Depois Da Caixa Preta - Rafael Weschenfelder
Depois Da Caixa Preta - Rafael Weschenfelder
Depois Da Caixa Preta - Rafael Weschenfelder
3 anos atrás
Hoje
30º dia
Hoje
57º dia
Percorro o circuito pela 220ª vez e faço a dancinha do
Claudinho e Buchecha sobre a linha de chegada. Missão
cumprida, apoio os braços nas coxas para recuperar o fôlego,
o suor escorrendo pela testa em gotas espessas e salgadas.
O alarme ecoa pelo jardim, e Luca repete meus
movimentos. Vacilando, desvia dos cones, correndo contra a
contagem regressiva do cronômetro instalado ao lado da
piscina.
Passadas seis horas do início da prova, somos os únicos
sobreviventes.
O último a cair é o líder.
Toda semana, dois participantes são mandados para a
Fogueira para enfrentar a votação do público, que decide
quem sai e quem ca.
O primeiro enfogueirado é escolhido pelos próprios
participantes, por maioria simples. Às quintas-feiras a
produção nos chama, um por um, para justi car por que a
pessoa x ou y é falsa/dissimulada/manipuladora e merece
deixar a Casa de Vidro.
Já o segundo é escolhido pelo próprio líder, que, além de
passar a semana num quarto com banheira de
hidromassagem e cama King Size, ainda ganha imunidade,
não podendo ser mandado para a Fogueira.
E é por causa da imunidade que ainda estou de pé,
ignorando o sofrimento de meus joelhos triturados. A nal,
não posso me dar ao luxo de ser eliminado do programa.
Não antes de descobrir o que realmente acontece na Caixa
Preta.
Assim que Luca termina a dancinha, quase colocando os
pulmões para fora, o alarme anuncia a minha vez.
Preparar, correr!
Chayene nos observa da varanda com seu olhar robótico.
Tenho trocentas perguntas entaladas na garganta, mas
câmeras e microfones transformam seu pedido de socorro
em assunto proibido. Cheguei a pedir para que me mostrasse
outras frases de O Pequeno Príncipe, mas ela se fez de sonsa.
Talvez esteja com medo. Se descon arem que estamos nos
comunicando pelo livro, ferrou.
Com o sol chicoteando minhas costas, contorno o último
cone do circuito e requebro até o chão, balançando o braço
como uma tromba.
Quando escuto o alarme soar novamente, sei que venci.
Assisto a Luca cambalear ao meu lado. Em seus olhos, o
orgulho do brasileiro que não desiste nunca se esvai feito
espumas ao vento. Pressionado pelo cronômetro, tropeça nos
próprios pés e desaba na grama.
— E o novo líder da Casa de Vidro é Lorenzo! — declara a
voz de comando das caixinhas de som.
Agradecendo os parabéns protocolares dos outros
participantes, arrasto-me até a cozinha e me entupo de água
antes de desabar numa das poltronas da sala estar.
Fecho os olhos e respiro fundo, aliviado.
— Ganhar uma prova de resistência não é para qualquer
um, hein?
Abro as pálpebras e me deparo com uma barba bem
aparada e uma cara de quero-ser-seu-amigo: Wemerson,
membro do Triozinho do Mal.
Se trocamos quatro ou cinco palavras desde o início do
reality, foi muito. E, se dependesse de mim, não passaria
disso. Grande parte das piadinhas e humilhações que
Chayene sofreu nasceram de sua mente diabólica de quem foi
vítima de bullying na escola e agora quer descontar nos mais
fracos.
— Se não ganhasse, alguém me mandaria para a Fogueira
— retruco, na zoeira.
Não tão na zoeira assim, já que descobri que Wemerson
votou em mim na semana passada.
— Ah, não ca chats com isso não — amansa o tom,
ocupando a poltrona à minha frente. — Nada pessoal. Só
questão de jogo.
— O jogo fode com tudo — concordo. — Mas tenho certeza
de que vamos todos nos abraçar e sair para beber quando o
programa acabar, né?
