Territorio e Territorialidades
Territorio e Territorialidades
Territorio e Territorialidades
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um pequeno panorama dos territórios
e territorialidades dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil a partir da análise das terras
tradicionalmente ocupadas, definidas pelo uso comum da terra. Dessa forma, na perspectiva
geohistórica, apontaremos as reflexões do campo teórico e jurídico que envolvem os direitos
territoriais construídos a partir das reivindicações e pressões dos movimentos sociais que
impuseram uma agenda política da abordagem territorial na construção dos direitos coletivos,
étnicos, territoriais e difusos. Os procedimentos metodológicos se deram a partir da realização
de revisão bibliográfica profunda e crítica da temática em questão, desde geógrafos (as) à
antropólogos (as), como das fontes documentais e legais. Como resultado, visualiza-se, após
o balanço e panorama da questão que, mesmo com a construção de um arcabouço teórico e
jurídico no Brasil acerca do Povos e Comunidades Tradicionais e materialização de políticas
1 Professor de Geografia Humana da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), Unidade Carangola. Vinculado
ao Departamento de Ciências Humanas (DCH). Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal Fluminense (PosGeo/UFF), na linha de pesquisa de Ordenamento Territorial Urbano-Regional e
no eixo de Território, Política e Movimentos Sociais.
2 Doutoranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (PosGeo/UFF), na
linha de pesquisa de Ordenamento Territorial Urbano-Regional e no eixo de Produção do Espaço Urbano.
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Abstract: The present work has for objective to present a small panorama of the territories
and territorialities of the Traditional Peoples and Communities in Brazil from the analysis
of the traditionally occupied lands, defined by the common use of the land. Thus, in the
geohistorical perspective, we will point out the reflections of the theoretical and legal field
that involve territorial rights built from the demands and pressures of social movements that
imposed a political agenda of the territorial approach in the construction of collective, ethnic,
territorial and diffuse rights. The methodological procedures took place from the performance
of a thorough and critical bibliographic review of the subject in question, from geographers to
anthropologists, as well as from documentary and legal sources. As a result, one can see, after
the balance and panorama of the issue that, even with the construction of a theoretical and
legal framework in Brazil about Traditional Peoples and Communities and the materialization
of public policies, there is, in contemporary times, a setback in the enforcement of rights,
marked by a dismantling of these policies, built by social struggles.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo presentar un pequeño panorama de los
territorios y territorialidades de los Pueblos y Comunidades Tradicionales en Brasil a partir
del análisis de las tierras tradicionalmente ocupadas, definidas por el uso común de la tierra.
Así, en la perspectiva geohistórica, señalaremos las reflexiones del campo teórico y legal
que involucran derechos territoriales construidos a partir de las demandas y presiones de
los movimientos sociales que impusieron una agenda política del enfoque territorial en la
construcción de derechos colectivos, étnicos, territoriales y difusos. Los procedimientos
metodológicos se dieron a partir de la realización de una revisión bibliográfica exhaustiva
y crítica del tema en cuestión, desde geógrafos hasta antropólogos, así como de fuentes
documentales y legales. Como resultado, se puede ver, luego del balance y panorama del
tema que, aun con la construcción de un marco teórico y legal en Brasil sobre Pueblos y
Comunidades Tradicionales y la materialización de políticas públicas, hay, en la época
contemporánea, un retroceso en la vigencia de los derechos, marcada por un desmantelamiento
de estas políticas, construida por las luchas sociales.
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1 - INTRODUÇÃO
Os múltiplos territórios e as múltiplas territorialidades dos povos e “comuni-
dades tradicionais” nos diversos países da América do Sul, principalmente no Brasil,
envolvem processos complexos do histórico de expansão das fronteiras políticas e eco-
nômicas desde o Brasil Colonial e Imperial às novas fronteiras de expansão contempo-
râneas. De acordo com Little (2002), a “história das fronteiras em expansão no Brasil
é, necessariamente, uma história territorial” (p. 4). Soma-se a este enredo a criação do
Estado Nacional Brasileiro, que aprofunda mudanças significativas nos territórios tradi-
cionalmente construídos e ocupados por regimes de propriedade comum (LITTLE, 2002;
ALMEIDA, 2004).
