Ana Lana O Luto Na Perda Gestacional

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O LUTO NA PERDA GESTACIONAL

Uma dor muito particular

A morte de um ente querido constitui experiência única quando ocorre no contexto


existencial mais ligado à vida que é o da sua reprodução – a gestação, o parto, o nascimento.
A perda gestacional representa situação muito comum com a qual a maioria das pessoas já
teve contato, de uma forma ou de outra. No entanto, talvez por essa característica vivencial
única, o luto que dela resulta é ainda cercado de incompreensão, o que lhe agrega uma carga e
uma qualidade de sofrimento que o distingue das outras formas de luto.
Durante muitos anos eu tive contato com a perda gestacional no meu trabalho como
anátomo-patologista especializada na área da patologia fetal e perinatal em um hospital
universitário. Nesta condição, fazia parte do meu cotidiano lidar com as perdas – o aborto e o
óbito perinatal – e, consequentemente, dialogar com mulheres e casais quando lhes fornecia o
laudo do exame, o que me fez ver bem de perto essa forma peculiar de luto. Esse contato me
marcou profundamente, tanto que tempos depois, ao decidir me tornar musicoterapeuta e
durante a minha formação em psicoterapia humanista, deu origem ao interesse em oferecer
suporte a essas pessoas e em contribuir para chamar a atenção, particularmente dos
profissionais da saúde, para esse luto frequentemente não-autorizado e em muitos casos, de
fato, invisível.
Esse interesse resultou em uma monografia na qual a musicoterapia criativa é apresentada
como possibilidade terapêutica para o luto da perda gestacional, assim como já se mostrou
eficaz como suporte em outras formas de luto. Dele também surgiu um projeto de natureza
muito pessoal, o de oferecer apoio psicológico na linha humanista baseada nas propostas da
Abordagem Centrada na Pessoa, preconizadas por Carl Rogers e que a meu ver se aplicam
com muita pertinência ao atendimento no luto da perda gestacional.
A perda de um filho nas fases mais iniciais da sua existência representa muito mais do que
a perda de um ser amado: é a perda de todo um projeto, de uma vida que muitas vezes se
interrompe quando mal começou a brotar. É perder o futuro. A empatia e a consideração
incondicional à pessoa que passa por essa forma de sofrimento são condições essenciais para
ajudá-la a se reestruturar e a elaborar esse luto tantas vezes incompreendido e não-aceito
como tal, por quem de alguma forma o presencia. Duas condições que podem ser oferecidas
não só por um terapeuta, mas por todas as pessoas que atendem ou que têm o desejo ou
intenção de ajudar a quem nele se encontra submerso.
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O texto que se segue contém o resultado de leituras – de ensaios, artigos científicos e


livros – e de reflexões, advindas em grande parte da experiência adquirida em todos aqueles
anos do meu trabalho na Universidade. Também contribuíram para a sua construção as
relações que eu tive a sorte de estabelecer com profissionais sensíveis e que têm se dedicado a
ajudar as pessoas no processo de elaboração das suas perdas e a fazer algo para mudar esse
quadro de invisibilidade. De forma não menos importante e talvez mais significativa,
serviram-me de inspiração, em vários momentos, a memória de mulheres que encontrei ou
entrevistei e as relações criadas mais recentemente com pessoas que perderam – clientes e
membros de um grupo de rede social do qual faço parte com mães, pais e outros profissionais.
Muitas das palavras aqui escritas são o fruto dessas conexões. Algumas delas são transcrições
integrais da forma que as pessoas encontraram para expressar essa dor tão particular e tão
difícil de ser simbolizada.

Um evento comum

O termo “perda gestacional” compreende toda perda de produto da concepção – seja


resultante de fertilização natural ou in vitro - ocorrida em qualquer fase da gestação, bem
como a morte do feto e do bebê recém-nascido. Incluem-se, portanto, nesse conceito: a
gravidez tubária; o aborto precoce (até a 10ª semana gestacional) e o tardio (da 11ª à 20ª
semana), espontâneos ou induzidos; o óbito fetal, termo usado para a morte do feto nesse
período tardio e que se estende até o final da gestação; e o óbito perinatal, aquele que ocorre
antes, durante ou na primeira semana depois do parto. Depois desse período, a morte neonatal
tardia (um bebê com idade de até 28 dias), ou mesmo a de um lactente, teoricamente foge do
conceito de perda gestacional. Mas o fato e as suas consequências em nada ou em muito
pouco diferem das perdas que ocorrem em períodos mais tardios da gravidez.
A frequência das perdas gestacionais como um todo é difícil de ser avaliada. Os registros
oficiais se referem necessariamente às perdas tardias – o óbito fetal e a mortalidade perinatal -
sendo que a nomenclatura pode variar em diferentes países. De qualquer forma são
ocorrências frequentes, rotineiras nos hospitais e maternidades, sejam públicos ou privados.
Estima-se que 15% das gestações clinicamente reconhecidas são perdidas. As perdas podem
ser tão precoces que, ocorrendo em fase pré-clínica da gravidez, antes do seu diagnóstico, não
chegam a ser reconhecidas. Já as perdas mais tardias e o óbito perinatal têm a sua frequência
melhor estimada, a deste último se situando em torno de 11 a 12 óbitos por mil nascidos
vivos, em países do primeiro mundo e também no Brasil. No nosso país, em números
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absolutos, ocorrem cerca de 30.000 óbitos fetais por ano, com variações regionais.* Diante de
dados registrados mundialmente, há quem afirme que um terço das gestações evolui para a
perda em alguma de suas fases. O risco de perda, principalmente nas primeiras semanas da
gravidez, aumenta significativamente com o aumento da idade materna. E em uma pequena
porcentagem de casais pode continuar existindo e resultando em perdas repetidas, recurrentes.
Esses poucos dados servem para se ter uma ideia da frequência com a qual os
profissionais da Saúde e do Serviço Social e a própria sociedade como um todo lidam com o
tema, no dia a dia. Surge então a pergunta: sendo a perda gestacional um acontecimento tão
frequente, como se justifica ou se explica a incompreensão que cerca o luto que dela decorre?

