Livro Nos Caminhos Da Dupla Consciência
Livro Nos Caminhos Da Dupla Consciência
Livro Nos Caminhos Da Dupla Consciência
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2019
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Capa
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Diagramação (??)
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As árvores me começam.
Deste e de outros.
Salve as folha.
5
Sumário
Prefácio
Apresentação
Introdução
2. Espelhos enterrados
Colonialidade do saber
2. Colonialidade do poder
O racialismo
As relações de gênero
As relações com a “natureza”
O controle do trabalho
A epistemologia eurocêntrica
A modernidade alternativa
O ethos barroco
Conclusão
1. A literatura
O indigenismo
A Antropofagia
Oswald de Andrade
Macunaíma, de Mário de Andrade
O realismo maravilhoso
O reino deste mundo
Palavras finais
Bibliografia
9
Prefácio
Ignacio Dobles Oropeza
1
DOBLES OROPEZA, I. 2016.
10
espaços mais plenos. Não é em vão que Bruno destaca em seus textos
exemplos de lutas e resistências populares ao longo do continente.
2
O termo raizal remete diretamente à obra do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda. Para esse
autor, os povos latino-americanos devem elaborar um socialismo raizal, ou seja, baseado no conjunto
de experiências históricas dos povos latino-americanos.
11
Apresentação
<Será enviada posteriormente>
14
<Arte, Por favor, inserir este texto em página par, espelhada com a da INTRODUÇÃO.>
INTRODUÇÃO
Entre 2002 e 2004, funcionou na comunidade do Jardim Colombo, zona
sudoeste Da cidade de São Paulo, a cooperativa de alimentação Jurema. O
nome foi dado por Índia, uma moradora que dizia ter uma relação muito
próxima com a cabocla Jurema e por isso a cooperativa levava esse nome. “Eu
não entendo muito disso não, viu, Bruno, isso é coisa que veio lá da Bahia,
mas eu sei que eu sinto uma coisa com essa tal de Jurema aí. Foi ela que falou
comigo pra eu colocar esse nome.”
Voltada para a produção de pratos típicos de milho, como curau,
pamonha, cuscuz, milho cozido, a cooperativa Jurema era formada por oito
mulheres da comunidade. Aproveitando as festas de São João e os costumes
todos – que vêm de muito longe, como se sabe –, a cooperativa juntou uma
sobrinha boa de dinheiro aquele ano. No fundo da casa de uma delas, a
discussão para decidir o que fazer com o dinheiro foi acalorada.
Entre as cooperadas estava Nilza, uma baiana de idade entre cinquenta
e sessenta anos. Criada num terreiro, me contou que aos sete anos teve um
episódio – “o santo me pegou” – que a fez andar por horas sem consciência,
até desmaiar na beira de um riacho. Dali em diante, levada pelos pais, viveu
em uma casa de candomblé, Na noite da reunião entre as cooperadas da
Jurema, quando o debate estava polarizado entre dividir toda a sobra entre as
trabalhadoras ou investir o dinheiro na compra de ferramentas e outros
acessórios, Nilza pegou a todas de surpresa com a seguinte proposta: se o
objetivo era ganhar mais dinheiro para poder comprar as ferramentas e ter
algum dinheiro pra levar pra casa, a melhor solução era pegar toda a sobra e
oferecer à sua casa de candomblé na Bahia. Ela mesma conversaria
seriamente sobre isso com seu pai de santo, o que garantiria que a oferta
retornasse em dobro para a cooperativa.
Como era de esperar, a ideia foi prontamente combatida. Toninha, cristã
de uma denominação pouco alinhada com as religiões de matriz africana,
puxou o coro e, de dedo em riste, se colocou radicalmente contra. Outras,
empunhando uma racionalidade econômica mais empreendedora, também
rechaçaram. Depois de mais dois ou três rebuliços desses, o grupo decidiu
16
I
POR UMA PSICOLOGIA POPULAR
LATINO-AMERICANA: O DESAFIO
DA DESCOLONIZAÇÃO
Uma vez, ouvindo um contador de histórias em São Luiz do Paraitinga 3,
fui transportado para outro tempo. A história remontava à época em que o Vale
do Paraíba era habitado por seres gigantes, que cruzavam as montanhas com
seus enormes passos e pulavam vales inteiros atrás de fazer suas maldades.
Uma delas, muito conhecida, era ir com a mão até dentro das casas e roubar
as crianças. Diz a história que usavam essas crianças como brasa para seus
cachimbos. Me lembro de ter ouvido essa história sentado num banquinho de
madeira enquanto o contador pintava uma das máscaras que fazia para vender
no mercado da cidade. Lembro que naquela tarde fui transportado para uma
dessas noites de céu aberto e lua grande, debaixo de algum teto de palha,
deitado numa rede, sentindo esse mundo mágico e pavoroso onde vivem seres
sobrenaturais, capazes de roubar nossas crianças pra fazer coisas horrorosas.
Gigantes que usavam botas e chapéus de aba grande, o contador falou. Quase
conseguia ver as grandes pernas desses gigantes pulando vales inteiros.
É impressionante a capacidade que esses contadores têm de nos levar
para um mundo imaginário belíssimo e aterrador. Mundo de extremos.
Só depois de um tempo, anos depois, é que fui relacionar esses tais
gigantes com os bandeirantes, grupos de assassinos e escravizadores de
índios que foram os executores principais da primeira fase do genocídio
indígena que caracteriza a formação do Brasil desde o início. Transfigurada em
causo caipira, ouvi naquela tarde a memória indígena da violência cometida
contra eles, violência extrema que está na base de nossa história. Memória que
foi passada por séculos e que hoje é contada por detentores da chamada
cultura caipira tradicional e que talvez sejam netos ou bisnetos de índios
3
Pequena cidade do interior de São Paulo, no Vale do Paraíba. São Luís é muito conhecida pela forte
presença da cultura tradicional caipira.
22
“pegados no laço”, como ouvi muitas vezes de pessoas mais velhas da região.
Na oralidade própria da cultura caipira, foi se passando a memória daqueles
que sofreram a barbárie da colonização. Muitos dos causos que ouvi por esses
tempos são, assim, construções narrativas cheias de imaginário e lirismo e que
contam, ao seu jeito, o essencial dos processos históricos de longa duração.
Mas daí que um tempo desses estive ouvindo muitas histórias do povo
Xavante que vive perto do Rio Kuluene, na serra do Roncador, ali pras bandas
do Xingu. Me contaram um tanto de história da chegada das frentes de
colonização nos anos 50. E nisso, muitas histórias sobre rapto de crianças.
Eram os mesmos gigantes chegando, agora no Centro Oeste. De uma
enfermeira escutei que as mães xavante contam muitas histórias sobre os
brancos para suas crianças. Contam aquilo que aconteceu, contam do seu
jeito, com sua visão de mundo. Dai entendi porque tanto olhares amedrontados
e fugas quando eu aparecia em algum canto onde estavam os pequenos. É um
pavor passado de geração a geração.
Além dessas conversas, pude acompanhar algumas práticas e rituais
dos Xavante com os meninos e jovens. Os Xavante são famosos por esses
rituais. Um dos jovens me falou que é nesses rituais que aprendem a conversar
com os espíritos, reconhecer a maneira deles de se comunicarem e lidar com
esse encontro de universos que formam a vida e o mundo. Não me parece nem
um pouco difícil entender como, nesse mundo de violência, homens brancos e
espíritos, eu seja considerado detentor de um mau espírito ladrão de crianças.
E que talvez eu vire personagem de algum causo de assombração em algum
futuro aí.
Núcleo comum?
24
4
Abya Yala, na língua do povo Kuna (originário da Colômbia), significa “Terra madura”, “Terra
viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. É um termo utilizado como
autodesignação dos povos originários do continente, em contraponto a América. A expressão
Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente, objetivando
construir um sentimento de unidade e pertencimento.
26
que “eu sou isso aí”, é dessa matéria que eu sou feito. Em outras palavras, a
sensação de ser eu mesmo encontrava nesse universo da cultura brasileira um
de seus lugares de pouso, um reconhecimento.
Somente depois de algum tempo voltado para a cultura brasileira é que
me dei conta de que o Brasil é parte de um continente. E então, por esses
caminhos inesperados e seus acontecimentos, esbarrei em um autor, depois
em outro e em muitos outros que me apontaram caminhos novos e
inesperados para me aproximar de um pensamento que me ajudasse a
compreender essa heterogeneidade que caracteriza não só o Brasil, mas a
América Latina.
O tom autobiográfico dos últimos dois parágrafos não é por acaso.
Pensando como psicólogo, sempre me intrigou a ausência de reflexões que
levassem em consideração algo que sempre me pareceu muito óbvio: o fato de
ser brasileiros – e latino-americanos – é fundamental na compreensão de quem
somos nós, individual e coletivamente. Nossa subjetividade está
intrinsecamente ligada ao conjunto de tradições, pensamentos, visões de
mundo e dinâmicas socioculturais que conformaram o território em que
vivemos. Com todo o conjunto. Com os valores do colonizador inclusive. 5 Há
uma relação muito intensa entre aquilo que somos – cada um e todos nós – e a
complexidade que conforma o lugar em que fomos criados, suas expressões e
modos de vida. Há em nós, se atravessando, se digladiando, se
antropofagizando, se querendo e se odiando, um monte de histórias pequenas
e grandes, histórias territorializadas, pertencentes a um lugar e presentes nos
seus viventes. Em curtas palavras: temos raízes. No caso de nós, latino-
americanos, temos múltiplas raízes. E, caminhando um passo a mais numa
metáfora que talvez seja demasiado fácil, temos múltiplos ramos e folhas. Ser
5
Há uma discussão importante na Filosofia da Libertação sobre o lugar da cultura colonizada
na formação dos sujeitos latino-americanos. Afinal de contas, somos também os valores –
produtos – colonizados, ou não? A presença da coca-cola na cultura dos países latino-
americanos é um bom índice dessa tensão. Mais de uma vez, ouvi diferentes argumentos para
defender ou demonizar a coca cola – a “água negra do imperialismo”– como algo que pode ser
consumido ou que deve ser rechaçado. Caso emblemático foi o dos zapatistas, que solicitaram
em um comunicado que pessoas aliadas de fora parassem de criticá-los por consumirem coca-
cola. Outro desdobramento dessa questão é a “autenticidade” dos produtos “típicos”. Um
refrigerante feito de guaraná amazônico dos índios Sateré-Maué é um produto que é contra o
império e, portanto, contra o processo de colonização? E gostar do guaraná mais do que de
coca-cola nos faz menos colonizados e mais subjetivamente liberados ou autênticos?
