Essa Terra 2022
Essa Terra 2022
Essa Terra 2022
ESSA TERRA
Antônio Torres
Essa Terra é um romance da década de setenta e consagrou Antônio Torres como um dos mais lidos
escritores contemporâneos brasileiros. A crítica situa o romance num momento de transição do
regionalismo brasileiro. Não mais o sertão da segunda geração modernista, mas o sertão sob uma nova
perspectiva, uma outra dimensão. Não é somente o sertão que esmaga, a cidade grande também destrói.
Na realidade, sertão ou cidade grande são apenas panos de fundo nas vidas humanas aí analisadas. O que
os esmaga é a sua própria condição de ser.
O ambiente é a pequena cidade de Junco, interior da Bahia, terra natal do autor. A experiência vivida pelo
personagem é semelhante à experiência do autor: buscar a sorte na cidade grande. É para aí que se
transpõe o sertão rural das secas, da opressão, da ausência de condições de sobrevivência. O sertão
sobrevive nas vielas, nas casinhas sem reboco, na ausência de oportunidades, nas decepções da existência,
agora no espaço urbano.
NARRADOR
O narrador, na maior parte do texto, é o irmão mais novo, Totonhim, que nascera depois da partida de
Nelo. Às vezes Nelo assume a narrativa, outras vezes um narrador em terceira pessoa, onisciente. Nelo, o
preferido, o que deu certo, o que ficara rico e que há anos mandava dinheiro para casa. E agora volta para
enforcar-se pendurado na corda, no armador da rede.
PERSONAGENS
Os personagens são Totonhim, Nelo e os pais. A família e pessoas que habitam na cidade de Junco, de Feira
de Santana ou de Alagoinhas são apenas referidas durante a narrativa.
TEMPO
Há um tempo cronológico que se inicia com a chegada de Nelo e termina com sua morte e enterro.
Predomina o tempo psicológico.
ENREDO
Sob a forma de um relato fragmentário e memorialístico, Essa terra, apresenta a história trágica de uma
família de origem rural: a do narrador-personagem Totonhim. Nela se conta a ruína e a desagregação do
seu clã, provocadas pelo abandono da terra natal - o Junco - e dos modos de subsistência avoengos, que
consistiam na criação de gado e em alguns cultivos tradicionais, como o milho e o feijão. A tragédia se
concretiza em numerosos acontecimentos, sendo os mais importantes: a ida de Nelo, o irmão mais velho
de Totonhim para São Paulo, e o seu fracasso na grande metrópole: a mudança da mãe, dos seus outros ir-
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
mãos e, posteriormente, do pai para uma povoação vizinha mais desenvolvida - Feira de Santana - onde
passam, contudo, a viver em situação de maior pobreza; a perda da roça pelo pai, endividado com o Banco
que aparecera emprestando dinheiro, mas obrigando-o a introduzir o plantio do sisal; as sucessivas fugas
das filhas e filhos crescidos, que não resultam em melhoria significativa das suas condições de vida.
Ela tem como desfecho não só o suicídio de Nelo, a loucura da mãe, a solidão do pai, que, sem recursos,
terá de criar os três filhos pequenos que ainda possui, mas ainda a decisão tomada por Totonhim de ir para
São Paulo. Essa partida, que se afigura como a única saída para superar o atraso e a miséria, mas que pode
implicar a repetição do destino de Nelo, é uma solução egoísta, que o narrador-personagem parece querer
justificar e expiar através de uma rememoração do passado onde se evidencia o sentimento ambivalente
de amor e ódio que ele nutre pela família e pela terra natal.
Vânia Pinheiro Chaves
Totonhim, que é narrador e personagem, inicia a história relembrando fatos, com destaque ao retorno de
seu irmão, Nelo, à cidade natal. Junco, terra “leal e hospitaleira”, “um lugar esquecido nos confins do
tempo”, provou que “também podia gerar grandes homens”, como Nelo, que “um dia pegou um caminhão
e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, em um homem belo e rico, com
seus dentes de ouro, seu terno folgado e quente de casimira, seus ray-bans, seu rádio de pilha e um
relógio que brilha mais do que a luz do dia”. Junco, agora cidade, depois de emancipada do município de
Inhambupe, aguarda com expectativa reencontrar o filho, que fora para São Paulo, quando o irmão,
Totonhim, ainda não havia nascido. Nelo partira da cidade exatamente há vinte anos, após impressionar-
se com os representantes do banco Ancar, que foram à cidade emprestar dinheiro a proprietários de terra:
Os homens do jipe foram direto para a igreja e pediram ao padre para dizer quem eles eram, durante o
sermão. O padre disse. Falou em progresso, falou no bem de todos. O banco tinha a garantia do
Presidente.
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Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe. Estava com 17 anos. Ele iria
passar mais três anos para se despregar do cós das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites
com a fala e as roupas daqueles bancários – a fala e a roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte
com as mulheres.
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Sem ainda se conhecerem - “Era um encontro inesperado e tão estranho quanto qualquer encontro entre
dois irmãos.”-, Totonhim vai buscá-lo numa “hospedaria” e leva-o para a casa do avô falecido, onde
atualmente reside, sem pagar aluguel, depois de ter morado e “estudado o ginásio” em Feira de Santana,
onde os pais passaram a residir com mais três filhos. O pai, “desgostoso, se maldizendo de tudo”, bebendo
e brigando com todos, vendeu as casas da roça e foi ao encontro da esposa. Ao informar o irmão sobre a
situação da família, Totonhim não consegue disfarçar sua amargura, sua mágoa com todos: quando
precisou, ninguém o ajudou – “os incomodados que se mudem” -, por isso retornara de Feira de Santana e
encontrava-se morando de favor, já que o salário de servidor da prefeitura era muito pouco. Não se
esquece de sua mãe, para quem Nelo sempre fora o filho predileto: “Tomara eu tivesse mais um filho igual
a ele. Bastava um.” Ou: “siga o exemplo do seu irmão.” E também do pai: “Nelo era o melhor de todos os
filhos. – Foi o único que puxou a mim.” Sentindo-se um rejeitado, ele trata todos com indiferença – “os
outros mal conseguem o que comer e eu mesmo fiz uma cruz na parede e jurei por ela que nunca mais
daria um tostão naquela casa de loucos, ainda que estivesse com o rabo cheio de dinheiro.”
Seguem-se as reflexões sobre a terra e os habitantes do Junco. As moças penduradas nas janelas à espera
dos rapazes que partiram para São Paulo. A solidão. Uma história de seca, de esperança de chuva e de
êxodos. O Banco, a proposta de plantar sisal, as promissórias vencidas e não pagas. O encontro dos dois. A
voz da mãe chamando “Nelo, Nelo, Nelo. Éramos doze, contando uma irmã que já morreu. Só ele contava.”
- Vendeu a roça, a casa da roça e a casa da rua, pagou as dívidas, torrou o troco na cachaça, depois se mudou
para Feira de Santana.
- Ela foi antes, para nos botar no ginásio. O velho ficou aqui, zanzando, desgostoso, se maldizendo de tudo. De
tempos em tempos ia ver a gente, em Feira. Mas enjoou de andar para cima e para baixo, deu para beber e brigar
com todo mundo. Um dia não aguentou mais e sumiu na estrada, em cima de um caminhão, aboiando
- Três estão em Feira. Os pequenos. Os outros estão espalhados - nesse instante abro os braços no sentido
Norte-Sul. - Você vai ter de viajar muito, se quiser catar um a um. Mas não precisa ir além de Salvador.”
A casa se encheu de gente , de parentes, todos ávidos por rever o grande filho, “rapaz de sorte”, que
sempre “teve sorte, desde menino”, o “capitalista, um verdadeiro homem das capitais”.
Nelo só sabia, nas quatro semanas que passaram juntos, expressar decepção e pena. E o que o irmão
queria ouvir eram as coisas boas
“Parecia um homem sempre preocupado e estava mais preocupado ainda quando perguntou: - O dinheiro
que eu mando dá?
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Acho que foi a única vez que nos olhamos de frente, durante todos esses dias em que passamos juntos.(...) -
Antes desse - eu digo.
- E papai, não ajuda em nada?
--------------------------------------------------------------------------------------------------Queria dizer: - Me fale de
coisas boas. Chegue à frente e me fale de você. Conte tudo de bom, todas as belas aventuras que você
já viveu: palha e lenha dos meus sonhos. Mas ele insistia e perguntava e remoía, enquanto estalava os
dedos e se agitava, me agitando.
- E os outros? Também não dão nada?
A minha resposta é um sim. Sim, velho Nelo, sim. Os outros mal conseguem o que comer e eu mesmo fiz
uma cruz na parede e jurei por ela que nunca mais daria um tostão naquela casa de loucos, ainda que
estivesse com o rabo cheio de dinheiro. Podiam morrer todos à míngua, diante de meus olhos, que eu nem
sequer iria me preocupar em enterrá-los. Por tudo o que me fizeram, a vida toda, e principalmente o que
me fizeram durante os anos em que precisava deles, por causa de um curso de ginásio. Os outros do
mesmo jeito, tenho certeza.”
