Livro Nos Caminhos Da Dupla Consciência

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Nos caminhos da dupla consciência


América Latina, psicologia e descolonização

Bruno Simões Gonçalves


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<Frontispício>

Nos caminhos da dupla consciência


América Latina, psicologia e descolonização

Bruno Simões Gonçalves

2019
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Capa
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Projeto gráfico (??)
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Diagramação (??)
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<Ficha catalográfica>
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<página ímpar>

<dedicatória>

As árvores me começam.

Dedico esse livro às crianças do mundo.

Deste e de outros.

Salve as folha.
5

Sumário

Prefácio
Apresentação
Introdução

I. Por uma psicologia popular latino-americana: o desafio da


descolonização
1. Labirinto de mil mundos
Núcleo comum?

2. Espelhos enterrados
Colonialidade do saber

3. Psicologia desde abajo


Outros pensamentos
Complexo de vira-lata
Pensamento indisciplinado

4. Das utopias – a psicologia de outros mundos


Outros mundos

II. A dupla consciência latino-americana: contribuições para


uma psicologia descolonizada
1. O início

2. Colonialidade do poder
O racialismo
As relações de gênero
As relações com a “natureza”
O controle do trabalho
A epistemologia eurocêntrica

3. A matriz de pensamento do colonizado: a mestiçagem descolonial crítica


6

A modernidade alternativa
O ethos barroco

4. A construção de uma psicologia popular latino-americana


A libertação
A descolonização
A subversão da colonialidade
A memória histórica popular
Relação com movimentos sociais e organizações populares e comunitárias

Conclusão

III. Nos caminhos da dupla consciência: socialismo indo-


americano, libertação e descolonização na América Latina
A. Do um como princípio ao dois como totalidade: o caminho de uma
outra modernidade
1. Dupla racionalidade e filosofia ocidental
Entre deuses e ontologias: o pensamento filosófico
Parmênides e Heráclito: a dupla racionalidade grega
Pístis e peithó: a dupla lógica argumentativa
Pístis: o discurso como não contradição
Peithó: o discurso como persuasão
2. O empreendimento colonizador: conquista, caos e mestiçagem
O Novo Mundo
Princípio da cruz e da espada x filosofia das gentes
A mestiçagem
3. Dominação colonial e mestiçagem descolonial-crítica: as duas faces da
modernidade
A sedimentação do empreendimento colonial
Colonialidade do poder
Dialética dos extremos e mestiçagem descolonial-crítica: a
modernidade alternativa
O Barroco
O ethos barroco latino-americano
A mestiçagem cultural
7

Rebeliões e movimentos de contestação: mestiçagem descolonial-


crítica, luta e organização dos povos

B. Em busca de um socialismo indo-americano: o pensamento de José


Carlos Mariátegui
1. A vida de Mariátegui: a busca de uma síntese
Infância
O período europeu
O retorno ao Peru
O mariateguismo
2. A problemática filosófica em Mariátegui: por uma totalidade histórico-
social heterogênea
Dialética dos extremos e afinidades eletivas: a totalidade aberta
A descoberta do universo indígena
Tradição heterodoxa
3. Religião, mito e vontade: a dimensão místico-revolucionária em
Mariátegui
A religião como combate revolucionário
O lugar do mito
Imaginação, subjetividade e eu profundo: o lugar da vontade
Mariátegui e a dupla consciência histórica latino-americana

C. A dupla consciência histórica latino-americana: literatura, libertação e


descolonização

1. A literatura
O indigenismo
A Antropofagia
Oswald de Andrade
Macunaíma, de Mário de Andrade
O realismo maravilhoso
O reino deste mundo

2. Por uma filosofia latino-americana


O latino-americanismo
8

Transculturação: o elogio à mestiçagem


A categoria filosófica da libertação
A Filosofia da Libertação
A Psicologia da Libertação
A Teologia da Libertação
Descolonização e filosofia intercultural crítica
A filosofia intercultural crítica

Palavras finais
Bibliografia
9

Prefácio
Ignacio Dobles Oropeza

Vivemos tempos de enormes complicações e perigos para as maiorias


populares em nosso dolorido continente americano. São tempos de diminuição
e rechaço dos direitos humanos, de aumento de espoliações e discriminações,
de renovados classismos e imperialismos e de afrontas e ultrajes a
comunidades, territórios e corpos. A agudização de ordenamentos sociais
sujeitos à lógica da acumulação de capital e de – em casos em que em tempos
recentes ocorreram avanços dos povos – revanches de classe,
aprofundamento das desigualdades, abusos, vulnerabilidades, violências.

São tempos, também, que põem em suprema tensão os que, a partir da


psicologia e das ciências sociais, continuam apostando, como opção ético-
política, na libertação dos povos.

Estes tempos inquietantes nos obrigam a explorar alternativas de


construção do saber e do atuar, a rever experiências e propostas e a
potencializar os esforços – necessariamente coletivos – que tentam articular
resistências e esperanças. Como dissemos em outro momento 1, são tempos
exigentes, de rupturas e esperanças.

Neste contexto, Brunos Simões Gonçalves, pensador, pesquisador e ativista


andante, companheiro de coletividade e de causas populares, nos impele a
pensar a realidade latino-americana e as possibilidades de construir uma
psicologia desde abajo. Não é difícil imaginar que poderíamos ter uma
conversa a céu aberto à luz de uma imensa lua, não para nos proteger de
gigantes que roubam nossos sonhos, mas para nos abrigar com os risos e os
prantos de nossos povos, na polifonia de multiplicidades, nesta América Latina
“labiríntica e multiforme”, como a visualiza nosso autor.

Neste encontro imaginário, lançariam centelhas as memórias, as de


curto e as de longo prazo. As soterradas, as doloridas e as que, apesar de
tudo, em forma de resistência, nutrem esperanças e apontam para tempos e

1
DOBLES OROPEZA, I. 2016.
10

espaços mais plenos. Não é em vão que Bruno destaca em seus textos
exemplos de lutas e resistências populares ao longo do continente.

Todos e todas, sem dúvida, estamos marcados(as) por histórias longas


e histórias curtas, mas todos e todas podemos, diante delas, reagir, afirmar e
resistir.

No trabalho (aqui comentado) que poderia estimular esta noitada


imaginária, Bruno não passa por cima do complexo, do fraturado e do
maravilhoso desta Nossa América, e em seu relato aparecem, por aí, Garcia
Márquez, Rulfo, Andrade, Vallejo, Arguedas. Assim ele nos lembra que a
elaboração de uma psicologia vinda dos povos tem de passar também pela
arte, pela literatura e pelas mais finas sensibilidades daqueles que pensaram a
política a partir do complexo e do múltiplo, do raizal2 e das possibilidades
futuras. Foi assim José Carlos Mariátegui, que é apresentado como uma
referencia chave para uma elaboração crítica pensada a partir do marxismo,
com forte enraizamento latino-americano, avesso a ortodoxias e mitos
positivistas. Nesta perspectiva, Bruno advoga, segundo nos indica nestas
páginas, uma “psicologia indisciplinada” que seria “operária, artesã,
camponesa, sabe das plantas, das estrelas, das estrelas, das máquinas e dos
números, das comidas e das festas. É altiplana, florestal e anfíbia […] que sabe
habitar diferentes espaços e pertencer a eles, ser expressão desses lugares
em seu movimento”. Poderemos dizer que tem de ser também profundamente
democrática? Trata-se de uma psicologia que interroga, que conversa, que
afeta e é afetada, que sente, que comove, que sonha, com a gente, com suas
gentes. Que faz todo o possível para contribuir com a tarefa sugerida por
Martín-Baró de “potencializar as virtudes populares”.

O eixo conceitual que Bruno nos oferece em seus escritos parte da


contraposição entre o pensamento do um como principio – com suas
hierarquias, seu ordenamento estático, seus princípios universais – e o dois
como totalidade, que implica o múltiplo, a interdependência e a alteridade como
convite ao diálogo e ao encontro e não como domínio e subjugação. Duas

2
O termo raizal remete diretamente à obra do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda. Para esse
autor, os povos latino-americanos devem elaborar um socialismo raizal, ou seja, baseado no conjunto
de experiências históricas dos povos latino-americanos.
11

orientações contrapostas, que em boa dialética se apresentam em tensão


contínua e que marcam a visão geral com que o autor enfrenta a tarefa de
sugerir uma via de ação e de conhecimento na psicologia.

Deste ponto de partida bem argumentado, depreende-se a importância


de retomar Mariátegui, que em sua famosa proposta de indo-socialismo
recupera, em tensão agônica (de luta, de tensão, como argumentava
Unamuno) o que provém dos mundos dos incas, assim como o que provém do
ocidente. E agregando elementos chaves do socialismo europeu, incluindo o
mítico, com influência de Sorel, bem como o místico e o religioso. Bruno cita
Mariátegui, que escreve que “a força dos revolucionários não está em sua
ciência: está em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa,
mística, espiritual”. Neste caminho, não se exclui o afetivo ou o espiritual, que
potencia a vontade de ser.

Retomando Mariátegui, Bruno parece querer nos dizer que uma


psicologia construída desde abajo, libertadora, tem de estar firmemente
enraizada na história do povo, e que deve atuar a partir da complexidade de
uma totalidade heterogênea, retomando o raizal, mas visando à construção de
alternativas futuras. Descartando, por outro lado, o epistemicídio, que implica
priorizar ou absolutizar determinadas formas do saber. É necessário poder
operar em torno ao que é externo (a exploração, as espoliações, as
discriminações, etc.), mas também no subjetivo, no individual, no afetivo, no
pulsional.

Pela via do um como principio e dois como totalidade, Bruno chega ao


conceito chave para sua argumentação, tomado, segundo nos indica, do
pensador afro-estadunidense William Du Bois: a “dupla consciência” que, nos
sugere, se expressa de várias e diferentes maneiras, em consonância com
determinações diversas: psicossociais, políticas, econômicas e culturais,
mantendo ativa a tensão existente entre a colonialidade do poder (o um) e o
que provém dos mundos sociais dos povos, dos oprimidos e oprimidas,
marcados pela multiplicidade, pelas mestiçagens e pelos processos de
resistência de todo tipo. A colonialidade do poder, nos lembra recorrendo a
Aníbal Quijano, articula o racismo, o controle do trabalho, a dominação de
12

gênero, a colonização da natureza e o eurocentrismo. A tensão que isso gera


não é estática, é mutável e atravessa campos diversos da vida social.

A dupla consciência latino-americana, sugere nosso autor, é uma


consciência adaptada ao “evolucionismo linear”, mas que é confrontada
constantemente pela consciência descolonizada. Bruno explica que é “diferente
da lógica da negação do outro, há o reconhecimento da tensão em relação à
outredade, ou seja, a percepção de que o outro é constitutivo de minha
identidade”. No caso de Mariátegui, por um socialismo indo-americano. Resta-
nos a tarefa de discernir como opera esta tensão dialética em formas
determinadas de subjetividade e em diversos âmbitos e cotidianidades.

Somando-se a outros esforços libertadores e comprometidos que se


desenvolvem em nossa América Latina, o autor coloca as perspectivas
estratégicas que considera nutrirem, potencialmente, a busca e a construção
de uma psicologia descolonial, situada, vinculada ao popular, articulada desde
abajo. Falta muito por fazer e, como já assinalei nestas linhas, avançar requer
muito diálogo e construções coletivas.

Estou certo de que quem ler estes textos se nutrirá de importantes


ideias, plasmadas com energia e compromisso, que contribuirão para que o
debate necessário continue e ajude a produzir as transformações necessárias.
13

Apresentação
<Será enviada posteriormente>
14

<Arte, Por favor, inserir este texto em página par, espelhada com a da INTRODUÇÃO.>

O outro não existe: esta é a fé racional, a


crença incurável da razão humana. Identidade
= realidade, como se, afinal de contas, tudo
tivesse de ser, absoluta e necessariamente
um e o mesmo. Mas o outro não se deixa
eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de
roer onde a razão perde os dentes. Abel
Martin, com fé poética, não menos humana
que a fé racional, acreditava no outro, na
‘essencial heterogeneidade do ser’, como se
vivêssemos na incurável outredade que o um
padece.
(Antonio Machado)
15

INTRODUÇÃO
Entre 2002 e 2004, funcionou na comunidade do Jardim Colombo, zona
sudoeste Da cidade de São Paulo, a cooperativa de alimentação Jurema. O
nome foi dado por Índia, uma moradora que dizia ter uma relação muito
próxima com a cabocla Jurema e por isso a cooperativa levava esse nome. “Eu
não entendo muito disso não, viu, Bruno, isso é coisa que veio lá da Bahia,
mas eu sei que eu sinto uma coisa com essa tal de Jurema aí. Foi ela que falou
comigo pra eu colocar esse nome.”
Voltada para a produção de pratos típicos de milho, como curau,
pamonha, cuscuz, milho cozido, a cooperativa Jurema era formada por oito
mulheres da comunidade. Aproveitando as festas de São João e os costumes
todos – que vêm de muito longe, como se sabe –, a cooperativa juntou uma
sobrinha boa de dinheiro aquele ano. No fundo da casa de uma delas, a
discussão para decidir o que fazer com o dinheiro foi acalorada.
Entre as cooperadas estava Nilza, uma baiana de idade entre cinquenta
e sessenta anos. Criada num terreiro, me contou que aos sete anos teve um
episódio – “o santo me pegou” – que a fez andar por horas sem consciência,
até desmaiar na beira de um riacho. Dali em diante, levada pelos pais, viveu
em uma casa de candomblé, Na noite da reunião entre as cooperadas da
Jurema, quando o debate estava polarizado entre dividir toda a sobra entre as
trabalhadoras ou investir o dinheiro na compra de ferramentas e outros
acessórios, Nilza pegou a todas de surpresa com a seguinte proposta: se o
objetivo era ganhar mais dinheiro para poder comprar as ferramentas e ter
algum dinheiro pra levar pra casa, a melhor solução era pegar toda a sobra e
oferecer à sua casa de candomblé na Bahia. Ela mesma conversaria
seriamente sobre isso com seu pai de santo, o que garantiria que a oferta
retornasse em dobro para a cooperativa.
Como era de esperar, a ideia foi prontamente combatida. Toninha, cristã
de uma denominação pouco alinhada com as religiões de matriz africana,
puxou o coro e, de dedo em riste, se colocou radicalmente contra. Outras,
empunhando uma racionalidade econômica mais empreendedora, também
rechaçaram. Depois de mais dois ou três rebuliços desses, o grupo decidiu
16

comprar ferramentas e instrumentos. Porém, a certeza e a naturalidade com


que Nilza elaborou sua proposta, baseada em sua perspectiva religiosa, me
chamou muito a atenção.
Do espanto com a ideia de Nilza surgiu a questão que talvez seja, ainda
hoje, a estrela guia das minhas inquietações sobre a natureza das coisas, de
como dizê-las e sobre o que anda por trás disso que chamamos consciência.
Quais as racionalidades que se combinam e se misturam em nosso universo
cotidiano, quais as diferentes sabedorias e memórias, quais os saberes sobre o
mundo que, vindos de muito longe e estando aqui muito perto, operam em
nossa vida cotidiana, nas conjecturas mais ampliadas e em nossas aspirações
mais intimas? Quais as concepções de realidade e como elas se articulam na
nossa existência individual e coletiva?
Este livro é expressão dessa curiosidade.
*
O conhecimento pode nos levar por caminhos que nunca havíamos
imaginado. Chegado há pouco de uma viagem de alguns meses entre São
Luís, no Maranhão, e São Gabriel da Cachoeira, no limite do estado do
Amazonas, inventei de fazer doutorado para ordenar o que tinha visto nessa
travessia pela Região Norte. Tinha vivido muita coisa nos barcos, nas águas e
nas diferentes florestas que havia cruzado (vida anfíbia, como nos diz o
sociólogo colombiano Fals Borda).
Era aula do professor Luís Eduardo Wanderley e eu ali estava ali,
recém-ingressado e prosaicamente inserido no cotidiano de uma disciplina de
pós-graduação. Até que, por indicação do professor, fui ler o texto
Modernidade, identidade e utopia, do sociólogo peruano Aníbal Quijano, em
que ele apresenta a possibilidade de uma modernidade alternativa ao
capitalismo, construída a partir do território e do pensamento latino-americano.
Naquele momento, entrando em contato com o pensamento de Quijano, senti
uma tontura. Foi parecido com aquela que sentimos quando somos crianças e
ficamos rodando um bom tempo até mal conseguirmos ficar em pé. Naquele
momento a sala inteira rodou. Tempos depois, encontrei essa sensação
traduzida em um conceito que muitos estudiosos do campo da colonialidade
estavam utilizando. Havia experimentado um giro epistemológico. Ao ler o texto
de Quijano, senti um deslocamento, uma vertigem labiríntica que ainda hoje
17

revisito e reencontro na busca de melhor compreender a vida dos povos latino-


americanos.
Desde esse dia até o momento em que escrevo este texto, passei por
quase quinze países da América Latina. Diferentes latitudes, geografias,
lugares, alimentos, cheiros, afetos. Diferentes universidades, suas bibliotecas,
seus livros. Nomes, muitos nomes. Memórias, histórias. Sabedorias,
ancestralidades. Ciências e artesanías. Distintas gentes, sobretudo, seus
olhares. “En tus ojos de agua infinita / Se bañan las estrellitas, mamá. / Agua
de luz, agua de estrellas / Pachamama vienes del cielo”, diz uma canção muito
cantada em diversos lugares onde passei. Me lembro dessa música ao
escrever a palavra gente. Água infinita. Outros mundos e suas gentes infinitas.
Seus olhares, pensamentos, canções. É preciso tecer outra psicologia. As
estrelas.
Esse conjunto de viagens me mostrou diferentes dimensões da
realidade latino-americana e de seu labirinto formado por jogos de espelhos,
mesclas interculturais e caminhos interrompidos. Território marcado pela
violência da dominação colonial e imperialista, onde um universo de riqueza
histórica e cultural extraordinária se combina com migrações massivas,
profunda injustiça social e uma lancinante violência como forma de controle.
Muitas são as Américas Latinas. Muitos seus povos. Mil mundos em constante
migração. A vertigem labiríntica não é uma imagem gratuita.
A América Latina é continente com as veias abertas, lembrando a
imagem sempre repetida. Menos conhecida é a imagem que ouvi de um poeta
em um sarau de imigrantes no centro de São Paulo: “Das nossas veias
abertas, nascem rosas vermelhas sem parar”. A América Latina é, ao mesmo
tempo, espaço dilacerado e lugar da utopia, terra arrasada onde se vivifica, a
cada instante, o sonho utópico da plenitude humana.
*
Os textos que formam este livro foram produzidos entre 2013 e 2019.
Buscando conhecer algo distinto do universo acadêmico tomado por teorias
vindas de quatro ou cinco nações do globo, a pesquisa com autores de países
fora desse estreito âmbito geopolítico seguiu um horizonte bastante delineado:
conhecer a matriz de pensamento latino-americana. Os textos aqui
apresentados são resultado desse esforço. No total, foram mais de trinta
18

universidades, bibliotecas, centros de pesquisa, centro de formação de


movimentos sociais e conversas com muito intelectuais e militantes desses
países. Quase desconhecidos no Brasil, os estudos sobre o pensamento social
crítico latino-americano e sua epistemologia própria são um verdadeiro
continente. Juntamente com as matrizes eurocêntricas, compõem o cenário
intelectual de muitos países. Nos últimos anos, esses trabalhos têm se tornado
um pouco mais conhecidos no Brasil, graças aos chamados estudos
decoloniais e da descolonização. Por meio desse movimento intelectual
desenvolvido em torno da categoria da colonialidade, fundada por Aníbal
Quijano, a academia e a intelectualidade brasileira vai, aos poucos, se
familiarizando com essa perspectiva.
Visto por esse prisma, é possível afirmar que o presente livro é uma
contribuição ao debate da decolonialidade e da descolonização que vem sendo
realizado no Brasil.
*
O livro está dividido em três partes. A primeira é um texto em que
procuro fazer uma apresentação sobre o que caracteriza uma psicologia
popular latino-americana, uma psicologia descolonizada. Busca identificar
quais os caminhos possíveis e os pontos incontornáveis para a construção de
uma otra psicología, uma psicologia desde abajo, tecida pela memória histórica
dos povos latino-americanos e produtora de outras ciências e saberes.
Psicologia nutrida de um inventário das cosmogonias latino-americanas, como
dizia o poeta cubano Lezama Lima. Psicologia irmanada à vontade coletiva de
libertação e construída junto aos movimentos sociais e a suas lutas por justiça
e por uma sociabilidade para além do capital.
Lembrando minha orientadora Maria Lúcia Martinelli, é um texto onde os
pássaros estão mais soltos e as ideias mais arejadas, crescidas pra
passarinho, como diz Manoel de Barros. Uma busca de encontrar palavras que
tenham as cores de Kandinsky e sejam Macunaíma. E que não se esqueçam
do bom e velho Marx. Palavras desde otra psicología.
A segunda parte apresenta uma descrição um pouco mais detalhada da
estrutura da dupla consciência, a partir de seus eixos fundamentais: controle do
trabalho, raça, gênero, relação com a natureza e epistemologia eurocêntrica. A
partir da ideia básica da cisão da subjetividade latino-americana, procura
19

sinalizar por onde podem se realizar processos de subversão de nossa dupla


consciência. Como no primeiro texto, também nesse procuro sinalizar
caminhos para uma psicologia popular latino-americana.
A terceira parte do livro, bem mais extensa que as outras, é a
reformulação da tese de doutorado Nos caminhos da dupla consciência:
socialismo indo-americano, libertação e descolonização na América Latina.
Dividido em três temas, o texto se propõe a fazer uma genealogia da dupla
consciência latino-americana em seus aspectos histórico-filosóficos.
Desenvolvida através dos séculos de colonização – a dupla consciência
latino-americana é expressão do conflito social que estabeleceu dois mundos,
duas perspectivas em confronto no interior da formação histórica do continente.
É a cisão e o tensionamento estrutural entre o mundo dos colonizadores e o
dos colonizados. A dupla consciência histórica latino-americana é a base
fundamental, o tensionamento fundante da formação identitária dos povos
latino-americanos, sua subjetividade. Divisão que constitui um cisma na
produção subjetiva dos latino-americanos e bifurca sua percepção e sua
consciência do mundo.
O trabalho mostra como a dupla consciência latino-americana veio se
desenvolvendo segundo processos históricos de dominação e resistência nos
mais diferentes aspectos: culturais, econômicos, psicossociais, da
comunicação e das artes.
O primeiro tema aponta como se desenvolve a colonialidade do poder no
continente para a conformação do capitalismo mundial. Indica quais as
principais formas sociais, politicas e culturais da dominação colonial e os
diferentes modos de resistência a esse processo.
O segundo tema apresenta a obra de José Carlos Mariátegui, marxista
peruano que primeiro indicou a necessidade de reunir as diferentes memórias e
tradições dos povos da América Latina num projeto revolucionário
autenticamente indígena, popular e latino-americano.
No terceiro tema, o texto explica como a literatura do continente e o
pensamento latino-americanista da libertação e da descolonização são uma
expressão vigorosa dos processos histórico-estruturais do continente. A mais
extensa do livro, essa parte traz uma radiografia do pensamento social latino-
americanista do século XX A partir de uma discussão histórico-filosófica mais
20

densa, indica possíveis caminhos para a subversão e a descolonização de


nossa dupla consciência.
É importante sinalizar que alguns trechos e reflexões se repetem nas
diferentes unidades. Escritos originalmente com finalidades distintas, os textos
têm elementos comuns e eventualmente idênticos. Ocorrência pouco
frequente, mas que um leitor atento notará. A eventual perda da qualidade do
texto que essa repetição venha a causar é de inteira responsabilidade do autor.

<Arte/Revisão, por favor, eliminar este parágrafo.>

As Considerações finais do livro foram escritas com base no momento


histórico que o Brasil vive em 2019. Trazem subsídios para uma leitura do atual
contexto de crise estrutural do capitalismo e apontam a necessidade da
subversão da dupla consciência a partir da criação de um novo sentido
histórico para as lutas sociais do presente.
21

I
POR UMA PSICOLOGIA POPULAR
LATINO-AMERICANA: O DESAFIO
DA DESCOLONIZAÇÃO
Uma vez, ouvindo um contador de histórias em São Luiz do Paraitinga 3,
fui transportado para outro tempo. A história remontava à época em que o Vale
do Paraíba era habitado por seres gigantes, que cruzavam as montanhas com
seus enormes passos e pulavam vales inteiros atrás de fazer suas maldades.
Uma delas, muito conhecida, era ir com a mão até dentro das casas e roubar
as crianças. Diz a história que usavam essas crianças como brasa para seus
cachimbos. Me lembro de ter ouvido essa história sentado num banquinho de
madeira enquanto o contador pintava uma das máscaras que fazia para vender
no mercado da cidade. Lembro que naquela tarde fui transportado para uma
dessas noites de céu aberto e lua grande, debaixo de algum teto de palha,
deitado numa rede, sentindo esse mundo mágico e pavoroso onde vivem seres
sobrenaturais, capazes de roubar nossas crianças pra fazer coisas horrorosas.
Gigantes que usavam botas e chapéus de aba grande, o contador falou. Quase
conseguia ver as grandes pernas desses gigantes pulando vales inteiros.
É impressionante a capacidade que esses contadores têm de nos levar
para um mundo imaginário belíssimo e aterrador. Mundo de extremos.
Só depois de um tempo, anos depois, é que fui relacionar esses tais
gigantes com os bandeirantes, grupos de assassinos e escravizadores de
índios que foram os executores principais da primeira fase do genocídio
indígena que caracteriza a formação do Brasil desde o início. Transfigurada em
causo caipira, ouvi naquela tarde a memória indígena da violência cometida
contra eles, violência extrema que está na base de nossa história. Memória que
foi passada por séculos e que hoje é contada por detentores da chamada
cultura caipira tradicional e que talvez sejam netos ou bisnetos de índios
3
Pequena cidade do interior de São Paulo, no Vale do Paraíba. São Luís é muito conhecida pela forte
presença da cultura tradicional caipira.
22

“pegados no laço”, como ouvi muitas vezes de pessoas mais velhas da região.
Na oralidade própria da cultura caipira, foi se passando a memória daqueles
que sofreram a barbárie da colonização. Muitos dos causos que ouvi por esses
tempos são, assim, construções narrativas cheias de imaginário e lirismo e que
contam, ao seu jeito, o essencial dos processos históricos de longa duração.
Mas daí que um tempo desses estive ouvindo muitas histórias do povo
Xavante que vive perto do Rio Kuluene, na serra do Roncador, ali pras bandas
do Xingu. Me contaram um tanto de história da chegada das frentes de
colonização nos anos 50. E nisso, muitas histórias sobre rapto de crianças.
Eram os mesmos gigantes chegando, agora no Centro Oeste. De uma
enfermeira escutei que as mães xavante contam muitas histórias sobre os
brancos para suas crianças. Contam aquilo que aconteceu, contam do seu
jeito, com sua visão de mundo. Dai entendi porque tanto olhares amedrontados
e fugas quando eu aparecia em algum canto onde estavam os pequenos. É um
pavor passado de geração a geração.
Além dessas conversas, pude acompanhar algumas práticas e rituais
dos Xavante com os meninos e jovens. Os Xavante são famosos por esses
rituais. Um dos jovens me falou que é nesses rituais que aprendem a conversar
com os espíritos, reconhecer a maneira deles de se comunicarem e lidar com
esse encontro de universos que formam a vida e o mundo. Não me parece nem
um pouco difícil entender como, nesse mundo de violência, homens brancos e
espíritos, eu seja considerado detentor de um mau espírito ladrão de crianças.
E que talvez eu vire personagem de algum causo de assombração em algum
futuro aí.

1. Labirinto de mil mundos


O mundo imaginário do povo brasileiro e latino americano é algo
estupendo e miraculoso. Verdadeiramente capaz de criar um realismo
maravilhoso, encontro entre mundos no qual a linha que divide o natural e o
sobrenatural não raro é uma neblina, uma vertigem sem limite certo. Realismo
maravilhoso é o nome que se deu a um movimento próprio da literatura no
continente. Outros chamam de realismo mágico. Literatura que tem um jeito de
contar as histórias dessa maneira tão própria do universo latino-americano,
23

onde o cotidiano e linear se estabelece num equilíbrio muito tênue, sempre


prestes a ser subvertido por uma aparição insólita, um verbo impossível, uma
imaginação que se rebela. Irreal, surreal, hiper-real combinados entre si e
formando o próprio movimento do real.
Dizem que a novela Pedro Páramo, de Juan Rulfo, é tão imaginada em
seu próprio tempo e lógica que não segue a ordem em que foi escrita. O autor,
ao acabar de escrever, estava tão angustiado que jogou os originais ao fogo. O
que foi publicado é aquilo que se recuperou. Saiu uma obra prima. Eis uma
metáfora para indicar o continente. Terra de histórias incendiadas que se
remontam feito obras primas, suas angústias, seus afetos.
Em Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marques conta da chegada de
um objeto na aldeia esquecida de Macondo. Objeto miraculoso, transparente,
cheio de raios internos e propriedades misteriosas. Era o gelo, trazido por um
viajante árabe. Meu bisavô, comerciante, levou a primeira geladeira à cidade
de Russas, quase um lugarejo no interior do Ceará no início do século XX.
Ainda hoje falam disso na cidade, o espanto que causou a novidade. Pude
acompanhar a chegada da luz e das TVs de tela plana a uma aldeia indígena
relativamente isolada do sul da Bahia, verdadeira cidade indígena em meio à
Mata Atlântica, coisa saída de algum livro fantástico ou de alguma história das
cidades encantadas da Jurema Sagrada. Cidade saída das mil e uma noites ou
dos relatos de viagem de Marco Polo. Ali, vivente, em meio à mata do Sul da
Bahia. Latino-América, suas utopias, suas estrelas aqui no chão.
Foi nesse lugar que também pude estar perto de todo um episódio de
feitiço envolvendo um laptop que amanheceu quebrado. Mercadoria enfeitiçada
transmutando o real. Objetos miraculosos, mercadorias fetichizadas –
enfeitiçadas não seria melhor? – vindos de outras paragens e transformando
para sempre a vida de um lugar, compondo esse imaginário mágico e ao
mesmo tempo não mágico, fabuloso de tão real.
A Macondo do escritor é metáfora que constitui, lugar a lugar, a vida
social desse território tão vasto e caleidoscópico.

Núcleo comum?
24

O Brasil e a América Latina foram forjados a partir de uma


territorialização própria, onde se articulam diferentes memórias históricas,
caminhos e pensamentos, diferentes filosofias e mundos imaginários. O que
cada um de nós é como indivíduo e coletivo tem a ver com esse processo
social de longa duração. A América Latina é o território onde ocorreu o maior
processo de miscigenação e interculturalidade do planeta.
Junto com essa heterogeneidade estrutural estão a invasão e a
expropriação maciça das riquezas do continente. É a violência estrutural que
dizimou os povos originários e milhões de pessoas negras escravizadas.
Território a ser expropriado de suas riquezas. “Moinho de gastar gente”, como
dizia Darcy Ribeiro, e também a promessa miraculosa de uma nova
humanidade, mais plasmada, mais viva e mais diversa. É essa articulação
complexa entre extremos de extremos que constitui a dimensão psicológica de
nossa vida social. Somos, assim, a terra colonizada, o Novo Mundo, espaço do
outro totalmente desconhecido, da exploração sem fim e dos sonhos utópicos
de povos vindo de uma certa Europa.
Forjada em um processo comum de colonização, racismo estrutural e
organização do capitalismo mundial, a formação da América Latina é eivada de
dominação e miscigenação, forças responsáveis pela criação de mil mundos,
verdadeiro labirinto de espelhos, mil mundos latino-americanos que
constantemente se atravessam, se agregam e se distinguem. Por um lado,
extrema diferença em constante mutação; por outro, unidade no comum,
comun-idade. Eis ai um bom problema filosófico para quem se atrai pelo
exercício das enteléquias e reflexões sobre a vida neste continente. Por um
lado, a percepção de que somos muitíssimo diferentes, extremos, diversos,
para onde quer que se olhe e sinta. E, por outro, que somos, ao mesmo tempo,
formados por algo que nos reúne, que somos moldados por uma mesma forja
que nos conforma e nos dá um sentido histórico comum.
O professor boliviano Luis Tapia, nas suas reflexões sobre os
movimentos sociais da Bolívia – extremamente heterogêneos – escreveu um
livro chamado Em busca do núcleo comum, em que se propõem a pensar
justamente sobre isso, a diferença e a unidade na Bolívia e na América Latina.
Diante da extrema heterogeneidade simbolizada na bandeira da wiphala, há
um fio de contas que reúne essa miríade, um núcleo comum que costura essa
25

diversidade toda. Somos um território que é, em toda a sua extensão, espaço


colonizado. Para mim, esse duplo movimento é uma eterna inquietação e
motivo de curiosidade que não cessa. Já passei em alguns cantos dessa Abya
Yala4 e a sensação dessa dupla mirada só aumentou. É possível, em meio a
tanta diferença e diversidade, encontrar um núcleo comum?
Somos um território que é, em toda sua extensão distinta, espaço
colonizado pela violência que atravessa todo capitalismo mundial moderno.
Nossa fabulosa diversidade encontra uma unidade comum em nosso lugar de
subalternos, de expropriados no interior da lógica do capital. Somos
colonizados. E, por esse motivo, podemos nos descolonizar. Reunidos, ao
mesmo tempo, pela dominação colonial e pela rebeldia contra essa condição.
Nossa unidade é essa dupla condição, essa dupla consciência: a colonialidade
de um lado e a descolonização de outro. É no confronto entre a condição de
expropriação colonial e seu oposto, a subversão descolonial, que podemos
reinventar nossa heterogênea unidade. Isso já não nos havia sido apontado por
Mariátegui e seu socialismo indígena no início do século XX?
Foi esse tema da extrema diversidade que me chamou aos estudos
sobre a América Latina. Melhor dizendo, ainda antes disso, foi esse tema que
estava presente em um verdadeiro deslumbramento com a cultura brasileira. Já
tem um certo tempo que sou fascinado por esse conjunto articulado de tantas
práticas sociais, tradições, visões de mundo, cosmologias e memórias que
formam a cultura brasileira. Esse bundalelê faraônico chamado Brasil, como
ouvi um dia em algum lugar e não esqueci mais. Os distintos – distantes e
próximos – brasis, como escreveu Darcy Ribeiro, e, no interior desse universo,
aquilo que é consenso chamar de cultura popular. A abundância de cores,
formas, línguas, ritmos, sentidos, crenças, perspectivas, concepções de
realidade e demais tessituras psico-sócio-político–culturais sempre estiveram
presentes. Sempre calaram fundo em mim, como se diz. Diante das diferentes
expressões da vida social do Brasil, sempre me acompanhou a sensação de

4
Abya Yala, na língua do povo Kuna (originário da Colômbia), significa “Terra madura”, “Terra
viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. É um termo utilizado como
autodesignação dos povos originários do continente, em contraponto a América. A expressão
Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente, objetivando
construir um sentimento de unidade e pertencimento.
26

que “eu sou isso aí”, é dessa matéria que eu sou feito. Em outras palavras, a
sensação de ser eu mesmo encontrava nesse universo da cultura brasileira um
de seus lugares de pouso, um reconhecimento.
Somente depois de algum tempo voltado para a cultura brasileira é que
me dei conta de que o Brasil é parte de um continente. E então, por esses
caminhos inesperados e seus acontecimentos, esbarrei em um autor, depois
em outro e em muitos outros que me apontaram caminhos novos e
inesperados para me aproximar de um pensamento que me ajudasse a
compreender essa heterogeneidade que caracteriza não só o Brasil, mas a
América Latina.
O tom autobiográfico dos últimos dois parágrafos não é por acaso.
Pensando como psicólogo, sempre me intrigou a ausência de reflexões que
levassem em consideração algo que sempre me pareceu muito óbvio: o fato de
ser brasileiros – e latino-americanos – é fundamental na compreensão de quem
somos nós, individual e coletivamente. Nossa subjetividade está
intrinsecamente ligada ao conjunto de tradições, pensamentos, visões de
mundo e dinâmicas socioculturais que conformaram o território em que
vivemos. Com todo o conjunto. Com os valores do colonizador inclusive. 5 Há
uma relação muito intensa entre aquilo que somos – cada um e todos nós – e a
complexidade que conforma o lugar em que fomos criados, suas expressões e
modos de vida. Há em nós, se atravessando, se digladiando, se
antropofagizando, se querendo e se odiando, um monte de histórias pequenas
e grandes, histórias territorializadas, pertencentes a um lugar e presentes nos
seus viventes. Em curtas palavras: temos raízes. No caso de nós, latino-
americanos, temos múltiplas raízes. E, caminhando um passo a mais numa
metáfora que talvez seja demasiado fácil, temos múltiplos ramos e folhas. Ser

5
Há uma discussão importante na Filosofia da Libertação sobre o lugar da cultura colonizada
na formação dos sujeitos latino-americanos. Afinal de contas, somos também os valores –
produtos – colonizados, ou não? A presença da coca-cola na cultura dos países latino-
americanos é um bom índice dessa tensão. Mais de uma vez, ouvi diferentes argumentos para
defender ou demonizar a coca cola – a “água negra do imperialismo”– como algo que pode ser
consumido ou que deve ser rechaçado. Caso emblemático foi o dos zapatistas, que solicitaram
em um comunicado que pessoas aliadas de fora parassem de criticá-los por consumirem coca-
cola. Outro desdobramento dessa questão é a “autenticidade” dos produtos “típicos”. Um
refrigerante feito de guaraná amazônico dos índios Sateré-Maué é um produto que é contra o
império e, portanto, contra o processo de colonização? E gostar do guaraná mais do que de
coca-cola nos faz menos colonizados e mais subjetivamente liberados ou autênticos?
27

quem se é, na América Latina, é se olhar e se reconhecer em múltiplos


espelhos.

2. Espelhos enterrados
Carlos Fuentes, reconhecido escritor mexicano, imortalizou a imagem do
espelho enterrado em um livro onde conta a formação do mundo hispano-
americano e sua relação com a Espanha. O escritor lembra a história de um
povo originário que enterrava espelhos para servirem de guias para seus
mortos no caminho dos inframundos – reinos sutis e tortuosos. Ele defende que
há todo um universo da cultura latino-americana que está submerso,
invisibilizado, como um espelho da nossa imaginação e da sociedade que foi
enterrado, levado ao mundo invisível dos mortos, porém mortos que ainda
habitam entre nós, em nós. Memórias vivas e presentes que atravessam nossa
realidade, são parte dela, mas são tratadas como inexistentes. Espelhos vivos
e enterrados que nos cercam, suas presenças.
Aníbal Quijano também utiliza a imagem do espelho para dizer que os
latino-americanos se olham e se reconhecem a partir de um espelho distorcido,
que só mostra parte do que são. Uma fração importante é negada e escondida,
tratada como se não existisse e que não reconhecemos como nossa. Parte
invisibilizada e viva, tratada como fantasma de nós mesmos. Somo, assim, um
mundo habitado pelos nossos próprios fantasmas, espíritos daqueles que não
são reconhecidos como existentes em nossa consciência histórica. Há uma
intencional invisibilização dos modos de vida, do pensamento, dos afetos, da
memória e das formas de conhecimento próprios dos povos latino-americanos.
Ou, como diria Martin-Baró, das mayorías explotadas de todo o continente.
Esse processo de invisibilizar a realidade social da maioria da população
brasileira e latino-americana está vigente nos mais diversos aspectos da vida
social: na produção material, nos artefatos da cultura, nos costumes, na
espiritualidade, nos modelos de comunicação e transmissão de valores, nos
afetos, na memória, na política e nas artes. Apesar de sermos essa articulação
entre diferentes registros histórico-culturais, há um processo que
constantemente põe nas sombras nossas matrizes culturais indígenas,
africanas e árabes. Em cada distinto aspecto da realidade social, é possível
28

identificar esse processo de invisibilidade, de limitação. Um desses aspectos –


especialmente importante quando falamos das ciências humanas e da
psicologia – é a produção de conhecimento, ou seja, a questão epistemológica.
Integrada ao padrão de poder fundado ainda na época colonial –
colonialidade do saber –, a ciência oficial invalida os conhecimentos produzidos
fora de seu espectro de ação e influência. Salvo exceções, a ciência produzida
nos grandes centros segue a lógica eurocêntrica, um padrão de poder de
matriz colonial, que constrói sistemas geopolíticos que determinam quais são
os conhecimentos válidos.
Nesse sentido, o desafio de desenterrar o espelho e tornar visíveis
nossos fantasmas é um exercício de realizar o contrapelo da história, como
dizia Walter Benjamin6. Como quem escova a contrapelo um cavalo para trazer
à tona aquilo que está escondido por debaixo, é preciso dar validade à
memória histórica da população brasileira e latino-americana. Dar legitimidade
social e duração a suas experiências coletivas. E isso passa fundamentalmente
pelo reconhecimento das matrizes histórico-culturais que estão no seio da
formação histórica do continente.

Colonialidade do saber
A conhecida Controvérsia de Valladolid, ocorrida ente 1550 e 1551 no
colégio San Gregorio, na cidade espanhola de Valladolid, expressa com nitidez
um dos fundamentos centrais da colonialidade do saber. Debate entre os
frades dominicanos Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, a
controvérsia foi uma longa disputa filosófico-religiosa sobre se os indígenas da
América eram ou não dotados de alma. Las Casas, indignado com a barbárie
da colonização, defendia que os indígenas eram dotados de alma e, portanto,
6
“Escovar a história a contrapelo” é realizar a história dos vencidos, legitimar a história feita por
baixo, a história invisibilizada nas versões oficiais, cristalizada pelos vencedores. Michael Löwy,
em um texto dedicado a essa metáfora de Benjamin, escreve: “Escovar a história a contrapelo
é recusar toda identificação com os heróis oficiais do V centenário, os conquistadores
espanhóis, os poderosos europeus que levaram a religião, a cultura e a civilização aos índios
‘selvagens’. Em consequência, é preciso considerar cada monumento da cultura colonial – a
catedral do México, o palácio de Cortez em Cuernavaca – como um documento da barbárie,
um produto da guerra, da exterminação, de uma opressão impiedosa. Ao examinar a história
do ponto de vista dos vencidos, das diversas culturas indígenas das Américas eliminadas pelos
vencedores, é preciso considerar os acontecimentos culturais do passado tendo em conta os
perigos que ameaçam os descendentes dos escravos índios e negros da época colonial,
particularmente o risco representado pelos dirigentes imperialistas atuais que substituíram o
império espanhol no cortejo triunfal” (LÖWY, 2010-2011, p. 26).
29

de humanidade. Assim, o reino espanhol deveria rever completamente as


formas de dominação próprias do mundo colonial. Frei Juan Ginés de
Sepúlveda, ao contrário, com base na tese da escravidão natural, de
Aristóteles, defendia a não existência da alma nos índios e a legitimidade da
violência e da escravidão. Reconhecida como um dos principais debates
filosóficos de todo o período colonial, a controvérsia expõe uma questão de
fundo nos processos de dominação colonial, que continua vigente: a
concepção racista de uma humanidade inferior ou da desumanidade das
populações não brancas. É com base nessa relação intersubjetiva de
desumanização que opera a lógica do eurocentrismo e da colonialidade do
saber.
Embora aparentemente superado, o imaginário que considera não
humanos aqueles não identificados como brancos é ainda muito presente. É
com base nesse ideário que se torna possível a invisibilização e a negação dos
conhecimentos produzidos por essas populações. Nega-se a humanidade e,
como consequência, nega-se ou inferioriza-se sua possibilidade de
conhecimento, memória e saberes próprios. É como se, por não serem
humanos, aqueles que não são identificados como brancos não produzissem
um conhecimento válido, ou seja, um conhecimento humano. É como se
existisse um pensamento que serve para pensar – produzir pensamento válido
– e outros modos de pensar e de viver que não têm essa capacidade.
Pensamentos e modos de vida que são excluídos das possibilidades humanas
de produzir conhecimento “verdadeiro”. Pelo crivo do eurocentrismo e da matriz
colonial, expropriamos o valor da história e do pensamento dos povos. Na
hierarquia da colonialidade do saber, esses conhecimentos são considerados
menores, pouco sofisticados e neles estão ausentes a ética, a filosofia e a
possibilidade de fazer ciência. Assim, os povos não europeus são condenados
a serem considerados inferiores, limitados e sem capacidade de estruturar
conceitos e ideias mais complexas. Em última análise são considerados
produtores de pensamentos menos humanos ou não humanos, próximos ou
fundidos ao mundo natural – como o restante dos animais – ou seja, carentes
de qualquer valor.
Esses conhecimentos invisibilizados são justamente os produzidos pela
ampla maioria da população ao longo da formação histórica de nosso
30

continente. São saberes construídos tanto no cotidiano da vida miúda como em


grandes processos de resistência e organização e estão “registrados” de
maneiras muito distintas daquelas consideradas válidas para a ciência
eurocêntrica.
Essa relação desigual de poder atravessa as relações intersubjetivas e
tudo aquilo que incide na produção subjetiva dos povos latino-americanos. Há
uma versão – branca, patriarcal, classista, eurocêntrica – que hegemoniza a
produção de símbolos, valores, e sentidos no interior da vida social do
continente. Uma epistemologia eurocêntrica, que indica quem deve ser
escutado. Do outro lado, há todo um vasto e heterogêneo conjunto de saberes
que é hierarquicamente deixado de lado, tido como não existente. Saberes que
remetem à memória histórica de nossos povos formadores, saberes indígenas,
saberes dos povos negros e dos povos árabes, saberes que nascem da
articulação entre esses múltiplos povos.
Há, em nossas relações intersubjetivas, a presença central desse
tensionamento, formando uma dupla consciência social, em que se digladiam –
por vezes dançando – o mundo do colonizador e o mundo do colonizado.
Nossas relações intersubjetivas estão repletas de indianidade, de africanidade 7
e de valores vindos do mundo árabe. Há também o universo do diverso mundo
“pagão” europeu. Memórias muitas vezes dispersas, transformadas,
ressignificadas, migradas e articuladas em diferentes níveis e de diferentes
modos com outros pensamentos e registros. Mescladas, teatralizadas,
subvertidas no interior de outros padrões. Mas que estão ali, vigentes nos
modos de resistência e de reprodução da vida social, na sua dimensão
subjetiva, concretizada em seus territórios. Seja no campo, seja na cidade.
Como diz Sassá Tupinambá, militante indígena de São Paulo: “As periferias
das grandes cidades brasileiras são as aldeias e os quilombos do século XXI”.
E nós, indivíduos e grupos desse continente, somos uma expressão
dessa luta originária que nos conforma.

3. Psicologia desde abajo


7
Há também a presença marcante das culturas asiáticas. Entender a complexa subjetividade
latino-americana sob o ponto de vista desse conjunto de memórias significa examinar essas
múltiplas influências.
31

Outros pensamentos
O processo de embranquecimento e invisibilidade na ciência é muito
presente na psicologia. Apesar de a multiplicidade histórico–cultural latino-
americana ser matéria viva de nossa subjetividade, uma fração importante
desse conjunto de conhecimentos é invisibilizada, ignorada e desconsiderada
em seu papel determinante da subjetividade dos povos do continente.
Efeito da profunda e arraigada colonização de nossa ciência e de nossa
prática profissional, o conhecimento produzido pela psicologia brasileira é
apartado do conhecimento do povo brasileiro e também do conhecimento dos
outros povos da América Latina.
Para que a psicologia seja um saber que expresse a realidade social, é
preciso formular o conhecimento a partir de uma construção em que estejam
presentes a memória histórica, o cotidiano de reprodução social e a resistência
popular. O conhecimento acumulado pelos povos do continente contém
aspectos éticos, políticos, psicossociais, técnicos e filosóficos extremamente
variados. Detentoras de saberes muitas vezes milenares, as tradições desses
povos não raro detém uma gama de perspectivas e técnicas de cuidado de si e
do mundo que a psicologia convencional não conhece. Esses saberes
invisibilizados pelo eurocentrismo são parte da subjetividade da população
brasileira e devem participar diretamente da construção de uma psicologia
descolonizada para a América Latina. Temas como a filosofia indígena e
africana têm sido cada dia mais trabalhados, assim como os mais distintos
aspectos socioculturais, econômicos, políticos e históricos dessas populações.
Uma psicologia descolonizada não é possível sem o reconhecimento do
valor e da legitimidade dessas técnicas e perspectivas sobre o que é a
realidade. Filosofias e ciências dos povos indígenas Nahuatl (México), Tiké
(Guatemala), Mapuche (Chile), Aymara (Bolívia), Quéchua (Peru), Tupi (Brasil)
são apenas alguns exemplos. E também o sistema ontológico banto, de origem
africana, e a miríade fabulosa da produção técnica, política e ético-filosófica
das populações miscigenadas das Américas, com destaque para seus
aspectos sociorreligiosos, em que foi guardada e mantida parte importante de
suas tradições. Todo o saber gestado e nutrido nos processos de luta e
32

resistência dos povos latino-americanos, organizados contra a dominação


colonial, o colonialismo interno e o imperialismo.
Uma índia tiké da Guatemala me contou como xamãs e psicólogos
trabalham em conjunto pra tratar de casos de violência de gênero contra as
comunidades indígenas de seu povo. Um quintal de ervas medicinais sendo
plantado em um serviço público de saúde mental e cooperativismo social em
São Paulo. Salve as folha. Uma psicóloga que trabalha com capoeira, dança
afro e saberes griô com adolescentes em situação de conflito com a lei na
baixada fluminense. Saberes de terreiro e psicologia trabalhando em conjunto
na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis em uma comunidade
pobre de Salvador. Um psicólogo contribuindo na organização do movimento
sem teto e se somando em uma luta que cura. Psicólogas organizando
ocupações de movimentos de trabalhadores sem terra e criando um manifesto
com os Sem-terrinha, uma carta escrita pelas crianças que fala do mundo em
que elas querem viver. Um psicólogo que cuida do memorial das Ligas
Camponesas. Uma rede de psicólogas e povos da terra sendo formada no seio
do maior movimento pela terra do mundo.
Incorporar esse vasto universo de conhecimentos é uma das tarefas
centrais para a psicologia latino-americana que se pretende crítica,
emancipadora, libertadora.
É possível criar um caminho que se contraponha ao abismo existente
entre a psicologia e o vasto campo de conhecimentos de nossos povos
formadores. Por um lado, os saberes populares podem incorporar os
conhecimentos produzidos até hoje pela psicologia. Incorporação inventiva e
critica. Ao mesmo tempo, a psicologia pode incorporar em suas formulações o
conhecimento dos povos latino-americanos. Incorporação descolonizada e
crítica. Ou seja, construir os caminhos para uma psicologia que venha das
bases populares, desde abajo, como dizem os zapatistas; uma psicologia
tecida a partir da articulação dessa multiplicidade histórica e de conhecimentos.
Tecer uma psicologia popular latino-americana.

