DICKEN, Peter. Questionando A Globalização

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Parte 1

AS NOVAS FRONTEIRAS DA
ECONOMIA MUNDIAL
1
Questionando a ‘globalização’

A globalização é uma realidade... Não apenas no campo financeiro, mas também na comuni-
cação, tecnologia, cada vez mais na cultura, na recreação. No mundo da Internet, da tecnolo-
gia de informação e da TV, haverá globalização. E no comércio, o problema não está no fato
de existir muita globalização; ao contrário, há pouca incidência de globalização… A questão
não está em como interromper a globalização mas, sim, em como utilizar o poder da comuni-
dade para combiná-la à justiça… a alternativa à globalização é o isolamento.
Tony Blair, primeiro ministro britânico, 2001

A globalização – conforme anunciada, prometida e confirmada como inevitável nos anos 70,
80 e grande parte dos anos 90 – já se esgotou. Continua aqui e ali. Em outros lugares, já
entrou ou está entrando em colapso, ou está sendo bloqueada. E diversas outras forças entra-
ram em cena, arrastando-nos para muitas direções… O desejo das pessoas de organizarem suas
vidas em torno de sua realidade é fundamental para o retorno do nacionalismo.
John Rawlston Saul, 2005

Afinal, o que está acontecendo?


Globalização é uma das palavras mais utilizadas, mas também uma das mais mal utiliza-
das e confusas, dos dias atuais. Ela está praticamente em todo lugar. Dificilmente um
dia transcorre sem que ela seja invocada pelos políticos, acadêmicos, por líderes empre-
sariais ou de sindicatos do trabalho, por jornalistas. Na verdade, há uma geografia inte-
ressante da conscientização da globalização e de atitudes em relação a ela.1 Nos últimos
25 anos, ela se consagrou na imaginação popular, mesmo sendo um conceito cujas
raízes remontam pelo menos ao século XIX, principalmente nas ideias de Karl Marx. A
atual explosão do interesse por ‘globalização’ reflete o sentimento difundido de que algo
importante está acontecendo no mundo; de que existe uma grande quantidade de ‘grandes
questões’ que, de alguma forma, estão interconectados sob o guarda-chuva abrangente
da ‘globalização’. Segundo as palavras de um comentarista contemporâneo:

Vivemos em uma era em que tudo mudou e a maioria das coisas está mudando. O gelo
derreteu nas conhecidas paisagens da segunda metade do século XX. O poder em todas
24 MUDANÇA GLOBAL

as suas formas está mudando rapidamente e de modo imprevisível. Seria possível até
afirmar que estamos no início da História.2

Esses sentimentos de incerteza são intensificados pela grande conscientização de que o


que está acontecendo em uma parte do mundo é profundamente – e, em geral, imedia-
tamente – afetado por eventos ocorrendo em outras partes do mundo. Parte disso é
simplesmente o resultado da revolução nas comunicações eletrônicas que transformou
a velocidade com que as informações são difundidas. Entretanto, parte disso também
tem a ver com o fato de que muitas coisas que usamos em nossas vidas cotidianas se
originam mais e mais de uma geografia cada vez mais complexa de produção, distribui-
ção e consumo, cuja escala se tornou, senão totalmente global, pelo menos muito mais
extensa, e cuja coreografia se tornou mais complicada. Na realidade, vários produtos
têm uma geografia tão complexa – com partes fabricadas em diferentes países e depois
montadas em outro lugar – que as etiquetas de origem deixam de ter significado. Para o
cidadão comum, os indicadores mais evidentes da mudança são aqueles que incidem
mais diretamente sobre suas atividades cotidianas – ganhar a vida, adquirir as necessida-
des da vida, prover sustento para o futuro dos seus filhos.
Nos países industrializados, há um temor que de que as forças duais (e ligadas) das
mudanças tecnológicas e globais na localização das atividades econômicas estejam trans-
formando de modo desfavorável as perspectivas de emprego. As atuais ondas de interes-
ses em terceirização e internacionalização de empregos nos setores de serviços de TI
(principalmente, ainda que não exclusivamente, para a Índia), ou o temor mais genera-
lizado de que muitos empregos de produção estejam sendo absorvidos por uma China
emergente, crescendo repentinamente a uma velocidade extremada, são apenas os exem-
plos mais recentes desses temores. Entretanto, os problemas dos países industrializados
empalidecem diante daqueles dos países pobres que costumam ser chamados de ‘Tercei-
ro Mundo’. Embora realmente existam perdedores nos países desenvolvidos e ricos, sua
magnitude é totalmente minimizada pela pobreza e privação de grande parte da África
e muitas partes da Ásia Meridional e América Latina. A falta de desenvolvimento con-
tinua aumentando: a disparidade entre ricos e pobres continua crescendo.
É claro que é completamente ingênuo explicar todos esses problemas, em termos
de um mecanismo individual causal chamado ‘globalização’,

um termo usado [frequentemente demais] por muitos pensadores insensatos, que tratam
da mesma maneira todo tipo de tendências superficialmente convergentes… e chamam
isso de globalização, sem tentar distinguir o que é importante do que é trivial, nas causas
ou nas consequências.3

Na realidade, ‘globalização’ tornou-se um termo genérico conveniente, empregado por


muitos para englobar praticamente todos os tipos de ocorrências ‘boas’ e ‘ruins’ enfren-
tadas pelas sociedades modernas.
Então, não surpreende que esse termo gere discussões acaloradas e extremadas em
todo o espectro político e ideológico. Desde a virada do milênio, o mais dramático de
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 25

tudo tem sido a proliferação dos movimentos de protesto globais: a explosão de de-
monstrações de rua nas principais reuniões políticas internacionais. Esses protestos têm
envolvido uma variedade surpreendente de grupos de pressão, variando desde organiza-
ções de sociedade civil (OSC) de longa data a grupos totalmente novos com enfoques
muito específicos ou muito gerais para os respectivos protestos, aliados a anarquistas e
elementos revolucionários com uma ampla pauta anticapitalista.
Ganhando destaque pela primeira vez na reunião da Organização Mundial de
Comércio em Seattle, em novembro de 1999, os movimentos de protesto globais torna-
ram-se imediatamente um aspecto permanente de toda reunião internacional de orga-
nizações governamentais subsequente. Em alguns casos, eles se manifestaram em even-
tos globalmente generalizados, como os concertos ‘Live8’ em 2005, organizados para
coincidir com a conferência das maiores economias do mundo (G8) e a campanha
‘Make Poverty History’. No outro extremo político, os líderes das grandes empresas
têm as próprias reuniões ‘tribais’, principalmente o Fórum Econômico Mundial realiza-
do anualmente em Davos, Suíça.

Perspectivas conflitantes sobre a ‘globalização’


Como ‘globalização’ é um termo altamente polêmico,4 é importante esclarecer a posi-
ção tomada neste livro. O enfoque principal deste livro é a economia global. Evidente-
mente, existem outras formas de ‘globalização’ – política, cultural e social – e geralmen-
te é difícil discerni-las. Na verdade, a ‘economia’ em si não é uma entidade isolada. Ela
está não somente profundamente incorporada aos processos sociais, culturais e políti-
cos e às instituições, como esses também geralmente estão muito imbuídos de valores
econômicos. Isso se verifica principalmente no tipo de economia de mercado capitalista
que prevalece atualmente na maior parte do mundo.

‘Hiperglobalistas’ à direita e à esquerda


Provavelmente, a mais expressiva corrente de pensamento – e que se estende por todo o
espectro político-ideológico – consiste no que pode ser chamado de hiperglobalistas, que
argumentam que vivemos em um mundo sem fronteiras no qual o ‘nacional’ não é mais
relevante.
Nesse mundo, a ‘globalização’ é a nova ordem econômica, política e cultural. É um
mundo em que estados-nação não são mais atores significativos ou unidades econômi-
cas importantes, e em que as preferências e culturas do consumidor são homogeneiza-
das e satisfeitas com o fornecimento de produtos globais padronizados, criados por
corporações globais sem qualquer fidelidade a local ou comunidade. Por conseguinte, a
ordem ‘global’ é considerada a ordem natural, um estado de coisas inevitável, em que o
tempo-espaço foi comprimido, o ‘fim da geografia’ chegou e todo lugar está ficando
26 MUDANÇA GLOBAL

igual.Essa visão hiperglobalista é mostrada na Figura 1.1 como um processo inexorável de


expansão geográfica e integração funcional cada vez maiores entre as atividades econômicas.
Essa visão hiperglobalista do mundo é um mito, que não existe – e provavelmente
não existirá. Apesar de tudo, sua retórica tem uma influência poderosa sobre políticos,
líderes empresariais e muitos outros grupos de interesse. É uma visão do mundo com-
partilhada por muitos escritores, na direita e na esquerda, que divergem quanto à sua
avaliação da situação e suas posições políticas. Para os ‘neoliberais’ direitistas – os pró-
globalizadores – a globalização é um projeto político-econômico,5 que (diz-se) trará
enormes benefícios para a maioria. Basta deixar os mercados livres (quer no comércio,
quer nas finanças) ditarem as regras e tudo ficará bem. A ‘maré alta’ da globalização
‘levantará todos os barcos’; o bem-estar material humano vai melhorar. Embora os pró-
globalizadores neoliberais reconheçam que esse estado de perfeição ainda não foi alcan-
çado, o principal problema, segundo eles, é que há pouca, e não muita globalização.6
Para os hiperglobalizadores da esquerda – os antiglobalizadores – o problema
está na globalização em si mesma. A própria operação das forças de mercado julga-
das como benéficas pela direita são consideradas o x da questão: uma força maligna
e destrutiva. Argumenta-se que os mercados inevitavelmente geram desigualdades.
Por extensão, a globalização dos mercados aumenta a escala e o alcance dessas desi-
gualdades. Os mercados sem regulamentação inevitavelmente levam a uma dimi-
nuição do bem-estar, exceto de uma pequena minoria no mundo, além de gerarem
problemas ambientais massivos. Portanto, os mercados devem ser regulados, para o
interesse geral. Para alguns antiglobalistas, na verdade, a única solução lógica é uma
rejeição total dos processos de globalização e uma volta aos processos ‘locais’.

