A Lua de Joana

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 71

90’«4

A LUA DE JOANA
Maria Teresa Maia Gonzalez

A edição desta obra foi patrocinada pelo Projecto Vida e teve o


apoio da TVI - Televisão Independente.

Para o meu tio Augusto


(que teve sempre tempo)
e
para todas as Joanas e Joões
que se cruzaram comigo
nas escolas.

Lisboa, 28 de Agosto de 1992

Querida Marta,

Demorei muito para me resolver, o que não era costume. Para dizer a verdade,
não sabia que fazer. Precisava de desabafar, tentar compreender tudo o que
aconteceu e, como foste sempre a minha única confidente... Não fazia sentido
escrever um diário, pois dava-me a sensação de estar a escrever para mim
própria, o que acho um bocado estranho. Talvez seja ainda mais estranho
escrever-te, mas é uma forma de manter viva a tua memória, pelo menos até
entender o que se passou contigo; pelo menos até conseguir perdoar-te...
Faz hoje um mês que tu... Não sou ainda capaz de dizer a palavra. Se calhar,
é porque não acredito que já não estás aqui comigo. É tão difícil de acreditar!
Como sabes, hoje fiz anos. São duas da manhã e estou demasiado excitada
para dormir. Vou contar-te o que recebi. A minha mãe acedeu finalmente em
redecorar o meu quarto - está tal e qual como eu queria! Todo branco (paredes,
tapete, colcha, cortina) e até me mandou fazer o baloiço dos meus sonhos: é
uma meia-lua de madeira (branca, claro) que está suspensa do tecto por uma
corrente, mesmo no meio do quarto. É única no Mundo! Fui eu que a imaginei.
Quando quero pensar, coloco-a em posição de quarto crescente e, quando estou
triste, rodo-a para quarto minguante e sento-me até que a tristeza passe. O
armário velho foi para o corredor, assim, fiquei com mais espaço para dançar,
quando me apetece. Das antiguidades só ficou a escrivaninha, por causa
daquelas gavetinhas todas que sempre me deram um jeitão para os segredos.
Sei que acharias demais, mas também foi pintada de branco! à minha mãe tudo
isto pareceu um bocado exótico, mas foi forçada a comparar as minhas notas
com as do Pré-histórico (a quem comprou uma nova prancha de surf carérrima)
e não teve outro remédio. Chamou-me caprichosa e não sei que mais. Não me
importei.
A avó Ju deu-me uns brincos que usava quando era nova. Disse-me: "Com 14
anos já tens idade para umas perolazinhas..." Um amor, a minha avó. O
Homem do Cro-Magnon, como é costume, estava liso, portanto deve ter pedido
uns trocos à mãe e deu-me um chocolate (sabendo perfeitamente que sou
alérgica) e um cartão idiota com o desenho de um chimpanzé horrendo, que
diz Tás a ficar velhota!... Realmente é triste ter um irmão assim, paciência.
Quanto ao meu pai, deu-me mais um relógio, imagina! Já tenho uma colecção
disparatada (como diz a avó Ju), mas ele não deve lembrar-se dos que me deu
nos anos anteriores. Tem muito que fazer, como sempre... Provavelmente,
mandou a Lisete comprar-me a prenda, é o mais certo. Ele só sai do consultório
para operar, como é que podia ter tempo...
No que respeita à festa que a minha mãe queria fazer, proibi-a terminantemente
e, para a convencer, tive de dizer que não havia direito de me estragarem o dia
de anos. Sem ti, a festa não seria a mesma coisa, além disso, não tenho vontade
de festejar coisa nenhuma. Fazer anos não é assim tão especial como isso,
ainda se fossem quinze...
Estou a ficar com sono, finalmente. Preciso de dormir. Espero não sonhar
outra vez contigo. É terrível! Um beijo da

Joana

P.S. Esqueci-me de contar que a minha mãe, como não podia deixar de ser,
resolveu trazer-me umas fatiotas lá da loja dela. Demasiado senhorecas para
o meu gosto. Mas era de esperar…
Lisboa, 1 de Setembro de 1992

Querida Marta,

Voltei a pensar seriamente se devia ou não continuar com isto... Escrever-te é


praticamente macabro, eu sei. Mas não posso desligar-me assim tão facilmente
de ti. E depois, como ninguém sabe, não poderão chamar-me doida.
Hoje fui ver se comprava os livros escolares para este ano e, quando entrei no
elevador, dei de caras com o teu irmão. Não o via desde o funeral. Estava
esquisitíssimo e quase não me falou. Quando saímos para a rua, pedi-lhe se me
dava boleia na moto. Sabes que sempre tive medo de andar de moto com ele,
mas precisava de tentar arrancar-Lhe alguma coisa. Levou-me à pendura e
deixou-me em frente da livraria do senhor José. Antes de me despedir, disse-lhe
que seria uma estupidez se não continuássemos amigos e acrescentei que era
com certeza essa a tua vontade. Respondeu-me, sem olhar para mim: "A Marta
morreu, Joana. Como é que tu podes saber quais são os desejos dela?..." A voz
era mais seca do que o deserto do Sara, e eu percebi que ele estava tão
revoltado como no último dia em que nos encontrámos. Julgo que ainda não
aceitou a realidade. Também, quem é que pode aceitar?!
Um dia destes vou procurar o teu irmão. Ainda não tive vontade de voltar lá a
casa, mas os teus pais insistiram para que eu continuasse a ir. Foi muito
simpático da parte deles. A verdade é que não sei o que hei-de dizer-lhes
quando os vir. Nunca pensei ter tão pouca coragem. Pode ser que daqui a
uns tempos..
Um beijo da

Joana
Lisboa, 10 de Setembro de 1992

Querida Marta,
A última semana foi uma das piores da minha vida. Quase todas as noites tive
pesadelos contigo... Quis falar com o meu
pai, mas ele foi a Paris, a um congresso qualquer e, quando voltou, encafuou-se
logo no consultório. Talvez haja alguns comprimidos que me façam deixar de ter
pesadelos. Espero bem que haja, senão fico maluca! É claro que nem falei do
assunto
à minha mãe, entrava logo em pânico e punha-se a receitar coisas da sua
autoria, como de costume. De vez em quando, deve lembrar-se de que, antes
de ser dona de um pronto-a-vestir, foi enfermeira... Tem a mania que percebe
de remédios, mas sabe menos do que eu.
Como a última semana foi tenebrosa, passei horas e horas sentada na
minha lua (em quarto minguante) a ver se conseguia imaginar alguma coisa
divertida para fazer, mas não consegui, portanto pus-me a ler - não foi
divertido, mas ajudou-me a passar o tempo.
Estou morta por que comecem as aulas. Sei que vai ser horrível não te
encontrar na escola, mas, pelo menos, distraio-me.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 12 de Setembro de 1992

Querida Marta,
Enchi-me de coragem e fui ontem a tua casa! Assim que me viu entrar, o Diogo
saiu como uma flecha, dizendo que tinha de ir comprar uma coisa... Os teus
pais pediram-me que o desculpasse, que ele ainda não está nada bem.
No princípio, ficámos os três na sala sem sermos capazes de olhar uns para os
outros. Foi desgastante! O tempo passava e nenhum de nós conseguia romper
aquele silêncio que pesava mais que chumbo. Então, a tua mãe levantou-se,
enquanto o teu pai pegava no jornal, e disse: "Há umas coisinhas da... Marta,
que ela devia gostar que ficassem para ti, Joaninha. Se quiseres..." Engoli em
seco. Não estava à espera daquilo. A minha cabeça começou a ficar num molho
de brócolos. Nem conseguia ver claro. Acho que me levantei e segui-a como um
autómato até ao teu quarto, sem me dar conta do que estava a acontecer. Eu,
que tinha imaginado mil hipóteses de conversa com os teus pais (tinha até
ensaiado o que havia de dizer para não os chocar ainda mais), fiquei sem fala
perante a atitude da tua mãe. A verdade é que seria ridículo eu, com 14 anos
acabados de fazer, pôr-me a dizer frases feitas aos teus pais, do tipo A vida
continua, A morte faz parte da vida e outras como estas que, de tanto serem
ditas, já não devem querer dizer nada.
A entrada no quarto foi como passar para um mundo que, de repente, me
parecia distante. Olhei para todos os cantos, à procura nem eu sei de quê e foi
então que a tua mãe me mandou sentar na cadeira de palha junto à janela.
Olhei outra vez à minha volta. Estava tudo como dantes. Tive uma enorme
vontade de chorar, mas qualquer coisa me impediu (talvez a serenidade
incrível da tua mãe). "Sei que sempre foste a melhor amiga da Marta,
praticamente desde que nasceram... Tomei a liberdade de pôr aqui de parte
estas coisinhas para ti. Julgo que... Faz como entenderes. Se não quiseres
alguma...", disse ela. Respondi-lhe imediatamente que queria tudo e, para não
explodir ali mesmo, peguei no saco, agradeci e vim-me embora à velocidade
da luz.
Quando ia a entrar no elevador, cruzei-me com o Diogo. Então, não sei porquê,
instintivamente, escondi o saco atrás das costas, como uma criança que roubara
um doce. Acho que ele nem reparou em mim. Disse-me adeus numa voz tão
baixa que quase não o ouvi. Não consegui responder-lhe.
Já se passou quase um dia inteirinho e ainda não tive coragem de abrir
o saco...
Um beijo da

Joana
Lisboa, 14 de Setembro de 1992

Querida Marta,
As aulas estão quase a começar e ainda bem! Quando passar a ter de
levantar-me cedo, com certeza as noites vão ser melhores. Espero!
Só esta manhã consegui abrir o saco que a tua mãe me entregou.
Primeiro, respirei fundo, tão fundo que fui invadida por uma calma que
há muito tempo não sentia. Depois, fui retirando, uma a uma, as coisas
que lá estavam, sem as olhar.
Coloquei tudo na minha cama e só então comecei a ver o que me tinha sido
oferecido com tanta amizade: a tua raqueta de ténis (que sempre invejei);
aquele cinto de cabedal que comprámos numa feira, na excursão a Londres; o
teu espectacular estojo de desenho; a camisa de ganga que te dei uma vez
nos anos; o caderninho com as canções que tocávamos na viola; e, maravilha
das maravilhas!, a tua colecção de caleidoscópios! Guardei tudo no gavetão da
direita, debaixo da minha cama, excepto os caleidoscópios, que ficaram em
cima da escrivaninha. Nunca te disse, mas sempre quis fazer uma colecção
como a tua; só que achei que seria imitar-te e talvez não gostasses. Mas é
possível que, mesmo sem eu te dizer, tu soubesses como eu gostava dos
caleidoscópios, já que me conhecias melhor do que ninguém. Agora, vou eu
continuar a coleccionar estes tubinhos mágicos com o maior prazer. Nasceu-
me uma alma nova, como diz a avó Ju. É espantoso como,
às vezes, as coisas podem transformar-nos, não é? Um beijo da

Joana

Lisboa, 16 de Setembro de 1992

Querida Marta,

As aulas começam amanhã. Acho que nunca desejei tanto voltar à escola!
Hoje, depois do almoço, resolvi ir outra vez a tua casa. Achei que devia
agradecer à tua mãe tudo o que me tinha dado.
Pareceu-me que estava com melhor cara e, sempre atenta (ao contrário da
minha mãe), reparou nas minhas olheiras, que vão quase até ao umbigo...
O teu pai estava na sala, a fumar cachimbo. Tiveste sorte, os teus pais sempre
tiveram tempo para a família. O Diogo estava no quarto e de lá não saiu.
Então, como a tua mãe me disse para ir falar um bocadinho com ele, bati-lhe à
porta, a medo, e acabei por entrar sem ouvir resposta. Estava deitado na
cama, de barriga para baixo. Perguntei-lhe se estava acordado e só então
balbuciou qualquer coisa como Acho que sim.... Saltei para o parapeito e
sentei-me à janela. Disse-lhe que esperava que nunca cortassem os pinheiros
mansos do passeio em frente. Ele riu-se, sem explicar porquê. Depois,
enchi-me de coragem, contei até três (como faço antes de saltar da prancha de
10 metros) e perguntei-lhe se ele gostaria de ir comigo, um dia destes, ao
cemitério, levar flores. Levantou-se de um pulo e olhou-me como se eu fosse
um extraterrestre. "Para quê?!", gritou. Não sabia bem o que dizer-lhe. De
facto, esse ritual das flores não faz lá muito sentido. Respondi-lhe apenas que,
realmente, talvez não fosse boa ideia, que o que eu queria mesmo era
conversar um pouco com ele. Voltou a deitar-se, desta vez de barriga para
cima, e declarou solenemente: "Se é da Marta que queres falar, esquece. Não
estou interessado. Tenta com o meu pai ou a minha mãe, se quiseres. Comigo
não vale a pena."
Coitado do Diogo... Está muito pior do que eu pensava. Quer fazer-se de forte,
de durão, mas não percebe que mostra exactamente o contrário. E eu que
queria tanto ajudá-lo! (E que ele me ajudasse!...)

Um beijo da

Joana

Lisboa, 18 de Setembro de 1992

Querida Marta,

Hoje foi o segundo dia de aulas e há gente que ainda está de férias! O Miguel, o
Duga, a Filipa e a Ana Rita não apareceram, e eu sei que ficaram na nossa
turma. A directora de turma continua a ser a professora de Matemática. Ainda
bem!
Como somos os mesmos, à excepção de dois repetentes, a eleição
do delegado vai ser ainda esta semana e eu, sinceramente, espero não
voltar a ser eleita. Não estou com vontade nenhuma.
Até já avisei que o melhor é pensarem noutra pessoa, no Luís, por
exemplo. Acho que ele seria um óptimo delegado. No fim do ano passado,
teve as mesmas notas do que eu, e toda a gente gosta dele. Eu cá voto
nele, como sempre. Espero que ganhe. No primeiro dia de aulas, houve
cena para saber quem havia de ficar sentado no teu lugar, ou melhor, entre
mim e a Sara.
Ninguém queria... Foi muito desagradável. Acabei por ser eu a sentar-me na
tua carteira, e o Miguel II ficou na minha. A stora Margarida resolveu fazer um
pequeno discurso de abertura do ano lectivo e, no fim, falou um pouco de ti.
Toda a gente percebeu que ela estava comovida. Até lhe custou pronunciar o
teu nome e, quando finalmente o disse, olhou para mim, talvez à procura de
algum encorajamento (que eu não fui capaz de lhe dar). O que disse foi
simples, mas muito tocante.
Falou do papel da amizade e, a seguir, fez um apelo: "Por favor, quem estiver
com problemas, seja de que ordem for: família, droga, namoros, etc., pode vir
ter comigo e falar abertamente. Estou ao vosso dispor." Depois do discurso, o
João Pedro decidiu pedir a palavra para dizer que lamentava o que se tinha
passado contigo, que tinha sido teu amigo desde o Ciclo Preparatório, mas
que, por muito que isso pudesse chocar (e olhou para mim), não conseguia
desculpar que uma rapariga inteligente, com uma família bestial, se começasse
a dar com gente que ela sabia que andava metida em drogas. Acrescentou que
era inadmissível, com tanta informação que há sobre o assunto, que alguém da
nossa idade ainda não conhecesse os riscos que se podem correr.
De facto, fiquei chocada. Não por achar que o João Pedro não tivesse razão,
mas porque ele conseguiu falar com uma calma, uma frieza que me assustou.
No fim da aula, fui ter com ele e disse-lhe que nunca se devia afirmar desta água
não beberei. Ele não concordou. Respondeu-me que havia águas que ele, sem
dúvida, nunca beberia... Será? No fundo, talvez eu pense da mesma maneira
que o João Pedro e, se calhar, quis apenas, de algum modo, defender-te. Mas,
na realidade, eu também ainda não consegui compreender o que se passou
contigo, nem sequer perdoar-te, Marta, embora esteja a fazer um esforço nesse
sentido. Um superesforço!
Um beijo da

Joana
Lisboa, 21 de Setembro de 1992

Querida Marta,

Amanhã é o dia de anos do meu pai. Tenho andado a pensar no que hei-de
oferecer-lhe, mas ainda não cheguei a nenhuma conclusão. Esta tarde, estive
quase uma hora sentada na minha lua, a baloiçar e a dar voltas à cabeça para
ver se tinha alguma ideia original. Ele pediu à minha mãe para não convidar
ninguém, pois logo a seguir ao jantar tem de voltar para o hospital. Ela ficou
chateadíssima e disse que já tinha tudo programado. "Então, desprograma, Bé.
Não devias ter feito convites sem me consultares...", foi tudo o que ele disse.
Pela primeira vez há muito tempo, senti uma certa pena da minha mãe e, como
quem tem pena é galinha, considero que tive um sentimento galináceo, o que
me irrita um bocado. Voltando ao assunto da prenda, a melhor ideia que me
ocorreu foi oferecer-lhe uma moldura com uma fotografia que a avó Ju me tirou
o ano passado na praia. É a única fotografia decente que tenho, isto é, não
estou com cara de débil mental, como nas outras. Pode ser que ele goste e
que se lembre um pouco de mim quando olhar para a mesa que tem no
consultório... De qualquer maneira, resolvi escrever-lhe um cartão de parabéns
e, sem eu saber como nem porquê, saiu-me uma coisa que nem sei
se se pode chamar poema. É assim:

às vezes cruzamo-nos no corredor


E eu acendo a luz para te ver melhor.
Jantamos juntos na noite de Natal
Porque senão até parecia mal.
Deito-me sempre sem te ver chegar
E quando acordo já foste trabalhar.
Mudei de penteado e tu nem reparaste
Chamei-te muitas vezes e nem para trás olhaste. Apesar de
tudo, não quero mais nenhum
És um pai fantasma, mas pai há só um...

