Depois Da Caixa Preta - Rafael Weschenfelder

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"Quando o mundo estiver
unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e
poder, então nossa
sociedade poderá enfim
evoluir a um novo nível."
Sumário
Folha de rosto
Créditos
Depois da Caixa Preta
Sobre o autor
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Copyright © 2022 Rafael Weschenfelder
Edição: Mariana Dal Chico
Revisão: Graziela Reis e Clarissa Progin
Capa: Marcus Pallas
Diagramação: Deborah Silva
Hoje
29º dia

Chayene encara o prato esquecido na pia.


Está sujo, os pedaços de macarrão à bolonhesa
lambuzando as bordas como minhocas brotadas da terra.
Ao lado, na bancada, outros onze estão pendurados no
escorredor, brancos e cheirando a detergente.
Risinhos zombeteiros cortam o ar. Chayene olha para a
esquerda e dá de cara com Sa ra, Wemerson e Gael
observando-a do balcão.
Segundo a escala xada na geladeira com ímã de pinguim,
era a vez de Sa ra cuidar da louça, mas…
— Até comecei a lavar. Então lembrei que o prato era seu e
quase gorfei na pia. — Ela faz careta. — Desculpa, é mais forte
que eu.
Chayene não responde, mas percebo os tendões de seu
antebraço tracionarem feito cordas de violão. Indignado,
ergo-me do pufe amarelo para socorrer minha amiga.
— Deixa que eu lavo para você — digo, fuzilando o
Triozinho do Mal com o olhar antes de pegar a bucha.
Tarefa cumprida, caminho até a mesa de jantar para fazer
companhia a Chayene.
Pouso a mão em seu ombro.
— Não liga para eles.
Mas ela está no modo estátua-de-cera-re exiva, o cotovelo
apoiado sobre o tampo de madeira rústica enquanto encara o
vazio. Só não consegue controlar a barriga, que emite um
ronco comprido e tristonho.
— Ainda com fome? — pergunto, com um sorriso.
— Não — ela responde, sem um sorriso.
— Se quiser, posso preparar uma salada condensada de
sobremesa.
Chayene enruga as sobrancelhas.
— Uma o quê?
— Salada condensada — repito, como se fosse a coisa mais
óbvia do mundo. — Salada de frutas com leite condensado.
Minha especialidade.
— Valeu, mas não precisa.
Seu agradecimento utua pelo ar como o “psiu” de uma
bibliotecária, mas ainda não desisti de lhe arrancar um
sorriso.
— Olha quem está no jardim falando mal dos outros de
novo — digo, apontando.
Chayene ergue o rosto e espia através da parede de vidro:
no gramado da área externa, uma Júlia exaltada discursa para
Afonso, Sarah e Graciane, abrindo e fechando a boca a uma
velocidade de cinco palavras por segundo.
Será que minha amiga morderia a isca?
Chayene é dubladora. Viralizou no Tik Tok depois de
imitar a voz de Ana Maria Braga, Dilma, Larissa Manoela e
outros ícones da cultura brasileira. Dublar os outros
participantes é uma brincadeira nossa.
Bobo? Talvez, mas até que damos umas risadas.
— Algumas pessoas não mudam — Chayene sussurra, a
voz monótona como as águas de um mar sem ondas.
Se estivéssemos num lme, a trilha sonora de nosso
quase-diálogo seria o trá-trá-trá das metralhadoras da sala de
games. “Assim não dá!”, escuto Luca chilicar, provavelmente
após ser morto por Tato e sua pontaria perfeita de jogador
pro ssional de Free Fire.
Estou quase aceitando minha derrota quando a voz de
Chayene ressurge das cinzas:
— Acho que vou encarar essa salada condensada.
Meu olhar cintila.
— É para já. — Ergo-me da cadeira com um ar de
Masterchef. — O tempo de preparo é de cinco minutos. A
senhorita gostaria de uma porção de granola para
acompanhar?
— Claro — ela responde, com uma risadinha.
Comemorando em segredo, dou um pulo na despensa para
pegar banana, maçã, mamão e abacate e os coloco na
bancada. Abro a primeira gaveta sob a pia e remexo o kit
exageradamente completo de dez facas coloridas — presente
de alguma das marcas patrocinadoras do programa — até
encontrar uma de tamanho adequado, azul.
— Quando vai me ensinar a fazer o choro da fuinha?
Viro o tronco e me deparo com os alargadores graúdos de
Afonso.
O “choro da fuinha” é uma referência à décima oitava
temporada de “Os Debochados” — série adolescente exibida
pela Rede Astro de televisão —, em que interpretei um
estudante pseudointelectual que chorava de um jeito caricato
e escandaloso. Fofocas de bastidores diziam se tratar de uma
piada interna dos diretores, cujo senso de humor duvidoso
acabou me transformando em meme depois que um troll
comparou meu choro aos grunhidos de uma fuinha.
Passados dois anos e duas participações em novelas das
nove, continua sendo meu maior legado como ator.
— Quando você me pagar um jantar, talvez — respondo,
com uma piscadela.
Ele ri entredentes, então caminha até o ltro para encher o
copo com água.
— Do que estavam falando no jardim? — pergunto ao
lembrar que Afonso fazia parte da rodinha de Júlia.
— Só jogando conversa fora.
Estreito as pálpebras como um jogador de truco
descon ando de um blefe.
— É assim que se chama combinar votos hoje em dia?
— Pois é, ajuda a suavizar a ideia. — Ele entorna o copo,
sedento. — Se quiser se juntar a nós…
Uma proposta tentadora: fechar-se num grupo, controlar
o jogo e mandar os outros participantes para a Fogueira para
que o público os elimine.
O primeiro alvo deles com certeza seria…
Como se meu pensamento a chamasse, Chayene passa
entre nós, obrigando-me a dar um passo para trás.
— Quem sabe da próxima — respondo, dando um tapinha
nas costas de Afonso.
— Lorenzo, Lorenzo… — Ele revira os olhos, ngindo
decepção. — Não quer me ensinar a fazer o choro da fuinha,
não quer combinar votos. Assim ca difícil investir na nossa
amizade.
Falar em amizade quatro semanas depois de conhecer
alguém parece exagero, mas meu sexto sentido diz que posso
con ar em Afonso.
Trocamos mais uma ou duas al netadas antes de nos
despedirmos. Lembrando da salada condensada, redireciono
minha atenção para a gaveta.
Meu cérebro buga.
A faca azul…
Sumiu.
Com um mau pressentimento, olho por sobre o ombro e
me dou conta de que Chayene não está mais à mesa. Giro 360
graus e espio através das paredes transparentes da casa a
tempo de agrar minha amiga no meio da sala de estar,
caminhando rumo aos quartos. Sem hesitar, cruzo a cozinha
em sua direção.
Chamo seu nome e ela se vira, branca como uma página
vazia do Word. Antes que me aproxime, senta-se na borda do
sofá para disfarçar a postura nada anatômica de seu braço
esquerdo.
Nos encaramos com estranheza. Ela percebe que saquei
sobre a faca e se afunda nas almofadas, as mãos recolhidas
dentro das mangas da jaqueta. Acuada, afasta os lábios para
dizer algo.
— Chayene, favor comparecer à Caixa Preta.
A voz que inunda a casa pelos alto-falantes é rouca,
impossivelmente grave para não ter sido distorcida por
algum programa de computador. Se Deus tivesse uma voz,
seria como aquela.
A voz da produção.
Enfeitiçada pelo comando, Chayene se levanta, desliza
pela sala e mergulha no corredor. Por
re exo/instinto/desespero, vou atrás dela, mas seu passo é
mais rápido, e minha amiga desaparece pela porta da
estrutura preta em formato de cubo antes que eu possa falar
“paralelepípedo”.
Fico plantado no piso gelado de granito feito samambaia,
processando os acontecimentos. Há quatro câmeras na
cozinha, nenhuma com visão lateral da bancada. Não seria
difícil roubar utensílios das gavetas e sair de ninho.
Mas parece que a produção percebeu. Ou, se não, pelo
menos sentiu aquele cheiro inconfundível de tem-algo-
errado-rolando.
“Melhor assim”, penso com meus botões, tremendo só de
imaginar a merda que poderia ter dado.
Com um suspiro, retorno à sala de estar, onde alguns
participantes já se esparramam pelo sofazão cinza,
aguardando o início da transmissão ao vivo.
— O que aconteceu? — pergunta Graciane ao me ver.
— Chayene foi chamada para a Caixa Preta.
— Não me diga, Sherlock — retruca Sarah, torcendo o
nariz. — O que ela aprontou?
— Não faço ideia — minto, sem querer expor minha
amiga.
— O Caião aqui também foi chamado para a Caixa Preta na
semana passada. — Ela dá um peteleco na orelha de um cara
troncudo com barba estilo lenhador. — Esqueceu de tirar o
microfone antes de pular na piscina. Levou uma puta bronca.
— A bronca é o de menos. — Caio bufa com desdém. —
Eles me zeram acordar às seis da manhã por cinco dias
seguidos.
Num exercício de comparação, começo a me perguntar se
a punição de Chayene seria car cinco dias sem dormir
quando uma voz feminina se ergue, afrontosa:
— Sua amiga podia aproveitar que a produção quer
conversar com ela e desistir do reality. Não precisamos de
gente escrota aqui.
Com seu imenso coque rosquinha, Sa ra é o próprio polo
magnético da sala, ao redor do qual o ar é mais pesado. As
sobrancelhas grossas emolduram um olhar irreverente e
desa ador.
— Acho que sua de nição de “gente escrota” precisa ser
atualizada, querida — rebato, sem me deixar intimidar.
Dez pescoços giram na minha direção, como que
perguntando: “Ele disse isso mesmo?”
— Se você soubesse o absurdo que está falando…
Sim, eu sei o absurdo que estou falando. Estou falando de
uma Chayene despedaçada por dentro que passou a tarde
inteira chorando as pitangas em meu ombro. Depois de duas
semanas comendo o pão que o diabo amassou nas mãos do
Triozinho do Mal, ela realmente estava cogitando deixar o
programa com o pouco de saúde mental que ainda lhe
restava.
A raiva sobe pela minha garganta feito molho de pimenta,
mas a engulo.
— Não vou perder meu tempo discutindo com você —
digo, por m.
Expectativas de barraco frustradas, abandonamos nosso
cargo temporário de centro do universo. Aos poucos, a
atmosfera se descomprime e as conversas ressurgem.
Mas meus músculos continuam tensos.
Da parede, o velho relógio de pêndulo sussurra seu canto
mecânico:
Tic, tac
O que Chayene pretendia fazer com a faca?
Tic, tac
Ameaçaria Sa ra?
Tic, tac
Ou ameaçaria a própria vida?

Outros milhares de tic-tacs se seguem até minha amiga


sair da Caixa Preta, percorrer o corredor, cruzar a sala e se
sentar no pufe preto.
Silêncio.
Ninguém tem coragem de falar com ela.
Sabem que soaria falso, mais curiosidade que preocupação
genuína. A nal, quem ignora uma pessoa por duas semanas
e depois pergunta se ela está bem?
Sem estômago para encarar a segunda torta de climão da
noite, Afonso nge um ataque de tosse. Greiciane aproveita a
distração e acerta uma cotovelada no meu fígado ao melhor
estilo sua-vez-de-agir-campeão.
Não quero expor Chayene, bombardeá-la com perguntas
que ela não quer ou não pode responder e transformar a coisa
num espetáculo.
Mas ela certamente precisa do meu apoio.
Estou prestes a me levantar quando o telão em frente ao
sofá se acende.
— Boa noite! — diz um sujeito de quarenta e poucos
usando cartola e casaco brilhoso de apresentador de circo.
— Boa noite, Zeca! — respondemos em coro.
Ele leva a mão enluvada ao rosto, ngindo decepção.
— Com essa animação toda já podem trabalhar de
recepcionistas de funerária.
Achar graça nas piadas de tiozão de Zeca parece ser um
dos pré-requisitos para ingressar no reality, já que a maioria
de nós se desmancha em risadinhas forçadas. O assunto da
vez é a festa de amanhã, que contaria com a presença de uma
cantora famosa não revelada.
— A única dica que posso dar é que ela já teve um caso
com o MC Brinquedo — declara Zeca, com ar de mistério.
Do pufe preto, Chayene acompanha o falatório, alargando
um sorriso quando o apresentador anuncia o cardápio da
festa: mini-hambúrgueres e guacamole.
Mas tem algo de errado com ela. Sua boca passa uma
mensagem, seu olhar, outra.
Não é a primeira vez que me deparo com aquele olhar.
Inexpressivo.
Robótico.
Foi por causa dele que entrei na Casa de Vidro.

