G.D. Afrodite

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AFRODITE

Encontros Mito e Mente


Ciclo Grandes Deusas

Por Renato Kress


1

Encontros Mito e Mente, por Renato Kress


Módulo Primeiro: Grandes Deusas

O que estudaremos aqui?


Os encontros Mito e Mente são um projeto cultural de encontros criativos onde
estudaremos e aprenderemos sobre arquétipos - “Puer, Grande Mãe, Grande Pai,
Senex etc” - através de imagens arquetípicas - Hermes, Deméter, Zeus, Gaia.
Aprenderemos em conjunto através dos mitos de Gaia, Deméter, Hera, Afrodite e
companhia sobre o arquétipo da “Grande Mãe”1 ou da Grande Deusa, como
preferimos.

O conhecimento dos arquétipos


Ao contrário do que se veicula em muitas leituras sobre as deusas das mais variadas
tradições religiosas, não existe um “arquétipo de Hera” como não existe um “arquétipo
de Ártemis” ou “arquétipo da Mulher Selvagem”. Hera, Afrodite, Ártemis, Atená, assim
como Lilith, Pele, Amaterasu e Sif são, a se respeitar a leitura atenta da psicologia
analítica de Carl Gustav Jung, imagens arquetípicas que servem como espelho
refletindo - cada uma delas de maneira parcial e através de suas lentes - diversas
partes do arquétipo da Grande Deusa.

Como Jung salientou ao longo de quase toda a sua obra, o arquétipo, em si, é
inapreensível em sua totalidade, sendo passível de ser compreendido, em partes,
através de suas manifestações culturais. Estudar cada uma das grandes deusas que
traremos em nossos encontros é estudar uma das potencialidades expressivas que
remetem ao arquétipo da Grande Deusa. Este sim é um arquétipo e, como todos os
demais arquétipos, não pode ser completamente abarcado pela experiência ou pela
consciência humana.

1
Substituiremos, nessa obra, o já consagrado termo “grandes mães” pelo mais lógico e correto “grandes
deusas” já que, por óbvio, perceberemos que nem toda grande divindade se caracteriza pela
maternidade. Compreendemos ser esse um vício danoso da cultura ocidental cristã que associa o
sagrado feminino apenas ao binômio “virgindade - maternidade”, o que é semente de muitas violências
contra outras formas de ser e viver a feminilidade em sociedade. O presente trabalho, por exemplo, trata
de forma muito peculiar a divina maternidade de Hera, como veremos.
2

Já que conhecer de fato, conceber diretamente, a “numinosidade” (essência) dos


arquétipos é impossível, cabe a nós manter uma busca constante de aprendizado
sobre essas imagens arquetípicas, sobre cada uma das deusas, e sobre seus
horizontes simbólicos. Mantermos a leitura e a interpretação do mito em aberto nos
serve não só para nos conhecermos mais e melhor como indivíduos, sociedade e
cultura, mas, principalmente para termos uma boa saúde mental. A cada vez que
interpretamos um mito damos, a nós mesmos, um panorama dos movimentos da nossa
energia psíquica. Debater um mito, fazer uma roda de conversa sobre sua história e
sobre as maneiras como vemos ele em nós é um dos mais eficientes
psicodiagnósticos.

A alquimia dos encontros


Aqui nos encontros Mito e Mente aprenderemos sobre os arquétipos e suas
implicações em nosso comportamento, mente, cultura e dramas pessoais e sociais
através de suas imagens arquetípicas. Vamos penetrar na sempre virgem floresta dos
arquétipos estudando as diferentes formas pelas quais ele se expressa em diferentes
deusas. Só assim poderemos alcançar partes complementares e sempre vívidas de
sua infinita riqueza e potencial expressivo.

O processo que faremos será a “circulambulação”, ou seja: vamos eleger um tema para
os nossos estudos e colocaremos ele no centro de uma roda, assim como uma modelo
posando para uma escultura ou um quadro. Cada um de nós, na roda, terá um ponto
de vista diferente sobre aquele “modelo”, sobre aquela história. A uns ele parecerá
mais alto a outros mais baixo, a uns distante ou próximo.

O importante é que nenhum de nós deve pretender ter uma visão definitiva e, se
quisermos realmente entender a profundidade e a densidade do conteúdo daquela
imagem arquetípica (daquele mito) deveremos sempre considerar as visões uns dos
outros como “pontos cegos”, complementares à nossa visão. Encontrar nossa sombra
no comentário do colega, nossa ânima ou ânimus nas conclusões apaixonantes do
grupo, é, sempre, lidar com a alteridade e, através dela, descobrirmos a nós mesmos.
3

O primeiro arquétipo que estudaremos será o arquétipo que comumente se associa à


ideia de “Grande Mãe”, mas aqui chamaremos ele de arquétipo da “Grande Deusa”.
Por isso chamamos esse ciclo de encontros de “Grandes Deusas”. Por quê? Para
facilitar um pouco a compreensão, já que nem todas as deusas que trabalharemos aqui
foram mães, para início de conversa, e porque - ao contrário do que prega nossa
cultura fortemente influenciada por séculos de cristianismo - não são apenas a
virgindade e a maternidade que compunham, para a maioria dos povos e culturas
ancestrais da espécie humana, o sagrado feminino.

O feminino sagrado já foi plural e, compreendendo o volume de sofrimento psíquico


gerado por esse cerceamento da sacralidade feminina, traremos aqui o sagrado
feminino, a Grande Deusa em diversas formas, para percebermos ela através de suas
imagens arquetípicas, as Grandes Deusas. Assim deixaremos a maternidade sagrada,
com toda a sua pluralidade de formas e expressões, para deusas que de fato sejam
mães, de maneira simbólica ou literal.

Mais do que nunca é preciso resgatar a sacralidade e o respeito ao feminino para além
dos campos da virgindade e da maternidade. Não para negar a existência eterna e
irrefutável das grandes mães virgens da mitologia (são muitas!), mas principalmente
para dar vez e voz às demais realidades e expressões do feminino essencial. Para que,
sendo reconhecidas como diferentes potenciais narrativas do sagrado, sejam aceitas e
socialmente admitidas como caminhos de expressão e vivência do feminino dignas de
respeito e reverência.

Sobre a vida do mito


toda narrativa mitológica comporta múltiplas interpretações. Aliás, é na variedade das
interpretações possíveis que encontramos a riqueza e a vida do mito. Como Carl
Gustav Jung, Nise da Silveira, Mircea Eliade, Joseph Campbell, Karen Armstrong e
tantos outros autores que estudaremos aqui reforçaram ao longo de suas obras:
delimitar apenas uma interpretação para o mito é matar o símbolo. Definir um único
significado para um mito é tirar dele todo o seu potencial transformador, sua essência
criativa e divina!
4

Então desde já acostume-se com a ideia de que algumas versões oficiais contradizem
outras versões também igualmente oficiais, com a ideia de que um herói mítico teve de
estar presente - e então esteve presente! - em um acontecimento simbólico que
ocorreu duzentos anos antes de seu nascimento! É raro que esses “erros de roteiro”
ocorram na mitologia, mas eventualmente eles ocorrem. Quando isso acontece,
sempre, há uma razão simbólica que se antepõe à razão cartesiana.

O que nos importa, no estudo dos mitos, não é a razão cartesiana, matemática, o
tempo cronológico. Importa-nos a razão simbólica, a razão dos sonhos, da nossa
criatividade e psique, uma razão mais ligada ao significado, ao tempo circular - quantos
natais você já viveu e reviveu, entende? - do que às comprovações matemáticas e
suas narrativas retilíneas e uniformes.

Mas, Renato, afinal o que é mito?


Aqui começamos nossa brincadeira. Essa é a primeira pergunta séria que se deve
fazer a alguém que estude ou manifesta interesse por esse conhecimento. O que é,
afinal, um mito? Um mito é uma mentira? Uma lenda? Uma tradição morta de um povo
antigo? Uma metáfora? Um político que quer instaurar uma ditadura nepotista e
criminosa num país democrático? Que diabos é mito?

Para responder a essa questão aparentemente tão simples e tão profunda - digna de
um “decifra-me ou devoro-te” da Esfinge para Édipo - vou enfatizar aqui rapidamente
três aspectos possíveis da leitura e interpretação do que é um mito: o trágico, o mágico
e o social. Vamos pôr à prova o “decifra-me” até onde nos for possível, já que, como já
dissemos antes, a pluralidade de leituras faz parte do estudo eterno da inalcançável
profundidade do mito, que ao fim passará a língua sobre as presas, cerrando as
pálpebras enquanto nos dirá “devoro-te”.

A palavra grega Mythós, raiz da palavra “mito”, significa “narrativa sagrada”. Não se
trata aqui de uma narrativa qualquer e sim da narrativa que explica, restaura e recria o
sentido da própria vida! Quando estudamos uma narrativa e não vemos nela um
exemplo ou um modelo que sirva de inspiração para uma nova leitura da nossa
realidade cotidiana, da nossa forma de lidar com outras pessoas, com as nossas
5

certezas e impulsos íntimos, essa narrativa não é um mito. É uma história, não
um mito.

Interessante, não? Apenas começamos a arranhar a superfície da entrada da gruta


infinita da mitologia. Mito é o discurso que tem sentido porque nos dá sentido: como
referencial, como trajetória em uma jornada e como significado. Mas há muito mais do
que isso. O mito têm, também, seus aspectos trágico, mágico e social.

Segundo Karen Armstrong em Breve História do Mito, página oito: “O ser humano
distingue-se pela capacidade de ter pensamentos que transcendem sua experiência
cotidiana”, tanto quanto ser dotado de consciência do trágico, como observaram
Schopenhauer, Goethe e Nietzsche, quanto da sensibilidade do aspecto mágico da
existência, daquilo que chamamos de “transcendente” como observado em Thomas
Mann, Mircea Eliade e Claude Lévi-Strauss, e, também, de um certo ethos psico-social,
do qual nos fala Junito Brandão e Carl Gustav Jung. Essas são três possíveis
compreensões que trabalharemos quando pensarmos na palavra “mito” daqui em
diante.

Mas Renato, o que é esse “trágico” do mito?

Você vai morrer!

Sim, você que está lendo esse texto vai morrer! Mas, fique tranquilo! Afinal, é
contagioso e incurável. O incômodo com o qual lemos essa frase nos mostra o quanto
negamos essa obviedade. Erigimos uma cultura completamente baseada na negação
dessa grande verdade, mas a tragédia principal da vida é a nossa consciência da
finitude. Negaremos o quanto pudermos - desenvolvendo depressão, pânico e outras
psicopatologias no caminho - mas todos nós temos, escondido em algum canto da
consciência, a clara percepção de que algum dia, pelo motivo que for, todos nós não
estaremos mais aqui.

Como forma de amaciar o terreno baldio desse grande deserto para além da última
passagem, nós, a espécie humana, projetamos e especulamos sobre o que haverá
6

então. O doloroso é que, para além de nossas possíveis vivências da fé ou certezas


biofísicas sobre os átomos, somos condenados a viver a mais absoluta incerteza sobre
o que virá depois do apagar do aparelho biológico que habitamos. Ser honesto nesse
ponto é admitir que todas as pseudo-certezas são muletas.

Essa é, em essência, a dimensão trágica do mito. O mito aparece como narrativa já no


paleolítico, como uma forma de discurso que procure dar à morte um significado.
Corpos foram enterrados em posições fetais no paleolítico e tudo o que nossos
arqueólogos conseguem imaginar sobre isso é que já naquela época o homem, sem
saber lidar direito com o limite da finitude humana, queria que ela representasse um
novo nascimento. Da mesma forma encontramos em vários locais do planeta corpos
que foram enterrados com o rosto virado para o leste, direção de onde o sol nasceria,
inaugurando o dia seguinte.

Como consciência do trágico e reflexão acerca do fascínio do evento inexorável da


morte, segundo Armstrong, o mito se coloca “no limite da vida humana”, num limbo
onde a característica mais forte é exatamente essa experiência liminar, onde nos
defrontamos com o imenso desconhecido, aquilo que está completamente fora das
nossas categorias de compreensão. Para lidar com isso criamos uma narrativa que
possa fazer uma ponte, uma mistura de imanência e iminência psíquica ou espiritual
que levarão a um novo estado de compreensão existencial e psíquico.

A função do mito

A função do mito, nesse contexto trágico e existencial, é gerar uma espécie de


transmutação holística da consciência que operaria como um auxílio para lidar com as
dificuldades existenciais específicas da nossa espécie humana. O homem paleolítico
via o corpo de seu familiar e de seu amigo esfriar, paralisar, apodrecer. Era preciso lidar
com essa realidade e com os impactos psíquicos e emocionais da falta de alguma
forma. Criar - e acreditar - numa história sobre o que virá após a morte nos ajuda a dar
um sentido - como trajetória e como significado - para a incerta jornada da vida.

Quantas vezes eu vou viver um tema mitológico na vida?


7

O psicólogo Carl gustav Jung percebeu, analisando os sonhos de pacientes idosos,


que a capacidade da psique de simbolizar e metaforizar os movimentos e
transformações da energia psíquica não pára na fase final da vida. Era como se a
psique não percebesse ou não se importasse com o iminente fim da vida e continuasse
fornecendo pistas para lidarmos com as questões do cotidiano, eternamente.

Então talvez a questão correta seria “quantas vezes nós reconheceremos a repetição
de um padrão de comportamento ou pensamento a ponto de saber responder
criativamente a ele, a ponto de dar um sentido a ele numa trajetória mais ampla da
nossa vida?”. Aí sim começaríamos de fato a vivência profunda e transformadora da
relação com os arquétipos e das suas atuações dentro da nossa vida. Outra das
famosas conclusões a que Jung chegou ao longo de suas investigações sobre a
natureza da vida psíquica da espécie humana foi a de que o que não reconhecemos
em nós mesmos tendemos a projetar na vida (e no outro) e encontrar como destino.

Nesse sentido o papel do mito é operar como um eterno retorno de si mesmo, só que
de diferentes formas através das quais aprendemos diferentes coisas sobre nós
mesmos e nossa relação com o mundo, o outro e, principalmente, conosco.

Por seu caráter de “eterno retorno”, o mito parece atemporal e eternamente


compreensível e identificável, tornando-se um poderoso phármakon (remédio) para os
dilemas e questões humanas. Por isso o lema dos nossos encontros: Quem sabe mito
se sabe mais!

Mas o que faz de uma narrativa um mito?

O mito é, também, uma explicação para o mistério, uma ponte para aquilo que - ainda
que leiamos todos os livros e conheçamos todas as religiões e filosofias - jamais
poderemos abarcar através de certezas. Uma explicação para aquilo que transcende e
engole todas as certezas. Para a mitóloga Karen Armstrong, o mito nasceria
justamente por esse contato inicial com a experiência trágica da morte.
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Neste sentido a pesquisa dos túmulos dos homens de Neandertal, oriundos do


paleolítico, complementa sua tese e determina cinco aspectos importantes do discurso
mitológicos:
1. Todo mito se baseia na experiência da morte e no medo da extinção;
2. A mitologia seria, em geral, inseparável do ritual a que fornece e do qual retira seu
significado;
3. A força da experiência do extremo, já que os mitos mais poderosos se relacionam
com o extremo, com “situações limite” da vida humana ou da ordem social
estabelecida, tratando, muitas vezes, por isso mesmo, do desconhecido. Não à toa
Dioniso é o filho que é escolhido para substituir Zeus, mas essa é uma outra história,
para outro momento.
4. O mito nos serve como um manual de condutas sociais, psíquicas, éticas e
culturais. Muitas narrativas míticas servem como uma pedagogia lúcida e lúdica sobre
assuntos humanos.
5. Toda mitologia fala de um plano que existe paralelamente ao nosso mundo e que
forma uma espécie de “infra (ou super) estrutura” que ordena o nosso mundo. Seja o
“mundo das ideias” Platônico ou o Alcheringa australiano, ele exprime uma realidade
que influencia e dota de sentido a nossa realidade.