Será que é duro demais? Fui sincera e pronto. Amanhã, quando a mesa estiver
posta para o jantar, ponho-lhe o cartão debaixo do guardanapo. Não quero que
ele tenha uma indigestão, mas, se ficar um bocado maldisposto, só lhe faz bem.
Para aprender! Vou ao centro comercial comprar a moldura. Tem de ser verde,
para condizer com o consultório.
Um beijo da
Joana

Lisboa, 22 de Setembro de 1992

Querida Marta,

São onze e meia e não tenho sono. Não calculas o que aconteceu: estivemos
cinquenta minutos à espera do meu pai para jantar e ele, na maior das
calmas, telefonou a dizer que estava atrasado, que ainda tinha duas
consultas e não sei que mais, e que o melhor era irmos comendo... A minha
mãe teve um ataque de nervos. A avó Ju, como sempre, foi acalmá-la ao
quarto, e eu fiquei na sala, em frente de uma mesa estilo Hollywood-em-festa,
na companhia execrável do Pré-histórico, que grunhiu algumas
incongruências das quais só consegui decifrar uma curta mensagem: estava
fulo porque podia ter ido ao cinema com uns amigos. O Pré-histórico já não
fala, só grunhe. Torna-se cada vez mais difícil descodificar o emaranhado de
sons que ele emite. A Leonilde diz que ele tem a mania de falar em alemão
só para ela não perceber... Nenhum professor deve compreender patavina do
que ele diz. Azar o dele. Discretamente, retirei o meu cartão escondido sob o
guardanapo e fui pôr a moldura (sem o retrato) em cima da almofada da
cama.
Fiquei sem palavras. E eu que estava com receio de ter sido muito dura no
cartão... Vou-me deitar sem esperar que ele venha. Amanhã de manhã, se o
vir, digo-lhe que a moldura é para pôr o retrato de uma não-me-toques a quem
ele tenha tirado as rugas com uma plástica, alguém que esteja aí bem uns
vinte dias sem poder de todo rir!
Um beijo da

Joana

Lisboa, 24 de Setembro de 1992

Querida Marta,
Fui outra vez eleita delegada, vê lá tu. E por ma-ioria absolutíssima. Só dez
alunos não votaram em mim: eu (que votei no Luís, claro), as manas Lopes
(que votaram no Nuno, por quem estão apaixonadíssimas) e os dois
repetentes que entraram este ano (que votaram um no outro); os outros
cinco votaram no João Pedro, que ficou subdelegado. É claro que a votação
foi secreta, mas, como de costume, a Sara obteve logo estas informações a
seguir à aula e veio a correr dizer-me, como se fosse uma coisa importante.
Não queria aceitar, mas não tive outro remédio. É incrível que não percebam
que o Luís seria muito melhor delegado do que eu, mas que é que se há-de
fazer? A stora Margarida mostrou-se contente e foi simpática comigo, "Fizeram
uma boa escolha. A Joana já tem dois anos de experiência como delegada e
penso que continuará a fazer um óptimo papel." Perante isto, só me restou
agradecer o voto de confiança e dizer que iria dar o meu melhor.
A seguir à última aula, fui ter com o João Pedro e dei-lhe os parabéns. Ele
disse que a votação nele não tinha sido representativa, mas que aceitava,
porque era a primeira vez que o elegiam para alguma coisa... Eu acho que ele
tem um certo complexo de inferioridade. Deve ser por gozarem com ele
por causa das politiquices. No fundo, penso que vai aproveitar todas
as oportunidades para fazer discursos e deve ter sido essa a razão
que o levou a aceitar o cargo. A Sara até me contou que ele fez uma
espécie de campanha secreta, mas não acreditei. A verdade é que
ele já está cheio de ideias e falou-me num projecto para o Natal: uma
peça de teatro que vai mexer com a escola inteira... Respondi-lhe que
colaboraria no que pudesse, mas que primeiro queria ver que projecto
era esse. "Está descansada, que não tem nada a ver com política",
tranquilizou-me. No entanto, custa-me acreditar... Quando cheguei a casa, o
teu irmão estava a entrar para o elevador. Tenho quase a certeza de que me
viu, mas fechou a porta depressa e subiu. Preciso de falar com ele. Tenho um
trabalho de História para amanhã.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 27 de Setembro de 1992

Querida Marta,

Estou pasmada com a conversa que tive com o João Pedro. Não me podia
passar pela cabeça que ele tivesse talentos ocultos e, muito menos, que ele
fosse, afinal, tão sensível. Vou tentar reproduzir o nosso diálogo, porque julgo
que o decorei de uma ponta à outra.
Primeiro, foi ter comigo ao bar e chamou-me de parte. Fez-me sentar a uma
mesa no canto mais sossegado e disse-me: - Queria conversar contigo sobre o
projecto de que te falei, mas, antes disso, não quero deixar de te dizer que
lamento imenso o que aconteceu com a Marta e calculo que deves estar a
passar um mau bocado... Se precisares de mim, já sabes. Fiquei de boca
aberta. Acho que só consegui balbuciar: - Obrigada, João.
Depois, sentou-se ao meu lado, tirou umas folhas daquela pasta caquética com
que anda sempre e começou: - Ora bem, isto aqui é apenas um plano. Está só
em rascunho. Deve estar cheio de erros...
Pedi-lhe que se deixasse de tretas e me mostrasse. - Eu prefiro
falar primeiro.
- Então desembucha, que daqui a pouco toca.
- Bom, a ideia tem justamente a ver com... a morte da Marta. Engoli em seco.
- Como?
- Ou melhor, com as causas da morte da Marta.
Explicou-me então que, uma vez que, infelizmente, ainda há muita gente a
desconhecer certos riscos, era preciso falar abertamente às pessoas (pais e
alunos) dos caminhos que levam à autodestruição, especialmente pela droga. A
ideia fundamental do projecto é fazer uma peça de teatro, escrita e
representada por alunos da nossa escola, em que se levante esta questão com
a maior clareza e, no fim da representação, convidar peritos que orientem um
debate com o público assistente, sobre o tema proposto.
Fiquei entusiasmada com a ideia, embora ainda me custe bastante falar
sobre este assunto. Então, antes de tocar para a aula, o João Pedro lançou
o último apelo, que me deixou embasbacada:
- Gostava que escrevesses a peça comigo, Joana. Como gostas de escrever,
acho que podias ser muito útil.
Disse-Lhe que ia pensar, mas que, à partida, gostava do projecto, apesar
de, neste momento, estar ainda muito chocada com o que aconteceu
contigo. Para me convencer, disse que só iria fazer-me bem colaborar
com ele, pois seria uma forma de encarar a realidade de uma maneira
mais objectiva. O rapaz tem patuá até dizer basta!
Vou pensar.

Um beijo da

Joana
P.S. Ontem, foi o concerto do Michael Jackson. Pensei em ir, mas sem ti não
teria piada nenhuma. Fiquei em casa a ler.

Lisboa, 29 de Setembro de 1992

Querida Marta,

Ontem, depois do jantar, subi até tua casa, como tantas vezes fazia... A tua
mãe disse-me que o Diogo estava no quarto e eu fui até lá, à espera de
outra rejeição, para variar... Encontrei-o mais bem-disposto do que nos
últimos dias e aproveitei para meter conversa de uma forma directa. Disse
lhe que achava que ele me tinha visto no outro dia e que subira no
elevador sem me falar porque não tinha querido enfrentar-me. Fez cara de
espanto, mas disfarçou mal. "Estás parva! Porque é que eu não havia de querer
falar-te?!", perguntou, sem tirar os olhos de um livro de B.D. que tinha no colo.
"Porque ainda não foste capaz de aceitar a ideia da morte da Marta", respondi,
esperando que ele virasse os olhos para mim. Virou.
"Olha quem fala! Tu é que ainda não meteste na cachola que a Marta morreu e
ponto final", exaltou-se. Para o acalmar (e também porque é a verdade) disse-
lhe que ele tinha razão, mas que, precisamente por isso, precisava da ajuda
dele para compreender e aceitar. "Compreender o quê?", voltou a enervar-se,
"Uma pessoa nasce, vive e morre. Acabou-se. Há quem morra de velhice e
quem morra de estupidez. A Marta preferiu ser estúpida. Que é que queres que
faça agora? Não posso ressuscitá-la, pois não?!". Disse estas palavras
praticamente a gritar. Depois, vendo que eu estava quase a chorar, acalmou-se
um pouco e disse: "Já não há nada a fazer, Joana. Põe isto na tua cabeça, que
é o melhor. Sentei-me no chão, sobre o almofadão de xadrez. Ele voltou aos
quadradinhos, como se eu me tivesse ido embora. "Eu sou diferente de ti, Diogo,
gostava de saber quem eram afinal aqueles punks com quem ela andou metida
nos últimos três meses. Acabei por não conhecer nenhum deles", disse, ao fim
de um silêncio prolongado. "Não conheceste e não perdeste nada com isso,
Joana. Como podes calcular, se não fores burra de todo, não são flor que se
cheire", respondeu, fechando o livro de banda desenhada. E acrescentou: "São
todos iguais, rapariga. Aqui, na China, no fim do mundo, é tudo a mesma
carneirada. Feios, porcos e maus. Começam por um simples charro inofensivo e
acabam onde se sabe. Queres conhecê-los para quê, hã? Não vejo qual é o
interesse".
Embatuquei. Por fim, acabei por dizer-lhe que não acho que um simples charro
possa ser inofensivo. Ele encolheu os ombros. Tive vontade de falar-lhe do
projecto da nossa peça de teatro, mas achei que ele não tinha paciência para
me ouvir. Não quis abusar. Pode ser que, da próxima vez, consigamos
conversar com mais calma. Não quero perder também o Diogo...

Um beijo da
Joana

P.S. A avó Ju contou-me que o meu pai ficou triste por causa do que eu Lhe
disse sobre a moldura. Como não tem vindo jantar, nem sequer tenho hipótese
de lhe pedir desculpa, não é?

Lisboa, 3 de Outubro de 1992

Querida Marta,

É altamente injusto o que pensávamos do João Pedro. Ele tem sido incansável
com o projecto da peça de teatro e quer mobilizar toda a gente. Até convidou
as Lopes! Claro que elas disseram logo que não, que não tinham jeito, mas ele
convidou-as, mesmo sabendo que elas querem ver a caveira dele!
A professora de Português também anda entusiasmada e quer colaborar. A
Cláudia diz que tem uma tia com jeito para costurar e que lhe vai pedir para
ajudar no guarda-roupa. O João Pedro e eu já começámos a trabalhar na peça
e não está a ir nada mal. Como é tudo diálogo, está a ir depressa. A directora
de turma já falou do projecto ao Conselho Directivo e parece que eles querem
apoiar. Como, ainda é segredo... Disse ao João Pedro que o Luís também tem
jeito para escrever e que podia dar-nos algumas ideias. Ele concordou, nem
sei como! Enfim, está tudo a andar.
Cá em casa, o costume, com uma pequena variante folclórica: o Homem das
Cavernas, para além de continuar a deixar crescer aquela trunfa, resolveu
usar brinco (uma pérola cinzenta...) e comprou umas botas que podem matar
baratas ao canto da sala. A minha mãe entrou em pânico e proibiu-o de
aparecer na loja dela naquela figura. E ele ralado... Nem sei como a mãe foi
capaz de lhe falar naquele tom. Acho que foi a primeira vez que perdeu as
estribeiras com o queridinho dela. O meu pai ainda não viu o new look do
primogénito, aliás, nos próximos tempos nem vai ver, porque foi a um
congresso em Madrid. A avó Ju pediu-me para eu conversar com o Pré-
histórico, por causa da minha mãe, mas acho que não vale a pena. De
qualquer maneira, como foi a avó a pedir, prometi-lhe que ia tentar. Estou
cheia de trabalhos para a escola e amanhã recomeço com o básquete. Não sei
como vai ser. Apetece-me escrever mais, mas hoje não posso.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 7 de Outubro de 1992

Querida Marta,

Hoje, logo a seguir ao jantar, tomei uma Alka-Seltzer e fui ao quarto do Homem
do Cro-Magnon. Bati, mas, como a música estava aos berros, não ouviu. Entrei
e encostei-me à parede para ver se ele me dava alguma atenção. Nada. Fiquei
a olhar o ambiente. Já há séculos que lá não entrava. Aquilo não é um quarto,
nem sequer um acampamento de ciganos; é uma espécie de sala onde se
planeiam revoluções. Posters asquerosos por todo o lado (até no tecto), um
derivado de tapete pintado por ele (num dia em que deve ter dormido mal), um
cabide-espantalho onde pendurou o capacete da moto, e restos de
autocolantes chapados no armário e nas janelas. Compreendo agora porque é
que a minha mãe se recusa a lá entrar. Coitada da Leonilde! Cada vez que lhe
vai fazer a cama sai a queixar-se de que vem de lá maluca.
Quando a música acabou, o meu excelentíssimo irmão reparou finalmente que
não estava só, na tranquilidade bucólica do seu casulo.
- Que é que queres? - resmungou.
- A avó pediu-me que falasse contigo.
- Hã? - grunhiu.
- Sobre o teu novo visual...
- Que é que tem?
- Tem muito estilo, mas cá em casa parece que não são dessa opinião, vá lá
saber-se porquê!... - gozei.
- Hum... - murmurou, enquanto escolhia outro CD. - Pois é. De maneira que
será melhor cederes em alguma coisa: brinco, cabeleira ou... botas. Mas, se
fosse a ti, começava pelo cabelo.
- Era só o que faltava! - indignou-se.
- Não. Mesmo que comeces pelo cabelo, ainda fica a faltar muita coisa...
- Desinfecta, que eu não tou com pachorra. Quero ouvir a minha música,
tás a perceber?!
Desinfecta?! É preciso ter lata! Todo infectado deve estar aquele quarto 24
horas por dia! Rodei sobre os calcanhares e saí. Ele ficou sentado no tapete, de
olhos fixos nas biqueiras das botas de sete léguas, a fazer movimentos de
autista. Se calhar, é isso mesmo! O Pré-histórico sofre de autismo e ninguém da
família sabe! Fui eu que descobri! Preciso avisar alguém, mas o único familiar
num raio de vinte quilómetros é a avó Ju e ela não deve saber o que são
autistas. Bom, de qualquer forma, já fiz a b.a. do dia. Tão cedo não me
peçam para comunicar com o cavernoso. É deprimente! Ainda bem que
tomei a Alka-Seltzer...

Um beijo da

Joana

P.S. Dia 10 vai haver um concerto dos GNR em Alvalade. O Homem das
Cavernas arranjou bilhetes para o relvado, mas não me apetece ir. Lá da turma
só o João Pedro é que vai.

Lisboa, 15 de Outubro de 1992

Querida Marta,

Há muito tempo que não escrevo, porque tenho andado ocupadíssima com as
coisas da escola: aulas, teatro, associação de estudantes, e ainda o básquete.
Por falar em básquete, ontem, no treino, caí e torci um pé. Doía que se fartava,
de maneira que, como nestas coisas só confio no meu pai, fui ao consultório,
sem avisar nem nada. Quando entrei, a Lisete, sempre simpática, gostou
imenso de me ver e disse-me que o meu pai não devia demorar. Qual quê!
Esperei três quartos de hora. Estava quase a ir-me embora quando ele apareceu
na recepção e me olhou como se eu fosse a mulher-aranha ou coisa parecida.
Perguntou-me que fazia eu ali àquela hora e, depois de lhe contar o sucedido,
lá me mandou entrar para o gabinete. Viu-me o pé, pôs-me uma pomada, ligou-
o e disse que eu estava fina. No entanto, achou que eu não podia ir aos treinos
durante uma semana. Que seca! Em cima da secretária, lá estava a moldura
que eu lhe ofereci nos anos, com uma fotografia da minha mãe, do tempo em
que ela tinha o cabelo só de uma cor... Uma autêntica relíquia
que eu nem conhecia. Subitamente, arrependi-me de não lhe ter dado a
minha fotografia tirada na praia, mas não Lhe disse nada. Como me viu a
olhar para a moldura, sorriu e disse: "Foi uma bela ideia, filha. A outra que eu
cá tinha partiu-se". Fiz também um sorriso que agora não sei definir e
perguntei-lhe se ia jantar. Que sim, mas tarde, lá para as dez. Já era de
esperar. Despedi-me e, quando ia a sair, chamou-me: "Espera aí. Que cara é
essa? Sabes perfeitamente que eu tenho muito que fazer, Joana. Por mim,
claro que ia para casa mais cedo, filha. Tomara eu ter tempo para jantar com
a família!" Não acreditei, mas voltei a sorrir, porque não tinha nada para dizer.
E percebi que os sorrisos servem para uma data de coisas, como por
exemplo para tapar buracos que aparecem quando o mar das palavras se
transforma em deserto. Quando cheguei a casa, o Pré-histórico estava na
cozinha a discutir com a avó Ju. Ela dizia-lhe que ele nem parecia um rapaz
de boas famílias, ele argumentava que se estava pouco ralando para o que
parecia ou deixava de parecer, que o cabelo era dele, a orelha era dele e os
pés eram dele! Malcriado até dizer chega... Coitada da avó! Entrei de
rompante (até o pé se queixou...) e dei um berro: "Esqueceste-te de dizer que
a má educação e a estupidez crónica também são tuas! E desaparece daqui,
que podes pegar isso a alguém! DESINFECTA!" Falei com tal autoridade que
ele saiu mesmo da cozinha, a mastigar um palavreado qualquer que ninguém
entendeu e ainda bem. A avó Ju ficou desfeita. Ainda por cima, pediu-me
para eu ter paciência com ele e disse-me que a minha mãe acha que ele
ainda está muito traumatizado por ter chumbado o ano passado!
É o cúmulo! Traumatizada estou eu por ter de o aturar desde que nasci.
às oito em ponto chegou a minha mãe, cheia de sacos com coisas para a
casa. Refilou logo porque buzinou e eu não fui a correr ajudá-la a tirar a
tralha do carro. Mas que mal fiz eu?! Respondi que havia mais gente em
casa (se é que se pode chamar gente ao Homem das Cavernas, agora mais
conhecido por Traumatizado). Resultado: pregou-me um sermão naquele
tom de voz de agulha de injecção, que ela usa quando quer furar os
tímpanos de alguém. Nem reparou que eu tinha o pé ligado! Porque é que
não estás aqui comigo, Marta?!
Acho que vou hibernar para o Havai, este Inverno. Um beijo da

Joana

Lisboa, 20 de Outubro de 1992

Querida Marta,

Afinal, o meu pai exagerou. O pé já está mais que bom. Amanhã vou
aos treinos, dê por onde der.
Emagreci dois quilos desde o Verão e ninguém nesta casa reparou, nem a avó
Ju! Andam todos preocupados com o Traumatizado. Acho que até o querem
levar a um psicólogo, imagine-se! Ele anda radiante, claro. Já deve ter
percebido que pode começar a inventar desculpas para o próximo chumbo que
vai apanhar se continuar com as notas que tem tido. Onde é que já se viu
levar-se um Pré-histórico a um psicólogo só porque resolveu furar uma orelha e
ter um cabelo como a Eva? A minha avó diz que é por causa do desinteresse
dele pelos estudos, nos últimos tempos. Uma ova! Ele nunca se interessou por
nada de jeito! O último pólo de atracção decente que ele teve foi a chucha, que
só largou com quatro anos. Acho que, a partir dessa altura, nunca mais se
interessou por nada normal.
Qual psicólogo qual carapuça! Deviam era arranjar-lhe um psiquiatra, isso
sim.
Mudando de assunto, a peça está quase acabada! Falta o título e pouco
mais. Já a mostrámos à professora de
Português
e, na opinião dela, só é necessário dar uns retoques. Penso que ficou
impressionada. E eu também, especialmente com o trabalho do João Pedro.
Quem diria, hein? Um dia destes, vamos fazer a selecção de actores. Há
muita gente interessada lá na turma. Espero que corra tudo bem, que para
desgraças bem basta cá em casa...
Vou fazer os exercícios de Matemática.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 21 de Outubro de 1992

Querida Marta,

Muitas novidades! Primeira: os actores para a nossa peça já foram


seleccionados (o júri era composto pela professora de Português, pela
directora de turma, pelo João Pedro e por mim). Acho que fizemos uma
escolha justa, mas, evidentemente, houve algumas reclamações...
Segunda novidade: estou contente por ter optado por Saúde. Agora tenho quase
a certeza de que vou para Medicina. O professor é fantástico! É pediatra, tem 29
anos e é lindo de morrer! Um pão! Um gato! Um tigre! Nunca te falei dele antes
porque achei que era só um entusiasmo passageiro; mas não. Toda a gente o
adora, até as manas Lopes (acho que deve ser a única pessoa de quem não
dizem mal)! Anteontem, recebi o teste, e ele, no fim da aula, chamou-me e deu-
me os parabéns:
"Tu gostas mesmo disto, não gostas, Joana?" Já sabe o meu nome, não é o
máximo?! O meu pai que não pense que eu quero seguir Medicina por causa
dele, não. O mais curioso é que, até anteontem, estava mesmo convencida de
que era por causa do meu pai. Que parvoíce!
Terceira novidade: o Traumatizado foi ao psicólogo. Chegou a casa perdido de
riso (mas a disfarçar o melhor que podia), a dizer que ninguém podia agora
contrariá-lo, que é um jovem com problemas de rejeição... Que tristeza! Que foi
que eu fiz para me ter saído um irmão assim?! Até a avó Ju ficou comovida.
Nesta família estão todos diminuídos. Só espero que não seja contagioso.
Agora, a minha mãe (que já lhe fazia as vontadinhas todas) está sempre a fazer-
lhe festas na cabeça (até já se esqueceu da impressão que lhe fazia aquela juba
leonina). Enfim, misérias. Acabaram-se as novidades. Para a semana tenho jogo
contra o Sporting. Não vai ser canja.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 23 de Outubro de 1992