Impacto e peculiaridades. O luto invisível

Em comparação com os outros tipos de luto, o da perda gestacional é processado de


forma muito particular, com importantes diferenças de cunho cultural ou relacionadas ao grau
de desenvolvimento das sociedades, ao longo da história. Nas perdas muito precoces, elaborar
o luto é mais difícil por se tratar de um tipo de perda “invisível”, após a qual geralmente não
se segue nenhum tipo de procedimento criado para processá-la, individual ou socialmente.
Mesmo quando a perda ocorre em fases um pouco mais avançadas da gestação, o luto que se
segue, em certos casos, apresenta peculiaridades que, pelo menos em parte, podem ser
atribuídas ao fato de pertencer à categoria do luto não-autorizado, aquele das perdas que não
são abertamente reconhecidas, socialmente aceitas e publicamente vividas como luto. É
quando o enlutado não é reconhecido como tal e é pouco reconhecida a própria relação com o
ser perdido, o que torna mais difícil e prolongada a resolução deste luto que também passa a
ser invisível. Ao que tudo indica, a invisibilidade do luto na perda gestacional está ligada à
precocidade da perda, à ocorrência da falta de contato com o feto ou bebê nas perdas tardias e
ao não reconhecimento social do luto.
Em períodos não muito antigos da história das sociedades ocidentais, a maneira do ser
humano se relacionar com a morte e o nascimento era algo diferente da dos dias de hoje. Na
Europa do século XIX, quando a mortalidade perinatal e infantil era muito elevada, perder um
filho recém-nascido, apesar de ser um fato corriqueiro ou talvez também por isso, não
resultava em um luto publicamente reconhecido, assim como a própria gravidez não era uma
condição mostrada em público com a naturalidade com que o é atualmente. A redução da
mortalidade, a mudança nos costumes e o avanço da Medicina e da tecnologia alteraram esse

*Fonte: MS/SVS/DASIS – SIM (Serviço de Informação de Mortalidade, Ministério da Saúde


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quadro de forma significativa, mas, ao que parece, sobraram resquícios do comportamento


social com relação ao reconhecimento do luto nesse tipo de perda.

“...a dor de uma mãe que perde seu filho aos dois meses de gestação ou com vinte anos de
idade é a mesma. Pra mim, a diferença é que uma tem saudades de tudo que viveu e nós que o
vimos partir tão cedo temos saudades de tudo que não nos foi permitido viver....”

O impacto da perda gestacional está ligado a fatores que o determinam e que influem no
seu grau de profundidade. Destaca-se o vínculo com o filho que atualmente, além de mais
precoce, tende a ocorrer de modo mais intenso, pelo menos em parte graças à experiência
visual e sensorial proporcionada pelas técnicas de monitoramento fetal e dos exames de
imagem. Tais recursos estimulam os pais, ainda em fase muito inicial da gestação, a
incorporar à família o bebê ainda não nascido, mas que já se torna conhecido na sua forma -
tamanho, sexo, face - e rapidamente integrado a um projeto de futuro do casal ou da família.
Tudo isso permite também à sociedade tornar-se mais receptiva à expressão desse vínculo.
A resposta à perda é também influenciada por fatores tais como: a valorização da
gravidez, relacionada à história de perdas prévias, ao grau de fertilidade do casal e à idade
materna; o grau de estabilidade conjugal e de suporte do parceiro; suporte familiar e social; o
grau de espiritualidade e o nível de educação; o status econômico-social; o background
cultural; ocorrência de doença mental prévia; e a própria idade gestacional, quando o luto
pode ser mais persistente se a perda ocorre em fase mais avançada da gravidez, embora haja
evidências de que o grau de investimento e o significado da gestação para o casal sejam
fatores mais críticos do que a duração da mesma, na gravidade da resposta à perda.
Um fator particularmente delicado e controverso e que mostra ser significativo no
impacto da morte fetal ou perinatal, a médio e longo prazo, é o contato visual e físico com o
feto ou bebê natimorto ou neomorto, em especial na existência de malformações congênitas
ou de alterações pós-morte. Nossa experiência como patologista perinatal suporta a ideia de
que esse contato pode ajudar na resolução do luto, através de dois exemplos tocantes: o
primeiro, da mãe que foi desencorajada, pelo obstetra inexperiente, de ver o corpo do filho
natimorto macerado e só pôde dar vazão à sua tristeza semanas depois, quando lhe foram
mostradas, a seu pedido, as preparações histológicas feitas durante a autopsia e que eram o
que restava materialmente do bebê, ao seu alcance visual; e o segundo, do casal que relata ter
sentido maior conforto após carregar nos braços o corpo do neomorto portador de anomalias
graves. Outras vezes, fui solicitada a mostrar ou enviar fotografias a mães que não puderam
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ou quiseram ter o contato visual direto com o feto ou bebê perdido; foi quando primeiro
percebi que o contato visual, mesmo sendo com uma imagem, pode ajudar a dar forma à
perda e a integrá-la à pessoa que a sofreu, condições importantes para a elaboração do luto.
Embora alguns estudos mostrem associação entre o contato visual e físico e o
aparecimento de transtornos psicológicos mais graves, outros indicam que ele tem efeito
positivo na resolução do luto, podendo se concluir que a decisão de mantê-lo cabe apenas aos
pais que devem ser adequadamente orientados, à luz do princípio da beneficência, pelos
profissionais que os assistem.
Na maioria das mulheres, as manifestações do luto duram de seis meses a um ano e em
algumas podem se estender até por 18 meses ou mais. Sua duração irá depender de todos
esses fatores e do grau e tipo de suporte recebido.
Nas primeiras semanas após o evento, as respostas maternas à perda perinatal incluem
sentimentos de tristeza profunda, raiva, vergonha e culpa (falha em proteger), impotência,
“sensação de vazio” e entorpecimento. Também podem surgir irritabilidade, insônia, falta de
apetite, sintomas somáticos e sinais de depressão e ansiedade. Nas perdas em qualquer fase
são comuns a redução da auto-estima, a tendência ao isolamento, o medo da perda se repetir
na próxima gravidez e, compreensivelmente, a inveja às vezes despertada pela simples visão
de uma gestante saudável. Nos partos gemelares com perda de um dos gêmeos ocorre a
estranha mistura de sentimentos, quando alegria e angústia se entrelaçam, além do peso da
memória do bebê perdido, interposta diariamente na presença do que sobreviveu. Como em
outras formas de luto, o evento é revivido na passagem de datas significativas – a provável
data do nascimento em caso de perdas precoces, o dia do aniversário, o Dia das Mães, dos
Pais – com intensificação desses sentimentos e sintomas mesmo quando o luto já se encontra
em fase mais avançada de elaboração.

