Territorio e Territorialidades

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Universidade Federal da Grande Dourados

TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADES DOS POVOS E


“COMUNIDADES TRADICIONAIS” NO BRASIL: UMA
APROXIMAÇÃO

TERRITORY AND TERRITORIALITIES OF PEOPLES AND


“TRADITIONAL COMMUNITIES” IN BRAZIL: AN APPROACH

TERRITORIO Y TERRITORIALIDADES DE PUEBLOS Y


“COMUNIDADES TRADICIONALES” EN BRASIL: UN ENFOQUE

Gabriel Romagnose Fortunato de Freitas Monteiro1


Departamento de Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG)
Carangola, Minas Gerais, Brasil
E-mail: gabriel.freitas@uemg.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3436-4529

Adriani Lameira Theophilo de Almeida2


Programa de Pós-Graduação em Geografia,
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
E-mail: adriani.theophilo@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7509-9012

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um pequeno panorama dos territórios
e territorialidades dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil a partir da análise das terras
tradicionalmente ocupadas, definidas pelo uso comum da terra. Dessa forma, na perspectiva
geohistórica, apontaremos as reflexões do campo teórico e jurídico que envolvem os direitos
territoriais construídos a partir das reivindicações e pressões dos movimentos sociais que
impuseram uma agenda política da abordagem territorial na construção dos direitos coletivos,
étnicos, territoriais e difusos. Os procedimentos metodológicos se deram a partir da realização
de revisão bibliográfica profunda e crítica da temática em questão, desde geógrafos (as) à
antropólogos (as), como das fontes documentais e legais. Como resultado, visualiza-se, após
o balanço e panorama da questão que, mesmo com a construção de um arcabouço teórico e
jurídico no Brasil acerca do Povos e Comunidades Tradicionais e materialização de políticas

1 Professor de Geografia Humana da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), Unidade Carangola. Vinculado
ao Departamento de Ciências Humanas (DCH). Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da
Universidade Federal Fluminense (PosGeo/UFF), na linha de pesquisa de Ordenamento Territorial Urbano-Regional e
no eixo de Território, Política e Movimentos Sociais.
2 Doutoranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (PosGeo/UFF), na
linha de pesquisa de Ordenamento Territorial Urbano-Regional e no eixo de Produção do Espaço Urbano.

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públicas, enfrenta-se, na contemporaneidade, um retrocesso na efetivação dos direitos,


marcado por um desmonte destas políticas, construídas por lutas sociais.

Palavras-chave: Território. Territorialidades. Povos e comunidades tradicionais.

Abstract: The present work has for objective to present a small panorama of the territories
and territorialities of the Traditional Peoples and Communities in Brazil from the analysis
of the traditionally occupied lands, defined by the common use of the land. Thus, in the
geohistorical perspective, we will point out the reflections of the theoretical and legal field
that involve territorial rights built from the demands and pressures of social movements that
imposed a political agenda of the territorial approach in the construction of collective, ethnic,
territorial and diffuse rights. The methodological procedures took place from the performance
of a thorough and critical bibliographic review of the subject in question, from geographers to
anthropologists, as well as from documentary and legal sources. As a result, one can see, after
the balance and panorama of the issue that, even with the construction of a theoretical and
legal framework in Brazil about Traditional Peoples and Communities and the materialization
of public policies, there is, in contemporary times, a setback in the enforcement of rights,
marked by a dismantling of these policies, built by social struggles.

Keywords: Territory. Territorialities. Traditional Peoples and Communities.

Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo presentar un pequeño panorama de los
territorios y territorialidades de los Pueblos y Comunidades Tradicionales en Brasil a partir
del análisis de las tierras tradicionalmente ocupadas, definidas por el uso común de la tierra.
Así, en la perspectiva geohistórica, señalaremos las reflexiones del campo teórico y legal
que involucran derechos territoriales construidos a partir de las demandas y presiones de
los movimientos sociales que impusieron una agenda política del enfoque territorial en la
construcción de derechos colectivos, étnicos, territoriales y difusos. Los procedimientos
metodológicos se dieron a partir de la realización de una revisión bibliográfica exhaustiva
y crítica del tema en cuestión, desde geógrafos hasta antropólogos, así como de fuentes
documentales y legales. Como resultado, se puede ver, luego del balance y panorama del
tema que, aun con la construcción de un marco teórico y legal en Brasil sobre Pueblos y
Comunidades Tradicionales y la materialización de políticas públicas, hay, en la época
contemporánea, un retroceso en la vigencia de los derechos, marcada por un desmantelamiento
de estas políticas, construida por las luchas sociales.

Palabras Clave: Territorio. Territorialidades. Pueblos y comunidades tradicionales.

Data de recebimento: 05/11/2020


Data de aprovação: 20/12/2020

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1 - INTRODUÇÃO
Os múltiplos territórios e as múltiplas territorialidades dos povos e “comuni-
dades tradicionais” nos diversos países da América do Sul, principalmente no Brasil,
envolvem processos complexos do histórico de expansão das fronteiras políticas e eco-
nômicas desde o Brasil Colonial e Imperial às novas fronteiras de expansão contempo-
râneas. De acordo com Little (2002), a “história das fronteiras em expansão no Brasil
é, necessariamente, uma história territorial” (p. 4). Soma-se a este enredo a criação do
Estado Nacional Brasileiro, que aprofunda mudanças significativas nos territórios tradi-
cionalmente construídos e ocupados por regimes de propriedade comum (LITTLE, 2002;
ALMEIDA, 2004).
Para compreendê-los, lançaremos o olhar sobre três aspectos significativos: a) o uso
comum da terra no Brasil; b) as características destes territórios em sua pluralidade e c) as ter-
ritorialidades específicas dos povos e “comunidades tradicionais”. Estes últimos, envolvem
memórias e identidades coletivas (de pertencimento) enquanto referencial político e cultural,
uma complexa trama de relações sociais de parentesco e solidariedade, como também, de
simbiose entre a natureza, os recursos e os ciclos naturais, constituindo-se um modo de vida
particular (DIEGUES, 2000; 2004).
Para Diegues (2000, p. 20), um aspecto importante na definição das culturas tradi-
cionais é a existência de:

sistemas de manejos dos recursos naturais marcados pelo respeito aos ciclos
naturais, à sua exploração dentro da capacidade de recuperação das espécies
de animais e plantas utilizadas. Esses sistemas tradicionais de manejo
não são somente formas de exploração econômica dos recursos naturais,
mas revelam a existência de um complexo de conhecimentos adquiridos
pela tradição herdada dos mais velhos, de mitos e símbolos que levam à
manutenção e ao uso sustentado dos ecossistemas naturais.

Deste modo, a intensa relação com o território é central e constrói sistemas de


representações, símbolos, mitos e referenciais espaciais, cuja ação se dá com base nesses
elementos. Em outra obra, Diegues define as sociedades tradicionais enquanto:

grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente


reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base
em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a
natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio
ambiente. Essa noção se refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos
da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência,
adaptados a nichos ecológicos específicos. (DIEGUES et al, 2000, p. 22)

A partir deste esforço de definição, o autor amplia o significado dos Povos e


Comunidades tradicionais. Será com base nas análises dos múltiplos grupos sociais que visa-
mos construir um campo de reflexão que ilustra a tensão entre os territórios “tradicionais” e

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os territórios do capital expansivo e desenvolvimentista.


O objetivo deste trabalho é apresentar um panorama dos territórios e territorialidades
dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil a partir da análise das terras tradicionalmen-
te ocupadas, definidas pelo uso comum da terra. Os procedimentos metodológicos se deram a
partir da realização de revisão bibliográfica profunda e crítica da temática em questão, desde
geógrafos (as) à antropólogos (as), como das fontes documentais e legais.