Querida Marta,

Já encontrámos um título para a nossa peça. Vai chamar-se Os Amigos da


Onça. O João Pedro sugeriu De quem é a Culpa?, mas eu achei que, com um
título daqueles, ninguém iria assistir à representação. A palavra culpa é muito
forte e, além disso, iria parecer que queríamos atacar os espectadores. Também
já decidimos o que vamos fazer com o dinheiro dos bilhetes. Por unanimidade
(coisa raríssima!), resolvemos que iríamos arranjar decentemente a nossa sala
de convívio, como sempre sonhámos: pintar as paredes, consertar as cadeiras,
comprar uns almofadões para o chão e, se o dinheiro chegar, uma aparelhagem.
A representação vai ser no auditório grande, cabe imensa gente. Espero que os
pais apareçam em força. Os bilhetes para eles são mais caros, evidentemente.
É óbvio que nem vale a pena dizer ao meu pai para ir e, quanto à minha mãe,
não iria perceber nada. Talvez convide a avó Ju, se ela tiver paciência, irá.
Uma curiosidade: tenho reparado que o professor de Saúde é o único a quem
ninguém chama stor; todos dizem senhor doutor. Deve ser porque é médico, ou
então porque é giro. Agora, uma notícia péssima: voltei a ter pesadelos contigo...
A noite passada devo ter dormido, no máximo, três horas. Assim não dá! Eu
bem me esforço por não pensar em nada quando me deito, mas não consigo.
Está tudo tão presente na minha memória! É como se tudo tivesse acontecido
ontem. Talvez esta história da peça também esteja a contribuir para isto.
Agora, não posso voltar atrás.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 27 de Outubro de 1992

Querida Marta,

Ganhámos ao Sporting! Nem o treinador estava à espera! Este ano não quero
faltar uma única vez aos treinos. Está decidido.
A peça está, finalmente, acabada. Parece-me que ficou bem. Vamos lá ver se
o estimável público gosta... O João Pedro anda todo entusiasmado, até se ri
sozinho pelos corredores. Já nem fala de política nem nada!
O Traumatizado, desde que anda no psicólogo (vai lá duas vezes por semana),
está bastante pior, embora isso fosse impossível de prever. Cá em casa toda a
gente lhe faz mimos como se ele fosse um bebé. Agora, a Leonilde cozinha
especialmente para ele! Enfim, tornou-se naquilo que sempre quis ser (e já era
quase): o centro das atenções. Até o meu pai tem feito um esforço por chegar a
casa antes de nos deitarmos, fenómeno nunca antes visto. Resumindo, ele está
mais insuportável do que era e continua a fazer o que quer e lhe apetece. Balda-
se às aulas, veste-se que parece maluquinho, só ouve música aos berros, etc.
Ah, é verdade, resolvi que vou inscrever-me na Liga Portuguesa para a
Protecção da Natureza. A Filipa tem uma amiga que é sócia e diz que se fazem
coisas interessantes. Hei-de arranjar tempo para lá ir. Fica em Benfica. Tenho
de pedir à avó Ju que me ajude a forrar o gavetão onde pus as coisas que a tua
mãe me deu. Já comprei papel (branco, claro). A telenovela deve estar a
acabar, vou à sala falar com a avó.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 1 de Novembro de 1992


Querida Marta,
Estive a manhã inteirinha sentada na minha lua (em quarto minguante). Hoje é
dia de Todos os Santos e..., amanhã, de finados (detesto esta palavra). Depois
do almoço, fui lá acima ver se encontrava o Diogo. Os teus pais tinham ido ao
cemitério e ele estava na sala a ouvir música com headphones,
talvez para se esquecer do dia de hoje. Disse-lhe que também estava sem
vontade de fazer o que quer que fosse, excepto ir dar um passeio a pé. Por
incrível que pareça, ele levantou-se do sofá, desligou a aparelhagem e disse:
"Anda daí".
Já na rua, pediu-me que esperasse um bocadinho e voltou a entrar no prédio.
Pouco depois, estava de volta com dois capacetes (um era o velho dele que
passou para ti). Estive para lhe dizer que preferia andar, mas não quis
contrariá-lo. Montámos na moto sem dizer palavra e o Diogo arrancou em
direcção a Belém.
Quando chegámos perto do rio, parámos e vi-o dirigir-se para a beira do Tejo
como se esperasse lá encontrar alguma coisa. Segui-o sem fazer perguntas. Foi
então que ele gritou: "Estás a ver esta porcaria, estás a ver Esta poluição toda?
Este rio onde nenhum peixe consegue viver?" Respondi-lhe um sim em dó
menor. "É isto a vida, a nossa vida, percebeste?", voltou a gritar. Depois, sentou-
se na pedra e eu sentei-me também, um pouco assustada, devo dizer. Ficámos
aí uns dez minutos em silêncio absoluto e, quando aquilo já começava a tornar-
se insuportável, pedi-lhe para irmos embora, que estava um frio de rachar.
Levantou-se e voltou a aproximar-se do rio. Então, com uma voz que eu não lhe
conhecia, exclamou, revoltado: "Que raio é que aqueles dois foram fazer ao
cemitério, caraças?! Flores? Para quê? Para quem? Porquê?!"
Não soube responder-lhe. Creio que se sentiu culpado de não ter ido com os
teus pais e foi aquela a maneira de desabafar.
Ou talvez não. Que é que eu sei de psicologia... Quando entrámos no prédio,
entreguei-lhe o capacete, mas ele devolveu-mo, que não lhe fazia falta. E
entrámos calados como pedras no elevador.
Que farei com este capacete? Nem no gavetão me cabe! Marta, Marta, onde é
que tu estás? Para que morada hei-de eu mandar-te flores? Só espero que no
céu que for o teu haja espaço para todas as coisas que eu vou levar comigo
para te devolver. Sinto que nada do que me foi entregue me pertence de
verdade, excepto, talvez, os caleidoscópios... Um beijo da

Joana
Lisboa, 10 de Novembro de 1992

Querida Marta,

Tenho pensado tanto no Diogo! Como eu gostaria de saber ajudá-lo! É um


sentimento diferente do que tinha dantes. Ele era assim como um irmão
(aquele que eu preferia ter em vez do Pré-histórico); agora, nem sei definir o
que sinto em relação a ele. É como se eu gostasse de poder ser mãe do
Diogo... Sei que é estranho, mas a verdade é que às vezes me lembro dele
quando me vou deitar e apetecia-me ir lá acima ajeitar-lhe o cobertor, passar-
lhe a mão pelos cabelos. É, de facto, esquisito, mas é assim. Por outro lado,
acho que não tenho jeito para ser mãe de ninguém, nem de mim mesma.
Pensando bem, havia de haver uma escola para mães. Se um dia alguém
seguir esta ideia brilhante, vou a correr matricular a minha mãe, porque...
enfim, por razões evidentes. Outro assunto: o capacete que era teu sempre
ficou no meu quarto. Como não devo usá-lo, pu-lo sobre a escrivaninha, virado
ao contrário, com os meus pincéis lá dentro. A minha mãe disse que a ideia é
disparatada, o que equivale a dizer que foi genial.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 15 de Novembro de 1992

Querida Marta,

Muitas coisas aconteceram nestes últimos dias. Na escola tive de assistir a um


Conselho Disciplinar. O Ninja andou à tareia com o Paulo e pôs-lhe a cara num
bolo. E o pior é que tudo isto aconteceu na aula de Desenho... Lá fui chamada
ao Conselho e fartei-me de falar, a tentar defender o desgraçado do Ninja, que,
para cúmulo, tem umas notas miseráveis.
Percebi que todos os professores estavam com má vontade, pois a verdade é
que ele também não liga nada às aulas. Lá disse que o Paulo é que tinha
começado, que lhe chamara nomes à mãe e, no fim, como vi pela cara dos
profes que não estava a convencer ninguém, dei o golpe de misericórdia:
lembrei-me do Pré-histórico e desatei a inventar que o Ninja é um traumatizado,
que ficou muito abalado com a morte da avó e com o divórcio dos pais, e sei lá
que mais eu disse. Devo ter feito uma cara tão séria que acho que acabaram por
ficar comovidos. No fim, a directora de turma chamou-me para me comunicar o
castigo que tinham dado: dois dias de suspensão. Acrescentou que, no início,
tinham pensado numa semana, mas que os meus argumentos tinham sido um
esclarecimento importante. Pediu-me para não dizer nada a ninguém, pois,
como sempre, é ela quem vai dar a notícia ao Ninja e aos pais. Saí do Conselho
satisfeita com os resultados e, quando entrei na sala de aula para ir buscar a
mochila , o Ninja apareceu, ofegante, a pedir-me por tudo para lhe contar o que
tinha ficado decidido. Respondi-lhe que a stora Margarida é que queria falar com
ele. Então , o pobre Ninja ajoelhou-se e fez uma cena de fazer chorar as pedras
da calçada. Lá me prometeu que não diria nada, e disse-lhe que iria ficar dois
dias suspenso. Respirou fundo. Pensava que iria uma semana para casa e,
nesse caso, segundo ele, o pai matá-lo-ia... Quando já me ia embora, lembrei-
me das minhas invenções e chamei-o: "Olha, Ninja, se a stora Margarida te
perguntar pela tua avó, tu dizes que morreu e que isso te deixou paranóico,
ouviste?", avisei-o. "Qual das avós?", quis saber o Ninja. Não
me tinha lembrado daquele pormenor. Como, para mim, avó há só uma, não
pensei no assunto. "Uma qualquer", respondi. "Mas, quando eu nasci, já as
duas tinham morrido!" Acabei por dizer-lhe que, nesse caso, não era mentira
nenhuma dizer que a avó morreu sim senhora, o que foi uma grande pena.
Depois, aconselhei-o a deixar os golpes de karate para o ginásio onde
ele vai e a ver menos filmes de artes marciais e outros do género. Agradeceu-
me: "És um anjo, Joaninha. Eu votei sempre em ti para delegada desde o sétimo
ano!"
Quanto à nossa peça de teatro, os ensaios já começaram, e o guarda-roupa
está a ser pensado. A professora de Desenho lá concordou em ajudar nos
cenários que, aliás, vão ser muito simples. Percebemos que ela, afinal, não
estava para se ralar, mas aceitou, para não ficar mal vista.
A Leonor, que anda no básquete comigo, foi operada ao apêndice e está a
faltar aos treinos há um tempão. É uma pena se ela não voltar. Tenho de
telefonar-lhe a animá-la. Acabei de ler Viagem ao Mundo da Droga. É
deprimente e foi uma estupidez da minha parte. Agora, mais do que nunca,
passo as noites com pesadelos. O João Pedro é que me deu a ideia. Antes
me tivesse dito para ler o Tio Patinhas... Um beijo da
Joana

Lisboa, 17 de Novembro de 1992

Querida Marta,

A minha mãe, que já há muito tempo não tinha ideias estrambólicas, resolveu
mandar redecorar a loja dela. Acho que foi essencialmente para poder fazer
uma festa de reabertura...
Ela pela-se por cocktails e snobeiras do género. Ontem, vi o Diogo com uma
amiga nova, ao pé do café da nossa rua. Não percebi se eram namorados. Ela é
ruiva e ainda mais alta do que eu. Parece o Adamastor. Deve ter alguma beleza
interior, como diz a minha avó. Espero que seja boa companhia para o Diogo,
que bem precisa.
Comprei um livro de poesia de Sophia de Mello Breyner. É espectacular! Acho
que vou decorar a maior parte dos poemas. Estão a bater-me à porta. Tenho de
acabar por aqui. Um beijo da

Joana

Lisboa, 20 de Novembro de 1992

Querida Marta,
O Traumatizado está de tal forma anormal que resolvi escrever uma carta ao
psicólogo que o anda a tratar. Dizia assim:
"Caro Senhor, Chamo-me Joana e sou irmã do Jorge C. R. de Brito que tem
ido às suas consultas.
Escrevo-lhe porque estou bastante preocupada com a saúde mental do meu
irmão e com as mudanças estranhíssimas que tem havido na minha casa desde
que o senhor começou a tratá-lo. Não quero ofendê-lo, mas, realmente, se ele já
não era bom da cabeça, agora está francamente pior, o que é o mesmo que
dizer que, se ele estava à beira do abismo, acabou por dar um grande
passo em frente...
Desculpe a minha sinceridade, mas isso de aconselhar a minha mãe a não o
contrariar tem dado péssimos resultados, senão vejamos: ouvia a música aos
berros; agora, preciso de tampões nos ouvidos quando vou estudar. Andava
maltrapilho como um palhaço pobre; agora, anda mal vestido como um palhaço
rico. Fumava às escondidas, portanto, só quando estava no quarto; agora, fuma
a toda a hora e em qualquer lugar, o que polui o ambiente da casa. Estudava só
quando tinha testes; agora, nem quando os tem. Tratava mal a nossa
empregada; ontem, ela ameaçou despedir-se. Tinha o quarto num pandemónio
e, agora, já ninguém lá consegue entrar porque há entulho desde a porta
até à cama.
Por tudo isto e outras coisas mais que o senhor deve calcular, venho pedir-lhe
que mude de táctica, pois, assim, isto vai de mal a pior e quem o atura sou eu
e a minha avó. Ninguém sabe que lhe escrevi, de maneira que gostaria de
pedir-lhe que não revelasse a ninguém o conteúdo desta carta.
Agradeço o tempo que me dispensou e espero que reveja a sua actuação.
Os meus respeitosos cumprimentos Joana B."
Faço votos de que ele leia com atenção a minha carta e de que não conte nada
ao Pré-histórico. Acho que não o fará por uma questão de ética profissional, que
é uma coisa que os médicos têm de ter e os psicólogos também, julgo eu. A
Leonilde, que, de facto, pediu a demissão, já não se vai embora. A avó Ju e eu
falámos com ela e pedimos-lhe que tivesse paciência, porque não há mal que
sempre dure e o Traumatizado não pode ficar assim para o resto da vida.
Esperemos que seja verdade. Ámen!
Um beijo da

Joana

Lisboa, 25 de Novembro de 1992

Querida Marta,

Os ensaios da peça estão a decorrer o melhor possível. O João Pedro sugeriu


que eu fizesse uns cartazes para espalhar pela escola e, se tivesse tempo, que
fizesse também os convites. Os convites irão para: o presidente do Conselho
Directivo, a nossa directora de turma, os presidentes da Associação de Pais e
da Associação de Estudantes e ainda, a meu pedido, os teus pais, já que a peça
foi inspirada em ti. Contamos que toda a gente apareça!
Não recebi resposta do psicólogo. Espero que tenha lido a minha carta! O
Traumatizado continua na mesma... O meu pai foi outra vez a Espanha e trouxe-
me, para variar, um relógio... Disse que daqueles ainda não havia cá, que lhe
garantiram que é o último grito da moda. Tenho uma gaveta cheia de relógios,
quase todos oferecidos por um pai que nunca chega a horas...
A minha mãe anda numa roda-viva a fazer os preparativos para a reabertura da
loja. É com estas banalidades que ela se entretém. Já mandou fazer um vestido
para o cocktail e disse-me para eu escolher uma roupa para ir. Ia dizer-lhe que
não, mas a avó Ju olhou-me com cara de caso e eu compreendi que era
preferível não abrir a boca. Depois, pensando melhor, percebi o que a minha
avó deveria estar a querer dizer-me com aquele olhar: o meu pai, com certeza,
não tem tempo para ir, a avó Ju é cada vez mais raro sair de casa, por causa
das pernas, e o Homem das Cavernas só iria dar bronca. Estou a ver
que tenho mesmo de ir eu, para salvar a honra da família... Tenho de estudar
Geografia. Para a semana há teste e a professora não sabe dar a matéria nem
impor respeito. Aquelas aulas são uma balda.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 29 de Novembro de 1992

Querida Marta,

Hoje decidi recomeçar a pintar. Fui comprar tintas e algumas telas à Baixa, para
retomar aquilo que mais gosto de fazer e que deixei desde que tu desapareceste.
Já montei o cavalete, junto da janela, e comecei uma aguarela para oferecer à
minha mãe no Natal. Não lhe digo nada por enquanto, mas estou a pensar fazer
qualquer coisa que fique bem na loja dela, que agora está a ficar toda chique:
chão de granito especial, tecto de madeira, armários novos, etc. Se calhar, ela
nem vai gostar, mas vou tentar.
Ontem, no básquete, ia torcendo novamente o pé , mas afinal foi só o susto (e
as dores).
O dia do ensaio geral da peça já está marcado. Quero lá estar para ver como
tudo vai ficar: gùarda-roupa, cenários, luminotécnica e, claro, a representação
em si. O João Pedro está com ares de grande empresário de Hollywood,
sempre atarefado a querer tratar de tudo. O pior é que não tem ligado
muito às aulas e as notas dele baixaram consideravelmente. Pelo menos,
anda feliz!
Vou voltar às pinturas.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 1 de Dezembro de 1992


Querida Marta,

Amanhã é o dia do cocktail da minha mãe. Ela anda excitadíssima com as


toilettes e os arranjos florais e não sei que mais. O meu pai, como era de
calcular, não vai poder ir. Disse que, assim que tiver um tempinho, passa por lá
para ver como ficou. Estive a pensar que, com o dinheiro que a minha mãe
deve ter gasto para a festarola dela, se poderiam bem à vontade alimentar
dezenas ou talvez centenas de crianças que morrem à fome todos os dias pelo
mundo fora e também no nosso país. A minha mãe fica toda emocionada
quando vê aquelas imagens terríveis no telejornal, que mostram meninos
africanos de barrigas saídas, moscas na cara e olhos do tamanho do Sol.
às vezes até chora e diz que fica sem vontade de jantar, mas janta sempre e
lembra que temos de fazer qualquer coisa para ajudar aqueles desgraçados.
Depois, para não ter uma indigestão, muda rapidamente de assunto... E eu, que
farei, quando for grande, pelos meninos de barrigas grávidas de fome?
Uma coisa é certa: em cocktails não hei-de gastar dinheiro! Agora, a grande
novidade: a avó Ju contou-me que o psicólogo do Traumatizado chamou a
minha mãe para uma conversa. Será que quer falar-lhe sobre a carta que lhe
escrevi há tempos? Ou será que o Pré-histórico é um caso incurável? Pode ser
que a minha mãe conte tudo à minha avó, sim, porque comigo já sei que não
fala de certezinha. Acha que ainda sou uma criança. Tenho visto o teu irmão
com a tal ruiva que parece o Adamastor. Aquilo deve ter pegado. Vejo-os muitas
vezes no café e ontem até a encontrei no elevador do nosso prédio. Estive para
lhe perguntar pelo Diogo, mas não quis que ela pensasse nada de errado.
Quando o vir, falo com ele. Espero que não deixemos de ser amigos só porque
ele arranjou uma namorada, mesmo que ela seja a versão feminina do
Adamastor. E olha que é feia de meter dó, a rapariga! Feia como uma noite de
trovoada. Para ele gostar dela é porque a Adamastora deve ser uma jóia de
pessoa. Mas, cá para nós, fica muito mal ao pé do teu irmão. Esteticamente é
um conjunto desastroso, ainda por cima a miúda anda sempre vestida e calçada
de preto. Tudo preto da cabeça aos pés. E usa o cabelo quase rapado (se
calhar tem caspa...).
Esqueci-me de te dizer que o Luís, lá da nossa turma, tem participado imenso na
peça e, coisa que eu não sabia, tem um jeitão para teatro. Ajudou-nos no texto e
é um dos actores. Estou orgulhosa. Sempre tive muita fé naquele rapaz. Vou
sentar-me na minha lua a reler os poemas da Sophia de Mello Breyner. Não há
sítio melhor para os ler! Um beijo da