Complexo de vira-lata
33

O outro aspecto diretamente relacionado à hierarquia de conhecimentos


própria da colonialidade do saber – e de sua dimensão subjetiva – é o
fenômeno psicossocial conhecido como complexo de vira-lata, sentimento de
inferioridade de que os latino-americanos não são capazes de realizar um
pensamento intelectual verdadeiro. Escolas colonizadas, universidades
colonizadas e modelos de difusão de conhecimento colonizados, que
reproduzem uma geopolítica do conhecimento colonizadora e eurocêntrica.
Pelo crivo da colonialidade do saber, aprendemos que, por sermos latino-
americanos, somos inferiores intelectualmente, não temos capacidade de um
pensamento próprio e nosso destino é seguir teorias e copiar fórmulas que se
pretendem universais. De diferentes maneiras e por distintos canais – e aqui a
cultura e a comunicação ocupam um lugar central –, vivemos imersos em um
mundo que não nos deixa pensar de forma própria e autônoma.
Pensar não é copiar ou reproduzir o que vem de fora de nosso território.
Isso não significa que o conhecimento deve estar estrito a construções locais.
Mas significa que a produção de conhecimento não precisa se orientar por um
padrão hierárquico que indica ser o conhecimento verdadeiro e superior àquele
que vem de determinados centros geopolíticos distantes de nosso território de
origem.
Absorvidos no interior de uma estrutura hierárquica onde ocupam
espaços inferiorizados, pensadores dos países subalternos tendem a se
considerar incapazes de elaborar reflexões e pesquisas que produzam
conhecimento “de verdade”. Inundados desde muito cedo por uma série de
valores que indicam uma capacidade limitada de criação intelectual de real
valor, nos convencemos de que nosso limite é importar teorias e adaptá-las. No
máximo, alcançamos dar a elas um tempero regional, uma coloração matizada
com tons locais.
Indo na contramão desse ideário empobrecido, lembro de novo Darcy
Ribeiro, que defendia a formação de uma intelectualidade dos trópicos que
fizesse mais do que somente imitar e adicionar pequenos elementos às teses
criadas nos ditos países centrais. Segundo o pensador, é preciso criar um
pensamento que consiga ir além do mimetismo e consiga devorar e assimilar
os distintos pensamentos para invenção de algo novo, de uma perspectiva
própria capaz de abrir caminhos para uma opção civilizatória própria a ser
34

desenvolvida. Pensamento imenso de ideias e de coração e que saiba atualizar


o ancestral, ressituando aquilo que o pensamento colonizado teima em afirmar
que é atraso8.
Uma conhecida frase do pensador marxista peruano José Carlos
Mariátegui expressa muito bem essa ideia: “Não queremos, certamente, que o
socialismo seja na América decalque e cópia. Deve ser criação heroica”.
Mariátegui – que viveu três anos na Europa – explicita o que entende ser um
pensamento próprio. Ele dialoga com a política e a arte europeia daquele
momento. Assim como dialoga com o que acontecia na China, na Índia e na
Rússia. Não demonstra em seus textos traços de um espírito fechado para
aquilo que vem de fora do Peru ou da América Latina. Pelo contrário, é
extremamente interessado no que acontece no mundo daquela época. Porém,
o pensamento de Mariátegui não é “decalque e cópia” de qualquer outro
pensamento desenvolvido em um território distinto da América Latina. É um
pensamento original, que surge da realidade própria de seu país, das
características específicas do Peru. Um pensamento desde abajo. Pensar
desde seu território, desde sua vida e desde a história que se concretiza nesse
território é produzir um pensamento vindo de baixo, ou seja, um pensamento
enraizado em uma realidade que é própria e que guarda possibilidades de um
pensamento crítico próprio. Isto é, um pensamento que não anula suas
possibilidades inventivas para ser mera adaptação de um pensamento desde
arriba.
Ao mesmo tempo que Mariátegui fazia essas reflexões, aqui no Brasil
Oswald de Andrade e outros modernistas desenvolviam a fórmula para esse
diálogo com o outro: a devoração antropofágica, desconstrução mandibular da
tradição e do outro para invenção de algo novo, inédito. Reunindo ritualísticas

8
Em algumas oportunidades em que me encontrei com a feminista comunitária de Abya Yala Julieta
Paredes, pude observá-la fazendo uma metáfora teatral para indicar o jogo ideológico realizado pelo
pensamento eurocêntrico. Colocando dois lenços em paralelo, Julieta apresenta cada um como uma
história: a história europeia e a história indígena. Ambas andaram paralelas e sem se tocar. Com a
colonialidade, cria-se uma falsa narrativa de uma história única. Desse momento em diante o lenço
indígena é amassado e colocado em um ponto anterior (passado) ao mundo presente. Cria-se assim a
ideia que o mundo indígena, seu pensamento e suas formas de vida são pertencentes ao “passado”. E,
se está circunscrito ao passado, isso significa que não há presente nem futuro. Ou seja, cria-se uma
narrativa em que é forjado um imaginário no qual os indígenas são inexistentes ou são a mera presença
de um passado, daí a ideia de atraso. Lógica parecida é utilizada no campo dos Estados-nação, em que
os países da América Latina são “atrasados” e, por decorrência, o pensamento produzido pelos latino-
americanos também é.
35

próprias dos índios Tupinambá a estéticas e políticas que se desenvolviam em


diferentes latitudes, os modernistas criavam o pensamento antropofágico,
proposta que articulava de modo original histórias e culturas apartadas pela
colonialidade.
A lógica de hierarquização do conhecimento também se reproduz dentro
dos próprios territórios. Seguindo a fórmula colonial que ensina a valorizar
aquilo que não é próprio, cria-se uma hierarquia de validade de conhecimento
interna aos territórios, em uma lógica muito convergente com aquilo que o
sociólogo mexicano Pablo Gonzalez Casanova chamou de “colonialismo
interno”. Nesse imaginário constituído, os centros urbanos – por vezes de
arquitetura inspirada em cidades europeias e estadunidenses – são
considerados os lugares onde se produz um conhecimento de maior qualidade,
mais verdadeiro. Já o “interior” é relegado ao lugar do atraso e da ausência de
pensamento válido. É o lugar onde o que se pensa não tem valor. Não por
acaso, é nesses territórios que a presença de indígenas, populações rurais
negras e outras populações tradicionais costuma ser mais forte, assim como
são mais presentes suas formas de viver, pensar e sentir. Também não é por
acaso que é nesses espaços que se costuma conviver com maior intensidade
com o meio ambiente mais “natural”, é onde há maior presença da “natureza”.
Ou seja, são espaços onde, na cadeia da colonialidade do saber, estão as
populações cujo pensamento é menos “humano” e mais “natural”.

Pensamento indisciplinado
Um último aspecto importante para a construção de uma psicologia
descolonizada é a necessária conversa com outras formas e disciplinas de
conhecimento. A psicologia pode se construir como um pensamento
indisciplinado, ferino na desarticulação dos saberes em “caixinhas”. Ardil difícil
de ser superado, a colonialidade do saber opera um esquartejamento do
conhecimento em disciplinas que tendem a estar isoladas uma das outras.
Cada um no seu quadrado, como diz o refrão de uma música que virou ditado
popular. É a forma da divisão sociotécnica do trabalho transposta ao universo
do conhecimento. Ciente disso, uma psicologia crítica e emancipadora sabe
36

cultivar a curiosidade pelas outras ciências, artesanías e técnicas de manejo do


mundo.
No caso do pensamento acadêmico, isso significa saber conversar com
disciplinas das ciências humanas, exatas e biológicas. Universidade
colonizada, essa que entende essas divisões de maneira naturalizada e
acrítica. Esquartejar o real em “tipos” de ciências e, em cada tipo criar
disciplinas e subdisciplinas divididas em setores, áreas, grupos e subgrupos.
Tudo muito divididinho e voltado para sua parcela-partícula do conhecimento.
Difícil imaginar uma psicologia descolonizada que não coloque em cheque
essa lógica da fragmentação.
Ampliando a vista para além do pensamento acadêmico, criar uma
psicologia indisciplinada significa conversar com outros fazeres e profissões.
Um pensamento indisciplinado busca dialogar com as mais diversas formas do
trabalho humano. Criar pontes, achar inquietações e possibilidades de novos
rumos com as diversas formas do fazer humano. Saber conversar é reconhecer
possíveis contribuições, sinalizar diferenças e consensos, sair de si mesmo o
tempo todo e acompanhar esse movimento, se reinventando. “Toda vez que eu
dou um passo o mundo sai do lugar”, diz uma música do compositor
pernambucano Siba Bolívar Echeverría, pensador equatoriano radicado no
México, diz que a identidade só presta se souber caminhar deixando um pouco
do que é seu no mundo e pegando um pouco do mundo pra si. Metamorfose,
como indica o professor Antonio Ciampa. Uma psicologia indisciplinada é
operária, artesã, camponesa, sabe das plantas, das estrelas, das máquinas e
dos números, das comidas e das festas. É altiplana, florestal e anfíbia, como
dizia o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda. Um pensamento anfíbio, uma
psicologia anfíbia, que sabe habitar diferentes espaços e pertencer a eles, ser
expressão desses lugares em seu movimento.
Essa saída de “si mesma” da psicologia implica também admitir e trazer
para o seio de suas inquietações os conhecimentos estabelecidos entre os
demais entes daquilo que chamamos genericamente de “natureza”. Ou seja,
admitir que, além da ação humana, distintas formas de vida e manifestações da
natureza também compõem a trama que realiza o conhecimento do mundo. Os
seres humanos não são o centro absoluto da existência da vida. Um dito
famoso afirma que Copérnico deu um golpe na humanidade ao mostrar que a
37

Terra não era o centro do universo; Darwin deu outro ao mostrar que somos
uma espécie em milhares, que seguem a evolução natural; e Freud teria dado
outro ainda ao afirmar que não somos donos de nossa própria consciência. O
pensamento da descolonização pede outro importante deslocamento: não é só
o ser humano que tem a primazia de criar conhecimento e transformação no
mundo:
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos
Manoel de Barros

Uma colega chilena que trabalha com os Mapuche me disse que


participou de um ritual para medicina de todo o território onde vive uma
comunidade que ela acompanha. Explicou que, mais do que somente os seres
humanos da comunidade, era a vida, em sua totalidade e movimento, que
estava passando por um processo de sanación. Todos os seres que ali
habitavam, todos os entes estavam se curando e, ao mesmo tempo, sendo
personagens ativos no processo de cura de todos. Há uma intencionalidade
nesse processo que não é exclusivamente humana. Eis ai outro bom problema
filosófico pra quem se atrai pelo exercício das enteléquias e reflexões sobre a
natureza da consciência. Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que
sonha nossa vã psicologia eurocêntrica. Há uma relação de sabedoria e
copertencimento dos povos Mapuche com o território e tudo o que nele habita.
Formam, juntos, uma mesma coisa. Absolutamente heterogênea em seus
elementos – muitas vezes antagônicos, desarmônicos –, mas uma coisa só, em
constante movimento e diálogo consigo mesma.
Assim como os Mapuche, muitas tradições ensinam, cada uma à sua
maneira, essa correlação que forma a vida em seus inumeráveis aspectos.
Uma psicologia indisciplinada é também uma psicologia das múltiplas relações
que tecem a trama da vida, suas vontades. Psicologia desde abajo, que ouve e
sente as pedras, os rios, os bichos. As estrelas.

4. Das utopias: a psicologia de


38

outros mundos
Além do reconhecimento de outras formas de visão e de outros saberes
sobre o mundo, uma psicologia descolonizada deve nutrir uma relação muito
próxima, intrínseca, com movimentos organizados da sociedade. E, em
especial com aqueles que defendem um mundo para além do capital. Desde
abajo, desde adentro y desde la izquierda, como ouvi uma vez em Chiapas, no
México. Complementaria ainda dizendo desde las estrellas.
A ideia de uma rebelião vinda das estrelas encontra eco na tradição
latino-americana de luta social. Desde o muralismo latino-americano, onde são
representados seres míticos em meio a fatos históricos conhecidos, até
canções revolucionárias, a arte indica essa presença “das estrelas” na luta
social do continente. Não é à toa que o termo cósmico também é muito
presente nas ciências sociais e na construção identitária dos coletivos
revolucionários. Mais recentemente, os zapatistas retomaram essa tradição ao
realizar por duas vezes os Encuentros Intergalácticos. Fazendo uma alusão
irônica às Internacionais Comunistas, os encontros de militantes de todo o
mundo em solo zapatista indicam a possibilidade de uma luta anticapitalista
que, para além de ideia clássica de um internacionalismo comunista, crie uma
relação cósmica entre os povos da Terra e talvez outros povos – sejam míticos,
sobrenaturais ou de outros planetas – para a construção coletiva de “um
mundo onde caibam outros mundos”. Algo como um socialismo cósmico, como
ouvi no Peru certa vez. Um dos grandes nomes da canção cubana, o cantautor
Silvio Rodríguez, em seu clássico Canción del Elegido, conta a história de um
guerrilheiro interestelar – animal de galáxias – que viaja de planeta em planeta
“matando canalhas com seu canhão de futuro”. Impossível não lembrar
também dos povos maias em sua relação matemático-mítica hipersofisticada
com o cosmos. E claro, da raza cósmica de José Vasconcelos, uma das
maiores representações da união de povos distintos no continente latino-
americano. Definitivamente, a questão cósmica e sua relação com a história e
a luta dos povos latino-americanos não é algo a ser circunscrito ao campo da
mera imaginação desqualificada e fantasiosa.
Só é possível pensar em uma psicologia descolonizada se houver um
real compromisso com a luta das mayorías explotadas.
39

O acúmulo histórico, as práticas sociais e os modos de vida produzidos


no cotidiano de organização e resistência popular são especialmente
importantes quando nos referimos a um processo de descolonização.
Movimentos sociais e organizações populares são forças sociais que produzem
um espaço privilegiado para uma práxis emancipatória e descolonizadora.
Lembremos que a descolonização é, antes de mais nada, um processo de
subversão e de embate entre forças sociais no seio do mundo. Não é um
artifício de pensamento ou de linguagem, nem se trata de uma proposta que
defende o multiculturalismo no interior de uma sociedade. Não é possível
pensar em descolonização sem considerar que há uma disputa entre projetos
societários distintos. Indo mais longe, seguindo o que muitos pensadores
bolivianos têm defendido, descolonização se refere a uma disputa de projetos
civilizatórios. Uma psicologia descolonizada só é possível se estiver
acompanhada de uma práxis libertadora que vislumbre um outro processo
civilizatório, um mundo para além da hidra capitalista 9 e de sua civilização
erigida em torno do lucro.

Outros mundos
Pensar em uma psicologia dos povos latino-americanos requer
necessariamente a presença de outro mundo. Como ensina o mestre maior
Paulo Freire, um dos mais perversos ardis do neoliberalismo é seu cinismo
travestido de ideologia fatalista, que desdenha o desejo humano de sonho e
utopia. Andando na Bolívia, no Peru e no Equador, pude ver como tem sido
forjado um pensamento de esquerda desde Abya Yala, de la descolonización,
desde abajo e que defende a despatriarcalización, e o bien vivir e tantas
utopias outras, inimagináveis, Um pensamento denso, acúmulo de séculos de
meditação, conhecimento e luta social. Pensamento de outro mundo.

9
Em 2015 o movimento zapatista organizou o seminário El pensamiento crítico frente a la hidra
capitalista. Militantes do mundo todo foram convidados a discutir com os zapatistas a partir
dessa metáfora do modo de produção capitalista transfigurado na mítica hidra – figura de várias
cabeças, que se regeneram quando cortadas; no lugar da que foi arrancada, nascem outras
duas. Na apresentação do encontro, escrevem os zapatistas: “Não adianta somente entender o
que estamos vendo. Precisamos entender quem está vendo. Porque nós também somos
múltiplos. As mudanças que vemos fora também acontecem dentro. E, para entender quem
olha e quem está sendo olhado, precisamos de conceitos. E para saber se esses conceitos
serão úteis, necessitamos do pensamento crítico”.
40

Vi o mesmo no México e na Guatemala; um realismo maravilhoso de alta


intensidade, revolucionário. Fincado na terra e na necessidade de unir mundo
indígena e luta anticapitalista em um tempo fora do tempo. Tempo
intergaláctico, irmanado das estrelas. No Chile devastado pelo neoliberalismo,
fui a um bar do Partido Comunista e brindei à vitória da primeira mulher
presidente do Brasil. O vinho foi presente do Sérgio, dono do bar e sonhador
insubmisso. Na Argentina, conheci os Pañuelos em Rebeldia, grupo de
educação popular feminista que me mostrou um Paulo Freire que eu
desconhecia. Rigorosamente utópicas. No Rio de Janeiro, passei uma tarde
aprendendo com o professor Amauri Mendes a invisibilização da
intelectualidade negra e radical do Brasil. Na Bahia, estive com o pessoal do
Reaja ou será morto, reaja ou será morta!, que luta pelo fim do genocídio do
povo negro no Brasil e no mundo. Tecendo outros mundos.
Conheci também um ex-padre italiano que alfabetizou Chico Mendes e
hoje vive numa cidade-dormitório na periferia da Grande São Paulo. Adora
cuidar dos pequenos bem pequenos e me lembrou uma galinha e seus
pintinhos quando o conheci. Usava uma camiseta velha com uma foto do Che.
Na Costa Rica, estive com educadores e psicólogos populares de décadas,
conversando sobre suas experiências na Nicarágua, em El Salvador, em Cuba.
Falaram também do Nordeste brasileiro, de seu trabalho no sertão. Histórias
tenebrosas de violência indizível. Histórias encantadas por uma mística
revolucionária própria deste continente. Na mesa, plátanos, frijoles, yukas e
maiz. Desejos de outro mundo.
Acompanhando dias de ritual para os mortos em uma aldeia yanomami,
pude ver pássaros que vivem em lugares tão altos que os humanos não
chegam. Nesse tempo que passei por lá, andavam por dentro dos próprios
Yanomami, seus irmãos de espírito, eles contam. E uma época morei num
lugar chamado Várzea dos Passarinhos, onde toda manhã mil deles habitavam
em mim. Reduto caipira onde ainda se toca com os dedos a vivacidade da
combinação da vida das aldeias portuguesa com o mundo guarani e com a
África. Vi também ruínas de diferentes civilizações andinas e centro-
americanas, muitas que não se sabe até hoje como acabaram. De outras, só
me contaram, e sei que não se sabe nem se existiram mesmo ou se é uma
grande lenda dos povos da floresta. Vi o mar de água doce e o mar de dunas.
41

Em ambos, me disseram haver cidades encantadas todas cobertas de joias e


adornos, cidades miraculosas feitas de miragem e poderes que não se
explicam. Me falaram também de uma cidade inteira que existe dentro de uma
jiboia, mãe da selva. Inteira mesmo, incluindo o céu. Paisagens de outros
mundos.
Provei de diferentes formas o uso do tabaco, da folha de coca, de
infusões feitas com muitas plantas maestras; cascas, folhas e raízes que nos
levam a outros mundos. A fumaça, os cachimbos. As ervas. Tambores,
maracás, diferentes sopros e cordas. Bendiciones e cuidados, as limpezas. A
ciência do índio. Ciência do caboco. As encantarias. Os velhos, suas
mandingas. Na feijoada de Ogum, no canto agudo das crianças guarani mbya,
em alguma grande catedral de alguma grande capital. Em algum culto cristão
em um pequeno espaço. Estados visionários produzidos em diferentes terreiros
e templos. Uma espiritualidade fabulosamente diversa, rica, inexplicável.
Visões de outros mundos.
Os rios, as montanhas, as aves. As árvores me começam.10 O sol
nascente e poente. A lua, a Cobra Grande, os mitos. Os parentes. O jaguar, a
onça, a jaguatirica. Os bichos de casco. Os lobos do mato. As formigas. O
boto. O boi. Os seres. O começo e o fim do mundo. Tudo o que habita entre
essas duas margens. A canoa. Os galos tecendo a manhã. O sonho. Os ciclos.
Os círculos. As espirais. As peles, os casulos, as serpentes. As geometrias
para além do tempo. As explicações que dizem do mundo, da vida, da morte.
As forças, as águas, o vento que vem antes do tempo. Os labirintos. A terra. As
distintas formas de habitar na terra, suas distintas utopias e mundos
imaginados. O bem viver. Os mitos, a miração, o devaneio. Sonhos de outros
mundos.
Querer uma psicologia descolonizada é um exercício insistente de não
deixar a barbárie e a profunda malvadez neoliberal ceifar a possibilidade de
uma realidade muitíssimo distinta da presente. E, nesse movimento, pensar na
possibilidade de uma psicologia também muitíssimo distinta, tecida de outra
maneira, por outras mãos e vozes, por outras origens e possíveis destinos por
se inventar. Uma psicologia reimaginada e que desafie nossos labirintos
históricos e nossos fantasmas sem voz. Coisa de pajé. Que saiba falar as mil
10
Manoel de Barros.
42

línguas dos nossos mil povos e que se preocupe em ser universal, para todas e
todos. E que veja com outras visões, tateie, acaricie e incida desde muitos
lugares e de distintas formas.
Psicologia popular que nos habite um outro sentido histórico. Que seja
uma das guias nesse caminho, terceira margem do rio. Outro mundo.
Ojalá se pueda.
Salve as folha.
É nóis.
Flores no mar.
Desde outra psicologia. As estrela.
43

II
A DUPLA CONSCIÊNCIA LATINO-
AMERICANA: CONTRIBUIÇÕES
PARA UMA PSICOLOGIA
DESCOLONIZADA
A história do território que hoje chamamos de América Latina se
estabelece a partir do século XVI como um processo de convulsão social
extrema e de magnitude continental. Com objetivos explícitos de dominação e
expansão do poder dos reinados existentes na Europa, esse processo se
caracterizou pelo extermínio de fração importante das diferentes populações
originárias do continente e pela usurpação das riquezas de seu território como
forma de produzir acumulação de capital.
Para a execução desse empreendimento colossal, também foram
escravizados e trazidos à força milhões de seres humanos que viviam com
seus povos no continente africano. A esse processo de expropriação,
exploração e máxima violência desde sua gênese – portanto violência
estrutural – chamamos colonização.
Embora extremamente heterogênea em suas formas de territorialização
e em seus períodos de penetração no continente, é possível afirmar que a
colonização se desenvolveu a partir de uma conflito social fundante:
estabeleceu dois mundos, duas perspectivas em confronto no interior de uma
mesma realidade. Essa cisão e esse tensionamento estrutural entre o mundo
dos colonizadores e o dos colonizados produziu uma dupla consciência
estrutural na formação do continente. A dupla consciência histórica latino-
americana é a base fundamental, o tensionamento fundante da formação
identitária dos povos latino-americanos, de sua subjetividade. Contradição que
se origina da violência estrutural advinda do processo de colonização e que é
44

vigente ainda hoje, a dupla consciência é a expressão dessa condição cindida


própria da realidade latino-americana em todo seu processo histórico.
Presente em seu território de forma heterogênea, a dupla consciência se
expressa nos modos de reprodução social, no universo simbólico e imaginário,
no mundo do cotidiano e dos costumes, assim como nos valores ético-políticos
e espirituais dos povos latino-americanos. Ou seja, participa da realidade social
do continente em suas variadas dimensões, valores instituídos e práticas
sociais.
Constituída a partir da tensão original entre colonizadores e colonizados,
a dupla consciência se expressa de diferentes modos, segundo determinações
psicossociais, políticas, econômicas e culturais de cada contexto específico.
Contudo, mantém-se presente a tensão fundamental entre colonizadores-
colonizados, dominadores-dominados e opressores-oprimidos. Ela é a
estrutura que alicerça, costura e dá um sentido comum à imensa diversidade
de experiências históricas ao longo do processo de formação do continente
latino-americano. Está presente nas percepções, nos afetos e na inteligibilidade
dos seus indivíduos. A dimensão subjetiva da realidade latino-americana, suas
identidades produzidas, os modos de ser, o modo de constituir os sentidos do
mundo e de si mesmo são, na América Latina, expressão dessa consciência
cindida e conflituosa. Ela é a manifestação de uma realidade que se inaugura
em um embate entre mundos extremamente diversos, constituídos no interior
de uma luta social.
O presente texto é a apresentação da dupla consciência histórica latina-
americana. Estruturada dinamicamente no tensionamento entre a colonialidade
do poder (consciência do colonizador) e a mestiçagem descolonial crítica
(consciência do colonizado), a dupla consciência é um movimento ininterrupto
de embate e conflito entre essas duas matrizes de pensamento. Reatualizada a
cada novo ciclo histórico, ela remete à gênese do processo colonial, sendo
uma constante reoriginação desse processo.
Como conclusão, aponta-se para a necessidade de um saber
psicológico que se constitua a partir da transgressão da lógica colonizadora.
Para isso, é preciso recuperar a memória histórica das populações, suas
experiências e os saberes constituídos nos processos cotidianos de resistência
e libertação popular frente ao crivo da colonialidade do poder. Nessa
45

perspectiva, a psicologia deve contribuir para a produção de um novo sentido


histórico e intersubjetivo para os povos do continente, que tenha no horizonte
sua libertação e descolonização. Deve ser uma psicologia popular, capaz de
gerar processos de subversão da dupla consciência e elaborada com base em
uma epistemologia própria, tecida a partir das diferentes memórias históricas
das populações. Deve ser, em suma, uma psicologia dos povos latino-
americanos.

1. O início
Marco inicial do confronto que principia a modernidade, a fundação da
América a partir do século XVI inaugura o ciclo de um novo mundo que emerge
como resultado das Grandes Navegações, do confronto entre mundos e da
acumulação gerada nesse processo. A condição desse acontecimento histórico
e sua radicalidade na transformação dos processos de geração e reprodução
social determinaram o caminho de toda a chamada civilização ocidental, assim
como da história mundial desse momento em diante.
No entanto, esse acontecimento que dá origem ao empreendimento
colonizador não se realiza como confronto mecânico de dois mundos
estanques, o mundo “indígena” e “negro” e o mundo “europeu” 11. O surgimento
da América é um fenômeno histórico complexo, articulador e desarticulador de
diversas estruturas antigas e recém-emergidas, onde os efeitos do genocídio,
da doença e da catástrofe generalizada se configuraram como efeitos comuns
do processo colonizador. A desorganização generalizada caracterizou o
empreendimento colonial desde seu início. Como explica Serge Gruzinsky:

Na América, o choque é tão brutal como imprevisto. Não se resume a uma


questão de simples defasagem, nem à colisão de dois sistemas estáveis, em
que um tivesse sido perturbado pelo surgimento do outro. O ambiente que
viviam os conquistadores não tem nada de monolítico [...]. A diversidade de
protagonistas indígenas e europeus – religiosa, linguística, física, social etc. – e
as tensões que os opõem introduzem uma heterogeneidade ainda mais
acentuada pelo choque da derrota e pelas deficiências do quadro político
(GRUZINSKY, 2001, p. 73).

11
As identidades “indígenas”, “negros” e “europeus” são criações posteriores à época da colonização.
Naquele momento, não havia nenhuma ideia de homogeneidade que reunisse a diversidade desses
grupos em uma única identidade.
46

Nesse sentido, do período inicial da colonização emerge uma nova


totalidade histórico-social, em que diferentes modos de vida estão presentes,
dando início à tessitura do chamado labirinto latino-americano. Variados povos
europeus, somados a povos escravizados sequestrados de diferentes partes
do continente africano, se reúnem e se confrontam com a vasta e diversa gama
de povos originários do continente, denominados genericamente indígenas. Da
articulação entre esses diferentes modos de vida – suas práticas sociais
diversas e seus valores éticos-políticos-espirituais – emerge o capitalismo
mundial. Processo conflituoso e estruturado em uma imensa violência para a
dominação dirigida à acumulação de riquezas.
Apesar da heterogeneidade desse processo, há uma duplicidade de
pensamento e organização social própria do mundo americano. Desde o início
da colonização – momento de convulsão extrema que deu origem à
modernidade – já está presente a oposição entre, de um lado a colonialidade
do poder – matriz de pensamento do colonizador – e, de outro, a mestiçagem
descolonial crítica, matriz de pensamento que caracteriza os processos de
resistência dos povos colonizados. Essa duplicidade, o tensionamento e o
conflito entre essas duas matrizes, é a estrutura dinâmica que caracteriza a
formação das populações do continente em sua reprodução social e em sua
intersubjetividade. Está presente nas relações, nos afetos e no pensamento da
população do continente.
Surge assim – juntamente com a modernidade colonial e com o
capitalismo mundial – a dupla consciência histórica latino-americana.

2. Colonialidade do poder
A partir do século XVI, com a sedimentação do empreendimento
colonizador, emerge um novo padrão de controle e de organização das
relações sociais, a colonialidade do poder (QUIJANO, 2000). Ela é o modo
fundamental da matriz de pensamento e das práticas sociais próprias do
mundo do colonizador.
A colonialidade do poder é uma estrutura dinâmica formada a partir da
articulação de vários eixos fundamentais: o racialismo, a dominação de gênero,
47

a colonização da natureza, o controle do trabalho e o pensamento eurocêntrico.


Para compreender a lógica de dominação e exploração própria desse padrão
de poder e subvertê-la (descolonialidade), é necessário conhecer esses eixos
estruturadores e as formas de articulação entre eles.

O racialismo
Desenvolvida principalmente a partir de Descartes e de sua separação
radical ente alma-corpo, sujeito-objeto, humano-natureza, é a partir da matriz
eurocêntrica de pensamento que se articula a ideia de raça. Sua origem remete
a mais de cinco mil anos atrás e tem como fundamento a ideia de que traços
fenotípicos justificam as diferenças entre povos em conflito por território.
É essa relação entre biologia e traços culturais que, ao ser incorporada
ao pensamento científico do século XIX, dá origem ao racismo enquanto teoria
científica, com a obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de
Arthur Gobineau, publicado em 1855.
A noção da existência de raça enquanto atributo responsável por uma
classificação social está também presente no chamado etnicismo. Embora
menos relacionada diretamente à estrutura biológica, a etnicidade compartilha
– em seu surgimento – a ideia de classificação hierárquica da humanidade de
acordo com critérios evolucionistas etnocêntricos europeus. Do grego ethnos, o
prefixo etno designa local-condição de origem (crenças, valores, mitos,
símbolos, ritos, língua, códigos, práticas). O teórico da eugenia Georges
Vacher de Lapouge criou a palavra etnia para designar sociedades distintas da
ocidental e que partilhavam a mesma língua. Considerando a sociedade
europeia como topo da evolução civilizatória, adaptou o pensamento próprio do
racismo para grupos socioculturais. O racismo e o etnicismo agem alojando
povos não brancos no lugar histórico de atraso, de pré-modernidade e,
portanto, com incapacidade intelectual e inferioridade física e psíquica.
Dessa forma, as identificações étnico-raciais de índios e negros são
criadas e articuladas ao mundo do trabalho e da produção de excedentes
próprio da lógica colonial. Há também uma evidente produção de valores
simbólicos e intersubjetivos que operam de modo muito sofisticado, justificando
essa divisão hierárquica e a violência e exploração do processo colonial contra
48

essas populações. Nesse sentido, a noção de branquitude é criada para ocupar


o topo da hierarquia e para servir de referência a todos os seres humanos
implicados nessa cadeia hierárquica. A branquitude é o valor de superioridade
e de lócus da verdade, que funciona criando relações simbólicas e
intersubjetivas adaptadas à colonialidade do poder. Segundo Bolívar
Echeverría:

O traço identitário civilizatório que queremos entender por branquitude se


consolida na história real, de maneira casual ou arbitrária sobre a aparência
étnica da população norte ocidental, sobre um transfundo de uma brancura
racial-cultural. [...] Graças a esse quid pro quo que, para se chegar a ser
autenticamente moderno, é preciso pertencer em alguma medida à raça branca
relegando assim a todos os indivíduos singulares ou coletivos que forem de
“cor” o âmbito impreciso do pré, do anti e do não moderno, não ocidental
(ECHEVERRÍA, 2007, p. 4).

As relações de gênero
Juntamente com a concepção de raça, a modernidade colonial
capitalista se estruturou a partir de relações específicas de hierarquia entre
gêneros. Esse conjunto de relações configurou as relações de gênero,
formando um patriarcado colonial moderno e uma a colonialidade de gênero
(SEGATO, 2012).
A modalidade específica dessa articulação da colonialidade de gênero na
América Latina seria, nas palavras da pensadora e militante boliviana Julieta
Paredes, o “entroncamento patriarcal” – uma articulação entre o patriarcado
ocidental e o patriarcado existente no mundo pré-colonial. Explica essa
escritora:

Descolonizar o gênero significa dizer que a opressão de gênero não veio


somente com os colonizadores espanhóis. Havia também uma versão própria
da opressão de gênero nas culturas pré-coloniais. Quando chegaram os
espanhóis, ambas visões se juntaram para desgraça das mulheres que
habitam a Bolívia (PAREDES, 2010, p.73).

A partir desse entroncamento de patriarcados se estabelece um conjunto


de relações desiguais de gênero no mundo colonial, que objetiva estruturar a
colonialidade do poder e realizar a acumulação primitiva de capital. Assim
como no caso da raça, a opressão de gênero fundamenta-se no pensamento
de que a mulher – e demais identidades de gênero não masculinas patriarcais
49

e não heterossexuais – não tem plenitude ontológica. Ou seja, as mulheres são


menos humanas que os homens heterossexuais e, até mesmo, não humanas.
Com base nessa concepção epistêmica, o mundo colonial patriarcal reorganiza
as relações de gênero. Como explica a antropóloga argentina Rita Laura
Segato:

Apesar de ser a colonialidade uma matriz que organiza hierarquicamente o


mundo de forma estável, esta matriz tem uma forma interna: existe, por
exemplo, não só uma história que instala a episteme da colonialidade do poder
e da raça como classificadores, mas também uma história da raça dentro
dessa episteme; existe também uma história das relações de gênero dentro do
cristal do patriarcado (SEGATO, 2012).

Outra noção trabalhada por essa autora é “patriarcado de baixa


intensidade” (SEGATO, 2014). Para ela, as relações pré-coloniais, apesar de
patriarcais, eram menos desiguais, devido ao lugar do mundo privado e
doméstico – feminino – na vida política e social. As mulheres mantinham
relativo poder decisório sobre a vida comunitária, embora tal poder fosse
inferior ao dos homens. Com a modernidade colonial, há uma intensificação da
posição masculina de poder e domínio devido à hipertrofia da vida masculina e
do mundo político público, em detrimento do mundo doméstico e do espaço da
política comunitária. Com a intrusão colonial e o ideal republicano, há uma
binarização de gênero onde antes havia uma dualidade hierárquica que podia
operar como complementaridade.
Já para a também argentina Maria Lugones, não haveria sistema
patriarcal na América antes do mundo colonial. Para a autora, tanto na África
quanto entre os povos originários da América, “se encontrava a estrutura social
bilateral complementar; o entendimento do gênero; e a distribuição econômica
que costumava seguir um sistema de reciprocidade" (LUGONES, 2008). Com a
colonialidade, a supremacia espiritual e política das mulheres deu lugar à
dominação masculina em todas as dimensões da vida social.
Podemos dizer que, de maneira geral, após a colonização se estruturou
uma agudização das desigualdades de gênero e que essas desigualdades
passaram a operar em conjunto com a hierarquia racial. Dessa forma, a partir
do século XVI, se estrutura um patriarcado colonial moderno.
50

As relações com a “natureza”


Um eixo central da colonalidade de poder é a colonização da natureza. A
partir de uma concepção específica de natureza, se constitui uma série de
relações de poder em que os diferentes elementos não humanos que formam o
conjunto de ecossistemas do meio ambiente entram como “matéria prima” ou
como “produtos animais” no interior da lógica colonial mercantil capitalista. Os
diferentes contextos socioambientais, sua biodiversidade expressa em sua
fauna e flora são objetificados em uma relação de controle e dominação
submetida aos ditames da lógica de produção da mercadoria. Como explica
Héctor Alimonda:

Quero começar destacando o ponto que me interessa desenvolver neste


momento: a persistente colonialidade que afeta a natureza latino-americana.
Esta, tanto como realidade biofísica (sua flora, sua fauna, seus habitantes
humanos, a biodiversidade de seus ecossistemas) como em sua configuração
territorial (a dinâmica sociocultural que articula significativamente esses
ecossistemas e paisagens), aparece ante o pensamente hegemônico global e
ante as elites dominantes da região como um espaço subalterno, que pode ser
explorado, arrasado, reconfigurado, de acordo com as necessidades dos
regimes de acumulação vigentes (ALIMONDA, 2011, p. 22, tradução nossa).

A colonialidade da natureza produziu, ao longo de cinco séculos: 1) A


implementação de alguns grandes empreendimentos de exploração que são
parte do mundo colonial moderno capitalista. 2) A implementação de
monoculturas para exportação em larga escala. No Brasil são conhecidos os
ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do café, da borracha e do algodão, entre
outros. Atualmente, agrocombustíveis derivados da soja e da cana-de-açúcar e
produção de celulose a partir do eucalipto são os exemplos mais destacados
dessas práticas. 3) A hipermineração a céu aberto, responsável por enormes
agravos ao meio ambiente. Os atuais crimes ambientais de proporções
imensas – o rompimento das barragens nas cidades de Mariana (2016) e
Brumadinho (2019) – são decorrência desses projetos, que estavam presentes
já no início da colonização. 4) Os grandes empreendimentos de infraestrutura,
como abertura de portos e construção de hidrelétricas e vias de comunicação
com objetivo de dar base a novos ciclos de exploração.
Um dos traços mais importantes da colonização da natureza é a
concepção de pensamento que envolve as práticas sociais associadas aos
processos de colonização. A partir da articulação com as relações de gênero e
51

com a racialidade, a “natureza” é o lócus inferior onde reside determinada


condição não humana. Portanto, além de um espaço biofísico, a natureza é
também entendida como um lugar existencial que entra na lógica hierárquica
própria à colonialidade do poder. Nesse sentido, gêneros e raças considerados
inferiores estão associados a uma noção de proximidade ou fusão com a
natureza e, portanto, de “animalidade” e de “descontrole” próprios da vida
“selvagem”. Assim, são seres humanos que carregam características mais
“naturais”, portanto inferiores e, em última análise, não humanas.
Essa noção evolucionista de inferioridade também é utilizada para
hierarquizar a natureza do continente latino-americano em relação ao
continente europeu. Por serem parte dessa natureza inferior, os povos latino-
americanos teriam uma incapacidade biofísica que os impede de alcançar o
nível civilizatório elevado que os europeus alcançaram: “se estabelece assim
uma epistemologia de raízes geopolíticas, uma verdadeira ‘geografia
imaginária’ que estabelece relações ocultas de continuidade ao longo de cinco
séculos” (ALIMONDA, 2011, p. 24).

O controle do trabalho
Em suma, no interior do empreendimento colonial, se introduz na América a
hierarquização sociocultural com base em traços fenotípicos e de gênero e na
colonização da natureza. Nascido inicialmente para dar um sentido de
dominação “natural” à relação desigual entre os colonizadores ibéricos e os
“índios”, o padrão racial se expande por todo o globo, estabelecendo uma
distribuição geográfica do poder com base na ideia de raça e de gênero. No
caso específico da América, a racialização da população criará uma hierarquia
que integra a diversidade da população mestiça – e o processo de mestiçagem
– em uma divisão racial do trabalho. Como explica Quijano:

Em estreita articulação com esse novo sistema de dominação social e


paralelamente à sua constituição, foi também emergindo um novo sistema de
exploração social ou, mais especificamente, de controle do trabalho. [...] Em
meados do século XVI, essa associação entre ambos os sistemas já estava
claramente estruturada e se reproduziria durante quase quinhentos anos: os
"negros" eram, por definição, escravos; os "índios", servos. Os não índios e não
negros eram amos, patrões, administradores da autoridade pública, donos dos
benefícios comerciais, senhores no controle do poder (QUIJANO, 2005).
52

Dessa forma, em torno da articulação entre diferentes formas de


organizar a produção para a concentração dos excedentes, assim como do
universo de relações intersubjetivas imbricadas nesse processo, nascia o
capitalismo mundial. No caso de controle e exploração do trabalho, o conjunto
de relações pré-existentes se articulou em torno de uma hierarquia, cujo topo
foi ocupado pela relação de trabalho-salário, predominante nos países centrais
do capitalismo. A servidão e a escravidão foram predominantes nos territórios
colonizados e relegadas às populações classificadas como negras e índias,
sendo divididas internamente pelas relações de gêneros próprias da
colonialidade. Ou seja, além de uma classificação social segundo ditames
raciais, também há uma questão geopolítica atravessando a conformação da
colonialidade do poder. As noções de países subdesenvolvidos, periféricos,
atrasados e de Terceiro Mundo que são desenvolvidas a partir do século XX
são desdobramentos dessa organização e explicitam a continuidade de uma
lógica que articula produção, territorialização e processos identitários.

A epistemologia eurocêntrica
Em conjunto com o racialismo, a relação de gênero, a colonização da
natureza e o controle do trabalho, articula-se um modo de pensamento
específico, responsável pela produção intersubjetiva dos valores da
colonialidade do poder: a razão eurocêntrica. Com base na cisão dualista
própria do cartesianismo e do evolucionismo, a epistemologia eurocêntrica
estrutura hierarquicamente o universo cultural e de valores das populações do
continente latino-americano. Desse modo, imagens, representações e saberes
próprios dos povos submetidos à colonialidade do poder são subsumidos,
invisibilizados e exterminados, segundo a estrutura de exploração que ancora
todo o sistema de relações sociais no capitalismo mundial. Para além de uma
imposição de valores, essa relação é iminentemente intersubjetiva, ou seja,
passa pela própria autorrepresentação e imagem de si mesmo das populações
colonizadas, assim como de suas formas próprias de conhecimento. Afirma
Quijano:
53

Não se trata somente de uma subordinação das outras culturas a respeito da


cultura europeia em uma relação exterior. Trata-se de uma colonização das
outras culturas, mesmo que, sem dúvida, em diferente intensidade e
profundidade segundo os casos. Consiste, inicialmente, em uma colonização
do imaginário dos dominados. Isto é, atua na interioridade desse imaginário.
[...] A repressão recaiu sobre os modos de conhecer, de produzir
conhecimento, de produzir perspectivas, imagens, sistemas de imagens,
símbolos, modos de significação sobre os recursos, padrões e instrumentos de
expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual (QUIJANO, 1992, p.
2).

Assim, a partir do advento da modernidade, é ressignificado todo o


universo compartilhado de saberes e perspectivas de conhecimento oriundo da
memória histórica das populações inseridas e organizadas segundo os padrões
da colonialidade do poder. Distintos modos de reprodução da vida e suas
dimensões são colocados como hierarquicamente inferiores na estrutura
verticalizada e evolucionista da colonialidade do saber.
Desse modo, toda a diversidade presente nos saberes e na memória
das populações identificadas como negras e índias é considerada como
hierarquicamente inferior e sem estatuto de conhecimento verdadeiro. Esse
processo, vigente ainda, é extremamente violento, pois retira a possibilidade de
determinação de si mesmo e da coletividade a partir de critérios próprios e de
uma memória própria. Toca, em última análise, no estatuto de humanidade
dessas populações. Essa estrutura de rebaixamento e anulação dos dados que
participam dos processos de formação dos povos latino-americanos – extraindo
sua humanidade – é a base de toda a epistemologia eurocêntrica.

3. A matriz de pensamento do
colonizado: a mestiçagem
descolonial crítica
No entanto, seguindo a noção de modernidade saturada de
contradições, podemos afirmar que, simultaneamente ao conjunto de
ordenamentos hierárquicos próprios da colonialidade do poder e seus eixos
estruturadores, se desenvolvem modos de existência críticos ao padrão de
obediência ao sistema colonial mercantil capitalista. Esse conjunto de
experiências críticas não se guia por um sistema hierárquico pré-determinado e
54

se estrutura de maneira heterogênea e relativamente autônoma, desafiando a


lógica de concentração de poder instituída pelo capitalismo mundial.
Esse universo de variadas experiências que se desenvolveram para
resistir e superar a ordem imposta pelo sistema colonial mercantil capitalista
guarda em seu fundamento a necessidade de instituir modos de organização
social, estética e política que afirmam a memória histórica das populações
dominadas. Tais experiências se originam na tensão com o projeto colonial da
modernidade, configurando um ethos próprio – a proposta de uma
modernidade dissonante no interior do sistema capitalista, que busca, desde o
início da colonização, estabelecer um contraponto ao projeto hegemônico.

A modernidade alternativa
Como vimos, o sistema do mundo colonial moderno capitalista surgido no
século XVI se realizou enquanto um processo estruturado em torno da
colonialidade do poder. Porém, a modernidade viu nascer também, intrínseca a
esse processo de modernização gradativa das relações sociais, imbricada nele,
a consciência crítica a esse projeto. Se a colonialidade do poder se configurava
como o sistema vertebral da dominação moderna colonial, junto a ela se
desenvolvia um nexo alternativo às relações sociais do continente, uma
modernidade alternativa. Nexo que resiste porque duvida do realismo que
naturaliza as relações de dominação – gênero, raça, classe, relação com a
natureza – e de sua intersubjetividade correspondente, a racionalidade
eurocêntrica. A modernidade colonial mercantil capitalista se configura pela
colonialidade do poder, de um lado, e por sua consciência crítica, de outro.
Como explica José de Sousa Martins (2000, p.18): “A modernidade só o é
quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a consciência crítica do
moderno”.
Essa tensão constitutiva intrínseca à totalidade moderna realiza,
portanto, conforme esse autor, a “luminosidade de sua sombra”, que está para
além do projeto de conquista e unificação em torno da colonialidade do poder.
Assim, no campo histórico, juntamente com o projeto impulsionado pela cruz e
a espada, pelas formações nacionais europeias e pelo racionalismo iluminista,
55

se desenvolveram dinâmicas histórico-culturais que se tensionaram com o


projeto hegemônico da modernidade.
Por um lado, é possível identificar a agudização do trajeto metafísico da
modernidade na teologia medieval, no Absolutismo e no projeto da razão
moderna enquanto cogito cartesiano. Por outro, é possível identificar a crítica a
esses modos de conhecimento, que está presente em diferentes experiências
sociais que se associam de forma descontínua e heterogênea, multiplicidade
que se manifesta como contraponto por todo o espaço de dominação da
colonialidade do poder. Esse conjunto heterogêneo de experiências sociais
caracteriza a lógica do colonizado: a mestiçagem descolonial crítica.
O significado do termo mestiçagem, principalmente nos estudos
realizados no Brasil, indica, sobretudo, um processo de assimilação e
submissão das diferentes populações a uma hierarquia sociocultural própria do
mundo colonial. Segundo essa versão da concepção de mestiçagem, a
branquitude e seus valores estariam no topo da hierarquia sociocultural da
humanidade, sendo a mestiçagem – a mistura – um esforço de
embranquecimento da sociedade, que assim se tornaria melhor.
A mestiçagem descolonial crítica segue um rumo diferente em sua
concepção. Ela seria o fator crítico diante da hierarquia presidida pela
branquitude e seu sentido de “pureza” ou de assimilação dos outros povos
segundo seu crivo. Na mestiçagem descolonial crítica, a mistura é vista como
fator que caracteriza um modelo de articulação e de combinação entre as
diversas matrizes socioculturais e seus diferentes processos históricos. Assim,
a mestiçagem descolonial crítica se apresenta como um contraponto à lógica
do colonizador. Ela é o padrão alternativo à colonialidade do poder, é a lógica
criada pela resistência das diferentes populações dominadas. Surgida da
necessidade de as populações reordenarem as diferentes dimensões de sua
vida social diante do cataclisma sociocultural que caracterizou o projeto
colonial, a mestiçagem descolonial crítica é o sentido de abertura e de
assimilação do outro próprio do universo do colonizado. É a matriz de
pensamento que rege a necessária construção de um modo de produção e
reprodução da vida social alternativo àquele imposto pela colonialidade do
poder.
56

A antropóloga Rita Laura Segato descreve aquilo que seria uma


mestizaje desde abajo, que se contraporia à mestizaje desde arriba. Baseada
na obra de Aníbal Quijano, Segato postula uma mestiçagem distinta da
mestiçagem do branqueamento; distante, portanto, das teses de Gilberto
Freyre, “que afirmava a positividade da captura-sequestro, violação,
apropriação, devoramento do africano e do indígena pela ganância e luxúria
portuguesa” (SEGATO, 2010, p. 27). Para essa autora, indo na contramão
dessa mestiçagem branqueadora, haveria uma mestiçagem outra,
enegrecedora, em que o destino do entre mundos da mestiçagem é a
redescoberta do mundo indígena e afro. Em um trecho bastante elucidativo,
escreve a antropóloga:

Recordemos, de passagem, que há também entre mundos do sangue, relativos


à mestiçagem, que vão, da mesma forma, em uma direção ou outra: existe um
entre mundo da mestiçagem como branqueamento, construído
ideologicamente como o sequestro do sangue não branco na “brancura” e sua
cooptação no processo de diluição sucessiva do rastro do negro e do indígena
no mundo miscigenado, no sentido de branqueado, do continente. E há um
entre mundo da mestiçagem de sentido contrário, que poderíamos chamar de
enegrecimento: a mescla do sangue branco com o sangue não branco no
processo de reconstrução do mundo indígena e afrodescendente, colaborando
com o processo de sua reconstituição demográfica. Estas duas construções
são puramente ideológicas, pois a biologia de ambas é a mesma, porém
correspondem, é evidente, a projetos históricos opostos. No segundo projeto,
começa a reformular-se a mestiçagem como a navegação do sangue não
branco, durante séculos de clandestinidade, cortando por dentro e através do
sangue branco, até ressurgir no presente de seu prolongado ocultamento no
processo amplo de reemergência de povos que o continente testemunha. O
mestiço, assim, passa a perceber que carrega a história do indígena no seu
interior (SEGATO, 2012).

Seguindo a reflexão sobre a dupla consciência, a dupla mestiçagem seria,


portanto, justamente a mestiçagem do colonizador – de cima – que homogeneíza a
todos sob o signo da branquitude. Já a mestiçagem descolonial crítica seria aquela
que traria para o campo do sentido e do visível – e por que não dizer consciente – o
mundo africano e indígena presente nos povos latino-americanos. Se o mestiço
embranquecido é o horizonte histórico da mestiçagem do colonizador – desde arriba
–, é o mundo indígena e africano, é o enegrecimento e a indianização o horizonte
histórico da mestiçagem do colonizado, desde abajo.
“Pura ideologia” no dizer da estudiosa, ambas as mestiçagens são também
parte de nossa vida psicológica, seguem em tensionamento em nossa dupla
consciência. Estão em nossos afetos, percepções e nos significados que damos ao
mundo.
57

Outra autora que tem trabalhado a questão da descolonização da mestiçagem


é a socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui. Para a pensadora, a mestiçagem,
quando descolonizada, deixa de operar como fusão e indiferença entre as matrizes
formadoras e passa a se organizar de maneira a não diluir as diferenças em uma
unidade homogênea. A esse modo de mestiçagem, Rivera chama de ch’ixi.

A palavra ch’ixi tem diversas conotações: é uma cor produto da justaposição,


em pequenos pontos ou manchas, de duas cores opostas ou contrastadas:
branco e preto, roxo e verde, etc. É esse cinza mesclado, resultado da mistura
imperceptível do branco e do preto, que se confundem na percepção sem
nunca misturar-se completamente. A noção ch’ixi, assim como outras (allqa,
ayni) obedece à ideia aymara de algo que é e não é ao mesmo tempo, ou seja,
é a noção do terceiro incluído. Um cinza ch’ixi é branco e não é ao mesmo
tempo. É branco e também é negro ao mesmo tempo (RIVERA CUSICANQUI,
2010, p. 69).

Essa outra mestiçagem proposta por Rivera não se refere somente a uma
questão circunscrita ao debate sobre nossos povos e sua multiculturalidade. Ao
descolonizar a mestiçagem e trazer à tona a diversidade, Silvia defende que as
múltiplas diferenças culturais possam afirmar suas histórias e suas lutas. O ch’ixi é
uma matriz de descolonização não somente da mestiçagem como sentido étnico-
racial; é também uma proposta ético-política concreta de construção de uma
sociedade descolonizada, que enfrenta a colonialidade do poder. É uma mestiçagem
descolonial crítica:
O pensamento descolonizador que nos permitirá construir uma Bolívia
renovada, genuinamente multicultural e descolonizada, surge da afirmação de
que somos bilíngues, misturados e ch’ixi. E de que isso se projeta como
cultura, teoria, epistemologia, política de estado e também como definição nova
de bem-estar e desenvolvimento [...]. Construir nossa própria ciência – em um
diálogo entre nós mesmos –, dialogar com a ciência dos países vizinhos,
afirmar nossos laços com as correntes teóricas da Ásia e África e enfrentar os
projetos hegemônicos do norte com a renovada forças de nossa convicção
ancestral (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 73).

Mestiçagem que opera criticamente ao mundo colonial moderno, a


noção de ch’ixi busca ir além da dualidade cindida entre mundo do colonizador
e mundo do colonizado. Essa noção de terceiro incluído como fundamento de
uma sociabilidade alternativa na América Latina está presente também na
concepção de ethos barroco.

