Aleide Assman - Memória Funcional e Memória Cumulativa

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Espaços da Memória

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E sta coleção reúne obras que são referência nos estudos da memória. Visando
divulgar e aprofundar esse campo de pesquisa, a coleção tem um caráter interdis-
ciplinar e circula entre a teoria literária, a história e o estudo das diferentes artes. Suas
obras abrem a perspectiva de uma visada singular sobre a cultura como um diálogo e
um embate entre diversos discursos mnemônicos e registros da linguagem.
ESPAÇOS DA RECORDA~~ÃO

ocidental. sem cumprir uma conversão à ortodoxia: a poesia ainda ocupa o lugar
central. O espaço na caixinha de Dario é limitado; essa imagem mnemônica
rematiza por um lado a valorização da selcrividade na memória culrural; por
outro, seu restringimento. A premência de autorresrrição e autovinculação não é
compelida pela crise na vida de Heine; ela constirui um problema do século XIX
e torna-se notadameme maior, à medida que o saber cresce e se torna mais diver-
sificado e mantém menos relações com o mundo. Deste pomo, quanto ao tema e
à cronologia, está-se a um passo de chegar à narrariva de Forster, que comprime
esse saber histórico especializado e hostil à vida em uma caixa de livros abar-
rotada. Não se espera mais alcançar salvação por meio dos livros e da memória,
mas somente pela libertação em relação a eles. Não é o treinamento ·da memó-
ria, mas o aprendizado do esquecimento que ocupa lugar central na narrativa de
Forster. Com isso, a temática da caixa mnemônica altera-se e alcança seu inverso:
vai-se do livro e da memória como nexo salvífico, passa-se pela intensificação de
sua valorização por meio da seleção e restrição, e alcança-se a crise da memória
. cultural, dramatizada no "caixote cruel", cujo peso oprime a vida.
VI
Memória funcional e
memória cumulativa - Dois modos da recordação•

1. História e memória

O nexo entre recordação e identidade não foi pesquisado somente por poetas
e filósofos, mas também por sociólogos e historiadores. Na sequência, assumirão
a palavra teóricos da memória coletiva, para os quais a distinção entre história e
memória se tornou uma diferença mestra. História e memória, nesse caso, são
determinadas pela limitação recíproca que impõem uma à outra: uma é sempre o
que a outra não é. Assim, tanto se descreveu o surgimento da historiografia crítica
como emancipação em relação a uma memória oficial quanto se fez prevalecerem
os direitos da memória em face de uma ciência histórica poderosa demais.
Em primeiro lugar cabe mencionar uma vez mais Friedrich Nietzsche, que,
em sua obra da juventude "Da utilidade e do malefício da história para a vida'',
contrapôs de maneira polêmica a memória benéfica à vida e a história estranha à
vida. Em sua terminologia, o que mais corresponde à história é "recordar"; à
memória corresponde mais "esquecer". Ele tomou como ponto de partida a ideia
de que "cada pessoa e cada povo, [...] segundo seus objetivos, suas forças e suas
necessidades", precisa de "um certo conhecimepto do passado" 1• Em virtude das
ciências históricas do século XIX, esse "certo conhecimento" havia se transfor-
mado em um mar interminável de saber, que ainda aumentava mais e mais. Ao
diagnosticar essa situação, Nietzsche viu nela uma crise alarmante, por temer
que a memória cultural estivesse a ponto de perder sua capacidade de limitação

• Tradução: Paulo Soc:thc e Daniel Manineschen.


Friedrich Nietzsche, Unzeitgemajje Betracbtungen [Considerações intempestivas], Zweites
Stück (Segunda parte]: lórn Nutzen und Nacbteil der Historie für das Leben [Dos usos e
desvantagens da história para a vida], in Samtlicbe Werke (Obras Completas]. Vol. I.
ESPAÇOS DA RECORDAÇÃO

e restrição ao essencial, e com isso perder sua capacidade de formar horizontes,


como ele dizia. Como um processo de aumento descontrolado fez verter o saber
para além das bordas da memória, nivelaram-se os limites entre o que fosse
essencial e relevante, de um lado, e desimporcante e aleatório, de outro. Para
Nietzsche isso ocasionava que a tradição estabelecesse cada vez menos um
vínculo de utilidade com o agir e o futuro. Ela se transformara em um lastro e
com isso perdera o caráter de um aparato básico capaz de se adaptar às circuns-
tâncias e exigências de um presente que progride. Com o sobrepeso da história,
a memória cultural teria perdido suas duas funções centrais, intensidade e
identidade, isto é, energia impulsionadora e a autoimagem formativa. Para duas
perguntas ela deixara de ter resposta: "Segundo que parâmetros devemos nos
orientar?" e "Quem somos?". No fundo, Nietzsche contrapôs dois modelos cul-
turais, que se podem descrever com os conceitos "história" e "memória". No pri-
meiro caso, que ele considera ameaçador, o presente encontra-se sob o peso do
passado; no segundo, que ele vê com nostalgia, é o passado que se encontra sob o
peso do presente.
. Maurice Halbwachs trilhou caminhos bem diversos para chegar a sua
distinção entre história e memória. Corno sociólogo empírico, não teve intenções
pautadas pela crítica cultural. Seu interesse voltou-se apenas à pergunta sobre o
que mantém as pessoas unidas em grupos. Deparou, assim, com o significado
agregador das lembranças em comum, como importante elemento de coesão.
Derivou daí a noção da existência de uma "memória de grupo". Mas as lembranças
não se estabilizam somente no grupo. O grupo torna estáveis as lembranças. A
investigação de Halbwachs em torno dessa "memória coletiva" resultou no
seguinte: a estabilidade da memória coletiva está vinculada de maneira direta à
composição e subsistência do grupo. Se o grupo se dissolve, os indivíduos perdem
em sua memória a parte de lembranças que os fazia assegurarem-se e identificarem-
se como grupo. Mas também a alteração de um contexto político pode levar ao
apagamento de determinadas lembranças, já que estas, segundo Halbwachs, não
têm uma força imanente de permanência e carecem essencialmente da interação
e atestação sociais. Para lembranças erráticas e disfuncionais não há lugar na
teoria funcionalista da memória de Halbwachs, marcada pelo construtivismo.
Halbwachs distinguia rigorosamente memória coletiva e memória da ciência
histórica. De modo especial, destacou os seguintes traços distintivos:
- a memória coletiva assegura a singularidade e a continuidade de um grupo,
ao passo que a memória histórica não tem função de asseguração identitária;
- as memórias coletivas, assim como os grupos aos quais estão vinculadas,
existem sempre no plural; a memória histórica, por sua vez, constrói uma
moldura integradora para muitas narrativas e existe no singular;
MEMÓRIA FUNCIONAL E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

