G.D. Afrodite
G.D. Afrodite
G.D. Afrodite
Como Jung salientou ao longo de quase toda a sua obra, o arquétipo, em si, é
inapreensível em sua totalidade, sendo passível de ser compreendido, em partes,
através de suas manifestações culturais. Estudar cada uma das grandes deusas que
traremos em nossos encontros é estudar uma das potencialidades expressivas que
remetem ao arquétipo da Grande Deusa. Este sim é um arquétipo e, como todos os
demais arquétipos, não pode ser completamente abarcado pela experiência ou pela
consciência humana.
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Substituiremos, nessa obra, o já consagrado termo “grandes mães” pelo mais lógico e correto “grandes
deusas” já que, por óbvio, perceberemos que nem toda grande divindade se caracteriza pela
maternidade. Compreendemos ser esse um vício danoso da cultura ocidental cristã que associa o
sagrado feminino apenas ao binômio “virgindade - maternidade”, o que é semente de muitas violências
contra outras formas de ser e viver a feminilidade em sociedade. O presente trabalho, por exemplo, trata
de forma muito peculiar a divina maternidade de Hera, como veremos.
2
O processo que faremos será a “circulambulação”, ou seja: vamos eleger um tema para
os nossos estudos e colocaremos ele no centro de uma roda, assim como uma modelo
posando para uma escultura ou um quadro. Cada um de nós, na roda, terá um ponto
de vista diferente sobre aquele “modelo”, sobre aquela história. A uns ele parecerá
mais alto a outros mais baixo, a uns distante ou próximo.
O importante é que nenhum de nós deve pretender ter uma visão definitiva e, se
quisermos realmente entender a profundidade e a densidade do conteúdo daquela
imagem arquetípica (daquele mito) deveremos sempre considerar as visões uns dos
outros como “pontos cegos”, complementares à nossa visão. Encontrar nossa sombra
no comentário do colega, nossa ânima ou ânimus nas conclusões apaixonantes do
grupo, é, sempre, lidar com a alteridade e, através dela, descobrirmos a nós mesmos.
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Mais do que nunca é preciso resgatar a sacralidade e o respeito ao feminino para além
dos campos da virgindade e da maternidade. Não para negar a existência eterna e
irrefutável das grandes mães virgens da mitologia (são muitas!), mas principalmente
para dar vez e voz às demais realidades e expressões do feminino essencial. Para que,
sendo reconhecidas como diferentes potenciais narrativas do sagrado, sejam aceitas e
socialmente admitidas como caminhos de expressão e vivência do feminino dignas de
respeito e reverência.
Então desde já acostume-se com a ideia de que algumas versões oficiais contradizem
outras versões também igualmente oficiais, com a ideia de que um herói mítico teve de
estar presente - e então esteve presente! - em um acontecimento simbólico que
ocorreu duzentos anos antes de seu nascimento! É raro que esses “erros de roteiro”
ocorram na mitologia, mas eventualmente eles ocorrem. Quando isso acontece,
sempre, há uma razão simbólica que se antepõe à razão cartesiana.
O que nos importa, no estudo dos mitos, não é a razão cartesiana, matemática, o
tempo cronológico. Importa-nos a razão simbólica, a razão dos sonhos, da nossa
criatividade e psique, uma razão mais ligada ao significado, ao tempo circular - quantos
natais você já viveu e reviveu, entende? - do que às comprovações matemáticas e
suas narrativas retilíneas e uniformes.
Para responder a essa questão aparentemente tão simples e tão profunda - digna de
um “decifra-me ou devoro-te” da Esfinge para Édipo - vou enfatizar aqui rapidamente
três aspectos possíveis da leitura e interpretação do que é um mito: o trágico, o mágico
e o social. Vamos pôr à prova o “decifra-me” até onde nos for possível, já que, como já
dissemos antes, a pluralidade de leituras faz parte do estudo eterno da inalcançável
profundidade do mito, que ao fim passará a língua sobre as presas, cerrando as
pálpebras enquanto nos dirá “devoro-te”.
A palavra grega Mythós, raiz da palavra “mito”, significa “narrativa sagrada”. Não se
trata aqui de uma narrativa qualquer e sim da narrativa que explica, restaura e recria o
sentido da própria vida! Quando estudamos uma narrativa e não vemos nela um
exemplo ou um modelo que sirva de inspiração para uma nova leitura da nossa
realidade cotidiana, da nossa forma de lidar com outras pessoas, com as nossas
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certezas e impulsos íntimos, essa narrativa não é um mito. É uma história, não
um mito.
Segundo Karen Armstrong em Breve História do Mito, página oito: “O ser humano
distingue-se pela capacidade de ter pensamentos que transcendem sua experiência
cotidiana”, tanto quanto ser dotado de consciência do trágico, como observaram
Schopenhauer, Goethe e Nietzsche, quanto da sensibilidade do aspecto mágico da
existência, daquilo que chamamos de “transcendente” como observado em Thomas
Mann, Mircea Eliade e Claude Lévi-Strauss, e, também, de um certo ethos psico-social,
do qual nos fala Junito Brandão e Carl Gustav Jung. Essas são três possíveis
compreensões que trabalharemos quando pensarmos na palavra “mito” daqui em
diante.
Sim, você que está lendo esse texto vai morrer! Mas, fique tranquilo! Afinal, é
contagioso e incurável. O incômodo com o qual lemos essa frase nos mostra o quanto
negamos essa obviedade. Erigimos uma cultura completamente baseada na negação
dessa grande verdade, mas a tragédia principal da vida é a nossa consciência da
finitude. Negaremos o quanto pudermos - desenvolvendo depressão, pânico e outras
psicopatologias no caminho - mas todos nós temos, escondido em algum canto da
consciência, a clara percepção de que algum dia, pelo motivo que for, todos nós não
estaremos mais aqui.
Como forma de amaciar o terreno baldio desse grande deserto para além da última
passagem, nós, a espécie humana, projetamos e especulamos sobre o que haverá
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A função do mito
Então talvez a questão correta seria “quantas vezes nós reconheceremos a repetição
de um padrão de comportamento ou pensamento a ponto de saber responder
criativamente a ele, a ponto de dar um sentido a ele numa trajetória mais ampla da
nossa vida?”. Aí sim começaríamos de fato a vivência profunda e transformadora da
relação com os arquétipos e das suas atuações dentro da nossa vida. Outra das
famosas conclusões a que Jung chegou ao longo de suas investigações sobre a
natureza da vida psíquica da espécie humana foi a de que o que não reconhecemos
em nós mesmos tendemos a projetar na vida (e no outro) e encontrar como destino.
Nesse sentido o papel do mito é operar como um eterno retorno de si mesmo, só que
de diferentes formas através das quais aprendemos diferentes coisas sobre nós
mesmos e nossa relação com o mundo, o outro e, principalmente, conosco.
O mito é, também, uma explicação para o mistério, uma ponte para aquilo que - ainda
que leiamos todos os livros e conheçamos todas as religiões e filosofias - jamais
poderemos abarcar através de certezas. Uma explicação para aquilo que transcende e
engole todas as certezas. Para a mitóloga Karen Armstrong, o mito nasceria
justamente por esse contato inicial com a experiência trágica da morte.
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com novos olhos”2, os mitos são discursos simbólicos que configuram estruturas
psíquicas, sociais e culturais.
O Aspecto Mágico
Antes mesmo de constituir uma norma social, o mito é vivido como um mergulho na
experiência do sagrado. “Mergulho” porque é na experiência ritual do mito - que se
deforma e perde o sentido de segredo-sagrado que o constitui se executado fora do
seu contexto ritualístico - que o xamã ou mistagogo inicia o neófito ou permite à sua
sociètas banhar-se na mesma espécie de energia fluídica primordial de que são
constituídas essas divindades, experimentar a divindade, tornar-se uno com
determinada imagem arquetípica constituinte da psique ou com qualquer força
primordial que o possibilite obter êxito em uma tarefa da qual depende, em última
instância, sua sobrevivência e a de seus pares.
2
Armstrong, Karen. Breve História do Mito. Companhia das letras.
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Segundo Mircea Eliade3, o mito não é “uma etapa na história do pensamento humano”,
mas uma categoria de pensamento que ocorre simultaneamente na
contemporaneidade. É importante que tenhamos em mente que a forma primária de
comunicação do nosso inconsciente com a nossa consciência é a forma simbólica
exercida através da linguagem mitológica! Isso se expressa nos sonhos, por exemplo,
para ficarmos no caminho mais simples e inevitável dessa relação e dessa
comunicação.
3
Historiador Romeno das Religiões e um dos maiores estudiosos de mitos e sistemas de crenças no
mundo.
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O estudo do mito “in loco” (no seu lugar de origem), “in natura”, em sociedades em que
a função do mito ainda pode ser minuciosamente observada e descrita pelos etnólogos
permite situar o mito em seu contexto sócio-religioso original. Mas eu confesso, entre
nós, aqui, que duvido que não aprenderíamos muito sobre mitos observando, por
exemplo, como os sacerdotes do “Deus Mercado” explicam - em suas
manifestações entre vídeos do youtube ou nas digressões patrocinadas na
televisão - sobre a natureza incerta e duvidosa das ações intempestivas desse
“deus” punidor que exige novos e novos ajustes e flexibilidade e austeridade e
obediência cega sobre obediência cega, novos e novos “sacrifícios” para que
essa entidade abstrata a “economia (financeira)” continue “crescendo”.
