A Dama Da Loção Antipiolho - Tennessee Williams Completo
A Dama Da Loção Antipiolho - Tennessee Williams Completo
A Dama Da Loção Antipiolho - Tennessee Williams Completo
Tradução
Isabela Lemos
Rita Giovanna
1
O título original, “The Lady of Larkspur Lotion”, alude a um produ
to bastante popular nos anos de 1930: uma loção composta à base da
erva silvestre “larkspur” (planta da família das Ranunculáceas conhe
cida em português como delfínio, espora ou espora brava), usada no
tratamento de parasitas venéreos. (N. T.)
****************************
personagens
miss hardwickemoore
mrs. wire
o escritor
****************************
CENáRIO
***
MRS. WIRE (do lado de fora, sem rodeios): Eu! (Seu rosto expressa um
pânico momentâneo, Miss Hardwicke-Moore levanta-se tensa.)
A DA M A DA L O çãO A N T I P I O L H O · 123
que essas baratas sejam as melhores companheiras de quar
to. A senhora não acha?
MRS.WIRE: Como é que vou fazer para que essas baratas voado
ras não entrem pelas janelas? De qualquer maneira, não é
por isso –
124 · 27 C A R R O S D E A L G O D ã O E O U T R A S P E ç A S E M U M A T O
MISS HARDWICKEMOORE (interrompendo): Eu não sei como
Mrs.Wire, mas tem de ter um jeito. Tudo o que sei é que elas
têm de desaparecer antes que eu durma aqui mais uma noi
te, Mrs.Wire. Porque se eu levantasse à noite e achasse uma
na minha cama, eu teria uma convulsão, juro por Deus, eu
morreria de convulsões!
MRS. WIRE: Que não há nenhuma casa velha nesse bairro que não
tenha baratas.
MRS. WIRE: Não está tão mau assim. E, aliás, a senhorita ainda
não me pagou o que falta do aluguel desta semana. Não
quero fugir do assunto das baratas, mas quero receber o
dinheiro.
A DA M A DA L O çãO A N T I P I O L H O · 125
MRS. WIRE: Ou a senhorita me paga o aluguel agora ou vai
pra rua.
MRS. WIRE: Tudo bem! Não divida seu espaço com elas! Arrume
suas coisas e vá morar num lugar sem baratas.
126 · 27 C A R R O S D E A L G O D ã O E O U T R A S P E ç A S E M U M A T O
repassados. Há semanas espero por eles, mas hoje de manhã
recebi a carta dizendo que houve um pequeno malentendi
do com os impostos do ano passado e –
MRS. WIRE: Pare com isso, eu já ouvi demais sobre essa maldi
ta plantação de borracha! Plantação de borracha no Brasil!
Você pensa que eu estou nesse negócio há dezessete anos e
não aprendi nada sobre mulheres do seu tipo?
A DA M A DA L O çãO A N T I P I O L H O · 127
MRS. WIRE: Ele gritava tão alto que tive de fechar a janela da
frente para que a rua inteira não ouvisse os gritos! Não ouvi
nada sobre a plantação no Brasil, mas ouvi muitas outras
coisas sobre aquela conversinha que tiveram à meianoite!
Loção Antipiolho para tirar o esmalte das unhas! Você acha
que eu sou criança, é? Essa história é páreo para a história
da maravilhosa plantação de borracha. (O escritor entra,
usando um antiquado roupão roxo.)
ESCRITOR: Pare!
MRS. WIRE: Sono? Háhá! Eu acho que o senhor quer dizer coma
alcoólico!
128 · 27 C A R R O S D E A L G O D ã O E O U T R A S P E ç A S E M U M A T O
MRS. WIRE (para Miss Hardwicke-Moore): A senhorita com sua
plantação de borracha no Brasil. Aquele brasão na parede
que comprou na loja de bugigangas – a mulher que vendeu
me contou! Uma das Hapsburgs! É! Uma dama com título
de nobreza! A Dama da Loção Antipiolho! Este é o seu tí-
tulo! (Miss Hardwicke-Moore se joga na cama e chora des-
controladamente.)
A DA M A DA L O çãO A N T I P I O L H O · 129
ESCRITOR (com voz cansada): Ah, muito bem. E se a senhora es
tiver certa? Suponhamos que não exista uma obraprima de
780 páginas. (Fecha seus olhos e toca sua testa.) Suponha
mos que não exista obraprima nenhuma! E daí, Mrs.Wire?
Mas apenas poucos, muito poucos – rabiscos soltos – no
fundo da minha gaveta velha... Suponhamos que eu quisesse
ser um grande artista, mas me faltassem a força e o poder!
Suponhamos que meus livros decepcionassem no capítulo fi
nal, e que meus versos fossem esboços fracos e incompletos!
Suponhamos que as cortinas das minhas fantasias mais su
blimes se abrissem para dramas magníficos – mas as luzes do
teatro se apagassem antes das cortinas se fecharem! Supo
nhamos que todas essas coisas lamentáveis sejam verdade! E
suponhamos que eu – cambaleando de bar em bar, bebendo
um drink após o outro até finalmente me jogar no colchão
infestado de piolhos deste bordel – suponhamos que, en
quanto eu precisar continuar como o protagonista indefeso
deste pesadelo, eu queira fazer que ele seja suportável, e o
ornamente, o ilumine – o glorifique! Com sonhos e ficções
e fantasias! Como a existência de uma obraprima de 780
páginas – prestes a ser estreada na Broadway – e livros de
poesias maravilhosos nas mãos dos editores esperando ape
nas por assinaturas para serem lançados! Suponhamos que
eu viva nesse lamentável mundo de ficção! Que satisfação
a senhora pode ter, boa mulher, em rasgar tudo isso em pe
daços, em esmagar – em chamar tudo isso de mentira? Vou
lhe dizer uma coisa – agora ouça! Não existem mentiras, só
aquelas que nos são socadas boca adentro pela necessidade,
pelo punho de ferro da necessidade, Mrs.Wire! Então eu sou
130 · 27 C A R R O S D E A L G O D ã O E O U T R A S P E ç A S E M U M A T O
um mentiroso, sim! Mas o seu mundo é construído em cima
da mentira, seu mundo é uma fábrica hedionda de mentiras!
Mentiras! Mentiras!... Agora estou cansado e já disse o que
penso e não tenho dinheiro pra lhe dar, então vá embora e
deixe essa mulher em paz! Deixea em paz. Vamos, saia, saia
daqui! (Ele a empurra com firmeza até a porta.)
A DA M A DA L O çãO A N T I P I O L H O · 131
MISS HARDWICKEMOORE (vagamente): Do Mediterrâneo? Ape
nas uma ou duas milhas!
ESCRITOR: Numa manhã bem clara, ouso dizer que seria possível
distinguir os cumes brancos de Dover?... Do outro lado do
canal?
CORTINA
132 · 27 C A R R O S D E A L G O D ã O E O U T R A S P E ç A S E M U M A T O