Ele me analisa por um instante, provavelmente se
perguntando se a legenda “contém ironia” deveria ser
incluída ao meu comentário. Em outra ocasião, eu inventaria
uma desculpa para dar o fora dali e dormir por doze horas
seguidas, mas a curiosidade me mantém enraizado à
poltrona.
A nal, Wemerson não veio conversar comigo por acaso.
— Sei que estamos em lados opostos — confessa,
subitamente sério —, mas preciso discutir um negócio
contigo.
— Manda aí.
Ele inclina o tronco para frente e entrelaça os dedos.
— Acho que a essa altura já deu para perceber que o
público apoia Chayene. Sua amiga voltou de três Fogueiras
seguidas.
“Yes, bitch!”, penso em dizer, mas o eterno jogo de
aparências da Casa de Vidro me obrigada a ser comedido:
— Não dá para ter certeza. Caio e Sarah também zeram
merda. Deram motivos para ser eliminados.
— Mas Jade não.
Quando o público escolheu Chayene na Fogueira contra
Caio, o Triozinho do Mal chiou, mas não surtou. O
marombado foi agrado assaltando a geladeira de
madrugada depois que Júlia descompensou e gritou para os
quatro ventos que seu peito de peru tinha acabado rápido
demais. O mesmo com Sarah, que fez um comentário
homofóbico sobre a voz de Luca e ainda tentou se justi car
dizendo que o coitado estava de mimimi.
Mas quando Chayene enfrentou Jade — ativista vegana de
dezenove anos que se posicionava nas brigas com a sensatez
de uma psicanalista experiente — e ganhou, tudo o que
acreditávamos saber sobre o jogo foi por água abaixo.
— Lembra daquela famosa frase do Faustão sobre a Casa
de Vidro?
— Odiado dentro da casa, amado fora? — arrisco,
estranhando a pergunta.
Ele faz que sim com a cabeça.
— Aconteceu no BBB 21 com Lucas e Karol, e está
acontecendo agora.
As semelhanças são indiscutíveis. Na edição anterior do
reality da Rede Globo, Lucas Penteado fez uma série de
leituras sociais distorcidas, acusando os outros participantes
de racismo. A casa não deixou barato: liderados pela
implacável Karol Conká, passaram a ignorá-lo e ridicularizá-
lo sistematicamente.
— Sa ra é uma designer em ascensão. Tinha acabado de
estourar no Instagram — Wemerson continua. — Estou com
medo pela sua carreira.
Ao perceber que sua preocupação orbita ao redor de Sa ra,
e não Chayene, sinto a raiva fermentar em meu estômago
feito leite estragado.
— Quem tem que se tocar da merda que fez é a sua
liderzinha, não você. — Wemerson não parece gostar do
“liderzinha”, pois contrai a bochecha. — Além do mais, parar
de torturar uma pessoa por medo de ser cancelado é fácil.
Sa ra é uma pessoa má. Só aceita.
— Ela não é má, só en ou na cabeça que o que Chayene fez
é imperdoável — retruca Wemerson, o passador de pano. — E
convenhamos que…
— Imperdoável é essa reação escrota e desproporcional
que vocês estão tendo — interrompo.
— Eu sei…
Nesse momento, Graciane cruza a sala em direção à
cozinha. Amassa a testa ao nos ver, como se descon asse que
Deus a transportou para um universo paralelo em que eu e
Wemerson conseguíamos dialogar civilizadamente.
— Tive uma conversa séria com Sa ra ontem à noite — ele
prossegue, assim que a xereta se afasta. — Ela admitiu que
errou com Chayene, que pegou pesado. Nunca pensei que
fosse ver aquela orgulhosa chorar, mas ela parecia uma
torneirinha. — Uma sombra se espalha pelo seu rosto
pontudo. — Mas então, depois da prova do líder…
Estreito as pálpebras.
— Então o quê?
— Ela mudou de ideia. Disse que não pediria desculpas
nem morta. Parecia outra pessoa.
Sem paciência para as oscilações morais de Sa ra, suspiro
fundo.
— Continuo sem entender por que está me contando isso.
— Fiquei me perguntando se você não poderia… conversar
com ela?
Pisco repetidas vezes, com a certeza de que Wemerson
endoidou de vez.
