Autarquias Locais - VascoAlmeidaeCosta

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o PODER LOCAL E A LEI DAS AUTARQUIAS

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o PODER LOCAL E A LEI DAS AUTARQUIAS

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

l. É indispensável explicitar com que sentido se invoca presentemente a


expressão «poder local. que, logo ao tomar corpo o projecto de democratiza-
ção da sociedade prtuguesa, gerou esperanças, galvanizou entusiasmos e im-
pulsionou tanta generosidade colectiva. Face às realidades existentes, a demo-
cracia no nosso país deveria fazer-se sentir na sociedade, na complexa teia de
relações entre os seus componentes - indivíduos e grupos - com incidência
inevitável numa modificação qualitativa de alguns factores culturais e, na-
turalmente, no Estado, aparelho organizativo dessa mesma sociedade.
Parecia estar assente nos espíritos mais lucidos que a democratização da
sociedade e do Estado não desabrocharia, nem se implantaria, sem o re-
conhecimento do relevo que assume o agrupamento social, natural e espontâ-
neo, assente nos laços de vizinhança e na existência, por esse facto, de
interesses comuns que transcendem o de cada membro. É esse agrupamento
que forma, sociologicamente, a comunidade local.
Realidade social com exigências que resultam da dinâmica de algumas das
suas componentes, como as física, económica, social e cultural, terâ de dispor
de uma certa capacidade de exercer a vontade do ente colectivo, plasmar inte-
resses e salvaguardar a sua identidade. A essa capacidade, limitada e limita-
dora, tem-se dado a designação de poder local. Pressupostos deste poder
local terão de ser o seu sentido do real e a sua actualidade o que implica
dispor de um sistema de intervenção da população para realização dos seus
interesses, da destrinça e outorga às comunidades da parte do poder acrescido
não essencial detido pelo poder central e da existência de meios que materia-
lizem esse poder. Só então haverá autarquias locais genuínas.

2. As múltiplas e complexas exigências da vida moderna vêm impondo


modificações significativas nos mecanismos de tomada de decisão política que
se traduziram no desenvolvimento acentuado de duas técnicas jurídico-po-
líticas - a desconcentração e a descentralização.
A desconcentração melhora a celeridade e eficácia da acção governativa
e multiplica a capacidade de ressonância de uma única fonte, o poder central,
permitindo através de agentes, dispersos por todas as circunscrições admi-
nistrativas do território, transmitir e dinamizar as directivas do governo bem
como decidir em harmonia.
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A descentralização, no reconhecimento tácito ou expresso da especificida-


de das comunidades locais, atribui a estas capacidade de decisão e de adminis-
tração em domínios político-administrativos definidos num quadro legal de
competências, consentindo a prática de actos só susceptíveis de impugnação
por via contenciosa.
Se ninguém duvida de que deve ser à administração central que cabe,
num estado unitário, programar e executar empreendimentos cuja natureza,
dimensão e interesse respeitam à soberania global da comunidade e só aí
encontram suporte para a sua concretização, também ninguém pode ignorar
que há uma parcela de poder não essencial que legitimamente, e com apre-
ciável vantagem, deve ser prosseguido por outros níveis, concretamente o
autárquico, municipal e regional.
Para que seja possível a partir das aspirações, dos interesses, das necessi-
dades, dos projectos particulares de cada indivíduo ou grupo, chegar-se, atra-
vés de uma dialéctica de tensões, conflitos e compromissos, a um projecto
comum tanto numa aldeia, como numa cidade ou no País, é indispensável
encontrar canais de comunicação ascendente desde a multiplicidade de in-
divíduos ou grupos até aos centros de decisão mais importantes na sociedade.
Enquanto que na desconcentração a comunicação descendente e a trans-
missão da decisão do Governo para a base se aperfeiçoa, cada vez mais os
obstáculos à comunicação ascendente parecem subsidir. A inversão desta
situação não será possível sem profundas alterações de organização e estru-
tura, e de elaboração cultural ao nível das pessoas, dos grupos e da socie-
dade.
Um conceito e uma prática correcta do poder local, em conformidade,
aliás, com as mais recentes concepções da sociologia e filosofia política, deve
exactamente contribuir para a inversão a que se alude e a via propícia será
a da descentralização.
Considerando excluídos dos órgãos de poder local as meras dependências
da administração central ou do sector público, estes órgãos (constituídos
apenas por autoridades locais democraticamente eleitas) caracterizam-se por:

- serem representativos da comunidade local pela qual foram eleitos e


perante a qual são responsáveis;
- submeterem a debate público e discussão os problemas e propostas de
resolução;
- tomarem as decisões por maioria de votos mas procurando ter em
conta a opinião da minoria.