Definições possíveis
Eliade define mito de uma forma bem aberta: “O mito é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de
perspectivas múltiplas e complementares.” Ajudou? Não? Então vamos tratar isso nos
nossos encontros. Por hora ficamos com a ideia de que os mitos descrevem as
diversas, e às vezes dramáticas, irrupções do sagrado no mundo. É essa irrupção do
sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje.
Diante da consciência do trágico - vamos todos morrer e não há o que possamos fazer
contra isso - da certeza da condição de mortalidade e do húmus (“terra”, “homem”)
constituinte do ser humano, encontramos também a dimensão pessoal e existencial do
mito. Todos nós, ao longo de nossas vidas, teremos de lidar com perdas: a perda da
inocência, dos parentes, amigos, certezas, valores, posturas, amores. Nesse sentido
empreendemos a catábase (Katábasis) - a “descida às trevas” - onde o encontro com a
“fera interior”, sua morte e aceitação ou incorporação dentro da “jornada do herói”,
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efetiva a nossa catarse (kátharsis, “purificação”), o primeiro passo para a segunda fase,
a transcendência do estado anterior pela assimilação do posterior na anagnosis
(“autopercepção, auto-conhecimento”), no “tornar-se mestre do próprio destino” ou,
para alguns poucos escolhidos, como Herácles, Psique e Buda, a apotheósis -
tornar-se uno com os deuses. Aí, nesse trecho acima, temos a “função simbólica” no
contexto psicossocial do mito em Lévi-Strauss, a “jornada do Herói” de Campbell e o
“processo de individuação” de Jung.
O Social
Na formação do ethos psico-social temos o mito como elemento estruturador de uma
cultura. Como uma espécie de cadeia genética de uma civilização, o mito atua fiando e
fortificando o tecido social, criando relações de sociabilidade e estabelecendo desde
relações de parentesco até os códigos legais que regem uma determinada sociedade,
passando pelas brincadeiras infantis, modos de cozer alimentos, cortar ou pentear
cabelos, marcar o corpo, rituais de passagem e de iniciação em determinados mistérios
na vida adulta ou no fim da vida.
Uma sociedade sem um fio condutor de sua narrativa de sentido, sem mythós, fica
confusa, perdida, desestabilizada e desesperada. Perde a direção e o significado,
perde sua herança e raízes.
pessoa viva”, escrevia o mestre Junito Brandão4. Nasceu para ser livre, para ser a
essência do discurso numa função dupla - digna do adjetivo “mítica” - que existe em si
de forma cronológica e dotado de uma unicidade e tempo vital, já que é contado no
tempo do ritual, e, simultaneamente, existe como universal, como essencial, na medida
em que o próprio ritual constitui uma suspensão deste mesmo tempo cronológico e um
retorno às origens.
Criando e sendo criado por essa leitura, o mito atua num processo de retroalimentação
que cria, recria, legitima ou destrói determinada realidade, seja ela psíquica,
existencial, cultural, mística, judicial-legal, afetiva ou filosófica. O mito existe e atua
constelando, arquitetando, toda a existência consciente, inconsciente, cultural social,
jurídica, de forma sistêmica. O mito é a tessitura da realidade.
Num exemplo simples e direto: Yahvéh, Adonai, Indra, Zeus, Posídon, Odin são
imagens arquetípicas que fazem referência - e dão diferentes panoramas simbólicos -
da dinâmica maior do arquétipo do “Grande Pai”. Nenhum deles é, em si, o “arquétipo
do Grande Pai”, apenas imagens arquetípicas, figuras literárias dotadas de uma
parcela possível da energia presente no Arquétipo do Grande Pai que, em sua
totalidade, é inapreensível à alma humana. Estudar mitos é se aproximar
constantemente de um maior entendimento das bases da estrutura da experiência
psíquica que faz de nós o que somos como espécie.
Exercendo suas energias de caráter “urobórico”, Eliade nos propõe “a principal função
do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades
humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a
4
Brandão, Junito. Mitologia Grega Volume I, ed. Vozes, Petrópolis.
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Perfume de Afrodite
Como lembra Walter Otto5 (2005), o nome Afrodite não é de origem grega. Pode-se ter
certeza, acrescenta ele, de que esta deusa veio do Oriente para a Hélade (área
geográfica onde viviam os “helenos”, os povos que chamamos de gregos), onde se
aclimatou tão bem, ainda em “época pré-Homérica”, que acabou por tornar-se
plenamente grega.
Afrodite na Ilíada
Na Ilíada, poema épico de Homero que conta a história do cerco à cidade de Tróia
(Ílion, em grego) ela é apresentada como filha de Zeus com Dione, uma divindade
menor, prima de Zeus. Mas é importante frisar que nessa obra prima da literatura
ocidental, Afrodite tem um papel muito importante! É possível considerar inclusive que
tenha sido por causa dela que toda a Guerra de Tróia tenha começado! Vamos falar
5
Walter Otto (1874 - 1958) foi um filólogo - estudioso de documentos antigos - alemão que se dedicou
arduamente ao estudo da mitologia grega. Uma de suas obras mais importantes foi a Teofania, editada
no Brasil pela editora Odysseus.
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mais adiante sobre esse tema. Mas podemos atribuir a mesma “culpa” pelo conflito
mais famoso da mitologia a outras divindades como Hera, Atená, Zeus ou até Éris, a
deusa da discórdia. De fato a correlação linear e causal no mito da guerra de Tróia é
muito difícil de ser estabelecida. Podemos pensar também como uma forma de Zeus
transcender ou evitar o cumprimento de sua própria maldição familiar!
Embora na Ilíada o poeta frise o caráter delicado da deusa sedutora, ela se destaca
muito nessa epopéia guerreira: aparece retirando seu eleito, Páris, da luta com
Menelau quando o príncipe troiano estava sendo massacrado pelo marido traído de
Helena. Ela o envolve em uma nuvem cor de rosa e o transporta para o quarto de
Helena, a quem persuade e comanda: obriga a heroína a receber em seus braços o
amante salvo do combate.
No canto V da Ilíada, esta deusa é por cinco vezes chamada de Cípris (“que vem da
Chipre”, uma ilha), nome que assinala com clareza sua profunda ligação com a ilha
célebre e indica suas origens orientais. É baseado nesse epíteto, junto com o epíteto
“citeréia” (originária de Cítera), que os estudiosos helenistas acreditam que a divindade
tenha sido importada do oriente para as ilhas gregas. De qualquer forma, como já
dissemos, ela não só se aclimatou muito bem como também persiste nas narrativas
porque desempenha um papel simbólico necessário para a riqueza da expressão do
feminino.
A mais bela?
O argumento dessa epopéia tinha a ver com as origens da guerra de Tróia: com o voto
de Páris, que declarou Afrodite “a mais bela das deusas” (numa disputa entre Hera,
Atená e Afrodite) e assim teve por prêmio a mais bela das mulheres, Helena, esposa
de Menelau.
Autopercepção
Em um fragmento dos Cantos Cíprios (fragmento 6, colhido do Ateneu XV, 682D, F),
Afrodite se reveste de trajes perfumados pelas Horas com o sumo de suas flores,
depois trança, junto com as Ninfas e Cárites, guirlandas com que tanto ela mesma
como suas aias se coroam. Ou seja: Ela mesma se reconhece e se condecora. Essa é
uma faceta de Afrodite mais elevada, que não parece necessitar do aval ou
reconhecimento alheios.
Urânia
A segunda Afrodite aparece no poema Teogonia, de Hesíodo. Nesse poema épico
sobre o nascimento dos deuses (Teós, deuses; genós, genética) o poeta canta o
nascimento de Afrodite no mar, da espuma que jorra do pênis mutilado de Úrano –
grande pai universal primordial, força frenética de criação da natureza. Esse hino
acima, retirado de uma coletânea de hinos órficos, reflete esse mito quando a chama
de “espumígena deusa” (deusa das espumas, deusa dos espermas) e também quando
chama de “pontogenés”, nascida do mar (Pontos, em grego).
No Hino Homérico 5, Afrodite é invocada como deusa reinante em Chipre. Até por sua
posição geográfica, Chipre sempre foi o ponto de encontro de povos e culturas da
Grécia e da Ásia Menor, que aí interagiram e se misturaram. Pafos, sem dúvida
alguma, foi o principal centro de culto de Afrodite em toda a Antiguidade.
Outras afrodites
Merece destaque a forte presença dos Fenícios em Chipre, onde ocuparam Cítion, lá
erguendo um magnífico templo à deusa Astarté. Assim como o templo de Afrodite em
Pafos, este santuário foi construído por volta do século XIII a.C. e manteve seu
prestígio até o período romano, sendo freqüentado por adoradores tanto do Oriente
Próximo quanto do mar Egeu.
pode desprezar a tese de que nessa ilha Afrodite veio a ser, também, herdeira de uma
divindade minóica anterior ou até associada a uma divindade que existiria
primordialmente na ilha. O maior templo escavado na ilha é o santuário de Kato Sime,
em época histórica consagrado a Afrodite e a Hermes. Segundo assinala Haiganuch
Sarian (1989), esse templo recobre um local e culto minóico caracterizado por vestígios
arquitetônicos e importantes depósitos votivos. Tanto Afrodite quanto Hermes eram
deuses relacionais e regiam diferentes espécies de trocas.