“...a dor que senti quando perdi o bebê foi como se um membro meu tivesse sido amputado e eu
ficasse aleijada pro resto da vida...”

“... eu sentia uma dor terrível quando o meu leite descia, eu chorava muito... “

“ Eu tenho um medo muito grande...o de esquecer a sensação dele mexendo na minha barriga, que é
a lembrança mais concreta que tenho dele...”

Podem ainda associar-se memórias traumáticas, especialmente de dor física, sangramento


abundante, procedimentos cirúrgicos ou outros eventos chocantes, contribuindo para bloquear
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a expressão dos sentimentos durante a elaboração do luto. A dor da perda durante a gestação,
o parto e o puerpério tem, necessária e naturalmente, a corporalidade como uma de suas
principais características, na forma como é vivenciada pela mulher.
A resposta do pai à perda gestacional tem semelhanças com a resposta materna, embora
seja menos acentuada e, ao que se percebe, menos investigada e socialmente menos
reconhecida, até pela própria diferença de papéis, da forma de vivenciar a gestação e do grau
de vínculo estabelecido com o filho. Considera-se, a princípio, que a mulher expressa melhor
os sentimentos e procura mais apoio após a perda (estilo intuitivo), enquanto o homem é mais
orientado para a ação e a resolução de problemas, é mais reflexivo e se preocupa em prover
suporte emocional à parceira (estilo instrumental). É importante, porém que se perceba que
essas diferenças de estilo podem representar estereótipos de gênero que devem ser
desconstruídos enquanto tal e que se aceite que as características de um ou do outro estilo
podem estar presentes tanto no homem, quanto na mulher. A perda gestacional torna-se fator
de risco para o surgimento de conflito conjugal, como apontado em estudos que revelam risco
significativamente mais elevado de crise e separação dos casais após um aborto ou um filho
natimorto, em comparação com os que tiveram filhos vivos.
Igualmente importante é a repercussão da perda perinatal sobre gravidez subsequente,
quando aumenta a ocorrência de ansiedade, bem como a possibilidade de depressão pós-parto,
especialmente se decorre um período de tempo muito curto entre a perda e a nova gestação.
Os efeitos da perda gestacional em relação aos outros filhos, em especial o gêmeo
sobrevivente, quando é o caso, ou os nascidos em seguida, podem ser marcantes e persistir até
a vida adulta. Para os irmãos sobreviventes, que geralmente são crianças de baixa idade, a
morte de um bebê no período perinatal pode ser também vivenciada como uma perda
invisível, que envolve sentimentos confusos, como o de culpa pela mesma e que deve
considerada quando for oferecido aconselhamento à família.
Diferentemente das outras formas de luto, o da perda gestacional evoca outro tipo de
sensação, o da “perda do futuro”, de sonhos e esperanças que não se concretizaram, “a perda
de alguém que apenas começamos a amar ou imaginamos ter amado”, uma saudade
prospectiva. Pode estar carregado de imagens e ideias fantasiosas e irreais, ligadas ao ser que
foi perdido, gerando dificuldade de acomodar as memórias do mesmo e de incorporá-las no
processo chamado de “identificação”, fases do luto que são importantes na sua resolução e
que se tornam dificilmente realizáveis, ficando os pais enlutados mais preocupados em aliviar
a sua tristeza e em encontrar um significado na breve existência do filho perdido.
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A instituição e os profissionais da saúde. O “não-evento”

“Meu mundo caiu ... o médico que nos atendeu só sabia nos dizer que minha filha tão amada era “um
ser, uma coisa inviável" e que ela não era compatível com a vida...”

