Estação Primeira de Mangueira Tradição - Texto
Estação Primeira de Mangueira Tradição - Texto
Estação Primeira de Mangueira Tradição - Texto
DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v16i1p55-70
sala preta Dossiê Performatividades Originárias
Resumo
Este artigo elabora uma leitura do carnaval campeão de 2016 da Esta-
ção Primeira de Mangueira sobre Maria Bethânia, com dois enfoques
principais: como a performance do desfile articula a restauração en-
quanto elemento imprescindível na construção da noção de tradição
e consolidação da identidade dessa escola de samba; e o espetáculo
do desfile como um conjunto de eventos simultâneos. Para tanto, recor-
re-se a Agamben, Bakhtin, Benjamin, Lehmann, Moreno, Schechner e
Winnicott; também se reflete sobre questões da memória e cultura e os
aspectos que potencializam o brincar carnavalesco.
Palavras-chave: Carnaval, Mangueira, Tradição, Identidade, Simulta-
neidade.
Abstract
This paper presents a reading of the 2016 champion carnival of Estação
Primeira de Mangueira, about Maria Bethânia, with two main focuses:
how the performance of the parade articulates the restoration as a nec-
essary element in the construction of the notion of tradition and identity
consolidation of this samba school; and the performance of the pa-
rade as a set of simultaneous events. The article calls upon Agamben,
Bakhtin, Benjamin, Lehmann, Moreno, Schechner and Winnicott; it also
reflects on issues of memory and culture and the aspects that enhance
the carnival play.
Keywords: Carnival, Mangueira, Tradition, Identity, Simultaneity.
“Estação Primeira” foi um epíteto cunhado por Cartola para dizer que
após a Central do Brasil, a Estação de trem existente em Mangueira era a pri-
meira a ter samba. Neste ano de 2016, a Mangueira foi novamente campeã do
carnaval carioca e resgatou o simbolismo do título criado pelo seu fundador.
Diz a grande mídia que a escola não ganhava desde 2002, mas prefiro pensar
que a escola vinha perdendo desde 2008. Naquele ano, morria Jamelão, in-
térprete oficial da Verde e Rosa, a voz do samba e um dos maiores intérpretes
da música popular brasileira. De luto, a escola tinha pela frente o centenário
do seu fundador, Agenor de Oliveira, o já citado Cartola. Tema certo para um
enredo redentor, enaltecendo as próprias raízes e um grande poeta do sam-
ba. Por razões financeiras a diretoria absteve-se da aguardada homenagem
devido ao patrocínio recebido para se contar os cem anos do frevo. Ali algo
se fraturou na relação entre a Estação Primeira de Mangueira e a noção de
tradição que movia sua legião de apaixonados.
Após esse grave e inesquecível equívoco, a Supercampeã3 sofreu ou-
tras perdas e incidentes: morreram o diretor de harmonia, Xangô da Manguei-
marco, aquele foi o primeiro ano que os desfiles foram divididos em dois dias, domingo e
segunda-feira. Extraordinariamente, cada dia teve uma campeã, Portela naquele domingo
e Mangueira no dia seguinte. No sábado, desfilariam as campeãs junto das demais pri-
meiras colocadas; e uma nova competição ocorreu, em que a campeã ganharia a alcunha
de supercampeã. Com o enredo “Yes, nós temos Braguinha!”, a Mangueira foi campeã
da segunda-feira e do sábado, acumulando os dois títulos daquele ano, por isso, muitos
veículos de comunicação apontam erroneamente que a vitória de 2016 foi seu 18o título,
pois não contam o supercampeonato. Contudo, a Liesa (Liga das Escolas de Samba do
Rio de Janeiro) confirma 19 títulos.
4 Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm, de Ivo Meirelles, Paulinho e
Lula (1986).
lesco não trouxe nenhuma inovação estética ao desfile, como Joãozinho Trin-
ta, que compreendeu a verticalização que a passarela do samba impunha às
escolas – em função de suas arquibancadas elevadas e deslocadas da ave-
nida – e elaborou carros alegóricos cada vez mais altos para os padrões até
então adotados. Nem como Paulo Barros, que explorou aspectos da presença
humana, o impacto das alas coreografadas, a utilização de carros alegóricos
vivos, completados apenas na execução da avenida, em detrimento da noção
das alegorias tidas como obras de artes completas que chegavam prontas e
acabadas para o desfile.
Barros injetou porosidade aos desfiles, investindo na noção de inacaba-
mento físico, dinamizou o evento, fugindo da zona de conforto do realizado pelos
demais carnavalescos ano a ano e, para gerar impacto na audiência, empregou
aspectos de teatralização, espetacularizando a ocupação das alegorias e adap-
tando a estratégia usada nos eventos, que colocam centenas de pessoas em
cena agindo com milimétrica articulação e entrosamento na produção de um
efeito estético impactante – como ocorre nas comunistas China, Coréia do Norte
e na antiga União Soviética. Assim, potencializou e investiu no eixo de comuni-
cação plateia/desfilante. Se Joãozinho fez a escola de samba subir as arquiban-
cadas para ser vista pela audiência, Barros deu nova qualidade ao ato, fazendo
o público dialogar com as alegorias vivas e presentificando a manifestação.