Pelo facto de as instituições locais legitimarem a sua autoridade no pro-


cesso electivo dimanante dos habitantes locais deve haver canais descendentes
de comunicação para promover a informação adequada sobre as suas activi-
dades e possibilitar à opinião influenciar continuamente o trabalho desses
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órgãos. A dimensão da comunidade, tanto no aspecto humano como físico,


favorece a possibilidade de um fluxo recíproco de informação que permite
atenuar as insuficiências que se reconhecem no sistema de representação.
O valor das instituições locais deverâ ser biunívoco. Por um lado prestar
serviços à comunidale e por outro, através dos processos utilizados - eleição,
discussão pública, respeito pelas minorias e participação da população-
operar como unidades efectivas de democracia dentro do quadro mais vasto
da sociedade de que fazem parte.
O conceito de liberdade e autonomia local, e a capacidade das popula-
ções para definirem o seu futuro e tomarem à sua responsabilidade a gestão
dos interesses que lhes são próprios, é importante para a caracterização do
poder local. É, porém, fundamental estabelecer as formas de relação do
Estado (do Poder Central) com o Poder Local.

3. Existem alguns aspectos do poder local que merecem uma mais detida
atenção. Estão neste caso os da conciliação da democracia com a eficâcia
administrativa, a contribuição das instituições locais para a instauração e
consolidação da democracia política e, finalmente, o aperfeiçoamento dos
esquemas democrâticos.
A necessidade de promover a conciliação de democracia com a eficâcia
administrativa resulta do reconhecimento de que se a vontade popular ganha
em poder de esclarecimento e expressão através de debates e discussões em
assembleias amplas, perde, contudo, por esse facto, o dinamismo e poder de
decisão que em regra se logra obter pela coesão de um grupo pouco numero-
so. Por conseguinte, para contrabalançar as hipotéticas dificuldades ql/e na
prâtica se observarão, decorrentes do primado concedido às amplas assembleias
eleitas, hâ que implementar um mecanismo de delegação de poderes.
A instauração e consolidação da democracia política é uma contribuição
assegurada pela electividade de todos os órgãos de poder local e pela cri-
teriosa divisão de poderes (atribuições e competências) a que a regra de
proporcionalidade dá ainda uma maior dimensão. O rigor como os poderes
são repartidos e os limites postos ao exercício de tutela administrativa con-
figuram um poder local e o carácter das efectivas condições de autonomia
existentes.
Por último, o aperfeiçoamento dos esquemas democrâticos podem con-
tribuir para corrigir as inevitáveis imperfeições de quadros normativos que
raramente repercutem a miríade de aspectos que caracterizam a riqueza
vivencial das comunidades locais.
Neste sentido e considerando que nos órgãos eIectivos formais não se
esgota todo o elenco da actividade das populações quanto à definição e de-
fesa dos seus interesses, serâ vantajosa a existência de mecanismos que per-
mitam a participação tanto de organizações de criação espontânea como de
agrupamentos socioprofissionais.
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Para se dar conteúdo real ao Poder Local haverá que ter em conta a
existência de 3 factores que o condicionam:
- a aptidão para a gestão político-administrativa dos titulares dos
órgãos;
- a existência de meios técnicos adequados;
- a disponibilidade de meios financeiros.
Em resumo, a existência de verdadeiros órgãos de administração local
implica que estes disponham de capacidade de acção nos campos político,
técnico e financeiro.