Alto Globalização
pura
Grau de integração funcional das atividades econômicas

A economia global dos dias atuais é


genuinamente sem fronteiras. As
informações, o capital e as inovações
fluem no mundo inteiro à velocidade
máxima, habilitados pela tecnologia
e alimentados pelos desejos dos
clientes de ter acessa aos melhores e
menos dispendiosos produtos.
(Ohmae, 1995: texto da guarda)

O país de origem não tem


importância. A localização das
matrizes não é relevante. Os produtos
pelos quais você é responsável e a
empresa em que você trabalha
perderam a nacionalidade.
(Ohmae, 1990: 94)

Baixo Alto
Alcance da expansão geográfica das atividades econômicas

FIGURA 1.1 A visão hiperglobalista.


QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 27

‘Internacionalistas céticos’
Em que pese que a ideia de mundo econômico globalizado tenha sido amplamente
aceita, alguns adotam uma posição mais cética, propondo que a ‘novidade’ da situação
atual foi muito exagerada. Argumenta-se que a economia mundial na verdade estava
mais aberta e integrada no meio século antes da Primeira Guerra Mundial (1870–1913)
do que nos dias atuais.7 A evidência empírica usada para justificar esse posicionamento
é quantitativa e agregadora, com base nos estados da nação como unidades estatísticas.
Esses dados revelam um mundo em que o comércio, investimento e, principalmente, a
migração da população fluíam em volumes cada vez maiores entre os países. Esses níveis
de comércio e investimento internacionais não foram alcançados novamente (após a
depressão mundial dos anos 30 e da Segunda Guerra Mundial) até as últimas décadas
do século XX. Na verdade, a migração internacional da população não voltou aos níveis
iniciais, pelo menos no que diz respeito à proporção da população mundial participante
no movimento entre países. Com base nessa evidência quantitativa, Hirst e Thompson
afirmam que ‘não temos uma economia totalmente globalizada, o que existe mesmo é
uma economia internacional’.8

‘Enraizando a globalização’
Esses dados quantitativos em nível nacional devem ser levados a sério. Mas representam
apenas uma parte da história. Eles não nos informam os tipos de mudanças qualitativas
ocorridos na economia global. Mais expressivas foram as mudanças no local e no modo da
produção, distribuição e consumo físicos dos produtos e serviços (inclusive, em particular,
no campo financeiro). As antigas geografias da produção, distribuição e consumo estão
sendo continuamente afetadas; novas geografias de produção, distribuição e consumo estão
sendo sempre criadas. Houve uma grande transformação na natureza, no nível de interliga-
ção na economia mundial e, principalmente, na velocidade com que essa conectividade ocor-
re, envolvendo tanto uma expansão quanto uma intensificação das relações econômicas.9
A integração econômica internacional antes de 1914 – e, inclusive, até cerca de
quatro décadas atrás – era basicamente superficial, manifestada em grande parte através
de transações de mercado em produtos e serviços entre empresas independentes, e por
meio de movimentos internacionais de carteira de títulos e de investimento direto relativa-
mente simples. Hoje, vivemos em um mundo em que uma profunda integração, organizada
basicamente dentro de e entre redes de produção transacionais geograficamente extensas e
complexas, e através de uma diversidade de mecanismos, é cada vez mais o padrão.
Essas mudanças qualitativas simplesmente não são captadas nos dados agregados
de comércio ou de investimento do tipo utilizado pelos céticos. Por exemplo, no caso
do comércio internacional, as mudanças no volume – embora importantes – não são
tão relevantes quando as mudanças na composição. Houve um grande aumento no co-
mércio intraindustrial e intraempresarial, que são claros indicadores de processos de
produção mais funcionalmente fragmentados e geograficamente dispersos.10
28 MUDANÇA GLOBAL

Ocorreram também mudanças drásticas na operação dos mercados financeiros,


com o ‘dinheiro’ percorrendo o mundo a velocidades sem precedentes, causando enor-
mes repercussões nas economias locais e nacionais.
A posição tomada neste livro é que, embora existam, sem dúvida alguma, forças
globalizantes atuando, não temos uma economia mundial totalmente globalizada como
ilustrado na Figura 1.1. Na verdade, o que temos ‘não é um fenômeno individual e
unificado, mas, sim, uma síndrome de processos e atividades’.11

Globalização é uma… série supercomplexa de processos multicêntricos, multiescalares,


multitemporais, multiformes e multicausais.12

Por conseguinte, os processos globalizantes se refletem em e são influenciados por


diversas geografias, e não por uma única geografia global: uma ‘inter-relação local e
global mútua, interagindo de todas as formas’.13 Na verdade, como mostra a Figura 1.2,

Alto
Globalização
pura

R
Nível de integração funcional das atividades econômicas

Processos localizantes

tes

R
zan
ali
ion
reg

R
R
sos

R
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es
Pro

a nt
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s so
o ce
Pr

Processos internacionalizantes
Baixo
Alto
Alcance da expansão geográfica das atividades econômicas

FIGURA 1.2 Processos e escalas da transformação da economia global.


QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 29

é possível identificar várias tendências, refletindo combinações distintas de expansão


geográfica e integração ou interconexão funcional:
• processos localizantes: atividades econômicas geograficamente concentradas com
vários níveis de integração funcional
• processos internacionalizantes: expansão geográfica simples de atividades eco-
nômicas através das fronteiras nacionais, com baixos níveis de integração fun-
cional
• processos globalizantes: ampla expansão geográfica e alto nível de integração
funcional
• processos regionalizantes: a operação de processos ‘globalizantes’ em uma escala
mais geograficamente limitada (mas supranacional), variando desde a União
Europeia, altamente integrada e em expansão, até acordos econômicos regio-
nais muito menores.

Elucidando a complexidade da nova geoeconomia:


economias como redes
Mesmo aceitando o exagero de grande parte do debate sobre globalização, não há dúvi-
da de que estamos testemunhando o surgimento de uma nova geoeconomia qualitativa-
mente diferente daquela anterior.14 Entretanto, para entender o que está acontecendo, é
necessário adotar uma abordagem fortemente embasada na realidade geográfica desi-
gual das estruturas, dos processos e dos resultados globalizantes, e não submergir no
alarde e nos ânimos inflados que caracterizam os debates sobre globalização. A questão
é: como começar a elucidar sua complexidade dinâmica e caleidoscópica?
A Figura 1.3 representa um ponto de entrada. Ela procura fornecer uma perspec-
tiva estrutural sobre os processos e resultados da globalização, além de uma ideia do
comportamento dos principais ‘atores’. Em particular, ela enfatiza os métodos comple-
xos pelos quais eles são interligados e controlados através de relações de poder altamen-
te desiguais. É evidente que um diagrama simplificado como o da Figura 1.3 tenta o
impossível: captar e representar a multidimensionalidade da economia global em ape-
nas duas dimensões. Inevitavelmente, ela simplifica extremamente e também distorce
relações e causalidades. É necessário lembrar que se trata de uma representação idealiza-
da de um mundo infinitamente mais complexo.
Podemos seccionar o sistema altamente interligado da Figura 1.3 em vários pontos
distintos, de acordo com nosso interesse específico. Neste livro, optei por focar basica-
mente (embora não exclusivamente) na ‘fatia central’ da Figura 1.3: os principais atores
na economia global e as teias de relações em rede existentes entre eles.

Os processos econômicos devem ser conceitualizados em termos de um circuito comple-


xo com uma multiplicidade de vínculos e loops de feedback, em vez de circuitos ‘simples’
ou, pior ainda, fluxos lineares.15
30 MUDANÇA GLOBAL

“Variedades de capitalismo” —
configurações geograficamente específicas
de práticas e instituições socioculturais

Macroestruturas (instituições, convenções etc.)


do sistema de mercado capitalista

Trajetórias evolutivas: dependência/contingência de caminhos


Processos de imbricamento
RESULTADOS

PROCESSOS DE ESPAÇO-TEMPO

Espaço como “relacional” (topológico/multiescalar)


ONGs Estados

Empresas
Mão de obra Consumidores
PROCESSOS

Circuitos e redes de interação mediadas por relações de poder diferenciais em


redes de produção global e por redes sociais transnacionais

Processos de imbricamento

Distribuição geográfica desigual de bons e maus;


vencedores e perdedores

FIGURA 1.3 Uma estrutura simplificada da economia global.