2 - TERRAS DE USO COMUM NO BRASIL: DEBATES E REFLEXÕES


O debate acerca das diferentes formas de uso comum da terra no Brasil e demais bens
naturais tem ligação direta com os territórios e as territorialidades dos Povos e “Comunidades
tradicionais”, uma vez que “o direito de uso comum” relaciona-se diretamente com o direito
consuetudinário3, por sua vez, “baseado na tradição, no costume, evidenciando uma prática
cujas comunidades há muito praticavam, quanto através de inúmeros documentos, como leis,
posturas, decretos municipais, províncias ou mesmo imperiais”, demonstrando “uma estreita
relação entre costume, lei e direito de uso comum” (CAMPOS, 2000, p. 1-2). Neste sentido,
é visto que esta estreita relação possibilitou a reinvindicação, na contemporaneidade, dos
processos de territorialização historicamente construídos.
O direito à diferença cultural é reconhecido na legislação constitucional brasileira de
1988 e a estipula como “direitos coletivos”, ou seja, reconhece a formação pluriétnica da socie-
dade brasileira e garante os direitos à sociodiversidade, ao território tradicional, ao patrimônio
cultural, ao ambiente ecologicamente equilibrado e à biodiversidade (DIEGUES, 1999).
Estas “sociedades tradicionais”, na leitura de Diegues (1999), e seus descendentes,
passaram a se autorrepresentar e a designar suas extensões segundo denominações específicas
atreladas ao sistema de uso comum. É no uso comum que podemos inferir a diversidade de
comunidades tradicionais, com teor étnico cultural e na realização das atividades extrativas,
tais como: caça, pesca, coleta e plantio coletivos; que compõem os elementos definidores do
grupo.
Neste horizonte, enquanto exemplos empíricos, estão as comunidades indígenas,
quilombolas, açorianos, babaçueiros, caboclos, caiçaras, caboclos, caipiras, campeiros, faxi-
nalenses, jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, seringueiros, sertanejos,
varjeiros, entre outros (DIEGUES et al, 2001). “A noção corrente de terra comum é acionada
como elemento de identidade indissociável do território ocupado e das regras de apropriação,
que bem evidenciam, através de denominações específicas, a heterogeneidade das situações
a que se colocam” (ALMEIDA, 2010, p. 114). Inclui-se aqui as denominadas “terras de
preto”, “terras de santo” e “terras de índio”, citadas por Almeida (1989, 2002, 2004, 2010) e
explicitadas a seguir:

3 “De modo geral, o direito consuetudinário é definido como um conjunto de normas sociais tradicionais, criadas
espontaneamente pelo povo, não escritas e não codificadas. O verbete “consuetudinário” significa algo que é fundado
nos costumes, por isso chamamos essa espécie de direito também de direito costumeiro” (CURI, 2012).

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• As “terras de preto” – “compreende aqueles domínios doados, en-


tregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, por famílias
de ex-escravos. Abarca também concessões feitas pelo Estado a tais
famílias, mediante a prestação de serviços guerreiros” (ALMEIDA,
2010, p. 114-115). Seus descendentes permanecem nessas terras há
gerações sem proceder à partilha, sem desmembrá-las e sem delas se
apoderarem individualmente. “Observa-se ainda que nestas regiões
as agriculturas comerciais (cacau, café, algodão, cana-de-açúcar) não
foram desenvolvidas” (p. 115)4.

• As “terras de santo” – “pode-se dizer que ela se refere à desagre-


gação de extensos domínios territoriais pertencentes à Igreja (...)
consoante o santo padroeiro destas fazendas, foram sendo adotadas
denominações próprias, que recobriam seus limites e lhe conferiam
unidade territorial” (ALMEIDA, 2002, p. 116). Nesses domínios pas-
saram a prevalecer formas de uso comum, mesmo após entrega formal
das terras à administração do Estado, em finais do século XIX pelas
autoridades eclesiásticas (ALMEIDA, 2002).

• As “terras de índios” – “Compreendem domínios titulados, que foram


entregues formalmente a grupos indígenas ou seus remanescentes, na
segunda metade do século passado e princípios deste, sob a forma de
doação ou concessão por serviços prestados ao Estado” (ALMEIDA,
2010, p. 118). As titulações, entretanto, referem-se, muitas vezes, a
tratos individuais, tendo sido concedidas a apenas determinado grupo
de famílias.

Desta perspectiva, visualiza-se que o Brasil possui uma diversidade sociocultural


acompanhada por uma extraordinária diversidade fundiária (LITTLE, 2002), o que era pouco
conhecido e tampouco reconhecido até meados dos anos 80 do século XX. Esse fato revela
circunstâncias atreladas diretamente à formação territorial do Brasil e da sociedade brasileira.
Neste sentido,

(...) muitas das formas de uso comum acabam por identificar aspectos
inerentes à própria formação da sociedade brasileira. Aliás, as formas de uso
comum tidas como “tradicionais”, com gênese antiga, sofreram, com o tempo,
profundas transformações, desaparecendo em muitas áreas. Porém, outras
formas se desenvolveram a medida que certas economias se desagregaram,
como aquelas ligadas ao latifúndio. (...) há também as que surgiram em

4 “A expressão “terra de preto” alcança também aqueles domínios ou extensões correspondentes a antigos quilombos e
áreas de alforriados nas cercanias de antigos núcleos de mineração, que permaneceram em isolamento relativo, mantendo
regras de uma concepção de direito, que orientavam uma apropriação comum dos recursos. Sublinhe-se que há ainda as
denominadas “terras de preto” que foram conquistadas por prestação de serviços guerreiros ao Estado, notadamente na
guerra da Balaiada (1838-41)” (Ibid. p. 115).

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decorrência de necessidades ligadas a contextos socioeconômicos específicos


e outras ligadas a situações específicas (CAMPOS, 2000, p. 3).

Segundo o referido autor, “juridicamente, as terras de uso comum no Brasil são


enfocadas como uma categoria à parte, quase independente, dentro da categoria maior, a
das terras públicas; isso até meados do século XIX” (CAMPOS, 2000, p. 1). No entanto, a
partir da Lei de Terras de 18505, promulgada quatorze dias após a Lei Eusébio de Queiroz6
– que proibia o tráfico de africanos escravizados para o Brasil - o regime jurídico de terras
no país foi profundamente alterado e além de ignorar as terras de uso comum, passou a
inseri-las nas chamadas terras devolutas, as quais são passíveis de apropriação individual.
Consequentemente, as terras de uso comum passaram a sofrer intensos processos especulati-
vos e de interesses individuais, tanto externos, quanto internos.
José de Souza Martins (2000) corrobora com tal explicação, ao sinalizar como a Lei
de Terras criou barreiras legais de acesso à terra no Brasil:

A Lei de Terras criou barreiras legais a que um princípio básico do antigo


regime sesmarial continuasse vigendo: a livre ocupação da terra por aqueles
que dela necessitam. Enquanto o acesso à terra foi limitado aos que eram livres,
não havia prejuízos à produção agrícola nas grandes fazendas, pois isso era
feito por trabalho escrav[izado]. Se a escravidão terminasse, os trabalhadores
fossem livres e a terra continuasse livre, a chamada grande lavoura, como a de
cana ou de café, entraria em colapso e com ele os fazendeiros: provavelmente,
os trabalhadores optariam para trabalhar para si mesmos e não para os
fazendeiros. Para que o trabalho livre se difundisse era necessário, portanto,
instituir normas ao acesso a terra, de forma a criar artificialmente excedentes
populacionais obrigados a trabalhar para os grandes fazendeiros como meio
de sobreviver. (MARTINS, 2000, p. 138, grifos nossos).

Assim, onde a terra era livre, o trabalho era cativo; onde o trabalho era livre, a terra
deveria ser cativa. Neste momento, outros países do mundo e outras regiões do Brasil já haviam
abolido a escravidão, a exemplo do estado do Ceará e outras localidades, pressionado por mo-
vimentos sociais7, como o Movimento Abolicionista, que atuava em diversas localidades.

5 A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, dispõe sobre as terras devolutas do Império e acerca das que são possuídas por
titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica; e
determina que: medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares,
como para o estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros, autorizando o Governo a promover a colonização
estrangeira na forma que se declara. Determina em seu Art. 1º - Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por
outro título que não seja o de compra. (Brasil, Lei nº 601/1850).
6 A Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850, conhecida como Lei Euzébio de Queiroz, estabelece medidas para a repressão
do tráfico de africanos neste Império. Ela foi fruto da pressão da Inglaterra contra a escravidão africana, devido ao
seu interesse em implantar o trabalho assalariado em todo o mundo e ampliar o mercado consumidor para produtos
industrializados.
7 Em virtude de uma grande seca no nordeste e principalmente no estado do Ceará, entre 1877 e 1879, toda a produção
do estado foi desorganizada, matando de fome, cólera e de varíola um quarto da população. Assim os proprietários
escravistas buscaram vender seus escravizados para os fazendeiros do sudeste que produziam café, mas era necessário
embarcá-los no porto de Fortaleza. As sociedades civis engajadas na luta abolicionista, desde 1880, como a Sociedade
Cearense Libertadora, tiveram enquanto um dos seus maiores representantes o jangadeiro Francisco José do Nascimento,
conhecido como Dragão do Mar, e impediram o embarque de cativos, bloqueando o porto, sob o slogan “no Ceará não se