Como podemos perceber, essas cinco características são interconectadas e


intercambiantes, influenciando umas às outras reciprocamente. Essa crença na
existência dessa realidade invisível que estrutura a nossa realidade (como o “Plano
Espiritual” para os Kardecistas ou a roda do Samsara para os Budistas) tem sido
chamada de “Filosofia Perene”, pois alimentou a organização mitológica, social e ritual
de todas as sociedades até o advento da modernidade científica.

A ideia base é a de que o conhecimento mitológico (o conhecer das narrativas


sagradas) permite que o sujeito conhecedor desses mitos acesse uma parcela de
divindade que lhe fornecerá um determinado atributo, força ou destemor, fornecendo
uma visão holística do universo, da cultura, leis ou sendo o veículo de uma
transfiguração da consciência, na medida em que “pareciam (...) erguer homens e
mulheres a um plano diferente da existência, de modo que passavam a ver o mundo
9

com novos olhos”2, os mitos são discursos simbólicos que configuram estruturas
psíquicas, sociais e culturais.

Conhecer essas narrativas do sagrado (mythós) nos ajuda a “sintonizar” áreas


diferentes da nossa psique e a pensar “como se” fôssemos aquele padrão de
pensamento específico da divindade ou do herói X ou Y. Isso ajuda demais a entender
e dialogar com outras pessoas, criar personagens mais intensos e realistas em obras
literárias, teatrais, roteiros etc. O mito nos ajuda a compreender o que há de particular
e universal em nós!

O Aspecto Mágico

Como sensibilidade do mágico, da transcendência, o mito reproduz comportamentos,


características, eventos ou intimidades da vida dos deuses que existiriam em uma
dimensão mais rica, forte e duradoura que a nossa, dando forma e aparência à nossa
intuição, sociedades, crenças, instintos.

Antes mesmo de constituir uma norma social, o mito é vivido como um mergulho na
experiência do sagrado. “Mergulho” porque é na experiência ritual do mito - que se
deforma e perde o sentido de segredo-sagrado que o constitui se executado fora do
seu contexto ritualístico - que o xamã ou mistagogo inicia o neófito ou permite à sua
sociètas banhar-se na mesma espécie de energia fluídica primordial de que são
constituídas essas divindades, experimentar a divindade, tornar-se uno com
determinada imagem arquetípica constituinte da psique ou com qualquer força
primordial que o possibilite obter êxito em uma tarefa da qual depende, em última
instância, sua sobrevivência e a de seus pares.

O mito permite retornar ao tempo primordial e banhar-se da energia criadora


abundante da primeira caçada, da primeira formação de cidade, do primeiro
navio, o primeiro nascimento, dos modelos universais da criação. É essa
potência criadora, abundante no mito, que nos excita, fascina e seduz para

2
Armstrong, Karen. Breve História do Mito. Companhia das letras.
10

conhecê-lo. Conhecer o mito é, também, se apropriar da potência do divino e do


terror do profano.

Segundo Mircea Eliade3, o mito não é “uma etapa na história do pensamento humano”,
mas uma categoria de pensamento que ocorre simultaneamente na
contemporaneidade. É importante que tenhamos em mente que a forma primária de
comunicação do nosso inconsciente com a nossa consciência é a forma simbólica
exercida através da linguagem mitológica! Isso se expressa nos sonhos, por exemplo,
para ficarmos no caminho mais simples e inevitável dessa relação e dessa
comunicação.

Se não considerarmos essa função primária do mito, esse caráter universal -


arquetípico - podemos cair no erro de, inflados pela pretensão racional típica do
ocidente, julgarmos o mito sob o rótulo de “selvagem” e querer substituí-lo pelos
valores em voga dentro deste ou daquele processo de “civilização” atuais. As
estruturas de que falam os mitos estão e estarão presentes em quaisquer culturas: a
maternidade, a vergonha, o ódio, a camaradagem, o enamoramento, a perda, a traição,
a reconciliação etc. Por isso as culturas passam, mas os arquétipos nos quais se
baseiam os “roteiros” mitológicos e os seus mitologemas permanecem.

O mito é um padrão de socialização, de aprendizagem da vida em sociedade, ele não é


um padrão específico de sociedade. Ou seja: mito não é o discurso ultrapassado de
uma sociedade passada que não conhecia a “ciência”, mito é o discurso que
preenche de significado a cultura de uma sociedade. A mitologia, o
conhecimento (“logos”, logia) da narrativa sagrada (“Mythós”), evolui e
transforma-se conosco. Quem quer entender o mistério da nossa vida
contemporânea não pode deixar de entender, pelo menos um pouco, da narrativa
sagrada e hermética (fechada) da economia de Mercado, por exemplo. E acreditem, o
Mercado de Ações é um mundo mitológico movido à base de crenças! Por sinal, a
origem da palavra “crédito” (do latim credere) é essa: crença. E pergunte a qualquer
economista se a economia pode viver sem crédito (sem crença!).

3
Historiador Romeno das Religiões e um dos maiores estudiosos de mitos e sistemas de crenças no
mundo.
11

A mitologia de uma cultura é reformulada e remanejada por sacerdotes ou novas


crenças, ela não é “pura” e “casta”, mas sobrevive como dínamo, se transforma e
enriquece ao longo dos tempos, por contato com diversas culturas ou quando encontra
aqueles raros indivíduos excepcionalmente bem dotados que nos revelam uma faísca
do incêndio para além das aparências do cotidiano, como Cristo, Buda, Krishna,
Lao-Tsé etc.

O estudo do mito “in loco” (no seu lugar de origem), “in natura”, em sociedades em que
a função do mito ainda pode ser minuciosamente observada e descrita pelos etnólogos
permite situar o mito em seu contexto sócio-religioso original. Mas eu confesso, entre
nós, aqui, que duvido que não aprenderíamos muito sobre mitos observando, por
exemplo, como os sacerdotes do “Deus Mercado” explicam - em suas
manifestações entre vídeos do youtube ou nas digressões patrocinadas na
televisão - sobre a natureza incerta e duvidosa das ações intempestivas desse
“deus” punidor que exige novos e novos ajustes e flexibilidade e austeridade e
obediência cega sobre obediência cega, novos e novos “sacrifícios” para que
essa entidade abstrata a “economia (financeira)” continue “crescendo”.

Definições possíveis

Eliade define mito de uma forma bem aberta: “O mito é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.” Ajudou? Não? Então vamos tratar isso nos
nossos encontros. Por hora ficamos com a ideia de que os mitos descrevem as
diversas, e às vezes dramáticas, irrupções do sagrado no mundo. É essa irrupção do
sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje.

Diante da consciência do trágico - vamos todos morrer e não há o que possamos fazer
contra isso - da certeza da condição de mortalidade e do húmus (“terra”, “homem”)
constituinte do ser humano, encontramos também a dimensão pessoal e existencial do
mito. Todos nós, ao longo de nossas vidas, teremos de lidar com perdas: a perda da
inocência, dos parentes, amigos, certezas, valores, posturas, amores. Nesse sentido
empreendemos a catábase (Katábasis) - a “descida às trevas” - onde o encontro com a
“fera interior”, sua morte e aceitação ou incorporação dentro da “jornada do herói”,
12

efetiva a nossa catarse (kátharsis, “purificação”), o primeiro passo para a segunda fase,
a transcendência do estado anterior pela assimilação do posterior na anagnosis
(“autopercepção, auto-conhecimento”), no “tornar-se mestre do próprio destino” ou,
para alguns poucos escolhidos, como Herácles, Psique e Buda, a apotheósis -
tornar-se uno com os deuses. Aí, nesse trecho acima, temos a “função simbólica” no
contexto psicossocial do mito em Lévi-Strauss, a “jornada do Herói” de Campbell e o
“processo de individuação” de Jung.

O Social
Na formação do ethos psico-social temos o mito como elemento estruturador de uma
cultura. Como uma espécie de cadeia genética de uma civilização, o mito atua fiando e
fortificando o tecido social, criando relações de sociabilidade e estabelecendo desde
relações de parentesco até os códigos legais que regem uma determinada sociedade,
passando pelas brincadeiras infantis, modos de cozer alimentos, cortar ou pentear
cabelos, marcar o corpo, rituais de passagem e de iniciação em determinados mistérios
na vida adulta ou no fim da vida.

O mito é o tecido narrativo da vida em sociedade. As histórias que, em conjunto, nos


dizem que pertencemos ao mesmo bando, clã, grupo, tribo, cidade, país ou planeta. É
a leitura social do universo, leitura que, em seu caráter oral, permite releituras que
reestruturam esse mesmo universo. Numa identificação antropológica estrita seria
impossível compreender uma sociedade e uma cultura à parte de sua mitologia, das
suas narrativas sagradas.

Uma sociedade sem um fio condutor de sua narrativa de sentido, sem mythós, fica
confusa, perdida, desestabilizada e desesperada. Perde a direção e o significado,
perde sua herança e raízes.

O mito como Constelação Sistêmica


O mito é um fenômeno humano eminentemente verbal, discursivo, não cabendo sua
plenitude viva e transmutável em simulacros como expressões artísticas ou a palavra
escrita. “O mito escrito está para a o mito ‘em função’ como a fotografia está para a
13

pessoa viva”, escrevia o mestre Junito Brandão4. Nasceu para ser livre, para ser a
essência do discurso numa função dupla - digna do adjetivo “mítica” - que existe em si
de forma cronológica e dotado de uma unicidade e tempo vital, já que é contado no
tempo do ritual, e, simultaneamente, existe como universal, como essencial, na medida
em que o próprio ritual constitui uma suspensão deste mesmo tempo cronológico e um
retorno às origens.

Criando e sendo criado por essa leitura, o mito atua num processo de retroalimentação
que cria, recria, legitima ou destrói determinada realidade, seja ela psíquica,
existencial, cultural, mística, judicial-legal, afetiva ou filosófica. O mito existe e atua
constelando, arquitetando, toda a existência consciente, inconsciente, cultural social,
jurídica, de forma sistêmica. O mito é a tessitura da realidade.

Como exemplo podemos tomar o campo da psicologia analítica e perceber como o


Self, o centro estruturador da psique, atua equilibrando nossa unilateralidade da
consciência por meio da ativação de arquétipos - cuja forma apreensível para a
experiência humana se dá através das inúmeras imagens arquetípicas, que se referem
direta ou indiretamente aos arquétipos em si. Essas imagens arquetípicas são os mitos,
que atuam, cada qual em seu núcleo temático - o mitema - de forma a equilibrar as
tendências da consciência e do inconsciente.

Num exemplo simples e direto: Yahvéh, Adonai, Indra, Zeus, Posídon, Odin são
imagens arquetípicas que fazem referência - e dão diferentes panoramas simbólicos -
da dinâmica maior do arquétipo do “Grande Pai”. Nenhum deles é, em si, o “arquétipo
do Grande Pai”, apenas imagens arquetípicas, figuras literárias dotadas de uma
parcela possível da energia presente no Arquétipo do Grande Pai que, em sua
totalidade, é inapreensível à alma humana. Estudar mitos é se aproximar
constantemente de um maior entendimento das bases da estrutura da experiência
psíquica que faz de nós o que somos como espécie.

Exercendo suas energias de caráter “urobórico”, Eliade nos propõe “a principal função
do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades
humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a

4
Brandão, Junito. Mitologia Grega Volume I, ed. Vozes, Petrópolis.
14

educação, a arte ou a sabedoria”. O próprio ato de identificar e recortar “o que é mito”


em algumas poucas páginas é defini-lo pelo que não é, pelo que inevitavelmente faltará
a essas páginas, por isso a charada mítica, por isso e mesmo por Jonas ou Pinóquio
na barriga da baleia: Devora-me!

Por Renato Kress

Perfume de Afrodite

Urânia de muitos hinos, Afrodite dos sorrisos,


genitriz, no mar nascida, augusta, que amas pernoites,
Ó de enredos tecelã, enlaçadora noturna, Mãe da Necessidade,
Pois de tudo de ti procede, fazes a liga do mundo
E reges suas partes três, que os seres todos gerastes,
Quantos existem no céu e na frutífera terra,
Tal como no mar profundo, santa, paredra de Baco,
15

Amiga dos contubérnios, mãe de Amores, conjugal,


Suasora, amiga da cama, secreta, que dás delícias,
Ó velada e revelada, de pai ilustre, pulcrícoma,
Nupcial, conviva com o cetro dos deuses, loba,
Dada a varões, sedutora, vivífica, que dás prole,
Que com infrenes injunções subjugas os humanos
E toda casta de bestas, com os eróticos feitiços,
Vem, ó Cípria, divo broto, quer no Olimpo tu te encontres,
Régia deusa, com o belo rosto risonho,
Quer na turifera Síria visites teu santuário,
quer em teu carro de ouro pelas planuras do opimo
Egito, fecundas águas divises que se te sagram,
Ou em carruagem de cisnes levada por sobre as ondas
Tu te deleites com as danças dos cetáceos em ciranda,
Ou com as ninfas cerúleas te regozijes que, em Dia
Lá nas praias arenosas extáticas saltam, leves, ou ainda,
soberana, se em tua Chipre te achar,
Onde donzelas e esposas todos os anos entoam
Hinos a ti, venturosa, e ao puro, imortal Adônis.
Vem com afável semblante, deusa bem aventurada,
Pois com palavras santas e de alma pura te invoco.

Análise do hino “Perfume de Afrodite”


16

Como lembra Walter Otto5 (2005), o nome Afrodite não é de origem grega. Pode-se ter
certeza, acrescenta ele, de que esta deusa veio do Oriente para a Hélade (área
geográfica onde viviam os “helenos”, os povos que chamamos de gregos), onde se
aclimatou tão bem, ainda em “época pré-Homérica”, que acabou por tornar-se
plenamente grega.

Já W. Fauth (1979) referindo-se à mesma divindade, enfatiza “ihre komplexe Natur, in


der indogermanish-hellenistische, ägaische kleinasiatische und semitisch-orientalische
Bestandteile verschmolze sind” (tradução livre: sua natureza complexa, dentro dos
mitos helenísticos e indo-germânicos, manifesta uma mistura eólica de ingredientes da
Ásia menor e do semitismo oriental derretidos). Os gregos geralmente reconheciam a
origem oriental de Afrodite. Em todo caso, é mesmo inegável que seu culto logo deitou
raízes profundas na Grécia e bem cedo ela se fez pan-helênica, ou seja: seus ritos
cultos ocupavam todo o território das cidades-estado gregas. Em termos de análise
psíquica, como veremos, Afrodite, enquanto imagem arquetípica, correspondia bem a
uma das expressões do arquétipo da Grande Deusa.

Acontece que, se considerarmos os dois grandes poetas das narrativas sagradas


gregas, temos duas Afrodites possíveis! Dentro das fontes primárias gregas
encontramos uma e outra, como veremos, e muitas vezes podemos ser confundidos
com isso. Temos a Afrodite que aparece em Homero e a que aparece em Hesíodo e,
embora – como veremos – ambas sejam deusas relacionais da sedução, do enlace e
do amor, podemos perceber diferentes amplitudes e diferentes leituras possíveis em
suas manifestações.