E a tristeza de Nelo ia embora quando chegava alguém para visitá-lo. E a casa se enchia. Alguns queriam
festejar, soltar fogos por sua volta. E volta a falar da morte e de como o doido Alcindo fala dela. Segue-se a
vida de Alcindo, um casamento terminado na noite de núpcias quando a mulher percebe-lhe o tamanho do
pênis. E, a partir daí suas mulheres são as éguas.
E vêm às suas lembranças os dias que viveram juntos, as bebedeiras de Nelo, as confissões. Ele quer ser
levado de volta para casa da sua mulher que fugira com um baiano, seu primo, e ele tem dois filhos,
Robertinho e Eliane, de sete e oito anos. E chama o irmão de Totonhim.
Segue-se história do Sargento que viera para Junco e que mudara a cidade com a sua televisão, seus bailes
com música moderna na vitrola, seus jogos de futebol de solteiros contra casados no campo que ele
próprio fez.
Na parte 10 deste capítulo, temos cenas estranhas e a narração é de Nelo. Ele sonha ou pensa e no meio
dessa confusão também parece escrever para a mãe. Ele está em São Paulo, foi atacado, esmurrado,
chamado de ladrão. Lembra momentos com a mulher, os filhos, a separação. Chamam-no de corno
durante o ataque e ele narra como a mulher conheceu seu primo, tocador de pistom, como se encantaram
e ela o abandonou levando seus filhos. Ele sofre, está inconformado. Lembra do pai e do chapéu para
protegê-lo.
Embora tenha afirmado que “agora não é como naqueles velhos tempos” e que a “coisa mudou
sucessivamente, nas resoluções intempestivas da minha vida”, Nelo não era nada do que aparentava.
Homem fragilizado, fragmentário, angustiado. A mulher não suportara a vida de sacrifícios ao lado de um
marido alcoólatra. Recorda-se do espancamento de que fora vítima no centro de São Paulo. Zé do Pistom,
já então policial, auxiliado por outros policiais, espancara-o barbaramente, acusando-o de “ladrão,
vagabundo, marginal”, de pretender raptar os filhos e assassinar a própria mulher. Era esse o verdadeiro
Nelo. Homem derrotado existencialmente, sem dinheiro, sem a “fortuna”. Os remédios para sífilis e
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esquistossomose e calmantes comprara fiado nas mãos de Zé da Botica. Foi esse o Nelo que Totonhim
encontrou enforcado em casa, “com o pescoço pendurado na corda, no armador da rede.”
- Deixa disso, Nelo – bati com a mão aberta no lado esquerdo do seu rosto e devo ter batido com alguma
força, porque sua cabeça virou e caiu para a direita. – Deixa disso, pelo amor de Deus – tornei a dizer,
batendo na outra face, e ele se virou de novo e caiu para o outro lado.
Totonhim, após o episódio, espera a chegada dos pais de Feira de Santana -“O filho era deles. Que
chegassem logo e cuidassem do enterro.”- preocupado com uma coisa: será que o pai faria o caixão para
enterrar o filho? “O último que ele fez foi para outro enforcado, um parente nosso que encontramos
pendurado num galho de baraúna.” Nem o interrogatório do sargento amenizou sua apreensão.
- Sua alma, sua palma. Sua capela de pindoba. Depois me pergunta onde estão as tábuas e as ferramentas.
Começa a fazer o caixão.”
A segunda parte tem como foco a partida do pai do narrador para Feira de Santana. Através da sondagem
psicológica, o leitor tem acesso às circunstâncias em que tal fato ocorreu. Do ponto de vista econômico, a
personagem encontra-se bastante debilitada.
Entra um narrador em terceira pessoa, onisciente, falando sobre o pai e sua insatisfação com a decisão da
mulher de vender tudo e ir morar em Feira de Santana para os filhos fazerem o ginásio. Misturam-se a
narrativa em terceira pessoa e o discurso indireto livre.
“Três pastos, uma casa, uma roça de mandioca, arado, carro de bois, cavalo, gado e cachorro. Uma
mulher, doze filhos. O baque da cancela era um adeus a tudo isso. Já tinha sido um homem, agora não era
mais nada. Não tinha mais nada.
- Malditas são as mulheres. Elas só pensam nas vaidades do mundo. Só prestam para pecar e arruinar
os homens.
Suas pernas não queriam ir, mas ele tinha que ir. Tinha que chegar à rua e pegar um caminhão para Feira
de Santana de uma vez para sempre.
- Tudo por culpa dela - continuou pensando. - Por causa dessa mania de cidade e de botar os meninos
no ginásio. Como se escola enchesse barriga.”
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Vendera a propriedade para o irmão ganancioso, ingrato, orgulhoso - única saída para não ter de entregar
tudo ao banco. Tinha tomado um empréstimo bancário para trabalhar com sisal, a grande novidade,
confiante em que teria a mesma sorte como ocorrera com a plantação de fumo, “quando foi um ano de
muita fartura”, ganhara “uma dinheirama que não se acabava mais.” Queria mostrar para a mulher que “a
roça que enchia barriga. Não era a cidade.” Imaginava o caminhão do seu compadre Artur cheio “das
verdes palmas da sua roça, para as máquinas do Estado, lá para os lados de Nova Soure.” A despeito da
tentativa de dissuadi-lo – “Compadre, esse negócio de sisal é novidade. Tome cuidado, compadre. Isso
pode ser a perdição de muita gente. -, o sogro aceitou ser seu “avalista”. O “sisal da sua ruína”, pensa.
Havia “consumido o dinheiro do banco antes de cortar o sisal”, e o sogro morto, não tinha mais quem
“avalizasse a reforma das letras do banco.” Os compadres estavam também arruinados, endividados; a
única pessoa seria o irmão. Mas esse não se dispôs a ajudar, e sim incentivá-lo a vender as propriedades;
ele mesmo compraria; ele, irmão, “sangue do seu sangue, carne da sua carne”; o irmão, “que há muito
tempo sonhava comprar as suas terras,” tomava-lhe “tudo o que tinha e ainda dava um tapa em suas
costas, como se estivesse fazendo um favor.”
“Não chegava ninguém com notícias do filho. Como seria ele hoje? Não tinha nem uns retratos, para ficar
olhando e admirando. Nunca se esqueceria daquele parente que chegou contando: - Seu filho é um homem
direito. Ele nunca se esquece que é baiano. Dormi uma noite na casa dele, dormimos os dois na mesma
cama, um nos pés, outro na cabeceira, como a gente fazia aqui quando era menino.”
Mas as notícias sobre Nelo nem sempre foram boas. Um tio de sua sobrinha, de nome Caboco, homem
viajado, já estivera até no Paraguai, viu o jovem em São Paulo, completamente bêbado. O velho pai não
acreditou no que ouvira.
“Tio, Nelo gritou de novo, ele não quer me vender uma cachaça fiado. Não é um desaforo? O dono do bar
parecia que não estava gostando daquilo, temi uma confusão maior. Não que eu tenha medo disso.
Quando mais novo, me meti em muitas, e não me arrependo. Então paguei a cachaça que Nelo queria
beber fiado, porque não sou homem de deixar em dificuldade um parente necessitado, ainda mais se esse
parente está longe da sua terra. Foi só essa vez que me encontrei com ele, Mestre. A desgraça do homem,
repito, é a bebida.”
É cheio de reflexões, saudades e lembranças que, a contragosto, o velho pai vai embora de Junco. Contra a
vontade, ele parte. Não era para Feira de Santana que desejava ir, mas para São Paulo ou Paraná, onde
existem “terras boas, onde certamente encontraria uma roça para tomar conta, como se fosse dono.” Já
havia escrito para Nelo, mas o filho, que “desapareceu no mundo contra a sua vontade”, não respondia –
“parecia se envergonhar dele”-; quando respondeu, o dissuadiu: “Diga a papai que isto é muito difícil para
quem já está velho. Ele não vai se acostumar.” A mulher, “aquela coisa tonta foi a favor” da viagem do
filho. A “culpa é dela”, admite: “Por causa dessa mania de cidade e de botar os meninos no ginásio. Como
se ginásio enchesse barriga.”
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E assim, ele, que “já tinha sido um homem, agora não era mais nada,” sente-se um abandonado – pensa
nas filhas: “perdidas pelas cidades, longe dele.” O casamento? Um desastre. A mulher fora a culpada de ele
ter-se arruinado: se ela “não tivesse endoidecido por esse negócio de cidade e os filhos tivessem ficado, ele
não precisaria de trabalhadores, não precisaria de dinheiro de banco nenhum.” Xingavam-se, agrediam-se
– vida de desentendimentos, ela pensara em até abandoná-lo. Não que seu “duro e rude coração” nunca
houvesse “amolecido um pouco” , a ponto de ter vontade de “chegar perto da mulher e pedir-lhe perdão.”