— Sa ra é sua amiga, não minha.
— Eu sei, mas você entende o lado de Chayene. Pode tentar
explicar a ela. Além do mais — ele hesita por um instante —,
a treta entre as duas tem um dedo seu.
Sinto uma esfera maciça se formar em minha garganta.
Ouvi dizer que Chayene falou várias merdas para Sa ra na
Festa do Pijama. “Ouvi dizer” porque estava no décimo quinto
sono quando a briga rolou, embalado por dois comprimidos
de Zolpidem.
Não sei que “várias merdas” foram essas, mas posso
imaginar. Horas antes, na festa, uma Chayene entupida de
álcool e sem ltro social pagou seus primeiros micos em rede
nacional.
Até deu em cima de mim.
— Como assim tem um dedo meu?
— Deixa para lá. — Wemerson estapeia o ar. — Só tenta
conversar com ela. Por favor. Sei que é difícil, mas pode fazer
a diferença.
Estou prestes a recusar quando percebo, por trás daquela
pose de jogador de xadrez frio e calculista, que o desgraçado
realmente se importa com Sa ra.
Mesmo que seja membro do Triozinho do Mal, como posso
ignorar isso?
— Vou pensar. — Dou o braço a torcer, sabendo que me
arrependeria em seguida.
Satisfeito, Wemerson assente com a cabeça. Está se
levantando quando meu cérebro conecta as duas pontas
soltas.
— Você disse que ela parecia outra pessoa? — murmuro,
tocando seu pulso.
— Hã?
— Você disse que, quando foi falar com Sa ra depois da
prova do líder, ela parecia outra pessoa.
— Força de expressão, né?
Sa ra torceu o tornozelo enquanto ziguezagueava pelos
cones. Sem mais nem menos, caiu no chão, guinchando de
dor. Foi socorrida pelos participantes que já tinham desistido
ou sido eliminados. Voltou mancando para a casa.
— Como está o pé dela? — pergunto. — Espero que não
tenha quebrado.
— O médico descartou fraturas e roturas de ligamentos.
Parece que só vai precisar usar tala por alguns dias.
— Ela chegou a conversar com a produção?
— Sim, quiseram saber se estava bem.
— Na Caixa Preta?
Wemerson faz careta.
— Claro. Onde mais?
Assim que nos despedimos, o cansaço pós-prova pesa
sobre meu corpo como uma bigorna de cartoon, mas minha
mente está soltando faíscas. Passo o resto da tarde andando
de um lado para o outro, recusando convites para jogar truco
e treinar na academia.
Considerando o triplo retorno de Chayene da Fogueira e a
tara do público por histórias que oponham opressores e
oprimidos, não é preciso ser um gênio para concluir que a
treta Sa ra X Chayene está entre os assuntos mais
comentados no Twitter, possivelmente fazendo a audiência
bombar.
E aposto que a produção faria de tudo para que essa treta
durasse até o último dia do programa.
Chayene queria sair, mas mudou de ideia após ser
chamada para a Caixa Preta. Agora o mesmo acontecia com
Sa ra, que, do nada, decidiu abrir mão do pedido de
desculpas que salvaria sua carreira.
A história de Lisbela está se repetindo na frente dos meus
olhos.
Sabendo exatamente o que tinha que fazer, entro no modo
Lorenzo-conversador-e-prestativo: ajudo com a faxina da
casa, jogo Free Fire com Luca e Tato e até ensino Afonso a
imitar o choro da fuinha.
A nal, não quero despertar suspeitas.
Atento aos ponteiros, espero dar cinco para meia-noite e
saio para a área externa. Como quem não quer nada, rodeio a
borda da piscina e uso minha voz desa nada para cantarolar
Evidências, do Zezé di Camargo e Luciano.
Era hora de agir.
2 meses atrás
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Ela está de bobeira no sofá quando a voz de comando ecoa
pela casa:
— Lisbela, favor comparecer à Caixa Preta.
Surpresa, troca olhares com outra participante.
— O que você fez?
Lisbela faz careta.
— Sei lá.
— Será que foi por que você dormiu durante a pr…
— Lisbela, comparecer à Caixa Preta. — A voz retorna,
impaciente.