o PODER LOCAL NA SOCIEDADE PORTUGUESA

1. Até à entrada em vigor da Constituição da República não vingaram


entre nós as concepções de raiz democrática e descentralizadora que têm
vindo a ser expostas, não obstante as sinuosidades que neste domínio o poder
político patenteou nos últimos cento e cinquenta anos. O Estado moldou-se
por fórmulas que consagraram e acentuaram os graves desequilíbrios e as
assimetrias de um processo histórico resultante da involução provocada pela
subsistência de um império colonial cujo ponto de aplicação geográfico se
foi deslocando mas cuja matriz socioeconómica, no fundamental, se man-
teve inalterável.
A partir da revolução de 1820 e com a consagração do constituciona-
lismo assiste-se a um grande esforço de modernização da sociedade. A re-
forma administrativa não está alheada do interesse de que, para essa
modernização, revestia a descentralização.
Mas as vicissitudes da vida política e os condicionalismos impostos pelo
nosso tipo de sociedade não permitiram que, às teses dos espíritos mais
abertos, fosse dado um acolhimento favorável.
É assim que se constatam tentativas alternadas de atenuação do centralismo
do Estado com outras de apressada e zelosa correcção de uma férrea cen-
tralização. As primeiras através da propositura de esquemas mais ou menos
generosos de descentralização de mistura com medidas de desconcentração,
as segundas devolvendo a Lisboa, ao corpo central administrativo-político,
toda a sua minuciosa e mesquinha capacidade de intervenção.
Este movimento de alternância tem a sua expressão mais evidente na
concepção centralista consagrada no Código Administrativo de 1940 e com
os princípios muito latos de descentralização que a Constituição de 76
estabelece.
Para quem conheça e compreenda a História de Portugal, torna-se evi-
dente que a natureza do nosso Estado, centralizador, favorável às tendências
autocráticas e ao parasitismo de importantes estratos da sua população, tem,
porventura, constituído um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento e
progresso da sociedade.
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Não é de estranhar, por conseguinte, que a forte consclencia dos males


sociais que temos vindo a padecer, gerasse uma corrente de pensamento
político albergando a convicção de que a reforma do Estado haveria de ser
feita através do enfraquecimento do poder central, em proveito do estímulo
da personalidade política das comunidades locais. Daqui, como corolârio, o
vigor que interessava dar ao poder local.

2. Não decorreu ainda tempo suficiente para que tenha sedimentado a


agitada mistura de sentimentos inspirados uns na paixão, outros na razão,
quanto à adequação social, histórica e política de muitas das soluções vi-
gentes ao tempo do regime que se procurou destruir em 25 de Abril de 74.
Naturalmente que esta asserção é formulada segundo uma perspectiva rela-
tivista e técnica em tudo alheia ao repúdio por um regime antidemocrâtico
cujos reais pressupostos filosóficos e acção prâtica impediram, em absoluto,
o desenvolvimento e progresso da sociedade portuguesa. Poderâ ser por esse
motivo, ainda prematuro, ou temeroso, emitir juízos críticos de valor sobre o
funcionamento global da administração a partir dos impulsos do escalão
central e da integração dinâmica das parcelas locais no todo que forma o
conjunto nacional.
Com efeito, não parece incorrecto considerar a estrutura administrativa
portuguesa, no passado mais recente, como o reflexo de um processo histó-
rico complexo.
A sua característica mais saliente tem residido na centralização absoluta
da competência a nível dos departamentos governamentais em contraposição
à extrema debilidade a que estava reduzido o nível local representado pelos
vârios tipos das impropriamente designadas autarquias. Impropriedade que
se comprova pelo elenco dos poderes definidos no campo institucional jurí-
dico-político e se patenteia de modo gritante nos factos que resultavam de
uma «praxis» quase por completo arredada dos parcos aspectos substantivos
que no sistema jurídico se proclamavam.
Os órgãos das autarquias constituiram-se deste modo em meras agências
de um poder central que assim pôde optimizar politicamente a dependência
daquelas através dos condicionamentos administrativos, financeiros e técnicos.
ilustração eloquente dos vínculos propiciadores da eficácia autocrática
do regime, reside no consabido papel que desempenhava a generalidade dos
presidentes das câmaras, onde a sua qualidade de verdadeiros cOIl)issârios
políticos do poder claramente se sobrepunha ao de representantes dos inte-
resses das populações como era indispensável que o fossem.
Além da subordinação por via administrativa, também a capacidade
técnica, naquelas das poucas câmaras onde ela lograva subsistir ou implan-
tar-se, em breve estiolava. Enredada na caprichosa teia burocrâtica que re-
presentava a necessidade de sujeição ao beneplácito ministerial de qualquer
intenção de realização concreta manifestada pelas câmaras dentro da sua
já de si exígua esfera de decisão, dificilmente a capacidade criadora dos
órgãos de gestão se poderia exprimir.
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Como agravante da aludida dependência política e técnica, as autarquias