Mas a mulher não o respeitava. Para que “doze filhos no mundo?” Pergunta-se. O velho parte
acompanhado de recordações, lembra-se de tudo. “Queria um bem danado” a todos os filhos, “morria de
saudades” deles. Mas o que lhe restou? Abandono e solidão! “Que mundo é esse onde filho não respeita
pai, mulher não respeita marido?” Talvez morresse sem uma resposta. Nelo era um filho ruim, sem
“consideração”, “só mandava dinheiro para a mãe, e assim mesmo parece que até já deixou de mandar.”
Deixaria também a cama e o colchão. Piolhos e sonhos. Prazer e dor. As pulgas passariam o seu sangue
para o sangue de seus sobrinhos (ia deixar tudo para o irmão), mas pulga não fala. Ninguém ia saber como
foi.
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Levaria o cachorro que a mulher não queria em feira de Santana. Ela que se danasse.
Esse lugar de que se fala não só enxota, ele também enlouquece. Na terceira parte do romance, o autor se
utiliza do fantástico para a construção da narrativa. Como nos capítulos anteriores, recorre-se à sondagem
psicológica, à memória, ao discurso indireto livre agora para acentuar a desgraça que assola o ser humano
de Junco – terra estranha, agora submersa no caos. O absurdo, o sobrenatural são marcas fundamentais
desse momento da narrativa, cujos acontecimentos escapam ao rigor da racionalidade humana. Bastante
exemplar dessa atmosfera em que a narrativa está envolvida é o encontro de Nelo - já morto - e o
conhecido louco da cidade, Alcino. A personagem Totonhim corta a narrativa para dar conta do diálogo e
ações desses dois: “Antes, porém, ouçamos um doido velho, doido varrido, doido de pedra, do que
quiserem.”
Alcino está muito agitado, “Mais uma vez ele abre as suas asas sobre nós, asas de urubu descendo sobre a
carniça.” Corre e grita numa noite em que “ninguém queria dormir”. Fala para o tempo, e não para
pessoas: “ Nesta terra os vivos não dormem e os mortos não descansam em paz”. Os galos cantam fora de
hora. “Os bêbados e os cães gemem as suas penas”, “O inferno é grande, tem espaço para todos”, “ Eu me
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chamo Aleixo. Torto acho, torto deixo.” Não era um simples louco – ele “supunha ser o esperado, guia. A
voz de gralha mal-assombrada a levar os pecadores pelos caminhos de uma eternidade sem sofrimento.”
Correndo e gritando pela rua, ele encontra inesperadamente alguém, “o outro”:
Pediu pernas para fugir, não teve pernas. Pediu socorro, ninguém lhe ouviu o grito. E quando ia ao chão,
desacordado, foi agarrado, sacudido, enquanto uma voz tentava reanimá-lo: - Não tenha medo, homem.
Um morto não faz mal a ninguém.
Arrependido de tudo que dissera, temendo ser a morte que o viera buscar, ele apela para ficar vivo. O
outro, Nelo, o morto, após tranquilizá-lo – afinal de contas eram da “mesma família Cruz” -, pede-lhe ajuda
para pular o muro da casa do sargento – o “cão malvado”. Viera em busca de um “tesouro”, que Alcino
imagina ser dinheiro enterrado no quintal da casa:
Melhor do que isso. Muito melhor – o outro esclareceu, lambendo os beiços, como se acabasse de provar
uma coisa muito boa. – Em vida, topei todos os desafios. Não posso ir para a cova sem topar mais esse.
Após repetidas tentativas de saltar o muro apoiado nas mãos de Alcino, o outro tem uma ideia: seria uma
boa tomarem uma cachaça, assim “ a coisa ia”. Sem dinheiro os dois, o outro encontra a saída: “- Já sei
como vamos fazer – deu um murro na perna do doido. – Corre na venda e diz que papai mandou buscar
uma garrafa de cachaça. Mande botar na conta dele.” Mas o doido não teve sucesso: - Irmão, irmão, eles
não acreditaram em mim. Raça de filhos da puta.” Mas e o outro, onde está?
Não havia mais irmão, não havia mais nada. – Deve estar fodendo a mulher do sargento. Arromba essa
descarada, mano velho – pensou, trepando no muro. Também não havia nem sombra de gente dentro do
quintal. Gritou de novo:- Irmão, irmão. Desceu o muro e continuou correndo e gritando.
Totonhim teve “dois trabalhos naquela noite: velar um morto e levar minha mãe para um hospital em
Alagoinhas.” À medida que narra os acessos de loucura da mãe, a personagem revela aspectos da vida
familiar. A mãe retornara a Junco, mas não o fizera espontaneamente - “Não veio aqui por sua livre
vontade, eu sei”, diz Totonhim. A dura constatação: “Já não conversamos, não dizemos o que sentimos,
não nos olhamos de frente.” O pai ainda não sabe da insanidade da esposa, está fazendo o caixão na
cozinha, “Talvez se enterre nesse caixão, junto com o morto, embora venha passar o resto dos seus dias
fingindo-se de morto.” O pai, que “talvez um dia a senhora o tenha amado, talvez nem isso.” A mãe, que
“pela primeira vez na vida tive vontade de abraçar”, está com as mãos no pescoço dele, tentando
estrangulá-lo, impedindo-o de responder a pergunta dela: “- Você se lembra de mim? Quem sou eu?” Ele
finalmente responde, quando a mãe larga o seu pescoço:
- A senhora é a minha mãe – eu digo, certo de que estava dizendo uma verdade absoluta.
-Não – ela disse, e sua voz estremeceu telhas, ripas, caibros. E, ao dizer isso, já estava novamente com as
mãos apertando o meu pescoço.
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- Eu sou o arcanjo Rafael – acrescentou, revirando os olhos, como a confirmar que não era mais uma alma
deste mundo.
Lembra-se de quando fora excomungado. Fora pedir “uma indenização,” quando o pai vendera a roça.
Jurou voltar a Feira de Santana e matar todos:
Me empurraram porta afora, quando o velho vendeu a roça e eu pedi uma indenização. (Aquilo tudo era
nosso, eu disse. E ‘nós’ significa ‘eu também’. Não me deram nada e eu disse: - Um dia volto aqui e mato
todos vocês. Fui excomungado, para todo o sempre. Não voltei mais lá e não matei ninguém. Mas continuo
excomungado.)
Essa terra embrutece os seres. Seres fragmentários, família fragmentária, ausência de elo, carência de
coesão humana:
Papai atravessou a sala, com os cacos de vidro nas duas mãos. Seguiu para o quintal enlamaçado. Ia jogá-
los onde ninguém pudesse se cortar. Essa casa está sempre cheia de meninos.
- Puta. Descarada.
-Antes eu fosse. É melhor ser puta do que ser casada com um troço desses.
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Entro no quarto e arrumo minhas roupas. Vou voltar para casa. Casa? O Junco. Antes sozinho do que...
Honrarás pai e mãe? Ia ficar uns quinze dias com eles.
Os parentes chegam e lamentam terem de enterrar Nelo sem mortalha – seria o primeiro da família Cruz:
Querem saber qual é o pano da mortalha, como antes queriam saber se meus lençóis são brancos ou
estampados. Entravam em casa e iam direto para os quartos, depois iam remexer nas panelas da cozinha.
Fuxico. Falação. Quando a gente pensa que todos já morreram ou foram embora, eis que reaparecem. Erva
daninha? Seria sobre eles que Nelo falava? Mata-pasto. Seu nome, por favor? Família Mata-Pasto.
Como disse o pai do narrador, “Juízo de gente é um fiozinho à-toa.” Essa terra também enlouquece os
viventes. Pedro Infante, o dono da venda, grita, como se estivesse sendo perseguido e ameaçado pelo
morto:
- Não, Nelo. Pelo amor de Deus. Não. Me perdoa, Nelo. Foi sem querer. Uma molequeira de menino. Vou
mandar rezar uma missa para você. Isso, não, Nelo. Me deixe. Pelo bem de sua mãe. Pela alma de meu pai.
Pelo amor de Nosso Senhor.
Visagem ou demência?
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E o prefeito, que decidiu derrubar os tamarindeiros e construir um jardim no centro da praça? E que
também prometeu “derrubar esse sargento” para logo, em seguida, pedir-lhe auxílio para enfrentar a
mobilização contra sua administração?
O rei da França mandou me dizer que estão querendo me derrubar. Os meus inimigos estão tramando, na
calada da noite. Sargento?Ligeiro, ligeiro, bem ligeiro. O levante arrebenta esta noite. Sar-gen-to? Esse
homem é um bosta. Esse homem é um bosta. Mo-fi-no?
Parecia o Juízo Final, como pensa Totonhim, a praça tomada de gente, e o “prefeito pedia uma
providência, antes que os galos cantassem pela terceira vez.” Dava dó ver o prefeito assim, ele que era até
“um bom sujeito.” Não era nenhuma “rebelião” ou “subversão” nem “o anticristo” tramando tomar-lhe o
poder, como ele acreditava:
O sargento correu, dizem que pra debaixo da cama. E não tive tempo de avisar o prefeito que não estava
acontecendo nada. Era apenas um contingente de homens e mulheres, rondando para cima e para baixo,
calados, como se não se conhecessem, como se nenhuma pessoa tivesse nada a ver com as outras. O
prefeito continuava berrando:
- Eles estão armados. Eu resisto. O anticristo não me toma o poder. Eu resisto. Sargento!
