A Mulher No Terceiro Milênio - Rose Murano
A Mulher No Terceiro Milênio - Rose Murano
A Mulher No Terceiro Milênio - Rose Murano
no Terceiro
Milênio
;nYi
L I V R AVTÁ
Pastaria • Livros • Café • CD's • Informí
623-4909 - 610-0379.349.&90
Rose Marie Muraro
A Mulher
no Terceiro
Milênio
8a EDIÇÃO
&
Edttora
Rosados
Tempos
Rio de Janeiro
2002
CIP-Brasil. Catalogaçâo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Muraro, Rose Marie, 1932-
M946m A mulher no terceiro milênio: uma história da
8 ed. mulher através dos tempos e suas perspectivas para
a
o futuro / Rose Marie Muraro. - 8a ed. - Rio de
Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2002.
Bibliografia
ISBN 85-01-64738-1
1. Mulheres - História. 2. Mulheres - Condições
sociais. 1. Titulo.
CDD - 305.4209
92-0020 CDU - 3-055.2(09)
e a Laura Civita
que estã me ajudando nesta luta.
Sumário
O
planeta Terra existe ao menos há quatro bilhões e
meio de anos. Os primeiros sinais de vida aparece
ram por volta de dois bilhões de anos, e os mamífe
ros têm vestígios de vida a partir de oitenta milhões e qui
nhentos mil anos: o Australopiteco, o macaco que precedeu
a espécie humana, começou a vagar pelas selvas africanas.
Há um milhão de anos nosso antepassado, o Homo Erec-
tus, se espalhava da África para a Asia, Java e outras partes
do mundo.
O Homo Sapiens, que habita a Terra até os dias de ho
je, apareceu provavelmente há cem mil anos na Europa. Ou
tros dizem que sua aparição é mais recente, datando do curto
período de cinqüenta a trinta mil anos. Mas, qualquer que
seja a época, o que é certo é que temos registros mais preci
sos — porque escritos — da história da nossa espécie que
datam de apenas três mil anos. Dos outros quase dois mi
lhões de anos da nossa evolução, só temos como fontes de
conhecimento seguras o comportamento dos animais que
foram estudados nestes últimos séculos e o de cerca de du-
zentas sociedades primitivas que ainda hoje existem, mas,
que, como todo o resto do reino não-humano, estão quase
em extinção. No mais, apenas com as novas tecnologias se
pode tirar inferências de como foi a existência humana e
proto-humana nos milênios passados a partir de pedaços de
ossos, dentes de fósseis, vestígios de aldeias, cidades e agru
pamentos mais antigos. E é portanto um sumaríssimo resu
mo destes conhecimentos que pretendemos fazer aqui para
que a nossa situação de seres bissexuados possa aparecer com
um pouco mais de clareza.
Cremos que, ao final deste livro, talvez grandes sur
presas nos esperem. Pois é uma imensa responsabilidade ten
tar trazer para o domínio do visível aquilo que até então
era invisível. E assim que nascem as novas crenças e as no
vas correntes de pensamento.
O mundo adquiriu outras dimensões quando Galileu
viu com novos instrumentos aquilo que até então não se
via: que a Terra não era o centro do universo. E a Teoria
da Relatividade nasceu quando Einstein viu que alguma coisa
estava errada com o efeito de Michelson e Morley.
Nesta segunda metade do século XX, milhares de ho
mens e de mulheres estão escavando as profundezas do pas
sado e trazendo à luz a história que ninguém contou: o fas
cinante romance do mundo do ponto de vista da mulher.
E nossa ínfima contribuição neste esforço é tentar tra
zer para a mulher e o homem brasileiros a nova consciência
que emerge deste conhecimento.
Temos certeza de que a consciência que pode brotar
do saber de como se relacionaram homens e mulheres atra
vés destas centenas de séculos que constituem a trajetória
de nossa espécie sobre este planeta poderá transformar a pró
pria visão que temos do mundo. E, através da transforma
ção de nossa consciência, reiventar o próprio mundo.
10
PRIMEIRA PARTE
21
2
27
3
O Homo Sapiens, o Guerreiro
N
ão há concenso sobre a época em que o homem co
mo o conhecemos hoje apareceu sobre este planeta.
Sua idade pode variar de duzentos a trinta e cinco
mil anos, mas todos os habitantes que vivem hoje e que são
considerados humanos, desde as formas mais simples de so
ciedade tribal até a mais sofisticada das civilizações moder
nas, são oriundos desta mesma espécie. Quer queiramos ou
não, somos todos irmãos...
Sabe-se que a paternidade era desconhecida nos pri
meiros tempos. Portanto, os primeiros grupos de seres hu
manos foram matrilocais e matrilineares. Julgando em parte
pelos costumes dos primatas e das sociedades primitivas que
ainda existem, pode-se teorizar alguma coisa sobre a vida
humana primitiva. Provavelmente a ordem social era flui
da e permissiva, seja com casamentos permanentes, semi-
permanentes ou casuais. As crianças ficavam com as mães,
ou, no caso da morte destas, com as outras mulheres da fa
mília. A vida podería ser nômade, seminômade ou seden-
28
tária. Poderia acontecer desde o nomadismo sazonal dos la-
pões de hoje até as migrações fantasticamente improváveis
dos asiáticos que se transferiram pelo Oceano Pacífico até
as terras da América do Sul.
Em geral, não parece ter havido chefes ou líderes, mas
sim rodízio de poder. Se houvesse conflito entre dois gru
pos do mesmo clã, um deles se retirava para formar outro
grupo ou juntar-se a outro já existente. Esta organização
político-social primitiva nada mais é do que a verdadeira
anarquia, isto é, grupos se governando a si mesmos sem a
necessidade de chefes, líderes ou leis rígidas. Ainda hoje
muitas sociedades primitivas vivem desta maneira. Marylin
French, em seu livro BeyondPower, enumera várias delas,
como os esquimós, os hazda da Tanzânia, os bosquímanos,
os IK, os mbuti, os dogrib, os netslik e vários outros povos
africanos.
A vida destes grupos em geral não era dura, pois, as
sim que o alimento escasseava, migravam para região mais
fértil.
Certamente havia uma divisão sexual de trabalho, mas,
na maioria das vezes, ela tendia a ser arbitrária. Em umas
sociedades, as mulheres faziam cerâmica e os homens pes
cavam; em outras, passava-se o contrário. Em outras ainda,
a demarcação das tarefas de cada sexo era bastante rígida.
I.évi-Strauss, em O Cru e o Cozido, conta que viu um bo-
roro quase morrendo de fome por não ter uma mulher que
llie cozinhasse a comida. Nessas sociedades, casar é um fato
de vida ou morte, pois um homem prefere morrer a fazer
trabalho de mulher e vice-versa. Em outras, não. Os mes
mos trabalhos podem ser feitos ciclicamente por um ou ou
tro sexo.
Esta divisão pode ter sido originada do fato de, por fi-
< arem grávidas e se acostumarem a alimentar e proteger os
filhos, as mulheres tivessem tendência a alimentar e cuidar
do grupo todo, enquanto os homens caçavam e pescavam
mais para si mesmos. Em muitas sociedades atuais, as coi
29
sas ainda se passam desta maneira, sobretudo nas socieda
des avançadas, em que as mulheres não só trabalham fora
como dentro de casa, cumprindo uma dupla jornada de tra
balho que nunca existiu para o sexo masculino. É possível,
assim, que a divisão sexual de trabalho tenha começado por
que os homens queriam uma definição de suas funções co
mo as mulheres tinham a sua, através da maternidade.
Neste longínquo passado, as tarefas femininas prova
velmente possuíam mais valor do que as masculinas; po
rém, no mundo patriarcal, a situação se inverte, e trabalho
da mulher, ainda que seja igual ao do homem, tende a ser
menos valorizado, talvez mesmo por causa desta “inutili
dade’ ’ do homem numa sociedade em que não se conhecia
exatamente a sua função na procriação.
Em quase todas as sociedades, as mulheres sempre tra
balharam mais do que os homens. Toma menos tempo ca
çar do que fazer a coleta dos alimentos ou cultivá-los. Assim,
geralmente os homens que avocam a si a caça têm mais tem
po livre do que as mulheres.
Embora em muitas sociedades ainda hoje as mulheres
cacem e pesquem^ como entre os esquimós, os tiwi da Aus
trália, os agta da África e muitos outros, caçar é um atribu
to masculino, assim como fazer a coleta é um atributo quase
universalmente alocado às mulheres. Só que elas juntam a
essas funções as do cuidado da casa e das crianças.
Como os bororos, os nsaw da África diziam de um ho
mem solteiro que ele tinha que trabalhar tão pesado como
uma mulher...
Foram também as mulheres que descobriram a arte de
plantar os grãos férteis que eram colhidos sazonalmente e
começaram a plantá-los com as próprias mãos assim que is
to se tornou necessário. Porque coletar requer um território
muito grande para alimentar pouca gente, e plantar, em
bora muito mais fatigante, implica que um pequeno peda
ço de terra possa alimentar muito mais gente. E foi assim
que as mulheres se tornaram as primeiras horticultoras.
30
Hoje faz-se uma diferença nítida entre horticultura e
agricultura: a horticultura era principal mente efetuada pe
las mulheres com instrumentos manuais primitivos, e a agri
cultura, que só apareceu muito mais tarde, dependia de
máquinas mais pesadas e era feita basicamente por homens.
Assim vai se acelerando a vida da espécie humana. A
caça tornou-se importante a partir de trinta mil anos atrás,
os barcos começaram a ser construídos há vinte mil anos;
foi quando se deu também a domesticação dos primeiros
animais. Já nesse tempo, os seres humanos usavam arco e
flecha e faziam cerâmicas. O uso de agulhas permitiu a fa
bricação de roupas de peles e portanto a migração para lu
gares mais frios. Já havia, há muito, luz na noite e alimentos
processados. Os homens mais e mais iam apertando os con
troles sobre a natureza e sobre suas próprias vidas. Seria o
começo desta fase final.
4
Os Vestígios do Passado
P
ara entender a origem de uma época em que não ha
via registros escritos, é preciso nos apoiarmos em ou
tro tipo de vestígios, principalmente na arte e nos
mitos.
A Arte
37
5
Coletores e Caçadores no
Mundo Atual
Homens Caçam e
Mulheres Coletam
49
muito com crianças de sua idade. Este costume não estimu
la a competição entre os pares. Ao contrario, como os gru
pos são pequenos, as crianças que brincam juntas são de
todas as idades e dos dois sexos, o que estimula a coopera
ção e a integração dos gêneros, bem como uma integração
entre crianças e adultos que não conhecemos mais no mun
do ocidental. Nestas tribos, não há a fabricação da infância
como fase separada da vida adulta.
50
6
Os Horticultores Hoje
53
Cada linhagem possui uma “casa-grande” chefiada por
uma velha matrona, onde todos trabalham comunitariamen-
te. O conselho dos anciãos composto de homens era em ge
ral nomeado através da influência das mulheres.
Os hopis não possuíam segregação sexual, e até sua lin
guagem apresentava uma estrutura mais integrada do que
as nossas linguagens modernas, todas fragmentadas.
Contudo, a matrilinearidade nem sempre significava
tanto poder para as mulheres. Muitas destas sociedades eram
dominadas pelos homens. Os truks das Ilhas Carolinas do
Pacífico Sul são um exemplo. Ao contrário dos iroqueses,
eram os homens que controlavam o suprimento de alimen
tos e pouco se ausentavam da tribo. Por isto, apesar de o
grupo ser matrilinear, é o macho mais velho de cada linha
gem quem controla até hoje os destinos da tribo, ü homem
espera fidelidade e submissão da mulher. Para ele, é fácil
conseguir divórcio, enquanto para a esposa são colocados
muitos obstáculos. Para conseguir sua liberdade, muitas ve
zes ela precisa ter a proteção do seu irmão.
Curiosamente, testes feitos pelos antropólogos em ho
mens e mulheres entre os truks mostram mais segurança e
menos ansiedade entre as mulheres do que entre os homens.
Isto talvez se deva ao fato de que as mulheres possuam la
res seguros e estáveis, enquanto os homens são obrigados
a deixar o seu clã para vir habitar o clã das mulheres...
Entre estas sociedades, como estamos vendo, o leque
é muito grande, até chegar à mais definida patrilinearida-
de. Os antropólogos crêem que a patrilinearidade, e com
ela a patrilocalidade, e com ambas o embrião do patriarca-
do começam quando há necessidade de intensa competição
entre as populações por insuficiência de alimento. O caso
extremo é a tribo dos ianomamis, que habita entre o Brasil
e a Venezuela.
Esta tribo é considerada uma das sociedades em que
há maior dominação dos homens sobre as mulheres em to
do o mundo. Os ianomamis sofrem de uma escassez crôni
54
ca de proteínas. Embora possam plantar quase todo tipo de
vegetais, a caça é rara e difícil. Isto aumenta a competição
entre as aldeias e com ela a solidariedade masculina, guer
ras constantes, a submissão das mulheres, que são inclusive
consideradas propriedade sexual. Devido à falta de carne,
esta é negociada por sexo. E a mercadoria sexual — as mu
lheres — deve ser escassa. Isto é conseguido artificialmen
te, com uma grande taxa de infanticídio feminino, além
da poliginia dos mais fortes e do estrito controle sobre a se
xualidade feminina. Daí resulta que muitos homens não têm
mulheres e conseqüentemente começam a invadir outros
grupos em busca de esposas.
Isto faz o complexo guerreiro intensificar-se e, conse
qüentemente, equilibrar o crescimento populacional em
uma terra de alimento escasso. Toda esta situação estimula
a desqualificação da mulher, a agressão masculina, com a
conseqüente brutalização sobre o elemento feminino.
Esta agressividade é dirigida tanto contra homens co
mo contra mulheres. Constantemente, há duelos brutais en
tre os homens a fim de provar a coragem de ambos os
duelistas. E as mulheres ianomamis são talvez as mulheres
mais brutalizadas e vitimizadas do mundo. Seus corpos são
cobertos de feridas e cicatrizes infligidas por seus homens:
eles podem até matá-las sem motivo. Punir em público uma
mulher aumenta a imagem viril do marido. As mulheres
esperam ser espancadas, vitimizadas, humilhadas e degra
dadas. E o casamento é definitivamente visto como negó
cio de homens que trocam mulheres entre si. Em ianomami,
casamento significa “arrastar alguma coisa”, e divórcio é
“jogar alguma coisa fora”. Aqui sim, a lenda das mulhe
res arrastadas pelos cabelos é uma realidade. As mulheres
são negociadas desde muito crianças, e espera-se que acei
tem o ato sexual a partir dos oito anos. A solidariedade en
tre os irmãos da mulher e seus cunhados é tão grande que
impede que esta volte para a sua família de origem quando
muito ameaçada.
55
Se as mulheres são obtidas por rapto, em geral são es
tupradas por todo o grupo e depois distribuídas aos mais
corajosos e agressivos. A poliginia é o mais alto sinal de vi
rilidade, o que encoraja os perdedores a mais invasões de
outros grupos, aumentando assim cada vez mais a agressi
vidade.
A poliginia é largamente praticada nas sociedades hor-
ticultoras tanto simples como avançadas. Na África, cada
mulher é mais um pedaço de terra cultivado para o mesmo
homem e, portanto, mais uma fonte de riqueza que lhe per
mite comprar ainda mais mulheres. Este costume traz con
sigo também a compra de noivas entre clãs e o casamento
em idade precoce. Em geral, as jovens esposas servem como
criadas para as mais velhas. Por sua vez, estas meninas virão
a ser patroas de outra esposa mais jovem quando forem mais
velhas. O tratamento dado às esposas melhora considera
velmente se dão à luz um filho menino. Isto se passa tam
bém entre sogras e noras, de modo que o padrão de
solidariedade entre mulheres é em geral substituído, nestas
sociedades patrilineares, por um padrão de dominação e
competição.
Resumindo o que acabamos de ver, as sociedades hor-
ticultoras podem ir desde a mais pacífica e estável matrili-
nearidade/matrilocalidade até as mais severas condições de
uma patrilinearidade/patriarcado feroz. E isto é ensinado
às crianças desde o seu nascimento.
Como seria de se esperar, desde a mais tenra idade
educa-se os meninos ianomamis para a mais selvagem agres
sividade, e as meninas para a passividade e a vitimização.
Quando uma menina ianomami apanha de um irmão me
nor, ela é punida se bater nele de volta. Os meninos no en
tanto nunca são punidos por bater em quem quer que seja.
E os pais ianomamis ficam deliciados quando seus filhos de
quatro anos lhes dão um soco no rosto.
Os hopis, ao contrário, que são matrilineares e não pra
ticam a guerra sistematicamente, educam tanto meninos co
56
mo meninas para serem pacíficos, humildes, doces e não-
competitivos. Não se espera que nem mulheres nem homens
controlem a sua agressividade. Ao contrário, as mulheres
são estimuladas a serem mais agressivas do que os homens,
pois estes têm mais força física e, portanto, mais potencial
de ferir o outro.
Entre os udus da Nigéria, as meninas são treinadas pa
ra depender dos seus irmãos, e os homens, para serem pro
tetores das mulheres em geral. Ao mesmo tempo, elas são
treinadas, também, a manipular e seduzir os homens. As
crianças é claramente ensinado desde o berço que certas ta
refas e atitudes pertencem à mulher e outras apenas aos
homens.
SEGUNDA PARTE
O Patriarcado
N
o princípio era a mãe. O Verbo veio muito depois
e iniciou uma nova era: o patriarcado. O Verbo, a
Palavra, um símbolo abstrato, uma entidade arbi
trária, pode dar vida a qualquer realidade, por mais imagi
nária e inexistente que seja. E a palavra pode até distorcer
o sentido das realidades físicas mais óbvias, tais como o fa
to de a mãe dar à luz a criança e amamentá-la, e inaugurar
a dominação do macho, através da fabricação de papéis. Os
machos não são dominadores por natureza, como mostra
mos exaustivamente através do que vimos escrevendo neste
trabalho, da mesma maneira biológica que as fêmeas dão
à luz. E é a Palavra, o patriarcado que quer fazer da domi
nação masculina um fato “natural” e biológico. E o pa
triarcado é de tal modo hoje uma realidade bem-sucedida
que muitos não conseguem pensar na organização da vida
humana de maneira diferente da patriarcal, em que o ma
cho domina de direito e de fato.
Através da Palavra, a maternidade pode ser vista como
61
uma grande força sagrada, como nas culturas ancestrais, ou
então como uma vulnerabilidade, uma inferioridade, co
mo na civilização ocidental moderna. Da mesma forma, o
homem é percebido ou como um elemento marginal nas
culturas matricêntricas ou como o macho dominador das cul
turas agrárias mais recentes.
Quanto à origem do patriarcado, a partir do século XIX
muitos pensadores levantaram várias teorias, tais como Ba-
chofen, Driffault e outros, que apresentavam o mundo co
mo governado pelas mulheres (matriarcado), mas, como já
vimos, a noção de matriarcado nada mais é do que uma pro
jeção masculina sobre uma estmtura feminina de poder mui
to diferente da atual.
Marx e Engels foram, contudo, os mais importantes
pensadores do século XIX a analisar este tema. Em primei
ro lugar, afirmavam que a divisão sexual do trabalho dava
origem a uma divisão social do trabalho, que, por sua vez,
levou à especialização. Esta, também por sua vez, levou ao
aperfeiçoamento de tecnologias que deram origem aos ex
cedentes (lucro), algo que sobrava após terem sido satisfei
tas as necessidades de sobrevivência dos grupos. Estes
excedentes poderiam ser usados como valores de troca, dando
origem a uma classe dominante que não precisava traba
lhar e vivia da venda dos excedentes, escravizando boa par
te das populações; daí a origem do Estado centralizador,
autoritário e violento. A classe dominante defendia a pro
priedade dos excedentes, da terra, que mais tarde, com a
expansão da agricultura, viria se tornar propriedade de al
guns poucos em detrimento da comunidade. Nesta época,
o sexo feminino é também dominado e a mulher fica redu
zida ao âmbito do privado, a fim de fornecer o maior nú
mero possível de filhos para arar a terra e defender a terra
e o Estado. A competição, pois, pelas mulheres, pelos ex
cedentes e pela propriedade foi pouco a pouco dando ori
gem à supremacia masculina e a uma cultura competitiva.