O ethos barroco
58

Uma das principais formas de contraposição e diferenciação em face da


versão evolucionista do ordenamento sócio-histórico da modernidade foi o
barroco. Expressão histórica da contradição existente entre a ideia da unidade
universal em torno de um Deus único e transcendente e a ideia de um mundo
natural regido por leis próprias, o barroco afirma a dualidade e a tensão
presentes no movimento do real em seu devir, guerra de contrários.
Enraizado no tempo social em diferentes épocas, o barroco traz consigo
a força criativa e a intensidade própria da natureza imanente e contraditória.
Em sua expressão no continente americano, a separação e os tensionamentos
entre mundos distintos são ainda mais radicais. O barroco latino-americano é a
expressão desse modo de vida em que a resistência das populações à
violência colonial se teatraliza e se expressa através da mestiçagem
descolonial crítica, configurando-se como forma cultural inédita e original.
É essa especificidade do modo de vida crítico propriamente americano
que Bolívar Echeverría vai denominar ethos barroco. Perspectiva que preserva
a tensão contraditória ao mesmo tempo em que “inventa” uma terceira
possibilidade, o ethos barroco é a marca distintiva do mundo da vida do
continente americano, seja em suas formas artísticas mais rebuscadas, seja no
seu cotidiano miúdo, arena dos pequenos costumes. O ethos barroco assume
essas oposições, ao mesmo tempo que propõe uma alternativa. Como explica
Echeverría:

[O ethos barroco está...] situado nessa necessidade de escolher, nesse


enfrentamento desta alternativa. Não é a abstenção ou irresolução como
poderia parecer à primeira vista que caracteriza centralmente o comportamento
barroco. É a decisão de tomar partido pelos contrários ao mesmo tempo. Na
realidade, ele resolve o conflito em um plano diferente, em que o mesmo – sem
ser eliminado – acabe transcendido. Inerente ao ethos barroco está a escolha
pelo terceiro incluído (ECHEVERRÍA, 2000, p. 176).

Nesse sentido, o ethos barroco se caracteriza pela intensa estetização


da vida cotidiana, pela teatralização originada nessa dialética americana dos
extremos, que afirma simultaneamente o mundo real e o mundo da ilusão, o
mundo das formas e o mundo das ideias, a fruição dos sentidos e a angústia
do espírito e inúmeras outras ambiguidades. O ethos barroco é a expressão
dessas tensões em sua vigência mais vigorosa, é justamente a afirmação
desse movimento de oscilação entre um polo e outro, dessa tentativa de
59

abranger e outro – oposições radicais em uma temporalidade não linear e


hierárquica. Ao expressar de maneira tão intensa e radical os tensionamentos
próprios do mundo colonial americano, o ethos barroco se realiza enquanto
uma perspectiva aberta ao caráter crítico, na medida em que fere, por
natureza, a certeza do ideal clássico, desafiando o mundo das formas
harmônicas.
Podemos encontrar um sem-número de fatos histórico-culturais que
explicitam essa lógica alternativa, esse modo de pensamento e prática social
que caracteriza o ethos barroco enquanto prática de resistência.
Um das principais experiências concretas do ethos barroco da América
foram os empreendimentos catequizadores de caráter utópico-evangélico.
Buscando o reavivamento e até mesmo a refundação da Igreja e da obra
apostólica; dominicanos, franciscanos e jesuítas protagonizaram variados
experimentos utópico-sociais em que se buscava um verdadeiro “renascimento
cristão”, com base em uma experiência comunitária que amalgamasse a
doutrina da Igreja com a vida indígena. Chamadas de A Grande Experiência,
as missões jesuítico-guaraníticas são apontadas por estudiosos como uma
possível experiência de igualitarismo social com base em valores cristãos-
indígenas.
Outra experiência de caráter religioso em que o ethos barroco se fez
presente foi o marianismo. Esse fenômeno, presente em todo o continente
americano cristão ibérico, se caracterizou pela eleição de uma figura sagrada
feminina como mediadora entre o mundo da vida e o mundo de Deus
onipresente, não raro identificado com características próprias de autoridades
de mando colonial.
São comuns em todo o continente elementos como a aparição da
Virgem em um barco para pescadores, sua tez negra em lugares de forte
presença africana, como o Brasil, e histórias em que a figura de Maria se
confunde com personagens do mundo rural, muitos deles figuras mítico-pagãs,
como a imagem de Iemanjá em variados cultos afro-brasileiros. No campo da
luta política, até mesmo como entidade protetora na luta de libertação dos
povos, Maria também está presente. No México, a Guadalupana se tornou um
forte símbolo para independentistas e os revolucionários. Assim, o marianismo
popular se converte em forma de proteção divina.
60

A mestiçagem descolonial crítica, proponente de uma outra


modernidade, também se concretizou através das inúmeras rebeliões e
movimentos de enfrentamento à ordem e à dominação próprias da
colonialidade do poder. Invisibilizadas ou diminuídas em sua importância, foram
realizadas desde o século XVI inúmeras revoltas e ações com o objetivo de
resistir, anunciar e inaugurar uma nova ordem social. Combinando diferentes
formas de organização sociopolítica, essas ações se apoiavam em lógicas de
relação próprias do universo da mestiçagem, em que diferentes memórias
históricas e tradições se combinavam para formar exércitos, cidades,
agrupamentos rebeldes, grupos messiânicos e diferentes modos de
organização, com o objetivo de realizar formas de sociabilidade que não
estivessem sob o crivo do dominador. São exemplos, no Brasil, os Sete Povos
das Missões, na área da tríplice fronteira; Palmares, em Alagoas; a
Cabanagem, no Pará. O Brasil foi palco também da Balaiada, da Revolução
Praieira, da Revolução Farroupilha e de inúmeras insurreições e experiências
de organização realizadas por escravos, indígenas e povos mestiços.
No caso da América hispânica e do Caribe, podemos destacar: a revolta
anticolonial de Túpac Amaru (1780-1782), no Peru; o cerco à cidade de La Paz,
comandado por Túpac Katari (1781); a Revolução Haitiana (1791), a Revolução
Mexicana (1910) e a Revolução Cubana (1957).
Assim, ao lado da colonialidade do poder, está presente no continente
americano, implicada em cada aspecto de sua formação, a resistência crítica a
esse padrão de poder. Como apresentado por Echeverría, a especificidade da
vida social no continente elaborou um ethos histórico específico, um barroco
enriquecido pelas contradições agudas vividas pelas populações mestiças.
Com base nesse ethos barroco e na dialética dos extremos, próprios da
realidade latino-americana, é possível vislumbrar uma outra modernidade,
invisibilizada pelo crivo do modo de produção capitalista, que se afirma como
unidade absoluta. Modernidade alternativa, formada por um conjunto de
práticas sociais que se organiza de maneira invertebrada e que se rege por um
transfundo filosófico, uma perspectiva de conhecimento comum presente em
diferentes dimensões da vida social do continente, um pensamento mestiço
(GRUZINSKI, 2001).
61

4. A construção de uma psicologia


popular latino-americana
Seguindo a noção de dupla consciência histórica latino-americana – seu
tensionamento – é preciso marcar a necessidade da construção de um saber
psicológico que opere produzindo uma subversão – descolonização – nessa
estrutura dinâmica. Ou seja, é necessário elaborar um saber psicológico que
subverta a lógica colonial presente de maneira central nos processos históricos
da América Latina. Deve ser uma psicologia que contribua com o processo
mais amplo de descolonização da sociedade. Seja no plano ético-político ou no
conjunto de técnicas e conhecimentos instituídos, ela deve oferecer subsídios
que colaborem para a “virada” da dupla consciência latino-americana e de sua
existência social.
Esse processo de subversão pode ser entendido como um processo no
qual se opera, num mesmo movimento articulado, a desconstrução-
descolonização da matriz da colonialidade do poder e a construção de um
saber que visibilize e articule diferentes memórias históricas e saberes
tradicionais, a partir de uma mestiçagem descolonial crítica.
Usando uma imagem bastante utilizada pelos zapatistas, a
descolonização – subversão – da dupla consciência é um processo histórico no
qual os saberes instituídos pela população a partir da realidade vivida desde
abajo e desde adentro se tornem referência para outra concepção de realidade
social, para outra concepção de civilização. É preciso que eles se tornem a
referência central na criação de valores da sociedade, deixando sua condição
de subalternidade e de inferiorização própria da hierarquia do pensamento
colonial, a colonialidade do poder. Ou seja, é preciso que se constitua uma
nova estrutura social em que a memória histórica e o conjunto de saberes
populares articulados sejam os esteios constituintes de um novo processo
civilizatório.
Nesse sentido, é necessário desenvolver uma psicologia latino-
americana que participe diretamente desse processo. É preciso desenvolver
um conjunto de saberes e práticas psicológicas que estejam baseados na
especificidade dos processos ético-políticos, de formação identitária, de
62

subjetivação e de relações intersubjetivas dos povos latino-americanos. Essa


psicologia deve, assim, constituir-se como um saber mestiço, na medida em
que se realiza como uma constelação articulada de diferentes memórias e
saberes populares. E é um saber crítico, na medida em que tem no horizonte a
superação da subalternidade histórica imposta aos povos latino-americanos,
sua emancipação.
A psicologia popular latino-americana deve ser construída a partir de
uma epistemologia que consiga articular o conjunto de processos de produção
dos saberes populares e de sua memória histórica com um projeto de
libertação e emancipação dos povos formadores do continente. É uma
psicologia que surge no interior do processo de descolonização da dupla
consciência, da subversão dos seus valores dominantes; e que está afinada
com o esforço coletivo interdisciplinar de pensar outro modelo de
conhecimento, de práticas sociais e de sociabilidade. Nesse sentido, é
importante levantar alguns marcos que devem estar presentes nessa
construção.
As referências históricas e teórico-metodológicas que devem participar
diretamente de uma psicologia popular latino-americana são muitas e variadas,
sendo difícil tratá-las todas neste espaço. Escolhemos abordar a libertação, a
descolonização e a memória histórica popular, por entendermos que são
centrais nesse processo. Não são, de modo algum, as únicas.

Libertação
A psicologia popular latino-americana deve ser construída com base e
em conjunto com saberes psicológicos – e outros – que foram sendo
desenvolvidos ao longo da história latino-americana. Nesse sentido, é possível
afirmar que ela encontra na Psicologia da Libertação sua principal interlocutora.
Mais que isso, a psicologia popular latino-americana participa diretamente do
legado constituído pela Psicologia da Libertação no continente.
A partir da década de 1960, sob o impulso da Revolução Cubana, surge
um conjunto de pensadores que serão responsáveis pelo surgimento do
pensamento da Libertação, corrente central do pensamento latino-americano
do século XX, que remete diretamente às lutas anti-imperialistas e de
63

independência da segunda metade do século XIX e primeira metade do século


XX.
A noção de libertação continua muito presente na segunda metade do
século XX. Podemos destacar a Teologia da Libertação e sua “opção pelos
pobres”, a Filosofia da Libertação, de Enrique Dussel, a Pedagogia da
Libertação, de Paulo Freire, e a Sociologia da Libertação, de Orlando Fals
Borda. A partir de suas disciplinas específicas, esses pensadores somam-se na
construção de um conhecimento enraizado na luta popular dos povos latino-
americanos em busca da subversão dos valores que estruturam o capitalismo
mundial.
Entres esses pensadores, destacamos Ignacio Martín-Baró, jesuíta
espanhol radicado em El Salvador, que elabora os marcos teóricos de uma
Psicologia da Libertação. Para Martín-Baró, a psicologia é um saber que deve
contribuir diretamente para a libertação popular. Ele produziu uma vasta obra
que oferece ferramentas para uma psicologia comprometida com a
transformação da realidade social latino-americana. Em suas palavras:

Se queremos que a Psicologia realize alguma contribuição significativa à


história de nossos povos, se como psicólogos queremos contribuir para o
desenvolvimento dos países latino-americanos, precisamos reformular nossa
bagagem teórica e prática, mas reformulá-la a partir da vida de nossos próprios
povos, a partir de seus sofrimentos, suas aspirações e lutas. Se me for
permitido formular esta proposta em termos latino-americanos, devo afirmar
que, se pretendemos que a Psicologia contribua para a libertação de nossos
povos, temos de elaborar uma Psicologia da libertação (MARTÍN-BARÓ, 1986,
p. 22).

Descolonização
Entendemos que o pensamento da descolonização que tem sido
debatido na América Latina, principalmente a partir do ano 2000, tem estreita
vinculação com a categoria da Libertação. O termo descolonização passa a ser
conhecido nos anos 60 a partir da obra do psiquiatra e ensaísta martinicano
Frantz Fanon, que dedicou a vida à luta anticolonial dos países africanos. Em
sua obra, Fanon faz uma acurada análise dos processos subjetivos que
envolvem a condição colonial, tanto do colonizador como do colonizado. Se na
América do século XIX o termo libertação deu contorno às lutas de
independência, a partir do século XX essa categoria participa diretamente da
64

crítica à continuidade da estrutura colonial no continente e se nutre também


dos ideais da luta pela descolonização dos países africanos.
A partir da queda do muro de Berlim, em 1989, um novo contexto se
apresenta no cenário político-social da América Latina, que passa a assistir ao
fortalecimento do debate sobre o papel das chamadas culturas minoritárias no
interior do Estado nacional. A ascensão de governos progressistas na Bolívia e
no Equador – países formados majoritariamente por populações indígenas –
impulsiona a discussão sobre a necessidade de repensar esses Estados-
nação, suas populações constituintes e seus saberes associados.
É no seio desse conjunto de acontecimentos que emerge a categoria da
descolonização latino-americana. Em outras palavras, descolonização significa
reconhecer e dar visibilidade às práticas sociais, ético-espirituais e político-
filosóficas que vêm sendo produzidas por essas populações.
À ideia de libertação – muito orientada pelo debate socioeconômico -
soma-se a noção de descolonização, que dá ênfase também à dimensão
cultural e epistemológica das populações do continente. Podemos dizer que o
debate da descolonização se articula com o da libertação, oferecendo um
aprofundamento e um melhor entendimento da cosmovisão e das
especificidades culturais próprias das diferentes populações do continente.
O debate realizado sobre descolonização a partir dos anos 2000 tem na
categoria da colonialidade seu principal aporte teórico. A descolonização da
psicologia é um tema fundamental na construção de uma psicologia popular
latino-americana, na medida em que busca legitimar modos de viver e de
pensar que não são incluídos no campo de estudo e na prática da psicologia.
Mais grave ainda, muitas vezes esses fenômenos não ganham nem mesmo
legitimidade ontológica, ou seja, são tratados como inexistentes. Para reverter
esse quadro de dominação ideológica de uma episteme eurocêntrica
explicitamente colonizadora, é necessário operar processos que critiquem
esses postulados e apresentem outras possibilidades de compreensão e de
ação no campo da psicologia.

Subversão da colonialidade
65

A construção de uma modernidade alternativa passa pela subversão


radical das dimensões que formam a colonialidade do poder. Pela articulação
do conhecimento e da memória histórica das populações dominadas, é
possível construir um novo sentido histórico orientado pela descolonização das
relações de poder na sociedade (QUIJANO, 2014, p. 857). Nesse sentido é
preciso que cada âmbito social da colonialidade seja subvertido a partir da
lógica própria da mestiçagem crítica.
No caso do racialismo, é necessário desconstruir o padrão colonial de
classificação social baseada na ideia de raça. A colonialidade se estrutura a
partir de uma hierarquia racial que tem por referência a branquitude como
símbolo máximo a ser alcançado. Assim, o combate ao racismo em suas
diferentes expressões e o reconhecimento de inúmeras populações
etnicamente diferenciadas são processos incontornáveis para a descolonização
da cultura colonial. Explica José Maria Nunes Pereira:
O combate ao racismo dá-se no interior da luta social – onde está a
sua origem – e não somente nos campos econômico e jurídico-
político, mas sobretudo, e permanentemente, na instância ideológica
através do processo de descolonização. Nesse processo se torna
necessária a transformação de aparelhos ideológicos que
reproduzem – por determinação de uma estratégia política superior –
não apenas o racismo como outras ideologias de dominação
(PEREIRA, 1978, p. 24).

As relações de gênero presentes na colonialidade também podem ser


desconstruídas a partir da articulação própria da mestiçagem crítica. Se o
patriarcado constituinte da construção da América Latina enquanto território
colonizado é um entroncamento patriarcal de diferentes origens, a construção
de uma alternativa descolonizada passa pela retomada de diferentes memórias
históricas relacionadas ao gênero:

Descolonizar o gênero, nesse sentido, significa recuperar a memória


das lutas de nossas tataravós contra um patriarcado que se instaurou
antes da invasão colonial. Descolonizar e desneoliberalizar o gênero
é ao mesmo tempo localizá-lo geográfica e culturalmente nas
relações de poder internacionais entre norte e sul empobrecido.
(PAREDES, 2010, p. 73).

O processo de descolonizar as relações com a natureza também pode


ser operado através do reconhecimento da memória histórica e dos saberes
66

tradicionais dos povos latino-americanos. As formas de manejo técnico do


mundo das diferentes populações originárias e afro descendentes e de outras
populações do campo e da cidade podem se articular e, criticamente, buscar
alternativas à colonialidade.
Nós estabelecemos o desenvolvimento baseado primeiramente no
homem e depois na natureza. O certo é fazer o inverso, primeiro a
natureza. Nós somos parte dela. É isso que temos que transformar,
essa é a dura tarefa que temos que fazer. Descolonizar a mente,
esquecer o que foi aprendido e aprender o que está em nossos povos
e nossas comunidades. [...] É um novo pensamento, que é dual e
coletivo, é o pensamento do nosso povo (ECHAVE et al, 2011, p.
244).

O controle do trabalho segundo a colonialidade opera,


fundamentalmente, rearranjando todas as formas de trabalho precedentes ao
advento do capitalismo em uma mesma lógica de acumulação e dominação.
(QUIJANO, 2005, p. 128). Para isso, tanto a ideia de raça como a de gênero
estão imbricadas para criar a classificação social que justifica a exploração
capitalista. Outro elemento fundamental é a epistemologia eurocêntrica, que
legitima o imaginário necessário para a naturalização desses processos. Nesse
sentido, o esforço de criar uma epistemologia que não seja funcional à
exploração do trabalho passa pela superação da colonialidade do poder.
Escreve Quijano

É a instrumentalização da razão pelo poder colonial, em primeiro


lugar, o que produziu paradigmas distorcidos de conhecimento e
fracassaram as promessas libertadoras da Modernidade. A alternativa
é clara: a destruição da colonialidade do poder mundial. De início, a
descolonização epistemológica para dar espaço a uma nova
comunicação intelectual, a uma troca de experiências e de
significações, como a base de outra racionalidade que possa
pretender, com legitimidade, alguma universalidade. (QUIJANO,
1992, p.10).

Memória histórica popular


A recuperação da memória histórica dos povos é um desafio
incontornável no desenvolvimento de uma psicologia popular latino-americana.
História feita por baixo, recuperar a memória histórica é resgatar o processo
histórico de desigualdades a partir do ponto de vista dos invisibilizados,
67

gerando assim uma memória de resistência que possa apoiar projetos coletivos
de futuro.
É tarefa da psicologia problematizar a realidade presente através da
desconstrução histórica de padrões coloniais presentes nas diferentes
dimensões da realidade social, padrões que naturalizam e hierarquizam
relações de dominação. A psicologia deve desconstruir essa naturalização e
explicitar o quanto a realidade social é um espaço saturado de contradições.
Para tal, o psicólogo deve potencializar o conjunto de saberes, visões de
mundo e experiências acumuladas que formam a memória histórica enquanto
realidade viva.
É penetrando na complexa malha de significações da realidade e de
suas construções histórico-culturais que a psicologia pode oferecer subsídios
para que as diferentes populações tenham possibilidade de articular o conjunto
de saberes, princípios éticos, mundo simbólico-imaginário e conhecimentos
ancestrais em uma memória crítica que possa se colocar como contraponto à
dominação colonial.
Nesse sentido, ocupa lugar privilegiado o conjunto de saberes ancestrais
das populações. Se a colonialidade do poder inferioriza e procura exterminar os
valores e práticas socioculturais próprias das populações negras, indígenas e
demais identidades mestiças, é dever de uma psicologia popular latino-
americana legitimar esses saberes e contribuir em sua organização, de modo a
se realizar num corpo de conhecimentos que se oriente para a emancipação
dessas populações.
Nesse conjunto de saberes populares e tradicionais, o campo da religião
e da espiritualidade é especialmente vigoroso e pleno de memória ancestral.
Torna-se imperativo dar legitimidade a tais saberes, pois são expressão
inequívoca da identidade das populações, de suas formas de resistência e da
construção ético-política de sua visão de mundo. Do mesmo modo, é preciso
contribuir para o fim de toda intolerância religiosa. Instrumento da barbárie
colonial, a intolerância é abertamente uma prática de epistemícidio. É uma das
formas mais agudas de controle e sujeição – de colonização, portanto – das
populações do continente.
68

Relação com movimentos sociais e


organizações populares e comunitárias
Uma psicologia construída a partir do conhecimento e da memória
histórica das populações formadoras do continente latino-americano deve se
realizar a partir de uma relação orgânica com as diferentes formas de
organização popular e comunitária. A heterogeneidade dos modos de
organização popular, assim como as suas diferentes expressões socioafetivas
e identitárias devem participar diretamente da constituição de uma psicologia
popular.
A dimensão coletiva, comunitária e organizativa é extremamente diversa
e variada. Ela carrega desde estruturas comunitárias ancestrais, baseadas no
uso da terra e em relações de parentesco fixadas, até possibilidades
contemporâneas de organização de movimentos sociais internacionalistas,
impulsionados pelas possibilidades de interação e comunicação virtual. As
diferentes camadas históricas de construção do mundo moderno, as relações
de trabalho e de reprodução social que conformam esses grupos, as distintas
visões e cosmovisões de mundo neles inscritas, assim como as construções
étnico-raciais e de gênero são alguns dos elementos que se combinam na
estruturação dessas coletividades.
O mundo dos afetos, das sensações, das percepções de si e do mundo,
assim como os parâmetros ético-filosóficos das populações e de seus
indivíduos se constituem a partir dessa heterogênea malha de instituições
coletivas. A psicologia popular latino-americana deve estar atenta a essas
dinâmicas de organização e a sua pluralidade. Ao se constituir como uma
práxis originada no conjunto de saberes das populações do continente, é
imprescindível estar presente e contribuindo com as formas coletivas de
organização popular.

Conclusão <Arte, por favor, aplicar o mesmo peso dos intertítulos numerados

(é a conclusão do texto inteiro>


69

A dupla consciência histórica latino-americana é a dinâmica que


estrutura o conjunto de relações sociais na América Latina. O tensionamento
entre a colonialidade do poder e a mestiçagem descolonial crítica é a matriz
que conforma a dinâmica identitária das diferentes populações e coletividades
do continente.
É preciso que a psicologia contribua para realizar a libertação dos povos
e sua descolonização. Ou seja, deve contribuir para uma subversão na dupla
consciência.
É nesse contexto que se insere a construção de uma psicologia popular
latino-americana. O legado histórico da Psicologia da Libertação, o debate
sobre a descolonização e a visibilização da memória histórica popular são
esteios teóricos que apontam para possíveis caminhos dessa construção.
Seguindo o percurso histórico das lutas e das distintas formas de organização
popular, é possível vislumbrar possibilidades de superação das relações de
poder desigual que estão estabelecidas como realidade cotidiana para a
maioria da população do continente. A construção de uma psicologia popular
latino-americana se insere em um conjunto de esforços para a construção de
um projeto popular para todo o continente. É esse o desafio histórico que deve
ocupar uma psicologia autenticamente latino-americana, uma psicologia
popular.
70

III
NOS CAMINHOS DA DUPLA
CONSCIÊNCIA: SOCIALISMO INDO-
AMERICANO, LIBERTAÇÃO E
DESCOLONIZAÇÃO NA AMÉRICA
LATINA

A. Do um como princípio ao dois


como totalidade: o caminho de uma
outra modernidade
O rio que fazia uma volta atrás de nossa
casa era a imagem de um vidro mole que
fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa
volta que o rio faz por trás de sua casa se
chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de
vidro que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

(Manoel de Barros)

A tentativa de apreender toda a história das culturas humanas em uma


grande totalidade é um esforço que deu origem a obras de grande importância
nas ciências humanas.
Já no século XVIII, pensadores iluministas, como Voltaire e
Montesquieu, se preocuparam em traçar aspectos gerais do desenvolvimento
das sociedades. No século XIX, coube a Hegel 12 o esforço de indicar o caminho
12
Hegel publica em 1830 Filosofia da história, no qual tenta demonstrar a ação da
racionalidade do Espírito Absoluto na realização histórica da humanidade ao longo dos
71

das civilizações. A partir do século XX, autores da antropologia clássica 13 e da


história das civilizações14 escreveram tratados e obras sobre o tema.
Assim, o brasileiro Darcy Ribeiro escreve, na década de 1960, sua obra
O processo civilizatório, em que repensa as etapas da humanidade,
ressaltando aspectos ignorados por estudos anteriores voltados à centralidade
do mundo europeu. Essa descentralização gradativa em direção a uma
perspectiva não eurocêntrica é o princípio que nas últimas décadas tem guiado
diversos autores15 a estabelecer interpretações do percurso das civilizações.
Nesse conjunto de estudos, destaca-se a obra do filósofo Enrique
Dussel, que há aproximadamente duas décadas vem reconstituindo o que ele
chama de Nova História Mundial (1997, 2000). Dussel16 propõe a existência de
três grandes períodos que dividem a história humana. O primeiro é o Paleolítico
(2,5 milhões a.C. – 10000 a.C.), quando a humanidade aprendeu a domesticar
plantas e animais. O segundo período é o Neolítico, caracterizado pelo
surgimento das primeiras sete grandes civilizações 17 a partir das revoluções
urbanas. O terceiro grande período ainda está em vigência e se inicia com a
submersão dessas culturas sob o domínio de outras, totalmente distintas entre
si.
É do entroncamento entre culturas desse terceiro período – egípcia,
semita e indo-europeia – que nasce a Grécia, onde se desenvolvem os
fundamentos do que hoje conhecemos como pensamento ocidental. Desse
passado se originam tanto a ideia do dualismo, que opera dividindo a realidade
em dimensões inconciliáveis, como a ideia de totalidade, em que as diferentes
dimensões da realidade estão em constante relação de tensão e
copertencimento (DUSSEL, 1997, p.79). Ao chegar ao chamado Novo Mundo e

períodos e civilizações.
13
Os principais autores da antropologia clássica são: Lewis Henri Morgan, autor de A
sociedade antiga (1877); Edward Burnett Tylor, autor de Primitive culture (1871); James Frazer,
autor da obra em doze volumes O ramo de ouro (1890). Para saber mais sobre a antropologia
clássica, ver CASTRO (2005).
14
Os dois principais autores da história das civilizações do início do século XX são Oswald
Spengler, autor de O declínio do Ocidente (1918) e Arnold Joseph Toynbee, autor de Estudo
da história, dividido em doze volumes, escritos entre 1934 e 1961.
15
Ver LANDER (org., 2000) e SANTOS e MENESES, org., 2010).
16
Para Dussel, ao realojar esses grandes períodos, nos colocamos a necessidade de repensar
todo o caminho filosófico do ocidente, sendo necessária uma nova leitura da história da filosofia
mundial.
17
Civilizações egípcia, mesopotâmica, do rio Indo, do rio Amarelo, asteca, maia e inca
(DUSSEL, 1997, p. 80).
72

se deparar com antigas civilizações, essa dupla racionalidade se desdobrou,


acompanhando as mudanças estruturais que estavam ocorrendo. Um novo
mundo surgia, dono de um novo imaginário – suas utopias – e de relações de
poder e de controle de trabalho até então inéditas.
Nesse sentido, é possível falar de uma dupla racionalidade que constitui
o pensamento ocidental e vem se desdobrando em toda sua história, do um
como princípio ao dois como totalidade.

1. Dupla racionalidade18 e filosofia ocidental

Entre deuses e ontologias: o pensamento filosófico


O surgimento da filosofia é frequentemente revisitado por historiadores e
estudiosos das ciências de maneira geral. O fenômeno da razão e seus
desdobramentos é fonte perene de interrogação e reflexão crítica sobre nós
mesmos e sobre o percurso histórico que nos trouxeram até o presente.
Nesse sentido, perguntar sobre o surgimento da razão e seus
desdobramentos é partir de uma certa concepção de razão. Uma razão
problemática, que se abre como matéria de investigação e de reflexão sobre si
mesma. Uma razão crítica, que procura desmistificar a concepção de razão
como o milagre de uma Deusa Razão transcendente.
Partindo dessa concepção, o surgimento da razão filosófica nos remete
ao mundo grego, por volta do século VI a.C., como explica José Américo
Pessanha:

A maioria dos historiadores tende hoje a admitir que somente com os gregos
começam a audácia e a aventura expressas numa teoria. [...] Essa
mentalidade, porém, resulta de um longo processo de racionalização da
cultura, acelerado a partir da demolição da antiga civilização micênica. A partir
daí, a convergência de vários fatores – econômicos, sociais, políticos e
geográficos – permite a eclosão do “milagre grego”, que teve na ciência teórica

18
Como se verá, a noção de dupla racionalidade grega será o ponto de início do que chamo de
dupla consciência latino-americana. É importante frisar que esse percurso traz consigo um
problema, qual seja, inclui todo o conjunto de memórias, conhecimentos e processos históricos
dos povos latino-americanos em uma linha de tempo originada na Grécia e que vai absorvendo
os diferentes percursos dos povos não europeus nesse caminho. Ou seja, é uma narrativa
organizada a partir de uma matriz eurocêntrica. Trata-se de uma tarefa de grande
complexidade, que ainda está por ser realizada.
73

e na filosofia sua mais grandiosa e impressionante manifestação (PESSANHA,


1999, p. 6).

A Ilíada e a Odisseia, de Homero (epopeias heroicas), assim como a


Teogonia (genealogia dos deuses) e Os trabalhos e os dias (o trabalho e a vida
dos seres humanos), de Hesíodo, são o conjunto de histórias e mitos que
prenunciam a formação da filosofia grega.
No caso das obras de Homero, os poderes sobre-humanos passam a
ser divididos em maléficos e benéficos, segundo uma divisão que torna
humana a ideia de theos – antropomorfizado como Zeus –, excluindo assim as
representações não humanas e, portanto, misteriosas e desconhecidas, do
plano da divindade.19
Na obra de Hesíodo, os relatos tendem a representar um momento em
que não é a batalha que está no centro da vida e sim a coesão comunitária em
regiões onde não há mais guerra, quando a organização em torno de
comunidades pastoris se apresenta como principal desafio. A ideia de
igualdade necessária conseguida a partir do trabalho na terra e a organização
da vida comunitária irão fundar toda uma nova concepção de justiça, que fará
da busca da unidade em meio à multiplicidade uma medida fundamental para a
compreensão do mundo. Essa concepção ganhará importantes elementos a
partir da Escola de Mileto (século VII a.C.), na qual os pensadores buscam
refletir sobre a unidade e a multiplicidade de seu próprio universo.
Dessa forma, a ideia da realidade enquanto relação entre opostos passa
da esfera cosmológica para a esfera ontológica, abrindo caminho para a
dualidade primordial de toda a filosofia: ser ou não ser. E é com Parmênides e
Heráclito que essa questão originária ganhará desdobramentos que
acompanharão toda a história da filosofia dali por diante.

19
Seguindo a noção de maravilhoso defendida pelo escritor cubano Alejo Carpentier (ver o item O
realismo maravilhoso), em suas formulações sobre a realidade da América inteira, os deuses não
humanos nem de longe sucumbiram nesse período da história grega. Seres, lendas e histórias em que o
humano não era o senhor absoluto das vontades que regem o mundo foram mantidos na memória
ancestral dos povos europeus, atravessaram os oceanos e vieram compor, junto aos mitos e narrativas
dos povos originários e dos povos vindos de África, um novo conjunto de mitologias e explicações de
mundo. É fruto desse diálogo entre expressões do maravilhoso – sua mitopoética – parte significativa do
vastíssimo e múltiplo imaginário das culturas populares, da religiosidade e espiritualidade dos povos
latino-americanos.
.
74

Parmênides e Heráclito: a dupla racionalidade grega


Marco decisivo na filosofia grega, o projeto filosófico de Parmênides
representou a agudização da crítica à heterogeneidade do universo mítico.
Levando às últimas consequências a concepção monista da natureza,
Parmênides nega categoricamente a possibilidade de movimento e mudança
enquanto transformação de algo em outra coisa. Ao afirmar que a verdade só é
alcançável pela apreensão – via razão – do ser imutável, o pensador abre
caminho para o desenvolvimento da abstração que nos eleva para além dos
dados da aparência. Explicando o pensamento parmenidiano, escreve
Giovanni Casertano:

A única verdade, só alcançável pela razão, é o Ser; ao contrário, o vir a ser, a


mudança e o movimento, atestados pela experiência sensorial, são apenas
aparências e meras ilusões [...]. Portanto, só podemos pensar e dizer de algo
que é isso se o mesmo for imutável e permanecer idêntico a si mesmo. É fruto
desse raciocínio o famoso princípio de identidade ou não contradição assim
formulado: uma mesma coisa não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo,
sob o mesmo aspecto (CASERTANO, 2011, p. 66).

Essa identidade afirmada por Parmênides – mesmidade – deve ser


buscada e encontrada no universo das aparências por meio do uso da razão,
pela qual podemos apreender essa unidade imóvel presente em tudo.
A descoberta de uma lei por trás das aparências dos fenômenos
também inspira a filosofia de Heráclito de Éfeso. No entanto, Heráclito não
separa ser e não ser. Para o filósofo, o princípio do qual brota o real é o
imbricamento entre ser e não ser através da tensão e do copertencimento entre
os pares de opostos. Para Heráclito, esse é o contraste que expressa a relação
entre as coisas no universo:

O frio torna-se quente, o quente frio, o úmido seco e o seco úmido.


A guerra é o pai de todas as coisas e de todos os reis; fez de uns deuses, de
outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.
Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia
(CASERTANO, 2011, p. 92).

Porém, essa dualidade essencial do mundo não se manifesta de


maneira estática. Expresso no famoso fragmento “Águas sempre diversas
correm para os que se banham no mesmo rio” (CASERTANO, 2011, p. 103), o
princípio heraclitiano do movimento rege o real em sua dimensão mais
75

profunda. O rio, sempre diferente (formado por águas diversas) é o mesmo rio.
Ou seja, o rio é sempre o mesmo e, concomitantemente, outro rio.
Para Heráclito, a luta dos contrários é aquilo que subjaz no fundo da
realidade. O aparente linear e causal é habitado por essa contradição profunda
que se manifesta enquanto alternância de um estado a outro em uma dialética
primordial.
Essa distinção fundante da racionalidade grega acompanha toda a
filosofia ocidental. Com a filosofia pré-socrática e sua dupla orientação, o
pensamento ocidental não é mais exclusivamente mitopoético 20. A partir dos
pré-socráticos, surge a indagação acerca de princípios abstratos que originam
o cosmos. É pela palavra racional que a verdade também pode ser alcançada.

Pístis e peithó: a dupla lógica argumentativa


Pístis: o discurso como não contradição
Pístis é uma palavra que designa a confiança em um discurso
verdadeiro e não contraditório. É uma palavra que aponta para a existência de
valores transcendentes, valores divinos que se encontram para além da
existência humana. Representa a confiança em uma verdade imutável a ser
encontrada a partir da descoberta de uma lógica interna harmoniosa e não
contraditória, Explica Jean-Pierre Vernant:

Existe aí uma ideia fundamental do ponto de vista da racionalidade; ela está


ligada, também, ao desenvolvimento da matemática e encontrará nos
elementos de Euclides sua melhor expressão: trata-se da ideia que os homens
são suscetíveis de inventar um discurso tal que, uma vez colocadas as
premissas, todo o resto segue necessariamente, a partir daí, a verdade está
ligada à coerência interna do discurso, (VERNANT, 2002 p. 206).

20
A partir desse momento, emerge a possibilidade de uma razão desencantada, regida por uma filosofia
na qual o ser humano habita o centro e faz de tudo seu domínio. Porém, é preciso indicar que há
também uma razão forjada pelo maravilhoso, em que o ser humano é mais um dos seres habitantes do
mundo. Esse sentipensar o mundo em sua versão maravilhosa – encantada – não é, portanto, um modo
anterior ou pré-racional. É um modo de racionalidade, uma racionalidade maravilhosa, uma forma de
apreensão-contato-práxis que é forjada a partir também dessa dimensão mitopoética. Porém, essa
razão maravilhosa, mitopoética, não é admitida, visibilizada como uma possibilidade de razão. Pelo
contrário, é invisibilizada e diminuída como algo falso, produto da mera imaginação, da fantasia, da
ausência de rigor. Descolonizar nossa razão seria, portanto, dar força para esse modo de apreensão do
real. No embate das forças, no confronto entre essa dupla racionalidade em cada um de nós,
descolonizar seria dar força para o lado da razão encantada, maravilhosa.
76

Para o discurso conduzido por pístis, o diálogo é, portanto, uma forma


de convencimento. É essa ideia de busca por uma verdade imutável que
inaugura, a partir de Platão, a chamada “era da metafísica”. Para Platão, a
busca pela verdade é a busca pelo princípio, por uma arché originária – mundo
suprassensível da idea – exterior à matéria e às formas e imagens do mundo
sensível.
Esse projeto metafísico de cisão entre o reino do ser e o do não ser
encontra um novo desdobramento a partir de Aristóteles e de sua obra
Organon. Ressignificando a unidade do ser – não contradição –, Aristóteles
afirma uma causalidade por trás de todos os movimentos do universo e cria um
sistema hierárquico que organiza esse princípio de dominação, inferiorizando e
submetendo o não ser.
Essa hierarquização ganha na Idade Média o corpo religioso do
cristianismo. A partir de Plotino, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino,
surge o sistema hierárquico entre criaturas e seres divinos. O princípio Uno –
Deus – é o ser. O não ser é o mundo manifesto, universo dos sentidos e, em
última análise, reduto do Mal, oposto radical e separado do Bem.
Já no século XVI, temos dois textos inaugurais da modernidade: o
Discurso do método, de Descartes, e os Aforismos, de Francis Bacon, que
apresentam o homem (animal rationale) como o ente que passa a conter em si
mesmo (“dentro” de si) o princípio universal e transcendente, a razão
matemática. Tudo aquilo que é imanente, múltiplo, diversificado e em
transformação passa a compor o mundo enquanto “objeto” do conhecimento.
Dali em diante, o sujeito – detentor da razão – consegue apreender o que há
de absoluto e, portanto, verdadeiro (leis eternas e imutáveis) no mundo. Deus –
um como princípio – passa a habitar o humano através da razão. Explica
Pessanha:

Toda vez que estamos diante de um discurso monológico, e um discurso que


se pretende pleno, perfeito e acabado do ponto de vista racional, nós estamos
na verdade subentendendo primeiro um monismo. Estamos admitindo que tudo
tem um princípio único, uma única sustentação, mas estamos subentendendo –
o ocidente subentendeu isso em grande parte – um monoteísmo que sacraliza
e diviniza o monismo e diz que tal realidade única de sustentação tem a
garantia de Deus – Descartes é um exemplo (PESSANHA, 1994, p. 93).

Peithó: o discurso como persuasão


77

A outra lógica argumentativa é guiada pela peithó, a força da persuasão.


Diferentemente da busca pela coerência interna e não contraditória, a
persuasão é uma força que emana do discurso retórico e da relação
contraditória. O confronto é a força motriz que conforma a verdade.
Assim, foi utilizando a peithó, a persuasão argumentativa realizada pela
contradição enquanto fundamento da verdade, que se desenvolveu o
pensamento de um grupo de filósofos que andavam de cidade em cidade nos
arredores de Atenas, animando debates e ensinando os atributos da retórica:
os sofistas.
Defendendo o debate e a argumentação aberta em relação aos mais
variados temas, os sofistas desafiavam a filosofia clássica e convidavam à
reflexão sobre a diferença cultural como exercício de alteridade e não de
domínio. Ou seja, os sofistas inauguraram a problematização do relativismo
cultural. Como explica Casertano:

Ganharam peso duas ideias originais, a ideia de relatividade dos valores


culturais, que se manifestava pelo confronto, pela investigação, pela discussão
e que ancora as conquistas conceptuais, técnicas e políticas às situações
humanas, relativas e históricas; e a ideia de unidade fundamental da espécie
humana, além das fronteiras de classe e nação (CASERTANO, 2011, p. 181).

Com os sofistas, ganha peso e consistência a ideia de que o outro,


aquele diferente de mim (não ser) participa da elucidação da verdade.
Esse debate entre distintos era possível a partir daquilo que os sofistas
chamaram de nómos21. Traduzido como conjunto de normas ou convenções,
nómos era o particular de cada cultura, a particularidade histórica que poderia
ser modificada a partir da política e do debate. A universalidade, nesse sentido,
é realizada no exercício do debate contraditório, não através do discurso que
revela a natureza transcendental. A verdade, construída pelo debate no seio do
mundo, é um exercício dialético entre posições que se modificam e se
contradizem, como explica Marilena Chauí:

Os sofistas introduziram em Atenas o ardor pela dialética e pela retórica, as


dúvidas quanto à pretensão da filosofia de conhecer a verdade última das
coisas e as discussões sobre a diferença entre o nómos (a convenção, que
depende de uma decisão humana) e a physis (a natureza, cuja ordem
21
Sobre o pensamento sofístico acerca da physis e do nómos, bem como sobre suas
implicações na crítica à aristocracia grega, que será posteriormente legitimada
metafisicamente, ver: AGUIAR, Roberto A. R. O que é justiça: uma abordagem dialética. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
78

necessária independe da ação humana), optando pelo primeiro contra a


segunda [...]. Nómos passa a significar os usos e costumes, e daí, opinião geral
ou máxima aceita por todos, o costume com força de lei ou a lei escrita, a lei
costumeira (CHAUÍ, 2002, p. 165).

Durante a Idade Média, apesar da enorme hegemonia da Igreja e da


filosofia escolástica aristotélica, o pensamento regido pelo dois como totalidade
continua presente. Os franciscanos defendiam que, diferente do pensamento
de Aristóteles, havia uma realidade própria da matéria. O mundo material teria
uma forma vivente independente da alma e do intelecto primordial. O não ser
ganhava assim a dignidade da existência divina.
Essa importância da matéria torna-se ainda mais forte no pensamento
de Duns Scot, um dos doutores franciscanos, que ganhou notoriedade por sua
teoria do voluntarismo (liberdade divina). Segundo Scot, Deus cria o mundo
segundo sua própria liberdade divina, ou seja, sem estar submetido a nenhuma
causa ou princípio do intelecto. Deus, unidade entre todas as coisas, se
expressa e se faz presente no amor que liga, relaciona e comunica um ente ao
outro.
Essa ideia de pluralidade criativa do mundo vivido estava presente no
cotidiano das populações e de seus ritos pagãos. Assim, o cristianismo foi
assimilando a mitologia grega – expressa nos rituais praticados no Império
Romano –, bem como outras mitologias próprias de outros povos por onde o
Império se estendeu. Juntamente com a doutrina autoritária da Igreja,
desenvolveu-se de maneira tensa e copertencente a ela uma religião cristã
permeada de valores culturais das diversas populações que compunham o
mundo europeu da Idade Média. Juntamente com a racionalidade regida pelo
signo do um e da mesmidade, também se desenvolveu uma racionalidade do
encontro e do diálogo com o outro, ou seja, uma razão da outredade, dois
como totalidade.
Dessa forma, a dupla racionalidade grega se constituiu como via dividida
da filosofia ocidental. O princípio da metafísica remete a uma identidade
baseada na não contradição. É como se todo o real correspondesse ao
mesmo, é o pressuposto da mesmidade, em que o não ser é absorvido para o
interior do ser. Já no princípio da ontologia realizado enquanto tensão e
copertencimento entre opostos, o não ser participa constantemente da
79

reinvenção do mundo. É o pressuposto da outredade. Aquilo que é só é na


medida em que se realiza na relação com o outro, ou seja, na relação com o
não ser.
Assim, podemos afirmar que a radical diferença que marca os dois
pressupostos filosóficos da mesmidade e da outredade constitui uma clara
imagem da dupla racionalidade que conformou a produção do chamado mundo
ocidental. No século XVI essa duplicidade estava presente no interior do
projeto civilizatório que animava o empreendimento colonizador no continente
americano. Dupla razão, dupla argumentação, dupla noção de verdade, que
foram se combinando e se desdobrando em projetos de domínio, resistência e
elaboração de novos sentidos históricos (utopias) para o conjunto das
populações oriundas desse processo. Entre a mesmidade e a outredade se
constituíram os ímpetos civilizatórios que produziram, no encontro-confronto
com as populações originárias, o momento inicial da América, inaugurando
assim a modernidade22 e forjando sua dupla consciência23.

2. O empreendimento colonizador:
conquista, caos e mestiçagem
22
Compartilhamos aqui da concepção de Dussel, entre outros (ver LANDER, org., 2000), para
quem a modernidade se inicia em 1492. Segundo Dussel: “Propomos uma segunda visão da
Modernidade, num sentido mundial, e consistiria em definir como determinação fundamental do
mundo moderno o fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) centro da
História Mundial” (DUSSEL in: LANDER, 2000, p. 24).
23
A primeira aparição do termo dupla consciência é encontrada nos trabalhos de Sigmund
Freud e Josef Breuer sobre a histeria, no final do século XIX. Para esses estudiosos, o
fenômeno da histeria se caracterizaria por uma dissociação da consciência, que ficaria dividida
em duas partes. A partir desses estudos, é desenvolvida a noção de inconsciente. Outra
referência fundamental é o psicólogo e escritor estadunidense W. E. B. Du Bois. Em sua obra
As almas da gente negra, ele analisa como o sujeito negro afro-americano vive uma cisão em
sua identidade. De um lado, ele se compreende a partir do olhar racializado e hierárquico. De
outro, entende sua condição a partir das promessas modernas de uma sociedade igualitária em
sua heterogeneidade. Assim como o pensador peruano José Carlos Mariátegui, que será
abordado detidamente mais adiante. Du Bois também usa a metáfora das “duas almas” . Essa
ideia da identidade dividida entre consciência do colonizador e do colonizado será abordada
ainda por Frantz Fanon, ao longo de toda a sua obra e militância anticolonial na África. Na
América Latina, é conhecido o escritor José María Arguedas, que explicitou o caso da dupla
consciência peruana, país conhecido pela sua profunda cisão. Outro autor que utiliza o termo é
Walter Mignolo, para quem a dupla consciência é “uma consequência da colonialidade do
poder e a manifestação de subjetividades forjadas na diferença colonial” (MIGNOLO, 2005),
p.40). De maneira geral, a dupla consciência é um dos centros irradiadores da discussão sobre
mestiçagem e originalidade da filosofia-cultura latino-americana. Por fim, em minha dissertação
de mestrado (GONÇALVES, 2008) foi trabalhada a categoria da dupla consciência social a
partir das ideias de José de Sousa Martins (2003), que afirma a cisão entre modernidade e
tradição presente na consciência moderna brasileira.
80

O Novo Mundo
Em 1972 foi publicado o livro As cidades invisíveis, do italiano Ítalo
Calvino, que conta a história de uma grande viagem, a partir de descrições e
diálogos entre o navegante veneziano Marco Polo e o imperador Kublai Khan.
No relato fantástico de Calvino, o objetivo de Marco Polo era descrever a
Kublai Khan os detalhes de seu enorme império, que incluía o atual território da
China, o Tibete, a Sibéria e o Afeganistão,
A estrutura do livro – que faz clara alusão às Mil e uma noites – é
dividida em cinquenta e cinco descrições de cidades pertencentes ao Império
de Khan, todas com nomes femininos. As cidades invisíveis conta como, em
um mesmo empreendimento, se combinam o ímpeto de dominação de Kublai
Khan e o processo de descoberta, de encontro e de maravilhamento que
envolve esse empreendimento. Na narrativa de Calvino se tensionam e se
enamoram o espírito de domínio, violência e extermínio próprios dos projetos
imperiais e sua face complementar, sua face invisibilizada, de expressão da
vida enquanto uma erótica, ou seja, tensão desejante produzida no seio do
mundo.
Em um trecho que descreve o diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan,
Calvino desvenda essa dinâmica própria do movimento da conquista, essa
dialética da conquista como domínio e/ou persuasão. Escreve ele:

Contudo, cada notícia a respeito de um lugar trazia ao imperador o primeiro


gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado
ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo apresentava um
novo sentido ao emblema. O império, pensou Kublai, talvez não passe de um
zodíaco de fantasmas da mente.
– Quando possuir todos os emblemas – perguntou a Marco – conseguirei
possuir meu império finalmente?
E o veneziano:
– Não creio: nesse dia vossa Alteza será um emblema entre os emblemas
(CALVINO, 1993, p. 26).

Presentes na dúbia palavra conquista, o sentido de domínio e imposição


– não reconhecimento – e o necessário diálogo entre códigos distintos ganham,
a partir do início do século XVI, desdobramentos de uma intensidade até então
inédita. Data inicial do confronto que fundaria a modernidade, a fundação da
América inaugura um ciclo histórico em que os pressupostos filosóficos da
81

mesmidade e da outredade se expandem e adquirem nova configuração. A


partir do século XVI, um novo mundo emerge e a condição desse
acontecimento histórico irá determinar o caminho da chamada civilização dali
em diante. Nas palavras de Tzvetan Todorov:

A descoberta da América, ou melhor, a dos americanos, é sem dúvida o


encontro mais surpreendente de nossa história. Na "descoberta" dos outros
continentes e dos outros homens não existe, realmente, este sentimento radical
de estranheza. Os europeus nunca ignoraram totalmente a existência da África,
da Índia ou da China, sua lembrança esteve sempre presente, desde as
origens. A Lua é mais longe do que a América, é verdade, mas hoje sabemos
que aí não há encontro, que esta descoberta não guarda surpresas da mesma
espécie (TODOROV, 2011, p. 6).

Essa radicalidade do encontro de modos de vida até então


desconhecidos uns para os outros inaugura uma oposição inédita. No entanto,
essa oposição não é homogênea. Cada grupo continental vinha de uma história
de milhares de anos, durante os quais a heterogeneidade da memória e da
formação cultural de ambos os lados incorporou distintas relações de domínio,
resistência e adaptação. Mais do que uma justaposição entre dois mundos
estanques, a América surge como um fenômeno complexo, articulador e
desarticulador de diversas estruturas antigas e recém-emergidas. Como explica
Serge Gruzinsky:

No México, assim como em todas as frentes do Novo Mundo, a chegada dos


europeus foi, primeiro, sinônimo de desordem e caos. Gerou zonas de altas
turbulências, tanto no Caribe (1493-1520), como nos Andes (1532-1555) ou no
Brasil dos portugueses. Não se pode compreender a evolução da colonização,
nem as misturas provocadas pela conquista espanhola se esquecemos esses
dados iniciais (GRUZINSKY, 2001, p. 73).

E, um pouco adiante, continua:

Na América, o choque é tão brutal como imprevisto. Não se resume a uma


questão de simples defasagem, nem à colisão de dois sistemas estáveis, em
que um tivesse sido perturbado pelo surgimento do outro [...]. A diversidade de
protagonistas indígenas e europeus – religiosa, linguística, física, social etc. – e
as tensões que os opõem introduzem uma heterogeneidade ainda mais
acentuada pelo choque da derrota e pelas deficiências do quadro político
(GRUZINSKY, 2001, p. 73).

Dessa forma, podemos afirmar que, mais do que o confronto entre


mundos opostos, a conquista foi também um complexo processo de profunda
desestabilização – e destruição – no qual afinidades, negociações e diferenças
82

irremediáveis se combinaram em uma trama histórica contraditória, que tinha


como pano de fundo o projeto colonizador. Em ambos os mundos vicejavam
diferentes interesses políticos e horizontes de mundo. Esse grande
empreendimento econômico imperial trouxe para a América os diferentes
sentidos, as diferenças e as disputas por territórios que se digladiavam no
Velho Mundo antes do século XVI. E encontrou um universo também saturado
de contradições e confrontos, com diferentes formas de organização, expansão
e civilização, muitas delas milenares.
Enfim, muitas diferenças caracterizavam esses dois mundos
desconhecidos um do outro. No entanto, ao se confrontarem, muitas foram as
afinidades e semelhanças e muitos também os esforços mútuos de construção
comum para além das diferenças.