locais viram ainda decrescer progressivamente a já de si escassa autonomia
que lhe era proporcionada pelas receitas próprias. Com efeito o sistema de
participação nos réditos fiscais nunca reflectiu as alterações ocorridas nas
componentes socioeconómicas que lhe deveriam servir de base e fundamento.
Deste modo, à medida que as cobranças próprias diminuiam, transferia-se
para os subsídios governamentais a capacidade de as autarquias se ressarci-
rem daquelas deficiências.
Assim, despidos de conteúdo político autónomo, sem um quadro institu-
cional, nem adequado, nem respeitado e muito menos acarinhado, pelos
órgãos de decisão central, coarctados na sua capacidade técnica pelos empe-
cilhos de uma burocracia asfixiante, progressivamente depauperados e de-
pendentes da benevolência do vértice do poder político nacional, a desejável
autonomia dos órgãos do poder local mais não tem sido, nas últimas décadas,
que mera figura de retórica.
Neste contexto político não era conveniente fomentar ou consentir às
populações a sua participação na escolha dos caminhos concretos a trilhar
para verem satisfeitas as suas necessidades e aspirações. Os políticos locais,
quando muito, promoviam uma auscultação discreta tendente a assegurar
o~ equilíbrios necessários à sua implantação, sobrevivência e domínio.

3. As vantagens da descentralização que agora na Constituição expres-


samente se consagram, terão de ser essencialmente encaradas, quer de um
ponto de vista de fomento e desenvolvimento de fórmulas de participação
das populações, quer do ponto de vista da disponibilidade dos meios técnicos
com que o País conta.
Como já se salientou, as condições do desenvolvimento equilibrado do
País estão profundamente perturbadas por graves assimetrias.
Na verdade, a administração central conduziu uma política assente na
concessão de certos benefícios a uma minoria oligárquica, em detrimento
de um equihôrio harmónico susceptível de impedir as distorções com que
presentemente nos defrontamos e cuja correcção, por isso mesmo, não pode
ser tão rápida como seria desejável.
A descentralização tem profundas implicações na transformação do apa-
relho do Estado, sobretudo no respeitante aos órgãos ligados à programação
de ínfra-estruturas e equipamentos colectivos e à localização industrial, sec-
tores em que uma deliberada passividade provocou a ínexistência de soluções
índustriais em largas zonas do interior, restringindo-as, ao contrário, a pe-
quenas áreas litorais. Estamos a pagar os elevados custos sociais resultantes
desta política e, se a ela não se antepuser uma prática completamente diversa,
muito tempo e muito dinheiro se despenderá na sua correcção.
A definição, em diploma legal, das competências e atribuições dos diver-
ws órgãos do poder local, conjugada com a reforma das fínanças locais, irá
erigir, em definitivo, o edifício ínstitucional do poder local e põr à prova a
sua capacidade, a sua eficácia, finalmente a exequibilidade do modelo con-
cebido na legislação fundamental e na ordinária.
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A LEI DAS AUTARQUIAS

1. Não custa reconhecer que o diploma em apreço, a lei referente às


autarquias locais recentemente aprovada na Assemhleia da República, re-
presentando um avanço relativamente ao «provisório» Decreto-Lei
n.' 701-A/76, se queda nos limites das fronteiras algo imprecisas do art .• 303.'
da Constituição e (à semelhança dos projectos apresentados pelos diversos
partidos) pouco contém de inovador o avanço - salvo aqui ou ali a melhoria
da redacção e alterações que introduzem certas «nuances» de carácter político
- em relação ao diploma que chegou a lograr aprovação em Conselho de
Ministros no final do VI Governo Provisório. Relevar a circunstância de
que o presente diploma não integra novidades de maior, à excepção das
matérias relativas aos distritos, e que, tanto ele como os projectos concorren-
tes caminham demasiado na esteira do VI Governo Provisório, só interessa
para assinalar que o legislador não pôde, ou não quis, aproveitar com afoi-
teza o tempo entretanto decorrido para enriquecer o texto com base nos ensi-
namentos colhidos pela experiência dos elencos autárquicos já então eleitos.
E de pouca monta no momento curar das razões devido às quais não se
melhorou e completou, aprofundando-o, um instituto jurídico que irá servir
de suporte ao lançamento de uma componente, porventura decisiva, para
o êxito da democracia em Portugal. Importa no entanto registar o facto.
O que interessa agora avaliar é a aptidão da «Lei das Autarquias Locais»,
para dar conteúdo ao poder local, para vitalizar e viabilizar as Autarquias
Locais, tornando-as autênticas. A apreciação da validade global da lei incidirá
em três questões que, à luz da Constituição e do regime democrático, se
afiguram como as prioritárias, e que são:

- a eficácia do princípio da descentralização;


- a salvaguarda da unidade do Estado;
- a capacidade do esquema institucional para fazer face às necessidades
do quotidiano administrativo.

Importa então e de «per si», analisar muito abreviamente, cada uma destas
questões.

2. Eficácia do principio da descentralização


Pode afirmar-se que na «Lei das Autarquias» se dá plena satisfação ao
princípio da descentralização expressamente referido no art." 243.' da
Constituição.
O postulado da descentralização administrativa que o esquema cons-
titucional expressamente contempla no seu ar!.' 239.' significa que os centros
de deliberação e decisão se terão de deslocar para as autarquias aos seus
diferentes níveis, municipal e regional. Isso assim se verifica institucional-
mente com órgãos de deliberação e execução criados para cada tipo de
autarquia.
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A célula essencial do poder local, na lógica de uma tradição histórica


muito antiga e de uma conveniência administrativa indiscutível é ainda, e
muito acertadamente, o município.
Contudo essa descentralização carece ainda, para se efectivar o seu
conteúdo, de que seja promovida a adscrição de meios financeiros que as-
segurem a criatividade do poder local, isto é, atribuição de meios financeiros
sem o carácter aleatório de subsídios cuja massa não é claramente deduzivel
de regras institucionaJizadas e que não consentem uma livre, construtiva e
autónoma administração de verbas.
O imperativo constitucional de dotar os órgãos autárquicos de recursos
financeiros necessários à prossecução dos fins que lhe são próprios tem uma
relevância política indiscutível.
Se o corolário lógico desse imperativo for ignorado pelo legislador ordi-
nário, o poder local pode surgir perante a opinião pública como um logro e,
assim, abrir caminho á desconfiança no poder político e ao descrédito do
próprio sistema democrático.
A dissolução dos órgãos autárquicos apenas terá lugar e está prevista face
à ocorrência de actos ilegais de especial gravidade e impeditivos do exercício
normal da competência que lhes é conferida. Nos restantes casos de ilegali-
dade, cabe ao poder central, unicamente, a possibilidade de recurso á anulação
contenciosa dos actos praticados.
O instituto da tutela, sempre controverso e de aplicação delicada, é objecto
do Capítulo V (art.º 91.' e 93.') e da forma como cada matéria é aqui
tratada se patenteia a sua tenuidade relativamente á autonomia dos órgãos
autárquicos.
Neste domínio contudo insinua-se uma dúvida que, do ponto de vista
constitucional e administrativo, se afigura relevante e respeita à competência
do Governador Civil quanto ao exercício da autoridade tutelar relativamente
aos órgãos gestores do distrito.
Serâ, porém, no campo das atribuições e competências. que se irão de-
frontar e ser postas à prova as concepções mais ou menos descentralizadoras.
Consoante as questões que caiam no âmbito das várias alíneas do art.' 2.'
sejam reguladas com primazia da autonomia ou do princípio da hierarquia,
poder-se-á aferir da dimensão efectiva da descentralização praticada.
Postulada em termos correctos a gama de competências atribuídas às
autarquias, elas irão, sem dúvida, constituir um desafio à capacidade e cria-
tividade dos seus órgãos.
Parece importante salientar o critério utilizado para definir as atribuições
das autarquias locais. Com carácter global e sem fazer a destrinça para cada
um dos níveis, introduz uma formulação vaga que, como mais adiante se
desenvolverá, poderia ser fonte de litígios entre o poder local e o central.
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3. Salvaguarda da unidade do Estado