Afrodite
A toda poderosa deusa do Amor, sedução e prazer. Deusa do amor sublime e
espiritual, do amor carnal, do prazer sexual, das forças incontidas da fertilidade, dos
relacionamentos e das transformações por amor, a Afrodite grega - através do
processo de migração dos mitos que ocorria pelos encontros dos povos - é originária
provavelmente de deusas de outras regiões e épocas, que possuíam as mesmas
características. Ou talvez ela seja, se considerarmos as necessidades expressivas do
arquétipo da Grande Deusa, uma das suas manifestações criativas mais necessárias e,
por isso mesmo, embora possa ter sido importada de outras terras, tenha se
aclimatado tão bem em solo grego.
Podemos seguir por esses caminhos provavelmente por toda a eternidade procurando
evidências arqueológicas da origem da origem da primeira das origens dessa deusa
através do difusionismo - como faz Joseph Campbell em boa parte de sua obra - ou
podemos, como Jung, perceber que essa estrutura sedutora e avassaladora existe
como a priori, como fundamento, em toda psique humana. Afrodite, em muitas de suas
manifestações, é justamente a divinização do desejo. Desejos têm natureza cíclica:
podem ser plenamente saciados, mas apenas por um curto período de tempo porque
ou voltam ou se transformam em outros desejos.
Na mitologia grega ela acabou sendo identificada de duas formas, através dos seus
dois aedos (poetas) mais famosos: A Afrodite Urânia (em Hesíodo) e a Afrodite
Pandêmia (Homero).
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Afrodite Urânia
O Grande deus Úrano, símbolo da fertilidade, uniu-se a Gaia, a Grande Mãe Terra, e a
fecundou de forma abundante, dando origem aos Titãs e às Titânides, aos Cíclopes e
aos Hecatônquiros. Três gerações de deuses presos no útero da Terra.
Porém, essa fecundação era indiferenciada e caótica, pois, temendo ser destronado,
Úrano não possibilitava que nenhum de seus filhos viesse ao mundo, permanecendo
para sempre fecundando Gaia e mantendo tapado o caminho de saída para seus filhos.
Essa leitura de “temer ser destronado” é feita por Hesíodo, mas podemos pensar em
leituras mais simbólicas para a expressão. Úrano pode significar o princípio gerador
ininterrupto, o desejo criador e um furor criativo tão acelerado e avassalador que
elimina todas as suas ideias criando novas ideias antes mesmo de colocar qualquer
uma delas em prática. Você conhece alguém assim? Ou já teve esse tipo de
comportamento “Urânico”?
Quando o mais jovem dos Titãs, Crono, foi gerado, Gaia instruiu-o e o instrumentou
com uma foice feita do leite de seu seio (provavelmente metal derretido) para combater
o pai. O menino Crono então o fez, libertando-a e aos irmãos da opressão desse
grande pai ininterrupto. Crono amputou o pênis do pai pondo fim à fertilização
indiscriminada, à sua criatividade inócua.
Polaridades
O pênis mutilado de Crono cai sobre seu filho Pontos (O Mar). Na base do pênis, o
sangue derramado pela lâmina de Crono, na cabeça do pênis, a última espuma do
esperma divino. Daquele sangue derramado pela castração do grande deus do Céu por
seu filho Crono nascem as Erínias, divindades da vingança feminina e da vingança
familiar, já do esperma de Úrano com as espumas do mar nasce Afrodite, divindade da
união sexual com vias à reprodução ordenada das espécies.
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Úrano
Para falarmos de Afrodite “Urânia” é preciso, logicamente, determinar - ou ao menos
ampliar o símbolo de Úrano. Então quem é, de onde vem e para onde vai essa
divindade celestial da Grécia Arcaica?
O mito mais conhecido de Úrano é aquele em que ele figura como esposo de Gaia (o
Céu cobre, de fato, a Terra inteira, sendo o único à sua medida aos olhos nus). Com
ela Úrano teve uma multidão de filhos.
Do Úrano-Puer ao Úrano-Senex
É importante que possamos pensar as divindades, suas imagens arquetípicas, como
expressões também de suas energias primárias. Dessa forma Úrano, o Céu Estrelado,
não seria bem representado, em sua plena potência, por um deus idoso e distante. Ele
se torna isso sim, o “deus ocioso” quando é castrado, mas, até que isso ocorra, até que
o trauma do freio operado pela castração de sua potência criadora tenha ocorrido, ele é
um jovem deus entusiasmado e autocentrado que absolutamente não percebe o
sofrimento que gera em sua irmã-amante, Gaia.
Essa despreocupação originária de Úrano vai ser passada para Afrodite, como
veremos em muitos dos seus mitos, e Úrano, esse jovem deus criador empolgado com
a própria potência criadora, vai sofrer o que o psicólogo suíço Carl Gustav Jung
chamou de enantiodromia.
universo e do constante devir delas. Segundo esse filósofo nada “é” em si, nada tem
uma essência plena e imutável, mas tudo “está”, tudo está em fluxo e em
transformação. Dentro desse ponto de vista a enantiodromia é a reversão de um pólo
energético em seu oposto. Segundo Jung “Este fenômeno característico ocorre quase
sempre onde uma direção extremamente unilateral domina a vida consciente, de modo
que se forma, com o tempo, uma contraposição inconsciente igualmente forte e que se
manifesta, em primeiro lugar, na inibição do rendimento consciente e, depois, na
interrupção da direção consciente.” (O.C., Vol VI, parágrafo 795), segundo Jung “a
desvantagem dessa conversão radical ao seu contrário é a repressão da vida
passada, o que produz um estado de desequilíbrio tão grande quanto o anterior.”
Afrodite Pandêmia
Pandêmia significa “pan” (todos) + “demos” (povos), ou seja, de todos os povos ou
“venerada por todos os povos”. Essa Afrodite (proveniente da versão de Homero) surge
da união de Zeus com Dione, uma titânide, divindade da geração dos Titãs.
Observemos aqui que, seja porque Afrodite é filha direta de Úrano, seja porque ela é
filha de uma divindade titânica (a geração anterior à dos olímpicos) ela contém, em si,
um caráter de “primordial” ou de “ancestral”.
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"Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas,
psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de
poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro" –
Carl Gustav Jung
Horas
Assim que nasce da união entre o esperma de Úrano e as espumas de Pontos, o
Oceano, a deusa vem para a costa da Ilha de Chipre e é recebida pelas deusas Horas,
que a vestem e embelezam. Mas quem são as Horas?
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Femismo é o comportamento ou linha de pensamento segundo a qual a mulher deveria dominar social,
política, moral e ontologicamente o homem, negando aos mesmos quaisquer direitos e prerrogativas. O
femismo não é o mesmo que o feminismo, que é a noção radical de que as mulheres são seres humanos
com direitos, deveres e capacidades idênticas às dos homens.
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Diz-se “Horas” por causa de uma tradução do seu nome latino “horae”. Mas elas não
são as deusas das horas do dia, propriamente. São as divindades das estações do
ano. Tardiamente foram transformadas em personificações das horas do dia sim, então
é possível encontrar isso em algumas obras mais recentes. Mas isso já bem mais
próximo de nós e longe dos gregos, que cultuavam essas deusas.
As Horas são filhas de Zeus e Têmis (deusa da Justiça) e irmãs das Moiras (deusas do
destino). São três: Eunomia, Dike e Irene ou seja, Disciplina, Justiça e Paz. Algumas
tradições davam a elas os nomes de Talo, Auxo, e Carpo, que significam,
respectivamente, nascer, crescer e frutificar. Dessa forma elas representam impulsos
vitais do nosso inconsciente, como instintos de vida.
As Horas têm um duplo aspecto: como divindades da natureza elas presidem o ciclo da
vegetação, como divindades da ordem (filhas de Têmis, a Justiça), asseguram a
estabilidade social. Como deusas que aparecem para cobrir Afrodite durante seu
nascimento, elas possuem, como todas as divindades, uma dualidade muito implícita;
Se por seu lado luminoso estão acolhendo e recebendo, por seu lado sombrio estão
restringindo as liberdades “excessivas” da deusa. Ao contrário do que a leitura
superficial - e mais comum - profundamente aferrada numa dicotomia sexista sobre
Afrodite vai nos trazer, é uma divindade feminina quem vai procurar castrar as
liberdades de Afrodite, não uma masculina. Até porque, para quem já vem
acompanhando os encontros Mito e Mente e nossos materiais, ao contrário do senso
comum, divindades representadas imageticamente como masculinas ou femininas são
princípios energéticos que podem se “constelar”, se “ativar” em mulheres e homens
indiscriminadamente. Existem tantos homens fascinados ou horrorizados por Afrodite
quanto mulheres, uma vez que os temas que a divindade preside não são restritos a
nenhum gênero. Ao contrário do que os modismos editoriais de internet nos querem
fazer crer para vender e reforçar estereótipos deslocados da realidade.
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Deusa relacional
Como deusa relacional, Afrodite está sempre em busca de um parceiro para criar um
elo criativo. Ela se transforma e se percebe de maneira mais clara a partir de suas
relações. Quando se une a uma outra divindade tem de estabelecer limites e
concessões baseadas nos arroubos naturais que cada divindade manifesta. Hermes
quer velocidade, Ares impulso, Hefesto dedicação e comprometimento. A partir dessas
demandas Afrodite vai manifestando forças complementares, opostas ou convergentes
e, através delas, ela vai se percebendo, conhecendo seus limites e necessidades.
