TERRITÓRIO SAGRADO Angela Philippini

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TERRITÓRIO SAGRADO

Angela Philippini

RESUMO:
A autora aborda o setting em Arteterapia considerando-o um território sagrado, dedicado à
criação e à transformação. Informa sobre ambientação e materiais básicos, enfocando o
papel e funções do arteterapeuta neste contexto.

ABSTRACT:
The author approaches the setting in art therapy, considering it as a holy territory, dedicated
to creations and transformation. Informs about environment and basic materials, focusing
the role and duties of the art therapist in this context.

“Isso é uma necessidade absoluta para qualquer um.


Você precisa de um grupo, uma determinada hora
ou um certo dia em que não leu as notícias da manhã,
não sabe quem são seus amigos, não sabe o que deve
a quem quer que seja, nem o que lhe devem.
É um lugar onde você simplesmente vivencia e traz à tona
o que você é e o que pode ser. É o lugar da criação incubativa.
No início, você pode achar que nada acontece, mas,
se você tem um lugar sagrado e se serve dele,
alguma coisa eventualmente acontecerá.”
(CAMPBELL)

IMAGEM

Todas as culturas têm seus territórios sagrados, um espaço de proteção, calma e


serenidade, nos quais os indivíduos podem realizar seus ritos de conexão com Aquele que
concebem como divindade. Locais para renovar as forças, espaço de reverenciar ancestrais,
pedir proteção, inspiração e harmonia. Nesses territórios se reúnem símbolos que facilitam
um processo de resgate de um chão original, uma verdadeira casa no sentido psíquico.
O “setting” da arteterapia, com sua aformatação de laboratório de alquimista,
recria, nos tempos atuais, o tão necessário território sagrado. Funciona como local de
criação, de resgatar e expandir potencialidades adormecidas, de desvelar sentimentos, de
compreender conteúdos inconscientes. Para que seja produtivo, este território simbólico
precisa, em sua materialidade, oferecer algumas condições operacionais essenciais.
Sua ambientação oferece inúmeras alternativas, mas algumas questões são básicas.
A luz natural é uma delas, pois facilita o contato com as cores sem distorções, não
sobrecarregando a visão. Outro fator refere-se ao chão e ao mobiliário, que devem ser
funcionais, podendo ser limpos com facilidade, sendo o carpete e outras forrações
semelhantes totalmente contra-indicadas. Quanto aos materiais pertinentes às múltiplas
modalidades expressivas, é essencial ter o básico para as atividades plásticas usadas em
arteterapia. Se acontece no processo de criação de um cliente em particular, a necessidade
de um material que habitualmente não está no setting, pode-se combinar, de uma sessão
para outra, como obtê-lo. Assim, para atender à essas modalidades expressivas básicas,
seria adequado manter disponível no “setting” arteterapêutico:

· PARA AS ATIVIDADES DE COLAGEM: gravuras pré-selecionadas (evitando o


manuseio de revistas inteiras, que distraem a atenção do cliente e tomam muito espaço),
papéis coloridos de texturas diversas (seda, glacê, celofane, camurça, kraft, cartolinas, etc),
tesouras (de preferência de pontas redondas), cola (branca, colorida e/ou com purpurina,
para isopor e para madeira), retalhos de tecidos, fios e materiais orgânicos (sementes, flores
secas, etc)

· PARA ATIVIDADES GRÁFICAS: papéis brancos (preferencialmente do tipo 40


kg), pois oferecem melhor rendimento por menor preço, são mais resistentes e podem ser
utilizados em cortes de tamanhos diversos, carvões de desenho, papéis A4 para esboço,
grafites, lápis de cor, crayons, pastéis a óleo e pastéis secos, bastões a óleo, etc. para o
trabalho com crianças, poderão ser acrescentados: gravetos, carvões e cacos de telha (para
desenhos em madeiras e superfícies porosas).

· PARA ATIVIDADES DE PINTURA: guache, aquarela, acrílica, PVA para


confecção de tinta artesanal feita da mistura de pigmento líquido, tinta de parede branca,
cola e água (com rendimento de grandes quantidades por preço menor e oferecendo cores
vivas e brilhantes), pincéis de tamanhos diversos, esponjas, e rolos de pintura de tamanho
diversos.

· PARA ATIVIDADES DE MODELAGEM: massa plástica (massa artesanal de


farinha de trigo e sal), argila, material básico para papel marchê (cola branca, papel
higiênico e desinfetante). Excepcionalmente, dependendo do processo de criação
acompanhado, poderão ser utilizadas massas menos comuns e de uso operacional mais
complexo, como Durepoxi, massa biscuit ou massa artesanal de miolo de pão e gesso.