3 anos atrás

O olhar de Lisbela é um misto de preocupação e


entusiasmo quando ela surge pela porta. O top suado e a mala
rosa da Nike sugerem que acabou de gravar um treino para o
seu canal no YouTube.
— Como está meu galã de novela preferido? — pergunta,
largando a mala sobre a mesa e se sentando ao meu lado no
sofá.
Em condições normais de temperatura e pressão, eu
pegaria o controle e pausaria a série de comédia que estou
maratonando. Mas a TV desligada mostra apenas um garoto
cabisbaixo de olhos encovados, também conhecido como “eu
mesmo”.
— Bem, acho — respondo.
— “Bem, acho”? — Ela apoia as mãos na cintura, esticando
a folha de oliveira tatuada sobre a clavícula esquerda. — Vou
sair para o hall e entrar de novo para recomeçarmos.
— É estranho. — Seguro sua mão e a jogo para cima
repetidas vezes. — Como se eu pudesse acordar a qualquer
momento e descobrir que estou sonhando.
— Só tem um jeito de saber.
Antes que eu pergunte “qual?”, ganho um beliscão no
braço.
— Ai! — retruco, sem contrariar o clichê.
— Cem por cento acordado.
Seu esforço para dar um up no meu humor está prestes a
desativar meu modo porco-espinho-arisco quando percebo
seu olhar em meu pescoço. Num gesto automático, afasto-me
em direção ao canto do sofá e ergo a gola da camiseta.
— Foi mal. — Lisbela enruga os lábios. — É difícil não
reparar.
— Tudo bem — digo, amansando a voz. — Os médicos
disseram que a cicatriz vai desaparecer em algumas semanas.
Sopradas pelo inverno paulistano, as cortinas se projetam
para dentro da sala como fantasmas epilépticos. Entre mudos
e calados, segundos pesam como eternidades.
— Esse papel salvou minha vida — confesso, por m.
Lisbela abre a boca para contestar, mas muda de ideia.
— Eu sei.
A história começa dez anos atrás, quando eu era apenas
um garotinho sonhador do segundo ano do fundamental. Era
Dia dos Pais, e a Professora Magda, sabichona metida a
guardiã da cultura brasileira, resolveu encenar “O Auto da
Compadecida”.
Sendo o único da turma a não revirar os olhos para a ideia,
não foi difícil descolar o papel principal: João Grilo, ajudante
de padeiro com uma lábia capaz de convencer um padre a
fazer o velório de um cachorro em latim.
Decidido a dar uma modernizada no roteiro — uma
adaptação encenada no Teatro Abril em 1976, época em que
as pessoas usavam gírias como “me diverti à beça” e “xuxu
beleza!” —, acrescentei meia dúzia de falas autorais no ensaio
da véspera.
O resultado? Tia Magda cortou minhas asinhas e fui zoado
pelo resto do ano.
Só uma pessoa aplaudiu.
A garota com a pinta charmosa acima dos lábios.
Lisbela.
Anos depois, ela confessou que foi naquele momento que
se apaixonou por mim. Se é mais uma daquelas histórias
romantizadas de como os casais se conheceram, nunca
saberei, mas o fato é que Lisbela sempre esteve ao meu lado
em meu sonho de me tornar ator.
Quando distribuí pan etos de minha primeira peça de
teatro pelo grupo “Jovens Talentos”, na Avenida Paulista, ela
estava lá.
Quando contei ao meu pai que faria faculdade de artes
cênicas e recebi um belo de um “Eu não criei lho meu para
isso”, ela estava lá.
Quando fui rejeitado em meu primeiro teste de elenco e
quei jururu, ela estava lá.
E no segundo…
E no terceiro…
E no quarto…
E no quinto…
Quando duvidei de mim mesmo.
Quando mergulhei de cabeça na bad.
Quando comecei a abusar do Zolpidem para passar mais
tempo dormindo do que acordado.
Quando, num pacto secreto de vida ou morte, me
arrisquei no teste para a nova temporada de “Os
Debochados”, esqueci as falas e fui humilhado pelo
preparador de elenco.
Só não estava lá quando subi no banquinho e amarrei a
corda ao redor do pescoço.
Chegou cinco minutos depois.
Mas a cereja do bolo de meu inferno pessoal foi o e-mail de
Jairinho — diretor de “Os Debochados” e todo poderoso da
Rede Astro —, que pipocou em minha caixa de entrada
enquanto o SAMU me transportava para o hospital.
“Não ligue para nosso preparador de elenco. Ele não sabe o
que diz. Deu branco na última hora, mas a improvisação foi
boa. Fabulosa, para ser justo. Temos um papel perfeito para
você.”
Sinto que o Diabo está rindo de mim até hoje.
— Quando começam as gravações? — pergunta Lisbela,
dando soquinhos em minha perna.
— Pelo que disseram no grupo do Whats, treze de agosto.
— Hum… — murmura. — É uma pena, mas não vou poder
assistir.
— Por quê?
Ela me encara com um ar enigmático de maga sábia.
— Namoros entre subcelebridades do YouTube e famosos
de verdade não costumam dar certo, então resolvi seguir seus
passos.
Um enorme ponto de interrogação surge sobre minha
cabeça, e estou quase perguntando “O que você fumou?”
quando a cha cai.
— Não vai me dizer que…
— Sim! Entrei para a Casa de Vidro!
Não sou o único nesse relacionamento a sonhar grande.
Desde que completou dezoito, Lisbela não perde uma
abertura de inscrições para a Casa de Vidro, reality show da
Rede Astro que reúne anônimos excêntricos,
microin uenciadores digitais e personalidades apagadas do
meio artístico.
E, agora, a mais nova musa tness do Brasil.
— Não creio — sussurro, engolindo a tristeza por um
momento.
— A carta chegou hoje de manhã. — Lisbela aponta para a
cômoda. — Fiquei pensando na melhor forma de te contar.
Eu até tinha reparado no envelope cor de pergaminho,
mas não dei atenção. Uma conta de luz atrasada ou uma
ordem de despejo eram in nitamente mais prováveis que um
convite para qualquer coisa que seja.
Curioso, ergo-me do sofá e cruzo a sala. Examinando-o de
perto, percebo que o papel é granulado, com um selo de cera
que Lisbela rasgou de qualquer jeito. Com um cuidado sobre-
humano, retiro a carta de seu interior:
“Senhorita Lisbela, você foi uma das quinze candidatas
escolhidas para entrar na Casa de Vidro. Que a sorte esteja
sempre a seu favor, e que sua história toque o coração do
Brasil.”
Pisco para focalizar as letras elegantes de caligra a antes
que um sorriso descongele meu rosto.
Eu nos Debochados e Lisbela na Casa de Vidro: dois raios
caindo no mesmo lugar.
Se isso não é um sinal de que as coisas estão melhorando,
o que mais seria?
Sentindo uma bola de basquete quicando em meu peito,
estou prestes a erguer os braços e gritar parabéns, mas o
gesto morre no meio do caminho.
Lisbela está chorando.
— O que foi? — pergunto, aproximando-me de mansinho.
— É que… estou feliz. — Ela enxuga os olhos com as costas
das mãos. — Quando te encontrei caído no chão, semana
passada, pensei que não conseguiríamos dar a volta por cima.
— Seus lábios se abrem num risinho aguado. — Mas olhe para
nós agora!
Trinco os dentes.
Sei que não é a intenção de Lisbela, mas a culpa me atinge
como um tiro de bazuca.
Não é de hoje que tenho sido um peso, o namorado
depressivo e autodestrutivo que rouba as poucas horas de
sono que lhe restam depois que o algoritmo fdp do YouTube
diminuiu o alcance dos seus vídeos.
Mas isso mudaria a partir de agora.
Tinha que mudar.
— Nós conseguimos — digo, sincronizando nossas
lágrimas. — Graças a você.
Ela funga duas vezes antes de responder:
— Não fale assim. Somos um time.
— Qual é, amor, deixa eu jogar um pouco de confete que
você merece.
Ela afasta a franja grudenta dos olhos e sorri. Num gesto
decidido, levanta-se do sofá e aproxima seus lábios dos meus.
Se soubesse que seria a última vez que a beijaria, teria
abraçado Lisbela mais forte.

Hoje
30º dia

A Caixa Preta não é o único cômodo com paredes não-


transparentes da Casa de Vidro.
Tem os banheiros, por motivos óbvios, e a sala de games,
por abrigar um telão de duzentas polegadas com brilho full
color que dá de frente para os quartos.
A diferença é que as paredes da Caixa Preta são as únicas…
pretas. Feitas com vantablack, material composto por
nanotubos de carbono que absorve 99,965% da luz, desa am
a translucidez da casa como uma mancha de shoyu num
pano de prato.
É para elas que estou olhando quando a pergunta de
Graciane me resgata do mundo da lua:
— Você ainda não era famoso quando sua ex participou da
Casa de Vidro, né?
Passadas quatro semanas do início do reality, é a primeira
vez que alguém toca no nome de Lisbela. O “ex” faz minhas
tripas se contorcerem, mas disfarço e visto minha melhor
máscara de já-superei.
— Depende do ponto de vista — digo, erguendo as
sobrancelhas. — Interpretar Pluft, o Fantasminha, para uma
plateia de cinco pessoas me faz famoso?
Cruzando as pernas sob a calça folgada de moletom,
Graciane ri entredentes.
— Aposto que passava vinte e quatro horas por dia
assistindo ao pay-per-view.
— Sim, assinei o plano plus. Deixava ligado até quando ia
dormir.
— Mesmo depois que Lisbela…? — A frase decepada se
espalha pelo ar como um gás venenoso.
Contraio o maxilar.
Se Graciane não ganhasse o prêmio de dois milhões de
reais da Casa de Vidro, com certeza receberia o de
participante mais inconveniente.
— Ah, não — respondo, chacoalhando a cabeça. — No dia
seguinte, doei a TV para um lar de idosos.
A estratégia de fazer piada com o grande trauma da minha
vida parece funcionar, pois Graciane ri pela segunda vez,
encarando-me com uma ingenuidade infantil.
Mas a bichinha é insistente…
— Vocês chegaram a conversar depois que ela foi
eliminada?
— Não — minto, com um gosto amargo na boca. — Não
nos vimos mais.
— Hum… Melhor assim, né?
— Acho que sim.
Pensando seriamente em ngir um desmaio para escapar
da próxima pergunta, dou graças a Deus quando Sa ra surge
para me salvar.
— Precisamos de ajuda com o jantar — diz, braços
cruzados estilo badass. — Qual dos dois está a m de cortar
cebola?
Sequer tenho tempo de pensar numa desculpa quando
Graciane ergue a mão, como uma aluna ansiosa para
responder à pergunta mais difícil da aula.
— Pode contar comigo!
Sua animação me irrita, mas é bem-vinda. Se fosse eu, não
sei se choraria por causa da cebola ou por estar fazendo
qualquer coisa que seja com Sa ra.
— Mas, antes, que tal uma sel e!? — sugere Graciane,
sacando o celular do bolso e nos enquadrando num close
torto antes que eu ou a vilã da casa possamos impedi-la.
Claro, não podemos trazer nossos celulares, mas
ganhamos um assim que o programa começa. Sem internet
ou joguinhos, somos obrigados a tirar pelo menos cinco fotos
por dia, que enviamos para a produção através de um
servidor interno. Com sorte — alguns diriam azar —, uma
delas é aprovada e publicada no Instagram o cial da Casa de
Vidro.
Sel e tirada, assisto a Graciane e Sa ra desaparecerem na
cozinha. Ergo-me do sofá e caminho até a parte externa da
casa, atraído por risadas e som de água.
Na piscina, Júlia se equilibra sobre os ombros de Caio, as
mãos projetadas para frente numa postura ameaçadora.
— Ei, não vale puxar o cabelo! — reclama Sarah,
espremendo o pescoço de Tato entre as coxas para não cair.
— Ah, vai, para de chorar — retruca Júlia, competitiva.
Alheia àquela batalha épica, Chayene folheia um livro no
futon da varanda.
Adoraria dizer que minha amiga me ignorou desde que foi
chamada para a Caixa Preta, que não me procurou para
almoçar, que desviou o olhar quando nos encontramos no
corredor.
Faria mais sentido.
Mas ela simplesmente… agiu como se nada tivesse
acontecido.
— O Pequeno Príncipe? — pergunto, espiando a capa ao
me aproximar. — Só podemos trazer um livro para cá. Por que
não escolher um que demore mais que trinta minutos para
acabar?
Ela marca a página com a caneta marca-texto e exibe um
sorriso plasti cado.
— De onde acha que tiro as frases cults que uso nas
legendas das minhas fotos?
— Não tão original. — Dou de ombros. — Sarah já tem
uma frase do Pequeno Príncipe tatuada no tornozelo.
— Sério? Qual?
— “O essencial é insensível aos olhos”.
Chayene faz careta.
— Você quis dizer invisível, não?
— Foi o que eu disse.
— “O essencial é insensível aos olhos” — ela tira sarro de
mim, transformando sua voz numa réplica
assustadoramente perfeita da voz de Sarah.
Vendo-a assim, toda pimpona, é difícil acreditar que
surrupiou uma faca da cozinha doze horas atrás.
Nem parece a mesma pessoa.
Sem saber como preparar o terreno, vou direto ao ponto:
— Desistiu de abandonar o programa?
De per l, Chayene estreita os olhos para o restinho
alaranjado de sol naufragando no horizonte
— Não é fácil abrir mão de dois milhões de reais — diz, por
m.
— Não foi isso que disse quando conversamos ontem à
tarde — retruco, ressentindo suas lágrimas a itas em minha
pele. — Foram eles que te convenceram?
— Eles?
— A produção.
Um tremor discreto percorre o hemisfério esquerdo de seu
rosto, como quando um mosquito passa zunindo perto da
nossa orelha.
— Não foi por isso que me chamaram. Foi por causa da
minha mãe.
— Sério? — pergunto, com um mau pressentimento. —
Aconteceu alguma coisa com ela?
A produção não chama os participantes para a Caixa Preta
só para dar bronca.
Ela também dá notícias.
Teoricamente, não podemos ter contato com o mundo
exterior, mas o que seriam das regras sem as exceções?
Duas, na verdade:
Notícias muito boas, como o nascimento de um lho.
Notícias muito ruins, como…
— Minha mãe pegou COVID — Chayene responde,
enterrando o queixo no peito.
Mordo o canto interno da bochecha.
— E como ela está?
— Melhorando, mas ainda internada.
— Espero que… ela tenha alta logo — digo, colocando a
mão em seu ombro. — Se precisar conversar…
Uma sombra perpassa seu rosto.
— Obrigada, amigo.
Mais do que nunca, co sem entender. Se Chayene já tinha
motivos para deixar a Casa de Vidro antes, agora, então…
Está cheirando a mentira.
— Não discutiram sobre o que aconteceu na cozinha? —
questiono.
Como estamos sendo vigiados, co pisando em ovos. “O
que aconteceu na cozinha” é vago, ambíguo. Pode signi car
tanto o roubo da faca quanto o bullying do prato sujo.
Caberia a Chayene escolher.
— Ah, isso… — diz, estalando a língua no céu da boca. —
Decidi parar de ligar para o Triozinho do Mal. Assim não me
machuco.
Escolha errada.
Minha mente começa a elaborar uma réplica indignada
quando ela se ergue do futon.
— Vou ao banheiro — diz, espreguiçando-se. — Página
quarenta e dois. Grifei uma frase para você. Só vê se decora
direito dessa vez, hein, senhor insensível?
Eu até responderia com um risinho se não estivesse
remoendo aquela conversa bizarra que não foi nada do que eu
esperava.
Chayene se afasta pelo jardim, deixando um Lorenzo com
cara de tacho ncado no piso antiderrapante da varanda. Sou
trazido de volta à realidade pelo splash de Sarah, que
despenca dos ombros de Caio como uma manga madura.
— Sete a quatro! — grita Júlia, a grande campeã dos jogos
aquáticos da Casa de Vidro.
Do sofá, o Pequeno Príncipe me engole com seus olhos de
pontinhos pretos. A edição é daquelas chiques, de capa dura e
texturas rugosas nos desenhos. Leitor que sou, começo a
folheá-la, torcendo o nariz para rabiscos, setas e anotações
que poluem as páginas.
“Página quarenta e dois”, repito no pensamento, curioso
para saber que frase Chayene escolheu para mim.
Assim que chego lá, meus ossos tremem.
Com o pouco de sangue frio que me resta, abaixo o livro e
o aproximo do peito para escapar das câmeras.
Leio mais uma vez, sem acreditar.
Em verde marca-texto, cruzando as duas páginas, uma
única palavra:
“SOCORRO”.