Até o aparecimento das recentes pesquisas a que nos referi-
62
mos no início deste trabalho, prevaleciam as teorias do pa
rentesco de Lévi-Strauss, que achava “natural” que as mu
lheres fossem trocadas entre homens para fazer e consolidar
alianças desde o começo da espécie. Mas, como vimos, isto
não acontece nas culturas mais primitivas matrilineares, e
o conhecimento disto é fato bastante recente. A noção de
uma descendência matrilinear e não-patriarcal nem sequer
ocorreu aos primeiros antropólogos.
A nosso ver, no entanto, o patriarcado teve uma ori
gem gradual e lenta. No começo, as sociedades possuíam
laços fracos de dominação, e se criaram através de laços for
tes entre mães e filhos, principalmente filhas, sendo os ma
chos elementos periféricos e instáveis nos grupos. Os laços
mais fortes que estes possuíam eram com os elementos do
seu próprio sexo e os filhos homens dentro da descendência
matrilinear. A maior parte dos trabalhos era feita pelas mu
lheres (como é até hoje, tanto nas sociedades simples quan
to nas complexas). Elas se responsabilizavam por seus filhos
e, por extensão, pelo grupo inteiro. As mulheres proviam
o alimento e os homens faziam as tarefas mais pesadas, co
mo a caça, a pesca e a limpeza das terras aráveis. Contudo,
possuíam mais tempo livre do que as mulheres, o que os
fez desenvolver suas armas e inventar cultos específicos pa
ra o sexo masculino, dos quais excluíam as mulheres.
Assim, os homens puderam abrir um grau de distân
cia entre os humanos e o meio ambiente como resultado
de um crescente controle que foram descobrindo e exercen
do sobre a natureza. Distância e separação que dão origem
ao estranhamento e à hostilidade, portanto a uma incipiente
inimizade entre o homem e a natureza. Quando se ini
ciaram as primeiras culturas e o controle sobre a nature
za aumentou, a ansiedade também cresceu. As secas e as
inundações começaram a causar medo, e tinham que ser
exorcizadas. Estava então rompida a harmonia entre os hu
manos e a natureza. Neste ponto instala-se um incipiente
sentimento de transcendência.
63
Esta noção de transcendência deve, provavelmente, ter
nascido da descoberta do papel masculino na procriação. Nes
te instante, o macho pode assumir o controle da sexualidade
das mulheres e, portanto, o poder sobre elas, juntamente com
a natureza. Do conceito abstrato de controle vem o conceito
da superioridade/transcendência do homem sobre a nature
za e a mulher. Nascem então mitos e crenças sobre um deus
todo-poderoso e transcendente, e não mais imanente, como
nas sociedades matrilineares. A grande mãe imanente é subs
tituída pelo deus transcendente e controlador. A mulher fi
ca mergulhada no reino da natureza, enquanto o homem
aloca a si mesmo o da cultura. E como se acreditou, durante
milênios, que as mulheres tinham uma relação especial com
o sagrado que emanava da natureza, agora as novas religiões
passaram a dirigir-se mais aos homens. A eles o domínio do
sagrado, a centralidade do poder; às mulheres, a marginali
dade nos cultos e no âmbito do poder e do público.
Junto com a noção de transcendência e de controle foi
pouco a pouco se formando a noção de moralidade. A mo
ralidade seria o controle a partir do próprio oprimido. A ho
nestidade para os escravos, e para os senhores a capacidade
de infringir as regras sem punição nem culpa. Então se de
senvolve uma moral dupla controladora para as mulheres e
sem controle para os homens. Regras criadas pelos próprios
dominantes e que serviam como braço privilegiado desta clas
se para manter os dominados internamente oprimidos, en
quanto os dominadores podiam romper sem qualquer culpa
as regras inventadas por eles próprios. Aparece assim o reverso
dos princípios que regulavam o matricentrismo.
Por outro lado, as sociedades patriarcais caracterizam-
se por um profundo medo da mulher, concretizado nos for
tes tabus referentes à menstruação, à nudez ou ao parto,
o que leva a um acentuado antagonismo entre os dois gê
neros. Com isso, estas sociedades controlam a reprodução
e o trabalho das mulheres. E é através das leis e da institu
cionalização, ou seja, através de ordens abstratas derivadas
64
da palavra, principalmente da palavra escrita, que é inven
tada junto com a sociedade agrária, que estas violências po
dem ser praticadas. Não é o status desigual e o controle sobre
as mulheres que importam, mas sim os conceitos que estão
na base deste controle e da supremacia masculina.
O patriarcado, com esta rede de conceitos e controles,
transforma então, para sobreviver e consolidar-se, os laços
afetivos existentes entre homens e mulheres, entre mães e
filhos e entre as mulheres entre si em relações de poder.
No que tange à relação homem /mulher, ela se transfor
ma desde as sociedades de caça. Nestas, em primeiro lugar
a inveja primitiva que o homem tinha da procriação (inveja
do útero) é exorcizada pela iniciação dos rapazes. Estes são
afastados de suas mães na puberdade e renascem de manei
ra ritual para o mundo masculino. Na maioria dos ritos de
iniciação masculina é a imitação do parto que faz esta rup
tura. Em segundo lugar, o homem assume para si parte do
processo reprodutivo no rito da couvade, em que o macho,
logo após o nascimento da criança, assume o lugar da mãe,
recebendo visitas enquanto ela vai trabalhar nos campos.
São quase universais também no patriarcado os tabus
relativos à menstruação, desde as sociedades mais simples
até as mais complexas. Em vez de regar a terra com o fluxo
menstruai, como era feito antes, como augúrio de fecundi-
dade, a menstruação é agora punida.
Entre os papuas da Nova Guiné, qualquer objeto to
cado por uma mulher menstruada pode quebrar nas mãos
de um homem; uma pedra pode voltar-se contra aquele que
a segura. E a vagina é temida como o lugar do sangramen-
to, bem como qualquer objeto que se pareça com uma va
gina. Agora as plantas secam e morrem, o solo fica infértil.
As mulheres papuas cultivam algumas plantas durante a ini
ciação dos rapazes, e estes são ensinados a vomitar o alimento
oferecido pela mãe. Mas é neste período que as mulheres
são mais atraentes para os homens papuas, e eles usam o
lugar onde elas são isoladas para encontrá-las sexualmente.
65
Os papagos, índios do sudeste norte-americano, temem
o tremendo poder que julgam emanar da menstruação fe
minina e excluem as mulheres de todos os sítios onde os
homens costumam encontrar-se: um homem que toca uma
mulher menstruada não pode participar de batalhas.
Em outras tribos, as mulheres são consideradas passí
veis de contaminar os homens desde a puberdade até a me-
nopausa. Em certas ocasiões elas não podem tocar nada que
seja tocado por um homem, nem sequer uma fonte de água.
No entanto, seu poder só é perigoso para os machos adul
tos, podendo causar-lhes doenças respiratórias ou até a mor
te. Por isto, estes homens temem o casamento. Entre os
kaulongs, por este medo, são as mulheres que tomam a ini
ciativa do ato sexual e do casamento, dos quais o homem
não pode fugir...
O sentido destes tabus é mostrado de maneira muito
clara pelos esquimós, os seres humanos que vivem no mais
difícil ambiente deste planeta. Eles vêem uma necessidade
específica de o homem adquirir a sua identidade e conquistar
o poder com grande esforço, pois a mulher já tem natural
mente a sua e o seu poder flui de maneira simples através
da gravidez e do parto. As mulheres são associadas com a
vida e a fertilidade, e os homens, com a morte e a esterili
dade. Por isto, estas culturas têm uma forte tendência à mi
gração e à conquista para exorcizar este poder feminino.
Nas culturas patriarcais, as mulheres são associadas à
sedução, à traição c ao levar o homem para caminhos que
os conduzem à derrota e à morte.
A partir deste medo da força genesíaca da mulher, foi
fácil, no decorrer dos séculos e milênios, formar uma iden
tidade masculina baseada na maior capacidade intelectual
dos machos em relação à mulher para controlar a natureza
e inventar novas tecnologias, na sua maior força física para
prover alimentos e defesa para os grupos, na sua maior agres
sividade para vencer as guerras. O domínio público, da
história, foi alocado ao princípio masculino, enquanto o
66
princípio feminino, marginalizado, circunscreveu-se ao do
mínio da casa, do privado, da reprodução. E o feminino
era associado a uma mediação entre o homem transcenden
te e a cultura imanente.
Por outro lado, rompem-se os laços de afeição que
uniam as mulheres às outras mulheres. Ao contrário das cul
turas matricêntricas, agora quem vai para a casa do consor
te é a mulher. Ela é, assim, arrancada de sua família para
entrar numa família desconhecida, em geral para servir sob
as ordens de uma sogra dominadora e cunhadas hostis, co
mo acontecia na China, no Japão e no mundo árabe.
Tudo isto em conjunto vai pouco a pouco moldando a
personalidade feminina. A partir da dominação econômica
exercida sobre ela pelo marido e sua família, a mulher intro-
jeta a sua inferioridade. E esta introjeção de inferioridade se
traduz em dependência psicológica em relação ao homem,
em tendências masoquistas (sentir prazer em humilhações e
sofrimentos), um narcisismo ferido, frigidez e carência sexual,
que ela supercompensa afetivamente na relação com os fi
lhos, sobretudo os filhos homens. Além do mais, instala-se
no mundo feminino a impossibilidade de alianças entre as
mulheres, uma vez que todas competem pelos casamentos
mais ricos. Enquanto as mulheres se dividem entre si, os ho
mens continuam capazes de fazer alianças e muitas vezes de
viver em grupos solidários, o que reforça então a sua supe
rioridade construída sobre a divisão das mulheres.
Contudo, o laço mais importante que se rompe com
o advento do patriarcado é aquele entre mães e filhos. Esta
ruptura se dá em relação ao menino em uma idade muito
tenra, quando ele começa a viver sua fase edipiana. O me
do da castração imaginário tem uma história, e este medo
não é estrutural à condição humana, como queria Freud.
Como os papéis de homens e mulheres são fabricados pelo
patriarcado, também o é esta castração, que vem a ser tão
importante para o funcionamento da psique masculina e
do sistema patriarcal.
67
Desde que nascem, tanto meninos quanto meninas são
capazes de perceber, cada um à sua maneira, que o pai é
o dominador da mãe. Quando o menino atinge quatro anos
aproximadamente e passa a viver a fase edipiana, o pai en
tra na sua relação com a mãe, e a criança passa a querer matá-
lo. No entanto, como é frágil e impotente, ela projeta: “Meu
pai quer me matar, isto é, cortar o pênis, que é o meu ob
jeto de prazer.” A partir de então, como tem que se iden
tificar com o opressor, o menino passa a dessexualizar sua
relação com a mãe e, nos casos em que o machismo é mais
exacerbado, a desprezá-la, e, com ela, todas as mulheres.
Sua libido a partir de então em grande parte se sublima,
isto é, desloca-se para outros objetos que não os sexuais, tais
como: o domínio dos outros, o pensamento abstrato, a ma
nipulação, o trabalho, a violência, a competitividade etc.
Muito pouco resta para a mulher.
Quando se torna adulto, o homem já não é capaz de
amar a mulher. Ele cinde o desejo sexual do afeto e, com
isto, cinde também a imagem da mulher. De um lado a
esposa, a santa, a sucessora da mãe, que pertence ao domí
nio do afeto. De outro a prostituta, aquela que pertence
ao domínio do prazer. Assim, o homem se divide para não
se entregar, pois desde a infância aprendeu que entregar-se
ao amor é ser castrado e, portanto, morrer, ser vencido.
Por seu lado, a menina, tal como o menino, ama a mãe
corporeamente e a quer só para si, mas, quando chega a
fase de mudança do objeto do amor — da mãe para o pai
—, ela sofre muito menos do que o menino, porque já vem
castrada. Seu sexo é interno. Ela não tem nenhum símbolo
externo de poder e prazer a perder. Por isso, ela não realiza
a mesma ruptura que o homem. Mais tarde, vem a simbo
lizar menos e dedicar-se mais ao amor. Cada um, pois, ho
mem e mulher, assume o seu lugar no sistema patriarcal
a partir do mais íntimo de si mesmo, sem saber que são am
bos fabricados para serem o combustível do sistema, viven
do os papéis que este lhes destinou.
68
E qual é esse papel?
O homem, por medo de morrer quando menino pelo
fato de amar a mãe (a mulher), aplica sua libido em obje
tos não-corpóreos para fugir à angústia da morte. Esse fato
mesmo o dirige a partir do inconsciente mais profundo pa
ra o mundo do trabalho, do saber e, finalmente, do poder.
Seu pensamento se torna racional, objetivo, dissociado do
sentimento e, portanto, frio, calculista, controlador, o que
o torna apto para os embates da competitividade.
A mulher, ao contrário, como não tem a ameaça da
morte quando criança, continua ligada à mãe, que é a fon
te arcaica do prazer. E assim não divide a sexualidade do
afeto, e não reprime o amor. Fica, então, delimitado a seu
âmbito dentro do sistema patriarcal, que é o domínio da
relação com os outros, do cuidado, da intuição, do concre
to, da subjetividade, do sentimento, da ternura, da solida
riedade, da partilha.
Ela passa a reprimir a inteligência, a iniciativa, a agres
sividade a partir do inconsciente. E as qualidades que de
senvolve a “especializam” para o domínio do privado. E
como este não é produtivo, é menos valorizado que o do
mínio público, e ela se torna submissa a partir do incons
ciente. Os valores da partilha e da solidariedade perdem
então para a competitividade, o egocentrismo, mais fun
cionais dentro do novo patriarcado.
Tudo isto (e muito mais) vem a ser sacralizado no tex
to mais importante do patriarcado e que, por isso, é um
texto sagrado: o Gene se.
69
8
D
escrevemos na primeira parte deste trabalho os qua
tro tipos de mitologias que até hoje se encontrou na
espécie humana: a primeira, em que a Grande Deusa
é a única criadora da natureza e dos homens. A segunda,
em que um deus masculino destrona uma deusa criadora
e lhe toma o poder. A terceira, em que um deus e uma deusa
criam o mundo juntos. E a quarta será a que introduzire
mos neste capítulo.
O mundo é criado por um deus único e todo-poderoso,
onipotente e onipresente, que controla todos os seres hu
manos em todos os momentos de sua vida. E aqui entra
mos no mito judaico-cristão, a base da nossa civilização atual.
E o mito judaico-cristão é o mito dos que crêem e dos que
não crêem nele, dos antigos e dos modernos, porjque o mi
to não é aquilo que ele diz, mas a estrutura psíquica que
ele produz.
Iavé cria sozinho o mundo em sete dias e depois cria o
homem. E só depois, de uma costela sua, tira a primeira mu-
70
lher. E foi esta mulher a causa de todos os males que sucede
ram ao homem. Depois da Queda, ele teria que ganhar o pão
com o suor de seu rosto, e ela, ser submissa ao marido e pa
rir na dor. E ambos foram expulsos do Jardim do Éden.
Sim, primeiro havia um jardim em que o alimento era
abundante e farto que era colhido sem trabalho. Até hoje
a humanidade guarda em seu inconsciente mais profundo
o que devia ser a vida nas sociedades de coleta: a harmonia
entre os sexos e a despreocupação com o dia de amanhã.
E era isto a felicidade perfeita. O homem e a mulher eram
iguais, e a natureza era integrada com eles.
Quando ambos comem o fruto da árvore do conheci
mento (e a mulher é a culpada desta transgressão), eles co
meçam a se afastar da natureza e a dominá-la. E disse Deus:
‘ ‘Terás domínio sobre toda a natureza. ’ ’ Ao dominar a na
tureza, o homem vai também pouco a pouco dominando
a mulher. E o que há de mais interessante para se notar é
que, para se persuadir da sua supremacia, o homem teve
que se convencer de que pariu a primeira mulher. Hoje.
através da psicanálise, sabe-se que o iavista usou um meca
nismo de defesa muito comum: o deslocamento, para, ao
mesmo tempo, revelar implicitamente e esconder explici-
tamente a natureza desta superioridade. Por este fenôme
no, ele pode dizer que não foi do ventre, mas sim da costela
de Adão que Deus tirou Eva. Assim, ela podería ao mesmo
tempo ser igual ao homem mas submissa a ele desde o iní
cio. E o homem para sempre adquiriría a segurança de ser
o primeiro da natureza e da humanidade.
À medida que o homem vai controlando a nature
za, seu poder sobre a mulher vai também, na mesma pro
porção, aumentando e se cerrando. O fruto da árvore do
conhecimento afasta cada vez mais o homem da natureza,
e a árvore do conhecimento é também a árvore do bem e
do mal. Do bem, no que permite a continuidade do pro
cesso humano, e do mal no sentido em que cria o poder,
a dominação como a conhecemos hoje.
71
A noção de poder como a conhecemos hoje é desco
nhecida nas sociedades mais primitivas. Poder que é agora
controle, autoritarismo, centralização e que antes era o pri
vilégio de melhor servir a comunidade.
Poder que é santificado também pelo mito cristão e
que torna os dois primeiros capítulos do Gênese o texto bá
sico do patriarcado. Isto acontece porque, além de parir a
mulher, de alocar-se a si mesmo a capacidade de dominar
a natureza, o homem ainda culpa a mulher por sua trans
gressão à lei do Pai, que é a origem de todos os males.
Quando o Gênese foi escrito, as primeiras sociedades
agrárias já existiam há milênios, e, portanto, já estavam em
parte formadas as novas estruturas psíquicas que iriam tor
nar homens e mulheres aptos ao sistema patriarcal. Portan
to, o relato da Queda nada mais fez do que explicitar o que
já estava no inconsciente de homens e mulheres; além dis
so, através de um texto sagrado, esta nova estrutura psíqui
ca ficou santificada.
Aqui é muito importante frisar que até agora, ao estu
dar as relações homem /mulher nas diversas culturas, per
cebemos que estas relações vão seguindo “coladas” nas
relações de ambos os gêneros com o meio ambiente, isto
é, com a maneira de produzir a sua própria subsistência.
Se os dois tipos de relação não se adaptam, então a cultura
perece.
Ora, mais do que para as culturas, isto é verdade para
o patriarcado, que de agora em diante vem, nos milênios
seguintes, homogeneizar todas elas sob a sua superioridade
tecnológica, seu poder recém-definido em termos de com
petitividade e violência: doravante o patriarcado vai assimilar
para si todas as culturas pela violência.
Portanto, não é de espantar que estes dois capítulos
do Gênese venham também santificar as relações de poder
a partir do inconsciente que agora irão governar homens e
mulheres.
E como isto se dá?
72
Segundo o texto, a mulher leva o homem a enfrentar
a ameaça de morte feita por Deus Pai. Isto nos lembra o
que acontece na fase edipiana da criança, quando o meni
no enfrenta a morte imaginariamente para ficar com a mãe.
Se quiser viver, tem que renunciar a ela.
E é isto mesmo o que diz o Gênese: porque Adão pre
feriu a mulher, foi simbolicamente morto pelo Pai. Daí a
mensagem de que a mulher é tentadora, destrutiva, e de
que desestabiliza as relações do Homem com Deus.
Isto quer dizer que, também, o Gênese explicita o novo
fenômeno da castração e o torna sagrado. Daí em diante, a
identificação sexual do menino com o pai se fará pelo medo e
pela violência, e as relações com a mulher não serão mais de
afeto e solidariedade e, sim, de ressentimento e dominação.
O mais interessante é que o Gênese não pára aí. O texto
traz como primeira maldição para o homem o sair do Jar
dim das Delícias e começar a arar a terra. Portanto, o texto
sagrado faz um “pacote” interior e exterior, individual e
coletivo, e de um só golpe une o inconsciente ao novo mo
do de produção agrário que daí em diante virá a ser o gran
de transformador da humanidade.