Fonte: baseado em Dicken 2004: Figura 2.

Eis o segredo: vislumbrar os processos econômicos (produção, distribuição, con-


sumo) em termos de conexões de atividades, ligadas através de fluxos de fenômenos ma-
teriais e não materiais (como os serviços) a circuitos e redes. Esses circuitos e redes
constituem estruturas relacionais e processos em que as relações de poder entre os principais
‘atores’ – empresas, estados, indivíduos, grupos sociais – são desiguais.

O ponto crítico em relação às redes é que elas envolvem pensamento relacional. O que
liga as pessoas através do tempo e espaço? De que modo as coisas e pessoas são
conectadas e incorporadas em termos econômicos, políticos e culturais? De que manei-
ras os produtos, as informações e o capital fluem e por que são canalizados para determi-
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 31

nados vértices e nós? … Pensar em termos de redes nos obriga a pensar processos
socioeconômicos como entrelaçados e mutuamente constitutivos.16

As redes estão sempre fluindo, sempre em um processo de transformação. É


evidente que elas também não existem isoladamente. Em particular, elas estão in-
corporadas às macroestruturas mais abrangentes da economia global e fincadas nas
estruturas geográficas predominantes do mundo real. Nesse sentido, estamos ado-
tando aqui uma abordagem de rede localizada.

Macroestruturas da economia global


As macro-estruturas da economia global são basicamente instituições, convenções e
normas do sistema de mercado capitalista que não são naturalmente emitidas, mas so-
cialmente construídas – em sua forma atual, predominantemente como uma ideologia
político-econômica neoliberal. As normas e convenções da economia de mercado capi-
talista se relacionam, por exemplo, com propriedade privada, geração de lucros, aloca-
ção de recursos com base nos sinais do mercado, e a consequente transformação dos
insumos da produção (inclusive a mão de obra) em commodities.
O Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio
(OMC) e o Banco Mundial, juntamente com as diversas reuniões ‘G’ (como o G8) são
as manifestações mais óbvias de instituições globais (consulte o Capítulo 19), embora
exista, evidentemente, uma miríade de outras entidades mais específicas. Essas institui-
ções representam apenas uma parte da matriz sociocultural mais abrangente de práti-
cas, normas e convenções que determinam como o mundo funciona. Essas instituições
e convenções continuam sendo manifestadas em configurações específicas em locais espe-
cíficos (principalmente dentro dos estados nacionais, mas não somente nessa escala).
Em outras palavras, elas também estão territorialmente incorporadas. Existem variedades
do capitalismo, não uma única forma universal.

Redes centradas nos atores


Dentro desse âmbito macroestrutural geograficamente diferenciado, são as ações e prin-
cipalmente as interações das e entre as cinco redes centradas nos atores mostradas na
parte central da Figura 1.3 que basicamente formam a configuração geográfica variável
da economia global em escalas espaciais diferentes. A despeito da sugestão ocasional de
que não devemos ‘privilegiar’ um conjunto de atores em relação a outros, não há dúvida
de que alguns atores são mais importantes que outros. Por esse motivo,atribuo um des-
taque especial nesse livro às empresas transnacionais (ETNs) e aos Estados. Entretanto,
em termos mais genéricos, o sistema inteiro é de relações de poder assimétricas.
As variáveis importantes na determinação do poder relativo são, primeiramente, o
controle sobre os principais ativos (como capital, tecnologia, conhecimento, habilita-
32 MUDANÇA GLOBAL

ções profissionais, recursos naturais, mercados do consumidor) e, em segundo lugar, a


faixa espacial e territorial e a flexibilidade de cada um dos atores. Essas duas não estão
desconectadas uma da outra. A possibilidade de controlar o acesso a ativos específicos é
um grande poder de barganha. Onde esses ativos estiverem disponíveis praticamente
em toda parte, a oscilação do poder será superficial ou sequer existirá. Mas onde os
ativos estiverem ‘localizados’, quer geograficamente, organizacionalmente ou pessoal-
mente, a oscilação do poder poderá ser acentuada. Entretanto, os atores capazes de acessar
ativos através do espaço geográfico têm uma vantagem considerável em relação àqueles sem
essa flexibilidade espacial.
Isso conduz a uma observação mais geral. Cada um dos principais conjuntos
de atores mostrados na parte central da Figura 1.3 está envolvido tanto na coopera-
ção e colaboração, por um lado, quanto no conflito e na concorrência, pelo outro
lado. Esse comportamento aparentemente paradoxal nos adverte contra a pressu-
posição de que as relações entre certos atores são sempre de um mesmo tipo: por
exemplo, que aquelas entre ETNs, ou entre ETNs e os Estados, ou entre ETNs e a
mão de obra, são sempre conflitantes ou competitivas. Ou, ao contrário, que as
relações entre grupos de trabalhadores ou organizações trabalhistas são sempre co-
operativas (em nome da solidariedade da classe). Nem tanto. Essas diversas redes de
atores estão imbuídas de uma mistura cada vez mais variável de conflitos e colabo-
rações.
Sendo assim, por exemplo, as ETNs pertencentes ao mesmo setor são concor-
rentes acirradas, mas também estão invariavelmente enredadas em uma complexa
teia de relações colaborativas (consulte o Capítulo 5). Os Estados competem de
modo acirrado com os outros Estados para atrair investimentos internacionalmen-
te móveis pelas ETNs (consulte o Capítulo 8) ou para encontrar maneiras de afas-
tar certas modalidades de importações e, ao mesmo tempo, participar cada vez mais
de acordos comerciais preferenciais, inclusive acordos bilaterais e multilaterais, fre-
quentemente em agrupamentos regionais mais amplos (consulte os Capítulos 6 e
7). Os sindicatos trabalhistas em um país concorrem com os de outro país para
obter novos empregos ou proteger os já existentes, enquanto simultaneamente se
empenham em criar alianças internacionais com os sindicatos em outros países,
principalmente aqueles envolvidos nas operações geograficamente dispersas das gran-
des ETNs. De modo semelhante, as organizações da sociedade civil (OSC) não
estão imunes a essas ações conflitantes. No contexto dos protestos antiglobalização,
por exemplo, as OSCs desenvolveram colaborações entre fronteiras nacionais mas,
ao mesmo tempo, as metas e os valores das OSCs individuais nem sempre são com-
patíveis, para dizer o mínimo.

Mapeando os resultados da globalização


A globalização é, então, uma síndrome complexa de processos, em que as redes de
atores e as macroestruturas se interconectam de modo extremamente complicado e
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 33

dinâmico. Precisamos mapear e analisar os resultados concretos desses processos. Fare-


mos isso, em termos gerais, no Capítulo 2, e, mais especificamente para os setores indi-
viduais (vestuário, automóveis, semicondutores, alimentos, serviços financeiros e os se-
tores de logística e distribuição) nos capítulos de estudo de casos da Parte 3. Esses
processos não somente são geograficamente fixados e incorporados (no sentido de ori-
ginar algumas de suas características e recursos de contextos específicos do local), como
também geram resultados concretos, geograficamente específicos e altamente irregula-
res (Figura 1. 3). É evidente que, em algum momento, a geografia dos resultados cons-
titui o contexto no qual os processos subsequentes operarão. O processo inteiro é longo
e indireto e altamente dependente do caminho.
Os processos de produção, distribuição e consumo podem gerar resultados ‘bons’
ou ‘maus’. Eles produzem os ‘bons’ na forma de oportunidades de emprego, rendimen-
tos e acesso a uma variedade cada vez maior de produtos, serviços e artefatos culturais
de consumo. Eles produzem os ‘maus’ na forma de desemprego, pobreza, esgotamento
de recursos, poluição ambiental e danos culturais. Até onde os ‘bons’ excedem os ‘maus’
é uma questão controversa, assim como a questão de quem são os ‘vencedores’ e os
‘perdedores’, porque esses bons e maus têm, em si mesmos, uma distribuição altamente
desigual, tanto geográfica quanto socialmente. Discutiremos esses assuntos nos capítu-
los da Parte 4.

Circuitos de produção; redes de produção


A unidade convencional de análise da economia global é o país. Praticamente todos os
dados estatísticos sobre produção, comércio, investimento e aspectos semelhantes são
agregados a ‘bases de dados de pesquisa’ nacionais. Na verdade, a palavra ‘estatística’
denotava originalmente os fatores coletados sobre o ‘estado’. Entretanto, esse nível de
agregação estatística é cada vez menos útil diante das mudanças ocorrendo na organiza-
ção da atividade econômica. Infelizmente, precisamos contar com os dados em nível
nacional para investigar os mapas variáveis de produção, comércio e investimento. Como
as fronteiras nacionais não mais ‘contêm’ os processos de produção como anteriormen-
te, é necessário descobrir maneiras de acessar abaixo e acima da escala nacional – para
escapar das restrições das ‘bases de dados de pesquisa nacionais’ – para entender o que
está realmente acontecendo no mundo. Uma maneira é pensar em termos de circuitos e
redes de produção, que atravessam e se inter-relacionam com todas as escalas geográfi-
cas, inclusive o território restrito do Estado.