Em seguida Totonhim narra sobre a mãe louca, o irmão morto, as cartas que ela escreve para Nelo.
“Nelo meu filho o fim destas mal traçadas linhas é dar-te as minhas notícias e ao mesmo tempo saber das
tuas. Como tens passado? Bem não é? Aqui todos em paz graças a Deus Seu pai bebeu veneno Nelo meu
filho essa é que foi a maior tristeza da minha vida Tenha dó da sua mãe Eu nunca lhe pedi isso é a primeira
vez venha me buscar Você é a única pessoa neste mundo Faça isso por sua velha e pobre mãe Eu lhe peço -
Chego perto. Tento acalmá-la.
- Mamãe, a senhora está enganada. Não foi papai.
Ela me empurra. Desfecha um murro, de punho cerrado, como um homem. O murro pega na minha testa.
Me afasto, esfregando a pele dolorida.
Nelo meu filho tenho doze filhos é como se não tivesse nenhum Graças a Deus tenho você Graças a Deus -
Cala-se.
Deve ter se cansado, imagino.”
É a quarta e última parte da obra. O momento final do romance narra a ida de Totonhim à cidade de
Alagoinhas. Acompanhado de um motorista- “que veio de cara amarrada” -, leva a mãe para um hospital
num carro cedido pela prefeitura. Ele informa à mãe que estão passeando. Mas que passeio! A mãe vomita
nas “pernas dele”, o vento “sopra os fiapos” do vômito na roupa dele. Ela “vomitou tudo que podia”, e
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agora o odor de vômito seco toma conta do carro. Ela parece que vai morrer. Começa a rasgar a roupa:
“Mais rápido – agora sou eu quem pede ao motorista. Temos que chegar com ela ainda viva.” Como nos
capítulos anteriores, recordações, revelações sobre o passado. A mãe vivia endividada, jogando no bicho e
com a porta cheia de cobradores; o dinheiro enviado por Nelo “se evapora”, e a situação sempre foi de
miséria, mesmo em Feira de Santana. O Pai trabalha fazendo biscate, mas é insuficiente o que recebe com
os serviços. A mãe reclama de tudo: do pai, dos filhos que não a ajudam em nada, mas Nelo continua
sendo o grande filho. Com as cinco filhas só tivera decepções, não queria ouvir falar delas. Adelaide, uma
delas, fugira de casa quando a mãe fora alertá-la do marido violento. Insatisfeita, fora parar num “puteiro,
onde vivia trancada num quarto, apanhando. Ainda menor, casou-se na polícia e “Passou o resto da vida
apanhando. E quanto mais apanhava, mais parecia enrabichada por aquele homem.” O próprio esposo,
com ciúmes do médico, assassinou-a descarregando uma arma na sua barriga. Uma das balas “arrancou o
pedaço da carne “ da perna da mãe, cuja cicatriz é motivo de tristes recordações. “Bastou uma fugir, para
as outras irem atrás”, continua a mãe falando. A iniciativa de Nelo de buscar novos horizontes foi uma
“estrela”, cujo “brilho” “iluminava as nossas noites mortas, no pé do pilão, fazendo calos nas mãos e
reclamando da vida”, lembra Totonhim. Quem mais reclamava eram as meninas. As duas irmãs vão para
Feira de Santana, mas “gostavam muito de namorar.” A mãe decide ir também: “Eu é que vou pra lá. E
vocês vêm depois.” O pai resistia, “muitos dias de angústia, ansiedade, confusão, briga, disse me disse.”
Mas a velha estava decidida, ninguém mudaria sua ideia: queria os filhos estudando. O pai de vez quando
aparecia, mas para reclamar de tudo:
Acabamos todos nos arranchando numa casinha pobre de uma rua pobre de um bairro pobre, sem luz, sem
água, sem esgoto, sem banheiro. Mamãe alugou a casa fiando-se no dinheiro que mandava [Nelo] todo
mês e, quando atrasava a remessa, era um deus nos acuda. Vivíamos permanentemente debaixo do medo
de sermos postos na rua. Ela passou a se desdobrar em trinta numa máquina de costura, enquanto
esperava o feijão e a farinha que o velho mandava da roça.
E as outras filhas? Mais uma vez as recordações. Tempo em que a mãe “começou a bater em papai, toda
vez que ele vinha nos ver e ficava resmungando.” A outra, Noêmia Lopes Cruz, fugira também e fora
encontrada em Maragogipe. A informação do seu paradeiro chegou seis meses depois, através de um
homem: “A moça que roubara estava grávida e ele agora informava que ia devolvê-la aos pais. Porque
havia se enganado.” Ela já estava com o sangue “sujo”, grávida, e o filho não era dele. Condicionou o
casamento à confirmação da paternidade através de um laudo médico, o que veio a acontecer. Tiveram
oito filhos. A outra, Zuleide, dera muita dor de cabeça, fugira também, quando soube que o pai viria buscá-
la para pegar num “cabo de enxada”. Foi para Pojuca, teve uma filha, um ano depois escreveu uma carta:
Era uma carta muito engraçada e terminava assim: digam a papai que roça é uma porra. As irmãs deviam
se lembrar disso e haviam de dar boas risadas. Pena que a carta não tenha encontrado as suas
destinatárias. Elas também já estavam longe. Muito longe.
Totonhim vê a mãe ao seu lado no carro que os leva a Alagoinhas e sente, e pensa e escuta.
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
“Desfiar de dores como numa enxurrada: do fígado, dos intestinos, dos rins, do coração. Também estava
ficando cega. Ninguém via isso, que ela estava ficando cega. Já não acertava mais com a linha no buraco
da agulha - deixei tanta costura por terminar.
- Vou escrever para Nelo. Ele precisa vir aqui para me levar a um médico. Por que será que Nelo nunca
vem aqui?
Desta vez sou eu quem sente uma dor imensa. Na alma? Ela já o viu morto e não acreditou. Não pode
matar o seu sonho dourado, deve ser isso.
- Antes de você me acordar, eu tive um pesadelo horrível. Sonhei que ele tinha morrido. Foi horrível. Nelo é
tão novo ainda. Deus que lhe dê muitos anos, é só isso o que eu peço.”
“Minha mãe encosta a cabeça no meu ombro, depois se afasta. Começa a se contorcer e a ficar com aquela
cara de quando estava se debatendo contra a parede. Foi a primeira vez que encostou a cabeça no meu
ombro. Somos gente bruta. Desconhecemos o afeto. Aquilo que nos oferecem em pequeno, depois
recusam. Acho que é a falta de costume. Vestes calças compridas? Então és um homem. E se és um
homem, todos os teus gestos têm que ser brutais. Brutalidade. Força. Caráter. Coisas dos homens, como a
Santíssima Trindade.”
Finalmente chegaram. Estava amanhecendo, ele chegara a um lugar de “Hotéis e pensões imundos”, sem
saber se levava a mãe “para o hospital, para o asilo, ou para uma casa funerária.” Seus muitos parentes
moram na cidade, Alagoinhas, “chafurdam no gueto, chafurdam nos esgotos.” Entram por um bairro que é
“o mais fedido de todos”, “igualzinho a Feira de Santana.” O asilo ainda estava fechado, chegaram cedo
demais. Quem afirma é a “enfermeira de rosto miúdo e chupado”, “nervosinha como a mãe dele”.
Finalmente o diretor chega, às oito horas. Felizmente é um conhecido seu, Jonga, fizera campanha para o
primo dele em Junco. Muito agradável, Jonga promete bom tratamento para a velha e afirma: “ – Se todos
nós temos uma cruz para carregar, você já tem a sua.” Totonhim pensa “nessa coisa que se diz ser a
solidariedade humana. Ela existe, sim.” Havia pouca gente no enterro de Nelo, ao qual Totonhim achou
“ótimo” não ter chegado a tempo – estava muito cansado. O pai decide passar por Alagoinhas depois
seguir para Feira de Santana- “Um velho e três meninos no desamparo.” O enterro fora feito com dinheiro
emprestado a juros, necessitam de dinheiro para sobreviver, para custear a internação da velha. Totonhim
é tomado pelo sentimento de desamparo, revolta, “agora, mais perigosa.” Decide ir embora. Para onde, o
pai pergunta. “- Para São Paulo.”
Se há uma coisa que não compreendo é isso: por que o velho nunca aceitava uma ideia nossa. Tínhamos
que apresentar o fato consumado, para que o admitisse. Mas contrariado.
- Você é igual aos outros. Não gosta daqui – falou zangado, como se tivesse dado um pulo no tempo e de
repente tivesse voltado a ser o pai de outros tempos. – Ninguém gosta daqui. Ninguém tem amor a esta
terra.
Passado o sermão, papai amansou a voz. Parecia mais conformado do que aborrecido:
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
- Você faz bem – disse. – Siga o exemplo – Abaixou as vistas, sem completar o que ia dizer.