Afrodite na Ilíada
Na Ilíada, poema épico de Homero que conta a história do cerco à cidade de Tróia
(Ílion, em grego) ela é apresentada como filha de Zeus com Dione, uma divindade
menor, prima de Zeus. Mas é importante frisar que nessa obra prima da literatura
ocidental, Afrodite tem um papel muito importante! É possível considerar inclusive que
tenha sido por causa dela que toda a Guerra de Tróia tenha começado! Vamos falar

5
Walter Otto (1874 - 1958) foi um filólogo - estudioso de documentos antigos - alemão que se dedicou
arduamente ao estudo da mitologia grega. Uma de suas obras mais importantes foi a Teofania, editada
no Brasil pela editora Odysseus.
17

mais adiante sobre esse tema. Mas podemos atribuir a mesma “culpa” pelo conflito
mais famoso da mitologia a outras divindades como Hera, Atená, Zeus ou até Éris, a
deusa da discórdia. De fato a correlação linear e causal no mito da guerra de Tróia é
muito difícil de ser estabelecida. Podemos pensar também como uma forma de Zeus
transcender ou evitar o cumprimento de sua própria maldição familiar!

Embora na Ilíada o poeta frise o caráter delicado da deusa sedutora, ela se destaca
muito nessa epopéia guerreira: aparece retirando seu eleito, Páris, da luta com
Menelau quando o príncipe troiano estava sendo massacrado pelo marido traído de
Helena. Ela o envolve em uma nuvem cor de rosa e o transporta para o quarto de
Helena, a quem persuade e comanda: obriga a heroína a receber em seus braços o
amante salvo do combate.

Helena, rainha espartana – educada na caça e na guerra - teve asco e desdém de um


homem que não sabia se proteger numa batalha, mas, afinal, cedeu à ordem de
Afrodite e cuidou dos ferimentos do amante, com medo diante das ameaças de
Afrodite.

Afrodite e Atená no campo de batalha


No afã de proteger seu filho, Enéias, Afrodite surge no próprio campo de batalha, é
ferida pelo guerreiro grego Diomedes e sobe em prantos para o Olimpo. Lá no alto a
consola a mãe, Dione. Devemos considerar que Diomedes, nesse momento da
narrativa, estava completamente imbuído da energéia (energia) da deusa Atená e,
obviamente, não combatia como um guerreiro comum num campo de batalha. Estava
animado com a potência divina da deusa da estratégia e da guerra e, dessa maneira,
foi capaz de ferir Afrodite. Há toda uma disputa entre Atená e Afrodite que se traduz no
campo de batalha em Tróia. A sabedoria e a sedução em lados opostos no clássico da
literatura ocidental vai dar ênfase a uma visão cindida entre esses dois atributos. Até
hoje nossa cultura tem dificuldade em integrar - ou respeitar a integração - entre essas
deusas.

Poderes de cura e proteção


18

Quando Heitor, o maior herói e grande general-guerreiro troiano é arrastado pelas


areias e pedras da cidade de Tróia como demonstração da areté (superioridade) de
Aquiles, são os poderosos unguentos de Afrodite que conseguem preservar a
integridade do rosto de Heitor, para que fosse reconhecido por seu pai, Príamo, rei de
Tróia (canto XXIII).

No canto V da Ilíada, esta deusa é por cinco vezes chamada de Cípris (“que vem da
Chipre”, uma ilha), nome que assinala com clareza sua profunda ligação com a ilha
célebre e indica suas origens orientais. É baseado nesse epíteto, junto com o epíteto
“citeréia” (originária de Cítera), que os estudiosos helenistas acreditam que a divindade
tenha sido importada do oriente para as ilhas gregas. De qualquer forma, como já
dissemos, ela não só se aclimatou muito bem como também persiste nas narrativas
porque desempenha um papel simbólico necessário para a riqueza da expressão do
feminino.

A mais bela?
O argumento dessa epopéia tinha a ver com as origens da guerra de Tróia: com o voto
de Páris, que declarou Afrodite “a mais bela das deusas” (numa disputa entre Hera,
Atená e Afrodite) e assim teve por prêmio a mais bela das mulheres, Helena, esposa
de Menelau.

Autopercepção
Em um fragmento dos Cantos Cíprios (fragmento 6, colhido do Ateneu XV, 682D, F),
Afrodite se reveste de trajes perfumados pelas Horas com o sumo de suas flores,
depois trança, junto com as Ninfas e Cárites, guirlandas com que tanto ela mesma
como suas aias se coroam. Ou seja: Ela mesma se reconhece e se condecora. Essa é
uma faceta de Afrodite mais elevada, que não parece necessitar do aval ou
reconhecimento alheios.

Entre Hefesto e Ares


19

Na Odisseia, a deusa é protagonista de uma deliciosa história: a canção de um aedo


(poeta) evoca seu amores adúlteros com Ares, e a artimanha do esposo ofendido,
Hefesto, que envolveu os amantes em uma rede de fios inquebráveis. No fim da
história, quando Hefesto finalmente os libera, Ares vai para a Trácia e Afrodite segue
para o seu santuário em Pafos, na ilha de Chipre, onde as Cárites a banham e
revestem de belos trajes.

Urânia
A segunda Afrodite aparece no poema Teogonia, de Hesíodo. Nesse poema épico
sobre o nascimento dos deuses (Teós, deuses; genós, genética) o poeta canta o
nascimento de Afrodite no mar, da espuma que jorra do pênis mutilado de Úrano –
grande pai universal primordial, força frenética de criação da natureza. Esse hino
acima, retirado de uma coletânea de hinos órficos, reflete esse mito quando a chama
de “espumígena deusa” (deusa das espumas, deusa dos espermas) e também quando
chama de “pontogenés”, nascida do mar (Pontos, em grego).

Na Teogonia de Hesíodo o poeta chama Afrodite de Ciprogênia (rebento, ou filha de


Chipre), depois de passar por Cítera (outra ilha, daí seu epíteto Citeréia). Após sua
chegada à ilha na qual, pela primeira vez, pisou em terra firme, sob os seus pés brotou
a relva, e logo Eros e Hímenos (Amor e Desejo) vieram formar-lhe o séquito. Nessa
versão nenhum dos dois deuses é seu filho, mas são apenas divindades afins que – à
maneira da formação dos complexos de tonalidades afetivas na psicologia analítica –
se aglutinam ao redor de divindades que lhes são simbólica e semanticamente
covnergentes.

Ainda na Teogonia, as Horas acolheram a deusa recém-chegada à ilha onde se fez


soberana, vestiram-na com trajes suntuosos, puseram-lhe sobre a cabeça uma coroa
de ouro e a vestiram com preciosos adornos, brincos e colares semelhantes aos delas,
levaram-na então para o Olimpo e todos os deuses arderam de amor ao vê-la.

Fídias, importante arquiteto e escultor grego, representou essa primeira epifania


(manifestação sagrada) de Afrodite na base da estátua de Zeus em Olímpia: a
20

composição mostrava Eros a recebê-la, Peithô (Sedução) a coroá-la e os grandes


deuses ao redor, absortos em fascinada contemplação.

No Hino Homérico 5, Afrodite é invocada como deusa reinante em Chipre. Até por sua
posição geográfica, Chipre sempre foi o ponto de encontro de povos e culturas da
Grécia e da Ásia Menor, que aí interagiram e se misturaram. Pafos, sem dúvida
alguma, foi o principal centro de culto de Afrodite em toda a Antiguidade.

Outras afrodites
Merece destaque a forte presença dos Fenícios em Chipre, onde ocuparam Cítion, lá
erguendo um magnífico templo à deusa Astarté. Assim como o templo de Afrodite em
Pafos, este santuário foi construído por volta do século XIII a.C. e manteve seu
prestígio até o período romano, sendo freqüentado por adoradores tanto do Oriente
Próximo quanto do mar Egeu.

É bem marcada a identificação de Afrodite com Astarté, que corresponde à Ishtar


acadiana (a Inana dos povos sumérios). Temos aí algumas questões que podemos
debater ao longo dos nossos encontros sobre sincretismos, generalizações,
apagamentos históricos, dominações territoriais e o quanto cada mito serve para dar
evidência a uma narrativa específica sobre poderes e expressões na sociedade e na
alma humanas. Veremos isso na escrita criativa de Afrodite ao fim da apostila. O
santuário de Afrodite em Citera também teria sido fundado pelos fenícios de acordo
com o historiador grego Heródoto. Mas Afrodite tinha ainda outros grandes santuários e
centros de culto no mundo grego, merecendo destaque os de Salamina e os de Creta.

Kato Sime, sítio arqueológico


O helenista Walter Burkert (1992) assinalou que Creta, berço da civilização minoica –
primeira civilização que formou o que hoje chamamos de “povos gregos”- sempre foi
“orientalizante”. A ilha era um importante entreposto comercial com o Oriente e, é claro,
mantinha toda sorte de relações com os povos do Oriente Próximo. Portanto não se
21

pode desprezar a tese de que nessa ilha Afrodite veio a ser, também, herdeira de uma
divindade minóica anterior ou até associada a uma divindade que existiria
primordialmente na ilha. O maior templo escavado na ilha é o santuário de Kato Sime,
em época histórica consagrado a Afrodite e a Hermes. Segundo assinala Haiganuch
Sarian (1989), esse templo recobre um local e culto minóico caracterizado por vestígios
arquitetônicos e importantes depósitos votivos. Tanto Afrodite quanto Hermes eram
deuses relacionais e regiam diferentes espécies de trocas.

Atenção ao caráter político das leituras sobre Afrodite


No Papiro Derveni (col XXI, 5-7) o comentarista afirma que Afrodite Urânia, Zeus,
Peithó (Sedução) e Harmonia são nomes dados a um mesmo deus. Mas é preciso
justamente estar atento à data dessas fontes porque, nesse caso, trata-se, claramente,
de uma acepção tardia, onde Zeus já começava, após um longo período de monolatria,
a manifestar suas tendências monoteístas. Monolatria é quando um povo entende que
existe mais de um deus mas idolatra, presta juramentos e faz rituais apenas para um.
Muitas religiões politeístas tiveram momentos de monolatria, algumas tornaram-se
monoteístas, mas não todas.

Todo discurso de poder se estrutura em cima da idéia de sua própria repetição. Os


discursos de poder procuram dar condições para sustentar sua própria validade por
toda a eternidade, da mesma forma como o complexo egóico procura criar narrativas
que sustentem que ele tem uma única identidade permanente, embora saibamos todos
que absolutamente não somos a mesma personalidade aos nossos sete anos de idade
e hoje. Então o discurso do monoteísmo cristão aliado à monolatria da razão ocidental
descaracterizaram a teoria de Darwin para dar a ilusão de que ela desvendava uma
“evolução” idêntica, “natural” e “inevitável” para todos os povos, culturas e identidades.
Era a Europa, no fim das contas, querendo impor seus valores como universais. Uma
forma bem funcional - embora não imbatível - de colonialismo do imaginário. Veremos
como Afrodite se rebela contra isso.
22

Afrodite
A toda poderosa deusa do Amor, sedução e prazer. Deusa do amor sublime e
espiritual, do amor carnal, do prazer sexual, das forças incontidas da fertilidade, dos
relacionamentos e das transformações por amor, a Afrodite grega - através do
processo de migração dos mitos que ocorria pelos encontros dos povos - é originária
provavelmente de deusas de outras regiões e épocas, que possuíam as mesmas
características. Ou talvez ela seja, se considerarmos as necessidades expressivas do
arquétipo da Grande Deusa, uma das suas manifestações criativas mais necessárias e,
por isso mesmo, embora possa ter sido importada de outras terras, tenha se
aclimatado tão bem em solo grego.

Afrodite - irão nos dizer as estudiosas e os estudiosos da deusa - têm características


semelhantes com várias outras deusas do Oriente Próximo. A grande deusa suméria
Inana tem similaridades com a filha de Úrano, mais adiante, na Acádia, a deusa Ishtar
também tem. Continuando para dentro das terras desérticas do Irã outra deusa,
Anahita, terá a mesma lascívia, sedução e poder que vemos na Afrodite grega. Para os
cananeus e Fenícios a deusa Anat ou Astarté/Astart, descendo pelas terras do Egito
podemos ver algumas de suas expressões tanto em Ísis quanto em Hator. Caminhando
para a Lídia, encontramos Cibele.

Podemos seguir por esses caminhos provavelmente por toda a eternidade procurando
evidências arqueológicas da origem da origem da primeira das origens dessa deusa
através do difusionismo - como faz Joseph Campbell em boa parte de sua obra - ou
podemos, como Jung, perceber que essa estrutura sedutora e avassaladora existe
como a priori, como fundamento, em toda psique humana. Afrodite, em muitas de suas
manifestações, é justamente a divinização do desejo. Desejos têm natureza cíclica:
podem ser plenamente saciados, mas apenas por um curto período de tempo porque
ou voltam ou se transformam em outros desejos.

Na mitologia grega ela acabou sendo identificada de duas formas, através dos seus
dois aedos (poetas) mais famosos: A Afrodite Urânia (em Hesíodo) e a Afrodite
Pandêmia (Homero).
23

Afrodite Urânia
O Grande deus Úrano, símbolo da fertilidade, uniu-se a Gaia, a Grande Mãe Terra, e a
fecundou de forma abundante, dando origem aos Titãs e às Titânides, aos Cíclopes e
aos Hecatônquiros. Três gerações de deuses presos no útero da Terra.

Porém, essa fecundação era indiferenciada e caótica, pois, temendo ser destronado,
Úrano não possibilitava que nenhum de seus filhos viesse ao mundo, permanecendo
para sempre fecundando Gaia e mantendo tapado o caminho de saída para seus filhos.

Essa leitura de “temer ser destronado” é feita por Hesíodo, mas podemos pensar em
leituras mais simbólicas para a expressão. Úrano pode significar o princípio gerador
ininterrupto, o desejo criador e um furor criativo tão acelerado e avassalador que
elimina todas as suas ideias criando novas ideias antes mesmo de colocar qualquer
uma delas em prática. Você conhece alguém assim? Ou já teve esse tipo de
comportamento “Urânico”?

Quando o mais jovem dos Titãs, Crono, foi gerado, Gaia instruiu-o e o instrumentou
com uma foice feita do leite de seu seio (provavelmente metal derretido) para combater
o pai. O menino Crono então o fez, libertando-a e aos irmãos da opressão desse
grande pai ininterrupto. Crono amputou o pênis do pai pondo fim à fertilização
indiscriminada, à sua criatividade inócua.

Polaridades
O pênis mutilado de Crono cai sobre seu filho Pontos (O Mar). Na base do pênis, o
sangue derramado pela lâmina de Crono, na cabeça do pênis, a última espuma do
esperma divino. Daquele sangue derramado pela castração do grande deus do Céu por
seu filho Crono nascem as Erínias, divindades da vingança feminina e da vingança
familiar, já do esperma de Úrano com as espumas do mar nasce Afrodite, divindade da
união sexual com vias à reprodução ordenada das espécies.
24

Afrodite é filha das espumas/espermas (em grego a palavra é a mesma), dos


movimentos repetitivos e ondulatórios das marés, da leveza e da ressaca, da água
marinha e da fecundidade do mar, fonte de toda a vida. Nasceu bela, foi vestida e
ornamentada pelas Horas, divindades que presidiam os ciclos da vegetação e
asseguram o equilíbrio da vida em sociedade. Levada ao Olimpo, imediatamente
encantou a todos.

Afrodite Celeste, a Afrodite Urânia, a última filha de Úrano, é a representação do amor


em sua manifestação mais sublime e intensa. Simboliza a atração irreprimível para
fecundar a natureza e guarda em sua simbologia todos os predicados e competências
representativas do amor e da sedução.

Quando constelada em sua faceta luminosa, propicia elementos essenciais à relação


amorosa, bem como ao exercício do amor humanitário, ao embevecimento diante do
belo e à vivência do prazer.

Úrano
Para falarmos de Afrodite “Urânia” é preciso, logicamente, determinar - ou ao menos
ampliar o símbolo de Úrano. Então quem é, de onde vem e para onde vai essa
divindade celestial da Grécia Arcaica?