Hoje
57º dia
Percorro o circuito pela 220ª vez e faço a dancinha do
Claudinho e Buchecha sobre a linha de chegada. Missão
cumprida, apoio os braços nas coxas para recuperar o fôlego,
o suor escorrendo pela testa em gotas espessas e salgadas.
O alarme ecoa pelo jardim, e Luca repete meus
movimentos. Vacilando, desvia dos cones, correndo contra a
contagem regressiva do cronômetro instalado ao lado da
piscina.
Passadas seis horas do início da prova, somos os únicos
sobreviventes.
O último a cair é o líder.
Toda semana, dois participantes são mandados para a
Fogueira para enfrentar a votação do público, que decide
quem sai e quem ca.
O primeiro enfogueirado é escolhido pelos próprios
participantes, por maioria simples. Às quintas-feiras a
produção nos chama, um por um, para justi car por que a
pessoa x ou y é falsa/dissimulada/manipuladora e merece
deixar a Casa de Vidro.
Já o segundo é escolhido pelo próprio líder, que, além de
passar a semana num quarto com banheira de
hidromassagem e cama King Size, ainda ganha imunidade,
não podendo ser mandado para a Fogueira.
E é por causa da imunidade que ainda estou de pé,
ignorando o sofrimento de meus joelhos triturados. A nal,
não posso me dar ao luxo de ser eliminado do programa.
Não antes de descobrir o que realmente acontece na Caixa
Preta.
Assim que Luca termina a dancinha, quase colocando os
pulmões para fora, o alarme anuncia a minha vez.
Preparar, correr!
Chayene nos observa da varanda com seu olhar robótico.
Tenho trocentas perguntas entaladas na garganta, mas
câmeras e microfones transformam seu pedido de socorro
em assunto proibido. Cheguei a pedir para que me mostrasse
outras frases de O Pequeno Príncipe, mas ela se fez de sonsa.
Talvez esteja com medo. Se descon arem que estamos nos
comunicando pelo livro, ferrou.
Com o sol chicoteando minhas costas, contorno o último
cone do circuito e requebro até o chão, balançando o braço
como uma tromba.
Quando escuto o alarme soar novamente, sei que venci.
Assisto a Luca cambalear ao meu lado. Em seus olhos, o
orgulho do brasileiro que não desiste nunca se esvai feito
espumas ao vento. Pressionado pelo cronômetro, tropeça nos
próprios pés e desaba na grama.
— E o novo líder da Casa de Vidro é Lorenzo! — declara a
voz de comando das caixinhas de som.
Agradecendo os parabéns protocolares dos outros
participantes, arrasto-me até a cozinha e me entupo de água
antes de desabar numa das poltronas da sala estar.
Fecho os olhos e respiro fundo, aliviado.
— Ganhar uma prova de resistência não é para qualquer
um, hein?
Abro as pálpebras e me deparo com uma barba bem
aparada e uma cara de quero-ser-seu-amigo: Wemerson,
membro do Triozinho do Mal.
Se trocamos quatro ou cinco palavras desde o início do
reality, foi muito. E, se dependesse de mim, não passaria
disso. Grande parte das piadinhas e humilhações que
Chayene sofreu nasceram de sua mente diabólica de quem foi
vítima de bullying na escola e agora quer descontar nos mais
fracos.
— Se não ganhasse, alguém me mandaria para a Fogueira
— retruco, na zoeira.
Não tão na zoeira assim, já que descobri que Wemerson
votou em mim na semana passada.
— Ah, não ca chats com isso não — amansa o tom,
ocupando a poltrona à minha frente. — Nada pessoal. Só
questão de jogo.
— O jogo fode com tudo — concordo. — Mas tenho certeza
de que vamos todos nos abraçar e sair para beber quando o
programa acabar, né?
Ele me analisa por um instante, provavelmente se
perguntando se a legenda “contém ironia” deveria ser
incluída ao meu comentário. Em outra ocasião, eu inventaria
uma desculpa para dar o fora dali e dormir por doze horas
seguidas, mas a curiosidade me mantém enraizado à
poltrona.
A nal, Wemerson não veio conversar comigo por acaso.
— Sei que estamos em lados opostos — confessa,
subitamente sério —, mas preciso discutir um negócio
contigo.
— Manda aí.
Ele inclina o tronco para frente e entrelaça os dedos.
— Acho que a essa altura já deu para perceber que o
público apoia Chayene. Sua amiga voltou de três Fogueiras
seguidas.
“Yes, bitch!”, penso em dizer, mas o eterno jogo de
aparências da Casa de Vidro me obrigada a ser comedido:
— Não dá para ter certeza. Caio e Sarah também zeram
merda. Deram motivos para ser eliminados.
— Mas Jade não.
Quando o público escolheu Chayene na Fogueira contra
Caio, o Triozinho do Mal chiou, mas não surtou. O
marombado foi agrado assaltando a geladeira de
madrugada depois que Júlia descompensou e gritou para os
quatro ventos que seu peito de peru tinha acabado rápido
demais. O mesmo com Sarah, que fez um comentário
homofóbico sobre a voz de Luca e ainda tentou se justi car
dizendo que o coitado estava de mimimi.
Mas quando Chayene enfrentou Jade — ativista vegana de
dezenove anos que se posicionava nas brigas com a sensatez
de uma psicanalista experiente — e ganhou, tudo o que
acreditávamos saber sobre o jogo foi por água abaixo.
— Lembra daquela famosa frase do Faustão sobre a Casa
de Vidro?
— Odiado dentro da casa, amado fora? — arrisco,
estranhando a pergunta.
Ele faz que sim com a cabeça.
— Aconteceu no BBB 21 com Lucas e Karol, e está
acontecendo agora.
As semelhanças são indiscutíveis. Na edição anterior do
reality da Rede Globo, Lucas Penteado fez uma série de
leituras sociais distorcidas, acusando os outros participantes
de racismo. A casa não deixou barato: liderados pela
implacável Karol Conká, passaram a ignorá-lo e ridicularizá-
lo sistematicamente.
— Sa ra é uma designer em ascensão. Tinha acabado de
estourar no Instagram — Wemerson continua. — Estou com
medo pela sua carreira.
Ao perceber que sua preocupação orbita ao redor de Sa ra,
e não Chayene, sinto a raiva fermentar em meu estômago
feito leite estragado.
— Quem tem que se tocar da merda que fez é a sua
liderzinha, não você. — Wemerson não parece gostar do
“liderzinha”, pois contrai a bochecha. — Além do mais, parar
de torturar uma pessoa por medo de ser cancelado é fácil.
Sa ra é uma pessoa má. Só aceita.
— Ela não é má, só en ou na cabeça que o que Chayene fez
é imperdoável — retruca Wemerson, o passador de pano. — E
convenhamos que…
— Imperdoável é essa reação escrota e desproporcional
que vocês estão tendo — interrompo.
— Eu sei…
Nesse momento, Graciane cruza a sala em direção à
cozinha. Amassa a testa ao nos ver, como se descon asse que
Deus a transportou para um universo paralelo em que eu e
Wemerson conseguíamos dialogar civilizadamente.
— Tive uma conversa séria com Sa ra ontem à noite — ele
prossegue, assim que a xereta se afasta. — Ela admitiu que
errou com Chayene, que pegou pesado. Nunca pensei que
fosse ver aquela orgulhosa chorar, mas ela parecia uma
torneirinha. — Uma sombra se espalha pelo seu rosto
pontudo. — Mas então, depois da prova do líder…
Estreito as pálpebras.
— Então o quê?
— Ela mudou de ideia. Disse que não pediria desculpas
nem morta. Parecia outra pessoa.
Sem paciência para as oscilações morais de Sa ra, suspiro
fundo.
— Continuo sem entender por que está me contando isso.
— Fiquei me perguntando se você não poderia… conversar
com ela?
Pisco repetidas vezes, com a certeza de que Wemerson
endoidou de vez.
— Sa ra é sua amiga, não minha.
— Eu sei, mas você entende o lado de Chayene. Pode tentar
explicar a ela. Além do mais — ele hesita por um instante —,
a treta entre as duas tem um dedo seu.
Sinto uma esfera maciça se formar em minha garganta.
Ouvi dizer que Chayene falou várias merdas para Sa ra na
Festa do Pijama. “Ouvi dizer” porque estava no décimo quinto
sono quando a briga rolou, embalado por dois comprimidos
de Zolpidem.
Não sei que “várias merdas” foram essas, mas posso
imaginar. Horas antes, na festa, uma Chayene entupida de
álcool e sem ltro social pagou seus primeiros micos em rede
nacional.
Até deu em cima de mim.
— Como assim tem um dedo meu?
— Deixa para lá. — Wemerson estapeia o ar. — Só tenta
conversar com ela. Por favor. Sei que é difícil, mas pode fazer
a diferença.
Estou prestes a recusar quando percebo, por trás daquela
pose de jogador de xadrez frio e calculista, que o desgraçado
realmente se importa com Sa ra.
Mesmo que seja membro do Triozinho do Mal, como posso
ignorar isso?
— Vou pensar. — Dou o braço a torcer, sabendo que me
arrependeria em seguida.
Satisfeito, Wemerson assente com a cabeça. Está se
levantando quando meu cérebro conecta as duas pontas
soltas.
— Você disse que ela parecia outra pessoa? — murmuro,
tocando seu pulso.
— Hã?
— Você disse que, quando foi falar com Sa ra depois da
prova do líder, ela parecia outra pessoa.
— Força de expressão, né?
Sa ra torceu o tornozelo enquanto ziguezagueava pelos
cones. Sem mais nem menos, caiu no chão, guinchando de
dor. Foi socorrida pelos participantes que já tinham desistido
ou sido eliminados. Voltou mancando para a casa.
— Como está o pé dela? — pergunto. — Espero que não
tenha quebrado.
— O médico descartou fraturas e roturas de ligamentos.
Parece que só vai precisar usar tala por alguns dias.
— Ela chegou a conversar com a produção?
— Sim, quiseram saber se estava bem.
— Na Caixa Preta?
Wemerson faz careta.
— Claro. Onde mais?
Assim que nos despedimos, o cansaço pós-prova pesa
sobre meu corpo como uma bigorna de cartoon, mas minha
mente está soltando faíscas. Passo o resto da tarde andando
de um lado para o outro, recusando convites para jogar truco
e treinar na academia.
Considerando o triplo retorno de Chayene da Fogueira e a
tara do público por histórias que oponham opressores e
oprimidos, não é preciso ser um gênio para concluir que a
treta Sa ra X Chayene está entre os assuntos mais
comentados no Twitter, possivelmente fazendo a audiência
bombar.
E aposto que a produção faria de tudo para que essa treta
durasse até o último dia do programa.
Chayene queria sair, mas mudou de ideia após ser
chamada para a Caixa Preta. Agora o mesmo acontecia com
Sa ra, que, do nada, decidiu abrir mão do pedido de
desculpas que salvaria sua carreira.
A história de Lisbela está se repetindo na frente dos meus
olhos.
Sabendo exatamente o que tinha que fazer, entro no modo
Lorenzo-conversador-e-prestativo: ajudo com a faxina da
casa, jogo Free Fire com Luca e Tato e até ensino Afonso a
imitar o choro da fuinha.
A nal, não quero despertar suspeitas.
Atento aos ponteiros, espero dar cinco para meia-noite e
saio para a área externa. Como quem não quer nada, rodeio a
borda da piscina e uso minha voz desa nada para cantarolar
Evidências, do Zezé di Camargo e Luciano.
Era hora de agir.

2 meses atrás

— É possível desligar a energia da casa? — pergunto,


en ando um punhado de Onion Rings na boca.
O homem bigodudo que encrespa as sobrancelhas à
minha frente é Ezequiel, um dos vigias noturnos dos
Estúdios da Rede Astro responsáveis pelo setor 2B, onde ca a
Casa de Vidro.
— É complicado. — Ele beberica seu chá de cranberry com
desinteresse. — Além da energia da rua, a casa conta com
dois geradores reserva, um de cada lado da construção.
— Mas é possível? — insisto.
— Possível é, mas…
— Prometo pagar bem.
Seus lábios se alargam num sorriso felino.
— De quanto estamos falando?
Ao melhor estilo chefão do crime, tiro do bolso a caneta
que trouxe especialmente para a ocasião. Escrevo o valor
num guardanapo e o deslizo pela mesa de madeira rústica do
Outback.
Suas pupilas se agigantam com a sucessão de zeros.
— E então? — pergunto, con ante.
Percebo que o “sim” está prestes a transbordar de sua boca
quando um atendente excessivamente prestativo surge do
nada e aponta para o copo vazio de Ezequiel.
Contrariado, trinco os dentes.
Tinha que ser agora?
— Re l, senhor?
— Não, obrigado. Não quero me embriagar — responde o
tiozão do chá.
O atendente sorri com simpatia para garantir seus dez por
cento. Com um “Se precisar, estou logo ali”, se afasta da mesa.
— Só co me perguntando por que alguém iria querer
causar um apagão na Casa de Vidro — Ezequiel retoma as
negociações.
Encaro-o por alguns segundos, sombrio.
— Não posso dizer.
Ele endireita a postura e passa o braço ao redor do encosto
da cadeira ao lado, como se abraçasse seu amigo imaginário.
— É uma puta grana, mas do que adianta comprar um
carro zero da cadeia? Se for coisa ruim, posso me ferrar.
— Cadeia?! — repito, caindo na gargalhada. — Você acha
que vou fazer o quê? Matar alguém na casa?
Ezequiel ri entredentes para me acompanhar.
Um riso de nervoso.
— Vai saber… Vocês artistas são todos meio doidos.
Na mesa vizinha, um segundo atendente obcecado em
agradar traz o bolo de aniversário do Outback para um grupo
de estudantes do ensino médio. Empolgados, armam palmas
e começam o “Parabéns para você”.
— Se não é para matar alguém, por que precisa que as
câmeras estejam desligadas?
— Não posso dizer — repito, in exível.
Tenho a impressão de que Ezequiel está prestes a se erguer
da mesa e me deixar de mãos abanando, mas, passados cinco
segundos de indecisão, suspira fundo e dá de ombros.
— Acho bom o pagamento ser à vista.
Em meu interior: fogos de artifício.
O que digo: “Em dinheiro vivo, se quiser”.
— Quando vai ser? — questiona, mergulhando uma Onion
Rings no molho barbecue.
— Não consigo dar uma data. Depende de como vão estar
as coisas na casa.
— E como vou saber que chegou a hora? Vai mandar
mensagem por telepatia?
— Podemos combinar um sinal.
Percebo que uma adolescente de maria-chiquinha e
jaqueta cor de beterraba aponta em minha direção,
cochichando com as amigas.
Viro o rosto e ergo o capuz.
Não sou daqueles atores de nariz empinado que fazem
pouco caso dos fãs, mas tudo que não preciso no momento é
de alguém interrompendo nosso planejamento criminal para
pedir uma sel e.
— Um sinal? — Ezequiel franze o cenho. — Quer dizer que
vou ter que maratonar essa droga de programa enquanto
espero o príncipe se decidir?
— “Maratonar” seria um exagero — corrijo. — Todas às
terças e sextas, das 23h55 às 00h05, você vai acessar o pay-
per-view pelo celular. Câmera 27, da piscina. Estarei lá
quando chegar a hora.
Ele faz que sim com a cabeça, digerindo as instruções.
— E qual vai ser o sinal?
Com o cotovelo apoiado sobre a mesa, tento pensar em
algo nem tão óbvio nem tão bizarro. Eis que meus ouvidos
captam a música ambiente, por trás do burburinho: “Chega
de mentiras, de negar os meus desejos, eu te quero mais que
tudo, eu preciso do seu beijo”.
— Você gosta de sertanejo? — pergunto, com um sorriso
nostálgico.