27
2. Espelhos enterrados
Carlos Fuentes, reconhecido escritor mexicano, imortalizou a imagem do
espelho enterrado em um livro onde conta a formação do mundo hispano-
americano e sua relação com a Espanha. O escritor lembra a história de um
povo originário que enterrava espelhos para servirem de guias para seus
mortos no caminho dos inframundos – reinos sutis e tortuosos. Ele defende que
há todo um universo da cultura latino-americana que está submerso,
invisibilizado, como um espelho da nossa imaginação e da sociedade que foi
enterrado, levado ao mundo invisível dos mortos, porém mortos que ainda
habitam entre nós, em nós. Memórias vivas e presentes que atravessam nossa
realidade, são parte dela, mas são tratadas como inexistentes. Espelhos vivos
e enterrados que nos cercam, suas presenças.
Aníbal Quijano também utiliza a imagem do espelho para dizer que os
latino-americanos se olham e se reconhecem a partir de um espelho distorcido,
que só mostra parte do que são. Uma fração importante é negada e escondida,
tratada como se não existisse e que não reconhecemos como nossa. Parte
invisibilizada e viva, tratada como fantasma de nós mesmos. Somo, assim, um
mundo habitado pelos nossos próprios fantasmas, espíritos daqueles que não
são reconhecidos como existentes em nossa consciência histórica. Há uma
intencional invisibilização dos modos de vida, do pensamento, dos afetos, da
memória e das formas de conhecimento próprios dos povos latino-americanos.
Ou, como diria Martin-Baró, das mayorías explotadas de todo o continente.
Esse processo de invisibilizar a realidade social da maioria da população
brasileira e latino-americana está vigente nos mais diversos aspectos da vida
social: na produção material, nos artefatos da cultura, nos costumes, na
espiritualidade, nos modelos de comunicação e transmissão de valores, nos
afetos, na memória, na política e nas artes. Apesar de sermos essa articulação
entre diferentes registros histórico-culturais, há um processo que
constantemente põe nas sombras nossas matrizes culturais indígenas,
africanas e árabes. Em cada distinto aspecto da realidade social, é possível
28
Colonialidade do saber
A conhecida Controvérsia de Valladolid, ocorrida ente 1550 e 1551 no
colégio San Gregorio, na cidade espanhola de Valladolid, expressa com nitidez
um dos fundamentos centrais da colonialidade do saber. Debate entre os
frades dominicanos Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, a
controvérsia foi uma longa disputa filosófico-religiosa sobre se os indígenas da
América eram ou não dotados de alma. Las Casas, indignado com a barbárie
da colonização, defendia que os indígenas eram dotados de alma e, portanto,
6
“Escovar a história a contrapelo” é realizar a história dos vencidos, legitimar a história feita por
baixo, a história invisibilizada nas versões oficiais, cristalizada pelos vencedores. Michael Löwy,
em um texto dedicado a essa metáfora de Benjamin, escreve: “Escovar a história a contrapelo
é recusar toda identificação com os heróis oficiais do V centenário, os conquistadores
espanhóis, os poderosos europeus que levaram a religião, a cultura e a civilização aos índios
‘selvagens’. Em consequência, é preciso considerar cada monumento da cultura colonial – a
catedral do México, o palácio de Cortez em Cuernavaca – como um documento da barbárie,
um produto da guerra, da exterminação, de uma opressão impiedosa. Ao examinar a história
do ponto de vista dos vencidos, das diversas culturas indígenas das Américas eliminadas pelos
vencedores, é preciso considerar os acontecimentos culturais do passado tendo em conta os
perigos que ameaçam os descendentes dos escravos índios e negros da época colonial,
particularmente o risco representado pelos dirigentes imperialistas atuais que substituíram o
império espanhol no cortejo triunfal” (LÖWY, 2010-2011, p. 26).
29
Outros pensamentos
O processo de embranquecimento e invisibilidade na ciência é muito
presente na psicologia. Apesar de a multiplicidade histórico–cultural latino-
americana ser matéria viva de nossa subjetividade, uma fração importante
desse conjunto de conhecimentos é invisibilizada, ignorada e desconsiderada
em seu papel determinante da subjetividade dos povos do continente.
Efeito da profunda e arraigada colonização de nossa ciência e de nossa
prática profissional, o conhecimento produzido pela psicologia brasileira é
apartado do conhecimento do povo brasileiro e também do conhecimento dos
outros povos da América Latina.
Para que a psicologia seja um saber que expresse a realidade social, é
preciso formular o conhecimento a partir de uma construção em que estejam
presentes a memória histórica, o cotidiano de reprodução social e a resistência
popular. O conhecimento acumulado pelos povos do continente contém
aspectos éticos, políticos, psicossociais, técnicos e filosóficos extremamente
variados. Detentoras de saberes muitas vezes milenares, as tradições desses
povos não raro detém uma gama de perspectivas e técnicas de cuidado de si e
do mundo que a psicologia convencional não conhece. Esses saberes
invisibilizados pelo eurocentrismo são parte da subjetividade da população
brasileira e devem participar diretamente da construção de uma psicologia
descolonizada para a América Latina. Temas como a filosofia indígena e
africana têm sido cada dia mais trabalhados, assim como os mais distintos
aspectos socioculturais, econômicos, políticos e históricos dessas populações.
Uma psicologia descolonizada não é possível sem o reconhecimento do
valor e da legitimidade dessas técnicas e perspectivas sobre o que é a
realidade. Filosofias e ciências dos povos indígenas Nahuatl (México), Tiké
(Guatemala), Mapuche (Chile), Aymara (Bolívia), Quéchua (Peru), Tupi (Brasil)
são apenas alguns exemplos. E também o sistema ontológico banto, de origem
africana, e a miríade fabulosa da produção técnica, política e ético-filosófica
das populações miscigenadas das Américas, com destaque para seus
aspectos sociorreligiosos, em que foi guardada e mantida parte importante de
suas tradições. Todo o saber gestado e nutrido nos processos de luta e
32
Complexo de vira-lata
33
8
Em algumas oportunidades em que me encontrei com a feminista comunitária de Abya Yala Julieta
Paredes, pude observá-la fazendo uma metáfora teatral para indicar o jogo ideológico realizado pelo
pensamento eurocêntrico. Colocando dois lenços em paralelo, Julieta apresenta cada um como uma
história: a história europeia e a história indígena. Ambas andaram paralelas e sem se tocar. Com a
colonialidade, cria-se uma falsa narrativa de uma história única. Desse momento em diante o lenço
indígena é amassado e colocado em um ponto anterior (passado) ao mundo presente. Cria-se assim a
ideia que o mundo indígena, seu pensamento e suas formas de vida são pertencentes ao “passado”. E,
se está circunscrito ao passado, isso significa que não há presente nem futuro. Ou seja, cria-se uma
narrativa em que é forjado um imaginário no qual os indígenas são inexistentes ou são a mera presença
de um passado, daí a ideia de atraso. Lógica parecida é utilizada no campo dos Estados-nação, em que
os países da América Latina são “atrasados” e, por decorrência, o pensamento produzido pelos latino-
americanos também é.
35
Pensamento indisciplinado
Um último aspecto importante para a construção de uma psicologia
descolonizada é a necessária conversa com outras formas e disciplinas de
conhecimento. A psicologia pode se construir como um pensamento
indisciplinado, ferino na desarticulação dos saberes em “caixinhas”. Ardil difícil
de ser superado, a colonialidade do saber opera um esquartejamento do
conhecimento em disciplinas que tendem a estar isoladas uma das outras.
Cada um no seu quadrado, como diz o refrão de uma música que virou ditado
popular. É a forma da divisão sociotécnica do trabalho transposta ao universo
do conhecimento. Ciente disso, uma psicologia crítica e emancipadora sabe
36
Terra não era o centro do universo; Darwin deu outro ao mostrar que somos
uma espécie em milhares, que seguem a evolução natural; e Freud teria dado
outro ainda ao afirmar que não somos donos de nossa própria consciência. O
pensamento da descolonização pede outro importante deslocamento: não é só
o ser humano que tem a primazia de criar conhecimento e transformação no
mundo:
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos
Manoel de Barros
outros mundos
Além do reconhecimento de outras formas de visão e de outros saberes
sobre o mundo, uma psicologia descolonizada deve nutrir uma relação muito
próxima, intrínseca, com movimentos organizados da sociedade. E, em
especial com aqueles que defendem um mundo para além do capital. Desde
abajo, desde adentro y desde la izquierda, como ouvi uma vez em Chiapas, no
México. Complementaria ainda dizendo desde las estrellas.
A ideia de uma rebelião vinda das estrelas encontra eco na tradição
latino-americana de luta social. Desde o muralismo latino-americano, onde são
representados seres míticos em meio a fatos históricos conhecidos, até
canções revolucionárias, a arte indica essa presença “das estrelas” na luta
social do continente. Não é à toa que o termo cósmico também é muito
presente nas ciências sociais e na construção identitária dos coletivos
revolucionários. Mais recentemente, os zapatistas retomaram essa tradição ao
realizar por duas vezes os Encuentros Intergalácticos. Fazendo uma alusão
irônica às Internacionais Comunistas, os encontros de militantes de todo o
mundo em solo zapatista indicam a possibilidade de uma luta anticapitalista
que, para além de ideia clássica de um internacionalismo comunista, crie uma
relação cósmica entre os povos da Terra e talvez outros povos – sejam míticos,
sobrenaturais ou de outros planetas – para a construção coletiva de “um
mundo onde caibam outros mundos”. Algo como um socialismo cósmico, como
ouvi no Peru certa vez. Um dos grandes nomes da canção cubana, o cantautor
Silvio Rodríguez, em seu clássico Canción del Elegido, conta a história de um
guerrilheiro interestelar – animal de galáxias – que viaja de planeta em planeta
“matando canalhas com seu canhão de futuro”. Impossível não lembrar
também dos povos maias em sua relação matemático-mítica hipersofisticada
com o cosmos. E claro, da raza cósmica de José Vasconcelos, uma das
maiores representações da união de povos distintos no continente latino-
americano. Definitivamente, a questão cósmica e sua relação com a história e
a luta dos povos latino-americanos não é algo a ser circunscrito ao campo da
mera imaginação desqualificada e fantasiosa.
Só é possível pensar em uma psicologia descolonizada se houver um
real compromisso com a luta das mayorías explotadas.
39
Outros mundos
Pensar em uma psicologia dos povos latino-americanos requer
necessariamente a presença de outro mundo. Como ensina o mestre maior
Paulo Freire, um dos mais perversos ardis do neoliberalismo é seu cinismo
travestido de ideologia fatalista, que desdenha o desejo humano de sonho e
utopia. Andando na Bolívia, no Peru e no Equador, pude ver como tem sido
forjado um pensamento de esquerda desde Abya Yala, de la descolonización,
desde abajo e que defende a despatriarcalización, e o bien vivir e tantas
utopias outras, inimagináveis, Um pensamento denso, acúmulo de séculos de
meditação, conhecimento e luta social. Pensamento de outro mundo.