À medida que sabemos que a verdadeira prova para as nossas posturas e “verdades”
na vida é levar cada uma delas para o mundo real, confrontá-las com as posturas e
verdades de outros humanos tão falíveis e únicos como nós mesmos, começamos a
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Na verdade relações que, em termos nossos, chamaríamos de “relações abertas”, embora vejamos que
eventualmente Afrodite tem ciúmes. Ao menos de Ares.
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Afrodite e Hefesto
O casamento da deusa dos relacionamentos com o deus da arte de atar e desatar
conjuga-se numa condição simbólica, conferindo competência a ambos para não
ficarem presos pelo amor; essa conjunctio (conjunção) viabiliza o desfazer dos nós dos
relacionamentos e o desatar-se das uniões desastrosas. “Quando ocorre ruptura do
relacionamento, se se tenta destruir a dor profunda do pranto por fantasias a respeito
do retorno do parceiro, a vida para” – Qualls-Corbert
Afrodite é tida como a deusa que se mantém vinculada enquanto dura seu interesse,
necessidade ou enamoramento, já Hefesto, ao invés de cortejar os valores de Afrodite
e sua atenção, age como legítimo filho de Hera e acredita que ela está aprisionada pela
palavra dada no dia do casamento, presa ao compromisso. Ele procura aprisionar
Afrodite e nisso a perde, pois a relação passa a ser triangulada pela presença de um
terceiro elemento: Ares.
Afrodite e Ares
Afrodite e Ares – deus da Guerra – possuem as mesmas qualidades impetuosas. Ares,
pela violência, age para se defender quando ameaçado e para defender aqueles que
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ele julga injustiçados; e Afrodite, pelo apaixonamento, sem pudores e sem amarras
para viver seu desejo. Expressões opostas de uma mesma fundamentação afetiva que
se manifesta na paixão, amor e ódio.
Ares é rejeitado por seu pai Zeus que o considera “o mais odioso de todos os imortais
que habitam o Olimpo” (Brandão) e talvez por isso esteja sempre em guerra para
proteger o que lhe é caro afetivamente. Afrodite e Ares tiveram, em seu caso, três
filhos: Fobos (Medo), Deimos (Terror) e, por fim, Harmonia.
Tempero e temperança
Há uma reação química entre as temperaturas dos deuses. Ela o esfria, ele a
esquenta, ela o acalma e ele a excita, formando uma química maravilhosa, mas que
não pode ser tida como “matrimonial” porque o que excita a ambos é a própria ideia de
liberdade e um flerte com a incerteza.
Sobre Harmonia
A palavra grega harmonia significa originalmente conformidade, união ou grampo (para
juntar pranchas de navios nos estaleiros). Disso é possível derivar um princípio de
conformidade, a coesão de partes independentes entre si que em seu movimento se
relacionam, ou ainda a união de elementos opostos em um todo ordenado.
Harmonia e tai-chi
Um desses símbolos é o círculo fechado sobre si, arredondado para todos os lados, no
qual todos os opostos estão unidos harmonicamente (como no símbolo chinês do
Tai-chi, conhecido popularmente como “yin-yang”) e que se torna a expressão
simbólica da harmonia cósmica em diversas tradições.
33
No mito grego Harmonia é filha do deus da guerra Ares e da deusa do amor Afrodite.
Ela se torna a expressão simbólica da união entre dois opostos. Se a filosofia da
natureza grega (Heraclito, Empédocles etc) via a gênese e o perecimento no ciclo do
mundo como interação harmônica, como mistura e separação, os pitagóricos
identificavam harmonia com proporção matemática.
Somente com Platão e Aristóteles a harmonia vai ganhar espaço na Ética (com o
conceito de Virtude), na Estética (com o conceito de beleza) e na música (leis de
tonalidade).
Segundo Platão Harmonia, assim como Logos, é um conceito rítmico, cuja estrutura é
capaz de influenciar a ordem do todo (seja ele o todo psíquico ou o todo social).
Hefesto e Ares
Irmãos que compartilharam uma mesma amante. Vamos falar um pouco sobre Hefesto
e Ares para dar mais tonalidades a essa deusa que se descortina a cada nova relação.
Hefesto é o deus do fogo e das forjas. Segundo filho de Zeus e Hera, ainda que a
Teogonia, de Hesíodo, traga ele como uma criação apenas de Hera, que o parira por
partenogênese. No encontro Mito e Mente Hefesto mostraremos a infraestrutura
simbólica e política sobre a qual se ergue essa afirmação e o quanto as motivações
que essa versão apresenta para a partenogênese de Hera são, no mínimo,
problemática.
Pois bem, Hefesto é um deus coxo - ou seja, ele manca de uma perna - e davam-se
várias explicações míticas para o seu defeito físico. A mais vulgar é referida na Ilíada:
Hera discutia com Zeus a respeito de Héracles8 e Hefesto tomou o partido da mãe.
Então Zeus agarrou-o por um pé e atirou-o do Olimpo abaixo. Hefesto caiu durante um
dia inteiro quicando nas pedras. Ao anoitecer bateu contra a terra, na ilha de Lemnos,
8
Hércules. Em grego a grafia original do seu nome é Heracles.
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onde tombou, mal respirando. Aí foi recolhido pelos Cíntios (população trácia) que o
reanimaram, mas ficou coxo para sempre.
Outra versão diria que Hefesto era coxo de nascença e a mãe, envergonhada, teria
decidido escondê-lo das outras divindades. Assim atirou-o do alto do Olimpo. Hefesto
caiu no Oceano, onde foi recolhido por Tétis e Eurínome, duas divindades marinhas
que lhe salvaram a vida e o criaram durante nove anos numa gruta submersa. Durante
esses nove anos ele forjou e modelou diversas jóias para ambas e guardou sempre um
reconhecimento profundo pela bondade que elas lhe haviam demonstrado.
Reina sobre os vulcões, que são as suas oficinas e onde trabalha com seus ajudantes,
os Cíclopes. Foi a ele que Tétis recorreu para forjar as armas de Aquiles durante a
Guerra de Tróia.
Ares é o deus da guerra. Filho de Zeus e de Hera e, como Apolo, Hermes etc, pertence
à segunda geração dos olímpicos. Inclui-se entre os doze grandes deuses, ao contrário
de suas irmãs Hebe e Ilítia, que são divindades secundárias dentro das narrativas
míticas. Ambas aparecem de maneira pontual, não possuindo grandes narrativas nas
quais figurem como protagonistas.
Diante de Tróia ele combate geralmente do lado dos Troianos, considerando que são
os gregos que atravessam o oceano para invadir e saquear a cidade alheia. Ele age -
segundo seu próprio código ético - para proteger aqueles que estão sendo atacados.
Diante da sua visão crua e realista da vida, a questão particular entre a esposa do rei
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de Esparta, Helena, o rei de Esparta, Menelau, e o príncipe de Tróia, Páris, nada mais
é do que uma questão particular. Resolva-se no máximo em um duelo homem a
homem e não se use como justificativa para invadir e saquear a casa alheia. Ares é
completamente avesso a essas desculpas e estratagemas. Em geral preocupa-se
pouco com a legalidade da causa que apóia. Importa-lhe satisfazer o próprio senso de
justiça, bastante personalista.
Acompanham-no deuses que são seus escudeiros, Deimos e Fobos (Terror e Medo) e
também Éris, deusa da discórdia. Esta última é descrita por Homero como uma deusa
minúscula que aumenta de tamanho com uma velocidade impressionante.
A maior parte dos mitos em que intervém Ares são naturalmente mitos guerreiros e
relatos de combates. Mas o deus está longe de ser sempre um vencedor. Pelo
contrário, parece que os gregos, desde os tempos homéricos, tiveram prazer em
mostrar a força brutal de Ares contida ou ludibriada pela força mais oportunista ou
utilitária de um Hercules ou pela sabedoria instrumentalizada de sua irmã Atená.
Ares em Afrodite
Pensemos Ares em Afrodite. Quando contemplamos Ares na psique constelada em
Afrodite vemos que, sendo uma imagem arquetípica, o deus da Guerra, quando na
qualidade de Ânimus (contraparte masculina do ego feminino) positivo, constela-se nas
mulheres, acrescenta determinação, força e saúde egóicas, além de amor próprio e
coragem. Diferentemente, quando o pólo oposto do mesmo Ânimus se constela, ou
seja, quando constelamos a sombra de Ares, poderemos perceber nascer sentimentos
e ações caracterizados pela fúria, agressividade desmedida, irritação, imediatismo e
temperamento intempestivo. Essas são características que encontramos na leitura
clássica da teoria junguiana.
Ares pode ser constelado em qualquer psique, considerando que imagens arquetípicas
são formas de fluxos energéticos que, apesar de nos chegarem historicamente
determinadas, são veículos para formas específicas de transporte de energia psíquica
e energia psíquica todos temos em nossas psiques, homens ou mulheres. Resumindo
tanto Afrodite quanto Ares, enquanto formas de expressão da energia psíquica, podem
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Afrodite e Adônis
Mirra (ou Esmirna) era considerada a mulher mais bela da Grécia, filha do rei Teias, ela
era a princesa da Assíria. Como veremos através das histórias de Psiquê e de Helena
“de Tróia”, esse tipo de adoração e veneração que os humanos desenvolvam por uma
outra humana está sempre fadado ao fracasso pela própria vingança da deusa.