É o próprio Gênese que liga a castração ao patriarca
do, mostrando que as relações de dominação (violência) do
homem com a natureza terão como condição necessária pa
ra o seu funcionamento a relação de dominação entre ho
mens e mulheres e dos homens entre si: o homem tem que
se submeter ao Pai (o mais forte) e a mulher ao homem pa
ra que seja viável a dominação da natureza.
O trabalho da agricultura é pesado, exige disciplina cor
poral e a repressão do prazer e da sexualidade, isto é, do
corpo. De um só golpe, o Gênese rejeita a mulher (o cor
po) como causa de todo pecado e santifica o trabalho pesa
do (“e comerás o pão com o suor do teu rosto”).
E o texto vai mais longe: para a mulher aponta não
só a dor do parto (desconhecida no parto natural) e diz: “e
teu desejo te levará ao teu marido e ele te dominará”.
73
Na própria solução da fase edipiana, a menina, como
já vimos, não rompe a sexualidade do amor como o homem.
A finalidade da vida da mulher será, dentro do patriarca-
do, o amor ao homem, e a do homem, o trabalho. Por isso
o homem será punido no trabalho e a mulher na sexualida
de e no afeto, que ficarão para sempre frustrados.
O iavista não poderia ser mais diabólico. Não esque
ceu nada, nenhuma vulnerabilidade nem do homem nem
da mulher foi deixada de lado. A dominação do homem
pelo homem e do homem sobre a mulher, que são as duas
características essenciais do patriarcado, acrescida da domi
nação do homem sobre a terra, já estão santificadas. São
então santificadas todas as cisões: 1) a cisão dentro do ho
mem entre sexualidade e afeto, conhecimento e emoção.
O conhecimento é colocado como a causa da transgressão,
porque de agora em diante ele vai ser o motor que vai fazer
funcionar todo o sistema; 2) a cisão homem/homem — é
essencial ao patriarcado a santificação da dominação de uns
homens pelos outros, porque com isso se torna “natural”
a escravidão, sem a qual não há sociedade agrária; 3) a ci
são homem/mulher, com a conseqüente cisão público/pri
vado. Esta cisão é essencial também porque a opressão da
mulher é o que torna todas as outras possíveis; e, finalmen
te, 4) a cisão homem/natureza, que é a base do cultivo da
terra com instrumentos pesados.
Com o Gênese, o novo sistema já tem tudo para fun
cionar, e até hoje funciona.
No entanto, há uma palavra final no Gênese, a mais
misteriosa de todas, que surpreendentemente desestabiliza
tudo o que vem sido dito por Deus. E uma palavra que não
adquiriu a mesma fama das outras, que foi invisibilizada
e manipulada durante todo este período patriarcal e que
guardamos para as conclusões deste livro, porque agora o
patriarcado já está em pleno funcionamento.
Tem início a história. Mas, antes, vamos ver as cultu
ras de transição: as sociedades pastoris.
74
9
As Sociedades Pastoris
A
sociedade pastoril é em geral definida como aquela
que repousa economicamente sobre a criação de re
banhos, sejam eles de cabras, bois, cavalos, ovelhas
etc. Como as sociedades de coleta e os horticultores sim
ples, as sociedades pastoris são em parte nômades. Muitas
vezes o pastoreio dos rebanhos é combinado com ativida
des horticultoras, mas sua produtividade é baixa, de modo
que estas sociedades possuem poucos excedentes. Por outro
lado, os animais são consideráveis fontes de riqueza, e por
tanto seus possuidores ficam sujeitos a invasões e roubos.
O pastoreiro de ovelhas e cabras é menos pesado, mas
o de bois e camelos requer força física, além de terem que
ser continuamente vigiados de predadores animais e huma
nos. Estas comunidades, por poderem oferecer melhores con
dições de sobrevivência, são maiores do que as de caça ou
coleta, e também mais sujeitas a guerras. Seus sistemas sócio-
políticos são mais centralizados e hierarquizados. Ao con
trário de caçadores e coletores, seus valores não são a gene-
75
rosidade e a distribuição de alimentos, mas a necessidade
de aumentar os rebanhos e pensar no futuro, o que os faz
dar um extremo valor à herança e aos filhos.
A divisão sexual de trabalho é baseada na supremacia
masculina nas tarefas economicamente produtivas. Os an
tropólogos Martin e Foorbies estudaram quarenta socieda
des pastoralistas e concluíram que a contribuição das mu
lheres nas tarefas econômicas é muito pequena. Em 30%
delas, o trabalho feminino consiste na ordenha e na fabri
cação de laticínios. Em quase todas, os homens tomam conta
dos rebanhos e em 50% são eles que também cultivam; no
entanto, quando o cultivo é do tipo horticultural simples,
o trabalho é quase exclusivamente feito pelas mulheres.
Neste tipo de sociedade, ainda é fraca a dicotomia en
tre público e privado, pois a sociedade seminômade não po
de prescindir do trabalho econômico da mulher; portanto,
ela não fica completamente segregada em casa. Contudo,
os espaços já são nitidamente divididos entre espaços mas
culinos e femininos.
As famílias são patricêntricas, e os homens em geral
tendem a controlar os rebanhos. No entanto,' nas socieda
des em que o trabalho da mulher é mais necessário, esta
tem mais status e poder de decisão.
Um dos povos nômades/pastoris que sobrevivem até
hoje são os beduínos do norte da África. Nessas sociedades,
que vivem num espaço desértico hostil, as populações e os
rebanhos são distribuídos de maneira mais adaptada em ter
mos ecológicos, ou seja, através do roubo de carneiros e de
camelos, dos dotes dados às noivas, das multas por assassi
nato, dos deveres de hospitalidade etc., de modo que os
rebanhos não possam acumular-se demais em poucas mãos,
devido às condições hostis do ambiente.^
Outro povo pastoril, os mongóis da Ásia Central (kirg-
hises), onde também se desenvolve uma desigualdade se
xual e social, é obrigado a travar violentas guerras a grandes
distâncias e altas velocidades nas estepes, por ser criador de
76
cavalos. Entre eles, mais guerreiros que os beduínos, forma-se
uma aristocracia guerreira que decide os destinos das tribos.
Nestas sociedades pastoris, as mulheres exibem um sta-
tus melhor do que nas sociedades agrárias, em que elas não
participam nos negócios do domínio público. No decorrer
da história, encontram-se muitos exemplos de rainhas guer
reiras neste tipo de sociedade. Entre os mongóis, onde as
mulheres eram treinadas para certos aspectos especializados
das guerras, a mulher do khan, a katun, possuía corte e corpo
diplomático próprios e participava com o marido dos negó
cios de Estado. Mas, à medida que os países vão se sedenta-
rizando, a mulher vai perdendo o seu status político e
econômico e pouco a pouco vai sendo isolada no domínio
do privado.
Entre os povos pastoris do norte da África e do sul da
Europa, como os atuais montenegrinos, por exemplo, as
guerras por rebanhos e propriedades são freqüentes, devi
do a um meio ambiente hostil e parco de recursos. Estas
guerras são dirigidas por códigos de honra masculina e ver
gonha. É um dever de honra, de vida ou morte, manter a
propriedade própria ou da família. Cobre-se de vergonha
o homem que não consegue fazê-lo. As mulheres são ex
cluídas do domínio público, e os códigos de honra se esten
dem ao seu comportamento, com punições de morte para
a perda da virgindade ou o adultério. Elas são segregadas
a ponto de não deixarem nenhum traço sobre as futuras ge
rações que procriam, e que apenas são contadas a partir da
linhagem paterna. Entre os montenegrinos, elas nem mes
mo são contadas entre os filhos. As mulheres são proprie
dade sexual do marido, e em muitas sociedades, além da
dos montenegrinos, elas são conhecidas apenas como “a mu
lher de Fulano”. Desde criança, são educadas para uma
extrema castidade e vergonha do corpo, e treinadas nos tra
balhos domésticos, enquanto os meninos, desde cedo, são
adestrados para a iniciativa, a coragem, a virilidade, a guerra
e a independência.
77
O controle da sexualidade das mulheres no sentido de
preservar a linhagem é preocupação primária dos homens
e das famílias, e, quando as regras são violadas, todo o clã
se empenha em vingar a desonra. Contudo, para os homens,
seduzir e deflorar mulheres de outros grupos é tomado co
mo grande façanha e prova de sua virilidade. As mulheres
são trocadas entre as famílias, e certas cerimônias de degra
dação, como por exemplo lavar ritualmente os pés dos ho
mens, são comuns nestas sociedades.
Ideologicamente, as mulheres são consideradas, por sua
simples existência, perigosas, traidoras e desestabilizadoras
da unidade e da solidariedade dos machos. Nas sociedades
em que o pastoreio é combinado com a horticultura, há a
poliginia, porque cada mulher adicional traz um novo aporte
de riquezas; no entanto, nas sociedades em que o pastora-
lismo é acoplado à agricultura, a família nuclear é predo
minante, pois a mulher não traz riquezas adicionais porque
o trabalho dos campos é feito na maior parte pelos homens.
Em algumas sociedades pastoris, sobretudo as islâmi
cas, onde a opressão da mulher é muito severa, homens e
mulheres têm uma ideologia em que um se considera ini
migo do outro. Os homens consideram as mulheres impu
ras, principalmente quando menstruam ou depois do parto.
Muitas vezes as mulheres odeiam os maridos a ponto de
envenená-los. Na maioria destas sociedades as mulheres não
herdam e depois de viúvas são obrigadas a casar com o ir
mão do marido a fim de obter proteção e meios de subsis
tência.
78
10
As Sociedades Agrárias
Q
uando a pressão populacional sobre as sociedades
mais primitivas cresceu e diminuiu a capacidade pro
dutiva de suas tecnologias e do seu meio ambiente,
as comunidades foram obrigadas a procurar novas formas
de relacionamento entre si, e também uma solução para a
escassez de terra e provisões. Assim, de nômades os povos
passam a tornar-se sedentários e começam a cultivar a terra
de novas formas. Em primeiro lugar, ser sedentária supõe
que a comunidade seja capaz de manter a terra fértil por
longo tempo, a fim de colher seu fruto periodicamente.
E assim surge a agricultura que emprega basicamente
o arado, só tornado possível após a aprendizagem da fun
dição dos metais, por volta de uns oito a dez mil anos atrás.
Contribuíram também para o sedentarismo os animais do
mesticados pelas sociedades pastoris e as técnicas de fertili
zação e irrigação de terras. Estas atividades puderam, assim,
dar origem a comunidades mais vastas e de diferentes orga
nizações sociais. Desses processos, surgem as primeiras al-
79
deias, as primeiras cidades, as cidades-estado, os primeiros
estados e depois os grandes impérios da Antiguidade, tais
como Egito, Babilônia, Grécia, Roma e China. Nasce as
sim o período histórico que até hoje estamos vivendo. A
revolução agrícola é considerada o início da História.
No entanto, a agricultura requer um trabalho tão pe
sado e tão constante que até hoje muitas regiões do mun
do, como o norte da África e certas partes da Ásia, resistem
à sua implantação, pois formas mais simples de sobrevivên
cia garantem o necessário
O nível de produtividade conseguido com as novas téc
nicas proporciona grandes excedentes, em escala inimagi
nável para as sociedades pré-agrícolas. Pela primeira vez na
história da espécie humana, grandes setores da população
podem dar-se o luxo de se libertar do trabalho produtivo.
Isto dá lugar a aglomerações urbanas, a uma classe domi
nante e à criação de um estado com poder central sobre vastas
camadas trabalhadoras camponesas. Delas vivem as classes
dominantes, sob a forma de impostos, trabalhos forçados
ou até escravidão.
Os escravos são o produto do aperfeiçoamento militar
e, portanto, da conquista de povos mais fracos. Muitas ve
zes as sociedades agrárias possuíam classes inferiores consi
deradas degradadas ou imundas, tais como os párias na
índia, que eram encarregados dos trabalhos mais pesados
e humilhantes, como a curtição de couros ou o trabalho com
carcaças animais, cadáveres e esterco.
O crescimento da população produz também um ex
cedente de gente que não pode compartilhar da divisão ou
do trabalho da terra. Por causa da enorme competitividade
para ampliar as propriedades, os mais capazes conseguem
tomar as terras dos menos aptos, e surge então um imenso
exército de mendigos, ladrões de estrada, migrantes sazo
nais e criminosos. Embora desprezadas e quase à beira da
fome, estas massas formavam um enorme exército de reser
va, que de tempos em tempos podia assumir certas tarefas
80
em fases de maior necessidade de mão-de-obra.
Além destas, as sociedades agrárias possuem também
classes médias encarregadas das trocas dos excedentes do co
mércio. Embora de pouco prestígio, estas atividades pro
duziam considerável riqueza.
Uma classe de maior prestígio era aquela composta dos
que serviam diretamente à classe dominante, tais como os
empregados pessoais ou soldados. Sua missão era servir de
intermediária entre a expropriação dos excedentes dos cam
poneses em favor das classes dominantes, o que incluía tam
bém a cobrança de impostos, aluguéis ou até a tomada pela
força. Daí a emergência de um aumento de burocratas
médios.
As classes mais privilegiadas constituíam-se dos que go
vernavam o Estado e comandavam as forças militares; eram
fabulosamente ricos. Ao lado destas, colocava-se a classe sa
cerdotal, que tinha a missão de legitimar a ordem estabele
cida e controlar as massas a partir da manipulação da relação
humana com a transcedência. São os sacerdotes os repre
sentantes de Deus ou dos deuses.
Acima de todos vinha o rei, supremo soberano por di
reito divino ou ele mesmo, nas sociedades mais antigas, a
encarnação de um deus. Até hoje, no século XX, o impera
dor do Japão é considerado deus.
Tudo isto significa que as sociedades agrárias possuíam
uma estrutura de desigualdade extremamente bem monta
da que mais tarde veio a ser a sociedade de classes, e cuja
lei interna vinha a ser a exploração de uns poucos sobre
muitos.
As sociedades agrárias são muito mais complexas do que
as que as antecederam. Suas comunidades aumentam enor
memente de tamanho; o trabalho especializado emerge jun
to com um Estado cada vez mais centralizado, e a dominação
imperial passa a depender basicamente dos transportes e da
comunicação. Por ser o Estado altamente centralizado, há
sempre uma contínua luta entre governantes e governados,
81
bem como entre os diversos estados. A guerra instala-se no
coração das sociedades agrárias, e, com ela, a escravidão dos
povos conquistados. Na Turquia antiga, por exemplo, o sul
tão era tão poderoso que mesmo os seus assistentes mais pró
ximos eram seus escravos pessoais, ao passo que na Europa
medieval os reis tinham menos poder que o poder absoluto
do senhor feudal sobre seus súditos.
As religiões das sociedades agrárias refletem a situação
social e econômica maior. São todas elas universalistas —
cristianismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e islamismo
—: um deus masculino reina sobre todo o universo, e os
que não seguem as suas leis têm que ser conquistados e es
cravizados.
À medida que o Estado vai se tornando mais podero
so, decresce o poder das famílias e do sistema de parentes
co. As funções políticas e econômicas são realizadas pela
classe, e não mais pela família. A herança passa mais de in
divíduo para indivíduo do que para os clãs. As famílias ex
tensas se dividem em famílias menores. Conforme a pro
dutividade das mulheres declina, dimini também a poligi-
nia. Apenas a China é uma exceção a este sistema. A cultu
ra de anoz é um incentivo à poliginia e ao controle da
sociedade pelos antigos sistemas de parentesco. Os casamen
tos nas sociedades agrárias são feitos por interesses de alian
ças entre setores da sociedade e as grandes famílias. Era
através do casamento que a mulher, segregada apenas ao
ambiente doméstico, adquiria algum status. Esperava-se que
ela fosse frígida e não tivesse laços emocionais de proximi
dade com o marido. Na educação das crianças, eram enfa
tizadas a disciplina e a obediência em detrimento da afeição,
que deveria ser controlada desde a mais tenra infância. Nas
classes mais pobres, as crianças começam a trabalhar desde
muito cedo. A socialização é altamente segregadora dos se
xos. Às meninas eram ensinadas a arte doméstica e as de
manipulação dos homens, e aos meninos, as profissões de
seus pais, a iniciativa e a coragem.
82
Assim, nas sociedades agrárias, a estratificação de clas
ses vem juntamente com a estratificação dos sexos. A su
bordinação da mulher c maior nas sociedades agrárias do
que em qualquer outra. As mulheres são reduzidas ao do
mínio do privado e perdem todas as suas funções econômi
cas. Sua função agora é ter filhos e educá-los. Quanto mais
braços, mais gente para arar a terra e mais soldados para
os exércitos.
O trabalho econômico das mulheres das classes menos
favorecidas é considerado secundário e apenas para valor de
uso: tecer, costurar, criar pequenos animais, processar o pro
duto colhido pelos homens etc., embora fossem trabalhos
absolutamente necessários para a sobrevivência de todos.
Declinam os trabalhos em massa de mulheres, e com
este declínio decresce a solidariedade entre elas, cada uma
lutando por si, competindo com as outras pelo melhor pro
vedor como marido.
Além disso, nas sociedades agrárias, a sexualidade das
mulheres era controlada, mas não a dos homens. Ora, isto
deu origem a uma dupla função sexual das mulheres: a es
posa, casta, frígida, considerando o sexo como pecado e su
jo, e por outro lado a prostituta, especialista nas artes sexuais,
em geral oriundas dos povos conquistados ou de classes mais
pobres. Aparecem então sob o patriarcado as mulheres pri
vadas e as mulheres públicas.
Estas sociedades constroem elaborados sistemas religio
sos, morais e legais justificando os estereótipos femininos
e masculinos. Enfatiza-se religiosa, legal e moralmente a in
teligência, a liberdade masculina, bem como a sua supre
macia no domínio público e da história. Por outro lado, a
mulher é considerada emocional, menos sublimada, dedi
cada inteiramente ao amor do marido e dos filhos e inca
paz de assumir papéis econômicos e políticos, precisando
portanto da proteção, orientação e supervisão dos homens
em quase todos os domínios.
Esta introdução sobre a natureza de todas as socieda
83
des agrárias nos permitirá agora abordá-las do ponto de vis
ta histórico. Analisemos alguns casos como Egito, Grécia,
Roma, as sociedades européias, e, também, as que conti
nuam neste estágio agrário ainda no século XX, tais como
a índia, e o Brasil, para só então nos determos sobre as ca
racterísticas das sociedades que sucederam as sociedades agrá
rias, isto é, as sociedades industriais.
Contudo, só nos deteremos naquilo que se conhece em
relação à mulher, que é a nossa finalidade, pois da história
masculina já se disseram todas as palavras.
84
11
Os Grandes Impérios
da Antiguidade
Egito
O
Egito já era uma velha civilização dois mil anos a.C.
Nos tempos mais remotos, contudo, parece que a cul
tura e a civilização egípcias eram matricêntricas e ma-
trilineares. As máximas de Ptah-Hotep (3200 a.C.), talvez
as mais antigas já conhecidas, ordenavam que os homens
obedecessem às suas mulheres. Embora esta situação não te
nha durado três mil anos, no primeiro século a.C. Diodo-
rus Ciculus, romano em viagem ao Egito, escreveu que os
homens obedeciam às suas mulheres e que isto levava aos
mais felizes arranjos.
Nos primeiros tempos, o trono passava segundo a li
nha matrilinear, e, embora pareça ter havido estratificação
de classes, os túmulos mais antigos mostram igualdade en
tre homens e mulheres. Havia grandes sacerdotisas, nego
ciantes e guerreiras. Foi uma rainha — Ahotep — que, em
85
1554 a.C., rechaçou a invasão dos hicsos. Com o correr do
tempo, no entanto, a condição da mulher foi diminuindo.
Os faraós construíram para si túmulos que desafiaram os sé
culos, mas na família real eram irmão e irmã que reinavam
juntos. Isto durou até o primeiro século a.C. quando uma
rainha, Cleópatra, esposa de seu irmão Ptolomeu, veio a
ameaçar a hegemonia do Império Romano. Sua figura, que
chegou até nós através dos romanos, que a odiavam e te
miam, veio distorcidas, mas um historiador inglês, Sir Wil-
liam Tarn, escreveu: “Roma, que nunca condescendeu em
temer nenhuma nação ou povo, em toda a sua história só
temeu duas pessoas: uma foi Aníbal, e a segunda foi uma
mulher.”