9
Em 2015 o movimento zapatista organizou o seminário El pensamiento crítico frente a la hidra
capitalista. Militantes do mundo todo foram convidados a discutir com os zapatistas a partir
dessa metáfora do modo de produção capitalista transfigurado na mítica hidra – figura de várias
cabeças, que se regeneram quando cortadas; no lugar da que foi arrancada, nascem outras
duas. Na apresentação do encontro, escrevem os zapatistas: “Não adianta somente entender o
que estamos vendo. Precisamos entender quem está vendo. Porque nós também somos
múltiplos. As mudanças que vemos fora também acontecem dentro. E, para entender quem
olha e quem está sendo olhado, precisamos de conceitos. E para saber se esses conceitos
serão úteis, necessitamos do pensamento crítico”.
40
línguas dos nossos mil povos e que se preocupe em ser universal, para todas e
todos. E que veja com outras visões, tateie, acaricie e incida desde muitos
lugares e de distintas formas.
Psicologia popular que nos habite um outro sentido histórico. Que seja
uma das guias nesse caminho, terceira margem do rio. Outro mundo.
Ojalá se pueda.
Salve as folha.
É nóis.
Flores no mar.
Desde outra psicologia. As estrela.
43
II
A DUPLA CONSCIÊNCIA LATINO-
AMERICANA: CONTRIBUIÇÕES
PARA UMA PSICOLOGIA
DESCOLONIZADA
A história do território que hoje chamamos de América Latina se
estabelece a partir do século XVI como um processo de convulsão social
extrema e de magnitude continental. Com objetivos explícitos de dominação e
expansão do poder dos reinados existentes na Europa, esse processo se
caracterizou pelo extermínio de fração importante das diferentes populações
originárias do continente e pela usurpação das riquezas de seu território como
forma de produzir acumulação de capital.
Para a execução desse empreendimento colossal, também foram
escravizados e trazidos à força milhões de seres humanos que viviam com
seus povos no continente africano. A esse processo de expropriação,
exploração e máxima violência desde sua gênese – portanto violência
estrutural – chamamos colonização.
Embora extremamente heterogênea em suas formas de territorialização
e em seus períodos de penetração no continente, é possível afirmar que a
colonização se desenvolveu a partir de uma conflito social fundante:
estabeleceu dois mundos, duas perspectivas em confronto no interior de uma
mesma realidade. Essa cisão e esse tensionamento estrutural entre o mundo
dos colonizadores e o dos colonizados produziu uma dupla consciência
estrutural na formação do continente. A dupla consciência histórica latino-
americana é a base fundamental, o tensionamento fundante da formação
identitária dos povos latino-americanos, de sua subjetividade. Contradição que
se origina da violência estrutural advinda do processo de colonização e que é
44
1. O início
Marco inicial do confronto que principia a modernidade, a fundação da
América a partir do século XVI inaugura o ciclo de um novo mundo que emerge
como resultado das Grandes Navegações, do confronto entre mundos e da
acumulação gerada nesse processo. A condição desse acontecimento histórico
e sua radicalidade na transformação dos processos de geração e reprodução
social determinaram o caminho de toda a chamada civilização ocidental, assim
como da história mundial desse momento em diante.
No entanto, esse acontecimento que dá origem ao empreendimento
colonizador não se realiza como confronto mecânico de dois mundos
estanques, o mundo “indígena” e “negro” e o mundo “europeu” 11. O surgimento
da América é um fenômeno histórico complexo, articulador e desarticulador de
diversas estruturas antigas e recém-emergidas, onde os efeitos do genocídio,
da doença e da catástrofe generalizada se configuraram como efeitos comuns
do processo colonizador. A desorganização generalizada caracterizou o
empreendimento colonial desde seu início. Como explica Serge Gruzinsky:
11
As identidades “indígenas”, “negros” e “europeus” são criações posteriores à época da colonização.
Naquele momento, não havia nenhuma ideia de homogeneidade que reunisse a diversidade desses
grupos em uma única identidade.
46
2. Colonialidade do poder
A partir do século XVI, com a sedimentação do empreendimento
colonizador, emerge um novo padrão de controle e de organização das
relações sociais, a colonialidade do poder (QUIJANO, 2000). Ela é o modo
fundamental da matriz de pensamento e das práticas sociais próprias do
mundo do colonizador.
A colonialidade do poder é uma estrutura dinâmica formada a partir da
articulação de vários eixos fundamentais: o racialismo, a dominação de gênero,
47
O racialismo
Desenvolvida principalmente a partir de Descartes e de sua separação
radical ente alma-corpo, sujeito-objeto, humano-natureza, é a partir da matriz
eurocêntrica de pensamento que se articula a ideia de raça. Sua origem remete
a mais de cinco mil anos atrás e tem como fundamento a ideia de que traços
fenotípicos justificam as diferenças entre povos em conflito por território.
É essa relação entre biologia e traços culturais que, ao ser incorporada
ao pensamento científico do século XIX, dá origem ao racismo enquanto teoria
científica, com a obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de
Arthur Gobineau, publicado em 1855.
A noção da existência de raça enquanto atributo responsável por uma
classificação social está também presente no chamado etnicismo. Embora
menos relacionada diretamente à estrutura biológica, a etnicidade compartilha
– em seu surgimento – a ideia de classificação hierárquica da humanidade de
acordo com critérios evolucionistas etnocêntricos europeus. Do grego ethnos, o
prefixo etno designa local-condição de origem (crenças, valores, mitos,
símbolos, ritos, língua, códigos, práticas). O teórico da eugenia Georges
Vacher de Lapouge criou a palavra etnia para designar sociedades distintas da
ocidental e que partilhavam a mesma língua. Considerando a sociedade
europeia como topo da evolução civilizatória, adaptou o pensamento próprio do
racismo para grupos socioculturais. O racismo e o etnicismo agem alojando
povos não brancos no lugar histórico de atraso, de pré-modernidade e,
portanto, com incapacidade intelectual e inferioridade física e psíquica.
Dessa forma, as identificações étnico-raciais de índios e negros são
criadas e articuladas ao mundo do trabalho e da produção de excedentes
próprio da lógica colonial. Há também uma evidente produção de valores
simbólicos e intersubjetivos que operam de modo muito sofisticado, justificando
essa divisão hierárquica e a violência e exploração do processo colonial contra
48
As relações de gênero
Juntamente com a concepção de raça, a modernidade colonial
capitalista se estruturou a partir de relações específicas de hierarquia entre
gêneros. Esse conjunto de relações configurou as relações de gênero,
formando um patriarcado colonial moderno e uma a colonialidade de gênero
(SEGATO, 2012).
A modalidade específica dessa articulação da colonialidade de gênero na
América Latina seria, nas palavras da pensadora e militante boliviana Julieta
Paredes, o “entroncamento patriarcal” – uma articulação entre o patriarcado
ocidental e o patriarcado existente no mundo pré-colonial. Explica essa
escritora:
O controle do trabalho
Em suma, no interior do empreendimento colonial, se introduz na América a
hierarquização sociocultural com base em traços fenotípicos e de gênero e na
colonização da natureza. Nascido inicialmente para dar um sentido de
dominação “natural” à relação desigual entre os colonizadores ibéricos e os
“índios”, o padrão racial se expande por todo o globo, estabelecendo uma
distribuição geográfica do poder com base na ideia de raça e de gênero. No
caso específico da América, a racialização da população criará uma hierarquia
que integra a diversidade da população mestiça – e o processo de mestiçagem
– em uma divisão racial do trabalho. Como explica Quijano:
A epistemologia eurocêntrica
Em conjunto com o racialismo, a relação de gênero, a colonização da
natureza e o controle do trabalho, articula-se um modo de pensamento
específico, responsável pela produção intersubjetiva dos valores da
colonialidade do poder: a razão eurocêntrica. Com base na cisão dualista
própria do cartesianismo e do evolucionismo, a epistemologia eurocêntrica
estrutura hierarquicamente o universo cultural e de valores das populações do
continente latino-americano. Desse modo, imagens, representações e saberes
próprios dos povos submetidos à colonialidade do poder são subsumidos,
invisibilizados e exterminados, segundo a estrutura de exploração que ancora
todo o sistema de relações sociais no capitalismo mundial. Para além de uma
imposição de valores, essa relação é iminentemente intersubjetiva, ou seja,
passa pela própria autorrepresentação e imagem de si mesmo das populações
colonizadas, assim como de suas formas próprias de conhecimento. Afirma
Quijano:
53
3. A matriz de pensamento do
colonizado: a mestiçagem
descolonial crítica
No entanto, seguindo a noção de modernidade saturada de
contradições, podemos afirmar que, simultaneamente ao conjunto de
ordenamentos hierárquicos próprios da colonialidade do poder e seus eixos
estruturadores, se desenvolvem modos de existência críticos ao padrão de
obediência ao sistema colonial mercantil capitalista. Esse conjunto de
experiências críticas não se guia por um sistema hierárquico pré-determinado e
54
A modernidade alternativa
Como vimos, o sistema do mundo colonial moderno capitalista surgido no
século XVI se realizou enquanto um processo estruturado em torno da
colonialidade do poder. Porém, a modernidade viu nascer também, intrínseca a
esse processo de modernização gradativa das relações sociais, imbricada nele,
a consciência crítica a esse projeto. Se a colonialidade do poder se configurava
como o sistema vertebral da dominação moderna colonial, junto a ela se
desenvolvia um nexo alternativo às relações sociais do continente, uma
modernidade alternativa. Nexo que resiste porque duvida do realismo que
naturaliza as relações de dominação – gênero, raça, classe, relação com a
natureza – e de sua intersubjetividade correspondente, a racionalidade
eurocêntrica. A modernidade colonial mercantil capitalista se configura pela
colonialidade do poder, de um lado, e por sua consciência crítica, de outro.
Como explica José de Sousa Martins (2000, p.18): “A modernidade só o é
quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a consciência crítica do
moderno”.
Essa tensão constitutiva intrínseca à totalidade moderna realiza,
portanto, conforme esse autor, a “luminosidade de sua sombra”, que está para
além do projeto de conquista e unificação em torno da colonialidade do poder.
Assim, no campo histórico, juntamente com o projeto impulsionado pela cruz e
a espada, pelas formações nacionais europeias e pelo racionalismo iluminista,
55
Essa outra mestiçagem proposta por Rivera não se refere somente a uma
questão circunscrita ao debate sobre nossos povos e sua multiculturalidade. Ao
descolonizar a mestiçagem e trazer à tona a diversidade, Silvia defende que as
múltiplas diferenças culturais possam afirmar suas histórias e suas lutas. O ch’ixi é
uma matriz de descolonização não somente da mestiçagem como sentido étnico-
racial; é também uma proposta ético-política concreta de construção de uma
sociedade descolonizada, que enfrenta a colonialidade do poder. É uma mestiçagem
descolonial crítica:
O pensamento descolonizador que nos permitirá construir uma Bolívia
renovada, genuinamente multicultural e descolonizada, surge da afirmação de
que somos bilíngues, misturados e ch’ixi. E de que isso se projeta como
cultura, teoria, epistemologia, política de estado e também como definição nova
de bem-estar e desenvolvimento [...]. Construir nossa própria ciência – em um
diálogo entre nós mesmos –, dialogar com a ciência dos países vizinhos,
afirmar nossos laços com as correntes teóricas da Ásia e África e enfrentar os
projetos hegemônicos do norte com a renovada forças de nossa convicção
ancestral (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 73).