Pois então: Afrodite, por ciúme, faz com que a jovem princesa se apaixonasse
perdidamente pelo próprio pai, Teias. Mirra (Esmirna) então, arranja com que sua ama
se disfarce à noite e finja maliciosamente seduzir seu pai. O velho cede facilmente aos
apelos da jovem serva e, por doze noites, deita-se com sua filha pensando se tratar da
ama dela. Eles se encontram à noite, no escuro e Mirra está sempre coberta dos pés à
cabeça enquanto se entrega ao desejoso pai. Ele sempre tenta tirar o véu e ver a
jovem serva, mas ela o impede, segura ferozmente os panos e se diz sempre muito
envergonhada.
Na última noite o pai, louco de paixão, deseja ver tudo o que se passava nas doze
noites anteriores e puxa o véu que a “ama” colocava entre os dois corpos. Então ele
percebe, desesperado, o engodo! Irado e transtornado com a visão de seu incesto, ele
arrasta a filha até o alto de uma colina. À noite o único brilho em toda a cena é a luz fria
da lua refletindo na faca do desesperado pai. Mirra é jogada ao chão enquanto pede
ajuda aos deuses e a própria Afrodite então a transforma numa árvore, que tem o seu
nome. Teias esfaqueia a árvore com toda força e de lá sai Adônis.
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Adônis é um menino pelo qual Afrodite imediatamente se apaixona. Mas, enquanto ele
é ainda um bebê, ela o dá para ser cuidado por Perséfone, uma deusa que não tem
filhos e o acolhe amorosamente. Contaremos esse mito futuramente com mais detalhes
quando falarmos de Perséfone. Por hora, o mais importante é ver como essa relação
se desenvolve para Afrodite e o quanto ela fala da natureza da própria deusa. Deixado
para crescer no Hades, onde reina Perséfone ao lado de seu silencioso marido Hades,
ele cresce até tornar-se um jovem de beleza ímpar. É nesse momento que Afrodite
pede a Perséfone que lhe devolva o rapaz, mas a deusa do submundo já desenvolveu
um profundo amor filial pelo menino e não está disposta a devolvê-lo.
Julgamento de Adônis
Afrodite então vai a seu pai (ou seu sobrinho, como já vimos) Zeus e pede que ele
intervenha para que Perséfone devolva o rapaz que, aos olhos da deusa do amor, é
seu por direito! Temos aí o duelo entre dois apegos! O apego maternal de Perséfone e
o apego sexual de Afrodite. Nenhum dos dois afetos considera a subjetividade do
rapaz. E é justamente isso que Zeus, quando solicitado, faz. O todo poderoso
imediatamente manda chamar Adônis à sua presença, junto com Perséfone e Afrodite
e então, para surpresa e desespero de ambas - que temiam o que o rapaz poderia
fazer com sua própria liberdade - pergunta ao rapaz com quem ele queria ficar.
A decisão de Adônis é interessante. Ele decide ficar dois terços do ano com Afrodite,
na superfície, gozando os prazeres do amor e um terço do ano com Perséfone, no
Hades, sendo cuidado pela deusa que ele entende como sua mãe. E assim é feito.
Zeus transforma em sujeito o que era objeto da disputa entre duas divindades e Adônis
segue sua vida de idas e vindas entre as duas deusas.
Resposta de Ares
Até que Ares, tomado de ciúmes depois de perceber o interesse amoroso de Afrodite
por Adônis, toma a forma de um gigantesco javali e, correndo numa velocidade
estonteante, tromba com suas enormes presas em Adônis e emascula o rapaz. Adônis,
castrado, ajoelha-se à beira do rio e pinta suas águas de vinho, vermelho e rosa. Morre
de hemorragia à beira de um rio.
Adônis
Vamos falar um pouco sobre esse herói que se tornou uma divindade. Adônis é uma
divindade da vegetação e provavelmente tem uma origem hebraica. Seu nome em
grego preserva o nome do hebraico antigo para “senhor”, Adonai.
Tornou-se amante da deusa Afrodite e filho adotivo de Perséfone. Sua natureza agreste
e rural dá vazão a uma lógica de deus da vegetação que foi apropriado pela mitologia
grega através de contatos com outros povos.
Quando foi morto por Ares na forma de um Javali e ressuscitado por Afrodite e
Perséfone na forma de flor (Afrodite) e semente (Perséfone) para ser um “amante
compartilhado” pelas duas, acabou representando basicamente um ciclo agrário de
sementes e frutos. Colocamos aspas na expressão “amante compartilhado” porque o
amor de Perséfone pelo rapaz era um amor que identificaremos como primordialmente
maternal e não de cunho sexual. Com isso ele cumpre o que havia sido decidido por
ele mesmo na presença de Zeus: como semente passa um tempo com Perséfone,
como flor passa um tempo nos campos de Afrodite.
O amor, nos mitos de Afrodite, tem sempre esse caráter ondulatório, como veremos.
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Afrodite e Hermes
Hermes - deus da lábia, dos ladrões e do comércio - é cutucado por seu irmão Apolo
quando Hefesto, irado com a traição de Afrodite, havia prendido ambos no teto de seu
quarto. Apolo pergunta a Hermes se ele trocaria de lugar com Ares, ali nu, preso com
Afrodite e Hermes diz que trocaria cinquenta vezes de lugar com o irmão para estar ali
preso e nu ao lado de Afrodite. A gargalhada é geral e então Posídon, condoído do
sofrimento do sobrinho, chama o deus das forjas para um canto e explica a ele que as
pessoas não estavam rindo de Afrodite ou Ares, mas do papel de corno do deus do
trabalho. E foi assim que Hefesto decidiu soltar ambos da rede e cada um seguiu seu
rumo, todos os três separados, cada um para um lado.
Quem sabe não foi aí, nesse momento, que Hermes despertou o desejo de Afrodite? A
leveza de Hermes em transmutar uma situação de tensão para uma situação de graça
que culminou na soltura dos dois cativos pode soar fascinante para Afrodite.
Dois Eros
Talvez em troca dessa nova visão sobre o masculino Afrodite tenha lhe concedido seus
favores e eles finalmente iniciam um caso. O fato foi que tiveram um enlace, as duas
divindades. Dessa união nasce Hermafrodito e, na versão de Apuleio, também o
segundo Eros, o amor alado. O primeiro Eros é a divindade primordial da união,
“aquele que une (as ideias, as coisas, os corpos)” e está na Teogonia de Hesíodo. Esse
mesmo Eros é um dos deuses que vai se juntar a Afrodite no momento do seu
nascimento na ilha de Chipre. Por isso é importante não confundirmos o Eros
Primordial - “aquele que une” - com o Eros filho de Afrodite.
Hermafrodito
Você sabe quando um pai se chama Ilmar e a mãe Eloah e eles acham super bonito
colocar o nome do filho Elomar? Pois então, do amor de Afrodite com Hermes nasce
Hermafrodito, um modelo de beleza e jovialidade. Em sua adolescência, Hermafrodito
resolveu percorrer o mundo.
40
Passando pela fonte habitada pela ninfa Salmácis, esta se apaixonou perdidamente
pelo jovem deus. Após um primeiro intercurso onde o jovem se manteve interessado
Hermafrodito, cansando do que já conhecia, a rejeitou, apesar da grande beleza da
ninfa. Afinal, era um espírito jovem e poucas coisas são mais caras aos espíritos jovens
que a liberdade e a possibilidade de novidades.
Quando o jovem deus entrou na fonte para banhar-se, Sálmacis agarrou-se a ele,
implorando aos deuses para que nunca mais se separassem. E o pedido se cumpriu:
tornaram- se um só.
Completamente irado já que não podia contrariar os deuses, que haviam decidido que
ele, agora, seria uma única entidade com a ninfa Salmacis, Hermafrodito pediu – e
também foi atendido – que todos, sem exceção, banhados por aquela fonte perdessem
a virilidade.
“Tulsa, Oklahoma,
10 de abril,
Sr. Henry Ford,
Detroit Michigan
Caro senhor,
enquanto ainda tenho ar em meus pulmões, escrevo para dizer que carro elegante o
senhor construiu. Tenho dirigido exclusivamente Fords, quando consigo roubar um.
9
Bonnie Elizabeth Parker e Clyde Chestnut Barrow foram um casal de criminosos norte-americanos que
viajaram a região central dos Estados Unidos com sua gangue durante a Grande Depressão, roubando e
matando pessoas quando encurralados ou confrontados. Embora conhecidos por mais de uma dúzia de
assaltos a bancos, a dupla roubava com mais frequência pequenas lojas ou postos de gasolina rurais.
Acredita-se que ambos tenham matado pelo menos nove policiais e vários civis. Foram mortos pela
polícia numa emboscada.
42
Dioniso
Afrodite também amou Dioniso, deus da vegetação, da loucura e do êxtase. Por ter
nascido três vezes – falaremos sobre isso no nosso encontro de Dioniso - ele é
também o deus do renascimento, uma divindade transformadora.
Dessa união nasceu Príapo, deus viril, guardião das videiras e dos jardins, protetor das
colheitas, garantindo a preservação do vegetal e do animal. Tinha também a virtude de
evitar o mau agouro, prejudicial ao desenvolvimento do plantio. Príapo era, antes de
tudo, uma divindade agrária da potência e pujança verdejante da natureza. As
considerações lascivas e moralistas sobre a natureza desse deus são reflexo de um
puritanismo tardio. Originalmente Príapo era um deus agrário que poderia também
auxiliar em problemas sexuais masculinos, mas a leitura que se possa fazer disso
engloba necessariamente a compreensão mais ampla do caráter simbólico da
fertilidade como um todo, sem excluir e sem dar especificidade ou ênfase à questão
sexual humana. Sua ereção constante - que serviu de base para o nome da condição
médica do priapismo - era um exemplo a ser seguido pelas plantas e frutas, que
deveriam fazer força para erguerem-se acima do solo.