Joana
Lisboa, 7 de Dezembro de 1992
Querida Marta,

A última semana foi um corre-corre. Não tive mãos a medir. Primeiro, a festa
na loja da minha mãe (que correu menos mal, mas para mim foi um
sacrifício). Depois, o ensaio geral, que mostrou que ainda é preciso tratar de
alguns pormenores. Os testes acumularam-se, como sempre, e a minha
aguarela ocupou-me os tempos livres, mas acabei-a: são três manequins
numa montra, com vestidos imaginados por mim. Os tons que escolhi são os
amarelos (claros e escuros) e os laranja (com toques de vermelho). Se a
minha mãe não gostar é porque estragou o gosto, o que seria péssimo, já que
o bom gosto é a sua maior qualidade, talvez mesmo a única. Mostrei-o à avó
e ela achou bem. Não sei se estava só a ser simpática, mas talvez não.
Ainda não pensei o que hei-de oferecer ao meu pai, e o Natal está à porta. à
minha avó vou dar um perfume, que é a sua única extravagância, como ela diz.
Quanto ao Traumatizado, não penso dar-lhe nada. Está farto de implicar comigo
e continua a pôr a música aos berros. Afinal, aquela história da conversa do
psicólogo com a minha mãe não deu em nada de especial. A avó Ju só disse
que, na opinião do psicólogo, o Pré-histórico está a fazer progressos. Não vejo
em quê! Vou pedir para me oferecerem uns óculos no Natal, porque devo estar a
ficar cegueta. Também gostaria de oferecer uma prendinha à tua mãe, mas não
faço ideia do que há-de ser. Vou sentar-me na lua, para ver se me inspiro.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 20 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Estive um tempão sem escrever, porque a verdade é que andei tão ocupada
que nem senti essa necessidade.
As notas do 1º período foram boas, mas o melhor de tudo foi o nosso teatro,
Os Amigos da Onça! Um autêntico sucesso, palavra! Estava quase a escola
em peso no auditório. A directora de turma filmou tudo e diz que no próximo
período leva a cassete para a escola para todos vermos. O teu pai não
foi, mas a tua mãe apareceu e levou o Diogo, só que ele saiu a meio, acho
que não aguentou... Fez-se um dinheirão e o Conselho Directivo já deu
autorização para fazermos as obras na nossa sala de convívio. Os
cenários ficaram impecáveis e o Luís recebeu uma enorme ovação no
final. Eu dei-lhe os parabéns e disse-lhe que ele tem de ser actor. Toda a
gente achou a peça comovente, especialmente os pais, e o presidente
do Conselho Directivo discursou, depois da representação, a agradecer o
nosso trabalho e a dizer que foi com certeza muito útil termos abordado um
tema que não está, de modo algum, esgotado. A tua mãe veio dar-me um
beijo, antes de ir para casa. Estava muito impressionada e disse que o João
Pedro e eu não éramos teus amigos da onça, mas sim, amigos de verdade.
Pois é, Marta, nós não merecíamos o que tu fizeste. Disso tenho a certeza.
Como se esperava, da minha família só foi a avó Ju. Sem comentários...
Tenho de ir fazer as minhas compras de Natal, mas como é que eu faço isso
sem ti?!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 22 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Ontem, depois de jantar, fui a tua casa. Quando entrei, cruzei-me à porta com
uns amigos do teu irmão que tinham um aspecto esquisito (esquisito é piropo,
eram praticamente piolhosos - cabelo oleoso, borbulhas a dar com um pau,
colarinhos sebentos, dedos amarelos e ténis supernojentos). Pareceu-me já ter
visto um deles em tua casa e acho que o conhecias. O Diogo conversou um
bocado comigo e disse-me que tinha acabado o namoro com a Adamastora.
Afinal, não devia ser nenhuma jóia... Falou do Natal e disse que, para ele, não
tem qualquer significado. Tentei dissuadi-lo, mas não lucrei nada.
Fui também falar com a tua mãe e oferecer-lhe uns doces que pedi à avó Ju
para fazer. O teu pai estava de cama, com gripe.
Fui ao quarto desejar-lhe bom Natal. Quando me despedi, a tua mãe
começou a chorar. Foi horrível! Não sabia que dizer-lhe, por isso abracei-a e
ficámos assim uma data de tempo, em silêncio. E o silêncio falou por nós.
Quando cheguei a casa, o meu pai já tinha vindo do consultório. Chamou-me
da sala e perguntou-me o que queria de presente. Eu vinha ainda atordoada e
não respondi. Disse-me então para me sentar ao pé dele.
Nem me lembro já quando foi a última vez que isto aconteceu. O certo é que não
fui capaz de conversar.
Então, ele sugeriu um computador, sabia que eu queria um desde o ano
passado e que agora era boa altura para mo dar. Estava muito contente com
as minhas notas como sempre e lamentou que o Traumatizado não fosse como
eu... Expliquei lhe que o Jorge não liga nenhuma ao computador dele e que,
quando eu quisesse, podia trabalhar nele, que não valia a pena comprar outro.
"Então que é que há-de ser, filha?" perguntou. "Pode ser... um relógio",
gracejei, mas acho que ele não percebeu a piada, porque fez um ar sério de
quem ia pensar no assunto. Depois, respirou fundo e desculpou-se: "Não
pude mesmo ir ver o teu teatrinho da escola. Tive muita pena, mas não me
foi possível. Espero que compreendas." Leva

ntei me do sofá, dei-Lhe um beijo e fui-me deitar.


Agora sei o que podia ter-lhe dito. O que devia ter dito. Mas ele já não está
em casa...
Como é que se diz a um pai que devia ser possível vê-lo um pouco mais do
que duas horas por semana; que devia ser possível a um pai conhecer a filha
que tem?
Acho que vou comprar o perfume para a minha avó. As lojas ainda estão
abertas. Se me sobrar dinheiro, quero ver se compro também uma prendinha
para a filha da nossa porteira.
Reparei que olha imenso para os meus ténis e nunca Lhe vi nenhuns. A minha
mãe, de vez em quando, dá-lhe roupas que já não me servem, mas no Natal é
suposto receber-se coisas novas.
Vou sair.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 24 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

São três da manhã. A ceia decorreu como de costume. A minha mãe fez um
arranjo de mesa espampanante; a comida chegava para dez famílias (lá foi a
avó Jú fazer embrulhos para os pobres da zona); as velhotas do meu pai
mandaram as lampreias de ovos da praxe, e a Lisete do consultório fez as
rabanadas. A árvore de Natal este ano era artificial, a meu pedido. Expliquei à
minha mãe que, com os incêndios que tem havido todos os anos, é indecente
cortar pinheiros para uma noite... O presépio, como sempre, fui eu que fiz e
estava rodeado de prendas quase até ao tecto.
O meu irmão (como é Natal, não lhe chamo os nomes habituais) só ofereceu
uma prenda à minha mãe (um espelho de carteira) e, percebendo tudo com
antecedência, a avó Jú foi a correr buscar umas caixinhas de bombons para ele
dar ao resto da família...
O descarado, claro, aceitou a ideia. Eu ofereci um livro de receitas em branco à
avó Ju e pedi-lhe que me passasse lá todas as receitas fabulosas que ela
sabe, para ficarem comigo para sempre. à avó dei também uma saquinha para
as agulhas de tricô. Entreguei o quadro à minha mãe e ela disse que vai
mandar emoldurá-lo e pô-lo no quarto... Expliquei-lhe que o tinha pintado para
a loja, mas ela respondeu que para a loja, já comprou três que ficam a matar...
A minha avó ficou mais triste do que eu. Ao Jorge não era para dar nada, mas
acabei por comprar-Lhe umas luvas de cabedal que ele disse à avó que
queria. Finalmente, ao meu pai ofereci uma Parker (que levou o resto
das minhas economias) com um cartão que dizia "não telefones a dizer
que não vens jantar. Escreve. Recebemos a mensagem com algum
atraso, mas é muito mais original. Um beijo da tua filha." Ele leu, sorriu e
disse que a caneta era gira.
Quanto ao que recebi, vou fazer uma lista:
Avó Ju - uma camisola azul feita por ela, uma cassete do Sting, que eu queria,
e um anjinho feito de açúcar com um cartão queridíssimo que dizia "Este anjo
és tu. Um beijo da avó"; Mãe - cinquenta mil roupas de várias marcas e com
vários objectivos específicos, das quais só gostei mesmo de um fato de treino
para levar para o básquete; Padrinhos - um envelope com dinheiro (que falta
de imaginação... ); Jorge - zero (a caixa de bombons não conta); Pai - o que é
que havia de ser? Não quis acreditar, mas foi mesmo um relógio. Deve ter
achado que eu queria realmente outro. Não há nada a fazer... Esqueci-me de
dizer que a avó Ju e eu demos um presente à Leonilde, que bem merece por
nos aturar. Comprámos-lhe, a meias, uns lençóis que ela andava a namorar.
Quanto à filha da nossa porteira, sempre Lhe ofereci uns ténis (também a
meias com a minha avó, porque quis que fossem uns iguaizinhos aos meus de
que ela tanto gosta).
Agora, o mais extraordinário: ontem à tarde, vieram cá a casa entregar um
embrulho para mim. Quando cheguei das compras, abri-o e ia caindo
quando encontrei um livro, A Luta de Classes, com um cartão dourado do
João Pedro onde estava escrito o seguinte "Como sei que curtes ler,
ofereço-te este livro que é fundamental! Espero que gostes. Um beijo." Só
me faltava isto! Já vi que temos de arranjar bem depressa outra actividade
qualquer para o João Pedro, se não, volta rapidamente e em força às
politiquices. Acabou-se o teatro, zás!, vamos outra vez à luta de classes... O
pior é que nem sei o que hei-de inventar quando me perguntar se gostei do
livro. O melhor é dizer que foi muito educativo. Julgo que esta resposta deve
servir. O meu pai riu-se à gargalhada quando viu e comentou que era
engraçado que eu tivesse um admirador revolucionário. Sem palavras...
Não tenho sono. Acho que vou sentar-me um bocadinho na minha lua a pensar
em tudo o que aconteceu de importante desde o último Natal. Sei que vais estar
sempre no meu pensamento.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 27 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Hoje de manhã, o Diogo apareceu-me cá em casa para me trazer um presente!


Fiquei radiante. Nunca pensei que se lembrasse de mim. É uma caixinha de
música toda branca (eu tinha-lhe falado do meu quarto) com um pássaro em
cima, também branco. É lindíssima! Até fiquei comovida! Agradeci-Lhe e fiquei
tão embasbacada que ele riu-se e disse que não era nada de especial e que só
queria dizer que continuava a ser muito meu amigo. Dei-Lhe um beijo tão
ruidoso que se deve ter ouvido no prédio inteiro. Convidei-o para almoçar cá em
casa, porque o Pré-histórico está em casa de um amigo. Aceitou e estivemos os
dois imenso tempo a conversar. Quis falar de ti, mas achei que o ia
entristecer, de maneira que falámos de outras coisas. Só saiu de cá às cinco
horas. Foi o máximo!
Penso que vou fazer uma aguarela para dar ao teu irmão. Ao contrário da
minha mãe, tenho a certeza de que ele vai gostar.
Um beijo da

Joana

P.S. Telefonei ao João Pedro a agradecer o livro. Ficou histérico: "Ainda


bem que gramaste, Joana. Curti bué escolher
um livro para ti! Fixe que tivesses gostado!" E eu que nem Lhe
disse se tinha lido...

Lisboa, 1 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Nunca dei grande importância às festas de passagem de ano. A minha mãe é


que adora. Ainda ontem enfeitou a casa como se fosse Carnaval e convidou um
montão de gente. Fizeram um barulhão incrível! As amigas da minha mãe falam
altíssimo e não se sabem rir. Há risos que deviam ser proibidos, são alfinetadas
nos tímpanos e irritam, até fico com pele de galinha! O Pré-histórico, depois da
meia-noite, foi sair com uns amigos. Eu não tive vontade nenhuma de sair, nem
sequer de ficar na sala no meio da confusão. Estava cheia de sono e fui-me
deitar ainda não era uma hora. O pior foi depois. Claro que não conseguia
dormir com a barulheira e, quando finalmente adormeci, tive outro pesadelo
contigo. Não sei quando é que isto acabará. Levantei-me a meio da noite a
transpirar e fui à casa de banho beber água. Por azar, cruzei-me com a tia
Nicha:
outro pesadelo. Pegou-me por um braço e começou a dançar uma espécie de
valsa comigo no corredor e a dizer que eu devia estar mais animada... As
pulseiras chocalhavam-lhe nos pulsos como badalos, e os olhos, pintadérrimos,
pareciam artesanato índio. Assim que me livrei dela, fugi para o quarto e
tranquei a porta. Como trouxe algodão da casa de banho, enfiei uma bola
em cada ouvido e meti a cabeça debaixo da almofada. às quatro da
manhã, ainda estava acordada!
É claro que hoje só me levantei ao meio-dia. O Homem das Cavernas chegou
às sete da manhã um bocado grosso, a cantar «Knock, knock, knocking on
Heavens door...» Zás!, estampou-se no hall e acordou a casa inteira. Depois, a
avó Ju foi levá-lo à casa de banho para ele vomitar. Nhac! Não era eu! A
minha avó é uma santa, desculpa tudo a toda a gente. A casa de banho
ficou empestada! É claro que, quando o Traumatizado se levantou, às três
da tarde, estava com cara de zombie e ainda cheirava a tabaco e a vinho
que até enjoava. Lá foi o meu pai dar-lhe um remédio qualquer para ele
acordar de vez. Realmente não sei que piada terá uma pessoa
embebedar-se! Eu acho um nojo. Absolutamente degradante.
Hoje, primeiro dia do ano, resolvi tornar-me vegetariana. Desde que fui à
Liga para a Protecção da Natureza que fiquei a pensar no horror que é
comer animais! É indecente, porque eles não nos comem a nós. Claro que
não me vou pôr a fazer exigências especiais à Leonilde ou à minha avó. Vou
simplesmente comer apenas os acompanhamentos (saladas, esparregado,
etc.) e passo a beber mais leite e a comer mais iogurtes e fruta. Se ficar com
fome, encho-me de sopa (não gosto muito, mas passo a gostar). Estou
felicíssima com a minha decisão! Só espero que a minha mãe não desate a
implicar comigo por isto.
Resolvi também dar as roupas que não ponho (algumas nunca usei) aos
pobres da avó Ju. Tenho o armário a abarrotar de trapos que nunca visto e isso
é injusto. Nem mostro à minha mãe os sacos que encher, porque com certeza
teria um ataque. A verdade é que não preciso de metade das coisas que tenho
e farto-me de dizer isto à minha mãe, só que ela não percebe; para a minha
mãe, roupas e sapatos nunca são demais... Por ela, só se dariam os fatos de
treino, as jeans, as T shirts e os ténis, resumindo, as únicas coisas que eu
realmente uso. E pronto. Chega de decisões por hoje.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 9 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Já estamos no 2º período. Logo no primeiro dia de aulas, houve cena entre o


Ninja e o João Pedro. Foi durante o intervalo grande da manhã. Estava eu no
bar a comer uma sanduíche de queijo (aboli o fiambre de vez), quando aquele
contínuo velhote, o senhor Armando, me veio chamar para ir ao Conselho
Directivo. Cheguei lá e o professor João Antunes disse que, como a directora
de turma não estava e os dois rapazes tinham pedido para eu ser chamada,
gostaria que eu tomasse conhecimento do que tinha sucedido com os meus
dois colegas. Fiquei sozinha no gabinete com os dois e, quando perguntei ao
João Pedro o que tinha acontecido para ele estar com os óculos todos tortos e
o Ninja com o cabelo em pé, ele respondeu-me: "Foi aqui o Bruce Lee que
começou a chamar-me comunóide..." O Ninja defendeu-se: "E ele chamou-me
neonazi, Joana!"
Tive vontade de rir. O Ninja nem devia saber que nome era aquele. Deve pensar
que nazis são os alemães que usam bigode igual ao do Hitler. Dei duas
tossidelas e voltei a perguntar, desta vez ao Ninja: "Qual foi a ideia de chamares
comunóide ao João Pedro? Ele há séculos que nem fala de política!" O Ninja
esclareceu: "Comunóide é um andróide comuna. É isso que ele é.
Uma espécie de humanóide, com a mania que é russo." O João Pedro ia a
atirar-se a ele. Separei-os. "Ouçam lá, mas vocês estão na Infantil, ou quê?!
Vamos, estão à espera de quê para darem um aperto de mão? Olhem que eu
não tenho o dia todo e o professor está lá fora à espera. Que é que querem
que eu lhe diga, hein? Que estão a discutir qual dos dois é mais andróide?!" O
João Pedro olhou-me de testa franzida e perguntou: "Tenho alguma
alternativa?" "Tens. Se preferires, podes dar-Lhe um chocho na testa",
respondi na maior das calmas.
Quando o professor Antunes entrou no gabinete, já eles estavam a
cumprimentar-se, a fingirem que nada tinha acontecido e que eram amigos do
peito. Depois, o professor mandou-os sair e perguntou-me o que se passava
com aqueles dois caramelos. Tranquilizei-o: "Nada, stor. Só tiveram uma
pequena divergência por causa de um filme de ficção científica... Nem vale a
pena dizer nada à nossa directora de turma. Eles já fizeram as pazes." O
professor encolheu os ombros e disse-me que eu podia ir para a aula. No
intervalo seguinte, o João Pedro veio agradecer-me a minha intervenção na
câmara dos calores. Disse-Lhe que ele era parvo e que o Ninja não lhe ficava
atrás. Ficou um bocado amuado comigo e não voltou a falar-me até ao fim da
manhã.
Os da nossa turma começaram a gozar comigo por eu levar cenouras
descascadas para comer nos intervalos. Mas ninguém se atreveu a chamar-me
coelho, vá lá... Assumi que passei a ser vegetariana e avisei que quem tivesse
alguma coisa contra, o dissesse na minha cara. Ninguém abriu mais a boca.
Nem as Lopes!
Preciso de reorganizar o caderno de Matemática. Emprestei umas folhas à
Sara e ainda não tenho as coisas em ordem.
Um beijo da

Joana

P.S. O Traumatizado anda a fumar quase um maço por dia! Os pulmões dele
devem ser uma caverna escura igual à que tem no lugar do cérebro. Aquele
psicólogo deve ser um andróide...

