes pontos de vista,
há intervenções que, no cômputo global da obra, são de tal forma negligenciá-
veis que não faria sentido que, em referência ao autor da mesma, se incluísse, ao
lado do autor nominal, o nome destes filólogos co-autores, atribuindo-lhes
igualmente os direitos morais e patrimoniais de autor que surgem na esfera jurí-
dica do criador intelectual de um texto. Estes dois tipos de reconhecimento só se

75
justificarão em certas circunstâncias, como, por exemplo, as que ocorrem na
curadoria de certas obras de Pessoa como, e. g., Livro do Desassossego ou Notas
para a Recordação do meu Mestre Caeiro. Assim, e apesar de todos os curadores
textuais serem, em maior ou menor grau, co-autores das obras sobre as quais in-
tervêm, reconhecê-los enquanto tal depende da presença de determinadas cir-
cunstâncias, como sucede, por exemplo, no caso Pessoa. É, por isso, necessário
perceber que há co-autores de facto, autores/curadores textuais de iure, e, se nos
é permitida a catacrese, co-autores de litteris.

IV. CO-AUTORIA SUI GENERIS


Obras como o Livro do Desassossego ou Notas para a Recordação do meu Mestre
Caeiro são, na realidade, obras futuras, «livros por vir», na conhecida formula-
ção de Maurice Blanchot sobre a obra de Stéphane Mallarmé (Blanchot, 1959:
326-358), e por isso, não são textos incompletos por alguns dos seus suportes
materiais se terem perdido, mas sim por inacabamento. Em princípio, a curado-
ria de textos do primeiro tipo tem por objectivo reconstituir o texto original,
o texto tal como o seu autor o criou, não obstante todas as dificuldades identifi-
cadas pelos autores mencionados supra neste estudo, que tornam esta tarefa
quase impossível. No entanto, a partir desta quase impossibilidade não deve ser
defendida a ideia de que o curador textual tem legitimidade para curar de um texto
arbitrariamente. Prescindir de critérios filológicos, ou usar deliberadamente crité-
rios filológicos que produzam textos que não sejam resultado da vontade do seu
autor não é curadoria textual, mas sim algo que se aproxima da autoria conhecida
por «paródia». Há, por conseguinte, uma diferença importante entre apresentar
um texto conjecturado pelo curador porque é impossível reconstituí-lo tal como
originariamente escrito e apresentar propositadamente uma versão que não é,
nem nunca poderia ser, a do autor. Na primeira hipótese, cura-se do texto, dado
que há uma preocupação em administrar o património de outrem, havendo, por
inerência, uma co-autoria sui generis, que é inevitável e, por isso, não pode ser mo-
tivo de censura ao trabalho do curador textual. No segundo caso, cria-se um texto
novo, o que, naturalmente, não é curadoria, aproximando-se, ao invés, da paródia.

A qualificação do curador textual como um co-autor sui generis provoca alguns


efeitos jurídicos não despiciendos, sobre os quais valerá a pena determo-nos, ainda
que resumidamente.

Tal como é observado por Oliveira Ascensão, «autor» é uma palavra ambígua, que,
juridicamente, pode designar o criador intelectual da obra, o titular originário des-
ta ou o titular actual (Ascensão, 2012: 105). Segundo Oliveira Ascensão, a «terceira
hipótese resulta da possibilidade de o direito de autor passar do titular originário

76
a outras pessoas» (Ascensão, 2012: 105), tal como acontece, de acordo com Luís
de Menezes Leitão, «nos casos de sucessão por morte ou transmissão por acto
inter vivos» (Leitão, 2011: 104) dos direitos patrimoniais de autor, razão pela qual
o n.º 3 do artigo 27.º do Código do Direito de Autor e dos direitos conexos esclarece
que, «[s]alvo disposição em contrário, a referência ao autor abrange o sucessor
e o transmissário dos respectivos direitos». Quanto ao titular originário do direito
de autor, tanto o artigo 11.º como o n.º 1 do artigo 27.º do Código do Direito de Autor
e dos direitos conexos estabelecem que, salvo disposição em contrário, o titular
originário é o criador intelectual da obra. Contudo, tal como Menezes Leitão nota,
pode «acontecer que o criador intelectual não seja o titular originário dos
direitos sobre a obra, uma vez que estes podem por convenção ser atribuídos ao fi-
nanciador, no caso de obra subsidiada, ou ao comitente ou empregador, no caso de
obra feita por encomenda ou por conta de outrem, caso assim se tenha convencio-
nado» (Leitão, 2011: 104).

Estas situações encontram-se previstas nos artigos 13.º e 14.º do Código do Direito
de Autor e dos direitos conexos, e configuram exemplos de «disposição em contrá-
rio» na acepção presente nos acima mencionados artigos 11.º e 27.º.

A razão pela qual o termo «autor» abrange não só o criador intelectual da obra, mas
também os titulares originário e actual do direito de autor sobre esta, prende-se,
segundo Oliveira Ascensão, com o facto de que «para a lei a preocupação primeira
é com a titularidade do direito, e não com a atribuição originária. Assim, quando
se permite ao autor a defesa judicial do seu direito, abrange-se qualquer titular,
e não apenas o titular originário» (Ascensão, 2012: 105-106).

Por este prisma, deparamo-nos com uma versão jurídica do conceito de autoria
de Foucault, na medida em que, juridicamente, «autor» é um termo que designa
uma determinada pessoa detentora de um direito de autor sobre uma dada obra
literária. Tal como o autor foucaultiano, cujo nome cumpre uma função de deli-
mitação entre vários textos, corresponde, por vezes, mas não necessariamente,
ao criador intelectual do texto em questão, visto que o que é importante, segun-
do Foucault, é realçar a função que o nome de autor cumpre, e não tanto enten-
der quem, efectivamente, é o criador intelectual do texto em questão, também
o autor para o Direito de Autor poderá, certamente, coincidir com o criador inte-
lectual da obra. No entanto, aquilo que é realmente importante é, em termos
análogos aos da posição de Foucault, entender quem é o sujeito de Direito
que tem direito a explorar economicamente a obra e a defendê-la judicialmente.

Contudo, tal como a concepção de autoria de Foucault, a concepção lata de auto-


ria do Direito de Autor é imprestável para discutir questões de responsabilidade

77
textual. Note-se, portanto, que a nossa posição não configura nenhuma crítica
a qualquer destas duas concepções de autoria quando tomadas em si mesmas,
mas apenas à inadequação de se utilizá-las com o intuito de demonstrar que
o «autor», nos sentidos latos criados por estas duas concepções de autoria, não
é o único responsável pelo conteúdo de uma obra literária. Com efeito, tanto o
autor foucaultiano como o autor do Direito de Autor cumprem funções que não
passam por determinar quem é o criador intelectual. Assim, no âmbito dos es-
tudos pessoanos, «Ricardo Reis» é uma expressão que pode ser usada para de-
signar textos que se debruçam, por exemplo, sobre o epicurismo ou o estoicis-
mo, e, por conseguinte, aplicar o termo «autor» à expressão «Ricardo Reis»
é extremamente útil, tal como resulta a partir dos argumentos de Foucault,
como forma de delimitar determinados textos, separando-os de outros textos
com conteúdo diferente. Não é, todavia, uma estratégia correcta de designa-
ção do criador intelectual dos textos, que se chama Fernando Pessoa, dado
que, na realidade, obscurece a autoria, uma vez que o «nome de autor» não
corresponde ao nome da pessoa física que criou os textos em questão.
Juridicamente, Manuela Nogueira e Miguel Rosa foram, até 1 de Janeiro de 2006,
data em que a obra pessoana caiu no domínio público, autores dos textos criados in-
telectualmente por Pessoa por serem, à data, os titulares do direito de autor. Deste
modo, tanto a concepção de autoria de Foucault como a concepção lata de autoria do
Direito de Autor cumprem funções imprescindíveis, respectivamente, para a crítica
literária e para o Direito de Autor, sendo, no entanto, concepções desadequadas para
perceber quem é o responsável pelo conteúdo e significado de uma obra literária.
Apenas a concepção de autor como criador intelectual é apta a fazê-lo.

A lei portuguesa dispõe, no n.º 1 do artigo 39.º do Código do Direito de Autor


e dos direitos conexos, que «[q]uem fizer publicar ou divulgar licitamente, após a ca-
ducidade do direito de autor, uma obra inédita beneficia durante 25 anos
a contar da publicação ou divulgação de protecção equivalente à resultante
dos direitos patrimoniais do autor». O n.º 2 deste mesmo artigo prescreve que «[a]s
publicações críticas e científicas de obras caídas no domínio público beneficiam de
protecção durante 25 anos a contar da primeira publicação lícita». Conceptualmente,
o número 2 refere-se a edições críticas, ao passo que o número 1 seria aplicável a edi-
ções publicadas sem qualquer intervenção curatorial. Tendo em atenção os argu-
mentos apresentados pela literatura especializada no âmbito da crítica textual, pa-
rece-nos muito difícil encontrar exemplos de casos directamente subsumíveis na
previsão do número 1. Com efeito, nem todas as intervenções curatoriais produzirão
uma edição crítica, mas o número 1 parece ir mais longe e conceder protecção a
quem publique ou divulgue obra inédita sem efectuar qualquer intervenção curato-
rial sobre o texto da mesma. Em todo o caso, e independentemente desta assumpção
do legislador ser, ou não, correcta, todos os curadores textuais beneficiam de um

78
prazo de protecção de 25 anos, protecção essa que é equivalente à resultante dos di-
reitos patrimoniais do autor.

Esta última referência estabelece, claramente, que o direito a atribuir ao cura-


dor textual não é um direito de autor. Tendo em atenção a noção apresentada no
artigo 176.º do Código do Direito de Autor e dos direitos conexos, também não
será um direito conexo. Estamos, por conseguinte, perante um direito inomina-
do mais fraco do que o direito de autor, visto que apenas a componente patrimo-
nial deste último se encontra na protecção concedida ao curador textual, e, por
isso, não é concedida, segundo a letra da lei, legitimidade processual ao curador
textual para, em juízo, defender a genuinidade e a integridade da sua edição,
que são manifestações dos direitos morais de autor, visto que tal apenas é con-
cedido ao titular do direito de autor sobre a obra, e não ao titular de uma protec-
ção equivalente à resultante dos direitos patrimoniais do autor54.

Contudo, na medida em que resolver uma questão de Direito não se circunscre-


ve à interpretação do texto da lei, mas consiste, isso sim, em conjugar essa mes-
ma interpretação com os princípios e valores da ordem jurídica, com decisões
jurisprudenciais do passado, com os usos e costumes da sociedade, quando apli-
cáveis, com princípios desenvolvidos doutrinariamente, e, especialmente, atra-
vés do bom senso que resulta da natureza das coisas, ou dos dados da experiên-
cia, juntamente com os factos da questão concreta que é necessário resolver,
torna-se claro que não se encontra na disponibilidade do legislador, a propósito
da questão que nos ocupa, determinar taxativamente, de forma abstracta, que
direitos pertencem aos curadores textuais. Dito por outras palavras, perceber
quais os direitos dos curadores textuais depende de uma apreciação concreta
do seu trabalho.

Como afirmámos no final da subsecção anterior, todos os curadores textuais


são, de facto, co-autores das obras sobre as quais intervêm antes da sua publica-
ção, o que não significa, naturalmente, que este facto deva ser reconhecido juri-
dicamente em todas as circunstâncias. Não podendo, no âmbito deste estudo,
identificar todas as circunstâncias sob as quais a co-autoria factual e, por vezes,

54 Esta é a interpretação que resulta do disposto no artigo 39.º do Código do Direito de Autor e dos direitos conexos; é, não
obstante, duvidoso que quem faça publicar licitamente obra inédita de outrem não se encontre, na realidade, protegido
pelas disposições que tutelam o direito moral de autor. É que, independentemente de o trabalho do curador textual jus-
tificar, ou não, a concessão do direito de autor na sua plenitude sobre a obra por si curada, a verdade é que os problemas
de genuinidade e integridade de uma obra literária se colocam independentemente de o sujeito de Direito em questão
ser autor ou detentor do direito inominado a que temos vindo a fazer referência. Parece-nos, por isso, que o legislador
terá cometido um erro ao atribuir, aos curadores textuais cujo trabalho não justifique o reconhecimento jurídico da
autoria do seu trabalho, somente um direito cujo conteúdo equivale à vertente patrimonial do direito de autor. Com
efeito, o produto do trabalho do curador textual, mesmo quando este não deva, juridicamente, ser considerado autor da
obra de que cura, tem de se encontrar protegido através da tutela concedida ao direito moral de autor.

79
literária do curador textual deve ser reconhecida juridicamente, argumenta-
mos, contudo, que o caso Pessoa, nomeadamente ao nível dos textos incomple-
tos por inacabamento, configura um exemplo marcante de co-autoria literária
do curador textual que deve ser reconhecida juridicamente, dado que o curador
textual dos textos pessoanos incompletos por inacabamento é co-criador inte-
lectual das obras por si curadas em virtude de a criação dessas mesmas obras
depender não só dos textos escritos por Pessoa, mas também de outros
actos criativos desempenhados por curadores textuais, como, e utilizando
o Livro do Desassossego como exemplo paradigmático, as decisões que se pren-
dem com a inclusão ou exclusão de trechos e o respectivo ordenamento, que são,
efectivamente, criações intelectuais. Por este motivo, o curador textual será,
para efeitos do artigo 11.º e do n.º 1 do artigo 27.º do Código do Direito de Autor
e dos direitos conexos, autor de determinadas partes da obra. Surge, por conse-
guinte, uma co-autoria literária sui generis que, juridicamente, não é subsumí-
vel a qualquer um dos tipos de co-autoria mencionados nos artigos 16.º a 20.º
do Código do Direito de Autor e dos direitos conexos, e, precisamente por isto
mesmo, dificilmente se poderá qualificar, juridicamente, a criação intelectual
do curador textual como uma co-autoria. Será porventura mais correcto qualifi-
car o curador textual simplesmente como autor da obra por si curada, nos casos
em que a sua criação intelectual o justifique, devido à seguinte circunstância:
o direito de autor, tradicionalmente visto como uma emanação do direito
de propriedade (Ascensão, 2012: 17-19), retém uma das características mais proe-
minentes deste direito, a saber, a da sua oponibilidade erga omnes, que deriva da
circunstância de a atribuição da titularidade do direito em questão a um deter-
minado sujeito de Direito excluir os demais sujeitos de Direito: «A tutela da cria-
ção literária e artística faz-se basicamente pela outorga de um exclusivo.
A actividade de exploração económica da obra, que de outro modo seria livre,
passa a ficar reservada para o titular» (Ascensão, 2012: 11-12).

Dito de outra forma, se A é proprietário da coisa X, ou B titular do direito de au-


tor sobre a obra Y, então mais ninguém pode ser proprietário de X ou autor, no
sentido técnico-jurídico do Direito de Autor, de Y. O direito de autor é um direito
que acarreta exclusividade; é um facto que dois ou mais sujeitos de Direito po-
dem ser titulares do direito de autor sobre a mesma obra, ou co-proprietários da
mesma coisa, mas todos os que não o são encontram-se excluídos das vantagens
proporcionadas por estes dois direitos.

Assim, atribuir co-autoria jurídica sobre o Livro do Desassossego a Prado Coelho


e Pessoa, co-autores literários da primeira obra publicada sob este título, impli-
caria a impossibilidade de outros curadores textuais curarem do Livro do
Desassossego porque, estando a titularidade do direito de autor na esfera jurídica

80
de pessoas que são herdeiras de alguém que faleceu há menos de 70 anos, como
é o caso de Prado Coelho, mais ninguém poderia intervir sobre a obra, dada a ca-
racterística da exclusividade do direito de autor referida anteriormente.
A solução jurídica que gostaríamos de propor para esta questão é a seguinte: a
protecção concedida pelo artigo 39.º do Código do Direito de Autor e dos direitos
conexos não é, pelo facto de estarmos a falar de criação intelectual, automatica-
mente aplicável a todos os curadores textuais, mas apenas aos curadores tex-
tuais cuja contribuição não seja suficiente para justificar o reconhecimento jurí-
dico do facto da sua co-autoria. É este o caso, por exemplo, da curadoria de
textos completos e publicados durante a vida do autor, como Ulysses, cuja inter-
venção curatorial não justifica que se reconheça a actividade do curador textual
como sendo uma co-autoria para efeitos jurídicos, não obstante o ser factual-
mente, porque a existência de Ulysses é independente do trabalho do curador
textual devido ao facto de esta obra ter sido publicada durante a vida do seu
criador intelectual, James Joyce. Assim, há co-autorias factuais de determina-
das obras que não devem ser juridicamente reconhecidas, mas, por outro lado,
também há co-autorias factuais que têm de ser juridicamente reconhecidas
como criações intelectuais de importância inestimável para a constituição da
obra literária em questão. Na medida em que o reconhecimento obtido através
do artigo 39.º do Código do Direito de Autor e dos direitos conexos não é adequa-
do a todas as circunstâncias, dado que não distingue convenientemente entre
criações intelectuais que contribuem decisivamente para o conteúdo e sentido
de uma obra literária e criações intelectuais cujo impacto na obra é mínimo,
conferindo, ao invés, o mesmo tipo de protecção a ambas, e perante a impossibi-
lidade de se atribuir co-autoria jurídica a autor originário e a curador textual, o
curador de uma obra como o Livro do Desassossego que, sem a intervenção criati-
va de um curador textual, não chega sequer a constituir-se como obra literária,
deve ser considerado como autor, e não co-autor, da obra em questão. Se Prado
Coelho for reconhecido como titular de direito de autor sobre a sua edição do
Livro do Desassossego, então a exclusividade própria do direito de autor apenas
afasta outros da possibilidade de intervirem sobre essa mesma edição, manten-
do-se o texto tal como Pessoa o deixou no domínio público, e, por conseguinte,
disponível para ser futuramente curado por outros interessados. Assim, de um
ponto de vista jurídico, o Livro do Desassossego da autoria de Pessoa é algo que
não existe, dado que a protecção concedida pelo direito patrimonial de autor an-
tes da queda da obra pessoana no domínio público, bem como a que se mantém
na vertente dos direitos morais de autor, incide sobre trechos que, quando reu-
nidos, se podem designar, literariamente, por Livro do Desassossego. Para efeitos
jurídicos, Pessoa é autor de cada um dos textos por si redigidos, mas não é autor
do Livro do Desassossego enquanto todo porque não chegou a constituir esse
mesmo todo. Da perspectiva do Direito de Autor não se pode, por conseguinte,

81
atribuir co-autoria do Livro do Desassossego a Prado Coelho e Pessoa, ou a Zenith
e Pessoa, mas pode-se, isso sim, considerar que Pessoa é autor de um conjunto
de textos desagregados, ao passo que Prado Coelho, Zenith, Sobral Cunha
e Pizarro são, cada um, autores de quatro obras literárias diferentes, todas inti-
tuladas «Livro do Desassossego», cujo denominador comum se encontra no facto
de a génese de cada uma destas obras estar no trabalho de intervenção curato-
rial efectuado sobre os textos da autoria de Pessoa acima mencionados. No en-
tanto, estamos perante quatro obras literárias diferentes que assim devem ser
reconhecidas, não só do ponto de vista literário, mas também do ponto de vista
do Direito de Autor, tendo em atenção as divergências de conteúdo resultantes
da criação intelectual de cada um dos curadores textuais aqui referidos.

Em suma, de uma perspectiva literária, os argumentos apresentados ao longo


deste estudo levam-nos a concluir que obras como o Livro do Desassossego confi-
guram casos de co-autoria literária sui generis; para o Direito de Autor, não se
tratará de co-autoria, mas sim de autoria tendo em atenção a criação intelectual
de cada um55. Há quatro pessoas diferentes cujas criações intelectuais resultam
em quatro obras literárias distintas que partilham o mesmo título e um denomi-
nador, a saber, a administração de textos de uma quinta pessoa, Fernando
Pessoa; este último, contudo, não é autor jurídico de uma obra literária intitula-
da Livro do Desassossego, mas sim de vários textos que, posteriormente, os cura-
dores textuais constituíram em obras literárias com este título, e que, tendo em
atenção a natureza das suas intervenções, os torna criadores intelectuais
de cada um dos «Livros» do Desassossego daí resultantes.

V. REVOGAÇÃO LITERÁRIA
Tendo sido estabelecido que os filólogos, nas especialidades de revisor editorial
e de crítico textual, são curadores textuais, e que a curadoria por si efectuada
sobre textos de obras literárias os torna, inerentemente, co-autores das mesmas,
em virtude de, a par do autor originário, serem criadores intelectuais da obra em
questão, foi demonstrado, na secção anterior, em que termos se deve reconhecer
juridicamente este facto. Contudo, existe uma consequência literária não despi-
cienda da tese aqui avançada, que configura o segundo problema sobre o qual
este estudo versa, e que pode ser formulada através da seguinte pergunta: que
edição, de entre aquelas publicadas após intervenção de um curador textual,
de obras cuja autoria, no sentido foucaultiano do termo, é atribuída a Pessoa,
tais como, por exemplo, Livro do Desassossego, Notas para a Recordação do meu
Mestre Caeiro, Erostratus ou Fausto, bem como de outras com um estado

55 Por este motivo, utilizaremos, doravante, o termo «autor» ou «autoria» em referência à co-autoria factual ou literária
que, juridicamente, deve ser reconhecida como uma autoria.

82
de incompletude idêntico ao das aqui mencionadas, se deve considerar canóni-
ca, revogando, por conseguinte, outras edições publicadas, para efeitos de leitu-
ra, interpretação e análise literária?

Esta pergunta assume, por um lado, que é possível identificar e estabelecer uma
edição canónica, de entre as várias edições disponíveis no mercado, de obras
atribuídas foucaultianamente a Pessoa, e, por outro lado, que essa identificação
e estabelecimento têm a capacidade de revogar outras edições concorrentes.
Há duas objecções muito claras e inevitáveis a estes dois pressupostos.
A primeira, que incide apenas sobre a questão da identificação e estabelecimen-
to de uma edição canónica, prende-se com o facto de não haver critérios objecti-
vos que permitam essa mesma identificação e estabelecimento. A segunda,
transversal tanto à questão da canonicidade como à da revogação literária, não
é mais do que uma chamada de atenção para o facto de que, mesmo que haja cri-
térios que permitam a identificação e estabelecimento de uma edição canónica,
nomeadamente prescindindo-se do requisito da objectividade, admitindo-se
como válidos critérios subjectivos, não há forma de se conferir a qualquer hipo-
tética escolha de uma edição como sendo canónica um estatuto que a torne vin-
culativa para todos os filólogos (no sentido mais antigo do termo) e leitores em
geral, e que produza, por conseguinte, o efeito de revogar as demais edições
concorrentes disponíveis no mercado.

Aceitamos como boas estas duas objecções, e, por isso, não iremos tentar produ-
zir quaisquer argumentos com o intuito de as afastar. No entanto, cremos
que os putativos objectores que, ao tomarem conhecimento do nosso propósito
em apurar a edição canónica de obras como o Livro do Desassossego, usariam
as objecções acima mencionadas, ou outras que lhes sejam próximas, julgam
que a procedência das mesmas é suficiente para afastar tanto a possibilidade
como a necessidade de se identificar uma edição canónica, revogatória das de-
mais edições concorrentes. Na realidade, todos os filólogos (no sentido tradicio-
nal do termo) escolhem, constantemente, edições canónicas revogatórias das
demais, utilizando, para tal, critérios subjectivos, isto é, critérios que, de acordo
com a sua opinião profissional devidamente fundamentada, são os melhores,
de entre os disponíveis e aplicáveis em abstracto, para, numa situação concreta,
designarem determinada edição de uma dada obra literária como sendo canóni-
ca. Ao fazerem isto, promovem uma revogação das demais alternativas, que, não
obstante ser autovinculativa, não tem, necessariamente, de ser vinculativa para
os restantes filólogos.

Por um lado, todos os curadores textuais, ao decidirem curar de um determina-


do texto, fazem-no, entre outras coisas, com o intuito de produzirem a melhor

83
edição publicada do texto em questão, e, por isso, com a intenção, implícita nos
seus actos, de revogarem tacitamente as edições produzidas noutras ocasiões,
quer pelo próprio curador textual no passado, como acontece com as edições do
Livro do Desassossego de Zenith e de Sobral Cunha, quer por outros curadores
textuais. Os críticos literários pessoanos, por outro lado, quando discutem
determinadas obras pessoanas com edições diferentes disponíveis no mercado,
algumas das quais substancialmente díspares entre si, acabam, inerentemente,
por, ao escolher uma determinada edição, revogar as demais. Normalmente, tal
não é feito expressamente, i. e., o crítico literário não divulga que escolheu
determinada edição como sendo canónica, e que as demais edições da obra em
questão não têm, na sua óptica, qualquer validade. Contudo, uma revogação não
necessita de ser expressa. Ao escolher uma edição em concreto para elaborar
uma crítica, o crítico pessoano revoga tacitamente as edições concorrentes.

Há, naturalmente, algumas excepções ao que acaba de ser dito, visto que,
por vezes, os críticos citam duas, ou mais, edições que partilham o mesmo títu-
lo, mas que são da responsabilidade de curadores textuais diferentes. Cremos que
tal é feito por uma de duas razões, a saber: 1) faz parte dos objectivos do crítico
chamar a atenção para determinadas disparidades editoriais que têm conse-
quências hermenêuticas. Neste caso, não se pode revogar nenhuma das edi-
ções em confronto, dado que, se tal fosse feito, a disparidade em questão desa-
pareceria; 2) o crítico cita passos que, em edições da responsabilidade de
curadores textuais diferentes, são idênticos, e, por isso, é indiferente qual das
edições se escolhe, o que leva a que não seja necessário decidir qual das edi-
ções é canónica.

A escolha da edição canónica e, por conseguinte, a revogação das demais al-


ternativas, é sempre ad hoc. Certas circunstâncias, como teremos oportunida-
de de constatar infra a propósito da noção de comunidades de críticos literá-
rios pessoanos, poderão conduzir a uma generalização da canonicidade e da
revogação; em todo o caso, esta generalização nunca será absoluta, pelo que,
ao afirmarmos que é possível identificar a edição canónica das obras pessoa-
nas acima mencionadas, com a correspondente revogação das restantes alter-
nativas, não pretendemos defender, por um lado, que estas escolhas produzem
efeitos coercivos sobre todos os filólogos, nem, por outro lado, que as decisões
são permanentes e irrevogáveis. Dito de outro modo, uma alteração dos crité-
rios utilizados, que é algo passível de ocorrer a qualquer momento, poderá
conduzir à repristinação de uma das edições revogadas, que, assim, passará, a
partir desse momento, a ser considerada canónica. Além disso, é possível,
igualmente em qualquer altura, que uma nova edição, que pode, inclusive, ser
da responsabilidade de um curador textual diferente daqueles que habitual-

84
mente curam de determinada obra, revogue a edição que, até então, detinha o
estatuto de canónica. Em suma, tanto a canonicidade como a revogação não
obedecem a critérios objectivos, não são coercivas in toto, nem sequer perma-
nentes ou irrevogáveis, e, por isso, as objecções acima levantadas não afectam
o nosso argumento porque este não contém nenhuma defesa dos aspectos que
as referidas objecções visam refutar56.

Este esclarecimento acerca dos efeitos produzidos pela escolha de uma determi-
nada edição como sendo canónica é susceptível de levantar três questões, que
serão discutidas ao longo desta e da próxima secção. A primeira questão prende-
-se com perceber o que se entende por «revogação», na medida em que o concei-
to ao qual o termo alude, na sua acepção técnico-jurídica, é entendido como ten-
do um tipo de coercividade que afecta todos os operadores jurídicos, ao
contrário do que acontece com a noção de revogação literária, cujo tipo de coer-
cividade é, por um lado, diferente da coercividade jurídica, e, por outro lado,
quando existe, não afecta, da mesma maneira, todos os filólogos, no sentido tra-
dicional do termo. A segunda questão tem a ver com apurar quais são os crité-
rios subjectivos que podem ser usados para identificar e estabelecer uma edição
canónica. Por serem subjectivos, seria impossível mencioná-los e discuti-los a
todos no contexto deste estudo, pelo que revelar-se-á mais proveitoso focar a
discussão num exemplo de um critério subjectivo apto a identificar e estabelecer
a edição canónica de entre as várias edições de uma obra, a saber, o de apurar a
vontade real do autor. Na próxima secção, discutiremos a terceira questão, que
passa por fundamentar a asserção acima feita segundo a qual os filólogos, quer
se trate de curadores textuais ou de críticos literários, têm necessariamente de
tomar uma decisão revogatória através da escolha de uma edição canónica.