43
Outra versão10 do mito de Príapo o faz filho de Zeus e Afrodite. Nesse caso, Hera, com
medo de que nascesse um filho com a beleza arrebatadora da mãe, de um lado, e a
inteligência e liderança do pai, por outro, deu um chute na barriga de Afrodite, com o
intuito de provocar deformidades no menino.
Príapo nasceu com um membro sexual descomunal, embora – apenas nessa versão –
impotente. A mãe, deusa do amor, com medo de ser ridicularizada pelo defeito do filho,
abandonou-o em uma montanha, onde foi encontrado e criado por pastores. A
impotência de Príapo só aparece nessa versão, como castigo de Hera. Em todas as
demais a divindade sempre é representada como ininterruptamente em ereção.
Anquises
10
Metamorfoses, de Ovídio, IX, 347 e seguintes.
44
Após a guerra de Tróia Eneias retirou seu idoso pai da cidade em ruínas salvando-o do
incêndio da cidade e do ataque dos aqueus (gregos), levando-o para a Itália. Segundo
Virgílio, Anquises morreu aos oitenta anos na Sicília, local em que posteriormente,
celebrar-se-iam os jogos fúnebres em honra do herói.
Eneias encontrou seu pai no pós-morte quando desceu aos ínferos - a região inferior, a
que fica abaixo, daí o nome “inferno” apropriado pela mítica cristã - o reino de Hades.
Que na época não era a imagem que temos do inferno cristão, obviamente. Mas isso
nós veremos nos nossos encontros Mito e Mente Hades e Perséfone. Anquises
mostrou a Eneias os futuros heróis de Roma e um futuro descendente seu, Rômulo,
que fundaria a cidade de Roma. Na Eneida, de Virgílio, Enéias é um herói piedoso, da
compaixão, protetor da família, dos ancestrais e dos descendentes.
cargos públicos ou fará parte de algum sindicato. Nesse caso temos aí uma Evita
Perón tanto quanto um Guilherme Boulos.
A sombra dessa união é a postura que lute apenas por vaidade, por sua projeção ou
por envaidecimento do seu ego e reconhecimento público. Lembrando que luz e
sombra, em uma psique real de um ser humano real, coexistem em diferentes graus e
contextos.
É o pai de Eneias e o filho de Cáis e Temiste. Foi amado por Afrodite que o viu quando
ele guardava os rebanhos no cimo do Ida, perto de Tróia. Para ser bem sucedida,
Afrodite aproximou-se dele, fazendo-o pensar que ela era a filha do rei da Frígia, Otreu,
que havia sido raptada por Hermes e transportada para a zona de pastagens do Ida.
Mais tarde revelou a Anquises que estava grávida e, nisso, revelou também sua
identidade.
Recomendou-lhe porém que jamais revelasse a ninguém que tinha o filho de uma
deusa, pois se Zeus o viesse a saber, fulminaria a criança. Mas num dia de festa,
Anquises, que bebera vinho em excesso, gabou-se dos seus amores. Foi, então,
castigado por Zeus que, enviando um raio o deixou coxo (ou cego, versões variam).
Quando Tróia foi tomada, Eneias salvou o pai do incêndio e do massacre, levando-o
consigo em sua viagem errante.
Eos
“No final de cada noite, Eos, de dedos cor-de-rosa e vestida de tons de açafrão,
ergue-se de seu leito Leste, monta em seu carro puxado pelos cavalos Lampos e
Faetonte, e dirige-se para o Olimpo, onde anuncia a aproximação do irmão Helios.
Quando Hélios surge, ela monta em Hêmera e acompanha-o nas suas viagens, depois,
tornada em Héspera, anuncia que ambos fizeram boa viagem até às margens
ocidentais do oceano.” (Graves, 1990)
A deusa do amor certa vez encontrou, na névoa da manhã, a deusa Eos deitada ao
lado do musculoso corpo de Ares. Ultrajada pelo que considerou uma traição, e
possuída pelo ciúme, vingou-se da filha dos Titãs, fazendo-a apaixonar-se
seguidamente por vários jovens mortais, a começar pelo gigante Órion, depois Céfalo,
depois Clito, neto de Melampo, e por fim raptou Ganimedes e Títon.
Quando com Títon, Eos pediu a Zeus que o imortalizasse, mas esqueceu de pedir,
também, a juventude eterna. Ele tornou-se imortal, mas envelhecia naturalmente, como
qualquer mortal. Cansada de se ocupar com a velhice e com os comportamentos
dependentes de Títon, Eos fechou-o num quarto, onde este se transformou em uma
cigarra, aquela que canta a aurora e dela se despede com seu canto triste e estridente.
Eos é certamente uma das faces de Afrodite, é a Vênus, a bela estrela da manhã e do
início da noite. Anuncia a boa nova, um novo dia, cheio de esperanças e promessas,
num eterno retorno.
Muitas das relações complicadas de Afrodite são demonstradas por suas batalhas
indiretas com Ártemis. Elas envolvem e são melhor explicadas pelos mitos em que as
duas divindades disputam o domínio sobre heróis como Hipólito, Helena, Atalanta e
muitos outros.
Hipólito
Filho de Teseu, o rei e grande herói ateniense, e Hipólita, a rainha das amazonas.
Hipólito era um jovem que seguia a influência dos ancestrais maternos. Venerava
Ártemis, a deusa caçadora - que regia a comunidade das amazonas junto com Ares, o
deus da guerra - acima de todas as demais divindades. Dessa maneira, embora já
estivesse na puberdade, ignorava os votos a Afrodite, desprezando a deusa e os
encantos da sexualidade. Preferia ficar submerso no campo simbólico e social de
Ártemis, na caça e na corrida, nos esportes e no convívio próximo apenas com outros
48
Teseu, acometido de violenta cólera, e, não querendo ser ele mesmo o arauto da morte
do filho, pediu a seu pai Posidon, o deus dos mares, que cuidasse disso. Pósidon havia
prometido, ainda na juventude de Teseu, lhe conceder três desejos. O último deles não
havia sido satisfeito. Então o deus dos mares enviou um monstro marinho que, no meio
de uma competição esportiva, apareceu subitamente diante do carro de Hipólito e
puxou os cavalos afogando-o no mar.
Atalanta e Hipômenes
Hipômenes, cujo nome significa “forte como um cavalo”, ou “pernas de cavalo” quis
desposar a selvagem Atalanta, guerreira e corredora discípula de Ártemis que vencia,
caçava e matava a todos os homens que com ela queriam casar. Ela, desinteressada
49
Hipômenes era um grande corredor e presenciou uma das corridas de Atalanta. Depois
do quê percebeu que não era capaz de vencê-la. Mas estava ardendo de desejo por
Atalanta. Não conseguia pensar em nada além de tê-la como esposa e, então, se
ofereceu como o próximo pretendente para a corrida, no dia seguinte. Durante a noite
pediu o auxílio de Afrodite nessa corrida para derreter o coração selvagem da jovem e
poderosa Atalanta. A deusa do amor apareceu a ele quando estava ainda oscilando
entre o sono e a vigília e ela então emprestou-lhe três pomos dourados do Jardim das
Hespérides para que ele carregasse consigo e arremessasse ao chão, por cima do
ombro, a cada vez que Atalanta estivesse prestes a alcançá-lo.
Durante a corrida a princesa deixou que ele corresse na frente, como fazia com todos
os competidores. Tomada por Ártemis, ela era extremamente competitiva e gostava da
sensação de ultrapassar o homem que a desafiasse. Correram. Ele à frente por um
tempo até que ela saísse em seu encalço. Por três vezes consecutivas durante a
corrida ela se aproximou e ele arremessou a maçã dourada emprestada por Afrodite.
Usando este estratagema ele consegue vencer e casa-se com Atalanta, que também
se apaixona por ele. Anos mais tarde, numa caçada, o casal é surpreendido por uma
forte chuva e se esconde num templo de Ártemis. Ali, úmidos e sorridentes, se
entregam ao amor. A própria Ártemis os transforma em leões. Nesse ponto cabe a nós
observarmos os movimentos da nossa própria psique enquanto ela nos diz que isso foi
uma punição ou uma recompensa. O mito não explora essa motivação, mas o nosso
julgamento primário vai nos indicar o posicionamento da nossa própria energia
psíquica.
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Pigmaleão e Galatéia
Pigmaleão era o Rei de Chipre, a ilha onde Afrodite teria aportado pela primeira vez
depois de seu nascimento no mar. Este rei era um grande escultor, dotado de um
talento ímpar e, depois de retirar todos os excessos de um bloco de mármore, por dias
e dias depositando ali seu esforço, carinho e cuidado, lixando cada curva e assoprando
cada reentrância daquele colosso feminino, ele se percebeu completamente
apaixonado pela estátua que ele próprio havia esculpido.