Cadeias de produção ou circuitos de produção?


É comum conceber a produção de qualquer produto ou serviço como uma cadeia de
produção, isto é, como uma sequência vinculada de transações transacionais de fun-
34 MUDANÇA GLOBAL

ções, na qual cada estágio agrega valor ao processo de produção de produtos ou serviços.
No contexto global, a ideia de cadeia de commodities global (CCG) ou, mais recente-
mente, cadeia de valores global (CVG) foi amplamente desenvolvida por Gary Gereffi
e seus colegas.17 Como o próprio nome indica, uma cadeia de produção é basica-
mente linear e representa a sequência de operações necessárias para produzir e dis-
tribuir um produto ou serviço (serviços, como qualquer outro item de consumo,
precisam ser ‘produzidos’). Entretanto, como já vimos, os processos econômicos
são longos e indiretos, e não lineares. Há uma circularidade presente ao se ligar os
principais estágios do processo de produção, como a forma circular que consiste de
loops de feedback ligando o consumo – um componente fundamental, se bem que
frequentemente ignorado, do processo de produção – com os processos de produ-
ção e distribuição.
A Figura 1.4a apresenta uma versão ‘reduzida’ de um circuito de produção hipoté-
tico. No núcleo, há um conjunto de quatro operações básicas, ligadas por uma sequên-
cia de transações entre um elemento e o seguinte. As entradas são transformadas em
produtos distribuídos e consumidos. Mas perceba que os processos são bidirecionais:

• fluxos de materiais, bens semiacabados e produtos finais em uma direção


• fluxos de informações (as demandas dos clientes – gostos, preferências etc.) e
dinheiro (pagamentos de produtos e serviços) na outra direção.

Entretanto, isso não é tudo, como mostram as Figuras 1.4b e 1.4c. Cada elemento
individual no circuito de produção depende de:

• insumos tecnológicos
• entradas de serviços
• sistemas (de movimento) logísticos
• sistemas financeiros
• sistemas de coordenação e controle

Sendo assim, cada um dos elementos em um circuito de produção depende de vários


outros tipos de entradas, tanto daquelas diretamente relacionadas à produção quanto
daquelas relacionadas à circulação. Em particular,

as atividades de serviços não somente propiciam elos entre os segmentos da produção


dentro de um [circuito de produção] e os elos entre os [circuitos de produção] sobrepos-
tos, como também vinculam as esferas de produção e circulação. Os serviços entram em
cena em um papel crítico… porque não somente fornecem as conexões geográficas e
transacionais, como também integram e coordenam o processo de produção atomizado e
globalizado.18

Os sistemas financeiros são especialmente importantes. As decisões dos financistas


têm uma função extraordinariamente poderosa não somente na ‘lubrificação’ dos cir-
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 35

cuitos de produção, como também em sua formatação através das respectivas decisões
de avaliação sobre o que (e onde) investir para obter o retorno mais alto (e ocasional-
mente, o mais rápido).

(a) Entradas Transformação Distribuição Consumo


de itens mate- de entradas em de produtos de produtos
riais e não produtos ou serviços ou serviços ou serviços
materiais semiacabados ou
acabados

(b) Insumos tecnológicos: pesquisa, projeto, controle da qualidade, tecnologias


de produtos e processos
Entradas de serviços: aquisição, contabilidade, seguro, recursos jurídicos, humanos,
publicidade, marketing, vendas, manutenção

Entradas Transformação Distribuição Consumo

Serviços de logística
(movimentação de materiais, produtos, pessoas e informações)

(c) SISTEMA FINANCEIRO


(capital de investimento, crédito e operações bancárias)

Insumos tecnológicos: pesquisa, projeto, controle da qualidade, tecnologias


de produtos e processos
Entradas de serviços: aquisição, contabilidade, seguro, recursos jurídicos, humanos,
publicidade, marketing, vendas, manutenção

Entradas Transformação Distribuição Consumo

Serviços de logística
(movimentação de materiais, produtos, pessoas e informações)

REGULAMENTAÇÃO, COORDENAÇÃO E CONTROLE

Fluxos de materiais e produtos


Fluxos de informações (inclusive pedidos de clientes)

FIGURA 1.4 Componentes básicos de um circuito de produção.


36 MUDANÇA GLOBAL

Redes de produção
Os circuitos de produção individuais estão, por sua vez, envolvidos em redes de produção
mais abrangentes de relacionamentos interempresarias e intraempresariais.19 Na reali-
dade, essas redes são estruturas extremamente complexas com complicadas ligações–
horizontais, verticais, diagonais – formando treliças multidimensionais, de várias camadas
de atividade econômica. Elas variam consideravelmente dentro e entre os diversos setores,
como constataremos nos capítulos de estudo de casos da Parte 3. A natureza complexa
das redes de produção será discutida com detalhes no Capítulo 5. Nesse estágio, preci-
samos observar apenas a importância especial de três dimensões das redes de produção:

• controle – como elas são coordenadas e regulamentadas


• espacialidade – como elas são configuradas geograficamente
• incorporação territorial – até onde elas estão associadas a determinados cenários
políticos, institucionais e sociais.

Controle das redes de produção

Nas economias de mercado, as redes de produção são coordenadas e regulamentadas


basicamente por empresas, através das diversas formas de relações intra e interorganiza-
cionais que constituem um sistema econômico. Como mostra a Figura 1.5, as econo-
mias são formadas por tipos diferentes de organização empresarial – transnacional e
doméstica, grande e pequena, pública e privada – e várias combinações e inter-relacio-
namentos. As empresas em cada um dos segmentos da Figura 1.5 operam através de
faixas geográficas muito distintas e desempenham funções muito diferentes no sistema
econômico.
Um tema importante neste livro é que a empresa transnacional desempenha um
papel importante na coordenação das redes de produção e, portanto, na formação da

Setor público Setor privado

EMPRESA EMPRESAS EMPRESAS


ESTATAIS NACIONAIS TRANSNACIONAIS

transações normais transações normais


PEQUENA, de mercado GRANDE, de mercado
geralmente licenciamento geralmente ETNs alianças estratégicas EMPRESAS
uma única várias MENORES GLOBAIS
fábrica subcontratação fábricas subcontratação

transações normais de mercado transações normais de mercado


subcontratação alianças estratégicas
subcontratação
joint-ventures, acordos de cooperação industrial, licenciamento, subcontratação

FIGURA 1.5 Tipos de empresas em uma economia.


QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 37

nova geoeconomia (consulte os Capítulos 4 e 5). É empregada aqui uma definição mais
ampla de ETN – que vai além da definição convencional baseada nos níveis de proprie-
dade de ativos com bases internacionais – para abranger a diversidade e complexidade
das redes transnacionais.

Uma empresa transnacional é uma empresa que tem poder para coordenar e controlar
operações em mais de um país, mesmo que não sejam de propriedade dessa empresa.

Na verdade, as ETNs geralmente possuem esses ativos, mas elas também estão,
como veremos no Capítulo 5, envolvidas em várias complicadas teias de aranha de
relações de colaboração com outras empresas juridicamente independentes em todo o
planeta.
A natureza do processo de coordenação dentro da rede de produção de uma ETN
depende, em parte, do local onde a empresa define o limite entre as funções que ela
internaliza (isto é, executa ‘internamente’) e as que ela externaliza (ou seja, terceiriza
para outras empresas). Teoricamente, em um extremo, a rede de produção total da
ETN pode ser internalizada dentro da empresa como um sistema integrado verticalmen-
te cruzando as fronteiras nacionais. Nesse caso, os vínculos consistem de uma série de
transações internalizadas, organizadas ‘hierarquicamente’ através da estrutura organiza-
cional interna da empresa. No extremo oposto, cada função pode ser executada por
empresas distintas. Nesse caso, os vínculos consistem em uma série de transações exter-
nalizadas, organizadas através do ‘mercado’ ou com a colaboração de outras empresas
em uma espécie de rede ‘virtual’.
Essa dicotomia – entre transações externalizadas, controladas pelo mercado, e tran-
sações internalizadas controladas hierarquicamente – simplifica extremamente a rique-
za e diversidade dos mecanismos de controle na economia contemporânea. Na verdade,
há um espectro de formas diferentes de coordenação, consistindo de redes de inter-rela-
cionamentos dentro e entre empresas. Essas redes consistem cada vez mais de uma
mescla de estruturas intraempresariais e interempresariais, são dinâmicas e em um esta-
do contínuo de fluxo; a fronteira entre a internalização e a externalização muda cons-
tantemente. O modo exato como elas são coordenadas depende, em um grau conside-
rável, da natureza precisa dos respectivos processos de produção, distribuição e consu-
mo. Examinaremos esse aspecto com mais detalhes no Capítulo 5 e nos casos setoriais
na Parte 3. Nesse estágio, basta observar que o controle das redes de produção reflete a
configuração de poder específica existente entre elas. Em alguns casos, um ator domi-
nante declara diretamente todas as suas intenções; em outros casos, o poder pode estar
mais pulverizado, com um grau maior de colaboração.