Hoje
58º dia

Estou deitado no sofá da varanda com os olhos


semicerrados quando a luz da sala de estar se apaga.
Fingir dormir depois de doze horas de cones, dancinhas
dos anos 90 e sol escaldante não é uma tarefa fácil. A não ser,
claro, que você seja viciado em Zolpidem.
Um remédio criado pelo capeta: além de dar um sono da
porra, também causa amnésia. Não são raros os relatos de
pessoas “grogues de Zolpidem” que fazem as maiores
barbaridades e não se lembram de nada no dia seguinte.
Entretanto, basta passar uma noite sem tomar para car
ligado no 220.
Deixei a luz da sala acesa de propósito. Precisava saber o
momento exato em que Ezequiel destruiu os geradores.
Mergulhado na escuridão, espero alguns segundos para me
certi car de que não foi um apagão temporário. São duas e
vinte e sete da manhã, e sou a única alma acordada na casa.
“Se considerarmos uma margem de segurança, você terá
entre quinze e vinte minutos”, disse o segurança em nosso
último encontro.
Ou seja, preciso agir rápido.
Experimentando um formigamento nos membros, deixo
a revista de fofoca que usei como desculpa para cochilar
sobre a mesinha de centro, pego meu celular e me levanto.
Pela primeira vez na história do programa, o capricho
arquitetônico das paredes de vidro parece fazer sentido.
A nal, quem precisa de lâmpadas para se guiar pelos
cômodos quando se tem a lua?
Sorrateiro feito uma jaguatirica, cruzo a sala de estar e o
corredor até car frente a frente com a Caixa Preta.
É alta, dois ou três metros até os contornos se
confundirem com o céu poluído e sem estrelas. Curioso,
passo a mão por sua superfície rugosa e quente. É como um
tecido vivo, o coração necrosado de um gigante malé co de
conto de fadas.
Olho para os lados uma última vez para ter certeza de que
não vou ser surpreendido por algum sonâmbulo de plantão.
Seco as mãos suadas nos shorts e giro a maçaneta.
Aberta, claro.
Por que trancariam qualquer cômodo da casa mais
vigiada do Brasil?
Ligo a lanterna do celular antes de entrar para não ser
afogado pelas trevas. Como esperado, a Caixa Preta está vazia.
Não só de pessoas, mas de móveis, já que sua “decoração”
consiste numa poltrona, oito câmeras e quatro caixas de som
penduradas no teto.
Fecho a porta atrás de mim e suspiro fundo.
Minha única pista do que fazer em seguida é uma
conversa de três anos atrás.
Minha última conversa com Lisbela.
Sem perder tempo, deito-me no chão e encosto a orelha na
primeira peça de porcelanato do piso. Fecho o punho e bato
nela com as costas da mão.
“Maciço”, sussurro, repetindo o procedimento alguns
centímetros à frente.
“Maciço”.
“Maciço”.
“Maciço”.
Com exceção da porta que dá acesso à sala de estar, não há
passagens para outros ambientes. Ou seja, seria impossível
fazerem o que Lisbela disse que fazem naquele cubículo que
mais parece o quartinho da tortura de algum magnata
excêntrico.
A solução só poderia estar…
Embaixo.
Rastejando pelo chão, percuto peça por peça até alcançar a
parede da direita. Giro o corpo em noventa graus, avanço
para a peça seguinte e me esgueiro até a parede oposta. A
Caixa Preta mede dezesseis peças de largura por doze de
comprimento. Se conseguisse inspecionar cada uma em
trinta segundos, ainda assim gastaria…
Um tempão do caralho.
Os nós dos meus dedos já estão gritando de dor quando
chego à poltrona no centro do cômodo. Revestida com couro
sintético, tem encosto reclinável, como as das salas VIP de
cinema. Sua base larga ocupa o espaço exato de quatro peças.
Fico de pé e encaro o móvel com descon ança.
Eles não seriam tão óbvios, seriam?
Aproveitando o isolamento acústico, arrasto a poltrona
sem me preocupar com o rangido. Agacho-me e passo o dedo
sobre o piso descoberto: não há sujeira, ou grãos de poeira.
Grudo a orelha na primeira peça e ergo minha mão
trêmula.
“Oco”.
Com o coração martelando atrás da orelha, examino as
outras três peças e descubro que sua vizinha não é a única a
esconder segredos obscuros. En o as unhas no rejunte e sinto
que estão soltas.
Com um cuidado sobre-humano, retiro a primeira.
A segunda…
A terceira…
A quarta…
Olho para baixo.
Os primeiros degraus da escada se dissolvem num breu
denso e nada convidativo. Engolindo em seco, começo a
descida, meus ouvidos atentos aos perigos reais e
imaginários que me esperam. São quatro ou cinco metros até
alcançar o compartimento subterrâneo.
O pé direito é baixo, o su ciente para um jogador de vôlei
bater a cabeça se resolver fazer um saque. A lanterna do
celular cria um túnel luminoso de seis a sete metros, mas não
toca os limites da sala. Aumento o brilho para o máximo, sem
sucesso.
O quão grande é aquela porra?
Há uma maca acolchoada no centro, encostada a uma
mesinha metálica. Curioso, avanço alguns passos e ilumino
sua superfície: dispostos em la, instrumentos cirúrgicos
exibem lâminas e dentes como um batalhão de besouros
mecânicos.
Para que serviriam?
Com um péssimo pressentimento, caminho em direção
aos armários hospitalares que margeiam o cômodo. Brancos
como dentes de leite, exalam um odor enjoativo de
desinfetante.
Abro a primeira gaveta: gases, compressas e garra nhas
de álcool.
Abro a segunda: drenos de diferentes formatos fechados
em pacotes herméticos.
Abro a terceira: …
À minha frente, objetos retangulares encaixados num
suporte de acrílico. São nos, mais ou menos do tamanho de
clipes de papel. Meus dedos percorrem as ranhuras da ponta,
recobertas por um material holográ co.
Meu sangue congela.
Lisbela estava certa!
— Sssocoooorro.
O sussurro serpenteia pelo ar, inundando minhas veias de
adrenalina. Com um pulo, aponto a lanterna para a direita.
— Quem está aí?
Silêncio de buraco negro.
— Quem está aí? — repito, mais alto.
Sem conseguir controlar o tremor de minhas mãos,
assisto à luz convulsionar em direção ao vazio. A voz era
frágil, abafada, como um sopro do vento. Será que estou
imaginando coisas? Com certeza existem passagens de ar
conectando aquele compartimento ao exterior. Caso
contrário, as pessoas morreriam sufocadas.
Pessoas…
— Sssocoooorro — um novo sussurro, dessa vez à
esquerda.
Contrariando tudo que aprendi nos lmes de terror,
mergulho na escuridão, passos apressados de quem sabe que
“Socorro” só pode sair da boca de alguém indefeso que precisa
de ajuda.
Como a mensagem de Chayene no livro do Pequeno
Príncipe:
SOCORRO.
Mas a coragem de herói começa a minguar à medida que
as paredes daquele cômodo impossivelmente grande se
negam a aparecer. Passados dez segundos ou dez minutos,
apoio as mãos sobre os joelhos, ofegante.
De repente, o celular emite dois silvos agudos. Relanceio a
barrinha vermelha no canto superior da tela:
5%.
Engulo em seco.
Ciente de que jamais conseguiria retornar à Caixa Preta
sem a lanterna, ajusto o brilho para o mínimo. Como um mar
de petróleo, a escuridão me engole, estreitando o mundo em
frente aos meus olhos.
— Sssocoooorro.
Nem à direita, nem à esquerda.
O hálito gelado arrepia os pelos da minha nuca. Quero me
virar, mas os músculos não respondem. Meus pés estão
enraizados no chão.
Tento sentir sua presença atrás de mim. Adivinhar seu
tamanho, seu formato. Aguço a audição, mas o único som é o
dos meus próprios batimentos.
Tum, tá.
Tum, tá.
Tum, tá.
— Está dentro de mim.
Espremo o rosto para conter a dor, que se propaga pelo
meu corpo como uma corrente elétrica de altíssima
voltagem. Então, um zumbido em meu ouvido direito, como
mil talheres riscando uma superfície enferrujada.
Prestes a infartar, preparo o grito e abro os olhos.
Silêncio…
Estou novamente na varanda, as costas reclinadas sobre o
encosto do sofá e a revista de fofocas pronta para escorregar
do meu colo em direção ao chão.
A luz da sala está acesa.

3 anos atrás

Estou em pé na área de desembarque quando avisto


Lisbela surgir pelo corredor, carregando a mala de rodinhas.
Com seu moletom lilás da GAP, parece não se importar com
os trinta e poucos graus do verão paulistano.
— Não sabia que vinha me buscar — diz ao se aproximar
de mim.
Deixando-a no vácuo, pego a mala e caminho em direção à
saída. Olho ao redor e percebo que algumas pessoas
reconheceram Lisbela e estão tirando fotos.
Cerro os dentes.
Já posso até imaginar as legendas dos stories.
Oito quilômetros separam o aeroporto de Congonhas do
nosso prédio na Zona Leste, mas o som de buzinas e motos
rasgando o asfalto é tudo que escuto enquanto dirijo. Espio
Lisbela pelo retrovisor, o rosto apoiado na janela,
contemplando os prédios.
Com seu olhar robótico.
Amordaçados por um pacto não declarado de silêncio,
entramos na garagem, pegamos o elevador e percorremos o
corredor do sétimo andar até o apartamento setenta e três.
— Não quer tirar o moletom? — pergunto, ao fechar a
porta.
— Não precisa — responde, cruzando a sala em direção aos
quartos.
— “Não precisa”? É tudo que tem a dizer?
Ela se vira e me ta com cara de paisagem.
— O que quer que eu diga?
— Um pedido de desculpas seria um bom começo.
— Do que adiantaria?
Com um suspiro, ando até o sofá e enterro a cabeça entre
os joelhos.
— Imaginei nosso reencontro de muitas formas, mas essa
de nitivamente não é uma delas. — Minha voz sai aguda,
desa nada. — Você está… estranha. Não parece a Lis que
conheço.
Seus olhos perseguem o vazio por alguns segundos, como
se atentos a uma presença espectral que não consigo
enxergar.
— A Casa de Vidro muda a gente — diz, por m. — Você
não entenderia.
— É por causa daquele escroto de olhos cinza?
Ela contrai o maxilar.
— Eu gosto do Bento.
— Por que não acredito em você?
— Nem eu acredito às vezes. — Junta as mãos atrás das
costas e caminha pela sala. — Eu não estava planejando me
envolver, mas… aconteceu.
Suas palavras me machucariam se não parecessem tiradas
de um script ruim.
Lisbela nunca foi uma boa atriz.
— Eu sei que você foi forçada a car com ele.
Ela franze a testa.
— De onde você tirou isso?
— Você não dava a mínima para o Bento, era um toco atrás
do outro — explico, gesticulando com as mãos. — Mas foi só a
produção te chamar para conversar na Caixa Preta para você
esquecer que tem namorado e se jogar nos braços dele.
— Nossa, nada a ver. — Ela balança a cabeça como se eu
fosse um lunático. — Me chamaram porque eu faltei à prova
do líder para dormir. Foi só um puxão de orelha.
— De cinquenta e quatro minutos?
— Foi só um puxão de orelha — insiste.
— Juro que não estou entendendo… — retruco, erguendo-
me do sofá com os olhos aguados. — Você não está mais
naquela maldita casa, não está mais sendo vigiada.
Na esperança de afrouxar sua armadura, me aproximo e a
envolvo num abraço.
Por um instante, meu peito se enche de uma substância
quente, alquimia de tristeza e saudade. Mas minha namorada
parece ser imune a mim. Seu tronco está recuado, evitando
contato, e seus braços não se fecham ao redor das minhas
costas.
Desdou o abraço e busco seu olhar, cravado no chão.
Hesitantes, seus lábios se abrem.
Um…
Dois…
Três segundos…
Então se fecham.
Com uma esfera de frustração entalada na garganta, giro o
tronco e me arrasto em direção ao corredor.
Lisbela agarra meu pulso.
— Um chip…
— O quê? — pergunto, descon ando de minha audição.
— A produção instala chips para controlar os
participantes.
Perco momentaneamente a capacidade de falar.
— Isso é algum tipo de pegadinha?
— Não — rebate, sem soltar meu pulso. — É verdade.
Acredite em mim.
Procuro em seu rosto algum rastro de deboche, mas não
encontro.
É só Lisbela.
Não a Lisbela do olhar robótico.
A minha Lisbela.
Está tremendo, enxugando os dedos suados na calça,
como se lutasse contra forças invisíveis.
— Então por que não tira o chip? — questiono,
mergulhando em seu delírio.
Ela morde o canto interno da bochecha.
— Não dá mais.
— Por quê?
— Eles não deixaram. — Suas pupilas cintilam de medo ao
relancearem o teto, então amansa a voz: — Agora faz parte de
mim.
— Tenho certeza de que vamos encontrar uma solução —
digo, dando um passo à frente. — Não tem mais “Eles”, Lis.
Está segura agora.
Ela hesita por um instante, as sobrancelhas tombadas
numa expressão a ita.
— Tem certeza?
É mais forte que eu: giro pescoço, vasculhando a porta
entreaberta do escritório, a passagem para a cozinha, a
varanda.
Esconderijos.
Ainda estou me recompondo quando Lisbela me dá as
costas e caminha em direção ao corredor. Passos lentos,
curtos, quase como se…
Quisesse que eu fosse atrás dela.
Se o Lorenzo de dois mil e dezoito soubesse o que
aconteceria no dia seguinte, teria colocado a mão em seu
ombro e chamado seu nome.
Mas ele estava assustado demais para isso.