Lisboa, 13 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

O Diogo teve ontem um ataque de asma daqueles que já não tinha há


muito tempo. Os teus pais até o levaram ao hospital.
Fui vê-lo hoje, assim que cheguei da escola. Não quis entrar em pormenores.
Explicou-me apenas que se tinha enervado com uma coisa estúpida, mas que já
passou. "Então foi como a anedota do jacto...", brinquei. Ele sorriu. Pareceu-me
outra vez triste. Confessou que não anda com paciência para estudar
e que gostava de arranjar um emprego. Claro que lhe disse que
aquilo era uma coisa sem pés nem cabeça. Saí de lá convencida
de que ele precisa urgentemente de uma namorada, alguém que o
apoie, que tenha miolos.
Se eu pudesse arranjar-lha, garanto que o faria. A avó Ju e a minha mãe
fazem anos amanhã. Como é possível que duas pessoas tão diferentes
tenham nascido no mesmo dia?!
É por estas e por outras que eu não acredito nessa treta dos signos e dos
astrólogos. É tudo conversa fiada para imbecis. Lá na aula, só as Lopes é que
acreditam nessa tanga. Continuam a comprar as revistas que trazem os
horóscopos e tudo. É preciso ser muito ignorante!
O meu pai pediu-me para ir comprar as prendas. Era previsível...
Tenho de sair.

Um beijo da

Joana
P.S. O Luís inscreveu-se num clube de teatro amador. Ainda bem que seguiu
o meu conselho. Tem cá um jeitão!

Lisboa, 15 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Ontem, o dia foi estafante. Com os anos das duas senhoras da casa o telefone
não parou de tocar.
Vieram cá entregar uma data de ramos de flores, e o jantar prolongou-se até
às tantas, porque a família veio em peso. Claro que isto tudo foi especialmente
pela avó Ju, porque toda a gente gosta dela.
Fiz questão de ajudar a fazer o bolo de anos das duas, que ficou dividido ao
meio com fios de ovos. Era descomunal! à minha mãe comprei uma planta
para ela pôr na loja (desta vez, acho que não vai ter lata de não pôr lá a
planta). à minha avó ofereci uma coisa especial: como a moldura do retrato
do meu avô estava muito velhota, fiz eu uma, em madeira forrada de tecido, e
coloquei-lhe à volta uma fita de seda que era de um vestido feito pela minha
avó quando eu tinha 8 anos, o meu preferido, por isso nunca deixei que o
dessem. Pus lá dentro a fotografia do meu avô (que ela tem sempre à
cabeceira) e coloquei a prenda numa caixinha de cartão (que também fiz). Ela
adorou e comoveu-se ao perceber de onde eu tinha tirado a fita de seda.
O Pré-histórico, vá lá, esmerou-se e comprou duas caixas de nozes
caramelizadas. Nem sei o que lhe deu. Se calhar, foi o psicólogo que lhe disse
alguma coisa que o deve ter feito pensar que, para variar, devia mostrar-se
agradecido. Esta proeza foi tão notada por todos que até o meu pai fez uma
algazarra, a gabá-lo por se ter lembrado das prendas. E a minha mãe fez uma
fita, a dizer que ele era um amor... Enfim, lamechices, para ver se ele se
modifica, está na cara. Achei um pouco estranho que o meu pai não tivesse dito
nada sobre a minha moldura, porque, afinal, é para o retrato do pai
dele. Talvez tenha sido para o Traumatizado não se sentir inferior. Ou então
nem ligou... Bem, nem vale a pena falar nisso.
Os meus primos gémeos também vieram à festa. Estão ainda mais snobes do
que eram (e eles já são snobes desde os cinco anos)! Vinham de blazer e
gravata, sapato italiano e com um perfume fortíssimo que empestou a sala.
Estão numa universidade particular qualquer, porque não tiveram notas nem
para a oficial nem para a Católica. Mas estavam cheios de peneiras, armados
em doutores. E é uma sorte se conseguirem passar do 1º ano. Trouxeram
umas florzecas à avó Ju e só falaram comigo para me perguntarem se eu
continuava a ter boas notas. "Não", respondi com cara de atrasada mental,
"resolvi dedicar-me à pesca, para ver se consigo entrar, um dia, para a
vossa universidade." Não lhes disse mais nada, porque o meu pai olhou para
mim com cara de poucos amigos.
Enquanto estava a decorar o bolo de anos, lembrei-me de que talvez seja cruel
estarmos sempre a roubar os ovos às galinhas; por outro lado, se de todos os
ovos nascessem pintainhos, o mundo era uma capoeira gigante. Por esta
razão, o facto de comer ovos não entra em contradição com a minha nova
condição de vegetariana e defensora dos animais. Fiquei mais tranquila.
Vou-me deitar. Talvez hoje consiga dormir sem ter pesadelos. Seria um milagre!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 20 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Ontem à noite, ouvi a minha mãe conversar com a avó Ju sobre o Traumatizado.
Eu ia a entrar na sala para ir buscar um livro de Fernando Pessoa que ando a
ler, quando percebi que falavam do meu irmão. Estaquei e fiz uma coisa que
não é do meu estilo: pus-me à escuta. Estava com imensa curiosidade e tinha
a certeza de que, mal eu pusesse os pés na sala, mudariam de assunto. A
minha mãe disse que está muito preocupada, porque o Jorginho não está
motivado para o estudo... A verdade é que ele não está motivado para nada que
dê trabalho, mas, cá em casa, parece que só eu é que percebi isso. Disse ainda
que até o meu pai anda muito ansioso, a pensar no futuro do filho. Fiquei
admirada. A coisa deve estar mesmo preta para o meu pai se ter apercebido da
situação! Estive para entrar de rompante na sala e explicar que o que deviam
era tirá-lo do psicólogo, proibi-lo de andar de moto e de ouvir música aos berros
e, acima de tudo, arranjar-lhe um emprego nas obras. Se trocasse o capacete
da moto por um da construção civil, logo via se ficava ou não motivado para
andar a carregar com sacos de cimento! Tive uma vontade enorme de gritar isto
aos ouvidos da minha mãe, mas achei que não valia a pena causar-lhe um
ataque de choro, daqueles que a fazem acordar no dia seguinte com enxaqueca.
Palavra que não consigo compreender os meus pais. Se querem que o Homem
das Cavernas evolua, ponham-no a trabalhar! É a única solução.
Como é que eles não vêem isso?! Será que é preciso um psicólogo para
educar um filho?! É que o problema dele tem só um nome: má educação e
ponto final. Mas isso de educar deve dar muito trabalho, de maneira que já que
podem pagar, metem-no no psicólogo e fazem de conta que ele é um doente.
Isto é o cúmulo!
Estou farta de viver numa casa onde ninguém quer ver a verdade, Marta, E o
mais grave é que ainda não sei porquê. Será que a verdade ainda é pior do
que eu calculo? Vou estudar.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 28 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

O Luís lá da nossa turma vai entrar na sua primeira peça a sério, no clube de
teatro amador onde se inscreveu e convidou-me para assistir a um ensaio!
Fiquei
entusiasmadíssima. Eu não tenho jeito para representar e talvez por isso
admire tanto o Luís. Ainda esta manhã, no intervalo grande, estive um
tempão a conversar com ele sobre teatros (os que são representados num
palco e... os outros...). Foi uma conversa incrível, que disso o Luís fala como
gente grande. No fim, tocou, disse-lhe: "Vou prometer te uma coisa. Se tu
morreres antes de mim (o que é provável, porque os bons vão sempre à
frente), mando escrever uma placa para pôr sobre a tua campa: "Aqui jaz
Luís, que sabe e saberá sempre o que diz". Riu-se. Depois, quando íamos
a entrar para a sala de aula, perguntou-me: "Tu acreditas mesmo que
somos imortais, não acreditas?" Sorri-lhe e respondi: "Claro. Por isso é que
me tornei vegetariana." Ele olhou para mim sem perceber. Confesso que
também não percebi por que razão disse aquilo. Enfim, só o Luís sabe
sempre o que diz... Vou pintar um bocadinho, enquanto há luz.

Um beijo da

Joana
P.S. O Ninja voltou a andar à tareia, desta vez com o Game Boy. Deixou-o
com um olho à Belenenses e rasgou-lhe a sweat-shirt (que o pai lhe tinha
trazido dos Estados Unidos).
Foi uma cena triste. Não há pachorra!

Lisboa, 3 de Fevereiro de 1993

Querida Marta,

Odeio a época do Carnaval. Sempre detestei carnavalices. Lembro-me


daquelas fatiotas ridículas que a minha mãe nos obrigava a vestir (a mim e
ao Traumatizado) quando éramos pequenos. Acho que nunca me
esquecerei daquelas cenas tristes que, inexplicavelmente, faziam sempre rir
os grandes. Tenho cá um azar ao mês de Fevereiro! Na escola é o desatino
do costume: continuam com as abomináveis tradições de atirar ovos, água,
tinta e outras bodegas para cima de toda a gente, como se isso tivesse
alguma piada. É incompreensível. Num mundo onde milhões morrem à
fome, gastam-se ovos e tomates em guerrilhas nos corredores das escolas!
É isso , proibido, claro, mas, pelo menos todos os anos é a mesma guerra.
Lá vão uns dias para casa, de castigo, mas não se ralam, muito pelo
contrário. Este ano, já avisei: se me atiram alguma porcaria para o cabelo,
demito-me de delegada. E desfaço o palhaço que me sujar, Mas desfaço
mesmo. E eles já sabem que eu tenho mais força do que muitos lingrinhas
da turma, por isso acho bem que não se armem em parvos. No sétimo
arruinaram-me um fato de treino novinho em folha, lembras-te? Pois é, e eu
jurei a mim própria que nunca mais iria deixar que me fizessem o mesmo. E
tu sabes o que eu sou com as juras. Espero que eles já me conheçam
minimamente!" palavra Que Não percebo, que maneiras mais estúpidas de
se divertirem. Entre isto e as festas de Carnaval da minha mãe, que venha o
diabo e escolha... O Ninja já prometeu defender-me, coitado, mas eu disse-
Lhe que não era preciso, e o João Pedro acrescentou: "Joana, Tá
descansada ninguém quer que tu deixes de ser delegada. E toda a gente
sabe que, se te der uma veneta, demites-te mesmo e és capaz de não falar
a ninguém um ano inteiro." Exagerou, claro, mas foi com boa intenção. O
Luís acha que ele anda apaixonado por mim, imagine-se! O João Pedro e
eu? Nem morta! Nem que ele fosse capaz de me converter ao marxismo!
Por falar em paixões, vi o teu irmão com uma nova amiga, aqui no café da rua.
Não sei onde a desencantou. É bastante diferente da Adamastora, diga-se de
passagem. Mais gira, mais baixa e menos esgroviada. Enfim, até tem um ar
civilizado. Aproximei-me da mesa onde estavam sentados e o Diogo disse me
para lhes fazer companhia. Sentei-me. Pedi um sumo natural e fiquei a olhar
para a rapariga a ver se ela se descosia. Népias. Não foi capaz de abrir a boca
durante todo o tempo em que eu estive no café. Até me fez impressão! Como é
que alguém pode aguentar tanto tempo calado?! Suponho que o Diogo é que
deve falar pelos dois, o que também não há-de ser fácil, porque ele fala pouco,
ainda menos do que o meu pai. Percebi que namoram, porque estavam de mão
dada e ela sorria embevecida, como se eu não estivesse ali. Cá para mim, ela é
mais vazia do que um pneu furado em três sítios, mas o Diogo é que sabe. É
estranho, mas sempre que penso na namorada ideal para o Diogo imagino-a
muito mais velha, tipo universitária de sucesso, com um livro de 900 páginas na
mão e cara de mãe. Julgo que, com uma rapariga assim, ele poderia finalmente
desabafar, trocar ideias interessantes, despir aquele ar triste com que tu o
deixaste e que nunca mais o largou. Se eu soubesse onde se encontra essa
personagem, juro que a iria buscar, nem que fosse ao Nepal! O Diogo preocupa-
me, Marta. A mim e aos teus pais. É uma pena que ele não seja capaz de deitar
cá para fora tudo o que lhe vai na alma e que ele guarda tão lá no fundo que já
cheira a bolor. O Diogo tem os olhos embaciados de tanta amargura e os cantos
da boca mal se mexem, mesmo quando tenta sorrir. Quis perguntar-Lhe como
vão as aulas, mas achei que não era o momento oportuno. Um dia destes hei-
de ir lá a casa dar-lhe uma palavra ou duas (que mais ele não ouve.).
Vou descer da minha lua e sentar-me à escrivaninha, Tenho de estudar
enquanto o Traumatizado não chega, depois é uma barulheira e adeus
concentração.

Um beijo da

Joana

P.S. Parece que o Miguel II anda com a Sara. Aliás Não sei se é namoro ou
curtição, nem sei se será verdade. Foram as gémeas
que me contaram...

Lisboa, 18 de Fevereiro de 1993

Querida Marta,

As últimas semanas foram uma espécie de deserto. Não li nada, não te escrevi,
não tive fome e não consegui ter uma conversa decente com ninguém. Para
cúmulo tive dois pesadelos contigo (qual deles o pior...)
O pai jantou em casa três vezes nos últimos quinze dias, e a minha mãe anda
com enxaqueca...
Mas há mais: a nossa empregada voltou a ameaçar despedir-se por causa das
alarvices do Pré-histórico, e a avó Ju não tem andado a sentir-se bem. O quadro
é negro, por isso nem me atrevo a pegar nos pincéis para começar uma nova
tela. Acho que saíria apenas um gigante borrão preto.
Só hoje tive momentos agradáveis na escola. O Luís esteve a conversar comigo
um tempão e deixou-me mais animada. É tão bom falar com o Luís! E,
sobretudo, é bom ouvi-lo! De dia para dia está mais adulto, mais interessante e...
mais giro. Ele nem era nada de especial no ano passado, mas agora está a fazer
grandes progressos em todos os sentidos. Acho que toda a gente
reparou, mas alguns não lhe ligam porque o acham um bocado intelectual.
Julgo que deve ser por ele se ter inscrito no grupo de teatro amador. Por mim,
ele até poderia inscrever se num grupo de pedintes profissionais e ir tocar
bandolim para o metro, que não faria a mínima diferença. O Luís sabe o que
faz e o que quer, e é disso que alguns têm inveja. Disso e do facto de ele ter
um metro e oitenta e dois e olhos inacreditáveis. Aqueles olhos são uma
inspiração. Estou convencida de que nas aulas em que ele está sentado na fila
da frente os professores dão melhor a matéria. Pode parecer absurdo, mas eu
penso que é mesmo assim. Eu, por exemplo, se fosse professora, gostava que
todos os alunos fossem Luíses, mas só se me dessem turmas de
sobredotados, o que não é provável, porque eu não saberia dar-Lhes aulas de
nada... Enfim, há pais que têm sorte. Os do Luís devem ter programado
muito bem as coisas para lhes sair um filho daqueles. Se calhar, usaram
métodos de concentração especial, sei lá, uma espécie de meditação
transcendental, como fazem os monges do Tibete. E ele saiu assim como se vê:
perfeito. Gostava de conhecer os pais do Luís, perguntar-lhes qual é o segredo.
É que sujeitar-me a ter um Pré-histórico como filho é muito mais do que eu
poderia suportar! Acho que vou pintar. Agora, estou inspiradíssima!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 27 de Fevereiro de 1993

Querida Marta,
Vai tudo de mal a pior nesta casa de doidos!
O Traumatizado só tira negas. A Leonilde despediu-se mesmo, e a minha mãe
está a ver-se grega para arranjar outra empregada.
O meu pai cada vez trabalha mais, acho que está realmente viciado, e isto não
é exagero nenhum, porque eu li numa revista que estava na sala de espera do
dentista que os Americanos descobriram que, tal como há alcoólicos, também
há uma coisa que, traduzida em português, deve dar trabalhólicos, que são os
dependentes, os viciados no trabalho. É uma doença, e o meu pai devia ir
tratar-se, mas se eu lhe falar nisto ele desata-se a rir de certezinha, de maneira
que não vale a pena. Eu devia era ter arrancado a folha da tal revista onde
vinha esta descoberta científica, para ele ver que não é treta nenhuma, é um
assunto muito sério. Agora a pior notícia de todas: a avó Ju não está nada bem
de saúde. O médico já veio cá a casa e diz que o coração dela está fraco..
Pediu-nos para não a arreliarmos e para nos certificarmos de que ela toma
sempre os remédios. Quem devia ter ouvido a conversa era o Traumatizado,
que é o responsável-mor pelas discussões cá em casa. Como, na altura,
estava em casa de um amigo (aquele que anda sempre com headphones e
usa rabo de cavalo), assim que o senti chegar, fui bater-lhe à porta do quarto e
tentei, num português o mais primário possível, explicar-lhe a situação da avó
Ju. A conversa (se se pode chamar assim) foi mais ou menos isto: "O
médico da avó esteve cá e disse que temos de ter todo o cuidado para não a
aborrecermos, porque ela está pior do coração, percebes?" "Hum", foi a única
resposta que obtive. Não há nada a fazer quando se tem um irmão que grunhe
monossílabos e o resto da comunicação é feita por gestos. Aliás, talvez ele
devesse aprender a linguagem dos surdos-mudos, podia ser que
conseguíssemos compreendê-lo melhor. É uma pena que o psicólogo ainda
não tenha conseguido mudá-lo nem um bocadinho, pelo menos ensiná-lo a
soletrar: p - a - pa, t - o - to, pato. Podia começar assim. Aquele psicólogo é
um incompetente, um explorador dos bolsos dos meus pais e da minha
paciência. A verdade é que cada vez tenho menos pachorra para o meu irmão
e um dia vou desistir. É um bocado dramático saber que isto vai mesmo
acontecer, mas cada vez estamos a afastar-nos mais, parece um processo
imparável, assim uma espécie de coisa fatal. Deve ser desta casa, que me
parece cada vez maior e mais vazia. O único coração (apesar de fraco) que
ainda se ouve bater é o da avó Ju. Até quando? Tenho pavor de pensar nisso!
Ontem à noite, sentei-me na cama dela, esperei que ela adormecesse e depois
ajoelhei-me ao pé da cama e encostei-me ao ouvido dela para lhe dizer uma
coisa que eu queria que lhe entrasse directamente para o cérebro durante o
sono. Segredei-lhe: "Olha, avó, eu sei que vais recuperar, tens de recuperar,
porque eu não acredito que queiras abandonar-me. Seria uma grande injustiça
e tu não me farias uma coisa dessas, tenho a certezinha." Espero que o
subconsciente da avó Ju não me tenha pregado a partida de ignorar o meu
pedido!Espero! Estou sem vontade de pegar nos livros. Grave, não é?