Abrasado de paixão, pediu a Afrodite, deusa principal da ilha, que lhe enviasse uma
mulher semelhante àquela estátua, já que não conseguia ver seu desejo satisfeito por
qualquer outra mulher que não fosse a imagem e semelhança daquela a quem ele
havia dedicado tantas horas de profunda devoção e esmero. As súplicas enviadas à
deusa numa das festas em sua honra foram ouvidas e, ao chegar em casa, Pigmaleão
percebeu que a figura de mármore ganhara vida. Com ela então casou-se e teve uma
filha chamada Pafo.
A relação de Pigmalião e Galatéia pode nos oferecer um resgate impressionante da
relação entre o próprio Hefesto e Afrodite, já que envolvem a convergência do trabalho
e do desejo numa única relação frutífera.
Psiquê
Psiquê era a mais nova de três filhas de um rei de Mileto e era extremamente bela. Sua
beleza era tanta que as pessoas de várias regiões iam admirá-la, assombrados,
rendendo-lhe homenagens que só eram devidas à própria Afrodite.
Profundamente ofendida e enciumada, Afrodite enviou seu filho Eros para fazê-la
apaixonar-se pelo homem mais feio e vil de toda a terra. Porém, ao ver sua beleza,
Eros atrapalhou-se ferindo-se com sua própria flecha e apaixonou-se perdidamente.
51
Quando acordou, caminhou por entre as flores, até chegar a um castelo magnífico.
Notou que lá deveria ser a morada de um deus, tal a perfeição que podia ver em cada
um dos seus detalhes. Tomando coragem, entrou no deslumbrante palácio, onde todos
os seus desejos foram satisfeitos por ajudantes invisíveis, dos quais só podia ouvir a
voz.
Quando acordou, já havia chegado o dia e seu amante havia desaparecido. Essa
mesma cena se repetiu todas as noites e todas as manhãs. Enquanto isso, suas irmãs,
preocupadas com o seu sumiço, continuavam à sua procura, mas seu esposo
misterioso a alertou para não responder aos seus chamados. Psique sentindo-se
solitária em seu castelo-prisão, implorava ao seu amante para deixá-la ver suas irmãs.
Finalmente ele aceitou, mas impôs uma condição: não importando o que suas irmãs
dissessem, ela nunca tentaria conhecer sua verdadeira identidade.
52
Seu esposo alertou-a que suas irmãs estavam tentando fazer com que ela olhasse seu
rosto, mas se assim ela fizesse, ela nunca mais o veria novamente. Além disso, ele
contou-lhe que ela estava grávida e se ela conseguisse manter o segredo ele seria
divino, porém se ela falhasse, ele seria mortal.
Hýbris
Ao receber novamente suas irmãs, Psique contou-lhes que estava grávida, e que sua
criança seria de origem divina. Suas irmãs ficaram ainda mais enciumadas com sua
situação, pois além de todas aquelas riquezas, ela era a esposa de um deus.
Assustada com o que suas irmãs disseram, escondeu uma faca e uma lâmpada
próximas à sua cama, decidida a conhecer a identidade de seu marido, e se ele fosse
realmente um monstro terrível, matá-lo. Ela havia esquecido dos avisos de seu amante,
de não dar ouvidos às suas irmãs.
53
À noite, quando Eros descansava ao seu lado, Psique tomou coragem e aproximou a
lâmpada do rosto de seu marido, com as mãos trêmulas e a garganta seca, um arrepio
crescente a cada centímetro do avanço da luz, esperando ver uma horrenda criatura.
Para sua surpresa, o que viu porém deixou-a maravilhada! Um jovem de extrema
beleza estava repousando com tamanha quietude e doçura que ela pensou em tirar a
própria vida por haver duvidado. Enfeitiçada por sua beleza, demorou-se admirando o
deus alado. Não percebeu que havia inclinado de tal maneira a lâmpada que uma gota
de óleo quente caiu sobre o ombro direito de Eros, acordando-o.
Quando se recompôs, notou que o lindo castelo a sua volta desaparecera, e que se
encontrava bem próxima da casa de seus pais. Psique ficou inconsolável. Tentou
suicidar-se atirando-se em um rio próximo, mas suas águas a trouxeram gentilmente
para sua margem. Foi então alertada por Pã para esquecer o que se passou e procurar
novamente ganhar o amor de Eros.
Por sua vez, quando suas irmãs souberam do acontecido, fingiram pesar, mas partiram
então para o topo da montanha, pensando em conquistar o amor de Eros. Lá
chegando, chamaram o vento Zéfiro, para que as sustentasse no ar e as levasse até
Eros. Mas, Zéfiro desta vez não as ergueu no céu, e elas caíram no despenhadeiro,
morrendo.
Psique, resolvida a reconquistar a confiança de Eros, saiu à sua procura por todos os
lugares da terra, dia e noite, até que chegou a um templo no alto de uma montanha.
Com esperança de lá encontrar o amado, entrou no templo e viu uma grande bagunça
de grãos de trigo e cevada, ancinhos e foices espalhados por todo o recinto.
54
- "Ó Psique, embora não possa livrá-la da ira de Afrodite, posso ensiná-la a fazê-lo com
suas próprias forças: vá ao seu templo e renda a ela as homenagens que ela, como
deusa, merece".
Afrodite, ao recebê-la em seu templo, não esconde sua raiva. Afinal, por aquela reles
mortal seu filho havia desobedecido suas ordens e agora ele se encontrava em um
leito, recuperando-se da ferida por ela causada. Como condição para o seu perdão, a
deusa impôs uma série de tarefas que deveria realizar, tarefas tão difíceis que
poderiam causar sua morte.
Provas
Como primeira tarefa ela deveria, antes do anoitecer, separar uma grande quantidade
de grãos misturados de trigo, aveia, cevada, feijões e lentilhas. Psique ficou assustada
diante de tanto trabalho, porém uma formiga que estava próxima ficou comovida com a
tristeza da jovem e convocou seu exército a isolar cada uma das qualidades de grão.
Como segunda tarefa, Afrodite ordenou que fosse até as margens de um rio onde
ovelhas de lã dourada pastavam e trouxesse um pouco da lã de cada carneiro. Psique
estava disposta a cruzar o rio quando ouviu um junco dizer que não atravessasse as
águas do rio até que os carneiros se pusessem a descansar sob o sol quente, quando
ela poderia aproveitar e cortar sua lã. De outro modo, seria atacada e morta pelos
carneiros. Assim feito, Psique esperou até o sol ficar bem alto no horizonte, atravessou
o rio e levou a Afrodite uma grande quantidade de lã dourada.
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Sua terceira tarefa seria subir ao topo de uma alta montanha e trazer para Afrodite uma
jarra cheia com um pouco da água escura que jorrava de seu cume. Dentre os perigos
que Psique enfrentou, estava um dragão que guardava a fonte. Ela foi ajudada nessa
tarefa por uma grande águia, que voou baixo próximo a fonte e encheu a jarra com a
negra água.
Irada com o sucesso da jovem, Afrodite planejou uma última, porém fatal, tarefa.
Psique deveria descer ao mundo inferior e pedir a Perséfone, que lhe desse um pouco
de sua própria beleza, que deveria guardar em uma caixa. Desesperada, subiu ao topo
de uma elevada torre e quis atirar-se, para assim poder alcançar o mundo subterrâneo.
A torre, porém, murmurou instruções de como entrar em uma particular caverna para
alcançar o reino de Hades. Ensinou-lhe ainda como driblar os diversos perigos da
jornada, como passar pelo cão Cérbero e deu-lhe uma moeda para pagar a Caronte
pela travessia do rio Estige, advertindo-a:
- "Quando Perséfone lhe der a caixa com sua beleza, toma o cuidado, maior que todas
as outras coisas, de não olhar dentro da caixa, pois a beleza dos deuses não cabe a
olhos mortais”.
Seguindo essas palavras, conseguiu chegar até Perséfone, que estava sentada
imponente em seu trono e recebeu dela a caixa com o precioso tesouro. Tomada
porém pela curiosidade em seu retorno e querendo encontrar com Eros revivificada e
ainda mais bela do que já era, abriu a caixa para espiar.
Ao invés de beleza havia apenas um sono terrível, Hypnos, que dela se apossou. Eros,
curado de sua ferida, voou ao socorro de Psique e conseguiu colocar o sono
novamente na caixa, salvando-a. Parece-nos talvez um pouco infantil que Eros tivesse
de livrá-la de Hypnos, o sono, mas precisamos lembrar que, na mítica grega, Hypnos, o
Sono, Oneiros, o Sonho, e Tanatos, a Morte, são irmãos, filhos de Nyx, a noite. Dessa
forma, passar de um a outro, do sono ao sonho e do sonho à morte, é um perigo real
dentro da narrativa. Eros lembrou-lhe novamente que sua curiosidade havia outra vez
sido sua grande falta, mas que agora podia apresentar-se à Afrodite e cumprir a tarefa.
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Enquanto isso, Eros foi ao encontro de Zeus e implorou a ele que apaziguasse a ira de
Afrodite e ratificasse o seu casamento com Psique. Atendendo seu pedido, o grande
deus do Olimpo ordenou que Hermes conduzisse a jovem à assembléia dos deuses e a
ela foi oferecida uma taça de ambrosia. Então com toda a cerimônia, Eros casou-se
com Psique, e no devido tempo nasceu seu filho, chamado Voluptas (Prazer).