_ a memória coletiva obscurece ostensivamente as mudanças, ao passo que a


memória histórica é nelas que se especializa.
Em resumo, Halbwachs constata:

O mundo histórico~ como um oceano no qual todas as histórias parciais deságuam.


[... ) A história pode parecer ser a memória universal do ser humano. Entretanto não
existe memória universal. Cada memória coletiva tem como portador um grupo
limitado no tempo e no espaço. Só se pode compilar a totalidade dos acontecimentos
passados em uma única imagem sob as premissas: de que estes sejam desvinculados dos
grupos que os mantinham na memória; de que sejam rompidos os laços que os ligavam
ao contexto social em que ocorreram; e de que só se conservará o seu esquema
cronológico-espacial2.

Que há uma "memória no grupo'', isso ninguém contesta. Mas também pode
haver algo como uma "memória do grupo"? Uma memória de grupo não dispõe
de qualquer base orgânica e por isso é impensável, em sentido literal. No entanto
ela não é meramente metafórica. Os estudos do historiador francês Pierre Nora
demonstraram que por trás da memória coletiva não há alma coletiva nem
espírito coletivo algum, mas tão somente a sociedade com seus signos e símbolos.
Por meio dos símbolos em comum o indivíduo toma parte de uma memória e de
uma identidade tidas em comum. Nora cumpriu na teoria da memória o passo
que vai do grupo vinculado na coexistência espaço-temporal, tema estudado por
Halbwachs, à comunidade abstrata que se define por meio dos símbolos que
abrangem e agregam, em nível espacial e temporal. Os portadores dessa memória
coletiva não precisam conhecer-se para, apesar disso, reivindicar para si uma
identidade comum. A nação é uma comunidade como essa, que concretiza sua
unidade imaterial no medium da simbologia política. Pierre Nora distingue
esses signos da história, que perfazem a memória de uma nação, dos signos da
escrita da história, que perfazem o debate científico da historiografia. Para Nora,
memória coletiva (de grupo) e escrita analítica da história estão em uma luta que,
na esteira da modernização, dá-se inevitavelmente em prejuízo da memória:

Memória, história: não são sinônimos de modo algum; na verdade, corno já sabemos
hoje, são opostos em todos os aspectos. [...) A memória é sempre um fenômeno atual,
urna consrruçf10 vivida em um pn:senre eterno, enquamo que a história é representação
do passado. [...] A memória orienta a recordação para o sagrado, a história expulsa-a: seu
objetivo é a desmistificação. A memória surge a partir de um grupo cuja conexão ela

2 Maurice Halbwachs, D:u kollektive Gediichtnis [A memória coletiva]. Frankfurt, 1985, p. 72.
F.SPA<(OS DA RECORDAÇÃO

estimula.[...] A história, por sua vez, pertence a rodos e a ninguém, e por isso~ d.:signada
como universaP.

As teorias da memória de Nietzsche, Halbwachs ou Nora acentuam o caráter


construtivista da recordação, seu caráter assegurador da identidade, e afirmam o
direito dela em face de uma ciência histórica objetiva e neutra. Nos três casos, a
oposição mestra se dá entre corporificado e descorporificado, ou ainda, como
também podemos dizer, entre habitado e inabitado: a memória pertence a por-
tadores vivos com perspectivas parciais; a história, ao contrário, "pertence a
todos e a ninguém", é objetiva e, por isso mesmo, neutra em relação à identidade.
Os critérios elencados para o estabelecimento dessa oposição podem ser resu-
midos conforme a seguir:

A memória habitada A memória inabitada


está vinculada a um portador, é desvinculada de um portador
que pode ser um grupo, uma específico
instituição ou um indivíduo
estabelece uma ponte entre separa radicalmente passado de
passado, presente e futuro presente e futuro
procede de modo seletivo, à interessa-se por tudo; tudo é
medida que recorda uma coi- igualmente importante
sa e esquece outra
investiga a verdade e com isso
intermedeia valores dos quais suspende valores e normas
resultam um perfil identitá-
rio e normas de ação