“...e quando o anestesista foi aplicar a anestesia eu mexi, foi quando ele começou a gritar comigo
dizendo que meu filho iria morrer se eu não ficasse quieta, então segurei a próxima contração e ele
aplicou a anestesia...”

“Me levaram pra um quarto com outras mães e os seus bebês. Eu era a única sem um bebê do lado.”

Apenas a partir das três últimas décadas os profissionais da área da saúde vêm
expressando regularmente sua preocupação com o tema do luto na perda gestacional. O
primeiro artigo de que se tem notícia na literatura médica relatando o impacto da morte
perinatal foi publicado em 1950, no qual o autor aconselhava a mãe a esquecer o fato e ter
outra gravidez. Depois disso, percebe-se alguma mudança na atitude dos médicos somente na
década de 70, em relatos com descrições das reações da mãe e do pai, à perda perinatal.
Até aquela época, nas sociedades ocidentais este tipo de perda era considerado um “não-
evento” e, principalmente no caso de óbito fetal, a atitude dos médicos era, em geral, a de
orientar os pais no sentido de esquecer o fato e pensar no futuro, sem passar pelo processo de
elaboração da perda que é experiência do luto. A mãe muitas vezes era desencorajada ou
mesmo impedida de ver o bebê, existindo relatos de mulheres que apenas décadas depois
puderam elaborar a sua perda através de algum tipo de suporte, o qual pode ser representado
simplesmente por uma escuta empática e criativa.
Em qualquer forma de perda reconhecida em espaço de atendimento clínico, a primeira
instância de apoio emocional deve estar contida na relação médico-paciente e ser oferecida
pelo médico que constata a perda. No caso da perda gestacional, este pode ser desde o
ultrassonografista até o obstetra e o neonatologista (por vezes, plantonistas que não tiveram
nenhum contato prévio com a gestante) e que, portanto, devem estar preparados para lidar
com o seu impacto ao dar a notícia à mãe ou ao casal, o que deve ser feito, acima de tudo, em
um clima de empatia e respeito. Profissionais da enfermagem e doulas desempenham um
papel fundamental durante o parto ou a retirada do feto morto. Na minha percepção, são os
que parecem se mostrar naturalmente mais aptos ou dispostos a acolher a dor da mãe e do pai,
nesse momento crítico.
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A forma de atuar dentro dessa realidade depende em grande parte da formação desses
profissionais, mas também da política empregada pela instituição hospitalar em relação não só
à oferta de suporte às vítimas deste tipo de perda, mas, em primeira instância, à criação de um
protocolo especial para o acompanhamento imediato dessas mulheres e casais. Esse protocolo
deve incluir a existência de um espaço diferenciado dentro da estrutura hospitalar onde a mãe
possa se situar separadamente, longe das outras mães, para ter o contato físico com o bebê
morto de forma respeitosa e preservada, não devendo nunca ser alojada no mesmo espaço
com outras mães e seus bebês. Deve incluir ainda o cuidado em relação à comunicação com o
casal durante e após a alta, evitando situações sociais constrangedoras como a entrega de kits
de presentes, cartões, telefonemas ou mensagens de congratulações. Nas primeiras semanas
após o evento, a comunicação institucional é importante, pois, uma vez passado o choque
inicial da perda, os pais se lembram pouco das informações que receberam. Também nessa
fase, o monitoramento do casal mostrará a necessidade de acompanhamento e suporte,
especialmente nos casos de aborto, quando as mulheres costumam receber menos atenção por
parte da instituição.
É necessário que os hospitais ofereçam serviços de equipes multidisciplinares – da
Medicina, Psicologia, Enfermagem e Serviço Social - que respondam às necessidades
imediatas de informação, assistência prática e apoio emocional aos casais que passam pelo
processo da perda gestacional. Mas isso só será possível se, por decisão política, a instituição
reconhecer e validar a experiência do luto da perda gestacional, da qual em geral resta muito
pouco – poucas memórias, poucas vivências relacionais, por vezes nem mesmo um cadáver
sobre o qual chorar. Isto se aplica a todas as instituições, de modo mais estrito àquelas que
mantêm programas de cuidados paliativos e orientação quanto ao término da vida para fetos e
recém-nascidos sem possibilidades de sobrevida, como as que já existem em alguns países.
Atualmente, a perda reprodutiva não é mais considerada um “não-evento”, mas os pais
ainda são pouco incentivados a expressar adequadamente a sua dor, tanto pelos profissionais
da área médica quanto pela própria sociedade, que aceita e estimula a precocidade do
estabelecimento do vínculo, mas que ainda não está plenamente preparada para oferecer
suporte por ocasião da perda.
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A sociedade

“... foi horrível, ouvi boatos de que tinha deixado meu filho engasgar... meus sogros me confrontavam
com palavras e perguntas terríveis, sentia que as pessoas estavam apenas me assistindo, assistindo
a uma dor que eu sentia e que era só minha...”

“... coisas que recordo hoje: de como é triste ter audição num momento de perda. Ouvi tantas coisas
terríveis. Porque é tão difícil ter compaixão e apenas dar um abraço e dizer que sente muito?...”

“... como se fosse possível esquecer. Como se o nascimento de um filho apagasse a existência do
outro. Eu estou com minha segunda filha nos braços, mas o coração dói de saudade da minha
primeira. Dói...”