Ao contrário do que chegou até nós, ela não usou sua
beleza para seduzir os donos do mundo e obter o poder ab
soluto, mas foi uma guerreira. Defendeu seu país com a pró
pria vida. Os romanos só conseguiram dominar o Egito
depois que ela morreu.
Quinze séculos depois, em O Martelo das Feiticeiras*
(Malleus Maleficarum), o livro escrito pelos inquisidores que
se tornou o manual da morte e do julgamento das mulhe
res, Cleópatra era citada como a bruxa mais maléfica que
o mundo já teve.
E hoje sabemos o que isso quer dizer...
Grécia
A cultura e a civilização grega sofreram forte influên
cia da cultura e civilização cretense minóica. Devido à ine
xistência de guerras, à pouca pressão de população e à forma
de obter alimento (através da horticultura), Creta nunca
chegou a ser uma civilização plenamente agrária, embo
ra tenha sido bastante avançada. A civilização minóica era
*Editado no Brasil pela Editora Rosa dos Tempos
86
matrilinear e matrilocal. Pinturas e afrescos mostram mu
lheres dirigindo navios, comerciando, plantando, mulhe
res sacerdotisas etc. Esta civilização, que durou de três mil
a mil e seiscentos anos a.C., pereceu instantaneamente por
uma enorme erupção vulcânica e mais tarde foi invadida
por um povo agressivo e militarista*, os egeus, um povo gre
go da região de Micenas. Foi este mesmo povo que invadiu
Tróia em 1254 a.C. A figura de Helena de Tróia, a rainha
adúltera que provocou esta guerra, tal como Cleópatra, che
gou até nós deturpada. Ela foi considerada a culpada pela
invasão de Tróia e pela morte de milhares de homens, mas
a guerra aconteceu porque os gregos queriam invadir a Ásia
Menor. Helena nada mais era que uma mulher que trans
grediu os padrões de sua época e foi capaz de viver plena
mente o seu corpo e a sua sexualidade. Por isso também
foi considerada uma das mulheres mais perigosas de todos
os tempos.
E a história foi continuando o seu curso. Cinqüenta
anos depois da guerra de Tróia, os dórios, por sua vez, arra
saram os egeus. E nesse tempo Minos e Creta já não eram
mais do que uma lembrança.
Muitos povos independentes formavam o povo que hoje
chamamos grego e viviam em cidades-estado durante o tem
po em que durou o esplendor desta civilização. A história
grega se divide em três partes: a primeira, chamada arcai
ca, foi do oitavo ao sexto século a.C.; o período clássico,
do sexto ao quarto, e a terceira, chamada helenística, foi
do quarto até a tomada da Grécia pelos romanos.
O período arcaico foi um período de grandes lutas in-
testinas entre os senhores da terra. Os papéis sexuais enfati
zam o caráter guerreiro dos homens e o das mulheres como
produtoras de guerreiros. Nesse tempo, já a esfera domés
tica era completamente separada da esfera pública. As mu
lheres eram usadas para solidificar alianças entre as famílias
mais poderosas. E como este tempo era também um tempo
de grandes pressões populacionais, era comum o infanticí-
87
Helena de Tróia — mulher-símbolo entre o matricentrismo
e o patriarcado
88
dio, principalmente de meninas. Em Atenas, as mulheres
casadas estavam firmemente atadas à esfera doméstica. Nas
casas dos poderosos havia um recinto reservado para os ho
mens e outro para as mulheres — o gineceu. As mulheres
pobres e as escravas eram as únicas que podiam sair às ruas
fora dos ritos sagrados e dos funerais, única ocasião em que
era dado à mulher sair fora da casa.
Na Grécia, a frigidez era institucionalizada. As mu
lheres “boas” não deveriam demonstrar nenhum interesse
pelas coisas do sexo e submeter-se a seus maridos porque
era seu dever produzir filhos. Concomitantemente, isto trazia
o duplo padrão da sexualidade feminina. Como a sexuali
dade da esposa era controlada e a do homem não, as escra
vas e as prostitutas eram também sexualmente exploradas.
Era sinal de s.tatus para um homem ter como escrava a es
posa ou a filha de um chefe vencido. As mulheres, pois,
passaram a ser propriedade sexual dos homens, e o prestí
gio masculino se media na proporção em que este era capaz
de controlar a sua propriedade.
Já em Esparta a posição da mulher era bastante dife
rente. As meninas eram educadas junto com os meninos em
atividades guerreiras. A sociedade espartana era altamente
militarista; isso afastava os homens da cidade durante lon
go tempo, o que dava bastante autonomia às mulheres, em
bora não tivessem os mesmos direitos políticos que os
homens nem fossem por eles consideradas iguais. Esta maior
liberdade das mulheres em Esparta refletia-se até na ma
neira de vestir. Enquanto as espartanas vestiam-se com tú
nicas curtas que lhes davam grande agilidade de movimen
tos, as atenienses usavam volumosas e complicadas túnicas
e penteados que lhes atrapalhavam a ação.
Durante este período arcaico, a homossexualidade era
muito difundida entre os homens, seja pela reclusão das mu
lheres, seja pelas grandes jornadas militares que eles eram
obrigados a fazer. A homossexualidade feminina, de que
a poetisa Safo foi o maior símbolo, não podia acontecer em
89
uma sociedade como Atenas, onde as mulheres eram de
gradadas e umas eram rivais das outras em busca dos me
lhores provedores, mas sim em Lesbos onde a sociedade
aceitava tanto homens como mulheres e os educava conjun
tamente, e onde era permitido guardar na maturidade os
mesrnos laços adquiridos desde a infância.
À medida que a história grega foi evoluindo, a Grécia
foi saindo do período arcaico e entrando na era clássica, seu
poder foi se reforçando e, com ele, a estrutura de classes.
A condição da mulher, então, foi se tornando cada vez pior.
No século VI a.C., Sólon, com seu Código de Leis, tornou
ainda mais rígida a condição feminina. A propriedade do
marido era absoluta, indo ao extremo de o pai poder ven
der como escrava ou prostituta a filha que perdesse a vir
gindade, mesmo que esta perda fosse devida a estupro. Sólon
estabeleceu, também, bordéis de propriedade do estado,
para tornar Atenas mais atraente para os estrangeiros. Li
mitou ainda a quantidade de jóias, vestidos e alimentação
que as mulheres livres poderiam ter. Restringiu seus pas
seios na rua, a fim de limitar também a exibição de rique
zas de maridos poderosos através de suas filhas e mulheres
enfeitadas andando pelos lugares públicos.
Sólon, que era homossexual, considerava as mulheres
uma fonte de discórdia entre os homens, e tentou resolver
este problema pelo estrito isolamento feminino dentro do
domínio privado. As mulheres dos cidadãos só podiam ser
vir ao estado produzindo uma descendência masculina que
lhes perpetuasse a linhagem patricêntrica e patriarcal. E os
cidadãos homens deveriam servir ao estado através de seus
papéis políticos e militares. A autoridade do pai passava para
o marido ou para o filho mais velho, caso a mulher não se
casasse. Não era incomum na Grécia que as mulheres se ca
sassem várias vezes, devido à freqüência das guerras entre
os povos gregos e também devido à grande diferença de ida
de entre marido e mulher. Meninas de doze anos não raro
casavam-se com homens de mais de trinta ou quarenta anos.
90
Quando a mulher cometia adultério, era rejeitada pe
la sociedade e punida severamente, perdendo seus direitos
de cidadã. O marido podia matar o sedutor ou exigir dele
uma multa, mas muitas vezes a mulher podia até ser ven
dida como escrava, porque era considerada uma “proprie
dade arruinada”. Na Atenas clássica, as relações entre
homens e mulheres não deviam ser de ordem afetiva nem
de proximidade emocional. As mulheres eram analfabetas
e isoladas. O único tipo de mulheres a quem eram dadas
educação e alta sofisticação eram as hetairas, as únicas mu
lheres não-estereotipadas da sociedade grega. Somente elas
eram capazes de conversar no mesmo nível dos homens e
prover companhia de alta classe aos seus amigos. Muitas até
eram prostitutas de elevado nível, mas a maioria não era.
Muitas freqüentavam a Academia e o Liceu, como Astenia
e Axiotéia, alunas de Platão, e muitas outras foram até cien
tistas que contribuíram para o progresso do conhecimento
grego. Inúmeras eram poetas, como Safo e Corina; outras
possuíam grandes conhecimentos de enfermagem ou culi
nária. Embora os homens apreciassem a sua companhia, seus
sentimentos para com elas eram ambivalentes, pois eram
a prova viva de que as mulheres não eram seres assim tão
degradados e ignorantes.
Apesar da existência das hetairas, a sociedade grega era
misógina e sexista. Aristóteles considerava “natural” a in
ferioridade da mulher em relação ao homem, e até o século
XIX de nossa era pensava-se que o útero feminino fosse um
receptáculo vazio que recebia o sêmen masculino e que so
mente este trabalhava para dar origem ao novo ser huma
no. E, ainda mais, que o feto masculino adquiria alma aos
quarenta dias, e o feminino, aos oitenta. Só quando em 1827
foi descoberto o processo da ovulacão, o pensamento oci
dental, até então baseado nas provas “científicas” de Pla
tão e Aristóteles, começou a questionar as idéias tradicionais
sobre o sexo feminino.
No período clássico, as crianças eram educadas de ma
91
neira oposta. Os meninos para a criatividade, o domínio pú
blico e um forte adestramento físico e mental. Das meni
nas exigiam-se silêncio, passividade e bom desempenho nos
afazeres domésticos.
O ressentimento das mulheres por sua reclusão e bai
xo jtatus refletia-se na maneira como se ligavam aos filhos
meninos. Ao mesmo tempo, amavam-nos e odiavam-nos
por tudo aquilo que eles tinham e elas não podiam ter. E
como tudo isto ocorria numa cultura que desprezava as mu
lheres, estes sentimentos serviam para produzir homens que
tinham medo das mulheres, especialmente das mães, o que
reforçava ainda mais a separação entre os sexos e a misogi-
nia cultural. Os homens preferiam a companhia de outros
homens, procuravam estar o mais possível fora de casa e evi
tar tudo que fosse feminino. Assim, espalhava-se a homos
sexualidade. Os homens preferiam a relação anal com jovens
efebos ao ato sexual com mulheres ou até outros homens
adultos, pois os rapazes eram ao mesmo tempo homens e
possuíam a fragilidade necessária para serem dominados.
Quando se tornavam homens, por sua vez, os jovens que
não podiam ser mais passivos tornavam-se excessivamente
agressivos, tais como os homossexuais típicos da década de
60, que usavam roupas de couro negro e eram muito agres
sivos. Assim, quando um grego adulto tinha relações com
uma mulher, podia evitar qualquer envolvimento emocio
nal com ela e, portanto, evitar sentir-se dominado pelo ser
tão temido.
O terceiro período da história grega, chamado de pe
ríodo helenístico, inicia-se com a conquista da Grécia por
Felipe, rei da Macedônia e pai de Alexandre, o Grande. A
perda de poder dos senhores da Grécia trouxe consigo tam
bém a perda paulatina de poder sobre suas mulheres e fi
lhas. Pouco a pouco, neste período da história grega, elas
foram conseguindo acesso ao domínio público. Volta a ida
de das mulheres poetas e participantes da política. As rela
ções entre os dois gêneros tornaram-se mais próximas, e
92
muitas vezes os casamentos se faziam por amor, ou então
se desfaziam por este mesmo motivo. E, embora as mulhe
res ainda continuassem excluídas da plena cidadania, mui
tas conseguiram cargos e até controle de grandes fortunas
e propriedades.
Este exemplo do envolvimento na política e na econo
mia veio das rainhas e princesas macedônias. Na ausência
dos reis, as rainhas tinham poder absoluto de decisão. Em
bora não pudessem exercer plenamente o poder por si mes
mas, as rainhas e princesas macedônias eram peças impor
tantes nos jogos políticos. Contudo, nestes tempos, nenhu
ma mulher podia ter uma igualdade completa com a con
dição do homem.
Roma
Assim como se crê que historicamente a civilização grega
tenha derivado de culturas matricêntricas tais como a de Cre-
ta, também se pensa que os etruscos, de quem se originaram
os romanos, eram matrilineares e matrilocais. Suas mulheres
eram sexualmente livres: belas, atléticas e boas bebedoras.
Educavam filhos e filhas de maneira igual. Nas raras inscrições
deixadas pelos etruscos, muitas vezes se relembra os nomes
das mães e não os dos pais dos mortos. No entanto, o que quer
que tenha acontecido, os romanos, povo que sucedeu aos
etruscos, desde o início, possuem documentos descrevendo-
os como pomposos, solenes e rigidamente honestos, quali
dades que mascaravam a sua agressividade mais profunda.
Roma parece ter sido fundada no século VII a.C. pelos
gêmeos Rômulo e Remo, que sobreviveram alimentados por
uma loba. Nos primeiros tempos foi uma monarquia e de
pois uma república, governada apenas pelos senhores de ter
ras, únicos cidadãos livres. Em 25 a.C. tornou-se um impé
rio. Roma nunca foi governada por uma mulher, e não se
tem memória de uma deusa-mãe originária.
93
Desde o seu início, Roma envolveu-se em guerras in
ternas e externas, principalmente as Guerras Púnicas con
tra Cartago no século III a.C. Ao tornar-se o maior império
da antiguidade, Roma iniciou também os processos urba
nos de mercado. Este império caiu em 509 d.C., sob o peso
de sua própria desagregação interna, como veremos adiante.
Antes das Guerras Púnicas, Roma era uma sociedade
fortemente patriarcal. O chefe de família (J?aterfamílias) ti
nha direito de vida e de morte sobre todos os membros do
clã. Tinha o direito de matá-los ou vendê-los como escravos
ao seu bel-prazer. Um recém-nascido só era aceito na famí
lia se o pai o permitisse. Caso contrário, podia ser morto
ou entregue a algum mercador de escravos.
Nos primeiros tempos de sua história, Roma era uma
sociedade agrária que gerava produtos apenas para a sua sub
sistência. Como atualmente ainda acontece em muitas so
ciedades camponesas, a família extensa era auto-suficiente.
Produzia desde comida, roupa, até a própria habitação.
Nesses tempos, nem mesmo as classes dominantes es
capavam do trabalho. Todos os homens e mulheres esta
vam pesadamente envolvidos no trabalho produtivo. Os
casamentos eram monogâmicos tanto para homens como pa
ra mulheres, e estas se casavam de acordo com os dotes que
seus pais lhes atribuíam. O adultério era punido muito se
veramente para as mulheres e menos duramente para os ho
mens. A virgindade era altamente apreciada. Maridos e pais
tinham o direito de matar filhas e mulheres não-castas.
A esta forma de casamento sucede-se outra, chamada
casamento sine manus, em que o pai controlava a vida da
filha mesmo depois de casada. Ele podia dissolver o casa
mento desta e chamá-la de volta para casa. Os filhos ho
mens eventualmente podiam conseguir a independência
econômica. As filhas, nunca.
Isto dava à mulher uma situação melhor do que a que
teria sob a guarda do marido. Estando sob a autoridade
do pai, que morava em outro local, o marido que a vi-
94
giava não tinha autoridade formal sobre ela. Se a mulher
achasse intolerável a vida com o marido, podia retornar à
casa paterna. Por outro lado, seu dote não podia ser usa
do ao arbítrio do cônjuge, o que a protegia de uma sub
missão total.
A falta de reconhecimento da mulher como indivíduo
refletia-se no fato de ela não ter nome próprio. Por exem
plo: se seu pai se chamasse Júlio, seu nome seria Júlia. Quan
do havia mais de uma filha, eram conhecidas como Júlia
a mais velha e Júlia a menor, ou Júlia primeira e Júlia se
gunda, e assim por diante. Ao contrário, os filhos homens
possuíam nomes individuais. Todo o sistema romano foi
construído para mostrar que as mulheres eram parcelas anô
nimas e sem importância de família maiores.
No entanto, embora não fosse reconhecida como indi
víduo, a mulher romana dos primeiros tempos não era re
clusa. Participava do trabalho e podia sair quando preciso
para fazer compras, visitas, ir ao teatro, passear etc., bem
como para participar de reuniões políticas. As mulheres eram
educadas quase da mesma maneira que os homens.
Freqüentemente os homens ficavam ausentes muito
tempo, e a maioria deles morria nas guerras. Assim, as mu
lheres às vezes podiam herdar grandes fortunas ou proprie
dades e podiam burlar o sistema de guarda, escolhendo um
guardião que pudessem manipular. Assim, quando come
ça o período republicano seguinte, muitas mulheres pos
suíam grande poder econômico e político.
O sucesso na guerra concentrou também o poder polí
tico nas mãos dos líderes militares romanos. Depois das Guer
ras Púnicas, flui para Roma um imenso contingente de
escravos, o que dá origem a uma grande concentração de po
der. Como o trabalho manual era feito pelos escravos e as mu
lheres das classes dominantes não participavam da política,
elas tinham todo o tempo livre. Mesmo a criação dos filhos
era entregue a escravos e tutores. A educação passou paula-
tinamente de rígida a indulgente para com as crianças.
95
Quanto mais ricas ficavam, mais as classes dominantes
se tornavam extravagantes, o que deve ter contribuído sig
nificativamente para a decadência do Império Romano: mui
to luxo e pouca vontade de trabalhar. Com o correr do tem
po, isto levou a uma vida sexualmente dissipada para
homens e mulheres.
No entanto, todo este poder e esta liberdade das mu
lheres não faziam senão exaltar o sentimento misôgino da
cultura romana. Era comum os grandes escritores vitupera-
rem contra as mulheres. Quanto mais inseguros ficavam os
homens em relação às mulheres, mais poder eles se atribuíam
a si mesmos. E as mulheres eram vistas como bodes expia
tórios de todas as falhas e males humanos. Mesmo os poe
tas que cantavam o amor muitas vezes cercavam este amor
de sofrimento e morte, chegando à conclusão de que o amor
e a mulher eram perigosos para o homem.
Para as classes pobres, havia muito desemprego e misé
ria em Roma. Era grande a instabilidade social. Durante certo
96
período, o governo distribuía trigo grátis aos homens, mas não
o suficiente para sustentar as mulheres; contudo, como se su
punha que estas deveriam produzir soldados, outra vez ha
via discriminação das meninas em relação aos meninos.
No início do esplendor e da decadência do Império Ro
mano, o casamento e a família entre as classes dominantes
foram perdendo a estabilidade que caracterizou as primei
ras épocas. O divórcio foi se tornando cada vez mais trivial.
Era comum o concubinato, principalmente para os homens
que desejavam parceiras das classes mais baixas. Os homens
tinham acesso às escravas e prostitutas porque a lei só pro
tegia as cidadãs. As leis de divórcio continuavam severas para
as mulheres, mas apenas nominalmente. Muitas matronas
romanas, para fugir às penalidades e proteger seus aman
tes, registravam-se como prostitutas legais. Mais tarde, con
tudo, esta prática foi proibida. E desta época a lembrança
de Messalina, mulher do Imperador Cláudio, considerada
uma das mulheres mais devassas da história, que todas as
noites ia entregar-se aos trabalhadores manuais no bairro
portuário de Suburra. Mas que foi morta pelo marido não
pela sua prostituição e, sim, porque ousou amar outro
homem...
Durante este período, a taxa de casamentos e nascimen
tos caiu verticalmente, chegando a ameaçar a população de
cidadãos e chefes militares. O estímulo ao casamento e à
procriação veio em uma lei que libertava as mulheres cida
dãs da guarda dos pais e maridos caso tivessem e educassem
ao menos três filhos, ou cinco para as mulheres de classe
inferior. Isto no entanto não impediu o declínio das famí
lias nas classes superiores.
Uma das razões pelas quais a família perdeu terreno
foi o ter perdido a maior parte de suas funções numa socie
dade urbana de mercado. A família extensa e opaterfami-
lias não eram mais o centro da produção, da educação, da
política e da economia. As pessoas podiam viver isolada
mente sem necessidade das estruturas familiares, o que mi
97
nou grande parte do controle da família e da sociedade so
bre os seus membros.