A implementação do poder local não está isenta de problemas políticos
sérios sobretudo tendo em conta que essa operação irâ ocorrer durante uma
conjuntura em extremo desfavorável.
Como decorre de comentários anteriores, o respeito pela unidade do Esta-
do não impede que um sentimento de premunição contra o unitarismo caracte-
rístico do regime anterior, impregne a filosofia insita no esquema contitucio-
nal.
Retirar ao poder central as excrescências que, embora poder acrescido, se
confundem aos olhos da opinião pública e aos espíritos dos responsáveis com
o único poder possível, poderá criar um certo alarme quanto à solidez do
próprio Estado.
Mas, naturalmente, ao legislador pouco avisado, pode ter escapado a
exacta distinção e delimitação entre o poder essencial e o poder acrescido,
tanto para avançar fórmulas de descentralização inequívocas e com valor
operativo como para encontrar o justo e prudente equilíbrio exigido pela
salvaguarda do princípio unitário.
Não é de estranhar portanto, que, sobretudo influenciados por um sistema
anterior muito diferente, se gere alguma inquietação sobre se não se corre o
perigo do caos com a disseminação de centros de decisão independentes e se,
em consequência, se não põe em perigo a unidade do Estado e da condução
de uma política de desenvolvimento social e económico global. Não parece
que, por via da Lei das Autarquias, esse perigo exista.
Por um lado, porque os órgãos das autarquias locais têm necessariamente
que actuar no âmbito da sua competência e para a realização das atribuições
Iespectivos sob pena de as suas deliberações ou decisões poderem ser anuladas
pelo contencioso próprio, ou elas mesmas serem dissolvidas.
Acentue-se, por um lado, que a actuação dos órgãos autárquicos desde
que se mova dentro do quadro institucional, está realizando também os fins do
Estado, por outro que não será a instituição de tutelas a única, nem a melhor
forma, para a identitficação de objectivos a prosseguir e acerto de métodos
de acção.
A concertação é mais viável e salutar quando o diálogo se estabelece, os
projectos e as razões que os determinam são expostos, as alternativas aponta-
das, as consequências evidenciadas. Nesta perspectiva, impõe-se muito mais
um esforço de aproximação às autarquias por parte do Governo, fazendo-as
participantes das dificuldades nacionais e das opções que se tomam.
Por último uma razão não dispicienda. Não se podendo ignorar as pro-
fundas implicações de quanto vem preceituado na Constituição sobre a exe-
cução do Plano é indispensável que este integre, em parte substancial, as
intenções e acções dos órgãos das autarquias o que leva necessariamente à
conjugação dos diversos centros de decisão.
Em suma, é da dinâmica, actualização e recíproca limitação dos vários
elementos da estrutura do sistema político, num modelo não linearmente
hierarquizado, que resultará o reforço da unidade do Estado.
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4, Capacidade operativa do esquema institucional