“... pessoas que querem por uma culpa em tudo, pessoas que te acusam com olhares e até mesmo
no falar, sem ao menos saber o que aconteceu...”

“...com certeza meu bebê existiu e faz parte da minha vida. Incrível como as pessoas querem nos
poupar de sofrer ignorando a existência dele. Não falar dele, isso sim, nos faz sofrer.”

Se o primeiro acolhimento ao luto da perda gestacional deve ser oferecido pelos


profissionais que atuam no ambiente hospitalar, nas semanas e meses que se seguem ao
momento da perda ele terá que advir dos familiares e amigos dos enlutados. No entanto,
muitas vezes o luto não-autorizado não é reconhecido mesmo pelas pessoas mais próximas
dos enlutados, o que torna difícil receber apoio adequado inclusive do núcleo familiar. Não
são raros os relatos de conflitos ligados a essa ausência de reconhecimento, responsáveis em
muitos casos pela tendência que as mulheres desenvolvem de se isolar ou, pelo menos de se
afastar temporariamente de pessoas da própria família. Em um ambiente onde as relações já se
encontrarem fragilizadas, o nível de incompreensão poderá intensificar os sentimentos de
raiva e culpa de forma a acirrar os conflitos e ser causa de rupturas.
O mesmo se aplica aos círculos de amizade e às relações de trabalho, onde muitas vezes a
incapacidade de reconhecer o luto gera situações de absoluto desconforto, como quando
palavras ditas com a intenção de oferecer consolo despertam sentimentos e reações opostas.
Conselhos do tipo “Esqueça, você é jovem, vai ter outro, logo”, “Minha avó perdeu vários, é
normal, dá pra superar” podem ter um efeito devastador. O silêncio compreensivo,
acompanhado de um gesto de afeto e acolhimento como um simples abraço, costuma ser
muito mais eficaz, nesse momento, do que todo um discurso que pretende trazer consolo ou
propor aceitação de algo que o próprio meio social ainda tem dificuldade de aceitar como
causa de sofrimento.
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Esse não-reconhecimento, em muitas perdas, é concretizado formalmente no meio social


pela ausência de registro civil e da cerimônia do funeral para as perdas precoces e a ausência
de registro de nascimento para o natimorto, como ocorre no Brasil, quando é emitida apenas a
certidão do óbito, na qual não pode sequer constar um nome para aquele que nasceu. Mesmo
no caso de bebês que vivem poucos minutos depois do parto, não é raro se ver médicos que,
alegando “facilitar a vida da família” com relação ao processo burocrático, emitem apenas a
certidão de óbito, como sendo de um natimorto. O conteúdo simbólico dessa ausência de
registro é claro, quando o que é feito aparentemente para facilitar um processo, está de fato
contribuindo para dificultar o outro, o que mal se iniciou e que precisa ser materializado de
todas as maneiras possíveis para prosseguir naturalmente no contexto íntimo, individual e no
próprio contexto social.

A função do ritual

“A dor é mais fácil de ser curada com alguma coisa para se segurar, se ver e sobre a qual,
chorar” (citado por Laura Seftel, 2006).

Nas sociedades da cultura ocidental, com algumas exceções, as práticas religiosas e


culturais que representam apoio e ajudam na elaboração do luto nem sempre são aplicadas ao
luto da perda gestacional, em especial no caso da perda precoce, onde a inexistência de
procedimentos que possam cumprir o papel ritualístico do funeral a tornam mais difícil de ser
elaborada.
Algumas culturas tradicionais, como a judaica, a dos países islâmicos e orientais e a de
indígenas das Américas empregam formas ancestrais de lidar com a perda gestacional e
modelos de elaboração do luto que são praticados ainda hoje em alguns países. Um exemplo
tocante é o Mizuko Kuyō, ritual de lembrança e perdão do budismo japonês, realizado para
abortos e natimortos e centrado na figura do boddhisattva Jizō, representado em estatueta de
pedra onde são depositados objetos, peças do vestuário ou lembranças ligadas ao feto ou bebê
que foi perdido. Praticado há pelo menos duzentos anos e incrementado no século passado,
aparentemente como resposta à prática do aborto induzido que se instalou no Japão a partir do
período de privação que se seguiu à II Guerra Mundial, o ritual teve sua popularidade
aumentada em meados dos anos 70, após exibição de documentário pela TV japonesa e vem
sendo adotado por algumas comunidades em outros países, inclusive do Ocidente.
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Outro tipo de prática cultural adotada em países como o México, Nova Zelândia,
Indonésia e na América do Norte, é o uso de bonecas ou esculturas (“bebês substitutos”) que
representam crianças e que são incorporadas em rituais que refletem as crenças culturais de
cada região. Símbolos, amuletos e ex-votos também fazem parte desses rituais, assim como
manifestações de cunho cultural que podem ocorrer no próprio ambiente onde se deu a perda.
Na minha prática como anátomo-patologista, tive a chance de presenciar, à distância, no setor
de necropsia do hospital, o ritual da comunidade indígena Krenak durante o velório de um
bebê falecido em conseqüência de malformações graves. Nessa ocasião, percebi como é
importante que todos os profissionais que assistem aos enlutados conheçam a existência
desses atos culturais, a fim de que sejam respeitados e incluídos no processo de atendimento.
Rituais de qualquer tipo, antigos ou modernos, contêm um componente sensorial - algo
que se vê, se ouve ou se toca - e servem, por isso, para materializar e dar forma à perda e,
assim, redirecionar a dor da mesma. Por isso, recomenda-se que seja dada aos pais a chance
de ver e carregar o bebê e a sugestão de construir algo que contenha a sua memória, como um
álbum ou caixa com fotos, objetos, cartões, mensagens, lembranças materiais da sua
existência. Na ausência da possibilidade de um ritual praticado socialmente ou em
comunidade, como o funeral, rituais alternativos feitos individualmente podem cumprir esse
papel de dar uma forma à perda e, de certa maneira, uma continuidade no contato com o ser
perdido. Construir um pequeno altar ou nicho, com figuras e objetos simbólicos, velas e flores
colocadas em datas significativas, plantar um jardim ou uma árvore - espaços que poderão ser
cuidados e visitados regularmente – são formas de manter a conexão com o filho perdido e
que se mostram de grande ajuda principalmente nas perdas muito precoces, onde o ritual
social não pode se cumprir.
Na era contemporânea, de comunicação virtual ampla, um novo tipo de recurso
ritualístico surgiu sob forma de redes e comunidades que através da Internet compartilham o
seu luto em perfis, sites e espaços de conversa em grupos que são visitados e onde se criam
eventos virtuais e presenciais. Há muitos exemplos de espaços criados com essa finalidade,
onde o silêncio pode ser quebrado e onde as pessoas não se sentem sozinhas, mas
acompanhadas por outras de qualquer lugar do mundo, podendo se articular em práticas que
cumprem a função de ritual. Outras compartilham a sua dor em blogs, com a escrita regular de
poemas, histórias ou de um diário onde a sua ela é exposta a quem o visita seja para oferecer
apoio, seja até mesmo para comentar sobre a sua própria dor.
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Outras formas de suporte