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Nesse contexto, as elites oligárquicas já previam o término completo da escravidão


no Brasil e proclamou a referida Lei de Terras, o que serviu de base para leis futuras, incluin-
do a Constituição de 1891, que trataria a questão da terra em todos os níveis (do nacional
ao municipal) e passou, portanto, a ordenar e regular as práticas de acesso a terra, transfor-
mando-a em um bem econômico, uma mercadoria, baseado no poder de adquirir ou alienar
a terra através do processo de compra e venda no mercado (POLANYI, 1980 apud LITTLE,
2002). A afirmação de SACK (2011, p. 71) corrobora com tal acontecimento, ao apontar
que: “Diferente do uso comum da terra dos índios aborígenes [e outros povos tradicionais],
o homem branco usava o território para divisão da terra em parcelas vendáveis. Cada pedaço
de propriedade privada era um território sob o controle de um indivíduo” (grifos nossos).
O entendimento destes processos envolve a compreensão do regime de propriedades
vigentes no Brasil, divididas em duas categorias: terras privadas e terras públicas. A primeira
é definida pela lógica capitalista e individualizante, de mercado, “segundo a qual o dono con-
segue o direito de controle exclusivo sobre a parcela que lhe pertence, da sua exploração para
fins econômicos” (LITTLE, 2002, p. 7). Esta forma de estabelecer uma jurisdição política e
delimitar a propriedade privada de terra “são os usos mais familiares de territorialidade no
mundo ocidental” (SACK, 2011, p. 72). Por outro lado, a noção de terras públicas é associada
ao controle da terra pelo Estado.

Nessa concepção, a terra pertence, ao menos formalmente, a todos os


cidadãos do país. Porém, é o aparelho de Estado que determina os usos
dessas terras supostamente em benefício da população em seu conjunto. Na
realidade, esses usos tendem a beneficiar alguns grupos de cidadãos, e, ao
mesmo tempo, prejudicar outros. Consequentemente, o usufruto particular
das terras públicas se converte numa luta pelo controle do aparelho do
Estado ou, no mínimo, pelo direcionamento de suas ações em benefício de
um ou outro grupo específico de cidadãos (LITTLE, 2002, p. 7).

Nesta acepção, os aparelhos de Estado não são unicamente instituições operaciona-


lizadas por agentes, mais também arenas de disputas cujo controle para a realização de polí-
ticas públicas territoriais para os Povos e Comunidades tradicionais constitui uma estratégia
almejada por esses grupos, sobretudo indígenas e quilombolas (vide as últimas eleições para
vereadores e prefeitos nos municípios brasileiros)8.
Paul Little (2002), baseado em Aníbal Quijano (1988), aponta que “os conceitos
de privado e público, tal como são usados atualmente na América Latina, mantêm as socie-
dades latino-americanas presas a esquemas que não corresponde às necessidades de seus
diversos membros, nem à sua realidade quotidiana” (LITTLE, 2002, p. 7). Logo, o binômio

embarcam escravos”. Esse movimento forçou a abolição da escravidão no Ceará em 1884, como primeiro estado a abolir
a escravidão, quatro anos antes do restante do Brasil. Fonte: <http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/francisco-
josedonascimento>, acesso em 20 de outubro de 2020.
8 Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), nas eleições municipais de 2020, pelo menos 225 indígenas e 57 quilombolas
foram eleitos em todo o país no dia 15/11/2020. Número de eleitos tem crescimento razoável, segundo dados do TSE
e dos movimentos sociais. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/urnas-
demarcadas-brasil-elege-maior-numero-de-candidatos-indigenas-na-historia-da-democracia>. Acesso em 30/11/2020.

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público-privado se coloca em duas faces da mesma razão instrumental e competem para o


controle do capital e do poder: a burguesia e a burocracia (LITTLE, 2002)9.
Contrapondo-se a essa razão instrumental hegemônica, Quijano (1988 apud LITTLE,
2002, p. 7) identifica uma razão histórica que, “embora subordinada à razão instrumental,
continua possuindo uma forte presença entre os povos marginalizados pelos sistemas atuais
de poder e age “contra o poder existente””.
Por este viés, os povos e comunidades tradicionais no Brasil assemelham-se nas
distintas formas de propriedade social, ao se aproximarem da razão histórica que incorpora
elementos públicos e “introduz coletividades que funcionam [dentro do] Estado-Nação, (...)
bens coletivos não tutelados pelo Estado” e privados, “no caso de bens pertencentes a um
grupo específico de pessoas, mas que existem fora do âmbito do mercado” (LITTLE, 2002,
p. 7, grifo nosso).
Nazareno José de Campos (2000) sistematizou em termos empíricos as categorias
gerais de uso comum da terra no Brasil, observando-se em cada uma delas aspectos e caracte-
rísticas de usufruto, relação entre usuários, configuração jurídica, econômica e sociocultural.
Baseado neste autor, elaboramos um quadro-síntese (Quadro 1) que vincula as categorias
de uso comum da terra às suas subcategorias, apontadas pelas características gerais que as
englobam e organizadas da seguinte forma:
1. Uso Comum ligado aos interesses da Comunidade
a. Terras de uso comum junto ou próximas às comunidades
b. Campos de Altitude com uso basicamente sazonal
c. Uso comum Cooperativo
2. Uso comum conjugando interesses internos e externos à comunidade
d. Terras de Uso Comum juntos aos caminhos de tropas
e. Os Faxinais do Planalto Meridional
f. Coqueirais, cocais, seringais, castanhais e formas similares
3. Formas de Uso Comum entre comunidades tradicionais
g. Terras de Índios
h. Terras de negros (ou terras de preto)
i. Terras de Santo

9 Logo, o Estado Moderno e o capital, desde suas origens comuns, mantêm um “casamento perfeito” (LITTLE, 2002).

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Quadro 1: Categorias gerais de uso comum da terra no Brasil


Categoria/ 1) Uso Comum 2) Uso comum conjugando 3) Formas de Uso
Características Ligado aos interesses internos e externos Comum entre
Gerais interesses da à comunidade comunidades tradicionais
Comunidade

Categoria mais Terras bastante diversificadas Formas com pronunciado


evidente de com conjugação de interesses, teor étnico e vivência
terra de uso tanto para comunidades sociocultural baseada no
comum, visível usuárias, quanto a determinados direito costumeiro, sendo
em diferentes contextos socioeconômicos, o mutirão uma das mais
espaços do servindo a inúmeros interesses conhecidas. Constituem-se
território e/ou necessidades. Baseadas no num “viver comum”, uma
brasileiro. uso direto e indireto da terra. “sociedade comunitária”.
Caracteriza-se
pela presença
de áreas abertas,
“livres”, terras
“sem dono”,
que margeiam
as propriedades
individuais.

1. a) Terras de Áreas que 2. a) Terras Forma que 3. a) Origens em


uso comum junto margeiam de Uso conjuga o Terras titulações
ou próximas às ou estão Comum interesse de de cedidas pelo
comunidades relativamente juntos aos usufruto das Índios Estado ou a
próximas às caminhos comunidades desagregação
propriedades de tropas com o dos da produção
individuas, tropeiros com das Ordens
utilizadas o seu gado em Religiosas,
por pequenos trânsito. que levou ao
produtores. surgimento de
um “campesinato
livre
comunal”, com
aproveitamento
comum de bens
naturais e formas
de produção

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1. b) Campos naturais 2. b) O sistema 3. b) Formadas


em áreas faxinal Terras por diferentes
Campos de relativamente Os Faxinais enquadra-se de categorias,
Altitude com elevadas, do Planalto na categoria negros desde a doação
uso basicamente distantes das Meridional compáscuo- (ou de terras,
sazonal propriedades condomínio terras concessões,
dos usuários, ou compáscuo de domínios
proporcionando comunhão de preto) de antigos
uma certa pastos, segundo quilombos, áreas
transumância. o Código Civil, de alforriados e
art. 646, 2ª etc. O coletivo,
parte, sobre o em toda sua
direito de uso amplitude,
comunhão. domina no uso
da terra.

1. c) Forma de uso 2. c) Assemelham-se 3. c) Áreas usufruídas


comum mais aos faxinais, no por pequenos
Uso comum recente. Surge Coqueirais, sentido de que Terras agricultores
Cooperativo em meados cocais, há interação de sem a intenção
da década de seringais, entre diferentes Santo de apropriação
1970, no sul castanhais interesses, como individual.
do estado de e formas de pequenos As categorias
Santa Catarina, similares produtores e de envolvem:
com direito de comerciantes. C. a) extensões
uso por parte 1) Coqueirais: exploradas
dos usuários apropriações por ordens
– pequenos através da posse, religiosas,
agricultores via herança de abandonadas
– que fundam gerações; C.2) ou entregues
cooperativas Cocais: de modo a moradores;
para usos de geral, domina b) “terras da
campos comuns. a propriedade igreja”; c)
privada, com áreas “doadas”
o uso comum a um santo de
de produtos devoção sem
naturais*; C.3) formalização
Castanhais jurídica
e Seringais:
a terra possui
valor de uso, e
após usufruída,
é colocada em
“repouso”.
Pertence ao
Patrimônio
de terras
comuns e não é
apropriável.