Uma primeira nota sobre a capacidade operativa da Lei das Autarquias


respeita ao problema candente das finanças locais,
A publicação da lei das finanças locais reveste-se de particular e irrecusâ-
vel urgência, Sem esse instrumento fica comprometido o papel que se pretende
venham as Autarquias a desempenhar na harmónica defesa e valorização do
património humano, cultural e económico de todo o País,
Não se desconhecendo o especial melindre que suscita o problema da orde-
nação da fiscalidade (inclusive pelas questões de dupla trihutação que podem
levantar-se face ao «monopólio» que o Estado assumiu por força das con-
cepções centralizadoras), a matéria respeitante à fixação do regime financeiro
das Autarquias não pode ser por muito mais tempo ignorada e adiada pelos
órgãos de soberania competentes,
Quanto às virtualidades mobilizadoras que a lei encerra, e que determinarâ
a abertura participativa desejável para exercício do poder local, é importan-
te uma breve referência ás organizações populares de base territorial a que
a Constituição lhes dedica o art., 118." a alinea i) do art., 167o" o art., 248.,
e o Capítulo V do seu Título VIII,
No primeiro atribui-se-lhe expressamente o direito de participar no exer-
cício do poder local; no segundo, atribui-se à Assembleia da República a
competência exclusiva para expedir legislação sobre tal participação; no
terceiro, permite-se às Assembleias de Freguesia a delegação nas organiza-
ções populares de base territorial de tarefas administrativas que não envolvam
o exercício de poderes de autoridade; no Capítulo V do Título VIII define-se
o seu objectivo básico (intensificação da participação das populações na vida
administrativa local), explicitam-se as suas «funções» (através dos direitos de
petição perante as autarquias locais e de participação sem voto na Assembleia
de Freguesia) e o poder de «realizar as tarefas que a Lei lhes confiar ou os
órgãos de freguesia nelas delegarem",
A Lei votada pela Assembleia da República é, a esse respeito, decepcio-
nante, Dir-se-ia que alguns dos aspectos mais significativos e influentes
para uma modificação radical de um teor de vida pessoal e colectivo servem
perfeitamente os propósitos de enfeite de retórica discursiva ou de alicia-
mento eleitoral! Mas não convém que passem a ser moeda corrente do
quotidiano! Há que concluir que, pelo menos por ora, a Assembleia da Re-
pública se demitiu de trabalhar esta questão, e adiou uma vez, a despeito
de certos propósitos evidenciados nos considerandos dos projectos de lei
apresentados pelos partidos, uma parte decisiva para a vitalização da admi-
nistração local.
Não obstante muitos dos aspectos negativos que estão associados à peã-
tica de tantas das primeiras organizações que brotaram com mais que dis-
cutível espontaneidade no período de maior agitação pseudo-revolucionária
era esta a ocasião asada para a intensificação da participação no exercício
do poder local.
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Outro problema que na prãtica poderã apresentar algumas dificuldades


e suscitar confusões prende-se a uma certa «promiscuidade» entre a presente
lei das autarquias e a parte subsistente do Código Administrativo.
O caso mais frisante respeita à fórmula vaga enunciada no início do ar!. º
2.' sobre ser «atribuição das Autarquias Locais tudo o que diz respeito aos
respectivos interesses» já que se afigura potencialmente conflituosa por
insuficiência de delimitação. O desenvolvimento deste artigo cotejado com
matéria não revogada do Código Administrativo deixa dúvidas quanto às
razões do legislador que, aparentemente, manteve atribuições que poderia e
deveria ter explicitado, ou promoveu a transposição, para o elenco das com-
petências, de especificações que o Código faz relativamente a cada uma das
ordens de atribuições contempladas.
Por último assinala-se uma insuficiência que se afigura relevante.
A Lei aprovada na Assembleia da República engloba, relativamente a
todas as Autarquias, referência ao respectivo programa de actividades. Fã-lo
pelo menos, efectivamente, no que respeita às reuniões ordinãrias das as-
sembleias, no que toca à competência destas e ainda no concernente à com-
petência dos órgãos executivos, aquela para aprovação do programa e esta
para a sua elaboração.
O que impressiona, no entanto, é que a par de um programa anual de
actividades, e conferindo-lhe um sentido de orientação dirigida, se não
fale nunca de planeamento a médio prazo.
Planeamento esse que, embora inevitavelmente passível de ajustamentos
conjunturais, traçasse directrizes que não fossem totalmente destroçadas
por mudança de pessoas ou de orientações políticas nos órgãos autãrquicos,
em sucessivos desperdícios de vontades, de meios financeiros, de estudos
de base, de meios técnicos. Que esbatesse o pessoalismo nos empreendimentos
mtentados, evidenciasse sobretudo o interesse, a vontade e a sensibilidade
da comunidade. Que se relacionasse com as Autarquias vizinhas, conseguindo-
-se participação de todas elas para acção de interesse comum, independente-
mente de qualqúer tipo jurídico de associação configurado na lei administra-
tiva. Que programasse fontes de financiamento. Que medisse prioridades
absolutas e relativas. Em que pulsasse o sentido humano, social e económico
dos interesses comunitãrios. Que fosse resultante de uma coordenação de
esforços dos sectores públicos aos diversos níveis. Que tivesse em conta a
iniciativa privada.
Este silêncio não deixa de causar estranheza, face a uma quase total
ausência de controlo por parte de outras entidades ( a tutela é quase apenas
enunciada na Lei votada pela Assembleia da República), face a uma co-
nhecida penúria de recursos financeiros próprios (a política de subsídios
conjunturais concedidos pelo Governo não é sistema a prevalecer para o
futuro) e, mais vincadamente, face à proclamação constitucional da impor-
tância do Plano.
A vida que deriva da organização autãrquica não se divorcia da globalida-
de dos sectores de actividade por que se reparte o Governo. Cada vez menos
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o Ministério da Administração Interna pode ser um Ministério de especiali-