2. Memória funcional e memória cumulativa

Já que focamos essa contraposição de modo tão explícito quanto possível,


cabe agora constatar que uma oposição entre memória e história entendida desse
modo se sustenta cada vez menos. Há nesse Ínterim um consenso quanto a não
haver uma escrita da história que não seja ao mesmo tempo trabalho da memória
e que deixe de estar irremediavelmente imbricada com as condições de atribuição
de sentido, parcialidade e criação identitária. Nos últimos tempos, inclusive, a

3 Pierre Nora, Zwischen Geschichte und Gedachtnis [Enrre história e memória]. Vol. 11. Ber-
lim, 1990. p. 12.
MEMÓRIA FUNCIONAI. E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

balança pendeu para o outro lado; já há teóricos que até mesmo equiparam
história e memória, tal como Dan Diner, um dos editores da revistaHistory anel
ldemory, central para a pesquisa sobre a recordação.
A polarização brusca de história e memória parece-me tão insatisfatória
quanto a equiparação plena de ambas. Por isso é que gostaria de sugerir, a seguir,
a fixação de história e memória como dois modos da recordação, que não
precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente. Seguir os passos de Nietzsche
e representar história e memória como uma "alternativa coagida" (Reinhart
Koselleck) faz jus ao pathos do desencantamento da retórica ligada à crítica
cultural. Gostaria de afastar o problema desse contexto e perguntar de que
maneira esses conceitos podem ser referidos um ao outro de modo produtivo e
voltar a tornar-se utilizáveis do ponto de vista analítico.
O passo essencial para além da polarização ou equiparação dos conceitos de
memória e história consiste em compreender a relação entre memória habitada e
inabitada no sentido de dois modos complementares da recordação. Deno-
minaremos a memória habitada memória funcional. Suas características mais
marcantes são referência ao grupo, à seletividade, à vinculação a valores e à orien-
tação ao futuro. As ciências históricas, por sua vez, são uma memória de segunda
ordem, uma memória das memórias, que acolhe em si aquilo que perdeu a rela-
ção vital com o presente. Sugiro atribuir a essa memória das memórias a desig-
nação memória cumulativa. Conhecemos bem as desilusões que o esquecimento
nos impõe, a perda irreversível do saber ponderado e de experiências vitais. Sob
o teto amplo das ciências históricas podem guardar-se vestígios inabitados e
acervos que ficaram sem dono, mas que podem ser recuperados, de modo a
oferecer novas possibilidades de adesão à memória funcional.
Para explicar esse tipo de imbricamento entre memória funcional e cumulativa
faremos uma breve incursão ao campo da psicoterapia. No contexto das teorias
psicoterapêuticas tem-se como ponto de partida que a memória individual se
constitui de diferentes planos. Um plano é o da memória consciente. Nele,
lembranças e experiências são mantidas à disposição, à medida que se situam em
determinada configuração de sentido. De modo semelhante ao que Locke havia
percebido, a produção de uma configuração de sentido como essa equivale à
autoimcrprctação e à autodeterminação do indivíduo. Indica o quanto uma
pessoa individual sabe de si mesma, qual sua autoestima e como lida com suas
próprias experiências. Dessa configuração da memória para o indivíduo depende
o quadro de oportunidades futuras à disposição do indivíduo e quais delas estão
excluídas de seu horizonte. A terapia é capaz de auxiliar na reconfiguração e
reestruturação das lembranças; ela pode ocasionar que isso ocorra de uma ma-
neira mais consciente e inclusiva, pode refletir sobre a fixação de limites e atenuar

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ESPAÇOS DA RECORDAÇAO

011 eliminar barreiras autoagressivas e paralisames. O conceito de story é carac-


terístico desse acesso psicoterapêutico. A história de vida" habitada" pelo indiví-
duo agrega lembranças e experiências e as situa em urna estrutura que define
sua vida como autoirnagem formativa, além de conferir-lhe orientação para agir4.
O outro plano na economia da memória se constitui de elementos bastante hete-
rogêneos: em parte inertes, improdutivos; em parte latentes, fora do alcance da
atenção; cm parte sobredeterminados e, portanto, inacessíveis a uma tentativa
ordenada de recuperação; em parte dolorosos ou escandalosos e por isso en-
cerrados bem fundo. Os elementos da memória cumulativa pertencem ao
indivíduo, mas constituem uma reserva que - por vários motivos, sejam eles
quais forem - em certo momento deixa de estar disponível para resgate. A fim
de que a memória possa desenvolver uma função orientadora, é preciso apropriar-
se desses elementos, ou seja, é preciso selecioná-los segundo sua importância,
torná-los acessíveis e interpretá-los em determinado quadro de sentido: "Quando
pessoas organizam e interpretam sua experiência em histórias como estas [...],
então se conclui que essas histórias dão forma a relações e percursos de vida" 5 •
· Esse modelo da memória funcional individual estabelece uma fronteira
produtiva entre uma massa amorfa de elementos soltos, de um lado, e elementos
selecionados, interpretados, apropriados, em suma: elementos agregados entre si
no interior de uma story, de outro. Essa fronteira é produtiva justamente por ser
móvel. A memória funcional é seletiva e atualiza apenas um fragmento do
conteúdo possível da recordação. "Em razão do tempo, muitas coisas provisio-
nadas nas despensas da experiência viva ficam de fora dessas histórias e jamais
serão narradas ou enunciadas. Ficam em estado amorfo, sem ordem nem
contornos''<>.
Também foi Halbwachs quem criou a distinção entre elementos da recordação
carregados de significação e elementos da recordação de significação neutra. Essa
transformação em sentido foi para ele o pressuposto para que uma lembrança
ingresse na memória coletiva: "Cada personalidade e cada fato histórico, no