Para compreendê-los, lançaremos o olhar sobre três aspectos significativos: a) o uso
comum da terra no Brasil; b) as características destes territórios em sua pluralidade e c) as ter-
ritorialidades específicas dos povos e “comunidades tradicionais”. Estes últimos, envolvem
memórias e identidades coletivas (de pertencimento) enquanto referencial político e cultural,
uma complexa trama de relações sociais de parentesco e solidariedade, como também, de
simbiose entre a natureza, os recursos e os ciclos naturais, constituindo-se um modo de vida
particular (DIEGUES, 2000; 2004).
Para Diegues (2000, p. 20), um aspecto importante na definição das culturas tradi-
cionais é a existência de:
sistemas de manejos dos recursos naturais marcados pelo respeito aos ciclos
naturais, à sua exploração dentro da capacidade de recuperação das espécies
de animais e plantas utilizadas. Esses sistemas tradicionais de manejo
não são somente formas de exploração econômica dos recursos naturais,
mas revelam a existência de um complexo de conhecimentos adquiridos
pela tradição herdada dos mais velhos, de mitos e símbolos que levam à
manutenção e ao uso sustentado dos ecossistemas naturais.
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3 “De modo geral, o direito consuetudinário é definido como um conjunto de normas sociais tradicionais, criadas
espontaneamente pelo povo, não escritas e não codificadas. O verbete “consuetudinário” significa algo que é fundado
nos costumes, por isso chamamos essa espécie de direito também de direito costumeiro” (CURI, 2012).
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(...) muitas das formas de uso comum acabam por identificar aspectos
inerentes à própria formação da sociedade brasileira. Aliás, as formas de uso
comum tidas como “tradicionais”, com gênese antiga, sofreram, com o tempo,
profundas transformações, desaparecendo em muitas áreas. Porém, outras
formas se desenvolveram a medida que certas economias se desagregaram,
como aquelas ligadas ao latifúndio. (...) há também as que surgiram em
4 “A expressão “terra de preto” alcança também aqueles domínios ou extensões correspondentes a antigos quilombos e
áreas de alforriados nas cercanias de antigos núcleos de mineração, que permaneceram em isolamento relativo, mantendo
regras de uma concepção de direito, que orientavam uma apropriação comum dos recursos. Sublinhe-se que há ainda as
denominadas “terras de preto” que foram conquistadas por prestação de serviços guerreiros ao Estado, notadamente na
guerra da Balaiada (1838-41)” (Ibid. p. 115).
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Assim, onde a terra era livre, o trabalho era cativo; onde o trabalho era livre, a terra
deveria ser cativa. Neste momento, outros países do mundo e outras regiões do Brasil já haviam
abolido a escravidão, a exemplo do estado do Ceará e outras localidades, pressionado por mo-
vimentos sociais7, como o Movimento Abolicionista, que atuava em diversas localidades.
5 A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, dispõe sobre as terras devolutas do Império e acerca das que são possuídas por
titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica; e
determina que: medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares,
como para o estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros, autorizando o Governo a promover a colonização
estrangeira na forma que se declara. Determina em seu Art. 1º - Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por
outro título que não seja o de compra. (Brasil, Lei nº 601/1850).
6 A Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850, conhecida como Lei Euzébio de Queiroz, estabelece medidas para a repressão
do tráfico de africanos neste Império. Ela foi fruto da pressão da Inglaterra contra a escravidão africana, devido ao
seu interesse em implantar o trabalho assalariado em todo o mundo e ampliar o mercado consumidor para produtos
industrializados.
7 Em virtude de uma grande seca no nordeste e principalmente no estado do Ceará, entre 1877 e 1879, toda a produção
do estado foi desorganizada, matando de fome, cólera e de varíola um quarto da população. Assim os proprietários
escravistas buscaram vender seus escravizados para os fazendeiros do sudeste que produziam café, mas era necessário
embarcá-los no porto de Fortaleza. As sociedades civis engajadas na luta abolicionista, desde 1880, como a Sociedade
Cearense Libertadora, tiveram enquanto um dos seus maiores representantes o jangadeiro Francisco José do Nascimento,
conhecido como Dragão do Mar, e impediram o embarque de cativos, bloqueando o porto, sob o slogan “no Ceará não se
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embarcam escravos”. Esse movimento forçou a abolição da escravidão no Ceará em 1884, como primeiro estado a abolir
a escravidão, quatro anos antes do restante do Brasil. Fonte: <http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/francisco-
josedonascimento>, acesso em 20 de outubro de 2020.