Um beijo da

Joana

Lisboa, 15 de Março de 1993

Querida Marta,

Tenho andado muito... acho que a palavra certa é desmoralizada. Por isso
não tenho escrito nem pintado, nem coisa nenhuma que interesse. A minha
avó melhorou um bocadinho na semana a seguir à visita do médico, mas
depois piorou outra vez e até o meu pai tem andado com cara de caso prova
de que a minha querida avó está mesmo mal. Eu não quero estar sempre a
pensar nela e tenho sido tão covarde que até evito olhar-lhe muito para a cara
porque me faz uma pena danada não poder dar-lhe um coração novo, novinho
em folha, o meu, por exemplo, não o que tenho agora, claro, mas o que eu tinha
dantes, quando tu estavas por cá... Tenho rezado à noite, para ela não ter de ir
para o hospital, porque sei que ela detestaria que isso acontecesse. Deus há-de
ver que é um pedido mais que razoável.
Mudando de assunto, aconteceu uma coisa extraordinária na escola: na
passada quinta-feira, o Luís veio ter comigo ao bar, durante o intervalo grande,
e chamou-me para um canto mais sossegado porque queria falar comigo. Fui
com ele para ao pé do bebedouro partido e aí ele começou a falar: "Sabes,
Joana, acho que temos de ter uma conversa muito séria." Engasguei-me com a
sanduíche de queijo e gaguejei: "Que aconteceu?" Olhou-me então com
aqueles olhos descomunais e continuou: "Eu vou ser muito sincero, pode ser?".
Fiz que sim com a cabeça e fiquei parada, com a sanduíche na mão. "É que,
pela maneira como tu olhas para mim nas aulas e cá fora, deu para perceber
que tu, enfim, que tu..." "Que eu o quê?", perguntei cada vez mais mbasbacada.
Baixou os olhos e respondeu: "Que tu... gostas de mim. Pronto." Engoli em seco
e encostei-me à parede. Como me viu atrapalhada, pegou-me na mão
que não segurava a sanduíche e desatou a falar tão depressa que quase não o
entendia: "O chato é que eu não gosto de ti, quero dizer, não dessa maneira.
Sou muito teu amigo, tu disso sabes com certeza, mas é só isso. E o mais
estúpido é que eu já gostei de ti assim, como tu agora gostas de mim, mas isso
foi há muito tempo, quando andávamos no sétimo. Gostei de ti um ano inteiro e
tu nem percebeste, pois não? Aposto que não. Pois é. Mas não penses que
agora me estou a vingar, não é nada disso. É uma questão de sinceridade, Só
quero ser teu amigo, estás a perceber? Acho-te uma rapariga espectacular, em
certas coisas és mesmo única no mundo, e é por isso que eu decidi ter esta
conversa contigo. Não quero que te ponhas para aí com ilusões e que depois
sofras tanto como eu sofri quando gostava de ti, Joana. Isso não vale a pena."
No preciso momento em que acabou de falar, tocou para a entrada e ele
desatou a correr para a sala. Eu fiquei ali colada à parede, feita uma débil
mental, a olhar para a sanduíche de queijo. E sabes a melhor?
Até hoje ainda não consegui compreender nada do que se passou.
Já me sentei na minha lua a pensar sobre o assunto e a única conclusão a que
cheguei foi a de que o Luís é ainda muito melhor pessoa do que eu imaginava.
Quanto ao que eu sinto por ele, não teria pachorra para gostar de alguém
Realmente, que não gostasse de mim. Como diz o Luís, não vale a pena. Mas a
verdade é que me lembro muito dele, por tudo e por nada. Mas não deve ser
paixão. Não, paixão não é, só que eu não Lhe digo isto, para ele não achar que
pode ter feito figura de parvo. Paixão é uma coisa que só aparece uma vez na
vida, disse-me a avó Ju, e, quando aparece a gente vê logo o que é, não há
engano possível. Eu até estou convencida de que nunca me vou apaixonar a
sério. Onde é que iria desencantar um Romeu que não fosse pindérico nem
humanóide, nesta terra onde ninguém se entende e todos são egoístas? Logo
eu? Isso seria sorte demais...
Vou parar de escrever. Prometi à avó Ju que ia dar um passeiozinho
com ela na nossa rua, porque o médico recomendou que ela não
ficasse muito tempo sem se mexer.

Um beijo da

Joana

P.S. Ontem à noite encontrei os teus pais no elevador e pareceram-me


amuados. Nunca os tinha visto assim, mas penso que não deve ser nada de
especial.
Lisboa, 20 de Março de 1993

Querida Marta,

A minha avó continua péssima. Até o Traumatizado tem tido um certo cuidado
para não fazer barulho! Acho que mesmo ele consegue perceber que avó Ju há
só uma e que nos faz a todos muita falta, especialmente a mim! O meu pai tem
vindo para casa mais cedo para estar um bocadinho com ela, mas vem do
quarto sempre muito triste e não fala durante o jantar.
Dantes, também não falava, mas agora parece que ficou
completamente mudo. Faz impressão.
Nas últimas noites não sonhei nem uma única vez contigo! Fantástico! Em
contrapartida, porque não pode ser tudo bom, continuo sem vontade de estudar,
porque não sou capaz de me concentrar. Chego a casa e vou logo para o quarto
da avó Ju. Depois, fico lá quase até serem horas do jantar. Ela está a ficar muito
em baixo, Marta, e eu estou com muito medo, tanto que a noite passada me
levantei duas vezes com receio de que ela parasse de respirar.
A minha mãe, como sempre, continua com aquela cara que não quer dizer
nada. Não sei como é possível alguém ser tão pouco expressivo!
Até enerva! A única coisa que parece preocupá-la é a adaptação da
empregada nova, que se chama Elisabete. É cabo-verdiana e tem dez filhos,
imagine-se! Dez partos, que horror! Uma mulher assim não deve ter medo de
nada. Parece ser simpática, mas o Traumatizado que não abuse, senão lá
teremos outro despedimento. Sim, porque uma mulher com dez filhos não
tem de aturar alarvices dos filhos dos outros. Vou tentar fazer os exercícios
de Matemática e depois vou ver como está a minha avó.

Um beijo da

Joana
Lisboa, 26 de Março de 1993

Querida Marta,

Ontem, quando vinha da escola, encontrei o Diogo no elevador. Vinha


chateadíssimo e quase nem me falou. Subi com ele até tua casa. Quando abriu
a porta Para ir ver os teus pais, ouviu-se uma gritaria vinda lá de dentro e, ao
olhar para ele, percebi que o melhor era vir-me embora. Desci que nem um
foguete pelas escadas e, mal entrei no meu quarto, fui sentar-me na lua. Vinha
chocadíssima. Nunca pensei que os teus pais fossem capazes de discutir!
Ainda estou pasmada. Só depois de me recompor do susto é que fui ver a minha
avó. Estava melhorzinha, mas hoje já está novamente sem forças e sem
apetite. O meu pai vai chamar outra vez o doutor Marques. Quando será que
ela fica boa?
Acho que tenho de rezar mais, porque, pelos vistos, o que tenho rezado não
chega e, nesta família, devo ser a única pessoa que ainda reza. Por falar neste
assunto, descobri, na semana passada, que a dona Arminda, a contínua do
nosso corredor, agora é de uma religião que para aí há e que ainda não percebi
bem como se chama, mas tem um nome engraçado. Um dia, hei-de perguntar-
Lhe como é essa tal religião, porque uma coisa é certa, dizem que nas igrejas
deles se fazem milagres quase todos os dias. Eu não acredito, claro, mas
gostava de saber o que eles entendem por milagres. Pode ser uma boa solução
para o Traumatizado... Aliás, nesta casa, mais do que nunca, estamos todos a
precisar não de um mas de vários milagres!

Um beijo da

Joana

P.S. Pela primeira vez na vida, fiz um teste de Matemática que me correu
mal. Houve dois exercícios que não consegui fazer. Acho que estou a perder
qualidades. Não é para admirar...

Lisboa, 30 de Março de 1993


Querida Marta,

aconteceu a coisa mais espantosa do mundo. Ontem à tarde o Diogo dignou-


se vir cá a casa comigo! Fantástico, não é? Pena que o motivo seja tão triste.
Nem sei como hei-de dizer-te isto onde quer que estejas mas o que os teus
pais decidiram, provavelmente já sabes. Decidiram separar-se! Fiquei
aparvalhada de todo com a notícia. Nunca tal coisa me passaria pela cabeça.
Logo os TEUS pais! Parece que o teu pai resolveu ir viver para a casa de
Sintra e a tua mãe continua cá no prédio. Quando perguntei ao Diogo com
quem é que ele iria viver, respondeu-me, encolhendo os ombros: "Ainda não
sei nem me interessa."
Fiquei horrorizada. Só espero que ele não se vá embora. Não me imagino a
viver num prédio onde, de vocês quatro, só ficaria a tua mãe. Eu até gosto muito
dela, mas nem quero pensar como será se o Diogo for morar com o teu pai!
Tudo corre mal, e tu que não estás aqui para ajudar! Aposto que, se estivesses,
os teus pais não fariam uma coisa destas, Marta. Não se atreveriam. Tu sempre
soubeste convencê-los, mesmo naquela vez em que queríamos ir acampar
sozinhas na praia! Continuas a fazer muita falta, até na escola. Aquilo agora não
tem piada nenhuma. Nos intervalos não tenho com quem falar. Não é que os da
nossa turma não sejam simpáticos, mas parece que estão diferentes, sei lá...
Ou talvez seja apenas eu que estou diferente.
O Luís fala cada vez menos comigo, e estou sem pachorra para aturar o João
Pedro, o Ninja, as Lopes e até as da equipa de básquete, aliás, já faltei a dois
treinos. Disseram-me que o professor está fulo comigo. A verdade é que não me
importo nada com isso. Estou a ficar farta de tudo, Marta, o que é grave quando
se tem só catorze anos...
Vou ver se faço companhia à avó Ju. Se ela estiver a dormir, levo um livro para
ler. Parece que a única coisa que ainda me distrai é ler...

Um beijo da

Joana

Lisboa, 2 de Abril de 1993

Querida Marta,
São três da manhã. Ontem foi o pior dia da minha vida, ou antes, o segundo
pior. A avó Ju... ainda não consigo escrever a estúpida palavra.
Tomei, às escondidas, quatro cafés seguidos para não dormir e acho que é o
que terei de fazer durante os próximos dias, porque, se adormeço, já sei que os
pesadelos vão continuar e agora não serão só contigo!
Sinto-me eléctrica e, ao mesmo tempo, oca. Nem sequer ouço o coração. Talvez
tenha parado de bater e eu tenha morrido também, sem ninguém dar conta. Não
sei porque é que ainda não chorei e isto está a preocupar-me. Nem no funeral
deitei uma lágrima se quer. E olha que até o Pré-histórico chorou. Não foi muito,
é certo, mas eu vi pelo menos duas lágrimas escorregarem-lhe pela cara. Os
teus pais foram os dois ao velório e ao funeral e levaram uma coroa de flores
lindíssima.
O cemitério ficou cheio de gente. Eu sabia que a minha avó tinha imensos
amigos, mas nunca pensei que fossem tantos! O Diogo não apareceu... Eu
compreendo.
Para dizer a verdade, acho que ainda não encarei a realidade. Aliás, ainda não
entrei no quarto dela... Nem sei quando o farei. Só sei que amanhã não vou às
aulas e não faço tenção de sair do meu quarto.
O meu pai está muito abatido. Quis fazer-lhe uma festa, dizer qualquer coisa
que o reconfortasse, mas não me saiu nada. O padre, na missa, como era
amigo pessoal da avó Ju, fez um sermão muito especial. Conseguiu ser
profundo sem dizer lamechices ou banalidades do género A vida continua.
Gostei de o ouvir. Até decorei algumas frases que ele disse. Ainda bem que ele
soube falar, porque mais ninguém foi capaz de dizer nada de jeito.
Que é que eu vou fazer agora, sem ti e sem a minha avó! A dona Arminda, a tal
da religião esquisita, está convencida de que o mundo vai acabar no ano 2000.
Para mim acabou hoje. E o que é pior é que tenho a certeza disto.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 30 de Abril de 1993

Querida Marta,

Tenho estado doente, de cama. A minha mãe chamou o médico e ele disse que
eu preciso de repousar. Perdi cinco quilos em duas semanas. É claro que não
lhe falei dos cafés que andei a tomar sem ninguém saber, mas acho que deve
ter sido por causa disso que perdi o apetite e comecei a ter dores de estômago.
Na última vez que o médico veio ver-me, pedi à minha mãe para
sair do quarto e perguntei-lhe se não poderia receitar-me um remédio qualquer
para dormir mas que evitasse os pesadelos, qualquer coisa bem forte que só me
fizesse acordar ao meio dia todos os dias. Ele não me levou a sério e disse que,
dentro de pouco tempo, fico como nova e teve até o mau gosto de acrescentar
Pronta para outra!...
Sinto-me uma inútil. A única coisa que me têm deixado fazer é ler, mas apenas
duas horas por dia. Tratam-me como se eu fosse uma inválida, mas não me
fazem companhia. A minha mãe continua com o horário habitual na loja
(apesar de ter lá três empregadas...), o meu pai, como de costume, sai cedo e
chega tarde, e o Traumatizado, esse só entrou no meu quarto umas duas ou
três vezes, no máximo, e foi para não dar muito nas vistas. De qualquer forma,
não me distraiu nada, simplesmente porque não sabe ter qualquer espécie de
conversa. Aprendeu a ler e a escrever, mas, como a maior parte das pessoas
da minha família, não aprendeu a falar.
Agora a verdadeira revelação foram as manas Lopes. Vieram visitar-me
anteontem e trouxeram-me um presente e tudo! Fiquei de queixo caído,
como dizia a avó Ju... Afinal, as raparigas nem são desatinadas de todo. Ou
então vieram só para bisbilhotarem a minha casa e ver como é o sítio
onde eu moro - esta é uma hipótese a considerar, mas não vou considerá-la,
porque não estou para isso.
O João Pedro tem telefonado (quase todos os dias!), mas o Luís só ligou
uma vez, a desejar-me as melhoras. O teu irmão é que não apareceu. Se
calhar não sabe que eu tenho estado de cama. Deve ser isso.
O que mais me custa é não poder sentar-me na minha lua, porque fico tonta e
começo com vómitos. Só espero que os remédios todos que ando a tomar
façam efeito bem depressa! Pena que não façam remédios para a a...
Um beijo da

Joana

Lisboa, 2 de Maio de 1993

Querida Marta,

De todos os sonhos estúpidos que tive, o da noite passada foi o mais


anormal. Eu ia ao consultório do médico que cá veio a casa e perguntava-
Lhe "O senhor doutor tem remédios para a solidão?" e ele respondeu-me
"Tenho, mas só podem ser tomados com café." Completamente estúpido,
não é? A minha imaginação durante o sono é sempre mais fértil e muito mais
disparatada.
Agora, outra coisa disparatada: o meu pai veio cá dar-me as boas-noites ontem
e, pensando que eu já estava a dormir, deu-me um beijo na testa. Eu quis
dizer-Lhe alguma coisa, mas, não sei porquê, fiz de conta que estava mesmo
a dormir. Ridículo, não é? Acho que tenho de falar com ele. Desde que a
avó Ju morreu ainda não fui capaz de lhe dizer nada. Tenho de me encher de
coragem. Quando ele tiver tempo...

Um beijo da

Joana

Lisboa, 4 de Maio de 1993

Querida Marta,

Resolvi escrever uma mensagem ao meu pai, já que não consigo falar com ele.
É assim:
Se fosses da minha idade Podia falar contigo
Se tu fosses meu colega Podia estudar contigo
Se tu fosses uma bola Podia jogar contigo
Se tu fosses meu irmão Podia embirrar contigo
Se tu fosses meu amigo Podia contar contigo.
És meu pai (em part-time) Que posso fazer contigo?!

Por baixo, escrevi o meu nome e agora o cartão está escondido na minha
mesa-de-cabeceira, à espera que eu tenha a
coragem de entregá-lo ao destinatário.
Vou voltar a deitar-me, que estou a sentir-me tonta.

Um beijo da

Joana
Lisboa, 6 de Maio de 1993

Querida Marta,

O Diogo apareceu. Finalmente!


Bateu à porta do quarto, entrou com pés de lã, todo cuidadoso, e eu gritei-lhe
"Olha lá, parvo, eu não estou em coma!". Riu-se. Depois, aproximou-se da
minha cama, deixou-me duas revistas sobre a colcha (uma sobre motos - em
alemão... - e outra sobre cantores de rock desaparecidos...) e explicou que não
podia demorar-se. Deu-me um beijo superleve na cabeça e saiu do mesmo
modo que tinha entrado. O teu irmão não bate bem da bola, mas também quem
é que bate?
Resolvi rasgar o poema que tinha feito para o meu pai e escrevi uma carta,
ou melhor, um cartão. Já fui pô-lo no quarto, sobre a mesa-de-cabeceira
dele. Dizia assim:

Pai, Gostava que soubesses que percebo como deves sentir-te por causa da
avó Ju. Não te disse nada, não fui capaz e também porque quase nunca te
vejo. Não te preocupes comigo, que estou quase boa. Sei que não deu jeito
nenhum eu ter adoecido logo a seguir àquilo que aconteceu à avó, mas isto
vai passar e, quando regressar à escola, hei-de voltar a ter boas notas.
Também queria pedir-te desculpa se te choquei por não ter chorado no funeral,
mas não deu. Acho que nunca chorei ao pé de outras pessoas. Deve ter sido
por causa disso. Espero que não tenhas ficado muito ofendido comigo. Eu até
preferia ter chorado, palavra!

Um beijo da Joana.

Não sei se o meu pai vai ter tempo para ler um cartão tão grande... Talvez.
Não vou escrever mais porque ainda estou um bocado fraca e quero ver se
fico boa depressa.

Lisboa, 10 de Maio de 1993

Querida Marta,

Já estou quase óptima. O quase é por que nunca mais vou ser a mesma
pessoa, o que, por enquanto, não sei se é bom se é mau - hei-de descobrir.
Não cheguei a perceber se o meu pai leu ou não o cartão que lhe escrevi,
porque, até hoje, não me disse nada, nem acredito que venha a dizer.
Estranho, não é? Não saber sequer se ele leu... Mas não vou preocupar-me,
aliás, não quero passar a vida a preocupar-me por tudo e por nada como fazia
dantes. Agora sei que estou mudada e que tudo vai ser diferente. Amanhã os
meus pais vão à Suíça. Os DOIS! Já há muito tempo que não saíam juntos do
País . O meu pai vai a uma conferência internacional, e a minha mãe
convenceu-o a acompanhá-lo. Acho bem. O pior é saber que fico sozinha com
o Pré-histórico... A Elisabete vem fazer o jantar todos os dias (que vão ser
quatro. Pena que não estejas cá, faríamos um programa emocionante! Assim,
talvez aproveite apenas para ir uma ou duas vezes ao cinema à noite, que
prefiro a ir de dia. Talvez convide o teu irmão, mas duvido que ele vá.
Na escola, falei com a dona Arminda sobre a religião dela e ela disse-me que
podíamos ir as duas à missa deles (quando eu quiser. Acho que não é bem uma
missa, para ver como é, sou capaz de ir..
Falei com o João Pedro e já percebi que tenho imenso que estudar, para
recuperar e poder acompanhar a matéria nova. Atrasei-me bastante com isto
da doença. Decidi que nunca mais na vida tomo um café que seja!
Sinto-me bastante melhor. Acho até que vou recomeçar a pintar. Mas,
para já, vou ficar aqui sentada, a matar saudades
da minha lua.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 12 de Maio de 1993

Querida Marta,

Os meus pais já telefonaram da Suíça e perguntaram se estava tudo bem, se o


dinheiro que nos deixaram chegava, etc. Foi a Elisabete que atendeu a
chamada, porque o Traumatizado tem estado em casa de um colega (outro
traumatizado qualquer) e eu estava, imagina, numa reunião lá da igreja da dona
Arminda. Foi uma seca! A princípio, julguei que iria aprender alguma coisa, ver
algo interessante, mas depois percebi logo que aquilo é tudo uma tanga para
enganar os ignorantes. Fiquei com uma certa pena da dona Arminda, que
estava entusiasmadíssima, e disse-lhe que tinha achado que aquele tipo de
cenas não são para mim.
Penso que ficou um bocado ofendida, mas paciência. Quando cheguei a casa,
sentei-me na minha lua a pensar que deve haver muitas formas de as
pessoas encontrarem Deus. Eu ainda não descobri nada de especial, se
calhar porque sou adolescente, ou então é porque não sei em que é que hei-
de acreditar. Continuo a achar que Deus existe, mas o problema é que não
consigo vê-Lo em parte nenhuma, por isso é difícil pensar em Deus sem ficar
confusa. Aliás, depois de muito reflectir sobre o assunto, saltei da minha lua
e fui para a escrivaninha onde me pus a desenhar. Tentei desenhar Deus
numa folha de papel cavalinho e saiu-me um círculo. Julgo que o retrato me
saiu assim porque me disseram, quando era pequena, que Deus é o princípio
e o fim, que sempre existiu. Depois de desenhar, olhei para o meu círculo e
já não sabia onde tinha começado ou acabado, por isso achei que devia ser
essa a única forma de representar Deus. Tirei a folha do bloco e colei-a na
porta do quarto, do lado de dentro. Por baixo não escrevi nada porque não
havia nada para acrescentar. Pode ser que a avó Ju e tu já tenham visto Deus,
mas eu, como não O vi, imagino-O assim, como está no meu desenho.
Estou triste. Não há ninguém no mundo que possa ajudar-me. Não consigo
estudar, não me apetece ver televisão, Jogar no computador ou ir ao cinema.
Nem sequer me apetece ler. É por tudo isto que te escrevo. Que mais poderia
fazer? A casa está mergulhada em silêncio, um silêncio total. E o pior é que
este silêncio se instalou aqui para ficar, desde que avó Ju morreu.
Os meus pais são os únicos que não ouvem este silêncio incrível e, no entanto,
ele fala mais alto do que a aparelhagem do Pré-histórico. Tão alto que, de
noite, tenho de tapar a cabeça com a almofada para não o ouvir. Preciso de
fazer qualquer coisa rapidamente. Apetecia-me falar com o Diogo, mas a moto
dele não está lá em baixo, deve ter saído com algum amigo. Resta-me olhar
para a porta do meu quarto e ver se encontro alguma coisa de novo no círculo
preto...