Espacialidade das redes de produção

Toda rede de produção tem a sua espacialidade: a configuração geográfica específica, o


alcance de seus componentes e os vínculos entre eles. No nível mais básico, a produção
38 MUDANÇA GLOBAL

dentro de uma rede pode ser organizada ao longo de um espectro, de geograficamente


concentrado até geograficamente disperso. Mas esses termos são relativos e exigem que
se faça a importante pergunta da escala geográfica. Por um lado, podemos simplesmen-
te imaginar uma escala geográfica como um continuum e supor, portanto, as redes de
produção como ‘mais ou menos extensas e mais ou menos ligadas’.20 Hoje em dia,
praticamente todas as redes de produção se tornaram geograficamente mais abrangen-
tes: estão cada vez mais extensas e mais ligadas.
Por conseguinte, estamos testemunhando o surgimento de redes de produção
globais (RPGs) ou, como alguns preferem, redes de produção transnacionais
(RPTs).Um motivo, embora não seja o único, para esse aumento da difusão geográ-
fica foram as ‘revoluções’ nas tecnologias de transporte e comunicação.Essas trans-
formações dos relacionamentos de tempo-espaço induziram alguns a reivindicar o
‘fim da geografia’ ou ‘o término da distância’.21 Essas duas frases estão presentes, de
modo explícito ou implícito, em grande parte da literatura sobre a globalização.
Entretanto, embora os desenvolvimentos nos transportes e nas comunicações te-
nham realmente ‘encolhido o mundo’, isso não ocorreu da maneira simplista geral-
mente assumida (consulte o Capítulo 3).
As redes de produção globais/transnacionais ocupam as escalas global, regionais,
nacionais e locais. Imaginar o mundo em termos dessas escalas espaciais discretas é útil
de várias maneiras. Mas isso pode facilmente implicar que cada escala é uma ‘caixa’
independente. Por exemplo, tornou-se muito comum separar a escala global da escala
local (ou nacional) e implicar que os processos funcionando nessas duas escalas são
separados e distintos: em termos específicos, que o ‘global’ determina o que acontece na
escala local. Não é bem assim, como vimos anteriormente. A espacialidade das redes de
produção é muito mais complexa do que geralmente se fala.

Incorporação territorial das redes de produção

Costuma-se argumentar que o capital tornou-se ‘hipermóvel’, livre da ‘tirania da dis-


tância’ e não mais amarrado a um ‘lugar’. Em outras palavras, a atividade econômica
está se tornando ‘desterritorializada’ ou ‘desenraizada’. O sociólogo Manuel Castells
argumenta que as forças da globalização, principalmente aquelas orientadas pelas novas
tecnologias de informação, estão substituindo esse ‘espaço dos lugares’ por um ‘espaço
de fluxos’.22 Tudo pode ser localizado em qualquer lugar e, se lá não funcionar, poderá
ser facilmente deslocado para outro lugar.
Embora aparentemente sedutoras, essas ideias são altamente enganosas. O mundo
é tanto um ‘espaço de locais’ quanto um ‘local de fluxos’. As redes de produção simples-
mente não flutuam à vontade em um mundo sem espaços/locais. Apesar de as tecnolo-
gias de transportes e comunicações terem passado realmente por uma revolução, tanto
a distância geográfica quanto o local (principalmente) são fundamentais. Cada compo-
nente em uma rede de produção – da empresa, cada função econômica – está, literal-
mente, ‘fincado’ a localizações específicas. Esse fincamento é físico (na forma do am-
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 39

biente construído) e menos tangível (na forma das relações sociais localizadas e nas
instituições e práticas culturais distintas). Por conseguinte, a natureza exata e a articula-
ção das redes de produção voltadas para empresas são profundamente influenciadas
pelos contextos sociopolítico, institucional e cultural concretos aos quais estão incorpo-
radas, em que são produzidas e reproduzidas.23
O estado nacional continua sendo a mais importante forma territorial delimitada à
qual as redes de produção estão incorporadas. Todos os elementos de uma rede de pro-
dução são regulamentados em algum tipo de estrutura política, cuja unidade básica é o
estado nacional, mas que também abrange instituições supranacionais, como o Fundo
Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, grupos econômicos
regionais, como a União Europeia ou o Acordo de Livre Comércio da América do
Norte, e os estados ‘locais’ na escala subnacional.
Por definição, todas as redes de produção transnacionais devem operar em sistemas
reguladores multiescalares e estão, portanto, sujeitas a uma multiplicidade de influências
políticas, sociais e culturais, geograficamente variáveis. Por um lado, as ETNs tentam
tirar proveito das diferenças nacionais existentes nos regimes reguladores, enquanto,
por outro lado, os Estados procuram minimizar essa ‘arbitragem reguladora’. O resulta-
do é uma situação muito complexa na qual as empresas e os Estados participam em
vários tipos de jogos de poder: um nexo triangular de interações compreendendo rela-
cionamentos empresa-empresa, Estado-Estado e empresa-Estado (Figura 1.6).24 Em
outras palavras, e nova geoeconomia está basicamente sendo estruturada e reestrutura-
da não apenas pelas ações das empresas ou dos Estados isoladamente, mas também
pelas interações complexas e dinâmicas entre os dois conjuntos de instituições. É evi-
dente que as relações com os Estados não são as únicas. Como vimos na Figura 1.3, as
ETNs se envolvem continuamente em relações (às vezes conflitantes, outras vezes de
colaboração) com outros atores importantes – mão de obra, consumidores, OSCs –
todos eles com sólidas bases territoriais.
Em
o
tad

pre
s
o-E

sa-
tad

Em
Es

pre
sa

Estado-Empresa
FIGURA 1.6 O nexo triangular dos relacionamentos entre empresas e Estados.
Fonte: baseado em Stopford e Strange, 1991: Figura 1.6.
40 MUDANÇA GLOBAL

Consumo como uma força motriz


Os circuitos e as redes de produção englobam mais do que a simples ‘produção’: em
última análise, eles são orientados pela necessidade, pela predisposição e pela possibili-
dade de os clientes adquirirem e consumirem os próprios produtos, e continuarem
fazendo isso (consulte a Figura 1.4). Ainda assim, apesar de sua grande importância, o
consumo raramente faz parte do roteiro. É importante corrigir esse desequilíbrio. Cada
um dos capítulos de estudo de casos da Parte 3 indica como a natureza do consumo
varia de acordo com o setor específico. Aqui, enfatizaremos apenas alguns aspectos bá-
sicos dos processos de consumo.
Primeiro, é necessário distinguir entre o consumo de bens ou serviços de ‘produ-
ção’ (chamados, ocasionalmente, de produtos intermediários porque são comprados
pelas empresas dentro de um circuito de produção para posterior transformação) e os
bens ou serviços de ‘consumidor’ (produtos de ‘demanda final’: aqueles comprados por
indivíduos e famílias).25 O consumo é muito mais do que um processo econômico de
‘demanda’. Obviamente, ele é muito influenciado pelos níveis de rendimentos. Mas
também é um conjunto complexo de processos sociais e culturais, em que todo tipo de
motivação está envolvido. As pessoas compram (ou desejam comprar) determinados
produtos por uma infinidade de motivos, que variam desde a satisfação das necessidades
básicas para a garantia da sobrevivência (alimentos, abrigo, roupas) até desejos cada vez
mais sofisticados (produtos não essenciais, como roupas da moda, determinados mode-
los de carro, alimentos exóticos ou orgânicos, e itens semelhantes). O psicólogo social
Abraham Maslow via essas necessidades/desejos como formando uma hierarquia, com
as necessidades ‘prioritárias’ sendo atendidas antes das ‘menos prioritárias’ (ou dese-
jos).26 Mas isso é um pouco simplista demais.
O consumo pode ser orientado pelo desejo de adquirir determinados tipos de
produtos (inclusive variedades ou marcas específicas) porque são consideradas desejá-
veis em si mesmas ou porque disseminam mensagens sociais definindo estilos de vida
específicos, atitudes, posições sociais ou autoavaliações do consumidor. Os produtos
‘posicionais’ estão se tornando cada vez mais importantes. Entretanto, eles perdem o
valor à medida que um número maior de pessoas tem acesso a eles. Novos produtos
posicionais têm que ser procurados. 27

‘O objeto material sendo vendido nunca é o bastante’… As mercadorias atendem a ne-


cessidades funcionais e simbólicas dos consumidores. Até mesmo as mercadorias que
atendem às necessidades mais comuns da vida cotidiana devem ser dotadas de qualida-
des simbólicas e significados culturais.28

Evidentemente, são exatamente essas qualidades simbólicas do consumo que os


setores de publicidade, varejo e mídia tentam manipular.
Até onde o consumo é ou pode ser manipulado dessas maneiras é um tema aberto
a discussão. Alguns argumentam que o consumo (e os consumidores) está se tornando
cada vez mais importante na economia global do que a produção (e os produtores).
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 41