O ethos barroco
58
Libertação
A psicologia popular latino-americana deve ser construída com base e
em conjunto com saberes psicológicos – e outros – que foram sendo
desenvolvidos ao longo da história latino-americana. Nesse sentido, é possível
afirmar que ela encontra na Psicologia da Libertação sua principal interlocutora.
Mais que isso, a psicologia popular latino-americana participa diretamente do
legado constituído pela Psicologia da Libertação no continente.
A partir da década de 1960, sob o impulso da Revolução Cubana, surge
um conjunto de pensadores que serão responsáveis pelo surgimento do
pensamento da Libertação, corrente central do pensamento latino-americano
do século XX, que remete diretamente às lutas anti-imperialistas e de
63
Descolonização
Entendemos que o pensamento da descolonização que tem sido
debatido na América Latina, principalmente a partir do ano 2000, tem estreita
vinculação com a categoria da Libertação. O termo descolonização passa a ser
conhecido nos anos 60 a partir da obra do psiquiatra e ensaísta martinicano
Frantz Fanon, que dedicou a vida à luta anticolonial dos países africanos. Em
sua obra, Fanon faz uma acurada análise dos processos subjetivos que
envolvem a condição colonial, tanto do colonizador como do colonizado. Se na
América do século XIX o termo libertação deu contorno às lutas de
independência, a partir do século XX essa categoria participa diretamente da
64
Subversão da colonialidade
65
gerando assim uma memória de resistência que possa apoiar projetos coletivos
de futuro.
É tarefa da psicologia problematizar a realidade presente através da
desconstrução histórica de padrões coloniais presentes nas diferentes
dimensões da realidade social, padrões que naturalizam e hierarquizam
relações de dominação. A psicologia deve desconstruir essa naturalização e
explicitar o quanto a realidade social é um espaço saturado de contradições.
Para tal, o psicólogo deve potencializar o conjunto de saberes, visões de
mundo e experiências acumuladas que formam a memória histórica enquanto
realidade viva.
É penetrando na complexa malha de significações da realidade e de
suas construções histórico-culturais que a psicologia pode oferecer subsídios
para que as diferentes populações tenham possibilidade de articular o conjunto
de saberes, princípios éticos, mundo simbólico-imaginário e conhecimentos
ancestrais em uma memória crítica que possa se colocar como contraponto à
dominação colonial.
Nesse sentido, ocupa lugar privilegiado o conjunto de saberes ancestrais
das populações. Se a colonialidade do poder inferioriza e procura exterminar os
valores e práticas socioculturais próprias das populações negras, indígenas e
demais identidades mestiças, é dever de uma psicologia popular latino-
americana legitimar esses saberes e contribuir em sua organização, de modo a
se realizar num corpo de conhecimentos que se oriente para a emancipação
dessas populações.
Nesse conjunto de saberes populares e tradicionais, o campo da religião
e da espiritualidade é especialmente vigoroso e pleno de memória ancestral.
Torna-se imperativo dar legitimidade a tais saberes, pois são expressão
inequívoca da identidade das populações, de suas formas de resistência e da
construção ético-política de sua visão de mundo. Do mesmo modo, é preciso
contribuir para o fim de toda intolerância religiosa. Instrumento da barbárie
colonial, a intolerância é abertamente uma prática de epistemícidio. É uma das
formas mais agudas de controle e sujeição – de colonização, portanto – das
populações do continente.
68
Conclusão <Arte, por favor, aplicar o mesmo peso dos intertítulos numerados
III
NOS CAMINHOS DA DUPLA
CONSCIÊNCIA: SOCIALISMO INDO-
AMERICANO, LIBERTAÇÃO E
DESCOLONIZAÇÃO NA AMÉRICA
LATINA
(Manoel de Barros)
períodos e civilizações.
13
Os principais autores da antropologia clássica são: Lewis Henri Morgan, autor de A
sociedade antiga (1877); Edward Burnett Tylor, autor de Primitive culture (1871); James Frazer,
autor da obra em doze volumes O ramo de ouro (1890). Para saber mais sobre a antropologia
clássica, ver CASTRO (2005).
14
Os dois principais autores da história das civilizações do início do século XX são Oswald
Spengler, autor de O declínio do Ocidente (1918) e Arnold Joseph Toynbee, autor de Estudo
da história, dividido em doze volumes, escritos entre 1934 e 1961.
15
Ver LANDER (org., 2000) e SANTOS e MENESES, org., 2010).
16
Para Dussel, ao realojar esses grandes períodos, nos colocamos a necessidade de repensar
todo o caminho filosófico do ocidente, sendo necessária uma nova leitura da história da filosofia
mundial.
17
Civilizações egípcia, mesopotâmica, do rio Indo, do rio Amarelo, asteca, maia e inca
(DUSSEL, 1997, p. 80).
72
A maioria dos historiadores tende hoje a admitir que somente com os gregos
começam a audácia e a aventura expressas numa teoria. [...] Essa
mentalidade, porém, resulta de um longo processo de racionalização da
cultura, acelerado a partir da demolição da antiga civilização micênica. A partir
daí, a convergência de vários fatores – econômicos, sociais, políticos e
geográficos – permite a eclosão do “milagre grego”, que teve na ciência teórica
18
Como se verá, a noção de dupla racionalidade grega será o ponto de início do que chamo de
dupla consciência latino-americana. É importante frisar que esse percurso traz consigo um
problema, qual seja, inclui todo o conjunto de memórias, conhecimentos e processos históricos
dos povos latino-americanos em uma linha de tempo originada na Grécia e que vai absorvendo
os diferentes percursos dos povos não europeus nesse caminho. Ou seja, é uma narrativa
organizada a partir de uma matriz eurocêntrica. Trata-se de uma tarefa de grande
complexidade, que ainda está por ser realizada.
73
19
Seguindo a noção de maravilhoso defendida pelo escritor cubano Alejo Carpentier (ver o item O
realismo maravilhoso), em suas formulações sobre a realidade da América inteira, os deuses não
humanos nem de longe sucumbiram nesse período da história grega. Seres, lendas e histórias em que o
humano não era o senhor absoluto das vontades que regem o mundo foram mantidos na memória
ancestral dos povos europeus, atravessaram os oceanos e vieram compor, junto aos mitos e narrativas
dos povos originários e dos povos vindos de África, um novo conjunto de mitologias e explicações de
mundo. É fruto desse diálogo entre expressões do maravilhoso – sua mitopoética – parte significativa do
vastíssimo e múltiplo imaginário das culturas populares, da religiosidade e espiritualidade dos povos
latino-americanos.
.
74
profunda. O rio, sempre diferente (formado por águas diversas) é o mesmo rio.
Ou seja, o rio é sempre o mesmo e, concomitantemente, outro rio.
Para Heráclito, a luta dos contrários é aquilo que subjaz no fundo da
realidade. O aparente linear e causal é habitado por essa contradição profunda
que se manifesta enquanto alternância de um estado a outro em uma dialética
primordial.
Essa distinção fundante da racionalidade grega acompanha toda a
filosofia ocidental. Com a filosofia pré-socrática e sua dupla orientação, o
pensamento ocidental não é mais exclusivamente mitopoético 20. A partir dos
pré-socráticos, surge a indagação acerca de princípios abstratos que originam
o cosmos. É pela palavra racional que a verdade também pode ser alcançada.
20
A partir desse momento, emerge a possibilidade de uma razão desencantada, regida por uma filosofia
na qual o ser humano habita o centro e faz de tudo seu domínio. Porém, é preciso indicar que há
também uma razão forjada pelo maravilhoso, em que o ser humano é mais um dos seres habitantes do
mundo. Esse sentipensar o mundo em sua versão maravilhosa – encantada – não é, portanto, um modo
anterior ou pré-racional. É um modo de racionalidade, uma racionalidade maravilhosa, uma forma de
apreensão-contato-práxis que é forjada a partir também dessa dimensão mitopoética. Porém, essa
razão maravilhosa, mitopoética, não é admitida, visibilizada como uma possibilidade de razão. Pelo
contrário, é invisibilizada e diminuída como algo falso, produto da mera imaginação, da fantasia, da
ausência de rigor. Descolonizar nossa razão seria, portanto, dar força para esse modo de apreensão do
real. No embate das forças, no confronto entre essa dupla racionalidade em cada um de nós,
descolonizar seria dar força para o lado da razão encantada, maravilhosa.
76
2. O empreendimento colonizador:
conquista, caos e mestiçagem
22
Compartilhamos aqui da concepção de Dussel, entre outros (ver LANDER, org., 2000), para
quem a modernidade se inicia em 1492. Segundo Dussel: “Propomos uma segunda visão da
Modernidade, num sentido mundial, e consistiria em definir como determinação fundamental do
mundo moderno o fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) centro da
História Mundial” (DUSSEL in: LANDER, 2000, p. 24).
23
A primeira aparição do termo dupla consciência é encontrada nos trabalhos de Sigmund
Freud e Josef Breuer sobre a histeria, no final do século XIX. Para esses estudiosos, o
fenômeno da histeria se caracterizaria por uma dissociação da consciência, que ficaria dividida
em duas partes. A partir desses estudos, é desenvolvida a noção de inconsciente. Outra
referência fundamental é o psicólogo e escritor estadunidense W. E. B. Du Bois. Em sua obra
As almas da gente negra, ele analisa como o sujeito negro afro-americano vive uma cisão em
sua identidade. De um lado, ele se compreende a partir do olhar racializado e hierárquico. De
outro, entende sua condição a partir das promessas modernas de uma sociedade igualitária em
sua heterogeneidade. Assim como o pensador peruano José Carlos Mariátegui, que será
abordado detidamente mais adiante. Du Bois também usa a metáfora das “duas almas” . Essa
ideia da identidade dividida entre consciência do colonizador e do colonizado será abordada
ainda por Frantz Fanon, ao longo de toda a sua obra e militância anticolonial na África. Na
América Latina, é conhecido o escritor José María Arguedas, que explicitou o caso da dupla
consciência peruana, país conhecido pela sua profunda cisão. Outro autor que utiliza o termo é
Walter Mignolo, para quem a dupla consciência é “uma consequência da colonialidade do
poder e a manifestação de subjetividades forjadas na diferença colonial” (MIGNOLO, 2005),
p.40). De maneira geral, a dupla consciência é um dos centros irradiadores da discussão sobre
mestiçagem e originalidade da filosofia-cultura latino-americana. Por fim, em minha dissertação
de mestrado (GONÇALVES, 2008) foi trabalhada a categoria da dupla consciência social a
partir das ideias de José de Sousa Martins (2003), que afirma a cisão entre modernidade e
tradição presente na consciência moderna brasileira.