V.I. Revogação
«Revogação», em sentido técnico-jurídico, é um termo que denota que um
determinado texto foi eliminado coercivamente pelo seu autor. Esta afirmação
encerra três problemas, que podem ser colocados através das seguintes
questões: 1) Que textos são passíveis de ser revogados? 2) O que significa
«coercivamente»? 3) Quem é considerado o «autor» de um texto?

56 É, por conseguinte, importante notar que o termo «cânone» e respectivos derivados, tais como são usados neste estudo,
divergem do sentido tradicional adquirido à luz de discussões travadas no seio da Igreja Católica (e. g., o cânone
bíblico) essencialmente porque a Igreja é uma organização política com um sistema jurídico próprio e instituições com
competência para aplicá-lo, ao contrário do que acontece na Literatura. Ainda que habitualmente não se pense desta
maneira, todos os cânones literários são ad hoc porque dependem de critérios subjectivos e não são coercivos, dado
que não há instituições com competência para os imporem. O cânone bíblico é objectivo e coercivo porque é imposto
por uma autoridade dotada de poderes políticos e jurídicos. O cânone sobre o qual nos debruçamos a propósito do caso
Pessoa não tem estas características, e, por isso, pode ser individual, ainda que, como veremos, o fenómeno das comu-
nidades interpretativas lhe confira bastante socialização.

85
Começando pela primeira questão, os textos passíveis de serem revogados são
aqueles que são considerados como «fontes do Direito». Historicamente, a lei,
o costume e a jurisprudência são as três fontes do Direito transversais a todas as
ordens jurídicas. O seu posicionamento hierárquico varia consoante a ordem
jurídica em questão, sendo que, além disso, certas ordens jurídicas podem não re-
conhecer validade formal a alguma destas fontes, o que acarreta a consequência
de as mesmas não poderem ser utilizadas na resolução de questões de Direito.
Por outro lado, certas fontes apenas existem em determinadas ordens jurídicas
(v. g., o Direito da União Europeia, originário ou derivado, que é fonte do Direito
somente nas ordens jurídicas dos Estados-membros da União), razão pela qual
não são consideradas universais. Por último, certos instrumentos de Direito pri-
vado, como, por exemplo, o contrato e o testamento, também podem ser
considerados fontes do Direito, embora sejam fontes vinculativas somente para
as partes do respectivo negócio jurídico.

Quando se diz que a revogação tem efeitos coercivos, tal significa que o texto da
fonte revogada não mais pode ser utilizado na resolução de questões
de Direito. Por conseguinte, uma lei revogada, por exemplo, pode continuar a
ser analisada e interpretada no âmbito da história ou da filosofia do Direito, mas
já não poderá ser aplicada a um caso concreto contemporâneo. A coercividade
emana do poder que o autor do texto da fonte tem em eliminá-lo da ordem jurí-
dica independentemente do valor intrínseco de tal decisão, isto é, de a decisão
de revogar uma lei ou um contrato ser benéfica ou contraproducente, quer para
a sociedade em geral, no caso da lei, quer para as partes, no caso do contrato.

Por último, a noção de «autor» tem, no Direito, uma vertente institucional


que a afasta da noção de criador intelectual. O indivíduo que lavra uma propos-
ta de lei ou reduz a escrito um contrato é o autor material do respectivo texto,
ou seja, é o seu criador intelectual. Contudo, institucionalmente, o autor de um
contrato é composto pelas partes que o outorgam; da mesma forma, o autor ins-
titucional de uma lei é o órgão legislativo.

A autoria institucional coincide, em certos casos, com a autoria que se refere


ao criador intelectual; tal acontece invariavelmente com o testamento.
Poderá ocorrer igualmente com os contratos, caso as próprias pessoas
singulares que, institucionalmente, são consideradas partes no contrato re-
dijam, em conjunto, numa situação de co-autoria intelectual, os termos des-
se mesmo contrato. Contudo, o poder revogatório é detido pelo autor institu-
cional, não pelo criador intelectual do texto. Assim, o autor institucional
de uma lei, o órgão legislativo, tem o poder de a revogar, independentemente
de o criador intelectual da mesma integrar, ou não, esse mesmo órgão.

86
Quanto aos contratos, na medida em que estes têm, pelo menos, duas par-
tes, uma revogação só se poderá operar de comum acordo entre estas.
Visto que as partes, em conjunto, são o autor institucional, o princípio
de que só o autor de um texto o pode revogar verifica-se igualmente nesta
situação 57.

Em certos ordenamentos jurídicos, o poder executivo tem, igualmente, determina-


das competências legislativas; quando estas são de natureza concorrencial com o
órgão que detém o poder legislativo, o executivo pode revogar a legislação emana-
da do legislativo, e vice-versa, segundo o princípio «lex posteriori derogat legi prio-
ri». Perante uma situação como esta, poder-se-ia argumentar que é possível a exis-
tência de revogação por parte de um órgão que não é o autor institucional de uma
lei. Em todo o caso, convém salientar que os órgãos legislativo e executivo são ór-
gãos do Estado, o que significa, em última análise, que a autoria institucional é re-
conduzível ao Estado. Assim, ainda que um órgão que não é o autor institucional
de uma lei tenha poder para a revogar, não se constata a existência de uma excep-
ção ao princípio de que só o autor de um texto é que o pode revogar, dado que o au-
tor institucional, em última instância, é o Estado, que desenvolve as suas activida-
des através de órgãos. O mesmo raciocínio é aplicável tout court às revogações das
decisões judiciais de tribunais inferiores por parte de tribunais superiores, ou da
revogação de um acto administrativo efectuada pelo superior hierárquico do órgão
originariamente responsável por esse mesmo acto administrativo.

Em suma, a revogação, no Direito, é sempre efectuada, de forma coerciva,


pelo autor de um texto considerado como fonte do Direito58. Naturalmente,
os textos das fontes do Direito podem deixar de poder ser considerados, ou não
ser considerados totalmente, na resolução de casos concretos em virtude de de-
cisões tomadas por outrem que não os seus autores institucionais. Assim, as dis-
posições testamentárias podem não ser executadas no caso de se verificarem
inoficiosidades. Isto significa que o texto do testamento não operará todos os
efeitos intencionados pelo seu autor devido à existência de disposições legais
que protegem a quota indisponível dos herdeiros legitimários do autor da suces-
são. Ao aplicar estas regras de fonte legal, o juiz não está a revogar o autor

57 A cessão da posição contratual, figura que permite que um terceiro substitua uma das partes do contrato, confere
a esta nova parte o poder de revogar, em conjunto com a contraparte, o contrato em questão. À primeira vista, esta
situação parece configurar uma excepção; contudo, a mesma é análoga à transmissão do direito de autor, que permite,
tal como vimos na secção 4, que se considerem, por exemplo, os herdeiros do criador intelectual de uma obra literária
como sendo, para efeitos jurídicos, autores da mesma. A parte que substitui uma das partes originárias do contrato é,
nos mesmos moldes do que sucede em relação aos autores de obras literárias, autora do contrato para efeitos jurídicos,
ainda que esta autoria em nada coincida com a concepção de autor enquanto criador intelectual.

58 Não obstante existirem situações em que é possível revogar unilateralmente contratos bilaterais, como sucede, por
exemplo, com o mandato, as mesmas configuram excepções que se justificam tendo em atenção o cariz dos contratos
em questão, bem como certos princípios e valores que se visam tutelar. Assim, o mandato é livremente revogável por-
que o legislador entende que as partes não têm qualquer obrigação em se vincularem uma à outra perpetuamente, ou
durante largos períodos de tempo. É discutível, no entanto, o uso do termo «revogação» para qualificar esta figura, que
se aproxima de uma outra, a saber, a «denúncia». A propósito desta questão cf. Martinez, 2015: 55-61.

87
da sucessão; no entanto, o resultado da aplicação destas regras, por parte do
juiz, produz um efeito semelhante ao da revogação: determinado texto não pode
ser utilizado para o fim com que originariamente foi criado. O texto testamentá-
rio é redigido, entre outras coisas, com a finalidade de instituir legados, funda-
ções por morte, ou efectuar substituições. A revogação do testamento não impli-
ca que o texto do mesmo deixe facticamente de existir, dado que textos são
coisas incorpóreas, e, por isso, insusceptíveis de fragmentação ou de destrui-
ção59; o acesso a qualquer texto poderá ser suprimido se os exemplares dos su-
portes do texto forem destruídos, mas esta situação é alheia à revogação60. O
efeito revogatório consiste no facto de que o texto deixa de poder ser utilizado
para a finalidade com que foi criado. A aplicação, por parte do juiz, de regras le-
gais que se destinam a proteger a quota indisponível dos herdeiros legitimários
do autor da sucessão não é um exercício de revogação do testamento, visto que é
efectuado por outrem que não o autor institucional do negócio jurídico em ques-
tão; sem embargo, produz exactamente o mesmo efeito que a revogação, a saber,
o de impedir a utilização do texto para o fim com que foi especialmente criado.
O mesmo raciocínio aplica-se a contratos e a leis. Assim, um contrato pode, por
exemplo, ser resolvido ou denunciado, o que é feito, unilateralmente, por uma
das partes, sem que haja consentimento da outra. Esta ausência de consenti-
mento é uma das diferenças mais notórias entre os actos de resolução, ou de de-
núncia, e o acto de revogação: ao passo que a revogação é sempre feita pelo autor
institucional, que, no caso dos contratos, é composto pelas partes do mesmo, a
resolução ou a denúncia, por exemplo, são efectuadas apenas por uma das par-
tes. Todavia, o efeito que a denúncia ou a resolução provocam sobre o texto é o
mesmo do da revogação: o texto contratual deixa de poder ser considerado para
os fins com que foi criado, nomeadamente o de conferir direitos e impor obriga-
ções às partes contratantes. Um fenómeno semelhante ocorre quando uma lei é
declarada inconstitucional; na medida em que os tribunais não são os autores
institucionais das leis, não as podem revogar. No entanto, uma lei contrária à

59 Sobre esta questão cf. Ferreira, 2015b.

60 O número 1 do artigo 2315.º do Código Civil dispõe o seguinte: «Se o testamento cerrado aparecer dilacerado ou feito em
pedaços, considerar-se-á revogado, excepto quando se prove que o facto foi praticado por pessoa diversa do testador,
ou que este não teve intenção de o revogar ou se encontrava privado do uso da razão.» Isto significa que, se o testador
dilacerar ou destruir o testamento cerrado, total ou parcialmente, com o intuito de impedir que o documento produza
os efeitos jurídicos que lhe são próprios, então o testamento considerar-se-á revogado. O uso do verbo «considerar» dá
a entender que o legislador pretende que se atribuam efeitos revogatórios ao acto de destruição física do testamento,
mesmo que, tecnicamente, não se possa falar em revogação, que é um conceito jurídico que não corresponde à acção de
destruição física de documentos. Com efeito, se a destruição de um documento implicasse, por si só, a sua revogação,
então a destruição feita por outrem que não o testador também revogaria o testamento, algo que o legislador tem o cui-
dado de referir que não acontece. Por estes motivos, não subscrevemos a posição segundo a qual a destruição física dos
suportes materiais de um texto implica a sua revogação. Isto só acontece, em alguns casos, com a figura do testamento
porque o Direito tutela a vontade do testador, presumindo-se que a destruição propositada do documento, feita pelo
autor da sucessão no uso pleno das suas capacidades, tem como intuito produzir um efeito revogatório. Esta é uma ex-
cepção justificada pela teleologia do instituto da sucessão testamentária que não deve ser transposta para a revogação
literária. Caso contrário, teria de se aceitar que actos de violência como, por exemplo, a destruição da biblioteca de D.
Quixote encetada pelo padre e pelo barbeiro seriam actos de revogação de obras literárias. A revogação não corres-
ponde a um acto físico, dado que é uma figura puramente conceptual. A excepção oferecida pelo Direito sucessório
testamentário não deve, por conseguinte, ser utilizada para atacar uma formulação geral, dado que o caso excepcional
só funciona, precisamente, para regular situações que se desviam de um padrão.

88
Constituição de um Estado não pode ser utilizada para a finalidade com que foi
criada, i. e., a de ser aplicada na resolução de questões de Direito. Declarar uma
lei inconstitucional, nomeadamente quando tal é feito com força obrigatória ge-
ral, produz exactamente os mesmos efeitos da revogação, ainda que a «declara-
ção de inconstitucionalidade» e a «revogação» sejam, conceptualmente, duas fi-
guras jurídicas muito diferentes entre si.

V.II. Revogar obras literárias


O uso paradigmático de uma obra literária consiste na sua interpretação e utili-
zação na feitura de teoria e crítica literária. Há, no entanto, outras coisas, além
destas, que podem ser feitas com textos literários. Assim, por exemplo, pode
analisar-se o texto de uma perspectiva histórico-linguística, nomeadamente no
âmbito de um estudo que pretenda demonstrar que tendências existiam no esti-
lo de escrita de determinados autores numa dada época histórica. É igualmente
possível tratar um texto literário a partir de uma perspectiva estatística, i. e.,
com o objectivo de apurar se o estilo de um autor é descritível com base em re-
gularidades estatísticas. Não se pode considerar este tipo de análises como per-
tencendo ao escopo daquilo que é, de forma mais ou menos consensual, consi-
derado como uma análise literária. É nossa contenção que a finalidade com que
um texto literário é redigido consiste em contribuir para a discussão de determi-
nado tema, seja ele qual for, razão pela qual esse mesmo texto está sujeito a
apreciações de crítica literária que visam, igualmente, efectuar o seu contributo
para a discussão do assunto em questão. «Revogar» é, por isso, o acto através do
qual o autor manifesta a vontade de retirar o seu texto da discussão para a qual
o mesmo visava, originariamente, contribuir, razão pela qual deixa de ser ad-
missível utilizar esse mesmo texto no aprofundamento da discussão, nomeada-
mente através de crítica literária. Análises histórico-linguísticas ou estatísticas
de um texto literário equivalem a análises histórico-jurídicas ou jus-filosóficas
de leis do passado que já não se encontram em vigor. Dito por outras palavras, a
revogação impede, tanto na Literatura como no Direito, que se use o texto, res-
pectivamente, na discussão de um tema ou na resolução de uma questão de
Direito. «Revogar» não significa, por conseguinte, impedir que determinado tex-
to possa ser lido e interpretado em geral, mas sim precludir a possibilidade de se
ler e interpretar esse texto tendo em vista a sua utilização para os fins a que pa-
radigmaticamente se dirigiria.

A grande dificuldade em aplicar a noção de revogação a áreas não jurídicas


prende-se com a questão dos efeitos coercivos que esta declaração unilateral
de vontade por parte do autor de um texto pode provocar. Com efeito, o acto re-
vogatório é absoluto, ou seja, não admite excepções consoante as circunstâncias.

89
A partir do momento em que uma lei é revogada, a mesma é inaplicável
a toda e qualquer situação jurídica que se constitua após a revogação61. Da mes-
ma forma, após a revogação de uma obra literária, a mesma deixa de poder ser
interpretada e usada para os fins com que fora redigida.

A dificuldade com que nos deparamos consiste em saber até que ponto o autor
de uma obra literária tem poderes coercivos para tomar a decisão de a revogar.
Estes poderes coercivos encontram-se, efectivamente, presentes em situações
onde a coercividade da revogação de uma obra literária deriva da existência de
regras de Direito, como acontece, por exemplo, no caso do exercício do direito de
retirada, previsto no artigo 62.º do Código do Direito de Autor e dos direitos co-
nexos, nos termos do qual o autor elimina coercivamente o seu texto do mundo
da Literatura, retirando de circulação os exemplares entretanto publicados. Há,
neste caso, uma tentativa da parte do autor em efectuar uma revogação que tem
como consequência tanto a proibição de ler o texto como a de o interpretar criti-
camente, sendo que, no entanto, a proibição de ler o texto não é eficaz nos casos
em que, entre a publicação e o exercício do direito de retirada, alguns particula-
res tenham adquirido exemplares da obra.

Um outro exemplo de revogação coerciva assente numa regra de Direito encon-


tra-se no artigo 58.º do Código do Direito de Autor e dos direitos conexos, que re-
gula os efeitos da fixação de texto em preparação de uma edição ne varietur de
uma obra literária, que consiste num tipo de edição em que se processa a substi-
tuição de versões textuais antigas por uma versão revista, actualizada, emenda-
da e tida por definitiva, a menos que o próprio autor decida fazer nova edição ne
varietur. Na medida em que o autor se pode dar conta de erros na edição não de-
tectados em momento anterior ao da sua publicação, seria inconstitucional im-
pedi-lo de revogar a sua própria edição ne varietur, por violação do n.º 1 do arti-
go 26.º e do artigo 42.º da Constituição da República Portuguesa. Por este
motivo, pode afirmar-se que há dois conceitos diferentes entre si designados
através da expressão «ne varietur», um jurídico, outro filológico. Na Filologia,
uma edição será ne varietur somente se não for possível efectuar-se quaisquer
alterações posteriores, independentemente de as mesmas virem a ocorrer, ou
não, durante a vida do autor. No Direito, uma edição será ne varietur apenas e só
por vontade do autor, o que implica, por um lado, que só pode ocorrer durante a
vida deste, e que, por outro lado, pode ser revogada somente pelo autor. A utili-
dade jurídica da figura da edição ne varietur prende-se com a possibilidade legal
de impedir a utilização de edições anteriores para o seu fim paradigmático,

61 É um facto que a lei revogada pode produzir certos efeitos jurídicos sobre determinadas situações constituídas antes
do momento da revogação. Este é, contudo, um problema de aplicação da lei no tempo cujos contornos específicos são
operáveis somente no mundo do Direito, sendo irrelevantes para a explicitação de um conceito de revogação em geral.

90
ou seja, para efeitos de interpretação e análise literária. Edições ne varietur pos-
teriores à primeira deste género têm o efeito jurídico de colocar as edições ne va-
rietur antecedentes na mesma situação das edições que não são ne varietur,
isto é, revogam-nas62.

Uma outra fonte de coercividade, alheia ao Direito, pode ser encontrada numa
regra moral tida como basilar para todo o discurso ético, e cuja aplicação prática
pode ser verificada no caso Pessoa. Com efeito, o comportamento de Pessoa no
processo de elaboração de várias das suas obras, bem como a curadoria textual
encetada com o intuito de as publicar, constituem exemplos de revogação cuja
coercividade emana da vontade do autor. A legitimidade deste critério deriva,
como dissemos, não de qualquer regra jurídica, mas sim de uma regra moral
cuja importância não é demais realçar. Com efeito, conceder às pessoas liberda-
de de actuação na prossecução de fins lícitos (sendo considerado lícito tudo
aquilo que não seja pernicioso para a segurança da sociedade) é uma manifesta-
ção da dignidade intrínseca à pessoa de cada ser humano. Assim, se um indiví-
duo manifestar a vontade de se apropriar de coisa móvel alheia sem autorização
do respectivo proprietário, deve ser impedido de o fazer, tanto de um ponto
de vista moral como jurídico, na medida em que não lhe é lícito dispor de bens
alheios. Por outro lado, se um indivíduo manifestar a vontade de fazer exercício
físico todos os dias, tal não lhe deve ser interditado, na medida em que o exercí-
cio desta vontade não colide com a segurança da sociedade nem com direitos
de outros indivíduos.

Certos imperativos éticos não são tutelados pelo Direito. Em todo o caso, a gran-
de vantagem do Direito, a saber, a de fornecer garantias apoiadas na coercivida-
de que o seu grau de institucionalização traz às regras jurídicas, não afecta
o conteúdo do imperativo ético. Assim, se, moralmente, todos estão vinculados
a respeitar as manifestações de vontade lícitas dos seus semelhantes, o respeito
que aqui é devido existe na mesma medida com ou sem tutela jurídica.

62 Poder-se-á certamente arguir que a expressão utilizada pelo legislador é errónea, dado que o uso que é dado à expres-
são «ne varietur» não coincide com o uso que a mesma foi adquirindo ao longo do tempo no discurso filológico; no en-
tanto, concordar com esta observação apenas nos leva a constatar que o legislador não terá utilizado a expressão mais
correcta para designar edições que têm a capacidade de revogar edições anteriores, mas que, por sua vez, não têm de
ser definitivas. Esta constatação em nada modifica o regime legal, e a discussão em que a mesma se insere demonstra,
uma vez mais, que as palavras significam aquilo que o seu autor queira que as mesmas signifiquem quando as usa, e
não aquilo que uma maioria estatística de falantes quis dizer em actos de fala passados. Naturalmente, não respeitar a
maioria estatística poderá conduzir a equívocos, ou seja, poderá provocar situações em que a compreensão das ideias
do autor se encontra comprometida, o que, aparentemente, parece suceder com a expressão «ne varietur», onde a cor-
recta interpretação da mesma, que obedece ao pensamento do legislador e não ao significado criado em virtude do uso
estatístico proveniente dos filólogos, depende da utilização do raciocínio jurídico, que engloba as vertentes mencio-
nadas na secção 4 a propósito da atribuição do direito de autor aos curadores textuais. Interpretar disposições legais
isoladamente, como normalmente é feito por não-juristas, acaba por provocar erros interpretativos que advêm do
facto de não se considerar que os vocábulos e expressões de uma determinada língua nem sempre são utilizados pelo
legislador, por juízes ou por jurisconsultos segundo o uso estatisticamente consagrado pela maioria dos falantes. O uso
especializado de determinada terminologia é tradicionalmente designado através da expressão «linguagem técnica».
No entanto, as várias linguagens técnicas não existem enquanto sistemas linguísticos abstractos exactamente pelas
mesmas razões apontadas por Fish a propósito da denominada «linguagem comum». A «linguagem técnica», tal como a
«linguagem comum», existe somente em actos de fala.

91
Assim, se um autor, tal como Pessoa o fazia constantemente, resolver emendar
um texto, estando este em preparação ou já publicado, a revogação operada é
coerciva porque existe uma regra moral que prescreve que a vontade das pes-
soas deve ser respeitada.

Se se considerar que a curadoria textual deve ter por objectivo dar à estampa um
texto que corresponda, o mais fielmente possível, à verdadeira vontade do autor
originário, não obstante este mesmo objectivo ter de ser relegado para segundo
plano apenas e só na medida em que o apuramento dessa mesma vontade se re-
vele extraordinariamente difícil, algo que, conforme os argumentos de Parker
e de McGann demonstram, acontece frequentemente, pergunta-se de que modo
é que o curador textual poderá apurar essa mesma vontade, ou pelo menos ten-
tar apurá-la de modo a concluir que este objectivo é inalcançável.

A teoria segundo a qual a vontade relevante do autor corresponde à sua intenção


final fornece um critério aos curadores textuais, a saber, o de optarem pela
variante mais recente. A aplicação deste critério estabelece um paralelo
com o princípio «lei posterior revoga lei anterior», segundo o qual, quando duas
regras de Direito em vigor fornecem duas soluções contraditórias na resolução
de um caso concreto, aplica-se a regra mais recente, que corresponde, evidente-
mente, à última vontade manifestada pelo legislador enquanto autor institucio-
nal da regra. Este princípio, no entanto, encontra-se subordinado a uma regra
que prescreve que as regras jurídicas só podem ser revogadas por actos normati-
vos hierarquicamente iguais ou superiores aos actos normativos onde as regras
que o legislador pretende revogar se encontram. Assim, uma lei orgânica não
pode ser revogada por uma lei ordinária, visto que a última é hierarquicamente
inferior à primeira. Pelo mesmo motivo, um regulamento administrativo não
pode revogar leis ordinárias ou orgânicas. Por outro lado, um regulamento
administrativo pode ser revogado por outro regulamento administrativo,
bem como por leis ordinárias ou orgânicas. Da mesma forma, a lei ordinária
pode ser revogada por outras leis ordinárias ou por leis orgânicas.

Estas considerações demonstram que, no Direito, o principal critério revogató-


rio é qualitativo, e não cronológico. Assim, no caso das regras jurídicas,
o que prevalece, em caso de colisão entre duas ou mais disposições contraditó-
rias em vigor, não é a mais recente, mas sim a que é hierarquicamente superior.
O critério cronológico apenas é utilizado quando se constata que as regras se en-
contram inseridas em actos normativos hierarquicamente iguais. A última von-
tade manifestada pelo legislador não é, portanto, a que se considera como váli-
da, pelo menos de forma incondicional.

92
Com efeito, a necessidade de que a vontade seja manifestada é essencial para o
Direito, na medida em que a realidade jurídica assenta sobre aquilo que se pode
provar, sendo óbvio que vontades ou intenções não manifestadas são insuscep-
tíveis de serem provadas. Preferir a última manifestação da vontade às restantes
é um critério objectivo delineado com o intuito de resolver certas disputas, e. g.,
o acima mencionado conflito de regras ou casos em que um indivíduo escreva,
ao longo da sua vida, mais do que um testamento. No entanto, é possível que
a última vontade manifestada não corresponda à última vontade real de um in-
divíduo. Uma pessoa, por exemplo, pode vir a falecer entre o tempo que medeia
a sua decisão em alterar o seu testamento e o acto de alteração. Em casos como
este, prevalecerá a última vontade manifestada em detrimento da última vonta-
de real, especialmente se o ordenamento jurídico em questão não admitir prova
testemunhal em questões testamentárias.

A obra de Pessoa exemplifica uma situação de um autor que estava constante-


mente a mudar de ideias, e que, inclusive, não considerava a publicação como
a versão definitiva de um determinado texto. Não é descabido conjecturar que
certos textos de Pessoa, publicados ou inéditos, não teriam, na sua versão defi-
nitiva, se, com efeito, tal pudesse vir a existir no caso Pessoa, a forma com que
Pessoa os deixou. É, aliás, bastante provável que Pessoa não tenha tido a possi-
bilidade de fazer certas alterações que intencionou fazer, mas que não pôde ma-
nifestar. Isto significa que não é seguro que a última manifestação de vontade
corresponda à sua vontade real. Tal pode ser constatado se se pensar que seria
natural que Pessoa, num determinado passo onde escrevesse à mão duas, três
ou quatro variantes possíveis, viesse a optar, em definitivo, por uma variante
que não coincidisse com a última redigida. Assim, aplicar o critério que consiste
em optar pela variante escrita em último lugar de forma automática parece-nos
incongruente com o desiderato de apurar a verdadeira vontade do autor.
Esta pode, de facto, coincidir com a última vontade manifestada, mas não é
sempre seguro que assim seja.

Atente-se, para vincular a discussão aqui travada a um exemplo concreto, na


edição de O Guardador de Rebanhos da responsabilidade de Castro. Segundo
este curador textual, a sua edição segue, ao contrário da de Luiz de Montalvôr, o
princípio segundo o qual «a mais recente das variantes tem sobre as restantes a
supremacia de ser a única que o poeta não abandonou ou não pôs em dúvida»
(Castro, 1986: 14). Note-se que Castro usa como critério textual o princípio de
optar pela última variante, complementando-o com um outro critério, a saber, o
de a última variante ser a única que não foi posta em dúvida. Cremos que seme-
lhante afirmação não pode ser feita categoricamente, mas, antes de desenvol-
vermos esta ideia, admitamos, por um momento, que é possível determinar que

93
a última variante não foi posta em dúvida. Sendo esta determinação putativa-
mente possível, verificamos que, em certos textos, a última variante redigida
também é posta em dúvida, ou abandonada, e. g., quando é riscada, ou qualifi-
cada com a inscrição de um ponto de interrogação, ao passo que, noutros textos,
tal não acontece. Quando a primeira situação sucede, preferir a última variante
em detrimento das demais é arbitrário, e, por isso, ao invés de optar automática
e invariavelmente por essa variante, o curador textual deve efectuar uma análi-
se hermenêutica com o intuito de apurar qual, de entre todas as variantes pos-
tas em causa pelo autor originário, este teria mais provavelmente escolhido.
A situação colocada por O Guardador de Rebanhos, tal como Castro a relata, dis-
pensaria o uso de critérios hermenêuticos porque, segundo este curador textual,
as últimas variantes redigidas por Pessoa são as únicas que não são postas em
causa. No entanto, como dissemos acima, esta é uma afirmação que não pode
ser feita categoricamente porque a demonstração da sua veracidade implicaria a
possibilidade de acesso à mente do autor originário. Com efeito, mesmo que,
num determinado rascunho, a última variante não esteja marcada, por exemplo,
com pontos de interrogação adjacentes, nem riscada, poderá ser impossível con-
cluir que a mesma não foi posta em dúvida; imagine-se que, num grupo de quatro
variantes, a primeira é abandonada, indicação fornecida pelo facto de se encontrar
riscada, a segunda é posta em dúvida através da inscrição de um ponto de interro-
gação, ao passo que as terceira e quarta não apresentam quaisquer marcas; mesmo
que seja possível apurar a ordem cronológica de inscrição, mantém-se a possibili-
dade de a quarta variante, redigida em último lugar, estar a ser posta em dúvida
pela terceira, redigida anteriormente, na medida em que nenhuma das duas con-
tém marcas que indiquem uma tomada de decisão. Assim sendo, o critério de
Castro deveria ser suplementado por uma análise hermenêutica em situações onde
é concebível que a última e a penúltima (bem como a antepenúltima, e assim por
diante) variantes se colocam mutuamente em dúvida.