Princípio da cruz e da espada x filosofia das gentes


O ano de1492 ficou conhecido como um ano de dois grandes feitos para
o reino espanhol. Em janeiro, após mais de sete séculos de ocupação da
península Ibérica pelos muçulmanos, o povo espanhol assistiu ao exército de
Isabel de Castela e Fernando de Aragão tomar o Reino de Granada, último
reduto árabe. Em outubro, Cristóvão Colombo, a serviço dos mesmos
soberanos, chegou à América. Considerada como a continuação da “guerra
santa” contra os infiéis, a conquista do Novo Mundo pelos cristãos realizou-se
ancorada na mentalidade guerreira e mística própria da herança medieval
cavalheiresca, assim como na sede por lucro advinda da exploração dos
metais, das plantas e do trabalho de indígenas e africanos escravizados.
Dessa forma, o empreendimento colonizador uniu o princípio cruzadista
religioso da cristandade com a nascente necessidade de acumulação de capital
própria do mercantilismo colonial que se iniciava. Nascia o conhecido princípio
da cruz e da espada, que viabilizaria a territorialização de um modo de vida
baseado na ideia de que a América era o Novo Mundo, cópia de sua matriz ou
metrópole. Uma cópia, porém, decaída e inferiorizada. A América deveria
cumprir seu destino de ser hierarquicamente inferior e, ao mesmo tempo, ser o
83

mesmo, ou seja, cópia da Europa, elemento inferiorizado no interior do sistema


colonial. Chamando esse processo de ocidentalização, escreve Gruzinsky:

A ocidentalização cobre o conjunto dos meios de dominação introduzidos na


América pela Europa do Renascimento: a religião católica, os mecanismos de
mercado, o canhão, o livro ou imagem. Assumiu formas diversas, quase
sempre contraditórias, às vezes até em franca rivalidade, já que foi a um só
tempo material, política, religiosa [...]. Uma vez na América, uns e outros se
empenharam em edificar réplicas da sociedade que haviam deixado pra trás
(GRUZINSKY, 2001, p. 93).

Assim, a concepção da cruz e da espada expressava o fundamento do


um como princípio por meio de um sistema baseado na mesmidade
hierarquizada. Ou seja, na ideia da não contradição como base da divisão
hierárquica da realidade, já realizada por Aristóteles e retomada pela teologia
medieval.
Juntamente com esse projeto de dominação baseado na reprodução do
mesmo – imbricado e contraditório a ele – desenvolve-se uma corrente
filosófica baseada na relação com o outro, sua diferença. Resultado da
acumulação de riquezas advinda da exploração da América e, de modo
marcante, pelo contato com as civilizações originárias, emergiu um novo
período da história da Espanha e de Portugal, conhecido como Século de Ouro
– época em que esses países experimentam um grande desenvolvimento das
artes, das letras, das ciências, da religião e da filosofia. Chamado também de
Renascimento ibérico e de primeira modernidade, o período permitiu o
florescimento de diferentes universidades e escolas filosóficas, conhecidas pelo
alto grau de sofisticação e pela profunda influência em toda a cultura europeia
da época. Escreve Dussel:

A produção filosófica do século XVI na Espanha e Portugal estava


regularmente articulada com os acontecimentos atlânticos, com a abertura da
Europa ao mundo. A Península Ibérica era o território europeu que vivia a
efervescência dos descobrimentos inesperados. Chegavam constantemente
notícias das províncias do ultramar, da América hispânica e das Filipinas para
Espanha, do Brasil, Ásia e África para Portugal. [...] Na Europa, nenhuma
universidade ao norte dos Pirineus tinha essa experiência mundial (DUSSEL,
2010, p. 358).

Formada pelas universidades de Valladolid, Coimbra, Braga, Évora,


Alcalá e Salamanca, entre outras, esse sistema universitário foi responsável
por elaborar um pensamento a partir de um mundo em plena transformação. A
84

partir desse momento, a totalidade cósmica regida por Deus “aterrissaria” no


mundo da vida, transferindo aos seres humanos – portadores de uma vontade
criadora – a responsabilidade por seus atos individuais e coletivos.
Diante de um contexto sociocultural que se reorganizava a partir da
entrada de povos extremamente distintos, surgia a necessidade de pensar o
mundo político das relações para fora da totalidade cósmica centralizada na
onipresença de Deus. A Idade Moderna trazia a noção de uma individualidade
humana que expressa nas relações entre as pessoas – sociais, portanto – a
capacidade criadora que outrora era atributo exclusivo do divino. Dessa forma,
passa a ser responsabilidade humana o sentido histórico de sua existência e
de suas ações. A construção do tempo humano (passado, presente e futuro),
assim como as concepções sobre a temporalidade do universo (suas imagens),
sofrem profundas transformações.
Se o princípio da mesmidade – um como princípio – era uma tentativa de
dar continuidade a um projeto econômico e filosófico de séculos, diversas
mudanças históricas tensionavam com esse projeto, impulsionando a entrada
na modernidade e o seu novo sentido histórico. Em um elucidativo trecho,
escreve Aníbal Quijano:

Dessa perspectiva, é necessário admitir que a América e suas consequências


imediatas no mercado mundial e na formação de um novo padrão de poder
mundial são uma mudança histórica verdadeiramente enorme e que não afeta
somente a Europa, mas o conjunto do mundo. Não se trata de mudanças
dentro do mundo conhecido, que não alteram senão alguns de seus traços.
Trata-se da mudança do mundo como tal. Este é, sem dúvida, o elemento
básico da nova subjetividade: a percepção da mudança histórica. É esse o
elemento que desencadeia o processo de constituição de uma nova
perspectiva sobre o tempo e sobre a história. A percepção da mudança leva à
ideia do futuro, já que é o único território do tempo no qual podem ocorrer as
mudanças. O futuro é um território temporal aberto. O tempo pode ser novo,
pois não é somente a extensão do passado. E, dessa maneira, a história pode
ser percebida não só como algo que ocorre, seja como algo natural ou
produzido por decisões divinas ou misteriosas como o destino, mas como algo
que pode ser produzido pela ação das pessoas, por seus cálculos, suas
intenções, suas decisões e, portanto, como algo que pode ser projetado e,
consequentemente, ter sentido (QUIJANO, 2000, p. 113).

Com base nesse novo sentido para a sua existência (o sentido histórico),
surge o princípio do jus gentium ou o “direito das gentes”. Conjunto de normas
que procura ordenar a convivência entre os diferentes grupos humanos, o jus
gentium se baseia no princípio de que as comunidades humanas são capazes
85

de julgar a si mesmas através de um entendimento – diálogo – sobre a sua


natureza comum.
As diferentes comunidades humanas, por serem capazes de criar leis
próprias para seus membros e para a vida comum – mesmo que com costumes
muitos distintos entre si – assim o fazem porque partilham de uma natureza
humana comum, que possibilita a comunicação e o consenso.
É essa duplicidade e tensão entre, de um lado, o princípio da cruz e da
espada e, de outro, o princípio do direito das gentes que está no cerne do
emblemático confronto entre os frades dominicanos Bartolomé de Las Casas e
Juan Ginés de Sepúlveda, a conhecida Controvérsia de Valladolid.
Ápice de uma série de acontecimentos e discussões em torno da política
colonial espanhola, a Controvérsia de Valladolid se realizou a partir de um
movimento iniciado no interior da Igreja, que tinha como objetivo a extinção da
encomienda. Esse estatuto jurídico permitia aos encomenderos explorar a mão
de obra de um determinado número de índios, desde que oferecessem a eles a
evangelização. Na prática, a encomienda significava a legitimação da
escravidão, já que os indígenas eram tratados como não humanos, animais
sem alma, mera força de trabalho.
A disputa entre Las Casa e Sepúlveda é citada e estudada até os dias
atuais por conseguir capturar as linhas de força que se digladiavam no
nascedouro da modernidade – e que se estendem até hoje. Essa disputa é
considerada um dos marcos do debate filosófico da modernidade e explicita o
confronto, no interior do mundo ocidental, entre dois modos de pensamento,
duas racionalidades.
O conjunto de argumentos e contraposições apresentado ao longo das
duas sessões de debate filosófico entre Sepúlveda e Las Casas pode ser
sintetizado em uma questão central: são os índios portadores de uma alma
racional?
Sepúlveda, que nunca havia estado entre os índios, baseou toda a sua
argumentação no princípio da escravidão natural, de Aristóteles. Para esse
filósofo, o universo seria uma totalidade dividida hierarquicamente, na qual
dualidades – corpo-alma, senhor-escravo, matéria-forma – manteriam entre si
uma dinâmica natural de dominação.
86

Com base nesses argumentos, Sepúlveda defendia o extermínio dos


índios como forma de salvá-los se eles não se convertessem. No caso de sua
conversão, Sepúlveda defendia a escravidão, que seria a melhor forma de os
índios servirem a Deus, já que, devido a sua inferioridade, jamais poderiam
alcançar o lugar de humanos plenamente potentes.
Os argumentos de Las Casas procuram demonstrar o contrário.
Primeiramente, Las Casas refuta o argumento da inferioridade dos índios,
demonstrando – a partir de exemplos que retirou de décadas vivendo junto às
populações indígenas – que suas formas de organização e governo são tão
estruturadas quanto as do mundo ocidental, o que prova que eles são dotados
de razão.
Por esse mesmo caminho, Las Casas afirma que os índios são livres e
donos legais de seus bens. Opondo-se frontalmente ao uso da violência, à
expropriação dos territórios indígenas e à escravidão dos índios como forma de
catequização, ele defendia que as relações entre europeus e indígenas se
baseassem no reconhecimento do outro em sua condição humana. Essas
relações se dão no mundo da vida e em sua imanência, ou seja, em seu
universo político. Como escreve Dussel, os argumentos para a busca pelo
comum e pelo consenso em Las Casas configuram “um manifesto de filosofia
intercultural, de pacifismo político e crítica certeira e por antecipação a todas as
guerras justas da modernidade” (DUSSEL, 2010, p. 365).

A mestiçagem
Forjados a partir da memória histórica milenar da diversidade de povos
que habitavam o continente americano, os pensamentos filosóficos desses
grupos24 se combinaram de maneira indefinida e das mais diferentes formas às
concepções filosóficas originadas na Europa. Desse processo de tradução,
realizado sempre em um jogo de forças em que esteve presente a marca da
dominação – a colonialidade –, criou-se o pensamento misturado, pensamento
mestiço que caracteriza o modo de ser do continente latino-americano.
24
Sobre o pensamento filosófico dos povos ameríndios, ver DUSSEL (2009). Nessa obra há um
conjunto de artigos de especialistas em diferentes filosofias indígenas. Ver também VIVEIROS
DE CASTRO (2002), GALINDO (1982) e ESTERMANN (2006).
87

Esse fenômeno complexo de interação simbólica e de práticas sociais só


pode ser compreendido se for levado em conta o choque colonial e seu efeito
devastador para as populações originárias. Totalmente desfigurado e atingido
em suas referências, surge no continente americano um modelo civilizatório em
que a destruição dos modos de vida e de seus símbolos exigia uma recriação
original que tornasse possível a continuidade da vida.
No palco do novo cenário, epidemias, catástrofes e violências brutais
transfiguraram completamente os diferentes pontos de colonização, instalando
um conjunto de relações sociais em que a perda de referências e a
necessidade de combinações inéditas eram imperativas. Atingidas por
diferentes formas de alterações, as sociedades recém-emergidas da América
se constituíram a partir de uma bricolagem em que os diferentes modos de
ordenação social – autoridades políticas e religiosas, tradições e costumes,
imaginários instituídos – foram desintegrados e muitas vezes reduzidos a
vestígios ou fragmentos que, isolados, se tornaram totalmente inoperantes.
Cruzadas pela violência extrema do processo colonial – sua força de
avassalamento e dizimação –, essas diferentes sociedades se digladiaram e
conduziram a vida do continente a um nível de desordem que atingiu e
desestabilizou, em diferentes intensidades, todo o seu território. Mais
concentrada em alguns centros geopolíticos importantes e de maior potencial
exploratório, a instabilidade crônica se fez presente de diferentes formas. Ela
combinou, pela violência da dominação, uma infinidade de povos com suas
identidades desgarradas, sem centralização política e com muitos obstáculos
na transmissão de valores e nas trocas simbólicas. O resultado foi um mosaico
sociopolítico e cultural organizado no limite, que pedia a exploração econômica
e a necessária e lenta adaptação e acomodação de valores para estabelecer
uma vida comum estável. Como explica Gruzinski:

Colocados sob o signo da fragmentação, a era de turbulência que se abriu com


a Conquista, ao perturbar a comunicação entre os grupos, influenciou
definitivamente na forma de vida da América Ibérica. A invasão desencadeou,
em todos os campos e por um largo tempo, a perda e a deterioração das
manifestações de identidades originais – africanas, mediterrâneas e ameríndias
– e a elaboração aleatória e intermitente de outras novas. [...] Estas
manifestações da colonização – observáveis na América espanhola do século
XVI – prefiguraram obviamente nossas formas de nos aproximarmos de outras
culturas do mundo, já que fomos obrigados a incorporar elementos que afluíam
de todos os cantos do globo (GRUZINSKI, 1999, p. 501).
88

Desse modo, a partir de uma situação de instabilidade radical e da


necessidade de novas conformações, forjaram-se estratégias de tradução e
incorporação de valores que, ao combinarem práticas sociais, universos
simbólicos e modos de vida muito distintos, criaram uma lógica própria de
interpretação e produção de mundo. Essa formação diversa e caótica, essa
mistura de misturas se estabeleceu como assimilação dos horizontes filosóficos
da mesmidade e da outredade, em seu contato com modos de pensamento e
práticas sociais próprias das populações do continente. Nasciam então, sobre
os escombros de uma hecatombe de longa duração, a Era Moderna e sua
dupla consciência.
Assim, a modernidade nasce como uma integração instável da
diversidade sociocultural e de seus confrontos, em um padrão de dominação
que estruturou a racionalidade própria e necessária ao capitalismo. Nessa
racionalidade, o outro, em suas mais diferentes formas, é negado e convertido
em objeto. Por outro lado, a modernidade também emerge como tentativa de
manejar a heterogeneidade própria do mundo que se estabelece a partir do
século XVI. Sua arquitetura histórico-cultural se estruturou nessa lógica da
incorporação do outro, da inventividade como forma de reunião e surgimento
de si.
Desse modo, realiza-se um pensamento que propõe, desde o início da
colonização, a invenção de uma outra modernidade, uma modernidade
descolonizada, que configura um ethos específico da mestiçagem própria do
continente americano. É um ethos que opera subvertendo os símbolos e
descolonizando as práticas próprias do sistema de opressão do dominador. Ele
está presente na religiosidade cristã menos dogmática – matizada por traços
pagãos25 – que originou parte significativa da chamada cultura popular do
25
O termo pagão vem do latim paganus, que quer dizer camponês. É o termo genérico empregado para
o conjunto de culturas politeístas e ligadas às forças da natureza que havia no território europeu na
época da expansão do cristianismo. Pagãos eram aqueles que, diante da expansão do cristianismo,
continuavam a professar religiões não cristãs. Os povos celtas são um exemplo. Formadoss por um
conjunto de tribos que nunca constituíram um bloco homogêneo, os celtas ocuparam grande parte do
território europeu e tinham sua espiritualidade muito relacionada ao culto da natureza. Ou seja,
apresentavam um modo de vida muito distinto da religião monoteísta cristã. Assim como nossos povos
originários e muitos povos vindos de África, foram dominados e tiveram parte importante de sua cultura
exterminada. Outra fração cultural importante mescla-se com valores das culturas dominantes, criando
um novo conjunto de práticas. A essa articulação imensa de valores, práticas e cultos extremamente
variados, convencionou-se chamar cultura popular. Vem daí uma aproximação bastante difundida entre
cultura popular e cultura pagã e também uma diminuição das culturas pagãs (camponesas, celtas,
indígenas, africanas, entre outras) em relação à cultura euro-ocidental judaico-cristã e seu conjunto de
89

continente. É um ethos que criou um modo próprio de pensamento – uma


racionalidade – que se realiza na tensão crítica à modernidade como processo
de evolução linear e de progresso própria do percurso metafísico. Segundo
Quijano:

As populações colonizadas foram submetidas à mais perversa experiência de


alienação histórica. No entanto, a história que é cruel com os vencidos é
também vingativa com os vencedores. As consequências dessa colonização
cultural não foram terríveis somente para os “índios” e os “negros”. Eles foram
obrigados à imitação e simulação do distante e à vergonha do próprio. Mas
ninguém pôde evitar que eles aprendessem rápido a subverter tudo aquilo que
tinham que imitar, simular e venerar. E todo mundo sabe agora, inclusive os
setores mais conservadores da igreja cristã, que seus cultos e suas práticas
religiosas foram subvertidos em todas as partes (QUIJANO, 1998, p. 33).
Assim, o que está em jogo é a elaboração de um sentido histórico para
esse universo de experiências, de práticas sociais e simbólicas muito
heterogêneas, formadas a partir da colonização. A duplicidade que caracteriza
a formação da América Latina – o padrão de dominação colonial e sua luz
negativa, a descolonização – forma o eixo histórico da consciência social da
modernidade no continente. Uma consciência dividida entre dois modos de
organizar as diferentes memórias e os vários tempos sociais que se
encontraram-confrontaram no intrincado processo de formação do continente,
seu labirinto. É a dupla consciência latino-americana, subjetividade social
forjada no confronto entre dois mundos, dois registros da mesma história.
Impulsionada pelo novo ciclo econômico que surgia com a colonização,
a radical diferença entre culturas e civilizações restabeleceu as concepções de
mesmidade e outredade – dupla consciência – no interior do sistema de
produção que surgia com seu caráter global: o capitalismo mundial.

3. Dominação colonial e mestiçagem


descolonial-crítica: as duas faces da
modernidade

A sedimentação do empreendimento colonial


Assim como nos lembra Ítalo Calvino em sua obra sobre o império de Kublai
Khan, todo processo de conquista traz consigo o domínio sobre o outro e, ao
valores.
90

mesmo tempo, uma descoberta. Nesse sentido, o mundo de “caos e


mestiçagem” (GRUZINSKY, 1999, p.108) criado pela convulsão inicial da
colonização serviu de base ao capitalismo mundial que nascia. Totalidade
heterogênea desde que surgiu, sua multiplicidade se articulou seguindo uma
duplicidade fundamental que foi forjando uma dupla consciência no interior da
modernidade. Sobre essa relação no interior da totalidade que funda a
modernidade, escreve Henri Lefebvre:

O mundo moderno avança precedido ou seguido de suas sombras: crises


múltiplas, sempre frequentes e mais profundas, contradições e confusões
inextrincáveis, dramas e catástrofes. [...] Demarcando o terreno, nós queremos
propor aqui a tentativa teórica que, descobrindo o modernismo e levando a seu
termo conceptual a modernidade, mostrará o movimento e os aspectos teóricos
e negativos por meio de uma crítica radical (o mais “negativo” revelando-se às
vezes o mais “positivo” e inversamente) [...] (LEFEBVRE, 1969, p. 5).

No horizonte da conquista e da modernidade, foram sendo criadas zonas


de maior estabilidade por todo o continente, em um conjunto de práticas sociais
que, mesmo com extrema diversidade e adaptação aos territórios locais, seguiu
duas lógicas articuladas entre si e em perene tensão: a dominação própria da
colonialidade e a mestiçagem descolonial-crítica.
Estabelecia-se assim, no início do século XVII, um quadro mais
acomodado e com um ritmo um pouco mais uniforme de reprodução da vida.
Esse quadro era marcado pela intensa miscigenação, que deu origem ao
mundo mestiço próprio do continente. Como explica Bolívar Echeverría:

Na demografia vemos como a curva descende marcadamente até o fim do


século XVI e como ascende nas primeiras décadas do século XVII. E, o mais
importante, se levarmos em conta a consistência étnica da população que
decai e compararmos com aquela que cresce, a diferença é substancial:
enquanto no primeiro caso, a presença da população indígena é predominante,
sendo a presença espanhola muito débil e a presença africana mais débil
ainda, observamos que a nova população que aparece no século XVII possui
uma consistência étnica desconhecida. A América passa a ser povoada por
mestiços de todo o tipo e cor (ECHEVERRÍA, 2000, p. 50).

Uma mudança significativa ocorre também no campo econômico. Com a


criação de certa estabilidade e de um mercado interno, criam-se também
atividades comerciais diversificadas, com produtos manufaturados e outras
mercadorias que circulam em rotas internas de comércio. No caso da
exploração da força de trabalho, o ambiente também muda. Na América
91

espanhola, o sistema da encomienda e da escravidão indígena dá lugar às


haciendas.
No Brasil, a mudança também foi drástica e, depois apenas de algumas
dezenas de anos do século XVI, já tinham se estabelecido ao longo da costa e
no interior do território três tipos de povoamento, adaptados à realidade
econômica e étnico-racial do povo que ali surgia: africanos escravizados
concentrados nos engenhos e portos; populações dispersas pelos vilarejos e
sítios da costa ou pelos campos de criação de gado; índios concentrados nas
aldeias ou incorporados à empresa colonial como escravos de outros núcleos
(RIBEIRO, 2005, p. 53).
Dessa forma, pode-se afirmar que, a partir do século XVII, estava em
execução, de maneira heterogênea e em diferentes graus, um sistema de
produção que tinha como base dois eixos articulados entre si. Primeiro, uma
classificação social com base na racialização da população. Segundo, o
controle e a hierarquização das diferentes formas de organização do trabalho,
segundo critérios de raça, estruturando uma divisão racial do trabalho.
Sedimentava-se assim, como padrão de exploração da força de trabalho para a
acumulação do capital, a colonialidade do poder.

Colonialidade do poder
Com a sedimentação do empreendimento colonizador, a partir do século
XVII fortaleceu-se, a dinâmica fundamental da colonialidade do poder e de
seus dois eixos fundamentais, como explica Quijano:

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder


de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da
modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na
produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos
fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das
diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma
supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural
de inferioridade em relação a outros. [...] Por outro lado, a articulação de todas
as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus
produtos, em torno do capital e do mercado mundial (QUIJANO, 2000, p. 37).

Juntamente com essa mudança estrutural no modo de reprodução da


vida, foi necessária uma reorientação no campo das mentalidades. A expulsão
92

dos mouros, a cisão do cristianismo com a Reforma protestante, as Grandes


Navegações e a descoberta de outra humanidade já não permitiam que o
mundo ocidental fosse entendido como um todo homogêneo sob a égide de um
Deus único. Foi necessário elaborar um modo de pensamento específico que
conseguisse assimilar as transformações sociais em curso e, ao mesmo tempo,
dar continuidade à centralização de poder que caracterizava a concepção do
um como princípio. Era preciso reconhecer as capacidades humanas, sem com
isso perder o controle centralizado sobre a humanidade.
Surgia dessa forma o pensamento eurocêntrico, perspectiva de
conhecimento fundada juntamente com a América e com o início do capitalismo
mundial e elaborada ao longo dos cinco séculos de conquista. O pensamento
eurocêntrico serviu como esteio filosófico e “naturalizou” a lógica de
expropriação da força de trabalho através da racialização da sociedade 26. Nas
palavras de Quijano:

Dessa perspectiva eurocêntrica, certas raças são condenadas como “inferiores”


por não serem sujeitos “racionais”. São objetos de estudo, “corpo” em
consequência, mais próximos da “natureza”. Em certo sentido, isto os converte
em domináveis e exploráveis. De acordo com o mito do estado de natureza e
da cadeia do processo civilizatório que culmina na civilização europeia,
algumas raças – negros (ou africanos), índios, oliváceos, amarelos (ou
asiáticos) e nessa sequência – estão mais próximas da “natureza” que os
brancos Assim, todos os não europeus puderam ser considerados, de um lado,
como pré-europeus e ao mesmo tempo dispostos em certa sequência histórica
e contínua do primitivo ao civilizado, do irracional ao racional, do tradicional ao
moderno, do mágico-mítico ao científico (QUIJANO, 2000, p. 52).

É com base na matriz eurocêntrica de pensamento – desenvolvida


principalmente a partir de Descartes e de sua separação radical entre alma-
corpo, sujeito-objeto, humano-natureza – que se articula a ideia que une raça e
controle do trabalho.
Porém, a ideia da existência de uma relação direta entre fenótipo e
cultura é muito mais antiga. Ao longo da história foram registrados muitos
sistemas pigmentocráticos, ou seja, baseados no fenótipo em que a cor da pele
exerce importante função. Jônios e dórios na Europa Meridional, hititas e
26
Por um lado, o surgimento da razão eurocêntrica representa o início de um período que retira a noção
de Deus único como centro absoluto do real; por outro, é a continuidade do processo de expansão do
cristianismo. Nesse sentido, tenta-se reproduzir na América o processo de absorção no interior do
cristianismo das diferentes perspectivas culturais. É por isso que a ideia de povo pagão como não
cristão, não batizado, sem alma foi transportada para a colonização do continente. A racialização da
população na hierarquia do capitalismo e sua relação direta com a visão sobre a existência de alma dos
indígenas são desdobramentos dessa perseguição ao mundo pagão.
93

sumérios no Oriente Médio e arianos na Ásia Meridional foram alguns deles.


No caso do racismo como parte do sistema colonial, seu precedente remete às
relações de estranheza entre o mundo judaico e o conjunto de povos que
formavam o mundo greco-romano. E, durante a Idade Média, a contraposição
cristãos-judeus era particularmente intensa. Os judeus foram acusados de
serem responsáveis pela morte de Jesus Cristo e associados ao mal. A
oficialização das práticas racistas contra os judeus ocorreu em 1449, quando
surgiu na Espanha o Certificado de limpeza de sangue, conjunto de normas
que impediam a participação de judeus em cargos públicos.
Ao ser incorporada ao pensamento científico do século XIX, a relação
entre biologia e traços culturais dá origem ao racismo enquanto teoria
científica, com a obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas,
publicada em 1855 por Arthur de Gobineau. Segundo sua hipótese, a mistura
entre raças levaria a humanidade a graus cada vez maiores de
degenerescência, tanto física quanto intelectual, conduzindo inevitavelmente a
uma involução.
A noção da existência de raça enquanto atributo responsável por uma
classificação social está presente também no chamado etnicismo. Embora
menos relacionada diretamente à estrutura biológica, em seu surgimento a
etnicidade compartilha a ideia de classificação hierárquica da humanidade de
acordo com critérios evolucionistas etnocêntricos europeus.
A hierarquização sociocultural com base em traços fenotípicos foi
introduzida na América no interior do empreendimento colonial. Dessa forma,
nascem, além dos índios, os negros, os mestiços, os amarelos, etc., cada um
deles cumprindo um papel específico no interior do sistema mundo 27 que
nascia. A necessidade de articulação das diferentes formas de trabalho em um
mesmo sistema mundial se ligou à prática de hierarquização racial da
população que vivia na América antes da colonização. Raça e controle do
trabalho surgem, assim, para estruturar um sistema voltado à produção e
circulação de mercadorias e à acumulação de capital.
No topo da hierarquização racial da colonialidade do poder está a
branquitude e o homem branco, representação máxima da capacidade de

27
Para saber sobre a teoria do sistema mundo, ver WALLERSTEIN, 2005.
94

mando da sociedade articulada em torno do capital. Todas as outras


identidades raciais são então subjugadas e consideradas inferiores em relação
ao branco. A branquitude serve como referência da civilização e da
modernidade relegando a todas outras identidades raciais “o lugar inferiorizado
do pré, do anti e do não moderno, não ocidental” (ECHEVERRÍA, 2007, p. 4).
Conjuntamente com o racialismo e o controle do trabalho, se articula um
modo de pensamento específico, responsável pela produção intersubjetiva dos
valores da colonialidade do poder. Desse modo, imagens, representações e
saberes próprios dos povos submetidos são subsumidos, invisibilizados e
exterminados. Trata-se de uma relação intersubjetiva, que atinge a própria
autorrepresentação e a autoimagem das populações colonizadas. Escreve
Quijano:

Não se trata somente de uma subordinação das outras culturas a respeito da


cultura europeia em uma relação exterior. Trata-se de uma colonização das
outras culturas, mesmo que, sem dúvida, em diferente intensidade e
profundidade segundo os casos. Consiste, inicialmente, em uma colonização
do imaginário dos dominados. Isto é, atua na interioridade desse imaginário
(QUIJANO, 1992, p. 2).

Gradativamente, a branquitude própria do mundo europeu – segundo o


imaginário colonial – estende sua dominação por todo o mundo da vida das
populações subalternizadas do continente.
No entanto, simultaneamente ao conjunto de ordenamentos hierárquicos
próprios da colonialidade do poder, se desenvolvem modos de existência
críticos descolonizadores do padrão de obediência e determinação do sistema
colonial mercantil capitalista. Segundo Quijano:

O poder é um fenômeno multidimensional, uma vasta família de categorias que


se constitui pela articulação histórica de distintas dimensões da experiência
humana como existência social que, desse modo, e nessa medida, constitui
uma totalidade estruturada, presidida por uma lógica central ou hegemônica,
mas que é todo tempo disputada e contra atacada por outras lógicas, diversas
entre si, subalternas, secundárias também e historicamente heterogêneas. Não
é um edifício em que cada piso é engendrado no e pelo anterior (QUIJANO,
1992a, p. 8).

Esse universo de variadas experiências guarda em seu fundamento


comum a necessidade de instituir modos de organização social, estética e
política que afirmam a memória histórica das populações dominadas no interior
95

da colonialidade do poder. Nesse sentido, configuram o um ethos próprio de


uma modernidade dissonante no interior do sistema. Esse modo de produção e
reprodução da vida cotidiana capaz de gestar um projeto de modernidade
alternativa e descolonizada é o ethos barroco.

Dialética dos extremos e mestiçagem descolonial-crítica: a


modernidade alternativa

O Barroco
A colonialidade do poder se configurava como a coluna vertebral da
dominação colonial. Porém, junto a ela, de forma invertebrada (IANNI, 2002, p.
2), porque muita vezes incapturável pela percepção imediata, se desenvolvia
um nexo alternativo às relações sociais do continente. Nesse sentido, o
moderno é também a crítica ao moderno, como explica José de Souza Martins:
“A modernidade só o é quando pode ser ao mesmo tempo o moderno e a
consciência crítica do moderno; o moderno situado, objeto da consciência e
ponderação” (MARTINS, 2000).
Essa tensão intrínseca à totalidade moderna realiza, nas palavras desse
autor, a “luminosidade de sua sombra”, que está para além do projeto de
conquista e unificação em torno da colonialidade do poder. Assim,
desenvolveram-se dinâmicas histórico-culturais descolonizadoras que se
tensionaram com o projeto hegemônico da modernidade, formando uma dupla
consciência da modernidade.
Uma das principais formas de contraposição ao evolucionismo histórico
da modernidade foi o Barroco. Expressão da contradição entre a ideia da
unidade em torno de um Deus transcendente e a ideia de um mundo natural
regido por leis próprias, o Barroco afirma a tensão presente no movimento do
real. O Barroco “desnaturaliza” esse trajeto metafísico de continuidade
harmônica entre o homem divino e o homem natural. Como apresenta Walter
Benjamin (1984), essa ambivalência do Barroco se expressa em torno da díade
luto--melancolia, duplo sentimento que expressa a afetividade do homem que
perdeu o destino guiado por Deus e vive a degradação do homem meramente
natural.
96

No caso do mundo ibérico, que irá influenciar profundamente a


constituição da América Latina, esse mundo divino se tornava presente na
visão cavalheiresca e senhorial de servidão ao rei. Já a razão nascente estava
presente no pragmatismo mercantil regido pela lógica da causa e efeito e pela
noção de lucro. Essa contradição de tempos é imortalizada na imagem de Dom
Quixote, como explica Quijano:

A fabulosa cena na qual Dom Quixote arremete contra um gigante e é


derrubado por um moinho de vento é, seguramente, a mais poderosa imagem
histórica de todo o período da primeira modernidade: o des/encontro entre, de
um lado, uma ideologia senhorial, cavalheiresca – a que habita a percepção de
Dom Quixote –, à qual as práticas sociais já não correspondem senão de modo
fragmentário e inconsistente e, de outro, novas práticas sociais –
representadas pelo moinho de vento – em vias de generalização, mas às quais
ainda não corresponde uma ideologia legitimadora consistente e hegemônica.
Como diz a velha imagem, o novo não acabou de nascer e o velho não
terminou de morrer (QUIJANO, 2005, p. 9).

Assim, dividido entre o tempo divino e o tempo natural, o Barroco


histórico se configura como natureza cindida entre dois polos extremos – Idade
Média e Idade Moderna –, mas revela um modo de interpretação da história,
uma “perspectiva barroca” do conhecimento histórico. O Barroco seria,
portanto, a convergência de pontos extremos e inconciliáveis, caracterizando
assim o seu movimento crítico-reflexivo a partir de uma dialética dos extremos.
Designado já no século XVII com o nome da pérola imperfeita, irregular,
ou seja, de um objeto de forma não simétrica, desarmônica e desigual, o
Barroco carrega como característica central a inexatidão e a ruptura interior
diante da harmonia clássica, da razão correta e iluminada. O Barroco é a
morada de um conflito, de um desacerto interior, como explica Alejo Carpentier:

[O Barroco...] é uma constante do espírito que se caracteriza pelo horror ao


vazio e à superfície desnuda, harmonia linear geométrica. É um estilo onde, em
torno do eixo central, se multiplicam o que poderíamos chamar de “núcleos
proliferantes”, quer dizer, elementos decorativos que preenchem totalmente o
espaço ocupado pelas construções. [...] O Barroco é uma constante humana
que não pode ser circunscrita a um movimento arquitetônico, estético, pictórico
nascido no século XVII. Encontramos o Barroco florescido em todos os tempos,
como características da cultura humana (CARPENTIER, 1987, p. 113).

Para Carpentier, prova dessa amplitude trans-histórica do Barroco são


as esculturas hindustânicas, assim como a catedral de São Basílio, em
Moscou, e A flauta mágica, de Mozart. Da mesma forma, a literatura hindu e a
97

iraniana, assim como Shakespeare e a poesia de Maiakovski. Para o escritor


cubano, o espírito do Barroco está presente no Popol Vuh, antiga cosmogonia
maia, assim como na cosmogonia asteca de Quetzalcóatl e em inúmeros
templos no México. Expressão que busca retratar o movimento do imanente,
do real enquanto exuberância em conflito, o Barroco atinge, em sua dinâmica
paradoxal, imanência e transcendência.
Essa condição primeira do Barroco, premissa de natureza filosófica que
opera segundo a dialética dos extremos, faz com que, na América, ele apareça
de modo distinto de sua forma europeia. No continente americano, a cisão
entre mundo divino e mundo racional, melhor dizendo, a separação entre
mundos distintos, é ainda mais radical. Para além do mundo regido pelas leis
naturais e restrito à obediência dos fatos, na América o mundo natural aparece,
nas palavras do poeta cubano Lezama Lima, como “pleno de dons em si”,
espaço gnóstico da multiformidade de presenças que coabitam no real. Nesse
espaço se mesclam a perspectiva dos povos originários e o imaginário da vida
mítica e miraculosa europeia, que remonta ao mundo pré-filosófico. O Barroco
seria a expressão desse modo de vida em que a resistência das populações à
violência colonial se expressa através da articulação entre diferentes registros,
configurando-se como forma cultural inédita e original.
Esse modo de vida próprio do mundo americano representa uma
contraconquista (LEZAMA LIMA, 1988, p. 80), ou seja, é um mundo no qual,
juntamente com o conjunto de práticas sociais da colonialidade do poder, se
sedimentam formas socioculturais guiadas por um ímpeto de resistência e de
anunciação de uma modernidade alternativa, sua descolonização.

O ethos barroco latino-americano


A especificidade do modo de vida crítico propriamente americano é
chamada de ethos barroco por Bolívar Echeverría. Perspectiva que mantém a
tensão contraditória ao mesmo tempo que “inventa” uma terceira possibilidade,
o ethos barroco é a marca distintiva do mundo da vida do continente
americano. Essa marca está presente tanto nas formas artísticas mais
rebuscadas quanto no cotidiano miúdo, arena dos pequenos costumes. Como
explica Echeverría:
98

[O ethos barroco está...] situado nessa necessidade de escolher, nesse


enfrentamento desta alternativa. Não é a abstenção ou irresolução como
poderia parecer à primeira vista que caracteriza centralmente o comportamento
barroco. É a decisão de tomar partido pelos contrários ao mesmo tempo. Na
realidade, ele resolve o conflito em um plano diferente, em que o mesmo – sem
ser eliminado – acabe transcendido.

Nesse sentido, o ethos barroco se caracteriza pela intensa estetização


da vida cotidiana, pela teatralização originada nessa dialética americana dos
extremos, que afirma simultaneamente o mundo real e o mundo da ilusão, o
mundo das formas e o mundo das ideias, a fruição dos sentidos e a angústia
do espírito e inúmeras outras ambiguidades. Mais do que um fracasso ou a
ausência de escolha, o ethos barroco é a expressão dessas tensões em sua
vigência mais vigorosa; é a afirmação desse movimento de oscilação entre um
polo e outro, desse disfarce de um polo no outro, dessa tentativa de abranger
oposições radicais em uma temporalidade não linear e hierárquica.
Os empreendimentos catequizadores de caráter utópico-evangélico
foram uma das principais experiências concretas da América a seguir os
princípios do ethos barroco enquanto resistência ao domínio colonial, mesmo
que de maneira excessivamente conduzida pela moral cristã. Dominicanos,
franciscanos e jesuítas protagonizaram variados experimentos utópico-sociais
nos quais se buscava um verdadeiro “renascimento cristão”. Este teria por base
uma experiência comunitária que fundisse a doutrina da Igreja com a suposta
simplicidade e naturalidade da vida indígena.
Na senda da construção utópica de uma Jerusalém terrestre, os jesuítas
foram os que realizaram as experiências mais duradouras e bem-sucedidas. A
mais conhecida delas foram os Sete Povos das Missões, conjunto de sete
aldeamentos indígenas fundados pelos jesuítas espanhóis na região Sul do
continente latino-americano, entre o Uruguai, o Paraguai, a Argentina e o
Brasil. Também conhecidos como A Grande Experiência, os Sete Povos foram
um grande empreendimento de concretização de um modo de vida comunitário
e autônomo e duraram do final do século XVII ao início do século XIX.
Entre os aspectos mais conhecidos da Companhia de Jesus, figuram a
organização extremamente hierarquizada e rigidamente disciplinada. Essas
características tendem a obscurecer a visão específica da expressão do
99

sagrado no mundo jesuítico, em que se abre a possibilidade de tradução


cultural e do anseio por um horizonte comum – utopia – com os povos
indígenas da América.
Esse anseio em realizar na América sua utopia evangélica fez com que
os jesuítas produzissem transformações no pensamento teológico elaborado
na época. Uma das mais importantes diz respeito ao lugar do maniqueísmo na
teologia jesuítica. Se a teologia clássica coloca o Bem como habitante do Reino
dos céus e o Mal como manifestação imanente, na teologia jesuítica a criação
passa a ser interpretada como uma obra em processo, recriação perpétua, uma
luta inconclusa entre o Bem e o Mal. A imanência, a vontade e os sentidos
humanos são manifestações onde o sagrado habita e, mais ainda, onde pode
se desenvolver.
Outra experiência de caráter religioso em que o ethos barroco se fez
presente foi o marianismo. Esse fenômeno, presente em todo o continente
americano cristão ibérico, se caracterizou pela eleição de uma figura sagrada
feminina como mediadora entre o mundo da vida e o mundo de Deus
onipresente. Essa mediação realizada pela figura feminina atuava como ponte,
ou seja, como diálogo entre o céu (mundo superior das leis universais) e a terra
(lócus da concretude e da fatualidade), expressa como estetização da vida
cotidiana, já que Virgem Maria tomou diversas formas de expressão.
São comuns em todo o continente elementos como a aparição a
pescadores em um barco, a tez negra em lugares de forte presença africana,
como o Brasil, e histórias em que a figura de Maria se confunde com
personagens do mundo rural, muitos deles figuras mítico-pagãs, como a
imagem de Iemanjá em vários cultos afro-brasileiros. Até mesmo como
entidade protetora na luta de libertação dos povos, Maria se torna presente, tal
como ocorre no México, onde a Guadalupana (a Virgem de Guadalupe) se
tornou um forte símbolo para os independentistas e os revolucionários do país.
Assim, o marianismo popular se converte em forma de proteção divina
acessível ao mundo dos viventes.

A mestiçagem cultural
Outro aspecto que evidencia o ethos barroco enquanto modo próprio e
afirmação crítica da identidade americana são as imagens e histórias
100

sedimentadas no imaginário que se referem aos processos de tradução


intercultural, transculturação e diferentes incorporações realizadas por grupos
sociais de diferentes identidades. Em uma palavra, os processos de
mestiçagem cultural.
Um dos símbolos mais fortes da constituição mestiça da formação
histórico-cultural da América é Malinche. Figura histórica considerada como
mãe da nação mexicana, ela ocupou importante papel na conquista do atual
território mexicano. Tida como intérprete e amante do conquistador Hernán
Cortés, Malinche foi peça fundamental do processo, já que era a pessoa
responsável pela tradução e comunicação entre Cortés e Montezuma II, líder
máximo dos astecas. Dessa forma, Malinche representa a criação de um
terceiro incluído, criado e renovado no movimento de tensão e diálogo fundado
na diferença colonial.
No Brasil, apesar de menos central e menos conhecida, a história de
Paraguaçu, índia Tupinambá que viveu ao lado do português Diogo Álvares
Correia, o Caramuru, retrata a “invenção do Brasil”. Segundo a história,
Paraguaçu, filha de um importante chefe Tupinambá, foi rebatizada como
Catarina em uma viagem para a Europa e, em seu retorno ao Brasil, teria
oferecido o “império indígena” a seu marido e à Coroa portuguesa. Para isso,
Paraguaçu teria ajudado a convencer e enganar seu povo, resistente a aceitar
o jugo português.
Porém, em sua viagem à Europa, a índia teria influenciado a religião
católica a partir de visões místicas que lhe teriam sido reveladas e pelas quais
ela teria indigenizado os cultos europeus. Ou seja, a Europa católica que
conquistou o Brasil havia sido primeiramente “contraconquistada” pela índia
Paraguaçu. Essa tensão de nascimento em que lugares e papéis de dominador
e dominado se confundem, formando um paradoxo que nos remete a um
incessante jogo de espelhos, é uma explicitação do pensamento barroco
americano.
No Brasil, outro tema extremamente ilustrativo da lógica mestiça própria
dos povos originários da terra – em um primeiro momento – e da população
mestiça que incorpora essa prática em seu sentido cultural, é a antropofagia.
Praticada entre os povos Tupinambá que habitavam a costa brasileira no
século XVI, a antropofagia consistia no consumo da carne dos inimigos
101

apresados durantes as guerras interétnicas A prática da antropofagia é,


enquanto ato simbólico de incorporação do outro, de suas qualidades de
guerreiro, um dos emblemas de nossa mestiçagem cultural. Diferente da
negação e do extermínio do inimigo, para os Tupinambá era necessária a
incorporação – a devoração – dos inimigos, que por sua vez traziam antigos
dotes de outros parentes devorados em outras guerras e momentos.
Essa lógica de trazer o outro para dentro de si e digeri-lo é mais que um
dado cultural passado, pois foi incorporada e ressignificada como uma lógica
cultural ampliada para além do universo Tupinambá, tornando-se uma matriz
cultural básica da formação social brasileira.
Formada pela memória histórica de índios, negros, mestiços, criollos e
inúmeras identidades atribuídas, incorporadas e ressignificadas, a vida social
latino-americana se realizou a partir de uma conjugação de diferentes fontes e
memórias históricas. Porém, diferente dos processos oriundos do padrão da
colonialidade do poder, na pedra solar escura do ethos barroco enquanto
resistência e crítica, prevalece a natureza contraditória e de relação de
incorporação do outro. Diferente da lógica da negação do outro, há o
reconhecimento da tensão em relação à outredade, ou seja, a percepção de
que o outro é constitutivo de minha identidade em troca e constante
movimento. Explica Echeverría:

Se há uma história da cultura, é justamente a história das mestiçagens. A


mestiçagem, interpenetração de códigos que as circunstâncias obrigam a soltar
os nós do absolutismo, é esse o modo de vida da cultura. Paradoxalmente, na
medida em que uma cultura se põe em jogo, sua identidade se põe em perigo e
entra em questão trazendo à luz sua contradição interna. Somente assim ativa
sua possibilidade de dar forma ao mundo, somente assim entrega ao mundo
sua proposta de inteligibilidade (ECHEVERRÍA, 2000, p. 81).

Rebeliões e movimentos de contestação: mestiçagem descolonial-crítica,


luta e organização dos povos
A mestiçagem descolonial-crítica, proponente de uma outra
modernidade, também se concretizou através das inúmeras rebeliões e
movimentos de enfrentamento à ordem e à dominação próprias da
colonialidade do poder. Combinando diferentes formas de organização
sociopolítica, essas ações se apoiavam em lógicas de relação próprias do
102

universo da mestiçagem, no qual diferentes memórias históricas e tradições se


combinavam para formar exércitos, cidades, agrupamentos rebeldes, grupos
messiânicos e diferentes modos de organização, com o objetivo de realizar
formas de sociabilidade que não estivessem sob o crivo do dominador.
No Brasil, datam do final do século XVI os primeiros registros sobre o
Quilombo dos Palmares, conjunto de mocambos – agrupamentos comunitários
– que chegou a reunir 25 000 pessoas organizadas em torno de seu eixo
central de comando. Localizado a 120 quilômetros do litoral do atual estado de
Alagoas, Palmares formou um modelo de resistência coletiva em que a
presença negra era hegemônica em relação à indígena, apesar da forte
presença tupinambá, principalmente feminina. Após diversas expedições
enviadas pelas autoridades coloniais com o objetivo de destruir a estrutura de
resistência e a ameaça econômica representada por Palmares, o quilombo –
que se espalhava por uma área geográfica extensa e heterogênea – foi
totalmente desarticulado em 1710.
Mais de um século depois, em 1835, um grupo de índios, mestiços e, em
menor número, negros, invadiu e tomou o poder na cidade de Belém. Ali se
iniciava um conflito que, durante cinco anos, tomou toda a calha amazônica e o
baixo curso de seus afluentes. Movimento extremamente heterogêneo e sem
um objetivo único e consensual, a Cabanagem foi um dos maiores conflitos que
o Brasil conheceu. A expressiva presença mestiça e a autonomia em relação
ao objetivo político das elites em disputa no ainda jovem Império, garantiram ao
movimento um forte caráter contestatório de levante popular que, em seu
horizonte, enxergou uma outra sociedade.
Juntamente com os Sete Povos das Missões, Palmares e a Cabanagem,
o Brasil foi palco da Balaiada (Maranhão), da Revolução Praieira
(Pernambuco), da Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul) e da Revolta dos
Malês (Bahia), de inúmeras insurreições e experiências de organização
realizadas por escravizados, indígenas e povos mestiços. Em todas elas estão
presentes elementos em que, juntamente com o poder econômico e político, foi
ameaçado o conjunto de normas e padrões de controle do trabalho e do
racialismo da colonialidade do poder – fundamento da estrutura de produção
do capitalismo mundial.
103

No caso da América hispânica, a maior revolta anticolonial ocorreu em


1780-1782, no Peru, conduzida pelo líder indígena José Gabriel Condorcanqui
– Túpac Amaru –, membro da elite indígena de Cusco. A Gran Rebelión se
iniciou com a tomada do poder em Cusco e rapidamente se espalhou por toda
a região andina, mobilizando milhares de indígenas e mestiços contra a
exploração econômica espanhola. A rebelião de Túpac Amaru despertou um
forte sentimento coletivo de indignação e reacendeu a simbologia inca,
destacando o sentimento de pertencimento à visão de mundo indígena. Junto
com a rebelião de Túpac Amaru, várias outras revoltas foram organizadas
nesse período, destacando-se, em 1781, o cerco à cidade de La Paz,
comandado por Túpac Katari, outro descendente inca. Esquartejado em praça
pública após liderar duas insurreições, transformou-se em figura mítica do
movimento indígena boliviano até hoje. Tornou-se muito popular a sentença
que ele teria proferido na hora da morte: “Voltarei e serei milhões!”.
Mais ao sul do continente, próximo à bacia do Prata, encontra-se o
território onde a conquista teve maiores dificuldades para se sedimentar,
criando uma vasta cultura de resistência de base indígena. As missões
jesuíticas são outra prova de uma experiência social na qual a mestiçagem é
um elemento estruturante da resistência, como a Revolução Haitiana 28 (1791) e
a Revolução Mexicana29 (1910). Esta, em sua extrema heterogeneidade, teve a
participação inequívoca das massas camponesas indígenas em sua condução,
o que explicita a força e a importância da incontornável mestiçagem no
continente latino-americano.
Assim, ao lado da colonialidade do poder – eixo estruturante da
dominação colonial mercantil-capitalista desde o início do século XVI – se
desenvolve a resistência crítica a esse padrão de poder. Com base no ethos
barroco e na dialética dos extremos, é possível vislumbrar uma outra
modernidade. Modernidade alternativa e descolonizada formada por um
conjunto de práticas sociais que se organiza de maneira invertebrada. Há um
28
Para saber mais sobre a Revolução Haitiana, ver o item O realismo maravilhoso.
29
A Revolução Mexicana foi a primeira revolução de claro cunho social a acontecer na América
Latina no século XX. Processo histórico complexo e multifacetado, foi uma revolução de caráter
agrário, nacional e popular, que representou uma ruptura na história do México. Ela levou à
construção de um Estado que incorporou as demandas populares em suas leis, resultando na
criação de uma política de massas mais à esquerda que em outros países da América Latina.
Nesse sentido, é um marco histórico importantíssimo para entender toda a luta popular do
continente.
104

transfundo filosófico, uma perspectiva de conhecimento – um pensamento


mestiço – que se expressa no labirinto de nossas representações, instituições,
territórios e identidades. Ou seja, há uma dupla consciência estrutural no
processo histórico da formação da modernidade colonial em suas duas
expressões: uma modernidade eurocêntrica, a colonialidade do poder, e uma
modernidade alternativa descolonizada, a mestiçagem descolonial-crítica. A
imbricação entre as duas forma uma totalidade histórico-estrutural heterogênea
nas relações sociais do capitalismo mundial.
Esse movimento em conjunto configura um sistema mundial de
exploração, controle da força de trabalho e das relações intersubjetivas a partir
do século XIX, na fase industrial do capitalismo. Nesse contexto, no universo
do conhecimento e da práxis, surge o marco teórico marxiano e sua
determinante contribuição, ao apontar a luta de classes como motor da
sociedade do capital e a superação desse modo de produção como tarefa
histórica dos trabalhadores.
Na América Latina, onde, em conjunto com os movimentos da classe
trabalhadora europeia, se levantavam camponeses, trabalhadores, indígenas,
mineiros e um proletariado incipiente, um pensador conseguiu, em sua prática
militante, expressar essa multiplicidade. Socialista, educador, militante,
jornalista e poeta, José Carlos Mariátegui foi a expressão direta da dialética
dos extremos no movimento revolucionário do continente. Seu pensamento
conseguiu realizar, no curto período de sua vida, uma práxis afinada tanto com
a memória histórica e as tradições do continente latino-americano como com o
pensamento crítico que se desenvolvia como resposta ao avanço do
capitalismo em todo o mundo.
105

B. Em busca de um socialismo indo-


americano:
o pensamento de José Carlos
Mariátegui
Pensar é exercício de alegria
entre veredas de erro, cordilheiras de dúvida,
oceanos de perplexidade.
Pensar, ele o provou, abrange todos os
contrastes,
como blocos de vida que é preciso polir e
facetar
para a criação da pura imagem:
o ser restituído a si mesmo.
Contingência em busca de transcendência.30
(Carlos Drummond de Andrade)

A entrada do século XX foi marcada por uma profunda crise da chamada


civilização ocidental. Os horrores da Primeira Guerra Mundial explicitaram a
face extremamente destrutiva do modelo civilizatório baseado na acumulação
capitalista. Como resultado, tanto na Europa como na América Latina, os
trabalhadores se organizavam e se reorganizavam em partidos e coletivos que
defendiam, com diferentes estratégias, a derrocada do modo de produção
capitalista. No campo estético, as vanguardas artísticas expressavam a
desilusão com o racionalismo positivista através de manifestos que elogiavam
o quebra de perspectiva, o inconsciente e a loucura, o sonho e a primitividade.
Países que não conheceram a revolução das máquinas se digladiavam
internamente, procurando o melhor caminho para a industrialização e iam em
busca de sua especificidade enquanto nações independentes, fazendo surgir
assim o regionalismo e a busca de síntese entre o mundo “moderno” e o
mundo tradicional. É nesse contexto que surge, no Peru, o revolucionário que
legou a contribuição mais original do continente ao marxismo mundial.