80
O Novo Mundo
Em 1972 foi publicado o livro As cidades invisíveis, do italiano Ítalo
Calvino, que conta a história de uma grande viagem, a partir de descrições e
diálogos entre o navegante veneziano Marco Polo e o imperador Kublai Khan.
No relato fantástico de Calvino, o objetivo de Marco Polo era descrever a
Kublai Khan os detalhes de seu enorme império, que incluía o atual território da
China, o Tibete, a Sibéria e o Afeganistão,
A estrutura do livro – que faz clara alusão às Mil e uma noites – é
dividida em cinquenta e cinco descrições de cidades pertencentes ao Império
de Khan, todas com nomes femininos. As cidades invisíveis conta como, em
um mesmo empreendimento, se combinam o ímpeto de dominação de Kublai
Khan e o processo de descoberta, de encontro e de maravilhamento que
envolve esse empreendimento. Na narrativa de Calvino se tensionam e se
enamoram o espírito de domínio, violência e extermínio próprios dos projetos
imperiais e sua face complementar, sua face invisibilizada, de expressão da
vida enquanto uma erótica, ou seja, tensão desejante produzida no seio do
mundo.
Em um trecho que descreve o diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan,
Calvino desvenda essa dinâmica própria do movimento da conquista, essa
dialética da conquista como domínio e/ou persuasão. Escreve ele:
Com base nesse novo sentido para a sua existência (o sentido histórico),
surge o princípio do jus gentium ou o “direito das gentes”. Conjunto de normas
que procura ordenar a convivência entre os diferentes grupos humanos, o jus
gentium se baseia no princípio de que as comunidades humanas são capazes
85
A mestiçagem
Forjados a partir da memória histórica milenar da diversidade de povos
que habitavam o continente americano, os pensamentos filosóficos desses
grupos24 se combinaram de maneira indefinida e das mais diferentes formas às
concepções filosóficas originadas na Europa. Desse processo de tradução,
realizado sempre em um jogo de forças em que esteve presente a marca da
dominação – a colonialidade –, criou-se o pensamento misturado, pensamento
mestiço que caracteriza o modo de ser do continente latino-americano.
24
Sobre o pensamento filosófico dos povos ameríndios, ver DUSSEL (2009). Nessa obra há um
conjunto de artigos de especialistas em diferentes filosofias indígenas. Ver também VIVEIROS
DE CASTRO (2002), GALINDO (1982) e ESTERMANN (2006).
87
Colonialidade do poder
Com a sedimentação do empreendimento colonizador, a partir do século
XVII fortaleceu-se, a dinâmica fundamental da colonialidade do poder e de
seus dois eixos fundamentais, como explica Quijano:
27
Para saber sobre a teoria do sistema mundo, ver WALLERSTEIN, 2005.
94
O Barroco
A colonialidade do poder se configurava como a coluna vertebral da
dominação colonial. Porém, junto a ela, de forma invertebrada (IANNI, 2002, p.
2), porque muita vezes incapturável pela percepção imediata, se desenvolvia
um nexo alternativo às relações sociais do continente. Nesse sentido, o
moderno é também a crítica ao moderno, como explica José de Souza Martins:
“A modernidade só o é quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a
consciência crítica do moderno; o moderno situado, objeto da consciência e
ponderação” (MARTINS, 2000).
Essa tensão intrínseca à totalidade moderna realiza, nas palavras desse
autor, a “luminosidade de sua sombra”, que está para além do projeto de
conquista e unificação em torno da colonialidade do poder. Assim,
desenvolveram-se dinâmicas histórico-culturais descolonizadoras que se
tensionaram com o projeto hegemônico da modernidade, formando uma dupla
consciência da modernidade.
Uma das principais formas de contraposição ao evolucionismo histórico
da modernidade foi o Barroco. Expressão da contradição entre a ideia da
unidade em torno de um Deus transcendente e a ideia de um mundo natural
regido por leis próprias, o Barroco afirma a tensão presente no movimento do
real. O Barroco “desnaturaliza” esse trajeto metafísico de continuidade
harmônica entre o homem divino e o homem natural. Como apresenta Walter
Benjamin (1984), essa ambivalência do Barroco se expressa em torno da díade
luto--melancolia, duplo sentimento que expressa a afetividade do homem que
perdeu o destino guiado por Deus e vive a degradação do homem meramente
natural.
96
A mestiçagem cultural
Outro aspecto que evidencia o ethos barroco enquanto modo próprio e
afirmação crítica da identidade americana são as imagens e histórias
100
30
Poema escrito para o escritor brasileiro Alceu de Amoroso Lima, de quem o poeta era grande amigo.
106
Infância
José Carlos Mariátegui nasceu em 1894 na cidade de Moquegua, no sul
do Peru, já próximo à fronteira com o Chile. Filho da costureira e professora
Maria Amalia La Chira Ballejos e órfão de pai, José Carlos e seus dois irmãos
107
foram muito cedo viver na cidade de Huacho, onde sua mãe pôde criá-los com
o apoio da família.
A infância de Mariátegui foi marcada pelo forte convívio com a vida das
populações indígenas campesinas yungas que viviam em Huacho e que
formavam a campina, uma forma de organização coletiva dos campesinos
indígenas da região. Esse convívio marcou a memória de Mariátegui. Outras
experiências significativas foram a grande religiosidade popular da cidade e o
alto nível educativo da sociedade local. Matriculado na escola de seu bairro em
1891, um ano mais tarde teve de sair por causa de um acidente no intervalo
das aulas. Ferido por um violento golpe na perna esquerda enquanto brincava
com os colegas, Mariátegui se transferiu com a família para Lima em busca de
tratamento adequado. O isolamento de mais de dois anos influiria fortemente
na tendência autodidata do autor e em sua intensa mística, presente já em
seus primeiros versos, escritos nessa época. Como explica Quijano:
O período europeu
Mariátegui desembarca em Paris em 10 de novembro de 1919 e
encontra um continente em ebulição. O resultado da Primeira Guerra Mundial
era visto e sentido por toda parte, nas cidades destruídas, na alta taxa de
desemprego, nos protestos e na organização proletária, cada dia mais
fortalecida. O fantasma do comunismo rondava a Europa e, em resposta a ele,
sobrevinha o fascismo. No leste do continente, se levantava a Revolução
Russa. Em dezembro desse mesmo ano, Mariátegui parte para a Itália,
influenciado pela presença de amigos e pelo desejo de maior proximidade com
a cultura italiana.
O ambiente italiano naqueles anos de pós-guerra foi reconhecido por
Mariátegui como “um amanhecer”. Dali tirou as impressões e experiências que
alimentaram sua crença de que uma “alma matinal” surgia no horizonte da
humanidade, um novo homem estaria surgindo, tal qual a fênix, após o
definitivo acontecimento da Grande Guerra. Em Roma, onde fixou moradia,
Mariátegui pode absorver toda a riqueza de informações sobre a situação da
luta de classes em diferentes países.
109
O retorno ao Peru
Em 18 de março de 1923, Mariátegui chega de volta a Lima. Após três
anos e meio em solo europeu, era hora de iniciar aquilo que o pensador
chamou de “tarefa americana”: organizar o nascente socialismo peruano.
Os sete anos seguintes foram de intensa atividade para Mariátegui, que
se dedicou com afinco e em várias frentes de trabalho – educação, cultura,
organização política – à tentativa de criar bases para aquilo que ele chamou de
socialismo indo-americano. Esse conjunto de atividades teve como eixo
fundamental a articulação das suas experiências europeias com a realidade do
Peru, sua especificidade. A tensão dialética entre a realidade de duas latitudes
– suas afinidades e distinções – fez com que Mariátegui buscasse integrar as
vanguardas político-culturais da Europa à realidade peruana, em uma nova
ideia de sociedade. Essa sociedade seria feita por um novo homem, e ambos,
alimentados pela alma matinal, um novo sentido histórico ascendente, que
superaria o decadentismo e a ideia da ciência positivista.
Durante o ano de 1923, Mariátegui participa ativamente das
Universidades Populares González Prada, espaço criado e organizado por
trabalhadores e estudantes, que tinha como objetivo oferecer formação à
classe trabalhadora acerca da história, da cultura e de seus direitos.
Esse período de militância junto aos mais diferentes movimentos de
caráter classista faz com que Mariátegui se converta no principal líder de
esquerda do Peru. A intensidade de suas atividades também é responsável
pela fragilização de sua saúde. Em maio de 1924, sua perna é amputada.
Em outubro de 1925, ele criou com seu irmão Julio César a Editora
Minerva, pela qual lançou o livro La escena contemporanea e, em 1926, a
revista Amauta. Essa palavra, de origem quéchua, significa sacerdote, sábio, e
designava as pessoas encarregadas da educação dos jovens incas. Desde
então, Amauta se tornou uma espécie de segundo nome de Mariátegui, e, não
por acaso, sintetiza a natureza do espírito revolucionário do pensador.
A revista Amauta teve 32 números e durou até a morte de Mariátegui.
Caracterizou-se pela amplitude temática e variados estilos, procurando ser um
espaço de divulgação tanto das vanguardas e do pensamento político europeu
como da arte, da cultura e da política do continente latino-americano. A
111
31
No texto Ponto de vista anti-imperialista, Mariátegui afirma que o caminho para o socialismo
na América Latina não passa necessariamente por uma etapa em que haveria um governo
organizado pela burguesia nacional. Essa tese prenuncia muitas das reflexões sobre a
originalidade da realidade latino-americana e está na gênese de linhas de pensamento como a
teoria da dependência e a colonialidade do poder. Já na tese O problema das raças na
América Latina, Mariátegui defende que a noção de raça deve ser interpretada a partir de sua
112
O mariateguismo
Atualmente, embora os estudos sobre a obra do Amauta sejam
numerosos e heterogêneos, pode-se dizer que alguns consensos balizam a
maioria desses estudos, circunscrevendo o que podemos chamar de um
pensamento mariateguiano. A seguir, uma síntese desses consensos.
Ou seja, Mariátegui propõe uma totalidade entre logos e mythos que fere
radicalmente a compreensão do universo na qual os opostos estão separados
em níveis, em dimensões diferentes. Nesse sentido, Mariátegui irá propor uma
alternativa à filosofia idealista do um como princípio.
Confrontando-se a essa proposição, ele afirma uma perspectiva que traz
em sua base a relação entre forças opostas. Ou seja, o Amauta se coloca
contra a cisão e o domínio entre logos e mythos. Para ele, essa duplicidade
não deve se estabelecer segundo a hierarquia da ciência positivista, mas como
combate e luta em um mesmo plano.