Se na fase aguda, imediata, o suporte emocional aos enlutados deve ser oferecido pelas
pessoas que os atenderam e no ambiente onde a perda ocorreu, ao longo da resolução do luto
que pode se estender por meses ou mesmo anos, esse apoio será buscado nas relações
familiares e através das conexões sociais, religiosas e culturais que o indivíduo mantém e,
quando houver a demanda, na ajuda profissional. São todas condições necessárias para a
vivência do luto se realizar de forma saudável, mas que dependem fundamentalmente daquela
outra condição que é essencial: a sua validação, ou seja, o próprio reconhecimento da sua
existência. Nesse sentido, a sociedade como um todo necessita ser informada e educada para
compreender melhor e aprender a acolher essa forma de sofrimento.

Apoio social

Nas últimas décadas, movimentos e ações sociais vêm sendo criados por organizações
não-governamentais em todo o mundo, com o objetivo de apontar a precariedade do cuidado
oferecido a mães e pais que perdem bebês, estimular pesquisas médicas que melhorem a
prevenção e oferecer informações e possibilidades de obter apoio na elaboração do luto. São
exemplos: SANDS - Stillbirth and Neonatal Death Support (www.uk-sands.org), do Reino
Unido; AMEND - Aiding Mothers and Fathers Experiencing Neonatal Death
(www.amendgroup.com), dos Estados Unidos; Projecto Artémis, de Portugal
(projectoartemis.blogs.sapo.pt/); e SHARE - National Organization for Pregnancy and Infant
Loss, dos Estados Unidos (www.nationalshare.org/). Esta última, fundada em 1977, serviu de
modelo para mais de 400 grupos de ajuda comunitária orientados em relação à perda
gestacional, nos Estados Unidos e em outros países. Criada na Argentina por uma jovem que
perdeu o seu bebê no final da gestação, a “Fundación Era en Abril” (www.eraenabril.org),
com ramificação em outros países latino-americanos e representante da América Latina na
SHARE, atua de forma ampla promovendo eventos e participando de projetos de âmbito
mundial na divulgação do tema.
Atualmente esse papel de divulgação também vem sendo desenvolvido ou estimulado por
grupos de redes sociais, os quais fornecem informações, acolhem mensagens, conectam
pessoas que desejam trocar experiências, indicam serviços de aconselhamento e oferecem
material de auto-ajuda. Diversos grupos já se formaram com esse objetivo e com pelo menos
dois resultados importantes: o de colocar juntas, ainda que virtualmente, pessoas que se
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sentiam sozinhas, isoladas e incompreendidas e o de ajudar a vencer a invisibilidade e a trazer


o tema para discussão no meio social.

Aconselhamento e terapia

A necessidade de reajustamento psicológico, individual e social que perpassa o processo