30
Poema escrito para o escritor brasileiro Alceu de Amoroso Lima, de quem o poeta era grande amigo.
106

Profundo estudioso de seu país, José Carlos Mariátegui teceu um


pensamento que traduziu o momento histórico pelo qual passava a América
Latina, vislumbrando um horizonte de emancipação, um sentido histórico
revolucionário para toda a heterogênea população do continente. Essa
amplitude de análise só foi possível porque, juntamente com o marxismo,
Mariátegui foi um pensador que forjou o seu pensamento se nutrindo de toda a
tradição do continente; seu ethos barroco e sua mestiçagem descolonial-crítica.
Pensador militante, Mariátegui escrevia sob o calor dos fatos políticos
que ajudava a produzir e não se furtou a nenhum assunto que entendia ser
importante para a luta dos trabalhadores. Poesia, literatura, cinema,
indigenismo, filosofia, psicologia, religião, realidade de outros países e
continentes. O escopo de seu pensamento foi muito além do estrito campo da
política, alcançando extremos e reunindo-os em uma mesma totalidade
histórica. Traçou assim um marxismo que se nutria de polaridades
consideradas por muitos como inconciliáveis, como religião e luta social,
mundo indígena e vanguarda, socialismo e mundo inca.
Tensionado entre duas propostas civilizatórias, duas almas, duas
perspectivas de conhecimento, o pensamento de Mariátegui explicita a
duplicidade própria do continente no qual são entrelaçadas e em luta a
colonialidade do poder e a sua mestiçagem descolonial-crítica. Traduzida na
chama do socialismo indo-americano, a via revolucionária defendida por
Mariátegui é prova da originalidade de uma proposta crítica revolucionária
própria da América Latina.

1. A vida de Mariátegui: a busca de uma


síntese

Infância
José Carlos Mariátegui nasceu em 1894 na cidade de Moquegua, no sul
do Peru, já próximo à fronteira com o Chile. Filho da costureira e professora
Maria Amalia La Chira Ballejos e órfão de pai, José Carlos e seus dois irmãos
107

foram muito cedo viver na cidade de Huacho, onde sua mãe pôde criá-los com
o apoio da família.
A infância de Mariátegui foi marcada pelo forte convívio com a vida das
populações indígenas campesinas yungas que viviam em Huacho e que
formavam a campina, uma forma de organização coletiva dos campesinos
indígenas da região. Esse convívio marcou a memória de Mariátegui. Outras
experiências significativas foram a grande religiosidade popular da cidade e o
alto nível educativo da sociedade local. Matriculado na escola de seu bairro em
1891, um ano mais tarde teve de sair por causa de um acidente no intervalo
das aulas. Ferido por um violento golpe na perna esquerda enquanto brincava
com os colegas, Mariátegui se transferiu com a família para Lima em busca de
tratamento adequado. O isolamento de mais de dois anos influiria fortemente
na tendência autodidata do autor e em sua intensa mística, presente já em
seus primeiros versos, escritos nessa época. Como explica Quijano:

Essa experiência infantil, de pobreza e de ausências, de enfermidade e


inatividade física, de solidão e melancolia, de religiosidade e de poética mística,
de inquietas e interrogadas leituras é, sem dúvida, fundamental para a
compreensão da obra adulta mariateguiana. Como não ver ali a origem dos
impulsos emocionais que atravessariam permanentemente uma parte de seu
desenvolvimento e, em especial, essa tensão agonística entre uma concepção
metafísica de existência, alimento de uma vontade heroica de ação e as
implicações necessárias para a adesão ao marxismo que caracterizam grande
parte de seu pensamento (QUIJANO, 1979, p. 27).

A partir de 1909, Mariátegui começou a trabalhar como entregador,


linotipista e corretor de provas de um jornal limenho. Fascinado pelo mundo
jornalístico, em 1914 o futuro revolucionário passa a escrever sobre a vida
cotidiana do Peru e se torna amigo de um dos mais importantes poetas locais,
Abraham Valdelomar, que o apelidará de cojito genial (“manquinho genial”). A
agilidade de seu estilo de escrita, somada às suas observações, tornou
Mariátegui rapidamente conhecido em Lima. Durante esse período, ele também
se voltou para escritos poéticos, com um tom místico-sensual voltado a um
êxtase da emoção e da reclusão em busca de si mesmo. Buscava afirmar sua
discordância do mundo burguês e utilitarista através de uma arte que
transbordava voluptuosidade e sentimento trágico diante da vida.
A passagem para um posicionamento mais crítico se inicia a partir de
sua entrada, em 1916, no periódico El Tiempo – formado por jornalistas de
108

diferentes linhas ideológicas identificadas com o liberalismo e, de maneira mais


branda, com ideias de traços socializantes – e, mais tarde, na Revista Nuestra
Época, de caráter mais progressista e voltada à luta dos trabalhadores. Como o
próprio Mariátegui escreveu depois, sua orientação socialista tem seu “ponto
de arranque” nesse momento (ESCORSIM, 2006, p. 69). Dali em diante, o
pensador buscaria uma postura cada vez mais crítica e identificada com o
programa socialista e com a luta dos trabalhadores.
Em 1919, deixa a Nuestra Época e participa ativamente da criação do
La Razón, periódico que apoiava energicamente os trabalhadores, que
realizavam uma greve geral em Lima, assim como os estudantes da
Universidad Nacional Mayor de San Marcos, que também estavam paralisados
exigindo uma ampla reforma universitária. A decidida entrada de Mariátegui ao
lado do nascente proletariado peruano não agradou às autoridades
governamentais, que enviaram o escritor para a Europa como correspondentes
do governo – um exílio diplomático – afastando-o do país.

O período europeu
Mariátegui desembarca em Paris em 10 de novembro de 1919 e
encontra um continente em ebulição. O resultado da Primeira Guerra Mundial
era visto e sentido por toda parte, nas cidades destruídas, na alta taxa de
desemprego, nos protestos e na organização proletária, cada dia mais
fortalecida. O fantasma do comunismo rondava a Europa e, em resposta a ele,
sobrevinha o fascismo. No leste do continente, se levantava a Revolução
Russa. Em dezembro desse mesmo ano, Mariátegui parte para a Itália,
influenciado pela presença de amigos e pelo desejo de maior proximidade com
a cultura italiana.
O ambiente italiano naqueles anos de pós-guerra foi reconhecido por
Mariátegui como “um amanhecer”. Dali tirou as impressões e experiências que
alimentaram sua crença de que uma “alma matinal” surgia no horizonte da
humanidade, um novo homem estaria surgindo, tal qual a fênix, após o
definitivo acontecimento da Grande Guerra. Em Roma, onde fixou moradia,
Mariátegui pode absorver toda a riqueza de informações sobre a situação da
luta de classes em diferentes países.
109

Pelo país, operários começam a se organizar, e as forças sociais que


irão dominar a cena nas próximas décadas estão em pleno surgimento e
ascendência. Como em todos os países sob o raio de ação da Segunda
Internacional Socialista, havia um movimento geral de combate ao
evolucionismo determinista que predominava na concepção doutrinária dessa
organização. Na Itália, a crítica ao positivismo naturalista dessa interpretação
da teoria de Karl Marx foi realizada pelos neo-hegelianos Benedetto Croce e
Giovanni Gentile, que defendiam a dignidade do espírito e o “elemento
liberador”. Mariátegui se aproxima também dessa perspectiva que critica o mito
cientificista e que defende que espírito, vontade e ação cumprem papel central
no enfrentamento ao marco positivista.
Outro intelectual que influenciou o pensamento de Mariátegui foi Piero
Gobetti, com quem Mariátegui mantinha, em suas palavras, “uma sintonia
amorosa”. Ele se impressionava com a perspicácia de Gobetti para analisar a
realidade segundo critérios econômicos e compartilhava da ideia de criar uma
nova classe política que articulasse as vanguardas política e cultural e
soubesse, com base na ação prática, penetrar amplamente na sociedade.
Uma das influências determinantes para a elaboração mariateguiana foi,
sem dúvida, o pensamento de Georges Sorel. Anarcossindicalista, autor das
teses sobre o sindicalismo revolucionário e sobre a força do mito como motor
da revolução, Sorel é um ferrenho antipositivista, que vê na ação heroica do
proletariado a saída para o mundo desencantado pelo progresso. Somando-se
ao esforço de superar o determinismo cientificista da Segunda Internacional, a
ideia-força do mito exerce profunda influência em Mariátegui, que encontra
afinidade entre o mito soreliano e sua própria ânsia de transcendência
religiosa. Temática central na obra de Mariátegui, o mito, a fé e a emoção
religiosa vão, aos poucos, se incorporando à sua formação de revolucionário.
O período de aprendizado na Europa foi de abertura de horizonte
intelectual. Além das referências principais aqui citadas, Mariátegui mergulhou
na densa atmosfera política europeia e conheceu diferentes linhas de
pensamento. Autores como Miguel de Unamuno, Henri Bergson, Friedrich
Nietzsche e Sigmund Freud – presentes em suas reflexões – certamente foram
conhecidos mais profundamente após essa sua passagem pelo continente.
110

O retorno ao Peru
Em 18 de março de 1923, Mariátegui chega de volta a Lima. Após três
anos e meio em solo europeu, era hora de iniciar aquilo que o pensador
chamou de “tarefa americana”: organizar o nascente socialismo peruano.
Os sete anos seguintes foram de intensa atividade para Mariátegui, que
se dedicou com afinco e em várias frentes de trabalho – educação, cultura,
organização política – à tentativa de criar bases para aquilo que ele chamou de
socialismo indo-americano. Esse conjunto de atividades teve como eixo
fundamental a articulação das suas experiências europeias com a realidade do
Peru, sua especificidade. A tensão dialética entre a realidade de duas latitudes
– suas afinidades e distinções – fez com que Mariátegui buscasse integrar as
vanguardas político-culturais da Europa à realidade peruana, em uma nova
ideia de sociedade. Essa sociedade seria feita por um novo homem, e ambos,
alimentados pela alma matinal, um novo sentido histórico ascendente, que
superaria o decadentismo e a ideia da ciência positivista.
Durante o ano de 1923, Mariátegui participa ativamente das
Universidades Populares González Prada, espaço criado e organizado por
trabalhadores e estudantes, que tinha como objetivo oferecer formação à
classe trabalhadora acerca da história, da cultura e de seus direitos.
Esse período de militância junto aos mais diferentes movimentos de
caráter classista faz com que Mariátegui se converta no principal líder de
esquerda do Peru. A intensidade de suas atividades também é responsável
pela fragilização de sua saúde. Em maio de 1924, sua perna é amputada.
Em outubro de 1925, ele criou com seu irmão Julio César a Editora
Minerva, pela qual lançou o livro La escena contemporanea e, em 1926, a
revista Amauta. Essa palavra, de origem quéchua, significa sacerdote, sábio, e
designava as pessoas encarregadas da educação dos jovens incas. Desde
então, Amauta se tornou uma espécie de segundo nome de Mariátegui, e, não
por acaso, sintetiza a natureza do espírito revolucionário do pensador.
A revista Amauta teve 32 números e durou até a morte de Mariátegui.
Caracterizou-se pela amplitude temática e variados estilos, procurando ser um
espaço de divulgação tanto das vanguardas e do pensamento político europeu
como da arte, da cultura e da política do continente latino-americano. A
111

Amauta contou com a colaboração de autores e pensadores destacados de


diversas correntes.
Em 1928 é lançado o livro Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, considerado primeira obra de análise da realidade latino-americana a
partir do marxismo. O livro é uma radiografia do Peru que chegava ao final de
um ciclo de instabilidade política e econômica e entrava em um novo momento
de sua história. Síntese de todo o processo de maturação do pensador, Sete
ensaios foi escrito como uma investigação carregada de “uma enérgica
ambição: contribuir para a construção do socialismo peruano” (ESCORSIM,
2006, p. 214).
Junto com o trabalho editorial, Mariátegui participou ativamente da
organização de entidades operárias, camponesas indígenas e de conhecidos
episódios do desenvolvimento da esquerda peruana. Essa participação ativa
levou o pensador a ser convidado para participar da I Conferência Comunista
Latino-Americana, realizada em Buenos Aires em junho de 1929. Ele não foi
por motivo de saúde, mas a participação da delegação peruana é conhecida
como um dos episódios mais importantes da trajetória do Amauta. Os
chamados “debates de Buenos Aires” contribuíram para demarcar a natureza
específica do pensamento crítico do pensador peruano.
Mariátegui era um profundo admirador do bolchevismo, sendo um
estudioso de todo o desenvolvimento do marxismo-leninismo e um defensor do
internacionalismo revolucionário. Porém, como ficou claro no encontro da
capital argentina, tinha diferenças programáticas consideráveis com a Terceira
Internacional, órgão muito centralizador e com forte influência do positivismo e
da “mitologia” do progresso científico. Para Mariátegui, a revolução na América
Latina deveria seguir caminhos próprios e em sintonia com a realidade histórica
específica de suas populações formadoras. As duas teses enviadas por ele
para esse encontro podem ser consideradas como sínteses fundamentais de
seu pensamento e das reflexões que dão fundamento aos estudos atuais da
colonialidade, inaugurados pelo pensador mariateguiano Aníbal Quijano. 31

31
No texto Ponto de vista anti-imperialista, Mariátegui afirma que o caminho para o socialismo
na América Latina não passa necessariamente por uma etapa em que haveria um governo
organizado pela burguesia nacional. Essa tese prenuncia muitas das reflexões sobre a
originalidade da realidade latino-americana e está na gênese de linhas de pensamento como a
teoria da dependência e a colonialidade do poder. Já na tese O problema das raças na
América Latina, Mariátegui defende que a noção de raça deve ser interpretada a partir de sua
112

A partir do início de 1930, a saúde de Mariátegui piora muito. Ele morre


em 16 de abril de 1930, antes de completar 36 anos. No dia seguinte, seu
corpo é levado pelas ruas de Lima, seguido por milhares de trabalhadores
empunhando a bandeira vermelha.

O mariateguismo
Atualmente, embora os estudos sobre a obra do Amauta sejam
numerosos e heterogêneos, pode-se dizer que alguns consensos balizam a
maioria desses estudos, circunscrevendo o que podemos chamar de um
pensamento mariateguiano. A seguir, uma síntese desses consensos.

1. O caráter não sistemático de sua produção. Mariátegui só publicou


dois títulos em vida, sendo ambos formados em sua maioria por artigos
escritos nas revistas com as quais colaborava. Jornalista de profissão, foi
através de seu ofício de analista dos acontecimentos mais variados no
campo da arte, da política, da religião e da cultura que Mariátegui produziu
suas reflexões, que não compõem uma obra sistematizada. Seus textos têm
uma linguagem viva e de tom coloquial e ensaístico, sem demonstrar
preocupação pelo formalismo científico. De caráter heterogêneo e pleno de
sentimentos, como a exaltação, a ironia e a religiosidade, o estilo irregular foi
uma escolha pessoal de Mariátegui, pela qual ele se posicionava
criticamente diante do academicismo e do pensamento produzido longe do
calor dos acontecimentos.
Autointitulado “extrauniversitário e, talvez, até mesmo antiuniversitário”
(ALIMONDA, 1983, p. 8), o pensador defendia o entrelaçamento entre
realidade e ficção, cotidiano e conhecimento, imaginação e análise científica,
ferindo propositadamente os cânones cientificistas da academia. Seu estilo
de escrita e a maleabilidade dos temas que abordou expressavam
convergência entre suas ideias, sua prática militante e sua fé revolucionária.
Comentando seu ofício de escritor, Mariátegui afirma que seu trabalho se

imbricação com as formações socioeconômicas das nações. Também defende que o


campesinato indígena peruano teria papel central na Revolução. Ambas as afirmações são
elementos chave para entender a ideia da racialidade e do controle do trabalho, que dão base
ao pensamento da colonialidade do poder.
113

realiza “segundo a observação de Nietzsche, que não apreciava o autor


envolvido na produção intencional e deliberada de um livro, mas sim aqueles
cujos pensamentos formavam um livro de forma espontânea” (FONTES in:
MARIÁTEGUI, 2011, p. 11).

2. A obra de Mariátegui como expressão direta de sua militância


cultural. Pensamento enraizado na realidade de seu tempo, a obra de
Mariátegui vai sendo criada ao longo de seu desenvolvimento enquanto
homem da vanguarda cultural peruana e também a par com os diferentes
projetos que realizou. Os textos sobre cultura, a abertura da Editora Minerva
e seu esforço pela continuidade da Amauta, entre outras publicações,
expressam seu intuito de unir a vanguarda política e a vanguarda cultural em
um projeto ainda maior, o socialismo indo-americano. A dedicação de
Mariátegui à construção de um projeto cultural do socialismo indo-americano
é um traço essencial de sua práxis e de seu pensamento. Ação política,
ação cultural e reflexão teórica são, em Mariátegui, dimensões da mesma
totalidade heterogênea e em movimento constante: a aventura heroica da
organização do socialismo indo-americano.

3. A busca por uma leitura específica da realidade do Peru e da


América Latina. Sintetizada principalmente em sua obra Sete ensaios da
realidade peruana e nas teses preparadas para a Terceira Internacional, a
leitura de Mariátegui se sobressaiu pela capacidade de utilizar o método de
Marx sem perder de vista as características próprias do contexto latino-
americano. Ele se dedica ao estudo da presença indígena na formação do
Peru e confere importância central às populações camponesas indígenas no
protagonismo da revolução socialista e na criação de um nacionalismo
revolucionário próprio do continente. Isso dá ao pensamento do Amauta uma
originalidade reconhecida pelos mais variados analistas de sua obra e
coloca-o entre os mais qualificados debatedores do legado marxista.

4. A diversidade de autores e correntes filosóficas que se juntam ao


marxismo no pensamento de Mariátegui. Estão presentes o vitalismo de
Bergson, a ideia de mito em Sorel, a agonia de Unamuno, a crítica
114

historicista ao progresso realizada por Croce e ainda o interesse pelo


trabalho de Freud e de Nietzsche e pelas vanguardas artísticas, em especial
o surrealismo. Soma-se a isso o pendor místico desenvolvido desde a
infância pela mãe católica, no qual não faltou a forte matriz incaica, muito
presente no universo cristão mestiço da região em que Mariátegui cresceu.
Embora haja um debate sobre a importância de cada uma dessas influências
e sobre até que ponto elas aproximam ou não o peruano de sua adesão ao
marxismo, é consenso afirmar que o Amauta teceu um pensamento
heterodoxo em que comparecem muitas influências para além dos autores
consagrados pelas correntes marxistas.

Em suma, a produção de Mariátegui configura um conjunto bastante


heterogêneo e variado de áreas, temáticas e influências.
Conjunto de reflexões retiradas da intensidade que emana da práxis, o
pensamento mariateguiano é expressão da dualidade própria da filosofia latino-
americana, sua dupla consciência. Tensionando o pensamento eurocêntrico da
colonialidade do poder, Mariátegui é quem primeiro vislumbra um projeto
societário alternativo ao capitalismo que seja fidedigno à realidade do
continente. Aponta assim para uma modernidade alternativa à modernidade
capitalista. Seu socialismo indo-americano é a dimensão descolonizada e
crítica da dupla consciência. Muitos aspectos de sua obra evidenciam essa
originalidade e, ao mesmo tempo, a vinculação a toda uma tradição de luta e
pensamento oriunda do continente latino-americano.

2. A problemática filosófica em Mariátegui:


por uma totalidade histórico-social
heterogênea

Dialética dos extremos e afinidades eletivas: a totalidade


aberta
As influências teóricas distintas, a importância dada a dimensões pouco
valorizadas pelo pensamento político – imaginação, poesia, religião – e o
115

conjunto de atividades no campo da militância cultural e política que Mariátegui


exerceu tornam um desafio desvendar seu pensamento em uma totalidade
significativa.
Não é à toa que alguns pesquisadores e estudiosos da vida do Amauta
parecem concordar que o movimento de suas ideias apresenta uma
problemática filosófica que exige uma arqueologia de nossos pressupostos
filosóficos para ser compreendida. Atualizando para o contexto histórico-
mundial do século XX a especificidade latino-americana, Mariátegui apresenta
um pensamento que, seguindo a tensão fundamental entre opostos, reúne, em
uma mesma totalidade, logos e mythos, cisão primordial que funda a razão
metafísica, o um como princípio. Explicando como Mariátegui captou essa
tensão em seu contexto histórico e a traduziu, escreve Quijano:

Para Mariátegui estava se constituindo de maneira explícita, um campo cultural


original [...]. Este campo cultural original implica que logos e mito não são, não
podem ser externos entre si, senão contraditórios. Pertencem a um mesmo
movimento intelectivo em que a imaginação atua como e através do lógico para
constituir o conhecimento como representação global ou globalizante em
movimento, ato indispensável para outorgar status supra-histórico, mítico e,
portanto, àquilo que só pode realizar-se na história através de muitas
transcendências e transfigurações (QUIJANO, 1991, p. 109).

Ou seja, Mariátegui propõe uma totalidade entre logos e mythos que fere
radicalmente a compreensão do universo na qual os opostos estão separados
em níveis, em dimensões diferentes. Nesse sentido, Mariátegui irá propor uma
alternativa à filosofia idealista do um como princípio.
Confrontando-se a essa proposição, ele afirma uma perspectiva que traz
em sua base a relação entre forças opostas. Ou seja, o Amauta se coloca
contra a cisão e o domínio entre logos e mythos. Para ele, essa duplicidade
não deve se estabelecer segundo a hierarquia da ciência positivista, mas como
combate e luta em um mesmo plano.
Seguindo a noção de dois como totalidade, Mariátegui defende que a
razão científica deve ser confrontada com suas diferentes oposições – mito,
imaginação, poesia, tradição – em uma relação de complementaridade e
tensão entre polaridades extremas, configurando assim uma dialética dos
extremos. Ao indicar uma racionalidade outra ele explicita a existência de uma
dupla consciência no interior da modernidade. Duas possibilidades de razão:
uma cientificista e positiva, um como princípio; outra em diálogo com a
116

imaginação, a fé e o mito, dois como totalidade. E ambas se confrontando no


interior de uma mesma totalidade histórica.
A obra de Mariátegui, porém, guarda uma singularidade: para ele, as
polaridades devem estabelecer uma relação de agonia. Admirador confesso de
Unamuno, o Amauta encontrou na obra A agonia do cristianismo a tradução de
seu processo criativo e de ação política. Escreve o pensador:

A palavra agonia, na ardente e viva linguagem de Unamuno, recobra sua


acepção original. Agonia não é o prelúdio da morte, não é conclusão da vida.
Agonia – como Unamuno escreve na introdução de seu livro – quer dizer luta.
Agoniza aquele que vive lutando, lutando contra a vida mesma, e contra a
morte [...] (MARIÁTEGUI, 2005, p. 167).

Nesse trecho, inspirado em Unamuno, ele defende a agonia enquanto


tensão entre opostos. Agonia é a luta entre a vida e a morte que alimenta a
alma. Mariátegui revela sua leitura própria da unidade tensional entre opostos,
da “guerra originária” que alimenta seu pensamento. O peruano, que se
autodenominava uma “alma agônica”, encontra no pensamento de Unamuno
uma ressonância, uma afinidade que ele claramente utiliza para nortear seu
pensamento.32 Como explica Alberto Flores Galindo, “O verbo ‘agonizar’ é uma
espécie de ‘chave’ para o mariateguismo: ele nos abre ao mundo de sua
tensão interna” (GALINDO, 1982, p. 14). Nesse sentido, podemos afirmar que a
agonia, enquanto luta e necessidade mútua, é absorvida de Unamuno como
um pilar da obra de Mariátegui. Explica Jorge Oshiro:

O pensamento de Unamuno é uma franca rebelião contra a ditadura da razão


cartesiana. “Não me submeto à razão e me rebelo contra ela” [...]. E a rebelião
contra a nova Inquisição que é a Ciência tem sua contrapartida: a reivindicação
e defesa do sentimento, da subjetividade, do irracional, do corpo, da fantasia,
da fé contra a razão e a objetividade, a consciência reflexiva a ciência
(OSHIRO, 1996, p. 23).

32
A ideia de agonia expressa em Unamuno pode ser evidenciada em diferentes trechos de sua
obra. De modo sintético, podemos dizer que a dialética dos extremos se expressa em
Unamuno como afirmação agônica da vida enquanto confronto entre dimensões radicais da
existência, como a vida e a morte: “A vida é luta, e a solidariedade para a vida é luta, se faz na
luta. Não me cansarei de repetir que o que mais nos une, aos homens uns com os outros, são
as nossas discórdias. E o que mais nos une, a cada um consigo mesmo, o que faz a unidade
íntima da nossa vida, são as nossas discórdias íntimas, as contradições interiores das nossas
discórdias. Cada um de nós só se põe em paz consigo mesmo, como Dom Quixote para
morrer” (UNAMUNO, 1952, p. 45). Ou seja, para Unamuno, assim como para o Amauta, é na
discórdia, no movimento de negação e afirmação de opostos que se constitui o conhecimento,
o progresso da história, a vida. Unamuno afirmava em reflexões de caráter teológico aquilo que
Mariátegui levaria para o campo do pensamento crítico.
117

Assim, a agonia inseparável entre os extremos da vida social dos


indivíduos representa a lógica que irá orientar o pensamento de Mariátegui. A
agonia se desdobra, em Mariátegui, em inúmeras dualidades que atravessam
sua obra. Como oposição básica à lógica (logos) da ciência, o pensador
peruano apresenta a poesia, a imaginação, o pensamento indígena, a mística,
a vontade e a fé. Todas essas construções carregadas de pensamento mítico
(mythos) seriam o complemento em oposição à razão metafísica.
Junto com essa duplicidade entre ciência positivista e seus opostos,
Mariátegui também trabalha com a tensão entre religião e marxismo e entre
tradição e modernidade. Nesse sentido, ele se esforça para reunir nacionalismo
e marxismo, religião e revolução, indigenismo e vanguarda. Coluna vertebral
que articula toda a abrangência de sua obra, a tensão agônica de Mariátegui é
onde reside a maior originalidade do Amauta. Héctor Alimonda traduz essa
especificidade do pensamento do peruano ao afirmar:

O vigor do discurso mariateguiano reside na fusão de diferentes registros, na


constituição de um lugar de enunciação que amalgama elementos
heterogêneos, nesse impulso amplo que se esforça em traçar uma unidade
possível entre formações discursivas que parecem antagônicas (ALIMONDA,
1994, p. 103).

Em Mariátegui encontramos um esforço constante para capturar esferas


tidas como opostas e reuni-las sob o signo de uma razão agônica. Diferente da
procura pela harmonia que caracteriza o pensamento matemático em sua
busca pela relação perfeita e proporcional, Mariátegui entende a relação entre
opostos como “vida de alta tensão” capaz de construir uma nova civilização 33.
Segundo Gustavo Gutierrez:

[Mariátegui] levará adiante seu assédio à relação entre classicismo e


romantismo, heterodoxia e ortodoxia, materialismo e espiritualismo, moral e
economia, liberdade e determinismo, heresia e dogma e outras antinomias [...]
O desejo de captar a totalidade da realidade levará Mariátegui a ser atento a
polos considerados opostos desta realidade. Primeiro, ele trabalha
separadamente, tornando visível seu alcance, logo afina e apura sua análise
até o momento que, chegando a um extremo, esse exige o outro. Esse
enriquecimento faz com que se estabeleça uma relação em que cada aspecto
adquire seu sentido mais pleno. (GUTIERREZ, 1995, p. 166).

33
Uma das grandes obras que exerceu forte influência para Mariátegui tecer suas reflexões
sobre a luta entre duas civilizações foi O declínio do Ocidente, de Oswald Spengler.
118

Para o pensador peruano, a busca por um extremo termina na exigência


do outro, ou seja, é um movimento intencional de busca pelo outro. A tensão
máxima realiza um movimento no qual é buscada uma ligação íntima entre
estruturas opostas. A dialética dos extremos, em seu movimento agônico, se
realiza buscando capturar as afinidades eletivas de dimensões aparentemente
opostas. O conceito de afinidade eletiva procura capturar esse movimento
íntimo entre duas substâncias, entre duas almas que se amam. Segundo a
definição de Michael Löwy:

Afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas,


intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas
analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em
uma relação de atração e influência recíprocas, escolhas mútuas, convergência
ativa e reforço mútuo (LÖWY, 2011, p.140).

A partir do conceito de afinidade eletiva, é possível capturar um


movimento intrínseco à dialética dos extremos, em que, por tensão e
copertencimento, oposições extremas realizam um movimento de
reconhecimento e inclusão do outro. Porém, como aponta Mateus Zeferino
(2010, p. 97), o conceito de afinidade eletiva deve contar, dialeticamente, com
suas antinomias pouco eletivas, ou seja, elementos irreconciliáveis mesmo em
suas estruturas mais íntimas e que, sendo assim, não se reúnem. Se, por
afinidades eletivas, dimensões opostas vão se reunir em suas estruturas mais
íntimas, pelas antinomias pouco eletivas se mantém um tensionamento. Ou
seja, para Zeferino, essa dinâmica afinidades-antinomias é responsável pela
existência de uma “dialética sem síntese” (ZEFERINO, 2010, p. 106).
Ao tomar o caso do movimento específico da dialética agônica de
Mariátegui, encontramos o exercício de uma síntese totalizadora aberta,
assimétrica e descontínua. Ou seja, Mariátegui busca desvendar as relações
de afinidade e antinomia, mantendo assim o caráter de movimento incessante
do conjunto, enquanto totalidade carregada de múltiplos movimentos em seu
interior. Mais do que fusão completa ou divergência, o Amauta opera em uma
relação de tensão e copertencimento entre distintos. Isso abre a possibilidade
de uma totalidade histórico-estrutural heterogênea, já que reúne lógicas
históricas distintas – por vezes contraditórias – em uma mesma totalidade em
movimento e abertura constante. Segundo Quijano:
119

A ideia de totalidade histórica exclui a possibilidade de que uma única lógica


presida a constituição e o processo histórico de uma totalidade social concreta,
já que essa é historicamente heterogênea e só pode estar integrada por várias
e diversas lógicas. Elas se articulam e certamente produzem uma estrutura e
se ordenam em torno de uma lógica de conjunto. Nesse sentido, formam uma
lógica de continuidade, porém, ao mesmo tempo, no mesmo movimento, não
podem deixar de ser diversas e descontínuas (QUIJANO, 1991, p. 12).

Dessa forma, a dialética mariateguiana gera a possibilidade de


diferentes relações a partir do tensionamento e do diálogo entre polaridades.
Esse traço do pensamento de Mariátegui se apresenta com maior nitidez nos
escritos realizados nos últimos sete anos de sua vida.
Guiado pelo eixo comum do antipositivismo, o Amauta usa as afinidades
eletivas para costurar socialismo, indigenismo, vanguardas artísticas e
dimensão religiosa em uma única totalidade. Unidas por determinadas
condições históricas, essas dimensões se combinam em uma proposta original,
o socialismo indo-americano.
O pensamento de Mariátegui se estabelece em um marxismo agônico
saturado de contradições, em que se articulam religião, política, economia,
cultura e subjetividade em uma mesma totalidade aberta e em constante
ressignificação. Esse traço de abertura e incompletude, que abarca múltiplos
tempos históricos e dimensões da existência, caracteriza o esforço prático-
reflexivo de Mariátegui – sua práxis – como uma filosofia que não se pretende
um sistema fechado de conceitos, mas um pensamento que alcance, pela sua
abertura e movimento, a plenitude humana.
Assim, podemos observar em Mariátegui a presença de uma dupla
consciência em tensionamento: De um lado, a ciência positivista, que cinde e
exclui, a visão colonizada das elites, o modo de produção capitalista. De outro,
o socialismo indo-americano descolonizado, que reúne distintas formas de
tensionamento em uma dialética de extremos. O pensamento do Amauta é a
expressão desse confronto entre dois registros, duas perspectivas em luta no
interior de uma mesma totalidade, formando uma dupla consciência.

A descoberta do universo indígena


120

Não se sabe exatamente em que momento Mariátegui teria se dado


conta da importância da problemática indígena no Peru. O artigo O problema
primário do Peru, publicado em fevereiro de 1925, demonstra claramente a
mudança de mentalidade do Amauta em relação aos índios peruanos. Antes
descritos como “inertes extratos indígenas” (ALIMONDA, 1984), essas
populações passam, a partir de então, a ser descritas como elementos centrais
da nacionalidade em construção do Peru:

A solução do problema do índio deve ser uma solução social. Seus


realizadores devem ser os próprios índios [...]. No Congresso Indígena, o índio
do norte se encontrou com o índio do sul. Além disso, o índio se comunicou
com o homem de vanguarda da capital. Esses homens o tratam como a um
irmão. Seu acento é novo, sua linguagem é nova também. O índio reconhece
neles a sua própria emoção. Sua emoção de si mesmo amplia-se com esse
contato. Porém, algo ainda muito vago, ainda muito confuso de delinear nessa
nebulosa humana que contém, provavelmente, os germes do futuro da
nacionalidade (MARIÁTEGUI, 2011, p. 65).

Desse artigo em diante, até o fim de sua vida, a temática indígena seria
evocada por Mariátegui, que debateria com as principais correntes ideológicas
que discutiam a questão indígena do país, elaborando, a partir desses debates,
uma original articulação entre tradição e modernidade.
A primeira corrente era o indigenismo. Trata-se de um movimento
ideológico presente em diversos países latino-americanos – especialmente,
Peru e México –, que procura expressar a alteridade identitária instituída na
colônia e desenvolvida na história do ocidente, ressaltando seu papel e lugar
nas formações nacionais. Essa corrente defendia que as comunidades e
tradições indígenas deveriam ser mantidas por meio da intervenção de
interlocutores que promoveriam a integração do índio à sociedade nacional.
A nação é entendida pelos indigenistas como uma ideia absoluta e
essencial, na qual o indígena é o representante concreto, o detentor dessa
nacionalidade intocada. Identificando o indígena como o elo primordial de
origem mítica, essa corrente tende a um romantismo conservador, em que o
índio é visto a partir de uma idealização nostálgica de seu passado originário.
Criticando essa corrente, escreve o Mariátegui:

Do preconceito da inferioridade da raça indígena começa a passar-se ao


extremo oposto: o de que a criação de uma nova cultura americana será
essencialmente obra das forças raciais autóctones. Subscrever essa tese é cair
no mais ingênuo e absurdo misticismo. Ao racismo dos que desprezam o índio,
121

porque creem na superioridade absoluta e permanente da raça branca, seria


insensato e perigoso opor o racismo dos que sobrestimam o índio, com fé
messiânica na sua missão como raça no renascimento americano
(MARIÁTEGUI, 1991, p. 217).

Esse posicionamento divergia da outra corrente ideológica predominante


na época, os hispanistas. Formada basicamente pela Generación del 900, a
corrente ideológica dos hispanistas defendia os ideais do positivismo e da
integração dos índios em um Peru moderno capitalista.
O cerne da concepção hispanista está baseado na ideia de
superioridade do homem europeu e na evolução via embranquecimento, ou
seja, em uma “mistura de raças” que vá aos poucos depurando biologicamente
o povo peruano, até torná-lo o mais próximo possível da raça mais evoluída e
civilizada, a branca. Criticando essa posição, escreve Mariátegui:

A suposição de que o problema indígena é um problema étnico se nutre do


repertório mais envelhecido das ideias imperialistas. O conceito de raças
inferiores serviu ao Ocidente branco para sua obra de expansão e conquista.
Esperar a emancipação indígena de um cruzamento ativo da raça aborígene
com imigrantes brancos é uma ingenuidade antissociológica [...]. A
degeneração do índio peruano é uma invenção vagabunda de leguleios
feudalistas (MARIÁTEGUI, 2010, p. 57).

Embora mantivesse relações de afinidade estética e, até certo ponto,


política com essas correntes, Mariátegui se posicionou de maneira clara contra
ambas. Segundo ele, as diferentes posições sobre a questão indígena estavam
baseadas na crença do evolucionismo racial de que a civilização europeia
ocuparia o lugar mais adiantado e distante da “origem” primitiva – estado
natural – da humanidade, lugar ocupado pelos indígenas da América, entre
outros.
Para Mariátegui, mundo indígena e mundo europeu não eram extremos
separados por uma linha que os afastava em ordens hierárquicas, em pontas
diferentes da evolução34. Rompendo completamente com a noção da
civilização indígena como passado longínquo, Mariátegui defende que a
tradição indígena ocupe um papel privilegiado na elaboração do socialismo

34
Nesse traço do pensamento mariateguiano, podemos ver claramente um prenúncio da noção
de diálogo de saberes, conhecimentos simétricos e outras proposições vigentes nas Ciências
Sociais contemporâneas, que defendem a horizontalidade e a simetria entre distintas
concepções de mundo e de humanidade.
122

peruano. Assim, para o Amauta, o mundo indígena, ao cobrir boa parte da


classe trabalhadora, é a base para o socialismo indo-americano.
Um dos aspectos essenciais da vida indígena no Peru pré-colonial, que
deveria se alinhar com a solidariedade própria do comunismo europeu, deveria
ser a “sobrevivência da comunidade e dos elementos de socialismo prático na
agricultura e vida indígenas” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 69). Para ele, o
socialismo peruano deveria nascer da síntese – da afinidade eletiva - entre
essas duas formas de solidariedade.
Apoiado nas reflexões do historiador César Ugarte, que descreve a
unidade produtiva da sociedade inca, o ayllu, Mariátegui defende a
possibilidade de um socialismo de caráter comunitário e descentralizado. O
ayllu é uma unidade comunitária formada por um grupo familiar extenso, no
qual o trabalho é realizado de maneira solidária em uma propriedade de uso
comum.35. Para o Amauta, o ayllu poderia se compor com elementos próprios
da modernidade – a industrialização e a modernização dos meios de
transporte, por exemplo – e formar cooperativas de produção, consumo e
crédito, que seriam, juntamente com o controle das indústrias e das minas pelo
proletariado, a espinha dorsal do socialismo indo-americano. Dessa forma,
tradição e modernidade estariam reunidas em um projeto socialista
propriamente latino-americano. Ou seja, tradição e modernidade se
fortaleceriam em uma relação de diálogo, na qual uma não anularia a outra; ao
contrário, haveria uma potencialização de ambas.
Outro aspecto do universo indígena que chamou a atenção de
Mariátegui foi a religiosidade. Fiel ao método de investigar as relações entre a
dimensão místico-religiosa e a estrutura econômica, Mariátegui indicou como o
mundo social, dividido em tribos agrárias coletivistas, estava diretamente
relacionado ao mundo simbólico e religioso dos incas:

35
Na verdade, o ayllu tem suas origens ainda no período do pré-incanato e sobreviveu à
expansão do Império Inca. Fator fundamental da coesão dos povos andinos, o ayllu está
presente de maneira evidente e central em diversas civilizações que compuseram o complexo
mosaico de povos andinos dos últimos 4 000 anos. “O ayllu foi a célula do Império. Os incas
fizeram a unidade. Inventaram o império; mas não criaram a célula. O Estado jurídico
organizado pelos incas reproduziu, sem dúvida, o Estado natural pré-existente” (MARIÁTEGUI,
2005, p. 93). Para Mariátegui, é essa matriz de organização sociopolítica que deve estar na
base do socialismo indo-americano.
123

A religião do Tawantinsuyo, no entanto, não violentava nenhum dos


sentimentos nem hábitos dos índios. Não estava feita de abstrações
complicadas, e sim de alegorias simples. Todas as suas raízes se alimentavam
dos instintos e costume espontâneos de uma nação constituída por tribos
agrárias, sãs e ruralmente panteístas, mais propensas à cooperação que à
guerra. Os mitos incaicos repousavam sobre a primitiva e rudimentar
religiosidade dos aborígenes (MARIÁTEGUI, 2010, p.166).

A “primitiva e rudimentar religiosidade” de que fala Mariátegui é fruto de


suas leituras do clássico da etnologia O ramo dourado, de James George
Frazer.36 Em razão de sua saúde debilitada, Mariátegui teve poucas
possibilidades de se deslocar até regiões de maior presença indígena. O
convívio com os costumes indígenas chegou até ele a partir de sua infância em
Huacho, onde predominavam populações indígenas, e do universo religioso.
Apesar de poucas e elementares, as observações de Mariátegui deixam
os primeiros passos de um caminho interpretativo, tanto de sua obra como das
possibilidades de construção de uma via socialista na América Latina a partir
dos saberes e conhecimentos próprios das populações originárias do
continente37. Embora distantes no tempo e no espaço (entendidos de forma
linear e evolucionista), na interpretação do Amauta o comunismo incaico e o
comunismo moderno deveriam estar em profícua comunicação, compondo um
novo projeto societário. Para ele, a tradição indígena e a modernidade prevista
na ideia de progresso deveriam passar por um “relativismo histórico” capaz de
olhar mais à frente do esquema linear da evolução econômica, produzindo,
para além daquilo que essa perspectiva permite, uma nova ideia de civilização
na qual tanto a tradição quanto a ideia de progresso seriam renovadas. Mais
uma vez, é possível identificar nas reflexões de Mariátegui a base daquilo que Quijano

36
Foi com a leitura dessa obra que Mariátegui entrou em contato com a então nascente
antropologia. É importante lembrar que a antropologia evolucionista, e com ela a ideia de
“infância” da humanidade, estava em plena vigência.
37
A relação do pensamento de Mariátegui com a simbologia, a cosmologia e os costumes em
geral dos povos andinos é um tema praticamente desconhecido e extremamente rico para ser
estudado. Segundo o professor César Germaná, da Universidad Nacional Mayor de San
Marcos, (em entrevista ao autor realizada em dezembro de 2012, em Lima), a invisibilidade
dessa influência no pensamento do Amauta se deve à própria invisibilidade do mundo indígena
na sociedade peruana. Há, porém, muitos elementos no pensador que podem ser lidos a partir
da influência do “pensamento indígena” na vida dele. Entre esses elementos, destaca-se a forte
presença da vontade no pensamento andino. Também identificada como ânimo ou interesse, é
reconhecida na epistemologia andina a importância da vontade individual na concepção da
realidade (ESTERMAN, 2006). Não é difícil supor que a obra do Amauta, tão nutrida do
elemento individual da vontade e de suas construções subjetivas – que recebem inclusive o
nome de mito –, seja um desdobramento do Peru profundo (hipótese levantada após entrevista
com Sigfredo Chiroque, professor aposentado da Universidad Nacional Mayor de San Marcos,
em 2012).
124

denomina novo sentido histórico para os povos latino-americanos, uma nova utopia a
partir de uma modernidade alternativa e descolonizada.

Tradição heterodoxa
Não é somente a relação não linear entre comunismo incaico e
comunismo moderno que caracteriza o pensamento de Mariátegui sobre a
tradição e a modernidade. Para além do universo indígena, a ideia de tradição
inclui diferentes tempos históricos em um movimento constante de tensão e
diálogo. Entendendo a totalidade social como um todo atravessado por
múltiplas memórias históricas, Mariátegui realoja a tradição e a modernidade
em sua dialética agônica. A tradição deixa de ser considerada algo do passado,
fixo, destinado ao atraso e à folclorização, e a modernidade não está destinada
ao mito do progresso infinito, próprio da ideologia positivista.
De acordo com Mariátegui, os tradicionalistas são aqueles que se
recusam a enxergar na tradição algo além de um passado estacionado e inerte.
Para ele, a tradição é móvel e cambiante, em transformação criativa a partir do
presente. Mariátegui propõe uma tradição múltipla e heterogênea, em que o
movimento dialético imprima constante tensão e afinidades entre diferentes
projetos, memórias e ideologias. É da correlação de forças entre diferentes
projetos e visões de realidade, é na disputa entre diferentes imaginários
sociais, visões de mundo e utopias que vai se estabelecendo a verdade
histórica, em seus diferentes ciclos. Essa percepção da tradição como
“patrimônio e continuidade histórica” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 112) fica evidente
na reflexão do Amauta sobre a tradição nacional peruana e seu movimento de
transformação, sua plasticidade e relação de diferentes tempos históricos.
Para Mariátegui, a tradição entendida como tradicionalismo se restringe
a uma concepção unívoca e unilinear, na qual a história vai se desencadeando
em fatos sucessivos até o presente. O Amauta defende uma tradição múltipla e
em movimento, ou seja, que acolha suas “variadas cristalizações” ao longo do
processo histórico, assim como as relações nascidas dessa pluralidade de
tempos históricos, que permanecem vivos e em transformação.
Na tradição viva e móvel defendida por Mariátegui, o passado é sempre
matéria em ebulição, espaço carregado de sentidos visíveis e invisibilizados,
125

onde os seres humanos do presente vão recolhendo e organizando a memória


que possibilite o sentido do porvir. Dessa forma, Mariátegui vislumbra o futuro
como um conjunto de forças em contradição.
Os tradicionalistas, ao verem a tradição como origem única e imóvel,
projetavam também um futuro linear e infinito. Mas uma tradição viva apontava
para um futuro vivo e também incerto. O caráter “agônico” do pensamento do
Amauta ganha aqui forte relevo.
Para Mariátegui, estava em curso, no início do século XX, um processo
de “luta final”, em que diferentes formas de mentalidade, sentimento e utopia se
digladiavam. Inspirado pela ideia do “fim da civilização” (Spengler), Mariátegui
concebia o fim da Primeira Guerra como o anúncio do nascimento de uma nova
aurora, de uma alma matinal para a humanidade. O espírito decadente do
cientificismo da burguesia e sua ideia de progresso técnico-científico disputava
lugar com uma nova utopia para a humanidade, um novo sentido histórico
sintetizado na ideia do socialismo38.
Ou seja, no interior do processo histórico, diferentes projetos societários,
com suas específicas “memórias e utopias”, se digladiam e buscam visibilidade
e hegemonia. Dessa forma, o passado heterogêneo gera um futuro
heterogêneo, em que diferentes projetos societários e utopias estão em
disputa. É a partir dessa tensão e desse copertencimento entre passado e
futuro que Mariátegui defende um caminho para o socialismo, criando assim
uma “vanguarda enraizada”, um futuro enraizado no passado.
Para Mariátegui, o socialismo indo-americano seria uma síntese das
diversas formas de organização anteriores ao século XIX. Tanto a autocracia
inca, a célula do ayllu, o mundo colonial, a república, o mundo liberal (naquilo
que tem de positivo) como o socialismo da era industrial deveriam compor o
socialismo defendido por Mariátegui. Através do princípio do socialismo, todos
esses diferentes tempos e ideologias poderiam ser aproveitados na construção
do socialismo indo-americano.

Não queremos, certamente, que o socialismo seja na América decalque e


cópia. Deve ser criação heroica. Temos de dar vida, com nossa própria

38
Importante lembrar que havia um conjunto de correntes no interior daquilo que aqui
chamamos genericamente de socialismo. A social-democracia, o comunismo e o
anarcossindicalismo são exemplos dessas correntes que participaram diretamente – sendo
incorporadas ou criticadas – da construção mariateguiana.
126

realidade, na nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Eis uma


missão digna de uma nova geração (MARIÁTEGUI, 2005b, p. 121).

Essas características próprias do processo peruano tornavam polêmico


o pensamento do Amauta, que ia contra a ideia evolucionista presente também
no chamado etapismo do comunismo soviético 39. Ao incorporar a célula incaica
do ayllu e afirmar os benefícios de outros tempos históricos, Mariátegui propõe
um caminho revolucionário próprio no Peru:

Cremos que, entre as populações “atrasadas”, nenhuma reúne, como a


população indígena inca, condições tão favoráveis para que o comunismo
agrário primitivo, subsistente em estruturas concretas e no profundo espírito
coletivista, transforme-se, sob a hegemonia da classe proletária, numa das
bases mais sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo
marxista (MARIÁTEGUI, 2005, p. 144).

A especificidade do socialismo indo-americano torna-se evidente,


portanto, no papel e no lugar das populações indígenas e camponesas na
superação do modo de produção capitalista. Utilizando a realidade indígena de
seu país para demonstrar a necessidade da criação de um socialismo próprio,
essa especificidade não retira o caráter universal da revolução. Seguindo o
princípio da tradição enquanto heterogeneidade em movimento, que reúne
passado e futuro em uma práxis social, Mariátegui abandona a definição
tradicionalista de um socialismo centralizado, que replicaria sua fórmula
indefinidamente até alcançar a totalidade dos povos. Para ele, seguindo o
próprio movimento de tensão, o socialismo é algo em transformação constante,
permeável às realidades locais onde sua mensagem alcança:

E o socialismo, embora tenha nascido na Europa tal como o capitalismo,


tampouco é específico ou particularmente europeu. É um movimento mundial,
a que não se subtrai nenhum dos países que se movem dentro da órbita da
civilização ocidental. Esta civilização conduz, com uma força e meios de que
nenhuma civilização dispôs, à universalidade. A Indo-América, nesta ordem
mundial, pode e deve ter individualidade de estilo, mas não uma cultura e
destino particulares (MARIÁTEGUI, 2005, p. 120).

39
´ É preciso atentar para a crítica ferrenha de Mariátegui ao evolucionismo cientificista. Para
ele, a luta final não está circunscrita a um confronto entre capitalismo e comunismo. É preciso ir
contra o evolucionismo presente em ambas as proposições. O socialismo indo-americano seria
também um modo de organização no qual muitas características defendidas pelos comunistas
da época seriam superadas. O projeto civilizatório de Mariátegui confrontava diretamente o
discurso evolucionista presente no comunismo defendido pela Terceira Internacional. É
evidente a influência dessas propostas nas formulações de Aníbal Quijano sobre pensamento
eurocêntrico. Para esse autor, a superação da colonialidade passa necessariamente pela
superação do pensamento eurocêntrico forjado a partir de dois fundamentos filosóficos: o
dualismo e o evolucionismo (QUIJANO, 2000).
127

Dessa forma, o socialismo indo-americano de Mariátegui propõe o


reconhecimento da diversidade de memórias históricas, situadas em diferentes
tempos e lugares, na composição de um projeto de sociedade emancipada.
Nesse sentido, a tradição múltipla significa também a multiplicidade de
povos e de suas memórias, participando de um projeto societário que não
perca de vista a dimensão da totalidade histórica.

3. Religião, mito e vontade: a dimensão


místico-revolucionária em Mariátegui

A religião como combate revolucionário


Uma das tensões constitutivas da obra de Mariátegui que melhor
evidencia sua capacidade de viajar até polos extremos da realidade é a tensão
entre religião e política. Escrevendo sobre a oposição seminal entre a matéria e
a ideia, escreve ele:

O materialismo socialista contém todas as possibilidades de ascensão


espiritual, ética e filosófica. E nunca nos sentimos mais veemente, eficaz e
religiosamente idealistas do que ao firmar bem os pés na matéria
(MARIÁTEGUI, 2005, p. 121).

Essa frase sintetiza a tensão agônica que caracteriza a perspectiva de


conhecimento de Mariátegui. Ao afirmar a interpenetração entre materialismo
socialista e religiosidade idealista, ele explicita a amplitude de seu horizonte
filosófico, sua dialética dos extremos. Ao reunir em uma mesma afirmação
materialismo e idealismo, religião e socialismo – considerados como âmbitos
irremediavelmente excludentes –, Mariátegui segue Unamuno, que reúne razão
e fé. Para o Amauta, o sentimento religioso de transcendência pode estar
reunido e tensionado com a dimensão dos “pés na matéria”. Essa duplicidade
se evidencia em outro trecho em que ele comenta o pensamento do mestre de
Salamanca, exposto na obra A agonia do cristianismo:

Neste livro, como em todos outros de sua autoria, Unamuno concebe a vida
como luta, como combate, como agonia. Esta concepção da vida que contém
128

mais espírito revolucionário que muitas toneladas de literatura socialista [...].


”Eu sinto – escreve Unamuno – a política elevada à altura da religião e a
religião elevada à altura da política”. Com a mesma paixão falam e sentem os
marxistas, os revolucionários. (MARIÁTEGUI, 2005, p. 180).