8 Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), nas eleições municipais de 2020, pelo menos 225 indígenas e 57 quilombolas
foram eleitos em todo o país no dia 15/11/2020. Número de eleitos tem crescimento razoável, segundo dados do TSE
e dos movimentos sociais. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/urnas-
demarcadas-brasil-elege-maior-numero-de-candidatos-indigenas-na-historia-da-democracia>. Acesso em 30/11/2020.
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9 Logo, o Estado Moderno e o capital, desde suas origens comuns, mantêm um “casamento perfeito” (LITTLE, 2002).
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(PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 17, grifo nosso). Nessa estrutura, a base está acomodada na
monopolização das terras pelos brancos e seus descendentes e, assim, “entre nós a estrutura
de classes é etnizada” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 17).
As terras de uso comum ficaram à parte do desenvolvimento capitalista por algum tem-
po, tendo em vista que ora não interessavam ao capital; ora apresentavam dificuldades – técnicas
e políticas - de ocupação; ora se transformaram em territórios defendidos por suas comunidades.
No cenário atual, as terras de uso comum vêm se tornando estratégicas do ponto de
vista hegemônico por meio da revolução nas relações sociais e de poder através da tecnologia,
“porque são áreas com grande diversidade biológica, água, energia e, mesmo, áreas exten-
sas com relevo plano e grande disponibilidade de insolação, é dizer, são as áreas tropicais”
(PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 17). Estes locais não estão à margem do desenvolvimento
capitalista, mas incorporadas como fundos territoriais (MORAES, 2005) que podem ser
utilizados enquanto recursos a qualquer momento, sejam elas em espaços urbanos ou rurais,
modificando sua organização espacial.
As terras de uso comum e tudo o que delas é possível extrair, “(…) constituiu-se num
componente indispensável à sobrevivência econômica de camadas mais pobres da população
rural como também urbanas, desempenhando importante papel” (CAMPOS, 2000, p. 10) na
produção e reprodução da vida. Sua utilização envolve diversas atividades para inúmeros
fins, tais como: o apascento em comum do gado, o suprimento de lenhas, a extração de ma-
deiras, a agricultura, o uso coletivo da água e variados produtos naturais. Em outros espaços
comunitários, o uso de escolas, os espaços de reuniões, espaços culturais, espaços e símbolos
sagrados, as hortas de quintais e as ervas do mato, entre outros, constituem espaços de uso
comum para essas comunidades.
No processo de expansão das fronteiras, seja a partir das ondas históricas de terri-
torialização no Brasil colonial e imperial, ou frente aos “novos eixos de desenvolvimento”
baseados na vocação desenvolvimentista do Estado Brasileiro – vigente ao longo dos séculos
XX e XXI10 –, foi produzido um conjunto de choques territoriais, o que provocou novas
ondas de territorialização por parte dos Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades tradi-
cionais. As novas reivindicações territoriais representam uma resposta às novas fronteiras em
expansão (LITTLE, 2002).
10 Podemos citar essas expansões desde a Marcha para Oeste nos anos de 1930, centrada nos estados de Goiás e Mato Grosso.
A construção de Brasília nos anos de 1950, as primeiras grandes estradas amazônicas – Belém-Brasília, Tranzamazônica,
Cuiabá-Santarém - nos anos de 1960 e 1970. A implantação de grandes projetos de desenvolvimento pelos governos
militares, tais como a criação da Zona Franca de Manaus, a construção das hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Samuel, o
projeto de mineração Grande Carajás, o que serviu para produzir novas frentes de expansão desenvolvimentista (LITTLE,
2002, p. 12).
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11 “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens” (BRASIL, Art. 231 da Constituição Federal).
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12 Gallois (2004), ao investigar o processo de identificação da Terra Indígena “Zo’ é”, no estado do Pará, mostra que há
alternância entre movimentos de dispersão e de concentração populacional deste grupo, que marcam sua ocupação
territorial. Estas não são fixas, no sentido de uma vida sedentária ou em aldeias. Neste sentido, a noção jurídica de Terra
Indígena não incorpora esta e outras diversidades. Da mesma forma, os Kaingang, no Paraná, possuem territórios de caça
e pesca, para onde se deslocam e acampam durante períodos sazonais, mas que não constituem espaços de habitação
permanente.