· PARA AS ATIVIDADES DE CRIAÇÃO DE PERSONAGENS: bolas de isopor,


arames, palitos de churrasco, material para enchimento (algodão em bolas, rama ou estopa)
retalhos de tecidos, fios coloridos, fitas e rendas, fita crepe, grampeador, agulha e linha,
contas diversas, miçangas e paetês

· PARA ATIVIDADES DE TECELAGEM: fios diversos, lãs, barbantes tingidos ou


em tom natural, cordas de espessuras diversas, cordões de cores diversas, fitas.

· PARA ATIVIDADES COM TECIDOS: retalhos de cores e texturas diversas,


agulhas de espessuras diferentes (preferencialmente de furos grandes e pontas
arredondadas), tesouras, fita métrica, rendas, fitas, galões, linhas de espessuras diversas
para costurar e bordar.

· PARA ENCENAÇÕES: na apresentação e construção de histórias, na


experimentação de personagens, um baú de guardados é sempre bem-vindo. Pedaços de
retalhos diversos em tamanho grande (para enrolar e cobrir), tule em cores diversas,
plumas, bijuterias, luvas, roupas de festa, capas e chapéus.

A possibilidade de separar materiais para compor o “setting” de arteterapia é


infinita. É interessante ter alguns materiais adicionais como: penas coloridas, conchas, areia
colorida, purpurina, pedras coloridas e contas, porque nunca se sabe certamente qual será a
necessidade de expressão do cliente. Ao acontecer de alguma idéia não poder ser
materializada no momento da sessão, é interessante combinar com o próprio cliente formas
de conseguir o material para encontros seguintes. Evitando, assim, que o processo seja
bloqueado e/ou interrompido por questões operacionais e também permitindo que o próprio
indivíduo que cria participe mais ativamente do processo.
Uma questão que às vezes se coloca em relação ao setting de arteterapia é a dos
arteterapeutas iniciantes, que atendem em locais não apropriados para o trabalho. Estes se
defrontam com dificuldades para o armazenamento das produções e com a própria
dinâmica do processo de criação que, no percurso, pode espelhar a sua volta registros feitos
de respingos, manchas, fiapos e fragmentos diversos. Estes arteterapeutas às vezes ficam
muito aflitos tentando administrar eventos naturais ao processo de criação e submetendo-se
a restringir as possibilidades expressivas, para que se adequem a determinados “settings”
pasteurizados.
O trabalho em arteterapia pressupõe a possibilidade de armazenar as produções em
processo e deve poder suportar receber manchas de tinta, pedaços de barro, aparas de papel,
etc. O “setting” não deve permanecer sujo, mas certamente deve ser sujado durante o
desenrolar das atividades. Por isso, chão com carpete, cadeiras forradas com tecido e
móveis claros não são adequados.
O setting de arteterapia funciona como um ateliê e, portanto, é pouco produtivo
procurar pretender que esteja sempre impecavelmente organizado. Uma certa flexibilidade
em tolerar a dinâmica do processo criativo é útil, mas deixar o ateliê em permanente
desarrumação não será produtivo. Deve-se incluir no processo terapêutico a tarefa de
organizar o espaço com cada cliente individualmente, ou com os grupos ao final de cada
atendimento, o que ajuda a manutenção do espaço sempre em condições de uso.
Há muitos anos atrás, no curso de psicologia, aprendi que um “setting” deveria ser
neutro, pintando de branco ou cinza e sem estímulos que pudessem distrair a atenção do
cliente. Nesta mesma época, iniciei um processo terapêutico com um psicanalista que, além
de seu consultório particular, dirigia uma instituição psiquiátrica pública no Rio de Janeiro.
Era conhecido por sua cordialidade e posições políticas bem definidas e pelo fato de manter
em seu consultório particular, grupos que eram chamados de “sociais” (com estudantes e
pessoas de renda mais baixa que necessitavam iniciar um processo terapêutico).
Quando cheguei ao seu consultório particular para a entrevista inicial, como
candidata a entrar em um destes grupos, qual não foi meu espanto ao ver que dentro
daquele espaço (o “setting”) havia objetos que, à minha possibilidade de compreensão da
época, pareceram muito inusitados. Havia santos barrocos, objetos diversos em artesanato
de madeira e o que, na ocasião, julguei mais incrível era que havia também, num dos cantos
da sala, uma imensa roda de carroça de boi talhada em madeira grossa e escura. No meio da