Fonte: Elaborado pelo autor. Baseado em Campos (2000)

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O quadro possibilita a leitura de uma pluralidade de situações nas quais estão


colocados os diversos grupos sociais e sua diversidade fundiária nos processos atuais de
reivindicação de territórios historicamente construídos. São regimes de propriedade comum
que possuem uma estreita relação com os processos de territorialidade específicas dos grupos
sociais. Assim, os territórios de uso comum são territórios tradicionalmente ocupados, “que
expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos
sociais em suas relações com os recursos da natureza” (ALMEIDA, 2004, p. 9), pois o uso
comum “aparece combinado tanto com a propriedade quanto com a posse, de maneira perene
ou temporária, e envolve diferentes atividades produtivas” (ALMEIDA, 2004, p. 12).
Nesta perspectiva, concordamos com Almeida (2004), ao afirmar que a territoriali-
dade, pensada no contexto dos povos e comunidades tradicionais,

(...) funciona como fator de identificação, defesa e força. Laços solidários


de ajuda mútua informam um conjunto de regras firmadas sobre uma
base física considerada comum, essencial e inalienável, não obstante
disposições sucessórias porventura existentes. (...) Aí a noção de
“tradicional” não se reduz à história e incorpora as identidades coletivas
redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando
que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades
de mobilização (ALMEIDA, 2004, p. 1-2, grifos nossos).

Infere-se, portanto, que os “territórios dos povos e comunidades tradicionais se


fundamentam [tanto em curtos períodos, quanto] em décadas, em alguns casos, séculos de
ocupação efetiva (...)”. (LITTLE, 2002, p.11, grifo nosso). Acrescentamos que nem sempre
uma comunidade tradicional está ocupando seu território há longo tempo, como é o caso
das comunidades originárias de processos migratórios. Ainda assim, suas reivindicações são
legítimas e a razão histórica pode não estar relacionada ao território ocupado atualmente, mas
ao longo tempo do processo histórico de exclusão. Os estudos de identificação de territórios
quilombolas muitas vezes são questionados pelos ruralistas, com base no argumento tempo-
ral, tanto das comunidades rurais quanto das urbanas, desqualificando suas reivindicações.
Mesmo com o fato de seus territórios ficarem fora do regime formal de propriedades
da Colônia, do Império e até recentemente da República, suas reivindicações não devem ser
deslegitimadas e apagadas, apenas situadas dentro de uma razão histórica e não instrumental
hegemônica; o que demostra sua força histórica e persistência cultural (LITTLE, 2002, p. 11).

A expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura de leis ou


títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que
incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua
área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território (LITTLE,
1994 apud LITTLE, 2002, p. 11).

O contexto brasileiro está associado diretamente aos contextos de outros países da


América Latina e Caribe, “uma vez que envolvem um componente étnico e racial confor-
mando as classes sociais (Aníbal Quijano), e produzem a racialização das relações de poder”

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(PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 17, grifo nosso). Nessa estrutura, a base está acomodada na
monopolização das terras pelos brancos e seus descendentes e, assim, “entre nós a estrutura
de classes é etnizada” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 17).

A questão agrária emerge hoje não só em suas dimensões social e política,


mas também epistêmica, impulsionada por movimentos que explicitam suas
reivindicações territoriais, sejam eles afrodescendentes, indigenatos e povos
originários, além de outros como os seringueiros, geraizeiros, retireiros (Rio
Araguaia) (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 17).

As terras de uso comum ficaram à parte do desenvolvimento capitalista por algum tem-
po, tendo em vista que ora não interessavam ao capital; ora apresentavam dificuldades – técnicas
e políticas - de ocupação; ora se transformaram em territórios defendidos por suas comunidades.
No cenário atual, as terras de uso comum vêm se tornando estratégicas do ponto de
vista hegemônico por meio da revolução nas relações sociais e de poder através da tecnologia,
“porque são áreas com grande diversidade biológica, água, energia e, mesmo, áreas exten-
sas com relevo plano e grande disponibilidade de insolação, é dizer, são as áreas tropicais”
(PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 17). Estes locais não estão à margem do desenvolvimento
capitalista, mas incorporadas como fundos territoriais (MORAES, 2005) que podem ser
utilizados enquanto recursos a qualquer momento, sejam elas em espaços urbanos ou rurais,
modificando sua organização espacial.
As terras de uso comum e tudo o que delas é possível extrair, “(…) constituiu-se num
componente indispensável à sobrevivência econômica de camadas mais pobres da população
rural como também urbanas, desempenhando importante papel” (CAMPOS, 2000, p. 10) na
produção e reprodução da vida. Sua utilização envolve diversas atividades para inúmeros
fins, tais como: o apascento em comum do gado, o suprimento de lenhas, a extração de ma-
deiras, a agricultura, o uso coletivo da água e variados produtos naturais. Em outros espaços
comunitários, o uso de escolas, os espaços de reuniões, espaços culturais, espaços e símbolos
sagrados, as hortas de quintais e as ervas do mato, entre outros, constituem espaços de uso
comum para essas comunidades.
No processo de expansão das fronteiras, seja a partir das ondas históricas de terri-
torialização no Brasil colonial e imperial, ou frente aos “novos eixos de desenvolvimento”
baseados na vocação desenvolvimentista do Estado Brasileiro – vigente ao longo dos séculos
XX e XXI10 –, foi produzido um conjunto de choques territoriais, o que provocou novas
ondas de territorialização por parte dos Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades tradi-
cionais. As novas reivindicações territoriais representam uma resposta às novas fronteiras em
expansão (LITTLE, 2002).

10 Podemos citar essas expansões desde a Marcha para Oeste nos anos de 1930, centrada nos estados de Goiás e Mato Grosso.
A construção de Brasília nos anos de 1950, as primeiras grandes estradas amazônicas – Belém-Brasília, Tranzamazônica,
Cuiabá-Santarém - nos anos de 1960 e 1970. A implantação de grandes projetos de desenvolvimento pelos governos
militares, tais como a criação da Zona Franca de Manaus, a construção das hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Samuel, o
projeto de mineração Grande Carajás, o que serviu para produzir novas frentes de expansão desenvolvimentista (LITTLE,
2002, p. 12).

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3 - A INFRAPOLÍTICA DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E SUAS


REIVINDICAÇÕES TERRITORIAIS
Desde meados da década de 1980, no contexto de fortalecimento da ideologia neolibe-
ral e incorporação à economia mundial, agravaram-se as pressões sobre os diversos territórios
dos Povos e Comunidades tradicionais, principalmente no que se refere ao acesso e utilização
de seus recursos naturais, “mudando radicalmente sua situação de invisibilidade social e mar-
ginalidade econômica” (LITTLE, 2002, p. 13). Diante de novas pressões, os povos tradicionais
foram obrigados a elaborar novas estratégias territoriais para defender seus territórios, o que
provocou a nova onda de territorialidades no contexto atual, forçando o Estado Brasileiro a
reconhecer os distintos processos de territorialização.

O alvo central dessa onda consiste em forçar o Estado Brasileiro a admitir a


existência de distintas formas de expressão territorial – incluindo distintos
regimes de propriedade – dentro do marco legal único do Estado, atendendo
às necessidades desses grupos. As novas condutas territoriais por parte dos
povos tradicionais criaram um espaço político próprio, no qual a luta por
novas categorias territoriais virou um dos campos privilegiados de disputa.
Uns dos principais resultados dessa onda tem sido a criação ou consolidação
de categorias fundiárias do Estado. Devido à grande diversidade de formas
territoriais desses povos, houve a necessidade de ajustar as categoriais às
realidades empíricas e históricas do campo, em vez de enquadrá-las nas
normas existentes da lei brasileira (LITTLE, 2002, p. 13).