Hoje
93º dia

As semanas seguintes transcorreram como tardes


chuvosas de m de férias. Num estalar de dedos, o número de
moradores da Casa de Vidro passou de quinze para quatro:
Chayene — chipada número um —, que con rmou a
teoria de Wemerson e voltou de oito Fogueiras like a phoenix,
estabelecendo um novo recorde no programa.
Sa ra — chipada número dois —, a bulinadora não-
arrependida que ganhou imunidade em provas de “sorte”
justamente nas semanas em que eu ou Chayene fomos os
líderes e tivemos a chance de colocá-la na Fogueira.
Eu, o dorminhoco.
Afonso, o cara que me fez descobrir que eu era um
dorminhoco.
Para entendermos a broxante história de Lorenzo e
Afonso, temos que voltar um pouquinho no tempo. Mais
especi camente para a manhã seguinte à minha invasão à
Caixa Preta:
Meu amigo entrou na cozinha bocejando, cara amassada e
olheiras de dois centímetros de roxidão. Nada de novo sob o
sol, já que a produção programa o despertador para as sete,
mesmo nas manhãs pós-festa.
Foi sua justi cativa que fez minhas orelhas arrepiarem:
— Alguém tinha que zerar God of War antes do reality
acabar.
— Pronto, agora já pode ser eliminado em paz — retruca
Graciane, passando geleia na torrada.
Ao melhor estilo rato-de-laboratório-vigiado-vinte-e-
quatro-horas-por-dia, faço mil e um malabarismos para
questionar Afonso sobre a queda de energia sem mencionar a
queda de energia:
— Foi dormir muito tarde?
— Lá pelas quatro — responde, soprando sua xícara
fumegante de café.
— E não fez nenhuma pausa para descansar?
— Não.
— Nenhumazinha?
Ele bate no peito, orgulhoso.
— Só quando enterrei a espada no coração de Cronos.
Cronos, chefão do God of War, também conhecido como
Deus do Tempo. E o tempo é o que não fechava naquela
equação. A não ser que a Sony tenha lançado um playstation
que funcione à base de ar, sem precisar de tomada.
A sala de cirurgia sem m…
Os pedidos de socorro…
Os chips…
Sonhos de uma noite de sofá.
Claro, Afonso pode estar mentindo. As paredes da sala de
games não são transparentes. Não dá para ver nada do lado
de fora. Mas que motivos alguém teria para mentir sobre um
assunto “x” como zerar um jogo de videogame?
Ciente de que a única resposta possível é “nenhum”,
experimento o gosto amargo de ter desperdiçado a chance de
desvendar o segredo da Caixa Preta.
Penso no desgraçado do Ezequiel, que com certeza está
passando o m de semana num resort com o dinheiro do
suborno, rindo da minha cara.
Mas minha maior raiva não é dele.
É de mim.
Lorenzo, o dorminhoco.
Aquela manhã foi um divisor de águas em minha
trajetória na Casa de Vidro, a partir do qual comecei a
campanha para ser eliminado do programa. Mais um fracasso
para a lista, já que o público aparentemente simpatizou
comigo por ter cado do lado de Chayene, eliminando
Graciane e Luca enquanto me fazia voltar de duas fogueiras
seguidas.
Passadas seis semanas, a casa parece vazia demais para
quatro de nós, e os que sobraram também não ajudam:
Depois de confrontar Sa ra a pedido de Wemerson e
receber várias patadas gratuitas e um “Chayene não é esse
anjinho que você acha que ela é”, não tentaria socializar com
ela nem se fôssemos os últimos sobreviventes de um
apocalipse zumbi.
Quanto a Chayene, de nada adiantou a postura de sou-
mais-eu-e-não-ligo-para-esses-fdps. O bullying da Triozinho
do Mal foi murchando minha amiga até ela mergulhar num
estado catatônico em que até as lágrimas secaram. Entre
tapinhas nas costas e piadas resgatadas do fundo do baú para
animá-la, minhas tentativas de abordar seu pedido de
socorro — mesmo que de forma indireta — falharam
miseravelmente.
O que me salvou nos últimos dias foram as conversas
existenciais com Afonso. Toda madrugada, pegávamos a
latinha diária de refrigerante a que tínhamos direito e nos
sentávamos no gramado para debater sobre Deus e o
universo. Foi numa delas, inclusive, que quebrei meu
mandamento número um: “Não transparecer, de maneira
alguma, meus sentimentos por Lisbela”.
No dia seguinte, Afonso foi eliminado pelo público.
Eu estava na nal.

3 anos atrás

Da esquina, avisto um moreno de olhos cinza deixar o


luxuoso Edifício Magnani, em Higienópolis. Ao virar de lado,
o capuz do moletom encobre seu rosto, emprestando-lhe a
aparência sombria de um dementador de Azkaban.
Não foi difícil descobrir onde Bento mora. Desde que
venceu a vigésima segunda edição da Casa de Vidro, o
desgramado se transformou numa gura pública. Altura,
peso, nome dos pais… Basta uma pesquisa de cinco minutos
no Google para abocanhar seus dados.
Espero meu alvo me dar as costas e se afastar pela calçada
para começar a segui-lo. Sentindo os elétrons dançarem sobre
a minha pele, relanceio o relógio: onze e trinta e cinco.
Para onde Bento está indo a uma hora dessas?
Pelos próximos dez minutos, nos embrenhamos bairro
adentro. As muralhas de prédios de vinte e poucos andares
bloqueiam a lua, e os postes de eletricidade pouco fazem para
iluminar as calçadas largas e vazias.
Engolindo em seco, deslizo a mão para dentro do casaco
para me certi car de que não deixei o revólver cair.
Espero não precisar usá-lo.
Ao atravessar a rua, Bento mergulha no que parece ser
uma praça, com caminhos de paralelepípedo, aparelhos de
ginástica para idosos e banquinhos de madeira. Usando as
árvores como esconderijo, encurto a distância entre nós.
Não demora para chegarmos ao canteiro central, onde um
chafariz pichado cospe parábolas de água para abastecer a
fonte. Ele estanca o passo e espia ao redor, como se esperasse
alguém. Saca o isqueiro e o maço do bolso, acende o cigarro e
dá uma longa tragada.
— Já te vi — ergue a voz. — Pode sair.
Quando percebo que sou a única pessoa com quem ele
pode estar falando, quase caio duro na grama. Sem
escapatória, broto de trás do tronco e caminho em sua
direção.
— Não é legal car seguindo as pessoas — acrescenta, sem
parecer intimidado. — Mesmo que seja um fã.
— Não sou um fã — retruco, parando a dois metros do
infeliz.
— Um ladrão, então?
— O namorado da Lisbela.
Ele entra em pane por um instante, então dá um passo
para trás.
— Cara, eu não quero confusão.
As palmas das mãos estão erguidas num gesto de “paz”,
mas o sorrisinho de canto de boca denuncia o sarcasmo.
— Onde ela está? — disparo.
— O quê?
— Onde Lisbela está?
— Já tentou procurar na casa dela?
— Ela desapareceu.
Bento entorta as sobrancelhas.
— Isso é sério?
— Pareço estar brincando?
Depois de meu reencontro bizarro com Lisbela, dormimos
em quartos separados. Eu no de visitas, ela no nosso.
Pelo menos, foi o que imaginei.
A cama de casal continuava intocada quando acordei na
manhã seguinte, o edredom dobrado aos pés do colchão do
jeito que meu toc exige. O mesmo para a mala de rodinhas,
com cadeado e zíper fechados, ao lado do sofá.
Só faltava Lisbela.
Gastei o resto do dia esperando, roendo as unhas
enquanto me convencia de que ela tinha ido caminhar para
colocar as ideias no lugar, ou passado na casa de uma amiga.
Precisei varar a madrugada e checar novamente nosso quarto
pela manhã para entender que…
Ela não ia voltar.
Isso foi há duas semanas e, desde então, não tive qualquer
notícia de Lisbela. Seu instagram cou entregue às moscas:
sem postagens, sem stories. O mesmo para o canal do
YouTube.
— Não sei o que você está pensando, mas eu não tenho
nada a ver com isso. — Bento balança a cabeça com
veemência. — Não encontro Lisbela desde que deixei a Casa
de Vidro.
— Difícil acreditar em você depois do que fez com ela.
— Depois do que eu z com ela? — repete, espalmando o
rosto com indignação. — Sua namorada preferiu car comigo
e é assim que você coloca?
Cerro os punhos, mas não mordo a isca.
— Onde ela está? — insisto.
— Você por acaso é surdo? Já disse que não tenho nada a
ver com isso.
— Tem, e vou dizer por quê. — Engrosso o tom. — O que
você e Lisbela viveram na Casa de Vidro foi uma farsa. Só
rolou porque você se apaixonou por ela e o público shippou.
Aposto que foi rejeitado quando a procurou depois do
programa. Ficou com o coração partido, não aguentou…
— E então a raptei? — completa.
— Sim.
Três segundos de silêncio antes que Bento caia na
gargalhada, curvando-se sobre o próprio tronco.
— Cara, a vida não é essa novela mexicana que passa na
sua cabeça. Não estou apaixonado por Lisbela. Nunca estive.
Foi só um lance do jogo. — Dá de ombros. — Você ca aí todo
nervosinho, apontando o dedo, acusando, mas já parou para
pensar que sua namorada pode ter fugido?
Estreito os olhos.
— Por que ela fugiria?
— Porque está doente.
A frase orbita nossos corpos, distorcendo a gravidade. Pela
primeira vez na conversa, Bento parece vestir a máscara da
seriedade. Sem risadinha, sem cinismo.
— Perdi as contas de quantas vezes Lisbela procurou a
enfermaria durante o programa — continua, por m. —
Sempre que perguntávamos, ela escapava do assunto, dizia
que era enxaqueca. Mas estava na cara que era mentira.
Cerro os punhos.
Sim, as idas à enfermaria realmente aconteceram. Seis
vezes, para ser exato. Começaram na segunda metade do
programa, e se alongaram até a eliminação de Lisbela, em
novembro.
Ela nunca teve enxaqueca, e o pay-per-view não dá acesso
às imagens internas da enfermaria. Mas, para mim, a
resposta é tão óbvia quanto o formato da terra.
— Cara, não é possível que seja tão cego. Lisbela não está
doente, só estava surtando porque foi forçada a car com
você! — Espremo a mão contra a testa. — Ela procurou a
enfermaria para pedir calmantes.
Surtando… O verbo quica em meu cérebro como uma
bolinha de pingue-pongue, cada rebatida desenterrando uma
palavra da denúncia insana de Lisbela:
A.
Produção.
Instala.
Chips.
Para.
Controlar.
Os.
Participantes.

— De novo com essa merda? — Bento revira seus raros


olhos cinzentos. — Tá, vamos supor que Lisbela estivesse
sendo forçada a car comigo. O que queria que eu zesse?
Parasse de beijar sua namorada para perguntar se ela
realmente queria?
— Sim — respondo, irredutível.
— Ah, cara, não fode. — Ele bufa com desprezo. — Passei
duas semanas dando em cima daquela garota. Ficar comigo
era o mínimo que ela podia fazer.
Minhas unhas só não furam a palma das mãos porque
estão roídas.
— Tem um nome para isso — digo.
— Qual?
— Estupro.
Bento volta a rir da minha cara.
— Estupro? Você acha mesmo que o Brasil escolheria um
estuprador como campeão da Casa de Vidro?
— Se soubessem a verd…
— Foda-se a verdade! — me corta, dando um tapa no ar.
Sem hesitar, en o a mão trêmula no casaco até encontrar
o cabo do revólver. A raiva borbulha, vaza pelos olhos em
lágrimas quentes e amargas.
— Onde ela está? — repito, liberando a trava.
Bento suspira fundo, impaciente.
— Cara, você é maluco.
Estou prestes a sacar a arma quando o som de passos ecoa
atrás de mim.
Secos.
Tímidos.
Sapatilhas chocando-se contra o caminho de pedras da
praça.
Com o coração a mil, giro o tronco, mas a mulher à minha
frente não tem uma pinta charmosa sobre o lábio ou uma
folha de oliveira tatuada na clavícula.
Uma onda de alívio inunda meu corpo.
— Desculpe o atraso — diz a recém-chegada, entregando
um saquinho de pó branco nas mãos de Bento.
Sentindo a torta de climão, ela me examina da cabeça aos
pés. Mas a descon ança logo se dissolve numa expressão de
incredulidade.
— Se você dissesse que era amigo do cara do choro da
fuinha, tinha trazido mais um saquinho de brinde.
Hoje
100º dia