Em todo o caso, gostaríamos de deixar claro que estas considerações não são
efectuadas com o intuito de rejeitar liminarmente o critério da última variante,
mas sim com o de chamar a atenção para o facto de que, na medida em que o
principal critério revogatório é qualitativo (a verdadeira vontade do autor) e não
cronológico (a última vontade manifestada pelo autor), o curador textual se vê
na situação de ter de usar critérios hermenêuticos susceptíveis de revelarem a
verdadeira vontade do autor quanto à questão de saber qual a variante que seria
escolhida na versão final. Fundar a actividade de curadoria textual num critério
puramente cronológico e inflexível seria arbitrário; por isso, deve complemen-
tar-se a análise textual com a análise hermenêutica. Tal não implica tentar com-
pletar aquilo que Pessoa deixou inacabado; trata-se, simplesmente, de efectuar
actos de curadoria textual através da análise compreensiva de toda a obra

94
pessoana, fundamentar opções entre variantes ou, no caso do Livro do
Desassossego, fundamentar, além das variantes, as opções que se tomam relati-
vamente à inclusão ou exclusão de determinados trechos, bem como a ordem
pela qual os mesmos são apresentados. Por este motivo, como temos vindo a de-
fender ao longo deste estudo, o curador textual não pode deixar de ser conside-
rado co-autor literário das obras de que cura, sendo que, tal como temos igual-
mente vindo a demonstrar, tal é por demais evidente no caso do Livro do
Desassossego, onde a curadoria textual é constitutiva da própria existência desta
obra. Assim, sem a intervenção de um curador textual que simultaneamente
efectue uma análise hermenêutica, o Livro do Desassossego não chega, sequer, a
existir, na medida em que o que Pessoa efectivamente deixou, no momento da
sua morte, foi um conjunto de papéis onde está escrita a expressão «L. do D.»,
sem qualquer indicação quanto à ordem pela qual os trechos seriam colocados.
Esta análise hermenêutica é efectivamente feita, dado que os vários curadores
textuais que se têm debruçado sobre o Livro do Desassossego não incluem, nas
suas edições, todos os textos onde está inscrita a expressão «L. do D.», e, porven-
tura mais significativamente, optam por incluir outros textos cujos suportes
materiais não contêm qualquer indicação expressa, da parte de Pessoa, quanto à
possibilidade de poderem vir a ser incluídos na versão final da obra. A decisão
sobre que trechos incluir, de entre os que não têm a indicação «L. do D.», é her-
menêutica. Naturalmente, uma análise hermenêutica não resolve todas as ques-
tões em aberto, visto que o curador textual pode certamente chegar à conclusão
de que, de um ponto de vista hermenêutico, duas, ou mais, variantes poderiam
ser integradas na versão final, sendo legítimo optar-se por qualquer uma delas.
De facto, as reservas por nós apontadas ao critério textual que se prende por op-
tar sempre pela última variante também se aplicam a quaisquer alternativas
viáveis, e, por isso, no limite os curadores textuais poderão deparar-se, ocasio-
nalmente, com situações onde qualquer decisão tomada terá um certo grau
de arbitrariedade. Em todo o caso, conjugar critérios textuais com critérios her-
menêuticos produzirá textos mais fidedignos, tomando a vontade do autor origi-
nário como objectivo a alcançar, do que se se utilizar somente um critério tex-
tual. Em suma, a conclusão de que o curador textual é também criador
intelectual da obra é inescapável, pelos motivos aqui apontados.

Assim, e em aplicação do critério subjectivo ao qual aderimos, a edição canónica


de uma obra literária será aquela que corresponde à vontade real do autor, que,
na maioria das vezes, consistirá na última edição publicada em vida por esse
mesmo autor. No caso Pessoa, em que a maior parte da obra é inédita e se encon-
tra incompleta, o apuramento da vontade real é feito através de actos de curado-
ria textual, que conjugam as técnicas da crítica textual com as da análise
hermenêutica dos textos existentes. No caso de obras como o Livro do

95
Desassossego, que têm tantas edições quanto o número de curadores textuais
que a decidam editar, a obra canónica, isto é, a obra que vale e, inerentemente,
revoga as demais é aquela que se aproxime mais da vontade real de Pessoa, na
medida em que, tendo em conta as circunstâncias do caso Pessoa, não é possível
conseguir mais do que uma aproximação. Naturalmente, decidir que edição, em
concreto, preenche este requisito é uma tarefa extremamente árdua, e, tal como
tivemos o cuidado de ressalvar supra, não constitui uma decisão irrevogável;
além disto, coloca-se a dificuldade acrescida de determinar a quem compete tal
decisão, dada a ausência de uma estrutura institucional hierárquica na
Literatura. No entanto, em comunidades onde não existem instituições as deci-
sões são tomadas em conjunto, numa base informal, pelos membros dessa mes-
ma comunidade. Decidir que versão do Livro do Desassossego é canónica aten-
dendo ao critério da aproximação à vontade real de Pessoa é algo que compete à
comunidade de pessoanos, ou às subcomunidades rivais que existem dentro da
comunidade de pessoanos63. Esta generalização não decide, naturalmente, qual
das várias edições do Livro do Desassossego disponíveis no mercado é canónica.
No entanto, convém notar que nem mesmo a institucionalização resolve este
problema. Em questões políticas, por exemplo, a institucionalização apenas de-
termina quem decide, não a decisão em si. Em sistemas onde funciona o princí-
pio da decisão maioritária, a mesma é tomada através do exercício do voto, após
uma discussão fundamentada em princípios. Na Literatura, a decisão é o resul-
tado da discussão fundamentada em princípios, dado que questões puramente
intelectuais, i. e., questões cujo efeito prático não se traduz numa alteração de
circunstâncias fora da academia, não são passíveis de ser decididas por referen-
do. A possibilidade da existência de um impasse, que naturalmente ocorrerá em
virtude da inexistência do mecanismo do voto para decidir situações de confli-
to, não afecta em nada a pressuposição de que a edição canónica de uma obra li-
terária, aquela que vale e, por isso, revoga as demais, é a que se aproxima mais
da vontade real do autor originário.

Assim, se o termo «revogação», em sentido técnico-jurídico, pode ser definido,


tal como acima mencionado, como «o acto através do qual o autor de um texto
considerado como fonte do Direito o elimina coercivamente», a definição de «re-
vogação» em sentido não-técnico seria «o acto através do qual o autor de um tex-
to impede, coercivamente, que o mesmo seja utilizado para os fins com que foi
redigido»; por outras palavras, o que é inerente à noção de «revogação textual» é
a possibilidade de um autor, unilateralmente, impedir, de forma coerciva, que
outras pessoas usem o seu texto com o intuito de desenvolver certas actividades

63 A comunidade de pessoanos, bem como as subcomunidades que a compõem, configura um exemplo daquilo que Fish
designa por «comunidades interpretativas». Cf. Fish, 1994: 167-173.

96
para as quais o texto foi especificamente redigido. No Direito, isto implica que a
revogação seja feita pelo autor institucional, incida sobre fontes do Direito, e im-
peça que os juristas as usem para resolver questões jurídicas. Na Literatura, a
revogação consiste na detenção de um poder, por parte do autor, em revogar os
textos por si criados, de forma unilateral, impedindo os seus leitores de os inter-
pretarem com o intuito de os utilizarem na elaboração de crítica literária.

Contudo, tal como as considerações aqui tecidas dão a entender, bem como as
que teremos oportunidade de desenvolver na próxima secção, actos de revoga-
ção literária não se encontram circunscritos aos autores originários dos textos
em questão, podendo ser feitos igualmente por curadores textuais ou críticos li-
terários. Isto é assim porque a tomada de decisão acerca do estabelecimento da
edição canónica de uma obra literária apenas muito excepcionalmente passa
pelo seu criador intelectual — com efeito, tal parece apenas ser possível quando
o autor originário decide publicar uma edição ne varietur, ou quando o co-autor
curador textual decide revogar tacitamente as edições da sua responsabilidade
empreendendo uma nova edição —, sendo, com efeito, da responsabilidade, na
esmagadora maioria dos casos, dos críticos literários, bem como das comunida-
des nas quais estes se inserem, o que se justifica em aplicação do critério subjec-
tivo por nós apontado como norteador da identificação da edição canónica, a saber,
o da aproximação à vontade real do autor. Não tendo o autor tido a oportunidade de
finalizar a sua obra, revelando a sua vontade real, como acontece no caso Pessoa,
compete aos críticos literários, enquanto terceiros observadores e interessados, dis-
tinguir, de entre as edições disponíveis no mercado, qual a que mais se aproxima da
vontade real do autor originário.

Poder-se-á arguir que não faz muito sentido continuar a chamar-se «revogação» a
um acto que tem como intuito impedir que se usem edições não-canónicas, mas que
não é necessariamente executado pelo autor, ou autores, dessas mesmas edições; to-
davia, é preciso ter em atenção que o conceito de revogação literária pede empresta-
do o termo usado em sua referência ao Direito devido aos efeitos produzidos por um
acto de revogação, e não tendo em atenção que entidade tem legitimidade para revo-
gar. Como tivemos oportunidade de esclarecer ao longo desta secção, há várias figu-
ras jurídicas que produzem os mesmos efeitos da revogação, sendo a sua existência e
demarcação da figura da revogação útil para perceber a natureza do acto, que é inse-
parável da entidade que o executa. «Revogar» não é o mesmo que «denunciar» ou
«resolver», não obstante estes três actos produzirem o mesmo tipo de efeitos. No en-
tanto, não faria grande sentido desenvolver o conceito por nós designado através da
expressão «revogação literária» utilizando expressões como «denúncia literária» ou
«resolução literária» na medida em que tais expressões só fazem sentido no mundo
do Direito das Obrigações. Neste, os conceitos a que as mesmas se referem foram

97
pensados enquanto formas de cessação de negócios jurídicos; a revogação, por seu
turno, é mais abrangente, dado que se estende a outras fontes do Direito, como leis,
decisões judiciais, etc., o que revela que é suficientemente maleável para se transpor
para fora do Direito. Na Literatura, não há contratos susceptíveis de serem
resolvidos ou denunciados, mas há textos susceptíveis de serem revogados.
Assim, mesmo que se considere que a expressão «revogação literária» está mais
próxima de uma catacrese do que de uma metáfora ou de uma analogia, não
nos parece que tal obste à sua utilização para designar o conceito sobre o qual
nos temos vindo a debruçar. Na medida em que qualquer palavra pode ser uti-
lizada para designar qualquer coisa, como é defendido por Knapp e Michaels,
a única preocupação que deveremos ter ao cunhar expressões para conceitos
prende-se com a clareza da expressão. «Revogação literária» poderá parecer, à
partida, uma expressão obscura na ausência de uma explicação, mas, na se-
quência dos esclarecimentos prestados ao longo desta secção, cremos que tem
o mérito de evitar confusões terminológicas.

VI. A EDIÇÃO CANÓNICA

VI.I. Diferenças entre os casos Pessoa e Joyce


Como referimos na Introdução a este trabalho, a segunda questão sobre a qual
este estudo incide, não obstante a sua importância, não é sequer discutida pela
literatura especializada, muito provavelmente por não ser sentida como um pro-
blema. Com efeito, críticos literários e textuais debatem regularmente os méri-
tos relativos de edições concorrentes disponíveis no mercado. Alguns destes de-
bates assumem contornos altamente polémicos, como, por exemplo, o travado
nas décadas de 80 e de 90 do século passado entre John Kidd, um crítico literá-
rio, e Hans Walter Gabler, um crítico textual, a propósito da curadoria efectuada
por este último a Ulysses, de Joyce, bem como o ainda em aberto sobre o Livro do
Desassossego, encetado, por vezes bilateralmente, noutras ocasiões de forma
multilateral, por Zenith, Pizarro e Sobral Cunha, que esgrimem, e bem, visto
que ambas as actividades se encontram, tal como vimos na terceira secção, in-
terligadas, tanto argumentos de crítica literária como de crítica textual.
Contudo, nenhum destes debates, tal como ocorre com outros debates análogos
a propósito de outras obras literárias, tem por objecto concluir, pelo menos ex-
pressamente, qual é, de entre as edições existentes, a edição canónica, aquela
que, ao ser assim considerada, revoga as demais edições, ou seja, impede a utili-
zação destas últimas para efeitos de leitura, interpretação e análise literária.

De facto, constata-se que apenas há aproximações à questão aqui referida, sem


que, contudo, se chegue a abordá-la. Kidd está somente interessado em descreditar
a edição de Gabler, e, com efeito, propõe a sua revogação (expressão nossa) nos

98
Estados Unidos da América ao sugerir a retirada de circulação da mesma, pas-
sando as encomendas de Ulysses a ser satisfeitas através de cópias do texto tal
como a editora Modern Library o publicou em 1961; há, no entanto, uma excep-
ção à revogação da versão produzida por Gabler: deve fornecer-se cópias desta
edição revogada quando a mesma seja objecto de pedidos especiais efectuados
por académicos e bibliotecas de investigação. Isto significa que Kidd admite,
não obstante as deficiências por si apontadas à edição de Gabler, que esta seja
usada para se fazer crítica literária. Além disso, o fundamento desta revogação
intermitente, que produz efeitos só para o público em geral, prende-se com a
qualidade da edição, e não com o efeito decorrente da identificação da versão ca-
nónica, revogatória das demais. Com efeito, Kidd apenas sugere que se satisfa-
çam as encomendas usando o texto de Ulysses na versão publicada pela Modern
Library porque o preço das mesmas é semelhante ao da edição de Gabler e devi-
do ao facto de ainda existirem alguns exemplares que não chegaram a ser vendi-
dos. Kidd não se pronuncia quanto ao mérito de nenhuma das outras versões de
Ulysses com o intuito de identificar a versão canónica, estando apenas interessa-
do em rejeitar uma edição específica (Kidd, 1988)64.

Quanto aos curadores e co-autores do Livro do Desassossego acima mencionados,


estes limitam-se, expressamente, a apontar as falhas das edições dos seus con-
correntes e a defenderem-se das acusações das quais o seu trabalho é alvo.
No entanto, é um facto que, implicitamente, isto significa que estão a argumen-
tar que a sua edição é a melhor, e, por conseguinte, deve ser escolhida,
tanto pelo público em geral como pela crítica pessoana, como edição de leitura e
de estudo. Há, portanto, um argumento implícito, que se pode extrair das pala-
vras e dos actos dos curadores acima referidos, segundo o qual a sua edição,
por ser a melhor, revoga tacitamente as demais. Quanto às palavras, o argumen-
to implícito encontra-se, como observámos, no apontar das falhas dos outros
curadores e na defesa da própria edição. Quanto aos actos, nomeadamente o de
curar do Livro do Desassossego, estes indicam que, se o curador se dispõe a curar
desta obra, é porque acredita que o seu trabalho será melhor do que o dos de-
mais curadores, e, por conseguinte, suplantará as edições concorrentes.
Caso contrário, não faria sentido oferecer versões alternativas à primeira edição
do Livro do Desassossego, coordenada por Prado Coelho. Note-se, todavia, que,

64 «The publishers are victims as much as Joyce’s readers and certainly are not to blame for this fiasco. Fortunately, they
stand to lose only the printing costs of the corrupted copies now warehoused. The stock should either be destroyed or
all copies given a new title page and jackets without the word “corrected.”
The choice of a replacement is easy. Of the Modern Library imprint of Random House — priced only a dollar above the
Vintage paperback of the 1986 text — there are some copies remaining. Orders of Ulysses can henceforth be filled with
Modern Library copies reproducing the text of 1961. I propose that starting immediately the 1986 text be withdrawn
and all American orders for Ulysses be filled with the Modern Library text, except for special requests for The Corrected
Text by scholars and research libraries.»

99
apesar de haver, do ponto de vista de cada um destes curadores textuais, uma
intenção em revogar tacitamente as edições dos demais curadores, na medida
em que, a partir das suas palavras e dos seus actos, se depreende que, segundo o
seu prisma, a sua edição suplanta as demais, o discurso expresso não vai neste
sentido; expressamente, nem os curadores em questão, nem nenhum dos espe-
cialistas que constituem a comunidade dos críticos pessoanos arguem que há
uma edição canónica que tem como efeito a revogação das outras edições
existentes.

Com efeito, a ausência de discussão sobre esta questão dever-se-á, em grande


medida, ao facto de a mesma não ser sentida como um problema nem por parte
de curadores textuais, nem de críticos literários. Esta situação é justificável em
virtude de, na realidade, a questão da edição canónica, revogatória das concor-
rentes, só ser passível de ser encarada como um problema à luz do primeiro pro-
blema sobre o qual este trabalho se debruça. Dito por outras palavras, é natural
que não se discuta, expressamente, qual a edição canónica do Livro do
Desassossego, bem como de outros textos pessoanos com múltiplas e distintas
edições publicadas, enquanto o curador textual for visto exclusivamente como
editor, e não, em simultâneo, como co-autor da obra curada, porque uma edição
canónica pressupõe uma autoria, no sentido de criação intelectual. No caso de
Ulysses, a canonicidade poderá ser discutida tendo por padrão a intenção, inicial
ou final, consoante as teorias, de Joyce, bem como os factores sociais referidos
por McGann ou os tipos de mediação que, segundo Eggert (Eggert, 2009) e
Pizarro (Pizarro, 2012a), influenciam uma edição crítica, simplesmente porque
o texto foi redigido na sua totalidade e há versões do mesmo publicadas em vida
do autor. O caso Joyce é substancialmente diferente do caso Pessoa porque o
tipo de intervenção curatorial exigido pelo primeiro é, em substância, diferente da
curadoria do segundo. De facto, a co-autoria do curador das obras de Joyce é míni-
ma, e, por este motivo, não obstante a sua factualidade, não deve ser reconhecida a
nível jurídico e literário. Isto implica, a nível jurídico, a não atribuição, ao curador,
do direito de autor sobre a obra, mas somente do direito inominado equivalente
aos direitos patrimoniais do direito de autor, tal como discutido na secção 4; por
seu turno, a nível literário, não se deve reconhecer ao curador uma co-autoria que
o aproxime da autoria do autor foucaultiano. Por estas razões, a canonicidade de
uma versão de Ulysses encontra-se inerentemente vinculada às intenções de Joyce,
aos factores sociais intervenientes na produção, revisão e transmissão do texto, e
às intervenções curatoriais que, com o passar do tempo, se tornam indistinguíveis
das intervenções autorais, no sentido foucaultiano da expressão.

Não se pode, por conseguinte, discutir a canonicidade da maior parte das obras de
Pessoa nos mesmos moldes em que tal é feito em relação a Joyce porque nem todos

100
os critérios acima apontados se encontram presentes no caso Pessoa. Tomando o
Livro do Desassossego como exemplo, o texto não se encontra completo porque não
foi acabado, e, por esta razão, não há versões do mesmo publicadas durante a
vida de Pessoa65, o que conduz à ausência de muitos dos factores sociais identifi-
cados por McGann, nomeadamente os que aparecem durante as fases de revisão
e de transmissão de texto, visto que, durante a vida de Pessoa, o Livro do
Desassossego nunca saiu da fase de produção. Assim sendo, a mediação editorial
que separa o leitor do Livro do Desassossego dos trechos escritos por Pessoa, que
se faz sentir a partir da primeira edição publicada, já a título póstumo, é subs-
tancialmente diferente da mediação editorial que separa o leitor de Ulysses do
texto escrito por Joyce, na medida em que, no caso do Livro do Desassossego, os
factores sociais a que McGann alude só começaram a ser produzidos após 1982.
Isto significa que, no caso Pessoa, é perfeitamente possível distinguir entre as
intervenções curatoriais e as intervenções de Pessoa, ao contrário do que acon-
tece em relação a textos mais antigos e, inclusive, a textos das primeiras déca-
das do século XX como Ulysses, porque as intervenções curatoriais sobre textos
como este último foram feitas ao nível da revisão de texto e da sua transmissão
ainda durante a vida do autor; quando tal acontece, é muito difícil apurar se as
variantes são corruptelas ou resultado da aceitação, por parte do autor foucaul-
tiano, de sugestões do curador textual. No caso Pessoa, por seu turno, é fácil dis-
tinguir entre a produção de Pessoa e a dos seus curadores, visto que a curadoria
textual sobre os textos pessoanos inéditos à data da morte de Pessoa é uma
actividade que tem pouco mais de meio século; as palavras são, na maior parte
dos casos, da responsabilidade de Pessoa, exceptuando-se os erros
resultantes da difícil decifração paleográfica da sua caligrafia, que são,
por vezes, identificados quer por curadores posteriores, quer pelo próprio
curador que enceta a tarefa, como o demonstram as sucessivas edições de
Zenith. A ordenação dos trechos de obras incompletas, e, no caso do Livro do
Desassossego, da inclusão desses mesmos trechos, é, inversamente, responsabili-
dade quase total do curador textual; com efeito, Pessoa retém, para usar um ter-
mo caro a Parker, alguma autoridade que advém de escritos de índole editorial
nos quais Pessoa projectava a organização futura da sua obra, e que, seguramen-
te, fornecem pistas, embora vagas e inconclusivas, aos seus curadores, além de
que, no caso do Livro do Desassossego, a inscrição da abreviatura «L. do D.» em
certos suportes materiais é uma indicação segura de que o texto aí presente es-
taria a ser considerado como possível parte integrante de uma versão final.

65 Naturalmente, os trechos destinados ao Livro do Desassossego publicados durante a vida de Pessoa não configuram
uma versão, ou edição, do Livro do Desassossego enquanto obra literária completa. Em todo o caso, seria perfeitamente
possível discutir a canonicidade dos trechos publicados nos mesmos moldes em que a discussão canónica sobre o caso
Joyce pode ser efectuada, mas esta não seria uma discussão acerca de uma versão canónica do Livro do Desassossego,
mas apenas uma discussão sobre uma parte muito pequena do mesmo.

101
No entanto, o carácter inacabado da obra pessoana em geral, e do Livro do
Desassossego em particular, «permite», nas palavras de António Feijó,

a emergência de uma figura, habitualmente discreta, mas, neste caso, dotada


de assinalável relevo público, a do filólogo que organiza e torna legíveis esses
materiais póstumos, […] [que consistem numa] massa de textos inéditos,
muitos deles inacabados ou parte de conjuntos mais amplos que só conjectu-
ras editoriais poderão procurar recompor (Feijó, 2013: 7-8; itálicos nossos)

O curador textual constitui o texto, na medida em que, sem a sua intervenção,


não haverá recomposição da massa de textos incompletos por inacabamento
que fazem parte do espólio pessoano. Assim, por haver criação intelectual, por
parte do curador textual, constitutiva da obra tal como se encontra publicada,
este deve ser considerado, para efeitos literários e jurídicos, como co-autor/autor
da obra.

É por esta razão que só surge a partir da consideração do primeiro problema ex-
posto neste estudo, que, ao contrário do que acontece no caso Joyce, bem como,
em geral, no de autores que completaram as suas obras e as publicaram em vida,
não se pode, no caso Pessoa, ignorar a questão da versão canónica, revogatória
das demais. Com efeito, os dois problemas são independentes um do outro, mas
o segundo só se torna visível quando o primeiro é discutido com a profundidade
adequada; na medida em que tal não é feito, o segundo problema não é sequer
discutido, não por falta de pertinência, mas sim por falta de notoriedade. De fac-
to, o primeiro problema revela que a noção de autor que tem sido adoptada no
âmbito dos estudos literários, que corresponde à formulada por Foucault, é desa-
dequada para quem esteja interessado, tal como acontece com Parker, em discu-
tir questões de responsabilidade textual. A partir do momento em que se adopte
a noção tradicional de autor, que corresponde à ideia de criador intelectual de
um texto, chega-se inevitavelmente à conclusão de que certas pessoas que inter-
vêm na obra, nomeadamente nos processos de revisão e transmissão de texto,
adquirem uma responsabilidade textual de tal ordem, em virtude de as suas in-
tervenções também serem criação intelectual, ao ponto de lhes ser devido o reco-
nhecimento, ao lado do autor originário, como co-autoras da versão publicada.

Ora, não obstante também fazer sentido aludir à possibilidade de existência de


uma versão canónica, revogatória das demais, em casos com características se-
melhantes às do caso Joyce, visto que, entre as versões publicadas, há divergên-
cias, compreende-se, contudo, que tal não seja feito quando essas mesmas
divergências são mínimas e, por conseguinte, não afectam o significado geral da
obra. Dado que as intervenções curatoriais de casos análogos ao do caso Joyce

102
não merecem um reconhecimento literário e jurídico da co-autoria factual do
curador textual, apesar de esta existir sempre, na medida em que a responsabili-
dade textual permanece, na sua quase totalidade, com o autor foucaultiano,
pode argumentar-se, e, a nosso ver, com razão, que as diferenças entre as várias
edições de Ulysses publicadas quer durante a vida do autor, quer postumamente,
não configuram uma variação radical que torne possível avançar quaisquer ar-
gumentos tendentes a considerar cada uma dessas edições como uma obra em si
mesma. O caso Pessoa, como bem o exemplifica o Livro do Desassossego, encon-
tra-se precisamente no pólo oposto. Além de haver espaço para sugerir que, en-
tre a primeira e a última edição da responsabilidade de Zenith, há diferenças de
tal ordem que justificam que as qualifiquemos como obras distintas, e não como
versões distintas da mesma obra, parece-nos notório que, entre as curadorias de
Zenith e as dos demais curadores pessoanos as diferenças são de tal modo pro-
fundas que, com efeito, não estamos perante versões da mesma obra, mas sim pe-
rante obras diferentes que partilham o mesmo título e o mesmo nome de autor. No
caso Joyce, falar de canonicidade e revogação poderá parecer supérfluo porque a
responsabilidade de Joyce, em todas as versões actualmente publicadas, su-
planta em grande medida a responsabilidade dos seus curadores textuais, e, por
isso, pode concluir-se que só há um Ulysses com «trajes» ligeiramente diferentes,
sobre o qual Joyce mantém um grau apreciável de autoridade. No caso Pessoa,
não são só os «trajes» que diferem; as próprias obras, em si, são diferentes.
Regressando ao caso de O Guardador de Rebanhos, Montalvôr e Castro não são
somente duas pessoas que produziram versões diferentes de uma única obra,
mas sim dois curadores textuais cuja responsabilidade textual é de tal forma
grande que acabaram por produzir dois textos que partilham o mesmo título e o
mesmo nome de autor, mas cujo conteúdo difere substancialmente entre si.
Segundo Castro, Montalvôr

reproduziu tal e qual os 24 poemas éditos, usando certamente exemplares


das revistas como original de tipografia; quanto a este procedimento nada se
aponta, a menos que seja possível provar que Pessoa voltou a mexer nesses
textos depois de já estarem publicados. Quanto aos 25 poemas inéditos,
Montalvôr tomou como base o nosso manuscrito66, que teve em seu poder. Como
não se prestasse a uma transcrição fácil na tipografia, mandou copiar à mão os
poemas inéditos e reviu pessoalmente essa cópia, que é muito imperfeita.

66 I. e., o caderno onde O Guardador de Rebanhos se encontra passado a limpo, e que, segundo Castro, terá pertencido a
Eduardo Freitas da Costa, primo de Pessoa; cf. Castro, 1986: 11.

103
Coube-lhe a decifração de letras difíceis, assim como a decisão central, e
mais desastrosa, de copiar a primeira versão oferecida pelo manuscrito, por
ser a mais legível, desprezando todas as revisões posteriores do texto, inclu-
sivé quando a versão inicial está riscada. (Castro, 1986: 17)

De acordo com Castro, a sua edição «[t]rata-se de um texto lido criticamente, que
se afasta em numerosos versos (mais de oitenta) do texto a que as pessoas estão
habituadas, mas que em compensação se aproxima muito mais, espero, do texto
que Pessoa teria publicado» (Castro, 1986: 10; itálicos nossos).

Mais do que aplicar os critérios que conduzem à decisão de qual das edições de
O Guardador de Rebanhos é canónica, estamos interessados, neste estudo, em
chamar a atenção para o facto de que este tipo de discussão tem de começar a
ser efectuado nos estudos literários em geral, e nos estudos pessoanos em parti-
cular. A responsabilidade textual do curador pessoano é muito maior do que a
responsabilidade textual que pode normalmente ser assacada aos curadores
textuais de textos de autores como Joyce. Os cerca de oitenta versos que, segun-
do Castro, são diferentes entre a sua edição e a de Montalvôr justificam que se
considere, como referimos supra, que há duas obras literárias substancialmente
distintas entre si que partilham o mesmo título, O Guardador de Rebanhos, bem
como o mesmo autor foucaultiano, e não duas versões de uma mesma obra. O
mesmo pode ser dito em relação ao Livro do Desassossego, onde a responsabilida-
de textual recai em grande medida sobre os curadores co-autores, permanecen-
do Pessoa com uma autoridade muito menor do que aquela conservada por auto-
res como Joyce. Assim, o Livro do Desassossego será, porventura, o exemplo mais
claro da necessidade de escolher uma edição canónica de uma obra literária que
revogue as demais, dado o número de edições existentes, mas, tal como O
Guardador de Rebanhos exemplificativamente o demonstra, está muito longe de
ser o único.