Nesse cenário, que inclui o processo de redemocratização do país, a consolidação


dessas categorias fundiárias só foi possível com o surgimento dos movimentos sociais nas
décadas de 1970, 1980 e 1990 – os movimentos sociopolíticos ancestrais, no dizer de Walsh
(2012) – que contou com o apoio e parcerias de organizações não governamentais (ONGs) e
universidades em todo o país, abrindo novos espaços de atuação política. A mobilização e lu-
tas desses movimentos sociais possibilitaram a construção do pluralismo jurídico, uma nova
relação jurídica entre o Estado e estes povos, com base no reconhecimento da diversidade
cultural e étnica, o que contribuiu para incorporação de novos direitos e de questões sociais e
ambientais na nova Constituição.
Reflete-se, a partir da manifestação desses movimentos sociais, uma insurgência
política, que é, por sua vez, uma insurgência epistêmica:

Epistêmica não só por questionar, desafiar e enfrentar as estruturas dominantes


do Estado – a que sustentam o capitalismo e os interesses da oligarquia e do
mercado – senão também por em cena conceitos, conhecimentos, lógicas e
racionalidades que transgridem o “monólogo da razão moderno-ocidental”
e nivelam modos de pensar, estar, ser, saber e viver radicalmente distintos.
É esta insurgência política e epistêmica que está trazendo novos caminhos –
tanto para os povos indígenas e afros como para a totalidade da população –
que realmente desenham novos horizontes do Estado e sociedade (WALSH,
2012, p. 110).

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Assim sendo, através da promulgação da nova Constituição da República Federativa


do Brasil em 1988 e com as Leis e decretos posteriores, o Estado Brasileiro abriu a possibili-
dade de construção de um “Estado pluriétnico” ou “que confere proteção a diferentes expres-
sões étnicas”, entretanto, “não resultaram (…) na adoção pelo Estado de uma política étnica
e nem tampouco em ações governamentais sistemáticas capazes de reconhecer prontamente
os fatores situacionais que influenciam uma consciência étnica” (ALMEIDA, 2004, p.11).
Seguindo essa orientação multicultural e pluriétnica, com base no pluralismo jurí-
dico, a referida Constituição Federal estabelece um regime jurídico de proteção aos direitos
indígenas e quilombolas (SANTILLI, 2004), ainda não consolidados. Acompanhada de
um conjunto de Leis em múltiplas instâncias: Constituições estaduais, Decretos federais,
estaduais e municipais, Portarias, Instruções Normativas, Convenções e outras; o Estado
Brasileiro vem consolidando um arcabouço jurídico que incorpora os direitos territoriais de
povos e comunidades tradicionais no contexto das terras tradicionalmente ocupadas.
Neste aspecto, as categorias identitárias com base na autoatribuição e objetivadas
por parte dos movimentos sociais possuem instrumentos jurídicos correspondentes, que reco-
nhecem os territórios e territorialidades específicas dos grupos indígenas, quilombolas e dos
povos e comunidades tradicionais.
De todos os povos tradicionais, os povos indígenas foram os primeiros a obter o
reconhecimento de suas diferenças étnicas e territoriais (LITTLE, 2002) e gozam atualmente
de um “status jurídico” mais consolidado (SANTILLI, 2004). Deste modo, o Capítulo VIII
(intitulado “Dos Índios”) da Constituição Federal assinala dois artigos referentes aos povos
indígenas, os artigos 231 e 232. O artigo 231 reconhece aos Índios “os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, como também indica que tal ocupação tra-
dicional deve ser lida através das categorias e práticas locais, ou seja, levando-se em conta
a “organização social, usos costumes, línguas, crenças e tradições”11 de cada grupo. Logo,
“uma Terra Indígena deve ser definida – identificada, reconhecida, demarcada e homologada
– levando-se em conta quatro dimensões distintas, mas complementares, que remetem às
diferentes formas de ocupação, ou apropriações indígenas de uma terra” (GALLOIS, 2004,
p. 37), obrigando a União a demarcá-la e protegê-la. Em seu parágrafo primeiro, é definido:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas


em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições (BRASIL, Art. 231 § 1º da Constituição Federal).

O marco jurídico regulatório integra-se a uma “Política Indigenista” governamental,


cuja agência oficial competente para suas resoluções está centrada na Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), fundada em 1967, sucessora do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI),

11 “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens” (BRASIL, Art. 231 da Constituição Federal).

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que promulgou o Estatuto do Índio em 1973 (BRASIL, Lei nº 6.001).


Para alguns autores, a Constituição estabelece uma clara definição de Terra indí-
gena, “suficiente abrangente para incluir tanto as habitadas em caráter permanente quanto
as utilizadas para suas atividades produtivas” (SANTILLI, 2004, p. 43). Entretanto, para
outros, fundamentados em investigações empíricas12, esta definição não contempla todos os
grupos indígenas e revela uma sobreposição lógica entre suas variadas dimensões, separada
na definição jurídica (GALLOIS, 2004). Essa última interpretação, “a noção de habitação
permanente, no sentido de uma vida sedentária, ou centrada em aldeias, mostra-se claramente
inadequada” (GALLOIS, 2004, p. 38), pois não leva em conta a especificidade das territoria-
lizações difusas em movimentos de dispersão e concentração populacional.
Esse debate, ao mesmo tempo que reflete disputas de interpretações, reverbera as
diferenças entre terra e território, remetidas a distintas perspectivas e atores envolvidos nos pro-
cessos de reconhecimento e demarcação de uma Terra Indígena. Da mesma maneira, o Art.68/
ADCT/1988 trata de “terras ocupadas” pelos “remanescentes das comunidades de quilombos”.

A noção de “Terra Indígena” diz respeito ao processo político-jurídico


conduzido sob a égide do Estado, enquanto a de “território” remete à
construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma
sociedade específica e sua base territorial [processualmente construída]
(GALLOIS, 2004, p. 39, grifo nosso).

A categoria jurídica “Terra Indígena” foi originalmente estabelecida pelo Estado


para lidar com os povos indígenas dentro do marco classificatório da tutela estatal. No que
tange o território e às territorialidades, estes se colocam em esferas mais amplas que envol-
vem as práticas e relações de poder dos grupos em sociedades e o sentido de pertencimento
destes em seus territórios, conceito que incorpora as relações sociais, políticas, econômicas e
culturais. Assim, são lidos através de uma “microfísica de um poder muito mais capilarizado,
estendido a todas as esferas da sociedade” (HAESBAERT, 2014, p. 44). Evidencia-se, pois,
a fundamental importância das novas territorialidades potenciais, já afirmadas por Porto-
Gonçalves (2006, p. 173).

É fundamental que atentemos para essas novas territorialidades que


estão potencialmente inscritas entre esses diferentes protagonistas e que
se mobilizam com/contra os sujeitos e as conformações territoriais que
aí estão em crise, tentando identificar suas possibilidades e seus limites
emancipatórios. Há novas conflitividades se sobrepondo às antigas. Nessa
imbricação de temporalidades distintas, a questão do território se explicita
com a crise do Estado.

12 Gallois (2004), ao investigar o processo de identificação da Terra Indígena “Zo’ é”, no estado do Pará, mostra que há
alternância entre movimentos de dispersão e de concentração populacional deste grupo, que marcam sua ocupação
territorial. Estas não são fixas, no sentido de uma vida sedentária ou em aldeias. Neste sentido, a noção jurídica de Terra
Indígena não incorpora esta e outras diversidades. Da mesma forma, os Kaingang, no Paraná, possuem territórios de caça
e pesca, para onde se deslocam e acampam durante períodos sazonais, mas que não constituem espaços de habitação
permanente.

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Diferentemente dos territórios indígenas, as comunidades quilombolas, até finais do


século XX e início do século XXI, “permaneceram confinadas nos domínios da invisibili-
dade da ordem jurídica” (BANDEIRA, 1991) referente ao controle coletivo da terra. Com o
surgimento e difusão da Consciência Negra protagonizada pelo Movimento Negro Brasileiro
– sobretudo a partir da década de 1980, com o processo de maior organização política –
foi incorporada a luta das comunidades negras rurais e urbanas como luta do movimento
social negro, reposicionando, desde então, os quilombos na cena política garantindo-lhes
visibilidade.
A formação de associações de comunidades locais e regionais e os eventos de ordem
regional e nacional13 possibilitaram o reconhecimento formal da categoria “remanescentes
das comunidades dos quilombos” por parte do Estado, assegurando-lhes direitos territoriais
especiais14. No entanto, existe um problema com esta categoria, pois “remanescentes”, além
de indicar uma situação de resíduos, de algo em processo de extinção, também pode sugerir
indivíduos, e não comunidades. Esse processo evidencia a construção de um paradigma atual
do conceito de quilombo, baseado nas “terras de uso comum”, conforme aponta Arruti (2008):

Essa territorialidade, marcada pelo uso comum, teria uma série de


manifestações locais, que ganham denominações específicas segundo as
diferentes formas de autorrepresentação e autodenominação dos segmentos
camponeses, tais como Terras de Santo, Terras de Índios, Terras de Parentes,
Terras de Irmandade, Terras de Herança e, finalmente, Terras de Preto (...).