Úrano é a personificação do Céu como elemento fecundo. É o céu criador, elemento


masculino e expansivo em sua faceta mais primordial. Desempenha um importante
papel na Teogonia de Hesíodo, onde figura como filho e amante de Gaia (também
traduzida como Géia ou Géa em alguns livros), a Terra Mãe primordial.

Em outros poemas é apresentado como descendente de Éter, omitindo-se, nesta


tradição que remonta à Titanomaquia (o massacre dos Titãs) o nome da mãe que seria,
neste caso, provavelmente, Hêmera, a personificação feminina do dia. Na teogonia dos
órficos Úrano seria irmão de Gaia e ambos seriam filhos de Nyx, a noite.
25

O mito mais conhecido de Úrano é aquele em que ele figura como esposo de Gaia (o
Céu cobre, de fato, a Terra inteira, sendo o único à sua medida aos olhos nus). Com
ela Úrano teve uma multidão de filhos.

Análise simbólica de Úrano, pai de Afrodite


Simbolicamente Úrano pode representar o impulso criador desenfreado, a criatividade
avassaladora e incapaz de manter qualquer de suas criações. A criatividade jovial,
energia de produção que não tem, ainda, preocupações ou capacidade de manter suas
próprias criações. É aquela nossa criatividade que está sempre aflita com o quê será
feito, sempre muito mais do que com o como cada criação será mantida ou como cada
uma delas terá impacto sobre as criações anteriores. Temos aí uma questão muito
importante para considerarmos quando pensamos no impulso juvenil para a criação,
esse impulso sem forma, que transgride a lógica em busca da satisfação de um desejo
instintivo vai ser a herança de Úrano para sua última filha, Afrodite.

Do Úrano-Puer ao Úrano-Senex
É importante que possamos pensar as divindades, suas imagens arquetípicas, como
expressões também de suas energias primárias. Dessa forma Úrano, o Céu Estrelado,
não seria bem representado, em sua plena potência, por um deus idoso e distante. Ele
se torna isso sim, o “deus ocioso” quando é castrado, mas, até que isso ocorra, até que
o trauma do freio operado pela castração de sua potência criadora tenha ocorrido, ele é
um jovem deus entusiasmado e autocentrado que absolutamente não percebe o
sofrimento que gera em sua irmã-amante, Gaia.

Essa despreocupação originária de Úrano vai ser passada para Afrodite, como
veremos em muitos dos seus mitos, e Úrano, esse jovem deus criador empolgado com
a própria potência criadora, vai sofrer o que o psicólogo suíço Carl Gustav Jung
chamou de enantiodromia.

A enantiodromia é uma “conversão no pólo oposto”. Freud já falava dessa conversão


como a transformação de uma pulsão em seu contrário. Jung recorre às leituras dos
fragmentos do filósofo pré-socrático Heráclito para trazer o termo enantiodromia.
Heráclito era um filósofo que falava sobre as transformações inevitáveis de tudo no
26

universo e do constante devir delas. Segundo esse filósofo nada “é” em si, nada tem
uma essência plena e imutável, mas tudo “está”, tudo está em fluxo e em
transformação. Dentro desse ponto de vista a enantiodromia é a reversão de um pólo
energético em seu oposto. Segundo Jung “Este fenômeno característico ocorre quase
sempre onde uma direção extremamente unilateral domina a vida consciente, de modo
que se forma, com o tempo, uma contraposição inconsciente igualmente forte e que se
manifesta, em primeiro lugar, na inibição do rendimento consciente e, depois, na
interrupção da direção consciente.” (O.C., Vol VI, parágrafo 795), segundo Jung “a
desvantagem dessa conversão radical ao seu contrário é a repressão da vida
passada, o que produz um estado de desequilíbrio tão grande quanto o anterior.”

Ou seja: a vida pujante que explodia em impulso e realização indiferenciada em Úrano


é retraída, fazendo com que ele migre para o extremo oposto. Se antes era impossível
refrear seu instinto primário de sexualidade criativa, agora, depois do corte, da cisão, é
impossível que Úrano faça qualquer coisa, ele se torna, como falamos antes um “deus
ocioso”.

Entender Úrano é importante quando queremos compreender Afrodite porque, sendo


ela a última expressão da criatividade desse deus, é ela quem vai herdar dele muitos
dos seus comportamentos tanto criativos, quanto joviais e instintivos. Úrano, potência
criadora primordial, “morre” (deuses não morrem, mas ficam despotencializados) para
que sua potência seja transmitida a Afrodite.

Afrodite Pandêmia
Pandêmia significa “pan” (todos) + “demos” (povos), ou seja, de todos os povos ou
“venerada por todos os povos”. Essa Afrodite (proveniente da versão de Homero) surge
da união de Zeus com Dione, uma titânide, divindade da geração dos Titãs.

Observemos aqui que, seja porque Afrodite é filha direta de Úrano, seja porque ela é
filha de uma divindade titânica (a geração anterior à dos olímpicos) ela contém, em si,
um caráter de “primordial” ou de “ancestral”.
27

Afrodite, expressão do feminino sexualmente pleno na dinâmica psíquica, perde sua


característica “sublime” e, na versão pandêmia, passa a ter seus atributos e
competências restritos à condição de deusa do amor, do encantamento, da sedução e
do relacionamento sexual. Que, dentro de uma leitura mais moralista do mito, é
entendida como “inferior”. Coisa que devemos olhar com atenção redobrada por aqui, a
fim de perceber as consequências dessa percepção da deusa.

Entre sedução, sexualidade e beleza, há diferenças?


Mais à frente veremos a questão de Afrodite como “deusa da Beleza” e as respostas
possíveis à questão que já adiantamos aqui: Se Afrodite é a deusa da beleza, como
assim havia dúvidas sobre ela ser a mais bela dentre as deusas?

Deusa da sensualidade e da arte sexual, Afrodite pode levar as pessoas ao


encantamento, tornando-as vulneráveis, impotentes para resistirem ao fascínio sexual,
relativizando a força do poder, que tão freqüentemente antagoniza com o amor.

"Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas,
psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de
poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro" –
Carl Gustav Jung

Crítica à Afrodite Pandêmia


Esse momento mítico, que atribui à deusa grande poder de sedução associado a um
perigo e a uma leitura moralista de sua liberdade sexual, pode traduzir simbolicamente
a emergência explícita da defesa contra o feminino numa dinâmica patriarcal que,
estava, à época, em fase de estruturação. Só o fato de termos, ao contrário do que
temos no cristianismo, divindades representadas pelo gênero feminino e,
principalmente, no plural, com facetas positivas e negativas integradas em si mesmas,
já nos denota essa potencialidade complementar do politeísmo grego e torna ele
importante como uma das ferramentas de resgate das narrativas políticas que
perpassam questões de gênero na nossa sociedade.
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O poder masculino emergente, à época, defende-se da competência da deusa,


desqualificando-a enquanto deusa do amor e encantamento e qualificando-a como
sedutora e devassa. Fica fixado na sombra da deusa, horrorizado com o que vê como
desviante, sedutor e perverso. De fato simbolicamente esses dois lados são
complementares e só uma consciência fragmentada, unipolarmente machista ou
femista6, pode negar que é da complementaridade desses opostos que nasce a
essência da deusa. Essas visões passam a enxergar Afrodite tanto como errada e
pecaminosa – sombra da deusa vista pelo patriarcado amedrontado com o poder
feminino - como quanto inofensiva e livre – luz da deusa vista pelo feminino
deslumbrado consigo mesmo.

Ambas as visões são unilaterais e perigosas. Afrodite é tudo isso e provavelmente


muito mais e para além do que não abarcamos na nossa frágil tentativa de
compreender imagens arquetípicas em sua plenitude. A divindade é sempre mais do
que a nossa possibilidade humana de leitura do divino.

O Patriarcado, que morre de medo de se relacionar e de integrar efetivamente o


feminino, torna-se ameaçado pelo que desconhece. O matriarcado que não se permita
efetivamente compreender a sombra do feminino, torna-se escravo do seu próprio
fascínio.

Horas
Assim que nasce da união entre o esperma de Úrano e as espumas de Pontos, o
Oceano, a deusa vem para a costa da Ilha de Chipre e é recebida pelas deusas Horas,
que a vestem e embelezam. Mas quem são as Horas?

6
Femismo é o comportamento ou linha de pensamento segundo a qual a mulher deveria dominar social,
política, moral e ontologicamente o homem, negando aos mesmos quaisquer direitos e prerrogativas. O
femismo não é o mesmo que o feminismo, que é a noção radical de que as mulheres são seres humanos
com direitos, deveres e capacidades idênticas às dos homens.
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Diz-se “Horas” por causa de uma tradução do seu nome latino “horae”. Mas elas não
são as deusas das horas do dia, propriamente. São as divindades das estações do
ano. Tardiamente foram transformadas em personificações das horas do dia sim, então
é possível encontrar isso em algumas obras mais recentes. Mas isso já bem mais
próximo de nós e longe dos gregos, que cultuavam essas deusas.

As Horas são filhas de Zeus e Têmis (deusa da Justiça) e irmãs das Moiras (deusas do
destino). São três: Eunomia, Dike e Irene ou seja, Disciplina, Justiça e Paz. Algumas
tradições davam a elas os nomes de Talo, Auxo, e Carpo, que significam,
respectivamente, nascer, crescer e frutificar. Dessa forma elas representam impulsos
vitais do nosso inconsciente, como instintos de vida.

As Horas têm um duplo aspecto: como divindades da natureza elas presidem o ciclo da
vegetação, como divindades da ordem (filhas de Têmis, a Justiça), asseguram a
estabilidade social. Como deusas que aparecem para cobrir Afrodite durante seu
nascimento, elas possuem, como todas as divindades, uma dualidade muito implícita;
Se por seu lado luminoso estão acolhendo e recebendo, por seu lado sombrio estão
restringindo as liberdades “excessivas” da deusa. Ao contrário do que a leitura
superficial - e mais comum - profundamente aferrada numa dicotomia sexista sobre
Afrodite vai nos trazer, é uma divindade feminina quem vai procurar castrar as
liberdades de Afrodite, não uma masculina. Até porque, para quem já vem
acompanhando os encontros Mito e Mente e nossos materiais, ao contrário do senso
comum, divindades representadas imageticamente como masculinas ou femininas são
princípios energéticos que podem se “constelar”, se “ativar” em mulheres e homens
indiscriminadamente. Existem tantos homens fascinados ou horrorizados por Afrodite
quanto mulheres, uma vez que os temas que a divindade preside não são restritos a
nenhum gênero. Ao contrário do que os modismos editoriais de internet nos querem
fazer crer para vender e reforçar estereótipos deslocados da realidade.
30

Afrodite e suas uniões


A deusa do amor, das paixões desenfreadas, dos arrebatamentos, dos prazeres do
corpo é, antes de tudo, a manifestação da divindade que preside a fecundação. Assim,
a deusa é a expressão da atração que surge entre os pares, tenha essa atração
interesse ou não na finalidade de procriar.

A deusa estabelecerá, dessa forma, incontáveis “casamentos7” e, em decorrência


dessas uniões, se transformará, estruturando, assim, o processo de humanização
dessa expressão arquetípica da Grande Deusa.

Deusa relacional
Como deusa relacional, Afrodite está sempre em busca de um parceiro para criar um
elo criativo. Ela se transforma e se percebe de maneira mais clara a partir de suas
relações. Quando se une a uma outra divindade tem de estabelecer limites e
concessões baseadas nos arroubos naturais que cada divindade manifesta. Hermes
quer velocidade, Ares impulso, Hefesto dedicação e comprometimento. A partir dessas
demandas Afrodite vai manifestando forças complementares, opostas ou convergentes
e, através delas, ela vai se percebendo, conhecendo seus limites e necessidades.

Quem de nós não deve agradecer àquele relacionamento extremamente problemático


que nos ajudou a definir, para nós mesmos, o quê exatamente não aceitamos mais nas
nossas futuras relações? Quem não consegue olhar agora, por cima do próprio ombro
e perceber o quanto o limite que hoje é óbvio - limite de concessões, de atitudes, de
posturas - não foi criado em situações tensas e dolorosas do nosso drama romântico
particular?

À medida que sabemos que a verdadeira prova para as nossas posturas e “verdades”
na vida é levar cada uma delas para o mundo real, confrontá-las com as posturas e
verdades de outros humanos tão falíveis e únicos como nós mesmos, começamos a

7
Na verdade relações que, em termos nossos, chamaríamos de “relações abertas”, embora vejamos que
eventualmente Afrodite tem ciúmes. Ao menos de Ares.
31

perceber o que já aprendemos e o que estamos aprendendo com Afrodite. Se


relacionar é aprender principalmente sobre si mesmo.

Afrodite e Hefesto
O casamento da deusa dos relacionamentos com o deus da arte de atar e desatar
conjuga-se numa condição simbólica, conferindo competência a ambos para não
ficarem presos pelo amor; essa conjunctio (conjunção) viabiliza o desfazer dos nós dos
relacionamentos e o desatar-se das uniões desastrosas. “Quando ocorre ruptura do
relacionamento, se se tenta destruir a dor profunda do pranto por fantasias a respeito
do retorno do parceiro, a vida para” – Qualls-Corbert

O casamento de Hefesto com Afrodite é uma decisão fadada ao conflito em vários


níveis: Casa-se a deusa do amor livre (já começa bem mal, não?), o que caracteriza
muito bem uma posição de uma Hera polarizada em sua sombra, ao mesmo tempo em
que se dá ao único deus descrito como “feio”, “coxo”, “manco” a deusa da sedução, e
ao deus do trabalho a deusa lasciva que não está minimamente preocupada com essa
dimensão da vida. Afrodite é a deusa relaxada, lânguida, esparramada nua entre as
espumas do mar. Talvez tenhamos aí a relação trabalho-férias ou trabalho-prazer, tão
polarizada, complicada e dicotomizada na mentalidade ocidental.

Afrodite é tida como a deusa que se mantém vinculada enquanto dura seu interesse,
necessidade ou enamoramento, já Hefesto, ao invés de cortejar os valores de Afrodite
e sua atenção, age como legítimo filho de Hera e acredita que ela está aprisionada pela
palavra dada no dia do casamento, presa ao compromisso. Ele procura aprisionar
Afrodite e nisso a perde, pois a relação passa a ser triangulada pela presença de um
terceiro elemento: Ares.

Afrodite e Ares
Afrodite e Ares – deus da Guerra – possuem as mesmas qualidades impetuosas. Ares,
pela violência, age para se defender quando ameaçado e para defender aqueles que
32

ele julga injustiçados; e Afrodite, pelo apaixonamento, sem pudores e sem amarras
para viver seu desejo. Expressões opostas de uma mesma fundamentação afetiva que
se manifesta na paixão, amor e ódio.

Ares é rejeitado por seu pai Zeus que o considera “o mais odioso de todos os imortais
que habitam o Olimpo” (Brandão) e talvez por isso esteja sempre em guerra para
proteger o que lhe é caro afetivamente. Afrodite e Ares tiveram, em seu caso, três
filhos: Fobos (Medo), Deimos (Terror) e, por fim, Harmonia.

Tempero e temperança
Há uma reação química entre as temperaturas dos deuses. Ela o esfria, ele a
esquenta, ela o acalma e ele a excita, formando uma química maravilhosa, mas que
não pode ser tida como “matrimonial” porque o que excita a ambos é a própria ideia de
liberdade e um flerte com a incerteza.

Sobre Harmonia
A palavra grega harmonia significa originalmente conformidade, união ou grampo (para
juntar pranchas de navios nos estaleiros). Disso é possível derivar um princípio de
conformidade, a coesão de partes independentes entre si que em seu movimento se
relacionam, ou ainda a união de elementos opostos em um todo ordenado.

Aliado à concepção dualística de um mundo criado e mantido através da ação de suas


forças originais opostas, este princípio é conhecido por quase todos os povos do
mundo antigo e é explicado por meio de mitos, alegorias e símbolos.