Seguindo a noção de dois como totalidade, Mariátegui defende que a
razão científica deve ser confrontada com suas diferentes oposições – mito,
imaginação, poesia, tradição – em uma relação de complementaridade e
tensão entre polaridades extremas, configurando assim uma dialética dos
extremos. Ao indicar uma racionalidade outra ele explicita a existência de uma
dupla consciência no interior da modernidade. Duas possibilidades de razão:
uma cientificista e positiva, um como princípio; outra em diálogo com a
116
32
A ideia de agonia expressa em Unamuno pode ser evidenciada em diferentes trechos de sua
obra. De modo sintético, podemos dizer que a dialética dos extremos se expressa em
Unamuno como afirmação agônica da vida enquanto confronto entre dimensões radicais da
existência, como a vida e a morte: “A vida é luta, e a solidariedade para a vida é luta, se faz na
luta. Não me cansarei de repetir que o que mais nos une, aos homens uns com os outros, são
as nossas discórdias. E o que mais nos une, a cada um consigo mesmo, o que faz a unidade
íntima da nossa vida, são as nossas discórdias íntimas, as contradições interiores das nossas
discórdias. Cada um de nós só se põe em paz consigo mesmo, como Dom Quixote para
morrer” (UNAMUNO, 1952, p. 45). Ou seja, para Unamuno, assim como para o Amauta, é na
discórdia, no movimento de negação e afirmação de opostos que se constitui o conhecimento,
o progresso da história, a vida. Unamuno afirmava em reflexões de caráter teológico aquilo que
Mariátegui levaria para o campo do pensamento crítico.
117
33
Uma das grandes obras que exerceu forte influência para Mariátegui tecer suas reflexões
sobre a luta entre duas civilizações foi O declínio do Ocidente, de Oswald Spengler.
118
Desse artigo em diante, até o fim de sua vida, a temática indígena seria
evocada por Mariátegui, que debateria com as principais correntes ideológicas
que discutiam a questão indígena do país, elaborando, a partir desses debates,
uma original articulação entre tradição e modernidade.
A primeira corrente era o indigenismo. Trata-se de um movimento
ideológico presente em diversos países latino-americanos – especialmente,
Peru e México –, que procura expressar a alteridade identitária instituída na
colônia e desenvolvida na história do ocidente, ressaltando seu papel e lugar
nas formações nacionais. Essa corrente defendia que as comunidades e
tradições indígenas deveriam ser mantidas por meio da intervenção de
interlocutores que promoveriam a integração do índio à sociedade nacional.
A nação é entendida pelos indigenistas como uma ideia absoluta e
essencial, na qual o indígena é o representante concreto, o detentor dessa
nacionalidade intocada. Identificando o indígena como o elo primordial de
origem mítica, essa corrente tende a um romantismo conservador, em que o
índio é visto a partir de uma idealização nostálgica de seu passado originário.
Criticando essa corrente, escreve o Mariátegui:
34
Nesse traço do pensamento mariateguiano, podemos ver claramente um prenúncio da noção
de diálogo de saberes, conhecimentos simétricos e outras proposições vigentes nas Ciências
Sociais contemporâneas, que defendem a horizontalidade e a simetria entre distintas
concepções de mundo e de humanidade.
122
35
Na verdade, o ayllu tem suas origens ainda no período do pré-incanato e sobreviveu à
expansão do Império Inca. Fator fundamental da coesão dos povos andinos, o ayllu está
presente de maneira evidente e central em diversas civilizações que compuseram o complexo
mosaico de povos andinos dos últimos 4 000 anos. “O ayllu foi a célula do Império. Os incas
fizeram a unidade. Inventaram o império; mas não criaram a célula. O Estado jurídico
organizado pelos incas reproduziu, sem dúvida, o Estado natural pré-existente” (MARIÁTEGUI,
2005, p. 93). Para Mariátegui, é essa matriz de organização sociopolítica que deve estar na
base do socialismo indo-americano.
123
36
Foi com a leitura dessa obra que Mariátegui entrou em contato com a então nascente
antropologia. É importante lembrar que a antropologia evolucionista, e com ela a ideia de
“infância” da humanidade, estava em plena vigência.
37
A relação do pensamento de Mariátegui com a simbologia, a cosmologia e os costumes em
geral dos povos andinos é um tema praticamente desconhecido e extremamente rico para ser
estudado. Segundo o professor César Germaná, da Universidad Nacional Mayor de San
Marcos, (em entrevista ao autor realizada em dezembro de 2012, em Lima), a invisibilidade
dessa influência no pensamento do Amauta se deve à própria invisibilidade do mundo indígena
na sociedade peruana. Há, porém, muitos elementos no pensador que podem ser lidos a partir
da influência do “pensamento indígena” na vida dele. Entre esses elementos, destaca-se a forte
presença da vontade no pensamento andino. Também identificada como ânimo ou interesse, é
reconhecida na epistemologia andina a importância da vontade individual na concepção da
realidade (ESTERMAN, 2006). Não é difícil supor que a obra do Amauta, tão nutrida do
elemento individual da vontade e de suas construções subjetivas – que recebem inclusive o
nome de mito –, seja um desdobramento do Peru profundo (hipótese levantada após entrevista
com Sigfredo Chiroque, professor aposentado da Universidad Nacional Mayor de San Marcos,
em 2012).
124
denomina novo sentido histórico para os povos latino-americanos, uma nova utopia a
partir de uma modernidade alternativa e descolonizada.
Tradição heterodoxa
Não é somente a relação não linear entre comunismo incaico e
comunismo moderno que caracteriza o pensamento de Mariátegui sobre a
tradição e a modernidade. Para além do universo indígena, a ideia de tradição
inclui diferentes tempos históricos em um movimento constante de tensão e
diálogo. Entendendo a totalidade social como um todo atravessado por
múltiplas memórias históricas, Mariátegui realoja a tradição e a modernidade
em sua dialética agônica. A tradição deixa de ser considerada algo do passado,
fixo, destinado ao atraso e à folclorização, e a modernidade não está destinada
ao mito do progresso infinito, próprio da ideologia positivista.
De acordo com Mariátegui, os tradicionalistas são aqueles que se
recusam a enxergar na tradição algo além de um passado estacionado e inerte.
Para ele, a tradição é móvel e cambiante, em transformação criativa a partir do
presente. Mariátegui propõe uma tradição múltipla e heterogênea, em que o
movimento dialético imprima constante tensão e afinidades entre diferentes
projetos, memórias e ideologias. É da correlação de forças entre diferentes
projetos e visões de realidade, é na disputa entre diferentes imaginários
sociais, visões de mundo e utopias que vai se estabelecendo a verdade
histórica, em seus diferentes ciclos. Essa percepção da tradição como
“patrimônio e continuidade histórica” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 112) fica evidente
na reflexão do Amauta sobre a tradição nacional peruana e seu movimento de
transformação, sua plasticidade e relação de diferentes tempos históricos.
Para Mariátegui, a tradição entendida como tradicionalismo se restringe
a uma concepção unívoca e unilinear, na qual a história vai se desencadeando
em fatos sucessivos até o presente. O Amauta defende uma tradição múltipla e
em movimento, ou seja, que acolha suas “variadas cristalizações” ao longo do
processo histórico, assim como as relações nascidas dessa pluralidade de
tempos históricos, que permanecem vivos e em transformação.
Na tradição viva e móvel defendida por Mariátegui, o passado é sempre
matéria em ebulição, espaço carregado de sentidos visíveis e invisibilizados,
125
38
Importante lembrar que havia um conjunto de correntes no interior daquilo que aqui
chamamos genericamente de socialismo. A social-democracia, o comunismo e o
anarcossindicalismo são exemplos dessas correntes que participaram diretamente – sendo
incorporadas ou criticadas – da construção mariateguiana.
126
39
´ É preciso atentar para a crítica ferrenha de Mariátegui ao evolucionismo cientificista. Para
ele, a luta final não está circunscrita a um confronto entre capitalismo e comunismo. É preciso ir
contra o evolucionismo presente em ambas as proposições. O socialismo indo-americano seria
também um modo de organização no qual muitas características defendidas pelos comunistas
da época seriam superadas. O projeto civilizatório de Mariátegui confrontava diretamente o
discurso evolucionista presente no comunismo defendido pela Terceira Internacional. É
evidente a influência dessas propostas nas formulações de Aníbal Quijano sobre pensamento
eurocêntrico. Para esse autor, a superação da colonialidade passa necessariamente pela
superação do pensamento eurocêntrico forjado a partir de dois fundamentos filosóficos: o
dualismo e o evolucionismo (QUIJANO, 2000).
127
Neste livro, como em todos outros de sua autoria, Unamuno concebe a vida
como luta, como combate, como agonia. Esta concepção da vida que contém
128
A palavra religião tem um novo valor, um novo sentido. Serve para algo mais
que designar um rito ou uma igreja. Pouco importa que os sovietes escrevam
em seus cartazes de propaganda que a “religião é o ópio do povo”. O
comunismo é essencialmente religioso (MARIÁTEGUI, 2010, p. 250).
O lugar do mito
A superação, no pensamento de Mariátegui, de polaridades tão
extremas como fé e ateísmo ou materialismo e idealismo é possível através da
leitura que o pensador fez da ideia de mito de Georges Sorel. Segundo esse
anarcossindicalista francês, o mito seria ação consciente inspirada por uma
vontade coletiva, por uma cosmologia social capaz de alcançar a profundidade
do eu através do “sonho de uma transformação profunda”.
Para Sorel, a realização desse mito social só seria factível se
conseguíssemos vencer os obstáculos da moral cristã e burguesa. Mariátegui,
munido das reflexões de Sorel, interpreta o mito social como a possibilidade de
preenchimento das mais íntimas aspirações humanas, da transcendência
prometida apenas pelas religiões.
A partir de Sorel, Mariátegui concebe a possibilidade do caráter místico
do socialismo. Porém, assim como a política elevada ao estatuto de religião, de
que fala Unamuno, não está ligada diretamente ao socialismo, o mito soreliano
da revolução social não tem uma conexão com a religião. É Mariátegui quem
aproxima esses conceitos, criando o “caráter místico, religioso e metafísico do
socialismo”. Não é por acaso também que encontramos, tanto em Sorel como
em Unamuno, a ideia de um “eu profundo”, um centro, um “espaço existencial”
somente alcançado pelo sentimento de transcendência Ou seja, a mística
revolucionária de Mariátegui reúne tanto a ideia de religião política de
Unamuno como a ideia de mito revolucionário de Sorel, superando ambas em
uma concepção ainda inédita: a emoção religiosa própria da revolução
socialista.
131
O proletariado tem um mito: a revolução social. Dirige-se para este mito com
uma fé veemente e ativa. [...] A força dos revolucionários não está na sua
ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa,
mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como escrevi
em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa, se desloca do céu para a
terra. Não são divinos, são humanos, são sociáveis (MARIÁTEGUI, 2005, p.
59).
