Aleide Assman - Memória Funcional e Memória Cumulativa
Aleide Assman - Memória Funcional e Memória Cumulativa
Aleide Assman - Memória Funcional e Memória Cumulativa
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E sta coleção reúne obras que são referência nos estudos da memória. Visando
divulgar e aprofundar esse campo de pesquisa, a coleção tem um caráter interdis-
ciplinar e circula entre a teoria literária, a história e o estudo das diferentes artes. Suas
obras abrem a perspectiva de uma visada singular sobre a cultura como um diálogo e
um embate entre diversos discursos mnemônicos e registros da linguagem.
ESPAÇOS DA RECORDA~~ÃO
ocidental. sem cumprir uma conversão à ortodoxia: a poesia ainda ocupa o lugar
central. O espaço na caixinha de Dario é limitado; essa imagem mnemônica
rematiza por um lado a valorização da selcrividade na memória culrural; por
outro, seu restringimento. A premência de autorresrrição e autovinculação não é
compelida pela crise na vida de Heine; ela constirui um problema do século XIX
e torna-se notadameme maior, à medida que o saber cresce e se torna mais diver-
sificado e mantém menos relações com o mundo. Deste pomo, quanto ao tema e
à cronologia, está-se a um passo de chegar à narrariva de Forster, que comprime
esse saber histórico especializado e hostil à vida em uma caixa de livros abar-
rotada. Não se espera mais alcançar salvação por meio dos livros e da memória,
mas somente pela libertação em relação a eles. Não é o treinamento ·da memó-
ria, mas o aprendizado do esquecimento que ocupa lugar central na narrativa de
Forster. Com isso, a temática da caixa mnemônica altera-se e alcança seu inverso:
vai-se do livro e da memória como nexo salvífico, passa-se pela intensificação de
sua valorização por meio da seleção e restrição, e alcança-se a crise da memória
. cultural, dramatizada no "caixote cruel", cujo peso oprime a vida.
VI
Memória funcional e
memória cumulativa - Dois modos da recordação•
1. História e memória
O nexo entre recordação e identidade não foi pesquisado somente por poetas
e filósofos, mas também por sociólogos e historiadores. Na sequência, assumirão
a palavra teóricos da memória coletiva, para os quais a distinção entre história e
memória se tornou uma diferença mestra. História e memória, nesse caso, são
determinadas pela limitação recíproca que impõem uma à outra: uma é sempre o
que a outra não é. Assim, tanto se descreveu o surgimento da historiografia crítica
como emancipação em relação a uma memória oficial quanto se fez prevalecerem
os direitos da memória em face de uma ciência histórica poderosa demais.
Em primeiro lugar cabe mencionar uma vez mais Friedrich Nietzsche, que,
em sua obra da juventude "Da utilidade e do malefício da história para a vida'',
contrapôs de maneira polêmica a memória benéfica à vida e a história estranha à
vida. Em sua terminologia, o que mais corresponde à história é "recordar"; à
memória corresponde mais "esquecer". Ele tomou como ponto de partida a ideia
de que "cada pessoa e cada povo, [...] segundo seus objetivos, suas forças e suas
necessidades", precisa de "um certo conhecimepto do passado" 1• Em virtude das
ciências históricas do século XIX, esse "certo conhecimento" havia se transfor-
mado em um mar interminável de saber, que ainda aumentava mais e mais. Ao
diagnosticar essa situação, Nietzsche viu nela uma crise alarmante, por temer
que a memória cultural estivesse a ponto de perder sua capacidade de limitação
Que há uma "memória no grupo'', isso ninguém contesta. Mas também pode
haver algo como uma "memória do grupo"? Uma memória de grupo não dispõe
de qualquer base orgânica e por isso é impensável, em sentido literal. No entanto
ela não é meramente metafórica. Os estudos do historiador francês Pierre Nora
demonstraram que por trás da memória coletiva não há alma coletiva nem
espírito coletivo algum, mas tão somente a sociedade com seus signos e símbolos.