Harmonia e tai-chi
Um desses símbolos é o círculo fechado sobre si, arredondado para todos os lados, no
qual todos os opostos estão unidos harmonicamente (como no símbolo chinês do
Tai-chi, conhecido popularmente como “yin-yang”) e que se torna a expressão
simbólica da harmonia cósmica em diversas tradições.
33

No mito grego Harmonia é filha do deus da guerra Ares e da deusa do amor Afrodite.
Ela se torna a expressão simbólica da união entre dois opostos. Se a filosofia da
natureza grega (Heraclito, Empédocles etc) via a gênese e o perecimento no ciclo do
mundo como interação harmônica, como mistura e separação, os pitagóricos
identificavam harmonia com proporção matemática.

Somente com Platão e Aristóteles a harmonia vai ganhar espaço na Ética (com o
conceito de Virtude), na Estética (com o conceito de beleza) e na música (leis de
tonalidade).

Segundo Platão Harmonia, assim como Logos, é um conceito rítmico, cuja estrutura é
capaz de influenciar a ordem do todo (seja ele o todo psíquico ou o todo social).

Hefesto e Ares
Irmãos que compartilharam uma mesma amante. Vamos falar um pouco sobre Hefesto
e Ares para dar mais tonalidades a essa deusa que se descortina a cada nova relação.
Hefesto é o deus do fogo e das forjas. Segundo filho de Zeus e Hera, ainda que a
Teogonia, de Hesíodo, traga ele como uma criação apenas de Hera, que o parira por
partenogênese. No encontro Mito e Mente Hefesto mostraremos a infraestrutura
simbólica e política sobre a qual se ergue essa afirmação e o quanto as motivações
que essa versão apresenta para a partenogênese de Hera são, no mínimo,
problemática.

Pois bem, Hefesto é um deus coxo - ou seja, ele manca de uma perna - e davam-se
várias explicações míticas para o seu defeito físico. A mais vulgar é referida na Ilíada:
Hera discutia com Zeus a respeito de Héracles8 e Hefesto tomou o partido da mãe.
Então Zeus agarrou-o por um pé e atirou-o do Olimpo abaixo. Hefesto caiu durante um
dia inteiro quicando nas pedras. Ao anoitecer bateu contra a terra, na ilha de Lemnos,

8
Hércules. Em grego a grafia original do seu nome é Heracles.
34

onde tombou, mal respirando. Aí foi recolhido pelos Cíntios (população trácia) que o
reanimaram, mas ficou coxo para sempre.

Outra versão diria que Hefesto era coxo de nascença e a mãe, envergonhada, teria
decidido escondê-lo das outras divindades. Assim atirou-o do alto do Olimpo. Hefesto
caiu no Oceano, onde foi recolhido por Tétis e Eurínome, duas divindades marinhas
que lhe salvaram a vida e o criaram durante nove anos numa gruta submersa. Durante
esses nove anos ele forjou e modelou diversas jóias para ambas e guardou sempre um
reconhecimento profundo pela bondade que elas lhe haviam demonstrado.

Reina sobre os vulcões, que são as suas oficinas e onde trabalha com seus ajudantes,
os Cíclopes. Foi a ele que Tétis recorreu para forjar as armas de Aquiles durante a
Guerra de Tróia.

Ares é o deus da guerra. Filho de Zeus e de Hera e, como Apolo, Hermes etc, pertence
à segunda geração dos olímpicos. Inclui-se entre os doze grandes deuses, ao contrário
de suas irmãs Hebe e Ilítia, que são divindades secundárias dentro das narrativas
míticas. Ambas aparecem de maneira pontual, não possuindo grandes narrativas nas
quais figurem como protagonistas.

Desde a época homérica Ares surge como o deus da guerra especificamente.


Representa o espírito de combate que se compraz da carnificina e do sangue, nas
palavras de seus pais Zeus e Hera, mas, se tivermos o bom senso de lermos as falas
do próprio Ares, as defesas que faz de si mesmo e de suas motivações e ações,
veremos uma divindade extremamente sensível, ainda que não necessariamente
voltado para a retórica. É uma alma de ação muito mais do que de palavras e vê-se
como corajoso, franco, direto e principalmente honesto. Essa qualidade, por sinal, Ares
não vê na maioria dos demais deuses. Mas vê em Afrodite, que é sincera em relação
aos seus desejos.

Diante de Tróia ele combate geralmente do lado dos Troianos, considerando que são
os gregos que atravessam o oceano para invadir e saquear a cidade alheia. Ele age -
segundo seu próprio código ético - para proteger aqueles que estão sendo atacados.
Diante da sua visão crua e realista da vida, a questão particular entre a esposa do rei
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de Esparta, Helena, o rei de Esparta, Menelau, e o príncipe de Tróia, Páris, nada mais
é do que uma questão particular. Resolva-se no máximo em um duelo homem a
homem e não se use como justificativa para invadir e saquear a casa alheia. Ares é
completamente avesso a essas desculpas e estratagemas. Em geral preocupa-se
pouco com a legalidade da causa que apóia. Importa-lhe satisfazer o próprio senso de
justiça, bastante personalista.

Acompanham-no deuses que são seus escudeiros, Deimos e Fobos (Terror e Medo) e
também Éris, deusa da discórdia. Esta última é descrita por Homero como uma deusa
minúscula que aumenta de tamanho com uma velocidade impressionante.

A maior parte dos mitos em que intervém Ares são naturalmente mitos guerreiros e
relatos de combates. Mas o deus está longe de ser sempre um vencedor. Pelo
contrário, parece que os gregos, desde os tempos homéricos, tiveram prazer em
mostrar a força brutal de Ares contida ou ludibriada pela força mais oportunista ou
utilitária de um Hercules ou pela sabedoria instrumentalizada de sua irmã Atená.

Ares em Afrodite
Pensemos Ares em Afrodite. Quando contemplamos Ares na psique constelada em
Afrodite vemos que, sendo uma imagem arquetípica, o deus da Guerra, quando na
qualidade de Ânimus (contraparte masculina do ego feminino) positivo, constela-se nas
mulheres, acrescenta determinação, força e saúde egóicas, além de amor próprio e
coragem. Diferentemente, quando o pólo oposto do mesmo Ânimus se constela, ou
seja, quando constelamos a sombra de Ares, poderemos perceber nascer sentimentos
e ações caracterizados pela fúria, agressividade desmedida, irritação, imediatismo e
temperamento intempestivo. Essas são características que encontramos na leitura
clássica da teoria junguiana.

Ares pode ser constelado em qualquer psique, considerando que imagens arquetípicas
são formas de fluxos energéticos que, apesar de nos chegarem historicamente
determinadas, são veículos para formas específicas de transporte de energia psíquica
e energia psíquica todos temos em nossas psiques, homens ou mulheres. Resumindo
tanto Afrodite quanto Ares, enquanto formas de expressão da energia psíquica, podem
36

e naturalmente vão se “constelar” em homens e em mulheres, ao contrário do que


alguns autores pregam, utilizando a carga afetiva inerente à questão de gênero na
nossa sociedade, para alavancar vendas de livros com apelo dramático e forçando
identificações de ego com imagens arquetípicas, como se de fato houvesse uma
“mulher-Afrodite” ou um “homem-Ares”. Por mais sedutores que sejam esses apelos,
porque respondem fácil, imediata e erradamente, a nossos anseios históricos e sociais
com uma grande inflação egóica, imagens arquetípicas não são signos zodiacais e as
influências de uma Afrodite ou de um Ares como complexos podem e devem,
naturalmente, ocorrer em pessoas de absolutamente todos os gêneros e sexualidades.

Afrodite e Adônis
Mirra (ou Esmirna) era considerada a mulher mais bela da Grécia, filha do rei Teias, ela
era a princesa da Assíria. Como veremos através das histórias de Psiquê e de Helena
“de Tróia”, esse tipo de adoração e veneração que os humanos desenvolvam por uma
outra humana está sempre fadado ao fracasso pela própria vingança da deusa.

Pois então: Afrodite, por ciúme, faz com que a jovem princesa se apaixonasse
perdidamente pelo próprio pai, Teias. Mirra (Esmirna) então, arranja com que sua ama
se disfarce à noite e finja maliciosamente seduzir seu pai. O velho cede facilmente aos
apelos da jovem serva e, por doze noites, deita-se com sua filha pensando se tratar da
ama dela. Eles se encontram à noite, no escuro e Mirra está sempre coberta dos pés à
cabeça enquanto se entrega ao desejoso pai. Ele sempre tenta tirar o véu e ver a
jovem serva, mas ela o impede, segura ferozmente os panos e se diz sempre muito
envergonhada.

Na última noite o pai, louco de paixão, deseja ver tudo o que se passava nas doze
noites anteriores e puxa o véu que a “ama” colocava entre os dois corpos. Então ele
percebe, desesperado, o engodo! Irado e transtornado com a visão de seu incesto, ele
arrasta a filha até o alto de uma colina. À noite o único brilho em toda a cena é a luz fria
da lua refletindo na faca do desesperado pai. Mirra é jogada ao chão enquanto pede
ajuda aos deuses e a própria Afrodite então a transforma numa árvore, que tem o seu
nome. Teias esfaqueia a árvore com toda força e de lá sai Adônis.
37

Adônis é um menino pelo qual Afrodite imediatamente se apaixona. Mas, enquanto ele
é ainda um bebê, ela o dá para ser cuidado por Perséfone, uma deusa que não tem
filhos e o acolhe amorosamente. Contaremos esse mito futuramente com mais detalhes
quando falarmos de Perséfone. Por hora, o mais importante é ver como essa relação
se desenvolve para Afrodite e o quanto ela fala da natureza da própria deusa. Deixado
para crescer no Hades, onde reina Perséfone ao lado de seu silencioso marido Hades,
ele cresce até tornar-se um jovem de beleza ímpar. É nesse momento que Afrodite
pede a Perséfone que lhe devolva o rapaz, mas a deusa do submundo já desenvolveu
um profundo amor filial pelo menino e não está disposta a devolvê-lo.

Julgamento de Adônis
Afrodite então vai a seu pai (ou seu sobrinho, como já vimos) Zeus e pede que ele
intervenha para que Perséfone devolva o rapaz que, aos olhos da deusa do amor, é
seu por direito! Temos aí o duelo entre dois apegos! O apego maternal de Perséfone e
o apego sexual de Afrodite. Nenhum dos dois afetos considera a subjetividade do
rapaz. E é justamente isso que Zeus, quando solicitado, faz. O todo poderoso
imediatamente manda chamar Adônis à sua presença, junto com Perséfone e Afrodite
e então, para surpresa e desespero de ambas - que temiam o que o rapaz poderia
fazer com sua própria liberdade - pergunta ao rapaz com quem ele queria ficar.

A decisão de Adônis é interessante. Ele decide ficar dois terços do ano com Afrodite,
na superfície, gozando os prazeres do amor e um terço do ano com Perséfone, no
Hades, sendo cuidado pela deusa que ele entende como sua mãe. E assim é feito.
Zeus transforma em sujeito o que era objeto da disputa entre duas divindades e Adônis
segue sua vida de idas e vindas entre as duas deusas.

Resposta de Ares
Até que Ares, tomado de ciúmes depois de perceber o interesse amoroso de Afrodite
por Adônis, toma a forma de um gigantesco javali e, correndo numa velocidade
estonteante, tromba com suas enormes presas em Adônis e emascula o rapaz. Adônis,
castrado, ajoelha-se à beira do rio e pinta suas águas de vinho, vermelho e rosa. Morre
de hemorragia à beira de um rio.

Afrodite, horrorizada com a atitude de Ares, transforma o menino em uma flor, a


anêmona escarlate. Quando estamos regidos - homens e mulheres - pelo dinamismo
38

de Afrodite, podemos constelar um animus com características de Adônis – ou seja,


podemos nos interessar, nos sentir atraídos por um perfil semelhante ao de Adônis -
alguém a quem queremos iniciar na vida sexual, que vejamos como uma personalidade
infantil. Isso ocorre com homens e mulheres que se sintam atraídos por parceiros mais
novos. Muitas vezes quando nossa psique está acometida por essa energia mental,
costumamos buscar a eterna juventude e nos apaixonar por parceiros jovens e
imaturos. O que não deixa de ser uma forma de reforçar, por complementaridade, a
nossa própria auto-imagem como pessoas maduras. Como sabemos auto-imagens e
identidades que precisam de reforço constante com toda certeza não são erigidas
sobre bases sólidas.

Adônis
Vamos falar um pouco sobre esse herói que se tornou uma divindade. Adônis é uma
divindade da vegetação e provavelmente tem uma origem hebraica. Seu nome em
grego preserva o nome do hebraico antigo para “senhor”, Adonai.

Tornou-se amante da deusa Afrodite e filho adotivo de Perséfone. Sua natureza agreste
e rural dá vazão a uma lógica de deus da vegetação que foi apropriado pela mitologia
grega através de contatos com outros povos.

Quando foi morto por Ares na forma de um Javali e ressuscitado por Afrodite e
Perséfone na forma de flor (Afrodite) e semente (Perséfone) para ser um “amante
compartilhado” pelas duas, acabou representando basicamente um ciclo agrário de
sementes e frutos. Colocamos aspas na expressão “amante compartilhado” porque o
amor de Perséfone pelo rapaz era um amor que identificaremos como primordialmente
maternal e não de cunho sexual. Com isso ele cumpre o que havia sido decidido por
ele mesmo na presença de Zeus: como semente passa um tempo com Perséfone,
como flor passa um tempo nos campos de Afrodite.

O amor, nos mitos de Afrodite, tem sempre esse caráter ondulatório, como veremos.
39

Afrodite e Hermes
Hermes - deus da lábia, dos ladrões e do comércio - é cutucado por seu irmão Apolo
quando Hefesto, irado com a traição de Afrodite, havia prendido ambos no teto de seu
quarto. Apolo pergunta a Hermes se ele trocaria de lugar com Ares, ali nu, preso com
Afrodite e Hermes diz que trocaria cinquenta vezes de lugar com o irmão para estar ali
preso e nu ao lado de Afrodite. A gargalhada é geral e então Posídon, condoído do
sofrimento do sobrinho, chama o deus das forjas para um canto e explica a ele que as
pessoas não estavam rindo de Afrodite ou Ares, mas do papel de corno do deus do
trabalho. E foi assim que Hefesto decidiu soltar ambos da rede e cada um seguiu seu
rumo, todos os três separados, cada um para um lado.

Quem sabe não foi aí, nesse momento, que Hermes despertou o desejo de Afrodite? A
leveza de Hermes em transmutar uma situação de tensão para uma situação de graça
que culminou na soltura dos dois cativos pode soar fascinante para Afrodite.

Dois Eros
Talvez em troca dessa nova visão sobre o masculino Afrodite tenha lhe concedido seus
favores e eles finalmente iniciam um caso. O fato foi que tiveram um enlace, as duas
divindades. Dessa união nasce Hermafrodito e, na versão de Apuleio, também o
segundo Eros, o amor alado. O primeiro Eros é a divindade primordial da união,
“aquele que une (as ideias, as coisas, os corpos)” e está na Teogonia de Hesíodo. Esse
mesmo Eros é um dos deuses que vai se juntar a Afrodite no momento do seu
nascimento na ilha de Chipre. Por isso é importante não confundirmos o Eros
Primordial - “aquele que une” - com o Eros filho de Afrodite.