40
O termo eu profundo pode ser encontrado em autores que influenciaram o pensamento de
Mariátegui, como Bergson e Unamuno. A utilização desses autores – claramente inspirados nos
filósofos chamados de pessimistas (Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard), renderam a
Mariátegui a acusação de ser irracionalista, eclético e místico por boa parte de seus
comentaristas ligados às estruturas partidárias que orbitavam no campo socialista. A utilização
de estruturas e conceitos próprios da linhagem filosófica do pessimismo traz um desafio à
compreensão da obra de Mariátegui. A hipótese que partilhamos em nossas reflexões entende
que Mariátegui, ao se utilizar de influências consideradas tão distintas e antagônicas, inaugura
um pensamento extremamente original, frutífero e aberto. O desafio do intelectual é justamente
desvendá-lo à luz dessa originalidade e abertura. Qualificar a riqueza desse pensamento como
mero ecletismo ou como um pensamento que apresenta “desvios” em relação a alguma rota
filosófica ou filiação de pensamento seria esmaecer sua principal virtude, a sua capacidade
antropofágica, própria do pensamento latino-americano, de se “alimentar” de diversas fontes e
não perder a sua própria identidade.
133
1. A literatura
O indigenismo
O indigenismo na literatura da América Latina tem seu início 42 já na
entrada do século XIX, com o escritor peruano Mariano Melgar. Poeta, libertário
e combatente pela independência do Peru, Melgar demonstrou desde a
infância uma forte identificação com as populações indígenas de seu país e
deixou registrada uma obra de forte caráter lírico, em que procurou traduzir o
sentimento indígena. Outro literato que adentrou o universo indígena foi o
poeta peruano Cesar Vallejo, considerado um dos maiores poetas hispano-
americanos do século XX. Neto de mulheres indígenas, pobre e militante da
esquerda revolucionária, Vallejo inaugura alguns recursos de linguagem que
marcariam a poesia moderna, como a quebra da sintaxe e da gramática, o
elogio ao cotidiano mais simples e a busca por decifrar o olhar dos vencidos,
no caso peruano, o olhar indígena.
Reunindo em um único parágrafo a poesia de Melgar e Vallejo,
Mariátegui explicita o caminho realizado pela literatura indigenista peruana
desse período:
42
Estamos aqui desconsiderando as cartas, crônicas e descrições realizadas por religiosos e
inúmeros viajantes durante todo o período colonial. Consideramos literatura indigenista aquela
que se debruça sobre o problema indígena, principalmente a partir da passagem do século XIX
para o XX, período da modernidade contemporânea. Isso não impede, é claro, que haja
precedentes anteriores.
142
Foi lendo Mariátegui e depois Lênin que encontrei uma ordem permanente nas
coisas; a teoria socialista não só deu um sentido a todo futuro, mas também ao
que havia em mim de energia, deu um destino, carregou ainda de mais força
pelo fato de canalizá-la. Até onde entendi o socialismo? Não sei bem, mas sei
que não matou em mim o mágico (ARGUEDAS apud BAPTISTA, 2002, p. 8).
combinaram em sua vida, dando forma tanto às suas ideias e a sua literatura
como à sua práxis social.
Continuador da chama acesa por Mariátegui, Arguedas aprofundou
aquilo que Mariátegui iniciou: a necessidade de incorporar a visão de mundo
indígena e todo o universo tradicional, com seu conjunto de práticas
sociocomunitárias, ao projeto de nação peruano.
Em Arguedas, o indígena adquiria, ainda mais que em Mariátegui, o
lugar de sujeito político, em substituição ao lugar exótico e folclórico do sujeito
pertencente ao passado. Nesse sentido, a própria vida do escritor foi um
exemplo concreto do combate agonístico entre duas almas próprio da dupla
consciência histórica latino-americana.
Para Arguedas, o tensionamento entre colonialidade do poder e
mestiçagem descolonial-crítica é o próprio motor de seu pensamento e de sua
obra. O lugar da luta agonística entre essas duas perspectivas é tão central no
pensamento arguediano que torna sua obra um emblema dessa condição
fundamental da identidade latino-americana. É com base nessa luta que
Arguedas foi criando em sua narrativa um Peru heterogêneo pela multiplicidade
racial, cultural e regional. Uma nação na qual índios, mestiços, hispânicos e
demais migrantes vão se forjando a partir desse conflito básico entre modos de
lidar com uma interculturalidade que está presente em todos os estratos da
sociedade peruana – marcada desde o início pela desigualdade e pela injustiça
social.
Imagem muito conhecida desse universo peruano, o muro de pedras das
construções incaicas é frequentemente descrito como metáfora dessa
geometria plural, por ser uma construção sólida, de duração milenar, feita de
pedras irregulares, de formatos diversos e de variados tamanhos. A totalidade
constituída pelas formas desiguais, vivas e desmedidas se concretiza nas
pedras incaicas, combinadas não só para formar os muros da civilização
indígena, mas reutilizadas nas fortalezas e catedrais de arquitetura barroca,
explicitando assim sua condição de movimento heterogêneo e de constante
mestiçagem.
Arguedas, em um trecho imortalizado de sua obra clássica Os rios
profundos, expressa esse tensionamento formador da identidade latino-
americana ao descrever o encontro entre um menino, seu pai e um muro da
144
cidade de Cusco:
A ponte do Rio Pachacaca foi construída pelos espanhóis, tem dois olhos altos,
sustentados por base de alvenaria, tão poderosa como o rio [...]. Ao entardecer,
a água que salta das colunas forma arco-íris fugazes que giram com o vento.
Eu não sabia o que amava mais, se a ponte ou o rio. Mas ambos
desanuviavam minha alma, inundavam-na de fortaleza e de sonhos heroicos.
Apagavam-se da minha mente todas as imagens lastimosas, as dúvidas, as
145
Não é outra a tese que vou defender aqui: a passagem de fato ocorre, graças à
transformação do processo de produção de El zorro de arriba y el zorro de
abajo em uma cerimônia semelhante à dança ritual descrita no conto "La
agonía de Rasu-Ñiti" e em vários textos etnográficos de Arguedas. Entre maio
de 1968 e 2 de dezembro de 1969, dia de sua morte, a vida de Arguedas
efetivamente mimetiza a dança agônica do dançarino Rasu-Ñiti. [...] Como
Rasu-Ñiti ao se vestir para sua última dança, Arguedas, quando sente que está
próximo à morte, começa a se preparar e também transforma a morte em um
acontecimento coletivo e ritual, compartilhando-a com a comunidade de leitores
(NATALI, 2005).
A Antropofagia
Outro fenômeno de natureza literária que explicita a dialética dos
extremos própria do pensamento crítico latino-americano foi a Antropofagia.
Movimento filosófico-literário que se iniciou em 1928 com a produção do
148
Oswald de Andrade
Em 1924 em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade
sobrepõe dois mundos antagônicos e fundantes de nossa sociedade – o
mundo da civilização e o mundo do bárbaro. Manifesto da vanguarda artística
brasileira, aparece no seio histórico do período entre guerras, momento em que
a crença absoluta no cientificismo positivista estava em xeque e, com ela, toda
a ideia de progresso infinito.
Ao mesmo tempo, o regionalismo ganhava força em países como o
Brasil, onde a identidade nacional vinha sendo cultivada por uma burguesia
letrada e pelos donos dos meios de produção. Esse choque entre espírito
nacional exótico e mundo industrial estrangeiro em crise aparece logo nos
primeiros parágrafos do manifesto, em que Oswald apresenta um país que
necessita de uma nova forma de pensar suas peculiaridades:
messiânico. Nas teses finais que resumem as ideias contidas no texto Crise da
filosofia messiânica, ele escreve:
O próprio herói do livro, que tirei do alemão Koch Grünberg, nem se pode falar
que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano como da gente e desconhece a
estupidez dos limites para parar na terra dos ingleses como ele chama a
Guiana Inglesa. Essa circunstância de o herói do livro não ser absolutamente
brasileiro me agrada como o quê (ANDRADE apud CASTELLO, 1974, p. 84).
Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa
da perna só da Ursa Maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda para neste
mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa Maior é
Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde
e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no
campo vasto do céu (ANDRADE, 2004, p. 71).
O realismo maravilhoso
Assim como o neoindigenismo de José María Arguedas e a antropofagia
dos brasileiros Mário de Andrade e Oswald de Andrade, outro caminho literário-
político do continente que explicita a dupla consciência é o realismo
maravilhoso. Cunhada por Alejo Carpentier, a expressão designa toda uma
corrente literária do continente, na qual se destacam, além de Carpentier, os
argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, o brasileiro Murilo Rubião, o
mexicano Juan Rulfo e o colombiano Gabriel García Márquez.
Filho de uma professora russa e de um arquiteto francês, a vida de Alejo
Carpentier (1904-1980) pode ser considerada uma verdadeira viagem “entre
mundos”, em que a dialética dos extremos, mais que investigação filosófica, foi
a própria matéria forjadora da vida. Nascido na Suíça, Carpentier mudou-se
para Cuba com os pais ainda na primeira infância e ali onde conviveu com
campesinos negros, brancos e mestiços. Essa forte convivência com a cultura
europeia e o mundo camponês cubano, assim como a vida na Havana
moderna, teriam influência marcante na busca literária de Carpentier. Por meio
da criação, ele procurou elucidar esses atravessamentos culturais e o lugar
deles na história da humanidade.
158
O reino deste mundo, cujo título faz clara referência à expressão “reino
do outro mundo”, estabelece uma nova possibilidade da novela latino-
americana, abrindo as portas da literatura para o mundo “sobrenatural”, ou
melhor, para um outro mundo natural, que engloba (ou devora?) a Deusa
Razão e se enraíza na perspectiva dos povos escravizados no Caribe.
Para além de uma manifestação do mítico, do sobrenatural, do insólito e
da natureza dadivosa, o realismo maravilhoso se constituiu como um caminho
político determinado, um espaço de militância e investigação sobre a história
do povo latino-americano e de sua busca por libertação. Nesse sentido, a obra
de Carpentier anunciou toda a leitura crítica sobre a América Latina realizada
após a Revolução Cubana.
Alimentada por toda a tradição do ethos barroco como mestiçagem
descolonial-crítica, o continente passa a se guiar pela real possibilidade de
revolucionar a realidade social dos povos ou, no dizer dos movimentos
indígenas da Bolívia e do Peru, de “virar o mundo de cabeça para baixo”.
Mundo às avessas, onde a lógica do oprimido, lógica da bricolagem como
resistência, incorpora o mundo regido pela Deusa Razão e seu projeto colonial
mercantil capitalista.
O latino-americanismo
O pensamento crítico latino-americanista, ou seja, o pensamento que
busca delinear uma contraposição ao mundo colonial mercantil capitalista a
partir de uma identidade própria do continente latino-americano, é muito
presente na América hispânica. Apesar de se manifestar também no Brasil 44,
essa busca pela singularidade da América, pelo seu lugar diante do mundo
eurocêntrico, ocupou de maneira especial os hispano-americanos. Como
afirma Chiampi:
44
Exemplo dessa reflexão realizada em solo brasileiro é a obra de Manuel Bonfim intitulada A
América Latina: males de origem, na qual o autor se opõe radicalmente ao pensamento racial-
positivista da época e propõe medidas sociopolíticas como modo de combater a miséria. A já
citada Marcha das utopias, de Oswald de Andrade, e, de algum modo, todo o modernismo
antropofágico brasileiro também propõem reflexões acerca da cultura americana e de seu
eurocentrismo. Darcy Ribeiro em sua antropologia sobre o processo civilizatório, bem como
Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão, também desenvolvem uma teoria
antropológica que, inspirada no indigenismo mexicano, propõe, mesmo que indiretamente,
reflexões e categorias de fundo americanista.
