Borges, Cortázar e Os Bestiários
Borges, Cortázar e Os Bestiários
Borges, Cortázar e Os Bestiários
medieval:
literatura e a reutilizando de maneira criativa. Foram eles: Jorge Luis Borges e Julio
Cortázar. Portanto, será interessante traçar um movimento nos dois livros desses
autores que partem desse universo: O livro dos seres imaginários (1978), de Jorge
Idade Média possuíam uma finalidade pedagógica, Borges e Cortázar, dentro de uma
produção autoral, assumiram um novo traço aos seus bestiários, isto é, desviam de
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literatura, além de serem livros que são referência de utilização nesse processo entre
aspecto formal são obras com marcações distintas. Borges se aproveita da estética
que Maria Esther Maciel levanta em seu livro A memória das coisas (2004), sobretudo
dentro da obra de Jorge Luis Borges, Peter Greenaway e Arthur Bispo do Rosário. A
catalogação nesse caso fornece subsídios para que se elabore a compreensão de que
listas, inventários e catalogações podem ser utilizadas dentro da literatura como parte
se trabalhar em relação a Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, nos livros especificados.
prefácio, no qual se refere a “uma certa enciclopédia chinesa”, de Jorge Luis Borges,
Essa “vizinhança súbita das coisas sem relação” nos leva a imaginar uma
possibilidade de elementos sem relação que estão ligados sucessivamente por letras
em ordem alfabética. E dentro dessa ordem uma desordem se monta, como se Borges
ao intitular seu texto como uma certa enciclopédia estivesse consciente de um caráter
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perspectiva, fazer uma leitura destes “bestiários de autor” (aos quais se incluem
Margarita Guerrero. Especificamente para atentar três momentos, que aqui aparecem
incompleto; cada nova edição é o núcleo de edições futuras, que podem multiplicar-se
ao infinito”1.
que o caráter enciclopédico vai encontrar o melhor ambiente para se manifestar, pois o
conhecimento enciclopédico, por mais circular que seja, não consegue ser esgotado
saberes:
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É com uma leitura caleidoscópica que este texto percorre essas
por exemplo, possui uma outra forma de apropriação, pela palavra. A palavra bestiario
apropriada pelo autor para sua primeira reunião de contos, de 1951, parte por um
outro caminho do qual Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero tomaram. Não há uma
suas Histórias de cronópios e de famas, onde o autor de Bestiario cria esses “seres
dá título ao livro, o autor nos apresenta um tigre que altera a rotina de uma família que
onde estaria o tigre para que, assim, pudessem evitá-lo. E, quando se torna possível
perguntar: qual a relação do conto de Cortázar (2006, p. 147), além do título, depara-
se com esse fragmento: “Hoja número 74: verde, forma de corazón, con pintitas
marrones”. Trata-se de duas crianças que catalogam folhas do jardim com o propósito
própria narrativa e nas mãos das crianças. Depois do herbário, as crianças catalogam
animal selvagem dentro da casa, segue sua rotina e assim evita os cômodos onde o
apenas uma reverberação em O livro dos seres imaginários (2006, p. 159), quando
espaço”.
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E além da especificidade da escolha do tigre de Cortázar é interessante se
também esse exercício ao livro de Borges e Guerreiro). Maria Esther Maciel (2007, p.
197), no seu texto Zoopoéticas contemporâneas, aborda essa questão que toca o
limite de espelhar-se no animal: “Falar sobre um animal ou assumir sua persona não
momento em que, uma vez criança, não só Borges, mas cada um de nós, pela
animais nunca antes vistos3. Então, retomando a animalidade que habita cada um de
espaço privilegiado para essa animalidade humana que se sustenta não apenas em
artifício ficcional, a pele do escritor torna-se outra. O escritor torna-se outro tal como
“Baldanders”, esse ser cujo nome pode ser traduzido por “Já diferente” ou “Já outro”.
Por esse “Já outro”, assim está em O Livro dos seres imaginários:
Em um bosque, o protagonista depara com uma estátua de pedra, que lhe parece
o ídolo de algum velho templo germânico. Toca-a e a estátua lhe diz que é
Baldanders e assume as formas de um homem, de um carvalho, de uma porca, de
um salsichão, de um prado coberto de trevo, de esterco, de uma flor, de um ramo
florido, de uma amoreira, de uma tapeçaria de seda, de muitas outras coisas e
seres, e então, novamente, de um homem (BORGES; GUERREIRO, 2006, p. 194).
culturas, esse antigo sonho do homem de alterar sua matéria, tomar outras formas e
voltar à sua humanidade ileso, a questão do escritor com o animal vai além dessas
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transformações, pois a escrita toca um gesto com uma palavra singular “animal” e não
“animais”, palavra única que contém espécimes tão distintos agrupados, como criticou
Jacques Derrida, em O animal que logo sou (2002). Esse agrupamento ironicamente
parece ter uma lógica desconcertante como em “uma certa enciclopédia chinesa”,
contida no texto de Jorge Luis Borges, “O idioma analítico de John Wilkins”, o qual
fantástica, de Jorge Luis Borges, este que foi ampliado em O livro dos seres
também está nesse repertório que, de maneira anacrônica, traz um pouco desse
Esse anacronismo também é ressaltado por Sylvia Molloy, que explica que
frágil vida”4.
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outra pele, uma pele de animal. Essa pele não tomada apenas pela sua superfície,
medo da animalidade tal como Julio Cortázar abordou em seu conto “Bestiario”, onde
é preciso checar qual cômodo da casa foi ocupado pelo tigre, para assim evitá-lo. Ou o
diversos de O livro dos seres imaginários. Maravilhamento este que não deixa de
passar por uma vergonha. Talvez a vergonha que leve o próprio homem a escrever,
como o disse Gilles Deleuze (1997, p. 11), em A literatura e a vida: “A vergonha de ser
Referências
BORGES, Jorge Luis. O idioma analítico de John Wilkins. In: Outras inquisições.
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál
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DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução de Fabio Landa. São Paulo:
UNESP, 2002.
______. A memória das coisas. Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de
York, v. 3, n. 1, 2008.
Notas
1
BORGES; GUERREIRO, 2006, p. 13.
2
MACIEL, 2007, p. 197.
3
2006, p. 9.
4
2006, p. 11.
5
2007, p. 200.
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