Um beijo da

Joana

Lisboa, 13 de Maio de 1993


Querida Marta,

Os meus pais telefonaram ontem à noite a dizer que vão ficar por lá mais três
dias. O meu irmão ficou radiante. Eu não senti nada.
Ainda não te contei, mas as minhas notas estão uma miséria, excepto em Saúde
e Português. Quase todos os professores já falaram comigo, porque
estranharam imenso. Agradeci-lhes a preocupação e disse que hei-de recuperar,
mas não estou lá muito convencida. Felizmente, as notas dos dois primeiros
períodos foram razoáveis! Até agora não disse nada aos meus pais, mas eles
também não perguntaram, aliás, como sempre... Não foram estes os pais que eu
encomendei antes de nascer. A cegonha que me trouxe devia estar
desnorteada. Houve aqui alguém que se enganou. E o mais grave é que agora
não posso reclamar. Os meus pais já não estão na garantia, e o prazo de
validade das minhas reclamações acabou no dia em que eu disse ao meu
pai que queria ir morar com ele numa casinha de chocolate... Tinha quatro
anos, segundo me contaram. Lá na turma, o João Pedro queixou-se de eu
não ter ligado nenhuma ao nosso projecto de História. O trabalho de grupo
de Geografia também ficou um bocado fraco, mas não tive paciência
para mais. Toda a gente da nossa aula acha que as minhas notas
baixaram por causa da morte da avó Ju. Disse-lhes que sim, porque não
sabia bem o que havia de responder, mas a verdade é que não foi só isso
que aconteceu. E, que estou em maré de fracassos, tenho de dizer-te que
desisti do básquete. Faltei a uma data de treinos e perdi o entusiasmo.
Talvez Para o ano recomece, especialmente Por causa do meu pai, que
sempre teve imenso gosto em que eu praticasse o mesmo desporto que ele
praticou durante anos. Acho que vai ficar desapontado comigo,
mas tenho de arranjar coragem para lhe dizer que desisti. Para
quem nunca na vida gostou da palavra desistir, agora até a escrevi com a
maior das facilidades! Tanta coisa está a mudar Eu, que queria tanto
compreender-te! o que te fez a ti mudar... agora nem a minha mudança
compreendo... Que coisa mais ridícula!
Deus deve ser o único que sabe o que se passa, mas não fala comigo... Olha-
me dali da porta do quarto e não Se mexe, não diz nada. Olho o círculo e
encontro uma área redonda e branca, quieta e calada. O meu quarto é também
um deserto branco, no meio de uma casa que faz eco de tão vazia. Este silêncio
todo e ninguém para o quebrar!
O Pré-histórico acabou de chegar a casa. Daqui a pouco, começa a barulheira
dos discos. Parece que o silêncio desaparece, mas é só uma ilusão. Acho que
vou sair um bocado para espairecer.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 25 de Maio de 1993

Querida Marta,

Não sei como contar-te o que se passou. Pela primeira vez, sinto uma espécie
de vergonha, como se tivesse medo de, ao escrever, ficar a ver melhor o que
aconteceu, mas preciso de desabafar, senão fico maluca, mais do que já estou!
Ontem, mal comecei a ouvir a barulheira dos discos do Pré-histórico, saí de casa
e meti-me no elevador. Então, aconteceu uma coisa espantosa: o meu dedo,
sem me dar tempo para pensar, carregou no botão do teu andar e lá fui eu.
Toquei à porta uma data de vezes e, quando me vinha embora, a porta abriu-se
como por magia. Entrei e vi que o Diogo seguia à minha frente para o quarto.
Instintivamente, fui atrás dele e, quando o vi sentar-se no almofadão aos pés da
cama, estaquei. Ele nem olá me tinha dito. Aproximei-me então devagar e,
quando cheguei mais perto, percebi que tinha estado a chorar. Ao seu lado,
estava uma fotografia antiga. Baixei-me, apanhei-a e fiquei a olhá-la durante
muito tempo. Era uma fotografia onde estávamos nós três na praia do Guincho.
Devíamos ter nove ou dez anos. Tu estavas no meio de nós e seguravas na
mão um daqueles baldes de brincar na areia.
Estávamos a rir-nos à gargalhada e o Diogo puxava-te o cabelo com a
mão. Pousei a fotografia na mesa-de-cabeceira e fui sentar-me ao pé
dele. Foi um momento que não consigo explicar.
Não dissemos nada. Rigorosamente nada. A certa altura, ele abraçou-me,
primeiro ao de leve, depois com tanta força que quase me esborrachava.
Quando finalmente me desencaixei daquele abraço tipo quebra-nozes, olhei-
lhe para a cara e vi que chorava. Nunca o tinha visto chorar e até fiquei um
bocado embaraçada ao princípio, mas depois deu-me uma vontade enorme de
abraçá lo e foi isso que fiz. Ficámos assim tanto tempo que senti o corpo
doer-me. Estava calor, por isso levantei-me para ir abrir a janela.
Então, uma ponta de vento entrou com força pelo quarto e fez voar a fotografia
até ao chão. Quando me precipitei para ir apanhá-la, o Diogo rastejou até ao
lugar onde ela estava caída e, bruscamente, rasgou-a em mil bocados
com uma raiva tal que parecia querer com aquele gesto apagar toda a história
que a fotografia contava. Indignei-me e gritei bem alto "Porquê?!",.
Foi a vez de ele ficar embatucado. Aproximou-se de mim, colocou a minha cara
entre as suas mãos e disse, com uma voz que não lhe conhecia: "Desculpa,
Joana, mas é tudo uma droga.
Não há saída. Só os estúpidos e os ingénuos é que julgam que se pode ser feliz.
Eu sei que é tudo treta. Tudo mentira. Tudo uma droga." Depois, olhou-me como
se me visse pela primeira vez, pôs as mãos à volta do meu pescoço, deu-me um
beijo interminável e levou-me naquele abraço até à cama.
Não te digo mais nada, porque não quero lembrar-me do que aconteceu
depois. Só te digo que, assim que cheguei a casa, me enfiei na casa de banho
e voei para o duche. Depois, quando me vi ao espelho, odiei-me como nunca.
E tomei uma resolução: peguei na tesoura das unhas e cortei o cabelo. Cortei-
o tão curto que quase não foi possível pentear-me. Em seguida, voltei a olhar
para o espelho e disse para mim mesma "A Joana já não mora aqui."
Até amanhã.

Lisboa, 29 de Maio de 1993

Querida Marta,

Não tenho tido vontade de escrever, mas hoje, como é o dia dos teus anos,
sentei-me aqui na lua com o livro de Português no colo e uma folha por cima
para te dizer que muita coisa aconteceu nestes últimos dias. Os meus pais
chegaram da Suíça e, embora eu preferisse o contrário, trouxeram-me um
montão de prendas. O meu pai, desta vez, achou que não podia trazer-me um
relógio qualquer, esmerou-se e comprou-me um chiquérrimo que deve ter
custado uma pipa de massa. Pu-lo no pulso e acho que até a pulsação me
parou só de o ter posto... Agora o mais ridículo: a minha mãe teve um ataque
de nervos quando me viu com o cabelo assim e até ficou maldisposta!
Coitada... E coitada de mim também, porque fui obrigada a ir com ela ao
cabeleireiro para ver se me davam um ar decente, conforme a minha mãe
pediu. Não sei se ficou decente ou não, mas não me ralo nada com isso.
Gostava de poder explicar à minha mãe que há coisas muito mais
importantes do que o cabelo, mas ela não iria entender.
Gostava ainda mais de poder desabafar com ela, contar-Lhe o que se passou
entre mim e o Diogo, mas, claro, isso está completamente fora de questão. O
meu pai é que nem parece ter ligado ao meu corte radical de cabelo. Olhou-
me com uma cara um bocado esquisita, mas não disse nada. às vezes penso
que ele vê mal, que devia usar óculos, talvez veja sempre tudo baço, sem
forma definida. Deve ser por causa das horas que ele passa no consultório e
na sala de operações a disfarçar cicatrizes e rugas e narizes tortos. O meu pai
é míope e não sabe. O pior vai ser quando lhe disser as minhas notas. Vou ver
se falo com ele amanhã, isto se ele chegar a casa e eu ainda estiver
acordada...
Não voltei a ver o Diogo, nem sequer na escola. Não faço ideia de onde andará.
De qualquer forma, não estou preparada para voltar a vê-lo tão cedo. Uma coisa
é certa, ele ficou mesmo a viver aqui no prédio com a tua mãe, porque a moto
continua por cá.
A directora de turma resolveu ter uma conversa séria comigo e disse-me que
compreendia que perder uma avó de quem se gosta muito é duro, mas que eu
tinha de me esforçar mais, que era uma pena desperdiçar as minhas
capacidades, etc. Disse-lhe que sim a tudo e vim-me embora. Descobri que
não vale a pena contrariar os adultos nas poucas vezes em que eles estão
mesmo convencidos daquilo que acabaram de dizer.
O Pré-histórico, novidade das novidades, dignou-se vir ontem ao meu quarto
para falar comigo. Tinha ouvido dizer na escola que eu andava um bocado
esquisita e queria saber de que se tratava. Tranquilizei-o, dizendo-lhe
que isso eram mexeriquices de galinhas. Não insistiu, encolheu os
ombros e dirigiu-se para a porta. No entanto, como era a primeira vez
desde há séculos que entrava no meu quarto, parou um bocado a olhar
para a minha lua de baloiço, esbugalhou os olhos e coçou a cabeça.
Depois, voltou a encolher os ombros e saiu.
É verdade, fiz os testes psicotécnicos para saber que área devo escolher para
o ano. Para dizer a verdade, já não sei se quero ir para Medicina. É-me
indiferente. Talvez fosse bom conversar com o meu pai sobre isso, mas ele
nunca tem tempo. De qualquer forma, prefiro a área de científicos, embora não
saiba bem porquê. Só espero que, apesar das notas que tenho tirado este
período, ainda dê para passar de ano. Vou jogar xadrez com o computador.
Sinto-me estúpida e preciso de saber se ainda consigo raciocinar.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 5 de Junho de 1993

Querida Marta,

Finalmente, consegui tirar algumas positivas de que estava a precisar. Acho que
vou passar de ano. Só estudei o mínimo, mas penso que chega.
Já consegui falar com o meu pai! Extraordinário , não é? Apanhei-o antes de
sair para o consultório, fomos até à cozinha e despejei o saco. Contei-lhe das
notas e da desistência do básquete. Ouviu tudo sem me interromper. Depois,
fez uma cara séria e disse que achava grave que eu me tivesse
desinteressado do básquete que já praticava há quatro anos. Percebi que
ficou decepcionado comigo, mas não me ralhou nem nada.
Preferia que o tivesse feito. Será que alguma vez o fará. Não me parece que
se dê a esse trabalho. Os adultos não estão para se chatear, é um esforço
muito grande para eles. Aliás, o meu pai tem outra justificação: ele não tem
tempo para se chatear. Uma discussão , um ralhete, um sermão, são coisas
que podem durar horas, e ele não se pode dar a esse luxo, tem coisas muito
mais importantes para fazer... Só os adolescentes gastam energias nisso,
mas nem todos, eu, por exemplo, cada vez me chateio menos. É o melhor.
Se ao menos a avó Ju fosse viva, sempre tentaria dar-me uns conselhos! Ou
tu...
Vou ouvir música. Não quero pensar.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 13 de Junho de 1993

Querida Marta,

Para que servem os feriados se as pessoas não descansam (caso do meu


excelentíssimo pai) nem convivem mais (caso da minha excelentíssima
família)?
As aulas estão mesmo a chegar ao fim. Ontem, ia havendo cena cá em casa por
causa das notas do Traumatizado. Ouvi a minha
mãe discutir com ele no quarto e percebi que é possível que ele volte a
chumbar.
Parece que, no próximo ano, a minha mãe vai matriculá-lo numa escola
particular, para ver se ele consegue passar, mas, cá para mim, ela só vai é
gastar dinheiro , mais nada. Ele desatou aos berros a dizer que não quer
mudar de escola, que os amigos dele estão nesta, etc. Como o psicólogo
teve a brilhante ideia de aconselhar a não o contrariarem, é Provável
que continuem a fazer as vontades ao menino. Quando o meu pai
chegou a casa (quase às onze da noite), os ânimos já tinham acalmado e ele
não deu por nada, como sempre.
Mudando de assunto, na última vez que te escrevi , disse que ia procurar o teu
irmão e, de facto, fui lá acima, mas só a tua mãe estava em casa. Achei-a muito
em baixo. A separação entre duas pessoas casadas há tantos anos deve ser
muito difícil. Perguntei-lhe pelo Diogo e ela deu-me uma resposta que me
preocupou um bocado, "Olha, Joaninha, para te dizer a verdade, não faço
ideia de onde ele tem passado o tempo ultimamente. Não pára em casa e nem
sei com quem tem andado..." Coitada da tua mãe, estava mesmo
desorientada, logo ela que parecia sempre tão enérgica! Tenho de falar com o
Diogo dê lá por onde der. Não é justo ele não dar apoio à mãe numa altura
destas, é mesmo indecente. Eu sei que ele também está péssimo com tudo o
que tem acontecido, mas acho que agora está a ser covarde, não quer estar
em casa só para não ter de enfrentar a realidade e é isto que eu vou dizer-lhe,
mesmo que se chateie comigo.
A Sofia, minha colega do básquete, escreveu-me de França, onde foi jogar
com a equipa. Foi simpática em se ter lembrado de mim. Deve ser a única
que ainda me fala. Gostei do postal, mas a verdade é que não tenho pena
nenhuma de ter desistido daquilo. Já não me diz nada, para grande
desgosto do meu pai...
A festa de fim de ano na escola está aí à porta. É a primeira vez que não
vou participar. Não tive a menor vontade, aliás, o Luís e o João Pedro
chegam bem para representar a nossa turma. Outra razão para eu não
entrar é que a única pessoa cá de casa que ia assistir era a avó Ju, já
que aos meus pais nunca Lhes dava jeito... Ao menos escusam de
inventar mais uma desculpa qualquer. O stor Luís é que ficou um
bocado decepcionado por eu este ano não participar no torneio de
xadrez. Disse-me que eu tinha imensas hipóteses de ganhar, como
aconteceu no ano passado. "Não gostarias de receber outra taça,
Joana? Diz lá!" Ele não sabe como eu agora estou diferente. Os miolos
já não são os mesmos. Embruteci. Taça? Para quê! Em minha casa já
não há lugar para troféus. As taças e as medalhas do meu pai ocupam
quase uma vitrina inteira e, no meu quarto, não ficaria bem (Aliás, as
duas que ganhei no básquete e no xadrez) estão dentro do armário do
corredor, bem escondidas num saco de plástico do supermercado.
Se eu pudesse trocá-las por qualquer coisa útil, uma conversa
interessante com alguém por exemplo! Vou ver se encontro o Diogo.
Talvez esteja no café.
Um beijo da

Joana

Lisboa, 16 de Junho de 1993

Querida Marta,

Aconteceu uma coisa horrível! O Diogo teve um desastre de moto e partiu a


perna direita. A tua mãe diz que, felizmente, ele levava capacete, pois caso
contrário teria sido bem pior.
Parece que foi um acidente aparatoso como disse a tua mãe, porque o Diogo
levava um pendura, que também caiu e partiu um braço. Para cúmulo do azar,
o acidente deu-se porque um peão se Pôs a atravessar a rua sem olhar e o
Diogo não pôde travar a tempo, , portanto o homem foi atropelado e está no
hospital.
Só broncas! Quis entrar no quarto, mas a tua mãe disse que o Diogo não está
com disposição para ver ninguém. Cá para mim, é complexo de culpa, mas está
bem... O mais grave é se o homem que foi atropelado for desta para melhor.
Nem quero pensar! O Diogo é perito em meter-se em alhadas. Estou com pena
dele, mas, se ele não quer ver ninguém, não posso fazer nada para ajudá-lo.
Continuando com o assunto das broncas, o Traumatizado, afinal, parece que
vai conseguir passar de ano. A minha mãe foi à escola falar com a directora de
turma (não sei que desculpas terá inventado...) e ela disse-lhe que ainda não
se sabe o que irá acontecer, o que sempre é uma esperança. A minha mãe
deve ter-lhe dito que, se o queridinho chumbar, coitadinho, fica ainda mais
traumatizado do que já está e que poderá até fazer algum disparate! A minha
mãe não se ensaiaria nada para dizer destas barbaridades só para salvar o
filhinho adorado. O meu pai, ao menos, tem vergonha na cara e não tem lata
para ir pedinchar notas à escola. Ainda bem! Eu acho que morria de vergonha!
Sei que também não me esforcei quase nada este período, mas nunca na vida
consentiria que a minha mãe fosse lá à escola fazer de mendiga. Isso nunca!
Que coisa mais ridícula! Eu morria de vergonha!
Vou lá acima ver se o teu irmão já recebe visitas. Pode ser que tenha sorte,
para variar.
Um beijo da

Joana
Lisboa, 29 de Junho de 1993

Querida Marta,

Não se morre de vergonha. Isto foi o que eu aprendi quando vi as minhas


notas afixadas na escola. Só dois cincos (a Saúde e a Português)! Nunca na
vida tive notas tão ranhosas como estas. Mas não morri. O Luís achou que
era boa ideia vir dar-me os pêsames... Teve cinco a tudo menos a
Matemática
(quatro)... Sei o que isso é, mas já não me lembro. Os meus pais nem me
perguntaram pelas notas, devem julgar que tudo na minha vida continua na
mesma. Como sempre, só se preocuparam com o traumatizado que, apesar de
tudo, lá passou. É um escândalo aquele rapaz ter passado, agora é que ele vai
ficar mesmo convencido de que é o maior. Ainda por cima vão dar lhe
uma prenda de passagem, outra prancha de surf carérrima, para variar...
Só visto, A minha mãe já telefonou ao psicólogo a contar o êxito do Pré-
histórico. Suponho que agora vai também comprar uma prenda ao psicólogo e,
já agora, uma para cada um dos professores, para haver justiça... Como é que
pode haver tanta corrupção? Sim, porque isto é corrupção pura!
No que respeita ao Diogo, já está melhor, mas ainda não tirou o gesso, claro. O
homem que foi atropelado não morreu e já saiu do hospital. Os teus pais vão
ter de pagar não sei quanto, mas, pelo menos, o homem está vivo. Consegui
entrar no quarto do Diogo e levar-lhe uns livros para se distrair. Ele não
pareceu entusiasmado. Agradeceu-me à pressa: "obrigado, Joana" e não disse
nem mais uma palavra. É como se nada se tivesse passado entre nós. Nada
disto faz sentido, Marta! Que mundo tão estranho, o nosso! Quando me vinha
embora de tua casa, cruzei-me à saída com dois rapazes que nunca tinha
visto antes. Um deles usava três brincos numa orelha e o outro tinha
as calças tão rotas que quase se viam as cuecas. A tua mãe suspirou
longamente e acompanhou-os ao quarto do Diogo. Eu saí, com a impressão de
que estou cada vez mais só. Mas não estaremos todos?...
Vou pendurar na parede um cartaz que comprei ontem na papelaria. É giro e
tem a ver com o meu actual estado de espírito: trata-se de um gigante ponto de
interrogação vermelho sobre um fundo cinzento; ao longe vêem-se escadas
que não vão dar a lugar nenhum. Aos poucos, o meu quarto vai deixando de
ser branco. E a minha alma também.