(...) Esta redução sociológica tem ainda algumas implicações importantes.


Primeiro ela permite fazer com que a “ressemantização” do quilombo se
opere não só como uma inversão do caráter repressivo que marcou o seu
uso colonial e imperial, mas também e principalmente como um recurso que
permite reconhecer formas sociais que passaram despercebidas da ordem
dominante. Isto é, a existência de um “direito camponês”, subordinado
ao ordenamento jurídico nacional, cujo reconhecimento, em si mesmo,
seria capaz de traduzir a existência de uma larga variedade de formas de
apossamentos (p. 15-16).

De forma geral, aos quilombolas são imputados: os artigos 215 e 216 da Seção II (“Da
Cultura”) e o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição,
seguidos da Convenção 169 Sobre Povos Indígenas e Tribais (OIT), do Decreto Federal nº
4.887/03, e de uns cem números de Instruções Normativas nº 57/09 do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), que desde o Decreto 4887/03, se alteraram muito;

13 A Associação de Moradores das Comunidades Rumo-Flexal no Maranhão (1985) e Associação de Comunidades de


Comunidades de Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná no Pará (1990), e a realização de eventos
regionais, tais como o I Encontro de Comunidades Negras Rurais no Maranhão (1986) e o I Encontro de Raízes Negras
no Pará (1988), seguiram-se eventos de ordem nacional, como o II Seminário Nacional de Sobre Sítios Históricos e
Monumentos Negros em Goiás (1992) e o I Seminário Nacional de Comunidades Remanescentes de Quilombos (1994)
(LITTLE, 2002).
14 Como nos informa Little (2002), a Comunidade Boa Vista, em Oriximiná, no Vale do Trombetas (PA), foi o primeiro
quilombo a ser reconhecido pelo Estado sob a figura jurídica da nova Constituição.

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da Portaria nº 98/07 da Fundação Cultural Palmares (FCP) e da Resolução CNE/CEB nº


08/2012.
O movimento ambientalista, na sua vertente socioambientalista, criou parcerias
com alguns movimentos sociais, como o pioneiro movimento dos Seringueiros da Amazônia
brasileira, que encontraram na sustentabilidade um elemento chave capaz de aproximá-los
e conduzi-los à implementação de formas de cogestão de territórios através das Reservas
Extrativistas. Na busca de uma alternativa viável ao modelo de (des)envolvimento em curso
(modelo este que opera com uma racionalidade binária e mercadológica, que separa as so-
ciedade da natureza), os povos tradicionais foram considerados pelos ambientalistas como
parceiros, uma vez que estes foram (e são) os que efetivamente produziram seus modos
de vida de forma simbiótica com a natureza, compreendendo-a como parte de sua própria
existência (envolvida). Ou seja, “a dimensão ambientalista dos territórios sociais se expressa
na sustentabilidade ecológica da ocupação por parte desses povos durante longos períodos de
tempo” (LITTLE, 2002, p. 18), baseada em uma matriz de racionalidades complexas no que
se refere a relação socieadade-natureza.
Em 1985, a partir do I Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília, o movimen-
to fundou o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), onde procuram articular diversos
segmentos de populações tradicionais extrativistas da Amazônia. “Nesse encontro já se
faz presente a defesa de bandeiras ligadas ao Meio Ambiente, capturando um dos vetores
instituintes da nova ordem planetarizante: o ecologismo” (PORTO-GONÇALVES, 1998, p.
23). No final dos anos de 1980 foi articulada a Aliança dos Povos da Floresta, formada por
Seringueiros e Índigenas e tinha como representação a figura do seringueiro, ativista e am-
bientalista Chico Mendes. A aliança tinha por objetivo frear o desmatemento na Amazônia,
produzida por madereiros e pecuaristas.
Os argumentos ecológicos passam a fazer parte da cultura e dos discursos do mo-
vimento dos seringueiros e, a partir disso, a proposta das Reservas Extrativistas (RESEX)
aliadas às expressões de sistemas agroflorestais, biodiversidade e desenvolvimento sustentá-
vel, começam a ganhar significado social concreto para outro modelo de desenvolvimento na
Amazônia (PETRINA, 1993). Como afirma Porto-Gonçalves (1998, p. 23):

Desse modo é possível percebermos que os seringueiros articulam-se com uma


base local/municipal, através de sindicatos; com uma base regional/nacional,
onde formulam questões ligadas a um outro modelo de desenvolvimento para
a Amazônia com o Conselho Nacional dos Seringueiros e, ainda, por dentro
do movimento sindical, se associam à luta pela Reforma Agrária através da
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e da
construção da Central Única dos Trabalhadores, da qual Chico Mendes foi
dirigente nacional.

Por meio desta articulação e aliança com ambientalistas, o movimento seringueiro teve
repercussão em escala internacional e possibilitou um salto escalar de ação política e visibilida-
de ao movimento, fundamental para a afirmação de sua identidade. Consequentemente, o movi-
mento se “projetou não só em defesa da floresta, como também contra o suporte internacional

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dado por instituições multilaterais, particularmente o Banco Mundial, ao modelo de desenvol-


vimento que se implantava na Amazônia” (PORTO-GONÇALVES, 1998, p. 24).
Como resultado de suas reivindicações territoriais, obteve-se a formulação de po-
líticas públicas territoriais (LITTLE, 2002), que culminou em duas conquistas importantes:
“o estabelecimento dos Projetos de Assentamento Extrativista dentro da política de reforma
agrária (INCRA), em 1987, e a criação da modalidade das Reservas Extrativistas dentro
da política ambiental do país (IBAMA), em 1989” (IEA, 1993 apud LITTLE, 2002). Isso
inaugura uma nova concepção de propriedade, que recupera as situações de uso comum da
terra no Brasil,

(...) onde um determinado espaço passa a ser de propriedade da União, com


direito de uso por parte das populações que o habitam, através de um Plano
de Uso gerido através das organizações de base comunitária, sob a tutela do
Estado, no caso através do IBAMA. Como propriedade de uso comunitário
pertencente à União, procuram fugir às pressões tão comuns contra os
pequenos produtores rurais (pequenos não só no sentido do tamanho da
propriedade, como também do capital político acumulado) e, ao mesmo
tempo, dar sentido a um conjunto de práticas socioculturais que conformam
sua identidade (PORTO-GONÇALVES, 1998, p. 24).

Posteriormente, essa modalidade territorial foi apropriada por outros grupos de ex-
trativistas que não exploravam a borracha, como Castanheiros, Quebradeiras de Coco Cabaçu
e Pescadores artesanais, com múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios
e/ou segundo a combinação entre eles, tais como: “raízes locais profundas; fatores políti-
cos-organizativos; autodefinições coletivas; consciência ambiental; e elementos distintivos
de identidade coletiva” (ALMEIDA, 2004, p. 20). As denominadas “Quebradeiras de Coco
Babaçu” incorporam também um critério de gênero, “combinado com uma representação
diferenciada por regionais e respectivos povoados” (ALMEIDA, 2004, p. 20). Como salienta
o referido autor acerca das formas associativas:

A estas formas associativas, expressas pelos “novos movimentos sociais”


(HOBSBAWM, 1995:406), que agrupam e estabelecem uma solidariedade
ativa entre os sujeitos, delineando uma “política de identidades” e consolidando
uma modalidade de existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros,
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas,
Movimento Nacional dos Pescadores, Movimento dos Fundos de Pasto...),
correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser
e asseguram sua reprodução física e social. Em outras palavras, pode-se dizer
que cada grupo constrói socialmente seu território de uma maneira própria,
a partir de conflitos específicos em face de antagonistas diferenciados, e
tal construção implica também numa relação diferenciada com os recursos
hídricos e florestais (ALMEIDA, 2008, p. 70-71).

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A relação entre as formas associativas e territorialidades específicas dos chamados


“novos movimentos sociais” desponta como um catalisador no processo de mudança e fun-
ciona como atributo de reivindicação pelas comunidades tradicionais (SACK, 2011).
Segundo Almeida (2004, 2008), essa população, envolvendo Seringueiros e
Castanheiros, somam 163.000 extrativistas, sendo que desse total, há 33.300 nas Reservas
Extrativistas (RESEX), ocupando área estimada de 17 milhões de hectares totais. As
Quebradeiras de Coco Babaçu somam 400 mil extrativistas em RESEX, numa área de 18,5
milhões de hectares; e os pescadores artesanais possuem uma população total de 600 pessoas
distribuídas em RESEX, em uma área de 1.444 hectares15.
O direito das populações tradicionais, incluindo os não indígenas e não quilombolas,
também são garantidos na Constituição, mesmo que não expresse com clareza a garantia do
território tradicional. No artigo 225 do Capítulo VI (“Do meio ambiente”), determina-se:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de


uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações (BRASIL, Art. 225 da Constituição Federal).