ANÁLISE DA OBRA
Essa Terra entre o Regional e o universal
O romance Essa terra vincula-se à tradição da prosa regionalista brasileira, que teve seu momento decisivo
no período do Romantismo. Os escritores da ficção romântica, como é sabido, buscaram resgatar no
quadro da vida brasileira aquilo que servisse ao projeto de “descobrir o país, através da literatura.”
Imbuídos de espírito nacionalista e patriótico, assumiram a missão de “exprimir a realidade específica da
sociedade brasileira.” Daí trazerem para suas narrativas os costumes, hábitos, a linguagem enquanto
elementos que, presentes em regiões mais afastadas da vida urbana, traduzissem um viver livre de
influências diretas da civilização europeia. O pitoresco, o exótico da vida rural e seus costumes passam,
assim, a ser estilizados, tratados esteticamente enquanto matéria ficcional, tudo isso a serviço da
afirmação da identidade nacional e literária. No intuito de firmar a unidade do povo e construir a
brasilidade, valorizou-se o passado histórico nacional e, por meio da lenda e do mito, encontrou-se no
índio os elementos representativos, enquanto o sertão passou a ser tratado “como um lugar isolado, no
interior do país, onde se conservavam intactos os traços de nossa cultura e de nossa natureza.” Como não
poderia deixar de ser, o escapismo e o saudosismo românticos interferiram na visão “das coisas locais”, e o
nosso regionalismo acabou sendo marcado pela artificialidade , a qual “ não estava apenas na reprodução
do linguajar da região ou na representação de seus hábitos, mas na dificuldade de perceber que o homem
sertanejo também era humano, e não mais um aspecto regional, pitoresco e exótico.” Segundo o crítico
Antonio Candido, a influência da formação intelectual do escritor contribuiu para uma considerável
distorção na abordagem da realidade da vida rural:
“No caso do regionalismo, porém, a língua e os costumes descritos eram próximos dos da cidade,
apresentando difícil problema de estilização; de respeito a uma realidade que não se podia fantasiar tão
livremente quanto à do índio [...], dependia do esforço criador dos escritores daqui. A obtenção de
verossimilhança era, neste caso, mais difícil, pois o original estava ao alcance do leitor. Daí a ambiguidade
que desde o início marcou o nosso regionalismo, e que, levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a
fidelidade ao observado, acabou paradoxalmente por tornar artificial o gênero baseado na realidade mais
geral e de certo modo mais própria do país.”
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Já na obra de Guimarães Rosa, o regional funde-se com o universal, o sertão, na escrita do autor, condensa
problemáticas que dizem respeito ao homem e seus “eternos conflitos”. As personagens deixam de ser
tipos e passam a ser seres humanos, enquanto o sertão ultrapassa a condição de simples cenário onde se
desenvolve a narrativa. No sertão roseano, “o homem se transforma e modifica também o seu destino,”
ele busca descobrir-se, ele é “a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o homem se
faz.,”[...] existe o traço comum, o caráter inacabado daquele que está sempre a se fazer, do movimento, da
travessia que o sertão-mundo imprime em seus habitantes”
Essa terra retoma temas considerados regionais, como a seca, a migração, o misticismo, a religiosidade, o
cangaço. Está presente na obra a imagem de um espaço – o nordestino – com sua terra inóspita produtora
de miséria, instabilidade e causadora da inadaptação humana. Mas em Antônio Torres não ocorre uma
simples retomada desses temas:
A obra [...] está em confronto com o regionalismo considerado como espaço da tradição, problematizando
o regionalismo também enquanto tradição estética. O que poderia ser uma volta ao regionalismo
tradicionalista é na verdade um discurso de desinvenção, de desconstrução de um espaço regional
identitário, coloca-se assim o próprio mito de autenticidade regional.”
De fato, a obra rompe com a visão romântica –“vertente mítico-nostálgica”- ao mesmo tempo em que
retoma uma postura problematizadora das relações do homem com o meio rural, como já realizada pelo
romance modernista de 30. Não se trata mais de identificar nos costumes, valores, linguajar do espaço
nordestino a fonte da essência da brasilidade, a expressão autêntica da identidade nacional, como se pode
concluir da tendência de valorizar nostalgicamente o pitoresco, o folclórico e os tipos da região para
legitimar a nacionalidade brasileira. Não se quer dizer com isso que o espaço nordestino deixa de ser um
elemento constitutivo da identidade nacional em Essa terra. Ele integra uma totalidade, mas desmitifica a
existência de uma nação homogênea, já que desestabiliza a noção de unidade nacional. A degradação
humana está condicionada, não a fatores mesológicos ou étnicos, mas a um contexto econômico e político,
cuja lógica submete a população de Junco a um processo de desumanização acentuado. A visão
problematizadora e crítica atinge também as relações que as personagens mantêm entre si e com a terra:
“[...] nem os elementos que representam o espaço nordestino, e que estão presentes no regionalismo
tradicional (a seca, a religiosidade, etc.), não estão em primeiro plano no romance.” É visível que “ o foco
de interesse, agora, é o processo econômico e sua interferência na vida familiar e comunitária.” Pode-se
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
mesmo afirmar que a tematização do regional presente em Essa terra atualiza a abordagem já feita pela
prosa da segunda fase modernista. Mas a problemática em Junco é mais acentuada: o progresso não
chegou ao lugar, a despeito da presença de banco, PETROBRAS, televisão, luz elétrica; o homem já
experimentou a derrota na tentativa de encontrar seu Eldorado na cidade grande. O impasse existencial do
sertanejo, simbolizado na figura de Nelo, agudiza-se a ponto de provocar o suicídio.
Ficção problematizadora da realidade nacional, Essa terra vincula-se a um momento peculiar da história do
país. Publicada em 1976, a obra pertence a um período marcado por uma política voltada à modernização
do país e repressão política e cultural:
“A década de 70, com todos os conflitos causados pela ditadura, foi também uma década de grandes
migrações externas e internas. As migrações externas eram consequências de perseguições políticas[...]. As
migrações internas são geralmente de característica rural-urbana, provocando o êxodo rural e a
concentração da população nas cidades, pois estas funcionam como polo de atração para o fluxo
migratório.”
País periférico, de passado colonial, vive um momento em que a relação de dependência ao capital
estrangeiro traduz-se em termos paradoxais, pois as mudanças se impõem sem, contudo, resolver os
problemas estruturais da sociedade brasileira, afetando especialmente os estratos mais desfavorecidos. Os
efeitos da expansão capitalista do mundo em intenso processo de globalização correspondem a interesses
do capital internacional:
“Desse modo, quando falamos que, no romance, São Paulo representa o “(sub)desenvolvimento
globalizado”, queremos ressaltar que seu ‘(sub)desenvolvimento’ reflete e refrata um movimento de
escala mundial, movimento que também acarreta desigualdades e transtornos a nível socioeconômico e
cultural. Junto com o vetor ‘desenvolvimento’, a globalização traz consigo o vetor ‘subdesenvolvimento’,
isto é, pode agravar as desigualdades socioeconômicas de um determinado lugar ou país, visto que ela não
se realiza de maneira linear, sem conflitos e contradições[...]. As imagens se misturam. Junco também
passa a receber os efeitos ‘benéficos’ do desenvolvimento ( televisão, asfalto, ANCAR – Associação
Nordestina de Crédito e Assistência Rural); São Paulo também é terra sertaneja da desolação, da falta de
oportunidades; a imagem do desenvolvimento globalizado é também a imagem do subdesenvolvimento
globalizado.”
Vários são os temas não especificamente regionais presentes no romance, como o amor, medo, morte,
ódio, Deus, Diabo, loucura, razão. O sertão em Essa terra é palco de grandes dramas humanos, é um
mundo sempre marcado por indagações e por opostos, que traduzem a condição humana e suas eternas
angústias. Nesse sentido, sobressai a temática da identidade humana, quando se consideram os efeitos
psicológicos, sociais, culturais e linguísticos provocados pela migração, como ocorre com o personagem
Nelo. Ao ir em busca da realização pessoal, ele vivencia a realidade da metrópole, cujos valores culturais
conflitam com os seus de origem, fato que atinge em cheio a sua identidade. Isso faz com que ele
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
experimente um processo em que sua identidade passa a ser reestruturada, redefinida. Processo
paradoxal de ganho e perda, provoca instabilidade e fragmentação na identidade do sujeito (Nelo):
“Em suma, ao vivenciar o contato intercultural, o sujeito reestrutura e reorganiza sua identidade por um
processo de identificação que envolve um movimento transcultural tenso entre um ‘eu’ e um ‘outro’.
Assim, o estar ‘entre-lugares’ significa espaço fronteiriço onde diferenças culturais, sociais, valores,
linguagens, questões de sexualidade, etnicidade, classe, gênero, posições de sujeito são confrontados,
articulados e renegociados no sentido transcultural. É um espaço onde a ideia de pertencimento rasura-se
entre a ideia de pertencer ao lugar de origem e/ou ao lugar de chegada. Não há como manter uma
identidade de forma totalizante e imutável, no momento em que se tenta construir uma vida em terras
estranhas.”
