Bíblia Como Palavra de Deus
Bíblia Como Palavra de Deus
Bíblia Como Palavra de Deus
Este verbete envolve o percurso e a dinâmica dos temas que caracterizam o ser e
o agir de Deus, que se manifesta e vem ao encontro do ser humano, e denotam a
percepção, a acolhida e a reflexão do ser humano como resposta a essa iniciativa divina.
1 Revelação
Por revelação entende-se o ato pelo qual o próprio Deus, em sua bondade infinita,
dignou-se a se fazer presente e atuante na história, palco dos acontecimentos, para dar-se
a conhecer ao ser humano, elegendo-o seu interlocutor, através de fatos e palavras
conexos entre si. Deus, adotando e fazendo uso dessa metodologia, permitiu que o ser
humano pudesse encontrá-lo e experimentar a sua presença e ação de forma perceptível,
pelos sentidos, e inteligível, pela razão. Se a experiência dos fatos fundamenta as palavras,
as palavras preservam e explicam os fatos.
A Dei Verbum n.2, sobre isso, afirma: “Em virtude desta Revelação, Deus
invisível (cf. Cl 1,15; 1Tm 1,17), no seu imenso amor, fala aos homens como a amigos
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Possui graduação em Teologia pela PUC-Rio (1999), mestrado em Teologia Bíblica também pela PUC-
Rio (2002) e doutorado em Teologia Bíblica pela PUG-Roma (2008). Atualmente, está Diretor e Professor
do Departamento de Teologia da PUC-Rio, no qual ensina Sagradas Escrituras; também é professor de
Sagradas Escrituras do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro. É membro da
Associação Bíblica Brasileira (ABIB), da Associação Bíblica Italiana (ABI), da Sociedade de Teologia e
Ciências da Religião (SOTER), da Society of Biblical Literature (SBL).
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(cf. Ex 33,11; Jo 15,14-15) e se entretém com eles (cf. Br 3,38), para os convidar e admitir
a participarem da sua comunhão.”
2 Inspiração
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Já em 2Tm 3,16 encontra-se a palavra theópneustos, que pode ser traduzida por
um valor predicativo (“Toda Escritura é inspirada por Deus”) ou por um valor atributivo
(“Toda Escritura inspirada por Deus”). Jerônimo traduziu por divinitus inspirata. Além
dessa citação explícita, 2Pd 1,19-21 afirma que nenhuma profecia foi fruto de mera moção
humana, mas resulta da ação do Espírito Santo, pelo qual homens falaram em nome de
Deus. Esta certeza, com relação às palavras contidas nos escritos proféticos, foi estendida
aos escritos de Paulo, dando a entender que houve dificuldades de interpretação da
Escritura (2Pd 3,15-16).
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Dessa base bíblica resulta a afirmação que Deus, ao transmitir a sua palavra, não
dispensou os seres humanos envolvidos, mas quis revelar-se e expressar a sua vontade
através da cooperação humana, valendo-se da sua cultura, da sua língua e das suas formas
literárias, sem que nada do conteúdo ficasse comprometido. Se Deus não tivesse falado
de forma humana, a comunicação não seria estabelecida e o seu ser e o seu agir não
poderiam ser percebidos e compreendidos pelo ser humano. É o que está expresso na Dei
Verbum n.11, assumindo a posição já contida na Providentissimus Deus e na Divino
afflante Spiritu.
Todavia, para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou
na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por
meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que
ele quisesse.
3 Inerrância e Veracidade
A perspectiva sobre a inerrância, que se encontra na Dei Verbum n.11, revela que
houve a intenção de se optar por uma compreensão de tipo positivo, no sentido de que o
texto, claramente, abandona o modelo apologético. Embora se afirme que a Bíblia não
contém erros, percebe-se que a ênfase recaiu muito mais sobre o fato de que os Livros da
Escritura ensinam com certeza… a verdade relativa à nossa salvação. Assim, a
inerrância da Bíblia deixa de ser o ponto central da questão sobre a veracidade da Sagrada
Escritura, para que a verdade salvífica apareça como corolário.
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Uma vez que a finalidade da Sagrada Escritura é comunicar quem é Deus e qual
é a sua vontade para o ser humano, é imprescindível lembrar que os autores sagrados
foram pessoas totalmente integradas no contexto vital do seu tempo, imersos na sua
própria cultura com tudo o que de limitado e inexato ela comportava em cada época ou
estágio do processo de formação dos livros bíblicos. A ciência dos hagiógrafos era
empírica e pertencia ao momento histórico, geográfico e cultural de cada um. Isso não foi
um obstáculo, mas uma condição e o meio eficaz para que Deus se revelasse, manifestasse
a sua vontade e essa fosse transmitida com fidelidade.