Por estes motivos, a discussão sobre qual a versão canónica de uma obra literá-
ria pode ser evitada quando estejamos perante versões distintas da mesma obra,
mas tal deixa de ser possível quando o que está em causa são obras diferentes,
cujas semelhanças entre si incidem primordialmente sobre o nome de autor que
lhes é aposto e sobre o título. A partir do momento em que se entenda, e se acei-
te, que obras como o Livro do Desassossego são constituídas pelas intervenções
tanto de Pessoa como de curadores textuais, e que ambos os tipos de interven-
ções são autorais, na medida em que a sua natureza é a de uma criação intelec-
tual, deixa de ser possível encarar o Livro do Desassossego como uma obra que
contém versões diferentes, tendo de considerar-se, isso sim, que há tantas obras
literárias intituladas Livro do Desassossego (ou Desasocego) quanto o número

104
de edições existentes67. A próxima subsecção é dedicada à demonstração sucinta
de que aquilo que acaba de ser dito a propósito do Livro do Desassossego é trans-
versal a virtualmente toda a obra pessoana, e, por isso, não é indiferente esco-
lher, para efeitos de crítica literária, trabalhar sobre a obra intitulada «X» curada por
«A» ou sobre outra obra, também intitulada «X», mas, desta feita, curada por «B».

VI.II. Necessidade de escolha da edição canónica


Como é sabido, e, de resto, tem sido amplamente comentado e analisado em arti-
gos e monografias da especialidade, à data da sua morte Pessoa deixou um vasto
espólio de textos de sua autoria manuscritos, dactiloscritos, mistos, e, inclusive,
impressos com alterações por si introduzidas manualmente. A propósito do pro-
jecto conhecido por «Edição Crítica de Fernando Pessoa», Castro, coordenador do
mesmo, refere que o seu «objectivo último [é] esgotar as possibilidades editoriais
do arquivo de Fernando Pessoa, que se encontra desde 1979 na Biblioteca
Nacional, de Lisboa, e é constituído por mais de 21 000 peças autógrafas,
manuscritas e dactiloscritas» (Castro, 1993: 843).

A discrepância entre os números, avançados por diferentes autores, de coisas


corpóreas que compõem o espólio pessoano (Pizarro menciona «30 000 papéis»
[Pizarro, 2012b: 60]) pode ser justificada por dois factores, a saber, por um lado,
a definição que é dada ao termo «peça», e, por outro lado, o facto de a Biblioteca
Nacional adquirir, ocasionalmente, peças que vão aumentando o número
das coisas corpóreas que integram o espólio68.

O espólio contém textos inéditos à data da morte de Pessoa e versões de textos


publicados em vida, umas anteriores, outras posteriores à respectiva publica-
ção. De entre as versões de textos publicados em vida, os exemplos de versões
anteriores à publicação multiplicam-se, dado que Pessoa tinha por hábito guar-
dar todos os seus papéis, pelo que existem, no espólio, versões pré-publicadas
de virtualmente todos os (relativamente poucos) textos publicados durante a
sua vida. Em relação a versões posteriores à publicação, os exemplos também se

67 Esta afirmação deve ser qualificada na medida em que não é seguro que, por exemplo, a 2.ª edição da responsabilidade
de Zenith seja uma obra literária distinta da 1.ª edição, por oposição a uma versão. Isto significa que o número de obras
literárias distintas cujo título é Livro do Desassossego poderá não corresponder exactamente ao número de edições
efectivamente publicadas. O ponto onde queremos chegar, contudo, é somente o de que aquilo que indica que estamos
perante uma obra literária distinta não é a mudança da pessoa do curador, mas sim a alteração, de edição para edição,
da substância do texto intitulado Livro do Desassossego. É notório que há uma alteração da substância do texto de cura-
dor para curador, bem como entre edições distanciadas no tempo da responsabilidade do mesmo curador, e, por isso,
ainda que o número exacto de obras literárias intituladas Livro do Desassossego (ou Desasocego) existentes no mercado
seja discutível, parece-nos óbvio que esse mesmo número será superior a quatro.

68 Em relação a este termo, Castro esclarece que, «[p]or “peça”[,] entendemos qualquer suporte individual, definição que
se pode aplicar a um caderno de dezenas de páginas, do mesmo modo que a uma pequena ficha de poucos centímetros;
em contrapartida, um texto pode ocupar diversas folhas soltas, ou seja outras tantas peças, do mesmo modo que uma
só peça pode acolher, na totalidade ou em parte, diversos textos. Isto sugere, pelo menos, a grande dimensão, dificil-
mente quantificável à partida, do arquivo que devemos publicar» (Castro, 1993: 843). Quanto à aquisição recente de
peças para o espólio pessoano, cf. http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=213&I-
temid= 260& lang= pt; consultado em 13/03/2018.

105
multiplicam, embora não sejam tão numerosos. A edição facsimilada de O
Guardador de Rebanhos efectuada por Castro acaba por fornecer um exemplo
elucidativo da forma de proceder de Pessoa, que, com efeito, parecia não consi-
derar a publicação de um determinado texto como o momento de conclusão da
produção do mesmo. Num primeiro momento, repleto de dúvidas, Castro refere,
tentativamente, a propósito de alguns dos poemas que integram o ciclo de O
Guardador de Rebanhos publicados nas revistas Athena e presença, e transcritos
a limpo, juntamente com os restantes poemas do ciclo, no caderno que serviu de
base à sua edição, que não se consegue libertar «da suspeita de que, em dois ou
três lugares, [Pessoa] remodelou o texto manuscrito depois de o haver publica-
do» (Castro, 1986: 14). Posteriormente, já com mais certezas, Castro afirma que,
quando publicou O Guardador de Rebanhos em 1986, teve «em consideração que
cerca de metade dos poemas tinham sido impressos por Pessoa em revistas (a
Athena em 1925 e a presença em 1931), e que a outra metade ficou inédita até à
edição Ática» (Castro, 1990: 347). Esta circunstância acabou por ter implica-
ções editoriais que conduziram Castro a «tomar como base o texto das revistas,
quando o havia, e a última versão manuscrita nos restantes casos». Esta opção
levou-o, no entanto, a tomar determinadas decisões que, confessa o curador tex-
tual, o deixam de certo modo insatisfeito (Castro, 1990: 347). Ao discutir uma
situação concreta, Castro defende que

Pessoa, no poema XXX, teria escrito no cimo, teria emendado para no meio e,
ao publicar o poema na revista Athena, teria regressado à lição inicial, num
volteface surpreendente. Casos destes, em que o texto impresso pelo poeta
contém uma lição que, nos manuscritos, fora superada por outras mais re-
centes, constituindo assim uma espécie de recuo na fase final, são relativa-
mente recentes. Podemos tomá-los a sério e explicá-los por uma teoria de gé-
nese não-linear, em que o autor deixa várias alternativas abertas até muito
tarde, reservando-se o direito de retomar qualquer delas, mesmo que antes a
tivesse cancelado. (Castro, 1990: 347)

Isto demonstra, incidentalmente, que a última variante inscrita num rascunho


não corresponde sempre à vontade final do autor, e que variantes revogadas pelo
autor podem ser por si repristinadas, tal como defendemos na secção anterior.
Além do que acaba de ser referido, certos poemas que compõem O Guardador de
Rebanhos foram alterados após a sua publicação, que foi efectuada durante a vida
de Pessoa. Este não é, no entanto, o único exemplo de textos pessoanos nesta si-
tuação. Com efeito, Pedro Sepúlveda chama a atenção para aqueles que serão, por-
ventura, os dois exemplos mais famosos de textos publicados durante a vida de
Pessoa que, posteriormente, foram modificados pelo autor, a saber: um exemplar
com emendas e variantes de Mensagem, e vários exemplares da revista Athena que

106
contêm poemas de Ricardo Reis (Sepúlveda, 2013: 256). Sepúlveda observa ain-
da que, na biblioteca particular de Pessoa, existia um exemplar da revista
Athena que contém emendas e variantes dos poemas publicados de O Guardador
de Rebanhos «que não se encontram incluídas no caderno» que serviu de base à
edição facsimilada da responsabilidade de Castro (Sepúlveda, 2013: 256).
Cremos que estes exemplos, que estão longe de ser exaustivos, confirmam a con-
clusão geral que Castro formula a propósito «dos processos de escrita pessoana»:
«Pessoa corrigia muito os seus textos poéticos, copiando-os várias vezes e reto-
mando frequentemente um manuscrito, para o emendar em campanhas suces-
sivas de revisão» (Castro, 1990: 347). Não é, por isso, surpreendente que exis-
tam, no espólio pessoano, várias versões dos textos publicados durante a vida
de Pessoa, umas anteriores, outras posteriores ao momento da publicação.

Seria supérfluo continuarmos a citar exemplos deste género, dado que as cam-
panhas sucessivas de revisão encetadas por Pessoa incidiam tanto sobre obras
publicadas como sobre escritos inéditos, pelo que as considerações aqui tecidas
acerca da forma de trabalhar de Pessoa a propósito de O Guardador de Rebanhos
se aplicam não só a outros textos publicados durante a vida do autor, como tam-
bém aos textos inéditos à data da sua morte. Assim, tanto O Guardador de
Rebanhos como o Livro do Desassossego, bem como todas as obras pessoanas que
têm duas ou mais edições disponíveis no mercado, sejam as mesmas, ou não, da
responsabilidade de curadores textuais diferentes, são, efectivamente, obras di-
ferentes entre si, dado que, se as campanhas de revisão eram da responsabilida-
de de Pessoa, a escolha sobre as variantes resultantes dessas campanhas é da
responsabilidade do curador textual, que em sucessivas campanhas de revisão
curatorial (como acontece nas várias edições do Livro do Desassossego realizadas
por Zenith) vai, paulatinamente, criando novas obras.

As considerações efectuadas ao longo deste capítulo demonstram que todos os


filólogos, sejam estes curadores textuais ou críticos literários, escolhem cons-
tantemente, ainda que porventura não o façam conscientemente, qual a edição
canónica de uma determinada obra pessoana, quando existem pelo menos duas
no mercado. Com efeito, além da excepção mencionada supra, segundo a qual
não há necessidade de eleger uma edição canónica quando o trecho citado é
idêntico em todas as edições publicadas, seria difícil imaginar a abstenção da
tomada de decisão que conduz à revogação das edições não-canónicas quando
um trabalho de crítica literária tem por objectivo analisar obras como o Livro do
Desassossego ou O Guardador de Rebanhos no seu conjunto; nestes últimos casos,
seria inconcebível não escolher uma edição canónica, visto que tal implicaria
aceitar como bons e válidos trechos cujo conteúdo é substancialmente diferente
e, nalguns casos, contraditório, de edição para edição. Decidir se, no poema

107
XXX de O Guardador de Rebanhos, a variante que vale é «no cimo» ou «no meio»
terá implicações hermenêuticas, tal como sucede no exemplo dado por Bowers,
mencionado na terceira secção deste estudo, acerca da questão de apurar se
Shakespeare escreveu «sallied» ou «solid». A opção por uma variante em detri-
mento de outra poderá afectar a compreensão do poema no seu conjunto, e, por
isso, não é completamente indiferente optar pela edição da responsabilidade de
Montalvôr ou pela edição da responsabilidade de Castro, visto que o facto de
ambas divergirem em mais de oitenta versos poderá conduzir a uma análise di-
ferente de O Guardador de Rebanhos no seu conjunto. Naturalmente, apurar se
as diferenças de significado da obra na sua globalidade entre as edições de O
Guardador de Rebanhos, do Livro do Desassossego, ou de outras obras pessoanas
disponíveis em edições substancialmente diferentes entre si, são, ou não, negli-
genciáveis, cai no escopo de um trabalho de crítica literária que não é objecto do
presente estudo. No entanto, dificilmente se poderá assumir, tendo em atenção os
processos de produção e de revisão de Pessoa, bem como o cuidado que a generali-
dade dos curadores textuais pessoanos emprega nas suas edições, que as
diferenças de significado entre estas serão negligenciáveis; a presunção deverá ser
a oposta, e, por isso, é altamente desaconselhável, na nossa óptica, optar irreflecti-
damente por uma das edições disponíveis, ou citar alternadamente entre estas.
Tal poderá ser feito quando a análise literária não incida sobre uma determinada
obra no seu conjunto, e por isso, seja indiferente qual a edição a partir da qual se
cite, por exemplo, um trecho do Livro do Desassossego sem variantes. Contudo, cre-
mos que esta situação configura uma excepção em relação ao paradigma, que pas-
sa por, na medida do possível, analisar as obras pessoanas no seu conjunto.

Não está, portanto, em causa a qualidade intrínseca de cada uma das edições, ou
seja, o mérito que determinada edição contém quando considerada em si mesma.
Tal como no Direito, a necessidade de revogação literária surge devido à existência
de situações de conflito. Duas regras jurídicas antagónicas, ou antinómicas, não
podem permanecer simultaneamente válidas, fora dos casos em que uma das re-
gras é geral e a outra excepcional, porque tal criaria um vazio normativo, que, no
limite, poderia provocar uma situação de non liquet, algo que não é admissível nos
ordenamentos jurídicos contemporâneos. Da mesma forma, pode perfeitamente
reconhecer-se qualidade a todas as edições do Livro do Desassossego disponíveis no
mercado, bem como notar que todas contêm falhas, ao mesmo tempo que se cha-
ma a atenção para o facto de que um dado crítico pessoano, no âmbito de uma crí-
tica literária em concreto, não pode, coerentemente, fora dos casos em que opere a
excepção acima referida, citar alternadamente a partir de todas as edições do Livro
do Desassossego que existem porque estas têm o potencial de conduzir a resultados
interpretativos irreconciliáveis. Poder-se-á argumentar que é próprio da natureza
de todas as actividades que incidem sobre a interpretação de texto que intérpretes

108
diferentes cheguem a resultados interpretativos irreconciliáveis; contudo, no caso
Pessoa a irreconciliação entre críticos diferentes pode dever-se não só ao facto de
estes terem leituras diferentes sobre uma determinada obra pessoana, mas sim ao
facto de basearem o seu trabalho sobre textos diferentes. Um dos argumentos de
Fish que gravita à volta da sua tese acerca das comunidades interpretativas pren-
de-se com a constatação de que a intervenção do leitor no processo de leitura cria
um texto diferente, o que resulta na conclusão de que duas pessoas diferentes não
lêem o mesmo texto, não obstante os suportes materiais por si usados para lhe ace-
derem conterem exactamente os mesmos caracteres na mesma ordem (Fish, 1994).
Ora, se se aceitar a posição de Fish, e se se concordar que textos cujos suportes ma-
teriais não contêm variantes são, devido à necessária intervenção do intérprete,
diferentes entre si, esta diferença é exacerbada no caso Pessoa; aqui, a diferença
não reside só no leitor, mas também nos caracteres inscritos nos suportes mate-
riais, dado que o Livro do Desassossego da responsabilidade de Zenith não contém
exactamente as mesmas palavras, nem a mesma ordem, do Livro do Desasocego da
responsabilidade de Pizarro. Note-se, contudo, que a aceitação da tese de Fish não
é necessária para o nosso argumento, dado que, se Fish estiver errado, e o texto
que é lido por duas pessoas diferentes for o mesmo texto, ainda assim o Livro do
Desassossego e o Livro do Desasocego continuam a ser obras diferentes. Estas consi-
derações demonstram que as divergências entre críticos podem advir não só das
suas opiniões profissionais, mas também das edições por si utilizadas. Dito de ou-
tro modo, não obstante o Livro do Desassossego curado por Zenith e o Livro do
Desasocego curado por Pizarro terem coisas em comum, como o título (com uma
diferença ortográfica), o nome do autor foucaultiano, e a grande maioria dos tre-
chos que compõem cada uma das obras, a verdade é que basta uma leitura superfi-
cial das primeiras páginas para que qualquer leitor, crítico profissional ou não, se
aperceba de que estas duas edições são obras literárias diferentes, e, por isso, não
podem ser utilizadas indistintamente na elaboração de crítica literária. Isto leva-
-nos a concluir que a escolha de uma edição canónica, expressa ou tácita, com a
consequente revogação literária das demais edições disponíveis não é uma mera
possibilidade, nem algo que deva ser feito por uma questão de conveniência ou
coerência, mas sim uma necessidade intrínseca e inescapável da crítica literária,
algo que não pode deixar de ser feito.

VII. CONCLUSÃO
Ao longo deste estudo, avançámos argumentos que demonstram que a constata-
ção de que a responsabilidade, ou autoridade, sobre o conteúdo de uma obra li-
terária nem sempre recai sobre o seu criador originário não refuta o argumento
contra a teoria; o argumento de Knapp e Michaels é delineado com o intuito
de demonstrar que o significado de um texto equivale sempre à intenção com

109
que o seu autor o redigiu; contudo, identificar o autor é uma tarefa que, em bom
rigor, se encontra para além do escopo do argumento contra a teoria.

Não obstante Knapp e Michaels não se terem debruçado sobre a dificuldade le-
vantada por Parker de forma a desfazê-la, algo que deveriam ter feito porque, no
nosso entender, esta é, de todas as objecções levantadas ao argumento contra a
teoria, a mais prometedora prima facie, na realidade a análise efectuada na se-
gunda secção deste estudo acaba por conduzir à conclusão de que Parker não le-
vanta uma verdadeira objecção porque usa um conceito de autoria desadequado
para uma análise acerca de autoridade, ou responsabilidade, textual. Apesar de
Knapp e Michaels não o explicitarem desta forma, o argumento contra a teoria
deve ser entendido como uma proposição segundo a qual o significado de um
texto equivale sempre à intenção com que o seu criador intelectual o redigiu;
esta formulação, como vimos, destrói o argumento de Parker enquanto objec-
ção, mas, simultaneamente, revela que o efeito principal da tese sobre autoria
avançada por Foucault foi o de deslocar a noção de autoria enquanto criação in-
telectual para segundo plano.

De resto, tal como tivemos oportunidade de verificar na secção 4, a noção de au-


toria enquanto criação intelectual acabou por tornar-se tão fraca que, para o
Direito de Autor, não se encontra numa posição primordial; juridicamente, o
que é importante identificar é o detentor do direito de exploração económica da
obra e da legitimidade processual para a defender em juízo. É um facto que o
criador intelectual da obra não se encontra totalmente desprotegido, dado que,
na grande maioria das situações, a titularidade inicial do direito patrimonial de
autor é do criador intelectual, que, de resto, goza de direitos morais sobre a obra
inalienáveis e imprescritíveis. Em todo o caso, a letra do artigo 11.º do Código do
Direito de Autor e dos direitos conexos é elucidativa da separação entre a con-
cepção de autoria enquanto criação intelectual e a concepção de autoria adopta-
da pelo Direito de Autor: «O direito de autor pertence ao criador intelectual da
obra, salvo disposição expressa em contrário» (itálicos nossos). Isto significa que
o autor jurídico, isto é, aquele a quem o direito de autor pertence, poderá não ser
o criador intelectual. Além disto, a possibilidade de transmissão do direito pa-
trimonial de autor, aliada ao princípio da inalienabilidade dos direitos morais
de autor, pode levar a situações em que haja dois ou mais autores simultâneos
de uma obra, na acepção que o termo adquire no Direito de Autor, sem que se
trate de uma situação de co-autoria. Assim, se A, criador intelectual, transmitir
o seu direito patrimonial de autor a B, teremos uma situação em que B será autor
de uma obra porque é o detentor do direito patrimonial de autor sobre essa mesma
obra sem que A deixe igualmente de ser considerado como autor por continuar a
ser detentor dos direitos morais de autor sobre a obra em questão. Esta evolução

110
da figura jurídica do autor de uma obra literária ou artística é independente da
concepção foucaultiana de autoria, mas não deixa de ser digno de realce que
ambas cumprem a mesma função, a saber, a de fornecer um nome apto a desig-
nar um texto, ou um conjunto de textos, o que acaba por ter o efeito de relegar a
concepção de autoria enquanto criação intelectual para segundo plano.

Isto significa que a articulação da objecção de Parker só é possível porque os filó-


logos, na acepção mais antiga identificada na secção 3, não têm o hábito de des-
trinçar claramente a concepção de autoria a que aludem quando usam o termo
«autor». Knapp e Michaels incorrem igualmente nesta falha; contudo, os argu-
mentos presentes nos vários ensaios que os autores dedicam ao argumento con-
tra a teoria indicam claramente que a concepção de autor à qual se referem é a
de criador intelectual; admitir o contrário esvaziaria o argumento contra a teo-
ria, dado que, se Knapp e Michaels tivessem Foucault em mente, estariam a ar-
gumentar que o significado de um texto corresponderia, por vezes, à intenção de
um indivíduo que, não obstante não ser o criador intelectual da obra, é conside-
rado o seu autor, na medida em que o seu nome, por qualquer motivo, é idonea-
mente usado para identificar um determinado grupo de textos. No entanto, o ar-
gumento contra a teoria só faz sentido enquanto argumento contra as teorias da
interpretação avançadas por intencionalistas, não-intencionalistas, desconstru-
tivistas, etc. se for um argumento que identifique o sentido do texto com a in-
tenção do seu criador intelectual, e não com a intenção de outrem cujo nome,
por qualquer motivo, é usado em referência a um determinado texto. Parker, por
seu turno, também não esclarece qual a concepção de autoria que tem em men-
te; no entanto, os textos nos quais a objecção a Knapp e Michaels é levantada re-
velam que o autor, mesmo que não tenha pensado em Foucault quando os redi-
giu, usou uma concepção de autoria muito mais próxima da foucaultiana do que
da de criação intelectual; ao argumento de Knapp e Michaels, segundo o qual o
significado de um texto é idêntico à intenção do seu autor enquanto criador inte-
lectual, Parker responde que tal nem sempre é verdade porque há outros criado-
res intelectuais, que ele não designa através do termo «autor», que contribuem
para o conteúdo da obra publicada. Parker interpreta o termo «autor», tal como é
usado por Knapp e Michaels, erradamente, dado que o faz na sua acepção fou-
caultiana. Por conseguinte, a divergência entre estes autores deve-se mais a
uma confusão terminológica do que a uma verdadeira diferença substantiva
de opinião; Knapp e Michaels não esclarecem o que entendem por «autor», e
muito menos definem quem é o criador intelectual, enquanto Parker responde
sem evitar cair no mesmo erro, dado que também não esclarece o que se deve
entender por «autor». Os argumentos avançados ao longo da segunda secção
acabam por demonstrar que a polémica entre Parker e Knapp e Michaels é em
grande medida um diálogo de surdos que porventura nunca teria ocorrido se

111
Knapp e Michaels tivessem formulado o seu argumento contra a teoria através
de uma proposição como «o significado de um texto equivale sempre à intenção
com que os seus criadores intelectuais o redigiram, sendo que isto é igualmente
verdadeiro nos casos em que os criadores intelectuais são agentes cujo nome
não aparece, por qualquer motivo, associado à autoria da obra». Em todo o caso,
é fácil conjecturar que a razão pela qual Knapp e Michaels não foram claros
quanto a este ponto dever-se-á ao facto de o argumento contra a teoria não ser
um argumento acerca de quem se deve considerar como autor de uma obra; esta
identificação é, na linha de raciocínio de Knapp e Michaels, algo que é feito in-
dependentemente das teorias da interpretação contra as quais o argumento con-
tra a teoria se insurge, e, por isso, Knapp e Michaels terão entendido que nada
teriam a dizer sobre o assunto. Identificado o criador intelectual de um texto, o
significado deste equivale à intenção do primeiro. Este argumento não é afecta-
do por se considerar que os curadores textuais também são criadores intelec-
tuais das obras de que curam.

Esta conclusão não deve ser interpretada como implicando que todos os curado-
res textuais de toda e qualquer obra são, entre si, co-autores exactamente na
mesma proporção. Os curadores textuais dos textos de Pessoa têm um grau apre-
ciável de co-autoria em obras como o Livro do Desassossego, Notas para a
Recordação do meu Mestre Caeiro, Fausto ou Erostratus porque a sua intervenção
é constitutiva da obra, ou seja, sem o produto da criação intelectual dos curado-
res textuais o acesso ao texto pessoano não seria estabelecido, dado que parte
importante desse mesmo acesso se prende com a ordem de apresentação dos
trechos69. A curadoria de O Guardador de Rebanhos, por seu turno, não resultará
numa co-autoria de grau idêntico ao das obras acima mencionadas, dado que a
ordem dos poemas se encontra estabelecida por Pessoa; no entanto, a decisão
sobre que variantes incorporar e eliminar tendo em vista a publicação do texto é
susceptível de afectar o significado geral da obra devido à quantidade de opções
disponíveis, tal como Castro demonstra ao relatar que a sua curadoria resultou
numa diferença de mais de oitenta versos em relação à curadoria de Montalvôr.
O grau de autoria dos curadores da obra de Joyce é, por seu turno, de tal forma
reduzido, pelo menos quando comparado com o que sucede no caso Pessoa, que

69 Observe-se que cada um dos testemunhos que suportam os vários textos que, quando integrados, formam a obra Livro
do Desassossego são obras literárias em si mesmas, mas nenhuma destas obras, só por si, equivale ao Livro do Desassos-
sego. Dito de outro modo, o testemunho manuscrito ou dactilografado de um determinado trecho já constitui acesso ao
texto desse mesmo trecho, e, por isso, a criação intelectual de Pessoa é condição necessária e suficiente quer da existên-
cia, quer do acesso ao trecho em questão. No entanto, a obra literária Livro do Desassossego, entendida como o conjunto
de textos cujo suporte material contém a inscrição «L. do D.», bem como de outros textos cujo suporte não contém tal
inscrição, mas que se ajustam tematicamente à obra, e, por isso, são passíveis de ser incluídos na edição publicada, só
é constituída através de intervenção curatorial. Por isso, ao afirmarmos que a intervenção do curador é constitutiva da
obra intitulada Livro do Desassossego não pretendemos defender que também é constitutiva de cada um dos trechos,
que, em si mesmos, já são textos e obras. Todavia, os textos de cada um dos trechos, individualmente considerados, não
são o Livro do Desassossego. Se nos é permitida uma ilustração fabril, diríamos que Pessoa é o autor das partes, ao passo
que o curador textual é o autor da montagem e o responsável por limar arestas (i. e., escolher as variantes).

112
não se justifica quer o seu reconhecimento literário, quer o seu reconhecimento
jurídico. O curador textual é, por definição, co-autor factual da obra de que cura,
mas isto não significa que o seja sempre na mesma proporção. Com efeito, a pro-
porção é tanto maior quanto a importância que a intervenção curatorial assume
na constituição do acesso, por parte do público, ao texto da obra. Sem interven-
ção curatorial não há, simplesmente, acesso a obras com características idênti-
cas às do Livro do Desassossego70, ao passo que o haverá a obras com as caracte-
rísticas de Ulysses; o caso de O Guardador de Rebanhos é interessante porque é
intermédio, dado que seria possível o acesso à parte desta obra publicada duran-
te a vida de Pessoa sem intervenção curatorial; todavia, o papel do curador tex-
tual é, aqui, pelo menos parcialmente constitutivo, visto que, sem ele, o acesso
aos poemas inéditos não seria estabelecido.