entrevista não me contive e perguntei: “Mas por que você tem estes objetos aqui?”
Então, ele tranqüilamente me respondeu: “Eu os tenho aqui porque eles são registros
de minhas viagens. Como estou neste espaço mais de 8 horas por dia, gosto de ter por perto
objetos dos quais mais gosto e que me tragam boas sensações.” Aliviada, prossegui minha
entrevista e posteriormente fui admitida no grupo. Iniciamos ali uma produtiva parceria
terapêutica que só veio a ser interrompida anos depois, por sua morte.
Penso que naquele momento da entrevista recebi uma informação preciosa para
minha jornada posterior como terapeuta e sobretudo para minha trajetória como
arteterapeuta. O trabalho pode ser conduzido com seriedade, competência e produtividade,
sem ter que se esconder sob o ranço do academismo e da ortodoxia.
O “setting” arteterapêutico deve contar com uma atmosfera descontraída que, ao
mesmo tempo, ofereça segurança e receptividade. Deve ser estimulador da experimentação
expressiva, do comportamento criativo, de ousadias e inovações nos modos de ser. Por
outro lado, deve conter múltiplos materiais, de modo a facilitar, através desta múltipla
materialidade, a descoberta de trilhas de acesso ao inconsciente, singulares para cada
indivíduo.
Chagas Pereira ressalta que a “preocupação terapêutica” pode tornar-se facilmente
antiterapêutica porque deixa entrever uma “norma”, uma discreta condenação do que é
“anormal” ou “inadequado” e não há nada que dificulte mais a cura do que a proibição de
adoecer ou de se manifestar a patologia.
A arteterapia procura evitar a rigidez teórica ou técnica que pode exercer um efeito
inibidor inconsciente ao progresso criativo e à liberação expressiva do paciente. Parte-se do
pressuposto que a atividade expressiva possui uma ordem oculta e que o intelecto (a função
pensamento) também participa deste trabalho, de acordo com leis próprias de estética e
harmonia, não havendo, por isso, a necessidade de exagerados “controles externos” no
“setting” arteterapêutico.
Neste contexto, o paciente coopera ativamente no tratamento, havendo, por isso,
redução do desejo de competir com o arteterapeuta ou inveja de suas interpretações. Mesmo
quando, no decorrer do processo, surge a dor que resulta da perda da idealização do ego,
este momento pode ser melhor tolerado pela compensação de poder criar algo que é
tangível e perene. Além disso, a atividade expressiva pode também oferecer um continente
estável paras as emoções intensamente agressivas e/ou destrutivas de determinados
pacientes.
O trabalho arteterapêutico compartilha a vida em seus movimentos de fuga e
encontro, em suas mudanças e fluidez, e demanda flexibilidade para acompanhá-lo de
forma adequada. Que o “setting” de arteterapia possa funcionar, então, como um território
sagrado da criação, um espaço acolhedor e flexível no qual, em meio às asperezas do
cotidiano, abrem-se trilhas de entrada num espaço mítico de autodescoberta, lugar de
gestar-se em sonhos e projetos. Um temenos* onde é possível criar e recriar o tempo, tal
qual seria kairós*. Resgatando e construindo fontes de proteção e nutrição psíquica. E,
então, neste tempo e espaço singulares, criações, criadores e criaturas vão poder dançar a
dança de Shiva, celebrando o TODO CRIATIVO que assim, poderá viver e se multiplicar
em arteterapeutas e clientes.

ANTES, HOJE E SEMPRE...

*TEMENOS – vaso sagrado


*KAIRÓS – divindade grega do Tempo Cíclico
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CAMPBELL, J – O Poder do Mito – Trad. Carlos Felipe Moisés – Palas – SP (1990)

PEREIRA, C.R. – A Espiral do Símbolo – Vozes - Petrópolis (1997)

PHILIPPINI, A. – Materialidade em Arteterapia in Revista Imagens da Transformação –


Pomar – RJ - 1999

Publicado originalmente no Volume VI da Coleção de Revistas de Arteterapia “Imagens da


Transformação” – Pomar - 1999

Ângela Philippini é arteterapeuta, artista plástica, Mestre em Criatividade pela


Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), editora da coleção de Revistas de
Arteterapia “Imagens da Transformação”, autora do livro de arteterapia “Cartografias da
Coragem”, organizadora do livro “Arteterapia: Métodos, Projetos e Processos”,
coordenadora da Pós-Graduação Lato Sensu em Arteterapia em convênio Pomar – ISEPE.

E-mail: pomar@alternex.com.br

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