4 Línguas bíblicas
A partir do século VI aC, o hebraico foi sendo suplantado pelo uso do aramaico
como língua falada e também escrita. Alguns textos do Antigo Testamento foram escritos
em aramaico imperial ou diplomático: Esd 4,8–6,18; 7,12-26; Dn 2,4b–7,28 (esses textos
não aparecem nas edições protestantes da Bíblia); Jr 10,11 e duas palavras em Gn 31,47.
Após as conquistas de Alexandre Magno e a difusão do helenismo, o grego foi imposto
como língua falada, mas o aramaico conservou-se em diferentes formas dialetais.
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5 Formação do Cânon
O vocábulo grego kanôn deriva de uma palavra semita que, em acádico, é qin; em
ugarítico é qn; em assírio é qanû; e em hebraico é qâneh. Essa terminologia passou para
as línguas neolatinas através do latim canna, que no português significa “cana ou
bastãozinho”. No Antigo Oriente Próximo, o cânon era uma vara reta ou barra, próxima
do que se chama de régua, que servia de critério, isto é, representava uma unidade de
medida utilizada por pedreiros ou carpinteiros (cf. Ez 40,5.6.7.8). O termo, em sentido
metafórico-figurado, também já denotava uma regra, uma norma, um grau de excelência
ou um critério-parâmetro com o qual uma pessoa podia julgar se uma doutrina, um
raciocínio ou um juízo estava correto, isto é, de acordo com a realidade. O termo cânon
será utilizado, também, com o sentido de série ou elenco, passando a ser aplicado à lista
dos livros sagrados dos judeus e dos cristãos.
A elaboração e aceitação de novos livros pelos cristãos foi o que levou os judeus
a estabelecerem os quatro critérios básicos para que um livro fosse aceito como canônico,
no final do século I dC, provavelmente durante o sínodo dos antigos rabinos realizado em
Jâmnia, que fixou o cânon judaico dos 39 livros que formam a Bíblia Hebraica. O
primeiro critério dizia respeito à língua, tinha que ter sido escrito em hebraico, tida como
língua sagrada. O segundo critério dizia respeito ao local, tinha que ter sido escrito na
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região da Palestina. O terceiro critério dizia respeito à época, tinha que ter sido escrito
antes das reformas empreendidas por Esdras e Neemias, que deram origem ao judaísmo.
O quarto critério dizia respeito à conformidade com a Torá de Moisés. Esse era o principal
critério, pois com relação ao cristianismo nascente, servia de base para se refutar muitas
das afirmações contidas nos escritos que formariam o Novo Testamento.
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elaborado, explicitamente, nas decisões que a Igreja tomou ao longo dos séculos,
principalmente através das disposições e afirmações frutos dos Concílios Ecumênicos.
6 Antigas versões
Os livros sagrados foram escritos em hebraico e assim eram lidos nas assembleias
litúrgicas, mas o povo, após o exílio na Babilônia, adotara o aramaico como língua falada
e escrita, por ser a língua internacional usada pelos dominadores persas. Desse fato
resultou a necessidade dos “tradutores” interpretarem para o aramaico o que fora lido em
hebraico. Quando se tratava de um texto da Torá, a tradução era feita a cada versículo.
Quando se tratava de um texto profético, a tradução era feita a cada três versículos. É
possível dizer que esse procedimento sinagogal foi um real trabalho de tradução
simultânea já na antiguidade.
De início, essa tradução foi somente oral, mas a partir do século I a.C. começou a
ser feita também por escrito, originando a versão targúmica da Sagrada Escritura. Existem
livros em aramaico de quase toda a TaNak, salvo dos livros de Esdras, Neemias e de
Daniel. Quando os targumim são comparados com o Texto Massorético, reproduzido no
Códice de Leningrado, notam-se algumas diferenças. Essas são explicadas, na maioria
das vezes, levando-se em consideração que na base dos targumim estaria um texto
hebraico consonantal anterior ao que se tornou normativo a partir de Jâmnia, e porque a
tradução em aramaico era livre e de cunho explicativo.