Os argumentos apresentados ao longo deste trabalho também não têm como in-
tuito disputar o facto de que a maior parte dos autores foucaultianos são criado-
res intelectuais dos textos que lhes são atribuídos. Os casos de divergência entre
autor foucaultiano e criador intelectual são em muito menor número do que os
casos em que ambas as concepções de autoria coincidem no mesmo indivíduo.
Como exemplos da primeira situação podem apontar-se alguns diálogos filosófi-
cos datados do período da Grécia Antiga que são foucaultianamente atribuídos a
Platão, e que inclusive são inseridos, por curadores textuais, em volumes de
obras completas deste autor, não obstante a crítica especializada ser unânime
quanto ao facto de Platão não ser o criador intelectual dos diálogos em questão71.
No entanto, a atribuição de autoria foucaultiana a Platão é justificada pela tradi-
ção criada antes de se descobrir que os diálogos são apócrifos, e, por isso,
o nome «Platão» serve para identificar este conjunto de textos, e não para identi-
ficar o seu criador intelectual. Os heterónimos de Pessoa, por seu turno, tam-
bém podem ser considerados como manifestação da concepção foucaultiana de
autoria, não obstante serem mais ricos do que esta na medida em que se trata de
personalidades literárias, e não somente nomes que servem para aglutinar e
identificar um conjunto de textos. Assim, os nomes «Ricardo Reis», «Álvaro de
Campos» ou «Alberto Caeiro», por exemplo, também têm por tarefa identificar

70 O projecto «Nenhum Problema tem Solução: um Arquivo Digital do Livro do Desassossego» não mudará esta situação;
não obstante o mesmo ter como consequência o desaparecimento da figura do curador textual enquanto intermediá-
rio entre leitor e acesso aos trechos do Livro do Desassossego, na realidade a intermediação mantém-se na pessoa do
próprio leitor: antes de poder ler o Livro do Desassossego, o leitor terá de desempenhar o papel de curador textual. O pro-
jecto permitirá, assim, a leitura do Livro do Desassossego sem as intervenções curatoriais de Zenith, Pizarro, etc., mas
estas mesmas intervenções serão substituídas pela intervenção de cada um dos leitores que acede ao arquivo. O leitor
terá sempre de decidir a ordem pela qual lerá os trechos e quais serão as variantes que considera «em vigor», e, por isso,
a mediação editorial que Pizarro defende existir sempre na edição de texto passará a ser desempenhada pelo próprio
leitor. No fundo, o projecto permitirá uma curadoria do Livro do Desassossego sem que seja absolutamente necessário
ao curador deslocar-se à Biblioteca Nacional para analisar os testemunhos originais. Isto não significa, naturalmente,
que este passo metodológico seja o mais correcto do ponto de vista da crítica textual, mas, juridicamente, constituir-
-se-á um direito de autor a favor de cada leitor que, acedendo ao arquivo, reduza a escrito o seu trabalho intelectual de
ordenação dos trechos e escolha de variantes.

71 Cf., a título de exemplo, o volume intitulado Complete Works, curado por John M. Cooper e D. S. Hutchinson.

113
um determinado conjunto de textos, apesar de a sua importância não estar cir-
cunscrita a esta função. Em todo o caso, o nome «Alberto Caeiro» não é o nome
do indivíduo que intelectualmente criou O Guardador de Rebanhos, bem como
outros textos que lhe são foucaultianamente atribuídos. Os heterónimos confi-
guram, portanto, um exemplo de divergência entre autoria foucaultiana e auto-
ria enquanto criação intelectual.

Contudo, na esmagadora maioria das situações as obras literárias têm autores


foucaultianos, que, na grande maioria dos casos, também são criadores
intelectuais das obras que lhes são atribuídas, bem como autores cuja criação
intelectual não é reconhecida nem literária, nem juridicamente72. Todavia,
o que os nossos argumentos não demonstram, nem sequer pretendem demons-
trar, é que o grau, ou a proporção, do contributo intelectual prestado pelo cura-
dor textual é idêntico, ou sequer próximo, do do autor foucaultiano que, simul-
taneamente, é criador intelectual da obra que lhe é atribuída. Deste modo,
a conclusão de que Zenith, Pizarro ou Sobral Cunha são co-autores do Livro
do Desassossego, ou de que Castro e Montalvôr são co-autores de O Guardador
de Rebanhos, não deve ser entendida como implicando que o seu contributo
intelectual é do mesmo género do contributo intelectual de Pessoa. Reconhecer
expressamente a co-autoria dos curadores textuais terá certos efeitos literários,
e. g., o de as citações das obras pessoanas mencionadas ao longo deste estudo
deverem passar a ser feitas com o nome do curador textual inserido na posição
destinada ao nome do autor, bem como certos efeitos jurídicos, nomeadamente
a atribuição do direito de autor sobre a obra curada, e não apenas de um direito
equivalente ao direito patrimonial de autor; o que este reconhecimento não
produzirá certamente é o efeito de se considerar os curadores textuais, pessoa-
nos ou outros, como tendo o mesmo género de autoria que o criador intelectual
originário.

Uma das razões pelas quais o trabalho de curadoria textual é uma criação inte-
lectual prende-se com o facto de o curador ter, por vezes, de tomar decisões que

72 Existem excepções na medida em que as obras anónimas, precisamente por serem anónimas, não têm um autor fou-
caultiano. Lazarillo de Tormes, que se encontra nesta situação, é uma obra que tem pelo menos um criador intelectual
não identificado e criadores intelectuais nas pessoas dos curadores textuais responsáveis por curar desta obra. Há,
portanto, uma ligação entre criador intelectual e autor foucaultiano que não é despicienda e que não pretendemos re-
futar. A principal razão pela qual estes dois tipos de autor nem sempre coincidem no mesmo nome de um determinado
indivíduo reside na força da tradição. Se o nome de Juan de Ortega, que, em 1605, foi um dos primeiros a ser avançado
como possível autor de Lazarillo de Tormes (Sigüenza, 1909: 145) se tivesse associado à obra de forma a permitir o
começo de uma tradição na qual o título da obra e o nome em questão aparecessem sempre lado a lado, a descoberta
de que esta autoria seria apócrifa não constituiria, por si só, motivo suficiente para destruir a autoria foucaultiana. O
nome de Ortega continuaria a servir, tal como Foucault defende, para designar o texto intitulado Lazarillo de Tormes,
mesmo que se soubesse cabalmente, como na realidade acontece, que o indivíduo portador desse nome não é o criador
intelectual da obra. Em todo o caso, obras como Lazarillo de Tormes estão na situação curiosa de não terem qualquer
autor foucaultiano, mas de terem autores nas pessoas dos seus curadores textuais, que são co-criadores intelectuais
destes textos, sem que, no entanto, esta co-autoria/autoria seja reconhecida por filólogos e juristas.

114
tipicamente pertencem ao autor originário, como seleccionar variantes ou deci-
dir que porções textuais inserir na, ou eliminar da, versão final. Contudo, a co-
-autoria do curador textual não passa pela redacção ex novo das palavras que
compõem o texto, pela criação da estrutura da história ou do argumento sobre o
qual o texto se debruça, por nomes de personagens, nem por diversos outros aspec-
tos sobre os quais um curador textual não deverá intervir sob pena de cair numa si-
tuação de co-autoria ilegítima. Note-se, aliás, que a contribuição do criador intelec-
tual originário é uma constante que se encontra presente em todos os trabalhos de
curadoria textual, ao passo que o contributo intelectual do curador textual é variá-
vel, quer porque em edições diversas efectuadas pelo mesmo curador o resultado
produzido através da sua intervenção é diferente (e. g., o Livro do Desassossego cura-
do por Zenith), quer porque curadores diferentes se ocupam da mesma obra de um
determinado autor originário. Assim, nem a importância de Pessoa deve ser subesti-
mada, nem a dos curadores textuais sobrestimada na curadoria das obras pessoa-
nas. Com efeito, se o contributo intelectual de Pessoa nas obras pessoanas é insubs-
tituível, é uma constante em todos os trabalhos de curadoria textual, já o de cada
curador textual não o é; na medida em que a obra pessoana se encontra no domínio
público, qualquer interessado a pode curar, cabendo, posteriormente, aos críticos li-
terários elegerem, de entre as edições disponíveis, a canónica para efeitos de inter-
pretação e análise literária. Observe-se, contudo, que o contributo intelectual do
curador textual é substituível, mas não é dispensável. Para aceder a obras como o
Livro do Desassossego é necessário um trabalho de curadoria textual; a sua existência
é indispensável. No entanto, qualquer trabalho de curadoria textual é substituível
por outro, cabendo, posteriormente, às comunidades interpretativas tomar decisões
revogatórias.

Se, em todo o caso, o contributo do autor originário não se deve subestimar, nem o
do curador textual sobrestimar, o contrário é igualmente verdade. Contudo, as con-
siderações tecidas ao longo deste estudo indicam que o contributo do curador tex-
tual é altamente subvalorizado, ao passo que o do autor originário é empolado. Se os
nossos argumentos forem aceites, ou seja, se se passar a reconhecer, nos casos em
que isso se justifica, a co-autoria/autoria do curador textual para efeitos literários e
jurídicos, e, simultaneamente, que a autoridade do criador originário é, nos casos
em questão, insuficiente para dar a conhecer a obra ao público em geral, então será
estabelecido um equilíbrio entre os dois tipos de co-autoria, a do autor originário e a
do autor curador textual, até aqui inexistente. Este equilíbrio permitirá reconhecer
expressamente a co-autoria/autoria do curador textual, que não é um interveniente
despiciendo do processo que conduz à publicação de uma obra literária, com os ine-
rentes benefícios literários e jurídicos, sem relegar o autor foucaultiano para segun-
do plano.

115
A constatação de que o contributo intelectual do criador originário é uma constan-
te, ao passo que o do curador textual é uma variável, levanta o problema da cano-
nicidade e da revogação, que é o segundo grande problema tratado neste estudo.
Nas obras pessoanas, as edições póstumas de obras com características próximas
das do Livro do Desassossego são sempre fruto do trabalho intelectual de Pessoa
e de um dado curador textual. Assim sendo, cada uma das edições deste tipo
de obras disponíveis no mercado é uma obra em si mesma, distinta das demais que
partilham o mesmo título e o mesmo nome de autor. Dada esta diferença tanto na
forma como na substância de cada uma das edições, é necessário decidir qual,
de entre elas, é canónica, qual a que produz o efeito de revogar as demais.

Como deixámos claro ao longo da secção 6, a necessidade de decidir qual é a edi-


ção canónica advém do facto de as edições disponíveis provocarem uma situação
de conflito. Seria tentador, porque não deixa de ser verdade, arguir somente que a
experiência de leitura do Livro do Desassossego curado por Zenith é diferente da ex-
periência de leitura do Livro do Desasocego curado por Pizarro; este argumento,
contudo, não é suficiente para demonstrar que é necessário identificar a edição ca-
nónica, porque, tal como Fish demonstra através dos seus argumentos acerca da
experiência de leitura, leitores diferentes terão sempre experiências de leitura dife-
rentes quando se debruçam sobre o mesmo conjunto de caracteres textuais. Isto
significa que os leitores A e B da sétima edição do Livro do Desassossego curada por
Zenith terão experiências de leitura diferentes; esta divergência na experiência de
leitura não parece, por conseguinte, estar exclusivamente ligada à consulta de edi-
ções diferentes. Daqui resulta que o facto de a experiência de leitura de edições do
Livro do Desassossego curadas por diferentes indivíduos não ser igual não é sufi-
ciente para provocar a necessidade de decidir qual a versão canónica, dado que já
há divergência de experiências de leitura quando o texto interpretado é o mesmo.

A condição verdadeiramente necessária para que surja uma situação de conflito


que provoque a necessidade de escolher a edição canónica consiste no imperati-
vo moral de respeitar a verdadeira vontade do autor de uma obra literária quan-
to à forma e ao conteúdo que esta teria na sua versão final. No caso Pessoa,
identificar essa mesma vontade é impossível porque, entre outras coisas, se tra-
ta de uma obra incompleta; contudo, a incompletude da obra não habilita
os curadores textuais pessoanos a intervirem arbitrariamente; na realidade, os
curadores textuais pessoanos, tal como os curadores textuais em geral, seguem,
umas vezes de forma implícita, outras de forma explícita, o critério do respeito
pela vontade do autor como norteador do seu trabalho. Recordando uma citação
de Castro acima referida a propósito da sua edição de O Guardador de Rebanhos,
a mesma «[t]rata-se de um texto lido criticamente, que se afasta em numerosos
versos (mais de oitenta) do texto a que as pessoas estão habituadas, mas que em

116
compensação se aproxima muito mais, espero, do texto que Pessoa teria publica-
do». Castro não espera conseguir identificar integralmente a vontade de Pessoa
quanto ao texto que este teria publicado, mas tem por objectivo aproximar-se, o
mais possível, dessa mesma vontade. Pizarro, por seu turno, alerta, em vários
dos seus escritos de cariz filológico, para a ilegitimidade de tentar completar o
que Pessoa deixou incompleto; ora, se tal tentativa é ilegítima, posição que subs-
crevemos, a sua ilegitimidade deve-se essencialmente à imperatividade do prin-
cípio moral segundo o qual a vontade das pessoas, quando lícita, deve ser
respeitada.

Respeitar este princípio moral afasta a legitimidade, ainda que não a exequibili-
dade, da alternativa mais óbvia à nossa posição, a saber, a de considerar todas as
edições disponíveis no mercado de obras com características semelhantes às do
Livro do Desassossego como sendo canónicas, e, portanto, válidas para efeitos de
interpretação e análise literária. Aceitar esta alternativa à nossa posição teria o
efeito de permitir usar indistintamente todas as edições disponíveis na feitura
de crítica literária, e, assim, cada crítico pessoano poder usar várias edições do
Livro do Desassossego nos seus trabalhos. O problema com esta posição encon-
tra-se na assumpção de que o criador intelectual originário da obra, Pessoa, se
reveria em todas as edições publicadas, e que, portanto, para ele seria indiferen-
te que os críticos consultassem a obra curada por Prado Coelho ou por Sobral
Cunha. Não nos parece, contudo, que haja boas razões para se manter esta pre-
sunção. No nosso entender, os críticos pessoanos devem fazer o esforço de ten-
tar identificar a edição que mais se aproxima da vontade do seu autor originário,
e, como consequência, considerar as edições concorrentes como revogadas.
Reiteramos, no entanto, que esta decisão revogatória não é, por seu turno, irre-
vogável, dado que podem, no futuro, surgir edições que se aproximem mais da
vontade de Pessoa do que aquelas actualmente existentes, sendo que também
não é de descartar que as opiniões acerca da edição canónica podem mudar sem
a publicação de novas edições. Dito de outro modo, não é descabido que, em
aplicação do critério de aproximação à vontade real do autor originário, a edição
actualmente considerada canónica pelos críticos pessoanos possa, por exemplo,
ser a de Zenith, que é estruturada tematicamente; contudo, se for descoberto, no
futuro, um escrito da autoria de Pessoa onde este relate que a melhor forma
de organizar o Livro do Desassossego seria por ordem cronológica de composição
dos trechos, então, porventura, a edição canónica passaria a ser a de Pizarro ou
a de Sobral Cunha. São imagináveis vários exemplos de vicissitudes deste géne-
ro, mas o ponto onde queremos chegar é somente o seguinte: o importante é
apurar qual a edição que mais se aproxima da vontade do seu criador intelectual
originário. Isto não implica a irrevogabilidade da decisão tomada neste sentido,
nem sequer a necessidade de criar novas edições que revoguem as existentes;

117
as edições actualmente existentes podem, por outras palavras, revogar-se alter-
nadamente. Tudo depende da fundamentação oferecida por críticos especiali-
zados acerca de qual a edição que mais se aproxima da vontade do autor.

Por estes motivos, não subscrevemos a posição segundo a qual todas as edições
de obras com características semelhantes às do Livro do Desassossego existentes
no mercado se encontram «em vigor», ou seja, que valem para efeitos de inter-
pretação, análise e leitura. Em todo o caso, e tendo em atenção os efeitos opera-
dos pela revogação literária, considerar uma determinada edição como revoga-
da não impede a sua leitura e interpretação, nem muito menos a sua utilização
em crítica literária que tenha por objectivo determinar a edição canónica.
Considerar uma edição do Livro do Desassossego revogada tem por efeito que a
mesma não pode ser utilizada para estudar, por exemplo, o tema da Decadência.
No entanto, para que se chegue à conclusão de qual é a edição canónica, e quais
são as que esta revoga, é necessário interpretar e analisar todas as edições dis-
poníveis. O exercício que consiste em apurar a edição canónica terá sempre de
ser efectuado sobre todas as edições disponíveis, inclusive aquelas que tenham
sido consideradas revogadas por exercícios deste género feitos anteriormente.
No entanto, a partir do momento em que o crítico pessoano X faça este exercí-
cio, e chegue à conclusão de que, por exemplo, a edição canónica é a de Zenith,
a análise dos temas presentes no Livro do Desassossego deve ser sempre feita
através da edição escolhida. Isto é assim porque, aceitando as premissas segun-
do as quais ler consiste em interpretar a intenção do autor, e uma edição canóni-
ca é, de entre as disponíveis, a que melhor a respeita, então a leitura e análise li-
terária só pode incidir sobre a edição considerada canónica. Naturalmente, por
não ser irrevogável, a decisão sobre a identificação da edição canónica pode ser
sempre revisitada.

118
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121
Porquê tal coisa
a respeito de outra
ou o desespero
da diferença —
o fragmento como
programa estético
em Fernando Pessoa
Raquel Nobre Guerra

RESUMO

Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma cor-
rente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos outros. [...] Chamo insince-
ras às coisas feitas para fazer pasmar, e às coisas, também — repare nisto, que é importante — que
não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento
uma noção da gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de
Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso em
todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.

Lemos nesta passagem da correspondência a Armando Côrtes-Rodrigues, de 1915, a formulação do que


transversalmente servirá de mote a esta discussão: o fragmento como programa estético na produção li-
terária de Fernando Pessoa; valor metodológico e modal deste na construção da heterogénese; dimensão
ontológica do fragmento, suas implicações e oposições categoriais; o idêntico e a identidade no contrato
entre vida real e ficcional: porquê tal coisa a respeito de outra ou o desespero da diferença.

122
O lugar do esoterismo
na classificação
da biblioteca
de Fernando Pessoa
Rita Catania Marrone

RESUMO

Se é verdade, como já afirmou Georg Rudolf Lind, que da biblioteca de Fernando Pessoa impressiona o es-
paço reservado à astrologia e às ciências ocultas, é também verdade que este espaço não está bem defini-
do: os numerosos livros relacionados com esoterismo espalham-se de modo tentacular pelas nove classes
em que o acervo livreiro do poeta foi dividido e pedem para ser procurados, encontrados e reconhecidos.
Com efeito, o esoterismo tem por si próprio um carácter rizomático, que foge à repartição tradicional das
ciências. Desta consideração nasce a oportunidade para conversar sobre o espaço ocupado por este tema
na reflexão académica contemporânea, em geral, e na biblioteca de Fernando Pessoa, no específico.

123
Notas sobre
a construção do autor
em Francisco Sanches
(com Fernando Pessoa
ao fundo)
Rui Sousa73

73 CLEPUL.

124
É evidente, ao longo do Que Nada se Sabe (QNS), um elaborado exercício de com-
posição da própria figura por parte de Francisco Sanches, que percorre a sua
evolução intelectual e o modo como se procura destacar dos discursos alheios e
dos seus procedimentos entendidos como dogmáticos. O ponto de vista de
Sanches, apontando para um afastamento relativamente aos interlocutores aos
quais se dirige polemicamente, converge no sentido de uma modelação de si en-
quanto indivíduo excecional, assumindo-se como autónomo e absolutamente li-
vre no âmbito do paradigma intelectual que o orienta e que vai expondo.

Este exercício tem repercussões desde logo nos dois textos prefaciais, uma car-
ta-dedicatória dirigida a Diogo de Castro74 e uma outra, datada de 1 de janeiro de
1576, dirigida ao leitor, na qual se acentua o impulso dialogante, justificativo,
consciente da singularidade do que tem a transmitir, dos seus pontos de partida
e das potenciais discordâncias e polémicas que resultarão da leitura do texto75.

A carta dirigida ao «integérrimo e sábio Diogo de Castro» começa por delinear as


circunstâncias em que a obra foi concluída e os motivos que conduziram à sua
publicação naquele momento, recorrendo com particular incidência a um moti-
vo literário particularmente prolífero sobretudo a partir do Romantismo e ao
qual Pessoa não ficará indiferente, aquele que aponta para o acaso e para o ca-
rácter relativamente involuntário da descoberta do manuscrito: «Passando há
pouco em revista os meus livros, incidiu por acaso a minha atenção sobre este
opúsculo, escrito por mim sete anos antes».

Este suposto acaso — corroborado pelo mau estado de conservação do manus-


crito, seguida que fora em boa parte a lição horaciana de adiar por um período
de nove anos a publicação dos escritos originais — contrasta com uma série de
afirmações que, mais ou menos subtis, são tudo menos próprias de alguém que
quase esquecera um texto de tal importância, correndo o risco da sua quase
completa destruição, e que invoca a necessidade de impedir essa mesma corrup-
ção do papel pelas traças como argumento para publicar antes de tempo o escri-
to: a confiança em que o texto, apesar da sua suposta precocidade, «pode ter lon-
ga vida»; o sentido da organização da obra, que, em virtude de outras obras em
vias de publicação, esclarece que «convém que esta as anteceda»; a sugestão de
que o texto estava sujeito a um processo de escrita contínua, que poderia
conduzir ao seu inacabamento perpétuo, potencialmente deturpando-lhe o con-

74 Diogo de Castro, ao qual Sanches dedicou também a sua primeira obra, «O Cometa do Ano de 1577», como nota Elaine
Limbrick, responsável pelos comentários à edição inglesa da obra, cuja tradução ficou a cargo de Douglas F. S. Thom-
son, foi um poeta e novelista, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que Sanches terá conhecido
em Roma (SANCHES, 1988: 166-167, n. 8).

75 As citações das obras de Francisco Sanches que faremos remetem para a seguinte edição: SANCHES, Francisco, Obra
Filosófica, pref. Pedro Calafate, Lisboa, INCM, 1999. Indicaremos as páginas referidas entre parêntesis, exceto quando
mencionarmos algumas das propostas de tradução de Rui Bertrand Romão, que serão devidamente identificadas.

125
teúdo imediato; finalmente, e em relação a este último argumento, a confiança
absoluta nas capacidades de um texto que parecera ter sido praticamente esque-
cido, não tanto pelo tempo de espera entre a suposta data em que fora escrito e a
edição (1576 e 1581), já que a autoridade horaciana o justificava, mas sobretudo
pelo «acaso» que conduzira à sua recuperação: «Saia, portanto, a campo com
bons auspícios, como soldado que vai batalhar contra a mentira».

O âmbito explicitamente guerreiro que Sanches escolhe para apresentar a sua


obra prolonga-se logo em seguida na própria justificação da dedicatória, na me-
dida em que Diogo de Castro poderia servir como «acampamento» protetor rela-
tivamente às previstas investidas do «inimigo» (cuja identidade é sempre deixada em
aberto) e ao mesmo tempo como participante na minuciosa estratégia da qual se assu-
me como orquestrador e na qual a obra é uma peça-chave: «e para que não suceda que,
por não o conheceres, lhes feches a porta, aí to mando com as minhas instruções, para
em meu nome te saudar e para confirmar a nossa amizade, e ainda para que ele com-
bata sob a tua bandeira. Recebe-o, pois, prazenteiramente, e alista-o entre os teus, e a
nós com ele» (p. 61). Veja-se, desde já, a curiosa e ambígua relação que Sanches man-
tém com a sua própria obra e com o destinatário da dedicatória, na medida em que o
texto, as intenções declaradamente combativas com que o produzira e o publicava e as
«instruções» de uso são da sua autoria mas ambos — obra e autor — se colocam no
mesmo patamar enquanto parte de um exército comandado pelo amigo.

A forte presença do autor é denunciada, desde logo, na rápida transição de um discur-


so que parecia retirar-lhe qualquer tipo de responsabilidade pelas circunstâncias e
pelo futuro da obra, vinculado a uma descomprometida arrumação de manuscritos e
livros, para outro que sublinha vigorosamente os seus intuitos programáticos, a con-
fiança nos resultados a conquistar e a atitude bélica com que se dirige a um horizonte
de opositores adivinhado mas deixado em aberto, coincidindo essencial com «a men-
tira», alvo abstrato, potencialmente infinito e cuja expansão se poderia processar a
qualquer momento, deixando em aberto o alcance total do exercício crítico que o títu-
lo sugere emblematicamente.

Antes de prosseguirmos a análise do texto, parece-nos relevante assinalar algumas se-


melhanças significativas entre o registo que Sanches assume neste documento e aque-
le que Pessoa adota em várias das cartas trocadas com os poetas da presença,

126
nomeadamente na célebre carta de 13 de janeiro de 193576. A aparente desvalorização
do conteúdo do que se afirma, assim como a suposta espontaneidade das afirmações
deixadas ao sabor de um acaso, são associadas à realidade material dos documentos
— no caso do QNS, o estado de desleixo em que o documento caíra ao fim de sete anos
de abandono, no caso da carta a Casais Monteiro, a má qualidade do papel, sublinhada
no primeiro parágrafo como um dos indicadores da prontidão, e portanto da ausência
de cálculo, com que Pessoa constrói uma das mais célebres e prolíferas figurações de
um autor a respeito da sua própria capacidade criativa. Argumento que, não esqueça-
mos, parece pouco fiável se nos lembrarmos da disponibilidade material que Pessoa
assume, no final da carta, para tirar duas cópias da mesma e a convicção que tem no
potencial futuro das considerações que tece, sublinhada ainda pela ânsia em, «para
seu governo», saber imediatamente da receção da carta pelo destinatário77.

Num caso como noutro, a recuperação do QNS, motivando as considerações que


Sanches dirige ao amigo, e a amplitude das «confidências» pessoanas, cujo alcance pa-
rece atenuado por surgirem como resposta ao que numa carta anterior fora solicitado
e não em virtude de uma livre iniciativa autobiográfica do poeta, parecem escapar ao
domínio de uma vontade prévia.

No caso de Pessoa, o contraste discursivo entre a afirmação de uma identidade inca-


paz de controlar seja o que for, incluindo os sentidos do percurso editorial da própria
obra, e a imediata afirmação convicta do potencial de acerto das opções tomadas é
bem evidente, por exemplo, na resposta às questões em torno de Mensagem:

Concordo comsigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo
fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi
a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque esta faceta — em
certo modo secundaria — da minha personalidade não tinha nunca sido suffi-
cientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas […] — precisa-
mente por isso convinha que ella apparecesse, e que apparecesse agora. […]

76 Como é conhecido, a carta tem inspirado uma série de textos importantes, de que destacamos a problematização de
Jacinto do Prado Coelho, que sintetizou um dos problemas mais relevantes afirmando que «o leitor fica […] sem saber se
o poeta é médium ou fabricante, agente ou autor» (COELHO, 1973: 181), a centralidade desta leitura do drama em gente
nos desenvolvimentos que Eduardo Lourenço lhe confere em Pessoa Revisitado, as discussões em torno da factualida-
de da descrição de como foram produzidos os poemas capitais dos heterónimos (cf. CASTRO, 2014: 12-25) ou ensaios
sobre os intuitos mistificadores do texto, com impactos evidentes na receção presencista (cf. BAPTISTA, 2010: 25-42;
TAMEN, 2015: 113-118). Acompanhamos algumas afirmações de Flávio Rodrigo Penteado num texto publicado numa
recolha de ensaios dedicados precisamente à discussão do Dia Triunfal, que esta carta instaurou como mito pessoano
(PENTEADO, 2014: 71-82).

77 Seria interessante confrontar pormenorizadamente a aproximação entre alguns dos traços mais peculiares desta
missiva e os que também se percebem na carta de 11 de dezembro de 1931, dirigida a Gaspar Simões, e que pertence à se-
quência de cartas em que os presencistas se convertem em herdeiros privilegiados da redescrição em curso da imagem
que Pessoa procurava deixar à posteridade. Em particular na sequência final, em que, depois de expor, recorrendo a
boa parte das sugestões que em 1935 aprofundará e dirá com outra diversidade, a natureza simultaneamente literária e
psiquiátrica da criação dramática da heteronímia. Também a insinuação súbita da presença de um potencial contexto
alcoólico, neste caso como pretexto para a interrupção da carta, e as muitas afirmações que visam acentuar o quão
pensada e emendada a carta terá sido, contrastando com outras que apontam para a espontaneidade da escrita, são
comuns aos dois documentos (cf. PESSOA, 1998: 172-173).

127
O que fiz por acaso e se completou por conversa, fôra exactamente talhado, com
Esquadria e Compasso, pelo Grande Architecto. (Pessoa, 1998: 252)78

Vejamos: a concordância com Casais Monteiro, remetendo para o plano do mero


acaso editorial em que se deu a publicação de uma determinada obra — equiva-
lente ao acaso de o QNS ter sido encontrado precisamente naquela ocasião e não
em qualquer outra, por exemplo, o que estaria inicialmente previsto de acordo
com a indicação horaciana ou, mesmo antes desse, outro qualquer que fizesse
perigar o estado de conservação da obra, considerado já muito pouco recomen-
dável na ocasião da redescoberta —, é desmentida, tanto pela coincidência de
propósitos entre o acerto dos factos e a remissão da estratégia para o plano da
predestinação de natureza religiosa ou cósmica, que já nem a expressão «fiz por
acaso» ajuda a atenuar, como pela convicção — partilhada com Sanches — de
que «convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora».