Assim, o cristianismo pode surgir e difundir-se no Im
pério Romano.
99
12
A Idade Média
110
“O epicentro das execuções das bruxas foi o Santo Império,
especialmente no sudoeste da Alemanha, Baviera, Suíça e Áus
tria. Na verdade, as execuções tiveram início na Áustria. O su
doeste da Alemanha e a Baviera foram responsáveis por mais
de três mil e quinhentas execuções cada. Na Polônia, a segun
da área mais afligida por este flagelo, grande número de ‘fei
ticeiras’ foi queimado entre 1675 e 1720, muito depois que
a caça às bruxas havia terminado no resto da Europa. Em al
gumas cidades alemãs, seiscentas bruxas eram executadas em
apenas um ano; na área de Wurtburg, novecentas num único
ano; em Como (Itália), mil; em Toulouse (França), quatro
centas foram queimadas num único dia. Na diocese de Trier,
1585, duas aldeias foram deixadas apenas com uma moradora
mulher cada uma. Mesmo crianças eram acusadas e queima
das na fogueira. Em Londres, um escocês confessou que ele
sozinho havia sido responsável pela morte de 229 mulheres,
por cada uma das quais havia recebido vinte e um shillings.
E pouco consolo que ele também tivesse sido queimado. Esti
mativa do número de pessoas mortas na fogueira vai de pouco
mais de cem mil a nove milhões.”
Das pessoas executadas por bruxaria, cerca de 85 % eram
mulheres e, em sua quase totalidade, mulheres pobres. Mui
tas delas eram velhas e viúvas ou solteironas, isto é, mulhe
res que não possuíam homens para as protegerem, e cujos
pedaços de terra ou os poucos bens eram cobiçados por vi
zinhos. Muitas eram mendigas e eram mandadas queimar,
em vez de serem alimentadas. Outras ainda, eram mem
bros das seitas “heréticas” do tempo, que aceitavam mais
que a Igreja católica a presença das mulheres. E assim como
começou, esta história também acabou quatro séculos de
pois, durando do século XIV até o século XVIII. Mas, ao
acabar na Europa, passou para o outro lado do Atlântico,
vindo a terminar nas Américas somente no século XIX.
Esta paranóia e a histeria coletiva que é sua origem são
da mesma natureza que o pavor masculino da mulher, prin-
111
Joana d’Arc — a mais famosa das bruxas
112
cipalmente da mulher menstruada nas culturas mais sim
ples de que já falamos e cujo protagonista mais sofisticado
foi Aristóteles, que dizia que uma mulher menstruada ti
nha o poder de empretecer os espelhos...
Em outras palavras, parece que foi preciso erradicar vio
lentamente o feminino antes que o masculino pudesse cons
truir a mais violenta máquina de dominação e destruição
que a história humana já viu, o sistema capitalista. E o sím
bolo máximo desta tendência foi a execução da bruxa mais
famosa da Idade Média: Joana d’Arc. Apesar de ter salvo
a França do jugo dos ingleses, ela foi queimada viva sim
plesmente porque ousava usar roupas masculinas para con
duzir os exércitos do seu país à vitória. Os homens, todos
eles, do mais pobre ao mais poderoso, não podiam supor
tar o fato de uma mulher conduzida por um ideal de justi
ça pudesse competir com eles e desestabilizar as suas regras
de conduta, mesmo que fosse para vencer... E muito me
nos uma mulher pobre, uma camponesa que se supunha
fosse a mais submissa das mulheres.
O mais importante de notar-se, contudo, é que, ao
mesmo tempo em que a mulher e o demônio dominavam
o imaginário e a moral européias, desencadeava-se outro pro
cesso completamente inverso: a literatura do amor cortês,
que colocava as mulheres das classes dominantes, principal
mente as mulheres dos senhores de terras, num pedestal de
pureza e idealização e fazia os cavaleiros cantarem o seu amor
platônico por elas a fim de terem coragem nas batalhas. Mas
podemos observar muito oportunamente que, enquanto o
pedestal se escondia nos salões dos castelos, a fogueira quei
mava por toda parte, por todo canto da Europa.
As cortes de amor, como eram chamadas, apareciam
em várias regiões da Europa a partir do século XII, sendo
as mais importantes as de Leonor de Aquitânia e de sua fi
lha Marie de Champagne. Nestas cortes compunham-se as
chansons de lais e introduzia-se o conceito daquilo que te-
ria muito mais tarde uma influência revolucionária na li-
113
teratura e nos costumes, o amor romântico. No entanto, na
época em que foi concebido, o amor romântico contribuiu
para barrar ainda mais a entrada do feminino na nova cul
tura que iria caracterizar a Renascença e a Reforma, ambas,
como já vimos, formas ideológicas do emergente sistema ca
pitalista que iria desaguar nas sociedades industriais avan
çadas.
Na época, o aviltamento da mulher, sua reclusão ao
domínio do doméstico após vários séculos de grande influên
cia no domínio público tornavam-nas amargas e frustradas.
As mulheres aristocratas podiam dar-se o luxo de iniciar um
movimento de aparente resistência a essa vertente. A cria
ção poética, tanto de homens como de mulheres, era cen
trada no amor espiritual do jovem trovador ou do herói
cavalheiro por sua dama. Um amor que não devia ser con
sumado carnalmente, mas sim levar ao êxtase espiritual, que
seria a mediação entre o homem e Deus. Ao contrário do
amor carnal e orgástico das feiticeiras, que levava ao demô
nio e era a perdição dos homens, este era a sua salvação,
pois os fazia morrer heroicamente nas batalhas por amor âs
suas senhoras. Ao contrário das feiticeiras, mulheres e po
pulares, estas eram de casta superior aos homens que as ama
vam. Eram, por isso, figuras estáticas e idealizadas, puras
porque inacessíveis, ao contrário das bruxas.
E assim elas preenchiam o imaginário popular, impe
dindo homens e mulheres do seu tempo de ver o que esta
va sendo feito com a condição da mulher, enquanto o
feudalismo ia declinando e a centralização política e econô
mica aumentando.
Depois da caça às bruxas, começa na maioria dos paí
ses, pouco a pouco, a ser vedado às mulheres o direito à
educação, à herança, e, em muitos países, o acesso ao trono
quando da inexistência de um herdeiro masculino. As viú
vas passavam a ficar sob a guarda de outro homem da famí
lia e não podiam mais gerir suas propriedades. A partir de
então e até muito recentemente, todas as mulheres passa-
114
ram a ser consideradas menores em termos jurídicos e polí
ticos. E muito poucas ousaram transgredir os novos estereó
tipos que iriam ser a base da nossa sociedade moderna, tal
o medo que nelas deixava a caça às bruxas.
Os romances de amor, que tinham como finalidade
aparente e explícita humanizar uma cultura baseada sobre
a guerra e a crueldade, a injustiça e a violência, reintegrar
o feminino, a gentillesse, as boas maneiras, o respeito e a
admiração pelas mulheres, na verdade tinham outro obje
tivo: mostrar os homens como seres dinâmicos e as mulhe
res como seres estáticos, quais princesas adormecidas ou
cinderelas à espera do príncipe encantado. Era o homem
o senhor de todas as iniciativas e de toda a criação, e a mu
lher, o esplêndido silêncio, o mistério, a imobilidade, a sub
missão, a aceitação, o acolhimento. E assim estavam prontas
as bases para o que iria suceder do século XVI em diante.
115
14
A Renascença, a Reforma
e o Capitalismo
U
ma nova maneira de ser, novas relações econômicas,
políticas, sociais e científicas, culturais e artísticas têm
início a partir do século XVI.
Vários grandes eventos deram origem a esta fantástica
virada humana. Entre eles conta-se, no século XV, a inven
ção da imprensa por Gutemberg, que democratizou as idéias
e funcionou portanto como acelerador da história. Ainda
no fim do século XV, as grandes navegações ampliaram os
limites físicos do mundo medieval. No século XV, a desco
berta do sistema solar por Giordano Bruno e Galileu (am
bos condenados pela Inquisição) mostrou a falácia de uma
religião e uma cultura centradas na supremacia do homem
sobre o Universo. Esta ciência nova alargou também os li
mites mentais da Idade Média. O pensamento mágico e re
ligioso é substituído pela racionalidade científica. O Discurso
sobre o Método, de Descartes, inaugura uma nova era epis-
temológica.
116
A ciência nova, a nova tecnologia que dela emergiu,
a nova epistemologia racionalista, trouxe também uma no
va organização política para a Europa medieval. É neste pe
ríodo que nascem as nações como as conhecemos hoje. Na
Idade Média, o continente estava dividido em uma infini
dade de pequenos feudos independentes que se reuniam
sob a proteção de um suserano, mas este não possuía uma
autoridade centralizada e centralizadora. Esta centralização
começa em meados do século XIV, e os novos reinos já es
tão consolidados em meados do século XVI. O feudalismo
está então em decadência, e aparecem as formas incipien
tes daquilo que viria a ser o novo modo de produção capi
talista. Assim, é a partir do século XVI que nasce o novo
mundo que vem a desenvolver-se três séculos mais tarde.
O modo de produção capitalista distinguiu-se do feuda
lismo por inaugurar o sistema de propriedade privada dos
meios de produção de mercadorias, e não apenas da terra. O
capitalismo é precedido, a partir do século XVI, pelo mer
cantilismo, com seu comércio intenso de mercadorias com
pradas aos artesãos. Muitos mercadores, já a partir do século
XI, em vez de comprar as mercadorias totalmente fabricadas,
começaram a organizar linhas de montagem, administrando
os artesãos dispersos que trabalhavam em casa e aumentando
assim a produção, pois saía mais barato para eles mandar fazer
os objetos por partes: uns cortavam, outros costuravam etc.
Para isso era necessário dinheiro-capital, que eles possuíam.
Este movimento vai crescendo até o século XVIII, quan
do aparece uma invenção que virá a ter enorme importân
cia e chegará a mudar até a própria estrutura da civilização
ocidental: a máquina a vapor. Ela vai permitir, pela pri
meira vez na história da humanidade, domar a energia me
cânica. Constroem-se as primeiras máquinas, que vão tornai
possível a fabricação em série de bens de consumo (roupas,
calçados, ou outros objetos). Não há mais uma linha de mon
tagem de artesãos e, sim, de máquinas, das quais o operá
rio se tornará apenas um apêndice.
117
Rainha Elisabeth I — deu o impulso inicial ao Império
britânico
A Fabricação da Infância
122
A Domesticidade
O Amor Materno
O Pedestal
O Amor Romântico
126
15
As Mulheres e a Industrialização
138
16
O Nazismo e a Mulher
P
ara bem compreendermos a condição da mulher tanto
no mundo industrial quanto dentro do patriarcado, é
essencial que conheçamos o que aconteceu com elas
na Alemanha nazista, o caso mais extremo de dominação
da mulher no moderno mundo industrial.
Depois da derrota na Primeira Guerra Mundial, os ale
mães se sentiam extremamente humilhados, sobretudo por
se julgarem possuidores de uma cultura em alto grau de
evolução. Trinta e quatro por cento da força de trabalho
estavam desempregados e a inflação chegava a níveis além
de qualquer imaginação. A economia estava, pois, total
mente desorganizada. A figura de Hitler como a única es
perança de salvação aparece em meados da década de vin
te. Ele apareceu como encarnando os valores tradicionais
de heroísmo, honestidade, valor guerreiro e temor a Deus.
Secularmente um povo guerreiro, os alemães eram também
tradicionalmente autoritários e, portanto, patriarcais e mi-
sóginos.
139
Assim também era Hitler. Ele nunca se interessou pe
las reivindicações femininas até 1932, quando o Partido Na
zista teve necessidade das mulheres para concorrer à eleições
de 1933 com o fim de tomar o poder da antiga República
de Weimar. E Hitler confessou suas idéias pessoalmente a
Goebbels: “O homem é o organizador da vida; a mulher
é seu órgão para executar os seus planos. ’ ’ E o fez em segre
do, porque publicamente elogiava as mulheres, pois preci
sava do seu voto.
Em sua plataforma política, prometia empregos a to
dos os maridos e maridos para todas as mulheres. A maio
ria das mulheres alemãs perdera seus companheiros, uma
vez que mais de dois milhões de homens haviam morrido
na Primeira Guerra Mundial.
Além do mais, Hitler se colocava como defensor dos
valores da família e da propriedade. Sua campanha junto
aos camponeses baseou-se no anticomunismo. Afirmava que
se os Partidos Comunistas ganhassem, todas as terras iriam
ser confiscadas. Para conseguir o voto operário, acenava com
a dominação da Alemanha por um povo estrangeiro (os
russos).
Além do mais, a campanha era altamente racista. Para
Hitler, os alemães (arianos) seriam o povo (raça) superior,
e, se os alemães vencessem, a estratifkação não se daria mais
por classes, e sim por raças, tendo os arianos como o povo
dominante. Hitler argumentava que, entre as raças inferio
res, as mulheres poderiam ser consideradas inferiores aos ho
mens, mas entre os arianos elas eram iguais, só que com
papéis complementares. O papel das mulheres seria casar-
se e ter o maior número possível de filhos, pois só assim
se multiplicaria o sangue ariano, permitindo a dominação
do mundo. Para isso, elas teriam que dedicar-se inteiramente
à família. A ideologia do Kinde, Kirche, Küche (crianças,
igreja e cozinha) deveria pautar a vida de todas as mulhe
res. Foram-lhes prometidas participação no poder e voz nas
decisões do partido. No entanto, após ganhar as eleições com
140
o voto das mulheres, dos camponeses e dos operários, tudo
mudou.
Quando os nazistas atingiram o poder, em janeiro de
1933, anunciaram sua política em relação às mulheres: “Não
há lugar para a mulher política na ideologia do Nacional-
socialismo (...) A atitude intelectual do movimento em re
lação a esse problema é oposta à mulher política (...) A
ressurreição alemã é um acontecimento masculino.”
Estavam, pois, politicamente consagrados a “mulher
feminina” e o “homem masculino” no sentido tradicio
nal. As mulheres porém continuaram a apoiar Hitler com
uma fé fanática. Se a elas era alocada a responsabilidade
da ‘ ‘purificação’ ’ da raça produzindo filhos arianos, aos ho
mens era alocada a responsabilidade da “purificação” crua
e simples, concreta, isto é, a eliminação física das raças in
feriores. Começava uma nova etapa para a humanidade.
A mística feminina, levada até as suas últimas conse-
qüências, se opunha a uma mística masculina que agora re
velava todas as suas dimensões. O homem masculino era
o homem autoritário, guerreiro, cumpridor indiscutível de
ordens, capaz de matar sem questionar se assim lhe fosse
ordenado. O militarismo toma conta das mentes e dos co
rações. Cada um controla a todos, e a polícia secreta (Ges-
tapo) passa a ser o Olho que tudo vê do Grande Irmão da
sociedade alemã. Ninguém mais confiava em ninguém. Nu
ma noite sangrenta, os SS assassinaram friamente os oficiais
dos SA que questionavam o poder de Hitler. A partir daí
os nazistas não tiveram mais oposição da sociedade. E bre
ve se tornariam o terror da nação inteira e, mais tarde, do
mundo.
Breve, o Partido Nazista conseguiu o poder absolu
to. E aí começou a formulação da “solução final”: o as
sassinato de todos os judeus que viviam na Alemanha e
depois em toda a Europa. Os judeus foram tomados como
bodes expiatórios que permitiram o total controle do povo
alemão. Mas os nazistas não pararam aí. Queriam “erradi
141
car” os poloneses, os ciganos e outros povos “inferiores”,
bem como todos os deficientes físicos, e todos os dissiden
tes políticos.
O programa nazista culminava com uma campanha ine
xorável contra tudo que fosse humano, exceto na faixa es
treita da construção de uma raca superior. Fazia, portanto,
parte da sua essência a reprodução desta raça. O partido pas
sou, então, a controlar todo o domínio privaçlo, a arranjar
os casamentos. Oferecia empréstimos do Estado a casais que
prometessem que a mulher não trabalharia fora, e este em
préstimo baixava de 25% a cada filho que nascesse. Prê
mios especiais eram oferecidos às famílias que tivessem novos
filhos homens. Leis proibiam o planejamento familiar, e o
aborto foi considerado o pior crime, sem remissão. Ao mes
mo tempo, Hitler ordenava que todas as crianças fossem en
tregues ao Estado e as incentivava a participar de clubes de
juventude, especialmente os meninos. Filhos ilegítimos eram
legitimados, e o divórcio era facilitado apenas para os ho
mens Os nazistas esterilizavam as mulheres prostitutas, as
deficientes ou as que carregavam genes defeituosos
Matavam também os velhos, os fracos ou deficientes.
O supremo ideal para as mulheres era a. maternidade. O
mercado de trabalho foi se fechando para elas. E os movi
mentos femininos, inclusive os que pertenciam às Igrejas,
foram totalmente controlados.
No entanto, a partir de 1936, Hitler começou a pensar
seriamente na guerra. A doutrina do espaço vital para a no
va raça assim o exigia. E as mulheres foram outra vez incen
tivadas a entrar na força de trabalho. Em sua propaganda
oficial, os nazistas pintavam a mulher como a mãe eterna
e companheira do homem, lutando a seu lado, mas, em
relatórios privados, segundo diz Marilyn French, em seu li
vro BeyondPower, “eles as chamavam de tagarelas e idio
tas, e as culpavam pela moral frouxa dos exércitos porque
acorriam em massa às ruas fazendo filas para comprar ali
mentos”.
142
A guerra começou em 1939, e no seu auge, em 1943,
os nazistas obrigaram as mulheres a se registrarem no birô
de empregos. Agora os trabalhos nas fábricas e nos setores
perigosos não era mais proibido e, sim, incentivado e tor
nado obrigatório. Registradas como “assistentes sociais”,
as mulheres iam com as tropas para os países ocupados. E
com isso tudo esperava-se delas que continuassem a engra
vidar e a doutrinar seus filhos com a ideologia nazista. Em
1939, foram constmídos campos especiais para mulheres sol
teiras. Lá, elas eram visitadas pelos homens e, quando en
gravidavam, transferidas para lares de mães solteiras.
Mesmo quando Hitler já perdera a guerra e vivia em
um bunker, ele planejava o futuro da sociedade alemã. Ca
da soldado teria direito a mais de uma mulher, poderia ser
polígamo. Quando o país desmoronou, então, Hitler de
clarou as mulheres iguais aos homens. Ele as incentivou a
entrar para o exército, como enfermeiras, sabotadoras, es
piãs, auxiliares de comunicação, mensageiras, embora não
lhes fossem dados nem uniformes nem armas. E o final foi
o que todos já sabemos.
Com esta descrição, podemos ter uma idéia do que é
o patriarcado em sua plenitude e das mulheres que se sub
metem a ele.
E podemos, então, tentar uma saída...
143
TERCEIRA PARTE
A
ntes de nos determos nas sociedades tecnologicamente
avançadas, que aceleram seu desenvolvimento na se
gunda metade do século XX, que é a última parte
deste livro, cabe aqui uma breve avaliação do que já foi dito.
O primeiro conceito que já pode ser induzido é que
existe um fenômeno de aceleração histórica. Se o período
de nossa existência sobre a Terra abrange uns dois milhões
de anos, a primeira fase durou quase esse tempo todo, uma
vez que o patriarcado como o conhecemos só existe há cerca
de dez mil anos, isto é, 0,5% do nosso tempo de existência.
As culturas de coleta e partilha constituíram o mais lon
go núcleo da nossa existência. As culturas de caça não têm
mais do que que quinhentos mil anos, e as horticultoras,
uns cinqüenta mil. A história que começa com o patriarca
do e as sociedades agrárias tem aproximadamente dez mil
anos, e a industrialização, apenas duzentos.
O que aparece no entanto junto com tal constatação
é que esta aceleração é também tecnológica. A cada fase di-
147
ferente da relação dos seres humanos com o meio ambiente
(coleta, caça, horticultura, pastoreio, agricultura, industria
lização) corresponde um avanço de tecnologia.