Helena
A bela Helena, a mais bela de todas as mulheres gregas, foi também vítima de uma
vingança de Afrodite. Teremos mais tempo para desenvolver essa relação no nosso
encontro Mito e Mente Helena, mas por aqui deixamos a questão de que mulheres
mortais que sejam adoradas como Afrodite, são severamente castigadas e esse
castigo sempre envolve um rito de passagem doloroso. No caso da rainha espartana
que é raptada pelo príncipe troiano, toda a dificuldade de ser expatriada e repatriada,
sempre como traidora. Mas veremos, adiante, a função simbólica da traição.
“Noite [Nyx] gera então o Ovo Cósmico que se parte, sendo Úrano uma metade da
casca e Gaia a segunda metade, o conteúdo, nascido desse chocar, é Amor [Eros],
aquele que une”
Questões importantes
● Afrodite é filha das espumas, dos movimentos das marés, da água marinha,
fonte de toda a vida. Quais outras deusas têm uma descrição ou campo
simbólico paralelo ou semelhante?
● Podemos pensar a última filha de Afrodite com Ares, Harmonia, como uma
espécie de “função transcendente”, aquilo que eleva a “batalha” ou o “sistema” a
um novo patamar.
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Acho a maior insanidade essa ideia de controlar seus desejos, vocês têm uma
verdadeira tara por controlar todas as taras. Na pretensão de controle dos seus
instintos vocês se separam de si e acuam "o animal" - que vocês identificam como
animal, como se vocês fossem algo muito diferente disso que julgam inferior. E é claro
que ele, “o animal” se desespera e te despedaça por dentro!
Pense em convergência e divergência. Eu sou mais parecida com Zeus que com Hera.
Vocês que tentam pasteurizar todas as deusas como se fossem a mesma coisa ou
falassem apenas por um gênero, lidem com isso: Eu não vou te conter nem te limitar,
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Hera vai. Aí você me olha prenhe de fascínio e esquece quem eu sou. Não, eu não vou
te limitar. Eu vou te trair, vou errar, violar e transgredir todos os teus acordos e
certezas. Esse é o meu papel. E dessa traição você erguerá certezas e você vai se
apaixonar por cada mentira que elas te contarem. Certezas são mentiras em fase de
crescimento.
Vocês se apegam às certezas como quem está no tal do inferno, estirando as mãos
para o tal paraíso. Nós éramos mais justos com vocês. Nossos Campos Elíseos
estavam dentro do Hades. Hoje vocês afastam as coisas e se esgarçam até
arrombarem suas almas. O paraíso de vocês é a expectativa de parada, de
estabilidade e freio. E vocês sabem que foi em cada pouso e repouso que encontraram
o inferno.
Eu sou desejo. Aquilo que é adorado existe para ser devorado. Eu sou o adubo para a
terra dos meus instintos. Te parece estranho? Alguma vez você já saciou
completamente a sua fome? E... ela voltou depois? Exigente, imediata, brusca,
desesperada, te corroendo por dentro, tornando qualquer outra coisa invisível, sem
sabor e sem vida diante da necessidade imediata da satisfação das vontades dela?
Talvez eu seja a fome.
Eu não sou saciedade, eu sou inquieta. Eu demando como a vida demanda. Vocês
acham que são constantes, não são. Sua mudança é constante e ela sempre tende à
morte então eu sou a única forma, o caminho, a verdade e a vida para a sua parcela
possível e sempre limitada de imortalidade. O grande desafio é a tensão que forma a
vida. Átrio e ventrículo, direita e esquerda, contração e relaxamento, tesão e frouxidão.
O desafio é romper e obedecer em igual medida, trair e respeitar. Esse é o único meio
de manter o fluxo da vida. Por isso Hera me odeia, eu sou o antipoder dela, seu
reverso, sua parceira de dança. Por isso Hera me pede favores, como quando pediu
meu cinto para seduzir Zeus. A grande deusa é continente e vaso, ela dá forma e
bordeja definindo limites, a honra, a lei, a ordem. Eu sou tudo o que há para além da
borda, aquilo que transborda e inunda. E ela se expande para me conter, e eu
transbordo para ser.
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Você que me lê já fez merda? Já errou e se viu diante da autoridade com seus olhos
acusatórios ali parada na sua frente em silêncio e ao mesmo tempo gritando dentro da
sua cabeça com aquela voz que você chama de consciência? Pois então, sou em em
presença de Hera. A gente não se dá, a gente se precisa. A transgressão e a traição
são tão necessárias à evolução quanto o acolhimento, o bordejamento e o limite. O
problema é que temos de ser fiéis às nossas naturezas. Eu e ela. E nisso está a raiz
do respeito que às vezes temos uma pela outra, nesse senso estranho e tão familiar de
integridade e coerência que emanamos. As coisas reais existem nesse intervalo,
nessas entrecoxas da tensão que ondula entre nós.
Se vocês pensarem um pouquinho só, prometo que vai ser dolorosamente libertador,
eu entro traindo para inaugurar. Se não se espera que ocorra a subversão, a sedução e
a entrega a outra nova verdade, é porque ainda se está muito apegado à verdade
anterior e, queridos, para vocês todas as verdades passam. Como as ilusões de poder
e controle que vocês depositam nelas também.
Cada casal tem sua intimidade e se você quiser destruir os acordos íntimos basta
enfiar a sua mãe no meio. Isso aí deuses e mortais têm em comum. Eu dançava com
Hefesto. Sim, isso mesmo, eu e o deus manco dançávamos! É claro que ele sabia que
não era meu preferido, é claro que nós sabíamos que uma das poucas chances que
tínhamos de estar juntos era por essa intervenção, por esse mandamento divino da
mamãe. Ela lá, desesperada para compensar seus erros e ausências tanto quanto para
se mostrar acima de mim, se mostrar poderosa! É claro que Hefesto sabia que eu traía
ele! Ele foi meu marido! Bastava olhar uma vez para mim para saber que eu posso ser
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tudo, menos traidora da minha própria natureza e ele, ele foi fofo e cúmplice enquanto
pôde! Sim! Cúmplice! Ele saía pela manhã ser fiel a si mesmo, dar amor e tempo e
energia e devoção ao que ele era, trabalho! Nisso ele me dava tempo, espaço e
tranquilidade para ser fiel ao que eu sou: desejo! Se você pensa que isso é um
casamento de aparências talvez esteja vendo pelo viés errado. Eu não tenho nada a
explicar a ninguém e eu esperava mais dele, porque por um tempo acreditei que ele
também não tinha. Então fomos felizes sim! À nossa maneira, claro.
Mas então entra Hélios. O fofoqueiro celestial chama Hefesto num canto e encurrala o
coitadinho! Sim, Hélios! Quem contou a Deméter onde estava Perséfone, estragando a
vida da menina lá no escuro quentinho com Hades? Quem saiu correndo para o Olimpo
para contar a Zeus que os marinheiros de Ulisses não resistiram à provocação da fome
e comeram os seus carneiros? Hélios! Maldito óbvio! Quase nada me irrita mais do que
o óbvio!
Hélios correu a contar a Hefesto que eu e Ares brincávamos na ausência dele! Pelo
amor de Zeus e Hera é óbvio que ele sabia! Mas agora não tardaria muito até que o
resto do Olimpo soubesse! Se Hélios viu, todos saberiam! Aí a coisa se tornou uma
corrida para o tortinho! Já imagino ele manco e torto quicando para a oficina a toda
velocidade para fazer a tal rede e mostrar a todos que ele já sabia! É claro que ele já
sabia, o Olimpo já sabia! Mas não era bonito, não era de bom tom que ficasse evidente!
E lá foi a mãe fazer o filho sofrer de novo! Até esse dia eu poderia sempre estar ali para
acolher quando necessário - porque isso é mais amor e casamento que a merda da
fidelidade sexual, e todos sabemos disso! A partir daquele dia não. Fomos cada um
para um lado, eu, ele e o irmão. A coisa toda desandando porque os homenzinhos não
podem ter suas taras e seus acordos expostos, porque têm de brincar a vida inteira de
manter as aparências.
O traído sempre entra em luto. Isso é óbvio. Todos vocês já pensaram que Hefesto
sofria e se metia em sua oficina, claro. Mas perceberam que Ares não se vingou do
irmão que o prendeu, apontou e acusou? Perceberam que eu não me vinguei de Hélios
e de Hera ou da exposição que Hefesto me fez passar? Eu fui a Chipre, sem Hefesto,
sem Ares. Ares foi lá para as cidades dele guerrear e ser adorado. Cada um se retraiu
à sua forma de luto. Cada um tem seu jeito de desapegar.
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Mas o amor é tão irritante que, com tempo, ele faz aquilo que é menos provável.
Aprende e o que aprende ensina, perdoando. O poder é reacionário, não quer
mudança, não quer novidade, reage com violência e arromba a criatividade e a vida. O
amor é revolucionário, em último caso até aceita, acolhe, perdoa. Não vê Psiquê? Pois
é. Quer acabar com a vida íntima de qualquer casal? Envolva a sogra.
Bibliografia:
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Carl Gustav Jung foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço que nasceu em Küsnatch e
fundou a psicologia analítica. Propôs e desenvolveu os conceitos de personalidade
introvertida e extrovertida, tipos psicológicos, arquétipos como filtros perceptivos do
nosso inconsciente e, além de aceitar a noção do inconsciente pessoal, propôs
também a existência de um inconsciente coletivo. O conceito principal da psicologia de
Jung é o conceito de individuação – um processo psicológico contínuo de integração de
opostos, incluindo aí consciente e inconsciente, em uma relativa autonomia
auto-organizadora. Jung considerou a individuação como um processo central do
desenvolvimento humano.