Guerra originária entre opostos, política e religião se engrandecem ao


penetrar uma na outra, mas não se anulam, não se harmonizam em uma
integração unitária. Permanecem separadas, opostas, porém, se alimentam e
se engrandecem em uma mútua correlação de oposição e diálogo, em que
uma se afirma em relação à outra. Radicalmente distinta da ascendência
infinita do progresso positivo do evolucionismo, a tensão agônica entre
dimensões contraditórias não opera sob o signo da harmonia. Ao contrário, é
uma tensão constante que se nega e afirma gerando, assim, o movimento de
superação. Em outro conhecido texto, no qual reflete sobre a figura de Gandhi
– não por acaso, outra personalidade que afirmava constantemente a
convergência entre política e espiritualidade –, afirma o Amauta:

As críticas contra o materialismo ocidental são exageradas. O homem do


ocidente não é tão prosaico e torpe como alguns contemporâneos e estáticos
supõem. O socialismo e o sindicalismo, apesar de sua concepção materialista
da história, são menos materialistas do que parecem. Apoiam-se sobre os
interesses da maioria, mas tendem a enobrecer e dignificar a vida. Os
ocidentais são místicos e religiosos a seu modo. Por acaso a emoção
revolucionária não é uma emoção religiosa? O fato é que no ocidente a
religiosidade se transferiu do céu à terra. Seus motivos são humanos, sociais e
não divinos. Pertencem à vida terrena e não à celeste (MARIÁTEGUI, 2005b,
p. 113).

Porém, é preciso delinear bem o que Mariátegui quer dizer quando


propõe um espírito religioso que seja revolucionário. Porque, juntamente com a
fé na revolução, a Primeira Guerra Mundial trouxe também uma reação
burguesa aos novos tempos, uma religiosidade defensora da continuidade e da
conservação. Essa “religião social” totalitária é o fascismo.
A reação fascista após a Primeira Guerra é um novo momento histórico
em que há a continuidade e a intensificação do um como princípio enquanto
fundamento filosófico dominante. O fascismo torna-se um instrumento de
controle e manutenção do poder centralizado, que emprega a violência para
alcançar esse objetivo de ordem e unidade.
129

Diferente do caminho fascista, o sentimento místico de agonia e luta se


mantém vigoroso na senda aberta pelos comunistas. O conflito, a guerra, a
agonia – dois como totalidade – pertence à luta dos revolucionários.
É nesse sentido que a mística revolucionária de Mariátegui deve ser
interpretada a partir do conflito e da exaltação do combate como meio de
revolucionar o mundo. Diferente da religiosidade defendida pelo fascismo, a
revolução pede uma nova religião, uma espiritualidade liberta dos vínculos
conservadores da Igreja, mas isso não significa antirreligiosidade. Para
Mariátegui, o comunismo é uma nova forma de religião:

A palavra religião tem um novo valor, um novo sentido. Serve para algo mais
que designar um rito ou uma igreja. Pouco importa que os sovietes escrevam
em seus cartazes de propaganda que a “religião é o ópio do povo”. O
comunismo é essencialmente religioso (MARIÁTEGUI, 2010, p. 250).

Outro aspecto importante sobre a mística revolucionária é a sua


independência diante dos critérios científicos de validação da verdade. Já não
é mais o tempo da negação intelectual da religião como dimensão oposta e
excluída da razão científica. A religiosidade não está necessariamente
identificada com nenhuma instituição. Mas, ao mesmo tempo, não participa do
ceticismo pseudocrístão da intelectualidade liberal burguesa. É preciso, para
além do clericalismo e do racionalismo, ampliar o sentido de religiosidade:

O conceito de religião cresceu em extensão e em profundidade. A religião não


é reduzida mais a uma igreja e a um ritual. São reconhecidos nas instituições e
nos sentimentos religiosos significados muito diferentes dos que ingenuamente
eram atribuídos, com radicalismo incandescente, por pessoas que
identificavam religiosidade e obscurantismo (MARIÁTEGUI, 2010, p. 163).

Para Mariátegui, a mística revolucionária que envolve o socialismo é


uma força formada pelo copertencimento entre a “sede de infinito” que habita
no homem e sua luta por uma sociedade emancipada formada por
trabalhadores livres. Sobre a mística mariateguiana, escreve Löwy:

A palavra "mística", escrita tão frequentemente na pena de Mariátegui, é


evidentemente de origem religiosa [...]. Sinaliza a dimensão espiritual e ética do
socialismo, a fé no combate revolucionário, o compromisso total pela causa
emancipadora, disposição heroica para arriscar a própria vida [...]. Mas, ao
mesmo tempo em que é "mística" e "religiosa", esta luta é profana e secular: a
130

dialética mariateguista tenta superar a oposição costumeira entre fé e ateísmo,


materialismo e idealismo (LÖWY, 2005c).

Dessa forma, se evidencia outro aspecto da dupla consciência latino-


americana. De um lado, a religiosidade fascista e a razão cientificista burguesa;
de outro, a espiritualidade libertária própria de uma mística revolucionária. Para
Mariátegui, nessas polaridades se expressava a luta final entre um espírito
decadente e a alma matinal de um novo porvir.

O lugar do mito
A superação, no pensamento de Mariátegui, de polaridades tão
extremas como fé e ateísmo ou materialismo e idealismo é possível através da
leitura que o pensador fez da ideia de mito de Georges Sorel. Segundo esse
anarcossindicalista francês, o mito seria ação consciente inspirada por uma
vontade coletiva, por uma cosmologia social capaz de alcançar a profundidade
do eu através do “sonho de uma transformação profunda”.
Para Sorel, a realização desse mito social só seria factível se
conseguíssemos vencer os obstáculos da moral cristã e burguesa. Mariátegui,
munido das reflexões de Sorel, interpreta o mito social como a possibilidade de
preenchimento das mais íntimas aspirações humanas, da transcendência
prometida apenas pelas religiões.
A partir de Sorel, Mariátegui concebe a possibilidade do caráter místico
do socialismo. Porém, assim como a política elevada ao estatuto de religião, de
que fala Unamuno, não está ligada diretamente ao socialismo, o mito soreliano
da revolução social não tem uma conexão com a religião. É Mariátegui quem
aproxima esses conceitos, criando o “caráter místico, religioso e metafísico do
socialismo”. Não é por acaso também que encontramos, tanto em Sorel como
em Unamuno, a ideia de um “eu profundo”, um centro, um “espaço existencial”
somente alcançado pelo sentimento de transcendência Ou seja, a mística
revolucionária de Mariátegui reúne tanto a ideia de religião política de
Unamuno como a ideia de mito revolucionário de Sorel, superando ambas em
uma concepção ainda inédita: a emoção religiosa própria da revolução
socialista.
131

Dessa forma, o mito ganha, nas reflexões de Mariátegui, uma concepção


muito distinta daquela que o entende como algo do campo do irreal e da
fantasia não verdadeira. O mito é a força capaz de impulsionar a vontade
humana rumo à superação das limitações que a razão positivista e seu
ancoradouro social – o modo de vida burguês – produzem:

O homem ocidental colocou, durante algum tempo a Razão e a Ciência no


retábulo dos deuses mortos. Mas nem a Razão nem a Ciência podem ser um
mito. Nem a Razão nem a Ciência podem satisfazer toda a necessidade de
infinito que existe no homem. A própria razão se encarregou de demonstrar aos
homens que não lhes basta e só o Mito possui a preciosa virtude de preencher
seu eu profundo (MARIÁTEGUI, 2005, p. 56).

Segundo o Amauta, é como se o mito fosse um veículo de expressão da


força de vontade filosófica que participa tão pouco do cientificismo mecanicista,
a vontade ganha em Mariátegui um lugar central. Fé, paixão, mística,
espiritualidade, sentimento, imaginação poética, encantamento. O mito é a
expressão de tudo aquilo que eleva o homem ao infinito e ao êxtase.
Assim como nos movimentos religiosos, uma fé ardente se acendia nos
adeptos do socialismo revolucionário, na multidão proletária vilipendiada pela
exploração de seu trabalho e fervorosa por uma nova ordem. Escreve
Mariátegui:

O proletariado tem um mito: a revolução social. Dirige-se para este mito com
uma fé veemente e ativa. [...] A força dos revolucionários não está na sua
ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa,
mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como escrevi
em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa, se desloca do céu para a
terra. Não são divinos, são humanos, são sociáveis (MARIÁTEGUI, 2005, p.
59).

Para Mariátegui, essa força transformadora da fé dos revolucionários


vinha da capacidade dela de ocupar o lugar reservado ao mito da ciência. O
homem, animal metafísico, necessita de uma concepção metafísica da vida, de
um sentido de transcendência que ultrapasse o enquadramento científico da
realidade. Utilizando com frequência palavras como sentimento, emoção,
estado de ânimo, paixão e fé, o pensador deixa claro como a mística
revolucionária defendida por ele pertence ao mundo sensível da corporeidade e
da afetividade, mundo esse incapturável em seus matizes sublimes pela razão
132

científica. Segundo Mariátegui, tão real quanto o mundo objetivo apreensível


pela ciência e suas leis, existe uma dimensão insondável do ser humano,
centro de sua vontade individual e subjetiva, o eu profundo40, que é o lócus da
emanação de sua fé. Para ele, a razão sozinha não pode apontar nenhum
caminho para a humanidade, que necessita de um horizonte que preencha as
suas mais íntimas aspirações por transcendência. Assim, somente o mito tem a
capacidade de alcançar e expressar o conjunto integral das “energias dos
homens”.
Para o Amauta, o mito – assim como a vontade, a fé e o mundo
imaginário – é uma força ao mesmo tempo individual e coletiva, é uma força
que se situa nesse espaço onde a subjetividade e a objetividade se
interpenetram; espaço intersubjetivo onde ambas estão imbricadas em um
constante movimento histórico. O mito, enquanto força propulsora e variada,
aparece como vetor incapturável pela razão científica, mas é real e existente no
interior do mundo, sua imanência. O mito é, assim, a expressão da intimidade
do homem com o mundo, mas não da intimidade como sinônimo de privado e
individual apartado do todo, mas de intimidade enquanto dimensão histórica do
mundo social,
Para Mariátegui, subjetividade, imaginação, fé e ciência são partes de
uma totalidade histórica heterogênea em que não há uma divisão, uma cisão
exata entre aspectos distintos. Nesse sentido, o mito é uma dimensão da
condição humana, entranhado no devir histórico dos seres humanos e das
coletividades, é uma força atuante e presente no interior do mundo social em
sua cotidianidade.

40
O termo eu profundo pode ser encontrado em autores que influenciaram o pensamento de
Mariátegui, como Bergson e Unamuno. A utilização desses autores – claramente inspirados nos
filósofos chamados de pessimistas (Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard), renderam a
Mariátegui a acusação de ser irracionalista, eclético e místico por boa parte de seus
comentaristas ligados às estruturas partidárias que orbitavam no campo socialista. A utilização
de estruturas e conceitos próprios da linhagem filosófica do pessimismo traz um desafio à
compreensão da obra de Mariátegui. A hipótese que partilhamos em nossas reflexões entende
que Mariátegui, ao se utilizar de influências consideradas tão distintas e antagônicas, inaugura
um pensamento extremamente original, frutífero e aberto. O desafio do intelectual é justamente
desvendá-lo à luz dessa originalidade e abertura. Qualificar a riqueza desse pensamento como
mero ecletismo ou como um pensamento que apresenta “desvios” em relação a alguma rota
filosófica ou filiação de pensamento seria esmaecer sua principal virtude, a sua capacidade
antropofágica, própria do pensamento latino-americano, de se “alimentar” de diversas fontes e
não perder a sua própria identidade.
133

Imaginação, subjetividade e eu profundo: o lugar da


vontade
A vontade, assim como as condições objetivas, seria um determinante
do real em seu constante movimento de realização, formando o espírito de uma
época ou, nas palavras do Amauta, o seu “sentido histórico”. Uma frase de
Gramsci, outro pensador marxista que atribuiu valor fundamental à dimensão
da vontade, explicita essa relação de fundamento duplo – dois como totalidade
– da realidade:

O máximo fator da história [não] são os fatos econômicos, brutos, mas o


homem, a sociedade dos homens, dos homens que se aproximam uns dos
outros, entendem-se entre si, desenvolvem através destes contatos
(civilização) uma vontade social, coletiva e compreendem os fatos econômicos,
e os julgam, e os adéquam à sua vontade, até que essa vontade se torne o
motor da economia, a plasmadora da realidade objetiva, a qual vive e se move,
e adquire o caráter de matéria telúrica em ebulição, que pode ser dirigida para
onde a vontade quiser, do modo como a vontade quiser (GRAMSCI, 1999, p.
127).

Essa relação dialética entre vontade e determinismo, fé e razão,


espiritualidade e ciência pode ser mais bem compreendida na interpretação
que Mariátegui faz da relação entre Freud e Marx. A partir de uma original
chave dialética, ele confronta e reúne os impulsos reprimidos às condições
econômicas, em uma mesma dinâmica de ideologização. Possibilita, assim,
uma articulação entre a intimidade do eu profundo, da fé, do universo mítico, e
a realidade do mundo exterior, regido pelas leis da ciência e do determinismo
econômico. Ou seja, permite a articulação entre o universo subjetivo e o
objetivo.
Segundo o pensador, assim como as pulsões sexuais e inconscientes
estão por trás das ações conscientes do homem, a ideologia se mascara de
filosofia, religião e política na determinação econômica da sociedade. Em
ambos os casos, há uma crítica radical ao idealismo científico, através de
aproximação entre as forças “invisíveis” que regem o indivíduo em sua
subjetividade – o inconsciente – e aquelas que determinam o mundo social e
objetivo, também não capturadas pela consciência dos trabalhadores. Para
Mariátegui, objetividade e subjetividade não são reinos opostos e excludentes,
pertencentes a dois mundos distintos. Fazem parte da mesma realidade e
134

estão em constante diálogo, sendo expressões das mesmas dinâmicas


psicossociais, tanto na dimensão subjetiva como na dimensão objetiva da
realidade:

O vocábulo “ideologia” em Marx é simplesmente um nome que serve para


designar as deformações do pensamento social e político produzidas por
impulsos reprimidos. Esse vocábulo traduz a ideia dos freudianos quando falam
de racionalização, substituição, transferência, deslocamento e sublimação. A
interpretação econômica da realidade não é mais do que uma psicanálise do
espírito social e político (MARIÁTEGUI, 2011, p. 69).

Para Mariátegui, os fatos econômicos por si não determinam a realidade.


É a partir da vontade – mística, paixão, imaginação, fé – e da economia, em
interação e movimento, que a realidade se plasma e se concretiza enquanto
totalidade em que se confrontam ambas as forças. O real, para além de
material e cientificamente determinado, se constitui a partir do exercício da
vontade, sendo assim “matéria telúrica”, mundo social que inclui ambas as
dimensões.
Para além de uma divisão que situa a vontade e a subjetividade como
traços pertencentes ao indivíduo em sua interioridade, e o determinismo e a
objetividade como experiências exteriores ao sujeito, a perspectiva de
Mariátegui aponta para uma ontologia na qual interioridade e exterioridade se
combinam na conformação do mundo social em seus diferentes aspectos.
Essa ideia de que a realidade é fruto de um duplo fundamento, de uma
interação de dimensões opostas e dialogantes também se explicita no valor
que Mariátegui dá à criação artística, à imaginação criadora. Resumida em sua
conhecida afirmação “Os filósofos trazem-nos uma verdade análoga à dos
poetas” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 58), a noção de que o espírito criativo é
determinante na manifestação da realidade é muito presente em seus textos
dedicados à arte e à literatura.
Os textos voltados à crítica da literatura e da arte em geral constituem
cerca de 40% dos escritos do Amauta. O estudo de qualquer aspecto de sua
obra deveria levar em consideração suas reflexões sobre a arte, que ele
apontava como uma dimensão tão importante quanto a luta política em seu
sentido mais institucionalizado. Para além do manifesto imediato, capturável
pelos métodos científico-cognitivos, a percepção mais fidedigna do real deveria
135

contar com o “disparate puro” da imaginação poética. Somente assim poderia


ser quebrado o “absoluto burguês” presente na técnica científica
empobrecedora da realidade. A realidade é mais verdadeira, mais “real”,
quando conta com a “essência vivente” da fantasia.
Escrevendo sobre o movimento surrealista, exemplo maior da vanguarda
artística revolucionária da Europa de seu tempo, afirma o peruano:

Os surrealistas restauram a dialética dos extremos, o império da imaginação na


arte. Mas não renunciam a nenhuma das aquisições do realismo: o superam
[...]. Não é paradoxo afirmar hoje que o realismo nos afasta da realidade.
Porque ele não capta sua essência vivente. A experiência tem demonstrado
que com o voo da fantasia podemos abarcar melhor toda profundidade do real.
Isso não significa que há falsificação ou invenção. A fantasia não surge do
nada. E só tem valor quando cria algo real (MARIÁTEGUI, s/d). 41

No texto O rosto e a alma do Tawantinsuyo, no qual Mariátegui comenta


o livro Da vida inca, de Luis Eduardo Valcárcel, encontra-se explícito um
exemplo da importância que ele dava à imaginação. O artigo tematiza
justamente a capacidade de Valcárcel de capturar com destreza o “espírito da
civilização inca”, justamente por utilizar a imaginação poética como forma de
interpretação da obra. Comparando o trabalho de Valcárcel com o de outros
historiadores voltados à objetividade, Mariátegui defende claramente a
superioridade do uso da fantasia em relação à mera ciência positivista:

Nas páginas do escritor de Cusco, sente-se, antes de mais nada, um profundo


lirismo indígena. [...] A história, em grande medida, é puro subjetivismo e, em
alguns casos, é pura poesia (MARIÁTEGUI, 2005, p. 89).

Para o Amauta, o mito da revolução social no Peru necessariamente


deve contar com o “lirismo indígena”, com seu “sentimento cósmico” para
combater o pensamento liberal burguês. Mariátegui defendia que, assim como
o mito socialista deveria combater a burguesia europeia, deveria fazer o
mesmo no Peru. Mas, diferentemente do Velho Mundo, no Peru o mito
socialista deveria contar com as “percepções do espírito que animou a vida
quéchua”.
41
O prenúncio de Mariátegui das intuições fundamentais que vão formar o realismo maravilhoso
latino-americano são muito evidentes nesse trecho. A afirmação de que o voo da fantasia pode
“abarcar melhor toda a totalidade do real“ poderia ser considerada uma síntese do movimento
literário fundado pelo cubano Alejo Carpentier (ver o item Realismo maravilhoso). Nesse
exemplo podemos observar mais uma vez como a obra de Mariátegui anuncia com décadas de
antecedência o esforço de intelectuais e militantes para elaborar um modo de pensar
especificamente latino-americano.
136

A proposição de um socialismo próprio da especificidade peruana e da


presença da vida – e da cosmovisão – indígena é um dos traços mais originais
do pensamento de Mariátegui. Mas a originalidade de sua reflexão sobre o
papel da visão de mundo indígena na construção do socialismo peruano não se
reduz a uma proposta limitada à realidade de um país ou continente. Ela se
insere em uma proposta que redefine o próprio lugar da racionalidade, da
imaginação, da espiritualidade, do afeto, do mito e da práxis em uma
perspectiva descolonizada de construção de um projeto societário alternativo
ao capitalismo e à colonialidade.

Mariátegui e a dupla consciência histórica latino-americana


A obra de José Carlos Mariátegui forma um conjunto de reflexões muito
variado. Extremamente original e compondo um mosaico assimétrico, em que a
práxis militante e o ritmo cotidiano do jornalismo impediram a realização de
uma obra mais sistemática, o pensamento de Mariátegui é uma expressão
direta de seu momento histórico.
Seus inúmeros artigos possibilitam o conhecimento dos mais variados
acontecimentos de seu tempo através de uma linguagem capaz de reunir
reflexão filosófica, informação e um projeto político em constante renovação.
Essa particularidade de Mariátegui, em que a palavra é viva, móvel e dialética
com o tempo vivido, oferece uma análise precisa dos acontecimentos e, ao
mesmo tempo, incompleta e aberta. Seu esforço reflexivo, como ele mesmo
coloca, é fruto de uma ambição enérgica e apaixonada, que busca infundir
sangue em cada uma de suas ideias.
A obra do Amauta aponta para um modo de compreensão da existência
social em sua amplitude macro-histórica e em seus diferentes momentos,
confrontando a ideia de um tempo linear e sucessivo. Em Mariátegui, o tempo é
entendido como totalidade múltipla, em que se combinam diferentes visões de
mundo e memórias historicamente situadas. Assim, suas análises conseguem
transcender a lógica do tempo mensurável segundo os períodos de evolução.
Mariátegui constrói seu pensamento a partir dessa tensão inerente ao
mundo latino-americano, sua dupla consciência. Nos seus escritos, podemos
observar como a consciência adaptada ao evolucionismo linear é
137

constantemente comparada, confrontada, dissimulada pela consciência guiada


pela perspectiva descolonizada de um socialismo indo-americano. Para o
pensador, a dupla consciência está presente na vida social através da relação
agônica vivida na forma de uma luta final entre duas civilizações; uma que está
morrendo (a sociedade burguesa) e outra que está nascendo (o mundo
socialista), em um confronto de vida e morte, em uma dialética de extremos. Já
no universo da subjetividade, Mariátegui chama esse enfrentamento de disputa
entre duas almas. No artigo com o sugestivo título de Arte, revolução e
decadência, ele escreve:

No mundo contemporâneo, coexistem duas almas, a da revolução e da


decadência [...]. A distinção entre as duas categorias de artistas
contemporâneos não é fácil. A decadência e a revolução, assim como
coexistem no mesmo mundo, também coexistem nos mesmos indivíduos. A
consciência do artista é arena agonística de uma luta entre dois espíritos. Às
vezes, ou quase sempre, a compreensão dessa luta escapa ao artista. Mas
finalmente, um dos espíritos prevalece. O outro resta estrangulado na arena
(MARIÁTEGUI, 2005, p. 250).

Essa capacidade peculiar de leitura da história a cada novo ciclo


histórico e a aguda percepção da sutileza dessas contradições no universo
subjetivo e da arte não ocorrem por acaso. O pensamento de Mariátegui, para
além de ser manifestação de um espírito genial ou mesmo de uma conjuntura
específica, é a expressão do jogo de forças no qual se forjou a identidade
latino-americana; é fruto de um processo histórico de longa duração.
Para além da elaboração do projeto societário inscrito em um
determinado momento, a dupla consciência mariateguiana expressa o conjunto
de contradições que vieram conformando o chamado labirinto identitário latino-
americano, sua totalidade aberta e irregular, ao longo de toda a modernidade.
A obra e a vida de José Carlos Mariátegui são um marco fundamental do
pensamento crítico latino-americano. Dando continuidade ao ethos barroco e à
dialética dos extremos que o constitui, Mariátegui acrescenta a essa estrutura
histórica em movimento a interpretação crítica específica do modo de produção
capitalista que estava em sua fase industrial. Juntamente com sua obra e a
partir dela, durante todo o século XX se estabelecem movimentos que vão se
nutrir dessa matriz filosófica do pensamento crítico latino-americanista, dando
origem e continuidade à especificidade do continente no campo da reflexão
138

crítica. As reflexões de Mariátegui são incontornáveis para compreender a


profundidade histórica desse pensamento e sua filiação filosófica, que remete
ao início do que entendemos como civilização ocidental.
.
139

C. A dupla consciência histórica


latino-americana: literatura,
libertação e descolonização
José Arcadio Buendía soñó esa noche que en aquel
lugar se levantaba una ciudad ruidosa con casas de
paredes de espejo, Preguntó qué ciudad era aquella, y
le contestaron con un nombre que nunca había oído,
que no tenía significado alguno, pero que tuvo en el
sueño una resonancia sobrenatural: Macondo.
(Gabriel García Márquez)

O pensamento de José Carlos Mariátegui representa, no início do século


XX, a atualização da dialética dos extremos própria ao ethos barroco latino-
americano em sua dimensão crítica. Resposta à perspectiva de organização
social do modo de produção capitalista, a práxis amautista é a concretização
do pensamento crítico latino-americano afinado com sua especificidade
histórica e com seu lugar no interior de uma totalidade social mais ampla e
heterogênea.
Nesse sentido, sua obra delineia um pensamento crítico latino-
americanista que se nutre da ideia de uma totalidade histórico-estrutural
heterogênea – categoria que, segundo Quijano, é a que melhor expressa a
realidade latino-americana:

Uma totalidade histórico-social é um campo de relações sociais estruturado


pela articulação heterogênea e descontínua de diversos meios de existência
social, cada um deles por sua vez estruturado com elementos historicamente
heterogêneos, descontínuos no tempo, conflituosos. [...] O que articula
elementos heterogêneos e descontínuos numa estrutura histórico-social é um
eixo comum, através do qual tudo tende a mover-se geralmente de modo
conjunto, agindo assim como uma totalidade (QUIJANO, 2010, p.96).

Luta agônica entre duas almas, como aponta Mariátegui, a


contemporaneidade se caracteriza por uma guerra de consciências no interior
da história. Consciências que representam, na verdade, civilizações em
disputa. Processo agudizado de uma dinâmica que se iniciou no século XVI,
essa disputa civilizacional tornou-se mais nítida e bem delineada com o
140

advento da industrialização e o surgimento da classe trabalhadora. Etapa do


desenvolvimento do sistema mundo colonial mercantil capitalista, a Revolução
Industrial trouxe consigo uma nova correlação de forças, atualizando a
contradição capital-trabalho.
A obra de Mariátegui inaugura a especificidade do pensamento crítico
latino-americano no interior da tradição marxista. No entanto, apesar de ser um
pensador de clara filiação à tradição inaugurada por Marx, Mariátegui
desenvolveu seu pensamento a partir de uma perspectiva de conhecimento
própria do chão do continente. Como explica Quijano:

A subjetividade mariateguiana faz parte de um processo mais amplo, de um


universo intersubjetivo que se constitui no processo da cultura latino-americana
desse período, como alternativa à imposição crioula-oligárquica. Trata-se de
uma racionalidade distinta que já alguns propunham como “indo-americana”
(QUIJANO, 1991, p. 10).

Havia em toda a cultura latino-americana dessa época um movimento de


busca por sua identidade diante de um novo período da modernidade que se
iniciava. A literatura produzida no continente foi uma importante forma de
expressão dessa consciência. No Peru, a obra de José María Arguedas é uma
expressão dessa subjetividade cindida.
Do outro lado do continente, voltado para o Oceano Atlântico e inspirado
pelos ritos de devoração dos inimigos realizados pelos índios Tupinambá,
surgiu no Brasil o Movimento Antropofágico – expressão das artes do país,
entre elas a literatura –, que reordenou o lugar da tradição na identidade
brasileira, delineando a sua dupla consciência constituinte. Buscando
expressar a especificidade histórica da formação social do continente, surgiu
também o movimento literário que melhor expressou a dupla consciência
histórica latino-americana em sua assimilação enriquecida do outro: o realismo
maravilhoso.
Juntamente com a literatura, outras expressões de caráter sociopolítico,
cultural, religioso e filosófico também explicitaram, ao longo de todo o século
XX e no início do XXI, a especificidade do pensamento crítico latino-americano
e de sua identidade duplicizada. Nesse sentido, as categorias filosóficas da
libertação sintetizam diversas linhas de força críticas que estiveram presentes
no continente: a educação popular, o guevarismo, a teoria da dependência, a
141

Teologia da Libertação e, mais recentemente, o conjunto de reflexões sobre a


colonialidade e a descolonização.
Em tensionamento com a modernidade colonial capitalista e sua
perspectiva eurocêntrica, a modernidade alternativa forjada na mestiçagem
descolonial-crítica latino-americana aponta para um novo sentido histórico de
emancipação e libertação dos povos do continente, forjando assim sua dupla
consciência.

1. A literatura

O indigenismo
O indigenismo na literatura da América Latina tem seu início 42 já na
entrada do século XIX, com o escritor peruano Mariano Melgar. Poeta, libertário
e combatente pela independência do Peru, Melgar demonstrou desde a
infância uma forte identificação com as populações indígenas de seu país e
deixou registrada uma obra de forte caráter lírico, em que procurou traduzir o
sentimento indígena. Outro literato que adentrou o universo indígena foi o
poeta peruano Cesar Vallejo, considerado um dos maiores poetas hispano-
americanos do século XX. Neto de mulheres indígenas, pobre e militante da
esquerda revolucionária, Vallejo inaugura alguns recursos de linguagem que
marcariam a poesia moderna, como a quebra da sintaxe e da gramática, o
elogio ao cotidiano mais simples e a busca por decifrar o olhar dos vencidos,
no caso peruano, o olhar indígena.
Reunindo em um único parágrafo a poesia de Melgar e Vallejo,
Mariátegui explicita o caminho realizado pela literatura indigenista peruana
desse período:

O sentimento indígena é, em Melgar, algo que se vislumbra apenas no fundo


de seus versos. Em Vallejo, é algo que se vê aflorar plenamente no próprio
verso, mudando sua estrutura. Em Melgar não passa de um sotaque, em
Vallejo é o verbo. Em Melgar, enfim, não é mais que um queixa erótica. Em

42
Estamos aqui desconsiderando as cartas, crônicas e descrições realizadas por religiosos e
inúmeros viajantes durante todo o período colonial. Consideramos literatura indigenista aquela
que se debruça sobre o problema indígena, principalmente a partir da passagem do século XIX
para o XX, período da modernidade contemporânea. Isso não impede, é claro, que haja
precedentes anteriores.
142

Vallejo é empreendimento metafísico. Vallejo é um criador absoluto


(MARIÁTEGUI, 2010, p. 291).

Porém, é com a obra de José María Arguedas que a literatura peruana


se inscreve definitivamente no neoindigenismo, enquanto busca de um
universo multicultural para além de cortes mecânicos e leituras romantizadas
do índio. Nascido em 1911, no sul do Peru, Arguedas foi criado em uma rica
fazenda, onde cresceu entre os desmandos patriarcais de sua madrasta e de
seus meios-irmãos – típicos gamonales – e a presença dos empregados índios,
os pongos, em quem encontrou cuidado e afeto e com quem compartilhou as
experiências de profunda opressão e violência simbólica. Como explica Renán
Vega Cantor:

Em uma idade onde as lembranças ficam gravadas como fogo no coração do


homem, Arguedas viveu a discriminação de que eram vítimas os empregados
índios. Essa lembrança o atormentou pelo resto da vida e foi guia espiritual em
sua criação literária ao longo de quarenta anos (CANTOR, 2012, p.2).

Extremamente marcado por essas vivências, Arguedas chega a Lima em


1929, no auge da militância de Mariátegui a favor dos povos indígenas.
Envolve-se com a revista Amauta, e dessa relação nasce o interesse pela
proposta do socialismo indo-americano. Arguedas aprofundou, tanto no campo
da arte como no da militância política, o projeto amautista de uma vanguarda
que tivesse nas tradições indígenas e nos avanços do mundo ocidental – um
de seus fundamentos. Uma famosa frase de Arguedas explicita o lugar do
pensamento revolucionário em sua vida:

Foi lendo Mariátegui e depois Lênin que encontrei uma ordem permanente nas
coisas; a teoria socialista não só deu um sentido a todo futuro, mas também ao
que havia em mim de energia, deu um destino, carregou ainda de mais força
pelo fato de canalizá-la. Até onde entendi o socialismo? Não sei bem, mas sei
que não matou em mim o mágico (ARGUEDAS apud BAPTISTA, 2002, p. 8).

Em 1935, Arguedas publicou seu primeiro livro Agua. Em 1957, publicou


Los ríos profundos, considerado sua obra-prima. Em 1965, lançou El sueño del
pongo, sua última publicação em vida. A partir dos anos 1940, dedicou-se
também a pesquisas etnológicas e folclóricas, que iria desenvolver até o fim da
vida. Dessa forma, militância política, literatura e pesquisa antropológica se
143

combinaram em sua vida, dando forma tanto às suas ideias e a sua literatura
como à sua práxis social.
Continuador da chama acesa por Mariátegui, Arguedas aprofundou
aquilo que Mariátegui iniciou: a necessidade de incorporar a visão de mundo
indígena e todo o universo tradicional, com seu conjunto de práticas
sociocomunitárias, ao projeto de nação peruano.
Em Arguedas, o indígena adquiria, ainda mais que em Mariátegui, o
lugar de sujeito político, em substituição ao lugar exótico e folclórico do sujeito
pertencente ao passado. Nesse sentido, a própria vida do escritor foi um
exemplo concreto do combate agonístico entre duas almas próprio da dupla
consciência histórica latino-americana.
Para Arguedas, o tensionamento entre colonialidade do poder e
mestiçagem descolonial-crítica é o próprio motor de seu pensamento e de sua
obra. O lugar da luta agonística entre essas duas perspectivas é tão central no
pensamento arguediano que torna sua obra um emblema dessa condição
fundamental da identidade latino-americana. É com base nessa luta que
Arguedas foi criando em sua narrativa um Peru heterogêneo pela multiplicidade
racial, cultural e regional. Uma nação na qual índios, mestiços, hispânicos e
demais migrantes vão se forjando a partir desse conflito básico entre modos de
lidar com uma interculturalidade que está presente em todos os estratos da
sociedade peruana – marcada desde o início pela desigualdade e pela injustiça
social.
Imagem muito conhecida desse universo peruano, o muro de pedras das
construções incaicas é frequentemente descrito como metáfora dessa
geometria plural, por ser uma construção sólida, de duração milenar, feita de
pedras irregulares, de formatos diversos e de variados tamanhos. A totalidade
constituída pelas formas desiguais, vivas e desmedidas se concretiza nas
pedras incaicas, combinadas não só para formar os muros da civilização
indígena, mas reutilizadas nas fortalezas e catedrais de arquitetura barroca,
explicitando assim sua condição de movimento heterogêneo e de constante
mestiçagem.
Arguedas, em um trecho imortalizado de sua obra clássica Os rios
profundos, expressa esse tensionamento formador da identidade latino-
americana ao descrever o encontro entre um menino, seu pai e um muro da
144

cidade de Cusco:

Lembrei-me então das canções quíchuas que repetem constantemente uma


frase patética: yamar amyu, rio de sangue, yamar unu, água sangrenta, puktik,
yawar k’ocha, lago de sangue que ferve, yamar wek’e, lágrima de sangue.
Acaso não se poderia dizer yawar rumi, pedra de sangue; puk tik, yawar rumi,
pedra de sangue fervendo? Era estático o muro, mas fervia por todas as suas
linhas e a superfície se transformava, como a dos rios no verão [...].
– Papai, disse-lhe eu, cada pedra fala. Vamos esperar um instante.
– Não ouviremos nada. Não é que elas falem. Você está enganado. Mexem-se
em tua mente e daí te inquietam.
– Cada pedra é diferente. Não são cortadas. Estão se mexendo.
Segurou-me pelo braço.
– Dão a impressão de se mexerem porque são desiguais, mais que as pedras
dos campos. É que os incas transformavam em barro a pedra. Eu te disse
muitas vezes.
– Papai, parece que andam, que se remexem, e estão quietas.
Abracei meu pai. Apoiando-me em seu peito contemplei novamente o muro
(ARGUEDAS, 1977, p. 12).

Lembrando as canções quéchuas ouvidas na infância – rio vivo de


sangue –, Arguedas transfigura a noção de mundo estático, pétreo e sem
mobilidade trazido pela presença do muro. Delineando uma totalidade desigual
e em aparente movimento, o muro de pedras incaico carrega a contradição, já
que é imóvel, milenar. Porém as pedras “falam”, são feitas de sangue indígena
e lembram os rios do verão, quando do alto dos Andes, descem as água que
tomam os leitos secos. Para Arguedas, a sociedade peruana se tensiona entre
esses dois polos, muro e rio. Como esses muros, ela é formada de unidades
desiguais, aprisionadas em um mundo estático que é regido pela opressão e
pela dominação extrema. Os muros, porém, estão vivos, sangue fervente que
parece transcender os limites das pedras. Mas essas pedras poderiam se
transfigurar no próprio rio Pachacaca, que atravessa e toma a cidade de
Abancay todo verão, com suas águas vindas do alto dos Andes.
Em outro trecho muito conhecido de Os rios profundos, é possível
visualizar o tensionamento entre o rio e a construção de pedra e a dimensão
subjetiva desse confronto histórico na vida do personagem. Dessa vez,
Arguedas descreve a ponte sobre o rio Pachacaca:

A ponte do Rio Pachacaca foi construída pelos espanhóis, tem dois olhos altos,
sustentados por base de alvenaria, tão poderosa como o rio [...]. Ao entardecer,
a água que salta das colunas forma arco-íris fugazes que giram com o vento.
Eu não sabia o que amava mais, se a ponte ou o rio. Mas ambos
desanuviavam minha alma, inundavam-na de fortaleza e de sonhos heroicos.
Apagavam-se da minha mente todas as imagens lastimosas, as dúvidas, as
145

recordações más. E assim, renovado, devolvido ao meu ser, regressava à


cidade (ARGUEDAS, 1977, p. 63).

Confronto fundamental da sociedade peruana e da vida de Arguedas, a


descrição da ponte sobre o rio Pachacaca expressa a tensão entre mundos e a
possibilidade de encontros, possivelmente belos, como os arco-íris formados
no fim da tarde. Na vida do personagem, essa tensão revive memórias,
alimenta sua alma, faz parte de seu universo pessoal, de seu caminho. Em
uma interessante inversão, o capítulo onde está o trecho citado se chama
Ponte sobre o mundo. Esse nome, porém, que pode se referir à ponte
construída, é também a tradução do nome do rio. Ou seja, em uma inversão
linguística, a ponte sobre o mundo passa a ser o rio que atravessa o mundo
construído pelos europeus e não o contrário. Dessa forma, obedecendo à
antiga profecia andina do Pachacuti, na qual guerreiros míticos das montanhas
descerão até a costa para libertar os indígenas da opressão 43, o rio Pachacaca
– canção indígena, sua memória ancestral – e sua “invasão” a cada verão
seriam uma metáfora desse momento de subversão histórica, momento
revolucionário quando se ergueria uma sociedade em que as populações
subalternizadas não estariam mais sob o jugo da dominação.
É nesse sentido de busca pela libertação que Arguedas procura, em
sua linguagem, abarcar o mundo quéchua, visto e pensado do ponto de vista
do indígena e também em sua língua. É nessa constante tentativa da
passagem transcultural que mora o núcleo de tensão da obra arguediana. Na
tentativa de passar para a linguagem escrita em espanhol o mundo ritualístico
indígena que conhece tão bem, Arguedas busca atualizar o universo mítico
indígena para o mundo peruano moderno e seus entrecruzamentos culturais,
políticos e econômicos.
Em Arguedas, o mundo mitológico indígena ganha um sentido diferente
daquele que aponta o mundo mítico como algo primitivo, pertencente a um
passado perdido, do qual só restariam fragmentos folclóricos. Assim como em
43
Retomado de diferentes formas, o conhecido mito de Pachacuti é bastante utilizado para dar
sentido a momentos históricos insurrecionais ao longo da história do mundo andino. Desde
conflitos pré-coloniais entre incas e povos andinos dominados, passando pelas revoltas
lideradas por Túpac Katari e Túpac Amaru no final do século XVIII, até as recentes rebeliões
dos movimentos indígenas que resultaram na eleição do sindicalista cocalero Evo Morales na
Bolívia – início do século XXI –, todos esses acontecimentos são, na construção cotidiana da
memória histórica coletiva das populações andinas, concretização e reoriginalização dessa
antiga profecia.
146

Mariátegui, o mito é um horizonte de futuro enraizado no presente; age sobre


as vontades e ações do mundo no espaço social presente e direciona
pensamentos e movimentos coletivos. Para além de “dado cultural”, fragmento
destituído de seu caráter ético-político, o mito é força viva de transformação
social, como explica Rosina Valcárcel:

Valorizar o andino a partir da dimensão arguediana significa não só recordar os


intihuatanas ou relógios solares, ou os poemas míticos como expressão de
uma grande cultura. Significa afirmar a necessidade de novas formas de
relacionar-se com os homens e mulheres andinos e com os produtos culturais
destas populações, reivindicar sua potencialidade e autonomia nos marcos de
uma convivência política em que o racismo não siga condenando-os à miséria,
à exclusão permanente e ao massacre dentro de suas próprias comunidades.
Surge, então, uma pergunta de resposta indispensável: de que modo cumprir a
relação positiva mito-liberação? (VALCÁRCEL, s/d).

Na obra de Arguedas encontramos a continuidade dos núcleos


problemáticos de Mariátegui: qual é o lugar do mito e da tradição na
constituição da modernidade na América Latina e em sua identidade? Em
Mariátegui surge de maneira declarada e indubitável a possibilidade de uma
nova leitura da história da América Latina e de seu lugar na história mundial.
Em Arguedas, porém, a criação de uma “relação positiva mito-liberação” ganha
contornos mais nítidos da cosmologia quéchua e das formas de interação dos
modos de saber que a compõem, enquanto interpretação e ação política –
práxis – no mundo moderno.
Essa relação entre universo mítico indígena e modernidade torna-se
bastante nítida na última obra de Arguedas, El zorro de arriba y el zorro de
abajo, publicada postumamente em 1971 (o escritor morrera em 1969). As
raposas do título são uma referência direta a um mito recolhido no século XVI,
na cidade de Cusco. Na história, chamada Dioses y hombres de Huarochiri,
traduzida por Arguedas em 1966, há uma profunda relação de afinidade e
também de tensão entre a religiosidade inca e a católica, realizada
provavelmente a partir da releitura cristianizada do mito. As duas raposas
representam a gênese da dualidade básica, tanto no mundo indígena quanto
no católico, assim como as contradições entre esses dois códigos de
moralidade.
Segundo a história, Huatyacuri, filho do grande deus Pariacaca, é
visitado em sonho por duas raposas, que passam a dialogar, fazendo de seu
147

mundo onírico um espaço de elaboração do universo colonial. Símbolos de


dois mundos, o mundo da costa e o mundo da serra, as raposas também
representam duas culturas, dois modos de viver distintos um do outro.
Essas múltiplas camadas são retomadas por Arguedas em seu romance,
que é escrito em tom de continuidade do diálogo das raposas. Com base no
tensionamento fundamental entre as duas raposas, Arguedas tece uma
descrição minuciosa da realidade moderna do Peru, mesclando assim a
realidade mítica, social e literária em vários níveis históricos e realizando aquilo
que Mariátegui chamou de “tradição heterodoxa”. Esse recurso ao horizonte
mítico da identidade peruana, sua busca literária de caminhos para um mito-
liberação das populações, opera como uma continuação da existência cíclica
do universo indígena pela via da literatura.
Prova desse projeto é o seu inacabamento – o escrito original do século
XVI não foi terminado, e a obra de Arguedas também não, interrompida pelo
suicídio do autor. Acontecimento de amplo sentido simbólico, o suicídio de
Arguedas é o desfecho de uma trajetória em que as dimensões pessoal,
política e mítica estão inextricavelmente relacionadas. Escreve Marcos Piason
Natali:

Não é outra a tese que vou defender aqui: a passagem de fato ocorre, graças à
transformação do processo de produção de El zorro de arriba y el zorro de
abajo em uma cerimônia semelhante à dança ritual descrita no conto "La
agonía de Rasu-Ñiti" e em vários textos etnográficos de Arguedas. Entre maio
de 1968 e 2 de dezembro de 1969, dia de sua morte, a vida de Arguedas
efetivamente mimetiza a dança agônica do dançarino Rasu-Ñiti. [...] Como
Rasu-Ñiti ao se vestir para sua última dança, Arguedas, quando sente que está
próximo à morte, começa a se preparar e também transforma a morte em um
acontecimento coletivo e ritual, compartilhando-a com a comunidade de leitores
(NATALI, 2005).

Por mergulhar de maneira tão intensa nesse encontro de mundos e em


suas contradições, Arguedas aprofundou ainda mais a possibilidade de uma
leitura própria da modernidade.

A Antropofagia
Outro fenômeno de natureza literária que explicita a dialética dos
extremos própria do pensamento crítico latino-americano foi a Antropofagia.
Movimento filosófico-literário que se iniciou em 1928 com a produção do
148

Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, a Antropofagia é um dos


marcos do Modernismo brasileiro. Assim como em outros países da América
Latina, o movimento modernista no Brasil se caracterizou pela convergência
entre tradição e modernidade em uma proposta crítica ao cientificismo
tecnicista de matriz positivista.
Assim como o indigenismo revolucionário proposto por Mariátegui e o
neoindigenismo de Arguedas, a Antropofagia buscou criar uma proposta
alternativa ao nacionalismo de cunho civilizatório e colonizador. Inspirado no
ritual antropofágico indígena de devoração do inimigo, em um ciclo contínuo de
vingança e apropriação das qualidades intrínsecas do “outro de mim”, o
Movimento Antropofágico sintetizou um projeto estético-literário que buscava
“deglutir as influências poético-ideológicas europeias, incorporando-as
criticamente às matrizes nacionais” (HELENA, 1983, p. 23).

Oswald de Andrade
Em 1924 em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade
sobrepõe dois mundos antagônicos e fundantes de nossa sociedade – o
mundo da civilização e o mundo do bárbaro. Manifesto da vanguarda artística
brasileira, aparece no seio histórico do período entre guerras, momento em que
a crença absoluta no cientificismo positivista estava em xeque e, com ela, toda
a ideia de progresso infinito.
Ao mesmo tempo, o regionalismo ganhava força em países como o
Brasil, onde a identidade nacional vinha sendo cultivada por uma burguesia
letrada e pelos donos dos meios de produção. Esse choque entre espírito
nacional exótico e mundo industrial estrangeiro em crise aparece logo nos
primeiros parágrafos do manifesto, em que Oswald apresenta um país que
necessita de uma nova forma de pensar suas peculiaridades:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da


Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner
submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica
rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro, a dança.
Toda história bandeirante e a história comercial dos Brasil. O lado doutor, o
lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma
cartola na Senegâmbia, Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e
das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil
(ANDRADE, 1978, p. 5).
149

O carnaval como acontecimento essencial em contraste com o lado


doutor, o lado citações. A ideia de uma nação feita de dois mundos separados
e opostos é defendida ao longo de todo o texto e se evidencia nas imagens
escolhidas pelo poeta. “Eruditamos tudo e esquecemos o gavião de penacho”.
Mas a explicitação desse caráter cindido da nação brasileira não
encerra a mensagem do manifesto. É preciso apresentar, a partir dessa divisão
radical, uma proposta própria de modernidade, é preciso realizar um projeto em
que essas duas dimensões se unam em benefício de um espírito nacional que
não seja mera cópia do mundo, mera importação. Em outro trecho, escreve
Oswald:

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e


dualista e a geometria e a álgebra. E a química logo depois da mamadeira de
chá de erva-doce. Um misto de dorme-nenê que o bicho vem pegá e de
equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas
usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu
Nacional. Pau Brasil (ANDRADE, 1978, p. 9).

Ou seja, para Oswald, a modernidade não deve ser negada. Diante


dessas novidades exteriores, era preciso utilizar a inventividade própria do
espírito nativo e criar uma forma de sensibilidade que conseguisse conviver
com esse espírito novidadeiro sem perder seu “sentido puro”. Ou seja, manter
o estado de magia e natureza intocada, apesar do universo técnico e ilustrado.
Denunciar nossa servidão ao mundo europeizado e à sua estética asfixiante de
nossa pureza nativista e regional, eis a bússola que guia o Manifesto da Poesia
Pau-Brasil.
A partir de 1928, com o Manifesto Antropofágico, o movimento
encabeçado por Oswald de Andrade parte para uma abordagem mais
combativa. Nesse segundo momento, o escritor propõe que a floresta devore a
escola e seja esse ato de devoração o emblema de nossa humanidade:

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Única Lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
todos coletivismos. De todas religiões. De todos tratados de paz.
Tupi or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe de todos os Gracos.
Só interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (ANDRADE,
1978, p.13).
150

Diversamente da perspectiva do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, muito


envolvida ainda por uma ideia mecânica do que era o encontro intercultural, a
partir do Manifesto Antropofágico, Oswald começa a vislumbrar a noção de
uma devoração crítica do outro como um processo constitutivo da humanidade,
“Única lei do mundo [...]. Lei do homem. Lei do antropófago”. No caso do Brasil,
essa deglutição de diferentes valores incluía uma apropriação crítica dos
valores eurocêntricos a partir de uma visão situada no Brasil e em seu conjunto
de memórias coletivas. Ou seja, a partir de uma metafísica bárbara, metafísica
caraíba que constituiria uma outra perspectiva de conhecimento, uma outra
racionalidade – capaz de dar contorno a um “sistema social-planetário”.
Para Oswald, a antropofagia, conduzida pelo pensamento mitopoético
próprio do mundo indígena – “ciência como codificação da magia” –, engoliria o
mundo das ideias objetivadas da razão dominadora. Contra especulação,
adivinhação. Contra Deus, “consciência do universo Incriado”, Guaraci, a “mãe
do viventes”, e Jaci, a “mãe dos vegetais”. Cada valor do mundo “ocidental”
seria assim transfigurado digestivamente segundo a razão antropofágica.
Um dos traços do pensamento antropofágico de Oswald de Andrade que
melhor expressa esse processo de devoração do outro – de convite à
outredade – está expresso no uso que o autor faz da teoria freudiana. Para
Oswald, o modo de pensamento que orienta o banquete antropofágico pode
ser comparado ao processo ritualístico de parricídio descrito em Totem e tabu,
de Freud. Nesse texto, o pai da psicanálise defende que a cultura se instauraria
no universo humano a partir da hipótese mítica de um parricídio canibalesco no
qual os filhos interiorizariam a moral paterna (superego).
Assim, com o Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade aprofunda o
caráter de protesto de seu pensamento. Pedra de escândalo, a imagem do
canibal é impactante e ofensiva à linhagem dos bons costumes que regem o
pensamento moderado da elite. Com sua linguagem carregada de
provocações, o manifesto ofende os valores conservadores do “modus vivendi
capitalista” a partir de um conjunto de ideias que reúnem liberação dos
instintos, vida mítica baseada na imanência da vida e pensamento
anticolonialista, não eurocêntrico.
A partir de 1930, Oswald se aproxima do comunismo e se torna um
defensor do sistema soviético. Chegou até mesmo a negar a Antropofagia e a
151

chamou de “sarampão antropofágico”, avaliando sua ação cultural como a de


um títere na mão da burguesia.
A maior expressão desse seu engajamento surge em 1933, com a peça
O rei da vela. No entanto, desiludido com o comunismo apregoado pelo
sistema soviético – “sacerdócio empedernido e dogma imutável da URSS”
(ANDRADE, 1978, p. 118) – rompe com o comunismo oficial em 1945.
É nesse momento final de sua trajetória intelectual que se situam as
obras A crise da filosofia messiânica (1950) e A marcha das utopias (1953),
quando Oswald retoma a temática da antropofagia, mais especificamente do
matriarcado, pensado enquanto uma visão de mundo, uma Weltanschauung
presente na humanidade em diferentes momentos e lugares. Para Oswald,
contraposto ao mundo do matriarcado antropofágico está o patriarcado
messiânico. Escreve ele:

Enquanto na sua escala axiológica fundamental, o homem do Ocidente elevou


as categorias do seu conhecimento até Deus, supremo bem, o primitivo
instituiu a sua escala de valores até Deus, supremo mal. Há nisso uma radical
oposição de conceitos que dá uma radical oposição de conduta.
E tudo se prende à existência de dois hemisférios culturais que dividiram a
história em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o mundo do homem primitivo.
Este o do civilizado. Aquele produziu uma cultura antropofágica, este uma
cultura messiânica (ANDRADE, 1978, p. 78).