Por meio dos símbolos em comum o indivíduo toma parte de uma memória e de
uma identidade tidas em comum. Nora cumpriu na teoria da memória o passo
que vai do grupo vinculado na coexistência espaço-temporal, tema estudado por
Halbwachs, à comunidade abstrata que se define por meio dos símbolos que
abrangem e agregam, em nível espacial e temporal. Os portadores dessa memória
coletiva não precisam conhecer-se para, apesar disso, reivindicar para si uma
identidade comum. A nação é uma comunidade como essa, que concretiza sua
unidade imaterial no medium da simbologia política. Pierre Nora distingue
esses signos da história, que perfazem a memória de uma nação, dos signos da
escrita da história, que perfazem o debate científico da historiografia. Para Nora,
memória coletiva (de grupo) e escrita analítica da história estão em uma luta que,
na esteira da modernização, dá-se inevitavelmente em prejuízo da memória:
Memória, história: não são sinônimos de modo algum; na verdade, corno já sabemos
hoje, são opostos em todos os aspectos. [...) A memória é sempre um fenômeno atual,
urna consrruçf10 vivida em um pn:senre eterno, enquamo que a história é representação
do passado. [...] A memória orienta a recordação para o sagrado, a história expulsa-a: seu
objetivo é a desmistificação. A memória surge a partir de um grupo cuja conexão ela
2 Maurice Halbwachs, D:u kollektive Gediichtnis [A memória coletiva]. Frankfurt, 1985, p. 72.
F.SPA<(OS DA RECORDAÇÃO
estimula.[...] A história, por sua vez, pertence a rodos e a ninguém, e por isso~ d.:signada
como universaP.
3 Pierre Nora, Zwischen Geschichte und Gedachtnis [Enrre história e memória]. Vol. 11. Ber-
lim, 1990. p. 12.
MEMÓRIA FUNCIONAI. E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO
balança pendeu para o outro lado; já há teóricos que até mesmo equiparam
história e memória, tal como Dan Diner, um dos editores da revistaHistory anel
ldemory, central para a pesquisa sobre a recordação.
A polarização brusca de história e memória parece-me tão insatisfatória
quanto a equiparação plena de ambas. Por isso é que gostaria de sugerir, a seguir,
a fixação de história e memória como dois modos da recordação, que não
precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente. Seguir os passos de Nietzsche
e representar história e memória como uma "alternativa coagida" (Reinhart
Koselleck) faz jus ao pathos do desencantamento da retórica ligada à crítica
cultural. Gostaria de afastar o problema desse contexto e perguntar de que
maneira esses conceitos podem ser referidos um ao outro de modo produtivo e
voltar a tornar-se utilizáveis do ponto de vista analítico.
O passo essencial para além da polarização ou equiparação dos conceitos de
memória e história consiste em compreender a relação entre memória habitada e
inabitada no sentido de dois modos complementares da recordação. Deno-
minaremos a memória habitada memória funcional. Suas características mais
marcantes são referência ao grupo, à seletividade, à vinculação a valores e à orien-
tação ao futuro. As ciências históricas, por sua vez, são uma memória de segunda
ordem, uma memória das memórias, que acolhe em si aquilo que perdeu a rela-
ção vital com o presente. Sugiro atribuir a essa memória das memórias a desig-
nação memória cumulativa. Conhecemos bem as desilusões que o esquecimento
nos impõe, a perda irreversível do saber ponderado e de experiências vitais. Sob
o teto amplo das ciências históricas podem guardar-se vestígios inabitados e
acervos que ficaram sem dono, mas que podem ser recuperados, de modo a
oferecer novas possibilidades de adesão à memória funcional.
Para explicar esse tipo de imbricamento entre memória funcional e cumulativa
faremos uma breve incursão ao campo da psicoterapia. No contexto das teorias
psicoterapêuticas tem-se como ponto de partida que a memória individual se
constitui de diferentes planos. Um plano é o da memória consciente. Nele,
lembranças e experiências são mantidas à disposição, à medida que se situam em
determinada configuração de sentido. De modo semelhante ao que Locke havia
percebido, a produção de uma configuração de sentido como essa equivale à
autoimcrprctação e à autodeterminação do indivíduo. Indica o quanto uma
pessoa individual sabe de si mesma, qual sua autoestima e como lida com suas
próprias experiências. Dessa configuração da memória para o indivíduo depende
o quadro de oportunidades futuras à disposição do indivíduo e quais delas estão
excluídas de seu horizonte. A terapia é capaz de auxiliar na reconfiguração e
reestruturação das lembranças; ela pode ocasionar que isso ocorra de uma ma-
neira mais consciente e inclusiva, pode refletir sobre a fixação de limites e atenuar
4 O teólogo e psicoterapeuta Dietrich Ritschl resumiu essa noção sob o seguinte princípio:
"Somos as histórias que podemos narrar sobre nós". Cf. Dietrich Ritschl, "Das 'scory'-
Konzept in der medizinischen Ethik" [O conceito de story na ética médica], in Konzepte:
Ôkomene, Medizin, Ethik; gesammelte Aufiãtze [Conceitos: ecumenicidade, medicina,
ética: quatro artigos]. Munique: 1986, pp. 201-12.