do luto é universal e aplica-se a indivíduos de qualquer idade, em qualquer fase da vida. No
luto da perda gestacional, a experiência de grupos e organizações sociais de apoio existentes
em países desenvolvidos é valorizada e os serviços de aconselhamento rotineiramente
oferecidos são considerados úteis. Estudos feitos em alguns países demonstram benefícios do
aconselhamento, no período de até 18 meses após a perda, aos casais que sofreram aborto,
perda perinatal e interrupção da gravidez por diagnóstico de malformação.
O encaminhamento para avaliação psiquiátrica pode ser indicado na presença de sintomas
de depressão, associados a ideias suicidas ou que persistirem de forma grave por mais de seis
meses. Não obstante, sendo o luto um processo normal da vida, deve ser evitada a tendência a
“patologizar” as reações mais intensas e a estimular tratamento psiquiátrico com o uso de
medicamentos, em processos que podem ser resolvidos através de outras formas de suporte.
Nem todas as mulheres ou casais que perdem uma gestação, no entanto, demandam
algum tipo de atendimento psicológico, especialmente quando as relações familiares são
fortes e estáveis, quando receberam apoio suficiente dos profissionais da saúde que os
atenderam por ocasião da perda e quando eles conseguem apoio eficaz em grupos ou
comunidades de caráter cultural ou religioso.
A psicoterapia de linha fenomenológico-humanista, por atuar no “aqui e agora” pode ser
muito apropriada para se abordar e compreender as dificuldades emocionais vividas pelos pais
nos primeiros meses do luto. Nessa linha, a forma de terapia proposta por Carl Rogers - a da
Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) - é a que contém, a meu ver, os pressupostos mais
significativos - empatia, consideração incondicional, ausência de julgamento, confiança na
capacidade da pessoa - em uma relação de ajuda onde o terapeuta deve estar aberto à
experiência, deixar o cliente conduzir e acompanhá-lo na jornada.
Independentemente de ser a ajuda oferecida em contexto terapêutico ou em outro tipo de
relação que exista previamente (família, amigos) ou que se estabeleça com os profissionais
por ocasião da perda (médicos, enfermeiros, doulas, assistentes sociais, psicólogos), tais
pressupostos devem estar necessariamente presentes para que a ajuda se dê da forma desejada.
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A corporalidade contida na dor do luto nesse tipo de perda é passível de ser abordada
através do focusing (focalização), técnica da psicoterapia experiencial proposta por E.
Gendlin, na qual o a percepção do corpo e o desenvolvimento da “sabedoria corporal”
facilitam o acesso aos sentimentos mais difíceis de serem simbolizados. Nesse sentido, outras
formas de terapia que empregam o corpo, como a biodança, também podem ser interessantes
enquanto vivência e forma de expressão e simbolização.

Arte e criatividade na elaboração do luto invisível

O luto da perda invisível, que precisa ter forma para ser autorizado, pode ser mais bem
elaborado através de práticas terapêuticas criativas, tais como o psicodrama, a construção e
narração de histórias, técnicas de imagem guiada e a arteterapia, a qual inclui as artes
plásticas, tapeçaria, literatura e poesia, música, dança, teatro e artes visuais como vídeo e
cinema. Combinar duas ou mais formas de arte pode ser uma maneira ainda mais rica de
expressão e de alívio da dor. As artes plásticas, usadas na produção material de algo concreto,
perceptível ao olhar e ao toque, têm um destaque como ajuda na elaboração do luto que não
tem forma.
Na música, técnicas como a improvisação e a composição podem ser comparadas a outras
atividades criativas que são úteis no luto da perda gestacional, ajudando a dar forma a algo
que não tem. A simples interpretação de peças musicais pré-compostas pode ser pensada
nesse sentido de criação de forma, encontrando correspondência etimológica com o termo
relativo à execução musical, na língua inglesa (to perform = dar forma a).
Em seu livro “Grief Unseen : Healing Pregnancy Loss through the Arts”, publicado em
2006, a arteterapeuta Laura Seftel explora com extraordinária sensibilidade as formas de
superação da dor da perda gestacional através de atividades criativas - artísticas e artesanais -
com relatos tocantes e permeados de respeito e compaixão, além de análise histórica
detalhada da perda gestacional, em seus aspectos médicos, sócio-antropológicos e culturais.
Resultado de um projeto - “The Secret Club” - do qual participam mulheres que passaram por
qualquer tipo de perda gestacional, a obra contém rica diversidade de exemplos de como a
expressão da dor através da criação na arte, com ênfase nas artes plásticas e na literatura,
constitui poderoso auxílio na resolução do luto invisível, dando forma e significado à perda.
Qualquer que seja a técnica artística empregada e o resultado formal obtido, o próprio ato
da criação pode ter valor terapêutico, como Seftel observa em seu livro ao afirmar que,
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“independente do meio utilizado, não são apenas o imaginário ou as histórias criadas, mas é
também a imersão no processo criativo que traz a cura”.