4 O teólogo e psicoterapeuta Dietrich Ritschl resumiu essa noção sob o seguinte princípio:
"Somos as histórias que podemos narrar sobre nós". Cf. Dietrich Ritschl, "Das 'scory'-
Konzept in der medizinischen Ethik" [O conceito de story na ética médica], in Konzepte:
Ôkomene, Medizin, Ethik; gesammelte Aufiãtze [Conceitos: ecumenicidade, medicina,
ética: quatro artigos]. Munique: 1986, pp. 201-12.
5 Michael White e David Epston, Literate Means to Therapeutic Ends [A domesticaçáo dos
monstros. Recursos literários para fins terapêuticos]. Adelaide, 1989, p. 20. Ed. alemã, Die
Zahmung der Monster. Literarische Mittel zu thcrapeutischen Zwecken. Hciddberg, 1990.
Sou grata a Helm Stierlin, Arno Reczer e Jürg Schweiczer pela indicaçáo desse texto e por
diversas sugestões.
6 Ibidem.
MEMÓRIA FUNCIONAL F. MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

momento de sua entrada na memória, vão ser transpostos para um ensinamento,


um conceito, um símbolo. Contêm um significado e se tornam, assim, um
ekmento no sistema de ideias da sociedade" 7• Lembranças que entram no campo
magnético de uma determinada estrutura de sentido distinguem-se dos dados
de sentido e das experiências anteriormente disponíveis. A memória produz
sentido, e o sentido estabiliza a memória. É sempre questão de construção, uma
significação que se contrói posteriormente.
A memória cumulativa, em face disso, é a "massa amorfa", aquele pátio de
lembranças inutilizadas, não amalgamadas, que circunda a memória funcional.
Pois o que não cabe em uma story, em uma configuração de sentido, não é pura e
simplesmente esquecido em razão disso. Essa memória (em parte não consciente,
em parte inconsciente) não constitui, portanto, o oposto da memória funcional,
mas antes seu pano de fundo, em segundo plano. O modelo de dois planos,
proscênio e pano de fundo, contorna o problema da oposição binária; ele deixa
de ser dualista e torna-se perspectivístico. Nessa relação referencial entre pros-
cênio e pano de fundo está contida a possibilidade de que a memória consciente
possa transformar-se, de que se possam dissolver e compor as configurações, de
que elementos atuais se tornem desimportantes, elementos latentes venham à
tona e estabeleçam novas relações. A estrutura profunda da memória, com seu
trânsito interno entre elementos presentificados e não presentificados, é a con-
dição de possibilidade da mudança e da renovação na estrutura da consciência,
que sem o pano de fundo daquelas provisões amorfas acabaria por estagnar.
Como exemplo desse jogo mútuo entre memória funcional e cumulativa
pode-se mencionar aqui o processo de aprendizagem, descrito como a seguir
pelo cientista político Karl Deutsch, sob uma perspectiva cibernética: "Cada
processo de aprendizagem, e cada alteração de fins e valores, portanto, se cons-
titui de uma reordenação psíquica interna[...]. A capacidade de aprendizagem de
um sistema ou organização, isto é, o escopo de uma reordenação interna efeti-
vamente possível, pode ser mensurada com base na quantidade e multiplicidade
de recursos auxiliares livres [ungebundene Hilfsmittel] que o sistema ou a organi-
zação têm a seu dispor" 8 •
A expressão-chave "recursos auxiliares livres" prenuncia em que medida pode
ser sensato e útil acumular saber que não se dilua (não mais, ainda não ou não
agora) em meio a configurações de sentido funcionais. Esses recursos mantêm ao

7 Maurice Halbwachs, D11s Gediichtnis und seine sozialen Bedingungen [A memória e suas
condições sociais]. Frankfurt, 1985, p. 389.
8 Karl W. Dcutsch, Politische Kybernetik. Modelle und Perspektiven. Sqzialwissenschaft in
Theorie zmd Praxis (Cibernética política. Modelos e perspectivas. Ciências sociais em teoria
e prática]. W. Bessen (org.). Friburgo, 1969, p. 152. (Primeira edição inglesa: 1963).