Esse artigo é regulamentado pelo dispositivo infraconstitucional na Lei nº 9.985/2000,


de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza (SNUC), em seu §1º incisos I, II, III e VII. Entre os objetivos do SNUC, estão não
apenas a contribuição para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos genéticos
no território nacional, como também a conservação da sociodiversidade (SANTILLI, 2004),
em uma interação que privilegia a relação homem, ou melhor, sociedade(s) e natureza, posto
que a “proteção aos recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais,
respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economi-
camente” (BRASIL, Art. 4º, inciso XIII da Lei nº 9.985/2000). Trata-se da incorporação, por
este instrumento jurídico, de paradigmas socioambientais (SANTILLI, 2004).
Esta Lei reconhece, em diversos dispositivos, o papel e a contribuição das populações
tradicionais para a conservação e uso sustentável da diversidade biológica, tendo criado duas
categorias de Unidades de Conservação de uso sustentável: a Reserva Extrativista e a Reserva
de Desenvolvimento Sustentável (SANTILLI, 2004). Este reconhecimento às denominadas
“populações tradicionais” está explicitado no artigo 17, e às “populações extrativistas tradicio-
nais”, no artigo 18. Todavia, conforme ressalta Leitão (2004), ao interpretar a Lei, “poder-se-ia
dizer que ela criou duas categorias de populações tradicionais, que do ponto de vista concreto
são pouco objetivas e podem gerar confusões” (p. 19). Assim:

15 Almeida (2004, 2008) formula um quadro das terras tradicionalmente ocupadas, com o cruzamento de informações
entre as categorias da diversidade de povos e comunidades tradicionais com o movimento social correspondente, o ato
jurídico de direito, a data de publicação, o texto legal, a agência oficial competente, a política governamental associada,
a estimativa de área ocupada em hectares e, por fim, a população de referência. Não detalhemos cada grupo social. Para
maiores informações, recomenda-se a bibliografia.

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A primeira, populações tradicionais propriamente ditas, cuja conceituação


mencionada acima lhes permite abrigo sob o manto das Unidades de
Conservação de Uso Direto em geral, à exceção das Reservas Extrativistas. A
segunda categoria, de populações extrativistas tradicionais, cuja associação
mais imediata é com a figura do seringueiro, a ser abrigada apenas pela
figura da Reserva Extrativista. Do ponto de vista concreto, essas distinções
são muito pouco objetivas e podem gerar confusões. O legislador poderia
ter economizado conceitos e tipologias, estabelecendo uma definição
suficientemente abrangente de população tradicional, reduzindo inclusive a
lista de Unidades de Conservação de Uso Direto destinadas a essa categoria
única (LEITÃO, 2004, p. 19).

Outro instrumento que aponta para a interface entre sociedade e natureza e a cons-
trução de instrumentos legais de manutenção da diversidade biológica e sociocultural é a
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), assinada por 194 países e ratificada por
168, dentre os quais o Brasil se inclui, através do Decreto nº 2.519 de 16 de março de
1998. Esse documento é fruto da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD), realizada na cidade do Rio de Janeiro16. A CBD entrou em
vigor e 29 de dezembro de 1993, com o objetivo de estabelecer as normas e princípios que
devem reger o uso e a proteção da diversidade biológica em cada país signatário. Ou seja, a
Convenção “dá as regras para assegurar a conservação da biodiversidade, o seu uso sustentá-
vel e a justa repartição dos benefícios provenientes do uso econômico dos recursos genéticos,
respeitada a soberania de cada nação sobre o patrimônio existente em seu território” (Jornal
(o) eco, 2014).
No entanto, “a diversidade biológica não é, simplesmente, um conceito pertencente
ao mundo natural. É também uma construção cultural e social”. Sendo assim, “as espécies são
objetos de conhecimento, de domesticação e uso, fonte de inspiração para mitos e rituais das
sociedades tradicionais [com uma diversidade de saberes de usos] e, finalmente, mercadoria
nas sociedades modernas” (DIEGUES, 1999, p. 1, grifo nosso).
Um dos objetivos da Convenção é o respeito e a manutenção dos conhecimentos e
práticas tradicionais, em seus preâmbulos e no decorrer dos artigos:

Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter


o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações
indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à
utilização sustentável da diversidade biológica, e incentivar sua mais
ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse
conhecimento inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos
benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas
(BRASIL, Artigo 8 j, Conservação In situ).

16 Em paralelo ocorreu a ECO-92, evento das organizações e movimentos da sociedade civil.

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Portanto, recomenda-se que os benefícios derivados do uso desse conhecimento se-


jam também distribuídos entre as comunidades que o detêm (DIEGUES, 1999). Além disso,
em seu Artigo 10, sobre utilização sustentável de componentes da diversidade biológica,
determina que cada parte contratante “proteja e encoraje a utilização costumeira de recursos
biológicos de acordo com práticas culturais tradicionais compatíveis com as exigências de
conservação ou utilização sustentável” (Artigo 10 c). E também “apoie as populações locais
para desenvolver e implementar ações de recuperação em áreas degradadas onde a diver-
sidade biológica tenha sido reduzida” (Artigo 10 d), dando sequência nos artigos 17 e 1817.
O conceito de população tradicional desenvolvido pelas ciências sociais vai sendo
incorporado pelo ordenamento jurídico. O tradicional “como operativo foi aparentemente
deslocado no discurso oficial, afastando-se do passado e tornando-se cada vez mais próximo
de demandas do presente” (ALMEIDA, 2008, p. 27), adquirindo conotação política e aproxi-
mando-se da categoria “povos”. Segundo Diegues (1992):

Comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização


econômica e social com reduzida acumulação de capital, não usando forças
de trabalho assalariado. Nela, produtores independentes estão envolvidos em
atividades econômicas de pequena escala, como agricultura e pesca, coleta
e artesanato. Economicamente, portanto, essas comunidades se baseiam no
uso de recursos naturais renováveis. Uma característica importante desse
modo de produção mercantil é o conhecimento que os produtores têm dos
recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares, etc. Esse
‘know-how’ tradicional, passado de geração em geração, é um instrumento
importante para a conservação (…). Outras características importantes
de muitas sociedades tradicionais são: a combinação de várias atividades
econômicas (dentro de um complexo calendário), a reutilização dos dejetos
e o relativamente baixo nível de poluição. A conservação dos recursos
naturais é parte integrante de sua cultura, uma ideia expressa no Brasil pela
palavra ‘respeito’ que se aplica não somente à natureza como também aos
outros membros da comunidade.” (p. 142)

Little (2002) faz uma reflexão acerca do conceito de povos tradicionais, analisando-
-os a partir de algumas temáticas, dentre elas:
1. As que envolvem o âmbito acadêmico, fundamentado no campo das Ciências Sociais:
dentro do que foi chamado de razão histórica – “regime de propriedade comum, sen-
tido de pertencimento a um lugar específico e profundidade histórica da ocupação
guardada na memória coletiva (...)” (p. 22).
2. A sociogênese do conceito de povos tradicionais e seus subsequentes usos políticos e

17 Assim determina: “Esse intercâmbio de Informações deve incluir o intercâmbio dos resultados de pesquisas técnicas,
científicas, e socioeconômicas, como também informações sobre programas de treinamento e de pesquisa, conhecimento
especializado, conhecimento indígena e tradicional como tais e associados às tecnologias a que se refere o § l do Art. 16”
(BRASIL, Artigo 17; 2). E ainda: “As Partes Contratantes devem, em conformidade com sua legislação e suas políticas
nacionais, elaborar e estimular modalidades de cooperação para o desenvolvimento e utilização de tecnologias, inclusive
tecnologias indígenas e tradicionais, para alcançar os objetivos desta Convenção. Com esse fim, as Partes Contratantes
devem também promover a cooperação para a capacitação de pessoal e o intercâmbio de técnicos” (Artigo 18; 4).