— Boa noite, nalistas! — diz Zeca ao surgir no telão,


fazendo uma reverência exagerada com a cartola.
Chipadas, Chayene e Sa ra exibem sorrisos falsos e
retribuem o cumprimento. Estou mergulhado entre as duas
no sofazão cinza, tando o apresentador com cara de poucos
amigos.
— O que poderia deixar um nalista da Casa de Vidro
triste? — Zeca pergunta.
Demoro alguns segundos para perceber que está falando
comigo.
— Dor de barriga — minto, dando tapinhas em meu
abdome.
— Hum… — Ele arqueia as sobrancelhas bem delineadas,
envolto num ar de mistério. — Algo me diz que não é só dor
de barriga.
Engulo em seco.
O que ele quer dizer com isso?
— Não queria expor minha condição em rede nacional,
mas… tem a caganeira também.
Zeca dá uma gargalhada cinematográ ca e desiste de mim
para importunar Chayene.
A nal da Casa de Vidro é a única ocasião em que
assistimos ao reality na íntegra, junto com os
telespectadores. Nosso mestre de cerimônias faz uma breve
aparição para abrir o programa, e só volta a dar as caras à
meia-noite, quando anuncia o vencedor.
Nos contos de fadas, a carruagem se desencanta em
abóbora.
Na vida real, alguém ca milionário.
Zeca solta uma piadinha mequetrefe que só faz Sa ra rir
por estar chipada. Em seguida, encerra o papo furado e ca
sério.
— Nesses últimos dois anos, assistimos à disseminação da
pandemia da COVID-19, os casos aumentando dia após dia. O
mundo teve que se adaptar, e não foi diferente com a Casa de
Vidro — diz, com pesar. — A quarentena no hotel, as
avaliações médicas, os testes do cotonete… Mil e um
protocolos para garantir que ninguém entrasse na casa
infectado. Mas o mais triste, na minha opinião, foi proibir as
torcidas nas Fogueiras. Era o único momento em que vocês
podiam ver seus familiares.
Ao longe, gritos rasgam o silêncio como um coral
desa nado. Chayene e Sa ra roem as unhas.
— Mas muita coisa mudou enquanto vocês estavam
con nados. Entre elas, a cobertura de oitenta por cento da
população brasileira com a vacina — continua, num tom
otimista. — Por isso a produção, com o aval do chefe Jairinho,
resolveu fazer uma pequena concessão.
Sem desfocar Zeca, a câmera se afasta, mostrando o
auditório do programa: três arquibancadas recheadas de
gente, como num jogo de futebol. Ao sinal dos animadores de
torcida, começam a berrar, erguendo as mãos e balançando
placas comemorativas de “Para cima deles, Chayene!” e
“Mamãe, eu tô na Astro!”.
De repente, corta para a arquibancada da direita.
A minha torcida.
Sem conseguir me controlar, co de pé e me aproximo do
telão.
O olhar orgulhoso dos meus pais… Os guinchos agudos da
minha irmãzinha… O sorriso aparelhado do meu primo
metido a intelectual que adora postar textão criticando o
“entretenimento alienante” da Casa de Vidro…
Mas não são seus rostos que procuro naquele “Onde está o
Wally” da minha vida. Tenso, mapeio a arquibancada: uma,
duas, três vezes.
Num estalar de dedos, troca para a torcida de Sa ra, e a
chama de esperança se apaga.
Lorenzo, seu idiota…
Por que ela estaria lá?
Só agora relanceio a contagem de batimentos no canto
superior da tela. Sempre entregam o sensor para os
enfogueriados usarem durante a transmissão do programa.
Uma tentativa tosca de interpretar o caldeirão de emoções
dentro deles.
Decepção e perplexidade baixam os meus para oitenta e
cinco, enquanto saudade e surpresa aumentam os de Sa ra
para impressionantes cento e quarenta.
Então, o som de choro ao meu lado: Chayene, encurvada,
mãos sobre a boca para conter os soluços.
No telão, uma mulher baixinha de óculos engarrafados e
cabelos grisalhos presos num coque acena para a câmera.
Seus batimentos sobem para cento e oitenta.
— Mãe!
As duas se encaram por um instante, emocionadas, antes
de cortar para Zeca, cujas pálpebras formam lagoinhas de
lágrimas falsi cadas.
— A Dona Eulália está bem, esbanjando saúde, e veio
torcer por você. — Ergue as mãos enluvadas para o céu. —
Vão ter muito tempo para matar as saudades.
Chayene funga repetidas vezes enquanto seca os olhos
com as costas das mãos.
— E você — diz, balançando a capa ao falar com os
telespectadores —, não saia daí que voltamos já.
Pausa para os comerciais.
Confuso, caminho em direção a Chayene e a abraço. Se a
internação de sua mãe é só um pretexto para encobrir o que
aconteceu na Caixa Preta, por que seu choro parece real?
O chip é tão poderoso assim?
Sa ra nos observa do sofá, sionomia neutra de um robô
recuperando as baterias.
— Não vai falar nada? — al neto.
Suas covinhas se abrem numa imitação de sorriso.
— Se quiserem que eu fale, eu falo.
Engulo em seco.
A quem ela está se referindo? A nós ou à produção?
Estou prestes a retrucar quando o telão se acende e
voltamos ao ar. Os próximos noventa minutos são pura
encheção de linguiça: curtas-metragens mostrando os
Melhores Momentos do programa — festas, shows, provas,
cenas especí cas que provavelmente viraram memes lá fora
—, seguidos de depoimentos piegas dos eliminados, que
parecem ter se esquecido das tretas e ranços da casa e entrado
num clima de ursinhos carinhosos.
Pouco me lixando para aquele espetáculo, sinto a mão de
Chayene se fechar ao redor da minha. Retribuo o gesto e
sorrio para oferecer apoio, mas suas sobrancelhas caídas
parecem transmitir…
Pena?
Os papéis de “consolado” e “consolador” se invertem. É
estranho e sem sentido, como se Chayene estivesse
interpretando a cena com a emoção errada.
— Você está bem? — pergunto, com um mau
pressentimento.
Ela mergulha fundo em meus olhos.
— Desculpa — diz, por m.
— Pelo quê?
Mas ela não responde. Solta minha mão e volta a prestar
atenção no depoimento de Graciane, que resolveu pintar o
cabelo de azul depois que deixou a casa.
O ponto de interrogação ainda orbita meu cérebro quando
Zeca ressurge, empunhando o microfone.
— Estou adorando os depoimentos, mas está cando
tarde. — Ele dá um peteleco na cartola, fazendo uma pausa
dramática. — Antes de anunciar o campeão, tenho o prazer
de dizer que a vigésima quinta edição da Casa de Vidro foi,
nas palavras do próprio Jairinho, um sucesso! Não só pela
audiência, a maior da história do programa, mas pela forma
como mexeu com o público. Para vocês terem uma ideia, das
dez hashtags mais usadas no Twitter, oito fazem referência à
Casa de Vidro. E tudo graças a vocês, às suas histórias.
Conheço a expressão que se desenha em seu rosto: Zeca
mandaria um de seus enigmáticos e supostamente losó cos
discursos de m de programa.
Bode…
— Um pescador disse certa vez que pessoas são como
livros, pois ambos são feitos de histórias. Ficção, realidade,
dois lados da mesma moeda. Heróis, vilões… É tão simples,
preto no branco, ou os papéis se renovam a cada capítulo? —
Ele estreita as pálpebras à la Pedro Bial, como se fôssemos
burros demais para entender. — Senhoras e senhoras, com
vocês, os protagonistas da Casa de Vidro!
Uma trilha sonora épica ecoa ao fundo, e Zeca é
substituído por uma animação grá ca: sobre a mesa, um
calhamaço intitulado “15 Contos da Casa de Vidro” se abre
magicamente com um rolar de páginas, parando no “Conto
13 - A Pecadora”.
A página seguinte exibe uma foto de Luca sentado numa
poltrona de madeira. A câmera se aproxima e, num truque de
edição, imagem estática se transforma em vídeo.
— Meu voto vai para Chayene — diz, sem vacilar.
— Quer justi car sua escolha? — A voz de Zeca soa do
além.
— Depois do que rolou na festa, acho que não preciso, né?
Corta para Afonso, na mesma posição.
— Chayene.
— Chayene — diz Sa ra.
— Chayene — diz Wemerson.
— Chayene — diz Gael.
— Chayene — diz Caio.
— Chayene — diz Graciane.
— Chayene — diz Tato.
— Chayene — diz Júlia.
— Chayene — diz Sarah.
— Chayene — diz Jade.
— Chayene — dizem outros dois participantes.
— Sa ra — digo, por m.
Foi a primeira Fogueira do programa. Sei disso por causa
da cabeleira de Tato, que nosso querido gamer foi obrigado a
raspar ao car em último na prova do líder.
De repente, a imagem congela, a câmera se afasta e as
páginas rolam pela segunda vez, mostrando os piores
momentos de Chayene.
Ela fazendo um comentário sobre lmes de super-herói e
sendo ignorada pelos outros participantes, que continuam a
discutir entre si. Tenta de novo, erguendo a voz, mas é como
se fosse invisível.
Ela sendo a última a ser escolhida para a tradicional
partida de queimada da Casa de Vidro, que sorteia um carro
entre os jogadores do time vencedor. “Não podemos jogar
com um a menos?”, pergunta Gael, sem esconder o desprezo.
Ela se escondendo na dispensa para chorar depois de mais
uma rodada de bullying da Turminha do Mal, bunda no chão
e costas na parede.
Corta para a Festa do Pijama, onde marmanjos com
camisetas estampadas bebem vodca ao som de Xuxa só para
Baixinhos e brincam de guerra de travesseiros nos colchões
gigantes instalados ao lado da piscina.
Mais louca que o Batman, ela se aproxima por trás e enlaça
minha cintura.
— Que tal formarmos o primeiro casal da casa?
O que faz o Lorenzo da televisão tremer feito gelatina não
é o hálito da moça bonita ao pé do ouvido, mas as oito
palavras que formam sua cantada:
Que.
Tal.
Formarmos.
O.
Primeiro.
Casal.
Da.
Casa.

São as mesmas que Bento disse a Lisbela na vigésima


segunda edição do programa.
— O que foi? — ela pergunta quando me viro de supetão.
— Chocado com a minha beleza?
Busco em seu sorriso con ante um vestígio de
perversidade, mas não acho.
Seria coincidência?
— Eu namoro — minto, apegando-me à ideia quase
infantil de que, se eu e Lisbela não terminamos formalmente,
ainda somos namorados.
— Relaxa, não tenho ciúmes.
— Mas ela tem. — Rio entredentes para descontrair. — E
eu pre ro não voltar para casa como um homem morto.
Ignorando a piadinha, desliza o corpo para cima de mim.
Posso sentir o aroma enjoativo de cachaça através de seus
lábios.
— É pelo jogo, ela vai entender.
— Nunca fui muito chegado a jogos — retruco, dando um
passo para trás.
Sem perder a pose, ela enterra o indicador em meu peito.
— Nós dois sabemos que você só está bancando o bom
moço por causa das câmeras.
— Ou talvez você só não queira aceitar que levou um toco
— rebato, ao melhor estilo sorria-para-não-soar-grosso.
Há um espasmo ao redor de seus olhos de tempestade.
Dentro deles, trovões. Estou prestes a mandar um “Nós dois
sabemos que você só não está me xingando por causa das
câmeras”, mas me seguro.
— Se não vai me beijar, pelo menos me ensina a fazer o
choro de fuinha — brinca, despressurizando o clima.
— Pode um negócio desses, produção? Nem se apresentou
e já está me zoando.
Ela estende a mão num gesto falsamente cerimonioso.
— Prazer, Chayene.
Chayene gasta mais cinco minutos naquele erte
unilateral. Percebendo que não seria hoje que tiraria uma
casquinha de mim, diz que precisa ir ao banheiro e despede-
se como se tivéssemos conversado sobre o tempo.
A exibição acaba ali, mas recrio mentalmente meus
próximos passos: ando até o bar para reabastecer o copo e me
junto a Caio e Tato, que brincam de fazer anéis de fumaça
com o narguilé. Sem conseguir parar de remoer a cantada de
Chayene, invento que estou passando mal e entro na casa. Me
arrasto pela sala de estar e pelo corredor. Abro a porta do
quarto: vazio.
Aliviado, caminho até minha mala, en o a mão no bolso
lateral e procuro as cartelas de Zolpidem. Engulo dois
comprimidos e apago a luz.
No telão, corta para Chayene conversando com Afonso
num dos cantos da festa.
— Quem ele pensa que é para me dar um fora?
— Um ator famoso?
— Ha-Ha-Ha, muito engraçado. — Ela fecha a cara. — Para
a sua informação, já quei com caras muito mais famosos
que ele.
Afonso curva os lábios e faz mímica de palmas.
— Você é o máximo, hein?
— Cala a boca! — retruca, 100% full pistola. — Se ele não
estivesse encoleirado, seria fácil.
— Como assim, encoleirado?
— Ele tem namorada, gênio.
Afonso faz careta.
— Não tem não.
— Como você sabe? Stalkeou todos os participantes antes
de entrar no programa?
— Tipo isso.
Chayene fecha os olhos por um instante, bufando com
desdém.
— Sério, ainda não acredito que levei um fora.
— Calma, miga. — Apoia a mão em seu ombro. — Não é
culpa sua.
— Só para constar, a cantada que você sugeriu foi um
desastre.
Mordo os lábios.
Então foi Afonso que propôs aquela brincadeira idiota? O
mesmo Afonso que quis aprender o choro da fuinha e deu um
up no meu humor quando me senti ilhado por Chayene e
Sa ra?
— Entendo… — ele murmura, as pupilas espertas se
expandindo por trás dos óculos de aro redondo. — Então
Lorenzo não superou a ex.
— Hã? Do que você está falando?
Ele espera a curiosidade de Chayene saturar o ar, então
pergunta:
— Lembra da Lisbela da vigésima segunda edição?

A câmera se afasta pela segunda vez, e as páginas


avançam até o “Conto 14 - O Apaixonado”.
Com os nervos estremecendo de agonia, fantasio ter
poderes telecinéticos e projeto uma mão invisível em direção
ao livro animado para impedir que a página vire.
Mas ela vira mesmo assim.
Lá estou eu, enxugando o cabelo enquanto entro no
quarto. Jogo a toalha no cesto e caminho até minha mala para
pegar uma camiseta.
Por um instante, as imagens não fazem sentido, mas o
relógio no canto inferior do telão logo me localiza no tempo:
vinte e sete de outubro, a noite em que sonhei com a queda de
energia.
O plano era ngir dormir enquanto esperava o apagão.
Plantado no meio do quarto, analiso minhas opções: todas as
camas estão ocupadas, menos a de casal, o edredom se
espalhando pelo colchão numa conformação amarrotada,
quase indecente.
A gravação mostra um cara encarando uma cama. Em
minhas lembranças, por alguns segundos, mas um minuto se
passa em velocidade x5 sem que eu reaja, meu corpo
pendendo para frente e para trás como se possuído por uma
entidade demoníaca.
Num estalar de dedos, não estou mais lá. O quarto é o
mesmo, o ângulo da câmera é o mesmo, mas a decoração é
diferente. O tema quadriculado do papel de parede foi
substituído por ilustrações representativas da cultura
nordestina: cactos, jumentos, guarda-chuvas coloridos e
chapéus de cangaceiro.
Além do mais, a cama de casal não está vazia…
Sentindo a pressão cair, reclino as costas no sofazão cinza.
Assisti àquela cena milhares de vezes. Se fechar os olhos,
consigo recriá-la em detalhes: as falas, os gestos, os ruídos…
— Precisava mesmo me dar dezesseis tocos antes de car
comigo?
— Que fofo! Ele contou! — A voz de Lisbela se propaga
pelos meus órgãos como uma corrente elétrica. — Nunca
ouviu falar em doce? Se vem fácil, não damos valor.
— Meus parabéns pela atuação — retruca Bento. — Por que
a Rede Astro não te contrata?
— É o que eu me pergunto todas as noites antes de dormir.
Estão deitados na cama. O desgraçado de lado, cotovelo
sobre o colchão e mão segurando o rosto a poucos
centímetros do de Lisbela. Há um movimento oculto de mãos
embaixo do edredom.
— O que acha de voltarmos para a festa? — ela sugere.
Bento costura um sorriso esperto sob os olhos cinzentos.
— Já pode parar de fazer doce.
Lisbela ri entredentes.
— É só que não quero perder a Zoe fazendo quadradinho
de oito.
— Também sei fazer.
— Ah, é?
— Sim, mas tenho vergonha. Só consigo debaixo do
edredom.
Eles se encaram por um instante, Bento mantendo
distância, sem pressioná-la, aguardando ansiosamente por
um sinal verde. Um… Dois… Três segundos… Lisbela está
prestes a abrir a boca quando um tremor percorre o
hemisfério esquerdo do seu rosto, tão discreto quanto o gesto
de sua mão em direção à orelha.
— Por que não me mostra, então? — diz, por m.

Com um estalo, a câmera se afasta pela terceira vez. O


conto 15 traz a última nalista: Sa ra, “A Justiceira”, mas
quem aparece no telão não é a grande vilã da Casa de Vidro.
É Chayene…
Depois de dar um chilique com Afonso sobre o fora que
levou de mim, ela deixa a festa, entra na casa e se esgueira em
direção ao quarto. Estaca em frente à cama de solteiro, onde
eu dormia meu sono de Zolpidem, e abre um sorriso bêbado
para uma audiência invisível.
Encaro o telão sem piscar, esperando Chayene pular em
cima de mim, fazer aquelas pegadinhas sem graça de
lambuzar o cabelo com pasta de dente ou desenhar bigode
com canetinha.
Mas a melhor imitadora do Brasil apenas desaba sobre a
cama de casal e se en a debaixo do edredom, cobrindo o
corpo por completo.
Silêncio.
Ela… foi dormir?
Por que estão mostrando aquilo?
— Vai, Bento!
Quando o gemido jorra da saída de áudio, meu cérebro
buga, incapaz de processar a realidade.
A nal, não é a voz de Chayene.
Ela está reproduzindo a voz de Lisbela!
— Me come!
Os gemidos se tornam cada vez mais intensos, e logo
atravessam a barreira dos sonhos do Lorenzo desfalecido.
Meu corpo se revira sobre o colchão. Incomodado, franzo a
testa numa careta.
— Ai, que delícia!
Então acordo. Um abrir de olhos vagaroso antes de cair da
cama.
Percebendo que tinha plateia, Chayene começa a se
contorcer sob o edredom. Movimentos verticais libidinosos
que fazem as molas do colchão rangerem.
— Mete, Bento, mete com força.
A porta se abre de supetão e Sa ra acende a luz.
— Mas que porra está acontecendo aqui?!
A câmera dá um close em meu rosto abobalhado. Não
acompanho mais a cena. Apesar do aquecedor ligado, tremo
feito vara verde, a respiração ofegante de quem acabou de ver
um fantasma.
— O que você fez com ele? — a justiceira pergunta assim
que Chayene emerge do edredom.
— O corno não quis car comigo. — Dá de ombros, o
risinho despontando dos lábios. — Teve o que mereceu.
Sa ra abre a boca para retrucar, mas está sem palavras.
Outros participantes adentram o quarto com suas caras de
perdidos e formam uma meia-lua ao redor dela. Wemerson se
aproxima de mim, pega minha mão e pergunta se estou bem.
Não respondo. Sequer percebo que está ali.
— Acho que você exagerou um pouco. — Sa ra cruza os
braços.
Chayene revira os olhos.
— Quem você pensa que é, a dona da verdade?
— É só um fora, garota. Cresce!
Todos os vinte músculos faciais de Chayene se contraem,
criando uma estranha assimetria. Posso imaginá-la
digerindo a raiva antes de arrebitar o nariz com
superioridade.
— Para uma favelada horrorosa como você, levar fora faz
parte do dia a dia, né?
— Do que você me chamou? — Sa ra ergue a voz, os olhos
quase saltando das órbitas.
— Além de feia, é surda?
Há uma pausa no espaço-tempo em que o ar faísca entre
as duas. Prevendo tapas e puxões de cabelo, Tato e Caio se
aproximam e seguram Sa ra antes que ela parta para cima de
Chayene.
Xingamentos da pior espécie cruzam o quarto como balas
de revólver, então a lmagem volta a focar em mim.
Passada a descarga de adrenalina, minha respiração
desacelera até equalizar com a de Júlia, que sussurra "Inspira,
expira, inspira, expira” enquanto oferece o ombro para que eu
apoie a cabeça.
Dois minutos depois, o Zolpidem me arrasta novamente
para o mundo dos sonhos e do esquecimento.