3
ESPAÇOS DA RECORDAÇÃO

dispor um saber adicional que, como memória das memórias, pode garantir que
memórias funcionais realmente dadas possam ser criticamente relativizadas ou,
ainda, renovadas ou transformadas. Por si só eles não geram sentido nem fun.
<lamentam valores, mas podem constituir um pano de fundo (estabilizador ou
corretivo) para essas operações.
Esses mecanismos derivados da observação da memória individual podem
ser transpostos para a memória cultural. Em urna cultura oral da memória, na
qual memórias individuais fortalecidas por esteios materiais e corpóreos como
bordadura, pintura, ritmo, dança e música constituem o refúgio da memória
cultural, é impensável haver uma distinção entre memória funcional e cu-
mulativa. Há tão pouco lugar na memória e as. técnicas de memorização são tão
dispendiosas que não entra sequer em questão conservar algo que també.m não
seja útil para a identidade do grupo e, portanto, decisivo para sua sobrevivência.
Com a escrita, por outro lado, enquanto medium cumulativo paradigmático
extracorporal, ultrapassa-se esse horizonte das culturas orais da memória. Com
a escrita pode-se registrar e acumular mais do que se poderia evocar por meio da
recordação. Com isso, distende-se a relação entre recordação e identidade; a
diferença entre memória cumulativa e funcional está embasada nessa distensão.
O potencial da escrita consiste na codificação e acumulação de informações, para
além de seus portadores vivos e em que independa de atualização em encenações
coletivas. O problema da escrita consiste na acumulação de informações, que
tende a ser ilimitada. Por meio de media cumulativos extracorporais e inde·
pendentes da memória humana, vai pelos ares o horizonte da recordação viva e
corporificada e criam-se condições de existência para arquivos culturais, saber
abstrato e tradição esquecida.
Em um plano coletivo a memória cumulativa contém o que se tornou inu-
tilizável, obsoleto e estranho: o saber objetivo neutro e abstrato-identitário, mas
também o repertório de possibilidades perdidas, opções alternativas e chances
desperdiçadas. Na memória funcional, por outro lado, trata-se de uma memória
que, ao passo que se apropriam dela, resulta de um processo de seleção, associação,
constituição de sentido - ou, para dizer com Halbwachs: do delineamento de
molduras. Os elementos desprovidos de estrutura, desconexos, passam a integrar
a memória funcional como se houvessem sido compostos, construídos, vincula-
dos. Esse ato construtivo gera sentido, uma qualidade de que a memória cumu-
lativa simplesmente não dispõe.
A memória funcional cultural está vinculada a um sujeito que se compreende
como seu portador ou depositário. Sujeitos coletivos da ação como estados ou
nações constituem-se por meio de uma memória funcional, em que tornam dis-
ponível para si uma construção do que teria sido seu passado. A memória
MEMÓRIA l'UNCIONAL E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

cumulativa, por sua vez, não fundamenta identidade alguma. Sua função, em
nada menos essencial que outras, consiste em conter mais coisas e coisas diferentes
em relação ao que se pode esperar da memória funcional. Para esse arquivo
ilimitável- com sua massa sempre crescente de dados, informações, documentos,
lembranças - não há mais sujeito a que se possa associar tudo isso; de qualquer
modo, ainda se pode falar aqui de uma "memória da humanidade", completamente
abstrata.

Tarefas da memória funcional

Podem-se distinguir diversas formas de uso da memória funcional, dentre as


quais abordaremos três possibilidades: legitimação, deslegitimação e distinção.
Legitimação é o anseio prioritário da memória política ou oficial. A aliança entre
dominação e memória, característica para esse caso, manifesta-se positivamente
no surgimento de formas elaboradas do saber histórico, sobretudo na forma de
genealogias, já que o poder dominante tem necessidade de explicitar sua própria
origem. Esse desiderato é atendido em particular pela recordação genealógica.
Essa memória legi rimadora da dominação tem, ao lado de uma face retrospectiva,
também outra, prospectiva. Os dominadores usurpam não apenas o passado,
mas também o futuro; querem ser lembrados e, para isso, erigem memoriais em
homenagem a seus feitos. Tomam providências para que seus feitos sejam
narrados, decantados, eternizados e arquivados em monumentos. Nesse contexto
da política oficial da memória incluem-se quase todas as fontes históricas que
chegaram até nós vindas do Velho Oriente.
A maior desvantagem da memória oficial consiste em sua dependência da
censura e de atividades celebrativas artificiais. Ela tem duração equivalente à do
poder que a apoia. No início ela nasce de uma contramemória inoficial que se
apresenta como memória funcional criticamente subversiva. Com isso chegamos
à segunda forma funcional, a deslegitimação.

Frequentemente se diz (constata o historiador inglês Peter Burke) que a história é


escrita pelos vencedores. Seria possível dizer, de igual modo: a história é esquecida pelos
vencedores. Eles podem permitir-se esquecer o que os vencidos, que não se conformam
com os acontecimentos, veem-se condenados a ter em mente, a reviver e reconsiderar,
sob a perspectiva do que poderia ter sido diferente9•

9 Peter Burke, "Geschichte ais soziales Gedachmis" [História como memória social], in A.
Assmann e D. Harth (orgs.), fv!nemosyne, Formen und Funktionen kuftureller Erinnerung
[l\focmosine, formas e funções da recordação cultural]. Frankfurt, 1991, p. 297.
ESPAÇOS DA RECORDAÇAO

Um exemplo atual de recordação deslegitimadora são as festividades comemo-


rativas de 1989 em torno do húngaro lmre Nagy, governador ass:issinado em
1956 após a investida de tropas soviéticas enviadas para esmagar a rebelião
política em seu país. O governo comunista tratou de apagar a memória de Nagy
dos livros de história e mantê-la cuidadosameme afastada do espaço público.
Não logrou, no entanto, apagá-la por completo, e ela ganhou aderência ainda
maior, mesmo sob a contingência de sua exclusão. Primeiro, um grupo de dissi-
dentes encenou seu sepultamento simbólico em um cemitério parisiense e, na-
quele mesmo ano, com grande pompa cerimonial e intensa participação dos
meios de comunicação social, organizou-se no cemitério de Budapeste, com
honras de Estado, o traslado de seus restos mortais. Imre Nagy, quintessência da
recordação destruída por via oficial, rornou-se a figura simbólica de uma con-
trarrecordação, e com isso, o fermento decisivo para o processo de supressão do
stalinismo na Hungria 10 • O motivo de uma contrarrecordação cujos portadores
sejam os vencidos e oprimidos é a deslegitimação de relações de poder conside-
radas opressivas. Essa deslegitimação é tão política quanto a recordação oficial, já
que nos dois casos se trata de legitimação e poder. A recordação que se seleciona
e conserva nesse caso presta-se a dar fundamentação não ao presente, mas ao
futuro, ou seja, ao presente que deve suceder à derrubada das relações de poder
ora vigentes.
Uma outra função de uso da memória cultural é a distinção. O termo com-
preende todas as formas simbólicas de expressão que se prestam a delinear uma
identidade coletiva. No campo religioso, trata-se da agregação comunitária, me-
diada pela recordação em comum e renovada pelas festas e ritos. As festas conso-
lidam a relação da comunidade com uma história fundadora compartilhada. No
judaísmo, por exemplo, isso vale tanto para a festa do Pessach, que comemora a
fuga do Egito, quanto para o Hanukkah, que celebra a inauguração do segundo
templo. Outros exemplos de festas cujo caráter político religiosamente marcado
se destina a gerar identidade são a democracia ática e a Revolução Francesa. No
campo secular vale mencionar os movimentos nacionalistas do século XIX, que
por meio da reconstrução ou da "invenção" de tradições compartilhadas cria-
ram uma identidade para o novo sujeito político da ação, o "povo". No âmbito
dos movimentos nacionais, tornou-se uma obrigatoriedade recordar a própria
história e a própria tradição, bem como o conjunto das formas do costume geral
[Brauchtumsformen] que se cultiva. A memória nacional não é apenas uma in-
venção do século XIX, que tratava de se reorganizar sob a modalidade dos es-