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Não obstante o grego fosse uma língua muito apreciada, o latim também tinha
uma força muito grande, principalmente por sua valorização por poetas e escritores como
Virgílio, Cícero, Horácio e Ovídio. Com a simpatia do Imperador Constantino pelo
cristianismo, pois a sua real conversão, ao que tudo indica, aconteceu pouco antes da sua
morte, e a proclamação da religião cristã como oficial de todo o Império Romano pelo
imperador Teodósio, houve uma intensa popularização do cristianismo, que ocasionou a
tradução da Bíblia para o latim. Várias versões surgiram, mas a mais importante foi a
Vetus Latina, que esteve muito em voga no Norte da África, visto que o latim era a língua
mais popular. A Vetus Latina foi, provavelmente, a Bíblia de Santo Agostinho.
Além das traduções gregas e latinas, outras versões, totais ou parciais, surgiram
nos primeiros séculos do cristianismo em língua siríaca (peshita), egípcia (copta), armena
etc., que ainda estão em uso na liturgia desses ramos do cristianismo ortodoxo.
7 Versões modernas
Neste ponto, serão citadas, apenas, as de maior relevância e que tiveram maior
impacto. Em alemão, a mais famosa é a versão de Lutero, que foi a primeira a ser
traduzida levando em conta as línguas originais. Na verdade, essa versão acabou por se
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tornar o parâmetro de unificação para a futura língua alemã oficial, visto que eram muitos
os dialetos. Lutero não descuidou na sua tradução, buscando sempre a palavra mais
adequada, e teve presente tanto a Vulgata como os comentários patrísticos de sua época.
Ele usou para o Antigo Testamento a versão latina do texto hebraico feito por Sante
Pagnini, que o dividiu em versículos, serviu-se inclusive da ajuda de judeus, e da edição
de Erasmo da Septuaginta para o Novo Testamento.
Em francês, a primeira versão completa foi a Bible de Sainte Louis IX, do século
XIII, traduzida do latim. Em 1535, um primo de Calvino, Olivetano publicou uma
tradução a partir dos originais e que serviu de base para futuras versões protestantes até o
século XIX. A três versões completas mais importantes foram a Bible de Jérusalem que,
inicialmente, surgiu em 43 volumes (1948-1952) e, depois, em um único volume (1956);
a Bible de La Pléiade, organizada por Dhorme (1956-1959); e a Sainte Bible, dirigida por
Pirot e Clamer (1935-1959). Enfim, a Traduction Oecuménique de la Bible (TOB), fruto
da colaboração de católicos e protestantes que apareceu em 1975 e foi revista em 1988.
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Na base das afirmações estão, sem dúvida, certezas de ordem científica, mas
também estão preconceitos ou falta de informação sobre a natureza da Bíblia. Some-se a
isso a dicotomia que permeia muitos espaços humanos colocando em conflito a fé e a
razão. Por um lado, se encontram os defensores fideístas e fundamentalistas das verdades
bíblicas, que ignoram os postulados da Ciência. Por outro lado, se encontram os
defensores das posições racionalistas, iluministas e positivistas, que ignoram os vários
sentidos contidos nos textos bíblicos. Para esses, a única verdade que existe e deve ser
aceita é a verificada, que deriva da comprovação científica com base na repetição das
experiências. Em muitos casos, os dois grupos se “excomungam” reciprocamente.
Diante desse impasse, então, é importante que se faça uma distinção quanto à
natureza dos textos bíblicos e os objetos de estudo das ciências. Assim, é possível
conceder, em parte, a razão para ambos os lados, desde que haja o mútuo interesse em se
buscar uma posição equilibrada e capaz de gerar diálogos profícuos, nos quais são
respeitadas as competências. Para que isso aconteça de maneira oportuna e eficaz, faz-se
igualmente necessário que as verdades bíblicas e as verdades científicas não sejam
colocadas no mesmo nível e sobre os mesmos patamares.
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Nos últimos anos, apesar de muitos frutos obtidos, essa metodologia recebeu
fortes críticas, porque sozinha não consegue dar conta de toda a problemática e riqueza
encerradas nos textos bíblicos. Ao lado dessa constatação, os resultados obtidos são, em
muitos casos, até contraditórios, colocando as verdades encontradas como alvo de
relevantes questionamentos. Isso fez surgir, no mundo exegético-teológico, novas
abordagens e metodologias, não menos rigorosas e de índole mais sincrônica, bem mais
preocupadas e focadas na Bíblia como literatura, mostrando que seus autores e suas
reflexões estavam plenamente inseridos no contexto do Antigo Oriente Próximo.
9 Referências bibliográficas
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Ave Maria, 1996.
DUBOVSKÝ, P.; SONNET, J.-P. (orgs). Ogni Scrittura è ispirata: nuove prospettive
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