“Nelo conheceu e viveu no Junco e em São Paulo, mas não se sente pertencente a estes lugares. São Paulo
representa ao mesmo tempo o exílio e a perda. [...] Na experiência vivida por Nelo coexiste o enigma de
uma ‘chegada’ sempre adiada, como se fosse uma espécie de pressentimento, uma consciência de que o
seu desenraizamento já não lhe permitiria a reintegração à terra natal.”
O desejo de realização plena, de completude, leva a personagem a negar suas origens e buscar
reconhecimento tomando como referencial um outro identificado com o moderno, com o progresso, o
sucesso e materialismo. Assim, além de narrar a história do sujeito incapacitado de considerar-se
pertencente a um único lugar, a obra aborda “o reordenamento do indivíduo diante das relações
orientadas pelo consumo de bens materiais, bens que na contemporaneidade, além de assumir o poder de
articular a vida do sujeito pós-moderno, investe ainda na construção da sua identidade.”
presente em outros momentos da história da literatura brasileira, como já foi ressaltado. Por outro lado,
ao tratarmos de temas universais, enfatizamos a problemática da adaptação humana, o dilema do homem
na busca de relacionar-se com o outro, com o meio e consigo. A identidade do Ser foi, portanto, o
destaque. Marcada pela tensão e desequilíbrio, a convivência humana, especialmente na família de
Totonhim, caracteriza-se pela fissura, pela fragmentação.
O impasse existencial é exemplar na personagem Nelo, cuja trajetória culminou com o suicídio, clímax de
uma situação comprometedora da sua identidade. A personagem fora vítima de forças contra as quais
mostrou-se incapaz de sobrepor-se, como ocorre na tragédia: sucumbiu num impasse diante da
“inexorabilidade do Destino.” A trajetória de Nelo fora marcada por “uma irônica mudança da sorte” de
onde brotou uma “forte impressão de vazio.” Assim, a obra pode ser enquadrada num tipo de “ficção
inspirada por uma séria preocupação com o problema do destino do homem.” Acompanhada de
pessimismo e humanismo, sensação de vazio que se apossa simultaneamente do leitor e da personagem
pode vincular-se à purificação de sentimentos, caracterizando a catarse. Pessimismo e humanismo se
combinam, possibilitando ao leitor “livrar-se do peso de uma realidade que se nos está tornando pesada”,
ou “alargar seus conhecimentos por meio da dor, especialmente ligada à piedade e ao terror.” Tomando
de empréstimo as palavras de José Hildebrando Dacana, Nelo passa a não ter mundo, é vítima sacrificada
à história. Em sua trajetória, em seu ser, convivem tensamente realidades díspares, expressão do choque
cultural que experimenta. Junco é um país outro, com mentalidade, valores, crenças que não dialogam
com a cidade grande, com a “selva de pedra” paulista:
“[Nelo] Não poderá sobreviver para organizar o dilaceramento que o destrói: o choque de dois mundos
irremediavelmente inconciliáveis[...]. Ninguém poderá organizar o caos gerado pelo choque,[...] não
podendo fazer-se entender por este mundo que o substitui e, ao mesmo tempo, o destrói, ao mundo que
desaparece só resta a revolta irracional, a autodestruição, o desaparecimento definitivo e completo. A
identidade de ambos [dois mundos] se revela exatamente no momento de seu desaparecimento[ de Nelo
e de seu mundo], de sua morte, na tragédia dos choques de cultura, dos mundos historicamente
defasados.”
A obra, nesse sentido, adquire importância também pela sua dimensão épica. Ao servir de relato da
incompatibilidade entre duas realidades distintas historicamente constituídas, a tragédia de Nelo – símbolo
do nordestino seduzido pelos apelos da cidade grande -, contribui para a reflexão acerca da problemática
formação do país e de sua gente. Serve para repensar e resgatar a dívida social que tem o Estado com a
gente humilde abandonada e posta à margem da nação. Essa massa “rude e atrasada” que integra um país
plural, os Brasis e suas identidades. País de contrastes, mas que em nome de uma identidade nacional,
procura sempre mascarar, homogeneizar as diversidades que espelham uma estrutura social perversa e
desumana.
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Como vimos, a narrativa trata de problemas tanto de natureza econômica, social e política quanto
existencial. Os temas regionais, embora presentes e significativos, não são o mais importante da narrativa.
O homem dilacera-se na tensão constante com as condições inóspitas de um espaço cerceador da
realização humana, das aspirações do homem nordestino, da utopia e da esperança. Viver em Junco é
resistir, é moldar-se ao lugar. O preço a pagar pode ser muito alto para quem tenta a sorte num outro
Brasil. Desagregação da família, dos laços afetivos, dilaceramento do ser humano, que se revela frágil,
precário ao tentar responder psicologicamente à pressão exercida pelo meio que impõe sua marca, sua
condição. O ser enlouquece, escapa-lhe a razão. A loucura, assim, torna-se uma das temáticas
fundamentais da obra, podendo ser interpretada como ápice do desmoronamento psíquico do sujeito e
também metáfora do caos. Caos que se instala, causa e consequência de uma mesma realidade. Brutal,
torna-se mesmo absurda, incoerente, ininteligível, distante da compreensão do homem simples, cujo
aparato mental/intelectual é incapaz de racionalizar. A lógica das relações capitalistas de exploração do
homem pelo homem, da espoliação pressiona e se impõe. Como apreender os mecanismos sutis das
relações humanas de um mundo moderno e desumanizador?
Não estranha, portanto, o fato de as pessoas do lugar – onde moças e casadas enlouquecem- permearem
sua existência de crenças em forças sobrenaturais, admitirem a interferência no cotidiano de seres e
entidades pertencentes a uma outra dimensão da realidade. O sentimento religioso, o messianismo, o
misticismo, o sobrenatural, as crenças apocalípticas integram a atmosfera de Junco – terra do impossível,
do irracional, do ilógico. Importante nesse sentido são as imagens do absurdo, do caos, do ininteligível, do
fantasmagórico presentes na narrativa. O leitor passa a experimentar junto com as personagens uma
percepção deformada do real, o desconforto e estranhamento, a que não falta o nojo físico e existencial –
a náusea:
“A prévia do Juízo Final. Pelo menos para mim foi isso o que se passou. A praça estava cheia, como num dia
de feira ou Santa Missão. E eu me perguntava de onde tinha vindo tanta gente e para quê. O prefeito pedia
uma providência, antes que os galos cantassem pela terceira vez.
- Sargento!
Era doloroso vê-lo daquele jeito, logo ele, que até é um bom sujeito.
- O pixe. Eles vão pixar. O impixe. Subversão. Rebelião. O sargento correu, dizem que para debaixo da
cama. E não tive tempo de avisar o prefeito que não estava acontecendo nada. Era apenas um contingente
de homens e mulheres, rondando para cima e para baixo, calados, como se não se conhecessem, como se
nenhuma pessoa tivesse nada a ver com as outras. O prefeito berrando:
- Estão todos armados. Eu resisto. O anticristo não toma o poder. Eu resisto. Sargento!”
.........................................................................................................................
- Qualquer dia o Anticristo aparece. Será o primeiro aviso. Depois o sol vai crescer, vai virar uma bola do
tamanho de uma roda de boi e aí – dizia papai, dizia mamãe, dizia todo mundo.”
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“ Ela vomita sobre as minhas pernas. Tonta. Costumava ter esse enjoo de ano em ano, um pouco antes de
ficar com a barriga inchada. Filhos. Um por ano. Cada filho era um horror. Papai dizia:- Mulher entojada.
Seria por isso? Abaixo o vidro e boto o seu rosto para fora. O vento sopra fiapos de vômito na minha roupa,
na minha cara, em tudo. As árvores estão passando depressa, como manchas prateadas. Tomara que tudo
passe depressa.”
Esse conjunto de coisas encontra expressão no plano estrutural da obra, para o qual o autor escolheu
formas estratégicas de narrar. Quando as personagens assumem o papel de narrador, é assegurado o
direito de voz ao sujeito contextualizado na condição de opressão, de pária social. Entretanto não apenas
um narrador-personagem em primeira pessoa [Totonhim] dá conta do acontecido, também a voz narrativa
é assumida por Nelo e por um narrador onisciente. A narrativa traduz o desequilíbrio experimentado pelas
personagens, faz-se também fragmentária, desordenada, fato que pode ser estendido ao tempo disperso e
não linear. Como a memória adquire importância enquanto fonte reveladora de problemas existenciais, a
sondagem psicológica é necessária, e o discurso indireto livre, o monólogo interior tornam-se instrumentos
reveladores do impasse vivido a nível mental, psíquico das personagens. A simultaneidade espacial e
temporal reforça a atmosfera de confusão. Seguem dois exemplos importantes: no primeiro trecho, tempo
e espaço se confundem, quando Nelo leva a mãe para ser internada num hospital. No segundo, o narrador
capta o fluxo mental do pai de Nelo e Totonhim, através da recordação:
“Bastou uma fugir, para as outras irem atrás – ela continua falando aos arrancos, como as marchas deste
carro. Volto a dizer ao motorista para ter calma. Seu desespero é apenas para chegar. Já estamos no
asfalto. Lá se vão os piores quarenta quilômetros. Às vezes eu penso que são estes quarenta quilômetros
que fazem toda a diferença. – Ainda dói muito a minha memória. Nelo meu filho. Ainda dói. Você não sabe
o que é uma mãe ter de passar a vida andando para cima e para baixo, feito louca, tentando achar as
filhas. E sempre sem saber se elas vão ser encontradas vivas ou mortas. Você não sabe o que é passar
vergonha, porque você não é mulher e não sabe -, as lágrimas descem-lhe pelo rosto carunchado. Rosto de
cupim. Cupim do tempo.”