Dessa forma, dividindo a história em “dois hemisférios”, Oswald se


aproxima da ideia de um tensionamento básico na história humana e em seu
desdobramento específico no Brasil, enquanto dupla consciência regida pelo
espírito messiânico da colonização e do domínio do outro – um como princípio
– e pelo espírito antropofágico de absorção do outro – dois como totalidade.
Com Descartes e Spinoza, o homem passa a ter corpo e razão. A
ascensão da burguesia coloca de vez no centro de importância o mundo do
burguês. É nesse contexto que aparece a obra de Marx e, com ela, a
possibilidade do ressurgimento da era do matriarcado e do homem tecnicizado.
Oswald acreditava que, a partir do advento da dialética marxista, era
possível pensar em uma sociedade em que, para além da figura do Pai,
enquanto grande orientador da sociedade, poderia se inaugurar o “senso de
Superego tribal” (ANDRADE, 1978, p. 125), ou seja, um inconsciente coletivista
e primitivo – matriarcal – em plena era moderna dominada pelo patriarcado
152

messiânico. Nas teses finais que resumem as ideias contidas no texto Crise da
filosofia messiânica, ele escreve:

1º) Que o mundo se divide em sua longa história em: matriarcado e


patriarcado.
2º) Que correspondendo a esses hemisférios antagônicos existem: uma cultura
antropofágica e uma cultura messiânica.
3º) Que esta, dialeticamente, está sendo substituída pela primeira, como
síntese ou terceiro termo, acrescentada das conquistas técnicas.
4º) Que um novo Matriarcado se anuncia com suas formas de expressão e
realidade social que são: o filho de direito materno, a propriedade comum do
solo e o Estado sem classes, ou a ausência de Estado.
[...].
11º) Que só a restauração tecnicizada duma cultura antropofágica, resolveria
os problemas atuais do homem e da Filosofia (ANDRADE, 1978, p. 128-9).

Assim, para Oswald, a tradição e a modernidade – mundo primitivo e


mundo técnico – encontrariam uma síntese em um matriarcado que uniria, na
sociedade moderna, o espírito coletivista dos povos “primitivos” e todo o
avanço técnico e social de uma sociedade sem classes. Dessa forma, assim
como Mariátegui e Arguedas, Oswald reatualizou, no contexto de seu tempo, a
dialética dos extremos do pensamento crítico latino-americano e explicitou, em
sua obra e vida, a dupla consciência latino-americana.

Macunaíma, de Mário de Andrade


Outra marca definitiva do Modernismo brasileiro que aponta para o
projeto de um sentido histórico que supere a marca colonial foi o livro
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, escrito em
1928.
A obra procura expressar a heterogeneidade brasileira através de sua
narrativa saturada de linguagem mítica e de elementos das tradições populares
do “Brasil profundo”. Macunaíma narra a saga de um herói que representaria a
natureza do brasileiro, herói impuro e cortado por inúmeras contradições. Herói
em aberto, inacabado, um anti-herói produzido pelo fluxo de diferentes
realidades sociais e tempos históricos. Como explica Ivan Marques:

Tempo, espaço, personagens, vocabulário, tudo é indeterminado, tudo oscila


entre o mito e a realidade. Macunaíma é um ser híbrido. Não é adulto nem
criança – e foi formado pelo caldeamento das três raças brasileiras: o branco, o
índio e o negro. [...] Ao longo da narrativa, há uma mistura constante entre o
olhar mítico e o enfoque realista, entre o registro cômico e a visão
problemática, entre o riso e o desencanto. (MARQUES, 2010).
153

Notadamente baseado na obra do etnógrafo alemão Theodor Koch-


Grünberg, em um claro ato antropofágico, Mário de Andrade nunca escondeu a
utilização dos mitos descritos no livro Vom Roraima zum Orinoco (1917), assim
como frases inteiras de outros escritores e estudiosos da época. Para Mário, a
saga brasileira descrita em Macunaíma se caracterizava justamente pela
junção de elementos múltiplos e distintos.
O romance se passa em um lugar incerto (os personagens atravessam
grandes distâncias com um só passo) e não segue uma cronologia linear, com
lendas fabulosas e descrições mágico-ilógicas atravessando todo tempo o
universo narrativo. A história conta a saga de Macunaíma – “herói de nossa
gente”, “preto retinto e filho do medo da noite” – em busca do seu talismã
muiraquitã, roubado por Piaimã, herói comedor de gente que vive em São
Paulo.
O caminho de Macunaíma, que nasceu no “fundo da mata virgem” e vai,
de aventura em aventura, se dirigindo à cidade de São Paulo e a sua
modernidade, é o trajeto de uma antropofagia transculturadora. Ou seja, é o
caminho de devoração do outro moderno (com seu lugar hierarquizado no
trono da colonialidade do poder), caminho da gradativa e artesanal assimilação
dos valores da modernidade europeia. Essa deglutição resulta na modernidade
brasileira, modernidade própria, berço mestiço de inúmeras tradições.
Macunaíma, herói incerto e sem caráter, representa essa abertura
essencial da cultura brasileira, essa incompletude que não forma um caráter no
sentido de uma unidade coesa; é sempre cambiante, sempre em relação com o
outro, absorvendo-o em uma colcha de retalhos formada por uma infinidade de
influências, muitas delas contraditórias. Como explica Lúcia Helena:

Macunaíma é uma alegoria de ruínas de uma cultura híbrida, de uma história


escrita a várias mãos e várias raças, cujo texto “oficial” foi tantas vezes redigido
de um ponto de vista externo, sobre uma ótica europeia [...]. Paródia em que se
inscreve a fala do “outro”, de tal modo que o mundo surge como algo
multifacetado, mutável, no qual se enfatiza a unidade contraditória de todas as
coisas, que é sintetizada na alegoria do herói sem nenhum caráter (HELENA,
1983, p. 141).

Apesar de estarem citados em todo o livro elementos de diversos


países, brincando com diferentes línguas, costumes europeizados e bens de
154

consumo internacionais, há uma busca por imprimir ao texto um tom mítico


saturado de elementos africanos, mestiços e, principalmente, indígenas. A
fartura de elementos e signos que descrevem a fauna, a flora e os costumes de
nosso “Brasil profundo” criam o pano de fundo em que os elementos exógenos
são incorporados a essa “lógica brasileira” e compõem um conjunto no qual
predomina um movimento de assimilação do outro, próprio de uma mestiçagem
descolonial-crítica.
Dessa forma, elementos próprios do mundo pensado a partir do um
como princípio – costumes afrancesados e a lógica capitalista de oferecer bens
de consumo “modernos” a países como o Brasil – são reelaborados de maneira
a expressarem uma lógica reversa à dominação colonial moderna. Esse
recurso de “desconstrução maxilar da tradição” (MACIEL, 1998, p. 225),
devoração e reelaboração crítica do outro, fica bem visível no capítulo “Carta
pras Icamiabas”, em que o herói Macunaíma, já na cidade de São Paulo,
descreve a sua aventura em um escrito endereçado às Icamiabas, mulheres
lendárias da Amazônia. Em uma espécie de etnografia invertida, ele conta suas
peripécias, usando para isso uma linguagem que se pretende formal, mas é,
ironicamente, uma brincadeira com a linguagem culta de Portugal,
desconstruída e satirizada.
Dessa forma, além de criar uma “história às avessas” na qual é o
colonizado que conta a sua história para os seus parentes de origem, ele o faz
segundo uma transfiguração da linguagem culta, expressando um jogo de
espelhos e uma complexa incorporação da língua e dos costumes. Desse
modo, o escritor confunde os lugares sedimentados e recria combinações em
um arranjo inesperado:
Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais
temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do
ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrem grafara muraquitã e, alguns
doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo
muraquéitã, não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar às
vossas trompas de Eustáquio, é quase desconhecido por aqui [...].
Estávamos ainda abatido por termos perdido a nossa muiraquitã, em forma de
sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado
por algum libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo
Freud (lede Fróide), se nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele
soubemos que o talismã perdido estava nas diletas mãos do doutor Venceslau
Pietro Pietra, súdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente
florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco (ANDRADE, 1996, p. 71).
155

Outro recurso literário-filosófico muito utilizado em Macunaíma é a


descrição do mundo a partir de sua natureza múltipla e em permanente
metamorfose. Assim, Piaimã, o arqui-inimigo gigante de Macunaíma é um ser
claramente indígena, mas é também, e ao mesmo tempo, italiano (Pietro
Pietra) e peruano (do Vice-Reinado do Peru). Ou seja, é muitos e aparece cada
hora sob uma forma diferente, dependendo do contexto. Essa capacidade que
o mundo de Mário de Andrade adquire em Macunaíma é um desdobramento
muito importante para a compreensão da relação da antropofagia com a
modernidade. Ao mesmo tempo que abarca a coexistência de diferentes
espaços, a modernidade ”macunaímica” proporciona a simultaneidade de
diferentes tempos históricos – tempo primitivo, tempo da máquina – e a
interpenetração de um no outro, sua antropofagia, sua possibilidade de
transformação. Dessa forma, a modernidade brasileira é expressa pela
antropomorfização da máquina e pela desantropomorfização do homem. Em
outras palavras, a máquina vira bicho-gente e o homem vira coisa do mundo.
Nesse exercício de paridade, tudo se assemelha e convive em um mesmo
plano, o plano da realidade brasileira regida pela antropofagia que se reatualiza
no início do século XX e a sua promessa de modernidade. Se a modernidade
europeia traz ao mundo humano a máquina, na modernidade brasileira essa
equação deve contar com o mundo mítico próprio da vida “primitiva”, tradicional
do Brasil. Explica Priscila Figueiredo:

No livro, automóvel é automóvel e onça, Maanape é homem e telefone, Naipi é


índio e cascata, Capei é lua e serpente – dragão. Oibê é minhocão, lobisomem,
cachorro-do-mato, borboleta azul e homem [...], os edifícios são malocas, os
elevadores saguis, o ruído urbano ruído orgânico, as chaminés boitatás e
assim por diante. [...]. As metamorfoses constantes e cumulação de concreto
são como as lavouras de subsistência amplamente cultivadas para garantir a
acumulação no novo sistema produtivo instaurado a partir da Revolução de
1930 (FIGUEIREDO, 2006, p. 7).

Nesse tempo impregnado de diferentes linguagens, tempos, dimensões


e lógicas, Mário da Andrade desenha de forma exemplar a noção de totalidade
contraditória e heterogênea própria da cultura latino-americana (POLAR, 2000),
É uma leitura que encontra forte convergência com a noção de totalidade
histórico-social de Quijano, que também aponta para a construção heterogênea
e em constante movimento do modo de ser latino-americano.
156

A similaridade com trabalhos realizados por estudiosos do continente


como um todo certamente não foi à toa. Processo que se iniciava por toda a
América Latina e que deu origem ao regionalismo, a modernidade própria do
continente não passou invisível a Mário de Andrade. Ao se dedicar à
construção da modernidade brasileira, ele não se perde em uma noção
endógena de cultura brasileira. Nas linhas de Macunaíma, diversas vezes são
citados os Andes, as Guianas e outras regiões da América, como forma de
extrapolar o território brasileiro e a noção de fronteira nacional. Ao descrever o
seu exercício literário em Macunaíma, o autor adverte sobre esse caráter “não
brasileiro” de seu anti-herói:

O próprio herói do livro, que tirei do alemão Koch Grünberg, nem se pode falar
que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano como da gente e desconhece a
estupidez dos limites para parar na terra dos ingleses como ele chama a
Guiana Inglesa. Essa circunstância de o herói do livro não ser absolutamente
brasileiro me agrada como o quê (ANDRADE apud CASTELLO, 1974, p. 84).

Pode-se afirmar que o escritor brasileiro explicita em seu romance uma


polaridade fundamental da dialética dos extremos. Ao mesmo tempo que é
uma busca no descobrimento de uma tradição, no sentido de uma constelação
de memórias próprias, também é uma formulação regida por uma lógica que
aponta para uma modernidade no sentido de universalidade. Essa
universalidade, porém, no caso do pensamento crítico latino-americano, se
apresenta como uma modernidade alternativa ou como uma universalidade
alternativa à universalidade eurocêntrica.
Embora não tenha se dedicado a um esforço de síntese entre o
socialismo, as vanguardas e a realidade latino-americana, como fez Mariátegui,
Mário de Andrade apresentou uma sensibilidade afinada com uma perspectiva
de conhecimento convergente com o universo latino-americano.
No trecho final de Macunaíma, Mário explicita essa capacidade de
síntese e de proposição de um novo universalismo. Macunaíma se transmuta
em saci – símbolo da mestiçagem brasileira – e em constelação, simbolizando
a distância mítica e, ao mesmo tempo, o jogo de transmutações e espelhos
transculturais entre a Europa e o folclore brasileiro. Lógica e magia, imanência
e transcendência, tensão fundamental que funda nossa dupla consciência
157

histórica latino-americana e a construção de uma totalidade heterogênea


apontando para um novo universalismo:

Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa
da perna só da Ursa Maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda para neste
mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa Maior é
Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde
e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no
campo vasto do céu (ANDRADE, 2004, p. 71).

No final do romance, uma etnografia realizada por um alemão, um ser


encantado, uma constelação e o personagem símbolo do Brasil se combinam e
se transformam em um caleidoscópio de imagens que atravessam terra e céu,
mito e ciência. Macunaíma é o herói sem caráter definido e que define, por isso
mesmo, a complexidade do movimento identitário próprio da dupla consciência
histórica latino-americana, sua tensão e transformação constante.

O realismo maravilhoso
Assim como o neoindigenismo de José María Arguedas e a antropofagia
dos brasileiros Mário de Andrade e Oswald de Andrade, outro caminho literário-
político do continente que explicita a dupla consciência é o realismo
maravilhoso. Cunhada por Alejo Carpentier, a expressão designa toda uma
corrente literária do continente, na qual se destacam, além de Carpentier, os
argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, o brasileiro Murilo Rubião, o
mexicano Juan Rulfo e o colombiano Gabriel García Márquez.
Filho de uma professora russa e de um arquiteto francês, a vida de Alejo
Carpentier (1904-1980) pode ser considerada uma verdadeira viagem “entre
mundos”, em que a dialética dos extremos, mais que investigação filosófica, foi
a própria matéria forjadora da vida. Nascido na Suíça, Carpentier mudou-se
para Cuba com os pais ainda na primeira infância e ali onde conviveu com
campesinos negros, brancos e mestiços. Essa forte convivência com a cultura
europeia e o mundo camponês cubano, assim como a vida na Havana
moderna, teriam influência marcante na busca literária de Carpentier. Por meio
da criação, ele procurou elucidar esses atravessamentos culturais e o lugar
deles na história da humanidade.
158

Em 1928, Carpentier muda-se para Paris e se envolve com o e movimento de


vanguarda do surrealismo. Liderado por André Breton e outros poetas, como
Louis Aragon e Tristán Tzara, além dos pintores Pablo Picasso e Salvador Dali,
entre outros, o surrealismo exerce forte influência em Carpentier, que se
envolve profundamente em suas ações e propostas artísticas. Sobre esse
tempo na França, diz Carpentier: “A França me ensinou a ver texturas,
aspectos da vida americana que eu não havia compreendido. Compreendi que
por detrás desse nativismo havia algo mais, um contexto telúrico e um contexto
épico-político” (CHIAMPI, 1980, p. 139).
De volta a Cuba em 1939, onde vive até 1945, Carpentier realiza
viagens importantes ao Haiti e ao México. Do Haiti vem a inspiração e o
acontecimento histórico do romance O reino deste mundo, considerado o
romance fundante do realismo maravilhoso.
A primeira referência ao realismo maravilhoso aparece em 1948, em um
artigo publicado como prólogo da obra O reino deste mundo, no qual
Carpentier procura apresentar a sua proposta literário-filosófica. Seguindo a
dialética dos extremos, o escritor defende que o tema do livro – a Revolução do
Haiti – é um exemplo do realismo maravilhoso latino-americano.
Nessa obra, o universo afro-haitiano – culto aos loas africanos, ao vodu
e aos poderes sobrenaturais de transformação de homens em animais –
dialoga, tensiona e se articula com elementos eurocêntricos da Igreja católica,
de costumes absolutistas e de valores da Revolução Francesa. Essa
capacidade de abarcar memórias, culturas e perspectivas de conhecimento é o
principal traço do realismo maravilhoso – cujo nome já evidencia a sua dialética
dos extremos. – e de sua racionalidade. Como explica Irlemar Chiampi:

[O real maravilhoso] é a união de elementos díspares, procedentes de culturas


heterogêneas, configura uma nova realidade histórica que subverte os padrões
de racionalidade ocidental. Essa expressão associada amiúde ao realismo
mágico hispano-americano foi cunhada pelo escritor para designar, não as
fantasias ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos que
singularizam a América no contexto ocidental (CHIAMPI, 1980, p. 32).

Ou seja, segundo Carpentier, a América se caracterizaria pela


coexistência, em um mesmo plano, de diferentes concepções de realidade. A
proposição do realismo maravilhoso é uma tentativa de explicitar o lugar mítico-
159

histórico da América. Seguidor confesso de Eugeni D’Ors, que defendia o


Barroco como uma “constante humana”, Carpentier afirmava que o território
americano era um acontecimento grandioso do Barroco enquanto sentido
próprio de humanização, de realização do destino humano. Carpentier realiza
sua proposta de realismo maravilhoso – “crônica da América inteira” – como
um espaço entre mundos, que combina elementos socioculturais de diferentes
lugares e tempos históricos. Mas faz isso a partir de um eixo, de uma
centralidade americana.
Além de estar intimamente ligada à expressão de uma filosofia
intercultural da América em sua heterogeneidade histórico-cultural, a
perspectiva de conhecimento própria do realismo maravilhoso também remete
à dualidade entre logos e mythos, entre o racional e o irracional, apontando
para uma dialética dos extremos já em sua formulação. Enquanto a palavra
realismo remete diretamente ao mundo racionalizado e positivista do
cientificismo eurocêntrico em sua busca por esquadrinhar o real, o termo
maravilhoso indica justamente seu extremo oposto. Fica assim caracterizado
um confronto com a razão metafísica e sinaliza-se a existência de uma dupla
racionalidade, uma dupla consciência – razão abstrata e cientificista de um lado
e razão maravilhosa de outro.
Componente universal de todas as épocas e culturas, no mundo grego o
maravilhoso aparece nas epopeias, em que animais e monstros mitológicos
são separados dos homens e substituídos por deuses antropomórficos, à
“imagem e semelhança” dos homens. Fruto dessa divisão, a ideia do
maravilhoso surge como o que espanta, o que provoca surpresa e admiração.
Segundo Aristóteles em sua Poética, o termo maravilhoso designa o
irracional, a realização do absurdo e do impossível no interior da trama da vida.
Essa noção do maravilhoso no cotidiano, como aquilo que serve de contrapeso
à banalidade regular da repetição, encontrará continuidade durante toda a
Idade Média, quando o maravilhoso se apresentará como ruptura com a grande
instituição reguladora da época, a Igreja. É nesse sentido de tensão e ruptura
que o maravilhoso se torna o lócus do milagre, da magia, dos poderes do corpo
e do sobrenatural.
Já no mundo moderno cartesiano, enquanto a razão regida pelo logos
vai se tornando o espaço da ordem natural, o maravilhoso se torna
160

representante do irracional, do mitopético, do inconsciente e do primitivo. Ou


seja, de tudo aquilo que se contrapõe à razão ocidental eurocêntrica. É essa a
concepção de maravilhoso que está por trás das palavras de André Breton, que
acusa a razão eurocêntrica de “ódio ao maravilhoso” e defende a “resolução
futura destes dois estados tão contraditórios na aparência, o sonho e a
realidade, em uma espécie de realidade absoluta, de surrealidade” (BRETON,
2001, p. 45). Essa atitude extrema, esse lugar onde real e imaginário deixariam
de estar cindidos, também está presente na definição de maravilhoso de
Carpentier:

O maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma


inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da
realidade, de uma iluminação não habitual ou particularmente favorecedora de
desconhecidas riquezas da realidade. Percebidas com especial intensidade em
virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a uma espécie de estado-
limite. Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé
(CARPENTIER, 1987, p. 140).

Porém, o universo do maravilhoso em Carpentier traz uma importante


novidade em relação ao maravilhoso europeu. Para ele, assim como na
experiência do Barroco americano – em que o confronto entre mundos tão
distintos produziu um Barroco “mais extremo” que o Barroco europeu –, no
caso do realismo maravilhoso, o espaço gnóstico americano propiciou o
surgimento de um maravilhoso ainda mais intenso que o maravilhoso
surrealista europeu.
O que Carpentier propõe é “trazer certas verdades europeias às nossas
latitudes, agindo na direção oposta” (PRATT, 2009, p. 27). Se, para os
europeus, o maravilhoso é fruto da força da imaginação, da dimensão poética e
do inconsciente, para Carpentier o maravilhoso é a própria realidade da
América, tanto intersubjetiva (pressupõe uma fé, uma vontade) quanto objetiva
(revelação da realidade), caracterizando assim uma realidade maravilhosa.
Embora os surrealistas europeus demonstrassem franca admiração e grande
fascínio pela natureza exuberante da América e por seu universo mítico, de
forte mescla de culturas, para Carpentier o horizonte eurocêntrico desses
artistas limitava o alcance de suas propostas. O real maravilhoso seria, assim,
um traço fundamental, uma condição especial da América.
161

A diferenciação entre o mundo europeu e o mundo americano fica


evidente no Prólogo de O reino deste mundo, no qual o escritor vai
enumerando criticamente diversas “atitudes” do surrealismo, que são uma
tentativa artificial de produzir algo que, na América, estaria presente sem
necessitar de exercícios de imaginação. Para Carpentier, o surrealismo é
alcançado “com truques de prestidigitação” que acabam por produzir
“burocratas” que aprenderam a seguir “códigos do fantástico”. O escritor
compara essa “pobreza imaginativa” – truque literário repetitivo que faz dos
surrealistas “violadores de cadáveres de formosas mulheres recém-mortas” –
à realidade haitiana, aos “sinais mágicos da meseta Central” e aos “tambores
de Rada”. Ou seja, enquanto a obra europeia se realizava segundo truques de
repetições mentais, artifícios psicológicos e manuseio de imagens
inverossímeis, na geografia e na cultura da América estaria o maravilhoso em
estado bruto, sem necessidade de abstração artística para encontrá-lo.
Publicado em 1949, O reino deste mundo inaugura o chamado romance
histórico-crítico latino-americano, em que uma dada realidade histórica é
contada a partir da ótica daquele que foi invisibilizado, da ótica do vencido, do
interdito. Nesse sentido, a cultura, a religiosidade, a expressão oral dos povos
e dos sujeitos narradores participam da narrativa, assim como a interpretação
que eles dão aos fatos.

O reino deste mundo


O romance O reino deste mundo conta a história da Revolução Haitiana,
única revolução de independência da América protagonizada por negros
escravizados. Em uma linguagem permeada pela oralidade do Haiti, Carpentier
explicita o modo de vida e a perspectiva do povo negro haitiano em uma
narrativa que descreve todos os acontecimentos históricos, combinando uma
descrição linear dos fatos ao universo mítico e religioso do vodun, religião
própria de matriz afro-haitiana muito presente na população negra do país.
Essa sobreposição de mundos e de perspectivas sobre os
acontecimentos históricos fica clara através do personagem Mackandal, líder
quilombola da resistência à escravidão, conhecido por seus poderes proféticos
e mágicos. Mackandal, que perdeu o braço em uma moenda de cana, é
descrito como um sábio feiticeiro – mandinga – capaz de feitos miraculosos.
162

A grande revolta é uma grande rebelião liderada por Mackandal entre


1751 e 1757. Utilizando a tradição religiosa do vodun, Mackandal conseguiu
unificar a resistência negra à escravidão em uma rede de organizações
secretas e organizar uma grande rebelião de escravos. Brancos, negros e
mestiços lutaram entre si em busca do controle da ilha e da produção de
açúcar, a mais importante de toda a América. Capturado em 1758, o corpo de
Mackandal é queimado em praça pública pelos fazendeiros. Esse episódio,
narrado do ponto de vista dos escravizados, ganha outra interpretação. Se, do
ponto de vista “oficial”, Mackandal foi queimado vivo, sob a ótica do vodun, o
episódio comprovou mais uma vez o poder de transmutação do feiticeiro, que
escapa e desaparece:

O fogo começou a subir até o maneta, chamuscando-lhe as pernas. Nesse


momento, Mackandal agitou o coto, que não tinham podido amarrar, num gesto
ameaçador, que nem por minguado era menos terrível, urrando desconjuros
desconhecidos e jogando o torso violentamente para frente. As cordas caíram
e o corpo do negro se esticou no ar, voando sobre as cabeças. Antes de
mergulhar nas ondas do mar negro de escravos, um só grito ressoou na praça:
“Mackandal, sauvé” (CARPENTIER, 1987, p. 31).

Apesar de Carpentier descrever a morte de Mackandal por imolação, ele


insinua o seu renascimento em um filho gerado na mesma noite entre seu
discípulo Ti Noel e uma escrava. Também comenta a ignorância dos franceses
sobre os ritos voduns, tomados como sentimentos animalescos de raças
inferiores. Toda essa incerteza que atravessa um jogo de espelhos e mundos
que contrastam e se interpenetram participa da narrativa do cubano, que
explicita como a história americana é saturada de contradições e múltiplos
olhares. Afasta, assim, a possibilidade de uma interpretação eurocêntrica única
e indica um jogo de forças que forma uma totalidade histórico-social aberta e
em movimento – deixando sempre em suspenso a possibilidade do
desvendamento total e encerramento.
Juntamente com a resistência negra à escravidão, outro acontecimento
determinante para o processo de independência do Haiti foi a Revolução
Francesa. Insatisfeitos com as restrições impostas pela Coroa Francesa a suas
atividades, os comerciantes brancos do Haiti passaram a se organizar para
conseguir a independência. Os ex-escravos, após inúmeras batalhas contra
163

franceses, britânicos e espanhóis, proclamaram a independência no último dia


de 1803, quando foi lida a Carta de Independência do Haiti.
Descrevendo os momentos finais dessas batalhas, Carpentier usa
novamente o mundo mítico africano para dar sentido aos fatos narrados. Em
um combate entre o vodun e a “Deusa Razão”, Carpentier narra a derrota da
Razão a partir da entrada dos padres da Savana, religiosos mestiços que
começaram a praticar suas crenças antes proibidas:
Os Grandes Loas favoreciam agora as armas dos negros. Ganhava as
batalhas quem tivesse deuses guerreiros para invocar, Ogum Badagri guiava a
carga de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão. [...] Foi
quando apareceram na Planície aqueles sacerdotes negros, sem tonsura ou
ordenação eclesiástica, chamados padres da Savana [...]. Para rezar em Latim
junto à enxerga de um agonizante eram tão sábios quanto os padres franceses.
E eram entendidos melhor porque quando recitavam o Padre-nosso ou a Ave-
Maria sabiam dar ao texto inflexões semelhantes àquelas de outros hinos que
todos conheciam (CARPENTIER, 1987, p. 64).

O reino deste mundo, cujo título faz clara referência à expressão “reino
do outro mundo”, estabelece uma nova possibilidade da novela latino-
americana, abrindo as portas da literatura para o mundo “sobrenatural”, ou
melhor, para um outro mundo natural, que engloba (ou devora?) a Deusa
Razão e se enraíza na perspectiva dos povos escravizados no Caribe.
Para além de uma manifestação do mítico, do sobrenatural, do insólito e
da natureza dadivosa, o realismo maravilhoso se constituiu como um caminho
político determinado, um espaço de militância e investigação sobre a história
do povo latino-americano e de sua busca por libertação. Nesse sentido, a obra
de Carpentier anunciou toda a leitura crítica sobre a América Latina realizada
após a Revolução Cubana.
Alimentada por toda a tradição do ethos barroco como mestiçagem
descolonial-crítica, o continente passa a se guiar pela real possibilidade de
revolucionar a realidade social dos povos ou, no dizer dos movimentos
indígenas da Bolívia e do Peru, de “virar o mundo de cabeça para baixo”.
Mundo às avessas, onde a lógica do oprimido, lógica da bricolagem como
resistência, incorpora o mundo regido pela Deusa Razão e seu projeto colonial
mercantil capitalista.

2. Por uma filosofia latino-americana


164

O latino-americanismo
O pensamento crítico latino-americanista, ou seja, o pensamento que
busca delinear uma contraposição ao mundo colonial mercantil capitalista a
partir de uma identidade própria do continente latino-americano, é muito
presente na América hispânica. Apesar de se manifestar também no Brasil 44,
essa busca pela singularidade da América, pelo seu lugar diante do mundo
eurocêntrico, ocupou de maneira especial os hispano-americanos. Como
afirma Chiampi:

A indagação sobre o que é a América tem sido, sistematicamente, a força


propulsora e profundamente vitalista do pensamento hispano-americano. Para
esse núcleo ontológico irredutível das teses americanistas converge todo o
interesse pela difusão e penetração das ideologias na América hispânica [...].
Não encontraremos na reflexão norte-americana, nem na brasileira, a
veemência, e até obsessão, com que hispano-americanos têm sentido a
necessidade de definir sua cultura no contexto ocidental (CHIAMPI, 1980, p.
96).

Essa atitude interrogativa constante em relação à própria especificidade


gerou uma série de reflexões filosóficas. Diante da “angústia mestiça” do
americano, a intelligentsia latino-americana passa a se dedicar aos
fundamentos do ser americano, à ontologia do continente a partir de seu
percurso histórico e de suas expressões socioculturais.
Originário das lutas de independência do continente, o chamado
pensamento latino-americanista surge no final do século XVII. Mas um
pensamento propriamente continental inicia-se apenas com Simón Bolívar,
líder militar e político que lutou pela independência de diversos países e
defendeu a ideia da América Latina como uma grande e unificada potência.
Chamado de El Libertador, em contraposição à alcunha de El Conquistador
dado ao colonizador Hernán Cortés, Bolívar é o responsável pela realização do

44
Exemplo dessa reflexão realizada em solo brasileiro é a obra de Manuel Bonfim intitulada A
América Latina: males de origem, na qual o autor se opõe radicalmente ao pensamento racial-
positivista da época e propõe medidas sociopolíticas como modo de combater a miséria. A já
citada Marcha das utopias, de Oswald de Andrade, e, de algum modo, todo o modernismo
antropofágico brasileiro também propõem reflexões acerca da cultura americana e de seu
eurocentrismo. Darcy Ribeiro em sua antropologia sobre o processo civilizatório, bem como
Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão, também desenvolvem uma teoria
antropológica que, inspirada no indigenismo mexicano, propõe, mesmo que indiretamente,
reflexões e categorias de fundo americanista.
165

Congresso do Panamá (1826), a primeira das Conferências Pan-Americanas


que ocorreriam até 1954. Tornou-se assim o idealizador do pan-americanismo
– ideário que defendia a criação de uma grande federação de nações livres e
independentes.
Para o líder, a América Latina tinha uma identidade própria, advinda das
múltiplas origens de seus povos constituintes, o que daria aos latino-
americanos o contraditório lugar de encontro pela dessemelhança. Em suas
palavras:

É impossível atribuir com propriedade a que família humana pertencemos. A


maior parte dos indígenas foi aniquilada, o europeu se misturou com o
americano e com o africano e este se misturou com o índio e com o europeu.
Nascidos todos do seio de uma mesma mãe, nossos pais, diferentes na origem
e no sangue, são estrangeiros e todos diferem visivelmente na epiderme: essa
dessemelhança nos impôs uma obrigação de maior transcendência (BOLÍVAR,
1995, p. 439).

Outro grandioso líder que defendeu a formação de uma ampla unidade


de nações no mundo ibero-americano foi o cubano José Martí (1853-1895).
Considerado o grande herói da independência de Cuba, Martí foi o criador do
Partido Revolucionário Cubano e o continuador do legado bolivarista. Como
imagem síntese dos ideais políticos que defendeu, cunhou a expressão
Nuestra América, que é também o título de seu escrito mais conhecido.
Guiado por dois eixos centrais, o latino-americanismo e o anti-
imperialismo, Martí buscou alcançar um pensamento que delineasse o latino-
americano de maneira diferenciada dos colonizadores europeus e dos
imperialistas estadunidenses, estes em feroz expansão no período de sua
atuação política. Para Martí, o continente americano era formado por “Duas
Américas”: mais do que dois territórios, seriam dois espíritos, dois modos de
vida que dividiam o continente e diferenciavam o latino-americano “autêntico”
tanto do europeu e seus descendentes, como dos estadunidenses.
A particularidade do latino-americano em relação aos europeus
colonizadores e seus descendentes diretos, os criollos, seria a existência do
“mestiço autóctone”, fruto da “mistura de povos” e essência da “alma
continental” da “América trabalhadora”. Grupos com interesses antagônicos,
criollos e mestiços representam a divisão entre opressores e oprimidos no
166

interior da América hispânica. Em uma esclarecedora passagem em que


relaciona a libertação do povo latino-americano à sua autenticidade enquanto
povo mestiço, escreve Martí:

Tendo sido interrompida pela conquista a obra natural e majestosa da


civilização americana, criou-se, com a chegada dos europeus, um povo
estranho; não espanhol, porque a seiva nova rechaça o corpo velho; não
indígena, devido à ingerência de uma civilização devastadora; duas palavras
que sendo antagônicas, constituem um processo; criou-se um povo mestiço na
forma que, com a reconquista de sua liberdade, desenvolve e restaura sua
alma própria. (MARTÍ in RODRIGUEZ, 2006, p. 41).

Outro aspecto fundamental na obra de Martí é a diferenciação dos latino-


americanos em relação ao povo estadunidense. Expoentes da nova época em
que a humanidade ingressava, os Estados Unidos viviam um prodigioso
desenvolvimento industrial e científico, irmão de sangue do capitalismo
competitivo que também evoluía vigorosamente em terras norte-americanas.
Martí refutava essa sanha mercantil dos Estados Unidos e opunha a ela uma
espiritualidade ética que, segundo ele, seria própria dos latino-americanos. Em
sua interpretação, os latino-americanos seriam menos individualistas e menos
pragmáticos, deixando-se levar mais pelo sentimento e pela originalidade do
universo mestiço.
Essa diferenciação entre os dois espíritos formadores das “Duas
Américas” é também o tema central da obra Ariel, escrita em 1900 pelo
uruguaio José Enrique Rodó. Diante da expansão dos Estados Unidos e do
êxito de seus valores pragmáticos e materialistas, Rodó defendia que a
América Latina deveria cultivar seus próprios valores ético-espirituais,
desenvolvendo assim o “gênio de sua raça”. Essa divisão apareceria
encarnada nos personagens Caliban e Ariel. Caliban, anagrama de canibal,
escravo deformado de Próspero, representaria o materialismo norte-americano.
Já o deus Ariel, espírito do ar, dotado de poderes espirituais para além da
matéria imediata, representaria a vocação cultural da América Latina.
Embora construída sobre uma estética classicista e apoiada em valores
aristocráticos de cultura – pensamento que ficou conhecido como arielismo –, a
obra de Rodó se consagrou como uma referência incontornável desse
momento inicial de diferenciação e delineamento do que seria a especificidade
latino-americana.
167

Outro autor de fundamental importância para a compreensão do


percurso inicial das indagações sobre a identidade latino-americana é o
mexicano José Vasconcelos, criador da teoria da raça cósmica, publicada em
1925 no livro La raza cósmica: misión de la raza iberoamericana. Retomando a
temática da síntese cultural que José Martí anunciava como traço marcante da
autenticidade do continente, Vasconcelos foi o responsável por relacionar
diretamente o destino do povo latino-americano – e do mundo – com o
processo de mestiçagem.
Opondo-se frontalmente a todas as teorias das raças puras e da
mestiçagem enquanto processo de enfraquecimento biológico e cultural,
Vasconcelos é o precursor daquilo que viria a se tornar um traço distintivo do
pensamento latino-americanista: o elogio da mestiçagem. Segundo a teoria de
Vasconcelos, o continente latino-americano seria o lugar de elaboração de uma
quinta raça, síntese aperfeiçoada do branco, do indígena, do negro e do
amarelo. Raça integral “feita com o gênio e com o sangue de todos os povos e,
por isso, capaz de alcançar a verdadeira fraternidade e visão universal” (raça
cósmica). Traçando um sobrevoo histórico desde o Egito e relacionando a raça
cósmica ibero-americana a uma hipotética e extinta civilização de Atlântida,
Vasconcelos realiza uma leitura extremamente romântica da ideia de raça.
Influenciado pela catástrofe da Primeira Guerra Mundial, que colocou em xeque
os ideais eurocêntricos de civilização, a obra de Vasconcelos cria uma visão
utópico-poética, carregada de misticismo, sobre o lugar transcendental da
América para o destino da humanidade. A mestiçagem, no pensamento do
autor, é plena de qualidades e se realiza acompanhada essencialmente de
amor, o que animaria a alquimia de elaboração da nova raça:

Nenhuma raça contemporânea pode se apresentar por si só como um modelo


acabado que todas as outras devam imitar. O mestiço, o índio e o negro
superam o branco em uma infinidade de capacidades propriamente espirituais.
Nem na antiguidade, nem no presente, ocorreu um caso de uma raça que
tenha se bastado a si mesma [...]. Só uma prolongada experiência manifestará
os resultados de uma mescla realizada, não por violência ou necessidade, e
sim por eleição, fundada no deslumbramento que produz beleza e confirmada
pelo pathos do amor (VASCONCELOS, s/d, p.25).

Ignorando a violência extrema que caracterizou a conquista das


Américas ele acaba por defender uma pretensa harmonia racial, que
encontrará em Gilberto Freyre o seu equivalente no Brasil. Contudo, apesar da
168

visível idealização que permeia suas reflexões sobre a raça cósmica, é


inegável que Vasconcelos é uma referência e que aproxima o pensamento
social latino-americano dos seus processos culturais constitutivos. É valiosa
também a visibilidade que o autor confere à presença e à importância das
populações indígenas, negras e mestiças na constituição identitária do
continente.
A ideia da criação de uma civilização alternativa à modernidade
capitalista, ou ainda, da criação de uma outra modernidade foi o horizonte
perseguido pelo peruano José Carlos Mariátegui, autor já analisado neste
trabalho. Ele realiza uma original leitura da realidade específica do
desenvolvimento histórico, político, econômico e cultural de seu país, seguindo
o horizonte teórico do marxismo. Mariátegui representou um divisor de águas
no pensamento crítico latino-americano ao introduzir, de maneira original e
autônoma, a ideia do socialismo revolucionário no Peru e defender a
construção de um socialismo indo-americano por todo o continente.
Diante da herança colonial europeia e do processo neocolonial
protagonizado pelo imperialismo estadunidense, esse traço original de
resistência e assimilação dos processos de dominação passa a ser o centro da
preocupação daqueles que buscam compreender o lugar do continente na
história universal. A latinidade e, mais fortemente, a mestiçagem e suas
distintas formas – dois como totalidade – passam a ser tema de reflexão de
diferentes pensadores. Confrontadas com distintas leituras de uma perspectiva
colonial – um como princípio – estruturam a dupla consciência latino-
americana, confronto entre colonizadores e colonizados na formação histórica
da América Latina.

Transculturação: o elogio à mestiçagem


A investigação sobre a natureza mestiça da identidade latino-americana
torna-se a principal via para uma consciência da especificidade de suas nações
e, ao mesmo tempo, de uma identidade comum. Nesse sentido, foram
desenvolvidos conceitos e categorias que problematizam a dominação colonial-
imperialista nas mais diferentes dimensões da vida social. Os autores voltaram
169

seus esforços para compreender de que maneira a América Latina se


estabeleceu como espaço de resistência, a partir da mistura e da assimilação
de diferentes códigos culturais. Como explica Chiampi:

Conquanto difiram seus objetivos e terrenos de sua discussão, a ideia


predominante em suas análises é de que a mestiçagem é o verdadeiro critério
para postular uma diferença latino-americana com relação aos modelos
europeu e norte-americano, como também é o critério para configurar um bloco
cultural (CHIAMPI, 1980, p.124).

Ou seja, diante do padrão homogeneizador da colonialidade do poder,


reforça-se a identidade latino-americana nascida do diálogo entre diferentes
culturas. O principal elemento a ser considerado nessa transição é a passagem
de uma ideia de mestiçagem fundada em critérios baseados na ideia de raça
biológica, para a mestiçagem entendida enquanto dinâmica cultural.
É nesse contexto antipositivista que se desenvolve a ideia de que a
identidade latino-americana é formada a partir desse complexo diálogo-embate
entre memórias históricas distintas. A partir disso, a mestiçagem, mais do que
fenômeno histórico-cultural de resistência, passa a ser assumida como valor
cultural positivo e distintivo dos padrões coloniais e imperiais.
É nítido o surgimento de um explícito elogio da mestiçagem. Ao mundo
regido por um modelo superior a ser seguido e almejado (raça branca, cultura
eurocêntrica, razão positivista) é contraposta a euforia pelo universo
carnavalizado das transposições e dos atravessamentos entre modelos e
formas. Contrapondo-se à ideia de supremacia racial e cultura inautêntica, a
mestiçagem, nessa acepção enriquecida, passa a levar vantagem em relação
ao purismo da cultura enquanto exercício da forma inabalável, expressão do
absoluto.
No Brasil, a passagem da ideia de raça para a ideia de cultura foi
realizada por Gilberto Freyre em seu clássico Casa Grande & Senzala, de
1933. Ele busca, através da cultura, compreender o “caráter” nacional de seu
país, procurando entender o lugar das matrizes culturais e o papel central da
produção econômica nessa integração. No caso brasileiro, a noção da
produção cultural de nacionalidade criou o mito da “democracia racial”, ou seja,
a ideia de que no Brasil os brancos não teriam desenvolvido a consciência de
uma raça diferenciada e de que a miscigenação foi consentida e estimulada
170

desde o período colonial. Assim, teria sido forjada uma nação multirracial,
mestiça sem uma “linha de cor” discriminatória. Esse mito foi sendo construído
historicamente a partir do Estado Novo, como oposição ao totalitarismo racista
do nazifascismo.
A noção de democracia racial remete a um pacto político com o objetivo
de planificar a integração social no interior do Estado brasileiro. Nesse
processo, é excluída a possibilidade de uma diferenciação étnica na
participação no sistema político, direcionando essa identidade para o campo
“cultural”. Dessa maneira, caracteriza-se uma mestiçagem conservadora
própria da dominação colonial, já que anula qualquer possibilidade de efetiva
participação nas decisões políticas. Juntamente com essa ordenação de
caráter mais institucional, a “democracia racial” vem, paradoxalmente,
acompanhada da ideologia do branqueamento.
Com base nas teorias raciais europeias produzidas a partir da segunda
metade do século XIX, produziu-se a “solução à brasileira”, ou seja, uma forma
específica de racismo que ia no caminho contrário à tese científica de que a
miscigenação seria deteriorante. Nesse sentido foi formulada a doutrina do
branqueamento, que defendia que as raças inferiores seriam abrandadas ao se
miscigenarem com a raça branca superior. Nas palavras do historiador Thomas
Skidmore:
[A tese do branqueamento] baseava-se na presunção da superioridade branca,
às vezes, pelo uso dos eufemismos das raças 'mais adiantadas' e 'menos
adiantadas' e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata.
À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro, a população negra
diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a
suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças e a
desorganização social. Segundo, a miscigenação produzia 'naturalmente' uma
população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em
parte porque as pessoas procuravam parceiros mais claros do que elas (a
imigração branca reforçaria a resultante predominância branca)” (SKIDMORE,
1981, p. 81).

Um dos primeiros pensadores a tentar dar conta da mestiçagem cultural


como um processo que não está determinado pela questão racial foi o
antropólogo cubano Fernando Ortiz, que cunhou o conceito de transculturação.
Termo desenvolvido em seu livro Contrapunto cubano del tabaco y del
azúcar (1940), transculturação é o processo de transição de uma cultura para
outra a partir da emergência de novos fenômenos culturais antes inexistentes.
Ou seja, a transculturação seria um fenômeno próprio das culturas humanas.
171

Porém, na América Latina, a rapidez dessas transformações e seu caráter de


união de matrizes tão distintas e de maneira tão intensa teriam produzido
culturas em que essas diferentes fontes se expressariam simultaneamente e
em recíproca transformação, formando uma totalidade maior que elas.
É Importante notar a leitura original que Ortiz realiza do conceito de
aculturação do seu “mestre Malinovski”. Assim como Mariátegui e Carpentier,
Ortiz “devora” a realidade e a teoria produzida na Europa e as transforma de
acordo com seu lugar de latino-americano. Ortiz realiza uma releitura na qual
está presente aquilo que, no olhar eurocêntrico, está invisibilizado. Ou seja,
enquanto Mariátegui propõe um socialismo que inclui o índio latino-americano,
e Carpentier uma ontologia “maravilhosa” para além do surreal subjetivista,
Ortiz reivindica a capacidade de transformação do processo cultural em duas
vias e não somente o desaparecimento da cultura “dominada”.
A passagem ao estudo da cultura operado pelo conceito de
transculturação abria a possibilidade de encarar as identidades nacionais como
formas originais.
Os estudos dos processos de transculturação nas formações nacionais
da América Latina encontraram continuidade na obra do crítico literário
uruguaio Angel Rama, que levou a transculturação para o campo dos estudos
da literatura, criando o conceito de transculturação narrativa. Analisando
diferentes escritores latino-americanos – Arguedas, García Márquez e
Guimarães Rosa, entre outros –, Rama identifica operações transculturadoras
que, articuladas entre si, formam estratégias próprias de mestiçagem.
Realizando a migração do conceito de transculturação para a literatura
até tangenciar o fazer filosófico, Rama defende que há um perspectivismo
latino-americano na transculturação, na medida em que não há nenhuma
passividade nas culturas tradicionais, que são muito mais que um mero
conjunto de normas e costumes. Há na transculturação uma força que se
desenvolve segundo o marco histórico de experiências anteriores da cultura
tradicional, que, ao ser submetida, imprime sua dinâmica e seus traços
fundamentais no fenômeno cultural nascido desse tensionamento.
Fruto dessa complexa rede de relações sociais e de poder, as cidades
latino-americanas são, para Rama, o espaço maior dessa mestiçagem, que
busca, no código ilustrado da cidade, expressar tradições, memórias e
172

perspectivas que a vida na urbe tende a rechaçar. Dessa tensão constituída


entre tradicional e moderno, rural e urbano, oral e escrito, a cultura latino-
americana teria desenvolvido uma forma própria de entrar na modernidade.
No reconhecimento não só da especificidade, mas também da
grandiosidade das expressões culturais do continente, emerge a noção de que
é possível pensar uma ontologia a partir da América Latina, uma forma
específica de razão universal. A história e a cultura do continente se
desdobram em um conjunto de reflexões que tem no seu horizonte a relação
filosófica entre a particularidade e a totalidade: como, de uma perspectiva
latino-americana, se pode apreender a realidade?
Seguindo o movimento dinâmico do que estamos considerando como
dupla consciência histórica latino-americana, a partir dos anos 1950 começa-se
a pensar em uma subversão na tensão fundante da modernidade. A
mestiçagem descolonial-crítica, reiteradamente invisibilizada e de difícil
assimilação enquanto proposta alternativa de apreensão da totalidade, passa a
ser considerada como o possível eixo estruturador alternativo à colonialidade
do poder. A mestiçagem é então compreendida como uma perspectiva
universal de conhecimento.
É nesse contexto de surgimento de uma subversão epistêmico-política
na dupla consciência que se destaca a obra do cubano José Lezama Lima.
Lezama foi poeta e ensaísta, líder do grupo artístico-literário cubano que deu
origem à revista Orígenes (1944), cujo eixo central era a busca pela expressão
de uma cubanidade para além do momento que a ilha vivia. Para os
participantes de Orígenes, a expressão cultural de um povo deveria buscar, em
seu fundo ancestral, os enlaces ocultos que formam o sentimento de uma
nação.
Cuba, assim como os demais países do Caribe, vivia os efeitos tanto da
Segunda Guerra Mundial como da insidiosa influência do American way of life.
Como aponta o poeta Cintio Vitier, membro do grupo, a revista Orígenes nascia
como uma resposta ao “estupor ontológico” 45 que pairava na sociedade
cubana. É nesse contexto de alta desconfiança com os caminhos da história
que Lezama Lima escreve a obra A expressão americana. Nela, faz uma

45
Termo utilizado pelos artistas do grupo Orígenes para descrever a atmosfera cubana na
época.
173

interpretação da cultura continental que leva às últimas consequências a noção


de originalidade latino-americana. Ao mesmo tempo, critica o cânone filosófico
do eurocentrismo representado pelo historicismo de Hegel.
Em A expressão americana, Lezama parte de um confronto filosófico
sobre as concepções de evolução histórica desenvolvidas por Hegel na obra
Lições de filosofia da História e aquela que Lezama chamará de Era
Imaginária. Lembrando a teoria hegeliana, a história se desenvolve seguindo a
razão (logos) que, de forma dialética, move a história até o ponto culminante de
sua expressão, o Espírito Universal. Para Hegel, a história só deve levar em
consideração os povos que estiverem aptos a manifestar o Espírito Absoluto.
Ao historicismo hegeliano e sua razão (logos), que a tudo inclui sobre
seu manto unitário e que se move por sínteses – totalizações – completas,
Lezama contrapõe sua teoria da Imago, unidade fundamental da dinâmica
histórica. A Imago é um tecido poético regido por uma causalidade metafórica
que não obedece à linearidade histórica, mas sim à capacidade constante de
assimilação e recriação do fundo temporal mítico. Como explica Chiampi:

A essa concepção (hegeliana), Lezama pretende opor uma visão histórica


direcionada não pela razão – que só leva a um dever ser – mas por outro
logos: o logos poético. Daí a proposição de um contraponto de imagens –
atividade metafórica por excelência – que permite apontar o poder ser (o
Imago) e abranger, contrariamente ao logos hegeliano, a multiformidade do real
(CHIAMPI, 1980, p. 24).

Ou seja, segundo Lezama, em vez da causalidade historicista hegeliana,


se manifesta na América Latina uma constante regida pelo logos poético,
gerando assim uma outra forma de encadeamento e permanência histórica. A
“última das histórias possíveis”, ápice da compreensão humana sobre sua
existência e da realidade, seria então uma poesia feita de poesias, metáfora
maior que uniria as imagens – unidades síntese das diferentes culturas
humanas – através de uma poiesis demoníaca (CHIAMPI, 1980, p. 41), que
operaria assimilando as imagens que formariam o devir próprio de uma “era
imaginária”. Para além do encadeamento linear positivista ou das totalizações
do universalismo hegeliano, a poiesis demoníaca de Lezama seria própria de
uma racionalidade aberta às diferentes influências e transmigrações de
imagens, em diferentes tempos e momentos.
174

Como exemplo, Lezama compara a luta mítica dos deuses


cosmogônicos dos Popol Vuh (da cultura maia) com a guerra entre famílias que
anima todo o poema épico hindu Baghavagad Gita, assim como os combates
testemunhados por Marco Polo, em que a aura do maravilhoso sobressai nas
descrições. Para Lezama, em todas essas passagens estaria inscrita a busca
“ígnea” (CHIAMPI, 1980 p. 31) pela liberdade, o que inscreveria esses
diferentes conjuntos de imagens em uma mesma Imago, formador de uma Era
Imaginária. Ou seja, assim como seu contemporâneo Carpentier, Lezama
encontrava em diversas mitologias, obras de arte e acontecimentos de seu
tempo uma prova dessa relação “difícil, mas estimulante” entre ocorrências
desconexas, segundo o historicismo hegeliano, mas que, seguindo o logos
poético formador da Era Imaginária, encontraria uma lógica específica. Dessa
forma, seguindo essa poiesis demoníaca, o devir americano estaria sendo
constantemente reoriginalizado.
Para Lezama, enquanto no pensamento ocidental eurocêntrico
representado por Hegel a história seria redigida por um Espírito Absoluto, na
América haveria um Eros cognoscente (CHIAMPI, 1980 p. 32), princípio
imanente de incorporação e transformação próprio da expressão americana.
Para além da dialética evolutiva, haveria na América a manifestação de uma
lógica “tão dionisíaca quanto dialética”, ou seja, uma lógica que acrescentaria à
dialética hegeliana a história diversa de diferentes povos e suas memórias
históricas, seu universo mítico-simbólico e suas formas de produção e
reprodução da vida cotidiana. Isto é, uma “dialética dos sentidos”, em que
estariam expressos modos de vida dos povos originários, dos negros e dos
mestiços do continente, assim como a tradição de povos do Oriente como
persas, hindus e chineses. Essa capacidade de assimilar e realizar uma
bricolagem constante das mais variadas tradições e manifestações – do
cotidiano às mais sofisticadas formas artísticas – se sintetiza na ideia da
existência de um “protoplasma incorporativo” (CHIAMPI, 1980, p. 181), que
participa da própria ontologia do homem e da realidade americana.
Dessa forma, Lezama Lima cria um rico mosaico reflexivo em torno do
pensamento mestiço latino-americano. O “protoplasma incorporativo”, essa
índole antropofágica inerente ao Eros cognoscente, cria uma perspectiva de
conhecimento própria. Na história regida por Hegel, Lezama encontra o ápice
175

da metafísica eurocêntrica ocidental em seu desdobramento em uma


enteléquia propriamente germânica, voltada para o estudo dos a priori. Já
naquilo que ele chama de espaço gnóstico americano, a imanência está
presente como centro irradiador das imagens que formam a poesia do mundo.
A cultura latino-americana ganha, pelo pensamento de Lezama Lima, o
lugar de expressão de uma racionalidade própria porque poética, suplantando
assim, as limitações da dialética hegeliana, atada a uma metafísica idealista.
Nesse sentido o escritor cubano inscreve a mestiçagem em um novo
patamar no interior da tensão constituinte da dupla consciência histórica latino-
americana, que propõe uma universalidade com base em uma ontologia
mestiça, invertendo o lugar de submissão do universo cultural latino-americano
que, para Lezama, passa a ser referência para uma filosofia intercultural. A
essa subversão de consciência, Lezama chama de contraconquista, ou seja, é
uma reviravolta em que o conquistado – o colonizado, o oprimido – emerge da
invisibilidade e incorpora o conquistador, passando a ser a referência
hegemônica da consciência social.