A vertiginosa transição de mero acaso, dado até como infeliz, pouco justificável
e mesmo inadequado tendo em conta anteriores estruturações editoriais nas
quais «nunca um livro do género de Mensagem figurava em número um», a uma
absoluta conveniência ditada pelo projeto de divulgação de diferentes facetas de
si enquanto autor é a mesma que vai de uma trivial arrumação de papéis e do
modesto argumento do imperativo de conservar publicando-o, o que já estava fi-
nalizado há muito, correndo riscos de se deteriorar e perder irreversivelmente,
ao já mais convincente argumento de que um texto está sempre sujeito a revi-
sões e alterações, sendo portanto necessário publicá-lo a certa altura e antes que
novas derivas condicionem os resultados nele fixados. É-o, ainda mais, em con-
traste com o argumento que aponta para a absoluta convicção com que se inte-
gra esta obra num projeto editorial — coisas que estariam prestes a conhecer a
publicidade e que, como curiosamente ocorre com Pessoa, nunca seriam conhe-
cidas — e com que se assume a sua enorme valia no combate que ocupa o autor
em toda a sua obra.

O argumento do acaso antecedendo considerações decisivas é aliás extrema-


mente recorrente no diálogo pessoano com os jovens presencistas. São relevan-
tes circunstâncias como os permanentes atrasos no que respeita a certas respos-
tas; o suposto extravio de alguns documentos, como a primeira versão da sua
nota biográfica ou a colaboração supostamente enviada, mencionada na carta

78 Gustavo Rubim considera esta passagem um dos momentos fundamentais da transição do plano do autor para o do
hiperautor, na medida em que produz uma «coincidência da autoria estrita — a escrita e publicação de livros — com
uma autoria de ordem superior que dá sentido histórico e transcendental à obra que os livros realizam. No plano do
híper-autor, todo o livro é livro teleológico» (RUBIM, 2017: 13). Essa teleologia particular é a que corresponde a uma
interpretação do escritor relativamente a todo o tipo de questões, que lhe permitem integrar os seus escritos de acordo
com a interpretação que faz deles e de tudo o resto.

128
de 22 de janeiro de 1934; a insistência com que menciona — em pelo menos qua-
tro cartas, três dirigidas a Gaspar Simões, a 16 de julho, 28 de julho e 22 de outu-
bro de 1932, e ao próprio Casais Monteiro, a 26 de dezembro de 1933 — a nunca
enviada «Nota» a respeito dos comentários de Casais Monteiro ao prefácio que
escreveu para Acrónios, de Luís Pedro Moitinho de Almeida, no número 35 da re-
vista coimbrã, que é em si mesma um eco crítico do impacto das considerações,
até por permanecer na memória de Pessoa durante quase ano e meio, e que lem-
bra outras promessas por cumprir como os mais extensos comentários aos livros
de Teixeira de Pascoaes cujo envio vai agradecendo; ou a ideia que fica de que os
poemas são enviados inadvertidamente, como o poema de Reis «que por
acaso tinha ainda na algibeira» (Pessoa, 1998: 209), enviado a 18 de fevereiro de
1933, ou partilhados como meras curiosidades inocentes — nomeadamente os
de cariz ocultista e mágico, como «O Último Sortilégio» ou mesmo a tradução
do «Hino a Pã» de Aleister Crowley.

Voltemos à leitura da dedicatória a Diogo de Castro. Um dos mais estimulantes


leitores da obra de Francisco Sanches, Rui Bertrand Romão, salienta, a este pro-
pósito, aquela que se exibe como uma vasta transgressão de Sanches, que refere
a autoridade clássica de Horácio para dela usufruir de acordo com a sua vontade
e o seu próprio ritmo, ao mesmo tempo que supera a sua própria decisão inicial e
que rebate, um por um, os seus próprios argumentos presentes, algo evidente,
entre outros aspetos, na constituição do texto supostamente prematuro num
soldado habilitado a servir os propósitos do xadrez sanchesiano, «encarado
como de algum modo introdutório mas, também, […] primogénito […] e que pos-
sui um direito de precedência sobre aqueles, sugerindo uma certa prioridade»
(Romão, 2003: 76).

O ensaísta opõe-se, assim, à maioria dos estudiosos da obra do filósofo seiscen-


tista, que tendem a ler o QNS como o que era para ser uma etapa inicial de um
percurso que, começando num tom cético pelo menos a respeito de muitos dos
principais fundamentos da cultura vigente no seu tempo e numa atitude sobre-
tudo destrutiva, daria lugar a outras produções, nunca escritas ou pelo menos
não publicadas pelos filhos na edição póstuma de 1636 e nunca encontradas,
que tenderiam para a construção de um determinado conceito de ciência e, por-
tanto, evidenciariam de modo conclusivo que o filósofo não seria um cético ou
pelo menos não o teria sido permanentemente, tendo ultrapassado a sua «crise
pirrónica».

Partindo da ideia de que este texto esconde uma suposta «dissimulação» conse-
guida através do que designa como uma «ficção cronológica […] demasiado ela-
borada e sofisticada para a voz do Autor na epístola-dedicatória poder ser tida

129
como sincera» (Romão, 2003: 77), Romão explora também algumas discrepân-
cias entre o conteúdo do texto destinado aos leitores e as posições assumidas no
livro de que seria supostamente o mote, para concluir que a evolução intelectual
do filósofo bracarense terá sido distinta daquela que normalmente se comenta,
tendo contribuído o próprio exercício da escrita e alguns acidentes contemporâ-
neos para a alteração do plano inicialmente estabelecido. O que, de resto, esta-
ria em perfeita conformidade com os comentários de Sanches a respeito dos
efeitos do tempo na evolução dos indivíduos e dos seus pensamentos e posturas.

Resumidamente, de acordo com esta leitura, o QNS teria começado por ser um
prefácio destinado a acompanhar aquele que é muitas vezes mencionado como
um projeto mais vasto ou pelo menos mais desenvolvido (entre outros, o De
Modo Sciendi e o Examen Rerum), que tencionara refundir aquando da polémica
que conduzira à publicação de «O Cometa do Ano de 1577» (1578), mas que con-
duzira progressivamente a algo muito mais vasto do que uma mera introdução,
que conquistaria a sua autonomia e chegaria a colocar em causa algumas das
principais conclusões a que entretanto havia chegado. Em função dessa evolu-
ção, o texto destinado ao leitor, que fora escrito em 1576 para servir de prefácio a
teses muito mais condizentes com os indícios que ao longo do QNS espalha a
respeito do que poderiam ter sido os conteúdos dos referidos projetos mais vas-
tos e supostamente posteriores a 1581, teria sido adaptado para prefaciar aquela que
se afigurara de repente — e de acordo com a ideia de que «temos para muito breve
outras publicações, e convém que esta as anteceda» que Sanches assume na dedica-
tória a Diogo de Castro — como o trabalho a partir do qual deveria dar-se início a um
projeto de intervenção combativa. Finalmente, também teria sido no QNS que
Sanches, ao verificar a abundância de utilizações que dele fizera, convertera o pro-
nome interrogativo neutro «Quid?» num elemento decisivo, que passaria a integrar
todas as suas obras depois de 1581 e que, no sentido de dar alguma consistência à fic-
ção da suposta descoberta do manuscrito, teria sido introduzida propositadamente
no texto ao leitor, de 1576, não constando portanto da sua versão original (ROMÃO,
2003: 87-96).

Não sendo propósito da nossa abordagem discutir questões relacionadas com a data-
ção da obra, parece-nos que estas propostas são perfeitamente defensáveis à luz
da imagem que resulta das primeiras intervenções do autor na economia inter-
na do QNS: a de alguém que trabalha a ambiguidade, o relativismo e a subtil
contradição interna como mecanismos de afirmação de si e da sua obra e, por-
tanto, que obriga a uma dúvida constante no que respeita a informações tão de-
cisivas como a distância entre a dedicatória e o momento de escrita (os referi-
dos «sete anos» em que o texto permanecera esquecido entre papéis), a data da
carta ao leitor e a coincidência entre essa data e a do texto principal para que

130
parece servir de justificação e, na expressão de Philippe Lejeune, de «pacto de
leitura» (Lejeune, 1996).

Quanto a nós, essa configuração do QNS enquanto um texto de primeira impor-


tância que Sanches procurara ocultar através dos documentos que antecedem o
discurso propriamente dito é própria do retrato do «Autor» confiado aos seus
interlocutores desde o texto que data de 1576, independentemente de este ter ou
não ter sido escrito propositadamente para o QNS ou para um projeto anterior
que este acabara por substituir pela sua crescente pujança crítica: um autor na
plena posse das suas faculdades criadoras e decisórias, capaz de progredir, de
gerir, manipular e alterar as diferentes etapas de um projeto de obra entendida,
como defende Pessoa num texto de 1926, «Organizar», deve ser entendida en-
quanto conjunto de artefactos criativos passíveis de ser alterados, adaptando-
-se a novos pontos de vista e às próprias circunstâncias de um pensamento au-
tónomo e livre (cf. Pessoa, 2000: 306-311).

Assim, o texto dirigido ao leitor apresenta programaticamente a constituição


de um percurso intelectual, que lhe permite alcançar não exatamente o saber
— na medida em que este, como se depreenderá do cerne do pensamento
do autor, não pode ser alcançado, ou melhor, mesmo que algum dia o seja, nun-
ca poderá proporcionar qualquer certeza relativamente à sua efetiva obtenção
— mas uma relação autónoma, progressiva e dinâmica com os limites
do conhecimento e com os resultados da própria busca.

Estamos perante uma transição que passa, em grande medida, pela capacidade
de se conjugarem a incessante busca do saber e um progressivo autodomínio
que é, em si mesmo, distintivo e libertador, e que se resume exemplarmente nas
primeiras frases: «É inato ao homem o querer saber; a poucos é dado o saber
querer; a menos ainda o saber. Para mim não abriu a fortuna excepção. Desde o
começo da minha vida que eu, dado à contemplação da Natureza, tudo perscru-
tava sem descanso» (p. 63). Assim, sendo o saber algo que, na melhor das hipó-
teses, só está ao alcance de muito poucos, o que está em causa é a melhor forma
de dirigir a ação de alguém que, sabendo-se dotado de uma capacidade particu-
lar — a «contemplação» direta das coisas é essencial no contexto das considera-
ções sanchesianas, como veremos —, também se apercebeu do descontrolo que
a ânsia de conhecer começara a assumir e portanto de estar a ser dominado
pela investigação («o querer saber») e desprovido da superioridade que advém
da arte de conter os próprios impulsos e de passar de um estado de dependên-
cia para outro de exercício consciente da vontade de conhecer («o saber
querer»).

131
O «querer saber» é comentado a partir de uma figuração biológica do trabalho
intelectual, assemelhando as fontes potenciais do saber a uma pluralidade de
alimentos oferecidos à voracidade de quem, incapaz de gerir devidamente a
dispersão, se deixa toldar pelo excesso: «A princípio, o meu espírito, ávido de
saber, contentava-se com qualquer alimento que se lhe oferecia; a breve trecho,
porém, se lhe tornou impossível digerir e começou a vomitar tudo o que ingeri-
ra. Tratava eu já então de ver com todo o cuidado o que havia de dar-lhe que ele
digerisse e assimilasse bem: nada havia que satisfizesse os meus desejos» (p. 63).

Repare-se como se processa um subtil deslizar de sentido que faz com que tal
estado de má disposição intelectual deixe de ser da responsabilidade do próprio
para se fixar, tendencialmente, na duvidosa ou incerta qualidade dos «alimen-
tos» ingeridos e, ainda mais relevante, na incapacidade não já de digerir tais ví-
veres culturais — o que apontaria para uma limitação pessoal — mas de se con-
seguir satisfazer — o que aponta para uma limitação das iguarias para
cumprirem a sua missão nutritiva, reforçada pela ideia de que algumas das coi-
sas procuradas parecem ter um pouco mais de utilidade do que outras: «Passava
em revista as afirmações dos passados, sondava o sentir dos vivos: respondiam o
mesmo; nada, porém, que me satisfizesse. Algumas sombras de verdade, confes-
so, me entremostravam alguns; mas não encontrei uma só que com sinceridade
e uma maneira absoluta dissesse o que das coisas devíamos julgar» (p. 63). No
próprio QNS, esta interação direta com os antecessores, tidos como fontes indis-
pensáveis, é descrita com mais precisão, por exemplo quando considera que foi
a partir do contacto com «as dificuldades e contradições deles» que «fugi para a
realidade, tomando-a para base da minha opinião» (pp. 76-77).

Embora seja predominante o distanciamento progressivo em relação aos mais


persistentes vultos filosóficos do seu tempo, é precisamente o facto de terem
existido e representarem uma herança tão persistente que conduziu ao trilhar
de uma identidade própria, pois «não fossem tais quais foram, talvez eu fosse di-
ferente do que sou». É, de certo modo, uma questão de desafio — «aquele que me
aponta alguma coisa com o dedo não produz em mim a visão, mas excita a potên-
cia visual a passar ao acto» — que, funcionando por contraste, e assim coincidindo
com o modo como descreve o seu percurso enquanto evolução gradual, permite
que a «verdadeira ciência» fosse encarada como «livre, e filha de um espírito livre:
se por si não percebesse a realidade, também não a perceberia coagida por quais-
quer demonstrações. Estas só obrigam os ignorantes, aos quais basta a fé» (p. 77).

É neste momento, em que já se começa a definir um retrato de superioridade que


todo o discurso deixa transparecer, mesmo perante as sucessivas remissões
humildes a um patamar comum de desconhecimento, algo que Pessoa fixaria, com

132
a sua argúcia crítica na identificação entre o núcleo duro do pensamento sanche-
siano e a sua noção de «homem superior» (cf. Sousa, 2017: 372-393). Será útil lem-
brar que, na primeira frase do texto, com a paráfrase adulteradora da afirmação
aristotélica, se descrevia já uma inequívoca hierarquia relacionada com o poten-
cial ou a predisposição dos homens para evoluir do «querer saber» para o «saber
querer» e daí para o «saber», pelo que não será exagerado dizer que o ultrapassar
da crise alimentar e a consequente capacidade de distinguir os alimentos procura-
dos e de perceber as limitações comuns a todos indicia já uma maior arte pessoal
de lidar com o conhecimento, um «saber comer» que é outra forma de afirmar o
«saber querer». E que é o fundamento a partir do qual se produz a dúvida generali-
zada, pois, à semelhança da descrição que Descartes fará do seu próprio momento
de epifania, nasce do «Voltei-me então para mim próprio» a necessidade de colocar
em causa tudo o que entretanto havia sido defendido: «e pondo tudo em dúvida
como se até então nada se tivesse dito, comecei a examinar as próprias coisas: é
esse o verdadeiro meio de saber» (p. 63).

É surpreendente a concisão com que Sanches se exprime, assumindo o tom cuida-


doso e agressivo que na dedicatória se anuncia, pois em pouquíssimos parágra-
fos, delineados com um exemplar rigor, descreve a evolução pessoal e o que dis-
tingue o seu próprio método, o tipo de influências culturais a que recorreu a
certa altura e que conseguiu ultrapassar e o patamar dos que são presas fáceis
da suposta sabedoria que não é mais do que um caprichoso impulso de univer-
salização de teorias abstratas, de verdadeiras obsessões individuais convertidas
em fundamentos da verdade. A ficção, nesta perspetiva, é encarada como um
mecanismo de redução da realidade a um circuito fechado de mitologias priva-
das que ameaçam encapsular, alienando-as, as consciências alheias. A esse es-
tado de verdadeira escravidão cultural, o pensador português responde com a
descrição dos seus pares:

Quero-me com aqueles que, não se tendo obrigado a jurar nas palavras de um
mestre, examinam com os recursos próprios as questões, levados pelos senti-
dos e pela razão. Por isso tu, quem quer que sejas, que tens a mesma condição
e temperamento que eu, e que no teu íntimo tens muitíssimas vezes duvida-
do da natureza das coisas, duvida agora comigo: exercitemos juntos o nosso
engenho. Que os meus juízos sejam livres, mas não desarrazoados. O mesmo
concedo e peço para ti (p. 64)

Sanches coloca-se precisamente no mesmo patamar em que Pessoa se fixou na-


quela que terá sido — depois de exercícios precoces que já o prenunciavam,
como as teses divulgadas nos textos publicados em A Águia, em 1912, com o
célebre anúncio da aparição próxima de um supra-Camões, ou a tentativa de

133
dimensionar polemicamente os heterónimos, e Alberto Caeiro em primeiro lu-
gar, como seres com realidade extraliterária, nos tempos imediatamente antes e
durante o Orpheu (cf. Sousa, 2011) — a primeira autodescrição de si enquanto
criador excecional, distinto de todos os outros e com um projeto a cumprir que
deriva tanto de uma «digestão» do alheio como do trabalho sobre os seus
próprios materiais, a que a teorização do Sensacionismo, que escapa aos limites
definidos para este trabalho, não será alheia. Referimo-nos à também muito co-
mentada carta enviada em 19 de janeiro de 1915 ao poeta açoriano ligado à
aventura órfica, Armando Côrtes-Rodrigues, que situa de um modo mais consis-
tente e trabalhado o problema de que já começara a dar conta desde pelo menos
1 de fevereiro de 1913, numa missiva dirigida a Mário Beirão em que a «crise de
abundância» (Pessoa, 1999: 79-81) que lhe preenchia o espírito, ainda sem uma
contextualização adequadamente trabalhável, começava a coincidir com a sua
identidade pessoal e, sobretudo, autoral.

A 19 de janeiro, Pessoa começa por descrever com algum pormenor a «crise de


incompatibilidade com os outros» que sucede a uma outra que remetia para a re-
lação consigo próprio e que se diz ultrapassada em função de uma «gradualmen-
te adquirida, auto-disciplina» (p. 139) e que é equivalente, parece-nos, ao gradual
domínio de si que permite a Sanches superar as influências perniciosas dos
saberes consolidados que não correspondiam à sua íntima angústia questiona-
dora e que, no caso da argumentação pessoana, se identifica com um sentido
mais profundo a dar à sua obra, a «atitude […] para com a sua própria noção-do-
-dever» de quem «olha religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do
Mundo» (p. 141). Segue-se um dos habituais parágrafos de transição em que
Pessoa sublinha a vertente material do documento que escreve — a carta que
afirma ter pensado rasgar — e simula criticar o conteúdo das suas teses, ou pelo
menos o modo como as transmite ao interlocutor, para dimensionar o anúncio
subsequente da etapa final dessa evolução: um «regresso a si» que o converte em
fundamento essencial de todas as suas interrogações, depois dos «anos (em que)
andei viajando a colher maneiras-de-sentir» (p. 142), que, embora aqui sejam ma-
térias-primas úteis e não, como ocorre no caso do percurso do autor do QNS,
considerações encaradas com distância, sugere obrigatoriamente que é no es-
paço íntimo da interioridade que se encontram os fundamentos de um projeto
autónomo e superador, próprio de alguém que «se adiantou de mais aos compa-
nheiros de viagem — desta viagem que os outros fazem para se distrair e acho grave,
tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir no que diremos ao
Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos…» (p. 143).

134
O destinatário ao qual Sanches se dirige, mesmo quando mostra alguma aber-
tura para a possível conciliação de pontos de vista com alguns raros eleitos que
escaparam à limitação da sua própria liberdade pelo peso incómodo da tradi-
ção acéfala, não nos parece ser muito mais do que um «Côrtes-Rodrigues» que,
embora capaz de receber tais manifestações de megalomania — é o próprio
Pessoa que, no tom ironicamente hiperconsciente que as suas cartas exibem
como poucos outros textos, salienta que «é o único dos meus amigos que tem, a
par daquela apreciação das minhas qualidades que lhe permitirá não julgar esta
carta um documento de megalómano, a profunda religiosidade, e a convicção
do doloroso enigma da Vida, para simpatizar comigo em tudo isto» (p. 143) —
nunca será, precisamente, mais que um «apreciador» e um «simpatizante», pala-
vras que demarcam uma fronteira, ainda que cúmplice, entre ambos. O leitor
anónimo com o qual estaria disposto a dialogar é também ele um companheiro
de «condição» e de «temperamento», não necessariamente de «engenho»79.

Numa passagem do QNS, que parece ocupar-se também desta superação das
opiniões alheias pelo recolhimento interior, a inquietação parece ser o único
elemento que permanece, incontrolável: «e muitas vezes eu atirei com ira os livros
para longe de mim, e fugi da biblioteca; mas na praça ou no campo penso sempre
em alguma coisa, e nunca estou menos só do que quando estou só, nunca menos
ocioso do que quando estou ocioso: tenho comigo um inimigo a que não posso fu-
gir» (p. 93). É em função dessa desestabilizadora «dor de pensar», da qual Pessoa se
ocupará quase obsessivamente, que a busca do conhecimento se assume como um
percurso dinâmico, que está em permanente movimento e que ocupa todos os mo-
mentos da existência individual. Estrutura fundamental do «desassossego», que,
como expressivamente defende José Gil, surge «quando se julga chegar a um ter-
mo» e «ele faz-nos descobrir um outro, mais longe, e tão pensável, e portanto, tão
injustificável como o primeiro», situação que converte o desassossego numa dila-
ceração entre «vectores contrários que impedem o primeiro de se fixar. Assim, pa-
radoxalmente, o pensamento exacerba o próprio desassossego» (Gil, 1990: 189).

Sanches poderá descrever essa experiência através do contraste que estabelece en-
tre o contexto de persistência individual num caminho que conduz a sucessivos
recomeços e que se sintetiza exemplarmente na tensão entre o «desespero» e a
«persistência» — «Iniciando aí as minhas reflexões, quanto mais penso, mais duvi-
do: nada posso compreender bem. Desespero. No entanto, persisto» (p. 63) —

79 A tradução inglesa é ainda mais explícita no que respeita à identificação do destinatário de Sanches com um potencial
leitor da obra, ao mesmo tempo que parece ajudar a centrar a «dúvida» que eventualmente partilhem, primeiro e acima
de tudo, em si e na sua obra, convertida em plataforma na qual as «dúvidas privadas» podem ser partilhadas e desen-
volvidas através da leitura (o itálico não consta da tradução de Basílio de Vasconcelos): «You, reader, whoever you may
be, who share my situation and dsposition, who have very often entertained private doubts concerning private doubts
concerning the nature of things — share, now, my doubts too» (SANCHES, 1988: 169).

135
e a cristalização a que chegam os seguidores dos sistemas alheios, «fantasias» pes-
soais que cada um foi erguendo e que, alimentando-se uns dos outros, se reprodu-
ziram até produzirem «um labirinto de palavras sem fundamento de verdade» que,
de tão estagnado, não oferece «a compreensão das coisas naturais» mas sim «a tex-
tura de novas coisas e ficções», entre as quais se encontram, indiferenciados como
exemplos, «os átomos de Demócrito, as ideias de Platão, os números de Pitágoras,
os universais de Aristóteles, o intelecto activo e as inteligências» (pp. 63-64).

Se entendermos o «desassossego» como condição central da própria investiga-


ção, e ao mesmo tempo pensarmos que o percurso que lhe subjaz é o próprio ter-
reno a partir do qual germinam as novas fontes de inquietação que implicam
um indeterminado horizonte de questionamento e de reflexão, verificaremos as
profundas ligações que se podem estabelecer entre as suas implicações e a zéte-
sis sanchesiana, conforme definida por Rui Bertrand Romão. Logo no começo
das «Hipotiposes Pirrónicas», de Sexto Empírico, que conheceram importante
fortuna editorial a partir da segunda metade do séc. XVI80, a zétesis é entendida
como princípio subjacente a uma das diferentes atitudes face à investigação:

O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou


bem encontra aquilo que busca, ou bem que nega que seja encontrável e con-
fessa ser isso inapreensível, ou ainda, persiste em sua busca. O mesmo ocorre
com as investigações filosóficas, e é provavelmente por isso que alguns afir-
maram ter descoberto a verdade, outros que a verdade não pode ser apreen-
dida, enquanto outros continuam buscando. Aqueles que afirmam ter desco-
berto a verdade são os dogmáticos, assim são chamados especialmente
Aristóteles, por exemplo, Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômano,
Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e os cé-
ticos continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três ti-
pos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética.81

80 Referimo-nos às primeiras edições das obras de Sexto Empírico do grego para o latim, a das Hipotiposes Pirrónicas, de
Henri Estienne (1562), e a dos restantes textos do autor, da responsabilidade de Gentian Hervet (1569). Esta recuperação
do essencial dos textos teria ecos profundos nas obras de escritores e filósofos decisivos no que respeita à definição
do pensamento moderno, como Montaigne, Sanches, Charron, Descartes, Pascal, David Hume, entre outros. Na mais
recente edição da sua History of Scepticism, Richard Popkin dá outros contornos à receção moderna dos textos de
Sexto, atualizando as suas próprias considerações a partir das investigações de Luciano Floridi, que conduziram,
entre outros, à descoberta de traduções anteriores: «The earliest extant manuscripts are three Latin translations of
the Hypotyposes located in Venice, Paris, and Madrid. Floridi has analyzed them and shown that they are basically
the same translation and that they were done in the 1340s by Niccoló da Reggio (fl. 1308-45). Then there is a late Latin
translation of parts of Adversus Mathematicos, probably by Johannes Lauretius. A different Latin translation about
1549 of the Hypotyposes by the great Spanish humanist, Juan Páez de Castro, is in private hands in New York» (POPKIN,
2003: 18).

81 EMPÍRICO, Sexto, «Hipotiposes Pirrônicas. Livro I», trad. Danilo Marcondes, O Que Nos Faz Pensar, n.º 12, setembro
1997, p. 115 (disponível em http://www.oquenosfazpensar.com/adm/uploads/artigo/traducao_hipotiposes_pirronicas/
n12traducao.pdf; consultado em 23 de fevereiro de 2018).

136
No capítulo III, Sexto Empírico concretizará a exposição relacionando a desig-
nação habitual para a filosofia cética — «zetética» — com as suas duas ativida-
des essenciais, «investigar» e «indagar»82.

Francisco Sanches, certamente, discordaria tanto da perspetiva dogmática —


que poderemos reconhecer como típica do conhecimento que marcou a sua for-
mação e que, insatisfatório, conduziu a novos horizontes pessoais de investiga-
ção — como da atitude acomodada, contrária à sua «persistência», que define os
«académicos», potencialmente identificáveis com o ponto de vista de Pessoa a
respeito de um falso entendimento do «agnosticismo»83. Romão observa, justa-
mente que a sua atitude é a de quem «nunca desfalece, como, de resto, é caracte-
rístico de quem se acha animado pela prossecução de uma indeterminada e in-
terminável zétesis».

Assim, e tendo em conta que o refrão «que nada se sabe» se mantém ao longo de
toda a obra e, nomeadamente no final através da sua imagem de marca, o uso do
pronome interrogativo «Quid?», que é potencialmente dirigido à totalidade do
que fora escrito antes, parece-nos também evidente que Sanches encarava o ce-
ticismo, acima de tudo, como «condição de exame livre das coisas» indispensá-
vel à demonstração da sua tese84. O pensamento sanchesiano é típico de um in-
vestigador que compreende que o que num certo momento é tido como dado
adquirido não passa de uma suspensão que constitui certos resultados como
respostas definitivas, que cabe ao espírito livre contestar para que desse modo
se consiga um aprofundamento das condições em que se processa a própria bus-
ca e se produzam novas criações baseadas nos vestígios do que já existe.

82 Ibidem: 116.

83 Cf., por exemplo, um dos textos que Pina Coelho incluiu em Textos Filosóficos, datando-o provavelmente de 1914, no
qual o poeta considera que «o único agnosticismo verdadeiro é a ignorância»: «para nos radicarmos no agnosticismo
énos preciso um raciocínio para nos persuadir que a razão tem certos limites. — Ora, quem observa, pode parar; quem
raciocina não pode parar. Portanto, quando pelo raciocínio havemos provado a limitação ou a nãolimitação destas ou
daquelas faculdades, não podemos dizer: “paremos aqui” mas devemos seguir no raciocínio e tirar dessa limitação —
na limitação, as consequências deduzíveis. Assim fazem todos os “agnósticos” consciente ou inconscientemente» (PES-
SOA, 1993: 128). Sanches utiliza argumentos muito semelhantes em pelo menos dois momentos. Na primeira ocasião,
trata-se de rebater os que procuram limitar o dinamismo da sua investigação: «Dir-me-ás que deve forçosamente haver
um ponto em que terminem as nossas investigações. Isso não resolve a dificuldade, nem satisfaz o espírito. És obrigado
a manifestar a ignorância, e com isso me regozijo eu: também eu a confesso. Continuemos» (p. 68). Veja-se como nesta
passagem Sanches opera dois dos recorrentes exercícios de ambiguidade em que a sua escrita é bastante fértil, dando
um duplo sentido à «ignorância», encarada tanto como limitação do oponente como suporte fundamental da sua
própria teoria de que «nada se sabe», e ao verbo «continuar», que remete tanto para o próprio texto como para o movi-
mento investigativo que os oponentes visavam deixar em suspenso. Mais à frente, volta a utilizar a mesma estratégia
ligando-a diretamente à incapacidade de definir o conhecimento, que é, portanto, encarado como único limite que
poderia colocar um termo ao questionamento: «Dizes que nas nossas investigações devemos parar em algum ponto.
Efectivamente assim sucede, porque não podemos proceder doutra maneira. Mas não sei o que seja conhecimento, e
por isso define-mo» (p. 85).