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“O filho desaparecera no mundo, contra a sua vontade, para nunca mais voltar. Era ainda um menino, a
bem dizer. Aquela coisa tonta foi a favor. Arreliou o tempo todo, enganjentou, infernizou o juízo do
povaréu das redondezas que veio em romaria, para lhe dar conselhos, pedir, pedir, pedir. E foi assim que
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
ele se deu por vencido, como se tivesse de assistir de braços cruzados à sua própria desgraça, daí por
diante.”
PERSONAGENS
O pai – “caboclo lenhudo” , de “rosto moreno de cabelos lisos” , pertencia “à raça dos vaqueiros”, “do
primeiro vaqueiro” , João Cruz”, o homem que, vitimado pela seca, viera com mulher e filhos e desbravara
Junco. Para ele, “Deus fez os brancos para os brancos, os pretos para os pretos. Branco com preto não
assentava.” Uma das filhas fugira com um “rapaz de cabelo pixaim”. Agradecia o fato de os netos terem
“cabelos bons” iguais aos da mãe. Ressentia-se por considerar que os filhos identificavam-se mais com a
mãe do que com ele. Arruinado financeiramente, endividado, “vendeu a roça, a casa da roça e a casa da
rua, pagou as dívidas, torrou o troco na cachaça, depois se mudou par Feira de Santana.” Carpinteiro, “ mal
sabia assinar o nome”, fora contra a ida de Nelo para São Paulo. Para ele, “crente e comunista é tudo a
mesma coisa” e as mulheres são “malditas”, “só pensam na vaidade do mundo.”
A mãe – preocupada com o estudo dos filhos, muda-se para Feira de Santana, não queria para os filhos o
mesmo destino dela. O marido discordou da decisão. Em Feira, “se matava de trabalhar”, “para não dar o
braço a torcer, coisa de orgulho pessoal, medo do fracasso”, de acordo com Totonhim. Segundo o esposo,
“Era uma mulher sem piedade, batia nos filhos até esfolar o couro.” Chegou a dmitir que “queria ter
nascido homem” e “só ter tido filho homem.” Um tio seu, Caboco, ex-roceiro, “homem viajado, que falava
bonito”, comprava “bugigangas” no Paraguai para vender em São Paulo, onde inicialmente trabalhara de
pedreiro. É ele quem dá notícias de Nelo, quem encontrara num bar em São Paulo querendo comprar
cachaça fiado. Caboco, que “enchia a boca quando falava de São Paulo”, bebia muito antes de entrar “para
a igreja dos crentes.” De acordo com Totonhim, ela não acreditou na morte do filho, “Não pode matar o
seu sonho dourado,” afirma.
Totonhim - narrador-personagem, servidor da Prefeitura de Junco, reside sozinho na casa do falecido avô,
a qual passa a dividir com Nelo, depois que esse retorna à cidade. Morou em Feira de Santana, onde
estudou “no ginásio”, mas retornou a Junco, revoltado com a família, que não o ajudara, quando ele
precisara. Não se sente muito à vontade com a presença de Nelo, que até então não conhecia. Sente-se
constrangido por ser preterido pela mãe em favor do irmão mais velho. Para Totonhim, “todos têm razão.”
No final da narrativa, após internar a mãe, revela sentir-se “perdido, desamparado, sozinho.” Tudo o que
restava “era um imenso absurdo.” Decide ir embora para São Paulo.
Nelo – o mais velho, considerado “o melhor de todos os filhos”, casa-se com uma mulher, contra a vontade
dos pais dela, para os quais “Todo baiano é negro, pobre e veado.” Arruinado financeiramente em São
Paulo, envolve-se com jogos e bebidas, retorna empobrecido a Junco. A esposa, acompanhada dos filhos,
abandona-o em companhia de Zé do Pistom.
Adelaide – fugira de casa ainda menor, foi encontrada pela mãe “trancada num puteiro, apanhando”.
Casou-se e levou a vida apanhando do marido, que, enciumado, a assassina com vários tiros na barriga.
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Noêmia- também fugira e fora encontrada em Maragogipe. O homem – “alto, moreno claro, de cabelos
bons”- com quem acabou se casando, só a aceitou definitivamente como esposa, depois de ter confirmado
a paternidade do filho.
Zuleide – um ano após fugir de casa, escreveu de Pojuca, onde morava e acabara de ter uma filha.
Considerava a roça “uma porra.”
Gesito e Judite – irmãos de Totonhim, seus nomes são citados pelo pai.
O tio – ficou com as terras do pai e irmão; “há muito tempo sonhava em comprar as terras do irmão.”
Robertinho e Eliane – filhos de Nelo. O menino tem oito anos, a menina, sete. Havia mais de um ano que
Nelo não os via.
O avô - falecido, pertencia a ele a casa onde Totonhim reside. Enquanto o inventário não sai, “dezoito
irmãos e dezoito cunhados brigam pelos seus pedaços.”
Parentes, tias e primos – vão a casa recepcionar Nelo, quando este chega de São Paulo.
Ascendino – parente de Totonhim, o “último dos beatos [...], morreu como viveu: rezando. Alma de
passarinho, coração de criança. Foi-se como um santo, virgem e imaculado.” Não atua diretamente na
narrativa, mas é citado pelo pai de Nelo.
Alcino – o louco que, “nos dias em que a lua ataca, inventa palavras difíceis, que ninguém entende.” O
povo afirmava que ele “ficou louco por causa de um vício”. Mantinha relações sexuais com a égua Meia-
Branca. Considerado um “desmarcado” pela população, “Dizem que ele começou a ficar doido”, na noite
em que a mulher fugira, com medo de manter relação, por causa da dimensão de seu pênis. Segundo ele
próprio, ficara louco por avareza, usura. Não levara a beata Teodora para rezar enquanto ele desenterrasse
o caixote com dinheiro guardado por jesuítas, queria só para ele. Mas fora surpreendido por cangaceiros,
que “desgraçaram tudo.” Ele passa a noite esperando “que uma alma penada lhe ofereça dinheiro
encantado.”
Pedro Batista Lopes – conhecido por Pedro Infante, trocara o sobrenome Cruz por Lopes, porque, segundo
ele, Cruz “não dá futuro a ninguém.” Tido por “homem de muitas manias”, tinha cinco filhos e herdara do
pai a venda - “abrigo de todas as queixas”. No passado, roubara dinheiro da venda para, juntamente com
Nelo, “dar uma surra no veado, que, além de veado, andava arrastando a asa para uma irmã” sua. Após
“vazar” o olho do rapaz com a fivela do cinturão, deu-lhe dinheiro roubado da venda para que ele
desaparecesse da cidade. Quando o pai descobriu a falcatrua, ele responsabilizou Nelo, que levou uma
surra dos pais. A partir desse dia, rompeu-se a amizade.
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TACYANA BOMFIM e ZÉ CARLOS BASTOS
Jeremias – pai de Pedro Infante, deixou para o filho roças e uma “venda cheia de mercadorias já pagas”.
Zé da Botica – o “único médico para todas as ocasiões”, solidariza-se com Totonhim, quando este é
importunado pelo interrogatório do delegado sobre as circunstâncias da morte de Nelo. Casado com uma
prima de Totonhim, viera de Irará, acreditava em que “todas as doenças podiam ser curadas com
remédios, em vez de chás, promessas e rezas.” Boa pessoa, vendia fiado à população. Dos remédios que
fornece a Nelo – para esquistossomose, sífilis e calmantes -, um ele mantém em segredo.
Zé do Pistom – baiano, músico de bailes, o emprego de cobrador de ônibus fora Nelo, seu primo, que lhe
conseguiu. Já policial, espanca o primo, acusando-o de querer “raptar” os filhos e assassinar a esposa.
Jonga – diretor do hospital onde a mãe de Nelo é internada. Totonhim conseguira votos para o primo dele
nas últimas eleições. Ficaram amigos.
Dr. Dantas Júnior – deputado federal, graças à sua intervenção, Junco havia “entrado no mapa do mundo”,
tornando-se independente do município de Inhambupe.
Dr. Walter Robato Júnior- dentista famoso de Alagoinhas, é quem implanta os dentes de ouro em Pedro
Infante.