áade eminentemente burocrática no que respeita às Autarquias Locais (essa
situação já ocorreu durante largo tempo, de mãos dadas com políticas locais).
Ao contrário, tem que transformar-se, para este efeito, em um ministério
altamente dialogante com todos os demais ministérios. Terá de se assumir
como o intérprete e interlocutor, junto deles, das autarquias locais. Terá de
ter sempre presente a ideia de que grande parte das acções por eles em-
preendidas se repercute nas Autarquias, e procurar que tal repercussão seja
o menos possível carregada de sinal negativo.
Deste ponto de vista uma boa parte dos diplomas legais a emanar do
Governo deveria merecer especial estudo por parte do Ministério da Admi-
nistração Interna, fundamentalmente em ordem.

- a avaliar-se da medida em que eles contendem com as atribuições e


competências autárquicas (indusivamente pelo deferimento aos seus
órgãos ou serviços de tarefas adicionais sem que daí lhes advenham
compensações ou sem que tal deferimento não seja de interesse para
a autarquia);
- a tentar-se progressiva e efectiva descentralização permanente de
serviços dependentes do poder central, com outorga aos órgãos au-
tárquicos de competências que lhes permitissem coordenar a sua acção
local em ordem às necessidades reais e imediatas da população.

Estes cuidados são essenciais para que a vida autárquica não fique ao
sabor de mais um qualquer diploma legal que, emanado de um qualquer Mi-
nistério (e a despeito de ser presente ao Conselho de Ministros), lhe outorga,
retira, aumenta, diminui o que por direito lhe é devido ou conveniente,
sem curar das consequências a nível local.
É de notar a primazia dada à exigência de democracia relativamente
às questões de eficácia. Esta circunstância traduz-se no conjunto do peso
de competências conferidas ao órgão deliberativo privilegiando-o comparati-
vamente ao órgão executivo e, sobretudo, não concebendo poderes de dele-
gação latos para permitir ao executivo efectivar operações de gestão qualita-
tivamente mais impressivas em conteúdo de interesse imediato para as popu-
láções. Esta opcção é significativa.

Aparecem duas NOTAS FINAIS, lendo-se na (a) e (b), primeiro e segundo


parágraffos, uma repetição quase exacta. Só o terceiro parágrafo não está
exactamente inserido na segunda NOTA FINAL.
Ficará a 1.- NOTA FINAL «a) e (b)) sem efeito?
89

NOTA FINAL

Alguns aspectos de pormenor sobre a Lei votada pela Assembleia da


República poderiam ter sido referidos por parecer não ter sido encontrada a
melhor solução.
Malgrado, porém, o que atrás ficou apontado, esta nova Lei representa
um importante avanço para a corporização da Constituição.
As questões da descentralização e do poder local, devendo dar origem,
inevitavelmente, a novas formas de relações de poder, são de primordial
importância para o dever politico da Nação. Não é de estranhar portanto,
que sob este pretexto, se projecte para o primeiro plano o problema genérico
da capacidade operativa de alguma da legislação que vem sendo publicada.
Sobretudo daquela que constitui o travejamento indispensável à solidez do
Estado.
A intensa produção legislativa a que se tem assistido nos últimos anos
exprime sem dúvida propósitos, intenções e projectos políticos a que a reali-
dade, em não poucos casos, se mostrou refractária.
Não é muito animadora a eficácia até agora patenteada por essa acção
legislativa para devolver ao Direito as suas potencialidades de garantir a
sobrevivência de um sistema político.
Enquadrar uma dada realidade social cuja dinâmica continuamente
ameaça extravasar, e tantas vezes extravasa, do quadro normativo existente
ou procurar que essa mesma realidade se contenha em parâmetros que impe-
çam a sua destruição é uma tarefa urgente na qual, pela via do Direito, se têm
de empenhar, prioritariamente, os elementos cimeiros da estrutra do poder
constituído - os órgãos de soberania.

Vasco Almeida e CosIa


Oficial da Armada

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