84 Comentando o texto dedicado ao leitor e o problema da «indigestão» a que já nos referimos, Rui Betrand Romão procura
demonstrar como a zétesis é central na descrição dos tipos de saber que aí se desenvolvem: «A incontrolável avidez de
saber, entregue a si própria, é a face patológica da tendência cuja forma saudável, por assim dizer, é a zétesis, em que se
pode reconverter quando aquele que a experimenta de forma dilacerante, mergulha em si mesmo, do que resulta poder
vir a se reencontrar, encontrando-se transfigurado. A crise céptica de Sanches (da qual ele, insistimos, não mais sairia)
é também a sua força, o alcançar de uma postura de reequilíbrio, que o transforma em autor e que lhe permite conviver
de modo são consigo mesmo. A dúvida é na sua filosofia inseparável da sua abertura para o mundo, do seu exame das
coisas. Duvidar para ele é o “verdadeiro” modo de saber» (p. 80).

137
Ora, e independentemente de convocarmos ou não as considerações a respeito
da zétesis como suporte da tese sanchesiana — parece-nos evidente que o modo
como coloca o seu próprio texto em diálogo com o âmbito da ficcionalidade e da
impostura alheia à ciência que ela pressupõe, depois das muitas considerações
que teceu a respeito da suspeição em que poderia cair o seu próprio trabalho e
imediatamente antes de deixar ao cuidado do leitor a capacidade de julgar os
resultados da sua obra, merece ser lida mais atentamente. Sobretudo se recupe-
rarmos uma sequência fundamental do texto, que começa com a sua própria
definição de «ciência» — «A CIÊNCIA É O CONHECIMENTO PERFEITO DO
ASSUNTO», da qual conclui que, em função disso, não podemos definir
o conhecimento adequadamente e portanto determinar um limite para a sus-
pensão das investigações (p. 85). Depois de todas estas afirmações, nas quais
integra a suspeição quanto aos seus resultados individuais no âmbito da plura-
lidade dos exercícios intelectuais que resultam do inultrapassável desconheci-
mento, surge o seguinte parágrafo, quanto a nós decisivo:

Voltemos ao assunto. Nada sabemos; mas, para prosseguirmos, supõe a defi-


nição que eu dei da palavra ciência e daqui infiramos que nada se sabe, pois
supor não é saber mas fingir; e, por isso, de suposições nascerão ficções, mas
não ciência. Olha para onde o discurso nos levou já: toda a ciência é uma fic-
ção. É evidente: a ciência obtém-se por demonstração; esta supõe a definição;
e as definições não se podem provar, mas devem acreditar-se; logo a demons-
tração por suposições produzirá uma ciência suposta, e não uma ciência fir-
me e certa. E depois em toda a ciência tu tens de supor princípios, sobre os
quais não convém a essa ciência discutir, e por isso o que deles se seguir será
suposto, e não sabido. Há nada mais triste? Para sabermos, temos de ignorar.
Efectivamente o que é supor senão admitir o que não sabemos? (p. 86)

A tese central da obra, o «assunto» a partir do qual se edifica a sua «ciência» e


que aqui retoma — pois o «assunto» é também o próprio texto em desenvolvi-
mento, o argumento que estrutura a totalidade da obra e que sintetiza insisten-
temente através do recurso ao «Quid?», é também ele colocado no domínio da
«suposição».

Se lermos atentamente o que Sanches nos diz neste momento, «supor» é equiva-
lente a «fingir», que por sua vez, como qualquer leitor pessoano recordará e
Sanches explicita, é etimologicamente próximo de «ficcionalizar». Toda a ciên-
cia, incluindo a sua — pois «ciência» reside no conhecimento de um «assunto» e
o «assunto» de Sanches é uma «suposição» — «é uma ficção». Aqui chegados, te-
remos de perguntar-nos se esse «que nada se sabe» que se vai desdobrando ao
longo do texto não será, essencialmente, a suprema forma de produzir uma

138
ficção privada, destinada a desmontar todas as outras depois de se colocar a si
própria em causa, na convicção de que nunca se ultrapassa o plano da suposição
sem que, na própria verbalização dos resultados, sejam produzidas «definições»
que, conforme o próprio acentua, só existem enquanto forem «crenças» em fun-
ção das quais «admitimos que não sabemos», e isto, como nos parece ser deixa-
do implícito pelo próprio autor, no duplo sentido do verbo: assumindo como ver-
dades coisas que desconhecemos se o são ou não, admitimos que não
conseguimos obter a verdade a não ser justamente nessa constante definição de
novas ficções passíveis de serem abraçadas até que venham a ser sujeitas a no-
vas dúvidas quanto aos seus conteúdos.

Estaríamos, de algum modo, em presença de um efeito semelhante àquele que


Gustavo Rubim cunhou a partir da noção de «híper-autor», assinalando um me-
canismo estrutural da teorização pessoana a respeito da sua obra e da noção de
arte e de literatura em geral: o carácter subtilmente totalitário inerente a todas
as teses centrais do Sensacionismo, desde logo a famosa regra que impõe «sentir
tudo de todas as maneiras», e o modo como em enunciados como «Abolir o dog-
ma da personalidade: cada um de nós deve ser muitos» estamos perante uma
transição imediata do plano da recusa de quaisquer dogmas para a imposição de
um novo dogma, coincidente com essa recusa (cf. Rubim, 2017). Segundo este ra-
ciocínio, e tal como ocorre no procedimento de Sanches, teríamos de somar ao
«híper-autor» uma espécie de «híper-dogma» que procura universalizar uma
teoria artística (ou filosófica) que começa por se fundamentar no ataque a todas
as outras (abolição de dogmas e abolição de discursos ficcionais com pretensões
de coincidência com o saber definitivo) para depois se converter numa radical
proclamação dogmática: o «dever ser ou fazer as coisas de determinada manei-
ra» e a impossibilidade de argumentar contra o «que nada se sabe» sem se cair
na armadilha que desde o princípio da obra se descreve (recorremos, por nos pa-
recer mais expressiva no que respeita a este assunto, à tradução de Rui Bertrand
Romão): «Se eu souber provar isto, concluo com ganho nada se saber; se não o
souber, ainda melhor: é o que eu sustentava» (Romão, 2003: 18; cf., nas pp. 17-20,
a reflexão do ensaísta a respeito da ambiguidade que esta frase impõe e que faz
do duplo sentido e da autocontradição processos argumentativos).

Não foi, portanto, necessário a Sanches abrir mão das «subtilezas e ficções engenho-
sas» que diz possuir como todos os outros, «até mais que eles, se o meu espírito se sa-
tisfizesse com elas» (p. 147), para produzir aquilo que é também uma ficção — a
«ciência» definida como impossibilidade de «ciência verdadeira», que abre caminho
a um diálogo sistemático com tudo aquilo que foi e venha a ser pensado como
resposta.

139
E, no entanto, apesar de se saber tão falível como os demais, Sanches não esconde a
convicção — poderíamos talvez dizer «vaidade» — na superioridade das suas teses.
Por exemplo quando, no ataque que dirige aos «enganos silogísticos» da tradição es-
colástica, comparando a sua perniciosa influência à ameaça representada pelos en-
cantos de Circe, se figura primeiro como herdeiro da prudente postura do herói da
Odisseia homérica — «A mim ter-me-ia acontecido quase o mesmo se, auxiliado pe-
las palavras de Ulisses, não evitasse as circeias figuras silogísticas, feiticeiras donas
dessa ponte» — e em seguida como uma espécie de Mercúrio incapaz de ter junto
dos demais o mesmo efeito que o deus mensageiro teve relativamente a Eneias, reti-
rando-os à escravatura com que se entregam a manter de pé o edifício instável, ul-
trapassado e pouco mais que ruinoso em cujos alicerces se estabeleceu a «doutrina
silogística» (pp. 136-137). Ambas as posturas deixam perceber uma elevação pessoal,
mesmo que limitada ou ineficaz, e que existe desde sempre. É o que indicia, parece-
-nos, o «quase» que o distingue dos outros e que pressupõe que, mesmo sem subter-
fúgios libertadores, os efeitos das sereias nunca seriam tão amplos em si como o são
nos outros aos quais, depois da elevação definitiva, poderia servir de guia.

Numa ampla descrição das circunstâncias relacionadas com a obtenção do conheci-


mento, Fernando Gil acentua uma componente central desse procedimento: a
«invenção», enquanto produção de novidades, pode dar-se a partir de «repertó-
rios de representações, de operadores, de soluções adquiridas» e da sua contí-
nua recombinação, que encontra soluções inovadoras a partir do que existe des-
de sempre, ao mesmo tempo que atua de acordo com um espírito seletivo — «as
recombinações fazem-se por decomposição dos dados preexistentes e pela sua
agregação em constelações novas» — que é simultaneamente dogmático, pois
«consiste em reduzir drasticamente o espaço de possibilidades de análise, defi-
nindo vias preferenciais na solução de problemas». As matérias-primas desse
processo criador, que Gil define como «operadores», são sempre previamente
«normalizados», «coisas tão variadas como conceitos e hipóteses, métodos e téc-
nicas de diversa espécie, um utensílio ou uma fábrica, as peças de um jogo de
xadrez». Cabe ao autor individual, enquanto técnico de «operadores», fazer indi-
vidualmente «a escolha das estratégias e das heurísticas» (Gil, 2000: 191-194).

É precisamente isto o que afirma Sanches no texto dedicado ao leitor, como jus-
tificação para a autonomia de criar que lhe assiste: «De novo nada há; sendo as-
sim, porque escreveu Aristóteles? Ou porque nos havemos de calar nós? Acaso
limitou ele todo o poder da Natureza, e tudo abarcou?» (p. 64). Ao contrário do
que acontece com os seus discípulos acéfalos, as teses aristotélicas tornaram-se,
na obra do português, mais uma série de «operadores» que, analisados porme-
norizada e criticamente e dispostos em diálogo com outras ficções, lhe propor-
cionam o tão decisivo «regresso a si» — a fonte para essa ficção de si enquanto

140
um par de Sócrates, que se julga capaz de ir mais longe do que o grande modelo.
É desta natureza a conclusão pessoana de que Sanches corresponde a um estado
subsequente relativamente à «ironia socrática», fornecida pelo próprio autor do
QNS, que é, de resto, plenamente coerente na medida em que integra o mestre
de Platão no âmbito da sua ambiciosa busca:

Isto apenas foi o que eu, acima de tudo, procurei sempre, como agora faço,
ver se encontrava em alguém para dizer com verdade que ele tinha sabido al-
guma coisa; mas em parte alguma o encontrei, a não ser naquele sábio e justo
varão, Sócrates (embora também os chamados pirrónicos, académicos e cép-
ticos, juntamente com Favorino, afirmassem o mesmo), o qual «uma só coisa
sabia, e era — que não sabia nada». Só por essa afirmação o julgo eu doutíssi-
mo, embora ela não satisfaça ainda por completo o meu espírito, porque mes-
mo isso, como as outras coisas, ele ignorava; mas, para afirmar mais forte-
mente que nada sabia, disse que só aquilo sabia, e por isso mesmo que não
sabia nada, nada quis deixar-nos escrito (pp. 74-75)

Esta eletividade é, para Sanches, uma forma de superiorizar a sua marginalida-


de, na medida em que, consciente de que os que atuam «como os papagaios»,
apropriando ideias alheias sem terem a menor capacidade para as compreender,
são muitos, enquanto os «que perscrutem a natureza em si» são, se não inexis-
tentes, «pelo menos […] muito poucos, e pelos outros e pelo vulgo são considera-
dos ignorantes, o que não é de estranhar, pois cada um julga os outros segundo a
sua natureza» (p. 132). Se recuperarmos os motivos do reconhecimento de
Sanches relativamente a Sócrates, perceberemos que neste caso a convicção de
nada saber é — como várias vezes, de um modo quase obsessivo ainda que atra-
vés de argumentos e de formas distintas, se defende ao longo de todo o QNS —
correspondente a esse acréscimo de compreensão que caracteriza os verdadei-
ros doutos e os liberta de estarem demasiado convictos da certeza de certas
teorias, retirando-os ao contexto de fanática turba em que, com raríssimas
exceções, se perdem os jovens investigadores, sujeitos a um jogo vicioso de
persuasão.

A crítica de Sanches é relacionada, sobretudo, com o excesso em que se pode cair


partindo de um uso descontrolado da «invenção» e com o dogmatismo com que os
diferentes sistemas procuram impor-se a outros, não compreendendo que a condi-
ção humana implica um diálogo entre diferentes instâncias e, de algum modo,
a uma síntese dos resultados obtidos por cada uma delas.

Mais adiante, esse exercício continuado de expansão ficcional é designado como


«esfera de acção» delimitada por «artistas» e como «império das ciências»,

141
colocada ao mesmo nível da distribuição dos campos pelo povo e da lúdica ima-
ginação infantil que anima e divide os territórios que respeitam a cada um.

É deste modo que toda a humanidade parece definir-se por um comum exercício
da ficcionalidade, mais ou menos elaborada, que estabelece as suas próprias leis,
mas de que a maioria não está ciente.

Percebe-se também que Sanches aproveita estas considerações para estabelecer a


distinção entre os homens, na medida em que o conhecimento é sobretudo um
procedimento individual, dependente do modo como se atua a partir do que os
sentidos oferecem. Se o «conhecimento» equivale a «apreensão do assunto» e
«apreensão», por seu lado, é descrita como «intelecção» ou «intuição», este contras-
te é ainda mais percetível se atentarmos a que a «apreensão» não é mera «recep-
ção» do que se processa no exterior, na medida em que os animais também são do-
tados dessa faculdade e nem por isso são capazes de conhecer, tal como ocorre
com os próprios órgãos percetivos e com as almas menos dotadas (p. 111).

O saber humano, apetrechado com mais complexas capacidades intelectivas, en-


contra-se integrado numa hierarquia que tem como cume da pirâmide o «conheci-
mento perfeito» que lhe é vedado e que, numa espécie de interseção de planos, per-
tenceria à esfera divina e à sua capacidade de «ver as coisas por todos os lados, por
dentro e por fora».

O itinerário tem, portanto, como escalas o conhecimento divino, totalmente


abrangente, e os diferentes graus do «conhecimento imperfeito», «maior ou me-
nor, mais claro ou mais obscuro, […] segundo a capacidade intelectual dos ho-
mens», proveniente de duas vias distintas, que são justamente as que o conheci-
mento exclusivo de Deus apreende perfeitamente: a que se obtém pelos sentidos,
direcionado do indivíduo para o que lhe é alheio, e a que trabalha o que está
concentrado no seu próprio espírito.

Sanches defende que tudo aquilo que se passa na mente humana é fruto de um des-
tes dois domínios — o dos sentidos, que oferecem imagens de coisas que podem de-
pois ser utilizadas como matéria-prima que dá a ilusão de conhecer as coisas em si e
não apenas as imagens que delas nos são sensitivamente fornecidas, e o da própria
inteleção, que pode partir desses recursos extraídos ao exterior para os submeter aos
procedimentos que lhe são próprios, reduzindo os acidentes particulares a um con-
ceito comum que lhes serve de etiqueta, ou pode mesmo produzir autonomamente
coisas que não existem, «de que ela é mãe e que estão dentro de nós, não se apresen-
tam, não se mostram à mente por meio doutras imagens, mas por si mesmas» (p. 112).

142
Parece-nos evidente que é precisamente tendo por base a descrição que faz des-
te exclusivo exercício produtivo da mente humana — pois é nele que reside a re�-
ferida distância que vai da mera receção animal para a apreensão, que implica
desde logo um trabalho inteligente sobre materiais previamente existentes —
que Sanches compreende o essencial da sua leitura das diferentes formas que se
dizem próprias da «ciência» como produtos de ficcionalidade85. Tanto nas ima-
gens arquetípicas que modela a partir do que parece realmente existir no exte-
rior, como na mais complexa geração espontânea de universos inteiramente
abstratos, que a partir da acumulação de palavras conseguirá desenvolver com
pelo menos alguma espessura, parece não estar ao alcance do ser humano ou�
-
tras propriedades que não as de converter tudo em deformações habitando,
antes de mais, a intimidade do seu próprio pensamento.

Estas considerações permitem uma série de definições conceptuais que, inde-


pendentemente do sentido que Sanches lhes quisesse dar na ocasião, podem ser
lidas em função de uma teoria desse exercício criativo e das relações que o autor
elabora com aquilo que produz. No âmbito da «comparação entre o conhecimen-
to que se obtém por meio dos sentidos e aquele em que não há intervenção de-
les», conforme sintetiza exemplarmente uma das notas ao texto, Sanches ques-
tiona a certeza relativamente às próprias ideias que lhe ocorrem e a sua
composição escrita — «Estou certo de que penso agora nestas coisas que estou
escrevendo, e de que as quero escrever, e de que desejo que sejam verdadeiras e
que sejam aprovadas por ti, embora esta última parte me não preocupe
demasiado».

Desta aparente convicção relativamente à qualidade e à potencial receção das


ideias que o QNS reúne, parece sobressair dúvidas quanto à própria capacidade
de ter a certeza de que pensa o que supõe estar a pensar — dúvidas que são es-
sencialmente de natureza cognitiva, na medida em que, de tudo isso que surge
continuamente dentro de si, «nada veio que possa observar ou apreender», ou
seja, que tenha uma realidade exterior independente e apreensível, constituin-
do, portanto, abstrações tão ficcionais como os conceitos inexistentes de
Aristóteles, Platão, Demócrito, Cícero, Heródoto e todos os outros adversários
com os quais entra em diálogo polémico, não apenas no QNS mas em boa parte

85 António Azevedo, analisando as ideias de Sanches a respeito do contraste entre «a natureza perpétua de algumas coi-
sas e a perpétua mudança e fim de outras», observa o seguinte: «Como explicar a geração das coisas, como acompanhar
a mudança, como possuir a verdade deste rio ontológico? Estas interrogações epistemológicas continuam presentes
e actuais, sendo o relativismo, a dialéctica e a estetização da gnoseologia (transformação do sujeito epistémico em
sujeito poético) as principais saídas para aquela pergunta. Sanches teve consciência de que face à eterna mudança das
coisas, a dúvida é, à partida, mais coerente do que o dogmatismo» (AZEVEDO, 2006: 50-51). Terá sido, provavelmente,
este o motivo para que Pessoa, contemporâneo de uma série de interrogações científicas que colocaram em discus-
são as noções de espaço e de tempo e a coesão estrutural dos distintos elementos que compõem a nossa perceção da
realidade, se tenha interessado pelas pioneiras interrogações de Francisco Sanches e pelo potencial de «estetização da
gnoseologia» propiciada pelas passagens a respeito da ficcionalidade inerente ao pensamento humano.

143
da sua obra. Essa pulsão dialogante é exemplarmente exibida pela pouco con-
vincente despreocupação para com o leitor e o que este possa vir a pensar, dado
que é ao leitor que se confia a missão de «aprovar» as ideias defendidas, ou seja,
de as converter em algo mais do que abstrações internas — de resto, reproduzin-
do o que ocorreu com as teses dos filósofos que Sanches procurou imolar critica-
mente e que, se lermos como o estamos a fazer o que aqui afirma, parece desejar
substituir, impondo a sua consciência da ficcionalidade à suposição de verdade
que todos pretendem atribuir às suas mistificações engenhosas.

Como Pessoa defenderá em várias ocasiões, que comentaremos com alguma


atenção, a originalidade sanchesiana reside precisamente nesta imediata des-
confiança a respeito da natureza daquilo que produz, que é da mesma ordem
que uma outra dúvida decisiva: a que respeita ao próprio facto de podermos não
saber sequer se sabemos ou não sabemos o que supomos saber ou não saber.
Ainda mais significativo é que Sanches distancie o que parece ser da ordem de
um conhecimento mais coerentemente preciso — a apreensão de coisas exterio-
res que são dadas concretamente ao espírito, por existirem no mundo exterior à
mercê dos diferentes sentidos — de um outro tipo de «certeza», a convicção pes-
soal que é aqui transgressão evidente da sua própria teoria que foca nos sentidos
o conhecimento: «sob o ponto de vista da certeza, o conhecimento que temos
das coisas que externas por meio dos sentidos é vencido por aquele que temos
das coisas que existem em nós, ou são feitas por nós: efectivamente, estou mais
certo de ter apetite e vontade, e de pensar agora nisto e ter há pouco evitado ou
detestado aquilo, do que de ver um templo de Sócrates».

Como ocorre noutras circunstâncias, segue-se a este parágrafo uma espécie de


explicação do que se afirmou, que, mantendo o essencial e aprofundando mes-
mo algumas das suas principais conclusões, procura aligeirar um pouco o tom
argumentativo, por exemplo quando a oposição deixa de ter como suporte o con-
traste entre «o que dentro de mim se manifesta ou se produz» e «um templo de
Sócrates» para remeter para um par mais modesto e impessoal, o «ser branco
este pergaminho em que escrevo» e os «elementos» que o compõem e são formas
distintas dele. No entanto, não deixa de reafirmar que está mais convicto do que
é da sua autoria, e, portanto, lhe pertence e assume um potencial de crença ine-
rente a essa ligação umbilical.

O que poderíamos retirar desta convicção quanto à preferência de Francisco


Sanches no que respeita aos níveis da hierarquia já sintetizada, que segmenta o
conhecimento na distinção entre imagens que resultam da apreensão dos aci-
dentes exteriores pelos sentidos, coisas que são um misto do que se apreende e
do que a partir desse material se elabora e coisas que são exclusivas de uma

144
mente inventiva, ganha ainda maior profundidade quando concretiza que «ex-
ceptuando aquelas coisas que existem em nós e são feitas por nós, o conheci-
mento mais certo de todos é o que nos vem por meio dos sentidos, e o menos cer-
to de todos o que se obtém por palavras» (p. 113).

Assim, e na medida que «o que se obtém por palavras» não estava contemplado,
pois «não é verdadeiro conhecimento, mas palpação, dúvida, opinião, conjectu-
ra», restaria alcançar a supra-humana habilidade de inversão direcional capaz
de garantir uma espécie de «visão interna» que apreendesse as coisas produzidas
com a mesma qualidade com que os sentidos apreendem os dados exteriores. É nessa
impossibilidade, comum a todos os homens, que reside a ideia de que «nada sabemos»
(p. 113).

Concluamos com a aproximação, que nos parece possível, entre algumas ideias impli-
cadas aqui — e que resumimos do seguinte modo: o conhecimento mais próximo do
absoluto divino é aquele que um indivíduo dotado de capacidades intelectivas extre-
mamente elevadas consegue obter a partir do que produz internamente e que, apesar
de não conseguir «ver» ou «trazer aos sentidos» com a mesma nitidez com que o faz a
apreensão sensitiva relativamente aos objetos externos, sejam eles quais forem, consi-
dera muito mais «certas», «verdadeiras» e «existentes» do que as coisas obtidas pelos
sentidos — e outras que dizem respeito à descrição das condições necessárias para o
conhecimento perfeito, desde logo a absoluta perfeição do indivíduo que possui esse
conhecimento, tanto no que respeita ao espírito como no que respeita ao corpo.

O «argumento mais forte», conforme o próprio o classifica, implica que «Todas as coi-
sas perfeitas gostam das que também o são, e todas elas são feitas por seres perfeitos e
meios também perfeitos»; sendo a «criação» e o estatuto do «criador» fundamentais a
uma ideia de «conhecimento perfeitíssimo», derivada do «poder perfeitíssimo, porque
é o único infinito, pois é o próprio de Deus». Os aspetos cruciais para Sanches, típicos
de um pensador que ao longo de todo o texto assume a intrínseca necessidade de con-
centrar as suas observações no indivíduo particular e não na falsidade a que o redu-
zem os universais, é assinalável que a «simpatia» que diz sentir pelas suas ideias, por-
tadoras de «mais certeza» do que tudo quanto existe no exterior, pelo menos de acordo
com o que sugerem os sentidos, seja muito idêntica à que os «seres perfeitos» teriam
necessariamente de sentir pelas suas realizações.

Poderemos, talvez, dizer que a frase «Todas as outras coisas bastante perfeitas são
feitas por seres também suficientemente perfeitos» é uma descrição adequada para
si e para o seu trabalho (pp. 124-125). Afinal, só «coisas bastante perfeitas» seriam
mais válidas do que as coisas exteriores, os sentidos que as captam ou as «palavras»
que designam «opiniões» alheias e que resumem, rigorosamente, todos os que

145
estão além desse universo exclusivo de diálogo entre o eu e o que dele nasce, que
já estava implícito no eloquente momento em que abdica de todos os mestres e
recupera da indigestão por eles provocada mergulhando ampla e absolutamente
no seu interior, que, calcula-se, não tem em si nada que possa conduzir a uma
nova intoxicação alimentar.

Repare-se que, logo em seguida, o filósofo assume explicitamente que o cerne


das suas observações, pelo menos naquela ocasião, passa por provar a obrigato-
riedade de um «ser perfeito» produzir «seres perfeitos». E parece ter consciência
de que o leitor poderia ainda não ter compreendido o alcance do que vai dizendo,
ocultando-o na circularidade obsessiva com que ataca outras teses, argumenta
contra elas e direciona as suas observações no sentido de valorizar o modo como
se vai redescrevendo, ao acentuar a insciência como valor supremo, de acordo
com o conceito cunhado por Pessoa de degrau supremo da ironia, uma «ironia
sanchesiana» que é a sua designação pessoal do mote que percorre todo o QNS.

É para explicitar as suas conclusões que lança a pergunta retórica «Mas afinal, a
que vem tantas coisas?», depois de uma série de ideias que visam demonstrar ser
o homem o mais perfeito dos animais e portanto o mais equivalente a uma cria-
ção de um ser perfeito como Deus — suficientemente perfeito, pelo menos, para,
num patamar mais evoluído das suas faculdades, saber que nada sabe e desse
modo também produzir «obras bastante perfeitas». Não podia ser mais claro
quando, ocultando-o na tradicional oposição entre alma e corpo, descreve os
mais doutos como dotados de «um corpo mais perfeito», restringindo depois o
«modo que se sirva dele» às esferas que estão aqui em causa: «quer para imagi-
nar, quer para entender; e assim, o doutíssimo tem um corpo perfeitíssimo, e
esse é o que realmente sabe» (pp. 127-128). Que nada sabe, pois está suficiente-
mente próximo de ser uma expressão humana das faculdades divinas para perce-
ber as suas limitações e o que o distingue tanto da perfeição como dos outros
mais imperfeitos, como nos parece que se pode depreender.

146
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SOUSA, Rui, Os Bastidores de Orpheu, Lisboa, CLEPUL, 2011.

SOUSA, Rui, «A Ironia Sanchesiana e o Homem Superior Pessoano», Congresso


Internacional Fernando Pessoa 2017, Lisboa, Casa Fernando Pessoa, 2017, pp.
372-393.

TAMEN, Miguel, «Caves e Andares Nobres», Artigos Portugueses, Lisboa,


Documenta, 2015, pp. 113-118.

148
Edição digital e estudo
da marginália
de Fernando Pessoa
Teresa Filipe86

86 Bolseira FCT. Doutoranda em Crítica Textual, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

149
A edição online da marginália da biblioteca particular de Fernando Pessoa
pretende mostrar o modo como a produção literária do maior poeta-pensador
do séc. XX português se construiu em diálogo permanente com outros autores.
Neste sentido, pretende contribuir para a análise genética da obra pessoana, to-
mando como ponto de partida o uso documentado dos livros que eram proprie-
dade sua ou a que teve acesso. O interesse múltiplo de que se reveste a margi-
nália pessoana prende-se com a convicção de que o trabalho da sua recolha,
organização, transcrição, edição e estudo, em confronto com o espólio número
3 da Biblioteca Nacional de Portugal (que alberga mais de 27 000 autógrafos
pessoanos), virá a constituir-se como elemento de referência essencial para a
compreensão renovada do universo do autor.

Para a execução deste trabalho contamos com uma ferramenta preciosa: desde
2010, a biblioteca passou a estar disponível online, no site da Casa Fernando
Pessoa, facilitando extraordinariamente o acesso aos livros, bem como a parti-
lha de informação com outros investigadores, promovendo um trabalho de in-
vestigação em rede e à distância. Por exemplo, para o trabalho de decifração e
fixação dos textos transcritos, em que é importante o confronto entre leituras,
o facto de a biblioteca estar online e disponível para download (salvo nos casos
onde as obras ainda se encontrem ao abrigo dos direitos de autor) torna muito
mais fácil e rápida a partilha dessas imagens com outros investigadores.