O delegado – sargento da polícia, há pouco tempo delegado do local, viera de Salvador acompanhado de
mulher e dois filhos. Caracterizado como um homem truculento, com a sua chegada, “uma nova era
haveria de começar” em Junco,- “uma terra sempre igual a si mesma, dia após dia”: televisão, bailes aos
sábados, times de futebol. Segundo Totonhim, ele, com ciúmes da mulher, desejava assassinar Nelo.
Caetano Jabá – seguidor de Antônio Conselheiro, propalava que “No ano dois mil esse velho mundo será
queimado por uma bola de fogo e depois só restará o dia do juízo.”
Antônio Conselheiro – é citado na narrativa. Quando passara por Inhambupe, fora apedrejado. Profetizou:
“Essa terra vai crescer que nem rabo de besta”.
O padre – incentivou os trabalhadores a tomarem dinheiro emprestado, pois o “banco tinha a garantia do
Presidente.”
Tio Ascendino – tio do pai de Totonhim, “último dos beatos”, considerava “crente, comunista e udenista
farinha do mesmo saco.”
Negro Tiago – é preso de castigo pelo delegado, por ter “roubado uma galinha.”
O prefeito – no final da terceira parte da obra, o narrador registra: “O prefeito fala sozinho, rondando a
igreja. Ele também?” Em seguida, ele aparece, ameaça o sargento, pede-lhe “reforço”, dizendo ser vítima
de um “levante.”
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Negra Tindole – a “bêbada, levada e milagrosa mãe preta, cujo serviço era pago em litros de feijão”, era
parteira de Junco. Acompanhou o nascimento dos irmãos de Totonhim.
TREINAMENTO
Texto para as questões 01 a 04
Mas não pôde evitar o baque, o último baque: aquele estremecimento que fez suas pernas bambearem,
como se não quisessem ir. Pensou: - Benditas são as mulheres. Elas sabem chorar.
Três pastos, uma casa, uma roça de mandioca, arado, carro de bois, cavalo, gado e cachorro. Uma mulher,
doze filhos. O baque da cancela era um adeus a tudo isso. Já tinha sido um homem, agora não era mais
nada. Não tinha mais nada.
- Malditas são as mulheres. Elas só pensam nas vaidades do mundo. Só prestam para pecar e arruinar os
homens.
Suas pernas não queriam ir, mas ele tinha que ir. Tinha que chegar à rua e pegar um caminhão para Feira
de Santana, de uma vez para sempre.
[...]
O filho desapareceu no mundo, contra a sua vontade, para nunca mais voltar. Era ainda um menino, a bem
dizer. Aquela coisa tonta foi a favor.
[...]
E foi assim que ele se deu por vencido, como se tivesse de assistir de braços cruzados à sua própria
desgraça, daí por diante.
TORRES, Antônio. Essa terra. São Paulo: Editora Ática, 1994, p.48.
Questão 01
a) Decide abandonar esposa e filhos, para tentar recuperar-se financeiramente em terras distantes.
b) Parte ao reencontro de mulher e filhos que conseguiram, graças ao trabalho no centro urbano, um
padrão de vida satisfatório.
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c) Diante dos prejuízos sofridos no trabalho agrícola, resolve investir em um negócio mais vantajoso
economicamente.
d) Tem o seu conflito agravado por tomar uma decisão condicionada à vontade de outrem.
e) Opta voluntariamente por um estilo de vida, cujos valores estejam em consonância com a vida do meio
urbano.
Questão 02
Assinale a alternativa, cujo trecho possui relação de anterioridade com o fato retratado no texto.
a) O pai de Totonhim, de posse do dinheiro emprestado pelo banco, vai ao encontro da esposa e filhos em
Feira de Santana, em busca de novos empreendimentos.
b) A mãe de Totonhim decide ir para outra cidade, preocupada com os estudos dos filhos.
c) Totonhim receberá a maior parte do dinheiro conseguido com a venda dos bens em Junco, o que
garantirá seus estudos em Feira de Santana.
d) As irmãs de Totonhim encontrarão em Feira de Santana o sucesso financeiro, após concluírem cursos de
ensino superior.
e) A mãe de Nelo sofre um abalo emocional profundo com a fuga das filhas, o que provocará sua loucura e
o desejo insano de morar em feira de Santana.
Questão 03
Assinale a alternativa cujo comentário em negrito está coerente com a ideia presente no trecho
transcrito.
a) “Mas não pôde evitar o baque, o último baque: aquele estremecimento que fez suas pernas
bambearem, como se não quisessem ir. Pensou: - Benditas são as mulheres. Elas sabem chorar.” (l.02,03 e
04) – constatação de fatos isenta de opinião valorativa
b) “O baque da cancela era um adeus a tudo isso. Já tinha sido um homem, agora não era mais nada. Não
tinha mais nada.” (l. 06,07 e 08) – contraste temporal denotando similaridade de situação econômica
c) “- Malditas são as mulheres. Elas só pensam nas vaidades do mundo. Só prestam para pecar e arruinar
os homens.” (l.09 e 10) – juízo de valor assentado numa visão patriarcal de gênero.
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d) “O filho desapareceu no mundo, contra a sua vontade, para nunca mais voltar. Era ainda um menino, a
bem dizer. Aquela coisa tonta foi a favor.” (l. 13,14) – ação humana sobrepondo-se à força do destino
e) “E foi assim que ele se deu por vencido, como se tivesse de assistir de braços cruzados à sua própria
desgraça, daí por diante.” (l.15,16) – fatalidade como necessária para a realização humana
Questão 04
a) Solidão humana
b) Impasse existencial
E este sol ia secando tudo, secando o coração dos homens, secando suas carnes até os ossos, secando-os
até sumirem – e lá se vai o tempo, manso e selvagem, monótono como uma praça velha que faz força para
não ir abaixo, como se isso não fosse inevitável, como se depois de um dia não viesse outro com seus
dentes afiados, para abocanhar um pedaço das nossas vidas, deixando em cada mordida os germes da
nossa morte. E esta é a pior das secas. A pior das viagens.
Pensava para se distrair. Pensava para chamar o sono. Nascemos numa terra selvagem, onde tudo já
estava condenado desde o princípio. Sol selvagem. Chuva selvagem. O sol queima o nosso juízo e a chuva
arranca as cercas, deixando apenas o arame farpado, para que os homens tenham de novo todo o trabalho
de fazer outra cerca, no mesmo arame farpado. E mal acabam de fazer a cerca têm de arrancar o mata-
pasto, desde a raiz. A erva daninha que nasceu com a chuva, que eles tanto pediram a Deus.
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- É por isso que não sei se volto ou se fico. Acho que agora tanto faz. Porque o tempo que comeu o meu
chapéu de palha, agora está comendo o lugar que deixei em São Paulo. Deu para você entender,
Totonhim? Respondi direito à sua pergunta?
TORRES, Antônio. Essa terra. São Paulo: Editora Ática, 1994, p.83.
Questão 05
Considere a totalidade do romance Essa terra e assinale a alternativa verdadeira sobre o texto.
a) O autor dispensa o uso da conotação enquanto recurso estilístico para garantir a veracidade documental
do fato narrado.
b) A opção por narrar em primeira pessoa limita a narrativa à exterioridade dos fatos.
e) A inexistência de palavras que possuem similaridade semântica em todo o texto acentua o caos
psicológico experimentado pela personagem.
Questão 06
b) Fragmentação existencial do homem, visto como capaz de superar as imposições do meio físico e social.
e) Incapacidade humana de exteriorizar sentimentos como fator gerador de crise, revolta e desejo de
vingança.
Questão 07
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Assinale a alternativa cujo trecho, devidamente contextualizado, contribui para reforçar a atmosfera de
tragédia que caracteriza a obra.
a) “Foi um dia muito bonito, tão bonito quanto os dias de eleição, embora sem as arruaças, as cervejas e as
comidas dos dias de eleição, porque tudo aconteceu de repente, sem aviso prévio.”
b) “– O povo caía e morria de sede e fome, como o gado. Era de cortar o coração. As primeiras chuvas de
33 prometiam a bonança, mas ficaram só na promessa. O que se viu mais tarde foi o dilúvio, o sezão e o
impaludismo: desta vez o povo caía e morria tremendo de frio.”
c) “Estou diante dele, na porta de uma hospedaria que o dono, um homem vindo de fora, chama de hotel.
Esse homem não o conhece. Faz questão que ele entre e veja os quartos, o banheiro e a limpeza de tudo.”
d) “Está certo, nós não nos conhecíamos pessoalmente, daí toda a minha dificuldade. Só sei que me senti
um tanto abestalhado, sem saber o que dizer, além de um chegue à frente.”
e) “Ainda ontem eu estava aqui, debaixo deste mesmo teto, desta mesma luz que me alumia. Aí ouvi uma
música, que vinha lá de cima, do lado da igreja. Cheguei ali na porta e vi que era Nelo que vinha vindo, com
seu rádio ligado na Rádio Sociedade da Bahia.”
ESSA TERRA
01) d
02) b
03) c
04) d
05) c
06) d
07) b
Material elaborado pelos professores Anya Moura, Renato Dórea e Zé Carlos Bastos
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