lO Conferência de Mate Szabo, por ocasião de um evento organizado em Weikr im Allgau


sobre a memoração coleciva, no verão de 1991.
MEMÓRIA FU1'CIONAL E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

cados nacionais; com a memória nacional surgiu na Europa uma memória


política de outra natureza. A memória nacional não está restrita à "cultura"; a
qualquer momento ela pode tornar-se tão política quanto a memória oficial; e
isso sobretudo quando assume o perfil de uma contrarrecordação que se opõe à
memória oficial e questiona a legitimação desta última, apoiada em monumentos,
censura e propaganda política.

1àrefas da memória cumulativa

À memória cumulativa vincula-se um anseio político, ou delineia-se uma


identidade distinta. A memória cumulativa constitui a contraparte das diferentes
perspectivações da memória cultural. Os produtos que ela logra alcançar tornam-
se bastante claros quando controlados ou suprimidos, como se dá, por exemplo,
em sociedades totalitárias. Na Rússia stalinista a memória cumulativa cultural
foi destruída, só se admitia o que houvesse passado pelo crivo da doutrina oficial.
Orwell, em seu romance 1984, descreveu em detalhes essa situação e sem exa-
geros, como se sabe hoje.
A memória cumulativa pode ser vista como um depósito de provisões para
memórias funcionais futuras. Esta não é apenas a condição prévia para o fenô-
meno cultural que denominamos "renascença", esse é também um recurso fun-
damental da renovação do saber cultural e uma condição de possibilidade das
mudanças culturais. Igualmente importante é o significado da memória cumu-
lativa para o presente de uma sociedade enquanto corretivo para memórias fun-
cionais atuais. À medida que se recorda muito mais do que realmente se precisa
recordar, tornam-se visíveis as bordas da memória funcional. A possibilidade de
renovação permanente pressupõe uma grande permeabilidade do limite entre
memória funcional e memória cumulativa. Se se mantém aberta a fronteira,
chega-se mais facilmente a um intercâmbio dos elementos de uma e outra e
a uma reestruturação dos padrões de sentido. No caso oposto ocorre a ameaça de
uma estagnação da memória. Se o trânsito fronteiriço entre as duas memórias
fica bloqueado por uma muralha, e se a memória cumulativa fica barrada en-
quanto depósito de provisões que encerra possibilidades, alternativas, contradi-
ções, relativizações e protestos críticos, fica excluída qualquer mudança, e a
memória torna-se, então, absolutizada e fundamentalista.
Não é correto o argumento que serviu de ponto de partida a Orwell, a saber:
que a memória cumulativa se forma de modo automático e confiável quando
simplesmente se abdica de manipulá-la ou eliminá-la. Ela mesma é tão pouco
natural como a memória funcional e, ao contrário, precisa ser apoiada por ins-
tituições que preservam, conservam, investigam e difundem o saber cultural.
ESPAÇOS DA RECORDAÇ.'i.O

Arquivos, museus, bibliotecas e memoriais participam da execução dessa tarefa


tanto quanto institutos de pesquisa e universidades. Essas instituições oferecem
resistência tanto à supressão involuntária do passado na memória cotidiana
quanto ao seu apagamento consciente na memória funcional.Todas elas possuem
uma licença especial que consiste na dispensa cm relação a funções sociais
utilitárias imediatas. Uma sociedade que não proporciona a si mesma nichos e
espaços de liberdade como esses não logra construir memória cumulativa
alguma. Contextos em que vige uma licença como essa são, em especial, a arte, a
ciência, o arquivo e o museu. Via de regra, a distância que esses domínios im-
plicam bloqueia uma referência instrumental e imediata de identificação.Justa-
mente em virtude desse distanciamento é que o significado da memória cumu-
lativa se revela tão importante para a sociedade; a memória cumulativa çomo que
constitui, enquanto contexto das diversas memórias funcionais, o próprio hori-
zonte externo a elas, a partir do qual as estreitas perspectivas em relação ao
passado podem ser relativizadas, criticadas e transformadas. Seria, portanto, in-
sensato fazer a defesa de uma das memórias em detrimento da outra.Nas culturas
escritas tem-se as duas formações, e o futuro da cultura depende em grande me-
dida de que essas memórias continuem existindo lado a lado, também sob as
condições proporcionadas pelas novas mídias.
Essa tese é apoiada pelas considerações de outro historiador que também
relacionou história e memória uma à outra, de maneira programática. Lutz Nie-
thammer, contudo, não as opõe entre si, mas alça a memória a um novo para-
digma para a ciência histórica: "A reformulação da História na metáfora da
memória surge da descontinuidade de sua fundação histórico-filosófica e, ao
mesmo tempo, surge do entendimento de que a necessidade de manutenção de
experiências históricas não diminui, e na verdade aumenta" 11 • Segundo Nie-
thammer, a memória, que deve servir para orientar a ciência histórica, tem duas
faces, que ele descreve com os conceitos "tradição" e "resquício" [Überrest], pro-
veniente da documentologia [Quellenkunde] histórica. (Doravante utilizare-
mos para esses dois grupos de fontes os conceitos "textos" e "vestígios".) Tradição,
para Niethammer, corresponde à memória consciente e voluntária que coage o
passado a integrar uma construção social de sentido. Os resquícios, por sua vez,
correspondem a uma mémoire involontaire que ainda não se presta (ou não se