A opção pela perda e a atenção às minorias

Ao discorrer sobre as formas de ajudar a quem sofre a perda de uma gestação em


qualquer fase ou por qualquer causa, não posso deixar de abordar duas questões importantes.
As causas das perdas são muitas e, ao menos para o propósito desse texto, não possuem
especial relevância, a não ser por um aspecto que, na oferta de ajuda, deve ser tratado com
delicadeza e respeito: o aborto eletivo, ou seja, a interrupção da gravidez feita por opção, por
ser indesejada ou considerada impossível de ser levada a termo por qualquer motivo.
Além de ser um tema controverso em muitos lugares do mundo, a decisão de interromper
uma gestação é ainda objeto de punição, com raras exceções, no Brasil e em outros em países.
Mas mesmo que não o fosse e mesmo se a interrupção for pensada ou proposta como um ato
médico, sob o princípio da beneficência – como em casos de malformações incompatíveis
com a vida extra-uterina - é uma decisão que cabe à mãe ou ao casal. Os efeitos dessa decisão
são melhor observados onde ela é permitida pela lei e aceita ao menos por uma parte da
sociedade.
Seja qual for o motivo, a opção pela interrupção de uma gestação em qualquer de suas
fases pode acrescentar uma carga extra de sofrimento ao já existente. A culpa, a vergonha e o
medo da incompreensão surgem mais intensos, assim como o desejo de esquecer. É como se
essas pessoas não se sentissem no direito de vivenciar um luto que, no entanto, não é
necessariamente menos real ou menos pesado que aquele vivenciado pelos que sofreram as
perdas por causas naturais. Em muitos casos, torna-se um segredo não revelado pelo medo do
julgamento, ainda que tenha havido serenidade em relação à opção. A principal condição para
que terapeutas e outras pessoas envolvidas estabeleçam uma relação de ajuda nesses casos é
que estejam atentos a esse ponto, evitando interpretações e julgamentos e, principalmente, se
mostrando abertos à experiência de quem optou pela perda.
O outro aspecto diz respeito a uma outra realidade social. A necessidade de se dar mais
atenção à influência do status sócio-econômico e étnico-cultural no processo do luto é
apontada por muitos, não sem razão. A pobreza e as condições sociais de grupos ditos
minoritários podem estar implicadas não apenas nos fatores que facilitam a ocorrência das
perdas, mas também na gravidade do seu impacto e no acesso às formas de suporte. Em um
país rico e poderoso como os Estados Unidos da América, por exemplo, estatísticas oficiais
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mostram essa realidade na freqüência da perda gestacional entre diferentes grupos étnicos. No
ano de 2006, a taxa de óbitos perinatais foi de 10/1.000 nascidos vivos, na população
americana como um todo. Nos afro-descendentes, onde os níveis de pobreza e exclusão social
são maiores, a taxa esteve em torno de 19/1.000, enquanto que na população de caucasianos,
os de raça branca, a taxa foi de 8/1.000 (dados do CDC – National Center for Health
Statistics).
Isso significa apenas que as características sócio-econômicas, étnicas e culturais da
população a ser atendida precisam ser conhecidas, especialmente quando se pretende
universalizar este tipo de atendimento em países como o Brasil, onde a diversidade cultural e
as diferenças sociais são marcantes. O acesso às formas de suporte deve estar garantido a
todos e, para que isso ocorra, deve-se dedicar particular atenção às comunidades pobres, onde
a perda gestacional certamente ainda constitui problema mais frequente, mais grave e pouco
investigado. E também significa que pesquisa mais extensa deve ser direcionada no sentido de
se avaliar melhor o impacto dessas diferenças na experiência e na evolução do luto da perda
gestacional, nas populações minoritárias e na nossa sociedade como um todo.

O encontro do significado

“... serei grata por todos os dias em que tivemos o bebê, por ter ouvido o chorinho rápido e baixo do
meu bebê, por ele ter me feito mãe e me ensinado o quão profundo pode chegar a ser o amor...”

O processo de resolução do luto não se liga ao esquecimento, mas à busca de um


significado para aquela perda. No luto da perda gestacional, encontrar esse significado tem
uma dimensão diferente, já que o que está em jogo não é apenas a perda de uma pessoa amada
(como se isso pudesse ser pouco), mas também o desmoronar de um sonho, de toda uma vida
planejada, de um futuro desejado e de uma nova identidade para a mulher nesse verdadeiro
rito de passagem que é o tornar-se mãe.
No luto não-autorizado, essa busca se torna especialmente árdua. A pessoa que sofre a
perda encontra-se em um estado de incongruência, num limiar situado entre o seu luto
“interior” e o significado que o mundo “externo” dá a ele. O impacto do luto da perda
gestacional no círculo das relações sociais não é nunca proporcional ao impacto sofrido pela
pessoa que perde, principalmente nas perdas precoces, onde ele é muito menos compreendido.
O papel do terapeuta que se dispõe a ajudar a essas pessoas é principalmente o de
oferecer as condições para que essa busca se dê de forma livre e consciente - que obviamente
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não é fácil nem tranqüila – assim como o de acompanhá-las nessa caminhada que é o processo
de resolução do luto. Quaisquer que sejam as abordagens utilizadas, as técnicas ou as
atividades criativas propostas como meios de se dar forma ao luto da perda gestacional, esse
papel deve necessariamente incluir os pressupostos da compaixão, da empatia e da
consideração à pessoa que está sofrendo a perda, para que possa ser cumprido de forma
humana, respeitosa e eficaz. Quando as condições são oferecidas com base nesses
pressupostos, no final desse caminho o significado buscado para essa perda pode encontrado
sob a forma da sua integração à pessoa que perdeu. É quando a incongruência se desfaz e a
incorporação da perda à vida dessa pessoa propicia a reformulação e a reestruturação dos seus
laços relacionais com o mundo “externo”.

A saída da invisibilidade

Dentro ou fora do contexto da psicoterapia, o luto da perda gestacional merece receber


uma atenção que ainda é escassa, considerando a sua história e o seu impacto individual e
social. Nesse sentido, terapeutas e profissionais da saúde que já compreendem o seu papel no
acolhimento dessa forma de luto devem se posicionar e assumir a responsabilidade de
contribuir na tarefa de informar e educar. Informar o meio social em que vivem e exercem sua
profissão e, da maneira que estiver ao seu alcance, educar futuros profissionais para que
tenham a mesma compreensão e possam atuar na redução desse impacto. Apenas ao assumir
essa responsabilidade, poderemos todos contribuir para dar visibilidade a esse tema que,
apesar da sua freqüência e universalidade, para muitos profissionais e para setores inteiros da
sociedade ainda é simplesmente invisível.

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