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sociais, dispersos em múltiplos contextos:


c. Fronteiras em expansão – “o conceito surgiu para englobar um conjunto de
grupos sociais que defendem seus territórios frente à usurpação por parte do
Estado Nação e outros grupos sociais vinculados a este” (p. 23);
d. Ambientalistas – surge “a partir da necessidade dos preservacionistas em
lidar com todos os grupos sociais residentes ou usuários das unidades de
conservação de proteção integral (...)” (p. 23);
e. Noutro contexto, “serviu como forma de aproximação entre sociom-
bientalistas e os distintos grupos que historicamente mostraram ter
formas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, gerando
formas de co-gestão do território” (p. 23);
f. Por fim, de Autonomia territorial – “exemplificado pela Convenção
169 da OIT, onde cumpriu uma função central nos debates nacionais
em torno do respeito aos direitos dos povos” (p. 23);
Segundo o autor, o conceito contém tanto uma dimensão empírica quanto políti-
ca que são inseparáveis e demonstram contextos situacionais abrangentes e semelhantes.
A incorporação do termo povos e comunidades tradicionais nos instrumentos legais reflete
uma infrapolítica (SCOTT, 2013) e ilustra a atual dimensão política ao ressemantizá-lo, cuja
referência se faz a realidades “plenamente modernas (e, se quiser, pós-modernas) do século
XXI”. O debate sobre os direitos dos povos “se transforma num instrumento estratégico
nas lutas por justiça social desses povos” (LITTLE, 2002, p. 23) e oferece um mecanismo
analítico.

O uso do conceito de povos tradicionais procura oferecer um mecanismo


analítico capaz de juntar fatores como a existência de regimes de propriedade
comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia
cultural, [territorial] e práticas adaptativas sustentáveis que os variados
grupos sociais mostram na atualidade (LITTLE, 2002. p. 23, grifo nosso).

Como resultado, dos anos 2000 para cá, após a promulgação do SNUC e por pressão
dos movimentos sociais e da sociedade civil, inúmeros decretos (desde o âmbito federal ao
municipal) voltados para os povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais foram
publicados. Neste âmbito, podemos destacar o Decreto nº 6040, de 7 de fevereiro de 2007,
assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) em todo o
território nacional.
Para fins deste Decreto, o artigo 3º elucida a definição das noções em pauta acerca
dos povos e comunidades tradicionais, das quais se compreende:

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e


que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para

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sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando


conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição
(BRASIL, Art. 3º, inciso I)18.

Esta conceituação é fruto de disputas realizadas por inúmeros setores da sociedade,


com protagonismo destacado para os movimentos sociais e seus parceiros e apoiadores, que
impuseram as ressemantizações para um alargamento conceitual que incorporasse a diversi-
dade dos territórios construídos. Assim sendo, o inciso II expõe:

Territórios Tradicionais: os espaços necessários à reprodução cultural, social


e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de
forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos
indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da
Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e
demais regulamentações (BRASIL, Art. 3º, inciso II).

Determina o Decreto que as ações e atividades para alcance dos objetivos deverão
ocorrer “de forma intersetorial, integrada, coordenada e sistemática”, além de observar prin-
cípios de reconhecimento, valorização e respeito à diversidade socioambiental e cultural dos
povos e comunidades tradicionais, “levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes
etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades labo-
rais”. Deste modo, esta política nacional assegura acessos diferenciados a direitos universais,
no exercício efetivo de uma cidadania diferenciada, como estratégia de reconhecer o direito
à diferença mais do que o direito à igualdade (PORTO-GONÇALVES, 2006), o que implica
a execução da justiça territorial.
Para esforço de síntese e melhor visualização das formas de reconhecimento jurídico
das diferentes modalidades de apropriação das denominadas terras tradicionalmente ocupa-
das, trazemos a reprodução do quadro elaborado por Almeida (2004), atualizado nos marcos
jurídicos recentes, até o ano de 2016.

18 Importante ressaltar que embora a Lei do SNUC utilize a expressão “populações tradicionais”, em diversos dispositivos,
o conceito de “população tradicional”, que era estabelecido no inciso XV do art. 2º, foi vetado pelo Poder Executivo,
através da Mensagem nº 967, de 18/07/2000, pelo então presidente na época, Fernando Henrique Cardoso. Santilli (2004)
informa que o veto foi defendido tanto por preservacionistas, que consideravam a definição excessivamente ampla, como
também pelo próprio movimento dos seringueiros da Amazônia, que considerava a definição excessivamente restrita pela
exigência de permanência na área “há três gerações”. Essa lógica temporal da ocupação do território confere enorme
problemática, pois as formações dos grupos são postas em diferentes situações.

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Quadro 2: Formas de reconhecimento jurídico das diferentes modalidades de apropriação


das denominadas “terras tradicionalmente ocupadas” (1988-2016).
CF – 1988

Art. 231
“Posse permanente”, usufruto
Povos indígenas exclusivo dos recursos naturais. Convenção 169 OIT
Terras como “bens da União”
Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16
CF – ADCT

Art. 68

Comunidades remanescentes de Convenção 169 OIT


Propriedade. “titulação definitiva”
quilombos
Decreto 4883/07

Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16
Leis Municipais

(MA, TO)
Uso comum dos babaçuais. “Sem
1997 – 2004
posse e sem propriedade”
Quebradeiras de coco babaçu Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16
CE – M, 1990
“Regime de economia familiar e
comunitária” Art. 196
CF – 1988

RESEX – “de domínio público, Art. 20 § 3º


com uso concedido às populações
Decretos
extrativistas tradicionais”.
Seringueiros, castanheiros,
1990, 1992, 1998
quebradeiras de coco babaçu
Lei 9.985/2000
Posse permanente. Terras como
“bens da União”. Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16
CF – 1988

Art. 20 § 3º
RESEX – “Terrenos de Marinha”.
Decretos
Pescadores
Recursos hídricos como “bens da
1992 e 1997
União”
Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16

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CE-BA, 1989

Art. 178
Fundo de pasto “Direito real de concessão de uso”
Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16
Decreto Estadual Paraná

14/08/1997
“Uso coletivo da terra pra produção
Faxinal
animal e conservação ambiental” Decreto 6040/07

Decreto nº 8.750/16
Nota: CF: Constituição Federal; CE: Constituição Estadual.
Fonte: elaborado por Almeida (2004) e atualizado pelo autor deste trabalho.

4 - PARA NÃO CONCLUIR


A partir dessas discussões, buscamos apontar um panorama das questões histo-
ricamente construídas acerca dos territórios e territorialidades dos Povos e Comunidades
tradicionais no Brasil a partir de uma perspectiva crítica e histórica que apontou as nuances
e dificuldades do processo.
A constituição dos arcabouços jurídicos, o desenvolvimento das políticas públicas
redistributivas e reparativas voltadas para os Povos e comunidades tradicionais, teve marco
de 1988 até 2016. Esse processo foi marcado pela elaboração das políticas progressistas
com enfoques nos direitos territoriais, que teve seu êxito, como também, seus limites. Com
o processo de impedimento da presidente em exercício, Dilma Rousseff, no ano de 2016,
consolidou-se um ambiente de incertezas sobre os rumos da política brasileira.
Além de uma drástica diminuição de verbas para a garantia dos direitos territoriais
dos Povos e Comunidades tradicionais (como demarcação de terras e desenvolvimento de
programas realizados pelos órgãos estatais), visualizou-se um amplo e coordenado ataque a
esses direitos, principalmente pelos setores que passaram a apoiar o então candidato à época
Jair Messias Bolsonaro. Esses setores criminalizavam os direitos territoriais, de comunidades
quilombolas, indígenas e dos trabalhadores sem terra, apontando que, caso fosse eleito “não
haveria nenhum centímetro de terra demarcada para reserva indígena ou quilombola” em seu
governo, o que vem se concretizando. Um governo marcado pelo epistemicídio e genocídio
sistemático desses povos.
Dessa forma, a tímida perspectiva multi ou pluri (étnica e territorial) construída,
que considera a diversidade cultural e étnica – e o direito à diferença - está longe de ser
algo consolidado no Brasil, uma vez que esses povos e comunidades continuam alvo de
classificações hierárquicas, racismo institucional e práticas de extermínio físico e cultural. Se
considerarmos o debate a respeito da interculturalidade (WALSH, 2002), estamos a passos
mais largos e abissais.

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O contexto atual apresenta inúmeros desafios, no entanto, é visível o quanto as alian-


ças construídas cotidianamente pelos movimentos sociais na produção de escalas e construção
de redes, tem sido fundamental para definir novos rumos da luta dos povos e comunidades
tradicionais no Brasil pela manutenção e permanência de seus territórios.

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Interculturalidad crítica y (de)colonialidad: Ensayos desde Abya Yala. Quito, Ecuador:
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HTTPS://OJS.UFGD.EDU.BR/INDEX.PHP/RIET RIET, Ano I | Volume I | Número I Julho/Dezembro de 2020 ISSN: 0000-0000 165

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