A câmera se afasta mais uma vez. As páginas rolam e


param no “Epílogo”, mostrando um Lorenzo cabisbaixo
sentado no gramado.
Farejando minha bad, Afonso chega como quem não quer
nada e se acomoda ao meu lado.
— O que está fazendo?
— Conversando com você — retruco, sem tirar os olhos do
horizonte para além dos muros.
— Engraçadão, hein? — Ele amarra o cabelo num coque
samurai improvisado. — Já que estamos conversando, tem
algo que quero te perguntar desde que entramos na casa.
Ergo as sobrancelhas, curioso.
— Diga.
— A maioria de nós é in uencer em ascensão. Temos
nossos fãs, mas não somos famosos. A Casa de Vidro é uma
chance de mostrar ao mundo quem somos, nos tornarmos
conhecidos — explica, sério. — Mas não é o seu caso. Você faz
novelas, comerciais, dá entrevistas no Faustão. Por que topou
participar?
Espremo os lábios.
— Não foi por mim.
— Por quem, então?
É nesse momento de fraqueza que dou com a língua nos
dentes e falo sobre meu reencontro com Lisbela, seu sumiço e
as dezenas de tentativas de localizá-la.
— Conseguiu alguma pista, pelo menos?
— Nenhuma — respondo, sabendo que mencionar o chip
só o faria me enxergar como um doido varrido. — E,
sinceramente, estou perdendo as esperanças.
Quando enterro o queixo no peito, a atenção de Afonso se
dispersa. Um lapso momentâneo antes que ele leve a mão ao
ouvido como um macaco adestrado.
O Lorenzo do telão não percebe, mas o gesto faz meu
sangue congelar.
— Você ainda a ama? — questiona, com um ar dramático
de lme de Hollywood.
Hesito por alguns segundos, então respondo:
— Com todas as minhas forças.
O impacto da cena força minha mente a rebobinar como
um vídeo defeituoso, recalculando rotas, reescrevendo
acontecimentos. Se Afonso está chipado, quer dizer que
mentiu sobre ter zerado God of War na noite do apagão?
Confuso, assisto às lágrimas escorrerem pelas minhas
bochechas como cobrinhas tortuosas. Autocontrole,
autocontrole. Treinei por noites seguidas em frente ao
espelho. Se alguém falasse sobre Lisbela eu faria pouco caso e
diria: “Sim, minha ex”.
Mas a produção precisava que eu chorasse enquanto
confessava meu amor por ela.
E assim eu z.
Precisava que eu surtasse em rede nacional.
E assim eu z.
Precisava que eu acreditasse que a invasão à Caixa Preta
foi um sonho.
E assim eu z.
Pela primeira vez desde que pisei na Casa de Vidro, sinto o
contato dos milhões de olhos em minha pele. Viscosos,
invasivos. En o a mão no vão do sofá e cravo as unhas no
preenchimento da almofada para aliviar a tensão, mas meus
dedos tocam numa superfície dura e gelada.
Um momento de perplexidade antes que meu cérebro
ligue os pontos.
A faca azul…
Chayene a deixou lá.
Quando ergo o rosto para o telão, Zeca está de volta, os
olhos reluzindo lágrimas de crocodilo. Seus lábios se abrem
para o discurso nal, mas as palavras contornam meus
ouvidos como mariposas erráticas.
Aqueles.
Desgraçados.
Me.
Usaram.
— E a história que consagrou o campeão da vigésima
quinta edição da Casa de Vidro… — anuncia, com um rufar
de tambores.
As torcidas se calam.
Sa ra e Chayene inclinam o tronco para frente.
Eu só quero que aquele pesadelo acabe.
— É a sua, Lorenzo!
Ao fundo, a confusão de palmas e gritos faz a casa tremer.
Arregalo as pupilas para Zeca, sem acreditar.
Wemerson estava errado…
O grande protagonista da Casa de Vidro não é Chayene.
Sou eu.
Num gesto automático, aperto os dedos ao redor do cabo
da faca e a deslizo para dentro do casaco. Sa ra e Chayene se
aproximam e me ajudam a levantar, os braços ao redor do
meu ombro como um trio de goleadores da Copa do Mundo.
Caminhamos para a varanda e seguimos pela estradinha
do jardim em direção à saída, como manda o protocolo. Num
esforço conjunto, empurramos a porta do auditório.
Uma recepção calorosa eclode das arquibancadas
enquanto as luzes dos re etores atacam minhas pupilas.
Ao relancear minha família, o estômago embrulha.
Como eles podem estar sorrindo?
Funcionários da Rede Astro surgem sei lá de onde para
conduzir Chayene e Sa ra até suas torcidas. Numa imitação
tosca do choro da fuinha, Zeca se aproxima de mim.
— De galã de Os Debochados a arrancador de lágrimas
o cial do Brasil. — Ele dá um passo para o lado e nos
posiciona de frente para a câmera. — Como se sente sabendo
que o povo te ama?
— Bem, acho…
— Ele está chocado, gente. Não é fofo? — grita, jogando a
pergunta para a plateia.
Uma gargalhada gigante chacoalha o auditório.
— Mas os dois milhões na conta não são a grande surpresa
da noite, Lorenzo.
— Ah, é? — questiono, com um péssimo pressentimento.
— A produção acabou de informar que tem uma pessoa
especial assistindo ao programa. — Ele faz a cartola girar
sobre o indicador como um mestre ilusionista. — Uma
chance!
Assisto a minha expressão se desmanchar no projetor
quando percebo sobre quem ele está falando.
— Vocês não…
— Isso mesmo! O que você gostaria de dizer a Lisbela?
Quando o microfone passa dos dedos longos de Zeca para
os meus, meu coração dispara, e por um segundo penso que a
pulsação que escuto atrás da orelha são meus batimentos
ampli cados pelo sistema de captação de som.
Se tem alguém que sabe onde ela está, se está viva ou
morta, são eles. Não blefariam em rede nacional, blefariam?
Antes que perceba, a imagem de Lisbela se desenha em
minha mente, metade realidade, metade fantasia: a pinta
sobre os lábios… o sorriso afastador de energias ruins… a
tatuagem de folha de oliveira… o abraço mais caloroso do
mundo…
O olhar robótico.
Será que aconteceu alguma coisa enquanto estive na Casa
de Vidro? Forçaram Lisbela a dar as caras, sair de seu
esconderijo, de seu cativeiro? É esse meu verdadeiro prêmio
por vencer o reality?
Quando as lágrimas batem na porta dos meus olhos,
penso em abrir. Resista, Lorenzo, resista… É exatamente o
que querem que você faça. E depois transmitiriam o
reencontro em algum dos programas de auditório da Rede
Astro. Pronto, quarenta pontos de ibope!
— Lis… — começo, com a voz trêmula.
Os animadores de torcida balançam as mãos, pedindo
para que a plateia cale a boca. O silêncio se alastra pelo ar
como uma nuvem de energia elétrica.
— Pelo jeito, as pessoas já sabem que entrei na Casa de
Vidro por sua causa — continuo, mordendo o canto da
bochecha. — Acho que foi por isso que ganhei, né? Todo
mundo adora esse lance do cara apaixonado, cego por amor.
O rosto de pó de arroz de Zeca paira a poucos centímetros
do meu. Quase posso ver o sorriso felino por trás da fachada
de compaixão.
— A Lisbela que o Brasil conheceu na vigésima segunda
edição da Casa de Vidro talvez não mereça esse amor, mas a
que apostou todas as chas em mim quando eu não passava
de um garoto tímido, com um sonho no bolso, sim. E eu nem
preciso pensar duas vezes para saber qual delas é a real e qual
é a impostora. — Hesito por um instante, mas não posso mais
dar para trás. — Se eu disser que sei que você não me traiu
porque quis, que foi forçada, acho que não acreditariam em
mim. Mas talvez acreditem se disser que forçaram Chayene a
continuar no programa cinco minutos depois de ela roubar a
faca da cozinha para se vingar de Sa ra.
Um burburinho percorre a plateia. Chayene espreme os
lábios, os olhos robóticos adquirindo um brilho
genuinamente humano pela primeira vez desde que deixou a
Caixa Preta.
Zeca chama minha atenção e estende a mão em direção ao
microfone, mas o ignoro.
— Ou se disser que forçaram Sa ra a humilhar Chayene,
mesmo depois de ela se arrepender e chorar com medo de ser
cancelada. Ela ia pedir desculpas, se retratar, mas desistiu.
Por quê?
Nosso apresentador faz uma nova tentativa de tomar o
microfone, mas o empurro.
— Agora eu entendo, Lis. Ninguém é livre para fazer suas
próprias escolhas dentro da Casa de Vidro. Somos fantoches,
marionetes.
Com o canto do olho, relanceio os seguranças se
aproximando pelas entradas do auditório. Buldogues
humanos de ternos pretos que gastariam menos de cinco
segundos para me imobilizar.
Não teriam essa chance.
— Chegou a hora de cortar os os — digo, antes de sacar a
faca do casaco e arrancar minha orelha.

Hoje

— Como você está?


A voz contorna o vazio doloroso na lateral da minha
cabeça e chega à orelha que sobrou. Soa familiar, mas parece
pouco preocupada com meu bem-estar.
Abro os olhos para recepcionar seu dono quando as
paredes branquíssimas do hospital os cegam, re etindo a luz
do quarto. Aos poucos, o homem sentado na cadeira à minha
frente ganha contorno. Cabelos grisalhos de noites em claro e
coluna aprumada de quem não se curva para ninguém.
Jairinho, o todo poderoso da Rede Astro. Diretor da Casa de
Vidro e dos Debochados.
— Pior agora — respondo.
Ignorando minha grosseria, meu chefe se ergue e caminha
até a janela do quarto, espiando por entre as persianas. A
inclinação do queixo sugere que estamos num andar alto,
longe da imprensa, dos jornalistas.
— Eu sei o que vocês fazem — disparo, sem rodeios.
Ele continua a observar o que quer que seja por alguns
segundos antes de se dignar a olhar para mim.
— Jura?
— Implantam chips nos participantes.
Jairinho refaz o trajeto até a cadeira e exibe sua expressão
indecifrável de sempre.
— Vocês os chamam para a Caixa Preta, e então… —
prossigo, deixando a sugestão no ar.
— Parece que alguém andou assistindo a lmes de cção
cientí ca demais.
Seu desdém faz o monitor ao meu lado apitar. Não
querendo interrupções, respiro fundo.
— O que vi na noite em que a energia da casa acabou
supera qualquer lme de cção cientí ca.
Ele demora alguns segundos para processar minha fala,
então estala a língua no céu da boca.
— A Casa de Vidro nunca cou sem energia.
— Sempre tem uma primeira vez.
— Se você está se referindo ao segurança bigodudo que
despedimos há dois meses — diz, esfregando as unhas —, não
chegou nem a destruir o primeiro gerador.
Trinco os dentes.
Jairinho pode até estar distorcendo os fatos para me
rotular de louco, mas não saberia sobre meu comparsa se não
o tivessem capturado.
— Entendi — digo, chegando à única conclusão possível.
— Ezequiel me dedurou e vocês desligaram a luz de propósito
para saber o que eu estava tramando. Ficaram me esperando
no compartimento subterrâneo da Caixa Preta.
— Compartimento subterrâneo da Caixa Preta? Ainda
insistindo nesse absurdo? — Suas narinas chupam o ar num
suspiro impaciente. — Não precisamos de chips para
controlar as pessoas. Sua amiguinha dubladora, por
exemplo…
A forma com que pronuncia “Sua amiguinha dubladora”,
como se Chayene fosse um ser humano menor, de quinta
categoria, in ama meus nervos.
— O que tem ela?
— Dona Eulália não saía de casa há um ano, mas resolveu
fazer um bolo de cenoura com cobertura de chocolate para a
festa de aniversário do neto. Evento pequeno, só gente da
família — diz, pausadamente. — Sete dias depois, mal
conseguia respirar.
Enrugo a testa.
— Por que está me contando isso?
— Como você acha que uma manicure conseguiu um leito
de UTI no Hospital Albert Einstein no meio da pandemia?
Só não arranco o soro do braço e voo para cima de Jairinho
porque sei que é mentira.
Uma mentira nojenta que me faz ter vontade de vomitar.
— Wemerson, Sa ra, Afonso… — conto nos dedos. — Não
dá para chantagear todo mundo.
— Afonso já entrou na casa como in ltrado. Toda edição
precisamos de um ou dois para direcionar o rumo do
programa — explica Jairinho, entrelaçando os dedos. —
Alguém com traquejo social, capaz de in uenciar os outros. O
“pagamento” costuma ser o próprio passe de entrada para a
Casa de Vidro, embora em alguns casos tenhamos que
oferecer um bônus de cinquenta ou cem mil reais. Com Sa ra
também foi fácil. Bastou a promessa de retratação pública
quando deixasse a casa e um des le próprio na São Paulo
Fashion Week.
Engulo em seco.
Se estivéssemos num daqueles lmes de suspense em que
o protagonista descobre que não bate bem da cabeça, esse
seria o momento em que começaria a descon ar de mim
mesmo.
Mas uma pessoa foge à regra. Não tinha algo de que
precisasse urgentemente, como Chayene, ou uma sede
insaciável por fama e dinheiro que a transformasse num
boneco sem vontade própria, como Afonso.
— Lisbela me contou sobre o chip — rmo a voz. — Não
adianta gastar saliva tentando me convencer do contrário.
Por um segundo, penso que dobrei Jairinho. Então, pela
primeira vez na conversa, seus lábios passam da linha
monótona para um sorriso sádico.
— Sua namoradinha só inventou essa história sem pé nem
cabeça porque não teve coragem de te contar a verdade.
Achou que você não suportaria.
Sustento o olhar por um instante, ngindo não me abalar.
Mas minhas células estremecem.
Verdade? Como assim? Lisbela não guardava nenhum
segredo inconfessável, algo que pudesse vir à tona e destruir
sua vida, ou a minha.
Pelo menos, até onde eu sei…
— O que disse a ela? — questiono, o monitor cardíaco
voltando a apitar.
— Está perguntando a pessoa errada — retruca, antes de
se levantar da cadeira.
— O que disse a ela? — repito, dessa vez mais alto.
Ignorado, assisto Jairinho marchar em direção à porta.
Digo a mim mesmo para manter a boca fechada, não
mendigar respostas àquele que usou meus traumas para criar
um espetáculo circense. Mas a pergunta sobe pela minha
garganta como uma centopeia faminta:
— Por que ela fugiu?
Ele estaca na soleira e gira o tronco apenas o su ciente
para estabelecermos contato visual.
— Um imprevisto. Não era para acontecer. — Dá de
ombros. — Lembra das visitas de Lisbela à enfermaria?
Franzo a testa, estranhando a pergunta.
— Sim, por quê?
— Bento me contou sobre a conversinha que vocês
tiveram na praça, que você achava que Lisbela tinha ido lá
atrás de calmantes. — Ajeita as mangas do paletó. — Bem,
não eram calmantes. E agradeça a mim por ter impedido o
médico de dar os comprimidos que sua namorada queria.
Caso contrário, você nunca teria sido campeão da Casa de
Vidro.
Há uma pausa enervante, e um nó se forma em minha
cabeça. Tento desatá-lo, mas não consigo.
— Isso não faz o menor sentido — digo, por m.
— O mais irônico é que você vai ser a última pessoa do
Brasil a saber sobre o que estou falando — diz, o sorriso
sádico voltando a dar as caras. — Chayene estava à sua frente
nas pesquisas quando resolvemos soltar a bomba. Do dia para
a noite, suas intenções de voto dispararam para oitenta e três
por cento. — Ele saboreia minha perplexidade, então
completa: — Suponho que as pessoas tenham cado com…
dó.
Antes que eu pudesse perguntar que porra de “bomba” era
aquela, os enfermeiros entram no quarto, atraídos pelo bipe-
bipe do monitor. Tento me erguer, chamar Jairinho, mas seis
mãos enluvadas pressionam meu tronco contra a maca. Uma
sétima limpa meu braço com gaze e álcool.
— Rua General Montebravo, oitocentos e cinquenta e seis.
— Meu chefe volta a me dar as costas, caminhando em
direção à saída. — Ou, se preferir, qualquer site de fofocas.
Ainda estou memorizando o endereço quando o sedativo
arranca minha consciência.