165
desde o período colonial. Assim, teria sido forjada uma nação multirracial,
mestiça sem uma “linha de cor” discriminatória. Esse mito foi sendo construído
historicamente a partir do Estado Novo, como oposição ao totalitarismo racista
do nazifascismo.
A noção de democracia racial remete a um pacto político com o objetivo
de planificar a integração social no interior do Estado brasileiro. Nesse
processo, é excluída a possibilidade de uma diferenciação étnica na
participação no sistema político, direcionando essa identidade para o campo
“cultural”. Dessa maneira, caracteriza-se uma mestiçagem conservadora
própria da dominação colonial, já que anula qualquer possibilidade de efetiva
participação nas decisões políticas. Juntamente com essa ordenação de
caráter mais institucional, a “democracia racial” vem, paradoxalmente,
acompanhada da ideologia do branqueamento.
Com base nas teorias raciais europeias produzidas a partir da segunda
metade do século XIX, produziu-se a “solução à brasileira”, ou seja, uma forma
específica de racismo que ia no caminho contrário à tese científica de que a
miscigenação seria deteriorante. Nesse sentido foi formulada a doutrina do
branqueamento, que defendia que as raças inferiores seriam abrandadas ao se
miscigenarem com a raça branca superior. Nas palavras do historiador Thomas
Skidmore:
[A tese do branqueamento] baseava-se na presunção da superioridade branca,
às vezes, pelo uso dos eufemismos das raças 'mais adiantadas' e 'menos
adiantadas' e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata.
À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro, a população negra
diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a
suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças e a
desorganização social. Segundo, a miscigenação produzia 'naturalmente' uma
população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em
parte porque as pessoas procuravam parceiros mais claros do que elas (a
imigração branca reforçaria a resultante predominância branca)” (SKIDMORE,
1981, p. 81).
45
Termo utilizado pelos artistas do grupo Orígenes para descrever a atmosfera cubana na
época.
173
Pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele,
enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de
reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta
por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.
178
A Psicologia da Libertação
Estreitamente ligada à Pedagogia da Libertação de Paulo Freire, assim
como à Sociologia da Libertação de Fals Borda, a Psicologia da Libertação é
elaborada, a partir dos anos 80, por Ignacio Martín-Baró. Fazendo uma crítica à
ideia de universalidade defendida principalmente pela psicologia social norte
americana, Martín-Baró constrói uma psicologia social que afirma a
possibilidade de o sujeito oprimido, a partir de uma práxis libertadora,
protagonizar um processo de transformação social. Dessa maneira, ele supera
seu lugar de subalternidade e, em última análise, a desigualdade presente na
estrutura social dos países latino-americanos.
Ignacio Martín-Baró nasceu em 1942 em Valladolid, Espanha, e
ingressou na Companhia de Jesus em 1959, transferindo-se para El Salvador
no mesmo ano. Em 1966, já formado em filosofia e ordenado padre, passou um
período em Frankfurt e depois em Chicago, onde fez mestrado e doutorado em
psicologia social. Em seus primeiros artigos e trabalhos, mostra um claro
pendor à linha existencialista. Com o tempo, passa a incorporar o marxismo e a
psicanálise em seus estudos. Mas é nos estudos dedicados à Teologia da
Libertação e aos pensadores latino-americanos críticos das ditaduras e
defensores da libertação popular que o autor encontra os fundamentos de sua
teoria. Voltados à análise histórica das condições psicossociais dos países da
América Central, os escritos de Martín-Baró ressaltam sempre o movimento
incessante do real e suas raízes estruturais. Como explica o psicólogo costa-
riquenho Ignacio Dobles:
179
A Teologia da Libertação
Movimento religioso que ganhou corpo no interior da Igreja católica
latino-americana, a Teologia da Libertação surgiu após a publicação, no final
dos anos 1960, de várias obras teológicas que continham como elemento
comum uma reinterpretação da fé cristã, a partir de um diálogo com o
pensamento laico das ciências sociais. Essa aproximação já vinha sendo
realizada desde 1962, quando o Concílio Vaticano II 46 propôs reformas na
Igreja católica que direcionavam o pensamento teológico para uma relação
mais aberta com diferentes formas de pensamento, afirmando assim a
contemporaneidade e a sensibilidade histórica da Igreja.
46
Como lembra Löwy (2000), é extremamente simbólico o fato de o chamado oficial do papa
para o Concílio Vaticano II ocorrer em janeiro de 1959, justamente o período de entrada das
tropas revolucionárias comandadas por Fidel Castro para tomarem Havana e iniciarem o
governo revolucionário de Cuba.
184
47
Outros teólogos da libertação importantes foram Ignacio Ellacuría (El Salvador), Enrique
Dussel (Argentina-México), Ronaldo Muñoz (Chile), Frei Betto (Brasil) e Joseph Comblin
(Bélgica-Brasil).
48
Assim como ocorreu na Filosofia da Libertação e na Teologia da Libertação, na teoria da
dependência existem inúmeros matizes na aproximação com a teoria marxista. Em sua
corrente mais radical – em que estão Ruy Mauro Marini, Andre Gunder Frank e Aníbal Quijano
– é claramente defendida a necessidade de uma revolução socialista para responder ao
subdesenvolvimento e à dependência. No caso da Filosofia da Libertação, temos Augusto
Salazar Bondy, Raul Fornet-Betancourt, Enrique Dussel como importantes nomes dessa
corrente mais radical. E, na Teologia da Libertação, Gustavo Gutierrez – leitor atento de
Mariátegui –, Ignacio Ellacuría e Frei Betto. Para estes pensadores, a revolução socialista é
vista como um dado incontornável para o fim das desigualdades sociais do continente latino-
americano.
186
51
Consenso de Washington é um receituário formulado por instituições financeiras sediadas na
capital dos Estados Unidos, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Segundo tal receituário, o Estado deve se retirar da economia, abandonando assim a regulação
do mercado e abrindo as fronteiras para a livre circulação das mercadorias.
52
Chávez assumiu a presidência da Venezuela afirmando que seu governo continuaria a obra
de El Libertador, Simón Bolívar, promovendo a integração regional, a educação para toda a
população e, talvez a bandeira mais forte do bolivarianismo, a realização de um governo anti-
imperialista. A declarada e publicizada intenção do governo Hugo Chávez de se realizar como
uma continuidade do legado de Bolívar explicita claramente o lugar da memória histórica da
Libertação e do latino-americanismo, que continua presente no pensamento crítico do
continente.
190
culturais relacionadas a raça e etnia 53. Nesse sentido, se nos anos 1960, 1970
e 1980 a teoria da dependência e a teologia de raízes latino-americanas
exercem papel central na formulação da libertação, a partir dos anos 1990,
tanto os militantes como os estudiosos das ciências sociais e da teologia
passam a dar maior ênfase à noção de dominação cultural presente na relação
colonial.
A partir dos anos 1990, são formados grupos e redes de pesquisadores
espalhados em diversos países da América, com o objetivo de se debruçar
sobre a realidade latino-americana, tendo como horizonte teórico a
descolonização. A rede de pesquisadores da colonialidade-modernidade é
formada por um conjunto de pensadores que orbitam em torno da categoria da
colonialidade.
Cunhada ao longo dos anos 90 por uma série de pesquisadores, a
colonialidade alcança lugar de categoria central a partir da noção de
colonialidade do poder desenvolvida por Aníbal Quijano (1992). Em seguida
surge a noção de colonialidade da natureza (Escobar e Coronil, 2000),
colonialidade do conhecimento (Lander, 2000; Mignolo, 2003), colonialidade
das ciências sociais (Castro Gomez e Lopez Segrera, 2000) e colonialidade de
gênero (Lugones, 2008). Outras categorias diretamente vinculadas à
colonialidade são o eurocentrismo (Dussel, 2000), epistemicídio (Mignolo,
2007), sistema mundo (Wallerstein, 1974-1989), totalidade heterogênea
(Quijano, 2008) e interculturalidade crítica (Walsh, 2009).
Outro grupo importante a trabalhar com a categoria da descolonização é
o boliviano Grupo Comuna, formado por intelectuais militantes que se reúnem a
partir de 1998 para discutir e publicar livros e artigos extremamente críticos ao
neoliberalismo, baseados em diversos autores de filiação marxista. Entre seus
53
Um importante conjunto de estudos que ajudam a entender o debate sobre a descolonização
são os estudos pós-coloniais. Surgidos na década de 1970 e 1980, a partir da produção de
intelectuais vindos do chamado Terceiro Mundo, geralmente de ex-colônias britânicas, que
começaram a abrir novas possibilidades de estudos dentro das universidades. Em razão das
novas configurações e rearticulações do capitalismo global pós-Guerra Fria, os estudos pós-
coloniais partem da ideia central de que há um processo de invisibilização da vida e da voz de
uma imensa população subalternizada nos países não centrais do capitalismo. A teoria pós-
colonial analisa o efeito do discurso e das identidades produzidas a partir da realidade social
desses países e busca empreender um descentramento dos discursos oficiais instituídos, a
partir da desconstrução desses lugares de poder. As obras Orientalismo do pensador palestino
Edward Said (1978), Pode o subalterno falar? da indiana Gayatri Spivak (2010) e Identidade
cultural na pós-modernidade do jamaicano Stuart Hall (2003) são exemplos de obras
importantes que explicitam a proposta dos estudos pós-coloniais.
191
[...] isso forma parte do que vários autores têm definido como “a nova lógica
cultural do capitalismo global”, uma lógica que reconhece a diferença,
sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional,
neutralizando e esvaziando seu significado efetivo, tornando-a funcional a essa
ordem e aos ditames do sistema mundo e da expansão do neoliberalismo.
Nesse sentido o reconhecimento e respeito às diferenças culturais se
convertem em uma nova estratégia de dominação (WALSH, 2010 p.78).
54
Interno e externo aqui não são referência geométricas que remetem a uma ideia funcional da
cultura. O uso da dimensão espacial neste contexto tem relação com a dimensão intersubjetiva
de cultura, ou seja, mais do que uma fronteira delimitada, externo e interno são medidores
relativos e em constante transformação, sendo, em última análise, determinações apontadas
pela livre indicação de seus indivíduos.
195
PALAVRAS FINAIS
Bibliografia
AGIER, M. Introdução. Seminário As formas sociais, culturais e políticas da
identidade negra. Programa de Estudos do Negro na Bahia. Universidade
Federal da Bahia. Caderno Centro de Recursos Humanos (CRH), Salvador,
UFBA, Suplemento, p. 5-16, 1991.
CUNHA, M. C. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify,
2013.
VENTURA, Z. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.