A coleta corresponde a conquista da palavra falada, da
posição ereta, dos primeiros instrumentos de ataque e de
fesa. E o lento despertar da animalidade para a humanida
de. Durou um milhão e meio de anos para chegar às culturas
de caça, com seus machados de pedra lascada, o fogo, a ro
da, as cestas etc.
Depois vieram a horticultura, a cerâmica, arcos e fle
chas, agulhas, culto aos mortos, primeiros esboços de arte,
domesticação dos animais etc., conquistas específicas da fa
se neolítica.
Nas sociedades agrárias, a humanidade dá o seu segun
do grande salto, que foi a conquista da palavra falada e as
técnicas de coleta, quando passa da animalidade à huma
nidade.
A fundição dos metais, permitindo fazer instrumen
tos que tornaram possível a agricultura pesada, transforma
os povos nômades em sedentários, com as conseqüências que
já vimos. Daí, as conquistas tecnológicas se aceleram enor
memente. A palavra escrita vem mudar por completo a co
municação e o controle entre os seres humanos. Nascem os
estados, o comércio, as burocracias e os impérios.
Na Renascença prenuncia-se o terceiro salto, que viria
a ser o da industrialização. Nasce a ciência como a conhece
mos hoje. A Terra já não é o centro do universo. A socieda
de passa de teocrática a secular. Constroem-se as nações no
sentido moderno do termo, e no século XVIII James Watt
inventa a energia mecânica, que vem a dar origem à civili
zação industrial. No século XIX, constroem-se as grandes
cidades, a população mundial explode, atingindo o primeiro
bilhão de habitantes. As estradas de ferro aceleram o pro
gresso, bem como o telefone, o telégrafo etc.
No fim do século, inventa-se o automóvel, o avião, e
. a história se acelera mais ainda. Na primeira metade do sé-
148
culo XX, a lâmpada elétrica, o rádio, a televisão e os outros
inventos originam tal transformação que o século XX se toma
mais diferente do século XIX do que este de todos os outros
Noventa por cento de todas as invenções tecnológicas
da humanidade se realizaram no século XX. Em menos de
trinta e cinco anos, o mundo passa por duas guerras mun
diais, que matam dezenas de milhões de pessoas. E o lan
çamento da primeira bomba atômica em 6 de agosto de 1945
marca o início do quarto salto qualitativo da humanidade,
pois a energia nuclear, então liberada, vem a mudar de no
vo a relação do ser humano com a natureza. Esta data inau
gura aquilo a que chamamos o mundo tecnológico, que
começa a funcionar plenamente depois da Segunda Guerra
Mundial e do qual o que falamos até agora não foram se
não os prenúncios.
A invenção da energia nuclear, devido às descobertas
da física teórica, que atingiu um avanço além de qualquer
imaginação, vem junto com outras invenções que tiveram
origem e desenvolvimento no esforço de guerra. A medici
na atinge proporções insuspeitadas com a descoberta dos an
tibióticos. A biologia consegue penetrar na estrutura dos
genes, tornando possível a engenharia genética e a clona
gem, construção de seres vivos idênticos a partir da cisão
do mesmo embrião
No entanto, a invenção mais importante do século XX
se dá na área eletroeletrônica. Em fins da década de qua
renta, Norbert Wiener lança as bases da nova ciência, a ci
bernética e constrói o primeiro computador no início da
década de cinqüenta.
O computador é o primeiro invento que substitui a
energia intelectual humana. Se a máquina a vapor substi
tuiu a energia muscular e já teve tantas conseqüências, o
computador, substituindo a energia mental, teve conseqüên
cias ainda mais fantásticas.
Já na década de cinqüenta o mundo começa a se trans
formar numa grande aldeia. Todos os pontos do planeta co
149
meçam a unir-se pela televisão. Tudo o que acontece em qual
quer lugar do mundo é conhecido no planeta inteiro instan
taneamente. A importância deste fato fica patente quando
nos lembramos que até o século XVIII, quando um país de
clarava guerra a outro, passavam-se meses para se iniciar as
hostilidades, de tão vagarosas que eram as comunicações.
E a Segunda Guerra Mundial só teve proporções apo
calípticas devida à instantaneidade das comunicações. Foi
isto que fez quase todos os povos da Terra se envolverem
com ela. Então, podemos dizer que agora não há mais acon
tecimentos locais e, sim, mundiais, e que no espaço de uma
existência, digamos, cinqüenta anos, acontecem mais coi
sas do que em milhares de anos nos tempos antigos.
E essa a lei da aceleração histórica. As coisas não só acon
tecem mais rápido como também com mais intensidade. E
nas fases mais agudas esta intensidade é tão grande que nosso
sistema nervoso central não agüenta, pois nosso relógio bio
lógico está aparelhado para um mundo menos veloz e leva
tempo para mudar. É importante termos isto em mente,
pois poucos de nós estão se dando conta das fantásticas trans
formações que estão se operando no mundo às vésperas do
Terceiro Milênio. E, para conseguirmos assimilá-las em uma
geração, será preciso um esforço enorme.
Isto posto, podemos agora ver quais são as velocidades
destas transformações.
Em primeiro lugar, elas decorrem quase todas das apli
cações dos computadores na vida cotidiana e em todas as
áreas do conhecimento. Os primeiros computadores podiam
fazer operações intelectuais simples milhares de vezes mais
rápido do que o ser humano, e hoje esse número alcança
bilhões.
Sem os computadores não seria possível colocar satéli
tes no espaço, e muito menos naves e ônibus espaciais. Se
os cálculos que colocaram o primeiro satélite em órbita fos
sem feitos a mão, levariam trezentos anos e seriam usados
em tempo integral quarenta matemáticos.
150
Também seria impossível projetar a rota de um míssil
balístico intercontinental (ICBM), um desses engenhos que
durante trinta anos alimentaram a ameaça de uma Terceira
Guerra Mundial, desta vez instantânea, pois causaria a des
truição total do planeta.
Na nossa vida cotidiana, esses jogos eletrônicos acele
ram enormemente os processos cognitivos das crianças, que
usam hoje ao menos o dobro das capacidades cerebrais do
que há um século.
A quantidade total do saber no mundo está dobrando
a cada dois anos. Já estamos próximos de decifrar mistérios
como a origem do universo ou o retardarmento indefinido
da morte.
E o impacto disso tudo sobre a condição do homem
e da mulher é imenso. No entanto, o que caracteriza esses
avanços fantásticos da tecnologia é que eles não são homo
gêneos. Por estarmos vivendo num sistema competitivo, o
seu controle é detido pelos mais fortes e usado como ins
trumento de dominação sobre o mais fracos.
Grande parte da Ásia, toda a África e a América Lati
na permanecem em estágios menos avançados de desenvol
vimento: continuamos como sociedades agrárias e pouco
industrializadas, fornecendo matérias-primas e mão-de-obra
barata aos países desenvolvidos. Muitos dos nossos países,
em vez de caminharem na trilha do progresso, marcham no
caminho inverso, o da decadência antes de terem atingido
o pleno desenvolvimento.
Oitenta por cento de todo o dinheiro e de todo o pro
gresso do mundo concentram-se nos países ricos, ao passo
que 75% da população mundial vivem nos países pobres.
A partir da década de setenta, os países desenvolvidos
encontram uma forma sofisticadíssima de escravizar os paí
ses pobres: oferecem-lhes grandes somas de dinheiro para
projetos de desenvolvimento e depois cobram-lhes juros cada
vez mais altos. Com isso, os países pobres passam a transfe
rir para os países ricos capital que vai financiar o seu consu-
151
mismo à custa da fome das camadas mais pobres das popu
lações mundiais. Estes povos poucos benefícios recebem desse
dinheiro assim emprestado. Em muitos casos — México, Ar
gentina, Filipinas —, cerca da metade do dinheiro vai para
os bolsos dos seus líderes corruptos.
Por outro lado, desde a primeira metade do século XX,
grandes países como a URSS e a China, abolem a proprie
dade privada dos meios de produção e, com ela, a socieda
de de classes. Contudo, para espanto dos outros povos,
perplexos, o socialismo começa a explodir em fins da déca
da de oitenta.
Portanto, é extremamente importante, para entender
mos o mundo tecnológico e, dentro dele, a condição da mu
lher, conhecermos a condição feminina tanto nos países
subdesenvolvidos como nos países socialistas antes de nos
determos nas sociedades avançadas.
152
18
Os Países Subdesenvolvidos
O
capitalismo vai se implantando pouco a pouco no
mundo. Se seu pleno funcionamento se inicia na Eu
ropa e nos Estados Unidos durante o século XIX, é
no século XX que as antigas sociedades agrárias começam
a sua modernização. Hoje, dois terços da humanidade ain
da estão nesta fase de capitalismo tardio e dependente,
incluindo-se a América Latina, grande parte da Ásia e da
África. A estes países chamaremos subdesenvolvidos.
O que caracteriza o subdesenvolvimento é a grande
concentração da renda: criam-se pequenas elites, em geral
aliadas ao capital internacional, que controlam e organi
zam a sociedade inteira de acordo com seus interesses. As
sim, a economia permanece geralmente estagnada e atra
sada, porque é sugada pelos interesses tanto dos países de
senvolvidos como das elites locais. Em alguns países mais
avançados, cria-se uma classe média urbana mais sofisti
cada que brota das camadas médias conservadoras comuns
a todos os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, que
153
inicia o processo de modernização nacional; as classes do
minadas porém permanecem intocadas pelo progresso tec
nológico.
Por isso, os papéis sexuais diferem nos países subde
senvolvidos segundo as classes sociais, de acordo com o in
teresse do sistema: nas classes camponesas, onde a família
ainda é a unidade de produção e reprodução, como nas so
ciedades agrárias antigas, permanece a opressão tradicional
da mulher.
Nas classes operárias urbanas emergentes, mais e mais
o trabalho da mulher é necessário para a sobrevivência da
família. Esta não é mais a unidade de produção e reprodu
ção, e sim apenas o locus da reprodução da força de traba
lho, como em todas as sociedades industriais. Nestas classes,
a condição da mulher é um pouco melhor do que na classe
camponesa, pois o seu trabalho é cada vez mais necessário,
não só para a sobrevivência da família como para uma acu
mulação maior do capital: é da exploração da mulher em
relação ao homem (pois a mulher ganha no máximo a me
tade do que o homem pelo mesmo trabalho) que o capita
lismo extrai um lucro bem maior do que se todos os operários
fossem homens.
Nas classes dominantes, a família é o locus da concen
tração do capital. A mulher, apesar de todos os privilégios
de que goza, é submissa ao marido para não perder posi
ção, riqueza ou poder.
As largas faixas da classe média conservadora são as ca
madas que ocupam o grosso das áreas urbanas, ao menos
nos países da América Latina. Esta classe é composta por
pequenos proprietários e funcionários médios do sistema pro
dutivo e do governo. Nestas classes sociais, as mulheres em
geral vivem o papel tradicional que o sistema lhes oferece:
o de mães e donas-de-casa, uma vez que não precisam tra
balhar para viver. Na sua grande maioria, defendem os va
lores tradicionais no que se refere à sexualidade, à educação,
à economia e à política.
154
Apenas nos centros grandes e sofisticados brota a par
tir desta uma outra classe média mais moderna, composta
de intelectuais, profissionais liberais, artistas, funcionários
de áreas produtivas sofisticadas, do sistema universitário e
de pesquisa etc. Esta classe não produz valor, mas é impres
cindível para que o sistema atinja estágios mais avançados.
Seus membros são mais progressitas, as mulheres em geral
seguem carreiras profissionais e são mais liberais em maté
ria de costumes e política.
Também não produz valor a grande masssa dos em
pregados, que, junto com os subempregados, formam o sub-
proletariado e que em número são maiores do que a classe
operária. Os membros do subproletariado são empregados
nos tempos de expansão e despedidos nas épocas de reces
são. E a existência dessa grande massa desorganizada e fa
minta que permite aos empregadores manterem baixos os
salários de seus empregados.
Entre outros países subdesenvolvidos, estudaremos es
pecialmente o Brasil, que está em acelerado processo de
modernização, e a índia, que é uma das culturas mais tra
dicionais do mundo.
Brasil
Quando os primeiros portugueses aqui desembarcaram,
no início do século XVI, vieram apenas cerca de três mil
homens sozinhos para colonizar uma área maior do que a
Europa. As mulheres brancas só vieram cerca de cinqüenta
anos depois. No fim do século XVI, na nova colônia já ha
via uma população de cerca de cem mil pessoas. Esta popu
lação era composta de uma pequena casta de brancos de
“sangue limpo”, e o resto era de mestiços de portugueses
com as índias e mais tarde com as escravas negras.
Premidos pela necessidade de povoamento urgente de
um território cobiçado pelas grandes potências de então, os
155
reis de Portugal incentivavam intensamente a miscigenação.
Por isso, a grande maioria das populações recém-formadas,
tanto no Brasil como nas outras colônias portuguesas era
mestiça.
As mulheres brancas em geral se casavam aos doze, treze
ou no máximo aos quatorze anos quase sempre com homens
muito mais velhos. No entanto, também quase sempre mor
riam antes de seus maridos, porque tinham que produzir
muitos filhos. E, por serem máquinas de fabricar filhos, mor
riam em geral de parto. Conta Gilberto Freyre, em Casa-
Grande & Senzala, que a glória dos velhos coronéis era ter
várias esposas, cada uma deixando vários filhos. Ao mor
rer, sua virilidade era glorificada pelo número de mulheres
e filhos que apareciam em seu epitáfio.
Além disso, havia os inúmeros filhos que tinham com
índias e, mais tarde, negras. Foi da mestiçagem dos portu
gueses com estas duas raças que se formaram as classes so
ciais inferiores: os caboclos, que povoam todo o interior do
Brasil, e os mulatos nas regiões escravocratas. Deste modo,
as classes dominantes eram compostas de brancos, e as do
minadas, no interior, de caboclos, e no litoral, em geral ne
gros e mestiços. E assim chegamos ao século XIX. No início
deste século, a população brasileira recenseada era de
3.200.000 pessoas, das quais apenas 800.000 brancas.
No século XX, com a intensa corrente migratória pro
vocada pela abolição da escravatura, grandes contingentes
de europeus e asiáticos vêm para o Brasil, principalmente
para o sul, dando origem a um maior desenvolvimento desta
região. No fim do século XX, chegamos a uma estranha mis
tura de valores no tocante à condição da mulher em nosso
país.
Nas regiões rurais existe a opressão maior. A mulher
camponesa possui dupla ou tripla jornada de trabalho, dá
à luz muitos filhos, e sobre seu comportamento sexual pe
sam as maiores sanções da sociedade. Por qualquer descon
fiança de adultério ou perda da virgindade o marido ou pai
156
pode matar a mulher, sendo absolvido por “legítima defe
sa da honra”.
Nas classes trabalhadoras urbanas, em geral migradas
do meio rural, a mulher, como vimos, já tem maiores prer
rogativas, mas ganha metade do salário do homem, e o pre
conceito sobre a sua condição ainda é bem grande.
No entanto, é nas classes médias modernas que a grande
transformação está se processando. As mulheres já são mais
da metade dos estudantes de universidade e, junto com as
operárias e camponesas, perfazem quase 40% da força de
trabalho, o que impulsiona as reivindicações de igualdade
que deram motivo à conquista, em 1988, de uma das Cons
tituições mais avançadas do mundo no que se refere à con
dição feminina. Assim, ao mesmo tempo em que a mulher
média brasileira é uma das mais modernizadas do continen
te, outras camadas ainda se acham mergulhadas no mais pro
fundo tradicionalismo.
Por outro lado, a mulher negra nas favelas das perife
rias das grandes cidades mostra um comportamento com
pletamente diferente das brancas. E ela quem agüenta
sozinha a barra das famílias mais pobres. A sociedade ne
gra é matricêntrica e matrilocal, mas tem valores patriar
cais. Contudo, o comportamento sexual das mulheres é
bastante mais permissivo, dada a sua capacidade de susten
tarem-se sozinhas. Em geral elas são chefes de família, bem
como as camponesas, cujos maridos migram. Na América
Latina, o número dessas famílias é muito grande, cerca de
10% do total, e quase todas nas áreas mais pobres, mos
trando que a família nuclear só é possível em camadas aci
ma de uma certa renda, e portanto é um privilégio de classe.
Finalmente, na classe dominante aparece um duplo pa
drão de comportamento: explicitamente a mulher tem um
discurso puritano e familiar, mas ‘ ‘por debaixo dos panos’ ’
rompe sem culpa nem punição as regras do adultério, do
aborto etc. E assim, as leis da família e da Igreja contri
buem para que seus filhos homens aprendam, desde que
157
nascem, a romper, da mesma maneira que a mãe rompe
as regras do setor privado, as normas de legalidade do Esta
do e da economia, utilizando-as em seu benefício pessoal
e de sua classe social.
Este exemplo do Brasil mostra como a condição da mu
lher varia de acordo com a classe social, isto é, como o lugar
que ela ocupa no sistema produtivo serve para manter inal
terada a sociedade de classes, porque é na família que a crian
ça aprende, desde que nasce, os valores de sua classe social,
aprende seja a submeter-se, seja a dominar e romper todas
as normas. Ora, isto quer dizer, em última instância, que
os nossos corpos são a máquina que faz o sistema funcio
nar, e nossa sexualidade, o seu combustível. E a família,
a sua fábrica...
*
índia
Outros Países
A terrível condição das mulheres numa sociedade co
mo a hindu nos lembra alguns fatos de outras sociedades
tradicionais da Ásia e da África. Por exemplo, na China,
até o advento do socialismo, enfaixavam-se os pés das mu
lheres desde crianças. Como sua situação de casamento
assemelhava-se à hindu, na realidade isso era feito para que
elas não pudessem fugir, mas ideologicamente a bandagem
dos pés era muito elogiada, e eram consideradas mais eróti
cas as mulheres com pés pequenos. Os poetas não se cansa
vam de cantar o doce balanço das chinesas e seus passinhos
miúdos. Só as mais pobres não tinham os pés enfaixados,
porque precisavam trabalhar nos campos.
No mundo muçulmano, até hoje a situação não é me
lhor. Todas as mulheres muçulmanas são obrigadas a andar
veladas e não podem conversar, nem sequer ser notadas por
outros homens que não os que seus pais escolheram para seus
maridos. Passam a vida inteira reclusas em companhia de ou
tras mulheres. Tal como as indianas, não têm quase nenhum
contato com os maridos. E andar sem véu é tão vergonhoso
para a mulher muçulmana como para nós ocidentais andar
nuas pelas ruas. E se a mulher ousa aparecer sem véu em pú
blico, isto quer dizer que ela quer ser estuprada.
Em muitos países muçulmanos, especialmente os da
África, existe o rito da circuncisão das mulheres: entre cin
co e nove anos, lhes é retirado o clitóris, uma operação muito
dolorosa, feita sem anestesia nem assepsia. Por isso, essa ope
ração é muitas vezes seguida de infecção. Ela é feita para
tornar as mulheres inorgásticas desde crianças, pois assim,
161
não conhecendo o prazer, não se revoltarão contra seus ma
ridos. E este é o mais privilegiado dos ritos, pois a maioria
dos homens das tribos muçulmanas prefere mulheres infi-
buladas. Em muitas regiões da África, se a mulher não foi
infibulada não consegue marido e é fadada à prostituição.
A infibulação consiste em costurar os grandes lábios da vul-
va. E deixado apenas um pequeno orifício por onde a mu
lher urina e tem relações sexuais. Cada parto é dolprosíssimo,
pois primeiro seus pontos têm que se rasgar. E ela é nova
mente infibulada tão logo acaba o resguardo.
Em vinte e seis países muçulmanos, entre eles Sudão,
Nigéria, Quênia, Tanzânia, Djibuti, Península Arábica etc.,
ainda existem oitenta milhões de mulheres hoje nessas con
dições. Em congressos internacionais, conheci várias dessas
mulheres, e o que as distinguia das outras era seu total silên
cio e falta de opinião própria. Por terem perdido o contato
com seu prazer, não possuem também identidade própria.