Segundo Miller, o consumidor se tornou o ‘ditador global’, e ele descreve o consumo


como a ‘vanguarda da História’.29 Uma parte do apoio a essa visão é fornecida pela
grande importância dos varejistas em vários circuitos de produção. Gereffi, por exem-
plo, argumentou que as redes de produção orientadas pelo comprador (e não as ‘orientadas
pelo produtor’) estão ganhando importância ‘nos setores em que os grandes varejistas, co-
merciantes de marcas e empresas comerciais desempenham uma função fundamental no
estabelecimento de redes de produção descentralizas em vários países exportadores’.
A proliferação desenfreada de opções em diversas áreas de produto é um reflexo
direto da necessidade percebida pelos produtores no sentido de atender às demandas
cada vez mais fragmentadas dos consumidores. Já se foi a época em que Henry Ford
podia ditar a seus possíveis clientes que eles poderiam ter um Modelo T de qualquer
cor, desde que fosse preto. É claro que, em muitos casos, a opção ofertada é mais apa-
rente do que real (uma ‘novidade’ muito anunciada sendo pouco mais do que uma
modificação superficial). Entretanto, em alguns casos, não há dúvida de que as deman-
das do consumidor orientam diretamente os circuitos de produção. Também é evidente
que o surgimento da Internet (Capítulo 3) está transformando as possibilidades de os
consumidores fazerem escolhas abalizadas:

Os consumidores escolhem o que desejam em uma variedade maior de fontes – princi-


palmente com alguns cliques no mouse do computador. Graças à internet, o consumidor
está finalmente tomando o poder… o poder do consumidor tem implicações profundas
nas empresas, porque está mudando o modo como o mundo faz compras. Muitas empre-
sas já se definem como ‘orientadas pelo consumidor’ ou ‘voltadas para o consumidor’.
Agora, as afirmações das empresas serão testadas como nunca… Isso também intensi-
fica a concorrência. Hoje em dia, olhar vitrines acontece online. As pessoas podem com-
parar produtos, preços e reputações.31

Portanto, é muito importante integrar o consumo à nossa análise da economia


global. Entretanto, o fato de o consumidor ou o produtor ser ou não ser o parceiro
dominante não é realmente decisivo. O que importa é que devemos avaliar o circuito
inteiro de produção, distribuição e consumo como uma entidade dinamicamente inter-
ligada (como na Figura 1.4). Em algumas circunstâncias, o poder residirá nas diversas
posições dentro do circuito e os diferentes circuitos podem ter configurações de poder
distintas. A questão é empírica.

Até mesmo no mundo globalizante, as atividades


econômicas estão geograficamente localizadas
A visão dos ‘hiperglobalistas’ é que o aumento da dispersão geográfica em uma escala
global já virou padrão. Contudo, se esse for o caso, por que as concentrações geográficas
da atividade econômica não somente continuam existindo, como também representam
o estado normal das coisas? Por que os ‘locais de aglomerações’ continuam existindo em
42 MUDANÇA GLOBAL

um ‘espaço derrapante’?32 Ao examinarmos o mapa geoeconômico, detectamos tendên-


cias de concentração e dispersão – mas com uma propensão muito forte para as ativida-
des econômicas se aglomerarem em clusters geográficos localizados.33

As bases dos clusters geográficos


A Figura 1.7 identifica dois tipos de clusters geográficos: generalizados e especializados.
Ambos se baseiam no conceito de externalidades, os ‘transbordamentos’ positivos cria-
dos quando as atividades em determinado local estão interligadas, direta (através de
transações específicas) ou indiretamente. Ambos estão baseados na ideia de que o ‘todo’
(o cluster) é maior do que a soma das partes por causa dos benefícios propiciados pela
proximidade espacial.

• Os clusters generalizados simplesmente refletem o fato de que as atividades hu-


manas tendem a se aglomerar para formar áreas urbanas. Por conseguinte, esses
benefícios foram tradicionalmente denominados economias de urbanização. O
agrupamento geral de atividades gera a base para compartilhar os custos de toda
uma gama de serviços. Por exemplo, a demanda de um agregado maior em uma
grande cidade estimula o surgimento e crescimento de diversas facilidades in-
fraestruturais, econômicas, sociais e culturais que não podem ser disponibiliza-
das onde seus clientes se encontram geograficamente dispersos. Quanto maior
for a cidade, tanto maior será a variedade de facilidades disponíveis e vice-versa.
• Os clusters especializados, por outro lado, refletem a tendência das empresas nos
mesmos setores ou em setores relacionados a se localizarem nos mesmos locais,

Grupos geográficos de
atividade econômica

Clusters Clusters
Generalizados Especializados

Economias de Economias de
‘urbanização’ ‘localização’

Externalidades

Interdependências Interdependências
‘via mercado’ ‘extramercado’

FIGURA 1.7 As bases dos clusters geográficos.


QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 43

para formar o que ocasionalmente é denominado ‘distritos industriais’ ou ‘espa-


ços industriais’. Esses benefícios foram chamados de economias da localização.
As bases dos clusters especializados surgem da proximidade geográfica das em-
presas que executam funções diferentes – mas ligadas – em determinadas redes
de produção.

Os grupos geram dois tipos de interdependência:


• Interdependências viamercado são transações diretas entre as empresas do grupo
(por exemplo, o fornecimento de insumos especializados de produtos e serviços
intermediários). Nessas circunstâncias, a proximidade espacial é um meio de
reduzir os custos das transações por meio da minimização dos custos de trans-
porte ou diminuindo algumas incertezas das relações cliente-fornecedor.
• Interdependências extramercado são os benefícios menos tangíveis, que variam do
desenvolvimento de um pool adequado de mão de obra, até tipos específicos de
instituições (como universidades, associações comerciais, instituições governa-
mentais etc.), para fenômenos socioculturais mais amplos. Em particular, a aglo-
meração ou o agrupamento geográfico facilita três processos importantes: contato
face a face; interação sociocultural; e aumento do conhecimento e da inovação.

Por que os clusters se desenvolvem, afinal?


Mas por que os clusters se formam, afinal? Por que surgem em um local e não em outro?
E como se desenvolvem no decorrer do tempo? É difícil responder a essas perguntas. Os
motivos para os surgimentos de clusters geográficos específicos são altamente contin-
gentes e, em geral, se perdem nas brumas do tempo.

Dentro de limites amplos, atualmente, o poder de atração de um centro tem sua origem
principalmente no acaso histórico de que algo aconteceu ali em certa época, e não em
diversos outros lugares onde poderia também ter iniciado de modo adequado ou melhor,
e que o início alcançou êxito.34

Uma vez estabelecido, um cluster tende a crescer através de um processo de desen-


volvimento cumulativo, autoalimentador que envolve:

• atração de atividades ligadas


• estímulo para o empreendedorismo e a inovação
• aprofundamento e ampliação do mercado de mão de obra local
• diversificação econômica
• enriquecimento da ‘atmosfera industrial’
• ‘espessamento’ das instituições locais
• intensificação do meio sociocultural
• melhoria das infraestruturas físicas.
44 MUDANÇA GLOBAL

A natureza cumulativa desses processos de desenvolvimento econômico localizado


indica que o processo depende do caminho. Em outras palavras, uma economia fica
“encaixada” em um padrão fortemente influenciado por sua história específica. Isso
pode ser uma fonte de força contínua ou, se incorporar muita rigidez organizacional ou
tecnológica, uma fonte de fragilidade. Entretanto, mesmo para as regiões ‘bem-sucedi-
das’, essa dependência do caminho não implica a inevitabilidade absoluta da continua-
ção do sucesso. A rigidez das práticas locais pode reduzir a capacidade de adaptação às
mudanças externas.

Redes de redes
A economia global, por conseguinte, pode ser vislumbrada como a ligação de dois con-
juntos de redes:

• organizacional (na forma de circuitos e redes de produção)


• geográfica (na forma de grupos localizados de atividade econômica).

A principal vantagem de adotar essa abordagem de rede enraizada para entender a


economia global é o fato de que ela nos ajuda a perceber a interligação das atividades
econômicas nas diferentes escalas geográficas e nos espaços territorialmente vinculados.
A produção de qualquer mercadoria, quer seja um produto manufaturado ou um servi-
ço, requer uma articulação complexa de atividades e transações individuais no espaço e
no tempo. Essas redes de produção – o nexo de funções e operações interligadas através
das quais os produtos e serviços são produzidos e distribuídos – tornaram-se mais com-
plexas em nível organizacional e geográfico. As redes de produção global e regional não
somente integram empresas (e partes de empresas) em estruturas que tornam indistin-
tos os limites tradicionais das organizações (por exemplo, através do desenvolvimento
de diversas formas de relações acionárias ou não acionárias), como também integram
economias nacionais e locais (ou partes dessas economias) de formas que têm implica-
ções enormes sobre os respectivos desenvolvimentos econômicos e bem-estar. Ao mes-
mo tempo, as características específicas das economias nacionais e locais influenciam e
‘refratam’ a operação e a forma de processos de escalas maiores. Nesse sentido, a ‘geogra-
fia conta’ muito.
O processo é muito complexo porque, embora os Estados e as economias locais
sejam específicos em termos territoriais, as redes de produção não o são.35 As redes de
produção ‘cortam’ as fronteiras de maneiras muito diferentes, influenciadas, em parte,
pelas barreiras reguladoras e não reguladoras e pelas condições socioculturais locais,
para criar estruturas que são ‘descontinuamente territoriais’. Isso tem grandes implica-
ções sobre os poderes relativos de barganha dos atores participantes. Por conseguinte, a
geoeconomia pode ser retratada como uma teia de redes de produção altamente com-
plexa e dinâmica, geograficamente irregular, espaços econômicos e locais ligados através
de linhas de fluxos.
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 45
(a) A dimensão (b) A dimensão (c) O sistema
‘vertical’ ‘horizontal’ ‘global’

Comunidade Sistemas
local territoriais
Nação

Região
Setores
individuais de
manufatura
e serviços
Redes de produção Sistemas territoriais em escalas Redes de produção
transnacionais geográficas diferentes transnacionais

FIGURA 1.8 Interconectando dimensões em uma economia globalizante.