Sem enrolar, ela se levanta, cruza a sala de estar e
mergulha no corredor, acompanhada em espírito pelo resto
da casa. Os cochichos se proliferam como fogo estalando na
lareira, mas é só Lisbela fechar a porta preta atrás de si que o
mundo emudece.
— Sente-se — ordena a voz, onipresente.
Sem saber para onde direcionar o olhar, ela assente,
acomodando-se na poltrona.
— Aconteceu alguma coisa?
Está nervosa. O último azarado a ser chamado para a
Caixa Preta cou sabendo que seu cachorrinho morreu de
picada de cobra.
— Só quero conversar um pouco.
— Sobre o quê?
— Nada com o que se preocupar — a voz responde. — O
que está achando da Casa de Vidro até agora? Conseguindo
não enlouquecer?
Inundada por uma onda de alívio, Lisbela ri entredentes.
— Um pouco difícil depois de ter sido colocada na
Fogueira semana passada.
— Fica tranquila. Posso te contar um segredo?
Ela abre um sorriso maroto de desenho animado.
— Minha boca é um túmulo.
— O Brasil te ama — anuncia, num tom monótono de
Google Tradutor. — Você e Bento.
— Não me diga! Será que chegamos à nal?
— Pelas nossas pesquisas de popularidade, sim. Os fãs até
criaram um nome para o casal: “Bentela”. Está entre as
hashtags mais usadas no Twitter.
— Fofo — diz, embora tenha achado brega. — Só falta
alguém avisar a eles que não somos um casal.
— Lisbela… — A voz estica seu nome, agudo na primeira
sílaba e grave na última. — Não acha que já está na hora de
parar de fazer doce e abrir as pernas?
Ela entra em tela azul. Cinco segundos para reiniciar o
sistema.
— Isso é zoeira, né? — questiona, com uma pontinha de
esperança.
— Hãããããããã… Não.
Então ela se apaga.
— Não quero car com ele.
— Como assim? — A voz se faz de indignada. — O Bento é
mó gato. Ele tem olhos cinza!
— Já disse que não quero — repete, dura como rocha.
— É por causa do seu namorado? Já formamos casais
antes. Pura estratégia de marketing. Ele vai entender.
— Isso não tem a ver com Lorenzo. Tem a ver comigo —
retruca. — Meu corpo, minhas regras.
— Já entendemos que você é uma vadiazinha empoderada.
Está querendo ganhar biscoito?
O xingamento atinge Lisbela como uma bola de
demolição. Tenta manter o controle, mas não é fácil.
Não sabe com quem está falando.
Não sabe com quantos está falando.
Ninguém pode ver ou ouvir se ela gritar.
— Essa conversa é uma perda de tempo. — Dá um tapa no
ar. — Se for para car me ofendendo, vou voltar para a sala.
A estática preenche o ar por tempo su ciente para que
ache que escapou daquela arapuca. Então desistiria, pediria
para sair da Casa de Vidro. Na frente dos outros participantes,
na frente do Brasil.
— Ele é talentoso atuando, não acha? — A voz ressurge.
— Hã?
— Lorenzo.
Lisbela arqueia as sobrancelhas.
— Tentou me jogar nos braços de Bento e agora está
elogiando meu namorado? Não estou entendendo.
— Só acho que seria uma pena se ele fosse demitido antes
de começarmos as gravações de Os Debochados.
“Filho da pu…”, pensa, com vontade de chutar as caixas de
som, mas se contém.
O segredo é ngir não se importar.
— Só mais um ou dois anos trabalhando no McDonald's
até surgir a próxima oportunidade — Lisbela rebate, plena.
— Um ou dois anos? Oportunidades assim só surgem uma
vez na vida.
— Como você disse, ele é talentoso atuando. Vai se virar.
Uma pausa carregada antes que a voz retorne:
— Se não se enforcar antes.
Então o chiado some, mergulhando a sala num silêncio de
cemitério que só paredes com isolamento acústico são
capazes de criar.
Um…
Dois…
Três segundos…
O desespero quica em seu peito feito uma granada prestes
a detonar.