No mundo árabe, a poligamia é permitida pelo Co
rão. Qualquer homem pode ter quantas mulheres possa sus
tentar (até quatro), mas existem haréns de chefes com até
doze mil mulheres, cuja sexualidade é controlada por eu-
nucos (homens castrados). Assim, nas camadas inferiores da
sociedade, há muitos machos excedentes. Também o Co
rão os incentiva a responder ao grito de Guerra Santa (Ji-
had), pois esta é a única maneira de obterem mulher, mas...
só depois da morte. A religião muçulmana concede a cada
homem que tenha morrido na guerra santa sete huris —
virgens belíssimas — no Paraíso. E assim o Islã se tornou
o maior e mais estável império de todos os tempos. Há no
mundo hoje cerca de um bilhão de muçulmanos.
Nas camadas inferiores é praticado o homossexualis-
mo, embora rigorosamente proibido pelo Corão. O Islã é
um mundo mais masculino do que o grego. Não há sequer
uma brecha para a ascensão da mulher como povo. Há um
ditado popular que diz: “Mulher para procriar, homem para
amar”...
162
Na África negra, principalmente no Oeste africano, on
de as tribos não são islâmicas, também há poliginia, mas
nessas regiões cada mulher excedente é mais uma riqueza
para o homem e um alívio para a primeira esposa, pois
a segunda dividirá o trabalho da terra e da casa. Nessas
regiões, a poligamia parece ser mais bem-vinda para os ho
mens... O homem vive sem fazer nada, apenas adminis
trando o trabalho de suas mulheres.
Contudo, quando os ingleses chegam à África e com
eles o pressuposto da supremacia masculina, é aos homens
e não às mulheres que eles vão ensinar as novas técnicas do
cultivo da terra. E os homens, que viviam do trabalho das
mulheres, ficaram com um dilema: ou trabalhavam com as
novas técnicas ou as ensinavam às mulheres, que milenar
mente faziam o trabalho de horticultura e agricultura sim
ples. Como elas não foram ensinadas, perderam o incentivo
para cultivar a terra. Assim a África, que até o século XX
foi um continente de alimento e fauna abundantes, está pas
sando agora pela maior fome da história, porque as mulhe
res foram marginalizadas das modernas tecnologias de
cultivo. E a África chega ao fim do século XX como o con
tinente mais pobre, com um violento processo de desertifi-
cação, extinção da fauna e fome crônica. Não mais o Ter
ceiro, e sim o Quarto Mundo.
163
19
A Mulher nos Países Socialistas
Q
uando Marx e Engels escreveram o seu Manifesto Co
munista, em 1848, certamente não esperavam que
daí a cento e cinqüenta anos quase metade do mun
do tivesse entrado para o regime socialista. O que foi que
fascinou os povos da Terra para fazerem uma revolução tão
rápida?
Nada mais do que a erradicação da sociedade de clas
ses. A pedra de toque do socialismo é a abolição das classes
dominantes e a passagem dos meios de produção para toda
a coletividade. Os pressupostos teóricos de Marx foram co
dificados política e economicamente por Lenin no começo
do século XX, criando o primeiro Estado socialista: a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A URSS substituiu o
antigo Império russo, que durava há mais de mil anos e há
mais de mil anos apresentava relações de produção feudais
e era um dos mais atrasados da Europa, ainda não indus
trializado nem modernizado, e onde o povo vivia em uma
incrível miséria.
164
Com a passagem dos meios de produção para o Estado
soviético e a industrialização acelerada que tornou em cin
co décadas a URSS a segunda potência do mundo, a condi
ção da mulher passa por várias fases.
Desde o século XIX, os intelectuais marxistas criam e
organizam um movimento feminista importante, pleitean
do a igualdade no trabalho e na vivência da sexualidade para
homens e mulheres. Ora, estas reivindicações eram tão re
volucionárias que aparentemente colocavam em questão as
próprias bases da sociedade de classes e o patriarcado, pois
os dois pilares da submissão da mulher eram a impossibili
dade de ter acesso direto ao mercado de trabalho e a proi
bição de sexo fora do casamento. Parecia ao mesmo tempo
um questionamento da sociedade de classes e da sociedade
patriarcal que lhe é subjacente. No entanto, desde o come
ço havia uma polêmica entre os marxistas em relação à con
dição da mulher. Eles diziam e até hoje dizem que, uma
vez erradicada a sociedade de classes, automaticamente se
teria acesso à igualdade sexual e social entre homens e mu
lheres. A polêmica com as feministas da época, entre elas
Alexandra Kollontai, Clara Zetkin e outras, era de que se
ria divisionista e “reivindicação burguesa’ ’ a luta específica
das mulheres.
No entanto, as mulheres exerceram um papel central
no desencadeamento da Revolução russa, a partir de 1917.
Desde o início da Primeira Guerra Mundial, elas passaram
a entrar em massa para a força de trabalho, em parte por
que mais de quatro milhões de homens haviam sido mor
tos nessa guerra. Foram elas quem acenderam o estopim da
revolta de 1917 quando, contrariando a opinião de todos
os partidos, decidiram convocar uma greve geral para o Dia
Internacional da Mulher.
Suas líderes convenceram não só as operárias, como as
donas-de-casa e depois os homens metalúrgicos a juntarem-se
a elas. Relutantemente e só depois de estarem seguros de
que o exército não atiraria nelas, os homens entraram em
165
greve. Mais tarde, um artigo do Fravda afirmava: “As mu
lheres foram as primeiras a irem para as ruas em Petrogrado
no Dia da Mulher. As mulheres de Moscou, em muitos ca
sos, decidiram o destino das tropas, elas foram às barracas,
convenceram os soldados, e estes se juntaram à Revolução. ’ ’
A luta continuou, e ainda em março de 1917 o czar
foi forçado a abandonar o trono. Só em novembro no en
tanto os bolcheviques tomaram o poder. Durante a luta,
as mulheres serviram como soldados de infantaria e cavala
ria, portaram metralhadoras e comandaram trens cheios de
tropas. As mais pobres enfrentavam o exército sem armas.
Louise Bryant escreveu: “As mulheres se dirigiram direta
mente para o tiroteio sem nenhuma arma. Era terrível vê-
las... Os cossacos pareciam temerosos daquilo. E começa
ram a retirar-se.” Em 7 de novembro de 1917, os bolchevi
ques começaram a governar a Rússia.
Imediatamente o governo criou leis libertando as mu
lheres da dominação masculina, obrigando igual pagamento
para trabalho igual, idéia então impensável para o resto do
mundo. O Código de Família de 1918 aboliu o conceito
de filhos ilegítimos e garantiu às mulheres controle sobre
seus ganhos e facilidade de divórcio. Foi abolida, também,
a pensão alimentícia, pois esperava-se que todas as mulhe
res entrassem para a força de trabalho. Alexandra Kollon-
tai, a primeira-ministra da Ação Social do novo regime, criou
creches e cuidados pré-natais para todas. Em 1919, um grupo
de mulheres fundou o Zhenotdely, a primeira federação de
mulheres que começou a reivindicar alfabetização e educa
ção especial para as mulheres.
Antes porém que as novas instituições pudessem fun
cionar, estourou em 1918 a Guerra Civil, que durou até
1921. Ela foi cruel para todos, especialmente para as mu
lheres. Mais de 10% de toda a população morreram, e sete
milhões de crianças foram deixadas órfãs perambulando pelas
ruas. A nação arruinada não tinha dinheiro para construir
creches ou lavanderias coletivas. As leis não foram cumpri -
166
das, as mulheres só conseguiram os empregos mais mal pa
gos e menos qualificados, e em 1928 eram menos que 28%
da força de trabalho.
Embora o analfabetismo entre as mulheres tivesse bai
xado de 95 para 70%, a lei do divórcio deixava a grande
maioria delas ou desamparadas ou superexploradas. Em
1926, o número de mulheres com filhos e sem emprego alar
mou o governo. A pensão foi restabelecida, mas em geral
os homens, com vários casamentos, não podiam pagá-las.
Embora na época as mulheres compartilhassem com os ho
mens muitos problemas advindos da desestabilização da eco
nomia (falta de alimentos, péssimas condições de vida etc.),
eram elas que ficavam com as crianças e viam-se assim obri
gadas a uma dupla jornada de trabalho. A taxa de nasci
mento começou a cair.
Quando Stalin tomou o poder, ordenou a volta dos va
lores tradicionais da família, uma política pró-natalista e uma
moral puritana, e extinguiu o Zhenotdely. Os empresários
do Estado, temendo então a gravidez das mulheres, recu
savam-se a empregá-las no então incipiente processo de in
dustrialização. Quando em 1936 foram iniciados os gran
des expurgos stalinistas, apenas 10% dos expurgados foram
mulheres, mas foram as mais ativas e qualificadas as que
desapareceram.
Quando a União Soviética entrou na Segunda Guerra
Mundial, as mulheres voltaram outra vez a ser mais de 50%
da força de trabalho empregada, devido à morte de vinte
milhões de homens. Elas trabalhavam de quatorze a dezoi
to horas por dia sem se queixarem. E muitos regimentos
que participaram da guerra contra a Alemanha eram intei
ramente compostos de mulheres.
Depois da guerra, para cada cento e cinqüenta mulhe
res havia cem homens. O aborto tornou-se ilegal, e a polí
tica, ferrenhamente natalista. Assim, piorou para as mu
lheres o sistema de dupla jornada de trabalho.
Nos anos cinqüenta a minoria de mulheres tornou-se
167
especializada em várias ciências e técnicas, porém as mais
pobres cavavam trincheiras, conduziam trens, limpavam as
ruas em pleno inverno e faziam trabalhos pesados na cons
trução civil. A situação da mulher, então, tornara-se, na prá
tica, pior do que no tempo do czarismo.
Entretanto, durante as décadas seguintes (as décadas
da Guerra Fria), a situação das mulheres começou a melho
rar. A União Soviética tornou-se a segunda potência do mun
do, devido ao esforço e à crueldade do stalinismo, mas a
maioria das mulheres foi educada. Hoje não existe mais anal
fabetismo na (ex)União Soviética e as mulheres são encora
jadas a ir para a Universidade.
Uma vez conseguido o diploma, porém, as profissões
escolhidas por elas, especialmente a medicina e a advoca
cia, se “feminizam”, isto é, passam a ser desvalorizadas e
menos bem pagas do que as outras. Na média, hoje a mu
lher ganha 75% do que o homem ganha pelo mesmo tra
balho. E eles ainda são a grande maioria nos níveis de
decisão, especialmente as políticas. No Politburo, órgão má
ximo do sistema comunista, apenas um membro é mulher.
O aborto tornou-se legal, mas, por falta de acesso aos
contraceptivos, seu número oficialmente excede o dos nas
cimentos em três por um; extra-oficialmente, no entanto,
este número sobe para oito por um, situação única no mun
do. Tudo isso não impede, contudo, que em certas áreas
o número de mulheres soviéticas exceda o de suas compa
nheiras do mundo ocidental. Há mais cientistas, mais en
genheiras (40% contra 1,6%) do que nos EUA. E também
o dobro de mulheres doutoradas e professoras em tempo
integral.
Todas elas têm uma jornada dupla de trabalho. Além
das horas de trabalho remunerado, trabalham semanalmente
quarenta horas em casa, ao passo que os homens trabalham
apenas cinco. E isto sem nenhuma das facilidades de suas
irmãs ocidentais: não possuem aparelhos sofisticados, má
quinas de lavar etc. Há fila para tudo, e as compras têm
168
que ser feitas todos os dias, pois há poucas geladeiras e free-
zers. Isto porque toda a política industrial da (ex)União
Soviética é dirigida para a indústria pesada e bélica, devido
à competição com os Estados Unidos, e não prioriza os bens
de consumo para o povo.
O movimento feminista é temido no regime socialista
tanto por homens como por mulheres, e, portanto, apesar
de todas as conquistas, há muita violência contra a mulher,
poucas creches e pouco cuidado médico pré-natal. As víti
mas de estupro são culpadas, e não os estupradores. As clí
nicas de aborto, segundo a revista Ms., são verdadeiros
“açougues”. As mulheres não recebem auxílios por aborto
nem pelo cuidado das crianças pequenas quando não são
casadas ou vivem sem homens, por isso são obrigadas a pro
curar trabalho e cuidado para a criança pequena da manei
ra que puderem. Várias das poucas feministas que existiam
nos últimos anos na (ex)União Soviética foram presas ou
exiladas e nenhuma publicação deste tipo podia ser feita
na União Soviética. O feminismo é considerado pelo go
verno como frívolo e até uma traição à causa do povo.
E o que podemos concluir disso tudo?
Neste caso, como entre os primeiros cristãos, os primei
ros protestantes, as primeiras milícias da Revolução france
sa e praticamente todas as revoluções que aconteceram até
hoje, as vanguardas foram compostas em sua maioria de mu
lheres. Quando no entanto o poder é conquistado, também
no socialismo, como em qualquer outro sistema humano
até hoje, a situação da mulher volta a ser inferior à do
homem!...
China
A situação da mulher chinesa antes da Revolução era
muito pior do que a da mulher russa. Não só a bandagem
dos pés para impedi-las de fugir mas a impossibilidade de
169
herdar e a obediência cega ao homem as levavam a três ti
pos de submissão da qual não podiam livrar-se durante a
vida inteira: ao pai, ao marido e, depois de viúvas, aos fi
lhos. Muitas mulheres, então, preferiam o suicídio ao casa
mento, que em geral era sinônimo de escravidão. O suicídio
de noivas era tão comum que já não era mais notado. As
sim também o infanticídio feminino.
Isto acontece até o século XIX, quando os europeus
invadem a China e boa parte da Ásia. Já no fim do século
começam a estourar em toda a China movimentos de resis
tência sistemática à colonização. O general Sun Yat-sen fun
da o Kuomintang (KMT), o Partido Nacionalista Chinês.
Por essa época também já estava sendo organizado o Parti
do Comunista Chinês.
Já nas primeiras rebeliões que aconteceram no século
XIX, as mulheres haviam começado a tomar parte. Aqui
elas passaram a ser aceitas e treinadas. Uma rebelião maior
estourou em 1911, e a ela se juntaram legiões de mulheres
clamando por seus direitos.
Cai, então, o Império Chinês; Sun Yat-sen assume a
presidência da República e elabora uma nova constituição.
Embora esta tivesse sido a primeira constituição a dar al
guns direitos às mulheres e a tratá-las como cidadãs, a igual
dade ainda não fora conseguida. As mulheres protestaram
e organizaram grupos de resistência em todo o país pedin
do educação e sufrágio. Alguns anos depois, em 1919, houve
demonstrações maciças contra as potências imperialistas e
demandas por nacionalismo e feminismo, e ainda contra os
princípios do confucionismo, o sistema religioso filosófico
dominante. Este movimento foi a primeira revolução cul
tural chinesa e continuou grassando nos anos seguintes.
Em 1921, é finalmente fundado, por Mao Tsé-tung e
outros, o Partido Comunista Chinês, e, a partir daí, a ques
tão feminina, tal como na União Soviética, ficou subordi
nada à luta de classes. O PCC foi fundado dentro do KMT,
e este aceitava a participação dos comunistas. Porém Sun
170
morreu em 1925, e seu genro, Chiang Kai-shek, tomou o
poder no ano seguinte. Ele, contudo, estava do lado das
potências ocidentais, e começou a perseguir violentamentc
os comunistas. Estes se retiraram e em 1929 se reagrupa
ram, organizando os camponeses, tanto homens como mu
lheres. As mulheres camponesas exultaram com a mensagem
comunista. Intensifica-se então, a partir dessa época, a luta
pela libertação da China, em que as mulheres tomaram parte
decisiva. Nas regiões controladas pelos comunistas, proibiu-
se a bandagem dos pés, a venda de crianças, a prostituição
e a tirania das sogras. Casamento, divórcio e propriedade
tornaram-se acessíveis às mulheres tanto quanto aos homens.
Em 1937, o Japão invadiu a China, e relutantemente
Chiang uniu-se ao PCC até 1945, quando terminaram a Se
gunda Guerra Mundial e a guerra sino-japonesa. Inicia-se
então, durante quatro anos, uma guerra sem tréguas entre
as forças comunistas (PCC) e as de Chiang Kai-shek (KMT).
Durante esses anos, as mulheres entraram no sistema pro
dutivo em grande número, fazendo, como sempre, os tra
balhos mais pesados e ao mesmo tempo cuidando da casa
e dos filhos. Mas, à medida que iam entrando para o domí
nio público, elas iam também se organizando. As Associa
ções de Mulheres tornaram-se, então, uma parte essencial
da vida das aldeias. Essas associações treinavam seus mem
bros para fazer sabotagem, consertar pontes e estradas, es
pionar e portar mensagens, preparar comida para os soldados
e tratar dos feridos.
Aos poucos o PCC foi tomando a terra aos mandarins
e distribuindo pelo povo, não coletiva, mas individualmente,
tanto aos homens como às mulheres... Pela primeira vez,
ao menos no último milênio, as chinesas possuíam alguma
coisa... As mulheres, que nunca haviam trabalhado no cam
po, começaram a fazê-lo, e também a abandonar seus ma
ridos opressores.
171
20
A Mulher no Capitalismo
Avançado
D
epois da Segunda Guerra Mundial, as mulheres ame
ricanas passam por um choque. Durante os anos de
esforço de guerra, são obrigadas a entrar para a for
ça de trabalho, onde aprendem a agir no domínio público
e também a desenvolver qualificações até então desconhe
cidas. E quando os homens voltam da guerra, as mulheres
são não só incentivadas como obrigadas a voltar para casa
a fim de devolver a eles os seus empregos.
Durante toda a década de cinqüenta, são bombardea
das com uma ideologia baseada em Freud de que a mulher
verdadeira é a dona-de-casa e a boa mãe, isto é, aquela que
não compete com o homem, a que não se masculiniza.
Por “coincidência”, esta vem a ser a década em que
de fato os Estados Unidos assumem o papel de primeira po
tência mundial. Para ter pleno emprego, o sistema produ
tivo trabalha a pleno vapor, e acaba havendo uma super
produção. Esta não pode ser escoada, a menos que o consu-
172
mo aumente. Assim, a propaganda começa a bombardear
as mulheres, estimulando-as a consumir. Quebram-se des
te modo os padrões de austeridade do século XIX, e a so
ciedade produtiva passa a se tornar uma sociedade de
consumo.
A família passa, então, a não ser apenas o lugar da re
produção da força de trabalho, mas a unidade de consu
mo. Nesta época, 70% de todo o consumo são feitos pelas
mulheres, o que permite ao país continuar tendo um siste
ma produtivo cada vez mais desenvolvido.
Mas, na década de sessenta, as coisas parecem não es
tar indo bem com essa mulher que parece ter tudo. A jo
vem psicóloga Betty Friedan corre o país entrevistando as
mulheres ricas ou de classe média que moram nos subúr
bios, onde estão as casas mais prósperas das grandes cida
des, e percebe que a quase totalidade delas sofre de um mal
sem nome. Essa frustração sem objeto é que as impele a con
sumir e a ter casos extraconjugais, a fim de diminuir o seu
tédio.
E a psicóloga chega à conclusão de que a origem dessa
neurose nada mais é do que a não-utilização de todas as ca
pacidades humanas dessas mulheres. Ricas, tendo recebido
educação universitária ou treinamento profissional, elas não
se sentem felizes sendo só as “verdadeiras mulheres” que
a sociedade exigia delas.
Treze anos antes (1950), uma jovem filósofa francesa,
Simone de Beauvoir, lança em Paris seu livro O Segundo
Sexo. Era o primeiro estudo consistente sobre a condição
da mulher no patriarcado. Com isso, Beauvoir se tornou para
as mulheres o que Marx fora para os operários ao criar uma
teoria sobre sua opressão.
Mas o livro de Beauvoir só sai dos meios acadêmicos
quando Friedan, em 1963, lança o seu Mística Feminina. O
livro tem um sucesso tão grande que três anos depois nasce
o primeiro movimento feminista dos tempos modernos: a
National Organization of Women (NOW). As mulheres ti
173
nham se reconhecido na descrição de Betty Friedan. A par
tir daí, famosa, ela passa a ser objeto de chacota de toda
a imprensa masculina, surpreendida e ameaçada. Como no
século XIX, as feministas do século XX também são acusa
das de feias, machonas, mal-amadas, lésbicas ou prostitu
tas. Mas seus movimentos têm tamanha repercussão que no
início da década de setenta já estão organizados em prati
camente todo o mundo desenvolvido.