A Figura 1.8 capta as principais dimensões desses relacionamentos. É possível con-


siderar as redes de produção individuais estruturas verticalmente organizadas, configu-
radas através de escalas geográficas cada vez mais extensas. Atravessando essas estruturas
verticais estão os sistemas político-econômicos territorialmente definidos que, mais uma
vez, são manifestados em escalas geográficas diferentes. É exatamente nos pontos de
interseção dessas dimensões em um espaço geográfico ‘real’, onde ocorrem os resultados
específicos, que os problemas de existir em uma economia globalizante – quer como
uma empresa, um governo, uma comunidade local ou como uma pessoa – precisam ser
resolvidos.

A geoeconomia e o meio ambiente


Economia e natureza
Em nossa discussão anterior do processo de produção como um circuito, em que os
insumos são transformados em produtos que, por sua vez, são consumidos (Figura 1.4),
ignoramos o fato de que os insumos (entradas) devem se originar de algum lugar e que
o consumo dos produtos não é o fim da história. Em última análise, esse lugar do qual
todos os insumos de materiais e energia procedem, e para o qual deve ser direcionado o
que restar após a produção, distribuição e consumo, é o meio ambiente natural.36 Em
última análise, ‘toda a produção depende de e está enraizada no meio ambiente’.37 Embora
o objetivo principal do processo de produção mostrado na Figura 1.4 seja a produção de
‘produtos’ para consumo (orientada, evidentemente, em um sistema de mercado capitalista,
por lucros), o processo em si mesmo – de modo não intencional – também gera os ‘maus’ na
forma de degradação ambiental. Em outras palavras, existem efeitos externos indesejados
(externalidades ou transbordamentos negativos) presentes em todas as atividades econômicas.
46 MUDANÇA GLOBAL

Três aspectos desse dano ambiental são muito importantes:38


• uso abusivo de recursos não renováveis e renováveis (inclusive a exploração de
combustíveis fósseis, esgotamento dos recursos hídricos, devastação das florestas)
• superaquecimento dos ‘dissipadores’ do meio ambiente natural (por exemplo, a
concentração cada vez maior dos gases de efeito estufa na atmosfera terrestre e
de metais pesados no solo)
• destruição de grandes quantidades de ecossistemas para abrir espaço para o de-
senvolvimento urbano e industrial.

Produção como um sistema de fluxos e equilíbrios de materiais


É possível entender mais facilmente as bases desse dano ambiental se criarmos um dia-
grama paralelo ao do circuito de produção discutido anteriormente. A Figura 1.9 ilus-
tra o circuito de produção da Figura 1.4 em termos de fluxos de materiais e equilíbrios de
materiais.39 O principal aspecto do processo é que o que entra precisa sair novamente,
se bem que transformado, mas sem ser reduzido. Na Figura 1.9, os materiais utilizados
no processo de produção são
dispersos e quimicamente transformados. Em particular, eles entram em um estado de
baixa entropia (como materiais ‘úteis’) e saem em um estado de alta entropia (como ma-
teriais ‘inúteis’, por exemplo, emissões de calor de baixa temperatura, lixo urbano mistu-
rado, etc.)… Portanto, nenhum processo de reciclagem de material pode ter 100% de
eficiência.40

Na realidade, os sistemas econômicos em geral e os circuitos de produção em par-


ticular impõem demandas sobre o meio ambiente natural de duas maneiras:

Extração Processamento básico Fabricação Consumo

Resíduos

Atividade de Entradas básicas de materiais


modificação e energia
Entradas de itens secundários
(recicladas)
Reciclagem
Entradas básicas para processos de
reciclagem e/ou modificação
Resíduos à espera de descarte
Meio ambiente como Dano ambiental Resíduos gerados durante processos
receptor de resíduos (externalidades) de tratamento e/ou reciclagem

FIGURA 1.9 Circuitos de produção e o meio ambiente.


Fonte: baseado em Turner et al., 1994: Box 1.2.
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 47

• em termos de entradas para o processo de produção, oriundas do meio ambiente


natural como recursos
• em termos de saídas para o meio ambiente natural, na forma de poluição de
vários tipos.
Examinemos resumidamente cada um desses aspectos separadamente.

A questão dos recursos


Os recursos naturais não são recursos ‘naturalmente’. Um elemento ou um material
existente na natureza é apenas um ‘recurso’ se for assim definido pelos possíveis usuá-
rios. Em outras palavras, deve haver uma demanda efetiva, deve existir uma tecnologia
adequada para explorá-la, e deve haver algum meio de garantir os ‘direitos de proprie-
dade’ sobre seu uso: “se alguma dessas condições for invalidada, a exploração dos recur-
sos ficaria ‘inviável’”.41 Uma vez definidos como tal, os recursos são classificados em
dois tipos abrangentes:
• Recursos renováveis – são aqueles que, com o passar do tempo e uma administra-
ção eficiente, podem ser repostos. Entretanto, a maioria dos recursos considera-
dos renováveis pode ser exaurir se não for administrada de modo sustentável.
• Recursos não renováveis – são fixos na quantidade total, pelo menos sob condi-
ções tecnológicas conhecidas. Quanto mais os utilizarmos hoje, tanto menor a
quantidade disponível no futuro.
Um dos grandes debates da atualidade é até onde os recursos renováveis, em parti-
cular, estão se tornando mais escassos em decorrência da exploração excessiva e, por
conseguinte, à beira de um esgotamento iminente. Nesse caso, como em todas as áreas
de debate sobre o meio ambiente, as visões se tornam extremadas. Por um lado, existe a
visão ‘malthusiana’ de que o esgotamento dos recursos é inevitável; a única questão é a
escala de tempo em que esse esgotamento acontecerá. Por outro lado, existe a visão de
que as novas tecnologias de exploração que levam a descobertas de novas reservas, meios
superiores de exploração que resultam na utilização mais eficiente dos recursos (inclusi-
ve a reciclagem), e o desenvolvimento de alternativas adequadas retardarão esse dia
terrível. Até agora, pelo menos, tudo isso aconteceu. As previsões extremas do esgota-
mento iminente dos recursos não deixaram de existir (ainda). Contudo, há um risco
real de esgotamento de recursos em áreas específicas e de danos ambientes localizados
contínuos. Existe a complicação geopolítica adicional de que o acesso a um recurso
localizado (como o petróleo, por exemplo) pode ser limitado, periodicamente, pelos
Estados em que o território estiver localizado.

Efeitos indesejáveis da produção


Como mostra a Figura 1.9, após todos os esforços para reciclar a energia e os materiais
não utilizados na produção, ainda restarão “coisas” sobrando na forma de resíduo e
48 MUDANÇA GLOBAL

dano ambiental. Isso ocorre tão-somente porque as leis fundamentais da termodinâmi-


ca não podem ser ignoradas:

a massa total de entradas para um processo de transformação é igual à massa total de


saídas. Se as entradas não surgirem como os produtos desejados, deverão aparecer, por
conseguinte, como subprodutos ou refugos indesejados.42

Essas externalidades negativas são de vários tipos e de diversos alcances espaciais.


Por exemplo, as externalidades negativas de uma fábrica ou de um aeroporto estão, em
determinado nível, geograficamente localizadas. O impacto é o maior possível no local
da própria instalação e sobre sua vizinhança imediata, mas declina com o aumento do
distanciamento desse local. Por outro lado, a poluição por vapores da fábrica ou o efeito
da combustão de combustível da aeronave podem ter efeitos geográficos muito mais
abrangentes, principalmente na atmosfera. O problema é que diversos efeitos prejudi-
ciais ao meio ambiente não podem ser contidos dentro de limites geográficos.
O aspecto mais controverso das externalidades ambientais negativas está relacio-
nado ao possível dano atmosférico, isto é, dano ao envoltório gasoso que sustenta toda a
vida na Terra. Os processos de transformação de materiais abrangem o uso de quantida-
des massivas de energia, principalmente de combustíveis fósseis cujos produtos de com-
bustão são a origem mais relevante de danos à atmosfera terrestre. Os problemas sur-
gem porque alguns dos principais componentes gasosos dessa atmosfera – principal-
mente o dióxido de carbono, metano e ozônio – estão se tornando excessivamente
concentrados. A questão é o desequilíbrio. Sem esses e outros gases, a temperatura da
superfície da Terra estaria próxima à do planeta Marte; ou seja, a Terra ficaria inabitável.
A superfície terrestre continua habitável exatamente por causa da presença desses recur-
sos na atmosfera. Eles atuam em conjunto como uma ‘estufa’, impedindo o aquecimen-
to solar e resfriamento excessivos. Mas é um equilíbrio muito frágil.
A maioria dos cientistas acredita que esse equilíbrio é perigosamente prejudicado
pela ação do homem. No caso do principal gás de estufa, o dióxido de carbono, por
exemplo, há uma clara evidência de uma aceleração significativa após 1800.43 Antes
dessa época, os níveis de dióxido de carbono na atmosfera permaneciam estáveis, entre
270 e 290 partes por milhão (ppm). A partir de então, tem ocorrido a seguinte escala-
ção nos níveis:

• 1900: 295 ppm


• 1950: entre 310 e 315 ppm
• 1995: 360 ppm
• 2003: 376 ppm.