Hermafrodito
Você sabe quando um pai se chama Ilmar e a mãe Eloah e eles acham super bonito
colocar o nome do filho Elomar? Pois então, do amor de Afrodite com Hermes nasce
Hermafrodito, um modelo de beleza e jovialidade. Em sua adolescência, Hermafrodito
resolveu percorrer o mundo.
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Passando pela fonte habitada pela ninfa Salmácis, esta se apaixonou perdidamente
pelo jovem deus. Após um primeiro intercurso onde o jovem se manteve interessado
Hermafrodito, cansando do que já conhecia, a rejeitou, apesar da grande beleza da
ninfa. Afinal, era um espírito jovem e poucas coisas são mais caras aos espíritos jovens
que a liberdade e a possibilidade de novidades.

Quando o jovem deus entrou na fonte para banhar-se, Sálmacis agarrou-se a ele,
implorando aos deuses para que nunca mais se separassem. E o pedido se cumpriu:
tornaram- se um só.

Completamente irado já que não podia contrariar os deuses, que haviam decidido que
ele, agora, seria uma única entidade com a ninfa Salmacis, Hermafrodito pediu – e
também foi atendido – que todos, sem exceção, banhados por aquela fonte perdessem
a virilidade.

Unindo-se a Sálmacis, Hermafrodito contém os dois pólos, masculino e feminino,


constituindo um ser único, andrógino. É bissexual e não necessita de um companheiro
ou companheira para se reproduzir. Deste mito vem o mito platônico sobre o andrógino
original descrito no Banquete de Platão e de onde adviria toda a raça humana.

Só não podemos esquecer que, originalmente, Hermafrodito é um ser divino, filho de


duas grandes divindades, que se une a um outro ser divino, Salmacis, que é uma ninfa,
um espírito das águas do lago. Dessa forma ele é, sem dúvida, uma divindade e não
um ser humano. A adaptação platônica posterior aproveitou-se apenas da imagem de
um ser circular composto pela união de dois corpos e projetou essa imagem para a
espécie humana primordial.
41

Amor Trapaceiro e Brincalhão


Muitos sedutores sabem que a distância mais curta entre dois lábios é um sorriso. É
essa a energia que une Afrodite e Hermes, uma espécie de Bonnie e Clyde9
mitológicos cujo tesão da relação está galgado na ideia de astúcia e trapaça. A união
de Afrodite com Hermes pode expressar que, de posse dos atributos da deusa
(encantamento, sedução, paixão e amor), acessamos com maior facilidade os atributos
do deus (astúcia, esperteza, trapaça). Surge, assim, o amor transgressor, evolutivo,
que transpõe obstáculos, que possibilita o reencontro muitas vezes doloroso com a
totalidade.

Quem - de qualquer gênero e sexualidade - estiver constelado em sua própria faceta


Afrodite e se interesse por uma companhia que constele Hermes estará imerso numa
atmosfera de liberdade, desafio e constantes estímulos intelectuais.

Esta forma de relação, quando constelada, possibilitará grandes transformações -


embora muito pouco atentas às limitações éticas já que nenhum dos dois deuses é, em
si, muito “moral” - e conferirá certo sabor picante às relações, de atrevimento e
diversão. Por isso usamos Bonnie e Clyde como exemplo acima. Clyde, como bom
discípulo de Hermes e trapaceiro, chegou a enviar uma carta de agradecimento a
Henry Ford, industrial criador dos carros Ford:

“Tulsa, Oklahoma,
10 de abril,
Sr. Henry Ford,
Detroit Michigan
Caro senhor,
enquanto ainda tenho ar em meus pulmões, escrevo para dizer que carro elegante o
senhor construiu. Tenho dirigido exclusivamente Fords, quando consigo roubar um.

9
Bonnie Elizabeth Parker e Clyde Chestnut Barrow foram um casal de criminosos norte-americanos que
viajaram a região central dos Estados Unidos com sua gangue durante a Grande Depressão, roubando e
matando pessoas quando encurralados ou confrontados. Embora conhecidos por mais de uma dúzia de
assaltos a bancos, a dupla roubava com mais frequência pequenas lojas ou postos de gasolina rurais.
Acredita-se que ambos tenham matado pelo menos nove policiais e vários civis. Foram mortos pela
polícia numa emboscada.
42

Para manter a velocidade e a liberdade longe de problemas, o Ford deixa os outros


carros para trás e, embora o meu trabalho não seja estritamente legal, não ofendo
ninguém ao dizer que magnífico veículo é o seu V8.
sinceramente seu,
Clyde Chestnut Barrow.”

Esse tipo de constelação da energia típica de Afrodite, terá poder de penetração e


promoverá um gosto pelas aventuras amorosas fugazes. Mas, quando constelado em
seu pólo negativo, essa condição pode tender a relacionamentos desastrosos e
inconseqüentes, além de resultar em escolhas dolorosas e instabilidade nas uniões.

Dioniso

Afrodite também amou Dioniso, deus da vegetação, da loucura e do êxtase. Por ter
nascido três vezes – falaremos sobre isso no nosso encontro de Dioniso - ele é
também o deus do renascimento, uma divindade transformadora.

Dessa união nasceu Príapo, deus viril, guardião das videiras e dos jardins, protetor das
colheitas, garantindo a preservação do vegetal e do animal. Tinha também a virtude de
evitar o mau agouro, prejudicial ao desenvolvimento do plantio. Príapo era, antes de
tudo, uma divindade agrária da potência e pujança verdejante da natureza. As
considerações lascivas e moralistas sobre a natureza desse deus são reflexo de um
puritanismo tardio. Originalmente Príapo era um deus agrário que poderia também
auxiliar em problemas sexuais masculinos, mas a leitura que se possa fazer disso
engloba necessariamente a compreensão mais ampla do caráter simbólico da
fertilidade como um todo, sem excluir e sem dar especificidade ou ênfase à questão
sexual humana. Sua ereção constante - que serviu de base para o nome da condição
médica do priapismo - era um exemplo a ser seguido pelas plantas e frutas, que
deveriam fazer força para erguerem-se acima do solo.
43

Outra versão10 do mito de Príapo o faz filho de Zeus e Afrodite. Nesse caso, Hera, com
medo de que nascesse um filho com a beleza arrebatadora da mãe, de um lado, e a
inteligência e liderança do pai, por outro, deu um chute na barriga de Afrodite, com o
intuito de provocar deformidades no menino.

Príapo nasceu com um membro sexual descomunal, embora – apenas nessa versão –
impotente. A mãe, deusa do amor, com medo de ser ridicularizada pelo defeito do filho,
abandonou-o em uma montanha, onde foi encontrado e criado por pastores. A
impotência de Príapo só aparece nessa versão, como castigo de Hera. Em todas as
demais a divindade sempre é representada como ininterruptamente em ereção.

Afrodite e Dioniso apresentam princípios semelhantes quanto ao prazer, êxtase e


entusiasmo. Esses atributos estão constelados nas relações eróticas mais fervorosas,
regadas a álcool e festas, nas relações alegres e leves, nas danças sensuais, no
prazer dos encontros desmedidos e inusitados. A música, os perfumes, os drinks
aromáticos, o incenso ou a atmosfera alterada por fumaças, a dança, o sexo criativo e
erótico, o gosto pela boa comida e boa bebida, sempre estarão presentes nessa
modalidade de relação. O carnaval constitui a dinâmica simbólica desse enredamento
mítico.

Príapo, Afrodite e Dioniso configuram a plenitude do corpo, da sexualidade, do prazer,


do erótico, do gozo, do sexo esportivo e despreocupado. A manifestação negativa
desse tipo de relação poderá apresentar-se nas condutas desmedidas, nas
compulsões de todo tipo, permanecendo num estado estagnado e imaturo, na busca
incessante pelo prazer eterno.

Anquises

10
Metamorfoses, de Ovídio, IX, 347 e seguintes.
44

Afrodite amou apaixonadamente o herói troiano Anquises, apresentando-se a ele como


a filha do rei Otreu, da Frígia. Uma outra versão diz que Zeus, sempre tentado pela
deusa, fez com que ela se apaixonasse pelo herói troiano como uma forma de punição
e humilhação. Bem da sombra patriarcal, essa versão hein? Seja como for, dessa união
nasceu Enéias, sempre por ela protegido durante as batalhas na guerra de Tróia.

Após a guerra de Tróia Eneias retirou seu idoso pai da cidade em ruínas salvando-o do
incêndio da cidade e do ataque dos aqueus (gregos), levando-o para a Itália. Segundo
Virgílio, Anquises morreu aos oitenta anos na Sicília, local em que posteriormente,
celebrar-se-iam os jogos fúnebres em honra do herói.

Eneias encontrou seu pai no pós-morte quando desceu aos ínferos - a região inferior, a
que fica abaixo, daí o nome “inferno” apropriado pela mítica cristã - o reino de Hades.
Que na época não era a imagem que temos do inferno cristão, obviamente. Mas isso
nós veremos nos nossos encontros Mito e Mente Hades e Perséfone. Anquises
mostrou a Eneias os futuros heróis de Roma e um futuro descendente seu, Rômulo,
que fundaria a cidade de Roma. Na Eneida, de Virgílio, Enéias é um herói piedoso, da
compaixão, protetor da família, dos ancestrais e dos descendentes.

O arquétipo do herói, presente em todo o processo de desenvolvimento da


personalidade, traduz-se, nesse momento, com a emergência heróica civilizadora,
acrescida de piedade, da compaixão, como Virgílio o caracteriza. Eneias configura o
herói do tempo novo - como Jesus que traz a “boa nova” de que bastaria praticar o bem
e estar em acordo com a própria consciência para que sejamos aceitos na “casa do
Pai”, ao contrário do credo anterior a Jesus que pregava que apenas o povo escolhido
poderia “ser salvo”, cabendo a todos os outros o direito de nascença a ficar sofrendo as
angústias da privação do paraíso, do lado de fora. Enéias é aquele que preserva a
estrutura familiar. Afrodite, através de seu heróico amante e de seu filho Eneias,
compõe-se com a nova civilização emergente, por meio do amor civilizador.

O herói Eneias, quando constelado na psique - de um ser de qualquer gênero e


sexualidade - adicionará características acolhedoras a um amor humanitário. Essa
constelação psíquica trará uma postura guerreira, que lutará pelo seu patrimônio, pela
sua terra, pela sua família e pelo seu povo. Fundará associações, tentará eleições para
45

cargos públicos ou fará parte de algum sindicato. Nesse caso temos aí uma Evita
Perón tanto quanto um Guilherme Boulos.

A sombra dessa união é a postura que lute apenas por vaidade, por sua projeção ou
por envaidecimento do seu ego e reconhecimento público. Lembrando que luz e
sombra, em uma psique real de um ser humano real, coexistem em diferentes graus e
contextos.

Mais sobre Anquises

É o pai de Eneias e o filho de Cáis e Temiste. Foi amado por Afrodite que o viu quando
ele guardava os rebanhos no cimo do Ida, perto de Tróia. Para ser bem sucedida,
Afrodite aproximou-se dele, fazendo-o pensar que ela era a filha do rei da Frígia, Otreu,
que havia sido raptada por Hermes e transportada para a zona de pastagens do Ida.
Mais tarde revelou a Anquises que estava grávida e, nisso, revelou também sua
identidade.

Recomendou-lhe porém que jamais revelasse a ninguém que tinha o filho de uma
deusa, pois se Zeus o viesse a saber, fulminaria a criança. Mas num dia de festa,
Anquises, que bebera vinho em excesso, gabou-se dos seus amores. Foi, então,
castigado por Zeus que, enviando um raio o deixou coxo (ou cego, versões variam).

Quando Tróia foi tomada, Eneias salvou o pai do incêndio e do massacre, levando-o
consigo em sua viagem errante.

Eos

Eos é a deusa Aurora, a de “dedos rosados” e a de “manto de açafrão”, segundo


Homero. Filha dos Titãs Hipérion e Téia, e foi uma das vítimas da vingança de Afrodite.
46

“No final de cada noite, Eos, de dedos cor-de-rosa e vestida de tons de açafrão,
ergue-se de seu leito Leste, monta em seu carro puxado pelos cavalos Lampos e
Faetonte, e dirige-se para o Olimpo, onde anuncia a aproximação do irmão Helios.
Quando Hélios surge, ela monta em Hêmera e acompanha-o nas suas viagens, depois,
tornada em Héspera, anuncia que ambos fizeram boa viagem até às margens
ocidentais do oceano.” (Graves, 1990)

A deusa do amor certa vez encontrou, na névoa da manhã, a deusa Eos deitada ao
lado do musculoso corpo de Ares. Ultrajada pelo que considerou uma traição, e
possuída pelo ciúme, vingou-se da filha dos Titãs, fazendo-a apaixonar-se
seguidamente por vários jovens mortais, a começar pelo gigante Órion, depois Céfalo,
depois Clito, neto de Melampo, e por fim raptou Ganimedes e Títon.

Quando com Títon, Eos pediu a Zeus que o imortalizasse, mas esqueceu de pedir,
também, a juventude eterna. Ele tornou-se imortal, mas envelhecia naturalmente, como
qualquer mortal. Cansada de se ocupar com a velhice e com os comportamentos
dependentes de Títon, Eos fechou-o num quarto, onde este se transformou em uma
cigarra, aquela que canta a aurora e dela se despede com seu canto triste e estridente.

Eos é certamente uma das faces de Afrodite, é a Vênus, a bela estrela da manhã e do
início da noite. Anuncia a boa nova, um novo dia, cheio de esperanças e promessas,
num eterno retorno.

Éos é ainda uma deusa primordial, possuindo todas as características celestiais do


amor sublime que enaltece, acolhe e renova, da mesma forma como prenuncia
também a passagem, a inevitabilidade da mudança e a necessidade de darmos adeus
ao dia anterior e às certezas que se vão diante das novas que se avolumam no novo
sol.

O navegar intenso entre paixões avassaladoras é a vingança de Afrodite contra Eos, o


desejo de unidade nunca satisfeito que se aprofunda para ser trocado imediatamente
por outro desejo, a insatisfação eterna e o peregrinar amoroso sob o jugo da
47

escravidão amorosa é uma tortura. Amar, estabelecer vínculos e logo em seguida


perder completamente o interesse - que antes era toda a vida emocional do sujeito -
nesses mesmos vínculos ao vê-los fluir para outros sujeitos num carrossel demoníaco
de apegos e desapegos, é uma das maiores e mais avassaladoras punições da
mitologia. Esse tipo de relação é, inclusive, um dos mais enaltecidos pela lógica do
consumo hoje em dia, na nossa sociedade submersa na Farsa de Hermes. Falaremos
sobre essa farsa no nosso encontro de Hermes, mas por hora fica aqui o mecanismo
afetivo envolvido nela e a sua finalidade básica: tortura emocional, demonstração de
força e tomada de controle.

Batalhas com Ártemis

Muitas das relações complicadas de Afrodite são demonstradas por suas batalhas
indiretas com Ártemis. Elas envolvem e são melhor explicadas pelos mitos em que as
duas divindades disputam o domínio sobre heróis como Hipólito, Helena, Atalanta e
muitos outros.

Hipólito

Filho de Teseu, o rei e grande herói ateniense, e Hipólita, a rainha das amazonas.
Hipólito era um jovem que seguia a influência dos ancestrais maternos. Venerava
Ártemis, a deusa caçadora - que regia a comunidade das amazonas junto com Ares, o
deus da guerra - acima de todas as demais divindades. Dessa maneira, embora já
estivesse na puberdade, ignorava os votos a Afrodite, desprezando a deusa e os
encantos da sexualidade. Preferia ficar submerso no campo simbólico e social de
Ártemis, na caça e na corrida, nos esportes e no convívio próximo apenas com outros
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rapazes. Enquanto todos os demais se interessavam pela própria sexualidade, Hipólito


se interessava apenas por caçadas e competições.