A digitalização da biblioteca foi realizada no âmbito de uma colaboração pro-


tocolada entre a Casa Fernando Pessoa e o Centro de Linguística da
Universidade de Lisboa, e foi coordenada por Jerónimo Pizarro, Patricio
Ferrari e Antonio Cardiello. Em 2016, a Casa Fernando Pessoa acolheu a pri-
meira edição do workshop «Espólios de Pessoa», coordenado por Antonio
Cardiello e Bruno Béu. Foi nesta ocasião que, pela primeira vez, tive contacto
directo com os livros que pertenceram a Pessoa. Nesse encontro tive a oportu-
nidade de conhecer a biblioteca e as anotações nela contidas, assim como o
facto de não estar ainda efectuada a transcrição sistemática e exaustiva dessas
notas, e assim se deu início ao processo de construção do presente projecto.

Gostaria de agradecer à actual Directora da Casa Fernando Pessoa, Dr.ª Clara


Riso, pelo apoio, designadamente na disponibilização de recursos, na consulta
das obras de acesso restrito, bem como a possibilidade da consulta do livro fí-
sico, restrita naturalmente a situações de decifração específicas, para salva-
guarda das melhores condições dos exemplares, mas que permite desfazer al-
gumas dúvidas que a melhor imagem digitalizada por vezes não consegue.
A página do livro impresso continua a ser a fonte mais segura para nos infor-
mar, por exemplo, acerca do instrumento de escrita usado em determinada

150
anotação, o que é essencial para se estabelecer, entre outros, se numa determi-
nada obra houve uma ou mais leituras.

«Às futuras gerações de filólogos, à procura das fontes que inspiraram o maior
poeta português desde Camões, recomendamos uma pesquisa na biblioteca de
Fernando Pessoa» (Lind, 1962: 7). Foi com esta frase que Georg Rudolf Lind ini-
ciou o histórico artigo de 1962 no Diário de Notícias, mostrando como o estudo
da biblioteca fernandina poderia contribuir para o «retrato fiel da personalidade
de Pessoa-leitor, reflectindo a amplitude dos seus interesses» (Lind, 1962: 8).

Yvette Centeno, num artigo de 1978 intitulado «O Espólio e a Biblioteca de


Fernando Pessoa: Uma Solução Para Alguns Enigmas» (Centeno, 1978) ilustra
como o cruzamento do estudo da biblioteca com o espólio do autor pode contri-
buir decisivamente para o esclarecimento de alguns enigmas, por exemplo, para
confirmar ou não, se Fernando Pessoa conhecia a obra de Walt Whitman anterior-
mente à criação de Alberto Caeiro em 8 de Março de 1914. Na biblioteca particular
existe um exemplar do livro de Perry Bliss, intitulado Walt Whitman: His Life and
Work, de 1906, sublinhado e anotado pelo poeta. (A versão integral destes artigos
pode ser consultada no site da biblioteca particular de Fernando Pessoa, secção
«Estudos».)

O estudo das bibliotecas dos autores é hoje uma ferramenta decisiva para todos
aqueles que procuram as fontes dos processos criativos ao mesmo tempo que con-
tribui para a desmistificação da ideia de autor como um ser mais ou menos isolado
do mundo, inspirado por qualquer coisa que não se sabe muito bem o que é ou de
onde vem.

Aos trabalhos pioneiros mencionados, têm-se somado gerações de investigadores


que com os seus estudos contribuem para um melhor conhecimento da biblioteca
pessoana, como uma consulta pelo site da biblioteca digital, na secção
«Bibliografia», pode comprovar. Se estes estudos (livros, artigos, contribuições
mais breves) comprovam a relevância do estudo da biblioteca e da marginália para
uma compreensão renovada do universo do autor, por outro lado, respondem ain-
da, muitas vezes, aos interesses específicos de cada investigador e da linha de in-
vestigação em que se enquadram, de que são exemplos, entre outros, Escritos sobre
Génio e Loucura, de Jerónimo Pizarro (2006), A Marginália de Fernando Pessoa, de
Maria do Céu Estibeira (2008), ou mais recentemente, Shakespeare, Fernando
Pessoa, e a Invenção dos Heterónimos, de Mariana Gray de Castro (2017).

Assim, o projecto de edição e estudo da marginália vem propor a transcrição siste-


mática das anotações existentes nos livros, assim como a recolha de transcrições

151
já efectuadas por outros investigadores permitindo-se a comparação entre transcri-
ções como forma de contribuir para a fixação das mesmas, esperando vir a consti-
tuir-se como ferramenta essencial para futuras investigações.

A fase inicial do trabalho consiste na recolha de dados, ou seja, transcrição e registo


de anotações inscritas nos livros que pertencem à Biblioteca particular de Fernando
Pessoa (BpFP). A estas anotações designamos por marginália, um termo inicialmen-
te usado por Samuel Taylor Coleridge para designar as suas anotações à margem dos
livros87.

Usamos o conceito de marginália de forma inclusiva, ou seja, e citando Heather


Jackson no prefácio à obra Romantic Readers, «todas as adições efectuadas a um tex-
to impresso, manuscritas pelos seus leitores, quer estejam ou não especificamente à
margem»88.

A biblioteca digital particular de Fernando Pessoa permite não só a navegação pelas


páginas que Pessoa leu como também aceder à forma como leu. Isto é possível atra-
vés do estudo das numerosas notas de leitura aí registadas. A Biblioteca particular
de Pessoa é hoje constituída por cerca de 1300 títulos, mais de metade em língua in-
glesa, mas também espanhol, francês, galego, grego, italiano, latim e português. A
grande maioria das notas está escrita na língua original da obra, mas, por vezes, po-
dem coexistir o inglês, francês e o português, também de acordo com o local do livro
onde as notas se encontram. Por exemplo, se a anotação se encontra à margem e dia-
loga directamente com o conteúdo do que está a ser lido, em princípio, usa a mesma
língua, mas se surge na parte final do livro pode aparecer numa língua diferente. É o
caso, por exemplo, de Pioneer Humanists, de Robertson, onde encontramos anota-
ções em português na contracapa da obra, e que veremos mais à frente.

Actualmente encontram-se disponibilizados online 1213 títulos (1317 volumes). Cerca


de 270 estão ainda em acesso condicionado pelos direitos de autor, mas podem ser
consultados a partir da biblioteca na Casa Fernando Pessoa.

A colecção terá começado a ser construída gradualmente em 1898, com livros escola-
res como A First Latin Course, em que Pessoa inscreveu a data «V-II-MDCCCXCVIII»
(5 de Fevereiro de 1898), e The Remarkable Adventure of Walter Trelawney, com o
qual Pessoa foi premiado a 20 de Dezembro de 1898.

87 COLERIDGE, Samuel Taylor, Marginalia I, vol. XII (parte I), in The Collected Works of Samuel Taylor Coleridge, 16 vols.,
ed. George Whalley, Princeton, Princeton University Press, 1980, p. cxv, apud Patricio Ferrari, «Fernando Pessoa as a
Writing-reader: Some Justifications for a Complete Digital Edition of his Marginália», Portuguese Studies, 24 (2), 2008,
p. 69 (disponível em http://www.jstor.org/stable/41105307).

88 JACKSON, Heather, Romantic Readers: The Evidence of Marginalia, New Haven/London, Yale University Press, 2005, p.
xv (tradução minha).

152
Alguns dos últimos livros a formarem parte da biblioteca terão provavelmente
sido Histoire de la Franc-Maçonnerie Française, de Albert Lantoine, publicado
em Julho de 1935, e Desaparecido: Poemas, de Carlos Queirós, com uma
dedicatória do seu autor datada de «31-10-1935», cerca de um mês antes da morte
do autor.

As dedicatórias dos autores, além de uma fon-


te de datação, constituem também um ele-
mento revelador da personalidade colaborati-
va de Pessoa. São muitos os testemunhos de
afecto e admiração pelo grande espírito criati-
vo e poético do autor, entre outros, Leonardo
Coimbra, Raul Leal, Adolfo Casais Monteiro,
Mário de Sá-Carneiro, António Ferro ou Pierre
Hourcade. Destacamos a dedicatória de Pierre
Hourcade por, no processo de transcrição, nos
ter sido possível confirmar — quando ainda
restavam dúvidas — tratar-se efectivamente
de Pierre Hourcade e não Rémy (um dos seus
filhos). Na transcrição do site da BpFP, secção
«Dedicatórias», pode ler-se ainda: «Au grand
poète | Fernando Pessoa | cet essai d’interpré-
ta- | tion d’un poète bruyant | Avec mou89 plus
sincère | hommage | Rémy [?] Hourcade». A ca-
ligrafia convida ao equívoco. Mas, se compa-
rarmos a primeira letra do nome próprio, que
pode parecer um «R», com a primeira letra da
palavra «Pessoa», inscrita cinco linhas acima,
verificamos a semelhança. A última letra, que
pode parecer um «y», induzindo a leitura
«Rémy», é apenas o estilo de terminação da
assinatura. Esta hipótese foi posteriormente
confirmada pelo confronto com outras assina-
Dedicatória de Pierre Hourcade, na obra Guerra Junqueiro
et le Problème des Influences Françaises dans son Oeuvre, 1932 turas de P. Hourcade, designadamente na
Revista Pessoa Plural, n.º 9, p. 47490.

89 Trata-se de uma gralha, a palavra é «mon».

90 Agradeço a Jerónimo Pizarro e a Fernando Carmino Marques pela informação, e a Isabelle Hourcade pelos esclareci-
mentos acerca do trabalho do seu irmão. Rémy Hourcade efectuou traduções para o francês de poemas de Fernando
Pessoa (de 1986-1993 aproximadamente) e encontra-se, actualmente, a finalizar uma tradução da obra completa de
Alberto Caeiro.

153
O conhecimento aprofundado da dimensão e do tipo de biblioteca
que Pessoa construiu mostra como o processo criativo também se
realiza em diálogo com outros autores. Um dos vestígios desse
diálogo encontra-se precisamente nalgumas anotações que en-
quanto leitor vai deixando nos livros da sua preferência. E Pessoa
deixou muitos vestígios. Não só em notas inscritas à margem
do texto impresso, mas também nas folhas de guarda iniciais Pormenor de uma carta de Pierre Hourcade
a João Gaspar Simões (BNP/E16, 1606), reproduzida
e finais, nas contracapas, em papéis apostos às folhas dos livros. em CARMINO Marques, Fernando,
«Pierre Hourcade e a Descoberta de Fernando Pessoa:
Novas Cartas e Outros Escritos», Pessoa Plural,
n.º 9, 2016, p. 474
Seguindo os estudos efectuados por Heather Jackson
em Marginalia. Readers Writing in Books (2001) e Romantic
Readers. The Evidence of Marginalia (2005) podemos dividir as
anotações em dois grandes grupos: anotações verbais e não
verbais. Nas anotações verbais encontramos as anotações pro-
priamente discursivas, no caso de Pessoa, assinaturas, notas,
comentários de ordem estética, marcas de revisão, traduções,
notas onde remete para outros autores, e também sinais de pon-
tuação, numerais, etc. Nas anotações não verbais incluímos os
sublinhados, traços, cruzes, desenhos, riscos e outros.

No que diz respeito à transcrição proposta, a norma principal é


a de conservar a maior parte das características gráficas das
anotações tal como se encontram nos livros, mantendo-se a or-
tografia de Pessoa, mesmo na sua variação ocasional, no que
diz respeito a letras maiúsculas, à acentuação, a pontuação e
outras particularidades. Os erros eventuais, que são de esperar
em escrita privada, também são mantidos.

Das 156 espécies bibliográficas da biblioteca particular de


Fernando Pessoa já consideradas de acordo com uma grelha de
análise, 39 não exibem qualquer anotação. Todas as outras pos- Contracapa, ROBERTSON, John Mackinnon,
Pioneer Humanists, Londres,
suem alguma marca de estudo por Pessoa ou dedicatórias dos Watts & Co., 1907

autores das obras em causa. Muitos livros foram bastante subli-


nhados e comentados, alguns acompanharam Pessoa ao longo
da sua vida tendo sido objecto de leitura em diferentes momentos, como ates-
tam, por exemplo, as diferenças na caligrafia. Uns apenas registam a assinatura
do poeta, outros deram espaço a novas produções poéticas, como é o caso do já
bem documentado caso Robertson onde Pessoa registou, na contracapa, um
poema intitulado ou atribuído a Caeiro. Existem pelo menos cinco transcrições
diferentes deste poema, de Maria do Céu Estibeira, Jerónimo Pizarro, Richard
Zenith com Fernando Cabral Martins, Ivo Castro e Teresa Rita Lopes, e uma

154
tradução para inglês por Pauly Ellen Bothe. A título de exemplo mostramos as
propostas de Estibeira e a de Ivo Castro, onde se pode verificar que, apesar de
coincidirem em muitos momentos, persistem algumas diferenças, como é notó-
rio no penúltimo verso onde Estibeira lê «partida» e Castro «quantidade». O
exemplo mostra como a comparação é fundamental para a fixação de textos
mais fiáveis e também ilustra bem o papel decisivo do editor e como cada trans-
crição é uma decisão.

Caeiro

Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.


Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa aqui e aqui acaba
E que longe e atrás d’isso há absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e terá um fim,
E que antes e depois disso não houve tempo.
Porque há de ser isto falso? Falso é falar do infinito
Como se soubéssemos o que só de ver podemos
[entender.
Não: tudo é uma partida de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.

ESTIBEIRA, M., «Uma Perspectiva da Marginália de Fernando Pessoa», Revista


Patrimônio e Memória, vol. 6, n.º 1, Jun. 2010, pp. 143-144, nota 2.

Gosto do ceu porque não creio que elle seja infinito.


Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa numa parte e numa parte [acaba
E que aquem e alem não ha absolutamente [nada.
Creio que o tempo tem um principio e tem um fim,
E que antes e depois d’isso não havia tempo.
Porque ha de ser isto falso? Falso é fallar de infinitos
Como se soubessemos o que são ou os pudéssemos
[entender.
Não: tudo é uma quantidade de cousas.
Tudo é definido, tudo é limitado, tudo é cousas.

PESSOA, Fernando, Poemas de Alberto Caeiro, ed. Ivo Castro, Lisboa, INCM,
2015, p. 104.

155
Por outro lado, a obra Pioneer Humanists, de Robertson, é um
exemplo de convivência entre línguas nas anotações dos livros.
Como se verifica, o exemplar possui na contracapa anotações em
inglês, seguidas do poema, em português.

As dificuldades com a questão da decifração constituem simulta-


neamente uma forte justificação para a urgência do trabalho
de transcrição: além da caligrafia nem sempre fácil, ou quase sem-
Folha de guarda e contracapa MACKAY, Charles,
pre difícil, o desgaste normal do tempo faz com tenham tendência A Thousand and One Gems of English Poetry, Londres,
George Routlegde & Sons, Ltd., 1896
a desaparecer inclusivamente aquelas anotações escritas a caneta.
É o caso da obra A Thousand and One Gems of English Poetry,
de Charles Mackay, 1896. Neste exemplar, além de sublinhados
e traços constantes ao longo da obra, as folhas finais estão
praticamente preenchidas com anotações. No processo de deci-
fração, foram notadas semelhanças entre o conteúdo de algu-
mas destas notas e um fragmento editado pela investigadora
Pauly Ellen Bothe, na p. 80 das suas Apreciações Literárias de
Fernando Pessoa.
Pormenor da parte superior da folha de guarda.
MACKAY, Charles, A Thousand and One Gems
Transcrição: of English Poetry, Londres,
George Routlegde & Sons, Ltd., 1896

epig.[rammatico] =
epig[rammatico] – rhet[orico] =
rhet[orico] = V.[ictor] Hugo; (ou epig. rhet: V. H. era um classico tão
grande que sahia às vezes do classicismo.
no mais alto ponto, rhet-lyrico.)
epig – lyr = (lyristas da Restauração inglesa; verso
popular hespanhol; Campoamor).
rhet – lyr = Musset.
lyr =

Na página que reproduzimos a seguir (BOTHE, 2013: 80), pode


notar-se a semelhança de análise, especialmente nos fragmen-
tos (14 4-95r) e (14A-74), dedicados ao estudo do autor inglês.
Neste caso, a identificação da semelhança foi registada pela me-
mória de um experiente investigador e editor pessoano,
Jerónimo Pizarro, que ajudava na tarefa de decifração.
No futuro, com a edição digital da marginália, e desde
que as transcrições dos documentos estejam disponíveis, estas
BOTHE, Pauly Ellen Bothe, Apreciações Literárias
semelhanças e coincidências poderão ser mais facilmente de Fernando Pessoa, Lisboa, INCM, 2013

detectadas.

156
BIBLIOGRAFIA

BOTHE, Pauly Ellen, Apreciações Literárias de Fernando Pessoa, Lisboa,


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013.

Cardiello, Antonio, Ferrari, Patricio, Pizarro, Jeronimo, A Biblioteca Particular


de Fernando Pessoa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010.

CENTENO, Yvette, «O Espólio e a Biblioteca de Fernando Pessoa: Uma Solução


para Alguns Enigmas», Actas do I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos,
Porto, Editora Brasília, 1978, pp. 701-705 (disponível em http://bibliotecaparticu-
lar.casafernandopessoa.pt/index/estudos.htm).

ESTIBEIRA, M., «Uma Perspectiva da Marginália de Fernando Pessoa», Revista


Patrimônio e Memória, vol. 6, Jun. 2010.

FERRARI, Patricio, «Fernando Pessoa as a Writing-reader: Some Justifications


for a Complete Digital Edition of his Marginália», Portuguese Studies, 24 (2),
2008, pp. 69-114 (disponível em http://www.jstor.org/stable/41105307).

JACKSON, Heather, Marginalia. Readers Writing in Books, New Haven/London,


Yale University Press, 2001.

JACKSON, Heather, Romantic Readers: The Evidence of Marginalia, New Haven/


London, Yale University Press, 2005.

LIND, R. G., «A Biblioteca Fernandina», Diário de Notícias, 18 de Janeiro de 1962


(disponível em http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/index/estu-
dos2.htm).

MARQUES, Fernando Carmino, «Pierre Hourcade e a Descoberta de Fernando


Pessoa: Novas Cartas e Outros Escritos», Pessoa Plural, n.º 9, 2016 (disponível em
https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pes-
soaplural/issues.html).

PESSOA, Fernando, Poemas de Alberto Caeiro, ed. Ivo Castro, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2015.

PESSOA, Fernando, Poesia de Alberto Caeiro, ed. Richard Zenith e Cabral


Martins, Lisboa, Assírio e Alvim, 2011.

157
PESSOA, Fernando, Poemas Escolhidos de Alberto Caeiro, ed. Richard Zenith e
Cabral Martins, Lisboa, Assírio e Alvim, 2013.

PESSOA, Fernando, Obra Completa de Alberto Caeiro, ed. Jerónimo Pizarro,


Lisboa, Tinta da China, 2016.

PESSOA, Fernando, Vida e Obras de Alberto Caeiro, ed. Teresa Rita Lopes, São
Paulo, Global Editora, 2017.

QUEIRÓS, Luís Miguel, «Três Leituras de um Inédito de Caeiro», Público, 13 de


Junho de 2008 (disponível em https://www.publico.pt/portugal/jornal/
tres-leituras-de-um-inedito-de-caeiro-264803).

OBRAS DA BIBLIOTECA PARTICULAR


DE FERNANDO PESSOA

Mackay, Charles, A Thousand and One Gems of English Poetry, Londres, George
Routlegde & Sons, Ltd., 1896.

Robertson, John Mackinnon, Pioneer Humanists, Londres, Watts & Co., 1907.

158
Notas
biográficas
ANTONIO CARDIELLO 
Doutor em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Investigador de pós-doutoramento do Instituto de Filosofia da Universidade
Nova de Lisboa (IFILNOVA), é membro integrado do CultureLab. Codiretor do
projeto de digitalização da Biblioteca de Fernando Pessoa (online desde 2010),
editou Uma Stirpe Incognita (EDB Edizioni, 2016) e coeditou A Biblioteca
Particular de Fernando Pessoa (Publicações Dom Quixote, 2010), Nietzsche e
Pessoa. Ensaios (Tinta da China, 2016) e a primeira edição crítica da Obra
Completa de Álvaro de Campos (Tinta da China, 2014). Comissário de exposições
internacionais sobre Fernando Pessoa, interessa-se pelo pensamento português
contemporâneo e pela aproximação entre tradições filosóficas ocidentais
e orientais.

CLAUDIA J. FISCHER
Doutorou-se em Teoria da Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa em 2007 e leciona no Departamento de Estudos Germanísticos desta
Universidade. Em 2015, publicou Sobre Graça e Graciosidade. Uma Digressão
com Particular Incidência nas Teses de Schiller e Kleist (Verbo). Enquanto mem-
bro do Centro de Estudos Comparatistas, coordena a linha de investigação sobre
Literatura e Música. Recentemente lançou Contos Musicais. Wackenroder,
Kleist e Hoffmann (Antígona, 2016), uma antologia de contos do Romantismo
alemão sobre temática musical. No âmbito dos estudos pessoanos, publicou nas
revistas Real, Pessoa Plural e Portuguese Literary & Cultural Studies, coeditou
Argumentos para Filmes (Babel, 2011) e comissariou uma exposição documental
sobre Pessoa e Cascais. Na qualidade de tradutora, tem publicado traduções
de Thomas Mann, R. M. Rilke, W. Benjamin, R. W. Fassbinder, entre outros.

FILIPA FREITAS
Investigadora no Centro de Estudos de Teatro (Universidade de Lisboa) e no
Instituto de Estudos Filosóficos (Universidade de Coimbra). Licenciada em
Estudos Portugueses e Lusófonos, é mestre em Estudos Portugueses e em
Filosofia. Está a terminar o doutoramento sobre Fernando Pessoa e Søren
Kierkegaard (Universidade Nova de Lisboa). Publicou vários artigos sobre a obra
de Fernando Pessoa e prepara um livro sobre o Barão de Teive. Coeditou o Teatro
Estático (2017, Tinta da China) e colaborou na Obra Completa de Álvaro de
Campos (2014, Tinta da China).

160
JOSÉ BARRETO
Foi investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa en-
tre 1975 e 2015. Desde 2005, tem-se dedicado ao estudo e edição dos escritos po-
líticos, sociológicos e religiosos de Fernando Pessoa. Publicou os livros: PESSOA,
Fernando, Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, ed. J. Barreto, Lisboa,
Tinta da China, 2015, Misoginia e Anti-Feminismo em Fernando Pessoa (Ática,
2011) e PESSOA, Fernando, Associações Secretas e outros Escritos, ed. J. Barreto
(Ática, 2011). É colaborador regular da revista Pessoa Plural — A Journal of
Fernando Pessoa Studies.​

MADALENA LOBO ANTUNES


Está a terminar uma tese de doutoramento sobre a consciência no Livro do
Desassossego. É investigadora do IELT (Instituto de Estudos de Literatura e
Tradição) da FCSH/Universidade Nova de Lisboa. Foi bolseira de doutoramento
da FCT (2011-2015) e faz parte da equipa do projeto «Estranhar Pessoa». Tem
apresentado várias comunicações e publicado artigos sobre a influência da lite-
ratura em língua inglesa na obra de Fernando Pessoa, de William Shakespeare e
John Milton a William Blake, e sobre o papel de Fernando Pessoa no cânone da
literatura europeia do século XX. Mais recentemente, tem-se dedicado a leituras
sociológicas e políticas dos textos pessoanos, de Karl Marx às teorias contempo-
râneas sobre modernismos globais e cosmopolitismo. 

MARIANA GRAY DE CASTRO


Fez o mestrado na Universidade de Oxford (tese sobre Fernando Pessoa e Oscar
Wilde), doutoramento no King’s College London (tese sobre Pessoa e
Shakespeare), e um pós-doutoramento entre Oxford e Lisboa. Continua a explo-
rar a relação entre Pessoa e os escritores em língua inglesa que mais o influen-
ciaram, e também é professora de literatura (inglesa e portuguesa) no Oeiras
International School. O seu livro mais recente é Shakespeare, Fernando Pessoa, e
a Invenção dos Heterónimos, disponível em versão inglesa e portuguesa na
Amazon. 

NUNO AMADO
Concluiu o seu doutoramento no Programa em Teoria da Literatura da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no final de 2016, com uma tese
sobre Ricardo Reis, é colaborador do projeto «Estranhar Pessoa» e é professor de
Português para Estrangeiros na Universidade Católica Portuguesa.

161
PEDRO SEPÚLVEDA
Investigador de pós-doutoramento no IELT — FCSH/Universidade Nova de
Lisboa, onde também ensina. Lecionou cursos, enquanto Professor Convidado,
na FCSH/UNL, FLUL e Universidade de Colónia. A sua investigação centra-se na
modernidade literária e filosófica, com acento particular na obra de Fernando
Pessoa. Coordena o projeto de investigação «Estranhar Pessoa» (cf. http://estra-
nharpessoa.com/). Publicou o ensaio decorrente da sua dissertação de doutora-
mento Os Livros de Fernando Pessoa (Ática, 2013) e um estudo e antologia dos pro-
jetos editoriais de Pessoa, O Planeamento Editorial de Fernando Pessoa (com Jorge
Uribe, INCM, 2016). Encontra-se neste momento a coordenar uma edição digital
dos projetos e publicações em vida de Pessoa (http://www.pessoadigital.pt/).

PEDRO TIAGO FERREIRA


Licenciado em L. L. M. — Estudos Ingleses e Espanhóis, e em Direito, mestre em
Políticas Europeias, Teoria da Literatura e Teoria do Direito, e doutor em Teoria
da Literatura, pela Universidade de Lisboa. 

RAQUEL NOBRE GUERRA


Nasceu em Lisboa, licenciada em Filosofia, mestre em Estética e Filosofia
da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ex-bolseira
da Fundação para a Ciência e Tecnologia, conclui o doutoramento em Estudos
Portugueses com especialização em Fernando Pessoa.

RITA CATANIA MARRONE


Licenciou-se em Filosofia e é mestre em Ciências Filosóficas, na Università degli
Studi di Milano, com a dissertação «Sentieri di Gnosi nell’Opera di Fernando
Pessoa». Foi colaboradora da Cátedra de História da Filosofia I da mesma uni-
versidade. Atualmente é bolseira da FCT do Programa de Doutoramento em
Materialidades da Literatura da FLUC, com um projeto sobre a biblioteca esoté-
rica de Fernando Pessoa.

RUI SOUSA
Nasceu em 1985. Concluiu licenciatura em Estudos Portugueses e mestrado
em Estudos Românicos — Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea,
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Investigador do CLEPUL,
dedica-se, enquanto bolseiro da FCT, a uma tese de doutoramento na qual pro-
curará definir uma ideia de pensamento libertino a partir das muitas definições
que o conceito foi conhecendo, analisando também as suas expressões
no projeto de crítica sistemática desenvolvida pelo Surrealismo em Portugal.

162
Colabora no projeto do CLEPUL dedicado à Cultura Negativa em Portugal e tem
participado em diferentes encontros científicos com trabalhos sobre o conceito
de libertino, o Surrealismo em Portugal e diversos autores portugueses moder-
nos e contemporâneos, tendo também organizado os congressos Portugal no
Tempo de Fialho de Almeida (2011) e Surrealismo(s) em Portugal (2013). Organizou
em colaboração com o Professor Ernesto Rodrigues a antologia de ensaios A
Dinâmica dos Olhares e prepara volumes dedicados a Fialho de Almeida e ao
Surrealismo em Portugal, resultantes dos eventos organizados em 2011 e 2013.
Publicou em 2017 A Presença do Abjecto no Surrealismo em Portugal. Colaborador
assíduo de vários periódicos, de que se destacam Letras com Vida, Pessoa Plural,
Golpe d’Asa, Revista Desassossego, Diacrítica e A Ideia.

TERESA FILIPE
Licenciada em Filosofia, em 2010, e mestre em Filosofia Contemporânea,
em 2012, pela Universidade de Évora. Co-traduziu com Ricardo Santos O Nomear
e a Necessidade, de Saul Kripke (2012). É autora de Metafísica da Revolução.
Poética e Política no Ensaísmo de Eduardo Lourenço (2013). Foi bolseira de inves-
tigação no «Projecto de Edição das Obras Completas de Eduardo Lourenço»,
Fundação Calouste Gulbenkian/Universidade de Évora (2010-2015).

Atualmente desenvolve um projeto de investigação apoiado pela FCT intitulado


«Edição digital e estudo da marginália de Fernando Pessoa», no âmbito
do doutoramento em Crítica Textual, na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa.

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CASAFERNANDOPESSOA .P T
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