A categoria filosófica da libertação


A Filosofia da Libertação
Com a obra dos cubanos José Lezama Lima e Alejo Carpentier, se
delineia com maior nitidez o caráter específico da cultura latino-americana e da
investigação filosófica sobre o continente. Porém, é somente a partir das
décadas de 1960 e 1970 que essa singularidade adquire a forma de uma
filosofia propriamente latino-americana. Nesse sentido, é decisiva e
incontestável a influência da Revolução Cubana.
A Revolução liderada por Fidel Castro foi o principal acontecimento da
América Latina durante o período da Guerra Fria, servindo de estrela guia para
o conjunto das forças de esquerda do continente. Ao reconhecimento da
originalidade cultural diante da Europa e dos Estados Unidos (ethos barroco) e
de suas múltiplas formas de resistência (mestiçagem descolonial-crítica), junta-
se a possibilidade de emancipação diante do domínio colonial, responsável
pela pobreza da região. É nesse contexto que surge a Filosofia da Libertação.
176

A primeira referência a uma filosofia autenticamente latino-americana foi


realizada pelo filósofo argentino Juan Bautista Alberdi, que defendia a
elaboração de uma filosofia americana que emergisse das “nossas
necessidades”.
Outro marco fundamental da Filosofia da Libertação é a publicação, em
1968, da obra Existe una filosofía de nuestra América?, do peruano Augusto
Salazar Bondy. Segundo esse pensador, a questão que deve nortear uma
filosofia propriamente latino-americana é a autenticidade da cultura da “nossa
América”. Ou seja, é necessário que a nossa realidade social supere uma
situação de inautenticidade cultural ou, em suas palavras, que a América Latina
deixe de ser uma “cultura de dominação”.
Outra contribuição essencial para o desenvolvimento de uma Filosofia
da Libertação é o livro La filosofía americana como filosofía sin más, do
mexicano Leopoldo Zea, publicado em 1969. Segundo ele, a autenticidade da
filosofia americana está no modo como ela veio se apropriando –
“antropofagizando” – do pensamento eurocêntrico. Assim, a filosofia latino-
americana se preocupou, desde o início, com questões histórico-culturais
concretas, produzindo dessa forma uma filosofia autêntica. Para esse autor, ao
assumir nossa condição específica, necessariamente entraremos em contato
com nossa condição concreta de dominados e, reconhecendo-a, nos daremos
conta da necessidade de libertação.
As reflexões em torno da libertação latino-americana também sofreram
influência de outros contextos, além do território latino-americano. Assim como
ocorria na América Latina, na África dos anos 1960 e 1970 houve um
movimento de construção de uma filosofia enraizada no contexto histórico-
social do continente, levando em conta principalmente as transformações
profundas advindas do processo de descolonização de diferentes países
africanos. A dupla consciência, o mimetismo cultural e a relação de alteridade
que funda uma racionalidade distinta do logos eurocêntrico são temas que
também estão presentes em autores que refletem sobre o contexto africano,
influenciando de maneira determinante o debate latino-americano. Desse
conjunto de autores, destaca-se Frantz Fanon, psiquiatra e ensaísta que
dedicou sua vida à luta anticolonial. Atuou na Frente de Libertação Nacional, da
Argélia, e foi um ativo defensor do pan-africanismo. Em sua obra, Fanon faz
177

uma acurada análise dos processos subjetivos que envolvem a condição


colonial, tanto do colonizador como do colonizado. Para ele, diante da
consciência da opressão colonial que se impõe sobre a vida do colonizado, a
opção deste é se rebelar, conhecendo e construindo, assim, seu processo de
libertação. Para ele, a condição dupla da existência colonial só é superada
quando concretizada a descolonização, processo histórico, político,
intersubjetivo e que liberta, porque atinge a base da estrutura de dominação, a
relação colonial. Como explica Horacio Cerutti:

Através da percepção da influência da filosofia africana e do seu pensamento


descolonizador na Filosofia da Libertação latino-americana, torna-se clara a mútua
influência entre os termos libertação e descolonização. Se na América do século XIX o
termo libertação deu contorno às lutas independentistas do continente, a partir do século
XX ela participa diretamente da crítica à continuidade da estrutura colonial no continente
e se nutre também dos ideais da luta pela descolonização dos países africanos. Por
outro lado, o termo libertação está muito presente nas obras de Fanon e outros filósofos
africanos do século XX, assim como em movimentos nacionais que utilizam o termo
libertação em seus nomes, manifestos e declarações. Leopold Zea, um dos principais
formuladores da Filosofia da Libertação, remete-se diversas vezes à obra de Fanon e
sua relação com a libertação (CERUTTI, 1992, p. 162).

Porém, apesar das múltiplas convergências em torno da crítica ao


eurocentrismo em suas mais diferentes dimensões e da proximidade em torno
da questão colonial e da identidade subalterna, o percurso histórico da América
Latina deu origem a formas bastante específicas de resistência, que vieram
tecendo uma perspectiva própria de libertação.
Junto com a Filosofia da Libertação, surgiram a Pedagogia da
Libertação, a Sociologia da Libertação, além da Psicologia da Libertação e da
Teologia da Libertação, a área em que a categoria da libertação ganhou maior
ênfase.
A obra do educador brasileiro Paulo Freire é reconhecida como a
expressão de maior relevância da Pedagogia da Libertação. Destacam-se os
livros Educação como prática de liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido,
escrito em 1968 no exílio do autor em Santiago (Chile). Na pedagogia de Paulo
Freire, podemos notar nitidamente a ideia de dupla consciência social e a
tensão que nela existe:

Pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele,
enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto de
reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta
por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.
178

O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o


opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da
pedagogia de sua libertação (FREIRE, 2018, p. 43).

Já na sociologia, o termo Sociologia da Libertação foi proposto por


Orlando Fals Borda, sociólogo colombiano, que escreveu:

Um desses campos novos para sociologia seria, sem dúvida, a libertação, ou


seja, o uso do método científico para descrever, analisar e aplicar
conhecimento para transformar a sociedade, mover o eixo da estrutura de
poder e de classes colocando em marcha todas as medidas que conduzam a
uma satisfação mais ampla do povo (BORDA, 1970, p.1-2).

A Psicologia da Libertação
Estreitamente ligada à Pedagogia da Libertação de Paulo Freire, assim
como à Sociologia da Libertação de Fals Borda, a Psicologia da Libertação é
elaborada, a partir dos anos 80, por Ignacio Martín-Baró. Fazendo uma crítica à
ideia de universalidade defendida principalmente pela psicologia social norte
americana, Martín-Baró constrói uma psicologia social que afirma a
possibilidade de o sujeito oprimido, a partir de uma práxis libertadora,
protagonizar um processo de transformação social. Dessa maneira, ele supera
seu lugar de subalternidade e, em última análise, a desigualdade presente na
estrutura social dos países latino-americanos.
Ignacio Martín-Baró nasceu em 1942 em Valladolid, Espanha, e
ingressou na Companhia de Jesus em 1959, transferindo-se para El Salvador
no mesmo ano. Em 1966, já formado em filosofia e ordenado padre, passou um
período em Frankfurt e depois em Chicago, onde fez mestrado e doutorado em
psicologia social. Em seus primeiros artigos e trabalhos, mostra um claro
pendor à linha existencialista. Com o tempo, passa a incorporar o marxismo e a
psicanálise em seus estudos. Mas é nos estudos dedicados à Teologia da
Libertação e aos pensadores latino-americanos críticos das ditaduras e
defensores da libertação popular que o autor encontra os fundamentos de sua
teoria. Voltados à análise histórica das condições psicossociais dos países da
América Central, os escritos de Martín-Baró ressaltam sempre o movimento
incessante do real e suas raízes estruturais. Como explica o psicólogo costa-
riquenho Ignacio Dobles:
179

Ignacio Martín-Baró, no melhor sentido da palavra, segue sendo radical porque


abordou os problemas normalmente ignorados pelo saber científico e
acadêmico, por sua perspectiva situada e seu compromisso ético-político.
[Ignacio] procurou ir até a raiz dos fenômenos, discernindo não só as
manifestações individuais e empíricas que podem ser lidas a partir do
psicossocial, mas também suas condicionantes estruturais (DOBLES, 2016,
p.23).

Entre as temáticas mais abordadas por Martín-Baró em seus textos


estão as condições psicossociais da emergência de regimes políticos ditatoriais
na América Central, assim como o terror psicológico arquitetado como
metodologia de controle social. Segundo o autor, para entender como se torna
possível a “concretização e naturalização” de uma sociedade de controle e
extremamente autoritária como aquelas sob regime ditatorial, temos de
entender como se entrelaçam três instituições fundamentais de nossa
sociedade: a família, a escola e a moral (MARTÍN-BARÓ, 1988).
A família, desde seu tradicional recorte patriarcal, expressa, através de
suas atitudes, padrões dicotômicos em que o pai aparece sempre como
machista, autoritário e desligado das atividades domésticas. A mãe, de modo
complementar, aparece como submissa ao poder do pai, trabalhadora do
âmbito doméstico da vida, mais voltada a valores afetivos de proteção e pouco
punitivos com os filhos. Estrutura base da família patriarcal, essa dinâmica
produz um ambiente psicossocial de insegurança e imaturidade emocional,
sendo, portanto, mais propício à dominação e à dependência. A partir dessa
configuração, cria-se a mitificação racionalizadora, ou seja, o conjunto de
representações que se tornam a “verdade natural” da vida. É nesse contexto
que emerge a figura paterna como o “pai irresponsável” enquanto a mãe
aparece como a “santa mãezinha”
A segunda instituição que é apresentada por Martín-Baró é a escola,
com sua estrutura bancária, (FREIRE, 2018) vertical e seletiva. Baseado nos
estudos de Paulo Freire, Martín-Baró explica como a escola produz sujeitos
altamente competitivos, que tendem a considerar seus colegas como rivais,
levando consequentemente a um extremo individualismo. A escola ensina a
criança a aspirar à vitória sobre todos os outros como objetivo constante. Há
também uma verticalidade inerente a essa forma de instituição escolar, que
produz passividade fatalista e sem historicidade crítica. Concretizada como
verticalidade seletiva e imposição dogmática derivadas de uma determinação
180

socioeconômica, essas práticas naturalizam as noções de “homem de sucesso”


e de superioridade intelectual de uma classe sobre outra, inferiorizando as
pessoas das classes subalternas e submetendo-as a um padrão de poder
desigual.
A moral é responsável pelo conjunto de normas de comportamento que
regem a sociedade. Para Martín-Baró, o autoritarismo e o individualismo
produzem o fatalismo, uma das principais características das sociedades
dominadas da América Latina. O fatalismo é aquele conjunto de posturas e
atitudes que reproduzem a noção de que algo é inevitável. A compreensão
fatalista da existência está presente em amplos setores da sociedade latino-
americana, podendo ser caracterizada como uma atitude básica diante da vida,
uma matriz de atitudes (MARTÍN-BARÓ, 1988). Essa configuração coloca em
evidência uma maneira de se relacionar consigo mesmo de forma muito
depreciativa, produzindo comportamentos de resignação e impotência.
Além de elencar as três esferas sociais que estão na base das
sociedades autoritárias da América Latina e se deter em cada uma delas,
Martín-Baró também elaborou o conceito de trauma psicossocial, um conjunto
de efeitos psicossociais que atingem as sociedades que sofrem ditaduras,
guerras civis e processos intensos de violência política. O trauma psicossocial
refere-se à análise dos sintomas psíquicos da violência política que se
expressam em uma determinada população, em um grupo ou em indivíduos. A
prática da violência política em uma determinada sociedade tende a converter-
se em um fenômeno totalizador, que se sobrepõe às esferas econômica e
cultural dessa sociedade. Como resultado, a violência política gera um conjunto
de prejuízos individuais e coletivos em diferentes dimensões, caracterizados
como sintomas psicossociais, que são a “cristalização traumática nas pessoas
e nos grupos das relações desumanizadas” (MARTÍN-BARÓ, 1984, p 123).
Ou seja, há uma série de impactos psicossociais negativos que se
manifestam diferentemente nos indivíduos e grupos socioculturais a partir das
experiências advindas da desumanização causada pela violência política. O
trauma psicossocial é justamente o conjunto de impactos psicossociais que se
expressam no grupo ou na sociedade afetada em sua totalidade. Para
identificar o trauma psicossocial e seus efeitos, é preciso ressaltar dois
aspectos básicos:
181

a) O prejuízo que afeta as pessoas foi produzido socialmente, ou seja, suas


raízes não se encontram no indivíduo e sim na sociedade.
b) Que essa sua natureza se mantém e se alimenta nas relações entre o
indivíduo e a sociedade através de diversas mediações institucionais, grupais
e, inclusive, individuais. (MARTÍN-BARÓ, 1984, p.124).

O trauma psicossocial é um processo que está inserido nos diferentes


níveis de relações sociais de um grupo. Portanto, para compreendê-lo é
preciso averiguar sua manifestação tanto na dimensão individual como na
dimensão coletiva.
Para além da compreensão dos fenômenos psicossociais que afetam as
sociedades latino-americanas atingidas pela violência apolítica, Martín-Baró se
dedicou a pensar formas pelas quais as massas populares podem superar
essa condição de opressão.
Um dos conceitos chaves levantados pelo psicólogo salvadorenho para
alcançar essa superação é a recuperação da memória histórica. Para o
pensador, devido à violência social e à dificuldade cotidiana em garantir o
sustento, forma-se uma autoimagem negativa, individual e coletiva, nas
populações exploradas da América Latina É nesse contexto que se desenvolve
um sentimento de “fatalismo conformista”, produzindo desesperança e
descrença na possibilidade de transformação das condições opressoras.
Diante de um presente massacrado e alienante, torna-se muito difícil conseguir
reconhecer seu próprio passado e vislumbrar um projeto de futuro. É diante
desse contexto que Martín-Baró, a partir da reflexão do sociólogo colombiano
Fals Borda – que defende a descoberta dos elementos críticos presentes na
memória coletiva dos povos –, desenvolve sua noção de memória histórica:

Trata-se de recuperar não só o sentido da própria identidade, não só o orgulho


de pertencer a um povo, mas também de contar com uma tradição e uma
cultura. Trata-se, sobretudo, de resgatar os aspectos que serviram ontem e que
servem hoje para sua libertação. Por isso, a recuperação de uma memória
histórica supõe a reconstrução de um modelo de identificação que, em lugar de
aprisionar e separar os povos, abra seu horizonte até sua libertação e
realização (MARTIN-BARÓ, 1986).

Dessa forma, para Martín-Baró, é através da recuperação e da


ressignificação da memória histórica da população oprimida que é possível
182

efetivar processos de enfrentamento da opressão e da violência nos contextos


de violência dos países latino-americanos.
Outro conceito importante na obra de Martín-Baró é a conscientização.
Conceito muito criticado, a conscientização ganha, a partir da perspectiva da
memória histórica, um caráter de ressignificação das experiências vividas,
abandonando-se a ideia de “ganho” de consciência. Para Martín-Baró, a
conscientização ou desideologização é o processo de retomada da trajetória
histórica por parte das massas oprimidas. Segundo ele, a partir dessa
retomada, as três esferas de dominação (família, escola e moral) passam a ser
questionadas criticamente. Inicia-se então um processo de desconstrução das
“verdades naturalizadas”, o que resulta em uma retomada histórica do
protagonismo popular e das referências que legitimam a luta popular A
incorporação real e políticas das massas populares oprimidas – e
principalmente de seus saberes – é uma das chaves do pensamento do
psicólogo salvadorenho. Segundo Martín-Baró:

A conscientização supõem três aspectos essenciais:


O ser humano transforma-se ao modificar sua realidade. Trata-se, por
conseguinte, de um processo dialético, um processo ativo que,
pedagogicamente não pode acontecer através da imposição, mas somente
através do diálogo.
Mediante gradual conscientização de seu mundo, a pessoa capta os
mecanismos que oprimem e desumanizam, com o que se derruba a
consciência que mistifica essa situação como natural e abre o horizonte para
outras possibilidades de ação. Essa consciência crítica ante a realidade
circundante e ante os outros traz, assim, a possibilidade de uma nova práxis,
que possibilita novas formas de consciência.
O novo saber da pessoa leva a um novo ser sobre si mesma e sobre sua
identidade social. A pessoa começa a se descobrir em seu domínio sobre a
natureza, em sua ação transformadora das coisas, em seu papel ativo em
relação às demais. Tudo isso lhe permite não só descobrir as raízes do que é,
mas também o horizonte do que pode chegar a ser. Assim, a recuperação de
sua memória histórica oferece a base para uma determinação mais segura
sobre seu futuro (MARTÍN-BARÓ, 1988).

Dessa maneira, podemos afirmar que a atuação do psicólogo social


junto às populações que estão submetidas a diferentes formas de opressão
deve consistir em ações de caráter político e emancipador. Tentando resumir o
conjunto de ações que Martín-Baró aponta nos seus onze livros e inúmeros
artigos, Adolfo Pizzinato escreve:
183

- Essas atividades [do psicólogo], devem dedicar-se ao apoderamento de


grupos desfavorecidos, a fim de que eles possam reclamar seus direitos e
defender seus interesses de forma não assistencializada.
- Revitalizar as práticas comunitárias.
- Conscientização, a fim de produzir e compreender como se geram as formas
de consentimento tácito às práticas sociais opressoras e o conformismo que
leva à aceitação das hegemonias.
- Denunciar a injustiça social.
- Fomentar formas de resistência organizada e de luta contra os modelos
dominantes e opressores de ciência, de saúde mental, de orientação sexual, de
relações de gênero, de linguagem, etc.
- Promover o controle de sua situação de vida nos grupos oprimidos
(PIZZINATO, 2010, p. 46).

Considerando essas reflexões sobre o contexto de dominação próprio do


continente latino-americano, assim como o conjunto de ações constituídas que
enfrentam essa condição de subalternidade, entendemos ser a psicologia da
libertação de Martín-Baró um convite a uma práxis que esteja ao lado dos
povos em suas demandas e em suas formas próprias de organização. O
caminho da libertação, enquanto tarefa indisciplinar e surgida da memória
popular e coletiva, é a ”luz diferente” (DOBLES, 2016. p.215) que Martín-Baró
trouxe para a ciência psicológica do continente:

Em Martín-Baró, se evidenciou um enorme respeito pelas tentativas de


organização que foram formuladas e armadas desde abajo para apontar outros
mundos possíveis. [...] Tudo isso feito com muito rigor metodológico técnico e
conceitual e com aprofundamento (ir à raiz), buscando contribuir com as tarefas
de transformação social, colocando em tensão o saber e a instrumentalização
da psicologia (DOBLES, 2016, p.214).

A Teologia da Libertação
Movimento religioso que ganhou corpo no interior da Igreja católica
latino-americana, a Teologia da Libertação surgiu após a publicação, no final
dos anos 1960, de várias obras teológicas que continham como elemento
comum uma reinterpretação da fé cristã, a partir de um diálogo com o
pensamento laico das ciências sociais. Essa aproximação já vinha sendo
realizada desde 1962, quando o Concílio Vaticano II 46 propôs reformas na
Igreja católica que direcionavam o pensamento teológico para uma relação
mais aberta com diferentes formas de pensamento, afirmando assim a
contemporaneidade e a sensibilidade histórica da Igreja.
46
Como lembra Löwy (2000), é extremamente simbólico o fato de o chamado oficial do papa
para o Concílio Vaticano II ocorrer em janeiro de 1959, justamente o período de entrada das
tropas revolucionárias comandadas por Fidel Castro para tomarem Havana e iniciarem o
governo revolucionário de Cuba.
184

Outro fator histórico importante foi a realização da II Conferência Geral


do Episcopado Latino-americano em Medellín, Colômbia, em 1968. Seu
objetivo expresso era trazer para a realidade latino-americana os ensinamentos
do Concílio Vaticano II. De acordo com dom Antônio Fragoso, então bispo de
Crateús (Ceará), o encontro de Medellín foi “um esforço de latino-americanizar
o Concílio Vaticano II, uma busca de rosto de Igreja mais encarnada e de um
pluralismo eclesial em gestação”. Dom Fragoso afirma ainda que a Conferência
procurou “olhar a Igreja desde o lugar social dos meios populares (indígenas,
afro-americanos, camponeses, ‘empobrecidos’) e convocar os cristãos a uma
ação pastoral transformadora” (BEOZZO, 2017, p. 21).
Para alcançar esses objetivos, A Conferência de Medellín propôs uma
série de mudanças de caráter pastoral, apontando para uma ação baseada no
método Ver-Julgar-Agir, desenvolvido desde a década de 1920 pela Ação
Católica (movimento progressista com forte participação do cristianismo laico,
voltado para a transformação social). Ou seja, os membros da Igreja partiriam
da observação da realidade latino-americana, fariam a seguir uma avaliação à
luz dos princípios cristãos e, por fim, empreenderiam as ações necessárias à
modificação dessa realidade.
A partir Conferência de Medellín, a dogmática abstrata que caracterizava
a conduta de setores conservadores da Igreja perdia espaço para uma análise
e uma ação mais voltadas ao combate das injustiças sociais do continente.
Essa atitude aparece claramente já na Mensagem aos Povos da América
Latina, divulgada ao final da Conferência:

A América Latina parece viver ainda sob o signo trágico do


subdesenvolvimento que não apenas afasta nossos irmãos do gozo dos bens
materiais, mas de sua própria realização humana. Apesar dos esforços
realizados, conjugam-se a fome e a miséria, as enfermidades generalizadas e
a mortalidade infantil, o analfabetismo e marginalidade, profunda desigualdade
das rendas e tensões entre as classes sociais, surtos de violência e escassa
participação do povo. [...] (BEOZZO, 2005, p. 18).

Entre as obras consideradas como marcadores iniciais da Teologia da


Libertação estão: Teologia da Libertação (1970), do peruano Gustavo
Gutierrez; Jesus Cristo libertador (1972), de Leonardo Boff e Teologia desde
185

uma práxis libertadora (1973), de Hugo Assmann – ambos brasileiros – e A


libertação da Teologia (1975), do uruguaio Juan Luis Segundo.47
Um dos traços mais marcantes da Teologia da Libertação foi a sua
estreita aproximação com o marxismo. Diversamente dos demais filósofos da
libertação, não foram os temas da identidade e do processo histórico-cultural
que levaram os teólogos da libertação a se aproximarem da questão social
latino-americana. Esse “notório descuido” da Teologia da Libertação com a
tradição latino-americanista se deve ao fato, segundo Raúl Fornet-Betancourt,
da formação essencialmente eurocêntrica nos centros eclesiais. Por outro lado,
há uma clara procura dos teólogos da libertação pelas mediações teóricas das
ciências sociais, que apresentavam propostas efetivas para a superação da
pobreza e da exploração da maioria da população mundial.
A influência marxista na Teologia da Libertação pode ser justificada por
duas vertentes. A primeira é a teoria da dependência, que surge como uma
formulação crítica ao etapismo economicista, que defendia que o
subdesenvolvimento econômico da América Latina – seu “atraso” – seria fruto
da condição agrário-exportadora dos países e de seu passado feudal pré-
capitalista. Para os pensadores da teoria da dependência, contudo, o que havia
era uma subordinação dos países periféricos aos países centrais, que
usufruíam dessa relação de desigualdade para manterem seu nível de
desenvolvimento. Ou seja, havia uma relação de “dependência” estrutural das
economias subdesenvolvidas às desenvolvidas, impedindo a possibilidade de
um caminho nacional-democrático para o desenvolvimento social 48. Essa
relação, além de ocorrer entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, se
reproduzia também em nível interno e regional nos países subdesenvolvidos,
em escala local, perpetuando a lógica de desenvolvimento do capitalismo

47
Outros teólogos da libertação importantes foram Ignacio Ellacuría (El Salvador), Enrique
Dussel (Argentina-México), Ronaldo Muñoz (Chile), Frei Betto (Brasil) e Joseph Comblin
(Bélgica-Brasil).
48
Assim como ocorreu na Filosofia da Libertação e na Teologia da Libertação, na teoria da
dependência existem inúmeros matizes na aproximação com a teoria marxista. Em sua
corrente mais radical – em que estão Ruy Mauro Marini, Andre Gunder Frank e Aníbal Quijano
– é claramente defendida a necessidade de uma revolução socialista para responder ao
subdesenvolvimento e à dependência. No caso da Filosofia da Libertação, temos Augusto
Salazar Bondy, Raul Fornet-Betancourt, Enrique Dussel como importantes nomes dessa
corrente mais radical. E, na Teologia da Libertação, Gustavo Gutierrez – leitor atento de
Mariátegui –, Ignacio Ellacuría e Frei Betto. Para estes pensadores, a revolução socialista é
vista como um dado incontornável para o fim das desigualdades sociais do continente latino-
americano.
186

dependente. Além da dependência, outras categorias relacionadas se


somaram a essa teoria. As noções de subdesenvolvimento (Andre Gunder
Frank), colonialismo interno (Pablo Gonzalez Casanova) e marginalidade
(Aníbal Quijano) são desdobramentos da noção de dependência.
A segunda vertente está relacionada aos teóricos marxistas,
especialmente Ernst Bloch, com um conjunto de reflexões sobre a utopia, e
Herbert Marcuse, com seus escritos sobre a libertação. Ernst Bloch criou a
ideia do princípio esperança, um estado de “ainda não” – uma espera – que
alimenta a constante expectativa humana em um mundo que se realizará,
abrindo assim o espaço da utopia na vida social do presente e impulsionando a
luta pela revolução socialista.
O pensamento de Marcuse foi muito utilizado pela Teologia da
Libertação, graças às suas reflexões sobre a sociedade industrial e do
entretenimento, em que a questão da libertação ocupa um lugar central.
Marcuse constrói uma análise cuidadosa da produção social dos indivíduos
através da lógica do consumo e pelo controle ideológico da sociedade do
capital49. Relacionando a teoria marxista com o pensamento freudiano,
Marcuse desenvolve reflexões que buscam compreender como a consciência e
a individualidade são sufocadas pela mass media e quais as possibilidades de
libertação que, dialeticamente, se abrem nesse processo.
Frontalmente críticos ao Diamat50 soviético, Bloch e Marcuse foram renegados
por parte dos marxistas latino-americanos, muito ligados ao marxismo ortodoxo. As
relações entre Teologia da Libertação e marxistas latino-americanos muitas vezes
expressou a animosidade entre essas tendências do campo marxista, o que ampliava
ainda mais a tensão já existente entre a religiosidade cristã e o ateísmo comunista.
Juntamente com as contribuições do pensamento crítico marxista, a
Teologia da Libertação se caracterizou por uma renovada análise e
interpretação de categorias centrais do pensamento teológico. Dessa forma, as
49
É nesse contexto da sociedade industrial do pós-guerra que Horkheimer (1989) vai cunhar o
termo razão instrumental. Segundo este estudioso da Escola de Frankfurt, a razão instrumental
seria esse processo intersubjetivo de produção do conhecimento dominado pela noção de
finalidade e controle absoluto da natureza. Para Quijano (1988), a razão instrumental surge a
partir do domínio comercial inglês sobre os mercados europeus. Segundo o sociólogo peruano,
contraposta a ela estaria a razão histórica, oriunda das utopias por liberdade, fraternidade e
igualdade, inspiradas a partir da vida autóctone ameríndia. Nesse sentido, a razão instrumental
– um como princípio – seria copertencente à razão histórica – dois como totalidade –,
realizando-se, assim, o tensionamento entre os termos de uma dupla racionalidade.
50
Termo que identifica o materialismo dialético, que se tornou a filosofia oficial da antiga União
Soviética.
187

escrituras deveriam ser interpretadas segundo um método histórico crítico, ou


seja, tratadas como um texto produzido a partir da interpretação de uma
determinada comunidade humana sobre os fatos de sua época.
A vida de Jesus e os acontecimentos narrados nas escrituras seriam o
resultado desse conjunto de interpretações sobre a vida dos seres humanos e
sobre acontecimentos concretos e não como a “verdade revelada nos textos”.
Nesse sentido, Jesus é visto como um homem histórico que viveu em um
contexto de extrema opressão e que ilumina – com sua conduta contra a
opressão e a injustiça de seu tempo – a vida dos oprimidos da América Latina.
Já no caso da noção de pecado, a grande renovação da Teologia da
Libertação é a ideia de pecado estrutural. Nessa acepção, a noção de pecado
estaria diretamente ligada à realidade de injustiça social. Já a ideia de salvação
passa a ser lida como a libertação histórica daqueles que sofrem por serem
vítimas de um sistema no qual impera a injustiça social.
A partir dessas leituras, surge o mote que sintetiza o conjunto de
reflexões e práticas da Teologia da Libertação, a “opção preferencial pelos
pobres”, que representa o centro nevrálgico da afinidade eletiva da Teologia da
Libertação com o pensamento marxiano, como escreve Löwy:

Para eles (os teólogos latino-americanos), os pobres já não são basicamente


objeto de caridade e sim agentes de sua própria libertação. A ajuda ou
assistência paternalista é substituída pela solidariedade com a luta dos pobres
por autoemancipação. Aqui é que se estabelece a conexão com o princípio
político marxista fundamental: a emancipação dos trabalhadores será obra dos
próprios trabalhadores (LÖWY, 2000, p. 123).

Dessa forma, teologia cristã e marxismo se conjugam na constituição de


um cristianismo da libertação.

Descolonização e filosofia intercultural crítica


Um importante pensador da Teologia da Libertação é Enrique Dussel,
que defende a necessidade de desenvolver uma filosofia intercultural que seja
capaz de incluir as diferentes memórias históricas invisibilizadas pelo projeto
colonial-mercantil-capitalista. Ou seja, é preciso reconhecer no universo da
história mundial quais são os fluxos culturais e as múltiplas construções sociais
188

que vieram se combinando e formando a real heterogeneidade presente na


cultura popular Como explica Dussel:

O povo, como o conjunto orgânico das classes, etnias e outros grupos


oprimidos, como "bloco social", é o sujeito histórico da cultura mais autêntica, a
cultura popular latino-americana. Ela vem de longe, da época em que os
primeiros asiáticos atravessaram o estreito de Bering, e continuará adiante. Em
todas as mudanças, em todos os processos de libertação, esse povo se
expressa de alguma maneira, mas hoje, mais do que nunca no passado, esse
povo cresce e se afirma (DUSSEL, 1997, p. 190).

Para Dussel, a cultura popular é a detentora desse conjunto de saberes


que remontam a diferentes memórias históricas, em suas distintas
racionalidades, constituídas ao longo dos séculos de opressão. É necessário
partir dessa realidade para que se possa construir uma práxis libertadora
autêntica, na qual fique explícita a heterogeneidade e a densidade cultural-
filosófica do povo latino-americano.
Dessa forma, nos anos 1960, 1970 e 1980 do século XX, a ideia de uma
revolução socialista com base na especificidade histórico-cultural do continente
ganha um novo contorno. A ideia de libertação, contraponto à ideia de
dependência, expressa essa possibilidade.
O processo de erosão que culmina com o fim da antiga União Soviética
no final dos anos 1980 explicitou a necessidade de debater de maneira crítica –
e autocrítica, principalmente – os caminhos tomados hegemonicamente pelo
projeto socialista. Sobre diferentes aspectos, surgiram críticas e denúncias ao
bloco socialista, evidenciando a racionalidade instrumental própria dos regimes
burocráticos centralizados e de seu aparato de controle e homogeneização da
sociedade. Um dos desdobramentos dessa política é a submissão das
diferentes matrizes étnicas e nacionais em uma mesma identidade, muitas
vezes ignorando suas diferenças, produzindo invisibilidade, de um lado, e
conflitos étnicos de diferentes ordens, de outro.
Nesse sentido, após a queda do muro de Berlim, em 1989, abre-se um
novo ciclo no debate sobre a diversidade cultural e seu lugar no interior do
pensamento crítico. No centro da questão estão o papel do Estado-nação na
opressão das diferentes minorias e a maneira de repensar suas práticas
políticas a partir da legitimação dessa diversidade e de sua demanda por
participação. Há também uma ascensão de movimentos sociais de caráter
189

étnico, racial e de gênero, evidenciando a matriz colonial e patriarcalista do


Estado-nação moderno.
Por outro lado, o fim da União Soviética é o marco do fim da bipolaridade
da Guerra Fria e do início de um processo de mundialização do capital em sua
forma neoliberal. Nessa nova etapa do capitalismo, há um claro interesse no
enfraquecimento das fronteiras dos Estado-nação e no fortalecimento de
identidades minoritárias, como estratégia de desmonte e fragmentação de
instituições de controle ao fluxo de capital, inaugurando o que Fredric Jameson
(2007) chamou de lógica cultural do capitalismo tardio.
É nesse contexto que, a partir do final dos anos 1990, se inicia o debate
sobre a descolonização da América Latina. Essa é a década em que ocorreu a
penetração do capitalismo neoliberal no continente, via Consenso de
Washington51, e o consequente agravamento das desigualdades sociais dos
países da região.
Impulsionada principalmente pela chegada de Hugo Chávez à
presidência da Venezuela (1998) 52, pela eleição de Evo Morales na Bolívia
(2005) e de Rafael Correa no Equador (2006), a ideia de descolonização do
continente latino-americano não é nova. Ela remonta diretamente aos
processos de independência de todo o continente e, principalmente, à figura de
Simón Bolívar, El Libertador. Mais tarde, a partir da emergência filosófica da
categoria da libertação, a descolonização, termo utilizado no processo de luta
anticolonial dos países africanos, exerce também clara influência nos filósofos
da libertação latino-americanos. Ou seja, o termo descolonização guarda uma
profunda relação com a categoria da libertação.
Porém, apesar dessas semelhanças estruturais, há um novo elemento
que distingue a categoria da descolonização latino-americana: uma ênfase
maior nas relações de poder que se configuram através das identidades

51
Consenso de Washington é um receituário formulado por instituições financeiras sediadas na
capital dos Estados Unidos, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Segundo tal receituário, o Estado deve se retirar da economia, abandonando assim a regulação
do mercado e abrindo as fronteiras para a livre circulação das mercadorias.
52
Chávez assumiu a presidência da Venezuela afirmando que seu governo continuaria a obra
de El Libertador, Simón Bolívar, promovendo a integração regional, a educação para toda a
população e, talvez a bandeira mais forte do bolivarianismo, a realização de um governo anti-
imperialista. A declarada e publicizada intenção do governo Hugo Chávez de se realizar como
uma continuidade do legado de Bolívar explicita claramente o lugar da memória histórica da
Libertação e do latino-americanismo, que continua presente no pensamento crítico do
continente.
190

culturais relacionadas a raça e etnia 53. Nesse sentido, se nos anos 1960, 1970
e 1980 a teoria da dependência e a teologia de raízes latino-americanas
exercem papel central na formulação da libertação, a partir dos anos 1990,
tanto os militantes como os estudiosos das ciências sociais e da teologia
passam a dar maior ênfase à noção de dominação cultural presente na relação
colonial.
A partir dos anos 1990, são formados grupos e redes de pesquisadores
espalhados em diversos países da América, com o objetivo de se debruçar
sobre a realidade latino-americana, tendo como horizonte teórico a
descolonização. A rede de pesquisadores da colonialidade-modernidade é
formada por um conjunto de pensadores que orbitam em torno da categoria da
colonialidade.
Cunhada ao longo dos anos 90 por uma série de pesquisadores, a
colonialidade alcança lugar de categoria central a partir da noção de
colonialidade do poder desenvolvida por Aníbal Quijano (1992). Em seguida
surge a noção de colonialidade da natureza (Escobar e Coronil, 2000),
colonialidade do conhecimento (Lander, 2000; Mignolo, 2003), colonialidade
das ciências sociais (Castro Gomez e Lopez Segrera, 2000) e colonialidade de
gênero (Lugones, 2008). Outras categorias diretamente vinculadas à
colonialidade são o eurocentrismo (Dussel, 2000), epistemicídio (Mignolo,
2007), sistema mundo (Wallerstein, 1974-1989), totalidade heterogênea
(Quijano, 2008) e interculturalidade crítica (Walsh, 2009).
Outro grupo importante a trabalhar com a categoria da descolonização é
o boliviano Grupo Comuna, formado por intelectuais militantes que se reúnem a
partir de 1998 para discutir e publicar livros e artigos extremamente críticos ao
neoliberalismo, baseados em diversos autores de filiação marxista. Entre seus

53
Um importante conjunto de estudos que ajudam a entender o debate sobre a descolonização
são os estudos pós-coloniais. Surgidos na década de 1970 e 1980, a partir da produção de
intelectuais vindos do chamado Terceiro Mundo, geralmente de ex-colônias britânicas, que
começaram a abrir novas possibilidades de estudos dentro das universidades. Em razão das
novas configurações e rearticulações do capitalismo global pós-Guerra Fria, os estudos pós-
coloniais partem da ideia central de que há um processo de invisibilização da vida e da voz de
uma imensa população subalternizada nos países não centrais do capitalismo. A teoria pós-
colonial analisa o efeito do discurso e das identidades produzidas a partir da realidade social
desses países e busca empreender um descentramento dos discursos oficiais instituídos, a
partir da desconstrução desses lugares de poder. As obras Orientalismo do pensador palestino
Edward Said (1978), Pode o subalterno falar? da indiana Gayatri Spivak (2010) e Identidade
cultural na pós-modernidade do jamaicano Stuart Hall (2003) são exemplos de obras
importantes que explicitam a proposta dos estudos pós-coloniais.
191

membros está Álvaro Garcia Linera, que se tornou vice-presidente da Bolívia,


na presidência de Evo Morales; Luis Tapia, considerado o maior estudioso de
René Zavaleta (reconhecido teórico comunista boliviano); Raquel Gutierrez,
intelectual mexicana e o boliviano Raúl Prada. Porém, muitos outros
intelectuais se relacionaram diretamente com o Grupo Comuna, como Jorge
Viaña e Silvia Rivera Cusicanqui, coordenadora do Taller de Historia Oral
Andina (THOA), reconhecido núcleo de pesquisa da Universidad Mayor de San
Andrés, em La Paz.
A partir da eleição de Evo Morales, pode-se afirmar que uma parcela
significativa dos intelectuais da esquerda boliviana passou a considerar o tema
da descolonização, seja para defendê-lo, como Felix Patzi (2010), ou criticá-lo,
como o faz Alison Spedding (2010). Interessante ressaltar a não vinculação
desses intelectuais ao pensamento de Mariátegui (afirmação feita por Tapia,
em entrevista concedida ao autor em janeiro de 2012, em La Paz).
Outro intelectual importante da temática da descolonização é o sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos, que, a partir de categorias como
ecologia dos saberes e epistemologias do Sul (2010), tem se debruçado sobre
a temática da descolonização em suas mais diferentes esferas.
Embora não estejam diretamente vinculados aos estudos da
descolonização, outros dois intelectuais se dedicam ao estudo de temáticas
convergentes com o horizonte descolonizador. São eles o sociólogo brasileiro
Michael Löwy e o sociólogo mexicano Bolívar Echeverría. Considerado um dos
maiores estudiosos da obra de Marx e de alguns de seus continuadores, como
Walter Benjamim e José Carlos Mariátegui, Löwy é um profundo estudioso da
sociologia da religião, tendo se dedicado a estudos sobre a Teologia da
Libertação (2000), o pensamento romântico (1998), a relação entre judaísmo e
anarquismo, o surrealismo e outras inúmeras temáticas. Merece destaque o
estudo das afinidades eletivas entre diferentes dimensões da cultura, como
religião, política e arte. Desde 2000, tem-se dedicado aos estudos e à
militância do ecossocialismo, uma proposta socialista que busque absorver o
necessário debate em torno da ecologia.
Bolívar Echeverría é um conhecido estudioso de Sartre e Heidegger.
Mas suas formulações mais conhecidas têm como fundamento a teoria de
Marx e da Escola de Frankfurt, notadamente Walter Benjamin. As ideias
192

expressas através de suas reflexões sobre os ethos históricos, o ethos barroco


e a mestiçagem crítica são nitidamente convergentes com a temática da
descolonização, apresentando matizes e interpretações que enriquecem a
tradição latino-americana em torno da relação entre mestiçagem, identidade e
pensamento crítico do continente.

A filosofia intercultural crítica


Um dos principais elementos do debate sobre a colonialidade, a noção
de interculturalidade, passa a participar da agenda sociopolítica dos países
latino-americanos, seja a partir da entrada aguda de políticas neoliberais em
todo o continente e sua noção de um multiculturalismo neoliberal –
interculturalidade conservadora – seja a partir do debate da descolonização.
Estabelece-se assim uma nova circunstância histórica no debate sobre a
identidade latino-americana. Dessa forma, a partir dos anos 90, destacam-se
dois horizontes filosóficos na utilização do termo interculturalidade. Como
explica Reinaldo Matias Fleuri:

A multiplicidade de sentidos da interculturalidade no atual contexto


intertransnacional resulta, por um lado, dos movimentos sociais-políticos-
ancestrais e de suas lutas por reconhecimento de direito e de transformação
social. Por outro, a importância da interculturalidade no mundo contemporâneo
está ligado às configurações globais de poder, de capital e de mercado [...]. A
interculturalidade crítica aponta, pois, para um projeto decolonial (FLEURI,
2012, p. 9).

Essa dupla acepção do termo interculturalidade remete diretamente à


tensão constituinte de nossa dupla consciência latino-americana. De um lado
temos a interculturalidade conservadora – um como princípio – na forma de
uma proposta multiculturalista neoliberal. Segundo essa vertente do
pensamento intercultural, o diálogo deve se estabelecer dentro dos limites da
estrutura social capitalista. Ou seja, destituído de todo caráter crítico que
ameace o status quo monocultural eurocêntrico.
Para o multiculturalismo, a pluralidade de diferentes tradições e
memórias pode estar presente na sociedade, desde que não se contradigam os
procedimentos de nível político-econômico estruturais do sistema colonial-
mercantil-capitalista. Nessa concepção, a cultura é entendida com uma
193

unidade encerrada em si mesma, dotada de características imóveis no tempo e


na história. O encontro intercultural seria, assim, um exercício de demonstração
de suas características culturais ao outro, dentro de um espaço de “diálogo e
tolerância”. Esse processo criaria uma sociedade que é aparentemente diversa,
mas que, em suas mediações estruturais, se orienta segundo uma lógica
monolítica e hierarquizada, já que não há possibilidade real de mudança e
reestruturação da lógica de opressão e exploração que produz subalternidade.
Destituída do caráter crítico, essa noção de diálogo intercultural prevê a
integração da diversidade no interior de um sistema hierárquico
predeterminado, em que a noção de diversidade cultural se realiza como um
novo desdobramento do projeto de dominação colonial, a colonialidade do
poder. Segundo Catherine Walsh:

[...] isso forma parte do que vários autores têm definido como “a nova lógica
cultural do capitalismo global”, uma lógica que reconhece a diferença,
sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional,
neutralizando e esvaziando seu significado efetivo, tornando-a funcional a essa
ordem e aos ditames do sistema mundo e da expansão do neoliberalismo.
Nesse sentido o reconhecimento e respeito às diferenças culturais se
convertem em uma nova estratégia de dominação (WALSH, 2010 p.78).

Dessa forma, o multiculturalismo conserva a lógica central da


colonialidade do poder, apesar de propor a tolerância e a igualdade entre
distintas formas culturais no interior de uma mesma totalidade. Mantida a
hierarquia racial e o controle do trabalho que estruturam as sociedades em
torno da colonialidade do poder, a diversidade é absorvida em uma estrutura
sociopolítico-econômica em que a cultura é reconhecida como conjunto de
costumes e práticas sociais diversas, que podem ser intercambiadas sem
maiores prejuízos à lógica de acumulação, que se mantêm.
Como resultado disso, para Walsh, a interculturalidade proposta pelo
multiculturalismo passa a ser uma estratégia para controle dos conflitos étnicos
e dos diversos movimentos sociais de recorte sociocultural, já que produzem
“conservação da estabilidade social com o fim de impulsionar os imperativos
econômicos do modelo (neoliberal) de acumulação capitalista” (WALSH, 2010).
Do outro lado temos a interculturalidade crítica – dois como totalidade –,
que tem como fundamento a crítica estrutural à colonialidade do poder e a
construção de uma outra forma de sociabilidade, descolonizada em todas as
194

suas dimensões. Para que isso se concretize, o diálogo e as tensões entre as


diferentes memórias históricas no interior da sociedade são entendidos como
dinâmica alienável do projeto de libertação dos povos de sua condição de
subalternidade, opressão e exploração. Nesse sentido, podemos falar de uma
interculturalidade crítica, na qual o sistema hierárquico próprio da colonialidade
do poder é subvertido a partir da noção de que há um conhecimento construído
desde abajo, que se constitui em um centro de irradiação de um pensamento
alternativo ao capitalismo global.
Ou seja, a interculturalidade crítica se realiza a partir de um projeto de
libertação dos povos, de um projeto descolonizador de toda a sociedade, criado
desde abajo e trazendo à centralidade, portanto, a construção popular do
conhecimento e das práticas sociais de “diálogo” e de igualdade.
Nesse sentido, a interculturalidade crítica é inseparável de um projeto
ético-político que se oriente pela superação da colonialidade do poder, através
também de novos mecanismos de organização social e de controle do poder.
Referindo-se à interculturalidade em países andinos, afirma Jorge Viaña:

O que a interculturalidade em seu uso crítico busca hoje é uma intervenção de


paridade entre subalternos e grupos dominantes, compondo instituições do
mundo liberal capitalista com instituições que asseguram a abertura de um
novo tipo de democracia com elementos de democracia direta por meio de
costumes e usos dos povos indígenas, abrindo, por fim, um novo processo de
constitucionalismo e de processo democrático. Uma reinvenção do Estado e da
chamada democracia (VIAÑA, 2010, p. 129).

Além de ser guiada por um novo projeto ético-político que redistribua e


reorganize o controle de poder a partir da memória histórica dos povos latino-
americanos em suas experiências de luta social, a interculturalidade crítica
deve se balizar por uma concepção da cultura enquanto formação histórica no
seio do mundo cotidiano, afastando-se assim da concepção de cultura “pura”. A
identidade cultural é dessa maneira um campo histórico de luta que, além de
voltada a seu exterior – indígenas x Estado-nação capitalista –, deve buscar
suas próprias contradições internas54, como explica Dussel:

54
Interno e externo aqui não são referência geométricas que remetem a uma ideia funcional da
cultura. O uso da dimensão espacial neste contexto tem relação com a dimensão intersubjetiva
de cultura, ou seja, mais do que uma fronteira delimitada, externo e interno são medidores
relativos e em constante transformação, sendo, em última análise, determinações apontadas
pela livre indicação de seus indivíduos.
195

O diálogo intercultural presente não é só um diálogo entre os apologistas de


suas próprias culturas, que tentam mostrar aos outros as virtudes e valores de
sua própria cultura. É antes de tudo, o diálogo entre os criadores críticos de
sua própria cultura (intelectuais da fronteira entre a própria cultura e a
Modernidade). Não são aqueles que meramente defendem sua cultura diante
do inimigo, e sim aqueles que a recriam em sua própria tradição cultural da
mesma modernidade que se globaliza (DUSSEL, 2004, p. 24).

Assim, a interculturalidade crítica prevê que, antes da possibilidade de


diálogo abstrato a partir de uma pretensa igualdade de condições, é necessário
que as estruturas de poder e dominação, em suas diferentes formas, sejam
questionadas. É esta a base que deve estruturar o debate intercultural crítico e,
como consequência, uma filosofia intercultural crítica.
Dessa forma, a filosofia intercultural crítica se constitui como um
desdobramento histórico da Filosofia da Libertação latino-americana, na qual
se reconhece a necessidade de desconstruir a ideia de que a filosofia é um
exercício realizado segundo critérios eurocêntricos sobre a investigação da
verdade. A filosofia intercultural parte de um fundamento epistemológico que
defende que há diferentes “filosofias” ao redor do mundo, cada uma delas dona
de sua complexidade e dotada de contradições e subdivisões próprias de seu
processo histórico e de sua situação geopolítica. Dessa maneira, a filosofia
intercultural deve partir da premissa – inaugurada pelo pensamento de
Bartolomé de Las Casas, no século XVI – de que diferentes culturas foram
capazes de realizar, ao longo do tempo, um saber ético-filosófico apto a
responder às questões fundamentais da humanidade.
Ou seja, uma filosofia intercultural busca visibilizar e alcançar
pensamentos distanciados e invisibilizados pela razão eurocêntrica, tentando
criar um diálogo entre as chamadas “epistemologias do Sul” (SANTOS, 2010),
ou seja, entre esse conjunto de saberes que tem sido sistematicamente
inferiorizado, segundo a classificação própria da colonialidade do poder. Assim,
muitas formas de saberes próprios de diferentes povos e nações colonizadas
são desconsideradas enquanto saberes autênticos e válidos. A filosofia
intercultural busca superar essa desigualdade ao pensar maneiras de
realização de um verdadeiro diálogo horizontal entre culturas diversas.
Porém, seguindo o caminho trilhado pela Filosofia da Libertação,
também na filosofia intercultural crítica não é possível a ideia de diálogo sem
levar em consideração as assimetrias político-econômicas existentes entre os
196

diferentes povos. Nesse sentido, a filosofia intercultural crítica – assim como a


interculturalidade crítica – só pode efetivar-se plenamente a partir de um
projeto societário libertador, ou seja, que esteja fundamentado em um horizonte
de superação da exploração, opressão e subalternização de amplas parcelas
da população mundial.
Dessa forma, polarizada entre o multiculturalismo neoliberal e uma
filosofia intercultural crítica, a dupla consciência, em sua luta agônica entre
duas almas – como aponta Mariátegui – ganha no século XXI o contorno de
duas formas de relação entre o modo de produção capitalista – e sua crítica – e
a diversidade cultural. Seguindo a lógica cultural do capitalismo tardio, se
agudizam ainda mais a colonialidade do poder e o entrelaçamento entre
controle de trabalho e raça.
Eixo central do desenvolvimento do capitalismo mundial, a colonialidade
do poder se reorienta ao renovar a sua estratégia de dominação. Até os anos
1990, a branquitude era entendida como o padrão único a ser seguido na
corporificação do conjunto de valores e da racionalidade tomada como modelo.
A partir dessa década, a diversidade cultural, expandida pelos fluxos
semióticos cada dia mais velozes em produzir hibridismos, multiplica a
aparência desse padrão. A pluralidade é então enaltecida e comemorada,
desde que não atinja os fundamentos da acumulação e da exploração
econômica.
Por outro lado, a mestiçagem descolonial-crítica também se desdobra e
se renova, aprofundando o projeto de libertação e apontando para a
descolonização radical da vida social. Guiada pela subversão da dupla
consciência, a mestiçagem descolonial-crítica é o horizonte vivo da práxis e da
luta dos movimentos sociais protagonizados pelos povos da América Latina.
197

PALAVRAS FINAIS

<o texto será enviado


posteriormente>
198

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