Um beijo da
Joana

Lisboa, 30 de Junho de 1993

Querida Marta,

O Diogo já sai, de muletas, claro, mas tenho-o visto no café com aqueles dois
extraterrestres que encontrei na tua casa no outro dia. Agora está mais alegre.
Disse-me que não estava à espera mas que passou de ano com notas
razoáveis. Não sei o que ele entende por notas razoáveis, mas também não
lheperguntei. A novidade é que me convidou para sair um dia destes, talvez um
cinema ou uma discoteca. Disse-lhe que estava bem, mas a minha vontade foi
gritar-Lhe aos ouvidos que nós dois temos de ter uma longa conversa.
Hoje de manhã, estive a observar (pela milionésima vez) a tua colecção de
caleidoscópios, que a tua mãe teve a feliz ideia de me oferecer. Resolvi
mudá-los de lugar e agora estão todos em pé no parapeito da janela.
Agora, uma péssima notícia: voltei a ter um pesadelo contigo. Desta vez, o
Diogo também lá estava, com os livros que eu lhe levei quando fui visitá-lo. Não
me lembro das palavras, mas sei que queria falar contigo e com ele, e elas
perdiam-se no ar, não soavam. Era como se eu tivesse perdido a
voz. Tu estavas de costas, e o Diogo olhava para uma parede que tinha uma
janela igual à do meu quarto, só que não era o meu quarto. Por mais que eu te
chamasse, tu não ouvias. Enfim, a crise do costume...
Vou pôr os headphones e sentar-me na lua a ver se esqueço. Tudo.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 6 de Julho de 1993

Querida Marta,

Férias, finalmente, diz a malta toda. Eu digo: férias? O Traumatizado já se pôs a


milhas, foi passar duas semanas a casa de um amigo do surf, no Estoril. Esta é
a única boa notícia para já, mas tenho outra que praticamente destrói o efeito da
anterior: a tia Bibi, aquela irmã da minha mãe que vive em Londres, está cá a
passar uns dias em casa e já conseguiu mudar os horários das refeições, de
levantar, de deitar, tudinho! E ainda só chegou há três dias... O que vale
é que o Pré-histórico se pirou, senão ia ser lindo... O mais grave é que o meu
pai não tem nem nunca teve paciência para a tia Bibi, de maneira que ainda
chega mais tarde a casa e quase não fala à mesa, aliás, a minha tia não deixa
ninguém abrir a boca, fala pelos cotovelos! Nunca vi ninguém falar tanto, nem
aquele professor de História que tivemos no Ciclo! Vou ver se me pisgo de
casa antes que as duas manas cheguem das compras e desatem a galinhar
sobre modas e preços. Não há quem aguente!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 12 de Julho de 1993

Querida Marta,

Hoje foi um dia memorável. Finalmente, depois de tanto tempo, consegui voltar
a entrar no quarto da avó Ju. A minha mãe estava lá a arrumar umas coisas e
chamou-me. Sem pensar, entrei e, quando me vi lá dentro, fiquei parada sem
saber para onde havia de olhar. A minha mãe, que nunca percebe nada (e muito
menos de psicologia), não reparou que eu não estava a sentir-me bem ali,
portanto, mandou-me sentar ao pé dela na cama e pediu-me para a ajudar a
meter umas coisas num caixote.
Perguntei-lhe para que estava a fazer aquilo e ela respondeu-me que eram
instruções da minha avó. Como eu quis saber mais, explicou-me então que era
intenção da avó Ju que, após a sua morte, doássemos algumas das suas
coisas (mantas, xailes de lã, roupas, missais,...) ao lar da terceira idade da
terra dela. Fiquei podre por a minha mãe só agora estar a dar cumprimento
ao pedido da avó Ju e disse-lho sem rodeios. Desculpou-se, dizendo que
ainda não tinha tido ocasião. Uma ova! No fim de tudo arrumado no caixote,
contou-me que, como não tinha vagar de ir a Sintra, pedira ao meu pai que
mandasse cá o motorista... Passei-me da cabeça e gritei: "Nem pensar! Eu
mesma vou levar as coisas a Sintra. Era só o que faltava! O senhor Emídio
não tem nada a ver com este assunto. Estou de férias e não me custa nada ir,
aliás, até vou com muito gosto." A minha mãe arregalou os olhos e ficou a
olhar para mim como se eu fosse a mãe e ela a filha. Acho que até corou um
pouco.
Amanhã, chamo um táxi e vou apanhar o comboio para Sintra. Depois conto
como foi.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 14 de Julho de 1993

Querida Marta,

Correu tudo bastante bem na terra da minha avó. Antes de chamar o táxi,
ainda fui a tua casa para ver se o Diogo quereria ir comigo, mas a tua mãe
estava sozinha e só me disse que ele não estava bem-disposto e que tinha ido
dar uma volta com uns amigos. Paciência, fui sozinha.
O lar não fica mesmo em Sintra, mas é perto, só tive de andar um quarto de
hora a pé com o caixote ao colo, mas não me importei, porque eram coisas da
avó Ju que ali estavam. Cheguei à frente do portão e toquei à campainha. Na
recepção, pedi para falar com o director, e a recepcionista disse-me que
só estava lá a dona Amélia. Pouco depois, apareceu a tal senhora, que deve
ter uns cinquenta anos e mau feitio. Expliquei-lhe o que estava ali a fazer e
ela disse saber quem era a minha avó. Deu-me os pêsames (palavra
horrível!) e, para me despachar, disse-me que podia deixar ali no gabinete
dela o caixote, que estava entregue. Olhei-lhe o nariz empinado e pedi se
podia visitar o lar. Surpreendeu-se, mas respondeu "Se faz questão... Olhe
que não é sítio para uma menina da sua idade ver. Os velhinhos às vezes
queixam-se muito e parecem muito tristes, o que nem sempre corresponde à
verdade, compreende? É da idade, coitadinhos..." Respondi-Lhe com a
maior determinação "Então vamos lá ver esses tais velhinhos. Quem é que
nos garante que hoje não possam estar alegres?". Julgo que ela percebeu
que eu estava a gozá-la, mas não se manifestou e foi chamar uma outra
senhora, a dona Odete para me acompanhar durante a visita. A dona Odete
foi muito mais simpática e respondeu a todas as minhas perguntas sobre as
pessoas que ali estavam no lar. Explicou-me que a ala direita era a dos
homens e a da esquerda das senhoras. Decidi-me então pela ala esquerda.
A casa estava bastante limpa e arejada, a única coisa triste eram os olhares
de algumas das velhinhas e o facto de não haver ali ninguém jovem.
Quando cheguei à camarata onde estavam as senhoras mais idosas ou
doentes, a dona Odete deu um longo suspiro que me deixou curiosa. Foi então
que comentou: "É uma dor de alma, menina! Há famílias que nunca cá põem
os pés, a não ser quando há chamadas de urgência, percebe?" Fiz que sim
com a cabeça e ela continuou: "Veja, por exemplo, ali a da cama três. Coitada,
tem duas sobrinhas em Lisboa que ainda só vieram duas vezes desde que eu
cá estou, e já aqui trabalho há quatro anos! Faz-me pena, a dona Emília.
Quase não ouve, vê mal, esquece-se de tudo, já não conhece ninguém, mas
passa a vida a falar das sobrinhas e a dizer que ainda ontem cá estiveram...
Arteriosclerose, sabe o que é?" Voltei a fazer-lhe que sim com a cabeça e tive
uma ideia. Pedi à minha guia que fosse avisar a dona Emília que uma das
sobrinhas estava ali e queria vê la.
A dona Odete sorriu, encolheu os ombros, mas fez-me a vontade.
Uns segundos depois, estava sentada na beirinha da cama de ferro da dona
Emília. peguei-lhe na mão e fiquei calada, não fosse ela reconhecer, pela voz,
que eu era uma estranha. Foi quando a vi sorrir que perdi o medo. Ela
apresentou-me à senhora da cama ao lado como sendo a Geninha e eu fiz uma
vénia a acompanhar aquela apresentação tão entusiástica.
Depois, houve uns momentos de silêncio, porque eu não sabia que assunto
puxar. Foi então que me lembrei que a avó Ju sempre me disse que os
velhinhos são muito parecidos com as crianças e, como as crianças costumam
gostar de histórias, achei que contar-lhe uma história seria boa ideia. O mais
difícil foi escolher. O Capuchinho Vermelho tem aquela parte do lobo mau a
comer a avozinha, que seria de muito mau gosto contar. A Bela Adormecida
também não me pareceu própria, porque os velhos gostam pouco de dormir,
acho que é porque o sono lhes lembra a morte. Fartei-me de pensar e, por fim,
decidi contar a história do E.T., numa versão made by Joana Brito. Na
introdução, expliquei que se tratava de um rapaz que vinha de uma terra muito
distante e que precisava de um amigo.
Não toquei no assunto da nave espacial, porque seria uma estupidez. Quando
cheguei à parte em que o E.T. e os meninos levantam voo nas bicicletas, olhei
para a dona Emília e reparei que tinha adormecido. O que eu não contava era
que a senhora da cama do lado estivesse a ouvir e me pedisse que continuasse,
o que eu fiz de boa vontade. às tantas, um grito interrompeu a minha história.
Uma senhora que estava numa das camas ao fundo da camarata pedia
insistentemente que lhe trouxessem o retrato. Não sei de que retrato se trataria,
mas a dona Odete foi logo a correr acalmá-la e ela lá se calou. Quando acabei
de contar a história, a minha ouvinte bateu palmas, imagine-se! Adorou o E.T.
Depois, chamou-me para ao pé dela e segredou-me: "A menina não é sobrinha
da dona Emília, pois não?" Fiz que não com a cabeça e pedi-lhe que não
contasse a ninguém, que era segredo. Ela sorriu e fez uma coisa espantosa:
deu-me um beijo na mão. Só por aquilo valeu a pena ir a Sintra, juro!
Quando cheguei a casa eram quase horas de jantar. A minha mãe só
perguntou se eu tinha dado com o lar e não se falou mais no assunto.
Gostava de ter contado tudo ao meu pai, mas a tia Bibi não se calou durante
todo o jantar e, depois da sobremesa, o meu pai levantou-se como uma seta
e foi para o quarto ler o jornal.
O meu dia em Sintra foi um dos melhores de toda a minha vida. Gostava
de lá voltar.
Vou dormir.
Um beijo da
Joana

Lisboa, 17 de Julho de 1993

Querida Marta,

A noite passada tive o sonho mais estrambólico que se possa imaginar, uma
coisa absolutamente surrealista, como diria a minha mãe. Eu estava no lar da
terra da avó Ju, mas estava lá a viver. Não era mau de todo , porque havia
música e também uma escola, uma espécie de creche. Lembro-me que estava
numa das camas brancas e que apareceu o Pré-histórico vestido de lobo mau
do Capuchinho Vermelho, que vinha visitar-me. Trazia um presente. Quando o
abri vi que era uma caixa de bombons, mas o alarve tinha comido todos à
excepção de um, que estava precisamente no meio da caixa. Peguei no
bombom e atirei-o para dentro de um penico de plástico que estava ao lado da
cama. O Pré-histórico riu-se e virou costas. Quando ia a sair, tropeçou numa
coisa qualquer e estatelou-se no chão da camarata. Foi nessa parte que eu me
ri. Gostei! Logo a seguir, aparece a minha mãe, toda aflita, para ajudar o
queridinho a levantar-se. Depois, saíram os dois de braço dado, mas eu não
me importei que eles se fossem embora e resolvi levantar-me da cama e ir a
um jardim que eu inventei na altura. Que sonho estapafúrdio, não é? Penso
que estou a ficar com arteriosclerose...
Vou ver se encontro alguém conhecido lá em baixo no café. Preciso de falar,
nem que seja para dizer asneiras. Um beijo da

Joana

Lisboa, 25 de Julho de 1993

Querida Marta,

Aleluia! A tia Bibi foi-se embora! O pior é que o Traumatizado já voltou, mais
depressa do que devia. Os meus pais vão tirar férias em Agosto e parece que
vamos todos para o Guincho. Pode ser que, desta vez, dê para
conversar dois minutos com o meu pai. Seria milagre, mas, por
enquanto, ainda acredito em milagres, até porque, até agora, nunca me
aconteceu nenhum, o que aumenta um pouco as probabilidades de vir a
acontecer.
Vou sentar-me na minha lua a ler qualquer coisa, senão morro estúpida. Mais
ainda do que já me sinto.
Um beijo da

Joana

P.S. Não vejo o Diogo há séculos. Que andará ele a fazer?

Lisboa, 29 de Julho de 1993


Querida Marta,

Fez ontem um ano. Já?! Nem queria acreditar. Não dei conta de o tempo
passar assim tão depressa. Talvez a razão esteja no facto de eu te escrever
tantas vezes. É como se, no fundo, não te tivesses ido embora
completamente. Um ano é muito tempo aqui na Terra, no Céu não sei o que
será, mas talvez passe num minuto. O tempo é um grande enigma. Um dia eu
vou perceber. Quando for inteligente outra vez.
Esta manhã fui à missa que os teus pais mandaram dizer, aqui na paróquia. O
Diogo não apareceu, mas os meus pais e - surpresa das surpresas - o Pré-
histórico foram comigo. Telefonei a alguns da nossa turma a avisar, mas
estavam quase todos de férias. O João Pedro ainda não saiu de Lisboa e
agradeceu-me o telefonema, mas disse que não ia à missa porque
é ateu e coerente... Eu acrescentei para mim mesma "e parvo."
Os únicos que chegaram a ir (embora atrasados) foram a Sara e
o Luís, mas saíram antes da comunhão. Gostava de ter tido oportunidade de
falar um bocadinho com eles, mas não deu. É pena.
Durante a missa, não consegui deixar de olhar o tempo todo para aquela
imagem de Cristo sobre uma nuvem e perguntei-me se será Cristo ou Deus,
quero dizer, o Filho ou o Pai. O olhar escorria bondade, como se tudo pudesse
vir a ser perdoado.
Era impossível despegar os olhos da imagem, parecia que tinha um íman. Era
exactamente aquele o olhar que eu queria ver nas outras pessoas e sobretudo
em mim, quando me vejo ao espelho.
Não ouvi praticamente nada do que o padre disse. No fim, despedi-me dos teus
pais e resolvi ir dar uma volta sozinha, porque não me apetecia enfiar-me logo
em casa. O teu pai parece mais velho desde que saiu de casa, e notei que ele
ficou a falar com o meu pai à porta da igreja. Julgo que o tema era política...
Deve ter sido ideia do meu pai, para não abordar coisas tristes. Por aquilo que
conheço dele (e é muito pouco), acho que tem pânico de tocar em assuntos
tristes. Talvez o meu pai não tenha crescido o suficiente. Ou talvez eu
tenha envelhecido demais este ano. Para mim, assuntos tristes são a
ordem do dia e, para meu azar, em pânico ou não, tenho de vivê-los.
Não há alternativa. Ninguém me perguntou se eu queria viver assim...
Ainda não consegui perdoar-te, Marta. Esta é a dura realidade. Também
porque ainda não consegui perceber-te, entender o que se passou contigo.
Será que algum dia consigo?
Até lá, sinto que vou crescendo à velocidade da luz, embora em minha casa
ninguém repare nisso.
Um beijo da

Joana

P.S. Dia 1 de Agosto há um concerto do Sting em Alvalade, mas já devo


estar no Guincho e, além disso, não conheço ninguém que vá e não estou
para ir sozinha.

Guincho, 20 de Agosto de 1993

Querida Marta,

Estive muito tempo sem escrever porque, na verdade, não sabia se devia ou não
continuar. Hoje percebi que não é uma questão de dever ou não, mas sim uma
questão de necessidade. Preciso de desabafar e ninguém te substituiu, com
grande pena minha.
Já estamos todos de férias. Decidi que este ano só vou à praia da parte da
manhã, até às dez e meia, por causa do problema do ozono. O mundo vai
mesmo mal pra burro e há gente tão anormal que ainda não percebeu que
a SIDA não é o único drama do século. O Pré-histórico, por exemplo,
continua a ir para a praia à hora do almoço, não põe nenhum creme de
protecção solar e já apanhou um escaldão que até dá arrepios.
É analfabeto, analfabruto e cada vez mais pré-histórico. A minha mãe, pelo
contrário, besunta-se diariamente com tantos cremes que parece um bolo de
pastelaria a derreter ao Sol. Quanto ao meu pai, como gosta pouco de praia,
passa a vida na esplanada a ler o jornal e a falar com os velhos amigos que,
como ele, vêm para este sítio há anos.
Ontem, encontrei um cão abandonado na rua e trouxe-o para casa. Como não
usava coleira, acho que não tem dono. É muito querido, embora estivesse tão
sujo que o afastei da minha mãe até lhe dar um grande banho de mangueira no
quintal. Agora, está um espectáculo. Pedi ao meu pai se podia ficar com ele,
mas a única resposta que obtive foi um sorriso que não fui capaz de interpretar.
Por enquanto, está no quintal e só entra no meu quarto. Pode ser que a minha
mãe não dê por nada. Não consegui falar com o teu irmão antes de vir para
aqui, por isso vou escrever-lhe uma carta. Só que hoje não estou inspirada.
Tenho de pensar urgentemente num nome para o cão. Um beijo
da

Joana

Guincho, 22 de Agosto de 1993

Querida Marta,

Já dei um nome ao cão: Lucas. Lembrei-me daquele rapaz que andou


connosco na primária e tinha o cabelo tão espetado que parecia pêlo de cão.
O Lucas é igual a ele, por isso dei-lhe o
mesmo nome. A minha mãe já descobriu que eu o adoptei e não achou piada
nenhuma, mas prometi-lhe que me responsabilizo. Oxalá ela se convença a
deixá-lo ir para Lisboa! Vou levá lo a
passear. Espero que não apanhe pulgas, senão a minha mãe manda-me
prender…

Um beijo da

Joana

Você também pode gostar