Esses aumentos progressivos estiveram intimamente associados aos processos de


industrialização e urbanização, através da queima de combustíveis fósseis e do desmata-
mento. Ao mesmo tempo, os níveis de metano aumentaram muito, em parte, através da
mesma utilização do combustível fóssil e, em parte, através de práticas agrícolas, como
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 49

irrigação de arroz, produção de gado e decomposição de lixo. Consequentemente, a


atmosfera se tornou mais eficiente em reter calor do Sol.44
Assim, o esmagador consenso científico afirma que está ocorrendo um aquecimen-
to global induzido pelo homem, embora existam alguns cientistas – e políticos, princi-
palmente na administração de George W. Bush nos EUA (2000-2008) – que contestam
sua natureza, sua velocidade e suas causas. Entretanto, se as tendências atuais persisti-
rem, elas gerarão danos econômicos e sociais possivelmente gigantescos em muitas par-
tes do mundo, principalmente: grande deslocamento das zonas climáticas do mundo,
causando inundações em muitas áreas costeiras e no nível do mar, alterando econo-
mias agriculturais; mudando os padrões das doenças; e aumentando a volatilidade
dos sistemas atmosféricos (por exemplo, aumento de tempestades pesadas). Mas a
intensidade e velocidade desse aquecimento – e o papel exato da atividade humana
– não são claras.
O outro aspecto do dano atmosférico – ou, melhor, estratosférico – tem a ver com
a camada de ozônio da Terra. O ozônio é formado na estratosfera através da reação
química entre o oxigênio e a luz do Sol. Nesse nível, o ozônio é vital para a sustentabi-
lidade da vida na Terra porque absorve praticamente toda a radiação ultravioleta do Sol,
que, de outra forma, tornaria impossível a vida humana. Qualquer dano ocorrido nessa
blindagem de proteção vital acarretará um problema grave. Esse afinamento – ou até
buracos – da camada de ozônio (além de ocorrências naturais) começou a ser identifica-
do em certas partes do mundo no início dos anos setenta. Um dos grandes efeitos do
esgotamento do ozônio é o aumento da incidência de câncer de pele. Acredita-se
que uma das causas está atrelada aos clorofluorcarbonetos (CFCs), que eram muito
utilizados na refrigeração e em aerosóis. Embora os CFCs já estejam submetidos a
restrições rigorosas, o fato de esses elementos químicos serem muito estáveis signi-
fica que a quantidade já existente na estratosfera afetará a camada de ozônio até
perto de 2087.45
Por conseguinte, os problemas ambientais inerentes a todos os aspectos da produ-
ção, distribuição e consumo levantam sérios questionamentos sobre a sustentabilidade
futura da economia e sociedade, como conhecidas. Eles levantam questões importantes
relacionadas ao futuro do sistema comercial e econômico do mundo e, na verdade, para
a maioria dos aspectos da vida econômica contemporânea. Como tal, eles representam
um componente importante nos debates sobre a globalização e nos movimentos anti-
globalização. Isso suscita um grande problema de controle global, que discutiremos no
último capítulo deste livro.

Conclusão
Procuramos, neste capítulo, examinar o conceito da ‘globalização’ e refutar a visão po-
pular de que ela é um tipo de força absorvente, inexorável, irreversível e uniformizado-
ra. Em vez disso, o mundo em que vivemos é constituído de (e transformado por) um
complexo de processos inter-relacionados e não por uma força isolada chamada ‘globa-
50 MUDANÇA GLOBAL

lização’. A operação e os efeitos dos processos transformadores da geoeconomia são


altamente irregulares. Sem dúvida alguma, o mundo é um lugar qualitativamente dife-
rente daquele existente há 60 ou 70 anos, embora seja mais interligado do que propria-
mente mais aberto.
Uma maneira de entender a natureza dessa mudança é pensar em termos de circui-
tos e redes de produção, configurados em uma multiplicidade de escalas geográficas, do
âmbito local ao global. Essas são as estruturas através das quais existem diferentes partes
do mundo ligadas por meio de fluxos de fenômenos materiais e não materiais em um
sistema de relacionamentos de poder diferenciais, nos quais os consumidores, assim
como os produtores, podem exercer muita influência. As redes de produção são intrin-
secamente geográficas em termos de suas configurações espaciais diferenciadas e de sua
incorporação territorial em locais específicos. Em particular, as atividades econômicas
tendem a se agrupar ou se aglomerar em determinados tipos de locais. Alguns clusters,
uma vez formados, apresentam uma forte tendência a se desenvolver em trajetórias
dependentes do caminho, que influenciam-se bem que não determinem totalmente –
as geografias futuras.
Vislumbrar os circuitos de produção como sistemas de fluxos e equilíbrios de ma-
teriais, sujeitos às leis inexoráveis da termodinâmica, nos ajuda a perceber a dependên-
cia fundamental da produção em relação ao meio ambiente natural, tanto como fonte
de insumos materiais na forma de recursos renováveis e não renováveis, quanto como
um receptor dos resíduos da produção.

Notas
1 ILO (2004b: 12–23).
2 Stephens (2005). A referência ao ‘início da História’ parece ser um contraste deliberado à previsão de
Fukuyama (1992) do ‘fim da História’ após o colapso do sistema soviético.
3 Strange (1995: 293).
4 Held et al. (1999: 1–28) traz uma discussão útil de algumas das principais correntes nos debates sobre
globalização. Consulte também Cameron e Palan (2004).
5 Consulte Tickell e Peck (2003).
6 Para obter um exemplo dessa posição, consulte Friedman (1999; 2005). Escritores com outros posiciona-
mentos quanto a essa estrutura geral são Bhagwati (2004) e Wolf (2004).
7 Hirst e Thompson (1992; 1999), Kozul-Wright (1995).
8 Hirst e Thompson (1992: 394).
9 Held et al. (1999: 15).
10 Consulte Feenstra (1998), Gereffi (2005).
11 Mittelman (2000: 4).
12 Jessop (2002: 113–14).
13 Thrift (1990: 181). Consulte também Amin (2002), Brenner (1998), Swyngedouw (2000).
14 O material contido nessa seção se baseia em Dicken (2004).
15 Hudson (2004: 462).
16 Mitchell (2000: 392).
17 Consulte, por exemplo, Gereffi e Korzeniewicz (1994), Gereffi et al. (2005).
18 Rabach e Kim (1994: 123)
19 Literatura recente sobre as redes de produção globais ou transnacionais engloba Coe et al. (2004), Dicken
(2005), Ernst e Kim (2002), Henderson et al. (2002).
QUESTIONANDO A ‘GLOBALIZAÇÃO’ 51
20 Latour citado em Thrift (1996: 5).
21 Consulte, por exemplo, O’Brien (1992), Cairncross (1997).
22 Castells (1996).
23 Granovetter (1985) foi o pioneiro do conceito da ‘incorporação’ no campo da sociologia econômica.
Desde então, tornou-se um termo consagrado (ainda que contestado). Consulte Hess (2004) para obter
uma discussão recente sobre o conceito em um contexto espacial/territorial.
24 Stopford e Strange (1991).
25 Essa distinção é feita para fins analíticos. Na realidade, a fronteira entre eles geralmente é muito tênue.
26 Maslow (1970).
27 Hirsch (1977).
28 Hudson (2005: 65).
29 Miller (1995: 1).
30 Gereffi (1994: 97).
31 The Economist (2 de abril de 2005: 9).
32 Markusen (1996).
33 O cluster tornou-se recentemente um tema empolgante nos debates sobre políticas nas diversas partes do
mundo (Krugman, 1998; Porter, 1990; 1998; 2000). Entretanto, o conceito tem uma longa história:
consulte, por exemplo, Amin e Thrift (1992), Bathelt et al. (2004), Dicken e Lloyd (1990), Malmberg
(1999), Markusen (1996), Martin e Sunley (2003), Scott (1998), Storper (1997).
34 Myrdal (1958: 26).
35 Dicken e Malmberg (2001).
36 Consulte Cairncross (1992), Dauvergne (2005), Hudson (2001: Capítulo 9), McNeill (2000), Turner et
al. (1994).
37 Hudson (2001: 300).
38 Simonis e Bruhl (2002: 98).
39 Turner et al. (1994: 15–23).
40 Turner et al. (1994: 17).
41 Hudson (2001: 301).
42 Hudson (2001: 288).
43 McNeill (2000: 109).
44 McNeill (2000: 109).
45 McNeill (2000: 114).

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