3 anos atrás
Ela está de bobeira no sofá quando a voz de comando ecoa
pela casa:
— Lisbela, favor comparecer à Caixa Preta.
Surpresa, troca olhares com outra participante.
— O que você fez?
Lisbela faz careta.
— Sei lá.
— Será que foi por que você dormiu durante a pr…
— Lisbela, comparecer à Caixa Preta. — A voz retorna,
impaciente.
Sem enrolar, ela se levanta, cruza a sala de estar e
mergulha no corredor, acompanhada em espírito pelo resto
da casa. Os cochichos se proliferam como fogo estalando na
lareira, mas é só Lisbela fechar a porta preta atrás de si que o
mundo emudece.
— Sente-se — ordena a voz, onipresente.
Sem saber para onde direcionar o olhar, ela assente,
acomodando-se na poltrona.
— Aconteceu alguma coisa?
Está nervosa. O último azarado a ser chamado para a
Caixa Preta cou sabendo que seu cachorrinho morreu de
picada de cobra.
— Só quero conversar um pouco.
— Sobre o quê?
— Nada com o que se preocupar — a voz responde. — O
que está achando da Casa de Vidro até agora? Conseguindo
não enlouquecer?
Inundada por uma onda de alívio, Lisbela ri entredentes.
— Um pouco difícil depois de ter sido colocada na
Fogueira semana passada.
— Fica tranquila. Posso te contar um segredo?
Ela abre um sorriso maroto de desenho animado.
— Minha boca é um túmulo.
— O Brasil te ama — anuncia, num tom monótono de
Google Tradutor. — Você e Bento.
— Não me diga! Será que chegamos à nal?
— Pelas nossas pesquisas de popularidade, sim. Os fãs até
criaram um nome para o casal: “Bentela”. Está entre as
hashtags mais usadas no Twitter.
— Fofo — diz, embora tenha achado brega. — Só falta
alguém avisar a eles que não somos um casal.
— Lisbela… — A voz estica seu nome, agudo na primeira
sílaba e grave na última. — Não acha que já está na hora de
parar de fazer doce e abrir as pernas?
Ela entra em tela azul. Cinco segundos para reiniciar o
sistema.
— Isso é zoeira, né? — questiona, com uma pontinha de
esperança.
— Hãããããããã… Não.
Então ela se apaga.
— Não quero car com ele.
— Como assim? — A voz se faz de indignada. — O Bento é
mó gato. Ele tem olhos cinza!
— Já disse que não quero — repete, dura como rocha.
— É por causa do seu namorado? Já formamos casais
antes. Pura estratégia de marketing. Ele vai entender.
— Isso não tem a ver com Lorenzo. Tem a ver comigo —
retruca. — Meu corpo, minhas regras.
— Já entendemos que você é uma vadiazinha empoderada.
Está querendo ganhar biscoito?
O xingamento atinge Lisbela como uma bola de
demolição. Tenta manter o controle, mas não é fácil.
Não sabe com quem está falando.
Não sabe com quantos está falando.
Ninguém pode ver ou ouvir se ela gritar.
— Essa conversa é uma perda de tempo. — Dá um tapa no
ar. — Se for para car me ofendendo, vou voltar para a sala.
A estática preenche o ar por tempo su ciente para que
ache que escapou daquela arapuca. Então desistiria, pediria
para sair da Casa de Vidro. Na frente dos outros participantes,
na frente do Brasil.
— Ele é talentoso atuando, não acha? — A voz ressurge.
— Hã?
— Lorenzo.
Lisbela arqueia as sobrancelhas.
— Tentou me jogar nos braços de Bento e agora está
elogiando meu namorado? Não estou entendendo.
— Só acho que seria uma pena se ele fosse demitido antes
de começarmos as gravações de Os Debochados.
“Filho da pu…”, pensa, com vontade de chutar as caixas de
som, mas se contém.
O segredo é ngir não se importar.
— Só mais um ou dois anos trabalhando no McDonald's
até surgir a próxima oportunidade — Lisbela rebate, plena.
— Um ou dois anos? Oportunidades assim só surgem uma
vez na vida.
— Como você disse, ele é talentoso atuando. Vai se virar.
Uma pausa carregada antes que a voz retorne:
— Se não se enforcar antes.
Então o chiado some, mergulhando a sala num silêncio de
cemitério que só paredes com isolamento acústico são
capazes de criar.
Um…
Dois…
Três segundos…
O desespero quica em seu peito feito uma granada prestes
a detonar.
É isso? Acabou? Sem mais tentativas de convencê-la a car
com Bento? Ameaças de destruir sua reputação?
Recompensas? Carro, dinheiro ou qualquer merda que faça a
produção deixar Lorenzo fora da discussão?
Então as imagens ressurgem, horripilantes:
O banquinho tombado.
A corda partida.
O corpo frio.
“Lorenzo?! Lorenzo?!”
— Ele já assinou o contrato — dispara, alto o su ciente
para não ser ignorada.
O chiado retorna com uma risada debochada, que beira o
macabro ao se misturar com a distorção do áudio.
— Contrato?! Quem manda na porra da Rede Astro sou eu,
vadia!
Quando percebe que mordeu a isca, é tarde demais. Sua
máscara de rainha do gelo trincou, e por entre as rachaduras
deixou transparecer o quanto se importa com Lorenzo.
— Os jornais não vão gostar de saber sobre a nossa
conversa — Lisbela parte para o ataque.
— É incrível como tem gente que não se enxerga — a voz
retruca. — Você não passa de uma subcelebridadezinha do
Instagram. Não tem dinheiro, não tem contatos na imprensa.
Em quem acha que vão acreditar?
Uma esfera densa se forma em sua garganta.
Não consegue engoli-la.
— Lorenzo não tem nada a ver com isso — murmura.
A voz suspira, assumindo um tom perturbadoramente
paternal:
— Não quero que pense em mim como o vilão da história,
mas você tem que entender que, a partir do momento em que
se entra na Casa de Vidro, é a vontade do público, não a sua,
que determina o que acontece. E o público quer você e Bento
juntos.
— E se eu disser não?
— Você não vai dizer não.
Sabendo que a voz está certa, enterra o queixo no peito,
segurando o choro.
Sim, aquilo ia contra tudo em que acreditava, mas a
con ssão de Lorenzo ressoa em sua memória como uma
melodia triste:
“Esse papel salvou minha vida”.
— O que quer que eu faça? — pergunta, derrotada.
A voz de comando dá as instruções. Lisbela estranha, mas
acata. Fica de pé e empurra a poltrona. Músculos tensos,
agacha-se e retira as quatro peças de porcelanato do piso
recém-descoberto, até encontrar…
Uma caixa preta.
— Abra a caixa e pegue o objeto dentro — a voz ordena.
Lisbela obedece.
— O que é isso? — questiona, franzindo a testa.
— Um chip controlador de mentes.
Ela ergue os olhos assustados para o vazio à sua frente, os
lábios tremendo feito minhoquinhas epilépticas.
— É um microponto eletrônico, sua anta — a voz corrige,
distorcendo o áudio em mais uma risada. — Vamos usá-lo
para passar instruções durante o programa.
Vulnerável demais para ligar para a pegadinha ou o
xingamento, examina o dispositivo, rolando-o entre o polegar
e o indicador.
— Como coloca?
— Face interna do tragus.
Não tem ideia do que é “tragus”, mas instintivamente
retira a película adesiva da superfície do microponto e o
posiciona numa das reentrâncias formadas pela cartilagem
da orelha.
— Consegue me ouvir?
Seu coração dispara.
A voz de comando não está mais fora, mas dentro,
in ltrando-se em seu crânio, confundindo-se com seus
pensamentos.
— Sim — sussurra.
— Alguma interferência?
— Não.
— O volume está bom?
— Sim.
— Coloque as peças de porcelanato e a poltrona de volta no
lugar.
Lisbela obedece.
— Agora, já que está sendo uma boa garota, faça um favor
a si mesma e que com Bento na festa de amanhã à noite.
Quando o canal se fecha pela segunda vez, o choro rompe
a barragem do autocontrole.
Foda-se que estão assistindo.
Foda-se que estão rindo.
Nossa heroína passa os próximos cinco minutos
guinchando e tremendo no meio da sala, as lágrimas
deslizando pelas bochechas feito cera derretida.
Atordoada, espera os olhos secarem e caminha em direção
à porta. Está prestes a girar a maçaneta quando a voz de
comando ressurge:
— Já disseram que você parece uma fuinha chorando?

Hoje

Capuz no rosto e mãos no bolso, torço para não ser


reconhecido.
A rua é margeada por árvores que se entrelaçam para criar
um túnel natureba para os poucos carros que cruzam o
asfalto. As calçadas também são tranquilas: só eu e um cara
de meia-idade passeando com um vira-lata caramelo.
Vila de Santa Fé ca no extremo oeste do Brasil e vai
desaparecer antes de 2050. Pelo menos é o que diz a
reportagem do Correio do Pantanal, que culpa os moradores
mais velhos por morrerem cedo e os mais jovens por
abandonarem suas famílias para tentar a sorte na capital.
Das quinze horas de viagem, dez foram meus dedos
coçando para acessar os sites de fofocas e acabar de vez com
essa agonia. Uma espiadinha rápida nos jornais foi su ciente
para descobrir que minha orelha decepada serviu de
empurrão para Chayene, Sa ra e dezenas de participantes das
edições anteriores botarem a boca no trombone e
denunciarem as chantagens. Nas palavras do irreverente
colunista Leo Dias: “As investigações mal começaram e a Casa
de Vidro já estilhaçou”.
Mas, no momento em que deixo a avenida e viro na da Rua
General Montebravo, o maior escândalo da história da
televisão brasileira parece pequeno e distante.
Como se pertencesse a outra época.
Outra vida.
Dois quarteirões e alcanço o número 856: uma casa azul
de arquitetura antiga e decadente que nada lembra as
fachadas modernosas que Lisbela adicionava em suas pastas
do Pinterest.
Será que ela está mesmo lá?
Sem encontrar interfone ou campainha, ergo as mãos para
bater palmas, mas desisto.
Falta coragem.
Erguendo o capuz, caminho até a calçada oposta e uso o
meio- o como banquinho. De lá poderia observar a casa sem
parecer um assassino em série.
Só Deus sabe quantas noites gastei reassistindo à vigésima
segunda edição da Casa de Vidro e reconstruindo os últimos
passos de Lisbela para encontrar seu paradeiro.
Foi amor que me impediu de desistir? Não acho que a
resposta seja tão simples, redutível a uma única palavra ou
sentimento. Sei que foi algo forte. Mais forte que um reality
show de merda ou um chip controlador de mentes.
Já está quase escurecendo quando a porta se abre e a vejo
sair para o jardim.
Sua pele está pálida, como as vampiras milenares das
séries adolescentes, e suas calças caram mais cheinhas. Mas
o resto é como me lembro, um retrato el de três anos atrás:
A pinta sobre os lábios.
A folha de oliveira na clavícula esquerda.
Sem o olhar robótico.
De repente, esse mesmo olhar me encontra. Meu coração
pula. Não sei ler sua reação. Se de saudade, surpresa ou de
quem já esperava minha visita como uma catástrofe natural
prenunciada.
Não importa.
Minha busca acaba ali.
Dou os primeiros passos em sua direção quando um vulto
surge pela porta e se aproxima dela. Com medo do moço
estranho, o garotinho agarra-se às pernas de Lisbela e me
espia com seus olhos cinza.
Sobre o Autor

Rafael Weschenfelder é paulista e médico formado pela


USP. Obcecado desde criança por histórias com reviravoltas
engenhosas e nais-surpresa, decidiu ser escritor para criar
as suas. Quando não está no hospital ou em frente às páginas
do Word, pode ser encontrado jogando videogame e
assistindo a animes.
Instagram: @rafaweschenfelder
Twitter: @RafaWesch
Conheça outros títulos do autor:

As 220 Mortes de Laura Lins

O Baú do Zumbi Gelado

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