Várias foram as razões de tão fulminante sucesso do
feminismo na segunda metade do século XX. A primeira
foi que, devido à emergência da sociedade de consumo, o
sistema produtivo funcionava a todo vapor nos países de
senvolvidos. Havia mais máquinas do que machos na déca
da de sessenta, e as mulheres entram em massa na força de
trabalho.
E entram com todas as desvantagens dos seus dez mil
anos de reclusão: são menos qualificadas, e pelo fato de se
rem mulheres vão para as posições menos bem pagas, rece
bendo metade do salário dos homens (isto nos Estados Uni
dos e na Europa) pelo mesmo trabalho. E a discussão do
problema da mulher e suas organizações vem a ser o que
lhes faltava para reivindicarem os seus direitos e construí
rem o seu próprio pensamento e a sua própria emancipação.
A segunda causa do sucesso do feminismo americano
é que ele veio juntar-se a outros movimentos de libertação
emergentes e integrou-se com eles, formando talvez a cor
rente de maior importância do capitalismo avançado.
Já no início da década de sessenta, os negros começa
ram a lutar pelos seus direitos civis e contra a terrível discri
minação de que eram vítimas na sociedade americana.
Em 1965 começa a guerra do Vietnã. Os Estados Uni
dos, no auge do seu poder, não toleram o avanço do comu
nismo e mandam para a guerra mais de quinhentos mil dos
seus jovens.
A essa altura, a juventude americana, educada nas uni
versidades, não desejava morrer pelos interesses de uma pe
174
quena fração da população americana, que era a elite eco
nômica: mais de um milhão de jovens desertam da guerra
e vêm a formar uma sociedade alternativa dentro da gran
de sociedade americana.
Durante o fim dos anos sessenta e toda a década se
guinte, eles questionarão com seu próprio modo de viver
os padrões da sociedade competitiva, patriarcal e racista. Os
hippies, como se denominaram estes outsiders, rejeitam a
competição, o dinheiro, e se voltam para os alimentos na
turais. Muitos deles eram vegetarianos, e optaram pelo cul
tivo simples da terra. Rejeitaram a religião cristã por ser a
religião dos dominadores e adotaram o hinduísmo ou o bu
dismo, introduzindo no Ocidente a ioga como prática cor
poral milenar e, com ela, a expansão da mente e do corpo.
Descobriu-sc então, concretamente, que mente e corpo eram
uma coisa só, e os seus estados superiores seriam os estados
alterados da consciência. A parapsicologia passa a ser a psi
cologia da nova era.
Nos anos setenta começa a ensaiar-se um novo tipo de
pensamento pós-cartesiano, que integrava as descobertas da
física atômica mais moderna ao pensamento tradicional re
ligioso mais antigo (hinduísmo). Desta integração do pen
samento mágico com o científico começa a surgir uma
concepção mais integrada da vida. Nessa época nascem os
movimentos ecológicos e antinucleares. Oitenta por cento
deles são compostos de militantes mulheres. Recusa-se tam
bém nas novas comunidades o trabalho para a produção de
excedentes econômicos. Consomem-se drogas alucinógenas
e pratica-se a permissividade sexual.
Os movimentos de revolta das etnias não-brancas, prin
cipalmente os negros, põem a nu as articulações do racismo
com a sociedade de classes.
Quanto às mulheres, uma vez tendo entrado no mer
cado de trabalho e recebido os primeiros salários, iniciam
uma revolta generalizada. Começam a questionar a má qua
lidade de suas relações com os homens. Não querem mais
175
ser objetos sexuais nem inorgásticas. Podemos mesmo di
zer que o orgasmo como direito das mulheres é fato dos anos
sessenta. Ao mesmo tempo, lutam contra a discriminação
econômica, e principalmente passam a reivindicar postos de
decisão na política, nas empresas, nos sindicatos. Todos es
tes movimentos juntos vêm a constituir talvez o maior ques
tionamento feito contra o sistema competitivo e jpatriarcal
nos dez mil anos de sua existência. As relações de violência
contra o meio ambiente são contestadas pelos movimentos
ecológicos e pelos Partidos Verdes, que nascem nos anos se
tenta. A contestação contra as guerras é feita pela recusa
de jovens dos países desenvolvidos em engajar-se nelas em
massa. Os exércitos se fazem agora com negros e jovens de
outras etnias, provenientes dos países subdesenvolvidos, que
muitas vezes não têm outra opção de emprego.
As relações de dominação sobre a mulher são questio
nadas pelos movimentos feministas, que começam a criar
poderosas correntes de opinião pública, inclusive nos paí
ses menos desenvolvidos. Cai a imagem da mulher inorgás-
tica e reduzida ao setor privado. Ela entra em massa no
setor público. E à medida que as mulheres vão entrando
no mundo do trabalho, os homens começam a dividir com
elas os trabalhos de casa e a criação dos filhos, isto é, come
çam a entrar para o domínio do privado. Assim, esboça-se
um esforço de reintegração entre o público e o privado, fruto
de uma incipiente integração entre o homem e a mulher.
Os antigos estereótipos começam a cair. As mulheres
já podem ter acesso ao poder, e os homens mais jovens co
meçam a se relacionar melhor com seu corpo e suas emoções.
Nos anos setenta, fica difícil, nos países desenvolvidos,
encontrar os executivos disciplinados e competitivos essenciais
para fazer o sistema andar. A maioria dos jovens queria traba
lhar seis meses e viajar os outros seis. Grande número deles
desiste no meio dos cursos universitários. O exército ameri
cano entra em crise por falta de procura por parte dos jovens.
No fim da década a situação começa a mudar. Apesar
176
da polêmica, a maioria da população americana é conserva
dora, e nunca aceitou o questionamento dos princípios que
sempre nortearam a sua existência. A direita há muito tempo
já se organizara.
Desde o fim da Segunda Guerra, a economia america
na crescera de tal maneira que suas empresas se tornaram
transnacionais. Elas possuíam limites econômicos que não
tinham nada a ver com os limites políticos das nações: divi
diam o mundo entre si a seu modo. Por isso, foram criadas
organizações políticas que tratavam de dar suporte ao ex-
pansionismo econômico dos países desenvolvidos. Foram es
tas organizações que fizeram, desde o início do século XX,
o controle e a administração das políticas internas e exter
nas dos países a partir dos interesses dos países desenvolvi
dos, principalmente os Estados Unidos.
Nada acontece ao nível econômico ou político no ca
pitalismo avançado sem um planejamento a longo prazo e
ao nível macroscópico. O capitalismo concorrencial do sé
culo XIX é substituído agora pelos monopólios e oligopó
lios, e se desenvolve uma sofisticadíssima técnica de con
trole econômico e político a níveis nacional e internacional,
descrita minuciosamente e de maneira fascinante por René
Dreifuss em seu admirável livro A Internacional Capitalis
ta. Entre estas técnicas estão o planejamento de golpes de
Estado no Terceiro Mundo, tais como a tomada do poder
pelos militares na América Latina, por exemplo, e as alian
ças econômicas entre os países do Primeiro Mundo, como
aquela entre os Estados Unidos, Japão e Alemanha Ocidental
que teve lugar nos anos setenta, culminando com a forma
ção da Comissão Trilateral cuja finalidade era dar suporte
político à ação econômica internacional das empresas des
ses três países.
Ora, o que a Trilateral descobriu em meados da déca
da de setenta e com ela outros grupos do gênero, como a
Hermitage Foundation e a American Enterprise Associa-
tion, foi que a liberalidade em termos de sexualidade leva
177
va a um comportamento liberal de esquerda em termos eco
nômicos; isto é, desde que se questionasse a repressão se
xual também se questionaria a dominação econômica. E por
isso a direita organizada nessas instituições tomou suas me
didas. Não foi por acaso que em 1980 sobem ao poder os
conservadores Ronald Reagan (nos EUA), Helmut Kohl (Ale
manha), Margaret Thatcher (Inglaterra) e o Papa João Pau
lo II. Este último sobe ao poder após um brevíssimo
pontificado e uma morte ao menos misteriosa de um Papa
progressista: João Paulo I, que estava disposto a fazer uma
devassa nas finanças do Vaticano.
Quanto aos outros três, a campanha política que os co
locou no poder teve a mesma estrutura: ela se dirigiu às clas
ses médias conservadoras, prometendo-lhes menos impostos,
mais gastos militares que intensificassem a Guerra Fria, cor
tes nos programas sociais e, principalmente, a volta à moral
conservadora.
São chamadas algumas feministas de direita para can
tarem a insatisfação das mulheres depois de quinze anos de
conquista no mercado de trabalho e frustração na vida fa
miliar. O rock pesado é substituído por música romântica,
há um movimento cultural de volta aos valores dos anos cin-
qüenta, agora chamados de “anos dourados”.
Ao hippie como mito e modelo de vida se substitui
o yuppie (young urban professional), o jovem profissional
urbano pago a peso de ouro, altamente disciplinado e so
fisticado. E principalmente aparece a AIDS.
Se não fosse a AIDS não teria havido a virada conser
vadora no comportamento individual que levou a um novo
consumismo ao nível econômico. E desde essa época há forte
corrente de opinião levantando a hipótese de que essa doença
teria sido fabricada, ao menos em parte, pela engenharia
genética (genética viral), nos laboratórios de Maryland, nos
Estados Unidos, dedicados à pesquisa para a guerra quími
ca. Em fins de 85 a polêmica explodiu na opinião pública,
mas foi logo abafada.
178
É impossível mudar o comportamento de camadas in
teiras de muitas sociedades só com discursos. E necessário
um fato concreto, com a força da peste. De acordo com o
raciocínio desse tipo de direita, é melhor sacrificar cem mi
lhões de pessoas do que desestabilizar um sistema econô
mico que afeta bilhões de seres humanos. Foi essa a
declaração de um almirante americano publicada na Folha
de São Paulo (primeira página) do dia 6 de agosto de 1985,
quando se comemorava o 40? aniversário do lançamento da
primeira bomba atômica. E neste filme já vimos como agiu
Hitler.
No fim dos anos oitenta, o feminismo fora esmagado
e considerado antiquado nos Estados Unidos e cooptado pelo
sistema dominante na Europa.
Também no fim dos anos oitenta a virada conservado
ra atinge os países socialistas. O socialismo literalmcnte ex
plode. E em 25 de dezembro de 1991 acaba a União
Soviética.
A história parece, realmente, ter chegado ao seu fim.
179
21
O Pós-Patriarcado
A
credito que a leitura deste livro até aqui tenha dado
a noção do crescendo dos desafios que nos são pro
postos e que vão desde os pequenos problemas das
sociedades de coleta até a explosão do socialismo e o fim
da história. E mais, que esses desafios vão se colocando ca
da vez com maior velocidade, tal como quando colocamos
um motor para funcionar e ele vai primeiro em velocidade
lenta e gradativamente a uma aceleração cada vez maior.
Os desafios que estamos enfrentando vêm cada vez mais
pesados e cada vez mais rapidamente. Meu sentimento pes
soal é de que cada vez menos consigamos nos adaptar a eles,
pois, neste fim do segundo milênio, parece que eles estão
pressionando até nossa capacidade biológica de adaptação.
Nosso cérebro, que tem milhões de anos, talvez esteja
ainda, em termos de adaptação, no tempo dos primeiros
grupos agrários. Assim é, ao menos, com sua parte mais ar
caica, o hipotálamo, que liga nossos sentimentos mais irra
cionais ao reino animal.
180
E afirmamos isto porque não se colocou neste livro ain
da o último desafio, que é aquele que está na cabeça de
todos nós: a destruição do planeta.
Se formos fazer em uma frase uma avaliação destes úl
timos dez mil anos de patriarcado e principalmente dos dois
últimos séculos de industrialização, chegaríamos a uma con
clusão surpreendente. Dois terços dos seres humanos pas
sam fome para o terço superior comer exageradamente. Já
é possível também destruir o planeta instantaneamente mais
de cem vezes com o arsenal atômico acumulado nestes últi
mos quarenta anos e, o que é pior, a competição cada vez
mais enlouquecida por riqueza está destruindo o meio am
biente de tal modo que, calculam as associações ambienta
listas internacionais, em cerca de dez-quinze anos chega
remos ao ponto de não-retorno.
Jogamos anualmente oitocentos bilhões de toneladas
de monóxido de carbono nas camadas superiores da atmos
fera, o que está acarretando o efeito estufa e o possível der-
retimento das calotas polares em menos de cinqüenta anos,
o que submergiría todas as cidades costeiras do planeta. E
isto foi publicado pela NASA, e não por algum escritor de
ficção científica.
O uso do clorofluorcarbono nos sprays e aerossóis está
se combinando com o ozônio da alta atmosfera e fazendo-o
desaparecer. No verão do Pólo Sul, aparece anualmente um
buraco que já é do tamanho dos Estados Unidos e da altura
do Himalaia. E é o ozônio que impede os efeitos letais dos
raios solares sobre os seres vivos.
Quase todos os rios do mundo estão poluídos por de
jetos industriais ou detergentes. Quase todas as florestas do
planeta já foram queimadas. Cresce anualmente em 10%
o total das terras agricultáveis no mundo inteiro que se tor
nam irremediavelmente desertificadas.
Este quadro fica ainda mais estarrecedor quando ve
mos que ele se coloca para a consciência coletiva da huma
nidade de uns vinte anos para cá e é fruto dos últimos du
181
zentos anos de industrialização e exacerbação de competiti
vidade.
E é isso que nos faz afirmar que nossas estruturas psí
quicas não estão adaptadas para este último desafio por se
rem ainda competitivas e acharem “natural” o tipo de
estruturas político-econômicas tão destrutivas em que vi
vemos.
E, de fato, se a nossa cabeça não mudar, na melhor
das hipóteses, nos próximos vinte anos, nada mais poderá
ser feito.
O que nos fará compreender melhor esta afirmação será
um entendimento talvez mais claro dos mecanismos que fa
zem funcionar o sistema competitivo. Em primeiro lugar,
a sua lei maior é a obtenção do lucro a qualquer preço. Pa
ra obter este lucro que traz o dinheiro que traz por sua vez
o poder, estimulam-se não só uma produção cada vez maior,
como também um consumo crescente, criando camadas de
população que podem não só pagar o que consomem, co
mo desenvolver necessidades artificiais cada vez mais sofis
ticadas para sustentar esse mesmo consumo. Portanto,
desenvolvem tecnologias e também esquemas publicitários
que alcancem cada vez mais pessoas, ultrapassando as fron
teiras nacionais e tentando influir nas culturas locais a par
tir do nível internacional.
A segunda lei do sistema competitivo que decorre desta
é a sua lei interna: a expansão sem limites. Quem deixa de
se expandir acaba desaparecendo. Para isso, são usados to
dos os métodos, inclusive os mais manipuladores e violen
tos, como as guerras, as barreiras alfandegárias, manipulação
das leis internacionais de troca a fim de que favoreçam sem
pre os mais ricos etc.
A terceira lei básica que decorre das duas anteriores (o
lucro e a expansão) é a de que apenas os mais fortes sobre
vivem. Na corrida desenfreada pelo poder, quem não pre
judica o outro é prejudicado. Quem não mata, morre. Isso
vai desde os conflitos sangrentos pela terra até a luta mais
182
sofisticada por segmentos do mercado em todos os níveis.
Enfim, em última análise, é esta ideologia que está liqui
dando com as nossas possibilidades de sobrevivência sobre
a terra.
O sistema competitivo patriarcal capitalista que hoje
fascina o mundo inteiro, devido a esses três componentes
(lucro, expansão, agressão) é um sistema polarizante, isto
é, faz os ricos ficarem cada vez mais ricos e os pobres cada
vez mais pobres. No início do período industrial, isto é, há
duzentos anos, os povos mais desenvolvidos eram apenas
cinco vezes mais ricos que os pobres. Neste século, as pro
porções passam em 1960 para 20 por um e no início dos
anos 80 de 46 para um. Vemos, pois, que a velocidade do
afastamento entre pobres e ricos tende a crescer mais ainda
no início do Terceiro Milênio, tornando cada vez mais re
mota a possibilidade de os pobres alcançarem padrões de
desenvolvimento que os igualem aos mais ricos. E dentro
de cada país, vai também aumentando a diferença entre as
classes sociais. O caso do Brasil, por exemplo, é típico: o
salário mínimo criado em 1940 é hoje 40% do que era na
época em que foi instituído e o número de brasileiros que
vive desse salário (ou menos) é mais de 60% da população
total.
O esquema da dívida externa que no início dos anos
70 possuía juros muito baixos, e hoje atinge taxas altíssi
mas, é mais um fator importante que escraviza os países po
bres aos ricos. A dívida está sendo paga pelo Terceiro Mundo
com inflação, desemprego, crise endêmica na economia e
a morte dos menos favorecidos.
Por outro lado, os Estados Unidos têm uma dívida de
um trilhão de dólares. Esta dívida é simplesmente rolada
porque não interessa aos outros países exportadores que baixe
o poder aquisitivo do povo americano. Ela está, pois, sen
do em parte compensada pelos juros cada vez mais altos co
brados aos países do Terceiro Mundo.
Os países ricos ditam unilateralmente as leis de troca
183
internacionais, os juros da dívida; valorizam os produtos que
mais lhes interessam e desvalorizam outros muitas vezes es
senciais à sobrevivência física das populações, como as
matérias-primas e os produtos agrícolas.
Esse sistema não pode viver sem vastas regiões e popu
lações a quem explorar, tais como o Terceiro Mundo que
jamais poderá sair da sua pobreza caso persistam os atuais
padrões, as mulheres, cuja libertação é combatida com unhas
e dentes, pois elas são as operárias dos homens, e, princi
palmente, a natureza que é explorada desenfreadamente,
como se suas capacidades fossem ilimitadas. E são monta
dos todos os esquemas em plano individual e coletivo que
perpetuem esta exploração, como o preconceito cultural e
econômico contra o Terceiro Mundo, os estereótipos em re
lação à mulher, mas algo muito importante está acontecen
do hoje. E isto diz respeito ao meio ambiente.
Não é mais possível explorar indefinidamente a natu
reza. A espécie humana já está se ressentindo das limita
ções materiais do meio ambiente e suas conseqüências para
todo o planeta. A esse respeito há que se frisar que são os
padrões de consumo dos ricos que estão destruindo a ca
deia biológica. Vinte por cento dos povos do mundo estão
gastando 80% de todos os recursos naturais. Um só ameri
cano gasta cem vezes mais energia que 100 indianos. E apesar
disso, criou-se no Primeiro Mundo uma corrente de opinião
pública muito forte de que o grande impacto sobre o meio
ambiente viria da “explosão populacional” do Terceiro
Mundo, de que trataremos adiante. E, devido ao constante
crescimento dos ricos e ao achatamento dos pobres, o con
sumo do bilhão mais rico aumenta cada vez mais em detri
mento do 4,5 bilhões mais pobres dos seres humanos.
Por outro lado, há em curso uma outra revolução si
lenciosa: as mulheres conseguiram invadir como povo o
mundo masculino. Hoje somos, no mundo inteiro, quase
50% da força de trabalho (no Brasil este número é de 45 %,
segundo o IBGE). Assim, conseguimos superar a dicotomia
184
entre o público e o privado que caracterizou o patriarcado
desde o seu início e que sempre foi a sua característica mais
fundamental. Tecnicamente, estaríamos, pois, ao mesmo
tempo que chegamos ao limiar do milênio, também ao li
miar de um pós-patriarcado. E isto ao mesmo tempo em
que chegamos à consciência de que se continuarmos nos
atuais padrões de consumo não sobreviveremos como espé
cie. E esta consciência das duas ‘ ‘colônias’ ’ essenciais ao fun
cionamento do sistema competitivo/patriarcal — as
mulheres e o meio ambiente — despertaram ao mesmo tem
po. Quais são, então, as conseqüências dessa mudança tão
drástica, talvez a mais drástica de todos os tempos?
185
22
Os Novos Valores
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23
Conclusão: A Mulher no
Terceiro Milênio
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24
Bibliografia
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