li Lurz Nierhammer, "Die posrmoderne Herausforderung. Geschichre ais Gedachmis im


Zciralrer der Wissenschafi:" [O desafio pós-moderno. Hisrória como memória na era da
ciência], in Wolfgang Kütrler; Jõrn Rüsen e Ernsr Schulin (orgs.), Geschichtdiskurs (Dis-
curso histórico]. T. 1 - Grundlagcn und Merhodcn der Historiographiegeschichre
[Fundamcnros e métodos da história da hisroriografia]. Frankfurr, 1993, pp. 31-49; o trecho
citado esrá na p. 46.
MEMÓRIA FUNCIONAL E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

presta mais) à consciência. De modo semelhante a importantes teóricos da me-


mória - como De Quincey, Proust e Freud --, Niethammer pressupõe que
"nada se esquece por completo, mas que todas as percepções, por mais que este-
jam empalidecidas, recalcadas ou borradas, acabam por sedimentar-se nos vcs-
dgios da memória, sendo possível, em princípio, resgatar esse sedimento de
novo" 12 • O historiador e principalmente o pesquisador de oral history ansiaram
muito por essa camada da memória, a dos resquícios. Eles veem nela o sedimento
material de um inconsciente coletivo, que não foi acolhido na produção de
sentido anterior, tampouco sucumbiu por completo ao recalcamento. O que
aparentemente não se transmitiu ou o que se transmitiu apenas de modo sub-
repdcio "está alojado no interstício entre o que é socialmente consciente e o que
se perdeu" 13 • A contraposição de Niethammer entre "tradição" e "resquício" po-
de traduzir-se na contraposição entre "memória funcional" e "memória cumu-
lativa'', e seu programa historiográfico pode ser relacionado à interação ora
sugerida de duas camadas da memória. Sua historiografia crítica, formulada na
sucessão de Halbwachs e Benjamin, quer buscar os vestígios do passado que não
encontraram acesso algum à formação da tradição da memória coletiva e que,
por meio da revelação de percepções alternativas e esperanças soterradas, perpas-
sam as construções de sentido da tradição com permanente tendência a conso-
lidação e redução.
Em resumo: "história" (no sentido de "historiografia crítica") é o produto de
um processo cultural de diferenciação. Desenvolveu-se por meio da emancipação
da "memória" (no sentido de "tradição normativa"). Essa diferenciação na
"economia doméstica do saber da sociedade" (Thomas Luckmann), no entanto,
não leva necessariamente, como se temia, à dissolução (etimologicamente
falando: à "cisão") das memórias vivas de grupos específicos. Ao passo que o
caráter excludente dos dois modos da memória revela lá e cá potenciais bastante
problemáticos, por privar a historiografia de seu val.or e atribuir à memória um
caráter mítico, há no imbricamento de ambos um corretivo proveitoso. Pois uma
memória cumulativa desvinculada da memória funcional decai à condição de
fantasmagoria, e uma memória funcional desvinculada da memória cumulativa
decai à condição de uma massa de informações sem significado. Da mesma
forma que a memória cumulativa é capaz de verificar, sustentar ou corrigir a
memória funcional, também a memória funcional é capaz de orientar e motivar
a memória cumulativa. Cabe que ambas estejam juntas, ambas pertencem a uma

12 Idem, op. cir., p. 44.


13 Idem, op. cir., p. 47.
ESPAÇOS DA RECORDAÇAO

cultura que se diferencia e autonomiza, uma cultura "que se posiciona em face da


pluralidade de sua diferença interior e se abre para sua diferença exterior" 14 •