Afrodite se sentia constantemente ultrajada pela postura do príncipe Ateniense,


principalmente porque via nele todo um potencial sensual e sexual desperdiçado. Ela
então vingou-se cruelmente deste desprezo suscitando no coração de Fedra, a
segunda esposa de Teseu, uma paixão avassaladora pelo enteado. Fedra sentiu-se
completamente alucinada de desejo pelo enteado - que, aliás, tinha uma idade muito
mais próxima da sua do que seu marido - e, então, entrou sorrateiramente no quarto do
rapaz e declarou-se apaixonadamente para Hipólito. Ele recusou imediatamente seu
assédio e disse que ela tinha muita sorte porque apenas por amor ao pai ele não
contaria sobre aquela declaração. Julgava que seria doloroso demais para o velho
Teseu. Ainda assim Fedra seguiu com medo de que o rapaz contasse toda a situação
ao rei, então ela decidiu tomar a frente da situação. Fedra rasgou suas roupas,
arrombou a porta do quarto e fingiu que Hipólito havia tentado violentá-la. Foi essa a
versão que ela contou ao marido. Sentia-se rejeitada em seu desejo, como Afrodite e
desejava que ele se vingasse do filho o expulsando para longe da cidade.

Teseu, acometido de violenta cólera, e, não querendo ser ele mesmo o arauto da morte
do filho, pediu a seu pai Posidon, o deus dos mares, que cuidasse disso. Pósidon havia
prometido, ainda na juventude de Teseu, lhe conceder três desejos. O último deles não
havia sido satisfeito. Então o deus dos mares enviou um monstro marinho que, no meio
de uma competição esportiva, apareceu subitamente diante do carro de Hipólito e
puxou os cavalos afogando-o no mar.

Fedra, arrependida, suicidou-se.

Atalanta e Hipômenes

Hipômenes, cujo nome significa “forte como um cavalo”, ou “pernas de cavalo” quis
desposar a selvagem Atalanta, guerreira e corredora discípula de Ártemis que vencia,
caçava e matava a todos os homens que com ela queriam casar. Ela, desinteressada
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dos favores de Afrodite, queria continuar servindo a Ártemis exclusivamente,


deddicando sua vida às corridas e caçadas. Então, absurdamente bela e
constantemente cortejada, desafiava os que pretendiam desposá-la para uma corrida
e, depois de vencê-los, matava a todos.

Hipômenes era um grande corredor e presenciou uma das corridas de Atalanta. Depois
do quê percebeu que não era capaz de vencê-la. Mas estava ardendo de desejo por
Atalanta. Não conseguia pensar em nada além de tê-la como esposa e, então, se
ofereceu como o próximo pretendente para a corrida, no dia seguinte. Durante a noite
pediu o auxílio de Afrodite nessa corrida para derreter o coração selvagem da jovem e
poderosa Atalanta. A deusa do amor apareceu a ele quando estava ainda oscilando
entre o sono e a vigília e ela então emprestou-lhe três pomos dourados do Jardim das
Hespérides para que ele carregasse consigo e arremessasse ao chão, por cima do
ombro, a cada vez que Atalanta estivesse prestes a alcançá-lo.

Durante a corrida a princesa deixou que ele corresse na frente, como fazia com todos
os competidores. Tomada por Ártemis, ela era extremamente competitiva e gostava da
sensação de ultrapassar o homem que a desafiasse. Correram. Ele à frente por um
tempo até que ela saísse em seu encalço. Por três vezes consecutivas durante a
corrida ela se aproximou e ele arremessou a maçã dourada emprestada por Afrodite.

Usando este estratagema ele consegue vencer e casa-se com Atalanta, que também
se apaixona por ele. Anos mais tarde, numa caçada, o casal é surpreendido por uma
forte chuva e se esconde num templo de Ártemis. Ali, úmidos e sorridentes, se
entregam ao amor. A própria Ártemis os transforma em leões. Nesse ponto cabe a nós
observarmos os movimentos da nossa própria psique enquanto ela nos diz que isso foi
uma punição ou uma recompensa. O mito não explora essa motivação, mas o nosso
julgamento primário vai nos indicar o posicionamento da nossa própria energia
psíquica.
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Pigmaleão e Galatéia

Pigmaleão era o Rei de Chipre, a ilha onde Afrodite teria aportado pela primeira vez
depois de seu nascimento no mar. Este rei era um grande escultor, dotado de um
talento ímpar e, depois de retirar todos os excessos de um bloco de mármore, por dias
e dias depositando ali seu esforço, carinho e cuidado, lixando cada curva e assoprando
cada reentrância daquele colosso feminino, ele se percebeu completamente
apaixonado pela estátua que ele próprio havia esculpido.

Abrasado de paixão, pediu a Afrodite, deusa principal da ilha, que lhe enviasse uma
mulher semelhante àquela estátua, já que não conseguia ver seu desejo satisfeito por
qualquer outra mulher que não fosse a imagem e semelhança daquela a quem ele
havia dedicado tantas horas de profunda devoção e esmero. As súplicas enviadas à
deusa numa das festas em sua honra foram ouvidas e, ao chegar em casa, Pigmaleão
percebeu que a figura de mármore ganhara vida. Com ela então casou-se e teve uma
filha chamada Pafo.
A relação de Pigmalião e Galatéia pode nos oferecer um resgate impressionante da
relação entre o próprio Hefesto e Afrodite, já que envolvem a convergência do trabalho
e do desejo numa única relação frutífera.

Psiquê

Psiquê era a mais nova de três filhas de um rei de Mileto e era extremamente bela. Sua
beleza era tanta que as pessoas de várias regiões iam admirá-la, assombrados,
rendendo-lhe homenagens que só eram devidas à própria Afrodite.

Profundamente ofendida e enciumada, Afrodite enviou seu filho Eros para fazê-la
apaixonar-se pelo homem mais feio e vil de toda a terra. Porém, ao ver sua beleza,
Eros atrapalhou-se ferindo-se com sua própria flecha e apaixonou-se perdidamente.
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O pai de Psiquê, suspeitando que, inadvertidamente, havia ofendido aos deuses,


resolveu consultar o oráculo de Apolo, pois suas outras filhas encontraram maridos e,
no entanto, justamente Psiquê permanecia sozinha. Através desse oráculo Apolo
ordenou que enviasse sua filha ao topo de uma solitária montanha, onde seria
desposada por uma terrível serpente.

A jovem aterrorizada foi levada ao pé do monte e abandonada por seus pesarosos


parentes e amigos. Conformada com seu destino, Psique foi tomada por um profundo
sono gerado por Eros, sendo, então, conduzida pela brisa gentil de Zéfiro a um lindo
vale.

Quando acordou, caminhou por entre as flores, até chegar a um castelo magnífico.
Notou que lá deveria ser a morada de um deus, tal a perfeição que podia ver em cada
um dos seus detalhes. Tomando coragem, entrou no deslumbrante palácio, onde todos
os seus desejos foram satisfeitos por ajudantes invisíveis, dos quais só podia ouvir a
voz.

Chegando a escuridão, foi conduzida pelos criados a um quarto de dormir. Certa de


que ali encontraria finalmente o seu terrível esposo, começou a tremer quando sentiu
que alguém entrara no quarto. No entanto, uma voz absurdamente maravilhosa e
divina a acalmou. Logo em seguida, sentiu mãos humanas acariciarem seu corpo. A
esse amante misterioso, ela, feliz, se entregou.

Quando acordou, já havia chegado o dia e seu amante havia desaparecido. Essa
mesma cena se repetiu todas as noites e todas as manhãs. Enquanto isso, suas irmãs,
preocupadas com o seu sumiço, continuavam à sua procura, mas seu esposo
misterioso a alertou para não responder aos seus chamados. Psique sentindo-se
solitária em seu castelo-prisão, implorava ao seu amante para deixá-la ver suas irmãs.
Finalmente ele aceitou, mas impôs uma condição: não importando o que suas irmãs
dissessem, ela nunca tentaria conhecer sua verdadeira identidade.
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Quando suas irmãs entraram no castelo e viram aquela abundância de belezas e


maravilhas envolvidas por uma paz e silêncio paradisíacos, foram tomadas de inveja.
Notando que o esposo de Psique nunca aparecia, perguntaram maliciosa e
curiosamente sobre sua identidade. Embora advertida por seu esposo, Psique viu a
dúvida e a curiosidade tomarem conta de seu ser, aguçadas pelos comentários de suas
curiosas e invejosas irmãs.

Seu esposo alertou-a que suas irmãs estavam tentando fazer com que ela olhasse seu
rosto, mas se assim ela fizesse, ela nunca mais o veria novamente. Além disso, ele
contou-lhe que ela estava grávida e se ela conseguisse manter o segredo ele seria
divino, porém se ela falhasse, ele seria mortal.

Hýbris

Ao receber novamente suas irmãs, Psique contou-lhes que estava grávida, e que sua
criança seria de origem divina. Suas irmãs ficaram ainda mais enciumadas com sua
situação, pois além de todas aquelas riquezas, ela era a esposa de um deus.

Assim, trataram de convencer a jovem a olhar a identidade do esposo, pois se ele


estava escondendo seu rosto era porque havia algo de errado com ele. Ele realmente
deveria ser uma horrível serpente e não um deus maravilhoso.

Faca e Lâmpada, o corte da consciência

Assustada com o que suas irmãs disseram, escondeu uma faca e uma lâmpada
próximas à sua cama, decidida a conhecer a identidade de seu marido, e se ele fosse
realmente um monstro terrível, matá-lo. Ela havia esquecido dos avisos de seu amante,
de não dar ouvidos às suas irmãs.
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À noite, quando Eros descansava ao seu lado, Psique tomou coragem e aproximou a
lâmpada do rosto de seu marido, com as mãos trêmulas e a garganta seca, um arrepio
crescente a cada centímetro do avanço da luz, esperando ver uma horrenda criatura.

Para sua surpresa, o que viu porém deixou-a maravilhada! Um jovem de extrema
beleza estava repousando com tamanha quietude e doçura que ela pensou em tirar a
própria vida por haver duvidado. Enfeitiçada por sua beleza, demorou-se admirando o
deus alado. Não percebeu que havia inclinado de tal maneira a lâmpada que uma gota
de óleo quente caiu sobre o ombro direito de Eros, acordando-o.

Eros olhou-a assustado, e voou pela janela do quarto, dizendo:


- "Tola Psique! É assim que retribuis meu amor? Depois de haver desobedecido às
ordens de minha mãe e te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas
disposta a cortar minha cabeça? Vai. Volta para junto de tuas irmãs, cujos conselhos
pareces preferir aos meus. Não lhe imponho outro castigo, além de deixar-te para
sempre. O amor não pode conviver com a suspeita."

Quando se recompôs, notou que o lindo castelo a sua volta desaparecera, e que se
encontrava bem próxima da casa de seus pais. Psique ficou inconsolável. Tentou
suicidar-se atirando-se em um rio próximo, mas suas águas a trouxeram gentilmente
para sua margem. Foi então alertada por Pã para esquecer o que se passou e procurar
novamente ganhar o amor de Eros.

Por sua vez, quando suas irmãs souberam do acontecido, fingiram pesar, mas partiram
então para o topo da montanha, pensando em conquistar o amor de Eros. Lá
chegando, chamaram o vento Zéfiro, para que as sustentasse no ar e as levasse até
Eros. Mas, Zéfiro desta vez não as ergueu no céu, e elas caíram no despenhadeiro,
morrendo.

Psique, resolvida a reconquistar a confiança de Eros, saiu à sua procura por todos os
lugares da terra, dia e noite, até que chegou a um templo no alto de uma montanha.
Com esperança de lá encontrar o amado, entrou no templo e viu uma grande bagunça
de grãos de trigo e cevada, ancinhos e foices espalhados por todo o recinto.
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Convencida de que não devia negligenciar o culto a nenhuma divindade, pôs-se a


arrumar aquela desordem, colocando cada coisa em seu lugar. Deméter, para quem
aquele templo era destinado, ficou profundamente grata e disse-lhe:

- "Ó Psique, embora não possa livrá-la da ira de Afrodite, posso ensiná-la a fazê-lo com
suas próprias forças: vá ao seu templo e renda a ela as homenagens que ela, como
deusa, merece".

Afrodite, ao recebê-la em seu templo, não esconde sua raiva. Afinal, por aquela reles
mortal seu filho havia desobedecido suas ordens e agora ele se encontrava em um
leito, recuperando-se da ferida por ela causada. Como condição para o seu perdão, a
deusa impôs uma série de tarefas que deveria realizar, tarefas tão difíceis que
poderiam causar sua morte.

Provas

Como primeira tarefa ela deveria, antes do anoitecer, separar uma grande quantidade
de grãos misturados de trigo, aveia, cevada, feijões e lentilhas. Psique ficou assustada
diante de tanto trabalho, porém uma formiga que estava próxima ficou comovida com a
tristeza da jovem e convocou seu exército a isolar cada uma das qualidades de grão.

Como segunda tarefa, Afrodite ordenou que fosse até as margens de um rio onde
ovelhas de lã dourada pastavam e trouxesse um pouco da lã de cada carneiro. Psique
estava disposta a cruzar o rio quando ouviu um junco dizer que não atravessasse as
águas do rio até que os carneiros se pusessem a descansar sob o sol quente, quando
ela poderia aproveitar e cortar sua lã. De outro modo, seria atacada e morta pelos
carneiros. Assim feito, Psique esperou até o sol ficar bem alto no horizonte, atravessou
o rio e levou a Afrodite uma grande quantidade de lã dourada.
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Sua terceira tarefa seria subir ao topo de uma alta montanha e trazer para Afrodite uma
jarra cheia com um pouco da água escura que jorrava de seu cume. Dentre os perigos
que Psique enfrentou, estava um dragão que guardava a fonte. Ela foi ajudada nessa
tarefa por uma grande águia, que voou baixo próximo a fonte e encheu a jarra com a
negra água.

Irada com o sucesso da jovem, Afrodite planejou uma última, porém fatal, tarefa.
Psique deveria descer ao mundo inferior e pedir a Perséfone, que lhe desse um pouco
de sua própria beleza, que deveria guardar em uma caixa. Desesperada, subiu ao topo
de uma elevada torre e quis atirar-se, para assim poder alcançar o mundo subterrâneo.

A torre, porém, murmurou instruções de como entrar em uma particular caverna para
alcançar o reino de Hades. Ensinou-lhe ainda como driblar os diversos perigos da
jornada, como passar pelo cão Cérbero e deu-lhe uma moeda para pagar a Caronte
pela travessia do rio Estige, advertindo-a:

- "Quando Perséfone lhe der a caixa com sua beleza, toma o cuidado, maior que todas
as outras coisas, de não olhar dentro da caixa, pois a beleza dos deuses não cabe a
olhos mortais”.

Seguindo essas palavras, conseguiu chegar até Perséfone, que estava sentada
imponente em seu trono e recebeu dela a caixa com o precioso tesouro. Tomada
porém pela curiosidade em seu retorno e querendo encontrar com Eros revivificada e
ainda mais bela do que já era, abriu a caixa para espiar.

Ao invés de beleza havia apenas um sono terrível, Hypnos, que dela se apossou. Eros,
curado de sua ferida, voou ao socorro de Psique e conseguiu colocar o sono
novamente na caixa, salvando-a. Parece-nos talvez um pouco infantil que Eros tivesse
de livrá-la de Hypnos, o sono, mas precisamos lembrar que, na mítica grega, Hypnos, o
Sono, Oneiros, o Sonho, e Tanatos, a Morte, são irmãos, filhos de Nyx, a noite. Dessa
forma, passar de um a outro, do sono ao sonho e do sonho à morte, é um perigo real
dentro da narrativa. Eros lembrou-lhe novamente que sua curiosidade havia outra vez
sido sua grande falta, mas que agora podia apresentar-se à Afrodite e cumprir a tarefa.
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Enquanto isso, Eros foi ao encontro de Zeus e implorou a ele que apaziguasse a ira de
Afrodite e ratificasse o seu casamento com Psique. Atendendo seu pedido, o grande
deus do Olimpo ordenou que Hermes conduzisse a jovem à assembléia dos deuses e a
ela foi oferecida uma taça de ambrosia. Então com toda a cerimônia, Eros casou-se
com Psique, e no devido tempo nasceu seu filho, chamado Voluptas (Prazer).