É isso? Acabou? Sem mais tentativas de convencê-la a car
com Bento? Ameaças de destruir sua reputação?
Recompensas? Carro, dinheiro ou qualquer merda que faça a
produção deixar Lorenzo fora da discussão?
Então as imagens ressurgem, horripilantes:
O banquinho tombado.
A corda partida.
O corpo frio.
“Lorenzo?! Lorenzo?!”
— Ele já assinou o contrato — dispara, alto o su ciente
para não ser ignorada.
O chiado retorna com uma risada debochada, que beira o
macabro ao se misturar com a distorção do áudio.
— Contrato?! Quem manda na porra da Rede Astro sou eu,
vadia!
Quando percebe que mordeu a isca, é tarde demais. Sua
máscara de rainha do gelo trincou, e por entre as rachaduras
deixou transparecer o quanto se importa com Lorenzo.
— Os jornais não vão gostar de saber sobre a nossa
conversa — Lisbela parte para o ataque.
— É incrível como tem gente que não se enxerga — a voz
retruca. — Você não passa de uma subcelebridadezinha do
Instagram. Não tem dinheiro, não tem contatos na imprensa.
Em quem acha que vão acreditar?
Uma esfera densa se forma em sua garganta.
Não consegue engoli-la.
— Lorenzo não tem nada a ver com isso — murmura.
A voz suspira, assumindo um tom perturbadoramente
paternal:
— Não quero que pense em mim como o vilão da história,
mas você tem que entender que, a partir do momento em que
se entra na Casa de Vidro, é a vontade do público, não a sua,
que determina o que acontece. E o público quer você e Bento
juntos.
— E se eu disser não?
— Você não vai dizer não.
Sabendo que a voz está certa, enterra o queixo no peito,
segurando o choro.
Sim, aquilo ia contra tudo em que acreditava, mas a
con ssão de Lorenzo ressoa em sua memória como uma
melodia triste:
“Esse papel salvou minha vida”.
— O que quer que eu faça? — pergunta, derrotada.
A voz de comando dá as instruções. Lisbela estranha, mas
acata. Fica de pé e empurra a poltrona. Músculos tensos,
agacha-se e retira as quatro peças de porcelanato do piso
recém-descoberto, até encontrar…
Uma caixa preta.
— Abra a caixa e pegue o objeto dentro — a voz ordena.
Lisbela obedece.
— O que é isso? — questiona, franzindo a testa.
— Um chip controlador de mentes.
Ela ergue os olhos assustados para o vazio à sua frente, os
lábios tremendo feito minhoquinhas epilépticas.
— É um microponto eletrônico, sua anta — a voz corrige,
distorcendo o áudio em mais uma risada. — Vamos usá-lo
para passar instruções durante o programa.
Vulnerável demais para ligar para a pegadinha ou o
xingamento, examina o dispositivo, rolando-o entre o polegar
e o indicador.
— Como coloca?
— Face interna do tragus.
Não tem ideia do que é “tragus”, mas instintivamente
retira a película adesiva da superfície do microponto e o
posiciona numa das reentrâncias formadas pela cartilagem
da orelha.
— Consegue me ouvir?
Seu coração dispara.
A voz de comando não está mais fora, mas dentro,
in ltrando-se em seu crânio, confundindo-se com seus
pensamentos.
— Sim — sussurra.
— Alguma interferência?
— Não.
— O volume está bom?
— Sim.
— Coloque as peças de porcelanato e a poltrona de volta no
lugar.
Lisbela obedece.
— Agora, já que está sendo uma boa garota, faça um favor
a si mesma e que com Bento na festa de amanhã à noite.
Quando o canal se fecha pela segunda vez, o choro rompe
a barragem do autocontrole.
Foda-se que estão assistindo.
Foda-se que estão rindo.
Nossa heroína passa os próximos cinco minutos
guinchando e tremendo no meio da sala, as lágrimas
deslizando pelas bochechas feito cera derretida.
Atordoada, espera os olhos secarem e caminha em direção
à porta. Está prestes a girar a maçaneta quando a voz de
comando ressurge:
— Já disseram que você parece uma fuinha chorando?
Hoje