3. Um diálogo com Krzysztof Pomian sobre história e memória

Para o ano de 1994/1995 convidou-se um grupo de cientistas e artistas para


reunir-se no Getty Center em Santa Monica, Califórnia, a fim de que se ocu-
passem do tema de sua especialidade, a memória. Krzysztof Pomian uniu-se ao
grupo por um curto período, e então foi possível manter com ele o diálogo a
seguir. A conversa ocorreu em 26 de dezembro de 1994, em inglês; no mesmo dia
anotei de memória. O ensejo para o diálogo foi a pergunta sobre a possibilidade
de se interligarem as pesquisas sobre a memória em Paris, Budapeste-e Bielefeld.
Nesse contexto mencionou-se também o nome de Jorn Rüsen; no semestre de
verão de 1995, participei do grupo de pesquisa "Criação de sentidos em história",
coordenado por Rüsen, no Centro de Pesquisa Interdisciplinar em Bielefeld.
K. P. - O senhor Rüsen não é aquele que quis equiparar história e recordação?
Não tirei muito proveito disso. Há hoje duas correntes que considero igualmente
equivocadas. Uma delas pretende reduzir a história à recordação; a outra, reduzir
história à retórica. Nos dois casos, em minha opinião, ocorre uma transformação
da história em algo raso (a jlattening ofhistory). Rüsen parece almejar a primeira
redução; Hayden White, a segunda. Ambos negam uma terceira coisa: a escrita
crítica da história como discurso ciencífico. Pode ser que soe fora de moda e
maçante, mas eu não pretenderia, por nada neste mundo, dispensar essa con-
quista que pessoas como Valla e outros nos deram de presente. Eles estabeleceram
métodos e critérios para a veracidade histórica com os quais puderam desmascarar
certos documentos como falsificações. Se renunciarmos a essa historiografia
crítica, renunciaremos também a algo que considero vital: os critérios de verdade
objetiva e intersubjetiva.
Parece que essas tendências radicais de redução da historiografia, a propósito,
foram bastante disseminadas no âmbito da teoria, ao passo que na prática do dia
a dia acadêmico tudo segue seu curso, como antes. Quais seriam as chances de
emprego para quem renunciasse ao instrumental crítico dessa ciência?
A. A. - Considero essa diferenciação bastante útil, mesmo que eu veja a
questão de outra maneira. A historiografia, de modo muito claro, tem (ao menos)
três dimensões: a científica, a memorial e a retórica. Duvido apenas que elas

14 Idem, op. cir., p. 48.


MEMÓRIA FUNCIONAL E MEMÓRIA CUMULATIVA - DOIS MODOS DA RECORDAÇÃO

realmente se excluam, assim como o senhor parece supor. As dificuldades não


provêm, em primeiro lugar, do fato de que essas funções e dimensões acabam
sendo absolutizadas, confundidas, contrapostas umas às outras de forma exclu-
dente? É possível dizer, por exemplo, que a recente querela dos historiadores na
Alemanha foi decorrência de uma tal confusão ou de uma tal absolutização:
algumas posições defenderam a dimensão memorial; outras, a dimensão cientí-
fica. Alguns escreveram a história do Holocausto para dar testemunho do maior
crime da história da humanidade e com isso fixá-lo como tal na memória; outros
quiseram tratar esse acontecimento de maneira comparativa e explicá-lo por via
causal. Contudo, talvez não se possam separar essas duas dimensões, a científica
e a memorial, de maneira tão radical - somente de modo a apenas prejudicá-las
mutuamente, talvez. Não há tendências semelhantes na França, de jogar a
história e a memória uma contra a outra? Penso em Pierre Nora e seu grande
projeto Lieux de Mémoire. Não será ele um retorno da dimensão memorial que
se opõe à científica? Penso em um texto de Nora em que ele opõe os dois conceitos
e destaca que a história corrói os fundamentos da recordação viva.
K. P. - Não considero acertada essa visão das coisas. Há duas coisas que
dizer sobre isso. Primeiro, Nora não opõe a recordação à história, mas move-se
por completo sobre o terreno da historiografia cienrífica. Sua inovação consiste
em haver descoberto a história dos monumentos como um campo objetal da
historiografia. Participei desde o início do projeto que aconteceu de 1978 a 1992
e resultou ao todo em sete volumes, de extensão cada vez maior (vol. 1: La
République; vols. 2-4: La Nation; vols. 5-7: La France), e conheço sua concepção
detalhadamente, por diversas conversas e seminários. Segundo, para entender o
que Nora tem em mente com a "corrosão dos fundamentos da recordação pela
ciência histórica", é preciso saber o que precedeu seu projeto: a escola dos Annales.
Brudel, que foi meu professor, mas não professor de Nora, estudou história sem
qualquer relação com a memória. Ele se especializou em processos que necessa-
riamente prescindiram de verificação, de memorialização e de codificação, tais
como estruturas demográficas e flutuações de preços. Por assim dizer, ele estu-
dava a história pelas costas dos envolvidos. Por fim, isso resultava em que uma tal
história passava a ser um acontecimento altamente especializado que em nada
mais dizia respeito aos leigos. Pagou-se um preço alto por essa nova forma de
conhecimento: a história desapareceu da consciência da população e foi banida
cada vez mais dos currículos escolares e planos de ensino. Foi aqui que Nora
entrou em ação. Ele pretendeu trazer a história uma vez mais à consciência, à
memória, às memórias dos cidadãos, e com isso começou a interessar-se por
símbolos e monumentos em que a história de fato se fizera presente na consciência
da população e em que ela talvez ainda estivesse.
5
ESPAÇOS DA RECORDAÇAO

A. A. - Isso significaria dizer, no entanto, que a dimensão memorial e a


dimensão científica da historiografia não se excluem, mas ligam-se uma à outra
de maneira complexa. Contudo, o que nos parece separar irreversivelmente de
uma historiografia positivista é a clareza de que a escrita da história também se
dá por via retórica (e que, portanto, é "ficrícia", no sentido de haver sido feita) e
também encerra a referência da memória em um grupo determinado, em deter-
minado local. As duas coisas já não são fatores que se possam eliminar do dis-
curso científico da maneira mais ascética possível. Mais que isso, seria possível
incorporá-las, ambas, em uma reorientação do projeto de escrita da história.
SEGUNDA PARTE

M E 1 O S

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