Helena

A bela Helena, a mais bela de todas as mulheres gregas, foi também vítima de uma
vingança de Afrodite. Teremos mais tempo para desenvolver essa relação no nosso
encontro Mito e Mente Helena, mas por aqui deixamos a questão de que mulheres
mortais que sejam adoradas como Afrodite, são severamente castigadas e esse
castigo sempre envolve um rito de passagem doloroso. No caso da rainha espartana
que é raptada pelo príncipe troiano, toda a dificuldade de ser expatriada e repatriada,
sempre como traidora. Mas veremos, adiante, a função simbólica da traição.

Questões interessantes para pensarmos

● Psiquê é semelhante a Helena, e manifesta um padrão que revela a insegurança


de Afrodite.
● Apolo vê Eros como um monstro que traz o caos. É dessa forma que Apolo se
refere a Eros para o pai de Psiquê.
● O amor de Eros e Psique revela uma desigualdade de potencial que deve ser
corrigida pelas provas que a própria Afrodite coloca.
● A faca e a luminária, a espada luminosa como a consciência analítica, que é,
muitas vezes, letal para o amor.
● Afrodite procura usar Eros, o amor, para gerar seu oposto, Éris, e não consegue.
● Simbolismo sexual e não sexual da “serpente-eros”
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● Dificuldade de confiar em quem esconde segredos. Como essa questão passa


de Eros para Psique. Ele se esconde dela, ela esconde suas intenções dele.
Desafio para falhar.
● Pan, como deus que preside - semelhante a Príapo - a sexualidade, fornece a
orientação necessária a Psiquê.
● Arrumar o templo de Deméter: organizar-se intimamente para a maternidade
através da diferenciação.
● Lidar com os carneiros, lidar com Ares-Áries e a energia do masculino.
● A maturação do personagem Eros ao longo da trama. Assim como Afrodite ele é
um deus relacional, que cresce em contato com outras pessoas e situações.
● Sobre as Provas: O trabalho inconsciente como trabalho criativo em stand by; a
necessidade de reorganização e diferenciação internas; a necessidade de lidar
com o princípio masculino impulsivo através da espera ativa; lidar com o fluxo da
vida que inevitavelmente leva à morte e, finalmente, lidar com os instintos.

Descrição de Eros, por Apuleio

“...esse moleque alado e incrivelmente audacioso, de maus hábitos e que com


completo e evidente desprezo pela disciplina, anda armado com chamas e dardos
pelas casas alheias durante a noite, no intuito de desmanchar casamentos e que,
impune, comete as mais vergonhosas ações, além de não fazer nada de bom.”

Descrição de Eros, por Hesíodo

“...antes de tudo existiu o Abismo[Kháos]; depois a Terra [Gaia] de flancos amplos,


assentada firmemente, oferenda perene a todos os vivos, e o Amor [Eros], o mais belo
dentre os deuses imortais, aquele que derreia os membros e que, no peito de todo
deus como de todo homem, doma o coração e a vontade prudente.”
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Descrição de Eros, por Orfeu

“Noite [Nyx] gera então o Ovo Cósmico que se parte, sendo Úrano uma metade da
casca e Gaia a segunda metade, o conteúdo, nascido desse chocar, é Amor [Eros],
aquele que une”

Questões importantes

● Afrodite é filha das espumas, dos movimentos das marés, da água marinha,
fonte de toda a vida. Quais outras deusas têm uma descrição ou campo
simbólico paralelo ou semelhante?

● Se Afrodite fosse a deusa da beleza não haveria a questão do Pomo da


Discórdia (eleição da mais bela) entre ela, Atená e Hera e talvez nem mesmo a
guerra de Tróia!

● Podemos pensar a última filha de Afrodite com Ares, Harmonia, como uma
espécie de “função transcendente”, aquilo que eleva a “batalha” ou o “sistema” a
um novo patamar.
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Afrodite por Afrodite, um ensaio de escrita criativa

Vocês hoje estão submersos em Hermes, percebem? Querem consumir e consumir e


consumir de maneira frenética e impulsiva ao invés de produzir, ou de reproduzir, e
nem sequer percebem como traem suas naturezas! Quando consomem gozam e o
gozo é o fim do tesão. O gozo acelerado do consumo é o fim da tensão entre você e o
seu desejo e é aí que está o fim da vida. A vida de gozo em gozo vira letargia e
banalização da tensão que é o verdadeiro tesão da vida.

Acho a maior insanidade essa ideia de controlar seus desejos, vocês têm uma
verdadeira tara por controlar todas as taras. Na pretensão de controle dos seus
instintos vocês se separam de si e acuam "o animal" - que vocês identificam como
animal, como se vocês fossem algo muito diferente disso que julgam inferior. E é claro
que ele, “o animal” se desespera e te despedaça por dentro!

Pense em convergência e divergência. Eu sou mais parecida com Zeus que com Hera.
Vocês que tentam pasteurizar todas as deusas como se fossem a mesma coisa ou
falassem apenas por um gênero, lidem com isso: Eu não vou te conter nem te limitar,
60

Hera vai. Aí você me olha prenhe de fascínio e esquece quem eu sou. Não, eu não vou
te limitar. Eu vou te trair, vou errar, violar e transgredir todos os teus acordos e
certezas. Esse é o meu papel. E dessa traição você erguerá certezas e você vai se
apaixonar por cada mentira que elas te contarem. Certezas são mentiras em fase de
crescimento.

Vocês se apegam às certezas como quem está no tal do inferno, estirando as mãos
para o tal paraíso. Nós éramos mais justos com vocês. Nossos Campos Elíseos
estavam dentro do Hades. Hoje vocês afastam as coisas e se esgarçam até
arrombarem suas almas. O paraíso de vocês é a expectativa de parada, de
estabilidade e freio. E vocês sabem que foi em cada pouso e repouso que encontraram
o inferno.

Eu sou desejo. Aquilo que é adorado existe para ser devorado. Eu sou o adubo para a
terra dos meus instintos. Te parece estranho? Alguma vez você já saciou
completamente a sua fome? E... ela voltou depois? Exigente, imediata, brusca,
desesperada, te corroendo por dentro, tornando qualquer outra coisa invisível, sem
sabor e sem vida diante da necessidade imediata da satisfação das vontades dela?
Talvez eu seja a fome.

Eu não sou saciedade, eu sou inquieta. Eu demando como a vida demanda. Vocês
acham que são constantes, não são. Sua mudança é constante e ela sempre tende à
morte então eu sou a única forma, o caminho, a verdade e a vida para a sua parcela
possível e sempre limitada de imortalidade. O grande desafio é a tensão que forma a
vida. Átrio e ventrículo, direita e esquerda, contração e relaxamento, tesão e frouxidão.
O desafio é romper e obedecer em igual medida, trair e respeitar. Esse é o único meio
de manter o fluxo da vida. Por isso Hera me odeia, eu sou o antipoder dela, seu
reverso, sua parceira de dança. Por isso Hera me pede favores, como quando pediu
meu cinto para seduzir Zeus. A grande deusa é continente e vaso, ela dá forma e
bordeja definindo limites, a honra, a lei, a ordem. Eu sou tudo o que há para além da
borda, aquilo que transborda e inunda. E ela se expande para me conter, e eu
transbordo para ser.
61

Você que me lê já fez merda? Já errou e se viu diante da autoridade com seus olhos
acusatórios ali parada na sua frente em silêncio e ao mesmo tempo gritando dentro da
sua cabeça com aquela voz que você chama de consciência? Pois então, sou em em
presença de Hera. A gente não se dá, a gente se precisa. A transgressão e a traição
são tão necessárias à evolução quanto o acolhimento, o bordejamento e o limite. O
problema é que temos de ser fiéis às nossas naturezas. Eu e ela. E nisso está a raiz
do respeito que às vezes temos uma pela outra, nesse senso estranho e tão familiar de
integridade e coerência que emanamos. As coisas reais existem nesse intervalo,
nessas entrecoxas da tensão que ondula entre nós.

Se vocês pensarem um pouquinho só, prometo que vai ser dolorosamente libertador,
eu entro traindo para inaugurar. Se não se espera que ocorra a subversão, a sedução e
a entrega a outra nova verdade, é porque ainda se está muito apegado à verdade
anterior e, queridos, para vocês todas as verdades passam. Como as ilusões de poder
e controle que vocês depositam nelas também.

Qualquer um que te imponha algo contra a sua natureza estará te violando, te


violentando. Quando Hera me coloca como objeto e me dá, como um bibelô bonitinho,
para seu filho brincar, quando ela me joga nos braços de Hefesto como se eu fosse um
prêmio de consolação por ele ser feio e manco, por ele ter sido arremessado Olimpo
abaixo por não corresponder aos desejos idealizados do casal, ela me violenta. Porque
eu ofereço perigo a ela. Ela tenta me castrar, me submeter. Na fantasia de controle
dela eu estou sendo esmagada diante do poder do calcanhar dela na minha traquéia
com aquele casamento. Mas eu nasci das águas, eu não revido - ou não revido assim,
não na hora que se espera que eu revide - eu sou água e esperma, eu fluo, eu
fecundo.

Cada casal tem sua intimidade e se você quiser destruir os acordos íntimos basta
enfiar a sua mãe no meio. Isso aí deuses e mortais têm em comum. Eu dançava com
Hefesto. Sim, isso mesmo, eu e o deus manco dançávamos! É claro que ele sabia que
não era meu preferido, é claro que nós sabíamos que uma das poucas chances que
tínhamos de estar juntos era por essa intervenção, por esse mandamento divino da
mamãe. Ela lá, desesperada para compensar seus erros e ausências tanto quanto para
se mostrar acima de mim, se mostrar poderosa! É claro que Hefesto sabia que eu traía
ele! Ele foi meu marido! Bastava olhar uma vez para mim para saber que eu posso ser
62

tudo, menos traidora da minha própria natureza e ele, ele foi fofo e cúmplice enquanto
pôde! Sim! Cúmplice! Ele saía pela manhã ser fiel a si mesmo, dar amor e tempo e
energia e devoção ao que ele era, trabalho! Nisso ele me dava tempo, espaço e
tranquilidade para ser fiel ao que eu sou: desejo! Se você pensa que isso é um
casamento de aparências talvez esteja vendo pelo viés errado. Eu não tenho nada a
explicar a ninguém e eu esperava mais dele, porque por um tempo acreditei que ele
também não tinha. Então fomos felizes sim! À nossa maneira, claro.

Mas então entra Hélios. O fofoqueiro celestial chama Hefesto num canto e encurrala o
coitadinho! Sim, Hélios! Quem contou a Deméter onde estava Perséfone, estragando a
vida da menina lá no escuro quentinho com Hades? Quem saiu correndo para o Olimpo
para contar a Zeus que os marinheiros de Ulisses não resistiram à provocação da fome
e comeram os seus carneiros? Hélios! Maldito óbvio! Quase nada me irrita mais do que
o óbvio!

Hélios correu a contar a Hefesto que eu e Ares brincávamos na ausência dele! Pelo
amor de Zeus e Hera é óbvio que ele sabia! Mas agora não tardaria muito até que o
resto do Olimpo soubesse! Se Hélios viu, todos saberiam! Aí a coisa se tornou uma
corrida para o tortinho! Já imagino ele manco e torto quicando para a oficina a toda
velocidade para fazer a tal rede e mostrar a todos que ele já sabia! É claro que ele já
sabia, o Olimpo já sabia! Mas não era bonito, não era de bom tom que ficasse evidente!
E lá foi a mãe fazer o filho sofrer de novo! Até esse dia eu poderia sempre estar ali para
acolher quando necessário - porque isso é mais amor e casamento que a merda da
fidelidade sexual, e todos sabemos disso! A partir daquele dia não. Fomos cada um
para um lado, eu, ele e o irmão. A coisa toda desandando porque os homenzinhos não
podem ter suas taras e seus acordos expostos, porque têm de brincar a vida inteira de
manter as aparências.

O traído sempre entra em luto. Isso é óbvio. Todos vocês já pensaram que Hefesto
sofria e se metia em sua oficina, claro. Mas perceberam que Ares não se vingou do
irmão que o prendeu, apontou e acusou? Perceberam que eu não me vinguei de Hélios
e de Hera ou da exposição que Hefesto me fez passar? Eu fui a Chipre, sem Hefesto,
sem Ares. Ares foi lá para as cidades dele guerrear e ser adorado. Cada um se retraiu
à sua forma de luto. Cada um tem seu jeito de desapegar.
63

Mas o amor é tão irritante que, com tempo, ele faz aquilo que é menos provável.
Aprende e o que aprende ensina, perdoando. O poder é reacionário, não quer
mudança, não quer novidade, reage com violência e arromba a criatividade e a vida. O
amor é revolucionário, em último caso até aceita, acolhe, perdoa. Não vê Psiquê? Pois
é. Quer acabar com a vida íntima de qualquer casal? Envolva a sogra.

Bibliografia:

1. Serra, Ordep (tradutor). Hinos Órficos: perfumes, ed. Odysseus


2. Lamas, Maria. Mitologia Geral, editorial estampa
3. Stephanides, Menelaos. Os deuses do Olimpo, editora Odysseus
4. Chevalier, Jean & Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos, editora José
Olympio
5. Grimal, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana, editora Bertrand
Brasil.
6. Vernant, Jean-Pierre &Pierre Vidal-Naquet. Mito e Tragédia na Grécia
Antiga, Editora Perspectiva.
7. Vernant, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os gregos. Editora Paz e
Terra
8. Roy Willis (organizador). Mitologias: Deuses, Heróis e xamãs nas
tradições e lendas de todo o mundo Editora Publifolha
64

9. Franz, Marie-Louise Von. O Feminino nos contos de fadas. Editora Vozes


10. Stephanides, Menelaos. Jasão e os Argonautas. Editora Odysseus
11. Eliade, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino: comportamentos religiosos e
valores espirituais não-europeus. Editora Martins Fontes
12. Bastide, Roger. O Sagrado Selvagem e outros ensaios. Companhia das
Letras
13. Brandão, Junito de Sousa. Mitologia Grega Volumes 1, 2 e 3. Editora Vozes
14. Cotterell, Arthur. Encyclopedia of World Mythology. Parragon Publishing
Books
15. Bolen, J. S. (1990). As deusas e a mulher. São Paulo, Paulus.
16. Bolen, J. S. (2003). Las Diosas de La Mujer Madura. Buenos Aires: Kairós.
17. Jung11, Carl Gustav. (1981) Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
Ed.Vozes
18. ________________. (1981) O desenvolvimento da personalidade. Ed.
Vozes.
19. ________________. (1981) O Eu e o inconsciente. Ed. Vozes.
20. ________________. (1981) Psicologia do inconsciente. Ed. Vozes.
21. ________________. (1981) Psicologia e Alquimia. Ed. Vozes.

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Carl Gustav Jung foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço que nasceu em Küsnatch e
fundou a psicologia analítica. Propôs e desenvolveu os conceitos de personalidade
introvertida e extrovertida, tipos psicológicos, arquétipos como filtros perceptivos do
nosso inconsciente e, além de aceitar a noção do inconsciente pessoal, propôs
também a existência de um inconsciente coletivo. O conceito principal da psicologia de
Jung é o conceito de individuação – um processo psicológico contínuo de integração de
opostos, incluindo aí consciente e inconsciente, em uma relativa autonomia
auto-organizadora. Jung considerou a individuação como um processo central do
desenvolvimento humano.

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