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De forma geral, aos quilombolas são imputados: os artigos 215 e 216 da Seção II (“Da
Cultura”) e o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição,
seguidos da Convenção 169 Sobre Povos Indígenas e Tribais (OIT), do Decreto Federal nº
4.887/03, e de uns cem números de Instruções Normativas nº 57/09 do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), que desde o Decreto 4887/03, se alteraram muito;
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Por meio desta articulação e aliança com ambientalistas, o movimento seringueiro teve
repercussão em escala internacional e possibilitou um salto escalar de ação política e visibilida-
de ao movimento, fundamental para a afirmação de sua identidade. Consequentemente, o movi-
mento se “projetou não só em defesa da floresta, como também contra o suporte internacional
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Posteriormente, essa modalidade territorial foi apropriada por outros grupos de ex-
trativistas que não exploravam a borracha, como Castanheiros, Quebradeiras de Coco Cabaçu
e Pescadores artesanais, com múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios
e/ou segundo a combinação entre eles, tais como: “raízes locais profundas; fatores políti-
cos-organizativos; autodefinições coletivas; consciência ambiental; e elementos distintivos
de identidade coletiva” (ALMEIDA, 2004, p. 20). As denominadas “Quebradeiras de Coco
Babaçu” incorporam também um critério de gênero, “combinado com uma representação
diferenciada por regionais e respectivos povoados” (ALMEIDA, 2004, p. 20). Como salienta
o referido autor acerca das formas associativas:
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15 Almeida (2004, 2008) formula um quadro das terras tradicionalmente ocupadas, com o cruzamento de informações
entre as categorias da diversidade de povos e comunidades tradicionais com o movimento social correspondente, o ato
jurídico de direito, a data de publicação, o texto legal, a agência oficial competente, a política governamental associada,
a estimativa de área ocupada em hectares e, por fim, a população de referência. Não detalhemos cada grupo social. Para
maiores informações, recomenda-se a bibliografia.
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Outro instrumento que aponta para a interface entre sociedade e natureza e a cons-
trução de instrumentos legais de manutenção da diversidade biológica e sociocultural é a
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada por 194 países e ratificada por
168, dentre os quais o Brasil se inclui, através do Decreto nº 2.519 de 16 de março de
1998. Esse documento é fruto da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD), realizada na cidade do Rio de Janeiro16. A CBD entrou em
vigor e 29 de dezembro de 1993, com o objetivo de estabelecer as normas e princípios que
devem reger o uso e a proteção da diversidade biológica em cada país signatário. Ou seja, a
Convenção “dá as regras para assegurar a conservação da biodiversidade, o seu uso sustentá-
vel e a justa repartição dos benefícios provenientes do uso econômico dos recursos genéticos,
respeitada a soberania de cada nação sobre o patrimônio existente em seu território” (Jornal
(o) eco, 2014).
No entanto, “a diversidade biológica não é, simplesmente, um conceito pertencente
ao mundo natural. É também uma construção cultural e social”. Sendo assim, “as espécies são
objetos de conhecimento, de domesticação e uso, fonte de inspiração para mitos e rituais das
sociedades tradicionais [com uma diversidade de saberes de usos] e, finalmente, mercadoria
nas sociedades modernas” (DIEGUES, 1999, p. 1, grifo nosso).
Um dos objetivos da Convenção é o respeito e a manutenção dos conhecimentos e
práticas tradicionais, em seus preâmbulos e no decorrer dos artigos:
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Little (2002) faz uma reflexão acerca do conceito de povos tradicionais, analisando-
-os a partir de algumas temáticas, dentre elas:
1. As que envolvem o âmbito acadêmico, fundamentado no campo das Ciências Sociais:
dentro do que foi chamado de razão histórica – “regime de propriedade comum, sen-
tido de pertencimento a um lugar específico e profundidade histórica da ocupação
guardada na memória coletiva (...)” (p. 22).