5 Michael White e David Epston, Literate Means to Therapeutic Ends [A domesticaçáo dos
monstros. Recursos literários para fins terapêuticos]. Adelaide, 1989, p. 20. Ed. alemã, Die
Zahmung der Monster. Literarische Mittel zu thcrapeutischen Zwecken. Hciddberg, 1990.
Sou grata a Helm Stierlin, Arno Reczer e Jürg Schweiczer pela indicaçáo desse texto e por
diversas sugestões.
6 Ibidem.
MEMÓRIA FUNCIONAL F. MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO
7 Maurice Halbwachs, D11s Gediichtnis und seine sozialen Bedingungen [A memória e suas
condições sociais]. Frankfurt, 1985, p. 389.
8 Karl W. Dcutsch, Politische Kybernetik. Modelle und Perspektiven. Sqzialwissenschaft in
Theorie zmd Praxis (Cibernética política. Modelos e perspectivas. Ciências sociais em teoria
e prática]. W. Bessen (org.). Friburgo, 1969, p. 152. (Primeira edição inglesa: 1963).
3
ESPAÇOS DA RECORDAÇÃO
dispor um saber adicional que, como memória das memórias, pode garantir que
memórias funcionais realmente dadas possam ser criticamente relativizadas ou,
ainda, renovadas ou transformadas. Por si só eles não geram sentido nem fun.
<lamentam valores, mas podem constituir um pano de fundo (estabilizador ou
corretivo) para essas operações.
Esses mecanismos derivados da observação da memória individual podem
ser transpostos para a memória cultural. Em urna cultura oral da memória, na
qual memórias individuais fortalecidas por esteios materiais e corpóreos como
bordadura, pintura, ritmo, dança e música constituem o refúgio da memória
cultural, é impensável haver uma distinção entre memória funcional e cu-
mulativa. Há tão pouco lugar na memória e as. técnicas de memorização são tão
dispendiosas que não entra sequer em questão conservar algo que també.m não
seja útil para a identidade do grupo e, portanto, decisivo para sua sobrevivência.
Com a escrita, por outro lado, enquanto medium cumulativo paradigmático
extracorporal, ultrapassa-se esse horizonte das culturas orais da memória. Com
a escrita pode-se registrar e acumular mais do que se poderia evocar por meio da
recordação. Com isso, distende-se a relação entre recordação e identidade; a
diferença entre memória cumulativa e funcional está embasada nessa distensão.
O potencial da escrita consiste na codificação e acumulação de informações, para
além de seus portadores vivos e em que independa de atualização em encenações
coletivas. O problema da escrita consiste na acumulação de informações, que
tende a ser ilimitada. Por meio de media cumulativos extracorporais e inde·
pendentes da memória humana, vai pelos ares o horizonte da recordação viva e
corporificada e criam-se condições de existência para arquivos culturais, saber
abstrato e tradição esquecida.
Em um plano coletivo a memória cumulativa contém o que se tornou inu-
tilizável, obsoleto e estranho: o saber objetivo neutro e abstrato-identitário, mas
também o repertório de possibilidades perdidas, opções alternativas e chances
desperdiçadas. Na memória funcional, por outro lado, trata-se de uma memória
que, ao passo que se apropriam dela, resulta de um processo de seleção, associação,
constituição de sentido - ou, para dizer com Halbwachs: do delineamento de
molduras. Os elementos desprovidos de estrutura, desconexos, passam a integrar
a memória funcional como se houvessem sido compostos, construídos, vincula-
dos. Esse ato construtivo gera sentido, uma qualidade de que a memória cumu-
lativa simplesmente não dispõe.
A memória funcional cultural está vinculada a um sujeito que se compreende
como seu portador ou depositário. Sujeitos coletivos da ação como estados ou
nações constituem-se por meio de uma memória funcional, em que tornam dis-
ponível para si uma construção do que teria sido seu passado. A memória
MEMÓRIA l'UNCIONAL E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO
cumulativa, por sua vez, não fundamenta identidade alguma. Sua função, em
nada menos essencial que outras, consiste em conter mais coisas e coisas diferentes
em relação ao que se pode esperar da memória funcional. Para esse arquivo
ilimitável- com sua massa sempre crescente de dados, informações, documentos,
lembranças - não há mais sujeito a que se possa associar tudo isso; de qualquer
modo, ainda se pode falar aqui de uma "memória da humanidade", completamente
abstrata.
9 Peter Burke, "Geschichte ais soziales Gedachmis" [História como memória social], in A.
Assmann e D. Harth (orgs.), fv!nemosyne, Formen und Funktionen kuftureller Erinnerung
[l\focmosine, formas e funções da recordação cultural]. Frankfurt, 1991, p. 297.
ESPAÇOS DA RECORDAÇAO
M E 1 O S