Mas foi Leandro Vieira que fez essa relação se tornar contagiante. Pois
as alegorias, seja com movimento e vida seja como escultura estática, ainda
são elementos de exposição. Antes, como agora, servem para ser vistas, im-
põem ao público o papel de observador. Ocorre que, mesmo sem a qualidade
dinâmica das alegorias de Barros, Vieira intensificou o aspecto presencial do
desfile ao adicionar um novo ingrediente a essa poção: a brincadeira. Assim,
para Gumbrecht (2010) a produção da presença é mais do que reconhecer
a existência do público e dos desfilantes da Mangueira, mas reconhecê-los
como sujeitos da brincadeira, como agentes e partes ativas do processo lúdi-
co. Aí se completou a grande magia.
Enfim, a Mangueira parecia uma escola pensada para brincar e por isso
ganhou não apenas o campeonato, mas recuperou sua tradição. Mas o que é
tradição nesse contexto? Poderíamos dizer que tradição são todas as recor-
dações de eventos e pessoas que fizeram parte do carnaval carioca através
da Verde e Rosa e são resgatados e invocados ano após ano em cada desfile.
Como diz o samba exaltação: “A Mangueira não morreu, nem morrerá, isso
não acontecerá [...] Mangueira, teu passado de glória está gravado na histó-
ria”6. A memória é a própria matéria-prima da tradição, imprecisa, intensiva e
parte do nosso sistema de afetos, que encontra a completude na coletividade.
Tal como propõe Benjamin (1994), a memória é fragmentária, evocada em
pulsos, em cacos, contudo, a coletividade se encarrega de preencher as lacu-
nas que as fontes individuais possuem.
A tradição, portanto, não é estática, ganha contornos de ficção quanto
mais incerta se torne a lembrança e pode virar um fato realmente vívido, colo-
rido pelo desejo nem sempre realizado naquela experiência, como um querer
misturado à realidade. Para uma escola de samba, a tradição se move, cresce
com outras experiências na repetição de suas práticas anuais e se torna um
patrimônio que é motivo de orgulho e reverência por quem o reconhece, que
alça à imortalidade e a uma forma de mitologia contemporânea todos aqueles
envolvidos. A tradição serve tanto ao sistema de identificação imediata da Es-
tação Primeira de Mangueira para o seu torcedor quanto para a imagem que
aquela comunidade faz de seus feitos. Conforme diz o samba-enredo de 1993:
Guerreei na juventude
Fiz por você o que pude,
Mangueira [...]
E no fim desse labor
Surge outro compositor
Com o mesmo sangue na veia.8
Referências bibliográficas
AGAMBEN, G. Profanações. Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo,
2007.
ALEMÃO DO CAVACO et al. Maria Bethânia, a Menina dos Olhos de Oyá. Intérprete:
Ciganerey. In: SAMBA ENREDO 2016 – GRUPO ESPECIAL. São Paulo: Universal
Musica, 2015. Faixa 10.
BIRA DO PONTO et al. Dessa fruta eu como até o caroço. Intérprete: Eraldo Caê. In:
SAMBAS DE ENREDO 1993. [S.l.]: BMG, 1993. Lado B, faixa 3.
BENJAMIN, W. A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre Literatura e História da Cultu-
ra. Obras Escolhidas. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010.
CABALLERO, I. D. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Uber-
lândia, MG: UDUFU, 2011.
CARTOLA. Fiz por você o que pude. Intérprete: Cartola. In: HISTÓRIAS DAS ESCO-
LAS DE SAMBA. Mangueira. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1974. Faixa 8.
COURTNEY, R. Jogo, Teatro & Pensamento. Tradução Karen Astrid Müller e Silva-
na Garcia. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
GUMBRECHT, H. U. Produção de Presença: o que o sentido não consegue trans-
mitir. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010.
HÉLIO TURCO; JURANDIR; ALVINHO. E deu a louca no barroco. Intérprete: Jame-
lão. Participação especial: Sobrinho. In: SAMBAS DE ENREDO DAS ESCOLAS
DE SAMBA DO GRUPO 1A. Carnaval 90. 1990. Lado B, faixa 2.
HORA, R.; CABRAL, S. Os meninos da Mangueira. Intérprete: Ataulfo Alves Jr. In:
ATAULFO JR. Os meninos da mangueira. São Paulo: RCA Victor, 1975. Compacto.
LEHMANN, H.-T. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MARTINHO DA VILA. Pra tudo se acabar na quarta-feira. Intérprete: Marcos Moran,
Gera e Valcy. In: SAMBAS DE ENREDO DAS ESCOLAS DE SAMBA DO GRUPO
1A. Carnaval 84. 1984. Lado A, faixa 2.
MAZINHO; GILSON SR. As mágicas luzes da ribalda. Intérprete: Neguinho da Beija-
-flor. In: SAMBAS DE ENREDO 1987. 1987. Lado B, faixa 1.
Recebido em 18/03/2016
Aprovado em 18/05/2016
Publicado em 01/07/2016