2. A sociogênese do conceito de povos tradicionais e seus subsequentes usos políticos e
17 Assim determina: “Esse intercâmbio de Informações deve incluir o intercâmbio dos resultados de pesquisas técnicas,
científicas, e socioeconômicas, como também informações sobre programas de treinamento e de pesquisa, conhecimento
especializado, conhecimento indígena e tradicional como tais e associados às tecnologias a que se refere o § l do Art. 16”
(BRASIL, Artigo 17; 2). E ainda: “As Partes Contratantes devem, em conformidade com sua legislação e suas políticas
nacionais, elaborar e estimular modalidades de cooperação para o desenvolvimento e utilização de tecnologias, inclusive
tecnologias indígenas e tradicionais, para alcançar os objetivos desta Convenção. Com esse fim, as Partes Contratantes
devem também promover a cooperação para a capacitação de pessoal e o intercâmbio de técnicos” (Artigo 18; 4).
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Como resultado, dos anos 2000 para cá, após a promulgação do SNUC e por pressão
dos movimentos sociais e da sociedade civil, inúmeros decretos (desde o âmbito federal ao
municipal) voltados para os povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais foram
publicados. Neste âmbito, podemos destacar o Decreto nº 6040, de 7 de fevereiro de 2007,
assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) em todo o
território nacional.
Para fins deste Decreto, o artigo 3º elucida a definição das noções em pauta acerca
dos povos e comunidades tradicionais, das quais se compreende:
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Determina o Decreto que as ações e atividades para alcance dos objetivos deverão
ocorrer “de forma intersetorial, integrada, coordenada e sistemática”, além de observar prin-
cípios de reconhecimento, valorização e respeito à diversidade socioambiental e cultural dos
povos e comunidades tradicionais, “levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes
etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades labo-
rais”. Deste modo, esta política nacional assegura acessos diferenciados a direitos universais,
no exercício efetivo de uma cidadania diferenciada, como estratégia de reconhecer o direito
à diferença mais do que o direito à igualdade (PORTO-GONÇALVES, 2006), o que implica
a execução da justiça territorial.
Para esforço de síntese e melhor visualização das formas de reconhecimento jurídico
das diferentes modalidades de apropriação das denominadas terras tradicionalmente ocupa-
das, trazemos a reprodução do quadro elaborado por Almeida (2004), atualizado nos marcos
jurídicos recentes, até o ano de 2016.
18 Importante ressaltar que embora a Lei do SNUC utilize a expressão “populações tradicionais”, em diversos dispositivos,
o conceito de “população tradicional”, que era estabelecido no inciso XV do art. 2º, foi vetado pelo Poder Executivo,
através da Mensagem nº 967, de 18/07/2000, pelo então presidente na época, Fernando Henrique Cardoso. Santilli (2004)
informa que o veto foi defendido tanto por preservacionistas, que consideravam a definição excessivamente ampla, como
também pelo próprio movimento dos seringueiros da Amazônia, que considerava a definição excessivamente restrita pela
exigência de permanência na área “há três gerações”. Essa lógica temporal da ocupação do território confere enorme
problemática, pois as formações dos grupos são postas em diferentes situações.
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RIET – Revista Interdisciplinar em Educação e Territorialidade
Art. 231
“Posse permanente”, usufruto
Povos indígenas exclusivo dos recursos naturais. Convenção 169 OIT
Terras como “bens da União”
Decreto 6040/07
Decreto nº 8.750/16
CF – ADCT
Art. 68
Decreto 6040/07
Decreto nº 8.750/16
Leis Municipais
(MA, TO)
Uso comum dos babaçuais. “Sem
1997 – 2004
posse e sem propriedade”
Quebradeiras de coco babaçu Decreto 6040/07
Decreto nº 8.750/16
CE – M, 1990
“Regime de economia familiar e
comunitária” Art. 196
CF – 1988
Decreto nº 8.750/16
CF – 1988
Art. 20 § 3º
RESEX – “Terrenos de Marinha”.
Decretos
Pescadores
Recursos hídricos como “bens da
1992 e 1997
União”
Decreto 6040/07
Decreto nº 8.750/16
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Universidade Federal da Grande Dourados
CE-BA, 1989
Art. 178
Fundo de pasto “Direito real de concessão de uso”
Decreto 6040/07
Decreto nº 8.750/16
Decreto Estadual Paraná
14/08/1997
“Uso coletivo da terra pra produção
Faxinal
animal e conservação ambiental” Decreto 6040/07
Decreto nº 8.750/16
Nota: CF: Constituição Federal; CE: Constituição Estadual.
Fonte: elaborado por Almeida (2004) e atualizado pelo autor deste trabalho.
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